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O efeito
Obama
e o futuro da democracia planetária
Salvemos o Soldado Obama
Eduardo Lourenço
Obama: Um Ano Depois
ou o Insustentável Peso da Realidade
Fernando Pereira Marques
Os Desafios de Barack Obama
Joaquim Jorge Veiguinha
E Agora a Nova Europa!...
Guilherme d’Oliveira Martins
3
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Fernando Pereira Marques
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Título: Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica n.º 67/68 – Outono/Inverno 2009
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4. A reprodução parcial ou integral dos textos publicados na Finisterra é permitida mediante a autorização da Direcção e indicação da origem.
4
ÍNDICE
O EFEITO OBAMA E O FUTURO DA DEMOCRACIA PLANETÁRIA
Salvemos o Soldado Obama
Eduardo Lourenço
7
Obama: Um Ano Depois ou o Insustentável Peso da Realidade
Fernando Pereira Marques
11
Os Desafios de Barack Obama
Joaquim Jorge Veiguinha
17
E Agora a Nova Europa!...
Guilherme d’Oliveira Martins
27
PARLAMENTO
O Voto nas Eleições Legislativas de 2009: Uma Primeira Leitura
Augusto Santos Silva, Filipe Nunes e Marina Dutra
35
Notas sobre a Conjuntura Pós-Eleitoral
Fernando Pereira Marques
55
IDEIAS
A Construção da Boa Sociedade: O Projecto da Esquerda Democrática
Jon Cruddas e Andreas Nahles
63
Socialismo, Direito e Estado
Paulo Ferreira da Cunha
79
Portugal, Socialismo Ético e uma História de Futuro do Partido Socialista
Carlos Leone
105
Responsabilidade Individual e Justiça Social: Igualdade de Oportunidades ou de Resultados?
Robert Merrill
125
Igualdade Equitativa de Oportunidades e Capacidades na Teoria da Justiça de John Rawls
Regina Queiroz
137
Ética e Cultura, Modelos Económicos e Intervenções Políticas
José Lacerda da Fonseca
153
CULTURA
Palavra e Utopia: António Vieira no Filme de Manoel de Oliveira
Eduardo Geada
185
A Inércia Obediente
João Soares Santos
199
5
SOLTOS
219 Das Espinhosas ao Arame Farpado
Alfredo Margarido
221 Presépios, Árvore de Natal, Pai Natal e Halloween
Alfredo Margarido
LIVROS
227 Há 70 anos Atrás: Quando Tudo Mudou na Europa e no Mundo
Beja Santos
6
COLABORAM NESTE NÚMERO
Eduardo Lourenço – Ensaísta
Fernando Pereira Marques – Professor Universitário
Joaquim Jorge Veiguinha – Ensaísta
Guilherme d’Oliveira Martins – Jurista e Presidente do Tribunal de Contas
Augusto Santos Silva – Sociólogo
Filipe Nunes – Sociólogo
Marina Dutra – Socióloga
Jon Cruddas – Dirigente do Partido Trabalhista Britânico
Andreas Nahles – Dirigente do Partido Social-Democrata Alemão
Paulo Ferreira da Cunha – Professor Universitário
Carlos Leone – Professor Universitário
Robert Merrill – Professor Universitário
Regina Queiroz – Professora Universitária
José Lacerda da Fonseca – Engenheiro Agrónomo
Eduardo Geada – Professor Universitário
João Soares Santos – Ensaísta
Alfredo Margarido – Professor Universitário
Beja Santos – Sociólogo
Carlos Brito – Cartoonista
7
O EFEITO OBAMA
E O FUTURO DA DEMOCRACIA PLANETÁRIA
Salvemos o Soldado Obama
Eduardo Lourenço
A
“Gostei do discurso Nobel de Obama porque reconheceu que era um guerreiro
e não um pacifista disfarçado”
Miguel Esteves Cardoso, Público, 13/12/09
cultura americana herdou das suas origens protestantes um
messianismo estrutural. Raramente este sonho messiânico terá
tido uma expressão tão espectacular, no limite do delírio –
sobretudo aos olhos de uma Europa desiludida de utopias – do
que com a eleição de Barack Obama. Como se o mundo tivesse vivido essa
eleição como coisa própria. O fenómeno foi tão mais extraordinário que essa
América estava então – e continua – atolada no Afeganistão como um mau
remake do Vietname. Também isso influiu na campanha, particularmente
feroz, que levou Obama ao poder, como se através dele a América exorcizasse
ao mesmo tempo os dois maiores pesadelos do seu passado – o do esclavagismo
nunca sepulto no seu inconsciente, apesar de uma guerra civil mal terminada –
e sobretudo o de um imperialismo de tipo novo (democrático) assumido como
missão redentora do Ocidente desde o traumático ataque às Torres. Por tudo
isso, a triunfal vitória de Obama representaria a mais libertadora das vitórias da
América sobre a América e o anúncio de uma era nova, não apenas para ela mas
para o mundo de que é desde Hiroxima e a queda do Muro de Berlim a única
potência hegemónica. Subitamente, como num golpe de magia, a ex-América
de Bush, herdeira de um imperialismo de total boa consciência, pelo menos
depois de Pearl Harbour pelo qual pagou um altíssimo preço, pareceu recuperar a sua virgindade democrática.
A um ano de distância do momento solar Obama, a tentação de ironizar
sobre tão desorbitada leitura do fenómeno – Obama-engano nosso, filho ao
mesmo tempo da nossa paralisia europeia e do ressentimento que nos suscita
– é inevitável, mas seria mais absurda e estéril que a nossa euforia de há um
ano. Obama não tem culpa – ou tem sobrados motivos – para nos ter decepcionado, desiludido ou mesmo “traído” não exemplificando, como se exigiu
logo dele, que fosse o “Jesus negro da História”, ou, pelo menos, o Messias de
que o Ocidente precisa para sair da era de um terror indiscriminado. Tal foi
9
SALVEMOS O SOLDADO OBAMA
o diagnóstico aberrante com que uma América em pânico concebeu exorcizar
cruzando-se e urbi et orbi contra o nebuloso Império do Mal encarnado por um
monstro digno de Hollywood, Ben Laden e a sua corte de desesperados místicos
por conta de um Islão promovido, graças a ele, e a uma discutível leitura do que
está em causa e que ao fim de nove anos se disseminou e ao mesmo tempo se
adensou. Foi deste “monstro” da era Bush que a eleição de Obama pareceu
capaz de nos libertar, libertando uma América perdida no neo-Vietname sem
pano de fundo de guerra fria e libertando, ao mesmo tempo, um Ocidente
envolvido nela à força ou a contra-gosto.
A boa vontade de Obama, o talento pessoal de Obama a sua visível “humanidade” no menor dos seus gestos, sobretudo pelo contraste da era Cheney e seu
imperialismo impiedoso, como está na natureza dele, não nos podem iludir.
Só para a Europa a eleição de Obama foi um acontecimento radioso. Na ordem
interna, nos Estados Unidos profundos de que foi eleito presidente, os dados
políticos, culturais, a luta implacável de interesses que aí se jogam, a própria
mitologia ideológico-política da América como espaço de “livre empresa” – e
isto não é retórica como o pode ser na Europa – são o “dado” não só com o
qual um Presidente deve contar, mas não pode infringir. Uma promessa tão
óbvia e tão incontestável na óptica europeia como uma política de saúde digna
de uma democracia moderna pode ser vista aí por uma grande parte das forças
monopolistas que a enquadram na América como um atentado ao direito de
a resolver a título privado, ideal quase religioso da América pioneira. E assim,
em todas as ordens. A América salva das águas pelo Messias-Obama que os
europeus idealizam não existe ou existe de outra maneira. Nesse capítulo como
no mais decisivo da política mundial herdada da era Bush, Obama teve de
navegar à vista e à vista continuará a navegar. Mesmo em assunto, à primeira
vista mais universalmente consensual, como o do aquecimento global, a sua
atitude discreta em Copenhaga desiludiu. Começam a caricaturá-lo como
um novo Jimmy Carter, samaritano simpático mas político irresoluto, o que,
visivelmente, Obama não é. A perspectiva jornalística no Ocidente compraze-se demasiado no “fait divers” do homem-Obama, na sua “psicologia”, etc...
Mas um homem político, mormente aquele que encarne a maior potência
do mundo não é um “simples homem”. E a América como História – como
histórias – e para quem, como ele, parecia ter o destino da “excepção” e não
da “regra”, como qualquer outro presidente WASP, e não há paradoxo nisso
10
EDUARDO LOURENÇO
– um Obama só pode ser um “super-americano”. Nada lhe será perdoado. A
singularidade e a “universalidade, quase o cosmopolitismo da sua experiência,
enraizamento e cultura não o põem à margem do “paradigma americano”.
Ilustram-no de uma maneira até agora admirável. É a mesma e uma América
outra as que subiram ao “poder” com ele, mas não um poder soberano que a
Democracia americana não comporta nem a veleidade de o poder ser.
Afinal, somos nós europeus que, conscientes disso ou não, guardamos
o nosso passado imperial e monárquico, a ideia de um Salvador ou de um
Ditador com poderes mágicos capazes de fazer a felicidade dos seus súbditos
ou de os arrastar para o abismo. Felizmente não é assim nos Estados Unidos.
Na nossa impotência histórico-política de hoje, nós europeus, podemos, pelo
menos, compreender a dramática situação de um Presidente de boa vontade,
cerceado na sua vontade de paz pelo peso de uma nação mobilizada no mundo
e pelo mundo desde o final da segunda Guerra Mundial numa fuga para a
frente que parecia irresistível, mas de que só a América que se reconhece nele
será capaz de ajudar a sair sem danos mortais para ela e a paz do mundo, do
mais “duvidoso combate” que até hoje se lhe deparou. A reticência europeia
– a começar pela inglesa pode ajudá-lo, mas sem ilusão. A Europa mal existe
vista da América e de uma América que a si mesma mal se vê, não só por ser
complexa e autista, como todas as potências no auge das suas hegemonias, mas
por estar longe de resolver a sua tragédia original de que a emergência salvífica
de Obama se desejou – ou nós por ele – a conclusão mais auspiciosa. Salvemos
o soldado Obama, nós que já não salvamos ninguém, mas cujo destino está
ligado ao da América, tal como é cruzada em nosso nome contra um terror
ao mesmo tempo real e fantasmado, mas com capacidade e meios aos olhos
de um mundo ocidental, incapaz de assumir o papel do Samaritano da nossa
História, confrontada com a tragédia pura. Como a do Haiti, entre outras.
Vence, 16 de Janeiro de 2010
11
12
Obama: Um Ano Depois
ou o Insustentável Peso da Realidade
Fernando Pereira Marques
U
m ano após a eleição de Barack Obama à Presidência dos Estados
Unidos – apesar de a tomada de posse ter sido mais tarde de acordo
com o calendário tradicional – seria inevitável que começassem
a ser feitos balanços do seu mandato. E o tom predominante,
inclusive nos que o apoiaram no próprio país, é o do fosso surgido entre as
expectativas criadas e o que de facto foi alterado ou concretizado.
Em comentário anteriormente publicado nestas mesmas páginas já considerava inevitável que isso acontecesse. Não era preciso ser particularmente
arguto. A eleição de Obama constituiu, evidentemente, uma mudança, mas
não poderia ser uma revolução ou mesmo uma ruptura na lógica de funcionamento de um sistema político que, naturalmente, é emanação de um sistema
económico, ambos por sua vez estando associados à cultura, à história e à sociedade que fazem a especificidade desse país.
A conjuntura favoreceu essa mudança: uma situação económico-financeira
desastrosa, no contexto de uma grave crise que marcou o fim da euforia especulativa dos últimos anos e que não se via desde 1929; o envolvimento numa
guerra em duas frentes principais que, no caso do Iraque, começou por ser
uma mistificação para se tornar um drama e sobretudo um enorme ónus –
em todos os aspectos – para qualquer administração e para os americanos em
geral; um Presidente subdotado – é o qualificativo mais doce de aplicar - que
sendo um produto típico do american way of politics, isolou o país, desprestigiou-o
internacionalmente, semeou o ódio, agravou as tensões a nível planetário e
as disfunções sociais e económicas (lucraram largamente o complexo militar-industrial, as empresas-exércitos-privados e outros grupos económicos
protegidos pelo Governo e por George W.Bush). Só não havendo um candidato democrata suficientemente credível – e havia desde logo Hillary Clinton
– os Republicanos teriam hipóteses de se manter na Presidência.
Neste contexto favorável aos Democratas, o senador Obama marcou,
13
OBAMA: UM ANO DEPOIS OU O INSUSTENTÁVEL PESO DA REALIDADE
indiscutivelmente, uma diferença: em primeiro lugar afirmou-se no interior do próprio partido, e na vital recolha dos milhões necessários a qualquer
campanha, contra uma poderosa máquina dinamizada pela marca Clinton;
em segundo lugar conseguiu transmitir uma mensagem mobilizadora onde
a afectividade se combinava com a racionalidade, um discurso ideologizado e
inteligente capaz de transmitir confiança e tocar o common people, as classes médias
e as minorias mais atingidas pela crise, mas também os estratos politizados e os
jovens sequiosos de convicções e de causas; em terceiro lugar marcou também
a diferença pela própria visão do mundo de quem ultrapassara, desde muito
jovem – e mesmo no seu código genético –, os horizontes estreitos da América
profunda, patentes no texano bronco – apesar de ser membro da dinastia Bush
– que presidira durante dois mandatos1.
Neste sentido reproduziu-se, como aliás foi largamente glosado, um fenómeno em muito idêntico ao de John Kennedy, com a novidade de entretanto
se terem sofisticado as tecnologias de comunicação e de informação, e de se ter
entrado no estádio superior da sociedade espectacular. Donde ter-se criado
um mito e uma meta-realidade que levou a supor – inclusive no estrangeiro
– que Obama poderia ser outra coisa do que aquilo que realmente pode ser.
Ainda hoje ao falar-se do breve período da administração Kennedy, uma
semelhante dimensão meta-real prevalece – a das New Frontiers, a do “Ich
bin ein berliner”– , esquecendo-se o que durante o mesmo aconteceu ou não
aconteceu – no plano das reformas – por força da incontornável força das
coisas estruturais ao sistema, tal qual existe na sua realidade efectiva: desde a sua
eleição ter sido apoiada pela máfia – e só os meninos de coro podem pensar
que um apoio deste tipo não teve um preço, porventura mesmo o da sua vida
-, ou de outras questões como, no plano externo, as políticas prosseguidas em
relação a Cuba (por exemplo, a aventura da Baía dos Porcos) e ao Vietname.
Poder-se-á até dizer que a eleição de Obama se tornou um caso, que merece
estudo, de como um comunicador nato e talentoso, intelectualmente superior,
apoiado por uma equipa brilhante – nomeadamente de ghost writers – conseguiu,
na época da Internet, desencadear uma dinâmica imparável de vitória e de mobilização como há muito (nunca?) se via nos EUA e, por maioria de razões, noutras
1
Seria interessante poder reler os elogios a Bush e a defesa dele feita, face às críticas que a sua eleição suscitou, por
vários e distintos comentaristas, colunistas, directores de jornais e outros que tais da nossa praça que, aliás, afinariam por idêntico diapasão aquando da invasão do Iraque.
14
FERNANDO PEREIRA MARQUES
sociedades desenvolvidas onde os modelos – políticos, ideológicos, culturais,
económicos - se americanizam, como já em 1940 previra o líder do Partido
Comunista Americano, Lewis Corey2. Mas, uma vez eleito, a realidade impôs-se.
A realidade do sistema norte-americano e da conjuntura internacional.
Um dos jovens Democratas membros da actual Câmara de Representantes,
Alan Grayson, fazendo-se porta-voz do descontentamento que alastra entre
as fileiras “liberais” (no sentido norte-americano de “progressista”), em
intervenção proferida no mês de Outubro, criticaria os Republicanos que,
manifestando um profundo desnorte, enveredaram por ataques extremistas e violentos com eco entre as camadas mais reaccionárias da população
norte-americana, acusando Obama de cripto-comunista ou de algo idêntico, ou explorando a sua origem étnica. Todavia, esse mesmo parlamentar
não deixaria de considerar que o Presidente pecava por uma excessiva atitude
conciliadora, nomeadamente em relação aos meios financeiros e dos negócios, não conseguindo tomar medidas suficientemente ousadas para enfrentar
as consequências mais dramáticas da crise. E tal quebra da popularidade de
Obama ficou manifesta em derrotas sofridas por candidatos democratas, após
campanhas em que ele se envolveu directamente, como foi o caso na eleição do
governador de New Jersey3.
No que concerne à emblemática reforma do sistema de saúde, Obama
foi obrigado a sucessivos recuos para conseguir que ela pudesse, finalmente,
passar no Senado em meados de Dezembro. Claro que se pode considerar que
se alcançou uma meia vitória, na medida em que algumas alterações positivas
foram adoptadas e aumentou a protecção de muitos mais americanos – o que
Clinton nunca conseguiu. Tal não impede, porém, que um dos mais destacados membros da ala esquerda do Partido Democrata, e presidente do seu
Comité Nacional, Howard Dean, antigo governador do Vermont e candidato
a candidato em 2004, considerasse que a reforma tinha sido desnaturada.
Mais uma vez se evidenciou, em todo este processo, o extraordinário poder do
lobby dos seguros de saúde privados, reforçado sobretudo por Ronald Reagan
2
Cf. LIPSET, Seymour Martin – “The Americanization of the European Left”, Journal of Democracy, Volume 12,
Number 2, April 2001, p.76.
3
Cf. SOLOMON, Barbara Probst – « Obama, bajo el fuego de los progresistas », El Pais, 17 de octubre de 2009.
Depois de este artigo estar escrito os Democratas perderiam a maioria qualificada que tinham no Senado com a
derrota sofrida no Massachusetts.
15
OBAMA: UM ANO DEPOIS OU O INSUSTENTÁVEL PESO DA REALIDADE
(a partir de 1981). Como explicava, em entrevista ao Le Monde, Wendell Potter,
um antigo quadro que esteve ao serviço de uma dessas sociedades (Cigna), os
interesses em jogo são enormes, existem Estados em que “uma única seguradora
domina o mercado local, fixando sem concorrência as condições de acesso aos
cuidados de saúde e o seu reembolso.” Assim se explica que, inclusive, sobre
essas sociedades não se tenha feito sentir a recessão. A Cigna – para a qual ele
trabalhou -, controla, só ela, cerca de um terço da cobertura de doença dos
Americanos, a maioria das vezes decidindo, unilateralmente, quando e quanto
serão pagos os médicos e os internamentos em hospitais4. Convenhamos,
portanto, que foi melhor que algo se conseguisse do que nada, mas o que aqui
pretendo demonstrar é que não basta o voluntarismo, mesmo bem intencionado, para inverter e romper com as realidades estruturais do sistema nos
EUA, neste domínio da saúde como noutros. É preciso uma vontade política
sustentada num poderoso movimento social reformista, de tipo quase “revolucionário”, como Roosevelt fez, na conjuntura particular dos anos 30, ou
Lyndon Johnson nos anos 60 quanto aos direitos civis.
Outros aspectos têm sido criticados no plano interno e que têm passado
despercebidos no estrangeiro, como o do apoio ao multimilionário
Bloomberg, às próximas municipais de Nova Iorque, em detrimento de um
candidato democrata. Ou, ainda, a forma como, para retribuir o apoio obtido
durante a campanha eleitoral, secundou a frustrada candidatura da pouca
experiente Caroline Kennedy quando se pôs a questão de ocupar o lugar de
Hillary Clinton no Senado.
No plano da política externa, a realidade impôs-se no que se refere ao
Iraque e ao Afeganistão, o envolvimento militar no primeiro não tendo
perspectivas de ser alterado significativamente a médio prazo e, no segundo,
tendo-se mesmo verificado a decisão de enviar mais 30 000 soldados. Também
no Médio Oriente os Estados Unidos não conseguiram contribuir para fazer
recuar o belicismo e o reaccionarismo do actual Governo israelita, particularmente no que se refere à questão dos colonatos. Deste modo, a esquerda
americana volta a mobilizar-se contra o que considera ser o afundamento num
pântano, como foi o Vietname e, William Polk, antigo director do Conselho
de Planificação do Departamento de Estado sob John Kennedy, em artigo
4
Cf. “Ce lobby ne desarmera pas”, Le Monde, mardi, 24 novembre 2009, p.3
16
FERNANDO PEREIRA MARQUES
publicado em The Nation, no princípio de Outubro, considerava que quer os
Estados Unidos quer a NATO iriam sofrer um destino idêntico ao dos soviéticos5. No que se refere à China, poderosa credora dos EUA (uma factura de
700 mil milhões de dólares cria um estado de dependência com preocupantes
consequências geoestratégicas), a atitude tem sido de low profile em relação à
questão dos direitos humanos e por vezes de cumplicidade comprometida,
como se viu em Copenhaga. E pequenos têm sido os passos dados no sentido
do desarmamento nuclear – bandeira agitada durante a campanha - junto da
Federação Russa, para não falar na persistente recusa em ratificar convenções,
como a que visa proibir as minas antipessoais, na não adesão ao Tribunal Penal
Internacional ou, ainda, na insuficiente participação norte-americana na
Conferência de Copenhaga sobre o ambiente que produziu uma mera declaração de intenções sem grande relevância.
Qual a conclusão a tirar? Poderia ser de outra forma? Agora, ainda por
cima com o presente envenenado de um Prémio Nobel da Paz, será que Barack
Obama vai continuar a desiludir os que nele viam mais do uma mudança, uma
ruptura? De facto, como já disse atrás, só se enveredasse pela ruptura e desencadeasse um complexo e ousado processo de afrontamento com as fontes do
poder real nos EUA e com os precários equilíbrios em que assenta a (des)ordem
internacional ele poderia ter ido mais longe. E até poder-se-á convir que seja
verdade, como alguns o acusam, ele ter-se deixado embriagar, de modo algo
narcísico, pelo próprio discurso, ou até de, ingenuamente (mas será possível
esta ingenuidade?), ter interpretado os desejos por realidades.
Mais prosaicamente penso que Obama é aquilo que é e não o que muitos
quereriam que ele fosse. Como se diz popularmente, o que tem de ser tem
muita força, e não nos esqueçamos, por exemplo, que este ano haverá as eleições para o Congresso de meio do mandato. O que, aliás, suscita uma outra
interrogação: se o Presidente nesta altura em que tem a maioria em ambas
as Câmaras não conseguiu (afastemos a hipótese de não ter querido) ir mais
longe, como será depois, se perder essa maioria nem que seja só numa delas?
Repito, a eleição de Obama foi evidente mudança positiva numa América
evoluindo para um preocupante nacional-americanismo teorizado pelos extremistas neoconservadores e encarnado pelo seu Presidente texano. Foi mesmo
5
Cf. “La gauche américaine remobilisé par l’Afghanistan”, Le Monde, jeudi 8 octobre 2009, p.6.
17
OBAMA: UM ANO DEPOIS OU O INSUSTENTÁVEL PESO DA REALIDADE
um corte epistemológico até no que concerne ao lugar dos afro-americanos no
sistema político e na sociedade desse país, mas os próximos tempos nos dirão se
foi mais do que isso, mesmo se isso já foi importante.
18
Os Desafios de Barack Obama
Joaquim Jorge Veiguinha
N
um tempo em que predomina a fugaz conjuntura, o esquecimento
tornou-se ideologia dominante. Já ninguém fala ou se recorda
dos oito anos da administração de George W. Bush. Aqueles que
tanto em Portugal como no estrangeiro se revelaram indefectíveis
defensores da sua política belicista e unilateralista, que defenderam sem provas
nem fundamento a invasão do Iraque – com especial destaque, entre nós, para
Pacheco Pereira, só para citar o exemplo mais paradigmático – já há muito se
remeteram a um silêncio sepulcral, ao verem completamente desmentidas as
suas teses sobre a fantasiosa existência de armas de destruição maciça no Iraque
de Saddam Hussein. Prestigiadas revistas, de que se destaca o semanário liberal
britânico The Economist, empenharam-se em defender, sem reservas, a invasão do
Iraque para, depois, tortuosamente, tentarem desculpabilizar o erro cometido e
salvar a face dos seus responsáveis directos. A utilização da tortura, como arma
de luta contra o terrorismo, encontrou defensores entre os mais respeitáveis
representantes do establishment conservador e liberal. A defesa do militarismo
e das armas nucleares, como formas de erradicar o terrorismo de uma vez por
todas, teve apologistas dignos de figurar na película Doctor Strangelove de Stanley
Kubrick. Por conseguinte, impõe-se um exercício de memória, confrontando
os factos do passado que, no entanto, têm ainda profundas consequências no
presente, com as novas perspectivas abertas pela nova Administração de Barack
Obama.
Durante o mandato de George W. Bush predominaram duas doutrinas
que, apesar de distintas, constituíam duas peças complementares para justificar a estratégia de guerra permanente empreendida pelo ex-presidente
norte-americano e seus conselheiros, de que se destacaram Donald Rumsfeld
e Dick Cheney: a doutrina da guerra preventiva e a do imperialismo benigno.
A primeira teve em Rumsfeld um dos seus principais mentores. Esta baseava-se no pressuposto de que todos os métodos eram legítimos para prevenir
19
OS DESAFIOS DE BARACK OBAMA
ameaças consideradas iminentes contra os Estados Unidos por parte dos
“Estados-párias” ou dos que se integravam no “eixo do mal”. Apesar de não
existirem provas explícitas sobre alegadas ameaças iminentes, a melhor defesa
era o ataque preventivo com vista a debelar o mal pela raiz. Se as suspeitas se
revelavam infundadas e as vítimas colaterais do ataque preventivo aumentassem
exponencialmente, o erro acabava por ser justificado com o argumento de
que se dissuadiria assim outros de tentarem sequer empreender a façanha que
as vítimas do excesso de zelo dos estrategos da guerra preventiva nem sequer
tinham esboçado1.
A doutrina do império do bem era provavelmente a versão soft da lógica
absurdista da doutrina rumsfeldiana da guerra preventiva. Conquistou apologistas em alguns eminentes liberais, de que se destacaram o professor canadiano
Michael Ignatieff e o historiador britânico Paul Kennedy, a que se aliaram os
defensores da missão providencial dos Estados Unidos e da subalternização da
ONU na remodelação da ordem mundial do período posterior à Guerra Fria.
Para estes dois intelectuais prestigiados, os Estados Unidos constituíam uma
potência imperial. No entanto, apesar dos norte-americanos defenderem e
tentarem impor os seus interesses estratégicos, o seu objectivo global era essencialmente benigno, pois visavam fundamentalmente instaurar a democracia
em países e em zonas do globo em que predominavam ditaduras e regimes
autoritários não legitimados pelo voto das populações. Esta doutrina esquecia,
porém, que é o princípio da liberdade de escolha que está na origem da democracia: ninguém pode ser obrigado a ser democrático se não escolher, optar
e sobretudo lutar pela conquista da democracia política. Sob novas formas,
tentava-se ressuscitar os mitos e a ideologia do direito de alguns, pela sua superioridade moral e civilizacional, a colonizar os outros, ainda não maduros para
a democracia que assim se transformaria numa espécie de maná que cairia do
céu libertando os povos oprimidos ou numa espécie de fogo diluviano que,
apesar das incontáveis vítimas dos efeitos colaterais, eliminaria os ditadores e os
tiranos e faria com que os povos submetidos entrassem, finalmente, no paraíso
democrático prometido2.
1
Ver: Veiguinha, Joaquim Jorge - Da dissuasão à guerra preventiva, Finisterra, nº45, Fundação José Fontana, Lisboa,
2003, pp. 115-149.
2
Ver: Veiguinha, Joaquim Jorge - Patético imperialismo!, Finisterra, Fundação José Fontana nº46, Lisboa, pp. 47-62.
20
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
As duas doutrinas tinham, porém, um ponto em comum: ambas consideravam os Estados Unidos como o garante exclusivo da paz e da segurança
internacionais, embora a primeira, de forma menos subtil, defendesse a tese
do 1984 orwelliano de que a melhor maneira de conquistar a paz é fazer a guerra
preventiva. Não faltou também quem quisesse convencer os intelectuais europeus mais cépticos da missão providencial que a Administração de George W.
Bush estava imperativamente a desempenhar para erradicar o Mal do mundo
e impor o Bem. Um grupo de intelectuais norte-americanos, entre os quais se
integravam Francis Fukuyama, Michael Waltzer e Samuel Huntigton, publicou
no jornal Le Monde de 15 de Fevereiro de 2002 uma “Carta da América” com
o louvável objectivo de explicar as “razões” do combate da Administração de
George W. Bush contra o terrorismo. Tese central da carta é que a ONU deve
ser relegada para uma posição subalterna na construção de uma nova ordem
internacional, já que compete aos Estados Unidos, potência mandatada pelas
leis naturais estabelecidas por Deus e reveladas pelos Pais fundadores seus
profetas, restabelecer a justiça no mundo. Os Estados Unidos são, de facto, a
única potência em que o poder e o direito, o might e o right, se complementam
e, por conseguinte, travam sempre uma guerra “justa”, sejam quais forem as
vítimas ou danos colaterais contabilizados, já que entre o deve e o haver o segundo
emerge sempre triunfante em última instância3.
O discurso da tomada de posse do Presidente Barack Obama, em 20 de
Janeiro de 2009, oferece uma nova perspectiva sobre o estado do mundo e o
modo de resolver os seus conflitos4: “O que” – diz o novo Presidente norteamericano – se exige de nós agora é uma nova era de responsabilidade, um
reconhecimento por parte de cada norte-americano de que temos obrigações
connosco, com a nossa nação e com o mundo” (...) “Compreendemos que
o nosso poder por si próprio não pode proteger-nos nem nos dá o direito
de actuar a nosso bel-prazer. Pelo contrário, o nosso poder cresce quando o
usamos com prudência, e a nossa segurança emana da justiça da nossa causa e
da força do nosso exemplo” (...) “Os líderes que tendem a culpar o Ocidente
pelos problemas das suas sociedades têm que saber que os seus povos os julgarão
3
Ver: Veiguinha, Joaquim Jorge - O Império do Bem, Finisterra, nº42/43, Fundação José Fontana, Lisboa, 2002, pp.
207-224.
4
As citações dos discursos do Presidente norte-americano são extraídas do jornal El País de 10 de Outubro de
2009.
21
OS DESAFIOS DE BARACK OBAMA
pelo que construírem, não pelo que destruírem. Os que chegam ao poder
através da corrupção e o silenciamento da sua oposição, saibam que estão no
lado errado da História, porém estender-lhe-emos a nossa mão se quiserem
mudar de rumo”.
Este discurso introduz elementos inovadores que importa sublinhar. Os
Estados Unidos já não se representam a si próprios como nação messiânica,
capaz de resolver os problemas do mundo sem contar com os outros. O tom
sobranceiro e arrogante que caracterizava as intervenções de George W. Bush e
dos seus mais leais conselheiros, é substituído pelo reconhecimento das debilidades de uma nação que pretenda actuar a seu bel-prazer. Só num contexto
de maior cooperação se poderá contribuir para a construção de uma ordem
internacional não apenas mais estável e segura, mas também mais justa. Em vez
da guerra preventiva, recomenda-se a prudência como forma de legitimar o
poder dos Estados Unidos perante os outros Estados. Presume-se também que
são os próprios povos a julgar os líderes que tentam transformar o Ocidente em
bode expiatório dos problemas sociais e políticos que são incapazes de resolver.
Mas isso significa também que quando está em causa a democracia e a liberdade política compete também aos povos a decisão de afastar os dirigentes que
contribuem para sufocar toda a oposição ao seu domínio. Os Estados Unidos
de Obama não se propõem impor à força a democracia, mas simplesmente
estender a mão aos líderes que quiserem mudar de rumo, ou seja, precisamente aos que aceitem submeter-se à vontade democrática livremente expressa
dos seus próprios povos.
A administração de George W. Bush foi responsável pela proliferação
e difusão do armamento nuclear. As provas são por demais evidentes. A
não ratificação de Proibição Total de Ensaios Nucleares (CTBT) teve como
consequência fundamental a criação de condições para legitimar a aposta no
armamento nuclear. Por sua vez, o abandono do Tratado sobre os Mísseis
Antibalísticos (ABM) serviu de pretexto para o projecto de construção do
escudo antimísseis, outro elemento que contribuiu decididamente para a
proliferação do armamento nuclear. Mais grave ainda, mas corolário inevitável
das posições belicistas desta administração, foi a defesa da tese da utilização de
armas nucleares tácticas com vista a combater e destruir os presumíveis arsenais
subterrâneos de armas químicas e biológicas nos “Estados-párias”, de que se
destacava o Iraque de Saddam Hussein.
22
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
Antes da invasão do Iraque, esta estratégia belicista foi defendida como
“solução final” pelos apologistas da tese de que o terrorismo apenas pode ser
erradicado por meios militares e que todas as tentativas que visam contribuir
para a resolução do problema através da via política “fazem o jogo” dos terroristas. Em Portugal, temos um exemplo extremo desta tese na figura de Pacheco
Pereira, o ideólogo do PSD, um reaccionário estrutural, apesar de surgir, em
certos círculos intelectuais menores da nossa querida pátria, como uma espécie
de conservador “iluminado”. Partindo da hipótese de que o regime de Saddam
Hussein não hesitaria em lançar, através dos seus mísseis SCUD que – afirmava – não foram destruídos na guerra do Golfo, o conteúdo dos seus arsenais
biológicos, químicos e nucleares sobre Israel - hipótese que designou elegantemente como “cenário tão pouco imaginativo de tão provável” -, Pacheco
Pereira defendeu, sem temor nem tremor, que não havia lugar para hesitações
e dilações, pois isso equivaleria a fazer o jogo do inimigo “pacifista”: “Qual é
a resposta a este cenário, altamente provável, quando ele for inevitável – ou
seja, quando Saddam tiver as armas que deseja? Por infeliz ironia, então o
único cenário realmente eficaz em termos de impedir o Armagedão pode ser
a utilização de armas nucleares, as únicas que podem garantir o grau de devastação que impeça que não só a liderança iraquiana sobreviva, como muitas das
suas instalações militares escondidas. Haverá milhares de mortes civis. Os EUA
poderão aqui hesitar, mas os israelitas certamente que não.”5
Em suma, para além das suas “suspeitas-certezas” se terem revelado completamente falsas, Pacheco Pereira revela, no seu máximo esplendor, as propensões
atávicas do seu espírito conservador radical. Esta citação dispensa comentários, mas exprime a verdadeira a postura política da personagem, para além de
causar espanto que, num país tão insignificante como Portugal em termos de
estratégia político-militar, existam figuras, como Pacheco Pereira, que tenham
ousado ser mais belicistas do que os mais belicistas apologistas da administração
de George W. Bush. Uma postura inaceitável que não pode ser esquecida e que
define não apenas a natureza específica de Pacheco Pereira, mas também de
quem ainda o considera como ideólogo exemplar da direita moderada, para
além de desprestigiar Portugal perante as camadas mais esclarecidas da opinião
pública internacional. Só que a memória não prescreve e, sempre que possível,
5
Público, 11.9.02
23
OS DESAFIOS DE BARACK OBAMA
deve ser recordada e actualizada para que os responsáveis por este tipo de afirmações acabem, finalmente, por revelar o seu anti-humanismo e demonstrar
perante todos o que são verdadeiramente em termos políticos. Felizmente que
na história do mundo figuras como Pacheco Pereira são efémeras.
Já perdemos, porém, muito tempo com os conservadores atávicos da nossa
praça. É altura de retornarmos a Barack Obama, um tema muito mais interessante. No seu discurso de Praga, em 5 de Abril de 2009, o Presidente dos
Estados Unidos afirma: “Declaro claramente e com convicção o compromisso
dos EUA de procurar a paz e a segurança num mundo sem armas nucleares”
(...) “Se acreditarmos que a proliferação de armas nucleares é inevitável,
estamos a admitir a nós próprios que o uso de armas nucleares é inevitável”.
Esta declaração constitui o início de um virar da página, de que o abandono do
projecto de construção do escudo anti-mísseis é um sinal claro. Ao contrário
do que defendia a administração de George W. Bush, o recurso a armas nucleares não pode ser considerada como solução para a resolução dos problemas
que resultam do aumento da insegurança e da instabilidade das relações internacionais. Antes pelo contrário, é um factor que pode contribuir para as tornar
não apenas ainda mais instáveis e inseguras, mas também para desenvolver uma
espiral de retaliações inspirada na lei de Talião que pode ter como resultado
a destruição total da vida no planeta. Será isto a que aspiram os clones dos
“Pachecos Pereiras” deste mundo?
O anti-islamismo foi outra das características da doutrina de George Bush
filho. Não faltaram famosos intelectuais para apoiarem com argumentos
pretensamente sólidos a ignorância abismal do ex-Presidente da República
norte-americana sobre os povos que não partilhavam a sua crença religiosa
de cristão renascido das cinzas. O argumento dominante foi defendido por
Samuel Huntington, recentemente falecido, no seu célebre ensaio The clash of
civilizations – the remaking of the world order (“O choque das civilizações e a mudança na
ordem mundial”, Gradiva, Lisboa, 1999), publicado em 1996, mas que, após
o 11 de Setembro de 2001, se tornou um best-seller, objecto de uma segunda
edição. A tese central do livro é que os países islâmicos são portadores de uma
cultura intrinsecamente antidemocrática que não respeita a distinção entre a
esfera religiosa e a esfera política, como acontece nos países ocidentais herdeiros
da tradição judaico-cristã. A subalternização dos factores históricos, sociais e
políticos conduzem a uma tese em que apenas os países do Ocidente cristão
24
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
surgem com uma predisposição genética para a democracia, enquanto os países
em que vigora o islamismo estão condenados a uma ideologia em que predomina um fundamentalismo religioso que não olha a meios para se impor a sua
crença aos outros povos. São, por conseguinte, afastadas, desde o início, todas
as possibilidades de evolução no sentido democrático das sociedades islâmicas
em que todas as tentativas de negociação com o Ocidente estão definitivamente
condenadas ao fracasso. Apesar de Huntington não o afirmar explicitamente,
depreende-se, então, que a única solução que resta para resolver o problema
do fundamentalismo islâmico é militar, e não política e social.6
No seu discurso do Cairo, em 4 de Junho de 2009, Barack Obama abriu
novas perspectivas de relacionamento com o mundo islâmico. “Os Estados
Unidos - afirmou - não está em guerra com o Islão (...) “as nossas filhas
podem contribuir tanto para a sociedade como os nossos filhos” (...) “não
tenham dúvidas, o Islão é uma parte da América (...) “Não podemos disfarçar
a hostilidade relativamente a uma religião com o pretexto do liberalismo”.
Estas considerações, embora não critiquem directamente a perspectiva dos
discípulos huntingtonianos, são um desmentido cabal da tese do “choque das
civilizações”, sem fazer concessões ao fundamentalismo islamita. Afirmando
que os cidadãos norte-americano que seguem os preceitos da religião muçulmana não constituem um corpo estranho na nação norte-americana, mas
são parte integrante desta de acordo com o princípio da liberdade religiosa
consagrado na Constituição dos Estados Unidos, o Presidente norte-americano afirma subtilmente que tanto as mulheres como os homens que seguem
os preceitos do islamismo contribuem igualmente para a sociedade, pelo que
não se justificam formas de discriminação e inferiorização das mulheres, como
defendem as teses islamistas mais conservadoras. Em contrapartida, também
não é aceitável que o liberalismo das nações ocidentais e, em particular, a
defesa da igualdade de direitos entre os homens e as mulheres, afirmem a
sua pretensa superioridade civilizacional para anatemizar uma religião e para
defender que o islão é irreformável segundo os padrões ocidentais democráticos, como defendiam – e defendem ainda hoje – os apologistas do “Choque
das civilizações”.
6
Ver: Veiguinha, Joaquim Jorge - A propósito do “Choque de civilizações”, Finisterra, nº40/41, Fundação José Fontana,
Lisboa, 2001, pp. 223-32.
25
OS DESAFIOS DE BARACK OBAMA
Uma das páginas mais negras da administração de George W. Bush foi
a legitimação da tortura como estratégia de combate ao terrorismo. A nova
administração contribuiu para a divulgação de um relatório de 2004 do
Inspector-geral da CIA, bem como dos memorandos do Departamento de
Justiça norte-americano, que revelaram à opinião pública os métodos preconizados pelo chamado manual de tortura da CIA. Veio a saber-se que esta agência
norte-americana dispunha de autonomia para contratar mercenários para
matar terroristas e que Dick Cheney, um dos principais mentores da utilização da tortura para a obtenção de confissões, teria ocultado ao Congresso
norte‑americano informações sobre esta estratégia secreta. O relatório do
Inspector Geral divulgou que a Casa Branca concedeu autorização para
torturar os suspeitos de terrorismo sem correr riscos, bem como a diversidade de métodos utilizados pelos torturadores: manipulação da temperatura
ambiente, celas iluminadas 24 horas por dia, duches de água fria e esfregamento
do corpo com escovas utilizadas para raspar os soalhos, humilhações psicológicas, simulação de execuções, utilização da técnica dos pontos de pressão que
consiste em colocar a mão sobre o pescoço do detido, procurando a carótida e
apertando-a com força, simulação de afogamento (water-boarding), só para citar
os métodos de tortura mais correntes. No entanto, o mesmo relatório - elaborado no período em que George W. Bush ainda reinava incontestado - acabou
por concluir que “a informação extraída aos detidos ajudou a identificar os
terroristas.”7
Apesar da sua conclusão, o relatório do Inspector Geral da CIA revelou
que não se pode distinguir - como alguns liberais e conservadores não se
cansaram de repetir no período em que todos os métodos excogitados para
combater o inimigo terrorista eram lícitos - entre uma tortura soft ou branda,
que poderia ser praticada pelas democracias ocidentais, e uma tortura hard
ou dura, que apenas as ditaduras poderiam utilizar8. Para além das fronteiras
entre tortura hard e tortura soft serem incertas e indefinidas, a prática das rendições, em que suspeitos de terrorismo eram capturados pela CIA e entregues
às autoridades policiais de países em que vigorava a tortura hard, prova que não
7
Fonte: El País, 30.08.09.
8
Ver: Veiguinha, Joaquim Jorge - A proibição da tortura será um tabu?, Finisterra, nº46, Fundação José Fontana, Lisboa,
2003, pp. 147-156.
26
JOAQUIM JORGE VEIGUINHA
podem existir pretensas distinções subtis no seio da tortura: esta constitui uma
forma totalitária de procurar a submissão de outrem para menorizar e destruir
a personalidade do torturado e obter as confissões deejadas pelo torcionário.
Muitas vezes o torturado fornece as informações que os torturadores têm em
mente apenas com o objectivo de se livrar da dor e da humilhação psicológica a
que foi submetido. Por isso, a conclusão do relatório não pode ser considerada
válida tanto sob o ponto de vista ético como sob o ponto de vista jurídico.
A decisão de publicar relatórios e memorandos que, precedentemente, eram
considerados segredo de Estado, expressa uma nova postura perante a questão
da tortura. Além do mais, a promessa de fechar a prisão de Guantánamo e o
acordo sobre a transferência dos detidos desta prisão, situada em território
cubano, para serem julgados em tribunal, em território americano, constituem passos importantes para iniciar um novo caminho. No entanto, Obama
tem revelado algumas hesitações, em consequência das pressões a que está
submetido. Depois de ter, inicialmente, decidido divulgar fotografias comprometedoras sobre os abusos cometidos por alegados torturadores da CIA,
acabou por recuar na sua decisão com o argumento de que “a consequência
mais directa de publicar estas fotografias seria, creio, exacerbar ainda mais os
sentimentos anti-americanos e pôr as nossas tropas em perigo”9. Também não
contestou a tese do novo director da CIA, Leon Panneta, que justificou o “uso
de técnicas especiais de interrogatório”, eufemismo de “tortura”, como resposta
aos horrores dos atentados de 11 de Setembro de 2001. Estas hesitações não
comprometem, porém, as medidas já tomadas de que se destacam o anúncio
do cancelamento do programa antiterrorista da CIA, bem como a formação de
uma equipa, constituída por pessoal de diversas agências e dependente do novo
Departamento da Justiça, para interrogar os suspeitos de terrorismo detidos.
A administração de George W. Bush deixou a Obama quatro presentes
envenenados: o Médio Oriente, o Iraque, o Paquistão e o Afeganistão. No
primeiro caso, a actuação de Obama não tem sido brilhante, já que cedeu
no braço de ferro com Benyamin Netanyahu relativamente ao congelamento
da construção de novos colonatos, que constitui uma condição necessária
para o desbloqueamento do processo político nesta região tão conturbada10.
9
El País, 30.08.09.
10
Ver: Avnery, Ouri – Un tigre de papier dans le camp de la paix, Courrier International, Paris, 15.10.09.
27
OS DESAFIOS DE BARACK OBAMA
No Iraque, está ainda por definir um calendário para a retirada das tropas
norte‑americanas. O Paquistão e o Afeganistão estão a tornar-se cada vez mais
regiões acossadas pela ofensiva talibã. A posição de Obama tem sido, sobretudo
no caso do Afeganistão, a de reduzir o compromisso militar, apesar da oposição
do general Stanley McChrystal, comandante das forças norte-americanas no
Afeganistão, que exige um reforço do contingente militar11,a que o Presidente
norte-americano acabou por ceder. Obama critica a impetuosidade intervencionista de George W. Bush e manifesta-se um opositor de uma guerra longa e
interminável contra o terrorismo, embora defenda que não contribuirá para o
retorno a uma situação que esteve na origem dos ataques do 11 de Setembro12.
No discurso perante a Assembleia-geral da ONU de 23 de Setembro, deixou
bem claro que as linhas mestras da nova política norte-americana abrem
novas perspectivas para a construção futura de uma democracia planetária:
“Procurámos, com palavras e com factos, uma nova era de compromisso com
o mundo. Este é o momento para que cada um assuma a sua parte de responsabilidade para uma resposta global aos problemas globais”(...)”Nenhuma nação
pode tentar dominar outra. Nenhuma ordem mundial que coloque um país
ou um grupo em posição de predomínio sobre outro pode perdurar. A divisão
entre Norte e Sul não tem sentido.”
11
Sobre este conflito ver The Economist, 17.10.09, pg. 14; pp. 30-31. A perspectiva da revista é, porém, nitidamente
pró-McChrystal, ou seja, de reforço da intervenção militar.
12
Ver: Basterra, G. Francisco - “Situation room”, El País, 31.10.09.
28
E Agora, a Nova Europa!...
Guilherme d’Oliveira Martins
U
m ano depois da eleição do Presidente Obama e vinte anos após
a queda do muro de Berlim, no momento em que o Tratado
de Lisboa entra em vigor, o projecto europeu regressa à ordem
do dia. Como ficou patente sob os efeitos da crise financeira
internacional, a União Europeia, como vontade política (e não tanto como
estrutura centralizada) é cada vez mais necessária para garantir a coordenação
de acções e instrumentos, com vista a contrariar a fragmentação e o proteccionismo e a concretizar a defesa e salvaguarda dos interesses e valores comuns.
Quando, no início do século XX, havia quem tomasse como real um desejo
de paz e entendimento para a Europa, quase todos estavam longe de suspeitar
aquilo que viria a passar-se efectivamente. Ao contrário do que pensavam
os bem intencionados e os ingénuos, e confirmando as piores suspeitas e
medos de Stefan Zweig, a tragédia tornou-se inevitável, contrariando quer
aqueles que pensavam que a cumplicidade entre as casas reinantes funcionaria
positivamente a favor do entendimento, quer os que acreditavam em que o
internacionalismo proletário poderia impedir um conflito generalizado.
Depois da ilusão da “Primavera dos Povos” (1848), após a corrida ao poder
colonial em África, perante o desenvolvimento da segunda revolução industrial (desde a emergência dos mercados globais até à influência da economia
da energia), o que aconteceu foi a fragmentação europeia e o artificialismo
dos acordos de 1919, que puseram termo muito provisório à primeira guerra
mundial. As nacionalidades constitucionais oitocentistas, em lugar de terem
dado lugar à lógica liberal, criaram condições para os proteccionismos e para
os nacionalismos egoístas e agressivos. A guerra de 1939-45 foi, afinal, o
resultado da falta de solução durável obtida após o conflito de 1914-18. Além
do mais, a humilhação sofrida pelas potências vencidas só veio a criar condições para que ocorresse uma mistura explosiva no decurso dos anos trinta. Os
acordos de Munique de 1938, longe de terem aberto condições para a paz,
29
E AGORA, A NOVA EUROPA!...
apenas deram tempo a Hitler para que organizasse melhor a ofensiva do “eixo”
no mundo. Bernard Voyenne chamaria, assim, ao ditador o Carlos Magno
Nietzschiano, enquanto símbolo não de uma partilha europeia, mas de uma
rendição sem condições. Daí que as poucas vozes que se levantaram contra o
optimismo ingénuo de Chamberlain, prevendo o que ocorreria até Setembro
de 1939 (há exactamente setenta anos), tenham considerado esses acordos,
sobre a Checoslováquia, como a mais grave e terrível das cedências.
Sabemos o que aconteceu até 1945. O prometido império para mil anos
tornou-se símbolo hediondo das causas mais desumanas – desde o preço
em vidas humanas da guerra até aos efeitos tremendos da “solução final”. A
moderna ideia de Europa só pode ser compreendida, assim, se seguirmos
os acontecimentos do último século e meio: guerra franco-prussiana,
proclamação do Império Alemão em Versalhes, decadência dos impérios
Austro-húngaro e Otomano, arrastamento do conflito mundial iniciado em
1914, revolução russa de 1917, humilhação alemã de 1919, efeitos económicos
da guerra (hiper-inflação alemã de 1923, depressão e desemprego), guerra
civil espanhola, ofensiva do “eixo”, efeito vitorioso da dinâmica aliada, Plano
Marshall, guerra fria… Em 1948, o Congresso Europeu de Haia deu o sinal:
haveria que usar um novo método na reconstrução da Europa e do mundo,
depois da catástrofe da guerra. E a declaração de Paris de Schuman (9.5.1950)
consagrou no plano político o objectivo defendido pelos intelectuais na capital
holandesa. É neste contexto que se insere a obra de Denis de Rougemont,
empenhado em lançar as bases desse novo método, baseado na descentralização e na subsidiariedade (na linha de Althusius). As pessoas e os cidadãos
deveriam, assim, ser a base de uma nova construção, não centrada na perspectiva nacional e nos egoísmos agressivos ou proteccionistas, mas na procura de
uma via pacífica e funcionalista, baseada na economia e na sociedade. Não se
trataria, pois, de criar um super-Estado Europeu nem uma nação europeia,
mas de construir uma solidariedade de facto e de direito, centrada no pluralismo e nas complementaridades, numa palavra, na unidade na diversidade.
Daí a importância da procura das raízes comuns, não em nome da harmonização ou da uniformidade, mas sim de uma unidade nas diferenças.
Fernand Braudel, o historiador da economia, falou do carácter pioneiro
e necessário do projecto europeu. Mas perguntava: “A unidade política da
Europa poderá fazer-se hoje não pela violência, mas pela vontade comum dos
30
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
parceiros? O programa desenha-se, levanta entusiasmos evidentes, mas também
sérias dificuldades”. Mas o historiador lança os alertas necessários, uma vez que
a construção europeia depressa se tornou menos um projecto político de cidadania, para se ficar por uma mera adição de preceitos técnicos e de burocracias.
“É inquietante verificar que a Europa, ideal cultural a promover, venha em
último lugar na lista dos programas em causa. Não há uma preocupação nem
com uma mística, nem com uma ideologia, nem com as águas falsamente acalmadas da Revolução ou do socialismo, nem com as águas vivas da fé religiosa.
Ora a Europa não existirá se não se apoiar nas velhas forças que a fizeram,
que a trabalham ainda profundamente, numa palavra se negligenciarmos os
humanismos vivos. (…) Europa dos povos, um belo programa, mas que está
por formular”. Assim, hoje, mais do que invocarmos os grandes idealistas,
somos chamados a dar um salto desde os ideais até à realidade. E esse salto
tem de se chamar cidadania europeia ou Respublica Europeana. É preciso menos
palavras e melhor definição de interesses e valores comuns (deeds not words, res
non verba). É preciso mais iniciativas da sociedade civil europeia. É preciso
mais ligação entre a legitimidade dos Estados e a legitimidade dos cidadãos. E
quando recordamos figuras como Denis de Rougemont ou Altiero Spinelli,
não podemos esquecer os funcionalistas (como Monnet) e os políticos europeus (como De Gasperi, Schuman, Delors e Mário Soares). A Europa do
futuro constrói-se com mais política, com melhores instituições, com Estados
de Direito e Uniões de Direito.
Rougemont tem razão quando fala de regiões europeias (porque há que
considerar as diferenças entre Estados e nações), mas também tem razão ao dizer
que Portugal é um Estado-nação perfeito (sendo a um tempo nação e região
europeia). Longe da tentação de construir instituições políticas artificiais (que se
tornam perigosamente reversíveis), do que se trata é de superar os egoísmos nacionais pela salvaguarda sã das diferenças culturais (os Estados-nações não podem
ser esquecidos, mas têm de subsistir, compreendendo que se tornaram, a um
tempo, grandes e pequenos de mais). Daí a insistência de Rougemont na história
das regiões europeias, não como abstracção, mas como expressão da subsidiariedade. No fundo, é a dignidade da pessoa que está em causa, como sempre insistiu
Alexandre Marc, um militante europeu centrado na liberdade e na dignidade
humana. Do que se trata, pois, não é de criar uma identidade europeia, mas
de entender a complexidade do pluralismo e das diferenças. E, hoje, depois de
31
E AGORA, A NOVA EUROPA!...
1989, com a Europa aberta e de fronteiras incertas é tempo de compreender que
haverá vários círculos concêntricos, que partem das pessoas e das regiões, mas
que devem entender uma “unidade não unitária”, assente em vinte línguas e uma
literatura e em valores comuns, baseados na unidade e na diversidade (pessoa,
gosto risco, procura da originalidade). É com base nesta comunidade de cultura,
que pré-existe aos Estados, que os europeus devem construir a sua união…
Vinte anos depois da queda do muro de Berlim, no momento em que
entra em vigor o Tratado de Lisboa, devemos recordar o que disse Adolfo
Casais Monteiro, em 1945, aos microfones da BBC: “Europa, sonho futuro!
/ Europa, manhã por vir, / fronteiras sem cães de guarda, / nações com o seu
riso franco / abertas de par em par”. Assim se inicia o poema, abrindo horizontes, no momento culminante do final da guerra. Havia, nesse momento
trágico, a consciência de que a mera lógica nacional, proteccionista, das fronteiras fechadas sobre si mesmas, ou do egoísmo particularista não permitiria
a abertura de condições de reconciliação, a partir de instituições e de uma
cultura de paz. Não se trataria de esquecer a lógica nacional, nem de subalternizar a diversidade cultural, mas de assentar o pluralismo, as diferenças e a
democracia nas complementaridades e na articulação entre a legitimidade das
nações e dos cidadãos. Lido à distância o poema contém a ideia de que a democracia exige não apenas a reorganização das nações, mas sim a ligação entre a
legitimidade próxima e a legitimidade mediata. “Serás um dia o lar comum dos
que nasceram / no teu solo devastado? / Saberás renascer, Fénix das cinzas / em
que arda enfim falsa grandeza, / a glória que teus povos se sonharam / - cada
um para si te querendo toda”. A ideia de “lar comum”, ou de casa comum,
obriga a superar a tentação egoísta dos interesses hegemónicos, que apesar de
historicamente conhecidos, conduzem, nos dias de hoje, ao arrastamento dos
problemas e à sua não resolução. A recente crise financeira e a ilusão das soluções proteccionistas confirmaram de novo esta ideia, de que a Europa como
vontade comum é necessária para a defesa dos interesses de todos e de cada
qual. As guerras civis europeias são um dado insofismável e os últimos séculos
tornaram-nas insustentáveis e trágicas pelas suas repercussões globais.
A primavera dos povos de 1848 projectou, como dissemos, no continente
os ideais da legitimidade liberal, mas acordou as ilusões agressivas dos nacionalismos. A guerra franco-prussiana procurou reformular os impérios, mas
32
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
abriu a caixa de Pandora, que a Guerra de 1914 agravou e que a Segunda Grande
Guerra prolongou, transformando a humilhação do primeiro conflito num
confronto de consequências tremendas. O ideal europeu do século XX tem,
assim, as raízes num grito de sobrevivência. É esse alerta que Adolfo Casais
Monteiro exprime no texto de 1945. “Tua glória a ganharam / mãos que livres
modelaram / teu corpo livre de algemas / num sonho sempre a alcançar! //
Europa, ó mundo a criar!”. Sente-se, afinal, ao longo do poema, esta preocupação de lançar as bases de uma ordem baseada na liberdade. Contra a
violência e a tirania, é a democracia e a ideia de Europa que se ligam. “Que só
o homem livre é digno de ser homem”.Entende-se bem o sentido do texto,
feito a pensar em Portugal e no destino europeu, e o tempo viria a confirmar
a pertinência das palavras. A paz e a reconstrução apenas poderiam fazer-se
com “espírito europeu”. O risco de se eternizarem as guerras europeias seria
tanto mais elevado quanto mais prevalecessem as lógicas puramente nacionais.
E, por isso mesmo, só depois de caído o muro de Berlim foi possível regressar
à compreensão e à actualidade do texto de Casais Monteiro, porque só então
poderia fazer sentido a pertinência de um “lar comum europeu”. Mesmo
assim, a Europa pôde preparar, durante a guerra-fria, através da construção
comunitária, as bases de um projecto comum, visando a coesão económica,
social e territorial. E são esses fundamentos que poderão permitir realizar
o que Jacques Delors há muito propõe: uma União Europeia talvez menos
ambiciosa, mas com a audácia de realizar com uma trintena de membros três
objectivos cruciais: a paz e a segurança no continente e no mundo; o desenvolvimento sustentável e a diversidade cultural. No entanto, a cada passo, sentimos
que falta essa audácia. Prevalecem os pequenos egoísmos (como recentemente
vimos no caso da ratificação checa, em que o espírito de Coménio ficou
postergado pela lógica meramente nacional) e no combate à crise económica
há manifestamente falta de uma coordenação de vontades, que ficou patente
perante a maior eficácia e oportunidades das medidas norte-americanas. Não
se julgue, porém, que se trata de cair na tentação de um super-Estado ou na
ilusão de uma nação europeia. Do que se trata é de contrariar a tendência
uniformizadora da globalização com mais diferença europeia – a favor da paz
e do desenvolvimento. Infelizmente, continua a haver ausência de Europa na
política e na economia mundiais. Desde o governo económico, que falta e
é cada vez mais urgente, à pouca capacidade europeia de influenciar o curso
33
E AGORA, A NOVA EUROPA!...
dos acontecimentos internacionais, estamos perante o desafio de agir como
“potência civil” e como “factor activo de paz”.
Se falámos de Casais Monteiro, teremos de lembrar o enigmático Pessoa,
que fala de “rosto” e de “olhar esfíngico” de Portugal na Europa. Mas, ao longo
do percurso histórico de um velho país europeu, temos de verificar como foi
europeia a nossa vocação universal. Neste porto de partida e de chegada, foi
europeia a origem, de um reino feito por guerreiros, trovadores, comerciantes
e monges, desde Entre Douro e Minho até Coimbra e Alcobaça. Foi europeu
o nascimento dos tempos modernos na revolta burguesa e popular de 1383 e na
renascença pioneira dos Altos Infantes. Foi europeu o impulso das Descobertas
do “Leal Conselheiro” e dos Infantes das Sete Partidas e do Promontório Sacro,
na senda de Marco Pólo e com as informações cartográficas de Fra Mauro. Foi
europeu o projecto do Príncipe Perfeito, de criar na entrada do Mediterrâneo
uma potência moderna e universal… Assim, a Europa começou por fazer
Portugal. Depois Portugal fez a Europa, arrastando-a, na interpretação de
Eduardo Lourenço, para o seu destino universalista. E lembrem-se as “duas
Europas”, as duas razões: a ibérica, castiça, mística e lírica; e a central e nórdica,
do mercado, da modernidade e da ciência. De facto, o imaginário português
foi condicionado por essa dicotomia – de um lado, o Quinto Império e o lusitanismo e de outro a Crítica ilustrada. De um lado, de Vieira a Pascoaes, de
outro, de Damião de Góis a Sérgio. Mas cabe-nos compreender que as duas
razões se encontram e se completam. E se dúvidas houvesse, o exemplo do Padre
Vieira é dos mais significativos: quem duvida que o seu projecto messiânico era
fundamente ancorado numa estratégia racional (desde o regresso dos judeus
à fixação económica)? Mas o enigma está nos quatrocentos anos (desde 1580)
em que “o desencontro entre o ser de Portugal e o ser da Europa se revela
de consequências negativas para a nossa consciência”. É a reflexão de Eduardo
Lourenço que seguimos – dele, discípulo assumido de Antero de Quental e das
“Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”. Longe do entendimento de
que a Geração de Setenta (e, antes dela, Garrett e Herculano) foi decadentista,
do que se trata é de ler o vencidismo, mais irónico do que sério, como um
desafio de reconhecimento de que a Europa continua a ser um horizonte de
emancipação, cosmopolita e universalista.
Fora do fatalismo, trata-se de dizer que só se formos fiéis ao sentido crítico
e ao patriotismo prospectivo poderemos partir da “maravilhosa imperfeição”
34
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
para o desenvolvimento. Fiéis ao sentimento e à razão, à história e ao futuro,
cientes da fecundidade de uma ideia aberta de auto-instituição da sociedade,
ligando democracia e Europa, poderemos olhar para vante construtivamente.
Sérgio, Proença e Cortesão estavam imbuídos desse anseio. Europa e liberdade devem estar ligadas – sendo o humanismo universalista o horizonte desse
desígnio. E Lourenço, ainda ele, alerta-nos: “A nossa entrada na Europa, que
podia ser apenas aproximação forçada e exterior, como em parte o continua
sendo, era – é – também a entrada da Europa em nós, confronto e participação não apenas nos mecanismos de construção europeia, mas imersão mais
intensa, mau grado as aparências em contrário, no magma complexo da herança
cultural e simbólica da Europa” (A Europa Desencantada, ed. Visão, p. 149). Mas
que Europa construímos? Este Tratado de Lisboa não é um “abre-te Sésamo”,
não pode resolver as incapacidades, os egoísmos e a tentação burocrática, mas
pode introduzir a pequena semente de mostarda da democracia, da cidadania e
da coordenação nos interesses comuns. E comecemos pelo controlo da subsidiariedade pelos Parlamentos nacionais! Só articulando as legitimidades dos
Estados e dos cidadãos poderemos avançar. Entenda-se que, assim, poderemos
ganhar todos. Ligando razões, favorecendo a diversidade cultural e tendo
a audácia de distinguir o que é próprio e o que é comum. Mas defendendo
em comum o que é comum, sob pena de nações e Europa se destruírem…
Precisamos de uma Europa, capaz de compreender e de assumir as mudanças
ocorridas nos Estados Unidos – dispondo-se a agir com determinação e com
audácia. E agora, a nova Europa!
