João Roberto Vasco Gonçalves
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João Roberto Vasco Gonçalves
João Roberto Vasco Gonçalves João Roberto Vasco Gonçalves 1ª Edição - 2015 Vila Velha - ES © 2015—Above Publicações Editor Responsável Uziel de Jesus Revisão Igor Carvalho Capa Raquel Vieira Pré-Impressão Igor Carvalho Diagramação Jairo Bonellá Todos os direitos reservados pelo autor. É proibida a reprodução parcial ou total sem a permissão escrita do autor. Editora Above (27) 4105-3374 www.aboveonline.com.br Prefácio A história da humanidade é realmente muito interessante e esclarecedora para compreendermos o presente e útil para planejarmos o futuro. Devemos estudar imparcialmente as pessoas e os fatos simplesmente como eles são: agentes da história vivendo em suas próprias épocas e inseridos no seu próprio contexto. Nós e nossos contemporâneos também somos parte da história que vivenciamos em nossa época. Em nosso meio existem muitos contadores de histórias que sobrepõem a ficção aos pilares da realidade, produtos de sua imaginação, criando, assim as lendas. Essas são muitas — bem interessantes e divertidas. Ao mesmo tempo é também um grande prazer falar de nossa história, nossa terra e nossa gente, nossa cultura, incluindo aí nossas lendas e também nossas lembranças. Essa é a minha proposta: falar de tudo isso costurando ficção à realidade de uma forma tão sutil que mal se possa divisar onde termina uma e começa outra. Como já foi dito, de certa forma, as lendas fazem isso. O trabalho aqui não foge à regra: toma alguns fatos históricos, adiciona coisas à realidade atual, toma algumas coisas das lendas, adiciona a ficção imaginada pelo autor e finalmente constrói uma história. Dando um toque de seriedade, está em discussão o legítimo desejo de preservar monumentos importantes para a história da humanidade, tanto os mais recentes como aqueles que remontam a épocas muito antigas mencionadas no antigo testamento bíblico e em outros documentos. Na trama, discute-se ainda a fraqueza humana de se utilizar da necessidade de proteger e guardar essas antiguidades para conseguir realizar vis objetivos — como enriquecer rapidamente e com poucos esforços, mesmo que para isso tenha de utilizar indignamente a fé e a santidade das religiões, desrespeitando seus leais seguidores e até denegrindo alguma crença; ludibriar pessoas, vandalizar ou até destruir relíquias da história da humanidade. Tudo é feito para transformar em dinheiro aquilo que não tem preço. Há, ademais, a tendência juvenil da caça ao tesouro, descobrir segredos milenares e desvendar os reais sentidos de teorias conspiratórias. A ideia de tesouro está sempre atrelada a valores materiais em espécie ou os que podem transformar-se nele com os menores custos possíveis. Tudo depende, na verdade, do juízo de valor. Muitos segredos são subjetivos, culturais, fontes de conhecimento que, à primeira vista, são supérfluos e não geram lucro algum, mas podem ser sumamente benéficos à humanidade. Segredos de conhecimento têm por assim dizer um prazo de validade, podendo tornar-se obsoletos e até não fazer mais sentido a sua guarda a sete chaves. Alguns conhecimentos que deveriam ser passados adiante ao longo dos milênios precisaram ser descritos em forma de metáforas ou alguma linguagem codificada, de modo que pudessem ser encaixados em qualquer época e estágio de desenvolvimento cultural, social ou científico. Em muitos casos, isso dá margem a especulações e desenvolvimento de teorias paralelas, como a Cabala, que sempre capta algo mais nas entrelinhas do que foi dito. A Bíblia judaico-cristã, ou as Sagradas Escrituras, dos ocidentais, principalmente, é das mais completas e antigas fontes de história da humanidade, embora nem tudo tenha comprovação e haja divergências cronológicas entre fatos, localidades e personagens. Por outra, temos versões das tradições que depois foram escritas, transliterações e outras dificuldades linguísticas potencializadas com as múltiplas traduções — além da exegese de cada pessoa ou escola de pensamento. Também temos outras “bíblias” (não necessariamente de cunho religioso) espalhadas por várias partes do mundo, algumas guardadas e jamais encontradas. Em tudo que o homem faz, está sempre presente a satisfação de suas necessidades básicas. Há sempre um prazer orgânico ou algum tipo de estímulo dessa natureza atuando como agente impelidor da realização. Ele precisa comer e beber para manter-se vivo, copular para gerar seus descendentes, guerrear para expulsar seus concorrentes das áreas de que precisa para plantar ou pastorear, etc. Aprendeu cedo a estocar alimentos, prevendo possíveis dificuldades futuras baseado em algum fato conhecido ou pressentido, produzir meios de transporte cada vez mais possantes, velozes e sofisticados, construir abrigos cada vez mais eficazes para sua proteção contra os mais diversos tipos de ataque — que ficam cada vez mais perigosos com a evolução tecnológica. A preservação da espécie também ocorre de forma global. Um exemplo disso é a formação de um banco genético que possa ser utilizado mais tarde como referência para continuar as espécies em casos de cataclismos naturais ou provocados pelo próprio homem. A arca de Noé (que provavelmente é uma alegoria ou uma citação em forma metafórica) é um exemplo disso. Existe hoje uma versão atual com um grau de sofisticação muito maior, mas o sentido é o mesmo. Existe hoje um banco de conhecimentos sendo estocado como um legado à posteridade em caso de semiextinção, mas essa ideia também é antiga. A biblioteca de Alexandria é um exemplo disso na antiguidade e provavelmente existem outros em outras partes, possivelmente guardados em locais onde as condições de preservação sejam mais favoráveis — e possivelmente com linguagens próprias ou algum tipo de codificação. Lamentavelmente, muitos documentos importantes foram destruídos ao longo do tempo pelo próprio homem, por razões diversas. A biblioteca de Alexandria, ideia próxima de um campus universitário de hoje, que possuía praticamente tudo que se conhecia desde os mais remotos tempos até sua época, todavia foi destruída várias vezes. Consta que uma das últimas, senão a última destruição importante, foi causada por um incêndio proposital a mando de Julio Cesar, general romano, na ânsia de derrotar Pompeu — seu principal rival no primeiro triunvirato, uma vez que Crasso era de pouca expressão no aspecto militar. Segundo registra a história, ele teria incendiado tudo, além dos navios, até mesmo os de sua frota, para que seu oponente não fugisse e ele tivesse a certeza de tê-lo visto morto. A Santa Inquisição (que nada tinha de santa), além de matar pessoas e queimar suas casas e pertences, providenciou a queima de muitos livros científicos por pura ignorância (considerando-os bruxaria) e outros tantos filosóficos (considerando-os nocivos à humanidade por corrompê-la), julgando-se os donos da verdade. Na verdade, o alto clero e o próprio cristianismo foram usados como joguete nas mãos dos reis e poderosos ministros de estado para exterminar seus adversários sob o preten- so aval de Deus. Zelosos do seu dever de transmitir à posteridade esses reais tesouros, alguns abnegados providenciaram a ocultação do que conseguiram salvar — muitos ao preço de sua própria vida. A esses agentes da história, façamos nossa reverência. A ideia principal de um livro como instrumento de divulgação da cultura é informar, divertir e educar. Assim, no intuito de inserir o leitor no contexto histórico e geográfico dos lugares por onde os personagens passam, faço um relato suscinto sobre cada um desses lugares. Aqui, por tratar-se de dados reais e emitidos por entidades oficiais, não há como inventar nada: praticamente se transcreve o que consta nas fontes de pesquisa citadas na bibliografia, muitas vezes resumindo, simplificando, trocando palavras por outras equivalentes mais usuais e arranjando tudo da melhor forma possível. Roberto Vasco Sumário Prefácio........................................................................................................ 5 Parte I A predestinação........................................................................................15 Capítulo I ..................................................................................................17 Coimbra.....................................................................................................17 Capítulo II.................................................................................................33 Coimbra.....................................................................................................33 Capítulo III................................................................................................37 História do professor Paschoal D’Ávila..................................................37 Capítulo IV ...............................................................................................45 História do professor Pedro Cintra .......................................................45 Capítulo V.................................................................................................57 Amsterdã...................................................................................................57 Capítulo VI................................................................................................69 Amsterdã – Conhecendo a cidade.........................................................69 Capítulo VII..............................................................................................73 Moshê.........................................................................................................73 Capítulo VIII.............................................................................................83 Pedro encontra Deborah ........................................................................83 Capítulo IX................................................................................................89 Deborah Bilischt.......................................................................................89 Capítulo X..............................................................................................95 Lisboa.........................................................................................................95 Capítulo XXV.........................................................................................237 A gruta.....................................................................................................237 Capítulo XI..............................................................................................101 Lisboa – Conhecendo a cidade.............................................................101 Capítulo XXVI........................................................................................255 A sagração...............................................................................................255 Capítulo XII............................................................................................109 A Torre do Tombo .................................................................................109 Capítulo XXVII......................................................................................267 O regresso................................................................................................267 Capítulo XIII...........................................................................................113 O estudo do livro....................................................................................113 Capítulo XXVIII.....................................................................................275 Um trabalho realizado...........................................................................275 Capítulo XIV...........................................................................................129 A companhia de Jesus............................................................................129 Capítulo XXIX .......................................................................................283 Comentários finais da parte I...............................................................283 Capítulo XV............................................................................................141 Considerações pré-viagem....................................................................141 Parte II Capítulo I ...............................................................................................287 A retomada..............................................................................................287 Capítulo XVI...........................................................................................147 Brasil.........................................................................................................147 Capítulo XVII.........................................................................................159 Vitória......................................................................................................159 Capítulo XVIII........................................................................................167 Os fantasmas do palácio........................................................................167 Capítulo XIX...........................................................................................173 A Igreja dos Reis Magos........................................................................173 Capítulo XX.............................................................................................187 Anchieta...................................................................................................187 Capítulo XXI ..........................................................................................193 Os telefonemas........................................................................................193 Capítulo XXII..........................................................................................201 João...........................................................................................................201 Capítulo XXIII........................................................................................217 A serpente mutilada...............................................................................217 Capítulo XXIV........................................................................................229 A subida do Rio Benevente...................................................................229 Capítulo II...............................................................................................295 O Grão-mestre Constantino e a Confraria do Torah Moshê...........295 Capítulo III..............................................................................................299 Nova York................................................................................................299 Capítulo IV..............................................................................................311 Visita à Estátua da Liberdade................................................................311 Capítulo V...............................................................................................315 Volta a Coimbra e compilação das informações...............................315 Capítulo VI..............................................................................................325 Comentários finais da parte II..............................................................325 Parte III Capítulo I.................................................................................................329 A caminho do oriente – Encontro com o passado.............................329 Capítulo II...............................................................................................335 Istambul – Conhecendo a cidade.........................................................335 Capítulo III..............................................................................................341 A cidade eterna.......................................................................................341 Capítulo IV..............................................................................................345 Jerusalém – Conhecendo a cidade.......................................................345 Capítulo V...............................................................................................353 História de Alexandria ..........................................................................353 Capítulo VI..............................................................................................367 Estudo do material colhido e discussão final......................................367 Capítulo VII............................................................................................373 Os tesouros da confraria........................................................................373 Epílogo ....................................................................................................377 Bibliografia..............................................................................................381 Parte I A PREDESTINAÇÃO Capítulo I Coimbra Universidade de Coimbra O professor José, diretor do departamento de história da Universidade de Coimbra, mandou a secretária chamar dois competentes e dedicados professores para uma reunião para dali a meia hora. Eles estavam em seus gabinetes envolvidos nas suas habituais atividades quando receberam o recado através de telefonema interno da secretária do departamento: — Professor Paschoal? — Sim. — Bom dia, professor. — Bom dia. Em que posso ser útil? — O senhor e o professor Pedro têm uma reunião com o professor José, chefe do departamento, daqui a meia hora na Ala A, sala B. to? — Sim, obrigado. A senhora poderia me adiantar o assun- — Infelizmente não, professor, pois também não fui informada. Deveria ser algo importante para interromper as atividades que desenvolviam no momento. Além de tudo, deveria ser João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro algo muito reservado para que a secretária não soubesse exatamente o que era, conforme sempre ocorria. Talvez fosse uma avaliação crítica do resultado do seu trabalho, seu desempenho ou até mesmo uma bronca; civilizada, mas uma bronca. O motivo era invariavelmente o mesmo: custos. Aliás, o pessoal sempre achava que os recursos eram pequenos demais, enquanto a instituição sempre achava que eles eram altos demais. Esse conflito de custos existe em todas as empresas, e a universidade não fugiria à regra. Comunicou ao seu colega de equipe, o professor Pedro e os dois saíram alguns minutos antes para o novo compromisso no local indicado. ões. no. No horário marcado já estavam à porta da sala de reuni- — Parece interessante. Teremos prazer em realizar esse trabalho. — Ótimo, eu tinha de certeza que o Senhor iria gostar. — Sim, mas quando começamos? — Imediatamente professor. — Algumas informações já estão disponíveis? — Não, professor. Deixo tudo por sua conta. — Alguma recomendação adicional? — Sim, professor. Como sempre, estamos limitados por custos e outros fatores que o senhor conhece tão bem. — Certamente. Mas e o prazo de conclusão estimado? — Bom dia, professor José — saudaram quase em unísso- — O mais breve que conseguirem. De volta ao gabinete, conversavam: — Bom dia. Queiram entrar e sentar-se, por favor. — Obrigado, senhor. Desculpe-nos, não trouxemos nenhum material para essa reunião, pois não sabíamos o seu teor. — Não se preocupem. Vou explicar tudo. É de interesse deste departamento produzir um trabalho que poderá corroborar com outros afins e mais tarde poderá ser publicado e apresentado. O senhor e o seu assistente, o professor Pedro, foram os escolhidos para pesquisar e desenvolver todo o trabalho, devido à comprovada competência e a confiança que deposito nos senhores. — Obrigado, professor. Mas qual é exatamente o tema? — O tema será: O Cristianismo na Europa do século XVI e sua influência no desenvolvimento socioeconômico do mundo novo. 18 — Pedro, você sabe o que isto significa? — Sim. Teremos de passar todo o trabalho que estamos fazendo para o restante da equipe a fim de nos liberarmos para essa nova tarefa, assim não perderemos tudo que já foi produzido. Além disso, parar agora para começar depois seria um balde de água fria no moral da equipe, e quando voltássemos ficaríamos perdidos por um bom tempo antes de pegar novamente o fio da meada. — Sim, e talvez tenhamos de arranjar gente emprestada com outros departamentos que não estejam tão sobrecarregados. na... — Isso é quase certo, afinal nossa equipe já é tão peque- 19 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Bem, mãos a obra, mande a secretária convocar nossa equipe para uma reunião daqui a trinta minutos. Avise que é para que tragam todo o material disponível contendo tudo que já foi feito, tudo que está em andamento e o que já está planejado para fazer. — Sim, farei isso imediatamente. Saiu rapidamente, falou com a secretária na sala ao lado e foi buscar o seu próprio material. O professor Paschoal ficou pensativo por alguns instantes, tentando elaborar em sua mente a melhor maneira de começar. No fundo, sabia que todo trabalho sempre começava por uma boa troca de ideias com seu assistente, o professor Pedro, principalmente nesse trabalho, pois seu companheiro parecia ter algum conhecimento sobre algumas religiões monoteístas e era versado em latim, grego e hebraico. Um telefonema do professor Pedro avisando-o de que faltavam 3 minutos para a reunião despertou-o de seus devaneios. Foi o tempo suficiente para recolher seu próprio material e sair apressadamente, chegando à sala de reuniões onde já o esperavam. — Bom dia, senhores. — Bom dia — responderam todos. — O motivo dessa reunião é que precisamos conversar sobre o andamento do nosso trabalho, examinar o nosso cronograma e comparar tudo que já produzimos com o que ainda falta e o todo previsto. Preciso também avaliar o domínio que cada um tem sobre o assunto e a capacidade que o grupo tem de prosseguir o trabalho sem a minha presença e a do professor Pedro, pois fomos designados para outra tarefa e não gostaríamos de perder tudo que já fizemos. Preciso também analisar a necessidade de mais pessoas. Pedro assumiriam a coordenação e arranjariam mais dois emprestados para completar o grupo. A reunião terminou no tempo previsto, hábito característico do extremamente metódico professor Paschoal. Saíram todos para as suas salas ainda ligeiramente atordoados. Os professores Paschoal e Pedro voltaram para o gabinete da coordenação, que agora seria do novo projeto. — Pedro, você é cristão? — Olha, Paschoal, eu tenho uma história de vida passada por três culturas e religiões diferentes. É difícil dizer exatamente o que sou. — Sim, mas, pelo que sei, você não é ateu. Aliás, sempre se confessou monoteísta. — Certamente. Porém, sem ofensas, o meu Deus é bem melhor do que o dos cristãos e judeus, por exemplo. — Não entendi muito bem, pois no monoteísmo só se admite um Deus. — Corretíssimo. Na verdade, acredito que exista um Deus verdadeiro. Os outros são os reflexos da mente de cada um, segundo suas culturas e como foram educados. — Curiosa essa visão. Mas como você analisa o Deus da bíblia judaica e cristã? — Penso que foge aos conceitos filosóficos de Deus. Ali há uma inversão. Em vez de o homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, parece que se dá o contrário, criaram um Deus à imagem e semelhança do homem. — Interessante. Mas como você chega a essa conclusão? Depois de tudo apresentado e devidamente avaliado, ficou acertado que os assistentes imediatos dos professores Paschoal e — Eles exageraram nessa semelhança e, além de assemelhar-se nas qualidades, assemelham-se também nos defeitos, como os deuses da mitologia grega. Escreveram e falaram de um 20 21 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Deus passional que tem ciúmes, ira, sede de vingança, capaz de amaldiçoar até a terceira e quarta geração, que exige sacrifícios de sangue como tributo, que elege um povo em detrimento dos outros; como se, em vez de ter criado a humanidade, tivesse criado um povo, que precisa testar a fé daqueles que criou e que deveria conhecer profundamente sua índole. Além de muitas coisas que estariam em desacordo com os conceitos de onisciência, onipresença e onipotência. — E como você analisa o fato desse suposto engano ter perdurado por tanto tempo? — As tradições e o rigor religioso são comuns nas culturas orientais, e isso tem sido vital para manter os povos coesos em torno das leis religiosas, que no seu caso são as próprias leis civis. Isso tem contribuído para a perpetuação da raça, mesmo quando perdem a pátria física. Isso torna o seu Deus, raízes de suas tradições e sustentáculo moral de sua raça e sua pátria, o mais importante e único. — Mas e o Deus cristão não é o mesmo judaico? Pelo que sei, o antigo testamento é praticamente o mesmo para as duas religiões. Será que houve algum tipo de flexibilização nos conceitos? evangelho. E, conforme ficou esclarecido no primeiro concílio de Jerusalém, para ser cristão não precisariam mais cumprir os rituais judaicos como a circuncisão e outros. Isso só foi possível porque o apóstolo Paulo, o grande evangelizador, entendeu perfeitamente a mensagem universal de Cristo e defendeu veementemente essa ideia no concílio de Jerusalém, o que lhe valeu o título de “Apóstolo dos gentios”. Se não fosse por ele, creio que o cristianismo seria hoje apenas um segmento do judaísmo. Ele continuou: — E os dez mandamentos são mantidos, mas com a explicação de que na verdade só havia dois: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”. O próximo, como já foi dito, era qualquer ser humano, mesmo que fosse inimigo. O restante seria apenas uma consequência desses. — Interessante a sua tese. Contudo, se no fundo as religiões têm as mesmas raízes, por que não houve uma aceitação mútua ou, pelo menos, uma tolerância ou convivência pacífica? Isso parece nunca ter acontecido em nenhum lugar do mundo, especialmente aqui na Europa, aliás muito pelo contrário, houve perseguições e morticínios. — De certa forma, creio que sim. Jesus, apesar de não ter vindo para abolir a lei e aos profetas, como diz no evangelho, deu uma nova dimensão à lei. Depois dele, a salvação não é mais só para os judeus, como pensaram os primeiros seguidores, mas para toda a humanidade. Já não existia mais a figura do gentio, o impuro de raça, ou só o irmão de raça como o próximo. Depois dele, o próximo era qualquer ser humano, inclusive os inimigos. A lei do talião foi trocada pelo pacifismo de dar a outra face a quem ferisse uma. A expiação dos pecados através do sangue do cordeirinho foi substituído pelo sangue dos próprios homens, conforme as palavras ditas na última ceia, segundo consta no — Os povos têm uma dificuldade natural de abrir mão de suas crenças, pois seria como trair a causa. Mas existem outras causas subjacentes, as principais são as econômicas e as sociais. A primeira seria: quem é dono do dinheiro. A segunda é: quem manda. Em última análise, há uma relação de poder. Isso existe até mesmo dentro do cristianismo. Na Europa do século XV, por exemplo, existiu uma ferrenha disputa entre a Igreja e vários outros Estados. Muitos temiam a Igreja enquanto estado pela sua riqueza e sua influência política, e muitos dos nobres pleiteavam seu comando. Houve uma época que a crise chegou a tal ponto que existiam três papas: Um em Roma, na Itália, um em Avignon, na França e um em Pisa, região da Toscana, na Itália. O mo- 22 23 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro vimento iluminista pleiteava a desvinculação do poder da Igreja sobre os Estados ou a eliminação de sua influência. — Pedro, por que você acha que foi importante termos estudado a Bíblia? Tantas intrigas culminaram com a Santa Inquisição, que perseguiu e matou muita gente. — Como conversamos anteriormente, o cristianismo tem suas raízes no judaísmo e suas fontes históricas são principalmente a Bíblia. Creio que ali estão os mais importantes subsídios para o início do nosso estudo. — Sim. E, pelo que sei, os judeus foram também muito perseguidos. Alguns foram trucidados, outros expulsos e muitos fugiram. — Certamente. — Fale-me então sobre a evolução do cristianismo no Império Romano e como esse se disseminou através dele. Foram para a biblioteca da universidade e passaram alguns dias estudando muito e fazendo anotações. Depois, no gabinete, tiveram uma nova conversa: — Logo depois de Cristo, seus seguidores começaram a aumentar muito por todos os territórios ocupados e governados pelo Império Romano, principalmente pela ação dos pregadores. Os governantes romanos eram politeístas, mas separavam muito bem as crenças religiosas dos assuntos do Estado civil, e este certamente tinha primazia. Roma inicialmente não proibia seus vencidos de exercer seus próprios costumes e praticar sua própria religião dentro do território vencido, desde que obedecessem irrestritamente suas leis civis e pagassem os tributos. Com o aumento cada vez maior do número de cristãos, da capacidade de liderança dos pregadores, sua influência sobre a massa e o respeito e apoio total à causa, isso começou a incomodar muito e tornar-se, enfim, um perigo para o Estado. Os cristãos, àquela altura, passaram a ser perseguidos sempre com a desculpa de não adorarem os deuses pagãos e se recusarem a cumprir seus preceitos, fora as muitas e constantes acusações de insurreição, atos terroristas (como incêndios) e outras depredações, forjados com o intuito de incriminá-los e demonizá-los. Então, se reuniam em locais ocultos. No ano de 313 d.C., apareceu a oportunidade de contornar essas dificuldades com os cristãos. O imperador Constantino, estando em desvantagem numa batalha contra o inimigo, disse ter visto no céu a imagem da cruz e ouvido uma voz dizendo: “Pace est cum vos” e também: “In hoc signo vinces”, ou seja: “A paz está convosco” e “Com este sinal vencerás”. Ele ga- 24 25 — Ótima explanação. Mas o que você sugere que estudemos para embasar o início do nosso trabalho? — Acho que deveríamos estudar a bíblia e vários outros documentos importantes, até chegarmos aos diversos processos que a Inquisição instaurou aqui em Portugal contra muitos cristãos novos, fazermos um apanhado histórico sobre a evolução do cristianismo no Império Romano, sua universalização e sua hegemonia na Europa. Além disso, creio que não podemos desprezar fatos importantes para o nosso estudo, como as cruzadas, as grandes navegações para a América e a disseminação do cristianismo no novo mundo, ao mesmo tempo em que colonizavam e exploravam. Proponho que estudemos também a evolução da própria Igreja até a Inquisição. — Ótimo, Pedro. Vejo que já tem em mente o esboço bem traçado de um programa de estudos. — É só uma ideia, Paschoal, passível de alterações e contestações. — Não, Pedro, assim está ótimo para começarmos. Comecemos já. