Rascunhos Culturais V2 N3.indd

Transcrição

Rascunhos Culturais V2 N3.indd
Revista Rascunhos Culturais | Coxim, MS | v. 2 | n. 3 | p. 1 - 220 | jan./jun. 2011
1
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CURSO DE LETRAS - CAMPUS DE COXIM
REITORA
Célia Maria Silva Correa Oliveira
VICE-REITOR
João Ricardo Filgueiras Tognini
DIRETOR DO CAMPUS DE COXIM
Gedson Faria
COORDENADORA DO CURSO DE
LETRAS
Marta Francisco de Oliveira
EDITORA RESPONSÁVEL
Geovana Quinalha de Oliveira
IMAGEM DE CAPA
Henrique Spengler, “Guaicuru II”,
Co!on -1997 - 60 x 40 cm. Acervo do
Museu Olho Latino.
REVISÃO
A revisão linguística e ortográfica é de
responsabilidade dos autores
CÂMARA EDITORIAL
Eliene Dias de Oliveira Santana
Flávio Adriano Nantes Nunes
Geovana Quinalha de Oliveira
Marta Francisco Oliveira
Marcos Amorim
Maria Luceli Faria Batistote
CONSELHO CIENTÍFICO
Ana Paula Squinelo (UFMS)
Alberto Oliveira Pinto (FLUL)
Agnaldo Rodrigues da Silva (UNEMAT)
Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)
Clelia Maria Lima de Mello e Campigo!o (UFSC)
Edgar Cézar Nolasco dos Santos (UFMS)
Glaucia Muniz Proença (UFMG)
Heloisa Helena Pacheco Cardoso (UFU)
José Batista de Sales (UFMS)
Luis Abel dos Santos Cezerilo (UEM)
Maria Adélia Menegazzo (UFMS)
Marcio Markendorf (UFSC)
Marcos Menezes (UFG)
Sheila Dias Maciel (UFMT)
Rosana Carla Gonçalves Gomes Cintra (UFMS)
Rosangela Patriota (UFU)
Vera Lúcia Puga (UFU)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)
Revista rascunhos culturais / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. – v.
1, n. 1 (2010)- . Coxim, MS : A Universidade, 2010- .
v. ; 22 cm.
Semestral
ISSN 2177- 3424
1. Cultura - Periódicos. 2. Línguas e linguagem – Periódicos. I.
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
CDD (22) 050
2
Sumário
Apresentação
Artigos
11
29
A literatura brasileira no mapa espanhol
43
59
De Oswald à Ruffato: o sensível e (n)o cinema
75
103
127
Lucilene Machado Garcia Arf
Homens de letras na República Velha: legitimadores e
críticos da nova ordem social
Luis de Almeida
Marta Scherer
João Guilherme Dayrell
Subproduto do cinema? a chanchada e o caráter cômico
e político do filme “Nem Sansão nem Dalila”, de 1950
Dolores Puga Alves de Sousa
Átila Alixandre De Moraes
A retórica colonial na narrativa histórica sobre
antiguidade: “Garra negra”, de Jacques Martin
Alberto Pinto
Ferreira Gullar – Sobrevoo, Rasante
Arthur de Vargas Giorgi
Quanto vale ou é por quilo? – uma breve discussão
sobre raça, gênero e ações afirmativas
Bianca Buse
3
137
153
Por uma visão não metonímica de cultura
169
O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos
1961-1974
183
Oralidade e memória: aromas exalados de “Pé-de-perfume”
193
Singularidade cínica e enfrentamento: a coragem da
verdade de Mersault em “O estrangeiro”
207
4
Natália Aparecida Tiezzi Martins dos Santos
Edgar Cézar Nolasco
Itinerários do imaginário contemporâneo: migração,
projetos utópicos em “Lucy”, de Jamaica Kincaid
Rogério Mendes Coelho
David Castro Ne#o
Andréia Maria da Silva Lopes
Márcia Rejane Brilhante Câmpelo
Hadoock Ezequiel de Medeiros
Helano Jader Cavalcante Ribeiro
A escritura autobiográfica de Clarice Lispector
Leilane Hardoim Simões
Edgar Cézar Nolasco
Apresentação
Rascunhar temas culturais exige um exercício crítico de reflexão
sobre o que é cultura, quais suas formas de produção e seu impacto na
construção do que consideramos sujeito e sociedade atual, em todos
os seus desdobramentos. Por meio da linguagem escrita, abordar
temas diversos que convergem neste amplo mosaico cultural equivale
a reconhecer o direito ao conhecimento, e propagá-lo é um convite
ao debate gerador de outros saberes, ao diálogo amplo e aberto.
O terceiro número da Revista Rascunhos Culturais traz para o
leitor discussões e desafios em torno do lugar ocupado pelas ciências
humanas, em especial as de Letras e História. Contemplando, portanto,
múltiplos projetos intelectuais, os artigos aqui reunidos estabelecem
diálogos e interfaces com pesquisas voltadas para os estudos
literários, históricos, cinematográficos e linguísticos. Acreditamos
que essa tessitura dialógica promove um intercâmbio crítico que
se faz significativo para a pesquisa dessas áreas do conhecimento,
como é caso da investigação de Lucilene Machado Garcia Arf em
A literatura brasileira no mapa espanhol, na qual a autora nos conduz
por uma viagem além-mar e além das letras, ao traçar os meandros
dos caminhos que a literatura brasileira percorreu para encontrar
em território espanhol um pequeno pedaço de solo onde enraizarse, embora aparentemente pouco fértil. Em seu esforço de delinear
esta trajetória, fornece uma orientação rumo a futuros diálogos
5
possíveis. O artigo Homens de letras na República Velha: legitimadores
e críticos da nova ordem social, de Luis de Almeida e Marta Scherer,
demonstra como os sujeitos intelectuais que viveram a proclamação
da República e a Belle Époque foram fundamentais para a construção
de um discurso homogêneo e legitimador do estado nação. O texto
ressalta, entretanto, as oposições ao modelo discursivo proposto por
meio das vozes de Euclides da Cunha, Lima Barreto e Sílvio Romero.
Em De Oswald à Ruffato: o sensível e (n)o cinema, João Guilherme
Dayrell investiga o diálogo que os livros “Memórias Sentimentais
de João Miramar”, de Oswald de Andrade e “eles eram muitos
cavalos”, de Luiz Ruffato mantém com a linguagem e as técnicas
cinematográficas no cerne de suas construções. O artigo problematiza
ainda a categoria do sensível experimentado pelo homem moderno
a partir do que Guy Debord chama de “sociedade do espetáculo”.
Dolores Puga Alves de Sousa e Átila Alixandre de Moraes em
Subproduto do cinema? A chanchada e o caráter cômico e político do filme
‘Nem Sansão nem Dalila’, de 1950, analisam a arte cinematográfica
como possível veículo de (re)presentação de discursos sócio-políticos
de um dado momento histórico. Nesse sentido, por intermédio do
filme “Nem Sansão nem Dalila”, de Carlos Manga, conhecido por ter
características das “Chanchadas da Atlântida”, os autores investigam
enunciados críticos dirigidos ao governo de Getúlio Vargas. A partir
da leitura crítica do texto em quadrinhos “Garra Negra”, de Jacques
Martin, Alberto Pinto discute o modo como o autor franco-belga
construiu arquétipos identitários que apontam para uma descrição
ultrapassada, exótica e colonial do homem africano e da África em
A retórica colonial na narrativa histórica sobre Antiguidade: ‘Garra negra’
de Jacques Martin. A poesia de Ferreira Gullar recebe novos olhares a
partir da análise empreendida por Arthur de Vargas Giorgi. Nela, o
autor busca outras leituras para além das propostas pelo biografismo
historicista e pela autonomia estética em Ferreira Gullar – Sobrevoo,
Rasante. Bianca Buse propõe reflexões em torno da problemática
6
raça/gênero e ações afirmativas a partir da análise do filme “Quanto
vale ou é por quilo?”. A autora discute a presença da impunidade
e da violência, o preconceito dispensado à mulher no mercado de
trabalho e, especialmente, as problemáticas surgidas pela ausência
de ações afirmativas e de políticas públicas no Brasil oitocentista e
contemporâneo em Quanto vale ou é por quilo? – Uma breve discussão
sobre raça, gênero e ações afirmativas. Em Por uma visão não metonímica
de cultura, Edgar Cézar Nolasco e Natália Aparecida Tiezzi Martins
dos Santos discutem a conceituação de cultura na sociedade pósmoderna. Em contraponto à leitura universal que tende a englobar
em sua estrutura os textos locais/regionais promovendo uma leitura
homogeneizante e universalizante, o debate proposto pelos autores
gira em torno da possibilidade de se ler a cultura local a partir do
próprio local, não negligenciando, desta maneira, o espaço de onde
fala o sujeito. As possíveis causas de deslocamento de sujeitos e, por
extensão, seus processos de ressignificações sociais são discutidos por
Rogério Mendes Coelho em Itinerários do Imaginário contemporâneo:
migração, projetos utópicos em ‘Lucy’, de Jamaica kincaid. Ao analisar a
escritura de Jamaica Kincaid, o autor destaca a migração como veículo
formador de novas vozes que contribuíram para problematizar alguns
paradigmas da Teoria e Crítica Literária na contemporaneidade.
David Castro Ne#o se vale da história comparada para pôr em
discussão a utilização da propaganda feita pelos militares brasileiros
via AERP (Assessoria Especial de Relações Públicas) com o intuito
de promover a estabilidade do governo, e o uso que o complexo
IPÊS/IBAD (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais/Instituto
Brasileiro de Ação Democrática) faz da propaganda para buscar a
instabilidade do governo Goulart no artigo O IPES/IBAD, a AERP e a
propaganda durante os anos 1961-1974. Andréia Maria da Silva Lopes,
Márcia Rejane Brilhante Câmpelo e Hadoock Ezequiel de Medeiros
ressaltam a relevância que a oralidade desempenha na construção
da memória cultural e, por extensão, na literatura contemporânea
7
de São Tomé e Príncipe. Assim, a reescritura do gênero oral sóias
em “Pé-de-perfume”, da escritora santomense Maria Olinda Beja,
é objeto de análise do artigo Oralidade e memória: aromas exalados de
‘Pé-de-perfume’. O último curso de Michel Foucault “Le courage de
La vérité” e o conceito de singularidade proposto por Gilles Deleuze
são discutidos por intermédio da leitura crítica de “O estrangeiro”,
de Albert Camus em Singularidade cínica e enfrentamento: a coragem
da Verdade de Mersault em O estrangeiro, por Helano Jader Cavalcante
Ribeiro. Finalmente, Leilane Hardoim Simões e Edgar Cézar Nolasco,
voltados à reflexão das representações sobre si e o outro, se valem
do conceito de autoficção para investigarem traços biográficos de
Clarice Lispector dispersos/ (trans)postos no livro “Água Viva” no
artigo A escritura autobiográfica de Clarice Lispector.
Agradecemos aos autores e leitores por tecer Rascunhos Culturais
e os convidamos a (re)pensar e refletir sobre os temas apresentados
costurando, assim, essa grande colcha de retalhos do qual se compõe
o conhecimento e a pesquisa.
Geovana Quinalha de Oliveira
Marta Francisco de Oliveira
8
Artigos
9
10
A literatura brasileira no
mapa espanhol
Lucilene Machado Garcia Arf *
Resumo: Já há algum tempo o Brasil se colocou no mercado espanhol como
um agente de bens simbólicos e culturais, exportando músicas, danças,
telenovelas, cinema e também as chamadas “artes impuras” que circulam
nos circuitos minoritários a que foram destinadas, como é o caso de vídeos,
revistas que exploram o carnaval e a sensualidade da mulher brasileira. A
literatura brasileira tem uma história bastante superficial na Espanha. A
questão pode ser idiomática, ou estar relacionada a fatores geográficos ou
econômicos como costumam justificar os estudiosos e, pode sim refletir
no âmbito cultural, porém são pontos poucos discutidos e seria pertinente
uma discussão mais profunda a respeito do assunto. O que este artigo faz
é um inventário da presença da literatura brasileira na Espanha até os anos
oitenta e os caminhos que percorreu para ser lida, discutida e abrir espaço
para o que vieram posteriormente.
Palavras-chave: recepção, história, literatura brasileira
Resumen: Desde hace algún tiempo, el Brasil se ha colocado en el mercado
español como un agente de bienes simbólicos y culturales, ha exportado
músicas, danzas, telenovelas, películas y también lo llamado “arte impuro”
que circula en los circuitos minoritarios para el cual fueron diseñados,
como es el caso de los videos y revistas que explotan el carnaval y la
sensualidad de la mujer brasileña. La literatura brasileña tiene una historia
*
Doutoranda em Teoria da literatura pela Universidade Julio de Mesquita Filho –
UNESP, São José do Rio Preto/SP.
Bolsista da FUNDECT
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bastante superficial en España. La cuestión puede ser idiomática, o estar
relacionada con factores geográficos o económicos como tienden a justificar
los académicos, y puede, sí, reflejar en el ámbito cultural, pero son puntos
son pocos discutidos y sería importante una amplia discusión sobre el tema.
Lo que este artículo hace, es un inventario de la presencia de la literatura
brasileña en España hasta los años ochenta y los caminos que tomaron para
ser leído, discutido y hacer espacio para lo que vino después.
Palabras claves: recepción, historia, literatura brasileña
A literatura brasileira, apesar de oferecer uma variedade de
gêneros, não deixou raízes profundas na Espanha e, talvez, na
Europa. Isso se deve a diversos fatores, mas os principais deles
estão ligados à língua. A socióloga francesa Pascale Casanova, em
seu livro La Republique mondiale des Le!res (1999), defende a idéia de
que a literatura pode ser pensada em termos de mapas mundiais,
distribuídos conforme a área lingüística de cada produção. Nessa
república de letras, a literatura brasileira pertence à área do português
e, portanto, situa-se na periferia, ou conforme ela mesma sustenta,
é uma literatura excêntrica. Isso explica o fato de a literatura sulamericana, nossa vizinha geograficamente, tornar-se comercialmente
tão interessante na Europa, o mapa linguístico é o espanhol que está
em uma posição muito superior a do nosso idioma, além de poder
entrar na Espanha sem a necessidade de tradução.
Jorge Schwartz no texto “Abaixo Tordesilhas” menciona o clássico
entrave linguístico que faz o castelhano mais acessível ao leitor
brasileiro do que o português para o leitor de língua espanhola.
Nisso reside, segundo ele, uma das barreiras que afastaram o leitor
hispânico das obras escritas em português. Os críticos literários
brasileiros se debruçaram com muito maior curiosidade sobre a
literatura de língua espanhola do que eles pela brasileira. Para ele:
12
A literatura brasileira no mapa espanhol
Não encontraremos, até meados do século XX, qualquer
intelectual hispânico que tivesse pelas letras do Brasil o interesse
abrangente e sistemático que José Veríssimo, Mário de Andrade
ou Manuel Bandeira dedicaram às literaturas do continente.
(Schwartz, 1993, p. 175)
Exemplo citado por Schwartz é Alfonso Reyes , mexicano que muito
jovem é exilado na Espanha onde escreve livros em versos, prosa
e ensaios. Após ter ficado famoso, o México o incorpora no serviço
diplomático e o envia ao Brasil, onde permanece desde o ano de 1930
até 1937. Reyes aproveita sua experiência diplomática para promover
um intercâmbio mais próximo com a literatura brasileira e, durante
quatro anos dirige no Rio de Janeiro o Correio Literário de Alfonso Reyes,
publicado integralmente em espanhol, em que dedica um reduzido
espaço ao Brasil. O mesmo pode-se dizer da mexicana Gabriela Mistral
em semelhante missão. O Brasil pouco influenciou em suas reflexões
literárias. Salvo um caso excepcional em que refletiu sobre o diálogo
de Sóror Juana com Padre Vieira, ou a evidente influência de Gôngora
e Quevedo na obra de Gregório de Matos, o maior poeta barroco
brasileiro. Fatores estes que nos permitem afirmar que o Brasil, como
um país considerado parte da América Latina, não consegue tirar
proveito disso, ao contrário, torna-se um grande estrangeiro dentro
dela, vide as diferenças linguísticas e culturais. Também os projetos
culturais desenvolvidos nos países latinos não contribuíram para a ida
da literatura brasileira para a Europa.
Aina Pérez Fontdevilla, da Universitat autônoma de Barcelona,
declarou no IV Encontro Internacional de Investigadores de la
Literatura Hispánica celebrado na Universidade de Lisboa (2010)
que a literatura brasileira padece, na Espanha, uma dificuldade
congênita de difusão, a julgar pelo modo em que se referem aos
autores brasileiros e à produção literária do país. Segundo ela, os
autores brasileiros têm na Espanha “uma existência fantasmal” e,
mesmo ultrapassado os anos 2000, o Brasil continua a ser “uma ilha
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inexplorada, insular, introvertida e desconhecida”, com exceção de
Clarice Lispector, Machado de Assis e Guimaraes Rosa, considerados
a trindade literária brasileira na Espanha.
Para Cristina Peri Rossi, tradutora de vários livros brasileiros para
a língua espanhola (2003), a literatura brasileira é pouco conhecida
tanto na Espanha como na América Latina. Desde a vasta selva
amazônica e o deserto nordestino até a costa luminosa e sensual do
Rio de Janeiro, o Brasil abarca muitas regiões, climas, milhares de
habitantes de diferentes culturas, sendo que os microcosmos que
originam esta diversidade se refletem na literatura que vai desde o
regionalismo de Graciliano Ramos até os relatos urbanos de Rubem
Fonseca. Segundo ela, a dialética entre as correntes européias e as
culturas autônomas, ou de herança africana permite que existam
poetas românticos que publicaram manifestos de poesia em Paris,
até narradores naturalistas ou existencialistas. Mesmo com as difíceis
condições políticas, no caso o período da ditadura brasileira, a
narrativa e a poesia do Brasil continua a produzir autores de grande
interesse, ainda que poucos difundidos fora de sua fronteira.
Rompendo as fronteiras
A primeira informação sobre Literatura de língua portuguesa
produzida no Brasil chegou à Espanha em 1855. O escritor Juan
Valera, depois de dois anos em uma missão diplomática no Rio
de Janeiro escreve uma coleção de artigos para a Revista Española
de Ambos Mundos que mais tarde reuniu em forma de ensaio sob o
título de La poesia del Brasil, em Madrid. Também escreve uma vasta
correspondência para seus amigos espanhóis. Em algumas cartas
pode-se encontrar sua opinião sobre as obras de autores brasileiros,
o que, segundo Calderaro (2009), talvez sejam as primeiras críticas
acerca da produção literária no Brasil. Do Rio, em uma carta a Serafín
Estébanez Calderón – escritor romântico espanhol – com data de 13
de fevereiro de 1852, Valera escreve:
14
A literatura brasileira no mapa espanhol
Los brasileños son muy amigos de la música y de la poesía (…). De
poetas hay por aquí un enjambre, y algunos buenos; Magalhães que
está ahora en Nápoles de ministro, y Gonçalves Dias son los mejores;
pero en particular este último, que ha sabido dar a sus composiciones
la novedad, el primor, las galas del país en que nacieron, y la vida
y el fuego de este clima. (Garcia Martín, Jose Luis, apud Calderaro.
1996 p. 68)1
Em outra carta, datada de 09 de março de 1853, resume a
história da obra Marilia de Dirceu ao mesmo amigo Estébanez
Calderón:
Se trata de la Marilia de Dircéo. Por los años de 1783, vivía esta
hermosa dama en Villa-Rica, capital de la provincia de Minas-Geraes,
y era amada con el más tierno y ferviente cariño por el magistrado
Gonzaga, que no es otro sino el poeta Dircéo. Favorito este por las
musas, e inspirado de Amor, compuso en elogio a la bella, tan lindos,
inocentes y delicados versos, que vivirán siempre en la memoria de
cuantos saben la lengua portuguesa. (Garcia Martín, Jose Luis, apud
Calderaro. 1996: 68)2
Valera continuaria a escrever ao mesmo amigo em carta datada
de 12 de Julio de 1853, referindo-se agora ao romântico brasileiro
Manuel Araújo Porto-Alegre:
La mayor novedad literaria de por aquí es el “Poema de Colón”, que
está escribiendo Porto-Alegre. He visto algunos fragmentos en el
Guanabara Revista Literaria. Dejo para otra vez hablar de ellos. Luego
1
Os brasileiros são mui amigos da música e da poesia (...). De poetas, há por aqui
um enxame, e alguns bons; Magalhães que está agora em Nápoles de ministro, e
Gonçalves Dias são os melhores; porém este último, particularmente, soube dar a
suas composições a novidade, o primor, os enfeites do país em que nasceu e a vida
e o fogo deste clima. (Garcia Martín, Jose Luis, apud Calderaro. 1996 p. 68).
2
Trata-se de Marilia de Dirceu. Por volta dos anos 1783, vivia esta bela dama em Vila
Rica, capital do estado de Minas Gerais, e era amada com o mais terno e fervente
carinho pelo magistrado Gonzaga, que não é outro senão o poeta Dirceu. Favorito
este pelas musas e inspirado de amor, compôs o elogio à bela, tão lindos, inocentes
e delicados versos que viveram na memória de todos os que conhecem a língua
portuguesa. ( Garcia Martín, Jose Luis, apud Calderaro, 1996:68)
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que el poema se publique, le mandaré a usted y en cambio espero
que usted me envíe el de Campoamor sobre el mismo asunto. (idem)3
Seguindo os moldes da época, na Revista Española de Ambos Mundos
o autor comenta a diferença existente entre a paisagem brasileira e
portuguesa, a natureza imponente e bela, assim como as distintas
raças e populações que habitam o país. Fala do índio e do diferencial
do negro escravo, acentuando seus excelentes dotes musicais.
São quatro os poetas a quem se refere o escritor cordobês: dois
do século XVIII e dois do século XIX. Todos eles são destacados pela
temática indigenista e a grandeza das descrições paisagísticas sempre
belas e exuberantes. O primeiro poeta destacado é Basílio da Gama,
autor do poema épico “Uraguai”, publicado no Brasil em 1769, que
Valera reproduz várias estrofes na língua original. O segundo é
Santa Rita Durão, autor do poema “Caramuru”, publicado em 1781.
Dele também se explora o conteúdo e se reproduz alguns versos.
O terceiro poeta é Gonçalves Dias, de quem se menciona algumas
composições, citando como exemplo o poema “Juca-Pirama”, em que
pinta maravilhosamente as feras e os costumes das tribos selvagens.
Finalmente se compromete a falar com mais profundidade da nova
poesia que está surgindo no país sul-americano, especialmente de
Manuel Araujo Porto-Alegre. Entretanto, Juan Varela não cumpriu a
promessa, tampouco nenhum outro escritor de sua geração se ocupou
da literatura brasileira.
Também é importante citar outra referência ao Brasil escrita pelo
famoso filólogo, poeta e historiador espanhol Menéndez Pelayo, em
carta enviada a seu amigo romancista José Maria de Pereda e datada
de Lisboa, em 31 de outubro de 1876, onde faz comentários sobre
Gonçalves Dias e denuncia o desconhecimento dos portugueses sobre
a literatura produzida no Brasil:
3
A maior novidade literária daqui é o “Poema de Colombo” que está escrevendo
Porto-alegre. Vi alguns fragmentos no Guanabara – Revista literária. Em outra oportunidade, falo sobre eles. Logo que o poema seja publicado eu lhe mandarei e, em
troca, espero que o senhor me envie o de Campoamor sobre o mesmo assunto (idem).
16
A literatura brasileira no mapa espanhol
El Brasil es aún más rico que Portugal en poetas líricos, y los ha
tenido de primer orden, como Gonçalvez Dias, en lo que va de siglo.
La literatura brasileña, a parte de sus ingenios más esclarecidos, no
es tan conocida como debiera en su antigua metrópoli. (Menendez
Pelayo, apud Calderaro, 2009)4
Entrando no século XX, a literatura brasileira aparece na revista
Electra, que circulou apenas entre os meses de março a maio de
1901 e teve como responsáveis nomes de valores como Valle-Inclán,
Villaespesa, Pio Baroja e Manuel Machado e contou com colabores
como Rubén Darío e Juan Ramón Jiménez, por exemplo. Nas páginas
da efêmera revista foi feita uma das primeiras apresentações de
poetas brasileiros por Viriato Diaz, o que não se sabe, ao certo, é
quais poetas fizeram parte da publicação.
Depois de Electra, outras marcas começam a ser mais nítidas
nas revistas culturais de Espanha. Cosmópolis, revista de Enrique
Gómez Carrillo com duração de janeiro de 1919 a setembro de
1922 e periodicidade mensal, foi uma publicação amplamente
cultural com destaque para a literatura. Foi dedicado grande
espaço para os escritores estrangeiros, incluindo os portugueses
Guerra Junqueira e Eça de Queiróz, entre outros. Mas, no número
3, de março de 1919, dedica treze páginas na apresentação da
mais saliente e importante personalidade do Brasil: Rui Barbosa.
O número 5, de maio de 1919, dedica três páginas aos poemas
de Olavo Bilac, além de um artigo que começa anunciando a
morte do poeta.
Em janeiro de 1927, surge uma das revistas consideradas mais
importantes do final da década de vinte e início da seguinte, La
gaceta literária, fundada e dirigida por Ernesto Giménes Caballero e
4
O Brasil é um país mais rico que Portugal em poetas líricos e os tem de primeira
ordem, como Gonçalves Dias, até o momento, neste século. A literatura brasileira,
à parte de seus engenhos mais esclarecidos, não é tão conhecida como deveria em
sua antiga metrópole. (Menendez Pelayo, apud Calderaro, 2009)
17
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Guillermo de Torre como secretário de redação. A revista teve uma
trajetória mais longa que as anteriores chegando a 123 números, numa
periodicidade quinzenal, durando até o ano de 1932, sendo que nos
seis últimos números circulou com o nome de Robinsón Literário.
Segundo Calderaro, além de ser uma publicação comprometida com o
desenvolvimento do vanguardismo espanhol, em edital do seu primeiro
número declara que queria ser ibérica, americana e internacional. Em
1929, a partir do número 49, surgem as sessões “La gaceta portuguesa”
e “La Gaceta Americana”, de modo que o Brasil participa das duas. No
número 50, de 15 de janeiro de 1929, “La gaceta portuguesa” apresenta
em sua quinta página um estudo intitulado “La literatura brasileña
contemporânea” que começa defendendo o poder imaginativo do
brasileiro, falando da fauna e flora fantásticas que evidentemente
haveriam de provocar nos homens uma exaltação, uma imaginação
muito superior a das gentes do amável Portugal. Na sequência, cita um
exagerado número de escritores brasileiros que vão desde os naturalistas
até os parnasianos, deixando transparecer a superficialidade do texto.
Além disso, não comenta nada sobre as propostas modernistas e sobre
os novos rumos que tomaria então a literatura brasileira.
Um ano depois, em 15 de janeiro de 1930, a literatura brasileira
volta a aparecer na Gaceta literária, dessa vez na coluna “La gaceta
americana” em artigo de uma página e meia, redatado pelo escritor
chileno Gerardo Seguel, que demonstra uma visão mais crítica de
acordo com os últimos acontecimentos culturais da época. O texto
analisa uma das mais importantes revistas do modernismo brasileiro
que é Antropofagia e apresenta na sequência uma série de traduções
dos poemas de Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Ronald de
Carvalho, Meno#i del Picchia, Cecília Meirelles, Augusto Meyer,
Jorge de Lima e Tasso da Silveira, entre outros.
Depois da década de XX, do passado século, Rafael Cansinos-Assens
traduziu para a editora América de Madrid, uma seleção de contos de
18
A literatura brasileira no mapa espanhol
Machado de Assis, que foi publicado com o título de Sus mejores cuentos.
Em 1930, o poeta Francisco Villaespesa iniciou suas traduções da poesia
de língua portuguesa na América. O grande projeto de Villaespesa era
– por encargo do governo brasileiro – criar uma “Biblioteca brasileira”
de oitenta volumes que acolhesse as obras mais importantes dos
mais significativos autores do Brasil. Villaespesa inicia o projeto, mas,
infelizmente, uma súbita enfermidade fez com que abandonasse o
trabalho e regressasse à Espanha, onde morreu em 1936. Em 1978 a
Revista de Cultura Brasileña, correspondente ao mês de junho, organiza
um livro com as versões não publicadas de Villaespesa. Nela se pode
observar a extraordinária capacidade versificadora do poeta espanhol,
o que permite supor que a “biblioteca brasileira” teria sido fundamental
para a história da tradução e difusão da literatura brasileira na Espanha.
Este fato, bem como a perda de um baú em que transportava
seus documentos, impediu que a proposta se concretizasse como
anteriormente projetada. Apenas vieram à luz três livros: Sonetos e
poemas de Olavo Bilac, El navío negrero y otros poemas de Castro Alves
e Toda la América de Ronald de Carvalho.
No ano de 1946, surge na Espanha a revista Ínsula, fundada por Enrique
Canito e Luis Cano, com o objetivo de recuperar a literatura do exílio e
colocá-la em contato com as novas gerações espanholas, instituindo a
primeira publicação verdadeiramente independente do pós-guerra que
ainda continua a funcionar. Junto com as revistas La estafeta literária e
Índice de artes y letras constituem, nos anos 50 um relevante meio para
os debates literários em torno dos gêneros e dos autores. Os textos de
literatura brasileira, ou sobre esta, foram freqüentes no decorrer dos
anos, do que se pode aferir que a literatura brasileira era comentada em
algumas importantes revistas culturais da época com relativa circulação
nos meios intelectuais e artísticos, no entanto, é irrisório se comparado com
a literatura de outros países, além se ser apresentada de forma descontínua,
fragmentada e com pouca profundidade.
19
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 11 - 27 •jan./jun.2011
Vinte anos após o projeto frustrado de Villaespesa, Oswaldo Rico
publicou, em 1948, por meio do Instituto Cervantes, uma antologia com
o título Poetas del Brasil, bastante incompleta, entre outras razões, por
ignorar a poesia escrita na primeira metade do século XX. Pouco depois,
Alfonso Pintó traduziu a Antologia de poetas brasileños de ahora, dentro de
uma coleção chamada “O livro inconsútil”, editada em uma imprensa
artesanal do poeta João Cabral de Melo Neto, então diplomata em
Barcelona nos anos de 1947 a 1950. A antologia em questão, completa, em
parte, a seleção de Rico, ao publicar poemas de autores não citados pelo
primeiro. Por outro lado, João Cabral teve a oportunidade de contatar,
em Barcelona, intelectuais e artistas espanhóis e reuniu na mencionada
coleção, de escassa tiragem, ainda que com boa qualidade tipográfica e
estética, poetas catalães como Joan Brossa ou Juan Eduardo Cirlot e os
brasileiros Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes ou ele mesmo.
Posteriormente, em 1952, Renato de Mendoza publicou a Antologia
de la poesia brasileña, muito mais completa que as mencionadas
anteriormente, traduzidas por Rafael Morales e Rafael Santos
Torroella, e, por entusiasmo e iniciativa de Cabral, criou-se a Revista
de cultura brasileña, editada pela embaixada do Brasil na Espanha,
cuja primeira série, dirigida por Ángel Crespo, perdurou de 1962
até 1968. Durante os seis anos, a revista reproduziu poemas, entre
outros, de Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade, Mario de Andrade, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Vinicius
de Moraes, Raúl Bopp, bem como uma seleção de poetas parnasianos,
simbolistas e românticos que foram traduzidos pelo próprio Crespo
e pelo poeta e acadêmico Dámaso Alonso.
Recuperando as antigas traduções e acrescentando outras novas,
Crespo publica, em 1973, a Antologia de poesía brasileña, com uma
introdução rigorosa e extensa que, juntamente com as versões
poéticas, é referência obrigatória para o conhecimento da poesia em
língua portuguesa produzida na América.
20
A literatura brasileira no mapa espanhol
Mesmo reconhecendo todo o esforço desses intelectuais em abrir
caminhos para a literatura brasileira na Espanha, o que tivemos foi
uma publicação ínfima em relação, por exemplo, a nossos vizinhos
sul-americanos, talvez hispano-americanos que, segundo estudos
mais recentes da recepção, têm obtido grandes projeções na Espanha
desde o ano de 1967 quando o guatemalteco Miguel Ángel Asturias
ganhou o prêmio Nobel de literatura. No mesmo ano surgiu Cem
anos de solidão de Gabriel Garcia Marques, que em pouco tempo se
converteu em um best-seller. Nos anos seguintes vieram as publicações
de Isabel Allende, Octavio Paz e Mario Vargas Llosa. Não há dúvidas
de que a literatura hispano-americana gozou de muita popularidade,
alavancando a literatura sul-americana de língua espanhola, o que
não ocorreu com o Brasil.
Latinos e estrangeiros
O Brasil não se beneficiou do famoso boom latino americano que
atribuiu fama a García Marques, Vargas Llosa ou Borges. Lawrence
Venuti, em sua obra Escândalos da tradução, assegura que:
O boom foi em grande parte um aumento nas traduções das literaturas
hispânicas que negligenciou as evoluções brasileiras contemporâneas:
entre 1960 e 1979, as editoras britânicas e americanas publicaram
330 traduções do espanhol, mas somente 64 traduções do português
brasileiro. (2002: 318).
Segundo a professora Gilda Oswaldo Cruz
O Brasil não teve a vantagem de contar, como seus vizinhos de
continente, com a vigorosa caixa de ressonância que a renascida
Espanha dos finais da década de sessenta significou para os países do
sul. O empobrecido Portugal imerso, até 1975, na letargia salazarista,
não pôde funcionar como porta literária para sua ex-colônia. (2001: 14)
O português, apesar de ter evoluído do galego (idioma falado na
Galícia-ES), é ainda visto, por parte dos espanhóis, como uma língua
21
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 11 - 27 •jan./jun.2011
“rara”, uma insularidade geográfica e cultural diante das Américas
hispânicas. Em geral, as publicações brasileiras foram bastante
fragmentadas, poucos títulos por autor e por diferentes editoras, o
que não permitiu ao público espanhol a oportunidade de constituir
uma opinião mais precisa sobre a narrativa brasileira, dificultando
o trabalho dos críticos em relacionar as novas traduções com as
publicações anteriores; tínhamos então apenas uma porção de nomes
soltos. Sem contar que as publicações brasileiras compunham-se, em
sua maioria, de uma literatura romântica e realista/naturalista que se
afinavam com os relatos de viagem, populações coloniais, sejam elas
índios, escravos ou negros, ou aspectos relacionados com a vegetação,
ecossistema, como é o caso de Jorge Amado e Raquel de Queirós, cuja
literatura está voltada para temática do nordeste e romance social.
Antonio Maura em artigo publicado na Revista de Cultura
Brasileña, nº 5, adverte que na década de sessenta a literatura
brasileira era praticamente desconhecida na Espanha. Nem mesmo
os autores do regionalismo haviam sido traduzidos para a Península
espanhola, com exceção de Lins do Rêgo com a obra Cangaceiros,
editada em 1957 com tradução de A. Fernandes pela editora Caralt
de Barcelona.
Angel Crespo passa a ser, a partir dos anos sessenta, o grande
divulgador da cultura brasileira na Espanha. Em 1963, em artigo
publicado na série antiga da Revista de Cultura Brasileña, faz referência
ao escritor Guimarães Rosa. Ele mesmo que traduziria Grandes sertões
veredas três anos depois, falava de um autor que descrevia o sertão
brasileiro e seus habitantes de um ponto de vista tão pessoal que
superava de uma só vez a tradição brasileira do romance regionalista.
No mesmo artigo, Crespo acrescenta que a particularíssima linguagem
de Rosa era praticamente intraduzível, algo que o próprio crítico faria
posteriormente para oferecer aos espanhóis a única tradução de uma
das mais importantes obras brasileiras.
22
A literatura brasileira no mapa espanhol
Em junho de 1967, a Revista de Cultura Brasileña nº 27 é dedicada
a Guimarães Rosa. Ángel Crespo, então diretor da publicação, relata
sua viagem ao interior de Minas Gerais, passando pelos lugares
mencionados nos textos de Rosa, bem como a difícil tarefa de traduzilo. Também fazem parte da encadernação outros autores como Renard
Pérez e Julio E. Miranda.5
Em 1969, é publicado Primeras historias também pelo selo da
Seix Barral de Barcelona e depois o escritor ficará, por muitos anos,
praticamente esquecido.
Nos anos setenta, o autor brasileiro mais popular na Espanha era
Jorge Amado, com sua obra Los viejos marineros editada em 1971 com
tradução de Basílio Losada. Talvez ainda o seja. O ISBN espanhol
registra 95 obras de amado, computando, evidentemente, as várias
edições. É, de longe, o escritor mais publicado na Espanha, embora
a crítica tenha se atentado mais a Clarice Lispector. Recordemos
também que em 1974, outro grande nome do regionalismo, Graciliano
Ramos teve o seu Vidas secas traduzido e, em 1978, Angústia. Também
em 1974, Avalovara de Osman Lins. Em 1977 é feita a tradução de
Macunaíma de Mário de Andrade e de Perto do coração selvagem de
Clarice Lispector. No ano seguinte, 1978, temos em espanhol Tebas
de mi corazón de Nélida Piñon.
5
O número contem os seguintes estudos: “Guimarães Rosa”, de Renard Pérez, “Modos, lenguaje y sentido em Gran sertón: veredas, de João Guimarães Rosa” de Julio
E. Miranda, “Elementos geográficos en Gran sertón: veredas. Algunos aspectos” de
Silvia Moodie, “El quehacer poético de Guimarães Rosa” de Sandra Márcia Haute y
“Notas sobre las versiones y traducciones de Gran sertón:veredas”, de Pilar Gomes
Bedate. A revista se completa com uma carta do próprio Guimarães Rosa ao então
embaixador do Brasil na Espanha, Antônio C. Cámara Canto, e o texto “Poshomenaje
introductorio”, de Ángel Crespo e sua tradução de cinco textos do autor mineiro:
“La ceguera”, de Sagarana; “Cara de bronce”, de Corpo de baile; El juicio de Zé Bebelo”, de Grandes sertões: veredas; “Los hermanos Dagobé” e “Ninguno, ninguna”
de Primeiras estórias.
23
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 11 - 27 •jan./jun.2011
Segundo a professora Áurea Fernándes Rodrígues, da Universidade
de Vigo, a literatura brasileira na Espanha é pouco conhecida e,
sobretudo, pouca representativa da diversidade e realidade do Brasil.
As obras chegaram muito tarde à Espanha em relação a outros países
europeus, como é o caso da França. E, apesar de a Espanha contar com
numerosos tradutores da língua portuguesa, como Basílio Losada e
Ángel Crespo, por exemplo, no inicio dos anos 70 a obra de Jorge
Amado chegou a ser foi silenciada pelo franquismo6. A recepção
da literatura brasileira não estava imune ao contexto sociopolítico
que a Espanha vivia durante a agonia da ditadura franquista. Tanto
que, no período que se caracterizou o pós-guerra, a literatura foi
caracterizada pela pobreza de temas. A que chegava do exterior era
suspeita de perverter os leitores e sofria o controle dos mecanismos
da censura. Havia originalíssimos escritores estrangeiros com sérios
inconvenientes doutrinais ou morais e as respectivas leituras eram
desaconselhadas.. Apenas nos últimos anos desse período, apesar da
censura e da repressão cultural, autores catalogados como marxistas
iam acedendo pouco a pouco ao mercado cultural.
Com a poesia, a professora ressalta haver alguns diferenciais,
pelo fato de ser um gênero hermético com interpretações distintas
a censura não exercia uma avaliação tão rígida, de modo que a
abertura para a poesia brasileira, nesse período, foi mais ampla que
a prosa. Nos anos 50, as revistas de literatura espanhola ofereciam
uma poesia de contínua renovação que incluiu a brasileira. O poeta
e crítico madrilenho Dámaso Alonso já era uma figura importante
na produção poética dos anos 40, desde que havia publicado seu
famoso livro Hijos de la ira (1944) que rompia com os moldes formais
da teoria. Dámaso desempenhou um importante papel na difusão
6
A pesar de que los textos de Amado contaron con numerosos traductores en España
el mejor conocedor de los mismos es el gallego Basilio Losada quien afirmó en una
ocasión que la obra de Jorge Amado fue silenciada por el franquismo. “La difusión
de la literatura brasileña traducida en España y Francia”, p. 101.
24
A literatura brasileira no mapa espanhol
dos poetas brasileiros, em colaboração com Ángel Crespo uniu-se
ao movimento “postista” fundado por Carlos Edmundo de Ory
que traduziu um número relativo de textos de língua portuguesa.
Bandeira veio com a fama de ser um dos maiores poetas do Brasil,
em 1962 publicou-se Poemas de Manuel Bandeira, depois Ledo Ivo em
1963; Antonio Gonçalves Dias, 1964; Walmir Ayala, 1965; Murilo
Mendes, 1965 e Vinicius de Moraes.
Segundo Áurea Fernández Rodrígues (2010), estes poetas
divulgados por revistas especializadas só podiam ser lidos por
poucos, em geral, intelectuais. Entre os galegos, alguns poucos
admiradores como Noriega Varela que evocava com freqüência os
versos de Olavo Bilac; entretanto, os poetas traduzidos na Espanha
ficaram reduzidos a essas publicações especializadas, além do que,
eram obras que não refletiam a identidade brasileira, ou uma região,
ou temas que giravam em torno dessa realidade. Em geral, a maioria
das traduções brasileiras foi simples manifestação isolada que apenas
deixou um eco porque não foi devidamente contextualizada. Uma
edição obedece a suas próprias exigências como expectativa do
público, mediadores, assessores ou agentes literários informados,
leitores especializados, além de tradutores qualificados. E o que
se percebe é que as traduções publicadas na Espanha partiram da
iniciativa de tradutores que buscaram as editoras, que não foram as
grandes, mas editoras com poucas possibilidades no mercado. E o
fato de não haver, até então, uma difusão da literatura brasileira, vide
a tiragem pequena das obras literárias, entre outros fatores, acarretou
em dificuldades para se avaliar a recepção da literatura brasileira
enquanto fenômeno coletivo. O máximo que se fez foi uma análise
restrita dessa literatura enquanto reação individual. Porém, mais
adiante, outro fator relevante vai se assomar a estes, é que, a partir
de 1964, instala-se no Brasil um regime ditador militar que durante
vinte e um anos dificultará o envio da boa literatura produzida
continuamente no Brasil, para o exterior.
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Para Sérgio Massucci Calderaro, o conhecimento que se tem na
Espanha sobre a literatura brasileira está longe de ser considerado
bom. Ele chega a dizer que é muito pobre. E não é necessária uma
investigação muito profunda para se comprovar isso, a conclusão é
óbvia. O pesquisador não esconde sua visão pessimista sobre o tema:
Si esbozáramos un ranking de los países sobre los cuales el público
español tiene más conocimiento literario, Brasil seguramente estaría
en una posición muy baja. Estaría por detrás de por lo menos media
docena de países europeos y otra media docena de países americanos.
Así, Brasil iría después de Francia, Inglaterra, Alemania, Rusia,
Italia, Estados Unidos, Argentina, Chile, Uruguay, Colombia, Cuba
y México, entre otros. (CALDERARO, Espéculo, 2009)7
A questão pode ser idiomática, ou estar relacionada a fatores
geográficos, ou econômicos como costumam justificar os estudiosos
e, pode sim refletir no âmbito cultural, porém são pontos poucos
discutidos e seria pertinente uma discussão mais profunda a respeito
do assunto.
7
Se esboçarmos um ranking dos países sobre os quais o público espanhol tem mais
conhecimento literário, o Brasil certamente estaria em uma posição muito baixa.
Estaria detrás de pelo menos meia dúzia de países europeus e outra meia dúzia
de países americanos. O Brasil viria depois da França, Grã-Bretanha, Alemanha,
Rússia, Itália, EUA, Argentina, Chile, Uruguai, Colômbia, Cuba e México, entre
outros. (CALDERARO, Espéculo, 2009)
26
A literatura brasileira no mapa espanhol
Referências
__________. El mundo, los mundos: novelas fundacionales en la literatura
brasileña del siglo XX. In: La narrativa en lengua portuguesa de los últimos
cincuenta años. Org. Maria Josefa Postigo aldeamil. Revista de filología
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Galaxia Gutenberg / Círculo de Lectores, 2007.
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del tiempo: intentos de divulgación”. Madrid: Espéculo: Revista de estudios
literarios, nº 43, Universidad Complutense de Madrid, 2009.
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recepción de Clarice Lispector en la prensa española”. Diálogos Ibéricos e
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NAVAS, Adolfo Montejo. “7 notas de navegación para una cartografía del
arte reciente en Brasil”. Revista de Cultura Brasileña nº. 6. Madrid: fundación
Hispano Brasileña, 2008, p. 72- 103.
27
Homens de letras na República Velha:
legitimadores e críticos da nova
ordem social
Luis A. S. de Almeida1
Marta E. G. Scherer2
Resumo: Demonstrar como os intelectuais que viveram a proclamação da
República e a Belle Époque foram fundamentais na legitimação do estado
nação que se formava, assim como da burguesia que dele surgia, é objetivo
deste artigo. O papel fundamental dos homens de letras era difundir
conceitos políticos, vulgarizar valores burgueses e ajudar a construir a
hegemonia junto à massa populacional não letrada, construindo um discurso
legitimador desta nova ordem nacional. Como exceções, surgem os nomes
de Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Lima Barreto, que criticamente se
opunham ao modelo proposto e tornam-se vozes dissonantes dentro da
intelectualidade da primeira República.
Palavras-chave: História da Literatura; República; Sílvio Romero; Euclides
da Cunha; Lima Barreto
Abstract: This article aims to demonstrate the great importance of
intellectuals, who lived through the proclamation of the Republic and the
Belle Epoque, in legitimizing the nation state that was formed, as well as the
bourgeoisie that emerged. The fundamental role of the men of le#ers was
to spread political concepts, common bourgeois values, helping to form
hegemony among the population mass that was not literate, building a
1
Professor associado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), junto ao
Curso de Jornalismo. Doutor em Teoria Literária pela mesma instituição.
2
Mestre em Literatura Brasileira e Doutoranda em Teoria Literária no Programa de
Pós-Graduação em Literatura da UFSC. Email: [email protected]
29
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legitimizing discourse of this new national order. As exceptions, appear the
names of Silvio Romero, Euclides da Cunha e Lima Barreto, who critically
opposed to the proposed model and become dissonant voices within the
intelligentsia of the First Republic.
Keywords: History of Literature; Republic; Sílvio Romero; Euclides da
Cunha; Lima Barreto
A partir da virada do século, quando o arranjo oligárquico
se estabeleceu e a crise interna do republicanismo brasileiro foi
parcialmente superada, a legitimação da nova ordem se tornou
imprescindível para manutenção do equilíbrio social. É neste
contexto que o intelectual se fez necessário para atender a demandas
do “establishment” que necessitava de sua atuação na imprensa,
nas revistas ilustradas, através de artigos, crônicas, conferências,
discursos, elogios, artigos de fundo. Os tempos do desprezo pela
figura do “homem de letras” haviam chegado ao fim. A política de
valorização institucional da cultura começou a se fazer notar na
metade da última década do século XIX e teve o auge nos anos que
antecederam à Primeira Grande Guerra.
Antonio Gramsci escreveu – como sabemos – que o papel do
intelectual é fundamental para garantir a hegemonia do discurso
que o grupo dominante exerce sobre a sociedade. O papel atribuído
ao intelectual da virada do século corresponde exatamente a essa
definição. O prestígio que adquiriu e a força discursiva com que se
jogou na legitimação da nova ordem encontraram pouca resistência
num cenário precário de vida sociocultural independente. Sua
atuação, nas esferas públicas e sociais, dentro e fora da máquina
burocrática, tornou-se eixo central na definição da forma com que o
grupo dominante passou a se relacionar com a sociedade brasileira.
(...) Os intelectuais são os ‘comissários’ do grupo dominante para o
exercício das funções subalternas de hegemonia social e do governo
político, isto é: 1) do consenso ‘espontâneo’ dado pelas grandes
30
Homens de letras na República Velha
massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental
dominante à vida social (...); 2) do aparato de coerção estatal que
assegura ‘legalmente’ a disciplina dos grupos que não ‘consentem’, nem
ativa e nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade,
na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais
fracassa o consenso espontâneo. (GRAMSCI, 1990, p. 10)
Com o governo modernizador de aparências, que surgiu com o
advento da República, renasceu o sentimento de nação e as condições
objetivas para que os problemas estruturais, de fato, mostrassemse aos olhos críticos dos intelectuais estudados neste trabalho. A
definição do nacional, que vinha dos tempos de combate à monarquia,
dominou a pauta temática na afirmação do novo regime.
A busca de uma identidade coletiva para o país, de uma base para
construção da nação, seria a tarefa que iria perseguir a geração
intelectual da primeira república (1899-1930). Tratava-se , na
realidade, de uma busca das bases para a redefinição da República,
para o estabelecimento de um governo republicano que não fosse
uma caricatura de si mesmo. (CARVALHO, 1990, p. 32)
O projeto republicano vencedor passou a existir acima da multidão
de analfabetos que era como se constituía a população brasileira
aos olhos da elite. Aos arranjos políticos institucionais que deram
continuidade ao mesmo modelo social excludente monarquista,
seguiu-se a forte campanha de afirmação de uma brasilidade ufanista,
de pouca consistência intelectual, mas de forte apelo formal e retórico.