35
PARLAMENTO
O Voto nas Eleições Legislativas de 2009:
Uma Primeira Leitura
Augusto Santos Silva, Filipe Nunes e Marina Dutra
E
ste artigo pretende fazer uma primeira leitura dos resultados das
eleições legislativas de 2009, ganhas, com maioria relativa, pelo
Partido Socialista. Fá-lo através da tentativa de responder a três
perguntas fundamentais. A primeira é como é que aqueles resultados comparam com o padrão histórico nacional, desde as primeiras eleições
por sufrágio livre e universal, as que tiveram lugar em 1975, para a escolha da
Assembleia Constituinte. A segunda pergunta é como se estrutura a variação
regional do voto em eleições para o Parlamento. A terceira é, enfim, saber
se 2009 representa algum ponto de viragem na organização e dinâmica do
sistema partidário português.
1. A votação de 2009 face ao histórico da democracia portuguesa
Quando consideramos, numa perspectiva nacional e longitudinal, os resultados eleitorais de 1975 a 2009, deveremos notar certas tendências fortes.
Uma é a rápida estabilização do sistema partidário, a qual, como salientaram
Jorge Gaspar e Nuno Vitorino (1976), ocorre logo nas eleições constituintes
de 1975. O tema principal de estruturação do nosso sistema foi, pois, a escolha
do regime político, após a revolução militar e popular que havia derrubado,
em 1974, a ditadura do Estado Novo. Mais do que qualquer outra escolha,
foi esta que o configurou; e separando, num lado, os partidos defensores de
uma democracia parlamentar pluralista, à europeia, liderados pelo PS e, no
outro, as forças que se lhe opunham, o Partido Comunista e uma miríade de
organizações de extrema-esquerda. Como mostra Carlos Jalali (2007), isto
define a principal exclusão do sistema, que é a exclusão do PCP do governo
nacional, assim como estabelece, como principal dimensão de competição, a
que se verifica entre os dois partidos que lutam, ao centro, pelo governo, o
PS e o PPD-PSD - os quais, todavia, cooperam entre si, quer na definição da
37
O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA
arquitectura do regime político, quer na reprodução das condições da respectiva hegemonia no sistema partidário. Inversamente, CDS e PCP esforçam-se
por sair da posição de relativa exterioridade em que aquelas competição e
cooperação os colocam, através designadamente de esforços para se tornarem
interlocutores, o PCP do PS, e o CDS quer do PS quer do PSD.
Nestes termos – segunda tendência forte – a estabilidade e a previsibilidade do comportamento eleitoral dos Portugueses são acentuadas (Jalali,
2009). Até 1983 (inclusive), a mobilidade do voto é relativamente reduzida
(André & Gaspar, 1987). A emergência do PRD, em 1985, e os seus dois
efeitos – primeiro, a queda brutal da votação do PS para quase metade dos
votos expressos e, depois, a transferência maciça dos seus próprios eleitores
para o PSD, que redundaria na primeira maioria absoluta de Cavaco Silva, em
1987 – vieram, ao contrário do que poderia pensar uma leitura que se ficasse
pelas aparências, consolidar a estrutura do sistema partidário. Desaparecido
após 1987, o PRD morreu depois de ter cumprido duas funções essenciais:
intensificou a volatilidade eleitoral entre os dois blocos da esquerda e direita,
tornando mais “liberto” de lealdades o eleitorado central e com isso enfatizou a
dimensão principal de competição, entre o PS e o PSD, garantindo condições
para uma alternância efectiva entre os dois partidos líderes de governo (Jalali,
2007). Estes dois resultados robustecem a estabilidade das escolhas eleitorais e
do sistema partidário.
O que é visível – terceira tendência a assinalar – quando procuramos identificar ciclos plurianuais.
Entre 1975 e 1983, as características centrais parecem ser a estabilidade do voto e a penalização das forças partidárias com responsabilidades
governativas (André & Gaspar, 1987). O PS, que liderou os governos de
base parlamentar entre 1976 e 1978, perde as eleições de 1979. A Aliança
Democrática (PPD+CDS+PPM), cujo primeiro governo consegue a renovação do mandato em 1980, virá a desmembrar-se em 1983, permitindo
uma vitória folgada do PS.
O segundo ciclo, que ocorre entre 1985 e 1995 (exclusive), é de claríssima
hegemonia do PSD: na década de governos de Cavaco Silva, registou duas
maiorias absolutas, aumentando aliás a votação da primeira para a segunda. Ao
mesmo tempo, depois do descalabro eleitoral de 1985, o PS pôde ir refazendo
um caminho de afirmação (e, no conjunto do sistema, de bipartidarização),
38
AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA
que lhe permitiu chegar ao pós-cavaquismo na posição de alternativa lógica e
exequível.
O terceiro ciclo, que se iniciou em 1995 e, a nosso ver, ainda não terminou,
é de hegemonia socialista, apenas interrompida fugazmente, entre 2002 e
2005, por dois governos de coligação de direita (PSD+CDS). Neste ciclo, o
PS esteve por duas vezes à beira da maioria absoluta, com votações nos 44%
(em 1995 e 1999, com António Guterres), conseguiu-a em 2005, com 45%,
sob a liderança de José Sócrates, e renovou o mandato em 2009, agora com
maioria relativa (37%). Na única eleição legislativa que perdeu, neste período,
obteve mesmo assim 38% dos votos, ficando a dois pontos percentuais do PSD
de Durão Barroso.
Quadro 1 – Resultados dos cinco principais partidos em eleições legislativas,
1976–2009
Fonte: CNE
Quanto à principal dimensão de competição do sistema partidário português, a evolução política e eleitoral tem, pois, reforçado a clareza e a importância
da alternância entre os dois partidos do centro, PS e PSD. Um vasto segmento
do eleitorado, também ele centrista, formula as suas opções de voto com base,
não em vinculações estruturais a identidades ideológicas, mas sim em função
39
O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA
de avaliações de curto prazo, sobre o desempenho do governo por assim dizer
incumbente (o que se submete à eventual renovação de mandato), as qualidades
políticas dos líderes, e designadamente dos candidatos a primeiro-ministro,
e as propostas principais das respectivas candidaturas (Jalali, 2009; Freire,
2009). Este “eleitorado marais” (Jalali, 2007: 86-87) vota estrategicamente e
arbitra a alternância política.
Não obstante, para compreender bem o processo, precisamos de ter em
mente três elementos adicionais.
O primeiro é a fraca diferenciação ideológica entre os dois grandes partidos
(Freire, 2006) – o que não só tem contornos europeus (tratar-se de dois
partidos de governo, cujo acordo em questões de fundo como a economia
de mercado, a política europeia e externa, ou as políticas de justiça ou defesa
é natural e manifesto), como também apresenta esse ponto especificamente
português, que já relevámos, e tem a ver com o facto de o nosso sistema partidário
se ter estabilizado logo em 1974-76, no âmbito de uma conjuntura revolucionária, acomodando numa trincheira os partidos pró-democracia parlamentar
e na trincheira contrária os comunistas. No que toca em particular ao PS,
esta configuração do sistema investiu-o numa “posição-charneira” (Gaspar &
Vitorino, 1976: 29), mais colocado na posição de pivô do que num dos lados
do espectro político; e as políticas que desenvolveu, no governo, sucessivamente
marcadas, até 1985, pela necessidade de acudir a graves crises financeiras, só
acentuaram essa posição. Os inquéritos de opinião que têm procurado apurar
a forma como os Portugueses representam o PS na escala política mostram que
ele é percepcionado como estando claramente à esquerda do PSD e à direita
do PCP, mas numa zona francamente intermédia daquela escala: 5,2 na escala
de 1, esquerda, a 10, direita, em 2002, e 5,3, em 2005 (Quadro 2). E esta
percepção não é abalada pela condição e a imagem projectada pela direcção
partidária da circunstância: nas eleições de 2002, candidatava-se a primeiroministro, pelo PS, um reputado dirigente da sua ala mais à esquerda, Eduardo
Ferro Rodrigues.
40
AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA
Quadro 2 – Posicionamento dos principais partidos políticos na escala política,
segundo as percepções dos eleitores, 2002 e 2005 (De 1, esquerda, a 10, direita)
PARTIDO
2002
2005
BE
2,6
2,6
PCP
2,7
2,9
PS
5,2
5,3
PSD
7,6
7,3
CDS
8,0
7,4
(Reproduzido de Freire, 2009: 190).
O segundo elemento a ter em conta, já bem identificado (Fortes, 2007),
é a assimetria entre as avaliações do eleitorado de esquerda e do eleitorado de
direita sobre os seus próprios governos. Como já dissemos, num quadro de
fraca ancoragem social e ideológica do voto e de fraca diferenciação ideológica
dos partidos, a importância da função de responsabilização dos agentes políticos e dos critérios da avaliação da sua acção relativos a temas de desempenho é
muito grande: a forma como as pessoas avaliam os méritos do governo que vai
a votos e dos líderes que competem entre si pela formação do futuro governo
é crítica para a sua decisão de voto. Mas o eleitorado de direita tende a ser mais
compreensivo perante as falhas de um governo da sua cor do que o eleitorado
de esquerda colocado em situação equivalente. A insatisfação crítica é mais
frequente, ceteris paribus, no eleitor socialista e a fidelidade partidária e ideológica parece mais eficaz, em termos de decisão de voto, no eleitor de direita. Esta
assimetria penaliza clara e evidentemente o PS.
Quanto ao terceiro elemento que precisamos de considerar para compreender bem as dinâmicas de alternância arbitradas pelo eleitorado centrista, ele
diz respeito à importância da diferenciação dos partidos, aos olhos dos eleitores, segundo os seus valores e programas. Este elemento nem sempre tem
sido bem explicitado. Em particular, o primeiro estudo pós-eleitoral realizado em Portugal, na sequência das eleições legislativas de 2002, sugeria que a
preponderância da função de responsabilização no sistema político português
– as eleições servem sobretudo para gratificar ou penalizar os governos cessantes
– tinha por consequência a natureza residual da função de representação, isto
é, da capacidade de expressão parlamentar das preferências individuais e das
41
O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA
clivagens políticas internas à sociedade portuguesa (Freire, Lobo & Magalhães,
2004: 363-369). Ora, os resultados do segundo estudo pós-eleitoral, empreendido na sequência das eleições de 2005, vão em sentido bem diverso: “o
voto maioritário na [então] oposição de esquerda esteve estreitamente relacionado com a defesa dos serviços públicos, com atitudes mais liberalizantes em
matéria de aborto e com orientações pós-materialistas” (Freire, 2009: 215); à
avaliação negativa do desempenho do governo de Santana Lopes e do estado da
economia, juntaram-se, no mandato conferido ao PS, razões mais ideológicas
e éticas (Magalhães, 2009). E, reconhecem os autores, o problema talvez tenha
estado nas “limitações dos indicadores usados” em 2002 (Freire, 2009: 216).
Veremos o que sugerirão estudos equivalentes para as eleições legislativas
de 2009, onde, a julgar pela campanha, foram nítidos e fortes os fundamentos ideológicos das alternativas em presença, seja em matéria de economia
(convicção ou cepticismo face ao investimento público), seja em matéria social
(sistemas públicos versus sistemas mistos na saúde, segurança social e educação),
seja na chamada agenda pós-materialista (consagração ou rejeição da possibilidade de casamento civil homossexual). Por enquanto, deverá notar-se que os três
elementos que assinalámos se completam entre si. Quer dizer: os dois partidos
de governo, PS e PSD, disputam intensamente um vasto eleitorado centrista,
que os vê, a eles próprios, como partidos centristas; a avaliação do desempenho
do governo cessante é crítica para a formação do sentido de voto; e, não obstante,
os eleitores reconhecem também diferenças doutrinárias e programáticas entre
as candidaturas rivais e têm-nas em conta na decisão que tomam.
A amplitude e o posicionamento do eleitorado marais e os termos da
contraposição entre PS e PSD, sendo fundamentais para explicar os resultados eleitorais, não esgotam, contudo, a explicação. Para além das dinâmicas
interbloco (direita versus esquerda), contam também as dinâmicas intrabloco
(internas à direita e internas à esquerda). Ora, há, neste aspecto, diferenças
consideráveis entre os dois grandes campos políticos.
Em primeiro lugar, em termos eleitorais. É enorme a porosidade entre
os eleitorados dos dois partidos de direita. Em 1987 e 1991, o PSD de Cavaco
Silva conseguiu reduzir o CDS à insignificante percentagem de 4% de votos
– e essa foi uma das condições fundamentais para as maiorias absolutas de
então. Inversamente, a incapacidade do PSD de Manuela Ferreira Leite para
recuperar eleitoralmente, em 2009, foi parcialmente compensada por um
42
AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA
importante avanço da votação do CDS, num contexto de subida da votação à
direita por comparação com a eleição antecedente.
É certo que o PS conseguiu conquistar sistematicamente votos ao PCP, desde
1991, e não se pode dizer que tenha recuado na relação de forças que impôs:
as coligações eleitorais do PCP, que chegaram a valer 19% dos votos em 1979 e
18% em 1983 e ficaram reduzidas a 9% em 1991, nunca mais regressaram aos
números de dois algarismos. É também certo que, em 2002, com uma inequívoca afirmação à esquerda, o PS pôde atenuar a dimensão da derrota pela forte
mobilização do eleitorado de esquerda e pela contenção do crescimento das
forças à sua própria esquerda. Mas os estudos de sociologia política disponíveis
ilustram as diferenças estruturais entre o eleitorado do PS e a base eleitoral
primária do PCP, sendo entre estes dois segmentos que mais se evidenciam
as clivagens segundo a condição social e os valores religiosos (Jalali, 2007); e,
portanto, sendo clara a progressão, no tempo longo, do PS face ao PCP e a
aproximação de parte dos seus eleitorados, sempre haverá, no futuro próximo,
limitações ao alcance desses dois processos. Depois, o PS confronta-se, desde
1999, com a concorrência de uma nova força política, o Bloco de Esquerda, no
seu terreno eleitoral – e essa força não tem cessado de crescer, obtendo 2% dos
votos em 1999, 3% em 2002, 6% em 2005 e 10% em 2009.
Mas as diferenças mais consideráveis entre a direita e a esquerda ocorrem
no plano político ligado às condições de governação. Com a única excepção
de 1985, a direita liderou governos com maioria absoluta no Parlamento:
ou monopartidária, nos executivos do PSD entre 1987 e 1995, ou em coligação entre PSD e CDS (1979-1983 e 2002-2005). À esquerda, o panorama
é muito diverso. Nos casos em que foi vencedor com maioria relativa (todos
menos o de 2005-2009), o PS nunca logrou qualquer forma de apoio parlamentar estável à esquerda – embora a esquerda dispusesse de amplas maiorias
em 1976, 1983, 1995, 1999 e 2009. Os dois únicos governos de coligação que
liderou foram construídos (e depois destruídos…) à sua direita (com o CDS,
em 1978, e com o PSD, entre 1983 e 1985).
Há, pois, uma assimetria estrutural entre a direita e a esquerda portuguesas,
e a favor da primeira, no que toca à capacidade de converter maiorias eleitorais
em maiorias de governo. E, como a inexistência de unidade entre as esquerdas
tem raízes profundas na contradição entre as suas posições em questões-chave
como as políticas de soberania, a integração europeia, a economia de mercado
43
O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA
ou a sustentação do Estado social, não se vê outra hipótese ao PS senão lutar
pela maioria eleitoral mais robusta possível, para governar sozinho.
2. A evolução da variação regional do voto
O Partido Socialista ganhou as eleições legislativas de 2009 com dois milhões
de votos, 37% do total. Em termos absolutos, é a quarta melhor votação da
série (Quadro 3). Perdendo meio milhão de votos entre 2005 e 2009, ficou
ao nível das votações obtidas em 1983, quando venceu e pôde formar o governo
do Bloco Central, e em 2002, na “derrota honrosa” de Ferro Rodrigues –
bem longe, portanto, dos anos sombrios de 1985-1991.
Quadro 3 – Resultados do PS em eleições legislativas
PS
Nº (10³)
%
1976
1.912
35
1979
1.642
27
1980
1.673
28
1983
2.061
36
1985
1.204
21
1987
1.254
22
1991
1.671
29
1995
2.584
44
1999
2.360
44
2002
2.056
38
2005
2.574
45
2009
2.069
37
Fonte: CNE
A votação de 2009 é, porém, a segunda pior da década e meia de hegemonia eleitoral dos socialistas (1995-2009). Que ela se tenha traduzido em
vitória deve-se muito ao facto de o conjunto da direita não ter conseguido
alterar significativamente a “anomalia” que registara em 2005, quando, pela
44
AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA
primeira vez desde 1976, havia ficado abaixo dos 40%. E por responsabilidade
clara do PSD e da liderança de Manuela Ferreira Leite, que apenas conseguiu acrescentar duas magras centenas de votos ao desastroso resultado obtido
por Santana Lopes no sufrágio de 2005. Do ponto de vista da relação entre
blocos, 2009 repetiu, embora com menor expressão, um dos factos capitais de
Fevereiro de 2005: vitória socialista em contexto de crescimento da esquerda
comunista e revolucionária.
Importa, contudo, para ter uma ideia clara dos desempenhos dos vários
partidos, compreender um pouco a sua sociologia e geografia eleitoral. Tanto
quanto sabemos, nenhum dos estudos pós-eleitorais, realizados a propósito
das legislativas de 2002 e 2005, das europeias de 2004 ou das presidenciais
de 2006, relevou o papel da condição socioprofissional no sentido de voto dos
inquiridos. As aproximações ensaiadas por via da geografia eleitoral – relacionando votações obtidas e características sociais de base concelhia – são muito
indirectas (cf., porém, Gaspar & Vitorino, 1976; André & Gaspar, 1987;
Freire, 2005).
Conhecemos muito melhor os perfis regionais das votações nos diferentes
partidos. E, também aqui, as clivagens fundamentais manifestaram-se logo
no primeiro sufrágio livre, em 1975 (Gaspar & Vitorino, 1976). A dicotomia
principal ocorre entre o Norte, onde a direita tem os seus bastiões, e o Sul,
onde predomina a esquerda. Os mapas relativos à votação do então PPD (mais
influente a Norte) e do PCP (mais influente no Sul) são, aliás, o exacto negativo
um do outro (cf. Gaspar & Vitorino, 1976: 40-46). Esta dicotomia sobreleva
outras duas, todavia presentes: a oposição entre meio urbano e meio rural e a
oposição entre o litoral e o interior. E se, em geral, a esquerda é mais favorecida nos centros urbanos e o voto na faixa litoral do Norte menos conservador
do que no interior, o facto é que a forte implantação do PCP no proletariado rural alentejano introduz uma modulação não desprezível neste tipo de
regularidades. Não há, pois, uma estrita correspondência entre as clivagens
de natureza socioeconómica e as de natureza político-eleitoral: “enquanto a
grande dicotomia do voto é entre o Norte e o Sul, a principal dicotomia portuguesa, no que respeita ao nível social e económico do desenvolvimento, é entre
a faixa eleitoral, que vai da periferia sul de Lisboa à periferia norte do Porto, e
o resto do País, tanto no Sul como no Norte” (Gaspar & Vitorino, 1976: 82).
Ora, neste mapa, o grande recurso específico do PS é o equilíbrio regional
45
O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA
da sua votação. O voto significativo no PS estende-se por todo o território
nacional, embora seja mais forte no Centro, no Algarve, na área metropolitana do Porto e na margem norte da área metropolitana de Lisboa. Assim, em
1975, o PS compete em todos os círculos eleitorais, a norte com a direita, a sul
com os comunistas e aliados.
Este padrão não desapareceu. Se olharmos para o mapa das votações no
Continente nas três últimas eleições legislativas (Mapa 1), logo notaremos que,
mesmo na sua última vitória, em 2002, o PSD não conseguiu ser o primeiro
partido em nenhum círculo eleitoral a sul da linha formada por Leiria,
Coimbra e a Guarda – e isto é algo que lhe acontece desde 1995. Mas adquiriu
outra complexidade.
Mapa 1 – Partidos vencedores nos círculos eleitorais do Continente, 2002–2009
Em primeiro lugar, os quatro maiores partidos foram alargando, ao longo
destes 34 anos de eleições nacionais parlamentares, a sua área de influência.
Mesmo o PS, de implantação mais difusa, o fez, aumentando ainda mais o
carácter “nacional” da sua votação – ao conquistar os redutos alentejanos do
46
AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA
PCP e ao progredir nos círculos hegemonizados pela direita (incluindo nas
duas Regiões Autonomias, onde passou a ser o partido vencedor nos Açores
desde 1996, e esporadicamente na Madeira, onde chegou a empatar com o
PSD em número de mandatos em 2005 para sofrer, depois, um descalabro
eleitoral em 2009). O PSD reforçou a presença no Sul, a partir dos dois
governos da Aliança Democrática. O PCP sofreu um processo análogo, mas
pela negativa, porque a alguma progressão a norte correspondeu uma bem
mais significativa perda dos bastiões alentejanos. E o CDS também acentuou a
sua dimensão nacional num contexto de diminuição global das votações, desde
1983 (cf. Jalali, 2007).
Em segundo lugar, a extensão do voto urbano no PS vê-se desafiada com a
emergência do Bloco de Esquerda, com expressão relevante a partir de 2002
(cf. Freire, 2005).
As clivagens territoriais que se haviam evidenciado de forma tão nítida nas
eleições iniciais de 1975 foram-se, pois, atenuando, e logo na década subsequente (André & Gaspar, 1987). O seu peso varia também, naturalmente, de
acordo com a dimensão dos resultados eleitorais: bastará recordar que, nas
três maiorias absolutas até agora verificadas, o PSD apenas perdeu a primazia
na votação, em 1987, nos círculos de Beja, Évora e Setúbal e, em 1991, no de
Beja; e que o PS, em 2005, só em Leiria e na Madeira é que não foi o partido
mais votado.
Mas isto não quer dizer que a geografia eleitoral portuguesa não tenha
consistência e significado. Pelo contrário. E a força da velha contraposição
entre Norte e Sul vem ao de cima, com lapidar clareza, nas votações em que
estão directamente em causa valores éticos e religiosos. Falamos naturalmente
dos dois referendos à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, o
de 1998 e o de 2007, em que verdadeiramente se confrontaram dois “países”
(Mapa 2).
47
O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA
Mapa 2 – Resultados dos referendos à despenalização da interrupção da
gravidez, 1998 e 2007, por concelho
No quadro desta geografia eleitoral, a variação regional da votação do
partido vencedor em 2009 não deixa de dar indicações adicionais relevantes
(Quadro 4). Ao nível distrital, e por comparação com 2005, o PS sofreu as
maiores perdas nos círculos onde tinha conseguido resultados mais extraordinários, fosse pela expressão atingida pela sua tradicional implantação, seja pela
progressão conseguida face à direita ou ao PCP. Estão no primeiro caso, por
exemplo, Faro, Portalegre ou Castelo Branco, e, no segundo caso, a Madeira e
Beja. Por outro lado, o PS resistiu melhor em círculos onde a sua implantação
era ainda fraca (como Leiria ou Viseu) e noutros cujas características sociais
definem como praças-fortes do voto socialista, como Braga ou o Porto.
48
AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA
Quadro 4 – Variação do voto no PS, 2002–2009, por círculo eleitoral do território
nacional
2009–2005
Aveiro
Beja
Braga
Bragança
Castelo Branco
Coimbra
Évora
Faro
Guarda
Leiria
Lisboa
Portalegre
Porto
Santarém
Setúbal
Viana do Castelo
Vila Real
Viseu
Açores
Madeira
Europa
Fora da Europa
TOTAL
-7
-16
-4
-9
-15
-8
-15
-17
-11
-5
-8
-17
-7
-12
-10
-6
-8
-6
-13
-15
-8
2005–2002
em pontos percentuais
8
7
8
12
10
4
7
9
12
6
5
10
7
8
4
7
12
9
12
9
12
5
7
2009–2002
0
-9
4
3
-5
-3
-8
-9
1
1
-2
-7
1
-5
-5
1
4
4
-1
-6
-1
Fonte: CNE
Estas particularidades são ainda mais nítidas se fizermos a comparação
distrital/regional entre 2002 e 2009, anos em que, como já vimos, o PS obteve
votações nacionais quase iguais, quer em termos absolutos quer em termos
relativos. De facto, o minúsculo PS cresceu, percentualmente, de um para o
outro acto eleitoral, em Braga, Vila Real, Viseu, Bragança, Porto, Leiria, Viana
do Castelo e Guarda.
Em 2009, o PS obteve as suas votações mais expressivas, em termos relativos, nos distritos de Braga, Porto, Castelo Branco, Coimbra e Portalegre,
para além da Região Autónoma em que é governo (Açores) (Quadro 5).
49
O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA
São distritos urbanos e de transição, mas significativamente todos situados a
norte do Tejo, três no litoral e dois no interior.
Quadro 5 – Votação no PS, em 2009, por círculo eleitoral do território nacional
(em %)
Aveiro
Beja
Braga
Bragança
Castelo Branco
Coimbra
Évora
Faro
Guarda
Leiria
Lisboa
Portalegre
Porto
Santarém
Setúbal
Viana do Castelo
Vila Real
Viseu
Açores
Madeira
34,6
34,8
41,7
32,9
41
37,9
35,0
31,9
36
35
36,3
38,3
41,8
33,7
34
36,3
36,1
34,7
39,7
19,5
Fonte: Ministério da Justiça
A ancoragem do voto socialista é ainda mais bem documentada pelo mapa
dos resultados concelhios: com a assinalável excepção de Loulé, a direita não
vence em nenhum concelho do Sul, e o PS ganha em todos com a excepção de
oito concelhos alentejanos e um ribatejano, conquistados pela CDU (a coligação
eleitoral do PCP); a mancha de hegemonia socialista prolonga-se, no interior,
por concelhos de Castelo Branco e da Guarda e, mais forte no litoral, penetra
expressivamente para o interior desde Lisboa até Castelo Branco, no eixo
Figueira da Foz-Coimbra, na envolvente sul e norte do Porto, pelos vales do
Sousa, Tâmega, Ave e Cávado e na coroa norte de Viana do Castelo (Mapa 3).
50
AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA
Mapa 3 – Partidos vencedores nos concelhos do Continente, 2009
3. A reconfiguração do sistema partidário português
As eleições de 2009 não alteraram, a nosso ver, os traços fundamentais do
sistema partidário português. A sua estabilidade é manifesta. Isto não equivale,
certamente, a negar os sinais de erosão, como o fraco nível de activismo, o alto
abstencionismo juvenil, o difícil enraizamento social das organizações partidárias e os sinais públicos de desafiliação. Mas, se deve ser colocada a questão de
saber se aquele sistema se encontra sob pressão, ainda se pode dizer que, tudo
somado, tem conseguido resistir (cf. Lobo, 2009).
Na verdade, foi fixada logo em 1975, nas eleições para a Assembleia
Constituinte, a estrutura de quatro partidos com presença parlamentar relevante e contínua – o Partido Socialista, o Partido Popular Democrático, depois
rebaptizado como Partido Social-Democrata, o Partido Comunista Português
e as suas metamorfoses eleitorais (desde o Movimento Democrático Português
até à Aliança Povo Unido e à Coligação Democrática Unitária), o Centro
Democrático Social.
51
O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA
O primeiro desafio de vulto a esta estrutura quadripartida, que foi a criação
do Partido Renovador Democrático, falhou, acabando por ter dois efeitos
muito importantes de consolidação do sistema quadripartido, que foi a intensificação da mobilidade centrista interblocos e o favorecimento da alternância
bipartidária. Em 1991, a concentração de votos no PSD e no PS foi a maior
de sempre, alcançando quatro quintos dos votos expressos (Quadro 1). E não
desceria abaixo dos 75% até 2005 (quando foi, mesmo assim, de 74%).
Do segundo desafio, pode dizer-se que está em curso. Já em 1976, 1979
e 1980, a extrema-esquerda portuguesa havia alcançado um assento parlamentar. Em 1999, mercê da reunião de esforços entre as várias organizações
desse segmento e, sobretudo, da eficácia em apresentar-se publicamente como
uma nova força, sui generis, e do aproveitamento das hesitações do PS de Guterres
na agenda pós-materialista, o novel Bloco de Esquerda assegurava a eleição de
dois deputados. O número passou a ser de três em 2002, oito em 2005 e 16
em 2009, ultrapassando o Partido Comunista (Quadro 6).
Quadro 6 – Distribuição dos mandatos parlamentares, 1976–2009
1976
107
73
42
PS
PSD
CDS
AD
BE
(UDP + PSR)
CDU
PRD
PSN
1979
74
1980
74
1983
101
75
30
128
134
1
1
1
1
40
47
41
44
1985
57
88
22
38
45
1987
60
148
4
31
7
1991
72
135
5
17
1995
112
88
15
15
1999
115
81
15
2002
96
105
14
2005 2009
97
121
81
75
21
12
2
3
8
16
17
12
14
15
1
Fonte: CNE; em 1976 o nº de eleitos ainda era variável; a partir das legislativas de 1991, o número de eleitos
desceu de 250 para 230.
Até agora, o desafio colocado pelo BE tem sido, pois, coroado de sucesso.
E introduziu um novo elemento na estrutura do sistema de partidos: da
configuração 2+2 – dois grandes partidos, PS e PSD, e dois médios, PCP e
CDS – passámos para a configuração 2+3, com a afirmação de um terceiro
partido de média representação, o BE. Mas isto não retirou centralidade aos
52
AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA
dois partidos rivais pela liderança do governo, os únicos que realmente a
disputam e alternadamente a conquistam. A dinâmica de bipartidarização,
tão intensa, como já vimos, entre 1987 e 2005, mitigou-se bastante; mesmo
assim, PS e PSD, juntos, representam, em 2009, dois terços dos votos e três
quartos dos assentos.
Além do mais, a vitória do PS, na última eleição parlamentar, ainda que
relativa, representou uma dupla derrota da estratégia do BE: primeiro, porque
este falhou o seu objectivo assumido de precipitar uma queda abrupta da
votação socialista, que precipitasse o debate, externo e interno ao PS, sobre
a recomposição e a liderança do campo da esquerda portuguesa; e, segundo,
porque, ao não verificar-se uma maioria aritmética constituída pela soma dos
deputados do PS com os do BE, o BE perdeu a capacidade de poder condicionar, por si só, a estratégia do novo governo Sócrates.
Finalmente, ainda é cedo para dar por irreversível o crescimento eleitoral
do BE e, designadamente, uma supremacia sobre o PCP. Quinze dias depois
das eleições legislativas, os resultados das eleições autárquicas mostravam isso
mesmo, relegando o BE para um desempenho pouco menos que humilhante,
com uma votação nacional na ordem dos 3%, apenas uma câmara municipal
mantida e 9 vereadores eleitos a nível nacional – nenhum, aliás, para os executivos das cidades de Lisboa e Porto, os lugares emblemáticos para o projecto de
uma esquerda urbana e renovada. Sabida também a desproporção de poder
de influência no meio sindical, comparativamente com o PCP e o PS, seria
imprudente outra atitude analítica que não esperar pelos próximos desenvolvimentos político-eleitorais. A comunicação entre os eleitorados das esquerdas
– e, em particular, entre o socialista e o bloquista – funciona em mais do que
uma direcção.
Em suma: percentualmente, a soma das votações logradas, em 2009, pelos
dois partidos parlamentares à esquerda do PS, foi de 18%, o valor mais alto do
último quarto de século, exactamente igual à percentagem obtida pela coligação
do PCP em 1983; mas a coerência e a consistência políticas dos dois resultados
são bem diferentes.
A bipartidarização característica do sistema partidário português
mantém-se, portanto, embora mais mitigada na sequência das últimas eleições.
A principal dimensão de competição opera-se entre PS e PSD; e a exclusão
da extrema-esquerda não se alterou com a afirmação do BE, porque este se
53
O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA
colocou na mesma posição anti-sistema do PCP. Permanece a assimetria entre
os dois campos da direita e da esquerda, em termos de condições de governação, havendo agora, na última, o ingrediente adicional da própria emulação
entre PCP e BE – que não raras vezes é emulação no que respeita ao grau de
criticismo face ao executivo e ao grupo parlamentar socialistas.
E dois factos adicionais contribuem para tornar mais difíceis tais condições.
O primeiro é que, pela primeira vez desde 1976 (descontado naturalmente o
cenário de Bloco Central, em 1983), a maioria relativa de deputados do PS
é inferior ao conjunto dos deputados do PSD e do CDS. O segundo é que,
pela primeira vez desde sempre, o governo minoritário do PS coexiste com um
Presidente da República eleito à direita.
Veremos como vão evoluir as coisas. Ao longo dos últimos cinco anos, o
desempenho eleitoral do partido vencedor em 2009, o PS, tem variado consideravelmente: maioria absoluta nas eleições legislativas de 2005, derrota clara
nas eleições autárquicas do mesmo ano, derrota forte do seu candidato oficial,
nas presidenciais de 2006, vitória da posição por si defendida no referendo à
despenalização da interrupção voluntária da gravidez, humilhação nas regionais antecipadas (de facto, quase plebiscitárias) da Madeira, em 2007, vitória
e renovação de mandato nas regionais de 2008 nos Açores, derrota severa nas
europeias de Junho de 2009, vitória relativa nas legislativas, três meses depois,
e consolidação da votação nacional e progressão de câmaras detidas, nas autárquicas de Outubro (Quadro 7). No princípio de 2011 ocorrerão novas eleições
presidenciais, que poderão ter efeitos directos na dialéctica entre Governo,
Parlamento e Presidência.
Quadro 7 – Votos no PS e nas posições do PS, 2005–2009
LEGISLATIVAS AUTÁRQUICAS
2005
2005
2.588.312
1.933.041
Fonte: Ministério da Justiça
54
SOARES
2006
REFERENDO
2007
EUROPEIAS
2009
LEGISLATIVAS
2009
AUTÁRQUICAS
2009
785.355
2.237.565
946.818
2.068.560
2.084.382
AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA
Tudo aconselha, por conseguinte, atenção, observação cuidada e interpretação prudente. O facto é que, no final de 2009, o PS havia renovado o
seu mandato, agora com maioria relativa na Assembleia da República, prosseguindo um ciclo de hegemonia político-eleitoral que se prolonga desde 1995
– no quadro de um sistema partidário que se mantém estável nas suas características determinantes mas está provisória ou perenemente reconfigurado numa
estrutura de dois partidos grandes e três médios, e no quadro de uma geografia
eleitoral que continua a contrapor, embora de forma mais atenuada do que no
momento fundador de 1975, o Norte e o Sul, o meio rural e o meio urbano.
55
Referências bibliográficas:
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Baptista Coelho (org.), Portugal: O Sistema Político e Constitucional 1974-1987, Lisboa: Instituto de
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 267-277.
Fortes, Braulio Gómez (2007): “Os eleitores de esquerda perante o Partido Socialista:
duros e pragmáticos”, in Freire, André, Marina Costa Lobo & Pedro Magalhães, orgs.: Eleições
e Cultura Política, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.
Freire, André (2005): “Geografia e sociologia do voto no Partido Socialista”, in Vitalino
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Freire, André (2006): Esquerda e Direita na Política Europeia: Portugal, Espanha e Grécia em Perspectiva
Comparada, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.
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velhas questões com nova evidência”, in Lobo & Magalhães (2009): 183-223.
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Eleições Legislativas de 2002, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.
Gaspar, Jorge & Nuno Vitorino (1976): As Eleições de 25 de Abril: Geografia e Imagem dos Partidos,
Lisboa: Livros Horizonte.
Lobo, Marina Costa (2009): “Introdução” in Lobo & Magalhães (2009): 19-36.
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Jalali, Carlos (2007): Partidos e Democracia em Portugal, 1974-2005: da Revolução ao Bipartidarismo,
Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.
Jalali, Carlos (2009): “No meio está a virtude? As preferências e posições de eleitores e
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Magalhães, Pedro (2009): “Conclusão”, in Lobo & Magalhães (2009): 283-293.
56
Notas Sobre a Conjuntura Pós-eleitoral
Fernando Pereira Marques
E
screver qualquer comentário ou reflexão sobre o recente ciclo
eleitoral que teve lugar em Portugal e a actual situação política,
torna-se tarefa se não inútil pelo menos redundante. Na verdade,
será possível dizer algo de novo, algo que ainda não tenha sido dito
pela profusão de analistas, politólogos, comentaristas, editorialistas, colunistas
que ultimamente se têm multiplicado entre nós, até certo ponto ameaçando
deixar na sombra os outros profetas e pitonisas dos tempos modernos que são
os economistas? Não obstante procedamos a este arriscado exercício correndo
o risco de dizer só banalidades.
1. Uma das coisas que se poderá constatar é que, do ponto de vista funcional,
o sistema político correspondeu ao que seria normal dele esperar. Ou seja, no
que se refere às eleições legislativas, a maioria relativa obtida por um dos dois
principais partidos – neste caso o PS –, é a norma e não a excepção, tendo em
conta o sistema eleitoral, o método de conversão de votos em mandatos e o
sistema de partidos entretanto estabilizado, nos seus contornos principais, no
decurso dos anos. Ou, dizendo de outra maneira, o que não corresponde ao
expectável, tendo em conta essas realidades funcionais, são situações de maioria
absoluta de um só partido, como aconteceu duas vezes com o PSD de Cavaco
Silva e, na anterior legislatura, com o PS de José Sócrates.
Na verdade, devido ao sistema eleitoral constitucionalmente definido e ao
sistema de partidos que se consolidou desde o início da democracia – composto
fundamentalmente por quatro partidos com representação parlamentar –,
não seria de esperar, ou sequer possível, que, utilizando conceitos de Lijphart,
surgisse entre nós uma democracia de tipo Westminster. Antes pelo contrário,
dever-se-ia ter constituído uma democracia de consenso, quer dizer, assente
no estabelecimento de consensos e, consequentemente, na constituição de
maiorias de governo através de coligações. Ora, como é sabido, se tem havido
57
NOTAS SOBRE A CONJUNTURA PÓS-ELEITORAL
uma política de alianças – pré e pós eleitorais – à direita entre o PSD, o CDS, e
mais outras formações residuais, o mesmo não tem acontecido, nem há perspectivas de vir a acontecer, à esquerda (com excepção da circunstancial e falhada
FRS, em 1980, entre o PS, a UEDS e a ASDI, entretanto desaparecidas). Se
tivermos em conta, como se verificou nas últimas eleições, que continua ainda
a existir uma maioria eleitoral de esquerda (54,29%), percebemos as consequências deste bloqueamento estrutural que dificulta a governabilidade e a
estabilidade no nosso país.
Evidentemente que, como se observa em muitas realidades com características sistémicas semelhantes noutros países, a democracia de consenso, derivada
do modo de escrutínio e do sistema de partidos existente, não se exprime tendo
em conta unicamente o dualismo esquerda-direita. Isto é, estaria de acordo
com as exigências funcionais do sistema político, a eventualidade de formação de
alianças superando esse dualismo, como aliás aconteceu, efemeramente, entre
nós em 1977-78 (PS-CDS) e de 1983 a 1985 (Bloco Central). Mas aqui interferem outros factores, como são as especificidades dos dois grandes partidos do
centro (centro-direita e centro-esquerda), dos partidos de esquerda – nomeadamente do mais recente chamado Bloco de Esquerda – e ainda, last but not least,
a história do processo de institucionalização do regime democrático, mais a
cultura (ou incultura) democrática existente a nível nacional.
2. São as próprias semelhanças, e não as diferenças, entre os dois partidos
do centro que dificultam soluções de aliança entre os dois. Na verdade, tanto do
ponto de vista orgânico como da base social de apoio, PS e PSD constituíram-se
de forma semelhante, surgindo, portanto, como partidos que disputam um
eleitorado que se interpenetra. Donde a situação de bipolarização que produz,
inevitavelmente, a disputa do eleitorado flutuante que se move entre os dois,
decidindo a obtenção, ou não, de maiorias relativas ou absolutas. Não obstante
as diferenças entre as géneses respectivas, e particularmente no que se refere aos
respectivos núcleos fundadores, tanto um como o outro se implantaram numa
lógica de catch-all parties e a partir do poder, na sua dimensão central e local. Quer
dizer: ambos cresceram e se consolidaram governando, criando burocracias
dirigentes e clientelas nos planos central, municipal e regional (se considerarmos
as ilhas). E, do mesmo modo que no PSD se foi esbatendo, progressivamente,
a componente ideologicamente social-democrata presente na sua fundação,
58
FERNANDO PEREIRA MARQUES
também no PS a nova geração de dirigentes “pós-histórica” – digamos assim –,
em especial a partir de António Guterres, foi perdendo a sua identidade de tipo
republicano-social – para utilizarmos uma designação instrumental.
O “PS - partido marxista” acabou com o aggiornamento programático feito
ainda no tempo de Victor Constâncio; o PSD – propriamente dito – esvaiu-se
com a cisão de onde saiu a ASDI e com a morte de Mota Pinto, assim como
com o afastamento ou o desaparecimento de vários outros dirigentes que estiveram na origem do Bloco Central, afirmando-se uma orientação liberal a
partir da liderança de Cavaco Silva, favorecida pelo generoso fluxo de fundos
comunitários que tanto alegre esbanjamento provocou.
Estes factos explicam que tanto um como o outro desses partidos alternem
no poder – inclusive na componente económica pública que nesse poder se
inscreve – e que a sua coesão e estabilidade passem por o ocuparem ou não. No
PSD têm sido particularmente evidentes as dificuldades com que se depara, do
ponto de vista interno, quando se encontra na oposição. Dificuldades a que o
PS não escapou quando esteve em situação idêntica, sobretudo durante o relativamente longo consulado cavaquista.
Portanto, se é relativamente fácil o estabelecimento de alianças com o
CDS por parte do PSD, já o mesmo não acontece com PS que se depara à sua
esquerda com um PCP resistente e um Bloco de Esquerda conjunturalmente
pujante. O primeiro, numa lógica de difícil luta pela sobrevivência, auto-exclui-se da governação procurando manter um identidade ideológica de luta de
classe contra classe, privilegiando a intervenção sindical e apostando na manutenção das suas áreas tradicionais de implantação, cada vez mais reduzidas, até
por razões de uma inevitável mudança geracional. Quanto ao segundo, não
obstante o seu código genético algo espúrio (estiveram na sua origem antigos
comunistas, trotsquistas e marxistas-leninistas), tem vindo a atrair certas
camadas descontentes do eleitorado socialista, e em particular dos mais jovens,
seduzidos pela prática tribunícia de capitalização de todas as questões mais
controversas geradas pela governação e pelas consequências da crise económica
e social. Mas esse crescimento parlamentar, em vez de contribuir para consolidar o Bloco, gerará contradições internas entre aqueles que apostam na lógica
da institucionalização – onde se inscreve a camada dirigente e de eleitos que,
naturalmente, tendem a instalar-se e a eternizar-se – e os que recusam essa
lógica, porque começam a ficar impacientes por quererem também ascender a
59
NOTAS SOBRE A CONJUNTURA PÓS-ELEITORAL
cargos de poder ou porque privilegiam a estratégia revolucionário-tribunícia
e não-institucional.
O PC, mesmo se de outro modo, como se disse, auto-exclui-se de responsabilidades governativas ou de se envolver em iniciativas legislativas que lhe
reduzam o potencial de contestação e de pressão (ou “chantagem”, se quisermos
utilizar a expressão metafórica de Sartori), tanto mais que continua a possuir
uma sólida inserção nos movimentos sociais por via dos sindicatos – onde
um líder mais aberto como Carvalho da Silva já se tornou incómodo para a
nomenklatura – e uma forte implantação autárquica. A excessiva parlamentarização da sua acção e uma eventual aproximação em relação ao PS alteraria a
sua matriz cultural de tipo obreirista-reivindicativa e ainda marcada pelas
mitologias marxistas-leninistas.
3. Por estas razões, as importantes percentagens obtidas por estes dois
últimos partidos nas legislativas (como ficou patente o BE tem uma presença
residual do ponto de vista autárquico) e a sua consequente expressão parlamentar, só agravam a situação de bloqueamento estrutural do sistema, no que
concerne à formação de maiorias na Assembleia da República e de governo.
Neste sentido, os contributos que deram personalidades e facções à respeitabilização institucional dos bloquistas foram negativos e, aliás, ilusórios, se o
objectivo era favorecer a evolução do PS no sentido do reforço de uma orientação mais coerentemente “socialista” – digamos assim para facilitar.
Por consequência, tal bloqueamento estrutural a que me refiro não é de
previsível resolução sem profundos reajustamentos no sistema de partidos.
Tanto mais que ele se reflecte, quanto à cultura política geral, na inexistência
em termos globais, e mesmo no que respeita aos outros partidos – PSD e
CDS –, de uma tradição de práticas parlamentares e de relacionamento interpartidário no sentido da construção de soluções negociadas que viabilizem
o funcionamento de governos minoritários. O que é consequência desse
e de outros factores estruturais, mas também da concepção de política dos
dirigentes – nos vários patamares – desses partidos da alternância (incluindo
os centristas) e dos aderentes de cada um deles. Uns e outros, sentindo-se
excluídos do poder que é o seu principal elemento de coesão e de motivação,
privilegiam o conflito e a oposição, sobretudo quando não se deparam com o
travão indiscutível de uma maioria absoluta.
60
FERNANDO PEREIRA MARQUES
Poder-se-á dizer ainda que – outra das especificidades da nossa democracia
e da sua história –, os principais partidos da alternância são formações fracamente ideologizadas – de acordo com a sua natureza catch-all –, deficientemente
produtoras de políticas coerentes que lhes dêem identidades consistentes. O
que explica também a fragilidade das direcções nacionais face ao aparelho com
inserção local que, por força dessa fraca ideologização e inerente pragmatismo
calculista, disputa – frequentemente – o poder interno sem grandes pruridos
democráticos e estatutários (manipulação eleitoral pelo recurso a sindicatos
de voto, filiações fantasmas, pagamento de quotas para arregimentação de
votantes, etc.), contribuindo para um complexo fenómeno – que aqui não é
possível aprofundar – de nivelamento por baixo, do ponto de vista qualitativo,
na selecção de quadros e na formação das listas de candidatos.
Ou seja, muito particularmente os dois partidos da alternância, adaptam-se
à conjuntura, mas não conseguem responder-lhe moldando-a, não possuem
organismos internos eficazes de debate e formulação programática, nem
produzem dinâmicas de intervenção no tecido social. O que redunda numa
espécie de navegação à vista circunstancial – ou nem isso –, no que concerne às
políticas económicas e sociais, mas também às adoptadas nas outras áreas. No
caso do PS, e se tomarmos como exemplo a educação, poder-nos-emos interrogar sobre qual é de facto a sua política: a da anterior equipa que privilegiou
a ruptura e o afrontamento – com as visíveis consequências de desgaste e de
perda de eleitorado, particularmente entre as dezenas de milhar de professores
– , ou a da actual equipa ministerial que já pôs em causa muitas medidas anteriormente tomadas em matéria de avaliação e estatuto dos docentes?
4. Acresce ainda o facto, e sempre quanto à cultura política, de não se
ter criado no eleitorado, no decurso dos trinta e cinco anos de democracia
– e mesmo entre as novas gerações –, hábitos sólidos de participação cívica e
atitudes de confiança em relação às instituições – em particular a parlamentar
– e à “classe política”. A taxa de abstenção ainda não atingiu valores verdadeiramente dramáticos, mas o seu crescimento não deixa de ser significativo,
assim como são preocupantes o cepticismo e o hiper-criticismo que marcam as
opiniões mesmo daqueles que afluem às urnas.
Na actual conjuntura, agravando este panorama geral, o principal partido
da oposição – o PSD – vive uma situação interna de vazio de liderança e de
61
NOTAS SOBRE A CONJUNTURA PÓS-ELEITORAL
desnorte estratégico. De onde a tentação de uma fuga para a frente que o faz
acabar por favorecer as formações secundárias – em particular o CDS – ou
mesmo exteriores à esfera da governação, ao procurar compensar esse vazio e
essa indefinição com a exploração de um clima deletério de multiplicação de
escândalos, faits-divers, casos judiciais, reais ou virtuais. Estes, em graus diferentes e com características também diversas, reflectem fenómenos como o
da promiscuidade entre o poder, os partidos e os interesses organizados, pelo
que eventuais actos ilícitos de certos indivíduos, acabam por ter um impacte
político potenciado pela exploração mediática das informações que emanam
do sistema judicial. Surgem, assim, envolvidos – directa ou indirectamente,
suposta ou realmente –, detentores de cargos públicos, e esta hiper-mediatização e politização de reais ou eventuais ilícitos, não salvaguarda princípios
fundamentais do Estado de Direito, como o segredo de justiça e a presunção
de inocência.
Tais fenómenos potenciam pulsões corporativas de afirmação da magistratura e de outras autoridades, vulneráveis, mesmo que não haja uma
concertação nesse sentido, às derivas de carácter justicialista que os media
alimentam, assim como alimentam uma opinião pública caracterizada, já
se disse atrás, pela desconfiança em relação às instituições democráticas, em
particular o Governo e o Parlamento. Geram-se, por isso, tensões entre
órgãos de soberania e enfraquece-se a autoridade do Estado, para além de
se dificultar a superação de comportamentos e atitudes pré-cívicas ou, se se
quiser, pré-democráticas, em relação ao que se deverá entender como sendo
o bem comum e o interesse geral.
Inserem-se neste quadro outro factores fomentadores de instabilidade,
como são o fim de um período de especulação financeira e de falso crescimento,
e os reflexos de uma crise económica e social devida a elementos exógenos,
mas também endógenos, cuja superação promete ser longa e complexa e que a
conjuntura global não favorece.
5. Finalmente, se se tiver ainda em conta a existência de um Chefe de
Estado sem carisma, inábil, mal aconselhado, que não consegue criar um
tom e um estilo condignos com o cargo, poder-se-á concluir que a governabilidade do país se mostra problemática, sendo consequentemente previsível
um ciclo de instabilidade que pode provocar o encurtamento da legislatura
62
FERNANDO PEREIRA MARQUES
e até a deterioração da situação interna dos partidos, em especial dos que
garantem a alternância.
63
64
DAS IDEIAS
Construção da Boa Sociedade:
o Projecto da Esquerda Democrática*
Jon Cruddas e Andreas Nahles
I. A Europa num ponto de viragem
A Europa está num ponto de viragem. Os nossos bancos não funcionam,
as empresas estão em colapso e o desemprego está a aumentar. Os destroços
económicos da falência do mercado espalham-se por todo o continente.
Mas esta não é só uma crise do capitalismo. É também uma falha da democracia e da sociedade na regulação e gestão do poder do mercado. Neste
momento de crise rejeitamos a tentativa de voltar à forma habitual de fazer
e gerar negócio de crescimento insustentável, desigualdades e ansiedades
económicas. Mas, reconhecemos também que não existe nenhuma idade de
ouro da democracia social à qual possamos voltar.
O futuro é incerto e cheio de ameaças; perante nós paira o perigo das alterações climáticas, o fim do petróleo e o crescimento da deslocalização social.
Mas é também um momento de oportunidades e compromissos: revitalizar os
nossos objectivos comuns e cumprir o sonho Europeu de liberdade e igualdade
para todos. Encarar estas ameaças e entender que esta promessa exige uma nova
abordagem política.
No décimo aniversário da declaração de Blair-Schroeder da Terceira Via
Europeia, a Esquerda Democrática oferece um projecto alternativo: a boa sociedade (“the good society”).
Esta política da boa sociedade é sobre democracia, comunidade e pluralismo.
É democrática porque só a livre participação de cada indivíduo pode garantir
a verdadeira liberdade e progresso. É colectiva porque se baseia no reconhecimento da nossa interdependência e interesse comum. E é pluralista porque sabe
que através de uma diversidade de instituições políticas, formas de actividade
económica e de identidades culturais individuais a sociedade pode orientar-se
no sentido da energia e da criatividade para criar um mundo melhor. Para
*
A Finisterra agradece à Fundação Friedrich Ebert a oportunidade de publicação deste texto.
65
A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE:
O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA
alcançar uma boa sociedade baseada nestes valores estamos empenhados em:
• Restaurar a primazia das políticas e rejeitar a subordinação dos interesses
políticos aos económicos;
• Refazer a relação entre o indivíduo e o Estado numa parceria democrática;
• Tornar o Estado democrático uma entidade mais transparente, responsabilizando-a ao mesmo tempo que reforçamos as nossas instituições
democráticas a todos os níveis, incluindo a economia;
• Ampliando e defendendo as liberdades civis individuais;
• Reafirmando os interesses do bem comum, como a educação, saúde e
riqueza, no mercado;
• Redistribuindo o risco, riqueza e poder associado à classe, raça e género a
fim de se criar uma sociedade mais igualitária;
• Reconhecendo e respeitando as diferenças raciais, religiosas e culturais;
• Colocando as necessidades das pessoas e do planeta à frente do lucro.
A criação da boa sociedade é do interesse de todos nós, na medida em que se
apresenta como sendo ecologicamente sustentável e economicamente equitativa. Não existem atalhos ou modelos já elaborados. Em vez disso, com base
nestes valores e aspirações, daremos cada passo juntos e desta forma faremos do
nosso mundo um mundo melhor para se viver. Como disse Willy Brandt: “O
que precisamos é a síntese do pensamento prático e do esforço idealista”.
Ao trabalharmos nas nossas “arenas” nacionais podemos intervir em
muitas questões e até alcançar bons resultados, mas temos de reconhecer que
o capital foi globalizado, enquanto que a democracia permaneceu estagnada
ao nível estatal nacional. Esta afirmação une democratas alemães e britânicos,
tornando-os consequentemente mais fortes. O próximo passo é usar este texto
exploratório para construir uma rede pan-europeia de social-democratas, que
tal como nós, não querem regressar ao passado mas que olham em frente para
a construção da boa sociedade.
2. Aprendendo com a experiência
Em Junho de 1999, Tony Blair e Gehard Schroeder, o Primeiro-ministro
Britânico e o Chanceler Alemão, publicaram uma declaração conjunta sobre a
66
JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES
Democracia social Europeia. Esta declaração trouxe simultaneamente as ideias
da Terceira Via Britânica (British Third Way) e da alemã “German Neue Mitte”.
Reivindicando que este novo modelo da social-democracia tinha encontrado
larga aceitação: ‘Os social-democratas encontram-se no governo em quase
todos os países da união’. Hoje em dia o oposto é verdadeiro. Os social-democratas estão fora do governo em quase todos os países da união.
Esta etapa histórica da social-democracia associada à Terceira Via e a Neue Mitte
foi a resposta a um longo período de domínio da facção de direita que tinha
dominado durante a crise económica nos anos 1970. Uma nova etapa histórica
do capitalismo emergiu, destruindo consensualmente o bem-estar do pósguerra e estabelecendo um novo consenso em torno dos valores neoliberais e
uma economia de mercado livre.
O sucesso eleitoral da Terceira Via e da Neue Mitte foi feito moderadamente
através de compromissos e limitações. Nem o New Labour nem o SPD conseguiram fazer coligações duradouras para uma mudança transformacional. Nas
eleições de 2005 os dois partidos tinham milhões de votos a menos do que em
1997 e 1998 e ambos perderam em eleições locais e regionais. Um número
expressivo dos apoiantes da tradicional classe-trabalhadora perdera a confiança
no New Labour e no SPD, assim como nos históricos defensores dos seus interesses. Muitos abstiveram-se de votar enquanto que uma minoria crescente
identificou-se com os outros partidos que reclamavam representar os seus
interesses, tais como os esquerdistas ‘Die linke’ na Alemanha e – de grande
preocupação – o fascista BNP na Grã-Bretanha. As instituições e culturas da
classe trabalhadora que mantinham e suportavam o partido Trabalhista e o
SPD no século XX desapareceram ou perderam a sua vitalidade social.
Os modelos da social-democracia, da Terceira Via e a Neue Mitte, abraçaram
sem crítica o novo capitalismo globalizado. Ao procederem assim, subestimaram
o potencial destrutivo de mercados sub-regulados. Não compreenderam a
mudanças estruturais que ocorriam nas sociedades europeias. Acreditavam que
uma sociedade baseada nas classes tinha dado lugar a uma cultura meritocrática, mais individualizada. Mas o novo capitalismo não criou uma sociedade
sem classes. Numa globalização liderada pelos mercados, o boom económico
criou níveis de afluência sem precedentes, mas a política da Terceira Via não
conseguiu evitar a fragmentação das sociedades. Após uma década de governo
social-democrata, as desigualdades sociais continuam a ser o que define
67
A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE:
O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA
a estrutura da sociedade. O sucesso na educação e as oportunidades de vida
continuam, de forma geral, a depender das bases e núcleos familiares.
A era do neoliberalismo acabaria sempre em autodestruição. O crash económico criou um ponto de viragem. Podemos escolher: voltar ao anterior estado
de coisas – o crescimento insustentável, o mundo individualizado e consumista do mercado livre, níveis elevados de desigualdade e de ansiedade, e o
falhanço no controlo do perigo das alterações climáticas. Ou podemos definir
uma nova visão de progresso baseado na justiça, sustentabilidade e segurança
em que existe um equilíbrio nas nossas vidas entre produção e consumo, entre
o trabalho e as nossas vidas como indivíduos e membros individuais da sociedade. Existe uma alternativa, e tem de ser construída a um nível europeu.
3. A boa sociedade
Os nossos valores de liberdade, igualdade, solidariedade e sustentabilidade
prometeram um mundo melhor, sem pobreza, exploração e medo. Temos
uma visão de uma boa sociedade e de uma economia mais igualitária, que irá
criar um futuro mais seguro, mais verde e mais justo. Mas para alcançar esta
sociedade o capitalismo terá de ser responsabilizado perante a democracia: e a
democracia precisará de ser renovada e aprofundada para que sirva esta tarefa.
A boa sociedade não pode ser construída de cima para baixo, apenas poderá vir de
um movimento feito pelas pessoas e para as pessoas. Criar a boa sociedade será o
maior desafio do nosso tempo e vai determinar a vida das gerações futuras.
Os nossos valores
Um novo modelo de sociedade democrática começa com os nossos valores.
É com base neles que podemos construir a boa sociedade.
Nesta nova era global temos de viver juntos, enquanto indivíduos livres e
iguais em sociedades multiculturais e como cidadãos da Europa. Temos de
construir instituições políticas que criem um sentimento de pertença numa
sociedade justa, e temos de chegar ao resto da humanidade criando formas
democráticas de governação global.
O ideal de um mundo melhor, mais justo e mais aberto, ecoa por entre
milhões de pessoas que procuram novas formas de viverem juntas. É uma
esperança expressa em movimentos sociais locais e globais, vezes sem conta em
68
JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES
campanhas, acções comunitárias, grupos de pressão, e uma multidão informal de
indivíduos envolvidos em questões políticas e de solidariedade social. A tarefa da
Esquerda Democrática é a de desenvolver a ideia de partilha de um bem comum
através do argumento, acção política colectiva e campanha entre as pessoas.
A boa sociedade visa a solidariedade e a justiça social. A solidariedade cria
confiança, que, reciprocamente, fornece os fundamentos da liberdade
individual. A liberdade desenvolve-se a partir da sensação de segurança e de
pertença, e da experimentação de comportamentos de estima e respeito. Estas
são as pré-condições fundamentais para a boa sociedade. Procuramos uma vida
de auto-invenção e de autopreenchimento. Este desejo de preenchimento
envolve o direito de cada um atingir o seu próprio e único caminho como
ser humano. Mas não se trata do egoísmo do capitalismo de mercado, porque
disputar este direito nos outros é fracassar e ser incapaz de viver mediante as
suas próprias condições.
A solidariedade expressa a nossa interdependência. Num mundo globalizado a solidariedade não tem fronteiras.
A noção de autonomia é central num futuro no qual as pessoas têm maiores
possibilidades de controlo nas suas vidas.
A autonomia não é uma licença; transporta consigo as obrigações e restrições de se viver com os outros. Requer que cada cidadão tenha os seus recursos
– dinheiro, tempo, relações e reconhecimento político – para tenha hipótese
de ter uma boa vida.
Isto significa, ter direito a um trabalho decente, educação e segurança social.
O mercado não pode repartir liberdade com justiça, caso contrário, teria de
ser criada mais uma comunidade política para decidir a distribuição justa dos
recursos. A autonomia individual é o produto de uma política comunitária.
A democracia e a sua renovação são centrais para as políticas da boa sociedade.
O princípio que guia a boa sociedade é a justiça, o núcleo ético de cada um é
a igualdade. Cada individuo é insubstituível e de igual valor. Na boa sociedade,
cada indivíduo tem direito a ser tratado com respeito, segurança e ter acesso
a uma oportunidade de vida, independentemente da sua origem. A discriminação baseada na classe social, no racismo, homofobia e preconceito contra as
mulheres são passíveis de serem punidas por lei e são veementemente contestadas na cultura, na educação e nos locais de trabalho.
Construir todos estes valores é ecologicamente sustentável. A boa sociedade faz
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A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE:
O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA
parte do planeta e da sua ecologia. Desenvolve formas de florescer dentro das
limitações impostas.
Uma economia justa e sustentável
No centro da boa sociedade encontra-se o indivíduo como um agente produtivo. Só reorganizando o sistema de produção podemos criar uma sociedade da
liberdade e igualdade. O consenso neoliberal não produziu a liberdade individual tal como havia prometido, ao invés criou o modelo de capitalismo em que
“tudo é para o vencedor” que prejudicou a sociedade e, portanto, o indivíduo.
Falhou ao criar mercados livres e auto-regulados.
Precisamos de desenvolver um novo tipo de economia enraizado nos valores
e instituições da boa sociedade. Será uma economia caracterizada pela variedade
de estruturas económicas e formas de propriedade. Assegurar-se-à que os trabalhadores co-determinam as decisões das suas empresas. Deste pluralismo
económico podemos assegurar que não haverá retorno ao crescimento global
económico desequilibrado que levou a esta crise.
Necessitamos de desenvolvimento ecológico sustentável que vá ao encontro
das necessidades humanas de forma equitativa, de forma a melhorar a qualidade
de vida de todos. As alterações climáticas, o pico do petróleo e a necessidade
de energia e segurança alimentar exigem, em grande escala, transformações
económicas. Chegou a altura de se discutir e implementar um novo modelo
de prosperidade, que pode ser globalizado mas que não conduza ao desastre
ecológico. A qualidade do crescimento, trabalho de valor e progresso tecnológico podem levar a mais riqueza e a uma melhor qualidade de vida, mas os
mercados sozinhos não conseguem atingir esse objectivo. O futuro exigirá um
Estado mais activo, comprometido com um planeamento económico a longo
prazo, para a construção da economia sustentável.