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro nhou a batalha. Grato, publicou o Édito de Tolerância em Milão, concedendo liberdade religiosa aos cristãos, considerando sua fé como religião lícita. Consta que ele próprio teria se convertido e apoiado os cristãos, pelo menos por algum tempo. Isso era muito conveniente, pois conferia ao cristianismo ares de religião oficial, o que viria a acontecer de fato no governo do imperador Teodósio que se converteu ao cristianismo no ano de 391. Como essa pregava que o seu reino era no outro mundo, depois desse, poderia conviver pacificamente a religião e o Estado civil. Assim, acabava a figura dos agitadores e conspiradores e o estado poderia manter tudo sob controle. — Ótimo, Pedro. E depois? — A partir do século IV começaram a acontecer as invasões bárbaras que culminaram com a queda do Império Romano ocidental em 476 d.C. Houve um esfacelamento cultural em toda a Europa e o conhecimento ficou restrito aos mosteiros. Durante a idade média, a Igreja era praticamente a única instituição organizada e acabou por enriquecer e se tornar grande proprietária de terras. Com isso, tornou-se um poder paralelo, competindo com os reis da época e tornou-se mesmo uma grande potência na Europa. O Império Romano Oriental (que veio a chamar-se império Bizantino) durou muito mais, até 1453, com a queda de Constantinopla, sua capital. Esse ponto é também considerado o fim da idade média. — E sobre o aparecimento dos judeus na Europa? — Segundo os registros da história, os judeus que migraram para a Europa são ditos asquenazitas, descendentes de Asquenaz, bisneto de Noé, que teriam vivido numa região próxima ao monte Ararat. Consta que entre os séculos VII e IX, se estabeleceram na região norte dos Alpes e Pirineus. No século X, já estariam estabelecidos em todo o norte da Europa. 26 — E o que você me diz sobre as cruzadas? — Também são desse período. Em 1095, o papa Urbano II, durante o concílio de Clermont, lançou a ideia de libertar a terra santa, como chamavam a Palestina, então sob o domínio turco, de religião Muçulmana, e colocá-lo sob o domínio cristão, com sede em Jerusalém. Consta que houve nove cruzadas entre 1096 e 1303. Eram assim chamadas porque os cavaleiros usavam uma roupa onde era desenhada uma Cruz Vermelha. Os nobres que apoiaram investiram muito e, é claro, esperavam obter vultosos lucros nessa empreitada. Foi uma triste página da história, uma enorme carnificina onde muitos povos foram trucidados, inclusive os próprios cristãos e judeus. Ocorreram todos os tipos de atrocidades difíceis de imaginar que um ser humano seja capaz de fazer. Para além disso, potencializou as animosidades entre o Cristianismo e o Islamismo e os desentendimentos que cristãos e muçulmanos têm até hoje. O único fator positivo talvez tenha sido o desenvolvimento econômico e cultural que culminaram com o Renascimento, quando houve uma verdadeira explosão cultural na Europa. Até então a cultura estava restrita aos monges, guardiões de todo o conhecimento, dispondo de poucos livros traduzidos para o latim — daqueles que conseguiram resistir ao tempo e as depredações. A própria bíblia romana, a vulgata, é uma tradução do grego para o latim a partir da septuaginta grega, sendo São Jerônimo o seu tradutor. Mas, a partir de então, inúmeros documentos em grego e árabe foram introduzidos e multiplicou-se também o número de universidades na Europa. A invenção da prensa e seu desenvolvimento potencializaram a propagação dos conhecimentos. — E o que você me diz sobre a Inquisição? — A Inquisição foi criada inicialmente para combater o sincretismo que teve suas raízes numa cristianização superficial e mal feita dos povos pagãos, que misturaram os ensinamentos 27 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro cristãos a elementos de sua cultura, produzindo ensinamentos divergentes do cristinanismo que a Igreja pregava. Aliado a isso, alguns praticavam o culto ou adoração a animais e plantas, utilizavam artifícios como métodos de adivinhação do futuro e muitos outros. Tudo isso era chamado de heresia. Até mesmo as experiências científicas da época eram consideradas ocultismo e bruxaria, sendo, portanto, heresias. Ele prosseguiu: — A primeira Inquisição de que se tem noticia foi organizada em 1184 para combater a heresia dos cátaros no sul da França. A Inquisição espanhola funcionou de 1478 a 1821. A Inquisição portuguesa, de 1536 a 1821. Por trás de causas religiosas estavam muitas causas políticas e nacionalistas e muita cobiça. Entre outros povos, estavam incluídos os judeus e os mouros — e todos os descendentes desses. Quando a Espanha expulsou os judeus e mouros, eles foram para Portugal, que se beneficiou com as riquezas materiais e culturais, enfim, de todo o material humano de boa qualidade. Então, a Espanha percebeu o prejuízo que levava e como aquilo beneficiava e fortalecia Portugal, portanto, criou uma forma de pressioná-lo a instalar a inquisição por lá também. Dom Manuel I, rei de Portugal, inicialmente fazia vistas grossa à presença de mouros e judeus, que tanto contribuíam para o engrandecimento do país. Pressionado, trabalhou para que os judeus e árabes e seus descendentes se convertessem ao cristianismo, porém isso não funcionou. Muitos preferiam deixar o país. Isso era um grande inconveniente, pois, se ocorresse uma evasão em massa, haveria um desastre econômico. Mesmo se seus bens fossem expropriados, iriam embora muitos homens cultos, os homens de negócios nacionais e internacionais, os professores, filósofos, em suma, a massa pensante. Então, não houve dúvidas, o rei baixou um decreto convertendo forçadamente todos os judeus, os árabes e seus descendentes, que oficialmente passaram a constar como cristãos, mas, em particular, continua28 vam com suas religiões e costumes de origem. Esses ficaram conhecidos como “cristãos novos”. Isso soava como um pejorativo, como se fossem cidadãos de segunda classe, constituindo discriminação e segregação racial, o que potencializava a xenofobia já existente no país. O pessoal da Inquisição, no entanto, não se deixou enganar e os perseguiu. Causaram-lhes muitos problemas e condenaram muitos deles a penas diversas, que iam desde os simples inquéritos até a morte, passando por confisco de bens, queima de livros, objetos e casa, alem de prisões e torturas. — Uma coisa é intrigante. Afinal essa perseguição da Inquisição era laica ou religiosa? — As duas coisas. Talvez muito mais laica do que possa parecer inicialmente. Reis de vários países dos mais influentes da época pressionaram os papas e todo o alto clero, pretensos representantes de Deus e com grande ascendência sobre o povo em cujo meio havia alguns nocivos aos seus interesses. Em geral, o clero era utilizado como pesquisador e juiz dos casos, mas a decisão final de condenação e execução era dos Estados. A Igreja foi usada pelo tempo que lhes foi conveniente. Quando acharam, contudo, que começava a atrapalhar, logo pensaram uma maneira de se livrar dela, sempre com artimanhas (como intrigas, acusações e toda sorte de planos especialmente arquitetados para isso). Muitos religiosos foram condenados e executados. Toda a documentação sobre a Inquisição está na torre do Tombo, aqui em Portugal. O professor Paschoal fazia perguntas ao professor Pedro como se desconhecesse o assunto ou como se quisesse sabatiná-lo. Na verdade, ele adorava ouvi-lo. Apreciava muito a sua capacidade de organizar ideias e transmiti-las de modo simples e conciso. Convidou-o para a sua equipe depois que assistiu a uma palestra sua. Sabia que ele possuía uma excelente folha de 29 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro serviços e um currículo como poucos. Aliás, o professor Paschoal primava por acercar-se de pessoas competentes e tinha um faro especial para encontrá-las e convidá-las para a sua equipe. O professor Pedro também admirava muito a cultura do Professor Paschoal e tinha certeza de que de antemão ele sabia tudo sobre o que perguntava e que gostava de ouvir sua opinião, que, na verdade, era um eco da sua própria, tal era a sintonia de suas mentes. — Ótimo, Pedro. Vejo que voce pesquisou muito mesmo. Diante de tudo isso, penso que deveríamos prosseguir os estudos a partir dos cristão novos. Resolveram, então, estudar mais um pouco sobre esses e descobriram que a quase totalidade continuou com sua religião original de forma oculta. Como a Inquisição continuou a perseguição, muitos dos judeus preferiram fugir para a Holanda, onde havia tolerância religiosa e não seriam perseguidos. Esse país, portanto, se beneficiou tremendamente, pois os judeus eram homens de negócio e foram parte dos grandes investidores e administradores da companhia das Índias orientais e ocidentais — que monopolizava o comércio de açúcar e muitos outros produtos no oriente e nas Américas. — Acho que deveríamos fazer uma viagem até Amsterdã e ver o que conseguimos descobrir, afinal, estamos estudando o cristianismo e o desenvolvimento do novo mundo. Já sabemos que os cristãos novos eram judeus e que, após serem perseguidos aqui em Portugal pela Inquisição, fugiram para a Holanda, que foi o berço da companhia das Índias Ocidentais e que monopolizava o comércio do açúcar e vários produtos nas Américas. Isso, sem sombra de dúvida, contribuiu para o desenvolvimento do novo mundo, então tem tudo a ver com o nosso trabalho. Creio que na Holanda encontraremos muitos documentos antigos sobre a companhia das Índias Ocidentais e seus grandes investidores, muitos dos quais eram cristãos novos ou judeus. Trataram de planejar a viagem e rumaram para a Holanda. — Pedro, voce acha que os judeus ocultavam algo de especial? — Há indícios de que esses possuíam uma organização secreta cuja finalidade precípua seria proteger antigos segredos, mas isso pode ser apenas uma lenda. — Concordo. Ainda assim, é uma lenda muito intrigante. — Paschoal, o que você pretende que façamos imediatamente? 30 31 Capítulo II Coimbra – Conhecendo a cidade Coimbra é uma importante cidade Portuguesa que dista de Lisboa 206 km, referindo-se à rodovia conhecida como via A1. Possui uma posição estratégica, por ser região central e possuir ligação com a auto estrada A1, que liga o país de norte a sul. É também ligada à cidade vizinha de Figueira da Foz, no litoral, pela via A14. O aeroporto internacional mais próximo é o de Francisco de Sá Carneiro, a 130 km, no Porto, mas existe tambem o Aeroporto da Portela, a 190 km, em Lisboa. Não possui aeroporto, mas possui aeródromo. Pertence à sub-região do Baixo Mondego e da Beira Litoral. É banhada pelo rio Mondego, possuindo o município 319,4 km² e 143.396 habitantes — de acordo com o senso de 2011. A Universidade de Coimbra, fundada em 1290, é a mais antiga de Portugal e uma das mais antigas da Europa. Conta atualmente com 30.000 estudamtes. É limitada ao norte pelo município de Mealhada, a leste, por Penacova, Vila Nova de Poiares e Miranda do Corvo; ao sul, por Condeixa-a-Nova; a oeste, por Montemor-o-Velho e a no- João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro roeste, por Cantanhede. É uma das mais importantes cidades portuguesas porque, além de sua importância histórica, possui boa infraestrutura, organizações e empresas, está geograficamente bem posicionada e é tambem referência em ensino e saúde. O dia da cidade, feriado municipal, ocorre em 4 de julho em honra e memória da rainha Santa Izabel de Aragão, a padroeira da cidade. Já foi a Capital do Reino e foi berço de 6 reis da primeira dinastia, Inclusive Dom Afonso Henriques, o fundador do reino de Portugal — em 1139. Habitaram por lá muitas personalidades famosas ao longo da história, tais como: José de Anchieta, Irmã Lúcia, de Fátima e muitos outros. Possui muitos monumentos de interesse histórico e turístico, dente eles há igrejas, palácios, torres, bibliotecas, museus e muitos outros. Possui ligação ferroviária ao norte e ao sul, possuindo 4 estações: Velha, Nova, do Parque e São José. Além da conhecida Universidade de Coimbra com as suas 8 faculdades, existem muitas outras escolas e institutos de ensino superior públicos, tais como: Instituto Politécnico de Coimbra e Escola Superior de Enfermagem de Coimbra. Há também os privados: Escola Universitária Vasco Da Gama, Instituto Superior Miguel Torgqa, Instituto Superior Bissaya Barreto, Escola Universitária das Artes de Coimbra. A Universidade de Coimbra foi durante vários séculos a única universidade portuguesa. A cidade possui tambem muitas escolas públicas e privadas de ensino básico e secundário. No aspecto cultura e lazer, a cidade possui muitos pontos interessantes, dentre eles: Museu Nacional de Machado de Castro, na Sé nova, instalado no Palácio Episcopal de Coimbra, que possui coleções importantes de pin34 tura, escultura, ourivesaria, cerâmica, têxteis e outros. A universidade possui importantes museus. Dentre outros: instrumentos científicos dos séculos XVIII e XIX, Museu de Física, coleções de antropologia, zoologia, botânica e mineralogia, Museu de História Natural e outros. Possui 31 galerias de arte, recebendo cerca de 200.000 visitantes por ano, (referência de 2003). Em 1993, a cidade sediou os Jogos Sem Fronteira, participando cidades de sete países. Clima: Coimbra tem um clima chamado Mediterrâneo. A temperatura no inverno varia entre 15 °C de dia e 5ºC à noite, podendo chegar a 0 °C nas frentes frias. No verão, varia entre 29 °C de dia e 16 °C à noite. No período entre 1971 a 2000, a variação máxima foi entre - 4,9 °C e 41,6 °C. Os registros de 1943 informam que variou entre -7,8 e 42,5 °C. Economia: Segundo dados de 2005, o distrito possui 5.441 empresas, com um faturamento anual de 2.318 Euros. 83 dessas empresas figuram entre as 1.000 maiores do país. Possui uma indústria de alta tecnologia voltada para a áres de saúde e empresas de serviços também voltadas para essa área. Tem também empresas em várias áreas, tais como: defesa, aeroespacial, financeira, telecomunicações, etc. Possui empresas a nível internacional que têm colaborado com a NASA, ESA e a China. Em Coimbra está a maior encubadora de empresas do mundo. Existem na cidade 3 hospitais centrais: Hospital da Universidade de Coimbra (HUC), Centro Hospitalar de Coimbra (CHC) e Hospital Pediátrico e Materni35 João Roberto Vasco Gonçalves dade de Bissaya Bareto, além do Instituto Português de Oncologia (IPO). As zonas industriais da cidade são o Parque industrial de Taveiro, o Parque industrial de eiras e o Polo de Pedrulha e Eiras. É igualmente notório o Coimbra iParque, que não somente é capaz de receber unidades industriais, mas também espaços para escritórios, auditórios, salas de formação e de reuniões. Coimbra ocupa o terceiro lugar no ranking de importância econômica, ficando depois de Lisboa e Porto. Possui um poder de compra per capita de 139,5 euros — segundo dados de 2009. Existem tambem grandes centros comerciais: Coimbra Shoping e o Dolce Vita Coimbra. O concelho de coimbra possui 18 freguesias, sendo que estão na área urbana Ceira, Almedina e São Bartolomeu, Eiras e São Paulo de Frades, Santa Clara e Castelo Viegas, Santo Antônio dos Olivais e Ribeira de Frades. Capítulo III História do professor Paschoal D’Ávila. Afeganistão — Ali ub, você já fez a lição que te passei? — Sim, mamãe, já terminei. — Então, agora vá para a cama porque amanhã você tem de acordar bem cedo para pastorear as cabras. — Sim, mamãe. No outro dia. — Ali ub, seu alforje já está preparado com as provisões de que precisa. — Obrigado, mamãe. Acabando de comer, irei logo. — É bom se apressar, o sol já está quase nascendo. — Estou pronto mamãe, já estou indo. Ali ub era um menino esperto e já trabalhava muito. Ficara órfão de pai muito cedo e vivia com sua mãe numa humilde casa do interior. Aprendia a ler e escrever com a própria mãe quando chegava em casa ao pôr do sol. Antes de o sol nascer já estava saindo para pastorear as cabras e ovelhas, sua fonte de renda. Sua família era de uma etnia minoritária na região, por isso eram discriminados e frequentemente atacados e perseguidos. 36 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Um tropel de cavalaria avançava pela região e se aproximava da casa onde Ali morava com sua mãe. Parecia uma turba de desordeiros que fazia enorme algazarra. Estavam bem armados e pareciam dispostos a atropelar o que passasse à sua frente. Quando chegaram à casa, entraram e saquearam o pouco que havia. Ao encontrarem a mulher que se escondia e, principalmente, percebendo sua etnia, cometeram todo tipo de violência e a machucaram muito. Ela lutara desesperadamente, todavia fora uma luta inglória, pois eram homens fortes, em grande número e armados até os dentes. Depois de saquearem-na e deixarem-na semidesfalecida ainda atearam fogo à casa com ela dentro e foram embora. Despertou com o calor das chamas próximo a ela e, reunindo suas últimas forças, conseguiu a duras penas chegar ao lado de fora. Seriamente ferida e intoxicada pela fumaça, morreu no desespero da solidão, porém feliz, pois seu filho fora poupado, por não estar presente. Após o pôr do sol, quando voltou para casa, Ali ficou desolado. Sua casa estava completamente queimada, algumas paredes haviam ruído e sua mãe estava morta do lado de fora com marcas de violência por todo o corpo. Lutara heroicamente até a morte. Sentiu um misto de dor, revolta, abandono de suas forças, desânimo e perda do sentido de viver. Na manhã seguinte, após velar sua mãe ao relento, teve de enterrá-la com as próprias mãos, sozinho e suportando sem consolo o peso da dor. Aproveitando uma fenda no terreno pedregoso, alojou ali o corpo se sua mãe e o cobriu com escolhos de pedra que conseguiu arranjar pela região. Saiu dali muito triste, pensando sobre o que faria da sua vida. A angústia tomou conta do seu coração. A única ideia que lhe ocorria era vender as cabras e ovelhas e sair pelo mundo. escravo — o que de fato ocorreu ao chegarem às cercanias da cidade mais próxima. Os mercadores que o compraram exigiram que ele aprendesse árabe e serviços de casa, pois pretendiam vendê-lo como escravo doméstico. Designaram alguém para ensiná-lo a língua e instruir-lhe nos afazeres de casa. O garoto era esperto e, talvez impulsionado pela necessidade de comunicar-se para viver ali, aprendeu rapidamente. Ali Ub passou algum tempo com aquelas tarefas. Aquilo era ruim, contudo, ao menos estava vivo, alimentado, vestido e abrigado. Ainda assim, aquilo não lhe bastava, ele precisava voltar a ser livre e dar um rumo à sua vida. — ...Ah! Encontramos um bom comprador para o menino. Um homem da cidade precisa de um escravo doméstico que seja novo e capaz de aprender rapidamente. Propôs um ótimo pagamento. — E quando virá concretizar o negócio? — Dentro de duas semanas. Até lá temos de preparar a mercadoria segundo suas exigências. — Que exigências são essas? — Deve estar sadio, bem disposto e ser eunuco. — Mas esse não é eunuco. No dia seguinte, passou por ali uma caravana de mercadores. Ao perceber sua etnia e verem-no tão desprotegido, usurparam seu rebanho e ainda o levaram para ser vendido como — Sim, por isso temos de mandar castrá-lo pelo menos dez dias antes de o comprador chegar. Já acertei isso com o homem que faz esse serviço. Então, temos de alimentá-lo, tratálo bem e cuidar para que não se machuque, para não estragar a mercadoria. Ali estava presente, porém oculto. Escutou com muito pesar aquela conversa do pessoal da casa. Era horrível ser tratado como uma mercadoria. Para piorar, iriam castrá-lo para atender às exigências do cliente, tornando-o eunuco, como era costume na região para os escravos domésticos. Ficou apavorado 38 39 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro e tratou de arranjar um bom plano para fugir dali o quanto antes. A oportunidade finalmente apareceu. Uma tarde, por ocasião da quarta oração, os homens da casa saíram para ir rezar na mesquita mais próxima. Ele se escondeu dentro de casa, pegou o que pôde de abrigo e provisões e fugiu pelas estradas, abrigando-se numa região de difícil acesso nas montanhas, enfrentando todos os perigos. Quando os homens chegaram e não o encontraram, ficaram furiosos ante a possibilidade do prejuízo. Mas não o foram procurar, pois acreditavam que ele voltaria logo com medo da escuridão, de ficar sozinho e por causa do frio. Na pior das hipóteses, quando acabassem as provisões, voltaria implorando para ficar e então receberia o castigo merecido pela fuga. O que eles não sabiam era que Ali, apesar de menino, não era assim tão dependente. Ficou órfão de pai muito cedo e tivera de se virar. Era acostumado a passar muito tempo pelos campos pastoreando, sabia controlar sua ração, conhecia muitas ervas e frutos comestíveis, sabia encontrar água, caçar, procurar abrigos e se proteger contra ataques de animais. Além disso, eles não tinham ideia de que ele ouvira a conversa a respeito de suas intenções para com ele. Mesmo se tivesse de voltar, não seria para eles. Alguns dias depois, eles tiveram de viajar outra vez para comerciar. Não se preocuparam mais com ele por acharem que ele já estaria morto. De fato, isso quase aconteceu. Ali sobrevivia, mas a vida não era nada fácil naquele local. Havia água por perto, o que era ótimo, mas fazia muito frio à noite. Contudo, isso ainda não era nada comparado aos perigos de ataques de animais maiores e também de aranhas, escorpiões e outros insetos. Também havia outro inconveniente, logo acabaria a comida e ele teria de caçar e comer a erva do mato para não morrer. Numa daquelas madrugadas ele acordou com uma dolorosa ferroada de um inseto, o que o obrigou a deixar a toca onde estava escondido e tentar procurar outro lugar. Ele começou a descer a montanha. 