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O efeito Obama e o futuro da democracia planetária Salvemos o Soldado Obama Eduardo Lourenço Obama: Um Ano Depois ou o Insustentável Peso da Realidade Fernando Pereira Marques Os Desafios de Barack Obama Joaquim Jorge Veiguinha E Agora a Nova Europa!... Guilherme d’Oliveira Martins 3 DIRECTOR Eduardo Lourenço DIRECTORES-ADJUNTOS António Reis Fernando Pereira Marques COORDENADOR Joaquim Jorge Veiguinha CONSELHO DE REDACÇÃO Alberto Martins, Alfredo Margarido, Diogo Moreira, Eduardo Geada, Elísio Estanque, Glória Rebelo, Guilherme D’Oliveira Martins, Filipe Nunes, João Soares Santos, José Medeiros Ferreira, Mónica Dias, Pedro Adão e Silva, Pedro Delgado Alves, Pedro Nuno Santos, Rui Pena Pires CONSELHO EDITORIAL André Freire, António Coimbra Martins, António Vitorino, Augusto Santos Silva, Carlos Brito, Carlos Gaspar, Carlos Zorrinho, Edite Estrela, Eduardo Ferro Rodrigues, Fernando Catroga, Francisco Assis, Helena Roseta, João de Almeida Santos, João Cravinho, João Proença, Jorge Lacão, José Lamego, José Maria Brandão de Brito, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Miguel Serras Pereira, Paulo Ferreira da Cunha, Pierre Guibentif, Reinhard Naumann, Rui Namorado, Sérgio Sousa Pinto, Vital Moreira, Vitalino Canas Título: Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica n.º 67/68 – Outono/Inverno 2009 Design e Produção: Garra Publicidade, SA Apoio à Redacção: Sofia Nascimento Registo de Título nº 113 463 Depósito Legal nº 43 418/91 Editora: Fundação Res Publica, Lisboa, 2009 Redacção e Administração: Av. das Descobertas, 17 | 1400 Lisboa Telfs.: 21 301 39 09 | Fax: 21 301 59 56 E-mail: [email protected] 1. Os originais destinados a publicação deverão ser dactilografados a dois espaços em páginas A4 de 25 linhas. 2. A revista não se compromete a devolver textos não solicitados. 3. Os artigos assinados são da responsabilidade dos seus autores. 4. A reprodução parcial ou integral dos textos publicados na Finisterra é permitida mediante a autorização da Direcção e indicação da origem. 4 ÍNDICE O EFEITO OBAMA E O FUTURO DA DEMOCRACIA PLANETÁRIA Salvemos o Soldado Obama Eduardo Lourenço 7 Obama: Um Ano Depois ou o Insustentável Peso da Realidade Fernando Pereira Marques 11 Os Desafios de Barack Obama Joaquim Jorge Veiguinha 17 E Agora a Nova Europa!... Guilherme d’Oliveira Martins 27 PARLAMENTO O Voto nas Eleições Legislativas de 2009: Uma Primeira Leitura Augusto Santos Silva, Filipe Nunes e Marina Dutra 35 Notas sobre a Conjuntura Pós-Eleitoral Fernando Pereira Marques 55 IDEIAS A Construção da Boa Sociedade: O Projecto da Esquerda Democrática Jon Cruddas e Andreas Nahles 63 Socialismo, Direito e Estado Paulo Ferreira da Cunha 79 Portugal, Socialismo Ético e uma História de Futuro do Partido Socialista Carlos Leone 105 Responsabilidade Individual e Justiça Social: Igualdade de Oportunidades ou de Resultados? Robert Merrill 125 Igualdade Equitativa de Oportunidades e Capacidades na Teoria da Justiça de John Rawls Regina Queiroz 137 Ética e Cultura, Modelos Económicos e Intervenções Políticas José Lacerda da Fonseca 153 CULTURA Palavra e Utopia: António Vieira no Filme de Manoel de Oliveira Eduardo Geada 185 A Inércia Obediente João Soares Santos 199 5 SOLTOS 219 Das Espinhosas ao Arame Farpado Alfredo Margarido 221 Presépios, Árvore de Natal, Pai Natal e Halloween Alfredo Margarido LIVROS 227 Há 70 anos Atrás: Quando Tudo Mudou na Europa e no Mundo Beja Santos 6 COLABORAM NESTE NÚMERO Eduardo Lourenço – Ensaísta Fernando Pereira Marques – Professor Universitário Joaquim Jorge Veiguinha – Ensaísta Guilherme d’Oliveira Martins – Jurista e Presidente do Tribunal de Contas Augusto Santos Silva – Sociólogo Filipe Nunes – Sociólogo Marina Dutra – Socióloga Jon Cruddas – Dirigente do Partido Trabalhista Britânico Andreas Nahles – Dirigente do Partido Social-Democrata Alemão Paulo Ferreira da Cunha – Professor Universitário Carlos Leone – Professor Universitário Robert Merrill – Professor Universitário Regina Queiroz – Professora Universitária José Lacerda da Fonseca – Engenheiro Agrónomo Eduardo Geada – Professor Universitário João Soares Santos – Ensaísta Alfredo Margarido – Professor Universitário Beja Santos – Sociólogo Carlos Brito – Cartoonista 7 O EFEITO OBAMA E O FUTURO DA DEMOCRACIA PLANETÁRIA Salvemos o Soldado Obama Eduardo Lourenço A “Gostei do discurso Nobel de Obama porque reconheceu que era um guerreiro e não um pacifista disfarçado” Miguel Esteves Cardoso, Público, 13/12/09 cultura americana herdou das suas origens protestantes um messianismo estrutural. Raramente este sonho messiânico terá tido uma expressão tão espectacular, no limite do delírio – sobretudo aos olhos de uma Europa desiludida de utopias – do que com a eleição de Barack Obama. Como se o mundo tivesse vivido essa eleição como coisa própria. O fenómeno foi tão mais extraordinário que essa América estava então – e continua – atolada no Afeganistão como um mau remake do Vietname. Também isso influiu na campanha, particularmente feroz, que levou Obama ao poder, como se através dele a América exorcizasse ao mesmo tempo os dois maiores pesadelos do seu passado – o do esclavagismo nunca sepulto no seu inconsciente, apesar de uma guerra civil mal terminada – e sobretudo o de um imperialismo de tipo novo (democrático) assumido como missão redentora do Ocidente desde o traumático ataque às Torres. Por tudo isso, a triunfal vitória de Obama representaria a mais libertadora das vitórias da América sobre a América e o anúncio de uma era nova, não apenas para ela mas para o mundo de que é desde Hiroxima e a queda do Muro de Berlim a única potência hegemónica. Subitamente, como num golpe de magia, a ex-América de Bush, herdeira de um imperialismo de total boa consciência, pelo menos depois de Pearl Harbour pelo qual pagou um altíssimo preço, pareceu recuperar a sua virgindade democrática. A um ano de distância do momento solar Obama, a tentação de ironizar sobre tão desorbitada leitura do fenómeno – Obama-engano nosso, filho ao mesmo tempo da nossa paralisia europeia e do ressentimento que nos suscita – é inevitável, mas seria mais absurda e estéril que a nossa euforia de há um ano. Obama não tem culpa – ou tem sobrados motivos – para nos ter decepcionado, desiludido ou mesmo “traído” não exemplificando, como se exigiu logo dele, que fosse o “Jesus negro da História”, ou, pelo menos, o Messias de que o Ocidente precisa para sair da era de um terror indiscriminado. Tal foi 9 SALVEMOS O SOLDADO OBAMA o diagnóstico aberrante com que uma América em pânico concebeu exorcizar cruzando-se e urbi et orbi contra o nebuloso Império do Mal encarnado por um monstro digno de Hollywood, Ben Laden e a sua corte de desesperados místicos por conta de um Islão promovido, graças a ele, e a uma discutível leitura do que está em causa e que ao fim de nove anos se disseminou e ao mesmo tempo se adensou. Foi deste “monstro” da era Bush que a eleição de Obama pareceu capaz de nos libertar, libertando uma América perdida no neo-Vietname sem pano de fundo de guerra fria e libertando, ao mesmo tempo, um Ocidente envolvido nela à força ou a contra-gosto. A boa vontade de Obama, o talento pessoal de Obama a sua visível “humanidade” no menor dos seus gestos, sobretudo pelo contraste da era Cheney e seu imperialismo impiedoso, como está na natureza dele, não nos podem iludir. Só para a Europa a eleição de Obama foi um acontecimento radioso. Na ordem interna, nos Estados Unidos profundos de que foi eleito presidente, os dados políticos, culturais, a luta implacável de interesses que aí se jogam, a própria mitologia ideológico-política da América como espaço de “livre empresa” – e isto não é retórica como o pode ser na Europa – são o “dado” não só com o qual um Presidente deve contar, mas não pode infringir. Uma promessa tão óbvia e tão incontestável na óptica europeia como uma política de saúde digna de uma democracia moderna pode ser vista aí por uma grande parte das forças monopolistas que a enquadram na América como um atentado ao direito de a resolver a título privado, ideal quase religioso da América pioneira. E assim, em todas as ordens. A América salva das águas pelo Messias-Obama que os europeus idealizam não existe ou existe de outra maneira. Nesse capítulo como no mais decisivo da política mundial herdada da era Bush, Obama teve de navegar à vista e à vista continuará a navegar. Mesmo em assunto, à primeira vista mais universalmente consensual, como o do aquecimento global, a sua atitude discreta em Copenhaga desiludiu. Começam a caricaturá-lo como um novo Jimmy Carter, samaritano simpático mas político irresoluto, o que, visivelmente, Obama não é. A perspectiva jornalística no Ocidente compraze-se demasiado no “fait divers” do homem-Obama, na sua “psicologia”, etc... Mas um homem político, mormente aquele que encarne a maior potência do mundo não é um “simples homem”. E a América como História – como histórias – e para quem, como ele, parecia ter o destino da “excepção” e não da “regra”, como qualquer outro presidente WASP, e não há paradoxo nisso 10 EDUARDO LOURENÇO – um Obama só pode ser um “super-americano”. Nada lhe será perdoado. A singularidade e a “universalidade, quase o cosmopolitismo da sua experiência, enraizamento e cultura não o põem à margem do “paradigma americano”. Ilustram-no de uma maneira até agora admirável. É a mesma e uma América outra as que subiram ao “poder” com ele, mas não um poder soberano que a Democracia americana não comporta nem a veleidade de o poder ser. Afinal, somos nós europeus que, conscientes disso ou não, guardamos o nosso passado imperial e monárquico, a ideia de um Salvador ou de um Ditador com poderes mágicos capazes de fazer a felicidade dos seus súbditos ou de os arrastar para o abismo. Felizmente não é assim nos Estados Unidos. Na nossa impotência histórico-política de hoje, nós europeus, podemos, pelo menos, compreender a dramática situação de um Presidente de boa vontade, cerceado na sua vontade de paz pelo peso de uma nação mobilizada no mundo e pelo mundo desde o final da segunda Guerra Mundial numa fuga para a frente que parecia irresistível, mas de que só a América que se reconhece nele será capaz de ajudar a sair sem danos mortais para ela e a paz do mundo, do mais “duvidoso combate” que até hoje se lhe deparou. A reticência europeia – a começar pela inglesa pode ajudá-lo, mas sem ilusão. A Europa mal existe vista da América e de uma América que a si mesma mal se vê, não só por ser complexa e autista, como todas as potências no auge das suas hegemonias, mas por estar longe de resolver a sua tragédia original de que a emergência salvífica de Obama se desejou – ou nós por ele – a conclusão mais auspiciosa. Salvemos o soldado Obama, nós que já não salvamos ninguém, mas cujo destino está ligado ao da América, tal como é cruzada em nosso nome contra um terror ao mesmo tempo real e fantasmado, mas com capacidade e meios aos olhos de um mundo ocidental, incapaz de assumir o papel do Samaritano da nossa História, confrontada com a tragédia pura. Como a do Haiti, entre outras. Vence, 16 de Janeiro de 2010 11 12 Obama: Um Ano Depois ou o Insustentável Peso da Realidade Fernando Pereira Marques U m ano após a eleição de Barack Obama à Presidência dos Estados Unidos – apesar de a tomada de posse ter sido mais tarde de acordo com o calendário tradicional – seria inevitável que começassem a ser feitos balanços do seu mandato. E o tom predominante, inclusive nos que o apoiaram no próprio país, é o do fosso surgido entre as expectativas criadas e o que de facto foi alterado ou concretizado. Em comentário anteriormente publicado nestas mesmas páginas já considerava inevitável que isso acontecesse. Não era preciso ser particularmente arguto. A eleição de Obama constituiu, evidentemente, uma mudança, mas não poderia ser uma revolução ou mesmo uma ruptura na lógica de funcionamento de um sistema político que, naturalmente, é emanação de um sistema económico, ambos por sua vez estando associados à cultura, à história e à sociedade que fazem a especificidade desse país. A conjuntura favoreceu essa mudança: uma situação económico-financeira desastrosa, no contexto de uma grave crise que marcou o fim da euforia especulativa dos últimos anos e que não se via desde 1929; o envolvimento numa guerra em duas frentes principais que, no caso do Iraque, começou por ser uma mistificação para se tornar um drama e sobretudo um enorme ónus – em todos os aspectos – para qualquer administração e para os americanos em geral; um Presidente subdotado – é o qualificativo mais doce de aplicar - que sendo um produto típico do american way of politics, isolou o país, desprestigiou-o internacionalmente, semeou o ódio, agravou as tensões a nível planetário e as disfunções sociais e económicas (lucraram largamente o complexo militar-industrial, as empresas-exércitos-privados e outros grupos económicos protegidos pelo Governo e por George W.Bush). Só não havendo um candidato democrata suficientemente credível – e havia desde logo Hillary Clinton – os Republicanos teriam hipóteses de se manter na Presidência. Neste contexto favorável aos Democratas, o senador Obama marcou, 13 OBAMA: UM ANO DEPOIS OU O INSUSTENTÁVEL PESO DA REALIDADE indiscutivelmente, uma diferença: em primeiro lugar afirmou-se no interior do próprio partido, e na vital recolha dos milhões necessários a qualquer campanha, contra uma poderosa máquina dinamizada pela marca Clinton; em segundo lugar conseguiu transmitir uma mensagem mobilizadora onde a afectividade se combinava com a racionalidade, um discurso ideologizado e inteligente capaz de transmitir confiança e tocar o common people, as classes médias e as minorias mais atingidas pela crise, mas também os estratos politizados e os jovens sequiosos de convicções e de causas; em terceiro lugar marcou também a diferença pela própria visão do mundo de quem ultrapassara, desde muito jovem – e mesmo no seu código genético –, os horizontes estreitos da América profunda, patentes no texano bronco – apesar de ser membro da dinastia Bush – que presidira durante dois mandatos1. Neste sentido reproduziu-se, como aliás foi largamente glosado, um fenómeno em muito idêntico ao de John Kennedy, com a novidade de entretanto se terem sofisticado as tecnologias de comunicação e de informação, e de se ter entrado no estádio superior da sociedade espectacular. Donde ter-se criado um mito e uma meta-realidade que levou a supor – inclusive no estrangeiro – que Obama poderia ser outra coisa do que aquilo que realmente pode ser. Ainda hoje ao falar-se do breve período da administração Kennedy, uma semelhante dimensão meta-real prevalece – a das New Frontiers, a do “Ich bin ein berliner”– , esquecendo-se o que durante o mesmo aconteceu ou não aconteceu – no plano das reformas – por força da incontornável força das coisas estruturais ao sistema, tal qual existe na sua realidade efectiva: desde a sua eleição ter sido apoiada pela máfia – e só os meninos de coro podem pensar que um apoio deste tipo não teve um preço, porventura mesmo o da sua vida -, ou de outras questões como, no plano externo, as políticas prosseguidas em relação a Cuba (por exemplo, a aventura da Baía dos Porcos) e ao Vietname. Poder-se-á até dizer que a eleição de Obama se tornou um caso, que merece estudo, de como um comunicador nato e talentoso, intelectualmente superior, apoiado por uma equipa brilhante – nomeadamente de ghost writers – conseguiu, na época da Internet, desencadear uma dinâmica imparável de vitória e de mobilização como há muito (nunca?) se via nos EUA e, por maioria de razões, noutras 1 Seria interessante poder reler os elogios a Bush e a defesa dele feita, face às críticas que a sua eleição suscitou, por vários e distintos comentaristas, colunistas, directores de jornais e outros que tais da nossa praça que, aliás, afinariam por idêntico diapasão aquando da invasão do Iraque. 14 FERNANDO PEREIRA MARQUES sociedades desenvolvidas onde os modelos – políticos, ideológicos, culturais, económicos - se americanizam, como já em 1940 previra o líder do Partido Comunista Americano, Lewis Corey2. Mas, uma vez eleito, a realidade impôs-se. A realidade do sistema norte-americano e da conjuntura internacional. Um dos jovens Democratas membros da actual Câmara de Representantes, Alan Grayson, fazendo-se porta-voz do descontentamento que alastra entre as fileiras “liberais” (no sentido norte-americano de “progressista”), em intervenção proferida no mês de Outubro, criticaria os Republicanos que, manifestando um profundo desnorte, enveredaram por ataques extremistas e violentos com eco entre as camadas mais reaccionárias da população norte-americana, acusando Obama de cripto-comunista ou de algo idêntico, ou explorando a sua origem étnica. Todavia, esse mesmo parlamentar não deixaria de considerar que o Presidente pecava por uma excessiva atitude conciliadora, nomeadamente em relação aos meios financeiros e dos negócios, não conseguindo tomar medidas suficientemente ousadas para enfrentar as consequências mais dramáticas da crise. E tal quebra da popularidade de Obama ficou manifesta em derrotas sofridas por candidatos democratas, após campanhas em que ele se envolveu directamente, como foi o caso na eleição do governador de New Jersey3. No que concerne à emblemática reforma do sistema de saúde, Obama foi obrigado a sucessivos recuos para conseguir que ela pudesse, finalmente, passar no Senado em meados de Dezembro. Claro que se pode considerar que se alcançou uma meia vitória, na medida em que algumas alterações positivas foram adoptadas e aumentou a protecção de muitos mais americanos – o que Clinton nunca conseguiu. Tal não impede, porém, que um dos mais destacados membros da ala esquerda do Partido Democrata, e presidente do seu Comité Nacional, Howard Dean, antigo governador do Vermont e candidato a candidato em 2004, considerasse que a reforma tinha sido desnaturada. Mais uma vez se evidenciou, em todo este processo, o extraordinário poder do lobby dos seguros de saúde privados, reforçado sobretudo por Ronald Reagan 2 Cf. LIPSET, Seymour Martin – “The Americanization of the European Left”, Journal of Democracy, Volume 12, Number 2, April 2001, p.76. 3 Cf. SOLOMON, Barbara Probst – « Obama, bajo el fuego de los progresistas », El Pais, 17 de octubre de 2009. Depois de este artigo estar escrito os Democratas perderiam a maioria qualificada que tinham no Senado com a derrota sofrida no Massachusetts. 15 OBAMA: UM ANO DEPOIS OU O INSUSTENTÁVEL PESO DA REALIDADE (a partir de 1981). Como explicava, em entrevista ao Le Monde, Wendell Potter, um antigo quadro que esteve ao serviço de uma dessas sociedades (Cigna), os interesses em jogo são enormes, existem Estados em que “uma única seguradora domina o mercado local, fixando sem concorrência as condições de acesso aos cuidados de saúde e o seu reembolso.” Assim se explica que, inclusive, sobre essas sociedades não se tenha feito sentir a recessão. A Cigna – para a qual ele trabalhou -, controla, só ela, cerca de um terço da cobertura de doença dos Americanos, a maioria das vezes decidindo, unilateralmente, quando e quanto serão pagos os médicos e os internamentos em hospitais4. Convenhamos, portanto, que foi melhor que algo se conseguisse do que nada, mas o que aqui pretendo demonstrar é que não basta o voluntarismo, mesmo bem intencionado, para inverter e romper com as realidades estruturais do sistema nos EUA, neste domínio da saúde como noutros. É preciso uma vontade política sustentada num poderoso movimento social reformista, de tipo quase “revolucionário”, como Roosevelt fez, na conjuntura particular dos anos 30, ou Lyndon Johnson nos anos 60 quanto aos direitos civis. Outros aspectos têm sido criticados no plano interno e que têm passado despercebidos no estrangeiro, como o do apoio ao multimilionário Bloomberg, às próximas municipais de Nova Iorque, em detrimento de um candidato democrata. Ou, ainda, a forma como, para retribuir o apoio obtido durante a campanha eleitoral, secundou a frustrada candidatura da pouca experiente Caroline Kennedy quando se pôs a questão de ocupar o lugar de Hillary Clinton no Senado. No plano da política externa, a realidade impôs-se no que se refere ao Iraque e ao Afeganistão, o envolvimento militar no primeiro não tendo perspectivas de ser alterado significativamente a médio prazo e, no segundo, tendo-se mesmo verificado a decisão de enviar mais 30 000 soldados. Também no Médio Oriente os Estados Unidos não conseguiram contribuir para fazer recuar o belicismo e o reaccionarismo do actual Governo israelita, particularmente no que se refere à questão dos colonatos. Deste modo, a esquerda americana volta a mobilizar-se contra o que considera ser o afundamento num pântano, como foi o Vietname e, William Polk, antigo director do Conselho de Planificação do Departamento de Estado sob John Kennedy, em artigo 4 Cf. “Ce lobby ne desarmera pas”, Le Monde, mardi, 24 novembre 2009, p.3 16 FERNANDO PEREIRA MARQUES publicado em The Nation, no princípio de Outubro, considerava que quer os Estados Unidos quer a NATO iriam sofrer um destino idêntico ao dos soviéticos5. No que se refere à China, poderosa credora dos EUA (uma factura de 700 mil milhões de dólares cria um estado de dependência com preocupantes consequências geoestratégicas), a atitude tem sido de low profile em relação à questão dos direitos humanos e por vezes de cumplicidade comprometida, como se viu em Copenhaga. E pequenos têm sido os passos dados no sentido do desarmamento nuclear – bandeira agitada durante a campanha - junto da Federação Russa, para não falar na persistente recusa em ratificar convenções, como a que visa proibir as minas antipessoais, na não adesão ao Tribunal Penal Internacional ou, ainda, na insuficiente participação norte-americana na Conferência de Copenhaga sobre o ambiente que produziu uma mera declaração de intenções sem grande relevância. Qual a conclusão a tirar? Poderia ser de outra forma? Agora, ainda por cima com o presente envenenado de um Prémio Nobel da Paz, será que Barack Obama vai continuar a desiludir os que nele viam mais do uma mudança, uma ruptura? De facto, como já disse atrás, só se enveredasse pela ruptura e desencadeasse um complexo e ousado processo de afrontamento com as fontes do poder real nos EUA e com os precários equilíbrios em que assenta a (des)ordem internacional ele poderia ter ido mais longe. E até poder-se-á convir que seja verdade, como alguns o acusam, ele ter-se deixado embriagar, de modo algo narcísico, pelo próprio discurso, ou até de, ingenuamente (mas será possível esta ingenuidade?), ter interpretado os desejos por realidades. Mais prosaicamente penso que Obama é aquilo que é e não o que muitos quereriam que ele fosse. Como se diz popularmente, o que tem de ser tem muita força, e não nos esqueçamos, por exemplo, que este ano haverá as eleições para o Congresso de meio do mandato. O que, aliás, suscita uma outra interrogação: se o Presidente nesta altura em que tem a maioria em ambas as Câmaras não conseguiu (afastemos a hipótese de não ter querido) ir mais longe, como será depois, se perder essa maioria nem que seja só numa delas? Repito, a eleição de Obama foi evidente mudança positiva numa América evoluindo para um preocupante nacional-americanismo teorizado pelos extremistas neoconservadores e encarnado pelo seu Presidente texano. Foi mesmo 5 Cf. “La gauche américaine remobilisé par l’Afghanistan”, Le Monde, jeudi 8 octobre 2009, p.6. 17 OBAMA: UM ANO DEPOIS OU O INSUSTENTÁVEL PESO DA REALIDADE um corte epistemológico até no que concerne ao lugar dos afro-americanos no sistema político e na sociedade desse país, mas os próximos tempos nos dirão se foi mais do que isso, mesmo se isso já foi importante. 18 Os Desafios de Barack Obama Joaquim Jorge Veiguinha N um tempo em que predomina a fugaz conjuntura, o esquecimento tornou-se ideologia dominante. Já ninguém fala ou se recorda dos oito anos da administração de George W. Bush. Aqueles que tanto em Portugal como no estrangeiro se revelaram indefectíveis defensores da sua política belicista e unilateralista, que defenderam sem provas nem fundamento a invasão do Iraque – com especial destaque, entre nós, para Pacheco Pereira, só para citar o exemplo mais paradigmático – já há muito se remeteram a um silêncio sepulcral, ao verem completamente desmentidas as suas teses sobre a fantasiosa existência de armas de destruição maciça no Iraque de Saddam Hussein. Prestigiadas revistas, de que se destaca o semanário liberal britânico The Economist, empenharam-se em defender, sem reservas, a invasão do Iraque para, depois, tortuosamente, tentarem desculpabilizar o erro cometido e salvar a face dos seus responsáveis directos. A utilização da tortura, como arma de luta contra o terrorismo, encontrou defensores entre os mais respeitáveis representantes do establishment conservador e liberal. A defesa do militarismo e das armas nucleares, como formas de erradicar o terrorismo de uma vez por todas, teve apologistas dignos de figurar na película Doctor Strangelove de Stanley Kubrick. Por conseguinte, impõe-se um exercício de memória, confrontando os factos do passado que, no entanto, têm ainda profundas consequências no presente, com as novas perspectivas abertas pela nova Administração de Barack Obama. Durante o mandato de George W. Bush predominaram duas doutrinas que, apesar de distintas, constituíam duas peças complementares para justificar a estratégia de guerra permanente empreendida pelo ex-presidente norte-americano e seus conselheiros, de que se destacaram Donald Rumsfeld e Dick Cheney: a doutrina da guerra preventiva e a do imperialismo benigno. A primeira teve em Rumsfeld um dos seus principais mentores. Esta baseava-se no pressuposto de que todos os métodos eram legítimos para prevenir 19 OS DESAFIOS DE BARACK OBAMA ameaças consideradas iminentes contra os Estados Unidos por parte dos “Estados-párias” ou dos que se integravam no “eixo do mal”. Apesar de não existirem provas explícitas sobre alegadas ameaças iminentes, a melhor defesa era o ataque preventivo com vista a debelar o mal pela raiz. Se as suspeitas se revelavam infundadas e as vítimas colaterais do ataque preventivo aumentassem exponencialmente, o erro acabava por ser justificado com o argumento de que se dissuadiria assim outros de tentarem sequer empreender a façanha que as vítimas do excesso de zelo dos estrategos da guerra preventiva nem sequer tinham esboçado1. A doutrina do império do bem era provavelmente a versão soft da lógica absurdista da doutrina rumsfeldiana da guerra preventiva. Conquistou apologistas em alguns eminentes liberais, de que se destacaram o professor canadiano Michael Ignatieff e o historiador britânico Paul Kennedy, a que se aliaram os defensores da missão providencial dos Estados Unidos e da subalternização da ONU na remodelação da ordem mundial do período posterior à Guerra Fria. Para estes dois intelectuais prestigiados, os Estados Unidos constituíam uma potência imperial. No entanto, apesar dos norte-americanos defenderem e tentarem impor os seus interesses estratégicos, o seu objectivo global era essencialmente benigno, pois visavam fundamentalmente instaurar a democracia em países e em zonas do globo em que predominavam ditaduras e regimes autoritários não legitimados pelo voto das populações. Esta doutrina esquecia, porém, que é o princípio da liberdade de escolha que está na origem da democracia: ninguém pode ser obrigado a ser democrático se não escolher, optar e sobretudo lutar pela conquista da democracia política. Sob novas formas, tentava-se ressuscitar os mitos e a ideologia do direito de alguns, pela sua superioridade moral e civilizacional, a colonizar os outros, ainda não maduros para a democracia que assim se transformaria numa espécie de maná que cairia do céu libertando os povos oprimidos ou numa espécie de fogo diluviano que, apesar das incontáveis vítimas dos efeitos colaterais, eliminaria os ditadores e os tiranos e faria com que os povos submetidos entrassem, finalmente, no paraíso democrático prometido2. 1 Ver: Veiguinha, Joaquim Jorge - Da dissuasão à guerra preventiva, Finisterra, nº45, Fundação José Fontana, Lisboa, 2003, pp. 115-149. 2 Ver: Veiguinha, Joaquim Jorge - Patético imperialismo!, Finisterra, Fundação José Fontana nº46, Lisboa, pp. 47-62. 20 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA As duas doutrinas tinham, porém, um ponto em comum: ambas consideravam os Estados Unidos como o garante exclusivo da paz e da segurança internacionais, embora a primeira, de forma menos subtil, defendesse a tese do 1984 orwelliano de que a melhor maneira de conquistar a paz é fazer a guerra preventiva. Não faltou também quem quisesse convencer os intelectuais europeus mais cépticos da missão providencial que a Administração de George W. Bush estava imperativamente a desempenhar para erradicar o Mal do mundo e impor o Bem. Um grupo de intelectuais norte-americanos, entre os quais se integravam Francis Fukuyama, Michael Waltzer e Samuel Huntigton, publicou no jornal Le Monde de 15 de Fevereiro de 2002 uma “Carta da América” com o louvável objectivo de explicar as “razões” do combate da Administração de George W. Bush contra o terrorismo. Tese central da carta é que a ONU deve ser relegada para uma posição subalterna na construção de uma nova ordem internacional, já que compete aos Estados Unidos, potência mandatada pelas leis naturais estabelecidas por Deus e reveladas pelos Pais fundadores seus profetas, restabelecer a justiça no mundo. Os Estados Unidos são, de facto, a única potência em que o poder e o direito, o might e o right, se complementam e, por conseguinte, travam sempre uma guerra “justa”, sejam quais forem as vítimas ou danos colaterais contabilizados, já que entre o deve e o haver o segundo emerge sempre triunfante em última instância3. O discurso da tomada de posse do Presidente Barack Obama, em 20 de Janeiro de 2009, oferece uma nova perspectiva sobre o estado do mundo e o modo de resolver os seus conflitos4: “O que” – diz o novo Presidente norteamericano – se exige de nós agora é uma nova era de responsabilidade, um reconhecimento por parte de cada norte-americano de que temos obrigações connosco, com a nossa nação e com o mundo” (...) “Compreendemos que o nosso poder por si próprio não pode proteger-nos nem nos dá o direito de actuar a nosso bel-prazer. Pelo contrário, o nosso poder cresce quando o usamos com prudência, e a nossa segurança emana da justiça da nossa causa e da força do nosso exemplo” (...) “Os líderes que tendem a culpar o Ocidente pelos problemas das suas sociedades têm que saber que os seus povos os julgarão 3 Ver: Veiguinha, Joaquim Jorge - O Império do Bem, Finisterra, nº42/43, Fundação José Fontana, Lisboa, 2002, pp. 207-224. 4 As citações dos discursos do Presidente norte-americano são extraídas do jornal El País de 10 de Outubro de 2009. 21 OS DESAFIOS DE BARACK OBAMA pelo que construírem, não pelo que destruírem. Os que chegam ao poder através da corrupção e o silenciamento da sua oposição, saibam que estão no lado errado da História, porém estender-lhe-emos a nossa mão se quiserem mudar de rumo”. Este discurso introduz elementos inovadores que importa sublinhar. Os Estados Unidos já não se representam a si próprios como nação messiânica, capaz de resolver os problemas do mundo sem contar com os outros. O tom sobranceiro e arrogante que caracterizava as intervenções de George W. Bush e dos seus mais leais conselheiros, é substituído pelo reconhecimento das debilidades de uma nação que pretenda actuar a seu bel-prazer. Só num contexto de maior cooperação se poderá contribuir para a construção de uma ordem internacional não apenas mais estável e segura, mas também mais justa. Em vez da guerra preventiva, recomenda-se a prudência como forma de legitimar o poder dos Estados Unidos perante os outros Estados. Presume-se também que são os próprios povos a julgar os líderes que tentam transformar o Ocidente em bode expiatório dos problemas sociais e políticos que são incapazes de resolver. Mas isso significa também que quando está em causa a democracia e a liberdade política compete também aos povos a decisão de afastar os dirigentes que contribuem para sufocar toda a oposição ao seu domínio. Os Estados Unidos de Obama não se propõem impor à força a democracia, mas simplesmente estender a mão aos líderes que quiserem mudar de rumo, ou seja, precisamente aos que aceitem submeter-se à vontade democrática livremente expressa dos seus próprios povos. A administração de George W. Bush foi responsável pela proliferação e difusão do armamento nuclear. As provas são por demais evidentes. A não ratificação de Proibição Total de Ensaios Nucleares (CTBT) teve como consequência fundamental a criação de condições para legitimar a aposta no armamento nuclear. Por sua vez, o abandono do Tratado sobre os Mísseis Antibalísticos (ABM) serviu de pretexto para o projecto de construção do escudo antimísseis, outro elemento que contribuiu decididamente para a proliferação do armamento nuclear. Mais grave ainda, mas corolário inevitável das posições belicistas desta administração, foi a defesa da tese da utilização de armas nucleares tácticas com vista a combater e destruir os presumíveis arsenais subterrâneos de armas químicas e biológicas nos “Estados-párias”, de que se destacava o Iraque de Saddam Hussein. 22 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA Antes da invasão do Iraque, esta estratégia belicista foi defendida como “solução final” pelos apologistas da tese de que o terrorismo apenas pode ser erradicado por meios militares e que todas as tentativas que visam contribuir para a resolução do problema através da via política “fazem o jogo” dos terroristas. Em Portugal, temos um exemplo extremo desta tese na figura de Pacheco Pereira, o ideólogo do PSD, um reaccionário estrutural, apesar de surgir, em certos círculos intelectuais menores da nossa querida pátria, como uma espécie de conservador “iluminado”. Partindo da hipótese de que o regime de Saddam Hussein não hesitaria em lançar, através dos seus mísseis SCUD que – afirmava – não foram destruídos na guerra do Golfo, o conteúdo dos seus arsenais biológicos, químicos e nucleares sobre Israel - hipótese que designou elegantemente como “cenário tão pouco imaginativo de tão provável” -, Pacheco Pereira defendeu, sem temor nem tremor, que não havia lugar para hesitações e dilações, pois isso equivaleria a fazer o jogo do inimigo “pacifista”: “Qual é a resposta a este cenário, altamente provável, quando ele for inevitável – ou seja, quando Saddam tiver as armas que deseja? Por infeliz ironia, então o único cenário realmente eficaz em termos de impedir o Armagedão pode ser a utilização de armas nucleares, as únicas que podem garantir o grau de devastação que impeça que não só a liderança iraquiana sobreviva, como muitas das suas instalações militares escondidas. Haverá milhares de mortes civis. Os EUA poderão aqui hesitar, mas os israelitas certamente que não.”5 Em suma, para além das suas “suspeitas-certezas” se terem revelado completamente falsas, Pacheco Pereira revela, no seu máximo esplendor, as propensões atávicas do seu espírito conservador radical. Esta citação dispensa comentários, mas exprime a verdadeira a postura política da personagem, para além de causar espanto que, num país tão insignificante como Portugal em termos de estratégia político-militar, existam figuras, como Pacheco Pereira, que tenham ousado ser mais belicistas do que os mais belicistas apologistas da administração de George W. Bush. Uma postura inaceitável que não pode ser esquecida e que define não apenas a natureza específica de Pacheco Pereira, mas também de quem ainda o considera como ideólogo exemplar da direita moderada, para além de desprestigiar Portugal perante as camadas mais esclarecidas da opinião pública internacional. Só que a memória não prescreve e, sempre que possível, 5 Público, 11.9.02 23 OS DESAFIOS DE BARACK OBAMA deve ser recordada e actualizada para que os responsáveis por este tipo de afirmações acabem, finalmente, por revelar o seu anti-humanismo e demonstrar perante todos o que são verdadeiramente em termos políticos. Felizmente que na história do mundo figuras como Pacheco Pereira são efémeras. Já perdemos, porém, muito tempo com os conservadores atávicos da nossa praça. É altura de retornarmos a Barack Obama, um tema muito mais interessante. No seu discurso de Praga, em 5 de Abril de 2009, o Presidente dos Estados Unidos afirma: “Declaro claramente e com convicção o compromisso dos EUA de procurar a paz e a segurança num mundo sem armas nucleares” (...) “Se acreditarmos que a proliferação de armas nucleares é inevitável, estamos a admitir a nós próprios que o uso de armas nucleares é inevitável”. Esta declaração constitui o início de um virar da página, de que o abandono do projecto de construção do escudo anti-mísseis é um sinal claro. Ao contrário do que defendia a administração de George W. Bush, o recurso a armas nucleares não pode ser considerada como solução para a resolução dos problemas que resultam do aumento da insegurança e da instabilidade das relações internacionais. Antes pelo contrário, é um factor que pode contribuir para as tornar não apenas ainda mais instáveis e inseguras, mas também para desenvolver uma espiral de retaliações inspirada na lei de Talião que pode ter como resultado a destruição total da vida no planeta. Será isto a que aspiram os clones dos “Pachecos Pereiras” deste mundo? O anti-islamismo foi outra das características da doutrina de George Bush filho. Não faltaram famosos intelectuais para apoiarem com argumentos pretensamente sólidos a ignorância abismal do ex-Presidente da República norte-americana sobre os povos que não partilhavam a sua crença religiosa de cristão renascido das cinzas. O argumento dominante foi defendido por Samuel Huntington, recentemente falecido, no seu célebre ensaio The clash of civilizations – the remaking of the world order (“O choque das civilizações e a mudança na ordem mundial”, Gradiva, Lisboa, 1999), publicado em 1996, mas que, após o 11 de Setembro de 2001, se tornou um best-seller, objecto de uma segunda edição. A tese central do livro é que os países islâmicos são portadores de uma cultura intrinsecamente antidemocrática que não respeita a distinção entre a esfera religiosa e a esfera política, como acontece nos países ocidentais herdeiros da tradição judaico-cristã. A subalternização dos factores históricos, sociais e políticos conduzem a uma tese em que apenas os países do Ocidente cristão 24 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA surgem com uma predisposição genética para a democracia, enquanto os países em que vigora o islamismo estão condenados a uma ideologia em que predomina um fundamentalismo religioso que não olha a meios para se impor a sua crença aos outros povos. São, por conseguinte, afastadas, desde o início, todas as possibilidades de evolução no sentido democrático das sociedades islâmicas em que todas as tentativas de negociação com o Ocidente estão definitivamente condenadas ao fracasso. Apesar de Huntington não o afirmar explicitamente, depreende-se, então, que a única solução que resta para resolver o problema do fundamentalismo islâmico é militar, e não política e social.6 No seu discurso do Cairo, em 4 de Junho de 2009, Barack Obama abriu novas perspectivas de relacionamento com o mundo islâmico. “Os Estados Unidos - afirmou - não está em guerra com o Islão (...) “as nossas filhas podem contribuir tanto para a sociedade como os nossos filhos” (...) “não tenham dúvidas, o Islão é uma parte da América (...) “Não podemos disfarçar a hostilidade relativamente a uma religião com o pretexto do liberalismo”. Estas considerações, embora não critiquem directamente a perspectiva dos discípulos huntingtonianos, são um desmentido cabal da tese do “choque das civilizações”, sem fazer concessões ao fundamentalismo islamita. Afirmando que os cidadãos norte-americano que seguem os preceitos da religião muçulmana não constituem um corpo estranho na nação norte-americana, mas são parte integrante desta de acordo com o princípio da liberdade religiosa consagrado na Constituição dos Estados Unidos, o Presidente norte-americano afirma subtilmente que tanto as mulheres como os homens que seguem os preceitos do islamismo contribuem igualmente para a sociedade, pelo que não se justificam formas de discriminação e inferiorização das mulheres, como defendem as teses islamistas mais conservadoras. Em contrapartida, também não é aceitável que o liberalismo das nações ocidentais e, em particular, a defesa da igualdade de direitos entre os homens e as mulheres, afirmem a sua pretensa superioridade civilizacional para anatemizar uma religião e para defender que o islão é irreformável segundo os padrões ocidentais democráticos, como defendiam – e defendem ainda hoje – os apologistas do “Choque das civilizações”. 6 Ver: Veiguinha, Joaquim Jorge - A propósito do “Choque de civilizações”, Finisterra, nº40/41, Fundação José Fontana, Lisboa, 2001, pp. 223-32. 25 OS DESAFIOS DE BARACK OBAMA Uma das páginas mais negras da administração de George W. Bush foi a legitimação da tortura como estratégia de combate ao terrorismo. A nova administração contribuiu para a divulgação de um relatório de 2004 do Inspector-geral da CIA, bem como dos memorandos do Departamento de Justiça norte-americano, que revelaram à opinião pública os métodos preconizados pelo chamado manual de tortura da CIA. Veio a saber-se que esta agência norte-americana dispunha de autonomia para contratar mercenários para matar terroristas e que Dick Cheney, um dos principais mentores da utilização da tortura para a obtenção de confissões, teria ocultado ao Congresso norte‑americano informações sobre esta estratégia secreta. O relatório do Inspector Geral divulgou que a Casa Branca concedeu autorização para torturar os suspeitos de terrorismo sem correr riscos, bem como a diversidade de métodos utilizados pelos torturadores: manipulação da temperatura ambiente, celas iluminadas 24 horas por dia, duches de água fria e esfregamento do corpo com escovas utilizadas para raspar os soalhos, humilhações psicológicas, simulação de execuções, utilização da técnica dos pontos de pressão que consiste em colocar a mão sobre o pescoço do detido, procurando a carótida e apertando-a com força, simulação de afogamento (water-boarding), só para citar os métodos de tortura mais correntes. No entanto, o mesmo relatório - elaborado no período em que George W. Bush ainda reinava incontestado - acabou por concluir que “a informação extraída aos detidos ajudou a identificar os terroristas.”7 Apesar da sua conclusão, o relatório do Inspector Geral da CIA revelou que não se pode distinguir - como alguns liberais e conservadores não se cansaram de repetir no período em que todos os métodos excogitados para combater o inimigo terrorista eram lícitos - entre uma tortura soft ou branda, que poderia ser praticada pelas democracias ocidentais, e uma tortura hard ou dura, que apenas as ditaduras poderiam utilizar8. Para além das fronteiras entre tortura hard e tortura soft serem incertas e indefinidas, a prática das rendições, em que suspeitos de terrorismo eram capturados pela CIA e entregues às autoridades policiais de países em que vigorava a tortura hard, prova que não 7 Fonte: El País, 30.08.09. 8 Ver: Veiguinha, Joaquim Jorge - A proibição da tortura será um tabu?, Finisterra, nº46, Fundação José Fontana, Lisboa, 2003, pp. 147-156. 26 JOAQUIM JORGE VEIGUINHA podem existir pretensas distinções subtis no seio da tortura: esta constitui uma forma totalitária de procurar a submissão de outrem para menorizar e destruir a personalidade do torturado e obter as confissões deejadas pelo torcionário. Muitas vezes o torturado fornece as informações que os torturadores têm em mente apenas com o objectivo de se livrar da dor e da humilhação psicológica a que foi submetido. Por isso, a conclusão do relatório não pode ser considerada válida tanto sob o ponto de vista ético como sob o ponto de vista jurídico. A decisão de publicar relatórios e memorandos que, precedentemente, eram considerados segredo de Estado, expressa uma nova postura perante a questão da tortura. Além do mais, a promessa de fechar a prisão de Guantánamo e o acordo sobre a transferência dos detidos desta prisão, situada em território cubano, para serem julgados em tribunal, em território americano, constituem passos importantes para iniciar um novo caminho. No entanto, Obama tem revelado algumas hesitações, em consequência das pressões a que está submetido. Depois de ter, inicialmente, decidido divulgar fotografias comprometedoras sobre os abusos cometidos por alegados torturadores da CIA, acabou por recuar na sua decisão com o argumento de que “a consequência mais directa de publicar estas fotografias seria, creio, exacerbar ainda mais os sentimentos anti-americanos e pôr as nossas tropas em perigo”9. Também não contestou a tese do novo director da CIA, Leon Panneta, que justificou o “uso de técnicas especiais de interrogatório”, eufemismo de “tortura”, como resposta aos horrores dos atentados de 11 de Setembro de 2001. Estas hesitações não comprometem, porém, as medidas já tomadas de que se destacam o anúncio do cancelamento do programa antiterrorista da CIA, bem como a formação de uma equipa, constituída por pessoal de diversas agências e dependente do novo Departamento da Justiça, para interrogar os suspeitos de terrorismo detidos. A administração de George W. Bush deixou a Obama quatro presentes envenenados: o Médio Oriente, o Iraque, o Paquistão e o Afeganistão. No primeiro caso, a actuação de Obama não tem sido brilhante, já que cedeu no braço de ferro com Benyamin Netanyahu relativamente ao congelamento da construção de novos colonatos, que constitui uma condição necessária para o desbloqueamento do processo político nesta região tão conturbada10. 9 El País, 30.08.09. 10 Ver: Avnery, Ouri – Un tigre de papier dans le camp de la paix, Courrier International, Paris, 15.10.09. 27 OS DESAFIOS DE BARACK OBAMA No Iraque, está ainda por definir um calendário para a retirada das tropas norte‑americanas. O Paquistão e o Afeganistão estão a tornar-se cada vez mais regiões acossadas pela ofensiva talibã. A posição de Obama tem sido, sobretudo no caso do Afeganistão, a de reduzir o compromisso militar, apesar da oposição do general Stanley McChrystal, comandante das forças norte-americanas no Afeganistão, que exige um reforço do contingente militar11,a que o Presidente norte-americano acabou por ceder. Obama critica a impetuosidade intervencionista de George W. Bush e manifesta-se um opositor de uma guerra longa e interminável contra o terrorismo, embora defenda que não contribuirá para o retorno a uma situação que esteve na origem dos ataques do 11 de Setembro12. No discurso perante a Assembleia-geral da ONU de 23 de Setembro, deixou bem claro que as linhas mestras da nova política norte-americana abrem novas perspectivas para a construção futura de uma democracia planetária: “Procurámos, com palavras e com factos, uma nova era de compromisso com o mundo. Este é o momento para que cada um assuma a sua parte de responsabilidade para uma resposta global aos problemas globais”(...)”Nenhuma nação pode tentar dominar outra. Nenhuma ordem mundial que coloque um país ou um grupo em posição de predomínio sobre outro pode perdurar. A divisão entre Norte e Sul não tem sentido.” 11 Sobre este conflito ver The Economist, 17.10.09, pg. 14; pp. 30-31. A perspectiva da revista é, porém, nitidamente pró-McChrystal, ou seja, de reforço da intervenção militar. 12 Ver: Basterra, G. Francisco - “Situation room”, El País, 31.10.09. 28 E Agora, a Nova Europa!... Guilherme d’Oliveira Martins U m ano depois da eleição do Presidente Obama e vinte anos após a queda do muro de Berlim, no momento em que o Tratado de Lisboa entra em vigor, o projecto europeu regressa à ordem do dia. Como ficou patente sob os efeitos da crise financeira internacional, a União Europeia, como vontade política (e não tanto como estrutura centralizada) é cada vez mais necessária para garantir a coordenação de acções e instrumentos, com vista a contrariar a fragmentação e o proteccionismo e a concretizar a defesa e salvaguarda dos interesses e valores comuns. Quando, no início do século XX, havia quem tomasse como real um desejo de paz e entendimento para a Europa, quase todos estavam longe de suspeitar aquilo que viria a passar-se efectivamente. Ao contrário do que pensavam os bem intencionados e os ingénuos, e confirmando as piores suspeitas e medos de Stefan Zweig, a tragédia tornou-se inevitável, contrariando quer aqueles que pensavam que a cumplicidade entre as casas reinantes funcionaria positivamente a favor do entendimento, quer os que acreditavam em que o internacionalismo proletário poderia impedir um conflito generalizado. Depois da ilusão da “Primavera dos Povos” (1848), após a corrida ao poder colonial em África, perante o desenvolvimento da segunda revolução industrial (desde a emergência dos mercados globais até à influência da economia da energia), o que aconteceu foi a fragmentação europeia e o artificialismo dos acordos de 1919, que puseram termo muito provisório à primeira guerra mundial. As nacionalidades constitucionais oitocentistas, em lugar de terem dado lugar à lógica liberal, criaram condições para os proteccionismos e para os nacionalismos egoístas e agressivos. A guerra de 1939-45 foi, afinal, o resultado da falta de solução durável obtida após o conflito de 1914-18. Além do mais, a humilhação sofrida pelas potências vencidas só veio a criar condições para que ocorresse uma mistura explosiva no decurso dos anos trinta. Os acordos de Munique de 1938, longe de terem aberto condições para a paz, 29 E AGORA, A NOVA EUROPA!... apenas deram tempo a Hitler para que organizasse melhor a ofensiva do “eixo” no mundo. Bernard Voyenne chamaria, assim, ao ditador o Carlos Magno Nietzschiano, enquanto símbolo não de uma partilha europeia, mas de uma rendição sem condições. Daí que as poucas vozes que se levantaram contra o optimismo ingénuo de Chamberlain, prevendo o que ocorreria até Setembro de 1939 (há exactamente setenta anos), tenham considerado esses acordos, sobre a Checoslováquia, como a mais grave e terrível das cedências. Sabemos o que aconteceu até 1945. O prometido império para mil anos tornou-se símbolo hediondo das causas mais desumanas – desde o preço em vidas humanas da guerra até aos efeitos tremendos da “solução final”. A moderna ideia de Europa só pode ser compreendida, assim, se seguirmos os acontecimentos do último século e meio: guerra franco-prussiana, proclamação do Império Alemão em Versalhes, decadência dos impérios Austro-húngaro e Otomano, arrastamento do conflito mundial iniciado em 1914, revolução russa de 1917, humilhação alemã de 1919, efeitos económicos da guerra (hiper-inflação alemã de 1923, depressão e desemprego), guerra civil espanhola, ofensiva do “eixo”, efeito vitorioso da dinâmica aliada, Plano Marshall, guerra fria… Em 1948, o Congresso Europeu de Haia deu o sinal: haveria que usar um novo método na reconstrução da Europa e do mundo, depois da catástrofe da guerra. E a declaração de Paris de Schuman (9.5.1950) consagrou no plano político o objectivo defendido pelos intelectuais na capital holandesa. É neste contexto que se insere a obra de Denis de Rougemont, empenhado em lançar as bases desse novo método, baseado na descentralização e na subsidiariedade (na linha de Althusius). As pessoas e os cidadãos deveriam, assim, ser a base de uma nova construção, não centrada na perspectiva nacional e nos egoísmos agressivos ou proteccionistas, mas na procura de uma via pacífica e funcionalista, baseada na economia e na sociedade. Não se trataria, pois, de criar um super-Estado Europeu nem uma nação europeia, mas de construir uma solidariedade de facto e de direito, centrada no pluralismo e nas complementaridades, numa palavra, na unidade na diversidade. Daí a importância da procura das raízes comuns, não em nome da harmonização ou da uniformidade, mas sim de uma unidade nas diferenças. Fernand Braudel, o historiador da economia, falou do carácter pioneiro e necessário do projecto europeu. Mas perguntava: “A unidade política da Europa poderá fazer-se hoje não pela violência, mas pela vontade comum dos 30 GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS parceiros? O programa desenha-se, levanta entusiasmos evidentes, mas também sérias dificuldades”. Mas o historiador lança os alertas necessários, uma vez que a construção europeia depressa se tornou menos um projecto político de cidadania, para se ficar por uma mera adição de preceitos técnicos e de burocracias. “É inquietante verificar que a Europa, ideal cultural a promover, venha em último lugar na lista dos programas em causa. Não há uma preocupação nem com uma mística, nem com uma ideologia, nem com as águas falsamente acalmadas da Revolução ou do socialismo, nem com as águas vivas da fé religiosa. Ora a Europa não existirá se não se apoiar nas velhas forças que a fizeram, que a trabalham ainda profundamente, numa palavra se negligenciarmos os humanismos vivos. (…) Europa dos povos, um belo programa, mas que está por formular”. Assim, hoje, mais do que invocarmos os grandes idealistas, somos chamados a dar um salto desde os ideais até à realidade. E esse salto tem de se chamar cidadania europeia ou Respublica Europeana. É preciso menos palavras e melhor definição de interesses e valores comuns (deeds not words, res non verba). É preciso mais iniciativas da sociedade civil europeia. É preciso mais ligação entre a legitimidade dos Estados e a legitimidade dos cidadãos. E quando recordamos figuras como Denis de Rougemont ou Altiero Spinelli, não podemos esquecer os funcionalistas (como Monnet) e os políticos europeus (como De Gasperi, Schuman, Delors e Mário Soares). A Europa do futuro constrói-se com mais política, com melhores instituições, com Estados de Direito e Uniões de Direito. Rougemont tem razão quando fala de regiões europeias (porque há que considerar as diferenças entre Estados e nações), mas também tem razão ao dizer que Portugal é um Estado-nação perfeito (sendo a um tempo nação e região europeia). Longe da tentação de construir instituições políticas artificiais (que se tornam perigosamente reversíveis), do que se trata é de superar os egoísmos nacionais pela salvaguarda sã das diferenças culturais (os Estados-nações não podem ser esquecidos, mas têm de subsistir, compreendendo que se tornaram, a um tempo, grandes e pequenos de mais). Daí a insistência de Rougemont na história das regiões europeias, não como abstracção, mas como expressão da subsidiariedade. No fundo, é a dignidade da pessoa que está em causa, como sempre insistiu Alexandre Marc, um militante europeu centrado na liberdade e na dignidade humana. Do que se trata, pois, não é de criar uma identidade europeia, mas de entender a complexidade do pluralismo e das diferenças. E, hoje, depois de 31 E AGORA, A NOVA EUROPA!... 1989, com a Europa aberta e de fronteiras incertas é tempo de compreender que haverá vários círculos concêntricos, que partem das pessoas e das regiões, mas que devem entender uma “unidade não unitária”, assente em vinte línguas e uma literatura e em valores comuns, baseados na unidade e na diversidade (pessoa, gosto risco, procura da originalidade). É com base nesta comunidade de cultura, que pré-existe aos Estados, que os europeus devem construir a sua união… Vinte anos depois da queda do muro de Berlim, no momento em que entra em vigor o Tratado de Lisboa, devemos recordar o que disse Adolfo Casais Monteiro, em 1945, aos microfones da BBC: “Europa, sonho futuro! / Europa, manhã por vir, / fronteiras sem cães de guarda, / nações com o seu riso franco / abertas de par em par”. Assim se inicia o poema, abrindo horizontes, no momento culminante do final da guerra. Havia, nesse momento trágico, a consciência de que a mera lógica nacional, proteccionista, das fronteiras fechadas sobre si mesmas, ou do egoísmo particularista não permitiria a abertura de condições de reconciliação, a partir de instituições e de uma cultura de paz. Não se trataria de esquecer a lógica nacional, nem de subalternizar a diversidade cultural, mas de assentar o pluralismo, as diferenças e a democracia nas complementaridades e na articulação entre a legitimidade das nações e dos cidadãos. Lido à distância o poema contém a ideia de que a democracia exige não apenas a reorganização das nações, mas sim a ligação entre a legitimidade próxima e a legitimidade mediata. “Serás um dia o lar comum dos que nasceram / no teu solo devastado? / Saberás renascer, Fénix das cinzas / em que arda enfim falsa grandeza, / a glória que teus povos se sonharam / - cada um para si te querendo toda”. A ideia de “lar comum”, ou de casa comum, obriga a superar a tentação egoísta dos interesses hegemónicos, que apesar de historicamente conhecidos, conduzem, nos dias de hoje, ao arrastamento dos problemas e à sua não resolução. A recente crise financeira e a ilusão das soluções proteccionistas confirmaram de novo esta ideia, de que a Europa como vontade comum é necessária para a defesa dos interesses de todos e de cada qual. As guerras civis europeias são um dado insofismável e os últimos séculos tornaram-nas insustentáveis e trágicas pelas suas repercussões globais. A primavera dos povos de 1848 projectou, como dissemos, no continente os ideais da legitimidade liberal, mas acordou as ilusões agressivas dos nacionalismos. A guerra franco-prussiana procurou reformular os impérios, mas 32 GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS abriu a caixa de Pandora, que a Guerra de 1914 agravou e que a Segunda Grande Guerra prolongou, transformando a humilhação do primeiro conflito num confronto de consequências tremendas. O ideal europeu do século XX tem, assim, as raízes num grito de sobrevivência. É esse alerta que Adolfo Casais Monteiro exprime no texto de 1945. “Tua glória a ganharam / mãos que livres modelaram / teu corpo livre de algemas / num sonho sempre a alcançar! // Europa, ó mundo a criar!”. Sente-se, afinal, ao longo do poema, esta preocupação de lançar as bases de uma ordem baseada na liberdade. Contra a violência e a tirania, é a democracia e a ideia de Europa que se ligam. “Que só o homem livre é digno de ser homem”.Entende-se bem o sentido do texto, feito a pensar em Portugal e no destino europeu, e o tempo viria a confirmar a pertinência das palavras. A paz e a reconstrução apenas poderiam fazer-se com “espírito europeu”. O risco de se eternizarem as guerras europeias seria tanto mais elevado quanto mais prevalecessem as lógicas puramente nacionais. E, por isso mesmo, só depois de caído o muro de Berlim foi possível regressar à compreensão e à actualidade do texto de Casais Monteiro, porque só então poderia fazer sentido a pertinência de um “lar comum europeu”. Mesmo assim, a Europa pôde preparar, durante a guerra-fria, através da construção comunitária, as bases de um projecto comum, visando a coesão económica, social e territorial. E são esses fundamentos que poderão permitir realizar o que Jacques Delors há muito propõe: uma União Europeia talvez menos ambiciosa, mas com a audácia de realizar com uma trintena de membros três objectivos cruciais: a paz e a segurança no continente e no mundo; o desenvolvimento sustentável e a diversidade cultural. No entanto, a cada passo, sentimos que falta essa audácia. Prevalecem os pequenos egoísmos (como recentemente vimos no caso da ratificação checa, em que o espírito de Coménio ficou postergado pela lógica meramente nacional) e no combate à crise económica há manifestamente falta de uma coordenação de vontades, que ficou patente perante a maior eficácia e oportunidades das medidas norte-americanas. Não se julgue, porém, que se trata de cair na tentação de um super-Estado ou na ilusão de uma nação europeia. Do que se trata é de contrariar a tendência uniformizadora da globalização com mais diferença europeia – a favor da paz e do desenvolvimento. Infelizmente, continua a haver ausência de Europa na política e na economia mundiais. Desde o governo económico, que falta e é cada vez mais urgente, à pouca capacidade europeia de influenciar o curso 33 E AGORA, A NOVA EUROPA!... dos acontecimentos internacionais, estamos perante o desafio de agir como “potência civil” e como “factor activo de paz”. Se falámos de Casais Monteiro, teremos de lembrar o enigmático Pessoa, que fala de “rosto” e de “olhar esfíngico” de Portugal na Europa. Mas, ao longo do percurso histórico de um velho país europeu, temos de verificar como foi europeia a nossa vocação universal. Neste porto de partida e de chegada, foi europeia a origem, de um reino feito por guerreiros, trovadores, comerciantes e monges, desde Entre Douro e Minho até Coimbra e Alcobaça. Foi europeu o nascimento dos tempos modernos na revolta burguesa e popular de 1383 e na renascença pioneira dos Altos Infantes. Foi europeu o impulso das Descobertas do “Leal Conselheiro” e dos Infantes das Sete Partidas e do Promontório Sacro, na senda de Marco Pólo e com as informações cartográficas de Fra Mauro. Foi europeu o projecto do Príncipe Perfeito, de criar na entrada do Mediterrâneo uma potência moderna e universal… Assim, a Europa começou por fazer Portugal. Depois Portugal fez a Europa, arrastando-a, na interpretação de Eduardo Lourenço, para o seu destino universalista. E lembrem-se as “duas Europas”, as duas razões: a ibérica, castiça, mística e lírica; e a central e nórdica, do mercado, da modernidade e da ciência. De facto, o imaginário português foi condicionado por essa dicotomia – de um lado, o Quinto Império e o lusitanismo e de outro a Crítica ilustrada. De um lado, de Vieira a Pascoaes, de outro, de Damião de Góis a Sérgio. Mas cabe-nos compreender que as duas razões se encontram e se completam. E se dúvidas houvesse, o exemplo do Padre Vieira é dos mais significativos: quem duvida que o seu projecto messiânico era fundamente ancorado numa estratégia racional (desde o regresso dos judeus à fixação económica)? Mas o enigma está nos quatrocentos anos (desde 1580) em que “o desencontro entre o ser de Portugal e o ser da Europa se revela de consequências negativas para a nossa consciência”. É a reflexão de Eduardo Lourenço que seguimos – dele, discípulo assumido de Antero de Quental e das “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”. Longe do entendimento de que a Geração de Setenta (e, antes dela, Garrett e Herculano) foi decadentista, do que se trata é de ler o vencidismo, mais irónico do que sério, como um desafio de reconhecimento de que a Europa continua a ser um horizonte de emancipação, cosmopolita e universalista. Fora do fatalismo, trata-se de dizer que só se formos fiéis ao sentido crítico e ao patriotismo prospectivo poderemos partir da “maravilhosa imperfeição” 34 GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS para o desenvolvimento. Fiéis ao sentimento e à razão, à história e ao futuro, cientes da fecundidade de uma ideia aberta de auto-instituição da sociedade, ligando democracia e Europa, poderemos olhar para vante construtivamente. Sérgio, Proença e Cortesão estavam imbuídos desse anseio. Europa e liberdade devem estar ligadas – sendo o humanismo universalista o horizonte desse desígnio. E Lourenço, ainda ele, alerta-nos: “A nossa entrada na Europa, que podia ser apenas aproximação forçada e exterior, como em parte o continua sendo, era – é – também a entrada da Europa em nós, confronto e participação não apenas nos mecanismos de construção europeia, mas imersão mais intensa, mau grado as aparências em contrário, no magma complexo da herança cultural e simbólica da Europa” (A Europa Desencantada, ed. Visão, p. 149). Mas que Europa construímos? Este Tratado de Lisboa não é um “abre-te Sésamo”, não pode resolver as incapacidades, os egoísmos e a tentação burocrática, mas pode introduzir a pequena semente de mostarda da democracia, da cidadania e da coordenação nos interesses comuns. E comecemos pelo controlo da subsidiariedade pelos Parlamentos nacionais! Só articulando as legitimidades dos Estados e dos cidadãos poderemos avançar. Entenda-se que, assim, poderemos ganhar todos. Ligando razões, favorecendo a diversidade cultural e tendo a audácia de distinguir o que é próprio e o que é comum. Mas defendendo em comum o que é comum, sob pena de nações e Europa se destruírem… Precisamos de uma Europa, capaz de compreender e de assumir as mudanças ocorridas nos Estados Unidos – dispondo-se a agir com determinação e com audácia. E agora, a nova Europa! 