A reforma da economia pode começar com o governo a assumir serviços
de interesse geral – electricidade, água, transportes, correios, bancos e serviços
públicos – regressando à propriedade pública ou sob o controlo público,
tratando-se da forma mais respeitável, equitativa, e economicamente sustentável de garantir estes serviços. As novas regras para os mercados têm de ser
estabelecidas e criados incentivos mais fortes para uma economia mais sustentável. O estado do mercado e dos seus agentes necessitam de ser transformados
num estado cívico, democratizado e mais sensível ao cidadão e aos pequenos
70
JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES
negócios. É preciso equilibrar um centro forte com poder efectivo ao nível
local para o desenvolvimento económico e social. O papel da advocacia nas
organizações da sociedade civil e os sindicatos precisa de ser fortalecido.
A primazia das políticas sobre os mercados financeiros tem de ser retomada. No sector bancário a pluralidade dos modelos de negócio cada vez mais
focalizados no cliente, tem de ser definida, e isso inclui os bancos comerciais,
mutualistas, regionais e comunitários e sociedades de crédito, todas operando
numa variedade de escalas. Temos de nos certificar que o sector bancário é
reestruturado, e que desenvolve formas responsáveis e transparentes de gestão.
Um novo quadro de regulação e de supervisão definirá o papel e a prática da
banca e do sistema remuneratório dos executivos. Só o governo com a sua
autoridade democrática, alianças globais e receitas dos impostos pode alcançar
o nível necessário de reconstrução.
A crise económica requer novas alianças globais; os países têm de começar a
trabalhar juntos em vez de continuarem a corrida para o topo. Precisamos de
regulação internacional e europeia dos mercados financeiros. As corporações
transnacionais têm de tornar-se objecto da supervisão democrática através da
introdução da economia democrática global que define direitos de informação,
consulta e co-determinação dos representantes dos trabalhadores. As agências de rating, que tiveram uma enorme influência na performance da economia,
precisam de reforma e de supervisão pelas autoridades públicas. A liberalização e a globalização do capital transferiram riqueza das economias pobres
para as ricas e aumentaram o risco sistémico de colapso económico mundial.
Os controlos de capital, o encerramento dos paraísos fiscais e a tributação das
transacções financeiras são necessários na ajuda ao desenvolvimento económico e na protecção das economias vulneráveis.
Uma nova política industrial precisa de traçar as prioridades futuras e as
necessidades da Europa e das suas economias nacionais. A manufactura está em
declínio naquilo que diz respeito ao contributo que dá ao crescimento do PIB.
O emprego industrial está em queda e os salários têm estagnado. Os mercados
internos têm estado em declínio e nalguns países a lacuna foi preenchida pelo
retorno ao crédito hipotecário mais barato. A solução de recurso relativamente
ao crescimento económico está agora encerrada. A essência das estruturas da
indústria têm de ser mantidas e modernizadas, porque asseguram o emprego e
fornecem as bases para o sector dos serviços. Temos dependido do desequilíbrio
71
A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE:
O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA
global entre o enorme saldo comercial de certas economias e dos défices de
outras. Isto é insustentável e temos de repensar como regionalmente na Europa
e globalmente podemos ter mais equilíbrio nas relações comerciais.
A política económica tem de garantir uma diversidade de modelos de
negócio e formas de propriedade económica. Não queremos substituir capitalismo de monopólio pelo monopólio de Estado. Mas queremos que os
mercados sejam regulados para o bem comum e para um nível mais elevado
de pluralismo económico. Os governos, em níveis diferentes, incluindo os
Estados locais, devem ser encorajados a aumentar os fundos nos mercados de
capitais, a questão das hipotecas e a captação dos recursos da ligação para os seus
próprios projectos infraestruturais.
Novos mercados verdes e uma indústria de tecnologias renováveis necessitam ser desenvolvidos, motivados por uma economia de carbono zero e por
uma maior segurança energética. No curto e médio prazo a solução mais efectiva para combater as alterações climáticas é instituir um mercado global de
carbono, baseado num sistema de cap and trade. Entretanto, a eficiência energética deve estar no centro da resposta à crise económica, sendo a solução mais
rápida e veloz, tanto para a criação de emprego, como para o controle de emissões. É necessário desenvolver uma Estratégia Verde coordenada pelos governos
de toda a Europa. Os avanços no campo das energias renováveis e a redução
dos preços têm o potencial para substituir as indústrias pesadas baseadas no
carbono, incluindo o nuclear. Para assegurar um aquecimento sustentável, os
mercados energéticos e os preços têm de ser regulados e as companhias energéticas têm de ser tomadas em conta.
O conhecimento económico interessa e temos de nos concentrar no investimento em inovação e na geração de produtos de alto valor acrescentado. Mas
o conhecimento e a cultura relacionados com a actividade económica têm de
ser alargados para além dos limites das suas actuais zonas privilegiadas e as suas
exigências não podem ter prioridade sobre o resto da economia.
O mercado está aquém no que diz respeito a investigação de alta qualidade
e respectivos desenvolvimentos. A organização e transformação do produto e
o reforço na inovação requerem, desde início, financiamentos governamentais substanciais e fortes mercados de capital devidamente alinhados. O sucesso
requer estabilidade no sistema e também de culturas institucionais assertivas e
confiantes no que diz respeito à aceitação do risco. Tais condições não existem
72
JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES
frequentemente na educação superior. Em vez disso, as universidades dirigidas por imperativos comerciais e indicadores de performance negligenciam
culturas de convívio nas quais ocorre a inovação e onde as ideias e a comunicação
fluem. O sistema do ensino superior tem de ser dissociado dos imperativos do
mercado e dos imperativos comercias e tratado como um bem público.
O potencial máximo do sector dos serviços tem de ser desenvolvido, em
particular no campo da educação, da formação e do ensino, na saúde, cuidados
e serviços sociais.
Precisamos de um novo sistema de agricultura, local e global. O investimento tem de ser feito em sistemas de alimentação orgânica sustentável, no
qual a alimentação é produzida, preparada e consumida localmente e onde a
riqueza criada permaneça nas comunidades locais.
O Bom Trabalho e a segurança social
Temos de trabalhar para uma Europa social na qual as pessoas estão primeiro
do que os lucros e onde a sociedade afirma os seus interesses para além dos
interesses do mercado. Isto significa economias que dão prioridade ao pleno
emprego, salários justos, e direitos de trabalho no mercado que garantam boas
condições e protejam os trabalhadores contra a discriminação e exploração.
Que defendam a protecção social contra a doença, desemprego, pobreza e
deficiências, e bons valores de pensões na velhice. A economia democrática é
central para o projecto da Europa social. Uma Europa social tem de se superar
no sentido de garantir habitação para todos, uma elevada qualidade energética,
redes de transportes, bons serviços de cuidados de saúde, sistemas de educação
igualitária, e qualificação no ensino que prepare os indivíduos tanto para uma
boa vida como para um bom trabalho. Esta agenda é um activo competitivo
numa economia globalizada, e não um obstáculo para o sucesso económico.
Precisamos de lucros e de infra-estruturas sociais que afastem as pessoas da
pobreza e que estimulem a procura. Os sistemas de impostos têm de contribuir para uma distribuição mais equitativa de rendimento e riqueza. Os baixos
salários não devem pagar impostos. Quem está no topo tem de começar a pagar
uma quota-parte justa e a legislação tem de apertar as lacunas dos impostos e
evitar os esquemas com os impostos.
As políticas sociais que asseguram abordagens preventivas são importantes
e devem ser fortalecidas, mas não podem ser usadas para disfarçar reduções
73
A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE:
O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA
nos benefícios. A fixação nas responsabilidades pessoais pode criar ansiedade
e insegurança social entre as pessoas mais vulneráveis da sociedade, especialmente numa recessão. As pessoas precisam de ajuda para viverem as suas vidas
de forma digna, livres da pobreza e da exclusão social. Os benefícios sociais
são um direito de cidadania e devem ajudar as pessoas a gerir as mudanças e as
situações vulneráveis durante a sua vida.
As pensões estão relacionadas com todo o sistema económico e
desempenharão um papel chave nas estratégias de investimento social e na
redistribuição da riqueza. A revolução da longevidade e a falência dos mercados financeiros para garantirem retornos decentes nos planos de pensões
fizeram da segurança social uma prioridade económica. Na última década, a
substituição dos esquemas de benefícios garantidos por esquemas de contribuição garantida criaram uma mudança fundamental da riqueza a favor dos
ricos. Transferiram o risco do Estado e dos negócios para o cidadão individual.
Esta tendência tem de ser invertida a favor de sistemas públicos baseados no
esquema “pay-as-you-go” (descontos à medida do que se ganha) tanto para o
sector público como privado.
As políticas do mercado de trabalho enfrentam o desafio da flexibilidade.
O crescimento dos contratos a curto prazo, agências de emprego, subcontratação e o emprego por conta própria deixaram muitas vezes os trabalhadores
com menos direitos. No emprego têm crescido a baixa qualificação, trabalhos com baixos salários em más condições e altamente qualificados, salários
elevados, mas por vezes com dificuldades contratuais e com fracas condições de
trabalho. O crescimento na utilização de agências de trabalho temporário está
a disseminar estas condições por outras partes da economia. A regulação pode
acabar com os baixos salários, com a baixa qualificação e trabalho eventual.
Sindicatos mais fortes são a melhor defesa contra a exploração. O trabalho e a
qualidade de vida podem ser melhorados ao aplicar-se um salário que permita
viver. Mas temos de garantir que as condições de trabalho são compatíveis com
as responsabilidades. A agenda das qualificações deve ser alargada e também
democratizada e radicalizada para que possa fornecer o significado não apenas
para o “bom trabalho” mas também para uma boa vida.
As novas políticas da democracia
As instituições que no passado deram às pessoas acesso às ideias políticas
74
JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES
e actividades, tais como sindicatos, igrejas e partidos políticos, enfrentam o
desafio do declínio no número de membros que as constituem. Muitas pessoas
estão descontentes com a democracia representativa. Perderam confiança nos
políticos e nos partidos políticos. Vivemos em sociedades onde a maioria está
pessimista acerca do futuro. Isto porque durante 30 anos as nossas democracias mostraram apenas uma visão da sociedade: governada pelos mercados e
pelo lucro. A crise económica é a crise da democracia, mas que permite ao
mesmo tempo a oportunidade da revitalização política.
Apesar da desilusão com os partidos políticos, existem nas nossas sociedades níveis extraordinários de activismo, políticos, culturais e comunitários.
A política tornou-se mais individualizada e ética, e enraizada numa diversidade de crenças e estilos de vida. Os velhos estilos colectivos e a monocultura
política estão a ser rejeitadas por alguns. Estes desenvolvimentos estimulam
uma procura de novos tipos de estruturas políticas democráticas e de culturas
que estão a restabelecer a ligação entre as instituições do poder político com
movimentos sociais e circunscrições políticas. O empowerment comunitário e as
campanhas em torno da justiça social e da sustentabilidade estão a tornar-se
mais vigorosos.
O poder tem de começar em baixo e ser delegado para cima. Não podemos
criar os agentes colectivos da mudança social; só as pessoas o podem fazer por
si. Mas podemos fortalecer a democracia e assim criar as condições para a sua
emergência e para a nossa capacidade de construir alianças com eles. Um poder
real e uma política de influências podem desenvolver o ethos da democracia.
Necessitamos de uma nova cultura de liberdade de informação e um acesso
mais aberto aos media. Redes e bases de dados fornecidos e trazidos até nós
pela Web fazem crescer a importância na criação de campanhas responsabilizando o poder político. Mobilizando a opinião pública. Os partidos políticos
permanecem como uma parte essencial das nossas democracias. Asseguram
continuidade institucional enquanto as redes são muitas vezes passageiras.
Há muito a ganhar com as sinergias entre os dois. Para isto acontecer, os
partidos necessitam de permitir que as suas próprias culturas e organizações
sejam abertas e democratizadas neste processo. Podemos, nas palavras de Willy
Brandt, “ousar mais democracia”. Precisamos de fortalecer as nossas culturas
democráticas introduzindo reformas eleitorais onde são necessárias e fomentando oportunidades para a participação activa e deliberar o processo de decisão
75
A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE:
O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA
também dentro dos nossos partidos. Esta é uma pré-condição para os partidos
Social-Democratas e Trabalhistas fortes na Europa. O tempo das comunicações
de cima para baixo acabou. O mesmo é verdade para governos tecnocráticos
que falam às pessoas das necessidades em vez de as persuadir com razões. As
pessoas já não acreditam em impostores e manipuladores de opinião.
A principal tarefa nos anos vindouros será a de criar e consolidar a confiança
política na vida pública. A confiança é a base de toda a acção política e social. É
melhor aprofundada cativando as pessoas para objectivos e decisões comuns, e
não excluindo-as. Atinge-se iniciando um compromisso com o debate aberto
e não procurando evitá-lo. No processo da renovação democrática, os Estados
nacionais podem e devem fazer mais, juntos e sozinhos. Mas é a política comunitária da Europa que deve ser utilizada se se pretender que a crise económica
seja um ponto de viragem em direcção a um novo futuro e não um retorno
às políticas falhadas do passado. O ideal europeu de um continente de cidadãos seguros onde todos viveriam livres e realizados tanto quanto poderiam em
sociedades justas e sustentáveis está ao nosso alcance. Mas será necessário um
salto poderoso de imaginação e fortes ambições para que isso aconteça.
4. Politicas para uma Europa melhor
Politicas para uma Europa Social
A Europa precisa de uma “Estratégia Pós-Lisboa” baseada no conceito de
“produtividade social”. A produtividade social relaciona-se com o crescimento
social: aumentando o valor social e a qualidade, considerando os custos sociais
e ambientais dos mercados e desenvolvendo padrões sustentáveis de consumo.
O bem-estar dos cidadãos e da qualidade de vida em geral tem de ser melhorada
para além dos simples valores numéricos e monetários. É necessário redistribuir a riqueza de uma forma mais equilibrada. Standards de regulação efectiva
precisam de ser introduzidos para garantir a qualidade e acessibilidade dos
serviços públicos, salários justos, boas condições de trabalho, educação gratuita
para todos e uma abordagem humana para a imigração e solidariedade global.
A economia financeira
A nossa estratégia para uma Europa social tem de começar por combater a
crise económica. Trabalhando juntos, estabelecemos as bases para uma maior
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JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES
cooperação europeia, mais justa e com maior justiça social. Os Estados-membros
perseguem frequentemente as suas próprias políticas utilizando para isso fundos
comunitários, destinados a medidas também elas comunitárias e não individuais.
Existe a necessidade de criar um movimento coordenado a nível Europeu que
estimule as medidas fiscais. Uma acção concertada de expansão na coordenação
fiscal é muito mais eficaz do que uma tentativa levada a cabo a nível individual.
Numa resposta coordenada a troca do aumento da dívida pelo estímulo efectivo é
tanto melhor para a UE como um todo como para qualquer país isoladamente.
Temos de introduzir reformas a nível europeu no que diz respeito à
governação financeira e económica. A regulação dos actores dos mercados
financeiros na Europa não é suficiente.
Uma instituição de supervisão europeia pode impor requisitos de capital
adequados, incrementar a transparência no dos actores dos mercados financeiros e facilitar uma troca de informação eficiente entre as autoridades
nacionais de supervisão. Os mercados financeiros europeus têm de se tornar
uma fonte de estabilidade e desenvolvimento num contexto de uma economia
europeia orientada para a produção. A ênfase colocada no retorno do investimento dos accionistas relega para segundo plano o investimento de capital em
activos, pondo em causa o crescimento e emprego.
Com esta finalidade, é preciso reformar o Banco Central Europeu e a União
Monetária Europeia. Isto vai melhorar as perspectivas dos britânicos aderirem
ao Euro. O mandato para o Banco Central Europeu precisa de ser alterado,
regido por decreto de lei de forma a ser possível a aprovação ou rectificação por
parte do conselho e parlamento. Tal como a estabilidade de preço, o mandato
deveria permitir outros objectivos sociais onde são necessários. Estes objectivos
incluiriam a prevenção e redução do desemprego, a estabilidade do sistema
financeiro, apoiadas por outras políticas da UE e de cooperação monetária
com poderes externos.
O orçamento da União Europeia precisa de ser significativamente aumentado e de ser capaz de redistribuir consideravelmente mais recursos do que
actualmente. Ao lado desta reforma, a Comissão deve ter o direito, quando
apoiada pelo Conselho e o Parlamento de poder gerir os défices.
O Pacto de Estabilidade e de Crescimento deve ser substituído por um
acordo de coordenação de políticas orçamentais entre os Estados-membros.
Coordenação e centralização são aqui duas alternativas; quanto maior e mais
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A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE:
O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA
fiável for a coordenação, mais pequeno o orçamento do banco central poderá
ser – mas estas duas medidas devem tornar possível um certo controlo sobre o
imposto agregado e as políticas de despesa na UE.
Emprego e segurança social
Diferentes caminhos nacionais constituem uma fonte de força na UE.
Atingir uma Europa Social não significa reforçar um único sistema em todas as
nações, mas acordar num conjunto de benefícios sociais. Um salário mínimo
europeu, correspondendo ao rendimento médio nacional, ajudaria a limitar
as diferenças salariais na Europa a prevenir o “dumping social”. Para concretizar a sua implementação era necessária uma organização semelhante à Low
Payment’s Commision do Parlamento Britânico com um mandato na campanha e
trabalhando próximo dos sindicatos.
Um conjunto de regras do Tribunal Europeu – os casos Laval, Viking e
Rueffert – desregularam os mercados ao modificarem os termos da directiva
dos trabalhadores de 1996 (Workers Directive). É necessária agora uma reforma
que restabeleça o contrato colectivo, o direito dos trabalhadores à greve, e estabelecer a igualdade para os trabalhadores migratórios e os que estão colocados
no espaço Europa.
A Europa precisa de políticas justas de impostos. A actual competição
dos impostos na Europa está a levar à substituição do ónus dos impostos das
empresas para o rendimento e consumo individual. Esta situação é regressiva e injusta e precisa de haver uma harmonização das políticas do IRC para
salvaguardar as bases financeiras dos sistemas da segurança social nacional. A
médio prazo, a UE deve ter os seus próprios recursos financeiros, com base em
recursos internos gerados pelo IRC e pelos impostos de transacções financeiras
a nível europeu. Os paraísos fiscais devem ser banidos e punidos legalmente e
as mais-valias devem ser tributadas nos países de origem.
Segurança energética e sustentabilidade
A Europa tem de se tornar, no mundo, a economia mais sustentável ecologicamente. Se os Estados Unidos estão na corrida a transformarem-se na
economia mais verde do mundo, a Europa tem de fazer parte desta corrida
porque é indiscutível que toda a humanidade ganhará. Precisamos de normas
e padrões verdes a nível europeu, dirigidos às unidades industriais que
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JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES
imponham objectivos mais duros no que diz respeito à emissão de gases que
por sua vez deverão incentivar a captura e armazenamento de carbono. Um
alvo eficaz para a geração de electricidade, que é semelhante à proposta para os
carros na UE, dificultaria a um governo permitir a construção de estações de
carvão sem nenhuma forma tecnológica de captura de carbono associada.
Equilibrando a rede a um nível europeu reduziria a procura do carvão e
melhoraria a segurança energética ao reduzir a dependência no petróleo e gás
estrangeiro. Proporcionaria cortes significativos nas emissões de carbono e a
longo prazo diminuiria também os custos do combustível. Os actuais esquemas
bilaterais que têm sido negociados precisam de ser alargados na Europa.
Justiça Global Social
Uma Europa social tem de trabalhar para uma justiça comercial global. A
UE continua a perseguir uma agenda comercial agressiva e livre. Está actualmente a negociar um Acordo de Parceria Económica com países africanos, das
Caraíbas e do Pacífico que constituem um sério risco ao desenvolvimento dos
países envolvidos. A última estratégia do comércio na UE, “Europa Global”,
está a tentar forçar dezenas de países para um acordo extremo de comércio livre
e virado para os lucros do grande negócio. Precisamos de uma revisão a uma
grande escala da politica de comércio da UE e uma nova estratégia que coloque
os direitos das pessoas pobres e marginalizadas no seu centro. A política do
comércio precisa de ser mais democrática e responsável, e incluir uma maior
partilha de informação e participação real pela sociedade civil.
Democracia europeia
Para fortalecer a democracia europeia na economia devemos usar o potencial de introduzir comités de supervisão através de Empresas Públicas Europeias
(SEs) para que os accionistas, para além dos conselhos de administração,
possam co-determinar o controlo da gestão. A UE precisa de construir uma
Europa com uma cultura cívica mais alargada, que se compromete a votar e
a suportar as suas instituições democráticas e sujeitá-las ao escrutínio. A UE
necessita de despertar o debate público antes de tomar as suas maiores decisões.
Para responder à opinião pública, o Parlamento Europeu, que é directamente
eleito pelas pessoas, precisa de ter o direito a iniciar a legislação e eleger o
Presidente da Comissão.
79
A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE:
O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA
5. Convite ao debate
Este documento enuncia os princípios da boa sociedade. Mas o projecto da
boa sociedade tem de ser desenvolvido pela própria sociedade, através do debate e
da acção. Convidamos, desta forma, a sociedade civil, os movimentos sociais,
centrais sindicais e membros dos nossos partidos e todos aqueles, em todas as
outras nações europeias a discutir e desenvolver as ideias expostas neste documento. O nosso convite ao debate é extensível a todos os que querem uma
sociedade mais justa, sustentável e uma Europa democrática.
Este é só o começo.
Sobre os Autores
• Jon Cruddas é MP para Dagenham
• Andrea Nahles é Vice-Presidente do Partido Social-democrata na Alemanha (SPD), um
membro do Bundestag e porta-voz para os assuntos sociais e do trabalho do grupo do SPD no
Bundestag.
Para Contacto
• Podem participar no debate colocando comentários neste documento em www.goodsociety.eu/en
• Podem contactar Jon Cruddas na Câmara dos Comuns, Londres SW1A OAA, e em
cruddasjparliament.uk
• Podem contactar Andrea Nahles em
Willy-Brandt-Haus, D-10911 Berlim, e em andrea.nahlesspd.de
• Para informações sobre Compass por favor contactar:
Gavin Hayes, General Secretary
Compass
Southbank House,
Blac Pince Road
London, SE1 7SJ
Gavincompassonline.org.uk
www.compassonline.org.uk
Agradecimento
Um grande agradecimento à Fundação Friedrich Ebert pelo apoio na publicação.
80
Socialismo, Direito e Estado1
Retomando polémicas
Paulo Ferreira da Cunha
“Aquilo que é recordado acontece”
Søren Kierkegaard
De volta à Ideologia
Quando Roma arde, é conveniente estudar hidráulica. Sirva-nos este dito de Chesterton para
novamente justificar (se preciso fosse) a necessidade de (re)pensar os fundamentos, os fins, e a imagem de marca da acção política, em clave de ideologia – que,
aliás, importa reabilitar hic et nunc2. E ainda a importância de (re)pensar também
(e nesse contexto ideológico) um interlocutor e veículo importante de ideologia,
o direito. A nova profunda crise do capitalismo globalizado (tão incensado pelos
coriféus neoliberais), que sofremos agora, é momento para tomar distâncias e
1
O presente artigo pretende-se apenas um ensaio, que, depois de submetido a publicidade crítica, o autor espera
poder vir a desenvolver em livro, conjuntamente com outros textos afins. Terá também edição noutras latitudes.
Por outro lado, devemos registar, antes de tudo, uma nota irreprimível quanto ao sentido destas páginas.
Embora elas se encontrem, para o nosso gosto, visivelmente sobrecarregadas de aparato de referências de pé de página,
não desejámos competir com os sapientes estudos marxistas e marxianos, sobretudo dos glosadores e comentadores que,
como certos leitores e guardiões da Bíblia, têm sempre na ponta da língua uma meia-dúzia de citações das obras completas
dos autores canónicos do “socialismo científico”. Tivemos gosto em revisitar essas fontes, que em alguns casos literalmente tirámos do pó das nossas estantes, e, como se verá, certas vezes nem nos demos ao trabalho de perder horas à caça
da referência para uma ou outra citação que sabíamos de cor. Pensamos até na possibilidade de dar a lume este texto sem
quaisquer notas, ou apenas as das citações. Tal seria arriscar demasiado várias e cruzadas excomunhões, que não tememos
mas que também não buscamos. Pelo interesse de registarmos também um roteiro pessoal de revisitação, optamos por
este meio termo que, se é já demasiado para o leitor ideal que tivemos em mente, será sempre insuficiente para os especialistas e sobretudo para os devotos. Os quais, aliás, encontrarão no fundo e não só na forma deste estudo muitas razões
para crítica, naturalmente. O nosso propósito foi apenas o de apresentar algumas hipóteses prospectivas para a questão do
Direito nos tempos contemporâneos e futuros, numa perspectiva de socialismo democrático. E invocamos as polémicas
e referências histórico-ideológicas como ilustração e para memória. Longe de nós querermos esgotar ou sequer versar
expressamente de forma inovadora tal temática, que é afinal clássica e já objecto de tantos estudos. Os quais, contudo,
em geral não nos confortam, porque em claves teóricas normalmente diversas. Mas tal é um pouco inevitável, dado que o
assunto de que arrancamos, precisamente porque pertence sobretudo à histórica ideológica do direito soviético, não tem
chamado a atenção de quem esteja mais em sintonia com o nosso pensamento.
E depois de todas estas reflexões, confessamos que o que mais nos interessa é saber que diálogo poderá ter este texto
com os mais jovens, que não viveram, como nós, nem os tempos da ditadura, nem o quotidiano de uma revolução.
Esperemos que ainda façam, para eles, algum sentido. E sejam de algum proveito.
2
Não é o lugar para discutir a questão da “ideologia”. A noção de ideologia, mesmo apenas em Marx, é tão vasta e
complexa que “acaba praticamente por cobrir o conjunto daquilo a que chamamos actualmente cultura”, afirma, talvez
sem muito exagero, um ROCHER, Guy – Introduction à la sociologie générale, trad. port. de Ana Ravara, Sociologia
Geral, I, 3.ª ed., Lisboa, Presença, 1977, p. 223. E GURVITCH, Georges – La vocation actuelle de la sociologie, II,
Paris, PUF, 1963, pp. 287-288 analisa treze sentidos de “ideologia”, apenas no marxismo. Certamente por isso, já um
VOVELLE, Michel – «Ideologies and Mentalities», in Culture, Ideology and Politics, ed. por Gareth Stedman Jones / Raphale
Samuel, Londres, Routledge and Kegan Paul, 1982, p. 3 foge à armadilha: “I am not going to fall into the trap of
beginning with a new definition of the Marxist concept of ideologie: others have done that, from the founding fathers to
commentators”. Já anteriormente adoptamos, noutros estudos, com fins práticos (de análise), a noção de ALTHUSSER,
81
SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO
enfrentar a urgência de o movimento socialista democrático desenvolver ideias
claras e alternativas. Começando por autognose identitária, comparando-se com
os géneros próximos, e afirmando a sua diferença específica, o que implica, desde
logo, voltar à História e aos debates históricos, revisitando-os e interpelando-os
com as questões do presente e as interrogações para o futuro.
Polémicas sobre o fim do Estado
Ao contrário dos comunistas, que se têm dividido, historicamente, entre
adeptos do perecimento do Estado, do Direito e dos juristas (como objectivo a
alcançar e escatologia a necessariamente ocorrer), de um lado, e defensores e
até glorificadores de um Direito “socialista”3 (vinculado à “ditadura do proletariado” e depois a um “Estado de todo o povo”4), de outro, já entre os socialistas
não parece ter persistido grande polémica a tal respeito. Os socialistas, mesmo
cooperativistas e autogestionários, parecem conviver mais placidamente com
o direito, o Estado e os juristas. A polémica sobre isso não parece ser, pelo
menos, um dos seus temas de eleição.
Talvez tal tenha ocorrido, em parte, porque o peso do Estado no pensamento germânico não permitira a Karl Kautsky e ao seu círculo libertarem-se
Louis – Idéologie et apareils idéologiques d’Etat, La Pensée, trad. port. de Joaquim José de Moura Ramos, Ideologia e Aparelhos Ideológicos
do Estado, Lisboa, Presença, 1974, p. 77: “A ideologia é uma ‘representação’ da relação imaginária dos indivíduos com as
suas condições de existência“. De algum modo matizada com a que recolhe ROCHER, Guy – Sociologia Geral, I, p. 228
(cf. ainda vol. IV, p. 205): “um sistema de ideias e de juízos, explícito e geralmente organizado, que serve para descrever,
interpretar ou justificar a situação dum grupo ou duma colectividade e que, inspirando-se largamente em valores, propõe
uma orientação precisa à acção histórica desse grupo ou dessa colectividade”. Contudo, para o presente contexto, estas
perspectivas são ainda limitadoras. Não podemos, por exemplo, esquecer a ideologia enquanto (identidade de) cosmovisão, ou, no mínimo, (de) mundividência política. E nesse sentido se coloca o problema da(s) “ideologia”(s) socialista(s)
– que um ARON, Raymond – Marxismes imaginaires: d’une sainte famille à l’autre, Paris, Gallimard, 1969, aproxima de “religiões
laicas”, procurando aplicar a crítica aos críticos. Mas a desconstrução de Aron não se aplica, por definição, aos socialismos não “dogmáticos”. Deixemos, pois, a pré-compreensão do “ideológico” a pairar... Até para reabrir o debate. Para
uma “sociologia” das ideologias, cf., v.g., BOUDON, Raymond – L’idéologie ou l’origine des idées reçues, Paris, Fayard, 1986;
BAECHLER, Jean – Qu’est-de que l’idéologie?, Paris, Gallimard, 1976; ANSART, Pierre – Les idéologies politiques, Paris, PUF,
1992.
3
Cf. uma perspectiva que se pretende “ortodoxa”, contra vários tipos de heterodoxia e/ou inimizade ao marxismo:
VOLSON, Serguei – Sob a Bandeira do Marxismo: Crítica da Interpretação de Hans Kelsen. Sobre a Teoria Marxista do Estado e do
Socialismo, in http://www.scientific-socialism.de/PECAP16.htm#_ftn4 . Na verdade, tratando de mais autores que
apenas Kelsen e com suas diferentes “classificações”.
4
Conceito das conclusões do XXII Congresso do Partido Comunista da URSS, em 1962, depois constitucionalizado na constituição de 1977. Tal “fase” era a superação da ditadura do proletariado... Cf. VERGOTTINI,
Giuseppe de — Diritto Costituzionale Comparato, vol. II, 6.ª ed., Pádua, CEDAM, 2004, p. 6 ss. Mas o “estado
de todo o povo” é ainda Estado, evidentemente, permanecendo também a necessidade de existência de direito. Cf.
Idem – Le Transizioni Costituzionali, Bolonha, Il Mulino, 1998, p. 102.
82
PAULO FERREIRA DA CUNHA
dessa fórmula. Pelo Estado teriam mesmo “uma veneração supersticiosa e
inconsciente”5.
E talvez ainda porque o mais lassaleano que marxista Hans Kelsen, em
Socialismo e Estado6, em consonância com a sua teorização geral de identificação
entre Estado e direito e de pretensa “purificação” deste último7, cedo afirmaria a neutralidade do Estado, espécie de molde plástico, até gelatinoso, apto
a tomar a forma de qualquer conteúdo.
Não deixa de ser significativo que Rosa Luxemburgo, decerto mais reivindicada por socialistas (não simplesmente reformistas) que por comunistas, tenha
afirmado de algum modo o carácter algo subsidiário do direito face à acção das
massas. Afirma ela no se “Discurso sobre o Programa” da Liga spartakista:
“O socialismo não será feito e não poderá ser realizado por decretos, nem
sequer por um governo socialista, por mais perfeito que seja. O socialismo
deve ser feito pelas massas, por cada proletário (...)”8
Depois disso, os socialistas democráticos têm sido, em geral, legalistas,
embora apelando para uma legislação reformadora e para a igualdade de
direitos. A título de mero exemplo, um dos argumentos utilizados em 1974,
na segunda volta das eleições presidenciais francesas, por François Mitterrand,
seria precisamente a da igual protecção da lei a todos. Ou seja, a lei não como
instrumento de uma política de classe, mas como garantia da igualdade entre
todos os cidadãos9. E já Jean Jaurès teria apostado nas “virtudes da legalidade
democrática”, a que, porém, o qualificativo de “burguesa” desacredita enquanto
programa ainda socialista10...
5
BONAVIDES, Paulo — Teoria do Estado, 7.ª ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 160.
6
KELSEN, Hans — Sozialismus und Staat. Eine Untersuchung der politischen Theorie des Marxismus, Leipzig, Hirschfeld, 1923.
7
Idem — Reine Rechtslehre, trad. port. e prefácio de João Baptista Machado, Teoria Pura do Direito, 4.ª ed. port., Coimbra,
Arménio Amado, 1976.
8
LUXEMBURGO, Rosa – Discurso sobre o Programa, apud PEREIRA MARQUES, Fernando — Contrapoder e Revolução,
Lisboa, Diabril, 1977, pp. 230-231.
9
“Les lois de la France portègeront tous les citoyens sans exception”. E o discurso continua nesse tom. ORTF, 17
de Maio de 1974, sessão eleitoral em La Rochelle.
10
Cf. BARATA-MOURA, José – Em torno do Manifesto, in “Vértice”, II série, n.º 139, Março-Abril 2008, p. 15:
“Para a ‘evolução revolucionária’ (évolution révolutionnaire) preconizada por Jean Jaurès – totalmente apostada no
celebrado engrandecimento das virtudes da legalidade democrática (burguesa) e do sufrágio universal, como as
doravante exclusivas vias de transformação do mundo (...)”.
83
SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO
Não deixa de ser interessante que um dos livros que decerto mais terá
contribuído em Portugal para a vulgarização política junto do homem da rua
antes do 25 de Abril (posto que nada isento de críticas), assinala a sua tese de
incompatibilidade entre socialistas e comunistas terminando com um argumento jurídico - o procedimento constitucional dos primeiros:
“Há vários pontos de antagonismo irreconciliável entre os socialistas e os
comunistas. Em primeiro lugar, os comunistas procuram acabar com o capitalismo por um acto só de levantamento revolucionário e guerra civil. Os socialistas, pelo
contrário, são apologistas de um procedimento estritamente constitucional”11.
Mas se no campo socialista parece ter-se optado de forma estável pela manutenção do Estado e do Direito, tal não quer dizer que pensadores socialistas não
tenham polemizado com o pensamento comunista adepto da extinção. Assim,
se Lenine afirma que o proletariado só necessita do Estado temporariamente
(no meio-tempo da sua ditadura), como que lhe replicaria, mais tarde, Paul
Ricoeur (socialista desde, pelo menos, 1933, i.e., desde os seus vinte anos12):
“A redução da alienação política conduziu o marxismo-leninismo a substituir o problema do controlo do Estado por um outro: o do desaparecimento
do Estado. Esta substituição parece-me desastrosa. Ela remete para um futuro
indeterminado o fim do mal do Estado, enquanto que o problema político
prático verdadeiro é o da limitação desse mal no presente. A escatologia da
inocência toma o lugar de uma ética da violência limitada. Ao mesmo tempo,
a tese do desaparecimento do Estado, prometendo demasiado para mais tarde,
admite igualmente demasiado mas no presente: a tese do desaparecimento
futuro do Estado serve de caução e de alibi à perpetuação do terrorismo. Por
um maléfico paradoxo, a tese do carácter provisório do Estado torna-se a
melhor justificação para o prolongamento sem fim da ditadura do proletariado
e abre caminho para o totalitarismo”13.
11
EBNSTEIN, William – Todays Isms, 5.ª ed. 1967, trad. port. de Natália de Oliva Teles, Comunismo, Fascismo, Capitalismo,
Socialismo, 2.ª ed., Porto, Brasília Editora,1974, p. 290-291. Não nos debruçaremos agora sobre o estilo, o rigor e
a actualidade das teses desta obra, que em grande medida não partilhamos.
12
http://www.iapl.info/NEWS/RICOEUR/Le%20philosophe%20Paul%20Ricoeur%20est%20mort.htm
13
RICOEUR, Paul – O Paradoxo Político, trad. port. de artigo em “Esprit”, de Maio de 1957, in O Tempo e o Modo. Revista
de Pensamento e Acção, n.º 1, Janeiro 1963, recolhido em O Tempo e o Modo. Revista de Pensamento e Acção. Antologia, 2.ª ed.,
p. 45.
84
PAULO FERREIRA DA CUNHA
A inversa também é verdadeira, evidentemente. Mas a polémica, do lado
marxista-leninista ortodoxo vira-se mais para o conjunto do pensamento jurídico burguês, como é o caso da obra de Vladímir Tumánov, que empreende
uma interessantíssima desmontagem da “concepção jurídica do mundo”14,
aliás na esteira do célebre texto de Engels sobre “socialismo jurídico”15.
Entre nós, recordamos uma muito inspiradora intervenção de António de
Almeida Santos que associa precisamente a crise do direito à crise dos valores16.
É um texto notável de um excelente escritor e de um agudo observador. Citemos
apenas o final, ficando a vontade de citar tudo:
“Que nos não descoroçoe também o facto de não termos ainda ideias claras
sobre os novos modelos e arranjos organizativos do futuro. Onde hoje é treva,
há-se fazer-se luz.”17
É o anúncio dos novos paradigmas, e do novo paradigma do direito, que
ainda não sabemos perfeitamente qual e como seja, mas que temos a segura
intuição e objectivos dados nos permitem já anunciar, para um novo direito.18
E, a concluir:
“Um bom começo será uma declaração de guerra à desatenção, ao conformismo, à resignação e à rotina. Discutir tudo. E fazê-lo com mentalidade
demiúrgica e revolucionária. Só reformadora, não basta!”
Não se trata, pois, de abolir o direito – ou autor refuta até o pessimismo
quanto à sobrevivência do direito19, mas advoga antes que nos preocupemos com
a sua crise. Para defender um novo direito. E é essa a grande tarefa do presente.
Digna da heterodoxia socialista.
14
TUMÁNOV, Vladímir – O Pensamento Jurídico Burguês, trad. da ed. fr. confrontada com a ingl., de Palmeiro
Gonçalves, Lisboa, Caminho, 1984, máx. p. 45 ss.
15
Cf. ENGELS, Friedrich / KAUTSKY, Karl – Socialismo Jurídico, trad. port., São Paulo, Editora Ensaio, 1991.
Recentemente, MENDONÇA, José Carlos – A Ideologia do Socialismo Jurídico, Rio de Janeiro, Corifeu, 2007.
16
ALMEIDA SANTOS, António de – Por Favor Preocupem-se, Lisboa, Editorial Notícias, 1998, p. 257 ss. Sobre a
crise de valores, logo no ano seguinte, Idem – Do Outro Lado da Esperança, Lisboa, Editorial Notícias, 1999, p. 227 ss.
E especificamente sobre o impacto do problema no direito, p. 241 ss.
17
Ibidem, p. 277.
18
Ibidem, p. 277.
19
Ibidem, p. 257.
85
SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO
Importará ainda sublinhar desde já que pensamos que políticas de convergência da esquerda e dos socialistas, latissimo sensu, não implicam, nunca
implicaram, desconhecimento mútuo, nem apagamento de diferenças e
sobretudo esquecimento histórico e ideológico. Há muito a unir todo o “povo
de esquerda” na prática para que esse tipo de obstáculos se levantem. Apenas
poderiam sê-lo como pretexto ou álibi20.
Acresce que, em relação ao problema do fim do Estado propugnado por
alguns marxistas ortodoxos tal não deveria decerto comover excepcionalmente
nem, por exemplo, os próprios liberais, que aparentemente muito teriam a
ganhar com isso. Ora, antes do susto da crise de 2008, os neoliberais já iam, de
desregulação em desregulação, advogando uma forma de perecimento estatal,
a seu modo, tornando-se involuntários obreiros da profecia dos seus arquiinimigos “colectivistas”. Pois a forma política Estado (ou “Estado Moderno”)
não é nem pode ser um monstro sagrado, dada a sua própria temporalidade
(historicidade) e contexto21.
Resolvendo de um só golpe o problema da historicidade do Estado e
do Direito, Juan Ramon Capella desmistifica (em termos algo exagerados,
sublinhe-se: sobretudo quando usa o epíteto de “fascista”) também as teorias
repetidas da “Teoria Geral do Estado” tradicional, que ainda têm muito curso:
“O enigma do direito é desvendado por alguns enunciados simples a seu
respeito: o Estado não existiu sempre, antes é um ser histórico cuja génese assenta
na cisão da sociedade em classes antagónicas; o esqueleto do Estado moderno é
composto não por ‘poder, território e povo’, a encobridora tripla tagarelice dos
ideólogos fascistas (tagarelice que converte o ‘povo’ em elemento do Estado),
mas sim por: 1.º um exército permanente; 2.º um segundo exército de funcionários; 3.º a política. (...)”22.
20
Do mesmo modo que os socialistas têm também pontes de diálogo com famílias não socialistas, mas democráticas,
republicanas (por vezes até monárquicas democráticas e constitucionais), e sociais (sem prejuízo da importância de
um legado liberal, mas jamais neoliberal ou de teologia de mercado). As quais foram aliados objectivos em situações
de combate a totalitarismos.
21
Cf., por todos, o clássico ENGELS, Friedrich – Ursprung der Familie, des Privateingentums und des Staats, trad. port. Origem
da Família, da Propriedade e do Estado, Lisboa, Presença.
Entre muitos, cf. ainda o belíssimo tratado de BONAVIDES, Paulo – Teoria do Estado, máx. p. 31 ss. V. ainda
uma síntese da perspectiva marxista sobre Estado e Direito e seu futuro in VERGOTTINI, Giuseppe de – Diritto
Costituzionale Comparato, vol. II, p. 4 ss..
22
RAMON CAPELLA, Juan – Sobre a Extinção do Direito e a Supressão dos Juristas, trad. port. de Maria Luzia Guerreiro,
Coimbra, Centelha, 1977, p. 32.
86
PAULO FERREIRA DA CUNHA
E recordemos ainda que fora o próprio Lenine a considerar o que o aproximava e o que o separava dos anarquistas, também adeptos do fim do Estado,
mas não por “extinção”.
E alguns autores têm dito sobre o Estado e dos juristas coisas que podem até
chocar o pacato e distraído burguês23. E sobretudo os juristas.
Se tem havido uma tal discussão no campo socialista democrático, ela não
tem conseguido passar para as ribaltas do que se discute. Contudo, o tema “socialismo, Estado e direito” também deve interpelar os socialistas stricto sensu, e daí
este contributo, que arranca destas polémicas historicamente registadas para
problemas de futuro. Evidentemente que se trata de uma questão teórica, e até
com vertente quimérica, utópica e utopista. Mas o lado teórico da luta é, para
os intelectuais, unsere einzige force – adaptando um mote de Engels24. Além disso,
recordemos que precisamente na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,
sublinharia Marx que, apesar de a arma da crítica não ter o mesmo peso que
a força das armas, quando se entranha nas massas, acabar por se tornar uma
força material.
Dogma e Heterodoxia
Tal divergência sobre o Direito e o Estado prende-se de algum modo com
os signos de dogma e pureza25 que dominam a distinção entre as duas grandes
famílias latamente ditas “socialistas”: a comunista, lato sensu, e a socialista,
proprio sensu.
Como é bem sabido (embora hoje não muito recordado, decerto por um
fenómeno de “inactualidade mediática”), enquanto a primeira família política sempre tem discutido entre os seus diferentes ramos e estirpes (soviética,
maoísta, trotsquista, todos nas suas diferentes versões, e ainda outras), invocado
as escrituras sagradas de um panteão de divindades (Marx, Engels, Lenine... e,
23
Uns de forma mais rasteira, outros em grande estilo. Nesta última clave, temos o caso de BLOCH, Ernst – Geist der
Utopie, Francoforte, Suhrkamp, 1964, trad. fr. de Anne-Marie Lang Catherine Piron-Audard, L’Esprit de l’utopie, version
1923, revue et modifiée, Paris, Gallimard, 1977, p. 286 ss.
24
ENGELS, Friedrich – Carta a Marx, de 21 de Janeiro de 1848. Cf. BARATA-MOURA, José – Em torno do Manifesto, p. 6.
25
Não terá sido a pureza ideológica revolucionária a inspiradora de MORAES, Vinicius de – “Carta aos Puros”, in
Poesia Completa e Prosa, org. de Alexei Bueno, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1998, p. 433-435. Pelo contrário, parece-nos retratar a pseudo-pureza (todas ou quase todas as purezas invocadas são pseudo-purezas) de certa hipocrisia
burguesa. Mas os textos universais têm aplicação muito para lá da sua génese e da subjectividade autoral. Trata-se de
um texto absolutamente actual e imprescindível para o pensamento heterodoxo – e para a sua prática.
87
SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO
segundo os casos, Estaline, eventualmente Mao Zedong... ou, em vez destes
dois, e com menor “culto da personalidade”, Trotsky), e se tem entre-excomungado, em nome da ortodoxia marxista-leninista (tal é a base semântica do
consenso que afinal não o é), já a segunda família assume com orgulho (embora
também por vezes com um certo complexo de privação ou de inferioridade –
calcanhares de Aquiles que um Eduardo Lourenço detectaria26) a heterodoxia,
o sem dogma27 ou a impureza28. E nela o pluralismo é timbre.
São precisamente de Eduardo Lourenço estas palavras conclusivas (e outras
mais se lhe poderiam citar a propósito):
“Adequado ou inadequado, o marxismo constitui a mais estruturada leitura
crítica do mundo em que vivemos, e não é possível agir como se ela não existisse. (...) Se é inadequada, torna-se imperativo mostrar porquê e construir
em seu lugar outro modelo teórico que permita estruturar com coerência esse socialismo-outro que
remeterá Marx para a História que hoje domina. Até lá (queiramo-lo ou não),
viveremos todos sob o complexo de Marx. Sempre é melhor do que morrer dele
por ignorância ou inconsciência”29.
26
LOURENÇO, Eduardo – O Complexo de Marx, Lisboa, Dom Quixote, 1979, máx. p. 9-13.
27
Cf., logo no título, SOTTOMAYOR CARDIA, Mário – Socialismo sem Dogma, Mem Martins, EuropaAmérica,1972, com Prefácio de Mário Soares.
28
Ao longo de anos de polémica, não tanto de pesada ideologia, mas sobre práticas políticas muito diversas (sendo os
socialistas acusados de “leais gestores do capital”, e os comunistas de abafarem as liberdades ou pretenderem fazê-lo),
é recorrente, dir-se-ia mesmo que é um tópico e quase um “tique”, a comparação dos comunismos institucionais e
ortodoxos a igrejas. E os grupos menos institucionais seriam “seitas”. Em ambos os casos, com suas escrituras, dogmas,
clero, e até inquisições. Tem de reconhecer-se aí, evidentemente, a crítica por parte dos espíritos mais heterodoxos.
Contudo, vistas as coisas de forma mais panorâmica e distanciada, não pode haver dúvida que todos esses elementos
fazem parte de uma mitificação e de um ritual, que, em si, são dificilmente prescindíveis em qualquer empreendimento
humano de congregação de pessoas. Os socialistas, incomparavelmente mais discretos, não deixam de, por vezes, entoar
os acordes de uma Internacional adaptada, de desfraldar bandeiras (inicialmente vermelhas), e de levantar o punho (que é
o esquerdo, e não o direito – para não haver confusões). A questão não está no ritual, nem em algumas fontes “sacralizadas”: o problema está no uso dessas fontes, e nos aspectos asfixiantes do dogma, desde logo “purgas”, excomunhões
(veja-se desde logo o título de Lenine: A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky), etc. A mitologia e o ritual comunistas são até,
em alguns aspectos, salutares (veja-se o belo mito de Che Guevara, que está longe de ser um comunista típico, porém).
É a este propósito interessante meditar no incitamento final do belo artigo de BARATA-MOURA, José – Em torno do
Manifesto, p. 21: “Lê-lo e estudá-lo ((ao Manifesto comunista)), não apenas como quem piedosamente revisita a memória
de uma antigo e sólido documento fundador da filosofia política do comunismo, ou como quem recapitula as iniciáticas fórmulas sacramentais da sua crença. (...)” (sublinhados nossos). Cf. uma descrição da hagiografia trotsquista e sobretudo
maoísta em PEREIRA MARQUES, Fernando – A Praia sob a Calçada. Maio de 68 e a Geração de 60, com um Ensaio-Prefácio
de Eduardo Lourenço, Lisboa, Âncora, 2005, p. 41. Em contrapartida, os socialistas democráticos por vezes se tornam
excessivamente de “linha branca”, sem timbre de uma específica sacralidade (ou marca) ideológica e concomitantemente se
engravatam demais (e o problema é sobretudo do engravatamento do discurso – forma de não dizerem), e acabam por
ter, por vezes, imagens semioticamente pouco distintas das dos políticos da direita. Embora na esquerda tal inespecificidade exterior comece a ocorrer quase generalizadamente desde os finais do século passado. É também na compreensão
dos calcanhares de Aquiles de uns e outros (e na assunção dos próprios, não em flageladoras auto-críticas com sabor a
confissões religiosas, mas com medida e ponderação) que se poderá estabelecer um diálogo (necessário) mais frutuoso.
29
LOURENÇO, Eduardo — O Complexo de Marx, p. 13.
88
PAULO FERREIRA DA CUNHA
Complexidade da questão jurídica marxista
Parece haver no próprio marxismo tout court alguma razão para a ambivalência
histórica dos comunistas face ao Estado e ao Direito30. Sem invocar sequer
determinações psicologistas ou simplesmente biográficas, como o facto de tanto
Marx como Lenine (além de um Gorbachov; e Brejnev era um entusiasta pelo
Direito!31) serem formados em Direito, haverá que meditar ao menos sobre os
escritos de Marx em que o Direito é abordado para tentar deslindar elementos
para uma sua proto-teoria jurídica ou em torno da juridicidade32.
As conclusões não são, porém, muito abundantes nem conclusivas.
Divergem os intérpretes, mesmo em face do mesmo corpus de fontes. E a já clássica oposição de várias fases em Marx (desde logo o “jovem” e “humanista”33)
contribui para que se queira resgatar e sobrepor os escritos de um tempo aos
de outros.
A crítica concreta do direito burguês34 facilmente pode confundir-se com
uma crítica a todo o Direito. E do mesmo modo a profecia de Marx na Crítica
do Programa de Gotha é interpretada por uns, literalmente, como de desaparecimento apenas do direito burguês, e por outros latamente, como de
desaparecimento de todo o direito35.
30
MOREIRA, Vital — Sobre o Direito, anexo a PACHUKANIS, E. B. — A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, trad. port.,
Coimbra, Centelha, 1972, p. 279 sintetiza, ao que nos parece muito bem: “O tema do desaparecimento do direito (e
do Estado) é um dos problemas mais confundidos de toda a história do marxismo. Não concretamente definido por
Marx, desenvolvido por Engels e Lenine, a questão nunca encontrou perfeitamente delimitados os seus termos”.
31
Incitando nomeadamente ao respeito de todos pelo direito, e elevando os juristas soviéticos ao nível (pelo menos)
dos agrónomos, dos engenheiros e dos economistas. Apud PESSOA VAZ, Alexandre Mário — Direito Processual Civil,
Coimbra, policóp., 1980/1981, p. 100.
32
Cf., de entre muitos, além dos citados ao longo deste estudo, v.g., MOREIRA, Vital — A Ordem Jurídica do Capitalismo,
Coimbra, Centelha, 1973; Idem — O Renovamento de Marx, Coimbra, Centelha, 1979. LYRA FILHO, Roberto — Karl,
Meu Amigo: Diálogo com Marx sobre o Direito, Porto Alegre, co-edição S. A. Fabris e Instituto dos Advogados do Rio Grande
do Sul, 1983; UMBERTO, Cerroni et al. — Marx, el Derecho y el Estado, Barcelona, Oikos-tau, S.A. Ediciones, 1979;
STUCKA, P. I. — La Función Revolucionaria del Derecho y de Estado, Barcelona, Ediciones Península, 1969.
33
Cf., por todos, v.g., LAPINE, Nikolaï — Le jeune Marx, trad. fr. do russo de D. Sanadzé, N. Romanova e Y. Plaud.,
Moscovo, Ed. du Progrès, 1980; EASTON, Loyd D. / GUDDAT, Kurt H. (ed. e trad.) — Writings of the Young Marx on
Philosophy and Society, Indianapolis, Hackett Publishing Comp., 1967; MERCIER-JOSA, Solange — Retour sur le Jeune Marx.
Deux Études sur le Rapport de Marx à Hegel. Paris, Meridiens Klincksieck, 1986.
34
Utilizaremos a expressão “burguês” e afins com sentido sociológico (social e cultural) preciso, sem qualquer
intenção pejorativa, até porque reconhecemos a importância histórica (e até “moral”) da burguesia, o que, mutatis
mutandis, vem já do Manifesto de Marx e Engels. Cf., em geral, SOMBART, Werner — Le Bourgeois, trad. fr., Paris, Payot,
1966; ROMERO, Jose Luis — Estudio de la Mentalidad Burguesa, Madrid, Alianza, 1987; PERNOUD, Régine — Les Origines
de la Bourgeoisie, Paris, PUF, 1947.
35
Cf. MOREIRA, Vital – Sobre o Direito, p. 280 e n. 34.
89
SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO
O mesmo se diga do Estado que, como se sabe, é um fenómeno político muito mais datado ainda, e que jamais se deve confundir, como se faz
frequentemente, com toda e qualquer forma de organização ou aparelho ou
societas política, por ilegítimo processo de sinédoque a-histórica. Acresce ainda
que a consideração do Direito no contexto da superestrutura capitalista e ainda
como aparelho ideológico (além de repressivo) do Estado36, no fundo sobrevalorizando a característica (por alguns dita acidental ou do-modo-de ser, não
da essência) da coerção ou coacção37, vai também num sentido muito pouco
amável e lisonjeiro para o Direito aos olhos marxistas-leninistas.
Da questão se podem ver ecos na Internet, com fontes anteriormente não
acessíveis, mas que, como é óbvio, necessitam de cuidadoso tratamento.
Autores há ainda que não concedem ao direito nenhum espaço benévolo: “o
Direito é, para o povo, um ópio ainda mais nocivo do que a religião” – afirma,
por exemplo, Harms38.
Em contrapartida, outros invocam um Marx aparentemente mais contemporizador com um direito-outro, que não o que lhe (nos) foi dado viver,
como será o caso de Luis Satie, que cita uma intervenção de Marx no tribunal
de Colónia, infelizmente sem mais referências39.
36
Cf. o clássico ALTHUSSER, Louis — Idéologie et apareils idéologiques d’Etat, La Pensée, trad. port. de Joaquim José de
Moura Ramos, Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, Lisboa, Presença, 1974.
37
Entre nós, BAPTISTA MACHADO, João — Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, reimp., Coimbra, Almedina,
1985, p. 31 ss. É de notar que a matéria da coacção é tratada como primeiro ponto do estudo da noção de Direito – tal
a sua importância. E o autor, antecipando o argumento da possibilidade de, utopicamente, uma sociedade de homens
perfeitos vir a prescindir da coacção, previne que, em tal sociedade, não deixaria de haver Direito (p. 37). Cf. ainda
várias posições a este propósito coligidas em SAROTTE, Georges — Le matérialisme historique dans l’étude du droit, trad. de Dr.
Joaquim Monteiro Matias, O Materialismo Histórico no Estudo do Direito, Lisboa, Estampa, 1975, p. 94 ss.
38
HARMS, Andreas — Warenform und Rechtsform. Paschukanis’ Rechtstheorie, in Rote Ruhr Uni. hoert auf zu studieren – fang an zu denken !,
http: // www. rote-ruhr- uni.org./2001/ index.shtml, 11 de Novembro de 2001, apud http://www.scientific-socialism.
de/PECapa.htm
39
“Mas, que entendeis, senhores, por conservação da legalidade? A manutenção das leis correspondentes à época
anterior e criadas por representantes de interesses sociais desaparecidos ou prestes a desaparecer, significa somente
elevar à categoria de lei estes interesses conflitantes com as necessidades gerais. Não obstante, a sociedade não se baseia
na lei. Esta é uma fantasia dos juristas. Pelo contrário, a lei deve basear-se na sociedade, deve ser expressão dos seus
interesses e das necessidades gerais que se originam de um determinado modo de produção material em oposição
ao arbítrio individual (...). No momento em que a lei não corresponde mais aos interesses sociais, converte-se mais
num pedaço inútil de papel. Não podeis colocar as velhas leis como fundamento do novo desenvolvimento social,
como também estas não podem criar as velhas relações sociais. Essas leis nasceram com estas relações e devem também
desaparecer com elas (...). Esta conservação da legalidade procura transformar os interesses privados em interesses
dominantes, quando precisamente esses interesses privados já não dominam; tenta impor à sociedade leis condenadas
pelas próprias condições de vida desta sociedade, pela sua maneira de obter os meios de vida, pela sua troca, pela sua
produção material (...). Deste modo ela entra em conflito, a todo instante, com as necessidades existentes, freia a troca
e a indústria, prepara crises sociais que irrompem em revoluções políticas. Eis aqui o verdadeiro sentido do acatamento e da conservação da legalidade” http://minimaphilosophia.blogspot.com/2004/07/marx-e-o-direito.html
90
PAULO FERREIRA DA CUNHA
Pela contextualização da crítica se “salvaria” por assim dizer uma categoria
absoluta, não contingente. Mas haverá categorias absolutas e não contingentes
para Marx? O mesmo problema se coloca até em relação ao Direito Natural,
que Ernst Bloch reabilita, não deixando de criticar a pretensa omnisciência
abstracta do direito natural burguês40.
Pachukanis, Stutchka e Vichinsky
Encurtemos muito razões de uma polémica que corresponde a uma importante clivagem ideológica (ideológica proprio sensu) no seio da história comunista,
e especificamente soviética. Se, por um lado, Pachukanis41 advoga a extinção do
Estado e do Direito, a tal queda “como fruto maduro” ou “podre” a que aludira
Lenine (e, dentro da escatologia marxista-leninista este advogar é mais que isso
– é profetizar), já o “socialismo real” foi sendo pensado de outra forma, com
um lugar efectivo para o direito, e um Estado em funcionamento.
Como bem se vê, o Estado soviético, sendo ainda (e dir-se-ia até que mais
ainda, porque revestindo a forma económica de “capitalismo de Estado”42 ou,
em fórmula mais suave, “socialismo de Estado”43) Estado, teve necessidade de,
mutatis mutandis, recorrer aos moldes institucionais do... Estado burguês. Mesmo
Lenine o teria reconhecido repetidamente que, mesmo após a revolução de
Outubro “uma grande parte do aparelho de Estado permaneceu intacta (...)”44.
Por vezes, parecendo operar aquele virar de cabeça para baixo que já fora apanágio
de Marx face à dialéctica de Hegel. Desde logo, no período dito de transição45,
40
BLOCH, Ernst — Derecho Natural y Dignidad Humana, trad. cast. de Felipe Gonzalez Vicen, Madrid, Aguilar, 1961, máx.
p. 188 ss.
41
PACHUKANIS, E. B. — A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, trad. port., Coimbra, Centelha, 1972.
42
Expressamente utilizando esta expressão, v.g., MAGALHÃES GODINHO, Vitorino – A Democracia Socialista, um
Mundo Novo, e um Novo Portugal, Venda Nova, Amadora, Cadernos Critério, 1976, p. 22.
43
Diz LEFEBVRE, Henri — Le manifeste différentialiste, Paris, Gallimard, 1970, p. 26 (apud PEREIRA MARQUES,
Fernando — Esboço de um Programa para os Trabalhos das Novas Gerações, Porto, Campo das Letras, 2002, p. 210):“O Socialismo
((de Estado)) que tira de Marx a sua retórica e a linguagem das suas decisões, abandonou a sua diferença para fixar as
mesmas metas que o capitalismo: produzir mais, produzir sempre”. De notar que o último motu é uma modificação,
cremos que propositada, do de Lenine: “Estudar, estudar muito, estudar sempre”.
44
Cf. ALTHUSSER, Louis — Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, p. 37. A nosso ver, não haveria nada de especial nessa
permanência se ela não persistisse muito depois da tomado do poder.
45
Cf., desde logo, o clássico V. I. LENINE, V. I. — A Revolução Proletária e o renegado Kautsky, trad. port. de Rui Santos,
Coimbra, Centelha, 1974 (começando por atacar o “revisionismo” de Kautsky sobre a ditadura do proletariado). Em
91
SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO
e de “ditadura do proletariado”, mais tarde “superada”. Embora muitas vezes
operando cosmeticamente, mudando cores, nomes, adjectivando, mitificando
a seu modo. Exercendo o seu discurso legitimador na sua função ideológica e
mistificadora de forma simétrica à dos estados capitalistas de mercado. Veja-se
a frase de Marx tão cara a Lenine: “O Estado é o proletariado organizado em
classe dominante”46.
Contudo, Vichinsky criticará como quimera o perecimento do Estado (pelo
menos a curto ou médio prazo) e o desaparecimento concomitante dos juristas e
do que eles “fazem”, o Direito... E defendendo, outrossim, um Direito socialista.
Já Piotr Stutchka, embora mais prático que teórico, tinha defendido um
direito proletário47. E para isso promoveria, a extinção dos advogados como
profissão liberal, e, pelo Decreto n.º 1 Sobre o Tribunal, de 24 de Novembro
de 1917, a substituição dos tribunais existentes pelos Tribunais de Trabalhadores
e Camponeses, com juízes eleitos.
Os principais argumentos de Vichinsky são deveras interessantes, e em
alguns aspectos não deixam de ser até “proféticos”, por seu turno. Mas, agora,
de profecia que estamos em condições de apreciar no nosso tempo, porque os
factos se jogam agora.
O jurista soviético pressupõe desde logo uma des-diabolização dos juristas,
como o fará depois, até em tom entusiástico, Leónidas Brejnev. Não se trata,
assim, de um burguês envergonhado, de saber e profissão tipicamente burguesas,
que fez a sua opção de classe, mas que se embaraça com a sua formação (que talvez
o envergonhe até), na verdade uma forma mentis, avessa ao ideal que abraçou. De
modo algum. A própria concepção de um direito socialista é garante de um outro
à-vontade, psicológico e teorético. Mas mais: para Vichinsky é na sociedade socialista que o Direito verdadeiramente se realiza, ou desabrocha, como vero Direito.
Só aí, só então “o direito adquire uma base sólida para o seu desenvolvimento”48.
