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Jean Monlevade,
do Castelo à Forja
Romance
Jairo Martins de Souza
2009
© Copyright by Jairo Martins de Souza, Vitória, 2009.
Projeto gráfico e editoração: Douglas Barbosa de Magalhães
Capa: Douglas Barbosa de Magalhães
Ilustrações: Zota Coelho
Digitação: Jairo Martins de Souza
Agradecimentos: Carlos Carrion, Geraldo Eustáquio Ferreira (em especial pela sugestão
do título adotado), Lúcia de Souza Barros e Regiane Castro Souza.
Revisão Final: Olívia Alves Fagundes de Souza
Catalogação: Ana Maria de Matos Mariani - CRB: 12/ES 425
Impressão e fotolito: Grafer Editora Ltda
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Souza, Jairo Martins de
S729j
Jean Monlevade, do Castelo à Forja: romance / Jairo Martins de Souza. – Vitória: Grafer, 2009.
362 p. ; 21 cm.
ISBN 978-85-86986-25-3
1. Romance brasileiro. I. Título.
CDD: B869.8
CDU: 821.134.3(81)-31
Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte desta obra, por qualquer meio, sem a autorização
do autor, constitui violação da LDA 9.610/98.
Ao meu netinho Dudu que ainda vê a luz do mundo pelos
olhos dos pais. Aos meus familiares. Aos monlevadenses.
Sumário
Prefácio, 09
Introdução - O estrangeiro, 11
PARTE 1
Guéret
I
Léopold Bogenet, o vigário geral
(il était une fois, era uma vez...), 17
X
O armazém e as histórias do capitão
Platini, 79
II
XI
O primo Jean Antoine era o preferido Angéline, 91
do vigário. A Revolução e o inconformado Philippe de Bogenet, 21
XII
Algo mais sobre política e a família
III
do fidalgo, 99
O castelo de Monlevade, 25
XIII
IV
O nascimento de Léopold, o vigáO fidalgo Jean-François. O aciden- rio geral, 103
te em combate!, 29
XIV
1806. Martinho faz planos, 115
V
O nascimento de Jean de Monlevade e o estranho local do primeiro XV
sacramento, 37
O médico Colbert e o fidalgo prosseguem trocando ideias. Tisserand
VI
comenta rapidamente sobre falha
O caso da bola do jogo de péla, 41 nas intenções de Jean, 119
XVI
O fidalgo não antecipa mudança
de Jean a Paris. Martinho é pratiVIII
camente um Monlevade. A viagem
A escola em Guéret e os cuidados do de estudos ao país da bota, 121
professor Duchamps. Jean é perseXVII
guido pelo maldoso Materazzi, 51
O fidalgo busca informações. A
IX
carta para Paris. A Politécnica de
O fidalgo socorre e livra a família de Monge e Carnot, 131
Martinho das garras de Thurram. O
bondoso abade Ribérry, 65
VII
A terrível guilhotina, 47
PARTE 2
Paris
I
Onde se explica o porquê de Jean
e Martinho terem se instalado na
casa de Septimus e Lucillia Pius,
135
IX
João Gomes Abreu de Freitas,
193
X
O Brasil de 1809, segundo a visão do capitão Freitas,201
II
As razões dos temores de Colbert quanto a Jean e Angéline. XI
O confessor Ribérry, 145
François. Martinho segue para
Lisboa, 211
III
Jean e Martinho vão ao Louvre. XII
A casa de Lucillia e Septimus Jean passa por risco de cárcere
Pius, 153
na Polytéchnique. O aviso por
demais antecipado da chegada
IV
do filho do capitão Freitas, 215
O reencontro com Kostas Zavoudakis, 159
XIII
A Génie Militar e as avançadas
V
técnicas de guerra do início dos
Os três mosqueteiros. Kostas novecentos, 219
conhece o Quartier Latin como
as palmas de suas mãos!, 167
XIV
A graduação. Onde se diz tarVI
diamente da morte do fidalgo,
Bernadette e Monique du Lac, 169 225
VII
A carta roubada, 177
XV
Ildefonso Gomes de Freitas, 233
VIII
XVI
A Polytéchnique. Bonaparte dá A viagem para o Brésil, 237
demonstração de confiança em
Monlevade!,183
PARTE 3
Brésil
I
O Rio de Janeiro e seus escravos.
O engenheiro da école des Mines
se impressiona, 245
IX
Caeté e a usina de Luiz Gouveia.
O futuro Barão de Catas convoca
Monlevade para conversa reservada: assunto sério!, 321
II
A casa carioca do capitão Freitas, X
O solar Monlevade e o arquiteto
253
Montigny. A primeira fundição de
Monlevade, 327
III
Onde se diz da breve estada no
XI
Rio. A carta de Martinho, 265
A festa de casamento na Setecentista. A nova fábrica de ferro, 335
IV
O início dos caminhos que levam a
Minas Geraes. Monlevade encan- XII
ta-se com natureza. A tropa fiscal e Amigo é para todas as horas. Mono parente de Agostinho Ferro, 271 levade faz pedido especial a Platini
e Just Fontaine, 341
V
A caravana finalmente chega a Vila XIII
Rica. O inusitado jantar de gala com Não é fácil manter negócios entre
as montanhas das Minas Geraes. O
o governador da Província, 281
agora capitão Monlevade amplia
a fábrica de ferro que leva o seu
VI
Monlevade faz turismo e reflete nome, 345
sobre o cotidiano da capital da
Província das Geraes. Martinho XIV
definitivamente entrega sua alma a Esse menino tem a cara do avô!
Nasce o neto brasileiro do fidalgo
Cristo, 299
de Guéret, 349
VII
Rumo a Caeté. O capitão Freitas é for- Epílogo, 351
çado a abandonar a caravana, 307
Post Scriptum, 357
VIII
São Miguel do Piracicaba. A receptiva acolhida dos Freitas. Jean de
Monlevade encontra-se com Auguste Saint-Hilaire, 313
Não vos preocupeis, a imaginação humana é bem
mais pobre do que a realidade!
(Ne vous inquiétez pas, l’imagination humaine est
plus pauvre que la réalité!)
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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PREFÁCIO
As origens de João Monlevade, cidade siderúrgica de Minas Gerais, remontam ao ano de 1817 quando aportou no Brasil o cidadão francês Jean Antoine Félix Dissandes de Monlevade. Engenheiro formado pela duríssima école des Mines de Paris, viera
aceitando comissão do governo de Luís XVIII para estudar os
recursos minerais do Brasil. Seduzido pelas riquezas geológicas
da região, acabou fixando-se em Rio Piracicaba e ali instalou
uma forja catalã que se tornaria a gênese da indústria do aço
de Minas Gerais. Nos últimos anos, malgrado a ausência de trabalhos acadêmicos e historiográficos, o povo monlevadense tem
reconhecido cada vez mais a amplitude de sua obra e o fascínio
exercido por sua brilhante personalidade. “Jean Monlevade, do
Castelo à Forja” não se inscreve no rol das escassas produções
científicas produzidas sobre a maior personalidade do município.
No entanto, preenche com maestria aquela lacuna e agrega conhecimentos e informações que muito contribuirão para manter
viva a sua memória. O autor, valendo-se do caráter ficcional de
sua narrativa, percorre com criatividade os caminhos trilhados
por Jean Monlevade desde a mais tenra idade na cidade de Guéret até os primeiros anos de sua permanência em Minas Gerais.
É escrita repleta de fantasia, mas não lhe falta o rigor histórico.
E transita no cenário revolucionário da França libertária do século
XVIII com a mesma verossimilhança com que percorre as estradas
de Minas Gerais dos primórdios do século XIX. O resultado é romance cujo enredo não se cristaliza no passado, pois por meio de
um narrador contemporâneo – Monsieur Tisserand – faz-nos ler
os acontecimentos sob a perspectiva dos tempos atuais. Destarte,
nosso conterrâneo Jairo Martins de Souza, com sua nova obra,
não sai de “trás das vitrines” do menino do Bazar Monlevade e,
com as lentes do jovem que decifrou o Dossiê Monlevade, lança
mais uma vez sua visão apaixonada sobre as origens de sua cidade. Acompanhemo-lo, caro leitor, nesse novo olhar sobre Jean
de Monlevade, revivendo sua saga do Castelo, que a concebe e
enobrece, até à Forja, que a tempera e eterniza.
Geraldo Eustáquio Ferreira (Professor Dadinho)
Graduado em Letras – Ativista Cultural
Pesquisador da História da Cidade de João Monlevade
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Jairo Martins de Souza
“.... o senhor deverá se surpreender com este relato que lhe
avisei ser longo. Pois mesmo que diga respeito a alguém de nome
muito familiar ao senhor, e à sua cidade, trata-se de quelque chose
d’extraordinnaire! (algo extraordinário)”.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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Introdução
O estrangeiro
Estávamos em meados de outono e o correr do dia, inusitadamente inundado de claridade, antecipava que, quando o Sol
fosse se deitar no horizonte de nossa cidade, a noite despontaria
belíssima e bem arejada.
Não tinha tido o prazer de conhecer aquele simpático senhor
antes dessa ocasião, mas no momento de sua chegada à pequena
praça em que eu estava, bastou que fizesse breve saudação com
o chapéu para que me sentisse instantaneamente atraído por sua
pessoa. Pareceu-me de educação refinada, pois foi extremamente
afável ao me cumprimentar.
Eu gostava de ir àquele local para descansar, ou para me
dedicar a algumas reflexões e eventuais conversas com amigos.
Desta feita tinha acabado de almoçar e, ainda palitando os dentes, deparei-me com a situação de estar lá sozinho por alguns
minutos. O que não me trouxe qualquer tipo de angústia, pois,
a despeito de muitas folhas já caídas, a sombra confortável de
mangueiras ainda vastamente copadas e o sabor forte dos seus
frutos maduros inundavam e tornavam as cercanias extraordinariamente aprazíveis.
Não havia outras pessoas por perto e conversávamos assentados em velho banco de praça com reclame comercial já apagado pelo tempo. E não veio à tona qualquer indício de pressa neste
contato entre pessoas que se viam pela primeira vez. Nem minha,
nem dele.
Bem, não sou versado em línguas estrangeiras, mas já em
suas primeiras palavras havia suspeitado que ele tinha sotaque
de gente que falava o idioma francês. Até aí nada de excepcional, isso nunca fora assim tão incomum em nossa região, e eu
poderia facilmente dissipar minha dúvida perguntando-lhe mais
tarde sobre sua origem. Portanto, não foi por isso que, nos primeiros
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Jairo Martins de Souza
instantes do nosso contato, não conseguia parar de olhá-lo, despistadamente, pelos cantos dos olhos, de tantos em tantos segundos. Havia algo em sua aparência que realmente tinha chamado
a minha atenção! Talvez parecesse com alguém que tivesse visto
em foto extremamente antiga, enfim, seu rosto era de certa forma
familiar.
Lembrei-me tê-lo visto caminhando distraidamente pelas
ruas do bairro. Tinha chegado recentemente à região e comentara no hotel que se encontrava apenas de passagem. Em cidades
pequenas nada passa ao largo! A recepcionista, que era inclusive
minha parenta, disse-me ocasionalmente o nome do hóspede do
quarto 101. Não lhe dei atenção devida: recordo-me apenas ter
ouvido algo confuso!
O fato é que (não obstante sua visível dificuldade com o manejo do português), estivemos matando o tempo com assuntos
frugais sobre temperatura e clima da região. Depois sobre futebol,
e eventos culturais e políticos que estavam por vir nos próximos
meses: o estrangeiro era bem informado!
E à medida que passavam os minutos, avançamos sobre as
últimas ações econômicas do governo, sobretudo as que diziam
respeito às exportações de minérios e placas de ferro as quais,
com a crise dos mercados, vinham despencando de maneira assustadora. O assunto ocasionalmente caiu para o lado do papel
dos grandes empresários e industriais do Brasil. Destes últimos,
fomos retrocedendo no tempo e eu citei-lhe, de passagem, a importância histórica do Barão de Mauá que, por sinal, fora tema
recente de série televisiva. Ele disse-me não ter assistido, mas comentou que muitos outros que aqui fincaram os pés têm também
passagens excepcionalmente brilhantes pelo país.
E perguntou-me: queres ouvir, em primeira mão, a história
de um deles que, no mundo, é pouquíssimo conhecida? Não estou dizendo de uma narrativa curta! O senhor teria que ter bastante paciência!
Sua conversa anterior fora do meu gosto, e não precisei pensar muito para responder-lhe polidamente que sim. Na realidade,
encontrava-me também em estado de graça, pois, entre outras
coisas, tinha obtido bons rendimentos no meu ramo de negócios
ao longo da semana. Fosse o caso, dispunha de todo o fim do dia
para ouvi-lo.
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E foi com leve sorriso estampado no rosto que ele disse-me
de forma animadora: “o senhor deverá se surpreender com este
relato que lhe avisei ser longo. Pois mesmo que diga respeito a
alguém de nome muito familiar ao senhor, e à sua cidade, trata-se
de quelque chose d’extraordinnaire! (algo extraordinário)”
Rearranjei-me no banco, mantendo-me calado, e adquirindo
postura e pose corretas tais como a de quem exterioriza interesse.
Mas foi somente após ter certeza do retorno de minha total
atenção que ele declarou que o princípio de sua história havia
ocorrido em terras muito longínquas. Na França… lá do outro
lado do l’océan Atlantique!
Foi por tudo isso que, ainda em silêncio, decidi que nem mesmo iria perguntar-lhe o nome.
Não julguei necessário. Intimamente já havia decidido que,
neste livro, iria chamá-lo Tisserand: monsieur Tisserand!
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Jairo Martins de Souza
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PARTE 1
Guéret
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I
Léopold Bogenet, o vigário geral
(il était une fois, era uma vez...)
Poucos meses antes de encerrar definitivamente sua missão no
mundo, o vigário geral Dissandes de Bogenet disse que tinha feito
o sacrifício de doar sua vida a Deus para que toda sua extensa
família, no futuro, fosse reunida no céu. Tinha firme convicção
sobre o que dissera e, durante toda sua vida, havia procurado
fazer jus a essa realidade espiritual.
Foi com tais palavras de um religioso por mim completamente desconhecido que monsieur Tisserand iniciou sua história. Na
ocasião, prosseguiu, o vigário geral suspeitava da proximidade de
sua morte e estava abrindo o coração para um dos seus familiares
mais chegados!
O vigário era Bogenet. O seu interlocutor, e confidente, era um
seu primo do ramo Lavillatte. Ambas eram famílias de gente nobre
e pertenciam às muitas das notáveis que foram interligadas pelo dinheiro, pelo desejo dos pais, enfim, pelos casamentos programados
que eram pródigos em ambientes da burguesia europeia.
Bogenet, Lavillatte, Dissandes, Monlevade eram exemplos
dessas linhagens ilustres que, se pesquisadas em profundidade,
colocariam às claras ligações extremamente remotas. E, entre seus
membros de procedência Bogenet, sem qualquer sombra de dúvida, assomaria destacadamente a amada e admirável figura do
vigário geral que confessara suas intenções finais ao parente.
Pois foi, de acordo com testemunho de vozes da época, incansável na divulgação dos evangelhos, e de ter passado grande
parte do século dezenove espalhando bem-aventuranças no departamento de La Creuse, na região central da França.
Tanto é daquele jeito que, em tempos difíceis, fortalecia-se
com a simples menção da frase Opus Fac Evangeslistae (faze a
obra de um evangelista!).
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Jairo Martins de Souza
O troco lhe foi dado ainda em vida, sendo personalidade bastante celebrada ao longo de sua caminhada eclesiástica. Ainda vivo,
havia se tornado famoso pela bondade e pelo despojamento material que praticava.
Não era incomum que trajasse disfarces e andasse pelas estradas e vilarejos distribuindo esmolas e ajudando a doentes e necessitados. Também recusou (fato raríssimo na vida eclesiástica),
por diversas vezes, a mitra de bispo.
E a partir da notícia do seu passamento, nos anos finais dos oitocentos, seu nome foi homenageado como o de personalidade única
na região. Um parente querido fora levado para debaixo da terra...
O que não impediu circulação de rumor que algo atípico havia
acontecido poucas horas antes de dar o último suspiro. Uma mulher já de idade avançada fora conduzida discretamente ao aposento que tinha acesso restrito somente a religiosos. O quarto do
próprio vigário. Lá foram mantidos isolados durante minutos a fio.
Bem, Tisserand comentou, o povo tem como costume especular coisas fantasiosas nestas ocasiões. Nada ficou provado!
O fato é que o negro das vestes, complementado por joias
simples de azeviche, foi mantido durante dias indicando claramente o luto dos que o amavam. E, por período ainda mais longo, expressamente recomendado uso de roupas discretas, desprovidas de cores fortes, pelos fiéis da comunidade.
Decerto não lhe atribuíram milagres. Não seria verdadeiro!
E sabia-se ser situação incompatível com seu estilo. Mas os jornais da época, em seus editorais, consideraram-no como digno
de inspiração e modelo de vida. Não somente para sua diocese,
enfatizavam, como também para toda a Igreja de Roma espalhada pelo mundo.
Prova disso é que, ciente de ser seu rebanho composto basicamente de analfabetos, desdobrava-se para contratar artistas de
qualidade para ilustrar histórias da bíblia nas paredes e tetos das
igrejas em que exercia influência. Interiores decorados como se fossem páginas de livros ilustrados de escola dominical. Aconselhava
com prudência usando, como nas sagradíssimas escrituras, belas
metáforas para melhor entendimento por parte dos seus paroquianos. Grandessíssimo evangelizador!
Que inclusive pregava a tolerância com os seguidores das 95
teses de Martinho Lutero. Assunto explosivo! Sua atuação se estendia a muito mais que os deveres missionários do seu ofício.
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Eram passados mais de duzentos e cinquenta anos desde o
massacre da noite de São Bartolomeu, Tisserand explicou, mas
ainda nos dias do vigário geral, a simples passagem de um daqueles protestantes por via pública poderia ser estopim certo para
início de zombaria e altercação.
Episódios sangrentos como aquele, graças a homens como o
vigário, não têm mais chance de prosperar!
As figuras e cenas do juízo universal, que vira magistralmente
pintadas no teto da Sistina, bastavam-lhe para todas as circunstâncias. Ali se resume toda a história e os desígnios do homem, de
acordo com a vontade do criador, dizia.
Pois não era daqueles que assombravam os paroquianos,
conclamando a besta do Apocalipse em seus sermões dominicais
e visitas a fiéis. Para tanto, julgava bastantes as misérias descritas
pela sua amada bíblia nas páginas que o próprio Senhor julgara
de direito. Dava exemplo. Não se dispersava!
E exercitava as virtudes abençoadas nos evangelhos, mas acima de tudo amava a família, e religiosamente escrevia sobre seus
queridos em bloco de anotações. Talvez fosse sua intenção revisálas e colocá-las em volume de luxo.
Mas não dizem os críticos de arte que é preciso ler meia biblioteca para lograr a escrita de um livro? Bem, nem seria preciso
dizer que o vigário tinha grande amor pelo conhecimento! Lia
tanto as inúmeras recomendações do Vaticano quanto as obras
de escritores acreditados de todo o mundo laico.
Não era essa a razão de nunca conversar pelos cotovelos.
Era sua própria prática pastoral. E, portanto, não fizera diferente
quando dissera dos seus amados. O seu estilo de escrita mantevese curto, telegráfico, normalmente versando sobre as andanças e
conquistas dos seus familiares que, de acordo com seu estilo e formação, foram dados como concluídos, sem maiores explicações,
com um singelo dominus vobiscum! (o senhor esteja convosco!).
O abade morreu em 1897. Poucos em idade adulta o conheceram pelo nome, Léopold. Léopold Dissandes de Bogenet. Na
ocasião não foi somente seu corpo físico que se fora para sempre,
pois também levara consigo um dos ramos de sua genealogia.
O celibato custara-lhe altíssimo preço. Custara-lhe a extinção do
ramo Bogenet da família que tanto prezava.
Mas seus rascunhos, já praticamente em formatação final,
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Jairo Martins de Souza
foram recuperados dezenas de anos mais tarde na igreja matriz
da região. Um fiel os encontrou: ele substituía responsável pela
limpeza que padecia de terrível enfermidade. O local foi gaveta
chaveada que fazia parte de mobiliário da sacristia marcado com
etiqueta de irrecuperável. A felicidade maior disso é que, após
investigados pelo Vaticano, puderam ser devolvidos a quem de
direito!
Logicamente foram escritos em latim. O senhor, mon ami,
sabe ser esta a língua corrente nos meios eclesiásticos naqueles
dias e, daí, de difícil acesso a pessoas comuns como eu. Não fosse um pequeno detalhe. Junto a eles estavam costurados outros
tantos, já vertidos para o francês, com a mesma caligrafia.
Foi a minha salvação, o estrangeiro Tisserand disse, Champollion não teria ficado mais feliz com sua pedra de roseta!
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II
O primo Jean Antoine era o preferido do vigário.
A Revolução e o inconformado Philippe de Bogenet
Ainda vou prosseguir dizendo algo mais sobre a vida e morte do
vigário, Tisserand disse. Ele não alcançou o tempo de Matusalém,
mas chegou aos 82. Idade atípica para o século dezenove!
Como também foi atípico o fato dos seus escritos terem sido
bastante centrados na figura de um dos parentes que mal teve contato: ambos mantiveram-se geograficamente distantes e percorreram caminhos absolutamente diferentes ao longo de suas vidas.
Pois seu protagonista foi um primo catorze anos mais velho
que fora batizado com o mesmo nome do pai: Jean. O pai, por
sua vez, tinha o mesmo nome do avô. É por aí que se estabelecia critério de colocação de nomes nos rapazes daquelas antigas
famílias. Entretanto, e não deixando de dar importância a isso,
Tisserand prosseguiu, o que mais desejo deixar fixado em sua
mente, mon ami, é que o vigário citou muito pouco sobre outros
familiares mais próximos de sangue. Talvez propositalmente. Por
exemplo, considerando-se o teor do assunto em questão, o de
não deixar registrado que um dos seus avós, em 1793, escapara
da guilhotina durante andamento da Revolução.
O pai do seu pai chamava-se Philippe de Bogenet, e fora
acusado de supostos deslizes com a comunidade. Incluso em lista
de proscritos, foi preso juntamente com sua amada mulher!
Sentindo-se injustiçado, acabou por tentar se evadir em várias oportunidades. Sem sucesso! O lucro que teve foi o de conseguir livrar o pescoço da impiedosa guilhotina.
O fato é que fora figura pública de destaque na região, e exercera cargos de importância para o governo de Luís XVI e para a
província. Capitão de caça. Conselheiro real. Mestre particular de
águas e florestas...
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Foi em vista disso que Tisserand assinalou que se alongaria
um pouco mais sobre o episódio para não incorrer no mesmo
erro de omissão que o vigário geral cometera.
E, somente para fins de registro e de justiça, mencionou que
o tal esquecimento não havia redundado em prejuízo para apontamento digno de crédito da história da família. A lacuna fora, em
tempo certo, preenchida por cronista credenciado!
Daí se soube que o avô do vigário fora alvo de outras graves
acusações. Pois, de acordo com o que veio à tona, tinha feito
pouco caso do sangue jorrado durante as ações revolucionárias
e declarado publicamente seu desprezo pela atitude dos patriotas
do Terceiro Estado.
Não podia resultar em nada muito diferente. A ordem de prisão, emitida intempestivamente pelo Comitê de Saúde Pública,
chegou rapidamente ao seu destino por meio de oficial de justiça
apoiado por forte contingente de soldados. O desenlace foi o velho Philippe acabar vendo a luz dos seus dias se extinguir enclausurado no seu próprio castelo: o de Bogenet.
A Revolução e a queda de Luís XVI arruinaram muitas famílias da nobreza do Ancien Régime, da Velha Monarquia, Tisserand
comentou. Outras tiveram enfraquecidos, de forma significativa,
vastos patrimônios construídos ao longo de muitas gerações.
Não chegou a tanto nas famílias Monlevade e Bogenet. E é
por isso que não houve qualquer impedimento para que o mesmo Philippe passasse o direito de posse dos domínios de Bogenet
para o filho que, não por acaso, chamava-se Jean.
Este Jean, mon ami, Tisserand disse-me, foi um monarquista
convicto que seguiu, ao pé da letra, as mesmas ideias do pai. Mas
não é esse o motivo que me fez mencioná-lo para o senhor! O
fato singular da vida deste homem foi o de ter sido o pai do bondoso abade a quem não tenho poupado elogios.
E foi quase sem pausa para respiração que Tisserand indagou-me (em tom de alerta, e voltando a assunto que eu já considerava entendido) se eu havia reparado que, nesta família, vários
mancebos foram chamados com o nome Jean, João.
Respondi-lhe que sim. E lembrei-lhe que ele próprio, por
duas vezes, já havia informado o fato.
Ele assentiu e, ao mesmo tempo, disse-me ser instante para
fazer determinada avaliação. Não. Não estava sendo precipitado.
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E perguntou-me se eu conseguiria atinar o porquê de seu interesse em mencionar aqui tão intensamente a vida pessoal deste religioso, e de sua fé, e que tem, a princípio, não tanta importância
no contexto da história que iria relatar.
Mas não me deu tempo para respondê-lo, pois num átimo,
antecipou-se a qualquer eventual julgamento que viesse a surgir
de minha parte.
A resposta é simples, disse. E vem de afirmação que o senhor
já sabe, e que é, por sinal, a mesma razão pelo qual o prelado
escrevera seus rascunhos. A de realçar o amor que tinha pela família, e por seus amados!
Desses, um em especial, e que viera ao Brésil para cumprir
tarefa extraordinária.
Não chegou a conviver com o primo Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade, mas orgulhava-se dos seus feitos. Quando
ainda rapazinho, teve felicidade fortuita de comparecer à sua graduação na École des Mines de Paris. E foi a partir daí que passou
a ter por ele especial interesse. Acompanhou-o, a distância, em
todas as peripécias de sua existência.
Pois é baseado também nisso – ainda é Tiserrand quem diz –
que fiz minhas próprias anotações. Foi de onde criei bases para
lhe dizer o que julgo verossímil nesta história.
É por tudo isso que honestamente desejo que Deus tenha
recebido o abade e aos seus, conforme seu desejo.
E rogo encarecidamente que também com a mesma diligência, e da mesma forma, acompanhe minhas palavras!
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Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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III
O castelo de Monlevade
O fidalgo Jean-François Dissandes descortinou finalmente a vista
magnífica de Monlevade. O belo edifício, construído com pedras
desde o baldrame até o pico da torre de vigia, aguçou-lhe sentimento de incerteza e aflição. Em condições normais aquele esplêndido e amado cenário tinha o predicado de inspirar-lhe confiança e sensação de reduto inexpugnável.
Extraordinariamente fizera o sinal da cruz ao divisar a vista
menor da capela do seu castelo. E, independente de exercício de
sua livre vontade, a descarga de adrenalina disparada para dentro
de suas artérias fez-lhe o pulso acelerar descontrolamente.
Não. Não podia perdê-lo! Não podia faltar com promessa ao
pai, Jean Dissandes de Bogenet!
O château, o castelo, lhe havia sido doado antecipadamente
ao que era de se esperar na relação de transmissão de herança
entre pais e filhos. O ano foi o de 1786.
O pai, por sua vez, em 1740, o havia incorporado ao patrimônio dos Dissandes de Bogenet trazido como dote pela noiva: a
simpática Marie Niveau de Lagrange de Monlevade.
A partir do casamento é que se ajuntou, em termos definitivos, o nome Bogenet aos Monlevade.
E Jean-François não teve como negar a escolha e o encargo
de manter o valioso patrimônio sob os auspícios do brasão de sua
casa, pois quase todos os irmãos, que chegavam à casa dos dezessete, encontravam-se fora da província servindo à sociedade
em diversos segmentos. Igreja. Exército. Administração pública.
Não os tinha mais por perto. E angustiava-se ao recordar que os
anos felizes de sua infância faziam parte de passado distante. Não
se sentia só. Estava só!
A situação que assumira fora inicialmente planejada pelo pai
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para ser posto a público somente quando estivesse em leito de
morte. O recuo no tempo teve a intenção de propiciar em termos
objetivos um melhor zelo e manutenção da propriedade. Cabialhe cumprir a missão destinada.
E foi ainda com a respiração fortemente perturbada que o
fidalgo resmungou... Não! Não vou ceder facilmente a novos espasmos revolucionários de Paris!
Sua via crucis começara há quase dois anos. Em 1789. A
inusitada convocação da Assembléia dos Estados Gerais por Luís
XVI jamais iria se apagar de sua memória.
Foi, o estrangeiro Tisserand reforçou, o que, em termos finais,
acendeu o estopim da Revolução.
Três anos antes, julgara oportuno estabelecer moradia no
castelo Monlevade junto com a mulher que escolhera para constituir família. Ela tinha o sugestivo nome de Felicité, Felicidade.
O clã dos Dissandes de Bogenet, mesmo antes de sua ligação
com os Monlevade, era já proprietário, entre outras riquezas, dos
chatôs de Bogenet, Lavillatte, Balleyte e Villecorbet.
Bogenet, cercado de árvores seculares e paisagens sombrias,
era bem mais imponente que Monlevade. Assentado em uma colina, que dominava a paisagem de todos os campos adjacentes,
sua imagem espelhada podia ser vista em lago próximo, exibindo
duas asas perpendiculares articuladas em sua alta torre de proteção. Castelo de aparência macambúzia, e que perdia em qualidade de vida por ser bastante afastado da cidade. Havia ficado,
conforme já lhe disse, sob posse de um dos seus primos.
Essas foram razões para fixação da residência dos pais do
fidalgo Jean-François nos domínios de Monlevade. Também haviam levado em conta que o acesso a ele se fazia com muito
maior facilidade.
Viveram lá por 46 longos anos. Foi somente após cedê-lo
ao filho, que o já viúvo Jean Dissandes transferiu morada para a
sede da província.
É onde o encontramos como atual prefeito, sentindo-se infeliz
e sem forças para defender o Ancien Régime. Era mais um dos
cargos de destaque que exercia na antiga província de La Marche. Antes disso, fora conselheiro do rei no Presidial, e fiscal de
consignações.
Como se vê, Tisserand reforçou, toda a família usualmente
ocupava cargos de destaque na sociedade regional.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
27
No entanto, era naquela última função, a de alcaide, que
combatia com toda sua alma as ideias revolucionárias. O fidalgo
pressentia que o pai não resistiria às pressões e não tardaria em
renunciar.
Para desgosto de ambos, o governo havia eliminado todos os
títulos conquistados pela espada e por séculos de tradição familiar. Um acinte à nobreza!
Não fosse bastante, desligara o clero da Igreja. Roubara seus
templos e propriedades. Os padres, os abades, e outras autoridades eclesiásticas foram alçados à categoria de funcionários públicos. Receberiam salário do povo. Nada de ordens monásticas.
Nada de igrejas. Um desafio à casa de Deus!
Tudo isso dá ideia extremamente condensada das condições
em que, em seu convulsionado país, sucedia o ano de 1790.
Quantas atribulações! Pelo uivar dos lobos, o sangue prosseguiria esguichando por todos os cantos do reinado.
28
Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
29
IV
O fidalgo Jean-François. O acidente em combate!
A despeito da confusa situação que soubera existir em Paris, a
viagem feita pelo fidalgo transcorrera livre de ameaça de salteadores que proliferavam pela outrora sossegada província.
Viera a toda velocidade e a condução, como vimos faz pouco, alcançara seu destino: o castelo Monlevade. O bafo quente
e o resfolegar das duas cavalgaduras que a puxavam, além dos
montículos de barro cinza escuro ejetados na horizontal aos pulos
do furo abaixo dos seus rabos eram, por sua vez, sinais de que os
animais estavam prestes a ficar exaustos!
O barulho seco do atrito dos freios, madeira contra madeira,
e a lama atirada para os lados pelas rodas que antecederam a parada final foram os indicadores derradeiros que haviam anunciado, de antemão, a presença do fidalgo na sede dos seus domínios.
Seu mau humor não se dissipara por completo e ele, com
aparência resistindo à virada da meia-idade, chegara finalmente
à porta principal do seu domicílio.
Há minutos conseguira ter a alma suavemente refrigerada
pela visão de uma família que se divertia em remanso situado
próximo a pequena ponte que cobria trecho das águas puras
do Creuse. Ao ultrapassá-la percebeu que o cesto parcialmente
coberto com panos, e deixado na relva sob proteção de árvore
copada, indicava que a chuva que passara não havia prejudicado o piquenique. Dois dos rapazes jogavam pedras rasantes
em remanso próximo. Os círculos concêntricos que se formavam
agradavam-lhes a vista. O pai, com uma das mãos apoiadas no
ombro da filha, acariciava-lhe os cabelos, enquanto pacientemente ensinava-lhe a pescar. Um terceiro rapaz, que também estava
no cenário, fingia tomar-lhes o caniço. Não parava de se movimentar e, sorrindo, cutucava-lhe os flancos e fazia folguedos com
a ansiedade da pequena irmã.
30
Jairo Martins de Souza
O fato é que, após tal visão de harmonia, vira um forcado
e uma pá abandonados na estrada: obra de algum desleixado.
Ora, o que mais fazer? Por mais que os instruísse, alguns de seus
camponeses teimavam em não seguir pequenos detalhes de organização. Não fosse isso bastante, alguns dejetos deixados ao largo
por cães sem dono haviam contaminado o ambiente de entrada
de seu castelo. Felizmente, a eles se sobrepunha o aroma de terra
lavada de chuva.
Não era frequente que se aborrecesse com tais detalhes do
cotidiano. Nem poderia. Era homem do campo!
E, já apeando, dissera ao condutor que talvez tivesse que voltar à cidade: não tarda! O homem já havia guardado o chicote,
quando simultaneamente ouviu o patrão dizer o mesmo a outro
servo que se aproximava apressado para carregar-lhe desgastada
maleta de couro de boi.
Ambos imediatamente entenderam que seu senhor voltava
de um dia extremamente atribulado. Um dia de cão. O que não
notaram é que o fidalgo, com ponta remota de satisfação, vira
que seu trecho preferido da entrada do castelo, situado a alguns
metros após baixo muro de pedras cinzentas estava, de um dia
para o outro, lateralmente todo preenchido por pequenas flores e
cogumelos. Agradava-lhe o contorno sinuoso do caminho!
Mas foi olhando orgulhosamente para a torre de proteção
que marcava o ponto mais alto de sua morada que fez a retirada
do chapéu, pendurando-o imediatamente em pau fixado após a
porta principal de duas bandeiras. E com o canto dos olhos reparou que a ordem que dera antes de sair em direção ao vilarejo
fora rigorosamente obedecida. Uma das bandeiras da portentosa
porta central de madeira trabalhada estava definitivamente fechada com seus ferrolhos fortemente soldados e encravados no piso.
Como sempre fazia, olhou-se no espelho, lembrando que a barba
havia ficado por fazer. Foi momento também de confirmar que
a peruca adquirida por alto preço, em Paris, fora intensamente
manchada pela breve intempérie. Com isso mal se deu conta que
as botas estavam sujando grosseiramente o piso cotidianamente
zelado pelos olhos vigilantes da mulher.
Rotineiramente não se movia com tal agilidade. Os que o conheciam bem sabiam que quando assim se comportava, fazia realçar
sintoma deixado por golpe não muito recente de ponta de baioneta.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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Na ocasião em que fora ferido, não fosse colocação imediata
de caneca de açúcar, talvez nem mais pudesse ficar apoiado sobre
um dos pés. Ainda que tenha sido efetiva, a providência tomada
em tempo hábil não foi suficiente para impedir que a mesma dor
profunda voltasse à tona com mais intensidade a cada inverno.
Com o frio, acordava como se estivesse no dia da batalha em que
fora atingido. Chás caseiros e unguentos não davam conta de aliviar seus sofrimentos. Recordação doída e digna de medalha, em
forma de águia, a ser, merecidamente, recebida das mãos do próprio Bonaparte. Muitos anos haviam se passado...
Pois o fidalgo Jean-François Dissandes de Bogenet era daqueles que nunca deixariam de entregar Mensagem a Garcia!
Foi aí que Tiserrand disse, após breve pausa, que o acidente
fora resultado de sua participação na ajuda francesa para libertação das Treze Colônias da América do Norte.
Atualmente nossa grande discussão com os ingleses, mon
ami, resume-se somente aos confrontos de futebol, questões menores da política, e recusa de abolição da libra em favor do euro.
Em séculos passados não era assim. Bastava que um dos
príncipes achasse que o outro se trajava com mais elegância para
que o canal da Mancha ficasse manchado de sangue.
Faltou-me dizer, Tisserand comentou, que o fidalgo fisicamente também havia ficado manco da perna esquerda. Um coxo!
Em momentos críticos, como o descer de uma carruagem, era-lhe
razão para indesejáveis incômodos.
Bem, não fossem aquelas dores bastantes, as agruras do seu
período americano não se reduziam a isto, Jean-François Bogenet havia adquirido outra enfermidade contra a qual não tinha
recursos. Simplesmente padecia. A ciência evoluía rapidamente,
mas desgostos psicológicos que dependessem de suporte médico
somente viriam a partir dos finais do século dezenove. Nenhum
combatente conseguiria abortar da memória as cenas inundadas
de sangue dos companheiros mortos no cerco de Yorktown, na
Virginia.
Não sem razão, mon ami. O senhor pode perguntar, muitos
ainda sobrevivem, a um ex-pracinha da FEB o que significa estar
em batalha em que prevalece o embate corpo-a-corpo!
Companheiros de farda relataram que o fidalgo comportouse com a bravura dos guerreiros espartanos encurralados no des-
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Jairo Martins de Souza
filadeiro das Termópilas. O filme Trezentos, Tisserand explicou,
estrelado pelo Brésilien Rodrigo Santoro, pode ilustrar e sensibilizá-lo magnificamente quanto à dureza dessa comparação. Contudo, não sendo essa película exemplo bastante, resta-me lembrar
que o fidalgo lutou sob o comando de Rochambeau. Família de
militares famosos. O conde Rochambeau animava os seus com
o conhecido lema de brasão familiar: viver e morrer como um
bravo, vive em preux y mourir.
Foi assim que as imagens e os odores de morte ficaram definitivamente retidos no inconsciente do fidalgo.
No fundo, Tisserand disse-me, meu propósito era deixar
bem claro que, Monlevade, além de oficial destemido, tinha olfato privilegiado. Isto, em muitas situações, nada contribuía para
seu bem-estar. Já que, quando cheiros como aqueles voltavam
à sua memória, faziam-no com força redobrada, triplicada, quadruplicada, quintuplicada, enfim, como o milagre da alavanca de
Arquimedes que via agora um dos trabalhadores do castelo usar
para retirada de roda de outra carroça que se projetara em buraco
no mesmo caminho pelo qual havia chegado.
Passaria aquela característica genética para os filhos. O derradeiro, com maior intensidade: terá três!
Mas o que de fato lhe criava rugas dizia respeito ao futuro do
país e à perpetuação do nobilíssimo nome Monlevade.
Com tal estado de espírito, mal se apercebera da presença
de outros trabalhadores e fornecedores que cumpriam seus afazeres de trabalho e rotina de estrutura dos diversos setores de sua
propriedade: estábulos, plantações, gado e outros afins. Trabalhavam conversando como faz de hábito quem lida com tarefas
mecânicas e repetitivas. Alguns deles divertiam-se fazendo troças
uns com os outros.
Nessa condição é que também trocavam ideias sobre a nova
situação do clero e da nobreza locais. Um deles cochichara dizendo, companheiros, falem baixo, passa perto o cavalo de ferradura
rachada, ra, ra, ra, ra...
Era o próprio fidalgo que se dirigia no ritmo em que estava
aos seus aposentos: já podemos vê-lo subindo a escada de acesso
ao primeiro piso. Área íntima e dos dormitórios. Sabia estar lá
a esposa que, em horário vespertino, costumava reservar tempo
para bordar as roupas e trabalhar as rendas da casa.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
33
Já passavam das quatro e a mulher desviou o olhar da peça
de tricô. Levantou a cabeça e, com o canto dos olhos, notou que
o marido chegara. Um frio percorreu-lhe o corpo e alma. Algo o
incomodava...
Jean Dissandes de Monlevade retirou a peruca e instantes
depois desvestiu a sobrecasaca de cor azul. Ato contínuo, disse
baixinho para si mesmo, enquanto olhava para a esposa que julgava distraída com seus afazeres: essa deverá ser a mãe dos meus
outros filhos.
Finalmente buscou os olhos da mulher, que já virara o rosto
para vê-lo concluir aproximação.
Felicité, já sabemos ser este o seu nome, segundos antes estava ligeiramente ansiosa. Agora mudara seu quadro de sentimentos: tinha ficado intimamente bastante perturbada. Ouvira
e olhara por fresta da janela que a carruagem do marido havia
chegado, e ele até o momento não se aproximara para beijá-la, e
nem para agradá-la com qualquer outro tipo de afago. Não. Seu
senhor nunca fora dado a esse tipo de comportamento.
Foi quando, acomodando-se ao seu lado, o fidalgo lembrouse repentinamente dos recentes manuais de cortesia, os quais ele
mesmo gostava de ler em voz alta e, juntos, discutir futura aplicabilidade para os filhos. Então mudou postura e, abaixando-se,
acariciou-lhe ternamente o rosto e os cabelos. Olhou-a profundamente nos olhos, e disse, de novo, somente com a alma, como
se dessa forma a outra pudesse ouvi-lo. Estamos pagando nosso
preço, meu amor! A França passa por fortes abalos. Não há outro
jeito. É assim em todo processo histórico de depuração!
La Villate, Bogenet e Monlevade são castelos privilegiados,
Félicité, foi o que finalmente verbalizou para a mulher. Ela instintivamente percebera que o marido tinha dado sequência a algumas frases que silenciosamente vagavam por sua cabeça. Essas
propriedades acompanham a família há gerações.
Pode ser que haja sistemas que funcionem melhor. Não os
conheço. Se existem, talvez devessem ser testados: desde que se
respeitem direitos estabelecidos! E não é que não tenha consciência da validade da matemática de Malthus. Não podemos negá-la. Basta olhar para dentro da nossa própria França e fazer
algumas contas simples. Não se pode simplesmente ignorar as
secas e a força dos invernos que temos tido! As famílias não têm
34
Jairo Martins de Souza
tido crescimento geométrico? Não é dezoito o número de filhos
dos meus pais? Daí a fome! As dificuldades têm sido muitas para
todos, Felicité. A começar pela atual falta de clientes para os tisserands da nossa região...
Ah, Tisserand, percebi!... tisserands. Tecelões. Ofício comum
nas vizinhanças de Guéret. Eureka! Um deles pode estar ajudando-me a tecer os fios deste livro!
O estrangeiro, homem perspicaz, percebeu que algo inesperado estava se passando comigo. Então, imaginando dar tempo
ao tempo, levantou-se e, alegando estar com as vias sanguíneas
congestionadas, fez calmamente uma pequena sessão de alongamentos.
Foi a partir daí que, olhando-me o rosto, e sentindo-se novamente à vontade, prosseguiu divagando sobre os protestos do
fidalgo Monlevade que conversava com a mulher.
Nosso rei é amaldiçoado, Felicité! É fantoche calçado pela
escória da Velha Monarquia. Até a Tomada da Bastilha, não tinha
dado conta do que ocorria com o povo em Paris. Não reparava
no vai-e-vem de ministros e colaboradores. O trânsito de cavalos
e carruagens para Versailles era absolutamente extraordinário! A
única palavra que consta em seu diário íntimo no fatídico catorze
de julho foi a palavra Rien! Nada!
Escreveu-a antes de se deitar. Ninguém em sua corte, Felicité,
reflete sobre ideias novas e equilíbrio de contas. Nós, não. Aqui
em Monlevade trabalha-se duro. Nobreza devassa. Pompadour, a
marquesa, deixou herdeiros à altura! Mas custa-me, Felicité, aceitar as execuções sumárias da Revolução. E não é que seja contrário a tudo. Novos tempos. Novos conceitos. Não fomos ensinados
que o corpo humano é composto de cabeça, tronco e membros?
A sociedade boa de se lidar é também dividida, organizada. Nobreza. Clero. Plebe. Cada coisa em seu lugar. Fica mais fácil de
manter a ordem. Mas aí alguns se aproveitam e fazem com que o
sistema se sature de injustiça.
O reinado tem que ser mantido, ma chérie. Mas sob luz de
novos conceitos jurídicos. Talvez como os ingleses...
Felicité manteve-se sossegada, enquanto decidia como interceder e relaxar a alma do seu amado. Próximo, o pequenino bebê
François Monlevade, um ano e alguns meses, repousava placidamente enquanto amamentado por Francine, sua ama de leite.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
35
Por temor de doenças, e de pestes, a mãe prometera, a si mesma,
caso lhe faltasse leite do próprio peito, nunca alimentar os filhos
com leite de vaca.
O celebrado Davi não produziria quadro mais significativo
e bonito do novo modo de viver da família cristã. A despeito de
tantas comoções, tudo exalava cheiro e imagem de amor.
Três. Três longos anos. Fora o tempo após bodas que Felicité
demorara a ter o primeiro filho. Ele acaba finalmente por ceder
ao sono. Ela se enternece. Volta os olhos novamente para o marido, o angustiado Jean Dissandes. Respeita-lhe o sofrimento, mas
absolutamente venera o rapazinho que dorme tranquilo, alheio às
truculências de um país que protesta contra seu rei e luta articuladamente pela derrubada do Velho Regime.
Que outros filhos venham à luz em curto prazo para dar seguimento à vida e desbravar novos mundos. Um deles já está a
caminho: seu senhor não percebera. Quem sabe para abril ou
maio do ano que vem.
Algumas horas mais tarde, e exercida sua magia de mulher,
o fidalgo Jean-François repousava tranquilamente no seu colo.
Nem mesmo o frio parecia acordar-lhe as dores costumeiras do
seu ferimento. O barulho suavemente cadenciado da chuva que
voltara, e caía no telhado, havia também ajudado o seu homem
a espantar parte das preocupações. Melhores tempos. Melhores
colheitas virão. O filho, enrolado em panos revestidos de pele de
carneiro, acordara e olhava-a com olhinhos vivos de quem quer
também novamente alimento. A luz de uma vela bruxuleante, que
insistia em não apagar, fez Felicité perceber que Francine já tinha
um dos mamilos expostos. Pronta para satisfazê-lo.
Daí a minutos estaria arrotando, e voltaria a dormir sossegado. A mãe sorriu tranquila, prevendo que alguns meses mais e
Deus lhe traria alegria diferente. Sua urina andava mudando de
cor. Não tinha dúvidas: estava grávida novamente!
Ah, a azia que venho sentindo ultimamente prenuncia ser
tempo de Marie-Victoire! Depois dela, somente Jean.
Pois iria chamar seu último filho pelo mesmo nome do pai. O
mesmo do avô... Teria o prazer de vê-lo perpetuado por mais uma
geração na futura imagem do filho. E acrescentaria o nome Antoine.
Ah, não pode ser outro: o seu futuro menino deverá ser o não
menos amado Jean Antoine!
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Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
37
V
O nascimento de Jean de Monlevade e o estranho local do
primeiro sacramento
Poucos anos se passaram, Tisserand disse, e com eles o testemunho de que Felicité tinha razão. Os filhos nasceram-lhe conforme
sua formidável intuição feminina.
O senhor sabe, mon ami, que, dizendo isto, não estou caindo em pecado. A percepção desenvolvida pelas mães e mulheres
quanto a tais fatos é infalível! Resulta de séculos e séculos de sofrimento e observação.
É por isso que até mesmo a pequena Maria Vitória, o quarto
membro da família do fidalgo Jean-François, já andava, curiosa,
circulando pelos cantos de Monlevade. Felicité acertara na mosca quanto à causa das azias do início de sua segunda gravidez
e a filha, que, na ocasião, crescia secretamente em seu útero, já
balbuciava frases completas, ainda que um tanto carentes de articulação.
E foi nesta condição que, certa tarde, perguntara o que estava causando o crescimento paulatino da barriga da mãe. Felicité
penteava-lhe os cabelos e a menina assustou-se, tanto pela inesperada batida do cabo da escova em sua cabeça, quanto pela
resposta agressiva de sua sempre carinhosa e prestativa mãe! Não
é coisa de criança saber, advertira-lhe. O tom de voz fora inusitadamente severo.
Maria Vitória não conseguia conter ansiedade pela vinda do
que julgava ser uma irmã. E, por meio de sua graciosa linguagem
infantil, pedia a Deus que lhe presenteasse com uma que gostasse
também de brincar com suas bonecas. Ficou frustrada. Os céus
decidiram não atender às suas preces...
E então o senhor imagine uma madrugada em que o alvorecer é muito tímido e a temperatura ambiente nos convida a
38
Jairo Martins de Souza
permanecer na cama. Pois é. Foi numa dessas que veio ao mundo
Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade. Faltou-lhe o nome
Bogenet. De última hora, e por terrível negligência do cartório
de registros, aquele ramo da família não foi anotado no nome
do filho mais novo do fidalgo. Em todas as partes do mundo alguns funcionários públicos primam pelo descaso com seu ofício e
com suas obrigações. Sendo assim, meu amigo, não é de se estranhar que mais falhas dessa mesma natureza venham a interferir
em instantes de menor relevo desta história. Garanto-lhe serem
momentos até certo ponto divertidos, o senhor não perderá por
esperá-los.
O que posso adiantar é que Felicité Sallé du Sioudray Monlevade – este era o nome completo da esposa do fidalgo Jean-François
– saiu-se magnificamente do parto do último filho. Não se pode
esquecer que era situação em que muitas mães perdiam as vidas!
A parteira da aldeia era mulher despachada. E o fidalgo, afastado da esposa por alguns passos, escutara com satisfação incontida o resultado da leve palmada que fora dada nas pequenas
nádegas da criança. Choro forte que ecoou longe e silenciou, por
alguns segundos, o coral de galos que despertavam as almas que
habitavam o castelo.
O médico, que fora convocado por serviçal, estava atendendo a outra emergência a algumas léguas de distância e não chegaria em tempo hábil. Então, Yvonne, a mulher que a socorrera,
decidiu untar os dedos com uma espécie de gordura preta, e os
enfiar com vontade no ventre da quase inconsciente Felicité que
era, ao mesmo tempo, compassadamente convocada a expulsar
o filho. Força. Força. O bebê veio logo em seguida. Nascera praticamente sentado e com cordão umbilical enrolado por duas vezes
no pescoço! Mas sua angústia foi pequeníssima, pois teve-o livrado com habilidade e destreza. As pequenas e experientes mãos
de Yvonne haviam entrado em alerta e posto a cabo a missão em
questão de segundos!
A mãe, apesar das dores, estava bem. Mas, por precaução, a
eficiente socorrista fez-lhe torniquete e furou uma de suas veias
para permitir saída de quantidade pequena, contudo suficiente
de sangue.
Foi para evitar problemas e limpar o organismo, explicou posteriormente: madame Felicité vai ficar bem.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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E após enrolar o braço de sua paciente com pano limpo, disse
que aprendera o procedimento com o barbeiro-cirurgião da cidade que, por sua vez, dissera ter aprendido com o médico Colbert
que atendia clientela de toda a região. Toma, mãe, ele é todo seu!
Felicité tocou-o, por inteiro, da cabeça aos dedos dos pés.
Graças a Deus, não faltava nada ao seu novo filho! E pelos protestos que fizera ao respirar pela primeira vez os ares do mundo,
por dentro também aparentava ter boa saúde.
Penso não ter sido obra do acaso, Tisserand vaticinou, este
jovem careceria de muita força de vontade para cumprir sua missão. E foi assim que deu por encerrados os trabalhos de parto do
protagonista de sua história.
Jean de Monlevade não foi um bebê bonito. Tinha os olhinhos azuizinhos e era, digamos assim, engraçadinho. E nunca
em toda a sua vida teria a clássica beleza masculina de um Alain
Delon. Nem mesmo em sonho! Compará-lo, mon ami, com o
Gérard Depardieu quando fez Cyrano de Bergerac tornar-se-ia
o outro extremo. O da feiúra. Quem sabe pudesse ser explicado
como alguém do tipo do Jean Paul Belmondo?... Nem feio, nem
bonito. Bem, o que posso lhe dizer de confiável é que sua constante elegância no trajar, muitos sabiamente usam este artifício, é
que o fazia parecer bem melhor aparentado do que efetivamente
era. É com esse recurso que se tornava facilmente reconhecido
como un homme charmant, um homem charmoso.
Fazia mais de hora que eu ouvia o estrangeiro a quem decidira chamar Tisserand. Enquanto o observava mais uma vez olhar
para os lados com a cabeça alta, como se estivesse pesquisando
que tipo de tempo teríamos pela frente, pensava até que ponto
iríamos chegar com a história daquele moço. Foi quando mudou
repentinamente de assunto.
Na ocasião do nascimento de Jean, os moradores das redondezas de Monlevade, disse, mantinham-se relativamente a
distância da cartilha expedida pelo Terror revolucionário. O que
não impedia que alguns, a mando da administração central do
Departamento de Haute-Vienne, acabassem sendo presos e levados para igrejas e castelos. Soldados circulavam fortemente armados e a igreja católica continuava sendo combatida em vários
segmentos. Alguns dos seus prelados não concordavam com o
estado de coisas e ficavam sujeitos a sanções. O que celebrou
40
Jairo Martins de Souza
o rito de colocação da alma, em Cristo, do filho Jean do fidalgo
talvez tenha sido um deles. Pode ter sido esse o porquê de ter sido
batizado, poucos dias depois do nascimento, em condição absolutamente singular: o sacramento lhe foi dado em pleno estábulo
dos próprios domínios de Monlevade.
Anos mais tarde, Felicité simplesmente declarou que havia
encarado o evento com benignidade. E justificou-se explicando
que, além do comentado, na época, alguns camponeses continuavam lançando focos de revolta contra donos de feudos como
os de sua família. Daí a precaução tomada. Já o vigário, em suas
notas, simplesmente percebera o acontecido com fé e esperança
de dias melhores. Não nascera naquele tipo de ambiente o Nosso
Senhor?
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
41
VI
O caso da bola do jogo de péla
A história da família do fidalgo, mon ami, tem algumas peculiaridades excepcionais e absolutamente contraditórias.
O senhor se lembra da angústia que demonstrara em conversa reservada que tivera com a esposa Felicité? Pois daí não
demorou muito para tornar-se um Jacobino: um membro do famoso conselho dos 500. Tal decisão trouxe-lhe muitas situações
de risco.
Imagine um veterano de guerra, um homem coxo, fugindo
pelas janelas de sala onde estivera reunido com correligionários!
Pois foi por meio de cena bizarra como esta que acabou escapando das garras dos que extinguiam o período revolucionário da
Convenção.
Mas o senhor também deve estar recordado que o fidalgo era
homem feliz dentro do seu seio familiar. Talvez Deus tenha feito
dessa forma para compensá-lo pelas contingências que enfrentou.
Bem, para reforçar esta afirmativa, reservei-lhe exemplo que
ilustra bem a fortuna de que desfrutava como chefe de família.
Ela começa em tarde de primavera quando o menino Jean
Antoine foi com o pai visitar família amiga em Guéret: estamos
no acender das luzes do século dezenove e ele já conta quase dez
primaveras.
E para que o senhor tenha melhor imagem do fato, adiantolhe descrição do que viram ao chegar à rua principal do vilarejo.
Nada especial. Em sua essência era quadro comum a cidades do
interior daqueles anos. Pois, ao lado do povo, cachorros latiam e
se deslocavam em bandos de um para outro lado e, ao mesmo
tempo, carroças e bancas de mascates eram animadas pelas vozes das pessoas que davam andamento a cenas de negociações.
Barganhava-se sem descanso pedaços de carne de porco, gali-
42
Jairo Martins de Souza
nhas, peixes, coelhos, perdizes... tudo improvisadamente pendurado em toscos ganchos de ferro. Em barracas mais afastadas o
ritmo não se reduzia quanto a flores, frutos, legumes, enfim, todo
o resto que era exposto para apreciação, consumo e compra dos
viajantes e dos moradores.
O senhor, mon ami, conhece como funcionam estas coisas e
deve ter acertadamente concluído que a feira das tardes de sábado estava em pleno andamento.
Senão, repare com mais cuidado e sinta que os feirantes recendiam a alho, cebola e mau hálito. Já alguns compradores, mesmo
sendo dia claro, tomavam vinho livremente, enquanto, entre gargalhadas, empanturravam-se de tira-gostos. Outros circunstantes
que lá estavam nem para comprar, nem para vender, simplesmente
jogavam damas ou apreciavam disputas de braço de ferro.
Próximo a eles, um policial observava todas as circunstâncias
para evitar brigas ou quaisquer outros aborrecimentos: os desocupados e arruaceiros da região eram bem conhecidos. Vestido
disfarçadamente, à paisana, um oficial do governo revolucionário
de Paris também fazia sua ronda.
Nessa condição é que o menino Jean Antoine de Monlevade e seu cavalo foram efusivamente saudados pelos que os viam
chegar. Aí está, meu amigo, a bem-aventurança que havia lhe
anunciado.
Vou explicá-la, Tisserand disse. Vou esclarecer o porquê do
rapazinho ser tão admirado tanto nas cercanias quanto na própria
Guéret.
O fato é que dias antes chegara até a cidade para estudos
extraordinários com o mestre-escola da cidade: viajara acompanhado por serviçal do castelo.
Pois o fidalgo dava ao filho cuidadosas lições caseiras, mas
também o havia matriculado na escola local. Daí era de praxe
que todos os dias da semana o menino fizesse o roteiro Monlevade – Guéret para chegar até ao educandário.
E é a partir disso que vou economizar palavras, Tisserand informou, pois o cenário era aproximadamente o mesmo que disse há
pouco. A diferença era que não se tratava de dia de feira, mas sim
de festividades dedicadas à padroeira local. E, como parte das celebrações, jogava-se tradicional partida de jogo de péla. A população
das redondezas praticamente parava para presenciar o evento.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
43
Não sei se o senhor sabe o que significa a palavra péla, Tisserand prosseguiu, é raramente usada. É o nome de uma espécie
de jogo de tênis que alguns dizem ser o predecessor do popular
football inventado pelos ingleses. Nós franceses, dizemos abreviadamente foot: jeu de foot, jogo de futebol... bem, devo voltar ao
episódio que descrevia para o senhor.
O campo em que acontecia o tal cotejo era prioritariamente
reservado para acomodação de tropas militares e, quando desocupado, servia para prática de animadas partidas. Era essa a
situação!
A bola de jogo, feita de pele de estômago de boi, caíra ocasionalmente em buraco que permitia justo que lhe coubesse. O que
significa dizer que poucas eram as sobras laterais para tentativa
de puxá-la para fora com varetas, ou qualquer instrumento improvisado que alguns, a última hora, desesperadamente tentavam
fabricar.
A partida fazia minutos que estava paralisada. Os protestos
cresciam. Menos por parte dos próprios jogadores do que de alguns presentes que haviam apostado na vitória de um ou de outro esquadrão.
Jean aproximou-se do local onde estava a roda de gente que
se esgoelava na tentativa de recuperação da bola. E foi vendo
todo aquele deus nos acuda que, de cima do lombo do seu cavalo, levantou os braços e pediu calma a todos, dizendo: esperem!
Não demora trago essa bola para a superfície! Havia entendido a
circunstância.
Surpreendentemente os presentes deram-lhe ouvidos e perguntaram-lhe: o que queres dizer, rapaz?
Tragam-me balde cheio de água que, em instantes, terão de
volta a bola de jogo!
Foi imediatamente atendido e com seus braços finos jogou
lentamente o líquido no buraco. Com sua descida, a bola subiu.
Os homens comemoraram! Equipes e assistentes ergueram canecos de bebidas homenageando o rapaz.
Quando se calaram, Jean pediu-lhes que não o agradecessem, e sim a Arquimedes e à sua brilhantíssima explicação da lei
do empuxo. Estudei-a em livros antigos do fidalgo, meu pai, ele
tem admiração por este grego. Foi assim que aprendi que poderia
ser usada em casos simples como este. Ou até mesmo em outros
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Jairo Martins de Souza
de grande complicação como os de cálculo de cascos de navios.
Foi a força de Arquimedes que empurrou a bola para cima, complementou.
Não vou acrescentar nada ao que Jean disse, Tisserand prosseguiu. O senhor, tenho certeza, conhece de cor o enunciado daquela poderosa lei da natureza, conforme ensinada nas escolas.
Nenhum dos camponeses entendeu nada do que dissera,
mas com olhares de gratidão voltaram rapidamente para o final
da contenda. Palavras de elogio eram ouvidas em todos os cantos
da praça.
Próximo dali o pai, que pernoitara na cidade, sorrira, estava
já de saída mas teve tempo para aplaudir o evento provocado por
seu querido. Fizera eco com o que ouvia. Não posso dizer o contrário ao que o povo diz, insinuou, estou habituado às estranhezas
desse garoto desde que veio ao mundo.
Então, Tisserand, parece-me que encaixando oportunidade,
disse-me que realmente o rapaz tinha gosto por coisas inusitadas.
O pai tinha razão.
Uma delas era a de cheirar pedras. Examinava-as também
com as mãos para sentir-lhes a textura em mínimos detalhes.
Metia-as cuidadosamente até mesmo entre os dentes. Com isso
verificava se uma era mais fácil de lixar do que a outra, ou se essa
riscava aquela.
A de diamante é a que risca tudo, concluiu. Não é à toa que
monsieur Sarkozy, o ourives, disse-me que não pode deixar de
tê-lo em sua oficina, Jean havia comentado com o pai.
Por tudo isso, o fidalgo escreveu para um parente que morava
em Paris, contando, inclusive, que o filho tinha até mesmo um
cachorro buscador de pedras. Basta que ele as aponte para que
o animal as localize e as extraia mesmo que em locais de difícil
acesso. Totalmente preto. Era razão de o buscador ter sido chamado de Breu.
O que não se deve estranhar é que também gostava de fazer
coisas comuns a crianças de sua idade. Como pescar no Creuse,
agora é o próprio Tisserand quem diz.
E, logo na primeira ocasião, tinha reparado que os peixes vistos no fundo de suas águas pareciam maiores lá em baixo do que
quando os pescava. Trazidos para fora se tornavam menores! Ficou
intrigado. Tinha apenas 8 anos e, ao voltar da pescaria, comentou
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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com Flamini, o cozinheiro do castelo. O homem riu, e disse ser
história de pescador.
Não pôde pedir explicações ao fidalgo. O pai estava em viagem
de negócios. No entanto, certificou-se, em almanaque dos arquivos
de Monlevade, que a ilusão de peixe grande é culpa de mudança de
velocidade da luz na água do rio. A chamada refração. Não entendeu
bem: a explicação dada era vaga. Mas, suficiente para concluir que
devia ser razão de os pescadores serem ditos como mentirosos...
Daí não ter sossegado até descobrir que René Descartes escrevera sobre o assunto no livro Le traité du monde et de la lumière
(Tratado sobre o mundo e sobre a luz). Vou pedir a papai para
encomendá-lo. Em Paris...
E é para lá que também vamos, mon ami, passa da hora de
conversarmos um pouco sobre a terrível guilhotina...
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Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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VII
A terrível guilhotina
A fresca da tarde se avizinhava, anunciando que o tempo esfriaria
levemente, mas manter-se-ia confortável. Estava cansado e perdi
alguns minutos da exposição de Tisserand, pois devaneara sobre
pontos anteriores de sua história. Ele havia percebido e, de repente, disse algo que teve o poder de atrair de volta a minha atenção.
Em 1801, o mesmo ano em que Jean de Monlevade fez 10
anos, disse, as lâminas insaciáveis da guilhotina francesa completaram igual período de existência. Deixou de ser aplicada somente
em 1977! O último condenado foi o emigrante tunisiano Hamida
Djandoubi que foi decepado por homicídio de uma jovem mulher.
O possante e singular facão era tão temido pelos nobres franceses quanto o era, para algumas muçulmanas, o apedrejamento
por deslize às leis do alcorão.
É por isso que vou alongar-me um pouco sobre ele, Tisserand
acrescentou.
Em sua première, a cabeça condenada que rolara, até cair
em recipiente próprio, fora a do pedreiro Pelletier, especialista em
construção de estradas. Em 1793, foram também seus aterrorizados clientes, o pescoço real de Luís XVI e o de sua esposa: a então
angustiada Habsburgo, Maria Antonieta.
Desde então já se passara tempo suficiente para que fosse
cumprida a lei nefasta de a criação virar-se contra a criatura. O
filho virar-se contra o pai. Foi assim que Louis Guillotin, o médico
que a inventou, tornou-se injustamente amaldiçoado. Pois a violenta lei da gravidade, e as polias e os contrapesos que usara no
seu projeto foram, no fundo, somente para diminuir a miséria e a
dor dos condenados.
Foi aí que observei que Tisserand, após finalizar a última frase,
estava mantendo um sorriso quase infantil, na face e nos lábios.
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Jairo Martins de Souza
Como pode? São incontáveis as injustiças que podem estar
embutidas neste assunto!
Amigos do próprio fidalgo Monlevade poderiam ter sido injustamente sacrificados! Causou-me certa indignação! E pensei
em pedir-lhe que voltasse a dizer de Jean e os 10 anos que Tisserand dissera ter completado.
Mas antes disso, concluí que reparara minha estranheza
quanto à aparente incoerência de sua postura, pois imediatamente explicou-se, com certa tristeza: se não é para afastar a miséria
humana, mon ami, para que nos serve o riso?
E confessou-me ter se lembrado vagamente de alguns versos do Bocage: dizem que um médico foi/ inventor da guilhotina/
mostrou conhecer da morte/ mostrou conhecer medicina...
Creia-me, caro leitor, ambos demos por encerrado o mal-entendido. O lucro que tive da situação foi também o de ter confirmada uma das minhas primeiras impressões, quando do início
do nosso contato nesta praça. O terno de brim, o modo de se
expressar, o olhar vago buscando o horizonte, o ambiente em que
estávamos, enfim, tudo isso me fizera lembrar (ainda que o estrangeiro tivesse feições bem diferentes e mais envelhecidas) a figura
do Tom Hanks, tal como no início do conhecido Forrest Gump.
Bem, Tisserand poderia não ser artista de profissão, mas tinha
realmente talento para tanto. Recitara o poema com maestria!
E foi daquele ponto que continuou sua história dizendo que
no mesmo 1801 o papa Pio VII voltou a ter controle dos sinos das
igrejas do mundo católico francês. Havia-lhe sido retirado anteriormente pela Revolução. Paz provisória. Inclusive para as famílias que perambulavam pelas ruas com estômagos vazios.
Prova dessa minha última afirmação, Tisserand confirmou, é
que até mesmo alguns escritores relataram, a posteriori, inúmeros
casos de jovens de boa intenção condenados à prisão e desprezo social por caso de simples furto de pão velho para alimentar
irmãos e filhos menores. Em tais histórias, estes infelizes sempre
contaram com o apoio da comunidade cristã!
Repare o senhor que um operário, quando ativo, ganhava 20
sous por dia. Um quilo de pão custava 20 sous. A água era gratuita. Passava-se a pão e água, mesmo quando se era afortunado o
bastante para ajeitar trabalho. Bem, esses não são dados baseados
em censos governamentais, pois a maioria deles é recheada de
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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falsidades. E sim, levantados em fontes da arte literária francesa
da época. Vendiam-se livros dos seus autores por todo o mundo!
Eles fizeram muito pela França, e é por meio da literatura que
o país conquistou muitos admiradores aqui na longínqua América
do Sul. Tanto é assim que filhos selecionados da burguesia brasileira andaram visitando Paris para estudos em diversas áreas da
cultura e da arte.
Não é de se surpreender que um desses jovens tenha vindo
a influenciar a vida da família do fidalgo de quem falo. O senhor
que me ouve não perde por esperar a confirmação do que digo!
Tisserand sorriu. Já havia notado que sorria sempre do mesmo jeito quando pensava dizer algo contraditório. Acertei em
cheio!... pois ele, em questão de segundos, prosseguiu dizendo
que, embora não tivesse o propósito de expor a público seu miserável conhecimento da história da Europa, a evolução da ciência,
tocada pela Polytéchnique francesa, pelos alemães, pelos ingleses,
e outros pesquisadores avulsos pelo mundo afora, seguia sem solução de continuidade no início do século dezenove. O cálculo
diferencial avançava a passos de gigante. Não é à toa que sempre
se disse que a matemática anda séculos à frente de outras disciplinas. Daí estava por se confirmar na prática o que nela já se sabia
por mais de duzentos anos: a Terra não é fixada e nem imóvel
em qualquer ponto definido do espaço infinito. Muito menos no
seu centro. Ela gira em torno do seu próprio eixo, foi o que Leon
Foucault finalmente provou com o pêndulo que veio a montar no
edifício do Panteão!
Tudo. Toda a fantástica evolução daqueles anos foi lenta. A
conta-gotas. Dou-lhe, a mais, o singular exemplo do barco a vapor.
Após milênios de espera, o viajante se libertava da habilidade pessoal dos capitães no manejo das velas e lemes de suas caravelas.
Para crer como eram complicadas aquelas situações, mon ami,
basta estudar por alto operações simples da matemática de vetores.
Pouco a pouco o estrangeiro desvinculou-se do ar professoral
que subitamente havia assumido. Contudo não deixou de continuar dando seu parecer dizendo que tais avanços propiciaram ao
povo europeu estender asas para novos continentes.
O Brésil, por exemplo, era visto como se estivesse no estado
em que Deus o havia criado. O jardim do Éden. Um distante retrato recuperado da criação.
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VIII
A escola em Guéret e os cuidados do professor Duchamps.
Jean é perseguido pelo maldoso Materazzi
O professor Duchamps era homem sereno que levava a vida tendo como prazeres maiores a transmissão de conhecimento aos
seus alunos e a dedicação à igreja de Cristo. Tentara ser cura
d’almas exclusivo, mas a curiosidade científica, as propostas do
suíço Rousseau, assim como outras atrações mundanas, chamaram-no, inapelavelmente, para o mundo secular. A igreja acabou
por perder parcialmente um bom apascentador de ovelhas do seu
vasto rebanho. A família se conformara, mesmo que houvesse
planejado para ele somente a vida austera do claustro. Os argumentos do moço foram incontestáveis.
O senhor, meu amigo, verá que Duchamps, no alvorecer de
sua vida adulta, acabou sofrendo grandes decepções. Valeu-lhe,
por final, a grande fé que, a despeito de tudo, sempre demonstrara ter. Considerava ser a grande herança que recebera dos pais!
A bem da verdade, tudo começara com uma pequena tragédia familiar. Ainda jovem se apaixonara por uma prima: moça
de cabelos dourados e olhos azuis com a qual convivia desde a
primeira infância. Era daquele tipo de paixão, quem não as teve,
construída pelas brincadeiras infantis e encontros de família regados com amor, inocência, poemas de rimas pobres e intimidade
de vista de cotovelos descobertos. Não mais que isso.
Não deu outra coisa. Feitos prematuramente os acordos de
dote e compromissos, o casamento foi tão natural como nasce o
sol da manhã, e outras estrelas escondidas pela claridade do dia:
o que nada significa para duas almas apaixonadas, pois a chegada da noite dá chance a que apareçam, e tornem as madrugadas
ainda mais belas para o casal.
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Jairo Martins de Souza
Mais ainda naqueles dias em que a escuridão das ruas dava
vez a maravilhoso planetário natural coalhado de estrelas extraordinariamente brilhantes. A vida vislumbrava, para os dois amantes,
augúrios de muitas felicidades muito antes de soarem os gritos e
protestos da Revolução. A promessa era a de um mar banhado de
rosas.
Aí, exatos nove meses após as festas e folguedos nupciais, é
que ocorrera a desdita. Ela morreu. A causa mortis foi complicação surgida durante o parto que, sabemos, levava para a sepultura boa parte das mães que davam à luz novos filhos. Mortificado
pelo ocorrido, o jovem viúvo tentou conseguir colocar o corpo
da amada para descanso eterno junto a padres e abades no piso
da igreja da cidade. Era pedido feito pela mulher pouco antes de
morrer. Pensava poder daquela forma, ouvi-los, e a seus sermões,
como se estivessem em púlpitos celestiais. Repousaria mais próxima do céu...
Não conseguiu. Duchamps sofreu, rebelou-se contra Deus,
chegou até mesmo a pedir que não se pronunciasse tal nome em
suas proximidades, xingou santos que julgava protetores de si e
da família e, por fim, quase sucumbiu à dor da perda precoce.
Desesperou-se mais ainda quando, dias depois, foi comunicado
que o pequeno filhinho que trazia no rosto os olhos azuis da mãe
também se fora. O bebê nascera fraco e débil e não resistira à
ausência do amor e leite maternos. O sofrimento fora triplo para
o pai e o viúvo. A infeliz criancinha ainda não tinha sido batizada
e esperaria no limbo até sua chamada para o céu no final do segundo milênio.
Após enterrá-lo ao lado da mãe sob pequena campa no cemitério local, o abatido Duchamps andou pela França sem destino
nem moradia fixa. Com o desencadear de tamanhas desilusões,
encerrara precocemente sonho de ter lar e ninhada de filhos. Tão
miserável era o seu estado que tinha os olhos constantemente
inchados por choro ininterrupto: lembravam os de alguém com
desagradável sintoma de conjuntivite.
Mas antes de fugir para longe de sua desgraça, tivera inspiração suficiente para gravar em pedra seus nomes, com as datas de
nascimento e morte, assim como duas linhas de poema comentando sinteticamente, talvez como Machado fez com sua Carolina, o amor e a falta que definitivamente iria sentir.
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Após alguns meses, a vida de andarilho assomou-lhe à consciência. Pesou prós e contras. A busca do nada significava o quê?
Nenhuma estrada serve para quem não sabe aonde quer chegar. Era homem forjado no campo. Como um passarinho murcho, precisava se fixar em um galho. Não podia ficar dando voltas
como um rio de planície. Faltava-lhe decisão imediata.
Ela não demorou e foi extremada. Por não considerar haver
abrigo melhor para reflexão, comprou velho mosteiro, abandonado no topo de monte e isolado por densa vegetação, onde se
refugiou por cerca de dois anos. Perdeu a noção dos dias da semana. Revirava velhos conhecimentos que guardava dos tempos
de escola. A gramática. A dialética. A retórica. A aritmética. Lia a
bíblia. Não atinava qual dia deveria consagrar especialmente ao
senhor.
O mundo passou para ele a ter classificação especial. As horas eram três blocos compactos. Manhã. Tarde. Noite. Com a passagem do tempo, cansou-se da solidão e da vida de eremita.
O pequeno período de felicidade vivido com a esposa que
não mais estava neste mundo trouxe-lhe saudades e desejo de
voltar a ter vida social. Não. Não é que o luto houvesse se acabado de todo. Faria parte do seu cotidiano até o final dos seus
dias. Entretanto a carne ainda não havia enfraquecido a ponto
de não sucumbir a contatos com o sexo oposto. Tinha lá suas
sublimações. Pois não se pode ficar eternamente apaixonado por
quem não mais lhe escreveria bilhetes de amor ou lhe faria carinhos. Sua atitude deixara de ser doentia e mórbida. Voltara a
ler o Novo Testamento. Fizera as pazes com Deus e tinha, enfim,
mirado os tristes eventos como parte de sua cruz terrena.
Considerava-se no caminho da salvação; a dor forja melhor
o caráter que a vida fácil e, por final, viu-se com a alma fortalecida com as longas noites de reflexão e leitura passadas sob a
luz de vela de sebo e a observação, e anotação, dos movimentos
dos astros noturnos. Para sua felicidade, achara como parte do
espólio do mosteiro, abandonada em armário esculpido nas suas
paredes, uma luneta empoeirada e suja, mas com lentes em bom
estado de conservação. Não descobrira o grande Galileu maravilhas? Não calculara os quilômetros de altura das montanhas lunares com uma mais rudimentar do que a que encontrara? Não se
diz ter sido ele, com esse mesmo primitivo instrumento, o primeiro
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Jairo Martins de Souza
a descobrir as assustadoras manchas que sujam a superfície solar?
Não foi absurdamente perseguido por fazer tão grande e prodigiosa descoberta?
Não são perfeitos nem a estrela que sustenta a vida na Terra,
nem a luz da fé que por vezes campeia e obscurece a cabeça dos
homens. O espírito de Duchamps se elevou. O jovem viúvo voltou a sorrir!
Por tudo isso, retornara para Guéret. A família recebeu-o de
braços abertos: não é que tivesse sido considerado como um filho pródigo, mas na prática foi assim. Todos, inclusive amigos
e vizinhos, se alegraram. Os pais, já velhinhos, encheram-se de
esperanças e pensaram para ele um novo direcionamento, um
novo rumo a ser traçado junto a não esquecido desejo que, com
a paixão pela esposa e filho mortos, não pudera ser cumprido. A
dedicação integral do filho aos ofícios religiosos. Não foi possível, pois Duchamps nunca havia se considerado perfeito e nem
flagelava o corpo quando sentia as tentações do demônio. Não
se iludia quanto a isso. Mesmo que se lembrasse constantemente de Jesus e as circunstâncias terríveis a que fora solitariamente
submetido no deserto. Temia ultrapassar limites. Sabia que seria
tentado por algumas paroquianas que gostavam de testar a força
das convicções dos homens que se dedicavam a Deus.
Então não pôde atender às expectativas dos seus pais. Mas
não ficou tão distante do que pretendiam. Na altura dos seus 27
anos, e passado breve período de readaptação, decidiu-se pela
solução intermediária de dedicar-se ao magistério. Por meio de
amigos e recomendações, obteve licença, junto a ministro do governo revolucionário, para trabalhar aplicando método que assinalava acordo a ser diariamente selado entre mestre e aluno.
Pacto de responsabilidade e compromisso.
É o que hoje se chamaria de escola experimental, Tisserand
comparou, tentando com isso tornar seu relato mais claro.
Nessas condições é que encontramos Duchamps ministrando
aulas para o filho do fidalgo, o brilhante rapazinho Jean Antoine
Monlevade. À parte disso, continuava prestando homenagens à
mulher e ao filho, pois visitava-os semanalmente no local onde
deveriam repousar para todo o sempre.
A família não ficou totalmente frustrada com sua decisão, a
felicidade pode ser obtida de várias fontes e que, nesse caso, mo-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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rava muito próxima a eles. Um dos seus irmãos mais novos seguira carreira juntando-se precocemente aos quadros de Savona. Lá
teria a honra de servir diretamente ao próprio santo padre!
A vida voltava-lhe aos poucos, o sangue circulava normalmente em suas veias. Para futuro não muito distante, Duchamps
poderia até mesmo voltar a casar e, finalmente, dar chance a si
mesmo e perpetuar nome por meio de filho que viesse a não gorar como o do seu primeiro amor. Aprimorara definitivamente o
caráter, deixando claro a toda a sociedade que era daqueles que
não tinha a alma dividida entre a crença e a razão.
A Deus o que é de Deus; a César o que é de César. Duchamps
gostava de dizer essa desgastadíssima frase que, convenhamos, se
bem aplicada, nunca cai em mesmice. Mas enquanto um futuro
filho não lhe figurava senão em sonhos, satisfazia-se com ajuda
aos seus prezados alunos. Em especial, agradava-lhe a presença
do pequeno Monlevade nas suas turmas de ensino.
O rapazinho, quando do seu gosto, escrevia pequenos textos
satirizando o que via à sua volta tanto em Monlevade quanto em
Guéret. Seu estilo, nestas ocasiões, lembrava o de Molière que,
inusitadamente, graças às alfinetadas que dava nos costumes de
sua época, também agradava ao mestre. Era uma das formas por
que demonstrava imensa sede de saber sobre a cultura. Isso, definitivamente, não era usual aos de sua idade.
As perguntas que o estudante Jean lhe fazia, Tisserand disse,
faziam com que Duchamps ficasse incentivado a estudar mais e
mais: e até mesmo enviar cartas solicitando esclarecimentos sobre um ou outro assunto a colegas que trabalhavam em Paris.
Daí evoluía cada vez mais ciente dos novos conceitos da física da
natureza que estavam sendo estudados de forma inovadora em
todos os cantos do mundo. O professor aprendia por conta da
intensa curiosidade do seu pequeno aluno!
E assim cometeu acertos e erros. Inclusive declarando à sua
classe, e ao jovem Monlevade, que Descartes acertara na mosca
ao afirmar que a Terra tinha a forma de um pepino achatado
na sua linha do Equador. Não perdeu por esperar. Na semana
seguinte, o próprio garoto disse-lhe, reservadamente... Desculpeme, professor Duchamps, mas pesquisei, em livro que pertence
ao fidalgo, meu pai, e concluí que a Terra é mesmo achatada...
só que nos pólos. Não no equador, como o senhor disse-nos. Ne-
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Jairo Martins de Souza
nhum dos outros estudantes suscitara-lhe a primeira indagação,
nem pesquisara para trazer-lhe informação posterior!
Muitos, Tisserand complementou, julgavam que a Terra fosse
quadrada (mesmo que os paus dos mastros das caravelas emergissem aos poucos na linha do horizonte, e não de uma só vez),
tal como alegavam alguns antigos.
Não na França. A cultura era bandeira admirável dos anos
pós-revolução. E, particularmente, o interesse dos seus estudantes
pela política era abissal. Por vários motivos. Um deles não muito
estimulante: mais cedo ou mais tarde teriam forçosamente que
empunhar mosquetes, e partir para Deus sabe onde!
Os alunos das classes de Duchamps tinham de 8 a 16 anos.
Boa parte deles constantemente encaminhada pelo orfanato da
cidade que era dirigido por um bondoso homem... o senhor ouvirá bastante sobre ele no decorrer desta história, o estrangeiro
advertiu-me.
Uma das razões é o fato de ter sido grandessíssimo o número
de pais sem recursos que levavam seus filhos para ficar zelados
por aquele senhor. Ribérry. Seu nome era Ribérry. Após alguns
dias de preparos preliminares, eram matriculados e passavam
parte do dia na escola da cidade bancada pelo governo central. A
escola do professor Duchamps.
E foi nela, por algumas razões que já expliquei ao senhor, que
o então menino Jean de Monlevade destacou-se aos olhos oficiais
da comunidade.
O petit-garçon, o rapazinho, tem inteligência primorosa e
muita agudez de espírito, foi o que Duchamps disse certa ocasião
ao fidalgo durante missa dominical. Ainda não tinha plena consciência de que o pai detinha essa imagem do filho. Tenho planos
especiais para ele e desejo aconselhá-lo a seguir...
A conversa fora reservada e acontecera enquanto caminhavam lado a lado no adro da igreja. Foi lá que Duchamps confessou que, mesmo não achando ser o pior dos males do mundo,
achava no mínimo estranha a atitude do rapaz em suas tentativas
de sentir os cheiros e as reações da natureza mineral. O fidalgo
ouviu-o com ar de tranquilidade. Estou ciente do fato, professor
Duchamps. O meu Jean é caso exceção entre os jovens de sua
idade. Poderia ser filho de qualquer outro fidalgo, desculpou-se,
mas é meu: tenho tido sorte com meus filhos...
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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Jean François Bogenet não pretendia fechar rapidamente
assunto, Tisserand interveio, tanto ele quanto Duchamps sabiam
que a conversa prometia ser longa.
E parte dela foi o fato de Duchamps, em dado momento, ter
dito que o menino acreditava mais na força da leitura do que na
dos seus músculos. E relatou para o fidalgo exemplo sugestivo.
Faz poucos dias, dois dos colegas mais velhos colocaram um
pequeno sapo no pedaço de pão que ele trouxera como merenda. Mais tarde os maus elementos disseram-me tê-lo encontrado
morto quando se encaminhavam para a escola. Viram o batráquio ser atropelado por roda de carro de bois. Então substituíram
o recheio de queijo de cabra do sanduíche de Jean pelo corpo
amassado do animalzinho. Aproveitaram instantes em que ele
saiu por minutos da sala para fazer obrigação fisiológica no quintal da escola.
Não foi difícil descobri-los. Uma pequena investigação feita
pelo próprio Jean foi suficiente. Teve ajuda de um aluno novato:
chama-se Martinho.
Esse moço é mais um dos que nunca se ausentaria do grupo
de Monlevade, Tisserand relatou: estou ansioso para apresentá-lo
ao senhor. Não o faço de imediato porque devo continuar informando-lhe o teor do diálogo entre Duchamps e o fidalgo.
Seu filho, caro Monlevade, atrai pessoas como a sedução
das abelhas pelo mel. É muito prestativo. Colabora sem descanso
com seus pares, ensinando-lhes como resolver exercícios escolares mais penosos. Mas não me disse nada a respeito da brincadeira de mau gosto que os perversos colegas lhe fizeram. O assunto
do sanduíche de sapo chegou aos meus ouvidos unicamente por
meio de terceiros. Aí fiz ouvidos de mercador: decidi me omitir
quanto ao ocorrido.
Por quê? O fidalgo indagou. Jean deu conta do recado por si
mesmo. Contaram-me que reagiu com firmeza, usando a milenar
sabedoria bíblica que conhece bem. Alguns julgaram ter agido
com certa ingenuidade, mas foi assim que desqualificou exemplarmente os detratores. Reconheci, Duchamps prosseguiu, por
comentários que circularam na escola, que citou os escritos de
Tiago, cobiçais e nada tendes; logo matais. Invejais, e não podeis
alcançar; logo combateis e fazeis guerras.
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Jairo Martins de Souza
A princípio funcionou parcialmente, pois um dos rapazes reagiu
enfurecido, dizendo-se amaldiçoado. Sacou canivete velho e ameaçou espetar o pequeno Jean. Foi contido pelos demais da classe.
Jean queixou-se dele com o soldado Cousteau. Cousteau? O
novo chefe do destacamento, senhor fidalgo. Chegou à cidade no
dia de ontem. Ainda não fui comunicado, meu filho é ainda uma
criança. Mas autossuficiente. Repara bem, foi até a autoridade
nem mesmo incomodando o pai. Cousteau deu-lhe alguns cascudos – estou dizendo do agressor denunciado por seu filho – e
disse-lhe para não insistir em atitudes como aquela. De minha
parte, na escola, acabei por passar-lhe, como dever extra, a feitura de cinquenta cópias do hino nacional. A Marselhesa.
Dê-me o nome, Duchamps. De quem? Do agressor. É meu
dever dizer-lhe, caro fidalgo, que lhe darei esta informação somente se tiver como resposta promessa de nada ser feito contra
meu aluno. O jovem é esquentado, mas já teve punição bastante.