40 O ferimento doía muito, mas ele seguiu em frente. Chegando ao sopé do monte, estava ofegante, esgotado e sentindo um tremendo mal estar; suava frio e sentia tonturas, precisava pedir ajuda. Ele precisava rezar para que Deus mandasse alguma alma caridosa que não o maltratasse nem o vendesse como escravo. Trabalharia para pagar seu sustento. Quando chegou às margens da estrada estava muito doente, faminto e maltrapilho. Desmaiou. Uma caravana viajava por aquela estrada e resolveu fazer uma parada. Acamparam ali para descansar antes de seguir a longa e penosa viagem. — Salim, corre aqui, por favor. Encontrei um menino moribundo. Parece estar machucado e está ardendo em febre. Salim o levou imediatamente para a sua tenda. Ali trataram dos ferimentos. Viram o que parecia ser uma picada de inseto. Fizeram-lhe um torniquete e, a seguir, uma sangria no local. Deram-lhe um chá de ervas que traziam e deixaram-no descansar até que a febre cedesse. Salim e Munira eram casados havia alguns anos, porém nunca tiveram filhos. Salim antes de casar-se com ela era viúvo sem filhos, pois os dois que sua finada mulher lhe dera haviam morrido de doença ainda crianças. Munira, que a essa altura já era tratada pejorativamente como útero seco, vivia rezando e esperando que os céus lhe mandassem um filho. Isso de fato aconteceu. Talvez não da forma que ela imaginava inicialmente. A caravana seguiu viagem e o levou, pois não podiam deixá-lo ali naquelas condições; depois, conforme souberam, o menino era órfão de pai e mãe, estava longe de sua terra de origem, que, aliás, fora invadida; a maioria dos seus habitantes estava morta e o que restara de seu povo havia fugido. Enfim, ele era sozinho no mundo. O menino era esperto, educado, sabia alguns trabalhos de casa, pastoreio e já falava e entendia razoavelmente o árabe, in41 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro clusive já escrevia algo. Acabaram afeiçoando-se a ele e ele também correspondia àquele sentimento. Trataram-no como filho. Munira acabou entendendo que aquele não era o filho do seu ventre, mas do coração, o que os céus lhes mandaram. O menino também acabou adotando-os como seus pais. Acabaram por perfilhá-lo legalmente, registrando-o como turco e dando-lhe o sobrenome “Abdula”. Salim, agora seu pai, que procurava estabelecer-se, encontrou uma boa oportunidade em Chipre, na parte turca da cidade. Lá, colocaram-no numa escola onde concluiu o ensino fundamental e o médio. Àquela altura, ele já ajudava nos negócios do pai, que estava bem satisfeito com a prosperidade que haviam alcançado. Diversificou e ampliou o negócio e já possuíam uma unidade em Ancara, para onde se mudaram depois. A seguir, mandaram-no estudar em Istambul, onde concluiu o curso superior com brilhantismo e foi até contratado para lecionar. pitalizando. Teve inclusive de vender algumas propriedades para saldar as dívidas e honrar compromissos junto aos fornecedores. Numa das visitas a casa, conheceu uma bela moça por quem se apaixonou e pretendia casar-se em breve, se sua família e a dela aprovassem. Voltou à universidade. Passaram-se os meses e chegaram finalmente as férias de verão. Quando se preparava para viajar para casa, recebeu a triste notícia de que seu pai estava nas últimas. Sua mãe e sua namorada também estavam doentes. Era um surto de peste que assolava a região. Apressouse a ir para casa, mas, infelizmente só teve tempo de vê-lo morrer. Providenciou o funeral. Depois do enterro, voltou para casa com aquela sensação de vazio. No entanto, tinha de manter a sobriedade, pois deveria empenhar-se no tratamento de sua mãe e dar uma atenção especial aos negócios. Conforme logo descobriu, esses já não andavam tão bem devido a sucessivas crises econômicas e conflitos internacionais na região de influência deles. A situação, na verdade, não era nada boa. As dívidas se acumulavam, a carteira de clientes diminuiu muito e já estavam se desca- O ano letivo começara e ele começou a lecionar e se afogar em trabalho na tentativa de esquecer as tragédias passadas, mas não conseguia dominar a angústia que as lembranças traziam. Passado algum tempo, ele conseguiu uma bolsa de estudos para especializar-se na universidade de Coimbra, em Portugal. Não perdeu a oportunidade. Uma das primeiras providências foi adotar um nome português muito comum, o que, além de ajudar na comunicação por causa da pronúncia, também evitava especulações e até mesmo discriminações. Assim, abdicou de seu nome “Ali ubh Abdulah” e tornou-se o professor “Paschoal D’Ávila”. Estudou mais três anos em Coimbra e concluiu com brilhantismo seu curso. Logo, foi convidado a lecionar e pouco depois já chefiava uma equipe no departamento de história. Aliás, já estava cotado para ocupar a chefia do departamento com a iminente aposentadoria do professor José. 42 43 A epidemia avançou na região, os hospitais estavam abarrotados de enfermos e ocorreram de fato muitas mortes. Passados alguns dias, sua mãe piorou muito e acabou morrendo. Ele ficou desolado. No entanto, sua tristeza ainda não acabara. Sua namorada, a quem muito amava, também piorou e morreu poucas semanas depois. Ele sentiu o peso da solidão, do vazio e do desespero. Parecia que todos aqueles antigos pesadelos voltavam a assolar sua alma, que seu mundo já havia acabado e não havia mais nada a fazer por ali. O reinício do ano letivo já estava bem próximo. Então, ele resolveu se mudar de vez para Istambul. Encerrou os negócios, pagou todas as dívidas, vendeu tudo o que sobrou e foi embora para nunca mais voltar. Além do mais, não era seguro ficar por ali muito tempo e sujeitar-se também a contrair a doença, apesar de ele já ter sido vacinado. João Roberto Vasco Gonçalves Com sua especial capacidade para encontrar talentos, conseguiu formar uma excelente equipe. Entre os mais talentosos que encontrou estava o professor Pedro Cintra, que teve uma história de vida algo parecido com a dele e com quem compartilhava muitas ideias e acabou tornando-se amigo pela cordial convivência e dedicação ao trabalho. Capítulo IV História do professor Pedro Cintra Curdistão — Samir, você já se lavou? — Sim, mamãe. — Então venha comer, depois brinque um pouco e a seguir faça a lição antes de dormir. Samir emih hamur tinha oito anos. Morava com os pais numa aldeia do interior na região do Curdistão. Pertencia a uma etnia minoritária na região. Por causa disso, eram considerados inferiores. A rejeição era tanta que muitas vezes os hostilizavam e até agrediam física e moralmente. Aprendia a ler e escrever em casa com os pais, pois nem a escola conseguia frequentar. Viviam constantemente apreensivos com os possíveis ataques tanto dos que os espezinhavam quanto pelos ladrões que passavam em caravanas e saqueavam tudo. Seu pai sustentava a família com um pequeno e modesto comércio e alguns pequenos serviços que fazia. Eram marcadamente pobres. Ele ajudava no que podia e tentava aprender o ofício do pai e algumas coisas de valor prático para a vida. Numa fria tarde de outono, sofreram um ataque maciço por um grande número de homens armados que chegaram velozmente e com muito estardalhaço, com uma sede de destruição desmedida. Eram da etnia dominante e estavam dispostos 44 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro a tomar suas terras e trucidar todos. Arrasaram o seu povoado, mataram seus pais e todos os vizinhos, saquearam tudo que puderam carregar e atearam fogo às humildes casas da região. Não sobrou nada, nem mesmo cadáveres para enterrar, tudo ficou reduzido a um monte de cinzas. Samir estava muito assustado, mas o seu instinto de preservação o fez esconder-se e depois fugir para uma colina próximo dali, onde passou a noite com fome e frio abrigado numa gruta. Só conseguiu beber água de um filete que escorria pela fenda de uma pedra. No dia seguinte, passou uma caravana de mercadores pelo local. Faminto, e depois de observar e estudar bastante a situação, procurou encontrar algo que comer e acabou se alimentando com restos que os homens haviam deixado. Não podia ficar ali, pois a morte certa ocorreria em poucos dias. Pulou dentro de uma carroça e escondeu-se para tentar viajar até algum lugar menos desfavorável à vida. Seu esconderijo era apertado, calorento e mal cheiroso — demasiadamente desconfortável. Vencido pelo cansaço, conseguiu dormir por algumas horas. Acordou com aquela agitação que faziam ao parar a caravana para descansar, dar de beber aos cavalos e camelos e também comer. Tinha de sair dali para urinar, esticar o corpo e encontrar algo para comer. Ainda não poderia sair dali. O local era desabitado e inóspito. Depois de satisfeitas as necessidades básicas, procurou voltar ao esconderijo e tentar viajar para outro local melhor, quando sairia. Mal acabara de entrar, alguém precisou de algo da carroça onde estava e o encontrou. Comunicou ao chefe da caravana, que resolveu levá-lo e alimentá-lo durante o restante da viagem mediante alguns serviços no trato dos cavalos e camelos e ajudar a montar e desmontar as tendas durante as paradas. — Não. Ele agora faz parte da mercadoria. Enquanto viajamos, ele ajuda no tratamento dos cavalos e camelos e no que mais puder. Quando chegarmos a um local onde haja compradores, vou vendê-lo como escravo. Samir, que estava oculto, ouviu a conversa e ficou muito triste e com muito medo. Precisava arranjar um jeito de fugir tão logo chegasse. O restante da viagem foi penoso, fisicamente incômodo e com um temor que devorava sua alma. Ele quase dormia na mesma desconfortável carroça, até que outra vez despertou com aquela algazarra característica de quando chegavam a algum lugar. Escutou quando alguém comentou. Chegamos ao mercado, esperamos fazer bons negócios com as mercadorias, que Alá nos abençoe e nos dê a prosperidade. O que chamavam mercado, não era mais que um aglomerado de acampamentos, onde na frente de cada barraca ficavam expostas as mercadorias que cada um trazia, uma enorme confusão de gente, produtos, animais e um enorme vozerio que tornava difícil escutar o que as pessoas falavam. O comércio era predominantemente baseado em escambo, mas em raros casos apareciam moedas e pedaços de ouro como pagamento. Era uma novidade. Em outras circunstâncias seria até divertido, mas ali era diferente: Samir havia escutado os comentários feitos. É claro que sabia que ele estava incluído no rol das mercadorias, conforme escutara dias antes. Era hora de fugir, antes que fosse tarde demais. — Chefe, que utilidade pode ter um menino para o trabalho. Ele só vai ajudar a gastar a água e a comida. Vamos deixá-lo aqui. Aproveitando a confusão, Samir pulou da carroça ainda em movimento e se misturou no meio daquela confusa massa. Seria difícil alguém perceber algo ali. Tratou de procurar as extremidades daquele mercado e com muita dificuldade conseguiu atravessar pelos becos entre as tendas e tabuleiros. Enfim chegou à área livre, deu uma olhada na região e avistou uma colina bem próximo dali. Contorcendo-se aqui e ali, conseguiu chegar lá e esconder-se. Tudo que conseguira trazer consigo era um pão e um naco de carne defumada com uma gordura já rançosa. Pelo 46 47 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro menos encontrou água. Aquilo era ótimo porque não decretava sua morte imediata, mas não resolvia o seu problema, pois sabia que logo a fome e o frio o matariam. O mercado se desfez, as caravanas se foram, o local ficou deserto. A não ser pela sujeira deixada, nem parecia que antes havia tanto movimento. Samir desceu ao sopé da colina e começou a andar pelas redondezas, fazendo um reconhecimento da região. Foi até a margem da poeirenta estrada. A despeito das suas preocupações, andava displicentemente contra o vento, que lhe fazia um barulho enorme nos ouvidos — o que de certa forma era agradável por quebrar o absoluto silêncio reinante por ali. Nem percebeu o ronco de um velho caminhão atrás de si. Quando se deu conta, dois brutamontes já o agarravam e conduziam até o precário veículo, nem fazendo caso dos seus gritos de protesto. Bem mais próximo deste, ele protestou de novo. Um deles o esbofeteou. Jogaram-no na carroceria do caminhão, também subiram, e a viagem começou. Refeito do susto e do bofetão, percebeu que havia vários outros meninos, uns da sua idade, outros um pouco mais velhos e poucos até mais novos. Pareciam de várias etnias diferentes. Muitos só falavam seu próprio dialeto. Viajaram penosamente por vários dias por estradas poeirentas e cheias de buracos e pedras. Vez por outra faziam, breves paradas para fazer suas necessidades, alimentarem-se e fazer o abastecimento do veículo. Enfim chegaram ao destino, que ele veio a saber muito mais tarde tratarse de um campo de treinamento, onde pessoas retiradas a força de suas casas ainda meninos ou recolhidos pelas ruas, campos e estradas eram submetidos a uma formação religiosa e militar. O objetivo era para que mais tarde fossem usados em invasões, ataques, e missões arriscadas e até suicidas em favor de uma causa que chamavam “Guerra Santa”. aulas sobre o Alcorão e sobre assuntos militares, como manuseio e manutenção de armas, ataques, técnicas de guerrilha, sobrevivência, etc. Tudo isso ficaram sabendo mais tarde com o passar do tempo e o desenvolvimento do treinamento. De tempos em tempos, saíam a campo para treinamentos militares práticos de tiro e outros. Quase no final do curso, saiam para acompanhar missões de verdade. Lá encontravam os soldados de exércitos não oficiais que exerciam suas missões. Samir sentia verdadeira repulsa pelas coisas que ensinavam. Não conseguia entender muitos dos conceitos como o fato de uma religião santa como o Islã poderia ser usada como um artifício para a guerra. Afinal, Alá era o único Deus, infinitamente bom e misericordioso para todos os homens? Como podiam chamar de “santa” uma guerra cruel que dizimava a humanidade? Como ousavam evocar o santo nome do senhor para matar o seu semelhante, ainda que fosse considerado inimigo? Na verdade, estava sendo preparado para fazer as mesmas coisas que fizeram quando mataram seus pais e toda a sua gente da forma mais desumana que se podia imaginar. Sentira na pele aquela desgraça e sabia muito bem o que era a dor da perda, a fome, o frio, o abandono, a venda como reles mercadoria, a perda da liberdade, enfim, toda aquela miséria de vida que o próprio homem impõe ao seu semelhante arranjando como desculpa uma crença. Desembarcaram e foram conduzidos a um comprido galpão onde ficavam os alojamentos à moda militar e salas onde eram ministradas aulas de árabe para os que ainda não sabiam, Não. Não queria ser um deles. Preferiria mil vezes a morte. Tinha de se libertar dalí de algum modo. Não fazia a menor ideia de como, no entanto. Todos eram rigidamente vigiados vinte e quatro horas por dia, e as punições eram rigorosas para os que infringiam os regulamentos. Apesar disso, ele precisava fazer alguma coisa e faria realmente tão logo aparecesse a mínima oportunidade. O tempo passou e faltava pouco para a época da primeira incursão verdadeira, quando iriam a campo acompanhar os soldados e fazer alguma coisa como estagiários de guerra. Essa seria talvez a oportunidade tão esperada. 48 49 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Finalmente conheceram a missão: deveriam viajar e encontrar a tropa num local próximo às colinas de Golan, onde se daria o ataque no qual se apossariam de importantes posições que culminaria com o domínio de toda a região. Chegaram e imediatamente se juntaram ao grupo, sendo distribuídos pelas várias companhias. Tomaram posições, avançaram, e o ataque começou. Foram detectados pelos postos de observação do inimigo que os enfrentou duramente e a refrega começou. Era horrível. Por um momento, parecia voltar vivamente aquele ataque quando sua família fora destruída. Samir sentiu um misto de ódio, medo e repulsa. Transtornado, acabou desgarrando-se do grupo e se perdendo. Machucou seriamente a perna naquele terreno acidentado, ficando impossibilitado de caminhar mais. Também fora ferido no braço e o ferimento sangrava muito. Desmaiou. — Oh! Estão usando até meninos para a guerra. — São aprendizes de grupos paramilitares. Eles os arrancam de suas casas ou recolhem por aí, os treinam por muito tempo, depois levam para as frentes de batalha para fazerem um treinamento real ajudando os soldados, até tornarem-se um deles. — Como estagiários de guerra? — Sim, algo parecido com isso. Era o que conversava uma enfermeira e um médico, num hospital de campanha. Samir começou a despertar e ouvia vozes como se estivessem longe. Estava recobrando os sentidos, quando finalmente abriu os olhos viu que estava numa grande barraca de lona com várias macas e um cheiro muito forte de remédio. Estava nu e coberto com um lençol branco. Sua perna parecia estar ligeiramente levantada, apoiada sobre algo e enfaixada, Seu braço 50 esquerdo estava também enfaixado e no antebraço direito havia uma agulha enfiada, por onde chegava um longo canudinho que terminava num pequeno bulbo onde pingava um líquido antes de chegar a uma espécie de garrafa cheia deste. Não sentia dor, nem fome, nem sede nem frio. Ótimo, ainda estava vivo, pensou. Do lado do seu leito viu uma enfermeira e um médico. Meio acanhado, perguntou: — Onde estou? — Num hospital de campanha da Cruz Vermelha — que bom que ela falava árabe, o seu segundo idioma. — E o que é isso? — É um lugar onde se tratam os feridos de guerra, civis ou militares. — Como sabem se são inimigos ou não? — A Cruz Vermelha é uma organização internacional neutra. Tratamos os feridos como seres humanos, independentemente do seu país, sua religião ou de qualquer outra coisa. — Que ótimo. É como eu sempre imaginei o mundo. Infelizmente, não foi dessa forma que me aconteceu até hoje. — Qual é o seu nome? — Ela falava enquanto parecia anotar algo num papel preso a uma prancheta. — O meu nome original é Samir Emih Hamur. De onde vim me chamavam Mohamed emih. — Quantos anos você tem? — Acho que onze no calendário de onde vim. Não sei exatamente. Nosso jeito de contar o tempo não era o mesmo usado por aqui. 51 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Era interessante a nova situação. Pela primeira vez desde a morte dos pais, ele encontrara gente não hostil. Não sabia exatamente o porquê, mas aquela mulher parecia afável e lhe inspirava confiança. Pela primeira vez em muito tempo, ele era tratado com a dignidade que um ser humano merece. — E seus pais? gente. — Mortos, como todos os meus parentes e toda a minha — De onde você é? — Eu nasci e morava com os meus pais numa aldeia do interior. Minha gente dizia que era Curda. — E o que aconteceu com seus pais e toda a sua gente? — Sempre fomos maltratados por muitos que passavam por lá e várias vezes agredidos física e moralmente. Consideravam-nos gente de inferior categoria porque éramos de uma raça, costumes e crença diferente da deles e éramos poucos na região. Sempre pensavam em expulsar-nos de nossas terras. As lutas eram constantes para defender nossa aldeia e cada dia ficava mais difícil rechaçá-los. Um dia, vieram muitos homens fortemente armados, mataram meus pais e todos os habitantes da aldeia. Queimaram tudo. Dei sorte de conseguir me esconder e fugir para as montanhas que havia próximo. Quando foram embora, voltei lá no outro dia. Não havia nem a quem enterrar. Tudo não passava de um monte de cinzas que o vento forte dispersava. escondido. Depois resolvi pular para dentro de uma carroça para sair daquele lugar desabitado a fim de não morrer. Na parada seguinte, saltei para fazer as necessidades e arranjar água e comida. Depois pulei de novo para dentro da carroça e me escondi, mas fui descoberto. O chefe deles me deixou ficar, pagando a água e comida com o trabalho de ajudar a tratar dos animais. Mas eu descobri que ele pretendia me vender como escravo na próxima oportunidade, então, quando chegou ao mercado, pulei da carroça e andei pelo meio daquele povaréu até alcançar as extremidades daquele amontoado de gente. Fugi para uma colina próxima. Quando foram embora, voltei para a estrada e caminhava sem rumo certo quando fui capturado por um grupo armado que com um caminhão recolhia todos os meninos que podiam encontrar. Alguns foram tirados dos seus campos e outros até arrancados à força de suas casas. Levaram-nos para um lugar onde havia um alojamento com escolas e um campo de treinamento militar. O trabalho, o estudo e os exercícios físicos eram extenuantes. A disciplina era rígida. Não toleravam atrasos nos horários de levantar, refeições, aula e exercícios. Os castigos para quem descumprisse os regulamentos eram severos. Preparavamnos para a guerra e para missões especiais, onde fosse necessário. Doaríamos a própria vida pela causa e seriamos mártires ou heróis, merecendo ir para um lugar muito melhor do que esse mundo e vivendo eternamente feliz. — Fui para a estrada mais próxima tentar arranjar algo para comer e tentar sair dali. Parou por ali uma caravana de mercadores para tratar dos animais e também comer e beber. Consegui me alimentar com restos de comida deles e beber a água deles A enfermeira, apesar de já acostumada a tantas histórias tristes, não conseguia esconder seus olhos úmidos de lágrimas, emocionada que estava. Os dias se passaram e Samir já conseguia dar os primeiros passos. O braço também já estava bem melhor. Dentro em breve, não poderia ficar mais ali. Estavam do lado Israelense. Provavelmente, conseguiriam uma instituição para menores órfãos que perderam seus pais na guerra. A enfermeira que já se afeiçoara a ele, conhecia um casal de judeus sem filhos que aceitou ficar com ele por algum tempo até que 52 53 — E o que aconteceu com você depois? João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro as coisas se normalizassem. Lá o receberam bem, apesar de não ser judeu e não falar a sua língua. Mas o senhor da casa falava o árabe e conseguiam conversar. Samir era esperto, prestativo e havia aprendido muitas coisas úteis durante o tempo que passara no alojamento militar. Ajudava em tudo que podia. Trabalhava muito no intuito de pagar seu sustento e não ser um incômodo para a família. Era muito inteligente. Em pouco tempo, aprendeu a falar hebraico e já estava até lendo e escrevendo alguma coisa. Conquistou, assim, as graças da família que resolveu perfilhálo legalmente, apesar da resistência inicial dos parentes que se preocupavam com a sua procedência. Assim, recebeu um nome judeu: “Kepha” (Pedro em aramaico), seguido do sobrenome da família: “Bilisch”. Ele foi para uma escola onde conseguiu aprender bastante e concluir o ensino básico com brilhantismo. Àquela altura já falava praticamente sem sotaque e tinha muitos amigos. Mas sempre que descobriam sua origem o discriminavam, tratando-o como bastardo, embora disfarçadamente. Alguns até se afastavam. Os negócios da família melhoraram e finalmente acabaram se mudando para Tel Aviv. Ali ele cursou o ensino superior e um mestrado em história, Conseguiu formar-se com tão boa reputação que o convidaram para lecionar na sua universidade. o fim do romance. Os dois sofreram muito. Mais à frente, a família mudou-se para Portugal, onde tinha negócios. Ele também conseguiu uma bolsa para especializar-se em Coimbra e aproveitou a oportunidade para estar perto da família e fugir daquela incômoda situação — queria também se livrar daquela angústia da rejeição. Para diminuir esse risco, resolveu mudar o nome, adotando um nome português comum. Assim transformou-se no professor Pedro Cintra. Concluindo o curso, contrataram-no como professor adjunto. Logo, conheceu o Professor Paschoal. Era uma fresca tarde de domingo e ele estava sozinho lendo um jornal e tomando um vinho num pequeno bar de um lugar calmo. — Bom tarde, professor Paschoal — Boa tarde, professor Pedro. Sente-se aí. Vamos tomar um vinho e conversar um pouco. — Obrigado, professor. O senhor vem sempre aqui? — Não muito frequentemente, mas sempre quando tenho um ataque de nostalgia. — Ah! Eu sei muito bem o que é isso. Quando ainda era adolescente conhecera Deborah, ainda menina, que tornou-se depois uma linda moça dos cabelos ruivos por quem se apaixonou. Ela era sua prima de criação e vizinha. Começaram a namorar. Se amavam muito e faziam planos de casar-se, porém aqueça ideia teria de ser submetida às famílias. Aliás, no oriente, como dizem, as pessoas não se casam, mas, as famílias. Isso foi o grande empecilho para suas vidas. Os pais dela e quase todos os parentes, ao pesquisarem sua vida pregressa, descobriram que não era judeu de nascimento, portanto, impuro. Se ela se casasse com ele, também se tornaria impura, bem como seus futuros filhos. Desaprovaram o casamento e exigiram O professor Paschoal, com as barreiras de proteção psicológicas já dilatadas (talvez pelo efeito da bebida), acabou contando toda a sua história de vida até ali. Depois foi a vez de o professor Pedro abrir o seu baú de nostalgias. Também contou toda a sua história até ali. Curiosamente, perceberam que suas história eram bem parecidas; pelo menos tinham muita coisa em comum. Isso os aproximou muito. Ficaram amigos íntimos e resolveram abolir as formalidades de tratamento e chamarem-se pelo nome. 54 55 — Pedro, vejo que tem um excelente currículo. Primo por ter à minha volta gente competente, dedicada e responsável. João Roberto Vasco Gonçalves Estou formando uma equipe de professores pesquisadores no departamento de história da universidade. Gostaria que fizesse parte dela como meu adjunto, Você aceita? — Sim, Paschoal, também gosto de acercar-me de gente competente, e vejo que é o seu caso. Capítulo V Amsterdã — Ótimo, Pedro, sinto que faremos uma grande equipe. — Quando começamos? — Amanhã mesmo. Comece organizando as coisas e me ajudando a encontrar gente capaz para a formação do nosso grupo. Inclusive já temos um trabalho proposto pelo chefe do departamento, que iniciaremos tão logo a equipe esteja formada. — E onde vamos trabalhar? — Já consegui o espaço necessário. Uma sala para nós, uma sala para os outros membros e uma sala de reunião com mesas, cadeiras, armários, arquivos e uma pequena biblioteca. Amanhã conhecerá tudo. — Que ótimo. Já estou entusiasmado. A noite era fria quando saíram do hotel e se dirigiram à sinagoga. Esperaram os fieis saírem para conversarem com o Rabino Ariel e o senhor Moshê. — Boa noite, rabino, eu sou o professor Paschoal, da Universidade de Coimbra e este é meu assistente, o professor Pedro. — Boa noite, eu sou o rabino Ariel e este é o senhor Moshê. Em que podemos ser úteis? — Estamos pesquisando sobre o cristianismo e o desenvolvimento do mundo novo. Pelo que sabemos, muitos dos cristãos novos foram judeus convertidos forçadamente pelo rei de Portugal, por isso vieram para cá. O senhor teria mais alguma informação histórica sobre isso? — Não, não temos nada, professor. Lamentamos não poder ajudá-lo. — E sobre a companhia das Índias Ocidentais? — Lamento, professor. Nesse caso, os senhores, como historiadores, provavelmente sabem mais do que nós. Não conseguiram nada de informações, parecia que sempre lhes respondiam com evasivas e sempre alegavam total ignorância sobre muitas coisas que provavelmente deveriam saber. Pareciam ter medo de falar demais. Todas aquelas perguntas despertaram muita desconfiança a respeito de quem realmente eram e o que realmente queriam. Aliás, aquela história de pro- 56 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro fessores fazendo uma pesquisa não convencera nem um pouco. O rabino ordenou ao Sr. Moshê que os vigiasse de perto, todavia sem ser notado. Não queria que vazasse a notícia de que havia alguém curioso procurando algo, senão muita gente pela Europa afora que andava atento começaria a aparecer querendo saber também o que era — a situação poderia fugir ao controle. Aliás, sempre havia muitos curiosos e aventureiros querendo saber coisas demais. No dia seguinte, foram à biblioteca pública e nem perceberam que foram seguidos. Após 3 infrutíferos dias, o professor Paschoal comentou: — Você não acha muito estranho não haver nada, nenhum livro, nenhum documento antigo que pelo menos se aproxime do assunto que queremos? — Sim, é realmente estranho. É como se alguém tivesse a intenção de apagar propositadamente a história. Decepcionados e quase sem esperança de encontrar mais nada, viram um livro que parecia ser de poesia. Era um velho livro sem muita importância, a não ser pelo fato de possuir algo na sua contra capa que mais parecia um desenho. O professor Pedro olhou melhor e percebeu que na verdade era uma inscrição no alfabeto hebraico. Fotografaram aquela curiosidade usando uma câmera oculta. — Não achamos mais nada de interessante alem disso. Já está meio tarde, voltemos ao hotel. — E amanhã o que faremos? — Faremos a última investida. — E depois iremos embora? 58 — Não, cumpriremos nosso papel de turistas e visitaremos os recantos interessantes da cidade para não levantar mais suspeitas do que já levantamos. — É bom mesmo. Aliás, o rabino e o Sr, Moshê parecem ter ficado muito desconfiados. — Sim. E o pior é que nem ao menos sabemos por quê. — É, parece que escondem algo que não desejam que alguém saiba. Encerraram sua pesquisa por aquele dia e rumaram para o hotel. Continuaram sendo seguidos sem perceber. Quando já estavam no hotel, o professor Pedro, que conhecia o hebraico (apesar de fazer muito tempo que não falava ou lia), conseguiu decifrar a inscrição. Era uma estrofe de quatro versos que dizia: Na torre de antigo castelo Um tesouro e seu guardião Oculto em novo mundo Sob o manto de um novo cristão. Quase instintivamente o professor Pedro transmitiu a foto para o servidor de sua universidade onde só ele e o professor Paschoal poderiam acessar mediante uma senha. Ficaram por algum tempo remoendo aqueles versos e tentando concluir algo. — O que lhe parece, Pedro? — Novo cristão, combinado com torre de um antigo castelo, não seria mais do que a Torre do Tombo, onde estão guardados muitos processos de cristãos novos pela inquisição. É claro que somos suspeitos para pensar assim, pois possivelmente são coisas que gostaríamos de ouvir, então inconscientemente forçamos uma situação. 59 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Claro. E isso nos remeteria de volta a Portugal, mais precisamente à Torre do Tombo. — Certamente. Só faltaria agora descobrir que tesouro é esse e quem é esse guardião. — Provavelmente saberemos disso pesquisando lá. — Então agora como faremos? Ainda vamos a biblioteca? — Claro que não. Queimaremos essa etapa. Passemos às visitas. Saíram para jantar, procurando só conversar sobre amenidades, pontos turísticos da cidade como os canais, passeios de barco, museus, etc. — Pedro, você já visitou o museu Anne Frank? — Não, mas já ouvi falar. É a casa onde morou Anne Frank, uma judia que foi perseguida pelos nazistas e acabou morrendo num campo de concentração. — Sim. Ela escreveu um diário contando sobre as agruras da vida de seus parentes perseguidos pelos nazistas. Na casa moraram várias pessoas no sótão, acima do escritório de seu pai, Escondiam-se em condições precárias. — Amanhã faremos as visitas. Foram seguidos outra vez. No hotel, Pedro pegou a câmera como quem brinca com ela, recordando as funções que ela oferece. De repente, instintivamente tentou ver as fotos que haviam tirado. Para sua grande surpresa, não as encontrou mais. Assustado, comentou: — Paschoal, as fotos não estão mais aqui. Você por acaso as apagou, mesmo que acidentalmente? — Nem toquei nessa máquina. 