É comum pesquisadores atribuírem pouca importância à cultura
oficial da “belle époque” porque seus modelos importados e afetados
estavam longe de representar a cultura brasileira. Como verdade
estética e cultural pode ter sido mera imitação, mas seu conteúdo
ideológico era de importância inquestionável.
Os olhos da elite dirigente nunca estiveram tão postados no
continente europeu como neste período. As reformas urbanas que
representavam também uma forma de vida moderna e industrial – que
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de modo algum eram encontradas no Brasil – foram absorvidas com
prazer e exagero. Para harmonizar hábitos e costumes populares com
a modernidade das reformas urbanas da cidade do Rio de Janeiro, a
Prefeitura proibiu festas populares como Bumba-meu-boi e Malhação
do Judas; censurou as fantasias de carnaval, principalmente as de
índios, e os desfiles de cordões populares; estimulou o comedimento
dos pierrôs e colombinas; proibiu o jogo do bicho. “O prefeito chega
à demasia de importar pardais, pássaro-símbolo de Paris, para fazer
coro às estátuas francesas que passaram a enfeitar as novas praças.”
(FISCHER, 2003, p. 49)
O papel desempenhado pelo indivíduo letrado, neste contexto
de defesa de frágeis aparências, é, de maneira evidente, esvaziarlhe a representação e transformar a vida social e a dureza pela
sobrevivência num ato diletante e restrito a setores sociais com
capacidade de organização. Assim deixa os círculos fechado da
vida literária aristocrática, para lançar-se no jornal popular, nas
conferências de salão, nas polêmicas na tentativa de justificar o
papel e as atitudes do estado. Se o “homem de letras” teve papel
fundamental para, no Romantismo, validar a existência da nação
alheia à consangüinidade real – atuando algumas vezes até no
conceito de intelectual orgânico -, a partir da Proclamação da
República tocou a ele legitimar a formação do estado nação e a
sociedade burguesa que surgia.
A visão de uma existência nacional limitada a Rua do Ouvidor era
útil politicamente na representação que o regime fazia de si mesmo,
como também na exclusão a que submetia a população do país. Ou
seja, os problemas do Brasil eram os problemas de sua elite. Daí a
síntese representada na frase “com um sorriso levar a vida” e todas
suas variáveis. Essa superficialidade, esse sorriso da sociedade era
um discurso consistente e hegemônico produzido pela cultura oficial
– era sua ideologia.
32
Homens de letras na República Velha
Na sua grande maioria – para não dizer a quase totalidade – temos
a intelectualidade da época engajada organicamente na construção
de um discurso legitimador desta nova ordem nacional. O papel
fundamental dos intelectuais era difundir conceitos políticos,
vulgarizar valores burgueses e ajudar a construir a hegemonia junto
à massa populacional não letrada.
Com relação à extensão, a hegemonia gramsciana (...) abarca, com
suas entidades portadoras, não só o partido, mas todas as outras
instituições da sociedade civil (...) que tenham um nexo qualquer com
a elaboração e a difusão da cultura. (BOBBIO, 1987, p. 48)
O surgimento da imprensa comercial e de uma produção cultural
incipiente (com conferências, revistas, teatro, folhetim) proporcionou
o surgimento do intelectual profissional que passou a ter leitores
(ou consumidores) e a sobreviver da atividade – como nem mesmo
medalhões da geração anterior (Machado de Assis, Bernardo Guimarães
ou José de Alencar) haviam conseguido. “(...) eram polígrafos que se
esforçavam para satisfazer a todo tipo de demandas que lhe faziam a
grande imprensa, as revistas mundanas, os dirigentes e mandatários
políticos da oligarquia.” (MICELI, 1979, p.30)
Como vozes destoantes, temos Lima Barreto, Euclides da Cunha
e Sílvio Romero, intelectuais que denunciaram as fissuras e as
contradições na construção deste nacional. Dois fatores circunstanciais
são fundamentais para a compreensão do pensamento desenvolvido
por estes três intelectuais, seus pontos em comum e seus desencontros.
Em primeiro lugar, o conteúdo: a reação apresentada por eles ao
discurso hegemônico que propunha a fundação do estado-nação. Os
três contra-atacam com um nacionalismo pessimista, onde a sociedade
brasileira é representada mais pelas fissuras do que por um campo
harmônico. Em segundo, pela forma: a ausência de partidos políticos de
oposição jogou sobre eles a responsabilidade de formular pensamentos
e lançar as bases de uma leitura crítica da realidade nacional.
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Do ponto de vista intelectual, a construção do discurso hegemônico
tratou de dar autoridade ao grupo dominante no estabelecimento do
estado nação. Entenda-se estado nação como a afirmação estável da nova
ordem liberal burguesa num ‘pacto político’ com a sociedade. O direito de
escolher seus representantes na esfera de poder e elegê-los ou destituí-los
periodicamente; a separação dos espaços públicos e privados nas garantias
jurídicas coletiva; obrigações pecuniárias com o estado; usufruto comum
de serviços estatais; enfim, desfrutar do convívio de uma coletividade sob
direitos e deveres iguais no espaço definido de suas fronteiras.
Para a elite agrária exportadora que estava no poder, a aplicação
deste ‘pacto social’ republicano significava abrir mão do poder.
A sociedade brasileira, recém saída do regime escravocrata e
com números elevadíssimos de excluídos, foi sendo submetida a
mecanismos de controle, de fraude e de repressão na tentativa de
manter o ordenamento institucional e sua elite no poder. Para isso,
o emprego do aparelho policial estatal na repressão dos setores
descontentes e a utilização do intelectual na formulação de um
discurso legitimador. Assim, o establishment pretendia esconder as
fissuras do modelo que já se mostrava evidente, mas que tinha ainda
papel fundamental na criação das novas relações de trabalho que o
capitalismo impunha aos países periféricos.
É neste novo panorama que se desenvolverão mudanças fundamentais
nas noções de civilidade, de vida urbana, no país. Tomemos dois
marcos: a fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1896, e
a remodelação da cidade do Rio, promovida pelo prefeito Pereira
Passos (...) Num caso e noutro, a marca principal será a de adequar
a prática e o estatuto sociais da urbanidade às exigências do tempo
(...) num processo que podermos definir como aristocratização da
vida burguesa, mudança esta levada a efeito sob inspiração do grupo
social que chegara ao poder político. (FISCHER, 2003, p. 48)
Ao mesmo tempo em que o estado policial se fortalecia (são
inúmeros os momentos de estado de sítio, guerras civis e a censura
34
Homens de letras na República Velha
constante da imprensa), a ocupação dos espaços culturais pelo
discurso oficial era absoluta (seja na criação de instituições de
cultura, no rateio de cargos públicos ou na distribuição de verbas
aos veículos de imprensa). A formulação de um discurso hegemônico
tornou-se fundamental quanto maior eram os excluídos do novo
projeto. Sua justificativa política para a legitimação do projeto exigiu
uma imprensa repetindo a voz única do partido único, um estado
disposto a cooptar e intelectuais capazes de formular o discurso
político coerente.
Ao se opor ao projeto, Lima Barreto, Sílvio Romero e Euclides
da Cunha passaram a desenvolver trabalhos de estudos, artigos em
jornais, produções ensaísticas no sentido contrário ao pensamento
dominante naqueles anos de ufanismo republicano. Tentavam ocupar
qualquer espaço: de uma cadeira na Câmara dos Deputados, aos
livros e os pequenos jornais. Buscavam legitimações, na maioria das
vezes inutilmente, mas sempre dispostos a se contrapor ao discurso
hegemônico acenando com a existência de um “Brasil real”. Ou
seja, salientavam o caráter artificial do discurso oficial associado ao
desconhecimento completo da nação. A oposição que fizeram tinha a
representatividade, na sua origem, de setores diretamente envolvidos
na propaganda republicana pré-Proclamação. De modo que falavam
uma linguagem comum e, por muito tempo, representaram setores
descontentes dentro do próprio republicanismo brasileiro.
Sílvio Romero tornou-se um excluído do projeto vencedor, apesar
de ter sido um dos ideólogos do liberalismo no Brasil. Depois das
humilhantes tentativas de participação na política partidária acabou
se afastando ao perceber o continuísmo do projeto econômico e
social que havia combatido durante a Monarquia. Sílvio Romero
é a memória da propaganda e os anos imediatamente seguintes à
Proclamação. Sua oposição se deu nas bases do que a República
prometeu e não cumpriu. Ou seja, um modo revolucionário que
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foi traído em sua concretização. O caráter cientificista, a crença
genuína de que o estado deveria estimular a concorrência entre os
homens (as empresas, as instituições) para que sobrevivessem os
mais fortes e beneficiasse o todo social não se realizou. Sentiu-se
traído porque acreditou “num grupo dirigente” capaz de comandar
o país, uma vanguarda condutora do processo revolucionário de
transformação que viria com a república. Seu último ato foi contra
o povo que não se rebelava contra a condição social imposta pelo
novo projeto político.
A tragicomédia da soberania dos Estados, dos impostos interestaduais
e intermunicipais, dos exércitos sob os disfarçados títulos de brigadas
provincianas, das magistraturas particularistas, da multiplicidade das
leis do processo, da desagregação das tradições, das tiranias caudilhas,
das roubalheiras descentralizantes e impunidas, essa tragicomédia,
que é o federalismo oligárquico da atualidade nacional, deve acabar,
ou ela matará o Brasil. (ROMERO, 1980, p. 333)
Euclides da Cunha viveu a vida adulta no momento pósProclamação e tornou-se um excluído do projeto republicano na
medida em que os positivistas foram os derrotados na disputa interna
do poder. Suas inúmeras tentativas pessoais de interferir nos rumos
e nos governos militares foram provas da esperança que depositou
por muito tempo no novo regime. Sua fé foi nas Forças Armadas e
na imposição de um estado interventor, capaz de dobrar pela força as
elites atrasadas e submetê-las a um projeto social coletivo. Daí viria
a construção do novo Estado, capaz de proporcionar igualdade de
competir, ao mesmo tempo em que abrigava e protegia os mais fracos.
A idéia do governo forte nunca encontrou nos anseios de Euclides da
Cunha o personagem capaz de exercer este papel – também ele um
crente de uma vanguarda revolucionária. Os Sertões foi o gesto de
sua desilusão e seu decreto de exclusão também das bases derrotadas
do republicanismo – e seu livro talvez a última grande obra da
produção intelectual positivista. O ataque de Euclides da Cunha foi
36
Homens de letras na República Velha
contra governos ‘do litoral’ que desconheciam a própria nação e aos
militares que perderam a oportunidade de revelá-la.
[A nossa nacionalidade] não marcha, não progride, não civiliza,
anarquiza-se no conflito assustador de interesses unicamente
individuais, de ambições indisciplinadas que se digladiam, e os que
arrebatados pela expansão das próprias idéias, tentam lutar fora
do círculo isolador da individualidade, sem um só ponto de apoio
às forças que o revigoram caem e extinguem-se na desilusão mais
profunda. ( CUNHA, 1995, p. 627)
Lima Barreto foi o excluído na origem: é o povo que assistiu
“bestializado” a Proclamação. Em sua vida, a República chega
quando ainda é uma criança, portanto assistiu o melhor momento
daquela Primeira República, a “belle époque”, no período que vai até
a Primeira Guerra Mundial. Tempo suficiente para mostrar por inteiro
a fragilidade de um projeto que envolvia mais do que a mudança
de regime. As condições mínimas de cidadania, com seus direitos
respeitados e garantidos, espaços sociais de representação, dignidade
na sobrevivência do trabalhador – foram os sonhos de república de
Lima Barreto. Mas pode ver com entusiasmo as reações populares e as
incipientes organizações populares – de reação ao projeto dominante.
Pode assistir também a violência do estado contra a população e as
inúmeras maneiras com que mecanismos legais “naturalizaram”
a exclusão social. O sonho republicano de Lima Barreto carregava
muito de uma solidariedade comunitária, de vagos ideais socialistas,
de um sentimento de irmandade.
Vê-se bem que a principal preocupação do atual governador do Rio
de Janeiro é dividi-lo em duas cidades: uma será a européia e a outra,
a indígena. É isso que se faz ou se fez na Índia, na China, em Java,
etc.; e em geral, nos países conquistados e habitados por gente mais
ou menos amarela ou negra... Municipalidades do mundo inteiro
constroem casas populares; a nossa construindo hotéis chics, espera
que, a vista do exemplo, os habitantes da Favela e do Salgueiro
modifiquem o estilo de suas barracas. (BARRETO, 1956, p. 218)
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Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 29 - 42 •jan./jun.2011
Cada um deles esboçou sua visão pessimista a partir de períodos
sociais e temporais distintos e, embora distantes na origem,
representaram críticas a momentos políticos diversos. De modo
que durante mais de trinta anos (1890-1922) estes três intelectuais
estiveram no núcleo opositor ao discurso hegemônico governamental,
sucedendo-se uns aos outros, mas mantendo o fogo de uma oposição
política perene. Além do isolamento, uniu-os um horror ao discurso
elitista importado que tentava esconder a natureza da república
instalada, entregue a acordos e a negociatas regionais que produzia
a cada dia novos ricos a ostentar suas riquezas pelas ruas elegantes
do Rio de Janeiro.
Ao ouvir as vozes dissonantes desses três intelectuais, não deixa
de ser curiosa a maneira como os homens de letras ‘do sistema’
reagiam em defesa do discurso hegemônico. Não se contrapunham
diretamente, não faziam o debate claro e aberto, como no passado
discutiram republicanos contra monarquistas ou liberais contra
conservadores. A saída nunca era o enfrentamento, muito ao
contrário. Quando algum tema, proposto como crítica ao novo
regime, conseguia vencer a barreira quase intransponível do discurso
hegemônico, chegava até a população praticamente destruído. O
próprio “establishment” tratava de institucionalizar a crítica dos
opositores, tirando-lhes o caráter político-ideológico.
Assim, vemos Olavo Bilac tratar a condenação ao projeto republicano
que não se realizava: “A República tem uma puberdade triste e
apagada. Dizem alguns que a menina chegou à velhice, sem ter passado
pela primavera e nem pelo outono... ‘não era esta a república que
sonhávamos.’” (BILAC apud DIMAS, 2006, p.605). Nota-se que ele
retira a seriedade no trato de um debate que se mostrava importante.
Há um clima de caçoada, de distanciamento cínico, que o talento de
Olavo Bilac enchia de brilho. A outra maneira de enfrentar as críticas
ao projeto político foi ‘naturalizar’ as causas. Utilizando-se de um
38
Homens de letras na República Velha
cientificismo de forte viés ideológico, o discurso do poder passou a
atribuir a natureza perversa do país (clima quente, acidez do solo) ou
as origens raciais do povo como causadoras do atraso institucional, do
baixo índice de alfabetização, da pouca produtividade nas lavouras,
do pequeno desenvolvimento industrial – enfim, do atraso econômico
e social brasileiro. É bem verdade que estes fatores foram utilizados
até por Sílvio Romero e Euclides da Cunha nos estudos que fizeram
da realidade brasileira. Mas a leitura deles vinha ao encontro da
compreensão “científica” do país e as elites o utilizavam ideologicamente
para justificar o fracasso de seu próprio projeto político.
A institucionalização e a naturalização funcionavam como
amortecedores das críticas e dos discursos sociais que buscavam o
embate e o confronto. Apesar da verdade de seus estudos sociais e
culturais sobre o Brasil e a coerência de suas críticas políticas, até
mesmo a jovem “elite letrada”, com natural potencial renovador,
vivia num mundo de encantamento bem resumidos nas palavras de
Alceu Amoroso Lima:
Fomos todos, sobretudo a partir de 1918, levados a rever as nossas
idéia e tudo aquilo que para nós passou a representar a configuração
do que hoje chamamos de ‘belle époque’ (...) acabara para mim a fase
da disponibilidade, do absenteísmo, da indiferença, do ceticismo e
do intelectualismo puro. (LIMA, 1973, p. 57)
A oposição a este “tempo moderno” se manifesta também no palco
geográfico e simbólico do embate: a cidade. De maneira consciente
ou não, também Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Lima Barreto
partem de visões de mundo que sempre se mostram também lugares
geográficos, onde o pensamento se estrutura e de onde as hierarquias
se estabelecem. Também eles apresentam “lugares”, “suas cidades”,
que se tornam também valores sociais e culturais relevantes no
embate proposto com a cidade republicana. São as representações
urbanas de valores ideológicos diversos, mas sempre apresentados
como “mais” verdadeiros, “mais” genuínos.
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De forma simbólica é possível afirmar que cada um deles falou
de cidades distintas, mas que foram emblemas de suas formas de
atuar e foco determinante de suas obras. Sílvio Romero parece nunca
ter saído da cidade de Recife. Sempre magoado, ressentido com a
capital federal, desenvolveu seus estudos na direção apontada na
juventude com Tobias Barreto, na Faculdade de Direito. Seu olhar
é a do nordestino – recifense em especial – depositário do rancor e
das injustiças com a capital econômica dos tempos coloniais. Sempre
dando a Recife a primazia, a vanguarda, nos assuntos intelectuais e
nas ações políticas. O “bando de idéias novas” sobrevoou a cidade
de Recife, não o Rio de Janeiro carola e conservador.
Euclides da Cunha nunca mais saiu de Canudos, da “cidade de
taipas”. Os Sertões e toda sua visão política vão girar em torno da
descrença num estado que se tornou estrangeiro em sua própria terra.
O desconhecimento de seu território e a ignorância com relação ao
seu povo (“o cerne” de nossa raça) tornou o estado brasileiro uma
administração litorânea e irreal. A figura mítica do “cidadão” de sua
cidade vai pairar na lenda do nordestino-forte, na superioridade
vinda do isolamento e do passado. Euclides da Cunha vai ver o
Brasil como um morador nascido e criado em Canudos, preferindo
as picadas aos bulevares, sempre de dedo em riste denunciando o
“grande massacre”.
Lima Barreto falava do Rio de Janeiro, da capital federal, cidade
absolutamente desconhecida em sua periferia, em sua população
pobre, em suas cantigas e em seus enterros no cemitério de Inhaúma.
O Rio de Janeiro de Lima Barreto se aproxima muito de Canudos,
de Euclides da Cunha, seja no caráter excludente de sua população
miserável, seja na revelação que o governo se escondia de si próprio
dentro de sua capital. Lima Barreto vai falar de um Rio de Janeiro
definitivamente fragmentado (para usar a feliz expressão de Beatriz
Resende), onde as reformas de embelezamento são artificiais,
40
Homens de letras na República Velha
frágeis, e escondem a corrupção e o autoritarismo da administração
republicana. O Rio de Janeiro de Lima Barreto é tão distante do oficial
quanto a Recife de Sílvio Romero ou Canudos de Euclides da Cunha.
É importante relembrarmos que o Brasil era visto como um
país sem povo. O olhar dos visitantes europeus solidificou no
discurso hegemônico o conceito de que o povo brasileiro, na sua
pobreza existencial e intelectual, tornara-se um problema para o
desenvolvimento das instituições democráticas. O país só existia
pela sua perseverança institucional e pelo esforço vanguardista de
sua elite. “O Brasil foi visto, portanto, como um país despossuído de
povo, ao qual faltava identidade para constituir uma nação moderna
(...) não possuía face, não possuía identidade.” (NAXARA, 2002, p. 39)
A vertente pessimista que surge do pensamento social desta
vanguarda propôs um contraponto ao discurso hegemônico
baseado na “realidade brasileira”. Desta forma, criavam uma “nação
verdadeira” para se opor àquela “república artificial”. A dicotomia, a
todo instante, reafirmada no discurso destes três intelectuais, retoma
de inúmeras maneiras a estratégia oposicionista utilizada pelos
próprios republicanos para combater a monarquia. Havia uma nação
vivendo fora e além da Corte; agora havia uma nação vivendo fora e
além da República. Daí o descobrimento das oligarquias, por Sílvio
Romero, para revelar o caráter continuísta daquele regime; do “cerne
de nossa nacionalidade”, de Euclides da Cunha; e da periferia das
grandes cidades, por Lima Barreto, para mostrar a existência de um
povo à margem da vida oficial. Sílvio Romero, Euclides da Cunha
e Lima Barreto acabaram por identificar e tematizar a precariedade
do processo de modernização do Brasil e de países periféricos que
viveram o mesmo destino neocolonial. Desta forma, a crítica que
poderia ser temporal e circunscrita tornou-se pioneira.
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Referência
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GRAMISCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro:
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ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. 4° Volume. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1980.
42
De Oswald à Ruffato:
o sensível e (n)o cinema
João Guilherme Dayrell1
Resumo: O artigo visa investigar as produções de Oswald de Andrade e Luiz
Ruffato – levando em conta, principalmente, os textos Memórias Sentimentais
de João Miramar e eles eram muitos cavalos – usando como ponto de toque entre
as duas obras suas respectivas relações com o cinema. Para tanto, faz-se
necessário estabelecer as estratégias postuladas por cada autor perante o
contexto nos quais se encontram, tendo em vista que a arte cinematográfica é
entendida aqui como corolário de uma nova sensibilidade que experimenta
o homem moderno, se coadunando, por fim, ao que posteriormente Guy
Debord chamará de Sociedade do Espetáculo.
Palavras-chave: Oswald de Andrade e Luiz Ruffato, cinema, espetáculo,
sensível.
Abstract: The article intends to investigate the productions by Oswald de
Andrade and Luiz Ruffato – a#ending for the texts Memórias Sentimentais de
João Miramar and eles eram muitos cavalos – using as a point of contact between
the two works their relations with the cinema. Therefore, it is necessary to
establish the strategies postulated by each author to the context in which
they find themselves, given that the art of cinema is understood here as a
corollary of a new sensibility experienced by the modern man in line, finally,
with what Guy Debord calls Society of the Spectacle.
Keywords: Oswald de Andrade and Luiz Ruffato, cinema, spectacle,
sensitive.
1
É doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC). e-mail: [email protected]
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“Espelho, a forma mais simples de espetáculo”
Paulo Leminski, Catatau, 1975.
I. O ano é 1924. Ainda que a concepção da obra tenha se iniciando
por volta de 1917, a primeira data referida é a da única publicação
de Memórias Sentimentais de João Miramar que Oswald de Andrade
presencia em vida. A data – situada dois anos após a publicação
de Ulysses, de James Joyce, como nos lembra Haroldo de Campos
(CAMPOS, 2008) –, é a mesma em que vemos, por parte do Oswald,
o elogio da cópia, do erro, e de uma língua sem arcaísmos e erudição,
tal qual destaca o manifesto do Pau Brasil (ANDRADE, 2003). No
mesmo manifesto, por meio da citação dos aparelhos fotográficos,
é evidenciado o que parece ser o cerne da experiência de Miramar,
que sublinhamos: a vivência do sujeito mediada por máquinas. Tal
constatação permite a Oswald, 26 anos depois, em A Crise da filosofia
Messiânica, a demarcação de seu corolário se dando sob forma de
um movimento dialético, qual seja: 1) tese, o homem primitivo,
pertencente à sociedade matriarcal, antropofágica, 2) antítese, o
homem civilizado, patriarcal, que compartilha a filosofia messiânica e
3) a síntese, que seria o homem tecnizado. (ANDRADE, 1990, p. 100)
Miramar experimenta a São Paulo do início do século vinte em
163 passagens numeradas em série. Trata-se de um des-monte de
sua experiência, que é remontado na subsunção dos fragmentos à
imagem da personagem. Para Haroldo de Campos, o homem evocado
por Oswald, no caso, se compraz mais ao cinema que à fotografia,
“uma vez que a ideia de uma técnica cinematográfica envolve
necessariamente a montagem de fragmentos”. Ainda, para Haroldo
de Campos, o fragmentário evoca uma:
(...) sistemática ruptura do discursivo, com sua estrutura fraseológica
sincopada e facetada em planos díspares, que se cortam e se confrontam,
se interpenetram e se desdobram, não numa seqüência linear, mas como
44
De Oswald Á Ruffato: o sensível e (n)o cinema
partes móveis de um grande ideograma crítico-satírico do estado social
e mental de São Paulo nas primeira décadas do século, esta prosa
participa intimamente da sintaxe analógica do cinema, pelo menos de
um cinema entendido à maneira eisensteiniana” (CAMPOS, 2008, p. 54)
O cinema perpassa a obra de Oswald, seja pelo Miramar
empregado da Itacolomi Films, ou Serafim Ponte Grande, que fazia
filhos com “a cara enquadrada nas claridades cinematográficas
da janela.” (ANDRADE, 2007) 2 Tal panorama deixa entrever a
afinidade entre arte cinematográfica e a modernidade, tendo em
vista, principalmente, a experiência nas grandes metrópoles, nas
quais a pluralidade de realidades simultâneas coexistem no turbilhão
do tecido urbano. Em Memórias Sentimentais, o caráter excessivo do
espaço urbano – que foi tão convincentemente “presentificado” pela
montagem cinemática – encontra seu correlato, como temos:
2. Avessos aos favores da cidade íamos perna aqui perna ali eu e
Dalbert de sorte excepcional. Ruas quartos a chave bars desertos
vibrações revoltas adultérios ênfases. A estacada foi num casarão
azul em vol-plané sobre o Val-del-lírios inculto do Anhangabaú. A
coroa do Teatro Municipal punha patetismos pretos no vermelho das
auroras noturnas. (ANDRADE, 1973, p. 82)
No fragmento supracitado é reconhecível um sujeito: a cidade,
que embora tome o discurso, fazendo-o ser atravessado por suas
“vibrações”, ainda se situa hierarquicamente inferior à posição de
João. Os fragmentos, destarte, se organizam como uma amálgama,
sendo parte de um todo maior, no caso, as sensações, ainda que
alquebradas, de João Miramar – que cresce, casa, viaja à Europa e
assina suas cartas – e seu amigo, ao caminhar por São Paulo.
O espírito da época encontra, por sua vez, contrapartida no estilo
telegráfico de Miramar, dando-se sob o viés da polifonia poética, que
instaura, pela poética do fragmentário, uma espécie de paródia do
2
Texto de 1933.
45
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 43 - 58 •jan./jun.2011
homem civilizado que ensaia sua tecnização. A inserção da técnica
no contexto da economia de mercado, todavia, não se prontifica ao
restabelecimento emancipador da condição humana, restituindo-lhe
o ócio. A modernidade, para Oswald, segue sob o viés da mensuração
do tempo por meio do trabalho – iniciada na Idade Média –, tendo
sua imagem na invenção do relógio mecânico, no qual “alvorece
o capitalismo europeu e onde começa a escrituração comercial.”
(ANDRADE, 1990, p. 161) 3 O estado de classes, da propriedade privada
e patriarcal, transforma o ócio pertencente, outrora, ao sacer-dócio –
ócio sagrado – em sua negação, vá dizer, neg-ócio. (ANDRADE, 1990,
p. 106) Desse modo, o homem aceita o trabalho como moeda de troca
para ócio ao final de sua vida, mais conhecido como previdência,
instaurando o messianismo da sociedade capitalista: a aposentadoria,
o desenvolvimento econômico, a salvação porvir, o sentido final. O
que parece ser caro a Oswald em um momento tão inicial quanto o de
Memórias Sentimentais, e que encontra seus desdobramentos na obras
posteriores citadas por nós, é, entretanto, uma espécie de uso das
máquinas, de passagem por elas, do reconhecimento de sua presença
e da necessidade de se estabelecer uma nova relação, visando, talvez,
a tal emancipação do sujeito.
II. Paralelamente a Oswald de Andrade, a novidade do cinema
era bem cara a outro pensador do messianismo, Walter Benjamin.
Por volta de 1936, em seu ensaio sobre “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”, Benjamin marca um curioso dado sobre
o cinema. Dizia o filósofo que:
A difusão se torna obrigatória porque a produção de um filme é
tão cara que um consumidor, que poderia, por exemplo, pagar um
quadro, não pode mais pagar um filme. [...] Em 1927 calculou-se que
um filme de longa metragem, para ser rentável, precisaria atingir
um público de nove milhões de pessoas. (BENJAMIN, p. 172, 1996)
3
Texto de 1960.
46
De Oswald Á Ruffato: o sensível e (n)o cinema
O enunciado demarca não apenas certa subserviência do cinema
em relação a sua técnica de produção, mas igualmente o diagnóstico
de que tal arte deflagra a passagem do povo à população, ou seja, não
se dirige doravante a um corpo individual, contudo, a um enorme
grupo de indivíduos convertidos em números. Para Michel Foucault,
esse seria o ponto crucial para a operação do que o autor denomina
de biopolítica, ou seja, uma política estatal baseada na manutenção e
vigilância da vida humana, computada, por sua vez, como número
nos dados do estado. (FOUCAULT, 2005) O Estado nacional, a partir
de tal modo de procedimento, abandona sua preocupação com a
morte, fazendo com que a política se transmute do “fazer morrer
e deixar viver” ao “fazer viver e deixar morrer”; que captura, por
fim, a vida no âmbito de sua soberania e decide abandoná-la quando
conveniente for.
A passagem de um homem-corpo a um homem-espécie condiz,
por outro lado, com uma determinada alienação sensorial que
experimenta o sujeito na modernidade. No conto O homem na multidão,
de Edgar Alan Poe, ou mesmo nos trabalhos das Passagens, de Walter
Benjamin, deflagramos o caráter fantasmagórico das cidades e das
multidões, nas quais o sujeito testemunha seu desaparecimento,
sua própria fantasmagoria em meio à massa. Coadunando-se ao
fato referido, presencia-se, na modernidade, exagerados estímulos
promovidos por um ambiente tecnologicamente alterado, como
lembra Susan Buck-Morss. De tal forma, o enunciado célebre de
Benjamin, dizendo que os soldados voltavam mudos das guerras
porque as experiências ali vividas eram impossíveis de serem
retratadas (BENJAMIN, 1985, p. 115), passa a caracterizar o cotidiano
no espaço urbano, que se torna, como descreve o filósofo:
[…] o lugar onde se dão […] as transformações mais violentas, onde
guindastes e escavadeiras trabalham incessantemente, onde o solo
treme com o impacto dessas máquinas, com as colunas de automóveis
e com o rugido dos trens subterrâneos, onde se escancaram, mais
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Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 43 - 58 •jan./jun.2011
profundamente que em qualquer outro lugar, (suas) vísceras [...]
(BENJAMIN, 1985, p. 57)
O choque, as experiências extremas, os acontecimentos
desmoralizantes e os estímulos da publicidade, entre outros, se
tornam não apenas numerosos como se encontram normatizados no
dia a dia. O corpo e seu aparato sensorial extremamente “expostos a
choque físicos, que tem correspondente em choques psíquicos”, faz
com que os estímulos das “percepções que antes suscitavam reflexos
conscientes” se coadunem em “fonte de impulsos de choques dos quais
a consciência deve se esquivar” (BUCK-MORSS, 1996), como explica
Susan Buck-Morss ao ler Benjamin. Ou seja, a excitação agressiva e
contumaz deste corpo, para a autora, não cria um sujeito mais sensível,
mas precisamente seu o contrário; o sujeito da anestesia, anestético.
O cinema, para Buck-Morss, seria uma espécie de paradigma
da referida lógica de funcionamento da experiência moderna. É no
cinema – através da câmera, ou melhor, da máquina –, que o olho
chega onde jamais poderia, assiste a cabeças cortadas, pés separados
dos corpos e a fantasmagoria de pessoas que não estão mais lá – o
que levava as primeira multidões espectadoras ao horror –, às mais
eróticas provocações e aos mais absurdos atos de violência “e não
fazemos nada”, cortando-se “a continuidade entre ação e cognição”,
o que produz a “neutralização da sensação, um entorpecimento do
sistema nervoso que é equivalente a uma anestesia corpórea.” (BUCKMORSS, 2010, p. 19) O mágico, como o pintor, diz Buck-Morss citando
Benjamin, “preserva a distância natural entre ele e a realidade”; já o
contrário aconteceria com o cirurgião e o cinegrafista, que se abstêm
de abordar o paciente “homem a homem”, diminuindo radicalmente
o espaço natural entre as pessoas para penetrar profundamente no
corpo e mover-se entre os órgãos (BUCK-MORSS, 2010, p. 30). BuckMorss nos resume o efeito de penetração da técnica na realidade
conferido pelo cinema, assim como seu ganho cognitivo, que,
obviamente, não veio sem um preço:
48
De Oswald Á Ruffato: o sensível e (n)o cinema
A guerra moderna não pode se compreendida como experiência crua.
Como muitas das realidades da modernidade, a guerra precisa do órgão
protético da tela do cinema para ser “vista”. Virilio declara diretamente:
“A guerra é o cinema e o cinema é a guerra”. Não precisamos ir tão
longe para perceber que o que conhecemos como guerra não pode
ser separado de sua representação cinemática. Isto não é verdade só
em relação ao público. Nenhum general moderno, nenhum piloto
de bombardeio pode atuar sem a percepção simulada da imagem
cinética. A questão é que certos eventos só podem ter lugar na superfície
protética da tela. Certos fenômenos só podem existir dentro das
dimensões da percepção cinemática. Walter Benjamin acreditava que a
cidade só poderia ser experimentada verdadeiramente por este meio, e
resta claro que as multidões das ruas e dos lugares públicos das cidades
modernas (Paris, Berlin, Moscou) se tornaram objeto privilegiado da
iniciante construção cinemática. Pudovkin escreveu que para receber
“uma impressão claramente definida” de uma demonstração de rua, o
observador precisava vê-la do telhado de uma casa, da janela de uma
primeiro andar, e misturando-se à multidão – um simultaneidade de
pontos de vista que somente a câmera móvel e a montagem podem
prover. (BUCK-MORSS, 2010, p. 20)
Emanuelle Coccia, por sua vez, define o que chama de sensível
como as imagens que se formam precisamente entre a matéria e a
memória, o que o diferencia de Henri Bergson, para o qual a formação
destas imagens dava-se sobre o sujeito. Para Coccia, a singularidade
do corpo em contato com os objetos externos possui a capacidade
de gerar imagens (COCCIA, 2010, p. 1-20) 4, que agem, por sua vez,
4
Completa o autor: “Vivemos porque podemos ver, ouvir, sentir, saborear o
mundo que nos circunda. E somente graças ao sensível chegamos a pensar: sem as
imagens que nossos sentidos são capazes de captar, nossos conceitos, tal qual já se
escreveu, não passariam de regras vazias, operações conduzidas sobre o nada. (...)
A experiência, a percepção, não se torna possível através da imediatez do real, mas
sim a partir da relação de contigüidade (per continuationem suam cum videntem).
Esse espaço não é um vazio. Sempre é um corpo, sem nome específico e diferente em
relação aos diversos sensíveis, mas com uma capacidade comum aquela de poder
gerar imagens. No cerne desse meio, os objetos corpóreos se tornam imagens e assim
podem agir imediatamente sobre nossos órgão perceptivos. Há percepções apenas
porque há metaxus. O sensível tem lugar apenas porque, para além das coisas e das
mentes, há algo que possui natureza intermediária.”
49
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sobre os órgãos perceptivos, criando uma extimidade. O cinema, para
o autor, não seria, então, um objeto, mas “algo que existe sobre um
objeto”, pois “um corpo que se encontra anestesiado, não seria nosso
corpo, mas apenas um dos tantos objetos sensíveis que é possível
perceber e é possível fazer experiência” (COCCIA, 2010, p. 65).5
O cinema, portanto, media as imagens que se formam entre
a matéria e a memória, as captura. O sensível, em meio a sua
hipersensibilização conferida pela absurda penetração do
cinematógrafo na realidade, se polariza mais na matéria que na
memória, pois é impedido de compreender e responder tudo que se
passa.6 Como contrapartida, as máquinas nos oferecem o conforto
narcisista de que “por meio dos media”, podemos percorrer com
uma “câmera olho cada momento da realidade que acontece fora”
de nosso alcance (BUCK-MORSS, 2004, p. 15). Isto quer dizer que
a máquina, ao apreender as imagens, nos oferece uma produção de
presença sem precedentes na história, lembrando que, para Jacques
Derrida, a metafísica ocidental atua justamente sob o significante da
presença. Entretanto, de acordo com a assertiva do próprio Derrida,
a metafísica nos faz acreditar que o suplemento adiciona alguma
coisa, quando na verdade ele apenas acresce uma falta (DERRIDA,
2004). Ou seja, o que está no écran são imagens, e não há nada por
detrás. A ciência e a tecnologia não nos livrarão da finitude, da
morte. Portanto, o que resta, para nós, do assalto das imagens de
nosso sensível pelas máquinas, é exatamente aquilo que Guy Debord
chamava de Sociedade do Espetáculo. Cito:
É pelo princípio do fetichismo da mercadoria, a sociedade sendo
dominada por ‘coisas supra-sensíveis’, que o espetáculo se realiza
5
Ibidem. Para Coccia, nosso corpo é uma “série de percepções em atos […] É nosso
corpo que se define a partir de uma atualidade de percepções. ‘Outros’ são os corpos
que geram essas percepções, os corpos que se fazem sentir, os sensíveis”. Ou seja,
o cinema é a captura do sensível pela máquina.
6
FLUSSER, 1985. Para Vilém Flusser, não se trata apenas na quantidade de dispositivos,
mas o fato de que os próprios aparelhos são infinitos, sendo impossível decifrá-los.
50
De Oswald Á Ruffato: o sensível e (n)o cinema
absolutamente. O mundo sensível é substituído por uma seleção de
imagens que existem acima dele, ao mesmo tempo em que se faz
reconhecer como o sensível por excelência. (DEBORD, 2003, p. 21)
III. O ano é 2001. Então publicado, eles eram muitos cavalos, de Luiz
Ruffato, traz a mesma São Paulo que João Miramar experimentava um
século antes, dividida, agora, em setenta fragmentos. Logo ao início
da obra, temos a sugestão de que tudo ali se passa numa terça-feira,
9 de maio de 2000 (RUFFATO, 2001, p. 11). Demarcamos o caráter
sugestivo tendo em vista que como os fragmentos não possuem relação
hierarquizada, sendo que a não relação entre as passagens nos fornece
relações possíveis, fazendo o texto subscrever: há um vestígio de ser
São Paulo o espaço receptáculo das inúmeras temporalidades que ali se
inscrevem, há um vestígio de que tudo se dá em um só dia, mas a certeza
é o que falta, conferindo, sobretudo, a possibilidade. A amálgama, que
constatávamos em Memórias Sentimentais de João Miramar, dá lugar, em
eles eram muitos cavalos, a uma rede heterogênea destituída de unidade
que lhe sirva de pivô, descentralizada, como o protótipo rizomático de
Deleuze7. Numa das sequências de passagens, temos:
3. hagiologia
Santa Catarina de Bolonha, nascida em Ferrara, na Itália, em 1413,
foi abadeira de um mosteiro em Bolonha. No natal de 1456 recebeu
o Menino Jesus das mãos de Nossa Senhora. Dedicou sua vida à
assistência aos necessitados e tinha como única preocupação cumprir
a vontade de Deus. Morreu em 1463.
7
DELEUZE, 2007, p. 15. “É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre
uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de
sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n -1 (é somente assim
que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da
multiplicidade a ser constituída; escrever n-1. Um tal sistema poderia ser chamado
de rizoma. Um rizoma como haste subterrânea distingue-se absolutamente das
raízes e radículas. Os bulbos, os tubérculos são rizomas. (...) O rizoma nele mesmo
tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os
sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos.”
51
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4. A caminho
O neon vaga veloz por sobre o asfalto irregular, ignorando ressaltos,
lombadas, regos, buracos, saliências, costelas, seixos, negra nesga
na noite negra, aprisionada, a música hipnótica, tum-tum-tum, rege
o tronco que trança, tum-tum-tum-tum, o corpo, o carro, avançam,
abduzem as luzes que luzem à esquerda e à direita, um anel
comprado na Portobello Road, satélite no dedo médio direito, tumtum tum-tum, o bólido zune na direção do aeroporto de Cumbica,
ao contrário cruzam faróis de ônibus que convergem por toda parte
(...) (RUFFATO, p. 11, 2001)
O último fragmento, em consonância com a passagem de Memórias
sentimentais citada ao início desta apresentação, é perpassado, de modo
caótico, pelos aspectos citadinos, as luzes, os sons das máquinas, das
ruas. Já em contraponto ao mesmo fragmento da referida obra de
Oswald, o sujeito da ação, aqui, é a própria máquina. Portanto, quem
“vaga veloz por sobre o asfalto irregular” é o neon, e se há condutor do
veículo citado, ele apenas é falado pelos dispositivos, tendo seu corpo
situado no mesmo patamar que o carro: carro/corpo. É preciso, portanto,
salientar: em eles eram muitos cavalos, não há mais subjetividade a ser
remontada, assim como não há unidade possível: o sujeito foi solapado.
Tal assertiva é deflagrada no texto de Ruffato pela radical anomia das
personagens em correlação ao desamparo dos corpos.
No contemporâneo é acentuada a metamorfose das estratégias
do poder – indicada outrora por Gilles Deleuze (1992) –, passando
da disciplina ao controle, do molde à modulação, ou como diria
Lytoard, de um projeto moderno a um programa, intensificada no
mundo pós-68 (LYOTARD, 1997). A própria linguagem – ou melhor,
o sensível – passa a ser alvo do poder, atuando, por sua vez, sob
a égide dos Estados pós-democráticos espetaculares – para usar
um termo de Giorgio Agamben (2002) –, outrossim, por meio da
multiplicação infinita dos dispositivos. Para Agamben, a pletora
referida se ocupa de uma dessubjetivação dos sujeitos sem visar
contrapartida (AGAMBEN, 2009), contando apenas que ele seja mais
52
De Oswald Á Ruffato: o sensível e (n)o cinema
um consumidor, como um número no ibope da televisão: carro/corpo.
Isto nos faz ressaltar: a miséria em “eles eram muitos cavalos”, não é
mais a da falta, mas, sim, a do excesso.
Próxima à leitura que Deleuze realiza acerca do cinema neo-realista
italiano, as personagens em Ruffato se tornam espectadoras; não se
movem ou desenvolvem qualquer ação, se tornando absolutamente
fantasmagóricas e permitindo com que as máquinas sejam as grandes
protagonistas do romance. A metrópole, por fim, seria essa grande
máquina, espécie de personagem central do texto. A interrupção dos
fios de linearidade, como no vagar de um néon pela cidade precedido
por um tratado sobre a vida de um santo – o texto é perpassado por
elementos como listas de livros, anúncios de jornal, entre outros –
inviabiliza a autonomia de qualquer relato acerca de uma suposta
realidade social. A estratégia é simples: copiar e colar, fazer imagens
de segunda mão como protagonistas. Diferentemente de um Miramar
que assinava suas cartas, em eles eram muitos cavalos os enunciados
apócrifos interrompem o lamurio das personagens miseráveis,
jogando o texto numa zona de indeterminação: tudo ali é falso, tudo
é verdadeiro. A falsificação – e lembramos que o primeiro capítulo
de Marco Zero I A revolução melancólica, de Oswald de Andrade, se
intitula “A posse contra a propriedade” – através do uso de um
objeto copiado, saqueado, produz, usando o termo de deleuziano,
uma potência do falso, que produz “o desenvolvimento da atitude
elas próprias.” (DELEUZE, 1985, p. 231) É como se a câmera olho
que percorre a cidade fosse interrompida pela transmissão de outras
câmeras, criando um jogo de espelhos, de multiplicação, que no fim
revela apenas o próprio ato de se filmar, a materialidade do suporte.
O estilo telegráfico de Miramar como procedimento de leitura
citadina se metamorfoseia, em eles eram muitos cavalos, em algo como
o fuzil cronofotográfico, citado por Paul Virílio (2005), sendo última
arma de guerra e dispositivo cinemático usado para a visualização
53
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 43 - 58 •jan./jun.2011
dos confrontos. Este bombardeio se dá por meio de uma convulsão
enunciativa, exemplificada pelo fragmento “a caminho”, que corta,
oblitera as consequências, os efeitos das causas, inviabilizando a
linearidade: de onde, como frisava Benjamin ao ler o Teatro Épico, de
Bertold Brecht, emergem os gestos (BENJAMIN, 1985, p. 80). O corte
na ligação causal entre dois pontos de ação produz uma espécie de
ato performático, onde o corpo movimenta por movimentar, em uma
espécie de dança sem finalidade. A escrita aqui, se torna um lançar de
significantes sem propósito, sendo colocada enquanto tal: se Ruffato,
então, confere testemunho de um sensível capturado, o último se
dá como um arquivo eternamente aberto ao futuro (DERRIDA,
2001). Um sopro, produtor de intensas repetições calcadas em um
imensurável (DELEUZE, 2006), como potência de algo vir a ser, e
não o retorno do idêntico.
A câmera que passeia pela cidade em eles era muitos cavalos nos
faz desabar bruscamente da impressão “narcisista do controle
total” (BUCK-MORSS, 2010), que o cinema nos fez acreditar que
possuíamos, numa absurda fantasmagoria da imagem. Na descrição
dos corpos sem ação política – desta vida nua (AGAMBEN, 2002)
– ao lado de idioletos, recortes de revistas, papeis achados no lixo,
temos o que resta deste sensível capturado: o fim de uma vida como
uma TV fora dor ar.
IV. O cineasta Robert Bresson, em suas Notas sobre o cinematógrafo,
dizia que:
O que nenhum olho humano é capaz de captar, nenhum lápis, pincel,
caneta, de reter, sua câmera capta sem saber o que é e retém com a
indiferença escrupulosa de uma máquina (BRESSON, 2005, p. 33)
Destarte, a montagem cinemática não se destaca por juntar
fragmentos ou por sobrepor imagens, isto a poesia sempre fez. Muito
menos por, como afirma Georges Didi-Huberman (2008) – e como
vemos nos filmes de Andrei Tarkovsky através dos longos planos
54
De Oswald Á Ruffato: o sensível e (n)o cinema
sequência –, propor a coexistência de temporalidades heterogêneas
em um mesmo espaço, requerendo uma montagem. A literatura já nos
fornecia o mesmo. O que o corte e a repetição, ou seja, a montagem
(AGAMBEN, 2008), no cinema, propicia, é o brusco desmonte do
sensível, sua mediação, que quer dizer: sua captura. É com os olhos
voltados para este panorama, que Oswald e Ruffato tecem suas
afinidades literárias com o cinema.
Di Cavalcanti (2008), em 1943, afirmava que Oswald amava o
espetáculo. A constatação é, de fato, vislumbrada em suas peças de
teatro, como O Homem e o cavalo, planejada como espetáculos em
nove quadros. Em A morta – ambas partes da Trilogia da Devoração –
presenciamos o capítulo intitulado “O país da anestesia” (ANDRADE,
2005), no qual integrantes de uma comunidade em que todos haviam
se suicidado instauram um diálogo entre si. O olhar do espectador
da citada peça assiste, como destaca Carlos Gardin:
[...] a autópsia do poeta e da poesia e, por conseguinte, é instigado a
assistir à sua própria autópsia [...] o elo processo de des-montagens
das estruturas do indivíduo que, portanto, ver-se-á em desmontagem.
(GARDIN, 2005, p. 163)
O discursivo passa ao dialógico (FLUSSER, 2008), conjunto de
gestualidades. “É preciso visitar a morte” (GARDIN, 2005, p. 164), e
retirar, como propunha Oswald, o sujeito do exílio entre as máquinas.
Miramar, que celebrava a vida, o caráter indissolúvel de seu espírito,
era a primeira testemunha deste exílio.
A deglutição antropófaga exila o sujeito de si mesmo, fazendo não
coincidir a imagem do corpo com a que se vê no espelho: o sujeito
está onde não está (AGAMBEN, 2005). eles eram muitos cavalos, ainda
que não multiplique as anacronias, devido ao seu débito com o com
o contexto no qual se vê, faz exilar a própria mão que escreve: não
há escrita, apenas seleção de material de toda ordem. O autor está na
borda do texto, se inscreve também como um gesto. (AGAMBEN, 2008)
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Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 43 - 58 •jan./jun.2011
Cada autor detecta, à sua maneira, que um sensível expropriado –
daí a afinidade com o cinema – é também a oportunidade para que ele
seja colocado em sua medialidade, fazendo in-operar a captura pelo
poder. (AGAMBEN, 2006) Ao ser cortado por uma página-tela negra,
na penúltima passagem, eles eram muitos cavalos demarca a fratura
primeva: não há nada por detrás da linguagem, a imagem, mesmo a
especular, é, como diz Derrida (2008), a morte. Só assim poderíamos
negar, como fazia Oswald, um messianismo transcendental, para
evocar, como Agamben (1995), um de uma imanência radical: que
cada momento do passado, cada relato ou palavra obliterada, cindida,
fraturada, possa ser uma pequena fresta pela qual entra o profeta. Que
as máquinas se transformem em brinquedos. De corpos silenciados,
para outros infinitamente multiplicados.
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58
Subproduto do cinema? A chanchada
e o caráter cômico e político do filme
Nem Sansão nem Dalila, de 1954
Átila Alixandre de Moraes1
Dolores Puga Alves de Sousa2
Resumo: Este artigo tem a finalidade de fomentar um diálogo entre História
e Cinema, Arte e Sociedade. Propõe não apenas uma reflexão sobre como
um filme representa a perspectiva de sujeitos que pensam e constroem
mensagens sócio-políticas de seu momento histórico, como uma avaliação
acerca das próprias ideias a respeito do que era considerado o “verdadeiro
cinema” nos anos de 1950, período da obra Nem Sansão Nem Dalila, de
Carlos Manga (1954). Por meio de uma ficção cômica, característica das
“Chanchadas da Atlântida”, embora salientada como produção de “má
qualidade”, foi possível promover uma análise da visão crítica criada sobre
o governo de Getúlio Vargas.