Promessa feita! Materazzi. O nome é Materazzi: descende de
italianos. A família veio de Sicília e é mais ou menos nova na região.
No dia seguinte, Duchamps prosseguiu, aproveitei a passagem bíblica que Jean dissera e planejei aula ligando-a a alguns
tópicos da ética e aos jardins de Epicuro. A filosofia de Epicuro. O
silêncio da classe pareceu-me sinal de bom efeito, e interesse por
alguns princípios de Cristo quando ensinados fora do claustro. Aí
cometi infração. A polícia de Bonaparte pode pegar-me pelos pés.
Ao final da entrevista o fidalgo retirou-se para o confessionário para dar conta oficial dos pecados da semana. Não eram
muitos, e dentro de minutos, acompanhado pela mulher e os três
filhos, encaminhou-se com a alma mais leve para Monlevade. O
castelo Monlevade.
Então o encontro do fidalgo com Duchamps terminou muito
bem, Tisserand disse. Embora durante seu andamento não tenha
ficado livre, além das que já lhe disse, de outra desconfortável
inquietação.
O motivo foi assunto que ainda não informei ao senhor, mon
ami. Deixei-o para o final por julgá-lo o mais relevante.
O fato é que Duchamps havia dito algo ao fidalgo que, se
por um lado causou-lhe preocupação, por outro foi motivo de
orgulho! Vamos ver do que se trata nas palavras do próprio, como
também as impressões do fidalgo.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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Seu filho anda escrevendo cartas a Paris, monsieur Monlevade. Cartas? Sim, cartas. O senhor conferiu a grafia? A do meu
Jean é bem diferenciada. É a do seu filho e, a princípio, deve
trazer-lhe satisfação misturada com tristeza leve. Qual o senhor
quer ouvir primeiro? A notícia boa. Se bem entendi suas palavras,
devo considerá-la razão mais forte que a triste.
É como entendo ser, monsieur. Vou dizê-la. Jean é mais inteligente e atirado que eu pensava que fosse. Perdoe-me, Duchamps, isso não é novidade. Peço seguir direto para o que é de
interesse, a tal notícia boa. Que é no mínimo extravagante, senhor
fidalgo. No entanto peço aguardar um minuto mais, tenho mais a
acrescentar além do que o senhor já sabe. O rapaz tem conhecimento incipiente sobre a matéria metalurgia. Disso realmente não
sei. Faz perguntas inusitadas e escreve como se fosse um adulto que estudasse engenharia de minas. Por enquanto parabéns,
monsieur. Agradeço em nome de toda a família! Mas e a ruim,
qual é?
Escreveu para um homem bastante extraordinário, monsieur
***, usando o seu nome, senhor fidalgo. Diz ser um estudioso da
região de Guéret que tem como interesse a pesquisa de pedras,
metais e suas propriedades intrínsecas.
Na carta não foi fundo no assunto, mas sugeriu procedimento
para diferenciação da essência de minerais. Simples, mas interessante. A chave seria aquecê-los para ver que cores a luz de
queima de cada um assume sem ser influenciada pela cor do fogo
do material que está fazendo com que se aqueçam. Não entendi
bem, e nem mesmo percebi se o menino soube se explicar.
Monsieur ***, que é o cavalheiro a quem ele escreveu, trabalha para o governo e dedica-se apaixonadamente ao tema. É cientista renomado, e está participando de estudos de aprimoramento
do currículo da escola Polytéchnique, a Politécnica de Paris. Seu
filho assegurou-lhe continuar refletindo sobre o que fazer, qual o
rumo a tomar. O cientista retornou-lhe dizendo-se agradavelmente
surpreendido com tão elegante missiva. Por ora é o que sei!
Entretanto presumo, Duchamps prosseguiu, ser melhor antecipar pergunta que o senhor, como pai, deve estar ansioso para
saber resposta. Vou dizer-lhe como descobri as tais cartas.
Bem, Jean certo dia estava olhando absortamente para baixo de sua cadeira na escola. Fui verificar motivo de tal distração.
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Jairo Martins de Souza
Ele não é de se dispersar em classe. A razão foi a que acabei de
contar-lhe. Relia uma daquelas missivas. Passei-lhe reprimenda
e alguns deveres e cópias especiais, inclusive algumas a mais do
hino nacional. Faço sempre desta forma. Ele disse que iria cumprir tudo à risca e pediu-me para não comunicar ao senhor fidalgo. Não quero levar preocupações e mais problemas para mon
père, meu pai, bastam-lhe os que já tem.
Quer seguir encaminhando correspondência conforme tem
feito. Disse-lhe ser impossível e adiantei-lhe algumas lições sobre
direito e crime. Esclareci-lhe estar praticando falsidade ideológica, matéria não inclusa no programa escolar. Interessou-se pelo
tema e pareceu-me compreensivo, mas disse-me que pesquisaria
melhor quando fosse adulto, e fosse por conta própria para Paris.
Ah, entendo! Então não tocarei no assunto com ele, senhor
Duchamps. Que fique o dito como não dito!
Ora, ora, que petit garçon curieux, que menino curioso, agora
quem diz é o fidalgo Monlevade para a esposa. Repare daqui da
janela onde estou. Parece explicar algo para Maria Vitória. Jean
muitas vezes carece de uma cobaia para ouvi-lo com atenção. Em
Paris terá chance de ouvir e ser escutado. Por ora, Maria Vitória é
adequada para tanto. É suave e delicada. Mas não explica a dialética que o contraditório é indispensável para que o homem cresça? Maria Vitória só ouve. Não se manifesta em termos práticos.
Nem poderia, Tisserand comentou com sombras de tristeza.
Naqueles anos a leitura destinada às mulheres era bastante restrita. Para elas, os permitidos, e apropriados, seriam livros como
o Um Coração Singelo que Flaubert escreveria dentro de mais
alguns anos. Não. Não Madame Bovary que, inclusive, custou-lhe
execrável processo moral!
O senhor, mon ami, me perdoe pela intempestividade da lembrança destas obras e do autor. Já volto imediatamente a dizer-lhe
os termos do diálogo entre o fidalgo e sua mulher. Lembro que
diziam sobre o comportamento diferenciado do menino Jean.
E a amizade do menino com o chien noir, o cachorro preto, o
Breu? Não achas que passa das medidas? Breu é seu companheiro
de pesquisas, Felicité. Não vejo nada demais, é somente escudeiro
buscador de pedras. Ultimamente acompanha Jean até mesmo à
escola, e fica nas cercanias até que se encerrem as classes. Não há
com que se preocupar. Cachorro é cachorro, ma chérie!
Está bem, mas e o burro a quem chama de Géo? Dei-lhe de
presente há dias, mulher. Pertencia a monsieur***, o dono do
armazém.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
61
Quando digo monsieur, com três asteriscos, Tisserand explicou, estou obedecendo fielmente às anotações do abade. Foi
assim que escreveu. Talvez tenha omitido alguns nomes por esquecimento.
E com isso esclarecido, Tisserand disse-me que devíamos voltar ao diálogo entre o fidalgo e a esposa Felicité. Quando os deixamos, falavam sobre o burro colocado à disposição do filho Jean.
O burro, Felicité, gosta também de caminhar sobre pedras e
fuçar rochas. Agora tem acompanhado a ele e ao Breu. Aliás, o
nome Géo é forma reduzida do nome géologue.
Um burro geólogo? Esse Jean... ah, marido, sinto-me mal em
fazer troça com as coisas do meu filho...
Não se incomode, Felicité. Não é só você que acha graça
nisto. Até mesmo os amigos de Jean caçoam a respeito daquele
burro. Dizem, acompanhando-o, ra, ra, ra, vejam o diploma na
viseira. Ra, ra, ra, deve ter sido emitido pelo responsável real da
l`école de Mines (escola de minas) de Paris.
Na realidade, o fidalgo respondera descuidadamente à mulher. O que lhe interessava era voltar ao assunto Maria Vitória. Ela
preocupava-lhe mais. Não. Não é que precisasse estudar. Mulheres não nasceram para isso.
Era assim que funcionava naqueles anos, Tisserand disse (a
impressão que tive é de que estava refletindo em voz alta sobre
o que o fidalgo dizia), Maria Sklodowska, prosseguiu, a Marie
Curie, foi exceção nascida naquele século. O senhor sabe, ela foi
premiada duas vezes com o Nobel. Um de física e um de química... O fidalgo Jean-François Monlevade nem mesmo sonharia
com tais circunstâncias. Bem, retornemos às suas preocupações.
É. O estudo coloca-lhes besteiras na cabeça e as torna devassas. Algumas sonham até mesmo em tornar-se atrizes! Deus
que nos livre de prostitutas nessa família! Espero fazer, para essa
menina, um bom contrato de casamento.
O primogênito, François não o colocava intranquilo. O rapazinho já sonhava ter seu destino na direção da capital.
No entanto, é Jean quem deverá perpetuar o nome Monlevade. Seu brasão nunca iria ficar no esquecimento. Era o que
o fidalgo sentia ao observar a conduta, as brincadeiras e tudo o
mais que fazia o rapaz. As preocupações e as ansiedades quanto
ao futuro da nobre família aos poucos se perderiam no tempo.
62
Jairo Martins de Souza
A privilegiada percepção do mundo que tinha fazia com que
captasse tudo que acontecia ao seu lado. Chamava-lhe especial
atenção a chaminé da fundição da família Rochechouart. Não
se cansava de observá-la com olhar interessado. Ficava durante
horas tomando notas e apreciando a fumaça que subia de seus
tijolos de barro.
Rochechouart: para alguns, o contorno da casa e da fábrica
eram sombrios e funestos, pois tinham as paredes escuras e cheias
de fuligem. Algo fantasmagórico situado numa curva de estrada.
Os trabalhadores que eventualmente se deslocavam dos seus domínios para um ou outro afazer pareciam monstros pintados de
negro: fantasmas que saíam dos negrumes com a cor do fundo
dos infernos!
Não para Jean. Tanto é assim que os desenhava com alma
leve de quem aprecia visões do paraíso. As imperfeições existem
na busca da perfeição: o ferro deixado para trás pela fuligem é o
futuro do mundo. Os anéis escuros subiam ao céu e invadiam espaços anteriormente limpos e o pequeno fidalgo divertia-se, comparando-as, as nuvens e a fumaça e, duvido que alguém nunca
disso tenha feito, com carneiros, bois, forjas ou quaisquer outras
figuras exóticas que possuíssem formas brancas, ou negras. Vultos
que, naquelas cercanias cinzentas, mudavam de identidade como
se fossem camaleões.
Bem, é tempo de voltar a lembrar algo mais do fidalgo. Para
tanto voltemos ao professor Duchamps e ao seu magistério em
Guéret.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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“Rochechouart: para alguns, o contorno da casa e da fábrica
eram sombrios e funestos, pois tinham as paredes escuras e cheias
de fuligem. Algo fantasmagórico situado numa curva de estrada.
Os trabalhadores ....”
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Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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IX
O fidalgo socorre e livra a família de Martinho das garras
de Thurram. O bondoso abade Ribérry
O nome do garoto era simplesmente Martinho. Na ocasião não se
sabia exatamente quem eram seus pais nem de onde, finalmente,
viera. Aparentava cerca de dez anos, mas na realidade nascera há
apenas sete. Nos oitocentos a Igreja ainda não fazia os registros
dos filhos dos seus fiéis que habitavam em rincões distantes. Os
documentos civis somente viriam, e seriam obrigatórios, com o
passar das décadas.
A dureza da vida, Tiserrand continuou, teria feito curtos os
anos do tal rapazinho. Não o fez por breve contingência que veio a
lhe suceder: foi fato que significou muito. Passadas tantas décadas
afirmo sem qualquer sombra de hesitação que foi o que deu sentido à sua vida...
O estrangeiro havia abaixado abruptamente a altura de sua
voz. Ela tornou-se sumida. Isso foi informação bastante para que
eu imaginasse que ele estivesse buscando melhor imagem para relatar algum insólito episódio que eventualmente tivesse acontecido
com o menino. Pus-me a esperar. Aguardava, ansiosamente, que
desse continuidade ao assunto.
Foi quando comentou que o vigário geral escrevera que expor
a público alguns atos do fidalgo Monlevade proporcionavam-lhe
especial prazer. O senhor sabe, prosseguiu, que a França em nenhum momento deixou de estar agitada nos finais e no início do
século dezenove. E o mesmo havia se passado com seu amado
parente. Já na casa dos cinquenta, os cabelos do tio Jean-François
estavam totalmente brancos. Extraíra alguns dentes apodrecidos.
Envelhecera. Mas não piorara do seu andar manco e nem deixara
de lutar por seus ideais. Nunca lograria em se habituar ao que não
considerava justo.
66
Jairo Martins de Souza
É o caso, Tisserand acrescentou, da circunstância inusitada que
o fez conhecer a família do sofrido garoto Martinho.
Então contou que a família do rapazinho viajava procedente
de vilarejo situado próximo à fronteira que a França fazia com o
oeste alemão. Não tinha planos concretos, simplesmente fugia da
fome e da pobreza. Foi em data próxima ao dia do Natal de 1801,
e provavelmente a intenção final fosse chegar até as favelas medievais de Paris, onde buscariam moradia e trabalho.
Meses antes o pai não se deixara convencer pelos argumentos que lhe diziam os vizinhos: é melhor, mon bon ami, passar
miséria em terras conhecidas do que na solidão das ruas estreitas
e vielas da capital. Não sabes que Paris já conta com mais de cem
mil habitantes?
Bem, Tisserand disse, mesmo que enunciada em anos recentes, a lei de certo senhor Murphy valia desde o tempo em que a
família do menino viajava pelo gélido dezembro europeu.
Não lhe tomo tempo precioso em dizer, por alto, a terrível
circunstância em que os pobres andarilhos prosseguiam jornada.
Às vezes, caro amigo, alguns ditados, ainda que caídos em
desuso, podem nos servir. Ainda que aparentemente empobrecendo o texto, por exemplo, o que diz reclamarmos não ter meias
enquanto a outros faltam os pés. Não é propriamente o caso daqueles infelizes. Não como os pés dessas pessoas que estamos
tratando, assim tão pouco protegidos, afundados na neve, e anestesiados pelo frio de ventos cortantes. Continuassem assim por
muito mais tempo, sujeitos a essas hipotermias, poderia ser necessário extirpá-los!
Posso imaginar, mesmo sem ter vivido tal situação, o desespero do chefe da família, pai extremoso, ao ver os seus pequenos
e a mulher em tal estado de penúria. Nada pode ser pior. Ah, aí é
que entra a lei de Murphy na vida de Martinho. Pobres coitados,
mal sabem que maior desgraça os espera. Por ora, pelo menos
estavam todos juntos, e assim comprovavam mais uma vez o conhecido fato que a dona miséria adora estar acompanhada. Mais
ainda quando estamos tratando de assunto que diz respeito a pai,
mãe e irmãos: assunto de família.
Nessa situação é que se alegraram os pobres corações à vista
de luzes distantes de pequenas e pálidas iluminações a sebo. Essa
gente desgraçada torna-se feliz por pouca coisa. A noite avançara
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
67
há cerca de quarto de hora e não fosse a fraca Lua que, com sua
divina providência se encarregara de paralisar a queda de pequeninos flocos de neve, provavelmente pela manhã todos teriam
sucumbido pelo frio intenso. As casas que haviam visto, por meio
das tais anêmicas e bruxuleantes luzinhas amarelas, anunciavam
presença, a poucas centenas de metros, de pequeno vilarejo. Uma
dádiva, um céu para os pobres coitados. Ânimo. Ânimo, crianças,
disse o pai, se Deus nos ajuda!... Ele vai nos ajudar! Um dos filhos
respondeu com fé. Aqui encontraremos comida e algum pequeno
espaço coberto para passarmos a noite.
As pequenas almas, num último esforço, rapidamente avançaram no caminho indicado pelos pais e, em poucos minutos, já
os aguardavam próximo às primeiras casas do local. O pai, que
carregava nos braços grande quantidade de tralhas, procurava se
movimentar o mais rápido que podia e, ao mesmo tempo, segurava com força a pequena bolsa de pano onde guardava alguns
tostões que lhe restavam. Neles se resumia toda a fortuna monetária da família.
O que tinham a mais era um maltratado burro que fora, até
então, o principal ganha-pão da família. O mirrado dinheiro que
estava na bolsinha era fruto do seu trabalho, pois, sempre que alguém aceitava proposta, era alugado para prestar biscates. O coitado, também fraco e esgotado, havia ficado momentaneamente
para trás. Mas ao ver distanciar os patrões e as crianças, fincou
fundo os cascos na neve fofa e, ufa, ufa, finalmente alcançoulhes. Daí em diante apertou menos a cadência e seguiu também
esperançoso ao lado dos donos. Esses que repetiam, um para o
outro, pode ser que aqui seja possível comprar algum pedaço de
pão preto e copo de água quente, enfim, para dormir qualquer
estábulo nos serve, não estando molhado o capim. Das frestas
das janelas das casas alguns moradores indagavam: quem serão
estes estranhos? O que fazem aqui a estas horas?
Não tão longe, mas escondido pela escuridão de um beco,
o endiabrado Thurram também os observava. Esse homem era
ainda jovem de idade, mas veterano em malfeitos e iniquidades.
Não é tempo de dizer o porquê de ser assim, tão gasto pelas andanças e pequenos delitos. Tinha seu nome como prioridade de
busca nas fichas de todos os policiais e soldados da região. Nessa
condição é que arquitetava bote a ser aplicado em qualquer opor-
68
Jairo Martins de Souza
tunidade que, naquela noite fria, se lhe avizinhasse. O elemento,
como diria o linguajar da caserna da atualidade, morava refugiado em colinas próximas e viera buscar algo para celebrar suas orgias de fim de ano. Bandido. Celerado. Malfeitor. Decerto que responderia “presente” se chamado de qualquer destes nomes. Na
agenda do mal era manequim para muitos outros modelos. É por
tudo isso que fugira recentemente das galés onde estivera preso
por alguns meses e... creio já o leitor ter tido de sobra na mente seu
perfil ignóbil. E, por enquanto, falta somente acrescentar que era
da região e ajuntara bando antigo com poucos dias de procura.
Era essa a principal razão de os moradores locais se encontrarem em constante estado de vigília. O antigo menino, que agora
soubemos tratar-se de um celerado, esquecera qualquer sentimento cristão desde tempos de tenra infância. Foi tempo em que
aniquilava pássaros e enforcava gatos por simples prazer de assistir às suas dores e sofrimentos. Estou dizendo de suas primeiras
experiências no mundo do crime. E o resultado aí está naquele
canto de rua esburacada e cheia de neve que, sabemos, há minutos cessou de cair. Viera à vila sozinho para não despertar suspeitas, e, por fim, pois não há mais o que esclarecer sobre a situação,
foi-lhe fácil abocanhar as moedas da família que chegava. O pai
havia colocado as cargas que carregava no chão e as contava cuidadosamente sob poste isolado de luz oscilante de óleo animal.
Não é difícil entender o sentimento de fragilidade que se
apossa de um ser humano após ser assaltado. Mas não é fácil
explicá-lo por meio de palavras. Mais ainda em condição indefesa
como aquela. O susto fora tão grande quanto o desespero de segundos depois. Pobre homem que, sentindo-se desesperançado,
sem mais ter nada, sussurrava baixinho para que os outros não o
ouvissem, ó Senhor, por que me abandonastes?
A neve voltou a cair e Thurram retornou para a escuridão
da noite para fazer rápida avaliação do auferido. A mulher e as
filhas, abraçadas, iniciaram choro conjunto. Martinho, o pai e os
outros irmãos resistiam ao desejo de também se exasperar. Não o
fizeram. Tinham que dar exemplo. A vida havia lhes ensinado, e
disso compreendiam bem, que o choro deve ser o último refúgio
do homem.
No outro extremo da rua, dentro de uma taverna, o fidalgo
Monlevade iniciava ingestão de sopa de batatas e carne e, ao
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
69
mesmo tempo, elogiava o bom vinho da casa que lhe fora servido
pelo proprietário. As panelas fumegavam, e o cheiro de comida
nova aquecia não somente o ambiente como também as almas
dos carroceiros, viajantes, soldados e outros frequentadores que,
induzidos pelo clima festivo, passaram a conversar animadamente. Alguns poucos bebiam de pé, enquanto aguardavam vez, pois
todos os tamboretes e bancos feitos com pranchas de madeira
estavam ocupados por clientes.
Enquanto isso o bandido, após certificar-se da mísera quantidade de dinheiro que roubara, voltava rapidamente para o local
do crime. Não no sentido psicológico que dizem os detetives de
filmes e livros policiais, mas porque, descontente com o resultado
de sua investida, Thurram viera buscar algo que vira e lembrara
ser também de seu interesse: o pequeno burro. A família atordoada mal percebera que a pequena corda amarrada no pescoço
do seu animal era contida a custo pelo próprio que não queria
separar-se dos donos.
Tudo isso acontecia nos instantes em que o fidalgo Monlevade tomava rumo para certificar-se das condições de pernoite
dos seus animais. A Lua escondida atrás de algumas nuvens dificultava-lhe a visão, mas independente disso caminhava satisfeito,
em termos de estômago, com o repasto que fizera. A perna aleijada não incomodava, mas, aí que residia o problema, o espírito
mantinha-se acabrunhado com coisas do dia a dia. Havia trocado
ideias com alguns carroceiros e mascates... bem, já na parte de
fora da taverna teve a atenção chamada pelo movimento atípico,
e que de longe parecia confuso. Os ruídos provinham de local
imediatamente após os estábulos que pretendia verificar e o fidalgo, em poucas frações de segundo, sentiu-se totalmente tomado
pelo sagrado instinto de preservação que, em situações como esta
e piores, domina a vida de todos os seres nascidos na terra.
Alto lá!, arrête!, o que acontece aqui?, foi o que gritou perguntando, e já sacando a pistola. Não podia correr – havia precipitadamente alçado a bengala para cima – mas estava ciente de que
algo errado acontecera ou estava por acontecer. Atirou para o alto.
Thurram em fração de segundos desapareceu na escuridão da noite e dos caminhos que o conduziriam à fuga e à busca de novas
pilhagens. O burro, instantaneamente deixado de lado, rebelara-se
com o estampido e dera um violento coice para trás, passando a
70
Jairo Martins de Souza
milímetros das costas do meliante que fugia do local. Segundos
após, era consolado pelo patrão e pelas crianças, especialmente
por Martinho, o seu preferido. Era tudo que lhes restava....
Feitas as apresentações, o fidalgo Monlevade que, como dissemos, tratava a todos como iguais, acolheu aos pobres-diabos.
Pagou-lhes comida na taverna em que comera há pouco, e conseguiu peças de roupas limpas junto a dois mascates que conhecera no mesmo ambiente. Por ter sido cordial, gastou por tudo
o troco de alguns poucos francos. Dos carroceiros, e de outros
homens que lá ainda estavam, conseguiu casacos rotos, mas pesados, para os pais de Martinho, pois fora considerado um fidalgo
de caráter e de ideias de respeito social. Anteriormente prometera
cargas de retorno e serviços aos tais homens, caso estivessem de
passagem pelas cercanias de Guéret.
Por outro lado, para que todos dormissem em paz, o chefe da
família dos desesperançados havia lhe dito: bastam-nos o calor
dos animais e as paredes dos estábulos em que estava também a
pequena tropa de Monlevade. Não foi assim. O fidalgo providenciou-lhes hospedagem digna em casa de família à paga de outra
pequena quantia.
Um dos filhos do casal jamais esqueceria o nome daquele
nobre senhor que, além de tudo, doara-lhes alguns francos e uma
breve carta de apresentação. Era o próprio Martinho.
Mesmo assim adianto que, de certa forma, foi abandonado
pelos pais em contingência absolutamente inusitada. É terrível para
alguém de tão pouca idade. Ainda que se tenha em mente estivesse vivendo infância em anos, que o senhor já ouviu por repetidas
vezes, serem chamados também terríveis. Geadas fortíssimas, guerras, mau governo, aumento de impostos para o povo, inundações...
No entanto, o jovem desmentia alguns ditados pessimistas
que rezam que a miséria gera a violência e a falta de fé. Por exemplo, o que diz que as razões do estômago são as que prevalecem.
Nem sempre. Esse era o motivo do sorriso enigmático que Tisserand fizera surgir nos lábios há muitas linhas, talvez folhas, atrás.
O garoto Martinho foi nascido e criado em tempos de aflição.
E aprendera desde cedo a qualidade que identifica o valor de um
verdadeiro economista: a de administrar a vida em período de
escassez. E mais ainda – alguém me explique como isso acontece
– o de fazer, em situação de penúria, que se tornassem mais cân-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
71
didos os seus pensamentos. Nos dias de hoje seria dos que nunca
careceriam de sessões de psicoterapia.
Uma de suas desditas foi a de que os pais de sangue, poucos meses depois do evento em que foram roubados por Thurram, decidiram dar a ele o que supunham ser um futuro melhor.
Conscientes de que nada trariam de bom para o filho, possuíam
muitos outros para dar conta, decidiram basicamente entregá-lo
ao destino.
Não. Não é que tenha sido ele arbitrariamente escolhido para
descarte. A tomada de decisão foi feita após muito choro e muita
indecisão sobre o processo. Na realidade, fora em constrangedor
sorteio. A mãe havia escrito as iniciais dos nomes dos meninos
homens em pequenos pedaços de papel velho cuidadosamente
dobrados em quadradinhos. Anteriormente haviam combinado
que para as meninas não seria deixada qualquer possibilidade de
entrega a terceiros. Foram excluídas da triste loteria.
Em última instância, morreriam, fosse o caso, todos juntos,
os pais e as três filhas. O destino da mais velha já estava, como
de prática daqueles tempos, definitivamente traçado: cuidaria dos
pais até o fim. Às duas menores seria facultada oportunidade de
casamento. Poderiam pelo menos aprender a assinar nome e,
com sorte, dominar a escrita e fazer contas. Mulheres com esses
pequenos predicados eram mais procuradas. Mas o dote principal seria a lisura de vida e o caráter herdado dos pais. Quem se
candidataria? Uma delas, Beatrice, era assaz bonita. Não fosse a
indumentária, composta de trapos, e os cabelos desgrenhados,
enfim, havia alguma esperança de paixão de algum aprendiz de
ofício que gerasse dinheiro, e bom futuro para criar família.
Foi com essas intenções paternas que o sorteio fora encaminhado e estava, conforme dizia-lhe faz pouco, em pleno andamento. Bem, Tisserand prosseguiu, tenho certeza que o senhor
sabe que o tempo é entidade que não tem via de contramão e,
como sempre avança, quebra toda a simetria de universo. Inclusive a ordem da vida de uma família que deveria ser construída de
forma correta, linear. Filhos pequenos devem ser protegidos, não
abandonados pelos pais!
Com isso, continuou, devo voltar ao miserável mundo daqueles coitados. É uma das vantagens que a arte e a literatura
nos proporcionam. Pois feitas as combinações familiares, algumas
72
Jairo Martins de Souza
somente a título de confirmação de acordos passados, com as
mãos trêmulas, o pai acabara de retirar um dos pequenos papéis.
Entregou-lhe às vistas da mãe. O garoto Martinho estremeceu ao
verificar que ela dirigiu-lhe os olhos molhados de lágrimas. Mas
mostrou-se pronto para seguir sua sina.
Hoje é você! Amanhã talvez sejamos nós: os irmãos miraramlhe silenciosamente. Alguns imediatamente começaram a soluçar,
as três meninas choravam desconsoladamente. Somente o mais
velho manteve-se firme. Foi bom que tenha sido assim. Martinho
é garoto fraco, eu posso ajudar mais a família. No futuro poderei
alcançar meus sonhos, trabalhar como cocheiro e conduzir carruagens e carroças pelo país afora. Ou se Deus, e meu corpo não
tão franzino assim o permitirem, ser até mesmo mosqueteiro da
infantaria de Bonaparte.
Minutos mais tarde Martinho foi deixado próximo da entrada
da cidade de Guéret. O pai, abraçando-o por derradeiro, indicoulhe de braço estendido a frente da casa onde supunha funcionar
o orfanato da região. De certa forma estava tranquilo, o menino
Jesus acompanharia o filho. Nunca havia estudado o latim, mas
decorara desde criança a duras penas a ave-maria, o credo e o pai
nosso. Ensinara a todos os filhos.
Vai. Vai, filho. Leva o nosso burro. Cuida dele e segue para
vida nova que te aguarda! Vai com Deus, meu filho. Não, pai, vocês é que devem ficar com ele. Nunca os esquecerei. Ainda volto
a encontrá-los. Que Deus os acompanhe!
Dentro de tímida embalagem de pano constava um pequeno pedaço de pão preto e uma velha blusinha de lã. O garoto já
era bastante arranhado pela vida e fingiu estar firme e, passados
alguns segundos, iniciou caminhada a princípio vagarosa, mas
que logo transformou-se em desabalada carreira. Com os poucos pertences amarrados na ponta de pedaço de pau fino que
trazia às costas, ele não mais voltou o rosto para trás. As lágrimas
embaçavam-lhe os olhos, corria às cegas.
Uma carroça que passava acelerada jogou-lhe neve misturada com barro e água na boca, nos olhos, enfim, em todo o rosto.
Ele cuspiu a mistura. O condutor e a charrete pareciam ser os
mesmos que haviam conduzido o fidalgo de volta para seu castelo
faz anos.
O mesmo havia acontecido com o restante da família que, ca-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
73
minhando em sentido contrário, se distanciava cada vez mais. Pai
e mãe seguiam calados. Não mais veriam o filho! Um dia haviam
sonhado para ele a profissão de carpinteiro construtor de casas.
Quem sabe dessa forma, deixando-o assim, à sua própria sorte,
consiga ser mais feliz!
Mas enquanto isso não chega ao seu desfecho derradeiro,
Tisserand disse-me, peço-lhe licença, por instantes, para voltar ao
caso do sapo no sanduíche de Jean. O caso Materazzi. Lembrase? Lá havia relatado que Jean tinha alguns aliados e que, inclusive, o pobre Martinho era um deles.
E foi a partir daquele acontecimento que posso identificar
para o senhor alguns desdobramentos.
A casa que o pai indicara era realmente a do orfanato da
região. E que, por meio de seu responsável, havia acolhido Martinho com o mesmo empenho e responsabilidade que recebia a todos os desventurados que batiam à sua porta. Já disse-lhe ser homem de grande benignidade no coração. Eram frequentes cenas
como aquela da batida de porta de um menino franzino, sujo e
mal vestido. Mesmo não o vendo, o abade assentado no paupérrimo banco de madeira anotaria mais uma cruz no seu caderno.
Mais uma alma rogava por socorro. Não lhe faltaria amor cristão.
O que era dividido por x, seria dividido por x + 1. Água quente é
também o que não faltaria para acrescentar à já rala sopa de batatas, repolho, e pedaços de carne de caça, ou qualquer proteína
que fosse colocada à disposição. Há tempo mantinham-se iguais
os recursos enviados por Paris, e escasseavam as contribuições da
população local.
A despeito da pobreza das instalações, o dormitório era dividido por mais de cinquenta crianças. À noite os flatos que emitiam felizes, resultado do excessivo consumo de repolho, davam
ideia de que lá dormiam quinhentos. O cobertor individual velho e maltrapilho não dava conta totalmente do frio. No entanto, desconsiderando-se todas essas adversidades, o ambiente era
repleto de calor humano. As intrigas existiam, onde não existem,
mas o abade Ribérry acreditava que a vida era composta de fases que, ao passar, vão fazendo acumular experiências. Como se
fosse uma grande escada composta de milhares de pequenos degraus. Ao subi-los, encontram-se os céus bíblicos prometidos na
palavra dos evangelistas. Cada indivíduo tem seus percalços, seus
74
Jairo Martins de Souza
degraus, construídos de forma específica. A dele era a de integrar
crianças à fé cristã.
O que faltava materialmente às espartanas instalações do edifício do seu orfanato, glória ao Senhor, podia ser grosseiramente
compensado com as sobras de amor, fé e orações. Alimentar as
almas às vezes logra vencer a fome espúria do corpo. Sim, o homem precisa de pouco pão e pouco vinho para viver.
Ribérry acreditava também no conhecimento e na ciência
para incentivar o aumento de fé do homem em Deus e na sua
criação. O estudo, pregava, ajuda a criatura a conhecer a natureza física do criador. Em particular apreciava a astronomia cada
vez mais próxima graças à chegada da notável, e não tão velha
assim, fabricação do telescópio. Caros aprendizes (era assim que
se dirigia aos seus órfãos), as maravilhas e os segredos da natureza espelham grandiosamente, mas não de forma suficiente, os
mistérios e a imagem apagada do criador!
Para tanto encaminhava seus acolhidos para a escola de Guéret. Tinha fé na instituição conduzida por Duchamps, com quem
mantinha sinceros laços de amizade. É nessa condição que lá vamos encontrar o menino Martinho: já eram passados três meses
de sua chegada. Antecipo que foram os anos mais felizes de sua
vida. As aulas de carpintaria que lhe eram dadas por velho profissional que colaborava com as obras sociais de Ribérry teriam
feito seus pais extremamente felizes. Era a profissão que sonhavam para ele. Aprendeu a arte e o manejo dos instrumentos com
facilidade. Mas não foi daquela forma que veio a ganhar a vida.
Encurtando o assunto, Tisserand prosseguiu, Martinho tornou-se companhia constante do filho do fidalgo. E foi em fim de
tarde em que o horizonte tomava aspecto tenebroso (salpicado de
vermelho escuro como o sudário de Jesus), que Jean disse-lhe.
Não entendo exatamente a expressão daquele homem com
casaco marrom, Martinho, parece-me não tirar os olhos de minha
sacola de livros.
Não é ela como um todo, Jean. Veja, julgo que a razão de
tanto olhá-la é a edição que tens exposta das Lettres Philosophiques (Cartas Filosóficas) de Voltaire.
Pode ser por isso, Martinho. Voltaire foi um dos que deu as primeiras estocadas nas excrescências da vida monárquica. A capa
do meu livro é quase um insulto para partidários do L`Ancien
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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Régime que desconhecem a podridão em que vivia a nobreza de
Versailles. Deve ser um deles. Ainda sobrevivem muitos desses
inconformados no seio do próprio povo.
Pois é, Tisserand prosseguiu, o suposto monarquista era o pai
de Materazzi. O acontecido se passou logo nos primeiros dias de
aulas e Jean havia desenvolvido amizade imediata com Martinho.
O menino o havia procurado, mas não dissera que a princípio
fora atraído pelo sobrenome Monlevade do colega. Não se esquecera do fidalgo que o ajudara e à sua família meses atrás. O fato
é que, a julgar pelo olhar fulminante de Materazzi, pouco faltou
para que Jean fosse agredido. Primeiro fora o filho. Agora o pai.
Mas não foi somente por causa do tal livro, sobre o qual o leitor
já foi dado a conhecer.
Não. Havia algo mais. O homem era antigo empregado nas
propriedades do fidalgo. Não era dos dedicados ao trabalho e,
com a pequena produção agrícola daqueles anos, e o baixo rendimento da gleba de terra que lhe havia sido destinada, vivia enfurecido com a situação. Certo dia perdeu as estribeiras e ao ser
gentilmente perguntado sobre o que pretendia fazer para melhorar
a produtividade de seus encargos, enfureceu-se e, desabotoando
a camisa, desafiara o fidalgo, ofendendo-lhe todas as gerações.
O pai de Jean, entendendo a situação, a princípio retrucoulhe com elegância, explicando-lhe genericamente a situação deplorável em que se encontrava o país. Pouco depois, dada a insolência do empregado, colocou-o, com palavras enérgicas, em
situação desconfortável perante os demais camponeses. Aí, um
dos pares de Materazzi, homem ainda jovem, cismou de ficar nervoso. Defendeu o fidalgo, seu senhorio.
Dizia-se que esse antigo servo tinha os parafusos um tanto
quanto soltos, mas, aos trancos e barrancos, dava conta de suas
obrigações, inclusive de sua roça, mulher e filhos. E, naquele pequeno conflito em que tomava partido do seu senhor, disse a Materazzi em francês atravessado e recheado de palavras de baixo
calão, merde, que não somente no seu país como também em
qualquer parte do mundo não se pode suportar tal ofensa a fidalgo de respeito como Monlevade.
Sabemos ser ele coxo e, sendo assim, impedido de lutar duelos e defender sua honra perante imbecis como Materazzi. Antes
de concluir, prometeu emboscá-lo em noite fechada. E referindo-
76
Jairo Martins de Souza
se aos espíritos malignos expulsos de porcos por Jesus, acrescentou que até mesmo os suínos da região, se informados, protestariam diante do ridículo que o fidalgo ficara exposto. Esbravejava
alto, quando de repente sacou de canivete de lâmina fina e curta,
mas afiada. Por pouco não chegava a ser um punhal.
A sorte é que, como num passe de mágica, abruptamente
ajoelhou-se, colocou-se de costas e começou a rezar. Segundos
antes, dissera um oh e, estranhamente, acalmara-se: pareceu-lhe
ter visto um risco de luz gigantesco que cortara violentamente o
céu acima de sua cabeça. A seguir um estrondo avassalador, que
se repetiu em intervalos regulares tal como se fosse emitido por
baterias de grandessíssimos canhões. Tudo foi muito rápido. O
raio e trovão que anunciaram tempestade próxima não voltaram
a acontecer.
O homem interpretou os sinais como aviso de que seu tempo
chegara. Instantaneamente fez de novo o sinal da cruz. É daí que
foi dada chance a Materazzi para escapar. Dias depois o defensor
do fidalgo passou a usar camisas somente de cor negra, e dispôsse a viver de biscates como pedreiro, carregador, transportador de
caixas de fezes, enfim, prestador de serviços menos nobres para
terceiros.
Anos mais tarde andava circulando pelas ruas de Guéret com
um pedaço de pau nas costas, tornando-se um dos mentecaptos
mais famosos da região. Era querido pela população do vilarejo.
O povo gostava e fazia troça de suas traquinagens e estripulias.
Antes disso tinha sido mandado para tratamento no hospital do
conhecido Dr. Esquirol, em Paris. O doutor Esquirol escrevera um
consistente tratado sobre o mal que acometia o rapaz. Lá foi submetido a banhos de água fria e sangrias. Não funcionou.
E não era tempo ainda dos antigos e decadentes tratamentos
à base de choques elétricos, Tisserand explicou.
Com isto não teve alta médica, mas foi levado de volta para
Guéret pelo próprio fidalgo. Dilsé era o seu nome.
Bom, mas os desafetos do violento Materazzi, o pai, não
eram em pequena quantidade. Havia muitos outros além de Dilsé. O homem que tentara ofender o fidalgo tornara-se o Judas do
vilarejo. Com o agravante de que todo dia, para ele, era Sábado
de Aleluia. Alguns o ridicularizavam, entre outras coisas, por ter
piolhos amestrados na cabeça, por nunca lavar suas cuecas e por
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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eterno furúnculo nas nádegas que não o deixava em paz. Diziam
também nunca ter tomado banho a conselho e exemplo do próprio pai, já velho e abandonado. Não fica a saúde do tronco de
uma árvore por conta da não retirada de sua casca? De todas as
formas, a polícia local mantinha sobre ele vigilância moderada.
Aí em sentido contrário é que atua o homem puro de Deus,
eles existem! Pois o abade Ribérry, imune aos medos e terrores
que almas abandonadas como a de Materazzi impõem a terceiros,
acolhera-o em pequeno casebre situado no quintal do orfanato.
Condoera-se da família. Lá o instalara com a função de manutenção de trato das áreas externas da instituição e outros pequenos
serviços.
Antes do episódio que terminamos de descrever, o abade havia anotado que Materazzi estivera observando – sua atitude era,
notoriamente, suspeita – o filho de Monlevade. Felizmente não
ocasionou nada de grave. Para tanto a razão foi simples e partiu
de atitude de Martinho que mantinha hábito, ao lado dos policiais
da cidade, de manter olhos bem abertos sobre o elemento.
Ele fora prevenido e havia solicitado entrevista com o abade
Ribérry. Foi quando, mesmo que cheirasse como se ainda usasse cueiros, o garoto calmamente expôs a situação que poderia
tornar-se perigosa para o amigo filho do fidalgo Monlevade. Foi o
suficiente para que Ribérry chamasse Materazzi até a sacristia e,
usando todo o seu poder de persuasão, dissuadiu-o de qualquer
intenção pecaminosa. O irritadiço homem a princípio recusou-se
a aceitar conselhos, mas por final pediu perdão e disse que procuraria esquecer qualquer pretensão quanto a vingar-se do fidalgo.
Julgava-o culpado de sua sorte, mas queria sobretudo manter o
emprego, a casa e a garantia de comida para os seus.
Perceba-se, Tisserand disse com voz mais suave, que Martinho tentava, de todas as formas, manter pagamento do débito
que julgava ter com os Monlevade. Mal sabia ter sido sua primeira
ação como colaborador do filho do homem que, um dia, dera-lhe
as mãos.
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Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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X
O armazém e as histórias do capitão Platini
No futuro Jean se lembraria que, na realidade, todas as grandes
mudanças de sua vida se iniciaram em cima de um saco de batatas. Na maior parte dessas ocasiões, estava acompanhado por
Martinho que, normalmente, tomava proveito e ganhava alguns
sous ao fazer pequenos biscates para o comerciante proprietário
do estabelecimento. Era lá, naquele saco de juta, que costumeiramente o filho do fidalgo se assentava enquanto ouvia as histórias
de monsieur Platini e de seu empregado Fontaine. Foi a partir de
momentos como esses que tornaram-se grandes amigos.
O menino Monlevade gostava de estudar os livros da família,
mas também era apaixonado por coisas e pessoas que haviam
viajado pelo mundo afora. Aprendizado pela prática de terceiros.
Fosse ele nascido nos dias de hoje, Tisserand comentou, exploraria seletivamente bibliotecas virtuais: não perderia tempo
precioso com o lamaçal de imundices que passeiam pela rede. A
internet ser-lhe-ia indispensável: tal como foram, após sua infância, as histórias e a experiência de Platini.
Também tenho certeza de que pediria ao fidalgo, seu pai,
condições para explorar o mundo em toda a sua diversidade.
Viajaria muito em suas férias escolares. E, na adolescência, faria
tudo para merecer o privilégio de um intercâmbio com famílias de
outros países. Não se limitaria ao pequeno quadrado da telinha
de computadores e aparelhos de tevê. Com razão. Não se tem a
verdadeira dimensão do mundo e das pessoas ainda que vistas
nas belas imagens do Discovery channel.
É preciso esclarecer, Tisserand disse, que nem Platini, muito
menos Fontaine, paralisavam atividades de rotina para contar casos e histórias para o garoto. O armazém era movimentado e não
dispunham de tempo para tanto. Trabalhavam conversando. Just
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Jairo Martins de Souza
Fontaine, esse era o nome completo do ajudante, fazia entregas domiciliares e zelava pela limpeza e integridade do estoque. Também
se incumbia de viagens a Paris em busca de mercadorias para o
patrão. Era muito popular nas redondezas pela habilidade com que
atuava nos jogos de péla locais: o artilheiro das redondezas!
Conheciam-se, ele e Platini, havia anos, pois ambos haviam
seguido ofício de camponeses no Vale do Loire. A crise chegou.
Tornaram-se marinheiros a serviço do governo pouco antes dos
eventos que conduziram à Tomada da Bastilha, em 1789. Isso
não durou mais que doze meses, mas anteriormente também haviam participado de navegação comercial e viajado por alguns
mares do mundo. Começaram pelo Mediterrâneo, andaram pelo
Tirreno, o Adriático, o Jônico, o de Andaman, até chegar, singrando as águas do Atlântico, ao antigo caminho de Calicute. Foi
quando, a meio caminho, depararam-se com o Brasil. O que não
fora totalmente por acaso: há séculos havia acontecido o mesmo
com o português Pedro Álvares Cabral. Este fato seria explicado
posteriormente pelos dois marinheiros, e em situação especial,
tanto a Jean quanto a Martinho.
Quando se desligaram da vida da caserna, e de suas guerras,
fizeram-no por razões distintas.
Afortunadamente – o senhor entenderá o que lhe digo em
instantes – as Moiras de suas vidas fizeram cruzar novamente seus
caminhos. Ajuntaram-se novamente na vida civil. Explico-lhe
como isto aconteceu.
Cada um recebera a parte que lhe cabia como indenização
por serviços prestados à nação. É com esse numerário que, pressupunha-se, deveriam ir adiante constituindo família, e por aí as
coisas deveriam ir seguindo.
O tenente Platini, por privilégios da patente e medalhas de
bravura, recebera quantia considerável. O governo lhe oferecera
propriedades, ele declinou. Fontaine fora premiado em sua maior
parte pelos valores simbólicos das condecorações por valentia.
Mas tanto ele quanto Platini, cada um em seu patamar e, em
parte fazendo jus à fama da classe dos homens do mar, gastaram
muito do que ganharam. A bem da verdade, quase tudo. Durante
alguns meses fizeram a alegria de mulheres da noite nos bordéis
dos bairros pervertidos de Paris. Mulheres e diversões. Diversões
e mulheres. Caíram praticamente em bancarrota. Acabando-se o
dinheiro, voltou-lhes a consciência.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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Foi ato de Deus. Certa madrugada, coincidentemente, foram
expulsos ao mesmo tempo de uma taverna por dizerem insultos ao
proprietário, e por mau comportamento diante dos presentes. Daí
é que, passada a bebedeira, viram-se sendo acordados, juntos,
por meio de cachorro vira-latas que lhes lambia o rosto próximo à
porta dos fundos de outro mal afamado bordel. Reencontraramse. Fontaine queixou-se respeitosamente ao oficial, dizendo que
tinha ido a zero. Conversaram como nos velhos tempos de marinha. No findar da tarde, já recuperados e após banho de água
quente tomado em estalagem barata, trocaram mais ideias observando os barcos que transitavam vagarosamente pelas águas
volumosas do Sena. Platini estivera refletindo ao longo de todo
o dia e, intempestivamente, dissera a Fontaine que decidira abrir
fundo de comércio com o pouco que lhe restara. Convidou o antigo companheiro para participar de sua empreitada. Talvez isso nos
faça recuperar, e seja nossa tábua de salvação, reforçou.
Aceito o convite, decidiram que iriam para o interior do país.
Começaram percorrendo algumas feiras e propriedades como
mascates. Platini era homem sagaz e logo começou a se dar bem.
Fontaine ajudava-o não somente com o serviço bruto de carregar
baús de mercadorias, como também na comercialização de artigos mais rudes. Eram flexíveis e bons de negócio. Algumas vezes
praticavam escambo e anotavam as entradas e saídas e débitos
de clientes habituais em caderneta protegida com capa reforçada
com couro de boi. Nenhum deles tinha hora para deitar ou acordar, mas isso para eles, como vimos, tratava-se praticamente de
diversão. Duras mesmo, diziam entre si, eram as horas passadas
lutando contra os ventos e borrascas tropicais.
Platini comprara um burro; daí a pouco possuía duas parelhas que conduziam pesadas carroças cheiras de quinquilharias.
Não foi preciso longo tempo de amadurecimento na profissão de
ambulante para que percebesse que poderia contar com a certeza
de um ponto fixo. Escolheu local na praça de armas do pequeno
vilarejo de Guéret que crescia a olhos vistos. Produzia pouco vinho, mas de qualidade. E a tapeçaria, arte em que a região tinha
sucesso milenar, ainda não fora totalmente atingida pelos infortúnios da Europa.
A negociação com o proprietário do imóvel, um burguês que
se mudara recentemente para Paris, foi árdua. Pedira garantias
82
Jairo Martins de Souza
que estavam fora do alcance de Platini. Aí o fidalgo Monlevade
surgiu em boa hora na vida do antigo militar. Na realidade, o pai
de Jean conhecia Platini por meio de constantes passagens do
mascate pelas redondezas e no seu próprio castelo. Intercedera
junto ao proprietário do imóvel, um seu velho conhecido, e o
negócio pôde ser concretizado com sua fiança.
Próximo dele via-se antiga farmácia de monsieur Paracelsus,
a taverna do sempre exaltado senhor Montalban, a padaria de
Boulanger, a casa de ferragens de monsieur Ferrand, a cervejaria
e casa de monsieur Duval (onde rapidamente se reparavam ferraduras), e algumas pequenas estalagens.
A parte majestosa daquela praça era o prédio do fórum e o
da direção do município e, por fim, a igreja e o seu campanário.
O povo de Guéret orgulhava-se dessas edificações de belíssima
arquitetura onde o estilo clássico e os inovadores apresentavamse em harmoniosa miscigenação.
No extremo de um dos seus cantos estendia-se uma viela estreita que conduzia a algumas casas pintadas de vermelho, exatamente no ponto contrário àquele em que se localizava a igreja
matriz. O diabo, em todas as partes do mundo, tem sempre que
ser colocado em local diametralmente oposto onde se localiza a
casa de Deus na Terra.
Certa ocasião, Jean se aproximara daquele bloco de casas
que algumas beatas diziam amaldiçoadas. Chamavam-no morada do demônio. Ao lembrar-se disso, e ao ouvir de longe o eco de
xingos, maldições e palavras de baixo calão que de lá procediam,
o rapaz afastara-se imediatamente. Ainda deu tempo para perceber que, na ocasião, o tema do falatório era dinheiro e obrigação
não cumprida. De fato sentira medo, mas confessou algumas horas depois que, mais crescido, teria coragem suficiente para ver de
perto o que significava o pecado que diziam lá grassar. Chamaria
Martinho para que fossem juntos. Na confissão do domingo seguinte, o capelão admoestou-o e, de imediato, recomendou-lhe a
reza de vários terços e, por final, disse-lhe para que, quando passasse por aquelas proximidades, fizesse o sinal da cruz e gritasse
alto, vade retro, satanás!
Jean se deu por satisfeito. Ficara sabendo, por meio do próprio Platini que, no distante Peru, dominado pelos espanhóis, os
padres batiam com varas nas crianças que cometiam pecados
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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dessa natureza. Castigo público. Feito ao vivo nas praças das cidades. A punição valia quer o ato impuro fosse feito efetivamente
na prática ou somente na intenção. Então, para os prostíbulos
que não visitara, o criativo Jean imaginou que seria interessante
colocar em suas janelas pinturas de uma caveira com duas tíbias
cruzadas. Sinal de navio pirata que aprendera a desenhar ao ver,
de longe, os cadernos do endiabrado colega Materazzi.
Bem, mas é no próspero armazém de Platini que, conforme
dissemos, vamos encontrar o rapaz frequentemente assentado
ouvindo e anotando suas histórias. Como de praxe, acompanhava-o Martinho. Nessa situação é que esse último demonstrara
uma aptidão até então desconhecida tanto para ele quanto para
os que cercavam. Desenhava com facilidade extrema as cenas
do cotidiano. Portanto, à medida que ouvia os acontecidos, rascunhava figuras, mares, sereias, aventuras e ondas bravias que
cercavam as tripulações. Não. Não é que fossem prenúncios de
autênticas obras de arte. O que saltava aos olhos era a simplicidade e os efeitos de claro-escuro que naturalmente emanavam das
mãos do garoto. Jean ficara feliz com a descoberta.
Um talento convivia ao seu lado. É lógico, o filho do fidalgo
Monlevade tinha muitos que excediam de longe ao do companheiro. Não neste caso da arte do desenho e muito menos do da música. E o pai sinceramente acreditava que seu Jean nunca seria um
Mozart que, em 752, com apenas 6 anos, já tinha feito sua primeira
turnê pela Europa. Mas decidira introduzi-lo precocemente nas primeiras letras da música. O ouvido apurado fizera a alegria dos pais,
mas não foi suficiente para torná-lo um artista. Assim desenvolveu
somente o bastante para tocar em família. Não mais que isso.
Bem, Tisserand prosseguiu, já disse muito sobre as excelências e a aplicação do menino Jean. E não é que eu esteja excedendo nas circunstâncias. Por assim dizer, colocando achas de
lenha em miniatura de lareira! Não no seu caso. É por isso que
lembro mais uma. O contato com monsieur Platini fez com que
o rapaz Monlevade criasse também intenso interesse pela arte da
navegação, e os segredos dos mares e sítios distantes.
No comércio do antigo oficial, a hierarquia fora mantida.
Fontaine sempre fora subalterno e nunca se mostrara insatisfeito
com a situação. Em sua família a pobreza jamais fora contestada
e recusada por meio de atos de indignação. Somente por puro
84
Jairo Martins de Souza
sentimento psicológico de manada de bois é que andara dando
alguns poucos gritos a favor da Revolução. Juntara-se acidentalmente à turba, mas não se comportara simplesmente como um
destruidor de patrimônio alheio ou do estado. Diante de tudo isso,
Platini era o patrão de quem gostava e tinha prazer em servir.
O mercador, insisto, fora capitão de fragata, e Fontaine, um
dos seus ajudantes. Homem grato a Platini. Seu antigo superior
ensinara-lhe como trabalhar com as velas e dominar o timão para
fazer frente, e usar a própria força dos ventos que teimosamente
se opunham à sua missão. O segredo é usar bem as intensidades,
as direções e o sentido para onde sopram os ventos. Resumindo,
uso o vigor do próprio adversário para derrotá-lo, dissera-lhe satisfeito Platini no decorrer de uma de suas lições. Como se faz na
milenar ciência do Judô. Ensinara-lhe também a lidar com números e a assinar o nome. Ensinara-lhe praticamente tudo que sabia.
Podia até mesmo dar troco e fazer o caixa e a contabilidade dos
negócios do patrão. Tinham confiança mútua.
Um modelo de companheirismo para Jean e Martinho. Sim.
Ambos tinham família. Tinham um ao outro. E a música. Platini
era gaiteiro. Tocava o instrumento como quem abraça a amada. E
bastava um copo de vinho para que Fontaine buscasse o acordeon.
Filhos, se os tiveram, haviam sido perdidos em suas viagens.
Já as mulheres, essas não poderiam esperar por tempo indeterminado enquanto os dois homens vagavam por portos longínquos do mundo conhecido. De agora em diante tudo isso poderia
mudar. Há moças interessantes e de boa família que poderiam
redundar em casamento próspero para dois veteranos que ainda
não haviam alcançado a casa dos trinta. Vamos ver o que nos
reserva o futuro!
Foi quando aconteceu algo que motivou as primeiras linhas
desse capítulo. Com alguma imprecisão, tudo começou quando,
certo dia, o dedicado professor Duchamps encontrou-se fortemente adoentado. O boticário Paracelsus havia verificado sua
garganta e constatado que estava vermelha e cheia de ameaçador pus branco. Pus. Pus era nome proibido. Deveria ser dito em
voz baixa. Então foi assim que lhe receitou frasco com líquido
escuro que lembrava leite queimado no açúcar, e disse-lhe que
até o momento não era nada grave. Mas que Duchamps deveria
suspender aulas até segunda ordem. Normalmente, Duchamps
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
85
recorreria a alguns alunos mais velhos, e adiantados, para que
ajudassem aos que não estivessem em dia com seus estudos. Jean
Monlevade, embora fosse dos mais jovens, também se via frequentemente convocado para a função.
Nada disso foi possível, Tisserand comentou, e os motivos
não são dignos de nota. O que interessa dizer é que o imprevisto
proporcionou a Jean e Martinho passagem de toda uma tarde
escutando peripécias de viagens feitas por Platini e Fontaine. O
Breu, com cara de sono, lá estava deitado fitando placidamente
o dono. O céu escuro e a chuva fria que batia forte no telhado
de todas as casas do vilarejo e redondezas haviam espantado os
fregueses da casa.
Então os dois velhos amigos de tantas andanças tinham se
dado direito ao tempo livre colocado a dispor. Isso raramente
acontecia. Sempre arranjavam ocupação extra. O vinho, que tomavam usualmente na taverna de Montalban, ficava sempre para
quando não sobrasse nenhuma fração de trabalho a ser feita. Lá
era o local onde realmente relaxavam, relembrando aventuras
passadas às vezes não muito recomendáveis para se relatar em
casa de família. Depois a gaita e o acordeon faziam a alegria do
ambiente. Cantavam e dançavam.
Mas confesso que, dadas as condições atípicas daquele dia, e
mesmo que nas instalações do próprio negócio, os dois homens
viram-se tocados diante dos ouvidos curiosos e interessados das
duas crianças. Então, entre outras coisas, contaram-lhes que haviam visitado novamente o Brésil. Haviam estado por lá acidentalmente e com rapidez, conforme já havia-lhes dito. Gostaram
e pretenderam voltar. Ficava nos trópicos, parte do globo pouco
visitada pelos europeus dos anos oitocentos.
Platini, em especial, tinha seus segredos. Em dado momento,
retomando suas raízes marítimas, fora até baú que guardava com
extremo carinho no sótão do estabelecimento. Lá também ficava
a cama e o parco mobiliário de que dispunha. Fontaine, por sua
vez, dormia em catre colocado atrás de uma das prateleiras da
área de vendas. Ao voltar, Platini trouxera, em mãos, cópia da
extensa e detalhadíssima carta que o escrivão da esquadra portuguesa – o que primeiro chegara ao Brésil – escrevera para o imperador português na ocasião do descobrimento. O texto é legítimo
e integral, disse. Havia sido traduzida para o francês por capitão
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Jairo Martins de Souza
lusitano que tinha família de origens francesas. Na realidade, um
poliglota egresso de Coimbra e que, chamado à luta, estivera até
mesmo navegando e aportara nos mares da China. Foi dele que
Platini obtivera o documento, resgatado como butim de combate.
Jean e Martinho, escutem o que está escrito nesse documento
como se fossem minhas palavras! Descreve melhor do que nós
mesmos o que andamos encontrando pelo Brasil. Não é mais segredo de Estado. Já foi! Nele também consta anexo que diz que o
império português permitiu que fosse aberto ao mundo há pouco
tempo. Em 1773. Prestem bastante atenção, vou lê-la para vocês.
Mais que isso, vou comentá-la, foi o que por final disse antes
de passar a cumprir o prometido. Daí lembrou-se que não havia
tido o cuidado de mencionar a importância do real endereçado: o
próprio Dom Manuel, o Venturoso. Mas logo a seguir riu, concordando com o missivista que, de início, e humildemente, declarouse incompetente para comentar os detalhes técnicos da viagem.
Nem poderia. O senhor Pero Vaz de Caminha – esse era o seu
nome – não era especialista em assuntos de mar. Platini manifestou-se bem impressionado com a sinceridade do português. O
mais importante desse documento, prosseguiu, é a confirmação
posterior de todos os fatos que relatou.
Pois faz mais de trezentos anos que foi escrito: é datado de
1500! E já diz da possibilidade de existência de muitos metais
preciosos, e que sua natureza verdejante esconde debaixo de suas
árvores uma gigantesca província mineral. Muitos rios e águas,
muitas florestas, muitos animais, muitos peixes... O vermelho do
pau-brasil é exuberante, a inocência dos índios é de se espantar,
a chance de salvação daquelas almas é...
Jean absorvia cada palavra que Platini dizia. Martinho parecia ligeiramente enfadado com a leitura e explicações. Assim
a tarde passava rapidamente para um, enquanto para o outro
parecia não ter fim. Ao longo de seu relato, o marinheiro disse
ter ido ao porto de São Sebastião do Rio de Janeiro e enalteceu
sua vida e sua beleza natural. A pobreza lá é grande, mas tudo
é compensado pela vista das montanhas e da belíssima baía. É
espontaneamente protegida. Um doce refúgio para navios e tripulação cansados de sofrer os atropelos e as tormentas de alto mar.
Enquanto isso o Breu já dormia a sono solto.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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O contorno de algumas formalidades legais impostas pelo
império português – não se permitia negociação direta com os
negociantes da sede da colônia lusitana – forçou a nau em que
trabalhavam a ficar parada por tempo indeterminado no porto
brasileiro. Isso foi agravado pela falta de carga e falha em cálculo
de tempo de chegada de frete já contratado e a ser embarcado:
mais ainda por inusitado e extenso período de calmarias.
A falta de ventos sempre foi o maior pesadelo dos navegantes.
Platini sonhava em poder comandar navio a vapor que um oficial
conhecido, de passagem pelo Rio, havia comentado estar em estágio avançado de projeto para, finalmente, singrar oficialmente
pelos oceanos e mares. Mas todos aqueles atrasos de naturezas
técnicas e comerciais é que lhe propiciaram investir durante três
semanas terra adentro. Ele avançara pelo interior de um estado
chamado Minas Geraes. Esmeraldas. Muito ouro. Muitos minerais.
O rapaz Monlevade viajava com o amigo, à medida que ouvia suas histórias.
Mas nesse dia isso não foi tudo. Platini voltara ao sótão e trouxera outro bem guardado documento. Uma grande tira de papel. Esse
aqui não trouxe como prêmio de combate. Antes de viajar para as
terras do Brésil, estive nas docas do Tâmisa e ganhei essas informações de um celerado inglês que se encontrava refugiado de condenação que lhe fora imposta pela justiça do seu país. Essas chamaramme mais ainda a atenção e o interesse em visitar os trópicos...
Jean e Martinho não tiravam os olhos do marinheiro quando
esse lia que o Brésil é grande país marítimo da América do Sul, etc.
A leitura foi longa, é por isso que a resumi e vou continuar
resumindo-a, agora é o próprio estrangeiro Tisserand quem diz,
ao mesmo tempo em que lentamente observava as condições do
horizonte que anunciava timidamente algumas nuvens negras.
Parecia querer acrescentar, e trazer para dentro de si, outras condições indesejáveis para incursões oceânicas. Absorto por sua
tarefa, mal reparara que o vento suave fizera cair duas mangas
maduras ao seu lado. Sorriu meio sem jeito.
E voltando ao seu relato, comentou que Platini verificara que
um dos seus dois ouvintes, Martinho, havia novamente sucumbido ao sono durante a leitura anterior da carta do talentoso e
detalhista Caminha. Nada disso havia tirado o seu entusiasmo.
Mas, em determinado momento, temeu pela sorte do rapazinho.
88
Jairo Martins de Souza
Ele quase se precipitara de cima de pilha de caixotes de maçãs!
Seu companheiro Jean permanecia atento. Parecia magnetizado. Não perdia sequer uma palavra! Principalmente quando
Platini disse ser o Brésil um país cercado pelo oceano Atlântico e
pelo rio-mar Amazonas, esse ao Norte. Já no Oeste fazia fronteira
com o Paraguai e, ao Sul, com o rio da Prata. Produzia açúcar e
tabaco e tinha minas riquíssimas de ouro e diamantes. É de lá que
os portugueses tiram grandes lucros. Minerais em profusão: era aí
que sempre reparava crescer o interesse do jovem!
No final, Platini disse que o malfeitor inglês lhe dissera com
orgulho que os dados que lhe fornecera foram levantados por
cópia de seu próprio punho da primeira edição da Encyclopaedia
Britannica editada na cidade de Edinburgo. O fato fora recente e,
portanto, confiável. Acontecera em 1771!
A tarde estava por terminar na tranquila Guéret. O trote cadenciado do animal que conduziria Jean e Martinho de volta ao
castelo foi escutado aos poucos pelos homens e pelos dois rapazinhos que conversavam no interior da mercearia. Jean desceu
do saco de batatas. Martinho, dos caixotes de maçãs. Fontaine se
preparava para se dirigir ao fundo para verificação de goteira que
percebera ter aparecido no telhado de madeira. Poderia molhar
alguma mercadoria. Platini, apressado, preparava-se para atender
cliente prestes a entrar no estabelecimento.
Recolhidos os passageiros, o carroceiro rapidamente tomou
direção do castelo. Tinha pressa. Recebera salário e desejava ainda voltar à cidade para rápida passagem na casa de cores vermelhas que o padre andara insultando no sermão da missa de
domingo. Passaria ao largo de praticamente todo o vilarejo.
Jean mergulhou em pensamentos. Bússolas. Astrolábios.
Água. Floresta. Pássaros. Minérios. Índios. Navios. Riqueza. O rapazinho não conseguia tirar da cabeça a palavra Brésil!
Martinho, mesmo com o veículo em movimento, acabara de
assinar desenho que fizera, e que ficaria para a posteridade na
vida dos dois amigos. No ambiente do pequeno armazém ambos estavam lá assentados nas caixas de mantimentos, enquanto
observavam Platini, que discursava e exibia um pequeno globo
terrestre. Não se esquecera do Breu. Próximo a esse e também
assentado, Just Fontaine levantava o indicador como se estivesse
pedindo vez para expor alguma constatação. Uma galinha passa-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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va apressadamente por um dos cantos do recinto...
O rapazinho tinha rara sensibilidade de artista e havia captado, resumindo em alguns poucos rabiscos, todo o significado e a
profundidade da situação.
Foi quando tive minha atenção chamada pela atitude, e pela
lenta dobrada de corpo que Tisserand assumira sem que eu tivesse
percebido o início. Olhei-o de lado. Ele havia espirrado com suavidade: desejei-lhe saúde, À tes souhaits! Ele agradeceu. Ofereci-me
para pressionar suas costas para aliviar o incômodo, parecia que
estava em vias de voltar a espirrar. Alarme falso...
Passados alguns segundos, justificou-se, e pediu-me desculpas alegando ter ficado levemente ansioso.
O senhor vai entender-me melhor daqui a minutos: estou por
iniciar momento especial da história que lhe relato.
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Jairo Martins de Souza
“... que fizera com o fito de caçoar dos amigos. Mal sabia que
ficaria para a posteridade. Na gravura, ambos estavam assentados
nas caixas de mantimentos do pequeno armazém enquanto Platini e Fontaine trocavam ideias sobre novas rotas de viagem para
o Brésil...”.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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XI
Angéline
As prateleiras envidraçadas do estabelecimento estavam cheias
de pequenas garrafas e vidros que lembravam o que usamos nos
dias de hoje para armazenamento de picles, temperos e outras
iguarias. Foi quando a viu pela primeira vez, e o pai cuidadosamente parecia dar-lhe por via oral uma pequena quantidade de
remédio. Parte do líquido grosso e escuro, graças à incansável
gravidade terrestre, escorreu lentamente por um dos lados da pequena colher de ferro batido. Ambos estavam de pé no interior
da própria farmácia de monsieur Paracelsus e mesmo alguém
deficiente na percepção de cheiros notaria que o emanado pelo
remédio ingerido pela garota, e que vazara para o ambiente, era
fortíssimo e lembrava óleo de fígado de bacalhau. Ato contínuo,
o homem limpou a vestimenta da menina cuidadosamente com
pano limpo e, ao mesmo tempo, fez-lhe carícia sinalizando que
estava quase por finalizar. Jean Monlevade estremeceu...
Angéline, era esse o seu nome, tinha entre dez e onze anos e
estava totalmente relaxada sob o singular cuidado paterno. Mantinha os olhos fechados e dava impressão de não ter sentido o ardume que costuma provocar a ingestão de tais misturas de plantas e óleos medicamentosos. Essa tranquilidade demonstrava que
o procedimento era uma constante em sua vida. Bastante magra
para os padrões estéticos da época, fora compensada pela natureza com outros predicados, por exemplo, a beleza que saltava aos
olhos de quem a visse. E não que fosse somente isso. Ainda que
não a conhecesse, não demorou muito para que Jean soubesse
que sua simpatia era cativante, razão suficiente para que, aí de
forma integral, se tornasse absolutamente encantadora.
De fato a moça, ainda menina, lembrava uma daquelas criaturas geradas pela mistura de muitas raças (como as que temos de
92
Jairo Martins de Souza
sobra nos desfiles de misses nos dias atuais), pois a peculiaridade
de sua presença era também marcada pelo diferenciado contorno
dos olhos. Os poucos familiares com os quais tivera contato diziam tratar-se de lembrança atávica de avós distantes. O formato
amendoado dos olhos da moça, assim como o de alguns povos
do oriente, tinha o detalhe de ser esculpido com fundo azul intenso, e muito brilhante. Tudo emoldurado por mechas de cabelos
escuros e pele muito branca. Associe tudo isso, o leitor, a um corpo esguio com cintura bem definida. As ancas eram largas com
protuberância traseira agradável aos olhos dos rapazes. Por fim,
um perfil corporal inocentemente erótico, que se projetava para
a adolescência. Inusitadamente para aqueles dias já tinha altura
bastante destacada.
O pai, médico, doutor Colbert, havia chegado recentemente à
região, e demonstrava habilidade no trato com a filha. Parecia provido de mais de duas mãos. Toma tudo, chérie, só mais uma colher
desse outro extrato e ficarás bem por essa e muitas outras noites.
Jean havia retornado da escola e, enquanto aguardava a carroça que o conduziria de volta ao castelo de Guéret, fora até a farmácia resgatar encomenda que lhe fizera a mãe, Felicité. François
raramente se encarregava deste tipo de serviço. E Maria Vitória
ficava sempre ao lado da mãe. Era rapazinho, por assim dizer,
bem mandado. Mas em particular agradava-lhe essa missão, pois
gostava dos cheiros das essências, dos óleos, dos unguentos, dos
emplastros, assim como das raízes que via colocadas em potes e
pequenos vidros nas prateleiras do comércio. Não repudiava nem
mesmo o do forte remédio à base de peixe que a bonita menina
ingerira. Em outros, provocaria vômito!
O jovem Fourier, o farmacêutico que trabalhava com Paracelsus, com a aquiescência do patrão (ambos eram sabedores do espírito investigativo do rapazinho), permitia que Jean, às vezes, fizesse
abertura de alguns dos vidros do estoque para ensinar-lhe conhecimento de aromas e de procedência das raízes. Jean tem talento
suficiente para ser um perfumista, diziam. Interessa-se por tudo que
vem da terra. Suas pedras, rochas, raízes, cheiros e química. Mas,
como já sabemos, não se limitava a tanto.
Entusiasmava-se pela biologia e pela nova ciência da eletricidade. A ciência abria novos caminhos para o mundo. Não havia
Luigi Galvani demonstrado que nervo ciático de rã morta tocado
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
93
por peça metálica próxima de faíscas fazia a perna do bichinho repuxar? Não foi daí que Volta partiu para inventar a pilha elétrica,
usando cobre e zinco separados por discos de couro impregnados
por restos de água salgada?
Já disse, com outras palavras, que o rapaz tinha índole de
pesquisador. Vou insistir. Pois certa ocasião, na presença de alguns amedrontados trabalhadores do castelo, decidira repetir a
famosa experiência que o atual embaixador dos Estados Unidos
na França, monsieur Benjamin Franklin, havia feito anos atrás
(estou dizendo do mesmo homem que foi um dos Founding Fathers, um dos pais fundadores dos Estados Unidos). Ele havia
lançado pipa ao sabor dos ventos em dia de nuvens carregadas.
A linha que usava não foi somente enrolada em tronco de árvore
como também ligada à terra por meio de fio, contudo interrompido por meio de pequena chave de metal aberta. Uma ponta da
chave era ligada no barbante. A outra, a que estava aberta, ficou
enterrada no solo junto à árvore. O campo tinha poucas árvores.
Era praticamente aberto.
Jean fez o mesmo. Com o início das trovoadas e raios, num
dado momento, aconteceu passagem de fagulha entre as extremidades da tal chave. Um galho da árvore ficara estilhaçado e
iniciara queima. A terra úmida esfumaçou-se imediatamente. A
carga elétrica acumulada nas nuvens havia escoado violentamente para a terra. Um boi mugiu assustado. Ovelhas e carneiros
precipitaram-se para todos os lados. Um bando de cachorros saiu
latindo em disparada. Algumas galinhas que estavam nas imediações correram espavoridas: voltaram para pequeno cercado
coberto. O fogo que se iniciara no galho apagou-se em segundos.
Os serviçais fugiram amedrontados.
Voltaram aos poucos. Desconfiados. O soldado Cousteau,
que ocasionalmente passava próximo ao local, chamou rigorosamente a atenção do rapaz. Sentiu-se ofendido porque se assustara e por instinto de sobrevivência, correra como um covarde.
Um militar não deve ceder ao medo e fugir de circunstâncias estranhas como faz um civil. Jean justificou-se, dizendo do cunho
educacional do evento. As razões foram aceitas, mas a autoridade
policial alegou ter que comunicar ocorrência ao seu superior. O
fidalgo também seria informado dos perigos que aconteceram ao
longo do ocorrido.
94
Jairo Martins de Souza
Isso contornado, Jean passou a explicar-lhes que a descarga
de energia na chave, o fogo na árvore, a fumaça no chão foram
resultados dos efeitos de eletricidade em movimento. A carga da
nuvem é positiva e a da terra negativa. Foi o que Franklin havia
decidido. Por convenção. Podia ter chamado de forma contrária.
Bem, Tisserand disse sorrindo, desculpe-me ter alongado em
paixões fora de hora do rapaz, devo voltar à cena da farmácia de
monsieur Paracelsus. Algo se inicia!
Com a presença do médico e filha, a atenção de Jean se concentrara totalmente no perfil suave da mocinha. O pai, enquanto
trabalhava mantendo a cabeça de sua querida paciente ligeiramente inclinada para trás, prosseguia dirigindo-lhe afagos: talvez
daí, desse simples ato de amor, viesse a aparente ausência de dor
e a tendência relaxada de sua criança. Ninguém se acostuma com
remédios amargos. Jean continuou observando-os discretamente
e, instantaneamente, imaginou que o pai havia concluído suas carícias, e que passara a tarefa para que ele prosseguisse. Com isso,
viu-se roçando as costas de suas mãos no rostinho da mocinha
por instantes…
Colbert era sobrinho de ex-ministro de Napoleão e tivera outros dois filhos. No entanto nunca pudera tirar partido daquele
parentesco privilegiado. Graves problemas de divisão de herança,
quando da morte dos avós, forjaram a separação do pai com o
tio. Havia também muitos outros irmãos, doze no total, caro leitor,
mas todos mortos em uma ou outra empreitada de guerra levada
a efeito pelos reis da França ao longo dos anos.
Angéline era a joia da coroa que guardava com o maior dos
cuidados. Os outros dois filhos também lhe tinham sido muito
caros sob todos os aspectos. Haviam lhe custado muitas horas de
rotina extra. Nasceram com algumas lacunas formativas, quase
que totalmente recuperadas pela paixão e esforço do pai. A mãe
era uma burguesa que vivera os exageros da corte de Versailles.
Morrera precocemente deixando os rebentos aos cuidados exclusivos do jovem marido. Também precocemente morreram-lhe os
filhos homens e, com tudo isso, os esforços financeiros tinham
sido gigantescos e ele, praticamente, chegou à bancarrota. Então
decidiu reiniciar vida nova e trabalhar no interior do país. Nada
especial. Produziria o suficiente para manter o básico permitido
para um profissional liberal naqueles anos difíceis. Com isso pen-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
95
sara viver com simplicidade, fora da vida cara e dos luxos da
capital, Paris.
Para tanto, levara consigo a filha que lhe restou. Pretendia
criá-la no saudável ar do campo, casá-la, ter netos e, bem... Foi
somente após deixá-la confortável em cadeira para rápido descanso, que constatou a presença do rapazinho Monlevade. Cumprimentou-o de forma educada com a cabeça. Lembrou tê-lo visto
com o pai quando fizera visita ao castelo. Um dos seus serviçais
ferira a perna em queda de cavalo. Desde então, Colbert soubera
do entusiasmo que os moradores da cidade tinham pelo rapazinho.
Aproximaram-se. Diga ao fidalgo, seu pai, que, estando na
cidade, estique as pernas até minha casa, foi o que, por fim, falou a Jean. Entregue a ele este pequeno bilhete. Ambos haviam
percorrido distância igual e Jean recebeu o papel dobrado em formato de ave, um origami feito com a rapidez de quem tem mãos
de cirurgião. Tudo isso aconteceu a meia distância de Angéline.
Com a demonstração de sua arte, na realidade Colbert quis
dizer que se sentia bem em conhecer o menino. És bem-vindo!
A garota abrira os olhos e, ao perceber a presença de um terceiro, teve imperceptivelmente modificada a cor das maçãs do rosto.
Avermelhou-se. O pai, que bem a conhecia, sorriu, percebendo
que a presença de Jean trouxera vida ao aspecto, naquele dia,
combalido da filha. Venha você também, complementou. Já tenho
conhecimento do seu interesse pela ciência e pelas artes em geral.
Alguns poucos meses e vários encontros depois, a amizade
entre o fidalgo Monlevade e o médico Colbert se consolidara.
Reuniam-se frequentemente.
Pois é, senhor fidalgo, antes de vir para Guéret, estive estudando propostas até mesmo para experimentar vida nova em outros continentes pouco conhecidos. Não fui por temor de causar
prejuízos à saúde de minha filha: o senhor sabe que sou gato escaldado. O mais tentador foi o feito pelo embaixador de Portugal.
Anda às turras com Napoleão, mas os lusitanos estão, por ideia do
príncipe-regente, arregimentando pessoal para melhorar nível de
vida em sua imensa colônia de ultramar, o Brésil. A cidade do Rio
de Janeiro, segundo dizem, é de beleza estonteante, mas a saúde
pública lá não é de se fazer fé. É por isso que o convite incluía
pessoal médico. Os salários e vantagens eram astronômicos.
Mesmo que Jean estivesse conversando com Angéline a poucos metros de onde se encontravam assentados o pai e o doutor
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Jairo Martins de Souza
Colbert, não perdia palavra do que diziam. Estava habituado a
fazer três ou quatro coisas ao mesmo tempo.
Dizem, Tisserand divagou, que é como Bill Gates se comporta. Bem, desde então isso já era considerado uma das faculdades
de pessoas superdotadas. Imediatamente desculpou-se pelo deslize e voltou ao diálogo do médico com o fidalgo.
Esse é um dos motivos por que aceitei o seu convite para hoje
estar aqui tomando esse vinho de boa qualidade, doutor Colbert.
Tenho contatos influentes na corte de Paris, e que são simpáticos
à melhoria de relações com o governo português. Essas pessoas receberam informação que o senhor estava aqui em Guéret e
pediram-me para renovar-lhe chamada para passar período no
estrangeiro. Ah, monsieur Monlevade, fosse na minha juventude
diria sim sem pestanejar. Quando criança pensava até mesmo em
tornar-me o que, no futuro, deverão chamar médico sem fronteiras. Com a graduação, o casamento com mademoiselle Mathieu,
sua morte, e a vinda dos meus três rebentos, a saúde frágil de Angéline, não mais pensei sobre o assunto. O senhor já sabe que, de
certa forma, recusei convite anterior e coloquei meu antigo desejo
definitivamente de molho.
É a razão pela qual, repito, procurei-o hoje, agora é o fidalgo
quem diz. Lembro-me de tê-lo ouvido falar por mais de uma vez
sobre este assunto. A necessidade deles não é imediata, Colbert.
Pense bem. Não tens mais esposa, nem os dois filhos que lhe
eram tão caros. A menina Angéline está muito bem e a administração de saúde em Paris pode dar-lhe tempo suficiente para
encaminhar suas coisas aqui. Fechar seus assuntos. Depois você
segue para o Brasil. A intenção inicial do imperador é mandálo para uma cidade chamada Vila Rica. É região de montanhas.
Clima ameno. Se for do seu gosto, mando-lhe minuta de contrato
que me enviaram os portugueses. Não há compromisso algum,
leia os termos com cuidado, e depois conversamos.
Postas as cartas na mesa do jeito que descrevi, Tisserand esclareceu, Colbert calou-se. Pôs-se a estudar mentalmente o assunto. O quadro que desenhava não era nada animador. Caso
aceitasse a proposta dos portugueses, sua vida mudaria de maneira radical.
Passaram-se alguns minutos. Ambos ainda permaneciam
calados. Eventualmente tomavam pequenos goles das taças que
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
97
agora quase se esvaziavam e Colbert entendera, na prática, o porquê da verdade do aforismo que dizia ser a paz o principal fruto
da árvore do silêncio. Não deixara de pensar nem mesmo um
segundo no fidalgo Monlevade, e na proposta que lhe fizera em
favor do imperador português. E finalmente vislumbrara por trás
das nuvens que o fantasma da dúvida, o demônio de Descartes,
não mais o incomodaria. Se tivesse que ir ao estrangeiro iria para
o Brésil. Ele e a filha. Construiria patrimônio. Usaria recursos da
medicina avançada de países do primeiro mundo, enfim, quebraria lanças e venceria batalhas contra doenças tropicais.
É, Tisserand exclamou introspectivamente pensando sobre a
cena que estava relatando: o médico perdera uma esposa, dois
filhos, mas nunca fora um perdedor, um fracassado, um loser,
como escrevem os roteiristas dos filmes de Hollywood. Mesmo
na adversidade se pode ser feliz. Não temos, lá bem fundo dentro
de nós, nossos jardins internos que, se bem regados e cuidados,
podem nos trazer paz e tranquilidade?
Voltemos ao dilema do médico, Tisserand verbalizou vagarosamente. Ele estava por decidir o desfecho da proposta recolocada na mesa pelo amigo fidalgo.
Pois foi por isso que os escritos do vigário geral registraram
que Colbert respirou fundo, e agradeceu polidamente ao fidalgo
pela atenção do momento. E, sem perda de tempo, pediu licença
e encaminhou-se para o banheiro. Por mais forte e dono de si
que fosse, não escaparia a algumas copiosas lágrimas. Não fez
vômito, como fazem os norte-americanos, simplesmente chorou
lembrando-se dos filhos e da esposa que morrera faz tanto tempo.
O choro faz parte da miséria humana. Água benta.
Digo isso no sentido positivo, Tisserand argumentou, pois é
gerada a partir dos nossos mais íntimos sofrimentos. Lava a alma
de quem as verte. Lâminas puras de água que são os verdadeiros
espelhos do amor. Não chorou, insisto, até mesmo Jesus?
A tempestade durou alguns breves minutos. De imediato não
faria sol claro, então Colbert partiria para a análise detalhada da
situação, para o quotidiano. Se feita, a saída da França não precisaria ser imediata.
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Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
99
XII
Algo mais sobre política e a família do fidalgo
A saúde da família de Felicité Monlevade era sustentada por pilares firmes de dieta baseada em leite de cabra, carne de aves,
caças, animais domésticos, pescados do Creuse e frutas de estação. O resto ficava por conta do contato com a natureza, o ar
puro, e a relativa tranquilidade das vizinhanças. A região em que
moravam não era extremamente convulsiva. No entanto, a paz
definitiva para a Europa se arrastaria por mais de dezena de anos:
Waterloo não aconteceria de imediato. Dos habitantes de destaque que se mantinham ativos nos acontecimentos, Philippe de
Bogenet, e alguns poucos companheiros, inclusive o fidalgo JeanFrançois de Monlevade, eram exceções bem localizadas. Deste último ressalte-se a heroica, e comentada, fuga pela janela quando
da dissolvência da Convenção. O fato nunca fora esquecido pelos
moradores de sua cidade.
Jean tinha orgulho do pai. No entanto o grupo ligado a Monlevade praticava sua rebeldia em focos bem centrados das questões polêmicas do país. Discutiam, sobretudo, a forma de governo
e o Estado. O ponto chave, perguntavam-se, é se o Estado tinha
valor igual ao resultado da soma obtida pelos valores isolados
do cônsul, magistrados e políticos, etc. e que criam os impostos,
enfim, fazem as leis e modelam os regulamentos. Fosse assim,
estaríamos perdidos!
Para avaliar. Somente para avaliar possível modificação de
rumos, nos seus encontros feitos às escondidas, seguia-se sempre
rápido plebiscito. A forma era colocação de votos em urna fechada. Um singelo sim ou não, para avaliar desempenho do cônsul
Bonaparte. Com isso, tinha-se noção do grau de coesão dos fidalgos e convidados participantes. Em segundo lugar, a educação
dos jovens que nasciam aos montes por todos os cantos da antiga
100
Jairo Martins de Souza
província. A despeito das inúmeras guerras, a população não parava de crescer. Pois antes de partir para os conflitos, ou em viagem
de folga de volta à terra, os jovens maridos deixavam suas sementinhas plantadas no bucho das mulheres. Nove meses depois...
Alguns exaltados vaticinavam que a chegada das máquinas
a vapor destruiria fonte de trabalho das famílias que viviam de
rendimentos da tecelagem e da tapeçaria. O desemprego cresce,
comentavam, temos necessariamente que nos ajuntar às reformas
de Napoleão.
E não é que o grupo caminhasse sempre no mesmo sentido. Havia divergências que traziam consigo acaloradas discussões recheadas de tinturas ideológicas e fundo religioso. Aí segue
um exemplo. Certa ocasião resolveu-se fechar questão quanto a
alguns credos que deveriam professar. Algo como itens de uma
cartilha. Um deles seria o de fazer como o apóstolo Paulo havia
ensinado em sua carta aos Romanos: trate bem seu inimigo para,
quem sabe, mais tarde, botar brasas em sua cabeça. Tal fato havia
causado alguma insatisfação a dois ou três dissidentes ateus. Julgavam-no incompatível com a ideologia professada pelo grupo.
Tudo ficou resolvido com inclusão de uma frase de Montaigne na
mesma ata de reunião. Foi mais ou menos redigido como segue.
Parte do grupo que se reúne nessa oportunidade reconhece que,
para alguns de nós, cristãos, o encontro de algo materialmente
inconcebível é uma excelente oportunidade para acreditar!
Tais questões às vezes eram colocadas na mesa simplesmente
para gerar discussões. O grupo apreciava assuntos controversos.
Todos gostavam de discutir! O caso em pauta fora equacionado
da forma que todos apreciavam: democraticamente. A democracia era o alvo que todos ambicionavam para o país. Aí que está
o ponto. Jean, quando permitido, participava dos encontros timidamente situado, mas assentado em local de onde poderia ouvir
claramente os pontos de vista dos participantes. Alguns tinham
bastante leitura e o rapaz escutava-os atentamente, tentando
extrair, de cada palavra, alimento para sua formação moral. Às
vezes se excedia na avidez pela busca de conhecimento e pedia
explicações.
Tal como fazia constantemente nas classes de Duchamps,
levantava as mãos e perguntava o porquê disso ou daquilo. É
bem verdade que, por acanhamento, tivera algumas dificuldades
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
101
iniciais de quem sai do seio familiar e entra na sociedade dos homens. A começar pela escola, pois, certa ocasião, confundira-se
ao tentar chamar a atenção do professor, e chamara Duchamps
de pai. Os colegas, durante alguns dias, fizeram chacota com seu
deslize. Jean silenciou por curto período. Depois voltou à carga.