60 — Então acho que alguém esteve aqui e fez isso. — Será possível? Por que fariam? — Ainda não sabemos. Mas há indícios de que nos seguiram e viram que fotografamos algo. — Sim, e provavelmente o que fotografamos os incomoda muito ou não desejam que se propague. — Olha só! Remexeram todas as minhas coisas. — A minha mala também foi toda revirada. Acho que procuram algo de comprometedor em nossa bagagem. — Ufa, ainda bem que transmiti tudo para o nosso servidor na universidade onde só nós temos acesso. — Ainda bem. — Vamos dar queixa na gerência do hotel? — Não, isso não é uma boa ideia. — Por quê? — Porque, pelo visto, não fazem a menor questão de camuflar isto. Parece que querem que saibamos que estamos sob vigilância deles. — É, temos de tomar mais cuidado com o que falamos ou fazemos na presença dos outros. Devem estar nos observando de alguma forma. — Sim. Mas vamos descansar. Amanhã temos uma agenda de visitas cheia. Boa noite Pedro. — Boa noite, Paschoal. No outro dia: — Bom dia, Paschoal? Como passou a noite? 61 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Custei um pouco a dormir pensando em toda essa história. E você? bem. aeroporto. Esperaremos lá o tempo que faltaria para a viagem, que será bem mais tarde. — Também demorei um pouco, mas finalmente dormi — Vamos ao desjejum? — Sim. Então vamos à visita sem câmera mesmo. tas. — Sim. É melhor não perdermos muito tempo. — E também lembrar sempre o que podemos ou não falar ou fazer. Começaram a conversar sobre os pontos turísticos da cidade, a respeito dos quais já haviam se informado e lido alguns folhetos de propaganda. Acabaram o café e foram para o quarto fazer a higiene bucal e pegar as coisas para sair. — Você não vai acreditar, Paschoal... — O que foi? — Roubaram a nossa câmera fotográfica. — Ora, mas que estranho. — É até bom, assim provavelmente diminuem as suspei— Ou não. — Pode ser, mas vamos nos apressar. Saíram do hotel e começaram a andar pela cidade. Passearam de barco pelos canais, viram várias coisas que em outras circunstâncias poderiam ser bem mais interessantes. Mas ali já não era bem assim. Estavam sempre com aquela sensação de estar sempre sendo seguidos ou observados — e isso aumentava a cada hora. Aquela paranoia era muito desconfortável, porém tinham de dissimular aparentando ser turistas comuns. A última visita seria ao museu Anne Frank — até porque já estavam cansados pelas caminhadas e pela extenuante sensação de perseguição. — Então estaríamos sendo perseguidos por mais de uma pessoa ou grupo de pessoas. Chegaram ao museu. Leram alguns folhetos informativos, visitaram as partes mais baixas e tudo que nelas havia. Já ficava tarde e não havia mais visitantes além deles. Resolveram olhar rapidamente a parte superior, onde efetivamente foi o esconderijo de Anne Frank e os outros judeus. Poderiam encontrar algo de interessante lá. Estavam diante de um quadro, por um momento distraídos e observando-o. Repentinamente, de um canto mal iluminado, surgiram dois brutamontes. Um deles falou baixo, com sotaque carregado e com voz grave atrás deles, assustandoos como se fossem gente do além: — É, essa história está ficando muito complicada e perigosa. Acabando a visita, fechamos a conta e vamos direto para o — Professor Paschoal e professor Pedro da Universidade de Coimbra... 62 63 — Por quê? — Pois se já haviam apagado as fotos e não havia mais nada de interesse... — Claro, se quisessem roubar, roubariam na primeira vez quando apagaram. — Sim, e isso sugere que não tenha sido a mesma pessoa. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Por um momento sentiram o sangue gelar em suas veias. Obviamente, não poderia ser o espírito dos judeus mortos nem dos nazistas. Lembraram-se das perseguições que já sofriam e perceberam que a situação era bem concreta e muito mais grave. — Sim — apressou-se a dizer o professor Paschoal. — E como sabe que somos professores? — Deixa para lá. Coisas da profissão. — O que desejam, afinal? — As fotos, senhores. — As fotos foram apagadas, senhor — disse instintivamente o professor Pedro. — Sim, nós sabemos. — E por que apagaram as fotos? — Não fomos nós. Existe mais alguém na sua cola. da? — E como sabiam que havia uma câmera que fora apaga- — Esse mundo é meio maluco, professor, mas bastante previsível. O mesmo cara que trabalha por dinheiro para um também trabalha para outro. — Você fala de gente do hotel? — Quem sabe? Mas o que importa isso agora? O fato é que vocês têm o que queremos. — Mas a câmera desapareceu, acho que a perdemos em algum lugar. — Não, não perderam. Nós a confiscamos. — Vocês nos roubaram, então? 64 — Não, foi só um empréstimo. Aqui está a câmera. — Porque a levaram se sabiam que as fotos já estavam apagadas? — Para entregar quando nos encontrássemos, o que tinha certeza de que aconteceria. — Não entendi nada — disse o professor Paschoal. — Primeiramente, nos tiram a máquina vazia. Agora nos devolvem. O que querem com isso? — É muito simples professor. Queremos que tornem a enchê-la para nós. — Isso não tem o menor cabimento. — O senhor não entendeu, professor. Não é um pedido, é uma ordem. — E se eu me recusar? — É outra resposta simples. Damos um prazo até amanhã ao meio-dia para entregarem a máquina com as fotos a um contato nosso na sala de reuniões do hotel. Deixem sobre a mesa e em seguida saiam da sala sem comentar nada. Caso faltem a esse compromisso, nunca chegarão ao aeroporto. Peguem a máquina e não tentem nos enganar. Um passo em falso e vocês serão dois homens mortos. Os professores ficaram pálidos e imóveis como estátuas. Seus corpos pareciam se recusar a qualquer comando. Já estavam suando frio, mortos de medo. Subitamente, ouviram dois barulhos seguidos, curtos e abafados como chiados: “tchoff, tchoff ”. Imediatamente, os dois sujeitos grandalhões diante deles fizeram uma careta ao mesmo tempo em que uma mancha arredondada de sangue aparecia em suas roupas na altura do peito, caindo fulminados logo a seguir. Serviço de profissionais. Os professores fi65 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro caram atônitos e custaram um pouco a entender o que realmente acontecia. Suas preocupações aumentaram muito. A partir dali, poderiam arranjar complicações com a polícia. De qualquer forma, não poderiam ficar naquele lugar. Saíram o mais depressa possível para o hotel. Depois pensariam o que fazer: iriam até a polícia fazer uma ocorrência e explicar algo do que viram e se colocar à disposição dos investigadores, aproveitando para dar queixa sobre as coisas que já lhes haviam acontecido ou pensar qual a atitude mais sensata a tomar. Chegaram ao hotel e foram logo para seus quartos decidir o que fazer. Viram que suas coisas pareciam ter sido reviradas, embora não tão ostensivamente como antes. Estavam profundamente pensativos a respeito de todas aquelas ocorrências e tentando desesperadamente achar uma saída razoável, e naquele momento o telefone tocou e os despertou daquela letargia. Era o pessoal do hotel passando a ligação de alguém. — Professor Paschoal? — Sim. — Alguém ao telefone quer lhe falar. — Sim, pode passar a ligação. — Professor Paschoal, o senhor e o professor Pedro devem arrumar as malas imediatamente, fechar a conta e ir para o aeroporto a seguir. Já existe uma condução esperando. Já conseguimos vaga num voo antecipado para Lisboa esta noite. Não perca tempo, pois suas vidas correm risco. Caso não sigam as instruções, os acontecimentos de hoje à tarde podem se repetir e talvez não tenham a mesma sorte que tiveram. Imediatamente reconheceu a voz do Sr. Moshê. 66 — O Quê...? Como...? Quem...? — Gaguejou sem conseguir articular direito as palavras. lá? — Por falar nos acontecimentos, e os caras que estavam — Eles sumiram. Não farão falta a ninguém. Ninguém os procurará, pelo menos por enquanto. — Mas e o local, a ocorrência, os registros, investigações...? — Deixe esse assunto conosco. — Mas... — Acho que fui claro. Tenho certeza de que o senhor já entendeu tudo. — Sim senhor, nós iremos já. — E nada de comentários sobre o assunto. Nem no carro, nem no aeroporto nem no avião. Esqueçam tudo o que viram e todo o assunto sobre o qual andaram bisbilhotando por aqui. Para todos os efeitos, os senhores estavam de licença em viagem turística, caso alguém por lá pergunte. Mais uma coisa: esconda a máquina em algum lugar no hotel e deixe-a lá, pois pode conter rastreadores. O dedo duro do hotel também já foi silenciado. — Sim, Sr. Moshê — disse para mostrar que reconhecia sua voz. Imediatamente, eles arrumaram as malas, rapidamente desceram e fecharam a conta. O carro já os esperava. Assim que saíram, notaram que o carro era escoltado por outro que os seguiu até o aeroporto. Embarcaram. Mesmo depois que o avião já estava em pleno voo, não conseguiam relaxar, ainda nervosos e com aquela paranoia que os perseguia, chegando até a pensar que a segurança do voo poderia estar comprometida. Não disseram mais nenhuma palavra até chegar a Lisboa e ir para o hotel. 67 João Roberto Vasco Gonçalves No outro dia iriam para Coimbra conversar sobre tudo, examinar todo o material que transmitiram para o servidor e definir novas ações sobre o seu trabalho. Certamente, iriam à Torre do Tombo só para examinar alguns documentos, processos sobre as condenações dos cristãos novos pela inquisição e fechar logo aquele assunto antes de redirecionar os estudos para os outros itens que previamente haviam definido. Capítulo VI Amsterdã – Conhecendo a cidade História A cidade foi fundada oficialmente em 27 De Outubro de 1275. Foi elevada à condição de cidade em 1300. A partir do século XV, tornou-se o centro comercial do país e exterior. Localização e dados sobre a cidade A cidade se localiza entre os rios Amstel e Schinkel, na chamada baia de IJ. A grande Amsterdã inclui a área urbana e as cidades satélites. O total desta área é de 1896,97 km², sendo 1 447,36 km² constituído de terra. A densidade demogáfica é 759 habitantes/ km², segundo senso de 2009. A maior parte da cidade é constituída por pôlderes, que são terras baixas e alagadiças protegidas por Diques. A área urbana inclui os municípios de Aalsmeer, Amesterdã, Amstelveen, Diemen, Haarlemmermeer, Ouder-Amstel, Uithoorn e Waterland. O tamanho da área urbana inteira atinge 896,96 km², porém somente 718,03 km² é terra. Clima É sempre moderado, devido aos ventos oeste vindos do oceano Atlântico. Os invernos são frios e a neve ocorre durante 68 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro alguns dias no ano. No verão, a temperatura média é de 25 °C, podendo ser maior quando ocorre uma onda de calor. O clima é tipicamente úmido e a precipitação pluviométrica não excede os 760 mm. População e dados socioeconômicos A população da cidade cresceu ligeiramente de 10.000 em 1500 a 30.000 por volta de 1570. Em 1700 o número já havia alcançado 200.000. Durante os séculos XVIII e XIX e até antes da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, o número de habitantes aumentou a não menos de 300%, alcançando 800.000 habitantes. A partir de então até a atualidade o número tem sido relativamente constante. A independência da Holanda foi conquistada no século XVI, depois da Guerra dos 80 Anos contra Filipe II da Espanha. Naquela época, migraram para Amsterdã, procedentes de Portugal e Espanha, muitos judeus. Além desses, comerciantes de Antuépia, na Bélgica, Huguenotes da França e vários outros, perseguidos principalmente por motivos religiosos. O capitalismo em Amsterdã está relacionado à chegada dos refugiados procedentes de Antuérpia e Flandres. Eles trouxeram suas empresas e principalmente conhecimentos sobre o ramo de negócios. Cerca de 150 mil refugiados flamengos chegaram não somente a Amsterdã, mas também a outras cidades da Holanda. A tolerância religiosa contribuiu sobremaneira e só aumentou depois isso. O comécio especializado em especiarias também mudou seu centro de Antuérpia para Amsterdã. A cidade, então, se tornou uma das mais ricas do mundo. De seus portos saíram muitos navios com vários destinos que envolviam, dentre outros, mar Báltico, América do Norte, África, Indonésia, Brasil, etc. A companhia das Índias Orientais e Ocidentais pertencia em sua maior parte aos comerciantes holandeses. 70 Amsterdã foi o principal porto comercial e o maior centro financeiro da Europa. Sua bolsa de valores foi a primeira a funcionar todos os dias da semana. A bolsa de Amesterdã denomina-se Euronext Amsterdã e faz parte da Euronext e é a bolsa mais antiga do mundo, sendo também uma das mais importantes da Europa. O seu principal índice de bolsa denomina-se AEX. Nas últimas décadas do século XIX, aconteceu a revolução industrial, impulsionando ainda mais a economia. Nessa época, muitos canais e vias marítimas foram construídos para ampliar a conexão de Amsterdã com o restante da Europa, a cidade ganhou novos museus, o teatro musical da cidade e uma estação de trem. A partir do século XVII, houve vários canais de meio-círculo e concêntricos que se encontravam na baía do rio IJ. Foram feitos quatro canais: 3 residenciais (Herengracht ou Canal dos Lordes; Keizersgracht ou Canal dos Imperadores; e Prinsengracht ou Canal do Príncipe) e um canal de defesa (Nassau/Stadhouderskade). O plano ainda ligou os canais paralelos a esses novos quatro canais, como, por exemplo, o canal do bairro de Jordaan (bairro onde viveu Anne Frank, uma judia que foi perseguida pelos nazistas). Etnia A formação étnica atual é de: 49,7% de holandeses e 50,3% de estrangeiros. Pessoas de origem não europeia são em torno de 34,9%. 25% da população da cidade professa o islamismo, mas a religião dominante ainda é o cristianismo. Economia A economia hoje é superdesenvolvida, sendo Amsterdã a quinta cidade mais importante da Europa, depois de Londres, Frankfurt, Paris e Bruxelas. Muitas empresas e bancos da Holanda têm sua sede em Amsterdã — como ABN Amro, Heineken, ING Group, Ahold, Delta Lloyd, Royal Dutch Shell e Philips. 71 João Roberto Vasco Gonçalves Cultura Capítulo VII Existem em Amsterdã muitos museus famosos, tais como o Museu de Arte Moderna, o Museu Casa de Rembrandt, o Museu Van Gogh, a Casa de Anne Frank, o Jardim Botânico. Existem vários sexshops e muitos cafés e outros estabelecimentos com shows eróticos, visto que lá a prostituição é legalizada, bem como o consumo de drogas consideradas leves. Educação Amesterdã possui quatro universidades: a Universidade de Amsterdã, a Universidade Livree, a Universidade para Ciências aplicadas e a Universidade Artística. Possui ainda outras instituições, tais como: Academia de Arte, Instituto Internacional de História Social e outras. Transporte O transporte público de Amesterdã consiste em: conexões de trem para qualquer parte da Holanda e outros destinos internacionais, cinco linhas de metrô, dezesseis linhas de ônibus elétricos, cinquenta e cinco linhas de ônibus urbanos, várias linhas de ônibus regionais; duas centrais de táxi e um trem de alta velocidade. O Aeroporto de Schiphol está a vinte minutos do centro da cidade, tomando-se como referência o trem rápido. É o maior do país e o quinto da Europa em número de passageiros, estando após o Aeroporto de Heathrow em Londres, o de Frankfurt da Alemanha, o de Charles de Gaulle de Paris e Barajas de Madrid. É o terceiro maior da Europa em volume de cargas depois do de Paris e do de Frankfurt. Moshê Uma família judia viajava junto a uma caravana de mercadores em busca de um lugar promissor para se estabelecer. Caravanas como essas eram o único meio de viajar com relativa segurança, devido a haver nelas homens armados e acostumados a lutar, pois as estradas eram perigosíssimas e povoadas por bandos de salteadores. Quando passaram pela região montanhosa do Afeganistão, numa estreita, poeirenta e pedregosa estrada situada no fundo de um vale cercado pelos despenhadeiros, foram surpreendidos por um enorme bando de homens bem constituídos e fortemente armados. Os mercadores resistiram e ali travaram uma encarniçada luta com muitas baixas — quase total no caso dos mercadores e sua caravana. Os salteadores, após saquearem o que tinha algum valor, incendiaram o que restou. Um homem e sua família estavam algo atrasado em relação ao grupo porque a sua mulher estava em adiantado estado de gravidez e já sentia as dores do parto. Ela veio a dar à luz numa caverna a aproximadamente 300 metros do ponto onde a batalha era travada, distância que parecia ser tremendamente aumentada pelos efeitos daquela irregular topografia. A mulher estava fraca demais para resistir. Pressentindo a morte que se avizinhava, pediu ao marido que lhe trouxesse o bebê e a joia com que o presenteariam. Colocou no pescoço do filho recém-nascido, beijou-o e deu seu último suspiro. O homem ficou desolado com a perda da esposa e sem saber como fazer para tratar de um bebê. Precisava, entre outras 72 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro coisas, alimentá-lo. Naquele fim de mundo, totalmente isolado e sem nenhum recurso, a morte seria certa — a menos que os céus mandassem algum socorro. Esse apareceu. Quase ao entardecer passou outra caravana um pouco menor que parou naquelas imediações para se alimentar e pernoitar. O homem saiu da caverna com o menino embrulhado em alguns panos e dentro de uma cesta, procurando um jeito de alimentá-lo, pois chorava muito de fome, além de precisar também dos demais cuidados. Entrou na primeira cabana que encontrou suplicando por tudo que lhes fosse mais sagrado que o socorresse: — Pelo amor de Deus, me ajudem. Minha mulher faleceu logo após dar à luz e o menino corre o risco de morrer em pouco tempo se não for alimentado e cuidado. Aqui tem os únicos objetos de valor que possuo — disse enquanto mostrava um minúsculo baú de bronze contendo algumas peças de ouro. — Eu e minha mulher somos casados há algum tempo, mas nunca tivemos filhos. Ela não tem leite, mas conhecemos uma senhora que está amamentando um filho que nasceu há alguns dias e pode servir de ama de leite para o seu filho — foi a resposta que recebeu. — Graças a deus, finalmente os céus ouviram as minhas preces — disse Enquanto a mulher levou o menino à tenda vizinha para a outra alimentá-lo, o pai da criança se despediu do dono da cabana prometendo voltar depois, pois precisava sepultar o corpo da esposa falecida. O solo não era muito favorável às escavações, principalmente sem ferramentas adequadas, assim, o pobre homem juntou quanto pôde encontrar de escolhos e cobriu com eles o corpo da falecida. Quando ajoelhou-se para fazer suas orações ao lado da humilde sepultura e curvou-se até colocar a testa sobre ela, foi 74 ferroado no pescoço, próximo à jugular, por um escorpião muito comum por ali. O veneno agiu rápido e foi suficiente para abater seu corpo já enfraquecido e levá-lo à morte em poucos minutos. Até a manhã seguinte o homem não apareceu, e a caravana já estava preparada para a partida. Pensaram que tinha abandonado o filho ao encargo deles por não ter condições de cuidar dele. A mulher queria a todo o custo levar o bebê consigo, embora o marido não aprovasse a ideia. Achava que por não saberem a origem daquela criança, qual sua raça e os demais fatos, poderiam ter problema mais tarde. Além disso, ele era supersticioso e temia que lhe trouxesse má sorte. — Ora ele é só um bebê, não vai fazer mal a ninguém. — Mas pode vir a trazer-nos problemas, deixemo-lo aí. — Isso é desumano. Abandoná-lo à própria sorte é o mesmo que matá-lo. — Então o levaremos, mas apenas provisoriamente, até arranjarmos uma solução melhor. Acabaram vendendo todas as peças de ouro para custear as despesas, até o pequeno baú. Sobrava a joia do bebê. Essa eles nunca conseguiram vender, apesar de terem tentado várias vezes. Em algumas, o comprador se interessava, mas, quando via que era uma estrela de seis pontas perdia o interesse. Quando perguntavam a razão, simplesmente diziam que preferiam uma de cinco. Na única vez que conseguiram, não passou muito tempo e o mesmo comprador fez nova proposta para adquirir outro bem e deu a joia como parte do pagamento. Assim, a joia acabou voltando às mãos deles, o que de certa forma potencializava a superstição. O menino cresceu e foi educado na fé muçulmana, aprendeu a ler e escrever em árabe, língua e religião de sua atual famí75 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro lia — a única que conheceu. Aprendeu também o ofício de ourives e já trabalhava bem no ramo, produzindo joias de alto valor artístico e material. Anos mais tarde, seu pai adotivo faleceu, e ele sofreu bastante, como também sua mãe adotiva, de quem cuidou com carinho até seus últimos dias, quando morreu em seus braços. Nos seus últimos lampejos de vida, revelou toda a sua história e, repetindo o gesto da mãe biológica, mandou que se aproximasse, colocou-lhe a joia no pescoço e informando que ele viera com ela no pescoço quando ainda era um recém-nascido. A seguir, pronunciou o seu nome, Nassif, chamou-o de “Meu filho do coração”, beijo-o com ternura e faleceu. Ele ficou desolado, parecia ter faltado o chão sob os seus pés enquanto o firmamento desabava sobre sua cabeça. Depois de providenciar o sepultamento, vendeu tudo que tinha e saiu pelo mundo sem destino definido. Pouco tempo depois, alistou-se na legião estrangeira e tornou-se um bravo soldado, tendo participado de muitas missões. Apesar dos afazeres e constantes movimentações, sentia um enorme vazio em sua alma. Parecia que lhe faltava algo. Isso era cada vez mais forte, parecendo-lhe que perdera a razão de viver. Amargurado, deu baixa da legião e saiu pelo mundo. Um dia, casualmente, encontrou um ancião tido como sábio pelos que o conheciam — sendo também vidente e bom conselheiro. Possuía um longo cabelo e uma espessa e lisa barba, ambos brancos como a neve. Era judeu, segundo soube, mas falava também a sua língua. Visitou-o várias vezes depois, afeiçoou-se a ele, que lhe transmitia uma sensação de paz de espírito e emanava sabedoria. Com o tempo, passou a viver com o seu povo apesar de não ser judeu — o povo o aceitou por influência do ancião, que os informou que ele poderia ajudar muito por possuir treinamento militar e, caso concordasse, poderia treinar todo o pessoal para melhorar suas condições de defesa e fazê-los cruzar a fronteira e disputar o seu tão sonhado pedaço de chão (a Terra Santa, como o chamavam). 76 Com alguma relutância ele aceitou a dificílima tarefa. Era um enorme desafio. A ansiedade continuava e ele sempre conversava com o ancião, que lhe confortava. Certo dia, estando em sua cabana a conversar com o ancião, este notou uma joia pendurada no seu pescoço por um cordão de ouro e viu que era uma estrela de ouro de seis pontas. Como Nassif tinha muita confiança no ancião (seu único confidente), contou sua história e como a joia o acompanhava desde o nascimento. Tirou-a do pescoço e entregou-a ao ancião, que a examinou bastante, olhou um detalhe no verso usando um monóculo e disse com total tranquilidade: — Moshê, esse é o seu nome verdadeiro. É um nome judeu, assim como você. Aquilo foi como um enorme choque elétrico. Nassif estava atônito e não conseguia pensar nem falar nada. Sua mente girava num turbilhão de ideias e sentimentos confusos como o caos pré-criação. Logo, o ancião reuniu o conselho e informou que o seu hóspede era judeu de nascimento, precisava ser instruído na sua religião e cultura de um modo geral e que certamente não aparecera ali por um mero acaso, mas para cumprir uma missão. Ordenou que começassem os preparativos para a inclusão do rapaz tão logo consiguissem fazê-lo anuir a ideia da sua conversão e dedicação à causa. Voltou a falar com Nassif e disse que ele tinha uma grande missão a cumprir. — Moshê, você tem uma grande missão a cumprir. — Oh, meu mestre! Temo não poder alimentar suas esperanças. A tarefa que esperam de mim é quase impossível. Dar treinamento militar a quem nunca pegou em armas e colocá-los para lutar com soldados experientes é o mesmo que enviá-los para a morte. Seria mais seguro contratarmos mercenários como os da legião estrangeira. 77 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Todos os nossos foram preparados desde a infância para doar a vida pela causa, se for sumamente necessário. Por outro lado, os mercenários certamente se voltarão contra nós ao descobrirem quem somos. Após nos expropriarem, trucidarão a todos. — Sim, mestre. Se preferem assim... refiro. — Nós preferimos, porém não é essa a missão a que me — Então qual é a missão, mestre? — Terás de descobrir sozinho — disse, entregando-lhe um pequeno livro. Nassif pegou o livro e o folheou, todavia não conseguiu entender nada do que estava escrito por ser hebraico. Ateve-se apenas aos desenhos. Logo na contracapa viu o desenho de uma estrela igual à sua joia com uma inscrição. Instintivamente, examinou muito atentamente e viu que no verso havia também uma inscrição igual à que constava no livro. lembrou-se de que o ancião, ao ler, pronunciara “Moshê” e dissera que era o seu nome. Finalmente, então, o adotou. Depois, voltou-se para o ancião e disse: aqui. — Mestre, não consigo entender nada do que está escrito — Não por muito tempo. Logo aprenderá, afinal é um dos nossos. meio. — Mas, mestre, o pessoal do clã não me aceitará em seu — Esteja certo de que sim, assim que identificarem quem você é e que tem uma missão. — E o que tenho de fazer? 