Palavras-chave: Chanchada; Nem Sansão Nem Dalila; Getúlio Vargas.
Abstract: This article aims to foster a dialogue between History and Cinema,
Art and Society. Offers not only a reflection on how a film represents the
perspective of individuals who think and build socio-political messages of
his historical moment, as an assessment on their own ideas about what was
considered the “real cinema” in the 1950s, period of the work Nem Sansão
Nem Dalila, of Carlos Manga (1954). Through a fictional comic character
from “Chanchadas da Atlântida”, although thought as a production of
“poor quality”, it was possible to promote a critical analysis of the vision
built upon the government of Getúlio Vargas.
Keywords: Chanchada; Nem Sansão Nem Dalila; Getúlio Vargas.
1
Graduado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus
de Coxim (UFMS / CPCX).
2
Mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) na linha
de pesquisa Linguagens, Estética e Hermenêutica. Professora do curso de História
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus de Coxim (UFMS / CPCX).
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“O riso libera o aldeão do medo do diabo, porque na festa dos tolos
também o diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável”.
Umberto Eco
Para os estudiosos, já não é novidade a existência de transformações
dentro da própria metodologia histórica, assim como não o é a busca
cada vez maior por um novo espaço no qual possam inseri-la. Tratase da construção de uma abordagem que dialogue com a literatura:
“[...] a escrita da história, como discurso, organiza-se sob a forma
de uma narração literária, só que se diferencia desta na medida
em que procura produzir um efeito de realidade/verdade por meio da
citação de documentos [...]”. (RAMOS, 2001, p. 24). Neste aspecto, a
análise positivista dos fatos não consegue mais dar vazão ao cuidado
destinado aos fragmentos históricos, aos valores e representações
dos sujeitos, tão bem observados pelas obras de arte, como o cinema.
Dessa forma, a relação entre História e Ficção tornou-se conhecida.
Afinal, era possível encontrar a “história” existente em filmes que não
fossem simplesmente documentários. A partir desse ponto, houve a
maior mudança: esses documentários, como qualquer outra produção
cinematográfica, contêm uma linguagem e uma mensagem específicas
de seus produtores e diretores. O quê cada um desses elaboradores
buscavam dizer com os filmes? Por quê? De quais formas? Estas
passaram a ser análises importantes.
Contudo, dentro da própria reflexão desses novos objetos e temas,
ainda existe a influência de uma tradição hierárquica. Acostumamos
a enxergar e pensar o mundo sob o ponto de vista trágico. A história e
seus acontecimentos são “sempre trágicos”. E, nesse sentido, parecenos a tentativa de um “engrandecimento” da história; afinal, ela deve
ser levada a “sério”.
A idéia da “grandeza” trágica vem ainda da antiguidade
clássica, quando Aristóteles, pela sua Poética (ARISTÓTELES, 1966),
determinou uma tradição teórica capaz de se fundamentar como um
60
Subproduto do cinema?
manual a ser seguido. Segundo ele, a tragédia serviria para que os
homens aprendessem o caminho certo, e por este viés, ela tomaria
características de cunho moral.
Assim, a tragédia seria ponderada de maneira superior, pois
seria um importante fundamento para a evolução humana. Já a
comédia, seria relegada a segundo plano, uma vez que representaria
somente o ridículo, o menor, o inferior e, por isso, não passível de
maiores considerações. A Poética se estabeleceu de tal forma que se
constituiu até mesmo no pensamento de intelectuais contemporâneos,
perpassando os tempos históricos e exercendo sobre eles um “poder
hipnótico” – contemplando uma expressão de Carlos Vesentini:
A capacidade de a memória impedi-lo [impedir o movimento
histórico] parece fluir, em boa parte, da força auferida por se localizar
em um fato – memória e fato se unem, sobrevivendo aquela e, nesse
movimento, ela decide onde as interrogações serão postas, da mesma
forma que exclui ângulos onde sua coerência poderia ser colocada
em questão. (VESENTINI, 1997, p. 19)
Quando a coerência não é necessariamente o que importa, ou ainda,
quando já existe uma coerência pré-determinada, é possível compreender
essa hierarquia da tragédia sobre a comédia ao analisarmos a recepção de
algumas produções cinematográficas do Brasil nos anos de 1950. Neste
período, muitos dos críticos do cinema brasileiro determinam seus pontos
de vista. O sonho de alcançar o progresso e a modernidade era, cada dia
mais, exigido pelos brasileiros. Nestes termos, o bom cinema era aquele
que pudesse fomentar a grandiosidade técnica, bem como a seriedade na
concepção de nação e seus elementos. O “Cinema” com “C” maiúsculo,
nunca deveria ser cômico, de “humor chulo” e “grosseiro”, segundo os
críticos das chanchadas brasileiras da produtora Atlântida – estas obtendo
o nome na década de 1950, já com um tom pejorativo –, mas sim, “altivo”
e “grave”, que retratasse o Brasil com “discrição” e “discernimento”. A
comédia seria um fator que marcaria o subdesenvolvimento, ao invés de
ressaltar a busca pelo avanço. Não obstante, os críticos:
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Diziam que os cenários eram apressados, as situações ilógicas, o corte
descuidado, as histórias mal costuradas, os diálogos ridículos, o som
ininteligível, a fotografia chapada, a produção paupérrima. [...] [Mas]
o sucesso das chanchadas provara que podia haver no Brasil uma
atividade cinematográfica contínua e rendosa: porque não poderia
haver Cinema? [grifo nosso]. (GALVÃO; SOUZA, 1984, p. 484)
Por isso, compreender os
motivos do “ridículo” sempre
foi tarefa difícil de ser realizada
dentro da tradição. Este foi um
movimento uma vez ousado por
Bakhtin, na tentativa de decifrar
a comicidade e o “grotesco”
presentes nas obras do poeta
Fonte: www.adorocinemabrasileiro.com.br
Rabelais, da Renascença.
(BAKHTIN, 1993). Pensar dessa forma é analisar as chanchadas em seu
contexto histórico, na medida em que compõem implicações estéticas
que são, ao mesmo tempo, políticas. Como afirmou Rosangela Patriota
ao se remeter às discussões feitas por Umberto Eco:
[...] o riso tem a capacidade de liberar e produzir questionamentos,
pois a comédia, ao contrário da tragédia, não propicia a identificação
do espectador com o que ocorre em cena, pelo contrário, ela pode
suscitar o “estranhamento”, a crítica, bem como permite romper o
espaço das hierarquias estabelecidas. Assim, redimensionar o lugar
da tragédia e da comédia na história das manifestações artísticas é
de suma importância, na medida em que possibilitará repensar, por
exemplo, o lugar atribuído a estes gêneros na história do teatro, do
cinema, da literatura. (PATRIOTA, 1999, p. 840).
De maneira relevante, Patriota explora na comédia, o que Michel
de Certeau aponta para a escrita da história: o lugar social. Somente
compreendendo a chanchada dentro de seu “[...] lugar de produção
sócio-econômico, político e cultural” (CERTEAU, 2002, p. 66),
compreendemos também as razões da forma como ela é concebida.
62
Subproduto do cinema?
Se pautarmos em uma das produções da Atlântida, podemos
realizar uma análise mais profunda. Como documento, é possível
construir reflexões sobre o filme Nem Sansão Nem Dalila, lançado no
Brasil em 1954, sob direção de Carlos Manga. Uma paródia ao filme
Sansão e Dalila de Cecil B. Demille, de 1949, de inspiração bíblica.
As chanchadas do país até os anos de 1970 eram alvo de muitas
críticas por parte dos estudiosos das produções brasileiras, e após
esse período, alguns trabalhos buscaram repensar o valor dessas
obras cinematográficas, principalmente pelos seus significados
sócio-culturais, apontando essas películas como grandes detentoras
de críticas da realidade nacional da época, como Bernardet, que
considera o referido filme como “um dos melhores filmes políticos
brasileiros”. (Cf. BERNARDET, 1979). Elas também revelam a
riqueza e a razão de compreendermos que uma produção suscita
reflexões sócio-históricas de seu tempo e, muitas vezes, sobretudo
de seu espaço: o Brasil daqueles anos.
O enredo se baseia na trajetória do barbeiro Horácio, que vai
para o momento histórico do “Reino de Gaza”, antes de Cristo,
depois de sofrer um acidente em uma máquina do tempo. Conhece
Sansão, um homem de força extraordinária, vinda de uma peruca.
Horácio procura trocar espertamente a peruca por um isqueiro – que
naquele tempo não era sequer conhecido – e, ao convencer Sansão,
transforma-se num homem forte e influente, reinando em Gaza como
um “ditador bonachão”.3
Alusão explícita à figura de Getúlio Vargas – naquele ano
presidente do Brasil, mas, dessa vez, por voto popular em 1951 –,
o filme constrói uma crítica ao seu governo populista e autoritário
ao longo de sua trajetória política. Para isso, utiliza-se da história
3
A pesquisa feita sobre a sinopse do filme e as fotos coletadas foram retiradas do
site www.adorocinemabrasileiro.com.br no ano de 2006.
63
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 59 - 74 •jan./jun.2011
de Sansão. Na bíblia, se referia a um
homem responsável por salvar o
povo de Israel do poderio Filisteu,
por meio de um dom divino: uma
força fantástica advinda dos seus
cabelos.
Por meio dos gestos e das falas do ator Oscarito (que interpreta
o barbeiro Horácio, o qual toma o lugar do Sansão), um “Getúlio
Vargas” cômico entra em cena ao elaborar leis, satirizando sua
imagem, tantas vezes passada como um “salvador” e “pai” do “povo
brasileiro”, quase “enviado por Deus”. A própria troca de Sansão por
um barbeiro no poder, já demonstra outra alusão: o golpe de estado
de Vargas – o Estado Novo. Existe, nesse contexto, a discussão sobre
o papel do representante do governo dentro da sociedade – esta vista
cada vez mais dependente e obediente aos seus mandos, dando a
falsa impressão de que há uma união popular rumo à construção do
progresso brasileiro. Na realidade, de acordo com Marilena Chauí,
o Estado seria encarado como “[...] o único sujeito político e o único
agente histórico” (CHAUÍ, 2004, p. 28).
No filme, durante a criação das leis, o rei Horácio/Sansão se
depara com um problema administrativo que o faz multar alguns
comerciantes por não cumprirem seus novos mandos. Nesta cena, a
secretária o questiona: “Não achais, poderoso Sansão, que essas novas
leis estão criando confusão?” 4 E o rei responde: “Deixa a confusão,
o governo é isso mesmo, pelo menos na minha terra é assim”. Falas
como essas demarcam a alusão às leis vigentes no Brasil impostas
pelos políticos que apenas queriam manter a “ordem” por vias
autoritárias.
4
Todas as falas aqui citadas foram transcrições retiradas da película. Nem Sansão
Nem Dalila, 1954.
64
Subproduto do cinema?
Com essas personagens, o filme procurava, de forma debochada,
desconstruir um discurso populista fomentado inclusive por
intelectuais crentes nos ideais progressistas e nacionalistas do
governo Vargas. Alertava que a “cultura política” – expressão da
época salientada por Angela de Castro Gomes acerca dos planos
educativos do governo ao acesso do “povo à política” – era uma
estratégia que, para se atingir a elite, precisaria, na realidade, dos
menos favorecidos apenas para se ganhar o voto. A obra retratava,
então, uma crítica à crença da unicidade de pensamento e “povo
brasileiro”: “O estado novo não pode ser caracterizado como
apresentando uma doutrina oficial compacta, isto é, homogênea ao
ponto de afastar diversidades relevantes”. (GOMES, 1994, p. 173).
Outros elementos de Nem Sansão Nem Dalila podem nos apontar
os motivos da escolha cômica e seu caráter necessariamente político.
Dentre eles, podemos destacar o enfoque do filme dado ao trabalho
da rádio daquele período, no Brasil. Horácio, ainda buscando
efetivar-se no poder político com sua peruca “milagrosa”, aponta o
desconforto que sente em relação à rádio do lugar. Ele afirma que
ela apenas consegue funcionar pelo seu apoio poderoso e exige que
ela, ao invés de falar besteiras e colocar músicas, anuncie sempre seu
nome – incorporando Sansão – para ganhar votos eleitorais, através
de uma campanha e uma propaganda política esculachadas em “prol
do povo”. Sobre esta questão, Marilena Chauí explica:
[...] os vários nacionalismos desse período [que se iniciam nos anos
de 1930] contaram com a nova comunicação de massa (o rádio e
o cinema) para “transformar símbolos nacionais em parte da vida
cotidiana de qualquer indivíduo e, com isso, romper as divisões entre
a esfera privada e local e a esfera pública e nacional”. [...] Passeatas
embandeiradas, ginástica coletiva em grandes estádios, programas
estatais pelo rádio, uniformes políticos com cores distintivas, grandes
comícios marcam esse período como época do “nacionalismo
militante”. (CHAUÍ, 2004, p. 20)
65
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Pela propaganda política, muito bem explorada pelo filme, era
necessário ser um militante das idéias impostas, visto que essa
perspectiva estava diretamente associada à defesa da nação. Portanto,
quem não estava de acordo com as idéias governamentais do líder
Horácio/Sansão, estava contra o ideal de toda a Gaza. Segundo
Mônica Pimenta Velloso:
É nesse período que se elabora efetivamente a montagem de
uma propaganda sistemática do governo, destinada a difundir e
popularizar a ideologia do regime junto às diferentes camadas sociais.
Para dar conta de tal empreendimento é criado um eficiente aparato
cultural: O Departamento de Imprensa e Propaganda, diretamente
subordinado ao Executivo. [...] Vargas defendera a necessidade de o
governo associar o rádio, cinema e esportes em um sistema articulado
de “educação mental, moral e higiênica”. (VELLOSO, 2003, p. 157).
Como Vargas, o rei Horácio/Sansão também adota essas medidas
como forma de se ter uma melhor aproximação com o público,
em especial as camadas sociais mais baixas para se ter uma maior
aprovação dentro do âmbito político. Nesse aspecto, semelhante à
criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (o DIP) – órgão
de controle e manipulação do governo por vias de comunicação de
massa – a rádio se torna uma grande aliada do líder de Gaza para se
obter o domínio das pessoas. Essas considerações se tornam claras no
momento em que, no filme, o barbeiro se dirige à rádio para conferir
de perto o programa que ele mandou criar. Segundo a personagem
principal da obra, que se enfurece com o locutor da rádio: “Esse cara
fala de tudo, menos da minha propaganda política”.
Nesse ínterim, podemos observar que a propagação de um governo
populista foi justamente a vontade de Horácio/Sansão ao implantar
propagandas. Seus adversários políticos chegam a enfatizar, no filme,
que a razão de sua popularidade estava nessa publicidade que o
exaltava, enaltecendo seu governo. Eis uma crítica e uma mensagem
direta ao público que assistiria a obra para refletirem o sentido
66
Subproduto do cinema?
da rádio como forte elemento de manipulação política. A atitude
do líder de Gaza em conferir aquilo que era transmitido pode ser
comparada à eficácia da criação do DIP por parte de Getúlio Vargas
e seus assessores: uma entidade segura que viabilizasse os ideais
políticos da centralização do Estado e da busca de confiabilidade
total da população em seu governante.
Ainda segundo Pimenta Velloso: “Essa estrutura altamente
centralizada iria permitir ao governo exercer eficiente controle da
informação, assegurando-lhe considerável domínio em relação à
vida cultural do país” (VELLOSO, 2003, p. 158). No filme, podemos
observar essa busca de uma formação política específica aos cidadãos
de Gaza. A influência por meio da rádio foi de suma importância para
a implantação do governo de Getúlio Vargas, que utilizava desse
recurso para mascarar uma política de muitos anos de comando,
ocultando qualquer rótulo de “autoritário” e “ditador”.
Justamente pelo acesso à vida cultural é que o governo de
Vargas sustentava uma “educação política” dos brasileiros. Mas
“povo brasileiro”, enquanto discurso e prática daquela ideologia
governamental não se ampliava para qualquer pessoa; simbolizava,
sobretudo, os trabalhadores do país, que se tornaram ícones da
“construção da nação”, do “futuro e do progresso brasileiros”.
Representavam soldados em nome dos mandos do Estado para
exaltação daquilo que se acreditava ser a grandiosidade nacional.
A demonstração da tentativa em se formar politicamente os
trabalhadores brasileiros estava no programa apresentado pelo Ministro
do Trabalho de Vargas, Alexandre Marcondes Filho, intitulado “Falando
aos trabalhadores brasileiros”. De acordo com Angela de Castro Gomes:
“o título resume a intenção do ministro e com isto o veículo escolhido
para as emissões” (GOMES, 1994, p. 196). O governo, como no filme,
utiliza recursos para atingir as camadas sociais mais baixas e para se
autopromover. Na película, de maneira bem debochada, podemos
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observar esse ponto por meio do nome do programa do rei: “Votai
em Sansão, para um governo de ação”. Com um título bem objetivo,
mostra-se a face do autoritarismo do governo na expectativa de formar
opiniões com os meios de comunicação de massa.
Em suas falas, Horácio/Sansão dizia: “Trabalhadores de Gaza, a
situação política nacional... está uma vergonha! As mamatas andam
soltas por aí, todos querem se defender!”. Com esse discurso, imitando
os trejeitos de Getúlio Vargas ao se dirigir à população do país, a
personagem começa a decretar que se cobrem mais impostos e, nesses
termos, o discurso inicial era apenas para encobrir a sua real intenção.
Durante o chamado Estado Novo, momento político do governo
utilizado como estratégia de convencimento populacional aliado ao
autoritarismo, a aproximação entre o Estado e um “povo brasileiro”
idealizado era essencial para que o populismo continuasse sendo esse
elo entre eleitores – diga-se de passagem, sobretudo trabalhadores – e o
poder público. Em outra cena do filme, Horácio/Sansão afirma: “Ficando
estabelecido que todos os dias do ano são feriados, com exceção do dia do
trabalho!”, suscitando, por vias cômicas, o que Angela de Castro Gomes
apontou como ótima referência dessa aproximação entre o governante
e o trabalhador: a determinação dos dias festivos.
Constrói-se, assim, uma sátira explícita à criação de feriados e
dias comemorativos pelo governo como estratégia de manipulação e
construção de uma memória nacional oficial. Trata-se da consolidação
histórica do líder do país como grande herói responsável por criar
as leis trabalhistas; um dia representativo do símbolo da melhoria e
da valorização da vida do trabalhador e do progresso do Brasil. São
questões que ainda nos dizem respeito hodiernamente, porque foram
fundamentadas como parte necessária de uma lembrança contínua e
anual, coletiva e comum, cristalizadas de tal maneira na vida social
que se legitimaram como história: uma parte da história da nação.
Segundo Júlio Pimentel:
68
Subproduto do cinema?
[...] uma memória coletiva ou história pública determinam ou reiteram
uma identidade que pode, muitas vezes, parecer frágil, mas que é
continuamente nutrida pelo exercício da lembrança e por sua ligação
a temporalidades passadas, a episódios de que não participamos, mas
que ilustram um vínculo comum a homens em sociedade.
Na operação histórica, o passado é tornado exclusivamente racional,
destituído da aura de culto, metamorfoseado em conhecimento, em
representação, em reflexão; na constituição de memória, ao contrário,
é possível reincorporar a ele, passado, em um grau de sacro, de mito
(PIMENTEL PINTO, 1998, p. 208-209).
O mito Vargas, assim como o mito do esperto Horácio/Sansão
estavam, dessa maneira, legitimados como memória. Ao apontar que
todos os dias do ano seriam feriado, com exceção do dia do trabalho, Nem
Sansão Nem Dalila faz uma grande crítica a essas questões, transmitindo
ao público que o trabalhador, no governo de Getúlio era, na realidade,
lembrado apenas no “Dia do Trabalho”, uma visão interessante de
repúdio ao populismo da época, entre tantas outras discutidas nesse
artigo, muito embora os produtores do próprio filme tenham mantido
o cuidado de afirmar, logo ao início, que a semelhança com a realidade
era “mera coincidência”. Todavia, há que se pensar que toda e qualquer
mensagem de uma obra-de-arte tem um significado, antes de tudo
político.5 E após alguns anos de censura, a sátira política e o amplo
número de produções de chanchadas no Brasil passaram a ser referência
nos anos posteriores, já na presidência de JK. (Cf. VELLOSO, 2002).
De maneira geral, Vargas consegue, em seu governo, atingir as classes
sociais imaginadas, fundamentando, ao longo de toda a história, a visão
de um governo, que era uma ditadura nos anos de 1930 e 1940, em um
ideal político conjunto, de caráter populista, utilizando-se dos meios de
comunicação com objetivo de controle e legitimação estatal. Até hoje,
5
Segundo o crítico teatral Paulo Francis, “Toda arte é política, a despeito de si própria,
ainda que o artista descreva as relações individuais entre duas pessoas numa ilha
deserta”. FRANCIS, Paulo. Polêmica interminável – apresentação de Paulo Francis.
In: BENTLEY, Eric. O teatro engajado. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1969, p. 10.
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pensar em governo getulista é estudar a
“Revolução de 1930”; o “pai dos pobres
e trabalhadores”; o “progresso nacional”.
Talvez, como grande ferramenta
para a investigação histórica, cabe ao
historiador lançar mão de documentos
como esse para repensar criticamente
a cristalização de uma memóriahistórica brasileira: as chanchadas.
Não apenas pelos traços sociais que
nos fazem repensar, mas também pela força como atingiu milhares
de espectadores em todo o Brasil. De acordo com, Sérgio Augusto,
um de seus principais estudiosos:
Na passarela cinematográfica, só a alegria comandava o espetáculo.
Atraindo filas e mais filas de espectadores religiosamente fiéis ao
seu humor quase sempre ingênuo, às vezes malicioso e até picante,
o filme musical carnavalesco impôs-se como um entretenimento de
massa de singular expressividade. Quando encontrou sua forma ideal,
os representantes de Hollywood, por estas bandas, ao invés de rir,
franziram o cenho. Não era para menos.
De qualquer modo, as chanchadas transpiravam brasilidade por
quase todos os fotogramas – e não apenas por colocar em relevo
aspectos e problemas do cotidiano de sua claque, como a carestia,
a falta de água, as deficiências do transporte urbano, a demagogia
eleitoreira, a corrupção política, a indolência burocrática. Até quando
pretendiam ser meros pastichos de tolices estrangeiras, algo lhes traía
a inconfundível nacionalidade. (AUGUSTO, 1989, p. 13, 14 e 16).
Embora de caráter ficcional, foi justamente pela imaginação de
artistas e da escolha pelo viés do cômico e do riso que Nem Sansão
Nem Dalila se torna um ótimo objeto de estudo que não pode ser
reduzido somente a uma paródia de uma obra estrangeira. O filme
representa esse caráter, antes de tudo nacional, de denúncia sobre
os anos de 1950 e as discussões sócio-políticas e culturais do país.
70
Subproduto do cinema?
Mesmo assim, dentro da apreciação temática do filme, é possível
nos deparar claramente com uma perspectiva cômica da história
bíblica de Sansão e Dalila, representada pelo filme de Cecil B. Demille.
De que forma uma personagem trágica – que possui um destino fatal
ao contar à Dalila o segredo de sua força, não se firmando na ordem
divina e se deixando seduzir por essa figura, responsável por cortar
seus cabelos e retirar seu dom – se transforma, pelo filme de Carlos
Manga, em uma personagem completamente cômica e “chula”?
[...] a forma de entender estes acontecimentos se faz não apesar
da comicidade, mas exatamente a partir dela e com base nela. A
comicidade, aqui, não é mero ornamento. É uma das formas de conferir
concretude ao pensamento. Portanto, ter um olhar trágico ou cômico
sobre os acontecimentos é, sobretudo, uma forma de interpretá-los.
[...] Por isso, se num determinado momento histórico, acontecimentos
que, socialmente falando, antes eram vistos como trágicos, passarem a
ser encarados como cômicos é porque uma importante transformação
política ocorreu. A passagem do trágico para o cômico, neste caso, só
pode ser explicada a partir da própria história. (RAMOS, 2001, p. 25).
Sem dúvida, é preciso não deixar para segundo plano a análise
das chanchadas. Sua grande recepção popular nos demonstra que
suas discussões e sua comicidade fazem sentido dentro de seus
contextos históricos. As chanchadas produzidas na década de 1950
são obras repletas de exames críticos da sociedade e com uma
grande importância histórica para o cinema nacional, revelando
problemas políticos e sociais vividos no Brasil. É por essa razão
que, em meio a um novo período, em plena década de 1970,
momento em que o país passava por grande censura e perseguição
governamental é que os intelectuais – parte fundamental da
recepção dessas obras fílmicas – desenvolveram novas leituras,
compreendendo não apenas a importância das chanchadas como
instrumento de discussão política, como também aprofundando
a perspectiva do humor enquanto ferramenta para a construção
de críticas sociais.
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Referências
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72
Subproduto do cinema?
VELLOSO, Mônica Pimenta. A dupla face de Jano: romantismo e populismo.
In: GOMES, Ângela de Castro (Org.). O Brasil de JK. 2 ed. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2002. p. 171-199.
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Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil Republicano:
o tempo do nacional-estatismo – do início da década de 1930 ao apogeu do
Estado Novo. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 145-179.
VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato. São Paulo: Hucitec, 1997.
Site das imagens e enredo do filme: www.adorocinemabrasileiro.com.br
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ANEXO
74
A retórica colonial na narrativa histórica
sobre a antiguidade: Garra Negra de
Jacques Martin
Alberto Oliveira Pinto1
Resumo: Este artigo pretende reflectir sobre Garra Negra de Jacques Martin,
obra da banda desenhada franco-belga de temática histórica que relata uma
viagem à África subsahariana nos anos 50 a.C., reconstituindo o controverso
itinerário descrito no Périplo de Hanão, texto cartaginês presumivelmente
datado da primeira metade do século V a.C. e traduzido para grego em finais
do século IV a.C. Apesar da data da sua primeira edição, 1957, dois anos
depois da Conferência de Bandoung, preconizadora das independências
africanas e asiáticas, Garra Negra espelha ainda uma visão exótica e colonial
da África e do homem africano.
Palavras-chave: Jacques Martin; banda desenhada; história; Roma; Cartago;
África.
Resumé: Cet article se veut une réfléxion sur La Griffe Noir de Jacques Martin,
une oeuvre de la bande dessinée franco-belge de thématique historique
au sujet d’un voyage en Afrique subsaharienne aux années 50 av. J.-C., en
reconstituant le controversé itinéraire décrit dans le Périple de Hannon, récit
carthaginois daté de la première moitié du Vème siècle av. J.-C. et traduit en
grec a la fin du IVème siècle av. J.-C. Malgré la date de sa première édition,
1957, deux ans aprés la Conférence de Bandoung, laquelle préconisait les
indépendences africaines et asiatiques, La Griffe Noir réproduit encore une
vision exotique et coloniale de l’Afrique et de l’homme africain.
Mots-clés: Jacques Martin; bande dessinée; histoire; Rome; Carthage;
Afrique.
1
Doutor em História de África pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
(FLUL).
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Jacques Martin, a censura francesa e a África colonial desconhecida
Jacques Martin (Estrasburgo, 1921- Bruxelas, 2010) distinguiu-se
como um dos grandes nomes da banda desenhada franco-belga do
século XX, na vertente realista e dramática. Se no final da IIª Guerra
Mundial, depois de se ter instalado na Bélgica, onde estudara
engenharia e artes e ofícios, assinou durante cerca de dois anos,
dispersos por várias revistas da especialidade, séries tendencialmente
humorísticas com o pseudónimo Marleb, só em 1948 é que ingressou
na revista Tintin, semanário destinado ao público juvenil, fundado
dois anos antes pelo empresário Raymond Leblanc, igualmente
responsável pelas Éditions du Lombard. Jacques Martin confessa ter,
ao tempo, apresentado à redacção da revista três projectos de séries
dramáticas de banda desenhada de temática histórica, tendo por
pano de fundo, respectivamente, a Antiguidade, a Idade Média e o
Império Napoleónico (GROENSTEEN e MARTIN, 1987, p.55). Foi,
porém, o da Antiguidade, com acção a decorrer nos anos de 50 a.C. e
protagonizado pela personagem Alix Graccus, um adolescente gaulês
tornado cidadão romano pela via da adopção, aquele que obteve
a aprovação, quer de Raymond Leblanc, quer de Hergé (Georges
Rémi), criador, em 1929, da série Tintin e agora director artístico do
semanário homónimo.
Nas décadas que se seguiram, Jacques Martin viria, até 1972, a
colaborar, na qualidade de desenhador, em seis álbuns da autoria de
Hergé, e a desenvolver, até à data da sua morte, em 2010, sete séries
de banda desenhada de sua autoria: Alix (século I a.C., triunvirato
César-Pompeu-Crasso, 28 álbuns, contando os 19 primeiros com
argumento e desenho de Jacques Martin e os 9 restantes apenas com
o seu argumento); Lefranc (século XX/Pós - IIª Guerra Mundial/ Guerra
Fria, 19 álbuns, contando os 3 primeiros com argumento e desenho
de Jacques Martin e os restantes apenas com o seu argumento); Jhen
(primeira metade do século XV/Baixa Idade Média, 10 álbuns, todos
76
A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade
apenas com argumento de Jacques Martin); Arno (viragem do século
XVIII para o século XIX/Consulado e Império Napoleónico, 6 álbuns,
todos apenas com argumento de Jacques Martin); Orion (século V
a.C./governo de Péricles em Atenas, 3 álbuns, contando os 2 primeiros
com argumento e desenho de Jacques Martin); Keos (c. 1213 a.C/fim do
reinado de Ramsés II e êxodo do Egipto de Moisés e seus seguidores, 3
álbuns, todos apenas com argumento de Jacques Martin); e, finalmente,
Loïs (segunda metade do século XVII/reinado de Luís XIV, 4 álbuns,
todos apenas com argumento de Jacques Martin).
Das 73 narrativas romanescas que Jacques Martin escreveu desde
1948 – das quais, repita-se, 24 desenhou integralmente -, só duas,
ambas da série Alix, contemplam o espaço africano subsahariano: La
Griffe Noire (1959) e Le Fleuve de Jade (2003). Se excluirmos Le Fleuve de
Jade – cuja acção decorre entre o antigo reino de Meroé, na margem
leste do rio Nilo, na Núbia, e o território que se estende para sul,
actualmente partilhado pelo Egipto e pelo Sudão -, pelo facto de esta
obra não haver sido desenhada por Jacques Martin e sim por Rafael
Morales, resta-nos La Griffe Noire.
Esta quinta aventura de Alix, publicada em língua portuguesa
pelas Edições 70 em 1987 e pelas Edições Asa em 2010, ano da morte
do autor, com o título Garra Negra, surgiu pela primeira vez na revista
Tintin (edição belga) entre 25 de Dezembro de 1957 (nº 52, 12º ano) e 25
de Fevereiro de 1959 (nº8, 14º ano), sendo nesse mesmo ano publicada
em álbum pelas Éditions du Lombard e só mais tarde, em 1965, pela
Casterman (GROENSTEEN e MARTIN, 1987, p. 110-113 e ROBERT,
1999, p.96). A data da publicação de Garra Negra na revista Tintin e
nas Éditions du Lombard é, portanto, anterior à das independências
do Congo Belga (depois, sucessivamente, Congo-Kinshasa, República
do Zaire e República Democrática do Congo) e do Congo Francês
(depois Congo-Brazzaville ou República Popular do Congo), ambas
ocorridas em 1960 (M’BOKOLO, 2007, p. 502-503). Por sua vez, a
77
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011
data da publicação de Garra Negra na Casterman é posterior, quer às
independências destes dois países africanos subsaharianos, quer à
independência da Argélia, obtida pela FNL, movimento nacionalista
argelino, três anos antes, em 1962, após um longo conflito armado,
remontando a 1954, com a potência colonizadora, a França (FERRO,
1994, p. 334-344). A relevância destes elementos conjunturais reside
no facto de terem estado na origem de um dos episódios mais
impressionantes vividos por Jacques Martin ao longo da sua carreira.
Em 1965, ano da sua publicação na Casterman, editora belga,
Garra Negra foi alvo de censura em França, país natal de Jacques
Martin, ao abrigo de uma lei de 1949 sobre publicações destinadas à
juventude que admitia arbitrariamente qualquer proibição em nome
do que se entendesse por princípios morais. A proibição da edição
francesa de Garra Negra em 1965 relacionou-se directamente com o
então ainda recente conflito argelino e com o trauma por este causado
na sociedade francesa. Sectores políticos da direita estabeleceram
analogias indevidas entre os cinco oficiais romanos que destroem a
fictícia Ícara e os generais franceses Bigeard, Massu, Trinquier e Erulin,
e consideraram, consequentemente, Garra Negra um livro ofensivo para
a OAS (Organisation Armée Secrète), formada por políticos e militares
franceses em reacção ao referendo de 8 de Janeiro de 1961 sobre a autodeterminação da Argélia, organizado por Charles de Gaulle (FERRO,
1994, p. 441-428). Por sua vez, os sectores da esquerda julgaram
entrever na personagem que figura encapuçada na(s) capa(s) – quer a
das Éditions du Lombard de 1959, quer a da Casterman de 1965 – uma
alusão aos cagoulards, membros de uma antiga organização terrorista
de extrema-direita, activista pró-fascista, extinta e dispersada em 1937.
A esta situação absurda, impregnada de desinteligência, como o são
todas as que resultam de actos de censura, veio a pôr fim a coragem de
um outro brilhante autor de banda desenhada francês, René Goscinny
(1926-1977), criador e argumentista de Astérix, que tudo fez junto
das autoridades do seu país para que fosse levantada a proibição da
78
A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade
obra de Jacques Martin (GROENSTEEN e MARTIN, 1987, p. 112-113
e ROBERT, 1999, p.20). Tal medida, porém, não incentivou o público
franco-belga, decerto receoso das retaliações dos políticos, a comprar
o álbum Garra Negra, do qual muitos exemplares permaneceram nas
livrarias e nos armazéns durante os anos subsequentes.
Mas qual será, afinal, a verdadeira componente ideológica
subentendida em Garra Negra?
Garra Negra, o Périplo de Hanão e a arqueologia: a fictícia vingança
de Ícara, as feitorias cartaginesas na costa ocidental africana e a
emergência das populações bantu
Entre 149 e 146 a.C., durante a Terceira Guerra Púnica, Ícara,
pequena cidade costeira da África do Norte situada a norte de Cartago
e ligeiramente a sul da baía de Útica, escapou milagrosamente ao
massacre perpetrado pelas legiões romanas de Cipião Emiliano.
Com uma população maioritariamente cartaginesa, Ícara prosperaria
durante os setenta anos que se seguiram à queda de Cartago, até
aproximadamente 80 a.C., mantendo-se independente de Roma e
salvaguardada por um velho tratado das eventuais hostilidades das
VIª e VIIª legiões, aquarteladas em Útica. Embora os navios mercantes
de Ícara fundeassem com frequência em Útica e comerciassem com
os romanos, nunca os munícipes de Ícara permitiram o desembarque
de nenhum navio estrangeiro, sobretudo romano, na sua cidade. Se
o governador romano de Útica se mostrava complacente perante a
arrogância desta atitude, o mesmo não acontecia com os militares das
VIª e VIIª legiões, particularmente os seus chefes, quer o comandante
supremo, Gallas, quer os oficiais superiores Flavius, Sulla, Marcus e
Petrónio, sujo agastamento contra Ícara haveria de conduzir à tragédia.
Uma ocasião, durante uma violenta tempestade, os vigias romanos
de Útica avistaram ao longe um navio de uma esquadra romana que
se afastava perdido no meio das vagas e supuseram que procurava
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refúgio da baía de Ícara, onde, em situação de perigo, teria direito
de asilo, mesmo tratando-se de um inimigo. O navio, porém, veio
a naufragar antes de alcançar o porto, desaparecendo com pessoas
e bens. Não havendo obtido notícias durante vários dias, os cinco
oficiais romanos não hesitaram em imaginar que os habitantes de
Ícara tivessem massacrado a tripulação e feito desaparecer o navio.
Convenceram, por isso, o governador de Útica a enviar emissários
a Ícara a fim de inquirir sobre os factos. O tempo decorreu sem que
os emissários enviados voltassem, até que um viajante númida de
passagem por Útica assegurou ao governador tê-los visto conferenciar
junto aos muros de Ícara cerca de cinco dias antes, o que veio a
agravar consideravelmente a desconfiança dos romanos, uma vez
que a missão deveria demorar, no máximo, três dias. Gallas obteve
então do governador a tão ansiada autorização para partir com os seus
doze mil homens em expedição punitiva a Ícara. As suas duas legiões
seguiram pelo desfiladeiro de Harrar, para não serem localizadas, e na
madrugada seguinte arrasaram a cidade cartaginesa, incendiando-a,
saqueando-a, e massacrando a maior parte da população.
Ao inspeccionarem os escombros da cidade em ruínas, Gallas e
os seus companheiros de armas receberam uma notícia assombrosa
trazida por um mensageiro. Os emissários romanos tinham
efectivamente tentado regressar a Útica, mas sucumbiram, durante
a viagem, a um assalto de ladrões nómadas. Se Gallas e as suas
legiões tivessem seguido para Ícara pela estrada normal e não pelo
desfiladeiro de Harrar, ter-se-iam cruzado com eles. Junto dos seus
corpos, foi encontrada intacta a mensagem do arconte, chefe religioso
e militar de Ícara, autorizando os romanos a efectuar o inquérito
sobre o navio desaparecido. Desconcertados, os cinco oficiais
regressaram a Útica, onde o governador, encolerizado, lhes ordenou
que encontrassem a todo o custo os destroços do navio naufragado,
o que de facto veio a acontecer no dia seguinte, a mais de três léguas
do porto, em promontório inóspito para onde a embarcação fora
80
A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade
arrastada pela tempestade. Gallas, Flavius, Sulla, Marcus e Petrónio
tiveram então que se render à evidência: eram responsáveis por
um massacre de inocentes. Contudo, no momento em que as suas
consciências mais pesavam, os cinco oficiais receberam com surpresa
a notícia de que Roma os felicitava pelo seu erro militar, o qual não
desagradara ao Senado, pois permitira a eliminação de uma cidade
incómoda. Recebidos em triunfo, aceitaram as honrarias e riquezas
com que foram distinguidos.
Partindo da tragédia de Ícara, relatada trinta anos depois a Alix
pelo próprio Gallas (MARTIN, 2010, p. 20-23), a história narrada em
Garra Negra desenrola-se cerca do ano 50 a.C., iniciando-se na baía de
Nápoles, nos arredores da cidade de Pompeia, onde os cinco antigos
oficiais romanos de Útica possuíam agora luxuosas residências de
vilegiatura. Juntamente com Enak, o jovem egípcio que o acompanha
desde a sua segunda aventura, A Esfinge de Ouro (1951), Alix é
hóspede de um desses antigos oficiais, Petrónio - primo do seu pai
adoptivo Honorus Gala Graccus, falecido na primeira aventura,
Alix, o Intrépido (1949) –, e assiste em Pompeia a uma sequência de
crimes que se processa em poucos dias: todos os responsáveis pelo
massacre de Ícara – exceptuando o seu chefe, Gallas, que morre
afogado numa piscina – ficam subitamente paralisados por acção de
um veneno desconhecido ministrado pela via das arranhaduras de
uma arma africana em forma de garra. O herói logra descobrir que
o instigador dos atentados é o mago Rafa, sacerdote de uma seita
cartaginesa adoradora do deus Baal e possuidor de poderes ocultos.
Rafa consegue, efectivamente, consumar a vingança de Ícara, mas
recusa-se, por fanatismo, a ceder a Alix o antídoto que pode salvar
uma criança inocentemente vítima da garra negra, o jovem Claudius,
sobrinho e herdeiro do velho Gallas. Alix, que por inadvertência fora
o culpado da paralisia e letargia de Claudius, ao haver deixado sobre
as almofadas onde a criança dormia uma garra negra apreendida aos
malfeitores (MARTIN, 2010, p. 24-25) – Jacques Martin haveria de
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evocar muitas vezes esta cena ao longo da sua vida, orgulhando-se
de ter sido pioneiro numa história de banda desenhada onde o herói
comete um acto de negligência e reconhece o seu erro -, decide então
fretar um navio romano tripulado por legionários a fim de perseguir
Rafa, o qual, por sua vez, conseguira fugir de Pompeia num veleiro
comercial, aproveitando a confusão gerada no porto por um incêndio
provocado pelos seus cúmplices Sudra e Hasdrúbal.
É a partir deste ponto que se levantam aquelas que nos parecem
ser as questões essenciais a respeito da concepção da África e dos
africanos na narrativa histórica de Jacques Martin. A primeira
relaciona-se com o lugar onde Rafa se refugia:
“Durante semanas, o navio do mago navega em direcção a sul;
atravessa tempestades e bonanças, espera por vento sob um sol
escaldante… Depois é de novo sacudido por ciclones e mares hostis…
Mais de um mês depois, o barco chega finalmente ao seu destino: um
antigo posto de comércio cartaginês. Um porto minúsculo, perdido
na costa africana do Atlântico” (MARTIN, 2010, p.31).
Qual a localização deste porto, onde o velho mago cartaginês é
calorosamente acolhido por uma população heterogénea – na qual
se misturam indivíduos de aspecto semítico, que se apresentam
vestidos, ao lado de outros de pele escura e cabelo encarapinhado que
com eles contrastam pelo facto de se exibirem quase nus - submetida
à autoridade do arconte Niarcas, igualmente cartaginês? Atribuir-lhe
verosimilhança histórica implica dar credibilidade à interpretação
mais extensiva e benévola do Périplo de Hanão (ou de Hannon),
narrativa da viagem realizada por um rei de Cartago, possivelmente
na primeira metade do século V a.C., “para além das colunas de
Hércules” (estreito de Gibraltar) com vista a “fundar cidades de
Libifenícios” (nome pelo qual os gregos designavam os cartagineses:
fenícios de África), ao longo da costa ocidental do continente africano
(JABOUILLE, 1994, p. 9, 36-55, 77).
82
A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade
Escrito inicialmente em púnico, o Périplo chegou aos nossos dias
numa tradução grega, que se supõe datar de finais do século IV
a.C., do original que, segundo a tradição, teria sido depositado em
Cartago, pelo próprio rei, no templo de Baal Hamon (ou Cronos, no
sincretismo greco-fenício), a mesma divindade de cujo culto o mago
Rafa é sacerdote. Havendo, porém, desaparecido o original, as versões
gregas e latinas do Périplo de Hanão têm suscitado interpretações
orientadas para três vertentes:
1) O Périplo é falso, não passando de uma efabulação grega
posterior a Heródoto (485? - 420 a.C.) e concebida a partir dos
conhecimentos transmitidos por este historiador (JABOUILLE, 1994,
p. 21-25).
2) O Périplo é verídico mas, atendendo à precariedade das
técnicas de navegação cartaginesas e à ausência total de vestígios
arqueológicos a sul de Marrocos, a viagem que relata é curta. Embora
logrando dobrar as Colunas de Hércules, a navegação atlântica de
Hanão não teria ido além do Cabo Juby/Bojador, situado na latitude
das Ilhas Canárias, pois se daí para sul os alísios e as correntes eram
favoráveis aos barcos à vela (quadrada ou rectangular) utilizados
pelos fenícios, o mesmo não acontecia na viagem de regresso,
dificuldade só superada em 1435 pelo português Gil Eanes, quer
pelo recurso à capacidade de bolinar da vela latina, quer por uma
navegação dirigida para Oeste até 30º de latitude Norte (JABOUILLE,
1994, p. 25-35).
3) O Périplo relata uma viagem autêntica e de grande extensão,
passando o Senegal e chegando a alcançar o Golfo da Guiné, sendo
a ilha das Górgonas (ou das “Gorilas”), descrita no parágrafo 18,
identificada com as ilhas de Fernando Pó e do Príncipe. Segundo os
defensores desta tese, Hanão teria logrado defrontar os alísios e as
correntes adversas durante a viagem de regresso graças ao facto de a
frota, como aliás o parágrafo 1 do Périplo o refere, ser constituída por
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birremes, navios onde os remadores se repartiam por dois andares,
capazes de transportar grande número de passageiros e mantimentos.
Argumentam também que o enigma da viagem de Hanão se deve à
política de sigilo seguida pelos cartagineses quanto à fundação de
feitorias na costa africana, de resto recuperada muitos séculos mais
tarde pelos portugueses (JABOUILLE, 1994, p. 36-55).
À luz desta última interpretação, a viagem de Rafa, a bordo de
um navio cartaginês de vela rectangular onde não se avista qualquer
remador, parece-nos plausível, uma vez que, como verificámos, da
Itália até, presumimos, ao Golfo da Guiné, demorou pouco mais de
um mês. Já temos dúvidas, contudo, é quanto à verosimilhança da
viagem de Alix de regresso à Itália, efectuada a bordo de um veleiro
romano que, sendo igualmente de vela rectangular, apresenta a
particularidade de também não se divisar nele nenhum remador
(MARTIN, 2010, p.58). Ainda assim, Jacques Martin parece aderir,
em Garra Negra, à terceira interpretação do Périplo de Hanão, o que
justifica a existência, ainda no século I a.C., de feitorias cartaginesas
na costa ocidental da África, nomeadamente a dirigida pelo arconte
Niarcas, que acolhe Rafa. O recorte da região representada no mapa
rudimentar exibido por Niarcas a Rafa assemelha-se, precisamente,
ao do Golfo da Guiné, podendo abranger, numa escala não muito
rigorosa, o Cabo Lopez, ligeiramente a sul, no actual Gabão
(MARTIN, 2010, p.32). Assim sendo, podemos considerar Niarcas e
a população semítica por ele governada descendentes dos cerca de
30000 homens e mulheres que, segundo o parágrafo 1 do Périplo de
Hanão, teriam navegado, no século V a.C., a bordo dos 60 navios com
50 remos que constituíram a frota do rei cartaginês (JABOUILLE,
1994, p. 17-18 e p.77).
E qual a origem da população negra que, quase nua, recebe Rafa
tripulando pequenas embarcações que se assemelham a dongos,
canoas de mafumeira, a árvore da sumaúma (RIBAS, 1998, p. 87 e
84
A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade
p. 160)? A arqueologia data do século IV a.C., e mesmo de períodos
mais antigos (como -1000/-900), os vestígios da indústria metalúrgica
e da cerâmica nos Camarões, assim como dos séculos II e I a.C. (ou
em -900/-800) no Gabão e do século II a.C. no Kongo/Zaire. Tais
dados arqueológicos permitem-nos considerar bantu a população
negra da pequena feitoria cartaginesa, assim como as dos povoados
limítrofes que interferem no enredo de Garra Negra, sendo, portanto,
descendentes da vaga migratória que, dominando a metalurgia do
ferro, a domesticação de algumas plantas, as primeiras formas de
criação de gado e o uso da cerâmica, teria em tempos – segundo uns
nos anos 1000 a.C., segundo outros nos anos 3000 a.C. – avançado
para oeste, atravessando a floresta tropical e seguindo as vias da água
da bacia do Kongo/Zaire (M’BOKOLO, 2003, p. 68-75).
Encontram-se, pois, sumariamente delineados, o enquadramento
ficcional, geográfico e histórico desta narrativa de Jacques Martin.
Resta saber como vai o autor trabalhar estes elementos, seja através
das personagens, seja através dos espaços naturais.
O homem africano na Antiguidade visto em meados do século XX:
o tribalista, o guerreiro, o feiticeiro e o escravo resgatado
A primeira armadilha do discurso colonial na qual Jacques Martin
se deixa enredar é, desde logo, a da nudez dos africanos subsaharianos,
manifesta inverosimilhança, tendo em conta que a domesticação das
plantas e dos animais determinam, necessariamente, o conhecimento da
tecelagem. Esta inexactidão histórica só pode ser entendida como uma
reminiscência da classificação negativista da animalização/zoomorfização
dos africanos, clássico processo de retórica de enselvajamento
proveniente da Idade Média que, com o darwinismo social, daria lugar
à puerilização/infantilização. A esse propósito, poderíamos acrescentar a
indolência, uma vez que os africanos de Jacques Martin não trabalham.
Embora assistamos, logo após o desembarque de Rafa, à cena onde o
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arconte Niarcas incita a população do pequeno porto a regressar ao seu
“trabalho” e às suas “ocupações” (MARTIN, 2010, p.32), não se mostra
nunca, nem nesta nem em nenhuma outra passagem de Garra Negra,
que “ocupações” são essas. Haverá, entre estes africanos, ferreiros,
oleiros, tecelões e agricultores? Não o sabemos.
Ao mostrar o mapa da região a Rafa, Niarcas estabelece a distinção
entre os territórios que são habitadas por “tribos nossas amigas” (sic.)
e aqueloutros que o são por “tribos inimigas” (MARTIN, 2010, p.32).
O primeiro aspecto a registar é que os africanos vivem em “tribos”,
termo que, nas línguas francesa e portuguesa era, nas décadas de 1950
e de 1960, sinónimo de “etnia”, noção redutora de nação respeitante a
povos de determinadas raças - preferencialmente as “negras” - que por
esse facto não eram considerados culturalmente “evoluídos” para se
organizarem sob a forma de Estado-nação (AMSELLE, 1999, p.15 e p.