O mesmo ocorrera em uma das tais reuniões dos insatisfeitos com
o regime. Levantara o braço para perguntar sobre um dos últimos
regulamentos estabelecidos por Napoleão e, ao se dirigir para um
dos mais exaltados, o homem chamava-se Delaittre, incorrrera na
mesma falha inconsciente que cometera em diversas ocasiões na
escola. Dissera, novamente, a palavra pai.
Daí pode-se retirar com sabedoria a importância que a imagem paterna teria na infância e na vida futura do rapaz. Mais uma
vez aí se confirma a força de espelho. A poderosa influência que
o filho usualmente encontra na figura do pai. Não. Não é que a
da mãe possa ser considerada como secundária. Não no caso.
Felicité, privilegiadamente cônscia das habilidades excepcionais
de Jean, participara também da alfabetização do filho: passou-lhe
tudo que sabia.
A partir dos 5 anos o menino Jean estava pronto para ler,
contar e fazer problemas aritméticos. Tudo ensinado em casa. Antes de ir para a escola de Duchamps, aos 8, já dominava tais operações com facilidade superior a qualquer outro das redondezas.
Na única vitrine envidraçada da cidade, entendia as palavras escritas do lado contrário ao que estava com facilidade fora do comum. E já ajudava os pais na contabilidade da produção agrícola
das áreas férteis do castelo. A partir de determinado momento,
tornou-se indispensável para cálculo da quantidade de novelos
de lã que a mãe necessitaria para confeccionar esse ou aquele
agasalho, essa ou aquela tapeçaria.
Mas, Deus que nos livre, ela jamais sobrecarregaria o filho. O
menino absorvia com naturalidade aquelas incumbências. Inclusive as de caráter rotineiro. Aliás, mesmo sendo filhos de fidalgo,
todos os seus filhos eram acostumados a cumprir com presteza
algumas obrigações caseiras. Limpe pelo menos o que você sujar,
era bordão que impunha a todos. Antes de entrar nos ambientes
internos do castelo, os filhos automaticamente raspavam cuidadosamente os sapatos de barro, ou poeira, ou restos de esterco, ou
seja lá que sujeira fosse.
102
Jairo Martins de Souza
Felicité ouvira de Jean – que por sua vez ouvira do viajado monsieur Platini – que, na distante Cingapura, entrava-se em
casa somente com pés descalços.
Achara isso um exagero. Não obstante, sentia-se feliz e convencida de que os filhos estavam passando aparentemente incólumes por uma trovoada de anos problemáticos.
Agradecia constantemente a Deus por tão grandiosa bênção!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
103
XIII
O nascimento de Léopold, o vigário geral
Tisserand disse que uma semana após completar 14 anos Jean
acompanhou a mãe para visitar parentes no castelo de Bogenet.
A data era a de 21 de Abril de 1805 e, como de costume, o enorme fogão a lenha do castelo Monlevade fora reaquecido ainda
pela madrugada. Naquele ano o inverno europeu havia se esticado e o senhor, mon ami, pode imaginar o frio que fazia à hora em
que Felicité havia se levantado. A névoa era intensa, o sol fraco
demoraria ainda algumas horas para nascer, e todos estavam preparados para sair após rápido desjejum de pão, queijo de cabra e
leite quente adocicado com açúcar de beterraba. Além de Jean,
também foram com a mãe François e Maria Vitória.
A ocasião era festiva! No cair da noite anterior a notícia havia chegado a Monlevade: a nora do fidalgo Philippe de Bogenet
havia dado à luz a um robusto garoto. Era quem viria a ser, mais
tarde, o próprio vigário geral!
Portanto Léopold Dissandes de Bogenet nasceu no ano da
luxuosa coroação de Bonaparte como rei da Itália. A partir daí, e
após vitória sobre os franceses em Trafalgar, os ingleses iniciaram
cem anos de domínio naval no mundo. Ainda que, naquela ocasião, o corpo do seu vitorioso comandante Nelson tenha retornado à Inglaterra dentro de tonel de cachaça de vinho. O almirante
foi um dos 1500 ingleses que pagaram o triunfo com a morte.
O senhor deve estar lembrado, Tisserand explicou, que em
diversos momentos bati na tecla que quase tudo que lhe digo é
a partir das notas do recém-nascido Léopold. Insisto neste ponto!
Com isso procuro eximir-me de culpa quanto à ordem em que
são apresentadas.
Daí não ser verdadeiro dizer que Jean jamais tivesse voltado
a ver Angéline desde a primeira vez em que sentiu ficar corado na
104
Jairo Martins de Souza
farmácia de monsieur Paracelsus. Lembram-se? Ele contava apenas cerca de 10 anos! Nessa fase da vida muitas coisas passam
tão rapidamente quanto chegam. Por exemplo, mal se lembrava
de que dois anos antes de conhecê-la, aos 8, havia contemplado
a maior exibição de fogos de artifício que veria em toda a sua
vida. Foi grandiosa a celebração do 18 de Brumário, protagonizada em Paris pelo cônsul Napoleão. Na velhice passaria a se lembrar
desses eventos com grande clareza de imagens. Mais ainda de sua
querida Angéline. Amou-a, por toda a adolescência, desde o primeiro momento em que a viu receber a medicação dada pelo pai.
E prosseguiu amando-a silenciosamente durante a juventude. Isso quebrara algumas de suas convicções, por exemplo, a
de que não amaria outra mulher com o mesmo carinho que dedicava à mãe e à irmã. No entanto, as ocasiões para vê-la não
eram frequentes ao longo da semana. Por isso não perdia em
aproveitar as raríssimas visitas que o fidalgo fazia ao médico Colbert. Não perdia uma quermesse em que a moça tivesse a mínima
possibilidade de comparecer. Não perdia uma missa aos domingos. Ele, ao lado da família, a mãe, o fidalgo e os irmãos. Ela,
de braços dados com o pai. Apreciava vê-la no confessionário, e
cometia frequentemente o grave pecado de ambicionar momentaneamente tomar, como seus, os ouvidos do sacerdote.
Observava-a de longe. Devaneava acreditando piamente ser
correspondido. Implorava a Maria Vitória para que procurasse
sempre citar o seu nome a ela quando estivessem juntas. A irmã
devia-lhe muito em termos de carinho e afeto (eram tempos em
que os rapazes mantinham zelo especial pelas irmãs). Ela gostava
da companhia de Angéline. Então respondia sim ao irmão, mas
sempre alegava não saber exatamente como!
Angéline! Angéline crescia a olhos vistos. A cidade comentava que não demora estaria se transformando em belíssima mulher: do tipo que jamais careceria do uso de espartilhos. O pai era
orgulhoso de seu produto e, enquanto observava-a crescer, zelava criteriosamente por sua preparação. Bancava três vezes por
semana a vinda de mademoiselle Beauvoir para ministrar aulas
caseiras para sua criança. O preço cobrado por aquela senhora
era muito alto para os ganhos do médico. Colbert era homem caridoso. Atendia gratuitamente a muitos dos que o procuravam, e
levava ao pé da letra o juramento que fizera solenemente; enfim,
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
105
repetia, na prática, as palavras copiadas de Hipócrates há gerações e gerações.
Com tudo isso a divina providência nada mais poderia fazer
do que premiá-lo com generosa contrapartida. A iniciativa que
tivera, como pai, era-lhe devolvida de forma dobrada. Logo após
primeiros contatos com a futura tutora de Angéline percebera que
ela era de conhecimento e eficiência muito acima dos professores
particulares que conhecera em Paris. A mulher tinha bagagem
suficiente até mesmo para trabalhar com pequenos príncipes e
infantas. Mal sabia que fora por força do seu caráter que Beauvoir deixara anos atrás de trabalhar com a nobreza de Versailles.
Estava encantada com sua nova pupila!
Tinha razões de sobra. Angéline era aplicada e aprendia com
facilidade tudo que lhe era ensinado. Literatura, música e línguas
estrangeiras eram as suas principais predileções. Tais talentos faziam com que seu aprendizado fosse muitos graus acima do que
dela pretendia o pai. Ele que, por sua vez, tinha plano simples
para o futuro da filha: o de prepará-la para casar, assumir um
castelo (por mais simples que fosse), e constituir família da forma
mais breve possível. Nesse fulcro é que fundamentalmente apoiara seu castelo de sonhos.
Foi o que expressara confidencialmente ao fidalgo Monlevade
em reunião acompanhada por fumaças aneladas de cachimbos
que ambos pitavam ocasionalmente. Ao lado do pai, Jean ouvira tais palavras do médico como decretação de sua sentença de
morte. Viu-se como doente terminal. Foram palavras duras, mas
instrutivas o suficiente para que ele percebesse e tomasse posição.
Não fosse assim, seu sonho poderia se dissolver sem possibilidade
de voltar atrás. Tinha que entrar em ação!
E a chance de dar início oficial ao seu namoro com Angéline
poderia acontecer na visita de parentes que estava por acontecer.
O jovem Monlevade havia suspeitado que o doutor Colbert e a
filha lá se encontravam quando Felicité, radiante, anunciou à Maria Vitória que estavam chegando ao destino. A pista que induzira
Jean àquela suposição fora significativa, e dentro de minutos, teria confirmado o acerto de sua previsão.
A principal edificação da propriedade Bogenet fora feita há
cerca de duzentos a duzentos e vinte anos. Crescera ao longo
desse tempo. Novos anexos foram-lhe acrescentados, tal como a
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Jairo Martins de Souza
sua torre de proteção que, mesmo à distância, projetava-se para
o alto e emergia majestosamente das entranhas de suas dependências. As pedras escurecidas pelo tempo tornavam-no vista um
tanto macabra se olhado de relance, mas dentro dele a vida dos
moradores corria livre e espontânea. Nada de almas penadas e
assombrações!
Felicité Sallé du Sioudray Monlevade estava excitadíssima
com a chegada do novo sobrinho. Por falta de tempo, acumulada que estava com afazeres domésticos, andara se comunicando
com a amiga (consideravam-se verdadeiras irmãs) somente por
cartas trocadas ao longo dos últimos dias. O cavalo que atendia
ao criado que fazia o percurso sabia o caminho praticamente de
cor. Bastava que alguém com bolsa de couro cruzada nas costas
subisse no seu lombo para que o animal tomasse rumo certo.
Faziam planos escritos para o futuro da criança. O que gostaria, ou que os pais gostariam que fosse, quando crescesse? Um
diplomata, um oficial do exército... Não! Ele seria um padre!
Sim, um padre. E para tanto deveria nascer um menino. A
mãe contava com a ajuda de Deus e a experiência que Felicité
acumulara no assunto. A cunhada era confiável bola de cristal!
As técnicas de ultrassom demorariam quase duzentos anos para
adiantar sexo das crianças para as mães, mas como sabemos, a
esposa do fidalgo tinha olhos privilegiados para certificar-se do
que reservava a cor de urina de mulheres recolhida em recipiente
de vidro. Verificara a da cunhada. Sim, querida, estás grávida, e
digo-lhe, com segurança, que é homem!
Então, sob o olhar benigno e a proteção da heroína Jeanne
d’Arc, a futura padroeira da França, o menino nasceria com saúde
e poderia vir a ser um servo totalmente a serviço do senhor nessa
terra tão carente de fé. Rogavam também à virgem Maria por esse
milagre, que, como sabemos, foram totalmente atendidas.
Horas antes da chegada de Felicité a Bogenet, o vigário geral
já havia completado com sucesso um primeiro movimento naquele sentido. Estava acabando de nascer. Ao lado da cama da
mãe, que suava em bicas e dava praticamente por encerrado o
ciclo de dores do parto, uma de suas domésticas rezava em voz
baixa. Parecia cansada, via-se claramente que estava quase por
completar o terço do seu rosário: suas ave-marias e seus padresnossos. Ouçâmo-la por breves instantes. Je vous salue Marie, plei-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
107
ne de grâces, le Seigneur est avec vous.... Saint Marie, Mère de
Dieu.... Priez pour nous.... Maintenant et à l`heure de nôtre mort,
Ainsi soit-il.... Amem!
Foi somente após recitar completamente a homilia dita pela
piedosa criada que Tisserand deu a entender que passava da hora
de retornarmos aos Monlevade. Estavam por chegar horas mais
tarde a Bogenet. Já estavam chegando!
Mas um pouco antes disso, foi observando a satisfação exposta nos olhos da mãe que Jean de longe pensou ter notado, com
o canto dos olhos, que um dos criados do castelo dos seus tios
conduzia carroça onde julgou ver escrita a letra M, de Médecin.
Segundos depois tinha certeza que o transporte oficial do médico
da cidade acabara de desaparecer escondido pela fachada lateral
da edificação principal. O pai não andaria desacompanhado pela
filha em ocasiões de nascimentos. O coração quase saiu-lhe pela
garganta, tamanha foi sua excitação. Olhou para Maria Vitória,
necessitaria novamente de sua colaboração. A dileta amiga de
Angéline aparentemente dormia em um dos bancos apoiada nos
ombros dos dois irmãos. Nas curvas, seu corpo ora se aproximava,
ora se distanciava dos mesmos, dependia do lado para o qual o
cocheiro desviava o rumo dos cavalos. Alguém que os observasse
do lado de fora da carruagem diria que desde sempre a fraternidade e as brincadeiras de família e, especialmente entre irmãos,
deveriam permanecer constantes e imutáveis. Não era o caso!
Pois após rápidos testes, ao constatar que Maria Vitória realmente dormia e não estava forçando tal movimento para fazer chacota com os irmãos, Jean lembrou-se dos efeitos da força
centrífuga da qual o professor Duchamps lhe falara recentemente.
Estava realmente caído por Angéline, mas era, sobretudo, prático.
Esquecera-se momentaneamente de plano de conquista amorosa a
ser posto em ação. Voltou a olhar para a irmã. O seu interesse manteve-se alterado em direção à ciência conforme pensamento anterior. Do amor para os estudos. Continuou a mirá-la com os olhos
agudos de quem faz experiência em aula de ciências: a matéria havia sido recentemente incluída no currículo das escolas francesas.
A recomendação de Duchamps é a de que não se pode deixar que o ambiente venha a trair-nos quando de nossas deduções. No caso, a das forças que aparecem na feitura de curvas.
A da sensação que qualquer coisa indefinida nos empurra, e não
108
Jairo Martins de Souza
vemos. Um soldado de artilharia que se recuperava de ferimento,
em Guéret, havia lhe dito que algo similar parece acontecer com
balas de canhão disparadas a distâncias longas.
Forças fictícias. Fantasmas! O moço sorriu feliz, entendera-as
bem. Com a conclusão da curva, a estrada novamente se tornara
reta e a irmã voltara a dormir sem empurrão que a incomodasse.
Os que não se acabavam eram os eventuais solavancos que sofria
quando as rodas da carroça passavam pelos buracos do caminho.
Newton. Ação e reação. A aproximação do castelo fez voltar pensamentos para a filha de Colbert.
O mirante da curva lentamente percorrida pelo coche abria
próxima a visão de Bogenet. A manhã que agora já nascia estava deslumbrante e o sol, ainda que parcialmente escondido, não
ofuscava o brilho que a natureza impunha a mais esse dia de
visitas e recreação. Foi festa de família!
Mas que não deixou de ser oportunidade para celebração
de acordos. Na ocasião, Guy de La Vilatte, um tio relativamente
distante, e a esposa Sophie, que também se encontravam presentes em Bogenet, encantaram-se com a educação e a vivacidade
de François, o filho mais velho do fidalgo. Conversaram muito
e ficou combinado que, antes de voltarem para Paris, tentariam
acertar detalhes de possível transferência com o fidalgo. Não é
que estivessem tão velhos assim, mas fora também a eventual
cooperação do jovem nos seus negócios, isso a discutir, como
também que ele lhes fizesse companhia arejando o ambiente
sombrio da casa de estilo melancólico em que moravam. Felicité
tinha sentimentos ambíguos a respeito. Sim, ficaria feliz pelo filho
mais velho, mas sentiria sua ausência. Não. Não colocaria obstáculos à situação, era o futuro do primogênito que estava em jogo,
e a questão de estudar fora era pura questão de tempo. O jovem
poderia, nas horas vagas, aprender a lidar com o ramo de importação e exportação que era o interesse comercial do tio. Uns dias
mais e tudo estaria ajustado.
Jean, ao ouvir parte da conversa, pressentiu que sua sorte
também poderia estar ali presente: em carne e osso.
E foi apenas após se encantar com o pequeno futuro vigário
geral, que passou a circular pelos jardins aguardando que a irmã
trouxesse consigo, a tiracolo, a encantadora Angéline.
A chegada dos familiares do ramo Monlevade foi muito fes-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
109
tejada pelos moradores de Bogenet. A mãe já demonstrava sinais
físicos de excelente recuperação dos esforços feitos durante o nascimento. É uma das muitas vantagens do atualmente pouco usado parto natural. Tanto foi assim que pôde receber Felicité fora do
recinto onde o bebê repousava tranquilo após primeiras sessões
de amamentação. O corte do cordão fora perfeito: o umbigo tinha
ficado com aspecto animador, e mãe tinha a pele lisa e aparentava estar verdadeiramente descansada. No extremo direito da parte alta de sua cama, deixara suspenso pequeno cordão com bonita medalha da Virgem Maria trabalhada em prata de qualidade.
O fidalgo Monlevade aparecera cerca de três horas da tarde,
após resolver alguns assuntos de urgência. Ficaria para o jantar,
juntamente com todos os demais visitantes. Durante a espera, o
assunto não fora o que dizia respeito à condição do país, tema
recorrente em qualquer situação em que estivessem envolvidos
mais de dois franceses. Filhos. Conversou-se sobre filhos.
François Monlevade, Tisserand confirmou, neste mesmo dia,
seria convidado por Guy de La Vilatte para residir na capital, Paris.
E em dado momento chegou a vez de Jean que, nessa altura,
sabemos estar no jardim. O pai falou de sua inteligência; a mãe
disse do seu amor pela família e o carinho que dedicava aos irmãos. Não exagerara. O médico Colbert ouvira atentamente. Há
tempos viera observando olhares aparentemente dispersos que o
jovem lançava para os lados da filha. É claro, sabia de seus dotes
privilegiados, isso não era nenhuma novidade para os moradores
das redondezas de Guéret. Mas ouvir da própria boca dos pais
sobre o comportamento dentro do seu lar era de grande valia, e
fato a ser levado fortemente em consideração. O médico sorriu. O
rapaz era filho de fidalgo: nunca se sabe...
Nascer, crescer e morrer dentro de pequenas comunidades
tem lá suas compensações, Colbert comentou, aparentemente
atravessando a conversação anterior que prosseguia, e dirigindose especialmente ao fidalgo. Não nasci, mas vivo em uma delas.
Quanto à morte...
Referia-se a toque de sinos da igreja da cidade que, ao longo
da semana, anunciara a morte de antigo cidadão de Guéret.
O falecido não pertencia à família de Léopold, o vigário geral, e nem mesmo foi pessoa que pesasse, em especial, nos rumos
da vida particular da família do fidalgo Monlevade.
110
Jairo Martins de Souza
Mas foi desejo claramente expresso por Léopold que o resumo da vida do morto constasse generosamente em sua história,
como exemplo de final de existência de quem sai do nada, cria
família com sucesso, e projeta-se na vida social.
Bem, Tisserand acrescentou, além deste pedido especial, não
vou negar que há outro motivo para que aquele cidadão seja
citado aqui. E o senhor mesmo, mon ami, verá que na realidade
três ou quatro linhas seriam mais que suficientes para expô-lo. O
excesso pode ser creditado à minha prolixidade.
Pois, na ocasião do seu passamento, era homem de vasta família, mesmo não os tendo por perto. Os filhos, de um modo geral, bem sucedidos, encontravam-se, o que não era de se espantar, espalhados pelo país e pelo mundo afora. Durante os anos de
casamento, tentara várias vezes que a mulher lhe desse à luz uma
filha, mas somente lhes apareciam varões que, mal passados dos
quinze, como se dizia, botavam pé na estrada. Família de ciganos!
Ele próprio fora ressalva incomum ao longo de sua geração.
Apaixonara-se e havia se casado com moça de sentimentos arraigados à terra. Esse era o motivo principal de sua permanência
em Guéret. A mulher sempre se recusara em acompanhá-lo, caso
tomasse outros destinos. Mas abandonou-o por razão especial, já
que os sinos da mesma igreja haviam dobrado para ela há meses.
O casal tinha muitos amigos e o caixão ficara exposto por horas
em sua casa. Por final, foi enterrada com reverências especiais
pela comunidade. O marido sentira intensamente a sua falta, e
a de seus bolinhos de trigo. Os filhos e netos, assim como outros
parentes dispersos pelo mundo, cumpriram por ela longo e respeitoso período luto de corpo e de alma. Em especial, ele, o mais
próximo do coração da falecida, decidiu optar pelo estilo totalmente fechado que lhe exigia, inclusive, uso de roupas de baixo
totalmente negras.
Foi homem que sofreu muito quando do passamento da mulher. E que, quando do seu próprio, teve testemunhado seu papel
de realce na sociedade de Guéret. A crônica local destacou que
foi cidadão muito considerado pelos seus conterrâneos. Era marceneiro de grande habilidade: um verdadeiro escultor. Um artista.
Com poucos anos de exercício da profissão, chegara a ganhar
muito dinheiro e sua prosperidade aumentava a olhos vistos. Aí
ficou mais uma vez provado que a miséria é a única condição que
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
111
fica a salvo da inveja: ele não ficara imune a alguns comentários
maliciosos. Dizia-se que pagava propinas a funcionários para facilitar caras e volumosas encomendas governamentais, os sinais de
riqueza tornaram-se dia após dia mais facilmente detectáveis. A
começar pelo belo casarão em que passara a morar, e que ficava
próximo à praça da cidade. Foi lá que morrera pouco após avisar
a um dos criados que chamasse Colbert, pois sentia fortes dores
no peito.
Por via de dúvidas, chamem também o abade, foi o que solicitou ao mensageiro antes que saísse, e com voz já muito fraca.
Um apressado Ribérry chegou a tempo de apanhar sua última
confissão. A alma foi resgatada a tempo certo! O corpo, não. O
médico viera também rapidamente, mas ao chegar encontrou-o
morto. Colbert gastara somente minutos bastantes para selar o
cavalo e alcançar as poucas quadras que separavam suas residências. Foi como se tivesse tomado um tiro no peito à curta distância, comentou algumas horas mais tarde com monsieur Gris. Gris
era o dono da funerária que se encarregaria de todas as providências para as exéquias.
O velho marceneiro prestara vários serviços à família Monlevade. Trabalhava com precisão, pontualidade e arte e nunca deixava de atender ao cliente nas ações de pós-venda e manutenção
dos seus produtos. Utilizava somente madeiras de qualidade e o
fidalgo pagava-lhe em dia e, às vezes, encantado com a excelência dos produtos, premiava-o com pagamento a mais.
A relação, a princípio puramente comercial, com o passar do
tempo havia se transformado em sincera amizade. O especialista
no trato com madeiras era bem mais velho que o fidalgo, e é por
isso que lhe pedira, quando do seu passamento, cuidar da convocação dos filhos. Pela ordem natural das coisas, devo morrer
antes de você, dissera-lhe. Não chegaram a fazer pacto de sangue, mas deixara escrito que o amigo deveria zelar pelo cumprimento dos seus desejos, e aplicação dos haveres em dinheiro que
guardava em sacos escondidos em fundo falso de armário que
ele mesmo fabricara para o objetivo. O grande volume de capital
que acumulara nos últimos anos era mais ainda justificado pelos
muitos trabalhos que fizera para decoração e para as festas da
diocese. Esculpira várias imagens de Cristo, de santos da Igreja
e, em especial, da virgem Maria. Da mesma forma muitas portas
112
Jairo Martins de Souza
das igrejas da região levavam a sua assinatura. Faziam-lhe muitas
encomendas. Inclusive contratos de fornecimento de estruturas de
várias toneladas de peso que sustentavam pesadas estátuas de padroeiras conduzidas por centenas de fiéis em procissões festivas.
Fora por essas e outras razões que destinava largas dotações
para a escola de Duchamps, e para a instituição dirigida por Ribérry. Pensara nos filhos, mas não se esquecera de alguns desafortunados que chegavam aos montes.
Um exemplo de sucesso que seguia, e que todos da comunidade citavam, era o caso do menino Martinho apoiado pelo
amigo Monlevade.
Era com tais atitudes que pensava retribuir à comunidade
que lhe proporcionou parte do sucesso que havia obtido em vida.
Deus te dê em dobro tudo que me desejares. Ademais não queria
que nada dos seus esforços fosse disperso em vão. Não é a caridade o único tesouro que cresce ao ser dividido? Tinha muitas
posses que, como explicado, ficaram sob responsabilidade momentânea do fidalgo.
Foi o que tinha ocasionado o atraso de sua chegada à casa
dos pais do sobrinho, quando do nascimento do futuro vigário
geral. Em cidades do interior, as horas passam mais devagar.
Tudo isso, Tisserand prosseguiu, fez parte daquela conversa
de visita familiar ao recém-nascido vigário geral. E, indiretamente,
pode ser aproveitado para dar-nos exata figura dos sentimentos
de Felicité quanto ao envio dos filhos a Paris para aprendizado e
estudos. Ela tinha medo intenso da solidão.
Os meninos devem ir em busca do conhecimento e felicidade. Parece-me certo. Mas... e se minha filha se casa e segue com
o marido para algum país longínquo da América do Sul?
Era, como sempre foi, o lado feminino da questão. Já o fidalgo, desconsiderando-se suas próprias ideias a respeito, fora constantemente aconselhado pelo falecido marceneiro a que, como
ele, incentivasse os filhos a buscar a vida pelo mundo. O homem
que não viaja, caro Monlevade, é homem de um só livro. De uma
só vida. De um só lugar. Perde a visão geral da criação. É fato conhecido que não pode sonhar por meio de imagens contadas por
terceiros. O viajante verifica por si mesmo com olhos de ver, in
loco! Se particularmente não procedi dessa forma é porque fiz opção de vida pelo amor da minha querida mulher. Ganhei a vida
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
113
com dignidade, mas tornei-me limitado. Se não pude, meus filhos
o fizeram. Temos que criá-los para o mundo! O fidalgo concordara. Ele próprio, é bem verdade que por pouco tempo, estivera
por outro continente e sabia da importância de conhecer outras
terras e pessoas.
Ouvira dizer que no Brésil... Bem, a sorte dos filhos homens
estava decretada. E Maria Vitória? A menina é muito jovem ainda. Vamos ver. Vamos ver!
Enquanto isso, entenda-se, enquanto o pai e o doutor Colbert
conversavam, Jean ansiosamente circulava pelas laterais, pelas
imediações e pelo jardim de Bogenet. Tinha ido até antiga ponte
de pedras que passava sobre riacho próximo. Voltara acelerando
o passo, temeroso de perder a chegada da moça. Ia e voltava.
Verificara se havia marcas de sapatos no ponto de encontro. Pés
de gazela. Nada. Não havia nada. Respirou com sentimento antagônico de alegria e tristeza. A partir daí resolveu não sair do local
e aguardar pacientemente: fosse o tempo que fosse. No entanto,
de cinco em cinco minutos consultava o relógio de bolso que pedira emprestado ao pai. Para matar o tempo, dias passados, havia
desmontado parcialmente a engenhosa máquina do tempo para
ver como trabalhava o seu mecanismo. Pensou sobre o assunto.
Nada nele identificava as mãos hábeis do mago John Harrison,
o relojoeiro da longitude, mas funciona perfeitamente, constatou
satisfeito.
E com isso o tempo passava. Passava. Ele consultava novamente o instrumento, mas Angéline não aparecia, conforme havia
combinado com a irmã, Maria Vitória. Maria Vitória era bastante
espirituosa e informara-lhe há pouco, buscando reduzir a ansiedade do irmão, que Deus tinha feito a mulher a partir das costelas
de Adão... mas quem prepara verdadeiramente as meninas para
a vida é o móvel chamado toucador.
Jean sorriu contrafeito, não lhe agradava ver a irmã usar o
nome de Deus em vão. Mas retrucou a brincadeira dizendo que
não era bem assim. Na verdade, disse-lhe, o homem é que fora
feito de partes da mulher. Não sabes, Vitorinha, que a primeira
mulher tinha três seios e que deste terceiro é que o homem veio
a ter origem?
Gostava de ensinar à irmã, e pensou tomar proveito da oportunidade para lembrá-la que, bem antes de Cristo, Aristóteles ju-
114
Jairo Martins de Souza
rava ser deus o motor imóvel do universo. Mas decidiu falar sobre
o assunto em outro momento mais adequado. Estou muito agitado, atropelaria as palavras.
A moça não surgia. Imaginou ficar na frente de Colbert e de
joelhos pedir a mão da filha em casamento. Isso seria um desatino,
mas consolou-se imediatamente lembrando-se que São Jerônimo
dissera que o amor não conhece regras, amor ordinem nescit.
Maria Vitória sabia da importância do encontro que engendrara com Angéline. Ouvira certa ocasião o pai comentar com
Felicité que amor e negócios nunca devem ser misturados. Escutara a maior parte da conversa entre o pai e os tios Lavillate. Ficou constrangida, julgou que estivessem falando sobre os irmãos
como se fossem algo frio, imaterial: um negócio a ser encaminhado com sucesso. Fora rigorosa! No entanto não é esse juízo
especialmente próprio dos jovens?
Jean também mal poderia imaginar que Angéline principalmente se atrasava por estar ouvindo conversa de adultos em que
fora discutida inicialmente a sorte de François. E que a sua própria estava em pleno andamento, e prestes a ser concluída!
Finalmente ouviu passos suaves sobre as folhas secas que,
de certa forma, lembravam tapete de cor amarelo-verde que enfeitava naturalmente o caminho. Era outono. Os olhos azuis de
Angéline iluminaram a face do rapaz que a saudou, desajeitadamente, com um singelo olá. Olá, Angéline! A moça sorriu. O que
ouvira sobre os rumos futuros do rapaz, fez que viessem à tona
sentimentos que sinceramente gostaria de expressar.
Pensava gostar dele, tê-lo sempre por perto, e subitamente
vira clara a possibilidade de isso não acontecer. Por outro lado...
Bem, de Jean, já tomamos ciência de suas inquietações. Foi por
isso tudo que, após alguns minutos de suave encantamento, começaram a conversar animadamente. Parecia que há anos se
comportavam daquela forma.
No alto da torre de Bogenet, o médico Colbert coçava vagarosamente os pelos do seu cavanhaque. Observava-os. Reflexivamente...
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
115
XIV
1806. Martinho faz planos
Não é que fosse novidade para os franceses, mon ami! Desde
1789, cada ano que chegava apresentava-se recheado de surpresas sujas de sangue. O de 1806 não foi exceção! A começar pela
invasão de Nápoles, a conquista de Varsóvia e a decretação do
faladíssimo Bloqueio Continental para os países europeus e que,
para os Brésiliens, desculpe, brasileiros, teve como consequência
derradeira... o senhor sabe ter sido o motivo para que o príncipe
João transferisse a capital do decadente reinado dos portugueses
para o Brésil.
Mas aquele ano, em particular, teve alguns belos atenuantes...
Até meados do mês de maio fazia dois anos que Napoleão tivera
seu código civil aprovado. O império mantinha-se abençoado por
Pio VII. O casamento com Josefina seguia até o momento sem
maiores atropelos... Vamos ver como fica tudo isso até os dias
finais de dezembro.
Também fazia um ano que o fidalgo Monlevade e a família
estiveram em visita especial em Bogenet no dia em que, o senhor
está lembrado, nascera o bebê Léopold. Na ocasião ficou também
mais ou menos definido que François seguiria quase que imediatamente para Paris onde passaria a residir com a família do tio
Guy de La Vilatte.
Foi o que efetivamente sucedeu-lhe e, pelos relatos expostos
nas cartas saudosas que o rapaz enviava para seus queridos, ele
estava se saindo muito bem, inclusive sendo de grande valia para
o andamento dos negócios do parente que, conforme propusera,
o recebera de braços abertos.
Felicité estivera algumas vezes de visita ao filho em Paris, mas
não em número de viagens superior às que fazia normalmente ao
longo do ano. Não era de vaidades extremas, mas gostava de ad-
116
Jairo Martins de Souza
quirir vestidos e lingeries de acordo com as últimas tendências e padronagens da, mesmo que decadente, moda da corte. Coco Chanel
demoraria mais de um século para exibir suas excitantes criações.
Às vezes a mãe permitia que Maria Vitória a acompanhasse.
Nessa altura a menina já se encantava com toda a movimentação
da então mais importante capital dos europeus. Foi período em
que Jean, ocupado com os estudos e trabalhos de apoio ao dia
a dia do castelo, mal tinha tempo para atividades extraordinárias de pesquisas. Nem se diga dos encontros furtivos e juvenis
engendrados em conjunto com Angéline e Maria Vitória. A irmã
divertia-se colaborando com os dois namorados.
Não obstante todas essas ressalvas e atribuições, o adolescente Monlevade fazia o possível para não se afastar dos amigos.
E, por exemplo, mesmo não frequentando tanto o armazém de
monsieur Platini e Fontaine, acompanhava-os a distância. Jurava
para si mesmo não esquecer as lições que lá aprendera.
Foi por mencionar o nome de Fontaine que Tisserand lembrou-se de atualizar-me sobre a situação do antigo marinheiro.
E disse-me que, naqueles dias, o agora já experiente mercador
exultava de felicidade. Pouco conhecia a respeito das origens de
ditados e frases feitas, mas mais uma vez ficara confirmado que a
união faz a força. Ambos haviam progredido e ele, especialmente, por deferência e gentileza de Platini, fora guindado à posição
de sócio minoritário. Nessa nova condição é que lograram, após
acordo firmado com o fidalgo proprietário do imóvel, ampliar
bastante as pequenas instalações. Não precisaram dispender muitos esforços para levantar dois acanhados galpões de estocagem
que possibilitariam melhores condições de atendimento aos seus
clientes. Guardariam estoque bastante somente para três ou quatro dias de operação dos negócios do armazém. O restante, que
fosse eventualmente necessário, seria provido por meio de acordo
firmado com alguns fornecedores que também colaboraram para
combinação de formas melhores e mais rápidas para atendimento
aos seus pedidos.
As mercadorias, Tisserand divagou, chegariam a eles por
meio de sistema que nos dias de hoje chamaríamos de um primitivo e precário just in time.
E o fidalgo Monlevade, o estrangeiro disse retomando sua
história, novamente intercedera em favor dos amigos do filho, e
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
117
iniciara, inclusive, negociações para compra do imóvel. Como de
outras oportunidades, mostrou-se pronto para fiar o negócio. Era
essa a razão da alegria incomum de que dissemos Fontaine estar
acometido.
Martinho também acompanhava passo a passo o sucesso dos
amigos já adultos e, mesmo que um tanto esquecido nessas anotações, procurava não arredar pé do lado de Jean. O rapazinho
era fiel ao juramento que fizera em ser sempre grato, e fazer tudo
ao seu alcance pela família Monlevade.
Jamais se esquecera do episódio em que o fidalgo, que sabemos coxo, salvara a ele e a sua pobre família das garras do então
jovem celerado, Thurram.
E mantinha a mesma atitude em relação à própria família.
Jamais se esqueceria dela! Muitas de suas noites eram dedicadas
à lembrança dos pais e dos irmãos. Sonhava voltar a vê-los felizes
e bem alimentados. Para tanto iria, jurava a si mesmo, percorrer
terras e céus. A ida iminente de Jean para Paris talvez fosse a sua
chance. Quando foi alijado da companhia dos seus, por meio
daquele famigerado sorteio, sabia ser ideia do pai buscar trabalho em fábricas de acessórios da indústria de roupas parisiense.
Havia muitos alfaiates na capital. Quem sabe o fidalgo também o
encaminhasse para casa de algum outro seu parente? Tinha a seu
favor a amizade de Jean. Não fosse suficiente, também poderia
contar com a intercessão do abade Tibérry, de monsieur Platini, e
do professor Duchamps.
O propósito de Martinho não era estranho para Jean. Por
efeitos de uma ou outra situação, ele já o havia percebido. No
entanto ficara feliz ao saber das intenções diretamente do amigo.
Não sei exatamente se seguirei o mesmo caminho que está sendo percorrido por meu irmão François, respondeu-lhe. Mas farei
tudo que estiver ao meu alcance. Informarei à mamãe, e negociarei para que papai consiga também algo para você.
No final disse que apenas aguardaria ocasião adequada para
abordar o assunto com o fidalgo, seu pai. Teria que pegá-lo em
bom momento.
Martinho sentiu-se seguro e feliz, antecipando momentos de
grande felicidade que, adianto, realmente vieram a acontecer.
118
Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
119
XV
O médico Colbert e o fidalgo prosseguem trocando ideias.
Tisserand comenta rapidamente sobre falha nas intenções
de Jean
Muito do que acontece na vida de um homem desde seu nascimento até ser enterrado em uma sepultura pode ser justificado
pelo modo como a sorte o tratou, Colbert disse. O fidalgo Monlevade não se atrapalhou com a afirmação que ouvira do amigo.
Não fazia coro com os que julgavam ser o homem construído por
uma ou outra ocorrência dramática em sua vida. Acreditava na
superação, e que a existência, ou não, deste esforço é que realmente poderia traçar os destinos deste ou daquele indivíduo. Mas
calou-se diante do rumo da conversa. Pensou em mudar assunto,
deixando em aberto o seu seguimento. Interessava-lhe conversar
com o amigo sobre Jean e Angéline. Não sabia como! Ambos
pouco a pouco tomavam consciência de que o interesse que os
filhos tomavam um pelo outro prosperava a olhos vistos. Não
haviam chegado ainda ao compromisso do namoro... Jean era jovem e sabia buscar as coisas que desejava. Não demoraria muito
para, após solicitar licença ao fidalgo, conversar a quatro paredes
com o sogro Colbert. Depois pai e sogro se entenderiam!
Então Tisserand disse-me que na realidade essas suas últimas
frases tinham sido somente uma consideração para lembrar-me a
formatação e o procedimento que se seguia para iniciar qualquer
tipo de compromisso entre jovens de boa educação no princípio
do século dezenove. O acordo final ficava por conta dos pais.
Que, no caso, conversavam descompromissadamente (ainda
que, em termos íntimos, digerindo possibilidades de compromisso entre os filhos), sobre questões polêmicas da sorte e do destino
dos seres humanos. O fidalgo dizia ao amigo que de fato a sorte
ajuda mesmo aos que trabalham certo. Antes de Lutero, comen-
120
Jairo Martins de Souza
tou, camponeses podiam ser convertidos em bispos. Bastava que
se tornassem ricos. Não concordo com Diógenes que, em passagem que citava Pítaco, relatou que nem mesmo os Deuses ousam
lutar contra o destino. Ou contra a sorte. Esta última parte fica por
minha conta e responsabilidade: não sou determinista.
Tenha ou não o fidalgo ganho a discussão, era essa a filosofia
que tentava transmitir aos filhos. Principalmente a Jean que, de
todos, era o que mais se interessava por ideias que pudessem
ser úteis na prática. Mas, em alguns aspectos, e devido à pouca
idade, as que naqueles dias queria aplicar em sua vida eram absolutamente inconsistentes com os sonhos de Angéline. Estudar.
Formar. Casar. Trabalhar. Até aí, tudo bem.
E depois? Como o filho cumpriria desejo antigo de viajar
para países distantes de que aprendera a gostar com as histórias
de Platini e de Fontaine? Pouco lhe relatara sobre a luta que tivera
nas Treze Colônias, mas os livros de sua biblioteca sobravam em
informações, e propiciavam sonhos de aventuras, descobertas,
pesquisas, viagens e fatos improváveis. Não se curvou Göethe
diante da beleza dos altares esculpidos nas minas polonesas de
Wieliczka?
Daí, Tisserand concluiu, ter faltado a Jean análise cuidadosa
de variável importantíssima. Ninguém é perfeito. Com a cabeça
ocupada com tantos outros sonhos, esqueceu-se de levar em conta o fato de Angéline ser mulher. Uma jovem mulher.
Portanto, não seria imprevisível que pudesse vir a surpreendêlo... Bem, é mais saudável não me adiantar novamente aos fatos.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
121
XVI
O fidalgo não antecipa mudança de Jean a Paris. Martinho
é praticamente um Monlevade. A viagem de estudos ao
país da bota
Alguns poucos meses depois da mudança de François para Paris,
o fidalgo recebera de Guy de Lavillatte uma longa carta em que
este colocava-o a par dos estudos e comportamento do seu filho
mais velho. Um perfeito relatório com até mesmo o preciosismo
de inclusão de partes copiadas de boletim escolar. O tio Guy era
zeloso, elogiava-o, e dizia do acerto de toda a combinação. Já lhe
disse por várias vezes pessoalmente algo a respeito, caro JeanFrançois, mas minha sensação é que devo eternizar no papel essa
feliz ocorrência, foi uma das coisas que comentou. O moço tem
sido uma bênção para nossa casa! Mas não se resumia a tanto.
Ele e a esposa Sophia declararam-se tão satisfeitos com primogênito dos Monlevade que estavam colocando as portas de sua casa
também abertas para o jovem Jean. Tinham ciência, o fidalgo já
lhes havia verbalizado intenção, bem, em breves dias, o rapazinho também necessitaria ampliar estudos em Paris. Aceitariam
de bom grado o garoto Martinho como contrapeso: neste caso,
o que poderiam discutir posteriormente seriam os custos de sua
manutenção.
A certeza é a de que teriam troco dobrado com a presença
dos irmãos Monlevade. No mínimo, com essa atitude, compensariam parcialmente a grande dádiva que Deus lhes proporcionara
ao ter François debaixo de seu teto. O moço relatara que se dava
muito bem com o irmão, eram amigos, e também se dava bem
com o apadrinhado do pai e, por fim, pelo andar da carruagem,
todos contribuiriam para aumentar mais ainda a felicidade da
casa dos Lavilatte!
122
Jairo Martins de Souza
Estudariam o que fazer com Martinho, mas tudo, todas essas
circunstâncias, estava ainda prematuro para tomada de posição.
Foi o que o fidalgo e Felicité decidiram, após conversa com o
professor Duchamps: o ideal seria que Jean terminasse o curso
secundário em Guéret. Na sua cidade, dados os seus predicados,
continuaria recebendo atenção privilegiada do mestre-escola. Aos
18, sairia para Paris. O próprio Jean argumentou que isso não
significaria retardo em sua formação. Só não ressaltou para o pai
que lhe agradava também manter durante mais esse período os
rápidos encontros que tinha com Angéline. Estava certo em ambos os motivos. A começar que iniciara estudos sobre a língua
grega e, para tanto, estava contando com ajuda de rapaz que,
recentemente, havia chegado à Guéret.
Conhecera-o ao vê-lo em animada conversa no Armazém da
casa Platini-Fontaine. O grego era viajado e, em particular, aprendera o ofício de tapeceiro artístico na região do Marrocos. E estava
em Guéret em situação aparentemente paradoxal. Pois as pequenas caravanas de carroças abarrotadas de móveis, que se deslocavam para outras partes do país, comprovavam que o desemprego
no ramo da tapeçaria, setor forte da economia local, era crescente
na região do Creuse. Muitos iam. Pouquíssimos chegavam!
Entre esses, os membros da família Zavoudakis à qual pertencia o jovem grego que se tornara interlocutor e amigo de estudos
de Jean. Pais, filhos e irmãos tinham habilidade fora do comum
para ofícios artesanais. Para esse tipo de gente nunca falta trabalho, e logo se arranjaram em oficinas que produziam encomendas
da burguesia de Paris.
Kostas Kostas Zavoudakis era o seu nome. Jean perguntoulhe educadamente o porquê do nome dito em dobro, adiantandolhe ser admirador da cultura e da arte gregas. E mais ainda, para
não ser confundido com gente curiosa, no mau sentido, antes que
fosse respondido, contextualizou outras ideias e afirmou que um
dos seus sonhos era conhecê-las in loco: tanto a cultura quanto a
arte. Não fosse possível nas próprias ilhas gregas, talvez na Sicília que era mais próxima, e fora ocupada pelos descendentes de
Pitágoras e Aristóteles durante largo período de tempo. O moço
também sabia ser político.
Bem, Tisserand prosseguiu, antecipo que Platini e Just Fontaine não conseguiram conter risada quando ao final, e juntamen-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
123
te com Jean, ouviram explicação de que o nome do jovem grego
originalmente não era bem assim.
O erro fora do oficial da imigração! O funcionário distraiu-se
quando da minha entrada no país e escreveu duas vezes meu
nome, Kostas, complementando corretamente com o Zavoudakis.
Quando chamei-lhe atenção, ficou nervoso, e disse impropérios.
Depois se resumiu a tentar me convencer, exibindo regras e folhas
de instruções, como seria difícil e trabalhoso acertar a situação.
Daí tornei-me Kostas ao quadrado. Kostas au carré. Aliás, não
tive somente prejuízos, quando assino por meio de rubrica, faço
assim: Kostas2.
O senhor pode imaginar, Tisserand comentou fazendo crítica
social, se o mesmo poderia acontecer duzentos anos depois com
o seu conterrâneo Onassis? Nunca. Isso só acontece com gente
pobre. O bilionário marido de Jackie Kennedy jamais teria qualquer tipo de visa, de visto, com nome distraidamente duplicado!
Kostas era um batalhador – Tisserand prosseguiu, retornando
de mais uma de suas divagações – e o pago de Jean por suas aulas
de grego ficava por conta de troco de igual teor. Ensinava-lhe tudo
sobre a cultura francesa e, especialmente, a gramática da língua.
Zavoudakis aprendia rápido. Dizia ser parente remoto de Domenikos Theotokópoulos, o El Greco, famoso artista que fora radicado
em Toledo no século dezesseis. Jean suspirou. Tinha grande vontade de ver ao vivo o quadro da Adoração do Nome de Jesus do
artista parente de Zavoudakis.
Enquanto isso, não se descuidava também do latim. Começara inicialmente com o professor Duchamps. Depois, devido ao
seu rápido avanço, chegara ao estágio da quarta declinação em
poucas semanas, a tarefa ficara por conta de aulas particulares
dadas pelo abade Ribérry. Afora uma ou outra lauta refeição incidentalmente tomada no castelo, o abade nada cobrava do fidalgo. Cuidava de retribuir sinceramente às generosas contribuições
em dinheiro que recebia de Monlevade para cuidar dignamente
das crianças do orfanato.
Dinheiro. Ter e criar filhos custa dinheiro. Manter o orfanato
zelado pelo Abade Ribérry também custa dinheiro. Os filhos miseráveis nos dias de hoje são como os peixes que a palavra de
Deus disse terem sido multiplicados. Há alguns fiéis que, iniciando a vida de casal em condições adversas, gastam seus trocados
124
Jairo Martins de Souza
com parcimônia inerente à situação. Isso é justo. No entanto, de
acordo com a prática cristã, não se esquecem de usar parcela
conveniente para educação dos filhos. Às vezes, à custa de muitos
esforços, tornam-se remediados e, em alguns poucos episódios,
até mesmo ricos. Casos raros.
E é a partir daí que pode nascer o avaro. O avaro esquece-se
dos filhos. Esquece-se também de filhos de outros menos aquinhoados que padecem pelas ruas das cidades e campos da França. Esquece-se da Igreja da mãe de Cristo. Esquece-se do dízimo
sagrado. Esquece-se de compromissos assumidos. Tal espécie de
gente, não os temos em pequena quantidade entre nossos ricos,
vivem seus dias como mendigos, mas morrem com os colchões
atulhados de moedas. Tratam o dinheiro como se fosse uma obra
de arte que somente em casos especialíssimos pode ser tocada.
Um bezerro de ouro. Quem ama o dinheiro tem dificuldade em
amar seus filhos em toda a sua plenitude. Diz a bíblia, em Colossenses 3:5, Exterminai.... a avareza que é idolatria... Queridos
irmãos em Cristo, em especial, dirijo-me aos pais que andam praticando esse pecado com seus filhos e com a comunidade, as estatísticas secretas do nosso confessionário...
O senhor sabe, Tisserand disse, que no início do século dezenove as relações entre pais e filhos não eram nenhuma obra de
Deus. Já fora pior. Dar-lhes um casaco significava quase o mesmo
valor em francos do que dar-lhes um automóvel nos dias de hoje.
O que o padre Mitterrand, auxiliar da diocese em trânsito
pela cidade, disse em um domingo de julho de 1806 tinha como
foco a importância de os pais investirem na educação dos filhos.
Foi o que lhe relatei ao pé da letra faz pouco. Ele estava em vias
de completar o sermão, e a missa se encaminhava para a liturgia
final. E o objetivo de ter lançado aqui tais advertências, mon ami,
é o de ter sensibilizado o coração do fidalgo Monlevade em relação ao amigo do filho, o jovem Martinho. Mitterand conseguira
atingir sua meta dominical. A de tocar corações!
Decerto houve tempo em que os filhos homens eram tratados como verdadeiros estorvos, e descartados pelas famílias sem
maiores contestações e sofrimentos. Iam de uma casa a outra,
aprendendo profissões enquanto atendiam como ajudantes. Por
sua vez, os filhos das casas para as quais iam possivelmente estivessem em casas de terceiros e por aí vai. As meninas seguiam
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
125
roteiro diferente. Com algumas exceções: lembra-se do exemplo
literário, daquele mesmo século, ocorrido com Cosette, a filha de
Fantine, quando foi entregue para as garras da diabólica família
Thenardier?
Mas foi somente após concluída a fala de Mitterrand que o
fidalgo Monlevade dissera em voz baixa, quase imperceptível,
diretamente no pé do ouvido da mulher, Felicité. Não é que o
abade visitante lembrou-me que preciso decidir sobre os custos
da estada, estudos e moradia de Martinho em Paris? Decidi-me.
Vou enviar carta a Guy de Lavillatte. Dir-lhe-ei que tudo correrá
por minha conta. Martinho não precisará trabalhar, essa é a condição que deixarei clara. Para tanto dar-lhe-ei o mesmo valor de
mesada que estipular para Jean. Não posso adiantar se ganhará
bolsa do governo.
Ah, Felicité, tirei um peso que não sabia existir nas minhas
costas! Algo me dizia que devia auxiliá-lo mais radicalmente. Não
me esqueço da triste noite em aquela família foi assaltada pelo então endiabrado Thurram... bem, água passada não move moinho
de trigo, o fato a ser celebrado é que vamos tentar abrir as portas
do mundo, e de algum liceu importante para aquele rapazinho.
Daqui a três anos definitivamente irá também estudar em Paris!
Desde então, este tempo passou com a velocidade impressionante com que vibram as asas de um beija-flor. E antagonicamente muitas coisas aconteceram: talvez seja o que o tenha feito
passar despercebido. O fidalgo não era dado a perder oportunidades. Nem para si mesmo nem para os filhos. Portanto tinha
olhos e ouvidos atentos para o que acontecia no mundo e, mesmo a contragosto, observava com visão analítica os movimentos
do corso Napoleão por toda a Europa. Tinha algumas economias,
joias e valores guardados de tempos passados e, a despeito de
sua paixão pela terra em que nascera, surgiram-lhe ganas de empreendedor, não abriria mão de investir em outros países.
Mais ainda na grande inteligência do seu caçula. O rapaz,
conforme sabemos, estivera diligentemente estudando línguas estrangeiras, o estado da arte da ciência, assim como disciplinas ligadas à filosofia, à arte em si, à gramática, à dialética e à estética.
Moço completo. Torna-se repetitivo dizer, a tudo aprendia com
facilidade impressionante.
E, entre tantas vontades, a que mais lhe chamava a atenção
126
Jairo Martins de Souza
em termos práticos era o estudo de pedras e o desejo inesgotável
de conhecer os segredos da natureza. Tinha os pés no chão, queria saber o que lhe fosse possível sobre onde pisava. A matéria
estava debaixo e acima dele e pronta para ser compreendida, às
vezes inalcançável. A luneta de Duchamps aguçava-lhe a curiosidade quando mirada para a Lua cheia: que tipo de pedra branca
lá existe? Qual a do teto da caverna do dragão que luta com
São Jorge? Fazia conjecturas. Articulava hipóteses. Não sabia que
poderiam ter sido as mesmas rochas que haviam enterrado os dinossauros aqui na Terra. Nem poderia. Esses demorariam alguns
poucos anos para serem achados em primeira mão, em 1858.
Teriam sido deixados de fora da Arca construída por Noé à custa
do gigantesco tamanho?
Enquanto isso, o cachorro Breu resistia bem ao longo dos
anos e o acompanhava a incursões semanais pelas redondezas
para busca de pequenas pedras que o patrão gostava de ver sob
vários ângulos de entrada de luz.
Às vezes, sob licença expressa do pai, saía bem cedo nas manhãs de sábado e chegava até as fundições de Mondon. Mondon
ficava próxima a Guéret. A França, mon ami, é pequena se comparada com o Brasil. Cerca de dezesseis vezes menor! Apreciava
ver os fornos rudimentares e o fogo vermelho dos minérios que
corriam para o estado final de transformação em ferro. Não ia
sozinho. Martinho sempre o acompanhava. De lá só regressava
quando a família já se preparava para dormir. Fazia isso, reforço,
aos sábados. Somente aos sábados. Pois o domingo era prioritariamente reservado para passeios e ritos de religião com a família,
e encontros furtivos com Angéline.
Não obstante, enquanto esperava chegada de um destes momentos felizes de final de semana, mantinha os olhos firmes sobre
leituras técnicas e fazia reflexões sobre a química de minérios e
pedras. Não descansava. Tinha vários guias de materiais que o
pai adquirira para ele em Paris. O pai também lhe dera parelha
de cavalos fortes para que não tivesse problema com atrasos nos
retornos de suas empreitadas. Como não poderia deixar de ser,
havia um terceiro indispensável ao grupo, o Breu. Como também
o Géo, o já velho burro de carga, que, às vezes, complicava-lhes
a vida por sua lentidão. Mas era de inestimável ajuda para transporte de cargas mais pesadas.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
127
Eram muitos os interesses do rapazinho. Como o pai, não
perdia uma boa oportunidade!...
A Itália era uma delas. No mês de agosto de 1806, o fidalgo
havia observado, conforme já disse-lhe, certa movimentação de
aplicação de recursos da burguesia francesa em compra de grandes propriedades no país vizinho que se encontrava em situação
de penúria. Alguns dos seus contatos em Paris diziam-lhe, Monlevade, não deixes de tomar proveito da situação. Se demoras, os
abutres já lá terão consumido tudo. A milenar região de Nápoles
havia sido, há cerca de um ano, acometida por terremoto que liquidara quase 27.000 pessoas! A exuberante Itália, desde aqueles
anos se sabia, primava pelo seu imenso acervo cultural acumulado ao longo de anos das mais variadas ocupações.
Antes dos tempos de Cristo, os gregos lá haviam se estabelecido. É por isso que Kostas Kostas Zavoudakis havia dito a Jean
que ele conheceria melhor o seu país se, ao invés de ir à própria
Grécia, fosse ver os vestígios da cultura grega que existiam no Sul
da Itália. Confirmara o que o rapaz já tinha estudado com afinco.
Zavoudakis conhecia em detalhes o país dos romanos. Havia se
encantado com suas estradas seculares. Todos os caminhos, todas
as estradas da Itália levam a Roma, confirmava sorrindo. De uma
só tacada, fica-se conhecendo as culturas romanas, são várias, e
as gregas reunidas! Monsieur Platini havia concordado efusivamente, enquanto cortava algumas réstias de alho, e complementara com outras informações.
A conversa se desenrolava no interior do armazém. Entretanto há muito Jean não mais somente ouvia. Frequentemente
era convocado para dar opiniões sobre isso, sobre aquilo. O fato
é que filhos de famílias nobres da Europa se dirigiam a Roma,
Florença, Veneza, etc. para estudar, em pleno sítio, as civilizações
que andaram dominando o mundo antigo. Diziam-se encantados,
e a preço muito baixo. Ademais, como sabemos, Napoleão havia
sido coroado rei da Itália em maio do ano anterior e o antigo
advogado José Bonaparte, seu irmão mais velho, era o novo rei
de Nápoles.
A viagem fora longa. Muitas carruagens, cavalos e embarcações
de pequeno e médio porte. Nestes, o Breu não abria mão de viajar
na proa. Parecia desejar sentir antecipadamente o cheiro dos novos minerais que o dono esperava conhecer. Em Florença, o jovem
128
Jairo Martins de Souza
Monlevade ficou horas esquecidas se encantando com as obras de
arte expostas no palácio Uffizi. Enviou carta para Angéline a respeito.
Foi por meio dela, Tisserand acrescentou saindo rapidamente
do curso de sua história, que tomei conhecimento de algumas peculiaridades desta viagem do fidalgo com os dois jovens. Consta
anexada aos escritos de Léopold, vigário geral. Não me dei ao
trabalho de pesquisar como lá chegou.
O senhor deve ter reparado, Tisserand comentou, que eu disse dois jovens. Não. Não errei. Realmente François não podia
viajar na ocasião com o fidalgo: tinha obrigações em Paris com os
Lavillatte e com a escola.
Martinho. Martinho era o outro participante. O fiel amigo da
família Monlevade fora convidado a participar da empreitada cultural cuidadosamente articulada por Jean e pelo fidalgo, seu pai.
Vê-se que este vinha cumprindo, à risca, promessa feita durante andamento da missa do Abade Mitterrand!
E foi tendo a companhia do rapazinho, que amargurara precocemente a perda da família, que Jean de Monlevade quisera
saber tudo sobre as grandes pedras que construíram o Coliseu.
Ficara perplexo com a beleza dos mármores que de lá foram retirados para construção de partes do Vaticano. Quando o texto das
instruções era somente em latim, fazia cuidadosamente a tradução para Martinho. Queria compartilhar a satisfação do conhecimento de todos os detalhes. Assustou-se com a violência do
Vesúvio, admirando-se com a preservação espetacular da cidade
de Pompeia. Catava e colecionava pequenas pedras por todos os
locais que passava. Às vezes comentava com o pai, ressentindo-se
da ausência do seu burro carregador. Também cheirava-as mais
a fundo quando, em determinados ambientes, era-lhe proibido
entrar acompanhado do Breu.
Em Taormina, na Sicília, deslumbrou-se com a vista magnífica das ruínas antigas de teatro romano, tendo como pano de
fundo as águas então tranquilas do mar Jônico. Ao longe, o Etna,
visto à noite, vomitava fogo lentamente. Jean espantou-se com a
escuridão de suas lavas, e acabou também por coletar algumas
amostras para estudos em casa.
No final das contas, o fidalgo que entrara em contato com
investidores e corretores locais, optou por deixar para outra oportunidade a eventual compra de propriedades italianas. Fora aler-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
129
tado que o futuro político da grande península itálica prenunciava-se tortuoso.
Então me pareceu que Tisserand carecia de um bom copo
de água, pois, praticamente sem respirar, havia falado durante longo
período de tempo. Adivinhei! Ele sugeriu a busca de uma garrafa,
mas antes disso, pretendia esticar somente mais um pouco para concluir o que chamou de a primeira parte de sua história. Assim fez.
E disse que, às vezes, não é importante conhecer tudo o que
aconteceu em período de tempo de um ou mais anos. Vale mais
saber os resultados em breves momentos que vivemos, ou escrevemos. Circunstâncias como essas justificam o fato de, nesse
ponto, nos depararmos com a carta de solicitação da entrada de
Jean na Politécnica de Paris!
130
Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
131
XVII
O fidalgo busca informações. A carta para Paris.
A Politécnica de Monge e Carnot
Guéret, 16 de Janeiro de 1809. Exmo. Senhor Professor Monge, Permita-me apresentar-me por mim mesmo. Meu nome é
Jean-François Dissendes de Bogenet e sou irmão de Philippe de
Bogenet e François de La Villate. Eles o têm em alta conta e é,
indiretamente, por meio deles que venho até vossa ilustre presença para uma solicitação. Tenho dois filhos, François, 19 e Jean
Antoine, 17. O primeiro já está encaminhado, e busca elevação
de espírito e mente aí em Paris. É sobre o segundo que pretendo falar-lhe. Meus irmãos estiveram com o senhor na celebração
alusiva à posse do bispo Dubourg como representante da Igreja
de Pedro na região de Limoges. Nela excepcionalmente esteve
inclusive nosso imperador Bonaparte. Bem, o fato é que conversaram sobre possível entrada do meu Jean no quadro de alunos
da Politécnica. Elogiaram-no. É deste tipo de jovem que estamos
carentes, foi resposta dada por Napoleão, acompanhada por sorriso amigável e bilhete para busca de melhores informações. A
orientação foi a de procurar o senhor conde Laplace no Ministério
da Educação. Foi o que fizeram. Mas não deu certo! O referido
estava em reunião de trabalho com certo funcionário do governo
português enviado pelo princípe-regente João. Felizmente, lá um
alto assessor do estado disse-lhes para dirigir-me diretamente ao
senhor. É o que faço. Ele reparara que a parte superior do envelope pardo, que um dos meus irmãos carregava, estava marcada
com selo imperial. Caro professor, não sou afeito a pedido sem
sustentação, assim como tenho conhecimento do rigor com que
Vossa Senhoria conduz atos públicos... O que necessito é previsão
da data dos testes orais e escritos. Há uma agenda nacional para
tanto? O tempo urge para que meu filho Jean faça os estudos pre-
132
Jairo Martins de Souza
paratórios... Em anexo, além de histórico escolar, que demonstra
a excelência do rapaz nos seus estudos secundários, segue depoimento do professor Duchamps da escola pública de Guéret. Ele é
testemunha da excepcionalidade do meu rapaz desde tenra idade.
Antecipadamente agradeço por vossa preciosa intercessão e
rápido envio do que lhe solicito. Amistosamente, Jean-François
Dissandes de Bogenet.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
PARTE 2
Paris
133
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Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
135
I
Onde se explica o porquê de Jean e Martinho terem se
instalado na casa de Septimus e Lucillia Pius
Não. Não estou ficando fora do meu perfeito juízo, Tisserand alertou. Nem batendo martelo na cabeça de prego já perfeitamente
alojado na madeira. Já disse, mas insisto que, dependendo da
situação, não é impositivo saber em detalhes o que aconteceu
antes da ocorrência de determinado fato. Vale mais o resultado
e o momento presente. A notícia do jornal disse que o carroceiro
esfaqueou um torcedor de outro clube à custa de simples troca de
ofensas. O homem morreu. O agressor foi linchado por populares. Nada mais interessa!
Não é razão suficiente para convencê-lo? Então troco mais
ainda em miúdos, lembrando que o próprio Brésil discute até os
dias de hoje se Capitu traiu ou não o marido Bentinho. Discute-se
o possível resultado. Mas não diz das razões que a poderiam ter
levado aos braços do, por final, afogado Escobar!
Reconheço, Tisserand contemporizou, há casos em que não
pode ser desta forma. Uma primeira consulta médica é um exemplo. Por conveniência da instrução do próprio ato clínico, o profissional teria que ouvir toda a história do paciente até o aparecimento do sintoma e doença. No entanto isso não acontece. O
relato do doente é usualmente interrompido num tempo médio
de dezoito segundos!
Então é de forma bastante breve que, a despeito da importância do assunto, abordarei o porquê de encontrarmos Jean Antoine, Martinho e Kostas em vasta casa de dois pisos na Rua Saint
Jacques em pleno Quartier Latin de Paris. Pode ocorrer mal-entendido, mas com economia de palavras, certamente evito maiores constrangimentos. Os proprietários eram Septimus e Lucillia
Pius. A data é algum dia de julho de 1809. Algo acontecera, pois
136
Jairo Martins de Souza
a proposta inicial é a de que pelo menos Jean e Martinho fossem
morar com Guy e Sophia de Lavillatte juntamente com François
que, sabemos, já morava na capital.
Diante disso, mon ami, faz-se necessário tomar conhecimento
de que Sophia adoecera, de um momento para outro, de mal
nos pulmões que havia se tornado crônico. Não curava. Não era
questão de vida ou morte, mas acabara por levá-la a estado de
tosse constante e fáceis crises de irritabilidade. É por tal sensação contínua de desconforto que ela, por toda a vida, pessoa de
modos dóceis e receptivos, começou a implicar com tudo e com
todos. Até com casal de rouxinóis que costumava ficar em árvore
próxima à janela do seu quarto. Temeroso de que, com a chegada
dos novos moradores, a saúde da mulher fosse se complicar, e até
colocar em risco a vida harmoniosa do casal, Guy de Lavillatte
se antecipou. E de fato colocou os joelhos no chão. E orou. Orou
muito. Após poucos dias veio-lhe a resposta em sonhos, reforçada
por conselho do pároco da diocese à qual pertencia. Caminhassem as nuvens para a direção traçada, não teria condições de
prever dias de céu claro para o seu lar.
Portanto, entre outras iniciativas, adiantou carta ao fidalgo
Monlevade relatando-lhe o real risco que poderia se colocar caso
fosse concretizado o combinado. O fidalgo compreendeu. Não
poderia, nem por sonho, ser agente e provocar quaisquer possíveis desentendimentos ao casal a quem tanto queria bem. Coloquei-me na sua posição, e a partir daí posso garantir-lhe que não
fico nem um pouco chateado, caro Guy. Tenho consciência das
dificuldades de se ter debaixo do mesmo teto amigos ou parentes que, a despeito de todo desejo de adaptação, trazem consigo
hábito e modo de vida diferentes. Isso sem considerar a perda de
privacidade. Há tempo hábil para outras soluções. Não tão boas,
admito, mas saudáveis o suficiente. O que não pode ser feito,
não pode ser feito! Já lhe devo em quantidade suficiente pela
recepção amorosa que teve o nosso querido François. Foi o que
resumidamente respondeu ao primo.
E mandou a carta. Eram parentes, sempre foram amigos, e
não restou mágoa quanto ao assunto. O fidalgo não mentira. Sabia ter alternativa ainda a explorar e, para aplicá-la, aguardaria
um pouco mais. Mesmo porque não havia recebido retorno da
carta enviada à direção da Politécnica e do seu diretor Monge.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
137
Asseguro-lhe, Tisserand disse, enquanto olhava-me diretamente nos olhos, que o vigário geral não rasgou folhas de suas
anotações. Não havia motivo para tanto. Mas o tal processo durou meses, e é uma pena que aqui tenha que ser reduzido a algumas miseráveis linhas.
A Escola de Trabalhos Públicos nasceu a partir de esforços
de figuras de peso saídas dos quadros da inteligentsia francesa
dos finais dos setecentos. Foi tudo muito rápido. Em dezembro de
1794, abriu as portas para seus quatrocentos primeiros alunos de
níveis totalmente diferentes. A grade de ensino e o fardamento os
equalizaria. Um ano depois passou a ser chamada de Polytéchnique, Politécnica.
Já disse, Tisserand prosseguiu com ar de quem pede desculpas, que alguns iluminados engendraram a sua fundação. Volto
a repetir porque, entre eles, estava o famosíssimo Monge, autor
da bíblica Arte de Fabricação dos Canhões. E avisou. Vou me estender um pouco sobre esse homem, pois Gaspard Monge foi um
ídolo não somente para Jean, como também para todos os demais politécnicos. Há anos passados, ensinava a chamada Teoria
das Fortificações em outra escola militar. A Fortificações consistia
em projetar métodos de defesa para que nada ficasse exposto ao
fogo direto do inimigo. Isso gerava esforços aritméticos intermináveis. Até antes de Monge... este homem veio ao mundo com o
dom da simplificação. Eliminou os tais cálculos, daí criando bases
para elaboração da então intrigante geometria descritiva. O tridimensional podia ser visto em um só plano. Com um só desenho
o trajeto de um projétil de canhão agora podia ser representado,
com todas as informações, em uma simples folha de papel. Soldados inimigos não conseguiriam entender de pronto os projetos de
armas francesas desenhadas com a nova técnica. É por isso que
foi mantida a sete chaves durante quinze anos. Somente veio a
público em 1794 que, como lhe disse, foi o próprio de inauguração da Polytéchnique. A chamada geometria descritiva tornou-se
disciplina da grade curricular e foi uma das paixões de Jean durante o período em que esteve envolvido com engenharia e seus
desdobramentos civis e militares. Monge morreu, em 1818, desprezado pelo renascido regime dos Bourbon. Reforço que, além
dele, outros grandes nomes da ciência, como Fourcroy, o médico
que ajudou a criar os nomes da química tal como conhecidos ainda hoje, foram fortes colaboradores da Polytéchnique.
138
Jairo Martins de Souza
E também não posso omitir algo da verdade da época, Tisserand prosseguiu, pois de acordo com documentos das chancelarias estrangeiras, datados de janeiro do mesmo ano em que a geometria descritiva foi explicada ao mundo, ficava bem claro que
a recém-declarada república francesa tinha inimigos fortíssimos
dentro e fora de suas terras. Os reis europeus não viam com bons
olhos o novo Estado francês, que tinha um rei fraco e submisso
aos excessos do Terror. O clima era de desespero. O país precisava se defender e faltava-lhe corpo de engenheiros militares para
construção de fortes ao longo de suas fronteiras. E fabricação de
armas. Então, em março daquele ano, o Comitê de Saúde fez
criar comissão para arquitetar as bases do funcionamento de uma
nova escola. E que acabou sendo, em termos finais, a Politécnica
da qual já disse.
Escola de altíssimo nível que tinha não somente caráter militar, como também método de ensino conformado para gerar funcionários dedicados ao Estado em todos os seus segmentos. Das
armas e da burocracia. Escola eclética. Na parte básica estudarse-ia o Direito, as Ciências Naturais, a Arquitetura, a Ciência, a
economia Política, a economia Florestal, a Mineralogia, o Paisagismo, enfim, tudo que fosse de proveito para formação integral
do engenheiro militar. A princípio o local das aulas foi determinado como o Palácio Bourbon, Palais-Bourbon. Os professores não
deveriam ter outras credenciais senão a de estar entre os maiores nomes da ciência da época. Grandes cérebros ministrariam
aulas na instituição. Outros seriam formados na própria. Fábrica
de gênios que, por princípio, não seria exclusiva para a nobreza.
Deveria ser obrigatoriamente democrática, de acordo com os caminhos da equalité, uma das cláusulas pétreas da Revolução. A
seleção seria por meio de concurso aplicado em todas as regiões
da França. Dificílima!
A Polytéchnique era o sonho de Jean. Ela era algo, Tisserand
disse, guardadas as devidas proporções, como o respeitadíssimo
ITA que vocês têm aqui no Brasil. Uma escola militar de referência
na engenharia e na disciplina.
E é por ser assim, e à parte a decisiva troca de correspondências entre o pai e o tio Lavillatte, que Jean prosseguia vida
de estudos, trabalho e pesquisas. Preparava-se. Não deixaria de
seguir para a Politécnica. O fato de ser dirigida por militares e
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
139
seus alunos fazerem parte de corpo de reserva das forças armadas
não lhe trazia qualquer constrangimento. Preparava-se com afinco para os exames de admissão que selecionaria a elite dos alunos
do país. A perspectiva de envergar o uniforme de gala com todos
os paramentos militares fazia-o sorrir discretamente.
E enquanto contava os meses para iniciar arrumação de baú
de mudança para Paris, os domínios de Monlevade funcionavam
como seu laboratório avançado de campo. Procurava ligar o útil
ao agradável. Adiantava soluções para dores de cabeça simples
do quotidiano e, para tanto, procurando bases em matérias futuras que, em breves dias, estaria desenvolvendo na Politécnica.
Quando alguns serviçais se queixaram da quantidade de ratos que ameaçavam as colheitas, ele acalmou-os dizendo que rapidamente amenizaria o transtorno. Felicité não aplaudira a função que lhe fora delegada pelo fidalgo. Não lhe agradava ver o
filho ligado a tarefas menores em tempo que poderia estar sendo
usado para estudos. Ledo engano.
Bem, não é que para dar cabo da missão o rapaz não usasse
métodos arcaicos. Entretanto procurava desenvolver outros que
lhe proporcionassem maior eficácia. Pedradas. Pedradas não lhe
agradavam. Não obstante ter destreza e pontaria de atirador de
elite é morte doída até mesmo para um roedor. Foi aí que aplicou
métodos estatísticos, e os resultados deram a ele o número correto
da população de gatos. Não foi suficiente. Mas foi nova oportunidade para vazar seu notável intelecto. Talvez até perdendo-se
em excessos ao que hoje, em termos de engenharia, chamamos
qualidade necessária. Ah, o serviço de um tatu não pode ser substituído por perfuratriz automática. Assim o jovem talento carecia
de refino a ser futuramente encontrado na Politécnica. O fato é
que desenvolveu algumas ratoeiras com molas mais fortes, procurando adaptar princípios bem sucedidos e utilizados no projeto da
letal guilhotina. Não pensem ter sido tal tarefa fácil! Já se envolveram com desenhos de peças e cálculos de forças armazenadas
em molas, vantagens mecânicas, contrapesos, inércias, etc.? Com
elas, num piscar de olhos, aniquilava ratazanas de porte. Mas a
custo altíssimo por morte!
140
Jairo Martins de Souza
Na adolescência do Jean de Monlevade ainda não existia a
fotografia. A silhueta era um tipo de representação em que apenas o perfil das pessoas era desenhado em papel preto. Depois se
recortava. Na mostrada acima, baseado nas descrições de Tisserand, imaginei a figura do rapazinho Jean conversando com o fidalgo, seu pai, sobre intenção de projeto de ratoeira que planejava
colocar nos celeiros do castelo da família. Observar a postura do
pai com a perna direita avançada. Com isso reduzia dor causada
por antigo ferimento de guerra.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
141
Não tenho dúvidas, Tisserand comentou, de que não seriam
bem sucedidas comercialmente pelo excesso de polias, mecanismos e mão de obra para fabricação. Tanto é assim que, mesmo
com todos os seus esforços, as armadilhas não eram suficientes
para suprir a demanda, assim como a quantidade de queijo a ser
usado como isca. Até chegar ao Quartier Latin e a Septimus e
Lucillia Pius, Jean ainda criou várias outras melhorias na vida do
castelo. A começar pelas articulações das carroças e as peças de
madeira para prender animais aos arados, assim como ferramentas que atendiam ao pessoal. Imaginou também irrigação à base
de rodas hidráulicas.
Mas foi quando estava em vias de remediar uso dos dejetos
das pocilgas que, finalmente, vieram as provas escritas de admissão nacional para a Politécnica. A comissão de selecionadores esteve em todo o país, inclusive em Guéret. Para os testes orais e a
entrevista final, Jean foi convidado a comparecer a Paris. Martinho
o acompanharia e, para tanto, não era mais somente Martinho.
Era Martin Eugène de Monlevade! O fidalgo, após meses de
sonhos e lembranças da oportunidade em que conhecera o jovem abandonado, decidiu emprestar-lhe o nome. Era sua cota de
participação que julgava ter com a sociedade que lhe proporcionara tantos benefícios e concessões. Conversou com o juiz de paz
da região, daí surgiu documento em que assumia atrasadamente
a paternidade do menino, mas sem direitos de herança e outros
compromissos formais. Martinho se alegrou. Não porque iria se
esquecer dos pais de sangue. Não. Desses nunca se esqueceria.
Mas o nome Monlevade abrir-lhe-ia outras oportunidades para
o mundo. Foi já nessa condição que juntos dormiram a primeira
noite em Paris no quarto de François. A adoentada tia Lavillatte
estava fora por alguns dias e a visita temporária dos dois não
traria transtornos para o marido. Os irmãos mataram saudades,
por meio de horas de conversação madrugada adentro. A luz de
lamparina contemplava-os quando finalmente cediam às pescoçadas e ao sono pesado.
O Conde de Péluse era, em suas origens já distantes, filho de
um mascate amolador de facas. Tratava-se nada mais nada menos
que o professor Gaspard Monge. A carta que o fidalgo Monlevade
lhe enviara meses atrás não havia rendido nada de prático. Afora
a cortesia da resposta do homem que parece ter sido o único pelo
142
Jairo Martins de Souza
qual Napoleão teve genuína amizade, o conteúdo afirmava que
todos os franceses teriam chances iguais de acesso à Politécnica.
Asseguro-lhe, caro Monlevade, que seu estimado Jean não será
tratado como exceção. Basta aguardar edital público previsto...
Amistosamente, Gaspard Monge.
Não podia ter sido melhor. Por várias razões. A primeira foi
a de Jean ter sido aprovado nacionalmente no quinquagésimosegundo lugar. Já a impossibilidade de alojamento definitivo com
os parentes Lavillatte fez com que os Monlevade recorressem à
própria Politécnica. Considerando-se os altos interesses nacionais,
comitês do governo percorriam as casas próximas ao Palais Bourbon, convocando os moradores a receber os jovens estudantes
como se parentes fossem.
Uma doméstica não pode se dedicar totalmente ao trabalho
na casa de madame quando, em casa, os filhos padecem por falta
de leite e pão. Assim o governo definiu, Tisserand esclareceu –
obviamente, mudando o que deve ser mudado – que, na Politécnica, os estudantes não poderiam sentir aflições por falta de dinheiro. A diretoria estabeleceu que os noviços recebessem ajuda
de custo de 15 sous por dia. Era a remuneração de um atirador de
canhão de primeira classe. No fim de 12 meses o salário total deveria chegar a um mínimo de 900 francos. Além disso, deveriam
ter hospedagem gratuita de boa qualidade às vezes ofertada pela
própria comunidade.
Foi por isso que o importante diretor de estudos da Politécnica, Gardeur-Lebrun, esteve na casa de Septimus e Lucillia. Acompanhou-o monsieur Chaussier, o médico inspetor de residências
de candidatos a alunos. A visita de inspeção foi facilitada pelo fato
do dono da casa ter sido um veterano professor de matemática
no College de France. Em 1794, os Pius, certamente um casal de
patriotas que, infelizmente, tinha perdido três filhos na campanha
da invasão da cidade holandesa de Maastricht, haviam se colocado novamente à disposição do Estado. Como consolo e incentivo
bastante para prosseguir vivendo, restaram-lhes outros três que
não mais ali moravam. A habitação e os proprietários foram aprovados com louvor. O conforto disponível superava as demandas
espartanas listadas na papelada da instituição. Como vimos, foi
para onde Jean e Martinho foram encaminhados.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
143
E quanto aos estudos de Martinho? Indaguei, abruptamente,
a Tisserand. Foi para o Lycée Napoléon, Tisserand respondeume. É escola também famosíssima pela qualidade de ensino. Sua
edificação principal é magnífica! Aliás, e muito a propósito, não
se pode compreender a arquitetura de hoje daquele liceu sem
conhecer as bases de sua história. Ela permanece escondida nas
celas da milenar abadia de Santa Genoveva, e que há séculos foi
estabelecida no Quartier Latin. O prédio do Lycée Napoléon fora
propriedade da Igreja: mais uma das que estiveram sequestradas
pelos comandantes da revolução.
Pois suas instalações foram usadas como sede da Escola Central do Panteão. Ela deveria fazer, e fez, parte de plano para rede de
ensino secundário que, na ocasião, deveria ser implantado em todo
o país. Inaugurada em 1796, foi a primeira delas, e tinha o perfil
que se encaixava sob medida para jovens franceses como Martinho.
Aí está a resposta completa à pergunta que eu lhe fizera. A comissão do governo concordou em admiti-lo naquela escola Central,
e o jovem, relativamente receoso (secretamente temia não dar conta
do recado), aceitou o desafio proposto pelo fidalgo Monlevade.
Foi por isso que também teve a felicidade de ficar com Jean na
casa dos Pius. Localização privilegiada. De lá divisavam bem próximas a Praça do Panthéon, a austera universidade Sorbonne, o Collège de France... E tudo a poucas quadras de algumas pontes do Sena.
Por tais circunstâncias é que dois meses antes do início das aulas Jean e Martinho – um aos 18, o outro aos 15 anos – podiam ser
vistos caminhando incansavelmente pelas ruas do Quartier Latin.
De Kostas, que era, estão lembrados, em termos oficiais, Kostas Kostas Zavoudakis, falo depois. É história longa...
Os primeiros dias foram de total encantamento. Estavam em
agosto de 1809 e Paris continuava efervescendo não somente
com o andamento das guerras Napoleônicas, como também com
outros acontecimentos que vinham mudando precipitadamente a
vida social do país. Ainda em Monlevade, Jean havia percebido,
e sentira as mensagens dos sinais da fumaça. Agora me encontro
exatamente onde o fogo queima. Nas praças e ruas do quarteirão
latino o povo discutia acaloradamente. Estudantes e professores
conversavam excitados em latim. Soldados, burocratas, ministros e
oficiais cruzavam aquelas ruas quase sempre apressados. O jovem
de Guéret estava absolutamente fascinado com sua vizinhança.
144
Jairo Martins de Souza
No antigo platô da Praça do Panteão, não se cansava de ver
a igreja que fora construída para homenagear Santa Genoveva,
Sainte-Geneviève, a padroeira de Paris. Lembrava-se das chaminés das fundições de Mondon, a algumas dezenas de quilômetros
de Guéret. Imaginava se Santa Genoveva poderia ter a alma de
suas paredes totalmente construída de ferro. Ele é eterno quando
colocado dentro de algo que o protege do ar atmosférico. E é
mais leve que pedras... É bem verdade que a Revolução transformara a catedral, por decreto, em ambiente para enterrar heróis
nacionais de seu interesse. Mas não destruíra nada de sua grandeza arquitetônica. Não importando sua destinação, o edifício foi
o primeiro grande monumento em estilo neoclássico. De seu alto
vislumbra-se toda Paris.
Foi daí que Tisserand lembrou-me que, por várias vezes, já tinha
dito sobre a execrável atitude de confisco de bens da Igreja Católica.
E que era por isso que as ossadas de Voltaire e Rousseau já estavam
enterradas nos domínios de Sainte-Geneviève nos dias em que Jean
transferiu-se para Paris. E que pelo mesmo motivo era usada para
outros fins. Bem, antes de fechar o assunto, não podia deixar de
registrar novamente o que algumas pessoas talvez não saibam.
Pois, de certa forma, já mencionara que foi no extremo superior da cúpula da mesma Sainte-Geneviève, digo, do Panteão,
que, anos mais tarde, em 1851, o habilidoso leigo Léon Foucault
fixou seu pêndulo e, finalmente, deu por encerrada a eterna discussão se a Terra movia ou não... Sim. Ela se move. Foi com pouquíssima ajuda que montou um verdadeiro espetáculo científico.
Digno de figurar em quaisquer dos shows do Cirque de Soleil!
Tisserand acrescentou. Tenho orgulho desse patrício! O já morto
Galileu ser-lhe-ia profundamente grato. Não era um herege, um
bruxo, o seu E Pur Si Muove,... Bem, não havia como a Igreja
prosseguir dando murros em ponta de faca: o pior cego é o que
não quer ver.
Então, como vê, Tisserand prosseguiu, desde séculos passados podia-se gastar muito tempo, e de diversas formas, apreciando o Panteão francês e seus segredos. Portanto não é novidade
que Jean, às vezes acompanhado por Martinho, passasse horas
observando seus mistérios e refletindo sobre a grandeza das vidas
dos homens que repousavam em suas catacumbas. A lembrança
de Angéline ia se esvaziando lentamente dos seus pensamentos.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
145
II
As razões dos temores de Colbert quanto a Jean e Angéline.
O confessor Ribérry
Desde a ocasião festiva em que estivera no castelo Bogenet, em
abril de 1805, o médico Colbert não chegava a um acordo consigo mesmo sobre um possível futuro casamento entre sua Angéline e o filho do fidalgo Monlevade. Na ocasião, disfarçadamente, observou-os com cuidado. Inclusive, estão recordados, a
distância do alto da torre de Bogenet. O moço fazia a filha sorrir.
Era um bom sinal, mas achava que... Colbert, por tudo que ouvira
sobre o jovem Monlevade, acreditava que em breve ele escaparia pelas estrelas. Com inteligência privilegiada, era decididamente
um homem do mundo. Achava difícil, com todas as perspectivas e
apostas que os habitantes da cidade faziam dele, que pudesse vir a
sentar praça e simplesmente ser um pai de família que viesse para
casa após expediente, cuidasse dos filhos e desse atenção à mulher.
Angéline era delicada. As mulheres de sua família eram educadas para serem paparicadas. Algumas até mesmo tinham grave
tendência à depressão. Choraria baixinho noite adentro até ceder
abatida pelo cansaço. Não suportaria aguardar o marido em casa
e, quando esse chegasse, fosse se dedicar a estudos e experiências
queimando lamparinas ainda que os galos estivessem cantando o
alvorecer. Conhecia a filha. Sofreria dor física tal como estivesse
sendo picada nos cotovelos por enxame de abelhas.
Era partidário das famílias modernas em que o pai ajudava a mulher a trocar panos molhados dos filhos, a jogar farinha
de trigo em suas assaduras, a socorrê-los quando chorassem nas
madrugadas. Em sã consciência não deveria ter qualquer tipo de
restrição ao rapaz. Era moço limpo. Asseado. Instruído e filho de
fidalgo. Sujeito de futuro. Tinha tudo para dar certo e ganhar com
sobras para alimentar bem mulher e filhos.
146
Jairo Martins de Souza
Tais circunstâncias seriam suficientes para Angéline? Seria a
paixão de menino amadurecida em amor de homem e pai de
família. Hoje é fácil amá-la. Minha filha é linda e desejável. Mas,
e quando estiver desgastada pelos anos e carregada de filhos que
a família Dissandes de Bogenet era pródiga em gerar?
Teria tempo disponível para relaxadamente tomar taças de
vinho de qualidade com o sogro? A vontade de Colbert era acompanhar a filha e os, se Deus assim o desejasse, possíveis netos.
Não fosse assim, provavelmente tornar-se-ia um velho solitário: o
que lhe seria custoso, pois não tinha queda para vida de ermitão.
Com todo esse peso no seu imaginário, quando muito angustiado,
buscava consolo nas palavras de Mateus no seu dito evangelho da
Igreja, não vos preocupeis com o amanhã, basta a cada dia o seu
próprio mal. Conversara superficialmente com o abade Ribérry
sobre o assunto. Não o fizera a título de segredo de confessionário.
O abade tentou tranquilizá-lo, mas não deixou de dar-lhe razão quanto à índole expedicionária do rapaz. O desejo de pesquisar novas terras e seus minerais. Ambos lembraram-se do seu
retorno de viagem ao país da bota, à Itália, que fizera com o pai.