78 — Primeiramente, formalizar sua inclusão no grupo. Isso inclui fazer a aliança e todos os outros votos, os preceitos da lei judaica. Em seguida, você será instruído, aprendendo, além da língua, todas as leis e tradições. Mais à frente, vem a sagração. Até lá é um longo caminho. A aliança se referia à circuncisão e aos rituais de purificação, conforme ficou sabendo e acabou por aceitar. Após esse doloroso procedimento, na primeira semana depois do desaparecimento completo das dores da cirurgia, foram feitas as oferendas num altar e a imposição das mãos dos conselheiros, que efetivamente formalizava sua entrada na comunidade judaica. Logo no dia subsequente começou o seu longo período de anos e mais anos de instrução. Era uma via de mão dupla, pois, enquanto lhe ensinavam o judaísmo, ele os ensinava o oficio das armas e a arte da guerra. Os anos se passaram, e Moshê estava no último estágio do seu desenvolvimento. Afinal, chegou o momento da sua sagração — e a cerimônia foi feita em grande estilo. Na manhã seguinte, Moshê foi chamado às pressas à tenda do ancião, seu mestre, que estava nas últimas e desejava falar-lhe pela última vez. Fez um sinal, pedindo que se aproximasse. — Moshê, essa é a última tarefa da minha missão aqui nesse mundo. Nos últimos anos tenho lhe passado todos os conhecimentos que adquiri ao longo da vida e o enriquecido com os conselhos e toda a sabedoria que os livros não podem dar. Aproxime-se mais. Moshê ajoelhou-se ao lado do leito. O sábio ancião retirou o medalhão que estava no seu pescoço — tratava-se de uma estrela de doze pontas com uma pedra amarela no centro — e o colocou no pescoço de Moshê, após o que disse na presença de todos os membros do conselho: 79 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Doravante serás meu sucessor. Aqui termina a minha missão e começa a sua. — Não tememos doar a vida pela causa; e você também, ao se tornar um dos nossos, colocou sua espada a serviço dela. Entregou-lhe um pequeno tubo fechado nas extremidades com uma tampa e outros segmentos de tubo de diâmetro ligeiramente menor em seu interior. A seguir, colocou suas mãos pela última vez sobre a cabeça do seu seguidor, como fizera tantas vezes, dando sua última e especial bênção. Depois disso, deu seu último suspiro, fechou os olhos e descansou em paz. Ninguém conseguiu reter as lágrimas dos olhos. Retiraram-se para providenciar as cerimônias fúnebres e sepultamento. Enquanto isso, Moshê, ao lado do corpo, chorou copiosamente. Lembrou-se de cada momento desde o seu primeiro encontro com ele e principalmente dos momentos em que precediam as preciosas aulas, quando o sábio impunha suas mãos sobre a sua cabeça e que eram como fluidos de energia transmitidos a ele e que tinham um efeito especial como que a abrirem sua mente. Lembrou-se de que tinha uma missão que ainda não sabia exatamente qual era e que poderia aparecer no momento exato. O chamado dos seus então compatriotas para a cerimônia final e o sepultamento o retirou daqueles devaneios. Findo o sepultamento, todos passaram boa parte da noite em orações, depois se recolheram. No dia seguinte, o conselho se reuniu e finalmente decidiu que era a hora de começar a luta pelos objetivos que há anos vislumbravam e declararam-se preparados. — O fio da espada esconde duas verdades desconcertantes: a vitória pela espada é efêmera enquanto que a derrota por ela é definitiva. — Não se ganha uma guerra com palavras. Se prezas tanto tua vida e queres preservá-la em detrimento da causa, vai embora que iremos sozinhos, mas nos envergonharemos de ti para sempre por teres abjurado a fé e recusado a missão. — Não, irmão. A missão é claramente suicida e eu sou contra, mas, se o conselho decidir pela luta, morreremos juntos. — Não gostaria que a minha missão fosse conduzi-los à morte. Moshê, ao votar contra, explicou detalhadamente as causas e mostrou por que a missão era claramente suicida, mas foi voto vencido e teve de obedecer à ordem e se colocar à frente do pelotão daquele relativamente pequeno e mau preparado grupo de soldados. Exceto as mulheres anciãs e as crianças, todos marcharam contra os inimigos que guarneciam a fronteira. Esses eram muito mais numerosos, possuíam armamento vastamente superior e eram soldados mais hábeis, portanto impuseram-lhes uma desastrosa derrota com enormes baixas. Quando os remanescentes bateram em retirada, foram surpreendidos por outro pelotão que vinha pela sua retaguarda. Morreram quase todos, sobrando apenas Moshê e mais três que não foram encontrados pelos inimigos. Quando a refrega terminou e cessou todo aquele fragor, reinou um silêncio absoluto na trincheira onde estavam. Contudo, não era um silêncio calmo e acolhedor, muito pelo contrário, era sufocante e ameaçador e tinha o amargo sabor da derrota. Quando os soldados inimigos se foram, Começou o penoso caminho de volta. Feridos, famintos e exaustos, não resistiram e acabaram morrendo pelo caminho, exceto Moshê, que teve de voltar sozinho e cumprir a dolorosa missão de dar a 80 81 — Senhores, gostaria que refletissem melhor sobre esse empreendimento. — Oh, irmão, compreendemos o seu medo disfarçado de razão, mas lembramos que você tem uma missão a cumprir. João Roberto Vasco Gonçalves cruenta notícia da morte dos esposos e filhos das famílias que os esperavam. Não foi bem recebido. Acusaram-no de tê-los conduzido para a morte, por mais que ele tentasse explicar que fora voto vencido e que eles haviam insistido em ir. Declararam-no maldito e o mandaram-no ir embora. Desgostoso, Moshê saiu dali pensando como poderia fazer para ajudá-los de longe e sem o seu conhecimento. Saiu andando pelas estradas. Na primeira parada para descansar, casualmente colocou a mão no bolso da jaqueta e encontrou o pequeno tubo que o sábio lhe passara no leito de morte. Olhando com mais cuidado, verificou que dentro havia um papel escrito: “Procure o rabino Ariel. Amsterdã, Holanda”. Lembrou-se das palavras do sábio e percebeu que ali começaria a sua missão. Assim, começou a sua peregrinação até chegar lá. Capítulo VIII Pedro encontra Deborah Coimbra Era uma tarde fresca e agradável e Pedro estava sentado sozinho num café pensando nos acontecimentos dos últimos dias. Logo seus pensamentos evoluíram para sua própria história de vida como que num ataque de nostalgia. Ia fazer 62 anos, porém continuava solteiro e sozinho. Sua vida se resumia ao trabalho na universidade, no qual era notoriamente dedicado — talvez porque preenchesse o vazio do seu interior. Desde que passara pela decepção de não conseguir se casar com sua prima de criação devido à rejeição da família, remoera aquela mágoa e não conseguira mais se interessar por ninguém — talvez pelo medo de sofrer mais. Por um momento se lembrou de Deborah. Como era linda! Como gostava de acariciar aqueles cachos de cabelos ruivos e fitar aqueles olhinhos azulados quase infantis! Como a amava! Por que tudo não pudera ser diferente? Que mundo cruel. Suas horas vagas eram as mais penosas, pois sentia terrivelmente o peso da solidão. Repentinamente,foi despertado daqueles devaneios por uma inconfundível voz que há muito não ouvia. — Pedro — Ahm! 82 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Foi como se tivesse tomado um forte choque elétrico dentro do peito. Era ela. — Deborah! Que feliz coincidência. Pensava em você ainda há pouco, na nossa história, em nossas vidas... — Que ótimo. Vejo que não me esqueceu, apesar de tudo. — Oh! Você é inesquecível. Por outro lado nem você nem eu temos culpa de nada. Talvez tenha sido o próprio destino que tenha nos afastado. — Não sei. Perdi o contato, pois me tornei impura por quebrar as tradições. Não tive filhos e me separei, contrariamente ao que esperavam. Meus pais já faleceram. — E agora, o que faz na vida? — Sou pedagoga. Trabalho como orientadora educacional numa escola. Escrevo artigos para as colunas de dois jornais e uma revista. Faço também alguns trabalhos intelectuais quando aparecem. — Ótimo. Mas vejo que também se afoga em trabalho. — Curiosamente, foi ele quem nos aproximou agora. — Talvez. É o meu jeito de burlar a solidão. — Ótimo. Mas fale-me de você. — Casei-me com alguém que as famílias escolheram. Previsivelmente, não fui feliz nem consegui fazer a felicidade dele. Não tínhamos nada a ver. Em menos de cinco anos nos separamos de comum acordo. Ele refez sua vida, eu continuo solteira. — Oh! Sinto muito, desculpe-me por ter perguntado. — Não tem problema. Mas fale-me agora de você. — Não há muito que você não saiba. Pelo menos na vida afetiva, parece que o meu tempo estagnou. Desde a última vez que nos vimos tenho me afogado em trabalho para esquecer as agruras da vida, tenho me fechado dentro de mim mesmo e não consegui mais me interessar por ninguém, apesar das inúmeras oportunidades que apareceram. — Também me desculpe por ter perguntado, Pedro. Vejo que também sofreu demais. — Você não imagina o quanto. — O mundo não foi justo conosco. — Também mora sozinha? — Sim. Nunca tive mais ninguém. Estou morando num pequeno apartamento não muito longe daqui. E você, onde mora? perto. — Também moro só num pequeno apartamento aqui por Tomaram um café juntos e conversaram bastante. Talvez não o bastante para o que ela pretendia saber. to. — Pedro, gostaria que viesse conhecer o meu apartamen- — Agora? Já está ficando um pouco tarde. Não seria problemático pra você? — Que nada, somos maiores de idade, livres e desimpedidos. E depois, ninguém tem nada com isso. Posso receber amigos quando quiser. Vamos? — Se é assim, vamos. — Na verdade, nem foi o mundo, mas as tradições humanas. Mas, a propósito, e a família? Chegaram ao apartamento de Deborah. Era pequeno e modesto, mas ajeitadinho. Tinha a mobília suficiente para seu 84 85 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro estilo de vida e tinha um aspecto até acolhedor. Pedro era um tanto relapso para essas coisas e não percebeu que era uma mobília padrão e que o apartamento fora alugado mobiliado. Principalmente, não notou que ela morava ali a muito pouco tempo, o que seria perceptível se observasse o tratamento do pessoal dali com ela. — Pedro o que faz exatamente na universidade? — Trabalho no departamento de história. Sou professor adjunto da equipe do professor Paschoal. — Fale-me sobre o desenvolvimento do seu trabalho. O que tem feito ultimamente? — Agora, por exemplo, estamos trabalhando num tema proposto pelo departamento intitulado “O cristianismo e o desenvolvimento socioeconômico do novo mundo”. — Ótimo. Parece muito interessante. Como desenvolvem o seu trabalho? — O trabalho é centrado em pesquisas, estudo de livros e documentos históricos e, às vezes, até viajamos para outras cidades no intuito de pesquisar mais sobre algo. — Ah, que interessante! Isso também deve ser ótimo para quebrar a rotina. Tem viajado muito ultimamente? — Nem tanto. A última viagem que fizemos foi para Amsterdã para ver se encontrávamos algo sobre os cristãos novos, que na verdade eram judeus que se recusaram a aceitar a conversão ao cristianismo ou à sua prática e a abdicar de seus costumes de origem. Devido a isso, foram expulsos de Portugal ou fugiram da perseguição da Inquisição. Além de tolerante às religiões, a Holanda foi o berço das companhias das índias orientais e ocidentais, que monopolizaram o comércio do novo mundo. 86 — Muito interessante. E encontraram algo significativo? Nesse ponto Pedro se lembrou do sigilo exigido pelo senhor Moshê e notou que já havia falado demais. Tinha de dar um basta naquela conversa e conversar sobre amenidades. — Não achamos nada mesmo. O pessoal lá que poderia ajudar é muito reservado e parece não gostar mesmo de falar sobre o assunto. Curiosamente, as bibliotecas públicas de lá também não acrescentam nada. Parece que tentaram apagar um pedaço da história. Deborah também percebeu certa relutância e medição de palavras por parte de Pedro. Era conveniente não forçá-lo muito para que não fugisse. Resolveu usar outras armas: a sedução pelos seus encantos femininos, buscando resgatar, talvez, aquela paixão interrompida pelo destino. Pedro era meio tímido, mas era questão de quebrar o gelo. Jantaram juntos, tomaram um chá e conversaram bastante. Embora com certa dificuldade e até certa estranheza que o tempo acabou produzindo, depois de algumas taças de vinho acabaram se reaproximando e entraram em clima de romance. Amanheceram juntos na mesma cama em que tiveram uma tórrida noite de amor. Pedro se levantou muito cedo como sempre, vestiu-se e despediu-se. Ela o fez prometer que não se perderiam de vista, pois queria reaproximar-se dele. Pedro deu uma passada rápida no seu apartamento para pegar suas coisas e rumar para o trabalho. No caminho, ficou pensando como o tempo muda as coisas. Aquela antiga paixão já não existia, não sabia definir ao certo se fora o tempo que corroera a suavidade da juventude de ambos e a transformara numa áspera superfície ou se a paixão com o tempo realmente esmorece. Talvez a maturidade roubasse aquela espontaneidade da juventude. Ela ainda era muito atraente, mas não tinha mais 87 João Roberto Vasco Gonçalves aquela doçura quase pueril, aquela ingenuidade da infância que enrubescia com os seus gracejos nem aquela singeleza de menina moça ávida por seus beijos e esperançosa pela proposta de casamento que receberia. Não, não era a mesma coisa. Havia algo de estranho, de pretensioso. Suas respostas às perguntas ou réplicas aos comentários sempre vinham acompanhadas de novas perguntas que suscitavam respostas às vezes desconcertantes ou incômodas. Parecia que sutilmente sempre tentava arrancar mais informações sobre algo que não sabia exatamente o que era. Não, não era uma conversa informal ou espontânea, tinha ares de um incômodo interrogatório. Não se sentia à vontade para encontrála outra vez. Ela agora o assustava. Talvez fosse a paranoia adquirida nos últimos dias, potencializada pela exigência de sigilo do Senhor Moshê. Não conseguia confiar mais em ninguém. Parecia que estava sempre sendo vigiado. Capítulo IX Deborah Bilischt Jerusalém — Deborah, você já fez a lição de casa? — Sim, mamãe, já terminei. — Agora vá escovar os dentes e ir para a cama. Amanhã você tem aula cedo. — Sim, mamãe. Era mais um fim de dia rotineiro em família. Deborah tinha 8 anos e era filha caçula da família. Seu nome hebraico relaciona-se à abelha, escolhido proposital e cuidadosamente como uma expectativa de seu caráter: laboriosa como as abelhas, doce como o mel, mas com um ferrão, pronto a protegê-la, se ultrajada. Seus pais e parentes mais próximos moravam em Jerusalém, onde tinham uma vida simples, mas confortável. Viviam do comércio. No início de junho seus familiares e vizinhos que haviam chegado de viagem depois de dois meses de ausência os convidaram para um jantar em casa onde apresentariam o novo membro da família legalmente adotado e já em vias de perfilhação. Até então, ninguém sabia nem questionava a sua procedência e pensavam que certamente vinha de família judia. Kepha, seguido do sobrenome da família Bilischt, foi o nome que lhe deram. Depois do jantar, a família se reuniu para conversar. Os homens 88 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro conversavam sobre negócios, naturalmente, as mulheres sobre os assuntos de casa e os jovens começaram a brincar. Kepha já estava na adolescência e teve um acanhamento inicial, porém, vagarosamente, acabou quebrando o gelo e tudo transcorreu normalmente. Não disse muito a respeito de sua história, conforme seus pais adotivos haviam recomendado, criou algumas histórias e conversou sobre brincadeiras e outras amenidades. Os dias se passaram, chegou a época do período letivo, mas ele só viria a matricular-se no semestre seguinte. Enquanto isso, estudava diariamente em casa, onde aprendia a ler e escrever em hebraico. Ajudava em casa e algumas vezes ao pai adotivo nos negócios. Deborah ia para a escola todos os dias. Ao entardecer, brincava um pouco e fazia a lição. Desde menina tinha certa curiosidade em saber mais sobre Kepha, seu primo adotivo, e sempre tentava aproximar-se para tentar conversar e brincar um pouco, apesar dos quatro anos de diferença de idade. Isso determinou uma afeição especial entre eles. No ano letivo seguinte, Kepha entrou para a escola. Iam juntos ela, seus irmãos e primos, incluindo Kepha, o primo adotivo. Kepha, naturalmente, despertava a atenção das moças, com o que Deborah se sentia desconfortável — talvez, inconscientemente, sentisse ciúmes, pois era meio possessiva e queria a atenção do primo para ela. Piorando a situação, as outras meninas eram mais velhas que ela, o que ressaltava a sua condição de menina que muito a incomodava. Assim, Deborah fazia um enorme esforço para se controlar e não voar em cima delas distribuindo-lhes tapas, esforçando-se também para que não notassem sua insatisfação. Essa autorrepressão a mortificava demais e aumentava a cada dia a vontade obsessiva de tê-lo só pra ela. Inventava motivos para estar junto dele sem se mostrar muito 90 ostensiva. Queria ajudá-lo com coisas da escola e que ele de alguma forma a ajudasse. Os anos se passaram, Deborah fizera treze anos. Era uma linda moça de cabelos ruivos e cacheados sempre bem cuidados, sedosos e sutilmente perfumados. Seu corpo tomou formas de moça e era bem constituído. Não demorou muito para aquela proximidade que tinham se transformar em algo mais e eles acabarem por namorar escondidos da família. Foi uma paixão avassaladora. A família começou a notar aquela atenção e proximidade excessiva fazendo de tudo para orientá-la e fazer com que se resguardasse o máximo possível. Dois anos depois, acabaram percebendo o namoro e ficaram meio apreensivos, pois, se aquilo fosse sério e evoluísse para casamento, poderiam ter de pesquisar sua real procedência, o que traria certo desconforto para as famílias — tudo se complicaria definitivamente se ele não fosse um judeu de nascimento. Enfim, resolveram esperar mais um pouco para ver como a situação progrediria, pois possivelmente o namoro acabaria espontaneamente e tudo ficaria bem. Deborah estava apaixonada e feliz com o namoro agora não mais escondido e pela certeza de ser correspondida à altura. Esperava ansiosamente pela proposta de casamento que tinha a certeza de que logo viria. O namoro continuava de vento em popa e finalmente o dia tão esperado chegou. Kepha lhe pediu em casamento, ela aceitou e planejaram a ocasião de comunicar às famílias a notícia para o início dos trâmites recomendados pelas tradições. Começou, porém, o seu inferno astral. Numa noite de reunião entre as duas famílias, comunicaram a intenção de casarem-se e pediram o consentimento para ficarem noivos. Os pais de Deborah pediram um mês para dar a resposta oficial antes de declará-los noivos. Após pesquisarem profundamente, descobriram que Kepha não era judeu de nascimento e que esse nem mesmo era o seu nome de origem. Possi91 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro velmente, seria originário até mesmo de uma nação inimiga ou possuía uma religião diferente — possivelmente, ele nem seria temente a um só Deus. Na verdade, fora perfilhado e recebera um nome judeu. Apesar de ter sido criado desde menino nas tradições judaicas, não era judeu por origem, portanto impuro e, se Deborah se casasse com ele, se tornaria impura, bem como os filhos oriundos desse casamento. Assim, nem se deram ao trabalho de marcar nova reunião familiar, até mesmo para evitar constrangimentos desnecessários. Simplesmente comunicaram à família de Kepha, que lhe transmitiu o recado: sua proposta de noivado e casamento fora recusada pela família de Deborah, devido à sua condição de não judeu por origem. Pediram-lhe desculpas e compreensão. Kepha ficou muito decepcionado e sofreu muito o peso da rejeição e dos preconceitos. Começou a planejar um jeito de mudar de cidade e até de país e tentar esquecer aquele revés. Finalmente, o dia do casamento chegou e foi uma grande festa que a família fez questão de dar para impressionar a parentela e a vizinhança. Todos estavam felizes, exceto Deborah. Para ela, o evento era mais triste que um funeral. Sentia-se sozinha, abandonada à própria sorte e violada em sua vontade. Ali começara o seu martírio. Seu marido logo percebeu que ela não era feliz e tampouco fazia a sua felicidade. Ele também havia sofrido um revés parecido com o dela e também não se sentia nem um pouco confortável. Viviam uma relação de obrigações conjugais. Não se recriminavam, pois conheciam a situação e a história pregressa um do outro e no fundo sabiam desde o princípio que aquilo não tinha a menor chance de dar certo. Para complicar mais a situação, não conseguiram os tão esperados filhos, conforme lhes impunham intransigentemente as famílias. Eram tremendamente cobrados por isso e até repreendidos porque achavam que eles os estavam evitando — um pecado na sua tradição. Como Deborah já estava na idade de conseguir um noivo e para evitar novos acontecimentos como aquele, seus pais se apressaram em arranjar um bom partido para a moça. Teria de ser um homem judeu de nascimento, educado, seguidor das tradições, de boa família e, se possível, rico. Depois de procurar bastante e pesquisar previamente, finalmente encontraram o marido que consideravam ideal. Só não perguntaram o que ela achava. Simplesmente, comunicaram a ela que lhe tinham encontrado um noivo e que ele seria apresentado num jantar com as duas famílias, o que logo aconteceu. Deborah detestou a ideia e mais ainda o noivo escolhido, que, na verdade, lhe causava repulsa. De fato, ele era tudo que ela mais detestava e exatamente o contrário do que queria para si. Não pôde, todavia, contrariar a ideia, já que por ali as coisas eram daquela forma. As pessoas não se casavam. Casavam-se as famílias, como sempre faziam questão de frisar. Ninguém tinha a oportunidade de escolher com quem passaria o resto da vida. Eles até viveram bem, aproximados pela compreensão de seus sofrimentos. Mas nunca foi amor, apenas um grande sentimento de piedade mútua que cada dia só os deixava mais infelizes. Assim, depois de cinco anos de convivência insípida, resolveram de comum acordo separar-se à revelia da família, sem o menor constrangimento ou sentimento de culpa. Na verdade, seria até mesmo um ato inconsciente de vingança pelo desrespeito aos seus sentimentos, suas vontades e principalmente por terem roubado deles tanto tempo de suas vidas, trocando cinco anos de felicidades por cinco anos de tormentos. Concretizada a separação, as famílias os rejeitaram como impuros por terem quebrado a tradição e só os reabilitariam se pedissem perdão e aceitassem reatar — ou pelo menos se divorciarem legalmente e se casassem novamente dentro das tradições. Nenhum dos dois quis saber. Preferiram abdicar de sua tradição, família, herança e tudo, tal foi o trauma que sofreram e a mágoa que carregariam para o resto de suas vidas. 92 93 João Roberto Vasco Gonçalves Deborah mudou muito. Saiu do país, conseguiu uma bolsa de estudos no exterior e aproveitou para ficar por lá depois de formada. Arranjou um emprego suficiente para manter-se. Ultimamente, movida apenas pelo bom dinheiro oferecido, trabalhava como agente secreta de uma organização judia que sempre lhe oferecia muitos trabalhos, que ela executava sempre à altura, conforme esperado. As agruras da vida haviam deixado marcas fortes na personalidade e petrificado seus sentimentos, que sempre ficavam muito atrás dos seus objetivos. Capítulo X Lisboa Ao chegarem ao aeroporto de Lisboa, tiveram um desagradável contratempo. Suas malas haviam sumido. Deram queixa na companhia aérea. Enquanto isso, foram para o hotel somente com a roupa do corpo. No dia seguinte, avisaram que as malas haviam sido encontradas e as devolveram. Ficaram mais cautelosos devido ao sumiço das malas e das coisas remexidas, porém não perceberam os rastreadores camuflados em roupas. Precisavam ir a Coimbra conversar sobre tudo, examinar todo o material que haviam transmitido para o servidor e definir novas ações sobre o seu trabalho. E assim o fizeram, pois além de necessário era prudente. Caso ainda estivessem sendo seguidos — o que provavelmente aconteceria —, seria ótimo criar a ideia de que teriam ido direto para Coimbra, onde trabalhavam e moravam. Isso aliviaria as suspeitas sobre eles e atestaria o cumprimento da promessa de que voltariam à vida de antes e não tocariam mais naquele assunto. Acessaram as informações e analisaram profundamente o seu conteúdo. Aqueles últimos versos: “Um tesouro e seu guardião; Oculto em novo mundo; Sob o manto de um novo cristão” eram realmente intrigantes. Um novo cristão era fácil. Mas o que estaria fazendo num novo mundo? Quem seria? Que tesouro era esse que tanto protegiam? Por que não um seguro banco europeu? Será que esse tesouro era muito mais que valores materiais? Por que não estaria seguro na Europa? Será que esse pretenso tesouro estaria fragmentado e espalhado por lugares diferentes do mundo? Como algo tão importante e oculto que precisava ser 94 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro resguardado de interesses escusos dos outros poderia ter saído da Europa para outras partes do mundo com a necessária segurança? Quem ou quais pessoas teriam condições para providenciar essa remoção em segurança sem levantar suspeitas? Sim, era realmente muito intrigante. Por mais medo que tivessem, não podiam simplesmente deixar o assunto como estava e fugirem da luta, principalmente quando pelo desenrolar dos fatos parecia cada vez mais importante para a história — e eles eram pesquisadores profissionais dessa matéria. Sentiam-se responsáveis pelo descobrimento de fatos ainda desconhecidos e seu registro. Aquilo parecia ser importante demais. Não poderiam fugir. Certamente deveriam ir à Torre do Tombo para examinar alguns documentos, tais como processos sobre as condenações dos cristãos novos pela Inquisição, relações com as colônias ultramarinas e outros. Quem sabe assim poderiam desvendar aquele mistério e fechar logo aquele assunto antes de redirecionar os estudos para os outros itens que previamente haviam definido? Ledo engano. Aquele era o tipo de assunto em que, quanto mais se envolve, mais se aprofunda. Não sabiam que aquilo poderia demorar muito mais do que imaginavam e no fim nem terem algo que se pudesse publicar e no fim voltar a estaca zero no trabalho. Fora os gastos excessivos que certamente a universidade não teria como cobrir e as complicações que poderiam ter além das que já haviam encontrado. Dois dias depois, retornaram a Lisboa. No dia seguinte, saíram do hotel cedo, rumo à Torre do Tombo, lugar onde a indicação da inscrição já decifrada os levava a ir. Não perceberam que foram seguidos. Pelo primeiro contato que tiveram com o ambiente, perceberam que a tarefa seria árdua e bastante demorada. Decidiram, então alugar uma quitinete e se mudaram para lá. Isso, é claro, deve ter despertado muito mais a desconfiança dos seus seguidores e denunciado a sua clara intenção de continuar as pesquisas. Como já previam isso, já haviam contratado 96 uma agente da confiança deles e uma ligação afetiva com um deles — a agente Deborah. Essa percebera claramente que depois da primeira investida que fizera teria de trabalhar muito mais para recuperar a confiança dele e apagar as suspeitas que levantara. Talvez tivesse ido rápido demais. Munidos de câmeras ocultas, pesquisaram durante 2 meses inteiros. Encontraram muitas coisas interessantes, contudo nada que ainda não fosse do seu domínio. Apenas detalhava um pouco mais o que já sabiam. Nada era relacionado especificamente ao que procuravam. Já estavam praticamente a ponto de finalizar seu trabalho por ali e voltar a Coimbra quando o professor Pedro, ao se movimentar próximo a uma estante que aparentemente não tinha nenhuma relação com o assunto que focavam, tropeçou em algo e quase caiu. Era incrível e parecia uma brincadeira de mau gosto, pois sempre há alguém que talvez de propósito coloca um ressalto ou algo no chão para ver alguém tropeçar. Atendendo a um comando imperativo de seu cérebro em prol do equilíbrio do corpo que estava em perigo, tentou segurar-se em algo à sua volta e acidentalmente derrubou alguns livros. Instintivamente os folheou. Nada de interessante. No entanto, num dos livros que também a princípio não parecia muito importante, havia um desenho intrigante na capa. Fotografou-o com uma câmera oculta muito disfarçadamente. Em casa, depois de o estudarem detalhadamente, descobriram que na verdade não era um simples desenho, mas uma inscrição em alfabeto hebraico, que transliterada seria: mish•néh hat•toh•ráh e que traduzido para nós poderia ser representada por uma única palavra: “Deuteronômio”. Continuaram suas pesquisas e fotografavam tudo o que podiam, enviando as imagens a cada dia para Coimbra pelos computadores com as devidas senhas pensando que estavam totalmente seguros. Também nisso estavam enganados. As transmissões foram captadas, suas conversas também. A ordem era 97 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro segui-los sem molestá-los para não levantar suspeitas, afinal, precisavam deles. Ademais, era prudente não fazer alarde para não despertar a curiosidade de muitos outros. Os pesquisadores já estavam no caminho, mas só muito no começo e tinham consciência disso. Na verdade, tinham muito pouco. Era somente a pontinha do fio da meada. Precisavam puxá-lo. A sensação de que estavam sendo seguidos continuava cada vez mais forte. Poderia ser paranoia deles e não passar de puro cansaço. Entretanto, realmente um pouco mais tarde tiveram a confirmação: descobriram quase por acaso um pequeno objeto que era supostamente um rastreador. Decidiram fazer uma procura criteriosa e descobriram vários nas malas, nos calçados, nos casacos, nas calças. Ficaram alarmados com tantos rastreadores e livraram-se de todos. Fizeram um pequeno pacote e despacharam pelo correio endereçado para os coordenadores de sua equipe em Coimbra com a recomendação expressa de que os incinerassem assim que os recebessem. Apesar disso, não ficaram livres por muito tempo. Assim que o malote foi encaminhado para Coimbra, pensaram por um breve tempo que voltariam, mas algumas coisas não fechavam a rota, por exemplo. Mandaram, então, que alguém verificasse onde estiveram morando todo aquele tempo e descobriram que realmente eles ainda estavam por lá — e é claro já sabiam dos rastreadores e que estiveram sendo monitorados todo o tempo. Continuaram a segui-los. O Sr. Moshê possuía informantes em toda parte que lhes faziam relatórios de todos os seus passos. dor de sua universidade que somente eles acessariam. Deveriam estudá-lo melhor. Passaram mais uns 15 dias fotografando-o por inteiro e fazendo anotações, estudos, pesquisas, etc. Agiriam assim no intuito de desvendar cada frase, verso e estrofe e compreender seus sentidos. A ideia da vigilância os incomodava muito. Isso era ruim por um lado, porém por outro era a certeza de que estavam no caminho certo. Os pesquisadores gostariam de saber por que o que estudavam incomodava tanto aos outros a ponto de vigiálos, afinal, era só um trabalho acadêmico. As respostas deveriam estar naquele único livro que encontraram e fotografaram inteiramente, página por página, enviando-o em seguida para o servi98 99 Capítulo XI Lisboa – Conhecendo a cidade Falar de Lisboa não é tão simples. Não existiu um conquistador em determinada época da história que lutou, venceu e disse: “Estamos fundando uma nova cidade a que chamaremos ‘Lisboa’”. Não. É uma cidade antiga, passou por várias etapas de formação, vários