35 PARLAMENTO O Voto nas Eleições Legislativas de 2009: Uma Primeira Leitura Augusto Santos Silva, Filipe Nunes e Marina Dutra E ste artigo pretende fazer uma primeira leitura dos resultados das eleições legislativas de 2009, ganhas, com maioria relativa, pelo Partido Socialista. Fá-lo através da tentativa de responder a três perguntas fundamentais. A primeira é como é que aqueles resultados comparam com o padrão histórico nacional, desde as primeiras eleições por sufrágio livre e universal, as que tiveram lugar em 1975, para a escolha da Assembleia Constituinte. A segunda pergunta é como se estrutura a variação regional do voto em eleições para o Parlamento. A terceira é, enfim, saber se 2009 representa algum ponto de viragem na organização e dinâmica do sistema partidário português. 1. A votação de 2009 face ao histórico da democracia portuguesa Quando consideramos, numa perspectiva nacional e longitudinal, os resultados eleitorais de 1975 a 2009, deveremos notar certas tendências fortes. Uma é a rápida estabilização do sistema partidário, a qual, como salientaram Jorge Gaspar e Nuno Vitorino (1976), ocorre logo nas eleições constituintes de 1975. O tema principal de estruturação do nosso sistema foi, pois, a escolha do regime político, após a revolução militar e popular que havia derrubado, em 1974, a ditadura do Estado Novo. Mais do que qualquer outra escolha, foi esta que o configurou; e separando, num lado, os partidos defensores de uma democracia parlamentar pluralista, à europeia, liderados pelo PS e, no outro, as forças que se lhe opunham, o Partido Comunista e uma miríade de organizações de extrema-esquerda. Como mostra Carlos Jalali (2007), isto define a principal exclusão do sistema, que é a exclusão do PCP do governo nacional, assim como estabelece, como principal dimensão de competição, a que se verifica entre os dois partidos que lutam, ao centro, pelo governo, o PS e o PPD-PSD - os quais, todavia, cooperam entre si, quer na definição da 37 O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA arquitectura do regime político, quer na reprodução das condições da respectiva hegemonia no sistema partidário. Inversamente, CDS e PCP esforçam-se por sair da posição de relativa exterioridade em que aquelas competição e cooperação os colocam, através designadamente de esforços para se tornarem interlocutores, o PCP do PS, e o CDS quer do PS quer do PSD. Nestes termos – segunda tendência forte – a estabilidade e a previsibilidade do comportamento eleitoral dos Portugueses são acentuadas (Jalali, 2009). Até 1983 (inclusive), a mobilidade do voto é relativamente reduzida (André & Gaspar, 1987). A emergência do PRD, em 1985, e os seus dois efeitos – primeiro, a queda brutal da votação do PS para quase metade dos votos expressos e, depois, a transferência maciça dos seus próprios eleitores para o PSD, que redundaria na primeira maioria absoluta de Cavaco Silva, em 1987 – vieram, ao contrário do que poderia pensar uma leitura que se ficasse pelas aparências, consolidar a estrutura do sistema partidário. Desaparecido após 1987, o PRD morreu depois de ter cumprido duas funções essenciais: intensificou a volatilidade eleitoral entre os dois blocos da esquerda e direita, tornando mais “liberto” de lealdades o eleitorado central e com isso enfatizou a dimensão principal de competição, entre o PS e o PSD, garantindo condições para uma alternância efectiva entre os dois partidos líderes de governo (Jalali, 2007). Estes dois resultados robustecem a estabilidade das escolhas eleitorais e do sistema partidário. O que é visível – terceira tendência a assinalar – quando procuramos identificar ciclos plurianuais. Entre 1975 e 1983, as características centrais parecem ser a estabilidade do voto e a penalização das forças partidárias com responsabilidades governativas (André & Gaspar, 1987). O PS, que liderou os governos de base parlamentar entre 1976 e 1978, perde as eleições de 1979. A Aliança Democrática (PPD+CDS+PPM), cujo primeiro governo consegue a renovação do mandato em 1980, virá a desmembrar-se em 1983, permitindo uma vitória folgada do PS. O segundo ciclo, que ocorre entre 1985 e 1995 (exclusive), é de claríssima hegemonia do PSD: na década de governos de Cavaco Silva, registou duas maiorias absolutas, aumentando aliás a votação da primeira para a segunda. Ao mesmo tempo, depois do descalabro eleitoral de 1985, o PS pôde ir refazendo um caminho de afirmação (e, no conjunto do sistema, de bipartidarização), 38 AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA que lhe permitiu chegar ao pós-cavaquismo na posição de alternativa lógica e exequível. O terceiro ciclo, que se iniciou em 1995 e, a nosso ver, ainda não terminou, é de hegemonia socialista, apenas interrompida fugazmente, entre 2002 e 2005, por dois governos de coligação de direita (PSD+CDS). Neste ciclo, o PS esteve por duas vezes à beira da maioria absoluta, com votações nos 44% (em 1995 e 1999, com António Guterres), conseguiu-a em 2005, com 45%, sob a liderança de José Sócrates, e renovou o mandato em 2009, agora com maioria relativa (37%). Na única eleição legislativa que perdeu, neste período, obteve mesmo assim 38% dos votos, ficando a dois pontos percentuais do PSD de Durão Barroso. Quadro 1 – Resultados dos cinco principais partidos em eleições legislativas, 1976–2009 Fonte: CNE Quanto à principal dimensão de competição do sistema partidário português, a evolução política e eleitoral tem, pois, reforçado a clareza e a importância da alternância entre os dois partidos do centro, PS e PSD. Um vasto segmento do eleitorado, também ele centrista, formula as suas opções de voto com base, não em vinculações estruturais a identidades ideológicas, mas sim em função 39 O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA de avaliações de curto prazo, sobre o desempenho do governo por assim dizer incumbente (o que se submete à eventual renovação de mandato), as qualidades políticas dos líderes, e designadamente dos candidatos a primeiro-ministro, e as propostas principais das respectivas candidaturas (Jalali, 2009; Freire, 2009). Este “eleitorado marais” (Jalali, 2007: 86-87) vota estrategicamente e arbitra a alternância política. Não obstante, para compreender bem o processo, precisamos de ter em mente três elementos adicionais. O primeiro é a fraca diferenciação ideológica entre os dois grandes partidos (Freire, 2006) – o que não só tem contornos europeus (tratar-se de dois partidos de governo, cujo acordo em questões de fundo como a economia de mercado, a política europeia e externa, ou as políticas de justiça ou defesa é natural e manifesto), como também apresenta esse ponto especificamente português, que já relevámos, e tem a ver com o facto de o nosso sistema partidário se ter estabilizado logo em 1974-76, no âmbito de uma conjuntura revolucionária, acomodando numa trincheira os partidos pró-democracia parlamentar e na trincheira contrária os comunistas. No que toca em particular ao PS, esta configuração do sistema investiu-o numa “posição-charneira” (Gaspar & Vitorino, 1976: 29), mais colocado na posição de pivô do que num dos lados do espectro político; e as políticas que desenvolveu, no governo, sucessivamente marcadas, até 1985, pela necessidade de acudir a graves crises financeiras, só acentuaram essa posição. Os inquéritos de opinião que têm procurado apurar a forma como os Portugueses representam o PS na escala política mostram que ele é percepcionado como estando claramente à esquerda do PSD e à direita do PCP, mas numa zona francamente intermédia daquela escala: 5,2 na escala de 1, esquerda, a 10, direita, em 2002, e 5,3, em 2005 (Quadro 2). E esta percepção não é abalada pela condição e a imagem projectada pela direcção partidária da circunstância: nas eleições de 2002, candidatava-se a primeiroministro, pelo PS, um reputado dirigente da sua ala mais à esquerda, Eduardo Ferro Rodrigues. 40 AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA Quadro 2 – Posicionamento dos principais partidos políticos na escala política, segundo as percepções dos eleitores, 2002 e 2005 (De 1, esquerda, a 10, direita) PARTIDO 2002 2005 BE 2,6 2,6 PCP 2,7 2,9 PS 5,2 5,3 PSD 7,6 7,3 CDS 8,0 7,4 (Reproduzido de Freire, 2009: 190). O segundo elemento a ter em conta, já bem identificado (Fortes, 2007), é a assimetria entre as avaliações do eleitorado de esquerda e do eleitorado de direita sobre os seus próprios governos. Como já dissemos, num quadro de fraca ancoragem social e ideológica do voto e de fraca diferenciação ideológica dos partidos, a importância da função de responsabilização dos agentes políticos e dos critérios da avaliação da sua acção relativos a temas de desempenho é muito grande: a forma como as pessoas avaliam os méritos do governo que vai a votos e dos líderes que competem entre si pela formação do futuro governo é crítica para a sua decisão de voto. Mas o eleitorado de direita tende a ser mais compreensivo perante as falhas de um governo da sua cor do que o eleitorado de esquerda colocado em situação equivalente. A insatisfação crítica é mais frequente, ceteris paribus, no eleitor socialista e a fidelidade partidária e ideológica parece mais eficaz, em termos de decisão de voto, no eleitor de direita. Esta assimetria penaliza clara e evidentemente o PS. Quanto ao terceiro elemento que precisamos de considerar para compreender bem as dinâmicas de alternância arbitradas pelo eleitorado centrista, ele diz respeito à importância da diferenciação dos partidos, aos olhos dos eleitores, segundo os seus valores e programas. Este elemento nem sempre tem sido bem explicitado. Em particular, o primeiro estudo pós-eleitoral realizado em Portugal, na sequência das eleições legislativas de 2002, sugeria que a preponderância da função de responsabilização no sistema político português – as eleições servem sobretudo para gratificar ou penalizar os governos cessantes – tinha por consequência a natureza residual da função de representação, isto é, da capacidade de expressão parlamentar das preferências individuais e das 41 O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA clivagens políticas internas à sociedade portuguesa (Freire, Lobo & Magalhães, 2004: 363-369). Ora, os resultados do segundo estudo pós-eleitoral, empreendido na sequência das eleições de 2005, vão em sentido bem diverso: “o voto maioritário na [então] oposição de esquerda esteve estreitamente relacionado com a defesa dos serviços públicos, com atitudes mais liberalizantes em matéria de aborto e com orientações pós-materialistas” (Freire, 2009: 215); à avaliação negativa do desempenho do governo de Santana Lopes e do estado da economia, juntaram-se, no mandato conferido ao PS, razões mais ideológicas e éticas (Magalhães, 2009). E, reconhecem os autores, o problema talvez tenha estado nas “limitações dos indicadores usados” em 2002 (Freire, 2009: 216). Veremos o que sugerirão estudos equivalentes para as eleições legislativas de 2009, onde, a julgar pela campanha, foram nítidos e fortes os fundamentos ideológicos das alternativas em presença, seja em matéria de economia (convicção ou cepticismo face ao investimento público), seja em matéria social (sistemas públicos versus sistemas mistos na saúde, segurança social e educação), seja na chamada agenda pós-materialista (consagração ou rejeição da possibilidade de casamento civil homossexual). Por enquanto, deverá notar-se que os três elementos que assinalámos se completam entre si. Quer dizer: os dois partidos de governo, PS e PSD, disputam intensamente um vasto eleitorado centrista, que os vê, a eles próprios, como partidos centristas; a avaliação do desempenho do governo cessante é crítica para a formação do sentido de voto; e, não obstante, os eleitores reconhecem também diferenças doutrinárias e programáticas entre as candidaturas rivais e têm-nas em conta na decisão que tomam. A amplitude e o posicionamento do eleitorado marais e os termos da contraposição entre PS e PSD, sendo fundamentais para explicar os resultados eleitorais, não esgotam, contudo, a explicação. Para além das dinâmicas interbloco (direita versus esquerda), contam também as dinâmicas intrabloco (internas à direita e internas à esquerda). Ora, há, neste aspecto, diferenças consideráveis entre os dois grandes campos políticos. Em primeiro lugar, em termos eleitorais. É enorme a porosidade entre os eleitorados dos dois partidos de direita. Em 1987 e 1991, o PSD de Cavaco Silva conseguiu reduzir o CDS à insignificante percentagem de 4% de votos – e essa foi uma das condições fundamentais para as maiorias absolutas de então. Inversamente, a incapacidade do PSD de Manuela Ferreira Leite para recuperar eleitoralmente, em 2009, foi parcialmente compensada por um 42 AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA importante avanço da votação do CDS, num contexto de subida da votação à direita por comparação com a eleição antecedente. É certo que o PS conseguiu conquistar sistematicamente votos ao PCP, desde 1991, e não se pode dizer que tenha recuado na relação de forças que impôs: as coligações eleitorais do PCP, que chegaram a valer 19% dos votos em 1979 e 18% em 1983 e ficaram reduzidas a 9% em 1991, nunca mais regressaram aos números de dois algarismos. É também certo que, em 2002, com uma inequívoca afirmação à esquerda, o PS pôde atenuar a dimensão da derrota pela forte mobilização do eleitorado de esquerda e pela contenção do crescimento das forças à sua própria esquerda. Mas os estudos de sociologia política disponíveis ilustram as diferenças estruturais entre o eleitorado do PS e a base eleitoral primária do PCP, sendo entre estes dois segmentos que mais se evidenciam as clivagens segundo a condição social e os valores religiosos (Jalali, 2007); e, portanto, sendo clara a progressão, no tempo longo, do PS face ao PCP e a aproximação de parte dos seus eleitorados, sempre haverá, no futuro próximo, limitações ao alcance desses dois processos. Depois, o PS confronta-se, desde 1999, com a concorrência de uma nova força política, o Bloco de Esquerda, no seu terreno eleitoral – e essa força não tem cessado de crescer, obtendo 2% dos votos em 1999, 3% em 2002, 6% em 2005 e 10% em 2009. Mas as diferenças mais consideráveis entre a direita e a esquerda ocorrem no plano político ligado às condições de governação. Com a única excepção de 1985, a direita liderou governos com maioria absoluta no Parlamento: ou monopartidária, nos executivos do PSD entre 1987 e 1995, ou em coligação entre PSD e CDS (1979-1983 e 2002-2005). À esquerda, o panorama é muito diverso. Nos casos em que foi vencedor com maioria relativa (todos menos o de 2005-2009), o PS nunca logrou qualquer forma de apoio parlamentar estável à esquerda – embora a esquerda dispusesse de amplas maiorias em 1976, 1983, 1995, 1999 e 2009. Os dois únicos governos de coligação que liderou foram construídos (e depois destruídos…) à sua direita (com o CDS, em 1978, e com o PSD, entre 1983 e 1985). Há, pois, uma assimetria estrutural entre a direita e a esquerda portuguesas, e a favor da primeira, no que toca à capacidade de converter maiorias eleitorais em maiorias de governo. E, como a inexistência de unidade entre as esquerdas tem raízes profundas na contradição entre as suas posições em questões-chave como as políticas de soberania, a integração europeia, a economia de mercado 43 O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA ou a sustentação do Estado social, não se vê outra hipótese ao PS senão lutar pela maioria eleitoral mais robusta possível, para governar sozinho. 2. A evolução da variação regional do voto O Partido Socialista ganhou as eleições legislativas de 2009 com dois milhões de votos, 37% do total. Em termos absolutos, é a quarta melhor votação da série (Quadro 3). Perdendo meio milhão de votos entre 2005 e 2009, ficou ao nível das votações obtidas em 1983, quando venceu e pôde formar o governo do Bloco Central, e em 2002, na “derrota honrosa” de Ferro Rodrigues – bem longe, portanto, dos anos sombrios de 1985-1991. Quadro 3 – Resultados do PS em eleições legislativas PS Nº (10³) % 1976 1.912 35 1979 1.642 27 1980 1.673 28 1983 2.061 36 1985 1.204 21 1987 1.254 22 1991 1.671 29 1995 2.584 44 1999 2.360 44 2002 2.056 38 2005 2.574 45 2009 2.069 37 Fonte: CNE A votação de 2009 é, porém, a segunda pior da década e meia de hegemonia eleitoral dos socialistas (1995-2009). Que ela se tenha traduzido em vitória deve-se muito ao facto de o conjunto da direita não ter conseguido alterar significativamente a “anomalia” que registara em 2005, quando, pela 44 AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA primeira vez desde 1976, havia ficado abaixo dos 40%. E por responsabilidade clara do PSD e da liderança de Manuela Ferreira Leite, que apenas conseguiu acrescentar duas magras centenas de votos ao desastroso resultado obtido por Santana Lopes no sufrágio de 2005. Do ponto de vista da relação entre blocos, 2009 repetiu, embora com menor expressão, um dos factos capitais de Fevereiro de 2005: vitória socialista em contexto de crescimento da esquerda comunista e revolucionária. Importa, contudo, para ter uma ideia clara dos desempenhos dos vários partidos, compreender um pouco a sua sociologia e geografia eleitoral. Tanto quanto sabemos, nenhum dos estudos pós-eleitorais, realizados a propósito das legislativas de 2002 e 2005, das europeias de 2004 ou das presidenciais de 2006, relevou o papel da condição socioprofissional no sentido de voto dos inquiridos. As aproximações ensaiadas por via da geografia eleitoral – relacionando votações obtidas e características sociais de base concelhia – são muito indirectas (cf., porém, Gaspar & Vitorino, 1976; André & Gaspar, 1987; Freire, 2005). Conhecemos muito melhor os perfis regionais das votações nos diferentes partidos. E, também aqui, as clivagens fundamentais manifestaram-se logo no primeiro sufrágio livre, em 1975 (Gaspar & Vitorino, 1976). A dicotomia principal ocorre entre o Norte, onde a direita tem os seus bastiões, e o Sul, onde predomina a esquerda. Os mapas relativos à votação do então PPD (mais influente a Norte) e do PCP (mais influente no Sul) são, aliás, o exacto negativo um do outro (cf. Gaspar & Vitorino, 1976: 40-46). Esta dicotomia sobreleva outras duas, todavia presentes: a oposição entre meio urbano e meio rural e a oposição entre o litoral e o interior. E se, em geral, a esquerda é mais favorecida nos centros urbanos e o voto na faixa litoral do Norte menos conservador do que no interior, o facto é que a forte implantação do PCP no proletariado rural alentejano introduz uma modulação não desprezível neste tipo de regularidades. Não há, pois, uma estrita correspondência entre as clivagens de natureza socioeconómica e as de natureza político-eleitoral: “enquanto a grande dicotomia do voto é entre o Norte e o Sul, a principal dicotomia portuguesa, no que respeita ao nível social e económico do desenvolvimento, é entre a faixa eleitoral, que vai da periferia sul de Lisboa à periferia norte do Porto, e o resto do País, tanto no Sul como no Norte” (Gaspar & Vitorino, 1976: 82). Ora, neste mapa, o grande recurso específico do PS é o equilíbrio regional 45 O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA da sua votação. O voto significativo no PS estende-se por todo o território nacional, embora seja mais forte no Centro, no Algarve, na área metropolitana do Porto e na margem norte da área metropolitana de Lisboa. Assim, em 1975, o PS compete em todos os círculos eleitorais, a norte com a direita, a sul com os comunistas e aliados. Este padrão não desapareceu. Se olharmos para o mapa das votações no Continente nas três últimas eleições legislativas (Mapa 1), logo notaremos que, mesmo na sua última vitória, em 2002, o PSD não conseguiu ser o primeiro partido em nenhum círculo eleitoral a sul da linha formada por Leiria, Coimbra e a Guarda – e isto é algo que lhe acontece desde 1995. Mas adquiriu outra complexidade. Mapa 1 – Partidos vencedores nos círculos eleitorais do Continente, 2002–2009 Em primeiro lugar, os quatro maiores partidos foram alargando, ao longo destes 34 anos de eleições nacionais parlamentares, a sua área de influência. Mesmo o PS, de implantação mais difusa, o fez, aumentando ainda mais o carácter “nacional” da sua votação – ao conquistar os redutos alentejanos do 46 AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA PCP e ao progredir nos círculos hegemonizados pela direita (incluindo nas duas Regiões Autonomias, onde passou a ser o partido vencedor nos Açores desde 1996, e esporadicamente na Madeira, onde chegou a empatar com o PSD em número de mandatos em 2005 para sofrer, depois, um descalabro eleitoral em 2009). O PSD reforçou a presença no Sul, a partir dos dois governos da Aliança Democrática. O PCP sofreu um processo análogo, mas pela negativa, porque a alguma progressão a norte correspondeu uma bem mais significativa perda dos bastiões alentejanos. E o CDS também acentuou a sua dimensão nacional num contexto de diminuição global das votações, desde 1983 (cf. Jalali, 2007). Em segundo lugar, a extensão do voto urbano no PS vê-se desafiada com a emergência do Bloco de Esquerda, com expressão relevante a partir de 2002 (cf. Freire, 2005). As clivagens territoriais que se haviam evidenciado de forma tão nítida nas eleições iniciais de 1975 foram-se, pois, atenuando, e logo na década subsequente (André & Gaspar, 1987). O seu peso varia também, naturalmente, de acordo com a dimensão dos resultados eleitorais: bastará recordar que, nas três maiorias absolutas até agora verificadas, o PSD apenas perdeu a primazia na votação, em 1987, nos círculos de Beja, Évora e Setúbal e, em 1991, no de Beja; e que o PS, em 2005, só em Leiria e na Madeira é que não foi o partido mais votado. Mas isto não quer dizer que a geografia eleitoral portuguesa não tenha consistência e significado. Pelo contrário. E a força da velha contraposição entre Norte e Sul vem ao de cima, com lapidar clareza, nas votações em que estão directamente em causa valores éticos e religiosos. Falamos naturalmente dos dois referendos à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, o de 1998 e o de 2007, em que verdadeiramente se confrontaram dois “países” (Mapa 2). 47 O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA Mapa 2 – Resultados dos referendos à despenalização da interrupção da gravidez, 1998 e 2007, por concelho No quadro desta geografia eleitoral, a variação regional da votação do partido vencedor em 2009 não deixa de dar indicações adicionais relevantes (Quadro 4). Ao nível distrital, e por comparação com 2005, o PS sofreu as maiores perdas nos círculos onde tinha conseguido resultados mais extraordinários, fosse pela expressão atingida pela sua tradicional implantação, seja pela progressão conseguida face à direita ou ao PCP. Estão no primeiro caso, por exemplo, Faro, Portalegre ou Castelo Branco, e, no segundo caso, a Madeira e Beja. Por outro lado, o PS resistiu melhor em círculos onde a sua implantação era ainda fraca (como Leiria ou Viseu) e noutros cujas características sociais definem como praças-fortes do voto socialista, como Braga ou o Porto. 48 AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA Quadro 4 – Variação do voto no PS, 2002–2009, por círculo eleitoral do território nacional 2009–2005 Aveiro Beja Braga Bragança Castelo Branco Coimbra Évora Faro Guarda Leiria Lisboa Portalegre Porto Santarém Setúbal Viana do Castelo Vila Real Viseu Açores Madeira Europa Fora da Europa TOTAL -7 -16 -4 -9 -15 -8 -15 -17 -11 -5 -8 -17 -7 -12 -10 -6 -8 -6 -13 -15 -8 2005–2002 em pontos percentuais 8 7 8 12 10 4 7 9 12 6 5 10 7 8 4 7 12 9 12 9 12 5 7 2009–2002 0 -9 4 3 -5 -3 -8 -9 1 1 -2 -7 1 -5 -5 1 4 4 -1 -6 -1 Fonte: CNE Estas particularidades são ainda mais nítidas se fizermos a comparação distrital/regional entre 2002 e 2009, anos em que, como já vimos, o PS obteve votações nacionais quase iguais, quer em termos absolutos quer em termos relativos. De facto, o minúsculo PS cresceu, percentualmente, de um para o outro acto eleitoral, em Braga, Vila Real, Viseu, Bragança, Porto, Leiria, Viana do Castelo e Guarda. Em 2009, o PS obteve as suas votações mais expressivas, em termos relativos, nos distritos de Braga, Porto, Castelo Branco, Coimbra e Portalegre, para além da Região Autónoma em que é governo (Açores) (Quadro 5). 49 O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA São distritos urbanos e de transição, mas significativamente todos situados a norte do Tejo, três no litoral e dois no interior. Quadro 5 – Votação no PS, em 2009, por círculo eleitoral do território nacional (em %) Aveiro Beja Braga Bragança Castelo Branco Coimbra Évora Faro Guarda Leiria Lisboa Portalegre Porto Santarém Setúbal Viana do Castelo Vila Real Viseu Açores Madeira 34,6 34,8 41,7 32,9 41 37,9 35,0 31,9 36 35 36,3 38,3 41,8 33,7 34 36,3 36,1 34,7 39,7 19,5 Fonte: Ministério da Justiça A ancoragem do voto socialista é ainda mais bem documentada pelo mapa dos resultados concelhios: com a assinalável excepção de Loulé, a direita não vence em nenhum concelho do Sul, e o PS ganha em todos com a excepção de oito concelhos alentejanos e um ribatejano, conquistados pela CDU (a coligação eleitoral do PCP); a mancha de hegemonia socialista prolonga-se, no interior, por concelhos de Castelo Branco e da Guarda e, mais forte no litoral, penetra expressivamente para o interior desde Lisboa até Castelo Branco, no eixo Figueira da Foz-Coimbra, na envolvente sul e norte do Porto, pelos vales do Sousa, Tâmega, Ave e Cávado e na coroa norte de Viana do Castelo (Mapa 3). 50 AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA Mapa 3 – Partidos vencedores nos concelhos do Continente, 2009 3. A reconfiguração do sistema partidário português As eleições de 2009 não alteraram, a nosso ver, os traços fundamentais do sistema partidário português. A sua estabilidade é manifesta. Isto não equivale, certamente, a negar os sinais de erosão, como o fraco nível de activismo, o alto abstencionismo juvenil, o difícil enraizamento social das organizações partidárias e os sinais públicos de desafiliação. Mas, se deve ser colocada a questão de saber se aquele sistema se encontra sob pressão, ainda se pode dizer que, tudo somado, tem conseguido resistir (cf. Lobo, 2009). Na verdade, foi fixada logo em 1975, nas eleições para a Assembleia Constituinte, a estrutura de quatro partidos com presença parlamentar relevante e contínua – o Partido Socialista, o Partido Popular Democrático, depois rebaptizado como Partido Social-Democrata, o Partido Comunista Português e as suas metamorfoses eleitorais (desde o Movimento Democrático Português até à Aliança Povo Unido e à Coligação Democrática Unitária), o Centro Democrático Social. 51 O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA O primeiro desafio de vulto a esta estrutura quadripartida, que foi a criação do Partido Renovador Democrático, falhou, acabando por ter dois efeitos muito importantes de consolidação do sistema quadripartido, que foi a intensificação da mobilidade centrista interblocos e o favorecimento da alternância bipartidária. Em 1991, a concentração de votos no PSD e no PS foi a maior de sempre, alcançando quatro quintos dos votos expressos (Quadro 1). E não desceria abaixo dos 75% até 2005 (quando foi, mesmo assim, de 74%). Do segundo desafio, pode dizer-se que está em curso. Já em 1976, 1979 e 1980, a extrema-esquerda portuguesa havia alcançado um assento parlamentar. Em 1999, mercê da reunião de esforços entre as várias organizações desse segmento e, sobretudo, da eficácia em apresentar-se publicamente como uma nova força, sui generis, e do aproveitamento das hesitações do PS de Guterres na agenda pós-materialista, o novel Bloco de Esquerda assegurava a eleição de dois deputados. O número passou a ser de três em 2002, oito em 2005 e 16 em 2009, ultrapassando o Partido Comunista (Quadro 6). Quadro 6 – Distribuição dos mandatos parlamentares, 1976–2009 1976 107 73 42 PS PSD CDS AD BE (UDP + PSR) CDU PRD PSN 1979 74 1980 74 1983 101 75 30 128 134 1 1 1 1 40 47 41 44 1985 57 88 22 38 45 1987 60 148 4 31 7 1991 72 135 5 17 1995 112 88 15 15 1999 115 81 15 2002 96 105 14 2005 2009 97 121 81 75 21 12 2 3 8 16 17 12 14 15 1 Fonte: CNE; em 1976 o nº de eleitos ainda era variável; a partir das legislativas de 1991, o número de eleitos desceu de 250 para 230. Até agora, o desafio colocado pelo BE tem sido, pois, coroado de sucesso. E introduziu um novo elemento na estrutura do sistema de partidos: da configuração 2+2 – dois grandes partidos, PS e PSD, e dois médios, PCP e CDS – passámos para a configuração 2+3, com a afirmação de um terceiro partido de média representação, o BE. Mas isto não retirou centralidade aos 52 AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA dois partidos rivais pela liderança do governo, os únicos que realmente a disputam e alternadamente a conquistam. A dinâmica de bipartidarização, tão intensa, como já vimos, entre 1987 e 2005, mitigou-se bastante; mesmo assim, PS e PSD, juntos, representam, em 2009, dois terços dos votos e três quartos dos assentos. Além do mais, a vitória do PS, na última eleição parlamentar, ainda que relativa, representou uma dupla derrota da estratégia do BE: primeiro, porque este falhou o seu objectivo assumido de precipitar uma queda abrupta da votação socialista, que precipitasse o debate, externo e interno ao PS, sobre a recomposição e a liderança do campo da esquerda portuguesa; e, segundo, porque, ao não verificar-se uma maioria aritmética constituída pela soma dos deputados do PS com os do BE, o BE perdeu a capacidade de poder condicionar, por si só, a estratégia do novo governo Sócrates. Finalmente, ainda é cedo para dar por irreversível o crescimento eleitoral do BE e, designadamente, uma supremacia sobre o PCP. Quinze dias depois das eleições legislativas, os resultados das eleições autárquicas mostravam isso mesmo, relegando o BE para um desempenho pouco menos que humilhante, com uma votação nacional na ordem dos 3%, apenas uma câmara municipal mantida e 9 vereadores eleitos a nível nacional – nenhum, aliás, para os executivos das cidades de Lisboa e Porto, os lugares emblemáticos para o projecto de uma esquerda urbana e renovada. Sabida também a desproporção de poder de influência no meio sindical, comparativamente com o PCP e o PS, seria imprudente outra atitude analítica que não esperar pelos próximos desenvolvimentos político-eleitorais. A comunicação entre os eleitorados das esquerdas – e, em particular, entre o socialista e o bloquista – funciona em mais do que uma direcção. Em suma: percentualmente, a soma das votações logradas, em 2009, pelos dois partidos parlamentares à esquerda do PS, foi de 18%, o valor mais alto do último quarto de século, exactamente igual à percentagem obtida pela coligação do PCP em 1983; mas a coerência e a consistência políticas dos dois resultados são bem diferentes. A bipartidarização característica do sistema partidário português mantém-se, portanto, embora mais mitigada na sequência das últimas eleições. A principal dimensão de competição opera-se entre PS e PSD; e a exclusão da extrema-esquerda não se alterou com a afirmação do BE, porque este se 53 O VOTO NAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DE 2009: UMA PRIMEIRA LEITURA colocou na mesma posição anti-sistema do PCP. Permanece a assimetria entre os dois campos da direita e da esquerda, em termos de condições de governação, havendo agora, na última, o ingrediente adicional da própria emulação entre PCP e BE – que não raras vezes é emulação no que respeita ao grau de criticismo face ao executivo e ao grupo parlamentar socialistas. E dois factos adicionais contribuem para tornar mais difíceis tais condições. O primeiro é que, pela primeira vez desde 1976 (descontado naturalmente o cenário de Bloco Central, em 1983), a maioria relativa de deputados do PS é inferior ao conjunto dos deputados do PSD e do CDS. O segundo é que, pela primeira vez desde sempre, o governo minoritário do PS coexiste com um Presidente da República eleito à direita. Veremos como vão evoluir as coisas. Ao longo dos últimos cinco anos, o desempenho eleitoral do partido vencedor em 2009, o PS, tem variado consideravelmente: maioria absoluta nas eleições legislativas de 2005, derrota clara nas eleições autárquicas do mesmo ano, derrota forte do seu candidato oficial, nas presidenciais de 2006, vitória da posição por si defendida no referendo à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, humilhação nas regionais antecipadas (de facto, quase plebiscitárias) da Madeira, em 2007, vitória e renovação de mandato nas regionais de 2008 nos Açores, derrota severa nas europeias de Junho de 2009, vitória relativa nas legislativas, três meses depois, e consolidação da votação nacional e progressão de câmaras detidas, nas autárquicas de Outubro (Quadro 7). No princípio de 2011 ocorrerão novas eleições presidenciais, que poderão ter efeitos directos na dialéctica entre Governo, Parlamento e Presidência. Quadro 7 – Votos no PS e nas posições do PS, 2005–2009 LEGISLATIVAS AUTÁRQUICAS 2005 2005 2.588.312 1.933.041 Fonte: Ministério da Justiça 54 SOARES 2006 REFERENDO 2007 EUROPEIAS 2009 LEGISLATIVAS 2009 AUTÁRQUICAS 2009 785.355 2.237.565 946.818 2.068.560 2.084.382 AUGUSTO SANTOS SILVA, FILIPE NUNES E MARINA DUTRA Tudo aconselha, por conseguinte, atenção, observação cuidada e interpretação prudente. O facto é que, no final de 2009, o PS havia renovado o seu mandato, agora com maioria relativa na Assembleia da República, prosseguindo um ciclo de hegemonia político-eleitoral que se prolonga desde 1995 – no quadro de um sistema partidário que se mantém estável nas suas características determinantes mas está provisória ou perenemente reconfigurado numa estrutura de dois partidos grandes e três médios, e no quadro de uma geografia eleitoral que continua a contrapor, embora de forma mais atenuada do que no momento fundador de 1975, o Norte e o Sul, o meio rural e o meio urbano. 55 Referências bibliográficas: André, Isabel & Jorge Gaspar (1987): “Portugal – geografia eleitoral: 1975 e 1987” in Mário Baptista Coelho (org.), Portugal: O Sistema Político e Constitucional 1974-1987, Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 267-277. Fortes, Braulio Gómez (2007): “Os eleitores de esquerda perante o Partido Socialista: duros e pragmáticos”, in Freire, André, Marina Costa Lobo & Pedro Magalhães, orgs.: Eleições e Cultura Política, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Freire, André (2005): “Geografia e sociologia do voto no Partido Socialista”, in Vitalino Canas (org.): O Partido Socialista e a Democracia, Oeiras: Celta. Freire, André (2006): Esquerda e Direita na Política Europeia: Portugal, Espanha e Grécia em Perspectiva Comparada, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Freire, André (2009): “Valores, temas e voto em Portugal, 2005 e 2006: analisando velhas questões com nova evidência”, in Lobo & Magalhães (2009): 183-223. Freire, André, Marina Costa Lobo & Pedro Magalhães, orgs. (2004): Portugal a Votos: As Eleições Legislativas de 2002, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Gaspar, Jorge & Nuno Vitorino (1976): As Eleições de 25 de Abril: Geografia e Imagem dos Partidos, Lisboa: Livros Horizonte. Lobo, Marina Costa (2009): “Introdução” in Lobo & Magalhães (2009): 19-36. Lobo, Marina Costa & Pedro Magalhães, orgs. (2009): As Eleições Legislativas e Presidenciais 20052006: Campanhas e Escolhas Eleitorais num Regime Semipresidencial, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Jalali, Carlos (2007): Partidos e Democracia em Portugal, 1974-2005: da Revolução ao Bipartidarismo, Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Jalali, Carlos (2009): “No meio está a virtude? As preferências e posições de eleitores e partidos nas legislativas de 2005”, in Lobo & Magalhães (2009): 155-182. Magalhães, Pedro (2009): “Conclusão”, in Lobo & Magalhães (2009): 283-293. 56 Notas Sobre a Conjuntura Pós-eleitoral Fernando Pereira Marques E screver qualquer comentário ou reflexão sobre o recente ciclo eleitoral que teve lugar em Portugal e a actual situação política, torna-se tarefa se não inútil pelo menos redundante. Na verdade, será possível dizer algo de novo, algo que ainda não tenha sido dito pela profusão de analistas, politólogos, comentaristas, editorialistas, colunistas que ultimamente se têm multiplicado entre nós, até certo ponto ameaçando deixar na sombra os outros profetas e pitonisas dos tempos modernos que são os economistas? Não obstante procedamos a este arriscado exercício correndo o risco de dizer só banalidades. 1. Uma das coisas que se poderá constatar é que, do ponto de vista funcional, o sistema político correspondeu ao que seria normal dele esperar. Ou seja, no que se refere às eleições legislativas, a maioria relativa obtida por um dos dois principais partidos – neste caso o PS –, é a norma e não a excepção, tendo em conta o sistema eleitoral, o método de conversão de votos em mandatos e o sistema de partidos entretanto estabilizado, nos seus contornos principais, no decurso dos anos. Ou, dizendo de outra maneira, o que não corresponde ao expectável, tendo em conta essas realidades funcionais, são situações de maioria absoluta de um só partido, como aconteceu duas vezes com o PSD de Cavaco Silva e, na anterior legislatura, com o PS de José Sócrates. Na verdade, devido ao sistema eleitoral constitucionalmente definido e ao sistema de partidos que se consolidou desde o início da democracia – composto fundamentalmente por quatro partidos com representação parlamentar –, não seria de esperar, ou sequer possível, que, utilizando conceitos de Lijphart, surgisse entre nós uma democracia de tipo Westminster. Antes pelo contrário, dever-se-ia ter constituído uma democracia de consenso, quer dizer, assente no estabelecimento de consensos e, consequentemente, na constituição de maiorias de governo através de coligações. Ora, como é sabido, se tem havido 57 NOTAS SOBRE A CONJUNTURA PÓS-ELEITORAL uma política de alianças – pré e pós eleitorais – à direita entre o PSD, o CDS, e mais outras formações residuais, o mesmo não tem acontecido, nem há perspectivas de vir a acontecer, à esquerda (com excepção da circunstancial e falhada FRS, em 1980, entre o PS, a UEDS e a ASDI, entretanto desaparecidas). Se tivermos em conta, como se verificou nas últimas eleições, que continua ainda a existir uma maioria eleitoral de esquerda (54,29%), percebemos as consequências deste bloqueamento estrutural que dificulta a governabilidade e a estabilidade no nosso país. Evidentemente que, como se observa em muitas realidades com características sistémicas semelhantes noutros países, a democracia de consenso, derivada do modo de escrutínio e do sistema de partidos existente, não se exprime tendo em conta unicamente o dualismo esquerda-direita. Isto é, estaria de acordo com as exigências funcionais do sistema político, a eventualidade de formação de alianças superando esse dualismo, como aliás aconteceu, efemeramente, entre nós em 1977-78 (PS-CDS) e de 1983 a 1985 (Bloco Central). Mas aqui interferem outros factores, como são as especificidades dos dois grandes partidos do centro (centro-direita e centro-esquerda), dos partidos de esquerda – nomeadamente do mais recente chamado Bloco de Esquerda – e ainda, last but not least, a história do processo de institucionalização do regime democrático, mais a cultura (ou incultura) democrática existente a nível nacional. 2. São as próprias semelhanças, e não as diferenças, entre os dois partidos do centro que dificultam soluções de aliança entre os dois. Na verdade, tanto do ponto de vista orgânico como da base social de apoio, PS e PSD constituíram-se de forma semelhante, surgindo, portanto, como partidos que disputam um eleitorado que se interpenetra. Donde a situação de bipolarização que produz, inevitavelmente, a disputa do eleitorado flutuante que se move entre os dois, decidindo a obtenção, ou não, de maiorias relativas ou absolutas. Não obstante as diferenças entre as géneses respectivas, e particularmente no que se refere aos respectivos núcleos fundadores, tanto um como o outro se implantaram numa lógica de catch-all parties e a partir do poder, na sua dimensão central e local. Quer dizer: ambos cresceram e se consolidaram governando, criando burocracias dirigentes e clientelas nos planos central, municipal e regional (se considerarmos as ilhas). E, do mesmo modo que no PSD se foi esbatendo, progressivamente, a componente ideologicamente social-democrata presente na sua fundação, 58 FERNANDO PEREIRA MARQUES também no PS a nova geração de dirigentes “pós-histórica” – digamos assim –, em especial a partir de António Guterres, foi perdendo a sua identidade de tipo republicano-social – para utilizarmos uma designação instrumental. O “PS - partido marxista” acabou com o aggiornamento programático feito ainda no tempo de Victor Constâncio; o PSD – propriamente dito – esvaiu-se com a cisão de onde saiu a ASDI e com a morte de Mota Pinto, assim como com o afastamento ou o desaparecimento de vários outros dirigentes que estiveram na origem do Bloco Central, afirmando-se uma orientação liberal a partir da liderança de Cavaco Silva, favorecida pelo generoso fluxo de fundos comunitários que tanto alegre esbanjamento provocou. Estes factos explicam que tanto um como o outro desses partidos alternem no poder – inclusive na componente económica pública que nesse poder se inscreve – e que a sua coesão e estabilidade passem por o ocuparem ou não. No PSD têm sido particularmente evidentes as dificuldades com que se depara, do ponto de vista interno, quando se encontra na oposição. Dificuldades a que o PS não escapou quando esteve em situação idêntica, sobretudo durante o relativamente longo consulado cavaquista. Portanto, se é relativamente fácil o estabelecimento de alianças com o CDS por parte do PSD, já o mesmo não acontece com PS que se depara à sua esquerda com um PCP resistente e um Bloco de Esquerda conjunturalmente pujante. O primeiro, numa lógica de difícil luta pela sobrevivência, auto-exclui-se da governação procurando manter um identidade ideológica de luta de classe contra classe, privilegiando a intervenção sindical e apostando na manutenção das suas áreas tradicionais de implantação, cada vez mais reduzidas, até por razões de uma inevitável mudança geracional. Quanto ao segundo, não obstante o seu código genético algo espúrio (estiveram na sua origem antigos comunistas, trotsquistas e marxistas-leninistas), tem vindo a atrair certas camadas descontentes do eleitorado socialista, e em particular dos mais jovens, seduzidos pela prática tribunícia de capitalização de todas as questões mais controversas geradas pela governação e pelas consequências da crise económica e social. Mas esse crescimento parlamentar, em vez de contribuir para consolidar o Bloco, gerará contradições internas entre aqueles que apostam na lógica da institucionalização – onde se inscreve a camada dirigente e de eleitos que, naturalmente, tendem a instalar-se e a eternizar-se – e os que recusam essa lógica, porque começam a ficar impacientes por quererem também ascender a 59 NOTAS SOBRE A CONJUNTURA PÓS-ELEITORAL cargos de poder ou porque privilegiam a estratégia revolucionário-tribunícia e não-institucional. O PC, mesmo se de outro modo, como se disse, auto-exclui-se de responsabilidades governativas ou de se envolver em iniciativas legislativas que lhe reduzam o potencial de contestação e de pressão (ou “chantagem”, se quisermos utilizar a expressão metafórica de Sartori), tanto mais que continua a possuir uma sólida inserção nos movimentos sociais por via dos sindicatos – onde um líder mais aberto como Carvalho da Silva já se tornou incómodo para a nomenklatura – e uma forte implantação autárquica. A excessiva parlamentarização da sua acção e uma eventual aproximação em relação ao PS alteraria a sua matriz cultural de tipo obreirista-reivindicativa e ainda marcada pelas mitologias marxistas-leninistas. 3. Por estas razões, as importantes percentagens obtidas por estes dois últimos partidos nas legislativas (como ficou patente o BE tem uma presença residual do ponto de vista autárquico) e a sua consequente expressão parlamentar, só agravam a situação de bloqueamento estrutural do sistema, no que concerne à formação de maiorias na Assembleia da República e de governo. Neste sentido, os contributos que deram personalidades e facções à respeitabilização institucional dos bloquistas foram negativos e, aliás, ilusórios, se o objectivo era favorecer a evolução do PS no sentido do reforço de uma orientação mais coerentemente “socialista” – digamos assim para facilitar. Por consequência, tal bloqueamento estrutural a que me refiro não é de previsível resolução sem profundos reajustamentos no sistema de partidos. Tanto mais que ele se reflecte, quanto à cultura política geral, na inexistência em termos globais, e mesmo no que respeita aos outros partidos – PSD e CDS –, de uma tradição de práticas parlamentares e de relacionamento interpartidário no sentido da construção de soluções negociadas que viabilizem o funcionamento de governos minoritários. O que é consequência desse e de outros factores estruturais, mas também da concepção de política dos dirigentes – nos vários patamares – desses partidos da alternância (incluindo os centristas) e dos aderentes de cada um deles. Uns e outros, sentindo-se excluídos do poder que é o seu principal elemento de coesão e de motivação, privilegiam o conflito e a oposição, sobretudo quando não se deparam com o travão indiscutível de uma maioria absoluta. 60 FERNANDO PEREIRA MARQUES Poder-se-á dizer ainda que – outra das especificidades da nossa democracia e da sua história –, os principais partidos da alternância são formações fracamente ideologizadas – de acordo com a sua natureza catch-all –, deficientemente produtoras de políticas coerentes que lhes dêem identidades consistentes. O que explica também a fragilidade das direcções nacionais face ao aparelho com inserção local que, por força dessa fraca ideologização e inerente pragmatismo calculista, disputa – frequentemente – o poder interno sem grandes pruridos democráticos e estatutários (manipulação eleitoral pelo recurso a sindicatos de voto, filiações fantasmas, pagamento de quotas para arregimentação de votantes, etc.), contribuindo para um complexo fenómeno – que aqui não é possível aprofundar – de nivelamento por baixo, do ponto de vista qualitativo, na selecção de quadros e na formação das listas de candidatos. Ou seja, muito particularmente os dois partidos da alternância, adaptam-se à conjuntura, mas não conseguem responder-lhe moldando-a, não possuem organismos internos eficazes de debate e formulação programática, nem produzem dinâmicas de intervenção no tecido social. O que redunda numa espécie de navegação à vista circunstancial – ou nem isso –, no que concerne às políticas económicas e sociais, mas também às adoptadas nas outras áreas. No caso do PS, e se tomarmos como exemplo a educação, poder-nos-emos interrogar sobre qual é de facto a sua política: a da anterior equipa que privilegiou a ruptura e o afrontamento – com as visíveis consequências de desgaste e de perda de eleitorado, particularmente entre as dezenas de milhar de professores – , ou a da actual equipa ministerial que já pôs em causa muitas medidas anteriormente tomadas em matéria de avaliação e estatuto dos docentes? 4. Acresce ainda o facto, e sempre quanto à cultura política, de não se ter criado no eleitorado, no decurso dos trinta e cinco anos de democracia – e mesmo entre as novas gerações –, hábitos sólidos de participação cívica e atitudes de confiança em relação às instituições – em particular a parlamentar – e à “classe política”. A taxa de abstenção ainda não atingiu valores verdadeiramente dramáticos, mas o seu crescimento não deixa de ser significativo, assim como são preocupantes o cepticismo e o hiper-criticismo que marcam as opiniões mesmo daqueles que afluem às urnas. Na actual conjuntura, agravando este panorama geral, o principal partido da oposição – o PSD – vive uma situação interna de vazio de liderança e de 61 NOTAS SOBRE A CONJUNTURA PÓS-ELEITORAL desnorte estratégico. De onde a tentação de uma fuga para a frente que o faz acabar por favorecer as formações secundárias – em particular o CDS – ou mesmo exteriores à esfera da governação, ao procurar compensar esse vazio e essa indefinição com a exploração de um clima deletério de multiplicação de escândalos, faits-divers, casos judiciais, reais ou virtuais. Estes, em graus diferentes e com características também diversas, reflectem fenómenos como o da promiscuidade entre o poder, os partidos e os interesses organizados, pelo que eventuais actos ilícitos de certos indivíduos, acabam por ter um impacte político potenciado pela exploração mediática das informações que emanam do sistema judicial. Surgem, assim, envolvidos – directa ou indirectamente, suposta ou realmente –, detentores de cargos públicos, e esta hiper-mediatização e politização de reais ou eventuais ilícitos, não salvaguarda princípios fundamentais do Estado de Direito, como o segredo de justiça e a presunção de inocência. Tais fenómenos potenciam pulsões corporativas de afirmação da magistratura e de outras autoridades, vulneráveis, mesmo que não haja uma concertação nesse sentido, às derivas de carácter justicialista que os media alimentam, assim como alimentam uma opinião pública caracterizada, já se disse atrás, pela desconfiança em relação às instituições democráticas, em particular o Governo e o Parlamento. Geram-se, por isso, tensões entre órgãos de soberania e enfraquece-se a autoridade do Estado, para além de se dificultar a superação de comportamentos e atitudes pré-cívicas ou, se se quiser, pré-democráticas, em relação ao que se deverá entender como sendo o bem comum e o interesse geral. Inserem-se neste quadro outro factores fomentadores de instabilidade, como são o fim de um período de especulação financeira e de falso crescimento, e os reflexos de uma crise económica e social devida a elementos exógenos, mas também endógenos, cuja superação promete ser longa e complexa e que a conjuntura global não favorece. 5. Finalmente, se se tiver ainda em conta a existência de um Chefe de Estado sem carisma, inábil, mal aconselhado, que não consegue criar um tom e um estilo condignos com o cargo, poder-se-á concluir que a governabilidade do país se mostra problemática, sendo consequentemente previsível um ciclo de instabilidade que pode provocar o encurtamento da legislatura 62 FERNANDO PEREIRA MARQUES e até a deterioração da situação interna dos partidos, em especial dos que garantem a alternância. 63 64 DAS IDEIAS Construção da Boa Sociedade: o Projecto da Esquerda Democrática* Jon Cruddas e Andreas Nahles I. A Europa num ponto de viragem A Europa está num ponto de viragem. Os nossos bancos não funcionam, as empresas estão em colapso e o desemprego está a aumentar. Os destroços económicos da falência do mercado espalham-se por todo o continente. Mas esta não é só uma crise do capitalismo. É também uma falha da democracia e da sociedade na regulação e gestão do poder do mercado. Neste momento de crise rejeitamos a tentativa de voltar à forma habitual de fazer e gerar negócio de crescimento insustentável, desigualdades e ansiedades económicas. Mas, reconhecemos também que não existe nenhuma idade de ouro da democracia social à qual possamos voltar. O futuro é incerto e cheio de ameaças; perante nós paira o perigo das alterações climáticas, o fim do petróleo e o crescimento da deslocalização social. Mas é também um momento de oportunidades e compromissos: revitalizar os nossos objectivos comuns e cumprir o sonho Europeu de liberdade e igualdade para todos. Encarar estas ameaças e entender que esta promessa exige uma nova abordagem política. No décimo aniversário da declaração de Blair-Schroeder da Terceira Via Europeia, a Esquerda Democrática oferece um projecto alternativo: a boa sociedade (“the good society”). Esta política da boa sociedade é sobre democracia, comunidade e pluralismo. É democrática porque só a livre participação de cada indivíduo pode garantir a verdadeira liberdade e progresso. É colectiva porque se baseia no reconhecimento da nossa interdependência e interesse comum. E é pluralista porque sabe que através de uma diversidade de instituições políticas, formas de actividade económica e de identidades culturais individuais a sociedade pode orientar-se no sentido da energia e da criatividade para criar um mundo melhor. Para * A Finisterra agradece à Fundação Friedrich Ebert a oportunidade de publicação deste texto. 65 A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE: O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA alcançar uma boa sociedade baseada nestes valores estamos empenhados em: • Restaurar a primazia das políticas e rejeitar a subordinação dos interesses políticos aos económicos; • Refazer a relação entre o indivíduo e o Estado numa parceria democrática; • Tornar o Estado democrático uma entidade mais transparente, responsabilizando-a ao mesmo tempo que reforçamos as nossas instituições democráticas a todos os níveis, incluindo a economia; • Ampliando e defendendo as liberdades civis individuais; • Reafirmando os interesses do bem comum, como a educação, saúde e riqueza, no mercado; • Redistribuindo o risco, riqueza e poder associado à classe, raça e género a fim de se criar uma sociedade mais igualitária; • Reconhecendo e respeitando as diferenças raciais, religiosas e culturais; • Colocando as necessidades das pessoas e do planeta à frente do lucro. A criação da boa sociedade é do interesse de todos nós, na medida em que se apresenta como sendo ecologicamente sustentável e economicamente equitativa. Não existem atalhos ou modelos já elaborados. Em vez disso, com base nestes valores e aspirações, daremos cada passo juntos e desta forma faremos do nosso mundo um mundo melhor para se viver. Como disse Willy Brandt: “O que precisamos é a síntese do pensamento prático e do esforço idealista”. Ao trabalharmos nas nossas “arenas” nacionais podemos intervir em muitas questões e até alcançar bons resultados, mas temos de reconhecer que o capital foi globalizado, enquanto que a democracia permaneceu estagnada ao nível estatal nacional. Esta afirmação une democratas alemães e britânicos, tornando-os consequentemente mais fortes. O próximo passo é usar este texto exploratório para construir uma rede pan-europeia de social-democratas, que tal como nós, não querem regressar ao passado mas que olham em frente para a construção da boa sociedade. 2. Aprendendo com a experiência Em Junho de 1999, Tony Blair e Gehard Schroeder, o Primeiro-ministro Britânico e o Chanceler Alemão, publicaram uma declaração conjunta sobre a 66 JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES Democracia social Europeia. Esta declaração trouxe simultaneamente as ideias da Terceira Via Britânica (British Third Way) e da alemã “German Neue Mitte”. Reivindicando que este novo modelo da social-democracia tinha encontrado larga aceitação: ‘Os social-democratas encontram-se no governo em quase todos os países da união’. Hoje em dia o oposto é verdadeiro. Os social-democratas estão fora do governo em quase todos os países da união. Esta etapa histórica da social-democracia associada à Terceira Via e a Neue Mitte foi a resposta a um longo período de domínio da facção de direita que tinha dominado durante a crise económica nos anos 1970. Uma nova etapa histórica do capitalismo emergiu, destruindo consensualmente o bem-estar do pósguerra e estabelecendo um novo consenso em torno dos valores neoliberais e uma economia de mercado livre. O sucesso eleitoral da Terceira Via e da Neue Mitte foi feito moderadamente através de compromissos e limitações. Nem o New Labour nem o SPD conseguiram fazer coligações duradouras para uma mudança transformacional. Nas eleições de 2005 os dois partidos tinham milhões de votos a menos do que em 1997 e 1998 e ambos perderam em eleições locais e regionais. Um número expressivo dos apoiantes da tradicional classe-trabalhadora perdera a confiança no New Labour e no SPD, assim como nos históricos defensores dos seus interesses. Muitos abstiveram-se de votar enquanto que uma minoria crescente identificou-se com os outros partidos que reclamavam representar os seus interesses, tais como os esquerdistas ‘Die linke’ na Alemanha e – de grande preocupação – o fascista BNP na Grã-Bretanha. As instituições e culturas da classe trabalhadora que mantinham e suportavam o partido Trabalhista e o SPD no século XX desapareceram ou perderam a sua vitalidade social. Os modelos da social-democracia, da Terceira Via e a Neue Mitte, abraçaram sem crítica o novo capitalismo globalizado. Ao procederem assim, subestimaram o potencial destrutivo de mercados sub-regulados. Não compreenderam a mudanças estruturais que ocorriam nas sociedades europeias. Acreditavam que uma sociedade baseada nas classes tinha dado lugar a uma cultura meritocrática, mais individualizada. Mas o novo capitalismo não criou uma sociedade sem classes. Numa globalização liderada pelos mercados, o boom económico criou níveis de afluência sem precedentes, mas a política da Terceira Via não conseguiu evitar a fragmentação das sociedades. Após uma década de governo social-democrata, as desigualdades sociais continuam a ser o que define 67 A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE: O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA a estrutura da sociedade. O sucesso na educação e as oportunidades de vida continuam, de forma geral, a depender das bases e núcleos familiares. A era do neoliberalismo acabaria sempre em autodestruição. O crash económico criou um ponto de viragem. Podemos escolher: voltar ao anterior estado de coisas – o crescimento insustentável, o mundo individualizado e consumista do mercado livre, níveis elevados de desigualdade e de ansiedade, e o falhanço no controlo do perigo das alterações climáticas. Ou podemos definir uma nova visão de progresso baseado na justiça, sustentabilidade e segurança em que existe um equilíbrio nas nossas vidas entre produção e consumo, entre o trabalho e as nossas vidas como indivíduos e membros individuais da sociedade. Existe uma alternativa, e tem de ser construída a um nível europeu. 