E tal é considerado uma realidade positiva, não negativa.
polémica com Kautsky, Idem — Como Iludir o Povo com os slogans de Liberdade e Igualdade, trad. de Maria João Delgado, Coimbra,
Centelha, 1974, p. 31 ss.. Já mais recentemente, e em clave jurídico-político-filosófica, DIAZ, Elias — “Estado de transición y dictadura del proletariado”, in De la Maldad Estatal y la Soberania Popular, Madrid, Debate, 1984, p. 184 ss. Pistas acessíveis
se podem sempre revisitar no vade mecum de HARNECKER, Marta — Los Conceptos Elementales del Materialismo Histórico, trad. port.
de Alexandre Gaspar, Conceitos Elementares do Materialismo Histórico, I, 2.ª ed., Lx., Presença, 1976, pp. 192-197, máx. p. 195.
46
LENINE, V. I. — Estado e Revolução, trad. de uma ed. inglesa por Armando de Azevedo, Lisboa, Delfos, 1975, p. 67 ss..
47
STUTCHKA, Piotr — Direito de Classe e Revolução Socialista, 2.ª ed. São Paulo, Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2001.
48
NAVES, Márcio Bilharinho – Marxismo e Direito. Um Estudo sobre Pachukanis, São Paulo, Boitempo, 2000, p. 162.
92
PAULO FERREIRA DA CUNHA
Consideremos agora a parte profética: Vichinsky pensa que o Direito é,
mais que instrumento próprio ou privativo da sociedade e da dominação
burguesas, verdadeiramente por elas instrumentalizado. Mas não é intrinsecamente associado às mesmas. A sua instrumentalização pode ir ao ponto de
poder ser dispensado (ou descartado) quando impeça o fluir ou a lógica imparável do próprio sistema. Na fase mais avançada ou “superior” do capitalismo,
o imperialismo49, este tenderia a violar o direito, desde logo infringindo a
própria legalidade. Ora tal parece ver-se hoje. Mesmo se pensarmos que a face
da legalidade (não é certo que o mesmo claramente ocorra com a juridicidade, e menos ainda com a juridicidade proprio sensu, a do Direito justo, passe
o pleonasmo) pode facilmente ser salva com rápidas e profundas alterações
legislativas, nas mãos dos legisladores do momento, que, em muitos casos, são
também os executivos, com funções legislativas, ordinárias ou extraordinárias.
Sistema expedito a que apenas colocam peias, infelizmente não raro em exclusivo formais, a existência de princípios e normas constitucionais, e, no limite,
os limites materiais de revisão constitucional, ou cláusulas pétreas50.
Direito soviético, direito socialista?
Nomes simbólicos como Vichinsky, Stutchka, Brejnev ou Gorbachov e
as suas posições sobre o Direito levam-nos a pensar num sovietismo (ou em
vários) mais votados a concretizações práticas de um certo tipo de racionalidade
jurídica, certamente não assimilável à “burguesa”, mas que fundamentalmente
joga o mesmo jogo (talvez o de um certo tipo de modernidade de algum modo
incompleta, excessivamente abstracta e racional51). Em que a utopia socialista
(mito da cidade ideal52 socialista), para o bem e para o mal – e cremos que
há aí de um e de outro – pelo menos recua para um horizonte cronológico
49
LENINE, V. I. — O Imperialismo, fase superior do Capitalismo, trad. port., Lisboa, Avante, 1975.
50
Perante os quais o “chaplinesco” constituinte nem sequer recua, designadamente quebrando a regra de pedra, ao
retirar a própria placa de proibição, e entrando descontraidamente pelos artigos de segurança adentro: é a chamada
técnica da “dupla revisão”. Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes – O Problema da Dupla Revisão na Constituição Portuguesa, Separata
de “Revista Fronteira”, Dezembro de 1978. Cf., sobre o assunto, o nosso Direito Constitucional Anotado, Lisboa, Quid Juris,
2008, p. 339 ss., máx. p. 360 ss.
51
BITTAR, Eduardo C. B. – Razão e Afeto, Justiça e Direitos Humanos: Dois Paralelos Cruzados para Mudança Paradigmática. Reflexões
Frankfurtianas e a Revolução pelo Afeto, in Educação e Metodologia para os Direitos Humanos, São Paulo, Quartier Latin, 2008, p. 57 ss.
52
MUCCHIELLI, Roger — Le Mythe de la cité idéale, Brionne, Gérard Monfort, 1960 (reimp. Paris, P.U.F., 1980).
93
SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO
(ou ucrónico) “confortavelmente” longínquo. É assim possível comparar os
“direitos socialistas” com os direitos da família ocidental, sem problemas de
essência53. Comparar entes de essências adversas é que seria complexo54.
Resolvido, pois, o “problema ontológico” do Direito dos países soviéticos e afins, e podendo proceder-se ao absolutamente normal processo de
comparação de direitos, que se pode concluir, extrapolando do comparatismo
jurídico para uma teorização filosófico-política?
Em grande medida, e apesar do entusiasmo dos juristas e estadistas russos
citados, as conclusões não são nada animadoras para uma differentia specifica
profunda do direito soviético. Terá sido ele socialista? A própria questão é
herética, em ambiente comunista, mas pertinente. Em que medida o direito
soviético é direito socialista, e em que medida, mais radicalmente, pode
haver direito socialista, ou seja direito no socialismo e com ele absolutamente
concorde (porque, se assim não for, também não haverá socialismo – poderse-á pensar)? Tal também remete, obviamente, para a questão da natureza da
URSS e das democracias populares, etc. No limite, a questão é: ou o direito no
socialismo é socialista, ou não há direito no socialismo, ou o socialismo, com o
seu direito, não será, afinal, socialismo.
Mas também não exageremos. Há diferenças evidentes entre o direito soviético e o direito da chamada família ocidental; o problema está em saber o seu
verdadeiro timbre. É claro que conteúdos de colectivismo são evidentes em
legislação. É evidente que o “centralismo democrático”55, o papel do partido
único ou hegemónico, e outras características institucionais típicas dos partidos
comunistas se transportaram ou influenciaram as estruturas estaduais constitucionais respectivas56. E ainda é também evidente que, do ponto de vista da
53
Tal parece ser o que se extrai, por exemplo, deste passo de DANTAS, Ivo – Direito Constitucional Comparado. Introdução, Teoria e
Metodologia. Geografia dos Grandes Sistemas Jurídicos, 2.ª ed., Rio de Janeiro / São Paulo / Recife, 2006, p. 213: “(...) vale lembrar
que, apesar da queda do Muro de Berlim, e apesar de todas as modificações ocorridas na Europa, tal não nos parece que
possa justificar a exclusão, pura e simples, do modelo socialista, do que seria exemplo (e só ele bastaria para justificar) o sistema
jurídico cubano”. Já, por exemplo, MORAES GODOY, Arnaldo Sampaio de – Direito Constitucional Comparado, Porto Alegre,
Safe, 2006, apesar de fazer referência a constituições soviética (e depois russa) na Introdução (p. 16) não as estuda em
apartado autónomo, nem considera abre capítulo para qualquer “direito soviético” ou categoria afim.
54
Coisa diversa é já, como se sabe, a décalage ontológica entre os direitos ocidentais e o “direito muçulmano”, que o
renomado especialista George Bousquet nos começa por prevenir, no respectivo manual, que “não existe”. Na verdade,
não existe enquanto Direito autónomo, mas como normatividade caldo de cultura, com elementos religiosos, de poder,
de moral, etc.
55
Cf., por todos, VERGOTTINI, Giuseppe de – Diritto Costituzionale Comparato, vol. II, p. 44 ss.
56
Cf., por todos, Ibidem, vol. II, p. 16 ss.
94
PAULO FERREIRA DA CUNHA
forma, do ritual, da tópica, a linguagem (latissimo sensu) utilizada pretende ter
coloração marxista-leninista típica. Só que o que se tem por socialismo são
também alguns “sinais exteriores”...
Porém, no plano mais profundo, quanto à essência do próprio Direito, o
que poderá dizer-se que muda?
É verdade que os juristas soviéticos cunhariam as suas próprias definições de Direito, em grande medida (pelo menos as que foram chegando ao
“Ocidente”) decalcadas na ideia da identificação de Direito com instrumento
de dominação capitalista.
Assim, Krylenko dirá que
“o direito, quanto à sua origem, é algo derivado das relações económico-sociais, e quanto ao seu conteúdo, um sistema de normas dirigidas a
justificar e proteger, ou melhor, proteger primeiro e justificar depois, a ordem
existente”57.
Complementar parece ser a definição de Stutchka, a qual terá tido mesmo
acolhimento numa lei soviética:
“o direito é um sistema de relações sociais que corresponde aos interesses da
classe dominante e que se sustém pelo seu poder organizado (o Estado)”58.
Mas tais definições, podendo até revelar-se, afinal, adequadas (dado o
“capitalismo - ou socialismo - de estado” do pretenso socialismo soviético),
não servem realmente para o propósito de escrutinar uma eventual differentia
specifica do jurídico no mundo dos sovietes. Aliás, tudo indica que a démarche
definitória tem claro recorte positivista e, em direito, adquire sobretudo uma
função legitimadora59.
O que no final de contas parece revelar-se é que, talvez porque arreigados à
ideia de transição, os juristas soviéticos não nos legaram uma imagem do direito
diversa da de dominação. Pelo menos, ela não foi recebida no “Ocidente”.
57
TRUYOL SERRA, António — Esbozo de una Sociologia del Derecho Natural, in Revista de Estudios Politicos, Madrid, vol. XXIV,
1949, p. 27.
58
Apud Ibidem.
59
Sobre a definição em geral, ARISTÓTELES – Organon, Tópicos, 102 a) (ed. port. com trad. e notas de Pinharanda
Gomes, Lisboa, Guimarães, 1987, p. 15 ss.). Sobre as definições em direito, IAVOLEUS – lib. 11 Epistularum = D. 50,
17, 202: Omnis definitio in iure civili periculosa est: parum non est anim, ut subverti non posset. Sobre a definição de Direito, o nosso
Filosofia do Direito, Coimbra, Almedina, 2006, p. 291 ss.
95
SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO
Prova da definição
Mas a desconstrução das definições é sempre útil, reveladora.
Devemos, assim, passar às mais clássicas e tradicionais de todas as definições
de direito, naturalmente positivistas, normativistas e dogmáticas, que podem
alcançar um mínimo denominador comum nos tópicos seguintes. Nessa
definição-retrato-robot, ou definição-padrão, o direito seria: 1) um acervo
ou conjunto de normas ou regras; 2) que se impõem socialmente de forma
coactiva; 3) coacção essa exercida por parte de um centro nomológico e de sua
própria garantia, no limite manu militari, o Estado; 4) com o fim geral de pacificação social, prevenção e solucionamento dos conflitos, ou outro discurso
legitimador irénico e eutópico.
Se analisarmos o que ocorre em todas as sociedades concretas, verificamos sem dificuldade que esta tópica positivista na realidade não se adequa
por completo ao que se passa, contendo inúmeras e significativas excepções,
algumas colocando em risco a regra60. Contudo – e este facto é quase surpreendente – temos que conceder que esta definição, descontando as múltiplas
excepções, enquanto projecto e também projecto ideológico, é um excelente descritivo de qualquer direito como mera expressão não autónoma do
poder, logo, quer do direito burguês corrente quer do direito soviético. O
que contraria profundamente esta visão do direito é o corte epistemológico (e
também autonomia política do direito61) criada pelo ius redigere in artem, é a razão
de justiça e não a raison d’Etat.
Esta autonomia ou independência relativa não foi excluída, aliás, por Marx e
Engels, e, mesmo que não fosse expressamente invocada, inserir-se-ia na possibilidade de autonomia relativa da superestrutura que Engels reconheceu na célebre
carta a Bloch62. Mas outro Bloch, Ernst Bloch, insistiria, mais recentemente,
60
61
Cf. o nosso O Ponto de Arquimedes, Coimbra, Almedina, 2001, p. 137 ss.
Cf. o nosso Repensar a Política. Ciência & Ideologia, 2.ª ed., revista e actualizada, Coimbra, Almedina, 2007, p. 228 ss.
62
ENGELS, Friedrich – Carta a Bloch, de 21 / 22 de Setembro de 1890: “ (...) A situação económica é a base, porém os
diversos momentos da superestrutura - formas políticas da luta de classes e seus resultados – Constituições, estabelecidas pela classe vitoriosa após
a batalha vencida etc. – formas jurídicas e então, até mesmo, os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes,
teorias políticas, jurídicas, filosóficas, concepções religiosas e seus desenvolvimentos subsequentes em sistemas dogmáticos,
exercem também seu efeito sobre o transcurso das lutas históricas e determinam, em muitos casos, a sua forma, de modo
preponderante. (...)” (http://www.scientific-socialism.de/FundamentosCartasMarxEngels210990.htm.)
96
PAULO FERREIRA DA CUNHA
sobre a “relativa independência” da esfera jurídica no pensamento dos fundadores do marxismo63.
Máscara da dominação real
Assim, começando pelo último tópico, o direito soviético pode, assim como
o Estado soviético, proceder a um “mascaramento” da dominação subsistente.
Ora, quer Pachukanis quer um heterodoxo marxista como Ernst Bloch,
parecem coincidir na ideia de que o Estado e o Direito, além do seu domínio,
exercem ainda funções sociais legitimadoras e de ilusão, que são de mitificação
e mistificação, procurando, desde logo, dar a aparência de uma cura geral do
bem e do equilíbrio sociais, quando, na verdade, o fazem em proveito de alguns
poucos. Ora este irenismo e eudemonia, totalmente contrários às ideias de luta
de classes, ditadura do proletariado, etc., e ao próprio carácter dialéctico da
sociedade, em tudo coincidem com um fenómeno de pretenso consensualismo e pretensa localização supra conflitos, muito típica, de resto, da política
e das instituições burguesas.
Garantido o discurso legitimador eutópico (elemento externo), que pode
ser, contudo, colorido com tons menos consensualistas, antes prometendo
amanhãs que cantam e até a luta contra a exploração, o imperialismo, etc., os
elementos propriamente internos (mais profundos) dos direitos soviéticos não
distam, afinal, muito dos burgueses. Há fórmulas diversas, que são susceptíveis
de ser mais ou menos valorizadas, pro domo.
Positivismo legalista
Assim como para os juristas burgueses o positivismo legalista (crença atávica
e atracção magnética pela letra da lei sem discussão crítica e sem fuga às suas
soluções) é a filosofia espontânea, automática, aquela que vem a galope, por natureza sua64, do mesmo modo não se vê que uma lei considerada socialista,
63
BLOCH, Ernst — Derecho Natural y Dignidad Humana, p. 187.
64
“O positivismo é a filosofia espontânea dos juristas”, recorda TEIXEIRA, António Braz – Sobre os Pressupostos Filosóficos do
Código Civil Português de 1867, in “Fides. Direito e Humanidades”, III, Porto, Rés, 1994, p. 148. Sobre as diferentes fórmulas
de positivismo jurídico, TRIGEAUD, Jean-Marc – Eléments d’une Philosophie Politique, Bordeaux, Bière, 1993;
Idem – Humanisme de Ia Liberté et Philosophie de la Justice, II, Bordeaux, Bière, 1990. Em cotejo com outra proposta doutrinal, o
jusnaturalismo, v.g. Norberto BOBBIO – Giusnaturalismo e positivismo giuridico, Milano, Ed. di Comunità, 1984
97
SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO
popular, etc. no contexto de uma ordem jurídica soviética ou afim, possa
sofrer sequer qualquer crítica significativa e modulação de relevo nas mãos dos
operários do Direito, os juristas soviéticos. Há um elemento de estabilização
normativa e institucional e de legalidade logo após os primeiros momentos
revolucionários65.
Para uns como para outros, o Direito é, sem dúvida, pelo menos acima de
tudo e antes de mais, “um conjunto de normas”. E a sua aplicação deve ser algo
parecido com a viva vox legis, uma obediência cadavérica ao princípio romano da
decadência (quando já nada “segurava” a sociedade senão a força coactiva das
instituições dissuasoras e punitivas): dura lex, sed lex.
Coacção
Esta perspectiva positivista redunda natural e logicamente não na averiguação da razão do comando, e da sua justiça. A regra, pela sua própria
existência como tal, passa a incontestável e inapreciável na sua génese e no seu
valor. Sendo a hermenêutica subsequente uma lógica fria, subsunção pura,
averiguação de um sentido considerado “prévio” e “ínsito” na norma, e jamais
ponderação e construção de um sentido em diálogo com o caso, na mira do
justo concreto. Trata-se, pois, da aplicação (no limite pela força) da ordem ou
comando que a norma parece prima facie conter. E a característica considerada
acidental, não essencial, das normas que é a coercibilidade, simples susceptibilidade latente e virtual de imposição coactiva de uma norma, passa a avultar
numa outra veste, muito mais impositiva: a coacção66. Ora a coacção é tida
pelo positivismo legalista mais puro e duro como característica essencial de
toda a norma jurídica, e até invocada como elemento distintivo, por exemplo,
na oposição entre Direito e Moral, cujas regras não gozariam desse privilégio
conferido estadualmente, segundo a definição que vimos seguindo.
Não cremos poder haver qualquer dúvida que, quer no “Ocidente” quer nos
países do antigo “Leste” comunista, o que sustenta em última instância o cumprimento da lei é mesmo a ameaça sempre actual da sanção, e, mais ainda, da pena,
65
VERGOTTINI, Giuseppe de – Diritto Costituzionale Comparato, vol. II, p. 12 ss.
66
Embora se admita algo de discurso legitimador délico-doce no argumento da simples coercibilidade – porque ela se faz
actual e coactiva logo que haja incumprimento, ou até na mera ocorrência de presunção ou ameaça ou perigo...
98
PAULO FERREIRA DA CUNHA
que pode privar o infractor dos seus maiores bens, ou, para alguns, diminuí-los
– propriedade, liberdade, vida e honra são os alvos normais das sanções.
No limite, a sanção é o maior dissuasor, para além de razões “morais” e
ideológicas interiorizadas, como uma certa ideia de cidadania (mas a cidadania pode também levar ao incumprimento, ao uso do direito de resistência,
à desobediência civil, etc.), de cumprimento do dever, etc. Em muitos casos,
deriva esta submissão a toda a ordem de uma natural identificação da norma
jurídica, independentemente do seu conteúdo, com a ideia de justiça, ou, ao
menos, de justiça possível; e sempre se identificando essa norma e a necessidade do respectivo cumprimento com o valor da ordem e da segurança, e o
evitamento do caos.
Estadualidade
Por tudo o que ficou dito resulta claro já que o agente, motor, garante, e
quase o “alpha” e “oméga” desta engrenagem era e é o Estado, tanto num caso
como noutro, tanto no “Ocidente” como no “Leste”.
Obviamente que há outros centros normogenéticos. Mas ainda são os
Estados os principais geradores de normas e os dotados de instâncias mais
eficazes para as fazer aplicar.
A União Europeia não tem um exército próprio que a livre de uma afronta
à bandeira azul estrelada. A ONU apenas tem “capacetes azuis” multinacionais.
Ambas estão longe das possibilidades da sua afirmação política por insuficiência
militar. A pedra de toque é, em muitos casos, quem exerce o poder, e este, ao
menos nas questões decisivas, ainda reside muito, como diria Mao Zedong, no
“cano da espingarda”. Logo, a coacção, na sua versão mais extrema, a militar,
é decisiva.
Por outro lado, é certo que entes infra-estaduais operam, sobretudo em
federações, em que há mesmo “estados” federados. Contudo, ainda que nestes
casos se deva por vezes conceder um mutatis mutandis, a questão está sempre na
natureza do ente juspúblico. Estados federados são ainda... Estados, para uns
casos; noutros, dependem da união ou da federação, designadamente dos seus
órgãos de soberania “centrais”, comuns... A excepção é apenas uma análise
mais microscópica do mesmo problema que poderíamos claramente ter observado à vista desarmada.
99
SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO
Um Direito realmente socialista?
A falta de especificidade e autonomia do direito que se apresentava como
socialista face ao direito burguês ou capitalista, descontados aspectos de
pormenor e quase de cor local, coloca a família jurídica socialista num limbo
pouco confortável: uma espécie de desinência historicamente localizada. E
hoje, passado já suficiente tempo sobre as quedas dos muros e o desmantelamento do COMECON, é claro que tal família acaba por ser, para observadores
mais desenvoltos e iconoclastas, apenas uma nota de rodapé, sem verdadeira
actualidade. Alguns chegam mesmo a ignorá-la, o que parece, porém, injusto.
Admite-se ainda que existiu, sem escavar, contudo, nos seus fundamentos
específicos, que parecem agora bem frustes. Mas não mais parece existir...
pelo menos enquanto “família”. Mesmo nos países de subsistência oficial do
socialismo comunista, as opções pragmáticas empreendidas não só descaracterizaram muito a economia e produziram grandes mudanças sociais, como
mudaram o direito.
Esta mesma verificação realmente aponta para um “direito socialista” não
como um direito realmente diverso, original, mas como um instrumento
ideológico particularmente criativo ao serviço das realidades estaduais a que
muitos (mesmo alguns actuais comunistas de vários matizes) consideram ora
desvio, ora traição, ora embuste, ora erro67...: o Estado soviético e os Estados
das Democracias populares seus satélites.
Instrumento ideológico duplamente eficaz, porque acumulando a geral
presunção de eticidade e justiça que o cidadão comum está disposto, a tributar à
ordem instituída, salvo casos de incomportável tirania sobre si próprio exercida
(não tanto a socialmente experimentada), e ainda concentrando os anelos de
esperança associados à construção da cidade nova. E para além, como sabemos,
do lado persuasivo menos simpático, a sombra omnipresente da coacção.
Perante este balanço, que insensivelmente, no lugar mental do não-pensado, mas pressuposto, parece impor-se, sobretudo com a desmitização do
direito “socialista” como um novum totalmente outro – dir-se-ia como novo
67
Apenas dois exemplos, aleatórios, de entre multidão. De “erros”, “recuos” e “desvios” falava já, v.g.,
MAGALHÃES GODINHO, Vitorino – A Democracia Socialista, um Mundo Novo, e um Novo Portugal, p. 19. Alude à retórica
dos “erros”, “desvios”, “necessidades históricas”, um SOBRAL, José Manuel – Marxismo, Estado e Campos de Concentração,
in “Abril. Revista de Reflexão Socialista”, Maio 1978, p. 23.
100
PAULO FERREIRA DA CUNHA
ganz Andere – é patente que muito da sua apelatividade mítica (e utópica) se
esboroa.
E perguntamo-nos, assim, à falta de um farol jurídico que lance luz e
esperança no movimento comunista geral (já não é fácil dizer, como outrora,
“internacional”, dada a sua glocalização), esgotada a sedução de uma utopia
jurídica que se pudesse mostrar e ensinar, se não restará a esta família socialista
outra via.
Cremos que sim. A menos que se passe a um “saudosismo”, mitificando
a utopia do “socialismo real” histórico, depois da via Vichinsky, de novo se
poderá trilhar a via Pachukanis. Já não a utopia de um direito exemplar, mas
antes a quimera do futuro perecimento do Estado e da imprestabilidade superveniente dos juristas.
Mas certamente, de momento, talvez o mais prudente seja nem sequer falar
sobre o assunto, a não ser em sábios ensaios de hagiografia e erudição escriturística do movimento “socialista”...
De qualquer modo, a interrogação pode colocar-se hoje por parte dos
socialistas “impuros” e a-dogmáticos, dirigida aos seus camaradas preservadores da pureza e do dogma: onde está, para vós, o Direito? Que lições tirais
do direito soviético e afins?
Podemos e devemos fazer estas perguntas com sã curiosidade científica e
com o maior fair play político. É que gostaríamos mesmo de saber...
Socialismo Histórico
É dificilmente contornável essa circunstância infeliz de o socialismo “puro”
(contudo designação não auto-assumida pelos seus protagonistas), depois
passado a “real”, ser hoje sobretudo um “socialismo histórico”. O renomado
constitucionalista comparatista Giuseppe de Vergottini afirma as evidências
quando diz que:
“La forma di stato socialista permaneva in Cina, in altri stati asiatici e a
Cuba. L’analisi della forma di stato socialista ha dunque, per moltri degli ordinamenti (...), un significato ormai storico”68.
68
VERGOTTINI, Giuseppe de – Diritto Costituzionale Comparato, vol. II, p. 3.
101
SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO
Mas terá um significado sobretudo histórico todo o conjunto do “momento”
jurídico comunista?
E contar-se-á tal empreendimento entre as experiências sociais que, com
alguns aspectos evidentemente positivos (que hoje se olvidam, se deformam e
até se diabolizam – como os excelentes níveis de educação e saúde atingidos,
em geral, nos países que as viveram69), entram contudo na coluna negra da
História, a dos fracassos, com um déficit de liberdade enorme? Veja-se a marca
idelével dos terrores estalinista ou maoísta, que certamente nenhum feito social
(e muitos foram) consegue limpar de sangue, medo, ódio e vergonha.
Ora, a menos que se venha a pretender uma complicada reabilitação do
direito soviético (difícil de levar a efeito sem a reabilitação integral ou quase do
Estado e da política da URSS: mas que é fácil e talvez cómodo fazer, no plano
do mito e do marketing: sempre é um legado a invocar), parece que a opção que se
depara aos comunistas será apenas ou a referida via quimérica (sempre é possível
advogar a pureza de um direito futuro...), ou então um certo minimalismo
em matérias jurídicas, evitando a questão de fundo, e lutando pontualmente
por causas concretas na sociedade capitalista vigente, mas não elaborando uma
teoria de conjunto sobre um Direito socialista. E valha a verdade o problema de um
corpo jurídico de marca socialista não é, em si e por si, um slogan compensador.
Importam, sim, popularmente, reivindicações pontuais.
Nesta perspectiva minimalista, valha a verdade, sempre poderiam ser auxiliados por aquele dito segundo o qual, radicalmente não-utópico, o autor d’O
Capital se manifestava contra escrever as ementas para as tasquinhas do futuro.
Mas se há uma utopia de descrição rigorosa do comunismo, há também algo
de utopia na decrição do fim do direito, por exemplo em Georges Sarotte:
“À medida que nos encaminhamos para a sociedade comunista, a ordem
alarga-se progressivamente e a coerção tende a desaparecer. Portanto, deixa
de haver tribunais, polícia, prisões, agentes encarregados das execuções, deixa
de haver processos, mesmo de indemnização, pois os prejuízos eventuais que
resultem de erros cometidos (...) poderão ser reparados de comum acordo
(...)”70. E o texto continua neste estilo...
69
Veja-se a formação que, em geral, possuem os imigrantes de países da Europa de Leste, em Portugal, e os casos
ainda recentes de “turismo oftalmológico” a Cuba de concidadãos nossos.
70
SAROTTE, Georges — O Materialismo Histórico no Estudo do Direito, p. 184.
102
PAULO FERREIRA DA CUNHA
Em busca de alimento ideológico
Entretanto, o tempo actual é o da grande oportunidade de, sempre sem
complexos e sem dogmas, os socialistas democráticos, que nas últimas décadas
(e quiçá desde sempre) tiveram um certo déficit de reflexão e de formação nas
suas próprias fontes (ficando-se por demais pela arte do possível embebida
em boas intenções de base, e protagonizada a partir de intuições, navegações
de cabotagem e análise política do concreto) passarem ao trabalho de fundo
e de longo alcance da teoria e da ideologia. Sob pena de uma outra ideologia
avançar sobre si e substituir as suas origens e imagem de marca71.
Os socialistas não devem ter medo da ideologia. Sabemos, com Mário
Soares, que “o povo não come ideologia”, mas também sabemos que tal significa sobretudo prevenção contra os meros professeurs rouge, que diletantemente
especulam sem acção, e sem acção que implica algum pragmatismo (sem
sacrifício, porém, do essencial)72. E a prova é que Mário Soares, em tempo
anti-ideológicos como o presente (ou melhor: o passado recente, porque a
ideologia vem aí de novo), se tem batido por fidelidade a princípios, que são,
evidentemente, ideológicos. Bem observou Sottomayor Cardia que o socialismo, mais que um sistema económico, é um conjunto de valores73. Ora esses
valores são a seiva da ideologia (e dela já fazem parte indissociável).
Ora neste trabalho de reflexão ideológica e teórica podem os socialistas
“impuros”, democráticos, contar com muito mais abundantes e significativos
dados da História. E desde logo a “aventura” do “Direito soviético”, que não
devem contudo identificar com “direito socialista” proprio sensu, sob pena de
abdicação do próprio nome.
É interessante verificar que esta é também uma oportunidade de os socialistas encontrarem (de algum modo reencontrarem e reinventarem) a sua
71
Será o caso do livro de VALLS, Manuel (entretiens avec Claude Askolovitch) — Pour finir avec le vieux socialisme... et
être enfin de gauche, Paris, Laffont, 2008, que é estranho desde o título, o qual parece encerrar uma contradição nos
próprios termos?
72
Viveu-se em Portugal a seguir à revolução do 25 de Abril uma espécie de bombardeamento ideológico (nem
sempre de qualidade, aliás: mais de oposição de vulgatas), em que o pano de fundo não-ideológico (ou de ideologia
não explícita, essa zona em que a alienação dá tranquilidade aos espiritos comuns, dirão alguns) parecia não ter
espaço. O que terá levado Mário Soares a afirmar, então com redobrada razão, que “o povo não come ideologia”. A
vacina (que obviamente o não pretendia ser) foi eficaz, e hoje foge-se excessivamente da ideologia explícita. Porque,
evidentemente, a ideologia é uma presença inafastável.
73
SOTTOMAYOR CARDIA, Mário — Nota Biográfica – Cardia, Mário Sottomayor, in “Finisterra. Revista de Reflexão e
Crítica”, n.os 55-57, p. 116.
103
SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO
identidade ideológica, que, em alguns casos, sempre sofreu, simultânea ou
alternadamente, as cruzadas atracções de um reformismo ou conformismo
de socialismo nominal — “(...) aqueles para quem a mesma sigla traduz uma
prática reformista sem princípios, voluntariamente ambígua em todos os
planos, desde o económico ao das relações exteriores (...)”74—, por um lado, e
de um “proto-comunismo” ou um “já-não-marxismo-leninismo”, proto-ideologia suave, demofílica e defensora da liberdade75. Porém, sínteses vigorosas e
criativas foram sendo empreendidas, e não deve chocar ninguém um tertium
genus entre uma sigla de “pequeno-burgueses” bem intencionados mas por
vezes acomodados e claudicantes, e um grupo de “colectivistas” moderados e
completamente convertidos ao jogo democrático, parlamentar e pluralista.
O socialismo dos socialistas é mais que a evolução natural do republicanismo e do radicalismo em confluência ou contraste com as dissidências
democráticas do marxismo-leninismo ou com os primeiros revisionismos
social-democratas (propriamente ditos). Aliás, nele foram desaguando, como
se sabe, várias correntes. E o próprio caminho conjunto, nos partidos socialistas
democráticos e afins (trabalhistas, por exemplo), de pessoas com mundividências filosóficas muito diversas (ao contrário do monolitismo da ideologia total
comunista) formou um todo novo, que ainda está por estudar na sua criadora e criativa originalidade. Certo é que os partidos socialistas não são meros
aglomerados de tendências que guardassem ciosamente os legados de entrada e
menos ainda as respectivas “formações” de base. Mas, sem prejuízo de memórias e radicações, os partidos socialistas impuros e mesclados de muitas origens
são antes de mais cadinhos de forças e contributos de que resulta um conjunto
rico, unido e ainda plural, mas de uma pluralidade especial76. Ora a especificidade dos socialistas, com ou sem partido77, é precisamente posta em relevo
nesta questão.
74
LOURENÇO, Eduardo — “O Socialismo à Sombra de Hamlet”, in O Fascismo nunca Existiu, Lisboa, Dom Quixote,
1976, pp. 202-203.
75
PUY, Francisco — La Socialdemocracia y su Parentela Ideológica, “Anuario de Filosofia del Derecho”, Nova época, tomo
X, Madrid, 1993, considera, com propriedade, a existência de quatro tipos de socialismo: tecnocrata, comunista,
social democrata e trabalhista, considerando estas duas últimas “ideologias discretas” (p. 84).
76
Sobre a questão, nos inícios do PS português, cf. SOARES, Mário – Democratização e Descolonização, Lisboa, Dom
Quixote, 1975, p. 183 ss.
77
Porque, não esqueçamos, também há socialistas – e por maioria de razão socialistas a-dogmáticos -, por vezes de
grande qualidade intelectual e ética, que nunca pertenceram ou já não pertencem a partidos.
104
PAULO FERREIRA DA CUNHA
Direito socialista e totalitarismo
Evidencia o problema do Direito socialista a vontade da família ortodoxa
de, pela utopia ou pela quimera, ter um direito próprio, diferente, ainda
que tal seja uma mera “administração de coisas”, segundo Engels, e, assim,
se pretender como “já não Direito” – simétrico do “ainda não direito” (ou
pré-direito) de pendor antropológico-jurídico78. Da proto-história jurídica
se passaria à trans- ou ultra-história jurídica.
É a perspectiva totalitária que etimologicamente, desde logo, exprime a
ideia de alargamento das suas vistas e da sua intervenção a todas as realidades
humanas. Recordemos que o marxismo-leninismo se pretendeu ciência, filosofia, (teoria) estética, ética, moral, etc... O que estaria fora do seu manto?
Pelo contrário, para os socialistas proprio sensu, heterodoxos que são, não
pode mesmo haver direito socialista (como não pode haver “reino da liberdade”),
senão com o sentido (sempre incomodativamente impróprio para eles79), que
é o de uma família, grupo ou desinência jurídica em estados que perfilham a
ideologia marxista-leninista. Nem decerto poderia vir a haver direito socialista
(em sentido próprio) com o perecimento quimérico da arte de atribuir a cada um
o que é seu, possuída de uma constante e perpétua sede de Justiça80 . Nem ainda como
corpo autónomo de juridicidade (não diríamos sequer com específicas regras
“socialistas”) a implantar numa formação social concreta x ou y.
Significa isto, em relação à primeira negação, que os socialistas devem
renunciar à construção de uma sociedade sem classes, ao fim da exploração, e
que se deveriam resignar, no máximo dos máximos, a um reformismo mais ou
menos “meliorista”?
78
Cf. ROULAND, Norbert – Anthropologie Juridique, Paris, P.U.F., 1988.
79
Eco dessa incomodidade face a usos linguísticos que não acautelam a especificidade dos socialistas democráticos
é esta passagem de SOARES, Mário – Portugal: quelle révolution, trad. port. de Isabel Soares, Portugal: Que Revolução?,
Diálogo com Dominique Pouchin, Lisboa, Perspectivas & Realidades, 1976, p. 87: “(...) a imprensa anglo-saxónica, para se diferenciar da terminologia comunista, que monopolizou a palavra ‘socialista’, tem o mau hábito
de rotular de social–democrata todo o homem de esquerda não comunista. Foi, portanto, preciso explicar várias
vezes o que nós somos verdadeiramente: não sociais-democratas, empenhados – como se diz – em gerir lealmente
o capitalismo, mas sim partidários de um socialismo democrático.”. Vale a pena ler todo o texto e os matizes aí
estabelecidos. Confluentemente, afirmava MOTCHANE, Didier – Clefs pour le socialisme, Paris, Seghers, 1973, trad.
port. de Fernando Felgueiras, Que é o Socialismo ?, Lisboa, Dom Quixote, 1975, p. 11: “O socialismo é uma das
palavras mais prostituídas do mundo. Votada, como as do amor, aos usos mais estranhos, encontramo-las hoje em
todas as bocas”.
80
“Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi” - ULPIANUS – lib. 1 Regularum = D. 1, 1, 1, pr..
105
SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO
A resposta não pode deixar de ser negativa. Muito pelo contrário, cremos
que a superação social que os socialistas devem ter em mente deverá até ser mais
radical que o simples (mas já tão difícil) ultrapassar das contradições económicas. Os socialistas devem lutar pelo advento de uma sociedade não mais
baseada no meramente material e portanto a sua definição de “cidade ideal”
socialista apenas na perspectiva da propriedade e da sua re-distribuição mais
ou menos igualitária ou equitativa, significa ainda pouco, sendo um objectivo
afinal “recuado”. É que sempre a simples lógica do teu e do meu (curiosamente
para alguns autores determinante da própria necessidade do Direito e do seu
nascimento81) limitará os horizontes de quem assim pensa.
É certo que o Direito tem como objectivo lidar com problemas do dar o
seu a seu dono, o célebre suum cuique. Mas não deve ser interpretado estritamente
como mero distribuidor de coisas materiais e polícia dos furtos dos pobres aos
opulentos. Há uma dimensão ética e de justiça na juridicidade (designadamente no corpus filosófico que a acompanha e no corpus sociológico que a vigia)
muito mais virtualidades. Não esqueçamos, desde logo, os vectores libertadores
que acompanham o Direito, mesmo em tempos capitalistas, desde o Direito
Natural (revolucionário, não o direito natural como álibi de conservadorismos
e preconceitos) aos Direitos do Homem82.
E a promessa do Estado de direito democrático também se enquadra dentro
desse activo. Mesmo que se trate de uma forma de discurso legitimador, em
alguns casos, sem uma tal barreira os atropelos ainda seriam maiores (como
lucidamente advertiu Warat). Pode ser mais um dos mitos benfazejos que
povoam o imaginário político-constitucional. Seria contudo muito importante que saltasse do imaginário para a realidade vivida.
81
Cf. o nosso Droit Pénal, Droit de Mort, “Revue Internationale de Philosophie Pénale et de Criminologie de l’Acte”,
n.º 3-4, Paris, 1992-1993, recolhido nos nossos livros Le Droit et les Sens, Paris, L’Archer, dif. P.U.F., 2000, p. 47
e Arqueologias Jurídicas. Ensaios juridico-humanísticos e jurídico-políticos, Porto, Lello, 1996.
82
RESENDE DE BARROS, Sérgio — Contribuição Dialética para o Constitucionalismo, Campinas, Millennium, 2008, p.
67. Discutindo o problema, BONAVIDES, Paulo — Teoria do Estado, p. 129 ss. No plano tópico, PUY, Francisco
— Tópica Jurídica. Tópica de Expressiones, México, Porrúa, 2006, p. 107 ss.
106
Portugal, Socialismo Ético e Uma História
do Futuro do Partido Socialista1
Carlos Leone
Resumo
Este artigo expõe de forma sumária a visão de Eduardo Lourenço da sociedade portuguesa, na sequência de uma tradição de reflexão iniciada há mais de
um século (1), criticando de seguida o mais recente trabalho, especificamente
político, de Lourenço, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História (2); por último,
em diálogo com as premissas da análise do Socialismo em Portugal desenvolvida por Eduardo Lourenço, ensaia-se uma História do Futuro do Partido
Socialista (3). Este percurso, articulando passado, presente e futuro, apenas
compromete o seu autor, em particular na terceira secção, que em nada pode
ser imputada aos textos de Lourenço.
Palavras chave: corporativismo; dualidade; Esquerda; Portugal; Socialismo.
1. Portugal: destroços e dualidade
«Na verdade, o único paradigma que dá sentido nosso presente é ainda –
e talvez mais do que nunca – o do passado.»
Eduardo Lourenço, 20002
Desde a estreia literária de Eduardo Lourenço de Faria, em 1949 (Heterodoxia),
passaram já 60 anos. É por isso particularmente adequado a um tal aniversário,
que não foi objecto de celebração particular, a publicação deste volume político, como nenhum outro desde há justamente 30 anos (O Complexo de Marx, na
D. Quixote, data de 1979). Eduardo Lourenço é, desde há mais de um quarto
de século, o ensaísta laureado da democracia de Abril: a primeira celebração
1
O autor deseja agradecer a Miguel Real e Ana Rita Ferreira a leitura e as sugestões da versão inicial deste texto.
Quaisquer erros permanecem responsabilidade do autor.
2
Do Prefácio à segunda edição de A Europa Desencantada (Lourenço 2000: 12).
107
PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO
DO PARTIDO SOCIALISTA
ocorreu por altura do seu sexagésimo aniversário, corria o ano de 1984, a mais
recente em 2008, em congresso sobre a sua Obra, com actas no nº 170 da
revista da Fundação Gulbenkian, Colóquio Letras. Este novo livro de ensaios políticos dá boa conta das razões do seu excepcional estatuto intelectual.
Desde 1949 que Eduardo Lourenço pensa Portugal como Europa, tanto
naquilo que não somos (o diálogo que nos falta) como naquilo que fomos (maxime
na Expansão) e no que dificilmente temos conseguido ser. A relação entre
Portugal e Europa permite a Lourenço cruzar diversos planos de comentário:
social, em sentido lato; cultural, quase sempre literário; político, normalmente
em clave ideológica; histórico, ao menos enquanto revisão da historiografia
portuguesa nas suas ambições a reflexo da consciência nacional. Desde sempre
isso o destacou, mais pela sua capacidade do que pela originalidade da abordagem (o ensaio tem tradições em Portugal, e Lourenço teve entre seus mestres
Sílvio Lima, o autor de Ensaio sobre a Essência do Ensaio); nas últimas décadas, sobretudo desde a de 1980, isso também o afastou do convívio das ciências sociais,
cuja especialização crescente prossegue numa lógica contrária à «imagologia» de
Lourenço e relativamente à qual já se procedeu a amargas trocas de acusação de
ambas as partes. Em nenhum campo mais do que no da política essa dissensão é
mais sensivelmente percebida3. Tanto analítica como emocionalmente, o ethos de
Eduardo Lourenço não se se confunde com a produção de opinião circunstancial comum na comunicação social ou com a especialização em áreas de trabalho
cada vez mais exíguas hoje comum nas ciências sociais.
Ao contrário do que possa parecer, Eduardo Lourenço não pensa a política
apenas a espaços. Pelo contrário, e bem na linha do melhor ensaísmo português, pensa-a em relação com a cultura. Assim com o Carlos de Oliveira de
Aprendiz de Feiticeiro, assim com o António Osório de Mitologia Fadista, assim com
o Adolfo Casais Monteiro do País do Absurdo, e, claro está, assim como sucede
também numa das obras maiores e mais abertamente políticas de Lourenço
(O Fascismo Nunca Existiu, D. Quixote, 1976). Ora, os ensaios políticos que
Lourenço publica em 2009 mantêm um diálogo com a cultura portuguesa na
sua dimensão política, diálogo que não passa tanto pela interpelação de outros
autores (há já muito que a Obra de Lourenço acusa uma certa insularidade)
3
Logo em 1984, no número especial que a revista da INCM, Prelo (2ª série), lhe dedicou (cf. Bibliografia), a crítica
ao perfil «literato» e insuficientemente científico da sua análise política era já comum. Cf. para a primeira questão
a entrevista realizada por Diogo Pires Aurélio e, sobre a segunda, a colaboração de Joaquim Aguiar nesse número.
108
CARLOS LEONE
como pela relação entre as suas próprias obras. Assim, nestes ensaios políticos
deparamo-nos sem surpresa com o prolongamento de ensaios anteriormente
publicados em Destroços (Gradiva, 2004). Esta relação com a cultura portuguesa
contemporânea merece nota particular por constituir uma chave de acesso
ao pensamento de Lourenço e, nesse mesmo passo, contribuir para desfazer
a dissociação demasiado comum entre o estudo da cultura portuguesa e as
ciências sociais (políticas, na circunstância), como se a realidade portuguesa
estivesse forçosamente sujeita a uma qualquer cláusula de excepção cultural que
a menoriza ou, pelo menos, isola. Ao contrário do que por vezes pretendem
cientistas sociais críticos do pensamento de Lourenço, o comparatismo não
lhe é estranho. Sucede apenas que tem tanto de histórico e cultural quanto de
espacial e institucional.
Em Destroços encontra o leitor três tipos de polémicas: virtual, como lhes
chama o próprio Eduardo Lourenço, na primeira parte do volume, onde o
«interlocutor» é António José Saraiva; real, numa segunda parte, em torno
da interpretação na cultura portuguesa da relação entre Portugal e o estrangeiro; e equívoca, num último momento em que uma troca de argumentos
com Rui Knopfly se revela necessariamente inconclusiva por força de um desacerto quanto ao que está em causa para cada um dos contendores. Para situar
a reflexão política de Lourenço interessa-nos somente o segundo momento.
Mais do que as outras duas secções, desde logo pela sua formulação explícita,
é nessa discussão sobre a relação entre Portugal e os «outros» que Eduardo
Lourenço retoma um tema que acompanha o seu ensaísmo desde o início, a
saber, a percepção que fazemos do «outro» na relação que esta mantém, no
seu condicionamento, pela percepção que (não) fazemos de nós.
Destroços é assim, até ao momento, o mais recente retorno do autor ao tema
do nosso diálogo cultural claudicante com a Europa, já por si denunciado
desde 1949. Por pouco conforme que seja aos cânones da politologia actual
(e cumpriria avaliar a realidade desses cânones, de todo o modo), o diálogo de
Lourenço com Régio, com o meio literário português (antes do 25 de Abril de
1974) e mesmo com os patronos da cultura científica portuguesa actual merece
ser lido como estruturante de uma visão política de Portugal.
Designa-se aqui por visão política a discussão que Eduardo Lourenço faz do
que designa (Lourenço 2004: 97) «hipernacionalismo cultural, integrismo
militante» (cabe aqui observar que «integrismo» talvez seja lapso – de autor
109
PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO
DO PARTIDO SOCIALISTA
ou editora? - de «integralismo», mas ainda que assim seja nem por isso perde
sentido e pertinência). É explicitamente afirmado por Eduardo Lourenço o
carácter situado da queixa portuguesa pela falta de reconhecimento estrangeiro
da nossa cultura, situado, entenda-se, na «genérica mentalidade do português
cultivado» (Lourenço 2004: 106). Esta observação, feita aliás do ponto de vista
em que essa falta de reconhecimento é mesmo palpável, a saber, o exílio («um
duplo exílio», idem), é o complexo de que a cultura deve libertar-se, segundo
Lourenço (cf. p 107). Todo o drama está, contudo, em o olhar estrangeiro
ferir por revelar cruamente uma realidade velada da vida interna de Portugal,
que Eduardo Lourenço refere em termos muito próximos da «não inscrição»
celebrizada também em 2004 por José Gil4, ou seja, o silêncio do exterior
sobre a cultura portuguesa reflecte e amplia os silêncios internos, de longe
maiores e mais intricados que os impostos pela comissão de censura do Estado
Novo (cf. p. 110). A expressão mais cortante desta dificuldade ocorre pouco
depois (pp. 113/4): «esta dificuldade tornou-se como que invisível a nossos
próprios olhos pela simples razão de que coincide com a nossa própria realidade cultural excessivamente alienada na sua raiz pela fascinação estrangeira e
incapaz de abdicar dela ou de entreter com ela relações normais.» (p. 114).
Palavras avisadas, até hoje, quando o internacional é assimilado ao estrangeiro
mesmo em sede científica e a fascinação se institucionalizou e ganhou foros
linguísticos. Mas a inversão dos velhos tropos diádicos «estrangeirismo/nacionalismo» requer actividade, uma acção colectiva verdadeiramente nacional:
«converter o seu estatuto cultural, fundamentalmente passivo, em vida
própria.» (p. 118). E, um pouco depois: «O combate da nossa cultura consigo
mesma – no qual a referência ao «estrangeiro» está naturalmente implícita –
é o nosso verdadeiro combate.» (idem). Para quem tome estas palavras como
referências meramente históricas, excessivamente genéricas no seu alcance
actual, valerá a pena citar um pouco mais extensamente para melhor se precisar
a perspectiva de Eduardo Lourenço:
É fácil para a cultura portuguesa «estar presente», no estrangeiro, sob
formas de puro humanismo retrospectivo ou folclorizante. Mas a Questão –a
4
Referimo-nos, claro está a Portugal, Hoje: o medo de existir (Lisboa, Relógio d’Água), publicado por José Gil em 2004 e
com grande acolhimento junto do público. Contudo, também na Obra de Gil a questão não era nova, cf. a crítica
a esse ensaio por Carlos Leone in Cultura nº 21, ed. CHC/UNL, 2005.
110
CARLOS LEONE
única que tem real interesse – é a da sua presença contemporânea. Ora esta não
depende de habilidades nem de programações admiravelmente científicas ou
de mecenatos compreensivos e generosos, mas do conteúdo. Habilidade, diligência, programação e mecenato são indispensáveis e que há a fazer na matéria
é quase tudo. Mas é inútil querer «vender» no estrangeiro cópias dos originais
que ele possui ou relíquias de um «tempo» cultural abolido. A verdadeira
dificuldade é a de sermos – em Portugal, contemporâneos de nós mesmos e
essa dificuldade não cabe ao simples indivíduo resolvê-la. É o nosso problema
histórico.»
(Lourenço 2004: 130/131)
Linhas originalmente escritas em 1972, elas reenviam de imediato (cf. p.
132) para um tema capital da reflexão contemporânea sobre Portugal, o da
sociedade dual(ista). Esta imagem da cultura portuguesa como verdadeira
condicionante da política portuguesa é, também ela, ideia maior da reflexão
ensaística (e, entretanto, sociológica) sobre a estrutura social de Portugal:
deixando de parte Antero, ainda no mundo de Oitocentos, a referência é
António Sérgio, claro; mas também críticos de Sérgio como Lourenço, cientistas sociais inspirados por Sérgio (Hermínio Martins), ou não marcados por
essa influência (Adérito Sedas Nunes) e, mesmo, investigadores sociais mais
novos como Renato Miguel do Carmo («Portugal, sociedade dualista em
questão: dinâmicas territoriais e desigualdades sociais» in Villaverde Cabral,
M. et alli, orgs., 2008, Itinerários – a Investigação nos 25 anos do ICS, Lisboa, Imprensa
de Ciências Sociais, pp. 373-395).
Ora, o tema da «sociedade dual» dependia de uma condição de possibilidade: o isolamento de Portugal, enquanto realidade política autónoma, face à
Europa ocidental. Tal condição está hoje seriamente comprometida, depois de
vinte anos de integração na actual União Europeia. É por isso que a obsessão de
comparar o «cá dentro» ao «lá fora» chega hoje ao fim, também ela se torna
sem sentido quando a insularidade portuguesa se desfaz. A tese de Eduardo
Lourenço (cf. p. 162), de que tal oposição redunda em nada e apenas encobre
um conteúdo identitário (interno), situação duradoura desde a fundação de
Portugal (cf. p. 164), implica o reconhecimento do carácter problemático
que a Modernidade representa para Portugal. Não apenas a problematicidade inerente aos processo sociais que a definem mas, mais concretamente,
111
PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO
DO PARTIDO SOCIALISTA
a repercussão que gera na estrutura social dual de Portugal e na identidade
cultural ilusória que Lourenço exuma. A dúvida, e com ela a tolerância, como
marcadores da modernidade, e a cientificidade, bem como a democracia,
enquanto suas construções sociais auto-conscientes são estranhas à cultura de
apego à certeza de feição religiosa portuguesa5.
O significado político deste processo não consta de Destroços, mas aí encontramo-lo já identificado: a cultura portuguesa, sobretudo literária ainda que
também juridíco-teológica, não conheceu uma generalização do ethos científico, da sua neutralidade e do seu habitus técnico, sofrendo agora a Modernidade
como «uma ameaça, senão um império do mal» (p. 172). Ora, o final da
sociedade dual, a obsolescência de oposições castiços/estrangeirado, a adesão
entusiasta às (nano)tecnologias, não resolvem em nada (até obscurecem) o
problema político que esta cultura enfrenta. A modernidade, assim, é coroa de
espinhos da política portuguesa actual, quer os seus agentes se apercebam disso
quer não. Mas perceber isso, segundo Eduardo Lourenço (e como o contrariar?), é saber que a política, e em particular a utopia de boa consciência que a
Esquerda é, se encontram numa encruzilhada.
2. O socialismo ético
«Quero dizer, penso, sobretudo, que é possível rectificar seriamente a
actual imagem que a Direita modernista conseguiu, com algum sucesso, dar da
Esquerda e do Socialismo como soluções feridas de morte pelo seu arcaísmo.»
Eduardo Lourenço, 1986 (Lourenço 2009: 44)
A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História? volve a reflexão cultural sobre a sociedade portuguesa em análise política, verbalizando o diálogo de que carecemos.
Disso mesmo não restam dúvidas a quem lê o reconhecimento de «mais uns
dos meus fantasmas de «estrangeirado» à força» (Lourenço 2009: 18) ou
a reflexão serena sobre a particular tragédia lusíada (os «nossos», itálico do
original) com a não-democracia (em particular pp. 76/7). Pois bem, se a tese
do primado do social é dominante na Obra de Lourenço, o que traz de novo
este livro de ensaios sobre as questões propriamente políticas?
5
A este respeito, a obra capital de Eduardo Lourenço permanece O Labirinto da Saudade.
112
CARLOS LEONE
Desde logo, uma evocação sintomática do Socialismo real nacional.
Sintomática por destacar Eduardo Lourenço como autor no contexto
marcado hoje pelas ciências sociais e seu eterno presente (o que se aplica cada
vez mais mesmo à nossa História) e, ao fazê-lo, revelar os próprios sentimentos de Lourenço face às figuras desse Socialismo, de Antero a Sérgio.
A tese que apresenta, a da natureza moral do Socialismo em Portugal, que
aproxima este socialismo do imaginário católico (curiosamente, mesmo
quando fala de laicidade, como na p. 131, nunca discorre sobre a Maçonaria),
introduz assim uma perspectiva conceptual e histórica sobre a tradição intelectual mais longa e fecunda da Esquerda portuguesa, hoje corporizada no
Partido Socialista, enquanto, em simultâneo, situa Eduardo Lourenço nessa
mesma tradição.
A Esquerda «de» Lourenço é a que se encontra numa encruzilhada e suspeita
estar fora da História (estar já? Ou ainda? Em todo o caso, a «História» é o
seu horizonte de sentido, mas também ele se afigura problemático). A genealogia que lhe é traçada nos primeiros ensaios deste volume é no essencial a que
já nomeámos: Oliveira Martins, mas sobretudo Antero e Sérgio, até nós. O
que, além da ambiguidade do «nós», tem consequências: «Foi sempre sob
um modo moralista – e de uma moral exigentemente cristã – que a nossa versão
do Socialismo se apresentou. Decerto, porque a nossa cultura, a nossa tradição, a
nossa sensibilidade colectiva de então, em suma, toda a nossa mitologia cultural
não comportava outro discurso senão o muito moderado – e mesmo assim, paradoxalmente audaz – que foi no plano da crítica social concreta o nosso.» (p. 22).
Esta moralidade tem consequências previstas e imprevistas, mas sobretudo tem
consequências por explorar: quanto daquilo que Eduardo Lourenço escreve
(cf. pp. 36/7) a respeito de a Esquerda (internacionalmente) se idealizar como
inocente e transparente face a uma Direita discriminatória, mesmo violenta
da Direita, não se aplica justamente a Portugal no seu período de propositado isolamento face ao século XX e ao mundo posterior a 1945? Claro que
muita da análise está já remetida à História, o Socialismo (ou pelo menos
os partidos socialistas europeus) conheceram muitas evoluções desde 1986,
data do texto que aqui citamos (e que elegemos para epígrafe). Não obstante,
na actual conjuntura de lamentação generalizada pela escassez dos grandes
líderes europeus de outrora, é sensato reler Lourenço (cf. p. 47) e, contra a
fantasia de homens providenciais, perceber o carácter cultural (não natural) da
113
PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO
DO PARTIDO SOCIALISTA
Esquerda, pelo menos enquanto a Direita continuar a ser tida como a «ordem
natural» (espontânea, dizem os turiferários do mercado, sem sequer atenderem à lógica própria de um mercado…). Nesta ordem de ideias, a Esquerda
é necessariamente autoquestionamento e a Direita uma realidade inegável mas
uma e outra vez carente de justificação racional (cf. p. 49). O que significa
(algo kantianamente) a afirmação da Esquerda como espaço político de «esperança histórica» (p. 50), a reivindicação de uma Esquerda democrática que
não conhece inimigos.
Sucede que, faltando o diálogo entre essa Esquerda e as «outras» (já para
não falar das dificuldades em cultivar um diálogo interno a cada Esquerda),
Lourenço compensa esse défice com a recuperação de textos seus já com mais
de duas décadas, evidenciando sem desnecessário alarde as consequências
políticas das encruzilhadas históricas em que a Esquerda parece acomodada a se reencontrar. Leia-se a este respeito as palavras límpidas e directas
como poucas outras sobre as Esquerdas e a Direita em Portugal (a pp. 54/5
e 56/7) e medite-se sobre a pertinência da sua inclusão neste volume em
2009, surgido pouco antes das eleições legislativas. De certo modo, mesmo
essas análises mais próximas das realidades da política partidária integram
a reflexão mais ampla sobre o carácter duplamente excepcional da vida
democrática: excepcional pela sua fragilidade; duplamente excepcional pela
inaptidão que a cultura de intolerância nacional revela para o exercício das
virtudes democráticas. E, por maioria de razão, para o desenvolvimento do
socialismo em democracia. No caso português, como Lourenço insiste nestas
páginas, essa dificuldade não é sentida à Direita, rapidamente reconvertida
do Antigo Regime ao parlamentarismo, reconversão mais económico-social
do que político-ideológica (p. 58).
Sentimo-lo, sim, e com acuidade maior se atendermos a que somos interpelados por texto(s) com mais de duas décadas, no Partido Socialista. O único,
desde pelo menos 1986, «com possibilidades efectivas de reconversão, recentragem e aglutinação dinâmica da esquerda portuguesa democrática, o «eterno»
Partido Socialista. Mas seria uma ingenuidade imperdoável imaginar que essa
oportunidade histórica fosse interiorizada por esse partido anarco-sentimental,
internamente feudalizado em torno de pessoas, mais que de princípios, como
imperativo da sua acção e do seu destino. (…) A questão, sendo de pessoa, desta
vez não é apenas de pessoas, nem de um partido que, pela aceitação popular que
114
CARLOS LEONE
continua a suscitar, é o partido-chave do Socialismo democrático em Portugal.
Ou, para sermos mais realistas, da democracia de vocação social que se resume
hoje, no mundo social, o que há de positivo e plausível na herança dos vários
socialismos que o século XIX nos legou.» (pp. 59/60). Pois bem, aquele «hoje»
enfatizado pelo próprio Eduardo Lourenço parece ter adquirido matizes de
eterno presente, cujas «vacas magríssimas» (p. 94) recomendam ao socialismo
uma revisitação da sua ideologia e, mais ainda, da sua prática (idem). Não é
preciso aderir à identificação de uma essência do socialismo como antipoder
e como crítica de combate ao capitalismo (de resto, afirmada por Lourenço
nestes termos apenas a pp. 95/6), como se de uma utopia resignada se tratasse,
para percebermos bem como este socialismo ético é uma reflexão política, ainda
que não ideológica. Ele é definido pela prática, mais do que pela doutrina, e
aferido pelas realizações, não por critérios mutáveis consoante as circunstâncias
de ocasião e os jogos malabares dos seus oficiantes.
Com efeito, se bem lemos Eduardo Lourenço, o caso português (o do socialismo em Portugal e o da democracia depois de 1974), ilustra as consequências
políticas de uma cultura não-moderna, renitente ao individualismo (de novo
Sérgio ecoa) e, por isso mesmo, débil também na reflexão socialista quanto ao
modo de criar uma sociedade solidária que impeça a conversão do individualismo numa ditadura da massa e do indivíduo no sujeito isolado, joguete das
peripécias da Fortuna (cf. pp. 102-108). Longe de aderir ao discurso sobre
o fim da política, vendo as sociedades democráticas como hiperpolitizadas
num processo de identificação do poder com o poder político e deste com os
partidos (cf. pp. 113-6), Eduardo Lourenço revela aos mais desatentos a acuidade política da sua análise ao lembrar como a redução do liberalismo ao plano
económico o converte na sua própria «contrafacção», «pseudo-ideológica e
pseudo-política» (p. 117), sem, com isso, se iludir quanto ao significado do
triunfo generalizado de tal pseudo-liberalismo: «Devemos aprender a viver
– social mas também politicamente – num mundo que, seriamente falando,
deixou, em todos os domínios, de crer na transcendência da Lei.» (p. 118). O
fim do império da Lei, longe de excitar o ensaísta de ascendência existencialista
que Lourenço também é (ainda hoje, sim), fica assinalado sem rodeios nem
paliativos como o nosso problema político. Não mais o reconhecimento ambicionado no passado mas sim a integração num sistema mundial com tanto de
político como de económico no qual a construção de um futuro comum se
115
PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO
DO PARTIDO SOCIALISTA
encontra minada por essa hipertrofia da modernidade, sua efectiva subversão,
que é o assalto ao primado da Lei6.
A nostalgia não oferece solução para isto, muito menos num país nãomoderno onde muitos prezam a Idade Média «mas com frigorífico à mão e
antena parabólica» (p. 122). Já em 1995, o diagnóstico era certeiro: «feudalização objectiva da esfera pública do poder em Portugal.» (p. 123). Não sendo
exclusivo nacional, no caso português verificou-se uma fragmentação do
poder, «distribuindo-se por uma pluralidade de lobbies, que vão desde os tradicionais grupos de pressão económico-financeiros até ao papel desempenhado
pelos magnatas dos grandes clubes.» (idem). Inventário demasiado sucinto e
mesmo longe do exigível das forças em confronto? De facto, mas ainda assim
uma observação lúcida de fenómenos nacionais que ultrapassam a política em
sentido estrito e que exigem cuidados às comparações frequentes nas ciências
sociais: «essas forças, em Portugal – e em geral em países da mesma extensão
ou tradições na Europa – não lutavam apenas, ou não lutam, para defender
e ocupar o seu lugar no espaço transnacional da economia. Entre nós, eram
motivadas por uma vontade de recuperação simbólica de antigas situações
hegemónicas, em certo momento ameaçadas.» (p. 124). E, na perspectiva de
um socialismo democrático, tal ameaça nem sequer terá sido a desejável, não só
política como ética e legalmente…
Ora, para este problemas, não encontramos resposta cabal nos ensaios de
Eduardo Lourenço. Nos últimos textos que aqui reúne (e pena é que vários
outros publicados de forma ocasional no último lustro, pelo menos, não se
encontrem aqui também), Eduardo Lourenço ora se aproxima de temas caros
à «verdadeira Esquerda» que critica o socialismo que é o seu (cf. pp. 133-148,
tópicos do imperialismo americano), ora se demarca de alguns lugares comuns
sobre o diálogo de civilizações (pp.153-6), exprimindo sempre uma voz
pessoal e (para variar este termo aplica-se) inconfundível. Mas a resistência
aporética (termo nosso) da política a soluções não é visada por um analista
demasiado avisado como Lourenço, que sempre prefere definir-se em função
do socialismo:
«O Socialismo ou é ética social em acto ou não é nada. Estou certo de
6
E, com a legalidade, a racionalidade. A relação entre ambas, sua História e seu declínio, é apenas brevemente aludida
por Eduardo Lourenço mas, sintomaticamente, é assim que encerra este volume de ensaios políticos (cf. pp. 164-7).