Platini e Fontaine diziam a todos os clientes do entusiasmo que
havia gerado em Jean para conhecimento de outros novos mundos. Que pai seria esse para seus netos? Apesar das ponderações
do abade Ribérry, o médico, à medida que a conversa avançava
ia criando quimeras e barreiras absolutamente intransponíveis
para os dois jovens. Fora pai que zelara tal como se uma mãe fosse, não apenas quando esteve sem o devido anteparo da mulher,
mas porque realmente pensava que casamento e família deviam
agregar todos aqueles valores e comportamento.
É por isso que sua alma ficava intranquila quando pensava
no assunto. A conversa com o abade não lhe trouxera consolo.
Seguiria, por tempo que só Deus sabe quanto, com suas ansiedades. Pois outras havia. A que mais lhe incomodava, isso ele não
citou a Ribérry, é que ainda não havia descartado a ideia de sair
pelo mundo afora. O próprio pai de Jean, o fidalgo Monlevade,
fora portador de proposta do governo português. Precisaria pensar mais sobre o assunto.
Quanto aos jovens, com a partida de Jean para Paris, Colbert
acreditou que a situação realmente se aclarara. Bem, ainda que
o rapaz se mantivesse em Guéret, eles não namoravam de forma
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
147
oficial e, agora, com a distância... o rapaz formalmente não solicitara seu consentimento. Isso eventualmente o chateava. Para ele
o fato era mais que um deslize, qualificava-o como uma verdadeira ousadia. Como se atrevia a tanto?
A vida às vezes nos apresenta algumas vicissitudes que mal
conhecemos, mas que podem se tornar algo fundamental para a
felicidade de determinados períodos de nossa existência,Tisserand
comentou.
Pequenos mal-entendidos podem desaparecer com a simples
menção, por um terceiro, de outra circunstância totalmente alheia
aos fatos. Veja só o caso de Colbert e o jovem Monlevade que,
agora, contava 18 anos completos. O médico era homem de caráter exemplar. O moço também. Por ausência da mera formalidade, da qual já dissemos, tinham relação totalmente envenenada pelos ciúmes e pela formação do mais velho. Bastava que se
lembrasse do tal fato para Colbert tornar-se totalmente envolvido
e angustiado com seu estado. No fundo sentia estar injustiçando
o rapaz e sofria com a ingestão do seu próprio fel.
O jovem tinha o futuro sogro em alta conta. Respeitava-o.
Não sabia ser causador do desatino. A situação pedia a presença
de um mediador: foi o que incidentalmente aconteceu!
Pois dias antes de partir para Paris, Jean foi à igreja, fora dos
horários de presença maciça de público, e pediu ao abade Ribérry tempo especial para atendê-lo no confessionário. Ribérry titubeou. Pensou pedir que o jovem voltasse outro dia, mas acabou
cedendo ao olhar suplicante do amigo do seu protegido Martinho.
O padre Chirac, titular da igreja, estava em viagem especial a
Roma e Ribérry cobria-lhe temporariamente as funções eclesiásticas. Andava exausto, dormia pouco, mas encarava o fato como
mais uma missão de rotina. Eram muitos os órfãos e famílias necessitadas espalhados pela região, enfim, enquanto descansava,
carregava pedras!
Então o abade pediu-lhe para aguardar alguns minutos, pois
tinha recebido aviso de visita urgente na Sacristia. Poderia ser
caso de vida ou morte. Ia atendê-lo logo após. Enquanto aguardava, Jean sentou-se em banco da igreja, próximo ao altar e logo
caiu absorto em pensamentos. Não. Não meditava sobre o assunto que o trouxera até Ribérry e do qual ficaremos cientes em
segundos. Cada coisa a tempo certo.
148
Jairo Martins de Souza
Pois foi mirando o lado interno do domo da igreja que deu
asas à imaginação quanto às dificuldades que provavelmente os
construtores tiveram para fechar com sucesso o seu arredondado. Os andaimes devem ter sido compostos de intrincada floresta
de paus. No acabamento final do fechamento da calota esférica
da abóbada os pedreiros devem ter trabalhado absolutamente
deitados. Quantos não devem ter se despencado daqueles 60
metros de altura? Quase a da pirâmide de Teotihuacán, que vira
furtivamente explicada em livro de heresias do acervo de Ribérry!
Novamente desenhos de estruturas de ferros para os andaimes
vieram-lhe à cabeça. Ferros com perfis diferentes. Finos, mas com
encaixes e montagens físicas que lhes dessem resistência equivalente a peças mais grossas.
Monlevade respirava o desconhecido. Respostas brotavam
em sua cabeça como manada de bois tocada por disparo de mosquete graúdo! Mas não estava absorto o suficiente para deixar
de perceber que o pai de Angéline havia rapidamente saído por
porta lateral da sacristia em direção ao adro. Vestia capote largo e
foi seu ato de ajuste de colocação do chapéu que propiciou visão
privilegiada do perfil do seu rosto. Parecia preocupado. A luz que
entrava inclinada por um dos belos vitrais de alabastro instalado
na parede lateral da igreja ajudou Jean a distinguir tal pormenor.
Estranho... Ele é o motivo de minha conversa com o abade...
Foram para o confessionário. Afora uma ou outra interjeição
que visava encorajar o andamento do relato, o abade ouviu silenciosamente toda a exposição do rapaz. Jean disse-lhe de todos os seus
sonhos, a maior parte deles o abade já sabia ou deduzira, mas o ponto chave se relacionava com seus projetos pessoais com Angéline.
Não pedira licença nem ao seu pai, o fidalgo Monlevade;
nem a Colbert, o pai da moça. Admitia que, para qualquer pretensão que tivesse quanto a namoro, ser-lhe-ia vital a aceitação de
ambos. A razão de sua angústia era simples. Não se sentia ainda
preparado para tal diálogo. O que tinha a ofertar além de sonhos?
É claro que seria herdeiro de várias propriedades, o pai era um
rico fidalgo... mas isso para ele não era relevante. Construir o futuro com suas próprias mãos e méritos era algo capital em seus
propósitos de vida.
Quantas vezes hesitara em conversar com o fidalgo a respeito! Quantas outras estivera nas redondezas da casa de Colbert,
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
149
vacilando se batia à sua porta para conversa frente a frente... Que
promessas iria fazer? E se o médico lhe perguntasse tal como acontecera com filho de outro fidalgo? O que você faria, meu jovem,
caso estivesse com minha filha, e ambos fossem abordados por
um homicida que portasse um punhal? Daria a vida por ela ou
gritaria por socorro a um policial que estivesse nas proximidades?
O rapaz respondera que chamaria a polícia, pois julgava mais
competente para intervir na situação. O pai da moça calmamente
solicitou-lhe sair de sua casa. Jamais permitiria que um covarde
se casasse com a filha. Melhor ficasse para sempre sob guarda dos
irmãos e da família e que, por ela, seguramente, dariam a vida.
Jean de Monlevade fora ensinado a cumprir sempre sua palavra. Não poderia assumir compromisso de data firme. Inadiável.
A agenda que lhe era possível dizer, com prazo fixo de encerramento, era a da Politécnica. Depois disso tudo seria imprevisível.
E o desejo de aplicar o que iria aprender em terras distantes?
Isso fazia parte dos seus planos desde a infância enquanto ouvia
as histórias de Platini, ou viajava nas gravuras dos livros do fidalgo. A Politécnica é de caráter às vezes assustadoramente militar
e talvez não fosse a ideal para quem quer sossego e carinho da
família. Nunca se sabe que campanhas e ideias mais passam pela
cabeça de Napoleão. Ah, e a lembrança das insistentes recomendações de Platini. Viajar é a ruína da felicidade, Jean. Não é que
não fizesse tudo de novo desde o começo, mas foi causa principal
de ter perdido mulher e família. E, confesso, algumas tardes custame ficar aqui vendendo linguiças e pesos de mercadorias.
O quadro era diferente, mas Jean percebia que, caso não se
cuidasse, poderia viver de forma inarredável a mesma sensação.
Era inquieto. Como Platini. Mas julgava amar a moça! E é com
ela que teria gosto em constituir futura família.
É por todo esse conjunto de dúvidas, afirmações e divagações que podemos voltar ao confessionário da igreja do padre
Ribérry. Ele havia atendido ao fiel que, em especial, o convocara
na sacristia, e Jean já estava terminando exposição de suas angústias. Padre, estou confuso! O que me dizes para fazer, enfim,
para aclarar minhas ideias e achar caminho seguro para solução
dos meus conflitos?
Meu filho, Ribérry apressadamente disse-lhe, enquanto se levantava. Por favor, aguarde um minuto. Vou refletir o que dizer-
150
Jairo Martins de Souza
lhe, enquanto alivio a bexiga e o ventre na privada da sacristia.
Não demoro... E não demorou.
A simples sensação de desafogo progressivo magicamente
fizera-lhe ter tempo suficiente para retrucar o que lhe confidenciara o rapaz. Como também divagar sobre outras coisas que o
atormentavam ultimamente. Repreendera-se porque, a princípio,
estivera um tanto quanto impaciente e quisera despachar logo
o rapazinho Monlevade. Também ultimamente andava sobrecarregado com múltiplas funções. Descobrira por meio de algumas
fiéis que o padre a quem estava substituindo, e a quem muito
apreciava, andara saindo dos trilhos. Cedera aos apelos de instâncias da carne com uma das paroquianas cujo marido era um
lavrador dado ao álcool e a brigas. E a Revolução que prossegue?
Preferia que as coisas reinassem tranquilas... como antes. A fome e
as carências emocionais e de dinheiro sempre existiram e continuarão existindo. Cabe aos religiosos a tarefa de amenizá-las e levar
consolo às almas que delas padecem. Nem que seja para ser apedrejado depois. Não é isto que a prática mostra? Ah, caro amigo,
se quer arranjar um inimigo, ajuda alguém! Bem, decerto há casos
que nem é preciso que o socorro tenha ocorrido. Ele próprio tinha
experiência disso dentro do seu próprio rebanho.
E a relatara a Colbert em entrevista que encerrara faz pouco.
O senhor, mon ami, não estará perdendo tempo em ouvi-la...
Não me disse o caseiro Materazzi que um dos seus sobrinhos
me odeia e que, inclusive, tem divulgado que tenho até mesmo
partes com o demônio? Na ocasião fiquei surpreendido! E retruquei-lhe veementemente dizendo não entender tal sentimento de
animosidade. Aí foi ele que se mostrou surpreso, e perguntou-me
o porquê da força da minha reação. Lembrou-me ser a ingratidão
sentimento comum entre os seus. Foi daí que, já mais calmo, caro
Colbert, expliquei-lhe não ter sido isso que havia motivado a virulência de minha resposta. Minha indignação, disse-lhe, podia ser
estranhamente creditada ao fato de nunca ter prestado qualquer
tipo de amparo ao seu tal sobrinho. Nunca o rapaz havia repousado sob o calor das minhas cobertas. Nem secado seu corpo com
minhas toalhas, ou se deliciado com os sabores do meu fogão,
ou da minha adega, enfim, nem ele, nem quaisquer dos seus familiares (exceto o próprio Materazzi) e amigos sequer passaram
próximos ou desfrutaram do amor do orfanato que dirijo!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
151
Materazzi, a princípio, ouviu-me intrigado. E, passada fração
de segundos, riu gostosamente! E disse-me que, de sua parte, eu
nunca ouviria palavras tão irresponsáveis como as do parente.
Ser-me-ia sempre grato por ter ajudado a si e a seus dependentes.
Jamais sujaria o prato em que estava comendo!
Bem, confesso, doutor Colbert, além deste raro ato de dignidade do aborrecido Materazzi, há outras belas exceções! Há casos
em que a gratidão genuína prevalece com muito mais intensidade. Estrelas que brilham solitariamente em noites escuras.
Veja só o que acontece com o garoto Martinho. Mesmo que
na realidade tenha feito muito pouco por ele, o rapazinho não
se cansa de espalhar sua gratidão aos quatro ventos. Muito mais
ainda quando diz do fidalgo Jean-François, bem, ele faz por merecer e está praticamente pronto para rumar com destino a Paris.
Lá a injustiça tem andado a solta. Mas não nos ensinou Göethe
que os erros do Estado são menos prejudiciais aos homens que a
desordem nas ruas?
E foi aí que se lembrou que, faz pouco, o médico Colbert fê-lo
ficar angustiado a troco de problemas diretamente envolvidos com
o moço que o aguardava. Ninharias. O moço não bebe. Não fuma.
É católico... a mágica estaria no encaminhamento adequado da
solução. O rapaz disse-lhe repetidamente, padre, tenho dúvidas...
Neste ponto, Tisserand disse, o abade lembrou-se que até
mesmo Judas fora condescendente nesses casos, e dissera em
sua palavra ‘apiedai-vos dos que têm dúvidas’. Deveria ser duro
com Monlevade, chamando-o energicamente à responsabilidade
quanto aos danos futuros que poderia causar à filha de Colbert?
Sim, Jean disse em voz baixa, aprofundando ligeiramente os
lábios entremeio à janelinha feita com treliças de madeira que
separavam o seu rosto da presença do abade. O abade havia lhe
perguntado se estava preparado para prosseguir. Um tanto quanto intrigado, Jean de Monlevade observou que o confessor não
mais o via de frente, pois havia se posicionado de tal forma que
seu ouvido direito captasse diretamente a sua fala.
Foi nessa posição que Ribérry reiniciou o sacramento de
forma um tanto inusitada para o rapaz. Disse-lhe que Deus era
único. É tão único que para reinar não precisa existir. É a única
certeza que o cristão deve ter: o resto é o resto. Você, Jean, como
cristão, e com sua juventude, tem não somente o dever como
152
Jairo Martins de Souza
também o direito de sentir tudo e todas as dúvidas que relatou
neste confessionário. Todas elas são pertinentes, mas não devem
dar bases a sofrimento. O ponto é que se não tem certeza em
priorizar a vida caseira, domiciliar, com apoio vinte e quatro horas
por dia à sua futura esposa, não vá conversar com Colbert. Ele
gosta de você. Admira-o. Mas arrisco-me a dizer que não seria
pior que você arreasse um bom cavalo e fugisse levando a moça
na garupa. Colbert sabe de todos os seus predicados, mas é radical
naquele ponto. Foi o que me disse há pouco. Não me sinto mal
em confidenciar-lhe isso, pois me foi dito fora do confessionário.
Ele me procurou pelas mesmas razões que você veio até minha
presença. Está temendo que algo se precipite, tendo em conta sua
mudança próxima para Paris.
Resumindo, disse-me que mesmo ciente de que a filha firmasse compromisso, e conhecendo suas possíveis características
futuras como marido, ele não abençoaria a união.
Pense nisto! O casamento não abençoado pelos pais é fadado
ao insucesso. Reflita devagar e faça sua opção. Depois de fazê-la,
qualquer que seja ela, tudo ficará mais tranquilo.
Foi quando Ribérry cometeu falha grave de avaliação. O abade nem mais se lembrava da primeira vez em que ingerira água
seca, o salitre, misturado em sua dieta. Anos depois ele mesmo
andara injetando nitrato de potássio em salame servido aos noviços. Esquecera-se da força da juventude, mesmo que refreada,
em jovens polidos e de boa saúde como Jean. Monlevade tinha
dezoito anos e, esquecidos tantos outros interesses, transpirava
hormônios e fluidos que, conduzidos por sonhos, eram expulsos
clandestinamente nas madrugadas do castelo!
Não há razão para duvidar que tenha sido esse o grande dilema que tomou conta do seu íntimo. O abade, mesmo que sem
pressioná-lo, pedira-lhe decidir... Foi difícil, mas...
Decidira não decidir. Iria dar tempo ao tempo. Ainda que não tivesse qualquer tipo de contato físico com Angéline, não suportaria a
impossibilidade de não vir a acontecer. Ou vê-la casar-se com outro.
A princípio ficara um pouco contrariado. Com tal atitude estava indo contra velho ditado que lhe ensinara o fidalgo JeanFrançois, se não vais ocupar a moita, deixa que por lá outro tome
assento!
Perturbou-se por poucos dias. Não é a juventude época de
embriaguez sem necessidade de beber goles de vinho?
Foi nessas condições amorosas que vamos encontrá-lo nas
redondezas da casa da família Pius.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
153
III
Jean e Martinho vão ao Louvre. A casa de Lucillia e
Septimus Pius
Por insistência do próprio Jean, a viagem para Paris fora feita desacompanhada. Era forma que encontrou para se acostumar com
ideia que brotava em seu interior, pois, instintivamente, sabia que
jamais voltaria a morar em Monlevade. Lágrimas furtivas brotaramlhe dos olhos quando se despedira da mãe na porta de saída. Maria
Vitória, após abraçá-lo, manteve-se a distância. Parecia chorosa. Já
o fidalgo não se preocupou, o filho tinha mesmo que iniciar nova
vida, ele estava extremamente assoberbado de incumbências e, afinal de contas, era viagem direta sem troca de cavalos ou parada
para pouso em estalagem. Breu, excitado, latia ininterruptamente,
parecia saber que também iria conhecer novas paisagens.
O Casal Pius gostava de animais e deixara que o cão fosse
incluído no pacote de hospedagem. A casa tinha terreiro central
e, bem, o transporte fora contratado ida e volta. Os pais não precisariam aguardar carta de boa chegada dos rapazes. Homem de
préstimos, o próprio carroceiro combinara informá-los sobre andamento da viagem em seu retorno. Ficaria em Paris o suficiente
para carregar mercadorias encomendadas por Platini a seus fornecedores parisienses. Não voltaria vazio de carga!
Fazia algumas horas que estavam em Paris. Paris. De longe
Jean Monlevade admirou os quatro imponentes cavalos de bronze que soubera faltantes na Basílica de São Marcos. Finalmente
estava no Museu Napoleão. O Louvre! Não vivemos de comparações? Por minutos, e ao mesmo tempo em que admiravam a
famosa obra de arte, ele e Martinho conversaram sobre o quanto
haviam crescido na agitada turnê italiana que haviam feito com
o fidalgo. Para este, fora longa viagem de negócios. Para eles,
lazer e cultura. O tempo voa. Quase três anos eram passados!
154
Jairo Martins de Souza
E lembraram-se que, no retorno, Platini dissera-lhes que, afora
altura diferente do Sol com relação à linha do horizonte e uma ou
outra estrela que lhe confere identidade especial, o céu parece ser
igual em todos os mares que navegara. Mas não sair de casa é ler
um só livro, disse, e a vista de cenários e sons de outras línguas e
terras desperta sensações absolutamente desconhecidas. Um tanto
à custa disso que, naquele mesmo dia, Jean havia falado, talvez
excessivamente, sobre a sensacional experiência italiana, comentando o quanto havia ficado encantado com a construção e com
os mosaicos dourados da famosa catedral de Veneza. Quarenta
mil pedacinhos por metro quadrado. Não é por nada que ficara
conhecida como a igreja de ouro! O Palácio dos Doges, situado ao
lado, fica humilde perante tanta riqueza. Mas nunca ninguém fica
totalmente satisfeito e, após viagens, é comum as pessoas lembrarem-se mais das coisas que deixaram de ver do que as que viram,
bem, e é frequente que amigos lhe digam de forma risonha: você
tem que voltar àquela atração, pois deixou de ver o melhor. É por
isso que Jean disse que não precisou anotar em seu diário de viagem que tinha ficado um pouco frustrado na ocasião, e contava os
dias para ver os famosos cavalos turcos de Constantino.
Como vimos faz pouco, Tisserand disse, ele havia finalmente
saciado seu desejo. E finalizara também explicação a Martinho
tentando justificar o motivo de Napoleão os ter confiscado durante a campanha de ocupação da Itália.
Foi a razão, Tisserand concluiu, de ambos não os terem visto
em São Marcos!
E ainda comentando sobre a beleza das tais esculturas é que
acabaram de cruzar o Parque das Tulherias: já estavam junto ao
Arco do Carrossel. De frente, o belíssimo pátio do Palácio. Ao
lado, o Sena viajava tranquilo para o Canal da Mancha e, em
poucos minutos, conheceriam a celebrada Mona Lisa. Pena que
estivessem pouco expostas as relíquias que o exército havia trazido durante a invasão aos monumentos egípcios.
Temos somente duas horas para visitar tudo e todos os setores do museu, foi o que Jean disse para Martinho. É muito pouco
tempo e ele abre justo aos sábados e domingos. O imperador
andou restringindo os horários de entrada de visitantes. Interessame, em primeiro lugar, ver o Escravo Morrendo, de Michelangelo.
Foi feita em pedra de mármore especial trazida de...
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
155
Foi neste ponto que Tisserrand interrompeu a visita ao museu, esclarecendo que os primeiros dias dos rapazes, em Paris,
não podiam ter sido de outra forma. Visitas. Visitas. Fica cansativo
falar em detalhes sobre elas.
E achava melhor prosseguir sua conversa, lembrando a si
mesmo que estava em falta com sua história. Não dissera nada
sobre os primeiros momentos de Jean de Monlevade em Paris. E
pouquíssimo sobre a chegada à casa dos Pius. A razão era simples: não tinha praticamente nada a reportar. Pois mal a carroça
chegara, o Breu não havia esperado convocação e pulou rapidamente para o quintal em busca de pedras e reconhecimento do
terreno. Os donos da casa riram de sua atitude, e reforçaram que
seu lugar definitivamente deveria ser o terreiro. Não temos gatos
e nunca adotamos qualquer bicho de estimação, portanto, nada
do Breu circular pelos aposentos da casa. Há uma neurose geral
da saúde pública quanto a cachorros que babam, qualquer um
desses é suspeito de raiva, assim como a outras doenças espalhadas por animais.
E não demorou minutos para que se sentissem à vontade na
nova casa. Os Pius eram firmes, porém solícitos e disponíveis. Os
dois pisos da casa deveriam ser mantidos limpos e asseados com
a contribuição de todos os moradores. Parte do piso inferior que
dava para a rua tinha três grandes portas duplas e era alugado
para monsieur Bènèdict Dubois. Monsieur Dubois é livreiro de
renome que gosta de negociar com obras antigas. Seu estabelecimento, Septimus Pius informou, fica fechado nos finais de semana. Jean mal poderia esperar até a chegada da segunda-feira!
O casal Pius, sabemos, morava sozinho. Os dois filhos homens que lhes restavam vivos acompanhavam as andanças das
forças de Napoleão. Um era médico. O outro era intendente de
materiais a serviço permanente no estrangeiro. A filha casara-se
com oficial da marinha e seguira com o marido para Lyon. Ambos
eram professores sob contrato com órgão ligado a setor revolucionário da educação.
A cozinha da casa é ampla e as achas de lenha do fogão
devem ser mantidas secas para uso imediato, foi o que Lucillia
recomendou para Martinho. Bem, a mulher de Septimus era ligeira, pois, praticamente ao mesmo tempo, voltou-se para Jean
e disse-lhe que a varrição aqui é diária. E, num átimo, dirigiu-se
156
Jairo Martins de Souza
a ambos, e explicou que em sua casa não se permitia comer à
capitão, ou seja, com as mãos. Usamos somente colheres e facas,
avisou. A secagem de panelas e pratos deve ser feita aproveitando o sol que, na parte da tarde, projeta seus raios pelas janelas
desse ambiente em que estamos. Depois tais utensílios devem ser
pendurados nestes ganchos que estou lhes indicando. No inverno são secos aproveitando o próprio calor do fogão enquanto a
fumaça defuma as carnes e linguiças. A lareira pode ser acesa
sempre quando necessário. Cada um deve lavar suas próprias
ceroulas e calções... o sabão para os dentes e banho fica ao lado
de bacia no próprio quarto. Quando não aquecida por tubos que
passam dentro do fogão, a água deve ser esquentada somente
naquele tacho de cobre maior, foi o que disse elevando abruptamente a altura de sua voz e apontando para enorme panela
encostada em canto de parede. Com o menor faço doces. De
repente abaixou a voz como se estivesse envergonhada e fosse
pedir algo muito íntimo (o que foi confirmado logo a seguir), pois
prosseguiu dizendo que só se pode defecar nos penicos. Somente nos penicos. Cada um deve usar o seu próprio, e a sujeira não
podia ser jogada na rua.
Bem, dona Lucillia concluiu sorrindo, não creio que essas incumbências possam vir a atrapalhar estudos. Ao seu lado, Septimus acrescentou que caso faltasse óleo de baleia para as lamparinas, poderia ser comprado na mercearia de monsieur Lumière
que ficava três casas à direita. O uso deveria ser feito com parcimônia, alertou.
Toda a conversa aconteceu após recebimento das chaves da
casa pelos novos moradores, e, como não poderia deixar de ser,
depois de breve apresentação formal. Ao término das orientações, os rapazes colocaram os baús nos quartos e seguiram entusiasmados para conhecer as famosas redondezas do Quartier Latin. Septimus e Lucillia não se importaram. Os estudantes foram
muito bem recomendados e eles estavam de saída para a feira.
Entenderam bem a ansiedade dos recém-chegados.
Poucos minutos mais tarde os moços estavam, além de felizes, absolutamente aliviados. Na Itália haviam-lhes dito que não
se justificava olhar nenhum edifício por aqui, após ter visto a beleza das obras dos arquitetos italianos. Não era bem assim. Os
franceses podiam se orgulhar de suas construções! Vive la France!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
157
Ao voltar mais tarde, verificaram que mais recomendações
haviam sido deixadas em papel fixado em painel de madeira colocado na parede de um dos corredores.
Jean sorriu quando as leu. Mencionava também algo mais
sobre comportamento a ser exigido do Breu. E, após alguns minutos, foi com sentimento contraditório que se lembrou que não
mais tocaria tambor na banda da cidade em datas festivas. Nem
mais expulsaria lobos que rondavam galinhas espalhadas pelo
terreiro. O trombone de Martinho também deixaria de ser ouvido.
No entanto, de modo geral, a rotina entre quatro paredes não
seria tão diferente da que ambos estavam habituados a seguir no
castelo.
De certa forma, madame Lucillia lembrou-lhe a mãe, Felicité.
À noite, antes de dormir, pediu especialmente por ela em suas
orações.
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Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
159
IV
O reencontro com Kostas Zavoudakis
Tisserand era incansável! Dado momento disse ser a tartaruga de
Zenão que se movimenta lentamente, mas está sempre adiantada
ao veloz Aquiles. Eu confirmei a ele que estava tudo ótimo. Que
o ritmo estava adequado, o assunto continuava me interessando,
e absolutamente não me sentia sobrecarregado. Fosse o caso de,
por qualquer motivo, me sentir incomodado, dir-lhe-ia!
Muito bem, retrucou. Parecia aliviado. Mas prosseguiu com
sua história estranhamente dizendo que nos dias de hoje não é
surpreendente que um brasileiro se encontre acidentalmente com
parente próximo no Arco do Triunfo. Entre amigos é muito frequente. Entre pessoas de mesma cidade mais ainda. Vai-se em
poucas horas do Rio a Paris.
Nos início dos 800, pouco se viajava. Afora um ou outro cidadão que, sabe-se lá o porquê, crescia sedento por aventuras,
as pessoas nasciam e criavam família sem nunca por os pés fora
do seu vilarejo. Não incluo aqui recrutamentos para guerras em
países estrangeiros, ou fuga por escassez de comida. Eram muitos
os que morriam sem conhecer o palácio do seu rei ou a capital
do seu país.
A bem da verdade, as condições de miséria e saneamento
eram praticamente iguais entre os pequenos vilarejos e os centros
de riqueza. O que fazia a diferença era a cultura, as obras arquitetônicas e a arte. Em Paris, com mais intensidade ainda. A cidade
de Paris é, sempre foi, por excelência, uma capital cosmopolita,
polo de atração de pensadores, artistas, inovações e grandes mudanças. Para boa fortuna de Jean, esse predicado contribuiu para
consolidar a fortaleza do seu caráter, pois fez com que muitos dos
avanços sociais que ocorreram naqueles dias acontecessem muito
próximos a ele.
160
Jairo Martins de Souza
Para tanto, entre outros privilégios, bastava-lhe alguns poucos passos de caminhada para chegar ao agradável ambiente da
livraria de monsieur Dubois. E, do lado de fora, a história do
período napoleônico era feita nas ruas, monastérios, repartições
públicas e escolas do Quartier Latin. Nas suas esquinas e praças
discutia-se de tudo. Naqueles dias os jovens discutiam a arte, a
ciência e filosofia com ardor. Dava-se a vida por essa ou aquela
ideia. Viver é sofrer? A contemplação da arte anestesia os efeitos
da dor de existir, conduzindo ao domínio da vontade pelas pessoas? Perguntas eternas. Os jovens vazavam noites e madrugadas
esgotados menos pelo vinho do que pela força de suas convicções.
São questões antigas, Tisserand comentou e, após breve meditação, disse-me não ser atitude adequada assumir sem cuidadosa análise crítica as ideias daqueles tempos. Mas concordava que
a novela de tevê atual tem a resposta para a última pergunta que
havia colocado na mesa. A da admiração pelas Artes. Mas concordava com a ideia de Schopenhauer de a música ser a primeira
delas. Além de não ter referência material e libertar por instantes
o homem, obviamente a dança, a pintura, a escultura, a literatura,
etc. são refinamentos que vieram depois.
Bem, mas não foi exatamente por isso que Jean não se espantou ao escutar alguém conversar animadamente em grego enquanto caminhava pela Saint Jacques. Era fato comum nas imediações. A quantidade de professores e estudantes que falavam
línguas estrangeiras na Sorbonne, no Colégio da França e outras
instituições era total. Ouvia-se latim e grego por todos os seus
cantos. Portanto não era de surpreender que fosse razão única da
área se chamar Quartier Latin, quarteirão latino.
O detalhe é que a voz lhe soava familiar. Estava próximo de
casa e havia saído a pedido de Lucillia para buscar barras de sal e
açúcar preto no armazém de monsieur Lumière. Tanto ele quanto
Martinho haviam sido apresentados ao comerciante e bastavalhe assinar o lançamento de retirada da mercadoria em pequena
caderneta destinada ao casal Pius.
O homem versado em grego estava de costas e seu interlocutor era monsieur Dubois, o dono da livraria. Dubois era poliglota
e o assunto era o de negociações diplomáticas sobre pedido de
retorno, feito por outros governos, considerando-se obras de arte
que Napoleão trouxera em seus avanços pelo mundo afora. O
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
161
diálogo aparentava ser mais entre dois amigos do que cliente e
vendedor. Monlevade aproximou-se.
Kostas Zavoudakis era baixo e atarracado. Tinha braços e
pernas curtas e tratava todos os assuntos como se fosse o dono do
mundo. Mas quando dizia algo ofensivo ou que julgasse de mau
gosto, no final da sentença, talvez por cautela ou respeito, abaixava paulatinamente o tom de voz. Fazia parte do seu modo de ser.
Não podia ser outro. Fazia alguns meses que não o via. O
grego saíra de Guéret às pressas e não se despedira dos amigos.
Jean aguardou-o, enquanto se recordava das aulas de latim que
tivera com aquele rapaz que ali conversava animado, e quão úteis
seriam para o futuro quando estivesse estudando matérias de filosofia antiga na Politécnica. A despeito da boa base dada por
Duchamps, o grego ia bem mais fundo nas matérias. O que de
fato mais uma vez estava sendo comprovado, pois a conversa
da dupla que Jean observava rendeu tempo, só terminando alguns minutos depois quando ambos, já no interior do comércio
de Dubois, passaram a folhear alguns livros a respeito de direito
internacional. Jean entrou na livraria.
Dubois saudou-o efusivamente. Explico dentro de segundos
tal entusiasmo, Tisserand justificou, e, com isso, peço-lhe também
aguardar por outros tantos o reencontro que anunciei, faz pouco,
entre Jean Monlevade e Kostas Zavoudakis.
Pois ainda que houvesse muitos estudantes pela região que
careciam de trabalho para reforçar mesada, Tisserand prosseguiu,
a carência de bons caixeiros no Quartier Latin era patente. Os
clientes eram tratados como se fossem velhos inimigos. Não acontecia diferente no estabelecimento de Bènèdict Dubois. Tinha
para ajudá-lo somente um aprendiz que pouco se interessava pelo
serviço. Gostava de ler algumas partes do acervo, mas o serviço
de balcão definitivamente não fazia parte do seu métier.
É nesse vácuo que Jean havia entrado e facilmente sido aceito no fechado círculo de amizades de Dubois. Com poucos dias
de conhecimento o rapaz inclusive o ajudara a realizar vendas
a fregueses indecisos. A educação refinada dava-lhe condições
tanto de vender cereais e tecidos no armazém de Platini, quanto livros épicos de prosa, poesia, e os recém-lançados romances
do estoque do amigo livreiro. Numa delas, o jovem curiosamente
pesquisava algumas obras quando uma senhora e a filha educa-
162
Jairo Martins de Souza
damente bateram com os dedos na porta interna de vidro. Não as
conhecia. Jean acenou-lhes, entrem, a loja está aberta, empurrem a
porta... Ato contínuo, reparou que Kostas fora deixado de lado por
Dubois, e que este pedia-lhe que o aguardasse enquanto iria buscar
outra obra para subsidiar ponto de vista que estava defendendo.
A moça que acabara de entrar no ambiente tinha algo familiar a Jean. Custou-lhe apenas poucos segundos para descobrir o
que havia lhe causado tal sensação... ela tinha o jeito de caminhar
de Maria Vitória! E, já dentro da loja, punha-se a pesquisar por
conta própria as prateleiras atulhadas de livros. Dubois era organizado e a identificação dos assuntos em seu estoque facilitava
sobremaneira a busca dos seus clientes. Gostava de acentuar que
sua prática era a de fazer com que se sentissem em casa. E para
que não fossem incomodados com perda de tempo, quanto aos
preços, costumava até mesmo deixá-los marcados em suas capas.
Percebendo a demora do livreiro que ainda dedicava atenção
ao primeiro cliente, Jean acercou-se das freguesas e perguntoulhes se poderia ajudar na seleção de alguma obra. Notara que
estavam hesitantes. Elas disseram que sim. Estavam habituadas a
comprar lãs, tecidos, vestidos e aviamentos. Não livros.
Bènèdict Dubois compreendeu sua atitude e assentiu, baixando educadamente a cabeça, enquanto dirigia olhar por cima
dos ombros do cavalheiro a quem atendia.
Jean indagou-lhes e soube que as freguesas buscavam livro
que deveria ser adequado para leitura de moça de família. Então
pediu-lhes licença e dentro de poucos minutos voltou com exemplar de Orgueil et Préjugés de autoria da inglesa Jane Austen. É
leitura feita sob medida para mulheres de todo o mundo, foi o
que lhes disse com firmeza. Não era livro novo. E exemplar único
nesta loja, explicou, pois Austen não encontrara editora que o
aceitasse quando fizera seu lançamento há dez anos, enfim, livro
de qualidade que custava barato. Casamento, propriedade e intrigas constituíam a sua trama... Convenceu-as.
Bem, passa da hora de voltar a Kostas Zavoudakis que, não
se dando por vencido, buscava também mais recursos para retomar o polêmico assunto que iniciara com o ocupado Bènèdict. O
grego tinha dois ou três livros abertos à sua frente e não reparara
a aproximação de Monlevade que, com sorriso nos lábios, cutucou-lhe as costas com os dedos para que o amigo virasse o corpo
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
163
e o rosto. Kostas, absorto em sua leitura, reagiu como se estivesse
sendo assaltado, mas logo em seguida abriu largo sorriso.
Foi grande e absolutamente sincera a satisfação do reencontro. Disseram saudações em grego e latim, há meses não nos vemos, e depois se retiraram para a calçada da rua para não perturbar o silêncio que deve predominar em ambiente de leitura. Antes
disso, rapidamente, disseram a Bènèdict Dubois, conhecemo-nos
faz tempo, o porquê de tamanha manifestação de amizade. O
livreiro mostrou-se surpreso e satisfeito: gostava de ambos!
Kostas explicou a Jean o motivo de sua saída repentina de
Guéret. Oportunidade, disse. Oportunidade imperdível. Recebi
correspondência de fidalgo parisiense que havia gostado de uma
de minhas produções de tapeçaria. Adquiriu-a aqui mesmo em Paris, e recomendou-me a terceiros de suas relações. Disse-me ambicionar por mais peças e, por fim, indicou-me à oficina de tapeceiro
de monsieur Tapis aqui na capital. O salário era tentador. Decidi
vir e trouxe toda a minha família. Eles estão bem e a maioria foi
empregada com o mesmo empresário. As indústrias recém-implantadas não competem com nossa produção pessoal e personalizada.
Você sabe, Monlevade, e modéstia à parte, somos artesãos
de qualidade em um ou outro segmento e, graças aos deuses do
Olimpo, trabalho nunca nos faltou. Então Jean perguntou-lhe sobre o fato de ter sumido, de não ter se despedido dos amigos. Não
sou dado a despedidas, Kostas disse-lhe. Magoam-me. É costume familiar. Mas sentia falta de todos vocês. Como está o fidalgo
Monlevade? E Martinho, e o abade Ribérry?
O grego contou-lhe que estava morando nas redondezas de
Paris. Dividia apartamento com senhor de origem portuguesa e
que praticamente vivia confinado em casa. Chamava-se João de
Barro Barro. Acontecera com ele mais ou menos o que sucedera com Kostas. A autorização de laisser-passer, salvo-conduto, de
sua documentação francesa fora preenchida de forma errônea.
Na realidade pertencia à família Barros. Kostas riu. Barro ao quadrado! Deve ter sido o mesmo oficial que me atendeu, e contou ao português sua desdita com a duplicação do seu prenome,
Kostas. O fato de terem vivido a mesma experiência permitiu de
imediato maior aproximação entre ambos. A alma humana tem
essa característica! Para todos os efeitos, concluiu o lusitano, agora sou, de forma completa, João Joaquim Barro Barro.
164
Jairo Martins de Souza
A companhia constante de Barro, Tisserand explicou, valeu
a Kostas rapidamente absorver rudimentos da língua portuguesa.
Isso evoluiu. Com poucos meses não somente entendia e trocava
ideias com o companheiro, como também optara por algumas
mudanças nos rumos de sua vida. O aluguel na parte central da
cidade era alto para seu bolso e ele, entre outras coisas, abandonara o ofício de tapeceiro. A jornada de trabalho era longuíssima
e não lhe propiciava tempo livre para fazer o que realmente gostava. Estudar, conhecer outras línguas além das que sabia, e explorar novos mundos por meio de livros. Buscara novos caminhos
e, por enquanto, sustentava-se mascateando publicações. Foi o
porquê de conhecer Bènèdict Dubois.
A conversa perdurou por mais de hora. Entraram na casa dos
Pius e alongou-se por mais outro tanto. Os Pius gostaram dos modos polidos da conversa de Kostas. Sentiram, sobretudo, ser moço
firme em suas convicções. Martinho, que havia saído para ajustar
documentação no liceu onde iria estudar, chegou e daí deu início
à nova rodada de indagações entre os amigos. O grego falou-lhe
do seu atual trabalho e de como lhe propiciava ler informações
sobre outros países. Foi quando se lembraram com mais saudade
das tardes passadas no armazém de Platini. Falaram sobre tudo.
Sobre a política europeia e a nova força do mundo, os Estados
Unidos da América. Sobre dragões, demônios, bichos-preguiça e
peixes voadores que assolam a América do Sul. Certos animais
que vivem no Brésil nunca tinham sido vistos comendo. Dizia-se
que se alimentam de vento, e da energia dos raios do Sol. É por
isso, Martinho concluiu, que lagartos estranhos, que tem mãos de
homem e chifres de boi, ficam na pedra durante horas. Esses seres
nunca se molham mesmo que expostos à chuva constante durante semanas. Muitos navegantes ouviram estas histórias da boca
de índios de diferentes tribos e desenharam gravuras horrendas a
partir de suas descrições.
Isso só me faz ficar mais curioso, e instiga-me a ver com meus
próprios olhos o que existe por aqueles mundos, Jean disse. E
sobretudo sobre seus minerais preciosos, esmeraldas e turmalinas.
Duvido, acrescentou, que os demônios e os dragões realmente
existam: esses bichos foram criados desde Adão e Eva no coração
e nas profundezas do cérebro humano. Fazem parte do imaginário primitivo: são meras construções de mentes criativas.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
165
Mas foi conversando com os Pius e com Bènèdict Dubois que
Jean cercou-se de ideias quanto à possibilidade de convívio diário
com Kostas. Além da amizade praticariam o latim e grego, é claro,
enquanto não estivesse entre as salas e os muros da Politécnica.
Para tanto, escreveu carta para o fidalgo expondo o que tinha em
mente. Foi aprovado. Resumidamente o plano que propusera fora
o seguinte: os Pius tinham quarto vago; os filhos ausentes não mais
voltariam para casa dos pais; Bènèdict Dubois precisava de assistente em sua livraria.
Passados alguns dias lá estava Kostas chegando com seu pequeno baú de mudança. Moraria com os Pius a troco de aluguel
de preço razoável e que incluía pensão à base de sopa de batatas,
ensopados e pão. O leite, a manteiga e o queijo ficavam de fora
por causa da escassez. Bom negócio para todos. Nestes tempos
difíceis seria fonte de renda segura para o casal, pois o fidalgo
Monlevade novamente havia intercedido, garantindo – acontecesse o que acontecesse – a segurança e a pontualidade do pagamento mensal.
O grego passaria a trabalhar imediatamente como vendedor
na livraria de Dubois. As mercadorias estão aí, dissera a Kostas.
Que se una o útil ao agradável: acredito piamente que, para você,
não deverá ser tarefa desagradável tomar contato com todo o meu
estoque. Pelo menos com os escritos de capa e contracapa. Kostas
sorriu e respondeu-lhe dizendo que era o mesmo que atribuir ao
Breu missão de zelar por ossos de cordeiro. Teria tempo de sobra!
O fato é que o jovem grego não conseguira acertar documentação para acesso à escola pública francesa. Os burocratas não
se entendiam no Ministério de Negócios Estrangeiros. Havia tentado insistentemente. Talvez houvesse algum problema de foco
diplomático entre os países, pois o francês normalmente não era
xenófobo, e ele obtivera grau máximo no teste de conhecimento da língua. Não. Sua pele era bronzeada, mas decididamente
as negativas não eram consequência de repulsa ao povo grego,
ou às culturas de povos de menor importância na ocasião. Na
própria livraria de Dubois constavam dois exemplares de As Mil
e Uma Noites traduzidas para o francês, e ele via a todo tempo
vários estrangeiros circularem livremente pelas ruas do Quartier
Latin. Inclusive árabes com suas roupas típicas. O lugar era uma
Babel!
166
Jairo Martins de Souza
Mas acima de tudo Zavoudakis tinha trânsito livre pelo país
e ambicionara ingressar no Lycée Napoléon. Foi por conta disso
que foi tomado por extrema irritação quando teve pedido de admissão recusado. Criticou deslavadamente o país. E ironicamente
disse para Jean que, na solicitação para estudos, assinara o prenome que lhe fora outorgado na imigração, Kostas Kostas. Teria
causado certo mal-entendido? Não. Não podia ser por tanto. No
frigir dos ovos, concluiu, o princípio revolucionário da igualdade
não estava sendo totalmente aplicado. Conversa fiada de políticos!
Ficara frustrado. Mas estudaria por conta própria! Material
obviamente não lhe faltava!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
167
V
Os três mosqueteiros. Kostas conhece o Quartier Latin
como as palmas de suas mãos!
Alexandre Dumas ainda era um bebê e publicaria o seu famoso
Os Três Mosqueteiros somente em março de 1844. Tivesse conhecido posteriormente Jean de Monlevade, Martinho, e Kostas
Zavoudakis, não tenho dúvidas de que teria matéria de qualidade para estereotipar mais ainda seus protagonistas Atos, Portos e
Aramis. Pelo menos em termos de amizade. Não fez dessa forma
Vitor Hugo quando estudou e percorreu os esgotos subterrâneos
de Paris? Pois é. Foi com ajuda de mapas emprestados por dileto
amigo, um veterano funcionário municipal, que o famoso escritor planejou uma das mais ousadas fugas do injustiçado Valjean.
Nada se faz sozinho, mon ami! Tanto a riqueza quanto a cultura
são produtos das atividades de homens e mulheres de todas as
camadas sociais. Com muito esforço, cooperação e estudo...
O ruído provocado pela queda de mais uma manga chamou a
nossa atenção, fazendo com que Tisserand interrompesse por instantes o que estava dizendo enquanto, com uma das mãos, apanhava a fruta que restara ilesa mesmo com o impacto no solo. Tão
logo colocou-a de lado, retomou a palavra dizendo que, ao longo dos séculos, muitas iniciativas de mudanças de paradigmas do
pensamento mundial foram concentradas em alguns moradores de
Paris. Descartes. Montesquieu. Poincaré. Rousseau. Sartre... Todos
esses são grandes exemplos.
E é também na mesma eterna capital dos franceses, mon ami,
que vamos encontrar novamente nossos três jovens amigos. Eles
se preparavam para praticar o que mais gostavam de fazer: conversar e trocar ideias. Era domingo e Septimus havia saído com a
mulher para a missa matutina da igreja de Saint-Séverin.
Quartier Latin! Já conheço os detalhes de suas calçadas e
prédios históricos como se fossem as unhas dos dedos das minhas
mãos. Talvez suficientes para publicar um guia turístico para estran-
168
Jairo Martins de Souza
geiros. Bem, para os amigos faço o trabalho de graça. Foi o que
Kostas exclamou com ar sorridente para Jean e Martinho enquanto
terminavam de descer os degraus da casa dos Pius e se dirigiam
para a Rua Saint Jacques.
Paris já foi romana, Kostas Zavoudakis disse, e portanto tem
algumas partes enterradas que são como a velha Roma. Pudéssemos escavar, possivelmente encontraríamos calçadas de pedra escondidas há séculos nessas vizinhanças. Os romanos deixaram sua
marca inapagável pelo mundo antigo desde os tempos de Cristo.
Formigas batedoras. A linha de frente carimbava para sempre a
terra invadida. Estão lembrados da cidade de Pompeia e a preservação causada pelos estragos do Vesúvio? O traçado das ruas
e das edificações das partes desenterradas havia sido seguido por
toda a Europa: templos, teatros, fóruns e belos edifícios.
Já estavam na pequena calçada, e o grego afirmou, com ar
despreocupado, ter plena consciência de que os amigos sabiam,
mas não custava repetir que, caso fossem caminhando pela direita, alcançariam justo a Rue des Ecoles, a Rua das Escolas. Lá
estão a Sorbonne, fundada em 1253; e o College de France, mais
recente, de 1530. Muitas casas de suas redondezas abrigam repúblicas de estudantes que vêm de todo o país e do exterior. Daqui
mesmo, vocês podem ver que há cobertores e roupas de baixo
estendidas nas janelas, há pouco sol e muita umidade. O edifício
com aspecto de prisão, que fica à esquerda do College, é um antigo convento que possuiu um belíssimo claustro... hoje tornou-se a
escola em que eu gostaria de estudar e é a mesma em que, você,
Martinho, está matriculado: o Lycée Napoléon!
O grupo rapidamente decidiu seguir para a direita. Kostas esclareceu que, tivessem ido para a esquerda, dariam de frente com
a Rua Petit Pont. Rua curta! Mas vive lotada de gente. E, inevitavelmente, acabariam por passar pela ponte, de mesmo nome,
que vai dar na outra margem do Sena. O hospital militar fica nas
proximidades, assim como muitos edifícios públicos.
Antes disso, caso dobrássemos à esquerda chegaríamos ao
Boulevard Saint Michel. Lá proliferam estalagens, tavernas e livrarias nossas concorrentes.
É para onde iremos. Se há algum desses aberto, é hora de
celebrar! Os dois recém-chegados sorriram. E instintivamente
contaram as moedas que tinham no bolso. Kostas era espirituoso
e animado. Jean sentiu-se em casa como se estivesse comodamente indo trocar ideias no armazém de Platini.
Definitivamente nunca voltaria a se assentar sobre saco de
batatas!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
169
VI
Bernadette e Monique du Lac
Todo jovem solteiro que tem atrás de si uma boa fortuna está
sempre em busca de esposa, foi o que Lucillia Septimus disse.
Jean, por exemplo, nem mesmo precisa ganhar dinheiro com sua
própria carreira para tanto... O marido sorriu sem que ela notasse. É, pensou em responder-lhe, isso é verdade incontestável, a
vida e as noitadas de vida solteira cansam... Mas calou-se. Havia
acabado de colocar roupa de dormir e sua intenção era apagar
a lamparina, bem, fazer sexo e, como todo bom marido, cair em
sono profundo. No entanto, melhor que a mulher tivesse voltado
para assunto de terceiros, ao invés de buscar algum que envolvesse diretamente o casal. Não estou com ânimo para discutir
problemas de relação. Sorriu novamente, agora relembrando o
lado feminino da frase com que a mulher se prontificara a iniciar o
diálogo. Desde que a conheço, Lucillia tem esse lado casamenteiro, mudou em muitas coisas, não quanto a este quesito! Mas não
lhe disse nada de volta. A mulher irritou-se. Você não me ouve. O
rapaz tem tudo para ser um bom partido para Monique!
Prefiro Bernadette, Septimus finalmente retrucou sem rodeios. Não é tão formosa, mas é mais inteligente. O que, a princípio, nada significa, pois Jean disse-me, logo no primeiro dia que
chegou aqui, que é praticamente noivo em Guéret. O nome da
moça é Angéline. Mas mesmo não conhecendo ainda a fundo as
preferências do filho do fidalgo Monlevade, tudo leva a crer que,
caso houvesse escolha de sua parte com relação às moças que
estamos falando, sua opção seria a letra B. De Bernadette.
Você diz isso para me contrariar. A sua preferência dentre as
nossas sobrinhas sempre foi por Bernadette. Ela tem o estilo do
corpo e o gênio da falecida mãe. É bonita, é agradável: hoje! Pois
a sensação que tenho é que vai virar uma baleia irascível quando
170
Jairo Martins de Souza
mais velha. Monique não. Seu biótipo é o do Pai. O de Secundus.
Seu irmão mesmo depois de velho ainda não perdeu a elegância,
mon chér. Quanto ao noivado com a moça de Guéret, não acredito que vá durar. Homem é como passarinho. Caso não tenha
filhotes, esquece-se rapidamente de árvore em que pousou. Não
é por acaso que não tenho ouvido nem uma palavra da boca dele
sobre a tal moça.
Septimus decidiu voltar a manter-se calado e simplesmente
não mais discordar de Lucillia. Ele queria noite tranquila e, como
de praxe, caso continuassem o diálogo, a coisa ia esquentar. A
chegada dos três rapazes havia trazido paz à sua casa. Lucillia
estava dispersando preocupações e energias que anteriormente
costumava esgotar somente em suas costas, adotara novos filhos,
enfim, a vida estava melhorando.
Quanto a Monique, a brasa fora acesa, Tisserand continuou,
não sei se apagaria tão facilmente por parte da mulher e da sobrinha. Creio que um sopro fosse suficiente para...
Falavam de Monlevade, e Monique du Lac estava excitada.
Então ele vai estudar na Politécnica, tia Lucillia? Sim. E disse-me
estar absolutamente ansioso em conhecê-la, Lucillia Pius complementou mentindo.
A senhoria de Jean de Monlevade não era má pessoa, Tisserand observou. Simplesmente acreditava que o destino dos dois
jovens estava em suas mãos. E, como num jogo de baralho, distribuiria as cartas do modo que julgava adequado. Nem que fosse
necessário fazer pequenas trapaças como a mentira que vimos
dizer para a sobrinha. Os jovens precisam ser direcionados para
bons casamentos e famílias. Ela, como tantos outros, não ligaria
essa atitude a qualquer tipo de perversão.
Então quando posso conhecê-lo? Minha intenção é noivar rapidamente. A moça fora sincera, homens solteiros tornam-se, sem
que o saibam, imediatamente reféns de suas pretendentes e sogras
– exclua-se aqui o desavisado Jean, pois a moça era órfã de mãe.
Vou providenciar, querida. Vou providenciar. Primeiro conversarei com Secundus para que, ocasionalmente, venha nos visitar no próximo domingo à tarde. Ele não se oporá. Dir-lhe-ei
das qualidades do rapaz Monlevade. Faço muito gosto, tia. Vou
até conversar com papai para que me encomende vestido novo.
Vou querê-lo branco com cinto vermelho e com enfeites de tule
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
171
de mesma cor no decote. Mas confesso, titia, mesmo não sendo
rapaz, vou ter que colocar as barbas de molho. O estudante parisiense, tia Lucillia, costuma namorar durante séculos e, depois
de formado, abruptamente casar-se com outra mulher... conheço
vários casos de amigas que, no fim dos tais anos, acabaram virando titias.
Não se preocupe, querida, ele estará sob minha guarda e
olhos. Confie em mim!
O almoço havia transcorrido festivamente e Jean conversava
de forma descompromissada com a sobrinha de Septimus Pius.
Estavam em sala de refeições improvisada no segundo piso, o
que era de se estranhar, pois normalmente a casa comia no andar
térreo em mesa colocada na própria cozinha. Este cômodo era de
tamanho apreciável e ficava no nível da Rua Saint Jacques. Mas
estava com parte em obras, bem, mesmo com os pratos cheios de
ossos de galinha, e canecas vazias ao lado, ninguém se dispunha
a se levantar dos dois bancos que se estendiam paralelamente ao
maior comprimento do balcão improvisado. Os convidados em
especial aguardavam convite dos anfitriões.
Os irmãos Septimus e Secundus fumavam charutos enquanto
ouviam Kostas que lhes explicava como conhecera Monlevade,
como havia chegado até Guéret e, por final, a Paris. Septimus
não se incomodava de escutar de novo a mesma história. Lucillia fingia prestar atenção ao que dizia o grego, mas na realidade
observava de soslaio a Jean Monlevade e a Monique du Lac.
Avaliava reações. Conferia cuidadosamente se sua fórmula daria
resultado. Dissimulava atenção para os demais presentes. A cada
movimento que considerava significativo, uma risada, um olhar
de admiração, um movimento de toque entre as mãos, a moça
vestia luvas após o almoço, enfim, qualquer ato que considerasse
suspeito, fazia-lhe trocar olhares significativos com o marido. Eram
craques na aplicação de tal código de sinais: haviam começado
como brincadeira, durante período de namoro e noivado, para
driblar a dura marcação dos pais da então mocinha. Décadas de
convivência fizeram-lhes aprimorar o método.
Contudo, naquele final de refeição, Lucillia, totalmente centrada em seu objetivo, não percebia os olhares que Jean, por cima
dos ombros de Monique, dirigia para a irmã Bernadette que, por
sua vez, mantinha diálogo não menos animado com Martinho. A
172
Jairo Martins de Souza
moça timidamente devolvia-lhe os olhares. Já Septimus sorrira internamente, pois notara discretamente o que ocorria. Desta feita
não comunicou o fato à Lucillia com os olhos, resultado de anos
da tal prática que lhes disse. Aguardaria instante propício...
O ruído de carruagem que freava nas proximidades da frente
da casa dos Pius não passou despercebido a nenhum dos circunstantes convidados pelo casal. A seguir, o de vozes que falam em
dinheiro, finalizadas com um fique com o troco. Depois o barulho
de alguns toc, toc, na porta de entrada. Parecia acontecer em uma
das que davam acesso à livraria de Bènèdict Dubois. O livreiro
pode estar aguardando um cliente de fora em horário extraordinário, disse Lucillia a Septimus. Para hoje não fomos avisados de
presença desse tipo de comprador, Kostas esclareceu, adiantando-se à resposta do senhorio. Pode ser que seja...
Vou verificar, Jean disse. E já na extremidade do patamar
superior, mais uma vez criticou o projeto da escada da casa dos
Pius. Mais alguns dias de residência e conversaria polidamente a
respeito. Era extensa, e de degraus curtos e estreitos. Construída
entre paredes era de se esperar que fosse relativamente escura
mesmo ao longo de dia de sol firme. A iluminação natural vinha
de dentro da casa. Fraca. Do lado de fora a luz do dia mal penetrava no diminuto espaço entre a parte inferior da porta e o piso.
Assim, antes de descer a escada, não somente para melhorar
a iluminação dos degraus, como também por educação, e para
reconhecimento do eventual visitante, Jean acionou extenso pedaço de corda estendido em paralelo com os degraus, e que servia
como acionamento remoto da porta de entrada. Todos que estavam na casa ouviram atentos o destravamento do trinco e o puxão
posterior que rapaz dera para permitir ingresso de quem batia.
Mas foi com espanto que o ouviram dizer em voz alta, Papai!
Ora, que surpresa mais agradável!
Foi viagem feita às pressas, o fidalgo disse, após ter saudado
a todos, e rapidamente se incorporado aos assuntos e ao espírito
festivo que, de pronto, sentiu existir no grupo. Monique aguardou momentos até ser apresentada por Septimus. Lucillia estava
envaidecida pela beleza da sobrinha: realmente era uma moça
bonita! Ela estava graciosamente vestida de branco com enfeites vermelhos. Exatamente como planejara! De início o fidalgo,
concentrado nas atenções a Septimus e Lucillia, não a observa-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
173
ra. Mas era observado. A moça acompanhava-o com os olhos,
buscando avaliar o modo como o possível sogro se comportava.
Agradava-lhe o jeito do futuro avô dos seus rebentos. O fidalgo
lembrava o filho, desde que acrescentadas algumas imperfeições,
a exemplo do andar claudicante, e, obviamente, os vincos e rugas
da idade. Ele trouxera apenas uma caixa de madeira que disse
conter documentos a serem entregues em determinado ministério
do governo. Procurava com esse procedimento, explicou, esclarecer sobre impostos cobrados em excesso de suas propriedades.
Quanto será o valor de sua fortuna?, tia Lucillia se perguntava.
Bem, tinha três filhos, François, Maria Vitória... Tivesse condição
de ver a papelada saberia quanto o pai de seu seleto hóspede, aí
deixando-se de considerar o altíssimo valor de suas propriedades,
faturava em um ano. Trinta, quarenta mil francos?
O fidalgo indagou a Septimus sobre como andavam as coisas
na capital e em particular sobre os rapazes. Vai tudo muito bem,
monsieur Jean-François, mas o fato é que aconteceu erro anterior
de minha parte... um erro de cálculo. O senhor fidalgo sabe fazer
contas e seguramente vai entender. Na realidade não avaliei adequadamente, há tempos que Lucillia e eu estamos sós, o quanto
interfere a chegada de mais dois, corrijo, três moradores de fora.
Ele não previra necessidade de melhoria na casa, daí o desarranjo causado para ampliação da área da mesa de refeição na
cozinha como também, isso já fora feito, a substituição da palha
do forro dos quartos. Tudo, todos estes detalhes, representa custo
para nosso orçamento, Septimus disse. A vantagem é que não
tinha despesas de aluguel, a casa fora herança deixada pelo pai,
etc. e tal. O senhor fidalgo não é responsável por rateio dessas
despesas, no entanto...
Assunto delicado... O bolso é, em muitos acontecimentos, a
parte mais sensível do corpo humano, Tisserand opinou, bem, ficou suspenso por alguns minutos. Enquanto isso, o dono da casa
disse ao visitante para servir-se de comida que ainda restava em
duas panelas já colocadas de volta sobre as trempes do fogão.
Ainda estão quentes, Lucillia complementara. Mas quanto à sua
pergunta anterior sobre Jean e Martinho, Septimus retomou, a
encomenda tem sido melhor que prevíamos. Ambos são ordeiros
e cumpridores de horários. Nenhum deles faz restrições à comida
que lhes servimos.
174
Jairo Martins de Souza
Também não negam a qualquer pedido feito, Septimus
prosseguiu. E quanto a Kostas... Kostas, entre outras coisas, tem
enriquecido a casa com seu conhecimento de cultura clássica.
Bènèdict Dubois diz tratar-se de belo exemplo de autodidatismo.
É. Este jovem grego tem realmente muitas qualidades, o fidalgo
assentiu. O motivo foi lembrança das aulas que ministrara a Jean.
Nada mais justo que tenha a bela recepção que tem tido nesta
casa, pensou.
No entanto, com toda aquela conversa anterior, o fidalgo deduziu que o homem habilmente solicitava ajuda de custo para
fazer frente aos investimentos que julgou necessários em data
posterior à combinação que haviam feito. E entendeu que sim,
eram justificáveis, afinal de contas, estavam sendo realizados para
que Jean e Martinho tivessem uma melhor qualidade de vida. Se
os lucros respingam em terceiros, tanto melhor.
Além de justo, disso sabemos por meio de diversos outros
episódios, o fidalgo era homem generoso, e imediatamente sacou
embrulho de papel em que havia colocado maior quantidade de
dinheiro. Deu-lhe maço de notas. Septimus contou-as e, demonstrando honestidade de propósitos, buscou planilha de custos, e
devolveu-lhe alguns francos por julgar excessiva a quantia que
lhe fora entregue.
Mais ainda o sogro crescia aos olhos de Monique que a tudo
observava a distância de alguns passos. Se o filho for desprendido
como o pai, jamais me faltará dinheiro para compra de vestidos,
perucas e espartilhos. O que não esperava foi atitude que o fidalgo tomou reservadamente a seguir. Ele chamara o filho no canto
da sala e colocou-lhe nas mãos um pequeno envelope.
Decorridos poucos dias que a carroça aportara à casa dos
Pius, trazendo Jean e Martinho, e ela já se ressentia da falta de
notícias de Jean. Sentia-se negligenciada, já que o considerava
um grande amigo! Era em essencial o que Angéline dizia em carta
entregue ao pai, Colbert, para que repassasse a qualquer mensageiro de confiança que estivesse de saída para Paris. Pedira encarecidamente que isso fosse feito da forma mais breve possível e,
para tanto, que o pai fizesse solicitação ao primeiro emissário que
preenchesse os requisitos.
Calhou-lhe que, acidentalmente, algumas horas antes de seguir para a capital, o fidalgo não estivera se sentindo bem. Isso
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
175
não é nada, disse-lhe Colbert, após auscutá-lo, convocado que
fora por serviçal de Monlevade. Fora a galope e instruído por Felicité a dizer somente que trata-se de emergência, doutor Colbert.
Essa respiração curta tem um nome, amigo fidalgo, chama-se
ansiedade. É a que normalmente se tem quando se vai a velório de alguma pessoa conhecida. Vou receitar-lhe alguns chás de
ervas calmantes de boa qualidade. O senhor as encontrará com
facilidade nas prateleiras de monsieur Paracelsus.
O fidalgo perguntou-lhe pelo preço da consulta, obviamente, devido às circunstâncias, feita nas dependências do próprio
castelo, enquanto Felicité do lado de fora da porta do quarto
ansiosamente aguardava o diagnóstico sobre o mal-estar súbito
do marido. Estava realmente assustada: ele chegara a desfalecer.
Não é nada em dinheiro, disse-lhe Colbert. Entretanto, como sei,
e para tanto não tenho quaisquer restrições médicas, que estás de
partida para Paris, o pago que lhe peço é entregar carta de minha
Angéline para seu filho Jean. Não creio constar nenhum segredo
de Estado. Aliás, como pai, essa é minha esperança. Ela pediu-me
confidencialidade, urgência e discrição. Sei poder contar com o
senhor em todos esses atributos. O fidalgo riu, enquanto, fazendo
uso do seu aguçado olfato, desfrutava da suave fragrância que
exalava do elegante envelope que lhe era entregue. Assim fico
imediatamente bom o suficiente para subir correndo, sem minha
bengala, até o pico do monte Kilimanjaro. É incumbência prazerosa. Assim foi.
Mas antes de sair teve tempo de contar o episódio para a
esposa. Ela disse-lhe inadvertidamente, não vais lê-la? O fidalgo estremeceu e ficou rubro com o pergunta da mulher. Felicité
nunca procedera assim. A princípio, qualquer correspondência a
terceiros, mesmo que não selada, como era o caso, deve ser vista somente pelo destinatário. A moça, Angéline, não lambera as
bordas do envelope com cola. Mas conteve-se. Lembrou-se das
recomendações que há pouco recebera de Colbert. A vida é breve
e todos nós temos teto de vidro. Não leve as coisas a ferro e fogo,
caro fidalgo. E saiu para fazer suas obrigações na latrina externa
que o filho fizera-lhe construir nas proximidades do quintal do
castelo. Não lhe agradava ir para a estrada sem tomar líquido e
fazer suas necessidades pessoais.
No entanto, ao dobrar a curva da parede lateral do edifício,
176
Jairo Martins de Souza
fez o que não costumava fazer. Fez vista grossa ao perceber que
Felicité rapidamente ia com as mãos de encontro ao embornal de
couro onde se achava a missiva. Não gritou, alto lá, nem disse
nada. Maria Vitória estava próxima e não vira que a mãe colocava a carta no punho do vestido e, por final, já se retirava, solicitando à menina que a deixasse sozinha por alguns momentos. O
fidalgo vacilou, mas decidiu manter-se calado. Ele absolutamente
não queria que a filha tomasse conhecimento do ato a princípio
insensato da mãe. Quando voltou, a carta estava cuidadosamente
colocada no mesmo lugar. Felicité estava de pé, reflexiva, ao lado
do cavalo selecionado para transportar o marido. Na caixa colocada na parte de trás viam-se algumas outras menores repletas de
pequenas pedras que o marido levaria para o filho Jean. Faziam
parte de sua coleção e tinham ficado, por excesso de carga, para
serem acrescentadas futuramente à sua mudança.
A filha não mais estava por perto. Não obstante, o fidalgo
decidiu calar-se quanto ao acontecido: fervia por dentro e estava
envergonhado. Falhara no zelo solicitado quanto à confidencialidade da encomenda. Absurdamente lembrou-se dos tempos de
farda quando de sua participação em campos estadunidenses.
Por sua grande determinação em cumprir corretamente o que lhe
era destinado, várias vezes vazara flancos inimigos para entregar,
intactas, correspondências secretas do alto comando do exército
francês.
A mulher simplesmente disse-lhe ao vê-lo com olhar de censura: sei o que pensas. Mas sou mãe. Tenho ética de mãe. Não é
que pense que Jean em algum momento da vida tenha fumado
haxixe junto com a namorada. Entretanto me agrada saber o que
pensam, o que pretendem para o futuro, se têm planos, se é que
os têm. Meu filho não é claro em suas intenções e a moça é decidida. Queres saber o que li? O fidalgo calou-se. Percebeu não
ser capaz de absorver totalmente o que lhe dissera a mulher. Mas
perdoou-a. Ela tinha razões de mãe. Parecia preocupada. Que
mais poderia dizer? Absurdamente manteria sigilo quanto ao ato
nefasto da mulher. E para não complicar seu estado de nervos,
tentaria desesperadamente esquecê-lo. Não. Não quero saber do
que se trata! Não quero saber o que diz a moça Angéline!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
177
VII
A carta roubada
A carta não estava recheada de enigmas como os costumeiramente desvendados pelo pai dos detetives literários, o famoso
Auguste Dupin. O senhor, por acaso, leu o extraordinário conto O
Mistério da Carta Roubada?...
Foi o que Tisserand disse, enquanto refletia sobre o impacto
que a quebra de sigilo daquela correspondência poderia ter causado na consciência inatacável do fidalgo Jean-François.
Um tanto retardadamente, respondi-lhe que sim. Eu havia
lido e gostado não somente daquele como também de outros
grandes escritos do mestre Edgar Allan Poe. Então ele comentou, antecipadamente, que não somente o pai sofrera quanto ao
episódio da carta entregue em Paris. Os efeitos no filho foram
obviamente amplificados. Tinha personalidade de ferro, forjada
na cultura e na família, mas não ficou imune aos devastadores
efeitos do documento enviado pela namorada...
Bem, vejamos o acontecido com as palavras originais do destinatário da missiva. O próprio Jean de Monlevade.
Esta carta, Martinho, foi como uma pancada no meu estomago. Golpe curto e seco. Não o desejaria para o pior dos meus
inimigos. Vou torná-lo mais breve ainda para você.
Estas foram as frases que, após recolher-se ao seu quarto, dissera para o meio-irmão. A delicada folha de papel que mantinha
nas mãos ainda exalava resquícios dolorosos de doce e conhecido
perfume de mulher. Tal como acontecia com o pai, a extraordinária capacidade de cheiros trazia-lhe eventualmente momentos de
grande dor. De costas para o irmão, tinha o semblante triste e fitava o lerdo movimento noturno de duas carroças que passavam
carregadas de mercadorias pela Saint-Jacques.
Com isso, prosseguiu, evito dor maior. Ainda que nem mes-
178
Jairo Martins de Souza
mo saiba o sentimento que se passa por dentro de mim. Orgulho
ferido? Talvez... Sempre tive perfeita consciência de amá-la, mas
esqueço-me dela com facilidade. O fato é que nem bem saí de
Guéret, e ela chega à conclusão que não me ama! Não que em
algum momento tivesse dito ou escrito isso. Ela nunca sussurrou
nem de longe nem de perto, eu te amo!
Mas deixou claro que gosta de mim de maneira muito especial. Aprecia minha inteligência, meu modo de ser, meu espírito
aventureiro... mas não o suficiente para compromisso de casamento. Resumindo, por dentro estou arrasado e até mesmo pensando em ir até lá para, de minha parte, fazer ajuste definitivo
dessa situação. Poderia voltar com papai ainda hoje...
Fosse você, não iria, o pai disse-lhe com a voz embargada.
Não vertera lágrimas como Jean, que parecia ter chorado, mas
tinha os olhos ligeiramente avermelhados pelo empoeirado da
estrada que fazia efeito tardio. Havia subido as escadas para o
segundo piso, dormiria no quarto do filho, e escutara acidentalmente parte da conversa. Não era homem de encostar ouvido em
madeira de portas! Tenho mais experiência com mulheres que
você, meu filho. Deixe-me contar uma pequena história de minha
juventude. Jean estremeceu. Martinho fez menção de se retirar.
Um pai nunca se dirigia aos filhos quanto a assuntos de foro íntimo. O pai postiço deteve-o com um gesto: pode ficar. O resultado
de sua ação foi explosivo e Jean, subitamente atento, por instantes desvinculou-se de sua própria angústia. A impressão que lhe
passava é que uma testemunha inesperada chegava para depor
em sofrido tribunal de júri. Poderia virar o jogo. O fidalgo finalizou
entrada no aposento e prosseguiu. Antes de conhecer sua mãe
andei enrabichado com uma moça que viera da cidade de Bordeaux. Apaixonei-me. Tinha os olhos embaçados pela paixão e
não reparava que ela era reticente quanto aos meus propósitos de
casamento. Conclusão, dispensou-me com os mesmos argumentos que ouvi você dizer a Martinho. Amaldiçoei minha aparência
e minha falta de jeito com as mulheres. Mas encantei-me pouco
tempo depois por outra jovem de distinta família de Guéret. Não
deu outra! Tão logo ficou sabendo do fato, a primeira, a que havia me dispensado, assediou-me dizendo que fora um engano,
que realmente gostava de mim e por aí vai. Cedi. Pouco tempo
depois voltou a colocar-me na mesma situação. Resumindo, não
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
179
exagero ao dizer-lhe que sofri como um condenado às galés, mas
não perdi a fé no amor. O verdadeiro vem na hora certa. E para
mim veio. O coração do jovem é como madeira de lei e não se
dobra a assédio de cupins. Desculpe a metáfora, pois sei que na
prática passas por difícil situação... e é por tudo isso que lhe disse
não ser adequado você insistir em procurá-la. Somente lhe trará
mais sofrimento. Agradeço-lhe pelo conselho, papai. Mas não é
bem a mesma situação. Parece-me ter também que passar por
isso. Aprender com minha própria experiência. Fazer como Tomé,
e ver com meus próprios olhos. Cada caso é um caso. Não ficarei
tranquilo pelo resto dos meus dias se não esclarecer vis a vis, frente a frente, minha situação com Angéline. Se não se importa, irei
com você de volta para Guéret.
O pai assentiu sem mais comentários. Ficou-lhe claro que seu
rapazinho encontraria saída honrosa para a família. Não. O filho
não seria encontrado bêbado em tavernas parisienses por causa
daquele espartilho!
No dia seguinte almoçavam juntos no castelo Monlevade.
Felicité e Maria Vitória ficaram radiantes com o imprevisto! Jean
disse-lhes estar lá simplesmente porque aproveitara a companhia
do pai, bem, matava saudades dos seus amados.
Mais tarde seguiu sozinho para Guéret, pedira ao pai para
não acompanhá-lo. Chegando lá, amarrou o cavalo em pau de
madeira que ficava próximo ao armazém de Platini e, instantaneamente, decidiu procurar os amigos somente após conversar
com Angéline. Faltavam-lhe condições psicológicas e não poderia
arriscar-se a perder o foco de sua viagem. Os sinos da igreja bateram dezesseis horas. A tarde findava em termos práticos, pois
o dia já se tornava escuro e não demora as lamparinas seriam
acesas e, na maior parte das casas, todos teriam jantado.
Tomou a direção da casa de Angéline. Para sua sorte, as ruas
estavam vazias e não perderia tempo para conversa com conhecidos com os quais não poderia deixar de trocar algumas palavras.
Ser-lhe-ia penoso mentir quanto à razão do seu abrupto retorno.
A casa do médico Colbert ficava na rua principal e mais próxima
da farmácia de Paracelsus do que da igreja. Daí, Jean lembrou-se
de que o médico caçoava dizendo que, em se tratando de enfermidades, acreditava mais na ciência do que em providências
divinas. Deus não pode se ocupar com assuntos terrenos de um
ou outro indivíduo, dizia. Tem missões mais importantes em sua
180
Jairo Martins de Souza
agenda. À vista do seu destino final, fê-lo recuperar que as janelas
e a porta de entrada, assim como as demais que lhe eram vizinhas, ficavam contíguas à calçada da rua. Estava ansioso. Sorriu
nervosamente ao pensar que se tivesse um charuto ao alcance,
seria capaz de fumá-lo. Mil ideias passavam por sua cabeça. Inclusive suspeição de estar sendo observado através de frestas de
janelas e portas. Notou que todas estas últimas estavam fechadas.
Isso fez com que hesitasse mais ainda em bater na que se avizinhava e que tinha duas bandeiras estreitas. O coração saltou-lhe
no peito ao rever a pequena plaqueta onde se viam claramente
escritas as palavras, Colbert Boyer, Médecin. Jean analisou-as.
Estava ainda indeciso. Não bateu. Voltou a caminhar pela rua
e passou pelo local observando-o despistadamente. Uma. Duas.
Três vezes. Pensou em desistir e voltar para Monlevade, e depois
para Paris o mais rápido possível. Finalmente, toc, toc, toc...
A velha senhora que o atendeu disse Colbert ter saído para
atender parto complicado em castelo localizado em área rural.
Não. Não sabia onde. Somente podia informar que era atendimento demorado, pois a filha o acompanhara e, provavelmente,
passariam a noite fora. Jean agradeceu-lhe um tanto quanto confusamente. Por fim, voltou-lhe as costas e retornou ao ponto onde
amarrara seu cavalo.
Melhor assim, suspirou. Sua intenção agora era a de que Angéline jamais soubesse de sua estada em Guéret. Veria rapidamente os amigos, dormiria com os pais e a irmã em Monlevade,
e partiria na manhã seguinte de volta para Paris.
Assim fez. Mas tão logo manifestou intenções de retorno imediato com os amigos Platini e Fontaine, o segundo disse-lhe ter
que buscar mercadorias na capital. Não. Não é que fossem de
urgente necessidade, mas poderia antecipar viagem e levá-lo consigo. Aguardaria Jean na porta do armazém no dia seguinte pela
manhã.
Poucos quilômetros antes de chegar à capital, Jean já havia
afastado sua decepção amorosa para algum canto que não mais
o incomodasse. A sensação de recusa nunca é agradável, mas era
homem feito. A barba no seu rosto crescia como mato raso em
campo aberto. E não é que não tivesse consciência que o incidente ficara mal resolvido, e que seu epílogo, ainda que decidido,
mantinha-se sem a frase final. Já em certo trecho da viagem che-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
181
gara à conclusão que ouvira várias vezes da boca do pai, o que
não tem remédio, filho, já está remediado. Por outro lado havia
também a eficiente regra da substituição, enfim, não se esquecera
do que havia acontecido na casa dos Pius em dia anterior. As
irmãs du Lac eram bastante atraentes. E Monique confessara ter
gostado do modo atencioso e prestativo de Martinho. Não descartaria a possibilidade de que juntos pudessem frequentar a casa
das duas irmãs, caso o meio-irmão estivesse de acordo. O pai
delas, monsieur Secundus, conversara amplamente com ambos.
Bom sinal. E melhor ainda foi que, à medida que os minutos passavam, sua juventude permitia que o bonito rosto de Bernadette
fosse, aos poucos, substituindo a face não menos bela de Angéline. E assim a curta viagem seguia também acompanhada pelo
bom humor de Just Fontaine que, como sempre, descrevia mais
viagens que fizera com o sócio.
As paisagens do Maciço Central enchiam de luz os pensamentos dos dois viajantes.
182
Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
183
VIII
A Polytéchnique. Bonaparte dá demonstração de
confiança em Monlevade!
As du Lac eram sobretudo receptivas e acolheram Jean e Martinho de braços abertos. O pai, Secundus, ainda que discretamente
desconfiado, recebeu-os também de forma mais que amistosa.
Imaginou ficar no lucro se pelo menos um deles viesse a se tornar seu genro. Assim, parte dos dias que antecederam ao início
das aulas na Politécnica e no Lycée Napoléon foram de agradáveis conversas, e carícias furtivas, na aprazível propriedade que
a família do viúvo habitava nos arredores de Paris. As moças
eram bem formadas e estudavam música e línguas estrangeiras
por meio de professores particulares. Tia Lucillia Pius, por livre
e espontânea vontade, encarregava-se de espionar as atividades
parisienses dos rapazes, e as mantinha informadas do dia a dia
dos seus hóspedes.
Jean e Martinho não se sentiam ameaçados em maior escala pelos olhares sedutores de Bernadette e Monique. Nada de
noivados precipitados. A ideia era de simples desfrute, coisas
da juventude, suas prioridades eram outras. Na verdade não se
descuidavam da preparação para enfrentar o início do período
escolar. Jean esgotava quase todo o seu tempo livre passando
os olhos nos livros do estoque de Bènèdict Dubois. Virava e revirava as páginas da primeira edição dos 35 volumes da fabulosa
L’ Encyclopedie organizada em 1751 pelo eminente Diderot. Tentava controlar desejo de conhecer todas as coisas de uma só vez,
pois identificava um novo mundo em cada obra que tocava as
mãos. Aí aparecia a bem-aventurança de ter amigo com propósitos semelhantes. Continha-se trocando ideias com Kostas sobre
prioridades de o que ler em primeira instância.
184
Jairo Martins de Souza
Dubois apreciava a ansiedade do moço. Antes fossem assim
todos os estudantes do Quartier Latin, dizia consigo mesmo. Já o
Breu, em vista das necessidades do dono, estava um tanto obeso pela falta de atividade no campo. Jean raramente saía com o
animal pelas ruas e redondezas, e as únicas pedras que seu cão
andava abocanhando eram as que, brincando, jogava para que
as buscasse no quintal dos Pius.
31 de outubro de 1809. Finalmente o primeiro dia de aulas.
Nas horas iniciais de apresentação do ano letivo, a Politécnica
efervesceu com a chegada dos novos estudantes. A maior parte já
se conhecia diante de presença antecipada nas ruas de Paris enquanto buscavam moradia e faziam reconhecimento da cidade,
dos bares, parques e demais amenidades. Outros apresentavamse entre si e faziam troças introdutórias. Pouco durou. Como sabido, a escola era lastreada em moldes militares e os iniciantes
foram rapidamente colocados em forma e seguidos os procedimentos protocolares de homenagens à pátria. Os alunos veteranos estavam também presentes trajando reluzentes uniformes de
gala e chapéus crista de galo.
Jean estava exultante! Sabia que este ano servir-lhe-ia para
aprofundar conhecimentos sociais. Não. Não é que a ciência fosse
deixada de lado. Mas, de início, o propósito essencial da Politécnica era o de elevar a consciência do aluno transformando-a na
de cidadão. Era sua filosofia de ensino permanente, ainda que
andasse criando algumas situações desagradáveis. Alguns cadetes
às vezes se mostravam contrários ao regime e repeliam ostensivamente certas orientações do governo.
Daí para frente sempre foi assim! O senhor se lembra dos
protestos de 1968? Tisserand justificou. Paris foi incendiada! E o
foco da revolta e da insatisfação partiu exatamente das universidades de Nanterre, da Sorbonne... e da Politécnica em que Jean
começava a ser integrado. Não somente os estudantes pediam
reformas como também o país estava desgastado com a guerra da
Argélia. É o que gerou o famoso “é proibido proibir”, e provocou
a queda do prestigiadíssimo herói da Segunda Grande Guerra, o
Marechal De Gaulle. Isso teve efeito dominó em todo o mundo,
pois alcançou rapidamente a Universidade de Berkeley, na Califórnia, e fermentou o descontentamento que lá já era grande. E
enquanto os universitários ianques pediam o fim da guerra no
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
185
Vietnã, os hippies arregaçavam as mangas e praticavam a contracultura. Nada de cabelo escovinha. Nada de terno e gravata.
Nada de cigarros finos e uísque. Tudo de maconha e drogas pesadas. Foi por meio dessas que os Beatles escreveram parte de sua
história musical. Não é por outra razão que Lennon e McCartney
criaram Lucy in the sky with diamonds... A garota com olhos de
caleidoscópio.
Aconteceu daquele jeito, Tisserrand prosseguiu, e culminou
com a promiscuidade do festival de Woodstock em 69.
Tudo isso (ajunte-se aqui o I had a dream, que foi como ficou
conhecido o sonho do pastor Luther King) fez detonar o prestígio
do então presidente Lyndon Johnson. Um fato notável estava por
acontecer. Os negros nunca mais seriam proibidos de frequentar
banheiros de brancos ou assentar-se nos bancos da frente de conduções! No Brèsil os protestos da distante Polytéchnique ecoaram
por meio dos estudantes que levantaram bandeiras contra o regime militar. A geração de 64. O resto o senhor já sabe.
E desculpe-me por tais divagações, Tisserand disse-me com
olhar suplicante. No fundo partiram de exemplo tomado da longínqua revolução francesa dos tempos de infância, e adolescência, do filho do fidalgo Monlevade.
Respondi-lhe calmamente, entendo! E confirmei com sorriso
tímido. Ele agradeceu-me dizendo, merci, e então esclareceu que,
a bem da verdade, fica aqui estabelecido que desde o findar do
século dezoito os colegas de Jean de Monlevade sempre tiveram
atitude de recusa quando julgavam estar a nação prejudicada.
E não era incompreensível o gosto que o imperador devotava
à Polytéchnique. Nela repousavam as ideias dos enciclopedistas e
o Iluminismo. E foi a excelência do seu ensino que a fez tornar-se
a menina dos seus olhos. Tanto é assim que, em 1798, na campanha do Egito, levou consigo quarenta e dois dos seus alunos. No
final recheou o estoque de arte egípcia do Louvre.
Pour la Patrie, les Sciences et la Gloire (pela pátria, pela ciência e pela glória). Essas palavras tornavam patente o propósito
que a nação esperava da Politécnica. Mais ainda, resumiam o
pressuposto ideal de Bonaparte. A pátria em primeiro lugar!
O comandante da instituição passou em revista a tropa de
estudantes já uniformizados, mas ainda desprovidos de espírito
de caserna. Recebeu-os com palavras de incentivo e confiança
186
Jairo Martins de Souza
no futuro técnico da nação. Estamos defasados em relação aos
ingleses e alemães. A França precisa investir em projetos industriais de porte e de infraestrutura. E de modernizar sua máquina bélica. A grande Enciclopédia de Diderot e D’Alembert diz da
importância das especializações na engenharia de guerra. A de
ataque e defesa. A de construção naval. E a de pontes, inclua-se
aí as flutuantes, que façam nossas divisões atravessarem rios de
águas caudalosas de um dia para o outro. E estradas. E grandes
canais de águas e, finalmente, o apoio simultâneo à estrutura de
construção civil.
Enquanto observava atentamente o rosto de cada novo aluno, o oficial acrescentou que a matemática teria prioridade máxima. E que, por exemplo, o domínio das teorias de probabilidades
dá mais precisão à logística de deslocamentos de homens, cavalos, canhões, carroças de carga, intendência e comunicação entre
divisões de combate. Faça-se aqui justiça a Fermat e a Pascal:
foram-nos de grande valia neste campo... A Politécnica, senhores,
foi criada para fornecer cérebros capazes de prover inteligência a
tais intenções.
Foi mais ou menos assim, Tisserand prosseguiu, que o militar
disse estar encerrando participação na cerimônia, e informando
com sorriso alvissareiro que o melhor estava ainda por vir, e que
estava feliz por estar ali presente, enfim, como a aplicação de todos
seria importante para o progresso tecnológico do povo francês.
Terminado o ritual de boas vindas, foram ouvidas outras autoridades governamentais e convidados ilustres.
Perfilado e, ao mesmo tempo, atento aos discursos que ditariam seus próximos anos, Jean lembrava-se dos esforços que
fizera para estar ali perante tantas autoridades. Por exemplo, nas
madrugadas escuras de Monlevade, estudara antecipadamente
os seis volumes do curso completo de Matemática de Etienne
Bézout. Deu certo. Era a bíblia da matéria fosse o propósito de
alguém conseguir acesso à Politécnica. Nela a geometria era priorizada em relação às enigmáticas soluções algébricas.
O manual do aluno lhes foi passado com extenso leque de
recomendações, ressalvas e normas de comportamento social.
Destacava essencialmente que mesmo o militar não credenciado
tem papel social distinto e é, por excelência, o braço armado da
Nação. Logo após o encerramento da cerimônia, todos se enca-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
187
minhariam para aula inaugural celebrada em alto estilo e grande
pompa. Monlevade sorriu. A cerimônia dizia-lhe ser homem formado, e obtendo certificado de aceitação na duríssima sociedade francesa. Breve vestiria casaca, calção justo, meia-calça, boné
francês, laçarote e sapato de campanha. Botões e galões dourados sobressairiam nas mangas do casaco e no quepe do boné.
O mesmo uniforme do soldado de infantaria do exército francês, Tisserand esclareceu. A partir de 1804, por ordem expressa
do imperador, era a vestimenta oficial dos alunos da Politécnica.
A Polytéchnique. Nas celebrações festivas ostentavam um pesado
fuzil: na ponta do seu cano reluzia afiada baioneta.