3. A boa sociedade Os nossos valores de liberdade, igualdade, solidariedade e sustentabilidade prometeram um mundo melhor, sem pobreza, exploração e medo. Temos uma visão de uma boa sociedade e de uma economia mais igualitária, que irá criar um futuro mais seguro, mais verde e mais justo. Mas para alcançar esta sociedade o capitalismo terá de ser responsabilizado perante a democracia: e a democracia precisará de ser renovada e aprofundada para que sirva esta tarefa. A boa sociedade não pode ser construída de cima para baixo, apenas poderá vir de um movimento feito pelas pessoas e para as pessoas. Criar a boa sociedade será o maior desafio do nosso tempo e vai determinar a vida das gerações futuras. Os nossos valores Um novo modelo de sociedade democrática começa com os nossos valores. É com base neles que podemos construir a boa sociedade. Nesta nova era global temos de viver juntos, enquanto indivíduos livres e iguais em sociedades multiculturais e como cidadãos da Europa. Temos de construir instituições políticas que criem um sentimento de pertença numa sociedade justa, e temos de chegar ao resto da humanidade criando formas democráticas de governação global. O ideal de um mundo melhor, mais justo e mais aberto, ecoa por entre milhões de pessoas que procuram novas formas de viverem juntas. É uma esperança expressa em movimentos sociais locais e globais, vezes sem conta em 68 JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES campanhas, acções comunitárias, grupos de pressão, e uma multidão informal de indivíduos envolvidos em questões políticas e de solidariedade social. A tarefa da Esquerda Democrática é a de desenvolver a ideia de partilha de um bem comum através do argumento, acção política colectiva e campanha entre as pessoas. A boa sociedade visa a solidariedade e a justiça social. A solidariedade cria confiança, que, reciprocamente, fornece os fundamentos da liberdade individual. A liberdade desenvolve-se a partir da sensação de segurança e de pertença, e da experimentação de comportamentos de estima e respeito. Estas são as pré-condições fundamentais para a boa sociedade. Procuramos uma vida de auto-invenção e de autopreenchimento. Este desejo de preenchimento envolve o direito de cada um atingir o seu próprio e único caminho como ser humano. Mas não se trata do egoísmo do capitalismo de mercado, porque disputar este direito nos outros é fracassar e ser incapaz de viver mediante as suas próprias condições. A solidariedade expressa a nossa interdependência. Num mundo globalizado a solidariedade não tem fronteiras. A noção de autonomia é central num futuro no qual as pessoas têm maiores possibilidades de controlo nas suas vidas. A autonomia não é uma licença; transporta consigo as obrigações e restrições de se viver com os outros. Requer que cada cidadão tenha os seus recursos – dinheiro, tempo, relações e reconhecimento político – para tenha hipótese de ter uma boa vida. Isto significa, ter direito a um trabalho decente, educação e segurança social. O mercado não pode repartir liberdade com justiça, caso contrário, teria de ser criada mais uma comunidade política para decidir a distribuição justa dos recursos. A autonomia individual é o produto de uma política comunitária. A democracia e a sua renovação são centrais para as políticas da boa sociedade. O princípio que guia a boa sociedade é a justiça, o núcleo ético de cada um é a igualdade. Cada individuo é insubstituível e de igual valor. Na boa sociedade, cada indivíduo tem direito a ser tratado com respeito, segurança e ter acesso a uma oportunidade de vida, independentemente da sua origem. A discriminação baseada na classe social, no racismo, homofobia e preconceito contra as mulheres são passíveis de serem punidas por lei e são veementemente contestadas na cultura, na educação e nos locais de trabalho. Construir todos estes valores é ecologicamente sustentável. A boa sociedade faz 69 A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE: O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA parte do planeta e da sua ecologia. Desenvolve formas de florescer dentro das limitações impostas. Uma economia justa e sustentável No centro da boa sociedade encontra-se o indivíduo como um agente produtivo. Só reorganizando o sistema de produção podemos criar uma sociedade da liberdade e igualdade. O consenso neoliberal não produziu a liberdade individual tal como havia prometido, ao invés criou o modelo de capitalismo em que “tudo é para o vencedor” que prejudicou a sociedade e, portanto, o indivíduo. Falhou ao criar mercados livres e auto-regulados. Precisamos de desenvolver um novo tipo de economia enraizado nos valores e instituições da boa sociedade. Será uma economia caracterizada pela variedade de estruturas económicas e formas de propriedade. Assegurar-se-à que os trabalhadores co-determinam as decisões das suas empresas. Deste pluralismo económico podemos assegurar que não haverá retorno ao crescimento global económico desequilibrado que levou a esta crise. Necessitamos de desenvolvimento ecológico sustentável que vá ao encontro das necessidades humanas de forma equitativa, de forma a melhorar a qualidade de vida de todos. As alterações climáticas, o pico do petróleo e a necessidade de energia e segurança alimentar exigem, em grande escala, transformações económicas. Chegou a altura de se discutir e implementar um novo modelo de prosperidade, que pode ser globalizado mas que não conduza ao desastre ecológico. A qualidade do crescimento, trabalho de valor e progresso tecnológico podem levar a mais riqueza e a uma melhor qualidade de vida, mas os mercados sozinhos não conseguem atingir esse objectivo. O futuro exigirá um Estado mais activo, comprometido com um planeamento económico a longo prazo, para a construção da economia sustentável. A reforma da economia pode começar com o governo a assumir serviços de interesse geral – electricidade, água, transportes, correios, bancos e serviços públicos – regressando à propriedade pública ou sob o controlo público, tratando-se da forma mais respeitável, equitativa, e economicamente sustentável de garantir estes serviços. As novas regras para os mercados têm de ser estabelecidas e criados incentivos mais fortes para uma economia mais sustentável. O estado do mercado e dos seus agentes necessitam de ser transformados num estado cívico, democratizado e mais sensível ao cidadão e aos pequenos 70 JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES negócios. É preciso equilibrar um centro forte com poder efectivo ao nível local para o desenvolvimento económico e social. O papel da advocacia nas organizações da sociedade civil e os sindicatos precisa de ser fortalecido. A primazia das políticas sobre os mercados financeiros tem de ser retomada. No sector bancário a pluralidade dos modelos de negócio cada vez mais focalizados no cliente, tem de ser definida, e isso inclui os bancos comerciais, mutualistas, regionais e comunitários e sociedades de crédito, todas operando numa variedade de escalas. Temos de nos certificar que o sector bancário é reestruturado, e que desenvolve formas responsáveis e transparentes de gestão. Um novo quadro de regulação e de supervisão definirá o papel e a prática da banca e do sistema remuneratório dos executivos. Só o governo com a sua autoridade democrática, alianças globais e receitas dos impostos pode alcançar o nível necessário de reconstrução. A crise económica requer novas alianças globais; os países têm de começar a trabalhar juntos em vez de continuarem a corrida para o topo. Precisamos de regulação internacional e europeia dos mercados financeiros. As corporações transnacionais têm de tornar-se objecto da supervisão democrática através da introdução da economia democrática global que define direitos de informação, consulta e co-determinação dos representantes dos trabalhadores. As agências de rating, que tiveram uma enorme influência na performance da economia, precisam de reforma e de supervisão pelas autoridades públicas. A liberalização e a globalização do capital transferiram riqueza das economias pobres para as ricas e aumentaram o risco sistémico de colapso económico mundial. Os controlos de capital, o encerramento dos paraísos fiscais e a tributação das transacções financeiras são necessários na ajuda ao desenvolvimento económico e na protecção das economias vulneráveis. Uma nova política industrial precisa de traçar as prioridades futuras e as necessidades da Europa e das suas economias nacionais. A manufactura está em declínio naquilo que diz respeito ao contributo que dá ao crescimento do PIB. O emprego industrial está em queda e os salários têm estagnado. Os mercados internos têm estado em declínio e nalguns países a lacuna foi preenchida pelo retorno ao crédito hipotecário mais barato. A solução de recurso relativamente ao crescimento económico está agora encerrada. A essência das estruturas da indústria têm de ser mantidas e modernizadas, porque asseguram o emprego e fornecem as bases para o sector dos serviços. Temos dependido do desequilíbrio 71 A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE: O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA global entre o enorme saldo comercial de certas economias e dos défices de outras. Isto é insustentável e temos de repensar como regionalmente na Europa e globalmente podemos ter mais equilíbrio nas relações comerciais. A política económica tem de garantir uma diversidade de modelos de negócio e formas de propriedade económica. Não queremos substituir capitalismo de monopólio pelo monopólio de Estado. Mas queremos que os mercados sejam regulados para o bem comum e para um nível mais elevado de pluralismo económico. Os governos, em níveis diferentes, incluindo os Estados locais, devem ser encorajados a aumentar os fundos nos mercados de capitais, a questão das hipotecas e a captação dos recursos da ligação para os seus próprios projectos infraestruturais. Novos mercados verdes e uma indústria de tecnologias renováveis necessitam ser desenvolvidos, motivados por uma economia de carbono zero e por uma maior segurança energética. No curto e médio prazo a solução mais efectiva para combater as alterações climáticas é instituir um mercado global de carbono, baseado num sistema de cap and trade. Entretanto, a eficiência energética deve estar no centro da resposta à crise económica, sendo a solução mais rápida e veloz, tanto para a criação de emprego, como para o controle de emissões. É necessário desenvolver uma Estratégia Verde coordenada pelos governos de toda a Europa. Os avanços no campo das energias renováveis e a redução dos preços têm o potencial para substituir as indústrias pesadas baseadas no carbono, incluindo o nuclear. Para assegurar um aquecimento sustentável, os mercados energéticos e os preços têm de ser regulados e as companhias energéticas têm de ser tomadas em conta. O conhecimento económico interessa e temos de nos concentrar no investimento em inovação e na geração de produtos de alto valor acrescentado. Mas o conhecimento e a cultura relacionados com a actividade económica têm de ser alargados para além dos limites das suas actuais zonas privilegiadas e as suas exigências não podem ter prioridade sobre o resto da economia. O mercado está aquém no que diz respeito a investigação de alta qualidade e respectivos desenvolvimentos. A organização e transformação do produto e o reforço na inovação requerem, desde início, financiamentos governamentais substanciais e fortes mercados de capital devidamente alinhados. O sucesso requer estabilidade no sistema e também de culturas institucionais assertivas e confiantes no que diz respeito à aceitação do risco. Tais condições não existem 72 JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES frequentemente na educação superior. Em vez disso, as universidades dirigidas por imperativos comerciais e indicadores de performance negligenciam culturas de convívio nas quais ocorre a inovação e onde as ideias e a comunicação fluem. O sistema do ensino superior tem de ser dissociado dos imperativos do mercado e dos imperativos comercias e tratado como um bem público. O potencial máximo do sector dos serviços tem de ser desenvolvido, em particular no campo da educação, da formação e do ensino, na saúde, cuidados e serviços sociais. Precisamos de um novo sistema de agricultura, local e global. O investimento tem de ser feito em sistemas de alimentação orgânica sustentável, no qual a alimentação é produzida, preparada e consumida localmente e onde a riqueza criada permaneça nas comunidades locais. O Bom Trabalho e a segurança social Temos de trabalhar para uma Europa social na qual as pessoas estão primeiro do que os lucros e onde a sociedade afirma os seus interesses para além dos interesses do mercado. Isto significa economias que dão prioridade ao pleno emprego, salários justos, e direitos de trabalho no mercado que garantam boas condições e protejam os trabalhadores contra a discriminação e exploração. Que defendam a protecção social contra a doença, desemprego, pobreza e deficiências, e bons valores de pensões na velhice. A economia democrática é central para o projecto da Europa social. Uma Europa social tem de se superar no sentido de garantir habitação para todos, uma elevada qualidade energética, redes de transportes, bons serviços de cuidados de saúde, sistemas de educação igualitária, e qualificação no ensino que prepare os indivíduos tanto para uma boa vida como para um bom trabalho. Esta agenda é um activo competitivo numa economia globalizada, e não um obstáculo para o sucesso económico. Precisamos de lucros e de infra-estruturas sociais que afastem as pessoas da pobreza e que estimulem a procura. Os sistemas de impostos têm de contribuir para uma distribuição mais equitativa de rendimento e riqueza. Os baixos salários não devem pagar impostos. Quem está no topo tem de começar a pagar uma quota-parte justa e a legislação tem de apertar as lacunas dos impostos e evitar os esquemas com os impostos. As políticas sociais que asseguram abordagens preventivas são importantes e devem ser fortalecidas, mas não podem ser usadas para disfarçar reduções 73 A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE: O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA nos benefícios. A fixação nas responsabilidades pessoais pode criar ansiedade e insegurança social entre as pessoas mais vulneráveis da sociedade, especialmente numa recessão. As pessoas precisam de ajuda para viverem as suas vidas de forma digna, livres da pobreza e da exclusão social. Os benefícios sociais são um direito de cidadania e devem ajudar as pessoas a gerir as mudanças e as situações vulneráveis durante a sua vida. As pensões estão relacionadas com todo o sistema económico e desempenharão um papel chave nas estratégias de investimento social e na redistribuição da riqueza. A revolução da longevidade e a falência dos mercados financeiros para garantirem retornos decentes nos planos de pensões fizeram da segurança social uma prioridade económica. Na última década, a substituição dos esquemas de benefícios garantidos por esquemas de contribuição garantida criaram uma mudança fundamental da riqueza a favor dos ricos. Transferiram o risco do Estado e dos negócios para o cidadão individual. Esta tendência tem de ser invertida a favor de sistemas públicos baseados no esquema “pay-as-you-go” (descontos à medida do que se ganha) tanto para o sector público como privado. As políticas do mercado de trabalho enfrentam o desafio da flexibilidade. O crescimento dos contratos a curto prazo, agências de emprego, subcontratação e o emprego por conta própria deixaram muitas vezes os trabalhadores com menos direitos. No emprego têm crescido a baixa qualificação, trabalhos com baixos salários em más condições e altamente qualificados, salários elevados, mas por vezes com dificuldades contratuais e com fracas condições de trabalho. O crescimento na utilização de agências de trabalho temporário está a disseminar estas condições por outras partes da economia. A regulação pode acabar com os baixos salários, com a baixa qualificação e trabalho eventual. Sindicatos mais fortes são a melhor defesa contra a exploração. O trabalho e a qualidade de vida podem ser melhorados ao aplicar-se um salário que permita viver. Mas temos de garantir que as condições de trabalho são compatíveis com as responsabilidades. A agenda das qualificações deve ser alargada e também democratizada e radicalizada para que possa fornecer o significado não apenas para o “bom trabalho” mas também para uma boa vida. As novas políticas da democracia As instituições que no passado deram às pessoas acesso às ideias políticas 74 JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES e actividades, tais como sindicatos, igrejas e partidos políticos, enfrentam o desafio do declínio no número de membros que as constituem. Muitas pessoas estão descontentes com a democracia representativa. Perderam confiança nos políticos e nos partidos políticos. Vivemos em sociedades onde a maioria está pessimista acerca do futuro. Isto porque durante 30 anos as nossas democracias mostraram apenas uma visão da sociedade: governada pelos mercados e pelo lucro. A crise económica é a crise da democracia, mas que permite ao mesmo tempo a oportunidade da revitalização política. Apesar da desilusão com os partidos políticos, existem nas nossas sociedades níveis extraordinários de activismo, políticos, culturais e comunitários. A política tornou-se mais individualizada e ética, e enraizada numa diversidade de crenças e estilos de vida. Os velhos estilos colectivos e a monocultura política estão a ser rejeitadas por alguns. Estes desenvolvimentos estimulam uma procura de novos tipos de estruturas políticas democráticas e de culturas que estão a restabelecer a ligação entre as instituições do poder político com movimentos sociais e circunscrições políticas. O empowerment comunitário e as campanhas em torno da justiça social e da sustentabilidade estão a tornar-se mais vigorosos. O poder tem de começar em baixo e ser delegado para cima. Não podemos criar os agentes colectivos da mudança social; só as pessoas o podem fazer por si. Mas podemos fortalecer a democracia e assim criar as condições para a sua emergência e para a nossa capacidade de construir alianças com eles. Um poder real e uma política de influências podem desenvolver o ethos da democracia. Necessitamos de uma nova cultura de liberdade de informação e um acesso mais aberto aos media. Redes e bases de dados fornecidos e trazidos até nós pela Web fazem crescer a importância na criação de campanhas responsabilizando o poder político. Mobilizando a opinião pública. Os partidos políticos permanecem como uma parte essencial das nossas democracias. Asseguram continuidade institucional enquanto as redes são muitas vezes passageiras. Há muito a ganhar com as sinergias entre os dois. Para isto acontecer, os partidos necessitam de permitir que as suas próprias culturas e organizações sejam abertas e democratizadas neste processo. Podemos, nas palavras de Willy Brandt, “ousar mais democracia”. Precisamos de fortalecer as nossas culturas democráticas introduzindo reformas eleitorais onde são necessárias e fomentando oportunidades para a participação activa e deliberar o processo de decisão 75 A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE: O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA também dentro dos nossos partidos. Esta é uma pré-condição para os partidos Social-Democratas e Trabalhistas fortes na Europa. O tempo das comunicações de cima para baixo acabou. O mesmo é verdade para governos tecnocráticos que falam às pessoas das necessidades em vez de as persuadir com razões. As pessoas já não acreditam em impostores e manipuladores de opinião. A principal tarefa nos anos vindouros será a de criar e consolidar a confiança política na vida pública. A confiança é a base de toda a acção política e social. É melhor aprofundada cativando as pessoas para objectivos e decisões comuns, e não excluindo-as. Atinge-se iniciando um compromisso com o debate aberto e não procurando evitá-lo. No processo da renovação democrática, os Estados nacionais podem e devem fazer mais, juntos e sozinhos. Mas é a política comunitária da Europa que deve ser utilizada se se pretender que a crise económica seja um ponto de viragem em direcção a um novo futuro e não um retorno às políticas falhadas do passado. O ideal europeu de um continente de cidadãos seguros onde todos viveriam livres e realizados tanto quanto poderiam em sociedades justas e sustentáveis está ao nosso alcance. Mas será necessário um salto poderoso de imaginação e fortes ambições para que isso aconteça. 4. Politicas para uma Europa melhor Politicas para uma Europa Social A Europa precisa de uma “Estratégia Pós-Lisboa” baseada no conceito de “produtividade social”. A produtividade social relaciona-se com o crescimento social: aumentando o valor social e a qualidade, considerando os custos sociais e ambientais dos mercados e desenvolvendo padrões sustentáveis de consumo. O bem-estar dos cidadãos e da qualidade de vida em geral tem de ser melhorada para além dos simples valores numéricos e monetários. É necessário redistribuir a riqueza de uma forma mais equilibrada. Standards de regulação efectiva precisam de ser introduzidos para garantir a qualidade e acessibilidade dos serviços públicos, salários justos, boas condições de trabalho, educação gratuita para todos e uma abordagem humana para a imigração e solidariedade global. A economia financeira A nossa estratégia para uma Europa social tem de começar por combater a crise económica. Trabalhando juntos, estabelecemos as bases para uma maior 76 JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES cooperação europeia, mais justa e com maior justiça social. Os Estados-membros perseguem frequentemente as suas próprias políticas utilizando para isso fundos comunitários, destinados a medidas também elas comunitárias e não individuais. Existe a necessidade de criar um movimento coordenado a nível Europeu que estimule as medidas fiscais. Uma acção concertada de expansão na coordenação fiscal é muito mais eficaz do que uma tentativa levada a cabo a nível individual. Numa resposta coordenada a troca do aumento da dívida pelo estímulo efectivo é tanto melhor para a UE como um todo como para qualquer país isoladamente. Temos de introduzir reformas a nível europeu no que diz respeito à governação financeira e económica. A regulação dos actores dos mercados financeiros na Europa não é suficiente. Uma instituição de supervisão europeia pode impor requisitos de capital adequados, incrementar a transparência no dos actores dos mercados financeiros e facilitar uma troca de informação eficiente entre as autoridades nacionais de supervisão. Os mercados financeiros europeus têm de se tornar uma fonte de estabilidade e desenvolvimento num contexto de uma economia europeia orientada para a produção. A ênfase colocada no retorno do investimento dos accionistas relega para segundo plano o investimento de capital em activos, pondo em causa o crescimento e emprego. Com esta finalidade, é preciso reformar o Banco Central Europeu e a União Monetária Europeia. Isto vai melhorar as perspectivas dos britânicos aderirem ao Euro. O mandato para o Banco Central Europeu precisa de ser alterado, regido por decreto de lei de forma a ser possível a aprovação ou rectificação por parte do conselho e parlamento. Tal como a estabilidade de preço, o mandato deveria permitir outros objectivos sociais onde são necessários. Estes objectivos incluiriam a prevenção e redução do desemprego, a estabilidade do sistema financeiro, apoiadas por outras políticas da UE e de cooperação monetária com poderes externos. O orçamento da União Europeia precisa de ser significativamente aumentado e de ser capaz de redistribuir consideravelmente mais recursos do que actualmente. Ao lado desta reforma, a Comissão deve ter o direito, quando apoiada pelo Conselho e o Parlamento de poder gerir os défices. O Pacto de Estabilidade e de Crescimento deve ser substituído por um acordo de coordenação de políticas orçamentais entre os Estados-membros. Coordenação e centralização são aqui duas alternativas; quanto maior e mais 77 A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE: O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA fiável for a coordenação, mais pequeno o orçamento do banco central poderá ser – mas estas duas medidas devem tornar possível um certo controlo sobre o imposto agregado e as políticas de despesa na UE. Emprego e segurança social Diferentes caminhos nacionais constituem uma fonte de força na UE. Atingir uma Europa Social não significa reforçar um único sistema em todas as nações, mas acordar num conjunto de benefícios sociais. Um salário mínimo europeu, correspondendo ao rendimento médio nacional, ajudaria a limitar as diferenças salariais na Europa a prevenir o “dumping social”. Para concretizar a sua implementação era necessária uma organização semelhante à Low Payment’s Commision do Parlamento Britânico com um mandato na campanha e trabalhando próximo dos sindicatos. Um conjunto de regras do Tribunal Europeu – os casos Laval, Viking e Rueffert – desregularam os mercados ao modificarem os termos da directiva dos trabalhadores de 1996 (Workers Directive). É necessária agora uma reforma que restabeleça o contrato colectivo, o direito dos trabalhadores à greve, e estabelecer a igualdade para os trabalhadores migratórios e os que estão colocados no espaço Europa. A Europa precisa de políticas justas de impostos. A actual competição dos impostos na Europa está a levar à substituição do ónus dos impostos das empresas para o rendimento e consumo individual. Esta situação é regressiva e injusta e precisa de haver uma harmonização das políticas do IRC para salvaguardar as bases financeiras dos sistemas da segurança social nacional. A médio prazo, a UE deve ter os seus próprios recursos financeiros, com base em recursos internos gerados pelo IRC e pelos impostos de transacções financeiras a nível europeu. Os paraísos fiscais devem ser banidos e punidos legalmente e as mais-valias devem ser tributadas nos países de origem. Segurança energética e sustentabilidade A Europa tem de se tornar, no mundo, a economia mais sustentável ecologicamente. Se os Estados Unidos estão na corrida a transformarem-se na economia mais verde do mundo, a Europa tem de fazer parte desta corrida porque é indiscutível que toda a humanidade ganhará. Precisamos de normas e padrões verdes a nível europeu, dirigidos às unidades industriais que 78 JON CRUDDAS E ANDREAS NAHLES imponham objectivos mais duros no que diz respeito à emissão de gases que por sua vez deverão incentivar a captura e armazenamento de carbono. Um alvo eficaz para a geração de electricidade, que é semelhante à proposta para os carros na UE, dificultaria a um governo permitir a construção de estações de carvão sem nenhuma forma tecnológica de captura de carbono associada. Equilibrando a rede a um nível europeu reduziria a procura do carvão e melhoraria a segurança energética ao reduzir a dependência no petróleo e gás estrangeiro. Proporcionaria cortes significativos nas emissões de carbono e a longo prazo diminuiria também os custos do combustível. Os actuais esquemas bilaterais que têm sido negociados precisam de ser alargados na Europa. Justiça Global Social Uma Europa social tem de trabalhar para uma justiça comercial global. A UE continua a perseguir uma agenda comercial agressiva e livre. Está actualmente a negociar um Acordo de Parceria Económica com países africanos, das Caraíbas e do Pacífico que constituem um sério risco ao desenvolvimento dos países envolvidos. A última estratégia do comércio na UE, “Europa Global”, está a tentar forçar dezenas de países para um acordo extremo de comércio livre e virado para os lucros do grande negócio. Precisamos de uma revisão a uma grande escala da politica de comércio da UE e uma nova estratégia que coloque os direitos das pessoas pobres e marginalizadas no seu centro. A política do comércio precisa de ser mais democrática e responsável, e incluir uma maior partilha de informação e participação real pela sociedade civil. Democracia europeia Para fortalecer a democracia europeia na economia devemos usar o potencial de introduzir comités de supervisão através de Empresas Públicas Europeias (SEs) para que os accionistas, para além dos conselhos de administração, possam co-determinar o controlo da gestão. A UE precisa de construir uma Europa com uma cultura cívica mais alargada, que se compromete a votar e a suportar as suas instituições democráticas e sujeitá-las ao escrutínio. A UE necessita de despertar o debate público antes de tomar as suas maiores decisões. Para responder à opinião pública, o Parlamento Europeu, que é directamente eleito pelas pessoas, precisa de ter o direito a iniciar a legislação e eleger o Presidente da Comissão. 79 A CONSTRUÇÃO DA BOA SOCIEDADE: O PROJECTO DA ESQUERDA DEMOCRÁTICA 5. Convite ao debate Este documento enuncia os princípios da boa sociedade. Mas o projecto da boa sociedade tem de ser desenvolvido pela própria sociedade, através do debate e da acção. Convidamos, desta forma, a sociedade civil, os movimentos sociais, centrais sindicais e membros dos nossos partidos e todos aqueles, em todas as outras nações europeias a discutir e desenvolver as ideias expostas neste documento. O nosso convite ao debate é extensível a todos os que querem uma sociedade mais justa, sustentável e uma Europa democrática. Este é só o começo. Sobre os Autores • Jon Cruddas é MP para Dagenham • Andrea Nahles é Vice-Presidente do Partido Social-democrata na Alemanha (SPD), um membro do Bundestag e porta-voz para os assuntos sociais e do trabalho do grupo do SPD no Bundestag. Para Contacto • Podem participar no debate colocando comentários neste documento em www.goodsociety.eu/en • Podem contactar Jon Cruddas na Câmara dos Comuns, Londres SW1A OAA, e em cruddasjparliament.uk • Podem contactar Andrea Nahles em Willy-Brandt-Haus, D-10911 Berlim, e em andrea.nahlesspd.de • Para informações sobre Compass por favor contactar: Gavin Hayes, General Secretary Compass Southbank House, Blac Pince Road London, SE1 7SJ Gavincompassonline.org.uk www.compassonline.org.uk Agradecimento Um grande agradecimento à Fundação Friedrich Ebert pelo apoio na publicação. 80 Socialismo, Direito e Estado1 Retomando polémicas Paulo Ferreira da Cunha “Aquilo que é recordado acontece” Søren Kierkegaard De volta à Ideologia Quando Roma arde, é conveniente estudar hidráulica. Sirva-nos este dito de Chesterton para novamente justificar (se preciso fosse) a necessidade de (re)pensar os fundamentos, os fins, e a imagem de marca da acção política, em clave de ideologia – que, aliás, importa reabilitar hic et nunc2. E ainda a importância de (re)pensar também (e nesse contexto ideológico) um interlocutor e veículo importante de ideologia, o direito. A nova profunda crise do capitalismo globalizado (tão incensado pelos coriféus neoliberais), que sofremos agora, é momento para tomar distâncias e 1 O presente artigo pretende-se apenas um ensaio, que, depois de submetido a publicidade crítica, o autor espera poder vir a desenvolver em livro, conjuntamente com outros textos afins. Terá também edição noutras latitudes. Por outro lado, devemos registar, antes de tudo, uma nota irreprimível quanto ao sentido destas páginas. Embora elas se encontrem, para o nosso gosto, visivelmente sobrecarregadas de aparato de referências de pé de página, não desejámos competir com os sapientes estudos marxistas e marxianos, sobretudo dos glosadores e comentadores que, como certos leitores e guardiões da Bíblia, têm sempre na ponta da língua uma meia-dúzia de citações das obras completas dos autores canónicos do “socialismo científico”. Tivemos gosto em revisitar essas fontes, que em alguns casos literalmente tirámos do pó das nossas estantes, e, como se verá, certas vezes nem nos demos ao trabalho de perder horas à caça da referência para uma ou outra citação que sabíamos de cor. Pensamos até na possibilidade de dar a lume este texto sem quaisquer notas, ou apenas as das citações. Tal seria arriscar demasiado várias e cruzadas excomunhões, que não tememos mas que também não buscamos. Pelo interesse de registarmos também um roteiro pessoal de revisitação, optamos por este meio termo que, se é já demasiado para o leitor ideal que tivemos em mente, será sempre insuficiente para os especialistas e sobretudo para os devotos. Os quais, aliás, encontrarão no fundo e não só na forma deste estudo muitas razões para crítica, naturalmente. O nosso propósito foi apenas o de apresentar algumas hipóteses prospectivas para a questão do Direito nos tempos contemporâneos e futuros, numa perspectiva de socialismo democrático. E invocamos as polémicas e referências histórico-ideológicas como ilustração e para memória. Longe de nós querermos esgotar ou sequer versar expressamente de forma inovadora tal temática, que é afinal clássica e já objecto de tantos estudos. Os quais, contudo, em geral não nos confortam, porque em claves teóricas normalmente diversas. Mas tal é um pouco inevitável, dado que o assunto de que arrancamos, precisamente porque pertence sobretudo à histórica ideológica do direito soviético, não tem chamado a atenção de quem esteja mais em sintonia com o nosso pensamento. E depois de todas estas reflexões, confessamos que o que mais nos interessa é saber que diálogo poderá ter este texto com os mais jovens, que não viveram, como nós, nem os tempos da ditadura, nem o quotidiano de uma revolução. Esperemos que ainda façam, para eles, algum sentido. E sejam de algum proveito. 2 Não é o lugar para discutir a questão da “ideologia”. A noção de ideologia, mesmo apenas em Marx, é tão vasta e complexa que “acaba praticamente por cobrir o conjunto daquilo a que chamamos actualmente cultura”, afirma, talvez sem muito exagero, um ROCHER, Guy – Introduction à la sociologie générale, trad. port. de Ana Ravara, Sociologia Geral, I, 3.ª ed., Lisboa, Presença, 1977, p. 223. E GURVITCH, Georges – La vocation actuelle de la sociologie, II, Paris, PUF, 1963, pp. 287-288 analisa treze sentidos de “ideologia”, apenas no marxismo. Certamente por isso, já um VOVELLE, Michel – «Ideologies and Mentalities», in Culture, Ideology and Politics, ed. por Gareth Stedman Jones / Raphale Samuel, Londres, Routledge and Kegan Paul, 1982, p. 3 foge à armadilha: “I am not going to fall into the trap of beginning with a new definition of the Marxist concept of ideologie: others have done that, from the founding fathers to commentators”. Já anteriormente adoptamos, noutros estudos, com fins práticos (de análise), a noção de ALTHUSSER, 81 SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO enfrentar a urgência de o movimento socialista democrático desenvolver ideias claras e alternativas. Começando por autognose identitária, comparando-se com os géneros próximos, e afirmando a sua diferença específica, o que implica, desde logo, voltar à História e aos debates históricos, revisitando-os e interpelando-os com as questões do presente e as interrogações para o futuro. Polémicas sobre o fim do Estado Ao contrário dos comunistas, que se têm dividido, historicamente, entre adeptos do perecimento do Estado, do Direito e dos juristas (como objectivo a alcançar e escatologia a necessariamente ocorrer), de um lado, e defensores e até glorificadores de um Direito “socialista”3 (vinculado à “ditadura do proletariado” e depois a um “Estado de todo o povo”4), de outro, já entre os socialistas não parece ter persistido grande polémica a tal respeito. Os socialistas, mesmo cooperativistas e autogestionários, parecem conviver mais placidamente com o direito, o Estado e os juristas. A polémica sobre isso não parece ser, pelo menos, um dos seus temas de eleição. Talvez tal tenha ocorrido, em parte, porque o peso do Estado no pensamento germânico não permitira a Karl Kautsky e ao seu círculo libertarem-se Louis – Idéologie et apareils idéologiques d’Etat, La Pensée, trad. port. de Joaquim José de Moura Ramos, Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, Lisboa, Presença, 1974, p. 77: “A ideologia é uma ‘representação’ da relação imaginária dos indivíduos com as suas condições de existência“. De algum modo matizada com a que recolhe ROCHER, Guy – Sociologia Geral, I, p. 228 (cf. ainda vol. IV, p. 205): “um sistema de ideias e de juízos, explícito e geralmente organizado, que serve para descrever, interpretar ou justificar a situação dum grupo ou duma colectividade e que, inspirando-se largamente em valores, propõe uma orientação precisa à acção histórica desse grupo ou dessa colectividade”. Contudo, para o presente contexto, estas perspectivas são ainda limitadoras. Não podemos, por exemplo, esquecer a ideologia enquanto (identidade de) cosmovisão, ou, no mínimo, (de) mundividência política. E nesse sentido se coloca o problema da(s) “ideologia”(s) socialista(s) – que um ARON, Raymond – Marxismes imaginaires: d’une sainte famille à l’autre, Paris, Gallimard, 1969, aproxima de “religiões laicas”, procurando aplicar a crítica aos críticos. Mas a desconstrução de Aron não se aplica, por definição, aos socialismos não “dogmáticos”. Deixemos, pois, a pré-compreensão do “ideológico” a pairar... Até para reabrir o debate. Para uma “sociologia” das ideologias, cf., v.g., BOUDON, Raymond – L’idéologie ou l’origine des idées reçues, Paris, Fayard, 1986; BAECHLER, Jean – Qu’est-de que l’idéologie?, Paris, Gallimard, 1976; ANSART, Pierre – Les idéologies politiques, Paris, PUF, 1992. 3 Cf. uma perspectiva que se pretende “ortodoxa”, contra vários tipos de heterodoxia e/ou inimizade ao marxismo: VOLSON, Serguei – Sob a Bandeira do Marxismo: Crítica da Interpretação de Hans Kelsen. Sobre a Teoria Marxista do Estado e do Socialismo, in http://www.scientific-socialism.de/PECAP16.htm#_ftn4 . Na verdade, tratando de mais autores que apenas Kelsen e com suas diferentes “classificações”. 4 Conceito das conclusões do XXII Congresso do Partido Comunista da URSS, em 1962, depois constitucionalizado na constituição de 1977. Tal “fase” era a superação da ditadura do proletariado... Cf. VERGOTTINI, Giuseppe de — Diritto Costituzionale Comparato, vol. II, 6.ª ed., Pádua, CEDAM, 2004, p. 6 ss. Mas o “estado de todo o povo” é ainda Estado, evidentemente, permanecendo também a necessidade de existência de direito. Cf. Idem – Le Transizioni Costituzionali, Bolonha, Il Mulino, 1998, p. 102. 82 PAULO FERREIRA DA CUNHA dessa fórmula. Pelo Estado teriam mesmo “uma veneração supersticiosa e inconsciente”5. E talvez ainda porque o mais lassaleano que marxista Hans Kelsen, em Socialismo e Estado6, em consonância com a sua teorização geral de identificação entre Estado e direito e de pretensa “purificação” deste último7, cedo afirmaria a neutralidade do Estado, espécie de molde plástico, até gelatinoso, apto a tomar a forma de qualquer conteúdo. Não deixa de ser significativo que Rosa Luxemburgo, decerto mais reivindicada por socialistas (não simplesmente reformistas) que por comunistas, tenha afirmado de algum modo o carácter algo subsidiário do direito face à acção das massas. Afirma ela no se “Discurso sobre o Programa” da Liga spartakista: “O socialismo não será feito e não poderá ser realizado por decretos, nem sequer por um governo socialista, por mais perfeito que seja. O socialismo deve ser feito pelas massas, por cada proletário (...)”8 Depois disso, os socialistas democráticos têm sido, em geral, legalistas, embora apelando para uma legislação reformadora e para a igualdade de direitos. A título de mero exemplo, um dos argumentos utilizados em 1974, na segunda volta das eleições presidenciais francesas, por François Mitterrand, seria precisamente a da igual protecção da lei a todos. Ou seja, a lei não como instrumento de uma política de classe, mas como garantia da igualdade entre todos os cidadãos9. E já Jean Jaurès teria apostado nas “virtudes da legalidade democrática”, a que, porém, o qualificativo de “burguesa” desacredita enquanto programa ainda socialista10... 5 BONAVIDES, Paulo — Teoria do Estado, 7.ª ed., São Paulo, Malheiros, 2008, p. 160. 6 KELSEN, Hans — Sozialismus und Staat. Eine Untersuchung der politischen Theorie des Marxismus, Leipzig, Hirschfeld, 1923. 7 Idem — Reine Rechtslehre, trad. port. e prefácio de João Baptista Machado, Teoria Pura do Direito, 4.ª ed. port., Coimbra, Arménio Amado, 1976. 8 LUXEMBURGO, Rosa – Discurso sobre o Programa, apud PEREIRA MARQUES, Fernando — Contrapoder e Revolução, Lisboa, Diabril, 1977, pp. 230-231. 9 “Les lois de la France portègeront tous les citoyens sans exception”. E o discurso continua nesse tom. ORTF, 17 de Maio de 1974, sessão eleitoral em La Rochelle. 10 Cf. BARATA-MOURA, José – Em torno do Manifesto, in “Vértice”, II série, n.º 139, Março-Abril 2008, p. 15: “Para a ‘evolução revolucionária’ (évolution révolutionnaire) preconizada por Jean Jaurès – totalmente apostada no celebrado engrandecimento das virtudes da legalidade democrática (burguesa) e do sufrágio universal, como as doravante exclusivas vias de transformação do mundo (...)”. 83 SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO Não deixa de ser interessante que um dos livros que decerto mais terá contribuído em Portugal para a vulgarização política junto do homem da rua antes do 25 de Abril (posto que nada isento de críticas), assinala a sua tese de incompatibilidade entre socialistas e comunistas terminando com um argumento jurídico - o procedimento constitucional dos primeiros: “Há vários pontos de antagonismo irreconciliável entre os socialistas e os comunistas. Em primeiro lugar, os comunistas procuram acabar com o capitalismo por um acto só de levantamento revolucionário e guerra civil. Os socialistas, pelo contrário, são apologistas de um procedimento estritamente constitucional”11. Mas se no campo socialista parece ter-se optado de forma estável pela manutenção do Estado e do Direito, tal não quer dizer que pensadores socialistas não tenham polemizado com o pensamento comunista adepto da extinção. Assim, se Lenine afirma que o proletariado só necessita do Estado temporariamente (no meio-tempo da sua ditadura), como que lhe replicaria, mais tarde, Paul Ricoeur (socialista desde, pelo menos, 1933, i.e., desde os seus vinte anos12): “A redução da alienação política conduziu o marxismo-leninismo a substituir o problema do controlo do Estado por um outro: o do desaparecimento do Estado. Esta substituição parece-me desastrosa. Ela remete para um futuro indeterminado o fim do mal do Estado, enquanto que o problema político prático verdadeiro é o da limitação desse mal no presente. A escatologia da inocência toma o lugar de uma ética da violência limitada. Ao mesmo tempo, a tese do desaparecimento do Estado, prometendo demasiado para mais tarde, admite igualmente demasiado mas no presente: a tese do desaparecimento futuro do Estado serve de caução e de alibi à perpetuação do terrorismo. Por um maléfico paradoxo, a tese do carácter provisório do Estado torna-se a melhor justificação para o prolongamento sem fim da ditadura do proletariado e abre caminho para o totalitarismo”13. 11 EBNSTEIN, William – Todays Isms, 5.ª ed. 1967, trad. port. de Natália de Oliva Teles, Comunismo, Fascismo, Capitalismo, Socialismo, 2.ª ed., Porto, Brasília Editora,1974, p. 290-291. Não nos debruçaremos agora sobre o estilo, o rigor e a actualidade das teses desta obra, que em grande medida não partilhamos. 12 http://www.iapl.info/NEWS/RICOEUR/Le%20philosophe%20Paul%20Ricoeur%20est%20mort.htm 13 RICOEUR, Paul – O Paradoxo Político, trad. port. de artigo em “Esprit”, de Maio de 1957, in O Tempo e o Modo. Revista de Pensamento e Acção, n.º 1, Janeiro 1963, recolhido em O Tempo e o Modo. Revista de Pensamento e Acção. Antologia, 2.ª ed., p. 45. 84 PAULO FERREIRA DA CUNHA A inversa também é verdadeira, evidentemente. Mas a polémica, do lado marxista-leninista ortodoxo vira-se mais para o conjunto do pensamento jurídico burguês, como é o caso da obra de Vladímir Tumánov, que empreende uma interessantíssima desmontagem da “concepção jurídica do mundo”14, aliás na esteira do célebre texto de Engels sobre “socialismo jurídico”15. Entre nós, recordamos uma muito inspiradora intervenção de António de Almeida Santos que associa precisamente a crise do direito à crise dos valores16. É um texto notável de um excelente escritor e de um agudo observador. Citemos apenas o final, ficando a vontade de citar tudo: “Que nos não descoroçoe também o facto de não termos ainda ideias claras sobre os novos modelos e arranjos organizativos do futuro. Onde hoje é treva, há-se fazer-se luz.”17 É o anúncio dos novos paradigmas, e do novo paradigma do direito, que ainda não sabemos perfeitamente qual e como seja, mas que temos a segura intuição e objectivos dados nos permitem já anunciar, para um novo direito.18 E, a concluir: “Um bom começo será uma declaração de guerra à desatenção, ao conformismo, à resignação e à rotina. Discutir tudo. E fazê-lo com mentalidade demiúrgica e revolucionária. Só reformadora, não basta!” Não se trata, pois, de abolir o direito – ou autor refuta até o pessimismo quanto à sobrevivência do direito19, mas advoga antes que nos preocupemos com a sua crise. Para defender um novo direito. E é essa a grande tarefa do presente. Digna da heterodoxia socialista. 14 TUMÁNOV, Vladímir – O Pensamento Jurídico Burguês, trad. da ed. fr. confrontada com a ingl., de Palmeiro Gonçalves, Lisboa, Caminho, 1984, máx. p. 45 ss. 15 Cf. ENGELS, Friedrich / KAUTSKY, Karl – Socialismo Jurídico, trad. port., São Paulo, Editora Ensaio, 1991. Recentemente, MENDONÇA, José Carlos – A Ideologia do Socialismo Jurídico, Rio de Janeiro, Corifeu, 2007. 16 ALMEIDA SANTOS, António de – Por Favor Preocupem-se, Lisboa, Editorial Notícias, 1998, p. 257 ss. Sobre a crise de valores, logo no ano seguinte, Idem – Do Outro Lado da Esperança, Lisboa, Editorial Notícias, 1999, p. 227 ss. E especificamente sobre o impacto do problema no direito, p. 241 ss. 17 Ibidem, p. 277. 18 Ibidem, p. 277. 19 Ibidem, p. 257. 85 SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO Importará ainda sublinhar desde já que pensamos que políticas de convergência da esquerda e dos socialistas, latissimo sensu, não implicam, nunca implicaram, desconhecimento mútuo, nem apagamento de diferenças e sobretudo esquecimento histórico e ideológico. Há muito a unir todo o “povo de esquerda” na prática para que esse tipo de obstáculos se levantem. Apenas poderiam sê-lo como pretexto ou álibi20. Acresce que, em relação ao problema do fim do Estado propugnado por alguns marxistas ortodoxos tal não deveria decerto comover excepcionalmente nem, por exemplo, os próprios liberais, que aparentemente muito teriam a ganhar com isso. Ora, antes do susto da crise de 2008, os neoliberais já iam, de desregulação em desregulação, advogando uma forma de perecimento estatal, a seu modo, tornando-se involuntários obreiros da profecia dos seus arquiinimigos “colectivistas”. Pois a forma política Estado (ou “Estado Moderno”) não é nem pode ser um monstro sagrado, dada a sua própria temporalidade (historicidade) e contexto21. Resolvendo de um só golpe o problema da historicidade do Estado e do Direito, Juan Ramon Capella desmistifica (em termos algo exagerados, sublinhe-se: sobretudo quando usa o epíteto de “fascista”) também as teorias repetidas da “Teoria Geral do Estado” tradicional, que ainda têm muito curso: “O enigma do direito é desvendado por alguns enunciados simples a seu respeito: o Estado não existiu sempre, antes é um ser histórico cuja génese assenta na cisão da sociedade em classes antagónicas; o esqueleto do Estado moderno é composto não por ‘poder, território e povo’, a encobridora tripla tagarelice dos ideólogos fascistas (tagarelice que converte o ‘povo’ em elemento do Estado), mas sim por: 1.º um exército permanente; 2.º um segundo exército de funcionários; 3.º a política. (...)”22. 20 Do mesmo modo que os socialistas têm também pontes de diálogo com famílias não socialistas, mas democráticas, republicanas (por vezes até monárquicas democráticas e constitucionais), e sociais (sem prejuízo da importância de um legado liberal, mas jamais neoliberal ou de teologia de mercado). As quais foram aliados objectivos em situações de combate a totalitarismos. 21 Cf., por todos, o clássico ENGELS, Friedrich – Ursprung der Familie, des Privateingentums und des Staats, trad. port. Origem da Família, da Propriedade e do Estado, Lisboa, Presença. Entre muitos, cf. ainda o belíssimo tratado de BONAVIDES, Paulo – Teoria do Estado, máx. p. 31 ss. V. ainda uma síntese da perspectiva marxista sobre Estado e Direito e seu futuro in VERGOTTINI, Giuseppe de – Diritto Costituzionale Comparato, vol. II, p. 4 ss.. 22 RAMON CAPELLA, Juan – Sobre a Extinção do Direito e a Supressão dos Juristas, trad. port. de Maria Luzia Guerreiro, Coimbra, Centelha, 1977, p. 32. 86 PAULO FERREIRA DA CUNHA E recordemos ainda que fora o próprio Lenine a considerar o que o aproximava e o que o separava dos anarquistas, também adeptos do fim do Estado, mas não por “extinção”. E alguns autores têm dito sobre o Estado e dos juristas coisas que podem até chocar o pacato e distraído burguês23. E sobretudo os juristas. Se tem havido uma tal discussão no campo socialista democrático, ela não tem conseguido passar para as ribaltas do que se discute. Contudo, o tema “socialismo, Estado e direito” também deve interpelar os socialistas stricto sensu, e daí este contributo, que arranca destas polémicas historicamente registadas para problemas de futuro. Evidentemente que se trata de uma questão teórica, e até com vertente quimérica, utópica e utopista. Mas o lado teórico da luta é, para os intelectuais, unsere einzige force – adaptando um mote de Engels24. Além disso, recordemos que precisamente na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, sublinharia Marx que, apesar de a arma da crítica não ter o mesmo peso que a força das armas, quando se entranha nas massas, acabar por se tornar uma força material. Dogma e Heterodoxia Tal divergência sobre o Direito e o Estado prende-se de algum modo com os signos de dogma e pureza25 que dominam a distinção entre as duas grandes famílias latamente ditas “socialistas”: a comunista, lato sensu, e a socialista, proprio sensu. Como é bem sabido (embora hoje não muito recordado, decerto por um fenómeno de “inactualidade mediática”), enquanto a primeira família política sempre tem discutido entre os seus diferentes ramos e estirpes (soviética, maoísta, trotsquista, todos nas suas diferentes versões, e ainda outras), invocado as escrituras sagradas de um panteão de divindades (Marx, Engels, Lenine... e, 23 Uns de forma mais rasteira, outros em grande estilo. Nesta última clave, temos o caso de BLOCH, Ernst – Geist der Utopie, Francoforte, Suhrkamp, 1964, trad. fr. de Anne-Marie Lang Catherine Piron-Audard, L’Esprit de l’utopie, version 1923, revue et modifiée, Paris, Gallimard, 1977, p. 286 ss. 24 ENGELS, Friedrich – Carta a Marx, de 21 de Janeiro de 1848. Cf. BARATA-MOURA, José – Em torno do Manifesto, p. 6. 25 Não terá sido a pureza ideológica revolucionária a inspiradora de MORAES, Vinicius de – “Carta aos Puros”, in Poesia Completa e Prosa, org. de Alexei Bueno, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1998, p. 433-435. Pelo contrário, parece-nos retratar a pseudo-pureza (todas ou quase todas as purezas invocadas são pseudo-purezas) de certa hipocrisia burguesa. Mas os textos universais têm aplicação muito para lá da sua génese e da subjectividade autoral. Trata-se de um texto absolutamente actual e imprescindível para o pensamento heterodoxo – e para a sua prática. 87 SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO segundo os casos, Estaline, eventualmente Mao Zedong... ou, em vez destes dois, e com menor “culto da personalidade”, Trotsky), e se tem entre-excomungado, em nome da ortodoxia marxista-leninista (tal é a base semântica do consenso que afinal não o é), já a segunda família assume com orgulho (embora também por vezes com um certo complexo de privação ou de inferioridade – calcanhares de Aquiles que um Eduardo Lourenço detectaria26) a heterodoxia, o sem dogma27 ou a impureza28. E nela o pluralismo é timbre. São precisamente de Eduardo Lourenço estas palavras conclusivas (e outras mais se lhe poderiam citar a propósito): “Adequado ou inadequado, o marxismo constitui a mais estruturada leitura crítica do mundo em que vivemos, e não é possível agir como se ela não existisse. (...) Se é inadequada, torna-se imperativo mostrar porquê e construir em seu lugar outro modelo teórico que permita estruturar com coerência esse socialismo-outro que remeterá Marx para a História que hoje domina. Até lá (queiramo-lo ou não), viveremos todos sob o complexo de Marx. Sempre é melhor do que morrer dele por ignorância ou inconsciência”29. 26 LOURENÇO, Eduardo – O Complexo de Marx, Lisboa, Dom Quixote, 1979, máx. p. 9-13. 27 Cf., logo no título, SOTTOMAYOR CARDIA, Mário – Socialismo sem Dogma, Mem Martins, EuropaAmérica,1972, com Prefácio de Mário Soares. 28 Ao longo de anos de polémica, não tanto de pesada ideologia, mas sobre práticas políticas muito diversas (sendo os socialistas acusados de “leais gestores do capital”, e os comunistas de abafarem as liberdades ou pretenderem fazê-lo), é recorrente, dir-se-ia mesmo que é um tópico e quase um “tique”, a comparação dos comunismos institucionais e ortodoxos a igrejas. E os grupos menos institucionais seriam “seitas”. Em ambos os casos, com suas escrituras, dogmas, clero, e até inquisições. Tem de reconhecer-se aí, evidentemente, a crítica por parte dos espíritos mais heterodoxos. Contudo, vistas as coisas de forma mais panorâmica e distanciada, não pode haver dúvida que todos esses elementos fazem parte de uma mitificação e de um ritual, que, em si, são dificilmente prescindíveis em qualquer empreendimento humano de congregação de pessoas. Os socialistas, incomparavelmente mais discretos, não deixam de, por vezes, entoar os acordes de uma Internacional adaptada, de desfraldar bandeiras (inicialmente vermelhas), e de levantar o punho (que é o esquerdo, e não o direito – para não haver confusões). A questão não está no ritual, nem em algumas fontes “sacralizadas”: o problema está no uso dessas fontes, e nos aspectos asfixiantes do dogma, desde logo “purgas”, excomunhões (veja-se desde logo o título de Lenine: A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky), etc. A mitologia e o ritual comunistas são até, em alguns aspectos, salutares (veja-se o belo mito de Che Guevara, que está longe de ser um comunista típico, porém). É a este propósito interessante meditar no incitamento final do belo artigo de BARATA-MOURA, José – Em torno do Manifesto, p. 21: “Lê-lo e estudá-lo ((ao Manifesto comunista)), não apenas como quem piedosamente revisita a memória de uma antigo e sólido documento fundador da filosofia política do comunismo, ou como quem recapitula as iniciáticas fórmulas sacramentais da sua crença. (...)” (sublinhados nossos). Cf. uma descrição da hagiografia trotsquista e sobretudo maoísta em PEREIRA MARQUES, Fernando – A Praia sob a Calçada. Maio de 68 e a Geração de 60, com um Ensaio-Prefácio de Eduardo Lourenço, Lisboa, Âncora, 2005, p. 41. Em contrapartida, os socialistas democráticos por vezes se tornam excessivamente de “linha branca”, sem timbre de uma específica sacralidade (ou marca) ideológica e concomitantemente se engravatam demais (e o problema é sobretudo do engravatamento do discurso – forma de não dizerem), e acabam por ter, por vezes, imagens semioticamente pouco distintas das dos políticos da direita. Embora na esquerda tal inespecificidade exterior comece a ocorrer quase generalizadamente desde os finais do século passado. É também na compreensão dos calcanhares de Aquiles de uns e outros (e na assunção dos próprios, não em flageladoras auto-críticas com sabor a confissões religiosas, mas com medida e ponderação) que se poderá estabelecer um diálogo (necessário) mais frutuoso. 29 LOURENÇO, Eduardo — O Complexo de Marx, p. 13. 88 PAULO FERREIRA DA CUNHA Complexidade da questão jurídica marxista Parece haver no próprio marxismo tout court alguma razão para a ambivalência histórica dos comunistas face ao Estado e ao Direito30. Sem invocar sequer determinações psicologistas ou simplesmente biográficas, como o facto de tanto Marx como Lenine (além de um Gorbachov; e Brejnev era um entusiasta pelo Direito!31) serem formados em Direito, haverá que meditar ao menos sobre os escritos de Marx em que o Direito é abordado para tentar deslindar elementos para uma sua proto-teoria jurídica ou em torno da juridicidade32. As conclusões não são, porém, muito abundantes nem conclusivas. Divergem os intérpretes, mesmo em face do mesmo corpus de fontes. E a já clássica oposição de várias fases em Marx (desde logo o “jovem” e “humanista”33) contribui para que se queira resgatar e sobrepor os escritos de um tempo aos de outros. A crítica concreta do direito burguês34 facilmente pode confundir-se com uma crítica a todo o Direito. E do mesmo modo a profecia de Marx na Crítica do Programa de Gotha é interpretada por uns, literalmente, como de desaparecimento apenas do direito burguês, e por outros latamente, como de desaparecimento de todo o direito35. 30 MOREIRA, Vital — Sobre o Direito, anexo a PACHUKANIS, E. B. — A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, trad. port., Coimbra, Centelha, 1972, p. 279 sintetiza, ao que nos parece muito bem: “O tema do desaparecimento do direito (e do Estado) é um dos problemas mais confundidos de toda a história do marxismo. Não concretamente definido por Marx, desenvolvido por Engels e Lenine, a questão nunca encontrou perfeitamente delimitados os seus termos”. 31 Incitando nomeadamente ao respeito de todos pelo direito, e elevando os juristas soviéticos ao nível (pelo menos) dos agrónomos, dos engenheiros e dos economistas. Apud PESSOA VAZ, Alexandre Mário — Direito Processual Civil, Coimbra, policóp., 1980/1981, p. 100. 32 Cf., de entre muitos, além dos citados ao longo deste estudo, v.g., MOREIRA, Vital — A Ordem Jurídica do Capitalismo, Coimbra, Centelha, 1973; Idem — O Renovamento de Marx, Coimbra, Centelha, 1979. LYRA FILHO, Roberto — Karl, Meu Amigo: Diálogo com Marx sobre o Direito, Porto Alegre, co-edição S. A. Fabris e Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, 1983; UMBERTO, Cerroni et al. — Marx, el Derecho y el Estado, Barcelona, Oikos-tau, S.A. Ediciones, 1979; STUCKA, P. I. — La Función Revolucionaria del Derecho y de Estado, Barcelona, Ediciones Península, 1969. 33 Cf., por todos, v.g., LAPINE, Nikolaï — Le jeune Marx, trad. fr. do russo de D. Sanadzé, N. Romanova e Y. Plaud., Moscovo, Ed. du Progrès, 1980; EASTON, Loyd D. / GUDDAT, Kurt H. (ed. e trad.) — Writings of the Young Marx on Philosophy and Society, Indianapolis, Hackett Publishing Comp., 1967; MERCIER-JOSA, Solange — Retour sur le Jeune Marx. Deux Études sur le Rapport de Marx à Hegel. Paris, Meridiens Klincksieck, 1986. 34 Utilizaremos a expressão “burguês” e afins com sentido sociológico (social e cultural) preciso, sem qualquer intenção pejorativa, até porque reconhecemos a importância histórica (e até “moral”) da burguesia, o que, mutatis mutandis, vem já do Manifesto de Marx e Engels. Cf., em geral, SOMBART, Werner — Le Bourgeois, trad. fr., Paris, Payot, 1966; ROMERO, Jose Luis — Estudio de la Mentalidad Burguesa, Madrid, Alianza, 1987; PERNOUD, Régine — Les Origines de la Bourgeoisie, Paris, PUF, 1947. 35 Cf. MOREIRA, Vital – Sobre o Direito, p. 280 e n. 34. 89 SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO O mesmo se diga do Estado que, como se sabe, é um fenómeno político muito mais datado ainda, e que jamais se deve confundir, como se faz frequentemente, com toda e qualquer forma de organização ou aparelho ou societas política, por ilegítimo processo de sinédoque a-histórica. Acresce ainda que a consideração do Direito no contexto da superestrutura capitalista e ainda como aparelho ideológico (além de repressivo) do Estado36, no fundo sobrevalorizando a característica (por alguns dita acidental ou do-modo-de ser, não da essência) da coerção ou coacção37, vai também num sentido muito pouco amável e lisonjeiro para o Direito aos olhos marxistas-leninistas. Da questão se podem ver ecos na Internet, com fontes anteriormente não acessíveis, mas que, como é óbvio, necessitam de cuidadoso tratamento. Autores há ainda que não concedem ao direito nenhum espaço benévolo: “o Direito é, para o povo, um ópio ainda mais nocivo do que a religião” – afirma, por exemplo, Harms38. Em contrapartida, outros invocam um Marx aparentemente mais contemporizador com um direito-outro, que não o que lhe (nos) foi dado viver, como será o caso de Luis Satie, que cita uma intervenção de Marx no tribunal de Colónia, infelizmente sem mais referências39. 36 Cf. o clássico ALTHUSSER, Louis — Idéologie et apareils idéologiques d’Etat, La Pensée, trad. port. de Joaquim José de Moura Ramos, Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, Lisboa, Presença, 1974. 37 Entre nós, BAPTISTA MACHADO, João — Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, reimp., Coimbra, Almedina, 1985, p. 31 ss. É de notar que a matéria da coacção é tratada como primeiro ponto do estudo da noção de Direito – tal a sua importância. E o autor, antecipando o argumento da possibilidade de, utopicamente, uma sociedade de homens perfeitos vir a prescindir da coacção, previne que, em tal sociedade, não deixaria de haver Direito (p. 37). Cf. ainda várias posições a este propósito coligidas em SAROTTE, Georges — Le matérialisme historique dans l’étude du droit, trad. de Dr. Joaquim Monteiro Matias, O Materialismo Histórico no Estudo do Direito, Lisboa, Estampa, 1975, p. 94 ss. 38 HARMS, Andreas — Warenform und Rechtsform. Paschukanis’ Rechtstheorie, in Rote Ruhr Uni. hoert auf zu studieren – fang an zu denken !, http: // www. rote-ruhr- uni.org./2001/ index.shtml, 11 de Novembro de 2001, apud http://www.scientific-socialism. de/PECapa.htm 39 “Mas, que entendeis, senhores, por conservação da legalidade? A manutenção das leis correspondentes à época anterior e criadas por representantes de interesses sociais desaparecidos ou prestes a desaparecer, significa somente elevar à categoria de lei estes interesses conflitantes com as necessidades gerais. Não obstante, a sociedade não se baseia na lei. Esta é uma fantasia dos juristas. Pelo contrário, a lei deve basear-se na sociedade, deve ser expressão dos seus interesses e das necessidades gerais que se originam de um determinado modo de produção material em oposição ao arbítrio individual (...). No momento em que a lei não corresponde mais aos interesses sociais, converte-se mais num pedaço inútil de papel. Não podeis colocar as velhas leis como fundamento do novo desenvolvimento social, como também estas não podem criar as velhas relações sociais. Essas leis nasceram com estas relações e devem também desaparecer com elas (...). Esta conservação da legalidade procura transformar os interesses privados em interesses dominantes, quando precisamente esses interesses privados já não dominam; tenta impor à sociedade leis condenadas pelas próprias condições de vida desta sociedade, pela sua maneira de obter os meios de vida, pela sua troca, pela sua produção material (...). Deste modo ela entra em conflito, a todo instante, com as necessidades existentes, freia a troca e a indústria, prepara crises sociais que irrompem em revoluções políticas. Eis aqui o verdadeiro sentido do acatamento e da conservação da legalidade” http://minimaphilosophia.blogspot.com/2004/07/marx-e-o-direito.html 90 PAULO FERREIRA DA CUNHA Pela contextualização da crítica se “salvaria” por assim dizer uma categoria absoluta, não contingente. Mas haverá categorias absolutas e não contingentes para Marx? O mesmo problema se coloca até em relação ao Direito Natural, que Ernst Bloch reabilita, não deixando de criticar a pretensa omnisciência abstracta do direito natural burguês40. Pachukanis, Stutchka e Vichinsky Encurtemos muito razões de uma polémica que corresponde a uma importante clivagem ideológica (ideológica proprio sensu) no seio da história comunista, e especificamente soviética. Se, por um lado, Pachukanis41 advoga a extinção do Estado e do Direito, a tal queda “como fruto maduro” ou “podre” a que aludira Lenine (e, dentro da escatologia marxista-leninista este advogar é mais que isso – é profetizar), já o “socialismo real” foi sendo pensado de outra forma, com um lugar efectivo para o direito, e um Estado em funcionamento. Como bem se vê, o Estado soviético, sendo ainda (e dir-se-ia até que mais ainda, porque revestindo a forma económica de “capitalismo de Estado”42 ou, em fórmula mais suave, “socialismo de Estado”43) Estado, teve necessidade de, mutatis mutandis, recorrer aos moldes institucionais do... Estado burguês. Mesmo Lenine o teria reconhecido repetidamente que, mesmo após a revolução de Outubro “uma grande parte do aparelho de Estado permaneceu intacta (...)”44. Por vezes, parecendo operar aquele virar de cabeça para baixo que já fora apanágio de Marx face à dialéctica de Hegel. Desde logo, no período dito de transição45, 40 BLOCH, Ernst — Derecho Natural y Dignidad Humana, trad. cast. de Felipe Gonzalez Vicen, Madrid, Aguilar, 1961, máx. p. 188 ss. 41 PACHUKANIS, E. B. — A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, trad. port., Coimbra, Centelha, 1972. 42 Expressamente utilizando esta expressão, v.g., MAGALHÃES GODINHO, Vitorino – A Democracia Socialista, um Mundo Novo, e um Novo Portugal, Venda Nova, Amadora, Cadernos Critério, 1976, p. 22. 43 Diz LEFEBVRE, Henri — Le manifeste différentialiste, Paris, Gallimard, 1970, p. 26 (apud PEREIRA MARQUES, Fernando — Esboço de um Programa para os Trabalhos das Novas Gerações, Porto, Campo das Letras, 2002, p. 210):“O Socialismo ((de Estado)) que tira de Marx a sua retórica e a linguagem das suas decisões, abandonou a sua diferença para fixar as mesmas metas que o capitalismo: produzir mais, produzir sempre”. De notar que o último motu é uma modificação, cremos que propositada, do de Lenine: “Estudar, estudar muito, estudar sempre”. 44 Cf. ALTHUSSER, Louis — Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, p. 37. A nosso ver, não haveria nada de especial nessa permanência se ela não persistisse muito depois da tomado do poder. 45 Cf., desde logo, o clássico V. I. LENINE, V. I. — A Revolução Proletária e o renegado Kautsky, trad. port. de Rui Santos, Coimbra, Centelha, 1974 (começando por atacar o “revisionismo” de Kautsky sobre a ditadura do proletariado). Em 91 SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO e de “ditadura do proletariado”, mais tarde “superada”. Embora muitas vezes operando cosmeticamente, mudando cores, nomes, adjectivando, mitificando a seu modo. Exercendo o seu discurso legitimador na sua função ideológica e mistificadora de forma simétrica à dos estados capitalistas de mercado. Veja-se a frase de Marx tão cara a Lenine: “O Estado é o proletariado organizado em classe dominante”46. Contudo, Vichinsky criticará como quimera o perecimento do Estado (pelo menos a curto ou médio prazo) e o desaparecimento concomitante dos juristas e do que eles “fazem”, o Direito... E defendendo, outrossim, um Direito socialista. Já Piotr Stutchka, embora mais prático que teórico, tinha defendido um direito proletário47. E para isso promoveria, a extinção dos advogados como profissão liberal, e, pelo Decreto n.º 1 Sobre o Tribunal, de 24 de Novembro de 1917, a substituição dos tribunais existentes pelos Tribunais de Trabalhadores e Camponeses, com juízes eleitos. Os principais argumentos de Vichinsky são deveras interessantes, e em alguns aspectos não deixam de ser até “proféticos”, por seu turno. Mas, agora, de profecia que estamos em condições de apreciar no nosso tempo, porque os factos se jogam agora. O jurista soviético pressupõe desde logo uma des-diabolização dos juristas, como o fará depois, até em tom entusiástico, Leónidas Brejnev. Não se trata, assim, de um burguês envergonhado, de saber e profissão tipicamente burguesas, que fez a sua opção de classe, mas que se embaraça com a sua formação (que talvez o envergonhe até), na verdade uma forma mentis, avessa ao ideal que abraçou. De modo algum. A própria concepção de um direito socialista é garante de um outro à-vontade, psicológico e teorético. Mas mais: para Vichinsky é na sociedade socialista que o Direito verdadeiramente se realiza, ou desabrocha, como vero Direito. Só aí, só então “o direito adquire uma base sólida para o seu desenvolvimento”48. E tal é considerado uma realidade positiva, não negativa. polémica com Kautsky, Idem — Como Iludir o Povo com os slogans de Liberdade e Igualdade, trad. de Maria João Delgado, Coimbra, Centelha, 1974, p. 31 ss.. Já mais recentemente, e em clave jurídico-político-filosófica, DIAZ, Elias — “Estado de transición y dictadura del proletariado”, in De la Maldad Estatal y la Soberania Popular, Madrid, Debate, 1984, p. 184 ss. Pistas acessíveis se podem sempre revisitar no vade mecum de HARNECKER, Marta — Los Conceptos Elementales del Materialismo Histórico, trad. port. de Alexandre Gaspar, Conceitos Elementares do Materialismo Histórico, I, 2.