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Das Esquinas do Olhar
José António Fernandes Dias
“O meio não é de modo nenhum uma média; pelo
contrário, é o lugar onde as coisas ganham velocidade.
Entre coisas não designa uma relação localizável que vai
de uma coisa a outra e volta, mas uma direcção
perpendicular, um movimento transversal.”
(G. Deleuze e F. Guattari, Rhizome: A European Art Exhibition,
Haia, 1991)
Scramble for Africa, título da peça de Yinka Shonibare com que se entra na exposição, foi
uma expressão cunhada pelo jornal Times para designar a disputa entre as potências
coloniais europeias pela partilha dos recursos do continente africano no século XIX. No seu
trabalho, o artista evoca um episódio particular dessa contenda, que abre uma nova era na
história colonial – a Conferência de Berlim. Após a abolição do tráfico negreiro nas primeiras
décadas desse século, parecia haver um esquecimento relativo de África. Por um curto
período de tempo; a partir de 1870 a expansão colonial é relançada com toda a força, e em
poucos anos os domínios imperiais no continente ficarão definidos; com consequências para
os africanos que persistem nos dias de hoje, e certamente também para o estado actual do
continente africano. Na origem deste novo interesse está uma conjugação complexa de
factores – económicos, geo-políticos, tecnológicos, demográficos, ideológicos e intelectuais.
Uma série de tratados e acordos bilaterais, inclusive entre Portugal e a Grã-Bretanha, foi
sendo sucessivamente posta em causa e ultrapassada, pelos próprios signatários, mas
sobretudo pela Alemanha, a Bélgica e a França. E a 15 de Novembro de 1884, por iniciativa
do Governo de Berlim, inicia-se nesta cidade uma conferência internacional destinada a
regular as formas de exercício da navegação e do comércio em África, assim como a definir
os requisitos necessários para que as novas ocupações fossem consideradas efectivas.
Estiveram presentes plenipotenciários de catorze países, tantos quantos os personagens
representados na instalação de Shonibare: além dos cinco directamente envolvidos e já
referidos, participaram a Áustria, a Dinamarca, a Espanha, os Estados Unidos da América, a
Itália, os Países Baixos, a Rússia, a Suécia e a Turquia. Assinada a 26 de Fevereiro do ano
seguinte, a acta final da conferência consagra um novo princípio de direito internacional que
tem consequências pesadas, e duradouras, para as pretensões portuguesas: os “direitos
históricos” de país descobridor e mais antigo frequentador das costas africanas são
derrotados no terreno jurídico pelo princípio da “ocupação efectiva dos territórios”. Começa
aqui o descrédito da dinastia de Bragança que acabará por levar à instauração do regime
republicano em 1910; mas começa também a construção de uma ideia colonial, de um
imaginário politicamente fecundo que vai colar o nacionalismo ao programa imperialista: “a
elaboração e difusão de teorias que representavam Portugal como um todo orgânico, de raiz
étnica ou racial, portador de um espírito ou „génio‟ específico proveniente do fundo dos
tempos”[1].
Quando as outras potências europeias descobrem a África, Portugal redescobre os seus
descobrimentos iniciados no século XV, como sugestivamente escreve Yves Léonard
[2]
,
transformando o tempo passado num mito poderoso, que como todos os mitos é uma ficção,
mas também um esquema explicativo e uma mensagem mobilizadora; e que como bem
sabemos dominará em Portugal até 1975. Compensa-se com o Império, definido como
herança sagrada a manter por todos os meios, a posição subordinada do país no quadro das
relações internacionais.
A peça de Yinka Shonibare é uma elaboração particularmente
inteligente da interdependência inescapável entre a África e o
Ocidente. Da
inseparabilidade das suas histórias, de que a
Conferência de Berlim é um episódio marcante, mas também do
que do passado vem até ao presente. Todos os artistas presentes
na exposição comentam essas trocas sociais e culturais entre uns e
outros, nos dois sentidos. Rejeitando todos os estereótipos vigentes de “arte africana” –
utilização estilizada de imagens e signos tradicionais, ou de imagens que evocam uma África
“autêntica” fantasmada, uso de materiais crus ou recolhidos do lixo, utilização de cores
“tipicamente africanas” –o que aqui se manifesta são as ligações de artistas contemporâneos
com a África, e ao mesmo tempo com o Ocidente e a arte contemporânea; operando no seio
desta última, revelando o seu paroquialismo, a partir de uma visão múltipla e policêntrica.