Maior ainda foi seu estado de encantamento ao lembrar-se
que Monge, o grande geômetra, pudesse vir a ser seu professor!
Seu rosto espalhava sentimento de felicidade. Lembrou-se de
algo que lera sobre a escola que Pitágoras (que não deixava de
ser um conterrâneo de Kostas), fundara bem antes do nascimento
de Cristo. No seu portal de entrada, diziam estar escrito: Não entre
aqui quem não for um geômetra. Conteve a custo o riso. Temia ser
mal interpretado pelos colegas e oficiais que compunham a tropa
de iniciantes. Não entre na Politécnica quem não for... um Monge!
Foi quando a autoridade que falava passou a palavra final
que estava reservada para o imperador. A grande atração do
evento. Próximo a ele, Eblé. Em carne e osso. Jean o conhecia
muitíssimo de nome. Era o respeitado general chefe de engenharia do exército nacional. O jovem levantou mais o peito e afundou
a barriga. Uma fração de segundo depois elevou o solado traseiro
do grosseiro sapato militar. Sentiu-se mais alto. À medida que
Bonaparte falava, percebeu a energia que emanava do corpo do
comandante supremo em posição assumida de quem se prepara para o combate. Diante de quem causava calafrios em reis e
generais de todo o mundo, calha bem o silêncio e, no pátio da
escola, não se ouvia nenhum outro som. Jean mal respirava!
Fosse o caso, Tisserand ilustrou, ouvir-se-ia o bater de asas de
minúscula mosca.
Da pesada cabeça, afundada em um curto pescoço que parecia unido aos ombros arqueados, destacava-se o poderosíssimo
rosto com seus insinuantes olhos cinza claros. Aos 39 anos, as palavras saíam-lhe da boca com facilidade criando, em alguns, sentimentos de temor; em outros, adoração. Fascinantes. Persuasivas.
188
Jairo Martins de Souza
Monlevade experimentava no ar uma inusitada sensação de
força e poder! O sacrifício do pai, feito coxo por ferida de batalha, assomou-lhe à cabeça. A imagem de breves relatos de outros
militares sacrificados em combate complementava o cenário. Naquele momento, para ele, a morte digna seria a de um soldado
em batalha.
As palavras faltam-me quando relato tais imagens, Tisserand
desculpou-se. Então, para que tenhas noção precisa do idealismo
de que Jean estava possuído, é bastante excluir do mundo a arte
de Goya. Francisco Goya. Ainda que reconheça, confessou, ser
solução excessivamente dramática, pois a obra do espanhol expressa obsessivamente a verdade. Mas também é verdade que a
figura exponencial do imperador que discursava abortaria quaisquer imagens dos 80 quadros da famosa série Désastres de La
Guerra. O cadete Monlevade rasgaria tais telas com a baioneta
do seu fuzil.
Napoleão, Tisserand prosseguiu, a despeito de algumas qualidades, enganava o povo assim como fazem todos os déspotas!
E as pinturas do artista espanhol retratam a crueldade da invasão
à sua terra que o imperador iniciara um ano antes de Jean entrar
para a Politécnica. Pisara a península ibérica como pneu de bicicleta que atropela formiga miúda. Após a fracassada experiência
russa, a situação se reverteria. Nem Jean, nem qualquer dos outros aspirantes, tinha consciência da insanidade das pretensões
de conquistas do grande orador.
E o fidalgo Monlevade parecia estar ali cochichando palavras
de incentivo nos seus ouvidos. Não mais ouvia a voz do imperador que prosseguia discursando. O pano de fundo era o bater
distante de tambores. De forma inusitada um intenso sentimento
de orgulho e destemor caminhou por suas veias e artérias. Arrepiou-se. Por instantes, novamente sentiu-se audacioso soldado.
Estivesse em campo de batalha, avançaria em linha reta até onde
encontraria em trincheiras o acovardado exército inimigo!
Na sua passagem pela tropa escolar, o imperador pareceu
ter assentido com a cabeça ao fitar o filho do fidalgo Monlevade.
Explicara anteriormente que sairia mais cedo devido a compromissos inadiáveis. Olhar penetrante. Poucos no mundo podiam
sustentá-lo. Tomado por intenso rubor, o jovem abaixou timidamente o rosto.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
189
No entanto teve tempo para captar sensação de ter lido algo
nos lábios do Marechal. Do alto do seu trono, Bonaparte nunca
deixaria de ser um militar. Pareceu-lhe terem sido frases vagarosas, conto com você, Monlevade. Você é do meu corpo de inteligentsia. Vai ajudar a expansão dos ideais franceses para outras
terras e continentes.
Ecoou pelos ares sequência planejada de tiros de mosquete.
O imperador voltou-se para a saída acompanhado por sua guarda pessoal.
Não era qualquer pedido pessoal de Bonaparte certamente
irrecusável? O jovem respirou fundo. Passaram-se alguns poucos
minutos até que voltasse à posição mais relaxada de descansar.
A cerimônia se alongava. Um dos noviços, levado pelo cansaço e pela madrugada gasta em taverna do Quartier, assustou
os demais colegas ao desmaiar. Estava extenuado. Quase desmanchou a formação, como se tivesse tido ideia de provocar um
incontrolável efeito dominó. Foi sustentado pelos colegas, mas
vergonhosamente teve que ser conduzido até a enfermaria.
Felizmente Napoleão já havia se acomodado na poltrona de
veludo vermelho de sua confortável carruagem. Não abriria a
cortina de sua janela, no entanto viajaria ovacionado pelas ruas
de Paris! Demorara mais que o previsto para chegar à porta de
saída. A caminhada fora interrompida, em vários momentos, para
atender a demonstrações de apreço de alguns oficiais que haviam
participado de campanhas passadas. Daí a minutos, seguiria célere acompanhado por pesada estrutura de segurança e apoio.
Alguns cavaleiros vestidos com uniforme de gala preparavam-se
para subir em seus cavalos. Mas o grosso da movimentação girava em torno do séquito de carruagens e carroças de apoio que
ultimava detalhes para a partida.
Desde os tempos dos faraós funciona assim, Tisserand comentou com ar de tristeza. Os custos de deslocamentos de imperadores e presidentes sempre foram elevadíssimos. Pense na
penúria do povo francês na ocasião. Reflita sobre nossos dias atuais. Inclusive os do Brésil. Poucos fazem ideia de quanto se gasta
quando um rei ou presidente vai de uma cidade A para outra
B. Há ocasiões que nem fazem discurso. Rasgam fitas simbólicas.
Participam de festas e jantares. Três horas depois fazem o mesmo
em outra cidade ou Estado. A cada uma delas o gasto poderia le-
190
Jairo Martins de Souza
vantar hospital de porte médio. Ou grande escola. A cada passeio
tudo começa do zero. Assentos de aeronaves. Carros. Cerimoniais.
Convidados. Helicópteros. Horas extras. Hotelaria. Jatos privados.
Logística. Milhares de pessoas. Pessoal de segurança. Políticos. Políticos... A maior parte deles não deve ser levada a sério!
Mesmo movido por impulso inicial, não retruquei nada sobre
a última frase do estrangeiro. É verdade que circula pelo mundo!
E ele, dando continuidade à descrição que desviara curso, informou terem sido os novos politécnicos encaminhados para aula
inaugural e, posteriormente, para suas classes. Lá Jean soube ser
o aluno de número 52. Tanto nos quartéis quanto nos colégios militares, para alguns propósitos, deve prevalecer o princípio da impessoalidade. O recruta é um deles. O indivíduo é simplesmente
associado a um número. Monlevade fica então ligado ao 52.
Não sei se essa era o posição com a qual fora classificado entre os jovens nacionalmente ingressados naquele ano, Tisserand
admitiu. O número foi o de quatrocentos. Pode ser. O fato é que
as aulas introdutórias e as atividades físicas foram intensas nos
primeiros dias.
O período de adestramento perdurou por poucas semanas.
Monlevade, assim como os outros noviços, sofreu na própria pele
as consequências da dureza da ideologia de formação militar.
Leva-se o homem a zero para forjar a condição de inferioridade
inerente à disciplina hierárquica. Para tanto o sinal de continência
ao superior é pormenor indispensável.
O que, por sinal, foi circunstância única de constrangimento
para Jean durante sua fase inicial de adaptação. Estava absorvido circulando pelo pátio da escola e, inadvertidamente, passou
por oficial de alta patente sem prestar-lhe a devida reverência.
O coronel chamou-lhe rigorosamente a atenção e Jean sentiu-se
extremamente humilhado. Não foi somente isso. Teve que fazer
diversas flexões comandadas por sargento que, para tanto, fora
convocado pelo irado oficial. O pior é que fora obrigado a ficar
retido no quartel em dia em que haviam, ele e Martinho, programado visita às irmãs du Lac. Não se aborreça. Foi o que Martinho
disse-lhe dias mais tarde. Isso vai passar.
Além do que as escolas militares funcionam da mesma maneira que os quartéis, agora foi Kostas Zavoudakis quem acrescentou. É lei geral. Por todo mundo é assim. Parece-me que os
soldados de todos os cantos leem os mesmos livros. Não têm ou-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
191
tro recurso. A Arte da Guerra de Sun Tzu é apreciado há mais de
2000 anos. Recentemente é que Napoleão fez restrições às manobras intelectuais de O Príncipe, do florentino Maquiavel. Para
o militar em combate, o casaco roto é arma única para combater
o frio do inverno. A ideia é reducionista. É a de transformar o cidadão em elemento. Na Grécia não é diferente. Faz-se com que o
recruta beije o chão para lembrá-lo de sua condição de obediência irrestrita. Na guerra o canto do cisne é o hino nacional, Allons
enfants de la patrie, le jour de gloire...
Então eu disse a Tisserand que o mesmo fazem os brasileiros
antes dos jogos da sua seleção de futebol, Ouviram do Ipiranga às
margens plácidas...
Ele sorriu. E, um átimo depois, disse também gostar de outras
áreas esportivas, inclusive competições de ciclismo. Na França,
explicou, o ciclismo tem adeptos desde o porto de Calais até os
Montes Pirineus. Desde o Norte até o Sul. Quem, no mundo, nunca ouviu falar do Tour de France? No entanto, disse-me que preferia não se alongar no tema, pois o tempo estava se escoando. Eu
lucraria mais, finalizou, se imediatamente prosseguisse ouvindo
o que Kostas Zavoudakis dizia a Monlevade. O grego procurava
contemporizar, o assunto prosseguia sendo a detenção transitória
que este havia sofrido...
Muitos, no mundo, gostariam de estar no seu lugar, Jean. O
fechamento da Academia de Ciências fez com que outros grandes
mestres tenham ido para a Politécnica. Não se surpreenda, se,
com a ausência de Lagrange, seu professor de Cálculo venha a
ser o próprio Fourier! Você é da Polytéchnique e, portanto, terá, aí
é que deverá ficar atento, nos seus calcanhares, mulheres interessantíssimas à caça de marido. As du Lac são exemplos disso. Não
é soldado raso. Seu fuzil não é extensão do seu corpo... como do
soldado raso. Um braço. Uma perna a mais... bem, nada o impedirá de ter contato direto com o próprio imperador!
Foi aí que, intempestivamente, o grego teve que interromper
seu raciocínio e pediu licença para atender chamado de Bènèdict
Dubois. O livreiro estava tendo dificuldades para entender o que
lhe solicitava cliente com sotaque especial!
192
Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
193
IX
João Gomes Abreu de Freitas
O capitão João Abreu de Freitas estava na França há apenas dois
dias. Figura de realce na Província de Minas Geraes, deixara esposa e filhos há prolongadas semanas para realizar velho sonho
de conhecer a Europa. Não lhe agradava viajar desprovido de
mulher, mas sua senhora alegou não suportar viagem de tão longo curso. Tinha tendência a enjoos de tal monta que suaves solavancos de charrete provocados pelas ondulações das estradas
próximas já lhe criavam desconfortável ânsia de vômito. Imagine
o que aconteceria no convés de um navio! O senhor, a esposa
dissera-lhe, teria que gastar todo o seu tempo derramando baldes
de água doce na minha cabeça!
Freitas curvou-se diante da alegação. Viajaria só. Consolouse mais ainda ao se lembrar que a mulher não suportava ausência
de casa. O zelo e o amor que tinha pelos filhos, os pais em idade
avançada, suas coisas, seus escravos, ajuntar-se-iam a outros incontáveis motivos. Tanto era assim que a viagem mais distante
que fizera fora até Vila Rica, a capital da Província. Ah, viagens
marítimas... Ela não conhecia, não tinha saúde, e nem mesmo
interesse em participar de uma delas!
Já na casa dos cinquenta, há anos o capitão vinha postergando a empreitada europeia que, de fato, se resumia a intenso
desejo de pisar os solos da França e de Portugal. Lisboa e Paris. A
primeira por ser terra dos avós e Paris, bem, Paris era o centro da
cultura mundial da época.
Era daqueles homens que apreciavam a leitura, mas sua intensa participação na vida da província, e na de suas propriedades, dificultava acesso a obras literárias e a viagens que almejava
fazer. Com algumas restrições, em termos formais, fora bem educado de berço. Aprendera a gramática, o latim e o francês: língua
194
Jairo Martins de Souza
que chegou a dominar razoavelmente, mas, pela falta de uso, caíra no esquecimento.
Homem prático, visitaria museus e as Tulherias, mas tentaria
entender melhor, in loco, o que acontecia na Europa e suas ligações com Portugal. A expectativa era união do útil ao agradável.
O fato é que, enquanto a temporada de inverno dava sinais de
chegada em Paris, a floração do café prometia safra alvissareira em suas áreas agrícolas do Vale do Piracicaba. Aproveitaria
estada para estudar possibilidade de negociação direta com importadores europeus. A ideia de redução de interferência de atravessadores cariocas – e de funcionários de firmas inglesas – estava há tempos germinando em sua cabeça. Visitaria fábricas de
equipamentos agrícolas. No Brasil não existia fundição de ferro
suficiente para fornecimento de ferramentas nem em quantidade,
nem em qualidade. E, pior ainda, Lisboa havia cerceado a criação dessas indústrias e ordenado destruição das existentes.
Encurtando as palavras, o ferro importado não era bastante
para ampliação dos seus negócios e suas terras. Os esforços e os
recursos das fundições coloniais, diziam os portugueses, devem
ser prioritariamente destinados para o fabrico de ferramentas de
extração de ouro e diamantes. A colônia nos é de grande utilidade
para comercializar esses produtos. É o que nos dá dinheiro para
cobrir despesas de além-mar.
Situação constrangedora! Por incrível falta de matéria prima,
os ferreiros das redondezas não davam conta de atender a forte
demanda dos domínios agrícolas de Freitas. Ele ouvira rumores
de que em breve isso iria mudar, mas por enquanto... por enquanto tentaria importação direta.
A oportunidade daquele ano de 1809 não podia ser perdida.
O gado engordava e o charque era produzido em grande quantidade e, apesar das estradas ruins e falta de pontes, chegava a
bom preço no mercado carioca que fora grandemente reforçado
pela chegada da corte do futuro João VI. Estava faturando bem
e a perspectiva era a de que os negócios seguissem a todo vapor.
Cerca de doze mil novos consumidores de elite. A maioria alimentada pelo erário imperial. O problema é que este, o que não
se trata de novidade, costumava não honrar compromissos. O
capitão ouvia queixas inesgotáveis de parceiros que compunham
o grosso do comércio da cidade. O pessoal do Ministério de Ne-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
195
gócios do Reino fornecia bilhetes de crédito às vezes de difícil
resgate.
Então parte do que lhes seria destinado, assim como o excedente de produção, poderia ser absorvido por empresas de shipping supply de frotas de navios transoceânicos. Era o que também
pretendia negociar com investidores franceses que se dedicavam
ao ramo. A falta de alimentos de qualidade durante sua própria
viagem é que lhe abrira os olhos para a oportunidade de novo
negócio. Gastara quarenta e oito dias para chegar até Lisboa, o
corpo enfraquecera, sentira na própria pele a carência de suprimentos básicos na embarcação. E foi após passar por tais desconfortos é que prosseguira por terra, e em melhores condições de
abastecimento, até Paris, seu destino final.
A empreitada não foi fácil de ser levada a cabo. Portugal estava em estado de guerra declarada contra o governo de Napoleão
e Freitas havia conseguido entrar no país sob auspícios de amigos influentes no comércio internacional. O fato de ser brasileiro
ajudou bastante, pois os portos da colônia haviam sido abertos
para nações estrangeiras pelo império português. A França era
uma das exceções, mas era comum fazer negócios com países em
estado de conflito por meio de intermediários. Os governos lutam
entre si. As pessoas e empresas, não! Por exemplo, a partir do Rio
havia possibilidade de se levar café, açúcar e madeira para portos
do Mediterrâneo ou o de Rotterdam, nos Países Baixos. E, de lá,
por terra, seguiriam para os compradores finais. Bastava que se
ajustassem bem as cargas de navios e interesses dos armadores.
Transações triangulares. O frete ficava mais caro, mas funcionava.
Também Freitas acreditava que a situação de litígio entre Portugal e França não perduraria. E aí as madeiras de lei das suas terras
poderiam ser incluídas em pauta de exportação sem os atropelos
de costume. Os europeus e a revolução industrial consumiam-nas
com incrível voracidade. Barcos. Navios. Móveis. Casas. Nem se
mencione os promissores acionamentos a vapor! A Mata Atlântica
de suas montanhas era pródiga naqueles e em outros tipos menos
nobres de árvores. Com isso também abriria caminho para novas
áreas de pasto para o seu plantel de bovinos. Nem mesmo tinha
conhecimento do número total de animais que possuía!
Por fim, visitaria a faculdade de medicina de Paris. Um dos
filhos, que recentemente iniciaria estudos médicos no Rio, havia
196
Jairo Martins de Souza
lhe pedido permissão futura para completar sua formação acadêmica no estrangeiro. Freitas analisaria as condições. Quando
a situação diplomática melhorasse, poria em prática o que fosse
possível quanto ao assunto.
Mas para conseguir tais coisas, havia grande problema já citado por mim nas entrelinhas, Tisserand lembrou. O capitão João
Abreu de Freitas não se lembrava bem do francês falado. O ponto
positivo é que lia com certa facilidade, mas, reforço, carecia de
bons ouvidos e segurança suficientes para discutir questões delicadas que normalmente envolvem assuntos comerciais. A solução foi
intérprete arregimentado no Rio a troco de bom pago contratual.
Não passou de Lisboa. Resultado das agruras da travessia do
Atlântico, fase inicial da viagem, o jovem profissional sucumbiu
à má forma física de quem se dedica integralmente às letras. Mal
desceu do navio, foi levado às pressas e deixado sob tratamento
em hospital civil de uso exclusivo dos ingleses que, na ocasião,
detinham as rédeas de comando da capital dos lusitanos. Não se
recuperou a tempo.
Freitas seguiu em frente. Não era homem de desistir facilmente de suas empreitadas. Conseguiu sua meta e, em tempo hábil,
chegou a Paris. Comunicava-se por meio de sinais, e das poucas
palavras que exercitara pronúncia com o frustrado intérprete. Era
inteligente e acreditava poder melhorar com o passar dos dias.
É para tanto que entrara na livraria de Dubois. Um dicionário
de melhor procedência ser-lhe-ia de grande utilidade. Por hora,
contratara, com sucesso, serviços de hotelaria e alimentação no
hotel Saint-Séverin, localizado perto da catedral de mesmo nome.
E foi caminhando pelas ruas adjacentes que chegara à Saint-Jacques. Fora atraído pela exposição de livros colocados à vista por
Dubois e pegara um deles que, em especial, havia lhe chamado
atenção. Os autores estiveram em alguns limites de terras brasileiras! Folheou-o. Fazia parte de outros quatro volumes... O título
era Le voyage aux régions equinoxiales du Nouveau Continent,
fait en 1799-1804, par Alexandre de Humboldt et Aimé Bonpland.
Ainda no Brasil, Freitas lera sobre tal viagem em jornais que
lhe chegavam com semanas de atraso procedentes do Rio de Janeiro. Na ocasião, fora notícia de primeira página e tinha tido tanto destaque quanto o acompanhamento que os brasileiros faziam
dos fatos inusitados que se passavam em solo francês.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
197
Com isso não quero dizer que o habitante do Brasil de 1809,
e em particular a corte portuguesa, fizesse pouco caso da Revolução Francesa. Estaria cometendo pecado fatal, Tisserand disse. As
guerras e conflitos diplomáticos europeus eram acompanhados
por meio de informes e boletins reservados emitidos, tanto pelos
próprios portugueses, como também por espiões. Provavelmente
iam e vinham a cada navio aportado no porto do Rio de Janeiro:
Dom João mantinha-se vigilante em seu refúgio carioca.
E também não posso deixar de dizer, prosseguiu, que a obra
de Humboldt que o Capitão Freitas tinha em mãos havia mudado o conceito que os europeus tinham da América do Sul. Nem
tanto do Brasil, pois dele a coisa se deduzia por extensão: ninguém pode esquecer que os portugueses, a não ser por especial
licença, não permitiam que estrangeiros colocassem os pés no
solo de sua colônia. Haviam negado prerrogativa até mesmo ao
próprio Humboldt! Mas não há como esconder território de quase oito milhões e quinhentos mil metros quadrados! E a riqueza
dos dados e textos contidos nas páginas dos livros do alemão fez
com que o mundo compreendesse toda a riqueza e diversidade
dos solos americanos. Humboldt era um gênio! Abriu o diálogo
entre os hemisférios do globo, pois escreveu que os povos não são
melhores ou piores: são apenas diferentes. Antropólogo. Botânico. Diplomata. Etnógrafo. Físico. Geógrafo. Geólogo. Humanista.
Mineralogista. Vulcanólogo. Não fosse bastante, foi quem lançou
as bases para estruturar os estudos de Geografia, Geologia, Climatologia e Oceanografia.
Falava-se muito dele nas rodas intelectuais cariocas, tendo
sido grande o destaque dado pela imprensa à ordem de prisão
emitida contra ele pelo governo de Lisboa. Nas anotações do
abade a situação estava ressaltada em caixa alta!
Aí Tisserand explicou que essas são as razões pelas quais
João Abreu de Freitas passou a olhar algumas páginas da obra
que tinha em mãos com mais atenção. Foi quando ouviu algo que
lhe soou estranho.
Qu’est-ce que vous demandez?, o dono da livraria disse-lhe.
O brasileiro virou-se, atrapalhado. Estava tão absorvido por pensamentos que não observara a chegada de Dubois. E não entendera a pergunta. Ato contínuo disse sem pensar ao balconista, Je
suis Brèsilien, eu sou brasileiro. Dubois sorriu. A despeito da obs-
198
Jairo Martins de Souza
tinada ofensiva de Napoleão contra o povo lusitano, recebia muitas obras de Coimbra e vendia bastante os poemas de Camões. O
cliente falava português. Vou convocar Kostas Zavoudakis!
Não preciso lhe dizer, mon ami, Tisserand disse-me, que aí foi
o momento em que o grego havia interrompido sua conversação
com Jean nas linhas finais do capítulo próximo passado. Atenderia, convocado pelo patrão, a cliente que falava português com
sotaque diferente!
O longo período passado por Zavoudakis em companhia
do português João de Barro mostrou, pela primeira vez, grande utilidade prática. O cliente brasileiro rapidamente sentiu-se
à vontade, mesmo que ambos tivessem perdido alguns minutos
se adaptando. Ele, ao lusitano estrangeirado de Kostas. Esse, ao
sotaque brasileiro de um habitante das Minas Geraes. E que, esquecido momentaneamente do propósito inicial de aquisição de
dicionário, permitiu que o centro da conversa fosse o belo livro
que tinha em mãos. Os quatro volumes de Humboldt vendem
muito bem, Kostas assegurou-lhe. Não os li em detalhes, mas se
precisar de esclarecimentos, posso solicitar a um amigo que lhe
explique o que for do seu interesse. O homem respondeu que sim.
Gostaria de ter melhores informações. Kostas pediu-lhe licença e
encaminhou-se para o segundo piso da edificação. Quando voltou o jovem Monlevade estava ao seu lado.
Tenho praticamente de cabeça os segmentos do Le Voyage
que se relacionam a materiais vulcânicos e mineralogia, Jean disse-lhe. Kostas traduziu e imediatamente Freitas indagou-lhe o porquê de tamanho interesse. O moço poderia ser um dos seus filhos!
Eles também morriam de amores pelos minérios de sua terra!
Jean foi seco. Trata-se de amor antigo. No entanto, percebendo sua aparente indelicadeza, complementou que lhe agradava a
ideia de desvendar os mistérios da natureza. Em particular os dos
minérios e terras. Então você devia conhecer as minhas, Freitas
disse-lhe. Lá os minérios de ferro e alumínio afloram à superfície...
Bem, Tisserand disse parecendo estar com ar cansado, daí
se pode concluir que a conversa passaria a ser interminável. Que
fique o miolo dela a cargo da imaginação do senhor, mon ami.
Digo-lhe somente que, no seu término, o brasileiro preparava-se
para sair carregando em sacola de couro os volumes do Le voyage... como contrapartida deixara cento e quarenta e oito francos
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
199
pagos diretamente ao próprio Dubois. O livreiro ficara feliz e disse
para si mesmo recompensar especialmente a Jean por mais essa
venda. A Kostas caberia, conforme combinação anterior, pequeno percentual sobre o valor de capa.
No entanto não ficaria somente nisso, pois antes que se precipitasse para a Saint-Jacques, o grego trouxera-lhe dicionário que
sabia existir em prateleira pouco usada da loja. Tamanho fora
seu gosto pela conversação que o brasileiro não se dera conta de
que lhe faltara suprir o principal motivo de entrada no estabelecimento! O Nouveau dictionnaire Français-Portugais era de autoria
original do capitão Manuel de Sousa e fora atualizado, e editado,
sob a responsabilidade de Joaquim José da Costa e Sá. Custarlhe-ia mais 64 francos. O capitão brasileiro barganhou. Em minha
terra, Minas Geraes, se faz assim, disse justificando-se. Dubois,
após rápida avaliação mental, propôs-lhe total de duzentos francos. Negócio fechado. Economizara 12.
O comprador cumprimentou a todos pela gentileza do atendimento e, finalmente, tomou direção do hotel Saint-Séverin. Dissera que iria voltar.
Dois dias depois cumpriu a promessa. A ideia era aguardar
pelo sábado seguinte, pois tivera conhecimento que o jovem
Monlevade estaria ocupado ao longo da semana. O rapaz se interessara fortemente pelas coisas e pela descrição que fizera de
sua fazenda de São Miguel do Piracicaba. E o capitão Freitas, não
obstante a dificuldade de comunicação, contaria as horas para ter
com ele mais alguns dedos de prosa.
Kostas havia colaborado impecavelmente para que se fizessem entendidos. Mas uma semana é muito tempo para quem está
só em país estrangeiro! Frustrado por não estar logrando êxito
para iniciar suas gestões comerciais, o brasileiro resolvera procurar ajuda a quem achou ter competência para tanto. Não conseguia se comunicar. O aforismo de que qualquer ideologia sempre
deve ser associada a um orçamento, fê-lo decidir deixar as tão desejadas visitas culturais para após a conclusão de sua agenda de
possíveis negócios. Ficaria por duas semanas. Decidira que fosse
ou não bem sucedido, uma delas seria dedicada à exploração da
cultura e dos museus.
No entanto, por ora sua intenção era reencontrar o grego chamado Kostas. Kostas Zavoudakis. Tinha pressa!
200
Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
201
X
O Brasil de 1809, segundo a visão do capitão Freitas
É período pequeno, Bènèdict Dubois disse a Kostas Zavoudakis.
E perante as circunstâncias não posso impedi-lo de aceitar a proposta do capitão Freitas. Sentir-me-ia constrangido. Vinte mil
francos é muito dinheiro! Em duas semanas receberá o que posso
lhe em pagar em dois anos. Reconheço, Kostas, que o movimento
cresceu com sua participação na loja. Você é bom de trato com
o público. Alguns clientes, a maioria estudantes, têm denunciado
veladamente preferência de serem atendidos especificamente por
você. Explica bem o conteúdo das obras. É honesto. Não esconde
se são boas ou não para essa ou aquela disciplina... bom, sei não
ter sido assim, mas você dá ideia de ter nascido com a barriga
por trás de balcões. E, portanto, sabe que mesmo precariamente
posso dar conta do recado sozinho.
Diante dessas palavras de Dubois, Tisserand prosseguiu, não
creio ser preciso reforçar que Freitas havia proposto ao grego o
serviço temporário de intérprete. Por quinze dias contados a partir
do momento de fechamento do negócio. Cinquenta por cento do
valor a ser pago de imediato. Os restantes 10.000,00 francos, no
final do período ajustado. Kostas estava absolutamente exultante.
As negociações só não ficaram acertadas em segundos porque
ambos concluíram que, para tanto, careciam da aquiescência de
Bènèdict Dubois.
Foi o que vimos acontecer algumas palavras atrás. Kostas
mudar-se-ia temporariamente para o hotel Saint-Séverin à custa do brasileiro. Mas manteria valor a ser pago ao casal Pius: o
combinado incluía acompanhar o capitão vinte e quatro horas
por dia.
Quando estavam de saída, Monlevade surgiu do nada vestindo o celebrado uniforme da Polytéchnique. Parecia orgulhoso
202
Jairo Martins de Souza
do fardamento. Um dos professores adoecera, e ele pedira licença
especial para tratar de problemas particulares. Precisava urgentemente buscar encomenda de algumas pedras que solicitara a colega que estudava na école des Mines. Iria buscá-la na própria. O
rapaz era cliente da livraria de Dubois. Sim. Posso conseguir algo
desses minérios brasileiros no laboratório de metalurgia. Foi o que
dissera a Jean, observando as folhas do livro de mineralogia que
o outro lhe indicava. Desde que seja pequena amostragem e em
forma de pó. Daí combinara que, quando disponíveis, avisar-lheia por meio de Dubois ou Kostas que, teoricamente, poderiam
ser encontrados a qualquer momento no horário comercial de
funcionamento da livraria.
Pois nesta altura dos acontecimentos a cada dia Jean pernoitava menos na casa dos Pius. Dormia na própria Politécnica
e levava vida de soldado submetido a intenso regime de estudo
e pesquisa. Desde o início das classes, professores e alunos eram
duramente exigidos pelas normas do novo tipo de ensino criado
pela Revolução. E que, diga-se de passagem, passou a ser modelo
para o mundo.
Mas voltemos à situação que chegara a bom termo entre Kostas e o capitão Freitas. Dizíamos, lembram-se, que esse último
estava por sair. E foi exatamente a chegada de Monlevade que fez
com que repensasse a intenção. Pois, com isso, viu poder tomar
proveito e ficar mais um pouco, deixando patente seu desejo de
conversar com o rapaz e, enfim, nunca se sabe o hábito de gente
que mora em terra estrangeira, caso se retirasse da casa dos Pius,
poderia parecer que saíra em função da chegada do outro! Não
era de sua formação familiar dar chance a esse julgamento.
Foi por isso que, após assentados nos bancos da mesa da
cozinha, a conversa iniciou-se com pergunta vulgar feita a Jean
pelo capitão Freitas. E que lhe saiu da cabeça naquele instante
simplesmente como recurso para fazer-se mais simpático quanto às perspectivas do reencontro que tanto desejava. Le noble,
votre père, a-t-il déjà au Brésil? (o fidalgo seu pai já esteve no
Brasil?). O brasileiro já sabia a resposta, pois fizera a mesma
pergunta sobre o pai de Jean quando do primeiro encontro com
o jovem.
Para que o senhor entenda melhor da superficialidade da tal
indagação, Tisserand explicou, vou dar-lhe exemplo esclarecedor.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
203
Imagine que, em dia de nuvens fechadas e negras, uma pessoa
encontra um conhecido e, após parar para cumprimentá-lo, diz:
parece que vai chover, não é? É puro ato de cortesia. O mesmo
foi feito por Freitas a Monlevade. O jovem entendeu a situação, e
retribuiu-lhe com agradável movimento de incentivo.
Mas o que também havia animado a Freitas é que tinha tido
condições de fazer a tal pergunta por contra própria. Fora frase
pronta: ele a tinha decorada na ponta da língua. E para tanto
dispensara a ajuda do seu intérprete ainda sob contrato, pois o
próprio Kostas Zavoudakis havia lhe recomendado soltar a voz
quaisquer que fossem as circunstâncias. Não se envergonhe caso
venha a cometer erros, capitão. É assim que se aprende, ou se
volta a falar, qualquer idioma estrangeiro!
E Jean de Monlevade respondeu-lhe o que já sabemos. Não,
meu pai nunca esteve em terras da América do Sul. Foi somente
a alguns países da Europa e, ocasionalmente, aos Estados Unidos
em missão de guerra. Kostas traduziu. E, ao mesmo tempo, passou a explicar ao capitão Freitas as peculiaridades da construção
das frases que Monlevade dissera. Era mais que um intérprete. O
contratante não sabia, mas havia levado de quebra um excelente
professor. Por conta disso, Freitas retirou o dicionário de Joaquim
Sá da sacola de couro. Não gostaria de interromper o curso da
conversa para consultá-lo, mas em último caso...
E em dado momento disse a Jean que a França era país muito noticiado no Brasil. No entanto não sentira até então que acontecia o fato contrário. É verdade, Jean respondeu-lhe. E é oportunidade rara essa que me aparece. Não vou perdê-la. Fale-me
das coisas do seu Brésil. Tenho informações de que tem extensas
províncias de minérios. Centenas de minas de ouro e diamantes
sendo exploradas. Muitos dos nossos têm escrito livros fantasiosos
sobre excepcionais riquezas de águas, florestas, monstros tropicais
e quantidade imensa de pássaros. Alguns deles nem mesmo chegaram a viajar até lá. Escreveram por relato de terceiros. Por sinal,
aqui na nossa própria livraria, temos alguns poucos exemplares
do livro de autoria de certo monsieur Jacques Barraband. Ele é
pintor nascido não muito distante de Guéret, e é um dos que teve
como tema as coisas do seu país. Não me recordo o nome da
obra, mas as gravuras internas são belíssimas. Uma delas mostra
o espetacular le petit toucain...
204
Jairo Martins de Souza
Temos muitos outros pássaros, Monlevade. Milhares de espécies. E até mesmo mais belas que a do tucano. Nosso plantel é
incalculável. No entanto isso é complemento quase insignificante.
É detalhe de um quadro de milhões de quilômetros quadrados. O
meu Brasil tem território gigantesco!
Kostas traduziu assentindo com a cabeça. Já havia visto todas
as gravuras do excelente livro de Barraband.
Daí Freitas lembrou que o assunto que iria dizer é história
conhecida em todo o mundo, mas iria repassá-la concisamente
para Jean.
Vou simplesmente repetir ao pé da letra as mesmas palavras
que ele usou, Tisserand disse-me.
A ameaça e posterior invasão que Bonaparte impôs a Portugal no ano passado, Monlevade, colocou o Brasil no mapa do
mundo. 1808 é nosso ano notabilis. O motivo? Portugal é dono
do Brasil. E um dos muitos países da Europa emparedados pelas
brigas entre França e Inglaterra. País pequeno. Seu rei era e continua sendo tinhoso e fingia não saber a qual senhor se curvar.
Fazia jogo de empurra-empurra: para “inglês ver”!
Não se diz que na luta entre as ondas do mar e as pedras da
praia quem leva prejuízo é o indefeso ouriço? Pois é. Portugal foi
o ouriço!
É por isso que seu príncipe-regente e sua corte tiveram que
fugir de sua terra e sua Lisboa. É aí que entra o Brasil. Fugiram
levando consigo toda a documentação e gente para, de lá, tocar
os negócios do império! O povo português assistiu a tudo de camarote às margens do Tejo. Um rei ou general nunca deve correr
em qualquer situação. Fica ridículo! Mais ainda quando dá ideia
de fuga de inimigo: não deve o capitão ser o último a abandonar
navio? Não podia ter sido daquela forma!
Mas foi. E sendo assim pelo menos a tempo certo: poucos
dias depois o esfarrapado exército do general Junot invadia totalmente a capital dos portugueses. O fato é que, antes da escapada,
o país havia deixado às claras estar a favor da Inglaterra. Não diz
também o evangelista que só se pode servir a um de dois prováveis senhores?
Neste ponto, Tisserand reiterou que, de fato, os franceses tinham diferenças com o rei português. Não com o povo brasileiro.
Este tinha como realidade única e exclusiva a de ser oprimido e
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
205
espoliado pelos lusitanos: cuja riqueza era quase que total e exclusivamente retirada do solo de sua riquíssima colônia. Os franceses, em 1808, andaram invadindo terras portuguesas na Europa, não as brasileiras. E poucos anos depois sua intelingentsia
tornou-se grande fornecedora de cultura para o Brésil. Por meio
de acordo com os próprios portugueses!
Pois os franceses não acabaram por aqui, no Brasil, fazendo
papel de cronistas pictóricos da vida da corte? Não estiveram por
aqui Lebreton e seu grupo de famosos? Por mim, Tisserand disse
satisfeito, bastaria a riqueza da pintura dos Taunay. Pai e filho. O
pai com seus quadros de simplicidade absolutamente encantadora.
Parecem-nos sempre familiares, mesmo que, em alguns detalhes
sutilmente acrescentados pelo artista, retratem a distante realidade
europeia. A tranquilidade e bucolismo que transmitem impressionam a alma de quem os vê até os dias de hoje. Mas, e Debret?
Pintor de história e do cotidiano do imperador... e Montigny!?
Foi aí que Tisserand pediu-me alguns minutos de reflexão
para reviver os relaxantes sentimentos que lhe traziam as obras
de arte daqueles seus conterrâneos. Pouco depois, absolutamente
renovado, retornou sua fala ao ponto em que havia inesperadamente interrompido o discurso de Freitas.
Pois Kostas havia concluído a tradução e o brasileiro havia
se disposto a expor algumas consequências da vinda da corte
portuguesa. Após aceita de bom grado, ele adiantou que ela não
nos trouxe somente coisas boas. Há atropelos de monta, Monlevade. A começar pela parte imobiliária. Imagine o esforço feito
pela cidade do Rio de Janeiro para abrigar milhares de novos
moradores de luxo! Clérigos, ministros, militares, diplomatas,
funcionários do alto escalão, etc. E, além deles, suas famílias,
criados...
É como, Tisserand comentou, se Juscelino tivesse feito em
questão de dias, a mudança de capital do Brasil para pequena
cidade do interior de Alagoas. Palmeira dos Índios, por exemplo.
Não para a planejada Brasília com transferência feita a contagotas. O fato é que, em questão de horas, a nata de Lisboa passou a habitar as ruas da pequena cidade do Rio de Janeiro. Bem,
não é que fosse um problema para os novos moradores: aquele
povo não era de maiores leituras... mas achar uma livraria no Rio
daqueles dias era como procurar agulha em palheiro.
206
Jairo Martins de Souza
E foi após citar esse conhecido fato que, Tisserand, ilusoriamente, devolveu a palavra ao capitão João Gomes Abreu de Freitas.
Vou traçar, caro Monlevade, um pequeno painel final da colônia vista de mais perto do que da proa dos navios que trouxeram
o príncipe-regente e acompanhantes. Informações fresquinhas,
saídas há pouco do forno. As que vocês, franceses, têm, são baseadas em dados de compêndios do século dezoito montados com
base em outros dos séculos dezesseis e dezessete. É coisa recente
a permissão de estrangeiros no Brasil. Então, vamos lá!
Kostas interveio para traduzir a Jean o que Freitas dissera. E
terminou com um rápido Alons-y, um vamos lá. Daí o brasileiro
percebeu ser momento de prosseguir: a senha fora visão de rápido movimento de cabeça do grego. A realidade da colônia brasileira, disse, não é das mais agradáveis: vou listar-lhe a situação.
Quebra na indústria da cana de açúcar. Na do algodão. Na do
tabaco. Minas Gerais produz quase todo o laticínio do país. O Rio
Grande, a carne salgada. O ouro quase esgotado.
O Brasil é colônia de gente supersticiosa, Monlevade. Acomodada. Na maior parte colorida de preto à custa de sol forte.
Tanto de lá quanto dos campos africanos. Os negros são nossos
pés, mãos, martelo e prego. Nossos burros e mulas. É mercadoria
boa para encher os bolsos de dinheiro de empresários: a escravatura é forte ramo de negócio.
Lá se diz que não se pode misturar manga com leite. Um raio
não cai duas vezes no mesmo lugar. Palavra de rei não volta atrás.
Olhar para gato preto dá azar. Colocar vassoura atrás da porta faz
visita indesejável ir embora mais depressa.
E não é que esteja fazendo pouco caso, ou deixando vazar
sentimento de inferioridade. Mas na minha terra dança-se muito.
Brinca-se muito. Pouco se conhece de música clássica. Não se lê.
Até mesmo porque Portugal policia com punhos de aço a venda de livros sobre ideias modernas. Principalmente os que dizem
algo sobre a cultura daqui, da França revolucionária. Na fuga,
Dom João não se esqueceu das joias, das porcelanas e do dinheiro. Raspou o cofre. Mas deixou para trás as 60.000 obras da
Biblioteca Nacional de Lisboa! Portugal, caro Monlevade, é povo
de gente carola. Reis atrasados. País atrasado. Não tem indústrias,
é quase medieval. E não posso dizer que o caso dos livros esquecidos tenha sido fato surpreendente, pois diz-se que até mesmo o
infante Miguel, gente da nova geração, não aprecia a leitura.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
207
Freitas a essa altura, Tisserand ponderou, entusiasmava-se
com seu próprio resumo!
Creia-me, Monlevade, nem a prática da arte da pintura é estimulada na velha Lisboa. Tampouco nas suas colônias que é de
onde tira maior fonte de sustento. Artistas e artesãos são gente
de segunda classe. É trabalho manual. Trabalho manual é para
escravo. Na França não é assim: mesmo que seja voz corrente
que, no passado, o próprio Voltaire andou auferindo lucros com
tráfico de escravos. Já de nossa parte importamos cerca de dois
milhões de negros. Bem, não é que todos os ricos queiram que
a corte retorne a Lisboa, Monlevade, mas alguns deles têm colocado a vassoura de piaçava atrás das suas portas. O desrespeito
aos particulares tem sido grande. O governo imperial tomou-lhes
casas por meio de decreto simples para abrigar os recém-chegados. Basta colocar placa na moradia desejada com as iniciais de
Príncipe Real. Um p e um r maiúsculos. Pronto. O morador já
pode ser desalojado para uso de inquilino da corte. Também os
custos para sustentar esse pessoal e seus luxos fizeram com que o
governo gastasse mais e mais dinheiro. Um poço sem fundo. Já
se fala que há negociações para novos empréstimos gigantescos
a serem obtidos com os ingleses. Não tenho bola de cristal, mas
creio que, a médio prazo, o barril de pólvora deve estourar no
colo dos brasileiros. Mais impostos!
No entanto, Freitas esclareceu aliviado, o saldo é extremamente positivo. Éramos colônia. Agora somos sede de governo
de país europeu. Não foi por generosidade real que D. João abriu
nossos portos para todas as nações amigas do mundo. Espero
ansiosamente, e não abro mão, da França ser incluída nesse rol
o mais breve possível. Tudo isso, Freitas concluiu, foi por força de
o centro decisório dos negócios portugueses ter sido transferido
para o Rio de Janeiro. No dia em que pisou em solo carioca, o
Rio se iluminou!
É claro, agora é o próprio Tisserand quem diz, não como na
entrada de ano novo, os reveillons dos anos 2000. Lamparinas
e velas não dão luz alta, e fogos de pólvora fazem mais fumaça
que claridade. Mas os badalos dos sinos das igrejas da cidade não
paravam de ser puxados. Buzinaços dos anos 800. O Rio tinha
então cerca de 60.000 habitantes e estava feliz! Foi surpreendente! As princesas e a rainha Carlota desceram com as cabeças ras-
208
Jairo Martins de Souza
padas: culpa de piolhos que infestavam o miserável estado em
que viajaram por mais de três meses. Imediatamente carequice
virou moda entre as mulheres chiques da sociedade carioca. Em
qualquer tempo, ídolos e princesas têm influência assustadora nos
hábitos do povo. Basta lembrar que, em década recente, Björk e a
top Naomi Campbell também rasparam as cabeças e tiveram uma
verdadeira legião de seguidoras. Falta de gosto...
Aí Tisserand pareceu-me enfadado e voltou a falar do capitão
Freitas. Devolveu-lhe a palavra a partir do momento em que o
próprio confidenciava ao filho do fidalgo que, a partir do que lhe
explicara, algumas mudanças estavam acontecendo muito rápido
na colônia. Outras, não!
Convenhamos, Monlevade, a situação é inusitada. O império
português nunca nos permitiu instalar fábricas de quaisquer tipos
de produtos, à exceção de sacos de juta e, acredite, o ferro. A
produção deste último foi iniciada precocemente, em 1585, com o
ousado Afonso Sardinha, mas sempre a passo lentíssimo. E, para
piorar, há dez anos paramos totalmente por ordem direta da coroa.
No entanto hoje falta-nos pouco para entrar definitivamente
em outra era de sua manufatura, Monlevade. Mais moderna. O
governo da Província de São Paulo contratou o famoso Varnhagen para projetar usina siderúrgica às margens do rio Ipanema.
O rei aprovou! O alemão tem experiência no ramo! Há também
rumores de chegada ao país do geólogo e metalurgista Eschwege
para construção de siderúrgica em uma cidade chamada Congonhas do Campo. É da mesma província em que moro. A ideia é
fazer lá a primeira corrida de ferro coado no Brasil. Projeto ambicioso! No comando está homem influente no meu país, o conde
de Palma. O conde de Palma é atual governador da Província
de Minas Geraes e a usina tem nome que vem muito a calhar.
Chama-se Patriótica, Patriotique. O império deseja ter material de
primeira para fabricação de espingardas e canhões.
Interessa-lhe seguir o assunto? Freitas indagou a Monlevade.
Tenho falado por meio de frases curtas para facilitar o trabalho
do nosso amigo grego. O moço, após ouvir a tradução feita por
Kostas, respondeu-lhe diretamente, oui! Ça c’est bon.
Freitas havia suspeitado, Tisserand explicou, mas ainda não
percebera totalmente o entusiasmo que Monlevade tinha por
tudo que se relacionava à matéria prima e à fabricação do ferro,
e suas aplicações.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
209
No entanto continuou mais animado pelo modo e a energia
com que o jovem dissera as palavras sim! Isso é bom.
Pela primeira vez os portugueses estão preocupados com a
falta de barras de ferro em sua colônia. A influência e mando dos
britânicos nos negócios de Portugal ainda dura décadas, Monlevade. O baixo preço praticado por eles prejudica a viabilidade da
nossa siderurgia. O incrível é que o próprio rei português concede a eles baixas tarifas de importação. Ferro barato! E, afora as
cargas de contrabando, Lisboa é apenas trampolim de passagem
para os metais e madeiras do Brasil seguirem para Londres. Mais
de sessenta por cento. Não foram eles que escoltaram D. João e
seus súditos quando da sua fuga para o Brasil? O débito continua
sendo grandessíssimo!
Mas voltando aos trabalhos com os minérios de ferro, Monlevade, é fácil avaliar que desde Pedro Cabral o foco dos portugueses era somente o de extrair e enviar para a sede o ouro e as
pedras preciosas fartamente encontradas no nosso subsolo. Lucro
a qualquer custo. Já o ferro precisa ser processado. Daí é que é
negligenciado.
Felizmente a coisa mudou um pouco. Vieram muitos sanguessugas anexados à caravana real, mas também alguns poucos
competentes para discutir políticas de melhoria. De nossa parte, a
ajuda vem de brasileiros capazes como certo Visconde de Cairu,
que ainda não tive o prazer de conhecer, e os irmãos Andrada.
Esses últimos estudaram em Coimbra. Alguns estrangeiros também nos ajudam ou visitando-nos, ou morando definitivamente
no Brasil. A maioria deles é pródiga em relatar suas experiências.
Há franceses neste bolo. Bem, afora isso, vamos ter aumento da
demanda de açúcar e algodão, o consumo do café cresce, enfim,
tudo leva a crer que, a despeito dos interesses do império, e dos
políticos nacionais e estrangeiros, vamos entrar nos eixos!
Também, Monlevade, até então, só podíamos negociar com
Portugal. Não é mais assim. Mesmo que, o que é não nenhum
fato novo, a França ainda caminhe por fora, essa é uma das razões de eu estar aqui em Paris.
Para se ter uma ideia do que se passa em Lisboa, basta imaginar o caldeirão de ideias, juízos e julgamentos que campeiam
a cabeça do seu povo. Lisboa é capital de periferia da Europa,
mas não deixa de ser europeia e, portanto, seu povo é europeu.
210
Jairo Martins de Souza
E não se mudou para as praias do Rio: ficou em casa que pega
fogo. Então sua corte é expulsa de casa e passa a habitar colônia
repleta de negros e mulatos ignorantes dos pés à cabeça.
A sede de certa forma passa a ser colônia. Talvez tenha sido
pior para Lisboa do que o devastador terremoto de 1755: milhares de fiéis mortos e dezenas de igrejas destruídas. Em contrapartida, a colônia também, de certa forma, passa a ser sede. É como
se um senhor de muitos escravos fosse para a senzala morar com
os escravos: para tanto tem que melhorá-la. Bem, parece-me que
Dom João tem levado a situação a contento. A saída do castelo
de Mafra, e a ausência constante da companhia de religiosos fizeram-lhe bem. Saiu da toca. De medroso e indeciso em Portugal,
passou a ser bom negociador aqui no Brasil. Tem sido cortês e
paciente com seus súditos coloniais. Que continue assim, fazendo
acertadamente seus deveres.
Na calada da noite, à luz de lamparina de óleo que se esgotava, Jean de Monlevade concluía resumo pessoal das informações
que ouvira do capitão brasileiro. Sua privilegiada intuição dizialhe que lhe seriam úteis em futuro não muito distante!
Silenciosamente fez coro com Freitas para que as relações
entre França e Portugal voltassem à normalidade.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
211
XI
François. Martinho segue para Lisboa
Os dias voam,Tisserand disse, estamos em 1810 e, repare o senhor, mon ami, já se passaram seis meses após início das aulas da
Polytéchnique. O sonho de Jean de Monlevade estava em pleno
andamento. E foi nessa tão esperada condição que fora a Guéret
aproveitando os três dias de folga dos feriados de final de ano.
Em casa, limitou-se a matar saudades e ouvir os pais conversando
longamente na confortável sala de estar. E, após o almoço, deitou-se no seu quarto, deixando que a infância voltasse enquanto
observava as nuvens que passavam ao largo de sua janela. Com
seu afastamento de casa, repara, que a irmã crescera e já pensava
em rapazes e namoro. Esteve rapidamente com o professor Duchamps e passou alguns poucos minutos com os amigos Platini e
Fontaine. Achou tempo também para visitar rapidamente o sempre ocupado padre Ribérry: ele prosseguia em plena atividade
no seu ainda movimentado orfanato. Todos entenderam a situação do jovem amigo. Respeitavam-no. Ninguém desconhecia o
aperto e o rigor de ensino na cobiçada escola Politécnica. Tinha
deveres e matérias a estudar.
Não me manifestei nem fiz qualquer tipo de comentário a
tais palavras de Tisserand. Preferi o silêncio, pois não sou pessoa
que gosta de interromper o outro quando este tem a palavra. Até
mesmo defendo a prática de acenos para manter andamento das
conversas dois a dois em que me envolvo: prefiro usá-los ao invés
dos tradicionais, sim, entendo, também acho... é por isso que,
habitualmente, o máximo que me permito é, mantendo os lábios
cerrados, emitir breve som nasal de uhum, uhm... minha senhora
não aprova, mas minhas ferramentas para tanto são a cabeça, os
olhos, as mãos, o polegar, os ombros e por aí vai.
E, é claro, não tenho certeza de estar sempre com a razão,
212
Jairo Martins de Souza
mas acredito piamente que, agindo desta forma, o canal de interlocução fica em níveis diferentes. Um fala com a boca. O outro
com o corpo. Não há possibilidade de interferência entre as ondas
de voz de pessoas que dialogam usando esse processo semiótico.
Uma não anula a outra.
No entanto, sou do tipo radical flexível. Não levo nada a ferro
e fogo e, então, levantei discretamente a mão direita e, ao mesmo
tempo, falando baixo, perguntei a Tisserand. E Martinho? Por que
tem passado longe dos escritos do vigário geral? O estrangeiro
assustou-se levemente.
Não é bem assim, respondeu. Na realidade, Leopold Bogenet
andou citando o rapaz brevemente nessa altura das páginas do
seu caderno de anotações. A responsabilidade da omissão é minha. Foi proposital: algo como faz o tradutor de obra literária. O
senhor, por acaso, conhece a expressão traduttore tradittore? A de
quem traduz um livro, acaba escrevendo outro! Com um aceno
de cabeça, respondi-lhe sim. Pois é, Tisserand confessou. Tenho
traído o texto original...
O mesmo fiz acontecer com François. Ele também se tornou
figura ausente nesse meu relato. Recorda-se que lhe disse estar
morando com os tios Lavillatte? Respondi-lhe novamente que sim.
Ele não se mudou nem de cidade, nem de casa. Continua lá, Tisserand confirmou. No entanto, nunca era encontrado. Jean esteve
procurando por ele em diversas ocasiões e os tios diziam-lhe estar
na casa de namorada. Diziam-lhe também, ironicamente, que a
moça sugava-lhe todos os momentos disponíveis do dia e da noite.
Chamava-se coincidentemente Maria Vitória. O mesmo
nome da irmã dos dois rapazes Monlevade.
Na realidade, os tios Guy e Sophia Lavillatte não a conheciam
pessoalmente e julgavam, a partir das informações do sobrinho,
ser de alta estirpe e circular pelas rodas de luxo dos salões de Paris
e até mesmo de Versailles. Não lhe dava gosto que o rapaz a apresentasse à família. Dizia que, quando se casasse, casaria com o seu
escolhido, não com seu núcleo familiar. Bastava-lhe o dos pais. E,
ressaltava que, em especial, o do lado materno. Não abria mão da
companhia da mãe nem por minutos e dizia que, fosse possível,
levaria os pais para que morassem todos juntos.
François, Sofia Lavillate dizia ao marido, está cego pela paixão, e não tem tido argumentos e força para sentir que tais ati-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
213
tudes poderão significar grande pedra no caminho de sua futura
família.
Parecia-lhes, Tisserand prosseguiu falando como se fosse
porta-voz dos Lavillatte, que François andava evitando a companhia do irmão. Com isso pensava preservar a tranquilidade do
seu relacionamento com a mulher que o escolhera.
Jean absolutamente não conseguia entender o porquê da posição da futura cunhada em relação à família Monlevade ser de
absoluto desprezo! Mais ainda porque os Lavillatte disseram-lhe
que François havia falado das qualidades de sua gente à bizarra
mulher. Especialmente do próprio Jean que era parente mais próximo tanto de sangue quanto geograficamente. Nada significou.
A indiferença permaneceu incompreensivelmente inalterada. O fidalgo, meu pai, sentir-se-ia absolutamente ressentido com a postura da nora, e com a cegueira do filho, Jean prognosticou. Mas não
seria ele que exporia a situação. Apenas se limitou a dizer como as
pessoas fazem quando diante de realidades absurdas. C’est la vie.
Qu’est-ce qu’on peut faire? (É a vida. Que posso fazer?).
O senhor entendeu por que François anda desaparecido? Então vamos a Martinho.
Martinho havia – se já lhe disse, repito – por concessão especial do fidalgo, passado a assinar Martinho Eugène de Monlevade.
E, segundo o abade informou (ele o fez de forma bastante concisa), havia decidido após dois meses de estada em Paris que tomaria rumo diferente do que havia sido planejado para ele. A despeito de ter já trajado o uniforme de gala do Lycée Napoléon, não se
adaptara às fortes exigências que a escola lhe impunha em termos
de estudos. Mas não era razão única: ele tinha mais motivos!
Mesmo com ajuda de Jean não dava cabo de suas tarefas, e
ficara frustrado por não poder atender expectativa que o fidalgo
Jean-François nele depositara. Passou a acreditar, piamente, que
não fora forjado para tais coisas. Ademais, Monique du Lac havia terminado namoro de forma sumária. Dissera-lhe por meio
de bilhete deixado para lhe ser entregue em mãos pela tia torta,
Lucillia Pius. Sempre os recebera guarnecidos com suave fragrância. Este continha apenas palavras rápidas, secas e diretas. Caro
amigo, foi bom: enquanto durou! O amargurado Martinho pensou em se jogar de uma das pontes do Sena e se deixar levar até
as águas frias do Pacífico. Não o fez. Imaginou o corpo cheio de
214
Jairo Martins de Souza
pus. Dias depois a ferida já estava secando, embora tivesse consciência de que a cicatriz iria permanecer para sempre. Ninguém
se esquece do primeiro amor. Foi período de muita preocupação
para Jean: o amigo meio-irmão lhe era muito caro. E sensível.
Ambos haviam lido, recentemente, exemplar de As Desventuras
do Jovem Werther, de Goethe, que figurava discretamente nas
estantes de monsieur Dubois. Livro proibido pela Igreja, pois causara comoção à juventude alemã em décadas passadas. Muitos
suicídios foram cometidos em série. Foi mais um motivo para que
Monlevade, durante alguns dias, observasse cuidadosamente o
amigo. Não queria que acontecesse com ele o que acontecera
com o criado de Werther que o encontrara morto a tiro de pistola.
Suicidara-se. Não suportara a decepção amorosa causada pela
perda do amor de sua Charlotte.
Graças às preces dos Pius e do acompanhamento assíduo
do amigo Jean, no caso de Martinho, a vida não havia copiado
a arte. O rapaz não se sacrificaria e não haveria produção de livros póstumos de textos pecaminosos. Como vimos, aos poucos,
estava se acostumando com a ideia de que a moça du Lac não
o amava. Já tivera perdas mais importantes, pais e irmãos, sua
alma era habituada a conviver com o sofrimento. Aí que está.
Também não obtivera êxito no desejo inesgotável de encontrar a
família, mesmo procurando por todas as vielas dos bairros secundários de Paris. A saída que logrou foi desejar servir ao seu país
de peito aberto. Não se diz que o patriotismo é o último refúgio do
soldado? Sentia-se como um deles. Pedira licença ao fidalgo para
honrar o nome Monlevade, vestindo a farda do esquadrão dos
caçadores a pé. Começaria por baixo, mas ambicionava chegar a
fazer parte do corpo de guarda do próprio Napoleão. Ou mesmo
do seu serviço secreto. Bem, inicialmente iria trabalhar no hospital
para feridos de guerra de Lisboa. Com isso honraria em especial
também a própria família, os pais e os irmãos.
O fidalgo assentiu. Tinha consciência da força de trabalho do
rapaz que adotara. Foi assim que Jean perdeu a sombra que o
acompanhava desde os tempos de criança. Árvore amiga. Faltarlhe-ia muito o querido companheiro que, abruptamente, decidira
compor campanha de ajuda aos soldados que restaram machucados dos esquadrões de Junot.
Que Deus o proteja! Sei que o senhor da mesma forma anda sentindo falta do moço, Tisserand concluiu. Não me culpe. É por aquelas
razões que anda desaparecido dos eventos que ando relatando...
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
215
XII
Jean passa por risco de cárcere na Polytéchnique. O aviso
por demais antecipado da chegada do filho do capitão Freitas.
Com a notícia da partida de Martinho para as terras portuguesas
da península ibérica, Tisserand manteve-se calado por alguns minutos. Eu também refletia sobre o assunto, como também sobre os
desdobramentos que poderia ter causado no andamento da vida
de Jean de Monlevade. É como se ambos estivéssemos repassando todos os anos em que os dois amigos viveram praticamente
juntos. Nesse clima de reflexão, absorvíamos a brisa que soprava
suave sobre nossos rostos. Algumas mangas quase passadas da
hora precipitaram-se no chão. Um moleque coletou algumas e
meteu em embornal. Levantei-me e apanhei duas que sobraram
ilesas. Ofereci a Tisserand. Ele agradeceu afirmativamente, mas
disse que chuparia depois. Retruquei-lhe que essa era também
minha intenção. Ambos não queríamos sujar nossas roupas com
o intenso caldo amarelo da fruta.
Então ele retomou sua história dizendo, estranhamente, que
o casamento é caso especial a ser constantemente vigiado. Olhava despretensiosamente a fruta para verificar traços de podridão
ou bicada de passarinho. E continuou. Foi apenas um exemplo,
pois, não se tomando as precauções adequadas, a rotina, qualquer rotina, queima todo e qualquer tipo de atividade humana.
A não ser que esteja ligada a elas qualquer tipo de obssessão.
Como a de verificar insistentemente se fechou ou não a porta de
entrada, ou a de não tocar a mão em maçaneta de fechadura, ou
a de pedir repetidamente a cada cinco minutos a bênção paterna
antes de se deitar. É claro que aqui não digo, e não incluo, hábitos
individuais de saúde tais como o escovar os dentes após as refeições, ou o de colocar as mãos à frente da boca durante o bocejo,
ou a limpeza das partes após cumprimento de necessidades, ou,
216
Jairo Martins de Souza
por final, o desejo de banhar-se sempre que se está sujo. Esse tipo
de coisa é feita de forma praticamente automática e sobre ela não
cabe qualquer tipo de especulação filosófica.
Portanto não é de nosso interesse, Tisserand comentou, dizer
sobre os primeiros doze meses em que Jean esteve dentro dos
muros da Polytéchnique. Seria repetir coisas, pois toda instituição
militar tem rotina aborrecida. A Polytéchnique, a Politécnica, não
é exceção. É baseada nesta premissa que procedo daquela forma,
mesmo sabendo que, lá dentro, Monlevade conviveu com alguns
gênios da matemática do mundo, enfim, vou relatar-lhe o mínimo
necessário. Com isso tento evitar risco de mesmice.
O senhor sabe que manter os sapatos limpos, a farda sempre
alinhada, fazer exercícios físicos, praticar a ordem unida, prestar
continência a quem de direito, perfilar-se quando convocado são
deveres inseparáveis de todo indivíduo que segue academia militar. Com o agravante (em períodos atribulados esses valores têm
efeito multiplicado: fuzilam-se indisciplinados a troco de nada) de
os fatos que agora relato pertencerem ao período do Primeiro Império francês: o ano corrente é o de 1810. Isto, por si só, explica a
que Jean esteve submetido em termos de disciplina.
No entanto, nada o impedia de estudar muito. Era imbatível
em química e física e, para tanto, aprofundou-se exemplarmente
nos árduos caminhos da matemática avançada. Na Politécnica
primava-se, segundo orientação dos seus fundadores, pelo nivelamento dos alunos em primeira instância e, ao mesmo tempo, por
sólido conhecimento matemático. Lá realmente se contava com
quantos paus se faz uma canoa!
Continua ainda desta forma nos dias de hoje. Tanto é assim
que é chamada de Xis. Escola Xis. O x das equações matemáticas. Jean de Monlevade é X1809: qualquer francês sabe o que
significa. Significa ter sido estudante da Polytéchnique admitido
no ano de 1809. Entretanto, a despeito dessa matematicidade levada a extremos, e conforme ostensivamente já lhe disse, o interesse por problemas sociais também era lá tido em grande conta.
O aluno da Polytéchnique tinha não somente obrigação de
debruçar-se sobre temas filosóficos como também desenvolvê-los
em classe. Sua missão é servir à nação, não a si mesmo. Assim,
desde seus verdes anos, tornava-se capacitado para seguir com
eficiência qualquer carreira de engenharia, matemática, física, as-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
217
tronomia e por aí segue. Muitas provas orais e discussões com
professores e alunos mais antigos faziam, ao lado de trabalho no
campo, com que a teoria fosse incorporada à prática.
Estas ferramentas permitiriam a Jean percorrer com mais
propriedade a carreira que escolhera desde tenra infância. O leque de opções colocado à disposição pela escola era generoso.
Engenharia militar (Génie Militaire), de Minas (des Mines) e de
Pontes (des Ponts).
A carta chegara até a casa dos Pius e aguardou três dias para
ser entregue a Jean Monlevade. Junto a ela, viera pequena caixa
de madeira cuidadosamente enrolada por saco de pano de algodão amarrado com cordão grosso.
Novamente o filho do fidalgo Jean-François fora retido dentro
dos muros da Polytéchnique por motivo, digamos, fútil. Explico.
Um dos colegas fora detido por protestar em voz alta contra disposição emitida pela direção da escola. Moço de alma combativa,
sua família era da própria Paris e ele era também excepcional aluno em matemática. Do mesmo nível de Monlevade. Foi por isso
que Jean estivera procurando-o para trocar ideias sobre estudos
avançados, e novas investigações, da natureza das curvaturas de
superfícies. A ferramenta que estava pesquisando era proposta por
Monge, e basicamente constava de aplicação insistente do cálculo.
Isso, no futuro, Tisserand informou, prepararia o caminho a
ser percorrido pelo fenômeno chamado Gauss. Um outro grande
craque no assunto!
Mas voltemos a Jean e à sua procura pelo companheiro de
estudos que, obviamente, não foi encontrado em sala de aulas.
Disseram-no estar em cela cumprindo prisão temporária por
desrespeito. Incomunicável. Posto, como se dizia, em regimes
aquartelados, no gelo. Jean estava ansioso. Não suportou ideia
de esperá-lo sair do xadrez, e quebrou as regras ao tentar falar
com o rapaz entremeio às grades que o isolavam do mundo da
Polytéchnique. Foi pego. O sargento chefe da guarda indagoulhe se gostaria de prosseguir estudos do lado de dentro da cela.
Jean respondeu-lhe, não. Então suma daqui! Mas não deixou de
anotar o mau comportamento do aluno. Daí o filho do fidalgo
Monlevade ter sido punido com três dias de pernoite forçado nos
alojamentos. Não é que tenha sido ruim. Por falta de vaga, fora
encaminhado para alojamento de alunos mais avançados no curso.
O dormitório ficava em piso afastado da rua e comportava em tor-
218
Jairo Martins de Souza
no de cem alunos. Jean aproveitou para tomar contato com um e
outro, de habilidades reconhecidamente superiores em matemática
e química, e com os quais tinha interesses comuns. Fez escambos
de selos raros por obras literárias que sabia não constar na livraria
de Dubois. E, bem, como sempre fazia, tomou partido da inusitada
situação. Depois das oito da noite o silêncio deveria ser total.
Por isso que, a princípio, não lhe desagradou ficar as mesmas
72 horas para saber da mensagem que lhe enviara o capitão João
Abreu de Freitas. Fazia meses que o amigo voltara para o Brasil.
Foi uma longa carta em que o brasileiro confirmava muito do que
dissera anteriormente em seus contatos pessoais com Jean. Escrita
em duas versões. Uma em português. A outra em francês. Mostreas a Kostas Zavoudakis, pediu-lhe gentilmente, nas entrelinhas do
texto, para que fique orgulhoso do meu desenvolvimento e minha
aplicação. Como prova de consideração, avisou ter enviado, em
anexo, exemplar de dicionário francês-português. Era do mesmo
autor que o brasileiro adquirira na livraria de Dubois. E era o que
estava guardado dentro da caixa que cruzara o oceano. No lado
interno da capa, escrevera: ao jovem Monlevade com agradecimentos pela boa acolhida em Paris. Oferece, João Gomes Abreu
de Freitas. Abaixo, colocou assinatura e data. Jean ficou bastante
agradecido com a carta e o presente. O latim que aprendera na
escola de Duchamps em Guéret facilitaria muito seu uso. O português e o francês são baseados naquele idioma, e praticaria mais o
primeiro com Kostas. Não há sombra de dúvida que tal atitude seria de grande valia para seus estudos dos minérios da América do
Sul. Afinal de contas, o Brèsil ocupa quase metade de suas terras.
Mas o destaque foi que, num rápido post scriptum, informou
que seu filho Ildefonso deveria chegar à França num prazo máximo de três anos. Já se informara, junto a entidades dos impérios
português e brasileiro, de todas as formalidades legais para fazer
aperfeiçoamento médico em Paris. Estava cursando com sucesso
a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de janeiro. E disse
mais. Disse que sabia estar avisando com bastante antecedência,
coisas de pai amoroso, mas gostaria que Monlevade, estando em
Paris na ocasião, desse algumas orientações ao rapaz. Sei que
posso contar com sua ajuda... Do amigo João...
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
219
XIII
A Génie Militar e as avançadas técnicas de guerra do início
dos novecentos
Ao final do seu primeiro ano em Paris, Jean de Monlevade alcançou a chamada primeira divisão na Polytéchnique. Tinha 19 anos
e ocupara a privilegiada posição de terceiro colocado.
Foi hora de Tisserand ponderar que foram confirmadas todas as previsões feitas para a vida do rapaz. O filho do fidalgo
Monlevade tinha realmente inteligência privilegiada. Ribérry, Duchamps, Platini, Fontaine e muitos outros que eram chegados a
ele exultaram com o sucesso do jovem amigo. Jean os informara
por carta individual enviada a cada um deles.
Aliás, faltou-me enfatizar com mais veemência, Tisserand exclamou com ar de quem pede desculpas, que o jovem adorava
escrever cartas. Escrevia para a família e os amigos, mesmo que
não ocorresse nenhum fato novo. Ainda que longe dos números de Humboldt, cientista de quem já lhe disse (e que deixou
mais de 35000 cartas em seu espólio!), as suas eram suficientes
para descansar os pais, e evitar-lhes viagens constantes a Paris.
Preocupava-se com eles, em termos práticos, já idosos e cansados
pela vida, e procurava antecipadamente tranquilizá-los com mensagens de otimismo e comentários sobre o seu cotidiano. Escrevia
como se estivesse em casa conversando sobre generalidades na
sala de estar de Monlevade!
A família e a cidade de Guéret ainda iriam se orgulhar mais
ainda do jovem cadete! Não concluíra com honras e sem maiores
atropelos a difícil fase preparatória da Xis? Paris, e o ambiente em
que ele estava diretamente envolvido, eram extremamente propícios. Esqueça-se propositalmente aqui o constante estado de
guerra que o imperador mantinha em terras estrangeiras.
Pois na capital francesa de 1810, as novidades de maior re-
220
Jairo Martins de Souza
alce foram a anulação do casamento de Napoleão com a imperatriz Josefina. Circularam boatos que a ex-viúva o traía. Foi esse o
estopim da separação? Ou foi o fato de ela ter se tornado estéril?
Qualquer que tenha sido o motivo, Josefina foi a paixão da vida
do homem mais poderoso que a França conheceu. E que dizia ser
ela, a própria França, sua única amante. Frase somente de efeito,
pois não totalmente verdadeira: não escolhera a austríaca Maria
Luiza para deitar-se em novo matrimônio no mesmo ano de 1810?
É certo que fuxicos dessa natureza deixam de ser frugais à
medida que dizem respeito a homens poderosos como Bonaparte.
Tanto é assim que também faziam parte do cotidiano que Jean descrevia para a família. Mas intrigas conjugais, mesmo que palacianas
não conseguem mover, em termos finais, a máquina do mundo.
Essa é tarefa para poucos. Jean de Monlevade inexoravelmente
seria um desses privilegiados: tinha mente brilhante, era um aluno
xis, e contava com a completíssima biblioteca da école e, na casa
dos Pius, a livraria de Dubois.
Era lá que Kostas Zavoudakis o ajudava a localizar material
para pesquisa em pontos de interesse. Enquanto isso, o Breu ficava aguardando-o com ansiedade. Já era idoso, mas se mantinha forte como nos tempos de juventude. Quando o seu dono
chegava, prosseguia trazendo-lhe uma ou outra pedra do quintal
dando sinal de boas vindas. Brincadeira eterna! Jean retribuía-lhe
com afagos. O cão costumava até deitar-se de costas no chão
com as patas viradas para o alto, tamanha era sua satisfação. Às
vezes extrapolava e vertia água amarelada para o alto, molhando inadequadamente o terreno. E o dono, caso não se cuidasse!
Jean ria das reações do seu antigo companheiro de pesquisas de
campo. O Breu parecia compreender que o patrão não lhe dava
a atenção costumeira por falta de tempo.
Também pouco depois da ida de Martinho para Portugal,
Jean fora noticiado não mais precisar comparecer à casa de Bernadette du Lac. Ela havia adotado posição similar à que a irmã
Monique tivera com relação ao próprio Martinho. O bilhete lhe
fora entregue mais ou menos em condições semelhantes, e parecia ter sido escrito pela mesma pessoa. Não poderia ser mera
coincidência que o papel tivesse o mesmo perfume e a mesma
letra redonda e elegante. Ambos devem ter sido escritos a quatro
mãos: Bernadette e Monique!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
221
Foi o que Jean deduziu, recordando-se instantaneamente do
texto que Martinho havia lhe mostrado quando do seu rompimento com a outra du Lac. Bem, disporia de tempo precioso a
mais para dedicação aos seus propósitos.
Lucillia Pius ficou arrasada por alguns dias. Se o cavalo arreado, nos dado de presente, para na porta de nossa casa, não
há outro caminho: tem que ser montado! Não entendia a atitude
das sobrinhas. Por fim conformou-se com o fato, mas prometera
comentar com o pai da moça para considerar mudança de sua
atitude. Até então fizera sua parte, e iria até o final.
Após ter dado a conhecer sobre a situação amorosa do filho
do fidalgo, Tisserand informou que sua entrada direta, em 1810,
na Engenharia Militar, a Génie Militaire, não foi surpresa para o
próprio. Os admitidos na primeira divisão da Polytécnique desfrutavam de direito exclusivo para pedir ingresso nos quadros da
Génie.
Neste ponto não faz mal informar, Tisserand disse, que quatro
anos mais tarde um jovem chamado Augusto Comte seria admitido na mesma Polytéchnique. Tinha 16 anos de idade e influenciaria muito a Jean, pelo fato de ter sido responsável pela criação
da pragmática filosofia Positivista. Monlevade tornou-se adepto
das ideias do colega de escola. É inclusive por causa delas que,
na bandeira do Brésil republicano, consta a conhecida frase, Ordem e Progresso. Por sua vez, tal como Monlevade, na Polytéchnique, Comte foi fortemente afetado pelo físico Sadi Carnot, pela
inovadora matemática de Cauchy, e pela mecânica analítica de
Lagrange. O astrônomo Laplace foi também objeto de admiração
comum.
Imagine o senhor o altíssimo nível em que direta, ou indiretamente, aconteceu a formação do filho do fidalgo!
Aí foi momento em que Tisserand exclamou com ar vitorioso
que, na Génie Militaire, figuravam também as melhores cabeças
do Império francês. Exibira sorriso cada vez mais largo à medida
que completava a frase.
Fiquei agradavelmente impressionado com a satisfação demonstrada pelo estrangeiro em razão do sucesso do protagonista de sua história. E, em termos psicológicos, percebi existir algo
mais por trás de sua expressão de alegria. Não demorei menos
que um minuto para que verificar que estava certo.
222
Jairo Martins de Souza
Pois Tisserand relatou logo a seguir que, doze meses depois,
Jean de Monlevade saíra da Escola Especial de Engenharia Militar com a excepcional classificação de quarto colocado. Estudara
topografia, relevos de terrenos, fortificações, construção de pontes, montagem de bússolas, sextantes...
Ao contrário do que Rousseau dissera, Jean comprovou na
Génie que as guerras não são ganhas pela coragem e os rompantes heróicos dos soldados. Tais iniciativas louváveis jamais substituem a técnica e a disciplina ordenadas. O jovem não se sentia
como um Napoleão que se tornara tenente de artilharia aos 19,
mas aperfeiçoara-se na geometria descritiva aplicada às técnicas
de construção de canhões e máquinas. Compreendera o dinamismo das táticas modernas de infantaria, de cavalaria, de artilharia,
de análises de relevos de terrenos, balística e potência das armas
de fogo. Tudo isso era material que havia estudado preliminarmente na Polytéchnique. E que foi motivo de guardar por toda
sua vida o Manual da Arte da Guerra e da Fortificação de autoria
de Gay de Vernon. Vernon foi diretor de estudos da Polytéchnique, e a obra lhe fora presenteada por Dubois.
A partir daí é que finalmente iniciou agenda para dar cabo de
sonho posterior. A escola de Minas, a école des Mines. Para tanto
a secretaria da escola registrou a data de sua entrada em 14 de
setembro de 1811. Ao saber da noticia, Jean agradeceu silenciosamente a todos que o ajudaram. A Deus, à mãe, aos irmãos, aos
amigos, aos professores, ao casal Pius, enfim, a todos, tal como se
faz em convite final de formatura.
Para o pai fez homenagem em capítulo especial de forma feliz, mas denunciando certa angústia nas entrelinhas. Parecia uma
premonição (a qual já explico). Faltou somente um pensamento,
um aforismo ou passagem da bíblia. Já o Breu não foi esquecido.
Era parte da família!
Outro que viria a se tornar praticamente parte da família seria
o filho do capitão Freitas. Mas estava demorando bem mais que o
previsto para acertar ida para Paris, Tisserand disse. E justificou.
Portugal retardou por demais a reatar relações diplomáticas com
os franceses. O pai de Ildefonso, lembro que este era o nome
do rapaz, a cada três ou quatro meses, trocava correspondências
com Monlevade. E evoluía cada vez na língua francesa: era o que
se percebia pela crescente fluidez do texto que sua bela caligrafia
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
223
mostrava a cada carta que chegava. Andava treinando também
a fala, foi o que informara em uma de suas últimas missivas. O
francês Guido Tomás Marlière, homem de altíssimas relações pessoais, estivera pelas Geraes e havia passado alguns dias com o
fazendeiro. Era homem que havia conquistado a confiança do imperador, enfim, foi com ele que Freitas praticara bastante a língua.
Marliére foi um dos que veio a colaborar com Monlevade no
Brésil, Tisserand acrescentou. Mas, por ora, o que me interessa
assinalar, e que restou escondido nas entrelinhas do que lhe disse,
finalizou, é que, enquanto o filho Ildefonso não chegava a Paris,
Freitas mantinha estreita correspondência com Monlevade.
Não se declaravam cansados de trocar ideias sobre o Brésil
de D. João e a França de Bonaparte.
224
Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
225
XIV
A graduação. Onde se diz tardiamente da morte do fidalgo
O senhor sabe, mon ami, que um pressuposto contador de histórias não pode ficar continuamente dando saltos no tempo. Não
pode ficar pulando para frente e para trás.
No entanto mais uma vez não tenho alternativa: é imposição
dada pelos escritos do próprio abade, Tisserand comentou. Depois volto à cronologia regular!
Rogo-lhe paciência! Vou recordar-lhe somente alguns números e datas que... bem, não são tantos assim e a meta é ajudá-lo
a não se perder no emaranhado de informações que tenho desovado sobre Jean de Monlevade. A começar voltando ao ano
de 1810, quando de sua promoção a aluno de primeira divisão
da Polytéchnique. Lembro que, na mesma ocasião, foi atendido
em sua demanda para servir na ambicionada Engenharia Militar
(Génie Militaire). Um ano depois, em 1811, e após quatro promoções, foi admitido na école des Mines.
O fato novo é que quatro anos mais, em janeiro de 1815,
veio a ser nomeado aluno de primeira classe. E vinte e três meses
foram suficientes para acontecer uma das grandes efemérides de
sua vida. Monlevade tornou-se engenheiro de minas em primeiro
de abril de 1817.
Formar-se engenheiro pela école des Mines não era pouca
coisa! Foram muitas e muitas horas de estudos e discussões orais
com colegas e professores. Outras tantas foram gastas à luz de
lamparina ajudada pelo calor e luz da lareira acolhedora da casa
dos Pius. A vida em escolas especiais francesas, como a école des
Mines, era duríssima! O piedoso casal se condoía com as horas
de sono perdidas pelo moço. Desde sua primeira entrada pelas
portas da casa, era como se um dos filhos que andavam espalhados pelo mundo tivesse retornado ao lar. Ressentiam-se com a
226
Jairo Martins de Souza
ausência de Martinho, mas, ao longo dos anos, tornavam-se cada
vez mais felizes não somente com a presença de Jean como também com a de Kostas. Cada um tinha estilo próprio de agregar
valores: melhoravam o ambiente. Os Pius amavam a lareira de
ferro fundido que o próprio Jean projetara com detalhes estéticos e técnicos absolutamente inovadores. A antiga era de pedras
e às vezes espalhava fuligem pela casa. Lucillia frequentemente
acompanhava Jean noite adentro. Religiosamente, como era de
seu feitio, de hora em hora levantava-se de sua cadeira e amorosamente servia-lhe café para que não ficasse sonolento. O ruído
suave da agulha do seu tricô acompanhava a escrita silenciosa do
rapaz. Parecia incansável ao molhar a pena no pequeno vaso de
tinta. Ao fundo um ou outro estalido de acha de lenha queimando
na lareira fazia-lhes lembrar que o tempo existe. A vista cansada
da boa mulher é que, por final, empurrava-a para a cama. Mas
antes disso sempre havia alguns botões mais para pregar. Não.
Não eram as roupas da casa assim em tamanha quantidade! É
que a combativa esposa de Septimus Pius nunca se cansava de
trabalhar em causas sociais patrocinadas pelos comitês de ajuda
aos pobres do seu bairro.
Não sabia! Mas foi mais um modelo para Jean ao longo de
sua vida no cone sul do mundo.
Então Tisserand paralisou discurso por instantes. Eram momentos únicos em que eu percebia que há horas o estrangeiro conversava comigo. Às vezes parecia cansado. Parecia. Pois
a energia voltava-lhe instantaneamente e ele prosseguia com a
mesma disposição e estado de espírito.
É pensando sobre isso que intentei pedir-lhe para adiarmos
o resto para a manhã do dia seguinte. Estávamos em um sábado.
Eu não trabalhava aos domingos e poderíamos estar nessa praça à
hora em que ele julgasse adequado. Foi quando ele atropelou meus
pensamentos, e disse algo que dava outra direção à conversa.
Estava um tanto distraído, mas entendi que o estrangeiro iria
contextualizar rapidamente os anos de 1810 a 17 no mundo. O
senhor pode considerar como se fosse um algo mais aos esclarecimentos que o capitão Freitas dera a Jean durante passagem por
Paris. O interesse em retomar esse rumo, Tisserand ressaltou, era
relembrar que muito havia acontecido desde que o então cadete
Jean entrara na Polytéchnique. Além disso, não custa insistir que
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
227
muito do que sobrevive em nossa memória é fixado por repetição
de tempos em tempos. Diz-se sobre um assunto. Diz-se sobre ele
novamente usando palavras diferentes. É assim que se retém o
conhecimento. Sigamos!
Pois o Congresso de Viena, em 1815 havia redesenhado os
mapas políticos e geográficos da Europa. A França expulsara Bonaparte. Luís XVIII assumira o poder. Brevemente navios a vapor
cruzariam os oceanos... Na América do Sul, o Brésil fora elevado
à categoria de Reino Unido. Os artistas Nicolas-Antoine Taunay
e seu irmão Auguste, Joachim Lebreton, Jean-Baptiste Debret, e
o arquiteto Grandjean de Montigny já haviam chegado a terras
cariocas. A famosa Missão francesa: missionários da cultura.
O Real Gabinete de Mineralogia – fundado por Dom João,
em 1810, no Rio de Janeiro – estava sob nova direção. O barão
de Eschwege, prestigiadíssimo engenheiro alemão, fora confirmado como diretor da nascente siderurgia brasileira. Já disse-lhe,
mon ami, que Freitas, pouco dias após sua chegada a Paris, havia
mencionado este homem a Jean. Em Congonhas do Campo, a
fábrica Patriótica produzia ferro em escala industrial. Em Morro
do Pilar, o Intendente Câmara fazia o mesmo com o ferro líquido:
o gusa de alto forno. Ambas as indústrias eram localizadas na província em que morava o capitão João Gomes Abreu de Freitas.
Estas informações chegavam aos poucos ao conhecimento
de Jean de Monlevade, por meio das já referidas correspondências que trocava com o brasileiro. A amizade mantinha-se firme, a
despeito da imensa distância que os separava.
E havia algo mais. O filho do capitão, o jovem Idelfonso, já
estava em Paris. Mostrei-me surpreso, há muito desejava saber a
quantas andava a situação do jovem médico brasileiro! Mas para
meu desencanto, Tisserand imediatamente manifestou desejo de
voltar ao que dizia sobre a formatura e o estado de espírito de
Monlevade
Não pedi. Mas explicou-me a razão de assim proceder. Havia
alguns detalhes da vida familiar do próprio Jean, disse-me, que
passam da hora de serem postos nesse relato. Alguns são tristes,
não lhe apetecia dizê-los, mas não há mais como postergar!
E por tudo que Léopold, o vigário geral, relatou até aqui,
vê-se que o filho do fidalgo Monlevade absolutamente fez por
merecer o tão ambicionado título de engenheiro des Mines! Pena
228
Jairo Martins de Souza
que o pai não tenha podido assistir em gozo de vida a coroação
deste êxito do filho. Aos 52 anos, o fidalgo Monlevade havia morrido, o ano foi o de 1812. Felicité disse para amigas que, para seu
consolo, concluíra que ele se fora em estado de total confiança em
ter salvamento por Cristo Jesus. Iria para sua eterna morada no
céu e lá ficaria esperando pela mulher. O local do seu passamento
foi como teria sido de seu desejo: em sua própria casa. Morrera
dormindo nas dependências do seu próprio castelo Monlevade. A
esposa nunca deixaria de comentar como foi duríssimo o despertar daquela manhã. Conversara com o marido à noite. Ele usou-a
com gentileza e amor. Poucas horas depois, o grande golpe. Seu
querido Jean-François, pai dos seus três filhos, nunca mais retornaria do seu sono final.
Aí está justificada a sensação estranha que Jean tivera quando do seu ingresso na école des Mines.
As exéquias foram feitas da forma mais simples possível, conforme orientação que o fidalgo deixara em seu testamento. Nada
de luxo ou ostentação. A França perde alma altamente cidadã,
foi o comentário geral. Lá estavam, além de autoridades locais
e do governo central, os amigos do fidalgo e os da família. Não
vou listá-los para você, mon ami, o rol seria por demais extenso.
Mas em funerais e festas de casamento as pessoas que são sempre
lembradas são as que não estiveram presentes. Foi o que aconteceu a Martinho. Nunca poderia chegar a tempo de Lisboa, onde
sabemos estar cumprindo missão de soldado. Jean havia lhe enviado carta imediatamente. A notícia deveria levar no mínimo dez
dias para alcançar o velho companheiro a quem o pai autorizara
uso de nome. O filho chorou tardiamente o morte do fidalgo, seu
pai postiço.