ª ed., Lx., Presença, 1976, pp. 192-197, máx. p. 195. 46 LENINE, V. I. — Estado e Revolução, trad. de uma ed. inglesa por Armando de Azevedo, Lisboa, Delfos, 1975, p. 67 ss.. 47 STUTCHKA, Piotr — Direito de Classe e Revolução Socialista, 2.ª ed. São Paulo, Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2001. 48 NAVES, Márcio Bilharinho – Marxismo e Direito. Um Estudo sobre Pachukanis, São Paulo, Boitempo, 2000, p. 162. 92 PAULO FERREIRA DA CUNHA Consideremos agora a parte profética: Vichinsky pensa que o Direito é, mais que instrumento próprio ou privativo da sociedade e da dominação burguesas, verdadeiramente por elas instrumentalizado. Mas não é intrinsecamente associado às mesmas. A sua instrumentalização pode ir ao ponto de poder ser dispensado (ou descartado) quando impeça o fluir ou a lógica imparável do próprio sistema. Na fase mais avançada ou “superior” do capitalismo, o imperialismo49, este tenderia a violar o direito, desde logo infringindo a própria legalidade. Ora tal parece ver-se hoje. Mesmo se pensarmos que a face da legalidade (não é certo que o mesmo claramente ocorra com a juridicidade, e menos ainda com a juridicidade proprio sensu, a do Direito justo, passe o pleonasmo) pode facilmente ser salva com rápidas e profundas alterações legislativas, nas mãos dos legisladores do momento, que, em muitos casos, são também os executivos, com funções legislativas, ordinárias ou extraordinárias. Sistema expedito a que apenas colocam peias, infelizmente não raro em exclusivo formais, a existência de princípios e normas constitucionais, e, no limite, os limites materiais de revisão constitucional, ou cláusulas pétreas50. Direito soviético, direito socialista? Nomes simbólicos como Vichinsky, Stutchka, Brejnev ou Gorbachov e as suas posições sobre o Direito levam-nos a pensar num sovietismo (ou em vários) mais votados a concretizações práticas de um certo tipo de racionalidade jurídica, certamente não assimilável à “burguesa”, mas que fundamentalmente joga o mesmo jogo (talvez o de um certo tipo de modernidade de algum modo incompleta, excessivamente abstracta e racional51). Em que a utopia socialista (mito da cidade ideal52 socialista), para o bem e para o mal – e cremos que há aí de um e de outro – pelo menos recua para um horizonte cronológico 49 LENINE, V. I. — O Imperialismo, fase superior do Capitalismo, trad. port., Lisboa, Avante, 1975. 50 Perante os quais o “chaplinesco” constituinte nem sequer recua, designadamente quebrando a regra de pedra, ao retirar a própria placa de proibição, e entrando descontraidamente pelos artigos de segurança adentro: é a chamada técnica da “dupla revisão”. Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes – O Problema da Dupla Revisão na Constituição Portuguesa, Separata de “Revista Fronteira”, Dezembro de 1978. Cf., sobre o assunto, o nosso Direito Constitucional Anotado, Lisboa, Quid Juris, 2008, p. 339 ss., máx. p. 360 ss. 51 BITTAR, Eduardo C. B. – Razão e Afeto, Justiça e Direitos Humanos: Dois Paralelos Cruzados para Mudança Paradigmática. Reflexões Frankfurtianas e a Revolução pelo Afeto, in Educação e Metodologia para os Direitos Humanos, São Paulo, Quartier Latin, 2008, p. 57 ss. 52 MUCCHIELLI, Roger — Le Mythe de la cité idéale, Brionne, Gérard Monfort, 1960 (reimp. Paris, P.U.F., 1980). 93 SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO (ou ucrónico) “confortavelmente” longínquo. É assim possível comparar os “direitos socialistas” com os direitos da família ocidental, sem problemas de essência53. Comparar entes de essências adversas é que seria complexo54. Resolvido, pois, o “problema ontológico” do Direito dos países soviéticos e afins, e podendo proceder-se ao absolutamente normal processo de comparação de direitos, que se pode concluir, extrapolando do comparatismo jurídico para uma teorização filosófico-política? Em grande medida, e apesar do entusiasmo dos juristas e estadistas russos citados, as conclusões não são nada animadoras para uma differentia specifica profunda do direito soviético. Terá sido ele socialista? A própria questão é herética, em ambiente comunista, mas pertinente. Em que medida o direito soviético é direito socialista, e em que medida, mais radicalmente, pode haver direito socialista, ou seja direito no socialismo e com ele absolutamente concorde (porque, se assim não for, também não haverá socialismo – poderse-á pensar)? Tal também remete, obviamente, para a questão da natureza da URSS e das democracias populares, etc. No limite, a questão é: ou o direito no socialismo é socialista, ou não há direito no socialismo, ou o socialismo, com o seu direito, não será, afinal, socialismo. Mas também não exageremos. Há diferenças evidentes entre o direito soviético e o direito da chamada família ocidental; o problema está em saber o seu verdadeiro timbre. É claro que conteúdos de colectivismo são evidentes em legislação. É evidente que o “centralismo democrático”55, o papel do partido único ou hegemónico, e outras características institucionais típicas dos partidos comunistas se transportaram ou influenciaram as estruturas estaduais constitucionais respectivas56. E ainda é também evidente que, do ponto de vista da 53 Tal parece ser o que se extrai, por exemplo, deste passo de DANTAS, Ivo – Direito Constitucional Comparado. Introdução, Teoria e Metodologia. Geografia dos Grandes Sistemas Jurídicos, 2.ª ed., Rio de Janeiro / São Paulo / Recife, 2006, p. 213: “(...) vale lembrar que, apesar da queda do Muro de Berlim, e apesar de todas as modificações ocorridas na Europa, tal não nos parece que possa justificar a exclusão, pura e simples, do modelo socialista, do que seria exemplo (e só ele bastaria para justificar) o sistema jurídico cubano”. Já, por exemplo, MORAES GODOY, Arnaldo Sampaio de – Direito Constitucional Comparado, Porto Alegre, Safe, 2006, apesar de fazer referência a constituições soviética (e depois russa) na Introdução (p. 16) não as estuda em apartado autónomo, nem considera abre capítulo para qualquer “direito soviético” ou categoria afim. 54 Coisa diversa é já, como se sabe, a décalage ontológica entre os direitos ocidentais e o “direito muçulmano”, que o renomado especialista George Bousquet nos começa por prevenir, no respectivo manual, que “não existe”. Na verdade, não existe enquanto Direito autónomo, mas como normatividade caldo de cultura, com elementos religiosos, de poder, de moral, etc. 55 Cf., por todos, VERGOTTINI, Giuseppe de – Diritto Costituzionale Comparato, vol. II, p. 44 ss. 56 Cf., por todos, Ibidem, vol. II, p. 16 ss. 94 PAULO FERREIRA DA CUNHA forma, do ritual, da tópica, a linguagem (latissimo sensu) utilizada pretende ter coloração marxista-leninista típica. Só que o que se tem por socialismo são também alguns “sinais exteriores”... Porém, no plano mais profundo, quanto à essência do próprio Direito, o que poderá dizer-se que muda? É verdade que os juristas soviéticos cunhariam as suas próprias definições de Direito, em grande medida (pelo menos as que foram chegando ao “Ocidente”) decalcadas na ideia da identificação de Direito com instrumento de dominação capitalista. Assim, Krylenko dirá que “o direito, quanto à sua origem, é algo derivado das relações económico-sociais, e quanto ao seu conteúdo, um sistema de normas dirigidas a justificar e proteger, ou melhor, proteger primeiro e justificar depois, a ordem existente”57. Complementar parece ser a definição de Stutchka, a qual terá tido mesmo acolhimento numa lei soviética: “o direito é um sistema de relações sociais que corresponde aos interesses da classe dominante e que se sustém pelo seu poder organizado (o Estado)”58. Mas tais definições, podendo até revelar-se, afinal, adequadas (dado o “capitalismo - ou socialismo - de estado” do pretenso socialismo soviético), não servem realmente para o propósito de escrutinar uma eventual differentia specifica do jurídico no mundo dos sovietes. Aliás, tudo indica que a démarche definitória tem claro recorte positivista e, em direito, adquire sobretudo uma função legitimadora59. O que no final de contas parece revelar-se é que, talvez porque arreigados à ideia de transição, os juristas soviéticos não nos legaram uma imagem do direito diversa da de dominação. Pelo menos, ela não foi recebida no “Ocidente”. 57 TRUYOL SERRA, António — Esbozo de una Sociologia del Derecho Natural, in Revista de Estudios Politicos, Madrid, vol. XXIV, 1949, p. 27. 58 Apud Ibidem. 59 Sobre a definição em geral, ARISTÓTELES – Organon, Tópicos, 102 a) (ed. port. com trad. e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Guimarães, 1987, p. 15 ss.). Sobre as definições em direito, IAVOLEUS – lib. 11 Epistularum = D. 50, 17, 202: Omnis definitio in iure civili periculosa est: parum non est anim, ut subverti non posset. Sobre a definição de Direito, o nosso Filosofia do Direito, Coimbra, Almedina, 2006, p. 291 ss. 95 SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO Prova da definição Mas a desconstrução das definições é sempre útil, reveladora. Devemos, assim, passar às mais clássicas e tradicionais de todas as definições de direito, naturalmente positivistas, normativistas e dogmáticas, que podem alcançar um mínimo denominador comum nos tópicos seguintes. Nessa definição-retrato-robot, ou definição-padrão, o direito seria: 1) um acervo ou conjunto de normas ou regras; 2) que se impõem socialmente de forma coactiva; 3) coacção essa exercida por parte de um centro nomológico e de sua própria garantia, no limite manu militari, o Estado; 4) com o fim geral de pacificação social, prevenção e solucionamento dos conflitos, ou outro discurso legitimador irénico e eutópico. Se analisarmos o que ocorre em todas as sociedades concretas, verificamos sem dificuldade que esta tópica positivista na realidade não se adequa por completo ao que se passa, contendo inúmeras e significativas excepções, algumas colocando em risco a regra60. Contudo – e este facto é quase surpreendente – temos que conceder que esta definição, descontando as múltiplas excepções, enquanto projecto e também projecto ideológico, é um excelente descritivo de qualquer direito como mera expressão não autónoma do poder, logo, quer do direito burguês corrente quer do direito soviético. O que contraria profundamente esta visão do direito é o corte epistemológico (e também autonomia política do direito61) criada pelo ius redigere in artem, é a razão de justiça e não a raison d’Etat. Esta autonomia ou independência relativa não foi excluída, aliás, por Marx e Engels, e, mesmo que não fosse expressamente invocada, inserir-se-ia na possibilidade de autonomia relativa da superestrutura que Engels reconheceu na célebre carta a Bloch62. Mas outro Bloch, Ernst Bloch, insistiria, mais recentemente, 60 61 Cf. o nosso O Ponto de Arquimedes, Coimbra, Almedina, 2001, p. 137 ss. Cf. o nosso Repensar a Política. Ciência & Ideologia, 2.ª ed., revista e actualizada, Coimbra, Almedina, 2007, p. 228 ss. 62 ENGELS, Friedrich – Carta a Bloch, de 21 / 22 de Setembro de 1890: “ (...) A situação económica é a base, porém os diversos momentos da superestrutura - formas políticas da luta de classes e seus resultados – Constituições, estabelecidas pela classe vitoriosa após a batalha vencida etc. – formas jurídicas e então, até mesmo, os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, concepções religiosas e seus desenvolvimentos subsequentes em sistemas dogmáticos, exercem também seu efeito sobre o transcurso das lutas históricas e determinam, em muitos casos, a sua forma, de modo preponderante. (...)” (http://www.scientific-socialism.de/FundamentosCartasMarxEngels210990.htm.) 96 PAULO FERREIRA DA CUNHA sobre a “relativa independência” da esfera jurídica no pensamento dos fundadores do marxismo63. Máscara da dominação real Assim, começando pelo último tópico, o direito soviético pode, assim como o Estado soviético, proceder a um “mascaramento” da dominação subsistente. Ora, quer Pachukanis quer um heterodoxo marxista como Ernst Bloch, parecem coincidir na ideia de que o Estado e o Direito, além do seu domínio, exercem ainda funções sociais legitimadoras e de ilusão, que são de mitificação e mistificação, procurando, desde logo, dar a aparência de uma cura geral do bem e do equilíbrio sociais, quando, na verdade, o fazem em proveito de alguns poucos. Ora este irenismo e eudemonia, totalmente contrários às ideias de luta de classes, ditadura do proletariado, etc., e ao próprio carácter dialéctico da sociedade, em tudo coincidem com um fenómeno de pretenso consensualismo e pretensa localização supra conflitos, muito típica, de resto, da política e das instituições burguesas. Garantido o discurso legitimador eutópico (elemento externo), que pode ser, contudo, colorido com tons menos consensualistas, antes prometendo amanhãs que cantam e até a luta contra a exploração, o imperialismo, etc., os elementos propriamente internos (mais profundos) dos direitos soviéticos não distam, afinal, muito dos burgueses. Há fórmulas diversas, que são susceptíveis de ser mais ou menos valorizadas, pro domo. Positivismo legalista Assim como para os juristas burgueses o positivismo legalista (crença atávica e atracção magnética pela letra da lei sem discussão crítica e sem fuga às suas soluções) é a filosofia espontânea, automática, aquela que vem a galope, por natureza sua64, do mesmo modo não se vê que uma lei considerada socialista, 63 BLOCH, Ernst — Derecho Natural y Dignidad Humana, p. 187. 64 “O positivismo é a filosofia espontânea dos juristas”, recorda TEIXEIRA, António Braz – Sobre os Pressupostos Filosóficos do Código Civil Português de 1867, in “Fides. Direito e Humanidades”, III, Porto, Rés, 1994, p. 148. Sobre as diferentes fórmulas de positivismo jurídico, TRIGEAUD, Jean-Marc – Eléments d’une Philosophie Politique, Bordeaux, Bière, 1993; Idem – Humanisme de Ia Liberté et Philosophie de la Justice, II, Bordeaux, Bière, 1990. Em cotejo com outra proposta doutrinal, o jusnaturalismo, v.g. Norberto BOBBIO – Giusnaturalismo e positivismo giuridico, Milano, Ed. di Comunità, 1984 97 SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO popular, etc. no contexto de uma ordem jurídica soviética ou afim, possa sofrer sequer qualquer crítica significativa e modulação de relevo nas mãos dos operários do Direito, os juristas soviéticos. Há um elemento de estabilização normativa e institucional e de legalidade logo após os primeiros momentos revolucionários65. Para uns como para outros, o Direito é, sem dúvida, pelo menos acima de tudo e antes de mais, “um conjunto de normas”. E a sua aplicação deve ser algo parecido com a viva vox legis, uma obediência cadavérica ao princípio romano da decadência (quando já nada “segurava” a sociedade senão a força coactiva das instituições dissuasoras e punitivas): dura lex, sed lex. Coacção Esta perspectiva positivista redunda natural e logicamente não na averiguação da razão do comando, e da sua justiça. A regra, pela sua própria existência como tal, passa a incontestável e inapreciável na sua génese e no seu valor. Sendo a hermenêutica subsequente uma lógica fria, subsunção pura, averiguação de um sentido considerado “prévio” e “ínsito” na norma, e jamais ponderação e construção de um sentido em diálogo com o caso, na mira do justo concreto. Trata-se, pois, da aplicação (no limite pela força) da ordem ou comando que a norma parece prima facie conter. E a característica considerada acidental, não essencial, das normas que é a coercibilidade, simples susceptibilidade latente e virtual de imposição coactiva de uma norma, passa a avultar numa outra veste, muito mais impositiva: a coacção66. Ora a coacção é tida pelo positivismo legalista mais puro e duro como característica essencial de toda a norma jurídica, e até invocada como elemento distintivo, por exemplo, na oposição entre Direito e Moral, cujas regras não gozariam desse privilégio conferido estadualmente, segundo a definição que vimos seguindo. Não cremos poder haver qualquer dúvida que, quer no “Ocidente” quer nos países do antigo “Leste” comunista, o que sustenta em última instância o cumprimento da lei é mesmo a ameaça sempre actual da sanção, e, mais ainda, da pena, 65 VERGOTTINI, Giuseppe de – Diritto Costituzionale Comparato, vol. II, p. 12 ss. 66 Embora se admita algo de discurso legitimador délico-doce no argumento da simples coercibilidade – porque ela se faz actual e coactiva logo que haja incumprimento, ou até na mera ocorrência de presunção ou ameaça ou perigo... 98 PAULO FERREIRA DA CUNHA que pode privar o infractor dos seus maiores bens, ou, para alguns, diminuí-los – propriedade, liberdade, vida e honra são os alvos normais das sanções. No limite, a sanção é o maior dissuasor, para além de razões “morais” e ideológicas interiorizadas, como uma certa ideia de cidadania (mas a cidadania pode também levar ao incumprimento, ao uso do direito de resistência, à desobediência civil, etc.), de cumprimento do dever, etc. Em muitos casos, deriva esta submissão a toda a ordem de uma natural identificação da norma jurídica, independentemente do seu conteúdo, com a ideia de justiça, ou, ao menos, de justiça possível; e sempre se identificando essa norma e a necessidade do respectivo cumprimento com o valor da ordem e da segurança, e o evitamento do caos. Estadualidade Por tudo o que ficou dito resulta claro já que o agente, motor, garante, e quase o “alpha” e “oméga” desta engrenagem era e é o Estado, tanto num caso como noutro, tanto no “Ocidente” como no “Leste”. Obviamente que há outros centros normogenéticos. Mas ainda são os Estados os principais geradores de normas e os dotados de instâncias mais eficazes para as fazer aplicar. A União Europeia não tem um exército próprio que a livre de uma afronta à bandeira azul estrelada. A ONU apenas tem “capacetes azuis” multinacionais. Ambas estão longe das possibilidades da sua afirmação política por insuficiência militar. A pedra de toque é, em muitos casos, quem exerce o poder, e este, ao menos nas questões decisivas, ainda reside muito, como diria Mao Zedong, no “cano da espingarda”. Logo, a coacção, na sua versão mais extrema, a militar, é decisiva. Por outro lado, é certo que entes infra-estaduais operam, sobretudo em federações, em que há mesmo “estados” federados. Contudo, ainda que nestes casos se deva por vezes conceder um mutatis mutandis, a questão está sempre na natureza do ente juspúblico. Estados federados são ainda... Estados, para uns casos; noutros, dependem da união ou da federação, designadamente dos seus órgãos de soberania “centrais”, comuns... A excepção é apenas uma análise mais microscópica do mesmo problema que poderíamos claramente ter observado à vista desarmada. 99 SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO Um Direito realmente socialista? A falta de especificidade e autonomia do direito que se apresentava como socialista face ao direito burguês ou capitalista, descontados aspectos de pormenor e quase de cor local, coloca a família jurídica socialista num limbo pouco confortável: uma espécie de desinência historicamente localizada. E hoje, passado já suficiente tempo sobre as quedas dos muros e o desmantelamento do COMECON, é claro que tal família acaba por ser, para observadores mais desenvoltos e iconoclastas, apenas uma nota de rodapé, sem verdadeira actualidade. Alguns chegam mesmo a ignorá-la, o que parece, porém, injusto. Admite-se ainda que existiu, sem escavar, contudo, nos seus fundamentos específicos, que parecem agora bem frustes. Mas não mais parece existir... pelo menos enquanto “família”. Mesmo nos países de subsistência oficial do socialismo comunista, as opções pragmáticas empreendidas não só descaracterizaram muito a economia e produziram grandes mudanças sociais, como mudaram o direito. Esta mesma verificação realmente aponta para um “direito socialista” não como um direito realmente diverso, original, mas como um instrumento ideológico particularmente criativo ao serviço das realidades estaduais a que muitos (mesmo alguns actuais comunistas de vários matizes) consideram ora desvio, ora traição, ora embuste, ora erro67...: o Estado soviético e os Estados das Democracias populares seus satélites. Instrumento ideológico duplamente eficaz, porque acumulando a geral presunção de eticidade e justiça que o cidadão comum está disposto, a tributar à ordem instituída, salvo casos de incomportável tirania sobre si próprio exercida (não tanto a socialmente experimentada), e ainda concentrando os anelos de esperança associados à construção da cidade nova. E para além, como sabemos, do lado persuasivo menos simpático, a sombra omnipresente da coacção. Perante este balanço, que insensivelmente, no lugar mental do não-pensado, mas pressuposto, parece impor-se, sobretudo com a desmitização do direito “socialista” como um novum totalmente outro – dir-se-ia como novo 67 Apenas dois exemplos, aleatórios, de entre multidão. De “erros”, “recuos” e “desvios” falava já, v.g., MAGALHÃES GODINHO, Vitorino – A Democracia Socialista, um Mundo Novo, e um Novo Portugal, p. 19. Alude à retórica dos “erros”, “desvios”, “necessidades históricas”, um SOBRAL, José Manuel – Marxismo, Estado e Campos de Concentração, in “Abril. Revista de Reflexão Socialista”, Maio 1978, p. 23. 100 PAULO FERREIRA DA CUNHA ganz Andere – é patente que muito da sua apelatividade mítica (e utópica) se esboroa. E perguntamo-nos, assim, à falta de um farol jurídico que lance luz e esperança no movimento comunista geral (já não é fácil dizer, como outrora, “internacional”, dada a sua glocalização), esgotada a sedução de uma utopia jurídica que se pudesse mostrar e ensinar, se não restará a esta família socialista outra via. Cremos que sim. A menos que se passe a um “saudosismo”, mitificando a utopia do “socialismo real” histórico, depois da via Vichinsky, de novo se poderá trilhar a via Pachukanis. Já não a utopia de um direito exemplar, mas antes a quimera do futuro perecimento do Estado e da imprestabilidade superveniente dos juristas. Mas certamente, de momento, talvez o mais prudente seja nem sequer falar sobre o assunto, a não ser em sábios ensaios de hagiografia e erudição escriturística do movimento “socialista”... De qualquer modo, a interrogação pode colocar-se hoje por parte dos socialistas “impuros” e a-dogmáticos, dirigida aos seus camaradas preservadores da pureza e do dogma: onde está, para vós, o Direito? Que lições tirais do direito soviético e afins? Podemos e devemos fazer estas perguntas com sã curiosidade científica e com o maior fair play político. É que gostaríamos mesmo de saber... Socialismo Histórico É dificilmente contornável essa circunstância infeliz de o socialismo “puro” (contudo designação não auto-assumida pelos seus protagonistas), depois passado a “real”, ser hoje sobretudo um “socialismo histórico”. O renomado constitucionalista comparatista Giuseppe de Vergottini afirma as evidências quando diz que: “La forma di stato socialista permaneva in Cina, in altri stati asiatici e a Cuba. L’analisi della forma di stato socialista ha dunque, per moltri degli ordinamenti (...), un significato ormai storico”68. 68 VERGOTTINI, Giuseppe de – Diritto Costituzionale Comparato, vol. II, p. 3. 101 SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO Mas terá um significado sobretudo histórico todo o conjunto do “momento” jurídico comunista? E contar-se-á tal empreendimento entre as experiências sociais que, com alguns aspectos evidentemente positivos (que hoje se olvidam, se deformam e até se diabolizam – como os excelentes níveis de educação e saúde atingidos, em geral, nos países que as viveram69), entram contudo na coluna negra da História, a dos fracassos, com um déficit de liberdade enorme? Veja-se a marca idelével dos terrores estalinista ou maoísta, que certamente nenhum feito social (e muitos foram) consegue limpar de sangue, medo, ódio e vergonha. Ora, a menos que se venha a pretender uma complicada reabilitação do direito soviético (difícil de levar a efeito sem a reabilitação integral ou quase do Estado e da política da URSS: mas que é fácil e talvez cómodo fazer, no plano do mito e do marketing: sempre é um legado a invocar), parece que a opção que se depara aos comunistas será apenas ou a referida via quimérica (sempre é possível advogar a pureza de um direito futuro...), ou então um certo minimalismo em matérias jurídicas, evitando a questão de fundo, e lutando pontualmente por causas concretas na sociedade capitalista vigente, mas não elaborando uma teoria de conjunto sobre um Direito socialista. E valha a verdade o problema de um corpo jurídico de marca socialista não é, em si e por si, um slogan compensador. Importam, sim, popularmente, reivindicações pontuais. Nesta perspectiva minimalista, valha a verdade, sempre poderiam ser auxiliados por aquele dito segundo o qual, radicalmente não-utópico, o autor d’O Capital se manifestava contra escrever as ementas para as tasquinhas do futuro. Mas se há uma utopia de descrição rigorosa do comunismo, há também algo de utopia na decrição do fim do direito, por exemplo em Georges Sarotte: “À medida que nos encaminhamos para a sociedade comunista, a ordem alarga-se progressivamente e a coerção tende a desaparecer. Portanto, deixa de haver tribunais, polícia, prisões, agentes encarregados das execuções, deixa de haver processos, mesmo de indemnização, pois os prejuízos eventuais que resultem de erros cometidos (...) poderão ser reparados de comum acordo (...)”70. E o texto continua neste estilo... 69 Veja-se a formação que, em geral, possuem os imigrantes de países da Europa de Leste, em Portugal, e os casos ainda recentes de “turismo oftalmológico” a Cuba de concidadãos nossos. 70 SAROTTE, Georges — O Materialismo Histórico no Estudo do Direito, p. 184. 102 PAULO FERREIRA DA CUNHA Em busca de alimento ideológico Entretanto, o tempo actual é o da grande oportunidade de, sempre sem complexos e sem dogmas, os socialistas democráticos, que nas últimas décadas (e quiçá desde sempre) tiveram um certo déficit de reflexão e de formação nas suas próprias fontes (ficando-se por demais pela arte do possível embebida em boas intenções de base, e protagonizada a partir de intuições, navegações de cabotagem e análise política do concreto) passarem ao trabalho de fundo e de longo alcance da teoria e da ideologia. Sob pena de uma outra ideologia avançar sobre si e substituir as suas origens e imagem de marca71. Os socialistas não devem ter medo da ideologia. Sabemos, com Mário Soares, que “o povo não come ideologia”, mas também sabemos que tal significa sobretudo prevenção contra os meros professeurs rouge, que diletantemente especulam sem acção, e sem acção que implica algum pragmatismo (sem sacrifício, porém, do essencial)72. E a prova é que Mário Soares, em tempo anti-ideológicos como o presente (ou melhor: o passado recente, porque a ideologia vem aí de novo), se tem batido por fidelidade a princípios, que são, evidentemente, ideológicos. Bem observou Sottomayor Cardia que o socialismo, mais que um sistema económico, é um conjunto de valores73. Ora esses valores são a seiva da ideologia (e dela já fazem parte indissociável). Ora neste trabalho de reflexão ideológica e teórica podem os socialistas “impuros”, democráticos, contar com muito mais abundantes e significativos dados da História. E desde logo a “aventura” do “Direito soviético”, que não devem contudo identificar com “direito socialista” proprio sensu, sob pena de abdicação do próprio nome. É interessante verificar que esta é também uma oportunidade de os socialistas encontrarem (de algum modo reencontrarem e reinventarem) a sua 71 Será o caso do livro de VALLS, Manuel (entretiens avec Claude Askolovitch) — Pour finir avec le vieux socialisme... et être enfin de gauche, Paris, Laffont, 2008, que é estranho desde o título, o qual parece encerrar uma contradição nos próprios termos? 72 Viveu-se em Portugal a seguir à revolução do 25 de Abril uma espécie de bombardeamento ideológico (nem sempre de qualidade, aliás: mais de oposição de vulgatas), em que o pano de fundo não-ideológico (ou de ideologia não explícita, essa zona em que a alienação dá tranquilidade aos espiritos comuns, dirão alguns) parecia não ter espaço. O que terá levado Mário Soares a afirmar, então com redobrada razão, que “o povo não come ideologia”. A vacina (que obviamente o não pretendia ser) foi eficaz, e hoje foge-se excessivamente da ideologia explícita. Porque, evidentemente, a ideologia é uma presença inafastável. 73 SOTTOMAYOR CARDIA, Mário — Nota Biográfica – Cardia, Mário Sottomayor, in “Finisterra. Revista de Reflexão e Crítica”, n.os 55-57, p. 116. 103 SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO identidade ideológica, que, em alguns casos, sempre sofreu, simultânea ou alternadamente, as cruzadas atracções de um reformismo ou conformismo de socialismo nominal — “(...) aqueles para quem a mesma sigla traduz uma prática reformista sem princípios, voluntariamente ambígua em todos os planos, desde o económico ao das relações exteriores (...)”74—, por um lado, e de um “proto-comunismo” ou um “já-não-marxismo-leninismo”, proto-ideologia suave, demofílica e defensora da liberdade75. Porém, sínteses vigorosas e criativas foram sendo empreendidas, e não deve chocar ninguém um tertium genus entre uma sigla de “pequeno-burgueses” bem intencionados mas por vezes acomodados e claudicantes, e um grupo de “colectivistas” moderados e completamente convertidos ao jogo democrático, parlamentar e pluralista. O socialismo dos socialistas é mais que a evolução natural do republicanismo e do radicalismo em confluência ou contraste com as dissidências democráticas do marxismo-leninismo ou com os primeiros revisionismos social-democratas (propriamente ditos). Aliás, nele foram desaguando, como se sabe, várias correntes. E o próprio caminho conjunto, nos partidos socialistas democráticos e afins (trabalhistas, por exemplo), de pessoas com mundividências filosóficas muito diversas (ao contrário do monolitismo da ideologia total comunista) formou um todo novo, que ainda está por estudar na sua criadora e criativa originalidade. Certo é que os partidos socialistas não são meros aglomerados de tendências que guardassem ciosamente os legados de entrada e menos ainda as respectivas “formações” de base. Mas, sem prejuízo de memórias e radicações, os partidos socialistas impuros e mesclados de muitas origens são antes de mais cadinhos de forças e contributos de que resulta um conjunto rico, unido e ainda plural, mas de uma pluralidade especial76. Ora a especificidade dos socialistas, com ou sem partido77, é precisamente posta em relevo nesta questão. 74 LOURENÇO, Eduardo — “O Socialismo à Sombra de Hamlet”, in O Fascismo nunca Existiu, Lisboa, Dom Quixote, 1976, pp. 202-203. 75 PUY, Francisco — La Socialdemocracia y su Parentela Ideológica, “Anuario de Filosofia del Derecho”, Nova época, tomo X, Madrid, 1993, considera, com propriedade, a existência de quatro tipos de socialismo: tecnocrata, comunista, social democrata e trabalhista, considerando estas duas últimas “ideologias discretas” (p. 84). 76 Sobre a questão, nos inícios do PS português, cf. SOARES, Mário – Democratização e Descolonização, Lisboa, Dom Quixote, 1975, p. 183 ss. 77 Porque, não esqueçamos, também há socialistas – e por maioria de razão socialistas a-dogmáticos -, por vezes de grande qualidade intelectual e ética, que nunca pertenceram ou já não pertencem a partidos. 104 PAULO FERREIRA DA CUNHA Direito socialista e totalitarismo Evidencia o problema do Direito socialista a vontade da família ortodoxa de, pela utopia ou pela quimera, ter um direito próprio, diferente, ainda que tal seja uma mera “administração de coisas”, segundo Engels, e, assim, se pretender como “já não Direito” – simétrico do “ainda não direito” (ou pré-direito) de pendor antropológico-jurídico78. Da proto-história jurídica se passaria à trans- ou ultra-história jurídica. É a perspectiva totalitária que etimologicamente, desde logo, exprime a ideia de alargamento das suas vistas e da sua intervenção a todas as realidades humanas. Recordemos que o marxismo-leninismo se pretendeu ciência, filosofia, (teoria) estética, ética, moral, etc... O que estaria fora do seu manto? Pelo contrário, para os socialistas proprio sensu, heterodoxos que são, não pode mesmo haver direito socialista (como não pode haver “reino da liberdade”), senão com o sentido (sempre incomodativamente impróprio para eles79), que é o de uma família, grupo ou desinência jurídica em estados que perfilham a ideologia marxista-leninista. Nem decerto poderia vir a haver direito socialista (em sentido próprio) com o perecimento quimérico da arte de atribuir a cada um o que é seu, possuída de uma constante e perpétua sede de Justiça80 . Nem ainda como corpo autónomo de juridicidade (não diríamos sequer com específicas regras “socialistas”) a implantar numa formação social concreta x ou y. Significa isto, em relação à primeira negação, que os socialistas devem renunciar à construção de uma sociedade sem classes, ao fim da exploração, e que se deveriam resignar, no máximo dos máximos, a um reformismo mais ou menos “meliorista”? 78 Cf. ROULAND, Norbert – Anthropologie Juridique, Paris, P.U.F., 1988. 79 Eco dessa incomodidade face a usos linguísticos que não acautelam a especificidade dos socialistas democráticos é esta passagem de SOARES, Mário – Portugal: quelle révolution, trad. port. de Isabel Soares, Portugal: Que Revolução?, Diálogo com Dominique Pouchin, Lisboa, Perspectivas & Realidades, 1976, p. 87: “(...) a imprensa anglo-saxónica, para se diferenciar da terminologia comunista, que monopolizou a palavra ‘socialista’, tem o mau hábito de rotular de social–democrata todo o homem de esquerda não comunista. Foi, portanto, preciso explicar várias vezes o que nós somos verdadeiramente: não sociais-democratas, empenhados – como se diz – em gerir lealmente o capitalismo, mas sim partidários de um socialismo democrático.”. Vale a pena ler todo o texto e os matizes aí estabelecidos. Confluentemente, afirmava MOTCHANE, Didier – Clefs pour le socialisme, Paris, Seghers, 1973, trad. port. de Fernando Felgueiras, Que é o Socialismo ?, Lisboa, Dom Quixote, 1975, p. 11: “O socialismo é uma das palavras mais prostituídas do mundo. Votada, como as do amor, aos usos mais estranhos, encontramo-las hoje em todas as bocas”. 80 “Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi” - ULPIANUS – lib. 1 Regularum = D. 1, 1, 1, pr.. 105 SOCIALISMO, DIREITO E ESTADO A resposta não pode deixar de ser negativa. Muito pelo contrário, cremos que a superação social que os socialistas devem ter em mente deverá até ser mais radical que o simples (mas já tão difícil) ultrapassar das contradições económicas. Os socialistas devem lutar pelo advento de uma sociedade não mais baseada no meramente material e portanto a sua definição de “cidade ideal” socialista apenas na perspectiva da propriedade e da sua re-distribuição mais ou menos igualitária ou equitativa, significa ainda pouco, sendo um objectivo afinal “recuado”. É que sempre a simples lógica do teu e do meu (curiosamente para alguns autores determinante da própria necessidade do Direito e do seu nascimento81) limitará os horizontes de quem assim pensa. É certo que o Direito tem como objectivo lidar com problemas do dar o seu a seu dono, o célebre suum cuique. Mas não deve ser interpretado estritamente como mero distribuidor de coisas materiais e polícia dos furtos dos pobres aos opulentos. Há uma dimensão ética e de justiça na juridicidade (designadamente no corpus filosófico que a acompanha e no corpus sociológico que a vigia) muito mais virtualidades. Não esqueçamos, desde logo, os vectores libertadores que acompanham o Direito, mesmo em tempos capitalistas, desde o Direito Natural (revolucionário, não o direito natural como álibi de conservadorismos e preconceitos) aos Direitos do Homem82. E a promessa do Estado de direito democrático também se enquadra dentro desse activo. Mesmo que se trate de uma forma de discurso legitimador, em alguns casos, sem uma tal barreira os atropelos ainda seriam maiores (como lucidamente advertiu Warat). Pode ser mais um dos mitos benfazejos que povoam o imaginário político-constitucional. Seria contudo muito importante que saltasse do imaginário para a realidade vivida. 81 Cf. o nosso Droit Pénal, Droit de Mort, “Revue Internationale de Philosophie Pénale et de Criminologie de l’Acte”, n.º 3-4, Paris, 1992-1993, recolhido nos nossos livros Le Droit et les Sens, Paris, L’Archer, dif. P.U.F., 2000, p. 47 e Arqueologias Jurídicas. Ensaios juridico-humanísticos e jurídico-políticos, Porto, Lello, 1996. 82 RESENDE DE BARROS, Sérgio — Contribuição Dialética para o Constitucionalismo, Campinas, Millennium, 2008, p. 67. Discutindo o problema, BONAVIDES, Paulo — Teoria do Estado, p. 129 ss. No plano tópico, PUY, Francisco — Tópica Jurídica. Tópica de Expressiones, México, Porrúa, 2006, p. 107 ss. 106 Portugal, Socialismo Ético e Uma História do Futuro do Partido Socialista1 Carlos Leone Resumo Este artigo expõe de forma sumária a visão de Eduardo Lourenço da sociedade portuguesa, na sequência de uma tradição de reflexão iniciada há mais de um século (1), criticando de seguida o mais recente trabalho, especificamente político, de Lourenço, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História (2); por último, em diálogo com as premissas da análise do Socialismo em Portugal desenvolvida por Eduardo Lourenço, ensaia-se uma História do Futuro do Partido Socialista (3). Este percurso, articulando passado, presente e futuro, apenas compromete o seu autor, em particular na terceira secção, que em nada pode ser imputada aos textos de Lourenço. Palavras chave: corporativismo; dualidade; Esquerda; Portugal; Socialismo. 1. Portugal: destroços e dualidade «Na verdade, o único paradigma que dá sentido nosso presente é ainda – e talvez mais do que nunca – o do passado.» Eduardo Lourenço, 20002 Desde a estreia literária de Eduardo Lourenço de Faria, em 1949 (Heterodoxia), passaram já 60 anos. É por isso particularmente adequado a um tal aniversário, que não foi objecto de celebração particular, a publicação deste volume político, como nenhum outro desde há justamente 30 anos (O Complexo de Marx, na D. Quixote, data de 1979). Eduardo Lourenço é, desde há mais de um quarto de século, o ensaísta laureado da democracia de Abril: a primeira celebração 1 O autor deseja agradecer a Miguel Real e Ana Rita Ferreira a leitura e as sugestões da versão inicial deste texto. Quaisquer erros permanecem responsabilidade do autor. 2 Do Prefácio à segunda edição de A Europa Desencantada (Lourenço 2000: 12). 107 PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO DO PARTIDO SOCIALISTA ocorreu por altura do seu sexagésimo aniversário, corria o ano de 1984, a mais recente em 2008, em congresso sobre a sua Obra, com actas no nº 170 da revista da Fundação Gulbenkian, Colóquio Letras. Este novo livro de ensaios políticos dá boa conta das razões do seu excepcional estatuto intelectual. Desde 1949 que Eduardo Lourenço pensa Portugal como Europa, tanto naquilo que não somos (o diálogo que nos falta) como naquilo que fomos (maxime na Expansão) e no que dificilmente temos conseguido ser. A relação entre Portugal e Europa permite a Lourenço cruzar diversos planos de comentário: social, em sentido lato; cultural, quase sempre literário; político, normalmente em clave ideológica; histórico, ao menos enquanto revisão da historiografia portuguesa nas suas ambições a reflexo da consciência nacional. Desde sempre isso o destacou, mais pela sua capacidade do que pela originalidade da abordagem (o ensaio tem tradições em Portugal, e Lourenço teve entre seus mestres Sílvio Lima, o autor de Ensaio sobre a Essência do Ensaio); nas últimas décadas, sobretudo desde a de 1980, isso também o afastou do convívio das ciências sociais, cuja especialização crescente prossegue numa lógica contrária à «imagologia» de Lourenço e relativamente à qual já se procedeu a amargas trocas de acusação de ambas as partes. Em nenhum campo mais do que no da política essa dissensão é mais sensivelmente percebida3. Tanto analítica como emocionalmente, o ethos de Eduardo Lourenço não se se confunde com a produção de opinião circunstancial comum na comunicação social ou com a especialização em áreas de trabalho cada vez mais exíguas hoje comum nas ciências sociais. Ao contrário do que possa parecer, Eduardo Lourenço não pensa a política apenas a espaços. Pelo contrário, e bem na linha do melhor ensaísmo português, pensa-a em relação com a cultura. Assim com o Carlos de Oliveira de Aprendiz de Feiticeiro, assim com o António Osório de Mitologia Fadista, assim com o Adolfo Casais Monteiro do País do Absurdo, e, claro está, assim como sucede também numa das obras maiores e mais abertamente políticas de Lourenço (O Fascismo Nunca Existiu, D. Quixote, 1976). Ora, os ensaios políticos que Lourenço publica em 2009 mantêm um diálogo com a cultura portuguesa na sua dimensão política, diálogo que não passa tanto pela interpelação de outros autores (há já muito que a Obra de Lourenço acusa uma certa insularidade) 3 Logo em 1984, no número especial que a revista da INCM, Prelo (2ª série), lhe dedicou (cf. Bibliografia), a crítica ao perfil «literato» e insuficientemente científico da sua análise política era já comum. Cf. para a primeira questão a entrevista realizada por Diogo Pires Aurélio e, sobre a segunda, a colaboração de Joaquim Aguiar nesse número. 108 CARLOS LEONE como pela relação entre as suas próprias obras. Assim, nestes ensaios políticos deparamo-nos sem surpresa com o prolongamento de ensaios anteriormente publicados em Destroços (Gradiva, 2004). Esta relação com a cultura portuguesa contemporânea merece nota particular por constituir uma chave de acesso ao pensamento de Lourenço e, nesse mesmo passo, contribuir para desfazer a dissociação demasiado comum entre o estudo da cultura portuguesa e as ciências sociais (políticas, na circunstância), como se a realidade portuguesa estivesse forçosamente sujeita a uma qualquer cláusula de excepção cultural que a menoriza ou, pelo menos, isola. Ao contrário do que por vezes pretendem cientistas sociais críticos do pensamento de Lourenço, o comparatismo não lhe é estranho. Sucede apenas que tem tanto de histórico e cultural quanto de espacial e institucional. Em Destroços encontra o leitor três tipos de polémicas: virtual, como lhes chama o próprio Eduardo Lourenço, na primeira parte do volume, onde o «interlocutor» é António José Saraiva; real, numa segunda parte, em torno da interpretação na cultura portuguesa da relação entre Portugal e o estrangeiro; e equívoca, num último momento em que uma troca de argumentos com Rui Knopfly se revela necessariamente inconclusiva por força de um desacerto quanto ao que está em causa para cada um dos contendores. Para situar a reflexão política de Lourenço interessa-nos somente o segundo momento. Mais do que as outras duas secções, desde logo pela sua formulação explícita, é nessa discussão sobre a relação entre Portugal e os «outros» que Eduardo Lourenço retoma um tema que acompanha o seu ensaísmo desde o início, a saber, a percepção que fazemos do «outro» na relação que esta mantém, no seu condicionamento, pela percepção que (não) fazemos de nós. Destroços é assim, até ao momento, o mais recente retorno do autor ao tema do nosso diálogo cultural claudicante com a Europa, já por si denunciado desde 1949. Por pouco conforme que seja aos cânones da politologia actual (e cumpriria avaliar a realidade desses cânones, de todo o modo), o diálogo de Lourenço com Régio, com o meio literário português (antes do 25 de Abril de 1974) e mesmo com os patronos da cultura científica portuguesa actual merece ser lido como estruturante de uma visão política de Portugal. Designa-se aqui por visão política a discussão que Eduardo Lourenço faz do que designa (Lourenço 2004: 97) «hipernacionalismo cultural, integrismo militante» (cabe aqui observar que «integrismo» talvez seja lapso – de autor 109 PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO DO PARTIDO SOCIALISTA ou editora? - de «integralismo», mas ainda que assim seja nem por isso perde sentido e pertinência). É explicitamente afirmado por Eduardo Lourenço o carácter situado da queixa portuguesa pela falta de reconhecimento estrangeiro da nossa cultura, situado, entenda-se, na «genérica mentalidade do português cultivado» (Lourenço 2004: 106). Esta observação, feita aliás do ponto de vista em que essa falta de reconhecimento é mesmo palpável, a saber, o exílio («um duplo exílio», idem), é o complexo de que a cultura deve libertar-se, segundo Lourenço (cf. p 107). Todo o drama está, contudo, em o olhar estrangeiro ferir por revelar cruamente uma realidade velada da vida interna de Portugal, que Eduardo Lourenço refere em termos muito próximos da «não inscrição» celebrizada também em 2004 por José Gil4, ou seja, o silêncio do exterior sobre a cultura portuguesa reflecte e amplia os silêncios internos, de longe maiores e mais intricados que os impostos pela comissão de censura do Estado Novo (cf. p. 110). A expressão mais cortante desta dificuldade ocorre pouco depois (pp. 113/4): «esta dificuldade tornou-se como que invisível a nossos próprios olhos pela simples razão de que coincide com a nossa própria realidade cultural excessivamente alienada na sua raiz pela fascinação estrangeira e incapaz de abdicar dela ou de entreter com ela relações normais.» (p. 114). Palavras avisadas, até hoje, quando o internacional é assimilado ao estrangeiro mesmo em sede científica e a fascinação se institucionalizou e ganhou foros linguísticos. Mas a inversão dos velhos tropos diádicos «estrangeirismo/nacionalismo» requer actividade, uma acção colectiva verdadeiramente nacional: «converter o seu estatuto cultural, fundamentalmente passivo, em vida própria.» (p. 118). E, um pouco depois: «O combate da nossa cultura consigo mesma – no qual a referência ao «estrangeiro» está naturalmente implícita – é o nosso verdadeiro combate.» (idem). Para quem tome estas palavras como referências meramente históricas, excessivamente genéricas no seu alcance actual, valerá a pena citar um pouco mais extensamente para melhor se precisar a perspectiva de Eduardo Lourenço: É fácil para a cultura portuguesa «estar presente», no estrangeiro, sob formas de puro humanismo retrospectivo ou folclorizante. Mas a Questão –a 4 Referimo-nos, claro está a Portugal, Hoje: o medo de existir (Lisboa, Relógio d’Água), publicado por José Gil em 2004 e com grande acolhimento junto do público. Contudo, também na Obra de Gil a questão não era nova, cf. a crítica a esse ensaio por Carlos Leone in Cultura nº 21, ed. CHC/UNL, 2005. 110 CARLOS LEONE única que tem real interesse – é a da sua presença contemporânea. Ora esta não depende de habilidades nem de programações admiravelmente científicas ou de mecenatos compreensivos e generosos, mas do conteúdo. Habilidade, diligência, programação e mecenato são indispensáveis e que há a fazer na matéria é quase tudo. Mas é inútil querer «vender» no estrangeiro cópias dos originais que ele possui ou relíquias de um «tempo» cultural abolido. A verdadeira dificuldade é a de sermos – em Portugal, contemporâneos de nós mesmos e essa dificuldade não cabe ao simples indivíduo resolvê-la. É o nosso problema histórico.» (Lourenço 2004: 130/131) Linhas originalmente escritas em 1972, elas reenviam de imediato (cf. p. 132) para um tema capital da reflexão contemporânea sobre Portugal, o da sociedade dual(ista). Esta imagem da cultura portuguesa como verdadeira condicionante da política portuguesa é, também ela, ideia maior da reflexão ensaística (e, entretanto, sociológica) sobre a estrutura social de Portugal: deixando de parte Antero, ainda no mundo de Oitocentos, a referência é António Sérgio, claro; mas também críticos de Sérgio como Lourenço, cientistas sociais inspirados por Sérgio (Hermínio Martins), ou não marcados por essa influência (Adérito Sedas Nunes) e, mesmo, investigadores sociais mais novos como Renato Miguel do Carmo («Portugal, sociedade dualista em questão: dinâmicas territoriais e desigualdades sociais» in Villaverde Cabral, M. et alli, orgs., 2008, Itinerários – a Investigação nos 25 anos do ICS, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pp. 373-395). Ora, o tema da «sociedade dual» dependia de uma condição de possibilidade: o isolamento de Portugal, enquanto realidade política autónoma, face à Europa ocidental. Tal condição está hoje seriamente comprometida, depois de vinte anos de integração na actual União Europeia. É por isso que a obsessão de comparar o «cá dentro» ao «lá fora» chega hoje ao fim, também ela se torna sem sentido quando a insularidade portuguesa se desfaz. A tese de Eduardo Lourenço (cf. p. 162), de que tal oposição redunda em nada e apenas encobre um conteúdo identitário (interno), situação duradoura desde a fundação de Portugal (cf. p. 164), implica o reconhecimento do carácter problemático que a Modernidade representa para Portugal. Não apenas a problematicidade inerente aos processo sociais que a definem mas, mais concretamente, 111 PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO DO PARTIDO SOCIALISTA a repercussão que gera na estrutura social dual de Portugal e na identidade cultural ilusória que Lourenço exuma. A dúvida, e com ela a tolerância, como marcadores da modernidade, e a cientificidade, bem como a democracia, enquanto suas construções sociais auto-conscientes são estranhas à cultura de apego à certeza de feição religiosa portuguesa5. O significado político deste processo não consta de Destroços, mas aí encontramo-lo já identificado: a cultura portuguesa, sobretudo literária ainda que também juridíco-teológica, não conheceu uma generalização do ethos científico, da sua neutralidade e do seu habitus técnico, sofrendo agora a Modernidade como «uma ameaça, senão um império do mal» (p. 172). Ora, o final da sociedade dual, a obsolescência de oposições castiços/estrangeirado, a adesão entusiasta às (nano)tecnologias, não resolvem em nada (até obscurecem) o problema político que esta cultura enfrenta. A modernidade, assim, é coroa de espinhos da política portuguesa actual, quer os seus agentes se apercebam disso quer não. Mas perceber isso, segundo Eduardo Lourenço (e como o contrariar?), é saber que a política, e em particular a utopia de boa consciência que a Esquerda é, se encontram numa encruzilhada. 2. O socialismo ético «Quero dizer, penso, sobretudo, que é possível rectificar seriamente a actual imagem que a Direita modernista conseguiu, com algum sucesso, dar da Esquerda e do Socialismo como soluções feridas de morte pelo seu arcaísmo.» Eduardo Lourenço, 1986 (Lourenço 2009: 44) A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História? volve a reflexão cultural sobre a sociedade portuguesa em análise política, verbalizando o diálogo de que carecemos. Disso mesmo não restam dúvidas a quem lê o reconhecimento de «mais uns dos meus fantasmas de «estrangeirado» à força» (Lourenço 2009: 18) ou a reflexão serena sobre a particular tragédia lusíada (os «nossos», itálico do original) com a não-democracia (em particular pp. 76/7). Pois bem, se a tese do primado do social é dominante na Obra de Lourenço, o que traz de novo este livro de ensaios sobre as questões propriamente políticas? 5 A este respeito, a obra capital de Eduardo Lourenço permanece O Labirinto da Saudade. 112 CARLOS LEONE Desde logo, uma evocação sintomática do Socialismo real nacional. Sintomática por destacar Eduardo Lourenço como autor no contexto marcado hoje pelas ciências sociais e seu eterno presente (o que se aplica cada vez mais mesmo à nossa História) e, ao fazê-lo, revelar os próprios sentimentos de Lourenço face às figuras desse Socialismo, de Antero a Sérgio. A tese que apresenta, a da natureza moral do Socialismo em Portugal, que aproxima este socialismo do imaginário católico (curiosamente, mesmo quando fala de laicidade, como na p. 131, nunca discorre sobre a Maçonaria), introduz assim uma perspectiva conceptual e histórica sobre a tradição intelectual mais longa e fecunda da Esquerda portuguesa, hoje corporizada no Partido Socialista, enquanto, em simultâneo, situa Eduardo Lourenço nessa mesma tradição. A Esquerda «de» Lourenço é a que se encontra numa encruzilhada e suspeita estar fora da História (estar já? Ou ainda? Em todo o caso, a «História» é o seu horizonte de sentido, mas também ele se afigura problemático). A genealogia que lhe é traçada nos primeiros ensaios deste volume é no essencial a que já nomeámos: Oliveira Martins, mas sobretudo Antero e Sérgio, até nós. O que, além da ambiguidade do «nós», tem consequências: «Foi sempre sob um modo moralista – e de uma moral exigentemente cristã – que a nossa versão do Socialismo se apresentou. Decerto, porque a nossa cultura, a nossa tradição, a nossa sensibilidade colectiva de então, em suma, toda a nossa mitologia cultural não comportava outro discurso senão o muito moderado – e mesmo assim, paradoxalmente audaz – que foi no plano da crítica social concreta o nosso.» (p. 22). Esta moralidade tem consequências previstas e imprevistas, mas sobretudo tem consequências por explorar: quanto daquilo que Eduardo Lourenço escreve (cf. pp. 36/7) a respeito de a Esquerda (internacionalmente) se idealizar como inocente e transparente face a uma Direita discriminatória, mesmo violenta da Direita, não se aplica justamente a Portugal no seu período de propositado isolamento face ao século XX e ao mundo posterior a 1945? Claro que muita da análise está já remetida à História, o Socialismo (ou pelo menos os partidos socialistas europeus) conheceram muitas evoluções desde 1986, data do texto que aqui citamos (e que elegemos para epígrafe). Não obstante, na actual conjuntura de lamentação generalizada pela escassez dos grandes líderes europeus de outrora, é sensato reler Lourenço (cf. p. 47) e, contra a fantasia de homens providenciais, perceber o carácter cultural (não natural) da 113 PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO DO PARTIDO SOCIALISTA Esquerda, pelo menos enquanto a Direita continuar a ser tida como a «ordem natural» (espontânea, dizem os turiferários do mercado, sem sequer atenderem à lógica própria de um mercado…). Nesta ordem de ideias, a Esquerda é necessariamente autoquestionamento e a Direita uma realidade inegável mas uma e outra vez carente de justificação racional (cf. p. 49). O que significa (algo kantianamente) a afirmação da Esquerda como espaço político de «esperança histórica» (p. 50), a reivindicação de uma Esquerda democrática que não conhece inimigos. Sucede que, faltando o diálogo entre essa Esquerda e as «outras» (já para não falar das dificuldades em cultivar um diálogo interno a cada Esquerda), Lourenço compensa esse défice com a recuperação de textos seus já com mais de duas décadas, evidenciando sem desnecessário alarde as consequências políticas das encruzilhadas históricas em que a Esquerda parece acomodada a se reencontrar. Leia-se a este respeito as palavras límpidas e directas como poucas outras sobre as Esquerdas e a Direita em Portugal (a pp. 54/5 e 56/7) e medite-se sobre a pertinência da sua inclusão neste volume em 2009, surgido pouco antes das eleições legislativas. De certo modo, mesmo essas análises mais próximas das realidades da política partidária integram a reflexão mais ampla sobre o carácter duplamente excepcional da vida democrática: excepcional pela sua fragilidade; duplamente excepcional pela inaptidão que a cultura de intolerância nacional revela para o exercício das virtudes democráticas. E, por maioria de razão, para o desenvolvimento do socialismo em democracia. No caso português, como Lourenço insiste nestas páginas, essa dificuldade não é sentida à Direita, rapidamente reconvertida do Antigo Regime ao parlamentarismo, reconversão mais económico-social do que político-ideológica (p. 58). Sentimo-lo, sim, e com acuidade maior se atendermos a que somos interpelados por texto(s) com mais de duas décadas, no Partido Socialista. O único, desde pelo menos 1986, «com possibilidades efectivas de reconversão, recentragem e aglutinação dinâmica da esquerda portuguesa democrática, o «eterno» Partido Socialista. Mas seria uma ingenuidade imperdoável imaginar que essa oportunidade histórica fosse interiorizada por esse partido anarco-sentimental, internamente feudalizado em torno de pessoas, mais que de princípios, como imperativo da sua acção e do seu destino. (…) A questão, sendo de pessoa, desta vez não é apenas de pessoas, nem de um partido que, pela aceitação popular que 114 CARLOS LEONE continua a suscitar, é o partido-chave do Socialismo democrático em Portugal. Ou, para sermos mais realistas, da democracia de vocação social que se resume hoje, no mundo social, o que há de positivo e plausível na herança dos vários socialismos que o século XIX nos legou.» (pp. 59/60). Pois bem, aquele «hoje» enfatizado pelo próprio Eduardo Lourenço parece ter adquirido matizes de eterno presente, cujas «vacas magríssimas» (p. 94) recomendam ao socialismo uma revisitação da sua ideologia e, mais ainda, da sua prática (idem). Não é preciso aderir à identificação de uma essência do socialismo como antipoder e como crítica de combate ao capitalismo (de resto, afirmada por Lourenço nestes termos apenas a pp. 95/6), como se de uma utopia resignada se tratasse, para percebermos bem como este socialismo ético é uma reflexão política, ainda que não ideológica. Ele é definido pela prática, mais do que pela doutrina, e aferido pelas realizações, não por critérios mutáveis consoante as circunstâncias de ocasião e os jogos malabares dos seus oficiantes. Com efeito, se bem lemos Eduardo Lourenço, o caso português (o do socialismo em Portugal e o da democracia depois de 1974), ilustra as consequências políticas de uma cultura não-moderna, renitente ao individualismo (de novo Sérgio ecoa) e, por isso mesmo, débil também na reflexão socialista quanto ao modo de criar uma sociedade solidária que impeça a conversão do individualismo numa ditadura da massa e do indivíduo no sujeito isolado, joguete das peripécias da Fortuna (cf. pp. 102-108). Longe de aderir ao discurso sobre o fim da política, vendo as sociedades democráticas como hiperpolitizadas num processo de identificação do poder com o poder político e deste com os partidos (cf. pp. 113-6), Eduardo Lourenço revela aos mais desatentos a acuidade política da sua análise ao lembrar como a redução do liberalismo ao plano económico o converte na sua própria «contrafacção», «pseudo-ideológica e pseudo-política» (p. 117), sem, com isso, se iludir quanto ao significado do triunfo generalizado de tal pseudo-liberalismo: «Devemos aprender a viver – social mas também politicamente – num mundo que, seriamente falando, deixou, em todos os domínios, de crer na transcendência da Lei.» (p. 118). O fim do império da Lei, longe de excitar o ensaísta de ascendência existencialista que Lourenço também é (ainda hoje, sim), fica assinalado sem rodeios nem paliativos como o nosso problema político. Não mais o reconhecimento ambicionado no passado mas sim a integração num sistema mundial com tanto de político como de económico no qual a construção de um futuro comum se 115 PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO DO PARTIDO SOCIALISTA encontra minada por essa hipertrofia da modernidade, sua efectiva subversão, que é o assalto ao primado da Lei6. A nostalgia não oferece solução para isto, muito menos num país nãomoderno onde muitos prezam a Idade Média «mas com frigorífico à mão e antena parabólica» (p. 122). Já em 1995, o diagnóstico era certeiro: «feudalização objectiva da esfera pública do poder em Portugal.» (p. 123). Não sendo exclusivo nacional, no caso português verificou-se uma fragmentação do poder, «distribuindo-se por uma pluralidade de lobbies, que vão desde os tradicionais grupos de pressão económico-financeiros até ao papel desempenhado pelos magnatas dos grandes clubes.» (idem). Inventário demasiado sucinto e mesmo longe do exigível das forças em confronto? De facto, mas ainda assim uma observação lúcida de fenómenos nacionais que ultrapassam a política em sentido estrito e que exigem cuidados às comparações frequentes nas ciências sociais: «essas forças, em Portugal – e em geral em países da mesma extensão ou tradições na Europa – não lutavam apenas, ou não lutam, para defender e ocupar o seu lugar no espaço transnacional da economia. Entre nós, eram motivadas por uma vontade de recuperação simbólica de antigas situações hegemónicas, em certo momento ameaçadas.» (p. 124). E, na perspectiva de um socialismo democrático, tal ameaça nem sequer terá sido a desejável, não só política como ética e legalmente… Ora, para este problemas, não encontramos resposta cabal nos ensaios de Eduardo Lourenço. Nos últimos textos que aqui reúne (e pena é que vários outros publicados de forma ocasional no último lustro, pelo menos, não se encontrem aqui também), Eduardo Lourenço ora se aproxima de temas caros à «verdadeira Esquerda» que critica o socialismo que é o seu (cf. pp. 133-148, tópicos do imperialismo americano), ora se demarca de alguns lugares comuns sobre o diálogo de civilizações (pp.153-6), exprimindo sempre uma voz pessoal e (para variar este termo aplica-se) inconfundível. Mas a resistência aporética (termo nosso) da política a soluções não é visada por um analista demasiado avisado como Lourenço, que sempre prefere definir-se em função do socialismo: «O Socialismo ou é ética social em acto ou não é nada. Estou certo de 6 E, com a legalidade, a racionalidade. A relação entre ambas, sua História e seu declínio, é apenas brevemente aludida por Eduardo Lourenço mas, sintomaticamente, é assim que encerra este volume de ensaios políticos (cf. pp. 164-7). 116 CARLOS LEONE pouca coisa, mas não duvido de que o futuro para o Socialismo ou se alimenta dessa convicção – e das consequências que dela relevam – ou se converterá numa legenda sem leitura e sem leitores.» (p. 18) E, nisto como em tudo, o seu gosto pelo enigma e pela tragédia fazem todo o sentido. Para quem o souber (e quiser) ainda ler, retenha-se ainda o que escreve a propósito das descrições comuns de tal concepção de socialismo e de política como «utópica»: «De certa prática «socialista» e ainda mais de históricas encarnações do Socialismo é possível pensar-se, com alguma dose de má-fé, que essas descrições correspondem à verdade. Mas o Socialismo não é uma religião nem, a bem dizer, uma filosofia ou uma visão do mundo. É apenas a tentativa de encarnar, na medida do possível, o máximo de liberdade, de justiça e equidade na ordem económica e social no mundo que habitamos. Desta exigência ninguém é sujeito. Ou somo-lo todos, pois essa ideia emerge da aventura milenária dos homens, é-lhe coessencial e prosseguirá com ela.» (p. 69). Não andamos muito longe de algumas posições recentemente defendidas por Joaquim Jorge Veiguinha em números anteriores da Finisterra, também já comentadas nesta revista (cf. nº 65-66, pp. 217/8). Onde Veiguinha fala de «liberdade inclusiva», em clave polémica, Lourenço opta por um registo mais edificante e menos próximo da discussão filosófica contemporânea, é certo; mas as premissas de ambos não divergem radicalmente, antes participam dessa tradição socialista democrática orientada para o futuro. 