116
CARLOS LEONE
pouca coisa, mas não duvido de que o futuro para o Socialismo ou se alimenta
dessa convicção – e das consequências que dela relevam – ou se converterá
numa legenda sem leitura e sem leitores.» (p. 18)
E, nisto como em tudo, o seu gosto pelo enigma e pela tragédia fazem todo
o sentido. Para quem o souber (e quiser) ainda ler, retenha-se ainda o que
escreve a propósito das descrições comuns de tal concepção de socialismo e
de política como «utópica»: «De certa prática «socialista» e ainda mais de
históricas encarnações do Socialismo é possível pensar-se, com alguma dose
de má-fé, que essas descrições correspondem à verdade. Mas o Socialismo não
é uma religião nem, a bem dizer, uma filosofia ou uma visão do mundo. É
apenas a tentativa de encarnar, na medida do possível, o máximo de liberdade,
de justiça e equidade na ordem económica e social no mundo que habitamos.
Desta exigência ninguém é sujeito. Ou somo-lo todos, pois essa ideia emerge
da aventura milenária dos homens, é-lhe coessencial e prosseguirá com ela.»
(p. 69).
Não andamos muito longe de algumas posições recentemente defendidas
por Joaquim Jorge Veiguinha em números anteriores da Finisterra, também já
comentadas nesta revista (cf. nº 65-66, pp. 217/8). Onde Veiguinha fala de
«liberdade inclusiva», em clave polémica, Lourenço opta por um registo mais
edificante e menos próximo da discussão filosófica contemporânea, é certo;
mas as premissas de ambos não divergem radicalmente, antes participam dessa
tradição socialista democrática orientada para o futuro.
3. Notas para uma história do futuro do Partido Socialista
«Futuro já o temos. Somos quase só esse futuro que ainda não somos senão
como aventura virtual.»
(Lourenço 2000: 14)
Regressemos aos problemas que Eduardo Lourenço identifica, sem
pretender solucionar. Não havendo, de um ponto de vista intelectual, solução
para eles, a proposta política, insistimos, do «socialismo ético» necessita de
um complemento histórico que lhe confira uma resposta empírica a esses
problemas. Já tendo notado um certo kantismo na argumentação de Lourenço,
117
PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO
DO PARTIDO SOCIALISTA
não nos devemos intimidar com o facto de essa História estar ainda por fazer.
Tal como a Revolução Francesa para Kant, o socialismo em tempo de «vacas
magríssimas» de Lourenço servirá como «sinal»7. Nessa medida, trata-se de
uma História do Futuro não profética, apenas presciente. Ou ambicionando
tanto.
Vimos Eduardo Lourenço nomear, sempre de passagem, poderes feudais,
estatutos pessoais, lobbies sociais, enfim, realidades políticas várias que existem
na sociedade portuguesa de um modo não exactamente igual a qualquer outra
sociedade. Com efeito, a liberdade política cara ao socialismo democrático não
se esgota apenas na letra da lei e no normal funcionamento das instituições,
ela implica ainda todo o espaço que existe entre cada cidadão e as instâncias
políticas formais: a vida no sistema social (desde o nível familiar à comunidade
mais alargada), as associações civis formada pela livre interacção de indivíduos
(incluindo entre estas as diversas formas de vida religiosa) e as organizações
políticas estáveis que existem para influenciar legitimamente o aparelho de
Estado (partidos, mas também sindicatos e outras). Vamos pensar uma História
do Futuro do Partido Socialista não apenas em função da sua pertença a este
conjunto de organizações políticas mas também na relação que mantém com os
restantes níveis em que se joga a liberdade política em Portugal. Afinal, é esse o
fito de um socialismo ético.
É já um dado recorrente dos inquéritos e estudos sociológicos do sistema
social português, incluindo neste os agentes do sistema político, uma generalizada atitude conservadora, ao menos tácita8. Por conservadorismo
denominamos comportamentos políticos mais do que formas de natureza religiosa, cujo declínio a recente despenalização da IVG veio ilustrar. Estes dados
compulsados pelos instrumentos de pesquisa das ciências sociais contemporâneas são aliás consistentes com análises ensaísticas (maioritariamente históricas
7
Por ser um pouco forçado, e por envolver alguma formação filosófica ou pelo menos kantiana, esclarece-se o
leitor que fazemos com estas palavras uma referência a O Conflito das Faculdades.
8
Reportamo-nos aos dados relativos à confiança nas instituições, sentimento de distância ao poder, envolvimento em actividades cívicas e valores dominantes (amoralidade de matriz familiar) na sociedade portuguesa, todos
eles consistentes com o que é típico de uma sociedade pré-moderna: uma sociedade pouco desenvolvida, pouco
reflexiva e com reduzido capital social. Cf., p. ex., CABRAL, Manuel Villaverde, VALA, Jorge e FREIRE, André
(orgs.), Valores e Atitudes Sociais dos Portugueses III - Desigualdades Sociais e Percepções de Justiça, Lisboa, ICS, 2003; FREIRE,
André, LOBO, Marina Costa e MAGALHÃES, Pedro (orgs.), Eleições e Cultura Política, Lisboa, ICS, 2007; VALA,
Jorge, CABRAL, Manuel Villaverde e RAMOS, Alice (orgs.), Atitudes Sociais dos Portugueses V – Valores Sociais: mudanças e
contrastes em Portugal e na Europa, Lisboa, ICS, 2003; VALA, Jorge e TORRES, Anália (orgs.), Atitudes Sociais dos Portugueses
VI -Contextos e Atitudes Sociais na Europa, Lisboa, ICS, 2006; e ainda VIEGAS, José Manuel Leite e SANTOS, Susana,
“Associativismo, Cidadania e Democracia”, in Finisterra, nº 58/59/60, 2008, págs. 173-187.
118
CARLOS LEONE
e literárias) que até ao terceiro quartel do século XX foram os mais relevantes
exercícios de reflexão sobre a sociedade portuguesa. No caso português, em
que as forças políticas de Direita são no essencial conservadoras, isto não é
desprovido de utilidade: pela sua natureza tradicionalista e passiva, os comportamentos e expectativas sociais dominantes podem ser objecto de abordagens
acríticas e meramente negativas, explorando os sentimentos reactivos de estratos
maioritários da população face a «outros» (minorias, políticos, estrangeiros,
etc.). No entanto, para forças políticas que se reclamem do legado histórico
da Esquerda, esta situação oferece graves dificuldades: para a Esquerda que se
quer valer pela radicalidade, estas atitudes sociais são um obstáculo de monta
a ambições revolucionárias9; para a Esquerda democrática, gradualista, isto é,
para o PS, este conservadorismo é o adversário histórico do (vetero)liberalismo
que constitui a tradição intelectual da Esquerda, nascida no combate ao absolutismo (antes, portanto, da contrafacção denunciada por Lourenço de um
liberalismo reduzido a uma economia sem lei).
Na realidade, esta situação é para a Esquerda democrática de uma dupla
adversidade: em primeiro lugar, indica desde logo que a modernização das
estruturas sociais, das instituições, portuguesas não será panaceia simples,
nem, mesmo que lograda, uma solução completa e definitiva para as resistências enfrentadas nas reformas ensaiadas; em segundo lugar, é uma forte
advertência ao próprio Partido Socialista, cuja efectiva representatividade da
sociedade portuguesa é em larga medida garantida por incluir dentro das suas
estruturas (e nas dirigentes não menos que nas demais) agentes políticos imbuídos dessas mesmas atitudes sociais que correm a contrario da ideologia socialista
(na formulação «ética» de Lourenço ou em qualquer outra).
Há portanto um preço elevado a pagar pelo papel fundador e de charneira
do PS no sistema político português, o qual terá de ser meticulosamente meditado no futuro. A ponto de a guerra intestina perpétua do PSD dever servir de
case study para o que sucederá ao PS caso essa meditação, e consequente acção,
falhe. Com o desmembrar do PSD em várias facções movidas pela defesa dos
seus interesses de classe e de estatuto (em prejuízo, portanto, da unidade de
acção própria de um partido político, visando o exercício do poder de Estado),
9
Embora seja claro que não há em rigor nenhuma força política em Portugal apostada num projecto revolucionário.
A retórica política das forças políticas que se afirmam como «à Esquerda do PS» é, no seu radicalismo, muitas vezes
máscara de um conservadorismo em nada menor que o da Direita. As votações em questões «sociais» demonstram-no
bem, aliás, sobretudo no caso do PCP.
119
PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO
DO PARTIDO SOCIALISTA
Portugal ficou sem alternativa política ao PS para o exercício de governação.
Além do real decréscimo da qualidade da democracia que isto implica, há um
risco associado que afecta a estabilidade do sistema político forjado entre 1974 e
1982 (ou 1985, se se preferir): as forças que paralisaram e desmembram o PSD
como partido de poder para assim melhor garantirem a manutenção de um
statu quo que visa o seu interesse próprio e não o bem comum têm agora como
único oponente o PS. E, como ficou já claro, a representatividade nacional do
PS assenta em parte na inclusão dessas mesmas forças. Isto mesmo foi já visado
pela direcção nacional do PS, por ocasião da elaboração (em 2002) da actual
Declaração de Princípios do partido. Nesse documento, conforme explicitado pela voz autorizada de um dos seus responsáveis, Augusto Santos Silva,
inclui-se o combate às corporações da sociedade portuguesa, entendendo esse
combate como um dos pilares do PS (opção pela justiça social): não apenas
contra a discriminação ou contra a desigualdade de oportunidades, o PS afirma-se pela igualdade de direitos, «portanto, contra os privilégios e contra as
castas, as ordens ou os grupos fechados.» (Santos Silva 2002: 178). Sejamos
claros: a não discriminação visa as organizações sociais mais elementares, é um
ethos cívico elementar (republicano); a «igualdade de oportunidades» é uma
noção abstracta, tributária de uma concepção democrática de liberdade política
que vincula o partido a uma forma não autoritária de socialismo, à Esquerda
liberal; a referência à igualdade de direito, no âmbito da justiça social, visa um
nível intermédio, o qual passa o mais das vezes despercebido por ser confundido na vox populi com a esfera partidária (e estatal) da decisão em nome do
colectivo. Este nível intermédio inclui as realidades associativas descritas por
Santos Silva tal como os tradicionais grupos de pressão económico-financeiros
e magnatas dos grandes clubes mencionados por Lourenço nos seus ensaios.
Vale a pena por isso tentar uma tipologia que distinga os diferentes níveis de
actuação política para, assim, melhor apreciar as tarefas do Partido Socialista e
as dificuldades que enfrenta(rá):
No primeiro plano acima mencionado, o do sistema social em geral (desde o
nível familiar até à comunidade mais alargada), há dados fiáveis do seu conservadorismo, aliás alimentado nos partidos políticos por força da organização
de «juventudes partidárias» que, em sedes não políticas como faculdades (e
mesmo em níveis de ensino anteriores), transpõem funcionamentos sociais
particularistas para o interior de estruturas supostamente ideológicas e, de
120
CARLOS LEONE
seguida, prosseguem caminhos no interior dos partidos e do aparelho de
Estado a que estes dão acesso;
No segundo plano, o das associações civis formada pela livre interacção de
indivíduos (incluindo entre estas as diversas formas de vida religiosa), encontramos o domínio intermédio que, pela sua localização transversal ao sistema
social e ao sistema político, é o menos transparente na sua estrutura e funcionamento, caso de maçonarias, Opus Dei, Companhia de Jesus, as diversas
Ordens, várias Fundações, lobbies sectoriais – em Portugal ainda para mais nem
sequer reconhecidos legalmente -, mesmo grandes empresas, todos parte
deste mundo;
Num terceiro plano, no qual o PS se inclui, encontramos as organizações
políticas estáveis que existem para influenciar legitimamente o aparelho de
Estado (partidos, mas também sindicatos, o Presidente da República, enquanto
diverso da instituição Presidência).
Esta partição oferece dificuldades, desde logo a do estatuto singular dos
magistrados. Em todo o caso, para os efeitos de uma História como a que nos
propomos, parece bastar. Ao pretender explicitamente contrariar a influência
do conservadorismo (por força da sua ideologia) e dos seus agentes (partidários
mas também no plano intermédio das associações civis), o Partido Socialista
actua como representante democrático do bem comum, do interesse geral
(noções, aliás, bem problemáticas num contexto de sociedade dual em curso
de modernização), mas nisso não enfrenta apenas a inércia social ou a organização das associações daquele nível intermédio. Enfrenta ainda o conúbio
de várias dessas associações com a própria estrutura partidária (e mesmo do
Estado), numa sobreposição não declarada de fidelidades dos agentes políticopartidários que obriga a um combate interno ao PS; e sofre ainda a passividade,
mesmo cumplicidade, do sistema social com o modus operandi dessas estruturas
associativas (e respectivas ramificações partidárias e estatais) em defesa do statu
quo conservador e anti-moderno.
Não há como «purgar» o PS, felizmente. Nem há modelo organizativo capaz de evitar interferências externas ao programa político socialista de
reforma social10. Mesmo o sucesso obtido na modernização social (pela sua
10
Todavia, erros elementares podem ser evitados. Não foi apenas no caso dos professores que o primeiro governo
de maioria absoluta do PS caiu na armadilha retórica de deixar os sindicatos falar em nome de todos os professores
quando a sua representatividade é cada vez menor. O que, em rigor, em rigor, deve ser uma advertência para o
121
PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO
DO PARTIDO SOCIALISTA
própria lógica sempre um sucesso a longo prazo) pode ser sempre revertido
para formas conservadoras de reprodução social (por via da cartelização dos
partidos no aparelho de Estado ou de «selecção» de filhos-família para posições profissionais de influência política). Mas tudo isto são obstáculos próprios
da actividade política e o Partido Socialista tem demonstrado saber geri-los
de modo produtivo, isto é, não ficando paralisado e prosseguindo a execução
das suas propostas políticas. Moderniza-se o sistema social por via do sistema
educativo; não se privilegia nenhuma associação em prejuízo sistemático de
outra; negoceia-se dentro do PS e com os seus parceiros político-partidários o ritmo do combate ao statu quo conservador. O sucesso desta prática foi
confirmado com a vitória na eleição legislativa de 2009, a primeira vitória (em
Portugal) de um partido em exercício de funções governativas numa eleição
ocorrida durante um período de acentuada crise económica. Resta saber como
interpretar politicamente esta vitória, ou seja, como garantir que o sucesso não
se transforma numa vitória de Pirro.
O efeito político da governação em maioria absoluta, no interior do PS, foi
o de consumar uma transformação iniciada em 1995, com Guterres, e prosseguida por Ferro na oposição. Essa transformação consiste numa renovação
geracional que estivera sob estrita tutela com os Secretários-Gerais anteriores e que se tornou manifesta com Sócrates11. Neste particular, além das
circunstâncias, a liderança importa de facto: Guterres pertence a uma família
da Esquerda (católica, minoritária mas influente); Ferro chegou ao PS vindo
do MES, um movimento que nunca perdeu uma muito considerável unidade
dentro do PS (pelo menos até 2004); Sócrates é um outsider a estes círculos
urbanos, influentes e notáveis12. Além das necessidades do país, também a sua
liderança exigia uma explicitação desses aspectos da acção política do PS no
futuro: carreiras não são classes nem corporações, mesmo no caso das carreiras fortemente estruturadas (como a
docente, a militar, a policial, a judicial ou a diplomática). Não há portanto o «bem comum» vs. «professores»,
p. ex., mas sim uma opção política (reformista) face a outra (imobilista). Sair destes termos é abandonar a política
e fazer o jogo apolítico, mesmo antipolítico (subversivo da democracia), de quem pretende bloquear a legitimidade
da acção governativa através da «rua» (ou dos «gabinetes», noutros casos).
11
Renovação composta de processos variados, como participação, paridade, rotação das elites, tudo parte da «boa
governação» descrita por Santos Silva no documento relativo à Declaração de Estatutos de 2002 já citado (Santos
Silva 2002: 183).
12
Ele mesmo já o afirmou, embora sempre a órgãos de comunicação social estrangeiros (de França e Espanha), o que
é significativo. Neste aspecto, além da estratégia de marketing político, a personalização da campanha (Sócrates2009,
etc.) adquire foros de compensação narcísica. E, reconheça-se, justificada. Um estudo recente da liderança política do PS merece menção: Marco Lisi, A Arte de Ser Indispensável – Líder e Organização no partido Socialista Português (Lisboa,
Imprensa de Ciências Sociais, 2009).
122
CARLOS LEONE
governo (1995-2002) e na oposição (2002-2005), que visavam a recriação
da relação público/privado, a aposta na inovação (ainda que muitas vezes
reduzida à sua componente tecnológica) e a acção planeada nos domínios dos
costumes, tudo questões que, como reconhecia Santos Silva em 2002 (cf. p.
184), permaneciam «ainda pouco interiorizadas no partido». A liderança de
Sócrates alterou equilíbrios e, igualmente, a percepção desses equilíbrios. Mas
não tem como impedir que essa mudança geracional seja objecto dos mesmos
processos de cooptação que asseguraram até hoje os três níveis de acção política acima descritos (aliás, em alguma medida mesmo a sua liderança não é
completamente estranha a esses fenómenos).
A mudança geracional não se compõe apenas de renovação etária.
Implica uma nova atitude face a valores e concepções ideológicas, marcada
por uma menor adesão (e mesmo menor consciência) do discurso identitário da Esquerda e dos seus tópicos centrais, associada a uma maior fluência
em discursos técnicos (e por vezes tecnocráticos) e especializados de matriz
académica13. O discurso das «políticas públicas» é talvez a sua buzzword mais
ouvida, mas não a única. Em comum, as novas formas de discurso político
desta Esquerda partilham uma certa inocência perante a suspeita generalizada
(e nem sequer tácita) da população face «aos políticos» (sempre «outros»)
e uma plasticidade quase ilimitada relativamente aos mecanismos portugueses
de reprodução social, o que propicia uma janela de oportunidade para a sua
cooptação pelas associações intermédias, transversais ao Partido, ao sistema
político em geral e ao sistema social. Ora, é justamente neste passo, o de uma
desafecção, ainda que inconsciente, ao imaginário da Esquerda ligada a uma
disponibilidade para networking com as próprias organizações gestoras de privilégios e de grupos fechados, que até aqui tem sido um equilíbrio liderado pelo
PS; ora, a sucessão de Sócrates irá ditar o sucesso na modernização de Portugal
ou o triunfo da resistência à modernidade. O que ficou dito acima sobre o caso
do PSD deve ser retomado: se o mesmo suceder no PS, será todo o sistema
13
O que originou no período 2005-2009 reacções extremadas de figuras representativas das elites políticas anteriores
do PS, de António Arnaut a Manuel Alegre. Reacções, aliás, apenas mais visíveis e notórias do que aquelas que já se
havia verificado no tempo de Guterres, sobretudo no período 1999-2001. De certo modo, a mudança de imagem
(simbologia) iniciada com Guterres tornou-se algo interiorizado pela nova geração, verbalizando-se num discurso
quase desprovido de marcas socialistas. As consequências e os riscos do sucesso deste marketing político foram comentadas já no período de Sócrates no pequeno ensaio de Carlos Leone O Socialismo Nunca Existiu? (Lisboa, Tinta da China,
2008), em especial no seu cpt. 4.
123
PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO
DO PARTIDO SOCIALISTA
político que se autodestruirá14. Ao contrário da retórica vazia (e de má fé) do
PSD sobre claustrofobia e asfixia, verificar-se-á então um caso de «atrofia
democrática» (termo cunhado por Sottomayor Cardia no início da década de
1990). Nesse cenário, todo o processo de renovação (de PS e país) se reverte
de forma rápida, subtil e fácil: vencem as corporações, o conservadorismo e o
auto-isolamento; declinam o PS (e, no geral, o sistema político), a democraticidade e a europeização de Portugal. Mais uma vez, é a opção entre ter poder
e ter influência: entre os que entendem ser os partidos os legítimos representantes da democracia, e visam o poder, e os que privilegiam a manutenção da
influência, fazendo do status o critério da sua acção social. Entre os partidos e o
status, as classes e a luta pela propriedade desempenham um papel, é certo, mas,
ao contrário do que os radicais ditos de Esquerda gostam de propagandear,
não «determina» tanto quanto é sobredeterminado.
A escolha do Partido Socialista em 2009 é por isso clara: ou prossegue a
modernização, atentando nas suas dimensões ideológicas e históricas tanto
quanto já o faz nas suas vertentes técnicas e científicas , e nesse caso é possível
que o reformismo tenha os efeitos pretendidos e que as associações não transparentes sejam controláveis; ou a liderança pós-Sócrates abdica da condução
política do processo de modernização do país e, concomitantemente, o
conservadorismo assegura os seus privilégios em toda a linha. Neste último
caso, soçobra o sistema político actual mas não o sistema social que o antecede.
E permanecerá pertinente o socialismo ético de Lourenço, que, em linha com
a melhor análise social portuguesa, há muito critica aquele sistema social.
Mutatis mutandis, o que Lourenço escrevia em 1985 a propósito de Mário
Soares pode ser repetido desde já, se se quiser garantir que a ruptura de
Sócrates não se perde nem se perverte: «o PS, obrigatoriamente adulto pela
sua ausência, precisa de um líder novo, na idade e, sobretudo, no perfil. A uma
época romântica e épica seria bom que sucedesse uma outra performante, toda
14
A fragmentação da representação partidária no Parlamento eleito em 2009 é já um indicador claro do preço a
pagar pelo PS por descurar a captação de apoio onde ele existe, desperdiçado: na população que opta pela abstenção.
A possível fixação de um eleitorado jovem à Esquerda do PS, principalmente no BE (onde sentem que a sua integração
é rápida e efectiva, numa forma de mobilidade partidária ascendente garantida), pode vir a ser um processo correlato
que terá consequências eleitorais e sociais graves a médio prazo. A verificar-se, significará que o BE colhe apoio entre
os jovens mas sobretudo entre os abstencionistas (onde a juventude é muito relevante), além do que já dispõe, hoje,
talvez mais intergeracional do que se admite.
15
O próximo centenário da República, aliás coincidente com as comemoração do centenário de Tito de Morais,
poderia(m) ser um leitmotiv interessante para o exercício, mas nada indica que tudo não se limite ao registo históricoelegíaco habitual e inerte.
124
CARLOS LEONE
voltada para o século próximo e não para aquele donde vem, época encarnada em alguém que tenha a mais da competência que a Direita se outorga, o
sonho e a vontade de solidariedade que são a única razão de ser da Esquerda.»
(Lourenço 2009: 60). A época performante demorou duas décadas a chegar,
resta saber se será prosseguida com liderança nova ou desmembrada por velhas
corporações através de novos líderes.
Ajuda, 6-10 Outubro, 2009
125
Bibliografia
(apenas se referem obras efectivamente citadas)
Eduardo Lourenço, A Europa Desencantada, Lisboa, Gradiva, 2000 (1ª ed. 1993).
Eduardo Lourenço, Destroços, Lisboa, Gradiva, 2004.
Eduardo Lourenço, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?, Lisboa, Gradiva, 2009.
Santos Silva, A., «Os Princípios Políticos do PS: Memória e Renovação» in Finisterra,
nº45, Inverno 2003, Fundação José Fontana, Lisboa, 2002 (pp. 173-191).
126
Responsabilidade Individual e Justiça Social:
Igualdade de Oportunidades ou de Resultados?
Roberto Merrill
1. Introdução
De acordo com qualquer tipo de igualitarismo sensível à responsabilidade
individual, as desigualdades de riqueza entre indivíduos são justificadas
quando resultantes de escolhas pelas quais os indivíduos podem ser considerados responsáveis. Inversamente, as desigualdades causadas apenas pelo acaso
ou pela má sorte bruta não são justificadas. Esta característica é importante
porque, conquanto se trate de uma teoria igualitarista, prescreve o respeito à
liberdade dos indivíduos nas suas escolhas1.
Se os indivíduos podem e devem ser considerados responsáveis pelos resultados das suas escolhas então qualquer igualitarismo sensível à responsabilidade
deve permitir que os indivíduos suportem os custos (ou gozem dos ganhos) das
suas escolhas. Porém, por vezes os resultados de certas escolhas podem deixar
uma pessoa numa situação económica e psicológica de sofrimento extremo.
Neste caso, porque responsável pela sua escolha, o indivíduo não poderá
contar com o apoio do Estado, através das suas políticas sociais. Alguns autores
igualitaristas consideram que esta consequência rígida do igualitarismo da
responsabilidade demonstra a sua incompletude teórica e, consequentemente,
advogam a sua rejeição, ou no melhor dos casos, a sua refinação. Pois para um
igualitarista, mesmo quando sensível à responsabilidade individual, é de facto
uma intuição comum considerar que nem sempre, ou talvez mesmo nunca, se
justifica exigir que os indivíduos suportem os custos das suas escolhas quando
1
Na literatura anglófona contemporânea especializada em teorias normativas da justiça distributiva, esta corrente igualitária é conhecida por luck egalitarianism; a partir de agora vou utilizar a expressão “igualitarismo da responsabilidade”
para designar esta corrente. Esta corrente tem por base os trabalhos de John Rawls (1971), a crítica ao igualitarismo
de Rawls pelo libertarismo de direita de Robert Nozick (1974) e a tentativa por Ronald Dworkin (2000) de superar
o igualitarismo rawlsiano assim como o conservadorismo de direita. A expressão luck egalitarianism provém de Elizabeth
Anderson (1999) e é hoje a mais utilizada para designar esta corrente igualitária que tem uma posição dominante nos
debates sobre as teorias da justiça distributiva em teoria política normativa. A quantidade de publicações sobre esta
corrente de esquerda é vertiginosa. No fim deste artigo propomos uma bibliografia indicativa.
elegíaco habitual e inerte.
127
RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL E JUSTIÇA SOCIAL:
IGUALDADE DE OPORTUNIDADES OU DE RESULTADOS?
estas os colocam em situações de sofrimento extremo (mesmo quando são
inteiramente responsáveis por elas) - não obstante, devemos perguntar-nos
por que razões tal exigência não seria justificada. Pois para um igualitarista é
também uma intuição comum considerar que um indivíduo deve suportar os
custos das suas escolhas quando feitas em circunstâncias de igualdade de oportunidades2. No entanto, estas duas intuições centrais ao igualitarismo nem
sempre convergem. Esta falta de convergência é particularmente visível quando
nos confrontamos com situações desesperantes resultantes de escolhas individuais feitas num contexto de genuína igualdade de oportunidades.
Neste artigo, (1) começo por desenvolver a objecção “da dureza” feita
ao igualitarismo da responsabilidade e exponho três razões para considerá-la seriamente. Em seguida (2) examino três respostas possíveis à objecção.
Finalmente (3) proponho que, dado nenhuma destas respostas ser capaz de
rejeitar a objecção “da dureza”, o igualitarista permanece confrontado com a
seguinte alternativa:
(a) Aceitar a objecção como uma consequência inevitável e justificada do
igualitarismo da responsabilidade.
(b) Considerar que a objecção demonstra que o igualitarismo da responsabilidade é uma teoria incompleta e rejeitar esta teoria como uma versão
plausível do igualitarismo.
Se rejeitarmos (a) e aceitarmos (b), nesse caso a alternativa consistiria
em adoptar um igualitarismo dos resultados em vez dum igualitarismo das
oportunidades (abandonando-se, assim, o elemento de responsabilidade
distributiva constitutivo desta teoria igualitária). Termino o artigo propondo
duas variantes do igualitarismo dos resultados que me parecem promissoras :
a variante da “genuína igualdade de oportunidades” e a variante da “ igualdade
de liberdade”.
2
Para uma crítica virulenta ao ideal de igualdade de oportunidades (em particular a crítica à defesa deste ideal na
“terceira via” defendida por Tony Blair) vide Barry (2005). Para uma defesa informada e convincente da igualdade de
oportunidades vide Mason (2006).
128
ROBERTO MERRILL
2. A objecção da dureza
De acordo com a objecção “da dureza”, porque o igualitarismo da responsabilidade tem como um dos seus princípios fundamentais considerar que os
indivíduos são livres de assumirem os custos das suas escolhas, mesmo quando
estes são excessivos para eles, esta teoria não permite justificar nenhum auxílio
às vítimas da má sorte nas suas escolhas sem entrar em contradição com o seu
igualitarismo sensível à responsabilidade.
Tomemos como exemplo o caso duma mãe solteira que escolhe não
trabalhar para poder tomar conta dos seus filhos. Ela não recebe nenhuma
ajuda do Estado, pois essa foi a sua escolha voluntária. Mas esta escolha coloca-a numa situação desesperante. O igualitarismo da responsabilidade teria
que aceitar que o Estado tem o direito, senão mesmo o dever, de não ajudá-la,
desde que a sua situação resulte de uma escolha voluntária, e desde que tenha
tido uma genuína igualdade de oportunidades em trabalhar, pois sem esta não
se pode falar correctamente duma escolha responsável. Mesmo assim a mãe
escolheu não trabalhar, preferindo dedicar-se aos seus filhos e, consequentemente, encontra-se numa situação de miséria.
Segundo o igualitarismo da responsabilidade, esta situação é justa se resultante duma escolha responsável feita num contexto de genuína igualdade de
oportunidades. Mas esta consequência parece demasiado dura, pelo menos
para uma teoria igualitarista. Podemos assim formular pelo menos três razões
para ter em consideração a objecção “da dureza”:
1. O igualitarismo da responsabilidade não é suficientemente sensível à
relação entre a probabilidade de um risco e a severidade do resultado associado ao risco;
2. O igualitarismo da responsabilidade não consegue justificar facilmente
que a satisfação de necessidades e de bens básicos possa ter uma relevância
particular dentro de uma teoria da justiça distributiva;
3. O igualitarismo da responsabilidade parece insensível aos deveres de aliviar
os indivíduos do sofrimento extremo quando este resulta de escolhas cuja
responsabilidade possa ser atribuída aos indivíduos (mesmo quando ajudar
as vítimas duma má escolha não representa nenhum custo para o Estado).
129
RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL E JUSTIÇA SOCIAL:
IGUALDADE DE OPORTUNIDADES OU DE RESULTADOS?
No entanto, é necessário realçar que o facto de haver uma escolha voluntária
não constitui uma razão suficiente para considerar um individuo inteiramente
responsável pelo resultado desta. O igualitarismo da responsabilidade exige ter
em conta os efeitos da sorte bruta desigual (unequal brute luck) sobre as escolhas
responsáveis dos indivíduos, como por exemplo ter tido na sua vida uma variedade reduzida de opções de acção disponíveis ou não ter tido um acesso fácil
às informações que permitem ponderar de maneira razoável as consequências
possíveis das suas escolhas, ou ainda sofrer de handicaps genéticos. Caso contrário,
não seria possível atribuir uma genuína responsabilidade às escolhas dos indivíduos, já que estas seriam feitas em circunstâncias desiguais de oportunidades,
logo injustas porque arbitrárias de um ponto de vista moral. Assim sendo, as
desigualdades que resultam de escolhas influenciadas por uma sorte bruta desigual (ou seja, consequentes de causas sociais e naturais arbitrárias e desiguais)
podem, pelo menos parcialmente, ser compensadas segundo o igualitarismo
da responsabilidade. Se tivermos pois em conta esta cláusula igualitarista de
compensação de escolhas resultantes duma sorte bruta desigual, a objecção
“da dureza” ao igualitarismo da responsabilidade, correctamente formulada,
deverá então ser a seguinte:
Quando uma pessoa faz uma escolha plenamente responsável que não foi
afectada por uma sorte bruta desigual, e o resultado desta escolha põe-a numa
situação de sofrimento extremo, nesse caso o igualitarismo da responsabilidade
requer que o Estado não apoie esta pessoa, mesmo quando não estejam associados quaisquer custos a esta assistência (Voigt, 2007: 402).
3. Três respostas à objecção da dureza
O igualitarismo da responsabilidade pode responder à objecção “da dureza”
pelo menos de três maneiras:
(1) permitir considerações prioritaristas, independentemente de considerações da responsabilidade, na justificação de políticas sociais que dêem
prioridade aos mais desfavorecidos da sociedade ;
(2) introduzir “um nível mínimo de bens” ao qual os indivíduos vítimas
dos maus resultados das suas escolhas tenham sempre acesso (independentemente das considerações ligadas à responsabilidade) ;
130
ROBERTO MERRILL
(3) introduzir um esquema de seguro obrigatório de modo a que todos os
cidadãos sejam cobertos contra riscos que afectam a sua capacidade de satisfazer as suas necessidades (correndo o risco de se transformar numa teoria
paternalista).
3.1. A resposta prioritarista
A primeira resposta à objecção “da dureza” combina o igualitarismo da
responsabilidade com considerações prioritaristas: a prioridade é dada ao
apoio pelo Estado aos mais desfavorecidos da sociedade, independentemente
de considerações ligadas à responsabilidade individual (Arneson, 2000;
2009) .
A objecção principal a esta resposta prioritarista é a seguinte: dado o igualitarismo da responsabilidade e o prioritarismo substanciarem duas correntes
igualitaristas assentes em duas compreensões muito diferentes daquilo que
faz com que uma distribuição das riquezas seja justa, não se percebe de que
maneira não arbitrária devemos determinar a importância relativa de cada um
destes dois princípios - o princípio da prioridade, por um lado, e o princípio
da responsabilidade individual, por outro lado.
3.2. A resposta dos bens básicos
A segunda resposta à objecção “da dureza” consiste em considerar legítimo
introduzir a exigência dum nível mínimo de bens de base ao qual os indivíduos
teriam sempre acesso, mesmo quando aquilo que faz com que os indivíduos
caiam abaixo deste nível mínimo resulta duma escolha responsável feita em
circunstâncias que impliquem uma genuína igualdade de oportunidades.
Poderíamos defender esta resposta afirmando que, dado o igualitarismo da
responsabilidade ser uma teoria que confere uma relevância central à escolha
individual responsável, não devemos permitir que os indivíduos caiam numa
condição abaixo de um determinado nível de bens, dada a alta improbabilidade
de tais escolhas responsáveis poderem ser genuinamente livres quando formuladas abaixo dum nível mínimo de bens (Anderson, 1999; Crisp, 2003).
A objecção principal à resposta dos bens básicos é a seguinte: esta solução
exige que não respeitemos princípios básicos do igualitarismo da responsabilidade, cada vez que um indivíduo se coloca abaixo dum nível mínimo de bens.
131
RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL E JUSTIÇA SOCIAL:
IGUALDADE DE OPORTUNIDADES OU DE RESULTADOS?
3.3. A resposta do seguro obrigatório
A terceira resposta à objecção “da dureza” considera legítimo introduzir
a exigência dum seguro obrigatório para todos os indivíduos a fim de evitar
que caiam em situações de sofrimento extremo (Bou-Habib, 2006). Com
efeito, se o Estado exigir aos indivíduos um seguro obrigatório que os proteja
nas situações de risco decorrentes das suas escolhas, pode-se assim impedir
que ocorram situações tais como a descrita no exemplo da mãe solteira. Se
todos os indivíduos podem ser protegidos por um seguro obrigatório quando
confrontados com situações desesperantes fruto das suas escolhas individuais,
o igualitarismo da responsabilidade pode então compensar de maneira apropriada os indivíduos que são vítimas de má sorte (resulte esta duma desigualdade
de oportunidades ou duma má escolha responsável).
As duas objecções principais a esta resposta do seguro obrigatório são as
seguintes:
(a) A imposição dum seguro obrigatório é claramente uma medida paternalista, o que coloca esta solução em contradição com o princípio de
responsabilidade;
(b) A imposição dum seguro obrigatório pode igualmente ter um custo demasiado alto, já que muitas pessoas não têm meios para financiá-lo, vendo-se
assim impedidas de levar a cabo as acções que impliquem a sua compra.
Ambas as objecções envolvem limitações à liberdade individual contraditórias ao igualitarismo da responsabilidade.
Sobre estas três respostas dos defensores igualitarismo da responsabilidade
de encontro à objecção “da dureza”, conclui-se: as duas primeiras (a prioritarista e a dos bens de base) parecem implicar uma tensão com o igualitarismo da
responsabilidade; a terceira (a do seguro obrigatório) implica uma limitação
paternalista da liberdade de assumir os riscos das suas acções - restrição que
no mínimo corre o risco de ser demasiado intrusiva na vida dos indivíduos,
limitando a sua liberdade de escolha.
132
ROBERTO MERRILL
4. Escolha responsável e preferências adaptativas
Dado que nenhuma das três respostas permite rejeitar a objecção “da
dureza”, vou agora expor as razões pelas quais considero como a única alternativa possível ou aceitar a objecção “da dureza” ou rejeitar o igualitarismo
da responsabilidade e adoptar um igualitarismo do resultado. Mas antes vou
expor as duas concepções dominantes da escolha na literatura igualitarista e as
objecções a ambas. Ter em mente estas duas concepções do significado duma
escolha responsável ajuda a perceber o porquê da escolha responsável de alguém
não constituir uma razão suficiente à consideração do seu resultado como um
efeito da responsabilidade individual. A razão principal para evitar este non
sequitur é a seguinte: os indivíduos têm preferências (desvantajosas) adaptáveis
que são o resultado duma sorte bruta desigual.
4.1. Duas concepções da escolha
As duas concepções dominantes da escolha na literatura igualitarista são a
subjectiva e a objectiva.
(a) A definição da concepção subjectiva da escolha é a seguinte: a responsabilidade dum indivíduo por uma preferência sua é determinada pela sua
atitude pela mesma. Os indivíduos são responsáveis pelas consequências das
suas escolhas apenas quando se identificam com as suas preferências autênticas que os levam a assumí-las (Dworkin, 2000).
(b) A definição da concepção objectiva da escolha é a seguinte: a responsabilidade dum indivíduo por uma escolha depende das influências
externas. Estas são independentes das atitudes do indivíduo em relação às
suas preferências. Segundo esta concepção objectiva, a legitimidade das
escolhas decorre da sua “voluntariedade” ou “genuidade”, isto é, devem
ser feitas tomando em consideração que as circunstâncias sociais e naturais
desiguais condicionam as preferências dos indivíduos duma maneira que
torna provável que as suas escolhas reproduzam as desigualdades existentes
(Cohen, 1989).
4.2. Objecção à concepção subjectiva da escolha
A concepção subjectiva da escolha não permite tomar em consideração os
133
RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL E JUSTIÇA SOCIAL:
IGUALDADE DE OPORTUNIDADES OU DE RESULTADOS?
efeitos que a sorte bruta desigual (presente nas circunstâncias sociais e naturais)
pode ter nas preferências e nas escolhas que os indivíduos assumem. Na realidade, mesmo as preferências autênticas que os indivíduos têm podem conduzir
a desigualdades injustas.
No entanto, esta objecção é evitável da seguinte forma: assumir com autenticidade as suas próprias preferências significa que se o indivíduo tivesse um
controle sobre elas, ele as escolheria tal como se lhe apresentam (Fleurbaey,
2008: 249).
Contudo, esta maneira de evitar a objecção não é convincente, pois a
concepção subjectiva da escolha permite manter um indivíduo responsável
pelas suas preferências autênticas mesmo quando estas preferências não foram
realmente escolhidas. Voltando ao exemplo da mãe solteira que escolhe não ter
um emprego porque prefere tomar conta dos seus filhos: as suas preferências
podem certamente ser autênticas mas, mesmo assim, serem determinadas por
factores externos à sua escolha. Neste caso, não se pode dizer que ela controle
a sua escolha e, neste sentido, a concepção subjectiva da escolha parece ser
insensível aos efeitos da sorte bruta desigual sobre as escolhas dos indivíduos.
4.3. Objecção à concepção objectiva da escolha
A concepção objectiva da escolha demonstra uma maior sensibilidade em
relação à formação das preferências dos indivíduos, e à maneira como estas se
adaptam às suas circunstâncias particulares (Cohen, 1989). Mas esta sensibilidade pode implicar que as preferências devam ser formadas duma maneira
perfeccionista, isto é, duma maneira que pode ser demasiado intrusiva na vida
dos indivíduos.
No entanto, é possível tentar rejeitar esta objecção defendendo que a
concepção objectiva da escolha implica apenas uma sensibilidade às desigualdades provocadas pela sorte bruta desigual que possam ter afectado as
preferências autênticas dos indivíduos e, por essa razão, considerar as intervenções intrusivas na vida dos pessoas como desnecessárias.
4.4. A objecção do pântano metafísico
Ambas as concepções da escolha são vulneráveis à objecção do “pântano
metafísico”, que se apresenta do modo seguinte: ser causalmente responsável
pelas consequências das suas acções implica saber se o indivíduo é ou não
134
ROBERTO MERRILL
moralmente responsável, o que implica por sua vez saber se as preferências
autênticas ou as escolhas genuínas realmente ocorreram (Wolff e De-Shalit,
2007: 77). Mas a atribuição duma responsabilidade moral também exige a
certeza da presença de livre arbítrio - só assim os indivíduos são responsáveis
pelas suas escolha.
Desta objecção metafísica decorre uma objecção prática: dado este pântano
metafísico, as concepções subjectiva e objectiva da escolha não parecem úteis
para permitir uma aplicação clara em políticas de interesse público. Ambas as
concepções são difíceis de aplicar ao mundo real: são demasiado flexíveis ou
demasiado duras.
Voltando ao exemplo da mãe solteira que escolhe não trabalhar: ela identifica-se com esse bem escolhido com o objectivo de tomar conta dos seus filhos.
Deve o Estado apoiá-la mesmo quando ela recusa toda oferta de trabalho? Se
sim, tal é demasiado flexível. Se não a apoia, tal é demasiado duro.
5. Igualdade de oportunidades ou de resultados?
Dado ambas as concepções da escolha parecerem vulneráveis à objecção
do pântano metafísico assim como à objecção prática, podemos ser tentados a
concluir que o igualitarismo da responsabilidade deve ser substituído por um
igualitarismo dos resultados. Vou agora expor duas vias de defesa desta substituição e consequente abandono da responsabilidade:
(a) A alternativa duma genuína igualdade de oportunidades
(b) A alternativa da igualdade de liberdade
5.1. Oportunidade genuína versus oportunidade formal
Julgo ser importante distinguir a ausência de oportunidade da oportunidade que não se sabe aproveitar. Neste sentido, devemos evitar concentrar-nos
nas teorias subjectivas ou objectivas da escolha e perguntar: que fardos é razoável
exigir aos indivíduos desfavorecidos vítimas de más escolhas (Wolff e De-Shalit,
2007:79)? Se as consequências da escolha podem ter demasiado impacto no
bem-estar dos indivíduos, podemos dizer que a escolha que leva a uma situação
desesperante não permite uma oportunidade genuína mas formal. No exemplo
da mãe solteira, ela tem uma oportunidade de procurar e aceitar um trabalho
135
RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL E JUSTIÇA SOCIAL:
IGUALDADE DE OPORTUNIDADES OU DE RESULTADOS?
caso o apoio do Estado seja inexistente. Mas os fardos de aceitar um emprego
parecem pouco razoáveis, dado então não poder tomar conta dos seus filhos.
Podemos dizer que ela tem uma oportunidade formal, não genuína. Quando
os fardos da desvantagem parecem demasiado elevados, é legitimo considerar
que o Estado deve apoiá-la de modo a poder tomar conta dos seus filhos. Neste
sentido, a igualdade de oportunidades, associada à responsabilidade, deixar de
ser relevante. O importante é que certas escolhas, quando implicam fardos
com demasiado impacto no bem-estar dos indivíduos, devem ser compensadas
pelo Estado.
5.2. Igualdade de liberdade
Porque os fundamentos da responsabilidade são frágeis, e porque o igualitarismo da responsabilidade pode ser demasiado duro ou demasiado flexível,
uma outra maneira de rejeitar o conceito da responsabilidade como uma
justificação moral das desigualdades é considerar a liberdade como uma justificação alternativa da responsabilidade. Em vez de perguntar se um individuo é
responsável pela sua posição desfavorecida na sociedade, podemos perguntar se
a sua situação desfavorecida na sociedade corresponde à sua escolha livre quanto
à orientação da sua vida. Como questiona o especialista em economia normativa Marc Fleurbaey, criticando o igualitarismo da responsabilidade, “do ponto
de vista da liberdade, de que serve oferecer a possibilidade de morrer de fome
sem poder fazer nada?” (Fleurbaey, 2008: 266). Em detrimento da teoria da
justiça distributiva fundamentada no conceito de responsabilidade, a teoria da
igualdade proposta por Fleurbaey faz do princípio de igualdade de liberdade o
seu núcleo - este princípio funciona como um constrangimento que tem por
finalidade assegurar um nível mínimo de autonomia a todos os indivíduos,
independentemente da responsabilidade que possam ter pelas escolhas que os
colocam em situações desesperantes. Além deste nível mínimo de autonomia,
o aceso a um nível mais elevado de autonomia constitui uma questão de preferência individual.
Esta alternativa está sujeita a duas objecções. A primeira assinala que esta
teoria combina o igualitarismo da responsabilidade com o prioritarismo,
como acima analisado (conquanto tenha a vantagem de não implicar o
aspecto moralizador da responsabilidade). A segunda reconhece-a como uma
teoria explicitamente perfeccionista (Fleurbaey, 2008: 264), já que todos os
136
ROBERTO MERRILL
indivíduos devem atingir um nível mínimo de autonomia graças às políticas
sociais do Estado.
6. Conclusão
Para terminar este artigo, gostaria de reformular o problema da relação
entre igualdade e responsabilidade propondo o seguinte dilema. Qual das
seguintes opções devemos considerar mais injusta?
Considerar que um individuo é responsável por uma desvantagem que não
controla? Esta opção dificilmente é aceite por um igualitarista da responsabilidade porque demasiado dura para as pessoas em situações desesperantes.
Compensar um indivíduo por uma desvantagem que controla? Esta opção
é demasiado flexível para um igualitarista da responsabilidade.
As duas alternativas ao igualitarismo da responsabilidade (oportunidade
genuína e igualdade de liberdade) permitem ultrapassar este dilema, sugerindo
que a melhor maneira de rejeitar a objecção da dureza consiste em adoptar
um igualitarismo do resultado (abandonando, assim, a noção de responsabilidade distributiva, pelo menos nos casos de sofrimento extremo), enquanto
não houverem avanços significativos na investigação dos factores que permitem
atribuir responsabilidade distributiva aos indivíduos3.
3
Na literatura sobre este tema da responsabilidade, o filósofo libertário de esquerda Peter Vallentyne escreveu recentemente um artigo que explora de maneira pertinente e prometedora (pelo menos para os igualitaristas que acreditam
que não se deve abandonar a noção de responsabilidade individual) algumas maneiras de superar as dificuldades associadas à definição correcta da responsabilidade (Vallentyne, 2008).
137
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138
Igualdade Equitativa de Oportunidades e
Capacidades na Teoria da Justiça de John Rawls
Regina Queiroz
A
defesa da igualdade de oportunidades incide, na teoria rawlsiana
da justiça, sobre um dos pressupostos fundamentais do funcionamento do mercado, os talentos individuais, entendidos como
propriedades ou recursos económicos. Se num mercado perfeitamente competitivo as pessoas são definidas pela suas preferências e pelos seus
talentos naturais, e se cada um deve receber de acordo com o seu contributo,
então o resultado da actividade puramente individual não pode deixar de estar
marcada pela posse daqueles talentos naturais.
Porém, se, segundo Rawls, os talentos e seu desenvolvimento dependem de
circunstâncias naturais e sociais como a pertença familiar, e se a distribuição
de rendimento e de riqueza estiver condicionada pelas vantagens e desvantagens associadas àqueles talentos, arbitrários de um ponto de vista moral, a
distribuição do mercado não deixa de ser arbitrária. Deste modo, a atribuição
política rawlsiana visa um objectivo específico, a saber, fornecer as condições
de participação no processo de aquisição e de troca dos bens e serviços que evite
que a participação no mercado esteja marcada por aquela vantagem natural ou
social.
Para tal, Rawls propõe o princípio da igualdade equitativa de oportunidades1,
que consiste na igualdade de oportunidades para as pessoas com capacidades e
conhecimentos idênticos, independentemente da condição social e natural.
Distingue-o da interpretação do princípio da igualdade de oportunidades pelo
sistema de liberdade natural e da correlata concepção de vantagem natural. Este
1
São dois os princípios da justiça como equidade propostos por Rawls. O primeiro princípio — o da igual
liberdade — enuncia que “Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades
básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos”(Cf. RAWLS, 1971, p.
302). O segundo princípio enuncia que “As desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas por
forma a que, simultaneamente:
a) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados, de uma forma que seja compatível com o princípio da poupança justa;
b) sejam a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade
equitativa de oportunidades” (Cf. RAWLS, ibid.). Veja-se ainda a sua reformulação em RAWLS, 1993,
p. 291 e 2001, pp. 42-3.
139
IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA
DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS
sistema da igualdade natural, que propõe que as oportunidades sejam distribuídas em função dos talentos e defende uma concepção puramente formal das
oportunidades2 não oferece condições políticas para ultrapassar as vantagens
arbitrárias de um ponto de vista natural: a igualdade de oportunidades é fortemente influenciada pelas contingências naturais e sociais como, por exemplo,
a situação familiar e os talentos naturais3. Neste caso, quer os resultados provenientes da actividade dos indivíduos no mercado estão decisivamente marcados
pela arbitrariedade natural e social, quer o edifício jurídico de protecção da
igualdade formal acaba por legitimar a distribuição natural, arbitrária de um
ponto de vista moral4.
Ora, na igualdade liberal de oportunidades, as diferentes capacidades tanto
podem ser consequência das desigualdades sociais e económicas como, mesmo
que os diferentes talentos não sejam económica e socialmente condicionados,
resultado da lotaria natural. Mas, uma vez que as diferenças naturais e sociais
não são razões para atribuição de direitos políticos, os indivíduos excluídos
das oportunidades podem "(…) sentir-se injustamente tratados, mesmo que
beneficiem dos maiores esforços realizados por aqueles que são autorizados a
aceder a tais funções”5. Todos devem poder aceder aos diferentes lugares. Não
há, por conseguinte, qualquer razão natural ou social para a restrição da igualdade equitativa de oportunidades.
Note-se que Rawls não aceita a concepção de uma vantagem natural, da
mesma forma que não aceita a concepção eficiente das oportunidades6, porque
é possível não piorar a posição de ninguém e excluir algumas pessoas dos lugares
e posições oferecidos pelo mercado. Por essa razão, em vez da igualdade de
oportunidades liberal, também subsumida pelo princípio da eficiência, Rawls
propõe a igualdade equitativa de oportunidades, distinta do conceito de igualdade de oportunidades liberal e do conceito de igualdade natural meritocrática:
estes, embora reconheçam a igualdade social e económica, no primeiro caso,
2
Cf. RAWLS, 1971, p. 72.
3
Cf. RAWLS, id., ibid.
4
Cf. RAWLS, 1993, p. 266.
5
Cf. RAWLS, 1971, p. 84.
6
Cf. RAWLS, id., ibid. A eficiência acontece quando é impossível alterar uma determinada configuração
social, por forma tal que pelo menos um dos sujeitos melhore a sua posição sem que pelo menos um outro
fique em pior posição.
140
REGINA QUEIROZ
e a igualdade jurídica, no segundo, excluem do acesso às funções uma parte
substancial dos cidadãos. Em contrapartida, se na igualdade equitativa de oportunidades não se renuncia à diferença de talentos como critério de atribuição
diferenciada no mercado, exige-se um contexto social favorável que minimize
a arbitrariedade social inerente ao desenvolvimento dos talentos. Esse contexto
é o da igualdade equitativa de educação para todos7. Assim, o governo deverá
garantir possibilidades iguais de educação e de cultura às pessoas que possuem
capacidades e motivações semelhantes, quer através de subsídios às escolas
privadas, quer através da criação de um sistema de ensino público.
De acordo com o princípio da igualdade de oportunidades, o objectivo
da teoria da justiça não consiste, por conseguinte, em garantir uma igualdade
estrita do contributo individual — tal igualdade colidiria com o respeito pela
integridade das pessoas8 — mas em assegurar que todos possam participar no
mercado económico, de acordo com a igualdade de oportunidades à educação
— para desenvolvimento das suas capacidades quantitativa e qualitativamente
diferenciadas. É esse, quanto a nós, o significado da igualdade de oportunidades, não apenas para os mais talentosos, mas para todos. Essa abertura tem
como corolário que os resultados diferenciados que advierem da igualdade de
oportunidades assim definida — diferentes posições sociais — são justos. Não
há qualquer razão para, no contexto de uma igualdade equitativa de oportunidades, se intervir no resultado desigual resultante da actividade cooperativa,
ou seja, para efectuar qualquer actividade redistributiva. A este respeito, Rawls
afirma explicitamente que a grande vantagem do princípio da igualdade de
oportunidades enquanto princípio que releva da justiça processual pura —
justiça em que os procedimentos tanto asseguram a certeza do resultado, seja ele
qual for, como a dependência do critério em relação ao resultado, porque não
são estabelecidos em função das preferências dos sujeitos concretos — consiste
em dispensar o controlo da infinita variedade de circunstâncias e a evolução das
posições relativas dos diferentes sujeitos. Assim, ainda que a estrutura básica
7
Cf. RAWLS, id., p. 73. Rawls reconhece a necessidade de um sistema de escolarização que minimize o peso
das circunstâncias sociais no desenvolvimento dos talentos. Que minimize e não anule, porque o sistema
educativo não pode substituir o peso da diferenciação social resultante da pertença a diferentes famílias, da
diferença natural, correspondente à diferença de talentos e de capacidades, e da diferença política, tal como
ela é entendida na teoria rawlsiana da justiça: a igualdade democrática inclui necessariamente as desigualdades
equitativas.
8
Cf. RAWLS, id., p. 89.
141
IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA
DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS
— as principais instituições responsáveis pela atribuição dos direitos e deveres
dos cidadãos, tais como a Constituição, o Mercado Económico e a Família —
possa determinar aquilo que é produzido, bem como a sua quantidade e os
meios para isso utilizados, essa determinação da produção dos bens básicos não
é efectuada através da interferência nas circunstâncias particulares em que as
pessoas trocam os seus bens, nem da verificação da posição relativa dos indivíduos enquanto tais9.
Note-se que este princípio está incluído no segundo princípio, o da diferença. Este tanto se refere às desigualdades justas resultantes da igual liberdade
e da igualdade equitativa de oportunidades, como à desigual distribuição dos
benefícios sociais pela estrutura básica das sociedades. A teoria rawlsiana da
justiça estabelece, assim, que as desigualdades sociais devem decorrer de uma
posição inicial equitativa — as desigualdades não são injustas desde que submetidas à equidade geral: não há, repetimos, qualquer justificação para a alteração
do resultado10. O princípio da igualdade equitativa de oportunidades aparece,
assim, como um princípio de igualdade e como um princípio de diferença,
estando a sua concretização inapelavelmente associada à diversidade de pessoas,
com os seus talentos naturais e sociais.
É certo que a prioridade da igualdade de oportunidades em relação ao
princípio da diferença pretende evitar que a justiça social se limite a identificar
a posição mais desfavorecida, a atribuir um rendimento mínimo e a manter
a diferença política, social e económica não equitativa. Neste caso, em vez da
interpretação democrática da diferença social, a concepção rawlsiana da justiça
social corresponderia ao princípio da aristocracia natural. Mas, se Rawls inclui
o princípio da igualdade de oportunidades no segundo princípio e se considera
que o princípio da igualdade se expressa na sua teoria através do princípio da
igual liberdade e da igualdade equitativa das oportunidades, é porque pretende
legitimar e justificar as desigualdades resultantes da igual liberdade e da igualdade equitativa de oportunidades.
De acordo com o reconhecimento da diversidade de pessoas, a igualdade equitativa de oportunidades não obriga a que dessa igualdade universal
decorram idênticas posições iniciais e de chegada. A sua condição de aplicação
9
Cf. RAWLS, id., p. 87.
10
Intervenção tanto menos justificada quanto o princípio da igualdade de oportunidades releva da justiça
processual pura, dispensando o controlo da infinita variedade de circunstâncias (Cf. RAWLS, id., ibid).
142
REGINA QUEIROZ
não é a eliminação das diferenças naturais e sociais — tal eliminação seria tão
arbitrária quanto a sua consideração — mas oferecer iguais oportunidades a
todas as pessoas, sejam quais forem os seus talentos, naturais e sociais. Ou, por
outras palavras, o princípio da igualdade de oportunidades não procede por
exclusão das diferenças, mas por inclusão do máximo de diferença. Inclusão
não disjuntiva, no sentido em não que pressupõe a exclusão dos mais favorecidos pela natureza e pela sociedade ou a dos mais desfavorecidos, mas sim a
inclusão de uns e de outros. Daí que Rawls tenha necessidade de esclarecer na
sua teoria da justiça que o princípio da igualdade de oportunidades não é um
princípio meritocrático11 — veja-se, por exemplo, a crítica de Susan Okin e
de Iris Marion Young à teoria rawlsiana da justiça12. E tem de fazê-lo, porque
considerar que todas as pessoas estão submetidas às mesmas condições implica
forçosamente um resultado não igualitário: dadas as mesmas condições, serão
mais bem sucedidas as pessoas com mais talentos naturais e sociais. Neste caso, a
igualdade equitativa de oportunidades vincula a teoria da justiça à aceitação total
da diferença natural. Aspecto, por exemplo, claramente presente no debate de
Rawls com Amarthya Sen.
Em “Justice: Means versus Freedoms”, Sen questiona o primado da igual
capacidade para a atribuição dos bens primários13 — entre os quais se encontram as oportunidades — porque essa capacidade não considera as diferentes
capacidades individuais para transformar aqueles bens, enquanto meios de
realização da personalidade pessoal, em projectos de vida. A capacidade representa a liberdade com uma variável de relação interpessoal entre os meios e a
liberdade actual para os concretizar14.
11
Cf. RAWLS, id., p. 106.
12
Susan Okin objecta que se se tratam igualmente pessoas que estão numa situação diferenciada, então os
princípios de justiça acabarão por manter essas desigualdades. Por exemplo, a reflexão sobre os rendimentos
efectuada em termos puramente individuais minimiza o facto de nas sociedades actuais, estruturadas em
função da discriminação sexual ou de género, as posições e expectativas serem atribuídas em função do sexo
e, por isso, não haver uma atribuição igualitária daqueles rendimentos (OKIN, 1991, p. 186). Também Iris
Young objecta que. dadas as diferentes capacidades, valores e estilos de comportamento entre grupos sociais e
culturais distintos, a exigência de igual tratamento tende a perpetuar a opressão ou as inúmeras desvantagens.
Nesse sentido, propõe um tratamento diferencial, consubstanciado na atribuição desigual dos direitos políticos, de modo a minimizar a opressão ou a desvantagem (Cf. YOUNG, 1990, pp. 257 e 266-71).
13
Os bens primários consistem em direitos, liberdades, oportunidades, rendimento e bem-estar, assim como
as bases sociais do auto-respeito.
14
Cf. SEN, 1990, pp. 113-4.
143
IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA
DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS
Na atribuição dos bens em função da capacidade, é menos importante a
variação interindividual dos fins — valorizada na teoria de Rawls — do que a
variação intra-individual, ou seja, a relação entre os fins que a pessoa tem e o
poder de converter esses bens primários na realização dos fins15. Por exemplo,
uma pessoa doente ou pobre não tem a mesma capacidade para usar os bens
que lhe são atribuídos; por isso, pessoas com diferentes capacidade têm diferente capacidade para usar os bens primários, mesmo que lhes sejam atribuídos
mais recursos. Também uma pessoa deficiente pode ter mais bens primários
(liberdades, rendimento, bem-estar), mas menos capacidade, ou seja, menos
capacidade para usar os recursos colocados à sua disposição. Valorizar a capacidade implica, por conseguinte, uma flexibilização na atribuição dos recursos
ou meios para a liberdade, avaliando, caso a caso, quais os recursos mais apropriados à liberdade actual de escolha e à conversão dos bens em fins. Deve-se,
por isso, integrar na deliberação política as diferentes capacidades de usufruto
dos bens disponíveis. Assim, na resolução do problema da pobreza pelos países
mais ricos deve-se ponderar não apenas o facto de as populações serem pobres
em rendimento e outros bens primários, mas também a circunstância de,
devido à idade, a deficiências várias, a doenças e outras vulnerabilidades, tanto
ser mais difícil converter os bens primários em capacidades, como ter uma vida
saudável ou participar na vida comunitária16. A equidade consiste, assim, na
distribuição dos bens sociais em função do conhecimento da liberdade actual
de transformação dos recursos em fins17.
Na resposta às objecções de Sen Rawls reitera, em Political Liberalism, o seu
princípio da posse, requerido num grau mínimo, das capacidades morais,
intelectuais e físicas as quais, ao permitirem às pessoas ser membros plenamente cooperantes das sociedades, justificam a atribuição igualitária dos bens
primários18. Não deixa, todavia de concordar com “(…) a importância capital
das capacidades básicas e a consequente necessidade de definir o uso dos bens
primários por referência a assunções respeitantes a essas capacidades”19 e com a
15
Cf. SEN, id., pp. 119-20.
16
Cf. SEN, id., p. 116.
17
Cf. SEN, id., p. 112.
18
Cf. RAWLS, 1993, p. 183.
19
Cf. RAWLS, id., ibid.
144
REGINA QUEIROZ
existência de variações em relação ao uso dos bens primários. Identifica, neste
contexto, quatro tipos de variações:
1. nas capacidades e proficiências morais e intelectuais;
2. nas capacidades e proficiências físicas;
3. nas concepções do bem apresentadas pelos cidadãos;
4. nos gostos e nas preferências 20
Dessas variações Rawls conclui que, exceptuando o caso das variações nas
capacidades e proficiências físicas, os bens primários são adequados à totalidade dos casos e que a teoria da justiça também tem recursos para lidar com
aquelas diferenças. Assim, se as variações nas capacidades e proficiências morais
e intelectuais são conformadas pelas práticas sociais de habilitação para posições
pela livre concorrência num quadro de igualdade equitativa de oportunidades,
e pelo princípio das desigualdades equitativas, as variações nas capacidades
físicas são enfrentadas no fórum legislativo de acordo com o conhecimento
da preponderância, dos tipos e dos custos dos tratamentos, avaliados e equilibrados relativamente ao total da despesa pública, sob pena de se verificarem as
consequências referidas por Arrow e Harsanyi21.
As variações nos gostos são da responsabilidade das próprias pessoas22. Neste
último caso, o facto de as pessoas não serem portadoras passivas de desejos, mas
serem também responsáveis pelos seus fins supõe a capacidade de ajustar, no
decurso das suas vidas, os seus gostos e aversões, sejam eles quais forem, ao
rendimento, riqueza e posição na vida que podem razoavelmente obter. É,
20
Cf. RAWLS, id., p. 184.