18-19). As “tribos”, por sua vez, são inimigas umas das outras, aliandose umas aos cartagineses e sendo-lhes outras hostis. Encontra-se,
portanto, salvaguardado o argumento de retórica colonial do belicismo
atávico das sociedades africanas, que, nos séculos XIX e XX, legitimou
a política das campanhas militares de “pacificação dos indígenas”,
evidenciando o homem branco como pacificador, apaziguador ou
conciliador de cizânias ancestrais (ou “tribais”) e, consequentemente,
como o único capaz de conferir uma ordem ao continente africano
através da “acção civilizadora” do colonialismo. O belicismo atribuído
aos africanos confundiu-se na linguagem do mundo ocidental, até às
independências africanas iniciadas na década de 1960, com a impostura
a que se chamou “tribalismo”, a qual subsistiu até aos dias de hoje,
substituída pela expressão “etnicidade”, num tempo dito “moderno”
ou “pós-colonial” (AMSELLE, 1999, p.39-42).
Ao transferir o “tribalismo” para o século I a.C. e ao atribuir
o papel de colonizadores civilizadores e pacificadores aos
cartagineses, os verdadeiros “maus” de Garra Negra, Jacques Martin
86
A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade
– que declarou por diversas vezes ser esta a primeira história de
Alix onde não existiam “maus” nem “bons”, mas enganava-se –
procede, sem dúvida, a uma operação de transcendência, própria
do romance histórico pós-modernista, estabelecendo paralelismos
entre o tempo diegético e um tempo contemporâneo. Mas, em
contrapartida, não consegue mitigá-la, como seria desejável para
se livrar do discurso colonial, com a auto-reflexividade, pois não
se assiste em Garra Negra a qualquer atitude epistemológica pela
qual o narrador ou as personagens questionem o tempo passado
(WESSELING, 1991). Sabemos apenas, por enquanto, que os
africanos de Garra Negra não trabalham mas, em contrapartida,
guerreiam-se, e as suas guerras são “tribais”.
Mesmo sendo Rafa, conforme o declarou o próprio Jacques
Martin, “uma espécie de guerrilheiro avant la le!re, um produto
da opressão” (GROENSTEEN e MARTIN, 1987, p.110), não deixa
por esse facto de se socorrer da argumentação utilizada nos séculos
XIX e XX pelos franceses e pelos portugueses nas suas colónias ao
dividirem os africanos em “inimigos”, os novos Maus Selvagens,
e “amigos”, os novos Bons Selvagens, consoante fossem ou não
refractários aos desígnios coloniais. A fim de dominar os africanos
que se lhe submetem, Rafa chega mesmo ao ponto de utilizar, com
êxito, um argumento introduzido no discurso colonial pelos europeus
depois da abolição do tráfico de escravos e da escravatura e da sua
substituição pelo indigenato com o fim de servir a exploração dos
recursos naturais da África: o de se auto-isentarem de um passado
esclavagista, atribuindo-o a outros seus congéneres colonialistas.
Tal aconteceu, por exemplo, entre portugueses e franceses, como
pudemos ver noutro lugar (PINTO, 2006). Daí que Rafa não hesite,
pelo menos por três vezes, em dizer aos africanos que Alix e os
romanos os querem reduzir à escravatura (MARTIN, 2010, p.39, p.47
e p.51), quando na realidade – e Jacques Martin mostra-o noutros
trabalhos seus – a maioria dos escravos africanos de que os romanos
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dispunham eram capturados no interior da Núbia ou nas costas
atlânticas pelos fenícios ou pelos cartagineses e posteriormente por
eles transaccionados em portos mediterrânicos, gregos ou latinos.
A percepção do preconceito do “tribalismo” em Jacques Martin
permite-nos uma análise mais nítida da primeira parte de Garra
Negra, a decorrer, como o dissemos, em Pompeia. Embora Rafa
seja um cartaginês e um conhecedor de ciências ocultas próximas
do sobrenatural, dispondo nomeadamente do poder de hipnose,
o veneno misterioso que paralisa os chefes romanos do massacre
de Ícara não é da sua autoria e sim uma invenção… de “feiticeiros
africanos”! Instalado em Pompeia, com a anuência dos romanos, na
qualidade de sacerdote de um templo consagrado ao deus Baal, Rafa
circula livremente na cidade acompanhado de três acólitos negros,
que na realidade são escravos de Antonus Marcus, um dos ex-oficiais
romanos do massacre de Ícara, revoltados contra o seu amo. Um
deles, Núbio – nome assaz ambíguo, pois é mais alusivo à região
homónima do vale do Nilo do que à costa atlântica do continente
africano, de onde parece ser oriundo -, é o executor dos crimes da
garra negra, introduzindo-se furtivamente, à noite, nas mansões dos
cinco “carrascos” de Ícara. A sua indumentária, uma curta túnica
verde e uma cógula da mesma cor que lhe cobre o rosto – a mesma
com que se apresenta na capa de Garra Negra, ameaçando Alix, e que
levou os esquerdistas franceses, em 1965, a identificar a personagem
com os cagoulards pró-fascistas -, assim como a arma que empunha,
um curto bastão com uma garra metálica na ponta, foram inspiradas
a Jacques Martin por objectos similares expostos no Musée Royal de
l’Afrique Central, em Tervueren, perto de Bruxelas. Teriam pertencido
aos aniotas, os homens-leopardo, membros da associação política
secreta anticolonialista que operou no Congo durante o século XIX e
o início do século XX, os quais utilizavam tais garras nos seus ataques
aos chefes africanos coniventes com os brancos (GROENSTEEN e
MARTIN, 1987, p.111). Aniota ou anioto deriva do verbo kuana, que
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A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade
significa em kikongo, precisamente, arranhar (MAIA, 1994, p. 51).
Martin acrescenta, aliás, nas suas declarações a Groensteen, que uma
personagem de Hergé, o feiticeiro Muganga, já envergara em 1930 a
vestimenta dos aniotas, em Tintim no Congo (HERGÉ, 1996, p.30-32).
Ele próprio, de resto, reutilizá-la-á no mesmo livro, Garra Negra,
mas mais adiante e agora em pele natural de leopardo, ao desenhar
o chefe/feiticeiro africano Aguro (MARTIN, 2010, p.43-44 e p.47-50).
Para vingar Ícara, os cartagineses de Garra Negra servem-se,
portanto, não apenas da zoomorfização, do “tribalismo” e do
“belicismo” dos africanos, mas também do seu “animismo” ou da
sua “filosofia primitiva”, que o olhar ocidental confunde com a
diabolização das suas crenças e o carácter oculto das suas ciências,
consideradas “magias” ou “feitiços” (MUDIMBE, 1988, p. 44-64).
Eis a razão pela qual, sendo o veneno paralisante, aliás de origem
vegetal, concebido por “feiticeiros” africanos, o seu antídoto só
pode ser fornecido por outros “feiticeiros” igualmente africanos,
mas pertencentes a “tribos” inimigas das dos primeiros. Não
obstante, Jacques Martin consegue, em Garra Negra, estabelecer
uma distinção, ainda que tímida, através de três personagens, entre
o que antropologia designou por “magia branca” – a que tem por
objectivo chamar os espíritos bons dos antepassados a fim de afastar
os espíritos maléficos, quer pela cura de pessoas que foram vítimas
desses espíritos, quer pelo exercício da arte divinatória – e a “magia
negra”, que pretende subjugar os espíritos perversos com vista à
prática do mal (PANNOF e PERRIN, s.d., p.113).
A primeira das três personagens, a mais desenvolvida na narrativa
mas também a mais ambígua, é o já aludido chefe/feiticeiro Aguro.
O seu nome tanto pode ter sido inspirado a Jacques Martin pelo
substantivo indiano guru, significando mestre espiritual, como pelo
latino auguriu, que, significando presságio ou vaticínio, deu origem
ao termo português agoiro. Ainda que a segunda hipótese seja a mais
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aceitável, não é de excluir a primeira, tanto mais que o exotismo
de Jacques Martin levou a que Aguro pronuncie, em dado passo,
uma palavra que não é africana e sim indonésia, tabu, referindose à interdição que pesa sobre os seus homens de pisarem o solo
amaldiçoado das montanhas Rukazori (MARTIN, 2010, p. 50). Embora
o seu nome seja alusivo a eventuais conhecimentos da arte divinatória,
Aguro aparenta ser essencialmente um “feiticeiro” maléfico, o que
nas línguas bantu é designado por mulôji (ou mulôdi ou ndoki) por
contraposição ao kimbanda ou ao nganga (RIBAS, 1998, p. 193-194).
Dois elementos levam a esta presunção. O primeiro é o já referido
uso da pele de leopardo como indumentária, evocativa dos aniotas,
seita congolesa de feiticeiros maléficos que, na realidade, só viria a ser
fundada cerca de 1900 anos depois do tempo de Alix, num contexto
colonial franco-belga. O segundo é o facto de Aguro dispor de poder
hipnótico, com o qual consegue defrontar Rafa (MARTIN, 2010, p. 50).
A intervenção das duas outras personagens é muito mais
passageira do que a de Aguro. Uma delas é um ancião que, acocorado
à porta de uma cubata da aldeia de outra “tribo” aliada a Rafa e a
Niarcas, consulta desenhos na areia e prediz aos chefes cartagineses
o fracasso do ataque dos seus homens ao acampamento romano. Se
Niarcas não hesita em chamar-lhe “feiticeiro idiota”, o mesmo não
acontece com Rafa, que reconhece no estado derreado dos guerreiros
que voltam da batalha a consumação do presságio vaticinado por
este perito na arte da adivinhação, a umbanda (MARTIN, 2010, p.
39). A última personagem, um kimbanda ou curandeiro, nem chega
a aparecer, sendo apenas mencionada. Trata-se do “feiticeiro” da
“tribo” dos Umbassas, de quem Alix obtém o antídoto que curará o
jovem Claudius (MARTIN, 2010, p. 58 e p.63-64).
A propósito dos Umbassas – termo que não é de origem bantu
e sim voltaica, uma vez que corresponde a um topónimo do actual
Ghana -, importa agora caracterizar um dos seus membros, que se
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A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade
evidencia como a personagem africana subsahariana mais relevante
de Garra Negra. Referimo-nos a Sérvio que, tal como Núbio e os
dois outros acólitos de Rafa, é um corpulento escravo doméstico do
romano Antonus Marcus, em Pompeia. Mas, ao contrário deles, Sérvio
alia-se a Alix e salva-lhe a vida, atirando pedras a Rafa e aos outros
negros, num momento em que estes perseguem o herói (MARTIN,
2010, p. 17-18). Os motivos desta atitude de Sérvio são de ordem
“tribalista”, conforme as suas declarações a Alix e a Petrónio:
“Fi-lo porque a minha tribo e aquela de onde provêm os homens do
mago Rafa se odeiam…” (MARTIN, 2010, p. 19).
Depois da tragédia ocorrida em casa do procurador Gallas, da qual
resulta a morte deste e o envenenamento paralisante do seu jovem
sobrinho Claudius, Sérvio oferece-se para acompanhar Alix a África a
fim de obter o antídoto do “feiticeiro” da sua “tribo”. Havendo deixado
os legionários romanos aquartelados num promontório do litoral, Alix,
Enak e Sérvio, perseguidos pelas “tribos” aliadas a Rafa, entre as quais
a de Aguro, logram chegar à “tribo” dos Umbassas, da qual Sérvio é
oriundo. É então, através da conversa com um ancião, Bwamé, a quem o
outrora cativo dos fenícios vendido aos romanos não hesita em perguntar
onde estão os seus pais, que ficamos a conhecer a verdadeira identidade
de Sérvio (MARTIN, 2010, p. 52). Se entre os romanos é conhecido por
este nome, Sérvio, decerto derivado do latim servu e por isso alusivo à
sua condição de escravo, o seu nome de origem é Usumba, substantivo
adjectivante que, nas línguas bantu, deriva do verbo sumba (comprar
ou vender) (MAIA, 1994, p. 130, 540-541 e 642-643). Tal nos faz supor
que o baptismo da personagem pelos seus com este nome obedeceu,
durante a sua infância, a desígnios premonitórios, uma vez que Usumba
significará, neste contexto, literalmente, O Resgatado ou O Alforriado.
De facto Sérvio, mercê da sua aliança com Alix, parece reconquistar
efectivamente a sua liberdade. Contudo, não o podemos incluir entre
aqueles que o discurso colonial (e “pós-colonial”) designou por
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“retribalizados” e sim na condição inversa, a dos “destribalizados”
(AMSELLE, 1999, p.41). O mesmo Sérvio que percorre as páginas
de Garra Negra descalço e quase nu, envergando apenas um
saiote amarelo, vamos reencontrá-lo, na última vinheta do livro,
confraternizando em Pompeia com patrícios romanos e, como eles,
vestindo uma elegante toga e calçando cáligas (MARTIN, 2010, p. 64).
Acresce que Sérvio, depois de Garra Negra, reaparecerá numa outra
aventura de Alix que lhe é posterior em quase meio século, Roma,
Roma… (2005), desta vez na qualidade de chefe dos carregadores
da liteira da matrona Júlia Curtia, viúva do senador Caius Quintus
Arenus, dos quais se distingue precisamente por não andar descalço
e usar cáligas (MARTIN, 2005, p. 34-41). Assume, pois, a condição
do que na Angola colonial se designou por “pretos calçados” ou
kimbares (PARREIRA, 1990, p. 58-59), na maioria dos casos escravos
forros que se tornavam chefes de caravanas comerciais ou pequenos
agricultores, vivendo junto dos brancos.
O espaço natural africano: a “tarzanização” de Alix ou Jacques
Martin rendido aos mirabilia que vão de Hanão a Hergé
A hipótese de a feitoria de Niarcas se situar na costa gabonesa
permite-nos supor, dando alguma liberdade à imaginação, que a
incursão de Alix e dos seus companheiros Enak e Sérvio pelo interior
do continente africano atinge o território do actual Congo-Brazaville
ou mesmo o do Congo-Kinshasa, os países sobre os quais Jacques
Martin confessa haver obtido maior número de informações, através
de um tio por afinidade, Pierre Dungelhoef, antigo chefe de distrito
no Congo Belga (GROENSTEEN e MARTIN, 1987, p. 111). Mas o mais
interessante a registar é que a narração das aventuras dos três amigos
durante o seu percurso até à “tribo” dos Umbassas apresenta todos os
ingredientes do que M’Bokolo designou por mirabilia, isto é, dos relatos
fantasistas acerca dos mistérios do continente africano que, radicando
92
A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade
no Périplo de Hanão, teriam continuidade até ao século XX (M’BOKOLO,
2003, p. 48), abrangendo, ao lado de tantas outras obras da literatura e
do cinema, a banda desenhada de Hergé em Tintim no Congo (PINTO,
2007). Os mirabilia, no fundo, mais não evidenciam do que o processo
de retórica que Spurr teorizou como sendo a vigilância, a qual envolve
tudo o que diz respeito à descrição, à dominação e à transformação,
por parte do colonizador, da componente físico-geográfica do universo
colonizado, nomeadamente o território, a fauna e a flora e até mesmo
os homens como seres enselvajados e coisificados que fazem parte da
paisagem (SPURR, 1993, p. 13-27). Sendo um europeu, o único capaz
de controlar a natureza africana e conferir uma ordem ao que nela
é adverso à vida humana, Alix assemelha-se, a partir deste ponto, a
Próspero, a Robinson Crusoé, a Tarzan e a Tintim. Sérvio chega a fazer
lembrar Sexta-Feira, Coco e mesmo Caliban. Quanto a Enak, na sua
feminilidade – o próprio Jacques Martin reconhece que os tons de azul
das roupas de Enak representam a noite, o mistério e a feminilidade
(ROBERT, 1999, p. 15) -, desempenha em Garra Negra um papel muito
próximo dos de Miranda, Jane e Milu. Além de que Enak é um egípcio,
indivíduo que pode ser encarado somática e culturalmente como
pertencendo a um estádio intermédio entre o europeu e o africano
(DIOP, 1979, p. 49-286).
Logo que o navio romano fundeia numa pequena enseada, Alix,
Sérvio e um legionário fazem um reconhecimento em busca do
curso de água mais próximo, embrenhando-se numa floresta densa e
verdejante, o que faz supor que o litoral é de facto o do Golfo da Guiné
e não o território sahélico a sul do rio Kongo/Zaire. O primeiro animal
selvagem com o qual Alix se confronta é um gorila (MARTIN, 2010,
p.34). Se o enorme símio que figura em Tintim no Congo, desenhado
por Hergé em 1930 e redesenhado em 1946 (HERGÉ, 1996, p.16-18),
deixava o leitor na dúvida sobre se o havia de integrar na espécie dos
gorilas ou dos chimpanzés (PINTO, 2007), o grande quadrúmano
concebido por Jacques Martin em 1958 pertence inequivocamente à
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Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011
espécie de grandes macacos antropóides que, na primeira metade do
século XIX, o médico e missionário norte-americano Thomas S. Savage
identificou na Libéria como sendo o troglodytes gorilla (MARGARIDO,
2003). O próprio Savage terá, aliás, recuperado um termo cuja fórmula
escrita só era até então conhecida no texto do parágrafo 18 do Périplo
de Hanão e que provavelmente correspondia a uma deformação
gráfica do substantivo grego Górgona (das ilhas Górgadas), no caso
aplicado às “mulheres peludas” encontradas pelos cartagineses nas,
presumivelmente, ilhas de Fernando Pó e do Príncipe, das quais três
foram capturadas e as suas peles levadas para Cartago (JABOUILLE,
1994, p. 111). Também neste passo, Jacques Martin parece homenagear
Hanão, uma vez que o gorila que Alix defronta é uma fêmea, enfurecida
pelo facto de um rapazinho africano haver maltratado a sua cria. O
monstro – e a visão teratológica dos quadrúmanos (MARGARIDO,
2003) está aqui bem presente – ameaça o jovem galo-romano, que não
consegue evitar trespassá-lo com o seu gládio.
Os homens da “tribo” a que pertence a criança salva da fúria do
gorila mostram-se reconhecidos a Alix e a Sérvio e deixam-nos partir
de volta ao navio, mas advertem-nos de que têm ordens superiores
para os impedir de atravessar a floresta (MARTIN, 2010, p.35). Estes
guerreiros, que se apresentam, à semelhança dos masäi e dos zulus,
quase nus, armados de escudo e zagaia, envergando na cabeça
toucados emplumados e evidenciando no corpo escarificações,
braceletes e gargantilhas de marfim, constituem, portanto, a primeira
“tribo” africana ao serviço de Rafa e dos cartagineses com a qual
Alix se cruza. Não obstante os ouvirem dar o alerta a outras “tribos”
através do toque dos proverbiais tam-tãs durante a noite (MARTIN,
2010, p.36) – também aqui se verifica o contra-senso antropológico
de que enfermavam os filmes de Tarzan, uma vez que para a quase
totalidade dos africanos a noite é o espaço dos espíritos e não dos
homens (MARGARIDO, 2003) -, Alix, Enak e Sérvio têm a coragem
de abandonar o acampamento romano furtivamente de madrugada e
94
A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade
iniciar de canoa a subida do rio mais próximo. Os três companheiros
logram ludibriar os seus perseguidores africanos embrenhando-se no
matagal espesso de uma das margens e Alix tem tempo de esmagar
a cabeça de uma serpente ameaçadora com um golpe seco do remo
(MARTIN, 2010, p.37-38).
O terceiro monstro do continente africano que, depois do
quadrúmano e do ofídio, ameaça Alix, é o crocodilo, animal com
o qual, aliás, o herói já se confrontara, não na África e sim na Ásia
Menor, na sua primeira aventura, Alix o Intrépido (MARTIN, 2010, p.
8-9). Embora a intervenção dos sáurios, semi-adormecidos na margem
de um rio mas prontos a atacar a primeira presa, seja clássica, a
reacção do herói de Jacques Martin é mais discreta e realista do que
as das personagens de E. Rice Burroughs e de Hergé, uma vez que
Alix não recorre ao punhal, como Tarzan, e muito menos, obviamente,
à carabina, como Tintim. Surpreendidos por uma violenta catarata
que lembra Ielala, Alix, Enak e Sérvio debatem-se com o torvelinho
das águas depois de a canoa se virar. É nesse momento que aparecem
três gigantescos crocodilos, um dos quais só não abocanha a perna
direita de Alix devido a um golpe de sorte (MARTIN, 2010, p.40-41).
Este incidente separa Alix e Sérvio de Enak, que é arrastado para
a margem oposta do rio. O jovem egípcio é então capturado por uma
outra “tribo inimiga”, desta vez a que é liderada por Aguro, o homemleopardo. E é precisamente para salvar Enak – aqui notoriamente na sua
feminilidade de Miranda, Jane ou Milu -, prestes a ser vítima da zagaia
de Aguro, que Alix se tarzaniza: saltando de uma árvore agarrado a
uma liana, consegue içar de um só golpe o egípcio, ao mesmo tempo
que Sérvio, impulsionado pelo mesmo processo tarzaniano, pontapeia
violentamente o homem-leopardo (MARTIN, 2010, p.43-44).
A perseguição prossegue fora da floresta, noutro espaço natural
africano que a substitui, a savana (MARTIN, 2010, p.48). Neste ponto
Sérvio, o Caliban da história, fraqueja e quase desiste da empresa,
95
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 75 - 101 •jan./jun.2011
a pretexto de uma insolação de que Alix fora vítima. Mas o herói
convence-o a prosseguir e, ao anoitecer, os três companheiros
apercebem-se de que os guerreiros de Rafa e de Aguro se encontram
próximos, ao avistarem ao longe uma manada de girafas em fuga.
A presença passageira destes ruminantes serve ao desenhador para
reforçar a ideia de que as suas personagens se encontram na savana, à
qual as girafas naturalmente pertencem. Mas não deixa de ser curioso
notar que Alix as designa por girafas, termo árabe só muito mais tarde
italianizado e banalizado, e não por camelopardalis, como efectivamente
os romanos chamavam a estes animais, que acreditavam, ignorando
as leis da genética, serem o produto do cruzamento da fêmea do
camelo com o macho do leopardo. Alix, Enak e Sérvio são então
quase encurralados pelos guerreiros de Aguro incitados por Rafa, mas
conseguem escapar-lhes, afugentando-os graças a um estratagema de
Alix que evoca outra clássica representação colonial, a da sua cobardia
e pusilanimidade atribuída aos africanos: incendiando raízes, com
o fogo das quais repelem os atacantes e logram alcançar mais uma
floresta (MARTIN, 2010, p.49).
Depois desta floresta, sempre perseguidos pelos guerreiros
africanos, Alix, Enak e Sérvio atingem um outro espaço natural, a
montanha, no sopé da qual os seus perseguidores, que a consideram
amaldiçoada, se detêm. É então que Rafa tenta, pela última vez,
ludibriar os africanos, procurando desmitificar a sua superstição.
Não havendo conseguido subjugar pela hipnose o seu chefe, Aguro,
igualmente feiticeiro, o velho cartaginês, pisando o solo da montanha,
convence os guerreiros do homem-leopardo de que ela é inofensiva.
Porém, poucos passos andados, os mesmos guerreiros fogem em
debandada, apavorados com a visão que se lhes depara: um grupo
de cadáveres petrificados pela lava de uma remota erupção vulcânica.
Abandonado, Rafa tem que fugir, mais uma vez escorraçado pelas
pedradas de Sérvio (MARTIN, 2010, p.50-52).
96
A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade
A localização desta montanha suscita, ao lado da feitoria de Niarcas,
uma das questões mais enigmáticas que emergem em Garra Negra. O
chefe/feiticeiro Aguro designa-a por montanha Rukazori (MARTIN,
2010, p.47), o que nos faz pensar nos Montes Ruwenzori, cordilheira
da África Central situada na fronteira entre o Uganda e a República
Democrática do Congo (o antigo Congo Belga), cujas maiores elevações
atingem os 5109 metros. Jacques Martin parece, de resto, confirmálo, ao afirmar que a imagem dos homens petrificados corresponde a
fotografias tiradas no antigo Congo Belga pelo seu tio Pierre Dungelhoef
(GROENSTEEN e MARTIN, 1987, p. 111). No entanto, o autor de Alix
declara igualmente ter perdido as ditas fotografias, irrecuperáveis
num tempo em que Dungelhoef já havia falecido. Acresce que não se
conhecem manifestações vulcânicas nos Montes Ruwenzori, pelo que
a cordilheira que Alix e os seus companheiros transpõem até atingirem
a aldeia natal de Sérvio corresponderá, com maior probabilidade, ao
Suporte dos Deuses ou Trono dos Deuses, mencionado no parágrafo 16
do Périplo de Hanão e que, segundo a interpretação mais benévola da
tradução grega do texto púnico, será o Monte Camarão, montanha
com 4187 metros de altitude e único vulcão em actividade na costa
ocidental africana (JABOUILLE, 1994, p. 107).
Mas, do ponto de vista da estética narrativa, o aparecimento de
homens petrificados pela lava de um vulcão no continente africano
pode entender-se, quer como o desfecho harmonioso de uma história
que se inicia em Pompeia e em cuja primeira página se mostra um
Vesúvio aparentemente extinto (MARTIN, 2010, p.3), quer como um
presságio insinuado da tragédia que em 79 d.C. viria efectivamente
a desencadear-se no Golfo de Nápoles.
Conclusão
Garra Negra de Jacques Martin é, indubitavelmente, uma ficção onde a
ideologia colonial franco-belga dos séculos XIX e XX acerca do continente
africano se espelha, pela via metafórica, na Antiguidade greco-romano-
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cartaginesa. Pelo facto de haver sido concebido em 1957, dois anos depois
da Conferência de Bandoung e na esteira da conjuntura internacional
saída da IIª Guerra Mundial, favorecedora das independências africanas
e asiáticas, Garra Negra é um livro de banda desenhada que se encontra
aparentemente desprovido e isento dos clássicos argumentos de retórica
do discurso colonial que afectaram tantos outros autores, nomeadamente
o grande mestre de Jacques Martin, Hergé, em Tintim no Congo (1930),
conforme o mostrámos noutro lugar (PINTO, 2007). Contudo, além de
a transformação das mentalidades ser sempre morosa e contingente, as
aparências podem iludir, sobretudo quando um autor, sendo europeu,
pretende debruçar-se sobre um continente que desconhece e que é
proverbialmente tido por selvagem e exótico, a África.
Pese embora a meticulosa preocupação de rigor científico que o
caracterizou em todos os seus trabalhos, Jacques Martin não escapou
em Garra Negra, sem que disso se tenha apercebido, às armadilhas
do exotismo e do próprio discurso colonialista. Não hesitando em
aderir à interpretação mais benévola mas também mais fantasista do
Périplo de Hanão, conseguiu dar credibilidade à existência de feitorias
cartaginesas na costa ocidental africana, em detrimento dos resultados
da arqueologia. Mas, em contrapartida, não dispunha, nos anos de 1950,
de conhecimentos que lhe permitissem, na caracterização do homem
africano, ir além dos estereótipos do “tribalista”, do guerreiro, do
feiticeiro e do escravo resgatado ou, se preferirmos, do “destribalizado”.
Também na descrição dos grandes espaços e dos animais africanos,
ainda que manifestando uma tímida e embrionária preocupação
ecológica, Jacques Martin não deixou de sucumbir à milenar tentação
dos mirabilia. As suas leituras enselvajadoras da geografia e dos
homens africanos acabaram, mal grado seu, por se revelar muito
próximas, quer das dos seus antecessores, como Hergé, quer mesmo,
nos nossos dias, das dos seus discípulos e seguidores, como Gilles
Chaillet ou André Juillard.
98
A retórica colonial na narrativa histórica sobre antiguidade
Referências
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2
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(nº52, 12º ano) e 25 de Fevereiro de 1959 (nº8, 14º ano). Primeira edição em álbum
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3
Título original: Tintin au Congo. Primeira publicação no Petit Vingtiéme, suplemento
juvenil do jornal católico de Bruxelas Le Vingtiéme Siécle, em 1930. Primeira edição
em álbum em 1930 (Le Vingtiéme Siécle). Segunda edição revista em álbum em 1946
(Casterman).
4
Primeira publicação na revista Tintin (edição belga) entre 16 de Setembro de 1948
(nº38, 3º ano) e 17 de Novembro de 1949 (nº46, 4º ano). Primeira edição em álbum
em 1956 (Lombard).
5
Primeira publicação na revista Tintin (edição belga) entre 1 de Dezembro de 1949
(nº48, 4º ano) e 31 de Janeiro de 1951 (nº5, 6º ano). Primeira edição em álbum em
1956 (Lombard).
99
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Innovations on the Historical Novel. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamin’s
Publishing Company, 1991.
101
Ferreira Gullar - Sobrevoo, Rasante
Artur de Vargas Giorgi1
Resumo: Este artigo pretende armar um contato com Ferreira Gullar por
meio da leitura de dois poemas: “Uma fotografia aérea”, publicado no livro
Dentro da noite veloz, em 1975, e “Poema sujo”, escrito em 1975, em Buenos
Aires, e publicado em 1976. A proposta é desencadear alguns movimentos
dissímeis dentro dos próprios poemas, assim como entre eles, movimentos
esses que apresentam um cenário que se distancia tanto daquele formado
pelo biografismo historicista quanto do assegurado pela autonomia estética.
De outra maneira, é possível dizer que da aproximação de um poema com o
outro resulta o próprio espaçamento, uma situação indecidível que aponta
para a complexidade contemporânea.
Palavras-chave: Ferreira Gullar, Contato, Singularidade.
Abstract:This article aims a contact with Ferreira Gullar through the reading
of two poems: “Uma fotografia aérea”, published in the book Dentro da
noite veloz, in 1975, and “Poema sujo”, wri#en in 1975, in Buenos Aires, and
published in 1976. The proposal is to unchain some dissimilar movements in
the poems themselves and between them as well. These movements offer a
scenery that gets some distance from the biography constructed by historical
lectures and, in the same time, from the aesthetic autonomy. In other way, it
is possible to say that the approximation of the poems results in the spacing
itself, an undecided situation that points towards contemporary complexity.
Keywords: Ferreira Gullar, Contact, Singularity.
Bacharel em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda (UNAERP-SP), licenciado em Letras – Língua Portuguesa e Literatura (UFSC) e mestre
em Literatura (UFSC/CNPq). Cursa o doutorado em Teoria Literária (UFSC)
com pesquisa sobre Ferreira Gullar e León Ferrari. É bolsista do CNPq.
Contato: [email protected]
1
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Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011
Em 1971, clandestino em seu próprio país, após ter vivido as
tensões do golpe militar de 1964, quando então era presidente do
Centro Popular de Cultura (CPC), criado pela União Nacional dos
Estudantes (UNE)2 em 1961, e depois de ter sido perseguido, desde
1968, quando foi assinado o Ato Institucional n° 5 e a repressão
à esquerda tornou-se mais intensa, um homem de nome José
Ribamar Ferreira, chamado Ferreira Gullar, partiu para o exílio –
Moscou, Santiago, Lima, Buenos Aires – como tantos outros que se
encontravam em semelhante situação, exílio este que, no seu caso,
duraria até 1977.
Dentro da noite veloz foi lançado em 1975. Trazia poemas escritos
nos últimos treze anos, desde 1962, portanto. E é importante frisar: em
1975, Gullar estava em Buenos Aires, ameaçado não só pela ditadura
brasileira mas também pela da Argentina, e lá, nesse mesmo ano,
ele escrevia seu “Poema sujo”, publicado no Brasil em 1976, com o
poeta ausente3.
Em Traduzir-se: ensaio sobre a poesia de Ferreira Gullar (2004),
publicado em 19824, tomando o período que se estende de A luta
corporal (1954) a Na vertigem do dia (1980), João Luiz Lafetá realiza
uma leitura que traça paralelos entre a realidade histórico-cultural
e os posicionamentos, em relação a essa realidade, que ele encontra
no trabalho do poeta. Mas, além disso, os paralelos que identifica
desdobram-se, exatamente, no que ele salienta como uma característica
2
Sobre a relação de Ferreira Gullar com o CPC da UNE, conferir a entrevista concedida a Carla Siqueira, em 03 de novembro de 2004, disponível em arquivo no site Memória do Movimento Estudantil (www.mme.org.br/) através da página “Depoimentos”.
3
Antes da publicação, fitas com a voz de Gullar lendo o longo poema circularam
no Rio de Janeiro. Estas fitas foram copiadas de uma primeira, trazida de Buenos
Aires por Vinicius de Moraes (GULLAR, 1998).
4
No volume O nacional e o popular na cultura brasileira: artes plásticas e literatura (São
Paulo, Brasiliense, p. 57-127). Valho-me aqui da edição organizada por Antonio
Arnoni Prado, em 2004, A dimensão da noite e outros ensaios (São Paulo, Duas cidades,
Ed. 34).
104
Ferreira Gullar
marcante da poesia de Gullar: este não é apenas um “poeta-cronista”,
comprometido com os acontecimentos do seu tempo; ao longo de sua
produção, ele mantém principalmente um constante questionamento
do “eu” – o que se vê, segundo Lafetá, em suas diferentes “fases”, em
suas rupturas com os movimentos e por meio de soluções diversas,
na tensão de uma exploração da subjetividade –, questionamento
este que move / é movido pela necessidade de uma definição de
identidades: pessoal, cultural, nacional5.
5
“Dos textos escritos durante a fase mais repressiva da ditadura, se não podemos
dizer que eles reflitam as correntes literárias da época (mas essas foram tão pobres...),
podemos entretanto dizer que eles, a seu modo, refletem a atmosfera brasileira
daqueles anos. Lá estão representados o golpe de 1964, com seu cortejo de ilusões
perdidas, a guerra do Vietnã, a guerrilha boliviana do Che, a sucessão de exílios.
E sobretudo está ali o clima da vida intelectual de então, em poemas como ‘Agosto
1964’, ‘O prisioneiro’, ‘Exílio’, ‘Por você por mim’, ‘Dentro da noite veloz’, e ainda
outros, que tematizam momentos de esperança ou desencanto, às vezes de raiva
e amargura, mas sempre guardando a perspectiva do futuro. Essa linha ampla e
complexa, que revela o poeta amadurecido buscando uma cada vez maior compreensão
das coisas e dos fatos, terá prosseguimento no último livro, intitulado Na vertigem
do dia (1980), que forma com os dois anteriores um conjunto bastante homogêneo, do
ponto de vista temático-estilístico.
“Esse paralelismo rudimentar basta para nos mostrar a ligação que existe entre a
obra poética de Gullar e a história recente do país. No entanto, serve apenas para
explicar seu aspecto mais superficial e para situar-nos diante da sucessão de estilos
que ela apresenta; não nos leva à compreensão interna das várias passagens nem à motivação dessas. Porque Ferreira Gullar não é apenas (como um repórter) um poeta preocupado
em perseguir os acontecimentos e em retratá-los. Se ele faz isso, se ele busca esta sintonia
constante, é porque obedece a alguma necessidade profunda que certamente estará inscrita
em seus poemas e que – descoberta – nos dará a chave para entendê-los melhor” (LAFETÁ,
2004, p. 122-123, grifos meus). João Luiz Lafetá segue em busca dessa chave que
permita desvendar as necessidades do poeta e as motivações dos poemas, na trajetória ascendente de um Gullar que “amadurece”. E, encontrando, enfim, a “homogeneidade do conjunto”, agora do ponto de vista “interno”, afirma, sobre o “Poema
sujo”, a respeito da síntese da relação antes tensa entre subjetividade e objetividade,
relação que marca, segundo ele, a obra de Gullar: “E nesse caso creio que o processo
se completa: a procura de si mesmo (que é o primeiro nível do texto) se dá dentro
de uma realidade cultural (os hábitos de vida em São Luís do Maranhão) e acaba
por nos oferecer a imagem de pelo menos uma parcela da sociedade brasileira. Ou
seja: a identidade pessoal revela-se como uma identidade cultural, inserida dentro de
uma mais ampla identidade nacional” (2004, p. 207, grifado no original).
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Se seguirmos com o pensamento do crítico, poderíamos afirmar que
a dureza dos anos da ditadura tem na poética de Gullar uma função
“benéfica” (assim como o exílio, apesar de tudo, guardaria a sua parcela
“positiva” para aqueles que sofrem a sua experiência, esta sempre, a priori,
segundo essa dialética, “negativa” ou “traumática”6). Afinal, se “o peso
da propaganda política mata a arte”, como afirma Lafetá (2004, p. 199)
em relação às produções do CPC e dos poemas de cordel, após o golpe
de 64 o poeta inicia uma nova etapa, dentro ainda de sua orientação
“participante”, mas que se constitui como “um verdadeiro retorno à
poesia” (2004, p. 199). Assim, “As composições dessa época, reunidas
no volume Dentro da noite veloz”, continua ele, “têm como principal
característica a procura de um equilíbrio entre a expressão dos sentimentos
subjetivos e a comunicação da visão de mundo” (2004, p. 199)7. E mais
adiante encontramos uma sentença em que esse equilíbrio – identificado
por Lafetá em poemas como “Maio 1964” e “Agosto 1964” – parece ser
atribuído, pelo próprio crítico, como na moral cristã, apenas por meio do
pagamento de uma pena, espécie de redenção de uma “falta” cometida
(a morte da arte pela política), o que consequentemente impossibilitará,
daí para frente, a “ingenuidade” e o “otimismo excessivo” (2004, p. 206)
que guiavam a panfletagem cepecista do poeta: “Penso que a diferença
entre o engajamento pós-1964 e o anterior nasce, em boa parte, da própria
experiência da derrota” (2004, p. 206).
6
Esta parece ser a inclinação de Edward Said: “While it perhaps seems peculiar to
speak of the pleasures of exile, there are some positive things to be said for a few of
its conditions. Seeing ‘the entire world as a foreign land’ makes possible originality
of vision. Most people are principally aware of one culture, one se#ing, one home;
exiles are aware of at least two, and this plurality of vision gives rise to an awareness
of simultaneous dimensions, an awareness that – to borrow a phrase from music – is
contrapuntal” (2000, p. 186).
7
Assim como no “Poema sujo” “parecem ter sido superadas as angústias de A luta
corporal, a objetividade dos poemas concretos e neoconcretos, e o desvio populista do
cordel: pelo mergulho na memória e na infância, o poeta consegue fazer emergir um
quadro que é ao mesmo tempo seu (individual) e brasileiro (social), buscando uma
linguagem que equilibre rigorosamente a liberdade individualista da expressão e a
necessidade socializante da comunicação” (LAFETÁ, 2004, p. 121-122, grifos meus).
106
Ferreira Gullar
No entanto, João Luiz Lafetá – assim como Aracy Amaral, num
contexto mais amplo – apresenta um ponto sobre o qual é difícil
discordar: a repressão da ditadura foi minando os esforços mais
explícitos da esquerda intelectual e artística, que parece ter se voltado,
cada vez mais, para outras “especulações” – não ligadas a partidos
políticos, mas ainda potencialmente críticas e ligadas à polarização
que frequentemente se estabelece entre arte e política8:
Nesses anos, a poesia explicitamente política quase desapareceu, alijada
pela repressão que se desencadeia sobre a luta armada e sobre toda
a esquerda. Talvez por isso não seja possível situar Ferreira Gullar
dentro de qualquer movimento mais amplo da época. Enquanto tudo
acontecia, ele vivia no exílio, dentro ou fora do Brasil, a sua “noite
veloz”. Nos primeiros tempos, antes do Ato 5, sua participação política
se dá principalmente no teatro, no grupo Opinião, de forma muito ativa.
E alguns poemas de resistência surgiram ainda nas páginas da Revista
Civilização Brasileira, no contexto de oposição à ditadura, num espírito
que mantinha sem dúvida pontos de contato com a canção de protesto.
Mas como se pode ver hoje, tratava-se de afinidade apenas aparente:
na verdade, o poeta começava a modificar outra vez sua técnica e sua
concepção de poesia, abandonando o discurso simplificado e didático
dos tempos do CPC, e adotando uma postura reflexiva, mais densa,
nada propagandista, vazada numa linguagem em que o tom direto
e coloquial coloria-se de emoção profunda e de participação afetiva,
pessoal, nos acontecimentos políticos (2004, p. 120-121).
8
Escreve Aracy Amaral: “Impossibilitados de qualquer crítica aberta do sistema com
a implantação do Ato Institucional n° 5, a censura e a autocensura se impõem nos
meios artísticos. E à retração do artista plástico em termos de participação política
em qualquer nível, mais do que em qualquer época, corresponderia, no âmbito do
mercado, o surgimento de uma intensificação das atividades comerciais paralelas
ao ilusório ‘milagre brasileiro’. [...] O dado político, na obra da maior parte dos
artistas de inícios e meados dos anos 70, é quase nulo, embora a presença crítica,
através da metáfora, seja evidente [em Antônio Henrique Amaral, Cildo Meirelles,
Antônio Manuel, Humberto Espíndola etc.]. Não se trata, contudo, nestas duas últimas décadas, de um alinhamento, a partir de uma opção do artista, como ocorrera
em fins de 40 e primeira metade da década de 50, em relação a um partido político,
ou mesmo de uma atuação intensa (como a que ocorrera com elementos do teatro
em inícios de 60), porém de ‘comentários’ do artista em relação a eventos de seu
tempo” (2003, p. 336-337).
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Em termos linearmente históricos – se quiséssemos sustentar essa
correspondência – é como se, após a perda do entusiasmo com a
modernização e o desenvolvimento, que foi acompanhado de perto
pelas experiências concretas9, também se perdesse o entusiasmo com
a preocupação social e a conscientização, que vinha acompanhado
pela “arte popular” e a participação fortemente engajada. Afinal,
veio o golpe, veio a ditadura, desiludindo essas expressões; mas é
exatamente assim que a poesia de Gullar, segundo a leitura de Lafetá,
consegue verdadeiramente “retornar”: pela “derrota”, equilibrando
o engajamento, isto é, não pendendo de maneira alguma para o
didatismo, a simplificação, a propaganda. De modo que a poesia
assim seria – insisto – a própria síntese, superação da adversidade.
Mas talvez seja possível ler as coisas de outro modo. Suspendendo
a função “cronista” do poeta e a necessidade das demarcações
identitárias. Suspendendo a obrigatória superação (pela síntese ou
por uma escolha finalmente inequívoca) do dilema arte/política,
pureza/participação. Como se outra resolução – irresoluta – pudesse
ser dada apontando para outros percursos e outras marcas da cultura.
Então aproveito essa impossibilidade, mencionada por Lafetá,
de situar Ferreira Gullar dentro de um movimento mais amplo e
proponho um sobrevoo e um rasante, breves, para tentar deslocar,
ao menos um pouco, o poeta e dois dos seus poemas, entre risco de
extermínio e possibilidade de existência.
Sobrevoo
Gullar inscreve em “Uma fotografia aérea”, poema em cinco
momentos de Dentro da noite veloz, de 1975, a imagem de um avião
9
“Toda a teoria modernizadora que ele [o Concretismo] contém possui relações
estreitas com o mundo racional da indústria, da produção em massa de objetos
para o consumo; e a equivalência que ele estabelece entre o poema e a produção
material de signos revela o desejo de enraizar-se numa realidade atual, presente à
nossa volta” (LAFETÁ, 2004, p. 162).
108
Ferreira Gullar
que “às três e dez de uma tarde / há trinta anos / fotografou” (2008,
p. 213) São Luís do Maranhão. E com essa imagem, uma voz que
ressoa em todo o poema da seguinte maneira: “Eu devo ter ouvido
aquela tarde / um avião passar sobre a cidade”; “eu devo ter ouvido
/ aquela tarde”; “eu devo ter ouvido no meu quarto / um barulho
cortar outros barulhos”; “devo ter ouvido / (sem ouvir) / o ronco do
motor enquanto lia”; “eu devo ter ouvido esse avião” (GULLAR,
2008, p. 210-213)...
Esse “eu”, que deveria ter ouvido o avião, há trinta anos, é agora um
“eu” tateante, que parece querer se convencer do que (não) conservou
daquele tempo, quando rente à cidade. O avião não o viu, não o
veria; assim como ainda agora, enquanto seu rosto sobrevoa “sem
barulho / essa fotografia aérea” (GULLAR, 2008, p. 213), ele mesmo
não se vê. Pois desse lugar que é em ambos os casos o alto, vertical –
primeiro o avião, depois o olhar sobre a imagem –, só se pode ver a
heterogeneidade: do avião o olhar acompanha a superfície que passa,
e sobre a terra o homem está presente em sua ausência: são os vestígios
deixados na superfície que o denunciam. Nesse sentido, de dentro do
avião não se poderia ver “o homem”; tal identidade escapa mesmo ao
instrumento mais minucioso, que do alto capta apenas indícios, como
escreve o piloto de guerra Saint-Exupéry em 1942:
La terre est vide.
Il n’est plus d’homme quand on observe de dix kilomètres de distance.
Les démarches de l’homme ne se lisent plus à ce#e échelle. Nos
appareils photo à long foyer nous servent ici de microscope. Il faut
le microscope pour saisir, non l’homme – il échappe encore à cet
instrument – mais les signes de sa présence, les routes, les canaux,
les convois, les chalands. L’homme ensemence une lamelle de
microscope. Je suis un savant glacial, et leur guerre n’est plus, pour
moi, qu’une étude de laboratoire (1982, p. 297).
De dentro do avião o olhar encontra a passagem do homem, isto
é, o trânsito que é o próprio da sua essência (o inapropriável), sua
109
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existência10; e assim não se vê “o homem”, que se põe (se expõe)
atravessado, espaçado, abrindo a condição de “um homem”,
singularmente, existir, condição de uma forma de vida ser colocada
em jogo, possível em sua pluralidade11.
Mas assim é a imagem do sobrevoo: potencializa um desfazimento
dos ideais identitários enquanto, simultaneamente, está marcada pela
guerra, que através de seus dispositivos mais precisos (clinicamente,
poderia ser dito) busca reconstituir a ruptura para manter a guerra,
isto é, busca o homem em sua identidade, inteiro em si mesmo, para
ser incorporado na igualdade ou aniquilado na diferença. E a guerra,
segundo Paul Virilio, “consiste menos em obter vitórias materiais
(territoriais, econômicas...) do que em apropriar-se da imaterialidade
dos campos de percepção” (1993, p. 15); de modo que é possível
afirmar que a relação entre o imaginário da vista aérea e as formas
contemporâneas de dominação se inicia ainda com os pés no chão,
antes das guerras mundiais, e antes mesmo da aviação12.
10
Baseio-me em Jean-Luc Nancy, que retoma o pensamento a respeito do existir/
ek-sistir (a partir de Heidegger) em diversos trabalhos. Cito de Infinita finitud o
seguinte trecho: “A esto se le llama existir. Existir transita la esencia (su ‘propria’):
la atraviesa, la transporta fuera de sí (pero no habrá habido un ‘adentro’), y para
empezar, y por ejemplo, deporta la esencia de su generalidad y de su idealidad hasta
este estatuto barroco, paradojal, de ‘esencia singular’ (o de infima species) que Leibniz
quería reconocerle a la individualidad (conversión o convulsión de un pensamiento
de la esencia en pensamiento de la finitud). El singular como esencia es la esencia
existida, ek-sistida, expulsada de la esencia misma, desenquistada de la esencialidad,
y ello, una vez más, antes de que el quiste se haya formado” (NANCY, 2003a, p. 57).
11
Afirma Nancy em Cosmos basileus: “Existir no se hace solo, si es que puede decirse
así. Es el ser el que está solo, al menos en todos los sentidos comunes que se pueden
dar al ser. Pero la existencia no es otra cosa que el ser expuesto, es decir, sacado de
su simple identidad consigo mismo y de su pura posición, expuesto al surgimiento,
a la creación, por tanto, al afuera, a la exterioridad, a la multiplicidad, a la alteridad
y a la alteración. (En un cierto sentido, seguramente, no es más que el ser expuesto
al ser mismo, a su proprio ‘ser’, y también, en consecuencia, el ser expuesto en tanto
que ser: la exposición como esencia del ser.)” (2003b, p. 147).
12
“Foi em 1861, observando o funcionamento da roda com pás que impulsionava o navio em que viajava, que o futuro coronel Gatling se inspirou para criar a
110
Ferreira Gullar
“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também
um monumento da barbárie”, afirmou Walter Benjamin em 1940,
nas teses de Sobre o conceito de história (1994, p. 225). E é neste ponto
indecidível que as experiências de Marey podem ser fundamentais
para o entendimento da relação entre a pesquisa do movimento e
a interpretação do momento13; assim como para o aprofundamento
dessa relação entre guerra, vista aérea e formas de percepção da
realidade, com o que me detenho nos comentários de Paul Virilio:
Com a fixidez do front, a guerra de posição, a aviação de reconhecimento
transforma-se em órgão de percepção do Alto Comando, a prótese
privilegiada do estrategista caseiro do Estado-maior [sic]. É a aviação
que ilumina a guerra e torna os locais visíveis [...]; mas estes olhos serão,
antes de mais nada, os olhos das objetivas das primeiras câmeras de bordo.
metralhadora com tambor cilíndrico movida a manivela. Em 1874, o francês Jules
Jansen se inspirou no revólver com tambor (patenteado em 1832) para criar seu
revólver astronômico, capaz de obter fotografias em série. Servindo-se dessa idéia,
Jules Étienne Marey aperfeiçoou seu fuzil cronofotográfico, que permitia focalizar
e fotografar um objeto que se desloca no espaço.