3. Notas para uma história do futuro do Partido Socialista «Futuro já o temos. Somos quase só esse futuro que ainda não somos senão como aventura virtual.» (Lourenço 2000: 14) Regressemos aos problemas que Eduardo Lourenço identifica, sem pretender solucionar. Não havendo, de um ponto de vista intelectual, solução para eles, a proposta política, insistimos, do «socialismo ético» necessita de um complemento histórico que lhe confira uma resposta empírica a esses problemas. Já tendo notado um certo kantismo na argumentação de Lourenço, 117 PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO DO PARTIDO SOCIALISTA não nos devemos intimidar com o facto de essa História estar ainda por fazer. Tal como a Revolução Francesa para Kant, o socialismo em tempo de «vacas magríssimas» de Lourenço servirá como «sinal»7. Nessa medida, trata-se de uma História do Futuro não profética, apenas presciente. Ou ambicionando tanto. Vimos Eduardo Lourenço nomear, sempre de passagem, poderes feudais, estatutos pessoais, lobbies sociais, enfim, realidades políticas várias que existem na sociedade portuguesa de um modo não exactamente igual a qualquer outra sociedade. Com efeito, a liberdade política cara ao socialismo democrático não se esgota apenas na letra da lei e no normal funcionamento das instituições, ela implica ainda todo o espaço que existe entre cada cidadão e as instâncias políticas formais: a vida no sistema social (desde o nível familiar à comunidade mais alargada), as associações civis formada pela livre interacção de indivíduos (incluindo entre estas as diversas formas de vida religiosa) e as organizações políticas estáveis que existem para influenciar legitimamente o aparelho de Estado (partidos, mas também sindicatos e outras). Vamos pensar uma História do Futuro do Partido Socialista não apenas em função da sua pertença a este conjunto de organizações políticas mas também na relação que mantém com os restantes níveis em que se joga a liberdade política em Portugal. Afinal, é esse o fito de um socialismo ético. É já um dado recorrente dos inquéritos e estudos sociológicos do sistema social português, incluindo neste os agentes do sistema político, uma generalizada atitude conservadora, ao menos tácita8. Por conservadorismo denominamos comportamentos políticos mais do que formas de natureza religiosa, cujo declínio a recente despenalização da IVG veio ilustrar. Estes dados compulsados pelos instrumentos de pesquisa das ciências sociais contemporâneas são aliás consistentes com análises ensaísticas (maioritariamente históricas 7 Por ser um pouco forçado, e por envolver alguma formação filosófica ou pelo menos kantiana, esclarece-se o leitor que fazemos com estas palavras uma referência a O Conflito das Faculdades. 8 Reportamo-nos aos dados relativos à confiança nas instituições, sentimento de distância ao poder, envolvimento em actividades cívicas e valores dominantes (amoralidade de matriz familiar) na sociedade portuguesa, todos eles consistentes com o que é típico de uma sociedade pré-moderna: uma sociedade pouco desenvolvida, pouco reflexiva e com reduzido capital social. Cf., p. ex., CABRAL, Manuel Villaverde, VALA, Jorge e FREIRE, André (orgs.), Valores e Atitudes Sociais dos Portugueses III - Desigualdades Sociais e Percepções de Justiça, Lisboa, ICS, 2003; FREIRE, André, LOBO, Marina Costa e MAGALHÃES, Pedro (orgs.), Eleições e Cultura Política, Lisboa, ICS, 2007; VALA, Jorge, CABRAL, Manuel Villaverde e RAMOS, Alice (orgs.), Atitudes Sociais dos Portugueses V – Valores Sociais: mudanças e contrastes em Portugal e na Europa, Lisboa, ICS, 2003; VALA, Jorge e TORRES, Anália (orgs.), Atitudes Sociais dos Portugueses VI -Contextos e Atitudes Sociais na Europa, Lisboa, ICS, 2006; e ainda VIEGAS, José Manuel Leite e SANTOS, Susana, “Associativismo, Cidadania e Democracia”, in Finisterra, nº 58/59/60, 2008, págs. 173-187. 118 CARLOS LEONE e literárias) que até ao terceiro quartel do século XX foram os mais relevantes exercícios de reflexão sobre a sociedade portuguesa. No caso português, em que as forças políticas de Direita são no essencial conservadoras, isto não é desprovido de utilidade: pela sua natureza tradicionalista e passiva, os comportamentos e expectativas sociais dominantes podem ser objecto de abordagens acríticas e meramente negativas, explorando os sentimentos reactivos de estratos maioritários da população face a «outros» (minorias, políticos, estrangeiros, etc.). No entanto, para forças políticas que se reclamem do legado histórico da Esquerda, esta situação oferece graves dificuldades: para a Esquerda que se quer valer pela radicalidade, estas atitudes sociais são um obstáculo de monta a ambições revolucionárias9; para a Esquerda democrática, gradualista, isto é, para o PS, este conservadorismo é o adversário histórico do (vetero)liberalismo que constitui a tradição intelectual da Esquerda, nascida no combate ao absolutismo (antes, portanto, da contrafacção denunciada por Lourenço de um liberalismo reduzido a uma economia sem lei). Na realidade, esta situação é para a Esquerda democrática de uma dupla adversidade: em primeiro lugar, indica desde logo que a modernização das estruturas sociais, das instituições, portuguesas não será panaceia simples, nem, mesmo que lograda, uma solução completa e definitiva para as resistências enfrentadas nas reformas ensaiadas; em segundo lugar, é uma forte advertência ao próprio Partido Socialista, cuja efectiva representatividade da sociedade portuguesa é em larga medida garantida por incluir dentro das suas estruturas (e nas dirigentes não menos que nas demais) agentes políticos imbuídos dessas mesmas atitudes sociais que correm a contrario da ideologia socialista (na formulação «ética» de Lourenço ou em qualquer outra). Há portanto um preço elevado a pagar pelo papel fundador e de charneira do PS no sistema político português, o qual terá de ser meticulosamente meditado no futuro. A ponto de a guerra intestina perpétua do PSD dever servir de case study para o que sucederá ao PS caso essa meditação, e consequente acção, falhe. Com o desmembrar do PSD em várias facções movidas pela defesa dos seus interesses de classe e de estatuto (em prejuízo, portanto, da unidade de acção própria de um partido político, visando o exercício do poder de Estado), 9 Embora seja claro que não há em rigor nenhuma força política em Portugal apostada num projecto revolucionário. A retórica política das forças políticas que se afirmam como «à Esquerda do PS» é, no seu radicalismo, muitas vezes máscara de um conservadorismo em nada menor que o da Direita. As votações em questões «sociais» demonstram-no bem, aliás, sobretudo no caso do PCP. 119 PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO DO PARTIDO SOCIALISTA Portugal ficou sem alternativa política ao PS para o exercício de governação. Além do real decréscimo da qualidade da democracia que isto implica, há um risco associado que afecta a estabilidade do sistema político forjado entre 1974 e 1982 (ou 1985, se se preferir): as forças que paralisaram e desmembram o PSD como partido de poder para assim melhor garantirem a manutenção de um statu quo que visa o seu interesse próprio e não o bem comum têm agora como único oponente o PS. E, como ficou já claro, a representatividade nacional do PS assenta em parte na inclusão dessas mesmas forças. Isto mesmo foi já visado pela direcção nacional do PS, por ocasião da elaboração (em 2002) da actual Declaração de Princípios do partido. Nesse documento, conforme explicitado pela voz autorizada de um dos seus responsáveis, Augusto Santos Silva, inclui-se o combate às corporações da sociedade portuguesa, entendendo esse combate como um dos pilares do PS (opção pela justiça social): não apenas contra a discriminação ou contra a desigualdade de oportunidades, o PS afirma-se pela igualdade de direitos, «portanto, contra os privilégios e contra as castas, as ordens ou os grupos fechados.» (Santos Silva 2002: 178). Sejamos claros: a não discriminação visa as organizações sociais mais elementares, é um ethos cívico elementar (republicano); a «igualdade de oportunidades» é uma noção abstracta, tributária de uma concepção democrática de liberdade política que vincula o partido a uma forma não autoritária de socialismo, à Esquerda liberal; a referência à igualdade de direito, no âmbito da justiça social, visa um nível intermédio, o qual passa o mais das vezes despercebido por ser confundido na vox populi com a esfera partidária (e estatal) da decisão em nome do colectivo. Este nível intermédio inclui as realidades associativas descritas por Santos Silva tal como os tradicionais grupos de pressão económico-financeiros e magnatas dos grandes clubes mencionados por Lourenço nos seus ensaios. Vale a pena por isso tentar uma tipologia que distinga os diferentes níveis de actuação política para, assim, melhor apreciar as tarefas do Partido Socialista e as dificuldades que enfrenta(rá): No primeiro plano acima mencionado, o do sistema social em geral (desde o nível familiar até à comunidade mais alargada), há dados fiáveis do seu conservadorismo, aliás alimentado nos partidos políticos por força da organização de «juventudes partidárias» que, em sedes não políticas como faculdades (e mesmo em níveis de ensino anteriores), transpõem funcionamentos sociais particularistas para o interior de estruturas supostamente ideológicas e, de 120 CARLOS LEONE seguida, prosseguem caminhos no interior dos partidos e do aparelho de Estado a que estes dão acesso; No segundo plano, o das associações civis formada pela livre interacção de indivíduos (incluindo entre estas as diversas formas de vida religiosa), encontramos o domínio intermédio que, pela sua localização transversal ao sistema social e ao sistema político, é o menos transparente na sua estrutura e funcionamento, caso de maçonarias, Opus Dei, Companhia de Jesus, as diversas Ordens, várias Fundações, lobbies sectoriais – em Portugal ainda para mais nem sequer reconhecidos legalmente -, mesmo grandes empresas, todos parte deste mundo; Num terceiro plano, no qual o PS se inclui, encontramos as organizações políticas estáveis que existem para influenciar legitimamente o aparelho de Estado (partidos, mas também sindicatos, o Presidente da República, enquanto diverso da instituição Presidência). Esta partição oferece dificuldades, desde logo a do estatuto singular dos magistrados. Em todo o caso, para os efeitos de uma História como a que nos propomos, parece bastar. Ao pretender explicitamente contrariar a influência do conservadorismo (por força da sua ideologia) e dos seus agentes (partidários mas também no plano intermédio das associações civis), o Partido Socialista actua como representante democrático do bem comum, do interesse geral (noções, aliás, bem problemáticas num contexto de sociedade dual em curso de modernização), mas nisso não enfrenta apenas a inércia social ou a organização das associações daquele nível intermédio. Enfrenta ainda o conúbio de várias dessas associações com a própria estrutura partidária (e mesmo do Estado), numa sobreposição não declarada de fidelidades dos agentes políticopartidários que obriga a um combate interno ao PS; e sofre ainda a passividade, mesmo cumplicidade, do sistema social com o modus operandi dessas estruturas associativas (e respectivas ramificações partidárias e estatais) em defesa do statu quo conservador e anti-moderno. Não há como «purgar» o PS, felizmente. Nem há modelo organizativo capaz de evitar interferências externas ao programa político socialista de reforma social10. Mesmo o sucesso obtido na modernização social (pela sua 10 Todavia, erros elementares podem ser evitados. Não foi apenas no caso dos professores que o primeiro governo de maioria absoluta do PS caiu na armadilha retórica de deixar os sindicatos falar em nome de todos os professores quando a sua representatividade é cada vez menor. O que, em rigor, em rigor, deve ser uma advertência para o 121 PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO DO PARTIDO SOCIALISTA própria lógica sempre um sucesso a longo prazo) pode ser sempre revertido para formas conservadoras de reprodução social (por via da cartelização dos partidos no aparelho de Estado ou de «selecção» de filhos-família para posições profissionais de influência política). Mas tudo isto são obstáculos próprios da actividade política e o Partido Socialista tem demonstrado saber geri-los de modo produtivo, isto é, não ficando paralisado e prosseguindo a execução das suas propostas políticas. Moderniza-se o sistema social por via do sistema educativo; não se privilegia nenhuma associação em prejuízo sistemático de outra; negoceia-se dentro do PS e com os seus parceiros político-partidários o ritmo do combate ao statu quo conservador. O sucesso desta prática foi confirmado com a vitória na eleição legislativa de 2009, a primeira vitória (em Portugal) de um partido em exercício de funções governativas numa eleição ocorrida durante um período de acentuada crise económica. Resta saber como interpretar politicamente esta vitória, ou seja, como garantir que o sucesso não se transforma numa vitória de Pirro. O efeito político da governação em maioria absoluta, no interior do PS, foi o de consumar uma transformação iniciada em 1995, com Guterres, e prosseguida por Ferro na oposição. Essa transformação consiste numa renovação geracional que estivera sob estrita tutela com os Secretários-Gerais anteriores e que se tornou manifesta com Sócrates11. Neste particular, além das circunstâncias, a liderança importa de facto: Guterres pertence a uma família da Esquerda (católica, minoritária mas influente); Ferro chegou ao PS vindo do MES, um movimento que nunca perdeu uma muito considerável unidade dentro do PS (pelo menos até 2004); Sócrates é um outsider a estes círculos urbanos, influentes e notáveis12. Além das necessidades do país, também a sua liderança exigia uma explicitação desses aspectos da acção política do PS no futuro: carreiras não são classes nem corporações, mesmo no caso das carreiras fortemente estruturadas (como a docente, a militar, a policial, a judicial ou a diplomática). Não há portanto o «bem comum» vs. «professores», p. ex., mas sim uma opção política (reformista) face a outra (imobilista). Sair destes termos é abandonar a política e fazer o jogo apolítico, mesmo antipolítico (subversivo da democracia), de quem pretende bloquear a legitimidade da acção governativa através da «rua» (ou dos «gabinetes», noutros casos). 11 Renovação composta de processos variados, como participação, paridade, rotação das elites, tudo parte da «boa governação» descrita por Santos Silva no documento relativo à Declaração de Estatutos de 2002 já citado (Santos Silva 2002: 183). 12 Ele mesmo já o afirmou, embora sempre a órgãos de comunicação social estrangeiros (de França e Espanha), o que é significativo. Neste aspecto, além da estratégia de marketing político, a personalização da campanha (Sócrates2009, etc.) adquire foros de compensação narcísica. E, reconheça-se, justificada. Um estudo recente da liderança política do PS merece menção: Marco Lisi, A Arte de Ser Indispensável – Líder e Organização no partido Socialista Português (Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2009). 122 CARLOS LEONE governo (1995-2002) e na oposição (2002-2005), que visavam a recriação da relação público/privado, a aposta na inovação (ainda que muitas vezes reduzida à sua componente tecnológica) e a acção planeada nos domínios dos costumes, tudo questões que, como reconhecia Santos Silva em 2002 (cf. p. 184), permaneciam «ainda pouco interiorizadas no partido». A liderança de Sócrates alterou equilíbrios e, igualmente, a percepção desses equilíbrios. Mas não tem como impedir que essa mudança geracional seja objecto dos mesmos processos de cooptação que asseguraram até hoje os três níveis de acção política acima descritos (aliás, em alguma medida mesmo a sua liderança não é completamente estranha a esses fenómenos). A mudança geracional não se compõe apenas de renovação etária. Implica uma nova atitude face a valores e concepções ideológicas, marcada por uma menor adesão (e mesmo menor consciência) do discurso identitário da Esquerda e dos seus tópicos centrais, associada a uma maior fluência em discursos técnicos (e por vezes tecnocráticos) e especializados de matriz académica13. O discurso das «políticas públicas» é talvez a sua buzzword mais ouvida, mas não a única. Em comum, as novas formas de discurso político desta Esquerda partilham uma certa inocência perante a suspeita generalizada (e nem sequer tácita) da população face «aos políticos» (sempre «outros») e uma plasticidade quase ilimitada relativamente aos mecanismos portugueses de reprodução social, o que propicia uma janela de oportunidade para a sua cooptação pelas associações intermédias, transversais ao Partido, ao sistema político em geral e ao sistema social. Ora, é justamente neste passo, o de uma desafecção, ainda que inconsciente, ao imaginário da Esquerda ligada a uma disponibilidade para networking com as próprias organizações gestoras de privilégios e de grupos fechados, que até aqui tem sido um equilíbrio liderado pelo PS; ora, a sucessão de Sócrates irá ditar o sucesso na modernização de Portugal ou o triunfo da resistência à modernidade. O que ficou dito acima sobre o caso do PSD deve ser retomado: se o mesmo suceder no PS, será todo o sistema 13 O que originou no período 2005-2009 reacções extremadas de figuras representativas das elites políticas anteriores do PS, de António Arnaut a Manuel Alegre. Reacções, aliás, apenas mais visíveis e notórias do que aquelas que já se havia verificado no tempo de Guterres, sobretudo no período 1999-2001. De certo modo, a mudança de imagem (simbologia) iniciada com Guterres tornou-se algo interiorizado pela nova geração, verbalizando-se num discurso quase desprovido de marcas socialistas. As consequências e os riscos do sucesso deste marketing político foram comentadas já no período de Sócrates no pequeno ensaio de Carlos Leone O Socialismo Nunca Existiu? (Lisboa, Tinta da China, 2008), em especial no seu cpt. 4. 123 PORTUGAL, SOCIALISMO ÉTICO E UMA HISTÓRIA DO FUTURO DO PARTIDO SOCIALISTA político que se autodestruirá14. Ao contrário da retórica vazia (e de má fé) do PSD sobre claustrofobia e asfixia, verificar-se-á então um caso de «atrofia democrática» (termo cunhado por Sottomayor Cardia no início da década de 1990). Nesse cenário, todo o processo de renovação (de PS e país) se reverte de forma rápida, subtil e fácil: vencem as corporações, o conservadorismo e o auto-isolamento; declinam o PS (e, no geral, o sistema político), a democraticidade e a europeização de Portugal. Mais uma vez, é a opção entre ter poder e ter influência: entre os que entendem ser os partidos os legítimos representantes da democracia, e visam o poder, e os que privilegiam a manutenção da influência, fazendo do status o critério da sua acção social. Entre os partidos e o status, as classes e a luta pela propriedade desempenham um papel, é certo, mas, ao contrário do que os radicais ditos de Esquerda gostam de propagandear, não «determina» tanto quanto é sobredeterminado. A escolha do Partido Socialista em 2009 é por isso clara: ou prossegue a modernização, atentando nas suas dimensões ideológicas e históricas tanto quanto já o faz nas suas vertentes técnicas e científicas , e nesse caso é possível que o reformismo tenha os efeitos pretendidos e que as associações não transparentes sejam controláveis; ou a liderança pós-Sócrates abdica da condução política do processo de modernização do país e, concomitantemente, o conservadorismo assegura os seus privilégios em toda a linha. Neste último caso, soçobra o sistema político actual mas não o sistema social que o antecede. E permanecerá pertinente o socialismo ético de Lourenço, que, em linha com a melhor análise social portuguesa, há muito critica aquele sistema social. Mutatis mutandis, o que Lourenço escrevia em 1985 a propósito de Mário Soares pode ser repetido desde já, se se quiser garantir que a ruptura de Sócrates não se perde nem se perverte: «o PS, obrigatoriamente adulto pela sua ausência, precisa de um líder novo, na idade e, sobretudo, no perfil. A uma época romântica e épica seria bom que sucedesse uma outra performante, toda 14 A fragmentação da representação partidária no Parlamento eleito em 2009 é já um indicador claro do preço a pagar pelo PS por descurar a captação de apoio onde ele existe, desperdiçado: na população que opta pela abstenção. A possível fixação de um eleitorado jovem à Esquerda do PS, principalmente no BE (onde sentem que a sua integração é rápida e efectiva, numa forma de mobilidade partidária ascendente garantida), pode vir a ser um processo correlato que terá consequências eleitorais e sociais graves a médio prazo. A verificar-se, significará que o BE colhe apoio entre os jovens mas sobretudo entre os abstencionistas (onde a juventude é muito relevante), além do que já dispõe, hoje, talvez mais intergeracional do que se admite. 15 O próximo centenário da República, aliás coincidente com as comemoração do centenário de Tito de Morais, poderia(m) ser um leitmotiv interessante para o exercício, mas nada indica que tudo não se limite ao registo históricoelegíaco habitual e inerte. 124 CARLOS LEONE voltada para o século próximo e não para aquele donde vem, época encarnada em alguém que tenha a mais da competência que a Direita se outorga, o sonho e a vontade de solidariedade que são a única razão de ser da Esquerda.» (Lourenço 2009: 60). A época performante demorou duas décadas a chegar, resta saber se será prosseguida com liderança nova ou desmembrada por velhas corporações através de novos líderes. Ajuda, 6-10 Outubro, 2009 125 Bibliografia (apenas se referem obras efectivamente citadas) Eduardo Lourenço, A Europa Desencantada, Lisboa, Gradiva, 2000 (1ª ed. 1993). Eduardo Lourenço, Destroços, Lisboa, Gradiva, 2004. Eduardo Lourenço, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?, Lisboa, Gradiva, 2009. Santos Silva, A., «Os Princípios Políticos do PS: Memória e Renovação» in Finisterra, nº45, Inverno 2003, Fundação José Fontana, Lisboa, 2002 (pp. 173-191). 126 Responsabilidade Individual e Justiça Social: Igualdade de Oportunidades ou de Resultados? Roberto Merrill 1. Introdução De acordo com qualquer tipo de igualitarismo sensível à responsabilidade individual, as desigualdades de riqueza entre indivíduos são justificadas quando resultantes de escolhas pelas quais os indivíduos podem ser considerados responsáveis. Inversamente, as desigualdades causadas apenas pelo acaso ou pela má sorte bruta não são justificadas. Esta característica é importante porque, conquanto se trate de uma teoria igualitarista, prescreve o respeito à liberdade dos indivíduos nas suas escolhas1. Se os indivíduos podem e devem ser considerados responsáveis pelos resultados das suas escolhas então qualquer igualitarismo sensível à responsabilidade deve permitir que os indivíduos suportem os custos (ou gozem dos ganhos) das suas escolhas. Porém, por vezes os resultados de certas escolhas podem deixar uma pessoa numa situação económica e psicológica de sofrimento extremo. Neste caso, porque responsável pela sua escolha, o indivíduo não poderá contar com o apoio do Estado, através das suas políticas sociais. Alguns autores igualitaristas consideram que esta consequência rígida do igualitarismo da responsabilidade demonstra a sua incompletude teórica e, consequentemente, advogam a sua rejeição, ou no melhor dos casos, a sua refinação. Pois para um igualitarista, mesmo quando sensível à responsabilidade individual, é de facto uma intuição comum considerar que nem sempre, ou talvez mesmo nunca, se justifica exigir que os indivíduos suportem os custos das suas escolhas quando 1 Na literatura anglófona contemporânea especializada em teorias normativas da justiça distributiva, esta corrente igualitária é conhecida por luck egalitarianism; a partir de agora vou utilizar a expressão “igualitarismo da responsabilidade” para designar esta corrente. Esta corrente tem por base os trabalhos de John Rawls (1971), a crítica ao igualitarismo de Rawls pelo libertarismo de direita de Robert Nozick (1974) e a tentativa por Ronald Dworkin (2000) de superar o igualitarismo rawlsiano assim como o conservadorismo de direita. A expressão luck egalitarianism provém de Elizabeth Anderson (1999) e é hoje a mais utilizada para designar esta corrente igualitária que tem uma posição dominante nos debates sobre as teorias da justiça distributiva em teoria política normativa. A quantidade de publicações sobre esta corrente de esquerda é vertiginosa. No fim deste artigo propomos uma bibliografia indicativa. elegíaco habitual e inerte. 127 RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL E JUSTIÇA SOCIAL: IGUALDADE DE OPORTUNIDADES OU DE RESULTADOS? estas os colocam em situações de sofrimento extremo (mesmo quando são inteiramente responsáveis por elas) - não obstante, devemos perguntar-nos por que razões tal exigência não seria justificada. Pois para um igualitarista é também uma intuição comum considerar que um indivíduo deve suportar os custos das suas escolhas quando feitas em circunstâncias de igualdade de oportunidades2. No entanto, estas duas intuições centrais ao igualitarismo nem sempre convergem. Esta falta de convergência é particularmente visível quando nos confrontamos com situações desesperantes resultantes de escolhas individuais feitas num contexto de genuína igualdade de oportunidades. Neste artigo, (1) começo por desenvolver a objecção “da dureza” feita ao igualitarismo da responsabilidade e exponho três razões para considerá-la seriamente. Em seguida (2) examino três respostas possíveis à objecção. Finalmente (3) proponho que, dado nenhuma destas respostas ser capaz de rejeitar a objecção “da dureza”, o igualitarista permanece confrontado com a seguinte alternativa: (a) Aceitar a objecção como uma consequência inevitável e justificada do igualitarismo da responsabilidade. (b) Considerar que a objecção demonstra que o igualitarismo da responsabilidade é uma teoria incompleta e rejeitar esta teoria como uma versão plausível do igualitarismo. Se rejeitarmos (a) e aceitarmos (b), nesse caso a alternativa consistiria em adoptar um igualitarismo dos resultados em vez dum igualitarismo das oportunidades (abandonando-se, assim, o elemento de responsabilidade distributiva constitutivo desta teoria igualitária). Termino o artigo propondo duas variantes do igualitarismo dos resultados que me parecem promissoras : a variante da “genuína igualdade de oportunidades” e a variante da “ igualdade de liberdade”. 2 Para uma crítica virulenta ao ideal de igualdade de oportunidades (em particular a crítica à defesa deste ideal na “terceira via” defendida por Tony Blair) vide Barry (2005). Para uma defesa informada e convincente da igualdade de oportunidades vide Mason (2006). 128 ROBERTO MERRILL 2. A objecção da dureza De acordo com a objecção “da dureza”, porque o igualitarismo da responsabilidade tem como um dos seus princípios fundamentais considerar que os indivíduos são livres de assumirem os custos das suas escolhas, mesmo quando estes são excessivos para eles, esta teoria não permite justificar nenhum auxílio às vítimas da má sorte nas suas escolhas sem entrar em contradição com o seu igualitarismo sensível à responsabilidade. Tomemos como exemplo o caso duma mãe solteira que escolhe não trabalhar para poder tomar conta dos seus filhos. Ela não recebe nenhuma ajuda do Estado, pois essa foi a sua escolha voluntária. Mas esta escolha coloca-a numa situação desesperante. O igualitarismo da responsabilidade teria que aceitar que o Estado tem o direito, senão mesmo o dever, de não ajudá-la, desde que a sua situação resulte de uma escolha voluntária, e desde que tenha tido uma genuína igualdade de oportunidades em trabalhar, pois sem esta não se pode falar correctamente duma escolha responsável. Mesmo assim a mãe escolheu não trabalhar, preferindo dedicar-se aos seus filhos e, consequentemente, encontra-se numa situação de miséria. Segundo o igualitarismo da responsabilidade, esta situação é justa se resultante duma escolha responsável feita num contexto de genuína igualdade de oportunidades. Mas esta consequência parece demasiado dura, pelo menos para uma teoria igualitarista. Podemos assim formular pelo menos três razões para ter em consideração a objecção “da dureza”: 1. O igualitarismo da responsabilidade não é suficientemente sensível à relação entre a probabilidade de um risco e a severidade do resultado associado ao risco; 2. O igualitarismo da responsabilidade não consegue justificar facilmente que a satisfação de necessidades e de bens básicos possa ter uma relevância particular dentro de uma teoria da justiça distributiva; 3. O igualitarismo da responsabilidade parece insensível aos deveres de aliviar os indivíduos do sofrimento extremo quando este resulta de escolhas cuja responsabilidade possa ser atribuída aos indivíduos (mesmo quando ajudar as vítimas duma má escolha não representa nenhum custo para o Estado). 129 RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL E JUSTIÇA SOCIAL: IGUALDADE DE OPORTUNIDADES OU DE RESULTADOS? No entanto, é necessário realçar que o facto de haver uma escolha voluntária não constitui uma razão suficiente para considerar um individuo inteiramente responsável pelo resultado desta. O igualitarismo da responsabilidade exige ter em conta os efeitos da sorte bruta desigual (unequal brute luck) sobre as escolhas responsáveis dos indivíduos, como por exemplo ter tido na sua vida uma variedade reduzida de opções de acção disponíveis ou não ter tido um acesso fácil às informações que permitem ponderar de maneira razoável as consequências possíveis das suas escolhas, ou ainda sofrer de handicaps genéticos. Caso contrário, não seria possível atribuir uma genuína responsabilidade às escolhas dos indivíduos, já que estas seriam feitas em circunstâncias desiguais de oportunidades, logo injustas porque arbitrárias de um ponto de vista moral. Assim sendo, as desigualdades que resultam de escolhas influenciadas por uma sorte bruta desigual (ou seja, consequentes de causas sociais e naturais arbitrárias e desiguais) podem, pelo menos parcialmente, ser compensadas segundo o igualitarismo da responsabilidade. Se tivermos pois em conta esta cláusula igualitarista de compensação de escolhas resultantes duma sorte bruta desigual, a objecção “da dureza” ao igualitarismo da responsabilidade, correctamente formulada, deverá então ser a seguinte: Quando uma pessoa faz uma escolha plenamente responsável que não foi afectada por uma sorte bruta desigual, e o resultado desta escolha põe-a numa situação de sofrimento extremo, nesse caso o igualitarismo da responsabilidade requer que o Estado não apoie esta pessoa, mesmo quando não estejam associados quaisquer custos a esta assistência (Voigt, 2007: 402). 3. Três respostas à objecção da dureza O igualitarismo da responsabilidade pode responder à objecção “da dureza” pelo menos de três maneiras: (1) permitir considerações prioritaristas, independentemente de considerações da responsabilidade, na justificação de políticas sociais que dêem prioridade aos mais desfavorecidos da sociedade ; (2) introduzir “um nível mínimo de bens” ao qual os indivíduos vítimas dos maus resultados das suas escolhas tenham sempre acesso (independentemente das considerações ligadas à responsabilidade) ; 130 ROBERTO MERRILL (3) introduzir um esquema de seguro obrigatório de modo a que todos os cidadãos sejam cobertos contra riscos que afectam a sua capacidade de satisfazer as suas necessidades (correndo o risco de se transformar numa teoria paternalista). 3.1. A resposta prioritarista A primeira resposta à objecção “da dureza” combina o igualitarismo da responsabilidade com considerações prioritaristas: a prioridade é dada ao apoio pelo Estado aos mais desfavorecidos da sociedade, independentemente de considerações ligadas à responsabilidade individual (Arneson, 2000; 2009) . A objecção principal a esta resposta prioritarista é a seguinte: dado o igualitarismo da responsabilidade e o prioritarismo substanciarem duas correntes igualitaristas assentes em duas compreensões muito diferentes daquilo que faz com que uma distribuição das riquezas seja justa, não se percebe de que maneira não arbitrária devemos determinar a importância relativa de cada um destes dois princípios - o princípio da prioridade, por um lado, e o princípio da responsabilidade individual, por outro lado. 3.2. A resposta dos bens básicos A segunda resposta à objecção “da dureza” consiste em considerar legítimo introduzir a exigência dum nível mínimo de bens de base ao qual os indivíduos teriam sempre acesso, mesmo quando aquilo que faz com que os indivíduos caiam abaixo deste nível mínimo resulta duma escolha responsável feita em circunstâncias que impliquem uma genuína igualdade de oportunidades. Poderíamos defender esta resposta afirmando que, dado o igualitarismo da responsabilidade ser uma teoria que confere uma relevância central à escolha individual responsável, não devemos permitir que os indivíduos caiam numa condição abaixo de um determinado nível de bens, dada a alta improbabilidade de tais escolhas responsáveis poderem ser genuinamente livres quando formuladas abaixo dum nível mínimo de bens (Anderson, 1999; Crisp, 2003). A objecção principal à resposta dos bens básicos é a seguinte: esta solução exige que não respeitemos princípios básicos do igualitarismo da responsabilidade, cada vez que um indivíduo se coloca abaixo dum nível mínimo de bens. 131 RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL E JUSTIÇA SOCIAL: IGUALDADE DE OPORTUNIDADES OU DE RESULTADOS? 3.3. A resposta do seguro obrigatório A terceira resposta à objecção “da dureza” considera legítimo introduzir a exigência dum seguro obrigatório para todos os indivíduos a fim de evitar que caiam em situações de sofrimento extremo (Bou-Habib, 2006). Com efeito, se o Estado exigir aos indivíduos um seguro obrigatório que os proteja nas situações de risco decorrentes das suas escolhas, pode-se assim impedir que ocorram situações tais como a descrita no exemplo da mãe solteira. Se todos os indivíduos podem ser protegidos por um seguro obrigatório quando confrontados com situações desesperantes fruto das suas escolhas individuais, o igualitarismo da responsabilidade pode então compensar de maneira apropriada os indivíduos que são vítimas de má sorte (resulte esta duma desigualdade de oportunidades ou duma má escolha responsável). As duas objecções principais a esta resposta do seguro obrigatório são as seguintes: (a) A imposição dum seguro obrigatório é claramente uma medida paternalista, o que coloca esta solução em contradição com o princípio de responsabilidade; (b) A imposição dum seguro obrigatório pode igualmente ter um custo demasiado alto, já que muitas pessoas não têm meios para financiá-lo, vendo-se assim impedidas de levar a cabo as acções que impliquem a sua compra. Ambas as objecções envolvem limitações à liberdade individual contraditórias ao igualitarismo da responsabilidade. Sobre estas três respostas dos defensores igualitarismo da responsabilidade de encontro à objecção “da dureza”, conclui-se: as duas primeiras (a prioritarista e a dos bens de base) parecem implicar uma tensão com o igualitarismo da responsabilidade; a terceira (a do seguro obrigatório) implica uma limitação paternalista da liberdade de assumir os riscos das suas acções - restrição que no mínimo corre o risco de ser demasiado intrusiva na vida dos indivíduos, limitando a sua liberdade de escolha. 132 ROBERTO MERRILL 4. Escolha responsável e preferências adaptativas Dado que nenhuma das três respostas permite rejeitar a objecção “da dureza”, vou agora expor as razões pelas quais considero como a única alternativa possível ou aceitar a objecção “da dureza” ou rejeitar o igualitarismo da responsabilidade e adoptar um igualitarismo do resultado. Mas antes vou expor as duas concepções dominantes da escolha na literatura igualitarista e as objecções a ambas. Ter em mente estas duas concepções do significado duma escolha responsável ajuda a perceber o porquê da escolha responsável de alguém não constituir uma razão suficiente à consideração do seu resultado como um efeito da responsabilidade individual. A razão principal para evitar este non sequitur é a seguinte: os indivíduos têm preferências (desvantajosas) adaptáveis que são o resultado duma sorte bruta desigual. 4.1. Duas concepções da escolha As duas concepções dominantes da escolha na literatura igualitarista são a subjectiva e a objectiva. (a) A definição da concepção subjectiva da escolha é a seguinte: a responsabilidade dum indivíduo por uma preferência sua é determinada pela sua atitude pela mesma. Os indivíduos são responsáveis pelas consequências das suas escolhas apenas quando se identificam com as suas preferências autênticas que os levam a assumí-las (Dworkin, 2000). (b) A definição da concepção objectiva da escolha é a seguinte: a responsabilidade dum indivíduo por uma escolha depende das influências externas. Estas são independentes das atitudes do indivíduo em relação às suas preferências. Segundo esta concepção objectiva, a legitimidade das escolhas decorre da sua “voluntariedade” ou “genuidade”, isto é, devem ser feitas tomando em consideração que as circunstâncias sociais e naturais desiguais condicionam as preferências dos indivíduos duma maneira que torna provável que as suas escolhas reproduzam as desigualdades existentes (Cohen, 1989). 4.2. Objecção à concepção subjectiva da escolha A concepção subjectiva da escolha não permite tomar em consideração os 133 RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL E JUSTIÇA SOCIAL: IGUALDADE DE OPORTUNIDADES OU DE RESULTADOS? efeitos que a sorte bruta desigual (presente nas circunstâncias sociais e naturais) pode ter nas preferências e nas escolhas que os indivíduos assumem. Na realidade, mesmo as preferências autênticas que os indivíduos têm podem conduzir a desigualdades injustas. No entanto, esta objecção é evitável da seguinte forma: assumir com autenticidade as suas próprias preferências significa que se o indivíduo tivesse um controle sobre elas, ele as escolheria tal como se lhe apresentam (Fleurbaey, 2008: 249). Contudo, esta maneira de evitar a objecção não é convincente, pois a concepção subjectiva da escolha permite manter um indivíduo responsável pelas suas preferências autênticas mesmo quando estas preferências não foram realmente escolhidas. Voltando ao exemplo da mãe solteira que escolhe não ter um emprego porque prefere tomar conta dos seus filhos: as suas preferências podem certamente ser autênticas mas, mesmo assim, serem determinadas por factores externos à sua escolha. Neste caso, não se pode dizer que ela controle a sua escolha e, neste sentido, a concepção subjectiva da escolha parece ser insensível aos efeitos da sorte bruta desigual sobre as escolhas dos indivíduos. 4.3. Objecção à concepção objectiva da escolha A concepção objectiva da escolha demonstra uma maior sensibilidade em relação à formação das preferências dos indivíduos, e à maneira como estas se adaptam às suas circunstâncias particulares (Cohen, 1989). Mas esta sensibilidade pode implicar que as preferências devam ser formadas duma maneira perfeccionista, isto é, duma maneira que pode ser demasiado intrusiva na vida dos indivíduos. No entanto, é possível tentar rejeitar esta objecção defendendo que a concepção objectiva da escolha implica apenas uma sensibilidade às desigualdades provocadas pela sorte bruta desigual que possam ter afectado as preferências autênticas dos indivíduos e, por essa razão, considerar as intervenções intrusivas na vida dos pessoas como desnecessárias. 4.4. A objecção do pântano metafísico Ambas as concepções da escolha são vulneráveis à objecção do “pântano metafísico”, que se apresenta do modo seguinte: ser causalmente responsável pelas consequências das suas acções implica saber se o indivíduo é ou não 134 ROBERTO MERRILL moralmente responsável, o que implica por sua vez saber se as preferências autênticas ou as escolhas genuínas realmente ocorreram (Wolff e De-Shalit, 2007: 77). Mas a atribuição duma responsabilidade moral também exige a certeza da presença de livre arbítrio - só assim os indivíduos são responsáveis pelas suas escolha. Desta objecção metafísica decorre uma objecção prática: dado este pântano metafísico, as concepções subjectiva e objectiva da escolha não parecem úteis para permitir uma aplicação clara em políticas de interesse público. Ambas as concepções são difíceis de aplicar ao mundo real: são demasiado flexíveis ou demasiado duras. Voltando ao exemplo da mãe solteira que escolhe não trabalhar: ela identifica-se com esse bem escolhido com o objectivo de tomar conta dos seus filhos. Deve o Estado apoiá-la mesmo quando ela recusa toda oferta de trabalho? Se sim, tal é demasiado flexível. Se não a apoia, tal é demasiado duro. 5. Igualdade de oportunidades ou de resultados? Dado ambas as concepções da escolha parecerem vulneráveis à objecção do pântano metafísico assim como à objecção prática, podemos ser tentados a concluir que o igualitarismo da responsabilidade deve ser substituído por um igualitarismo dos resultados. Vou agora expor duas vias de defesa desta substituição e consequente abandono da responsabilidade: (a) A alternativa duma genuína igualdade de oportunidades (b) A alternativa da igualdade de liberdade 5.1. Oportunidade genuína versus oportunidade formal Julgo ser importante distinguir a ausência de oportunidade da oportunidade que não se sabe aproveitar. Neste sentido, devemos evitar concentrar-nos nas teorias subjectivas ou objectivas da escolha e perguntar: que fardos é razoável exigir aos indivíduos desfavorecidos vítimas de más escolhas (Wolff e De-Shalit, 2007:79)? Se as consequências da escolha podem ter demasiado impacto no bem-estar dos indivíduos, podemos dizer que a escolha que leva a uma situação desesperante não permite uma oportunidade genuína mas formal. No exemplo da mãe solteira, ela tem uma oportunidade de procurar e aceitar um trabalho 135 RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL E JUSTIÇA SOCIAL: IGUALDADE DE OPORTUNIDADES OU DE RESULTADOS? caso o apoio do Estado seja inexistente. Mas os fardos de aceitar um emprego parecem pouco razoáveis, dado então não poder tomar conta dos seus filhos. Podemos dizer que ela tem uma oportunidade formal, não genuína. Quando os fardos da desvantagem parecem demasiado elevados, é legitimo considerar que o Estado deve apoiá-la de modo a poder tomar conta dos seus filhos. Neste sentido, a igualdade de oportunidades, associada à responsabilidade, deixar de ser relevante. O importante é que certas escolhas, quando implicam fardos com demasiado impacto no bem-estar dos indivíduos, devem ser compensadas pelo Estado. 5.2. Igualdade de liberdade Porque os fundamentos da responsabilidade são frágeis, e porque o igualitarismo da responsabilidade pode ser demasiado duro ou demasiado flexível, uma outra maneira de rejeitar o conceito da responsabilidade como uma justificação moral das desigualdades é considerar a liberdade como uma justificação alternativa da responsabilidade. Em vez de perguntar se um individuo é responsável pela sua posição desfavorecida na sociedade, podemos perguntar se a sua situação desfavorecida na sociedade corresponde à sua escolha livre quanto à orientação da sua vida. Como questiona o especialista em economia normativa Marc Fleurbaey, criticando o igualitarismo da responsabilidade, “do ponto de vista da liberdade, de que serve oferecer a possibilidade de morrer de fome sem poder fazer nada?” (Fleurbaey, 2008: 266). Em detrimento da teoria da justiça distributiva fundamentada no conceito de responsabilidade, a teoria da igualdade proposta por Fleurbaey faz do princípio de igualdade de liberdade o seu núcleo - este princípio funciona como um constrangimento que tem por finalidade assegurar um nível mínimo de autonomia a todos os indivíduos, independentemente da responsabilidade que possam ter pelas escolhas que os colocam em situações desesperantes. Além deste nível mínimo de autonomia, o aceso a um nível mais elevado de autonomia constitui uma questão de preferência individual. Esta alternativa está sujeita a duas objecções. A primeira assinala que esta teoria combina o igualitarismo da responsabilidade com o prioritarismo, como acima analisado (conquanto tenha a vantagem de não implicar o aspecto moralizador da responsabilidade). A segunda reconhece-a como uma teoria explicitamente perfeccionista (Fleurbaey, 2008: 264), já que todos os 136 ROBERTO MERRILL indivíduos devem atingir um nível mínimo de autonomia graças às políticas sociais do Estado. 6. Conclusão Para terminar este artigo, gostaria de reformular o problema da relação entre igualdade e responsabilidade propondo o seguinte dilema. Qual das seguintes opções devemos considerar mais injusta? Considerar que um individuo é responsável por uma desvantagem que não controla? Esta opção dificilmente é aceite por um igualitarista da responsabilidade porque demasiado dura para as pessoas em situações desesperantes. Compensar um indivíduo por uma desvantagem que controla? Esta opção é demasiado flexível para um igualitarista da responsabilidade. As duas alternativas ao igualitarismo da responsabilidade (oportunidade genuína e igualdade de liberdade) permitem ultrapassar este dilema, sugerindo que a melhor maneira de rejeitar a objecção da dureza consiste em adoptar um igualitarismo do resultado (abandonando, assim, a noção de responsabilidade distributiva, pelo menos nos casos de sofrimento extremo), enquanto não houverem avanços significativos na investigação dos factores que permitem atribuir responsabilidade distributiva aos indivíduos3. 3 Na literatura sobre este tema da responsabilidade, o filósofo libertário de esquerda Peter Vallentyne escreveu recentemente um artigo que explora de maneira pertinente e prometedora (pelo menos para os igualitaristas que acreditam que não se deve abandonar a noção de responsabilidade individual) algumas maneiras de superar as dificuldades associadas à definição correcta da responsabilidade (Vallentyne, 2008). 137 Bibliografia ANDERSON Elisabeth (1999), “What is the point of equality?”, Ethics, 109, pp. 287–337. ARNESON Richard (2000), “Luck egalitarianism and prioritarianism”, Ethics, 110, pp. 339–349. ARNESON Richard (2009), “Equality of Opportunity : Derivative Not Fundamental”, conferência pronunciada no colóquio sobre igualdade de oportunidades, organizado pela Universidade do Minho e a Universidade Nova de Lisboa, nos dias 29, 30 e 31 de Outubro de 2009, na Biblioteca Nacional de Portugal. O texto do autor pode ser lido aqui: http://www. raison-publique.fr/Equality-of-Opportunity-Derivative.html BARRY Brian (2005), Why Social Justice Matters, Cambridge, Polity Press. BOU-HABIB Paul (2006), “Compulsory insurance without paternalism”, Utilitas, 18, pp. 243–263. COHEN Gerald A. (1989), “On the currency of egalitarian justice”, Ethics, 99, pp. 906-944. CRISP Roger (2003), “Equality, priority and compassion”, Ethics, 113, pp. 745–763. DWORKIN Ronald (2000), Sovereign Virtue, Cambridge, Harvard University Press. FLEURBAEY Marc (2008), Fairness, Responsibility and Welfare, Oxford, Oxford University Press. MASON Andrew (2006), Leveling the Playing Field: The Idea of Equal Opportunity and Its Place in Egalitarian Thought, Oxford, Oxford University Press. NOZICK Robert (1974), Anarchy, State, and Utopia, New York, Basic Books ; tradução portuguesa : Anarquia, Estado e Utopia, Edições 70, 2009. RAWLS John (1971), A Theory of Justice, Cambridge, Harvard University Press ; tradução portuguesa : Uma Teoria da Justiça, Editorial Presença, 2001. VOIGT Kristin (2007), “The Harshness Objection: Is Luck Egalitarianism Too Harsh on the Victims of Option Luck?”, Ethical Theory and Moral Practice, 10, pp. 389–407. VALLENTYNE Peter (2008), “Brute Luck and Responsibility”, Politics, Philosophy & Economics, 7, pp. 57-80. WOLFF Jonathan e DE-SHALIT Avner (2007), Disadvantage, Oxford, Oxford University Press. 138 Igualdade Equitativa de Oportunidades e Capacidades na Teoria da Justiça de John Rawls Regina Queiroz A defesa da igualdade de oportunidades incide, na teoria rawlsiana da justiça, sobre um dos pressupostos fundamentais do funcionamento do mercado, os talentos individuais, entendidos como propriedades ou recursos económicos. Se num mercado perfeitamente competitivo as pessoas são definidas pela suas preferências e pelos seus talentos naturais, e se cada um deve receber de acordo com o seu contributo, então o resultado da actividade puramente individual não pode deixar de estar marcada pela posse daqueles talentos naturais. Porém, se, segundo Rawls, os talentos e seu desenvolvimento dependem de circunstâncias naturais e sociais como a pertença familiar, e se a distribuição de rendimento e de riqueza estiver condicionada pelas vantagens e desvantagens associadas àqueles talentos, arbitrários de um ponto de vista moral, a distribuição do mercado não deixa de ser arbitrária. Deste modo, a atribuição política rawlsiana visa um objectivo específico, a saber, fornecer as condições de participação no processo de aquisição e de troca dos bens e serviços que evite que a participação no mercado esteja marcada por aquela vantagem natural ou social. Para tal, Rawls propõe o princípio da igualdade equitativa de oportunidades1, que consiste na igualdade de oportunidades para as pessoas com capacidades e conhecimentos idênticos, independentemente da condição social e natural. Distingue-o da interpretação do princípio da igualdade de oportunidades pelo sistema de liberdade natural e da correlata concepção de vantagem natural. Este 1 São dois os princípios da justiça como equidade propostos por Rawls. O primeiro princípio — o da igual liberdade — enuncia que “Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos”(Cf. RAWLS, 1971, p. 302). O segundo princípio enuncia que “As desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas por forma a que, simultaneamente: a) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados, de uma forma que seja compatível com o princípio da poupança justa; b) sejam a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa de oportunidades” (Cf. RAWLS, ibid.). Veja-se ainda a sua reformulação em RAWLS, 1993, p. 291 e 2001, pp. 42-3. 139 IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS sistema da igualdade natural, que propõe que as oportunidades sejam distribuídas em função dos talentos e defende uma concepção puramente formal das oportunidades2 não oferece condições políticas para ultrapassar as vantagens arbitrárias de um ponto de vista natural: a igualdade de oportunidades é fortemente influenciada pelas contingências naturais e sociais como, por exemplo, a situação familiar e os talentos naturais3. Neste caso, quer os resultados provenientes da actividade dos indivíduos no mercado estão decisivamente marcados pela arbitrariedade natural e social, quer o edifício jurídico de protecção da igualdade formal acaba por legitimar a distribuição natural, arbitrária de um ponto de vista moral4. Ora, na igualdade liberal de oportunidades, as diferentes capacidades tanto podem ser consequência das desigualdades sociais e económicas como, mesmo que os diferentes talentos não sejam económica e socialmente condicionados, resultado da lotaria natural. Mas, uma vez que as diferenças naturais e sociais não são razões para atribuição de direitos políticos, os indivíduos excluídos das oportunidades podem "(…) sentir-se injustamente tratados, mesmo que beneficiem dos maiores esforços realizados por aqueles que são autorizados a aceder a tais funções”5. Todos devem poder aceder aos diferentes lugares. Não há, por conseguinte, qualquer razão natural ou social para a restrição da igualdade equitativa de oportunidades. Note-se que Rawls não aceita a concepção de uma vantagem natural, da mesma forma que não aceita a concepção eficiente das oportunidades6, porque é possível não piorar a posição de ninguém e excluir algumas pessoas dos lugares e posições oferecidos pelo mercado. Por essa razão, em vez da igualdade de oportunidades liberal, também subsumida pelo princípio da eficiência, Rawls propõe a igualdade equitativa de oportunidades, distinta do conceito de igualdade de oportunidades liberal e do conceito de igualdade natural meritocrática: estes, embora reconheçam a igualdade social e económica, no primeiro caso, 2 Cf. RAWLS, 1971, p. 72. 3 Cf. RAWLS, id., ibid. 4 Cf. RAWLS, 1993, p. 266. 5 Cf. RAWLS, 1971, p. 84. 6 Cf. RAWLS, id., ibid. A eficiência acontece quando é impossível alterar uma determinada configuração social, por forma tal que pelo menos um dos sujeitos melhore a sua posição sem que pelo menos um outro fique em pior posição. 140 REGINA QUEIROZ e a igualdade jurídica, no segundo, excluem do acesso às funções uma parte substancial dos cidadãos. Em contrapartida, se na igualdade equitativa de oportunidades não se renuncia à diferença de talentos como critério de atribuição diferenciada no mercado, exige-se um contexto social favorável que minimize a arbitrariedade social inerente ao desenvolvimento dos talentos. Esse contexto é o da igualdade equitativa de educação para todos7. Assim, o governo deverá garantir possibilidades iguais de educação e de cultura às pessoas que possuem capacidades e motivações semelhantes, quer através de subsídios às escolas privadas, quer através da criação de um sistema de ensino público. De acordo com o princípio da igualdade de oportunidades, o objectivo da teoria da justiça não consiste, por conseguinte, em garantir uma igualdade estrita do contributo individual — tal igualdade colidiria com o respeito pela integridade das pessoas8 — mas em assegurar que todos possam participar no mercado económico, de acordo com a igualdade de oportunidades à educação — para desenvolvimento das suas capacidades quantitativa e qualitativamente diferenciadas. É esse, quanto a nós, o significado da igualdade de oportunidades, não apenas para os mais talentosos, mas para todos. Essa abertura tem como corolário que os resultados diferenciados que advierem da igualdade de oportunidades assim definida — diferentes posições sociais — são justos. Não há qualquer razão para, no contexto de uma igualdade equitativa de oportunidades, se intervir no resultado desigual resultante da actividade cooperativa, ou seja, para efectuar qualquer actividade redistributiva. A este respeito, Rawls afirma explicitamente que a grande vantagem do princípio da igualdade de oportunidades enquanto princípio que releva da justiça processual pura — justiça em que os procedimentos tanto asseguram a certeza do resultado, seja ele qual for, como a dependência do critério em relação ao resultado, porque não são estabelecidos em função das preferências dos sujeitos concretos — consiste em dispensar o controlo da infinita variedade de circunstâncias e a evolução das posições relativas dos diferentes sujeitos. Assim, ainda que a estrutura básica 7 Cf. RAWLS, id., p. 73. Rawls reconhece a necessidade de um sistema de escolarização que minimize o peso das circunstâncias sociais no desenvolvimento dos talentos. Que minimize e não anule, porque o sistema educativo não pode substituir o peso da diferenciação social resultante da pertença a diferentes famílias, da diferença natural, correspondente à diferença de talentos e de capacidades, e da diferença política, tal como ela é entendida na teoria rawlsiana da justiça: a igualdade democrática inclui necessariamente as desigualdades equitativas. 8 Cf. RAWLS, id., p. 89. 141 IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS — as principais instituições responsáveis pela atribuição dos direitos e deveres dos cidadãos, tais como a Constituição, o Mercado Económico e a Família — possa determinar aquilo que é produzido, bem como a sua quantidade e os meios para isso utilizados, essa determinação da produção dos bens básicos não é efectuada através da interferência nas circunstâncias particulares em que as pessoas trocam os seus bens, nem da verificação da posição relativa dos indivíduos enquanto tais9. Note-se que este princípio está incluído no segundo princípio, o da diferença. Este tanto se refere às desigualdades justas resultantes da igual liberdade e da igualdade equitativa de oportunidades, como à desigual distribuição dos benefícios sociais pela estrutura básica das sociedades. A teoria rawlsiana da justiça estabelece, assim, que as desigualdades sociais devem decorrer de uma posição inicial equitativa — as desigualdades não são injustas desde que submetidas à equidade geral: não há, repetimos, qualquer justificação para a alteração do resultado10. O princípio da igualdade equitativa de oportunidades aparece, assim, como um princípio de igualdade e como um princípio de diferença, estando a sua concretização inapelavelmente associada à diversidade de pessoas, com os seus talentos naturais e sociais. É certo que a prioridade da igualdade de oportunidades em relação ao princípio da diferença pretende evitar que a justiça social se limite a identificar a posição mais desfavorecida, a atribuir um rendimento mínimo e a manter a diferença política, social e económica não equitativa. Neste caso, em vez da interpretação democrática da diferença social, a concepção rawlsiana da justiça social corresponderia ao princípio da aristocracia natural. Mas, se Rawls inclui o princípio da igualdade de oportunidades no segundo princípio e se considera que o princípio da igualdade se expressa na sua teoria através do princípio da igual liberdade e da igualdade equitativa das oportunidades, é porque pretende legitimar e justificar as desigualdades resultantes da igual liberdade e da igualdade equitativa de oportunidades. De acordo com o reconhecimento da diversidade de pessoas, a igualdade equitativa de oportunidades não obriga a que dessa igualdade universal decorram idênticas posições iniciais e de chegada. A sua condição de aplicação 9 Cf. RAWLS, id., p. 87. 10 Intervenção tanto menos justificada quanto o princípio da igualdade de oportunidades releva da justiça processual pura, dispensando o controlo da infinita variedade de circunstâncias (Cf. RAWLS, id., ibid). 142 REGINA QUEIROZ não é a eliminação das diferenças naturais e sociais — tal eliminação seria tão arbitrária quanto a sua consideração — mas oferecer iguais oportunidades a todas as pessoas, sejam quais forem os seus talentos, naturais e sociais. Ou, por outras palavras, o princípio da igualdade de oportunidades não procede por exclusão das diferenças, mas por inclusão do máximo de diferença. Inclusão não disjuntiva, no sentido em não que pressupõe a exclusão dos mais favorecidos pela natureza e pela sociedade ou a dos mais desfavorecidos, mas sim a inclusão de uns e de outros. Daí que Rawls tenha necessidade de esclarecer na sua teoria da justiça que o princípio da igualdade de oportunidades não é um princípio meritocrático11 — veja-se, por exemplo, a crítica de Susan Okin e de Iris Marion Young à teoria rawlsiana da justiça12. E tem de fazê-lo, porque considerar que todas as pessoas estão submetidas às mesmas condições implica forçosamente um resultado não igualitário: dadas as mesmas condições, serão mais bem sucedidas as pessoas com mais talentos naturais e sociais. Neste caso, a igualdade equitativa de oportunidades vincula a teoria da justiça à aceitação total da diferença natural. Aspecto, por exemplo, claramente presente no debate de Rawls com Amarthya Sen. Em “Justice: Means versus Freedoms”, Sen questiona o primado da igual capacidade para a atribuição dos bens primários13 — entre os quais se encontram as oportunidades — porque essa capacidade não considera as diferentes capacidades individuais para transformar aqueles bens, enquanto meios de realização da personalidade pessoal, em projectos de vida. A capacidade representa a liberdade com uma variável de relação interpessoal entre os meios e a liberdade actual para os concretizar14. 11 Cf. RAWLS, id., p. 106. 12 Susan Okin objecta que se se tratam igualmente pessoas que estão numa situação diferenciada, então os princípios de justiça acabarão por manter essas desigualdades. Por exemplo, a reflexão sobre os rendimentos efectuada em termos puramente individuais minimiza o facto de nas sociedades actuais, estruturadas em função da discriminação sexual ou de género, as posições e expectativas serem atribuídas em função do sexo e, por isso, não haver uma atribuição igualitária daqueles rendimentos (OKIN, 1991, p. 186). Também Iris Young objecta que. dadas as diferentes capacidades, valores e estilos de comportamento entre grupos sociais e culturais distintos, a exigência de igual tratamento tende a perpetuar a opressão ou as inúmeras desvantagens. Nesse sentido, propõe um tratamento diferencial, consubstanciado na atribuição desigual dos direitos políticos, de modo a minimizar a opressão ou a desvantagem (Cf. YOUNG, 1990, pp. 257 e 266-71). 13 Os bens primários consistem em direitos, liberdades, oportunidades, rendimento e bem-estar, assim como as bases sociais do auto-respeito. 14 Cf. SEN, 1990, pp. 113-4. 143 IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS Na atribuição dos bens em função da capacidade, é menos importante a variação interindividual dos fins — valorizada na teoria de Rawls — do que a variação intra-individual, ou seja, a relação entre os fins que a pessoa tem e o poder de converter esses bens primários na realização dos fins15. Por exemplo, uma pessoa doente ou pobre não tem a mesma capacidade para usar os bens que lhe são atribuídos; por isso, pessoas com diferentes capacidade têm diferente capacidade para usar os bens primários, mesmo que lhes sejam atribuídos mais recursos. Também uma pessoa deficiente pode ter mais bens primários (liberdades, rendimento, bem-estar), mas menos capacidade, ou seja, menos capacidade para usar os recursos colocados à sua disposição. Valorizar a capacidade implica, por conseguinte, uma flexibilização na atribuição dos recursos ou meios para a liberdade, avaliando, caso a caso, quais os recursos mais apropriados à liberdade actual de escolha e à conversão dos bens em fins. Deve-se, por isso, integrar na deliberação política as diferentes capacidades de usufruto dos bens disponíveis. Assim, na resolução do problema da pobreza pelos países mais ricos deve-se ponderar não apenas o facto de as populações serem pobres em rendimento e outros bens primários, mas também a circunstância de, devido à idade, a deficiências várias, a doenças e outras vulnerabilidades, tanto ser mais difícil converter os bens primários em capacidades, como ter uma vida saudável ou participar na vida comunitária16. A equidade consiste, assim, na distribuição dos bens sociais em função do conhecimento da liberdade actual de transformação dos recursos em fins17. Na resposta às objecções de Sen Rawls reitera, em Political Liberalism, o seu princípio da posse, requerido num grau mínimo, das capacidades morais, intelectuais e físicas as quais, ao permitirem às pessoas ser membros plenamente cooperantes das sociedades, justificam a atribuição igualitária dos bens primários18. Não deixa, todavia de concordar com “(…) a importância capital das capacidades básicas e a consequente necessidade de definir o uso dos bens primários por referência a assunções respeitantes a essas capacidades”19 e com a 15 Cf. SEN, id., pp. 119-20. 16 Cf. SEN, id., p. 116. 17 Cf. SEN, id., p. 112. 18 Cf. RAWLS, 1993, p. 183. 19 Cf. RAWLS, id., ibid. 144 REGINA QUEIROZ existência de variações em relação ao uso dos bens primários. Identifica, neste contexto, quatro tipos de variações: 1. nas capacidades e proficiências morais e intelectuais; 2. nas capacidades e proficiências físicas; 3. nas concepções do bem apresentadas pelos cidadãos; 4. nos gostos e nas preferências 20 Dessas variações Rawls conclui que, exceptuando o caso das variações nas capacidades e proficiências físicas, os bens primários são adequados à totalidade dos casos e que a teoria da justiça também tem recursos para lidar com aquelas diferenças. Assim, se as variações nas capacidades e proficiências morais e intelectuais são conformadas pelas práticas sociais de habilitação para posições pela livre concorrência num quadro de igualdade equitativa de oportunidades, e pelo princípio das desigualdades equitativas, as variações nas capacidades físicas são enfrentadas no fórum legislativo de acordo com o conhecimento da preponderância, dos tipos e dos custos dos tratamentos, avaliados e equilibrados relativamente ao total da despesa pública, sob pena de se verificarem as consequências referidas por Arrow e Harsanyi21. As variações nos gostos são da responsabilidade das próprias pessoas22. Neste último caso, o facto de as pessoas não serem portadoras passivas de desejos, mas serem também responsáveis pelos seus fins supõe a capacidade de ajustar, no decurso das suas vidas, os seus gostos e aversões, sejam eles quais forem, ao rendimento, riqueza e posição na vida que podem razoavelmente obter. É, 20 Cf. RAWLS, id., p. 184. 