Alguns, como Shonibare, mas também Ghada Amer, Oladélé Bamgboyé, Kendell Geers, e
Hassan Musa, revisitam versões canonizadas da história e da história da arte, minando e
gozando com os pressupostos eurocêntricos que as sustentam. Outros desenvolvem
comentários mais ou menos irónicos, mais ou menos directos à situação global que vivemos;
é assim que podemos olhar as obras de Fernando Alvim, de Allan deSouza e de Wangechi
Mutu. Mas mesmo quando isso é feito em termos de identidades e identificações pessoais,
como está mais patente em Moshekwa Langa, N‟Dilo Mutima, Ingrid Mwangi ou Zineb Sedira,
a perspectiva da política global está sempre presente. E num tempo de conflitos globais
intensos, de migrações e de xenofobias crescentes, esta é certamente uma lição importante
da exposição. O seu título torna explícito que se trata de artistas de origem africana que
vivem em diáspora, espalhados pelo mundo. Todos têm a vivência de dois mundos, ou mais,
que de diversas formas ligam criativamente num nível muito elevado, quer de pensamento
quer de trabalho artístico. Enquanto o discurso colonial se fundou, e se funda, numa
dicotomia entre nós e eles, aqui, como nas teorias pós-coloniais, acentua-se a hibridez e a
integração entre ambos. Não no sentido de pôr lado a lado duas experiências diferentes de
duas culturas diferentes – será pouco fecundo olhar estes trabalhos satisfazendo-se em
identificar o que há neles de africano e de americano, belga, português ou ocidental. Nem no
sentido de uma fusão mais ou menos harmoniosa, uma média no sentido de Deleuze e
Guattari na citação em epígrafe. Antes como Homi K. Bhabha se refere a hibridez – uma
dupla negação, “nem um, nem o outro”; em que vê a possibilidade de múltiplos futuros,
forjados a partir da memória (o que a mente guarda) e da experiência (o que o olho vê),
mas não dependentes nem fechados nelas; não retomando o de lá como causa, mas de o
renovar, como um espaço entre, que interrompe e inova também a actuação cá. Quer
parecer-me que estas estratégias e estas noções são sem dúvida instrumentos muito
interessantes para examinar e interrogar o “Ocidente”. E mudar o modo como as pessoas se
vêem a si próprias é, no nosso tempo, importante. Ao fazê-lo, estes artistas também olham
para nós. O que, para quem esteve sempre só habituado a olhar para eles é, no mínimo,
saudável.
Em Scramble for Africa, de Shonibare, catorze manequins rodeiam
uma ampla mesa onde está inscrito um mapa de África. A discussão
entre eles é animada – um aponta acusadoramente para outro, que
se levanta exaltado e é acalmado pelo vizinho do lado, outros
cruzam os braços numa atitude de impaciência. É uma disputa o
que observamos, numa rara convergência de conceito e de forma,
até porque os actores não têm cabeça nem expressões faciais. Em
muitos dos seus trabalhos aparecem estes personagens-manequins decapitados; sempre que
estão envolvidas situações de autoridade, refere o artista na entrevista a Okwui Enwezor
publicada no catálogo
[3]
, recordando o que aconteceu à aristocracia na Revolução Francesa.
Mas também podemos vê-los como personagens que perderam a cabeça, assim como a
individualidade que nunca reconheceram nas suas vítimas; ou podemos ainda pensar na
ausência de vida intelectual com que na época se caracterizavam os africanos. Por outro
lado, esses personagens ocidentais estão vestidos com fatos de corte europeu do século XIX,
mas feitos de um tipo de tecido que consideramos tipicamente africano. O que tem também
sido uma assinatura pessoal de Shonibare. Começou a utilizá-los nos anos de 1980 quando
fazia formação em pintura numa escola de arte inglesa. Na mesma entrevista, o artista
conta:
“Para falar disto, tenho de voltar à minha infância na Nigéria e depois avançar para o meu
tempo de adulto na Europa. Na Nigéria estava aberto a muitas experiências: vivia em Lagos,
uma sociedade contemporânea, e podia ver programas americanos e ser sobretudo um
cidadão do mundo, interessar-me simultaneamente por muitas coisas – não tinha de
escolher. Depois, para minha surpresa, quando vim para a Europa fui obrigado a escolher.