“É graças às informações transmitidas pelo Entreprenant, o primeiro balão de observação a sobrevoar um campo de batalha, que o general Jourdan obtém a vitória de
Fleurus em 1794. Em 1858, Nadar obtém suas primeiras fotografias aéreas, tiradas de
dentro de um balão. Durante a guerra civil americana, as forças da União utilizam
balões equipados com um telégrafo cartográfico aéreo. Logo os militares lançariam
mão das mais variadas combinações: pipas equipadas com câmeras, pombos carregando pequenas máquinas fotográficas, balões com câmeras, precedendo assim
ao uso intensivo da cronofotografia e do cinema em aviões de reconhecimento [...].
Em 1967 a Força Aérea americana utilizou vôos não pilotados para sobrevoar o Laos
e transmitir informações aos centros da IBM instalados na Tailândia e no Vietnam
do Sul. A partir de então, não mais existe a visão direta: em um espaço de 150 anos, o
campo de tiro transformou-se em campo de filmagem, o campo de batalha tornou-se
uma locação de cinema fora do alcance dos civis” (VIRILIO, 1993, p. 23-24).
13
“[1904] é o ano da morte de Etienne-Jules Marey, elo essencial entre a arma automática e a fotografia instantânea. [...] Marey foi o inventor do fuzil cronofotográfico,
que não só precedeu à câmera dos irmãos Lumière como também descendia das
armas com tambor e cano móvel, como o revólver Colt e a metralhadora Gatling,
uma arma automática inventada no início da guerra de Secessão e que viria a encerrar sua carreira militar neste mesmo ano de 1904, na tomada de Port Arthur”
(VIRILIO, 1993, p. 157-158).
111
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A realidade da paisagem de guerra torna-se cinemática, pois a partir
de então tudo muda, tudo se transforma, as referências desaparecem
umas após as outras, tornando inúteis os mapas do Estado-Maior [sic]
e os antigos relevos topográficos. Somente o obturador da objetiva pode
conservar o filme dos acontecimentos, a forma momentânea da linha de
frente, as sequências de sua progressiva desintegração. Novas localizações
de combate, impactos de tiros de longo alcance, grau de destruição das
posições: somente a fotografia instantânea pode compensar a potência
das armas de uma destruição igualmente instantânea.
O que para Marey representava o cuidado de isolar as fases sucessivas
de um movimento ou de um gesto, torna-se aqui o cuidado de
interpretar da melhor maneira possível as sequências de uma violação,
de uma súbita dissolução da paisagem que não é captada em toda sua
amplitude pelas sequências fotográficas. Ainda aí existe a conjunção
entre a potência da máquina de guerra moderna, o avião, e as novas
performances da máquina de observação, como a fotografia aérea e o
fotograma cinematográfico. Mesmo se o filme militar é feito para ser
visto em uma projeção que dissimula a análise das fases do movimento
em questão – deixando assim sua utilidade prática às séries fotográficas
–, a situação é inversa à desencadeada pelos trabalhos de um
Muybridge ou de um Marey: não mais se trata de observar um cavalo
ou um homem, ou seja, um corpo inteiro para estudar as deformações
inerentes ao seu deslocamento, é necessário agora tentar reconstituir as
linhas de ruptura das trincheiras, a infinita fragmentação de uma paisagem
minada que é animada por incessantes virtualidades (1993, p. 161).
Do alto não há só o possível distanciamento em relação à violência
dos ideais humanistas em seu desdobramento contemporâneo –
biopolítico – mas também o movimento de aproximação incisiva desta
mesma violência que uma vez mais enxerga a suposta propriedade, a
legitimidade dos ideais de humanidade, ser, verdade etc. O sobrevoo
no poema é então recusa e risco. Se há a possibilidade de existência,
indissociavelmente há a possibilidade de aniquilamento do próprio
corpo e sua propriedade única que é na passagem14. Pois a pretensa
14
Em El vestígio del arte, Jean-Luc Nancy não se refere a “o homem”, mas ao ser como
“el que pasa”: “Pasa, es en el pasaje: cosa que también se llama existir. Existir: el ser
pasante del ser mismo” (2008, p. 132).
112
Ferreira Gullar
totalidade que a fotografia aérea busca abarcar pode fazer sumir “o
homem”, para deixar seus indícios de vida e existência, assim como
pode guiar a morte que mergulha sobre o corpo singular. Poderia
ser dito: encontrar na imagem o homem inteiro é minar uma vida
possível, pois neste caso o que se faz visível é a rejeição da diferença e
do limiar, pelo esforço de limitar, de demarcar as fronteiras entre um
e outro. Para o poeta, de outra maneira, o sobrevoo indica o invisível
no visível, ou ainda, não a reconstituição do (que nunca foi) inteiro
e sua aparência, mas a inscrição de uma pungência ausente, de um
espaço indomesticável, de modo que em “Uma fotografia aérea”
cria-se acesso para um sentido que vai contra a postura militarista
que decide a vida ou a morte15:
[...]
lá embaixo no escuro
sonoro do capim dentro
do verde quente
do capim
lá
junto à noite da terra entre
formigas (minha
vida!) nos cabelos
do ventre e morno
do corpo por dentro na usina
da vida
em cada corpo em cada
habitante
dentro
de cada coisa
15
No procedimento militar há a pretensão do fechamento, a tentativa de exaustão do
campo visual e semântico: “Esta propriedade de tornar visível o invisível – experiência que consiste em examinar indefinidamente uma determinada imagem, encontrar
um sentido ao que, a primeira vista, parece um caos de forma sem significação – ou
a análise manual do filme [...] estão próximas ao procedimento militar de avaliar
a paisagem inimiga a partir das destruições realizadas por elementos geralmente
camuflados (trincheiras, acampamentos, bunkers) [...]” (VIRILIO, 1993, p. 47).
113
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clamando em cada casa
a cidade
sob o calor da tarde
quando o avião passou
[...]
em meu corpo
a clamar
(entre zunidos
de serras entre gritos
na rua
entre latidos
de cães
no balcão da quitanda
no açúcar já-noite das laranjas
no sol fechado
e podre
àquela hora
dos legumes que ficaram sem vender
no sistema de cheiros e negócios
do nosso Mercado Velho
– o ronco do avião)
[...] (GULLAR, 2008, p. 210-212).
Tendo sido perseguido, exilado, detido, o poeta, através do “eu”,
se situa no ponto que está próximo ao extermínio, mas ainda à
margem, onde seu poema tem lugar enquanto gesto, esta aparição
momentânea que talvez seja o sentido mesmo, a/à escuta do sentido
(ressoa: “eu devo ter ouvido”16) que se abre não no “caos de forma
16
Em A la escucha, Jean-Luc Nancy aborda a questão da escuta como um pensamento
filosófico radical, para além do signo da visão e do entendimento: “Lo sonoro [...]
arrebata la forma. No la disuelve; más bien la ensancha, le da una amplitud, un
espesor y una vibración o una ondulación a la que el dibujo nunca hace otra cosa
que aproximarse. Lo visual persiste aun en su desvanecimiento, lo sonoro aparece
y se desvanece aun en su permanência” (2007, p. 12). E ainda: “Si ‘entender’ es
comprender el sentido (ya sea en sentido figurado o en el que denominamos sentido
propio: oír una sirena, a un pájaro o un tambor ya es comprender en cada ocasión,
por lo menos, el esbozo de una situación, de un contexto, si no de un texto), escuchar
114
Ferreira Gullar
sem significação” que os procedimentos militares buscam evitar
com a atribuição de um sentido próprio, mas na própria ausência do
sentido, nessa ausência do sentido que mostra uma propriedade: o
inapropriável como sentido. Um “eu” passa, e assim é:
[...]
Aqui está
num papel
a cidade que houve
(e não me ouve)
com suas águas e seus mangues
aqui está
(no papel)
uma tarde que houve
com suas ruas e casas
uma tarde
com seus espelhos
e vozes (voadas
na poeira)
uma tarde que houve numa cidade
aqui está
no papel que (se quisermos) podemos rasgar (GULLAR, 2008,
p. 215).
Rasante
“Uma fotografia aérea” e “Poema sujo” são dobras: sobrevoo e
rasante. O que passou, em “Uma fotografia aérea”, e o que vem, no
“Poema sujo”, são aparições de um mesmo momento, presente, mas
potencialmente heterogêneo. Proliferam acontecimentos articulados
entre o que já não existe (o que muda e passa no homem e na cidade)
e o que ainda pode ser (a memória, a imaginação) – “Quantas tardes
numa tarde!” (GULLAR, 2008, p. 244).
es estar tendido hacia un sentido posible y, en consecuencia, no inmediatamente
accesible” (2007, p. 18).
115
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O que não se vê no sobrevoo, quando o rosto do poeta está sobre
“Uma fotografia aérea” – tirada “às três e dez de uma tarde / há trinta
anos” (GULLAR, 2008, p. 213) –, agora, lá embaixo, no “Poema sujo” –
escrito “às quatro horas desta tarde / de 22 de maio de 1975 / trinta anos
depois” (GULLAR, 2008, p. 251) –, pode ser experienciado por meio deste
presente compartilhado pelos poemas, no qual surge a cidade de São Luís
do Maranhão com o corpo que toca/é tocado por sua matéria pungente.
No “Poema sujo”, o corpo cria ao rés-do-chão os caminhos, as
palafitas, as frutas e as galinhas, os mercados e as praças, o trilho do
trem e a fábrica, o capim e a hortelã, os cheiros, o sexo – os excessos
do próprio corpo, com os quais ele mesmo é criado:
[...]
Meu corpo
que deitado na cama vejo
como um objeto no espaço
que mede 1,70m
e que sou eu: essa coisa
deitada
[...]
meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio
de tudo como um monturo
de trapos sujos latas velhas colchões usados sinfonias
sambas e frevos azuis
de Fra Angelico verdes de
Cézanne
matéria-sonho de Volpi
[...] (GULLAR, 2008, p. 239/240).
E agora, os pés na cidade, “entre jovens que se beijam e se esfregam
/ junto à cancela / no escuro / e quando o tesão é muito decidem casar”
(GULLAR, 2008, p. 254-255); agora, “quando a gente acorda cedo e
fica / deitado assuntando / o processo do amanhecer” (GULLAR,
2008, p. 256); agora lemos no “Poema sujo” uma alteração da visão,
que deixa de ser aérea, mas aponta a seu modo, novamente, para a
singularidade que escapa ao sobrevoo:
116
Ferreira Gullar
[...]
e o quintal da Rua das Cajazeiras? O tanque
do Caga-Osso? a Fonte do Bispo? a quitanda
de Newton Ferreira?
Nada disso verá
de tão alto
aquele hipotético passageiro da Braniff
[...] (GULLAR, 2008, p. 272).
Para armar de outra maneira: é como se em “Uma fotografia aérea”
estivéssemos diante do studium, diante da ausência de punctum, ou melhor,
diante da presença dessa ausência (do seu assédio), a qual só pode ser
sentida quando em contato com um “eu” que se deseja incluído nessa
imagem aérea, um “eu” invisível como o restante das pungências possíveis
para o seu corpo, mas impossíveis para a distância do sobrevoo; enquanto
no “Poema sujo”, diferentemente, o punctum prolifera, disseminado na
superfície da cidade17. Se o studium está “sempre codificado”, como diz
Barthes (1984, p. 80), reduzido a uma forma de significação e controle, o
punctum é um “suplemento”, cria ou permite adivinhar uma “espécie de
extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo
que ela dá a ver” (BARTHES, 1984, p. 89). (E, na violência da guerra, o que
são as imagens de reconhecimento aéreo – e os voos da ESMA durante a
“guerra antissubversiva”18 – senão formas de eliminar os pontos cegos,
os extracampos por onde o corpo faz(-se) passagem).
17
“Me extravio / na Rua da Estrela, escorrego / no Beco do Precipício. / Me lavo no
Ribeirão. / Mijo na Fonte do Bispo. / Na Rua do Sol me cego, / na Rua da Paz me
revolto / na do Comércio me nego / mas na das Hortas floresço; / na dos Prazeres
soluço / na da Palma me conheço / na do Alecrim me perfumo / na da Saúde adoeço
/ na do Desterro me encontro / na da Alegria me perco / Na Rua do Carmo berro /
na Rua Direita erro / e na da Aurora adormeço” (GULLAR, 2008, p. 278).
18
Horacio Verbitsky, em El vuelo (1995), narra os diálogos que manteve com o excapitão de corveta da ESMA Francisco Scilingo, nos quais este confessou (o primeiro
oficial da Escola de Mecânica da Armada a fazê-lo) os voos que foram realizados,
de 1976 a 1983, para lançar ao mar, nus e anestesiados, prisioneiros da “guerra
antissubversiva”. Esses aviões podem ter sobrevoado, bem perto, a cabeça de Gullar.
Ele deve tê-los ouvido.
117
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Em “Uma fotografia aérea” alguém pode rasgar a imagem como
forma de poder esburacá-la, pontuá-la, como maneira de vazá-la para
além da previsibilidade do código e seu poder. E no “Poema sujo”
estão esses buracos alargados, a vertigem de uma imagem longa,
deslocada, tocada de perto e toda pontuada de desbordamentos, de
movimentos de vida e morte. Movimentos que podem ficar mais
intensos se pensarmos que em A Câmara Clara o rigor conceitual de
um artefato se mantém flexível e brincalhão, como afirma Derrida19.
Refiro-me ao texto de 1981 traduzido como Las muertes de Roland Barthes.
Nele, Derrida faz uma leitura de como os conceitos de studium e punctum
se relacionam metonimicamente. Isto é, há um deslocamento entre eles, um
assédio que se manifesta pela ausência mesma, de modo que não se trata de
uma oposição irredutível, mas de um contato: “Porque, sobre todo y en primer
lugar, esta aparente oposición (studium / punctum) no sólo evita la prohibición
sino que, por el contrario, favorece cierta composición entre los dos conceptos.
¿Qué debemos entender por composición? Un par de cosas que se componen
en conjunto. 1) Separados por un límite infranqueable, los dos conceptos establecen entre ellos compromisos, uno con otro se componen, reconoceremos
ahí, de inmediato, una operación metonímica, sutil, del ‘fuera del campo’, que
corresponde al punctum, que, en su calidad de exterior al campo se compone
según el campo ‘siempre codificado’ del studium. Le pertenece sin pertenecerle, es ilocalizable, no se inscribe jamás en la objetividad homogénea de su
espacio enmarcado, pero lo habita o más bien lo asedia: ‘Es un suplemento, es
lo que añado a la foto y que no obstante ya estaba ahí’. Somos presa del poder
fantasmático del suplemento, ese emplazamiento ilocalizable. Eso es precisamente lo que da lugar al espectro. ‘El Spectator somos nosotros, todos los que
compulsamos las colecciones de fotos en los periódicos, en los libros, en los
álbumes, en los archivos. Y aquel o aquella que es fotografiado es el blanco, la
referencia, suerte de pequeño simulacro, de eidolon emitido por el objeto, que
yo llamaría gustosamente el Spectrum de la Fotografía, porque esa palabra
conserva, a través de su raíz, una relación con el ‘espectáculo’ y le añade esta
cosa un tanto terrible que hay en toda fotografía: el retorno del muerto.’ Desde el
momento en que cesa de oponerse al studium manteniéndose al mismo tiempo
heterogéneo, desde el momento en que no puede siquiera distinguir entre dos
lugares, dos contenidos o dos cosas, el punctum no se somete completamente
al concepto, si entendemos por ello una determinación predicativa distinta
y oponible. Ese concepto del fantasma es tan poco aprehensible, en persona,
19
118
Ferreira Gullar
O “Poema sujo” é então o punctum, os punctums invisíveis que alguém
vê em “Uma fotografia aérea” (não) se anunciando – precisamente
– na forma dessa “cidade / geograficamente / desdobrada / em si
mesma / e escondida”, tal como lemos no poema de Gullar (2008, p.
como el fantasma de un concepto. Ni la vida ni la muerte, sino el asedio de
uno por el otro. El versus de la oposición conceptual es tan inconsistente como
el obturador fotográfico. ‘La Vida / la Muerte: el paradigma se reduce a un
simple obturador, el que establece la separación entre la pose inicial y el papel
final.’ Fantasmas: el concepto del otro en lo mismo, el punctum en el studium,
la muerte completamente otra que vive en mí. Ese concepto de la fotografía,
fotografía toda oposición conceptual, descubre en ella una relación de encantamiento que constituye quizá toda ‘lógica’” (DERRIDA, 1999, s/p). Apenas esse
fragmento bastaria para expor a relação dos dois conceitos de Barthes com os
poemas em questão. Mas Derrida ainda oferece um outro ponto: “Pienso en un
segundo sentido de la composición. De esta manera 2) en la oposición fantasmática de dos conceptos, en la pareja S / P (studium/ punctum), la composición
es también la música. Se abriría aquí un largo capítulo: Barthes músico. Podría
colocarse, como una nota, este ejemplo analógico (para comenzar): entre los
dos elementos heterogéneos S y P, puesto que la relación no es ya la exclusión
simple, cuando el suplemento del punctum parasita el espacio asediado del
studium, es posible decir entre paréntesis, discretamente, que el punctum viene a conferir su ritmo al studium, a escandirlo: ‘El segundo elemento viene a
quebrar (o escandir) al studium. Esta vez no soy yo quien va a buscarlo (como
he investido con mi consciencia soberana el campo del studium), es él quien
parte de la escena, como una flecha, y viene a atravesarme. Una palabra existe
en latín [...] punctum’. Cuando la escansión ha sido marcada, la música llega,
al pie de la misma página, de otro lugar. La música es más precisamente la
composición: analogía de la sonata clásica. [...] Barthes dará a entender [...] que
no tratará el par de conceptos S y P como esencias venidas de un más allá del
texto que está por escribirse y que autoriza cierta pertinencia filosófica general.
No llevan la verdad sino al interior de una irreemplazable composición musical.
Son motivos. Si se les quiere trasladar a otro lugar, y es posible, útil, necesario,
es preciso proceder a una trasposición analógica, y la operación no tendrá éxito
más que en la media en que otro opus, otro sistema de composición los arrastre
consigo de manera también original e irreemplazable. Escribe acerca de esto:
‘Habiendo distinguido en la Fotografía dos temas (puesto que, en resumen, las
fotos que amo estaban construidas a la manera de una sonata clásica) podía
ocuparme sucesivamente de uno y del otro’” (1999, s/p).
119
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011
210), como escutamos20. É o que irradia por um instante e escande o
studium, o que “se mantiene como lo radicalmente otro que viene a
duplicarlo [doubler], a ligarse a él, a componerse con él” (DERRIDA,
1999, s/p). Studium, punctum: “Uma fotografia aérea”, “Poema sujo”21.
Barthes pergunta-se em A Câmara Clara: “O que meu corpo sabe da
fotografia?” (1984, p. 20). E talvez a resposta esteja propriamente nessa
expropriação, nesse deslocamento para o outro de si, na exposição. É
sempre o excesso e o distúrbio da singularidade: ser plural. E por isso
o torvelinho no tempo, esta dobra: o passado e o futuro, agora22; por
isso esta distância que parece adivinhar as proximidades, no primeiro
poema – o “eu” “em meu corpo / a clamar”, “como eu / passava à
margem do Bacanga / em São Luís do Maranhão / no norte / do Brasil
/ sob as nuvens” (GULLAR, 2008, 211/212) –, e as proximidades mais
imediatas que, entretanto, parecem se distanciar, no segundo23:
20
No “Poema sujo”: “A noite nos faz crer / (dada a pouca luz) / que o tempo é um
troço / auditivo” (2008, p. 256).
21
“Si es algo más y algo menos que él mismo, disimétrico –respecto de todo y en
sí mismo–, el punctum puede invadir el campo de studium al cual sin embargo,
hablando rigurosamente, no pertenece. Es preciso recordar que está fuera tanto del
campo como del código. Lugar de la singularidad irreemplazable y del referencial
único, el punctum irradia y, esto es lo más sorprendente, se presta a la metonimia.
Así, cuando se deja arrastrar hacia esos relevos sustitutivos, lo puede invadir todo:
objetos y afectos. Eso singular que no se encuentra en parte alguna dentro del campo,
moviliza todo y por todas partes, se pluraliza” (DERRIDA, 1999, s/p).
22
A experiência de Barthes: “Sei agora que existe um outro punctum (um outro
‘estigma’) que não o ‘detalhe’. Esse novo punctum, que não é mais de forma, mas
de intensidade, é o Tempo, é a ênfase dilaceradora do noema (‘isso-foi’), sua representação pura. [...] Leio ao mesmo tempo: isso será e isso foi; observo com horror
um futuro anterior cuja aposta é a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose
(aoristo), a fotografia me diz a morte no futuro. O que me punge é a descoberta
dessa equivalência. [...]. Esse punctum, mais ou menos apagado sob a abundância
e a disparidade das fotos de atualidade, pode ser lido abertamente na fotografia
histórica: nela há sempre um esmagamento do Tempo: isso está morto e isso vai
morrer” (1984, p. 141-142).
23
Interessante pensar em como se dá o contato para Nancy. No epílogo de Noli me
tangere. Ensayo sobre el levantamiento del cuerpo, texto em que o filósofo realiza uma
120
Ferreira Gullar
Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigem
que me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de gás
e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama,
ou dentro de um ônibus
ou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico
acima do arco-íris
perfeitamente fora
do rigor cronológico
sonhando
Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas
balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de casas
cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do
jantar,
voais comigo
sobre continentes e mares
E também rastejais comigo
pelos túneis das noites clandestinas
[...] (GULLAR, 2008, 235).
análise não religiosa do cristianismo, ou ainda, uma desconstrução do cristianismo
por meio do próprio cristianismo, sua “auto-desconstrução”, valendo-se do episódio do evangelho de João, há um pensamento que pode ser fundamental para esse
entendimento: “Es esencial a la pintura no ser tocada. Es esencial a la imagen en
general no ser tocada. Es su diferencia com la escultura; o, al menos, ésta puede
ofrecerse alternativamente al ojo y a la mano, así como al caminar que da vueltas
a su alrededor, aproximándose hasta tocar y alejándose para ver. Pero ¿qué es la
vista sino, sin duda, un tocar diferido? Pero ¿qué es un tocar diferido sino un tocar
que aguza o que destila sin reserva, hasta un exceso necesario, el punto, la punta
y el instante por el que el toque se separa de lo que toca en el momento mismo en
que lo toca? Sin esa separación, sin ese retroceso o esa retirada, el toque no sería ya
lo que es y no haría ya lo que hace (o bien no se dejaría hacer lo que se deja hacer).
Comenzaría a cosificarse en una aprehensión, en una adhesión, una unión, incluso
en una aglutinación que lo agarraría en la cosa y a la cosa en él, emparejándolos y
apropiándolos uno al otro, y después al uno en el otro. Habría identificación, fijación, propiedad, inmovilidad. ‘No me retengas’ equivale también a decir: ‘Tócame
con un toque verdadero, retirado, no apropiador, y no identificante’. Acaríciame,
no me toques” (2006a, p. 79-80).
121
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011
Assim segue o combate entre as imagens, os corpos, os poemas24.
E, no “Poema sujo”, há um “eu” que avança:
[...]
meu corpo nascido numa porta-e-janela na Rua dos Prazeres
ao lado de uma padaria
sob o signo de Virgo
sob as balas do 24° BC
na revolução de 30
e que desde então segue pulsando como um relógio
num tic tac que não se ouve
(senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração)
tic tac tic tac
enquanto vou entre automóveis e ônibus
24
Ainda Nancy, em Guerra, derecho, soberanía – Tejne, publicado em Les Temps Modernes, em junho de 1991, e depois recolhido em Ser singular plural, de 1996, elabora um
pensamento que, aqui, dialoga com Paul Virilio, com a guerra presente no imaginário,
além de servir de contrapondo ao entendimento das imagens pelo viés do “espetáculo” situacionista: “En fin, tampoco se olvidará el gusto tan claramente extendido,
durante la preparación y la primera fase de la guerra, por el espectáculo de la belleza
épica y de la virtud heroica. Después de todo, estas imágenes no diferirían de todas
aquellas con las que se hacen las películas de guerra. No puedo, sin embargo, unirme
a los críticos de la ‘sociedad del espectáculo’, que no han dejado de calificar esta
guerra de ‘espectacular’ (negación simétrica a la que obraría el discurso del derecho). Porque las imágenes de guerra forman parte de la guerra –y quizá la guerra
misma sea como una película, más bien que lo de que una película imite la guerra.
Ante el horror y la piedad, por los que es preciso terminar, no habría guerra sin un
ímpetu guerrero del imaginario. Su espectáculo está inextricablemente mezclado
con la exigencia mecánica, a veces entorpecida, que hace avanzar al soldado. A los
psicólogos del ejército norteamericano les ha encantado explicar (por televisión) que
los boys no marchaban por una causa, el derecho o la democracia, sino solamente
para no mostrar flaqueza ante sus compañeros. Los resortes del honor y de la gloria
pertenecen ya por sí mismos al orden del ‘espectáculo’, y no se los puede desmontar
mediante la simple denuncia de una edad moderna de la simulación generalizada y
comercializada” (2006b, p. 128-129). E a isso é possível acrescentar: se a guerra é como
um filme, isto é, uma imagem com (com/contra) a outra, movida pelo imaginário,
facilmente a guerra toca a própria história da arte, por meio das palavras de Carl
Einstein, logo no início dos seus Aforismos metódicos, de 1929 (muito antes, portanto, de Nancy ou Virilio): “La historia del arte es la lucha de todas las experiencias
visuales, los espacios inventados y las figuraciones” (2009, p. 39).
122
Ferreira Gullar
entre vitrinas de roupas
nas livrarias
nos bares
tic tac tic tac
pulsando há 45 anos
esse coração oculto
pulsando no meio da noite, da neve, da chuva
debaixo da capa, do paletó, da camisa
debaixo da pele, da carne,
combatente clandestino aliado da classe operária
meu coração de menino
[...] (GULLAR, 2008, p. 240-241).
Neste caso, contudo, aquele que avança não o faz para mostrarse forte e inteiro e aniquilar a diferença; aquele que avança o faz,
ao contrário, movido por um desejo imprevisto e singular – não
comum – que pode criar em meio à destruição, em meio ao próprio
risco de apagamento. Ele avança, acredito, para viver a diferença,
como diferença:
[...]
busca de cobre e alumínio
pelos terrenos baldios
economia de guerra?
pra mim
torresmo e cinema
[...] (GULLAR, 2008, p. 242).
Enfim, entre “Uma fotografia aérea” e o “Poema sujo” – e entre
risco de extermínio e possibilidade de existência – algo é feito visível, é
animado para identificar-se, sim, mas com o não-idêntico da identidade,
com o desfazimento da identidade (pessoal, cultural, nacional): um
espaço de ausência cavado no tempo em que a completude mesma do
sujeito se ausenta, se retira (e quem sabe se apresenta como memória,
isto é, como diferimento, imaginação, esquecimento), e de modo
que ficam suspensas as responsabilidades e correspondências com o
123
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 103 - 125 •jan./jun.2011
que é mais imediatamente dado a ver, com o que é comunicado no
presente, pois há visões, presentes. Esta a condição de uma “identidade
própria”, para onde uma “identidade própria” se desloca: sendo a sua
propriedade, absolutamente, ser neste deslocamento inapropriável.
Entre os poemas e com eles algo é feito visível ou ressoa para identificarse com o que se abisma em linguagem e escapa à igualdade, à síntese:
[...]
a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa
cada coisa está em outra
de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma
a cidade não está no homem
do mesmo modo que em suas
quitandas praças e ruas
(GULLAR, 2008, p. 290-291).
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Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
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1). 7 ed. Tradução Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222-232.
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124
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________. Toda Poesia. 16 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
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VERBITSKY, Horacio. El vuelo. 2 ed. Buenos Aires: Planeta, 1995 (Espejo
de la Argentina).
VIRILIO, Paul. Guerra e Cinema. Tradução: Paulo Roberto Pires. São Paulo:
Página Aberta (Scri#a Editorial), 1993.
125
Quanto vale ou é por quilo? - Uma
breve discussão sobre a raça, gênero e
ações afirmativas
Bianca Buse*
Resumo: Este artigo busca identificar questões sobre raça, gênero e ações
afirmativas que podem ser encontradas no filme Quanto vale ou é por quilo,
lançado em 2005, do diretor Sérgio Bianchi. Nesse filme, é apresentado um
paralelo entre duas épocas distintas: o século XVIII, momento da escravidão;
e o presente, século XXI. Apesar da grande diferença temporal, os dois
períodos assemelham-se, conforme apresentado no filme, na manutenção da
impunidade e da violência, nas diferenças sociais e econômicas. É possível
verificar, após a análise de algumas cenas do filme, alguns pontos pertinentes
à discussão sobre a raça negra, ao preconceito com o lugar que a mulher
ocupa no mercado de trabalho e, sobretudo, aos problemas que surgem na
ausência de ações afirmativas e políticas públicas.
Palavras-chave: Ações afirmativas; Quanto vale ou é por quilo; raça.
Resumen: Este artículo trata de identificar problemas relacionados con
la raza, el género y las acciones afirmativas que pueden encontrarse
en la película Quanto vale ou é por quilo, lanzado en 2005, del director
Sergio Bianchi. En esta película, se ve un paralelo entre dos épocas bien
diferenciadas: el siglo XVIII, la época de la esclavitud, y el presente, siglo
XXI. A pesar de la gran diferencia temporal, los dos períodos son similares,
tal como se muestra en la película, en el mantenimiento de la impunidad y
de la violencia, en las diferencias sociales y económicas. Es posible verificar,
después del análisis de algunas escenas de la película, algunos de los puntos

Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura.
[email protected]
127
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 127 - 136 •jan./jun.2011
relevantes para la discusión acerca de la raza negra, de los prejuicios contra
el lugar que las mujeres ocupan en el mercado de trabajo y, especialmente,
de los problemas que surgen en la ausencia de medidas de acción afirmativa
y políticas públicas.
Palabras claves: Acciones afirmativas, Quanto vale ou é por quilo; raza.
Falar sobre a intersecção raça/gênero e sobre ações afirmativas
não é algo tão simples e tranquilo, até porque cada qual apresenta
suas complexidades. O próprio conceito de raça e de gênero sofreu
diversas alterações ao longo do tempo, e continua em discussão, pois já
é sabido que não são conceitos estáticos, mas sim que são construções
sociais. Por exemplo, em se tratando da discussão a respeito de raça,
podemos considerar os apontamentos de Kabengele Munanga que
assevera que “[...] o conceito de raça, tal como empregamos hoje,
nada tem de biológico. É um conceito carregado de ideologia, pois
como todas as ideologias, ele esconde uma coisa não proclamada:
a relação de poder e de dominação” (MUNANGA, 2003, p. 6). E na
mesma direção de Munanga, reconhecemos, segundo José de Sousa
Miguel Lopes, que o racismo também é uma ideologia e “como toda
ideologia se materializa em práticas sociais. A constatação, por mais
importante que seja, de que não existem raças, não é suficiente para
eliminar o preconceito e as consequências nefastas ocasionadas por
ele” (LOPES, 2009. p. 179). Logo, o conflito que rodeia essa questão
de raça e racismo está fundamentado em questões sociais, culturais,
políticas e econômicas, todavia, “não é um problema para ser
resolvido somente pelos negros, mas é um problema global, além de
ser uma questão histórica de toda a sociedade” (LOPES, 2009, p. 182).
Da mesma maneira, a conceituação de gênero, conforme
nos afirma Joan Sco#, é culturalmente construída: “O gênero é
um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as
diferenças percebidas entre sexos, e o gênero é um primeiro modo
de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1990, p. 14). O que
128
Quanto vale ou é por quilo?
já de antemão podemos perceber é que tanto o conceito de raça e
racismo, como o de gênero são construídos socialmente e que estão
impregnados de relações de poder. A problemática onde isso tudo
irá desembocar é a questão de (des)igualdade de raça e de gênero.
Pensando agora exclusivamente no Brasil, onde existiu, e ainda
persiste, um falso mito de democracia racial, no qual o preconceito
racial é velado, silencioso – mas bastante cruel, como qualquer tipo de
preconceito –, a discussão sobre a problemática da desigualdade de
raça e gênero é muito complicada, já que, muitas vezes, ela é negada,
ou ainda atenuada com argumentações que buscam mostrar que,
aqui, os problemas em geral ficam na esfera das classes sociais – o
que seria equivalente a dizer que, por exemplo, uma mulher negra
pobre apresenta maiores problemas que uma mulher branca rica, não
por conta do gênero e da raça, mas sim pela condição socioeconômica
em que se encontra. Isso, é claro, não é uma total inverdade; contudo,
não exclui as outras duas condições (gênero e raça) do “balaio”, mas
acrescenta-se ao mesmo.
Quando identificamos que só a aceitação da existência dessas
desigualdades já é algo polêmico, não fica difícil perceber que a
implementação de ações que procurem, ao menos, diminuir essas
disparidades é também um assunto bastante controverso. Falamos
aqui da questão das ações afirmativas que, conforme Lopes:
definem-se como políticas voltadas para a concretização do princípio
constitucional da igualdade material e para a neutralização dos efeitos
da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e
de compleição física. Assim, a igualdade deixa de ser simplesmente
um princípio jurídico a ser respeitado por todos e passa a ser um
objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade.
(LOPES, 2009, p. 185)
Dentre essas ações afirmativas, podemos destacar, por exemplo,
a questão das cotas para afrodescendentes, que é uma medida que
ainda suscita muitas divergências. Todavia, é fato que ações precisam
129
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 127 - 136 •jan./jun.2011
ser tomadas com o intuito de lutar contra as desigualdades existentes
no âmbito de raça e gênero – aliás, desigualdades estas notórias,
apesar do discurso contrário de alguns.
Para pensarmos um pouco mais a respeito deste emaranhado
de assuntos levantados (raça, racismo, gênero, ações afirmativas
etc.), buscamos, no cinema brasileiro, uma retratação da realidade
vivenciada no Brasil, em especial sobre as questões pertinentes à
raça negra e às ações afirmativas, ou melhor, no caso deste filme, os
problemas que surgem na ausência de ações afirmativas e políticas
públicas eficazes. O filme aqui escolhido é Quanto vale ou é por quilo,
lançado em 2005, do diretor Sérgio Bianchi. Trata-se de uma livre
adaptação do conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis (1903)
– que retrata o período da escravidão no Brasil. No conto desse
renomado autor brasileiro, há uma escrava grávida – Arminda –
que foge de seu “senhor”. Cândido Neves, que está passando por
uma crise financeira e por isso talvez tenha que deixar seu filho
recém-nascido na “roda dos enjeitados”, vai atuar como caçador de
escravos foragidos na tentativa de levantar fundos e ter condições
de, assim, criar seu filho. Ele vai, então, à caça de Arminda, a captura
e a leva de volta ao seu “senhor/dono”. A escrava implora pela
compaixão de Cândido, para que a deixe ir, porém, mesmo após os
inúmeros apelos da moça, ele a leva de volta para a casa de onde ela
fugira. No desespero de tentar escapar, Arminda acaba abortando
na frente do seu “dono” e do seu “caçador”. Após receber pela
captura da escrava, Cândido volta pra casa com seu filho, com o
pensamento de que “nem todas as crianças vingam” (ASSIS, 1997).
No filme de Bianchi, além da representação desta cena do conto,
há também, no decorrer do enredo, cenas baseadas nas crônicas de
Nireu Cavalcanti sobre a escravidão, extraídas dos autos do Arquivo
Nacional do Rio de Janeiro.
2
CAVALCANTI, Nireu. Crônicas históricas do Rio colonial, 2004.
130
Quanto vale ou é por quilo?
O filme Quanto vale ou é por quilo vai projetar um paralelo entre
duas épocas distintas: o século XVIII, momento da escravidão –
retratado no conto de Machado de Assis – e o presente, século XXI.
Apesar da grande diferença temporal, os dois períodos assemelhamse, conforme apresentado no filme, na manutenção da impunidade e
da violência, nas diferenças sociais e econômicas. Enquanto no século
XVIII havia a exploração da escravidão com todas as crueldades
possíveis e com os “capitães do mato”, que caçavam os escravos
foragidos para vendê-los aos senhores da terra, visando ao lucro –
ainda que imoral –; hoje, como mostrado no filme, o chamado Terceiro
Setor, as ONGs, aparecem também, em alguns casos, explorando a
miséria com atividades assistencialistas. Essa superposição das duas
épocas retratadas permite a visualização e o confronto das situações
representadas.
O filme inicia com uma cena do período da escravidão, onde uma
escrava alforriada reclama o roubo de um dos seus escravos por um
senhor branco, de posses. Apesar de ter como provar que o escravo
entregue na casa do senhor pertence a ela, a ex-escrava é condenada
por ofensas morais e raciais. Após isso, há uma sequência de cenas
que reportam ora ao presente, ora ao período da escravidão.
O interessante é que, em alguns casos, os mesmos autores aparecem
atuando em ambos os momentos, com papéis diferentes, mas com
uma certa relação de contiguidade – mais uma forma de fazer uma
analogia entre os dois períodos. Por exemplo: em cenas representando
o século XVIII, há uma personagem que é escrava e que, em muitos
momentos, aparece sofrendo as torturas que eram comuns no período
da escravidão, como o tronco, a máscara de folha-de-flandres etc. A
mesma atriz também atua na cena, anteriormente citada, do conto de
Machado de Assis, na qual ela é a escrava fugitiva grávida que acaba
abortando ao ser capturada. Já na representação do tempo presente, a
mesma atriz encena a personagem chamada Arminda (mesmo nome
131
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da personagem do conto de Machado de Assis) que é uma mulher
negra, pobre, moradora de uma favela carioca, engajada na busca de
melhorias para um projeto de informática para a sua comunidade.
Outra personagem retratada nos dois momentos é o Cândido Neves,
ou Candinho: na cena do filme que reproduz o conto “Pai contra
Mãe”, ele é o caçador de escravo refugiado e, nas cenas do século
XXI, ele aparece como um rapaz pobre, desempregado, com um
filho recém-nascido e sem condições financeiras para criá-lo e dar
tudo aquilo que sua esposa sonha em ter. Na tentativa de melhorar
de vida, Candinho torna-se matador de aluguel.
Há outras cenas, no filme, que também retomam os dois momentos,
com os mesmos autores, como no caso da personagem Maria do
Rosário que, no século XVIII, é uma senhora branca que, dispondo de
alguma posse, compra escravos para poder revendê-los depois, sempre
almejando seu lucro. Já no período atual, a mesma atriz encabeça uma
ONG, mostrando-se uma pessoa que só pensa no bem dos outros, mas
que, na realidade, se beneficia do “bem” que presta aos que precisam.
Esse artifício de usar os mesmos autores representando personagens
diferentes – mas que apresentam algum aspecto relacional entre si –
em períodos de tempo bastante distantes, só vem reforçar a tentativa
do diretor de Quanto vale ou é por quilo de mostrar que há muitas
semelhanças – cruéis semelhanças – entre o período da escravidão
e o século XXI. E que por mais mascaradas que elas possam estar, às
vezes “atuando na forma de outra personagem”, a impunidade, a
violência, a discriminação, as diferenças socioeconômicas do presente
são similares as do século XVIII.
O filme de Bianchi traz uma grande crítica ao abuso do poder, onde
o que fala mais alto é o lucro, seja ele conquistado na exploração dos
escravos, como no século XVIII, seja por meio de projetos ditos sociais,
mas que, na verdade, objetivam vantagens e benefícios com a exploração
da miséria alheia. Como nos aponta Lucas, o Terceiro Setor envolve
132
Quanto vale ou é por quilo?
[...] uma gama imensa de ações voluntárias, instituições filantrópicas
destinadas à prestação dos mais diversos serviços sociais, ONGs
com projetos de intervenção sistemática e organizações de defesa
de direitos de grupos sociais específicos. Pode-se dizer que engloba
ações desde o assistencialismo mais paternalista e conservador até
organizações com intervenções bastante estruturadas no seio da
sociedade orientadas por concepções mais amplas de cidadania.
(LUCAS, 2007)
As ONGs surgem para suprir os “buracos” deixados pelo Estado na
realização (ou na falta) de políticas públicas eficazes. Não se pode negar
que estas instituições ajudam muito, e com certeza há muitas entidades
honestas realmente interessadas em ajudar a quem precisa; no entanto, a
realidade está aí para que todos enxerguem – há muita gente desonesta
envolvida nisso; muitos que usam as ONGs para desviar verbas,
lavar dinheiro sujo, mascarar negócios ilícitos. No filme, o Terceiro
Setor visa à obtenção de lucro, explicitamente. A solidariedade e a
responsabilidade social, para as empresas, são evidenciadas como uma
questão de marketing. Tanto é que contratam empresas especializadas
para desenvolver projetos e ações de responsabilidade social, sendo
que isso deveria ser desenvolvido pela própria empresa. Em Quanto
Vale ou é por quilo, a empresa Stiner – especialista em marketing social –
buscar captar recursos de empresas para desenvolver projetos sociais,
como o “Informática na Periferia”, no qual a mesma seria responsável
pela implantação de computadores para atender a uma comunidade
carente. Contudo, os computadores que são disponibilizados neste
projeto são todos sucateados e uma das funcionárias que trabalha
na Stiner descobre que houve superfaturamento na compra. Além
disso, fica óbvio, durante todo o filme, que entre o recurso captado e o
beneficiário, há uma série de irregularidades e corrupção, como desvio
de verbas, superfaturamentos, contas fantasmas etc.
Apesar do filme todo ser uma crítica feroz ao chamado Terceiro
Setor, alguns trechos serão abordados, na sequência, com a intenção
de destacar pontos a respeito da questão de raça, gênero e ações
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Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 127 - 136 •jan./jun.2011
afirmativas. A primeira cena analisada é a preparação para a filmagem
de um comercial em prol das crianças negras. O contratante – uma
ONG (Stiner) – exige que, no elenco, haja 75% de crianças negras,
15% de brancas e 10% de “outros” para retratar a realidade do Brasil.
Na separação do elenco, é nítido que o critério para a identificação
da raça são os traços corporais (cabelo, pele). Quando o produtor
encontra um menino com a pele bem escura, ele exclama: “Esse é
100% negro, tem até pedigree”. Este comentário, ao ser ouvido por
Lourdes (funcionária da ONG e negra), gera uma grande discussão,
na qual Lurdes resgata todo um discurso sobre “dívida histórica” com
a raça negra. Entretanto, o diretor do comercial rebate dizendo para
que ela não se faça de vítima “só porque é negra”; e ele ainda afirma
que não persegue e não se recusa a contratar negros. A fala final desta
cena é bastante representativa da situação da população negra no
país: “Você não pagou? Pois então você venceu! Hoje, aqui neste set,
negro é lindo”! [...] – Ô Bira, pinta todos esses moleques de preto!”.
O dinheiro e o poder falam mais alto e o preconceito é mascarado na
hipocrisia. Num discurso inflamado, o diretor do comercial sugere
que, desde que seja bem pago, não há nenhum preconceito contra
os negros. Isso, aliás, demonstra que o preconceito racial existe sim,
ainda que disfarçado. Além disso, também há uma ironia velada com
o movimento cultural “Black is beatiful”, que se iniciou nos Estados
Unidos, em 1960, objetivando eliminar a ideia de que a negritude e
seus traços característicos são feios.
Ainda nesta mesma cena, podemos pensar, além da questão da
identificação do que é negro e no autorreconhecimento da raça (já
que, no comercial, os meninos negros aparecem afirmando que
são negros e devem fazer isso de forma a demonstrar orgulho),
também nos preconceitos e estereótipos relacionados à raça negra
e, é claro, não se pode deixar de lado todo o discurso impostado
pela personagem Lourdes, na posição de mulher negra, numa clara
referência à intersecção de gênero e raça.
134
Quanto vale ou é por quilo?
Para retomar a discussão sobre ações afirmativas, mostrando como
a falta de ações afirmativas sérias pode acarretar no oportunismo de
pessoas e empresas que se dizem solidárias com os menos favorecidos,
mas que, de fato, almejam lucrar com isso, destacamos aqui uma cena
do filme de Bianchi que representa bem essa situação. Nesta cena, a
empresa Stiner está sugerindo mudanças num vídeo institucional de
uma empresa chamada “Sorriso de criança”. O diretor da Stiner diz ao
cliente que a estratégia do vídeo já está ultrapassada, pois apresenta
crianças sujas, tristes, sofrendo. Ele informa que é necessário melhorar
a imagem do “produto”, que deve estar “vinculada ao êxito”, pois
“quem financia a solidariedade está preocupado com o retorno”. Logo,
a Stiner pode melhorar a visão do “produto”, colocando imagens de
crianças felizes, o que atrairia mais investidores.
Em outra cena, também retratando o falso assistencialismo,
uma socialite – Marta Figueiredo – aparece fazendo doações, o
que, conforme narrado no filme, apesar do contato com a “miséria
humana” despertar nojo, espanto e piedade, também colabora para
uma “boa dieta na consciência”. Em outro momento, outra cena de
assistencialismo absurdo, onde famílias de crianças com câncer são
levadas para passar uma semana em um hotel cinco estrelas: como
se essa ação fosse mudar a vida daquelas pessoas.
A última cena destacada é a cerimônia de entrega do prêmio
Inovação Solidária, concedido ao projeto “Manual de Captação de
Recursos” – que só pelo nome já deixa clara a ideia de “ensinar” como
conseguir captar fundos para “projetos assistenciais”. Na sequência da
entrega do prêmio, o filme apresenta uma série de dados interessantes,
como: existe mais de 20 mil entidades assistenciais no Brasil; o capital
movimentado neste “mercado assistencialista” passa de 1 milhão de
dólares por ano; cada criança carente “gera” 5 empregos etc. Tudo
isso para mostrar que o “mercado assistencialista” aqui é bastante
promissor e pode, se bem organizado e planejado, trazer bons lucros
(tanto é que, no filme, ainda há uma cena de um curso voltado para a
elaboração de estratégias de desenvolvimento de projetos para ONGs).
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Enfim, o filme Quanto vale ou é por quilo, do diretor Sérgio Bianchi,
pode ser visto até como um excesso de críticas pesadas, principalmente às
direcionadas ao Terceiro Setor, já que o filme mostra apenas o lado “sujo”
do assistencialismo, retratando exclusivamente pessoas e empresas
gananciosas que procuram explorar a miséria alheia para obter lucros.
Como já mencionado anteriormente, não podemos esquecer que há
pessoas e entidades sérias envolvidas em projetos assistenciais e que isso
realmente ajuda e traz alívio para muitas famílias menos favorecidas;
contudo, as críticas apresentadas no filme servem para que a população
fique de olhos bem abertos, fiscalizando toda essa questão.
A imagem de um país que está em permanente crise de valores
fica muito evidente no filme de Bianchi – e isso, realmente, ninguém
pode negar!
Referências
ASSIS, Machado. “Pai contra mãe”. In ______. Os melhores contos. Seleção
de Domício Proença Filho. São Paulo: Global, 1997.
BIANCHI, Sérgio. Quanto vale ou é por quilo? Direção e Roteiro de Sérgio
Bianchi. Brasil. Europa Filmes, 2005.
CAVALCANTI, Nireu. Crônicas históricas do Rio colonial, 2004.
LUCAS, Marcilio Rodrigues. “Os sentidos e os limites da responsabilidade
social empresarial: Estudo de caso sobre os projetos do Instituto Algar”. In
Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências
Sociais - IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1 , p. 37-53, 16 abr. 2007. Disponível
em: <h#p://www.habitus.ifcs.ufrj.br>. Acesso em: 30 jan. 2011.
LOPES, José de Sousa Miguel. “Ações afirmativas: uma contribuição para o
debate”. In ______. Educação e cultura africanas e afro-brasileiras: cruzando
oceanos. Belo Horizonte: Fac. Letras UFMG, 2009. p. 179-198.
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo,
identidade e etnia. Disponível em: <h#p://www.acaoeducativa.org.br>.
SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. In Educação
e Realidade, Porto Alegre, v. 16. n. 2, Porto Alegre, p. 5-22, 1990.
136
Por uma visão não metonímica de cultura
Natália Aparecida Tiezzi Martins dos Santos1
Edgar Cézar Nolasco2
Resumo: Este artigo faz parte do projeto de pesquisa CNPq/UFMS “(In)
Definições Culturais nas Culturas Locais de Mato Grasso do Sul”. Este
presente trabalho propõe uma leitura atual e fundamentada do tema,
partindo da premissa de que a cultura local pode ou deve ser lida também
a partir do local. Esse propósito se cumpre ao estabelecer uma relação
entre a metonímia e a conceituação de cultura na sociedade pós-moderna
recortando literariamente a obra de Otávio Gonçalves Onde Cantam as
Seriemas e geograficamente o estado de Mato Grosso do Sul.
Palavras-chave: Estudos Culturais; Mato Grosso do Sul; Cultura Local.
Abstract: This article is a part of a research project CNPq/UFMS “(In)
definitions in Local Cultures of Mato Grosso do Sul”. The present paper
proposes a current reading of the theme and reasoned, based on the premise
that local culture can or should also be read from the site. This purpose
is accomplished by establishing a relationship between metonymy and
conceptualization of culture in postmodern society literally cu#ing the
work of Otávio Gonçalves Gomes where to Onde Cantam as Seriemas and
geographically the state of Mato Grosso do Sul.