21 Kenneth Arrow observa que a regra maximin — regra válida para contextos macroscópicos e que enuncia devermos ordenar as alternativas em função das piores de entre as respectivas consequências possíveis, adoptando a alternativa cuja pior consequência seja superior a cada uma das piores consequências das outras — pode conduzir ao empobrecimento generalizado. Por exemplo, a regra pode implicar a decisão de se propiciar tratamentos médicos onerosos a algumas pessoas em estado terminal e de se reduzir o resto da população à pobreza. Cf. ARROW, 1973, p. 251. Harsanyi também se interroga se um governo que tiver de atribuir recursos médicos escassos o deverá fazer a doentes que possam beneficiar desses medicamentos ou a doentes terminais, sem qualquer possibilidade de cura? Ou então, se o governo que tiver de atribuir benefícios educacionais o deverá fazer a estudantes talentosos, que poderiam beneficiar mais dessa ajuda, ou a alguns alunos atrasados mentais, de onde derivariam benefícios menores da educação adicional. De acordo com a regra maximin, Harsanyi supõe que o governo escolherá atribui-los a doentes terminais e aos atrasados mentais, Cf. HARSANYY, 1976, PP. 59-60. Por isso, ainda que Harsanyi reconheça a validade prática dessa regra, considera inaceitável a sua aplicação como princípio moral de atribuição dos benefícios sociais. Cf. HARSANYI, id., p. 61. 22 Cf. RAWLS, 1971, pp. 184-7. 145 IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS injusto, por isso, “(…) que certas pessoas devam, no presente, auferir menores rendimentos ou deter menor riqueza simplesmente para poupar às outras as consequências da sua falta de visão ou de disciplina”23 . Quanto às concepções do bem, a justiça como equidade admite todas as variações possíveis desde que os projectos de vida não violem os princípios básicos da cooperação social. Rawls mantém o princípio da igual capacidade moral para agir de acordo com o sentido de justiça e possuir uma concepção particular do bem, assim como o princípio da igualdade equitativa de oportunidades, como critérios de atribuição dos direitos básicos. Critérios em função dos quais a diferente capacidade para transformar os bens em fins realizáveis, na acepção de Sen, ou para transformar as capacidades naturais em posições sociais, como defende Barry em Justice as Impartiality24, ou Gauthier em Morals by Agreement25, não é passível de ser objecto de atribuição de diferentes direitos pessoais. Assim, apesar de a proposta de Sen sublinhar a necessidade de maior protecção às pessoas individuais que estão em situação social, política e económica desvantajosa26, Rawls rejeita que a determinação do conteúdo dos princípios possa expressar a vantagem das pessoas com menos capacidades, porque as necessidades, da mesma maneira que as aspirações e os desejos circunstanciais, não desempenham qualquer papel em problemas de justiça27. Necessidades e capacidades estão dependentes das circunstâncias históricas. Se os menos dotados pela natureza e os mais carenciados não devem ser discriminados na atribuição das liberdades, direitos e oportunidades, os mais bem posicionados socialmente e os mais talentosos também não devem sê-lo: nem uns nem outros escolheram a posição social e natural em que nasceram. Apenas as necessidades puramente racionais, cujo conteúdo são os bens primários, têm valor na sua teoria da justiça. Por isso, uma coisa é Rawls afirmar que a atribuição das oportunidades não pode estar fundada nas características sociais e naturais, outra completamente 23 Cf. RAWLS, id., p. 186. 24 Cf. BARRY, 1995, p. 72. 25 Cf. GAUTHIER, 1986, p. 13. 26 Tal como, por exemplo, Kymlicka em relação aos direitos culturais das minorias, Susan Okin em relação às mulheres e Young aos grupos sociais mais desfavorecidos. 27 Cf. RAWLS, 1982, pp. 373 e 374. 146 REGINA QUEIROZ diferente é supor que a prática social regulada por esse princípio deva suprimir as diferentes capacidades ou talentos. Na teoria rawlsiana, estes devem ser protegidos não apenas por razões de salvaguarda da integridade pessoal, mas também por razões de fraternidade social, expressas no princípio das desigualdades equitativas — é o resultado diferenciado da atribuição da igualdade equitativa de oportunidades que explica a emergência do princípio das desigualdades equitativas. Assim, de acordo com este princípio, é possível que, graças à diferença natural de talentos, se melhore a posição dos mais desfavorecidos. Apesar da arbitrariedade da distribuição natural e de as oportunidades não deverem ser atribuídas em função do mérito, as pessoas natural e socialmente favorecidas podem beneficiar da sua diferença, através de uma atribuição de direitos diferenciados. Esta atribuição permite que todos fiquem a ganhar28. Note-se, todavia, que a hipótese de uma distribuição equitativa não igualitária dos bens advém de diferentes posições sociais resultarem das igualdades equitativas. Esta situação é, todavia, omitida na crítica de Nozick ao princípio da igualdade equitativa de oportunidades. Omissão não despicienda, pois o princípio da igualdade equitativa de oportunidades é um princípio de diferenciação social. Tal omissão supõe o não reconhecimento29 de que o princípio da diferença possa ser um princípio de legitimação da distinta posição social, independentemente da melhoria da posição social dos mais desfavorecidos: ainda que não houvesse essa restrição, as diferenças sociais estariam legitimadas pelo princípio da igualdades equitativa de oportunidades. Com efeito, para o autor de Anarchy, State and Utopie, a igualdade de oportunidades é um factor de empobrecimento, quer essa igualdade seja obtida pela deterioração das condições de existência dos melhores posicionados, quer, pelo contrário, seja obtida pela melhoria da dos mais desfavorecidos30. Assim, ainda que Nozick considere que se as pessoas em pior situação fossem melhor dotadas do que realmente o são estariam em melhor posição — Nozick estabelece uma 28 Cf. RAWLS, 1971 , pp. 101-2. 29 Esse não reconhecimento está claramente expresso no facto de o princípio da igualdade equitativa de oportunidades ser tratado no capítulo sobre “Equality, Envy, Exploitation, Etc.” (Cf. NOZICK, 1974, pp. 235-8), enquanto que o princípio das desigualdades equitativas está integrado na secção sobre a teoria de Rawls (Cf. NOZICK, id., pp. 183-232). 30 Cf. NOZICK, id., p. 235. 147 IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS correlação entre as piores posições sociais e os diferentes talentos — rejeita a hipótese da igualdade de oportunidades porque esta pressupõe a aplicação à vida real do modelo da corrida para a conquista de um prémio. Neste, uns estão colocados mais perto da linha de partida do que outros, ou transportam pesos mais pesados. No entanto, tal modelo não tem qualquer valor porque na vida real porque: 1. ninguém compete por um prémio estabelecido por alguém, nem há uma corrida unificada, com um juiz para avaliar a rapidez. Há apenas pessoas diferentes, dando separadamente a outras pessoas coisas diferentes. Os que dão não se preocupam com o mérito, mas apenas com o que a pessoa obtém; 2. a arbitrariedade dos talentos naturais para a atribuição de propriedades (holdings) é irrelevante31. Assim, da mesma maneira que não há uma corrida unificada, nem um juiz para avaliar a rapidez, também não há nenhum processo centralizado que julgue o uso que as pessoas fazem das suas oportunidades32, nem quem confira essas oportunidades: ninguém tem direito ao uso de coisas e actividades sobre os quais outras pessoas têm direitos e títulos33. Nozick reduz, assim, o princípio da igualdade de oportunidades a uma igualização dos resultados e de pontos de partida. Tal identificação é, todavia, incompatível com a concepção rawlsiana daquele princípio que não inclui nem uma nem outra. Interpretar o princípio da igualdade equitativa de oportunidades como um princípio de igualização dos resultados e do ponto de partida, entendê-lo como um princípio igualização e não de diferenciação, dissociando-o, além disso, do princípio da desigualdades, não permite inteligir que estas possam ser resultado de uma atribuição de iguais direitos a pessoas com diferentes capacidades e talentos, e que a atribuição desigual fundada na exigência de melhorar a posição dos mais desfavorecidos constitui um momento de dupla legitimação daquelas desigualdades. 31 Cf. NOZICK, id., p. 238. 32 Cf. NOZICK, id., pp. 235-6. 33 Cf. NOZICK, id., p. 238. 148 REGINA QUEIROZ Nozick não tem, pois, razão quando entende a igualdade de oportunidades e as desigualdades equitativas como princípios que anulam a diferença de posições sociais. Essa interpretação poderá estar fundada no facto de Rawls tanto considerar que o princípio da igual liberdade corresponde às exigências de liberdade, que o da igualdade equitativa de oportunidades juntamente com o princípio da igual liberdade equivalem às exigências da igualdade e o das desigualdades equitativas ao da fraternidade, como, por vezes, identificar o princípio da diferença ao das desigualdades equitativas, dissociando-o do princípio da igualdade de oportunidades34. No entanto, nas inúmeras formulações do princípio da diferença, Rawls inclui não só o princípio da igualdade equitativa de oportunidades, como o princípio da diferença35. A interpretação de Nozick não advém apenas das ambiguidades na formulação do princípio da igualdade equitativa de oportunidades, mas do facto de reduzir o princípio da diferença ao das desigualdades equitativas e presumir que este princípio exige a anulação da diferença natural e social, enquanto essa diferença está associada à correlação entre os talentos naturais e direitos individuais36. Assim, quando no capítulo sobre as bases da igualdade Rawls refere a aplicação do princípio das desigualdades equitativas aos talentos naturais — é justificada uma atribuição desigual às pessoas com talentos naturais desde que essa atribuição permita melhorar a posição dos mais desfavorecidos — Nozick não aceita o argumento intuitivo rawlsiano de que não merecemos os nossos talentos naturais. E não o aceita porque o interpreta como um princípio de interdição da atribuição de diferentes propriedades (holdings) em função das diferenças naturais: se a atribuição dos direitos fundamentais a pessoas separadas não pode estar fundada na arbitrariedade dos talentos naturais, então aquela distribuição dos bens impede que as pessoas tenham direito a propriedades diferentes. Na medida em que aquele princípio intuitivo é um princípio fundamental de atribuição dos bens primários, a inquietação de Nozick consiste, assim, no facto de a implantação dos princípios de justiça ser incompatível com a aceitação da diferença de propriedades individuais e com os correlatos diferentes direitos à distribuição das propriedades, bens ou ganhos, 34 Cf. RAWLS, 1971, p. 106. 35 Cf. RAWLS, id., pp. 60-1 e 302. 36 Correlação não despicienda porque as diferenças de dotes naturais, sociais e económicos têm relevância nas questões distributivas. No entanto, para Rawls, as piores posições sociais não estão associadas à diferença de talentos. 149 IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS cuja consequência última seria a colectivização dos talentos. Esta implica a violação do direito de as pessoas disporem de si próprias como lhes aprouver. O resultado distributivo do uso das propriedades individuais não beneficiaria apenas o próprio mas também as outras pessoas, e esse benefício não seria produto de uma deliberação pessoal mas sim de uma estipulação social. Com essa estipulação pessoal, a pessoa ficaria reduzida a um eu puramente geral sem qualquer determinação particular, ou seja, sem as suas propriedades. A justiça como equidade violaria o direito individual à posse de si próprio e o direito ao usufruto da transformação das suas propriedades em direitos, implicando uma concepção sacrificial da vida social37. Em ambos os casos, a colectivização dos talentos seria incompatível com o pluralismo antropológico38. Contra tal apropriação colectiva dos direitos individuais argumenta que, se é um facto que não merecemos aqueles talentos, as nossas disposições naturais não deixam de ser nossa propriedade e, por isso, a diferente atribuição de propriedade em função da arbitrariedade dos talentos não deve impedir diferenças na distribuição da propriedade. Ou, por outras palavras, qualquer princípio de justiça que esteja fundado na suspensão daquela diferença em função do argumento do seu não merecimento não tem qualquer legitimidade, porque esses talentos são resultado de uma atribuição natural, ou seja, são propriedade do sujeito. Razão pela qual afirma que não é necessário que os fundamentos subjacentes ao merecimento sejam em si merecidos, retroagindo ininterruptamente39. Quando refere que, embora as características individuais possam ser socialmente actualizadas, essa actualização não justifica a colectivização dos talentos, nem oferece qualquer fundamento para os tratar como um capital comum, Gauthier defende uma posição similar à de Nozick40. Por isso, apesar de reconhecer a arbitrariedade dos talentos sociais, Gauthier admite que os talentos 37 Cf. NOZICK, 1974, pp. 213-31. 38 Também Arrow questiona o princípio da colectivização dos talentos. Defende que a utilização social dos talentos implica tratar as pessoas como meios e não como fins, ou seja, uma concepção sacrificial da justiça social (Cf. ARROW, 1973, p. 257). Sobre as críticas de Nozick à colectivização dos talentos exigidas pelo princípio de diferença, ver ainda SANDEL, 1982, pp. 73-103, PARIJS, 1988, pp. 66-77 e KYMLICKA, 1990. 39 Cf. NOZICK, 1974, p. 225. 40 Cf. GAUTHIER, 1986, p. 253. 150 REGINA QUEIROZ naturais determinem e contribuam para o produto individual obtido por cada um na sociedade41, advogando, assim, que a única maneira de tomar a sério a pluralidade de pessoas consiste em maximizar a utilidade individual42. No entanto, se a atribuição da igualdade de oportunidades em função daquele princípio não viola a integridade das pessoas, também a justificação da atribuição diferenciada dos direitos em função daquela diferença não transforma a pessoa num instrumento social. O princípio da diferença apenas indica que, apesar da arbitrariedade da diferença natural e social, as diferenças naturais e sociais são politicamente reconhecidas se, e somente se, permitirem melhorar a posição dos mais desfavorecidos. Neste caso, as instituições políticas devem reconhecer a legitimidade da diferença de talentos. Tal disposição não implica, porém, a alienação desses talentos, quer porque justifica o apoio público para o seu desenvolvimento, quer porque também reconhece o domínio não político do exercício dos seus direitos. Melhor dizendo, se ninguém pode reivindicar a atribuição diferenciada de direitos políticos com base na sua excelência moral e social, sem que essa reivindicação implique a melhoria dos mais desfavorecidos, também ninguém é obrigado a aceitar que essa diferença tenha um qualquer valor político: o valor político dos talentos está fundado no consentimento. E, no caso do não consentimento, a não aceitação não acarreta a renúncia às suas propriedades naturais e aos bens que elas lhe podem propiciar. Uma coisa é essa diferença ser, para efeitos de atribuição de direitos políticos, justificada se, e somente se, permitir melhorar a posição das pessoas em pior posição social e económica, outra completamente diferente é coagir as pessoas a fazê-lo. Assim, se é um facto que através do princípio da igualdade de oportunidades a teoria da justiça tem como desiderato oferecer um ponto de partida o mais equitativo possível para a prática no mercado económico, de modo a que a relação entre os talentos naturais e a distribuição não seja afectada pela diferença social no desenvolvimento daqueles, tal não significa, repetimos, que essa igualdade de oportunidades anule a diversidade de talentos, assim como a sua qualidade. Tal consequência seria incompatível com a sua teoria da justiça, a qual visa salvaguardar o princípio da pluralidade de pessoas. Não atribuir 41 Cf. GAUTHIER, id., p. 220. 42 Cf. GAUTHIER, id., p. 254. 151 IGUALDADE EQUITATIVA DE OPORTUNIDADES E CAPACIDADES NA TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS direitos em função da diferença natural não culmina na igualização e unificação natural e social dos seres humanos. Para além disso, ao considerar a possibilidade de uma atribuição diferenciada dos talentos individuais, Rawls não aceita que esse incremento possa estar associado a uma concepção sacrificial das pessoas. O princípio das desigualdades equitativas aplicado aos diferentes talentos implica o reconhecimento do direito a uma diferença política, económica e social dos mais talentosos. Tal diferença não está, todavia, fundada na arbitrariedade natural e social, mas em princípios éticos e políticos de justiça reguladores das instituições da estrutura básica. 152 Bibliografia ARROW, K. (1973): “Some Ordinalist-Utilitarian Notes on Rawls’s Theory of Justice”, in The Journal of Philosphy, 77, nº9, pp. 245-63. BARRY, B. (1995): Justice as Impartiality, Clarendon Press, Oxford. GAUTHIER, D. (1986): Morals by Agreement, Clarendon Press, Oxford. HARSANYI, J. C. (1976): “Can the Maximin Principle Serve as a Basis for Morality? A Critique of John Rawls Theory”, in Essays on Ethics, Social Behavior, and Scientific Explanation, D. Reidel Publishing Company, Londres, pp. 37-63. KYMLICKA, W. (1990): Contemporary Political Philosophy. An Introduction, Clarendon Press, Oxford. NOZICK, R. (1974): Anarchy, State, and Utopia, Blackwell, Oxford. OKIN, S. M. (1994): “John Rawls: Justice as Fairness — For Whom?”, in Feminist Interpretation and Political Theory (eds. Mary Lindon Shelley and Carole Pateman), Polity, Oxford, pp. 181-98. PARIJS, P. (1988): “Liberté Formelle et Liberté Réelle”, in Revue Philosophique de Louvain, 86, nº69, pp. 66-77. RAWLS, J. (1971): A Theory of Justice, Oxford University Press, Oxford. RAWLS, J. (1982): “Social Unity and Primary Goods”, in John Rawls. Collected Papers (ed. Samuel Freeman), Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1999, pp. 359-387. RAWLS, J. (1993): Political Liberalism, Columbia University Press, New York. RAWLS, J. (2001): Justice as Fairness. A Restatement (ed. Erin Kelly), The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts. SANDEL, M. (1982): Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge University Press, Cambridge. SEN, Amartya (1990): “Justice: Means versus Freedoms”, in Philosophy & Public Affairs, 19, nº2, pp. 111-21. YOUNG, I. M. (1990): Justice and the Politics of Difference, Princeton University Press, Princeton. 153 Ética e Cultura, Modelos Económicos e Intervenções Políticas José Lacerda da Fonseca Introdução – Ética, fundamentação, condicionamento, liberdade, tradições e modelo social. A partir do momento que se crê que a promoção da ética não está assegurada por nenhum mecanismo social espontâneo, passa-se a esperar que esta promoção constitua preocupação da gestão política das sociedades. A luta pelos direitos humanos constitui uma intervenção política de um vector ético, essencial mas insuficiente, face ao largo campo da ética. Esta constitui o regulador social que vem de dentro de cada indivíduo, sem o qual não existe a possibilidade de qualquer modelo social sustentável, já que é impossível que exista um controlo, social, judicial e jurídico, que seja exaustivo sobre os actos dos cidadãos. Como é hoje muito claro, uma degradação da ética pode suscitar degradações, progressivas mas capitais, não só na segurança e na vida social mas, também, na vida económica e financeira. Perante sistemas tradicionais de promoção de éticas, religiosos ou ideológicos, que se fecharam em mecanismos de condicionamento cultural do indivíduo, parece de esperar que, na actualidade, a promoção das éticas passe por maiores exigências de liberdade e abertura racionalista. Só assim, em verdadeira liberdade, o indivíduo poderá vir a escolher o seu trajecto ético, nomeadamente e de forma aparentemente paradoxal, vir a escolher um trajecto de autocondicionamento cultural e de desenvolvimento de competências cognitivas, necessárias a uma vida ética. De facto, uma opção por uma ética sem deliberação racional será um atentado à liberdade de pensamento mas, no lado inverso, ética sem trajectos existenciais de autocondicionamento, sublimação e desenvolvimento de competências, existenciais e de confiança, pode não ser mais que uma frágil quimera intelectual, incapaz de se afirmar nas dificuldades que a existência e as tensões sociais colocam. Passou quase desapercebida a reflexão sobre condicionamento cultural, já de 1945, de Skinner, o pioneiro 155 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS das técnicas de aprendizagem através do condicionamento psicológico (com os conhecidos conceitos de reforço positivo e negativo). Apesar dos seus créditos científicos, a reflexão dos seus livros1 não se poderia afirmar numa sociedade traumatizada pelas máquinas de propaganda dos regimes ditatoriais. Talvez, hoje, já possamos reflectir, mais abertamente, sobre novos equilíbrios entre liberdade e condicionamento cultural, olhando para os processos usados pelas diversas tradições culturais e compaginando-as com o princípio da liberdade na autodeterminação individual. O edifício racionalista parece não ser, por si só, suficiente para mobilizar para a ética, concitando a reflectir sobre os processos de afirmação ética usados nas diversas tradições, de longa história. As reflexões pós-modernas evidenciaram a impossibilidade de fundamentação absoluta de fundamentos das teorias sociais e das filosofias morais e éticas. Bauman, na sua síntese sobre a ética pós-moderna2, di-lo na mais clara das formas, afirmando que “o fenómeno moral é por inerência um fenómeno não racional”. Já o mesmo tinha sido defendido por vários outros filósofos pós-modernos3. As éticas surgem, portanto, enquanto opções por estilos de vida que não se arrogam a garantir o bem-estar de quem as perfilha, nem conseguem afirmar a sua superioridade social sobre filosofias concorrentes. Sem o escudo absolutista da razão, a efectiva adesão a uma ética parece precisar de ser muito ajudada por diversificados recursos da cultura, mediante o desenvolvimento de competências individuais específicas, autocondicionamento, sublimação e pela inserção em redes sociais de partilha de valores. Uma utilização plena, embora crítica, dos recursos das tradições religiosas, ideológicas e, em geral, das tradições culturais, para motivar a adesão a valores éticos, poderá exigir a construção de pontes, epistemológicas, entre as tradições e o racionalismo (inspirado pelas metodologias científicas), bem como de pontes entre os diversos tipos de tradições. Pretende-se aqui analisar três níveis destas intermediações epistemológicas. Primeiro, a relação entre racionalidade moderna e as tradições. Segundo, a relação entre as tradições religiosas e as ideologias políticas. Terceiro, a relação entre as tradições ideológicas do liberalismo e do socialismo e a sua consubstanciação em modelos sociais, políticos e económicos. De facto, uma política de promoção da ética estende-se, necessariamente, para o desenvolvimento de um projecto social, orientado para uma nova modelação das organizações políticas, económicas e sociais, naquilo que será a concretização política da ética e, dialécticamente, fonte do seu, 156 JOSÉ LACERDA DA FONSECA indispensável, fortalecimento. Pelas referidas dificuldades de fundamentação, a mobilização para valores éticos exige, para além do acesso a vastos recursos culturais, que os valores éticos provem a sua viabilidade, na prática dos modelos económicos e políticos. Na sequência destas análises, serão expostos alguns vectores do que poderá ser considerada uma política actual de promoção da ética que, aliás, não se resume a educação cívica e moral, informação ética, formação e regulação dos media, constituindo um campo, vastíssimo, que não deve escapar às agendas políticas. 1. Uma mediação entre racionalidade e ética – o problema da fundamentação não absoluta da ética e a abordagem segundo uma perspectiva consequencialista subjectiva. A necessidade de estabelecer uma primeira ponte epistemológica, entre razão e tradição, resulta da convicção sobre a fraqueza mobilizadora da razão, obrigando a aceitar um grave impossibilidade. Trata-se da impossibilidade de convencer alguém, de forma absoluta e racional, de que a melhor opção de vida é uma opção ética, bem como da maior impossibilidade de argumentar, em absoluto, a favor de um modelo ético específico. Uma argumentação racionalista pode, até, ser insuficiente para mobilizar para uma ética minimalista, asseguradora dos mínimos de cooperação social, parecendo muito menos capaz de mobilizar para patamares elevados de altruísmo. Face a esta impossibilidade, restará tentar mostrar a relação entre certos projectos (existenciais e sociais) e certos valores éticos, na expectativa que os indivíduos possam ser seduzidos por projectos de carácter humanista, bem como pelas atitudes éticas que estes exigem. O método será mostrar que pode ser interessante, para cada indivíduo, viver de uma maneira que é passível de ser vivida por todos, sem exclusões agressivas. Olhando para a história da ética, verifica-se que reflexões sobre os fundamentos da ética e dos modelos sociais decorrentes se tentaram sustentar, frequentemente, num objectivo social, ideal e último, a obter, progressivamente, com a vivência das regras éticas. Por exemplo, Aristóteles definiu como objectivo da ética a realização de uma certa ideia do que consistiria a felicidade do indivíduo (a vida virtuosa que seria a única vida feliz). Hobbes e Hume tomaram como objectivo da ética o assegurar limites para a violência, já que 157 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS esta seria tendência natural a controlar a todo o custo. A maximização da soma do bem-estar, no conjunto dos indivíduos, surge também enquanto objectivo último, como em Locke e Bentam, constituindo o que geralmente se apelida de utilitarismo. Ao contrário destes esquemas “consequencialistas” (que tentam validar as regras éticas pelas suas consequências positivas), outras éticas optaram por se fundamentar através de regras de condução do raciocínio perfeito e puro que permitiria concluir pelas verdadeiras regras éticas. Os casos mais famosos deste tipo de fundamentação serão Kant e Rawls (usando, também, o chamado construtivismo kantiano) ou, ainda, pela afirmação intuitiva de valores universais básicos de onde se deduziriam todos os outros. Todos os métodos têm as suas limitações e nenhum parece ter provado a sua superioridade4, o que de alguma forma autoriza a usar um método fundamentalmente consequencialista que será perfilhado no presente texto. O mais importante debate dos últimos tempos do século XX, sobre ética e modelos socioeconómicos, foi efectuado em torno da obra de Rawls5. Embora não adoptando um método consequencialista, a atitude de Rawls reflecte já uma certa descrença na fundamentação absoluta de valores e modelos sociais, ao tentar restringir o debate à procura de alguns consensos, minimalistas, sobre características da sociedade justa. Pelo menos no mundo académico, esse consenso não foi possível, assim como não foi possível o consenso em torno de teorias, subsequentes, de Nozick, Sandel, Walzer, Raz, Dworkin ou MacIntyre, entre outros, fortemente influenciados pelos termos colocados por Rawls (com excepção de MacIntyre). Estes autores protagonizaram, durante a parte final do século passado, um debate que tem sido chamado de debate entre liberais e comunitários6. Afirmando-se o valor prioritário da liberdade, este valor acabou por ser equilibrado, já no próprio Rawls e, mais ainda na sequência dos debates, pelos valores da solidariedade, da responsabilidade social e participação comunitária, naquilo a que Michael Walzer chamou da “correcção comunitária do liberalismo”. Contudo, estas importantes teorizações situaram-se no nível, muito abstracto, da filosofia moral, ficando longe de reflexões multidisciplinares sobre as dinâmicas, culturais e económicas, nas quais seria possível definir modelos políticos, concretos, de equilíbrio entre os valores centrais da liberdade e da coesão, igualdade e solidariedade. De facto, muito longe se ficou do nível concreto dos históricos debates entre socialismo e liberalismo económico. Tal pode atribuir-se, 158 JOSÉ LACERDA DA FONSECA possivelmente, à dificuldade em dar resposta a todas as críticas muito abstractas, nomeadamente sobre o construtivismo kantiano de Rawls7, bem como devido à dificuldade em abordar temas, mais concretos e vastamente multidisciplinares, como os regimes de incentivo remuneratório, os limites do mercado, a evolução do Estado e da governança dos grupos, o condicionamento cultural e a criação mediática de expectativas e estilos de vida. Feita esta, brevíssima, digressão, pós-moderna, filosófica e rawlsiana, pelos processos de fundamentação racionalista de valores éticos, é altura de definir qual o método que aqui será usado. Será usado um método consequencialista, no sentido em que a mobilização para os valores será validada tentando mostrar que o seu exercício pode ter como consequência um estilo de vida interessante, para qualquer indivíduo e passível de ser vivido por todos os indivíduos em conjunto, sem exclusão de alguém devido a qualquer sistema competitivo. Esta inclusão, de todos os indivíduos, expressa o humanismo enquanto fim que valida o projecto ético. O consequencialismo aqui usado terá algumas outras particularidades: 1. O referido estilo de vida humanista exige não só o exercício de valores éticos mas também a realização de outras condições sociais, culturais, políticas e económicas, sem os quais esse exercício não será atraente. Algumas dessas condições decorrem da aplicação dos valores éticos mas outras são opções meramente sinérgicas e imperfeitamente fundamentadas. Trata-se de consequencialismo sinérgico, já que é complementado com opções concretas que não decorrem de nenhum valor abstracto mas que se considera serem sinérgicas com a vivência prática dos valores éticos. Por exemplo, uma destas condições que será aqui, de seguida, considerada, é o acesso universal a serviços de saúde. Por oposição ao idealismo ético individualista (típico de muitas religiões e algumas ideologias) considera-se que a ética só pode ser exercida, amplamente, se forem criadas certas condições materiais. 2. Este consequencialismo tenta expressar-se ao nível de opções concretas da vida social, nomeadamente ao nível da vida económica, política e cultural, não se restringindo à afirmação de um código moral passível de ser vivido em qualquer sistema social. É, portanto, um consequencialismo político, no sentido que propõe alterações na gestão e distribuição do poder social, 159 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS nomeadamente nas lógicas de distribuição de rendimentos e do poder político, entendidas como condições indispensáveis à vida ética generalizada. Por oposição ao idealismo ético individualista, considera-se que a ética só pode ser exercida, amplamente, se forem criadas certas condições políticas, económicas e culturais. 3. Empresta do debate liberais/comunitários a centralidade da reflexão sobre as relações entre liberdade e solidariedade/coesão social. Empresta, também da mesma fonte, algumas referências argumentativas. De facto, a tentativa que aqui se fará de valorizar algumas condições, materiais e sociais, indispensáveis para a vida ética (que aqui serão chamadas condições de acesso mediano) fica próxima do nível de abstracção e de alguns formalismos dos princípios da justiça de Rawls, bem como é escassa na argumentação que faz a favor dessas condições (tal como Rawls). Rawls considerou que os seus princípios seriam evidentes para alguém que colocasse as suas especificidades pessoais de lado e pensasse como alguém que desconhecia as suas características e qualidades e, por isso, pensasse na perspectiva próxima do homem em geral. O mesmo pressuposto será aqui usado para fundamentar as referidas condições de acesso mediano e a pretensão de que serão suficientes para possibilitar uma vida interessante a qualquer indivíduo. Em suma, o consequencialismo aqui usado, inclui componente do método construtivista, sendo, realmente, um método misto. 4. Não tenta demonstrar, em absoluto, a sua superioridade, face a outras teorias nem a sua certeza absoluta mas, apenas, mostrar que certas práticas e estilos de vida merecem ser tentadas para que, da sua prática, resultem as verdadeiras conclusões. Tal implica tolerância, precaução, projectospiloto, delimitação de possíveis efeitos colaterais, gradualidade e outras atitudes que resultam de humildade face ao que se pode saber seguramente antes de qualquer prática social. No âmbito do consequencialismo sinérgico, como já referido, é indispensável definir as condições sociais que possibilitarão uma vivência ampla dos valores éticos. Ao conjunto destas condições chamaremos acesso mediano (aos bens e ao poder), podendo ser descrito da seguinte maneira: 160 JOSÉ LACERDA DA FONSECA • Um sistema de garantia das liberdades, isto é, inexistência geral de qualquer tipo de imposição, para além das necessárias para restringir os que atacam a liberdade dos outros; • Acesso a um nível médio de recursos materiais, incluindo o acesso a sistemas de seguros (nomeadamente de saúde) e de poupança. O fim destes sistemas de seguros será perspectivar a continuidade de acesso médio a recursos materiais; • Educação numa cultura de autoconhecimento, desenvolvimento pessoal e de sublimação dos impulsos, com relevância para a sublimação da sede de poder e domínio; • Uma cultura tornando mais inclusivos os padrões de atractividade sexo-afectiva e, em geral, aumentando as oportunidades de realização romântica, sem prejuízo de outros valores e do desenvolvimento de trajectos existenciais amplamente diversificados; • Uma dinâmica social para reduzir assimetrias de poder (financeiro ou político), preservando, somente, aquelas assimetrias necessárias para incentivar os indivíduos a superarem-se e a executarem, o melhor possível, as mais difíceis tarefas e profissões. A importância da redução de assimetrias resulta do entendimento que estas são um risco para a liberdade, de quem tem menos poder, e portanto, pode ser manipulado informativamente, pressionado a aceitar condições de trabalho (questão que voltará aqui a ser abordada), agredido sem que o sistema jurídico e judicial seja mais forte do que o poder agressor, bem como, de diversas outras formas, ser prejudicado pelos que são mais poderosos do que ele. Note-se, ainda, que o poder assimétrico pode ter como consequência a depressão e degradação das qualidades dos menos poderosos e, por outro lado, pode propiciar o desleixo e inércia de quem atingiu já altos níveis de poder. Em suma, deste capítulo, deve dizer-se que este trajecto argumentativo consequencialista cifra-se no seguinte sentido. A implementação da condição de acesso mediano incita o indivíduo à vivência de valores éticos e possibilita um projecto humanista que é a corporização mais absoluta da ética. Dito de outra maneira, a consequência da vida ética é o bem-estar para todos os indivíduos, o que será possível se existirem condições de acesso mediano. As condições de acesso mediano só podem existir como consequência de certos 161 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS modelos políticos, económicos e culturais. Simultaneamente, muitos desses modelos são a corporização de valores éticos, como o valor da liberdade e não podem estar em contradição absoluta com estes. 2. Uma mediação entre ideologia e religião – sobre a relação entre racionalidade, liberdade, condicionamento e competências culturais. Religiões e ideologias aparentam pertencer a dois mundos antagónicos, reclamando-se as últimas da superioridade da racionalidade que reclamam como substituta do pensamento religioso. A perspectiva aqui ensaiada é consideravelmente diferente. Embora reconhecendo as especificidades destes dois mundos, pretende-se realçar as bases humanistas que animam os mais altruístas intentos de ambos, procurando sinergias e delimitando campos complementares. Para realizar este fim teórico, será necessário interpretar a linguagem simbólica da religião, bem como, aliás, a de várias outras tradições culturais, preservando duas vertentes. Primeiro, não obliterando uma leitura objectivista e empírica do mundo e, assim, evitando ser refém de irracionalismo e dos decorrentes fanatismos, intolerâncias, manipulações e obscurantismos. Segundo, não reduzindo as tradições a meras práticas, com algumas funções úteis mas sem fundamento ontológico8, na falta do qual perderiam, possivelmente, parte excessiva da sua eficácia. Na concepção aqui ensaiada, entende-se que as tradições culturais se desenvolvem em torno da arte (como as pinturas rupestres ou a arte sacra) e dos costumes (como os rituais iniciáticos à vida adulta ou os cerimoniais de casamento), em estreita ligações com mitologias e religiões, num conjunto de actividades simbólicas orientadoras da vida individual e social. Segundo Geertz9, um pouco como Cupit, a actividade simbólica da cultura não expressa realidades ontológicas mas sim tentativas de ajudar ao orientar o indivíduo, num mundo que este nunca conseguirá entender racionalmente. Sem perfilhar esta falta de referenciação ontológica, proposta por Geertz, esta sua concepção inspira a visão aqui argumentada. Esta consiste num certo entendimento polissémico da linguagem das tradições, concebendo-a como interpretável, simultaneamente, em três dimensões de significado10. Num primeiro nível de significado, as tradições expressam metodologias de autocondicionamento. Estas são, frequentemente, consubstanciadas em 162 JOSÉ LACERDA DA FONSECA trajectos culturais sublimantes, da sede de poder e domínio11, propiciadores do controlo das pulsões criadoras de tensões entre interesses individuais e interesses colectivos. A linguagem religiosa será, num primeiro nível da sua polissemia, uma forma de estabelecer relações, psicológicas, com entidades, entendidas como metafísicas, com o fim de propiciar mudança psicológica na relação do indivíduo com as suas pulsões. Por exemplo, os conceitos de recompensas após a morte, sobre a égide de uma figura superior que administra uma justiça perfeita, bem como todo o discurso associado, glorioso e idílico, terão o efeito, potencial, em certas circunstâncias, de relativizar a intensidade das pulsões humanas. Num segundo nível de significado, a linguagem das tradições e, aliás, também das ideologias, expressa a possibilidade de existirem dinâmicas ontológicas, teológicas ou historicistas, algo misteriosas e distantes, passíveis de virem a recompensar o indivíduo que assume opções humanistas. De facto, as tradições, numa das suas facetas eticamente mais positivas, promovem opções que devem ser consideradas humanistas porque estão abertas a todos os indivíduos, independentemente das suas capacidades competitivas de superiorização e domínio sobre outros. A principal dificuldade racionalista, para aceitar este nível de significado, das tradições, reside na dificuldade em aceitar que essas expressões sejam objectivas e literais. Contudo, a ciência moderna, sobretudo a física teórica, criou um novo conceito de objectividade, sempre aproximativa e em evolução, abrindo um novo modo de entender as expressões das tradições como sendo, igualmente expressões da realidade que são imperfeitas, aproximativas e em constante evolução do entendimento que fazemos delas. Enquanto o primeiro nível de significado tenta erradicar, parcialmente, o domínio das pulsões sobre o indivíduo, o segundo nível tenta promover novas orientações genéricas alternativas. Por último, o terceiro nível especifica essas orientações e ajuda a desenvolver competências que as levem à prática. De facto, num terceiro nível de significado, as tradições expressam, nomeadamente através das suas histórias e relatos, uma série de atitudes e conhecimentos, promovendo competências para a vivência social e para a gestão das grandes opções da vida individual (como o casamento, a opção profissional, a inserção em equipas e grupos sociais, etc.). Através dos seus relatos, ganhando muito peso emocional devido às 163 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS ritualizações e artes, as tradições valorizam a introspecção e a reflexão, embora, por vezes apenas primária, sobre as leis intrínsecas à vida humana e sobre as possíveis consequências dos actos, ajudam a definir regras e linguagens sociais comuns, valorizam a capacidade de assimilar textos e conceptualizações, criam laços, sociais e afectivos, entre os correligionários. Desta maneira, as tradições culturais constituem uma ampla cultura existencial, indispensável meio para realizar comportamentos que não frustrem os padrões éticos. Evidentemente que existe cultura existencial fora das tradições, como na arte em geral, na psicologia, na filosofia, na experiência da vida comunitária e afectiva e em várias outras fontes. Contudo, as tradições inspiram, ilustram e demonstram o largo potencial da cultura existencial, para o condicionamento ético, para a sublimação e para a aquisição de várias outras competências existenciais, sinérgicas com o exercício do humanismo. Claro que esta leitura, das tradições, terá de ter consciência dos riscos irracionalistas que a imersão no seu simbolismo pode acarretar. Irracionalismo que pode prejudicar o desenvolvimento de competências e espaços reflexivos, acentuar o dogmatismo, a manipulação, o obscurantismo, a intolerância e o fanatismo. O espaço das tradições deverá começar, apenas, para além do espaço das questões sobre as quais a razão se consegue pronunciar. Prioridade à razão e infinito espaço para a tradição, é uma concepção que expressa um equilíbrio muitas vezes difícil de encontrar mas acarretando evidentes virtudes. Por exemplo, como se pode saber, racionalmente, se um indivíduo com opções humanistas será recompensado de alguma maneira? Trata-se de uma opção individual para lá da razão, embora muitas razões possam ser aduzidas a favor do interesse social do humanismo e muitas reflexões o indivíduo deva fazer sobre a adequação, a uma opção humanista, da sua personalidade, tipo de competências e sensibilidade humana. A velha ideia de Kierkegaard, de um salto para lá da razão, ao qual a ansiedade existencial obriga, está aqui presente, sem que a reflexão sobre os riscos e potenciais das tradições deva ser obliterada. Este e outros esforços interpretativos, sobre o funcionamento das tradições, almejam erodir preconceitos de xenofobia e promover dinâmicas nas quais as tradições, religiões, ideologias, arte e ciência possam colaborar, em projectos concretos e em sinergias conceptuais, para atingir os fins do humanismo e da realização individual, cada um destes mundos entendendo qual o seu espaço, 164 JOSÉ LACERDA DA FONSECA as relações que podem estabelecer e as áreas em que podem cooperar. Tentou-se, assim, traçar uma concepção de cultura que, embora partilhando com a “teoria crítica”, de Adorno, Marcuse, Debord e Habermas, entre vários outros pensadores “críticos”12, a noção da capacidade condicionadora da cultura e dos seus riscos alienatórios, reserva, também, para esta, não só uma tarefa de libertação e consciencialização mas, também, uma tarefa de autocondicionamento do indivíduo, desde que este seja assumido em consciência dos seus perigos e limitação de campos de actuação. 3. Uma mediação entre ideologias – liberdade, socialismo e liberalismo. Na procura de novos modelos de fundamentação da ética cabe, obviamente, a reflexão sobre os diferendos éticos entre as diversas ideologias. Também aqui, a procura de pontos comuns e as proximidades entre as ideologias em competição pode ajudar a mobilizar o cidadão para esse património comum. Num quadro de fraqueza mobilizadora das ideologias, este trabalho pode, aliás, também ajudar a desenvolver novas abordagens, mais mobilizadoras para as próprias ideologias. A primeira questão a abordar aqui, no contexto das relações entre liberalismo e socialismo, refere-se à contradição entre liberdade e qualquer outro valor no momento, de transição reformista, em que se força a aplicação desse outro valor. A segunda questão refere-se à aplicação do conceito de liberdade ao momento negocial de definição da distribuição dos resultados de qualquer tarefa executada em comum pelas partes. 3.1. Ética, liberdade e gradualidade das reformas Em relação à primeira questão, parece defensável que um certo postulado de gradualidade, na imposição universal de novos valores, poderá realizar um equilíbrio entre o valor da liberdade (hoje mais associado à ideia do que foi o movimento liberal) e os novos valores (aqui será abordado o valor da solidariedade ou coesão social, mais associado ao movimento socialista). De facto, uma certa gradualidade nas reformas poderá permitir a adaptação das expectativas de vida daqueles que sofrem restrições, possibilitando que estes desenvolvam novas expectativas realizáveis e, em consequência, viabilizem um projecto social humanista, verdadeiramente inclusivo. 165 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS Uma das condições da gradualidade, aqui em apreço, será assegurar que as imposições só possam restringir indivíduos que tivessem criado uma expectativa superior à de um “acesso mediano” (no sentido atrás referido). De facto, pelo que atrás foi dito sobre este acesso, ele seria suficiente para permitir a realização de projectos de vida tão compensadores como quaisquer outros. Em complemento, será de garantir o tempo necessário e os meios culturais suficientes para que essa adaptação, à condição de acesso mediano, se possa realizar com o mínimo de custos pessoais. Não é possível saber, de antemão e em geral, em quantos anos se pode adaptar uma expectativa (mais exigente do que a de acesso mediano) que cresceu durante um certo número de anos. Pensar que um número de anos, de adaptação, igual ao número de anos em que foi esperado um acesso mais amplo é, obviamente, apenas, uma referência para posterior investigação empírica sobre factores de inércia adaptativa. Essa investigação envolverá também várias questões relativas à minimização dos custos de adaptação do indivíduo. De facto, será que o custo pessoal desta adaptação poderá ser contrabalançado por outros factores, de forma a vir a garantir o mesmo nível de bem-estar subjectivo? A percepção de que um sacrifício, de adaptação, redundará em benefício de todas as gerações vindouras será relevante como factor de autocompensação para o indivíduo que se sacrifica? Os efeitos colaterais do sacrifício, a nível da estabilidade, desenvolvimento produtivo e segurança na sociedade, serão percepcionados como um benefício pessoal significativo, por parte de quem é submetido à referida redução de acessos? Será de esperar alguma componente de satisfação altruísta, subentendo a convicção, por parte do visado, de que contribuiu para resolver situações de grande dor ou desconforto de outros indivíduos? Em termos conceptuais e práticos, a aplicação concreta deste tipo de princípios é dificultada por vários factores. Primeiro, seria de considerar a dificuldade em avaliar como contrabalançar os custos da renúncia (como já referido, parcialmente). Segundo, seria de considerar a dificuldade em avaliar qual, concretamente, a expectativa fundamentada, em cada caso (em princípio, seria aquela igual à que já foi realizada, com sucesso, por indivíduos com trajectos profissionais semelhantes a quem a nutre num certo momento). Terceiro, teria de se ter em conta a dificuldade em quantificar o tempo em que essas expectativas foram, de facto, nutridas. Quarto, teríamos 166 JOSÉ LACERDA DA FONSECA de conhecer a relação entre o tempo de expectativa(1), nível da expectativa(2), grau de renúncia material efectiva e de nível de expectativas(3), nível de compensações(4) e o tempo necessário para adaptação em função desses quatro factores. Trata-se de dificuldades que, apesar da sua óbvia complexidade, talvez possam vir a ser elucidadas, pelo menos de forma aproximada, por observação empírica destas situações e, eventualmente, por outros dados, nomeadamente sobre as dinâmicas psicológicas envolvidas. Uma ética humanista, nos fins e, também, nos meios que utiliza, implica, necessariamente, a tentativa de elucidação destas questões, bem como intervenções políticas que as tenham em conta, no debate, na cautela das intervenção e na monitorização dos efeitos dessas intervenções. 3.2. Liberdade negocial Continuando a procurar pontos intermédios e semelhanças entre liberalismo e socialismo, passa-se à aplicação do conceito de liberdade na questão da distribuição do rendimento, entre as diversas classes sociais que para ele contribuem. Esta abordagem será feita através do conceito de liberdade aplicado durante as negociações, entre classes, para definir uma certa distribuição dos rendimentos. Parece de aceitar que a liberdade nestas negociações só ficará assegurada, totalmente, quando as classes, em negociação, tenham as mesmas condições de resistir a suspensões da colaboração, enquanto forma de pressão negocial. Tal acontecerá quando todas as classes tenham igual acesso a reservas de bens de subsistência. Por exemplo, a capacidade de manter uma greve, pelos empregados, terá de ser igual à de manter “preferência pela liquidez” (usando este termo Keynesiano que chegou a estar muito em voga e que significa suspender o investimento), pelos empregadores. Uma outra condição da liberdade negocial consitirá em todas as partes terem idêntica capacidade de comunicação e concertação, dentro de cada uma delas. Tratar-se-á da forma de impedir que algumas das franjas, mais frágeis, das classes menos coesas, corrompam as negociações ao aceitarem rendimentos inferiores. Acresce a condição de nenhuma das partes poder ser substituída por terceira parte que se encontre em situação desesperada e que, portanto, aceite propostas remuneratórias muito baixas, permitindo à outra classe em negociação que arrecade a maior fatia da produção comum. De facto, se durante 167 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS um debate uma das partes puder ser substituída quando estiver em desacordo com a outra parte, tal não parece ser condição para um debate livre e racional, sobretudo se apenas uma das partes puder beneficiar dessa exclusão13. Por último, interessará garantir o idêntico conhecimento sobre a desutilidade (penosidade, risco, diferimento da recompensa, investimento pessoal, etc.) envolvida nas tarefas da outra classe ou grupo presente à mesa das negociações, de forma a ambas as partes saberem o que efectivamente bastará como incentivo para a outra classe aceitar desempenhar as tarefas em causa. Por exemplo, no cenário histórico da revolução industrial, parece claro que, nas negociações entre proletariado e investidores industriais, estas condições estiveram muito longe de se realizar. Em consequência, podemos dizer que não houve liberdade na definição da distribuição de rendimento, entre proletariado e investidores. Antes de se passar, aqui, a reflectir sobre as consequências sociais da realização de uma, efectiva, liberdade negocial, parece interessante reparar que este conceito não é menos crítico, da realidade social da distribuição dos rendimentos, do que os conceitos de exploração e justiça social, parecendo estes últimos mais difíceis de definir e fundamentar num quadro conceptual actual. Num contexto de ausência de liberdade negocial, aparecem como justificáveis as intervenções, de terceira parte, nomeadamente através de impostos, na tentativa de assegurar a liberdade ou de rectificar a redistribuição de rendimento para que esta atinja a distribuição que resultaria do exercício da liberdade negocial. Igualmente, parece ser de aceitar que, em situação de liberdade negocial, ou seja em livre mercado sem assimetrias de informação e sem assimetrias na capacidade de suspensão negocial, as remunerações ficariam ao nível de remuneração que compensasse a desutilidade efectiva da tarefa de cada grupo ou classe sendo, por isso, esse o nível de incentivo suficiente para a realização das tarefas profissionais de cada classe. A evidência da inexistência de actual liberdade negocial indicia que o nível de coesão social existente é bastante inferior ao providenciável pela efectiva liberdade negocial. Outra conclusão é que a imperfeição dos mercados (ao não garantirem plena liberdade e informação) é responsável pelo, alto, nível de desigualdade social que hoje se verifica. 168 JOSÉ LACERDA DA FONSECA Um outro corolário, desta reflexão, conclui que classes profissionais que desenvolvem níveis de desutilidade diferentes e que têm capacidades negociais diferentes deverão ser abrangidas por sistemas de impostos diferentes, no intuito de corrigir os efeitos da falta de liberdade e imperfeição dos mercados. Por exemplo, no caso de uma certa classe que desenvolve pouca desutilidade mas tem elevada capacidade negocial, as taxas de imposto devem ser maiores do que numa classe que envolve muita desutilidade mas que tem pouca capacidade negocial. De facto, é óbvio que a classe com capacidade negocial elevada está a ser beneficiada pela falta de liberdade negocial. Num outro exemplo, de uma aplicação prática deste tipo de ideias, note-se que a avaliação que terceiros possam fazer da desutilidade desenvolvida por gestores bancários pode concluir que para incentivar, estes últimos, ao melhor desempenho, não são necessárias remunerações acima de um certo valor. Esse valor deveria passar a constituir o seu tecto remuneratório, num sistema de impostos inspirado pela necessidade de corrigir a falta de liberdade negocial. Neste caso, estes gestores seriam ordenados em ranking das suas remunerações, antes de imposto, e só aqueles com maiores remunerações poderiam auferir a tal remuneração igual ao tecto remuneratório. Os outros receberiam tanto mais próximo desse tecto quanto mais elevada fosse a sua posição no ranking. Um sistema deste tipo parece poder garantir o máximo incentivo ao bom desempenho da profissão e, simultaneamente, limitar as assimetrias remuneratórias na sociedade. Infelizmente, as limitações, práticas, de tal sistema de impostos, de ranking e tectos específicos, são muitas, como se passa a abordar. Primeiro, é muito difícil avaliar a desutilidade envolvida numa dada profissão, até porque teria de se considerar toda a desutilidade para aceder a essa profissão e não apenas a necessária para a exercer. Como se determinariam, exactamente, as desutilidades envolvidas? Talvez tal pudesse ser feito por observadores isentos que recolheriam dados sobre o quotidiano dos profissionais em análise (eventualmente participando nesse quotidiano), bem como recolheriam dados estatísticos sobre o desgaste profissional, a probabilidade dos riscos envolvidos e outros dados relevantes para uma avaliação da desutilidade. Claro que seria difícil garantir a isenção destes observadores e a sua efectiva compreensão das desutilidades envolvidas. Segundo, como as capacidades dentro de cada profissão podem ser 169 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS muito diferentes, os mais capazes atingiriam o tecto remuneratório mas não os outros, mesmo que esses outros desenvolvessem a mesma desutilidade desenvolvida pelos mais capazes. Isto é, estaríamos a remunerar os mais capazes (que ficariam no topo do ranking) com mais do que o necessário para compensar a desutilidade. Em alternativa, se baixássemos o tecto remuneratório para não pagar demais aos mais capazes, não estaríamos a recompensar a desutilidade dos menos capazes, pois estes ficam muito mais abaixo no ranking, ao ponto de poder não ser compensatório o que receberiam após imposto. De facto, para o sistema ser perfeito teríamos de conhecer a capacidade intrínseca de cada um e não cobrar impostos apenas em função dos rankings das remunerações mas, também, dos níveis de capacidade de cada contribuinte, o que parece absolutamente impossível no actual estado dos conhecimentos da psicometria. De qualquer forma, este sistema de impostos, em função da profissão14 e dos desempenhos económicos de cada um, parece com maiores potencialidades que as actuais cobranças de impostos, determinadas pelos níveis remuneratórios de cada um sem, quase nunca, considerar o tipo de profissão exercida ou considerando-o de forma muito insuficiente. Quiçá, para certas classes profissionais, este sistema possa ser aplicado, já hoje e depois de alguma reflexão e observação, com alguma segurança, na determinação do referido tecto remuneratório. 3.2.1. Liberdade negocial e o paradigma do mercado gestionário A aplicação de um paradigma de liberdade negocial terá de considerar o caso no qual se verificam as maiores desigualdades remuneratórias e, portanto, onde existem as maiores suspeitas de falta de liberdade negocial. Trata-se do caso das remunerações do capital. Contudo, parece ser de colocar a hipótese de que o incentivo para alguém arriscar a maior parte do seu capital (e portanto arriscar a sua segurança económica) terá, talvez, de se traduzir em taxas de juro muito altas, propiciando, portanto, elevadas assimetrias remuneratórias. Mesmo no caso de possuidores de grandes montantes de capital que arrisquem apenas uma pequena parte deste, as taxas de juro, asseguradoras de incentivo para o investimento, teriam, talvez, de ser altas. De facto, sem essas taxas, poderia não haver incentivo para se investir em actividades mais inovadoras e arriscadas, preferindo-se 170 JOSÉ LACERDA DA FONSECA investimentos conservadores e prejudicando a inovação na sociedade. Mesmo colocando a hipótese contrária (os observadores da desutilidade definirem, correctamente, a desutilidade envolvida e a compensação a esta não ocasionar grandes assimetrias sociais), os investidores de capital próprio podiam pressionar contra a definição de um seu regime remuneratório que lhes fosse menos favorável, deixando de investir (aliás, tal acabaria, também, por lançar dúvidas sobre a efectiva correcção da definição da desutilidade). Nenhuma outra classe profissional parece ter tanto poder reactivo, pois mais nenhuma é tão difícil de ser substituída por um conjunto de outras pessoas que considerem ser suficientemente incentivador o nível de remunerações proposto para essa classe e que tenham condições para a exercer (no caso vertente, pessoas que possam, rapidamente, granjear e disponibilizar capital). A capacidade de reacção negocial, política, desta classe é, obviamente, muito grande, devido, também, ao poder de intervenção social, propagandista e económico que é auferido pela posse de grandes massas de capital. Seja por não ser possível, neste caso, reduzir as assimetrias (respeitando o valor da coesão social) ou por não ser possível implementar o valor de uma, efectiva, liberdade negocial, parece interessante pensar num sistema económico onde estes problemas nem sequer se colocassem. Uma possibilidade, neste sentido, parece ser a dissociação, integral, entre capitalistas e gestores, de forma que as decisões de investimento sejam apenas tomadas por estes últimos (submetidos a sistemas de impostos de ranking específicos, como atrás referido), bem como pelos gestores dos sistemas financeiros que apoiam os primeiros. Os detentores de capital passariam, apenas, a exercer o papel de aforradores, com taxas remuneratórias mais baixas para os grandes aforradores que, além disso, estariam submetidos a impostos sobre consumos sumptuários, no caso de existir uma preocupação máxima com a coesão social15. De realçar que, num sistema deste tipo (a que talvez se possa chamar mercado gestionário), capitais públicos e privados, actuando no mercado, teriam o mesmo tipo de gestão, com a diferença de que a intromissão, do sistema político, na nomeação de gestores de capital público, pode prejudicar um sistema de selecção que deverá ser baseado na competição, económica e no mercado, entre os desempenhos dos gestores. Em princípio, tanto na gestão de capitais privados como na gestão de 171 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS capitais públicos, os gestores eficientes singrarão e escolherão os gestores que os apoiam e lhes sucedem, em função das provas dadas, no mercado, por estes últimos. Claro que existe um problema adicional quando se parte de um grupo de gestores que não foi seleccionado pelo mercado, sendo permeável a outras lógicas (nomeadamente as políticas partidárias) no momento de escolher os seus apoiantes que lhe sucederão nos mais altos cargos de gestão. Portanto, no caso de gestores de capitais públicos, para assegurar um correcto ponto de partida do conjunto dos gestores, parece ser necessário repensar as lógicas da sua nomeação. Em alternativa a nomeações efectuadas pelo sistema político, só os gestores, com melhores resultados económicos, poderiam escolher os seus colaboradores que lhes sucederiam. Igualmente, seriam os gestores com melhores resultados a escolher os futuros gestores de outras empresas (não concorrentes com as suas) que, por terem obtido os piores resultados, não conferiram crédito, aos seus actuais gestores, para escolherem os futuros gestores dessas empresas. 3.2.2 Liberdade negocial e o paradigma do mercado agregado A eventual necessidade de um mercado gestionário apresentou-se como uma consequência de preocupações com a liberdade enquanto valor ético. Ora, é claro que a preocupação ética será mais mobilizadora dos cidadãos se não constituir um obstáculo à eficiência económica. Não existem razões para pensar que o mercado gestionário levante obstáculos deste tipo, sendo, aliás, de esperar que crie condições estruturais para o aparecimento de novos factores de eficiência do mercado. De facto, um mercado gestionário facilitará o aparecimento de nova formas de gestão dos sectores económicos. Note-se que um dos aspectos menos eficientes do mercado reside no dilema entre fragmentação e concentração empresarial. A fragmentação impede economias de escala (aspecto fundamental na economia do conhecimento e da inovação, embora possa ser realizado por cooperação entre empresas relativamente pequenas16). No lado inverso do dilema, a concentração oligopolista distorce a efectiva concorrência. Será que um mercado assente no paradigma gestionário, aqui referido, facilitará a ocorrência de gestores responsáveis por todo um sector económico, gerindo dotações orçamentais para que se realizem todas as possibilidades de escala e cooperação inter-empresarial, sem promover o 172 JOSÉ LACERDA DA FONSECA conluio oligopolista? Como é que o gestor sectorial se poderá relacionar com os gestores das empresas desse sector? Serão estas a criar as novas instituições de gestão sectorial, a partir das associações empresariais, ou será que o impulso terá de vir de entidades externas, como o Estado? Neste caso, como poderá o Estado controlar regimes de incentivo remuneratório aos gestores (das empresas de cada sector) de forma a evitar a concertação oligopolista? Será que o pode fazer remunerando mais os gestores das empresas que obtiveram maiores acréscimos de quotas de mercado, na soma de um largo período? Será possível legislar regimes remuneratórios que incentivem para uma gestão a longo prazo das organizações, por exemplo, transferido grande parte das suas remunerações para depois do décimo até ao vigésimo ano de actividade do gestor, de forma a incentivá-lo a desenvolver a sua organização no longo prazo? As questões que mais limitam o desenvolvimento económico (falta de escala/cooperação e fraco incentivo para o desenvolvimento prospectivo de longo prazo) poderão ser assim optimizadas? Independentemente das respostas a estas questões é evidente que as imperfeições do mercado clamam por intervenções exteriores a este. O sistema político e o sistema empresarial de mercado terão de exercer um controlo mútuo, numa lógica de poliarquia, como a defendida por Dahl, pelo que o sistema económico está realmente dependente da qualidade da governação e das perspectivas de evolução qualitativa do sistema político. Também devido a este fenómeno, são muito relevantes, para a implementação de valores éticos, todas as linhas de evolução do sistema político, como a democracia participativa, democracia cognitiva, descentralização e participação, entre vários outros. 