Penso que a minha negrura começou quando desci do avião em Heathrow. Vim para estudar
pintura... Um dos meus professores veio ao meu atelier e disse-me – „Bom, você é africano,
não é? Por que é que não faz arte tradicional autenticamente africana?‟ Evidentemente,
dados os meus antecedentes, fiquei muito chocado com a ideia de que tinha de entender o
conceito de uma autenticidade africana pura, de que se esperava isso de mim. Negava o
meu compromisso com o modernismo e com a modernização. Por isso decidi explorar a
noção de autenticidade e do que ela poderia significar. Foi então que concluí que a ideia de
lealdade ou de fidelidade é-nos sempre imposta pelos outros, de fora.” (p.166)
E decidiu utilizar esses tecidos, não como uma expressão ingénua
da sua africanidade, mas conceptualmente, como um significante
cultural altamente complexo que lhe permitia questionar as ideias
de autenticidade e de africanidade. Considerados por toda a gente
como panos tipicamente africanos, inclusive pelos próprios africanos
desde os anos de 1970, são de facto um produto inventado na
Holanda, inspirado nos batik indonésios de Java, que os holandeses
e ingleses começaram a produzir industrialmente para exportar
para África no século XIX. Emblemas privilegiados da imbricação colonial, os tecidos
“africanos” funcionam na obra de Shonibare como um dispositivo particularmente eficaz,
quer conceptualmente quer formalmente, para lidar com a sua condição de artista
contemporâneo de origem africana e com os dilemas dessa condição.
“Penso que foi durante o curso na escola de arte que realizei que não seria possível ser um
artista universal, anónimo; se é que tal coisa existe; mas essa era a minha visão utópica. Foi
uma grande revelação ter percebido que independentemente dos meus sentimentos
interiores, o modo como eu era visto era muito diferente.
Também percebi que estava num dilema. Se fizesse trabalho sobre a minha condição de
negro seria considerado simplesmentecomo um artista que trabalha sobre a negritude; e se
não fizesse trabalho sobre o ser negro, as pessoas falariam de mim como um artista negro
que não trabalha sobre a negritude. Percebi que neste contexto particular europeu a
prioridade nunca seria a minha prática, mas a minha raça... Então decidi, OK, o meu modo
de lidar com isto será criar uma confusão. Vou colocar-me no domínio da confusão, porque a
confusão é de facto mais honesta da minha parte, é uma expressão mais próxima da minha
posição. E não falo de „confusão‟ no sentido negativo.”[4]
Ao contrário de outros artistas, como refere Laurie Farrell na
Introdução,
que
têm
reservas
em
participar
em
exposições
colectivas “africanas”, temendo ficar armadilhados numa categoria
estereotipada ou carregar o fardo de representar a África para o
Ocidente, que são riscos reais, Yinka Shonibare optou por assumir
esses riscos. E tem conseguido circular e mover-se entre diferentes
espaços da arte internacional contemporânea, sem se envergonhar
das suas origens, que expressa com orgulho, mas sem enfatizar esse orgulho. Como os
outros artistas presentes nesta exposição, não se vê como um “africano” deserdado nem
como um “ocidental” incompleto. São artistas que se posicionam como cidadãos do mundo
com múltiplas fidelidades e preferências. E os caminhos que tomam não são binários nem
lineares – estão à esquina, olham de um lado para o outro e a toda a volta. Este é um
posicionamento flexível, que aqui é seguramente usado para estimular a criatividade. Mas
não pode esquecer-se o outro lado da moeda; também se pode utilizar a cor da pele e as
origens africanas defensivamente, como estratégia para entrar num mercado ocidental que
ainda aprecia o exotismo e a autenticidade racial ou étnica dos seus participantes não
ocidentais. O que só mostra a permanência e a recorrência da atitude colonial, ou
neocolonial.
Devemos também recordar que a condição diaspórica não é característica de grupos
marginalizados ou das comunidades de cor que residem no Ocidente; e que não são mais do
que o refluxo, em sentido inverso, da disseminação dos povos e dos ideais europeus durante
a expansão colonial. Robin Cohen escreve que no período entre 1500 e 1914, sessenta a
sessenta e cinco milhões de europeus emigraram, contra quinze milhões de africanos e
asiáticos. E mesmo entre 1945 e 1975, com a Europa rica a tornar-se destino de migrações
(o que não era ainda o caso de Portugal, que continuava a ser sobretudo lugar de partida), o
número dos que partiram
intercontinentais [5].
da
Europa
era
ainda
metade
do
total
de
migrantes
Mas, mais do que isso, será interessante tomar a noção de “diáspora” num sentido mais
amplo, como fez o pintor R. B. Kitaj no seu manifesto diaspórico
[6]
. Para perceber que esta
condição de “diáspora” poderá ser a que melhor descreve a condição humana universal,
particularmente na situação de intersecção crescente de culturas que caracteriza o mundo
em que vivemos. “Uma condição difusa de descentramento, num mundo com sistemas de
significados diversos, um modo de estar na cultura ao mesmo tempo que se observa a
cultura...”
[7]
. Em 1903, W.E.B. Du Bois, referindo-se aos afro-americanos, falou em condição
de “dupla consciência”, e viu-a como a situação que iria definir o século XX. Não se enganou.