François permaneceu alguns dias mais em Guéret com a
mãe, ajudando-a a organizar os objetos e documentos do pai
morto. Maria Vitória estava assustada com o que acontecera, não
há como negar, isso faz parte da miséria humana... Os filhos abdicaram seus direitos em favor da mãe. Quando ela subir ao céu
para encontrar-se com papai, veremos como estas questões de
propriedade ficam por final, foi o que disseram quase ao mesmo
tempo. E Maria Vitória? Alguém perguntou. Com Maria Vitória
ninguém deve ser preocupar, foi o que os filhos homens responderam. No momento certo daremos a ela dote adequado, que
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
229
ninguém se preocupasse, não abandonariam essa responsabilidade deixada pelo pai, enfim, iriam deixá-la em situação absolutamente tranquila.
Jean e François temiam pela saúde da mãe. Estavam conscientes de que a paixão que ela sentia pelo marido era formidável.
Não fosse esse sentimento bem cuidado, poderia matá-la em breve tempo. Manteriam observação constante nos primeiros meses
de luto. Pediriam especial atenção do abade Ribérry que, embora
envelhecido, continuava bastante ativo e cada vez mais abraçado
ao sacerdócio. Crescia em bondade e amizade aos seus paroquianos que, em troco, diziam-lhe não estar ficando mais velho, e sim
tornando-se melhor. A esperança é que, a médio prazo, a dor da
mãe fosse superada pela fé. Ela não poderia ceder à tristeza da
perda, bem, tinha uma filha que ainda deveria ser preparada para
o casamento, por fim, os rapazes não tinham dúvidas de que,
além de tudo, teria que amparar, e ser amparada, diretamente por
Maria Vitória. Assim foi!
Um ano depois, François casou-se com a noiva que dissemos
não se dar conta da família Monlevade. Daí praticamente desapareceu da vida de Jean. Se bem que seja verdade que, quando se
encontravam, o eterno laço de sangue fazia-os comportarem-se
como velhos camaradas. Mas era fato raro. Dois anos depois do
matrimônio, ou seja, em 1815, Jean foi informado por terceiros
que era tio de um bonito bebê chamado Elisabeth-Clémence. Tio
de primeira viagem. Foi visitá-la, mas pouco demorou. Após alguns minutos de contato, a esposa de François, acompanhada da
mãe e algumas amigas, retirou-se em direção aos seus aposentos
para amamentação. Saíram falando alegremente sobre o aspecto
saudável do bebê. Ficou por lá.
E mamãe? Jean perguntou a François. Já esteve com o primeiro neto? Ainda não, François respondeu. Minha esposa decidiu comunicar-lhe somente daqui a alguns dias quando terminar
o tempo do seu resguardo. Então Jean fumou um charuto a mais
em companhia do irmão e, mal apagadas as cinzas, montou cavalo que havia alugado para chegar até a casa do próprio. Não
mais voltou.
Nem foi convocado para tanto. Como dissemos, a solução
adotada foi a de encontrar-se esporadicamente com François em
restaurantes da cidade. Rápidos momentos em que propiciava
230
Jairo Martins de Souza
ao irmão saber dos amigos comuns de tempo passado, e de sua
amada família.
E é por falar em família, Tisserand disse, que devo convidálo a voltar à cerimônia de formatura na école des Mines. Eram
instantes em que se falava dos pais ausentes e, Jean, emocionado, rememorava o estilo carinhoso e preocupado do fidalgo,
seu pai. Nunca mais teria chance de apreciar sua bela escrita dizendo do dia a dia do castelo que tanto amava. Letras floreadas.
Um perfeito calígrafo! Quando criança tentava imitá-lo em suas
anotações escolares. Enfim, não foi somente por isso que, naquele mesmo dia das celebrações de sua formatura em engenharia,
homenageou-o, in memoriam, em cartas endereçadas à mãe e
aos amigos. Caprichou de forma especial na caligrafia. Sentiu-se
como no dia em que recebera a triste notícia. Chorou intensamente. E, mais ainda, lembrou-se do que já pressupostamente
sabemos: no momento do enterro havia feito emocionada elegia.
O sentimento e a dor imediata da falta fizeram com que sentisse
responsabilidade crescente quanto a eternização do nome Monlevade. Aumentaria esforços. Uma coisa puxa a outra, diminuiria
tempo livre. Multiplicaria o número de cartas a serem enviadas
para a mãe. Foi por ter tudo isso em conta que, na ocasião, havia
retornado o mais breve possível para Paris.
E aqui estamos novamente diante do resultado. Na primeira
fila de pais de formandos, a mãe e a irmã acenavam sorridentes.
Estavam ansiosas por abraçá-lo. François compareceu somente
no encerramento da cerimônia. Justificou atraso, dizendo ter tido
necessidade de levar a filha ao médico. Praticamente teve que
carregá-la no colo: é por isso que estava com a roupa um pouco amassada. Vocês sabem o que acontece normalmente com as
crianças e os velhos nessa troca de estação! Havia compensado
parcialmente a frustração de Jean, por não vê-lo de imediato na
cerimônia, trazendo a tiracolo o jovem primo Léopold que passava uns poucos dias em Paris. Jean, ao vê-lo, divagou por instantes
sobre a rapidez da passagem do homem pela terra. Há poucos
anos vira o nascimento daquele rapazinho que o cumprimentava
e dizia-lhe – com olhar de admiração – estar entrando como noviço em escola religiosa. Meu sonho é chegar a ser um vigário geral!
À direita, em banco reservado para convidados, o casal Pius,
de braços dados, observava e se enternecia com a felicidade do
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
231
formando que consideravam quase como filho. Nas últimas noites, já deitados e antes de dormir, sofriam por antecipação diante
da perspectiva de novos caminhos a serem trilhados pelo rapaz.
As sobrinhas, as irmãs du Lac, compareceram, vestidas a caráter:
haviam sido convidadas não somente por Jean, como também
por famílias de outros formandos. Em breves momentos Bernadette disse-lhe estar noiva de jovem marquês que viera recentemente da Baviera. Paixão à primeira vista. Que não a impedia de
olhar com admiração o reluzente anel que o antigo namorado havia posto no dedo anular direito. Presente da mãe. Enquanto isso,
Monique mostrava aliança de casamento a Felicité. Havia se casado com filho de conhecido importador de produtos brasileiros.
Anteriormente havia pedido a Jean que transmitisse recomendações a Martinho. Ambas desejaram-lhe felicidades e partiram em
carruagem deixada à disposição pelo marido de Monique. Jean
reparou que, ao retirar-se, Bernadette virou ligeiramente a cabeça
e dedicou-lhe rápido e imperceptível olhar de despedida final. À
exceção de Lucillia Pius, ninguém mais notou a circunstância: o
reboliço era grande e a festa seguiu animada!
Não se dispunha de fotografia, nem mesmo a partir das primitivas câmeras à base de caixa escura, Tisserand comentou.
Muito menos das modernas digitais. E, pior ainda, mesmo que
grandes pintores da corte costumassem comparecer para registrar
festividades de graduação como a des Mines, como já disse-lhe,
mon ami, Taunay, Debret e outros grandes já se encontravam em
terras brasileiras.
Mas não seria surpresa se fosse descoberto, nos dias de hoje,
algum quadro perdido no sótão de velha casa parisiense e que retratasse algo daquela cerimônia e... bem, ainda que não se tendo
em mãos nenhum registro daquela natureza, não é difícil imaginar a felicidade dos formandos. A de Jean de Monlevade, mais
uma vez, atingiu seu clímax quando Ildefonso Gomes de Freitas
aproximou-se e cumprimentou-o efusivamente.
O filho do capitão Freitas havia se tornado um dos seus amigos prediletos!
232
Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
233
XV
Ildefonso Gomes de Freitas
As relações entre Portugal e a França voltaram a ser amigáveis
exatamente no dia 18 de junho de 1814. Aproximadamente um
ano depois, em junho de 1815, o capitão Freitas dava por encerradas, com sucesso, as negociações com o cônsul francês no
Brasil, o coronel Jean-Baptiste Maler. O assunto foi longo período
de estudos médicos que o filho pretendia usufruir em Paris. Maler
havia chegado ao Rio em abril daquele ano.
Foi por tudo isso que, em agosto do mesmo ano, o jovem
médico Ildefonso Gomes de Freitas já estava a caminho da Europa a bordo do Minas Geraes. Vimo-lo faz pouco na cerimônia de
graduação de Jean na école des Mines.
E o senhor corretamente deve ter concluído, Tisserand prosseguiu, que não era de hoje que chegara a Paris. Então é mister
voltar alguns meses na linha do tempo para vê-lo chegar à casa
de Septimus e Lucillia Pius. Pois por meio de convincente intermediação de Jean, o casal havia ganhado um novo inquilino. A
princípio, uma simples substituição: ocuparia os aposentos originalmente pertencentes a Martinho.
Já lhe disse, Tisserand lembrou, que Jean de Monlevade
mantinha correspondência regular com o capitão Freitas. Pois é.
O hábito estendera-se ao filho. O rapaz tinha, tal como o fidalgo
Monlevade, uma bela caligrafia, que era sempre acompanhada
de textos de fácil leitura e bom humor. Isso dava sabor especial
para Jean. O jovem fazia-lhe lembrar o pai. Escrevia em um francês quase perfeito e, tão logo concluíra o bater de palmas na porta da casa dos Pius, Jean comprovou que sua fala era também de
qualidade. Praticamente sem sotaque!
O doutor Ildefonso nem bem havia entrado e já dizia de sua
satisfação por estar na cidade de que o pai falava com tanto ca-
234
Jairo Martins de Souza
rinho. E, poucos segundos depois, comentava sobre a admiração
que nutria pela cultura francesa. Eram sentimentos e elogios absolutamente sinceros, pois, passados alguns minutos mais de conversação, ficou patente que não era pessoa de planejar agrados
convencionais. Deus, os Pius imediatamente perceberam, havia
lhe dado de presente algo que é privilégio de poucos: a espontaneidade. E não foi somente por essa característica que encantou
a todos. Tinha modos totalmente diferentes de Jean, Martinho e
Kostas. Mais expansivo. O humor criativo e cheio de bons sentimentos aflorava a cada nova situação. Lucillia sentiu que havia
conquistado mais uma pérola para seu lar. Septimus sorria pelos
cantos da casa.
Não fosse bastante, o rapaz era extremamente musical. Saía
do interior da residência cantando e voltava com o mesmo estado
de espírito e atitude. Alma boa. Com o passar dos dias, ao expor
a arte que se praticava na província de Minas Geraes a Jean, a
Kostas, e ao casal Pius, já cantava em francês algumas modinhas
regionais. Trouxera consigo uma belíssima viola de dez cordas.
Dizia ser companheira inseparável!
A simpatia com que tratava as pessoas fazia-o ainda mais
agradável aos olhos. Até o Breu logo se deu conta do caráter vivaz
do jovem médico brasileiro. Logo no primeiro contato, foi-lhe atirando um pequeno pedaço de calhau para que o cão o trouxesse
de volta. A brincadeira que tanto agradava ao animal também
passou a fazer parte do cotidiano de ambos.
Qui est-il? Quem é o rapaz? Lucillia Pius aprendera a conviver diariamente com a pergunta que lhe era feita pelas moças
das casas próximas. Procurava ser reticente. Instantaneamente
passou a alimentar ciúmes das que tentavam se aproximar do
novo inquilino. O caso das irmãs du Lac não lhe saía da cabeça.
Não se dera a contento naquela oportunidade. Não cometeria os
mesmos erros. Escolheria a dedo!
O capitão Freitas, sabemos, havia dado várias aulas de Brésil
a Jean. Mas o filho dizia-lhe as mesmas coisas trazendo a tiracolo
algo novo. Discutia apaixonadamente. Com mais intensidade ainda, após ingestão de um ou dois canecos de vinho: desde sua chegada declarou-se apreciador dos tintos franceses. Foi nessa condição festiva que analisou conjuntamente com Jean a veracidade
das anotações do britânico John Mawe, On a Gold Mine in South
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
235
America, de 1812. A farra do ouro já havia sido feita pelo portugueses, agora não era assim tão fácil encontrar o precioso metal.
Independente do tema, conflituoso ou não, as palavras que
Ildefonso proferia eram temperadas com levíssimas pitadas de
amor. O pai era homem prático. O filho fazia tudo ficar mais bonito e sedutor. A região de São Miguel do Piracicaba tornava-se
a mais bela do mundo. A propriedade do pai era extensíssima e
um cavaleiro podia gastar dias para conhecer seus limites. Não há
meios de conhecê-la por inteiro, pois tinha longos trechos de mata
fechada. Inexpugnável. Proliferavam onças, gatos do mato, tatus,
antas... e as nunca vistas mulas sem cabeça. Mostrava gravuras
dos animais procurando-as nas páginas de obras da livraria de
Dubois. Nas águas dos rios brasileiros, peixes como piaus, dourados, cascudos e bagres eram pegos praticamente à mão. É muita
fartura. A terra é fértil e ao mesmo tempo riquíssima em minérios
e metais. O ouro ainda existia por lá. Bastava ser procurado. Um
paraíso perdido e praticamente intocado.
A parte prática da coisa é que Ildefonso, em avanço, dera
início a procedimentos para obtenção de salvo-conduto para que
o engenheiro francês pudesse viajar por áreas de mineração de
Minas Geraes. Lembrar que, a princípio, para as autoridades do
reinado lusitano, todo cidadão da França era considerado, em
potencial, um espião a serviço do império do seu país. Com isso
anunciava veladamente segundas intenções para que Jean fosse
ter até terras brasileiras. O pai era antigo conhecido do ministro
dom Manoel de Portugal e Castro e fora a fonte da qual partiria o sauf-conduit para o amigo francês. Isso seria colocado em
ação caso houvesse interesse do próprio. Jean ficou agradecido
e cada vez mais admirava a capacidade do médico brasileiro de
se antecipar às necessidades de terceiros. Definitivamente o sulamericano não era egoísta: pensava sempre no outro!
Permaneceriam amigos para sempre, foi o que Tisserand disse sorrindo. Mais ainda até quando Jean concluía seu curso superior na école des Mines. O contato era constante, bem, quando
Monlevade se formou a França estava sob comando mais equilibrado de Luís XVIII. No entanto, o exemplo do terror branco
demonstrava que o país ainda mantinha restos das convulsões sociais dos anos anteriores. Os monarquistas estavam dando o troco... Mas não era somente por isso que Jean sentia-se fortemente
236
Jairo Martins de Souza
inclinado a deixar temporariamente seu país e, preferencialmente,
viajar ao Brésil. Pesava mais na balança as paixões despertadas
pelas descrições dos membros da própria família Freitas, como
também o desafio de conhecimento de novas províncias minerais. Convenceria seus amigos. Levaria o Breu. Todos poderiam
acompanhá-lo!
Martinho ainda trabalhava em Lisboa. Platini e Fontaine em
Guéret. Ultimamente escreviam dizendo que andavam inquietos
com a monotonia da vida do interior. Já Kostas Zavoudakis...
Kostas era homem do mundo. Não tinha dúvidas de que atenderia chamado do amigo engenheiro.
Foi por isso que imediatamente o jovem engenheiro de Minas
iniciou planejamento da viagem. Partiria inicialmente sozinho.
Analisaria o terreno. Depois, fosse o caso, convocaria os amigos.
Iriam para o novo mundo!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
237
XVI
A viagem para o Brésil
A rota de viagem que Jean de Monlevade havia traçado terminava na fazenda do capitão Freitas às margens do Piracicaba. Rio de
águas mansas, foi o que o amigo dissera-lhe. A conselho de Ildefonso também incluíra passagem por alguns dias na propriedade
de um dos seus irmãos. Era próxima à do pai, e o subtenente
José Joaquim Gomes de Freitas o receberia com muito prazer. O
senhor, caro doutor Monlevade, mesmo sem ter contato pessoal
com a maioria dos nossos, é um velho amigo da família. Com
essas e outras orientações, o recém-formado engenheiro de minas planejara todas as circunstâncias dos eventos de viagem com
precisão de laboratorista.
Portanto, para não aborrecê-lo, caro amigo, vou dizer de suas
intenções somente por alto. Foi como parcialmente Tisserand deu
como encerrado o assunto.
Sairia de Paris a tais horas do dia 2 de abril de 1817, um dia
após sua graduação. Chegaria ao porto do Havre. Embarcaria
para Lisboa, local onde seguramente mais passageiros e mercadorias seriam acrescentados ao número de viajantes e volume de
carga. Conheceria a capital do império português. Lá também
programara, por carta, encontrar-se com Martinho. Conversaria
com o amigo sobre possibilidades futuras. E seguiria diretamente
para o porto do Rio: Saint-Bernard era o nome do barco. Confiava não haver problemas de aguardo de chegada dessa embarcação. O mesmo estava no Havre há meses sofrendo reparos no
casco, e essa era sua primeira viagem após volta às águas. Gastaria de 45 a 90 dias, totais.
Antes da viagem de Monlevade, mon ami, muitas, ao longo
dos séculos, haviam sido feitas seguindo o mesmo percurso. Antes mesmo, dizem, do descobrimento das terras brasileiras. Em
238
Jairo Martins de Souza
particular, o senhor encontrará, no Brésil, dezenas de livros de
história que informam muito bem sobre as agruras das travessias
transoceânicas do início do século dezenove. O tema virou moda
nos últimos anos. Talvez porque os passageiros tenham sofrido os
mais variados tipos de males! Basta lembrar a que foi feita pela
família real quando fugia do assédio francês em 1808.
Foi por isso que, quanto à fase marítima da viagem, Jean
havia esboçado seus planos de forma ainda mais meticulosa. Era
um politécnico. O tempo de estada no mar era variável, mas seguramente longo. Informou-se sobre todas as condições de viagem
e da tripulação do Saint-Bernard. Inteirou-se da quantidade de
barris de água embarcados e dos aprovisionamentos de carnes e
cereais. Fez papel de engenheiro de suprimentos com facilidade.
Não é que fosse algo inusitado. Aprendera muito de tudo no período tanto da Polytéchnique quanto da Génie Militaire. Para um
graduado de sua qualidade, o exercício fora de facilidade extrema
se comparado com os que fizera em simulações dentro do programa de estudos das ditas escolas.
E a école des Mines seria de proveito insubstituível quando
estivesse no Brésil. Preparou planilhas e estabeleceu alvos de sítios a serem visitados, e fez uso de conhecimentos técnicos misturados com estratégias de alta precisão militar.
No Rio de Janeiro, ajustaria, em termos finais, papelada
com o cônsul francês e representantes do governo local. Alimentava esperança de que o capitão Freitas o aguardasse para
acompanhá-lo até Minas Geraes. Pronto o salvo-conduto para a
ambicionada região de minérios, bastavam-lhe algumas poucas
assinaturas adicionais relacionadas pela burocracia imperial. Isso
concluído, viajaria para Vila Rica. A cavalo. Estudara relatos de
viajantes europeus e informações que estes recebiam de tropeiros
que por lá transitavam: a Estrada Real que partia do Rio e passava pela região não era nada confiável. Caso contratasse carruagem, a viagem poderia perdurar por semanas! Depois partiria
para Caeté, Sabará... e, finalmente, São Miguel do Piracicaba,
seu destino derradeiro.
E assim foi amparado em sua intensa formação que chegou
com sucesso ao Rio de Janeiro em meados de maio de 1817.
Tempo recorde! Os ventos foram favoráveis em todo o percurso
da viagem.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
239
E a despeito de todos os possíveis acidentes que já disse, tanto agora, quanto em outros momentos, Tisserand prosseguiu, não
aconteceram somente situações de desconforto. Nem considero
aqui seu reencontro com Martinho em Lisboa, que foi de satisfação a toda prova. O meio-irmão ficaria aguardando a chamada
que Jean ficara de enviar diretamente do Brésil. Já no trecho Lisboa-Rio, fizera amizade com outros novos passageiros. Entre eles,
alguns poucos brasileiros que retornavam à colônia por um ou
por outro motivo. Incluam-se neste grupo, três jovens advogados,
filhos de famílias de negociantes abastados do Rio, que haviam
concluído viagem de complementação de estudos feitos na universidade portuguesa de Coimbra. Jean imediatamente lembrouse do amigo Ildefonso.
O grupo de moços quebrou a monotonia da travessia do
Atlântico, e fez com que o tempo passasse mais rápido e irreverente. Não paravam de discutir animadamente sobre teorias jurídicas. Não chegavam a um acordo. O que mais vale? O Direito da
palavra escrita ou o explicitado pelos costumes? Uma trilha usada
pelos viajantes desde tempos imemoriais deve ser compulsoriamente eleita como traçado original de caminho a ser rasgado pelo
Estado? E a revolução que havia sido sufocada recentemente por
Dom João em Pernambuco? Riam dos excessos. Os revolucionários haviam decidido usar cachaça, ao invés do vinho, durante
as missas. A matéria-prima das hóstias passara a ser a farinha de
mandioca ao invés do trigo importado. Ninharias. Pelo menos
nisso, os jovens e impulsivos rapazes chegaram a um acordo. Mas
nessas alturas já estavam encharcados de vinho. Não todos. Um
deles não perdia tempo ocioso. Tal como Monlevade, não era de
desperdiçar oportunidades.
Então, Tisserand argumentou, posso tranquilamente assumir,
como dizem os nascidos nas terras das Geraes, que ambos não
dormiam no ponto. Havia outros fatores a considerar, complementou. Eram praticamente da mesma idade e tornaram-se amigos principalmente por terem muitos pontos de vista em comum.
Mesmo que legalista, o advogado era descendente de antigo donatário, Martinho Afonso de Souza, de capitania hereditária recebida no Brasil de séculos passados. Monlevade não entendeu a
circunstância de imediato, bem, o fato é que o descendente Raimundo Horácio de Souza julgava que a república traria melho-
240
Jairo Martins de Souza
res efeitos que a monarquia no seu Brasil. É afirmação perigosa,
Monlevade disse-lhe. Haja vista o castigo severo imposto pelos
portugueses aos revolucionários pernambucanos que andaram,
inclusive, buscando a ajuda do afamado Thomas Jefferson nos
Estados Unidos... Ainda assim, passavam horas conversando.
Sim. Voltariam a se encontrar. É o que ficou estabelecido entre
os dois. O ex-politécnico Monlevade, agora engenheiro de Minas, gostava também de discutir assuntos sociais. Herança da
Polytéchnique. Era, volto a dizer, uma das razões de gostar de
aprender muito, de tudo.
Tanto é assim que também tentava absorver constantes lições de navegação com o capitão e o imediato responsáveis pela
embarcação. Lembravam-lhe os amigos Platini e Fontaine. Com
o olhar aparentemente perdido no horizonte, observava horas seguidas a natureza do mar e suas ondas. Ficava devaneando sobre
tsunamis, as famosas ondas gigantes que assombram os mares, e
grandes icebergs que viajam desde os polos gelados do mundo.
Mas, de concreto, o que viu foram baleias e golfinhos que seguiam rota para algum lugar. Um dos marinheiros disse-lhe tê-los
visto em muito maior quantidade na distante ilha de Fernando de
Noronha. Talvez águas mais propícias para reprodução...
Ocasionalmente, próximo à Ilha da Madeira, reparou, no longe das águas, um pequeno tonel perdido na imensidão do oceano. Estudou-o. Detidamente. Com o mar sem ventos, o tal barril
somente subia e descia. As ondas simplesmente passavam. Não
se quebravam. O barril permanecia no mesmo lugar. A mesma
energia que tirava das ondas, para subir, era devolvida quando
voltava. Onda é energia pura. Imaterial. Monlevade sorriu ao
confirmar, na prática, as teorias que aprendera na Polytéchnique.
Na água funciona assim. No ar é a mesma coisa, concluiu. Ondas
são ondas. Tanto as dos mares quanto as do som... daí pensou
em tiros de pistola que podem ser ouvidos quando a vítima foge,
e se esconde protegido por esquina. Bateu palmas para o criador.
Assim, com olhar perdido para o horizonte margeado pelas
águas do Atlântico, Jean de Monlevade novamente deixou-se levar pelos mistérios engendrados pelo criador. Refração. Difração.
Interferência. Reflexão. Quanta engenhosidade!
E, para sua maior fortuna, a Génie Militaire fornecera-lhe
meios teóricos para passar algo de novo para todo o pessoal de
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
241
bordo. Fazia o complicado parecer extremante fácil. Foi assim que
fazia anotações e levantava dados. Na imensidão do oceano aprimorou-se na leitura dos astros e, com isso, aprofundou-se na astronomia: para tanto, usava cuidadosamente a velha luneta de Duchamps. Gastou também muito do seu tempo revisando estudos.
O foco principal era a língua portuguesa. Já a dominava relativamente bem, mas dedicou-se, em especial, à expansão do seu
vocabulário. E quando o grumete, pendurado na gaiola do mastro da embarcação, finalmente gritou, terra a vista!, estava pronto.
Pronto para entender definitivamente o Brésil.
Nem vou dizer do encantamento que assombrou Monlevade
à medida que o navio entrava na baía da Guanabara. Seria lugarcomum!
Foi o que Tisserand disse, animadamente, enquanto alertava
estar finalizando a segunda parte de sua história. Mas a embarcação teve que aguardar dois dias para liberação de embarque.
Graças a esse retardo, o jovem engenheiro teve tempo para ver,
de camarote, o entardecer e o amanhecer mais extraordinários
que vira em sua existência. No segundo dia tinha avistado, de longe, os acenos de alguém de aspecto conhecido. Estava de braços
dados com uma bela e bem vestida mulher. O nível de tensão que
o viajante sentia foi reduzido praticamente a zero ao reconhecer,
por final, o amigo e futuro anfitrião. Com cabelos mais esbranquiçados pelo tempo, João Gomes de Abreu de Freitas aguardava-o
com feição sorridente. Parecia ansioso!
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Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
PARTE 3
Brésil
243
244
Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
245
I
O Rio de Janeiro e seus escravos. O engenheiro da
école des Mines se impressiona
Passados alguns dias navegando próximo às águas do litoral brasileiro, Jean ainda não havia se acostumado ao clima úmido dos
trópicos e ao sol do Brésil. Mesmo que, em terra, os brasileiros
não estivessem ainda enfrentando as altas temperaturas do seu
verão, o engenheiro francês da Polytéchnique queimou e descascou a pele. Estava prestes a iniciar sua missão extraordinária e
o corpo reagiu, conforme sua ótima saúde. Em poucos dias já
procurava jeito de se safar neste novo ambiente, e o artifício foi
o mesmo que os africanos haviam aprendido com a natureza ao
longo de milênios. Passou a produzir, imperceptivelmente, altas
quantidades de melanina. A proteína da cor. O resultado é que
não demorou muito e já apresentava sinais de forte bronzeamento.
E não é que tenha sido pego de surpresa: como sabemos,
planejara criteriosamente a viagem. E protegera o rosto com certa
pasta de cor branca que era normalmente usada para proteger os
dentes durante escovação. A receita lhe fora fornecida por Paracelsus, o farmacêutico de Guéret, como resposta a uma sua carta
em que pedia orientação. Se não funcionar totalmente, caro Jean,
pelo menos lhe trará benefício parcial: nós, franceses, usualmente
temos a pele excessivamente clara... O pote não era grande, mas
suficiente para os muitos dias de viagem.
Na realidade, também disso já sabemos, Jean pesquisara, e
soubera que mesmo os viajantes bem sucedidos a caminho do
novo mundo sempre padeciam de uma ou outra dificuldade.
Aguardavam-no dezenas de dias de muita ansiedade, temor por
falta de ventos, correntes marítimas, tubarões, baleias e muito
medo das tormentas que sempre estavam por vir. E foi em função
disso que levara em conta pormenores como pequeno estoque
246
Jairo Martins de Souza
particular de água potável e carne salgada. Enfim, na engenharia
militar aprendera a lidar com emergências e situações de guerra.
Foi como tratou desde o início a travessia do Atlântico: inclusive
não se esquecendo de acrescentar um belo mosquete de mais de
um metro e meio. Tinha coronha trabalhada com detalhes dourados. Arma mais para exibição em parada militar do que para
uso em situações comuns. Fora presente do pai que a adquirira de
famoso armeiro de Amsterdam. De luxo!
Os holandeses eram famosos pela sofisticação e qualidades
das armas que fabricavam... Não pretendia usá-la, mas... quem poderia garantir que não fossem bater de frente com navios piratas?
Ou ser abatido, durante tempestades, por ondas que vazavam pelos conveses. Outra situação de gravíssimo risco! Monlevade sempre tivera conhecimento da ocorrência destes e de outros
maiores infortúnios. O afundamento total da embarcação era um
dos que acontecia com bastante frequência.
Até mesmo em anos não afastados dos próprios dias em que
vivemos, Tisserand comentou. O acidente com o Titanic foi um
deles. O senhor também se lembra? Perguntou-me. Talvez tenha
sido o que causou o maior número de mortes. Cerca de 1500 pessoas afogadas de uma só vez nas águas geladas do Atlântico Norte. Mas, nos anos de Monlevade, morriam centenas e centenas
por ano nos mares do mundo. Robôs como o das cenas iniciais
da película que romanceou aquele conhecido acidente ainda desvendarão muitos heróis anônimos, amores e segredos. Incontáveis apaixonados como Leonardo di Caprio perderam suas vidas!
Certamente Monlevade não morreria congelado como o rapaz do
Titanic, pois seria pouquíssimo provável que se deparasse com
icebergs desgovernados. Mas, antes de viajar, pesquisou todas as
condições do navio.
E inclusive trouxe consigo, Tisserand prosseguiu, desde rações de bicarbonato de sódio até pequeno livro de rudimentos
de medicina prática. O homem prevenido vale por dois é ditado
conhecido também na França. Talvez tenha nascido lá (L’homme
averti en vaut deux). Junto com frutas ressecadas, no seu baú
de viagem figuravam as roupas mais leves que possuía em seu
guarda-roupa. Não mais era um militar, mas pertencia à reserva
dos próprios. Foi por isso que optou por deixar algumas fardas
para trás. Podiam ser encontrados em seus pertences uma de
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
247
campanha e a especial, de gala. Com a prática dos que tiveram
cotidiano vivido na caserna, poucos segundos tendo às mãos um
ferro a brasa ser-lhe-iam bastantes para torná-la em condições de
uso. O fardamento de luxo pode lhe ser útil em momento de exceção, Ildefonso avisara-lhe, com ar jocoso. Faz mais presença. Dá
aura de autoridade e, com isso, costuma afastar maus elementos
e condições.
Já lhe disse, meu amigo, Tisserand continuou, que o SaintBernard teve que aguardar dois dias para que fosse liberado o desembarque de passageiros e cargas. Poderia lhe dizer vários motivos para tanto, há muitos, mas garanto que o principal era por ser
o navio de bandeira francesa. Os ingleses pareciam ter prioridade
em todos os assuntos de Portugal. Além disso, o porto do Rio, a
olhos vistos, primava pela desorganização e fervilhava de gente e
mercadorias que chegavam em quantidade da Inglaterra.
Foi exatamente a sensação que Monlevade tivera em seus
primeiros momentos em terra. Anos mais tarde ainda se lembraria
dos paus de carga que eram puxados por negros e burros e que
lançavam sacas de café em convés de navio inglês. Na época era
uma das poucas contrapartidas às importações da colônia, afora
a cana-de-açúcar e as cargas de madeira. Demorou a mudar...
Próximo a eles, em situação de risco, um capataz exagerava nos
xingos e simultaneamente dava ordens para melhoria das cordas
de amarração. Comandava a chegada de toras de madeira até a
área de estocagem. Rápido suas mulas, o navio que vai levá-las
chega depois de amanhã! Não pode ficar esperando no porto. Se
o patrão tiver que pagar demurrage, multa por espera, acabo com
o lombo de vocês!
Outros africanos, já dentro do navio, eram praticamente açoitados
enquanto rearranjavam o material embarcado para dentro dos porões.
De fato, na ocasião, Jean pôs-se a olhar detidamente a rotina
da praça aproveitando momento em que aguardava orientações
da polícia imperial carioca. Pois afora as orientações de Ildefonso,
é daquele jeito que julgara rapidamente melhor absorver a cultura
local. Visitar feiras livres, pesquisar o que faziam os ambulantes, o
mercado de frutas, de carne, verduras...
Havia carroças. Muitas carroças. Em sua maioria puxada por
burros. Algumas ficavam estacionadas em fila indiana e coletavam clientes que chegavam esporadicamente. Outras passavam a
248
Jairo Martins de Souza
passo lerdo em movimento constante e ocupado. Um casal de cor
vendia cocadas. O marido também carregava um pau comprido
que tinha quatro galinhas amarradas para negociação. Um freguês, com aspecto de estivador, interrompeu-lhe os passos para
verificar qualidade e aspecto do produto. Retirou alguns trocados do embornal enquanto o vendedor punha-se a retirar a ave
escolhida. Um minuto atrás enxotara bando de cachorros que
ameaçavam sua mercadoria. Uma mulher passou com cesto de
roupas assentado em cima de sua cabeça. Entre o próprio cesto e
a cabeça da negra, Monlevade viu pedaço de pano enrolado em
espiral amassada. Riu da situação que nunca vira. Alguns homens
apressados faziam cálculos de lastro, os de manejo e equilíbrio
das cargas. Eram os que realmente comandavam os trabalhos
portuários. Outros faziam conferência de quantidades enquanto
verificavam planilha de impostos. Mude este monte de sacos para
bombordo. Aqueles outros não podem embarcar. Falta-lhes o selo
de liberação real! Dois práticos conversavam entre si. Jean percebeu que falavam sobre negociações com armadores. O número
de navios que chegava ao porto do Rio aumentava a cada ano...
É país adequado para se usar farda, Jean concluiu. Tinha
razão. Um soldado havia circulado pelas imediações e fora efusivamente saudado pelos passantes. Ainda que não fosse por
unanimidade, pois nem todos pareciam apreciá-lo. Alguns negros
olharam-no de soslaio: pareciam temê-lo. Apesar da cena que observava, Monlevade confirmou que o momento do desembarque
não teria sido ocasião para uso de fardamento de gala. E foi com
roupas claras, e chapéu de abas largas, que abandonou o convés
do navio em direção à escada de saída. Molhou os pés, consequência da maré que batia... Nem mesmo se deu conta. O coração batia acelerado. Mon Dieu, meu Deus, estou no Brésil!
Não é que fossem muitos degraus, mas as pernas pareceramlhe pesadas quando assomou ao nível da praça que dava acesso
às instalações de chegada de estrangeiros. O Largo do Paço. Praça grandiosa! O engenheiro francês espantou-se com a beleza do
conjunto arquitetônico emoldurado pela magnífica paisagem da
capital da colônia. Do lado aberto do retângulo formado pela praça podia ver ao fundo as edificações da Ordem das Carmelitas.
Trocou mentalmente de posição. De lá imaginou a belíssima vista
direta que os religiosos desfrutavam da chegada dos navios e o
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
249
azul celestial das águas cariocas. Povo abençoado!
No entanto, a falta de exercícios arruinara-lhe temporariamente os músculos. Com o pensamento desviado para o súbito
incômodo e, enquanto batia os pés para retirada do excesso de
água, foi abruptamente chamado até pequeno aposento construído de pedras nas margens do porto. O homem que o convocara
era de estatura bastante baixa.
Mas não chegava a ser um pigmeu, Tisserand comentou. O
inusitado de sua ereta e agitada figura era o contorno do abdômen
que exibia majestosamente. Dava ideia de ter engolido uma monumental azeitona: parecia um reizinho! Jean sorriu ao se lembrar de
pinturas que vira de João VI. E foi comparando mentalmente que
concluiu que o oficial de plantão, provavelmente português, tinha a
pança aumentada do seu próprio recém-aclamado imperador. E o
mais importante, trajava uniforme do exército imperial. Problemas.
Monlevade mal tinha respirado os primeiros ares de terra!
Em poucos minutos tomou conhecimento do assunto do contratempo. Estava mais ou menos avisado, portanto o fato não lhe
causou surpresa: o próprio Ildefonso havia lhe alertado sobre a
falta de critérios de alguns oficiais portugueses. Em condições rotineiras estavam sempre à busca de alguma gorjeta, enfim, vamos
ao fato, foi como Tisserand encerrou frase delicada que desistira
de mencionar.
Livros. Monlevade trouxera livros em grande quantidade. Romances, grandes obras da literatura universal, dicionários, obras
sobre viagens ao Brésil feitos por conterrâneos franceses e europeus e, sobretudo, livros técnicos. De mineração, de cálculo,
tratados de botânica, química, siderurgia, militares... O oficial que
anotou chegada dos passageiros do navio cismou de vasculhar,
avisado que fora pelo pessoal de bordo, o baú de Monlevade,
para certificar-se de que não havia nenhum material contrário aos
interesses de Portugal. Viajantes franceses são sempre suspeitos,
comentou com um colega de turno. Normalmente trazem textos
subversivos!
Não temos qualquer litígio pendente com o seu país, Jean
argumentou em português claro. O homem surpreendeu-se. O
elemento praticamente não tinha sotaque. A paz entre a França e
Portugal foi assinada em 1814, o engenheiro francês complementou. Inclusive temos grandes artistas que para cá vieram o ano
250
Jairo Martins de Souza
passado para dar partida a certa academia de artes do Rio de
Janeiro. De minha parte sou encarregado de levar a termo missão
extraordinária para o governo do meu país. Vim para o Brésil em
condições especiais.
Para comprovar o que dizia retirou da maleta de mão documento emitido pelo governo francês. O soldado lusitano verificouo com desdém e, não se dando por vencido, retrucou mal humorado: isto não é de minha competência. Não fui comunicado
oficialmente do fato. Sei como as coisas funcionam, senhor visitante. Participei da invasão que fizemos à Guiana francesa no tempo
de Napoleão. Não creio que a França tenha mudado com Luís
XVIII. É só o que tenho a lhe responder. Daí afirmou ter que abrir
também os caixotes discriminados como de instrumentos, assim
como todas as demais bagagens de Monlevade. Não é comum
chegada de estrangeiro com tal quantidade de baús e caixotes...
Paciência. Paciência. É o que Jean rogava para si mesmo.
Temia pela luneta que ganhara de Duchamps, pelos produtos químicos cuidadosamente embalados... temia por tudo. Cada item
era fundamental para determinar o sucesso de sua viagem.
Talvez, Monlevade pensou, o oficial português fosse do tipo
de soldado que, quando envolvido em batalha, por mais tímida
que seja, nunca mais a esquecesse. Fica em estado de guerra até
o fim de seus dias. Um daqueles que fica esquecido em ilhotas
pessoais e não percebe o tempo passar. Desafia o tempo. Desconhece que com ele, o tempo, tudo passa. Lembrou-se que, desde
criança, Platini dissera-lhe da existência de tais militares. Foi com
esses olhos que viu o homem abrir e folhear seus livros. Fingia ler.
Logo os devolveu. Não entendia nada em francês.
Mas disse que iria reter bagagem por quatro dias. Dois desses
por conta exclusiva de pesquisa sobre as origens do mosquete
dourado encontrado na bagagem. Esse item, o oficial avisou, tinha grande chance de ser confiscado. Quanto ao resto, que o
estrangeiro não se preocupasse, era caso simples de averiguação
totalmente conforme procedimentos de rotina. No prazo estipulado poderia, fosse o caso, proceder retirada no Armazém de Ver
o Peso. O proprietário era certo senhor Sá. Não há como errar, é
o único aqui do Cais. Basta pagamento de taxa de armazenagem
ainda a ser estipulada.
Foi quando Jean intimamente revoltou-se e decidiu mostrar
um de seus trunfos. O aceite de emissão de salvo-conduto emitido
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
251
pelo governo português lhe fora entregue ainda em Paris. Tinha
assinatura do próprio ministro! Bastava-lhe passar pelo departamento imperial competente para validação. Isso era para ser feito
aqui no Rio quando do desembarque. Demorou um pouco, mas
foi desta forma que foi liberado para seguir para busca de hotel
apenas com pequena mala de mão. As peças de roupa nela contidas ser-lhe-iam suficientes para cobrir o período. O oficial sutilmente deu a entender que poderia dar mais rapidez ao processo...
Não comentei, mas poderia ter dito a Tisserand que tais procedimentos ainda são comuns no Brasil. Senti-me momentaneamente envergonhado!
O Largo do Paço era poeirento, mas, como sabemos, extremamente majestoso. Jean ficou por lá durante momentos que lhe
pareceram eternos. O morro do Corcovado. A arquitetura e a engenharia dos aquedutos dos Arcos da Lapa. Tão bonitos quanto os
que vira na própria Roma. O Pão de Açúcar. Freitas e o filho não
haviam exagerado. É paisagem ímpar! Trocou de novo, mentalmente, de posição. Era prática constante em sua vida. O fidalgo, seu
falecido pai, ensinara-lhe a fazer assim em todas as circunstâncias.
Com o colocar-se no lugar do outro, fica-se mais humano, o pai
argumentava.
Jean imaginou-se no alto daqueles morros. Se a vista daqui
é extraordinária, a do pico promete ser duas vezes melhor. Fosse
terra colonizada por italianos, foi o que pensou, teriam edificado um mosteiro ou uma cidade medieval no ponto mais elevado
daquelas maravilhas. Mais próximos do altar sagrado. O próprio
céu. Lembrou-se de que assim vira em Assis e Taormina que visitara junto com seu querido pai. Ouviu batida lenta de sinos de
igreja. Pareciam vir da igreja do outeiro da Glória.
Com os olhos umedecidos por lágrimas furtivas, confirmou
que cá em baixo, bem próximo a ele, a quantidade de escravos
negros impressionava. Tinha visto pouquíssimos durante sua
existência. Na maior parte faziam o trabalho que, na França, era
destinado somente aos animais. Circulavam descalços. De cada
dez homens que passavam, suando em bicas, seis eram pretos.
Não paravam de trabalhar: ora carregavam fidalgos em liteiras,
ora conduziam charretes... Alguns caminhavam envergados pelo
peso de baldes de água coletada em chafariz próximo. Alguém
disse-lhe, anos mais tarde, ser o mais famoso da cidade, era chamado de o da pirâmide. Um dos pretos passou bem por per-
252
Jairo Martins de Souza
to. Os pés encardidos e cheios de rachaduras pareciam feitos de
couro velho e descolorido. As unhas dos seus dedos, totalmente
encravadas, estavam cheias de sujeira até a carne. Envolveu-se
em novos pensamentos, com isso o tempo foi passando, e a tarde
caía. Resolveu se movimentar. Tinha muito ainda a fazer nesse
fim de dia. Um negro aproximou-se e timidamente ofereceu-lhe
transporte. Jean entendeu sua mensagem mais pelo gestual do
que pelas palavras do próprio. O sotaque era absurdamente cheio
de chiados. Sotaque de angolano. Que faz esse preto aqui? A algumas dezenas de metros de distância podia ver dois outros que
mantinham liteira em posição de pronta saída. O engenheiro de
minas agradeceu!
Ainda em Paris, pedira a Ildefonso para desenhar pequeno
mapa das ruas centrais do Rio. Já o estudara detidamente, mas
decidiu abri-lo para recordar-se de detalhe fortuito. Foi quando
ouviu a voz um pouco rouca de Freitas.
Jean! Jean de Monlevade! Virou-se para a direção de onde
lhe gritara o amigo. Ele já estava a poucos metros de distância.
Abraçaram-se. É um grande prazer recebê-lo aqui do outro lado
do mundo...
Nunca fui, e não pretendo ser diplomata, foi o que brasileiro passou a lhe dizer. Mas tenho boa ficha na área de negócios
exteriores do governo. E amigos. Principalmente amigos. Estive
providenciando liberação mais rápida do Saint-Bernard, o navio
em que você veio. É por isso que não pude estar aqui no momento exato do seu desembarque. Deixe que aquele meu negro
carregue a sua mala de madeira.
Bené, venha cá! Rápido, crioulo! Carregue isso aqui para o
doutor Monlevade!
E não se preocupe com hospedagem, Jean, você vai ficar em
casa que tenho mantido aqui no Rio para abrigar-me em viagens
de Minas. Seu mosquete já está liberado, e o resto da parte pesada da bagagem mando pegar depois por meio de carroça.
Ainda hoje! Já mexi com meus pauzinhos para liberá-la imediatamente...
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
253
II
A casa carioca do capitão Freitas
Temos que aguardar mais alguns poucos minutos! Foi o que o
capitão Freitas disse a Jean enquanto colocava os pés sobre os
estribos. O pequeno cabriolet vergou imediatamente e o cavalo
irritou-se pelo esforço que o brasileiro fizera para chegar até o
banco de passageiros. Era homem um tanto alto, estava acima do
peso, e o veículo... bem, a estabilidade do sistema fora perturbada
mais do que a Física permite e havia tirado sossego do animal
que estivera comendo capim enquanto aguardava comando de
marcha.
Quase imediatamente Jean havia penetrado no veículo pela
outra extremidade do banco, e foi com alguma dificuldade que
tanto ele quanto a carroça foram mantidos a postos pela destreza
do cocheiro. Quando ainda do lado de fora, a capota abaixada
havia-lhe permitido observar que o estofado fora feito com couro
resistente e grosso. O forte tom marrom agradou-lhe, assim como
a habilidade do artesão testemunhada em seus detalhes de acabamento. Carruagem de primeiríssima qualidade!
Poderia tê-la, mas não é de minhas posses, Freitas respondeu-lhe sem ser ter sido perguntado, enquanto reforçava a fixação
da capota para que se mantivesse aberta. Aluguei-a por toda a
semana. É pequena e ágil. Estes predicados nos serão de valia
nesta sua estadia pelo Rio e arredores. Por hoje nos atende bem
e, se necessário, tenho opção de troca por veículo de mais passageiros e cavalos.
Com a chegada da corte faz dez anos, o Rio passou a ter boas
centrais de aluguel de transporte. Não nos faltam semoventes... e
é tendo isso em conta que planejei facilidades de acordo com o
roteiro que você, caro Monlevade, avisou-me querer cumprir no
Brasil. Se é que não tenha mudado de ideia... Não. Não é de meu
254
Jairo Martins de Souza
desejo. Continuo mantendo intenção, conforme lhe escrevi, de
passar somente dois ou três dias nesta cidade.
Muito bem. É tempo bastante para conhecer por alto o que
temos por aqui. Não para desfrutar as maravilhas das praias. Para
tanto, é preciso tempo de verdade. E não para fazer como o imperador João que entra no mar de Copacabana carregado por
escravos. O povo carioca gosta de fazer chacotas com a circunstância! Mais ainda porque Sua Majestade é protegido contra mordidas de peixes por paredes vazadas de um barril.
Nem pensar, Monlevade respondeu sorrindo. Por mim cairia
como vim ao mundo nessas águas azuis. Em alguns pontos parecem espelhos: chamam-me como a Narciso.
Freitas sorriu satisfeito ao olhar de lado a face feliz do amigo
que lhe tornara os dias bem mais agradáveis durante sua estada
em Paris. Que não se diga do apoio dado ao seu querido Ildefonso. Tinha intenção de retribuir-lhe em dobro. Daqui a pouco
saímos, foi o que repetiu a seguir, justificando-se pela imobilidade
da situação. Repentinamente pensara que seria atitude receptiva
manter o amigo bem informado do que acontecia diariamente
na cidade. Há razões extras, caro Monlevade, para termos que
aguardar tempo maior que o requerido, e é por isso que deixei
condições para que haja passagem de brisa aqui dentro da condução. E, é claro, para que sintas o calor da tarde já amenizado
pelas horas.
Sei que na Polytéchnique, na Génie Militaire, e na école des
Mines, estudaste praticamente de tudo, mas há detalhes locais
que... bem, o motivo do retardo de nossa saída é evento da coroa
real que acontece praticamente todos os dias da semana. Os sinos
que ouviste faz pouco, prezado Monlevade, anunciaram encerramento da estada diária de João VI na igreja da Glória. É onde
regularmente faz suas orações e assiste a missas vespertinas e...
fato é que nos últimos meses, e dias, não tem faltado a essas celebrações por motivo algum. Por duas razões. A primeira é que ainda prossegue com ritual de luto pela morte da sua mãe e rainha.
Pobre mulher! Ainda em Portugal, perdeu o primogênito acometido pelo vírus da varíola. Foi quando começou seu infortúnio! Ela
própria, alegando razões de fé, não permitiu que o vacinassem.
Após a fatídica perda do filho assomaram suas intempestivas crises de insanidade mental. De Maria, a piedosa, passou a ser Ma-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
255
ria, a louca. Já a segunda razão da assiduidade do imperador à
Glória é que a conspiração republicana aqui no Brasil, e levada
a efeito na Província de Pernambuco, foi recentemente sufocada.
Vinha se arrastando desde março deste ano!
Desde então, Sua Alteza atende a essa cerimônia da tarde.
Depois segue para o palácio de São Cristóvão para atendimento
a ministros e cerimônia de beija-mão; é exatamente o que está iniciando a fazer agora. Lá em São Cristovão é onde parte da corte
o aguarda. A agenda real não varia muito, Monlevade. O homem
é recatado. Não gosta de viajar...
Foi aí que Tisserand voltou à realidade e, lembrando-se dos
dias atuais, alfinetou. É das poucas coisas que o governo de João
VI era diferente do Brésil de hoje: o das tournées, dos giros, pelo
mundo afora à custa do erário. Seu neto Pedro II foi um dos precursores do modelo atual. Certa ocasião ficou cerca de um ano
passeando por países europeus. É por essas e outras tantas que
nós, estrangeiros, ficamos cientes que, no Brasil, os presidentes não
ficam um instante em seu trono de Brasília. Parecem ter nojo da palavra trabalho. Mas não gosta o nosso, o francês, de expor a mulher
para todos os continentes? Não é Carla Bruni o atual colírio para os
olhos do mundo? Por que alguns têm tanto e outros tão pouco? Ah,
desculpe-me, mon ami, mas a beleza desta incomparável modelo,
fez-me esquecer, por instantes, que o engenheiro Monlevade há
pouco botara os pés no porto de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Estava estacionado no largo do Paço enquanto aguardava
passagem de séquito da realeza, lembra-se? A situação continuava a mesma! E, para distraí-lo, Freitas prosseguia dizendo que é
também em São Cristóvão que João VI gosta de distribuir moedas e receber pedidos de empregos para seus súditos. A máquina
pública está inchadíssima. A corrupção grassa, e é imensa a quantidade de cavaleiros que trajam uniforme do esquadrão imperial!
Você vai notar que a princípio virão somente os batedores. Depois o pessoal de segurança. Um outro tanto exagerado de gente.
Aqui nessa colônia, Monlevade, gastar dinheiro do povo, fazer
favores com mãos alheias, não é considerado pecado. Desde que
seja a partir do rei ou um dos seus inúmeros prepostos. Embora
tenha que confessar que nesse último ponto tenhamos ganhado
a sorte grande, pois o nosso, em especial, tem hábitos simples e é
de boa índole. A despeito de suas esquisitices, gosta mesmo é de
256
Jairo Martins de Souza
rituais religiosos, e de ficar próximo da população. Exceto em situações reconhecidamente excepcionais, não gosta de festas e grandes demonstrações de luxo. Não são muitos os eventos em que
sua segurança interdita ruas, durante longo período, para permitir
passagem livre de comitiva. Estamos diante de uma exceção!
A rainha participa desse cortejo diário? Foi o que Jean perguntou-lhe, enquanto incansavelmente admirava o verde intenso
das florestas que se destacavam distantes e compunham, por fim,
o cenário. Nunca vira nada igual!
Freitas iniciou sua resposta dizendo-lhe que nem mesmo um
nobre da linhagem dos Bragança escapa das agruras do casamento, mas deixou-a a meio caminho. O motivo foi ter sentido
no ar enorme fruição que emanava da face do amigo francês. O
engenheiro da école des Mines parisiense movia a cabeça lentamente, enquanto exibia sinais de acentuado deslumbramento.
Freitas vira iguais expressões de êxtase estampadas nos rostos de
vários outros recém-chegados ao país. Então foi somente com a
passagem de alguns segundos que, finalmente, prosseguiu intenção que entrecortara.
Nossa rainha mal fala com o marido, amigo Monlevade! Ainda em Portugal residiam em castelos diferentes: ele, no de Mafra,
com suas duzentas janelas; e ela, no de Queluz. O mais bizarro
casal de todos os reinos do mundo. Esses dois têm em comum
somente a feiura e os tijolos e luxos dos castelos que disse. No
Brasil, Monlevade, acontece o mesmo que acontecia em alémmar. Ela, em sua bela chácara de Botafogo; ele, no Palácio de
São Cristóvão.
Aí que está. A riqueza dos reis portugueses foi construída em
grande parte sobre os ombros dos habitantes da minha província. Minas Geraes praticamente carregou, e continua carregando,
Portugal nas costas. Bem, é casamento sem amor, tal como o de
João e Carlota. No caso desses, a aliança foi colocada nos mãos
dos impérios em que nasceram. O português e o espanhol. Não
na do casal. Você é europeu, Monlevade, e sabe por experiência
própria que a realeza casa-se por interesses. Pode ser até que os
envolvidos se encaixem, e acabe dando certo. Não é o caso. Dom
João é sabidamente desleixado e enfadonho. Carlota é ambiciosa
e maledicente. É o que a imprensa diz por meio de caricaturas,
e com razão. E que também me faz imaginar se você sabe que
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
257
jornal é coisa recente para nós. O único que tínhamos até dez
anos atrás era publicado em Londres e entrava... bem, tratavase de impresso clandestino e não é por meio dele que você vai
saber melhor dessas intrigas palacianas. Como também não irás
se surpreender em ouvir que certos camareiros reais dizem que
a rainha anda colocando chifres na cabeça do marido. Não se
diz na própria França que Josefina andou traindo Napoleão com
fidalgo que tinha cargo de quase ministro?
Os batedores finalmente assomaram à esquina de rua próxima, trazendo pó e o ruído das patas dos cavalos que pisavam
forte no chão de terra mal batida. Fossem rinocerontes, Tisserand
ponderou sorrindo, poderia jurar que procuravam conflitos com
seus semelhantes. A seguir surgiram a comitiva real, e o grupo de
soldados que resguardava a traseira do cortejo. O povo aplaudiu,
e alguns moradores acenavam com lenços das portas das lojas e
das janelas das casas.
O movimento cessou. Freitas e Monlevade puseram-se a caminho de Botafogo. Chegaremos em 15 minutos, o brasileiro avisou.
E, ao longo da pequena jornada, transitaram por ruas de
pouco movimento onde eventualmente ouviam-se gritos de vendedores de vassouras, cestas, balaios, espanadores e garrafas. O
comércio ambulante aqui é intenso, Monlevade comentou, fazendo uso do lugar privilegiado que lhe fora concedido dentro
da condução. Freitas, cordialmente, respondeu-lhe, é verdade...
Encontra-se quase de tudo nas ruas do Rio. Inclusive prostitutas,
você vai vê-las ao cair da noite! Monlevade acenou com a cabeça. Intimamente não se surpreendera com a informação do amigo. Em Paris isso também faz parte do visual da cidade, e voltou
sua atenção novamente para o que se passava nas ruas... Daí ter
reparado, entre outros detalhes menores, que as construções ao
nível das ruas sem calçamento, em sua maior parte, constituíamse de dois pisos. O primeiro usualmente reservado para fundos
de comércio.
E à medida que iam se afastando do centro, as casas escasseavam, tornando-se mais pobres e com construções mais afastadas
da entrada dos terrenos. Em sua maioria, ficava fácil perceber pelas paredes sem reboco, feitas de barro seco entrelaçado por cintas vegetais e madeirame barato. Nos terreiros, às vezes cercados
por estacas de bambu mal travadas, viam-se roupas de má quali-
258
Jairo Martins de Souza
dade que secavam penduradas em fios de corda de juta esticados.
Galinhas passeavam bicando o chão de um lado para o outro.
A cerca de duzentos metros da chegada, Freitas indicou-lhe
bonito sobrado totalmente avarandado. A caiação era recente. O
branco de suas paredes contrastava agradavelmente com o azul da
pintura de suas portas e janelas que, além deste pormenor, tinham
contorno superior em arco envidraçado. Construção sóbria, contudo marcante. Transpirava agradável limpeza. E parecia casa de
fazenda, pois não havia outras residências de igual porte por perto.
A proximidade de árvores altas e copadas aumentava mais ainda a
sensação de frescor que predominava no local.
É onde moro no Rio, o mineiro complementou. Aluguei este
imóvel por ser parecido com a casa grande da minha fazenda no
vale do Piracicaba. O antigo morador, e proprietário, era diplomata
inglês que se aposentou e tinha decidido encerrar seus dias aqui
mesmo no Brasil. Para tanto comprou castelo nas vizinhanças de
Petrópolis. Muitos estrangeiros têm feito isso, Monlevade. Este, em
particular, disse-me crer que o clima da região de montanhas cariocas é o melhor do mundo.
É realmente uma bela casa, Monlevade concordou, já quando adentravam o interior da moradia. Foi ótimo ter passado pelo
pomar de entrada e sentido o aroma de tamanha diversidade de
frutos. É passeio que relaxa a alma de qualquer viajante... É uma
pena que minha mulher, por causa dos seus enjoos, não consiga
viajar para cá, agora foi Freitas quem disse e prosseguiu. Então
mantenho aqui somente o necessário para estada confortável e
recepção de pessoas que, frequentemente, convido para almoços e
jantares. Em sua maioria, clientes dos produtos das minhas terras.
Donos de restaurantes, mercadores, exportadores... para dar conta
disso, tenho cozinheira e três escravas de limpeza de casa, e mais
dois negros para manutenção do quintal. Você se sentirá bem aqui!...
Isso é um paraíso, Monlevade disse a Freitas, enquanto descia
as escadas dirigindo-se ao primeiro piso. O amigo aguardava-o
para o café da manhã, tinha ao seu lado algumas folhas de jornal
já lidas. Dormi muito bem, prosseguiu. O ruído da mata embaloume, também o coaxar dos sapos e o despertar com os galos foi
algo que não estou habituado em Paris. Lembra-se que tenho um
cachorro? O Noir. No castelo Monlevade, em Guéret, acordava
com seus latidos. Era o meu relógio despertador desde criança.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
259
Na casa dos Pius, continuei acordando com eles. Tinha intenção
e gostaria de tê-lo trazido. Desisti poucos dias antes de embarcar,
ele está velho, bem, temi que não suportasse a viagem e tivesse
o infortúnio de ter que jogar sua carcaça ao mar... ah, mon bon
Dieu! Foi noite maravilhosa, tenho o corpo absolutamente relaxado e descansado.
Fico feliz, Freitas respondeu-lhe enquanto acenava para que
as escravas trouxessem café e suco frescos.
Haviam conversado até altas horas na noite anterior. Indagado por Freitas sobre sua jornada, Jean começara do início.
Contara-lhe sobre os preparativos da longa viagem e a não menos duradoura peregrinação pelo Atlântico: ainda que, felizmente,
tenha chegado ao fim em tempo surpreendentemente menor...
O capitão ouvira tudo com atenção, e ficara interessadíssimo no
episódio da chegada e a falta de educação do oficial português.
Ficou chateado, mas tentou reduzir sua importância. Não queria que o visitante tivesse má impressão de sua terra. Conheço
a fama do capitão Agostinho Ferro, foi, o que, inicialmente, comentou. Não é sujeito baixinho, com pança exagerada e cheio de
prepotência? É. Então é o próprio. É conhecido pela alcunha de
azeitona por razão fácil de se saber: gosta de vestir-se com capote
verde-oliva sobre o uniforme até mesmo quando está de folga.
O que é coisa rara. Este sujeitinho é famoso por aplicar sermões
e ameaçar aos estrangeiros que chegam aqui. É ocasião em que
aproveita para defecar regulamentos que não existem, e que saem
de seu próprio juízo. Julga estar acima do bem e do mal. Mas tem
caminhado sobre corda bamba, pois, ao longo dos últimos meses,
está sob investigação do intendente de polícia quanto a atividades
de contrabando de madeiras de lei. Provavelmente não deverá dar
em nada, pois alguns nomes de políticos foram ajuntados como
elementos de interesse ao inquérito policial... esse homem não
representa o significado da palavra brasileiro, amigo Monlevade.
Não absorveu nossa cultura cordial, e não é sujeito antigo na cidade. Veio da região do Porto dois anos depois da chegada da comitiva real. Também não gosta de franceses. Nem de nós, brasileiros.
Mas o maior problema dele é com o cidadão francês. Em
suas bebedeiras, recita incontavelmente as tentativas de tomada do Brasil a Portugal. Binot Gonneville, 1504, Santa Catarina.
Nicolas Villegaignon, 1555, Rio de Janeiro. Charles des Vaux e
260
Jairo Martins de Souza
outros, 1594, Maranhão. O corsário René Duguay-Trouin, 1711...
ah, por este último alimenta ódio especial. O desgraçado, diz, invadiu e tomou conta do Rio por eternos 50 dias. Devolveu-a somente depois de receber altíssimo resgate da nossa coroa.
E, à medida que vai listando o nome dos tais franceses, vai
contando-os nos dedos para não esquecer nenhum. Com isso,
Agostinho Ferro deixa sempre para o final o caso de Charles-Marie
de la Condamine que invadiu a Amazônia em 1743. Pelo menos,
diz, esse fez algo útil para o mundo: descobriu a borracha. Mas o
ápice da mágoa de Ferro fica por conta da invasão das ideias da revolução francesa. Aí fica nervoso, se exalta, e diz que deve ser feita
declaração de guerra em circunstâncias tais e tais, e assim segue o
raciocínio de sua mente sinistra.
Monlevade conhecia os fatos que Freitas dissera, contudo
não se manifestara. Poderia lembrar mais naquela conversa. Poderia lembrar que seus conterrâneos de anos, e séculos passados,
foram os únicos estrangeiros que conquistaram o coração dos
índios nativos. A gema do Brésil. Não se diz que, para seduzir
uma nação, não se pode matar os costumes do seu povo? Não
fizeram dessa forma os romanos que dominaram o mundo com
seus impérios? Pois foi mesmo assim que aqui funcionou. Desde
1504, nós, franceses, fincamos raízes culturais neste novo mundo.
Tanto é assim que foi ano em que o índio carijó Essomericq foi
levado para a Europa. Lá estabeleceu família, tornou-se Binot de
Paulmier, envelheceu, e lá mesmo foi enterrado. O selvagens brèsiliens tornaram-se mais que amigos dos franceses. Tornaram-se
aliados. Alguns dos nossos chegaram aos extremos de conversão
e adoção do antropofagismo. Quem diria!?... Ainda assim nossa
relação com o Brésil não era completa. Portugal não mantinha,
mesmo que a trancos e barrancos, sua rica colônia até aquele ano
de 1817?
A prudência, Tisserand prosseguiu, ensinara a Monlevade
quando, e por que, calar-se. E sua França, disso não tinha dúvidas era, a partir da revolução, a mola condutora do mundo! É
por isso que continuou apenas ouvindo quando Freitas cortou o
silêncio e disse existir algo de irracional na postura de Agostinho
Ferro. Não entendia gente daquele tipo...
Bem, Tisserand dispôs-se a esclarecer, talvez a do tipo formada nos velhos moldes que adormecem, por exemplo, debaixo da
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
261
eterna rixa entre os nascidos na região da cidade do Porto e os
de Lisboa. Desde tempos imemoriais, inclusive nos anos em que
Ferro viveu, portuenses e lisboetas brigam como condenados.
Tinham rusgas milenares. Hoje, Tisserand explicou, seus resquícios, inconscientes, estão centrados apenas no foot, no futebol.
Os torcedores do Benfica de Lisboa comemoram efusivamente as
derrotas do Porto em copas europeias... mas a soberania nacional
os une. O elo da corrente é fechado quando ouvem o hino português em copas do mundo. Às armas, às armas!... sobre o mar! O
esplendor de Portugal!
Isso acontece, o estrangeiro concluiu, a qualquer tempo, ou
de alguma outra forma qualquer, com os cidadãos de qualquer
país! ... Não agia daquela forma o camarada Agostinho Ferro?
Ah, mon ami, mesmo que tenha nascido no Porto, ele é, acima
de tudo, um português. E não suportava os franceses pela invasão
de Lisboa naqueles anos.
Quanto a nós, brasileiros, o alferes simplesmente nos acha
raça inferior. Mas ultimamente tem estado mais furioso que o normal. Quer saber o motivo?... Teve pedido de emprego recusado
para sobrinho no Banco do Brasil. O diretor é brasileiro de nascença. Não se conformou com a resposta de que não poderia ser
atendido porque o banco estava quebrado. O funcionário alegou
a boca pequena que D. João não para de mandar emitir dinheiro
sem lastro.
Impostos. Mais impostos. É solução que tem adotado para
compensar despesas da corte. Falsa. Artificial. O emissário que
me relatou a conversa, Freitas prosseguiu, disse-me que Ferro ria
quando o funcionário lhe passava justificativa. Que se dane! Meu
interesse é o emprego do filho da minha irmã. É método que
não funciona e nunca funcionará, o capitão brasileiro prosseguiu
dizendo com ar inconformado. Atitude deficiente. Dom João não
consegue repor o que o império já havia retirado daqui mesmo,
da sua própria colônia. Nem mesmo com a venda de concessões de interminável lista de títulos de nobreza para particulares,
enfim, não dá conta de encher aquele poço sem fundo. Nosso
soberano desconhece, ou não se lembra, dos motivos da reforma
protestante, a venda de indulgências fez causar perda ao poder de
fogo dos papas e do catolicismo. Pode acontecer o mesmo com o
sangue azul da monarquia portuguesa. A colônia é católica. Mas
262
Jairo Martins de Souza
a gastança generalizada, e os abusos, não somente podem como
também já estão gerando outros tipos de protestos. Outro tipo
de protestantismo. Já tivemos no ano passado o movimento republicano de Pernambuco. Há dinheiro para atender a tudo que
a corte demanda aqui na capital, mas nunca se tem para aplicar
nas sofridas províncias do nordeste. Daí o movimento alastrou-se
e quase vingou. Continuando assim, até mesmo pode cair a monarquia. É assunto perigoso!
É por isso – é ainda Freitas que continuava suas explicações
– que devo voltar ao tenente Agostinho Ferro que é tema menor.
Meu informante aqui na alfândega disse-me também que o cargo
que o oficial pretendia para o sobrinho não podia, em hipótese
alguma, ser preenchido por analfabeto. Em tese! Pois na realidade
não precisaria comparecer ao escritório. Bastava ter habilidade
para andar sobre suas duas pernas para buscar pagamento mensal. Ferro sabia disto, e enfureceu-se. Parece que está descontando com altos juros nos passageiros e donos de carga que chegam.
Faz o que chama de operação tartaruga.
Não. Reforço que não tenho contato direto com o tipo, Freitas
esclareceu. Estou ciente destes fatos porque tenho feito exportações de café e meus agentes usualmente pagam dezessete por
cento do valor de minhas vendas, à guisa de contribuição, ao
sindicato daquele senhor. A intendência da polícia, na pessoa do
delegado Pedro Botelho Guerra, tem batalhado pela eliminação
de corruptos como ele. Policial por demais rigoroso. Deve ser exonerado, é questão de dias, pelos burocratas do império!
O Rio é belíssimo, Monlevade, mas eventualmente não é flor
que se cheire! Isso obviamente não acontecerá, eu não permitiria
tal condição, mas lembro-lhe que aqui é preciso cuidado especial
para circular em suas vielas. De dia ou à noite!
Bem, o senhor que me lê já sabe que, dependendo do tema
da conversação, não é de meu feitio interromper quando alguém
se dirige a mim. Procedo assim, pois quando tal situação ocorre
comigo, costumo perder a linha de pensamento, bem, de certa
forma, temo que o outro também perca o foco.
Mas a gravidade dos assuntos que Tisserand me dissera por
último fez-me reconsiderar atitude. Não suportaria meu próprio
silêncio. Então, como de meu hábito, simplesmente levantei a
mão direita até a altura do peito e, ao mesmo tempo, mantive
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
263
dedo indicador quase na vertical. Pedi tempo a Tisserand. Ele
percebeu e passou-me a palavra.
Fico triste que no meu país tenha sido sempre assim, monsieur. Pelo que relatastes o que mudamos em termos de corrupção foi o índice. Nos dias de hoje, caiu. Caiu oficialmente de dezessete para dez por cento...
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Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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III
Onde se diz da breve estada no Rio. A carta de Martinho
O capitão João Gomes Abreu de Freitas sorriu gostosamente. Estava sozinho e observava o amigo que caminhava entre as árvores do seu quintal. O engenheiro francês não conhecia mulher!
Com isto não quero que o senhor tenha um conceito errado
sobre o comportamento do amigo brasileiro de Monlevade, Tisserand exclamou! E não é meu propósito insinuar que fosse sujeito
depravado. Então para que me entendas melhor, modifico minha
linguagem dizendo que o fazendeiro não era pessoa de duas caras!
Pelo contrário, já sabemos ser homem de família e fortemente preso a valores tradicionais.
Era o que passava aos filhos. Católico por excelência, fizesse
chuva, fizesse sol, comparecia invariavelmente às missas dominicais. Fazia tanta questão de manter família, empregados e escravos unidos naqueles momentos semanais de manifestação de fé
que as celebrações eram feitas em sua própria fazenda. Também
obedecia religiosamente ao calendário cristão de festas, procissões e dias santos...
Por sinal, o senhor se lembra que, quando da chegada de Monlevade, ele compareceu ao Largo do Paço acompanhado por uma
vistosa mulher? Não me causa surpresa, Tisserand comentou, que
tenha deduzido, equivocadamente, que o capitão Freitas estivesse
dando sinais de estar saltando os trilhos... é tempo de colocar em
pratos limpos o acontecido...
O acaso viera a tomar conta da situação. Jean, sem que soubesse, fora testemunha de presença de uma das raras companhias
femininas de Freitas quando, ainda no navio, visualizara o amigo
que o saudava.
Bem, tratava-se de antiga namorada que, embora não tão
mais jovem que ele, era daquelas com quem os anos foram be-
266
Jairo Martins de Souza
nevolentes. O resultado é que a cada temporada que passava, ela
mesma confessara ao antigo namorado, tinha sua beleza aumentada pelo amadurecimento da face e a paz que dela fazia emanar.
Uma quarentona encantadora!
Haviam se encontrado nas proximidades do Paço Imperial.
Há anos não se viam, e a elegante senhora não foi perguntada e
nem dissera dos seus propósitos. Ele relatara que estava aguardando chegada de amigo francês. Vamos saudá-lo juntos? Fora sua
indagação derradeira, como também motivo para vê-los de braços
dados no ancoradouro do porto carioca. Ficou somente doce lembrança. Não mais se viram!
Jean não lhe havia pedido explicações nem indagara quem
era a mulher que acompanhara o amigo antes do seu desembarque. A justificativa havia partido do próprio. Não queria que o
francês tivesse impressão errônea de seu antigo amor ou do seu
comportamento como pai de família. Foi daí que a conversa, regada a taças de vinho, fez com que Freitas soubesse de detalhes
íntimos da vida do convidado.
Não é que, em termos de companhias femininas, Monlevade
fosse qualquer tipo de santo declarado. Ele mesmo havia confessado a Freitas. Nos tempos inaugurais da Polytéchnique andou
frequentando com alguma assiduidade, embalado pela companhia de alguns companheiros, diversos bordéis da grande Paris.
Farra de estudante. O vinho, ainda que bebido com moderação,
fazia-o agradavelmente perder a cabeça. Brincava. Improvisava
piadas. A juventude fazia com que seu juízo fosse comandado
por outras partes sensíveis do corpo. Mas não tinha tido até o
momento a tão esperada conjunção carnal. Era virgem!
Não sei a razão, Tisserand comentou, de Léopold de Bogenet
ter omitido tais fatos nas páginas em que relatou sobre as peripécias do jovem em Paris. Talvez, a princípio, desejasse esconder dados de natureza moral da família na França. Pode ser. Mas pode
ter sido também por mero esquecimento. Este tipo de assunto
possivelmente não o interessasse, daí terem sido despertados apenas quando indispensáveis no encadeamento de suas anotações.
Qualquer dessas suposições poderia ser causa bastante para
o vigário geral ter trazido à tona, tão tardiamente, a condição de
pureza do rapaz, e em madrugada a que esteve presente o fazendeiro das Geraes.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
267
Certo é que o capitão condoeu-se com a situação e, tal como
faria com qualquer um dos seus filhos (de certa forma era como
considerava Jean de Monlevade), na noite do dia seguinte já tinha agendado encontro com conhecida mariposa da noite carioca. Séverine Sorel era o seu nome. Tudo deveria ocorrer, de
maneira fortuita, após almoço que promoveria para apresentar
o engenheiro francês a algumas pessoas da corte e da sociedade
locais.
E não foi previsto para tanto. Pois Monlevade e a inesperada
conterrânea tiveram refeição prolongada até o fim da tarde, e
agradavelmente estendida com aperitivos que, por sua vez, alcançaram noite fechada. A francesa, Séverine, era natural da cidade
de Bordeaux e, pródiga em encantos pessoais, fez com que Jean
se deixasse levar a extremos que jamais havia se permitido. Na
situação, imaginou-a com os rostos de Angéline e de Bernadette
du Lac, decerto, e é bem verdade, o teor de álcool das inofensivas bebidas de frutas brasileiras contribuiu enormemente para
o fato. Como acontece com muitos outros europeus, foi traído
pela doçura de suas essências. No dia seguinte, soube acidentalmente que certa tentativa de pagamento de serviços amorosos
havia sido feito diretamente à bela senhorita por intermédio de
rico senhor que, coincidentemente, morava sob este mesmo teto.
Não se concretizou! Não houve aceite por parte da delicada profissional. Foi quando Jean tomou conhecimento de que tudo fora
armado pelo amigo Freitas. Ele desabou por instantes. Poucas
horas depois concluiu que sua vez chegara não da forma que
imaginara em sonhos. Mas aconteceu. Libertas quae sera tamen.
Intimamente agradeceu ao amigo.
O incidente serviu, além de tudo, para apimentar sua programação carioca. Caso alcançasse idade para ter netos adultos,
contar-lhes-ia no fim dos seus dias. E visitou o que tinha de ser
visitado à guisa de turismo, e ainda teve tempo de sobra para ir
ao ministério de negócios regularizar de vez a situação de seu
salvo-conduto. Quando não acompanhado por Freitas, foi-lhe fácil reconhecer todas as paragens simplesmente lembrando-se das
descrições entusiasmadas que Ildefonso lhe fizera ainda em Paris.
E, também confirmar, conforme o jovem médico lhe adiantara,
que o próprio ministro Manoel de Portugal e Castro faria a liberação final.
268
Jairo Martins de Souza
Não foi por ato de Deus. Na realidade, Freitas a tudo fazia
acontecer mais rápido. Era homem querido e de boas relações.
Monlevade repetidamente viu-lhe distribuir gorjetas e cortesias
para os setores monárquicos envolvidos na operação. Como também promover revezamentos de cavalo e cocheiro do cabriolé
que os conduzia às diferentes partes da cidade. Norte e Sul. O Rio
tinha poucas ruas.
Em torno de quarenta e três, Tisserand prosseguiu, onde a insegurança marcava ponto a cada esquina. A maior parte do povo
andava com faca enrolada em pano e amoitada debaixo do capote. Isso quando não o fazia com garrucha de pequeno calibre!
Em termos de violência, e guardadas as devidas proporções, mon
ami, o Rio de hoje não era diferente da pequena cidade do princípio dos 800. Com agravante do maior fedor e da pestilência,
resultados de abandono pela administração real. Fezes humanas
eram encontradas a torto e a direito: escravos defecavam onde
lhes sobrevinham as necessidades. E chegavam acorrentados aos
montes, roubados de sua distante terra natal. O número aumentava ano a ano. Essas miseráveis criaturas, que traziam consigo
mão de obra barata, eram filhas da natureza esquecida na África, e não tinham o mínimo pudor em safar-se do que a própria
lhes exigia. Nas esquinas e lotes vagos, a concentração de urina
acumulada e velha era absolutamente insuportável! Daí o senhor
pode calcular a fedentina reinante no cotidiano dos cariocas que
habitavam fora do núcleo central da cidade. Provocaria vômitos
em estômago de urubu.
Então fica claro que Freitas não mostrou ao amigo francês somente o Brasil dos sonhos europeus – notei que Tisserand parecia
ainda ligado ao assunto anterior. O paraíso perdido! Mostrou-lhe
também a principal podridão da sociedade colonial portuguesa.
Levou-o inclusive à popular Loja na Rua do Valongo. Lá, explicou
a Monlevade, funciona ponto de venda da mercadoria que mais
chega ao porto do Rio. Valorizadíssima! É onde o escravo africano
passa por avaliação e negociações de compra e venda por particulares, fazendeiros e empresários. Não é coisa bonita de se assistir,
Freitas alertou. Mas faz parte de espetáculo da nossa história que
deprime a mais seca das almas. Imagine situação em que a própria
mercadoria vê selar o seu destino em terra estranha. Irmãos, pai,
mãe e amigos são separados propositalmente!... O porquê de tamanha desumanidade? Evitar rebeliões!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
269
Foi aí que Tisserand trouxe algo à tona que me surpreendeu.
Ele disse-me que a visita feita por Monlevade ao Valongo não é
nada diferente das que milhares de pessoas fazem anualmente aos
restos do famoso campo de concentração e extermínio de Auschwitz, na Polônia. Concordei. Nenhuma delas é feita com satisfação. Isso é coisa somente para certos políticos que visitam e gostam
de ser fotografados junto a áreas abatidas por acidentes naturais,
ou até mesmo o caso de expectadores de cinema que veem fatos
equivalentes. Na arte admira-se, com algum constrangimento, fatos
que, na vida real, seriam insuportáveis!
Misérias humanas à parte, deu tudo certo, Tisserand disse,
fechando o assunto. Três dias após chegar ao Brésil, Jean de
Monlevade estava pronto para viajar para a província de Minas
Geraes e, em especial, para a ansiada fazenda às margens do Rio
Piracicaba que, como sabemos, seria seu destino final.
Mas alterou a cronologia que havia projetado, pois lhe surgiu
nova situação. Inesperada. Freitas recebera carta urgente de Lisboa que chegara às suas mãos após vários tropeços. O emitente,
Martinho Monlevade, anunciava, nas suas entrelinhas, que iria
fazer surpresa a Jean. A remessa havia sido feita bem antes da
chegada do irmão e amigo a Lisboa. Antecipar-se-ia à convocação que seria combinada com o próprio e seguiria para a capital
da colônia. Mas nada deveria ser dito a respeito de sua iminente
viagem. A idéia era sair de Lisboa no próximo barco após a passagem de Jean pela capital dos lusitanos. Martinho escreveu ir
para onde o amigo estivesse.
Foi um tanto constrangedor, mas para evitar desencontros e
perdas de tempo desnecessárias, Freitas foi obrigado a quebrar
contrato e alertou a Jean. O francês emocionou-se!
Retardaria partida para Minas Geraes quantos dias fossem
necessários!
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Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
271
IV
O início dos caminhos que levam a Minas Geraes. Monlevade encanta-se com natureza. A tropa fiscal e o parente
de Agostinho Ferro
Uma semana depois, Freitas e Jean de Monlevade já trotavam
pelos caminhos que os levariam a Minas. O capitão, conforme desejo anteriormente manifestado, procurava exercer papel de cicerone para o amigo francês. Para tanto, a cada cenário que julgava
de interesse, parava a montaria e, pacientemente, explicava sobre
as peculiaridades da belíssima natureza da colônia.
Martinho seguia-os a distância suficiente para eventualmente
participar do diálogo que parecia nunca esgotar assunto. A carta
que enviara a Freitas indicava que o Cristina, esse era o nome da
embarcação em que deveria viajar, tinha previsão de sair a tempo
certo das proximidades do convento dos Jerônimos e da Torre de
Belém. Aconteceu como previsto. E ele havia, disso já sabemos,
partido de Lisboa poucos dias depois de Monlevade e resolvera,
com a decisão de nova vida, mudar também de visual. Quando
de sua chegada ao Rio, o velho amigo de infância quase não o
reconheceu: estava com barba espessa e bigode bem esculpido.
Não queria que chegasse a tanto, mas chegou a assustar a Jean
de Monlevade.
Ansioso, o engenheiro da Polytéchnique já ajuizava que algo
grave poderia ter acontecido com a antiga criança amparada por
Ribérry no fatídico dia do sorteio. Ainda que não fosse de espírito pessimista, e nem de se preocupar desnecessariamente com o
dia de amanhã, Monlevade não podia menosprezar os perigos do
Atlântico. Há anos ambos não haviam concordado, em sensível
discussão, que as forças da natureza haviam sido feitas pelo criador somente para lembrar aos homens a vulnerabilidade de sua
existência?
272
Jairo Martins de Souza
No final deu tudo certo! Foi com essas rápidas palavras que Tisserand resumiu, e deu por encerrado o curto, mas sofrido episódio.
E prosseguiu imediatamente relatando que os dois meiosirmãos abraçaram-se, e não esconderam publicamente a alegria
pelo novo reencontro. Foi daí, e após rápido turismo pelo Rio,
(Jean já estava familiarizado com os locais de interesse), que procederam aos preparativos para a peregrinação até Minas Geraes,
suas igrejas e minas a céu aberto. Novamente aí ficou demonstrada a capacidade de organização que Monlevade tinha para quaisquer tipos de empreitadas. Freitas ficou admirado com a capacidade de adaptação do aspirante francês!
Proponho seguirmos pelo caminho novo, foi o que disseralhe. É mais seguro que o iniciado tradicionalmente no vilarejo de
Paraty. E é mais rápido. Sei, mon ami, que gostarias de mostrarme todo o vale do Paraíba do Sul e a vila de Paraty, e não duvido
de que sejam absolutamente encantadores, mas tenho certa pressa em chegar até Minas Geraes. Posso conhecer esses sítios em
outra oportunidade.
Assim foi feito. No chamado caminho novo, o estado das estradas e trilhas não era dos melhores e os três escravos que os
acompanhavam não relaxavam. Não tinham descanso. Andavam
a pé e, afora os próprios, ainda seguia na comitiva um mulato
liberto, a cavalo, e que já viajara com Freitas em outras ocasiões.
Teria também a função de batedor e guia, pois conhecia bem as
dificuldades e vicissitudes do trecho Rio-Geraes. Tinha desvantagem de ser um tanto atrevido, mas tal fato era compensado por
ser bom de cozinha.
Jean os ocupava, a todos, com função especial, que era busca dessa ou aquela amostra de terreno. Ah, como faz falta aqui o
meu velho amigo Breu!
Com isto a bagagem da tropa crescia rapidamente e não demora, em alguma parada, teriam que adquirir mais semoventes
e balaios. Enquanto isso não ocorria, o mulato procurava redistribuir a carga entre as mulas, e cestos de taquara, e sacos, para
equilibrar pesos entre os animais de tração. Martinho Monlevade, por delegação de Freitas e de Jean, observava detidamente todos os movimentos que aconteciam no pequeno comboio.
Com algumas horas de tropa, já dominava todas as variáveis e
cuidados que deveriam ser tomados para que tudo ocorresse de
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
273
acordo com as melhores expectativas. Inclusive que mulas não
se reproduzem e são nascidas do cruzamento de jumentos com
éguas. Animal híbrido: como o burro, seu irmão de batalha. Já o
jumento, Freitas explicou-lhe, é aquele bicho que tem tromba do
tamanho da de um elefante. É também bastante resistente!
O trecho a ser percorrido não era de Norte a Sul do Brasil
como fazem tropas regulares, mas mesmo nestas pequenas há
grande ciência na sua condução, Freitas disse-lhe. Normalmente
há envolvimento de profissionais altamente especializados: o que
cuida dos cestos e suas amarrações é um deles. O arranjador de
cargas é outro. Para segurança das mesmas acaba criando nós de
todos os tipos: é um artista! Há também o que cuida dos próprios
animais, dos seus couros, ferraduras e alimentação. É o indispensável homem dos suprimentos, pois as jornadas são muito longas
em termos do seu dia a dia. O que eles têm em comum, digamos
assim, a companhia de todos, é instrumento de cordas chamado
viola. É o que dá o lado musical desses corajosos homens que
saem regularmente do extremo sul da colônia e chegam até Natal,
já nas longínquas paragens do Rio Grande do Norte.
Bem, apesar de todas essas variáveis, a partir do segundo dia
Martinho passaria a comandar as atividades dos escravos e do
mulato. Este que, curiosamente, passara a ser chamado menino
da tarde, fora destronado com poucas horas a mais no cargo.
O tolerante francês, novato em comandar esse tipo de gente em
expedição, cansou-se das arengas que seu pupilo provocava entre
os pretos. Por que menino da tarde?, Jean indagou-lhe. É filho de
homem do meio-dia com mulher da meia-noite. Português com
africana. Daí a cor morena de sua pele!
Bom, ao assumir funções do menino da tarde, o mesmo
Martinho percebeu que em algumas situações a tarefa a mais não
lhe seria tão pesada. As próprias mulas, em caso de dificuldades
de passagem, automaticamente buscavam solução entre os meandros do caminho!
Jean de Monlevade estava absolutamente extasiado com o
canto dos pássaros... Pareciam não se cansar! A cada minuto aparecia um tipo diferente e com canto singular e, antes que perguntasse ao amigo, ouvia: esse é um canário do campo... Aquele é
um curió... O reino animal se manifestava fulgurante sob todas as
formas. Na terra, besouros, cobras, insetos, lesmas... nas árvores,
274
Jairo Martins de Souza
pássaros, cores exuberantes, e bandos de pequenos macacos que
olhavam desconfiados para a caravana que passava lentamente.
No ar, papagaios e araras passavam em bandos barulhentos. Platini tinha razão. As cidades, as serras, os matos... tudo dava pistas
de estar na exuberante terra dos papagaios. O afamado e pouco
conhecido pays des perroquets!
O antigo aluno da Polytéchnique mal se dava conta dos ressaltos e valas do caminho, como também que, naquela viagem,
estava sendo germinada a causa das terríveis dores lombares que
o acometeriam nos últimos anos de sua vida. A coluna vertebral,
ainda jovem, trabalhava desatinadamente como a de um amortecedor de veículos que sofre em estrada cheia de costeletas. Como
lhe disse, mon ami, iria dar-lhe resposta retardada.