3.3. A ética do comportamento individual, face à limitação da liberdade negocial. Não obstante a possibilidade de serem implementados sistemas remuneratórios aproximados a uma situação de liberdade negocial, em absoluto será impossível que todas as remunerações respeitem os níveis remuneratórios que apenas compensem a desutilidade envolvida. Esta impossibilidade de absoluta liberdade negocial torna necessário um espaço de ética de comportamento individual, referente às classes mais beneficiadas e às mais desfavorecidas, minimizando os efeitos negativos da falta e liberdade negocial e de efectiva remuneração ao nível do incentivo. 173 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS Se os mais favorecidos, pela inexistência de liberdade negocial, podem sentir-se, eticamente, compelidos, pela importância que possam dar ao valor da liberdade e a outros valores, a redistribuírem o seu rendimento, parcialmente, por sua própria iniciativa (são bem conhecidas as actividades filantrópicas de Warren Buffet e Bill Gates, entre vários outros), já os menos favorecidos terão outras tarefas éticas. Estes últimos, devido a uma ética de altruísmo ou a um instinto de sobrevivência a longo prazo, podem ser compelidos para se reestruturam psicologicamente contra o peso, destrutivo, do sentimento de injustiça e inferioridade social que os pode pressionar para a degradação das suas capacidades e ausência de desenvolvimento profissional e pessoal. Pelos valores da racionalidade e do desenvolvimento social e económico, ambos estes tipos de cidadãos podem sentir-se compelidos a desenvolverem conhecimentos organizacionais, nomeadamente, sobre culturas de criação de espírito de equipa e de disciplina organizacional, de forma a navegarem, mais pacífica e eficazmente, nas tensões quotidianas inerentes à inexistência de efectiva liberdade negocial. Embora louvável, uma ética individual deste tipo só terá capacidade de mobilização num quadro de reformas progressivas, tendentes a maior liberdade negocial e a remunerações na lógica do incentivo. Sem este desiderato, esta ética individual pode ser interpretada como uma anuência à falta de liberdade, na generalidade da sociedade, sucumbindo a esta contradição. 4. Políticas de promoção da ética As políticas de promoção da ética, estando vocacionadas para a promoção de valores éticos básicos que assegurem a sustentabilidade social e promovam a paz (como a verdade, tolerância, honradez de compromissos e contratos, solidariedade, etc.) podem ser, simultaneamente, veículo para promoção de atitudes, ainda mais claramente relacionadas com o desempenho económico e a eficiência social, como, por exemplo, a crença no sucesso do trabalho de equipa, a abertura de diálogo face a hierarquias, a valorização da inovação e o planeamento para a qualidade, na senda de reflexões de vários autores, desde Weber a Fukuyama e, sobretudo, Hofstede. O campo de políticas de promoção de valores é pois um campo especialmente vasto, com repercussões a diferentes níveis e horizontes temporais. 174 JOSÉ LACERDA DA FONSECA Seja qual for a amplidão de valores e atitudes em causa, não se trata, aqui, de reflectir no caso de uma maioria democrática que pretenda impor um certo sistema de comunicação e condicionamento para a ética. De facto, o conceito de liberdade deve ser respeitado em maior profundidade do que o exigido pelo conceito processual de democracia e de governo da maioria. Trata-se de reflectir sobre um ambiente cultural no qual exista disponibilização de várias possibilidades de auto condicionamento, num máximo de diversidade e tolerância, entre as quais qualquer cidadão poderá, eventualmente, escolher, em função da sua personalidade e convicções, com a consciência das respectivas implicações e riscos. Análises teóricas com as preocupações das já aqui feitas (sobre a fundamentação, subjectiva e consequencialista, da ética, sobre o autocondicionamento e a liberdade, bem como sobre intermediações entre tradições e, ainda, sobre as sinergias com a concretização, social e económica, de uma ética de liberdade) podem ajudar, por si só, a fortalecer a mobilização para a ética e para os valores sociais. Assim, as políticas de promoção da ética terão, certamente, uma vertente de divulgação de ideias e debates deste tipo. Contudo, a sua componente fundamental poderá vir a ser a promoção de competências existenciais e de autocondicionamentos para a ética, quiçá inspirados nas tradições ou inseridos nestas, tentando garantir, simultaneamente, uma efectiva liberdade de opção, liberdade de informação e um real pluralismo. Antes de pensar, um pouco mais em concreto, sobre políticas de promoção da ética, é necessário considerar a subjectividade deste campo, reflectindo sobre avaliações de impacto de medidas de intervenção a favor da ética. Neste contexto, vários mecanismos são possíveis, sendo de referir a importância de consensualizar precocemente, até onde for possível, um ou vários barómetros, estatísticos, da adesão dos cidadãos à ética, nas suas diversas vertentes. Passando agora, à reflexão sobre programas de intervenção ética, parece ser de reconhecer que a regulação dos meios de comunicação social será questão central17. Esperar que o mercado espontâneo seja suficientemente perfeito para desenvolver um mercado de mass media promotor da ética pode ser perspectiva excessivamente optimista. De facto, um mercado perfeito exige informação perfeita dos consumidores. Como esta informação não é inata terá de se obter num mercado de informação a montante do primeiro. Por exemplo, 175 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS o mercado de viaturas obtém informação, nomeadamente, num mercado de informação constituído pela imprensa automobilística que apresenta análises às diversas viaturas no mercado. Contudo, como avaliar quais as boas revistas de avaliação do mercado de viaturas? Em princípio teremos de ter sempre um mercado de informação a montante, em regressão infinita. Esta problemática constitui componente importante da actual economia da informação que, desde há perto de quarenta anos, vem avolumando a consciência das limitações informativas do mercado. No caso do mercado de viaturas (objecto do estudo pioneiro de George Akerlof sobre informação e mercado, de 1970) talvez a imperfeição do mercado não seja dramática, até porque existem muitos outros mecanismos de regulação do mercado. Obviamente, quanto mais complexos os produtos, como é o caso de peças mediáticas, mais difícil será atingir o desiderato da perfeita informação do consumidor. O consagrado conceito de educação para os media pretende, justamente, oferecer informação que permita ao consumidor fazer as melhores opções. Contudo, nem essa educação pode ser perfeita nem será impossível fazer regressar todos os cidadãos à escola para obter essa educação, sendo fundamental equacionar outros processos, nomeadamente de cariz informativo e educativo, que compensem as falhas do mercado. É neste contexto que interessará reflectir se a possibilidade de cada força política usufruir de um espaço de análise crítica, de peças mediáticas, em cada meio de comunicação social, poderá constituir forma do consumidor ficar ciente dos pressupostos políticos, opções subjectivas, efeitos ideológicos, éticos e psicológicos destas peças. Será este um possível meio de ajudar o consumidor a uma avaliação informada sobre a qualidade do que o mercado lhe oferece, permitindo, em consequência, um efectivo pluralismo? A impreparação, aparente, das forças políticas, para efectuarem este tipo de intervenção cultural crítica, não parece ser motivo para abandonar, completamente, a crítica e análise dos media a um mercado de críticos profissionais, ilusoriamente apolíticos, que, aliás, devido à inexistência de legitimação clara e suficiente visibilidade, não conseguem realizar uma ampla consciência pública dos efeitos dos media. Sempre no pressuposto que, devido às limitações informativas do mercado espontâneo e tendencialmente plutocrático, este não garante opções informadas do consumidor, não garantindo, em consequência, um real 176 JOSÉ LACERDA DA FONSECA pluralismo, parece ser indispensável continuar a reflectir sobre a intervenção política nos media. Sistemas de análise crítica, como os referidos, podem ser entendidos como complementares à identificação de cada organização mediática com cada força política, como é, aliás, tradição nalguns países europeus, onde cada organização mediática deixa patente qual o partido ou candidato que apoia em determinada eleição. A expansão de um sistema de identificação política pluralista dos media, deste tipo, poderá passar pela expressão do apoio de cada força política a cada organização mediática, na diversidade de peças mediáticas, recreativas e informativas, que ela oferece. De facto, devemos perguntar se, por exemplo, um partido politico que obteve 10% dos votos não terá o dever e o direito de dar aval a 10% da massa informativa dos media? Numa forma mitigada deste sistema de identificação política e pluralista dos media, será de considerar que, através de cada força política, o sistema político deverá gerir uma quota, relativamente pequena, de tempo e espaço nos meios de comunicação social, dentro da qual estabelece critérios editoriais e confirma o aval às peças mediáticas, propostas pelos mercados, considerando os seus efeitos partidários, éticos e civilizacionais18? O que se acabou de referir advém de uma desconfiança sobre as capacidades, qualitativas e pluralistas, do mercado. Contudo, idêntica desconfiança se pode ter em relação à perfeição da representação dos cidadãos através do sistema político. Evidentemente que não podemos ignorar a aplicação de conceitos da economia da informação ao sistema político, expressa, nomeadamente, no contributo da escola da Public Choice que ajudou a construir uma visão crítica sobre o sistema político. Um equilíbrio entre as diversas perspectivas poderá, talvez, ser realizado por um sistema misto, ficando parte importante do sistema mediático fora de qualquer intervenção política? Claro que, em nenhum caso, se deve desistir do aperfeiçoamento do sistema político, do Estado e da administração pública, mediante processos de descentralização, democracia participativa, democracia deliberativa, desenvolvimento de competências de gestão, entre vários outros vectores. Aliás, neste aperfeiçoamento devem ser incluídas as organizações voluntárias da sociedade civil19 que não podem ser esquecidas, enquanto pólos do Estado amplo, igualmente carentes de melhorias de representatividade, qualidade e eficiência. Aliás, só num contexto de evolução do sistema político e de sistemas 177 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS mistos parece haver espaço para equacionar a questão da propriedade dos media. Pelas aduzidas razões, também parece ser necessário assegurar o pluralismo da propriedade, velando para que os diversos grupos sociais se encontrem expressos. Encerrando esta, muito sintética, digressão sobre o pluralismo ético dos media, pode-se passar a abordar outros vectores de promoção da ética, para além da óbvia necessidade de inclusão, nos currículos educativos, daquilo que se passou a chamar educação cívica e educação moral20. Um desses vectores poderá consistir em criar rankings de nível ético de cada cidadão, na tentativa, quase paradoxal, de sublimar tendências competitivas e de as reverter para o fortalecimento dos valores éticos altruístas. A definição deste nível ético, não sendo tarefa científica, poderá basear-se em teorizações e listas de itens que ajudem os cidadãos a avaliarem-se mutuamente. Não obstante, alguns critérios objectivos também podem ser usados, como o nível de conhecimento de cada um sobre ética, a sua participação em organizações sociais de voluntariado, a filantropia, etc. O arranque para este tipo de dispositivo social parece ser mais viável de efectuar dentro de algumas organizações, nomeadamente empresas e administração pública, englobadas em programas de ética empresarial e funcional. Contudo, poderá ser necessária a participação de entidades externas, a cada organização, para assegurar a efectiva liberdade e independência das escolhas do ranking. Para além da boa reputação pessoal, possibilitada por bons posicionamentos no ranking, pode-se intensificar a adesão dos cidadãos a este projecto, de ranking, concedendo-lhes outras vantagens sociais como, por exemplo, acesso a utilização de tempo e espaço nos media, em função da sua posição no ranking. Outros vectores, de uma política de promoção da ética, poderão ser a definição de provedores e comissões de ética, dentro de cada organização, bem como a definição de tutores, em regime de voluntariado, que aconselhem outros cidadãos, ao longo da sua vida, fortalecendo as suas competências existenciais e éticas. Depois de aqui referidas medidas de regulação informativa (para melhorar a capacidade de avaliação do consumidor de bens culturais), medidas escolares de desenvolvimento de competências éticas, políticas de sublimação competitiva e medidas de apoio e aconselhamento individual, começa a 178 JOSÉ LACERDA DA FONSECA ser claro como o campo das políticas da ética é muito mais vasto do que o conceito tradicional de divulgação da ética através de argumentação, pregação e propaganda. Evidentemente que medidas de informação, directa, sobre as éticas continuarão, possivelmente, a ser importantes, podendo, aliás, ampliar-se para a obrigatoriedade de adição, nas acções de formação profissional, de módulos sobre ética e cultura existencial, a criação de sites e portais institucionais de informação sobre ética, bem como a divulgação de compêndios de referência (necessariamente comportando a diversidade de visões contraditórias a diversos níveis), desde compêndios básicos a obras mais profundas. Na perspectiva que aqui já foi abordada, de centralidade das tradições, nomeadamente das tradições religiosas e ideológicas, na promoção da ética, será de esperar que os vectores de promoção da ética se tornem actividades mais importantes dentro de organizações religiosas e partidárias-ideológicas, em graus diferentes e em formas adaptadas às especificidades e nível de partida, para estas tarefas, de cada organização. Na mesma óptica, de centralidade destas organizações para a ética, será de esperar o desenvolvimento de actividades conjuntas de promoção da ética, entre todos estes tipos de organizações, a partir do momento que se afirme a consciência das suas proximidades, para além das suas divergências históricas, como, aliás, hoje já vem acontecendo, parcialmente, entre igrejas historicamente concorrentes. Todas as políticas de promoção da ética até agora referidas consistem em programas cujo fundamental objectivo é a promoção da ética. Ora, em muitos outros campos, as políticas de promoção da ética podem desenvolverem-se dentro de actividades com outros objectivos (como o desporto, a participação cívica, o voluntariado, o empreendedorismo social, as artes e as actividades jurídicas) mas que acabam por impactar na ética. Nestes casos, as políticas de promoção da ética não só deverão tentar desenvolver essas actividades como deverão, também, tentar ampliar o seu impacto ético. Um bom exemplo, da amplitude multidisciplinar das políticas sinérgicas da ética, são as intervenções da psicologia comunitária 21 e da terapia sistémica familiar22, nomeadamente quando procuram estruturações familiares e redes sociais, propiciadoras de competências emocionais do indivíduo jovem na sua inserção com o tecido social e, portanto, com os valores éticos aí consubstanciados. Claro que não se pode traçar uma clara linha divisória 179 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS entre políticas sinérgicas e políticas autónomas de promoção da ética (como regulação dos media, rankings e provedores de ética). Por exemplo, autores como Amitai Etzione e Alasdair MacIntyre, consideram que o desenvolvimento dos laços de cooperação em comunidades locais (aparentemente classificável no campo das políticas sinérgicas) pode ser a principal fonte de ética. Esta imbricação de efeitos e o carácter subjectivo da ética são alguns dos factores que nos desiludem sobre a capacidade da ciência determinar quais as melhores intervenções éticas. Não obstante, a monitorização das políticas éticas, com metodologias científicas, devem consubstanciar-se políticas de ética em torno de uma série de projectos-piloto, simultaneamente de intervenção prática cautelosa e de investigação simplificada, conjuntamente com intervenções mais amplas, também cuidadosamente monitorizadas. Não obstante o espaço existente para programas de promoção da ética, o desenvolvimento desta pode estar menos dependente do sucesso destas políticas do que da credibilização de modelos sociais consubstanciadores da ética, como o desenvolvimento da democracia cognitiva enquanto faceta de evolução da democracia parlamentar e dos valores democráticos em geral, assim como o desenvolvimento do mercado socialmente organizado, enquanto faceta asseguradora da efectiva liberdade do mercado e, ainda, como a evolução global de uma cultura, simultaneamente auto-condicionante e crítica sobre os seus riscos e limites. Conclusão A afirmação de referencial ético consequencialista, consubstanciado aqui no projecto humanista e nas suas condições acesso mediano, traduz uma concepção de ética frágil nos seus fundamentos racionais. Esta concepção implica opções subjectivas e complementares mecanismos, emocionais e de desenvolvimento de competências pessoais, tentando realizar, difíceis, equilíbrios entre racionalidade e vida emocional. Estes equilíbrios necessitam de riqueza cultural, no desenvolvimento das artes, no aproveitamento das tradições e no desenvolvimento das competências, existenciais e organizacionais, remetendo para um conceito de cultura que desenvolve a liberdade do indivíduo mas que, simultaneamente, o pode preparar e condicionar para os valores éticos. 180 JOSÉ LACERDA DA FONSECA Como forma de valorização e promoção da ética, defendeu-se, aqui, o conceito de uma cultura teleológica, eclética, autocondicionante mas consciente da diversidade dos modelos sociais e dos trajectos existenciais. Esta concepção é oposta aquela que parece ser mais corrente, consubstanciada numa cultura fragmentada e inconsciente dos seus efeitos, de recreação mediática ou elitista, esgotando-se na apologia da criatividade enquanto um fim em si, estranha ao debate teleológico e ao debate sobre modelos civilizacionais. Em síntese, defendeu-se o conceito de uma cultura existencial, versus um conceito de cultura em que esta é apenas instrumental, essencialmente escapista e sem fio condutor para um projecto humanista. Esta cultura existencial exige não só a consciência e a vivência das mediações entre racionalidade e tradições, religiosas, culturais e ideológicas, mas também, para que a ética seja credível, exige uma corporização reformista, económica e política, respeitadora de uma efectiva liberdade negocial na distribuição do rendimento e do poder associado, compatível com o incentivo individual e com referenciais de sustentabilidade social a longo prazo. Em suma, não é possível argumentar, de forma absoluta, a favor da vida ética, mas é possível apelar à adesão a estilos de vida humanistas, suficientemente interessantes para o indivíduo. Contudo, é exigido que estes estilos de vida usufruam de certas condições materiais, políticas e económicas, nomeadamente em relação ao acesso a uma cultura de sublimação, condicionamento e saber existencial, bem como consubstanciem o mais alto nível de coesão socioeconómica que seja compatível com o incentivo individual. Assumindo-se que o desenvolvimento de uma cultura existencial, a promoção da ética e de projectos humanistas são tarefas árduas, polémicas e de risco, torna-se exigível que esta questão assuma protagonismo político, debatendo-se teorizações e medidas, concretas, com um largo espectro de actuação. Neste contexto e dada a necessária centralidade da ética na sustentabilidade social, será de supor que a política cultural deverá ter uma importância e um impacto, a longo prazo, não menor do que outras intervenções políticas de fundo, como por exemplo, a política educativa ou a política ambiental. Por outro lado, a grande diversidade de medidas de uma política da ética deverá ser monitorizada, nos seus méritos relativos e múltiplas sinergias. Tal parece só poder ser feitos através de criação de instituições especificamente vocacionadas para a promoção da ética, enquanto pólos 181 ÉTICA E CULTURA, MODELOS ECONÓMICOS E INTERVENÇÕES POLÍTICAS potenciadores de redes mais vastas. Nesta óptica, o campo de intervenção dos ministérios que tutelam a cultura e os valores respectivos deverá ser consideravelmente ampliado, possibilitando um trabalho profícuo com as referidas instituições especificamente criadas para promoção da ética. Caldas da Rainha 3/01/2010 182 Referências 1 – B. F. Skinner, 1945, 1976, Walden Two Prentice-Hall, New Jersey. Beyond Freedom and Dignity, 1971, 2002, Hackett, Cambridge. 2 – Bauman, Zygmunt, 2005, Postmodern Ethics, Blackwell, Malden – MA. 3 – Como Gianni Vatimo (1980, As Aventuras da Diferença, Edições 70, Lisboa), com o seu conceito de “infinidade da interpretação”, Jean-François Lyotard, com as suas críticas contra a hegemonia de qualquer dogmatismo (1987, O Pós-Moderno Explicado às Crianças, Publicações D. Quixote, Lisboa), defendidas desde o seu livro "Le Différend", de 1983. De notar, além de vários outros, o contributo do pensador da “terceira via”, Anthony Giddens, com a sua reflexão sobre os complexos processos de criação da confiança (1990, The Consequences of Modernity, Stanford University Press, Stanford, California). 4 – Esta análise é baseada em J. L. Mackie, 1977/1990, Inventing Right and Wrong, Penguin, London. 5 – Desde a inicial Teoria da Justiça, até às últimas reflexões (2001, Justice as Fairness, The Belknap Press of Harvard, Cambridge, Massachusetts). 6 – Mulhall e Swift, 1996, Liberals and Communitarians, Blackwell, Oxford, UK. 7 – Como tentou mostrar Pogge (1989, Realizing Rawls, Cornell University Press, London). 8 – A interpretação mais radical de um simbolismo sem qualquer correspondência com a realidade ontológica é, talvez, a de Don Cupit, tendo afirmado que Deus não existe mas que temos de nos comportar como se existisse (Cupit, Don, 1997, After God - The Future of Religion, Basic Books, New York). 9 – Geertz, Clifford, 1973, The Interpretation of Cultures, Basic Books, New York. 10 – Este entendimento parece consonante com perspectivas, com largo peso na moderna filosofia da religião, expressas por Paul Tillich, sobre a interpretação dos textos e práticas religiosas, nomeadamente com a sua concepção das religiões serem constituídas por símbolos e não por signos, sendo que os símbolos sugerem dimensões da realidade e do ser humano que não podem ser expressas com a objectividade dos signos. Ver Miller e Grenz, 1998, Fortress Introduction to Contemporary Theologies, Fortress Press, Minneapolis. 11 – Wilson, Edward, 1978, On Human Nature, Harvard College, U.S.A.. A concepção sociobiológica sobre a programação do ser humano, nomeadamente sobre poder e agressividade, que junta dados empíricos a concepções com semelhanças teleológicas, com das de Freud. 12 – Veja-se, por exemplo, Introduction to Critical Theory, de David Held, 1980, University of California Press, Berkeley, L. A.. Especificamente sobre religião, Religion and Rationality, de Habermas, 2002, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts. Ainda, o recente livro sobre Guy Debord, de Anselm Jappe, 2008, Antígona, Lisboa. 13 – Esta condição de liberdade negocial está, de facto, já contida nas outras (igual resistência à suspensão de colaboração e igual capacidade de organização), embora, para efeitos ilustrativos, se possa apresentar como mais uma condição. 183 14 – Uma antiga sugestão do prémio Nobel Mirrlees, um dos primeiros a estudar a questão da distribuição do rendimento, impostos e limiares de incentivo. 15 – A colecção Real Utopias, tem editado vários títulos sobre socialismo e mercado, nos quais se reflecte sobre sistemas alternativos na economia política. Nomeadamente Bowles e Gintis, 1989, Recasting Egalitarianism, Verso, London, New York. Esta colecção tem compilado muito do actual pensamento reformista dos U.S.A., tanto sobre economia como sobre democracia e sistema político. 16 – Mazzucato, Mariana, 2000, Firm Size, Innovation and Market Structure, Elgar, Northampton, MA USA. Chesbrough, 2003, Open Innovation, Harvard B. School Press, Boston. 17 – Imprensa, Rádio e Televisão – Poder sem Responsablidade, James Curran e Jean Seaton, 1997, Instituto Piaget, Lisboa. Este título parece ser bastante abrangente destas problemáticas, embora a literatura sobre esta questão seja dos tipos literários mais publicados. 18 – Por vezes, em questões que parecem distantes da promoção da ética, como a expansão dos padrões de atractividade sexo-afectiva que, como atrás referido (mediante o conceito de “acesso mediano”), podem constituir uma importante faceta para a mobilização para projectos de reforma social articulados sobre valores éticos. 19 – Cujo reforço constitui um das linhas fundamentais da “terceira via” de Giddens. Giddens, Anthony, 1999, Para uma Terceira Via, Editorial Presença, Lisboa 1999. Giddens, Anthony, 2000, The Third Way and its Critics, Pollity Press, Cambridge, U.K.. 20 – Reimer, Paolitto, Hersh, 1983, Promoting Moral Growth –From Piaget to Kohlberg, Longman, New York. 21 – Ornelas, José, 2008, Psicologia Comunitária, Fim de Século, Lisboa. 22 – Jones, Elsa, 1999, Terapia dos Sistemas Familiares, Climpesi, Lisboa. 184 CULTURA Palavra e Utopia: António Vieira no Filme de Manoel de Oliveira Eduardo Geada C omecemos pelo princípio. E ao princípio temos o genérico, com a ficha técnica, sobre imagens de árvores e o céu límpido. O movimento suave parece simular o olhar de alguém que passeia na floresta e olha para o azul celeste. Na banda sonora, a guitarra de Carlos Paredes, um dos mais genuínos compositores da música tradicional portuguesa. É uma composição plástica típica dos filmes em que Manoel de Oliveira procura a essência da identidade portuguesa. O olhar de contemplação, a procura do enigma e o anonimato do percurso remetem desde logo para a universalidade da viagem, para a vastidão da natureza que se adivinha e para o divino que nos responde das alturas. É um princípio adequado à personalidade de Padre António Vieira, para quem a verdade histórica se vergava aos caprichos da imaginação profética. Fruto da mentalidade da sua época, Vieira aceitava em todas as circunstâncias que o plano do transcendente explicava a realidade deste mundo e que, portanto, a transformação do mundo não se podia esperar sem a intervenção da providência. Entre o natural e o sobrenatural não existia apenas uma relação de semelhança, mas uma relação de causalidade. Como tantos outros visionários da pátria amada, que constituem até hoje uma corrente subterrânea da interpretação de Portugal na dinâmica da história, Padre António Vieira por várias vezes interpela Deus em defesa do seu país porque o seu país está destinado a triunfar graças à protecção divina inscrita na ordem religiosa do mundo. Por exemplo, no Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal, pregado na Baía em 1640, quando a cidade se encontrava seriamente ameaçada pelas tropas holandesas, Padre António Vieira interroga e desafia Deus numa das mais extraordinárias peças de oratória de que há registo. Tinha então 32 anos e estava na véspera de regressar a Lisboa para celebrar a Restauração de Portugal e a subida ao trono de D. João IV, que punha termo a 60 anos de dominação espanhola (1580-1640). 187 PALAVRA E UTOPIA: ANTÓNIO VIEIRA NO FILME DE MANOEL DE OLIVEIRA Mas não nos adiantemos, porque o filme de Manoel de Oliveira começa mais tarde, precisamente em 21 de Junho de 1663, em Coimbra, quando Padre António Vieira responde perante o tribunal do Santo Ofício. Durante quase quatro anos consecutivos, diminuído por uma saúde precária, Viera é sujeito aos interrogatórios da Inquisição. Criada para inquirir e combater as heresias, a Inquisição aceitava todo o tipo de denúncias e ocultava o nome dos denunciantes e das testemunhas, tornando assim precária a defesa dos acusados. O objectivo do processo inquisitorial consistia em levar o acusado a confessar e a arrepender-se, utilizando para tanto métodos que podiam passar por várias formas de coação, violência e tortura. Depois, o herege era abandonado pelo tribunal eclesiástico ao poder do Estado, já que os juízes do clero não podiam pronunciar sentenças de morte. Os bens dos culpados eram confiscados pela autoridade régia, acabando o respectivo património por ser doado à própria Inquisição. Aos desgraçados hereges estavam reservados o garrote ou a fogueira. O acordo entre a Igreja e o Estado era completo, uma vez que pôr em causa os alicerces da religião significava pôr em causa a estrutura do edifício social e simbólico em que assentava o poder real. Introduzida em Portugal a partir do Século XIV, com tribunais em Lisboa, Coimbra e Évora, subordinada à autoridade régia, a Inquisição perseguia casos de heresia, ou de desvios religiosos e comportamentais de vários tipos, desde a feitiçaria até às anomalias sexuais. Porém, a maior parte dos processos tinha a ver com a prática de costumes ligados às crenças judaicas. Na altura em que é preso pelo Santo Ofício, Padre António Vieira era um dos mais ilustres membros da Companhia de Jesus, fundada em 1540. Com uma vasta obra missionária e cultural no Oriente, em África e no Brasil, os jesuítas tinham criado alguma animosidade junto dos poderes políticos e religiosos, nomeadamente junto da Ordem Dominicana cujos dignitários dominavam as Mesas da Inquisição. Não é, por certo, apenas para obter um efeito dramático, de pertinência indiscutível, que Manoel de Oliveira começa o filme quando Padre António Vieira se encontra a meio da sua vida, depois de acontecimentos prodigiosos ao serviço do país, como teólogo, missionário, pregador, conselheiro, diplomata, escritor e protegido do rei D. João IV. Veremos que, no filme, a figura de Padre António Vieira encarna um ideal de humanismo cristão com o qual 188 EDUARDO GEADA creio que se identifica Manoel de Oliveira e através do qual o cineasta define o elemento primordial da identidade e da acção de Portugal no mundo. De que era, afinal, acusado pela Inquisição o Padre António Vieira? De ter escrito que D. João IV, morto há sete anos, haveria de ressuscitar para cumprir o Quinto Império. Baseado numa interpretação fantasista das profecias do Bandarra, um sapateiro e poeta popular do Século XVI, recordado sempre que numa situação de crise se evoca a vinda de um salvador messiânico, Padre António Vieira refunda um dos grandes mitos da História de Portugal, decalcado da imagética judaica do Povo Eleito, uma vez que, segundo ele, Portugal seria o berço do segundo povo eleito. No Sermão por Acção de Graças pelo Nascimento do Príncipe D. João Padre António Vieira explica a seu modo as profecias de Daniel, enumerando os quatro impérios que a história até então teria conhecido. De acordo com a sua interpretação bíblica, o primeiro império teria sido o dos Assírios, o segundo império o dos Persas, o terceiro império o dos Gregos e o quarto império o dos Romanos. Faltaria erguer o Quinto Império, a que nenhum outro haveria de suceder, porque seria o último até ao fim do mundo. Para Padre António Vieira, o Quinto Império realizar-se-ia à escala planetária. Todas as terras e todas as gentes seriam reconvertidas ao cristianismo, todas as heresias seriam eliminadas e consumar-se-ia o Reino de Cristo na Terra. Com a segunda vinda de Cristo, dois Imperadores estariam destinados a promover o Quinto Império: o Papa enquanto Imperador Espiritual e o Rei D. João IV ressuscitado, enquanto Imperador temporal. Reinaria o estado de paz universal, justiça e santidade. Este delírio messiânico, alimentado pela propagação do maravilhoso na mentalidade medieval, tinha porventura um propósito político que não escapou aos inquisidores. Tratava-se de recentrar o destino de Portugal na esperança providencialista e na herança política de D. João IV, desbaratada pelo seu infeliz sucessor no trono. De resto, nem o próprio D. João IV escapou a ser excomungado pela Inquisição, mesmo depois de morto. Entre as duas cenas de interrogatório no Tribunal da Inquisição, que servem de moldura narrativa à primeira parte do filme, Manoel de Oliveira desenha com uma admirável economia de meios os traços fundamentais da personalidade, da postura e da acção missionário de Padre António Vieira. E é justamente essa personalidade, essa postura e essa acção que os seus inimigos não lhe perdoavam, estivessem eles nas colónias, na corte ou na Igreja. Quando, no filme, 189 PALAVRA E UTOPIA: ANTÓNIO VIEIRA NO FILME DE MANOEL DE OLIVEIRA termina a primeira cena de interrogatório da Inquisição, antes de regressarmos ao Brasil onde tudo verdadeiramente começa, Padre António Vieira olha para o Cristo crucificado que se encontra por detrás e acima da cadeira do inquisidor. Vemos então em grande plano o rosto sofrido de um Cristo negro, talhado em madeira característica das colónias. Triste ironia esta, que conduz o pensamento de Vieira e do espectador à Baía, região do Brasil onde a evangelização jesuíta foi um factor decisivo da presença portuguesa. E o plano que temos a seguir é o de um grupo de nativos a cantar e a dançar, na inocência de um estado de natureza sem qualquer contexto ou referência que possa impedir a sua associação com a nostalgia do paraíso perdido, que é uma das ideias centrais da utopia de Padre António Vieira. Levado para o Brasil pelos pais quando contava apenas seis anos de idade, António Vieira estudou no Colégio dos Jesuítas do Salvador, tendo depois ingressado na Ordem, onde veio a ser professor de Retórica e Teologia. Mas foi na catequese dos índios, na improvisação de igrejas e na construção de aldeamentos que Vieira encontrou a vocação de um apostolado sublime, bem distante das discussões escolásticas dos colégios e palácios. Aprendeu a falar o tupi-guarani, o quibumdo e outros dialectos nativos. Viveu durante anos no sertão, cumpriu votos de pobreza, viajou pelos quatro cantos do mundo, atravessou sete vezes o Atlântico e na defesa dos seus ideais escreveu a mais bela prosa da língua portuguesa. Não é em vão que Padre António Vieira se empenha na libertação dos índios do Brasil e na denúncia do comércio dos escravos africanos. A pergunta retórica que faz num dos primeiros sermões citados no filme – como podem os índios ser escravos na terra onde nasceram e sempre viveram? – tem uma resposta de ordem política e económica que ele não ignora. Os engenhos de açúcar, a produção do tabaco, a plantação do canavial e as minas de ouro precisavam de grande abundância de mão-de-obra, explorada num trabalho violento e coercivo susceptível de enriquecer os colonos europeus e de encher os cofres do Estado na metrópole. Porém, Vieira não descansou enquanto não obteve do rei o diploma que determinava que fossem libertados os índios cativos, provocando deste modo a cólera dos colonos e, mais tarde, a sua expulsão do Brasil, como se mostra no filme de um modo muito sintético. Também no que diz respeito ao tráfico de escravos provenientes de África escreveu Vieira palavras que, no seu tempo, não só causaram perplexidade 190 EDUARDO GEADA como originaram ressentimentos e conflitos insanáveis com os poderosos do reino. No filme de Manoel de Oliveira podemos escutar um excerto de um dos mais extraordinários sermões da série Maria Rosa Mística, pregado em 1649 na Baía. Vieira alinha, em forte contraste de tom dramático, a existência dos senhores e a existência dos escravos. Uns vivendo na opulência e no luxo, os outros morrendo de fome e de nudez. E acrescenta: “Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? ” Também no Sermão do Rosário, pregado mais tarde em Lisboa, perante uma assembleia atenta e atónita, Vieira compara o sofrimento do escravo no engenho de açúcar com o sofrimento de Cristo na cruz. O que se torna claro nas palavras de Padre António Vieira é que o sistema de cristianização devia ser inseparável de um processo de humanização e de uma atitude de comiseração, que muitos representantes da sua Igreja e da sua Pátria não respeitavam. De facto, o comércio negreiro tornou-se um factor determinante do desenvolvimento da economia colonial no Brasil. Embora os movimentos anti-esclavagistas tenham frequentemente utilizado citações da Bíblia para condenar a escravatura como um pecado, mencionando excertos das escrituras onde se pode ler que Deus criou os homens iguais e à sua imagem, no Século XVII prevalecia o recurso à célebre passagem do Génesis na qual Noé amaldiçoa Canaan e com ele todos os seres de pele negra, que deste modo teriam sido condenados à servidão e a uma espécie de sub-humanidade. É, pois, no contexto da ideologia dominante da época que devemos entender a extraordinária acção de Padre António Vieira na Companhia de Jesus em defesa da liberdade dos índios do Brasil e em defesa dos escravos negros que chegavam de África para viverem e trabalharem em condições de extrema miséria e dor. O facto de uma avó de António Vieira ser mestiça, porventura filha de uma escrava negra trazida para a metrópole e a hipótese, não provada pela Inquisição, de haver sangue judaico na sua família, podem ajudar a explicar a sua personalidade e, sobretudo, o empenho que sempre demonstrou na luta contra a escravatura, o racismo e a perseguição aos cristãos-novos, como então se chamavam os judeus convertidos, por convicção ou por necessidade, ao ditame das regras católicas. 191 PALAVRA E UTOPIA: ANTÓNIO VIEIRA NO FILME DE MANOEL DE OLIVEIRA Contra a posição da Inquisição, que perseguia e procurava pretextos para expulsar os judeus e os cristãos-novos de Portugal, Padre António Vieira defende-os, alegando junto do rei que o seu enriquecimento e consequente contributo financeiro e tributário eram imprescindíveis ao desenvolvimento económico do país, à sustentação da guerra contra Espanha e à promoção da Companhia do Comércio do Brasil. O grande comércio internacional estava nas mãos dos judeus e Vieira não poupou esforços para atrair a Portugal algumas das famílias judaicas mais ilustres que se tinham refugiado na Holanda, na altura o único país europeu que não tinha uma religião de Estado. A corrupção alastrava entre os grandes da Corte. E Padre António Vieira não os poupa, como constatamos ao ouvir, entre outros, o famoso Sermão do Bom Ladrão, pregado em Lisboa na Igreja da Misericórdia em 1655. Nele se denunciam em todos os tempos e modos os furtos e a voraz ganância dos poderosos, terminando o exórdio com a afirmação de que “nem os reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao Inferno sem levar consigo os reis.” Para Padre António Vieira o púlpito não se confinava à oração sacra, à prédica canónica, antes servia como tribuna de intervenção social e política, evocando os fundamentos da pedagogia de Cristo, é certo, mas sem esquecer a conjuntura do seu tempo e da sua sociedade, numa admirável capacidade de intervenção cívica e moral que continua a merecer a admiração e o respeito de quantos se aproximam da sua obra. Palavra e Utopia se chama o filme. Título apropriado, tanto mais que Manoel de Oliveira escolhe judiciosamente as passagens dos sermões em que Vieira se afirma como um paladino inquebrantável de ideias e de ideais que estavam muito avançados para o seu tempo. Preocupado com o presente, com “aquilo que nunca está e sempre passa”, como escreveu, virado para o passado no que respeita o ressurgimento de profecias utópicas de cariz visionário, Vieira era também um homem do futuro no que toca ao que hoje poderíamos chamar com propriedade a defesa dos direitos humanos. Portugal vivia então tempos difíceis. Após o domínio espanhol, a Guerra da Restauração prolongou-se até 1668, obrigando o país a um enorme esforço militar, financeiro e diplomático. A morte de D. João IV em 1656 veio criar novos receios pela estabilidade e independência nacional. Vieira entendia que era preciso recriar a esperança na utopia e na grandeza que Portugal conhecera. 192 EDUARDO GEADA É sabido como as utopias nascem da insatisfação colectiva. Por maior que seja a intervenção de um só homem na elaboração desse mundo imaginário que é a utopia, que se espera poder vir a substituir os sofrimentos e o pesar do presente, ela não pode consolidar-se e difundir-se senão com a participação colectiva daqueles que desejam e sonham com a construção de um mundo melhor. Existe, portanto, no pensamento utópico uma forte componente de fé e esperança que desafia a lógica do mundo tal como o conhecemos e que desafia também uma interpretação estritamente racionalista dos seus objectivos. Poder-se-ia mesmo dizer que a utopia desafia as leis do mundo tal como Deus o criou e o homem o organizou, na medida em que não conhecemos outro, mas não nos conformamos com aquele que temos. Neste sentido, no contexto do pensamento pré-iluminista do Século XVII, uma utopia não podia deixar de ser considerada pela Igreja uma heresia, não só porque a utopia desafia abertamente a ordem social reinante mas porque ela desafia também a ordem divina que a fundamenta e legitima. Não é certamente por acaso que os autores das duas grandes utopias que precederam o delírio imperialista do Padre António Vieira – refiro-me às obras de Thomas More e Tommaso Campanella – acabaram às mãos dos verdugos da Igreja Católica. O mesmo poderia ter acontecido ao Padre António Vieira, não fossem as circunstâncias instáveis da política interna do país na época terem-lhe sido favoráveis. É sabido que o imaginário de culturas distantes, no espaço ou no tempo, foi durante o Século XVII, mas também em plena expansão Iluminista, o núcleo central da inspiração utópica. O suposto declínio da civilização ocidental foi, desde a antiguidade grega, um tópico filosófico permanente na evocação do contraste entre os constrangimentos do presente e a harmonia da chamada idade de ouro, que remontava aos tempos primordiais do mito. Desde a era dos Descobrimentos que o tema do selvagem nobre e puro foi ganhando forma até se ver consagrado na cultura europeia do Século XVIII. A rejeição da sociedade ocidental tal como a conhecemos tornou-se, desde cedo, um traço cultural tipicamente europeu. A ideia de que o mundo em que nos encontramos é um mundo corrupto e decadente é uma característica decisiva do pensamento utópico. Quando os primeiros pensadores da utopia referem as qualidades distintivas das sociedades primitivas, identificadas com a harmonia e a abundância da idade do ouro, sublinham em primeiro lugar a ausência de 193 PALAVRA E UTOPIA: ANTÓNIO VIEIRA NO FILME DE MANOEL DE OLIVEIRA propriedade, a vida em comunidade, a liberdade sexual, o desprendimento em relação aos bens materiais e o que poderíamos chamar a total ausência de luxo e de acumulação de capital. A descoberta da América e do Brasil na viragem do Século XVI foram acontecimentos históricos cruciais no desenvolvimento das fantasias utópicas. Os europeus encontraram nesses imensos e prodigiosos territórios populações nativas que viviam, aparentemente inocentes e felizes, num estado de natureza primordial. Alimentou-se a promessa de um Novo Mundo. Muitos pensadores utópicos quiserem acreditar ter encontrado nessas terras virgens uma imagem possível do paraíso terrestre. Foi o caso de Padre António Vieira. Descrevendo o seu desembarque em S. Luís do Maranhão, a 16 de Janeiro de 1653, na qualidade de Superior dos missionários jesuítas, Vieira escreveu: “Se a alegria de entrar no Céu tem na terra comparação, foi esta. Agora começo a ser religioso e espero na bondade divina”. O contraste com as suas experiências entre os poderosos do mundo, no Paço Real em Lisboa, nas Cortes da Europa e nos salões do Vaticano, não lhe deixavam margem para dúvidas. Se houvesse paraíso na terra ele seria à semelhança do sertão do Brasil. Em 1669, após a morte do Inquisidor Geral e a substituição no trono de D. Afonso VI por D. Pedro, de quem fora educador na infância, Padre António Vieira parte para Roma a fim de obter do Papa imunidade contra novos ataques da Inquisição Portuguesa. Acabou por ficar seis anos em Itália. Depressa aprendeu italiano e ganhou fama junto da cúria romana graças aos seus dotes oratórios, tendo assumido o cargo de pregador da Rainha Cristina da Suécia, que desenvolvera em Roma uma verdadeira Corte no mais puro estilo do Renascimento. Vale a pena debruçarmo-nos um pouco sobre as cenas em que Manoel de Oliveira reconstitui a relação entre Padre António Vieira e a Rainha Cristina, não só porque essas cenas ocupam um certo relevo na economia narrativa do filme, mas também porque elas são reveladoras da possível aproximação estética e ética entre a obra de António Vieira e a obra de Manoel de Oliveira. A primeira vez que vemos a Rainha Cristina no filme ela encontra-se na Igreja, a ouvir um concerto de música sacra, enquadrada num plano como se a víssemos num camarote de teatro. Tendo por fundo uma pintura angélica, Padre António Vieira aguarda na sacristia, como se estivesse nos bastidores do 194 EDUARDO GEADA teatro à espera da sua vez para entrar em cena. Na verdade, assim que ouve os aplausos, Vieira entra na Igreja, entra literalmente em cena, sobe ao púlpito e inicia a dissertação com um conjunto de metáforas referentes à harpa e à funda de David. E explica a razão pela qual a harpa representa a música enquanto a funda representa o sermão. A harpa, ou a música, serve para afastar os maus espíritos; a funda, ou o sermão, serve para derrubar aos pés de Cristo os seus inimigos. Torna-se evidente que a palavra é para Vieira um instrumento de acção religiosa e política e o púlpito um palco onde se dramatizam os conflitos sociais e existenciais. António Vieira conclui que tanto a música como o sermão simbolizam as duas grandes cenas do teatro do mundo. Apesar de, em alguns dos seus escritos, nomeadamente no célebre Sermão da Sexagésima, pregado na Capela Real, em 1655, Padre António Vieira criticar a dialéctica escolástica como um suporte de espectáculo, com a qual os pregadores sobem ao púlpito como se fossem comediantes, ele próprio não fez outra coisa se não utilizar a prédica como forma suprema de tensão dramática e de virtuosismo retórico. À comédia dos pregadores, que baseiam a sua arte no fingimento, no ornamento e na volúpia dos sentidos, opõe Vieira os dramas da fraqueza humana e da realidade histórica. A diferença é que, ao contrário daqueles que censurava e que são hoje meras notas de rodapé do cultismo barroco, António Vieira é um mestre supremo da língua - o imperador da língua portuguesa, como lhe chamou Fernando Pessoa. Compreende-se assim o método de encenação de Manoel de Oliveira ao filmar as prédicas de Vieira em longos plano fixos, começando quase sempre em voz off sobre imagens de fachadas de igrejas, quadros de temática religiosa, o oceano e estátuas, como se entre a palavra de Vieira e os sinais de Cristo no mundo houvesse uma consonância liminar, como se Vieira estivesse num local e a sua palavra estivesse em toda a parte. Quando vemos no púlpito os actores que representam Padre António Vieira, eles falam a maior parte do tempo para um espaço que não se vê, ou que não se vê na totalidade, deixando em aberto a inscrição do próprio espectador na assistência do sermão. Este dispositivo de ligação entre a imagem e o som, que podia servir apenas o propósito pragmático de poupar tempo para inserir os sermões de Padre António Vieira ao longo do filme, cria um imaginário surpreendente, que nos afasta radicalmente da mera função ilustrativa em que se baseiam muitas biografias históricas do cinema industrial. 195 PALAVRA E UTOPIA: ANTÓNIO VIEIRA NO FILME DE MANOEL DE OLIVEIRA A simplicidade primitiva dos enquadramentos de Manoel de Oliveira, definidos através de eixos que acentuam a dimensão cenográfica dos espaços, bem como a longa duração dos planos, permitem realçar o efeito de teatralidade, que é uma das características da obra do cineasta, como é uma das características da estratégia discursiva de Padre António Vieira. Estes elementos ressaltam de maneira brilhante na cena da argumentação no Vaticano, quando Padre António Vieira e Padre Jerónimo Catâneo, num debate académico para divertimento da Corte da Rainha Cristina, dissertam sobre o Riso de Demócrito e as Lágrimas de Heraclito. Cabe ao Padre Catâneo exemplificar no filme o modelo de oratória barroca, afectada, ornamental e vazia de sentido que Vieira condenava e atribuía aos pregadores comediantes. Enquanto o discurso de Padre Catâneo é rebuscado e pueril, centrado unicamente no malabarismo das palavras, a argumentação de Padre António Vieira é de uma clareza cristalina, preocupada em exprimir uma visão critica do mundo. Na resposta à questão de saber qual dos filósofos gentios terá sido mais prudente, se Demócrito que ria sempre, se Heraclito, que sempre chorava, Padre Catâneo escolhe a defesa do riso de Demócrito enquanto Padre António Vieira fica com a defesa das lágrimas de Heraclito. Depois de reconhecer que o riso e o pranto são propriedades indiscutíveis do ser racional, com as quais o homem traduz o seu sentimento da realidade, pergunta Vieira como pode o homem rir de um mundo que é um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças e de mortes? Seguramente, só pode rir deste mundo quem não o conhece. Neste debate de salão, que ficou registado e se tornou célebre, Vieira volta a utilizar a metáfora do mundo como um imenso teatro trágico, pois cada dia que passa é uma fatalidade na existência efémera do ser humano, condenado ao infortúnio, à miséria e à morte. Vale a pena recapitular o início da cena, porque ela introduz uma espécie de rima interna no filme que nos diz muito acerca da figura de Padre António Vieira tal como é visto pelo cineasta Manoel de Oliveira. Os convidados da Rainha Cristina entram no salão do Vaticano e sentam-se para assistir ao jogo de palavras. Entretanto Padre António Vieira olha em volta. E, pela segunda vez no filme, depois da cena inicial do Tribunal da Inquisição, quando Vieira olhou para a escultura do Cristo negro crucificado, Manoel de Oliveira dá-nos de novo três ou quatro planos subjectivos de António Vieira. O que ele vê e o 196 EDUARDO GEADA que nós vemos são paredes de mármore precioso, cobertas de frisos dourados e pinturas a fresco onde se misturam temas clássicos da mitologia pagã com evocações bíblicas, características do período barroco. Quem vive naquele mundo artificial, pleno de mordomias, pompa e circunstância, terá por certo bons motivos para rir, mas quem, como Vieira, conhece a realidade dos que sofrem e lutam todos os dias pela sobrevivência não pode senão juntar-se às lágrimas de Heraclito. A teatralidade barroca é um dos preceitos incontornáveis da cultura do Século XVII. E o teatro como metáfora da existência é uma figura de estilo comum a diversos escritores da época, que se debruçam sobre a dialéctica do ser e do parecer, da ilusão e do artifício. Mas em Vieira, a teatralidade da arte oratória, a frequência da hipérbole e da alegoria fundem-se com a desmesura visionária, a obstinação idealista, o nacionalismo místico, a coragem indómita, o carácter exaltado, a mestria pedagógica, a fé missionária. Nele, a componente teatral não é sinónimo de fingimento ou de representação vã, antes a essência de uma realidade que é dramática por natureza. Ora, justamente, a noção de que a realidade social e existencial só pode ser apreendida através de um dispositivo teatral tem manifestas analogias com a poética de Manoel de Oliveira, para quem o cinema é, antes de mais, um registo audiovisual do teatro, na medida em que tudo o que se põe diante da câmara de filmar passa a ter necessariamente uma dimensão teatral. Tanto em Vieira como em Oliveira a procura da palavra justa, ou da imagem justa, deriva de uma postura ética que entende a linguagem simultaneamente como forma de conhecimento do mundo e como manifestação da transcendência. Os referentes materiais da realidade degradam-se e perecem, mas o testemunho da palavra e da imagem perdura como herança espiritual. Porém, enquanto a palavra de Vieira visa o excesso, a imagem de Oliveira visa a contenção. Se um pode associar-se à exuberância barroca, o outro deve aproximar-se da depuração minimalista. Assim, à estratégia da metáfora em Vieira corresponde a estratégia da metonímia em Oliveira. O pregador utiliza os mecanismos semânticos de analogia entre realidades distintas, o cineasta opta pela contiguidade visual e sonora entre o que está dentro de campo e o que se supõe estar fora de campo. Vimos já alguns exemplos da metáfora nos sermões de Padre António Vieira, vejamos agora alguns exemplos da metonímia no filme de Manoel de Oliveira. 197 PALAVRA E UTOPIA: ANTÓNIO VIEIRA NO FILME DE MANOEL DE OLIVEIRA Quando ouvimos o Sermão do 4º Domingo da Quaresma, pregado em 1657 na Igreja Matriz de S. Luís do Maranhão, vemos um grupo de escravos negros diante da porta aberta da Igreja. Quando passamos para o interior da Igreja vemos uma estátua de Cristo em agonia. Ouvimos mas não vemos Padre António Vieira. A multidão que se acumula no exterior indicia que a Igreja possa estar cheia, assinala que os escravos ouvem com atenção as palavras de Viera mas não têm assento no interior. E o corte visual dos escravos no exterior para a estátua de Cristo no interior prolonga o eco de sentido que as palavras de Vieira evocam. Manoel de Oliveira não é um cineasta realista, não pretende que a sintonia da imagem e do som criem a ilusão da transparência discursiva, pelo contrário, quando dissocia a imagem do som procura que o som se torne ele próprio uma imagem mental de outra coisa que não aquela que estamos a ver no plano. Gera-se assim o imaginário de uma realidade invisível que é a arte suprema do cinema. Dir-se-ia que, nos filmes de Oliveira, quanto menos elementos referenciais se inscrevem na imagem maior é o potencial de significação que ela apresenta. Outro exemplo, porventura dos mais belos de toda a obra de Manoel de Oliveira, está no plano do naufrágio, ocorrido na viagem que Padre António Vieira fez em 1654 do Brasil para Lisboa. O plano começa sem ninguém, só vemos rocha, mar e céu. Depois, um por um, surgem Vieira e os seus companheiros de viagem. Não vemos de onde vêm nem para onde vão. São homens perdidos na paisagem, que regressam extenuados do fundo do oceano longínquo. Nenhuma outra imagem evoca melhor, e com tão poucos meios, o que foi a epopeia, a solidão e a tragédia dos navegadores portugueses. Ao longo do filme a figura de Padre António Vieira é representada por três actores, dois portugueses e um brasileiro: Ricardo Trepa, Luís Miguel Cintra e Lima Duarte, todos notáveis. Poder-se-ia dizer que a longevidade de Vieira exigia que actores de idades diferentes interpretassem as várias fases da sua vida. Esta justificação de ordem prática, embora correcta, não esgota as hipóteses que o filme explora. Manoel de Oliveira dá a conhecer um personagem complexo, contraditório, multifacetado. Vieira foi um patriota fiel ao seu rei e ao seu país, mas não se inibiu de criticar o rei e o país. Foi um missionário fiel à sua Igreja, mas não se inibiu de entrar em conflito com os seus representantes. Foi um diplomata nas Cortes da Europa e um andarilho nas florestas tropicais. Nenhuma das suas profecias 198 EDUARDO GEADA se cumpriu, nenhum dos seus projectos políticos se concretizou. Não obstante, a palavra e a utopia fazem dele uma das personalidades cimeiras da cultura de expressão portuguesa. Ao lê-lo sentimos que é um cidadão do mundo e um homem que ultrapassa o seu tempo. É português e é brasileiro, é africano e é judeu, é cristão e é herege. António Vieira encarna à perfeição o aforismo de Fernando Pessoa: “cada um de nós é tanta gente.” 199 200 A Inércia Obediente João Soares Santos “The puppet is the actor in his primitive form.” George Bernard Shaw 1. Talhados num dado material, os corpos das marionetas induzem a mente humana a conceber nas suas aparências imóveis uma presença sem determinação, submetida a um controlo exterior, a supor ou a crer que são figuras susceptíveis de serem ocupadas ou manipuladas por forças, por entidades que lhes insuflam ânimo, lhes concedem motivação e precisão maquinal. Esta ausência sagaz ou imbecil ao ser vitalizada age numa infatigável entrega, numa disponibilidade sem convicção, ao sabor dos desígnios daquele que a alenta. Artificiosamente operada, a sua materialidade inerte fica dócil e dependente de quem dela se apropria. Em movimento, a marioneta concentra em si os interesses e as atenções, cria uma relação física e imaginária com o espectador ou com o sobrenatural. Sincronizada com uma cognoscibilidade que a transcende, adquire uma existência enquanto personagem, deixa-se dominar por faculdades que por sua via se afirmam, por um querer que a instiga a actuar de um certo modo. Desprovida de livre arbítrio, de capacidade de escolha, a sua indiferença, a sua passividade é beneficiada pelas intenções daquele que pensa e procede por seu intermédio. Ela é o agente para um desiderato, o utensílio de um engenho e pujança que nela se instala e autoriza a significar. Se, por um lado, o manipulador a emancipa da imobilidade e a subordina às suas habilidades e conveniências, por outro, a sua neutralidade obediente e adaptável sugere uma tranquilidade sepulcral, uma firmeza imutável apta a resistir a todas as veleidades. Embora dotada de uma fictícia motivação, apesar de simuladamente experimentar a agitação do seu papel numa intriga, permanece incapaz de ter iniciativa própria, mantém-se fria e insensível ao que acontece, participa mas preserva-se intangível, substancialmente imparcial. A sua rigidez impessoal e muitas vezes articulada, garante-lhe uma rendição inesgotável a todos os caprichos, uma tenacidade desvelada e irreflectida em todas as obrigações, condições, sentimentos, gestos ou fantasias. A sua consistência sem identidade é o segundo corpo do manipulador. Expõe, é absorvida pelo Pneuma artístico 201 A INÉRCIA OBEDIENTE daquele que dela se serve, obedece, sem tino, possuída e amplificada expressivamente por uma conduta deliberada e cuja acção em si se manifesta. Apesar das diferenças culturais, as marionetas parecem ter surgido a partir da possibilidade de haver forças misteriosas na natureza, uma inerência espiritual nas coisas e criaturas bem como da hipótese destas se deslocarem, transferirem ou exercerem pressões e influências. Apesar da materialidade orgânica e processos vitais intrínsecos, subsiste no homem e nos outros seres uma elementaridade incorpórea, vincula-se e opera nele uma concordância volátil, uma comparência subtil que em certas circunstâncias o pode abandonar. No antigo Egipto um escultor era designado por «fazedor de vida» (Seankh) e, após a conclusão do entalhe de uma estátua, realizava-se um ritual no qual um sacerdote tocava na boca aberta deste com um artefacto adequado (Setep ou Pesechkef) para lhe conceder vida. O conjunto dos elementos ou princípios espirituais que singularizam uma potestade ou indivíduo (Ba) alojavam-se nas imagens que os representavam. Esta essência imaterial tinha, entre outras, a configuração de uma ave com cabeça humana. Mas o Ba podia ser igualmente a faculdade de uma divindade incorporar objectos ou seres. Um deus podia ser o Ba de outro, ocupar um animal sagrado ou introduzir-se em estátuas e imagens pictóricas. Uma obra escultórica era entendida como um recipiente, algo que acolhia o Ba do representado se este fosse devidamente convocado para isso. O Ba das entidades sobrenaturais tinha múltiplos nomes e morfologias e significará aquilo a que aproximadamente poderemos chamar alma, uma substancialidade própria e única desprovida de evidência concreta. Ba indica também «ser detentor de uma alma» e Ba en Nub («alma de ouro») um amuleto, ou seja, um objecto portador de uma eficácia mágica. O símbolo hieroglífico egípcio para Ba (um jabiru, ave parecida com uma cegonha) ao ser composto com outros pode denotar sentidos diversos como «admirar», «ficar pasmado», «livro», «troçar», «escarnecer», «escavar com um instrumento», «coisas trabalhadas a cinzel», «caverna», «buraco», «ribeiro», «nascente de um rio», «harpa», «recipiente», «cinzel», ou «estar feliz». Durante a primeira e segunda dinastia, o indivíduo era inteligibilizado como constituído por um nome, um corpo mortal, uma sombra (Chut) e duas dimensões imateriais (Ba e Ka). Ka era a consciência, o génio, o duplo invisível, a vitalidade, a pujança que singulariza a pessoa, aquilo que a nutre e que dela se solta quando perece. Supostamente o Ka surge no nascimento de cada 202 JOÃO SOARES SANTOS pessoa, modelado juntamente com o corpo na roda de oleiro do deus Khnum ou Khenemu. O túmulo era a «casa do Ka» e dentro dele esvoaçava o Ba e seu residente recebia alimentos. Ba e Ka unem-se na morte originando Akh (princípio imortal, perpetuidade espiritual). Sobre as estátuas egípcias eram inscritas fórmulas mágicas destinadas, por exemplo, a evocar uma qualidade protectora e estas eram vigoradas, ficando carregadas com a força almejada no registo, transmitindo-a ou irradiando-a. Supostamente, o faraó enquanto dormia soltava os efeitos pretendidos por estes textos que interpelavam o sobrenatural, intermediava e tornava possíveis os pedidos do seu povo aos deuses. O soberano era o depositário de uma pujança legada dos seus antepassados na terra, descendentes de entidades divinas. Elo de uma continuidade de origem muito remota, de uma anterioridade que retrocede à própria génese, devia preservar e garantir a não interrupção desse processo, mantendo intacta a ordem da sociedade. A «Abertura da Boca» (Uep Ra) era uma cerimónia funerária em que um sacerdote oficiante, com um instrumento próprio (Pesechkef) vitalizava o morto e as estátuas, capturando e reintroduzindo a alma não encarnada no mesmo corpo ou num corpo substituto. Depois de o ritual ser administrado eram colocadas no túmulo uma ou mais estátuas em pedra e madeira, adequadamente consagradas para servirem de receptáculo alternativo ao seu modelo. No caso de a múmia ser destruída, a alma do falecido podia ser transferida para um outro corpo que o representava. Figuras de pequena escala, por vezes com a morfologia de múmia desempenhavam algumas das tarefas a cumprir pelo defunto no além. Tomavam o seu lugar, supriam-no como desdobramentos servis e prestáveis das incumbências (frequentemente agrícolas) sem deixarem de ter a imagem e a essência do morto. Estes artefactos estavam por isso conceptualmente potenciados, possuíam um sopro anímico, um princípio de vitalidade. As dimensões materiais e imateriais intersectavam-se, estendiam-se uma pela outra, sem se prescindirem. De algum modo o cadáver e a sua substância anímica lembram a imóvel marioneta que é preparada para se erguer e deslocar ao sabor da vontade daqueles que por ela zelam e manipulam. Esta ideia de preenchimento supernal existiu na arte da Mesopotâmia. Uma estátua era concebida para integrar um templo e assegurar a protecção divina a quem ela retratava. As potestades («Dingir» em língua suméria ou «Ilu» em acádico) residiam nos confinamentos da forma e do volume dos 203 A INÉRCIA OBEDIENTE edifícios e objectos sacralizados. A sua presença real era garantida pela estátua que continha, encerrava, simbolizava ou evocava a sua identidade. Um poema detalha as diligências de Nergal (Erra), deus subterrâneo associado com a belicosidade, doença e devastação, para convencer Marduk a abandonar a sua estátua de culto. Conseguido o seu intento, ficando esta desocupada, bem como o templo em que se encontrava, Nergal teve a liberdade para praticar acções nefastas.1 O simulacro ou substituto preservava a substância vital do devoto, do governante ou do deus, a imagem acolhia e participava nos desfiles realizados durante as festividades religiosas, sendo colocada sobre carros sumptuosamente ornamentados e conduzidos pelo soberano. Assim sucedia no Akitu ou Akiti. Ea (Enki) divindade das águas sobre as quais a terra flutuava (Absu), desejoso de locupletar o espaço vazio do mundo criou tudo o que existe pela modelação de pedaços de argila, incluindo certos deuses vocacionados para tarefas particulares. Da inanidade obteve exortação. As perturbações de saúde eram entendidas como a consequência de uma ofensa aos deuses ou como a comparência dominadora de um espírito maligno que deveria ser expulso por um sacerdote especializado. Os deuses deixavam de se preocupar com os homens quando eram por estes ofendidos. Sem esta segurança, os demónios viam facilitada a possibilidade de se alojarem nos seus corpos, causando transtornos e precisando de serem esconjurados. O Ashipu (termo acádico correspondendo sensivelmente ao de «Mashmash» sumério e «Masmashu» semita) detinha o talento muito remoto de expurgar e acautelar estas possessões. Usava o dom da palavra para fazer sair a entidade nefasta, induzi-la a libertar-se do corpo apropriado. Empregava estatuetas que durante o processo eram alvo de actos violentos e sujeitas a destruição. Desatava os nós dos fios que simbolicamente amarravam e tolhiam os movimentos da vítima. Este sacerdote «consagrará as estátuas divinas e os objectos de culto de modo a dar-lhes vida. Pela “lavagem, abertura da boca”, como os egípcios faziam, tocando-lhes com um instrumento apropriado e recitando fórmulas, as estátuas tornar-se-ão vivas, o mesmo acontecendo com os objectos de culto: o Lilissu ou santo timbale, cujo som acompanhará a cerimónias». 