povos, várias culturas e vários nomes. No entanto, uma coisa é comum em todas as situações: sua estratégica posição geográfica, interligando todo o mediterrâneo, países e cidades da Europa e da África. Sua ligação pelo atlântico com o mar do Norte, as ilhas oceânicas e as Américas, além do seu porto seguro nas águas calmas do Tejo. Essas características fizeram dela uma cidade disputadíssima, passando por vários povos: fenícios, visigodos, cartagineses, celtas, romanos e gregos. O povo Celta invadiu a região no primeiro milênio a.C.. O povoado pré-romano de Olisipo existiu entre os séculos VIII a VII a.C., e os fenícios comercializavam por ali em 1200 a.C. Os romanos conquistaram Olisipo entre 139 e 138 a.C. Sofreu as invasões bárbaras dos alanos, vândalos, visigodos e suevos, de cujo reino fez parte, recebendo o nome de Ulishbona — muito próximo da pronúncia atual do nome Lisboa. Em 714 foi tomada pelos mouros vindos do norte da África. Acabou pertencendo à primeira Taifa de Badajoz entre 1013 e 1022. Dom Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, fez três tentativas de conquistar Al-Ushbuna, tendo fracassado em 1137 e 1140; mas conseguiu fazê-lo em 1147 com auxílio do exército cruzado. Esse parece João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro ter sido efetivamente o nascimento da cidade como Lisboa. Em 1255, torna-se capital do reino. Em 1290 o rei Dom Diniz ordenou o estabelecimento da primeira universidade de Portugal em Lisboa, mas essa foi transferida para Coimbra após um incêndio em 1308. Entre 1383 a 1385 houve uma revolução porque, morrendo Dom Frenando de Portugal, o rei passaria a ser o rei de Castela, Dom João I de Castela. Depois de excessivo combate foi aclamado o Mestre de Avis como Dom João I de Portugal em 1384. A era das grandes navegações A partir do século XV até o século XVII, época dos grandes descobrimentos, Portugal assume a vanguarda em relação às grandes navegações porque transforma a pesquisa tecnológica e científica em “política de estado” e atrai especialistas náuticos de várias nacionalidades — tais como italianos, catalães, alemães e aragoneses. Com isso, consegue aumentar os conhecimentos dos oficiais e marinheiros e depois enriquecer com a prática dos “pilotos orientais”. Foram realizadas muitas expedições com tripulação mista, portuguesa e de outras nacionalidades. Nelas foram descobertos Açores, Madeira e Canárias e Brasil. Nessa mesma época, entre 1497 e 1498, o navegador Vasco da Gama consegue estabelecer o caminho marítimo para chegar às Índias. Assim, Lisboa tornou-se um grande porto e centro mercantil na Europa. Naquela época, Lisboa possuia edificações de três a cinco andares, sendo caracteristicamente o piso térreo uma loja e os outros as instalações dos comerciantes. A Escola de Sagres — um mito escola, conforme a palavra conceitua uma entidade oficial de ensino. Na verdade, foi um local, onde se reuniam especialistas em navegação, cientistas oceanográficos da época, pilotos hábeis e marinheiros práticos a convite do infante Dom Henrique, filho do rei de portugal em 1417, em Sagres, região do Algarve. Ali, desenvolveram métodos de navegação, instrumentos náuticos, cartas e projetos de embarcações. Fisicamente, era um armazém de galés. Um dado curioso a respeito da origem da Escola de Sagres é que suas intenções iam muito além de ensinar navegação. Consta que Dom Henriques fez parte dos “Cavaleiros da Ordem de Cristo”, remanescentes da “Ordem dos Templários” que foram perseguidos e massacrados. O grande objetivo era dar proteção aos judeus, árabes e outros grandes intelectuais de várias nacionalidades perseguidos pela Inquisição. Era um projeto ambicioso: concentrar ali a a maior parte das pessoas importantes para o desenvolvimento da nação, tais como os grandes cartógrafos e navegadores, investidores, sábios, intelectuais, enfim, toda a massa pensante. Situação política e econômica da época: Quando terminaram as guerras entre liberais e conservadores, a situação econômica não era boa. Lisboa perdera o monopólio dos produtos do Brasil para a Inglaterra e o ouro que efetivamente chegava aos cofres da coroa era pouco devido à pirataria e o contrabando. Os países do norte da Europa industrializaram-se e enriquecerm comerciando com as Américas. Em 1640 ocorre em Lisboa a revolta pela Reestauração da independência. Curiosamente, a famosa referência à Escola de Sagres (na qual teriam se formado os grandes navegadores como Vasco da Gama e Cristóvão Colombo) é na verdade um dos grandes mitos da história portuguesa. Ela nunca foi propriamentre uma Em 01 de novembro de 1755 Lisboa foi sacudida por um grande terremoto que detruiu quase tudo. Logo após reiniciou- 102 103 O terremoto João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro se a reconstrução segundo o planejamento de Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido pelo título “Marquês de Pombal”, ministro da guerra e negócios estrangeiros. Situação política Em 1909 ocorre uma greve geral e em 1910 a revolta pela implantação da república em Portugal. Em 1912 os Monárquicos tentam dar um golpe de Estado, mas falham. Em 1916 Portugal entra na Primeira Guerra Mundial ao lado dos aliados, enviando muitos homens e recursos. Sobreveio escacez e até fome. Em 1925 a antiga nobreza do norte, aliada à Igreja Católica, tentou tomar o poder, o que de fato aconteceu em 1926, determinando o fim da primeira república. O novo governo adotou a ideologia facista liderado por Oliveira Salazar. Esse regime chamou-se Estado Novo e governou por quatro décadas. Esse regime, já sob o comando de Marcelo Caetano, foi derrubado pela Revolução dos Cravos em 25 de Abril de 1974. Geografia Lisboa está localizada à margem direita do rio Tejo, junto à foz, a 38°40´ de latitude e 9°00´ de longitude oeste. A altitude maxima é de 226m na Serra Monsanto. Fica a oeste de Portugal, na costa do Oceano Atlântico. Clima noroeste de moderado a forte. A água do mar na região tem uma temperatura média anual de 17 °C, podendo variar de 15 a 16 °C em fevereiro e 20 a 21 °C entre agosto e setembro. Economia Lisboa apresnta um PIB per capita na média da União Europeia, sendo responsável por 45% do PIB português. A economia da cidade se desenvolve principalmete no setor terciário. As grandes empresas multinacionais estão concentradas na área da grande Lisboa, principalmente no município de Oeiras. Possui uma área metropolitana altamente industrializada, localizada principalmente na margem sul do Tejo. A região metropolitana de Lisboa apresentou um PIB de 92,5 milhões de dólares e 31.454 dólares per cápita, segundo dados de 2011. Educação Lisboa conta com três universidades públicas, a Universidade de Lisboa, a Universidade Técnica de Lisboa e a Universidade Nova de Lisboa. Possui tambem várias universidades privadas que oferecem cursos em todas as áreas acadêmicas. Conta ainda com o Instituto Universitário de Lisboa, o Instituto Politécnico de Lisboa e a Escola Superior de Enfermagem de Lisboa. Existe, é claro toda a rede de ensino secundário e básico, tanto público quanto privado. A temperatura na primavera fica entre 8 e 26 °C, No verão entre 16 e 35º, sendo quente e seco, o Outono é ameno e estável e a temperatura fica entre 12 e 23 °C. O Inverno é chuvoso e fresco, mas com algum sol, ficando a sua temperatura entre 3 e 17 °C. A temperatura mais baixa já registrada foi de -1,2 °C, e a mais alta 42 °C. Dificilmente cai neve em Lisboa, sendo os registros mais recentes entre 2006 e 2007. O vento predominante no verão é Existem vários hospitais públicos e privados, clínicas e centros de saúde. Na rede pública do Serviço Nacional de Saúde estão o Centro Hospitalar Lisboa Norte, o Centro Hospitalar Lisboa Central, o Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, centros especializados e hospitais militares. 104 105 Saúde João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Transportes O aeroporto da Portela fica a 7 km do centro de Lisboa e um tráfego de 12 milhões de passageiros por ano. Possui três pistas, sendo uma para voos internacionais e duas para voos domésticos, incluindo as regiões de Açores e Madeira. Porto de Lisboa O Porto de Lisboa, além do transporte cargueiro, é tambem um dos mais turísticos da Europa, recebendo vários cruzeiros. Possui também várias marinas para barcos de recreio. Existe tambem o transporte fluvial. A rede Transtejo ligas as duas margens do Tejo, contando com várias estações, tais como o Cais do Sodré, Belém, Terreiro do Paço e parque das nações na margem norte e Cacilhas, Barreiro, Montijo, Trafaria, Porto Brandão e Seixal na margem sul. Rede ferroviária Lisboa possui uma rede ferroviária urbana e suburbana com nove linhas, sendo quatro metropolitanas e cinco de comboio urbano. São 117 estações — 46 metroplolitanas e 71 de comboio suburbano. de Guitarra Portuguesa. Segundo consta, é bem antiga, da época dos Mouros. Tem influência tambem da modinha dos séculos XVIII e XIX. Possui inumeros espaços públicos que envolvem teatros, museus, bibliotecas, arquivos públicos e afins. Entre muitos outros, estão a Biblioteca Nacional, o Arquivo Histórico Militar, o Arquivo Histórica Ultramarino e talvez o mais importante, a Torre do Tombo. São bairros históricos Baixa Pombalina e Chiado, edificados sobre as ruínas da Lisboa antiga que foi destruída pelo terremoto de 1755. A baixa é a maior zona comercial, em cujas redondezas estão a praça dos restaurantes, o elevador de Santa Justa, a Praça do Comércio (Terreiro do Passo). Alfama é um bairro típico com arquitetura àrabe medieval, de ruas estreitas e um dos poucos que sobreviveu ao terremoto de 1755. Ali se pode ouvir o Fado em várias casas de espetáculo ao vivo. Nas redondezas estão o Castelo de São Jorge, a Sé de Lisboa, o Panteão Nacional, a Feira de Ladra e o Miradouro de Santa Luzia. O Bairro Alto é uma zona de comércio, entretenimento e habitação situada no centro, acima da Baixa Pombalina. Sendo uma cidade cosmopolita, Lisboa abriga várias culturas orientais, a das Índias, africanas e americanas. Ouvem-se falar várias linguas, como o italiano, ucraniano, gujarati, português brasileiro, português moçambicano, etc. ao utilizar-se o sistema viário da cidade. A Freguesia de Belém é típica da época dos descobrimentos. Ali está o Mosteiro dos Jerónimos, construído a mando de Dom Manuel I em 1501, aos estilos Manuelino, Gótico e com alguma influência renascentista. Esse mosteiro abriga os restos mortais de Luis Vaz de Camões (que compôs os Lusíadas) e do grande navegador Vasco da Gama. Próximo dali está a Torre de Belém, construção militar de vigia da Barra do Tejo. A cidade abrigou vários eventos internacionais, como a Expo 98, Tenis World Master 2001, Euro 2004, Regata Internacional dos grandes veleiros, Rali Dakar, etc. A música tradicional de Lisboa é o Fado, algo nostálgica, sempre acompanhada Em Belém se encontram também o padrão dos descobrimentos, o Palácio de Belém, que é a residência oficial do presidente da república, o Museu Nacional dos Coches, o Museu da Eletricidade, a Igreja da Memória e o Centro Cultural de Belém. 106 107 Cultura João Roberto Vasco Gonçalves Em Alcântara se encontra o aqueduto das águas livres. Na Freguesia da Estrela está o Jardim Estrela, criado há mais de um século e inspirado no Hyde Park de Londres. A Basílica da Estrela, de estilo Barroco-Néoclássico, a Assembléia da República e o Cemitério dos Prazeres. Capítulo XII A Torre do Tombo Na lingua portuguesa, “tombar” significa também registrar. Esse uso do termo aparece na linguagem mais antiga no Brasil, sendo os livros de registro dos cartórios chamados “livro do tombo”. Essa é a razão porque o arquivo real instalado originalmente numa das torres do castelo de São Jorge em Lisboa ficou conhecido como a Torre do Tombo. Conforme registra a história, a torre existe desde o ano de 1378, quando reinava Dom Fernando — informação baseada na data da primeira certidão que se conhece até hoje. Serviu como arquivo do rei até 1755, onde tambem guardava documentos de seus vassalos, documentos da administração pública, das posseções ultramarinas e das relações com os reinos de outros países. Em 1 de novembro de 1755 a torre ruiu completamente devido a um terremoto que causou grande destruição em Lisboa. Toda a documentação foi recolhida em meio aos escombros e guardada em caráter de emergência e provisoriamente num barracão de madeira construído para essa finalidade na praça das armas em 6 de novembro sob autorização do Marquês de Pombal, administrador responsavel pelas coisas do governo da época. Em 27 de agosto de 1757 os itens foram transferidos para o mosteiro de São Bento da Saúde. Novamente, tudo teve de ser 108 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro organizado. Em 1861, o Arquivo da Torre do Tombo se mudou para a ala direita do mosteiro, do lado da Rua de São Bento, ocupando, sucessivamente, os espaços da igreja, do refeitório, e da Direcção Geral dos Trabalhos Geodésicos, instalações onde se manteve até 1990. A partir de março de 1911, o Arquivo da Torre do Tombo desisgnado por Arquivo Nacional, acentuou a função de conservação e valorização dos manuscritos destinados ao estudo da história, bem como a função de promover a entrada de cópias de manuscritos portugueses, existentes no estrangeiro, e estabeleceu, pela primeira vez, um horário de abertura ao público”. sição de Lisboa sobre territórios do império colonial português: Açores e Madeira, Brasil, Angola e Estado da Índia. Sobre os processos sobre os cristãos novos constam, entre outros, documentos de triagem de cristãos novos (os judeus secretos, marranos), presos no Brasil acusados de serem judeus e enviados a Portugal para responder a processos pela Inquisição. Estes exibem uma enorme lista os nomes dos acusados e as datas. Depois de 1990 foi transferido para o edifício construído propositadamente na cidade universitária de Lisboa para abrigar o Arquivo Nacional, dispondo de mais amplas instalações. A sua identidade própria foi recuperada em 2007 pela vigente lei orgânica, e novamente designado por Arquivo Nacional da Torre do Tombo, constituindo-se como arquivo de âmbito nacional na dependência da Direcção Geral de Arquivos. Localizase no Jardim Campo Grande, que é atravessado pela alameda da universidade, número 1650. Data do século XVII o surgimento dos primeiros livros de registros organizados a partir do arquivo e seus índices. Alguns dos índices mais importantes segundo registra sua história são: índices das chancelarias régias (1715– 1749), das Leis e Ordenações (1731), das Bulas (1732), dos moradores da Casa Real (entre 1713 e 1742), o inventário das Bulas, Breves e transuntos pontifícios (1751–1753). Este trabalho foi iniciado ainda no antigo edifício da torre do castelo. Na torre do tombo existe farta e rica documentação referente à jurisdição exercida pela Mesa do Santo Ofício da Inqui110 111 Capítulo XIII O estudo do livro Após todo aquele trabalho de fotografar, analisar, fazer observações e compilar tudo no computador da universidade, acabaram imprimindo um livro bem organizado e detalhado com os devidos comentários necessários aos estudos futuros que teriam de ser feitos criteriosamente para extrair algo prático e que fizesse sentido. Enfim, os professores perceberam que fizeram um novo livro, uma cópia ou uma nova versão do original, contendo muitas explicações e detalhes transparentes à primeira vista. O professor Paschoal não resistiu e fez o seguinte comentário: — Pedro, se eu tivesse de intitular este livro, eu o chamaria de Deuteronômio. — Bem sugestivo, Paschoal. Uma ideia exata do que realmente é. Aliás esse era o nome que estava escrito em hebraico naquele livrinho que encontramos por acaso quando tropecei, lembra? Espero que nos leve de encontro aos objetivos de nosso trabalho. — Eu também. — Então vamos começar logo a estudá-lo. — Isso, vamos iniciar o quanto antes, pois sinto que temos muito trabalho pela frente. Sinteticamente, qual o conteúdo do livro, Pedro? João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Contém curiosos versos, cantos litúrgicos de igreja e citações bíblicas. Além dos escritos e respectivas ilustrações, aparecem também alguns desenhos: uns parecem projetos arquitetônicos, plantas baixas ou coisa parecida, mapas, todos com indicações, como números e letras em alfabeto hebraico, grego, latim e até algumas línguas atuais, como italiano. Algumas inscrições, a julgar pelo aspecto da tinta, parecem ter sido feita em tempos muito mais recentes, segundo o que anotamos. Curiosamente, parece não haver, pelo menos em princípio, uma sequência cronológica ou algum tipo de indexador que se possa utilizar para organizar a pesquisa. No chão da casa de deus/uma serpente nasceu mutilada/ início e fim dos segredos seus/na cabeça e na cauda cortada./ Cinco vértebras também feridas/a cinco cabeças espaçadas/o segredo das espadas inseridas/a sete chaves guardadas. — Vamos iniciar discutindo sobre o que diz cada uma das inscrições e seus possíveis significados. A serpente devora o defunto e a mulher lhe esmaga a ca- — Sim. Parece-me a melhor ideia. — Ótimo, mas primeiramente leia cada uma delas na ordem que aparece para que possamos conhecer o universo de informações. Depois reiniciaremos com as discussões detalhadas, análises e primeiras conclusões. Numa segunda etapa, poderemos refinar tudo isso e, ao longo do desenvolvimento do trabalho, poderemos realinhar segundo as novas informações e conclusões. — Então vamos lá. Algumas das inscrições na ordem que aparecem mais as nossas notas de referência, assinaladas por NP, ou notas do pesquisador, são: Tantum ergo Sacramentum; Veneremur cernui; Et antiquum documentum; Novo cedat ritui; Praestet fides supplementum; Sensuum defectui. Escoltados por soldados de Cristo/ está o novo cristão/em um mundo jamais visto/na casa de eterno guardião. Sob a cruz que no céu se deita/herança de um mundo antigo/em um mundo novo se ajeita/na busca de seguro abrigo. 114 Sob os raios do sol dourado/e dos doze pontos de luz/ostentam o torat moshê/refletindo a verdade que conduz. No cálice dourado de Hatikvah/sob a luz dos sete castiçais/em nova aróhn hab·beríth/a terça parte das joias reais. A santíssima trindade/repousa em três pontos distantes/ aqui no Nebo, na nova casa, na eterna metrópole. beça. Subindo 14.000 côvados, depois do encontro das águas, o passo do salitre está. dobrando-se a tramontana, o novo Horeb estará. Mt 6.19; Mt 6.21 (NP: “Não enterrar os tesouros na terra/ Onde está o tesouro está o coração”). Mt 5.41 (NP: “Se alguém te forçar a dar mil passos, vai com ele dois mil”). Ex 17.6 (NP: “Eis que estarei ali diante de ti, sobre o rochedo do monte Horeb ferirás o rochedo e a água jorrará dele: assim o povo poderá beber. Isso fez Moisés em presença dos anciãos de Israel”). Dt 10.11 (NP: Tomar a terra), Dt 11.18–25 (NP: Posse da terra), Dt 11–24 (NP: Limites da terra prometida). Dt 10.2 (NP: Escreveu as novas tábuas da lei). Ex 26.33 (NP: Véu que separa o santíssimo); Ex 26.34 (NP: Propiciatório sobre a arca); Ex 25.10–16 (NP: Arca); Ex 25.17 115 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro (NP: Propiciatório); Ex 25.31(NP: Propiciatório sobre a arca e documentos dentro). Ex 25.22 (NP: Ali me encontrarei contigo); Ex 28.4 (NP: Vestes sacerdotais); Ex 28.40 (NP: Vestes para os filhos de Arão), Ex 30.17–21 (NP: A bacia de bronze); Ex 29.4–9 (NP: Cerimônia de sagração dos sacerdotes); Nm 6.22–26 (NP: Bênção sacerdotal); 2Mac 2.5 (NP: encontrou um espaço em forma de gruta...) Mac 2.7 (NP: Este lugar permanecerá desconhecido... tenda e arca... montanha onde Moisés subiu.); Dt 34.1 (NP: Monte Nebo, entre outras). Sob os pés de Salomão repousa a fé no Senhor. th. Deva•rím repousa no ventre da filha de Aróhn hab·berí- Um vil pombal de infiéis//covil de ex iniciados//sucumbindo ao poder e cobiça//forçam irmãos a renegar o voto. — Então vamos a ele. O que diz primeiramente? — A primeira inscrição contém uma conhecida oração católica em latim, que normalmente é cantada em gregoriano: Tantum ergo Sacramentum;Veneremur cernui; Et antiquum documentum; Novo cedat ritui; Praestet fides supplementum; Sensuum defectui. — E consta que seja de 1264, cuja autoria é atribuída a Tomás de Aquino. — Alguma sugestão a respeito disso? — Sim, provavelmente a que você também está pensando: que possivelmente haja um antigo documento e um novo que o sobrepuje e possivelmente o complemente. E que poderiam não ser necessariamente o mesmo antigo e novo testamento a que a oração se refere. Jazem muitos guardiões//mas ainda vivos também//abrigados na casa de Deus//protegendo o devarim//Nem sempre são religiosos de bons hábitos. — E o que poderiam ser exatamente esses documentos, seus conteúdos e significados? — Puxa, é muita coisa mesmo! Há também as difíceis interpretações. Parece mesmo uma intricada rede de informações em linguagem cifrada. — Penso que seja prematuro afirmar qualquer coisa por enquanto. Até porque isso pode ser a chave de tudo e que provavelmente só conseguiríamos saber no final do trabalho. Em última análise, talvez seja o próprio final dele. — Sim, é uma miscelânea de coisas incompreensíveis que, pelo menos por enquanto, não faz o menor sentido. Possivelmente, elas farão sentido nos lugares certos e diante das coisas certas. — Então, passemos à próxima. — A coisa é muito mais complexa do que eu pensava. A primeira dúvida é por onde começar. — A próxima diz: “Escoltado por soldados de Cristo/está o novo cristão/em um mundo jamais visto/na casa de eterno guardião”. — Do começo, logicamente. Digo do começo do que temos, ou, mais precisamente, do começo do nosso Deuteronômio, conforme você mesmo propôs anteriormente. — Curiosa afirmação. Parece insinuar a existência de um cristão novo como guardião, escoltado pelos soldados de Cristo. Ora, conforme sabemos, os cristão novos eram, entre outros, ju- 116 117 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro deus convertidos forçadamente ao cristianismo. Mas e essa pretensa escolta... Quem seriam os soldados de Cristo? — Com toda a certeza, esses seriam os membros da ordem companhia de Jesus que também eram cognominados de soldados de Cristo porque a ordem foi fundada por Ignácio de Loiola, um militar que depois de ferido na guerra estudou sobre religião, se empolgou e resolveu criar uma ordem com a mesma disciplina dos militares. — Boa explicação, Pedro. Isso parece apontar para judeus convertidos ao catolicismo infiltrados na Companhia de Jesus ou os jesuítas. — Essa especulação é suficiente para nos arremeter a novos estudos e chegar a nomes importantes que ao longo da história estiveram enfronhados na organização. — Certamente. A propósito, quais desses você listaria? — Existem vários que tiveram suas histórias de certa forma ligada aos cristãos novos e à Companhia de Jesus: Ignácio de Loyola, Antônio Vieira, José de Anchieta, etc. — Mas esses se declaravam cristãos novos? — Não. E provavelmente nem sabiam. Descobriram isso a seu respeito pesquisando muito suas origens. — Mas se nem sabiam que eram descendentes de cristãos novos, como seriam guardiões de segredos supostamente judaicos? A menos que os segredos não sejam exatamente judaicos, ou sua pretensa relação com o judaísmo seja um belo disfarce. O que você acha? — Penso que se o judaísmo e o cristianismo possuem as mesmas raízes não seria muito difícil convencer as pessoas de boa índole a defender causas pretensamente religiosas. 118 — Porque pretensamente religiosas? — Porque embora seu conteúdo tivesse muito de fatos bíblicos, poderia haver razões subjetivas. Algumas referências mais à frente parecem indicar essa possibilidade. Seria muito oportuno ocultá-las dessa forma. — Você poderia ser mais específico? — Sim. A décima quarta inscrição faz referência a três versículos do livro do Deuteronômio que aludem às seguintes ideias: tomar a terra (Dt 10.11), posse da terra (Dt 11.18–25) e limites da terra prometida (Dt 11.24). — Me parecem ideais dos cruzados e templários. Você considera válida essa ideia? — Se a ideia de segredo judaico for correta, seria algo parecido, com a diferença de que após a libertação da terra santa esta ficaria depois sob o comando judeu e não cristão. — Então, em última instância, seria o ideal de criação oficial de um estado judeu. Isso teria algo a ver com a criação do estado de Israel? Então esse livrinho não seria assim tão antigo. Como você analisa isso? — O livro pode não ser tão antigo. A julgar pelo aspecto da tinta nas diversas inscrições, parece ter sido atualizado ao longo dos tempos. Quanto à ideia de criação de um Estado judeu, a ideia é bem antiga. Essa aspiração valeu na época antiga conforme essas indicações do Deuteronômio e para todas as outras épocas. A criação do Estado de Israel, embora tenha sido realizada por outra via que não a dos cruzados, acaba atendendo a essas mesmas inscrições dos versículos. — É uma boa hipótese. Mas e a ideia dos guardiões e da Companhia de Jesus no novo mundo? 119 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Se esses guardiões fossem mesmo jesuítas, esse novo mundo poderia ser em novos lugares que não a Europa, enfim, todos os lugares onde eles serviam. — Contudo, se havia mesmo algo de secreto a ser escondido e a Igreja o conhecia e tinha poderes suficientes, não seria melhor ocultá-los em algum lugar seguro na Europa ou simplesmente destruí-lo como fazia a Inquisição? — Aí entram questões muito mais complexas do que se percebe à primeira vista. Primeiramente, a Inquisição não queimou tudo. As coisas mais interessantes foram mandadas para Roma e arquivadas lá até mesmo sob o pretexto de provas nos processos, muitas das quais estariam hoje na biblioteca do Vaticano. Na Europa havia muitos de antenas ligadas, muitos jogos de interesse, muita ambição por poder, muitas intrigas entre a nobreza e seguramente não havia lugar seguro para nada, principalmente no âmbito da Igreja, onde o alto clero era parte da nobreza. Por outro lado, a Inquisição nunca foi religiosa. A religião serviu como pretexto para os governantes poderosos pressionarem a Igreja e induzi-la à perseguição. Curiosamente, essas perseguições aconteceram em todas as épocas, em todas as religiões e em todos os lugares, sempre usando a religião como pretexto e sempre pelos mesmos motivos: luta pela hegemonia, sede de poder, avareza, manutenção do status quo. Alguns exemplos foram as cruzadas, a Inquisição católica na Europa, a Inquisição protestante dos puritanos nos Estados Unidos, as lutas entre diversas facções muçulmanas, entre outras. Sempre acontecem em meio a um banho de sangue, muita violência, muita carnificina e muita opressão do homem pelo homem, algo capaz de envergonhar a Cristo, Maomé, Buda ou qualquer outro emissário de Deus e desmerecer suas obras. É exatamente o contrário do que toda religião ensina: o amor ao próximo. Por outro lado, tudo o que todas as religiões na verdade parecem intentar é fazer o homem 120 caminhar um pouco mais devagar para ter tempo de refletir melhor ou talvez esperar o melhor momento para que os possíveis segredos sejam revelados com segurança ou sem consequências devastadoras. Tantos séculos se passaram, tantos mestres tentaram ensinar, mas o homem continua ignorante. Ele ainda não percebeu que a raíz de todas as suas desgraças é a falta de amor ao próximo. Que o ódio, a inveja, a cobiça, a avareza e a opressão ocasionam todos os males. Ele ainda não conseguiu entender a mensagem de que o inimigo também é o próximo. — No entanto, uma coisa ainda não estaria muito clara. Se os poderosos possuíam a força para perseguir e massacrar, porque precisavam da ajuda de alguma religião? Não seria mais fácil simplesmente subjugar? — A resposta é muito simples: legitimação da ordem e, com ela, a do poder. A religião, se desonestamente desvirtuada e ensinada ao povo, se presta muito bem a esse papel. Na verdade mesmo, de religião não havia nada. — Seria algo como uma religião de cabresto? — Algo parecido que produz a legitimação da ordem: poucos acreditam que têm o direito de mandar e muitos o dever de obedecer. Isso leva imediatamente à legitimação do poder. O povo outorga o poder e quem o exerce o faz em nome do povo sob o pretexto de que este o quer. A força popular é sempre insuflada contra alguém ou algum grupo, caso seja de interesse do poder. O povo vira massa de manobra na mão dos oportunistas e nem o percebe. Frequentemente, ele é induzido a barbárie. — Você tem algo contra o ensino da religião ao povo? — Muito pelo contrário. A religião pura e sadia é necessária. Mas é muito mais que recitar versículos, cumprir liturgias e angariar fundos para obras sociais. 