Nos raros momentos em que ambos – refiro-me a Freitas e
a Monlevade –, estavam calados, o francês abria livros. Tinha alguns poucos selecionados e colocados em bolsa de couro que
ficava amarrada ao alcance das mãos. O que mais consultava
fora emprestado pelo próprio capitão das Geraes e versava sobre
o relevo, pequenas pousadas e povoados da região. Não é que o
simples ato de ler naquelas condições fosse tarefa fácil. Pois quanto aos estudos e anotações, tudo conspirava contra o dedicado
Monlevade. O movimento irregular das patas de sua montaria,
a atenção eventualmente capturada por outras atrações, o reflexo dos raios solares nas páginas que, avidamente, passava para
frente e para trás, a sombra de árvores copadas que escureciam
abruptamente a estrada, enfim, todas essas situações complicavam mais ainda suas pesquisas iniciais. E para fazer frente a tais
empecilhos, o jovem engenheiro forçava exageradamente as vistas e não posso dizer que não tenha alcançado seu objetivo. Para
tanto, em dado momento, chegou a pedir a um dos escravos que
se encarregasse de puxar sua montaria. Já o tempo, após dois
dias de viagem, mantivera-se firme. Isso facilitara sobremaneira o
progresso dos estágios iniciais da empreitada.
Por ordem expressa e soberana de D. João, havia sido fundado, em 1810, o Real Gabinete de Mineralogia do Rio de Janeiro,
foi o que, em dado momento, Freitas recordou-lhe. Tal fato chamou especialmente a atenção de Jean Monlevade, pois o amigo
disse inclusive ter chegado a deslocar alguns dos ganhames de
sua fazenda para o setor de mineração. O Brasil tem grande futu-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
275
ro nesse setor de sangria do seio de sua terra, acrescentou. Não
nos esqueçamos que este é um dos principais motivos para estar
aqui o barão de Eschwege. A usina chamada de Patriótica, Monlevade, encontra-se em pleno andamento. Não a conheço, mas
fica em Congonhas do Campo. Foi a primeira no Brasil a produzir
ferro por meio de malho hidráulico. O próprio Eschwege foi o
consultor para o intento. Aliás, não veio ao Brasil somente para
dirigir a empresa: também foi contratado para o mister de professor. Andou ensinando tanto técnicas mais modernas de manuseio
aos trabalhadores de mineração, quanto engenharia a oficiais do
exército. Foi um dos que deu as cartas de como seria o ensino da
matemática e da física na Academia Militar do Rio de Janeiro.
Esta escola foi criada há seis anos, em 1811.
Foi a primeira no ensino de engenharia do Brasil, Tisserand
complementou. Umas das que vieram a originar a tradicional
Agulhas Negras. Essa academia, o senhor, com certeza sabe, é,
hodiernamente, a dos oficiais da aviação militar brasileira.
Mas foi por outras duas razões que os olhos de Monlevade
cresceram, e ele notoriamente expandiu mais ainda a concha das
orelhas quando ouviu Freitas repetir que a missão de Eschwege,
em Itabira, foi na área do ouro. E no ano passado, Freitas continuou, D. João aprovou os estatutos das sociedades de mineração.
Finalmente, tudo estava pronto, burocraticamente, para se instalar uma companhia de mineração no Brasil!
Bem, voltemos à viagem, Tisserand disse, pois, pouco após
aquelas informações de Freitas, o mesmo comentou que as mulas
que comprara para cumprir o percurso de sua casa de Botafogo
até a fazenda Nossa Senhora da Justiça eram excepcionalmente
fortes e ordeiras. A tropa andava a passo forçado, mas parava
insistentemente para eventual troca de ideias do capitão com seu
convidado. Os balaios estavam lotados de víveres e instrumentos
de trabalho do engenheiro de minas: não obstante o grosso de
sua bagagem ter ficado na cidade do Rio de Janeiro. Após roteiro
a ser cumprido é que Jean Monlevade determinaria local para
onde deveriam ser encaminhados. Foi o que combinara com Freitas e seus empregados. Sim, por enquanto ficariam aguardando
ordem de envio a partir de Minas Geraes.
A comitiva crescia. Em Petrópolis, um negro e três mulas
aparelhadas foram acrescentadas a preço de ocasião. Arreios e
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Jairo Martins de Souza
cordas de qualidade vieram ajuntados ao lote de mercadorias. O
africano tinha bons dentes e era, segundo o vendedor, muito bom
de braço e bem mandado. Não. Não, “coronel” Freitas. Não é do
tipo fujão...
Martinho Monlevade foi testemunha da negociação. Absolutamente consternado. Ainda não havia se acostumado com homens escravos, tratava-os como iguais, bem, a vida nos trópicos
portugueses era muito diferente do esquema europeu. Havia de
se acostumar!
Petrópolis, a cidade por que passamos – agora é Tisserand
quem diz – tem clima agradabilíssimo de montanhas. Foi o motivo do futuro imperador Pedro II ter lá possuído o seu palácio
de verão: o atual e famoso Museu Nacional da cidade. Muitas
cascatas, fios de água e Mata Atlântica. Próximo a isso tudo, habitou também o Barão e Visconde de Mauá. O maior patrocinador
privado do progresso do Brésil império... Resumindo, Tisserand
explicou, tivesse este homem nascido algumas décadas antes, e
é por isso que aqui aparece, Monlevade e sua pequena comitiva
poderiam ter feito o trecho até agora viajado por meio de trem a
vapor. Irineu Evangelista de Souza também chefiou e financiou
outras grandes empreitadas nacionais. Iluminação a gás do Rio.
Companhia de navegação do Amazonas. O próprio Banco do
Brasil. Seu erro foi ter provocado soberba em Pedro II...
Não o deixei completar a frase. Pela primeira vez, desde que
o estrangeiro iniciara sua história, resolvi interrompê-lo drasticamente. Queria acrescentar algo que julguei, naquele momento,
imprescindível. Petrópolis também, disse-lhe, foi onde Alberto
Santos Dumont, o homem que tornou possível a prática da aviação, fez erigir sua pequena casa. É conhecida por A Encantada!
Ele sorriu. Entendi que queria argumentar que os americanos
não pensam daquela forma. Mas não o fez. Deve saber que isso
mexe com os nervos dos brasileiros... os irmãos Wright...
No entanto respondeu-me sim. E, creio, para mostrar que tinha bom conhecimento das coisas recentes do meu país, falou
do palácio Quitandinha do mineiro Joaquim Rolla. Rolla foi um
caipira que dominou a jogatina nos anos do Estado Novo de Getúlio. E o seu Quitandinha era um hotel cassino de realce mundial.
O Brésil republicano assinou a declaração de guerra contra as nações do eixo nos seus requintadíssimos salões. Errol Flynn, Henry
Fonda, Bing Crosby foram alguns de seus hóspedes...
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
277
Aí Tisserand deu ideia de ter se enjoado do tema e, com certa
preocupação, complementou. Não devemos nos esquecer, mon
ami, que, no contexto do meu relato, estávamos nos referindo a
anos anteriores ao fim do primeiro quartil do século dezenove. Mil
oitocentos e dezessete foi tempo de escravos...
E é por isso que devemos voltar ao trecho em que estávamos,
disse-me. Voltemos a Freitas e a João de Monlevade!
João de Monlevade! Sei que o senhor, mon ami, deve ter
estranhado o aportuguesamento do nome. De Jean para João.
Bem, mas somente quando cabível é que vou chamá-lo dessa
forma, esclareceu. Pesa o fato de já estarmos há alguns dias no
Brésil...e, adianto-lhe, jamais o engenheiro francês deverá colocar os pés fora dessa colônia. Não é ela, segundo o Benjor, terra
abençoada por Deus?
Na velhice, Monlevade chegou a ter algum tipo de sonho em
que voltava à casa e à família. Contudo nem posso levar a sério
esse tipo de intenção. Acontece com todos os velhos! Não se diz
também que é idade em que as pessoas voltam com muito mais
força à vida que viveram quando crianças?
Os viajantes, sabemos, não venciam as distâncias a passo
contínuo. A caravana parava com o fito de atender às mais variadas necessidades, entre elas as que, polidamente, chamaremos de
hidráulicas. Para carga e descarga. Eram incontáveis os sítios em
que a natureza entregava-lhes, a custo zero, água limpíssima e da
melhor qualidade. Os arroios e regatos cruzavam prodigamente a
estrada. Em um desses, um dos negros, por distração, fez com as
mulas saciassem a sede a montante do ponto em que Monlevade
e Freitas recolhiam água em cantil. O mulato, mesmo destituído
do cargo de encarregado, enfureceu-se e o maltratou.
Os humanos são assim, Freitas comentou com Monlevade.
Veja você, este homem há meses era escravo! Agora é liberto. E
trata um seu semelhante como detestava ser tratado. É verdade,
Monlevade assentiu, a natureza do homem geralmente torna-se
louca quando chega ao poder... Daí a conversa voltou ao fato
que havia gerado a violência no seio da caravana. Lembra-me
La Fontaine, Monlevade disse. Pensei o mesmo, Freitas retrucou.
Você está se referindo à fábula do Lobo e do Cordeiro, não é?
Sim. Este mulato é como o lobo: ignora a fraqueza do negro para
massacrá-lo. Sujeito ladino!
278
Jairo Martins de Souza
Mas, como era de se esperar, as paradas eram também para
alimentar o corpo e o espírito de cada viajante. E é por essa última razão que os negros levavam velas e aguardente e, às vezes,
deixavam pequenas quantidades em pontos de encruzilhada. Era
momento único em que eram acompanhados pelo mulato, cruz
credo! Martinho não os impedia, mas se persignava a cada novo
procedimento. Os africanos de segunda geração sentiam também
muita fome, daí solicitarem chorosamente paradas extras para
comer frutas silvestres ou apanhar farinha nos cestos das mulas
que levavam suprimentos. Quando surgia algum casebre à beira
da estrada que anunciava venda de comida, eriçavam os beiços.
Quem sabe o francês pagaria para eles pão com linguiça de porco
no meio? O engenheiro era mão aberta e os tratava bem.
Alguns pontos da viagem mereciam ser chamados de mirantes. As placas indicativas praticamente inexistiam e a bússola de
Monlevade era frequentemente alçada para verificar posição do
ponteiro na rosa dos ventos. O cenário continuava a deslumbrar
o francês. Mon Dieu, quel pays merveilleux! (Meu deus, que terra
maravilhosa!). Madeira. Dos pássaros já dissemos. Muita madeira. Nas Geraes é material que também sobra: era o que Freitas
repetia e repetia.
Os pouquíssimos mata-burros evitavam maiores cuidados
com a guia das mulas. Nesta situação tranquila, haviam passado
pelos povoados de Itaipava e Pedra do Rio. Com um detalhe,
no mínimo, curioso. Após curva de estrada, haviam topado com
comboio de ciganos. Como esse povo que não tem casa chegou
da Europa até este novo mundo? Foi o que Monlevade perguntou a Freitas. A resposta veio com o silêncio. Não. Não sei, o
fazendeiro do Piracicaba finalmente arrematou, enquanto algumas pegajosas e maltrapilhas mulheres se acercavam, oferecendo
préstimos de leitura de mãos.
Antes disso, Martinho já tinha se colocado em posição de defesa, cuidando de ter facilidade de alcance da espingarda que
mantinha junto de si. Não. Não pensara originalmente em gente
ruim. A arma era para espantar onças e matar cobras, caso fosse
necessário ao longo da viagem. Esse povo tem fama de ladrão. As
ciganas convenceram os negros e o mulato, e esses viram o que
lhes reservava o futuro, sob o ponto de vista daquela gente suja
que perambula por países e países, e como vimos, não ficam de
fora suas colônias, enfim, gente sem eira nem beira, desde que o
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
279
mundo é mundo. Uma delas tanto pediu a Monlevade que conseguiu, por fim, que lhe fosse permitida a leitura das linhas de suas
mãos. Jamais sairás deste lado do mundo, ela disse. Casarás com
uma nativa e serás muito feliz com sua mulher e filhos. E também
ficarás rico, complementou.
Monlevade riu com vontade! Elas dizem o mesmo na França,
e deu-lhe uma pequena moeda. Pode ser que tenhas razão, foi o
que comentou em francês. A mulher não entendeu o que aquele
senhor havia dito, mas sorriu, escandalosamente, a custo da moeda que rapidamente embolsara. Foi mera coincidência, o fato dos
ciganos estarem arranjando as tralhas para sair do local. Levantavam acampamento. Um dos seus cachorros correu latindo com
algo marrom-escuro na boca, e fez com que João de Monlevade
se lembrasse do seu estimado Noir. O engenheiro francês sorriu.
Daí a pouco as duas caravanas seguiriam viagem. Uma para o
Rio. A outra para Minas Geraes.
Passada a primeira curva, e já não podendo ser avistada pelas mulheres, a comandada pelo capitão Freitas aproveitou para
fazer, conforme combinamos, breve parada hidráulica. Feito isso,
foi embora. Um dos negros, o último da fila, disse que os ciganos
ainda não haviam saído. Não soube explicar o porquê. Não consigo, nem nunca vou entender esta gente, comentou.
Lá, na região de Secretário, Freitas foi saudado efusivamente
pelo dono de pequena quitanda e restaurante situada próximo
a cruzamento de córrego. Tratava-se de senhor nascido nas terras da província da Bahia e que viera, pleno de esperanças, há
tempos, da região de Salvador. A centenária cidade baiana com
a perda do título de capital perdera também grandemente sua
força econômica. Tinha sotaque cantado e Monlevade entendeu
pouquíssimo do que dizia. O homem da Bahia ama seu torrão
natal e não gosta de deixar suas terras, confessou, mas tenho mulher e filhos para alimentar, enfim, vou servir-lhes o mesmo que
a eles sirvo, arroz, feijão tropeiro, couve rasgada, ovo de galinha
e carne de porco assada. Depois teremos também burundanga.
Monlevade não entendeu e imediatamente sacou seu dicionário
francês-português. Não achou a palavra que o hospedeiro pronunciara. Freitas sorriu e disse, adivinhando-lhe pensamentos,
não vai achar aí, neste pai-dos-burros, o significado do termo que
o homem disse, caro Monlevade. É regionalismo.
No Brasil isso é comum! Na Bahia, burundanga é o mesmo
que, dessert, sobremesa!
280
Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
281
V
A caravana finalmente chega a Vila Rica. O inusitado
jantar de gala com o governador da Província
Muito se pode dizer de uma viagem, mon ami, qualquer viagem.
Elas são completamente diferentes do sentimento que se tem ao
ver, pela tevê, roteiros espetaculares cumpridos por repórteres especializados. Recordo-me já lhe ter dado opinião sobre este assunto, Tisserand observou, mas não custa repetir que mesmo em
casos em que são mostradas paisagens cinematográficas, sabe-se
que a tela pequena reduz inexoravelmente a imensidão e a grandeza dos cenários vistos ao vivo. Melhor é gastar solado de sapatos pelos caminhos do mundo. Ainda que em passeio bem curto
e feito por meio de metrô e que tenha, simplesmente, levado o
viajante de um bairro a outro de uma grande cidade. É situação
em que os cinco sentidos são atiçados, inclusive o olfato, que fica
ausente nos livros e no cinema.
Vou complicar mais um pouco, Tisserand alertou. Vou colocar pitada de paixão. Digamos que o passeio de metrô seja feito
em dia de jogo de decisão de campeonato europeu de futebol,
Manchester United versus Barcelona. Pode haver briga de torcedores. Pode ocorrer pequeno furto. Uma pessoa que nada tem a
ver com o futebol pode ter a carteira subtraída, e perder dinheiro, e
carteira de habilitação, e cartão de crédito, e documentos pessoais.
Caso a sorte mude seu rumo, ela mesma, esta mesma pessoa,
pode ser socorrida, caso seja mulher, por moço de boa família,
atualmente sem compromisso, ou que venha de relação desgastada, e que tenha profissão de respeito, aí sem dúvida o grande
transtorno pode virar um belo encontro de amor!
Não fosse assim, poderia ser pior ainda. Poderia, após o dito
furto, ocorrer um blecaute de energia e os passageiros ficam lá,
angustiados, uns atrasados para o trabalho, outros pendentes de
282
Jairo Martins de Souza
encontro com seus amados em estações a meio-caminho, outros,
a maioria já bêbada, e a caminho do estádio mal se preocupa, e
ouve em pequenos rádios a pilha as preliminares do grande prélio
de daqui a pouco...
Tudo isso que acontecer em tão pequeno percurso é sensação
real. Não é de livros. Não é imaginária... e, se é assim, imagine
o senhor, Tisserand prosseguiu, uma viagem ao interior do Brésil
dos 800 como a que estava descrevendo anteriormente. Lembro
que era feita por 5 negros, um liberto que xingava, e dava ordens
não autorizadas aos seus irmãos de cor, um número que não mais
me lembro de mulas, um engenheiro de minas francês, um fazendeiro do século dezenove de Minas Geraes, e um outro também
homem estrangeiro que, quando menino, fora na prática, adotado por fidalgo. Pode ocorrer chuva forte (a que chamamos de facas e canivetes), e a rústica estrada ficar intransitável mesmo para
os cascos duros de semoventes habituados a caminhar por pisos
que arrebentam quaisquer tornozelos. Podem aparecer assustadores animais selvagens, e insetos que forçariam os viajantes a cavalgar vestidos como criadores de abelhas... pode acontecer mais
em viagem daquelas condições. Um dos viajantes pode adoecer.
Pode pegar febre amarela ou esquistossomose. Pode ficar gripado
e com febre: não pode ser deixado para trás, pois a caravana já
é pequena, não deve ser fracionada, então o ritmo de todos se
reduz. Uma mula pode machucar o tornozelo, a ferradura pode
soltar-se e fazer com que fique a três pés e, pior ainda, quebrar a
perna e não poder deixar de ser sacrificada! Como dividir a carga
entre os outros animais já com peso suficiente em seus lombos?
Felizmente no nosso caso nada disso aconteceu, e que levasse
a problemas de realce. Um dos negros foi picado por marimbondo nas proximidades de um dos olhos e simplesmente ficou por
longas horas com o rosto absurdamente inchado. Não deixou de
cumprir suas obrigações. Outro machucou o dedão ao dar topada
em pedra pontiaguda escondida no piso. Não chegou a mancar
mais que um par de horas, ele tinha, todos tinham, os pés como
uma carapaça de tartaruga, enfim, nada grave! O capitão Freitas
era quem mais solicitava paradas hidráulicas, é claro, não sabia,
mas a idade fizera-lhe crescer a próstata e, com isso, não lhe preocupou o fato de estar urinando fino e com jato curto. Nem tinha
como. Pois mesmo que acostumado ao torresmo e ao excesso de
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
283
café, assim como a outros fatores de irritação que impõem maus
tratos à sofrida glândula prostática, não tinha recursos de saber
sobre certo mal, de nome antigamente impronunciável e que, ao
fim de tudo, afeta e é temida por todos os homens, bem, a terrível
enfermidade podia estar em pleno andamento.
Naturalmente, por ser ainda jovem, Monlevade viajava alheio
à inconveniência que afetava o amigo. O esforço empregado para
chegar até Petrópolis fora compensado pelo clima ameno e as
deliciosas paisagens da Serra dos Órgãos. Que foram seguidas
pelas não menos belas da Serra do Mar. Após essa última, a da
Mantiqueira. Um pouco antes dessa, por meio de uso de pequena balsa alugada a um barqueiro ribeirinho, a pequena caravana
lograra ir de margem à outra do Paraíba do Sul. Bom momento
para pescaria e descanso, pois Monlevade tinha as nádegas absolutamente prejudicadas e doídas pelos passos irregulares do seu
cavalo. E que lhe serviu para rapidamente recuperar integralmente as forças e ficar novamente entusiasmado: sua grande viagem
de pesquisa mal havia começado! Conversava animado, recapitulando com o capitão Freitas sobre todo o potencial que tinha o
“eldorado” geológico existente na província mineira que o aguardava quase virgem!
Nessas circunstâncias, e passadas aproximadamente três semanas após saída do Rio, chegaram todos vivos e saudáveis às
proximidades da chamada Vila Rica. O sinal indicador foi a visão longínqua do pico do Itacolomi que antecipava, e continua
antecipando, aos viajantes que a capital da província estava por
ser alcançada. Aquela imponente elevação rochosa se destacava,
altaneira, no panorama da região. Foi em suas vizinhanças, Tisserand prosseguiu, que, pelos idos de 1693, bandeirantes paulistas
descobriram cascalhos de cor preta que escondiam metal amarelo
de qualidade requintada. Procuravam escravos. Acharam riqueza. Estou dizendo aqui sobre fato marcante que deu início ao Ciclo do Ouro na economia colonial do Brésil.
Vila Rica também, Tisserand disse, foi onde o revoltoso português Felipe dos Santos, por conta de seus protestos contra a
proibição do comércio do próprio ouro em pó nas Geraes, teve o
corpo despedaçado pelas forças do exército português.
E por falar no assunto, prosseguiu, a comitiva de Monlevade
já divisava claramente o Itacolomi quando foi abordada por patrulha imperial composta por três soldados e um alferes.
284
Jairo Martins de Souza
No momento do acontecido, Freitas havia ficado fora de vista, pois pedira tempo para defecar e, como de hábito, se encaminhara para a traseira de arbusto ao longo da estrada e de altura
suficiente para mantê-lo oculto enquanto fazia suas necessidades.
Vai ser rápido, disse. Podem seguir em frente que dentro de minutos os alcanço. Não. Não se preocupem, estamos praticamente
em Vila Rica!
O pequeno pelotão de militares disse alto lá!, e se identificou como responsável pela fiscalização de produtos minerais que
circulavam entre a província de Minas e a do Rio de Janeiro. A
produção de ouro está muito baixa, cabe-nos a missão de evitar
contrabando em geral. A coroa carece de impostos...
O comentário não foi bem recebido por Monlevade que os
ouvia calado. Como de hábito a pronúncia do português ouvido da boca de um dos próprios trazia-lhe certa complicação.
Pediu que repetisse. A sorte é que o alferes permitiu que um dos
soldados, esse um brasileiro, refizesse a mensagem exatamente
com as mesmas palavras. Monlevade entendeu. Inclusive que
havia necessidade de inspeção da carga colocada nas cangas
das mulas. Um deles, um dos militares, cutucou uma delas com
a ponta da carabina e se excitou. Fazia papel de cão farejador.
Aí tem!
Dê-me a garrucha que tens atrelada ao cinto, o oficial solicitou a Monlevade. Podes apanhá-la com suas próprias mãos,
foi o que Jean instintivamente disse-lhe de volta, temendo que
qualquer movimento seu gerasse má interpretação e desse ideia
de reação excessiva ou desacato ao que lhe ordenara a autoridade militar. Martinho colocou a mão na coronha de sua arma,
o comandante do pelotão hesitou, Monlevade preparou-se para
negociar. O alferes fez sinal de alerta para seus dois subalternos. O
clima ficara tenso. Que trazes nos cestos?, perguntou mudando de
assunto. Amostras. Amostras de minérios, senhor oficial. Mostreas, o alferes respondeu. Monlevade imediatamente lembrou-se de
Agostinho Ferro, o militar da aduana carioca, algo na fisionomia
do seu interlocutor...
Mas, finalmente, retrucou. Fique à vontade, o senhor pode
inspecionar as amostras. E terá facilidade de entendê-las, elas estão quimicamente identificadas. Por exemplo, a que tem já nas
mãos é o trióxido diférrico, a hematita...
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
285
Não é minério de ouro, ou de prata? Temos ordens para sequestrar qualquer carregamento que... Não. Não é. Assim como
não são todas as minhas demais: sou engenheiro de minas e absolutamente interessado em processos da siderurgia aplicados
aqui no Brésil.
Não há nem mesmo necessidade de dizer que foi Monlevade
quem fez tal afirmação, Tisserand complementou. E foi o mesmo
Monlevade quem perguntou: por favor, diga-me qual é a sua graça? Estava curioso.
Meu nome é Ferro, o alferes respondeu. Antônio Ferro. Sou
de nobre família de militares que veio para o Brasil recentemente.
Ocupamos altos cargos no exército de sua Alteza Real.
Conheço um dos seus irmãos, Monlevade contemporizou,
interrompendo-o, e aqui apresento-lhe o mesmo documento que
a ele mostrei recentemente. O meu salvo-conduto. Tome...
Não precisa mostrar-lhe, Monlevade, agora quem participa
da conversa é Freitas que surgira da curva do caminho e não fora
percebido pelos demais. Deixe estar que darei solução a este impasse. Vai nos dar muito trabalho desfazer e refazer a carga.
O alferes Ferro é homem que tem bom senso. Em segundos
entenderá toda a situação. Venha cá, senhor alferes, vamos ter
uma conversa de homem para homem.
Para tornar o assunto mais curto, Tisserand disse que é assim
que as coisas sempre funcionaram no Brésil. Bastou que Freitas dissesse que era velho conhecido do ordenança da cidade, e lhe citasse
o nome, e sua amizade com Dom Manoel de Portugal e Castro, para
que fosse dada passagem a Minas Geraes, com reverências: não
somente para ele, como também para seus convidados.
Cerca de hora e meia depois, entraram na bela praça localizada no então chamado Morro de Santa Quitéria onde se situava o
Palácio do Governador de Minas Geraes, o próprio Dom Manoel.
A bandeira da província estava içada ao alto ao lado da imperial.
O homem estava atendendo hoje nos seus ofícios.
Bela construção. À sua frente, a poucas centenas de metros,
podia se ver o mais belo ainda, Paço Municipal, que abrigava, em
sua parte térrea, os condenados da província. Celas com paredes
inexpugnáveis. Monlevade imediatamente reparou que esse imponente edifício lembrava, de passagem, o monumental Capitólio de
Roma, que visitara em sua viagem à Itália com o fidalgo, seu pai.
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Jairo Martins de Souza
O Palácio dos Governadores da Província de Minas Geraes,
Tisserand explicou, transformou-se posteriormente na Escola de
Minas e, além disso, abriga um excepcional Museu de Mineralogia
que possui mais de 20 mil amostras de pedras de todas as partes
do Globo. Merece ser visitado! Monlevade passaria dias e dias
refletindo e admirando tais riquezas... Já o Paço Municipal, prosseguiu, nos dias de hoje, é reservado para as atrações do Museu
da Inconfidência. O zelo e o cuidado com que é administrado
lembram os melhores padrões europeus. Bem, voltemos aos nossos visitantes que dele estão se aproximando...
Vamos procurá-lo tão logo estejamos alojados, Freitas disse entusiasmado, enquanto lembrava a Monlevade que ele e o titular da
província eram amigos do peito. A praça estava cheia de mercadores
e tropeiros. Ocasionalmente os sinos das igrejas de Vila Rica tocavam
insistentemente... Vila Rica não é mais rica de ouro, Freitas comentou. Passou a ser conhecida como Vila Pobre. Já sabes, amigo Monlevade, que faz tempo o império português impediu o crescimento
da indústria, principalmente a da siderurgia... Hoje o comércio
está centrado na cultura do café, e no gado de corte e leiteiro.
E devo lhes dizer que não sei se há razão especial para que
estes sinos estejam tocando desesperadamente. É o que fazem a
todo tempo por estas bandas, foi o que Freitas esclareceu aos amigos franceses. Percebera que Martinho e Monlevade haviam se
entreolhado, perguntando-se, mutuamente, qual seria a razão de
tamanha algazarra. A província de Minas, em geral, – é o capitão
Freitas que ainda tem a palavra – é isolada do resto do Brasil pelas
montanhas. E até pouco tempo, conforme já disse-lhe, por aqui
não havia jornais: era proibido por vontade do imperador. Tudo é
dado a conhecer por meio do toque dos badalos de suas igrejas.
Não conheço o código das batidas de cor, mas creio serem, as que
acabam de tocar, as típicas de informação de horário de missa...
Aguarde, mon ami, por instantes, que vou consultar meu relógio
de bolso para certificar-me se é hora completa.
Bem, Tisserand disse, pequenos detalhes como estes à parte,
foi somente após recolherem os animais, e serem acolhidos em
pousada, que se encaminharam para o palácio do governador.
Se bem que, acrescentou, a bem da verdade, a sequência de fatos
não foi tão linear assim. Pois não é que fosse lei imutável, entretanto praticamente a toda chegada da caravana a alguma cida-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
287
de, sempre acontecia acidente de pequena monta. Não os tenho
relatado, contudo vou dizer-lhe sobre o que ocorreu com uma
das mulas na descida de pequena ladeira que desemboca quase
defronte à matriz de São Francisco de Assis. É caso singular!
A caravana, que seguia em avanço aos passos entrecortados de Monlevade, já estava na rua do hotel que Martinho havia
contratado. Ao seu lado, refiro-me a Monlevade, com o cavalo
caminhando parelho, Freitas mantinha-se em ritmo igual. O que
não podia ser diferente, Tisserand comentou, pois o fazendeiro
explicava ao engenheiro francês tudo que conhecia sobre a vista e
o interessante casario colonial que havia se descortinado em Vila
Rica. Terra árida. Os minerais afloram ao solo...
A hospedagem, Martinho perguntara anteriormente a oficial
português que passava pelo local, ficava à direita da igreja de São
Francisco em pequeno trecho de morro inclinado, e rua estreita,
enfim, situada quase na vertical. Martinho reparou que o homem,
ao dizer o nome do santo, respeitosamente persignou-se. Daí concluiu ser homem de confiança.
Então perguntou mais. Perguntou se o tratamento, a comida
e a bebida eram de qualidade bastante para receber o filho de
um fidalgo francês e um capitão do exército imperial. O lusitano
disse que sim. Com um detalhe. É preferida por hóspedes mais
jovens, pois o dono é sujeito falante e dado a goles de cachaça e
animação. O senhor vai gostar.
Estou com mais cinco negros e dois amigos. Um jovem e um
senhor de idade, não lhe disse, mas esse último não é somente
capitão, como também é extremamente poderoso nessas terras de
Minas Geraes. Não há problemas, o elemento respondeu a Martinho. Eu mesmo já estive hospedado por lá alguns dias antes de
trazer mulher e filhos de Portugal. O hotel pertencia, e foi aberto,
por família de um árabe festivo que viera para o Brasil em busca
de ouro e diamantes. Com a crise da mineração, acabou por se
dedicar ao comércio de hospedaria. Vendeu para um patrício de
mesma índole. Este repassou a outro igual, e assim, pitorescamente, ocorre com aquela instituição.
Normalmente os donos repassam a propriedade de cinco em
cinco anos. Mas a filosofia se mantém a mesma e, todos os antigos proprietários, esse é o detalhe, mantêm consigo as chaves
da portaria, e dos quartos, por toda a vida. Incontáveis donos.
288
Jairo Martins de Souza
Não se surpreenda. Há mais. Todos têm apelidos que falam com
precisão apaixonada de suas personalidades. Eles podem ser vistos em pinturas colocadas no saguão do tal hotel. Dizem ser mal
assombrado!
Deus nos proteja e nos guarde, Tisserand comentou, emendando que foi exatamente na rua empinada deste hotel que um
dos negros, seu nome era Tião, ao cutucar as ancas de uma das
mulas com vara curta, errou, talvez propositalmente, o alvo e acabou por aprofundá-la no ânus do animal. Foi uma correria só! A
mula estava quase em frente do hotel. Aí que se podia ler que o
nome era Jardim de Alá: estava escrito em placa pequena e um
tanto nababesca.
Bem, enquanto isso a mula já alcançava velocidade extrema
e, ao cair estrepitosamente em buraco, veio a permitir que parte de sua carga se precipitasse no solo irregular da ladeira. Uma
comprida caixa de madeira acompanhou-a, abrindo-se, e algo
cilíndrico veio a se espatifar em pedra de quartzito de bom tamanho que se encontrava encravado no solo da rua que, já disse,
era quase uma ribanceira. Somente a parte pontiaguda aflorava
no terreno e, para complicar, o desesperado animal caiu por cima
dos destroços que exibiam, inclusive, pequenos e brilhantes estilhaços de cristal. A alma de Martinho se assustou pelo amigo
Monlevade. Imediatamente veio-lhe à memória o carinho que o
filho do fidalgo tinha por sua velha luneta. O instrumento de lazer
e estudos do seu meio-irmão não mais existe!
Monlevade não sabia o que estava ocorrendo. Naquele exato momento, seu mister era a escuta atenciosa ao entusiasmado
Freitas, ambos ainda não haviam dobrado a esquina da praça
que dava à ladeira em que estava o restante da acidentada caravana. Repentinamente algo estranho, um certo corre-corre de
alguns populares perturbou a ambos, e não demorou para que
tomassem conhecimento do acontecido. O crioulo feriu-se? Monlevade perguntou. Não. O Tião está bem. A mula é que acabou
por quebrar a perna. Precisa ser sacrificada, Martinho finalizou
aborrecido. Assim se faça, mon ami, Monlevade respondeu-lhe.
Quanto à minha luneta, não se amofine, posso substituí-la.
Já o carinho do professor Duchamps, tendo ou não mais a posse
do instrumento, é insubstituível. Tanto é assim que está guardado no mais fundo do meu coração. Na realidade a perda desta
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
289
luneta, que me acompanha desde menino, sugere-me, ou é mais
um sinal de que não voltarei a Guéret. É quase uma premonição.
Talvez a negligência do moleque Tião tenha servido para algo.
Sendo assim, vou interpretá-la como para mostrar-me que há, em
andamento, certa quebra de contato entre mim e a minha infância. Não com meu estimado professor Duchamps!
No piso de pedras da rua, próximos dos cilindros da luneta,
muitos passantes se acercavam do animal caído, e dos materiais
que Tião e os outros negros estavam terminando de catar.
E enquanto faziam isso, Freitas continuava olhando a bandeira eriçada nas janelas do palácio do governador. O vento agitavaa suavemente. Acreditava que, mesmo sem audiência marcada
com antecipação, seria recebido pelo amigo. Estava certo!
Como o senhor, mon ami, estará absolutamente certo se imagina que mais cedo ou mais tarde seletos amigos franceses de
Monlevade irão ter com ele aqui na fascinante terra dos papagaios. É o que haviam prometido!
Não era tempo em que satélites geoestacionários bisbilhotavam a vida dos cidadãos, Tisserand comentou. Fosse o caso, e
se João Monlevade, em plena Ouro Preto do início do primeiro
quartil do século dezenove, tivesse aparelho celular de GPS, e
se demais condições técnicas fossem preenchidas, veria que, em
determinado navio de bandeira francesa que cruzava o Atlântico
próximo à ilha da Madeira, estavam já em plena viagem Fontaine, Zavoudakis e Platini. Reparasse melhor, notaria também a
satisfação e a alegria que reinava entre eles. Com mar tranquilo
e bons ventos, jogavam carteado, e vislumbravam grandes momentos com o amigo engenheiro da Polytéchnique. O destino da
embarcação era obviamente o Brésil!
Deixemo-los seguir viagem, e que Deus os guie, essa foi forma respeitosa que Tisserand encontrou para finalizar, por ora, o
assunto. É tempo de voltar à visita de Monlevade e Freitas ao
excelentíssimo senhor governador da Província de Minas Geraes.
O advogado Raimundo Horácio de Souza levantou-se e cordialmente cumprimentou o recém-chegado. O governador, que
há segundos estava sentado à cabeceira da longa mesa de reuniões, abriu um largo sorriso e, ato contínuo, encaminhou-se para
saudar o velho amigo capitão Freitas. Enquanto caminhava em
sua direção, pensou imediatamente em providência para alçá-lo
290
Jairo Martins de Souza
à condição de major. Essas coisas são de fácil feitura, desde que
para pessoas pelas quais o imperador tenha simpatia declarada.
Era o caso.
Já se abraçavam quando Jean, que se atrasara ao atender
pedido tardio de vistas de documentação, entrou no ambiente
conduzido pelo chefe do cerimonial do Palácio. Aí foi que, e de
forma estranha ao clima normalmente circunspecto do ambiente, ouviu-se alegre e ruidosa saudação que partiu do advogado
R. Horácio. Monlevade, meu amigo, que boas novas o trazem à
Vila Rica? Os demais presentes entreolharam-se surpreendidos.
O advogado explicou sucintamente a situação à sua excelência,
o governador da província e, após apresentação formal do engenheiro francês aos demais, retiraram-se momentaneamente para
rápida conversa em particular.
Daí automaticamente foram formados dois grupos de conversação. Após alguns poucos minutos, ajuntaram-se todos. Monlevade, mesmo que absorvido pelo reencontro com o jovem brasileiro que conhecera durante a travessia do Atlântico, percebeu
que, ao lado, Freitas insistia em determinado tema com a autoridade máxima da província. Suspeitou, mas não tinha condições
de verdadeiramente atinar sobre o que discutiam. Na realidade
estava em jogo assunto de seu mais alto interesse.
Manoel de Portugal e Castro não era homem de meias palavras, Tisserand informou. Ia direto ao assunto. E foi desta forma
que se dirigiu a Monlevade quando todos se encontravam assentados, e à vontade, em confortáveis cadeiras em torno de mesa
de trabalho. A sua era de espaldar avantajado, dando a entender
sua posição superior em relação aos demais.
Com que então, Jean de Monlevade, estás preparado para
dar passo à frente com a mineração aqui na nossa Geraes? Asseguro-lhe, o império está necessitado de empreendedores que
tenham o seu perfil. Estou informado de que o senhor é técnico
de formação excepcional...
Foi quando Jean Antoine Dissandes de Monlevade deduziu
o porquê das argumentações veladas do amigo Freitas ao dialogar com o governador. E prontamente respondeu, sim. Vejo com
bons olhos. É razão de estar aqui e foi o motivo de ter solicitado
salvo-conduto para viajar pela região... Tenho lido muito a respeito do seu potencial e...
Peço-lhe escusas para dizer-lhe duas coisas, caro Monlevade,
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
291
o governador da província interrompeu-o polidamente. A primeira é lembrar que não estás liberado para circular no distrito diamantino. Nosso governo tem severas restrições para circulação de
estrangeiros na região. A outra é que deves analisar com cuidado
o que, às vezes, se escreve sobre nossas terras. Veja, por exemplo,
o que seu compatriota Montaigne escreveu no século dezesseis,
expondo nossas vísceras ao divulgar sobre o hediondo costume
da antropofagia. Nem mesmo esteve por aqui! Este tempo já não
mais existe em nosso império. É coisa superada, Monlevade... Alguns franceses são mal informados sobre nossa terra...
Posso garantir, agora é Monlevade quem diz, e também seguramente contar com o testemunho do nosso amigo comum, o capitão
Freitas, que em tempo algum poderia concordar com tal perspectiva. Definitivamente não é aquela a ideia atual dos franceses a respeito do Brésil. É a terra do futuro! Alimentará o mundo!
E foi nesse tom que a conversa prosseguiu, estendendo-se
por período superior ao inicialmente previsto. Manoel Portugal
ouvia com atenção e a cada instante se tornava mais receptivo
ao engenheiro francês: ainda que tudo não tenha corrido às mil
maravilhas. Mas as diferenças de pontos de vista acabaram por
gerar frutos. Mal-entendidos foram velozmente postos em pratos
limpos. Acordos verbais foram firmados. Sim, Monlevade viajaria
pelas Geraes, de acordo com as regras estabelecidas pelo império português com relação a atitudes de estrangeiros. O advogado Raimundo Horácio de Souza – agrada-me saber que ele e
o senhor já se conhecem – seria o intermediador com a corte a
respeito de qualquer eventual mudança de rota e objetivos. Fora
contratado recentemente, a mando do próprio imperador, para
apoio legal a Eschwege, o curador do Gabinete de Mineralogia do
império. Ao tomar conhecimento da notícia, R. Horácio não lhe
tinha dito tal novidade, Monlevade sorriu internamente. Sentiu-se
em casa. Entretanto o rosto permaneceu impassível.
Aí foi que eu mesmo reparei que, ele, Tisserand, é que tinha
sorriso explicitamente estampado no rosto. Eu poderia jurar que
se comportava assim porque, naquela altura de sua história, a
presença do advogado era garantia de sucesso burocrático das
intenções do engenheiro francês. Pelo menos em termos legais
e de desembaraço judicial em quaisquer eventuais instâncias do
império. Até mesmo com João VI, que era o ápice de todos os
poderes.
292
Jairo Martins de Souza
Bem, à medida que o sorriso de Tisserand se desmanchava,
pus-me a postos para continuar a ouvi-lo. Não demorou. Ele disse
que, por fim, o governador convidou Freitas e Monlevade para
jantar de gala que promoveria naquela mesma noite. É o motivo
do agitado toque de sinos que vocês escutaram hoje pela manhã, esclareceu. Trata-se praticamente de mesa redonda sobre a
situação da mineração, da indústria e do comércio do ferro e aço
nacionais. Os diamantes escasseiam. O ouro não mais reluz por
aqui. E não é de agora.
Isso acontece desde o aumento de tributação imposto por
Pombal, foi época em que já estávamos decadentes. Mas sua atitude, ao fim e ao cabo, gerou a inconfidência mineira de 1788.
Aliás, muito bem contida pelo governador e doutor em filosofia,
o conde de Barbacena. É lógico, caro Monlevade, a situação mudou. Entretanto não posso omitir que muitos livros de autores
franceses foram encontrados com os inconfidentes. Eles andaram
influenciando psicologicamente não somente os mineiros, como
também outras províncias para tentativas de derrubada do governo imperial. Bem, mas antes disso, repito, já estávamos decadentes. Sim. Morro Velho ainda produz relativamente bem. E o ouro
continuará a ser procurado por aqui, mas não como antes. Com
os diamantes é o mesmo. Por causa disso, os mineiros tem tido
vistas somente para o café e a criação de gado.
Enfim, falaremos sobre indústria. Falaremos sobre o ferro. Falaremos sobre sua fundição. Estarão presentes o bispo de Mariana
e empresários do porte de Romualdo Barros, proprietário de rica
lavra de ouro em Congonhas. Esse homem, o governador acrescentou, tem porte para ser um dos meus sucessores! Tem ideias
de implantar fundição de ferro. Muitos outros empresários do império, de igual calibre, e assessores estrangeiros, estão hoje aqui
em Vila Rica: discutiremos políticas de revitalizaçao da província.
Aprendi a produzir grandes eventos com o marquês de Marialva,
Monlevade. Para essa, digamos assim, festa, contratei o mesmo
cerimonialista que ele usou para promover o casamento, acontecido o ano que passou, entre a princesa austríaca Leopoldina e o
nosso Dom Pedro.
No entanto não estou sendo irresponsável. A província não
sofrerá sangria de dinheiro com tais custos, há empresário que
se prontificou a arcar com tudo. As taças de cristal serão as dos
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
293
tchecos da Boêmia. Os candelabros e jarras dos venezianos de
Murano. Os pratos e xícaras dos alemães de Meissen. Os talheres
de ouro serão daqui mesmo de Vila Rica, contudo trabalhados
na Itália. Bem, não distribuirei peças selecionadas de diamantes
como Marialva fez em Viena, mas alguns pequenos brindes confeccionados em ouro serão entregues ao presentes. Não posso
deixar sem memória física esse encontro que pode mudar definitivamente a política industrial do império. Sem sorteio. Tudo isso
regado a bom vinho, e garanto, bom papo. Essas são as condições
em que serão servidas comidas dignas das mais ricas cortes europeias, Manoel Portugal orgulhosamente complementou.
Mas faltou a ele citar, não me vem à memória o motivo, Tisserand lembrou, que lá deverá estar também o futuro Barão de
Catas Altas, o senhor João Baptista Ferreira Chichôrro de Souza Coutinho. É o xis da questão. O homem do dinheiro. Foi ele
quem pagou as despesas de toda a solenidade. Já naquele ano,
Souza Coutinho andava fazendo cortesias à corte para obtenção
de título de nobreza junto a Sua Alteza Imperial. Não demoraria
a tornar-se barão e, adianto, Tisserand acrescentou, tio torto de
João de Monlevade, tendo sido peça essencial para o sucesso da
vida do engenheiro francês no Brasil.
E foi naquele mesmo evento que capitão Freitas comentou
com Martinho Monlevade sobre algumas excentricidades da vida
do dito João Batista. Há algumas absolutamente inusitadas. Ele
fora sacristão da igreja do vilarejo de Catas Altas e perdeu, por
morte, a mulher do seu primeiro casamento, e cujo pai era o
capitão-mor da região. Homem de posses! Casou-se outra vez.
Agora com uma das irmãs da falecida: isso não era incomum naqueles dias. Mas por infortúnio do destino, o sogro em dose dupla
de João Batista ficou também repentinamente viúvo. Daí foi que
aconteceu o inusitado, mon ami!
O velho viúvo veio a casar-se com uma das irmãs do próprio
João Batista. Isto fê-lo então tornar-se cunhado do próprio sogro
que, entre outras coisas, era proprietário das minas de ouro de
Gongo Soco. Quando de sua morte – refiro-me à do sogro – não
produziam absolutamente nada!
À custa de tal confusa situação de parentesco, o antigo zelador
da igreja de Catas Alta tornou-se o único herdeiro do cunhado. Ou
do sogro. O senhor, mon ami, pode escolher a opção que quiser.
294
Jairo Martins de Souza
Daí ficou rico! A sorte havia se tornado sua companheira. Gongo Soco, já sob sua posse, começou a produzir toneladas de ouro,
tendo sua fama se espalhado por todo o mundo cristão. De um
momento para o outro, João Baptista Ferreira tornou-se um dos
homens mais ricos da província e, quiçá, do Brasil!
Nada resta do seu espólio, Tisserand prosseguiu em tom de
lamentação. Os Pedros I e II estiveram em Gongo Soco somente
quando a mina já era possuída pelos ingleses da Imperial Brazilian
Mining Association. Lá foi construído até mesmo um Arco do Triunfo para que tais fatos ficassem para a história. O pequeno monumento era porta de entrada da antiga Estrada Real que ligava Sabará a Vila Rica. Hoje são ruínas cobertas por frondosa gameleira!
Bem, obviamente não é por essa minha última consideração
que Freitas e Monlevade haviam aceitado de bom grado o convite
feito pelo governador, Tisserand finalizou. No entanto solicitaram
se a cortesia poderia ser estendida a Martinho Monlevade.
O governador dissera que sim, e educadamente perguntou
o motivo da ausência de Martinho ao compromisso que estavam
tendo.
Monlevade respondeu-lhe que havia ocorrido imprevisto. Tinham providências a tomar devido a pequeno acidente: Martinho
era o encarregado, não o explicou, mas o governador compreendeu e, por final, ambos se retiraram. Outros cidadãos aguardavam audiências de há muito programadas. Descansariam até o
momento aprazado para a festividade.
A despeito de ser fato conhecido os grandes privilégios dados
aos ingleses naqueles anos do império, Jean de Monlevade foi, de
certa forma, o centro das atenções. Não deu aos que o procuraram qualquer forma de tratamento indevido. Jamais faria, Tisserand prosseguiu, tal como um mal humorado escritor francês que
dissera: os brasileiros nos dão borboletas, mas nos pedem ideias!
Monlevade era sujeito polido. Não era dos que, pelo mau humor constante, parecem ter feito pacto com o rabudo. Como engenheiro da école des Mines, e com passagem pela afamada Polytéchnique, era convocado aqui e ali pelos participantes do encontro.
Enquanto isso, a todo o tempo, os convivas dissertavam entusiasticamente sobre os efeitos de criação de fábricas nacionais de
ferro, e a própria entrada de capital estrangeiro vindo dos cofres
da nobreza de ultramar. A presença na província, e entre nós, do
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
295
mundialmente conceituado cientista August de Saint-Hilaire pode
abrir novos mercados para todos os presentes. Está por ir ou já
foi, Monlevade não entendeu bem, em visita oficial às forjas de
Itabira, Girau, Penha, Bonfim e Ribeirão.
Saint-Hilaire era uma celebridade festejada. E que disse, entre uma e outra garfada, ter ficado surpreendido com a qualidade
dos machados, ferraduras e outros implementos agrícolas feitos
em Minas. Nosso mercado é pequeno, foi o que um dos proprietários que lá se encontrava afirmou a ele em contrapartida. É apenas regional. Podia ser maior. Não temos maior saída por falta de
estradas e comunicações. Sou proprietário de forja em Itabira.
Fabrico até mesmo espingardas, complementou.
Temos mais de cem de outras forjarias operando no Maranhão, assinalou um homem baixinho e de cabeça chata. Era
brasileiro de terras distantes. Viera a conselho do próprio dom
João, e que lhe fora dado durante audiência a que comparecera
no Palácio de São Cristovão, no Rio. Explicou a todos que fizera
tentativa frustrada de busca de apoio para fabricação de armas
de fogo em sua manufatura. O nortista havia informado à sua
alteza real que o problema não era técnico e sim de matéria prima. Faltava ferro no Brasil. O rei retrucou-lhe, dizendo também
da preocupação do seu império quanto ao assunto. Tanto é assim
que havia facilitado, há cerca de cinco a sete anos, a criação de
duas fábricas. Agora, em 1817, não se lembrava bem dos nomes.
Um dos seus camareiros informou-lhe tratar-se da Real Fábrica
de Ferro do São João do lpanema, próximo a Sorocaba. E a Real
Fábrica de Ferro de Morro do Pilar, em Minas Gerais, um outro
auxiliar acrescentou. O erário havia gasto muito dinheiro para
produção de ferros fundido, maleável e de aço para, inclusive, ter
o benefício de exportação.
Foi o próprio Eschwege quem justificou o fracasso dessas
duas empreitadas. Era uma das outras eminências presentes, e
atribuiu o insucesso principalmente ao ainda baixo consumo de
ferro e de aço na colônia. Ao terminar acrescentou os custos de
transportes, os altos impostos do governo português e carência
de mão-de-obra adequada. Sim, as ordens do imperador foram
adequadas, mas...
Varnhagen, diretor da Fábrica de Ipanema, também disse dos
percalços de sua empresa em Sorocaba. O camareiro real disse a
296
Jairo Martins de Souza
verdade ao nosso amigo que veio do Norte, referia-se ao empresário nordestino que há pouco havia falado nesta cerimônia. Sim,
também tive apoio do imperador e continuamos tendo bastante
hematita. Nossas reservas são enormes. E lá, herren und damen,
senhores e senhoras, estamos usando o que há de mais recente
para injeção de ar no forno. Não usamos, senhores, nem escravos, nem cavalos para acionar os foles. Nossas rodas d’água são
tocadas confiavelmente pelo rio Ipanema. O minério se reduz a
metal de forma constante: isso quer dizer que temos lá ferro de
boa qualidade. Nem é preciso dizer que há florestas e lenha, digo
carvão, de sobra para os fornos. A empresa é frutuosa, produzimos 1500 quilos por semana, mas...
Há muitos estrangeiros falando neste encontro, peço por instantes a palavra. Serei breve! Prometo. Quem disse assim foi o
intendente dos diamantes da província, Manuel Ferreira da Câmara, lembrando ter sido companheiro de José Bonifácio nos estudos de minas e metalurgia na Europa. Fui o primeiro a fabricar
ferro fundido no Brasil, afirmou. Portanto sou daqueles que acreditam na força do império português e, contando com o apoio do
mestre alemão Schonewolf, minha ideia é ter, em breve, produção de trinta e sete toneladas em um só ano. Disse isso, e se calou.
Sobreveio-lhe enxurrada de aplausos!
Faltou-me dizer, Tisserand falou quase desculpando-se. Faltou-me dizer que, no início do jantar, todos os presentes foram
se identificando, à medida que indicados pelo Governador, no
sentido dos ponteiros de um relógio. A nata da inteligentsia e do
empreendedorismo do ferro no Brésil. E é o que me fez lembrar,
Tisserand assinalou, dos nomes de Theodoro de Freire, dono de
próspera fundição no Rio de Janeiro, e de Daniel Muller, de fábrica de espingardas no porto militar de São Paulo.
Naquele fausto jantar de chegada a Vila Rica, Tisserand voltou a esclarecer, Jean de Monlevade comportou-se, além de tudo,
como um japonês. Notava e anotava tudo, e usando de sua habilidade incomum de traçar linhas fugidias e rápidas, rascunhava
rapidamente os rostos, ao lado dos nomes dos presentes que lhe
eram apresentados. Inclusive, esta com o perfil e o corpo elegante desenhados com maior capricho, a presença de uma jovem e
simpática mocinha que permaneceu sempre afastada do grupo de
homens que discutiam o futuro siderúrgico do império. Deus fez a
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
297
fêmea, as costureiras fazem a mulher. Foi o que pensou, sorrindo,
ao observar a singela elegância da jovem mineira. Nas poucas
vezes em que a viu aproximando-se de cavalheiros, fê-lo conduzida, e segurando delicadamente os braços do tio, o próprio João
Baptista Ferreira de Souza Coutinho. O futuro barão de Catas
Altas, de quem já dissemos.
O nome da menina era Clara. Clarinha. Aquela moça tranquila e sossegada tinha jeito de quem poderia fazer o liame definitivo do engenheiro francês com as terras de Minas Geraes. Não
havia funcionado, Tisserand recordou, com Angéline, a filha do
médico Colbert. Nem com uma das irmãs du Lac, a despeito,
estão lembrados, do empenho de Lucillia Pius.
Vamos ver o que o futuro reserva para o filho caçula do fidalgo Jean-François! Não exatamente agora, Tisserand disse. Pois no
jantar de Vila Rica que dizia, o resultado da troca de ideias que
proliferaram iria ser resumido, a quatro mãos, pelo intendente dos
diamantes da província e por Eschwege, o estrangeiro curador do
Gabinete de Mineralogia. O primeiro, espelhando o ponto de vista do império português sobre estratégias de extração e pesquisa
do solo de sua colônia; o segundo, naquele instante, também representando a comunidade científica europeia quanto a técnicas
modernas para tanto.
Um documento com aquelas prerrogativas, Tisserand comentou, hoje provavelmente seria chamada com o sugestivo nome de
A Carta Mineral de Vila Rica. Posteriormente seria entregue, em
mãos, ao próprio imperador.
Mas o fato é que a cerimônia havia se encerrado e os dois
franceses e o fazendeiro de São Miguel do Piracicaba saíam das
dependências do Paço. Monlevade estava feliz. Via oportunidade
de ouro para exercitar seus conhecimentos e emprestar sua cultura
para ajudar ao desenvolvimento da região do seu dileto amigo Ildefonso. E a do pai, que, por deferência especial, o acompanhava.
Em pouco tempo essa terra caminharia com os próprios pés.
Fora informado por Freitas que as lojas maçônicas cariocas sofriam fortemente influência das francesas, e eferveciam em discussões sobre pensamentos republicanos. Além do que, a própria
república pernambucana que fora abafada pelo império português em Recife havia tentado, repito, buscar apoio até mesmo no
distante Estados Unidos. Os efeitos psicológicos do feito haviam
perturbado enormemente aos anseios de João VI.
298
Jairo Martins de Souza
Não podia negligenciar tais pensamentos, pois tinha assistido,
com os próprios olhos, fatos parecidos na então atribulada vida
do seu país.
Foi tudo muito rápido, tempus fugit, o tempo voa. A avalanche de pensamentos revolucionários do ex-cadete da Polytéchnique foi embora tão rapidamente quanto viera e, ao concluir
a descida da escada de acesso à porta principal do Paço, Jean
de Monlevade já estava recapitulando que, em sua caderneta de
anotações, tinha os nomes e endereços postais de todos os envolvidos no encontro.
Daí sorriu reflexivamente. Desde que cheguei ao Rio, tenho
tido belas perspectivas. Aqui nas Geraes o clima é de montanhas.
Agradável no inverno. No verão provavelmente os insetos devem
incomodar, mas nada que mosquiteiro de tela fina ou o fechar
de portas e janelas ao fim da tarde não possam bloquear. O que
não se pode é permitir que pocilgas como as que vejo aqui em
Vila Rica, ou porcos fuçando pelas ruas, como esses que passam
agora nas nossas proximidades, seja comportamento de rotina
em minha futura morada. O Brésil é lugar onde construirei meu
lar e minha fortuna!
Ao seu lado, Freitas parava para cumprimentar conhecido
que tomava rápido trago de cachaça. O homem, por sinal muito
bem trajado, já estava de saída de um armazém. Conversaram
rapidamente, mas de forma objetiva. Monlevade tirou o chapéu
para também saudar o amigo de Freitas. Virou-se de lado e voltou
a sorrir, enquanto acabava de fechar a caderneta para colocá-la
em embornal.
Ah, a mocinha não ficara, e nem poderia ter ficado, de fora
dos seus lembretes. Foi sob o olhar cuidadoso do tio é que lhe
dissera o nome e a cidade em que morava. Não. Não precisa
mais nada, monsieur Monlevade, com estes dados o senhor me
encontra, é claro, se isso não importunar ao meu querido tio, foi
o que disse sorrindo.
De forma alguma, foi como se expressou o futuro barão de
Catas Altas. Disse com firmeza, mas paradoxalmente, de forma
receptiva.
No Brésil, o já passado menino de Guéret não poderia perder velho hábito de escrever cartas!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
299
VI
Monlevade faz turismo e reflete sobre o cotidiano da
capital da Província das Geraes. Martinho definitivamente
entrega sua alma a Cristo
Na manhã seguinte, Freitas acompanhou Martinho e Monlevade
em passeio pelas principais ruas e igrejas de Vila Rica. A ideia era
ficar até o outro dia pela manhã. Na parte da tarde, ele aproveitaria estada na capital da província para acertar alguns pormenores
de compra e venda de café e gado junto à receita e a cartório
imperial. A capital da província centraliza tudo, informou. Aqui
não se trata pomba rolinha como se fosse trocal, o empresário
tem que pedir a bênção frequentemente a funcionários e agentes públicos. E ainda azeitar com propinas andamento de grande
parte de nossos processos comerciais. A corrupção neste reinado,
amigo Monlevade, vem se alastrando e toma corpo não somente
no Paço Imperial de São Cristovão! É assunto que me causa náuseas. Então vou, se assim me for permitido, mudar o tema desta
conversa. Mudemos para mulheres, Freitas acrescentou e, com
isso, numa fração de segundo trocou a sisudez momentânea de
sua face por um largo sorriso. As que nascem nesta cidade são
chamadas de nativas. Nativas... como se fossem todas índias! A
maior parte delas tem pernas batatudas, foi o que disse agora dirigindo olhar tanto para Monlevade quanto para Martinho. Atinou
que os amigos não entenderam, então explicou: as subidas e descidas destas ladeiras é que forjam essa situação, complementou.
Teve que explicar novamente. Todos riram.
Foi quando Tisserand disse que há tempo não se referia a
certo fato. Havia se remexido no banco como se algo repentinamente o tivesse incomodado. As horas passavam, e eu continuava ouvindo-o com o mesmo interesse de quando iniciara a relatar
a tal quelque chose d’ extraordinnaire que prometera.
300
Jairo Martins de Souza
Aí escutei-o dizer que havia algo da infância de Jean de Monlevade que merecia ser novamente recordada. O seu aguçado
sentido de audição e olfato. Principalmente deste último. Já lhe
disse que conseguia diferenciar minérios pelo próprio cheiro. E
mais ainda: sentia o mesmo que os caçadores de depósitos subterrâneos de água no nordeste brasileiro. O senhor sabe que esses
últimos, portando varas compridas na vertical, sentem estranhas
vibrações quando passam por cima de veios de água? As varas
ressonam em suas mãos. Não era incomum, ao passar por áreas
plenas de metais, o engenheiro sentir o corpo eriçar por inteiro.
Tentava explicar tal sensação por meio das equações de ressonâncias entre corpos, essencialmente as de capacitores e indutores, que aprendera na Polytéchnique, mas não se consolava.
Pelo menos em termos teóricos. O detalhe é que, ao cruzar veios
mais ricos, chegava, até mesmo, a ser incomodado com constantes movimentações no baixo ventre. Para tanto encontrou explicação não muito satisfatória, e se acomodou por falta de razão
mais convincente. A culpa era o de desejo intenso de possuir e
explorar as entranhas daquelas riquezas. Bem, era assim que estava se sentindo em toda região ferrífera das Minas Geraes. O ar
e a umidade locais estavam inundados de cheiros agradáveis de
minérios. Inspirava-lhe saúde!
No entanto, insisto, Vila Rica não justificava o nome. Dos
anos 700, restava-lhe a bauxita, o ferro, o calcário, o manganês,
a dolomita. Faltam técnicas para explorá-las, Monlevade refletiu.
Quem sabe no futuro...
Foi quando abruptamente tropeçou em pedra talhada que,
junto com outras, repousava amontoada em canto da rua. O calçamento, haja vista a profusão de materiais espalhados pela via,
fora paralisado provavelmente por falta de verba pública. Monlevade viu que alguns negros riram do que acontecera a ele. Como
de regra, Monlevade reparou, estavam descalços. Nunca vira um
negro calçado nas terras do Brésil. Não havia se incomodado
com o riso deles, e riu também. Abaixou-se e analisou a pedra
que quase lhe fizera ir ao chão. Cheirou-a. Apalpou-a. Sílica de
qualidade. Bom para piso de casa e calçamento. Dura séculos!
Enquanto isso, uma parelha de bois mansos puxava carroça
com alguns sacos de farinha, dois pretos, os mesmos que haviam
debochado do seu tropeço, preparavam-se para receber a carga
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
301
defronte a um atacadista do produto. Outros dois lutavam para
manter os animais sossegados e colocavam pedras lascadas nas
rodas de madeira para que a carga e os bois não se arrastassem morro abaixo. Ao lado, outro escravo carregava um velho
guarda-chuva nas mãos e instruía os procedimentos do grupo de
serviçais. Dava ideia de liberto, e chegou a atingir um dos outros
pretos com força, usando com energia o cabo do instrumento.
Esses últimos coitados eram seguramente de aluguel.
O tempo não passa para esta gente, Monlevade comentou
com Martinho. O que passou aqui foi o tempo do ouro fácil, o
ouro à flor da terra. Isso não deve mudar por enquanto, prosseguiu, e não posso criticar o governo de Dom João. Neste quesito,
como francês, não me sinto com autoridade moral bastante. Não
se diz que quem raspa o decalque de um juiz vai dar de cara com
o carrasco? A abolição da escravatura nas colônias da França é
recente. Foi em 793!
Conforme disse-lhe há muito, mon ami, Tisserand continuou,
os líderes da revolução francesa exigiam que, entre as disciplinas
da Polytéchnique, fossem incluídas fortes instruções sobre ciências humanas. Foi uma das razões que, de certa forma frustrado
em termos sociais, o engenheiro francês prosseguia caminhando
pela capital da província das Geraes. As ruas mostravam mundo
diferente do que vivera na noite anterior em que jantara com o
governador e seus convidados.
E é por isso que não perdia os detalhes do cotidiano da cidade. Vira traços e anotara como eram realmente os brasileiros
do interior, cafuzos, mulatos... Os primeiros, filhos de pretos com
índios; os segundos, filhos de brancos com negros. Freitas disseralhe existir certa hierarquia. Os mulatos julgavam-se superiores aos
negros brasileiros. Estes, por sua vez, desdenhavam os nascidos
na própria África. Mas todos faziam trabalhos braçais.
Pode-se pensar alto somente na presença de um amigo, foi o
que Monlevade comentou com Freitas enquanto observavam um
feitor que dava cascudos em um escravo. Para mim é o que dá
sentido, com todas as letras, ao substantivo amizade. Então posso
lhe dizer, mon ami, o que acabei de pensar. É triste. Acabei de
concluir mais uma vez, Freitas, que na vida acostuma-se a tudo.
Pois é. Fiquei absolutamente consternado com o que vimos
na Loja de Escravos da Rua do Valongo... Agora vejo o negro que
302
Jairo Martins de Souza
ali está sendo espancado como se fosse parte do meu cotidiano...
o que faço? Freitas respondeu-lhe com um olhar triste. Nada.
Monlevade compreendeu. Estava em desvantagem, era um
estrangeiro e, não somente isso, era um estrangeiro francês. Veja,
ore, converse com amigos, escreva, mas não se manifeste publicamente sobre o assunto! É, portanto, e com os olhos ligeiramente avermelhados, que foi se afastando discretamente da cena de
agressão. Adotou como estratégia o que todo ser humano faz.
Passou a observar o céu e os horizontes das montanhas de Vila
Rica e a refletir, bem, modificando o que o Hamlet de Shakespeare disse, e disse certo, que há mais coisas entre o céu e a terra que
até um ex-aluno da Polytéchnique pode imaginar.
Nas varandas das casas de, no máximo dois pisos, moradores, espias de plantão, permaneciam observando, curiosos, o que
se passava pelas ruas. E igrejas. Muitas igrejas. A esperança dos
que ficavam debruçados, observando a vida passar, é que algo
diferente ou estranho pudesse acontecer. Um acidente de carruagem, ou carroça, ou até mesmo com uma simples mula que
tem no lombo cangas com instrumentos científicos de estrangeiro.
Alguns não viram, mas souberam que acontecera um grave na
ladeira próxima à igreja de São Francisco, bem defronte ao hotel
de Alá. O animal fora sacrificado com tiro certeiro de garrucha.
Ou quem sabe, ver os dois estrangeiros que passavam às vezes falando em francês: não já tinham sido vistos por alguns felizardos?
Portanto rostos fugidios, o que é fato comum em pequenas
cidades, observavam Martinho e Monlevade entremeio às gretas
das janelas. De Freitas não se pode dizer o mesmo. É figura daqui
mesmo. Um militar à paisana seguia-os discretamente. A poucos
metros de distância, um negro, vestido com roupas que mais pareciam um pijama de saco branco, carregava desajeitadamente
um pesado balde de leite e estava por entrar em confeitaria que
ficava na esquina da Praça do Paço do Governo. Mesmo com
riscos de entornar a espessa nata da parte superior do líquido,
tinha aguardado humildemente que os estrangeiros terminassem
de entrar. O miliciano, por sua vez, subitamente deu por encerrada sua missão ao ver os três amigos sumirem por dentro das
portas para degustação de café. Não teria nada de anormal para
informar ao alferes Ferro. Os franceses haviam se comportado
bem, e já estavam de volta às proximidades do hotel e do palácio
do governador.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
303
À parte esse detalhe, que nem ele nem Freitas haviam percebido, o engenheiro francês observara cuidadosamente as ruas
que guardam segredos e histórias jamais conhecidas da revolta
de Felipe dos Santos e, principalmente, da inconfidência mineira
do também alferes Tiradentes. Fizera isso e, ao mesmo tempo,
prosseguira sentindo vibrações extraordinárias das quais disse faz
pouco e, mais ainda, acrescentadas pela lembrança da bonita figura da moça chamada Clara. O tio franqueou-lhe oportunidade.
Escrever-lhe-ia. Manteria contato.
E Martinho? O estrangeiro Tisserand perguntou-me. Causame estranheza, mon ami, que o senhor não tenha me indagado o
porquê de ele não ter expressado opiniões desde sua estada em
Portugal.
Surpreendi-me com a preocupação do estrangeiro. Na verdade ele, de certa forma, adivinhara meus pensamentos. E disse-me
que, de fato, não foi somente a barba crescida que diferenciou
Martinho quando de seu retorno de Lisboa. Era outro homem.
Não que tivesse deixado de ser bondoso como sempre fora. Voltara notadamente mais circunspecto. Reflexivo. Dissera que vira
coisas horríveis. Lisboa não mais estava ocupada pelos franceses.
Portugal não mais era dividido entre Napoleão e os espanhóis.
Mas a presença dos ingleses de Beresford fê-lo testemunhar injustiças em incontáveis situações. Queria ser justo. Ajudava aos pobres e necessitados. Não permitia que um negro assumisse carga
superior às suas forças. Tinha braços fortes e não negava auxílio a
quem quer que fosse. Cumprimentava a todos que encontrava nas
ruas. Uma carroça com rodas emperradas no barro, um miserável
que pede um naco de pão, um cego que roga por auxílio, enfim,
esses sempre poderiam contar com sua ajuda.
No entanto, a vida ensinara-lhe que quem aceita a ideia de
ser pessoalmente justo não pode temer a de viver sozinho. Ajudava. Mas sabia que o troco era a ingratidão. A ajuda dada de
coração é impossível de ser paga. Confirmara a duras penas o
que Ribérry certa ocasião martelara em sua cabeça. Não espere
troco quando fizer caridade ou emprestar dinheiro, caro Martinho,
quem recebe grande favor se irrita e, por não ter condições de pagar, passa a odiar a quem o ajudou. Por tudo isso não sabia bem
o que fazer. Talvez a batina e o exemplo do abade Ribérry fossem
por final a sua solução existencial. Com uma diferença. Não é
304
Jairo Martins de Souza
possível que Deus tenha criado a mulher a partir da costela de
Adão se não fossem para se separar e, ao fim e ao cabo, viverem
vida conjunta. Nunca seria celibatário. Que Deus seria esse que
viesse a frear seus instintos naturais?
Mas por ora a opção era seguir seu caminho ao lado do amigo e meio-irmão Jean de Monlevade. Tinha grande auxílio na
bíblia que recebera de presente do fidalgo, poucos dias depois
de sua admissão no orfanato de sua nunca esquecida Guéret.
Sua terra por adoção. Emprestava-a sempre que possível para
os colegas de infortúnio e sonhava que todas as crianças que lá
chegassem pudessem receber um exemplar.
Um exemplar da bíblia, naqueles dias, era destinado a poucos privilegiados. Custava muito dinheiro, Tisserand esclareceu.
Impossível de ser adquirido em quantidade por instituição de
crianças de poucos recursos como a de Guéret.
A que Martinho ganhara tinha dedicatória especial. Em noite
de troca de ideias sobre alguns trechos que nela havia selecionado, permitira a Jean que lesse a mensagem especial que o fidalgo
havia lhe ofertado. Na ocasião ainda moravam em Paris. O amigo
emocionou-se, pois se deparou com a bonita caligrafia do pai
que simplesmente copiara o tranquilizante salmo 23: Martinho, o
Senhor é o meu pastor; nada me faltará. Deitar-me faz em pastos
verdejantes; guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a
minha alma.... certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor
por longos dias.
O dia do sorteio em que perdera a companhia dos pais e dos
irmãos não lhe saía da memória. Seria um dos escolhidos? Lia um
versículo por dia. Olhava para as florestas de Minas e via restos de
um Éden recuperado. Lugar santo. Olhava para Jean. Via olhos
que cobiçavam a mesma terra como vasto manancial de combustível para fundição de ferro.
Para ele qualquer pico de montanha de Minas seria sítio para
edificar mosteiro. Para Jean, ele sabia, a mesma montanha significava a palavra ferro. Ferro. Ferro para edificar casas, produzir
armas, estruturas, foices, máquinas...
A missão do irmão era uma. A dele, outra. A de forjar caráter de brasileiros que buscassem consolo e refrigério na fé cristã.
A construção de um mosteiro, ou igreja, poderia vir a ser o ins-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
305
trumento. Montaria uma biblioteca, pouquíssimos têm livros por
aqui. E ajudaria a Jean. Jean o ajudaria. Fosse mosteiro, havia de
visitar um bem antigo que Freitas dissera-lhe existir na província
do Espírito Santo. Poderia erigir um daquela monta em algumas
dessas montanhas que contemplava. Talvez com nome dedicado
a escravos ou operários. Ou a ambos. Não era São José um marceneiro?
Para Jean de Monlevade, tudo que viam significava a riqueza
e a produção. Para Martinho, tudo simbolizava a fé. Em dados
momentos, em Vila Rica, pediu licença e separou-se por horas
de Monlevade e Freitas para observar detidamente os altares pintados a ouro de Nossa Senhora do Pilar. Esteve em outras... algumas inacabadas por falta de recursos. Os bispos e figuras de
grande devoção tinham sepulturas mais próximas do altar. Mais
próximos de Deus. Desejava profundamente ser um deles. Em todos os templos, debruçou-se e rezou em voz alta atraindo atenção
dos outros fiéis. Emocionou-se com a simplicidade da Igreja do Rosário construída, exclusivamente, para uso dos pretos convertidos.
Ao finalizar seu roteiro em São Francisco de Assis, o hotel de
Alá era próximo, de repente lembrou-se de que deveria balbuciar
suas preces em português. Estava no Brésil, mas a alma por alguns instantes selecionados repousou candidamente na França.
Ao lado dos familiares perdidos. Rezou mais. Refletia sobre as
palavras que repetia, e repetia e repetia. Com isso considerava
estar preparado para as agruras do dia que, graças a Deus, estaria
por passar!
De tudo sobrava-lhe, em termos práticos, que seu destino era
o de servir a Jean de Monlevade com toda força dos seus braços
e alma. Não havia prometido a si mesmo?
306
Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
307
VII
Rumo a Caeté. O capitão Freitas é forçado a abandonar a
caravana
Eram 5 horas da manhã e a caravana estava ultimando preparativos para partida de Vila Rica. Às cinco e dezessete estava pronta
para seguir rumo a Caeté. Justo o horário pré-marcado com todos pelo engenheiro francês! Os negros se surpreenderam: como
são esquisitos estes europeus! Foi aí que Tisserand chamou-me
atenção para o fato de ter dito que Monlevade assumira a coordenação geral da viagem. É por razão justa, acrescentou. O homem
que Freitas cumprimentara, e que tomava gole de cachaça em
bar, havia-lhe alertado de algo importante que acontecera em sua
fazenda durante sua estada no Rio e viagem de volta a Geraes.
Havia ocorrido uma enchente de proporções consideráveis
na região e alguns parceiros do capitão, que trabalhavam em regime de meia, sofreram fortes prejuízos. Não Freitas. Pelo menos
diretamente. A casa grande de sua fazenda, assim como seu gado
e suas plantações de maior produtividade, ficavam em terrenos
altos, distantes das margens do Piracicaba. Desculpou-se com os
dois amigos, mas seguiria direto para São Miguel, enquanto o
grupo se dirigiria para Caeté. Aguardá-los-ia em sua casa.
Foi razão de já ter partido na madrugada seguinte acompanhado do Tião, que havia se tornado escravo de estima. O homem era habituado a levantar-se antes dos galos.
A partir de agora, Jean de Monlevade dependeria somente de si e da experiência que outro mulato tinha pelas estradas
das Geraes. E foi já nestas condições que ouviu alguém chamá-lo
com voz não muito alta. Tinha o pé a meio caminho para alcançar estribo do seu cavalo. Virou-se. O tom de voz era familiar. A
caravana, inclusive os pretos a pé, também virou o rosto para o
local de onde o som provinha. O homem estivera no jantar promovido pelo governador e pago por João Baptista... Monlevade
308
Jairo Martins de Souza
mentalmente repassou os olhos por sua caderneta de anotações
até localizar um dos rostos que desenhara. Encontrou-o na letra L.
Luiz Soares de Gouveia era igualmente capitão e rapidamente informou a Monlevade que, por acaso, também iria dirigir-se a
Caeté. Conheço a região. Se o senhor me concede o privilégio,
posso guiá-lo até lá. Podemos ajuntar nossos recursos, estou com
poucos negros, e, pelo menos é minha intenção, temos muito que
conversar!
E foi enquanto cavalgavam lentamente, tendo ao fundo a
bela visão do mar de montanhas mineiro, é que chegaram ao xis
da questão que Monlevade suspeitava existir. Não seria por nada
que o empresário mineiro buscaria companhia para gastar horas
jogando conversa para fora! Gouveia andou rodeando o assunto,
enfim, Jean já estava quase, ele mesmo, em vias de indagar ao
capitão. Afinal, o que desejas em relação a mim?
Ouvi dizer, monsieur Monlevade, que o ferro na Europa já
está sendo usado até mesmo em grandes áreas públicas. Estações
de trens, pavilhões... Deves estar bem mais informado sobre essas
construções revolucionárias.
C’est vrai, Jean falou distraidamente, em francês, ao lembrarse de Paris e seu surpreendente desenvolvimento, é verdade. O
futuro do ferro é enorme na construção. Seu uso deverá ampliarse assustadoramente: a idade do Ferro, caro Gouveia, mal começou... imagino que dentro de poucos anos não precisaremos
mais, para construir edifícios mais altos, de usar paredes com mais
de metro de largura. O ferro, senhor Gouveia, fará com que fiquem finas como as de uma panela de cozinha.
Pois é, tenho terras com muitas árvores e madeira. E muita
jacutinga. Não digo somente do pássaro, monsieur, a despeito de
tê-lo também em grande quantidade. É boa caça, mas não vem
ao caso. A que digo é a do minério que chamamos pelo mesmo
nome. Dizem ser rico em ferro...
E pouco enxofre e fósforo, Jean respondeu-lhe. Bom para
fundição! Aí que está, Luís Gouveia imediatamente aproveitou a
deixa. A ideia é aproveitar tudo isso...
O senhor deve ter concluído, Tisserand afirmou, que, em
situação como a que descrevi, nada mais natural que pudesse
surgir uma sociedade entre os dois para funcionamento de fundição.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
309
Bem, os dois homens mal se conheciam, mas Gouveia tinha
pesquisado rapidamente as origens de Monlevade e especulara
ocasionalmente com Freitas sobre o engenheiro e seu procedimento. Não poderia existir, nas terras de Minas, sócio mais adequado.
Quanto a Monlevade, bem, Monlevade consultaria, provavelmente, o mesmo Freitas. Apenas para tirar peso da consciência, pois
por tudo que tinham conversado, até então, não tinha dúvidas da
aprovação. Entraria com o conhecimento; Gouveia, com o capital.
Daí, já praticamente combinados, a conversa prosseguiu ainda consistente, porém com maiores intervalos de silêncio. Ambos
estavam se entregando à concepção particular de alguns detalhes.
Monlevade, em metalurgia e técnicas fabris; Gouveia, em obter licença junto à coroa imperial. A ideia era procurar imediatamente
o governador!
Não vou desgastá-lo com detalhes do restante da viagem,
Tisserand disse-me. A conversa prosseguiu, depois de acordo verbalmente selado, em tom quase sempre comercial. A cada nova
paisagem, Monlevade via chance de dar à luz produtivo centro
metalúrgico.
Em Caeté não foi difícil descobrir a melhor situação para
construção da usina de ferro. A princípio não faltava nada. A não
ser que... E a mão-de-obra? Perguntara a Gouveia.
Farta. Foi o que lhe respondeu prontamente o capitão. Tenho muitos escravos e, se necessário for, encomendo alguns
mais ao Rio de Janeiro. Há empresas que fazem trabalho de
seleção e que, até mesmo, mandam candidato para entrevista e
conferência de saúde, sem compromisso de aluguel ou compra.
Também posso fazer o que não é do meu gosto, ir eu mesmo ao
Valongo...
Então realmente não há problemas, Monlevade afirmara-lhe.
A fase de treinamento fica por minha conta. Ensinarei a alguns.
Que ensinarão a outros. Com essa ideia de multiplicadores a cadeia do conhecimento se espalha fácil, enfim, até que os próprios
trabalhadores treinem totalmente uns aos outros. É claro que não
poderei ensinar todos os mistérios do processo. Nem mesmo eles
teriam condições de aprendê-los. Há muita química, mineralogia e
geologia que se escondem atrás de uma simples fábrica de fundição de ferro.
310
Jairo Martins de Souza
Além de dirigir e instruir a rotina de fabricação, Gouveia e
Monlevade combinaram que este último também assumiria papel
de fiscal da qualidade do ferro fabricado. Colocaria em prática os
tesouros que aprendera na Polytéchnique e na école des Mines.
Isso foi Caeté. Não sem deixar que o novo sócio partisse totalmente abastecido e bem informado sobre caminho a tomar,
Gouveia disse que seguiria de volta para Vila Rica para providências junto a cartórios e à fazenda da província. Não. Não deixaria
de ir primeiramente visitar o governador Manoel de Portugal e
Castro!
Nas demais localidades em que passaram, as imagens se
repetiram abrandadas. Vila Rica era a capital e lá Monlevade e
Martinho haviam visto o melhor, em termos das Geraes, da arte
e arquitetura barroca. Não mais surgiriam com a força que tanto havia impressionado o engenheiro francês. Daí prosseguiram
passando sempre pelas fachadas de muitas igrejas. A todas Martinho pedia pequeno tempo para contemplação e causava algum
atraso. Monlevade não reclamava, mas tantas eram que, às vezes,
somente se persignava à passagem da porta. E os sinos tocavam.
Tocavam...
Foi assim que Monlevade e Martinho viram casas simples feitas de pedra e muitos escravos trabalhando descalços e encardidos. Os edifícios coloniais eram bonitos, contudo mal cuidados.
Nada de neoclassicismo. E pobreza. Quanta pobreza! Como pode
acontecer em terras tão abençoadas?
E não é que não tenham sido abordados novamente por alguma aborrecida patrulha imperial, Tisserand disse em tom de encerramento. A família Ferro entranhara-se em todas as províncias
e vilarejos desta receptiva colônia. No entanto, o salvo-conduto
imperial fazia com que se safassem de qualquer situação: “siga
na paz do Senhor, doutor Monlevade. Daqui a três léguas bem
contadas, há pinguela em péssimo estado. Atravesse as mulas em
ponto raso, assim e assado...”.
A viagem prosseguia entrecortada e longa. Característica que
fazia com que os escravos e o mulato se desentendessem com
mais frequência. Fora proveitosa. E nem Monlevade nem Martinho foram acometidos de diarreia, conforme haviam sido avisados. Alguns carrapatos, sim. Aparecem com mais frequência nos
pastos onde éguas soltam suas águas, um dos pretos explicou a
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
311
Martinho, enquanto este retirava um bem gordinho de sua perna.
Monlevade foi premiado com um dos grandes que havia se alojado no saco escrotal. Ali soube que era tipo chamado de redoleiro.
O detalhe é que foi percebido pelo francês somente pelo terceiro
dia: O temor de infecção foi grande! Não vingou, graças aos céus!
A comida mineira recendia a gordura de porco e torresmo.
Logo no início da jornada pelas alterosas, Jean provou o feijão
misturado com carne suína que os pretos faziam e que comiam
com farinha de mandioca. Experimentou carne de jacaré e de
tatu. Iguarias raras apresentadas pelo mulato que, bom de trempe, nunca usava uma mais larga que o fogão de cascalhos que improvisava. Os pretos também deram sua contribuição, pescaram
bagres e assaram no espeto. O tempo de comida consistia, além
de tudo, de minutos consagrados à confraternização. As rusgas e
mal entendidos ficavam imediatamente esquecidos quando Martinho dizia palavras de união, e de agradecimentos ao Senhor,
tanto pelo sucesso da viagem quanto pelo alimento ora sendo
concedido.
Não que fosse seu costume, refiro-me a Monlevade, Tisserand explicou, mas nessas estradas o engenheiro francês podia
tomar banho em água clara e limpa quando lhe aprouvesse. Isso
não faltava. Tanto ele quanto Martinho trocavam cuecas de três
em três dias, os negros lavavam suas roupas de uso constante e
deixavam-nas secar expostas ao sol no lombo das mulas. Com
tudo isso, Monlevade não perdia a aparência de elegância e trato
fino que aprendera com o pai. Mas, quanto às necessidades humanas, ambos ressentiram a falta de pano para limpeza. Os pretos ensinaram-lhes a distinguir folhas que, desculpe-me a ironia,
Tisserand falou, poderiam cumprir o papel. Mas como disse, não
faltavam córregos e regatos para beber água, e para afins mais
íntimos como os que, faz pouco, acabei de citar.
Por felicidade não foram muito incomodados por bichos do
mato. É bem verdade que os negros mataram muitas cobras, quase sempre por diversão. A rotina é que atravessassem o caminho
sem aborrecer aos passantes. Hospedaram-se aqui e ali e, na falta
de estalagem, encontravam sempre um colono ou fazendeiro bom
samaritano que os recebia cordialmente. É por isso que foram poucas as ocasiões em que dormiram no mato. Consciente do perigo,
Monlevade temia acender fogueira e provocar incêndio florestal,
312
Jairo Martins de Souza
pois com a quantidade de árvores existentes, não tinha dúvidas de
que terminariam literalmente fritos.
Bem, Tisserand explicou, Monlevade poderia galopar dias
sem parar. Era treinado para tanto. Não tinha o exército francês o
maior plantel de animais treinados da Europa?
Mas dois dias antes de chegar a São Miguel do Piracicaba,
consultava o relógio quase de hora em hora. Faltavam-lhe condições para leitura. Para mandar notícias. Para escrever cartas. Precisava descansar. Para isso contava com a fazenda Nossa Senhora
da Justiça, do amigo Freitas.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
313
VIII
São Miguel do Piracicaba. A receptiva acolhida dos Freitas.
Jean de Monlevade encontra-se com Auguste Saint-Hilaire
A caravana seguia morosamente no sentido contrário às águas
do Rio Piracicaba e acabava de deixar para trás uma bifurcação
de larga trilha. Monlevade e acompanhantes estavam seguros de
estar a poucas léguas do vilarejo de São Miguel. Um cavaleiro a
galope vinha se aproximando em sentido contrário.
Foi o que Tisserand disse, após um breve descanso de voz.
Havia cessado de falar por instantes e, com a mão no gogó, emitira sons estranhos: alguns divertidos. E foi somente quando deu
por concluídos os exercícios – pedira-me paciência com breve sinal
de mão – é que informou estar obedecendo a instruções de fonologista que o aconselhara, desta forma, a amenizar antigos calos
em suas já desgastadas cordas vocais. Aspirara muitos resíduos de
calcário ao longo da vida, e sua voz fora ferramenta indispensável
durante longos anos de árduo trabalho diário.
Pó de giz! Foi aí que descobri sua verdadeira profissão, sem
que me desse ao trabalho de perguntá-lo... O estrangeiro era na
realidade un professeur, um professor! Ah, tarde demais... Prosseguirá aqui, ficticiamente, sendo o nosso já familiar tisserand!
O tal cavaleiro, ele explicou, não podia ter o rosto identificado
nem mesmo por Martinho que trotava à frente de todos. O Sol,
com seus raios vespertinos, confundia sua visão já obscurecida
por sombras e pela poeira de ventania que acontecia de passagem. Pelo que se podia depreender da situação, o viajante parecia
não ter intenção, nem tempo, para cumprimentar a gente de Monlevade que caminhava em sentido contrário.
O que seria grave falha de etiqueta de homem do campo!
Nas Geraes, era habitual que todo viajante pelo menos acenasse chapéu para qualquer outro que encontrasse na estrada.