2 Na Mesopotâmia, o vocábulo para corpo (Zumru) aplicava-se indistintamente tanto para o invólucro mortal como para uma edificação ou para uma figura cinzelada de uma potestade. A origem do termo poderá ser Mashku (a 204 JOÃO SOARES SANTOS pele, aquilo que envolve, contorna, delineia ou contém algo). O indivíduo é uma miniatura de barro, um simulacro, uma figuração tridimensional amassada em matéria orgânica dúctil, posteriormente desentorpecida e incutida de ânimo. Como uma estátua, degrada-se com o efeito da temporalidade e, quando morre, retorna à origem, de si se desprendendo uma espécie de alma errática (Etemmu, um termo que foneticamente recorda o sânscrito Atman = a alma, o princípio vital). 2. Persiste entre as crenças das sociedades tradicionais a noção de que as enfermidades mais graves são motivadas por forças provenientes de uma dimensão que transcende a compreensão humana. Energias lesivas são instigadas por uma transgressão individual ou por iniciativa de alguém com o dote mágico de transferir para um corpo algo que não lhe pertence ou de lhe retirar uma parte essencial do seu vigor. Também um artefacto pode provocar uma doença. Um agente sobrenatural pode inserir-se num corpo por uma vulnerabilidade deste ou através de um objecto com a aptidão sortílega para isso suceder. Entre outras alternativas, a alma pode retirar-se do indivíduo quando ele sonha. A sua ausência do corpo pode motivar alterações nas funções e privá-lo de saúde. Um efeito mágico nocivo pode ser obtido pela utilização de um boneco ou efígie que substitui a vítima ou pela criação de um modelo da componente corporal que se pretende atingir com a proferição dos encantos adequados. Os Kai da Nova Guiné acreditam que ter um pedaço de cabelo de alguém ou do tecido vestido por uma pessoa pode servir para interferir com a sua alma e causar resultados funestos.3 Os espíritos malignos podem permear a matéria conformada que constitui o indivíduo e expressarem-se através dela bem como introduzirem-se num órgão ou atacar a sua sombra. Certas perturbações mentais são explicadas segundo este tipo de raciocínio, embora em muitas culturas estas não sejam admitidas como uma efectiva enfermidade. O indivíduo se estiver investido por uma divindade e actuar por vontade dela pode ser considerado um homem santo, proceder como um sacerdote, um xamane e, em certos casos, também como um dançarino, um actor ou um manipulador de marionetas. A prodigiosa intromissão beneficiosa ou hostil de um espírito num corpo vivo ou, por exemplo, numa máscara, boneco ou títere é um testemunho asseverativo do seu potencial receptor. Em muitos casos, esta qualidade de ser uma 205 A INÉRCIA OBEDIENTE provisória residência ou ponto de passagem resulta em doença. Esta é admitida, como foi referido, como o alojamento de uma presença oriunda de outra realidade, a penetração de uma força externa que, por exorcismo ou magia deve ser transposta para outro lugar. Pode também ser a punição sobrenatural advinda de um acto interdito ou a ausência da alma causar definhamento ou perturbação no revestimento anatómico e configurar uma patologia. Segundo a tradição grega, Pandora («a que dá todas as coisas» ou «a que tem todos os dons») foi uma mulher que, por ordem de Zeus, foi modelada em argila por Hefestos com o auxílio de outros deuses. «Disse a Hefestos para misturar terra e água, lhe dar uma voz e o poder humano para se mover, para que lhe fizesse uma face semelhante a uma deusa imortal e para modelar a sedutora figura de uma virgem (…). Tal como Zeus ordenara, o deus coxo configurou a terra com a imagem de uma modesta rapariga (…).4 Através dela, o filho de Cronos castigou a humanidade. Prometeu criou a humanidade contornando pedaços de argila, roubou o fogo do Olimpo e instruiu o seu filho a construir uma arca para salvar do dilúvio enviado por Zeus a espécie que concebeu. «O artesão divino tanto em Hesíodo como nos Sumérios-Babilónios começa por dar forma ao corpo humano a partir de água e argila antes de lhe insuflar uma alma.»5 Em sânscrito a palavra «Prometeu» parece corresponder a «Pramantha» (raiz «Math» ou «Manth») significando «violento», «torturante», «que sofre» ou «que está em tormento». «Math» indica «girar em volta», «mover-se», obter o fogo pela rotação de um pau seco, «agitar-se», «ficar abalado», «ficar perturbado». O equivalente indiano de Prometeu é a divindade védica Matarishvan (um dos nomes de Agni ou uma potestade com ele relacionada) que trouxe o fogo escondido e foi o primeiro a usá-lo em sacrifício. Construiu também uma embarcação para salvar as criaturas de um dilúvio e para transportar as almas dos falecidos para o mundo dos mortos. Pigmaleão, rei de Chipre, terá, certa vez, esculpido uma estátua de marfim retratando Afrodite e a sua conclusão ficou de tal modo deslumbrante que o soberano se enamorou pela obra. Rogou à deusa representada para que lhe concedesse o milagre de ter uma esposa idêntica à imagem e ela, condescendendo, atribuiu vida à própria estátua. Certa vez, Gauri («brilhante», «dourada»), a consorte de Shiva, visitou a oficina de um talentoso carpinteiro e ficou pasmada com a habilidade das 206 JOÃO SOARES SANTOS suas bonecas. Shiva para maravilhar a sua companheira dotou-as de vida para que pudessem dançar. Vendo o portentoso acontecimento, o artesão pediu para que esta magia se mantivesse nas suas esculturas. Desde então, as suas delicadas figuras passaram a ter a aptidão de poderem voar no céu, de transportar grinaldas, de ir buscar água e de narrar histórias. Segundo o «Antigo Testamento», Deus concebeu o Homem a partir do barro e infundiu-lhe um sopro de vida. Na mitologia chinesa Nu Gua (mulher semelhante a um caracol), criou os humanos de lama e terra amarela. Quando um eminente mongol falecia, o seu cadáver era incinerado, as cinzas misturadas com argila e esta convertida numa imagem antropomórfica depositada no lugar da fogueira. Nas dramatizações de marionetas da Malásia (Wayang Kulit Siam), a personagem cómica mais idosa chama-se Pak Dogol, tem um estômago, umbigo e nádegas desproporcionadas, furúnculos por todo o corpo e costuma apresentar-se com o camarada Wak Long, igualmente disforme, nos papéis de servos ou de companheiros de Seri Rama nos enredos do «Ramayana». A monstruosidade anatómica de Pak Dogol serve para dissimular a sua natureza divina. De facto ele é Dewa Sanghyang Tunggal, irmão de Betara Guru (Shiva). Depois de ter vindo à terra, percebeu que o resplendor do seu corpo e do seu intelecto era tão intenso que podia ofuscar e cegar os humanos. Optou então por uma conduta recatada. Avistando um curso de água, aproximou-se dele e cobriu o corpo de argila. Com o mesmo material modelou Wak Long para não se sentir solitário. Para além de aparecer em representações e nelas nunca expor a sua verdadeira identidade, esta figura de couro pintada de negro costuma ser utilizada em rituais curativos e alegadamente tem dotes espirituais. Na região de Fujian, uma marioneta de fios considerada ser a divindade Xianggong ou o supremo marechal Tian, costuma ser empregue numa cerimónia de esconjuração na qual fica preenchida por Tian, o líder do grupo dos actores do Jardim das Pereiras e favorito do seu mentor e patrono, o imperador Xuanzong (reinou entre 712 e 756) da dinastia Tang. Em certas zonas desta província chinesa, o logograma para mencionar «médium feminino», «sacrifício», «bode expiatório» e «marioneta» é o mesmo. A função purgativa destas figuras remonta a períodos muito recuados e as suas aptidões exorcistas mantiveram-se a par dos desempenhos de entretenimento.6 Nas representações de marionetas da China surgem segmentos rituais que auscultam e interpelam o sobrenatural de modo a que as suas entidades possam 207 A INÉRCIA OBEDIENTE atrair a boa-sorte, possam proporcionar um futuroso advir. Os espectáculos são dedicados às divindades e, por vezes, podem ser interpoladas neles peças com um propósito purificador, para expurgar a área ou o espaço cénico de pressões malignas. Em Taiwan, os títeres de fios estão conectados com a acção de eliminar ou afastar o que é nocivo, com a expulsão, supressão ou o erradicar de demónios nas casas, templos ou aldeias e assegurar a salubridade espiritual de um lugar. Na cerimónia de inauguração de uma nova habitação, Xianggong (uma criança de rosto acastanhado envolto numa faixa vermelha, com um pincel numa das mãos e um painel com as estrelas da grande ursa na outra) percorre e interpreta no interior do sítio a coreografia das sete estrelas (Qixingbu) e a da instalação dos oito trigramas (An Bagua). Chega depois à soleira. Aí o seu manipulador profere a fórmula da espada (Jianjue) e simula uma mímica de ataque juntamente com a repetição das danças precedentes.7 Neste país, as estátuas das divindades nos templos só possuem uma influência ou stimulus mágico quando os seus olhos «são abertos». A sua força superior para provocar consequências extraordinárias depende da observância cerimonial que implica o desenhar da sua pupila com o sangue de um galo imolado. Assim a escultura passa a dar refúgio ou a apreender as entidades que para si foram convocadas. 3. Uma marioneta é um boneco talhado e manuseado para simular ter uma existência. Na Grécia Antiga, Platão referiu algumas vezes essas figuras que se viam e causavam encanto, comparando-as ao indivíduo manobrado pelo ignoto arbítrio dos deuses e ao indivíduo governado pela racionalidade. «Não poderemos nós ver cada criatura viva como uma marioneta dos deuses, que pode apenas ser um brinquedo ou ter sido criada com um desígnio; poderemos nós verdadeiramente saber? Sabemos porém que estas afecções em nós são como cordas finas e fios que nos puxam em direcções diferentes e contrárias e para acções opostas; aqui está a diferença entre virtude e vício».8 Em grego pequenas imagens de cera que imitavam seres humanos e eram empregues em ritos mágicos denominavam-se por «Dagys» ou «Dagynon». De um modo geral «boneca» pronunciava-se «Plaggon» e o artesão que as fabricava chamava-se «Koroplathos». Para «Marioneta» empregava-se «Tauma» (mesmo termo para «admiração», para «objecto causador de espanto») e «Taumatopoios» referia-se a algo que não era comum, a algo 208 JOÃO SOARES SANTOS que suscitava estupefacção, algo prodigioso. «Neuropasta» era outro vocábulo utilizado («Neura» significa «fio», «corda de arco» ou «corda de instrumento de música» e «Neuron» indica «nervo», «tendão», «músculo», «fibra») para títeres accionados com fios. «Neurospastia» é a operação de mover com cordas e «Neuropastes» aquele que movimenta por meio de filamentos, o manipulador das marionetas. Em latim encontramos vários termos concernentes a este assunto. Por exemplo, «Pupa» para «boneca», «Imaguncula» (termo derivado de «imago», ou seja, uma representação, a forma ou o fantasma de alguém, um sonho) para «imagem, «retrato», «figura», «Sigillaria» para pequenas figuras trocadas como presentes numa festividade homónima realizada em Roma, «Nervis Alienis» para «estrangeiros» ou «estranhos movidos por fios», «Ligniolis Hominum Figurae» para «figuras humanas de madeira», «Homunculus» para «homem» ou «modelo de figura humana» ou ainda, como no grego, «Neurospaston» para «marioneta». Em sânscrito «Pupa» menciona um bolo ou uma espécie de pão (farinha amassada e cozida). «Marioneta» corresponde a «Putraka («filho», «criança»), «Putrika («filha», «pequena estátua»), «Puttala» («boneca», «efígie», «estatueta»), «Puttalika» ou «Puttika» («boneca», «marioneta»). O primeiro nome conhecido de um marionetista foi Potheimos, aludido pelo gramático Athenaeus (séc. III) na obra «Deipnosophistae», a propósito das suas exibições no teatro de Dióniso em Atenas, capazes de captar mais público que as peças de Eurípedes. Na tradução de uma obra atribuída a Aristóteles, Appuleios (c.130-170) registou: «aqueles que dirigem os movimentos das pequenas figuras de madeira quando puxam o fio que controla um membro, o pescoço encurva, a cabeça acena, os olhos vibram, as mãos adaptam-se a qualquer acção requerida e todo o corpo se move graciosamente como uma coisa viva.»9 Estes artefactos imaginados como portadores ou receptáculos de uma substância ou pujança sublime serão provavelmente o protótipo ou matriz das marionetas. Estas esculturas pintadas e com partes móveis, supostamente detentoras de faculdades que transcendem a compreensão foram encontradas nos túmulos, participavam em rituais, serviam para propiciar, para influenciar ou para divertir. Este corpo inânime ao ser entranhado por uma vontade externa, adquire a intenção e o vigor de quem a controla, estabelece uma osmose com 209 A INÉRCIA OBEDIENTE o seu manipulador. Quando este é humano perde também a iniciativa própria e revela o assomo de pretensão de um agente extraordinário. A sua minúcia e intensidade não dependem da sua determinação mas de uma ausência receptiva à visita de entidades sobrenaturais. Assim a arte das marionetas parece porvir desta ideia de que os corpos possuem uma vitalidade não somente orgânica, transportam uma natureza etérea ou ténue que pode ser deslocada ou temporariamente substituída. No culto arménio a Gisane («aquele que tem o cabelo comprido»), uma potestade que descende da deusa mãe Turan, os sacerdotes (Gusans ou Goussans) usavam o cabelo comprido, penteado para cima e preso no topo da cabeça em forma de cone (Gisakal). A morfologia deste corpo sólido passou depois a ser constituída por triângulos. Nas cerimónias consagradas à ressurreição de Gisane ocorriam momentos de desmesura comportamental e nelas participavam os Gusans e as sacerdotisas (Vartzaks) da deusa mãe Anahita, conotada com a fertilidade. A designação pretérita para actor (Vartzak e Gusan) na Arménia (território situado entre a Turquia, Azerbaijão e Irão) deriva inicialmente das obrigações rituais destes ministrantes que se foram gradualmente distanciando destas práticas estritamente sagradas, desdobrando-se em actividades bárdicas e histriónicas. Os Dzainarku Gusans ou Gusan Voghbergaks pranteavam o falecimento dos monarcas Arménios, louvavam os seus feitos e glorificavam pela música os membros das suas famílias. Nos ritos funerários (Vorghbergutiun = «canção de lamentação») entoavam em público para dar expressão ao padecimento colectivo. Na Índia, o termo sânscrito «Ghoshaka» refere um pregoeiro e «Ghosha» significa «gritos confusos emitidos por uma multidão», «choro», «exclamação de pesar», «vociferação de aflição» ou «grito de vitória». Entre os Partos, os ministreis eram designados por «Goshan». Na Arménia, para indicar um actor cómico proferia-se o nome «Katak» ou «Katakagusan». Os narradores de epopeias (Katakergag Gusans) recorriam ao gesto e à mímica de um modo autónomo ou para complementar o texto.10 O vocábulo sânscrito «Katha» denota «discurso verbal», «conversa», «récita» e «Kathaka» significa «recitar», «relatar», «proferir uma história» ou «narrador profissional». Será curioso realçar que o chapéu cónico dos Gusans parece ter prevalecido entre os acessórios dos actores arménios, europeus, em certos géneros teatrais da Índia e sudeste asiático. No teatro clássico Grego as máscaras eram encimadas por testas e penteados altos (Onkos) que por vezes envolviam 210 JOÃO SOARES SANTOS toda a cabeça e eram apertadas com fitas debaixo do queixo. Também nas marionetas turcas, iranianas, russas e indianas aparece o chapéu cónico. Muitas vezes são os actores e bailarinos a imitar a exactidão mecânica das marionetas. Isso sucedia no «teatro de sombras maior» (Qiaoyingxi) da dinastia Song (960-1279) no qual estes simulavam a mutabilidade das figuras de couro atrás de um ecrã. Zeami Motokiyo (1363-1443) no tratado «Um espelho para a Flor» ou «Espelho da Flor» («Kakyô») compilado em 1424, refere que o actor deve aprender a tornar-se o objecto da sua representação. «O que o espectador vê é a imagem externa do actor. O que o actor vê é a sua própria imagem interior.»11 Compara a existência humana à de uma marioneta de fios. Se um deles for cortado a criatura desmorona-se e perece. No Nô (Sarugaku) o corpo do intérprete é dirigido pelos fios da mente. Esses fios devem ser invisíveis da assistência. Mesmo quando «não faz nada» tem de estar concentrado no comando do títere que é a sua materialidade individual. Reproduzindo o modo de falar e a mobilidade, tomando como exemplo o ser humano, a marioneta suscita o riso e a deploração, o teatro evade-nos da finitude, dos contextos prosaicos, do destino mortal a que estamos sentenciados. Numa infatigável entrega patenteia as virtudes e as imperfeições. Alguém ou algo a desperta do seu torpor e a guia de modo a estimular e a persuadir a imaginação dos assistentes. A sua inane permanência ao receber vigor vai exprimir ou dar significado ao que dela se apropriou. Adquire uma visceralidade que verte a actividade ardilosa ou a veracidade daquele ou daquilo que a manobra. Constitui um instrumento absortivo que se deixa conduzir e se submete a quem a manuseia, protegida por uma aura de imunidade sem restrições. No início dos espectáculos javaneses, uma canção costuma elucidar sobre a primeira figura a aparecer em cena, a árvore (Kayon) ou a montanha (Gunungan) e inferir o teor do que se vai desenrolar. «É o ecrã que mascara o deus, mascara aquele que executa a representação. As marionetas respiram através da alma do Dalang. O Dalang exala a sua alma para as marionetas. A Kayon projecta o poder invisível que está por detrás».12 Esse poder habita tudo. Nada pode ser excluído dessa inatingível latência. 4. As máscaras e bonecos sob instigação de uma magnitude supra-humana evidenciam a camada residual das exibições profissionais de títeres. Muitas técnicas elocutórias para formular encantos ou para procedimentos cerimoniais 211 A INÉRCIA OBEDIENTE foram inteiradas na narração, entoação e gesticulação dos espectáculos de marionetas. Nas suas distintas particularidades, esta arte surge relatada na Índia em obras como o «Mahabharata», na «Recolha Breve» («Khuddaka Nikaya» ou «Theri Gatha»), a quinta parte do «Cesto das Escrituras» («Sutra Pitaka») que contém os sermões do Buda Shakyamuni, no «Natya Shastra», com a alusão ao Sutradhara e à hipótese de «aquele que segura os fios», o «contraregra», derivar da animação de títeres, no «Kural», texto em idioma tâmil de Tiruvalluvar (séc. II), na «Epopeia do Anel» («Shilappadikaran») do príncipe tâmil Ilango Adigal da dinastia Chera, ou no «Kama Sutra» de Vatsyayana Mallanaga (séc. II-IV). Em muitas peças de teatro sânscrito aparecem interacções ou referências a estas figuras bem como em obras do gramático Panini e do filósofo e gramático Patanjali. Na obra budista redigida em idioma pali, previamente enunciada («Theri Gatha»), o vocábulo registado para denotar as exibições de títeres é «Rupparupaka» (em sânscrito «Rupa» denota «figura», «imagem», «aparência exterior» e «Rupaka» uma «representação teatral». Entre os ofícios conectados com as artes do espectáculo ou de cena (Rangavatarana), o «Mahabharata» distingue um que se chamava «Rupopajivana». «Jivana» significa «que dá vida», «que vitaliza» e «Rupopa» indica «tirar proveito de uma morfologia bela». Um termo aparentado, «Rupajivana», depreende o acto de «subsistir graças à beleza da forma», sinónimo de «prostituta». No sul da Índia a palavra correspondente a «Rupparupaka» é «Jalamandapika». A mesma epopeia descreve marionetas «penduradas por fios» (Sutra Prota) . Os nomes dados aos intérpretes de dramatizações de sombras eram «Nartaka» («que faz dançar», «mestre de dança», «cantor», «actor», «bardo») e Shaubhika, próximo de «Shobhanika» e de «Shaubika» (um tipo de actor). Shobhana assinala algo «brilhante», «esplendoroso», «esplêndido» ou «belo», ou seja, algo que «causa espanto», à semelhança do termo grego «Tauma». Os soberanos deste país promoveram as suas proezas militares, empreendimentos civilizacionais e qualidades morais com o patrocínio de companhias de marionetas itinerantes. Os seus membros recebiam recompensas por prestar este serviço de propaganda à valentia, rectidão ou iniciativa do soberano e podiam acompanhar as suas tropas em campanha ou percorrer localidades levando e popularizando récitas destes atributos e feitos. Outras vezes eram 212 JOÃO SOARES SANTOS incumbidos da tarefa de espionagem. A disseminação do budismo apoiou-se igualmente nestas manifestações. Os ciganos e outras sociedades nómadas merecem realce no papel de veículo desta arte para regiões longínquas. Na Hungria, os ciganos criavam pequenas figuras, os «homens mortos» (Manush mu Lengre) graças aos quais o possuidor recebia os favores de entes demoníacos ou era-lhe propiciada uma defesa contra actos de feitiçaria. Na Mesopotâmia, Egipto e Índia, os deuses parecem depreender uma ideia de potência anónima, são primitivamente pujanças indeterminadas, reduzidas a nomes e epítetos vagos que gradualmente vão reunindo atributos e, com o tempo, sintetizar uma identidade mais delimitada. O «Rig Veda» refere um ente numinoso que age como uma espécie de artesão (Tvashtri), um criador e um impulsionador de formas. Um ser modelador que dispõe as partes e as diferenças dos corpos individuais. Um dos agentes ou pujanças abstractas, difíceis de definir, presentes no cosmos. Estas podem incorporar coisas e criaturas. Ayu condensa de algum modo numa personificação a força vital que fornece e permite que o homem tenha uma existência. O termo grego equiparável é «aiou» («princípio da vida», «alma», «duração da vida humana») e o latino é «aevum» («tempo de vida», «eternidade»). No Egipto, Shu parece englobar esta mesma inteligibilização. É o deus da luz solar e do ar que, dia após dia, traz o soberano à vida. O ar e a claridade são imprescindíveis para afirmar este estado de vigor. As potestades védicas eram designadas por Asuras. A palavra significa «espiritual», «incorpóreo», «Asu» indica «respiração», «vida» e «Asus» denota os sopros vitais ou ares do corpo. Um Asura (como Varuna ou Agni) manifesta a sua energia, o seu ímpeto, proporcionando fenómenos diversos. Estas forças primordiais do universo tinham uma amplitude benévola e nefasta. No segundo caso, elas causavam todo o género de turbulências e prejuízos. Descritos com uma morfologia monstruosa ou zoomorfa, estes espíritos maléficos ou demónios cruzavam o espaço atmosférico, assombravam encruzilhadas, dançavam ao anoitecer em redor das habitações e podiam ser induzidos por alguém com intenções malévolas, entrando nas vítimas, bebendo o seu sangue ou provocando enfermidades. Perseguiam preferencialmente as parturientes, os jovens recém-casados, os mortos e pessoas numa fase particularmente vulnerável. Podiam ser representados através de uma forma volumétrica e controlados e orientados com o auxílio de bonecos. 213 A INÉRCIA OBEDIENTE Não só o que sucede sem intervenção humana resulta de um influxo superlativo inatingível pelo raciocínio como também as acções individuais e colectivas podem ser ajudadas ou condicionadas por estes poderes superiores. Na Índia, o «Padma Samhita» realça que antes de um escultor retirar a madeira de uma árvore para com ela entalhar uma estátua de uma divindade para culto num templo, deve acatar uma série de procedimentos rituais. Começa por solicitar com reverência o pedaço da árvore pretendida com a seguinte elocução: «Tornaste-te inerte e imóvel, devido à tua conduta passada. Mas eu escolhi-te para uma condição meritosa, para de ti esculpir a imagem de Vishnu que conferirá benefícios à humanidade. Não te magoarei, minha amiga, mas libertar-te-ei do teu presente estado de inércia! Pela graça divina, usufruirás a veneração que é prestada a uma divindade». Depois de proferir esta oração, prende o fio abençoado em torno da árvore, acende um fogo sacrificial diante da mesma, deposita nele oblações e, enquanto vai entoando hinos, voltado para Leste, corta a árvore com um machado ritualmente investido para realizar essa operação.13 A madeira retirada é levada e submetida a um outro ritual antes de por fim se iniciar a etapa de cinzelagem do material. O artesão (Shilpin, aquele que possui a arte de diversificar aparências, que pertence ou é perito numa arte) torna-se nesta altura um «parente da divindade», abdicando das suas rotinas habituais, permanecendo num assumido afastamento, jejuando ou mantendo uma dieta apropriada às circunstâncias e procurando ficar somente concentrado na iconografia que vai elaborar, relembrando os respectivos Mantras que a descrevem (Dhyana Shlokas) e Yantras. Subsequentemente, remove da madeira ou da pedra tudo aquilo que não interessa para a consecução da figura. Envolve-se com a matéria num enlace místico, seleccionando aquilo que é mais conveniente para obter a melhor resolução. Tal como o devoto, o artesão sujeita-se à austeridade e meditação, absorve-se numa deleitada contemplação e nada mais mentalmente divisa senão aquilo que irá talhar. O «Agni Purana» salienta que o criador de ícones pode invocar o divino para que em sonhos visualize o modo como realizar correctamente aquilo que está no seu pensamento.14 Após a obra ficar concluída, esta precisa de ser sacralizada numa cerimónia, sob pena de não ser mais do que um mero artefacto. Consagrada e depositada no templo, fica submetida a vários outros preceitos rituais. Se for uma divindade principal, recebe diariamente comida, transportada em procissão 214 JOÃO SOARES SANTOS e distribuída com o seu consentimento às divindades suas assistentes (Parivata Devatas) patentes no recinto religioso. Recebe regularmente banhos (Snapana), várias vezes ao dia em ocasiões especiais. Nos casos em que a imagem não é de pedra mas de madeira este acto de lavagem não é executado para precaver a deterioração do material. A dádiva de alimentos estende-se aos espíritos que erram nas redondezas do templo. A imagem pode igualmente ser perfumada, ornada com flores, sair em desfile (Utsava) à volta do edifício que a contém ou acolher uma assembleia de fiéis que a ela se dirigem com intentos particulares. 5. Na Índia os Bhutas têm ao longo das épocas sido descritos como seres reais, espíritos benevolentes e funestos, fantasmas, demónios ou génios. A palavra «Bhu» denota «existência», «acontecimento», «surgimento» e «Bhuti» «poder sobre-humano», «força». São entes que vagam pelo espaço, deambulam pelas florestas, que se alojam em habitações abandonadas e a quem os homens concedem outorgações (Bhutabali) de manhã e à noite. Costumam atormentar aqueles que negligenciam estes presentes apaziguadores, vingando-se de diversas maneiras. As represálias podem ser a transmissão de doenças aos humanos e aos animais, a escassez ou ruína das colheitas, a corrupção da potabilidade da água dos poços, problemas domésticos, com os vizinhos ou distúrbios mentais. Muitos deles são espíritos de pessoas vitimadas por uma morte súbita, violenta ou injusta, sem lhes terem sido dispensados os preceitos funerários adequados. Apesar da sua variedade morfológica e antropomórfica e do entendimento muito disperso sobre os seus comportamentos, os Bhutas gostam de se alimentar de carne, de sorver sangue e são os destinatários de uma cerimónia rural na região de Karnataka e no norte de Kerala, celebrado pelos intocáveis em santuários próprios (Bhuta Sthana). Alguns Bhutas são mais excessivos outros mais refreados, uns são mais dóceis outros mais agrestes. As qualidades (Gunas) de Sattva, Rajas e Tamas que são tendências da natureza («Guna» significa também «fio») são-lhes aplicadas. Certos Bhutas foram concebidos pelas divindades. Panjurli, o javali, foi criado por Parvati que deplorava não ter tido filhos de Shiva. Mas, devido à sua impetuosidade, o animal, por ter devastado os jardins de Shiva, foi transformado numa criatura desta índole. Os ritos nocturnos de Karnataka têm como desígnio utilizar a pujança destas entidades demoníacas em prol de vantagens humanas. Neles participam sacerdotes não brâmanes (Patri) do santuário, um médium e membros da sua 215 A INÉRCIA OBEDIENTE família, o requerente ou patrono do evento e assistentes. Realizam-se oblações de comida, de flores, narração (Paddana), dança, ocorre a possessão (a acção de «tremer» = «Darupini») do mediador e do Patri de modo a que o Bhuta entre em contacto com o mundo dos humanos, falando de si, da sua família, das suas capacidades, possa através do intercessor mediúnico responder a questões (Kanike) colocadas pela audiência (quem quiser interpelá-lo terá de ter tomado um banho purificador e jejuado durante esse dia) e servir como oráculo. O Bhuta promete ser auspicioso e pode assumir uma atitude preferencial numa polémica autóctone. Diante do santuário, o mediador do ritual interpreta a coreografia respeitante ao Bhuta a invocar fitando a máscara que o representa e as suas jóias depositadas num altar juntamente com ofertas. A sua mulher ou um parente entoa o poema que relata a sua origem e história.15 Na hirteza, na inflexibilidade elementar da máscara reside esta aura ou halo de onde emanam as probabilidades infinitas do pensamento humano, se amplificam as modalidades de uma consciência espiritual. Os possuídos pelos Bhuta são preenchidos pela sua presença como marionetas agitadas pelo sopro de uma vontade que os supera. Em Orissa, na área de Sambalpur, durante as práticas devocionais consagradas a Lakshmi, um sacerdote não brâmane («Devgunya», ou seja, «Dev» = «deus» + «Gunya» = «exorcismo») segura e soa um instrumento musical com o mesmo nome (uma variedade de Vina com uma cabaça e uma só corda) representando a própria consorte de Vishnu que é alvo de reverência e veneração ou, alternativamente, Mangala, a deusa da comunidade em questão. O tanger do cordofone apela à comparência desta que, por via dos acordes emitidos exorciza Bhutas e afasta os maus pensamentos das cabeças das pessoas. Cantando e vibrando as cordas, o sacerdote afugenta as potências que flagelam física e psicologicamente os membros da sociedade local. Nesta mesma província indiana, na área de Bora Sambar, distrito de Bargah, a música e os seus instrumentos facilitam a presença de várias potestades femininas. No decurso do Boil, uma cerimónia de possessão, Durga penetra no seu sacerdote (Pujhari) através da música que está a ser interpretada pelo ensemble e este começa a dançar. A sua coreografia implica a partir de uma certa altura um estado alterado de consciência. Fica mergulhado num transe e o seu corpo obedece ao arbítrio daquela que dele usufrui. Torna-se a própria personificação da Deusa e sob este efeito procede de um modo descontrolado. 216 JOÃO SOARES SANTOS O palpitar da deusa em si dinamiza-o e, da sua agitação sagrada emana uma energia regeneradora que beneficia aqueles que diligenciaram o seu auxílio.16 O teatro absorveu, reteve e estetizou traços de cerimónias deste teor. Muitos actores e bailarinos da Ásia parecem veicular nos seus movimentos reminiscências da solenidade vigente neste tipo de manifestações. O actor transmuta-se, fica investido, ocupado, deixa-se dirigir por uma determinação que não parece ser ou que não sente como sendo sua. Como se despisse o seu ego e fosse animado e instrumentalizado por um manipulador em absoluta concordância consigo. O actual ventriloquismo, imitação de vozes e diálogo com um ou vários bonecos, emprega uma técnica aproximada à arte dos títeres. Literalmente a forma lexical significa «falar pelo ventre» e provém do latim «Ventriculus», diminutivo de «ventre» ou «estômago». Começou por ser uma operação relacionada com os espíritos dos falecidos. O intermediário alegadamente acolhia-os no ventre e através dele comunicavam vaticínios. Na Índia este artifício era aplicado de modo a simular o discurso de um ser sobrenatural. Nestas situações a música tem um papel indutor. «A música tem os vínculos mais fortes com a natureza humana; ela vem das profundezas do sentimento e do espírito: ela interessa toda a alma. O facto de ter um lugar tão importante nas civilizações deve-se a o homem não agir pela razão pura: antes de tudo ele é um ser de fé, de sentimento e de imaginação».17 As companhias de Mak Yong da região malaia de Kelantan são solicitadas a apresentar uma peça durante uma enfermidade ou para alguém agradecer um voto de recobro após ter sofrido um período de grave debilidade orgânica. A música deste género de dramatização impregnada de ritualidade bem como do teatro de marionetas pode ser tocada em contextos cerimoniais de cura (Putri). Alguns títeres do Nang Talung tailandês, após um ritual realizado com esse desiderato, são artefactos sagrados e portadores de uma eficácia sobrenatural. As figuras do eremita (Rusi), dos deuses e dos cómicos são intimadas a solucionar dilemas, a atenuar preocupações e a responder aos apelos dos habitantes das aldeias. Quando a sua interferência mágica produz consequências venturosas, estes cobrem-nas com folha de ouro à semelhança do que acontece com as estátuas do Buda. Pela boca do primeiro bailarino da ópera da cidade, Heinrich von Kleist reconhece que a pantomima das marionetas é importante para a formação do 217 A INÉRCIA OBEDIENTE bailarino. O boneco não tem afectação. «A afectação surge, como o senhor sabe, quando a alma (vis motrix) se encontra num qualquer ponto que não coincide com o centro de gravidade do movimento. Ora, uma vez que o maquinista, com o arame ou com o fio, já não tem sob o seu poder qualquer outro ponto que não este: as restantes partes estão como devem estar, mortas, são puros pêndulos, seguindo a mera lei da gravidade; uma excelente qualidade que baldadamente procuraremos na maior parte dos nossos bailarinos».18 A marioneta é, portanto, um objecto pujante. Os rituais e normas sobre a sua construção e uso na Ásia testemunham a sua ambivalência sonâmbula entre a materialidade e o metafísico. Estando presente, ela não pertence a este mundo. Dorme, mas no seu sono age como se estivesse desperta. O manipulador mobiliza a figura, incorpora-a, transfere-lhe um fulgor superlativo. A marioneta é exorbitada pelo marionetista, representa-o através de si, intensifica-o na experiência de ele a manobrar. Focando nela a sua atenção, o homem qual personagem de um vasto sonho divino, fita o rasto dos bonecos procurando na sua mímica uma lucidez que rompa os fios que o prendem e manuseiam neste mundo. 218 Referências: 1 – Jean Bottéro, «La Plus Vieille Religion en Mésopotamie», Gallimard, Paris, 1998 2 – Georges Contenau, «A Vida Quotidiana na Babilónia e na Assíria» (tradução de Leonor de Almeida e Alexandre Pinheiro Torres), Livros do Brasil, Lisboa, s.d. 3 - Henry E. Sigerist, «A History of Medicine», Vol. I, Oxford University press, New York, 1951 4 – Hesiod, «Works and Days» (Tradução de Dorothea Wender), Penguin, London, 1973 5 – Jacqueline Duchemin, «Prométhée: Histoire du Mythe, de ses Origines Orientales à ses Incarnations Modernes», Les Belles Lettres, Paris, 2000 6 – Poh Sim Plowright, «The Birdwoman’ and the Übermarionette – The Human and Puppet Connection in the Theatres of the East», British Centre of Union International de la Marionette, 2004 7 – Lucie Rault, «Marionnettes et Rituels en Chine», «Puck», Nº. 14, Éditions de l’Institut International de la Marionnette, Éditions l’Entretemps, Charleville-Mézières, 2006 8 – Platão, «Laws», Livro I, «The Works of Plauto» (Tradução de B. Jowett), The Dial press, New York, s.d. 9 – Michael Byron, «The Puppet Theatre in Antiquity», Da Silva Puppet Books, Oxfordshire, 1996 10 – Ver Willem Floor, «The History of Theater in Iran», Mage, Washington, 2005 11 – Zeami, «Kakyô», incluído na obra «On the Art of the Nô Drama: The Major Treatises of Zeami» (Tradução de J. Thomas Rimer e Yamazaki Masakazu), Princeton University press, Princeton, New Jersey, 1984 12 – Mencionado por Kathy Foley, «My Bodies: The Performer in West Java», «The Drama Review», Vol. XXXIV, Number 2, The MIT press, Cambridge MA, Verão de 1990 13 – S. K. Ramachandra Rao, «The Icons and Images in Indian Temples», Ibh Prakashana, Bangalore, 1981 14 – Ananda K. Coomaraswamy, «Hindu View of Art: Historical», incluído na obra «The Dance of Shiva», Sagar Publications, New Delhi, 1991 15 – Para uma descrição mais pormenorizada deste ritual ver Marine Carrin, «Le Spectacle des Bhuta: Observations sur les Rapports du Théâtre et du Rituel», incluído da obra «Théâtres Indiens», Éditions de l’École de Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 1988 16 – Para mais detalhes ver Lidia Guzy, «Par e Sur – Sounds of the Goddess from the Bora Sambar Region of Eastern India», texto incluído no Booklet que acompanha o CD homónimo, Wergo, SM 17132, Mainz, 2008 17 – J. Combarieu, «Histoire de la Musique», Tomo I, Armand Colin, Paris, 1913 18 – Heinrich von Kleist, «Sobre o Teatro de Marionetas e Outros Escritos» (Tradução de José Miranda Justo), Antígona, Lisboa, 2009 219 220 SOLTOS Das Espinhosas ao Arame Farpado L embra-me de ter lido há muitos anos uma curta reflexão consagrada ao cinema norte-americano, que punha em evidência os mecanismos sociais dos westerns: choque entre os índios, senhores da terra original e os colonos, que pretendiam ter “terra sua”. Como me dizia há anos um comandante da marinha de guerra portuguesa:«mas não tens nem nesga de terra lá nos teus Trás-os-Montes? Mas então não és nada!» Continuo, nesta lógica da propriedade da terra, a não ser nada pois não a herdei, nem a comprei. Os famélicos da terra que a partir do século XVII abandonam a Europa para se instalar nas “trese colónias” têm como objectivo deixar para trás não só a miséria, mas também a violência das hierarquias sociais: ser proprietário da terra assegurava uma passagem da dominação para a igualdade. O que só podia ser obtido expulsando os índios das suas transumâncias, dependentes dos movimentos dos bisões, que forneciam a carne e as peles que permitiam a constituição e a preservação das complexas estruturas sociais, políticas e religiosas das muitas nações índias hoje praticamente desaparecidas. O segundo choque, uma vez alcançada a posse da terra, consequência da destruição genocidária dos índios engendrou-se no imo da sociedade branca, em via de esquecer as origens europeias: por um lado os agricultores, pelo outro os criadores de gado, o qual, como é sabido, não distingue as plantas conforme os seus proprietários: as plantas ou são boas para comer, e comem-se, ou não possuem o mínimo interesse e os animais, vacas ou carneiros, deixam-nas ficar sem lhes meter o dente. À medida que as cidades cresceram, tornaram-se consumidoras de carne vaca, carneiro ou porco. Mas as mesmíssimas cidades dependiam dos alimentos produzidos e vendidos pelos agricultores. O gado entrou assim em choque com as plantas o que levou à criação do arame farpado, mais eficaz do que as espinhosas para assegurar a defesa das terras e das culturas. No fundo, o arame farpado é criado por analogia com essas plantas 221 que, banais como as silvas, serviram – e ainda continuam a servir – mesmo se menos para marcar propriedade e repelir os estranhos. Tenho-me perguntado quantos milhões de quilómetros de arame farpado existem hoje nos Estados Unidos, impedindo a marcha ou maculando o horizonte. E, todavia, trata-se de uma extraordinária invenção que podemos ver em actividade em todos os lugares onde é necessário impedir a circulação ou assinalar a violência da propriedade. Quando é que o arame farpado passou a integrar o mobiliário urbano da repressão? A guerra de trincheiras de 1914-1918 desdobrou quilómetros e quilómetros de arame farpado que, nos filmes reconstituindo as técnicas da época, servem para mostrar os soldados capturados pela violência das puas, crucificados e transformados pela sua pouca mobilidade em alvos das metralhadoras pesadas. Os desenhadores e pintores da época e penso mais particularmente nos alemães, não se esqueceram dessa falsa floresta de arame farpado, particularmente brutal e mortífera durante os ataques nocturnos, quando os “very lights” revelavam os infantes atascados na lama e retidos pela violência do arame farpado. Hoje o arame farpado aparece nas práticas policiais como instrumento indispensável para marcar a fronteira entre o que está 222 reconhecido e consentido e aquilo que pertence à infracção e deve ser repelido. È exactamente essa a função que cabia às espinhosas: repelir, e que agora foi confiada ao arame farpado. Ainda não mereceu os estudos que lhe devem ser consagrados, pois se trata de um produto que se expandiu pelo mundo inteiro, satisfazendo sempre a dupla necessidade, defesa e exclusão. Este inventário não deixa por isso a mínima dúvida no que se refere à profunda agressividade deste produto industrial que tanto se utiliza para defender um prado verde deveras apetecível do ponto de vista de carneiros ou vacas, como para impedir o acesso a um edifício ou a outro espaço, sem esquecer que também serve para filtrar os transeuntes, impedindo as grandes concentrações. Sendo como é um produto esteticamente pouco apetecível, o arame farpado ainda não mereceu a análise que as suas múltiplas funções sugerem ou exigem. A multiplicação das concentrações e das manifestações dos “alteristas” opostos às maleitas criadas ou difundidas pela globalização, assegura também a produção e a utilização do arame farpado, que hoje podemos encontrar em todo o mundo, produto que também beneficia com a globalização! A. M. Presépios, Árvore de Natal, Pai Natal e Halloween P ertenço a uma geração que ainda foi educada com presépios e altares de Santo António. O presépio concentrava as figuras principais do nascimento mítico de Cristo, incluindo o burro e a vaca, associação que dizia quais os interesses do mundo agrícola semita. Mas já havia também a generalização das prendas, prática inventada pela burguesia e que, pouco a pouco, foi invadindo todas as esferas sociais portuguesas. A concorrência apareceu com alguma timidez, mas importou-se da prática protestante o pinheiro de Natal, elemento de um culto evidentemente pagão, associado ao solstício de Inverno. Os responsáveis pela Igreja católica deram-se conta da ameaça carregada por este elemento telúrico e procuraram fazer-lhe frente, salientando tratar-se de formas rituais da Europa do norte e, pior, oh, muito pior! dos protestantes. Por sua vez a importação da árvore de Natal reforçou a importância dos presentes, e não faltaram teólogos para denunciar a associação evidente entre a árvore de Natal e o próprio pai Natal (o velho S. Klaus) e as formas comerciais. Os teólogos não se mostraram capazes de ver que os presentes não eram apenas o resultado da pressão do mercado, mas antes uma maneira inédita de unir os laços entre os membros das famílias. Podemos e devemos acrescentar que, de facto estas operações traduziam uma redução das regras e da autoridade do clero católico. Não podemos deixar de pensar na corrente subterrânea mas constante que mantém vivos em Portugal os parâmetros do paganismo, e que adivinhos, bruxas, feiticeiros e outras entidades desta família tornam visível e manipulável. Esta corrente, fortemente combatida pelo catolicismo, pode contar com o apoio indirecto da propaganda republicana, que se caracterizou pela veemência dos sentimentos anticlericais. Uma das consequências certamente mais inesperadas do 25 de Abril reside na desaparição da repressão oficial 223 ou oficializada destas manifestações de paganismo, as quais não podiam deixar de integrar a árvore de Natal, na medida em que uma parte substancial das práticas religiosas remete para sentimentos e práticas panteístas. Não faltam nos jornais diários os anúncios de “professores doutores” que, sem o mínimo pudor ou receio, exaltam as suas competências e as suas capacidades para encontrar remédio para todos os males que podem afligir os urbanos, dos financeiros aos sexuais. Estas manifestações, mesmo quando levadas a cabo sob a tutela das autoridades católicas – como, no Barroso, a reunião anual que concentra os especialistas das “medicinas populares” – não podem deixar de reconhecer a existência de forças e de competências que não agem nos quadros do cristianismo. Tal paganismo está por sua vez, e singularmente, associado ao esforço dos laicos que, paradoxalmente, põem em causa as doutrinas religiosas, criando ao mesmo tempo o quadro legal que permite a sua observância, agora protegida por lei. Nos últimos anos pudemos ver a expansão generalizada, nos Estados Unidos, de uma festa pagã de origem celta e conservada pelas estruturas sociais irlandesas: o hallowen, a festa das bruxas, que perdeu uma parte não despicienda da sua ritualização, para 224 se transformar numa enorme manifestação lúdica, que também dá lucros ao comércio. A emigração irlandesa para os Estados Unidos, que conheceu o seu ponto mais alto durante a crise da Grande Fome do século XIX, levou consigo o seu catolicismo, mas não podia esquecer as suas marcas pagãs. O halloween é hoje, certamente, uma das festas rituais irlandesas em via de se universalizar no Ocidente cristão. Não faltarão os etnólogos para proceder ao inventário das estruturas internas do halloween. Creio que a nós só interessa pôr em evidência o repúdio das religiões sacrificiais, cada vez mais substituídas por religiões caracterizadas pelo seu ludismo. A Igreja Católica já se deu conta de mais esta ameaça, que está destinada a reduzir o número de crentes, fenómeno que se tem observado nos últimos anos, seja onde for, como se o catolicismo estivesse em via de esgotar as suas capacidades de sedução e de recrutamento. Embora deva confessar que me surpreende que o recurso às cabaças seja interpretado como uma pura exigência do ludismo do halloween irlandês. Mas como esquecer que as cabaças são de origem americana (na língua portuguesa regista-se a presença de duas marcas da origem: a chila, que diz no nome a sua origem chilena, e o gerimu, plebeísmo minhoto, que é contudo o termo utilizado pelos tupi-guarani, ainda hoje, para designar uma das cabaças importadas possivelmente da baía de Guanabara, e são utilizadas nos rituais mexicanos das “calaveras”. Deixemos contudo essa operação analítica para mais tarde, e salientemos a importância que já tem entre nós a festa do halloween, a ponto de obrigar os representantes da Igreja católica a intervir. O bispo francês de Quimper manifesta o seu sobressalto sobre o que seria uma falta de respeito aos mortos, mas sobretudo opõe a malta gesticulante que deambula utilizando roupas macabras, “aos rostos descobertos, pacificados e pacificadores dos santos”. Não é difícil verificar que o bom do bispo não pensou em S. Sebastião crivado de setas, nem em S. Lourenço assado numa grelha, como teriam feitos os índios sul-americanos, especialistas do churrasco humano. Sobretudo a Igreja, que está enredada em dogmas e impossíveis certezas absolutas, não se deu ainda conta do carácter inaceitável de uma religião que recusa o ludismo, para lhe preferir a gravidade exemplar da morte, embora tenha havido um caso único de ressurreição. Os crentes pedem outra maneira de encarar a morte, desdramatizando-a, o que encontra eco nas práticas familiares e hospitalares: as pessoas morrem cada vez mais longe da família, e é frequente nos hospitais morrerem sós. Esta rejeição da morte encontra um reforço na maneira como os mortos podem ser evocados no halloween. Alguns partidos europeus da extrema-direita já lançaram o movimento de recusa do halloween, considerada uma festa americanoide. Do nosso ponto de vista, podemos simplesmente dar conta da extraordinária capacidade de resistência dos ritos pagãos, pois esta tradição irlandesa contaria cerca de 2500 anos, inspirando-se na festa dos druidas de “samain”, o ano novo galês. O que provoca, como é evidente, uma renúncia à panóplia ritual do catolicismo que preocupa alguns pensadores europeus, como é o caso de Régis Debray, colocados face à redução ou até à eliminação dos elementos que caracterizavam a memória e os indicadores cristãos. Sinais evidentes de uma mutação que sempre do meu ponto de vista, começara já em 1517, e que a emergência do pensamento laico, o qual, por sua vez, serviu prodigiosamente a ciência, libertando-a das peias da teologia. Regista-se agora uma nova revisão do sistema religioso, com a falsa recuperação dos ritos pagãos, 225 que são sobretudo reconhecidos através da sua capacidade lúdica. Como se as sociedades, ao perderem o medo da morte, cada vez mais racionalizada e cada vez mais solitária, apostassem sobretudo na festa, permitindo a “carnavalização” – com agradecimentos a M. Bakhtine – dos ritos pagãos. A. M. 226 LIVROS Há 70 Anos Atrás: Quando Tudo Mudou na Europa e no Mundo Beja Santos As reivindicações territoriais de Adolf Hitler, depois da ocupação da Renânia, revelaram-se imparáveis, o ditador nazi possuía uma concepção incomensurável das fronteiras do III Reich, estava a vingar-se das humilhações do Tratado de Versalhes, cedo ou tarde iriam surgir conflitos insustentáveis com as grandes potências europeias do tempo, a Grã-Bretanha e a França. Não satisfeito com o desmembramento da Checoslováquia e a anexação da Áustria, no início de 1939 Hitler começou a pressionar a Polónia para entregar Danzig, antiga cidade alemã. Mas Danzig, sabe-se de há muito, era um mero pretexto à luz da deterioração da ordem europeia durante toda a década de 30. Atacar a Polónia foi uma causa imediata, a agressividade de Hitler era imparável, todos os triunfos anteriores lhe tinham dado uma força que tornavam inevitável o conflito com as democracias parlamentares. O Tratado de Versalhes produzira situações de grande humilhação para a Alemanha, uma delas fora entregar Danzig ao novo estado polaco, concedendo-lhe um corredor de terra até ao mar através do antigo território alemão, com vista a usar a cidade alemã de Danzig como os dos principais portos polacos. Nascera assim o estatuto da cidade livre de Danzig que, a partir de 1933, passou a ter um governo nazi, tornando-se num posto avançado do III Reich. Hitler reivindicava igualmente a Silésia, antigo território alemão. Registe-se que o antigo Império Russo também perdera território para a Polónia que a URSS veio mais tarde a reivindicar. As grandes potências ocidentais nunca encararam a Polónia como uma potencial aliada por duas fortes razões: o anti-semitismo e a natureza autoritária do regime. Acresce que a Polónia antes de estar na mira de Hitler aproveitara-se da fragmentação do Estado checo: para as diplomacias de Londres e Paris não parecia improvável que os polacos viessem a juntar ao território alemão. É exactamente a seguir ao desmembramento checo que Berlim 229 começa a exigir a reincorporação de Danzig na Alemanha. Totalmente desenganados quanto à sanha conquistadora de Hitler, finalmente Londres e Paris deram todas as garantias de independência à Polónia. Hitler nunca acreditou até às 11 horas da manhã de 3 de Setembro de 1939 que a Grã-Bretanha honrasse os seus compromissos com Varsóvia. Os preparativos para a guerra foram muito cedo decididos por Hitler, a invasão ficou a aguardar um momento oportuno. Num golpe de asa, o ministro dos negócios estrangeiros de Hitler, von Ribbentrop, viaja para Moscovo, em 22 de Agosto, e na manhã de 24 é assinado o pacto germano-soviético e protocolo secreto que dividia a Polónia e os Estados bálticos em esferas de influência (note-se que Estaline negou categoricamente qualquer protocolo secreto, ciente das consequências dramáticas que este acto diplomático iria produzir ao nível do comunismo internacional). Hitler julgou que tinha as mãos livres para novo bluff. Entre 24 de Agosto e 3 de Setembro começou a contagem decrescente para uma guerra cujas proporções não podiam ser avaliadas pelos seus actores: as primeiras conquistas triunfais de Hitler que em Junho de 1940 parecia ser o grande dominador da cena continental; a 230 resistência heróica da Grã-Bretanha; a ofensiva alemã sobre a URSS, depois de ocupada a Grécia e Jugoslávia; o ataque japonês a Pearl Harbor, seguindo-se a mundialização do conflito. O que veio a acontecer, depois de 1945, é de todos conhecido: ascensão de duas superpotências, perda de influência da Europa, etc. Um conceituado historiador britânico resolveu analisar os grandes e pequenos eventos exactamente à volta do que se passou nos bastidores da diplomacia entre 24 de Agosto e 3 de Setembro de 1939. O resultado é esse soberbo ensaio “1939, contagem decrescente para a guerra”, por Richard Overy, Publicações Dom Quixote, 2009. Hitler dera instruções para que a invasão da Polónia se desse a 26 de Agosto, após o sucesso das negociações com a União Soviética. Hitler sempre acreditou que ia encetar uma pequena guerra localizada e que Londres e Paris abandonariam a defesa da Polónia. Todas as ordens para a invasão foram canceladas à última hora. O pacto germano-soviético teve pouco efeito em Londres e Paris. Pelo contrário, em Londres e Paris deram-se exactamente os primeiros preparativos para poderes de emergência que abriam a porta à imobilização geral. No parlamento de Londres, o primeiro-ministro Chamberlain reiterou que os compromissos assumidos para defender a Polónia seriam honrados. Daladier, em Paris, confirmou igualmente os compromissos da França. Os diplomatas alemães informaram Berlim: os políticos britânicos e franceses não vão abandonar a Polónia. Em 25 de Agosto, Hitler convoca o embaixador britânico, Nevile Henderson, numa tentativa para separar a Grã-Bretanha do seu compromisso polaco. Logo de seguida, Hitler deu ordem de marcha para a manhã seguinte. Mas logo a seguir chegou o embaixador italiano a anunciar que Mussolini decidira manter a Itália neutra. Convocado a seguir, o embaixador francês, Robert Coulondre, informa o ditador alemão que a França, caso a Polónia venha a ser atacada, entrará em guerra com a Alemanha. Hitler decide cancelar a investida militar. A partir de 27, começa a ser mais claro na cena internacional que Londres e Paris consideram que a guerra é inevitável. Uma fracção importante das altas chefias militares alemãs troca entre si a opinião de que o risco de uma guerra geral era demasiado grande. Quando Keitel entrega a Hitler um memorando sobre o poderio económico e militar das potências ocidentais, incluindo os Estados Unidos, com a posição material da Alemanha, Hitler terá respondido que não havia perigo de uma guerra mundial. Nesta altura dos acontecimentos, um homem de negócios sueco, Birger Dahlerus, passou a ter um papel de importância excepcional como mediador entre os britânicos e o número dois da hierarquia nazi, Göring. Esses encontros conduzem a que Hitler o convoque em 27 de Agosto e lhe tenha pedido para regressar a Londres com uma oferta de acordo. A 28 de Agosto, Hitler confirmou que o ataque teria início na manhã de Setembro, os seus serviços secretos receberam a incumbência de simular um falso ataque polaco que iria aparecer como o rastilho da invasão alemã. No entretanto, sucedem-se as conversações ao nível das chancelarias com trocas de mensagens, estava a atingir-se o clímax, em 30 de Agosto Hitler ainda pretende agarrar-se à sensação de incerteza de que britânicos e franceses irão para a guerra. O plano de encenação do falso ataque polaco a um posto alfandegário por prisioneiros de um campo de concentração vestidos com fardamentos polacos sinalizaram o início da operação. As tropas alemãs fingiram abrir fogo, igualmente um alemão pró-polaco foi cravejado de balas à entrada de uma estação de 231 rádio. Com este primeiro acto de barbaridade, começava a invasão da Polónia. Entrou-se na contagem final. Pelas 10 horas de 1 de Setembro, Hitler dirigiu-se ao parlamento alemão e anunciou o pretenso ataque polaco. Nesse mesmo dia entregou em vigor a legislação sobre a eutanásia, que levou o assassínio de 70 mil alemães deficientes ou com doenças crónicas. Na noite de 1 de Setembro vive-se na Grã-Bretanha e na França uma sensação de expectativa irreal, simulam-se ataques aéreos, as populações descem às caves. Nesse mesmo dia, aborta a ideia de uma grande conferência europeia proposta por Mussolini com o objectivo de discutir exaustivamente todos os problemas gerados pelo Tratado de Versalhes. Na manhã de 2 de Setembro, os ultimatos britânico e francês chegam à chancelaria de Berlim, nesse dia Chamberlain dirige-se à Câmara dos Lordes e à Câmara dos Comuns, mostra-se inabalável, a declaração de guerra está no horizonte. Em Paris, a Câmara e o Senado votaram, por unanimidade, 90 biliões de Francos em créditos de guerra. 3 de Setembro é domingo, é o dia de Chamberlain. A intervenção do primeiro-ministro é transmitida pelas 11h15. É curta, refere os esforços 232 feitos com vista à manutenção da paz e informa que todas as iniciativas tinham falhado e como Hitler não dera qualquer garantia de retirar as suas forças da Polónia o país encontravase naquele momento em guerra com a Alemanha. Segundo alguns testemunhos, Hitler mostra-se furioso com a postura britânica, a declaração de Chamberlain é aclamada na Polónia cujos exércitos já estão a ser esmagados pelos alemães. Durante a noite, o navio britânico Athenia, de 13 500 toneladas, foi atingido por torpedos lançados pelo submarino alemão U.30 e morreram 128 pessoas: era o primeiro acto de guerra na frente ocidental. Nesse mesmo dia, o chefe do Estado-maior alemão, general Franz Halder comenta para um outro oficial: “Os ingleses são persistentes. Agora a guerra vai demorar bastante tempo”. Em termos de historiografia, é redundante procurar encontrar razões para se apurar se tudo foi feito para evitar a guerra que se iniciou em 3 de Setembro. Era insustentável que a Grã-Bretanha e a França não honrassem os seus compromissos com a Polónia. Hitler foi responsável por uma guerra, mas continua por provar que tipo de guerra é que Hitler pretendia, não há qualquer documento que permita comprovar que ele tinha um plano em que a Polónia representasse um meio para alcançar um qualquer império mundial alemão. Só muito mais tarde, em 1941, é que começa a aparecer documentação sobre um quadro paranóico de uma guerra generalizada que se tornará inevitável depois de Hitler declarar guerra aos Estados Unidos. É bem provável que Hitler não estivesse consciente de que tinha, com a invasão da Polónia, desencadeado uma guerra de grandes proporções que, exactamente a partir de finais de 1941, tomou dimensões apocalípticas com a resistência heróica dos exércitos e da população soviética. No Ocidente sabia-se que aquela guerra iria demorar anos e não havia ilusões que, mesmo vitoriosos, britânicos e franceses, iriam deixar de decidir sobre os discípulos da Polónia, no futuro. O Ocidente sabia que se estava a desintegrar a velha ordem, era perceptível que as decisões mundiais seriam doravante tomadas com os EUA na dianteira. Nesse ponto estavam enganados: em 1945 entrar-se-ia na ordem bipolar, seria o momento contundente das duas superpotências. Tudo por causa do 3 de Setembro de 1939. 233 Revistas recebidas Análise Social, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 2º trimestre de 2009 Humanística e Teologia, Universidade Católica do Porto, Junho de 2009, Tomo XXX, Fascículo 1 Revista Crítica de Ciências Sociais, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Março de 2009 Tempo Exterior, IGADI, Baiona (Pontevedra), Janeiro-Junho de 2009 Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Lisboa, Maio-Junho de 2009 Vértice, Página a Página – Divulgação do Livro, SA, Julho-Agosto de 2009 234 Nº TEMA PRINCIPAL ANO 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10/11 12 13/14 15 16 17 18/19 20 21/22 23 24/25 26 27/28 29 30 31/32 33 34 35 36/37 38 39 40/41 42/43 44 45 46 47/48 49/50 51/52 53/54 55/56/57 58/59/60 61/62/63/64 65/66 67/68 O SOCIALISMO DO FUTURO* DOSSIER EUROPA A IDEIA DE REVOLUÇÃO REVOLUÇÃO EUROPEIA VERTIGEM DA PAZ O INDIVIDUALISMO E A SOCIEDADE SOLIDÁRIA A EUROPA E A NOVA (DES)ORDEM INTERNACIONAL DAS PRESIDENCIAIS AO GOLFO DEMOCRACIA OU PARTIDOCRACIA? O REGRESSO DOS NACIONALISMOS A EUROPA À BEIRA DA IMPLOSÃO? O FIM DA POLÍTICA? AMÉRICA! AMÉRICA! A ALEMANHA E A EUROPA A EUROPA, NÓS E OS OUTROS A ESPANHA E NÓS O FIM DE UM CICLO A EUROPA E NÓS VÁRIOS TEMAS POR UMA EUROPA À ESQUERDA O ESTADO-PROVIDÊNCIA; QUE FUTURO? O FUTURO DO MODELO SOCIAL EUROPEU NA ERA DA MUNDIALIZAÇÃO REGIONALIZAÇÃO E O PAÍS O REGRESSO DO POLÍTICO DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM – 50 ANOS DEPOIS A GUERRA NO KOSOVO NA VIRAGEM DO SÉCULO O ESTADO E A LIBERDADE RELIGIOSA ESTARÁ A DEMOCRACIA EM CRISE NA EUROPA? JUSTIÇA FISCAL A GLOBALIZAÇÃO EM QUESTÃO A EUROPA DEPOIS DE NICE A DEMOCRACIA PORTUGUESA NOS INÍCIOS DO 3º MILÉNIO O MUNDO EM CRISE SER MINORIA, HOJE A ESQUERDA NA ENCRUZILHADA A CRISE MUNDIAL UMA CONSTITUIÇÃO PARA A EUROPA O ISLÃO E A MODERNIDADE EDUCAÇÃO: QUE PERSPECTIVAS? OS DESAFIOS ACTUAIS DA ESQUERDA PORTUGUESA ESTADOS UNIDOS E EUROPA: AFINIDADES E DIFERENÇAS LIBERALISMO E DEMOCRACIA PODER POLÍTICO E SOCIEDADE CIVIL A EUROPA DEPOIS DE LISBOA QUE CRISE? QUE SOLUÇÕES? QUE ALTERNATIVAS? O EFEITO OBAMA E O FUTURO DA DEMOCRACIA PLANETÁRIA 1989 1989 1989 1990 1990 1990 1991 1991 1992 1992 1993 1993 1994 1994 1995 1995 1996 1996 1997 1997 1998 1998 1998 1999 1999 1999 2000 2000 2000 2001 2001 2001 2002 2002 2003 2003 2003 2004 2004 2004 2005/6 2007/8 2008/9 2009 2009 *O Socialismo do Futuro (revista comemorativa do 10º aniversário, confrontando-se os autores com os artigos escritos 10 anos antes, publicados no nº 1) NOTA: Os assinantes que queiram adquirir números antigos e anteriores à sua assinatura beneficiam de 25% de desconto na aquisição de cada exemplar. Na aquisição de uma colecção, à excepção do nº 1 – esgotado –, beneficiam de 50% de desconto. 237 238 239 «Finisterra»: a Revista de Reflexão e Crítica Assinatura: anual (quatro números) Estrangeiro Normal: 40€ Instituições: 52€ Europa: 103€ Apoio: 58€ Estudantes: 25€ Fora da Europa: 117€ Considerem-me assinante da «Finisterra» a partir do n.º NOME MORADA LOCALIDADE CÓD. 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