121 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Então, como você acha que os versículos deveriam ser ensinados? — A religião não deve ser somente falada, ouvida ou escrita. Deve ser vivenciada, se não cai no vazio e perde a sua utilidade. — Sim, mas voltando à ideia de ocultar fora da Europa, o que poderíamos pensar? — Creio que seria uma ótima política levar para um local bem distante e deixá-lo bem oculto até que se perdessem no tempo. Um lugar de difícil acesso, de difíceis condições de vida, onde muito poucos se aventurariam a ir. Seria bem melhor do que perseguir, tentar destruir, fazer muito alarde e acabar transformando um possível vilão num herói. — Sempre pelo começo, é claro. Refiro-me ao que temos escrito primeiro. Assim, pelo menos possivelmente, acharíamos uma parte e quem sabe haveria indicações mais precisas a respeito das outras. — Tudo bem. Mas, primeiramente, analisemos cada uma dessas indicações. Por exemplo, essa: “Sob a cruz que no céu se deita em um mundo novo”, Ela indicaria precisamente algum lugar específico, Pedro? — No meu entender, sim. — Seja mais específico, por favor. — O mundo novo seria as Américas, como era chamado na época. — Sim. Mas na verdade essas são três. — É uma interessante teoria. Mas, se os jesuítas estavam espalhados ao redor do mundo, como determinar em que parte do mundo esse segredo estaria? — Mas aí a ideia da cruz que se deita no céu esclarece muito bem essa posição, pois essa pode muito bem ser a constelação do cruzeiro do sul. Então seria a América do Sul. — Segundo as indicações do nosso livrinho, uma parte estaria no local indicado pela terceira frase a seguir: “Sob a cruz que no céu se deita/herança de um mundo antigo/em um mundo novo se ajeita/na busca de seguro abrigo”. Porém, pela sétima frase: “A santíssima trindade/repousa em três pontos distantes/ no Nebo, na nova casa, na eterna metrópole”, esse segredo possivelmente estaria fracionado em três partes. O verso final da estrofe “No cálice dourado de Hatikvah/sob a luz dos sete castiçais/ em nova aróhn hab·beríth /a terça parte das joias reais”, citada na sexta inscrição também corrobora com essa ideia. — É, diminuímos o circulo, mas ainda nos falta estreitar mais. Alguma ideia, Pedro? — Assim ficou muito mais difícil. Agora, além de ter três partes de segredo, temos também três lugares indefinidos. Por onde iniciaríamos? 122 — Ocorre-me uma, sim. Cruzando as ideias de mundo novo, jesuítas e América do Sul lembremo-nos de que uma das primeiras incursões jesuítas a esta parte do mundo foi ainda na época dos governos gerais. Logo a seguir, a história registra a fundação da atual cidade de São Paulo pelo padre Manoel da Nóbrega e o então noviço José de Anchieta em São Paulo de Piratininga, subindo a serra e longe do litoral. Creio que São Paulo seria uma ótima opção para começarmos. Mas as outras opções restantes devem ser pesquisadas, pois, conforme a história, fizeram incursões também por toda a costa do país, fundando mui123 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro tas vilas. Creio que temos assinalada a primeira coordena geográfica. — E sobre a afirmação de que o segredo estaria fracionado em três partes? Pelo que entendi, não seria somente a América do Sul. O que você pensa sobre isso? — Essa parte é um pouco mais difícil. A primeira no Nebo, que poderia não ser um monte como o que fala a bíblia, mas qualquer lugar perdido no meio do nada segundo a definição de um rabino que conheci. Isso poderia ser perfeitamente a primeira opção, ou seja, a América do Sul e, possivelmente, o Brasil. A segunda seria uma nova casa. Com um pouco de abuso dedutivo poderíamos supor que fosse a América do Norte, mais precisamente em Nova York, pois, segundo a história dos judeus nas Américas, eles tiveram uma forte colônia em Recife, no Brasil, vindo através da companhia das Índias Ocidentais. Ali, eles dominaram a fabricação e o comércio de muitos produtos, principalmente o açúcar, na época em que ali governou o conde holandês Maurício de Nassau. Com a expulsão dos holandeses e a derrocada dessa rica fase de comércio, a comunidade dos judeus migrou para a atual Nova York, que era apenas um entreposto comercial. Depois de muitos reveses e perseguições pelos cristãos protestantes, acabaram fundando a Nova Amsterdã. Assim, eu penso que, se houvesse outra parte de um segredo de origem judaica no mundo novo, possivelmente seria lá. — É como você disse: um abuso de dedução, mas na falta de outro mais razoável poderia ser considerado válido. Mas ainda falta a terceira: a eterna metrópole. — Sim, mas acho essa ideia ambígua. Tanto poderia ser Roma, como é chamada pelos ocidentais, quanto Jerusalém, como a consideram os judeus. Eu fico com essa segunda opção. — O que o leva a essa? 124 — As possíveis indicações sugeridas pela décima oitava frase: “sob os pés de Salomão repousa a fé no Senhor”. Talvez a guarda dos documentos sagrados fosse para colocá-los no devido tempo em sua legítima morada, o novo templo do Senhor na cidade santa, que provavelmente seria Jerusalém, a cidade eterna para eles. — Por que você acha isso? — Porque presumo que a frase “sob os pés de Salomão” provavelmente esteja se referindo ao subsolo do local onde existiu o palácio de Salomão, um local não muito bem determinado e assinalado no livro apenas por alguns sinais gráficos que provavelmente seriam números indicando sua localização em relação a pontos de referência fixos. — Estamos mal. Pesquisamos tanto, estudamos, analisamos e deduzimos, porém tudo que temos não passa de um punhado de conjeturas. — Concordo. Isso não é nada animador. Mas é o ponto de partida que temos. — Sim, mas e quanto ao restante das inscrições? Por enquanto nem fazem sentido, não passam de frases soltas. A quinta frase, por exemplo, além de coisas de difícil identificação, ainda fala de torat moshê... — Sim, todavia torat moshê é fácil, pois traduzido para o português é a lei de Moisés. — E o que você me diz da décima nona: “Deva•rím repousa no ventre da filha de aróhn hab·beríth”? — Deva•rím é o nome hebreu do Deuteronômio, a cópia da lei ou a segunda lei, conforme ficou incorretamente traduzido para o grego. Aróhn hab·beríth é a arca da aliança, e repousar no ventre da filha de aróhn hab·beríth pode significar estar dentro. 125 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Ou seja, a cópia da lei estaria dentro da arca da aliança, ideia coerente com a citação bíblica. Claro que aqui pode ter outro sentido que ainda desconhecemos, ou talvez haja mesmo algum documento dentro de alguma arca em algum lugar desconhecido, talvez não necessariamente aquele ao qual se referem as Escrituras. nhecido que seja relacionado a tudo isso. — E quanto à oitava citação: “A serpente devora o defunto e a mulher lhe esmaga a cabeça”. Não acha muito estranho? O que poderia ser? — Acho que isso quer dizer mais ou menos o seguinte: estamos diante de um intricado labirinto e seguir qualquer pista falsa é ficar cada vez mais longe da saída. Em suma: estamos perdidos. — É difícil dizer, pois pode significar muitas coisas. Quanto à segunda oração, há uma citação bíblica algo parecida em Gn 3.15. A primeira leva a uma ideia de que há algo na boca de uma serpente. Quem sabe isso tudo não seja alguma escultura ou pintura? Muitos escultores e pintores renascentistas representaram fatos bíblicos em seus trabalhos. Segundo consta, alguns teriam escondido segredos em escritas ou figuras ocultas e diluídas na pintura. — Essa da décima primeira também parece interessante: Mt 6.19; Mt 6.21; “Não enterrar os tesouros na terra, “Onde está o tesouro está o coração”. O que você acha, Pedro? — Provavelmente, a mesma coisa que você imagina, ou seja: o tesouro não deve estar enterrado. A segunda afirmativa parece ser alguma dica da localização. — E quanto às outras citações? — Essas, a priori, parecem não dizer nada. Contudo, como disse anteriormente, possivelmente farão sentido nos locais e situações certos. Só saberemos se estivermos diante deles. — E então, Paschoal? Desistimos ou continuamos? — Olha, eu nunca fui de fugir e, pelo que sei, você também não. Além disso, nossa condição de pesquisadores da história sempre nos impele a continuar. — Concordo. Mas e quanto às nossas limitações? — Entendi perfeitamente. Você se refere principalmente aos custos. Possivelmente, gastaremos de nosso bolso e não conseguiremos o devido ressarcimento. Você estaria disposto a isso? — Por mim, tudo bem. Eu faço esse sacrifício pelo conhecimento da história. — Com certeza, mas as citações de Mac 2.7: “Este lugar permanecerá desconhecido”... “tenda e arca”... “montanha onde Moises subiu”, além de Dt 34.1, “Monte Nebo”, entre outras, parecem dar uma dica de que exista algum monte em local desco- — Então façamos uma síntese de toda a história que já conseguimos levantar. Existe algum tipo de segredo de origem supostamente judaica fracionado em três partes, estas estão ocultas em três locais diferentes (e, possivelmente, em continentes diferentes). Uma parte delas teria ido parar na América do Sul, provavelmente no Brasil, possivelmente teria viajado no meio da bagagem dos jesuítas, ordem na qual estariam os guardiões. Tudo isso não está enterrado, mas em algum monte em local desconhecido. O que sabemos sobre a localização é que existe algo 126 127 — Veja só, Pedro, a décima sétima parece um monte de citações que aparentemente não se correspondem entre si. Não acha isso muito estranho também? João Roberto Vasco Gonçalves em forma de coração ou coisa parecida que marca ou identifica onde está. Sabemos que existe no meio da história algo como uma serpente, um defunto e uma mulher e que estão relacionados ao processo de identificação do segredo (que é tratado como um tesouro) e com o significado real que ainda desconhecemos por completo. — Correto, Paschoal. Ademais, sabemos que estabelecemos São Paulo, no Brasil, como ponto de partida. — Assim, agora eu proponho que repassemos algumas considerações sobre a história dos jesuítas em relação ao Brasil. — Sim, creio que seja proveitoso. — Em seguida, planejaremos a viagem. Capítulo XIV A companhia de Jesus Foi fundada em 1534 por um grupo de estudantes da Universidade de Paris liderados por Íñigo López de Loiola, procedente do país Basco — mais tarde ele viria a ser conhecido como Ignácio de Loyola. Ele nasceu em 31 de maio de 1491 em Azpeitiae e morreu em Roma a 31 de julho de 1556. Enquanto estudava em Salamanca, em 1527, foi submetido a uma comissão eclesiástica por uma carga de simpatia com os alumbrados, mas escapou com uma advertência. A razão dessa foi que os alumbrados acreditavam entrar em contato direto com Deus através do Espírito Santo, o que envolvia visões e experiências místicas. Tal doutrina era considerada uma heresia. A maioria daqueles perseguidos como alumbrados eram convertidos (judeus convertidos ao cristianismo) ou mouriscos (mouros convertidos). A Companhia de Jesus é uma ordem religiosa católica romana. Seus membros são comumente chamados jesuítas. O nome dessa sociedade em latim é Societas Iesu — ou, abrviadamente, S.J.). No ano de 1549 foi fundada a primeira província brasileira da Companhia de Jesus, com a chegada de alguns membros, chefiados pelo padre Manuel da Nóbrega, seu primeiro provincial à Bahia, junto com Tomé de Souza, o primeiro governador geral do Brasil e sua comitiva. Vieram com Nóbrega outros seis membros: Leonardo Nunes, João de Azpilcueta Navarro, Vicente Rodrigues, Antonio Pires e o irmão Diogo Jácome. No ano de 128 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro 1553 chegou o irmão José de Anchieta, o então noviço com 19 anos, na esquadra de Duarte Gois. O padre João de Azpilcueta Navarro fora logo mandado para Porto Seguro; Leonardo Nunes e Diogo Jácome foram para as aldeias das capitanias de Ilhéus e de Porto Seguro. Mais adiante, o Padre Leonardo foi para o sul, na capitania de São Vicente. Quem o substituiu foi o irmão Vicente Rodrigues. Consta que que em 1555, em toda a província, havia 26 deles, sendo quatro na Bahia, dois em Porto Seguro, dois no Espírito Santo, cinco em São Vicente e 13 em Piratininga. O trabalho dos jesuítas era tão intenso e valoroso que meio século mais tarde já possuíam colégios em toda a costa da América portuguesa, que compreendia desde os atuais estados do Ceará até Santa Catarina. Viviam em colégios, missões e conventos. Seus membros eram 670 em 1760 (quando foram expulsos do Brasil). Sua vida por aqui sempre foi muito penosa por razões diversas. Nunca foram bem vindos, principalmente pelos colonos portugueses, por estarem sempre em conflito com seus interesses e seu mau comportamento, como se pode perceber pelos trechos da carta de José de Anchieta. ...e todos, assim homens como mulheres, como aqui vêm, se fazem senhores e reis por terem muitos escravos e fazendas de açúcar, por onde reina o ódio e lascívia e o vício da murmuração geralmente… Ou ainda em trechos da carta de Nóbrega: ...entre estes se veem muitos cristãos que estão aqui no Brasil, os quais têm não só uma concubina, mas muitas em casa, fazendo batizar muitas escravas sob o pretexto do bom zelo e para se amancebar com elas, cuidando que por isso não seja pecado. E de par com estes estão muitos religiosos, que caem no mesmo erro... ...Nesta terra, todos, ou a maior parte dos homens, têm a consciência pesada por causa dos escravos que possuem contra a razão... E nesta opinião tenho contra mim o povo e também os confessores daqui. ...Maxime em atender aos índios, porque com os portugueses não se tira muito fruto. Realmente, os conflitos dos jesuítas com o povo sempre foram constantes e cada vez mais graves. Em junho de 1612 ocorreu uma reclamação formal do povo ao conselho em São Paulo contra os jesuítas e foi assinada por muitos bandeirantes. Já havia ocorrido outro anteriormente, mas esse foi ainda mais grave. Reclamavam do fato de os jesuítas se acharem no direito de se intrometer no governo das aldeias dos índios. Segundo seu entendimento, a concessão dada pelo rei se referia somente à parte espiritual. Os padres tiveram de recuar, pressionados pela influência dos “homens bons” da terra, que efetivamente mandavam no governo local. Em 1621 houve novo conflito. Por volta de 1640, no atual Rio de Janeiro, tentaram executar a bula papal do papa Paulo III, que ameaçava de excomunhão quem capturasse e vendesse índios. O povo revoltou-se ante a possibilidade 130 131 Aqui temos casa em que vivem de ordinário seis dos nossos, três padres e três irmãos; vivem de esmolas, ajudados dos da Bahia... Não estão os padres muito bem recebidos nesta terra por causa dos Capitães e outros homens que não nos são muito benévolos... João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro de perder os escravos, queixando-se ainda de que os padres utilizavam o trabalho dos índios — a quem ensinavam e administravam. Assim, em 4 de maio do mesmo ano os jesuítas foram apedrejados e tiveram suas propriedades atacadas e seriamente danificadas. Ainda em 1640, os jesuitas foram expulsos de São Paulo e só conseguiram retornar em 1653. Em julho de 1687 ocorreu nova tentativa de expulsão. Em 1759 houve uma tentativa de matar o rei Dom José I. A família Távora e o Duque de Aveiro foram responsabilizados pelo atentado e condenados à morte. O padre Jesuita Gabriel Malagrida foi duramente perseguido por um dia ter contrariado o Marques de Pombal na época do terremoto que assolou Lisboa. Aproveitando-se do fato de ter sido acolhido pela família Távora quando foi expulso de Lisboa, o marquês acusouo tambem de ter colaborado com o atentado e, mais tarde, de heresias. Tais acusações culminaram com a sua pena de morte pela Inquisição, sendo enforcado e queimado em uma praça pública em Lisboa. Em 3 de setembro de 1759 o Marquês de Pombal expulsou os jesuítas de Portugal e todas as suas colônias, confiscando também todos os seus bens. Alegava que a Companhia de Jesus funcionava como um poder autônomo dentro de Portugal e das colônias. O Superior Geral da Companhia, Lorenzo Ricci, e assim como todo o seu conselho geral, foram presos no Castelo de Sant’Angelo, em Roma, sem que houvesse julgamento. Em 1773 o papa Clemente XIV, pressionado por Pombal, Luis XV da França e Carlos III da Espanha, emitiu a bula chamada Dominus ac Redemptor, que extinguia a Companhia de Jesus — o que aconteceu até 1843, data em que foi reabilitada pelo papa Pio VII. Só então 132 começaram os jesuítas a voltar ao Brasil. Vieram então jesuítas alemães para o sul, italianos para o sudeste e portugueses para o nordeste. A companhia de Jesus possuía muitos personagens notáveis, ligados intimamente à história dos locais que fundaram e onde viveram e cumpriram a sua missão. Além do fundador mencionado anteriormente, temos: Padre Manoel da Nóbrega: Nasceu em Portugal, em Sanfins do Douro a 18 de Outubro de 1517 e morreu no Rio de Janeiro a 18 de Outubro de 1570. Obteve o título de bacharel em Direito Canônico e Filosofia pela Universidade de Coimbra. Ingressou na Companhia de Jesus. Aos 27 anos, foi ordenado padre em 1544 com a função de pregador. Viajou por Portugal, Galiza e o restante da Espanha na pregação do evangelho. Foi convidado pelo rei Dom João III a integrar a comitiva de Tomé de Souza de partida para o Brasil em 1549. Chegou à Bahia em 29 de março de 1549. Seus propósitos eram catequizar os índios e também protegê-los contra os que os queriam escravizar, além de fundar igrejas e escolas. Foi nomeado pela companhia de Jesus como o primeiro provincial do Brasil. Participou da fundação de Salvador (1549); São Paulo (1554) e Rio de janeiro (1563). Em 1559 foi demitido do cargo de provincial no Brasil por motivo de saúde, sendo substituído pelo padre Luís de Gram. Escreveu algumas obras importantes para a história do Brasil, tais como: O Diálogo sobre a Conversão do gentio, de 1557; O Caso de consciência sobre a liberdade dos índios, de 1567; A informação da terra do Brasil, de 1549; o Informação das coisas da terra e neces133 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro sidade que há para bem proceder nela, de 1558; o Tratado contra a antropofagia, de 1559. gia, lógica, metafísica e matemática. Obteve o grau de mestrado em artes. Foi professor de retórica. Descreve o estado de penúria enfrentado, como se pode ver no trecho de uma das cartas: A nossa igreja, que fizemos, cainos, porque é de taipa de mão e de palha; agora ajuntarei estes senhores mais honrados que nos ajudem a repará-la, até que Deus queira dar outra igreja mais dura. Escreveu seus conhecidos sermões, foi grande pregador e orador. Sua última obra, inconclusa, foi Clavis Prophetarum, um livro de profecias escrito entre 1679 e 1681. Defendeu os judeus, a abolição da escravidão dos índios, a distinção entre cistãos-novos e cristãos-velhos e criticou duramente os sacerdotes da sua época e a própria Inquisição — na qual servira anteriormente como escrivão. Igualmente, descreve as dificuldades no cumprimento de sua missão por causa do antagonismos dos nobres que aqui viviam e seu comportamento anticristão, conforme mencionado em trechos das cartas mostradas acima. Em 1570 foi nomeado novamente para o cargo de provincial, porém faleceu antes de assumi-lo. Padre Antônio Vieira: Nasceu em Lisboa, Portugal, em 6 de fevereiro de 1608 e morreu na Bahia, no Brasil, em 18 de julho de 1697. António Vieira chegou à Bahia com seis anos de idade e estudou no Colégio dos Jesuítas, em Salvador. Em 1641 regressou a Lisboa, onde abraçou a carreira diplomática. Foi nomeado pregador régio e enviado em 1646 aos Países Baixos, onde negociou a devolução do nordeste do Brasil. Acabou por entrar em conflito com o Santo Ofício por tentar obter ajuda financeira dos cristãos novos para a Corôa Portuguesa. Um dos seus grandes méritos como diplomata e negociador do Estado foi a criação da Companhia Geral do Comércio do Brasil. Serviu tambem na marinha portuguesa. Foi escrivão da Inquisição e tambem depois no Brasil, para onde retornou em 1614. Ingressou na Companhia de Jesus como noviço em maio de 1623. Em 1634, foi ordenado sacerdote. Estudou ainda teolo134 Padre Afonso Brás:Nasceu em São Paio de Arcos, Portugal, no ano de 1524 e morreu no Rio de Janeiro em 20 de maio de 1610, ingressou na Companhia de Jesus em 1546. Veio para o Brasil em 1550 com a missão de construir edificações mais seguras e um pouco mais confortáveis em substituição às casas de pau a pique cobertas de palha. Passou inicialmente na capitania do Espírito Santo, onde sob as suas ordens foi construída a capela de São Tiago (e onde hoje está localizado o palácio do governo estadual, em cujo interior se preservam vestígios das edificações daquela época). Em 1553, também sob suas ordens, foi construído na capitania de São Vicente, Vila de São Paulo de Piratininga, o colégio dos jesuítas com sua igreja, no local onde hoje se conhece como Pátio do Colégio e existe um museu, no centro da cidade de São Paulo, sendo a primeira edificação da cidade. Depois foi para o Rio de Janeiro onde se incumbiu de outras construções onde terminou seus dias. Padre José de Anchieta: Sem desmerecer o trabalho de todos os outros jesuítas que estiveram por aqui, o padre Anchieta 135 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro foi o mais expressivo deles, estando de tal modo sua vida atrelada à história do Brasil que, apesar de não ser Brasileiro nato, é conhecido como “Apóstolo do Brasil”. Nasceu em San Cristóbal de La Laguna, ilha de Tenerife, arquipélago das Canárias, Espanha, em 19 de março de 1534, vindo a morrer em Iriritiba, atual cidade de Anchieta, no estado do Espírito Santo, no Brasil. Sua mãe era Mência Dias de Clavijo e Larena, natural das Ilhas Canárias, filha de Sebastião de Larena, um judeu convertido do Reino de Castela. Aos 14 anos foi para Coimbra, em Portugal, onde estudou filosofia no Colégio das Artes, um anexo da célebre Universidade Coimbra. Sua ida para Portugal teve uma explicação: corria o risco de descobrirem a sua ascendência judaica e ser perseguido pela Inquisição, que na Espanha era rigorosíssima naquela época, enquanto em Portugal ainda não estava instalada. Ingressou na Companhia de Jesus em 1551 como noviço, situação em que veio para o Brasil em 13 de junho de 1553, ainda com dezenove anos. Participou da fundação, no planalto de Piratininga, do Colégio de São Paulo, em 25 de janeiro de 1554. Dirigiu esse mesmo colégio. Nos dias que antecederam a elaboração do acordo de paz com os tupinambás de Ubatuba, durante a quaresma, estava juntamente com Nóbrega em Peruíbe, litoral de São Paulo. Segundo consta, ali na praia perto da aldeia de Iperoig teria escrito na areia o célebre poema à virgem Maria, que memorizou e mais tarde escreveu. Nessa mesma época funcionou como mediador da crise entre os índios e os portugueses, cujo episódio é conhecido na história como a Confederação dos Tamoios. 136 Foi ordenado sacerdote aos 32 anos de idade em 1566, na ocasião em que foi à capitania da Bahia, levando notícias ao Governador Geral Mem de Sá a respeito da luta contra os franceses no Rio de Janeiro. Em 1567, por ocasião da luta e expulsão dos franceses, participou da fundação da cidade do Rio de Janeiro. Em 1569 fundou um povoado chamado Iritiba (ou Reritiba), atual cidade de Anchieta, no estado do Espírito Santo. Entre 1570 e 1573 dirigiu o Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro. Em 1577 foi nomeado provincial da Companhia de Jesus no Brasil. Foi substituído na função que exerceu por dez anos em 1587 por sua própria solicitação. Depois disso ainda dirigiu o colégio dos jesuítas em Vitória, no Espirito Santo. Em 1595 conseguiu a dispensa dessa direção e foi em definitivo para a aldeia de Reritiba, que havia fundado. Lá faleceu em nove de junho de 1597. Foi levado pelos índios para Vitória, no Espirito Santo, onde foi sepultado ao lado do altar mor da igreja de São Tiago, onde hoje está localizado o Palácio Anchieta, sede do governo estadual. Seu processo de beatificação foi iniciado em 1617 na capitania da Bahia, mas só foi efetivamente finalizado em Vitória, no Espírito Santo, em 9 de junho de 1980, pelo papa João Paulo II. Sua vasta Obra foi escrita em verso e em prosa em quatro linguas: português, latim, castelhano e tupi. As suas obras literárias são: De Gestis Mendi de Saa ou Os feitos de Mem de Sá, Arte de gramática da lingua mais usada na costa do Brasil, essa duas foram publicadas em Coimbra em 1563 e 1595, quando ele ainda era vivo. Depois, Dei Matre Maria, o célebre poema à virgem. Existe tambem uma carta que Anchieta escreveu ao padre Diogo Mirão em 9 de junho de 1565, esta é de muita importância 137 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro histórica por contar a história ocorrida na época em que nasceu a cidade do Rio de Janeiro. Era realmente um homem notável e possuidor de muitas qualidades, pois, além de sacerdote e missionário, foi também gramático, historiador, poeta e teatrólogo. Padre Luis de Gram: O padre Luís de Gram nasceu em Lisboa, Portugal, em 1523 e morreu em 16 de novembro de 1609 em Pernambuco, Brasil, aos 86 anos. Era filho de Antônio Taveira. Estudou direito em Coimbra, tendo entrado para a Companhia de Jesus em 1543 — chegando a ser reitor do colégio, além de cursar artes. Veio ao Brasil na mesma nau em que viajou o segundo Governador Geral da colônia, Duarte da Costa, em 1553. Nessa embarcação também vieram outros clérigos, dentre os quais citamos: José de Anchieta, Brás Lourenço e Ambrósio Pires e os irmãos João Gonçalves, Antônio Blasques, Gregório Serrão. Gram foi colateral de Nóbrega, uma espécie de vice-provincial, compartilhando de algumas decisões referentes à Companhia de Jesus, sobretudo nas capitanias do sul, em que atuavam inicialmente de forma mais incisiva. Apesar disso, divergiam em algumas opiniões, como a questão de a Companhia possuir bens, ao que Gram era contra, seguindo os preceitos do voto de pobreza. Nóbrega, por outro lado, favorável, para o sustento e manutenção no clero em terras coloniais. Também a questão da escravidão utilizada pela Companhia era um ponto de divergência. Neste debate, preponderou a opinião realista de Nóbrega. Foi nomeado por duas vezes reitor do Colégio da Companhia de Jesus na capitania da Bahia. A primeira vez foi entre os anos de 1554 e 1556, e novamente assumiu o cargo de 1574 e 1575. Além destes cargos, assumiu outra posição de destaque: a supervisão das capitanias do sul. 138 Luís de Gram sofreu uma grave doença em meados de 1560 à qual quase não sobreviveu. Também quase foi vitimado por um naufrágio ocorrido na capitania do Espírito Santo, em 1573, no dia 28 de abril, na foz do Rio doce. Foi nomeado provincial na colônia em 1560. As cartas que o indicaram para o cargo foram enviadas pelo padre Laines, um dos fundadores da Companhia de Jesus. O primeiro momento em que encontramos o padre Luís de Gram envolvido em assuntos relacionados à Inquisição portuguesa foi em 1560, pouco antes da instauração do segundo processo inquisitorial até então conhecido no Brasil — movido contra o francês João Cointas, monsenhor de Bolés, em 1563. A última participação do padre Luís de Gram em episódios inquisitoriais foi na ocasião da Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, realizada pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça entre 1591 e 1595. Dentre os denunciados pelo clérigo estavam o francês Pero de Vila Nova, o físico Jorge Fernandes, os cristãos novos Antônio Serrão, Álvaro Sanchez, Ana Roiz, Branca Dias, o pai de Simão Soeiro, Fernão Roiz e Gaspar de Bairros. Luís de Gram, enquanto membro da Companhia de Jesus, sentia-se na obrigação de delatá-los à Inquisição, representada por Furtado de Mendonça. Fonte: http://revistahistorien.com/12-%20acaojesuitica. pdf 139 Capítulo XV Considerações pré-viagem — Paschoal, quais serão nossos objetivos imediatos em relação à viagem? — Por enquanto, tentar seguir os passos dos jesuítas e ver o que a gente consegue. Depois iremos definindo o caminho conforme as informações apareçam. — Paschoal, eu tenho muitas dúvidas, o sentimento é de que faltam muitas coisas ou que as coisas não se encaixam direito. — Sim, Pedro, eu tambem partilho dessas ideias. Aliás, ainda não analisamos uns intrigantes versos da vigésima e vigésima primeira citação: Um vil pombal de infiéis//covil de ex-iniciados//sucumbindo ao poder e cobiça//forçam irmãos a renegar o voto. Jazem muitos guardiões//mas ainda vivos também//abrigados na casa de Deus//protegendo o devarim//Nem sempre são religiosos de bons hábitos. — Mais uma vez abusando das deduções, eu diria que o primeiro verso se refere ao Marquês de Pombal e sua gente. O segundo sugere que estes seriam iniciados em alguma seita ou irmandade. O terceiro seria algo como a traição de um voto imposto nessa iniciação (talvez a isso esteja relacionada a expulsão João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro dos jesuítas). A próxima citação seria uma indicação de que estariam perseguindo para forçá-los a revelar o segredo. Na última citação, penso que os guardiões mortos seriam os judeus e cristãos novos, como ocorreu em 1506 em Lisboa, no episódio que ficou conhecido como o “massacre de Lisboa”. No antepenúltimo verso não seria demais supor que essa irmandade ou organização ainda exista nos dias de hoje e esteja ativa. No penúltimo, o pretenso segredo que estariam protegendo. O último talvez queira dizer que existem não somente religiosos que vestem hábitos, mas também leigos, como irmandades ligadas a igrejas, grupos de oração ou coisas assim. lei abolindo as diferenças entre cristãos novos e cristão velhos, inclusive proibindo que isso fosse falado ou escrito e impondo duras sanções, como chicoteamento em praça pública, confisco de bens, perda de pensão e até deportação. Sem falar que ele expulsa os jesuítas de Portugal e todas as colônias. — Paschoal, algumas coisas são especialmente intrigantes; as atitudes de Pombal, por exemplo. Não sei se essa afirmação do verso de que antigos iniciados hoje são perseguidores tem alguma relação, mas o fato é que primeiro Pombal trabalha para instalar a Inquisição com a qual persegue e trucida muita gente, principalmente os judeus e cristãos novos. Mais à frente, como aconteceu em 25 de maio de 1773, ele chegou a promulgar uma — Pedro, penso que a esse respeito as coisas não sejam tão simples como normalmente dizem. Analisando-se imparcialmente a história como um todo, percebe-se que, na verdade, ninguém gosta de fazer o mea culpa e admitir que errou em algo ou pelo menos analisar com honestidade os seus acertos e erros. O ser humano é muito pretensioso e julga que ele sempre está com a razão e o outro é quem está errado. É suficientemente egoísta para defender com unhas e dentes os seus interesses, mesmo que seja em detrimento do próximo. Se você perguntasse a cada um deles, provavelmente diriam que continuavam em paz com suas consciências, isto é: o alto clero achava que tinha o direito de governar por ser representante da lei de Deus, que se sobrepuja a humana. Os nobres, que haviam nascido assim porque Deus quisera, sempre viveram a vida contemplativa, e era normal que existissem seus privilégios. Pombal, por sua vez, enquanto administrador, diria que preferia um estado laico, econômica e socialmente equânime e não se importava que, para isso, tivesse de esbarrar no direito de o clero mandar nem na possibilidade de os nobres perderem privilégios; mesmo que fosse odiado e demonizado por esses. Quanto a governar com mão de ferro, talvez dissesse que a liberdade só poderia vir no futuro quando a igualdade fosse alcançada, e se tivesse de ser temido em vez de amado, como discutia Maquiavel, não faria para ele a menor diferença. Quanto às maquinações, agiu exatamente como todos os políticos da história. A verdade é que, apesar de tudo, foi um grande administrador. 