Keywords: Cultural Studies; Mato Grosso do Sul; Local Culture.
1
Acadêmica do 4º Curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS/CCHS), membro do NECC-UFMS (Núcleo de Estudos Culturais Comparados) bolsista de Iniciação Científica pelo PIBIC/CNPq, com o Plano de trabalho
“(In) Definições Culturais nas Culturas Locais de Mato Grasso do Sul”, o qual faz
parte do projeto “Cultura Local”.
2
Professor Doutor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação do DLE/CCHS/UFMS.
E-mail: [email protected]
137
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 137 - 152 •jan./jun.2011
Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas. Meu pai
teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci. Me criei no Pantanal
de Corumbá entre bichos do chão, aves, pessoas humildes, árvores
e rios. (BARRROS, 1997, p. 107)
1. Relações metonímicas e culturais
Este trabalho visa estabelecer uma relação entre a figura de
linguagem denominada metonímia e a conceituação de cultura na
sociedade pós-moderna, entretanto deve-se dizer que nossa reflexão
objetiva romper com essa visão metonímica de cultura e dessa forma
enfatizar que a cultura local tem de ser lida a partir do local. Esse local
está delimitado geograficamente pela região que compreende o estado
de Mato Grosso do Sul e teoricamente pela obra de Otávio Gonçalves,
Onde Cantam as Seriemas, todavia não podemos nos esquecer que
(...) uma região não é na sua origem, uma realidade natural, mas uma
divisão do mundo social estabelecida por um ato de vontade, demonstra,
na praxis, uma das premissas básicas do comparativismo, que afirma
a arbitrariedade dos limites e a importância de reconhecimento das
zonas intervalares, das fronteiras e das passagens e ultrapassagens. (...)
A região deixa de ser um espaço natural, com fronteiras naturais, pois
é, antes de tudo, um espaço construído por decisão arbitrária, política,
social, econômica, ou de outra ordem qualquer que não, necessariamente
cultural e literária. (BONIATTI apud SANTOS, 2006, p.72)
Como toda reflexão do que quer que seja, passa necessariamente
pelo campo lingüístico, precisamos primeiramente compreender
como se dão os processos de modificação semântica das palavras
dentro de uma língua, para em seguida refletirmos sobre a relação
entre metonímia e cultura. Segundo Moritz
a língua, expressão consciente de impressões exteriores e interiores,
está sujeita a uma perpetua transformação. As palavras mudam de
significado ou por que as coisas se modificam ou porque a ‘constelação
psíquica’ sob cuja influencia nasce o sentido do objeto, se altera graças
a causas diversas. (apud Bechara, 2007, p. 397).
138
Por uma visão não metonímica de cultura
Com relação às causas que motivam a alteração de significados,
encontramos as figuras de linguagem, dentre essas encontramos
uma em particular que nos ajudará a compreender a convenção
sobre os conceitos de cultura global e cultura local instituídos na pósmodernidade. John Fiske (1993) argumenta que a metonímia opera
por associação de significados no mesmo plano, sendo entendida e
conceituada num sentido mais amplo como um recurso que toma a
parte pelo todo. Na gramática esse recurso define-se como “translação
de significado pela aproximação de idéias”. (Bechara, 2007, p. 398).
Vejamos alguns exemplos, nas frases: a) Diz a escritura que Deus criou
o céu e terra em sete dias e b) Precisamos encontrar um teto amigo.
Em ambas as frases, ocorre um processo metonímico: em a) o termo
escritura contempla o todo, no caso a bíblia, entretanto refere-se a
uma parte, um versículo da bíblia; já em b), as palavras teto e amigo
contemplam uma parte de uma residência visto que ela é constituída
por paredes, chão, teto, móveis, etc; entretanto , nesse caso, refere-se
ao todo, ou seja, a casa.
Analisando dessa forma, podemos pensar que a representação da
realidade envolve inevitavelmente um processo metonímico, uma vez
que escolhemos uma parte dessa realidade para representar o todo
ou fazemos o movimento contrário. Considerando um acontecimento
ou fato, e querendo atuar sobre ele através do uso da metonímia, é
importante levar em conta que é a partir dele que constituímos o
restante da realidade desconhecida; é também esta seleção que define
o resto da imagem que construímos do acontecimento ou fato.
A aleatoriedade de uma determinada seleção metonímica encontrase, muitas vezes, disfarçada ou simplesmente ignorada, passando
desapercebida e dessa forma, a metonímia institui-se como índice
natural recebendo o estatuto do “real” e “inquestionável”. É o que
acontece, por exemplo, com o par cultura global/cultura local. Tomase a cultura global, englobando nela a cultura local, contudo lê-se a
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Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 137 - 152 •jan./jun.2011
cultura local a partir de uma ótica homogeneizante e universalizante.
Em outras palavras, lança-se mão do já referido processo metonímico,
no qual se opta por uma parte da realidade como referência ao todo
e dessa forma, negligencia-se o local, enquanto um espaço de onde
e do qual se possa falar.
De fato é humanamente impossível que conheçamos tudo que se
passa no mundo; por essa razão, é que justamente recorremos à parte
como forma de entender o todo. O problema é que tal situação opera
intensamente sobre a “consciência global”, obrigando-nos a conhecer o mundo através de imagens e ideias selecionadas, em outras
palavras, é apenas uma fração da realidade que nos atinge de forma
unilateral e que nos leva a construir signos e mitos (como o de que
a cultura local numa escala hierárquica estaria submetida à cultura
global, e, portanto tem menos importância do que esta). Nesses signos
e mitos pode haver maior ou menor consistência entre significantes,
realidades, significados a que eles se relacionam, entretanto, eles são
inevitavelmente uma necessidade para que consigamos entender o
real e partilharmos e produzirmos cultura de alguma forma.
Bhabha, por sua vez, se vale do “processo de identificação” na
analítica do desejo para formular o seu conceito de “metonímia da
presença”3. Nesse sentido, o local existe ainda que contra a vontade
ou à revelia dos anseios da globalização, que se fazendo presente
tende a esconder e silenciar o local enquanto um espaço de produção
cultural e intelectual. Segundo tal acepção, embora as imagens do
passado emerjam no presente, elas não têm condições de interpelar
ou reconhecer a identidade como presença, em razão de serem
3
Jacques Derrida em “Gramatologia” trata do conceito ‘metafísica da presença’. O
logocentrismo metafísico, segundo Derrida, se basearia em um sistema de oposições
binárias de conceitos, onde secularmente um dos termos seria valorizado enquanto outro desvalorizado, como: causa-efeito, presença-ausência, centro-periferia,
positivo-negativo, essência-aparência, natureza-cultura, fala-escrita, etc.
140
Por uma visão não metonímica de cultura
criadas na ambivalência de um tempo duplo de interação que,
na feliz frase de Derrida, ‘desconcerta o processo de aparição ao
deslocar qualquer tempo ordenado no centro do presente’. O efeito
desse desconcerto [...] é inaugurar um princípio de indecidibilidade
na significação de parte e todo, passado e presente, eu e Outro, de
modo que não possa haver negação ou transcendência da diferença.
(BHABHA, 2008, p.89)
Dessa forma, a metonímia, figura de contigüidade, não deve
ser lida simplesmente como forma de substituição ou equivalência
simples. Do contrário, a exemplo do que ocorre no poema analisado
por Bhabha da negra Meiling Jim, no qual um “eu” é relocado por
um “olho” (an I for an eye), urge que a circulação de parte e todo,
identidade e diferença, seja compreendida como um movimento
duplo que segue o jogo derridaiano do “suplemento”. A instância
subalterna da metonímia, em momentos que estruturam o sujeito da escrita e do sentido, é a dupla procuração da presença e do
presente: o tempo (que tem lugar em) e o espaço (que toma o lugar
de). A diferença cultural então, se contrapõe a noções relativistas de
diversidade cultural ou ao exotismo da diversidade de culturas. Por
essas razões, nosso trabalho
vê-se obrigado a lidar com questões de natureza sociológica e
antropológica, como identidade, pertencimento e seus contrários,
lutando contra ao senso comum habituado a descortinar apenas
distancia e ausência na cultura da região; essa circunstancia, por sua
vez, decorre da condição geográfica do local, do afastamento dos
centros de legitimação cultural e ao possível descaso a que foi relegada
a região, após extinção do ciclo de exploração do ouro, exploração da
mão-de-obra indígena, exploração agrícola, ou mesmo ao interesse
que a região desperta como terra de ninguém, exposta a toda sorte
de aventureiros”. (SANTOS, 2008, p. 11)
O local por ele mesmo
Optamos por discutir a produção cultural local a partir da literatura local, pois entendemos que
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Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 137 - 152 •jan./jun.2011
a literatura é um exercício de reflexão, em que o escritor escreve e
reflete acerca da sua espacialidade – dos elementos que a constituem.
Daí, indagando-se acerca das formas ideológicas, culturais, políticas,
econômicas etc., que encontra na sua vida cotidiana. Com suas
indagações, insinua sugestões e elabora críticas que vêm ao encontro
de outras leituras e interpretações, e de outros olhares e valores
necessários para a compreensão ou estabelecimentos de formas
alternativas aos padrões hegemônicos, ou seja, aponta formas de
relações territorializadas, seus limites e possibilidades colocadas
dentro da sociedade. (PINHEIRO, FERRAZ, 2009, p.92)
A cultura local a que nos referimos é a cultura delimitada geograficamente pelo território do estado de Mato Grosso do Sul. “Nesse
sentido convém lembrar que a produção literária regional se produz
pela fusão de elementos provenientes da tradição oral, da cultura popular ibérica, com textos absorvidos de outras literaturas”. (MASINA,
2002, p.98-99). Dentre os escritores que podem ser mencionados como
representativos do local, a partir do qual enunciamos, temos: “Hélio
Serejo, como representante do chamado crioulismo e do chamado ciclo
da “erva-mate”; Brígido Ibanhes, que recupera, no romance, a Décima
Gaúcha”, do romanceiro popular, cujo autor é o “bandoleiro-herói”
Silvino Jacques; e ainda Raquel de Naveira; Lobivar Matos, Manoel
de Barros e Hernani Donato “(SANTOS, 2008, p. 12), entre outros
Contudo, nosso trabalho, foca especificamente a obra de Otávio
Gonçalves Gomes, Onde Cantam as Seriemas: trata-se de uma obra
memorialística e histórica, pois retrata histórias de personas locais
que vão sendo contadas conforme a lembrança permite ao autor.
Nas palavras de Luís da Câmara Cascudo, autor do prefácio da obra
em questão,
Otávio Gonçalves Gomes reuniu as figuras e episódios que o canto das
seriemas evocara no espaço e tempo das lembranças indeformáveis
(...). É um documentário que os acontecimentos, permanentemente
esquecidos pelo historiador mecânico dos sucessos convencionais. O
canto das Seriemas sobrevive à cronologia das lutas políticas e das
sucessões administrativas, moldura imóvel das exposições oficiais,
142
Por uma visão não metonímica de cultura
ressuscitando ‘casos’ que foram emoções coletivas. São ‘instantâneos’
reais e não retratos da galeria protocolar e semelhante às galerias de
todos os recantos da amada terra do Brasil. (GONÇALVES, 1975, p. 13)
A obra divide-se em 68 capítulos, nos quais Otávio Gomes
versa sobre as pessoas que conhecera na infância/adolescência,
transformadas em “personagens” de sua evocação terna e sensível.
Assim, lemos a respeito do circunspecto e misterioso Professor
Pimenta, de sua escolinha e de seu “fordeco”, o primeiro carro a
percorrer as ruas de Ribas do Rio Pardo; de seu Olivério, agente
da EFNB e instrutor dos escoteiros, grupo do qual Gomes fez parte
durante certo tempo de sua infância; do pai Domingos Gonçalves
Gomes, “homem bom e de coração aberto” (1975, p. 75), cujo maior
orgulho foi ter conseguido formar em curso superior todos os filhos,
ele que cursara apenas o primário (“Um homem às direitas”, 1975,
p. 75-79); da mãe, mulher bonita, bem vestida e grande cozinheira,
enérgica e nervosa, “dona de casa na verdadeira acepção da palavra”
(“Minha mãe”, 1975, p. 81-82); da madrinha Delminda, do velho
Cleves e de diversos outros, como Geraldo, companheiro de infância
de Otávio e que serviu na Força Expedicionária Brasileira (FEB), na
Itália, durante a segunda guerra mundial (ver “Um herói da FEB que
não fala em guerra”, 1975, p. 151-155), e Rui, menino extremamente
peralta e endiabrado, que matava animais por puro sadismo e
pegava dinheiro dos pais, mesmo com o cofre trancado a cadeado.
Em sua juventude, entrou para o serviço militar com o desejo de
tornar-se aviador, mas, como era epilético, foi desligado da Escola de
Aeronáutica, fato que não o impediu de ser convocado pelo Exército e
de ter servido na FEB. Foi para a segunda guerra mundial e retornou
ao Brasil. Sem conseguir, a seu ver, ser “nada na vida”, recusou-se a
voltar ao Mato Grosso e se matou em Belo Horizonte. (BUNGART
NETO, 2008, p. 03-04)
Otávio Gonçalves, nascido em Coxim, norte do Mato Grosso do
Sul, e criado em Ribas do Rio Pardo, além de poeta era agrônomo,
fato que incide diretamente sobre aprodução literária do autor. O
título de sua obra faz menção a uma ave típica do cerrado e da região
Centro-Oeste, a Seriema. Para definí-la, ele recorre à etimologia do
vocábulo, que na língua indígena, segundo ele, “Seri mais ema quer
143
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 137 - 152 •jan./jun.2011
dizer: ema com crista”. (GOMES, 1975, p. 21). No mesmo capitulo,
Gomes descreve o andar da ave que dá título a sua obra: “O andar
da seriema é hirto; quando caminha parece uma donzela elegante,
de salto alto, desfilando na passarela arenosa das estradas” (GOMES,
1975, p. 21). Segundo o autor
As seriemas vivem cantando, andam bradando seu clangoroso
chamamento, sibilante e penetrante às vezes, tal qual um clarim. Seu
canto é plangente e evocativo, ecoa triste pelas campinas. (...) Ouve-se
o seu grito-canto a qualquer hora, desde alta madrugada até à noite.
É justamente o som altissonante que chama a atenção dos viajores. É
capaz de cantar horas a fio. (GOMES, 1975, p. 22)
Por ser agrônomo, o poeta se detém nas formas e cores da ave: “a
coloração das pernas e do bico é vermelha e penas são pardacentas.
Tem o pescoço comprido e um topete filiforme na cabeça, daí o
nome científico Cariama Cristata”. (GOMES, 1975, p. 21). Além
disso, o poeta trata da alimentação e reprodução dessas aves. Elas
alimentam-se “de insetos, lagartos, minhocas, pequenos animais,
frutas e serpentes” (1975, p.21) e quando em época da reprodução
“macho se reveza com a fêmea na época do choco” (1975, p. 22).
Gomes também retrata a estreita relação da ave com os seres
humanos, “as seriemas podem viver junto ao homem, alimentadas
com carne picada, guardam os galinheiros atacando os ofídios e os
paióis dando caça aos ratos”. (GOMES, 1975, p. 22). Ao encerrar o
capítulo, Gonçalves afirma:
Há uma modinha caipira que diz:
Seriema de Mato Grosso
Seu canto triste me faz lembrar
Daqueles tempos que eu viajava
Tenho saudade do seu cantar.
(GOMES, 1975, p. 23)
Além da Seriema, há outros elementos retratados na poesia de
Gomes muito específicos do local, como outras aves (Sabiá), frutos
144
Por uma visão não metonímica de cultura
(Guavira), lugares (Ribas do Rio Pardo) e pessoas da região. Da fruta
Guavira o autor fala: “Guavira ou guabiroba, como dizem alguns, é
uma frutinha silvestre com o formato de uma goiaba, mas do tamanho
de uma azeitona”. (GOMES, 1975, p. 115). Sobre a forma e o sabor,
descreve a fruta da seguinte maneira: “A casca é lisa e tem um sumo
picante. O seu conteúdo é constituído de sementes em uma substancia
gelatinosa, doce e muito saborosa. Sua cor é amarelo-esverdeada, ou
amarelada simplesmente, quando madura”. (GOMES, 1975, p. 115).
Com relação às pessoas, podemos citar o capítulo intitulado “O
Professor Pimenta”: que era maranhense e cujo nome era “Franscisco
Augusto de Aguiar Pimenta. Era letrado, bem falante, gostava de fazer
discursos”. (GOMES, 1975, p. 51). Por sua profissão recebia o status de
“orador obrigatório das festas sociais. Tinha a mania das declamações.
A mais famosa delas era uma poesia francesa, que ninguém entendia, é
claro”. (GOMES, 1975, p. 51). Relata o escritor: “o vi bocejar e observei
que sua abóboda platina, não era como a das outras pessoas, mas
vermelha, cor de lacre. [...] O céu da boca vermelho era uma dentadura
com material daquela cor, nada mais”. (GOMES, 1975, p. 51).
Sobre a escola em que estudava, Gomes afirma que o regime da
escola “era o de antigamente: decorar, e soletrar cantando. As pessoas
antigas lembram-se com saudades daquela cantiga: um mais um dois. Dois mais dois – quatro. Dois mais três - cinco. A classe cantando
alto, compassado”. (GOMES, 1975, p. 54). Sobre a palmatória, falava:
Havia a palmatória, “santa luzia” de cinco olhos – de cinco furos. O
terror da meninada; dos vadios, dos menos inteligentes, dos meninos
rudos como dizem. Rudos eram as crianças que tinham dificuldade
em aprender. Na hora da palmatória não se fazia distinção entre
aluno inteligente, rudo ou retardado. No sábado havia a argüição
com rodada de palmatória. Um aluno argüia outro sobre a taboada. O
que não sabia “levava bolo” de palmatória do outro. Havia aluno que
apanhava de ficar com as mãos inchadas. [...] O método deplorável
sob todos os aspectos. Ensinar a criança a ser má. Despertando-lhe
os instintos primitivos. (GOMES, 1975, p. 54).
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No que se refere aos lugares, podemos mencionar o capítulo “A
Vila de Rio Pardo”. Nele o autor descreve o local: “Na rua principal
da vila, ampla e em linha reta instalavam-se, o comércio, a escola, o
cartório e tudo mais que havia de importante no lugarejo. Uma rua
comprida, cortada pelos trilhos da E.F. Noroeste, cujo comércio se
fazia de um único lado, porque o “corte” da via férrea impedia o livre
transito para o outro lado”. (GOMES, 1975, p. 25). Segundo Otávio
Gomes, depois da estrada de Ferro, foram construídos os sobrados
feitos pelo Filadelfo Alves da Silva que era seu tio-avô. O primeiro
deles foi construído na fazenda Esperança. “Esse sobrado da vila
sustinha-se em esteios de aroeira lavrada. [...] Na frente do sobrado
havia três mangueiras naquela época, o ponto mais importante das
reuniões da Vila”. (GOMES, 1975, p. 25).
Esse espaço é lugar de convívio social em que as pessoas locais
se relacionam e socializam saberes locais. “Ali se faziam o ‘ponto’ de
conversa e reuniões dos desocupados, dos filadores de cafezinho.
Servia-se café na loja, à hora certa. Ali se trocavam de pontos de vista e
realizavam-se negócios também”. (GOMES, 1975, p. 25). O espaço que
envolvia a mangueira funcionava como uma espécie de assembléia
popular, como expõe o próprio autor: “Debaixo da mangueira se
decidiam todos os negócios da vila”. (GOMES, 1975, p. 25).
O espaço é, portanto, sistemas de formas e conteúdos interligados e
interdependentes. Uma cidade, um porto, uma área rural não estão
no espaço, são o espaço, ou seja, formas dotadas de conteúdo. Como
menciona Lefévre ‘não existe conteúdo sem forma, não existe forma
sem conteúdo’. Nesta perspectiva, o espaço é uma construção e,
simultaneamente, uma moldagem das relações sociais, e deve ser
concebido com uma instância na sociedade, onde cada ação humana
contribui para a sua produção. (ARAÚJO; FACINCANI, 2009, p.11)
Mais adiante, o autor trata sobre o crescimento do vilarejo. “O vilarejo
crescia em marcha de carro de boi, pachorentamente”. (GOMES, 1975,
p. 25), do comércio feito à base do carro de boi e à beira da Noroeste.
146
Por uma visão não metonímica de cultura
Esses carros vinham desde a divisa de Goiás; Baús, Capela, Sucuriú,
Figueirão, Camapuã, Lontrinha, Entre-Rios (atual Rio Brilhante) e do
rio Pardo abaixo até Porto XV. Esse mundo todo vinha comprar suas
mercadorias na estrada de ferro, em Rio Pardo, na Casa Fontoura.
Laucídio Coelho foi freguês na Casa Fontoura quando morava em
Entre-Rios. (GOMES, 1975, p. 26).
Quanto aos fatos históricos, podemos mencionar o capítulo
intitulado “A Revolução de 1924” que narra as repercussões do
movimento tenentista ocorrido no estado de São Paulo na vila
de Rio Pardo. Segundo ele, “o movimento rebelde de 1924 foi
para nós, meninos daquela época, fonte perene de indagações e
de sobressaltos”. (GOMES, 1975, p. 81). Sobre a vida no vilarejo
nesse período ele afirma: “Soldados chegavam e saíam da vila. Os
boatos e as notícias de roubos, assaltos, incêndios, depredações e
outras judiarias por parte dos rebeldes, corriam de boca em boca”.
(Gomes, 1975, p. 81). Os revoltosos não eram bem visto pelas pessoas
“comuns”, sua presença trazia insegurança “embora, considerado
herói por uma parcela da população das grandes cidades, no interior
do Brasil, revoltoso era sinônimo de bandido, assassino e tudo de
mau e ruim juntos”. (GOMES, 1975, p. 81).
Antes do movimento tenentista “o vilarejo de Rio Pardo vivia
pacatamente com seus destacamentos de soldados da policia
militar mineira fieis ao Presidente da República: Arthur Bernardes”.
(GOMES, 1975, p. 81). Certa feita “os revoltosos chegaram de
surpresa à fazenda dos Cuiabanos, próximo à vila. Prenderam o
Tito, filho de Velho Chico Goiano, morador do vilarejo.”. (GOMES,
1985, p. 81). Depois de Tito ser interrogado foi mandado campear
animais “quando os animais dispararam, ele correu atrás, e com
isso distanciou-se, meteu-se no mato e fugiu. [...] Viajou o mais
rápido que pode e foi avisar foi avisar a tropa legalista e o povo
de Rio Pardo. (GOMES, 1985, p. 82) do ataque. No ataque que os
revoltosos fizeram a vila ...
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os mineiros, destemidos defensores da vila, se haviam entrincheirado
por de trás do lenheiro, e cerraram fogo nos revoltosos. [...] A
salvação da vila foi um rapazinho, jovem franzino, mas calmo e
valente. Entrincheirou-se atrás do forno da casa do Zé Domingos e
de costas para estação, mas guarnecendo a retaguarda, foi matando
os atacantes que conseguiam com muita dificuldade passar o brejo,
as cercas de arame e surgiam por trás. [...] O ataque foi furioso, mas
a resistência, tenaz. Os revoltosos, numerosos, não esperavam por
isso. Eles costumavam atacar de surpresa, roubavam, destruíam e
desapareciam. (GOMES, 1985, p. 83)
Depois de tratar do confronto entre o povo de Rio Pardo e a tropa
Legalista, Gomes encerra este capítulo dizendo que embora a situação
fosse séria, para as crianças era apenas uma brincadeira de “matar
as curiosidades” inerentes a todas as crianças:
no meio dessa confusão toda, sempre havia um menino, bisbilhotando
e querendo ver o que estava acontecendo. Quantas vezes foi preciso o
meu pai nos ameaçar de bater, porque estávamos querendo ver, e as
balas andavam zumbindo por toda parte. Foi assim que transcorreu
o primeiro combate a bala a que assisti em minha vida. Não tendo
noção do perigo, aquilo para mim foi mais uma divertida brincadeira
de “bang bang”. (GOMES, 1985, p.84)
A obra de Otávio Gomes ao mesmo tempo em que resguarda
a memória local, engendra um construto da cultura desse local
através de histórias, que narradas e relembradas nas páginas de
“Onde cantam as seriemas” delimitam esse local como um espaço
de múltiplas vivencias que exala reminiscências. O autor reafirma
a força viva de sua espontaneidade comunicativa. “O livro leva a
todos os olhos leitores o encantamento peculiar e local, patrimônio
da região, testemunha das criaturas humanas que viveram sua
hora de notoriedade peculiar”. (GOMES, 1985, p. 14). Conforme
Heidegger “uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas,
como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual
algo começa a se fazer presente” (apud BHABHA, 2003, p.19). Esse
algo apontado por Heidegger corresponde ao lugar de existência
148
Por uma visão não metonímica de cultura
do homem contemporâneo que vive nas fronteiras do presente, um
entre-lugar, onde encontramo-nos em trânsito, em situação intervalar,
onde espaço e tempo se cruzam e se bifurcam, produzindo, por
conseguinte, “figuras complexas de diferença e identidade, passado
e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão”. (BHABHA, 2003,
p.19). Nesse sentido, o que está para além das fronteiras também
se faz presente no aquém dessa mesma fronteira. Não há um lugar
específico ao global, nem um lugar restrito ao local, mas sim, um
terceiro lugar, no qual ambas as esferas circulam e se movimentam.
Ou seja, aqui e lá, para todos os lados, para lá e para cá, para frente e
para trás, esse distúrbio de direção, essa sensação de desorientação,
esse movimento exploratório que capta o “além” é onde se situa o
que queremos denominar aqui de local de uma cultura.
Nas palavras do crítico hindu-britânico “O trabalho fronteiriço da
cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não seja parte do continuum
de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato insurgente
de tradução cultural. [...] O “passado-presente” torna-se parte da
necessidade, e não da nostalgia, de viver”. (BHABHA, 2008, p.27)
O autor de “Onde Cantam as Seriemas” escreve como quem morre de
amor pela sua terra. É bom que assim seja, pois que, lembrando Flaubert,
“O que me parece mais belo é o que mais desejaria fazer”. E tudo
repassado de um constante pintalgar de distantes clarões da infância,
pondo em evidencia as palavras de Érico Veríssimo: “Não canso de
repetir que nenhum adulto, por mais que se esforce, jamais conseguirá
livrar-se completamente do menino que um dia foi.” (GOMES, 1985, Aba)
O conceito de cultura local para além da metonímia
Como expõe o próprio Bhabha (2008), a linguagem é uma das
formas de construção de identidades, ao mesmo tempo em que
institui as relações de poder entre os indivíduos; cria, reforça,
projeta as diferenças culturais. Se é possível criar diferenças na e
pela linguagem, é possível também, que se possa fazer com a mesma
linguagem um movimento contrário, no qual, ainda que a diferença
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já esteja constituída ela não atue como agente marginalizante, como
ocorre quando se toma conceito de cultura e de literatura baseado
nas concepções canônicas como correspondendo a todas as formas de
cultura e de literaturas existentes. Nesse sentido, podemos dizer que a
obra “Onde Cantam as Seriemas” contribui, pois está a “nadar contra
corrente” no sentido de que descreve esse local não impondo sobre
os outros espaços e culturas uma preponderância ou supremacia
cultural. Trata-se de um local que não se impõe, não rivaliza com
outros, mas coexiste, coabita, dialoga, não só com outros locais, mas
com outros universais. Como bem explicita Luís da Câmara Cascudo:
Adotando uma linguagem simples, despojada, descarnada como a
paisagem em que passeiam garbosas as seriemas, Otávio Gonçalves
Gomes consegue fixar com êxito o cenário de uma pequena cidade
do interior mato-grossense, com seus indefectíveis componentes: o
rio, o sobrado, a mata e o homem que procura encher as horas com
algo que lhe eleve a condição, utilizando os danos e as oportunidades
que o destino lhe conferiu, numa época em que, à míngua dos meios
de comunicação dos dias de hoje e dos hábitos de consumo que
uniformizaram a vida das cidades interioranas, cada agrupamento
humano podia ainda exibir suas características distintas, seu modus
vivendi próprio, seu universo particular. (GOMES, 1985, Aba)
Nesse sentido, pode-se tomar nossa fala como uma procura ou uma
tentativa de estabelecimento do local a partir da narrativa desse mesmo local,
como fez Gomes em Onde Cantam as seriemas. Por essa razão, precisamos
refletir sobre como hoje, no interior de um sistema social no qual o
fetichismo inicial da mercadoria tem sido já recompensado, redobrado
e transbordado pelo “fetichismo das identidades e das diferenças”, essas
ambiciosas empresas de nossa Consciência Humanitária, essa pretensão
tão atual tão nossa e tão Ocidental de encarnar o Humano- com letra
maiúscula- de saber significar de forma tão universal e tão definitiva seus
limites, só se pode conseguir mediante uma sistemática depredação e
recusa do Outro que se sustenta, mais do que no acréscimo da rivalidades
e barreiras (econômicas, militares, religiosas, ideológicas, políticas,
etc), na permanente exterminação de qualquer sinal de singularidade,
de qualquer registro que pudesse ou romper a homologação lavrada
150
Por uma visão não metonímica de cultura
e esculpida por nosso princípio de identificação/ diferenciação, de
qualquer vestígio de alteridade no “ser-outro-do-Outro”; exterminação,
ainda que paradoxal e presumivelmente nunca finalizada, visto que,
entre outras coisas, corre paralela à extrapolação enlouquecida do
Mesmo, e à constante reprodução diferencial e perpétua produção (real e
virtual, simbólica e imaginária) também, do Outro. (PLACER, 2001, p.80)
O Outro nesse texto é a literatura não hegemônica, eurocêntrica,
branca, canônica, ou seja, é a literatura referente a um estado que não está
localizado nos grandes centros culturais e que por isso, se pode dizer que é
marginal. O fato é que retratar essa produção cultural faz com que ela saia
da margem da sociedade e ocupe um lugar que lhe é de direito, um espaço
no qual coabita até mesmo com os pressupostos universais e canônicos,
contudo, essa coexistência não o coloca como um espaço subordinado
numa hierarquia cultural. Nesse sentido, nos opomos a Candido que
afirma que “a grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende da
sua relativa intemporalidade e universalidade, e estas dependem por sua
vez da função total que é capaz de exercer, desligando-se dos fatores que
a prendem a um momento determinado e a um determinado lugar”.
(CANDIDO, 2006, p.53). O fato é que não há como separar o espaço das
relações sociais que o encampam, da mesma forma, não há como conceber
qualquer produção cultural fora de um tempo ou espaço específico. Nesse
sentido, a necessidade de existência de um espaço se faz no sentido de que
no universo das relações sócio-espaciais ‘o espaço e a organização
política do espaço expressam as relações sociais, mas também reagem
contra elas’. Nesse sentido, o espaço e sua organização condicionam,
mas também refletem a sociedade, contendo as ações que se realizaram
no passado e que deixaram suas marcas na paisagem. As características
de cada sociedade, seu modo de vida, sua cultura estão presentes no
espaço como uma identidade. (ARAÚJO, FACINCANI, 2009, p.16)
Como expõe Bhabha “é somente pela compreensão da ambivalência
e do antagonismo do desejo do Outro que podemos evitar a adoção cada
vez mais fácil da noção de um Outro homogeneizado, para uma política
celebratória, oposicional, das margens ou minorias”. (BHABHA, 2008,
p.87), como sempre fez e faz a tradição européia e etnocêntrica de mundo.
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Referências
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geográfica do espaço: uma revisão teórica. OLIVEIRA NETO, Antonio
Firmino; BATISTA, Luiz Carlos. (orgs.) In: Espaço e natureza: a produção do
espaço sul-mato-grossense. Campo Grande: Ed. UFMS, 2009.
BARROS, Manoel de. Livro Sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 1997.
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37ª ed Rio de Janeiro:
Lucerna, 2005.
BHABHA, Homi Komi. O local da cultura. Trad. de Miriam Ávila et al. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 3. ed. Rio de Janeiro: Sobre Ouro
Azul , 2006.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia São Paulo: Perspectiva, 2006.
FISKE, John. Introdução ao estudo da comunicação. Porto: Edições: Asa. 1995.
GOMES, Otávio Gonçalves. Onde cantam as seriemas. São Paulo: Vaner Bícego
Editora, 1975.
NETO, Paulo Bungart. Onde cantam as seriemas, de Otávio Gonçalves
Gomes: presença do regionalismo no memorialismo sul-mato-grossense. In:
Tessituras, Interações, Convergências. São Paulo: XI Congresso Internacional
da ABRALIC, 2008.
PINHEIRO, Robinson Santos; FERRAZ, Cláudio Benito Oliveira. Linguagem
Geográfica e Literária: apontamentos acerca da construção da identidade
territorial sul-mato-grossense. In: Revista Raído, Dourados, MS, v. 3, n. 5, p.
87-101, jan./jun. 2009.
PLACER, Fernando González. O outro: uma ausência permanentemente
presente. In: LORROSA, Jorge, SKLIAR, Carlos. Trad. de Gorini da Veiga.
Habitantes de babel: políticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica 2001.
SANTOS, Paulo Sérgio Nolasco dos. Fronteiras do local. Campo Grande:
Ed.UFMS, 2008.
SANTOS, Paulo Sérgio Nolasco dos. O outdoor invisível: crítica reunida.
Campo Grande: Ed.UFMS, 2006.
152
Itinerários do imaginário contemporâneo:
migração, projetos utópicos em ‘Lucy’,
de Jamaica Kincaid
Rogério Mendes Coelho*
1*
Resumo: Entre os diversos temas que emergem de maneira crescente em
virtude da perspectiva posta, estudos sobre migração ganharam destaque na
percepção de um sujeito que passou a relacionar-se – como ator, autor e/ou
personagem – com a necessidade de transpor fronteiras na busca por uma
cidadania reconhecida em meio a um sentimento de referencias globalizantes
e/ou globalizadas, uma poética contemporânea. Assim: onde e como situarse? Onde e como reconhecer-se? A partir da leitura de “Lucy”, romance da
escritora Jamaica Kincaid, pretende-se discutir as causas que poderiam levar
um sujeito a estabelecer um projeto de deslocamento e discutir o processo de
resignificação social que geraram novas vozes e estabeleceram novas relações
que contribuíram, por exemplo, para problematizar os paradigmas da Teoria
e Crítica Literária e se redimensionasse os critérios da percepção da obra
de arte – Ética, Técnica e Poética – incluindo-se, desse modo, a Literatura.
Palavras-Chave: Literatura; Migração; Estudos Culturais
Abstract: Among the many themes that emerge in an increasing because
of migration studies perspective brought to prominence in the perception
of a guy who has to relate to - as an actor, author and / or character - the
need to cross borders in search of a citizenship recognized in the midst of a
globalizing feeling of references and / or global, contemporary poetics. So:
where and how to lie? Where and how to recognize it? From the reading of
*
Professor Assistente 1 responsável pela disciplina Literatura Hispano-americana
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e doutorando em Teoria
da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
153
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 153 - 167 •jan./jun.2011
“Lucy”, novel by Jamaica Kincaid, intends to discuss the causes that could
lead an individual to establish an offset project and discuss the process
of reframing social multiplied the agents who brought in new voices and
established new relationships that contributed, for example, to question
the paradigms of literary theory and criticism and resize the criteria of the
perception of the artwork - Ethics, Poetics and Technical - including, in this
way, literature.
Keywords: Literature; Migrations; Cultural Studies
Tendências da critica literária contemporânea alertam para a
necessidade de ampliar o estatuto da Literatura além da perspectiva
estética em razão de um nova configuração nas relações econômicas,
políticas e culturais que se estabeleceram globalmente nas últimas
décadas. Em decorrência do gradual processo de resignificação social
multiplicaram-se os agentes que geraram novas vozes e estabeleceram
novas relações que contribuíram, por exemplo, para problematizar
os paradigmas da Teoria e Crítica Literária e se redimensionasse
os critérios da percepção da obra de arte – Ética, Técnica e Poética
– incluindo-se, desse modo, a Literatura.
Em virtude da valorização do tão somente paradigma estético
na percepção da obra literária minimizou-se a importância das
prerrogativas éticas que fundamentam a emergência de novas
representações – poéticas – que surgem em razão dos diferentes
fenômenos e processos que constituem o que se convencionou
chamar de uma circunstância contemporânea (Lyotard, 2000; Harvey,
2002; Jameson, 2000; Connor, 2000; Hall, 2000; Bhabha, 2003; Said,
2003). Por tempos cânones – ou metanarrativas, Hutcheon (1991) –
fixaram hegemonias que por sua vez imobilizaram especificidades
– identidades, espaços e locuções – que definem a base de uma
cultura. Não por acaso houve, após a consciência de processos
homogeneizantes, a necessidade de experenciar e, consequentemente,
revisitar conceitos como Cultura, História, etnicidade, raça, sexo,
154
Itinerários do imaginário contemporâneo
gênero, classe, estado e nação para que se (re)configurasse a
pertinência e autoridade de outras realidades e disciplinas que até
então haviam sido ignoradas ou não representadas/consideradas
na Literatura. Em decorrência disso, não por acaso, ocorrem o
surgimento de novos autores e poéticas que reivindicam a viabilidade
e legitimidade de espaços mais amplos e democráticos. É dessa
maneira que o teor e valor literários necessitam recondicionarem-se
a uma viabilidade que se configure não tão-somente na perspectiva
do valor estético mas a partir dele proporcionando a valorização da
representatividade da ética como forma.
Entre os diversos temas que emergem de maneira crescente em
virtude da perspectiva posta estudos sobre migração ganharam
destaque na percepção de um sujeito que passou a relacionar-se –
como ator, autor e/ou personagem – com a necessidade de transpor
fronteiras na busca por uma cidadania reconhecida em meio a um
sentimento de referencias globalizantes e/ou globalizadas, uma
poética contemporânea. Poder-se-ia também compreender o processo
como busca por uma cidadania reconhecida no possível encontro
da estabilidade – material e espiritual – matizado na vaga idéia
de “felicidade”. “Felicidade”, imaginação, apelo utópico que para
muitos dos que se deslocam apresenta-se inversamente proporcional
às insuficiências sociais que não lhes são garantidas em sua locação
de origem. Daí a justificativa, necessidades e projetos que procuram
viabilizar dignidade e expansão de quem se desloca situados no devir
como alternativa de sobrevivência.
Pensar sobre o deslocamento, uma possibilidade que se vincula
a um projeto de realidade alternativa sugere pensar a respeito do
que se constitui o espaço para o qual se desloca pois muitas vezes
deslocar-se para outro espaço significa habitar outra realidade
constituída tão somente das imaginações – expectativas – de quem
se desloca. Não por acaso a imaginação norteia-se da imprecisão
155
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 153 - 167 •jan./jun.2011
de espaços constituídos tão somente da necessidade de quem
migra, o que gera conflitos no que diz respeito ao reconhecimento
e adaptabilidade do espaço. Desse modo observa-se uma cisão que
divide e situa o indivíduo entre uma realidade imaginada, constituída
das expectativa de quem se desloca, e outra realidade, sensível,
experenciada, constituída de referenciais reconhecíveis, familiares,
previsíveis e, portanto, confortáveis. Assim: onde e como situar-se?
Onde e como reconhecer-se?
Desse modo, a partir da leitura de “Lucy”, romance da escritora
Jamaica Kincaid, pretende-se discutir as causas que poderiam levar
um sujeito a estabelecer um projeto de deslocamento. Pois,
(…) the question is not simply about who travels but when, how and
under what circumstances (...). If the circumstances of leaving are
importants, so, too are those of arrival and se#ling down. How and
in what ways do these journeys conclued and intersect in specific
places, and specific social conjunctures? How and in what ways is a
group or a subject inserted within the social relations of class, gender,
racism, sexuality or others axes of differentiation in the country to
which it migrates? (BRAH, 1996, p. 182)
O romance de Jamaica Kincaid narra a história de Lucy que, aos
dezenove anos de idade, deixa sua Ilha no Caribe e vai trabalhar como
baby si!er, em Nova Iorque, na casa de uma família comum de classe
média americana. O livro, narrado em primeira pessoa, evidencia os
conflitos de uma adolescente que se desloca para outro país em busca
de melhores condições de vida.
O deslocamento de Lucy é apresentado no romance como
possibilidade da protagonista suprir, além de insuficiências materiais e
culturais, insuficiências relacionadas a sua afetividade, empreendidas
como esperança através de um projeto de deslocamento que é resultado
de um desejo/necessidade de mudança por meio de uma imaginação
prospectiva por apresentar-se como alternativa “imediata” e possível
para redimensionar uma realidade tida como insuficiente.
156
Itinerários do imaginário contemporâneo
A harmonia entre as necessidades e esperanças dos indivíduos e
dos grupos com as funções que asseguram o sistema não é mais do
que uma componente anexa do seu funcionamento; a verdadeira
finalidade do sistema, aquilo que o faz programar-se a si mesmo com
uma máquina inteligente é a otimização da relação global entre os
seus input e output (LYOTARD, 2004, p. 21)
Nesse sentido, é interessante notar como as motivações que
envolvem o processo de deslocamento da protagonista aproximar-seiam do que motivaria um projeto utópico. Principalmente por ele não
se limitar a idealização de um espaço mas de querer materializá-lo
promovendo um deslocamento, tornando-o possível, habitando-o:
admitindo e conciliando a realidade insuficiente de um espaço de
origem com a imaginação de um devir, que fundamentaria o projeto
de deslocamento como plano de felicidade, pois,
Um dos traços definidores do mundo contemporâneo é a intensidade
e a interligação dos processos sociais; as migrações e diásporas
intensificam-se, redefinindo redes e relações internacionais (...). Os
motivos das migrações são variados, incluem a busca de melhores
opções de vida, causas de ordem econômica e política, medo ante a
violência ameaçadora ou outros tipos de razão. (CANCLINI, 2003,
p. 153)
No entanto, é preciso ressaltar levando-se em consideração a
trajetória de Lucy que um projeto de migração pode desvirtuar-se
em seu intuito quando o indivíduo pensa que através da execução
de seu projeto reconstituirá as lacunas afetivas e sócio-culturais de
seu passado, suas origens. Isso pode ser considerado um equívoco
porque na transferência de espaço o lugar para qual se desloca
o ator nem sempre assimila o que é considerado afetivamente e
culturalmente significativo para o indivíduo que se desloca fazendo
com que o projeto de migração distancie-se da idéia previamente
concebida encontrando interferências capazes de comprometer a
execução do projeto: “Em livros que lera – vez por outra, quando a
trama o exigia – alguém era acometido de saudades. Uma pessoa
157
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abandonava uma situação pouco agradável e ia para outro lugar
muito melhor e, em seguida, ansiava por voltar para onde não era
tão bom” (KINCAID, 1994, p. 2).
Na casa em que Lucy passou a trabalhar, em Nova Iorque,
observando as fotografias da família americana para quem
trabalhava, ela percebia que “(...) eles sorriam para o mundo.
Dando a impressão de que tudo que nele havia era intoleravelmente
maravilhoso (...)” (KINCAID, 1994, p. 6). Para a protagonista, o núcleo
familiar americano ou o que se estabelece como tradição através
desse núcleo tornou-se emblema representativo, a “confirmação”
de um espaço idealizado como necessidade pelo “estilo” de vida
americano sugerir-se agenciador de uma possível mudança ao
proporcionar o distanciamento de vínculos afetivos e culturais
indesejáveis e insuficientes de sua realidade-origem e capaz de
estimular um novo projeto de vida. Em verdade, uma oportunidade
de redimensionar as condições de sobrevivência de acordo com os
seus anseios como projeto e promessa de felicidade. No entanto,
uma felicidade que dependeria, para legitimar-se e tornar-se real,
da negociação entre as expectativas da imaginação de Lucy e as
prerrogativas e condicionamentos da nova realidade deslocada. A
tensão, o choque na tentativa de negociar as realidades envolvidas
e firmar a “ontologia do sujeito” (Heidegger, 2009) fundamentam a
representação imaginária de Lucy e literária de Kincaid.
O curioso é que na casa onde Lucy trabalhava não havia indícios
suficientemente capazes de justificar e sustentar as prerrogativas de
um projeto de migração como felicidade. Pois, a família americana
para quem Lucy passou a trabalhar era um exemplo comum de
rotinas e dificuldades previsíveis e não o resultado de uma realidade
idealizada por alguém. No entanto, para Lucy, as possibilidades
de escolhas disponibilizadas pela organização social americana
como cultura e o “suporte afetivo” da família para quem trabalhava
158
Itinerários do imaginário contemporâneo
apresentavam-se como alternativa “feliz” porque eram capazes de
suprimir as memórias de seu passado e viabilizar, enfim, seus anseios
como projeto felicidade, transmutando uma perspectiva de futuro
que antes se mostrava insuficiente em sua locação de origem para
uma cômoda realidade presente do ponto de vista material de um
porvir parcialmente materializado.
Em Nova Iorque, era como se Lucy estivesse no lugar “certo”
para viabilizar seus anseios. Mas, até que ponto a “nova realidade”
experenciada correspondia a uma realidade idealizada? Como, por
exemplo, situar Lucy em uma outra família se a mesma era ali uma
filha sem mãe; uma irmã sem irmãos; uma empregada com carisma
suficiente para agradar e servir os que por ela pagavam um salário e
alguns dias de folga por mês? Como se reconhecer e ser reconhecida
em um espaço tão díspar, de hábitos e valores tão distintos? Como
viabilizar seus sonhos se o que poderia ser compreendido ali como
sonho Lucy poderia ter uma compreensão diferente?
A partir desse “estranhamento” como incerteza evidenciaram-se
na protagonista lembranças de sua origem e passado que passaram
a identificar a sua antiga realidade como “porto-seguro”, proteção
diante das diferenças e “estranhamentos” que ameaçavam seu
projeto de felicidade. Ao mesmo tempo eram memórias que Lucy
tentava evitar porque elas poderiam significar o retorno das relações
e experiências mal-sucedidas em sua origem e passado. As memórias
poderiam atuar como “fantasmas” em sua rotina e comprometer seu
projeto de felicidade. Porém, onde e como acomodar suas memórias,
seu passado e seu presente?
Ainda que seja certo que a solidariedade ética para com a parte
submergida da experiência das pessoas passe por testemunhar os
destroços das histórias e da representação, mediante linguagens
suficientemente fiéis à dramaticidade dos sentidos, as marcas destas
linguagens devem se trançar com narrativas em curso, para que
novas constelações flutuantes consigam recombinar a memória, não
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apenas temporalmente, mas também espacialmente, outorgando
mutabilidade crítica a uma lembrança do passado que convida a se
projetar em novas montagens de vida, em novas poéticas e políticas
da experiência e da subjetividade (RICHARD, 2002, p.195).
Como conciliar uma vida e duas realidades, dois mundos tão
diversos em prol de um projeto de felicidade que aos poucos se deixava
perceber como impressão fugaz? Como entender e conciliar esses
lugares e conflitos por vezes tão incompreensíveis e inconciliáveis? As
conseqüências são evidentes na voz da protagonista: “Estava à época
no auge da minha ambigüidade ou seja, por fora parecia uma coisa,
por dentro outra; por fora falsa, por dentro verdadeira” (KINCAID,
1994, p. 9). Diante disso, como poderia Lucy entender e zelar por um
sonho que gradualmente se dissolvia em um espaço que não poderia
ser reconhecido como sonho por ser apenas uma realidade distinta?
Ao mesmo tempo, o que poderia ser estabelecido como parâmetro
de realidade para Lucy? Onde situá-la: no delírio de um espaço
idealizado possível apenas em devaneios ou na realidade do que se
apresenta como espaço “necessário” e estrangeiro? Na negação de
um passado? Na afirmação de um projeto-presente como porvir?
É justamente nesses questionamentos, que situam Lucy entre um
passado indesejado, um presente conflitante e uma condição otimista,
porém, incerta do porvir que gerou na mesma o desconforto de não
poder localizar-se e definir-se como ser-presente, resultando em uma
realidade e identidade constituída por relações binárias: invenção/
realidade; lembrança/esquecimento; ausência/presença articulandose como vias que se indeterminam a partir da idéia de “conciliação”
com a alteridade. É através dessas circunstâncias que Lucy se (in)
define como indivíduo e afirma uma (nova) realidade e condição.
Como as culturas entram em contato por meio dos homens o choque ou
a assimilação cultural se faz sempre no seio de um território, a nação,
a cidade, o bairro. Dentro desse quadro, o conceito de memória tornase fundamental para a análise, pois, sabemos que as trocas se fazem
160
Itinerários do imaginário contemporâneo
em detrimento do grupo que parte, para se implantar, em condições
adversas, em terras estranhas (...). A lembrança é possível porque
o grupo existe, o esquecimento decorre de seu desmembramento.
Entretanto, para ser vivificada, a memória necessita de uma referência
territorial, ela se atualiza no espaço envolvente. (ORTIZ, 2003, p.75)
Mas objetivamente o que lhe causara dispersão? Uma origem? Um
destino? Uma imaginação? Um desejo? Necessidades? É possível que
tudo ao mesmo tempo porque “tudo que estava experimentando –
andar de elevador, estar num apartamento, comer comida da véspera
guardada numa geladeira – eram tão boas que dava para imaginar
que me acostumara sempre com tudo isso” (KINCAID, 1994, p.2).