21
Kenneth Arrow observa que a regra maximin — regra válida para contextos macroscópicos e que enuncia
dever­mos ordenar as alter­nativas em função das piores de entre as respectivas conse­quências pos­síveis, adoptando a al­terna­tiva cuja pior conse­quência seja superior a cada uma das pio­res conse­quências das outras
— pode conduzir ao empobrecimento generalizado. Por exemplo, a regra pode implicar a decisão de se
propiciar tratamentos médicos onerosos a algumas pessoas em estado terminal e de se reduzir o resto da
população à pobreza. Cf. ARROW, 1973, p. 251. Harsanyi também se interroga se um governo que tiver
de atribuir recursos médicos escassos o deverá fazer a doentes que possam beneficiar desses medicamentos
ou a doentes terminais, sem qualquer possibilidade de cura? Ou então, se o governo que tiver de atribuir
benefícios educacionais o deverá fazer a estudantes talentosos, que poderiam beneficiar mais dessa ajuda, ou
a alguns alunos atrasados mentais, de onde derivariam benefícios menores da educação adicional. De acordo
com a regra maximin, Harsanyi supõe que o governo escolherá atribui-los a doentes terminais e aos atrasados
mentais, Cf. HARSANYY, 1976, PP. 59-60. Por isso, ainda que Harsanyi reconheça a validade prática dessa
regra, considera inaceitável a sua aplicação como princípio moral de atribuição dos benefícios sociais. Cf.
HARSANYI, id., p. 61.
22
Cf. RAWLS, 1971, pp. 184-7.
145
IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA
DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS
injusto, por isso, “(…) que certas pessoas devam, no presente, auferir menores
rendimentos ou deter menor riqueza simplesmente para poupar às outras as
consequências da sua falta de visão ou de disciplina”23 . Quanto às concepções
do bem, a justiça como equidade admite todas as variações possíveis desde que
os projectos de vida não violem os princípios básicos da cooperação social.
Rawls mantém o princípio da igual capacidade moral para agir de acordo
com o sentido de justiça e possuir uma concepção particular do bem, assim
como o princípio da igualdade equitativa de oportunidades, como critérios
de atribuição dos direitos básicos. Critérios em função dos quais a diferente
capacidade para transformar os bens em fins realizáveis, na acepção de Sen, ou
para transformar as capacidades naturais em posições sociais, como defende
Barry em Justice as Impartiality24, ou Gauthier em Morals by Agreement25, não é passível
de ser objecto de atribuição de diferentes direitos pessoais. Assim, apesar
de a proposta de Sen sublinhar a necessidade de maior protecção às pessoas
individuais que estão em situação social, política e económica desvantajosa26,
Rawls rejeita que a determinação do conteúdo dos princípios possa expressar
a vantagem das pessoas com menos capacidades, porque as necessidades, da
mesma maneira que as aspirações e os desejos circunstanciais, não desempenham qualquer papel em problemas de justiça27. Necessidades e capacidades
estão dependentes das circunstâncias históricas. Se os menos dotados pela
natureza e os mais carenciados não devem ser discriminados na atribuição das
liberdades, direitos e oportunidades, os mais bem posicionados socialmente e
os mais talentosos também não devem sê-lo: nem uns nem outros escolheram
a posição social e natural em que nasceram. Apenas as necessidades puramente
racionais, cujo conteúdo são os bens primários, têm valor na sua teoria da
justiça.
Por isso, uma coisa é Rawls afirmar que a atribuição das oportunidades não
pode estar fundada nas características sociais e naturais, outra completamente
23
Cf. RAWLS, id., p. 186.
24
Cf. BARRY, 1995, p. 72.
25
Cf. GAUTHIER, 1986, p. 13.
26
Tal como, por exemplo, Kymlicka em relação aos direitos culturais das minorias, Susan Okin em relação
às mulheres e Young aos grupos sociais mais desfavorecidos.
27
Cf. RAWLS, 1982, pp. 373 e 374.
146
REGINA QUEIROZ
diferente é supor que a prática social regulada por esse princípio deva suprimir
as diferentes capacidades ou talentos. Na teoria rawlsiana, estes devem ser
protegidos não apenas por razões de salvaguarda da integridade pessoal, mas
também por razões de fraternidade social, expressas no princípio das desigualdades equitativas — é o resultado diferenciado da atribuição da igualdade
equitativa de oportunidades que explica a emergência do princípio das desigualdades equitativas.
Assim, de acordo com este princípio, é possível que, graças à diferença
natural de talentos, se melhore a posição dos mais desfavorecidos. Apesar da
arbitrariedade da distribuição natural e de as oportunidades não deverem ser
atribuídas em função do mérito, as pessoas natural e socialmente favorecidas
podem beneficiar da sua diferença, através de uma atribuição de direitos diferenciados. Esta atribuição permite que todos fiquem a ganhar28.
Note-se, todavia, que a hipótese de uma distribuição equitativa não igualitária dos bens advém de diferentes posições sociais resultarem das igualdades
equitativas. Esta situação é, todavia, omitida na crítica de Nozick ao princípio
da igualdade equitativa de oportunidades. Omissão não despicienda, pois o
princípio da igualdade equitativa de oportunidades é um princípio de diferenciação social. Tal omissão supõe o não reconhecimento29 de que o princípio
da diferença possa ser um princípio de legitimação da distinta posição social,
independentemente da melhoria da posição social dos mais desfavorecidos:
ainda que não houvesse essa restrição, as diferenças sociais estariam legitimadas
pelo princípio da igualdades equitativa de oportunidades.
Com efeito, para o autor de Anarchy, State and Utopie, a igualdade de oportunidades é um factor de empobrecimento, quer essa igualdade seja obtida pela
deterioração das condições de existência dos melhores posicionados, quer, pelo
contrário, seja obtida pela melhoria da dos mais desfavorecidos30. Assim, ainda
que Nozick considere que se as pessoas em pior situação fossem melhor dotadas
do que realmente o são estariam em melhor posição — Nozick estabelece uma
28
Cf. RAWLS, 1971 , pp. 101-2.
29
Esse não reconhecimento está claramente expresso no facto de o princípio da igualdade equitativa de
oportunidades ser tratado no capítulo sobre “Equality, Envy, Exploitation, Etc.” (Cf. NOZICK, 1974, pp.
235-8), enquanto que o princípio das desigualdades equitativas está integrado na secção sobre a teoria de
Rawls (Cf. NOZICK, id., pp. 183-232).
30
Cf. NOZICK, id., p. 235.
147
IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA
DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS
correlação entre as piores posições sociais e os diferentes talentos — rejeita a
hipótese da igualdade de oportunidades porque esta pressupõe a aplicação à
vida real do modelo da corrida para a conquista de um prémio. Neste, uns
estão colocados mais perto da linha de partida do que outros, ou transportam
pesos mais pesados.
No entanto, tal modelo não tem qualquer valor porque na vida real
porque:
1. ninguém compete por um prémio estabelecido por alguém, nem há uma
corrida unificada, com um juiz para avaliar a rapidez. Há apenas pessoas diferentes, dando separadamente a outras pessoas coisas diferentes. Os que dão
não se preocupam com o mérito, mas apenas com o que a pessoa obtém;
2. a arbitrariedade dos talentos naturais para a atribuição de propriedades
(holdings) é irrelevante31.
Assim, da mesma maneira que não há uma corrida unificada, nem um
juiz para avaliar a rapidez, também não há nenhum processo centralizado que
julgue o uso que as pessoas fazem das suas oportunidades32, nem quem confira
essas oportunidades: ninguém tem direito ao uso de coisas e actividades sobre
os quais outras pessoas têm direitos e títulos33. Nozick reduz, assim, o princípio
da igualdade de oportunidades a uma igualização dos resultados e de pontos de
partida. Tal identificação é, todavia, incompatível com a concepção rawlsiana
daquele princípio que não inclui nem uma nem outra.
Interpretar o princípio da igualdade equitativa de oportunidades como
um princípio de igualização dos resultados e do ponto de partida, entendê-lo
como um princípio igualização e não de diferenciação, dissociando-o, além
disso, do princípio da desigualdades, não permite inteligir que estas possam ser
resultado de uma atribuição de iguais direitos a pessoas com diferentes capacidades e talentos, e que a atribuição desigual fundada na exigência de melhorar
a posição dos mais desfavorecidos constitui um momento de dupla legitimação
daquelas desigualdades.
31
Cf. NOZICK, id., p. 238.
32
Cf. NOZICK, id., pp. 235-6.
33
Cf. NOZICK, id., p. 238.
148
REGINA QUEIROZ
Nozick não tem, pois, razão quando entende a igualdade de oportunidades e as desigualdades equitativas como princípios que anulam a diferença
de posições sociais. Essa interpretação poderá estar fundada no facto de Rawls
tanto considerar que o princípio da igual liberdade corresponde às exigências de liberdade, que o da igualdade equitativa de oportunidades juntamente
com o princípio da igual liberdade equivalem às exigências da igualdade e o
das desigualdades equitativas ao da fraternidade, como, por vezes, identificar
o princípio da diferença ao das desigualdades equitativas, dissociando-o do
princípio da igualdade de oportunidades34. No entanto, nas inúmeras formulações do princípio da diferença, Rawls inclui não só o princípio da igualdade
equitativa de oportunidades, como o princípio da diferença35.
A interpretação de Nozick não advém apenas das ambiguidades na formulação do princípio da igualdade equitativa de oportunidades, mas do facto de
reduzir o princípio da diferença ao das desigualdades equitativas e presumir
que este princípio exige a anulação da diferença natural e social, enquanto essa
diferença está associada à correlação entre os talentos naturais e direitos individuais36. Assim, quando no capítulo sobre as bases da igualdade Rawls refere
a aplicação do princípio das desigualdades equitativas aos talentos naturais — é
justificada uma atribuição desigual às pessoas com talentos naturais desde que
essa atribuição permita melhorar a posição dos mais desfavorecidos — Nozick
não aceita o argumento intuitivo rawlsiano de que não merecemos os nossos
talentos naturais. E não o aceita porque o interpreta como um princípio de
interdição da atribuição de diferentes propriedades (holdings) em função das
diferenças naturais: se a atribuição dos direitos fundamentais a pessoas separadas não pode estar fundada na arbitrariedade dos talentos naturais, então
aquela distribuição dos bens impede que as pessoas tenham direito a propriedades diferentes. Na medida em que aquele princípio intuitivo é um princípio
fundamental de atribuição dos bens primários, a inquietação de Nozick
consiste, assim, no facto de a implantação dos princípios de justiça ser incompatível com a aceitação da diferença de propriedades individuais e com os
correlatos diferentes direitos à distribuição das propriedades, bens ou ganhos,
34
Cf. RAWLS, 1971, p. 106.
35
Cf. RAWLS, id., pp. 60-1 e 302.
36
Correlação não despicienda porque as diferenças de dotes naturais, sociais e económicos têm relevância nas questões distributivas. No entanto, para Rawls, as piores posições sociais não estão associadas à diferença de talentos.
149
IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA
DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS
cuja consequência última seria a colectivização dos talentos.
Esta implica a violação do direito de as pessoas disporem de si próprias
como lhes aprouver. O resultado distributivo do uso das propriedades individuais não beneficiaria apenas o próprio mas também as outras pessoas, e esse
benefício não seria produto de uma deliberação pessoal mas sim de uma estipulação social. Com essa estipulação pessoal, a pessoa ficaria reduzida a um eu
puramente geral sem qualquer determinação particular, ou seja, sem as suas
propriedades. A justiça como equidade violaria o direito individual à posse
de si próprio e o direito ao usufruto da transformação das suas propriedades
em direitos, implicando uma concepção sacrificial da vida social37. Em ambos
os casos, a colectivização dos talentos seria incompatível com o pluralismo
antropológico38.
Contra tal apropriação colectiva dos direitos individuais argumenta que,
se é um facto que não merecemos aqueles talentos, as nossas disposições naturais não deixam de ser nossa propriedade e, por isso, a diferente atribuição
de propriedade em função da arbitrariedade dos talentos não deve impedir
diferenças na distribuição da propriedade. Ou, por outras palavras, qualquer
princípio de justiça que esteja fundado na suspensão daquela diferença em
função do argumento do seu não merecimento não tem qualquer legitimidade, porque esses talentos são resultado de uma atribuição natural, ou seja,
são propriedade do sujeito. Razão pela qual afirma que não é necessário que os
fundamentos subjacentes ao merecimento sejam em si merecidos, retroagindo
ininterruptamente39.
Quando refere que, embora as características individuais possam ser socialmente actualizadas, essa actualização não justifica a colectivização dos talentos,
nem oferece qualquer fundamento para os tratar como um capital comum,
Gauthier defende uma posição similar à de Nozick40. Por isso, apesar de reconhecer a arbitrariedade dos talentos sociais, Gauthier admite que os talentos
37
Cf. NOZICK, 1974, pp. 213-31.
38
Também Arrow questiona o princípio da colectivização dos talentos. Defende que a utilização social dos talentos
implica tratar as pessoas como meios e não como fins, ou seja, uma concepção sacrificial da justiça social (Cf. ARROW,
1973, p. 257). Sobre as críticas de Nozick à colectivização dos talentos exigidas pelo princípio de diferença, ver ainda
SANDEL, 1982, pp. 73-103, PARIJS, 1988, pp. 66-77 e KYMLICKA, 1990.
39
Cf. NOZICK, 1974, p. 225.
40
Cf. GAUTHIER, 1986, p. 253.
150
REGINA QUEIROZ
naturais determinem e contribuam para o produto individual obtido por cada
um na sociedade41, advogando, assim, que a única maneira de tomar a sério a
pluralidade de pessoas consiste em maximizar a utilidade individual42.
No entanto, se a atribuição da igualdade de oportunidades em função
daquele princípio não viola a integridade das pessoas, também a justificação da
atribuição diferenciada dos direitos em função daquela diferença não transforma a pessoa num instrumento social. O princípio da diferença apenas
indica que, apesar da arbitrariedade da diferença natural e social, as diferenças
naturais e sociais são politicamente reconhecidas se, e somente se, permitirem melhorar a posição dos mais desfavorecidos. Neste caso, as instituições
políticas devem reconhecer a legitimidade da diferença de talentos. Tal disposição não implica, porém, a alienação desses talentos, quer porque justifica o
apoio público para o seu desenvolvimento, quer porque também reconhece
o domínio não político do exercício dos seus direitos. Melhor dizendo, se
ninguém pode reivindicar a atribuição diferenciada de direitos políticos com
base na sua excelência moral e social, sem que essa reivindicação implique a
melhoria dos mais desfavorecidos, também ninguém é obrigado a aceitar que
essa diferença tenha um qualquer valor político: o valor político dos talentos
está fundado no consentimento. E, no caso do não consentimento, a não aceitação não acarreta a renúncia às suas propriedades naturais e aos bens que elas
lhe podem propiciar. Uma coisa é essa diferença ser, para efeitos de atribuição
de direitos políticos, justificada se, e somente se, permitir melhorar a posição
das pessoas em pior posição social e económica, outra completamente diferente é coagir as pessoas a fazê-lo.
Assim, se é um facto que através do princípio da igualdade de oportunidades a teoria da justiça tem como desiderato oferecer um ponto de partida
o mais equitativo possível para a prática no mercado económico, de modo a
que a relação entre os talentos naturais e a distribuição não seja afectada pela
diferença social no desenvolvimento daqueles, tal não significa, repetimos, que
essa igualdade de oportunidades anule a diversidade de talentos, assim como a
sua qualidade. Tal consequência seria incompatível com a sua teoria da justiça,
a qual visa salvaguardar o princípio da pluralidade de pessoas. Não atribuir
41
Cf. GAUTHIER, id., p. 220.
42
Cf. GAUTHIER, id., p. 254.
151
IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA
DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS
direitos em função da diferença natural não culmina na igualização e unificação natural e social dos seres humanos.
Para além disso, ao considerar a possibilidade de uma atribuição diferenciada dos talentos individuais, Rawls não aceita que esse incremento possa estar
associado a uma concepção sacrificial das pessoas. O princípio das desigualdades equitativas aplicado aos diferentes talentos implica o reconhecimento
do direito a uma diferença política, económica e social dos mais talentosos.
Tal diferença não está, todavia, fundada na arbitrariedade natural e social,
mas em princípios éticos e políticos de justiça reguladores das instituições da
estrutura básica.
152
Bibliografia
ARROW, K. (1973): “Some Ordinalist-Utilitarian Notes on Rawls’s Theory of Justice”,
in The Journal of Philosphy, 77, nº9, pp. 245-63.
BARRY, B. (1995): Justice as Impartiality, Clarendon Press, Oxford.
GAUTHIER, D. (1986): Morals by Agreement, Clarendon Press, Oxford.
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Critique of John Rawls Theory”, in Essays on Ethics, Social Behavior, and Scientific Explanation, D. Reidel
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KYMLICKA, W. (1990): Contemporary Political Philosophy. An Introduction, Clarendon Press,
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OKIN, S. M. (1994): “John Rawls: Justice as Fairness — For Whom?”, in Feminist
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pp. 181-98.
PARIJS, P. (1988): “Liberté Formelle et Liberté Réelle”, in Revue Philosophique de Louvain, 86,
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Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts.
SANDEL, M. (1982): Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge University Press,
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nº2, pp. 111-21.
YOUNG, I. M. (1990): Justice and the Politics of Difference, Princeton University Press,
Princeton.
153
Ética e Cultura, Modelos Económicos
e Intervenções Políticas
José Lacerda da Fonseca
Introdução – Ética, fundamentação, condicionamento, liberdade,
tradições e modelo social.
A partir do momento que se crê que a promoção da ética não está assegurada por nenhum mecanismo social espontâneo, passa-se a esperar que esta
promoção constitua preocupação da gestão política das sociedades. A luta pelos
direitos humanos constitui uma intervenção política de um vector ético, essencial mas insuficiente, face ao largo campo da ética. Esta constitui o regulador
social que vem de dentro de cada indivíduo, sem o qual não existe a possibilidade de qualquer modelo social sustentável, já que é impossível que exista
um controlo, social, judicial e jurídico, que seja exaustivo sobre os actos dos
cidadãos. Como é hoje muito claro, uma degradação da ética pode suscitar
degradações, progressivas mas capitais, não só na segurança e na vida social
mas, também, na vida económica e financeira.
Perante sistemas tradicionais de promoção de éticas, religiosos ou ideológicos, que se fecharam em mecanismos de condicionamento cultural do
indivíduo, parece de esperar que, na actualidade, a promoção das éticas passe
por maiores exigências de liberdade e abertura racionalista. Só assim, em
verdadeira liberdade, o indivíduo poderá vir a escolher o seu trajecto ético,
nomeadamente e de forma aparentemente paradoxal, vir a escolher um trajecto
de autocondicionamento cultural e de desenvolvimento de competências
cognitivas, necessárias a uma vida ética. De facto, uma opção por uma ética sem
deliberação racional será um atentado à liberdade de pensamento mas, no lado
inverso, ética sem trajectos existenciais de autocondicionamento, sublimação
e desenvolvimento de competências, existenciais e de confiança, pode não ser
mais que uma frágil quimera intelectual, incapaz de se afirmar nas dificuldades
que a existência e as tensões sociais colocam. Passou quase desapercebida a
reflexão sobre condicionamento cultural, já de 1945, de Skinner, o pioneiro
155
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
das técnicas de aprendizagem através do condicionamento psicológico (com os
conhecidos conceitos de reforço positivo e negativo). Apesar dos seus créditos
científicos, a reflexão dos seus livros1 não se poderia afirmar numa sociedade
traumatizada pelas máquinas de propaganda dos regimes ditatoriais.
Talvez, hoje, já possamos reflectir, mais abertamente, sobre novos equilíbrios entre liberdade e condicionamento cultural, olhando para os processos
usados pelas diversas tradições culturais e compaginando-as com o princípio
da liberdade na autodeterminação individual. O edifício racionalista parece
não ser, por si só, suficiente para mobilizar para a ética, concitando a reflectir
sobre os processos de afirmação ética usados nas diversas tradições, de longa
história. As reflexões pós-modernas evidenciaram a impossibilidade de fundamentação absoluta de fundamentos das teorias sociais e das filosofias morais e
éticas. Bauman, na sua síntese sobre a ética pós-moderna2, di-lo na mais clara
das formas, afirmando que “o fenómeno moral é por inerência um fenómeno
não racional”. Já o mesmo tinha sido defendido por vários outros filósofos
pós-modernos3. As éticas surgem, portanto, enquanto opções por estilos de
vida que não se arrogam a garantir o bem-estar de quem as perfilha, nem
conseguem afirmar a sua superioridade social sobre filosofias concorrentes.
Sem o escudo absolutista da razão, a efectiva adesão a uma ética parece precisar
de ser muito ajudada por diversificados recursos da cultura, mediante o desenvolvimento de competências individuais específicas, autocondicionamento,
sublimação e pela inserção em redes sociais de partilha de valores.
Uma utilização plena, embora crítica, dos recursos das tradições religiosas,
ideológicas e, em geral, das tradições culturais, para motivar a adesão a valores
éticos, poderá exigir a construção de pontes, epistemológicas, entre as tradições e o racionalismo (inspirado pelas metodologias científicas), bem como de
pontes entre os diversos tipos de tradições. Pretende-se aqui analisar três níveis
destas intermediações epistemológicas. Primeiro, a relação entre racionalidade
moderna e as tradições. Segundo, a relação entre as tradições religiosas e as
ideologias políticas. Terceiro, a relação entre as tradições ideológicas do liberalismo e do socialismo e a sua consubstanciação em modelos sociais, políticos
e económicos. De facto, uma política de promoção da ética estende-se, necessariamente, para o desenvolvimento de um projecto social, orientado para
uma nova modelação das organizações políticas, económicas e sociais, naquilo
que será a concretização política da ética e, dialécticamente, fonte do seu,
156
JOSÉ LACERDA DA FONSECA
indispensável, fortalecimento. Pelas referidas dificuldades de fundamentação,
a mobilização para valores éticos exige, para além do acesso a vastos recursos
culturais, que os valores éticos provem a sua viabilidade, na prática dos modelos
económicos e políticos.
Na sequência destas análises, serão expostos alguns vectores do que poderá ser
considerada uma política actual de promoção da ética que, aliás, não se resume
a educação cívica e moral, informação ética, formação e regulação dos media,
constituindo um campo, vastíssimo, que não deve escapar às agendas políticas.
1. Uma mediação entre racionalidade e ética – o problema da fundamentação não absoluta da ética e a abordagem segundo uma perspectiva
consequencialista subjectiva.
A necessidade de estabelecer uma primeira ponte epistemológica, entre
razão e tradição, resulta da convicção sobre a fraqueza mobilizadora da razão,
obrigando a aceitar um grave impossibilidade. Trata-se da impossibilidade de
convencer alguém, de forma absoluta e racional, de que a melhor opção de
vida é uma opção ética, bem como da maior impossibilidade de argumentar,
em absoluto, a favor de um modelo ético específico. Uma argumentação racionalista pode, até, ser insuficiente para mobilizar para uma ética minimalista,
asseguradora dos mínimos de cooperação social, parecendo muito menos
capaz de mobilizar para patamares elevados de altruísmo. Face a esta impossibilidade, restará tentar mostrar a relação entre certos projectos (existenciais
e sociais) e certos valores éticos, na expectativa que os indivíduos possam ser
seduzidos por projectos de carácter humanista, bem como pelas atitudes éticas
que estes exigem. O método será mostrar que pode ser interessante, para cada
indivíduo, viver de uma maneira que é passível de ser vivida por todos, sem
exclusões agressivas.
Olhando para a história da ética, verifica-se que reflexões sobre os fundamentos da ética e dos modelos sociais decorrentes se tentaram sustentar,
frequentemente, num objectivo social, ideal e último, a obter, progressivamente, com a vivência das regras éticas. Por exemplo, Aristóteles definiu como
objectivo da ética a realização de uma certa ideia do que consistiria a felicidade do indivíduo (a vida virtuosa que seria a única vida feliz). Hobbes e Hume
tomaram como objectivo da ética o assegurar limites para a violência, já que
157
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
esta seria tendência natural a controlar a todo o custo. A maximização da soma
do bem-estar, no conjunto dos indivíduos, surge também enquanto objectivo
último, como em Locke e Bentam, constituindo o que geralmente se apelida de
utilitarismo. Ao contrário destes esquemas “consequencialistas” (que tentam
validar as regras éticas pelas suas consequências positivas), outras éticas optaram
por se fundamentar através de regras de condução do raciocínio perfeito e puro
que permitiria concluir pelas verdadeiras regras éticas. Os casos mais famosos
deste tipo de fundamentação serão Kant e Rawls (usando, também, o chamado
construtivismo kantiano) ou, ainda, pela afirmação intuitiva de valores universais básicos de onde se deduziriam todos os outros. Todos os métodos têm as
suas limitações e nenhum parece ter provado a sua superioridade4, o que de
alguma forma autoriza a usar um método fundamentalmente consequencialista que será perfilhado no presente texto.
O mais importante debate dos últimos tempos do século XX, sobre ética e
modelos socioeconómicos, foi efectuado em torno da obra de Rawls5. Embora
não adoptando um método consequencialista, a atitude de Rawls reflecte já
uma certa descrença na fundamentação absoluta de valores e modelos sociais,
ao tentar restringir o debate à procura de alguns consensos, minimalistas,
sobre características da sociedade justa.
Pelo menos no mundo académico, esse consenso não foi possível, assim
como não foi possível o consenso em torno de teorias, subsequentes, de Nozick,
Sandel, Walzer, Raz, Dworkin ou MacIntyre, entre outros, fortemente influenciados pelos termos colocados por Rawls (com excepção de MacIntyre). Estes
autores protagonizaram, durante a parte final do século passado, um debate
que tem sido chamado de debate entre liberais e comunitários6. Afirmando-se
o valor prioritário da liberdade, este valor acabou por ser equilibrado, já no
próprio Rawls e, mais ainda na sequência dos debates, pelos valores da solidariedade, da responsabilidade social e participação comunitária, naquilo a que
Michael Walzer chamou da “correcção comunitária do liberalismo”. Contudo,
estas importantes teorizações situaram-se no nível, muito abstracto, da filosofia
moral, ficando longe de reflexões multidisciplinares sobre as dinâmicas, culturais e económicas, nas quais seria possível definir modelos políticos, concretos,
de equilíbrio entre os valores centrais da liberdade e da coesão, igualdade e
solidariedade. De facto, muito longe se ficou do nível concreto dos históricos debates entre socialismo e liberalismo económico. Tal pode atribuir-se,
158
JOSÉ LACERDA DA FONSECA
possivelmente, à dificuldade em dar resposta a todas as críticas muito abstractas,
nomeadamente sobre o construtivismo kantiano de Rawls7, bem como devido
à dificuldade em abordar temas, mais concretos e vastamente multidisciplinares, como os regimes de incentivo remuneratório, os limites do mercado, a
evolução do Estado e da governança dos grupos, o condicionamento cultural e
a criação mediática de expectativas e estilos de vida.
Feita esta, brevíssima, digressão, pós-moderna, filosófica e rawlsiana,
pelos processos de fundamentação racionalista de valores éticos, é altura de
definir qual o método que aqui será usado. Será usado um método consequencialista, no sentido em que a mobilização para os valores será validada
tentando mostrar que o seu exercício pode ter como consequência um estilo
de vida interessante, para qualquer indivíduo e passível de ser vivido por
todos os indivíduos em conjunto, sem exclusão de alguém devido a qualquer
sistema competitivo. Esta inclusão, de todos os indivíduos, expressa o humanismo enquanto fim que valida o projecto ético. O consequencialismo aqui
usado terá algumas outras particularidades:
1. O referido estilo de vida humanista exige não só o exercício de valores
éticos mas também a realização de outras condições sociais, culturais,
políticas e económicas, sem os quais esse exercício não será atraente.
Algumas dessas condições decorrem da aplicação dos valores éticos mas
outras são opções meramente sinérgicas e imperfeitamente fundamentadas. Trata-se de consequencialismo sinérgico, já que é complementado
com opções concretas que não decorrem de nenhum valor abstracto mas
que se considera serem sinérgicas com a vivência prática dos valores éticos.
Por exemplo, uma destas condições que será aqui, de seguida, considerada, é o acesso universal a serviços de saúde. Por oposição ao idealismo
ético individualista (típico de muitas religiões e algumas ideologias) considera-se que a ética só pode ser exercida, amplamente, se forem criadas
certas condições materiais.
2. Este consequencialismo tenta expressar-se ao nível de opções concretas da
vida social, nomeadamente ao nível da vida económica, política e cultural,
não se restringindo à afirmação de um código moral passível de ser vivido
em qualquer sistema social. É, portanto, um consequencialismo político,
no sentido que propõe alterações na gestão e distribuição do poder social,
159
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
nomeadamente nas lógicas de distribuição de rendimentos e do poder político, entendidas como condições indispensáveis à vida ética generalizada.
Por oposição ao idealismo ético individualista, considera-se que a ética só
pode ser exercida, amplamente, se forem criadas certas condições políticas,
económicas e culturais.
3. Empresta do debate liberais/comunitários a centralidade da reflexão
sobre as relações entre liberdade e solidariedade/coesão social. Empresta,
também da mesma fonte, algumas referências argumentativas. De facto, a
tentativa que aqui se fará de valorizar algumas condições, materiais e sociais,
indispensáveis para a vida ética (que aqui serão chamadas condições de acesso
mediano) fica próxima do nível de abstracção e de alguns formalismos dos
princípios da justiça de Rawls, bem como é escassa na argumentação que
faz a favor dessas condições (tal como Rawls). Rawls considerou que os seus
princípios seriam evidentes para alguém que colocasse as suas especificidades
pessoais de lado e pensasse como alguém que desconhecia as suas características e qualidades e, por isso, pensasse na perspectiva próxima do homem
em geral. O mesmo pressuposto será aqui usado para fundamentar as referidas condições de acesso mediano e a pretensão de que serão suficientes
para possibilitar uma vida interessante a qualquer indivíduo. Em suma, o
consequencialismo aqui usado, inclui componente do método construtivista, sendo, realmente, um método misto.
4. Não tenta demonstrar, em absoluto, a sua superioridade, face a outras
teorias nem a sua certeza absoluta mas, apenas, mostrar que certas práticas
e estilos de vida merecem ser tentadas para que, da sua prática, resultem
as verdadeiras conclusões. Tal implica tolerância, precaução, projectospiloto, delimitação de possíveis efeitos colaterais, gradualidade e outras
atitudes que resultam de humildade face ao que se pode saber seguramente
antes de qualquer prática social.
No âmbito do consequencialismo sinérgico, como já referido, é indispensável definir as condições sociais que possibilitarão uma vivência ampla dos
valores éticos. Ao conjunto destas condições chamaremos acesso mediano (aos
bens e ao poder), podendo ser descrito da seguinte maneira:
160
JOSÉ LACERDA DA FONSECA
• Um sistema de garantia das liberdades, isto é, inexistência geral de qualquer tipo de imposição, para além das necessárias para restringir os que
atacam a liberdade dos outros;
• Acesso a um nível médio de recursos materiais, incluindo o acesso a
sistemas de seguros (nomeadamente de saúde) e de poupança. O fim destes
sistemas de seguros será perspectivar a continuidade de acesso médio a
recursos materiais;
• Educação numa cultura de autoconhecimento, desenvolvimento pessoal e
de sublimação dos impulsos, com relevância para a sublimação da sede de
poder e domínio;
• Uma cultura tornando mais inclusivos os padrões de atractividade
sexo-afectiva e, em geral, aumentando as oportunidades de realização
romântica, sem prejuízo de outros valores e do desenvolvimento de trajectos
existenciais amplamente diversificados;
• Uma dinâmica social para reduzir assimetrias de poder (financeiro ou
político), preservando, somente, aquelas assimetrias necessárias para
incentivar os indivíduos a superarem-se e a executarem, o melhor possível,
as mais difíceis tarefas e profissões. A importância da redução de assimetrias
resulta do entendimento que estas são um risco para a liberdade, de quem
tem menos poder, e portanto, pode ser manipulado informativamente,
pressionado a aceitar condições de trabalho (questão que voltará aqui a ser
abordada), agredido sem que o sistema jurídico e judicial seja mais forte
do que o poder agressor, bem como, de diversas outras formas, ser prejudicado pelos que são mais poderosos do que ele. Note-se, ainda, que o
poder assimétrico pode ter como consequência a depressão e degradação
das qualidades dos menos poderosos e, por outro lado, pode propiciar o
desleixo e inércia de quem atingiu já altos níveis de poder.
Em suma, deste capítulo, deve dizer-se que este trajecto argumentativo
consequencialista cifra-se no seguinte sentido. A implementação da condição
de acesso mediano incita o indivíduo à vivência de valores éticos e possibilita
um projecto humanista que é a corporização mais absoluta da ética. Dito
de outra maneira, a consequência da vida ética é o bem-estar para todos os
indivíduos, o que será possível se existirem condições de acesso mediano. As
condições de acesso mediano só podem existir como consequência de certos
161
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
modelos políticos, económicos e culturais. Simultaneamente, muitos desses
modelos são a corporização de valores éticos, como o valor da liberdade e não
podem estar em contradição absoluta com estes.
2. Uma mediação entre ideologia e religião – sobre a relação entre
racionalidade, liberdade, condicionamento e competências culturais.
Religiões e ideologias aparentam pertencer a dois mundos antagónicos,
reclamando-se as últimas da superioridade da racionalidade que reclamam
como substituta do pensamento religioso. A perspectiva aqui ensaiada é
consideravelmente diferente. Embora reconhecendo as especificidades destes
dois mundos, pretende-se realçar as bases humanistas que animam os mais
altruístas intentos de ambos, procurando sinergias e delimitando campos
complementares. Para realizar este fim teórico, será necessário interpretar
a linguagem simbólica da religião, bem como, aliás, a de várias outras tradições culturais, preservando duas vertentes. Primeiro, não obliterando uma
leitura objectivista e empírica do mundo e, assim, evitando ser refém de
irracionalismo e dos decorrentes fanatismos, intolerâncias, manipulações e
obscurantismos. Segundo, não reduzindo as tradições a meras práticas, com
algumas funções úteis mas sem fundamento ontológico8, na falta do qual
perderiam, possivelmente, parte excessiva da sua eficácia.
Na concepção aqui ensaiada, entende-se que as tradições culturais se
desenvolvem em torno da arte (como as pinturas rupestres ou a arte sacra) e
dos costumes (como os rituais iniciáticos à vida adulta ou os cerimoniais de
casamento), em estreita ligações com mitologias e religiões, num conjunto
de actividades simbólicas orientadoras da vida individual e social. Segundo
Geertz9, um pouco como Cupit, a actividade simbólica da cultura não
expressa realidades ontológicas mas sim tentativas de ajudar ao orientar o
indivíduo, num mundo que este nunca conseguirá entender racionalmente.
Sem perfilhar esta falta de referenciação ontológica, proposta por Geertz,
esta sua concepção inspira a visão aqui argumentada. Esta consiste num certo
entendimento polissémico da linguagem das tradições, concebendo-a como
interpretável, simultaneamente, em três dimensões de significado10.
Num primeiro nível de significado, as tradições expressam metodologias
de autocondicionamento. Estas são, frequentemente, consubstanciadas em
162
JOSÉ LACERDA DA FONSECA
trajectos culturais sublimantes, da sede de poder e domínio11, propiciadores
do controlo das pulsões criadoras de tensões entre interesses individuais e
interesses colectivos. A linguagem religiosa será, num primeiro nível da sua
polissemia, uma forma de estabelecer relações, psicológicas, com entidades,
entendidas como metafísicas, com o fim de propiciar mudança psicológica
na relação do indivíduo com as suas pulsões. Por exemplo, os conceitos de
recompensas após a morte, sobre a égide de uma figura superior que administra uma justiça perfeita, bem como todo o discurso associado, glorioso
e idílico, terão o efeito, potencial, em certas circunstâncias, de relativizar a
intensidade das pulsões humanas.
Num segundo nível de significado, a linguagem das tradições e, aliás,
também das ideologias, expressa a possibilidade de existirem dinâmicas ontológicas, teológicas ou historicistas, algo misteriosas e distantes, passíveis de
virem a recompensar o indivíduo que assume opções humanistas. De facto,
as tradições, numa das suas facetas eticamente mais positivas, promovem
opções que devem ser consideradas humanistas porque estão abertas a todos
os indivíduos, independentemente das suas capacidades competitivas de
superiorização e domínio sobre outros.
A principal dificuldade racionalista, para aceitar este nível de significado, das tradições, reside na dificuldade em aceitar que essas expressões
sejam objectivas e literais. Contudo, a ciência moderna, sobretudo a física
teórica, criou um novo conceito de objectividade, sempre aproximativa e em
evolução, abrindo um novo modo de entender as expressões das tradições
como sendo, igualmente expressões da realidade que são imperfeitas, aproximativas e em constante evolução do entendimento que fazemos delas.
Enquanto o primeiro nível de significado tenta erradicar, parcialmente, o
domínio das pulsões sobre o indivíduo, o segundo nível tenta promover novas
orientações genéricas alternativas. Por último, o terceiro nível especifica essas
orientações e ajuda a desenvolver competências que as levem à prática.
De facto, num terceiro nível de significado, as tradições expressam,
nomeadamente através das suas histórias e relatos, uma série de atitudes e
conhecimentos, promovendo competências para a vivência social e para a
gestão das grandes opções da vida individual (como o casamento, a opção
profissional, a inserção em equipas e grupos sociais, etc.).
Através dos seus relatos, ganhando muito peso emocional devido às
163
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
ritualizações e artes, as tradições valorizam a introspecção e a reflexão, embora,
por vezes apenas primária, sobre as leis intrínsecas à vida humana e sobre
as possíveis consequências dos actos, ajudam a definir regras e linguagens
sociais comuns, valorizam a capacidade de assimilar textos e conceptualizações, criam laços, sociais e afectivos, entre os correligionários.
Desta maneira, as tradições culturais constituem uma ampla cultura existencial, indispensável meio para realizar comportamentos que não frustrem
os padrões éticos. Evidentemente que existe cultura existencial fora das tradições, como na arte em geral, na psicologia, na filosofia, na experiência da
vida comunitária e afectiva e em várias outras fontes. Contudo, as tradições
inspiram, ilustram e demonstram o largo potencial da cultura existencial,
para o condicionamento ético, para a sublimação e para a aquisição de várias
outras competências existenciais, sinérgicas com o exercício do humanismo.
Claro que esta leitura, das tradições, terá de ter consciência dos riscos irracionalistas que a imersão no seu simbolismo pode acarretar. Irracionalismo
que pode prejudicar o desenvolvimento de competências e espaços reflexivos,
acentuar o dogmatismo, a manipulação, o obscurantismo, a intolerância e
o fanatismo. O espaço das tradições deverá começar, apenas, para além do
espaço das questões sobre as quais a razão se consegue pronunciar. Prioridade
à razão e infinito espaço para a tradição, é uma concepção que expressa
um equilíbrio muitas vezes difícil de encontrar mas acarretando evidentes
virtudes. Por exemplo, como se pode saber, racionalmente, se um indivíduo
com opções humanistas será recompensado de alguma maneira? Trata-se
de uma opção individual para lá da razão, embora muitas razões possam
ser aduzidas a favor do interesse social do humanismo e muitas reflexões
o indivíduo deva fazer sobre a adequação, a uma opção humanista, da sua
personalidade, tipo de competências e sensibilidade humana. A velha ideia
de Kierkegaard, de um salto para lá da razão, ao qual a ansiedade existencial
obriga, está aqui presente, sem que a reflexão sobre os riscos e potenciais das
tradições deva ser obliterada.
Este e outros esforços interpretativos, sobre o funcionamento das tradições,
almejam erodir preconceitos de xenofobia e promover dinâmicas nas quais as
tradições, religiões, ideologias, arte e ciência possam colaborar, em projectos
concretos e em sinergias conceptuais, para atingir os fins do humanismo e da
realização individual, cada um destes mundos entendendo qual o seu espaço,
164
JOSÉ LACERDA DA FONSECA
as relações que podem estabelecer e as áreas em que podem cooperar.
Tentou-se, assim, traçar uma concepção de cultura que, embora partilhando com a “teoria crítica”, de Adorno, Marcuse, Debord e Habermas,
entre vários outros pensadores “críticos”12, a noção da capacidade condicionadora da cultura e dos seus riscos alienatórios, reserva, também, para
esta, não só uma tarefa de libertação e consciencialização mas, também, uma
tarefa de autocondicionamento do indivíduo, desde que este seja assumido
em consciência dos seus perigos e limitação de campos de actuação.
3. Uma mediação entre ideologias – liberdade, socialismo e liberalismo.
Na procura de novos modelos de fundamentação da ética cabe, obviamente, a reflexão sobre os diferendos éticos entre as diversas ideologias.
Também aqui, a procura de pontos comuns e as proximidades entre as ideologias em competição pode ajudar a mobilizar o cidadão para esse património
comum. Num quadro de fraqueza mobilizadora das ideologias, este trabalho
pode, aliás, também ajudar a desenvolver novas abordagens, mais mobilizadoras para as próprias ideologias.
A primeira questão a abordar aqui, no contexto das relações entre liberalismo e socialismo, refere-se à contradição entre liberdade e qualquer outro
valor no momento, de transição reformista, em que se força a aplicação desse
outro valor. A segunda questão refere-se à aplicação do conceito de liberdade ao momento negocial de definição da distribuição dos resultados de
qualquer tarefa executada em comum pelas partes.
3.1. Ética, liberdade e gradualidade das reformas
Em relação à primeira questão, parece defensável que um certo postulado
de gradualidade, na imposição universal de novos valores, poderá realizar
um equilíbrio entre o valor da liberdade (hoje mais associado à ideia do que
foi o movimento liberal) e os novos valores (aqui será abordado o valor da
solidariedade ou coesão social, mais associado ao movimento socialista). De
facto, uma certa gradualidade nas reformas poderá permitir a adaptação das
expectativas de vida daqueles que sofrem restrições, possibilitando que estes
desenvolvam novas expectativas realizáveis e, em consequência, viabilizem um
projecto social humanista, verdadeiramente inclusivo.
165
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
Uma das condições da gradualidade, aqui em apreço, será assegurar que as
imposições só possam restringir indivíduos que tivessem criado uma expectativa superior à de um “acesso mediano” (no sentido atrás referido). De facto,
pelo que atrás foi dito sobre este acesso, ele seria suficiente para permitir a
realização de projectos de vida tão compensadores como quaisquer outros.
Em complemento, será de garantir o tempo necessário e os meios culturais suficientes para que essa adaptação, à condição de acesso mediano, se
possa realizar com o mínimo de custos pessoais.
Não é possível saber, de antemão e em geral, em quantos anos se pode
adaptar uma expectativa (mais exigente do que a de acesso mediano) que
cresceu durante um certo número de anos. Pensar que um número de anos,
de adaptação, igual ao número de anos em que foi esperado um acesso mais
amplo é, obviamente, apenas, uma referência para posterior investigação
empírica sobre factores de inércia adaptativa.
Essa investigação envolverá também várias questões relativas à minimização dos custos de adaptação do indivíduo. De facto, será que o custo pessoal
desta adaptação poderá ser contrabalançado por outros factores, de forma a
vir a garantir o mesmo nível de bem-estar subjectivo? A percepção de que
um sacrifício, de adaptação, redundará em benefício de todas as gerações
vindouras será relevante como factor de autocompensação para o indivíduo
que se sacrifica? Os efeitos colaterais do sacrifício, a nível da estabilidade,
desenvolvimento produtivo e segurança na sociedade, serão percepcionados
como um benefício pessoal significativo, por parte de quem é submetido à
referida redução de acessos? Será de esperar alguma componente de satisfação
altruísta, subentendo a convicção, por parte do visado, de que contribuiu
para resolver situações de grande dor ou desconforto de outros indivíduos?
Em termos conceptuais e práticos, a aplicação concreta deste tipo de
princípios é dificultada por vários factores. Primeiro, seria de considerar
a dificuldade em avaliar como contrabalançar os custos da renúncia (como
já referido, parcialmente). Segundo, seria de considerar a dificuldade em
avaliar qual, concretamente, a expectativa fundamentada, em cada caso (em
princípio, seria aquela igual à que já foi realizada, com sucesso, por indivíduos com trajectos profissionais semelhantes a quem a nutre num certo
momento). Terceiro, teria de se ter em conta a dificuldade em quantificar o
tempo em que essas expectativas foram, de facto, nutridas. Quarto, teríamos
166
JOSÉ LACERDA DA FONSECA
de conhecer a relação entre o tempo de expectativa(1), nível da expectativa(2),
grau de renúncia material efectiva e de nível de expectativas(3), nível de
compensações(4) e o tempo necessário para adaptação em função desses
quatro factores. Trata-se de dificuldades que, apesar da sua óbvia complexidade, talvez possam vir a ser elucidadas, pelo menos de forma aproximada,
por observação empírica destas situações e, eventualmente, por outros dados,
nomeadamente sobre as dinâmicas psicológicas envolvidas. Uma ética humanista, nos fins e, também, nos meios que utiliza, implica, necessariamente, a
tentativa de elucidação destas questões, bem como intervenções políticas que
as tenham em conta, no debate, na cautela das intervenção e na monitorização dos efeitos dessas intervenções.
3.2. Liberdade negocial
Continuando a procurar pontos intermédios e semelhanças entre liberalismo e socialismo, passa-se à aplicação do conceito de liberdade na questão
da distribuição do rendimento, entre as diversas classes sociais que para ele
contribuem. Esta abordagem será feita através do conceito de liberdade aplicado durante as negociações, entre classes, para definir uma certa distribuição
dos rendimentos. Parece de aceitar que a liberdade nestas negociações só
ficará assegurada, totalmente, quando as classes, em negociação, tenham as
mesmas condições de resistir a suspensões da colaboração, enquanto forma de
pressão negocial. Tal acontecerá quando todas as classes tenham igual acesso
a reservas de bens de subsistência. Por exemplo, a capacidade de manter uma
greve, pelos empregados, terá de ser igual à de manter “preferência pela
liquidez” (usando este termo Keynesiano que chegou a estar muito em voga e
que significa suspender o investimento), pelos empregadores.
Uma outra condição da liberdade negocial consitirá em todas as partes
terem idêntica capacidade de comunicação e concertação, dentro de cada
uma delas. Tratar-se-á da forma de impedir que algumas das franjas, mais
frágeis, das classes menos coesas, corrompam as negociações ao aceitarem
rendimentos inferiores.
Acresce a condição de nenhuma das partes poder ser substituída por
terceira parte que se encontre em situação desesperada e que, portanto, aceite
propostas remuneratórias muito baixas, permitindo à outra classe em negociação que arrecade a maior fatia da produção comum. De facto, se durante
167
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
um debate uma das partes puder ser substituída quando estiver em desacordo
com a outra parte, tal não parece ser condição para um debate livre e racional,
sobretudo se apenas uma das partes puder beneficiar dessa exclusão13.
Por último, interessará garantir o idêntico conhecimento sobre a desutilidade (penosidade, risco, diferimento da recompensa, investimento pessoal,
etc.) envolvida nas tarefas da outra classe ou grupo presente à mesa das negociações, de forma a ambas as partes saberem o que efectivamente bastará como
incentivo para a outra classe aceitar desempenhar as tarefas em causa.
Por exemplo, no cenário histórico da revolução industrial, parece claro
que, nas negociações entre proletariado e investidores industriais, estas
condições estiveram muito longe de se realizar. Em consequência, podemos
dizer que não houve liberdade na definição da distribuição de rendimento,
entre proletariado e investidores.
Antes de se passar, aqui, a reflectir sobre as consequências sociais da
realização de uma, efectiva, liberdade negocial, parece interessante reparar
que este conceito não é menos crítico, da realidade social da distribuição
dos rendimentos, do que os conceitos de exploração e justiça social, parecendo estes últimos mais difíceis de definir e fundamentar num quadro
conceptual actual.
Num contexto de ausência de liberdade negocial, aparecem como justificáveis as intervenções, de terceira parte, nomeadamente através de impostos,
na tentativa de assegurar a liberdade ou de rectificar a redistribuição de
rendimento para que esta atinja a distribuição que resultaria do exercício da
liberdade negocial.
Igualmente, parece ser de aceitar que, em situação de liberdade negocial,
ou seja em livre mercado sem assimetrias de informação e sem assimetrias
na capacidade de suspensão negocial, as remunerações ficariam ao nível de
remuneração que compensasse a desutilidade efectiva da tarefa de cada grupo
ou classe sendo, por isso, esse o nível de incentivo suficiente para a realização
das tarefas profissionais de cada classe.
A evidência da inexistência de actual liberdade negocial indicia que o nível
de coesão social existente é bastante inferior ao providenciável pela efectiva
liberdade negocial. Outra conclusão é que a imperfeição dos mercados (ao
não garantirem plena liberdade e informação) é responsável pelo, alto, nível
de desigualdade social que hoje se verifica.
168
JOSÉ LACERDA DA FONSECA
Um outro corolário, desta reflexão, conclui que classes profissionais que
desenvolvem níveis de desutilidade diferentes e que têm capacidades negociais diferentes deverão ser abrangidas por sistemas de impostos diferentes,
no intuito de corrigir os efeitos da falta de liberdade e imperfeição dos
mercados. Por exemplo, no caso de uma certa classe que desenvolve pouca
desutilidade mas tem elevada capacidade negocial, as taxas de imposto devem
ser maiores do que numa classe que envolve muita desutilidade mas que tem
pouca capacidade negocial. De facto, é óbvio que a classe com capacidade
negocial elevada está a ser beneficiada pela falta de liberdade negocial.
Num outro exemplo, de uma aplicação prática deste tipo de ideias,
note-se que a avaliação que terceiros possam fazer da desutilidade desenvolvida por gestores bancários pode concluir que para incentivar, estes últimos,
ao melhor desempenho, não são necessárias remunerações acima de um
certo valor. Esse valor deveria passar a constituir o seu tecto remuneratório,
num sistema de impostos inspirado pela necessidade de corrigir a falta de
liberdade negocial. Neste caso, estes gestores seriam ordenados em ranking
das suas remunerações, antes de imposto, e só aqueles com maiores remunerações poderiam auferir a tal remuneração igual ao tecto remuneratório.
Os outros receberiam tanto mais próximo desse tecto quanto mais elevada
fosse a sua posição no ranking. Um sistema deste tipo parece poder garantir
o máximo incentivo ao bom desempenho da profissão e, simultaneamente,
limitar as assimetrias remuneratórias na sociedade. Infelizmente, as limitações, práticas, de tal sistema de impostos, de ranking e tectos específicos, são
muitas, como se passa a abordar.
Primeiro, é muito difícil avaliar a desutilidade envolvida numa dada
profissão, até porque teria de se considerar toda a desutilidade para aceder
a essa profissão e não apenas a necessária para a exercer. Como se determinariam, exactamente, as desutilidades envolvidas? Talvez tal pudesse ser
feito por observadores isentos que recolheriam dados sobre o quotidiano dos
profissionais em análise (eventualmente participando nesse quotidiano), bem
como recolheriam dados estatísticos sobre o desgaste profissional, a probabilidade dos riscos envolvidos e outros dados relevantes para uma avaliação da
desutilidade. Claro que seria difícil garantir a isenção destes observadores e a
sua efectiva compreensão das desutilidades envolvidas.
Segundo, como as capacidades dentro de cada profissão podem ser
169
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
muito diferentes, os mais capazes atingiriam o tecto remuneratório mas não
os outros, mesmo que esses outros desenvolvessem a mesma desutilidade
desenvolvida pelos mais capazes. Isto é, estaríamos a remunerar os mais
capazes (que ficariam no topo do ranking) com mais do que o necessário para
compensar a desutilidade. Em alternativa, se baixássemos o tecto remuneratório para não pagar demais aos mais capazes, não estaríamos a recompensar
a desutilidade dos menos capazes, pois estes ficam muito mais abaixo no
ranking, ao ponto de poder não ser compensatório o que receberiam após
imposto. De facto, para o sistema ser perfeito teríamos de conhecer a capacidade intrínseca de cada um e não cobrar impostos apenas em função dos
rankings das remunerações mas, também, dos níveis de capacidade de cada
contribuinte, o que parece absolutamente impossível no actual estado dos
conhecimentos da psicometria.
De qualquer forma, este sistema de impostos, em função da profissão14
e dos desempenhos económicos de cada um, parece com maiores potencialidades que as actuais cobranças de impostos, determinadas pelos níveis
remuneratórios de cada um sem, quase nunca, considerar o tipo de profissão
exercida ou considerando-o de forma muito insuficiente. Quiçá, para certas
classes profissionais, este sistema possa ser aplicado, já hoje e depois de
alguma reflexão e observação, com alguma segurança, na determinação do
referido tecto remuneratório.
3.2.1. Liberdade negocial e o paradigma do mercado gestionário
A aplicação de um paradigma de liberdade negocial terá de considerar
o caso no qual se verificam as maiores desigualdades remuneratórias e,
portanto, onde existem as maiores suspeitas de falta de liberdade negocial.
Trata-se do caso das remunerações do capital.
Contudo, parece ser de colocar a hipótese de que o incentivo para alguém
arriscar a maior parte do seu capital (e portanto arriscar a sua segurança económica) terá, talvez, de se traduzir em taxas de juro muito altas, propiciando,
portanto, elevadas assimetrias remuneratórias. Mesmo no caso de possuidores de grandes montantes de capital que arrisquem apenas uma pequena
parte deste, as taxas de juro, asseguradoras de incentivo para o investimento,
teriam, talvez, de ser altas. De facto, sem essas taxas, poderia não haver incentivo para se investir em actividades mais inovadoras e arriscadas, preferindo-se
170
JOSÉ LACERDA DA FONSECA
investimentos conservadores e prejudicando a inovação na sociedade.
Mesmo colocando a hipótese contrária (os observadores da desutilidade
definirem, correctamente, a desutilidade envolvida e a compensação a esta
não ocasionar grandes assimetrias sociais), os investidores de capital próprio
podiam pressionar contra a definição de um seu regime remuneratório que
lhes fosse menos favorável, deixando de investir (aliás, tal acabaria, também,
por lançar dúvidas sobre a efectiva correcção da definição da desutilidade).
Nenhuma outra classe profissional parece ter tanto poder reactivo, pois mais
nenhuma é tão difícil de ser substituída por um conjunto de outras pessoas
que considerem ser suficientemente incentivador o nível de remunerações
proposto para essa classe e que tenham condições para a exercer (no caso
vertente, pessoas que possam, rapidamente, granjear e disponibilizar capital).
A capacidade de reacção negocial, política, desta classe é, obviamente, muito
grande, devido, também, ao poder de intervenção social, propagandista e
económico que é auferido pela posse de grandes massas de capital.
Seja por não ser possível, neste caso, reduzir as assimetrias (respeitando o
valor da coesão social) ou por não ser possível implementar o valor de uma,
efectiva, liberdade negocial, parece interessante pensar num sistema económico onde estes problemas nem sequer se colocassem.
Uma possibilidade, neste sentido, parece ser a dissociação, integral, entre
capitalistas e gestores, de forma que as decisões de investimento sejam apenas
tomadas por estes últimos (submetidos a sistemas de impostos de ranking
específicos, como atrás referido), bem como pelos gestores dos sistemas
financeiros que apoiam os primeiros. Os detentores de capital passariam,
apenas, a exercer o papel de aforradores, com taxas remuneratórias mais
baixas para os grandes aforradores que, além disso, estariam submetidos a
impostos sobre consumos sumptuários, no caso de existir uma preocupação
máxima com a coesão social15.
De realçar que, num sistema deste tipo (a que talvez se possa chamar
mercado gestionário), capitais públicos e privados, actuando no mercado,
teriam o mesmo tipo de gestão, com a diferença de que a intromissão, do
sistema político, na nomeação de gestores de capital público, pode prejudicar
um sistema de selecção que deverá ser baseado na competição, económica e
no mercado, entre os desempenhos dos gestores.
Em princípio, tanto na gestão de capitais privados como na gestão de
171
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
capitais públicos, os gestores eficientes singrarão e escolherão os gestores que
os apoiam e lhes sucedem, em função das provas dadas, no mercado, por
estes últimos.
Claro que existe um problema adicional quando se parte de um grupo de
gestores que não foi seleccionado pelo mercado, sendo permeável a outras
lógicas (nomeadamente as políticas partidárias) no momento de escolher os
seus apoiantes que lhe sucederão nos mais altos cargos de gestão. Portanto,
no caso de gestores de capitais públicos, para assegurar um correcto ponto de
partida do conjunto dos gestores, parece ser necessário repensar as lógicas da
sua nomeação. Em alternativa a nomeações efectuadas pelo sistema político,
só os gestores, com melhores resultados económicos, poderiam escolher os
seus colaboradores que lhes sucederiam. Igualmente, seriam os gestores com
melhores resultados a escolher os futuros gestores de outras empresas (não
concorrentes com as suas) que, por terem obtido os piores resultados, não
conferiram crédito, aos seus actuais gestores, para escolherem os futuros
gestores dessas empresas.
3.2.2 Liberdade negocial e o paradigma do mercado agregado
A eventual necessidade de um mercado gestionário apresentou-se como
uma consequência de preocupações com a liberdade enquanto valor ético.
Ora, é claro que a preocupação ética será mais mobilizadora dos cidadãos
se não constituir um obstáculo à eficiência económica. Não existem razões
para pensar que o mercado gestionário levante obstáculos deste tipo, sendo,
aliás, de esperar que crie condições estruturais para o aparecimento de novos
factores de eficiência do mercado. De facto, um mercado gestionário facilitará
o aparecimento de nova formas de gestão dos sectores económicos. Note-se
que um dos aspectos menos eficientes do mercado reside no dilema entre
fragmentação e concentração empresarial. A fragmentação impede economias
de escala (aspecto fundamental na economia do conhecimento e da inovação,
embora possa ser realizado por cooperação entre empresas relativamente
pequenas16). No lado inverso do dilema, a concentração oligopolista distorce
a efectiva concorrência. Será que um mercado assente no paradigma gestionário, aqui referido, facilitará a ocorrência de gestores responsáveis por todo
um sector económico, gerindo dotações orçamentais para que se realizem todas
as possibilidades de escala e cooperação inter-empresarial, sem promover o
172
JOSÉ LACERDA DA FONSECA
conluio oligopolista? Como é que o gestor sectorial se poderá relacionar com
os gestores das empresas desse sector? Serão estas a criar as novas instituições
de gestão sectorial, a partir das associações empresariais, ou será que o impulso
terá de vir de entidades externas, como o Estado? Neste caso, como poderá
o Estado controlar regimes de incentivo remuneratório aos gestores (das
empresas de cada sector) de forma a evitar a concertação oligopolista? Será
que o pode fazer remunerando mais os gestores das empresas que obtiveram
maiores acréscimos de quotas de mercado, na soma de um largo período?
Será possível legislar regimes remuneratórios que incentivem para uma
gestão a longo prazo das organizações, por exemplo, transferido grande
parte das suas remunerações para depois do décimo até ao vigésimo ano de
actividade do gestor, de forma a incentivá-lo a desenvolver a sua organização
no longo prazo? As questões que mais limitam o desenvolvimento económico (falta de escala/cooperação e fraco incentivo para o desenvolvimento
prospectivo de longo prazo) poderão ser assim optimizadas?
Independentemente das respostas a estas questões é evidente que as imperfeições do mercado clamam por intervenções exteriores a este. O sistema
político e o sistema empresarial de mercado terão de exercer um controlo
mútuo, numa lógica de poliarquia, como a defendida por Dahl, pelo que o
sistema económico está realmente dependente da qualidade da governação e
das perspectivas de evolução qualitativa do sistema político. Também devido a
este fenómeno, são muito relevantes, para a implementação de valores éticos,
todas as linhas de evolução do sistema político, como a democracia participativa,
democracia cognitiva, descentralização e participação, entre vários outros.
3.3. A ética do comportamento individual, face à limitação da liberdade negocial.
Não obstante a possibilidade de serem implementados sistemas remuneratórios aproximados a uma situação de liberdade negocial, em absoluto será
impossível que todas as remunerações respeitem os níveis remuneratórios
que apenas compensem a desutilidade envolvida.
Esta impossibilidade de absoluta liberdade negocial torna necessário um
espaço de ética de comportamento individual, referente às classes mais beneficiadas e às mais desfavorecidas, minimizando os efeitos negativos da falta e
liberdade negocial e de efectiva remuneração ao nível do incentivo.
173
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
Se os mais favorecidos, pela inexistência de liberdade negocial, podem
sentir-se, eticamente, compelidos, pela importância que possam dar ao valor da
liberdade e a outros valores, a redistribuírem o seu rendimento, parcialmente,
por sua própria iniciativa (são bem conhecidas as actividades filantrópicas de
Warren Buffet e Bill Gates, entre vários outros), já os menos favorecidos terão
outras tarefas éticas. Estes últimos, devido a uma ética de altruísmo ou a um
instinto de sobrevivência a longo prazo, podem ser compelidos para se reestruturam psicologicamente contra o peso, destrutivo, do sentimento de injustiça
e inferioridade social que os pode pressionar para a degradação das suas capacidades e ausência de desenvolvimento profissional e pessoal.
Pelos valores da racionalidade e do desenvolvimento social e económico,
ambos estes tipos de cidadãos podem sentir-se compelidos a desenvolverem
conhecimentos organizacionais, nomeadamente, sobre culturas de criação
de espírito de equipa e de disciplina organizacional, de forma a navegarem,
mais pacífica e eficazmente, nas tensões quotidianas inerentes à inexistência
de efectiva liberdade negocial.
Embora louvável, uma ética individual deste tipo só terá capacidade de
mobilização num quadro de reformas progressivas, tendentes a maior liberdade negocial e a remunerações na lógica do incentivo. Sem este desiderato,
esta ética individual pode ser interpretada como uma anuência à falta de
liberdade, na generalidade da sociedade, sucumbindo a esta contradição.
4. Políticas de promoção da ética
As políticas de promoção da ética, estando vocacionadas para a promoção
de valores éticos básicos que assegurem a sustentabilidade social e promovam
a paz (como a verdade, tolerância, honradez de compromissos e contratos,
solidariedade, etc.) podem ser, simultaneamente, veículo para promoção de
atitudes, ainda mais claramente relacionadas com o desempenho económico
e a eficiência social, como, por exemplo, a crença no sucesso do trabalho de
equipa, a abertura de diálogo face a hierarquias, a valorização da inovação
e o planeamento para a qualidade, na senda de reflexões de vários autores,
desde Weber a Fukuyama e, sobretudo, Hofstede. O campo de políticas de
promoção de valores é pois um campo especialmente vasto, com repercussões a diferentes níveis e horizontes temporais.
174
JOSÉ LACERDA DA FONSECA
Seja qual for a amplidão de valores e atitudes em causa, não se trata, aqui,
de reflectir no caso de uma maioria democrática que pretenda impor um
certo sistema de comunicação e condicionamento para a ética. De facto, o
conceito de liberdade deve ser respeitado em maior profundidade do que
o exigido pelo conceito processual de democracia e de governo da maioria.