314
Jairo Martins de Souza
“A caravana seguia morosamente no sentido contrário às
águas do Rio Piracicaba e acabava de deixar para trás uma bifurcação de larga trilha. Pela admirável paisagem, Monlevade e
acompanhantes sabiam estar a poucas léguas do vilarejo de São
Miguel...”.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
315
A distância mais próxima permitiu a Martinho ver que vestia roupa de tropeiro. Chapéu largo, capote e calça preta.No entanto,
inesperadamente, Martinho pediu a todos os seus que parassem:
após passagem, o estranho havia puxado bruscamente as rédeas
do animal. Ato contínuo, sua montaria parou de forma um tanto
quanto desajeitada, e relinchando estrepitosamente. As mulas e
os pretos se assustaram e houve certo reboliço em trecho que a
caravana vinha cortando estrada de forma tranquila, desejosa de
colocar a caminhada a termo.
O homem, de cor parda, identificou-se um tanto atabalhoadamente. Chamava-se Gervásio. Só Gervásio. Não. Não tinha
sobrenome. Mas era feitor da fazenda Nossa Senhora da Justiça
e, a mando do patrão, fora enviado para localizar um estrangeiro
chamado João. João de Monlevade.
Caso o encontrasse, e a seu grupo, deveria pedir, por gentileza, que o acompanhassem até a própria fazenda que era de
propriedade do capitão João Gomes de Abreu de Freitas. Sua
missão era encaminhá-lo o mais rapidamente possível!
A casa grande da fazenda de Freitas era localizada em pequeno promontório de belíssimo vale. Pertencia aos Freitas por
gerações. Toda a família fora convocada para dar-lhes as boas
vindas. E na sala principal havia até mesmo pequena faixa com
dizeres simples, em francês, mas que expressava o respeito que a
família dedicava ao estrangeiro. Um dos pequenos a escreveu. Foi
o esclarecimento dado por dona Amância, esposa do capitão que,
orgulhosamente, apontou para um dos netos com o indicador
da mão direita. Envergonhado, o menino imediatamente fugiu e
escondeu-se por trás de uma das portas. A família riu feliz.
Daí seguiram-se as apresentações. Este é fulano, esta é beltrana. Este é o mais velho, o José Joaquim. Aquele que se esconde
atrás da porta é o...
Monlevade era conhecido e amado pela família Gomes de
Freitas, não somente pela forma com que recebera o moço Ildefonso em Paris, como também pela propaganda antecipada feita
pelo chefe do clã, o próprio Freitas. O capitão, Monlevade reparou, no sossego do seu lar era chamado carinhosamente por dona
Amância de meu João. Bem, conjecturou feliz, e por extensão,
talvez na intimidade do seu quarto a coisa mudasse para meu
Joãozinho!
316
Jairo Martins de Souza
Decerto que, e apesar do largo tempo em que se conheciam,
não sabia se o título capitão significava que o amigo fosse militar
de carreira, ou se era simplesmente honorífico. O fato é que meu
João era expressão carinhosa que lhe agradou. E não seria de todo
mau que fosse assim chamado por uma brasileira chamada Clarinha. Mon petit Jean...
O ausente Ildefonso, que sabemos estar aprimorando estudos médicos em Paris, sem quaisquer dúvidas, era o orgulho de
todos os parentes. Entre eles, José Joaquim Gomes de Freitas. O
Quinzinho. Eram parecidíssimos. Não falava francês, mas tentou
dizer sejam bem-vindos: vous êtes bienvenue. Foi dessa forma
que tentou saudar a Jean e a Martinho, como se esses fossem seus
velhos companheiros.
Tão logo ficou novamente a sós com o amigo brasileiro, Monlevade ansiosamente revelou-lhe sobre possível acordo a ser consolidado com o capitão Gouveia da região de Caeté. A reação foi
animadora. Conheço o Gouveia de longa data. É homem de palavra. Não precisa assinar nada. É daqueles que honram e fazem
negócio a fio de bigode. Já fizera várias transações comerciais com
o fazendeiro de Caeté, algumas delas de monta, e nunca tivera
problemas. Nem nunca ouvira qualquer queixa a respeito de seu
comportamento. No final qualificou-o como homem de família.
Nada mais persuasivo podia se dizer sobre o caráter de um mineiro.
Intimamente, o sentimento de Freitas em relação à indústria
de fundição era melhor ainda. Finalmente aparecera fórmula concreta de o amigo francês se fixar à terra. Por enquanto ele fica
em Caeté, depois se arranja um jeito de puxá-lo mais para perto.
Era boa companhia, homem de educação refinada. Bom modelo
para os seus. Elevaria o nível de cultura da família. Isso tudo sem
levar em conta a satisfação que seguramente teria o seu querido
e ausente Ildefonso.
A família compreendeu que os visitantes desejariam se recolher
cedo nesta primeira noite. Após todos alojados, os escravos foram
encaminhados para a bem cuidada senzala. O mulato protestou,
conseguiu colchão de crina e foi decidido que dormiria no chão ao
lado do catre do feitor da fazenda, o também pardo Gervásio.
Jean abriu a janela do seu quarto. As dobradiças mal lubrificadas rangeram estrepitosamente ao contato. A casa estava silenciosa e a noite chegara fria e estrelada. Restava-lhe, para compro-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
317
var a existência de vida, os barulhos intensos vindos do mato, dos
pântanos e das águas. A força do hábito fez com que automaticamente consultasse sua bússola de forma lenta e cuidadosa. Não
precisaria. Em um dos extremos do vale, em forma de vê, ficava
fácil contemplar a majestade do Cruzeiro do Sul. Contrapartida
da estrela Polar aqui neste hemisfério, Monlevade pensou. Emocionou-se. Ato contínuo, lamentou novamente a perda da luneta
presenteada por Duchamps.
Ildefonso tinha razão. Não era o vinho e a saudade de sua
terra que o faziam, em Paris, dizer que neste lugar provavelmente
ficam antecipadas as visões definitivamente celestiais do universo
conhecido. Melhor deitar-me na varanda para apreciar esse mar
infindável de estrelas.
Terminou por adormecer de cansaço, e sonhando com a
magnificência e o poder da natureza cósmica. Bem antes do alvorecer, acordou incomodado pelo aumento do frio úmido da
região. Lá estava de novo Vênus com seu amarelo pálido. Marte
e o seu vermelho intenso. Saturno. E a via Láctea, La voie lactée,
a via do leite. Inundada de estrelas! Oceanos e oceanos de astros
que brilham há milhões e milhões de anos. O que acontece na superfície da Lua nesse exato momento? Algum choque com cometa
especial? Dans quelques seconds je peut savoir (em segundos fico
sabendo). Pensou e sentiu-se como o cada vez mais religioso Martinho e, sinceramente, se emocionou. Ah, meu Deus, curvo-me a ti!
Colocaste, aos meus pés, o passado da criação. Amém!
Assim foi a primeira noite de Monlevade em São Miguel do
Piracicaba. Com apenas uma manta para se proteger das intempéries. Anos depois declarou aos filhos ter sido extremamente feliz. Dormira com as estrelas!
O engenheiro Jean de Monlevade era assim, Tisserand concluiu, escravo do conhecimento, escravo da Polytéchnique, da
école des Mines e da matemática. Quanto a outras questões, não
mudara desde tempo de criança. A silhueta do fidalgo, seu pai,
não o abandonava: prosseguia com a sensibilidade e o espírito de
família aguçados.
É por isso que devemos voltar à Nossa Senhora da Justiça! O
clã dos Freitas o aguarda para o primeiro café da manhã.
Festivo. O primeiro café da manhã em família de Jean Antoine Dissandes de Monlevade foi absolutamente festivo! Minto. Não
somente ele. Durante vários dias o clima manteve-se o mesmo.
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Jairo Martins de Souza
Depois a casa, mesmo dispensando sempre atenção especial aos
convidados, retomou sua rotina.
Com uma exceção, há sempre uma delas para que a regra
fique justificada, Tisserand, emendou. É que esteve por lá rapidamente o próprio Auguste Saint-Hilaire!
Ainda que Freitas tenha comparecido ao jantar de Vila Rica,
não foi naquela situação que se tornara chegado ao famoso cientista! Trocaram somente frases curtas: o francês, não por acaso,
soubera referências antecipadas sobre o fazendeiro que habitualmente recebia grandes personalidades em sua fazenda. Era de
conhecimento geral ser o mineiro excepcionalmente culto e praticante de várias línguas, inclusive o francês. A casa grande da
fazenda da Nossa Senhora da Justiça era, na realidade, pousada
e parada obrigatórias para viajantes ilustres que buscavam conhecer as Geraes. Freitas era assim: extremamente hospitaleiro.
O fato é que nos dias em que Saint-Hilaire esteve em São
Miguel, Monlevade dormira acidentalmente na fazenda do alferes
José Joaquim e, sendo assim, perdeu a oportunidade de contato
mais longo com o famoso compatriota. Lamentou-se mais tarde.
O cientista havia sido também aluno da Polytéchnique e dividira
quarto com o químico Gay-Lussac.
O senhor deve estar se lembrando, mon ami, que o alferes
era o filho mais velho do capitão Freitas. Ele tinha uma pequena
fábrica de ferro em sua propriedade e é por isso que o francês não
fora convidado somente para visitá-lo em termos sociais. Unir-seia o útil ao agradável. Foi prevista breve consultoria para melhora
do processo, treinamento dos escravos, etc.
Quando retornou, Saint-Hilaire estava de saída. Encontraram-se acidentalmente. Os escravos já conduziam suas malas e
apetrechos para o lombo das mulas. Foi tudo muito rápido, mas o
cientista teve tempo suficiente para esclarecer-lhe não estar fazendo biopirataria. A imprensa do império no Rio de Janeiro estava
equivocada, dissera-lhe, pois estivera injustamente acusando-o
do referido crime... As ambições do nosso império, caro Monlevade, são universais, e o que faz bem a ele, faz também ao
Brésil. Aí é que os interesses se misturavam. As caixas de plantas que enviara para terras francesas passariam a fazer parte do
acervo científico mundial. Pois, até então, eram desconhecidas e
poderiam eventualmente ser de excepcionais usos em pesquisas
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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e aplicações médicas. Escreveria um livro sobre o assunto: como
cientista, seu sonho na vida era divulgar preciosidades como as
achadas nesta terra.
Fora diálogo que poderia demorar horas pelas articulações
filósoficas que vieram em decorrência da sutileza do tema, mas a
conversa, por absoluta carência de tempo, rapidamente chegou a
termo. Monlevade e Saint-Hilaire eram homens bem práticos e já
haviam conversado brevemente, como sabido, durante o jantar
do governador e, por final, atualizaram andamento de intenções
de viagem, de um e de outro. Monlevade, sabedor que o cientista retornaria diretamente para o Rio de Janeiro, solicitou-lhe
favor especial. Antes disso, perguntou-lhe se conhecia o arquiteto
Grandjean de Montigny. Saint-Hilaire respondeu-lhe afirmativamente, indagando o porquê da pergunta. Jean explicou-lhe que
gostaria de oferecer ao eminente arquiteto uma proposta de trabalho. É possível de sua parte? Saint-Hilaire assentiu prontamente. Então peço-lhe gentileza de entregar, em mãos, a correspondência que tenho aqui pronta para envio neste pequeno volume.
Assim foi feito! Anos mais tarde Saint-Hilaire escreveu a amigos, pouco antes da publicação do seu famoso “Viagem pela Província de Rio de Janeiro e Minas Geraes”, sobre a distinção e a
elegância do conterrâneo que viera da pequena Guéret. Surpresa
agradabilíssima! Foi como assinalou o fato de encontrar-se com
um engenheiro de Polytéchnique em rincões tão remotos! A França tem muito a dar ao Brésil na figura deste filho de fidalgo.
Quatro anos depois, Saint-Hilaire retornou para a França.
Fora envenenado por ingestão de mel de vespa e havia ficado
com o sistema nervoso extremamente abalado. Mas não morreu
à custa de tal acidente.
Com isso, mais uma vez resumo páginas do rascunho que o
abade escreveu, Tisserand disse. A verdade é que ele soube de
nuances como esta através do próprio Jean.
É que, como reiteradamente tenho dito ao senhor, Jean escrevia muitas cartas. Daí não ser surpreendente que muito do que se
passou em Minas Geraes ter vindo à tona exatamente por meio de
Kostas Zavoudakis.
Quanto a isso, não lhe perguntei nada, como é do meu feitio. O estrangeiro era criterioso, explicar-me-ia a tempo certo. No
entanto não vou deixar de relatar que, naquele intervalo de dias,
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Jairo Martins de Souza
Monlevade foi conduzido por todas as roças, pastos e instalações
da grande fazenda do amigo latifundiário. Não sou presunçoso
como os ingleses, Freitas disse-lhe. Não posso chegar ao ponto de
dizer que o sol nunca se deita nas terras dos Gomes de Freitas. Mas
realmente nossas propriedades são extensíssimas!
Na mesma ocasião, um emissário de Gouveia viera galopando, quase sem descer do cavalo, para comunicar a Monlevade,
por meio de carta longa e minuciosamente detalhada, que as coisas iam bem e que tudo estava encaminhado junto aos órgãos
da província e a Intendência de Mineração no Rio. Dom João VI
aplaudira a ideia. A missiva era praticamente um pré-contrato.
Leu-a com cuidado. Passou-a a Freitas. Tudo bem, o amigo respondeu, e acrescentou. Creio que o Gouveia fez este documento
simplesmente para orientá-lo. É operação complexa: envolve vários segmentos da administração imperial. E confirmou reforçando o que anteriormente havia dito a Monlevade. Não. Não se
carece de formalidade quando um homem como este capitão está
envolvido. O emissário posicionou-se para esperar alguns poucos
minutos. Não disfarçava pressa de retorno, e novamente havia
optado por nem mesmo descer do animal. E quando decidiu deslocar-se para dar-lhe água em tina colocada por um dos escravos,
Monlevade chamou-o de volta. O cavalo batia os cascos no chão,
era do tipo marchador. Por favor, podes retornar ao capitão Gouveia com o que trouxeste.
Freitas a tudo assistiu. Foi única testemunha. A expressão De
Acordo, em letras garrafais, havia sido escrita na diagonal da folha em cima da própria carta que Monlevade recebera de Gouveia. Imediatamente abaixo seguia data e assinatura: João de
Monlevade.
Bem, Tisserand concluiu, foi esse o dia em que o engenheiro
francês da école des Mines decidiu que, na escrita, passava da
hora de abrasileirar seu nome!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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IX
Caeté e a usina de Luiz Gouveia. O futuro Barão de
Catas convoca Monlevade para conversa reservada:
assunto sério!
Houve algumas modificações quando da elaboração formal do
contrato que foram facilmente justificadas por Gouveia, e entendidas e aceitas da mesma forma por Monlevade. O documento
final não o colocava na condição de sócio!
Fosse constar dessa forma, lembrar que estamos tratando de
um estrangeiro, o resultado seria catastrófico para a empreitada.
Atrasaria papéis fiscais e de cartório, travaria andamento e faria
gerar várias outras necessidades burocráticas.
Então, a troco de bom pagamento, o engenheiro francês faria
estudo adequado de viabilidade, e o que, nas indústrias de hoje,é
chamado de pay back (retorno do investimento). Afora isso, teria
compromisso de fazer as plantas básicas e o projeto detalhado da
instalação de Caeté. Obviamente também colocaria a fábrica em
funcionamento e dedicaria tempo definido para treinar os feitores
e escravos indicados por Gouveia. Sua ideia era diversificar os recursos que aplicava no café e no açúcar e, caso acontecesse com
sucesso o que se esperava, a restrição à produtividade da fábrica,
como sempre, ficaria por conta das montanhas das Geraes que
isolavam a província dos demais mercados do reino. Mexeria com
seus pauzinhos e insistiria com o governador da Província para criar
novos acessos e melhorar os trechos das pouquíssimas existentes.
Foi o que, em essência, ficou definitivamente estabelecido
nos termos da carta a que Freitas havia dado aprovação verbal.
E o que realmente acabou acontecendo. A partir daí, o engenheiro francês daria somente consultoria de tempos em tempos.
Estava tranquilo. Aqui no Brésil não teria problemas de matériasprimas. Dominava as técnicas de fabricação. Precisaria de minério,
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Jairo Martins de Souza
água e carvão. Sobrava minério. Sobrava água. Sobrava madeira.
Estivesse com este projeto na França, encontraria graves dificuldades. Veja-se o caso da madeira que, sabemos, lá era disputada à ponta de faca entre fabricantes de navio e de ferro. Já
naqueles dias, o estrangeiro esclareceu, as florestas europeias estavam em seus últimos estertores.
O senhor já deve ter notado, mon ami, que não é meu desejo
aborrecê-lo com enfadonhos detalhes técnicos, Tisserand disseme, demonstrando aspecto de alívio. Nem mesmo os conheço.
Por outro lado, sentir-me-ia mal em não lhe dizer que Monlevade
usaria água em abundância para acionar rodas que tocariam os
foles de ar. Este sopro mantém o carvão aceso do mesmo jeito
que em fogão a lenha caseiro. Sem ele, não se faz o ferro.
A tudo isso, Monlevade acrescentou o pulo do gato. Pois foi
baseado em conhecimentos profundos de química é que adicionou areia de rio no segundo cozimento do ferro. Não me pergunte o porquê. Insisto que não saberia lhe responder, Tisserand
afirmou defendendo-se. Mas foi com aquela simples providência
que resolveu grave problema de deterioração precoce da fornalha
em uso. Isso acontecia em função do tipo de minério da mina
disponível na própria região. Fez trabalho de qualidade em Caeté.
Tanto é assim que o sucesso da usina do capitão Gouveia
chegou posteriormente até os ouvidos do príncipe-regente. O
francês Monlevade é de capacidade e comportamento irretocáveis e tem trazido lucros para a Província. Dizem pegar sem preguiça nas ferramentas, mas com a elegância de nobre europeu. O
estrangeiro dá exemplo para os escravos, mesmo estando sempre
vestido com apuro. Filho de fidalgo, fidalgo é.
Entusiasmei-me, e estou indevidamente perdendo tempo em
detalhes sem maior relevo, Tisserand advertiu-se. Então peço que
o senhor, mon ami, acompanhe-me de volta a Caeté. Pois o que
Jean de Monlevade encontrou naquela vila foi muito mais que
uma indústria de ferro. Explico-lhe.
O empresário João Batista Ferreira de Souza Coutinho foi
quem havia pago as despesas do jantar promovido pelo governador da província em Vila Rica. Mas não foi esta a razão que fez
João de Monlevade lembrar-se de sua figura ao vê-lo circular em
carruagem de luxo pelos pedregosos caminhos da cidade. Ele era
tio de Clara Sofia!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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Clara Sofia, la jolie et jeune femme, com quem trocara olhares significativos no paço da província. Ainda não estava seguro
se devia escrever-lhe, mas volta e meia não somente consultava
o esboço de retrato que fizera, como também o endereço que a
menina havia lhe fornecido, estão lembrados, sob os olhos atentos do próprio tio.
No primeiro dia que chegara a Caeté, Monlevade soubera
que o milionário Coutinho morava no mais belo sobrado de arquitetura colonial da vila. Era uma de suas muitas casas, pois
mantinha, afora a de Catas Altas, residências fixas em Vila Rica,
Sabará, Santa Luzia, Brumado e Gongo Soco. Com um ponto em
comum. Em todas elas, a mesa ficava sempre posta para receber
a qualquer pessoa de suas relações.
A de Caeté é edificação singular, Tisserand acrescentou. Inclusive atualmente é onde se localiza o Museu Regional da cidade. Destaca-se mais ainda, e é o que a torna mais imponente,
por ser localizada entre casas de um só piso, e por sua situação
de grande afastamento lateral com as mesmas. No tempo do rico
João Batista era conhecida como Casa Setecentista.
E é lá que vamos encontrá-lo, pois o empresário estava de
passagem por sua casa de Caeté e, sabedor da presença de Monlevade, convidou-o para jantar. Foi neste dia que Batista Coutinho apareceu com variáveis que Monlevade até então desconhecera em seus tantos anos de vida!
A moça Clara Sofia perdeu o pai precocemente, foi o que,
em dado momento, um sério Coutinho disse ao francês.Tinha em
torno de 45 anos e ambos estavam na sala de visitas da própria
Setecentista. Jean era, não por acaso, o único convidado, e a
partir do momento que escutara do anfitrião que precisavam ter
conversa reservada, a quatro paredes, desconfiara do motivo do
convite. Freitas alertara-lhe algumas peculiaridades da família mineira. Vamos ver se é isso mesmo.
Esse meu parente, pai da moça, era muito querido por mim.
Daí praticamente adotei a menina como filha. Ela foi, e está sendo criada, como uma princesa e, asseguro-lhe, senhor Monlevade, muitos dos meus sonhos de pai estão centrados em sua figura.
O senhor entende bem o que estou dizendo?
Foi aí que Monlevade se atrapalhou, não poderia imaginar-se
em tal situação. Quando do seu platônico caso com Angéline, o
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Jairo Martins de Souza
médico Colbert fora bem mais discreto! O resultado foi que confundiu-se com o inusitado da circunstância e disse oui, je comprends.
O compenetrado Coutinho não entendeu a resposta. O ambiente tornou-se absolutamente tenso por segundos. Mas Jean havia se recuperado do imprevisto e rapidamente emendou com um
retificador sim, eu entendo! O senhor pode continuar! Coutinho
imediatamente relaxou os músculos, e preparou-se para prosseguir.
Obrigado pela resposta, foi o que disse também percebendo
que deveria aliviar o peso de sua conversa. Ela é, Monlevade, descendente de antigo donatário premiado com terras brasileiras pela
coroa portuguesa. O que não é pouca coisa. O capitão Vasco Fernandes Coutinho foi homem poderosíssimo na capitania do Espírito Santo. Tanto é assim que o nome completo da minha querida é
Clara Sofia de Souza Vasco Fernandes Coutinho.
Bem, o senhor conhece com sobras a rigidez da família do
interior de Minas Gerais dos dias de hoje, Tisserand disse, e pode
imaginá-la, com facilidade, na palavra de um dos seus chefes de
há quase duzentos anos. O discurso de Coutinho foi longo!
Ele tinha temores quanto ao poder de sedução, considerandose a polidez e o modo elegante da fala de Monlevade. A sobrinha
era mais que uma filha e poderia ter problemas futuros. Em dado
momento até mesmo pediu licença e leu alguns textos bíblicos,
que tinha como exemplares, para o engenheiro francês. Monlevade entendeu melhor ainda a situação. Lembrou-se do fidalgo,
seu pai. E deixou que o homem liberasse todas as suas intenções.
E ao término, escutou-o dizer que estava ouvindo muito o
nome Monlevade em reuniões familiares. Alguns são a favor do
namoro. Outros contra. Prefeririam que o senhor fosse oriundo da
nobreza inglesa. Eu, particularmente, sou a favor dos franceses.
Para resumir o encontro dos dois cavalheiros em Caeté, Tisserand disse-me, e para que o senhor perceba como estava, em
termos psicológicos, a situação daquele momento, ocorre-me
exemplo bem conhecido na arte literária brasileira de anos não
muito passados. Pois é. Em o Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, Pedro Terra desconfiava abertamente das intenções do capitão Rodrigo Cambará em relação à sua filha Bibiana.
Bem, Baptista Coutinho não chegou a tais extremos com Monlevade. Mas conceitualmente não há tanta diferença assim! Ambos,
Coutinho e Pedro Terra, queriam o melhor para suas filhas.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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Também não me sinto inseguro em afirmar, Tisserand vaticinou, que, à medida que os minutos foram se escoando, o empresário mineiro foi ficando cada vez mais confiante no futuro de sua
sobrinha. Não há outra razão para ter mudado o foco e passado a
falar das personalidades com que tinha contato frequente, assim
como de suas minas e sua relação com o futuro econômico do
Brasil. Já enxergava Monlevade como genro adotivo.
Vejamos a outra face da moeda, Tisserand comentou. Faz-se necessário conhecer mais a fundo também o que se passava
pela cabeça de Jean, e sua cultura francesa. Pois enquanto ouvia
as palavras do, digamos assim, tio João, um dos barões da economia mineira, ele revisava mentalmente alguns propósitos de
sua vida. A moça era realmente interessante e poderia ser coisa
de futuro. A substituta. A substituta de Angéline. Poderia cumprir
com ela o que sonhara fazer com a namorada dos seus sonhos de
adolescente. É certo que já havia decidido criar raízes no Brésil.
E prosperar. Percebia que, para tanto, poderia contar com a amizade do empresário.
Diante de tudo isso, ficou claro para Jean de Monlevade que
o namoro com Clara Sofia de Souza havia oficialmente se iniciado. Iria a Catas Altas formalizá-lo com a própria tão logo os
compromissos em Caeté o permitissem. Poderia fazê-lo por carta.
Não havia sido selado desta forma o compromisso entre Pedro I
e Leopoldina?
Não temia recusa. O tio da moça falava como representante
oficial da família. Além disso, conversaria com Freitas em Piracicaba, iria a terras disponíveis para venda, enfim, compraria propriedade no Vale do Piracicaba, construiria casa...
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Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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X
O solar Monlevade e o arquiteto Montigny.
A primeira fundição de Monlevade
O senhor deve estar lembrado que o arquiteto Granjean de Montigny era um dos integrantes mais famosos da chamada Missão
Francesa e estava no Rio desde os idos de 1816. Foi assim que
Tisserand retomou seu discurso após breve período de descanso. Havia aproveitado o lapso de silêncio quanto à sua história e
feito alguns novos exercícios com suas cordas vocais. Desta vez
não se justificou, e eu entendi perfeitamente. Ele disse mais sobre
Montigny. Disse que era bastante divulgado, no Rio de Janeiro,
que o francês que fugira das perseguições da revolução francesa
estava perfeitamente adaptado às condições da vida nos trópicos.
Prova maior disso é que já projetara vários prédios de destaque,
como também muitos palcos de celebrações importantes da vida
da corte de João VI.
Foi exatamente lá que Saint-Hilaire havia cumprido a promessa feita a Monlevade na Nossa Senhora da Justiça. Entregara
a Montigny a carta do engenheiro da Polytéchnique em tempo
mais breve possível, conforme solicitado. Daí Montigny ter tomado conhecimento do pedido de Monlevade, solicitando-lhe gentilmente que fizesse planta baixa e fachada de residência solar que
gostaria de edificar em terreno ainda a ser localizado e passível
de compra.
Mas, em termos gerais, Monlevade afirmou-lhe, como cliente,
peço-lhe que o arranjo seja feito conforme minhas intenções. Em
anexo, o senhor, professor Montigny, encontrará planta de locação a ser seguida e que deverá ser concretizada seja in natura ou
seja no cabo de enxadas e picaretas.
Também enviava desenho que fizera ilustrando as florestas e
montanhas do entorno. As disponibilidades de água e benfeito-
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Jairo Martins de Souza
rias seriam tais e tais... Pedia preço e dizia aguardar resposta mais
breve possível. Por fim, ressaltava ter consciência das grandes
empreitadas em que Montigny provavelmente estava engajado,
mas seria honroso ter a participação de tão grande talento a seu
serviço.
Dois meses foram bastantes para que a resposta e o desenho
de Montigny chegassem e, junto com ele, recomendação para
que fosse construído com detalhamento a ser feito pelo próprio
Monlevade. Falta-me tempo, Montigny argumentou. Além do
que, não costumo executar nem mesmo rascunhos sem visitar o
sítio das obras. Estou tratando o seu caso, caro Monlevade, como
uma exceção. E, portanto, em algumas situações, de certa forma
tive que usar o truque que nós, arquitetos franceses, chamamos
de trompe l’oeil que é, por exemplo, quando incentivamos pintura de janelas em paredes internas. Simulacros de janelas. Trabalhei com suposições e assim tive que enganar os olhos... Peço
levar tal fato em consideração se for encontrado qualquer defeito
nas ideias que lhe envio.
E o conterrâneo Monlevade tem razão! Estou às voltas com
grandes projetos imperiais, contudo não estou em particular preocupado com o bom desfecho deste seu projeto, pois sei ser um engenheiro da Polytéchnique capaz de elaborar o detalhamento desta
minha sugestão sem maiores atropelos. Não. Monlevade nada lhe
devia. Os rabiscos haviam lhe custado cerca de dez minutos!
Daí Jean partiu para a compra do local idealizado. Encontrou-o após diversas andanças pela região, e contando com ajuda
indispensável do capitão Freitas e o filho José Joaquim. A negociação foi concretizada com pagamento direto ao proprietário feito por Luís Gouveia, que devia a Monlevade restos de pagamento
por serviços prestados em Caeté. Em termos geográficos, o local
escolhido para construção da casa grande da fazenda ficava em
torno de catorze quilômetros distante do vilarejo de São Miguel
do Piracicaba.
O senhor sabe, mon ami, Tisserand disse-me, quase dois séculos são passados e a tal casa mantém-se ainda de pé. O que não
sobreviveu foi o atraente parque circular de jabuticabeiras com seu
belo chafariz central. Nele, a água, conduzida por rudimentares
canos de ferro, vinha de lugar mais alto e era projetada para chegar a altura superior do telhado da própria casa grande que tinha
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dois andares. Totalmente construídos sobre baldrames de pedra e
madeira. Montigny era craque! Imagine a beleza do cenário!
Ao projeto de Montigny, Monlevade acrescentou as moradias
dos escravos e demais edificações não inclusas no pedido feito ao
arquiteto. Inclusive a igreja que, por sua vez, teve projeto do seu
interior desenhado totalmente por Martinho.
Espero, Tisserand comentou, que o senhor não tenha se esquecido desse dote que o meio-irmão de Monlevade demonstrara
desde tempo de criança.
Martinho. Martinho continuava sempre que possível ao lado
do amigo de infância e da nunca esquecida Guéret, mas a prioridade de sua vida, a religião, fora elevada ao extremo. E um ano
após chegada em Minas Geraes, seus esforços intelectuais eram
quase completamente direcionados para aquela que considerava
sua maior missão na Terra. Não. Não mudara de opinião quanto a questões de formação familiar. Continuava pensando em
mulheres e casamento. Tanto é assim que enquanto Monlevade
prosseguia namoro com Clara Sofia, ele mantinha compromisso
com uma das amigas da mesma. O nome era Efigênia. Figênia.
Efigênia era fruto de relacionamento rápido entre um rico comerciante português com uma de suas escravas. Mas a moça também
foi educada e tratada como filha. Até nesses pequenos detalhes,
os dois meios-irmãos pareciam ter destino convergente. Caso as
coisas corressem de acordo, noivaria em breve e casaria mais rápido ainda.
Aliás, os outros amigos antigos de Monlevade também não
haviam desaparecido de sua vida. Ele estava ansioso para revêlos e a oportunidade estava próxima, pois além da compra da
fazenda, em 1818, sua preocupação era a construção da casa e
regularização definitiva de sua permanência no Brasil. Precisava ir
ao Rio de Janeiro. Zavoudakis estava por lá há cerca de 9 meses.
Não Platini e Just Fontaine.
A última vez que falei sobre eles, Tisserand lembrou-me, estavam em pleno curso de viagem com destino ao Brasil. Chegaram
bem, apesar da mil vezes relatada dureza do percurso marítimo.
Nem é preciso citar detalhes, não é mesmo? O fato é que nenhum
dos três alcançou Minas: por várias razões. Cada um teve as suas
pessoais... vou explicá-las de forma resumida, começando pelo fim
do abecedário.
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Jairo Martins de Souza
Zavoudakis. Kostas Zavoudakis é com quem Jean de Monlevade mantinha correspondência mais constante. O motivo é que
o grego era o único dos três que mantinha endereço fixo.
Ele, na chegada, havia se hospedado junto com Platini e Fontaine no hotel dos Estrangeiros. Foi onde, de imediato, conheceu
uma bela e enfeitada francesa dona de conhecido bordel na Praia
de Copacabana. Apaixonou-se. E, com poucos dias de conhecimento, pediu-a em casamento. Com uma condição. Pediu encarecidamente à mulher que largasse o negócio. Ela respondeu-lhe,
em tom de brincadeira que, após boa lavagem, qualquer coisa na
vida fica adequada para consumo. Zavoudakis não entendeu o
gracejo, e propôs-lhe mudança de ramo. A mulher a princípio relutou: muitos homens solitários haviam-lhe feito o mesmo convite
ao longo dos anos. O grego pensou ter perdido o que considerava
início de nova vida em família. As mulheres da vida, pelo aprendizado do sofrimento, Kostas sempre soubera, terminavam sendo
esposas de melhor qualidade.
Então, ainda jovem de idade, mas com larga experiência, ela,
depois de horas de reflexão, acabou por aceitar a proposta de peito aberto. O grego era boa pessoa. Ilustrado. Algumas circunstâncias trágicas de sua vida é que a tinham levado a seguir a terrível
vida fácil, à qual dava adeus... bem, dessa forma declarou fim de
carreira, apesar de certos clientes terem procurado seu carinho
por meses a fio.
E foi, para levar a cabo vida decente, que, entre uma coisa e
outra, ambos definiram, de comum acordo, pelo ramo de livros.
A cidade do Rio era carente de boas livrarias e Zavoudakis teria
suprimento fácil de grandes obras por meio do forte elo de amizade que certamente manteria por toda a vida com Dubois. Mencionou-o à sua amada e não se surpreendeu quando ela disse-lhe
conhecer o antigo patrão parisiense. É também boa pessoa, ela
comentou com ar enigmático. Foi um dos meus clientes constantes quando eu estava em início de carreira. Zavoudakis compreendeu, lembrando-se que Dubois era celibatário convicto. Mas
pediu à mulher que o poupasse, e não voltasse a citar o assunto.
O patrão, em tarde de pouco movimento, dissera-lhe que preferia
mulheres de aluguel.
Daí mudaram-se para o Hotel de France, no Largo do Paço,
onde moraram por alguns dias até encontrarem bonito sobrado
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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em Botafogo. Compraram-no. Lá o grego supôs ser seu ponto
de referência até o fim dos seus dias. Portanto, foi endereço de
onde enviou sua primeira carta para Monlevade, informando, em
especial, que casara às pressas, assim como tudo que vinha acontecendo em sua vida. Havia postado a missiva para a fazenda
Nossa Senhora da Justiça, a do Capitão Freitas, conforme haviam
combinado ainda em Paris.
Na mesma comunicação, dizia que Fontaine e Platini sucumbiram ao chamado de Netuno, o deus das águas. O convite feito
pelo comandante do navio Résistence para seguir até o porto de
Nossa Senhora do Desterro, em Santa Catarina, foi aceito sem
maiores considerações. A longa viagem que fizeram da Europa ao
Rio despertou em ambos antigos sentimentos de amor pelo desconhecido. Quando voltassem dariam notícias, o menino Monlevade poderia contar com eles em futuro próximo. Não agora. No
entanto, meses eram passados e ainda não davam sinal de vida.
Mas voltemos à casa que Monlevade pretendia erigir nas proximidades do Rio Piracicaba, Tisserand remendou. A lembrança
dos amigos ausentes de Monlevade conduziu-me a afastamento
do que dizia.
O fato é que a falta de estradas convenceu a ele que deveria
prover, para fins de subsistência, todos os produtos agrícolas para
si, sua futura família e para os empregados e escravos de sua
fábrica.
Sim. Sua fábrica! Pois tendo em vista todas as variáveis que
vinha analisando desde que chegara ao Brasil, Monlevade decidira ter a sua própria de ferro. Plantaria árvores frutíferas. Teria abelhas. Coelhos. Gado. Cabritos. Porcos. Tudo isso em quantidade
suficiente para alimento de cerca de 200 pessoas. Seu negócio
era o ferro.
Lançou mãos à obra. Bem, não pôde ser considerado surpreendente, Tisserand sugeriu, o fato de ter a família Freitas como
vizinhos da grande extensão de terras que adquirira. Não sei dizer
exatamente quantos quilômetros quadrados, desculpou-se, mas
tenho referências mais palpáveis. Entre elas que eram cortadas
por cerca de 8 quilômetros do curso de águas do Rio Piracicaba e
englobava todos os bairros da atual grande Monlevade, inclusive o
Jacuí, Carneirinhos, o Onça, a Vila Tanque e outros tantos de não
menor importância. Sendo assim, para interligar e dar saída para
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Jairo Martins de Souza
seus produtos, o brilhante engenheiro assegurou-se de imediatamente projetar e construir ponte de madeira sobre o Piracicaba.
Alguns anos eram passados, não sei exatamente quantos, e já
tinha todas as instalações funcionando perfeitamente. Martinho,
enquanto o meio-irmão viajava a estudos, serviço e pesquisa mineral, acompanhava todos os passos do promissor negócio e instalações associadas. Plantava-se abacate, feijão e muitos outros
frutos carnosos e secos. O ferro escorria dos ainda tímidos fornos
catalães e era trabalhado nas oficinas. No entanto, como era de
se esperar para os anos 800 em Minas Geraes, poucas toneladas
de ferro, trabalhados ou não, saíam da porteira da fazenda a cada
mês. A pedra preciosa da fundição era o fabrico de pequenos objetos e acessórios para a recém-implantada indústria de extração
do ouro em Minas. É o que dava dinheiro!
Tudo de lá era de qualidade. Isso porque o requintado Monlevade era extremamente técnico. Uma exceção nas terras ferrosas
de Minas. O único dono de forja que entendia e acompanhava
detidamente o andamento de cada passo da fabricação de bem
desenhadas peças. Repito o que já disse: praticamente pegava
na mão dos escravos para que aprendessem a malhar adequadamente os produtos.
Escravos. Vou dizer algo de sua relação com os escravos.
Após primeiros dias de Brésil, intimamente Monlevade os recusou. Considerava a escravatura situação humana deprimente!
Algum tempo depois achava ser condição transitória. Passaria,
não demora. Acostuma-se a tudo, concluiu, lembrando-se que já
pensara assim em outras circunstâncias. Era mal indispensável. A
partir disso, tomou partido do inferno dos negros, tentando tornálo, dentro de suas possibilidades, o mais ameno possível. Decerto
que punia os que se comportavam mal com rigor absolutamente
necessário e usava os mecanismos usuais. Para própria instrução
do autor, dizia, o mal feito não pode ser tolerado. Mas não permitia
excessos. Aos negros que faziam pequenos furtos, os capatazes da
fazenda e da fábrica de ferro tinham ordens para aplicar com parcimônia as chibatadas no tronco, a argola nos pescoço e a peia no pé.
No entanto, Tisserand destacou, era regra geral que todos
dormissem acorrentados. A diferença de Jean de Monlevade em
relação a outros proprietários de escravos era a de que o próprio
dono lhes havia ensinado a fabricar chaves para que se libertas-
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sem à noite! Escravos adestrados na indústria do ferro. Escravos
chaveiros!
Os que o haviam acompanhado na caravana desde o Rio de
Janeiro foram, exceto o Tião que, sabemos, mantivera-se ligado
aos Freitas, compulsoriamente devolvidos a seus donos, após vencimento do contrato de aluguel. Na ocasião, como cortesia, Freitas presenteara-lhe com um bom de serviço, chamado Tomás. Um
quase mulato muito esperto. Com tal sorte, Monlevade adquirira
outro escravo, do sexo feminino, agora indicado por Martinho, e
que a localizara em andanças pela região, a Isaura. O antigo dono
aproveitava-se da pobre mulher e cobrou caríssimo pela venda de
sua valiosa mercadoria. A escrava Isaura era de comportamento e
beleza de se admirar. Tinha pose e altivez de princesa. Por fim, a
dupla, força das circunstâncias, envolveu-se, e se casou. Não mais
deixaram o filho do fidalgo Jean-François até o fim dos seus dias.
Monlevade entendia do riscado, e ensinava as artes do trato
com o ferro com a paciência que aprendera com seu estimado professor Duchamps. Era o único que tinha sob suas ordens escravos
artesãos. Foi o que chegou aos ouvidos do imperador. A intendência real inclusive passou a comprar-lhe diversos itens de cavalaria e
utensílios em geral para provimento de suas necessidades.
Os pedidos de consultoria técnica também não cessavam. Aí
é que demonstrava para a sociedade imperial toda sua inteligência e conhecimento. Executava-as com presteza e precisão tão
logo tivesse ido ao local e pesquisado as variáveis a serem levadas em consideração. Os profundos conhecimentos de química e
mineralogia, associadas à sua forte base matemática, exaustivamente trabalhada nos anos da xis, fizeram com que sua fama se
espalhasse por todos rincões da província.
É por isso que foi convidado por indicação de senador do
império, em 1823, a fazer levantamento sobre as minas de galena,
e suas proporções de chumbo e prata, na região do Abaeté. Ele já
havia feito vários estudos desta natureza, mas decerto não se deve
deixar de levar em consideração o peso do dedo de Souza Coutinho, o próprio Barão de Catas Altas. Ajudou-o por várias vezes,
como anos antes o próprio Monlevade havia prognosticado. O pai
por adoção de Clara Sofia cumpria magistralmente seu dever.
O trabalho de Abaeté, além de tecnicamente perfeito, foi
considerada autêntica obra literária. Foi algo precioso a mais e
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Jairo Martins de Souza
a ser acrescentado em seu dossiê de estrangeiro francês que era
guardado e mantido a sete chaves nos arquivos do império. Lá
figurava, sem economia de elogios, o zelo que dedicava aos seus
produtos, instalações e escravos.
Em vista disso, Tisserand alegou que o próprio Monteiro Lobato, o festejado criador do sítio do pica-pau amarelo, o veria
como perfeito exemplo do que pensava a respeito do papel e da
sintonia que devem existir entre empresa, sociedade, empregados
e lucro. Monlevade deixou raízes poderosas neste sentido!
E, a despeito de toda sua intensa atividade, sempre conseguia algum tempo livre para visitar Clara Sofia. Dentro do velho
estilo francês, sempre lhe trazia pequenos presentes e flores. A
moça se encantava mais e mais com os bons modos e a educação
do noivo. Amava-o.
Era neste clima ameno, e recheado de carinho e respeito, que
namoravam em varandas, e caminhavam lado a lado em pequenas estradas rurais. À noite, a Lua iluminava os seus caminhos.
Faziam planos e, respeitosamente, imaginavam o futuro. Com um
detalhe. Clara Sofia jamais mencionara a possibilidade de um dia
cruzarem o oceano para que ela conhecesse a terra do amado.
Como todas as mulheres que haviam passado pela vida de Monlevade, temia não suportar tão longa viagem. As ondas marítimas
em alto-mar causavam pavor aos viajantes, foi o que eventualmente ouvia falar de amigos que haviam ousado enfrentar a situação. Chegam normalmente a quase três metros e ameaçam
arrastar os que se encontram no convés...
O que não representava possível atrito entre os amados. Jean
não pensava também em retornar à França. Passara a ser chamado de capitão, mesmo não tendo a devida patente. Gostava da tal
promoção de cortesia!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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XI
A festa de casamento na Setecentista.
A nova fábrica de ferro
Este namoro está excessivamente longo, o empresário de minérios e de ouro João Baptista Ferreira Chichôrro de Souza Coutinho comentou com a mulher. Ele ainda não havia recebido o título de barão de Catas Altas, mas tinha riqueza e fama equivalentes
às de um Eike Batista dos dias de hoje, Tisserand assinalou.
A família toda está comentando... de minha parte gosto muito
do engenheiro Monlevade, principalmente de suas competências,
mas julgo ser tempo de voltar a conversar com ele sobre agenda
de casamento. Já usei contatos e procurei ajudá-lo, e o ajudei,
em várias ocasiões. E não me arrependi. Confesso que o retorno
foi magnífico com respeito às minhas relações com o governo.
Ganhei prestígio a mais. Também tenho notícias constantes de
que seus negócios prosperam, enfim, nossa Clarinha é paciente
e sabemos das intenções do noivo... no entanto, creio passar da
hora de tomar algumas providências: esses europeus!
Concordo, marido, respondeu-lhe a mulher que ouvia pacientemente as preocupações de João Baptista.. Faça o que seu
coração comanda, independente de qualquer comunicação à menina Clara Sofia.
Dito e feito. João Monlevade sabia que a cultura das famílias
mineiras tinha certa aversão a circunstâncias que julgava corriqueiras, mas concordou sem maiores restrições. Não podia também deixar de levar em conta a verdadeira adoração que tinha
pelos bolinhos de fubá que dona Mariana Perpétua, a mãe de
Clarinha, a venerável viúva do capitão José Álvares da Cunha
Porto, preparava-lhe com toda a consideração e cuidados. Casase não somente com a mulher. Casa-se com a família e, principalmente, com a sogra.
336
Jairo Martins de Souza
Apenas solicitou tempo para mobiliar mais adequadamente
seu solar em Piracicaba e receber cartas de retorno do recebimento dos convites que enviara para a mãe e os irmãos François e
Maria Vitória. Não os via há dez anos, quem sabe decidissem vir
até o Brésil.
Daí o tempo se arrastou. Cinco meses depois recebeu respostas praticamente simultâneas, vindas da França, em que o irmão e
a irmã pesarosamente diziam da impossibilidade de comparecer.
A mãe, Felicité, enviou-lhe linhas amorosas, dedicando-lhe votos
de felicidade e breve chegada de netos. Não poderia também vir
até sítio tão distante. A saúde precária não suportaria. Aguardava
visita do filho...
Da França havia assuntado também Duchamps, a família
Pius, e o abade Ribérry. Somente Lucillia Pius respondeu-lhe a
tempo. O marido Septimus havia morrido e ela estava praticamente de saída deste mundo. Desejou-lhe felicidades.
No entanto confirmaram presença tanto Zavoudakis e esposa
quanto os velhos amigos Platini e Fontaine. Os marinheiros ocasionalmente estariam no Rio por bom período. Nestas circunstâncias, o casamento ficou ajustado para 04 de janeiro de 1827. O
dote da moça alcançaria a cifra de 80 contos de réis. Com isso,
Tisserand esclareceu, compravam-se dezenas de quilos de ouro!
Os convidados, após o casamento a ser realizado na igreja matriz
de Caeté, seriam ricamente recebidos na Casa Setecentista. Várias figuras de importância da província, inclusive o governador,
estariam presentes. Baptista Coutinho prometia realizar uma autêntica festa de arromba, era voz corrente que sofria irremediavelmente da grave doença do perdularismo. Ele havia vendido a
mina de ouro de Gongo Soco dois anos antes, mas continuava
como um dos homens mais ricos da província. A casa prometia
estar cheia de convivas. O antigo sacristão de Catas Altas era,
sobretudo, um exibicionista!
Com a perspectiva de formação de família própria e, de certa
forma, alheio aos preparativos festivos do matrimônio, Monlevade havia tomado importante decisão de comum acordo com Clara Sofia. Usaria o dinheiro do dote da futura mulher, e criaria uma
verdadeira indústria metalúrgica. Padrão para todas as demais
que viessem a se instalar nas terras do Brasil. Encomendaria equipamentos ingleses de reconhecida qualidade! Descortinavam-se
novos momentos de sucesso para sua indústria.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
337
Sete mil quilos é muito peso, Jean! Foi Martinho quem afirmou-lhe, preocupado. Em termos de transporte oceânico não é
de assustar, mas como trazer os equipamentos do Rio de Janeiro
até o Piracicaba? Por meio de estradas é tarefa impossível, Jean
respondeu-lhe. A ideia é usar vias fluviais, a partir da capitania
do Espírito Santo. Já estudei a logística contando com suporte
de Marlière, um grande entendido no assunto, e fiz o roteiro de
navegação em água doce. O Rio Doce é a solução. Quanto à passagem por cachoeiras, criação de pontes provisórias e ultrapassagem de outros obstáculos naturais, há que se ver. Vou pedir ajuda
ao exército imperial. Os militares são bons neste tipo de empreitada... além disso, posso contar com Platini e Fontaine. Vou tentar
convencê-los quando vierem ao meu casamento com Clara Sofia.
Estamos em 1826, Tisserand avisou-me.
Entendi seu recado. O estrangeiro, como de hábito, certamente faria breve contextualização dos dois grandes momentos
que Monlevade passava. Os planos de casamento, filhos e o nascimento de um novo momento industrial do ferro no Brésil.
Então ele prosseguiu relatando que desde que Monlevade
chegara ao Brasil, em 1817, muitas coisas haviam acontecido.
E resumiu-as. Dom João VI havia retornado com sua corte para
Lisboa em 1821. No mesmo ano Bonaparte morrera na ilha de
Santa Helena, e o britânico Faraday havia apresentado o primeiro
motor elétrico: Monlevade fora avisado por um dos seus pares de
Paris. Um ano depois, o filho Pedro, de João VI, e que havia sido
feito príncipe-regente quando de sua volta para Portugal, havia
declarado a independência do Brasil.
Nascia um novo país que respirava arejado pelas ideias das
terras francesas. No entanto, tudo isso pouco, ou nada, fizera mudar na vida do engenheiro Monlevade em Minas Geraes. A exceção, com o passar do tempo, naturalmente foi a chegada da eletricidade a ser aplicada na indústria siderúrgica por meio de motores.
A vida de nós todos é, sem que saibamos, Tisserand continuou um tanto quanto pensativo, influenciada por fatores externos que mal conhecemos. Por exemplo, os efeitos resultantes das
ações secretas da maçonaria francesa naqueles grandes acontecimentos nacionais. A recusa de Monlevade em tornar-se um daqueles pedreiros fê-lo ausente de tais eventos. O convite viera do
Rio e a recusa bem entendida pelos emissários. Monlevade estava
fisicamente fora da localização de lojas maçônicas.
338
Jairo Martins de Souza
Mas voltemos a alguns detalhes do casamento: o padrinho de
Clara Sofia pensava alto. O chefe da cozinha real de Pedro I fora
convidado, a peso de ouro, a coordenar as atividades culinárias
do evento. O rei o havia liberado sem restrições, pois sabia do
poder financeiro do empresário mineiro. Na realidade, a ideia era
convocar o famoso Antonin Carème que tivera sob sua responsabilidade o banquete de celebração do sempre lembrado congresso de Viena em 1815. Foi o que recompôs o mapa e o poder das
monarquias europeias!
Decerto o senhor pensa que estou novamente exagerando
quanto às excentricidades de Catas Altas, Tisserand chamou-me a
atenção. Havia notado com absoluta razão o meu ar de descrédito. Mas Baptista Coutinho não era somente conhecido, em várias
partes do mundo, pelas riquezas do ouro da mina de Gongo Soco
como também pelo comportamento perdulário que já comentei.
E, na realidade, o grande empecilho para a ausência do primeiro
grande cozinheiro francês foi o próprio, e riquíssimo, barão de
Rothschild. Carème, na ocasião, estava a serviço exclusivo do homem mais rico do mundo, e que não permitiu sua ausência por
tão longo período.
Em compensação, além do cozinheiro real, também seguiriam para Caeté camareiros imperiais especializados em coordenação de grandes eventos. E, como deferência especial ao noivo,
o cardápio consistiria de comidas francesas e mineiras selecionadas criteriosamente. Bem equilibradas, e em mesas ricamente
adornadas com enfeites dignos de casal da realeza. Muitas flores.
Até mesmo os escravos e serviçais foram premiados com refeições
especiais à base de feijão e carnes diversas. Feijoada e churrascos
na brasa. Muito foguetório e fumaça de pólvora queimada.
Nestas bases, Tisserand comentou, a festa foi coroada de êxito... A imensa cama de casal de Baptista Coutinho mal cabia a
quantidade de presentes que, por este motivo, estavam sendo organizadamente esparramados pelo quarto de dimensões também
extravagantes. O irmão François enviara-lhe da França pequena
placa de bronze com o brasão dos Dissandes de Monlevade gravados em ouro. Mal sabia, Tisserand adiantou que, no futuro, sua filha casar-se-ia com o filho do irmão que se encontrava tão distante!
Zavoudakis, além de pequeno constrangimento que explico
em breve, trouxe-lhe livros de qualidade. Por sua vez, Platini e
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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Fontaine presentearam-lhe com dois pequenos bustos de capitão
de quepe e charuto comprados na cidade de São Salvador, na
Bahia. Conversaram muito. Meu casamento não vai ser do tipo
grego, Monlevade brincou, em que o homem é a cabeça e a mulher o pescoço, qual seja, vira a cabeça do seu amado para onde
lhe aprouver. O combinado era construção de família a dois. Ela
dirigindo a cozinha e a casa, e ele cuidando de buscar dinheiro na
indústria do ferro e outros afins. As gargalhadas ecoaram pelo salão. O ditado é o mesmo aqui também no Brésil: o homem nasce,
cresce, fica bobo e casa.
O enxoval da noiva foi absolutamente enriquecido com dezenas de roupas feitas e gravadas a mão com as iniciais dos nomes
dela mesma e do noivo, CJ. E, mesmo a contragosto de Jean,
toda a província e a sede do governo tomaram conhecimento da
pompa com que foram realizadas as cerimônias nupciais. O imperador Pedro I não pôde comparecer por fortes razões não explicadas em carta, de próprio punho, que enviou a Monlevade. Não
disse sobre suas crises de epilepsia que estavam se tornando cada
vez mais frequentes. Bastou-lhe citar o luto pela morte recente da
esposa, a imperatriz Maria Leopoldina, que havia partido para a
eternidade em dezembro do ano próximo passado. Não viajaria!
Mas mandaria representação na pessoa do importante Ministro
da Fazenda Imperial, o marquês de Queluz, etc. e tal.
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Jairo Martins de Souza
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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XII
Amigo é para todas as horas. Monlevade faz pedido especial
a Platini e Just Fontaine
A festa do matrimônio de Jean de Monlevade e Clara Sofia foi
também, como ocorre usualmente em grandes celebrações, evento de negócios e acordos. Inclusive entre amigos, pois, em um
dos salões, Monlevade estava radiante com a presença dos amigos Zavoudakis, Platini e Fontaine e, animadamente, convidava
os dois últimos para coordenar transporte de importante carga
que planejava receber nos próximos meses no porto do Rio. Zavoudakis era o único que tinha companhia feminina. Veio com a
esposa francesa que, ao ser apresentada a Monlevade, enrubesceu levemente. Não houve qualquer tipo de desdobramento, mas
ambos se recordaram do inesquecível fim de tarde em que estiveram juntos na casa carioca de Freitas. Anos haviam se passado,
e... bem, entenderam a situação com a dignidade de caráter que
eram portadores: as cenas de amor desfrutadas foram imediatamente jogadas para algum local intocável de suas memórias. De
sua parte, Jean, passada surpresa de tão inesperado reencontro,
seguiu dizendo aos amigos que os pesados equipamentos siderúrgicos deveriam ser levados, tão logo chegassem, diretamente para
São Miguel do Piracicaba. Tarefa difícil.
Já lhe disse ligeiramente sobre o tema, Tisserand lembroume. Monlevade, na ocasião, já tinha como certa a colaboração
dos dois amigos para solucioná-lo.
Eles que, não habituados ao uso de trajes de luxo, estavam
um tanto quanto atrapalhados, e ouviam atentamente o antigo
menino que, por sua vez, em tempos passados os ouvira assentado em saco de batatas. Após alguns copos de vinho, a emoção
crescia ao lembrarem aqueles bons tempos. Estamos, caros amigos, perante vida nova... o que passou, passou!
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Jairo Martins de Souza
Aceitaram a missão de coração aberto. Ainda que a princípio
um tanto temerosos pela falta de experiência com navegação fluvial em águas onde poderiam encontrar animais ferozes e índios
antropófagos. Não. Desses não há mais, Jean garantiu-lhes. O
governo de Dom Pedro tem agido energicamente neste sentido.
A situação mudou mais ainda quando Jean disse-lhes que
contariam com ajuda preciosa do capitão Guido Marlière, antigo
tenente do Regimento de Cavalaria da província de Minas Geraes, e atual diretor-geral dos índios.
O francês Marlière, Tisserand esclareceu, pode ser entendido,
em tempos recentes, como uma perfeita mistura entre os irmãos
Villas-Boas e o marechal Cândido Rondon.
E, sendo assim, os dois amigos fariam viagem totalmente
orientada por homem que, além de conhecer bem o trajeto marítimo do Rio até a vila de Vitória, dar-lhes-ia suporte garantido
por órgãos oficiais. E teriam na retaguarda ninguém menos que
João Diogo Sturz, um profundo conhecedor de todo o leito do
Rio Doce.
Daí, saindo dele, chegar ao Rio Piracicaba e ao distrito de
São Miguel aconteceria, se tudo desse certo, num longo piscar de
olhos. Sturz, inclusive, Monlevade comentou, é meu sócio nesta
empreitada. Temos contrato de premiação, caso a carga chegue a
salvo e a tempo: uma espécie de seguro de viagem e transporte.
Tais informações não foram suficientes para acalmar a alma
de Platini. Ele buscou saber e analisou, principalmente, a ficha
técnica de Marlière tal como fazia quando da contratação de seus
marinheiros.
Guido Marlière. Francês radicado no Brésil. Bom trânsito junto aos índios da província do Espírito Santo. Em 1811, apontado
Tenente agregado do Regimento de Cavalaria de Minas. Acusado
e preso injustamente como espião de Bonaparte. Absolvido posteriormente e premiado como Comandante da Colonização da
Bacia do Rio Doce. Estudou a navegabilidade do grande rio que
vazava de Minas ao Atlântico na província do Espírito Santo.
Aprovado! O homem é dos nossos. Foi o que disse para Fontaine, após receber relatório encomendado a um contato que fizera no Rio.
Quanto aos dados de Sturz, não obteve nenhuma informação detalhada. Nem do engenheiro Lenoir, que foi indicado à últi-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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ma hora para acompanhamento técnico e zelo pelo manuseio dos
equipamentos. A despeito disso, concluíram que estas circunstâncias não deveriam significar motivos para preocupações. Ambos
foram indicados pelo próprio Jean. Podemos ficar tranqüilos!
Enquanto isso, Tisserand observou, os produtos da fábrica
de ferro já eram classificados os melhores do mercado nacional, e
vendidos muito além das fronteiras das províncias de São Paulo
e Goiás. Jean mantinha pesada estrutura de propaganda. Distribuía calendários e folhinhas fartamente espalhados pelas ferrarias
e lojas de comerciantes varejistas do ramo, inclusive armazéns.
Em qualquer boteco, achava-se banha de porco e ferramentas
oriundas da fábrica de ferro e da fazenda de Monlevade.
Seus escravos e feitores riam quando seu capitão lhes dava
exemplos de como fazer com que a indústria desse lucro. Alguns
deles choraram de rir quando Monlevade disse-lhes o porquê de
comerem mais ovos de galinhas do que das patas. As galinhas
avisam quando o produto está pronto, explicou!
A fundição Monlevade fabrica as melhores ferraduras, cravos... As festas religiosas da região eram destacadas nas folhinhas
da fábrica. E as ilustrações à base de gravuras de santos e madonas, e do menino Jesus, ficavam a cargo do dedicado Martinho.
Caso fossem desenhos técnicos de ferraduras, parafusos, etc.,
Jean tomava para si a tarefa.
Ele estava se tornando figura folclórica na província. Em termos práticos dizia, muito antes de Luther King, que os negros
têm também direito a sonhos, enfim, desmentia alguns hipócritas
escravistas que alegavam que sua mercadoria nem mesmo tinha
alma. Tanto é assim que permitia cultos afros, mas, por meio de
Martinho, não deixava de orientá-los sobre os princípios cristãos.
Muitos se convertiam! Também era fato divulgado que lhes ensinava rudimentos de francês e não era raro que seus escravos
fizessem entre si a saudação, bon jour! Bom dia!
Mas, voltando aos novos investimentos feitos por Jean, não
sei exatamente e não posso adiantar qual a função de tão pesados
equipamentos na nova fábrica de Monlevade, Tisserand explicou.
Apesar de saber, pelo menos é o que pude deduzir de suas notas
que chegaram até Zavoudakis e daí... bem, o que se sabe é que o
galpão situado nas proximidades da margem esquerda do Piracicaba teria que ser ampliado.
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Jairo Martins de Souza
O vigário geral, reforço, não se dedicou a entrar em detalhes
sobre a arte de trabalhar o ferro e a siderurgia. A ideia que tenho,
e devido ao fato de, na nota de desembaraço na alfândega carioca, terem sido descritos como grandes objetos cilíndricos de ferro,
é que eram destinados a transformar o ferro em chapas. Possivelmente laminadores! Imagino, Tisserand divagou (com expressão
satisfeita de quem encontra solução para assunto desconhecido), o que os escravos das culturas agrícolas da fazenda de Jean
pensaram ao ajudar a transportá-los para o edifício da fundição.
Por que máquinas tão pesadas para amassar mandioca? Já não
temos aqui polvilho suficiente? O capitão Monlevade definitivamente perdeu o juízo!
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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XIII
Não é fácil manter negócios entre as montanhas das Minas
Geraes. O agora capitão Monlevade amplia a fábrica de
ferro que leva o seu nome
Nunca fui dado às artes da pesca. Nem oceânicas nem fluviais,
Tisserand prosseguiu, mas temo aumentar o episódio que vou
lhe relatar. É história somente de quem a viveu contar para os
netinhos. Na realidade parece relato de pescador, pois desde o
porto inglês de Dover até o Rio de Janeiro, aconteceram inúmeras peripécias. Foi longuíssima. Não posso dizer que foram vistos
monstros marítimos nem baleias assassinas, mas as viagens transoceânicas, como de praxe, não deixavam saudades em quem
as fazia. À custa disso que Lenoir, o engenheiro responsável pela
encomenda, benzeu-se e agradeceu a Deus ao vislumbrar a baía
da Guanabara. Sua angústia havia se iniciado com as inúmeras
dificuldades de colocar os equipamentos dentro do navio que os
trouxe. Oh, coisa de difícil manuseio!
Até então tudo está absolutamente correto, juro-lhe ser assim, ainda é Tisserand quem diz, mas a situação ficou realmente
preta quando, após atenções burocráticas, a desajeitada carga foi
liberada para transporte do Rio para o interior de Minas. Mais exatamente para a fábrica de ferro Monlevade, à atenção do monsieur
Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade. O capitão Monlevade.
Não no trecho marítimo em águas nacionais, Tisserand corrigiu, pois, com Platini ao lado de homem bom conhecedor da costa Rio-Espírito Santo, a carga seguiu tranquilamente até a vila de
Vitória, que foi ponto de apoio para reabastecimento e descanso
da tripulação. Conforme recomendação de Martinho, os amigos
de Monlevade visitaram o Convento da Penha na bela localidade
de Vila Velha. Lá fizeram orações e encomendaram bons presságios para a perigosa viagem que empreenderiam após chegada
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Jairo Martins de Souza
ao porto fluvial de Linhares: já estamos falando diretamente das
águas do Rio Doce.
Não mais viajavam em embarcação marítima, mas em canoas de porte exclusivamente construídas por agente designado
pelo império o qual, já disso tomamos conhecimento, prestaria
suporte à expedição. A troca havia sido feita a duras penas em Linhares, e o capitão Marlière estava dedicando máximo empenho
ao cumprimento da sua missão.
As ordens imperiais foram expressas... o empreendimento
do engenheiro Monlevade é de máxima importância para a vida
industrial da província! Foi o que lhe foi dito diretamente pelo
governador em seu paço de Vila Rica.
Sua missão, prezado Marlière, é levar a bom termo os preciosos laminadores até Antônio Dias. De lá seguirão para a fábrica de
monsieur Monlevade em carros de boi ou no lombo de escravos...
Tudo na vida pode ser facilmente resumido em poucas palavras, Tisserand comentou. Posso dizer somente que foram noventa dias. Noventa dias foi quanto durou a arriscada expedição
que, em linha reta, seriam em torno de quinhentos quilômetros. A
primeira do gênero no Brésil.
Olhei-o com interesse, considerando o seu modo de dizer
tornado abruptamente introspectivo. Ele continuou sua fala, aparentemente não tomando conhecimento da minha estranheza, e
disse que tinha outros exemplos para indicar como as palavras
reduzem as coisas. Napoleão invadiu Portugal e fez com que Dom
João fugisse para o Brasil. Jesus foi crucificado pelos judeus por
ser considerado um revolucionário em potencial. Ronaldo Nazário teve mal súbito passageiro e o Brasil perdeu a copa de 1998...
Quanta leviandade, acrescentou consternado! Não se fala do
sofrimento do povo português que perdeu sua cabeça pensante.
Não se fala da dor de cravos de ferro enterrados na pele nua das
mãos e dos pés do Salvador. Não se fala do choque narcísico que
acometeu a alma dos brasileiros...
O mesmo posso dizer da aventura de Lenoir, Marlière, Fontaine e Platini. Pois ela envolveu várias divisões do exército imperial com ajuda inimaginável dos índios Botocudos e material de
apoio. Foram transpostas cachoeiras, incontáveis perigos de doenças e obstáculos naturais até que um dos emissários de Monlevade os localizasse nas proximidades de Antônio Dias. A imprensa da província comemorou o feito, e celebrações e missa de Ação
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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de Graças foram feitas tanto no solar Monlevade quanto no Paço
da Província em Vila Rica. Martinho imediatamente comunicou
chegada aos monges capixabas do Mosteiro de Nossa Senhora
da Penha. Vossas preces foram preciosas!
Antes disso, mesmo que a vida seguisse sua rotina corriqueira
na fazenda e na fábrica, Jean enviava, semanalmente, emissários
que procuravam saber do andamento da viagem. Cruzavam-se
entre si e faziam passagem de carta de posto a posto. O governo
de dom Pedro, os índios Botocudos... Aí que está! A preocupação
era grande pelos perigos da empreitada. O Rio Doce era o único
caminho para se transportar sete mil e quinhentos quilos de ferro.
Não havia estradas!
Foi aí que Tisserand esclareceu que, ao longo dos anos, Jean
praticamente implorou ao governo imperial pela construção, em
linha reta, de estrada que ligasse Minas à saída marítima da província do Espírito Santo. Morreu sem vê-la!
Mas ficou extremamente feliz ao reencontrar-se com Platini
e Fontaine. Não esperou que chegassem até seu solar e foi ter
com eles às margens do Rio Doce. Ele, elegantemente vestido;
os outros, barbudos e sujos. Abraçou-os fortemente e agradeceu
dizendo, agora é por conta do nosso pessoal de terra. Vamos diretamente para o solar Monlevade. Clara Sofia nos espera; a hora
é de celebração!
Em poucos dias os equipamentos estavam montados e em
funcionamento. A fábrica de Monlevade subia mais um degrau de
prosperidade e tornava-se cada vez mais famosa em todos os pontos do império. O engenheiro francês havia vencido nos trópicos!...
No entanto, nem tudo na vida são flores, Tisserand disse-me.
Jean de Monlevade tinha um grande inimigo que morava no coração do governo do império português. A competição desleal
dos produtos ingleses, estranhamente privilegiados pela política
de Pedro, o príncipe-regente. Isso fazia-o sair do sério! Houve
ocasiões em que pensou desistir!
E não é que não estivesse ficando bastante rico. Estava. A
renda da fábrica era-lhe de boa lucratividade. É que via na política
imperial um grande obstáculo para a indústria do ferro no Brésil!
Bem conduzida, dizia, a nação poderia alimentar todo o mundo com produtos de qualidade excepcional. Razões não faltavam.
O solo é rico, os mineiros são inteligentes e jeitosos, os escravos
poderiam ser facilmente treinados...
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XIV
Esse menino tem a cara do avô! Nasce o neto brasileiro do
fidalgo de Guéret
Após a belíssima festa que havia sido dada por Baptista Coutinho, Jean e Clara Sofia partiram em lua-de-mel. Estavam radiantes. É bem verdade que a moça um tanto temerosa. Do seu corpo,
até então, o noivo vira-lhe somente os tornozelos. Clarinha sabia
ser bonita e atraente, mas não conhecia bem as consequências
da cama de casal. Preocupava-lhe principalmente a de dormir
ao lado de um homem. Dona Maria Perpétua não a orientara:
naqueles dias não se tocava no assunto sexo com as filhas.
O resultado disso, Tisserand comentou, é que a mãe, antes
da subida da filha na carroça para acompanhar até o final dos
seus dias ao marido francês, disse-lhe. Clara. Clarinha, leve esse
santinho com você. Não o deixe em momento algum. E aí, minha
santa, se na hora H você não gostar, feche os olhos. Feche os
olhos, minha filha, e reze a Nosso Senhor...
Foi uma das razões pelas quais o casamento demorou quinze
dias para ser consumado. Jean era paciente e, no final, amaramse com a delicadeza, o respeito e o entusiasmo de quem se casou
por amor verdadeiro.
E não demorou para que o antigo aluno da xis escrevesse
para os irmãos e a mãe, informando-lhes ser pai pela primeira vez
em poucos meses. Um entusiasmado Zavoudakis, ao ser comunicado, imediatamente enviou-lhe livro da recém-surgida literatura
infantil. Com isso, disse, tanto faz que seja menino ou menina. E,
entre outras coisas, avisou, em tom ocasional, e dizendo-se conformado, não poder desfrutar o prazer da paternidade. Séverine
Zavoudakis, à custa do seu passado, havia se tornado estéril...
Jean emocionou-se, e condoído da desdita do amigo, mandoulhe em troca uma gravura em que o amigo grego aparece partici-
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Jairo Martins de Souza
pando do batismo do bebê que iria nascer. Assim, indiretamente
fazia-lhe convite para apadrinhar o filho: pensou servir-lhe como
consolo e tornar-se-iam, definitivamente, além de amigos, compadres.
Jean de Monlevade teve o prazer de ter ao seu lado no parto
do filho – que também responderia como João, tal como o pai e o
avô franceses – o doutor Ildefonso Freitas. O antigo companheiro
dos tempos de estudante, em Paris, voltara fazia pouco tempo e
estava decidido a exercer a medicina no Rio de Janeiro. Com o
envelhecimento dos pais, e a pedido da família, mudou de ideia,
e estabelecera-se como médico no Vale do Piracicaba. Foi nestas
condições que atendeu à gravidez da esposa do amigo. Ao concluir o parto, disse para a negra que o assistia: esse menino tem
a cara do avô!
No ano seguinte, em 1829, Tisserand disse, a cena se repetiu.
Ildefonso novamente exclamou, agora para a amiga Clara Sofia:
Clarinha, esta menina tem a cara da avó!
Do lado de fora do quarto, Martinho agradecia a Deus por
mais essa graça.
Jean e Clara Sofia não lograram êxito quanto aos planos de
extensa família! Joãozinho e Mariana Monlevade foram seus únicos herdeiros. E o menino, assim como o pai, gostava de procurar
e analisar pedras. E, ainda copiando o modelo paterno, eternizou
gosto, iniciado desde tenra idade, de ter o seu cachorro buscador.
O capitão Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade nunca
deixara de ter o seu noir. O seu breu. Manteve sempre ao seu lado
um vira-latas de cor preta bem treinado. Quando o Breu, o noir
da vez, morria, ele arranjava um pequenino e o adestrava.
Com isso não se esquecia dos dias de criança na distante
Guéret que nunca voltaria a ver.
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Epílogo
O fundador da Fábrica de Ferro Monlevade morreu de causas
naturais na madrugada de catorze de dezembro de 1872. Foram
mais de oitenta anos de profícua existência.
Na sala de visitas do Solar de sua fazenda, o povo e autoridades da Província renderam-lhe homenagens póstumas que perduraram por três longos dias. Muitos foram os que reverenciaram
o cadáver, vestido a rigor, que repousava em caixão de jacarandá
coberto por rosas e flores silvestres. Depois do seu fechamento,
foi revestido com as bandeiras da França e do Brésil. E todos
entenderam o pedido de dona Clara de passar os derradeiros
momentos com o marido somente na presença dos parentes e
amigos mais íntimos. Martinho emocionou-se ao fazer a oração
que antecedeu a primeira pá de cal. Monlevade, conforme seu
próprio desejo, foi enterrado na parte central de pequeno cemitério mandado construir por ele mesmo como última morada para
seus escravos.
Quem sabe um dia decida-se que suas cinzas sejam retiradas
e colocadas em panteão municipal. Na França se faz assim!
Se há, no fogo que arde no inferno, alguma forma de se jogar
uma pitada do bem, Jean de Monlevade procurou fazê-lo. Duchamps,
Ribérry e o fidalgo Jean-François, seu pai, foram seus mestres.
É por isso que, na condução feita a pé até seu destino final,
alguns dos seus escravos suplicavam para prestar derradeira ajuda ao seu amado senhor.
Passados alguns meses, o quase octogenário Martinho decidiu
voltar para a França. Disse também ter cumprido sua missão no
Brésil e deixou para trás, bem encaminhados, a mulher e os filhos.
Lá procurou exaustivamente, ao longo dos anos finais de sua
vida, mas não conseguiu localizar os irmãos dos quais se separara
no inesquecível dia do sorteio. As imagens nunca haviam desaparecido de sua cabeça. Finalmente, quando convocado pelas
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Jairo Martins de Souza
“E todos entenderam o pedido de dona Clara de passar os
derradeiros momentos com o marido somente na presença dos
parentes e amigos mais íntimos...”.
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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trombetas celestiais, foi enterrado com honras eclesiásticas no cemitério de Saint-Sulpice-le-Guérétois.
Platini acabou por casar-se com uma filha de escravos que
trabalhavam no Solar Monlevade. Dizia, sorridente, que cavalo
velho precisava de capim novo. Levou-a para a França e dele não
se teve mais notícia.
Fontaine retornou a vida de marinheiro e morreu afogado
quando cruzava rios amazônicos. O acidente aconteceu na mesma ocasião em que lá perdeu a vida um dos filhos de Nicolas
Taunay: um dos artistas franceses da Missão de 1816.
Zavoudakis? Zavoudakis, como disse-lhe, não teve filhos e deixou toda sua correspondência com Jean Monlevade aos cuidados
dos descendentes de François. Foi das mãos destes últimos que alguns fatos chegaram ao conhecimento de Leopold, o vigário geral.
O resto é história conhecida, Tisserand disse. Possivelmente devem ter sido escritas versões refinadas, e verossímeis, sobre
a vida do engenheiro francês na região do Piracicaba. E nelas,
acredito, deve ter sido incluído, e disso não se pode duvidar, que
manteve estreitos laços de amizade com a família do amigo Freitas até o fim dos seus dias. O mesmo vale para sua cultura, elegância, autoridade e fineza no trato com os familiares, escravos e
empregados. Poderiam ser declamados em verso e prosa.
Lamentavelmente, pouquíssimo foi salvo pela comumente
infalível tradição oral.
Mas nada disso impediu que se tornasse figura quase lendária
na siderurgia nacional.
A Missão Extraordinária saiu-lhe melhor que a encomenda.
Pois, ainda que sob outras bandeiras, o brasão dos Dissandes de
Monlevade, indiretamente, espalhou-se pelo mundo e prossegue
sendo dignificado em todos os continentes em que se consome o
aço com avidez. O velho fidalgo Jean-François ficaria orgulhoso
do seu produto.
A fábrica de ferro deu origem à famosa Companhia Siderúrgica Belgo Mineira. E que, por sua vez, fez gravitar, ao seu lado,
a futura cidade batizada de João Monlevade. Justa homenagem!
Após dizer isso, o estrangeiro, a quem eu decidira chamar Tisserand, levantou-se. Fazia horas que falava sem parar. Tinha os
olhos ligeiramente molhados por lágrimas furtivas. Entendi, com
dificuldade, que tentava dizer algo como ter, parcialmente, termi-
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Jairo Martins de Souza
nado sua sina. Também, mon ami, disse-me, fui encarregado de
dar cabo de uma missão!... Não com a importância da cumprida
por Jean de Monlevade... bem, falta-me dizer algo para encerrála. Algo muito particular!...
O ramo Bogenet da família Dissandes de Monlevade não havia se extinguido com a morte do vigário geral, conforme pressuposto pela comunidade de Guéret. Não no sangue. Ele, antes
de abraçar a vida clerical, cometera um pecado do qual tardou a
saber as sequelas.
Tivera um filho sem nunca ter recebido o sacramento do matrimônio. O desajeitado coito, desfecho das sensações e carícias desenfreadas de dois adolescentes, havia acontecido em banco de carruagem velha e abandonada às margens do Creuse. Mal se conheciam. A
mãe da moça, viúva e amargurada, assim que reparou no crescimento
inesperado da barriga da filha, mudou-se da região. Leópold jamais
soube da existência do seu fruto proibido, mas as imagens especialíssimas que o geraram jamais deixaram sua memória!
Meu nome é Toujours La France Bogenet, por final me comunicou. O último dos Bogenet. E digo isso por ser celibatário por
opção. Foi assim que vivi toda a minha vida e, em grande parte
dela, somente com o nome da mãe da minha longínqua avó, que
foi a moça que teve caso fortuito com o próprio vigário.
Desde aquela tarde de amor insensato, mais de um século se
passou. Foram muitas gerações.
E minha ilusão é a de que o senhor, mon ami, tenha entendido que quem está diante de sua presença é o produto derradeiro
daquele filho bastardo!
E, mesmo sendo parente tão distante no tempo, por compaixão, solidarizo-me com Léopold Bogenet, o vigário geral. Imagino
o sentimento de aflição que deve ter tomado conta do seu carcomido corpo ao se dar conta daquele nascimento, pouco antes de
subir aos céus.
Pois sua efêmera paixão da juventude havia comparecido ao
seu leito de morte para vê-lo pela última vez! Na ocasião, a Igreja
desmentira o acontecido. Mas o fato é que, do lado de fora da casa
episcopal, era o seu próprio filho que aguardava a saída da mãe!
Este homem, um legítimo Bogenet, nunca soube que o pai,
a poucos passos de distância, estava por dar seu último suspiro.
A boa notícia é que o velho vigário geral teve tempo suficien-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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te para modificar seus últimos desejos e anotações. E colocou seu
infortúnio a descoberto, incluindo, às pressas, o pecado mortal
que cometera.
Assim escreveu que, após sua morte, os rascunhos dos seus
escritos deveriam ser guardados pela diocese, a partir de extremado amigo de batina, e a serem entregues a parente mais idoso, e
mais próximo de sangue, por extensíssimo número de anos a ser
estipulado por seus superiores em Roma.
Morreu pensativo, ciente que este longo tempo retardaria e
encobriria tudo que escrevera, inclusive (aí está o seu castigo),
coisas que o encantavam. A admiração que tinha pelo primo
Monlevade seria obscurecida.
Mas a estratégia de última hora levaria também ao esquecimento o seu infeliz ato de adolescente.
Foram essas as razões, Toujours La France esclareceu, de,
tanto tempo depois, ter sido escolhido pelos responsáveis do seu
espólio, e de ter recebido o livrinho pelo correio. A partir daí, foi
que decidi adotar o sobrenome Bogenet.
E há anos procurava alguém como você, mon ami, explicou
já com os olhos secos. O rosto voltara a ter a tranquilidade de
sempre, mas não disse mais nada.
Diante do seu silêncio, o meu sentimento foi o de que ele soubera antecipadamente ter achado, em mim, alguém que teria a
paciência e a disponibilidade suficientes para escutá-lo com atenção. E, mais ainda, com amor no coração bastante para publicá-la
a qualquer custo.
Este estrangeiro não confiaria a qualquer um a história que o
parente distante deixara.
O silêncio que se seguiu confirmou minha impressão. Diante disso, emocionei-me e respondi-lhe que, de bom grado, faria
cumprir seu desejo.
Pediu-me prometer. E informou-me ser, de sua parte, o ato
final. Seria suficiente um pequenino corte de gilete no braço de
um e de outro. Juntaríamos as mãos. Depois misturaríamos um
pouquinho de sangue em pequena pedra de minério de ferro. O
símbolo das Minas Geraes e de Monlevade. Um simples e infantil
ritual de irmãos de sangue. Concordei de imediato com a solicitação, mesmo explicando-lhe ser caso especial.
Não procedo desta forma desde criança, disse-lhe...
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Post Scriptum
Em 30 de Setembro de 2008, chegou até minha caixa de e-mails
a seguinte mensagem escrita em língua francesa:
“Bonjour, nous sommes désolés mais nous ne connaissons
pas cette personne. Essayez peut-être auprès de la bibliothèque
municipale de Guéret. Bonnes recherches. Le service accueil.”
O jeito prático e direto, com que o texto fora escrito, propiciou-me fazer tradução sem maiores dificuldades: “Bom dia! Estamos desolados, mas não temos conhecimento sobre essa pessoa.
Talvez consiga algo por meio da Biblioteca Municipal de Guéret.
Boa pesquisa. Do serviço de Ajuda”.
Não foi por acaso que tal correspondência havia chegado a
mim. Era resposta a uma indagação que eu mesmo havia postado
para a prefeitura da pequena cidade de Guéret, localizada na região do Limousin, departamento de La Creuse. O país é a França.
Eu procurava informações!
Pois foi nas belas paisagens do seu maciço central que havia nascido um dos “bandeirantes” do fabrico de ferro e aço no
Brasil. Um dos nossos Fernão Dias Paes Leme da siderurgia. Seu
nome completo é Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade. O
João Monlevade.
O fato é que eu havia escrito duas obras literárias ambientadas no município de João Monlevade, Minas Gerais. E, por questões de contexto, pouco mencionei sobre a vida do estrangeiro
que possibilitara dar vida àquelas situações.
Não é de se surpreender que, mais tarde, me sentisse na obrigação de prestar-lhe homenagem e agradecimento. Talvez uma
pequena biografia. Para tanto, iniciei primeiros movimentos de
pesquisa. Fiz busca virtual no mercado livreiro do Brasil. Nada.
Nenhuma obra constava sobre a vida do eminente engenheiro de
minas francês.
A coisa evoluiu. E demorou pouco tempo para que tivesse
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Jairo Martins de Souza
decidido a escrever, e publicar, biografia de Jean de Monlevade
que estivesse à altura do que representou para a indústria do ferro
no nosso país. Daí o leitor pode imaginar quão frustrante foi, para
mim, a resposta que fiz constar no início deste apêndice.
Para minha boa fortuna, pouquíssimo tempo depois, tive conhecimento da existência de livro que teria alguns dados confiáveis sobre as origens e a família francesa de Jean de Monlevade.
Água limpa se bebe na fonte!
No caso, a de um escritor que detém diploma honorífico de
cavaleiro da ordem das artes e das letras (chevalier de l’ordre des
arts e des lettres). O francês Robert Guinot havia escrito, em 2005,
um pequeno livro biográfico chamado “Jean De Monlevade: pionnier français de la sidérurgie Brésilienne” (Guénegaud, 2005).
Li-o. Num piscar de olhos, concluí que estava diante de um
personagem fascinante. Dadas as mesmas condições, Monlevade
poderia ter sido empresário do porte do espetacular Mauá!
No entanto, nada é perfeito! Ao concluir a leitura, lembreime, com certa amargura, de que Einstein, em um dos seus comentários sobre o cotidiano, disse que, na vida, tudo que tem
valor é inexoravelmente ligado a um preço. O que paguei foi o de
confirmar definitivamente que muito pouco ficou registrado sobre
a vida pessoal do, digamos assim, monsieur Monlevade.
As informações do livro do écrivain Guinot são escassas. E,
em termos de França, não há melhores disponíveis. Perderam-se
com o tempo!
Mas restou confirmado que Jean de Monlevade foi cidadão
que teve formação técnica e humanista pesadíssimas! Pelos idos
de 1809, havia estudado na escola de maior prestígio no mundo.
A Polytéchnique de Paris. Depois teve breve passagem pela engenharia militar, e concluiu estudos graduando-se como engenheiro
de minas. Foi nessa condição que veio para o Brasil.
Polytéchnique! A menina dos olhos de Napoleão! Era famosa
por ser de acesso dificílimo. E sem favores. O jovem Stendhal,
recém-premiado com o primeiro lugar de matemática de Grenoble, e futuro grande escritor de O Vermelho e o Negro, foi um dos
que, por perda de horário de provas, lamentou não ter tido oportunidade de vestir o uniforme de tão singular instituição.
Tudo acima foi motivo bastante para que eu ficasse imaginando coisas. Quais teriam sido os colegas de Monlevade na clas-
Jean Monlevade, do Castelo à Forja
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se de 1809? Com quais gênios da época manteve contato direto?
O geômetra Gaspard Monge? O físico Gay-Lussac? O filósofo Augusto Comte?...
E minha ideia inicial mudara. Por absoluta impossibilidade,
meu projeto não seria mais uma biografia! Passou para a decisão
de escrever um romance sobre os anos mal conhecidos da vida
do “fundador” do município mineiro de João Monlevade. No fundo, um recorte imaginário de sua vida na França, de suas ideias,
e de suas relações. O mundo dos séculos dezoito e dezenove seria
extremamente propício para tanto.
Mas todo romance é inspirado em algo que o escritor vê ou
sente. Uma pintura vista em museu que retrata cena bucólica do
cotidiano da vida campestre, um perfume que suscita sensação
reprimida, um crime ocorrido em rua escura...
Inspirei-me no que poderia ter acontecido por trás das verdades relatadas por Guinot. Aí foi onde realmente dei asas à minha
imaginação. O fato de Jean de Monlevade ter nascido em berço
de fidalgo, e de ter cruzado a infância durante andamento da revolução francesa facilitaria mais ainda a tarefa. Os efeitos daquele
duríssimo período foram sentidos em sua própria carne e família!
No Brasil teve sua própria. Como vimos, casou-se, criou filhos e terminou seus dias no Vale do Rio Piracicaba
A ocasião não poderia ser mais adequada. Pelos meus cálculos, gastaria 6 meses para escrevê-lo, portanto concluiria o livro
em meados de 2009. Ano da França no Brasil!
No entanto, já praticamente em março, e por motivos alheios
à minha vontade, pouco havia avançado com meu projeto. Foi
quando tomei uma autêntica ducha de água fria! Fiquei ciente
de que um jornalista monlevadense havia sido encarregado por
importante órgão de imprensa regional a elaborar, tal como de
minha intenção, biografia romanceada de Jean de Monlevade!
Minha mulher sorriu quando percebeu minha frustração momentânea: alguém havia se adiantado ao meu desejo. Não se
incomode, disse-me, esqueceu-se que o cálculo diferencial foi
alinhavado simultaneamente, e de forma avulsa, por Newton e
Leibnitz?
Tive que sorrir de volta pelo exagero da comparação. E decidi seguir em frente.
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Monlevade merece ser romanticamente visto por mais de um
par de olhos.
Oxalá outros órgãos de imprensa, instituições públicas e privadas, assim como outros conterrâneos, decidam homenageá-lo
da mesma forma.
Antecipadamente, desejo-lhes um sincero bonne route!
O autor
Vitória, 05/7/2009.
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Esse livro foi editado e impresso em papel
Polen soft 80g/m2 e Capa Triplex 250g/m2
pela Grafer Editora em 2009
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Grafer Editora
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