Justifica-se: “This transmigration is the form taken by a colonial
desire, whose a#ractions and fantasies were no doubt complicit
with colonialism itself” (YOUNG, 1995, p. 3). Trata-se de uma
situação que foge do controle do indivíduo. Ele assim age porque
naturalmente sente a necessidade de melhorias nas suas condições
de vida, reconhecendo que a realidade de origem lhe é insuficiente
para garantir as condições mínimas de sua sobrevivência. Nota-se,
assim, que Lucy apenas reivindica um direito universal e inalienável
que se mostra distante da sociedade a que pertencia. Entretanto a
motivação material obscurece insuficiências de ordem subjetivas
que também motivam e fundamentam o projeto de deslocamento
da personagem. É comum observarmos estudos que fundam
razões para o empreendimento de um projeto de deslocamento
que circunstancializam insuficiências sociais, culturais, econômicas
e ignoram a falência das estruturas emocionais que também
fundamentam os mesmos projetos de deslocamentos.
O curioso é que esse espaço ideal de sobrevivência torna-se possível
apenas através da imaginação, porém, uma imaginação que se apresenta
como idéia insuficiente para viabilizar o projeto de deslocamento de Lucy
como felicidade, pois, não apreende a complexidade dos mecanismos
de funcionamento que sistematizam outra organização social, real. Ao
161
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invés de compreender os mecanismos que fundamentam um sistema
real Lucy o desvirtua de sua natureza estrutural localizando-o no plano
do impossível idealizando-o. Desse modo, como estabelecer um projeto
de migração se se desconhece as condições que fundamentam a realidade
de seu destino, um espaço que se apresenta real mas idealizado? É desse
modo que a imaginação apresenta-se insuficiente na fundamentação do
projeto de deslocamento de Lucy por fazê-la distanciar-se da realidade
que se sustenta. Desse modo, a questão substancialmente repercute
no fato da protagonista ter imaginado uma realidade porvir enquanto
negou uma realidade presente e passada. Como conciliar imaginação e
realidade nessas circunstâncias?
No entanto, para a protagonista, essa idealização, apesar de
inconciliável com o que se apresenta como realidade torna-se “acessível”
como “lugar-feliz” por mobilizá-la a não permanecer no lugar
insatisfatório de sua origem, garantindo-lhe as condições mínimas
de estabilidade como fora almejado e fundamentando seu projeto de
deslocamento. Entretanto, a felicidade seria viável tão somente no plano
da idealidade. Porém, um risco: o convívio com esse espaço poderia
ser relevante como sobrevivência espiritual e material mas também
perigoso se compreendido como a possibilidade de construção de uma
“nova origem” que estaria comprometida tão somente com a tentativa
de suprimir particularidades genuínas e insuficientes de uma cultura,
um outro espaço social, legitimado e apto, uma espécie de “Paraíso”
capaz de cooptar indivíduos em detrimentos de sua subjetividade,
necessidade, sonhos e anulando identidades; uma espécie de ilusão da
geopolítica que se faz recorrente na Literatura do Caribe numa poética e
preocupação contemporânea. As conseqüências disso podem provocar
no imigrante uma dificuldade de situar-se entre um espaço insuficiente
e outro idealizado como “perfeição” , desvirtuando-se como sujeito.
É a impossibilidade de reivindicar uma origem para o Eu dentro
de uma tradição de representação que concebe a identidade como
satisfação de um objeto de visão totalizante. Ao romper a estabilidade
162
Itinerários do imaginário contemporâneo
do ego, expressa na equivalência entre imagem e identidade, a arte
secreta da invisibilidade da qual fala a poeta migrante quando muda
os próprios termos de percepção da pessoa (BHABHA, 1998, p. 75)
Essa instabilidade sugere ao sujeito que se desloca a ciência de que
seu projeto de migração funda-se falho por colocar em xeque o desejo
que o mobiliza, por tratar-se de um projeto possível tão-somente na
imaginação. A necessidade de adaptar-se a um mundo desconhecido e
distante do imaginado compromete e dilui a idéia de perfectibilidade
e viabilidade por meio da percepção do que une o real e imaginário:
“Agora que vira esses lugares, pareciam comuns, sujos, gastos tantas
eram as pessoas que entravam e saíam deles na vida real que me
ocorreu que eu não seria a única pessoa no mundo para quem isso
tudo seriam temas de devaneio” (KINCAID, 1994, p. 1). O espaço
idealizado aos poucos se desfaz e as conseqüências dessa desconstrução
revertem a instabilidade do sujeito em uma consciência crítica capaz
de redimensionar uma nova razão de sobrevivência. Talvez possamos
chamar o despertar dessa nova consciência maturidade.
É a partir dessa consciência que Lucy percebe que o espaço
idealizado trata-se apenas de um espaço conveniente às suas
necessidades; uma possibilidade de viabilizar seus anseios que
antes eram “impossíveis” em sua locação de origem embora ainda
repercuta como projeto de felicidade. No entanto, um projeto onde
agora seriam visíveis as diferenças e impossibilidades de uma
realidade comum que, apesar de deixar de ser concebido como
imaginação, ainda apresente melhores condições para sobrevivência,
graças a maturidade da experiência, percepção e consciência de vida.
A emergência do sujeito humano como social e psiquicamente
legitimado depende da negação de uma narrativa originária de
realização ou de uma coincidência imaginária entre interesse ou
instinto individual. Essas identidades binárias, bipartidas, funcionam
em uma espécie de reflexo narcíseo do Um no Outro, confrontados na
linguagem do desejo pelo processo psicanalítico de identificação. Para
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Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 153 - 167 •jan./jun.2011
a identificação, a identidade nunca é uma a priori, nem um produto
acabado; ela é apenas e sempre o processo problemático de acesso a
uma imagem da totalidade (BHABHA, 1998, p. 85)
Isso fica evidente quando, a partir das fragilidades da família para
quem trabalhava e de outras relações pessoais estabelecidas Lucy
questiona o seu mundo idealizado. “Será que as pessoas em sua
condição – ricas, bem instaladas, belas, com o melhor que o mundo
tinha a oferecer ao alcance da mão – não conseguiam viver sãs?”
(KINCAID, 1994, p. 45). Um questionamento compreensível já que o
seu projeto de felicidade e deslocamento não apenas se fundamentava
no acesso a possibilidades materiais, mas também afetivas, que não
eram possíveis em seu local de origem. E continua:
(...) via um sofá, duas cadeiras e uma parede de livros. Que luxo, pensei,
ter uma sala vazia em casa, uma sala de que ninguém realmente precisa. E
não é isso que todos no mundo deveriam ter – mais do que precisam ter?
não era uma pergunta que fizesse a Mariah, pois, Ela pensava exatamente
o contrário. Tinha tudo em excesso, por isso ansiava por ter menos. Menos,
tinha certeza, lhe traria felicidade. Para mim era uma piada e um alívio
observar a infelicidade que o excesso pode trazer; me habituara tanto a
observar os resultados da carência. (KINCAID, 1994, p. 46)
Lucy, em Nova Iorque, consegue sua autonomia, sua independência,
concretiza, de certa maneira, o seu projeto de felicidade, ao menos do
ponto de vista material. Consegue, enfim, alugar uma casa, ter um
trabalho melhor remunerado e a liberdade de fazer, realmente, o que
desejava. Uma condição idealizada que, por muito tempo, pensara ser
suficiente. No entanto, tudo isso lhe parecia agora melancólico, vazio, por
constatar que a realidade antes não fora promessa de felicidade. Nesse
momento as razões afetivas ganham outra dimensão: tão importante
quanto a dimensão material que tivera antes. Inclusive, a consciência de
que o que a motivara como projeto não estava relacionado, de fato, com
questões materiais de sobrevivência. Vejamos como isso se apresenta na
narrativa, quando Lucy vai a um Museu, quando lembrou da Mãe e aos
que estariam vinculados a seu passado afetivo negado e que impulsionou
o estabelecimento de seu projeto de migração.
164
Itinerários do imaginário contemporâneo
(...) tinha querido que visse quadros pintados por um homem, um francês,
que atravessava meio mundo para ir viver em um lugar e pintara quadro de
pessoas que encontrou por lá. Fora banqueiro e vivia uma vida confortável
com a esposa e os filhos, mas isso não o fazia feliz; por fim ele os abandonaria
e fora pra outro mundo, onde se sentiu mais feliz – não sei era a intenção
de Mariah, mas imediatamente me identifiquei com os anseios desse
homem; compreendia que alguém achasse o lugar onde nascera uma
prisão insuportável e quisesse algo completamente diferente daquilo que
lhe era familiar, mesmo sabendo que ele representa um porto seguro. Pusme a imaginar os detalhes de seu desespero, pois sentia que me consolaria
conhecer. Naturalmente sua vida podia ser encontrada nas páginas de um
livro; começara a reparar que as vidas dos homens sempre são. Era descrito
como um homem que se rebelou contra a ordem estabelecida por achá-la
corrompida; e embora estivesse destinado a fracassar – morreu ainda jovem
– trazia em torno de si a aura de herói. Eu não era homem; era uma moça
nascida nos confins do mundo, e quando parti da minha terra atirava sobre
os ombros o meu manto de serviçal (KINCAID, 1994, p. 50)
Com isso, Lucy, enfim, percebe que para construir uma nova
realidade não precisaria desconstruir uma realidade anterior. Percebe
ainda que não consegue romper com seu passado, pois, enquanto
houvesse memória haveria um passado e uma relação afetiva com o
que foi vivido. Mais: enquanto houvesse passado haveria amor por
razões que não saberia explicar. Por isso, até que ponto seria legítimo
o desejo de ruptura com seu passado?
Lucy percebe, definitivamente aos poucos que, a aquisição de
melhores condições materiais em sua sobrevivência não era suficiente
para estabelecer/manter um projeto de felicidade. Havia outras questões
que motivariam a sua felicidade. O amor poderia ser reconhecido como
uma delas já que a mobilizara e estaria presente onde quer que estivesse.
O amor que foi impossibilitado em suas relações anteriores, em seu
local de origem, por não ser conivente com seus anseios de necessidade
e liberdade e que em Nova Iorque poderia ser possível porém, Lucy
descobriu que Nova Iorque não passou da extensão de ausências afetivas
que continuavam a ser sentidas. Por isso, sua vida não era uma “nova
vida” como imaginara e sim, a continuidade de uma antiga, também
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Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 153 - 167 •jan./jun.2011
ausente do amor. Felicidade e infelicidade independeria de espaços.
Os sonhos, presentes na imaginação de cada individuo representam a
força mobilizadora que tornam possíveis realidades e transformações
no mundo sensível, em todo espaço e qualquer realidade, e constituem a
idéia de progresso e desenvolvimento. O ser humano é responsável por
reparar e construir realidades. Mas não se deve esperar que as realidades
constituídas sejam motivos suficientes para reparar e construir realidades
interiores ou sonhos do indivíduo, como fez Lucy.
A imaginação é para a sociedade o que os sonhos são para os indivíduos.
Em toda utopia, trabalho artístico, fantasia religiosa e ritual mágico, a
sociedade fala de seus sentimentos ocultos. Fala de suas frustrações
e aspirações, e ainda desvela os seus anseios reprimidos, os quais
não podem ser articulados em linguagem comum. Como os sonhos,
à primeira vista parecem sem sentido. Tentando chegar-se aos seus
significados por meio da lógica do senso comum, tudo o que se consegue
obter é a falta de sentido (ALVES, 1986, p. 87)
Um dia, ao encontrar-se sozinha em casa, em sua nova e almejada
vida, independente e madura, ao encontrar a folha de um caderno em
branco escreve: “(...) gostaria de ser capaz de amar alguém a ponto
de morrer de amor” (KINCAID, 1994, p. 89), razão imprescindível de
estabelecer um projeto de migração como felicidade que foi ocultado
pelo equívoco de pensar que a necessidade espiritual do amor poderia
ser substituída ou ocultada por aquisições ou transposições materiais.
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167
O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda
durante os anos 1961-1974
David A. Castro Netto1
Resumo: Este artigo tem como objetivo fazer uma comparação entre dois
momentos distintos da História do Brasil, os anos de instabilidade que
vão de 1961-1963 e os anos do “milagre brasileiro”, 1969- 1974. O alvo de
nossa comparação é a propaganda e de que maneiras ela influencia o poder
do Estado, num primeiro momento, a propaganda através do complexo
IPÊS/IBAD, fazendo criar na sociedade brasileira um clima de necessidade
de tomada de poder como sendo a única saída para a manutenção das
instituições democráticas. E num segundo momento, a propaganda via
AERP, com o intuito de dar sustentação e legitimidade para os governos
militares, com objetivos claros, criar um consenso e a sensação de ingresso
no primeiro mundo. Nossa pesquisa tenta se enquadrar na perspectiva de
disputa de hegemonia, como no caso dos anos pré-golpe militar e depois
os anos de manutenção e fortalecimento da nova hegemonia construída.
Ainda, inscrevemos nosso trabalho, no campo da História Comparada, que
traz um aporte metodológico harmônico com os nossos objetivos.
Palavras–Chave: IPÊS/IBAD, AERP, Propaganda
Resumen: Este artículo tiene como objetivo hacer una comparación entre
dos momentos distintos de la História de Brasil, los anõs de instabilidad
que van desde los años 1961-1963 hasta los anõs del “milagro brasileño” 1969-1974. El propósito de nuestra comparación es mostrar, en un primer
momento, como la propaganda, hecha por medio del complejo IPÊS/
IBAD, ejerce influyéncia en el poder del Estado, creando una sociedad
con aires de necessidad de lucha por el poder como siendo el único modo
1
Universidade Federal Do Mato Grosso do Sul, mestre pelo Programa de Pós
Graduação da Universidade Estadual de Maringá (Linha de Pesquisa: Política e
Movimentos Sociais). E-mail: [email protected].
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Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 169 - 181 •jan./jun.2011
de mantener las instituiciones democráticas. En un segundo momento, la
propaganda hecha por medio de la AERP, con intención de dar sutentación
y legitimidad a los goviernos militares, con claros propósitos de crear un
concesno y la sensación de pertenecimiento en el Primer Mundo. Nuestra
investigación intenta ajustarse en la perspectiva de conflicto de hegemonía,
como en el caso de los años antes del golpe militar y depués los años
de mantenimiento y fortalecimiento da le nueva hegemonía. Además,
inscribimos nuestro trabajo, en el campo de la História Comparada, que
trae un aporte metológico armónico con nuestros objetivos.
Palabras Claves: IPÊS/IBAD, AERP, Propaganda
Introdução
Nosso objetivo é analisar como a propaganda, em um determinando
momento, desestabiliza o Estado e como pode auxiliá-lo a obter
legitimidade, em outro. Para cumprir tal objetivo, nossa análise será
pautada pela utilização do método da História Comparada.
Após uma apresentação desta modalidade de prática historiográfica,
será feita uma comparação entre a propaganda utilizada pelos
militares, via AERP, e a propaganda exercida pelo IPÊS/IBAD, no
contexto pré-golpe.
Os usos dos métodos presentes dentro desse modelo têm uma
função importante na medida em que ajuda a superar os modelos
tradicionais de se construir a História, sobretudo aglutinando novos
olhares ao trabalho do historiador.
O uso da comparação cresceu logo após a segunda guerra mundial,
como maneira de afastar o olhar eurocêntrico, marca da historiografia
antes das duas guerras. Outro ponto importante é oferecer uma
resposta aos nacionalismos exacerbados, já que essa maneira de
fazer História, obrigatoriamente, necessita de dois, ou mais, pontos
de partida para que se possam estabelecer comparações frutíferas.
170
O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos 1961-1974
A História Comparada trabalha com fenômenos diferentes, porém,
com um horizonte de ajuda entre ambos. A ideia central é fazer
com que esses fenômenos iluminem uns aos outros e buscar nesses
contrapontos diferenças, rupturas, sequências e origens.
Segundo BARROS (2007) a tipologia de História Comparada
traçada por Charles Tilly, especialista em sociologia histórica, traz
grandes evoluções para os estudos nesse campo, porque contribui
para ampliar o conhecimento do historiador, ao observar e aproximar
realidades históricas diferentes.
O autor traça quatro tipologias para a comparação: A
Individualizadora, que busca encontar as singularidades em cada
caso, a diferenciadora, cujo objetivo é parecido ao da anterior, mas
tem em mente a busca de diferenças em cada caso, a abordagem
universalizadora, que tem como intuito encontrar partes comuns em
todos os casos estudados e, por fim, a abordagem globalizadora que
busca a construção de sistemas gerais comuns a todas as sociedades.
Embora o uso da História comparada forneça novos elementos
para o historiador, são necessários alguns cuidados durante o
percurso da pesquisa (THEML e BUSTAMANTE, 2003), o principal
deles: a chamada “ilusão sincrônica” (BARROS, 2007), onde tem se a
ilusão de construção de sociedades estáticas e imobilizadas no tempo
e no espaço, esquecendo-se do dinamismo próprio de seu tempo.
A História Comparada, embora nos últimos anos tenha crescido
dentro dos programas de pós-graduação, teve uma trajetória mais
lenta do que à dos programas mais “tradicionais”, porém agora ganha
fôlego cada vez maior para quem busca um conhecimento plural,
desvinculado de paradigmas eurocêntricos e com um horizonte
maior de resultados.
Feito essa sumária apresentação iremos a parte prática de nosso artigo.
171
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 169 - 181 •jan./jun.2011
O complexo IPES/IBAD e a propaganda contra João Goulart
O IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) tinha uma larga
estrutura patrocinada pelas elites brasileiras, passando pelos círculos
industriais até os latifundiários, com sedes no Rio de Janeiro e São
Paulo. Embora o IPES atuasse em várias “instâncias”, sua função
principal era elaborar propostas para a resolução da crise econômica
instalada no início dos anos 1960.
O IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), declaradamente
uma organização anticomunista, segundo DREIFUSS (1981), era
quem divulgava para a sociedade as alternativas propostas pelo IPES
de diversas maneiras, tais como, palestras, seminários e propaganda
anticomunista.
O complexo IPES/IBAD tinha subseções que atuavam diretamente
na construção de uma opinião pública favorável aos seus princípios,
destacamos aqui o GOP (Grupo de Opinião Pública).
Viabilizados por essas subseções, um bombardeio políticoideológico foi disparado na sociedade contra o poder Executivo
durante os anos de 1961- 1964, através da imprensa escrita,
radiofônica e audiovisual.
A ideia era a construção de um “clima” propício para que uma
intervenção militar se fizesse necessária para assegurar a soberania
nacional (contra o comunismo soviético), manutenção das instituições do
país e que contasse com o apoio da sociedade, sobretudo da classe média.
Nos setores militares, as propagandas tinham um tom específico.
A mudança em direção a uma república trabalhista iria destruir a
hierarquia militar e, em seguida, as próprias instituições da nação
rumo ao regime comunista.
A agência de publicidade ligada ao complexo IPES/IBAD, a
Promotion S/A, patrocinou vários programas veiculados na TV e
172
O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos 1961-1974
retransmitidos por várias estações radiofônicas, somando um total
de 140 milhões de cruzeiros a quantia total gasta com propaganda.
Outro grande aliado era a ABA (Associação Brasileira de
Anunciantes), fundada em 1959 pelos treze principais anunciantes2,
com a função de proteger seus membros e discutir assuntos
relacionados à publicidade e à promoção de vendas. Todos os treze
membros, e seus futuros participantes, eram contribuintes diretos do
IPES e seus diretores ocupavam cargos executivos no grupo.
De maneira mais específica, trataremos agora dos filmes/
propagandas do complexo IPES/IBAD.
O catálogo disponível para acesso lista um total de 15 filmes3. Esses
filmes/propagandas tinham um grande alcance na população, tendo em
vista o aparato logístico disponível para sua execução, feita nos mais
variados lugares: em cinemas, “cinemas volantes” e dentro dos quartéis.
Segundo ASSIS (2001), a principal função dessas propagandas
era desestabilizar o governo Goulart, sobretudo entre os militares. É
notável que alguns filmes tinham o intuito de motivar a população
para ir as ruas protestar contra o Presidente e até manifestar apoio
em sua derrubada.
No filme “O Brasil precisa de você”, por exemplo, existe um
claro chamamento da população para a união contra os subversivos,
comunistas e agitadores em defesa da democracia como causa
maior. Nesse filme são colocadas lado a lado figuras que eram
ideologicamente opostas, como Hitler e Mussolini.
Outras categorias de filmes foram feitos diretamente para classes
de trabalhadores específicos: “História de um maquinista”, “A vida
2
Para a lista completa ver René Armand Dreyfuss: 1964: Conquista do Estado: Ação
política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes,1981, p. 249.
3
Todos os filmes citados neste artigo estão presentes no “Catálogo de filme do fundo
IPÊS” no Arquivo Nacional, localizado no Rio de Janeiro, Ano: 2000.
173
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 169 - 181 •jan./jun.2011
marítima” e “Portos paralíticos”, esses filmes mesclam um ataque às
condições de trabalho da época, com portos depreciados e a defesa
de melhores salários por parte do sindicato das categorias.
Para um ataque mais direto ao governo visto com tendências
comunistas, o Instituto lançou alguns filmes que instigam a população
a lutar pela manutenção da democracia, apoiada em bases liberais e
ligadas ao capital estrangeiro. São eles: “Depende de mim”, “A boa
empresa”, “Uma economia estrangulada”, “Criando homens livres”.
Nessa seção de filmes é notório o incentivo para que a população
saísse as ruas, com cenas construídas a partir de várias categorias
de trabalhadores, como no filme “Depende de mim”, focalizando o
voto como arma para a defesa da legalidade e das tradições cristãs.
Cabe dizer ainda, que toda a narrativa é permeada por imagens da
invasão da Hungria pela URSS.
Outros dois filmes, “A boa empresa” e “Uma economia
estrangulada”, mostram a igreja como intermediária entre patrões e
empregados, esta sendo uma solução para a manutenção dos valores
morais cristãos e um aumento na produtividade, ainda é possível
notar um apelo a modernização das frotas marítimas e uma maior
racionalização da economia brasileira.
Os últimos dois filmes, “O Ipês é o seguinte” e “O que é o Ipês”, são
de caráter mais “informativo” e têm o objetivo de mostrar a população
a função do instituto: a defesa da democracia, organização maior das
instituições democráticas, críticas a quantidade exagerada de partidos
e a sugestão de propostas para a estabilização da moeda, moralização
governamental e a necessidade de ação por meio da mídia.
O complexo IPES/IBAD ainda lançou um filme sobre os
estudantes, “Deixem o estudante estudar”, no qual era previsto um
maior aumento na qualidade do ensino e nas condições em que ele
ocorria para que os estudantes se afastassem das agitações políticas.
174
O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos 1961-1974
Após essa análise sobre a produção do IPES, buscaremos agora
entender um pouco sobre as criações da AERP, em um contexto
mais avante, do final dos anos 1968 até os anos de 1974, e, por fim,
estabelecer algumas comparações.
A AERP
Durante a ditadura militar uma agência pública era responsável
pela propaganda pró – governo, a AERP (Assessoria Especial de
Relações Públicas) e tinha um caráter diferente dos órgãos de
propaganda dos tempos de Getúlio (o DIP) e mais ainda dos tempos
do nazismo e do fascismo.
A criação dessa agência não ocorreu de forma linear, existia
uma disputa interna no meio militar que poderia ser representada,
basicamente, em duas linhas, os moderados e os da “linha dura”. Os
militares moderados eram contra a criação do órgão, visto que um órgão
de propaganda seria característico de governos ditatoriais, marca esta
que os militares não queriam. A “linha dura” tinha como argumento a
necessidade de mostrar a população os resultados do governo.
Segundo FICO (1997), os militares da “linha – dura” venceram
a disputa, e em 15 de novembro de 1968 foi criada a AERP
(Assessoria Especial de Relações Públicas), chefiada pelo coronel
Hernani D´Aguiar e com a responsabilidade de divulgar as ações
governamentais.
Nos primeiros anos, a AERP procurou fatos que motivassem
o “povo” (elementos como amor a pátria, coesão nacional, amor
a família, foram utilizados para, segundo os diretores “motivar a
vontade coletiva em prol do Brasil”) sugerindo, por exemplo: “a
criação de um calendário anual do Executivo, assinalando fatos que
pudessem provocar interesse público com ampla divulgação da
mídia”. (FICO 1997, p. 93).
175
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 169 - 181 •jan./jun.2011
Em Outubro de 1969, assume a chefia da AERP o Coronel Octávio
Costa. Naquele momento ocorreu uma verdadeira profissionalização
das produções e dos profissionais envolvidos, para alguns analistas
como CAPARELLI (1982) as realizações da AERP inauguram a mais
ampla propaganda de governo que já havia existido no Brasil.
A construção dessa nova rede de comunicação social, como
era chamada pelo general Presidente Costa e Silva, passava
necessariamente pela nova chefia, a do Coronel Octávio Costa.
Octávio Costa não compôs o perfil clássico dos oficiais militares do
período. Para LIMA (1997), ele acreditava nos princípios que nortearam
o movimento de 1964, ligado ao grupo moderado, era um grande
apreciador de literatura, com uma excelente escrita além de uma grande
habilidade para discursar, entendia que as campanhas e contestações
contra o regime deveriam ser respondidas com campanhas que
motivassem o sentimento de amor, participação e consciência patriótica.
Um livro que reúne uma coletânea de artigos do coronel é lançado
com o título “Mundo sem Hemisférios”. Dentro desses ensaios é
possível encontrar um artigo que mostra bem o espírito que o coronel
levara para a AERP:
Minha pátria não é a ditadura fascista, nem a ditadura comunista, não
é o militarismo, nem o caudilhismo, nem o cesarismo. Minha pátria é
essa democracia plantada mais no coração dos homens que nas estufas
políticas. É esse jeito de ser, essa vocação irreprimível de liberdade.4
Podemos ainda salientar que o sucesso da segunda fase da AERP
ia ao encontro da cena econômica que o Brasil viveu a partir de
1969. O “milagre-brasileiro” estava em marcha, além da conquista
do tri-campeonato mundial, em 1970, a expansão do crédito privado
acelera a dispersão da televisão e ampliava o impacto na população
da propaganda do governo.
4
COSTA, Octávio, “Mundo sem hemisférios”. Apud LIMA, 1998, p.86.
176
O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos 1961-1974
Naquele momento, existia um clima de euforia e de otimismo
pairando sobre a nação e a AERP soube explorar e canalizar este
clima para suas produções, intensificando campanhas publicitárias
que incentivavam o civilismo, o nacionalismo e os “bons costumes”.
Assim, os novos princípios que norteariam o trabalho da AERP,
segundo FICO (1997), passavam por criar bases para uma leitura do
país, permeada de otimismo com relação aos rumos econômicos do
Brasil em contraposição ao pessimismo dos opositores do regime.
As campanhas da AERP mostram essas metas, segundo LIMA
(1997), podemos dividir sua produção em cinco grupos: a) apelo
sentimental; b) exaltação da união; c) valorização; d) campanhas
educativas; e) comemorativos de 1964.
Os filmes ligados ao apelo sentimental mostram uma clara
exploração de temas que suscitem o amor nas pessoas, a fraternidade
e a solidariedade. O grupo de filmes, denominados aqui como
exaltação da união, induzem a necessidade de somar esforços
para a união da família, da nação, integração e comunitarismo. Na
gama de filmes que compõem a valorização nota-se um grande
apelo para o sentimento nacionalista com campanhas que incitam
a valorização do Brasil, participação política, patrimônio nacional.
O quarto grupo pode ser entendido como uma forma dos militares
ensinarem a população de que maneira usar os serviços públicos
e da normatização de comportamentos gerais. O último grupo de
filmes tinha um caráter de propaganda política “mais tradicional”,
já que apenas exaltava os “efeitos positivos” do movimento de 1964,
como a construção das grandes obras e o crescimento econômico
acelerado.
As campanhas da AERP fizeram muito sucesso nesse período,
favorecida pelo clima econômico e pelo otimismo que reinava no
Brasil, a assessoria teve a capacidade de canalizar toda essa euforia
em favor do governo, com propagandas de excelente qualidade
177
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 169 - 181 •jan./jun.2011
e de muito bom gosto que até mesmo as agências de publicidade
comerciais estavam modelando seus anúncios no mesmo tom para
que pudessem ser mais bem vistos na sociedade.
Conclusão
Feito essas ponderações podemos passar a algumas conclusões.
Comentaremos primeiro algumas diferenças, em seguida, alguns
pontos em comum entre o IPÊS/IBAD e a AERP.
Os dois tipos de propagandas escolhidos para comparação
apresentam algumas diferenças importantes: as propagandas do
IPÊS, feitas por Jean Mason, tinham um cunho mais agressivo
(FICO, 1997), sua função específica era alarmar os diversos setores da
sociedade brasileira, com destaque para os militares. As propagandas
da AERP, por sua vez, trabalhavam num patamar mais ameno, mais
suave, e, talvez, mais subliminar.
Enquanto as propagandas do IPÊS mostravam imagens agressivas,
como as de Hitler e Mussolini, além de invasões de exércitos
soviéticos, revoluções, procurando gerar angústia na sociedade
brasileira, as propagandas da AERP vinham no viés contrário, o
da tranquilidade (tida como necessária pelos militares para o bom
desenvolvimento da nação), de criar um clima de paz em meio ao
contexto do AI-5, com filmes curtos, e geralmente sem identificação.
É necessário ainda comentarmos uma diferença técnica, os
filmes do IPÊS não tinham uma duração estabelecida, alguns são
de 6 minutos, outros de 1 hora. Nos “filmetes” da AERP, a média
era de 1 minuto, questão latente é, também, o financiamento, que
pelo lado ipêsiano era vasto. Embora a AERP fosse um órgão ligado
diretamente ao governo militar, seu orçamento era curto, Octavio
Costa, chefe do órgão, não tinha todo aquele apoio logístico de
setores do Palácio do Planalto, estes vendo seu trabalho como
simplório e desnecessário.
178
O IPES/IBAD, a AERP e a propaganda durante os anos 1961-1974
Não podemos perder de vista o cenário político que cerca a
produção dessas duas instâncias: no cenário pré-golpe (1961-1963),
de extrema agitação das camadas nacionais, se fazia necessário o uso
de propaganda agressiva para que a população sentisse um perigo
iminente, no caso o comunismo. No segundo contexto, 1968/9 – 1974,
embora a situação continuasse crítica, as propagandas da AERP, não
queriam inflamar a sociedade, mas sim acalmá-la e até convencê-la
de que o futuro do país estava sendo construído.
Outro importante destaque deve ser feito com relação
ao direcionamento das propagandas, no caso do IPÊS, as
propagandas tinham a ideia de desestabilizar o governo
instalado, criando um clima de tensão, para que a sociedade
sentisse a necessidade de uma intervenção golpista. A AERP,
por outro lado, direcionava as propagandas para um clima de
consenso e de euforia com os resultados do “milagre brasileiro”
e das conquistas esportivas.
Embora as propagandas escolhidas aparentem apenas diferenças,
podemos notar alguns pontos em comum entre elas.
Mesmo existindo em contextos históricos diferentes, as
propagandas revelam uma linha básica que, aparentemente, parece
ser a mesma, embora explorada de maneiras díspares.
Tanto o IPÊS, como a AERP, sempre utilizaram em suas produções
o caráter nacionalista, participativo (Mais imponente no IPÊS e mais
restritivo na AERP) e as duas alertavam para o sentimento nacional
que a população deveria ter.
O nacionalismo foi um fio condutor presente em todas as duas
instâncias de produção de propagandas, claro, no caso do IPÊS, o
nacionalismo contra o comunismo, na AERP, o nacionalismo cunhado
pelos militares produziu o “milagre” brasileiro e nos levaria ao
primeiro mundo.
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Outro ponto importante, seus idealizadores fizeram de tudo para
que as propagandas circulassem nos meios de informação de maneira
intensa, seja por meio de cinemas volantes (IPÊS), ou por meio de
acordo com as transmissoras de televisão para a apresentação em
horário nobre (AERP).
Em nossa análise, o objetivo foi entender dois momentos diferentes
da História do Brasil através da propaganda e mostrar algumas
modificações ocorridas na sociedade brasileira.
No decorrer do texto percebemos que existem muitas diferenças
importantes entre os dois pontos escolhidos, essa é uma das
funções da História Comparada, mostrar diferenças, explicando-as
e ampliando o horizonte da pesquisa, mostrando permanências e
continuidades.
Referências
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180
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LIMA, Odair de Abreu. A tentação do consenso: O trabalho da AERP e o
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181
Oralidade e memória:
aromas exalados de “Pé-de-perfume”
Andréia Maria da Silva Lopes1
Hadoock Ezequiel Araújo de Medeiros2
Márcia Rejane Brilhante Câmpelo3
Resumo: Os países africanos de Língua Portuguesa como Moçambique,
Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe estão sendo
visualizados por estudos de suas obras ficcionais. Desse modo, os escritos da
autora santomense Olinda Beja evidencia o cenário particular de São Tomé e
Príncipe, ressaltando a valoração da oralidade/escrita nesse contexto, assim
como a consideração da sabedoria dos mais velhos e do conhecimento do
jovem na mesma proporção. Portanto, nosso trabalho tem como objetivo
fazer um estudo do conto “Pé-de-Perfume” (2005) da autora santomense,
presente no livro de contos homônimo, analisando como se dá essa relação
oralidade e escritura, que só é possível através do trabalho mnemônico.
Palavras-Chave: Literatura Santomense, Olinda Beja, Oralidade, Memória
Abstract: Country African of the Portuguese language as Moçambique,
Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde and São Tomé e Príncipe there
are being viewed by studies of their fictional works. This way, the
writings of author Santomean Olinda Beja highlights the particular scenario
of São Tomé e Príncipe, emphasizing the assessment of orality / writing in
this context, as well as the consideration of the wisdom more older and of the
knowledge of the young in the same proportion. Therefore, our work aims
to make a study of the short story “Pé-de-Perfume” (2005) the Santomean
author, in this storybook homonym, analyzing how is this relation between
orality and writing, which is only possible through the work mnemonic.
Keywords: Santomean Literature, Olinda Beja, Orality, Memory
1
Mestranda do Programa de pós-graduação em Linguagem e Ensino da UFCG.
2
Graduando em Letras pela UFRN, Campus de Currais Novos.
3
Graduanda em Letras pela UFRN, Campus de Currais Novos.
183
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Introdução
Os caminhos do Brasil e da África se cruzam desde os tempos do
processo de colonização. Então, as contribuições da cultura africana
são vistas na formação étnica brasileira, tendo sua representação nas
danças, na culinária, na religião, nas artes etc.
Essa interface Brasil/África é ressaltada com a lei 10639/03, que
objetiva o estudo da história e da cultura africana e afro-brasileira nas
escolas brasileiras de todo e ensino básico, nas disciplinas de História,
Educação Artística e Literatura. Nessa direção, muitos estudos
produzidos no Brasil vêm adquirindo importância, principalmente,
no tocante as literaturas africanas em Língua Portuguesa.
As literaturas africanas dos países de língua portuguesa, como
Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e
Príncipe, são faladas hoje como literaturas que adquiriram traços
próprios, e, que por isso, não podemos nos referir a todas essas
criações como se fossem uma única literatura. Segundo Leite (1998)
apud Ribeiro (2008),
[...] processos literários de individualização nacional [...] não devem
ser omitidos em detrimento de rótulos corriqueiramente adotados,
como “literaturas africanas de língua portuguesa” ou “literaturas
lusófonas”, que “levam a uma generalização do particular em favor de
traços apenas comuns pelo uso de um mesmo instrumento lingüístico,
e processos temáticos de contestação similares durante o período
colonial” (RIBEIRO, 2008, p.95)
A literatura de cada país africano, desde os tempos da préindependência aos tempos de hoje na pós-independência, vem se
moldando face às singularidades de cada lugar, representando
os seus costumes, as suas danças, os seus rituais, ressaltando
um traço de singularidade, reafirmado pela língua autóctone
que, muitas vezes, designa algo que não tem similar em nenhum
outro lugar.
184
Oralidade e memória
Mesmo sendo identificados traços que particularizam cada literatura
dos países africanos em Língua Portuguesa, a relação oralidade e
escritura é um aspecto que permeia toda a literatura desses países.
Esse traço singulariza essas literaturas, pois diferente das criações no
ocidente, esse entrecruzamento entre a oralidade e a escrita, coloca
ambas numa relação de igualdade. Desse modo, muitos estudos se
debruçam sobre as criações na oralidade e na escrita moçambicanas,
angolanas e caboverdianas, dando menos ênfase a literatura da GuinéBissau e de São Tomé e Príncipe. Tentando suprir, em parte, esta lacuna,
nos debruçaremos sobre a literatura santomense.
Neste sentido, a literatura santomense, abarca em suas
narrativas e poesias, a perpetuação de uma tradição, que vem
na relação oralidade/escritura, onde a hierarquia entre passado,
presente e futuro não existe, pois todos os tempos se equivalem.
A identidade do povo santomense está nos escritos literários
através da memória cultural; está nas suas lendas e mitos, nos seus
rituais, nos costumes e danças; está nos cantares de revolta contra
o colonizador e na sua afirmação identitária com a conservação
da língua Forro, que sempre aparece em meio à portuguesa nos
escritos literários.
Alguns subgêneros na oralidade são recorrentes em São Tomé
e Príncipe, como: as sóias4, as contágis5, os vessus6 e os poemas em
Língua Forro. Muitas dessas criações são passadas para a escrita da
4
As sóias ou soyas são narrativas orais com um tom ficcional e, geralmente, são
contadas à noite pelo Kontadô Soya. Essas narrativas são passadas de geração para
geração, conservando a tradição santomense.
5
As contágis são narrativas orais com uma pretensão de verdade, pois geralmente
são narradas a partir de um acontecimento real. Ao contrário das sóias, elas podem
ser contadas todas as horas do dia.
6
Os vessus são os provérbios, que em São Tomé e Príncipe é um gênero literário.
185
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mesma forma que são contadas pelo Kontadô Soya7 ou são recontadas
e ficcionalizadas por autores contemporâneos.
A literatura escrita de São Tomé e Príncipe passou por algumas
fases que contemplam o período de Pré-independência até o período
de Pós-independência, nas quais aparecem autores como Olinda Beja,
que sempre canta as suas ilhas com imensa admiração. Portanto,
nosso trabalho tem como objetivo fazer um estudo do conto “Pé-dePerfume” (2005) da autora santomense, presente no livro de contos
homônimo, analisando como se dá essa relação oralidade e escritura.
Olinda Beja e sua “Santomensidão”
Maria Olinda Beja nasceu no arquipélago de São Tomé e Príncipe,
na cidade de Guadalupe, mas aos dois anos de idade emigrou para
Portugal, a terra de seu pai. Na Europa estudou e obteve Diploma
Superior dos Altos Estudos Franceses da Alliance Française e, mais
tarde, a licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas.
Olinda Beja é pesquisadora dedicando-se a escritura de contribuições
sobre seu país em revistas e livros didáticos. As suas publicações
aparecem no domínio da poesia e da prosa - são as obras poéticas - Bô
Tendê?; Leve, Leve; No País de Tchiloli; Quebra-Mar; Água Crioula e Aromas
de Cajamanga. No âmbito da prosa: A Pedra de Vila Nova; Pingos de Chuva;
A ilha de Izuari; Pé- de- Perfume e 15 Dias de Regresso.
Os cantares ao seu país de origem é percebido em toda a obra da
autora Olinda Beja. Sua “santomensidão” como ela mesma se refere
as suas ilhas, são arquipélagos que jorram chocolate em suas águas ou
que têm em suas terras a planta nativa izaquente, que como reza a lenda,
quem comer da fruta dessa árvore nunca deixará São Tomé e Príncipe.
7
O Kontadô Soya, equivalente ao Griot no restante dos países africanos de Língua
Portuguesa, é um sábio respeitado por todos de seu clã. Ele é um contador de estórias
que através de sua habilidade performática, a oralidade, o canto e a dança, perpetua
a tradição para os mais novos.
186
Oralidade e memória
Sendo assim, percebemos nos escritos de Olinda Beja um eterno
regresso às suas origens, já que passou tantos anos sem ir às ilhas.
Um regresso que é feito aos poucos com a redescoberta dos seus
quatro sentidos deixados em suspenso por anos. Sendo assim,
Olinda quando regressa se reencontra com seu falar de origem, com
a escuta das canções e narrativas em Forro, com os cheiros e sabores
da ilha do chocolate. O regresso de Olinda Beja, portanto, mais do
que ficcionalizado e narrado no romance 15 Dias de Regresso (2007),
pode ser visto em suas outras obras. Assim, o seu regresso é vivido
aos poucos, mais intensamente.
Nos aspectos textuais e estilísticos exalados de “Pé-de-Perfume”
O livro Pé-de-Perfume (2005) de Olinda Beja é composto por 23
contos, recontos de Sóias santomenses. Em cada narrativa descobrimos
um pouco mais de São Tomé e Príncipe, em suas várias nuances.
Ao nos debruçarmos na leitura dos contos, a cultura santomense é
vista em seus mais variados sabores e cheiros. A identidade do povo
santomense se constitui no tecido da narrativa, pois durante toda a
diegese vários elementos que definem a cultura das ilhas são postos
aos olhos do leitor.
O conto “Pé-de-Perfume”, nosso objeto de análise, traz alguns
recursos que ilustram uma relação estreita entre a oralidade e escrita e
alguns desses recursos só são possíveis através do trabalho mnemônico.
Nesse sentido, caminharemos no rastro dos aspectos textuais e
estilísticos exalados do conto “Pé-de-Perfume”. Apenas pela evocação
do olfato com o cheiro da árvore pé-de-perfume8 a vida da personagem
principal se modificará e elucidará como em vários países da África as
coisas são resolvidas de forma simples, a partir da sabedoria popular.
8
A árvore pé-de-perfume, cientificamente chamada de Cananga Odorata ou mais
popularmente conhecida como ylangue-ylangue, é uma planta de flores muito
aromáticas usadas em perfumaria.
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O conto “Pé-de-Perfume”, assim como todos os outros contos
que compõem o livro é aberto por uma epígrafe constituída por
um provérbio, escrito em Língua Forro santomense e traduzido
em Língua Portuguesa. A inserção desses provérbios assume uma
grande relevância para construirmos o sentido da narrativa, já que
visitando a tradição santomense sabemos que esse gênero oral
constitui um valor inestimável na perpetuação dos ensinamentos,
pois um provérbio condensa toda uma sabedoria que se renova a
cada vez que é proferido pela comunidade. Através do trabalho com
a memória, se presentifica e se ressignifica a sabedoria percebida
nos provérbios.
Então, a autora no momento em que transpõe esse provérbio para
a escrita cristaliza seu significado e esse cada vez que é lido perpetua
o seu ensinamento, um traço característico da oralidade. Desse modo,
o provérbio “Quem cá golo quadê cabeli”/ “Quem procura sempre
alcança” anuncia e condensa o desfecho da narrativa, constituindose como uma chave de leitura para o conto. A relação oralidade e
escrita é iniciada desde a abertura da narrativa, anunciando como
os gêneros da oralidade permearão toda a estória.
A inserção de palavras na Língua Forro santomense em meio à
narrativa escrita em Língua Portuguesa também exemplifica uma
afirmação identitária através dos aspectos que rodeiam a oralidade,
já que a língua oficial de escrita é a língua do colonizador, no
entanto, Olinda Beja traz para a sua narrativa a voz do povo
santomense, como percebemos em algumas passagens do conto
– “Mas... nem rumba, nem ússua, nem puíta lhe ofereceram o
amor por que tanto suspirava”. (p.160); “Serviu Genebra, Cuca
e Laurentina. D’jogó e izaquente.” (p.160) A utilização das duas
línguas demonstra que as duas se equivalem, bem como há
elementos da cultura santomense que outra língua não consegue
traduzir ou encontrar equivalentes.
188
Oralidade e memória
A narrativa, portanto, inicia com a apresentação em terceira pessoa
de Baltazar Gógó, um tartarugueiro, que ao contrário de toda uma
linhagem familiar que se dedicava ao mar, ele prefere tirar o seu
sustento em terra firme. A sensibilidade artesanal da personagem
é elucidada, pois a relação do artista com a sua arte vai muito além
da necessidade econômica. Numa das primeiras passagens que
caracterizam Baltazar Gógó identificamos esse sentido –
Baltazar demorava dias, semanas, meses e às vezes até um ano, a
retalhar, a desenhar, a aperfeiçoar. Mas quando os navios aportavam
ao largo, ele sabia que alguém do outro lado do mundo, viria de
propósito a Neves buscar-lhe a arte e a alma. (BEJA, 2005, p. 159)
O conflito da personagem se instaura quando Baltazar Gógó decide
“buscar mulher” (p.160), pois necessitava de um amor. No entanto,
essa procura prolonga-se imensamente. A resolução para o seu
problema foi os conselhos da sábia avó Domingas, que o recomenda
a procura de um curandeiro. “Foi então que a avó Domingas lhe deu
o mais sábio dos conselhos. Senhora de longa e experimentada vida
entregou sempre o seu destino nas mãos de quem vê pelos olhos da
noite”. (pp.160-161)
O mais novo, presente, pois, necessita da sabedoria do mais velho,
o passado, para a construção de um futuro. Nessa relação, os tempos
se equivalem, pois não há uma hierarquia entre eles, o velho adquire
a mesma importância do mais novo lhe cedendo sua sabedoria para
a perpetuação de uma tradição. Isso ilustra que o papel que o velho
assume é o de uma biblioteca viva. Para Bayer (2008),
[...] o ancião constitui o depositário narrativo de um povo, que, por
meio do processo mnemônico, preserva e propaga histórias ouvidas
em todas as fases da vida. O velho não cumpre apenas o papel de
divulgar e sedimentar os valores grupais, pois seu desempenho
vincula-se à atuação do mais novo – criança ou jovem –, iniciando-o
e colaborando para que ele tenha condições de desempenhar outras
funções dentro da coletividade. Dessa forma, as atribuições exercidas
189
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pelo velho e pelo novo representam os tempos passado e futuro,
garantindo os lastros necessários à sustentação e à permanência da
autoctonia. (BAYER, 2008, p.7)
Na narrativa, os conselhos da velha Domingas abrem os caminhos
para a resolução do conflito da personagem. A solução por meios não
racionais, encontrada para o problema de Baltazar, ilustra mais uma
característica marcante das tradições do país de São Tomé e Príncipe,
bem como em toda a África. “Baltazar falou então com Candondô, o
curandeiro que tocava a alma dos mortos no d’jambi de Morro Peixe.
Candondô fez milongo, saltou, cantou.” (p.161) Como em um passe
de mágica encontra-se a cura para a “enfermidade” da personagem –
“Tudo se resumia a uma flor verde indiciada de amarelo e de secretos
odores que teria de oferecer à amada.” (p.161)
Baltazar Gógó encontra a flor da árvore chamada Pé-de-Perfume e depois
disso Baltazar encanta todas as mulheres pelo seu perfume, passando a ser
chamado pelo mesmo nome da flor, que lhe dera muitos amores.
A solução do conflito se dá, portanto, por uma enigmática relação do
homem com a natureza, um envolvimento respeitoso, já que esse é um
costume recorrente na cultura popular dos países africanos, pois o mundo
vegetal é visto com a mesma importância do mundo dos humanos. Os
costumes africanos trazem com o nascimento de uma nova criança, a
plantação de uma árvore ou esse novo ser ganha um nome de quaisquer
elementos naturais. Então, esse elemento natural é uma extensão do
homem. Nesse sentido, Baltazar é como se fosse o próprio Pé-de-Perfume
exalando aromas por onde passa. Desse modo, Baltazar Gógó se confunde
com o pé-de-perfume assumindo o cheiro característico dessa árvore.
A partir da resolução do conflito da narrativa, Baltazar passa
a plantar muitas árvores, muitos pés-de-perfume para curar as
enfermidades dos outros, pois enquanto houvesse a árvore mágica
nenhum coração padeceria solitário –“E plantou. No ôbô, no morro,
na beira da estrada. Muitas muitas árvores. Tantas que nunca mais
190
Oralidade e memória
na ilha, houve um coração a batucar sem ser correspondido”. A ação
de Baltazar, então, não termina com o final da narrativa mais tem
uma perpetuação, pois enxergamos uma continuidade, da mesma
forma que acontece com a contação de uma lenda numa comunidade,
à medida que se conta a estória ele se perpetua e nasce novamente.
A mensagem principal passada pelo conto, portanto, tem um
cunho de exemplaridade, já que como anuncia o provérbio “quem
procura sempre alcança”. Dessa maneira, quando se têm iniciativa
e paciência as coisas almejadas poderão ser alcançadas, mesmo que
isso demande algum tempo.
Considerações Finais
A análise do conto “Pé-de-perfume”, de Olinda Beja (2005),
possibilitou-nos perceber diversos aspectos característicos das
culturas tradicionais africanas, dentre elas, merece destaque a
relação de proximidade que há entre oralidade e escrita na literatura
santomense, evidenciada pela utilização do provérbio que abre o
conto, assim como as palavras em língua Forra, marcando assim uma
valorização do idioma nativo, numa atitude de resistência.
Outro ponto que precisa ser destacado, diz respeito às práticas
culturais do povo santomense, presentes na narrativa em estudo.
Assim, temos a valorização do mais velho, que não se opõe ao jovem,
pois ambos caminham na mesma direção. Há também a valorização
de recursos que extrapolam o racional na solução dos problemas
cotidianos, atestando, dessa maneira, que a crença em elementos
místicos também faz parte da constituição humana.