Trata-se de reflectir sobre um ambiente cultural no qual exista disponibilização de várias possibilidades de auto condicionamento, num máximo
de diversidade e tolerância, entre as quais qualquer cidadão poderá, eventualmente, escolher, em função da sua personalidade e convicções, com a
consciência das respectivas implicações e riscos.
Análises teóricas com as preocupações das já aqui feitas (sobre a fundamentação, subjectiva e consequencialista, da ética, sobre o autocondicionamento
e a liberdade, bem como sobre intermediações entre tradições e, ainda,
sobre as sinergias com a concretização, social e económica, de uma ética de
liberdade) podem ajudar, por si só, a fortalecer a mobilização para a ética e
para os valores sociais. Assim, as políticas de promoção da ética terão, certamente, uma vertente de divulgação de ideias e debates deste tipo. Contudo,
a sua componente fundamental poderá vir a ser a promoção de competências existenciais e de autocondicionamentos para a ética, quiçá inspirados
nas tradições ou inseridos nestas, tentando garantir, simultaneamente, uma
efectiva liberdade de opção, liberdade de informação e um real pluralismo.
Antes de pensar, um pouco mais em concreto, sobre políticas de promoção
da ética, é necessário considerar a subjectividade deste campo, reflectindo
sobre avaliações de impacto de medidas de intervenção a favor da ética. Neste
contexto, vários mecanismos são possíveis, sendo de referir a importância de
consensualizar precocemente, até onde for possível, um ou vários barómetros, estatísticos, da adesão dos cidadãos à ética, nas suas diversas vertentes.
Passando agora, à reflexão sobre programas de intervenção ética, parece
ser de reconhecer que a regulação dos meios de comunicação social será
questão central17.
Esperar que o mercado espontâneo seja suficientemente perfeito para
desenvolver um mercado de mass media promotor da ética pode ser perspectiva
excessivamente optimista. De facto, um mercado perfeito exige informação
perfeita dos consumidores. Como esta informação não é inata terá de se
obter num mercado de informação a montante do primeiro. Por exemplo,
175
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
o mercado de viaturas obtém informação, nomeadamente, num mercado
de informação constituído pela imprensa automobilística que apresenta
análises às diversas viaturas no mercado. Contudo, como avaliar quais as
boas revistas de avaliação do mercado de viaturas? Em princípio teremos de
ter sempre um mercado de informação a montante, em regressão infinita.
Esta problemática constitui componente importante da actual economia
da informação que, desde há perto de quarenta anos, vem avolumando a
consciência das limitações informativas do mercado. No caso do mercado de
viaturas (objecto do estudo pioneiro de George Akerlof sobre informação
e mercado, de 1970) talvez a imperfeição do mercado não seja dramática,
até porque existem muitos outros mecanismos de regulação do mercado.
Obviamente, quanto mais complexos os produtos, como é o caso de peças
mediáticas, mais difícil será atingir o desiderato da perfeita informação do
consumidor. O consagrado conceito de educação para os media pretende,
justamente, oferecer informação que permita ao consumidor fazer as
melhores opções. Contudo, nem essa educação pode ser perfeita nem será
impossível fazer regressar todos os cidadãos à escola para obter essa educação,
sendo fundamental equacionar outros processos, nomeadamente de cariz
informativo e educativo, que compensem as falhas do mercado.
É neste contexto que interessará reflectir se a possibilidade de cada força
política usufruir de um espaço de análise crítica, de peças mediáticas, em
cada meio de comunicação social, poderá constituir forma do consumidor
ficar ciente dos pressupostos políticos, opções subjectivas, efeitos ideológicos, éticos e psicológicos destas peças. Será este um possível meio de
ajudar o consumidor a uma avaliação informada sobre a qualidade do que
o mercado lhe oferece, permitindo, em consequência, um efectivo pluralismo? A impreparação, aparente, das forças políticas, para efectuarem
este tipo de intervenção cultural crítica, não parece ser motivo para abandonar, completamente, a crítica e análise dos media a um mercado de críticos
profissionais, ilusoriamente apolíticos, que, aliás, devido à inexistência de
legitimação clara e suficiente visibilidade, não conseguem realizar uma ampla
consciência pública dos efeitos dos media.
Sempre no pressuposto que, devido às limitações informativas do
mercado espontâneo e tendencialmente plutocrático, este não garante opções
informadas do consumidor, não garantindo, em consequência, um real
176
JOSÉ LACERDA DA FONSECA
pluralismo, parece ser indispensável continuar a reflectir sobre a intervenção
política nos media. Sistemas de análise crítica, como os referidos, podem ser
entendidos como complementares à identificação de cada organização mediática com cada força política, como é, aliás, tradição nalguns países europeus,
onde cada organização mediática deixa patente qual o partido ou candidato
que apoia em determinada eleição. A expansão de um sistema de identificação política pluralista dos media, deste tipo, poderá passar pela expressão
do apoio de cada força política a cada organização mediática, na diversidade
de peças mediáticas, recreativas e informativas, que ela oferece. De facto,
devemos perguntar se, por exemplo, um partido politico que obteve 10%
dos votos não terá o dever e o direito de dar aval a 10% da massa informativa dos media? Numa forma mitigada deste sistema de identificação política e
pluralista dos media, será de considerar que, através de cada força política, o
sistema político deverá gerir uma quota, relativamente pequena, de tempo e
espaço nos meios de comunicação social, dentro da qual estabelece critérios
editoriais e confirma o aval às peças mediáticas, propostas pelos mercados,
considerando os seus efeitos partidários, éticos e civilizacionais18?
O que se acabou de referir advém de uma desconfiança sobre as capacidades, qualitativas e pluralistas, do mercado. Contudo, idêntica desconfiança
se pode ter em relação à perfeição da representação dos cidadãos através do
sistema político. Evidentemente que não podemos ignorar a aplicação de
conceitos da economia da informação ao sistema político, expressa, nomeadamente, no contributo da escola da Public Choice que ajudou a construir uma
visão crítica sobre o sistema político.
Um equilíbrio entre as diversas perspectivas poderá, talvez, ser realizado
por um sistema misto, ficando parte importante do sistema mediático fora
de qualquer intervenção política?
Claro que, em nenhum caso, se deve desistir do aperfeiçoamento do sistema
político, do Estado e da administração pública, mediante processos de descentralização, democracia participativa, democracia deliberativa, desenvolvimento
de competências de gestão, entre vários outros vectores. Aliás, neste aperfeiçoamento devem ser incluídas as organizações voluntárias da sociedade civil19
que não podem ser esquecidas, enquanto pólos do Estado amplo, igualmente
carentes de melhorias de representatividade, qualidade e eficiência.
Aliás, só num contexto de evolução do sistema político e de sistemas
177
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
mistos parece haver espaço para equacionar a questão da propriedade dos
media. Pelas aduzidas razões, também parece ser necessário assegurar o
pluralismo da propriedade, velando para que os diversos grupos sociais se
encontrem expressos.
Encerrando esta, muito sintética, digressão sobre o pluralismo ético dos
media, pode-se passar a abordar outros vectores de promoção da ética, para
além da óbvia necessidade de inclusão, nos currículos educativos, daquilo
que se passou a chamar educação cívica e educação moral20.
Um desses vectores poderá consistir em criar rankings de nível ético de cada
cidadão, na tentativa, quase paradoxal, de sublimar tendências competitivas e
de as reverter para o fortalecimento dos valores éticos altruístas. A definição
deste nível ético, não sendo tarefa científica, poderá basear-se em teorizações
e listas de itens que ajudem os cidadãos a avaliarem-se mutuamente. Não
obstante, alguns critérios objectivos também podem ser usados, como o nível
de conhecimento de cada um sobre ética, a sua participação em organizações sociais de voluntariado, a filantropia, etc. O arranque para este tipo de
dispositivo social parece ser mais viável de efectuar dentro de algumas organizações, nomeadamente empresas e administração pública, englobadas em
programas de ética empresarial e funcional. Contudo, poderá ser necessária
a participação de entidades externas, a cada organização, para assegurar a
efectiva liberdade e independência das escolhas do ranking.
Para além da boa reputação pessoal, possibilitada por bons posicionamentos no ranking, pode-se intensificar a adesão dos cidadãos a este projecto,
de ranking, concedendo-lhes outras vantagens sociais como, por exemplo,
acesso a utilização de tempo e espaço nos media, em função da sua posição
no ranking.
Outros vectores, de uma política de promoção da ética, poderão ser a
definição de provedores e comissões de ética, dentro de cada organização,
bem como a definição de tutores, em regime de voluntariado, que aconselhem outros cidadãos, ao longo da sua vida, fortalecendo as suas competências
existenciais e éticas.
Depois de aqui referidas medidas de regulação informativa (para melhorar
a capacidade de avaliação do consumidor de bens culturais), medidas escolares de desenvolvimento de competências éticas, políticas de sublimação
competitiva e medidas de apoio e aconselhamento individual, começa a
178
JOSÉ LACERDA DA FONSECA
ser claro como o campo das políticas da ética é muito mais vasto do que o
conceito tradicional de divulgação da ética através de argumentação, pregação
e propaganda.
Evidentemente que medidas de informação, directa, sobre as éticas continuarão, possivelmente, a ser importantes, podendo, aliás, ampliar-se para a
obrigatoriedade de adição, nas acções de formação profissional, de módulos
sobre ética e cultura existencial, a criação de sites e portais institucionais de
informação sobre ética, bem como a divulgação de compêndios de referência (necessariamente comportando a diversidade de visões contraditórias
a diversos níveis), desde compêndios básicos a obras mais profundas.
Na perspectiva que aqui já foi abordada, de centralidade das tradições,
nomeadamente das tradições religiosas e ideológicas, na promoção da ética,
será de esperar que os vectores de promoção da ética se tornem actividades
mais importantes dentro de organizações religiosas e partidárias-ideológicas, em graus diferentes e em formas adaptadas às especificidades e nível
de partida, para estas tarefas, de cada organização. Na mesma óptica, de
centralidade destas organizações para a ética, será de esperar o desenvolvimento de actividades conjuntas de promoção da ética, entre todos estes tipos
de organizações, a partir do momento que se afirme a consciência das suas
proximidades, para além das suas divergências históricas, como, aliás, hoje já
vem acontecendo, parcialmente, entre igrejas historicamente concorrentes.
Todas as políticas de promoção da ética até agora referidas consistem
em programas cujo fundamental objectivo é a promoção da ética. Ora, em
muitos outros campos, as políticas de promoção da ética podem desenvolverem-se dentro de actividades com outros objectivos (como o desporto, a
participação cívica, o voluntariado, o empreendedorismo social, as artes e as
actividades jurídicas) mas que acabam por impactar na ética. Nestes casos, as
políticas de promoção da ética não só deverão tentar desenvolver essas actividades como deverão, também, tentar ampliar o seu impacto ético.
Um bom exemplo, da amplitude multidisciplinar das políticas sinérgicas
da ética, são as intervenções da psicologia comunitária 21 e da terapia sistémica familiar22, nomeadamente quando procuram estruturações familiares
e redes sociais, propiciadoras de competências emocionais do indivíduo
jovem na sua inserção com o tecido social e, portanto, com os valores éticos
aí consubstanciados. Claro que não se pode traçar uma clara linha divisória
179
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
entre políticas sinérgicas e políticas autónomas de promoção da ética (como
regulação dos media, rankings e provedores de ética). Por exemplo, autores como
Amitai Etzione e Alasdair MacIntyre, consideram que o desenvolvimento dos
laços de cooperação em comunidades locais (aparentemente classificável no
campo das políticas sinérgicas) pode ser a principal fonte de ética.
Esta imbricação de efeitos e o carácter subjectivo da ética são alguns dos
factores que nos desiludem sobre a capacidade da ciência determinar quais
as melhores intervenções éticas. Não obstante, a monitorização das políticas
éticas, com metodologias científicas, devem consubstanciar-se políticas de
ética em torno de uma série de projectos-piloto, simultaneamente de intervenção prática cautelosa e de investigação simplificada, conjuntamente com
intervenções mais amplas, também cuidadosamente monitorizadas.
Não obstante o espaço existente para programas de promoção da ética, o
desenvolvimento desta pode estar menos dependente do sucesso destas políticas do que da credibilização de modelos sociais consubstanciadores da ética,
como o desenvolvimento da democracia cognitiva enquanto faceta de evolução
da democracia parlamentar e dos valores democráticos em geral, assim como
o desenvolvimento do mercado socialmente organizado, enquanto faceta
asseguradora da efectiva liberdade do mercado e, ainda, como a evolução
global de uma cultura, simultaneamente auto-condicionante e crítica sobre
os seus riscos e limites.
Conclusão
A afirmação de referencial ético consequencialista, consubstanciado aqui
no projecto humanista e nas suas condições acesso mediano, traduz uma
concepção de ética frágil nos seus fundamentos racionais. Esta concepção
implica opções subjectivas e complementares mecanismos, emocionais e de
desenvolvimento de competências pessoais, tentando realizar, difíceis, equilíbrios entre racionalidade e vida emocional. Estes equilíbrios necessitam
de riqueza cultural, no desenvolvimento das artes, no aproveitamento das
tradições e no desenvolvimento das competências, existenciais e organizacionais, remetendo para um conceito de cultura que desenvolve a liberdade do
indivíduo mas que, simultaneamente, o pode preparar e condicionar para
os valores éticos.
180
JOSÉ LACERDA DA FONSECA
Como forma de valorização e promoção da ética, defendeu-se, aqui, o
conceito de uma cultura teleológica, eclética, autocondicionante mas consciente da diversidade dos modelos sociais e dos trajectos existenciais. Esta
concepção é oposta aquela que parece ser mais corrente, consubstanciada
numa cultura fragmentada e inconsciente dos seus efeitos, de recreação
mediática ou elitista, esgotando-se na apologia da criatividade enquanto um
fim em si, estranha ao debate teleológico e ao debate sobre modelos civilizacionais. Em síntese, defendeu-se o conceito de uma cultura existencial,
versus um conceito de cultura em que esta é apenas instrumental, essencialmente escapista e sem fio condutor para um projecto humanista. Esta cultura
existencial exige não só a consciência e a vivência das mediações entre racionalidade e tradições, religiosas, culturais e ideológicas, mas também, para
que a ética seja credível, exige uma corporização reformista, económica e
política, respeitadora de uma efectiva liberdade negocial na distribuição do
rendimento e do poder associado, compatível com o incentivo individual e
com referenciais de sustentabilidade social a longo prazo.
Em suma, não é possível argumentar, de forma absoluta, a favor da vida
ética, mas é possível apelar à adesão a estilos de vida humanistas, suficientemente interessantes para o indivíduo. Contudo, é exigido que estes estilos
de vida usufruam de certas condições materiais, políticas e económicas,
nomeadamente em relação ao acesso a uma cultura de sublimação, condicionamento e saber existencial, bem como consubstanciem o mais alto nível
de coesão socioeconómica que seja compatível com o incentivo individual.
Assumindo-se que o desenvolvimento de uma cultura existencial, a
promoção da ética e de projectos humanistas são tarefas árduas, polémicas
e de risco, torna-se exigível que esta questão assuma protagonismo político, debatendo-se teorizações e medidas, concretas, com um largo espectro
de actuação. Neste contexto e dada a necessária centralidade da ética na
sustentabilidade social, será de supor que a política cultural deverá ter uma
importância e um impacto, a longo prazo, não menor do que outras intervenções políticas de fundo, como por exemplo, a política educativa ou a
política ambiental. Por outro lado, a grande diversidade de medidas de uma
política da ética deverá ser monitorizada, nos seus méritos relativos e múltiplas sinergias. Tal parece só poder ser feitos através de criação de instituições
especificamente vocacionadas para a promoção da ética, enquanto pólos
181
ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS
potenciadores de redes mais vastas. Nesta óptica, o campo de intervenção dos
ministérios que tutelam a cultura e os valores respectivos deverá ser consideravelmente ampliado, possibilitando um trabalho profícuo com as referidas
instituições especificamente criadas para promoção da ética.
Caldas da Rainha
3/01/2010
182
Referências
1 – B. F. Skinner, 1945, 1976, Walden Two Prentice-Hall, New Jersey. Beyond Freedom and
Dignity, 1971, 2002, Hackett, Cambridge.
2 – Bauman, Zygmunt, 2005, Postmodern Ethics, Blackwell, Malden – MA.
3 – Como Gianni Vatimo (1980, As Aventuras da Diferença, Edições 70, Lisboa), com o seu
conceito de “infinidade da interpretação”, Jean-François Lyotard, com as suas críticas contra
a hegemonia de qualquer dogmatismo (1987, O Pós-Moderno Explicado às Crianças, Publicações D.
Quixote, Lisboa), defendidas desde o seu livro "Le Différend", de 1983. De notar, além
de vários outros, o contributo do pensador da “terceira via”, Anthony Giddens, com a
sua reflexão sobre os complexos processos de criação da confiança (1990, The Consequences of
Modernity, Stanford University Press, Stanford, California).
4 – Esta análise é baseada em J. L. Mackie, 1977/1990, Inventing Right and Wrong, Penguin,
London.
5 – Desde a inicial Teoria da Justiça, até às últimas reflexões (2001, Justice as Fairness, The
Belknap Press of Harvard, Cambridge, Massachusetts).
6 – Mulhall e Swift, 1996, Liberals and Communitarians, Blackwell, Oxford, UK.
7 – Como tentou mostrar Pogge (1989, Realizing Rawls, Cornell University Press,
London).
8 – A interpretação mais radical de um simbolismo sem qualquer correspondência com
a realidade ontológica é, talvez, a de Don Cupit, tendo afirmado que Deus não existe mas
que temos de nos comportar como se existisse (Cupit, Don, 1997, After God - The Future of
Religion, Basic Books, New York).
9 – Geertz, Clifford, 1973, The Interpretation of Cultures, Basic Books, New York.
10 – Este entendimento parece consonante com perspectivas, com largo peso na
moderna filosofia da religião, expressas por Paul Tillich, sobre a interpretação dos textos e
práticas religiosas, nomeadamente com a sua concepção das religiões serem constituídas por
símbolos e não por signos, sendo que os símbolos sugerem dimensões da realidade e do ser
humano que não podem ser expressas com a objectividade dos signos. Ver Miller e Grenz,
1998, Fortress Introduction to Contemporary Theologies, Fortress Press, Minneapolis.
11 – Wilson, Edward, 1978, On Human Nature, Harvard College, U.S.A.. A concepção
sociobiológica sobre a programação do ser humano, nomeadamente sobre poder e agressividade, que junta dados empíricos a concepções com semelhanças teleológicas, com das de
Freud.
12 – Veja-se, por exemplo, Introduction to Critical Theory, de David Held, 1980, University
of California Press, Berkeley, L. A.. Especificamente sobre religião, Religion and Rationality, de
Habermas, 2002, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts. Ainda, o recente livro sobre
Guy Debord, de Anselm Jappe, 2008, Antígona, Lisboa.
13 – Esta condição de liberdade negocial está, de facto, já contida nas outras (igual resistência à suspensão de colaboração e igual capacidade de organização), embora, para efeitos
ilustrativos, se possa apresentar como mais uma condição.
183
14 – Uma antiga sugestão do prémio Nobel Mirrlees, um dos primeiros a estudar a
questão da distribuição do rendimento, impostos e limiares de incentivo.
15 – A colecção Real Utopias, tem editado vários títulos sobre socialismo e mercado, nos
quais se reflecte sobre sistemas alternativos na economia política. Nomeadamente Bowles
e Gintis, 1989, Recasting Egalitarianism, Verso, London, New York. Esta colecção tem compilado muito do actual pensamento reformista dos U.S.A., tanto sobre economia como sobre
democracia e sistema político.
16 – Mazzucato, Mariana, 2000, Firm Size, Innovation and Market Structure, Elgar, Northampton,
MA USA. Chesbrough, 2003, Open Innovation, Harvard B. School Press, Boston.
17 – Imprensa, Rádio e Televisão – Poder sem Responsablidade, James Curran e Jean Seaton, 1997,
Instituto Piaget, Lisboa. Este título parece ser bastante abrangente destas problemáticas,
embora a literatura sobre esta questão seja dos tipos literários mais publicados.
18 – Por vezes, em questões que parecem distantes da promoção da ética, como a
expansão dos padrões de atractividade sexo-afectiva que, como atrás referido (mediante o
conceito de “acesso mediano”), podem constituir uma importante faceta para a mobilização
para projectos de reforma social articulados sobre valores éticos.
19 – Cujo reforço constitui um das linhas fundamentais da “terceira via” de Giddens.
Giddens, Anthony, 1999, Para uma Terceira Via, Editorial Presença, Lisboa 1999. Giddens,
Anthony, 2000, The Third Way and its Critics, Pollity Press, Cambridge, U.K..
20 – Reimer, Paolitto, Hersh, 1983, Promoting Moral Growth –From Piaget to Kohlberg, Longman,
New York.
21 – Ornelas, José, 2008, Psicologia Comunitária, Fim de Século, Lisboa.
22 – Jones, Elsa, 1999, Terapia dos Sistemas Familiares, Climpesi, Lisboa.
184
CULTURA
Palavra e Utopia: António Vieira no Filme
de Manoel de Oliveira
Eduardo Geada
C
omecemos pelo princípio. E ao princípio temos o genérico,
com a ficha técnica, sobre imagens de árvores e o céu límpido. O
movimento suave parece simular o olhar de alguém que passeia
na floresta e olha para o azul celeste. Na banda sonora, a guitarra
de Carlos Paredes, um dos mais genuínos compositores da música tradicional
portuguesa. É uma composição plástica típica dos filmes em que Manoel de
Oliveira procura a essência da identidade portuguesa. O olhar de contemplação, a procura do enigma e o anonimato do percurso remetem desde logo
para a universalidade da viagem, para a vastidão da natureza que se adivinha e
para o divino que nos responde das alturas.
É um princípio adequado à personalidade de Padre António Vieira, para
quem a verdade histórica se vergava aos caprichos da imaginação profética. Fruto
da mentalidade da sua época, Vieira aceitava em todas as circunstâncias que o
plano do transcendente explicava a realidade deste mundo e que, portanto, a
transformação do mundo não se podia esperar sem a intervenção da providência. Entre o natural e o sobrenatural não existia apenas uma relação de
semelhança, mas uma relação de causalidade. Como tantos outros visionários
da pátria amada, que constituem até hoje uma corrente subterrânea da interpretação de Portugal na dinâmica da história, Padre António Vieira por várias
vezes interpela Deus em defesa do seu país porque o seu país está destinado a
triunfar graças à protecção divina inscrita na ordem religiosa do mundo. Por
exemplo, no Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal, pregado na Baía em 1640,
quando a cidade se encontrava seriamente ameaçada pelas tropas holandesas,
Padre António Vieira interroga e desafia Deus numa das mais extraordinárias
peças de oratória de que há registo.
Tinha então 32 anos e estava na véspera de regressar a Lisboa para celebrar
a Restauração de Portugal e a subida ao trono de D. João IV, que punha termo
a 60 anos de dominação espanhola (1580-1640).
187
PALAVRA E UTOPIA: ANTÓNIO VIEIRA NO FILME DE MANOEL DE OLIVEIRA
Mas não nos adiantemos, porque o filme de Manoel de Oliveira começa
mais tarde, precisamente em 21 de Junho de 1663, em Coimbra, quando
Padre António Vieira responde perante o tribunal do Santo Ofício. Durante
quase quatro anos consecutivos, diminuído por uma saúde precária, Viera é
sujeito aos interrogatórios da Inquisição.
Criada para inquirir e combater as heresias, a Inquisição aceitava todo o
tipo de denúncias e ocultava o nome dos denunciantes e das testemunhas,
tornando assim precária a defesa dos acusados. O objectivo do processo inquisitorial consistia em levar o acusado a confessar e a arrepender-se, utilizando
para tanto métodos que podiam passar por várias formas de coação, violência e
tortura. Depois, o herege era abandonado pelo tribunal eclesiástico ao poder
do Estado, já que os juízes do clero não podiam pronunciar sentenças de
morte. Os bens dos culpados eram confiscados pela autoridade régia, acabando
o respectivo património por ser doado à própria Inquisição. Aos desgraçados
hereges estavam reservados o garrote ou a fogueira. O acordo entre a Igreja e o
Estado era completo, uma vez que pôr em causa os alicerces da religião significava pôr em causa a estrutura do edifício social e simbólico em que assentava
o poder real.
Introduzida em Portugal a partir do Século XIV, com tribunais em Lisboa,
Coimbra e Évora, subordinada à autoridade régia, a Inquisição perseguia casos
de heresia, ou de desvios religiosos e comportamentais de vários tipos, desde a
feitiçaria até às anomalias sexuais. Porém, a maior parte dos processos tinha a
ver com a prática de costumes ligados às crenças judaicas.
Na altura em que é preso pelo Santo Ofício, Padre António Vieira era um
dos mais ilustres membros da Companhia de Jesus, fundada em 1540. Com
uma vasta obra missionária e cultural no Oriente, em África e no Brasil, os
jesuítas tinham criado alguma animosidade junto dos poderes políticos e
religiosos, nomeadamente junto da Ordem Dominicana cujos dignitários
dominavam as Mesas da Inquisição.
Não é, por certo, apenas para obter um efeito dramático, de pertinência
indiscutível, que Manoel de Oliveira começa o filme quando Padre António
Vieira se encontra a meio da sua vida, depois de acontecimentos prodigiosos
ao serviço do país, como teólogo, missionário, pregador, conselheiro, diplomata, escritor e protegido do rei D. João IV. Veremos que, no filme, a figura
de Padre António Vieira encarna um ideal de humanismo cristão com o qual
188
EDUARDO GEADA
creio que se identifica Manoel de Oliveira e através do qual o cineasta define o
elemento primordial da identidade e da acção de Portugal no mundo.
De que era, afinal, acusado pela Inquisição o Padre António Vieira? De ter
escrito que D. João IV, morto há sete anos, haveria de ressuscitar para cumprir
o Quinto Império. Baseado numa interpretação fantasista das profecias do
Bandarra, um sapateiro e poeta popular do Século XVI, recordado sempre
que numa situação de crise se evoca a vinda de um salvador messiânico, Padre
António Vieira refunda um dos grandes mitos da História de Portugal, decalcado da imagética judaica do Povo Eleito, uma vez que, segundo ele, Portugal
seria o berço do segundo povo eleito.
No Sermão por Acção de Graças pelo Nascimento do Príncipe D. João Padre António Vieira
explica a seu modo as profecias de Daniel, enumerando os quatro impérios que
a história até então teria conhecido. De acordo com a sua interpretação bíblica,
o primeiro império teria sido o dos Assírios, o segundo império o dos Persas, o
terceiro império o dos Gregos e o quarto império o dos Romanos.
Faltaria erguer o Quinto Império, a que nenhum outro haveria de suceder,
porque seria o último até ao fim do mundo. Para Padre António Vieira, o
Quinto Império realizar-se-ia à escala planetária. Todas as terras e todas as
gentes seriam reconvertidas ao cristianismo, todas as heresias seriam eliminadas
e consumar-se-ia o Reino de Cristo na Terra. Com a segunda vinda de Cristo,
dois Imperadores estariam destinados a promover o Quinto Império: o Papa
enquanto Imperador Espiritual e o Rei D. João IV ressuscitado, enquanto
Imperador temporal. Reinaria o estado de paz universal, justiça e santidade.
Este delírio messiânico, alimentado pela propagação do maravilhoso
na mentalidade medieval, tinha porventura um propósito político que não
escapou aos inquisidores. Tratava-se de recentrar o destino de Portugal na
esperança providencialista e na herança política de D. João IV, desbaratada
pelo seu infeliz sucessor no trono. De resto, nem o próprio D. João IV escapou
a ser excomungado pela Inquisição, mesmo depois de morto.
Entre as duas cenas de interrogatório no Tribunal da Inquisição, que servem
de moldura narrativa à primeira parte do filme, Manoel de Oliveira desenha
com uma admirável economia de meios os traços fundamentais da personalidade, da postura e da acção missionário de Padre António Vieira. E é justamente
essa personalidade, essa postura e essa acção que os seus inimigos não lhe perdoavam, estivessem eles nas colónias, na corte ou na Igreja. Quando, no filme,
189
PALAVRA E UTOPIA: ANTÓNIO VIEIRA NO FILME DE MANOEL DE OLIVEIRA
termina a primeira cena de interrogatório da Inquisição, antes de regressarmos
ao Brasil onde tudo verdadeiramente começa, Padre António Vieira olha para o
Cristo crucificado que se encontra por detrás e acima da cadeira do inquisidor.
Vemos então em grande plano o rosto sofrido de um Cristo negro, talhado
em madeira característica das colónias. Triste ironia esta, que conduz o pensamento de Vieira e do espectador à Baía, região do Brasil onde a evangelização
jesuíta foi um factor decisivo da presença portuguesa.
E o plano que temos a seguir é o de um grupo de nativos a cantar e a dançar,
na inocência de um estado de natureza sem qualquer contexto ou referência
que possa impedir a sua associação com a nostalgia do paraíso perdido, que é
uma das ideias centrais da utopia de Padre António Vieira.
Levado para o Brasil pelos pais quando contava apenas seis anos de idade,
António Vieira estudou no Colégio dos Jesuítas do Salvador, tendo depois
ingressado na Ordem, onde veio a ser professor de Retórica e Teologia. Mas
foi na catequese dos índios, na improvisação de igrejas e na construção de
aldeamentos que Vieira encontrou a vocação de um apostolado sublime, bem
distante das discussões escolásticas dos colégios e palácios. Aprendeu a falar o
tupi-guarani, o quibumdo e outros dialectos nativos. Viveu durante anos no
sertão, cumpriu votos de pobreza, viajou pelos quatro cantos do mundo, atravessou sete vezes o Atlântico e na defesa dos seus ideais escreveu a mais bela
prosa da língua portuguesa.
Não é em vão que Padre António Vieira se empenha na libertação dos índios
do Brasil e na denúncia do comércio dos escravos africanos. A pergunta retórica que faz num dos primeiros sermões citados no filme – como podem os índios ser
escravos na terra onde nasceram e sempre viveram? – tem uma resposta de ordem política e
económica que ele não ignora. Os engenhos de açúcar, a produção do tabaco,
a plantação do canavial e as minas de ouro precisavam de grande abundância
de mão-de-obra, explorada num trabalho violento e coercivo susceptível de
enriquecer os colonos europeus e de encher os cofres do Estado na metrópole. Porém, Vieira não descansou enquanto não obteve do rei o diploma que
determinava que fossem libertados os índios cativos, provocando deste modo a
cólera dos colonos e, mais tarde, a sua expulsão do Brasil, como se mostra no
filme de um modo muito sintético.
Também no que diz respeito ao tráfico de escravos provenientes de África
escreveu Vieira palavras que, no seu tempo, não só causaram perplexidade
190
EDUARDO GEADA
como originaram ressentimentos e conflitos insanáveis com os poderosos do
reino. No filme de Manoel de Oliveira podemos escutar um excerto de um
dos mais extraordinários sermões da série Maria Rosa Mística, pregado em 1649
na Baía. Vieira alinha, em forte contraste de tom dramático, a existência dos
senhores e a existência dos escravos. Uns vivendo na opulência e no luxo, os
outros morrendo de fome e de nudez. E acrescenta: “Estes homens não são
filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas
com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os
nossos? Não respiram o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? ” Também no
Sermão do Rosário, pregado mais tarde em Lisboa, perante uma assembleia atenta
e atónita, Vieira compara o sofrimento do escravo no engenho de açúcar com
o sofrimento de Cristo na cruz.
O que se torna claro nas palavras de Padre António Vieira é que o sistema
de cristianização devia ser inseparável de um processo de humanização e de
uma atitude de comiseração, que muitos representantes da sua Igreja e da sua
Pátria não respeitavam. De facto, o comércio negreiro tornou-se um factor
determinante do desenvolvimento da economia colonial no Brasil.
Embora os movimentos anti-esclavagistas tenham frequentemente utilizado
citações da Bíblia para condenar a escravatura como um pecado, mencionando
excertos das escrituras onde se pode ler que Deus criou os homens iguais e à sua
imagem, no Século XVII prevalecia o recurso à célebre passagem do Génesis na
qual Noé amaldiçoa Canaan e com ele todos os seres de pele negra, que deste
modo teriam sido condenados à servidão e a uma espécie de sub-humanidade.
É, pois, no contexto da ideologia dominante da época que devemos entender
a extraordinária acção de Padre António Vieira na Companhia de Jesus em
defesa da liberdade dos índios do Brasil e em defesa dos escravos negros que
chegavam de África para viverem e trabalharem em condições de extrema
miséria e dor.
O facto de uma avó de António Vieira ser mestiça, porventura filha de
uma escrava negra trazida para a metrópole e a hipótese, não provada pela
Inquisição, de haver sangue judaico na sua família, podem ajudar a explicar a
sua personalidade e, sobretudo, o empenho que sempre demonstrou na luta
contra a escravatura, o racismo e a perseguição aos cristãos-novos, como então
se chamavam os judeus convertidos, por convicção ou por necessidade, ao
ditame das regras católicas.
191
PALAVRA E UTOPIA: ANTÓNIO VIEIRA NO FILME DE MANOEL DE OLIVEIRA
Contra a posição da Inquisição, que perseguia e procurava pretextos para
expulsar os judeus e os cristãos-novos de Portugal, Padre António Vieira
defende-os, alegando junto do rei que o seu enriquecimento e consequente
contributo financeiro e tributário eram imprescindíveis ao desenvolvimento
económico do país, à sustentação da guerra contra Espanha e à promoção
da Companhia do Comércio do Brasil. O grande comércio internacional
estava nas mãos dos judeus e Vieira não poupou esforços para atrair a Portugal
algumas das famílias judaicas mais ilustres que se tinham refugiado na Holanda,
na altura o único país europeu que não tinha uma religião de Estado.
A corrupção alastrava entre os grandes da Corte. E Padre António Vieira
não os poupa, como constatamos ao ouvir, entre outros, o famoso Sermão do Bom
Ladrão, pregado em Lisboa na Igreja da Misericórdia em 1655. Nele se denunciam em todos os tempos e modos os furtos e a voraz ganância dos poderosos,
terminando o exórdio com a afirmação de que “nem os reis podem ir ao
Paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao Inferno sem
levar consigo os reis.” Para Padre António Vieira o púlpito não se confinava
à oração sacra, à prédica canónica, antes servia como tribuna de intervenção
social e política, evocando os fundamentos da pedagogia de Cristo, é certo, mas
sem esquecer a conjuntura do seu tempo e da sua sociedade, numa admirável
capacidade de intervenção cívica e moral que continua a merecer a admiração
e o respeito de quantos se aproximam da sua obra.
Palavra e Utopia se chama o filme. Título apropriado, tanto mais que Manoel
de Oliveira escolhe judiciosamente as passagens dos sermões em que Vieira
se afirma como um paladino inquebrantável de ideias e de ideais que estavam
muito avançados para o seu tempo. Preocupado com o presente, com “aquilo
que nunca está e sempre passa”, como escreveu, virado para o passado no que
respeita o ressurgimento de profecias utópicas de cariz visionário, Vieira era
também um homem do futuro no que toca ao que hoje poderíamos chamar
com propriedade a defesa dos direitos humanos.
Portugal vivia então tempos difíceis. Após o domínio espanhol, a Guerra
da Restauração prolongou-se até 1668, obrigando o país a um enorme esforço
militar, financeiro e diplomático. A morte de D. João IV em 1656 veio criar
novos receios pela estabilidade e independência nacional. Vieira entendia
que era preciso recriar a esperança na utopia e na grandeza que Portugal
conhecera.
192
EDUARDO GEADA
É sabido como as utopias nascem da insatisfação colectiva. Por maior que
seja a intervenção de um só homem na elaboração desse mundo imaginário
que é a utopia, que se espera poder vir a substituir os sofrimentos e o pesar do
presente, ela não pode consolidar-se e difundir-se senão com a participação
colectiva daqueles que desejam e sonham com a construção de um mundo
melhor. Existe, portanto, no pensamento utópico uma forte componente de
fé e esperança que desafia a lógica do mundo tal como o conhecemos e que
desafia também uma interpretação estritamente racionalista dos seus objectivos. Poder-se-ia mesmo dizer que a utopia desafia as leis do mundo tal como
Deus o criou e o homem o organizou, na medida em que não conhecemos
outro, mas não nos conformamos com aquele que temos.
Neste sentido, no contexto do pensamento pré-iluminista do Século XVII,
uma utopia não podia deixar de ser considerada pela Igreja uma heresia, não
só porque a utopia desafia abertamente a ordem social reinante mas porque ela
desafia também a ordem divina que a fundamenta e legitima.
Não é certamente por acaso que os autores das duas grandes utopias que
precederam o delírio imperialista do Padre António Vieira – refiro-me às obras
de Thomas More e Tommaso Campanella – acabaram às mãos dos verdugos
da Igreja Católica. O mesmo poderia ter acontecido ao Padre António Vieira,
não fossem as circunstâncias instáveis da política interna do país na época
terem-lhe sido favoráveis.
É sabido que o imaginário de culturas distantes, no espaço ou no tempo, foi
durante o Século XVII, mas também em plena expansão Iluminista, o núcleo
central da inspiração utópica. O suposto declínio da civilização ocidental foi,
desde a antiguidade grega, um tópico filosófico permanente na evocação do
contraste entre os constrangimentos do presente e a harmonia da chamada
idade de ouro, que remontava aos tempos primordiais do mito. Desde a era
dos Descobrimentos que o tema do selvagem nobre e puro foi ganhando
forma até se ver consagrado na cultura europeia do Século XVIII. A rejeição da
sociedade ocidental tal como a conhecemos tornou-se, desde cedo, um traço
cultural tipicamente europeu. A ideia de que o mundo em que nos encontramos é um mundo corrupto e decadente é uma característica decisiva do
pensamento utópico. Quando os primeiros pensadores da utopia referem as
qualidades distintivas das sociedades primitivas, identificadas com a harmonia
e a abundância da idade do ouro, sublinham em primeiro lugar a ausência de
193
PALAVRA E UTOPIA: ANTÓNIO VIEIRA NO FILME DE MANOEL DE OLIVEIRA
propriedade, a vida em comunidade, a liberdade sexual, o desprendimento em
relação aos bens materiais e o que poderíamos chamar a total ausência de luxo
e de acumulação de capital.
A descoberta da América e do Brasil na viragem do Século XVI foram
acontecimentos históricos cruciais no desenvolvimento das fantasias utópicas.
Os europeus encontraram nesses imensos e prodigiosos territórios populações nativas que viviam, aparentemente inocentes e felizes, num estado de
natureza primordial. Alimentou-se a promessa de um Novo Mundo. Muitos
pensadores utópicos quiserem acreditar ter encontrado nessas terras virgens
uma imagem possível do paraíso terrestre. Foi o caso de Padre António
Vieira. Descrevendo o seu desembarque em S. Luís do Maranhão, a 16 de
Janeiro de 1653, na qualidade de Superior dos missionários jesuítas, Vieira
escreveu: “Se a alegria de entrar no Céu tem na terra comparação, foi esta.
Agora começo a ser religioso e espero na bondade divina”. O contraste com
as suas experiências entre os poderosos do mundo, no Paço Real em Lisboa,
nas Cortes da Europa e nos salões do Vaticano, não lhe deixavam margem
para dúvidas. Se houvesse paraíso na terra ele seria à semelhança do sertão
do Brasil.
Em 1669, após a morte do Inquisidor Geral e a substituição no trono
de D. Afonso VI por D. Pedro, de quem fora educador na infância, Padre
António Vieira parte para Roma a fim de obter do Papa imunidade contra
novos ataques da Inquisição Portuguesa. Acabou por ficar seis anos em Itália.
Depressa aprendeu italiano e ganhou fama junto da cúria romana graças aos
seus dotes oratórios, tendo assumido o cargo de pregador da Rainha Cristina
da Suécia, que desenvolvera em Roma uma verdadeira Corte no mais puro
estilo do Renascimento. Vale a pena debruçarmo-nos um pouco sobre as
cenas em que Manoel de Oliveira reconstitui a relação entre Padre António
Vieira e a Rainha Cristina, não só porque essas cenas ocupam um certo relevo
na economia narrativa do filme, mas também porque elas são reveladoras da
possível aproximação estética e ética entre a obra de António Vieira e a obra de
Manoel de Oliveira.
A primeira vez que vemos a Rainha Cristina no filme ela encontra-se na
Igreja, a ouvir um concerto de música sacra, enquadrada num plano como se
a víssemos num camarote de teatro. Tendo por fundo uma pintura angélica,
Padre António Vieira aguarda na sacristia, como se estivesse nos bastidores do
194
EDUARDO GEADA
teatro à espera da sua vez para entrar em cena. Na verdade, assim que ouve os
aplausos, Vieira entra na Igreja, entra literalmente em cena, sobe ao púlpito e
inicia a dissertação com um conjunto de metáforas referentes à harpa e à funda
de David. E explica a razão pela qual a harpa representa a música enquanto a
funda representa o sermão. A harpa, ou a música, serve para afastar os maus
espíritos; a funda, ou o sermão, serve para derrubar aos pés de Cristo os seus
inimigos. Torna-se evidente que a palavra é para Vieira um instrumento de
acção religiosa e política e o púlpito um palco onde se dramatizam os conflitos
sociais e existenciais. António Vieira conclui que tanto a música como o
sermão simbolizam as duas grandes cenas do teatro do mundo. Apesar de, em
alguns dos seus escritos, nomeadamente no célebre Sermão da Sexagésima, pregado
na Capela Real, em 1655, Padre António Vieira criticar a dialéctica escolástica
como um suporte de espectáculo, com a qual os pregadores sobem ao púlpito
como se fossem comediantes, ele próprio não fez outra coisa se não utilizar a
prédica como forma suprema de tensão dramática e de virtuosismo retórico.
À comédia dos pregadores, que baseiam a sua arte no fingimento, no ornamento e na volúpia dos sentidos, opõe Vieira os dramas da fraqueza humana e
da realidade histórica. A diferença é que, ao contrário daqueles que censurava
e que são hoje meras notas de rodapé do cultismo barroco, António Vieira é
um mestre supremo da língua - o imperador da língua portuguesa, como lhe
chamou Fernando Pessoa.
Compreende-se assim o método de encenação de Manoel de Oliveira ao
filmar as prédicas de Vieira em longos plano fixos, começando quase sempre
em voz off sobre imagens de fachadas de igrejas, quadros de temática religiosa,
o oceano e estátuas, como se entre a palavra de Vieira e os sinais de Cristo no
mundo houvesse uma consonância liminar, como se Vieira estivesse num local
e a sua palavra estivesse em toda a parte. Quando vemos no púlpito os actores
que representam Padre António Vieira, eles falam a maior parte do tempo
para um espaço que não se vê, ou que não se vê na totalidade, deixando em
aberto a inscrição do próprio espectador na assistência do sermão. Este dispositivo de ligação entre a imagem e o som, que podia servir apenas o propósito
pragmático de poupar tempo para inserir os sermões de Padre António Vieira
ao longo do filme, cria um imaginário surpreendente, que nos afasta radicalmente da mera função ilustrativa em que se baseiam muitas biografias históricas
do cinema industrial.
195
PALAVRA E UTOPIA: ANTÓNIO VIEIRA NO FILME DE MANOEL DE OLIVEIRA
A simplicidade primitiva dos enquadramentos de Manoel de Oliveira, definidos através de eixos que acentuam a dimensão cenográfica dos espaços, bem
como a longa duração dos planos, permitem realçar o efeito de teatralidade,
que é uma das características da obra do cineasta, como é uma das características da estratégia discursiva de Padre António Vieira. Estes elementos ressaltam
de maneira brilhante na cena da argumentação no Vaticano, quando Padre
António Vieira e Padre Jerónimo Catâneo, num debate académico para divertimento da Corte da Rainha Cristina, dissertam sobre o Riso de Demócrito e
as Lágrimas de Heraclito.
Cabe ao Padre Catâneo exemplificar no filme o modelo de oratória
barroca, afectada, ornamental e vazia de sentido que Vieira condenava e atribuía aos pregadores comediantes. Enquanto o discurso de Padre Catâneo é
rebuscado e pueril, centrado unicamente no malabarismo das palavras, a argumentação de Padre António Vieira é de uma clareza cristalina, preocupada
em exprimir uma visão critica do mundo. Na resposta à questão de saber qual
dos filósofos gentios terá sido mais prudente, se Demócrito que ria sempre,
se Heraclito, que sempre chorava, Padre Catâneo escolhe a defesa do riso de
Demócrito enquanto Padre António Vieira fica com a defesa das lágrimas de
Heraclito. Depois de reconhecer que o riso e o pranto são propriedades indiscutíveis do ser racional, com as quais o homem traduz o seu sentimento da
realidade, pergunta Vieira como pode o homem rir de um mundo que é um
mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças e de mortes?
Seguramente, só pode rir deste mundo quem não o conhece. Neste debate de
salão, que ficou registado e se tornou célebre, Vieira volta a utilizar a metáfora do mundo como um imenso teatro trágico, pois cada dia que passa é uma
fatalidade na existência efémera do ser humano, condenado ao infortúnio, à
miséria e à morte.
Vale a pena recapitular o início da cena, porque ela introduz uma espécie
de rima interna no filme que nos diz muito acerca da figura de Padre António
Vieira tal como é visto pelo cineasta Manoel de Oliveira. Os convidados da
Rainha Cristina entram no salão do Vaticano e sentam-se para assistir ao jogo
de palavras. Entretanto Padre António Vieira olha em volta. E, pela segunda
vez no filme, depois da cena inicial do Tribunal da Inquisição, quando Vieira
olhou para a escultura do Cristo negro crucificado, Manoel de Oliveira dá-nos
de novo três ou quatro planos subjectivos de António Vieira. O que ele vê e o
196
EDUARDO GEADA
que nós vemos são paredes de mármore precioso, cobertas de frisos dourados
e pinturas a fresco onde se misturam temas clássicos da mitologia pagã com
evocações bíblicas, características do período barroco. Quem vive naquele
mundo artificial, pleno de mordomias, pompa e circunstância, terá por certo
bons motivos para rir, mas quem, como Vieira, conhece a realidade dos que
sofrem e lutam todos os dias pela sobrevivência não pode senão juntar-se às
lágrimas de Heraclito.
A teatralidade barroca é um dos preceitos incontornáveis da cultura do
Século XVII. E o teatro como metáfora da existência é uma figura de estilo
comum a diversos escritores da época, que se debruçam sobre a dialéctica do
ser e do parecer, da ilusão e do artifício. Mas em Vieira, a teatralidade da arte
oratória, a frequência da hipérbole e da alegoria fundem-se com a desmesura
visionária, a obstinação idealista, o nacionalismo místico, a coragem indómita,
o carácter exaltado, a mestria pedagógica, a fé missionária. Nele, a componente
teatral não é sinónimo de fingimento ou de representação vã, antes a essência
de uma realidade que é dramática por natureza. Ora, justamente, a noção de
que a realidade social e existencial só pode ser apreendida através de um dispositivo teatral tem manifestas analogias com a poética de Manoel de Oliveira,
para quem o cinema é, antes de mais, um registo audiovisual do teatro, na
medida em que tudo o que se põe diante da câmara de filmar passa a ter necessariamente uma dimensão teatral.
Tanto em Vieira como em Oliveira a procura da palavra justa, ou da
imagem justa, deriva de uma postura ética que entende a linguagem simultaneamente como forma de conhecimento do mundo e como manifestação da
transcendência. Os referentes materiais da realidade degradam-se e perecem,
mas o testemunho da palavra e da imagem perdura como herança espiritual.
Porém, enquanto a palavra de Vieira visa o excesso, a imagem de Oliveira visa a
contenção. Se um pode associar-se à exuberância barroca, o outro deve aproximar-se da depuração minimalista. Assim, à estratégia da metáfora em Vieira
corresponde a estratégia da metonímia em Oliveira. O pregador utiliza os
mecanismos semânticos de analogia entre realidades distintas, o cineasta opta
pela contiguidade visual e sonora entre o que está dentro de campo e o que se
supõe estar fora de campo. Vimos já alguns exemplos da metáfora nos sermões
de Padre António Vieira, vejamos agora alguns exemplos da metonímia no
filme de Manoel de Oliveira.
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PALAVRA E UTOPIA: ANTÓNIO VIEIRA NO FILME DE MANOEL DE OLIVEIRA
Quando ouvimos o Sermão do 4º Domingo da Quaresma, pregado em 1657 na
Igreja Matriz de S. Luís do Maranhão, vemos um grupo de escravos negros
diante da porta aberta da Igreja. Quando passamos para o interior da Igreja
vemos uma estátua de Cristo em agonia. Ouvimos mas não vemos Padre
António Vieira. A multidão que se acumula no exterior indicia que a Igreja
possa estar cheia, assinala que os escravos ouvem com atenção as palavras de
Viera mas não têm assento no interior. E o corte visual dos escravos no exterior
para a estátua de Cristo no interior prolonga o eco de sentido que as palavras
de Vieira evocam. Manoel de Oliveira não é um cineasta realista, não pretende
que a sintonia da imagem e do som criem a ilusão da transparência discursiva,
pelo contrário, quando dissocia a imagem do som procura que o som se torne
ele próprio uma imagem mental de outra coisa que não aquela que estamos a
ver no plano. Gera-se assim o imaginário de uma realidade invisível que é a
arte suprema do cinema. Dir-se-ia que, nos filmes de Oliveira, quanto menos
elementos referenciais se inscrevem na imagem maior é o potencial de significação que ela apresenta.
Outro exemplo, porventura dos mais belos de toda a obra de Manoel de
Oliveira, está no plano do naufrágio, ocorrido na viagem que Padre António
Vieira fez em 1654 do Brasil para Lisboa. O plano começa sem ninguém,
só vemos rocha, mar e céu. Depois, um por um, surgem Vieira e os seus
companheiros de viagem. Não vemos de onde vêm nem para onde vão. São
homens perdidos na paisagem, que regressam extenuados do fundo do oceano
longínquo. Nenhuma outra imagem evoca melhor, e com tão poucos meios, o
que foi a epopeia, a solidão e a tragédia dos navegadores portugueses.
Ao longo do filme a figura de Padre António Vieira é representada por três
actores, dois portugueses e um brasileiro: Ricardo Trepa, Luís Miguel Cintra
e Lima Duarte, todos notáveis.
Poder-se-ia dizer que a longevidade de Vieira exigia que actores de idades
diferentes interpretassem as várias fases da sua vida. Esta justificação de ordem
prática, embora correcta, não esgota as hipóteses que o filme explora. Manoel
de Oliveira dá a conhecer um personagem complexo, contraditório, multifacetado. Vieira foi um patriota fiel ao seu rei e ao seu país, mas não se inibiu de
criticar o rei e o país. Foi um missionário fiel à sua Igreja, mas não se inibiu de
entrar em conflito com os seus representantes. Foi um diplomata nas Cortes
da Europa e um andarilho nas florestas tropicais. Nenhuma das suas profecias
198
EDUARDO GEADA
se cumpriu, nenhum dos seus projectos políticos se concretizou. Não obstante,
a palavra e a utopia fazem dele uma das personalidades cimeiras da cultura de
expressão portuguesa. Ao lê-lo sentimos que é um cidadão do mundo e um
homem que ultrapassa o seu tempo. É português e é brasileiro, é africano e é
judeu, é cristão e é herege. António Vieira encarna à perfeição o aforismo de
Fernando Pessoa: “cada um de nós é tanta gente.”
199
200
A Inércia Obediente
João Soares Santos
“The puppet is the actor in his primitive form.”
George Bernard Shaw
1. Talhados num dado material, os corpos das marionetas induzem a mente
humana a conceber nas suas aparências imóveis uma presença sem determinação, submetida a um controlo exterior, a supor ou a crer que são figuras
susceptíveis de serem ocupadas ou manipuladas por forças, por entidades que
lhes insuflam ânimo, lhes concedem motivação e precisão maquinal.
Esta ausência sagaz ou imbecil ao ser vitalizada age numa infatigável entrega,
numa disponibilidade sem convicção, ao sabor dos desígnios daquele que a
alenta. Artificiosamente operada, a sua materialidade inerte fica dócil e dependente de quem dela se apropria. Em movimento, a marioneta concentra em si
os interesses e as atenções, cria uma relação física e imaginária com o espectador
ou com o sobrenatural. Sincronizada com uma cognoscibilidade que a transcende, adquire uma existência enquanto personagem, deixa-se dominar por
faculdades que por sua via se afirmam, por um querer que a instiga a actuar de
um certo modo. Desprovida de livre arbítrio, de capacidade de escolha, a sua
indiferença, a sua passividade é beneficiada pelas intenções daquele que pensa
e procede por seu intermédio. Ela é o agente para um desiderato, o utensílio
de um engenho e pujança que nela se instala e autoriza a significar. Se, por um
lado, o manipulador a emancipa da imobilidade e a subordina às suas habilidades e conveniências, por outro, a sua neutralidade obediente e adaptável
sugere uma tranquilidade sepulcral, uma firmeza imutável apta a resistir a todas
as veleidades. Embora dotada de uma fictícia motivação, apesar de simuladamente experimentar a agitação do seu papel numa intriga, permanece incapaz
de ter iniciativa própria, mantém-se fria e insensível ao que acontece, participa
mas preserva-se intangível, substancialmente imparcial. A sua rigidez impessoal e muitas vezes articulada, garante-lhe uma rendição inesgotável a todos
os caprichos, uma tenacidade desvelada e irreflectida em todas as obrigações,
condições, sentimentos, gestos ou fantasias. A sua consistência sem identidade
é o segundo corpo do manipulador. Expõe, é absorvida pelo Pneuma artístico
201
A INÉRCIA OBEDIENTE
daquele que dela se serve, obedece, sem tino, possuída e amplificada expressivamente por uma conduta deliberada e cuja acção em si se manifesta.
Apesar das diferenças culturais, as marionetas parecem ter surgido a partir da
possibilidade de haver forças misteriosas na natureza, uma inerência espiritual
nas coisas e criaturas bem como da hipótese destas se deslocarem, transferirem ou exercerem pressões e influências. Apesar da materialidade orgânica e
processos vitais intrínsecos, subsiste no homem e nos outros seres uma elementaridade incorpórea, vincula-se e opera nele uma concordância volátil, uma
comparência subtil que em certas circunstâncias o pode abandonar.
No antigo Egipto um escultor era designado por «fazedor de vida» (Seankh)
e, após a conclusão do entalhe de uma estátua, realizava-se um ritual no qual
um sacerdote tocava na boca aberta deste com um artefacto adequado (Setep
ou Pesechkef) para lhe conceder vida. O conjunto dos elementos ou princípios
espirituais que singularizam uma potestade ou indivíduo (Ba) alojavam-se nas
imagens que os representavam. Esta essência imaterial tinha, entre outras, a
configuração de uma ave com cabeça humana. Mas o Ba podia ser igualmente a
faculdade de uma divindade incorporar objectos ou seres. Um deus podia ser o
Ba de outro, ocupar um animal sagrado ou introduzir-se em estátuas e imagens
pictóricas. Uma obra escultórica era entendida como um recipiente, algo que
acolhia o Ba do representado se este fosse devidamente convocado para isso. O
Ba das entidades sobrenaturais tinha múltiplos nomes e morfologias e significará
aquilo a que aproximadamente poderemos chamar alma, uma substancialidade própria e única desprovida de evidência concreta. Ba indica também «ser
detentor de uma alma» e Ba en Nub («alma de ouro») um amuleto, ou seja, um
objecto portador de uma eficácia mágica. O símbolo hieroglífico egípcio para
Ba (um jabiru, ave parecida com uma cegonha) ao ser composto com outros
pode denotar sentidos diversos como «admirar», «ficar pasmado», «livro»,
«troçar», «escarnecer», «escavar com um instrumento», «coisas trabalhadas a cinzel», «caverna», «buraco», «ribeiro», «nascente de um rio»,
«harpa», «recipiente», «cinzel», ou «estar feliz».
Durante a primeira e segunda dinastia, o indivíduo era inteligibilizado
como constituído por um nome, um corpo mortal, uma sombra (Chut) e duas
dimensões imateriais (Ba e Ka). Ka era a consciência, o génio, o duplo invisível, a vitalidade, a pujança que singulariza a pessoa, aquilo que a nutre e que
dela se solta quando perece. Supostamente o Ka surge no nascimento de cada
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JOÃO SOARES SANTOS
pessoa, modelado juntamente com o corpo na roda de oleiro do deus Khnum
ou Khenemu. O túmulo era a «casa do Ka» e dentro dele esvoaçava o Ba e seu
residente recebia alimentos. Ba e Ka unem-se na morte originando Akh (princípio imortal, perpetuidade espiritual).
Sobre as estátuas egípcias eram inscritas fórmulas mágicas destinadas, por
exemplo, a evocar uma qualidade protectora e estas eram vigoradas, ficando
carregadas com a força almejada no registo, transmitindo-a ou irradiando-a.
Supostamente, o faraó enquanto dormia soltava os efeitos pretendidos por
estes textos que interpelavam o sobrenatural, intermediava e tornava possíveis os
pedidos do seu povo aos deuses. O soberano era o depositário de uma pujança
legada dos seus antepassados na terra, descendentes de entidades divinas. Elo
de uma continuidade de origem muito remota, de uma anterioridade que
retrocede à própria génese, devia preservar e garantir a não interrupção desse
processo, mantendo intacta a ordem da sociedade. A «Abertura da Boca»
(Uep Ra) era uma cerimónia funerária em que um sacerdote oficiante, com um
instrumento próprio (Pesechkef) vitalizava o morto e as estátuas, capturando e
reintroduzindo a alma não encarnada no mesmo corpo ou num corpo substituto. Depois de o ritual ser administrado eram colocadas no túmulo uma ou
mais estátuas em pedra e madeira, adequadamente consagradas para servirem
de receptáculo alternativo ao seu modelo. No caso de a múmia ser destruída, a
alma do falecido podia ser transferida para um outro corpo que o representava.
Figuras de pequena escala, por vezes com a morfologia de múmia desempenhavam algumas das tarefas a cumprir pelo defunto no além. Tomavam o seu
lugar, supriam-no como desdobramentos servis e prestáveis das incumbências
(frequentemente agrícolas) sem deixarem de ter a imagem e a essência do morto.
Estes artefactos estavam por isso conceptualmente potenciados, possuíam um
sopro anímico, um princípio de vitalidade. As dimensões materiais e imateriais intersectavam-se, estendiam-se uma pela outra, sem se prescindirem. De
algum modo o cadáver e a sua substância anímica lembram a imóvel marioneta
que é preparada para se erguer e deslocar ao sabor da vontade daqueles que por
ela zelam e manipulam.
Esta ideia de preenchimento supernal existiu na arte da Mesopotâmia.
Uma estátua era concebida para integrar um templo e assegurar a protecção
divina a quem ela retratava. As potestades («Dingir» em língua suméria ou
«Ilu» em acádico) residiam nos confinamentos da forma e do volume dos
203
A INÉRCIA OBEDIENTE
edifícios e objectos sacralizados. A sua presença real era garantida pela estátua
que continha, encerrava, simbolizava ou evocava a sua identidade.
Um poema detalha as diligências de Nergal (Erra), deus subterrâneo associado com a belicosidade, doença e devastação, para convencer Marduk a
abandonar a sua estátua de culto. Conseguido o seu intento, ficando esta desocupada, bem como o templo em que se encontrava, Nergal teve a liberdade
para praticar acções nefastas.1 O simulacro ou substituto preservava a substância
vital do devoto, do governante ou do deus, a imagem acolhia e participava nos
desfiles realizados durante as festividades religiosas, sendo colocada sobre
carros sumptuosamente ornamentados e conduzidos pelo soberano. Assim
sucedia no Akitu ou Akiti.
Ea (Enki) divindade das águas sobre as quais a terra flutuava (Absu), desejoso
de locupletar o espaço vazio do mundo criou tudo o que existe pela modelação de pedaços de argila, incluindo certos deuses vocacionados para tarefas
particulares. Da inanidade obteve exortação. As perturbações de saúde eram
entendidas como a consequência de uma ofensa aos deuses ou como a comparência dominadora de um espírito maligno que deveria ser expulso por um
sacerdote especializado. Os deuses deixavam de se preocupar com os homens
quando eram por estes ofendidos. Sem esta segurança, os demónios viam facilitada a possibilidade de se alojarem nos seus corpos, causando transtornos e
precisando de serem esconjurados. O Ashipu (termo acádico correspondendo
sensivelmente ao de «Mashmash» sumério e «Masmashu» semita) detinha
o talento muito remoto de expurgar e acautelar estas possessões. Usava o dom
da palavra para fazer sair a entidade nefasta, induzi-la a libertar-se do corpo
apropriado. Empregava estatuetas que durante o processo eram alvo de actos
violentos e sujeitas a destruição. Desatava os nós dos fios que simbolicamente
amarravam e tolhiam os movimentos da vítima. Este sacerdote «consagrará as
estátuas divinas e os objectos de culto de modo a dar-lhes vida. Pela “lavagem,
abertura da boca”, como os egípcios faziam, tocando-lhes com um instrumento apropriado e recitando fórmulas, as estátuas tornar-se-ão vivas, o
mesmo acontecendo com os objectos de culto: o Lilissu ou santo timbale, cujo
som acompanhará a cerimónias». 2
Na Mesopotâmia, o vocábulo para corpo (Zumru) aplicava-se indistintamente tanto para o invólucro mortal como para uma edificação ou para uma
figura cinzelada de uma potestade. A origem do termo poderá ser Mashku (a
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JOÃO SOARES SANTOS
pele, aquilo que envolve, contorna, delineia ou contém algo). O indivíduo é
uma miniatura de barro, um simulacro, uma figuração tridimensional amassada em matéria orgânica dúctil, posteriormente desentorpecida e incutida
de ânimo. Como uma estátua, degrada-se com o efeito da temporalidade e,
quando morre, retorna à origem, de si se desprendendo uma espécie de alma
errática (Etemmu, um termo que foneticamente recorda o sânscrito Atman = a
alma, o princípio vital).
2. Persiste entre as crenças das sociedades tradicionais a noção de que as
enfermidades mais graves são motivadas por forças provenientes de uma
dimensão que transcende a compreensão humana. Energias lesivas são instigadas por uma transgressão individual ou por iniciativa de alguém com o dote
mágico de transferir para um corpo algo que não lhe pertence ou de lhe retirar
uma parte essencial do seu vigor. Também um artefacto pode provocar uma
doença. Um agente sobrenatural pode inserir-se num corpo por uma vulnerabilidade deste ou através de um objecto com a aptidão sortílega para isso
suceder. Entre outras alternativas, a alma pode retirar-se do indivíduo quando
ele sonha. A sua ausência do corpo pode motivar alterações nas funções e
privá-lo de saúde. Um efeito mágico nocivo pode ser obtido pela utilização de
um boneco ou efígie que substitui a vítima ou pela criação de um modelo da
componente corporal que se pretende atingir com a proferição dos encantos
adequados. Os Kai da Nova Guiné acreditam que ter um pedaço de cabelo de
alguém ou do tecido vestido por uma pessoa pode servir para interferir com a
sua alma e causar resultados funestos.3 Os espíritos malignos podem permear
a matéria conformada que constitui o indivíduo e expressarem-se através
dela bem como introduzirem-se num órgão ou atacar a sua sombra. Certas
perturbações mentais são explicadas segundo este tipo de raciocínio, embora
em muitas culturas estas não sejam admitidas como uma efectiva enfermidade.