Mas podemos prolongá-la temporalmente, pelo século em que vivemos, e culturalmente, de
dupla a múltipla. A negociação constante entre o local e o global, o estranho e o familiar,
tornou-se a condição básica da nossa modernidade. Todos sentimos muitas vezes que
estamos no entre de diferentes culturas. Para além de uma série de rupturas nos discursos
de conhecimento moderno, de Marx e Althusser, de Freud e Lacan, de Saussure, de Foucault,
esta perda de um “sentido de si” estável, que Stuart Hall chama deslocamento ou deslocação
do sujeito
[8]
, tem a ver também com essas transformações do mundo que são os processos
de descolonização e de circulação acelerada de fluxos de pessoas, imagens, símbolos,
capitais, a que chamamos globalização; e com o que se tem designado por “novos
movimentos sociais” emergindo no interior das sociedades modernas desde os anos de 1960,
como o movimento pelos direitos cívicos dos negros nos Estados Unidos, ou os movimentos
de libertação das mulheres, de libertação sexual, reivindicações regionalistas e ecologistas,
um pouco por todo o lado.
Mas a arte é seguramente o lugar por excelência para esta abertura das representações
políticas, sociais e culturais que a nossa experiência do mundo impõe. Desde Marcel
Duchamp e a “criação de um novo pensamento” para o urinol, o seu papel principal é o de
desestabilizar e reconstituir o significado das imagens e das coisas quotidianas. Se as artes
podem ser consideradas um elemento dinâmico da cultura contemporânea é porque os
artistas compreendem a sua actividade como um acto que se desenvolve no domínio do para
além do familiar; num espaço transitório e exterior a posições culturais fixadas. Uma zona
permeável onde se cruzam as noções mais comuns e as mais estranhas, onde se
interrompem umas às outras, onde os nossos encontros e desencontros encontram o
potencial de um novo conhecimento.
Se noutros contextos, e desde 1990, a apresentação de artistas
africanos contemporâneos tem sido frequente, entre nós ela foi rara
ou quase inexistente. Replicam-se no mundo da arte os destempos
que,
na
expressão
caracterizaram
feliz
também
de
o
Boaventura
colonialismo
e
Sousa
a
Santos
[9]
,
descolonização
portugueses – colonizámos, de facto, quando os processos de
descolonização estavam já em marcha por toda a África, e
descolonizámos também tardiamente. Esta exposição poderá ser uma oportunidade para nos
levar a revisitar o imaginário identitário nacional em que a perda do império foi
superficialmente sublimada pela obsessão pela Europa. E para contrariar algumas ideias
feitas.
* O presente texto foi originalmente publicado no catálogo "Looking Both Ways - Das Esquinas do Olhar. Arte da
Diáspora Africana Contemporânea" no âmbito da exposição com o mesmo título que decorreu na sede da Fundação
Calouste Gulbenkian em 2005.
* As imagens reproduzidas são perspectivas da exposição na Fundação Calouste Gulbenkian.
[1] Valentim ALEXANDRE, “Nação e Império”, in F. BETHENCOURT e K. CHAUDURI (orgs.), História da Expansão
Portuguesa, vol. 4, Lisboa, Temas e Debates, 2000, p. 133.
[2] Idem, Ibidem, p. 526.
[3] Okwui ENWEZOR, “Of Hedonism, Masquerade, Carnivalesque and Power: The Art of Yinka Shonibare”, in Laurie
FARRELL (org.), Looking Both Ways. Art of the Contemporary African Diaspora, Nova Iorque, Museum For African
Art, 2003.
[4] Idem, Ibidem, p. 167.
[5] Robin COHEN, “Prologue”, in The Cambridge Survey of World Migration, Cambridge, Cambridge University Press,
1995 (citado por John PEFFER, “The diaspora as object”, in L. FARRELL, Ibidem, pp. 28-29.
[6] R.B. KITAJ, “First diasporist manifesto”, in N. MIRZOEFF (org.), Diaspora and Visual Culture. Representing
Africans and Jews, Londres, Routledge, 2000 (1989).
[7] James CLIFFORD, The Predicament of Culture. Twentieth-Century Ethnography, Literature, and Art, Cambridge
(Ma), Harvard University Press, 1988, p. 9.
[8] Stuart HALL, A Identidade Cultural na pós-Modernidade, Rio de Janeiro, DP&A, 2004 (1992).
[9] Boaventura de Sousa SANTOS, “Entre Prospero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade”, in
M.I. RAMALHO e A.S. RIBEIRO (orgs.), Entre ser e estar. Raízes, percursos e discursos da identidade, Porto, Edições
Afrontamento, 2002.

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