Por fim, o conto joga luz sobre a questão do envolvimento do ser
humano com a natureza, o que ocorre através da identificação da
personagem com a árvore da qual assimila o nome. Esses aspectos,
entre outros, atestam a qualidade estética da narrativa de Olinda
191
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 183 - 192 •jan./jun.2011
Beja, cuja sensibilidade permite abordar temas que primam pela
conservação da memória coletiva de São Tomé e Príncipe. Em suma,
cabe ressaltar a relevância de conhecer e estudar essas literaturas,
tendo em vista a necessidade de, mediante o ensino, fortalecer o elo
entre o Brasil e a África, relação que contribui e muito ainda tem a
contribuir com a cultura brasileira.
Referências
_____. 15 Dias de Regresso. 3 ed. Coimbra: Pé de Página Editores. 2007.
BAYER. Adriana Elisabete. Ao. Ao Pé-de-perfume, pássaros viajeiros. 2008.
Disponível em: < h#p://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/04/
Artigos%20e%20Ensaios%20-%20Adriana%20Elisabete%20Bayer.pdf>.
Acesso em: 07 de jun. 2010 (2008).
BEJA, Olinda. Pé-de-Perfume. In: Pé-de-Perfume. 2 ed. Lisboa: Editorial
Escritor Lda. 2005. p. 159-162.
RIBEIRO, Giselle Rodrigues. Vida Escrita – Um breve olhar sobre o conto
africano contemporâneo em língua portuguesa. Revista Eletrônica do
Instituto de Humanidades. USP/São Paulo. Volume VII. Número XXVII.
Out- Dez 2008.p. 93-103.
192
Singularidade cínica e enfrentamento:
a coragem da verdade de Meursault
em O estrangeiro
Helano Jader Cavalcante Ribeiro1
1
Resumo: Este artigo pretende traçar uma análise entre o último curso de
Michel Foucault Le courage de La vérité e o romance de Albert Camus O
estrangeiro, mostrando como se dá a questão do discurso “verdadeiro”
através de uma existência outra, uma existência bela, livre das convenções.
Propomo-nos também a fazer a análise do personagem Meursault como
uma singularidade segundo o conceito homônimo de Gilles Deleuze em
seu livro A lógica do sentido, bem como através de seus interlocutores como
o próprio Foucault.
Palavras-chave: Coragem da verdade; O estrangeiro; Michel Foucault
Abstract: This article seeks to draw a relationship between the last course of
Michel Foucault, La courage de la vérité, and Albert Camus’ novel L’étranger,
showing how is the question of real speech through an other existence, a
beautiful existence, free from all conventions. We also propose to make the
analysis of the main character Meursault as a singularity according to the
homonymous concept of Gilles Deleuze in his book Logic of Sense, as well
as through its partners Michel Foucault.
Keywords: Courage of the truth; L’étranger; Michel Foucault
Olhando fixamente para o mar
1
Mestrando em Teoria da Literatura pela UFSC, bolsista CNPq
193
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 193 - 206 •jan./jun.2011
Olhando fixamente par o sol
Olhando fixamente para mim mesmo
Refletindo nos olhos
Do homem morto na praia
Eu estou vivo
Eu estou morto
Eu sou um estrangeiro
Matando um árabe
(The Cure: Killing an Arab2)
Se pudéssemos representar o homem do século XX na literatura,
diante de todos os seus medos e angústias, diante da possibilidade
de usar a “verdade” de seu discurso sem temer as consequências,
teríamos o personagem Meursault do livro do escritor franco-argelino
Albert Camus, que é, com Sartre, o escritor mais representativo do
existencialismo francês. Camus lança O estrangeiro em 1942. Sartre
o procura logo após ter lido o romance e aponta-o como um grande
clássico da literatura francesa. Desenvolve o filósofo francês uma
amizade com o escritor para rompê-la dez anos depois devido a
conflitos ideológicos com a obra O homem revoltado3. Publicada em
1951, representou uma crítica aos regimes totalitários, atribuindo a
eles culpa pela violência crescente da época. O homem revoltado trata
da imposição da morte dada a outras pessoas.
2
Música da banda de rock inglês The Cure, composição baseada na obra de Albert
Camus, O estrangeiro. Lançada em 1978 a música alcançou grande sucesso, não
obstante a polêmica causada, já que a banda foi acusada de racista por tratar de um
episódio em que alguém mata um árabe na praia.
3
O homem revoltado (em francês, L’homme révolté) é um ensaio filosófico escrito por
Albert Camus. O livro analisa o conceito da Revolta de um ponto de vista histórico.
Analisando suas características e seus desvirtuamentos. A revolta para Camus tem
uma dupla significação. Não é apenas histórica (apesar do seu ensaio ser histórico,
ou seja, analisa as manifestações históricas da revolta), a revolta encontra algo de
irredutível à história.
194
Singularidade cínica e enfrentamento
O estrangeiro é narrado em primeira pessoa através do protagonista
Meursault, quem a crítica chamaria de “homem absurdo”. Segundo
Fábio Barbosa e Aparecido Júnior (2010, p. 251-262):
O absurdo remete a noções como a ausência de sentido, a
inconformidade com as leis da coerência e da lógica. O termo é
utilizado para designar textos que não possuem lógica interna e não
obedecem a determinadas regras ou condições. Aqui, a desconstrução
textual pode ser considerada uma tentativa de redução de um texto
a um estado ad absurdum, isto é, a revelação das suas contradições
internas e impossibilidades lógicas, quer sejam imanentes ao texto
quer lhe sejam impostas.
A literatura do absurdo, sob essa ótica, vale-se de uma série de
características, nas quais encontramos a contraposição da idéia
de vida individual e livre arbítrio. As decisões de um homem são
seguidas de fatos aparentemente absurdos e irracionais, de modo que
suas atitudes devem ser levadas até as últimas conseqüências. Na
tradição racionalista da modernidade o homem é colocado no centro
de tudo, é na literatura do absurdo que temos o seu despedaçamento,
o afloramento de suas angústias e anseios. Na literatura do absurdo
há um embate entre homem solitário e mundo sem sentido. Para
Camus o absurdo sai da ótica do niilismo para chegar até ao ponto da
revolta. O absurdo existe como uma forma de burlar os mecanismos
de controle da própria modernidade, imposições da humanidade. O
absurdo não representa a extrema falta de esperança, mas o contrário.
O absurdo, na verdade, sempre foi motivo de indagações de Camus,
que tentava compreendê-lo e combatê-lo. É este, pois, o ponto inicial
do desenrolar dos questionamentos filosóficos em Camus, que recebe
o título de existencialista, embora ele mesmo o contradiga, já que o
autor afirma sua dedicação voltada aos temas do absurdo e da revolta.
O Sr. Meursault (só é possível conhecer seu sobrenome) representa
o homem que já não aposta mais no sentido do mundo e da ciência
para seguir com sua existência, mas se lança à angustiosa promessa
195
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 193 - 206 •jan./jun.2011
sartreana de liberdade, pois é este o homem do século XX, aquele
que sofre da exacerbação de subjetivismo, processo iniciado desde os
primórdios da civilização moderna e dilacerado após as experiências
das duas grandes guerras mundiais. O homem que se encontra só
no mundo e livre depois da morte de Deus decretada pelo filósofo
alemão Friedrich Nietzsche. Esse é um dos pontos principais de nossa
discussão, que se inicia com a morte de Deus e a superação do homem
pelo super-homem nietzschiano. O fim do homem e o início da era
do super-homem, este ser com plena consciência de si, que busca o
cuidado de si4 foucaultiano, para se ver livre dos aparelhos estatais de
ordem, observação e punição, livre dos dispositivos5.
É baseado no último curso de Michel Foucault Courage de la
vérité6(1983-1984) que iremos seguir com nossa análise do personagem
Meursault, de modo que possamos verificar que sua existência outra,
livre das convenções sociais, representa uma forma bela de existência
proposta pelo pensador francês.
4
O cuidado de si é uma forma de síntese, um ponto de conexão, entre a história
da subjetividade e as formas de governabilidade. O exercício do cuidado de si está
ligado a duas grandes zonas: ao poder e à governabilidade, ambos intrinsecamente
ligados à ética.
5
Giorgio Agamben esclarece em seu livro O que é o contemporâneo? E outros ensaios (2006) a noção foucaultiana de dispositivo e diz: “chamarei literalmente de
dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar,
orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as
condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto,
as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as
disciplinas, as medidas jurídicas, etc., cuja conexão com o poder é num certo
sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a
agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e –
por que não – a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos,
em que há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem se dar
conta das conseqüências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar
capturar” (AGAMBEN, 2009, p.41).
6
A coragem da verdade é seu último curso ministrado no Collège de France, cuja publicação se limita somente à língua francesa que abrange os estudos da noção de parrhesia.
196
Singularidade cínica e enfrentamento
Há nos jogos de verdade, como nos jogos para cuidar-se e conhecerse7 o perigo de que, determinados sujeitos, procurem mostrar o que
sabem, procurem conduzir outros sujeitos, buscando orientá-los,
por meio de diferentes afetos, apresentando possibilidades para
movimentar e vincular as pessoas entre si e visualizar no outro sua
capacidade de pensar, decidir e participar, exercendo sua liberdade.
A coragem da verdade deve se libertar de todas as formas de controle
externas ao sujeito, e, através das várias práticas de exercícios
de subjetivação propostos por Foucault é que podemos num ato
transgressor fazer valer a verdade do sujeito, pois para que haja um
sujeito, deve também haver verdade e esta deve ser alcançada longe
das convenções. O dizer verdadeiro não deve ser jamais imposto
pelas instituições de poder, mas sim, construídos pelo próprio sujeito:
Nada é mais inconsistente do que um regime político indiferente à
verdade; mas nada é mais perigoso do que um sistema político que
pretende prescrever a verdade. A função do “dizer verdadeiro” não
deve tomar forma de lei, como seria igualmente vão acreditar que
ele consiste de pleno direito nos jogos espontâneos da comunicação.
A tarefa do dizer verdadeiro é um trabalho interminável: respeitála em sua complexidade é uma obrigação que nenhum poder pode
economizar. Exceto para impor o silêncio da escravidão (FOUCAULT,
2006, p. 251).
Tal imposição da verdade ocorreu no século XX de forma
paroxística por intermédio dos totalitarismos, em especial sob o
comando do Nazismo. Por meio da imposição de um pensamento
que correspondia à verdade hitlerista.
Superar as convenções e substituí-las pelo desenvolvimento
da própria subjetividade livre dos dispositivos é disto que
nos fala Foucault. Meursault é a representação do homem na
7
O conceito de cuidado de si é um tema já tratado pela antiguidade clássica, desde
Platão até os filósofos epicuristas e estoicos. O conceito de parrhesia implica no falar
verdadeiro, ou dizer verdadeiro.
197
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modernidade aprisionado pelos dispositivos impostos pela
sociedade moderna, sua cruzada pela libertação do pensamento
(presos aos dispositivos) também aponta para uma tentativa de
ressurreição do sujeito.
Grande parte do pensamento de Foucault foi voltado para a
negação da noção de sujeito, pois para ele o sujeito existe para afirmar
as relações de dominação e poder, podemos então dizer que o sujeito
acaba por renascer dentro da lógica de combate foucaultiana, pois,
a partir do momento em que negamos algo, damos-lhe a voz da
existência de volta. Beatriz Sarlo em seu livro Tempo passado (2005)
revela-nos ser esta uma tendência que floresceu depois do apogeu
estruturalista nos anos 70:
Quando essa guinada do pensamento contemporâneo parecia
completamente estabelecida, há duas décadas, produziu-se no campo
dos estudos da memória e da memória coletiva um movimento de
restauração da primazia desses sujeitos expulsos durante os anos
anteriores. Abriu-se um capítulo que poderia se chamar “O sujeito
ressuscitado” (SARLO, 2008, p. 30).
A aceitação dos relatos dos sobreviventes de Auschwitz, dandolhes credibilidade só corrobora a ideia de ressurreição do sujeito,
a partir do momento em que a sua voz tem o poder jurídico de
incriminar os algozes nazistas.
O que restou de Auschwitz8 só pôde ser transmitido através
dos judeus sobreviventes e dos soldados. Deles temos uma má
testemunha de todo o ocorrido, já que não se encontravam livres do
trauma experimentado e não vivenciaram as últimas conseqüências
8
Giorgio Agamben em seu livro O que resta de Auschwitz (1998) procura salientar a
necessidade de se continuar narrando sobre Auschwitz principalmente a respeito daqueles que poderiam ter dado seu depoimento, mas que foram silenciados pela morte.
198
Singularidade cínica e enfrentamento
assim como os muçulmanos9. Os relatos representam uma tentativa
de libertação do sujeito até então silenciado.
É nesse silenciar de vozes sufocadas que se dá a crise da produção
narrativa, pois segundo o pensador alemão Walter Benjamin a sua
fonte primeira era oriunda da oralidade. As histórias anteriormente
contadas oralmente perdem com essa incapacidade do homem pósguerra de relatar o ocorrido. Sob a égide deste pensamento analisamos
o personagem Meursault, como um silenciado, a representação de
uma vítima do anseio nacional-socialista por destruição.
Assim inicia seu relato Meursault: “Hoje, mamãe morreu. Ou
talvez ontem, não sei bem” (CAMUS, 1999, p.7). Meursault vai ao
enterro de sua mãe e lá, ao contrário do que se esperava, não mostra
nenhuma emoção, ou melhor, o que mostra é indiferença para com
todos os trâmites relativos ao funeral de seu funeral. O personagem é
posto à prova em várias situações, nas quais existe uma determinada
expectativa por parte das pessoas em torno do enterro. Contudo, o
que percebemos é um desarticular de tais expectativas em nome de
sua verdade. Frédéric Gros (2004, p.11) nos fala disso ao analisar em
seu livro sobre o curso de Foucault Le courage de la vérité, para quem
a coragem da verdade é indissociável da ideia de discurso livre: “a
parrhesia é a liberdade de linguagem, o dar a liberdade de falar, o falar
francamente, a coragem da verdade”. Ao expor sua verdade, que vai
9
Os muçulmanos, no contexto da Segunda Guerra Mundial eram os seres quase
abjetos que povoavam Auschwitz. Os muçulmanos eram considerados figuras pelo
simples fato de que seus cadáveres pareciam com bonecos, já não possuíam aspectos
que os caracterizassem como seres-humanos. A figura do Muselmann era uma espécie
de morto-vivo, ou inumano e que dentro dos campos de concentração se encontravam em um estágio difícil de ser definido como ser - humano: “o muçulmano é um
ser indefinido, no qual não só a humanidade e a não-humanidade, mas também a
vida vegetativa e a de relação, a fisiologia e a ética, a medicina e a política, a vida e
a morte transitam entre si sem solução de continuidade” (AGAMBEN, 2008, p. 56).
Agamben os considera como as verdadeiras testemunhas, mas que foram silenciados
pela morte, de modo que jamais poderíamos ter seu relato.
199
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de encontro às convenções, Meursault está exercendo sua parrhesia.
Ir ao cinema no dia do enterro da própria mãe é mais uma prova
de desarticulação dos dispositivos ou das convenções existentes em
nossa sociedade em nome de sua verdade10.
A singularidade em Meursault é cínica. Os cínicos são apontados por
Michel Foucault como aqueles que melhor souberam usar seu direito
de parrhesia. A filosofia cínica tem como característica certa dureza
no uso da fala, uma franqueza rude que se assemelha ao discurso de
Meursault, o que torna seu modo de vida particular e único, do qual
podemos extrair uma beleza singular. É através de sua coragem da
verdade que o protagonista põe sua vida à prova, de forma escandalosa.
Mas o que entender por verdade? Ou coragem? Desde os diálogos
platônicos Laques e Alcebíades11 constatamos a relatividade destes
dois vocábulos. A verdade como uma forma de provocação só será
legitimada por Foucault depois de passar pelas seguintes formas de
verificação: a verdade é o que não é oculto, o que não é dissimulado,
mas é aparente. A verdade é o que é puro, sem alterações. A verdade
é retilínea, mantém-se fiel em seu propósito. E por fim, a verdade
é incorruptível e permanece idêntica a si mesma. Os cínicos, não
obstante seus critérios outros de verdade, valiam-se de tais assertivas,
mas de uma maneira transgressora. Fazem uma caricatura delas
através de seu comportamento exagerado. Masturbar-se, por
exemplo, em praça pública, surge como uma forma hiperbólica de
exercer seu direito de verdade. Eles faziam suas necessidades físicas
10
Devemos ter muito cuidado com a palavra “verdade”. Interpretá-la em Foucault
como “verdade cartesiana ou absoluta”seria subestimar o pensamento do autor
francês. A coragem da verdade de Foucault nada mais é que a liberdade de assumir
as idiossincrasias, mesmo que elas possam chocar.
11
Foucault diferencia os dois diágolos de forma que para ele no Alcebíades temos o
cuidado de si determinado é guiado pela conduta da alma do sujeito. Trata-se, então,
do conhecimento da alma. A outra linha deste pensamento vem representada através
do diálogo Laques. Aqui o objeto do cuidado de si é a bios, a vida, segue através da
vida aubmetida a regras do próprio sujeito, dá-se uma forma à própria existência.
200
Singularidade cínica e enfrentamento
diante de todos simplesmente porque achavam que tais processos
naturais dos seres vivos não precisavam ser escondidos dos olhos de
todos. Sua verdade é de ruptura com as expectativas da sociedade:
Parece-me que no cinismo, na prática cínica, a exigência de uma
forma de vida extremamente caracterizada - com regras criações ou
modas muito caracterizadas, muito bem definidas – está articulada
muito fortemente sobre o princípio do dizer - verdadeiro, do dizer verdadeiro desavergonhado e sem temor, dizer-verdadeiro ilimitado
e corajoso, do dizer-verdadeiro que empurra a sua coragem e sua
ousadia até se tornar intolerável insolência. Esta articulação do dizerverdadeiro sobre o modo de vida, essa ligação fundamental, essencial
no cinismo entre viver de uma certa maneira e dedicar-se ao dizer
verdadeiro são tão mais notáveis quando se fazem, em certa medida,
imediatamente, sem mediação doutrinal, ou, em todo caso, no interior
de um quadro teórico bastante rudimentar12 (FOUCAULT, 2009, p.08).
Meursault prossegue com uma vinda simples, sem objetivos, sem
ambições, sem sobressaltos. É em sua vida simples e em seu discurso
verdadeiro que identificamos o elemento cínico do personagem.
Não menos ortodoxo é seu relacionamento com Marie, pois foge a
todos os padrões e rompe com todas as expectativas da sociedade. Ao ser
perguntado se ele gostaria de se casar com ela responde que “tanto fazia,
mas se ela queria poderíamos nos casar. Quis, então, saber se eu a amava.
Respondi, como, aliás, já respondera uma vez, que isso nada queria dizer,
mas que não a amava” (CAMUS, 1999, p. 45). O personagem procura
manter o equilíbrio necessário para continuar com sua existência, mas
não consegue corresponder com as exigências da sociedade.
Meursault pertence igualmente a essa força do pensamento
que desarticula e não deixa de dizer. Ele é o representante de uma
comunidade inoperante13, é uma figura que nem se fecha, nem
12
Tradução do prof. Dr. Pedro de Souza utilizada na disciplina “Vida e obra: retomada
em torno do tema do estilo de existência”. Não há tradução do livro em português.
13
Jean-Luc Nancy diz que repensar a comunidade em termos distintos daqueles
que, na sua origem cristã, religiosa, a tinham qualificado, repensá-la em termos do
201
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 193 - 206 •jan./jun.2011
deixa capturar sua singularidade. Leva seu pensamento através de
caminhos sinuosos. Não somente o pensamento é força motriz, mas
também o não-pensamento é potência.
“I would prefer not to” do personagem Bartleby do escritor
Herman Melville14, como exemplo do desarticular do outro através
do não-pensamento, o que Gilles Deleuze em Crítica e clínica (1993)
chama de fórmula. O advogado em Bartleby revela não encontrar nele
nenhum traço humano, já que o protagonista não corresponde aos
padrões comuns já determinados, principalmente, através da fala. Em
“Bartleby, ou a fórmula”, Deleuze mostra que é esse o procedimento
do personagem de Melville:
A fórmula I WOULD PREFER NOT TO exclui qualquer alternativa
e engole o que pretende conservar assim como descarta qualquer
outra coisa; implica que Bartleby pára de copiar, isto é, de reproduzir
palavras; cava uma zona de indeterminação que faz com que as
palavras já não se distingam, produz o vazio da linguagem. Mas
também desarticula todo ato de fala, ao mesmo tempo que faz de
Bartleby um puro excluído, ao qual já nenhuma situação social pode
ser atribuída (DELEUZE, 1997, p.85).
A in-diferença é motor do acontecimento; a linguagem cria o
evento, do mesmo modo que a não-linguagem. Na literatura podemos
comum e a dificuldade de compreendê-lo em seu caráter não dado, não disponível e,
nesse sentido, o menos comum do mundo. Mesmo a comunidade inoperante, como
chama Nancy a partir de seus estudos de Bataille, com sua recusa dos Estados-nação,
partidos, assembléias, povos companhias ou fraternidades, deixava intocado esse
domínio do comum e o desejo (e a angústia) do ser-comum que os fundamentalismos instrumentalizam crescentemente. A coragem da verdade de Meursault é que
legitima e assegura sua singularidade em sua comunidade que enfrenta o comum.
Tal pensamento se assemelha ao de Giorgio Agamben em seu livro A comunidade que
vem quando este diz que essa comunidade é aquela que o Estado não pode tolerar.
Uma singularidade qualquer que o recuse sem constituir uma cópia espelhada do
próprio Estado em uma imagem que possa ser reconhecida nesse sistema.
14
Personagem de Bartleby, The Scrivener (traduzido para o português como Bartleby,
o Escrivão – Uma História de Wall Street ou como Bartleby, O Escriturário), do estadunidense Herman Melville (1819-1891), publicado pela primeira vez em 1853.
202
Singularidade cínica e enfrentamento
encontrar vários exemplos. Assim como o Bartleby de Melville temos
também a personagem Macabéa do romance A hora da estrela,15 de
Clarice Lispector em torno dessa mesma intrasitividade, o que a torna
singular, do mesmo modo como o protagonista de O estrangeiro de
Camus. Meursault paga com a própria vida pelo seu silêncio, pela
sua indiferença, assim como Macabéa e Bartleby16.
Através de sua verdade desliza-se entre o interlocutor. É dessa
maneira uma singularidade. A morte do personagem Meursault
é puro acontecimento. Segundo Michel Foucault, em relação à
morte e ao acontecimento em seu “Theatrum Philosophicum”: “O
acontecimento não é um estado de coisas que poderia servir de
referente a uma proposição (o fato de estar morto é um estado de
coisas em relação ao qual uma asserção pode ser verdadeira ou falsa;
morrer é puro acontecimento que jamais verifica nada)” (FOUCAULT,
2000, p.236). Devemos, pois, pensar na morte como uma aliada do
pensamento, do acontecimento, do fantasma, da diferença e da
repetição. Sob esta dimensão é correto pensar a morte do personagem
Meursault como puro acontecimento, um vislumbre.
O estrangeiro é a representação da cada um de nós e sua coragem de
verdade tem como preço sua própria vida. É na hora da nossa morte
que o ser humano deixa de ser invisível às pessoas, que percebem
que ele existe apenas quando já não existe mais. Toda morte é uma
singularidade, um acontecimento. A morte de Meursault é um
acontecimento, é, pois, uma singularidade. Deleuze em Crítica e clínica
traduz a singularidade por originalidade e diz:
15
O romance de Clarice conta a história da datilógrafa alagoana Macabéa, que migra
para o Rio de Janeiro, tendo sua rotina narrada por um escritor fictício \amado
Rodrigo S.M. Macabéa recebe aqui uma leitura que a retira do lugar-comum de
retirante e devolve-lhe sua singularidade.
16
Nos dois exemplos citados os dois personagens têm a morte como acontecimento. A
morte é o acontecimento maior que cala, mas que assim como o silêncio de Bartleby
ou a tolice de Macabéa é potência do pensamento.
203
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 193 - 206 •jan./jun.2011
Cada original é uma potente Figura solitária que extravasa qualquer
forma explicável: lança flamejantes dardos-traços de expressão, que
indicam a teimosia de um pensamento sem imagem, de uma questão
sem resposta, de uma lógica extrema e sem racionalidade (DELEUZE,
1997, p. 95-96).
A respeito de Meursault, vemos sua singularidade apenas pelo fato
de ele existir, por estar lá. As convenções ou os dispositivos desarmam
de início sua singularidade, procuram apagar sua identidade para
torná-la nula. O singular representa uma figura marginal, fora das
leis da sociedade pré-estabelecidas.
Se a repetição é transgressão o fantasma gira em torno da repetição,
pois de acordo com Foucault: “a metafísica do fantasma gira em
torno do ateísmo e da transgressão” e conclui a respeito de Lógica
do sentido. “Lógica do sentido nos diz como pensar o acontecimento
e o fantasma” (FOUCAULT, 2008, p.234), ou seja, como pensar a
singularidade, a diferença e a repetição, ou, simplesmente, como
pensar. Para poder pensar é necessário transgredir, subverter.
Em O estrangeiro, a transgressão que se dá através da coragem da
verdade do protagonista é uma condição sine qua non da existência,
essa busca pela repetição potencializada pela diferença. Quando a
transgressão utiliza o discurso falado por todos os homens, como
saída para o enfrentamento, contrai para si a mesma linguagem
da lei. A resistência passiva e inoperante de Meursault vai além,
porque desmonta a linguagem padrão, e é aí onde reside seu poder
transgressor, subversivo, cínico.
É o que nos ensina Deleuze em sua Lógica do sentido. Subverter
o platonismo não quer dizer negá-lo, mas sim, apontar nele
possibilidades que devem ser resgatadas e lidas de outra forma na
modernidade, como por exemplo, a noção de simulacro.
Deve-se, pois potencializar a noção de simulacro para poder
resgatá-lo. A simulação nada mais é senão o próprio fantasma; o
204
Singularidade cínica e enfrentamento
simulacro pertence às profundezas, o fantasma à superfície, efeito do
funcionamento do simulacro. Nesse sentido, a reversão do platonismo
é, então, na perspectiva de Deleuze, não simplesmente tornar o
mundo sensível mais importante que as Idéias, mas a aceitação do
simulacro, ou seja, é fazer com que ele afirme seus direitos entre as
cópias. Este é, pois, nosso objetivo, resgatar a personagem Meursault
de um mundo em que o comum impera, tornando-o singular,
devolvendo-lhe sua condição humana, sensível.
As últimas páginas mostram Meursault em paz consigo, não
obstante sua condenação à pena de morte. Para ele fica bem clara
sua impotência diante de um mundo regido por leis que lhe escapam
muitas vezes à compreensão: “A paz maravilhosa deste verão
adormecido entrava em mim como uma maré. Neste momento, e no
limite da noite soariam sirenes. Anunciavam partidas para um mundo
que me era pra sempre indiferente” (CAMUS, 1999, p. 125-126).
Referências
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Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado. Rio de Janeiro: Forense
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Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.
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DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto
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SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva.
Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo
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206
A escritura autobiografica de
Clarice Lispector
Leilane Hardoim Simões1
Edgar Cézar Nolasco2
12
Resumo: O livro Água Viva, da escritora Clarice Lispector, pode ser lido como
uma autoficção, na medida em que ela insere traços de suas circunstâncias
pessoais e de vida em sua construção. Tendo em vista esse traço biográfico,
nossa leitura visa uma comparação entre o que diz a escritora sobre si no
livro e o que a crítica tem mostrado. Como aporte teórico de nossa leitura,
vamos privilegiar o que Edgar Cézar Nolasco disse, principalmente nos
livros Restos de Ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector e Clarice
Lispector: nas entrelinhas da escritura.
Palavras-chave: Clarice Lispector; Água Viva; Autoficção;
Abstract: The Água Viva book, which was wri#en by Clarice Lispector,
may be read as a autofiction, in so far as she inserts traces of her personal
circumstances on its construction. In view of this biography trace, our
reading aims a comparison between what the writer says about herself on
this book and what the review shows. As a theoretical base of our reading,
we are going to give preference in what Edgar Cézar Nolasco said about
her, mainly on books Restos de Ficção: a criação biográfico-literária de Clarice
Lispector and Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura.
Keywords: Clarice Lispector; Água Viva; Autofiction
1
Graduanda do 4º ano do curso de Letras no DLE/CCHS-UFMS. É bolsista de
Iniciação Científica – PIBIC/CNPq. Desenvolve pesquisa sobre a obra literária
da escritora Clarice Lispector. Membro do NECC – Núcleo de Estudos Culturais
Comparados – UFMS
2
Professor da graduação e da Pós-Graduação em Letras no DLE/CCHS, do PPGMel – DLE/CCHS e do PML – CPTL na UFMS. Coordenador do NECC – Núcleo de
Estudos Culturais Comparados – UFMS. Orientador das pesquisas.
207
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 207 - 216 •jan./jun.2011
Quem diz que me entende nunca quis saber (...)
Clarisse está trancada no seu quarto
Com seus discos e seus livros, seu cansaço
Eu sou um pássaro
Me trancam na gaiola
E esperam que eu cante como antes
Eu sou um pássaro
Me trancam na gaiola
Mas um dia eu consigo existir e vou voar
pelo caminho mais bonito
(Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá.
Clarisse. In. Uma outra estação, 1997, faixa 5.)
Em um sopro de vida a menina Haia nasce em 20 de dezembro
de 1920. Em 1921, chega a Maceió, capital de Alagoas, para, em
1943, ganhar o Brasil com sua primeira obra publicada, Perto coração
selvagem, e aos poucos conquistar o mundo como a reconhecida
Clarice Lispector3. Porém, é em 1973, com a sua produção escritural
acontecendo de maneira contínua, que Lispector escreve Água viva,
um livro que pode ser lido como uma autoficção, na medida em que
ela insere traços de suas circunstâncias pessoais e de vida em sua
obra. No livro intitulado Escrita de si, escrita do outro, Diana Klinger
define a autoficção:
A auto-ficção é uma maquina produtora de mitos do escritor, que
funciona tanto nas passagens em que se relatam vivências do narrador
quanto naqueles momentos da narrativa em que o autor introduz no
relato uma referência a própria escrita, ou seja, a pergunta pelo lugar
da fala (O que é ser escritor? Como é o processo da escrita? Quem
diz eu?). (KLINGER, 2007. p. 51)
3
Datas e dados retirados da cronologia da vida da escritora Clarice Lispector do
site feito em homenagem a escritora Clarice Lispector pela editora que publica suas
obras até o presente momento, Editora ROCCO. Disponível em: h#p://www.claricelispector.com.br/Default.aspx - acessado em: 30 de abril de 2010.
208
A estrutura autobiográfica de Clarice Lispector
E é essa máquina produtora de certos mitos da escritora Clarice
Lispector intitulada de Água viva, que, antes mesmo de sê-lo, era
outro, o livro Objeto Gritante (1970) uma obra com maior número de
páginas. Nesse momento, talvez, quem melhor entendera a proposta
estética da escritora, e que sua produção depois de então só viria a
confirmar, tenha sido o amigo e filósofo José Américo Pessanha, que
recebera os datiloscritos do ainda Objeto gritante. Em carta à amiga,
de 5 de março de 1972, Pessanha diz e sugere: “tentei situar o livro:
anotações? pensamentos? trechos autobiográficos? uma espécie de
diário (retrato de uma escritora em seu cotidiano)? No final achei que
é tudo isso ao mesmo tempo” (apud Gotlib, 1995, p. 404).
E a escrita de Clarice Lispector posterior a essa carta de Pessanha,
realmente confirmou as conjecturas do amigo sobre o livro, pois
mais tarde Clarice modifica seu livro por crer que ele é demasiado
autobiográfico, assim como nos afirma Maria das Graças Andrade
em sua tese intitulada Da escrita de si à escrita fora de si (2007). Essas
mudanças podem ser lidas como uma tentativa de abandonar a parte
biográfica que se instaura em Objeto Gritante. Esse ato faz com que
a escritora traia sua obra primeira, reduzindo consideravelmente
seu livro, porém sua obra escapa à completa traição ao insistir em
traçar a autobiografia da escritora: “Quero captar o meu é. E canto
aleluia para o ar como faz o pássaro. E meu canto não é de ninguém.”
(LISPECTOR, 1973, p. 8).
Mesmo após todas as alterações tão significativas que a escritora
Clarice Lispector faz em sua obra Água Viva, o livro não perde o traço
de autobiografia como podemos nos embasar pela leitura de estudos
sobre a obra:
Uma escrita autoficcional é sempre uma escrita de si, que nunca deixa
de ser já uma escrita do outro, mas que, talvez por isso mesmo, faz
retornar sempre aquele sujeito em si, mesmo que de per si. Ou seja,
uma escrita de si aponta para o sujeito de dentro e de fora da escrita,
não privilegiando, nunca, só o de dentro ou só o de fora. Pensando
209
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 207 - 216 •jan./jun.2011
nisso, é como se disséssemos que a Clarice da escrita do datiloscrito
Objeto Gritante que, para Andrade, é uma escrita de si (posto que
autobiográfica pessoal íntima), suplementa a Clarice da escrita de
Água viva (e vice-versa), que, segundo Andrade, é uma escrita fora
de si (exterior, impessoal , ex-tima). (BESSA-OLIVEIRA, 2009. p. 2)
E essa permanência da leitura da obra Água viva, como sendo
autobiográfica dá-se pelo fato de que podemos definir a autobiografia
como:
(...) um espaço discursivo no qual se sobrepõem, a um só tempo,
recordação e invenção, documento da memória e obra de criação,
permitindo uma ‘dupla leitura’ que não é a alternativa entre estas
duplas características – ‘documento da memória’ ou ‘obra criativa’ –
mas é sim a própria somatória das duas. (VERSIANI, 2005. p. 41-42)
As mil e uma Clarices
“Ah persona, como não te usar e enfim ser!”
(LISPECTOR, 1984. p. 213)
Pode-se notar que no meio acadêmico as obras de Clarice Lispector
são estudada com afinco, pois eventos e comunicações a respeito da
escritora normalmente atraem um número significativo de interessados.
Talvez por sua “timidez feminina” e “arrojo intelectual ousado”, como
a define Edgar Cézar Nolasco, em seu livro Espectros de Clarice, a
intelectual seja tão estudada. Com tantos interessados em pesquisar,
escrever, descrever e ouvir sobre as suas obras, a escritora Clarice
Lispector vai aos poucos se tornando uma persona um tanto quanto
subjetiva, pois cada um acaba lendo a sua Clarice. Podemos dizer que
até mesmo Clarice Lispector elaborou sua própria persona ficcional.
Nolasco complementa essa ideia ao falar da importância de Clarice e de
sua fortuna crítica, mesmo depois de duas décadas de seu falecimento:
Mesmo passado 20 anos de sua morte, podemos dizer que Clarice
continua mais viva do que nunca. Quer seja através de seus escritos,
que nada mais são que sua extensa biografia; quer seja através dos
210
A estrutura autobiográfica de Clarice Lispector
inúmeros trabalhos (ensaios, dissertações, teses ou livros) a respeito
de sua obra. Trabalhos esses que, de certa forma, dão continuidade
à produção da autora que, infelizmente, foi interrompida de forma
abrupta (...) (NOLASCO, 1998, p. 115)
É essa contínua escrita e estudos sobre a criação escritural de
Clarice Lispector que a mantêm viva no meio literário e que torna
a leitura de sua obra cada vez mais ampla. Cada teórico tem seu
modo de ler e definir os livros de Lispector, mesmo que às vezes
de forma parecida, cada um constrói uma imagem, um mito das
“Mil e uma Clarices que se insinuam nas frestas da vida e da ficção”
(NOLASCO, 2008. p. 10). A própria Clarice Lispector construiu seu
mito de si fazendo a sua leitura de Clarice. Assim, veremos se lermos
o livro Água Viva, como aqui defendemos, como uma autobiografia,
uma escrita de si. Sendo assim, a obra se torna interstícios a diversas
analises e leituras (entende-se que a diversas e não a qualquer
leitura), fazendo com que muitos teóricos busquem esmiuçar a obra
da escritora, assim como, Anderson Matos4:
Água Viva é realmente capaz de chocar o leitor, não apenas pelo uso
da linguagem e pela falta de uma história, mas também por tratar
de diversos temas com profunda sinceridade. (...) de forma que não
é possível ler Água viva e ficar indiferente. (MATOS, 2009. p. 306)
Edgar Cézar Nolasco novamente deixa sua contribuição e
completa a escrita de Matos em seu texto “Roland Barthes lê Clarice
Lispector: Água viva – uma galáxia de significantes”, ao definir a obra
como sendo:
Água Viva, texto “sem tema e sem personagem” será, desse modo,
uma síntese reflexiva de todos os demais escritos anteriores da autora,
dialogando com eles, além, é claro, de problematizar ao extremo
a questão da própria escritura. Desse modo, pode-se dizer que o
4
Mestre em PPG-Letras – Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ UFRGS.
Título: O Sensacionalismo de Fernando Pessoa em Água Viva de Clarice Lispector.
211
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 207 - 216 •jan./jun.2011
texto Água Viva é um “aproveitamento”, ou melhor, uma “reescrita
infinita” de muitos “fragmentos textuais” escritos que a autora veio
problematizar por toda a sua pratica escritural (mesmo nas obras
posteriores a Água Viva). (NOLASCO, 1995. p. 61)
E é nesse livro tão problematizado por diversos teóricos que
podemos encontrar uma pintora tentando escrever: “Quando vieres
a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura e as minhas
exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. É que agora necessito
de palavras.” (LISPECTOR, 1943, p. 9); e em sua vida pessoal uma
escritora que se lança ao “hobby” de pintar. Para, por fim, ser a
escritora/pintora de um livro/quadro abstrato, o Água viva, como
afirma José Castello: “Ciente do abismo em que se meteu, Clarice
usou a expressão ‘literatura abstrata’ quando falou, um dia, de Água
viva.” (CASTELLO, p. 1). Desse mesmo modo Ricardo Iannace, define
a obra da escritora afirmando que a escrita de Lispector “abre para
comparações estreitando o literário às artes plásticas – uma pintura
abstrata, nesse caso.” (IANNACE, 2009. p. 52)
Partindo desse pressuposto, podemos ler uma Clarice, além de
tudo, pintora, como afirma Marcos Bessa-Oliveira:
Para falar da carreira profissional/ intelectual de Clarice Lispector
não podemos deixar de mencionar uma fase da escritora, que fora
os dez últimos anos de sua produção, e sem contar que justo tal
produção, além de ser uma produção atravessada, de certo modo,
pelo período ditatorial no Brasil, foi também neste final de produção
que a escritora fez uso da pintura como forma de expressão. (BESSAOLIVEIRA, 2007, p. 76)
Se, por um lado, Clarice Lispector chega ao ponto de vivenciar as
experiências de vida de seus personagens como a vivência de pintora/
escritora e escritora/ pintora, por outro, a escritora cria personagens que
são reflexos destorcidos dela mesma. No livro Restos de ficção, Nolasco
narra que Clarice, na véspera de sua morte, internada no hospital,
tenta fugir de seus aposentos, porém é impedida por uma enfermeira;
212
A estrutura autobiográfica de Clarice Lispector
transtornada Clarice diz: “você matou meu personagem” (GOTLIB
apud NOLASCO, 2004, p. 22). Nolasco termina por embasar o que foi
explicitado ao afirmar que “Vida e ficção. Talvez como forma de não
morrer, Clarice se vê como personagem de si mesma e ficcionaliza a
morte até mesmo nos restos de vida” (NOLASCO, 2004, p. 22).
Essa Clarice também é personagem, como nos explicita José Castello,
que, ao escrever sobre a possível influência da autora na literatura
contemporânea brasileira, a trata como uma Clarice personagem de si
mesma: “Clarice Lispector, quem sabe, é só um personagem criado por
Clarice Lispector. Uma hipótese assustadora, que exacerba mais ainda
sua solidão” (CASTELLO, sd, p. 2). Para Castello, esse sentido de solidão
vem do fato de Clarice ser uma escritora única, que abdicava de seu
lugar de conforto como uma escritora por profissão ou por vaidade, pois
a autora está além da literatura se pensar que seus livros, por muitas
vezes, extrapolam o próprio romance, sendo escritos com desconfiança
e desinteresse pelo cânone literário. Por isso, Castello afirma que:
Qualquer tentativa de descender dessa Clarice radical, que se coloca,
e escreve, desde um lugar que escritor algum ousou pisar, corre o
risco, sempre, de se converter em uma encenação deplorável. No
máximo, uma imitação mais ou menos bem sucedida, e mais nada.
(CASTELLO, sd, p. 2)
Em meio a essa multidão de Clarices, ainda podemos encontrar
a Clarice contrabandista. Uma escritora que copiava partes, às vezes
inteiras, de outras obras e outros escritores. Ao fazer suas crônicas
para o jornal, por vezes a escritora, em vez de escrever novas crônicas,
apenas copiava partes de sua própria obra. O livro Água viva também
é um dos fragmentos de escritas anteriores de Clarice Lispector, como
afirma Edgar Nolasco:
Clarice juntou “fragmentos” na construção da escritura do livro,
abrindo a possibilidade para que o leitor venha e dê um sentido a
esse “original” (texto resultante) sem sentido aparente. (NOLASCO,
2001, p. 197)
213
Revista Rascunhos Culturais •Coxim/MS • v.2 • n.3 • p. 207 - 216 •jan./jun.2011
O contrabando não dissimulado por Clarice na construção do livro
- em que ela traz textos seus de outros lugares para dentro desse,
além de retirar outros (ou os mesmos trazidos) por excesso – nos
permite dizer que o texto que chegou até o leitor não tem “origem”.
(NOLASCO, 2001, p. 197)
Um fragmento de escrita que não deixa de ser completo em sua
totalidade e muito respeitado desde a época de sua criação. Outra
leitura que podemos fazer de Clarice Lispector e de sua obra,
pode ser encontrado no site feito em homenagem a escritora pela
editora ROCCO, que traz alguns de seus rascunhos, cartas, artigos
e testemunhos sobre Clarice. O trecho a seguir é uma carta de
seu amigo Alberto Dines, enviada em 20/07/1973 para a escritora,
descrevendo, de forma belíssima e até um tanto encantado, sobre
o livro Água viva:
É menos um livro-carta e, muito mais, um livro música. Acho que
você escreveu uma sinfonia. É o mesmo uso do tema principal
desdobrando-se, escorrendo até se transformar em novos temas que,
por sua vez, vão variando, etc. etc. (DINES, 1973, p. 1)
(...) E aí acho que posso responder à sua pergunta fundamental: o
livro está terminado? Está. Definitivamente. Mas na mesma medida
em que um movimento de uma sinfonia se contém em si mesmo.
Ou, na mesma medida em que uma sinfonia de Beethoven ou do
próprio Mahler dispensam as outras. O seu Água viva, assim como
os movimentos e as sinfonias “funcionam” individualmente, tem sua
vida própria. (DINES, 1973, p. 1)
Percebemos que mesmo a Clarice pessoal, a Clarice amiga, é
admirada por quem a cerca. Ela nunca deixa de ser uma artista,
sendo como escritora ou pintora, é acima de tudo uma Clarice viva e
produtora de grandes obras artísticas. Luís Fernando Veríssimo, em
um artigo/ testemunho, para o mesmo site mencionado anteriormente,
narra sua primeira impressão de quando ainda jovem conheceu a
pessoa Clarice, isso antes mesmo de conhecer a escritora Clarice
Lispector, já que ela era amiga intima de seus pais:
214
A estrutura autobiográfica de Clarice Lispector
(...) a minha primeira impressão da Clarice foi a de todo mundo:
fascinação. Com a sua beleza eslava, os olhos meio asiáticos, o erre
carregado que dava um mistério especial à sua fala, e ao mesmo tempo
com seu humor, e seu jeito de garotona ainda desacostumada com o
tamanho do próprio corpo. O fato de que aquela Clarice era a Clarice
Lispector não me dizia muito. Eu sabia que era uma escritora meio
complicada, nunca tinha lido nada dela. (VERISSIMO, 2005. p. 1)
Seja a Clarisse da música de Renato Russo, personalidade da musica
brasileira que nunca confirmou ter lido Clarice Lispector, ou a Clarice dos
amigos que conviveram com a escritora ou, ainda, a pintora/ escritora
e escritora/ pintora de Água Viva. Clarice Lispector, assim como seu
livro Água Viva, não é um hieróglifo a ser decifrado de forma única e
plenamente verdadeira, a própria escritora ratifica ao escrever na obra
Água Viva que: “Estou te falando em abstrato(...). Por que não abordo um
tema que facilmente poderia descobrir?” (LISPECTOR, 1943, p. 57). Mas
um fato é de uma verdade intricada de se contestar: a escritora se marcou
na sua escritura, escritura essa que, por sua vez, marcou teóricos, críticos
e leitores que até os dias de hoje lêem e estudam com afinco as obras
da escritora brasileira fazendo surgir, de uma a uma, as mil Clarices.
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Normas da Revista
A Revista Rascunhos Culturais aceita textos inéditos sob forma de artigos
e, eventualmente, traduções, entrevistas, resenhas, ensaios, resumos de livros
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3. Em ambos os casos, o autor deve ser citado ao final da citação, entre
parênteses pelo sobrenome, em maiúsculas, separado por vírgula da data
de publicação. Ex: (SILVA, 1987). Quando for necessário, a especificação
da(s) página(s) deverá seguir a data, separada por vírgula e precedida de
“p.” Ex: (SILVA, 1987, p.100). Se o nome do autor estiver citado dentro
do texto, pode-se apenas indicar a data e a página (se necessário), entre
parênteses. Ex: “Silva (1987) assinala que etc…” As citações de diversas
obras de um mesmo autor, publicadas no mesmo ano, devem ser
discriminadas por letras minúsculas após a data, sem espacejamento. Ex:
(SILVA, 2000a). Quando a obra tiver dois ou três autores, todos poderão ser
indicados, separados por ponto e vírgula. Ex: (SILVA; SOARES; SOUZA,
2000). Quando houver mais de três autores, indica-se o primeiro seguido
de “et al”. Ex: (SILVA et al., 2000).
4. As referências, limitadas aos trabalhos efetivamente citados no
texto, deverão obedecer às normas mais recentes da ABNT. A título de
exemplificação, reproduz-se a seguir o padrão a ser adotado para citação
de livro, capítulo de livro, artigo e obra acessada via Internet:
Livro: SOBRENOME DO AUTOR, Nome do autor. Título do Livro.
Tradução (Quando necessário). Local de publicação: Editora, Ano de
publicação (Ano da publicação original, quando necessário).
Exemplo:
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética, a teoria do
romance. Trad. BERNADINI, Aurora Fornoni et al. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998 (1978).
Capítulo de livro:
SOBRENOME DO AUTOR DO CAPÍTULO, Nome do autor do capítulo.
“Título do Capítulo”. In SOBRENOME DO AUTOR/EDITOR DO LIVRO,
Nome do autor/editor do livro. Título do Livro. Local de publicação: Editora,
Ano de publicação (Ano da publicação original, quando necessário). Número
das páginas, precedidos de “p.”
Exemplo:
HALL, Stuart. “The Question of Cultural Identity”. In HALL, S., HELD,
D. e McGREW, T. (eds). Modernity and its Futures. Cambridge: Polity Press,
1992. p. 274-325.
Artigo publicado em periódico:
SOBRENOME DO AUTOR, Nome do autor. “Título do artigo”. In
Nome do Periódico. Local de publicação: Editora ou entidade responsável
pela publicação, volume ou número, ano de publicação (ano da publicação
original, quando necessário). Números inicial e final das páginas do artigo,
precedidos de “p.”
Exemplo:
LANGER, Eliana Rosa. “A estrutura do livro Esaías”. In Revista de
Estudos Orientais. São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, n. 3, 1999, p. 95-106.
Obra acessada via Internet:
SOBRENOME DO AUTOR, Nome do autor. “Título do artigo” ou Título
do Livro. Disponível em: endereço da página. Acesso em: data do último
acesso (Ano da publicação original, quando necessário). Números das
páginas inicial e final (se houver), precedidos de “p.”
Exemplo:
OLIVEIRA, Bernardo B. C. “Leitura irônica do texto urbano. Apontamentos
sobre uma frase de Walter Benjamin, à luz de Poe e Auster”. Disponível em:
<h#p://www.revistaipotesi.u^f.br/volumes/14/cap06.pdf>. Acesso em: 22 Fev
2008 (2004). p. 79-89.
Observação: 1) deve-se pular uma linha antes e depois no caso de citações
recuadas e de subtítulo. 2) usar as mesmas exigências da citação em recuo
para a construção da epígrafe. 3) Não pular linha na página de referências.
Originais formatados fora das normas serão automaticamente
descartados.
* Conceitos teóricos, ideias e adequação vocabular e linguística são de
responsabilidade dos autores.
* Os autores dos trabalhos aceitos para publicação receberão dois
exemplares do número da Rascunhos Culturais em que seu texto estiver
publicado.
Os originais devem ser enviados em arquivo anexado à mensagem de
e-mail para o endereço eletrônico [email protected]
Contato (67) 3291 0210/0202 Professora Geovana Quinalha de Oliveira

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