O indivíduo se estiver investido por uma divindade e actuar por vontade dela
pode ser considerado um homem santo, proceder como um sacerdote, um
xamane e, em certos casos, também como um dançarino, um actor ou um
manipulador de marionetas.
A prodigiosa intromissão beneficiosa ou hostil de um espírito num corpo
vivo ou, por exemplo, numa máscara, boneco ou títere é um testemunho asseverativo do seu potencial receptor. Em muitos casos, esta qualidade de ser uma
205
A INÉRCIA OBEDIENTE
provisória residência ou ponto de passagem resulta em doença. Esta é admitida, como foi referido, como o alojamento de uma presença oriunda de outra
realidade, a penetração de uma força externa que, por exorcismo ou magia
deve ser transposta para outro lugar. Pode também ser a punição sobrenatural
advinda de um acto interdito ou a ausência da alma causar definhamento ou
perturbação no revestimento anatómico e configurar uma patologia.
Segundo a tradição grega, Pandora («a que dá todas as coisas» ou «a que
tem todos os dons») foi uma mulher que, por ordem de Zeus, foi modelada em argila por Hefestos com o auxílio de outros deuses. «Disse a Hefestos
para misturar terra e água, lhe dar uma voz e o poder humano para se mover,
para que lhe fizesse uma face semelhante a uma deusa imortal e para modelar
a sedutora figura de uma virgem (…). Tal como Zeus ordenara, o deus coxo
configurou a terra com a imagem de uma modesta rapariga (…).4 Através dela,
o filho de Cronos castigou a humanidade.
Prometeu criou a humanidade contornando pedaços de argila, roubou
o fogo do Olimpo e instruiu o seu filho a construir uma arca para salvar do
dilúvio enviado por Zeus a espécie que concebeu. «O artesão divino tanto
em Hesíodo como nos Sumérios-Babilónios começa por dar forma ao corpo
humano a partir de água e argila antes de lhe insuflar uma alma.»5 Em sânscrito
a palavra «Prometeu» parece corresponder a «Pramantha» (raiz «Math» ou
«Manth») significando «violento», «torturante», «que sofre» ou «que está
em tormento». «Math» indica «girar em volta», «mover-se», obter o fogo
pela rotação de um pau seco, «agitar-se», «ficar abalado», «ficar perturbado». O equivalente indiano de Prometeu é a divindade védica Matarishvan
(um dos nomes de Agni ou uma potestade com ele relacionada) que trouxe
o fogo escondido e foi o primeiro a usá-lo em sacrifício. Construiu também
uma embarcação para salvar as criaturas de um dilúvio e para transportar as
almas dos falecidos para o mundo dos mortos.
Pigmaleão, rei de Chipre, terá, certa vez, esculpido uma estátua de marfim
retratando Afrodite e a sua conclusão ficou de tal modo deslumbrante que o
soberano se enamorou pela obra. Rogou à deusa representada para que lhe
concedesse o milagre de ter uma esposa idêntica à imagem e ela, condescendendo, atribuiu vida à própria estátua.
Certa vez, Gauri («brilhante», «dourada»), a consorte de Shiva, visitou
a oficina de um talentoso carpinteiro e ficou pasmada com a habilidade das
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JOÃO SOARES SANTOS
suas bonecas. Shiva para maravilhar a sua companheira dotou-as de vida para
que pudessem dançar. Vendo o portentoso acontecimento, o artesão pediu
para que esta magia se mantivesse nas suas esculturas. Desde então, as suas delicadas figuras passaram a ter a aptidão de poderem voar no céu, de transportar
grinaldas, de ir buscar água e de narrar histórias.
Segundo o «Antigo Testamento», Deus concebeu o Homem a partir do
barro e infundiu-lhe um sopro de vida. Na mitologia chinesa Nu Gua (mulher
semelhante a um caracol), criou os humanos de lama e terra amarela. Quando
um eminente mongol falecia, o seu cadáver era incinerado, as cinzas misturadas com argila e esta convertida numa imagem antropomórfica depositada
no lugar da fogueira. Nas dramatizações de marionetas da Malásia (Wayang Kulit
Siam), a personagem cómica mais idosa chama-se Pak Dogol, tem um estômago,
umbigo e nádegas desproporcionadas, furúnculos por todo o corpo e costuma
apresentar-se com o camarada Wak Long, igualmente disforme, nos papéis
de servos ou de companheiros de Seri Rama nos enredos do «Ramayana». A
monstruosidade anatómica de Pak Dogol serve para dissimular a sua natureza
divina. De facto ele é Dewa Sanghyang Tunggal, irmão de Betara Guru (Shiva).
Depois de ter vindo à terra, percebeu que o resplendor do seu corpo e do seu
intelecto era tão intenso que podia ofuscar e cegar os humanos. Optou então
por uma conduta recatada. Avistando um curso de água, aproximou-se dele e
cobriu o corpo de argila. Com o mesmo material modelou Wak Long para não
se sentir solitário. Para além de aparecer em representações e nelas nunca expor
a sua verdadeira identidade, esta figura de couro pintada de negro costuma ser
utilizada em rituais curativos e alegadamente tem dotes espirituais.
Na região de Fujian, uma marioneta de fios considerada ser a divindade
Xianggong ou o supremo marechal Tian, costuma ser empregue numa cerimónia de esconjuração na qual fica preenchida por Tian, o líder do grupo dos
actores do Jardim das Pereiras e favorito do seu mentor e patrono, o imperador Xuanzong (reinou entre 712 e 756) da dinastia Tang. Em certas zonas
desta província chinesa, o logograma para mencionar «médium feminino»,
«sacrifício», «bode expiatório» e «marioneta» é o mesmo. A função
purgativa destas figuras remonta a períodos muito recuados e as suas aptidões
exorcistas mantiveram-se a par dos desempenhos de entretenimento.6
Nas representações de marionetas da China surgem segmentos rituais que
auscultam e interpelam o sobrenatural de modo a que as suas entidades possam
207
A INÉRCIA OBEDIENTE
atrair a boa-sorte, possam proporcionar um futuroso advir. Os espectáculos
são dedicados às divindades e, por vezes, podem ser interpoladas neles peças
com um propósito purificador, para expurgar a área ou o espaço cénico de
pressões malignas. Em Taiwan, os títeres de fios estão conectados com a acção
de eliminar ou afastar o que é nocivo, com a expulsão, supressão ou o erradicar
de demónios nas casas, templos ou aldeias e assegurar a salubridade espiritual
de um lugar. Na cerimónia de inauguração de uma nova habitação, Xianggong
(uma criança de rosto acastanhado envolto numa faixa vermelha, com um pincel
numa das mãos e um painel com as estrelas da grande ursa na outra) percorre
e interpreta no interior do sítio a coreografia das sete estrelas (Qixingbu) e a da
instalação dos oito trigramas (An Bagua). Chega depois à soleira. Aí o seu manipulador profere a fórmula da espada (Jianjue) e simula uma mímica de ataque
juntamente com a repetição das danças precedentes.7
Neste país, as estátuas das divindades nos templos só possuem uma influência ou stimulus mágico quando os seus olhos «são abertos». A sua força
superior para provocar consequências extraordinárias depende da observância
cerimonial que implica o desenhar da sua pupila com o sangue de um galo
imolado. Assim a escultura passa a dar refúgio ou a apreender as entidades que
para si foram convocadas.
3. Uma marioneta é um boneco talhado e manuseado para simular ter uma
existência. Na Grécia Antiga, Platão referiu algumas vezes essas figuras que se
viam e causavam encanto, comparando-as ao indivíduo manobrado pelo ignoto
arbítrio dos deuses e ao indivíduo governado pela racionalidade. «Não poderemos nós ver cada criatura viva como uma marioneta dos deuses, que pode
apenas ser um brinquedo ou ter sido criada com um desígnio; poderemos nós
verdadeiramente saber? Sabemos porém que estas afecções em nós são como
cordas finas e fios que nos puxam em direcções diferentes e contrárias e para
acções opostas; aqui está a diferença entre virtude e vício».8
Em grego pequenas imagens de cera que imitavam seres humanos e eram
empregues em ritos mágicos denominavam-se por «Dagys» ou «Dagynon».
De um modo geral «boneca» pronunciava-se «Plaggon» e o artesão que
as fabricava chamava-se «Koroplathos». Para «Marioneta» empregava-se
«Tauma» (mesmo termo para «admiração», para «objecto causador de
espanto») e «Taumatopoios» referia-se a algo que não era comum, a algo
208
JOÃO SOARES SANTOS
que suscitava estupefacção, algo prodigioso. «Neuropasta» era outro vocábulo
utilizado («Neura» significa «fio», «corda de arco» ou «corda de instrumento de música» e «Neuron» indica «nervo», «tendão», «músculo»,
«fibra») para títeres accionados com fios. «Neurospastia» é a operação de
mover com cordas e «Neuropastes» aquele que movimenta por meio de filamentos, o manipulador das marionetas.
Em latim encontramos vários termos concernentes a este assunto. Por
exemplo, «Pupa» para «boneca», «Imaguncula» (termo derivado de
«imago», ou seja, uma representação, a forma ou o fantasma de alguém, um
sonho) para «imagem, «retrato», «figura», «Sigillaria» para pequenas
figuras trocadas como presentes numa festividade homónima realizada em
Roma, «Nervis Alienis» para «estrangeiros» ou «estranhos movidos por
fios», «Ligniolis Hominum Figurae» para «figuras humanas de madeira»,
«Homunculus» para «homem» ou «modelo de figura humana» ou ainda,
como no grego, «Neurospaston» para «marioneta». Em sânscrito «Pupa»
menciona um bolo ou uma espécie de pão (farinha amassada e cozida).
«Marioneta» corresponde a «Putraka («filho», «criança»), «Putrika
(«filha», «pequena estátua»), «Puttala» («boneca», «efígie», «estatueta»), «Puttalika» ou «Puttika» («boneca», «marioneta»).
O primeiro nome conhecido de um marionetista foi Potheimos, aludido
pelo gramático Athenaeus (séc. III) na obra «Deipnosophistae», a propósito das suas exibições no teatro de Dióniso em Atenas, capazes de captar mais
público que as peças de Eurípedes.
Na tradução de uma obra atribuída a Aristóteles, Appuleios (c.130-170)
registou: «aqueles que dirigem os movimentos das pequenas figuras de madeira
quando puxam o fio que controla um membro, o pescoço encurva, a cabeça
acena, os olhos vibram, as mãos adaptam-se a qualquer acção requerida e todo
o corpo se move graciosamente como uma coisa viva.»9
Estes artefactos imaginados como portadores ou receptáculos de uma substância ou pujança sublime serão provavelmente o protótipo ou matriz das
marionetas. Estas esculturas pintadas e com partes móveis, supostamente detentoras de faculdades que transcendem a compreensão foram encontradas nos
túmulos, participavam em rituais, serviam para propiciar, para influenciar ou
para divertir. Este corpo inânime ao ser entranhado por uma vontade externa,
adquire a intenção e o vigor de quem a controla, estabelece uma osmose com
209
A INÉRCIA OBEDIENTE
o seu manipulador. Quando este é humano perde também a iniciativa própria
e revela o assomo de pretensão de um agente extraordinário. A sua minúcia e
intensidade não dependem da sua determinação mas de uma ausência receptiva
à visita de entidades sobrenaturais. Assim a arte das marionetas parece porvir
desta ideia de que os corpos possuem uma vitalidade não somente orgânica,
transportam uma natureza etérea ou ténue que pode ser deslocada ou temporariamente substituída.
No culto arménio a Gisane («aquele que tem o cabelo comprido»), uma
potestade que descende da deusa mãe Turan, os sacerdotes (Gusans ou Goussans)
usavam o cabelo comprido, penteado para cima e preso no topo da cabeça
em forma de cone (Gisakal). A morfologia deste corpo sólido passou depois a
ser constituída por triângulos. Nas cerimónias consagradas à ressurreição de
Gisane ocorriam momentos de desmesura comportamental e nelas participavam os Gusans e as sacerdotisas (Vartzaks) da deusa mãe Anahita, conotada com
a fertilidade. A designação pretérita para actor (Vartzak e Gusan) na Arménia
(território situado entre a Turquia, Azerbaijão e Irão) deriva inicialmente das
obrigações rituais destes ministrantes que se foram gradualmente distanciando
destas práticas estritamente sagradas, desdobrando-se em actividades bárdicas
e histriónicas. Os Dzainarku Gusans ou Gusan Voghbergaks pranteavam o falecimento
dos monarcas Arménios, louvavam os seus feitos e glorificavam pela música
os membros das suas famílias. Nos ritos funerários (Vorghbergutiun = «canção
de lamentação») entoavam em público para dar expressão ao padecimento
colectivo. Na Índia, o termo sânscrito «Ghoshaka» refere um pregoeiro e
«Ghosha» significa «gritos confusos emitidos por uma multidão», «choro»,
«exclamação de pesar», «vociferação de aflição» ou «grito de vitória». Entre
os Partos, os ministreis eram designados por «Goshan». Na Arménia, para
indicar um actor cómico proferia-se o nome «Katak» ou «Katakagusan».
Os narradores de epopeias (Katakergag Gusans) recorriam ao gesto e à mímica de
um modo autónomo ou para complementar o texto.10 O vocábulo sânscrito
«Katha» denota «discurso verbal», «conversa», «récita» e «Kathaka»
significa «recitar», «relatar», «proferir uma história» ou «narrador
profissional». Será curioso realçar que o chapéu cónico dos Gusans parece ter
prevalecido entre os acessórios dos actores arménios, europeus, em certos
géneros teatrais da Índia e sudeste asiático. No teatro clássico Grego as máscaras
eram encimadas por testas e penteados altos (Onkos) que por vezes envolviam
210
JOÃO SOARES SANTOS
toda a cabeça e eram apertadas com fitas debaixo do queixo. Também nas
marionetas turcas, iranianas, russas e indianas aparece o chapéu cónico.
Muitas vezes são os actores e bailarinos a imitar a exactidão mecânica das
marionetas. Isso sucedia no «teatro de sombras maior» (Qiaoyingxi) da dinastia
Song (960-1279) no qual estes simulavam a mutabilidade das figuras de couro
atrás de um ecrã. Zeami Motokiyo (1363-1443) no tratado «Um espelho para
a Flor» ou «Espelho da Flor» («Kakyô») compilado em 1424, refere que
o actor deve aprender a tornar-se o objecto da sua representação. «O que o
espectador vê é a imagem externa do actor. O que o actor vê é a sua própria
imagem interior.»11 Compara a existência humana à de uma marioneta de fios.
Se um deles for cortado a criatura desmorona-se e perece. No Nô (Sarugaku) o
corpo do intérprete é dirigido pelos fios da mente. Esses fios devem ser invisíveis da assistência. Mesmo quando «não faz nada» tem de estar concentrado
no comando do títere que é a sua materialidade individual.
Reproduzindo o modo de falar e a mobilidade, tomando como exemplo o
ser humano, a marioneta suscita o riso e a deploração, o teatro evade-nos da
finitude, dos contextos prosaicos, do destino mortal a que estamos sentenciados.
Numa infatigável entrega patenteia as virtudes e as imperfeições. Alguém ou
algo a desperta do seu torpor e a guia de modo a estimular e a persuadir a imaginação dos assistentes. A sua inane permanência ao receber vigor vai exprimir
ou dar significado ao que dela se apropriou. Adquire uma visceralidade que
verte a actividade ardilosa ou a veracidade daquele ou daquilo que a manobra.
Constitui um instrumento absortivo que se deixa conduzir e se submete a quem
a manuseia, protegida por uma aura de imunidade sem restrições.
No início dos espectáculos javaneses, uma canção costuma elucidar sobre a
primeira figura a aparecer em cena, a árvore (Kayon) ou a montanha (Gunungan)
e inferir o teor do que se vai desenrolar. «É o ecrã que mascara o deus, mascara
aquele que executa a representação. As marionetas respiram através da alma do
Dalang. O Dalang exala a sua alma para as marionetas. A Kayon projecta o poder
invisível que está por detrás».12 Esse poder habita tudo. Nada pode ser excluído
dessa inatingível latência.
4. As máscaras e bonecos sob instigação de uma magnitude supra-humana
evidenciam a camada residual das exibições profissionais de títeres. Muitas
técnicas elocutórias para formular encantos ou para procedimentos cerimoniais
211
A INÉRCIA OBEDIENTE
foram inteiradas na narração, entoação e gesticulação dos espectáculos de marionetas. Nas suas distintas particularidades, esta arte surge relatada na Índia em
obras como o «Mahabharata», na «Recolha Breve» («Khuddaka Nikaya» ou
«Theri Gatha»), a quinta parte do «Cesto das Escrituras» («Sutra Pitaka»)
que contém os sermões do Buda Shakyamuni, no «Natya Shastra», com a
alusão ao Sutradhara e à hipótese de «aquele que segura os fios», o «contraregra», derivar da animação de títeres, no «Kural», texto em idioma tâmil de
Tiruvalluvar (séc. II), na «Epopeia do Anel» («Shilappadikaran») do príncipe tâmil Ilango Adigal da dinastia Chera, ou no «Kama Sutra» de Vatsyayana
Mallanaga (séc. II-IV). Em muitas peças de teatro sânscrito aparecem interacções ou referências a estas figuras bem como em obras do gramático Panini e
do filósofo e gramático Patanjali.
Na obra budista redigida em idioma pali, previamente enunciada
(«Theri Gatha»), o vocábulo registado para denotar as exibições de títeres
é «Rupparupaka» (em sânscrito «Rupa» denota «figura», «imagem»,
«aparência exterior» e «Rupaka» uma «representação teatral». Entre os
ofícios conectados com as artes do espectáculo ou de cena (Rangavatarana), o
«Mahabharata» distingue um que se chamava «Rupopajivana». «Jivana»
significa «que dá vida», «que vitaliza» e «Rupopa» indica «tirar proveito
de uma morfologia bela». Um termo aparentado, «Rupajivana», depreende
o acto de «subsistir graças à beleza da forma», sinónimo de «prostituta». No
sul da Índia a palavra correspondente a «Rupparupaka» é «Jalamandapika».
A mesma epopeia descreve marionetas «penduradas por fios» (Sutra Prota) .
Os nomes dados aos intérpretes de dramatizações de sombras eram
«Nartaka» («que faz dançar», «mestre de dança», «cantor», «actor»,
«bardo») e Shaubhika, próximo de «Shobhanika» e de «Shaubika» (um tipo
de actor). Shobhana assinala algo «brilhante», «esplendoroso», «esplêndido» ou «belo», ou seja, algo que «causa espanto», à semelhança do termo
grego «Tauma».
Os soberanos deste país promoveram as suas proezas militares, empreendimentos civilizacionais e qualidades morais com o patrocínio de companhias de
marionetas itinerantes. Os seus membros recebiam recompensas por prestar
este serviço de propaganda à valentia, rectidão ou iniciativa do soberano e
podiam acompanhar as suas tropas em campanha ou percorrer localidades
levando e popularizando récitas destes atributos e feitos. Outras vezes eram
212
JOÃO SOARES SANTOS
incumbidos da tarefa de espionagem. A disseminação do budismo apoiou-se
igualmente nestas manifestações. Os ciganos e outras sociedades nómadas
merecem realce no papel de veículo desta arte para regiões longínquas. Na
Hungria, os ciganos criavam pequenas figuras, os «homens mortos» (Manush
mu Lengre) graças aos quais o possuidor recebia os favores de entes demoníacos
ou era-lhe propiciada uma defesa contra actos de feitiçaria.
Na Mesopotâmia, Egipto e Índia, os deuses parecem depreender uma ideia
de potência anónima, são primitivamente pujanças indeterminadas, reduzidas
a nomes e epítetos vagos que gradualmente vão reunindo atributos e, com o
tempo, sintetizar uma identidade mais delimitada. O «Rig Veda» refere um
ente numinoso que age como uma espécie de artesão (Tvashtri), um criador
e um impulsionador de formas. Um ser modelador que dispõe as partes e as
diferenças dos corpos individuais. Um dos agentes ou pujanças abstractas, difíceis de definir, presentes no cosmos. Estas podem incorporar coisas e criaturas.
Ayu condensa de algum modo numa personificação a força vital que fornece
e permite que o homem tenha uma existência. O termo grego equiparável
é «aiou» («princípio da vida», «alma», «duração da vida humana») e o
latino é «aevum» («tempo de vida», «eternidade»). No Egipto, Shu parece
englobar esta mesma inteligibilização. É o deus da luz solar e do ar que, dia
após dia, traz o soberano à vida. O ar e a claridade são imprescindíveis para
afirmar este estado de vigor.
As potestades védicas eram designadas por Asuras. A palavra significa «espiritual», «incorpóreo», «Asu» indica «respiração», «vida» e «Asus» denota
os sopros vitais ou ares do corpo. Um Asura (como Varuna ou Agni) manifesta
a sua energia, o seu ímpeto, proporcionando fenómenos diversos. Estas forças
primordiais do universo tinham uma amplitude benévola e nefasta. No segundo
caso, elas causavam todo o género de turbulências e prejuízos. Descritos com
uma morfologia monstruosa ou zoomorfa, estes espíritos maléficos ou demónios cruzavam o espaço atmosférico, assombravam encruzilhadas, dançavam
ao anoitecer em redor das habitações e podiam ser induzidos por alguém com
intenções malévolas, entrando nas vítimas, bebendo o seu sangue ou provocando enfermidades. Perseguiam preferencialmente as parturientes, os jovens
recém-casados, os mortos e pessoas numa fase particularmente vulnerável.
Podiam ser representados através de uma forma volumétrica e controlados e
orientados com o auxílio de bonecos.
213
A INÉRCIA OBEDIENTE
Não só o que sucede sem intervenção humana resulta de um influxo superlativo inatingível pelo raciocínio como também as acções individuais e colectivas
podem ser ajudadas ou condicionadas por estes poderes superiores. Na Índia,
o «Padma Samhita» realça que antes de um escultor retirar a madeira de uma
árvore para com ela entalhar uma estátua de uma divindade para culto num
templo, deve acatar uma série de procedimentos rituais. Começa por solicitar com reverência o pedaço da árvore pretendida com a seguinte elocução:
«Tornaste-te inerte e imóvel, devido à tua conduta passada. Mas eu escolhi-te para uma condição meritosa, para de ti esculpir a imagem de Vishnu
que conferirá benefícios à humanidade. Não te magoarei, minha amiga, mas
libertar-te-ei do teu presente estado de inércia! Pela graça divina, usufruirás a
veneração que é prestada a uma divindade».
Depois de proferir esta oração, prende o fio abençoado em torno da
árvore, acende um fogo sacrificial diante da mesma, deposita nele oblações
e, enquanto vai entoando hinos, voltado para Leste, corta a árvore com um
machado ritualmente investido para realizar essa operação.13 A madeira retirada é levada e submetida a um outro ritual antes de por fim se iniciar a etapa de
cinzelagem do material. O artesão (Shilpin, aquele que possui a arte de diversificar aparências, que pertence ou é perito numa arte) torna-se nesta altura um
«parente da divindade», abdicando das suas rotinas habituais, permanecendo
num assumido afastamento, jejuando ou mantendo uma dieta apropriada às
circunstâncias e procurando ficar somente concentrado na iconografia que vai
elaborar, relembrando os respectivos Mantras que a descrevem (Dhyana Shlokas)
e Yantras. Subsequentemente, remove da madeira ou da pedra tudo aquilo
que não interessa para a consecução da figura. Envolve-se com a matéria
num enlace místico, seleccionando aquilo que é mais conveniente para obter
a melhor resolução. Tal como o devoto, o artesão sujeita-se à austeridade e
meditação, absorve-se numa deleitada contemplação e nada mais mentalmente
divisa senão aquilo que irá talhar. O «Agni Purana» salienta que o criador
de ícones pode invocar o divino para que em sonhos visualize o modo como
realizar correctamente aquilo que está no seu pensamento.14
Após a obra ficar concluída, esta precisa de ser sacralizada numa cerimónia,
sob pena de não ser mais do que um mero artefacto. Consagrada e depositada no templo, fica submetida a vários outros preceitos rituais. Se for uma
divindade principal, recebe diariamente comida, transportada em procissão
214
JOÃO SOARES SANTOS
e distribuída com o seu consentimento às divindades suas assistentes (Parivata
Devatas) patentes no recinto religioso. Recebe regularmente banhos (Snapana),
várias vezes ao dia em ocasiões especiais. Nos casos em que a imagem não é de
pedra mas de madeira este acto de lavagem não é executado para precaver a deterioração do material. A dádiva de alimentos estende-se aos espíritos que erram
nas redondezas do templo. A imagem pode igualmente ser perfumada, ornada
com flores, sair em desfile (Utsava) à volta do edifício que a contém ou acolher
uma assembleia de fiéis que a ela se dirigem com intentos particulares.
5. Na Índia os Bhutas têm ao longo das épocas sido descritos como seres reais,
espíritos benevolentes e funestos, fantasmas, demónios ou génios. A palavra
«Bhu» denota «existência», «acontecimento», «surgimento» e «Bhuti»
«poder sobre-humano», «força». São entes que vagam pelo espaço, deambulam pelas florestas, que se alojam em habitações abandonadas e a quem os
homens concedem outorgações (Bhutabali) de manhã e à noite. Costumam
atormentar aqueles que negligenciam estes presentes apaziguadores, vingando-se de diversas maneiras. As represálias podem ser a transmissão de doenças
aos humanos e aos animais, a escassez ou ruína das colheitas, a corrupção da
potabilidade da água dos poços, problemas domésticos, com os vizinhos ou
distúrbios mentais. Muitos deles são espíritos de pessoas vitimadas por uma
morte súbita, violenta ou injusta, sem lhes terem sido dispensados os preceitos
funerários adequados. Apesar da sua variedade morfológica e antropomórfica
e do entendimento muito disperso sobre os seus comportamentos, os Bhutas
gostam de se alimentar de carne, de sorver sangue e são os destinatários de
uma cerimónia rural na região de Karnataka e no norte de Kerala, celebrado
pelos intocáveis em santuários próprios (Bhuta Sthana). Alguns Bhutas são mais
excessivos outros mais refreados, uns são mais dóceis outros mais agrestes.
As qualidades (Gunas) de Sattva, Rajas e Tamas que são tendências da natureza
(«Guna» significa também «fio») são-lhes aplicadas. Certos Bhutas foram
concebidos pelas divindades. Panjurli, o javali, foi criado por Parvati que deplorava não ter tido filhos de Shiva. Mas, devido à sua impetuosidade, o animal,
por ter devastado os jardins de Shiva, foi transformado numa criatura desta
índole. Os ritos nocturnos de Karnataka têm como desígnio utilizar a pujança
destas entidades demoníacas em prol de vantagens humanas. Neles participam
sacerdotes não brâmanes (Patri) do santuário, um médium e membros da sua
215
A INÉRCIA OBEDIENTE
família, o requerente ou patrono do evento e assistentes. Realizam-se oblações
de comida, de flores, narração (Paddana), dança, ocorre a possessão (a acção de
«tremer» = «Darupini») do mediador e do Patri de modo a que o Bhuta entre
em contacto com o mundo dos humanos, falando de si, da sua família, das
suas capacidades, possa através do intercessor mediúnico responder a questões
(Kanike) colocadas pela audiência (quem quiser interpelá-lo terá de ter tomado
um banho purificador e jejuado durante esse dia) e servir como oráculo. O
Bhuta promete ser auspicioso e pode assumir uma atitude preferencial numa
polémica autóctone. Diante do santuário, o mediador do ritual interpreta a
coreografia respeitante ao Bhuta a invocar fitando a máscara que o representa e
as suas jóias depositadas num altar juntamente com ofertas. A sua mulher ou
um parente entoa o poema que relata a sua origem e história.15
Na hirteza, na inflexibilidade elementar da máscara reside esta aura ou
halo de onde emanam as probabilidades infinitas do pensamento humano, se
amplificam as modalidades de uma consciência espiritual. Os possuídos pelos
Bhuta são preenchidos pela sua presença como marionetas agitadas pelo sopro
de uma vontade que os supera.
Em Orissa, na área de Sambalpur, durante as práticas devocionais consagradas a Lakshmi, um sacerdote não brâmane («Devgunya», ou seja, «Dev»
= «deus» + «Gunya» = «exorcismo») segura e soa um instrumento musical
com o mesmo nome (uma variedade de Vina com uma cabaça e uma só corda)
representando a própria consorte de Vishnu que é alvo de reverência e veneração ou, alternativamente, Mangala, a deusa da comunidade em questão.
O tanger do cordofone apela à comparência desta que, por via dos acordes
emitidos exorciza Bhutas e afasta os maus pensamentos das cabeças das pessoas.
Cantando e vibrando as cordas, o sacerdote afugenta as potências que flagelam
física e psicologicamente os membros da sociedade local.
Nesta mesma província indiana, na área de Bora Sambar, distrito de
Bargah, a música e os seus instrumentos facilitam a presença de várias potestades femininas. No decurso do Boil, uma cerimónia de possessão, Durga
penetra no seu sacerdote (Pujhari) através da música que está a ser interpretada
pelo ensemble e este começa a dançar. A sua coreografia implica a partir de uma
certa altura um estado alterado de consciência. Fica mergulhado num transe e
o seu corpo obedece ao arbítrio daquela que dele usufrui. Torna-se a própria
personificação da Deusa e sob este efeito procede de um modo descontrolado.
216
JOÃO SOARES SANTOS
O palpitar da deusa em si dinamiza-o e, da sua agitação sagrada emana uma
energia regeneradora que beneficia aqueles que diligenciaram o seu auxílio.16
O teatro absorveu, reteve e estetizou traços de cerimónias deste teor.
Muitos actores e bailarinos da Ásia parecem veicular nos seus movimentos
reminiscências da solenidade vigente neste tipo de manifestações. O actor
transmuta-se, fica investido, ocupado, deixa-se dirigir por uma determinação
que não parece ser ou que não sente como sendo sua. Como se despisse o seu
ego e fosse animado e instrumentalizado por um manipulador em absoluta
concordância consigo.
O actual ventriloquismo, imitação de vozes e diálogo com um ou vários
bonecos, emprega uma técnica aproximada à arte dos títeres. Literalmente a
forma lexical significa «falar pelo ventre» e provém do latim «Ventriculus»,
diminutivo de «ventre» ou «estômago». Começou por ser uma operação
relacionada com os espíritos dos falecidos. O intermediário alegadamente
acolhia-os no ventre e através dele comunicavam vaticínios. Na Índia este artifício era aplicado de modo a simular o discurso de um ser sobrenatural. Nestas
situações a música tem um papel indutor. «A música tem os vínculos mais
fortes com a natureza humana; ela vem das profundezas do sentimento e do
espírito: ela interessa toda a alma. O facto de ter um lugar tão importante nas
civilizações deve-se a o homem não agir pela razão pura: antes de tudo ele é um
ser de fé, de sentimento e de imaginação».17
As companhias de Mak Yong da região malaia de Kelantan são solicitadas a
apresentar uma peça durante uma enfermidade ou para alguém agradecer um
voto de recobro após ter sofrido um período de grave debilidade orgânica. A
música deste género de dramatização impregnada de ritualidade bem como do
teatro de marionetas pode ser tocada em contextos cerimoniais de cura (Putri).
Alguns títeres do Nang Talung tailandês, após um ritual realizado com esse
desiderato, são artefactos sagrados e portadores de uma eficácia sobrenatural.
As figuras do eremita (Rusi), dos deuses e dos cómicos são intimadas a solucionar dilemas, a atenuar preocupações e a responder aos apelos dos habitantes
das aldeias. Quando a sua interferência mágica produz consequências venturosas, estes cobrem-nas com folha de ouro à semelhança do que acontece com
as estátuas do Buda.
Pela boca do primeiro bailarino da ópera da cidade, Heinrich von Kleist
reconhece que a pantomima das marionetas é importante para a formação do
217
A INÉRCIA OBEDIENTE
bailarino. O boneco não tem afectação. «A afectação surge, como o senhor
sabe, quando a alma (vis motrix) se encontra num qualquer ponto que não coincide com o centro de gravidade do movimento. Ora, uma vez que o maquinista,
com o arame ou com o fio, já não tem sob o seu poder qualquer outro ponto
que não este: as restantes partes estão como devem estar, mortas, são puros
pêndulos, seguindo a mera lei da gravidade; uma excelente qualidade que
baldadamente procuraremos na maior parte dos nossos bailarinos».18
A marioneta é, portanto, um objecto pujante. Os rituais e normas sobre
a sua construção e uso na Ásia testemunham a sua ambivalência sonâmbula
entre a materialidade e o metafísico. Estando presente, ela não pertence a este
mundo. Dorme, mas no seu sono age como se estivesse desperta. O manipulador mobiliza a figura, incorpora-a, transfere-lhe um fulgor superlativo. A
marioneta é exorbitada pelo marionetista, representa-o através de si, intensifica-o na experiência de ele a manobrar. Focando nela a sua atenção, o
homem qual personagem de um vasto sonho divino, fita o rasto dos bonecos
procurando na sua mímica uma lucidez que rompa os fios que o prendem e
manuseiam neste mundo.
218
Referências:
1 – Jean Bottéro, «La Plus Vieille Religion en Mésopotamie», Gallimard, Paris, 1998
2 – Georges Contenau, «A Vida Quotidiana na Babilónia e na Assíria» (tradução de
Leonor de Almeida e Alexandre Pinheiro Torres), Livros do Brasil, Lisboa, s.d.
3 - Henry E. Sigerist, «A History of Medicine», Vol. I, Oxford University press, New
York, 1951
4 – Hesiod, «Works and Days» (Tradução de Dorothea Wender), Penguin, London,
1973
5 – Jacqueline Duchemin, «Prométhée: Histoire du Mythe, de ses Origines Orientales à
ses Incarnations Modernes», Les Belles Lettres, Paris, 2000
6 – Poh Sim Plowright, «The Birdwoman’ and the Übermarionette – The Human and
Puppet Connection in the Theatres of the East», British Centre of Union International de la
Marionette, 2004
7 – Lucie Rault, «Marionnettes et Rituels en Chine», «Puck», Nº. 14, Éditions de
l’Institut International de la Marionnette, Éditions l’Entretemps, Charleville-Mézières,
2006
8 – Platão, «Laws», Livro I, «The Works of Plauto» (Tradução de B. Jowett), The Dial
press, New York, s.d.
9 – Michael Byron, «The Puppet Theatre in Antiquity», Da Silva Puppet Books,
Oxfordshire, 1996
10 – Ver Willem Floor, «The History of Theater in Iran», Mage, Washington, 2005
11 – Zeami, «Kakyô», incluído na obra «On the Art of the Nô Drama: The Major Treatises
of Zeami» (Tradução de J. Thomas Rimer e Yamazaki Masakazu), Princeton University press,
Princeton, New Jersey, 1984
12 – Mencionado por Kathy Foley, «My Bodies: The Performer in West Java», «The
Drama Review», Vol. XXXIV, Number 2, The MIT press, Cambridge MA, Verão de 1990
13 – S. K. Ramachandra Rao, «The Icons and Images in Indian Temples», Ibh Prakashana,
Bangalore, 1981
14 – Ananda K. Coomaraswamy, «Hindu View of Art: Historical», incluído na obra
«The Dance of Shiva», Sagar Publications, New Delhi, 1991
15 – Para uma descrição mais pormenorizada deste ritual ver Marine Carrin, «Le Spectacle
des Bhuta: Observations sur les Rapports du Théâtre et du Rituel», incluído da obra «Théâtres
Indiens», Éditions de l’École de Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 1988
16 – Para mais detalhes ver Lidia Guzy, «Par e Sur – Sounds of the Goddess from the Bora
Sambar Region of Eastern India», texto incluído no Booklet que acompanha o CD homónimo, Wergo, SM 17132, Mainz, 2008
17 – J. Combarieu, «Histoire de la Musique», Tomo I, Armand Colin, Paris, 1913
18 – Heinrich von Kleist, «Sobre o Teatro de Marionetas e Outros Escritos» (Tradução
de José Miranda Justo), Antígona, Lisboa, 2009
219
220
SOLTOS
Das Espinhosas ao Arame Farpado
L
embra-me de ter lido há
muitos anos uma curta
reflexão consagrada ao
cinema norte-americano,
que punha em evidência os mecanismos sociais dos westerns: choque entre
os índios, senhores da terra original e os colonos, que pretendiam ter
“terra sua”. Como me dizia há anos
um comandante da marinha de guerra
portuguesa:«mas não tens nem nesga de
terra lá nos teus Trás-os-Montes? Mas
então não és nada!» Continuo, nesta
lógica da propriedade da terra, a não ser
nada pois não a herdei, nem a comprei.
Os famélicos da terra que a partir do
século XVII abandonam a Europa
para se instalar nas “trese colónias” têm
como objectivo deixar para trás não só
a miséria, mas também a violência das
hierarquias sociais: ser proprietário
da terra assegurava uma passagem da
dominação para a igualdade. O que só
podia ser obtido expulsando os índios
das suas transumâncias, dependentes dos movimentos dos bisões, que
forneciam a carne e as peles que permitiam a constituição e a preservação das
complexas estruturas sociais, políticas e
religiosas das muitas nações índias hoje
praticamente desaparecidas.
O segundo choque, uma vez alcançada a posse da terra, consequência
da destruição genocidária dos índios
engendrou-se no imo da sociedade
branca, em via de esquecer as origens
europeias: por um lado os agricultores, pelo outro os criadores de gado,
o qual, como é sabido, não distingue
as plantas conforme os seus proprietários: as plantas ou são boas para
comer, e comem-se, ou não possuem
o mínimo interesse e os animais, vacas
ou carneiros, deixam-nas ficar sem
lhes meter o dente. À medida que
as cidades cresceram, tornaram-se
consumidoras de carne vaca, carneiro
ou porco. Mas as mesmíssimas cidades
dependiam dos alimentos produzidos
e vendidos pelos agricultores. O gado
entrou assim em choque com as plantas
o que levou à criação do arame farpado, mais eficaz do que as espinhosas
para assegurar a defesa das terras e das
culturas. No fundo, o arame farpado é
criado por analogia com essas plantas
221
que, banais como as silvas, serviram –
e ainda continuam a servir – mesmo
se menos para marcar propriedade e
repelir os estranhos.
Tenho-me perguntado quantos
milhões de quilómetros de arame farpado existem hoje nos Estados Unidos,
impedindo a marcha ou maculando o
horizonte. E, todavia, trata-se de uma
extraordinária invenção que podemos
ver em actividade em todos os lugares
onde é necessário impedir a circulação
ou assinalar a violência da propriedade. Quando é que o arame farpado
passou a integrar o mobiliário urbano
da repressão? A guerra de trincheiras
de 1914-1918 desdobrou quilómetros
e quilómetros de arame farpado que,
nos filmes reconstituindo as técnicas
da época, servem para mostrar os soldados capturados pela violência das
puas, crucificados e transformados
pela sua pouca mobilidade em alvos das
metralhadoras pesadas. Os desenhadores e pintores da época e penso mais
particularmente nos alemães, não se
esqueceram dessa falsa floresta de arame farpado, particularmente brutal e
mortífera durante os ataques nocturnos, quando os “very lights” revelavam
os infantes atascados na lama e retidos
pela violência do arame farpado. Hoje o
arame farpado aparece nas práticas policiais como instrumento indispensável
para marcar a fronteira entre o que está
222
reconhecido e consentido e aquilo que
pertence à infracção e deve ser repelido.
È exactamente essa a função que cabia
às espinhosas: repelir, e que agora foi
confiada ao arame farpado.
Ainda não mereceu os estudos
que lhe devem ser consagrados, pois
se trata de um produto que se expandiu pelo mundo inteiro, satisfazendo
sempre a dupla necessidade, defesa
e exclusão. Este inventário não deixa
por isso a mínima dúvida no que se
refere à profunda agressividade deste
produto industrial que tanto se utiliza
para defender um prado verde deveras
apetecível do ponto de vista de carneiros ou vacas, como para impedir o
acesso a um edifício ou a outro espaço,
sem esquecer que também serve para
filtrar os transeuntes, impedindo as
grandes concentrações. Sendo como
é um produto esteticamente pouco
apetecível, o arame farpado ainda não
mereceu a análise que as suas múltiplas funções sugerem ou exigem. A
multiplicação das concentrações e das
manifestações dos “alteristas” opostos às maleitas criadas ou difundidas
pela globalização, assegura também
a produção e a utilização do arame
farpado, que hoje podemos encontrar em todo o mundo, produto que
também beneficia com a globalização!
A. M.
Presépios, Árvore de Natal, Pai Natal
e Halloween
P
ertenço a uma geração
que ainda foi educada
com presépios e altares de
Santo António. O presépio concentrava as figuras principais
do nascimento mítico de Cristo,
incluindo o burro e a vaca, associação que dizia quais os interesses do
mundo agrícola semita. Mas já havia
também a generalização das prendas, prática inventada pela burguesia
e que, pouco a pouco, foi invadindo
todas as esferas sociais portuguesas.
A concorrência apareceu com
alguma timidez, mas importou-se
da prática protestante o pinheiro de
Natal, elemento de um culto evidentemente pagão, associado ao solstício de
Inverno. Os responsáveis pela Igreja
católica deram-se conta da ameaça
carregada por este elemento telúrico e
procuraram fazer-lhe frente, salientando tratar-se de formas rituais da
Europa do norte e, pior, oh, muito
pior! dos protestantes.
Por sua vez a importação da árvore
de Natal reforçou a importância dos
presentes, e não faltaram teólogos
para denunciar a associação evidente
entre a árvore de Natal e o próprio
pai Natal (o velho S. Klaus) e as formas comerciais. Os teólogos não se
mostraram capazes de ver que os presentes não eram apenas o resultado da
pressão do mercado, mas antes uma
maneira inédita de unir os laços entre
os membros das famílias.
Podemos e devemos acrescentar
que, de facto estas operações traduziam uma redução das regras e da
autoridade do clero católico. Não
podemos deixar de pensar na corrente subterrânea mas constante
que mantém vivos em Portugal os
parâmetros do paganismo, e que adivinhos, bruxas, feiticeiros e outras
entidades desta família tornam visível
e manipulável. Esta corrente, fortemente combatida pelo catolicismo,
pode contar com o apoio indirecto
da propaganda republicana, que se
caracterizou pela veemência dos sentimentos anticlericais.
Uma das consequências certamente
mais inesperadas do 25 de Abril reside na desaparição da repressão oficial
223
ou oficializada destas manifestações de
paganismo, as quais não podiam deixar de integrar a árvore de Natal, na
medida em que uma parte substancial das práticas religiosas remete para
sentimentos e práticas panteístas. Não
faltam nos jornais diários os anúncios
de “professores doutores” que, sem
o mínimo pudor ou receio, exaltam
as suas competências e as suas capacidades para encontrar remédio para
todos os males que podem afligir os
urbanos, dos financeiros aos sexuais.
Estas manifestações, mesmo quando levadas a cabo sob a tutela das autoridades católicas – como, no Barroso,
a reunião anual que concentra os especialistas das “medicinas populares” –
não podem deixar de reconhecer a
existência de forças e de competências
que não agem nos quadros do cristianismo. Tal paganismo está por sua vez,
e singularmente, associado ao esforço
dos laicos que, paradoxalmente, põem
em causa as doutrinas religiosas, criando ao mesmo tempo o quadro legal
que permite a sua observância, agora
protegida por lei.
Nos últimos anos pudemos ver a
expansão generalizada, nos Estados
Unidos, de uma festa pagã de origem
celta e conservada pelas estruturas
sociais irlandesas: o hallowen, a festa
das bruxas, que perdeu uma parte não
despicienda da sua ritualização, para
224
se transformar numa enorme manifestação lúdica, que também dá lucros
ao comércio. A emigração irlandesa
para os Estados Unidos, que conheceu o seu ponto mais alto durante a
crise da Grande Fome do século XIX,
levou consigo o seu catolicismo, mas
não podia esquecer as suas marcas
pagãs. O halloween é hoje, certamente,
uma das festas rituais irlandesas em
via de se universalizar no Ocidente
cristão.
Não faltarão os etnólogos para
proceder ao inventário das estruturas internas do halloween. Creio que
a nós só interessa pôr em evidência
o repúdio das religiões sacrificiais,
cada vez mais substituídas por religiões caracterizadas pelo seu ludismo.
A Igreja Católica já se deu conta de
mais esta ameaça, que está destinada a reduzir o número de crentes,
fenómeno que se tem observado nos
últimos anos, seja onde for, como se
o catolicismo estivesse em via de esgotar as suas capacidades de sedução e de
recrutamento.
Embora deva confessar que me
surpreende que o recurso às cabaças
seja interpretado como uma pura
exigência do ludismo do halloween
irlandês. Mas como esquecer que as
cabaças são de origem americana (na
língua portuguesa regista-se a presença de duas marcas da origem: a chila,
que diz no nome a sua origem chilena, e o gerimu, plebeísmo minhoto,
que é contudo o termo utilizado
pelos tupi-guarani, ainda hoje, para
designar uma das cabaças importadas
possivelmente da baía de Guanabara,
e são utilizadas nos rituais mexicanos
das “calaveras”.
Deixemos contudo essa operação analítica para mais tarde, e
salientemos a importância que já tem
entre nós a festa do halloween, a ponto
de obrigar os representantes da Igreja
católica a intervir. O bispo francês de
Quimper manifesta o seu sobressalto
sobre o que seria uma falta de respeito aos mortos, mas sobretudo opõe a
malta gesticulante que deambula utilizando roupas macabras, “aos rostos
descobertos, pacificados e pacificadores dos santos”. Não é difícil verificar
que o bom do bispo não pensou em
S. Sebastião crivado de setas, nem
em S. Lourenço assado numa grelha,
como teriam feitos os índios sul-americanos, especialistas do churrasco
humano. Sobretudo a Igreja, que está
enredada em dogmas e impossíveis
certezas absolutas, não se deu ainda
conta do carácter inaceitável de uma
religião que recusa o ludismo, para
lhe preferir a gravidade exemplar
da morte, embora tenha havido um
caso único de ressurreição. Os crentes pedem outra maneira de encarar
a morte, desdramatizando-a, o que
encontra eco nas práticas familiares e
hospitalares: as pessoas morrem cada
vez mais longe da família, e é frequente nos hospitais morrerem sós.
Esta rejeição da morte encontra um
reforço na maneira como os mortos
podem ser evocados no halloween.
Alguns partidos europeus da extrema-direita já lançaram o movimento
de recusa do halloween, considerada uma
festa americanoide. Do nosso ponto
de vista, podemos simplesmente dar
conta da extraordinária capacidade
de resistência dos ritos pagãos, pois
esta tradição irlandesa contaria cerca
de 2500 anos, inspirando-se na festa
dos druidas de “samain”, o ano novo
galês. O que provoca, como é evidente, uma renúncia à panóplia ritual do
catolicismo que preocupa alguns pensadores europeus, como é o caso de
Régis Debray, colocados face à redução ou até à eliminação dos elementos
que caracterizavam a memória e os
indicadores cristãos.
Sinais evidentes de uma mutação
que sempre do meu ponto de vista,
começara já em 1517, e que a emergência do pensamento laico, o qual,
por sua vez, serviu prodigiosamente
a ciência, libertando-a das peias da
teologia. Regista-se agora uma nova
revisão do sistema religioso, com a
falsa recuperação dos ritos pagãos,
225
que são sobretudo reconhecidos através da sua capacidade lúdica. Como se
as sociedades, ao perderem o medo
da morte, cada vez mais racionalizada
e cada vez mais solitária, apostassem
sobretudo na festa, permitindo a
“carnavalização” – com agradecimentos a M. Bakhtine – dos ritos pagãos.
A. M.
226
LIVROS
Há 70 Anos Atrás: Quando Tudo Mudou
na Europa e no Mundo
Beja Santos
As reivindicações territoriais de
Adolf Hitler, depois da ocupação da
Renânia, revelaram-se imparáveis, o
ditador nazi possuía uma concepção
incomensurável das fronteiras do III
Reich, estava a vingar-se das humilhações do Tratado de Versalhes, cedo
ou tarde iriam surgir conflitos insustentáveis com as grandes potências
europeias do tempo, a Grã-Bretanha
e a França.
Não satisfeito com o desmembramento da Checoslováquia e a anexação
da Áustria, no início de 1939 Hitler
começou a pressionar a Polónia para
entregar Danzig, antiga cidade alemã.
Mas Danzig, sabe-se de há muito, era
um mero pretexto à luz da deterioração da ordem europeia durante toda
a década de 30. Atacar a Polónia foi
uma causa imediata, a agressividade de
Hitler era imparável, todos os triunfos
anteriores lhe tinham dado uma força que tornavam inevitável o conflito
com as democracias parlamentares.
O Tratado de Versalhes produzira
situações de grande humilhação para
a Alemanha, uma delas fora entregar
Danzig ao novo estado polaco, concedendo-lhe um corredor de terra
até ao mar através do antigo território alemão, com vista a usar a cidade
alemã de Danzig como os dos principais portos polacos. Nascera assim
o estatuto da cidade livre de Danzig
que, a partir de 1933, passou a ter
um governo nazi, tornando-se num
posto avançado do III Reich. Hitler
reivindicava igualmente a Silésia, antigo território alemão. Registe-se que
o antigo Império Russo também perdera território para a Polónia que a
URSS veio mais tarde a reivindicar.
As grandes potências ocidentais nunca
encararam a Polónia como uma potencial aliada por duas fortes razões: o
anti-semitismo e a natureza autoritária do regime. Acresce que a Polónia
antes de estar na mira de Hitler aproveitara-se da fragmentação do Estado
checo: para as diplomacias de Londres
e Paris não parecia improvável que os
polacos viessem a juntar ao território
alemão.
É exactamente a seguir ao desmembramento checo que Berlim
229
começa a exigir a reincorporação de
Danzig na Alemanha. Totalmente
desenganados quanto à sanha conquistadora de Hitler, finalmente
Londres e Paris deram todas as garantias de independência à Polónia.
Hitler nunca acreditou até às 11 horas
da manhã de 3 de Setembro de 1939
que a Grã-Bretanha honrasse os seus
compromissos com Varsóvia. Os preparativos para a guerra foram muito
cedo decididos por Hitler, a invasão
ficou a aguardar um momento oportuno. Num golpe de asa, o ministro
dos negócios estrangeiros de Hitler,
von Ribbentrop, viaja para Moscovo,
em 22 de Agosto, e na manhã de 24
é assinado o pacto germano-soviético e protocolo secreto que dividia
a Polónia e os Estados bálticos em
esferas de influência (note-se que
Estaline negou categoricamente
qualquer protocolo secreto, ciente das consequências dramáticas que
este acto diplomático iria produzir ao
nível do comunismo internacional).
Hitler julgou que tinha as mãos livres
para novo bluff. Entre 24 de Agosto e
3 de Setembro começou a contagem
decrescente para uma guerra cujas
proporções não podiam ser avaliadas pelos seus actores: as primeiras
conquistas triunfais de Hitler que em
Junho de 1940 parecia ser o grande
dominador da cena continental; a
230
resistência heróica da Grã-Bretanha;
a ofensiva alemã sobre a URSS, depois de ocupada a Grécia e Jugoslávia;
o ataque japonês a Pearl Harbor,
seguindo-se a mundialização do conflito. O que veio a acontecer, depois
de 1945, é de todos conhecido: ascensão de duas superpotências, perda
de influência da Europa, etc.
Um conceituado historiador britânico resolveu analisar os grandes e
pequenos eventos exactamente à volta do que se passou nos bastidores da
diplomacia entre 24 de Agosto e 3 de
Setembro de 1939. O resultado é esse
soberbo ensaio “1939, contagem decrescente para a guerra”, por Richard
Overy, Publicações Dom Quixote,
2009.
Hitler dera instruções para que
a invasão da Polónia se desse a 26
de Agosto, após o sucesso das negociações com a União Soviética.
Hitler sempre acreditou que ia encetar uma pequena guerra localizada
e que Londres e Paris abandonariam
a defesa da Polónia. Todas as ordens
para a invasão foram canceladas à
última hora. O pacto germano-soviético teve pouco efeito em Londres e
Paris. Pelo contrário, em Londres e
Paris deram-se exactamente os primeiros preparativos para poderes
de emergência que abriam a porta à
imobilização geral. No parlamento
de Londres, o primeiro-ministro
Chamberlain reiterou que os compromissos assumidos para defender a
Polónia seriam honrados. Daladier,
em Paris, confirmou igualmente os
compromissos da França. Os diplomatas alemães informaram Berlim:
os políticos britânicos e franceses não
vão abandonar a Polónia. Em 25 de
Agosto, Hitler convoca o embaixador
britânico, Nevile Henderson, numa
tentativa para separar a Grã-Bretanha
do seu compromisso polaco. Logo de
seguida, Hitler deu ordem de marcha para a manhã seguinte. Mas logo
a seguir chegou o embaixador italiano a anunciar que Mussolini decidira
manter a Itália neutra. Convocado a
seguir, o embaixador francês, Robert
Coulondre, informa o ditador alemão que a França, caso a Polónia
venha a ser atacada, entrará em guerra
com a Alemanha. Hitler decide cancelar a investida militar.
A partir de 27, começa a ser mais
claro na cena internacional que
Londres e Paris consideram que a
guerra é inevitável. Uma fracção importante das altas chefias militares
alemãs troca entre si a opinião de
que o risco de uma guerra geral era
demasiado grande. Quando Keitel
entrega a Hitler um memorando sobre o poderio económico e militar
das potências ocidentais, incluindo
os Estados Unidos, com a posição
material da Alemanha, Hitler terá
respondido que não havia perigo de
uma guerra mundial. Nesta altura dos acontecimentos, um homem
de negócios sueco, Birger Dahlerus,
passou a ter um papel de importância
excepcional como mediador entre os
britânicos e o número dois da hierarquia nazi, Göring. Esses encontros
conduzem a que Hitler o convoque
em 27 de Agosto e lhe tenha pedido
para regressar a Londres com uma
oferta de acordo. A 28 de Agosto,
Hitler confirmou que o ataque teria
início na manhã de Setembro, os seus
serviços secretos receberam a incumbência de simular um falso ataque
polaco que iria aparecer como o rastilho da invasão alemã. No entretanto,
sucedem-se as conversações ao nível
das chancelarias com trocas de mensagens, estava a atingir-se o clímax,
em 30 de Agosto Hitler ainda pretende agarrar-se à sensação de incerteza
de que britânicos e franceses irão para
a guerra. O plano de encenação do
falso ataque polaco a um posto alfandegário por prisioneiros de um
campo de concentração vestidos com
fardamentos polacos sinalizaram o
início da operação. As tropas alemãs fingiram abrir fogo, igualmente
um alemão pró-polaco foi cravejado
de balas à entrada de uma estação de
231
rádio. Com este primeiro acto de
barbaridade, começava a invasão da
Polónia.
Entrou-se na contagem final.
Pelas 10 horas de 1 de Setembro,
Hitler dirigiu-se ao parlamento alemão e anunciou o pretenso ataque
polaco. Nesse mesmo dia entregou
em vigor a legislação sobre a eutanásia, que levou o assassínio de 70 mil
alemães deficientes ou com doenças
crónicas. Na noite de 1 de Setembro
vive-se na Grã-Bretanha e na França
uma sensação de expectativa irreal,
simulam-se ataques aéreos, as populações descem às caves. Nesse mesmo
dia, aborta a ideia de uma grande
conferência europeia proposta por
Mussolini com o objectivo de discutir exaustivamente todos os problemas
gerados pelo Tratado de Versalhes.
Na manhã de 2 de Setembro, os ultimatos britânico e francês chegam
à chancelaria de Berlim, nesse dia
Chamberlain dirige-se à Câmara
dos Lordes e à Câmara dos Comuns,
mostra-se inabalável, a declaração de
guerra está no horizonte. Em Paris,
a Câmara e o Senado votaram, por
unanimidade, 90 biliões de Francos
em créditos de guerra.
3 de Setembro é domingo, é o dia
de Chamberlain. A intervenção do
primeiro-ministro é transmitida pelas 11h15. É curta, refere os esforços
232
feitos com vista à manutenção da paz
e informa que todas as iniciativas tinham falhado e como Hitler não dera
qualquer garantia de retirar as suas
forças da Polónia o país encontravase naquele momento em guerra com a
Alemanha. Segundo alguns testemunhos, Hitler mostra-se furioso com
a postura britânica, a declaração de
Chamberlain é aclamada na Polónia
cujos exércitos já estão a ser esmagados pelos alemães. Durante a noite,
o navio britânico Athenia, de 13 500
toneladas, foi atingido por torpedos lançados pelo submarino alemão
U.30 e morreram 128 pessoas: era
o primeiro acto de guerra na frente
ocidental. Nesse mesmo dia, o chefe do Estado-maior alemão, general
Franz Halder comenta para um outro
oficial: “Os ingleses são persistentes.
Agora a guerra vai demorar bastante
tempo”.
Em termos de historiografia, é redundante procurar encontrar razões
para se apurar se tudo foi feito para
evitar a guerra que se iniciou em 3
de Setembro. Era insustentável que
a Grã-Bretanha e a França não honrassem os seus compromissos com a
Polónia. Hitler foi responsável por
uma guerra, mas continua por provar
que tipo de guerra é que Hitler pretendia, não há qualquer documento
que permita comprovar que ele tinha
um plano em que a Polónia representasse um meio para alcançar um
qualquer império mundial alemão. Só
muito mais tarde, em 1941, é que começa a aparecer documentação sobre
um quadro paranóico de uma guerra
generalizada que se tornará inevitável depois de Hitler declarar guerra
aos Estados Unidos. É bem provável
que Hitler não estivesse consciente de
que tinha, com a invasão da Polónia,
desencadeado uma guerra de grandes
proporções que, exactamente a partir
de finais de 1941, tomou dimensões
apocalípticas com a resistência heróica dos exércitos e da população
soviética. No Ocidente sabia-se que
aquela guerra iria demorar anos e não
havia ilusões que, mesmo vitoriosos,
britânicos e franceses, iriam deixar de decidir sobre os discípulos da
Polónia, no futuro. O Ocidente sabia que se estava a desintegrar a velha
ordem, era perceptível que as decisões
mundiais seriam doravante tomadas com os EUA na dianteira. Nesse
ponto estavam enganados: em 1945
entrar-se-ia na ordem bipolar, seria
o momento contundente das duas superpotências. Tudo por causa do 3 de
Setembro de 1939.
233
Revistas recebidas
Análise Social, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 2º trimestre de 2009
Humanística e Teologia, Universidade Católica do Porto, Junho de 2009, Tomo XXX,
Fascículo 1
Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Março de 2009
Tempo Exterior, IGADI, Baiona (Pontevedra), Janeiro-Junho de 2009
Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Maio-Junho de 2009
Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Julho-Agosto de 2009
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Nº
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55/56/57
58/59/60
61/62/63/64
65/66
67/68
O SOCIALISMO DO FUTURO*
DOSSIER EUROPA
A IDEIA DE REVOLUÇÃO
REVOLUÇÃO EUROPEIA VERTIGEM DA PAZ
O INDIVIDUALISMO E A SOCIEDADE SOLIDÁRIA
A EUROPA E A NOVA (DES)ORDEM INTERNACIONAL
DAS PRESIDENCIAIS AO GOLFO
DEMOCRACIA OU PARTIDOCRACIA?
O REGRESSO DOS NACIONALISMOS
A EUROPA À BEIRA DA IMPLOSÃO?
O FIM DA POLÍTICA?
AMÉRICA! AMÉRICA!
A ALEMANHA E A EUROPA
A EUROPA, NÓS E OS OUTROS
A ESPANHA E NÓS
O FIM DE UM CICLO
A EUROPA E NÓS
VÁRIOS TEMAS
POR UMA EUROPA À ESQUERDA
O ESTADO-PROVIDÊNCIA; QUE FUTURO?
O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU NA ERA DA MUNDIALIZAÇÃO
REGIONALIZAÇÃO E O PAÍS
O REGRESSO DO POLÍTICO
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM – 50 ANOS DEPOIS
A GUERRA NO KOSOVO NA VIRAGEM DO SÉCULO
O ESTADO E A LIBERDADE RELIGIOSA
ESTARÁ A DEMOCRACIA EM CRISE NA EUROPA?
JUSTIÇA FISCAL
A GLOBALIZAÇÃO EM QUESTÃO
A EUROPA DEPOIS DE NICE
A DEMOCRACIA PORTUGUESA NOS INÍCIOS DO 3º MILÉNIO
O MUNDO EM CRISE
SER MINORIA, HOJE
A ESQUERDA NA ENCRUZILHADA
A CRISE MUNDIAL
UMA CONSTITUIÇÃO PARA A EUROPA
O ISLÃO E A MODERNIDADE
EDUCAÇÃO: QUE PERSPECTIVAS?
OS DESAFIOS ACTUAIS DA ESQUERDA PORTUGUESA
ESTADOS UNIDOS E EUROPA: AFINIDADES E DIFERENÇAS
LIBERALISMO E DEMOCRACIA
PODER POLÍTICO E SOCIEDADE CIVIL
A EUROPA DEPOIS DE LISBOA
QUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS?
O EFEITO OBAMA E O FUTURO DA DEMOCRACIA PLANETÁRIA
1989
1989
1989
1990
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2005/6
2007/8
2008/9
2009
2009
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anos antes, publicados no nº 1)
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Na aquisição de uma colecção, à excepção do nº 1 – esgotado –, beneficiam de 50% de desconto.
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Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica n.º 67/68
Salvemos o Soldado Obama
Eduardo Lourenço
Obama: Um Ano Depois ou o Insustentável Peso da Realidade
Fernando Pereira Marques
Os Desafios de Barack Obama
Joaquim Jorge Veiguinha
E Agora a Nova Europa!...
Guilherme d’Oliveira Martins
O Voto nas Eleições Legislativas de 2009: Uma Primeira Leitura
Augusto Santos Silva, Filipe Nunes e Marina Dutra
Notas sobre Conjuntura Pós-Eleitoral
Fernando Pereira Marques
A Construção da Boa Sociedade: O Projecto da Esquerda Democrática
Jon Cruddas e Andreas Nahles
Socialismo, Direito e Estado
Paulo Ferreira da Cunha
Portugal, Socialismo Ético e uma História de Futuro do Partido Socialista
Carlos Leone
Responsabilidade Individual e Justiça Social:
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ISSN 0871-7982

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