142 143 — Boa dedução, Pedro, Mas pode ser também que Pombal os quisesse expulsar do Brasil para que trouxessem de volta a Portugal algo que haviam levado anteriormente em sua bagagem e com isso ficasse mais fácil apoderar-se do que pretensamente pretendia. São muitas opções, mas continuam sendo meras conjeturas. Paschoal falou assim, mas não deixou de sentir certo malestar ao ouvir Pedro falar em organização presente ainda hoje disposta a proteger o que quer que fosse a qualquer custo. Por um momento, vieram-lhe à mente todos aqueles acontecimentos dos últimos dias. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Interessante a sua tese, Paschoal. Mas ainda tenho alguns questionamentos. Talvez seja mesmo um monte de suposições sem fundamento. Apesar disso, se essa coisa de segredo fosse mesmo verdade e se os guardiões estivessem mesmo por lá no meio dos jesuítas ou agregados a eles, seriam essas andanças pelo litoral e interior uma “técnica de tartaruga”, que precisa andar por muitos lugares e despistar muitos antes de finalmente depositar seus ovos? — Certo, porém, por enquanto, já temos tarefas demais e não podemos desfocar os objetivos sob o risco de não chegarmos a lugar nenhum. Deixemos essas questões de lado por ora, a menos que tropecemos nelas pelo caminho, se é que você me entende. — Entendo perfeitamente. — Sim, Pedro, tudo é possível. No entanto, esse era o trabalho que “El Rei” os confiara: fazerem-se presentes no maior número possível de locais e imprimir as marcas de sua colonização, enfim, realmente tomar posse da terra. O ensino é um dos fatores de integração mais poderosos, e os jesuítas eram especialistas nisso. — Há, ainda, outras questões: teria Anchieta se afastado de suas funções administrativas e se isolado na aldeia de Reritiba com o propósito de escrever algo importante? Haveria algum livro possivelmente inconcluso devido à sua morte? Estaria ainda por lá, oculto em alguma parte? Seus aposentos seriam os mesmos de hoje num quarto contíguo à igreja? Haveria alguma biblioteca particular oculta em algum lugar por lá? — São questões muito difíceis de ser respondidas. Não existem nem mesmo indícios que indiquem a veracidade dessas questões. Quem quisesse descobrir tudo isso e tivesse realmente um motivo para achar que valeria a pena remexer as cinzas do passado não teria alternativa senão ir lá. Mas, antes, possivelmente teria de passar por São Paulo, Rio e Vitória, conforme parece ter sido a sua rota. — Sim, e possivelmente estaríamos incluídos nisso. 144 145 Capítulo XVI Brasil Àquela altura, eles já haviam fugido ligeiramente ao trabalho inicialmente proposto pelo departamento, embora pudessem ter descoberto algo muito mais interessante. O estado atual dos acontecimentos os arremetia ao Brasil. Por outro lado, não dava mais para voltar atrás. O difícil era convencer a universidade a bancar o novo projeto e criar uma boa explicação para os patrocinadores sobre algo que nem ao menos sabiam exatamente o que era nem se resultaria em algo palpável. Para além dos recursos financeiros, havia o problema das autorizações oficiais que não somente eram difíceis e envolviam responder a muitas perguntas, mas esbarrariam também na lentidão da burocracia. Decidiram pedir alguns dias de licença, custear as próprias despesas e trabalhar como turistas e invasores, torcendo para não sofrerem complicações com a polícia. O professor titular conhecia algumas pessoas por aqui, e o assistente já havia estado por aqui em sua juventude e conhecera algumas pessoas. São Paulo Dessa vez, fizeram um planejamento de segurança bem mais apurado e tomaram alguns cuidados especiais. Levaram além da mala uma bagagem de mão, maletas como as que os executivos usam para carregar papéis contendo apenas uma peça João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro de roupa e pequenos objetos de uso pessoal. Ao desembarcarem, deixaram suas malas no maleiro do aeroporto e tomaram um táxi que deveria levá-los até a estação de metrô mais próxima. Dentro do táxi, examinaram minuciosamente as maletas e descobriram rastreadores que não conseguiam arrancar. Saltaram, pegaram o metrô e foram até a estação Tietê, onde saltaram e entraram no shopping mais próximo. Compraram roupas comuns e tênis. Vestiram-se no banheiro e lá deixaram as maletas e as roupas que tiraram. Saíram do shopping e tomaram um táxi até o hotel mais próximo. Depois de se acomodarem no hotel, começaram a procurar os pontos turísticos mais antigos da cidade. Sabiam da existência do pátio do colégio jesuíta em torno do qual a cidade teria sido fundada e de vestígios da antiga construção. Chegaram até lá, visitaram o museu Anchieta e o pátio propriamente dito. Ficaram pasmos com a destruição histórica. Os fragmentos das edificações mais antigas que conseguiram ver não passam de vestígios da terceira edificação. Nada de ruínas do mundo antigo, conforme se vê em muitas partes da Europa. As partes mais antigas da cidade são o centro antigo de São Paulo, muito mais recente. Até mesmo os rios da região foram retificados e canalizados, muitos já não passam de valas de esgotos sanitários a céu aberto. tes, conforme sempre ocorria, dado o seu hábito de perderem mais tempo examinando o que há à sua volta. De repente, dois volumes cobertos por uma manta preta que estava no solo, como num passe de mágica, ergueram-se na frente deles e os abordaram firmemente. Eram dois sujeitos altos e corpulentos, como da vez anterior. Um deles se dirigiu ao professor Paschoal falando uma mistura de português e espanhol com um sotaque germanizado e vários erros de concordância: O minúsculo cemitério — provavelmente da época da segunda edificação — ficou por muitos anos soterrado e só muito recentemente houve uma tentativa de resgate. O que se conseguiu organizar no subsolo do museu são paredes que parecem ter sido feitas com as pedras dos escombros que conseguiram obter nas escavações. Decidiram fazer um exame minucioso de tudo que havia por ali, no pátio, andar superior e subsolo. Quando estavam neste, acabaram se desgarrando do grupo de visitan- O professor Paschoal se apressou em estendê-la em sua direção, mas foi detido pela negativa do outro. 148 149 — Vocês estão ficando bons na arte da camuflagem. Quase conseguiram nos enganar, mas saibam que estão tratando com profissionais experientes em espionagem que sabem muito bem o que fazer quando os rastreadores não funcionam. Aliás, esse transtorno já é previsto desde o início das operações para garantir seu sucesso. — Sim, mas só podemos trabalhar com o que temos a nosso alcance — respondeu o professor Paschoal, exasperado. — Vamos ao que realmente importa. — E o que importa? O que querem de nós desta vez? — Sua bíblia, professor Paschoal. — Não ofenda nossa dignidade profissional, professor. Não pense que vai nos enganar com um truque tão infantil. Não é essa bíblia a que me refiro e eu tenho a certeza de que o senhor entendeu muito bem do que precisamos. — O senhor solicitou a bíblia. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Não faça piadas, professor, não tente ganhar tempo. Nós queremos o livro que está na mão do professor Pedro. — E se eu me recusar? — Já nos conhece, professor, sabe que não nos importamos em varrer as pedras do caminho para concluir nossos objetivos. Matar é só mais um detalhe operacional. Passe-me o livro já — disse, fazendo menção de pegar algo dentro da sua capa. — Aqui está — disse o professor Pedro. No momento em que vieram em sua direção pegá-la, aquela velha cena se repetiu: foram fulminados por tiros de pistola com silenciadores e caíram. Paschoal e Pedro trataram de sair o mais rápido que puderam e pegaram o metrô mais próximo para sair dali e saltar no local mais próximo ao hotel. Chegando lá, depois de se acalmarem um pouco, conversaram. — Pedro, você não ficou preocupado em entregar o livro? — Qual nada, era falso. Era apenas uma agenda nova com informações manuscritas bem distorcidas, versículos trocados por outros, etc. — E o original? — Está aqui — mostrou, levantando a camisa na altura do cinto. — A minha bíblia também era falsa. A original com as anotações e marcação de páginas e versículos também está aqui, do mesmo modo que você fez — ele disse, ao que eles riram. — Tudo é possível, afinal, como disseram, são profissionais experientes. Por outro lado, se nos matassem ali, não deixariam de nos revistar. De qualquer forma, nós nos arriscamos muito. — Mas que importa? De todo modo, nos matariam mesmo. — Com certeza, mas tenho ainda uma preocupação adicional. — Temos muitas, mas a qual exatamente se refere? — Os nossos pretensos defensores. Como ninguém dá nada de graça, devem estar interessados nas mesmas coisas que os nossos agressores. Eles deixem a impressão de que preferem nos manter vivos enquanto formos úteis para abrir-lhes o caminho. Quando isso não for mais necessário, não hesitarão em liquidar-nos também. Afinal, ninguém se daria ao trabalho de estar sempre por perto só para livrar nossa pele a troco de nada. — Com certeza, essa possibilidade é bem real, mas, pelo que vimos até agora, isso está totalmente fora do nosso controle. — E o pior é que não dá mais para recuarmos. — Então vamos em frente. Continuemos dentro do nosso planejamento de segurança. — Ótimo. Descansemos um pouco e saiamos dentro de vinte minutos, uma vez que não temos muito que arrumar. — Agora eu fiquei em dúvida. Será que eles haviam percebido o nosso jogo? Será que o truque infantil a que ele se referia era isso? A agitação dos últimos acontecimentos e a preocupação com os próximos não os deixavam relaxar. Por outro lado, aquele dilúvio de interrogações dava voltas em suas cabeças como uma 150 151 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro tempestade. A única válvula de escape era falar muito, conversando sobre o tema. — Pedro, a ideia de segurança que muitos alegam para a subida da serra em direção ao interior não é muito consistente, principalmente em se tratando de segurança pessoal, pois os indígenas do interior poderiam atacar também, e a possibilidade de obter defesa era menor longe do litoral mais povoado. A menos que os que temiam não eram exatamente os índios ou que procurassem manter alguma coisa afastada do litoral. Como você analisa isso? — Ora, essa pretensa segurança realmente não existia, como o tempo se encarregou de mostrar, segundo nos revela a história. Até mesmo o local que escolheram para assentar seu acampamento, sobre uma colina plana de onde se poderia monitorar o vale dos dois rios mais próximos e escolher a melhor rota de fuga em caso de necessidade, não se mostrou tão segura. Aliás, seus problemas foram bem maiores, pois, além dos índios, também se viram ameaçados pelos brancos e mamelucos, chegando inclusive a serem expulsos em 1640 por causa de desavenças com os colonos. Só conseguiram retornar cerca de treze anos mais tarde. Penso que ali definitivamente não seria seguro para a questão pessoal nem de qualquer outro tipo. Por outro lado, o que viria a ser São Paulo logo se tornou o ninho de um bando de aventureiros que visava o lucro fácil e imediato e culminou em organizações como as bandeiras. Posteriormente, embrenhou-se pelo interior à procura de ouro e pedras preciosas, imprimindo as primeiras devastações ambientais e de nações indígenas que conhecemos. — Paschoal, pelo que sabemos, era intenção do governo português efetuar o quanto antes a colonização das terras como um meio de domínio delas. Forçosamente, teriam de sair do litoral em direção ao interior, o que significava subir a serra. A primeira vila fundada pelos colonizadores foi Santo André da Borda do Campo, em 1553, onde, segundo consta, morava o português João Ramalho que muitos anos antes fizera contato com os índios da região e caíra nas graças da índia Potira, a quem os portugueses chamavam Bartira, filha do cacique Tibiriçá. Tomou-a por mulher e por ali mesmo ficou vivendo. Consta que, após o dia 6 de janeiro, dia de reis, um grupo de jesuítas subiu a serra de Paranapiacaba em direção àquela vila, percurso que conseguiram fazer em dezoito dias. Paranapiacaba é um nome específico daquela região da serra do mar e, na língua tupi, significa “Lugar de onde se pode ver o mar”. Nos dias que se seguiram, continuaram a subir a serra do mar até um planalto chamado Piratininga. Lá, encontraram uma colina chamada Inhapuambuçu, de onde se tinha uma vista dos vales dos rios Tamanduateí e Anhangabaú. Ali, naquele ano de 1554, segundo relata a carta do padre Anchieta, construíram um barracão de taipa coberto de palhas de palmeira de 10x14 passos. Ainda segundo o mesmo relato, era o dia 25 de janeiro, data da conversão do apóstolo São Paulo, segundo a tradição da igreja católica, daí o nome escolhido para o local. No local, nasceu o colégio dos jesuítas e o padre Manoel de Paiva foi o seu primeiro diretor. No ano de 1556 o padre Afonso Brás, versado em arquitetura e experiente em edificações, ampliou as instalações, construindo oito cômodos em que os jesuítas morariam. Em 1640 os jesuítas foram expulsos de lá devido a desavenças com os colonos. Voltaram em 1653. Ele prosseguiu: — Façamos uma retrospectiva histórica dos fatos que culminaram na fundação da cidade, analisando-os como for possível. Faça-me uma explanação a partir do ponto inicial. — Casas foram se aglomerando em torno do local dando origem a uma povoação que, em 1560, tornou-se vila, mas não 152 153 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro conseguiu prosperar por causa da distancia do litoral que lhes dificultava o comércio e porque as terras da região não se prestavam à produção dos produtos de exportação da época. Em 1681 a vila era considerada cabeça da capitania e em 1711 tornou-se cidade. Apesar das dificuldades mencionadas, ali era o quartel general dos bandeirantes que se dispunham a desbravar o sertão em busca de riquezas, o que atendia aos objetivos portugueses. Uma terceira edificação de “taipa de pilão” surgiu no local após a demolição da anterior, sobrando poucos vestígios dessa. Em 1759 os jesuítas foram expulsos do Brasil por ordem do Marquês de Pombal, seus bens e tudo mais que administravam foram confiscados pelo estado. Assim, o local tornou-se sede do governo, funcionando desde 1765 até 1908. No fim do século XIX, novas modificações foram impressas às edificações existentes e a arquitetura dos antigos casarões coloniais da época não foi devidamente preservada. Segundo registros, a igreja foi demolida em 1896, e o antigo casarão dos governadores, em 1954. O conjunto arquitetônico atual data de 1979. Hoje em dia, só o que se pode ver são fragmentos de uma parede do antigo colégio. Até mesmo o antigo cemitério, da época da segunda edificação, foi soterrado e só muito recentemente houve uma tentativa de resgate. O que se conseguiu organizar no subsolo do museu Anchieta construído no local são paredes que parecem ter sido feitas com as pedras dos escombros que conseguiram obter nas escavações, aquele local onde fomos abordados. — Impressionante, Pedro, como não se preserva a história. ça dos índios a ponto de assustá-los e acharem que ele era um feiticeiro? — Pelo que consta, o padre Anchieta era um entusiasta do teatro, tendo inclusive escrito peças. É possível que conhecesse também artes cênicas e, entre elas, recursos de palco. Poderia muito bem, ao se sentir ameaçado, usar um desses recursos para impressionar os índios e angariar-lhes o respeito. — É possível. Agora, contudo, passemos à nossa nova etapa, vamos fechar a conta e seguir, conforme planejamos, pois já está na hora — disse, consultando o relógio. Saíram discretamente e recusaram a oferta do funcionário de chamar um táxi. Saíram a pé por ali e tomaram o metrô até a estação mais próxima do aeroporto. Ali, tomaram um táxi até lá. Entraram na fila do check-in e, quando chegou sua vez, perguntaram algumas coisas como se precisassem de informações, pegaram um papel e colocaram-no no bolso, simulando a guarda do talão de entrada. Em seguida, saíram em direção à sala de embarque. No meio do caminho, deram meia volta, retornaram ao saguão, foram ao banheiro e depois passaram pelo maleiro, momento em que pegaram suas malas e rumaram até a próxima estação do metrô de táxi. Foram de metrô até próximo a estação rodoviária, onde pegaram um ônibus para o Rio de Janeiro. Rio, algumas horas mais tarde. — Só mais uma coisa a título de curiosidade: o que você acha da lenda que afirma que Anchieta teria levitado na presen- Desembarcaram, tomaram um táxi e foram para um hotel modesto onde poderiam descansar um pouco e examinar sua bagagem para ver se não havia rastreadores ou algum objeto estranho. Não conseguiram encontrar nada; pelo menos aparen- 154 155 — Realmente, mas isso não aconteceu só ali. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro temente tudo estava calmo, mas a sensação persecutória não os abandonava. Precisavam ir em frente, todavia. — Acha que os despistamos, Paschoal? — Duvido muito. É mais fácil acreditar que mudaram sua tática. A questão é saber como e onde será o próximo ataque e o que farão. — O que faremos agora? Uma nova visita por aqui? — Não sei se valeria a pena. Temo que não encontraremos nada por aqui. — Por quê? — Porque o rio sempre foi um lugar muito visado. Tornou-se a sede do governo geral da colônia a partir de 1763, quando, por ordem do Marquês de Pombal, este foi transferido da Bahia para cá. O Rio foi sede do reino em 1808 com a vinda de Dom João VI para o Brasil, sede do governo imperial e depois da república. Se alguém tencionasse ocultar algo, este lugar seria impróprio. Haveria muita gente da Europa, muitos aventureiros, muitos especuladores, muitos bisbilhoteiros... — Sim, mas os jesuítas estiveram por aqui e ajudaram a Estácio de Sá a fundar a cidade e aqui também estabeleceram um colégio. onde se tinha uma melhor visão e se poderia vigiar melhor, um quesito de segurança. Nessa mesma localidade, o padre Manoel da Nóbrega fundou o colégio dos jesuítas, sendo seu primeiro diretor. Depois de 1759 os jesuítas foram expulsos e a edificação serviu como hospital militar. Mesmo após 1814, quando a Companhia de Jesus foi reabilitada, os jesuítas não voltaram para lá. Em 1922 a cidade sofreu uma reurbanização e todo o morro do Castelo foi desbastado, sendo demolido tudo que havia por lá, inclusive a igreja, com as reformas ainda inconclusas e o antigo colégio. Os vestígios são um conjunto barroco que se pode ver no saguão do colégio Santo Inácio, uma imagem de Inácio de Loiola num altar que teria sido encomendada para colocar na antiga igreja e que não chegou a ser usada lá; bem como o sino que possivelmente tenha estado na torre da antiga igreja. — Quanta falta de preservação! Realmente, se existisse algo que tenha sido colocado aqui, possivelmente já foi extinto. — Então, qual nosso próximo passo? — Vitória, no estado do Espírito Santo. Viajaremos para lá o quanto antes. Tomaram um táxi e saíram em direção ao aeroporto o mais breve que puderam. Por sorte, conseguiram as passagens e logo embarcaram. — Com certeza, mas não creio que tenham deixado algo por aqui. Por outro lado, sobre isso só existem vestígios. A propósito, faça-me uma síntese sobre esse assunto. — No ano de 1567, logo após a expulsão dos franceses, o núcleo do povoado foi transferido para o morro do Castelo, de 156 157 Capítulo XVII Vitória Fizeram um breve programa turístico e depois seguiram para o foco da sua pesquisa. Passaram, então, a discutir sobre a história local e as edificações mais antigas. — Pedro, faça-me uma retrospectiva do início da colonização do Espírito Santo. — Pelo que a história registra, esta região foi reconhecida pelos navegantes em 1501, mas foi na época das capitanias hereditárias que Vasco Fernandes Coutinho recebeu do rei uma capitania situada entre a divisa do rio Mucuri e a do rio Itabapoama. Desembarcou em 23 de maio de 1535 numa praia conhecida hoje como a prainha de Vila Velha, onde se estabeleceu o primeiro povoamento. — Por que foi chamada de Espírito Santo? — Em homenagem à terceira pessoa da Santíssima Trindade, uma vez que essa era época da oitava de pentecostes, segundo a tradição religiosa. — Qual foi a primeira edificação? — Foi uma pequena fortificação que chamaram de Fortim do Espírito Santo. Em torno dele surgiu a vila do Espírito Santo, mais tarde chamada de Vila Velha, situada onde hoje é a cidade de Vila Velha. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Por que o nome “Vila Velha”? — Porque Vasco Fernandes Coutinho teve de fundar outra vila situada numa ilha próxima, que chamaram de Santo Antônio, por ser dia 13 de junho quando nela aportaram e que foi chamada então Vila Nova. Como os índios eram extremamente hostis, atacavam constantemente e a topografia era plana, a defesa era dificultada. Na ilha, a possibilidade de defesa era maior, pois havia montanhas e 33 ilhas menores. Além disso, a entrada da baía onde a ilha maior se encontra era mais estreita, então pensavam ser mais seguro mudar para lá. Essa é a atual ilha de Vitória, que é a Capital do estado. — Por que “pensaram”? Não era realmente mais segura? — Um pouco mais segura, mas não ficaram totalmente imunes aos ataques. Segundo os registros, em oito de setembro de 1551 os índios atacaram esse novo povoado. Os colonos resistiram bravamente e os venceram, então o povoado começou a ser chamado Vila da Vitória, e daí derivou o nome atual. — E quanto às missões dos jesuítas? Quando chegaram? — As primeiras começaram a chegar nessa época. Vieram exatamente com o propósito de catequizar os índios de modo a evitar novos problemas. — E depois disso? A situação ficou definitivamente calma na região? — Onde se instalaram os jesuítas na vila? — Na parte leste da ilha principal, às margens da baía, em um terreno um pouco elevado. O padre Afonso Brás e o irmão Simão Gonçalves inauguram em 25 de julho de 1551 a construção primitiva da igreja de São Thiago, feita de madeira, barro e palha. Um incêndio destruiu a primeira sede da igreja. O padre Ignacio de Tolosa comandou a reconstrução (dessa vez de pedra e cal de conchas), além de perfurarem um poço a cerca de dez passos atrás da igreja. É o local onde se localiza hoje o palacio Anchieta, sede do governo do estado, após várias modificações. — Onde o padre José de Anchieta entra na história dessa igreja? — O padre José de Anchieta já havia passado antes pelo Espírito Santo, tendo inclusive fundado em 1569 a povoação de Iriritiba, a cerca de 80 km ao sul da Vila de Vitória. Em 1587, quando ainda era o provincial da companhia de Jesus, depois de 10 anos nesse exercício, solicitou a dispensa dessas funções, o que foi concedido. Contudo, ele teve de dirigir o colégio dos jesuítas de Vitória. Chegando aqui, concluiu a ala onde seria o colégio. Em 1595 conseguiu ser dispensado também dessas funções e retirou-se para Reritiba onde faleceu em 1597. Seu corpo foi transportado pelos índios para Vitória onde o sepultaram nas dependências da igreja de São Thiago, atual palácio do governo, onde seu túmulo pode ser visitado. — Não. No final do século XVI começaram a acontecer muitos ataques de invasores franceses, ingleses, holandeses e corsários, de um modo geral. Foi necessário melhorar a defesa, então foram construídas quatro fortificações em várias posições da vila. Na verdade, foram oito, contando com os de Vila Velha. — Dessa construção restam apenas vestígios no interior do palácio, mas relatos e pinturas antigas atestam que seria um quadrilátero com duas torres e um relógio, típico da arquitetura 160 161 — Fale um pouco sobre a arquitetura dessa contrução. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro moura do século XVI. O padre Anchieta concluiu a construção da igreja e acomodações. Em 1587 foi construída a segunda Ala, e, em 1734, a terceira, que fechou o pátio. Em 1759, com a expulsão dos jesuítas, o colégio destes foi extinto e tudo foi confiscado pelo governo da época. Em 1798, dois anos depois de um novo incêndio, houve uma recuperação do que ja funcionava como palácio do governo. Sobrava a igreja de São Tiago, que servia à comunidade. Em 1911 ela foi comprada do bispado para aumentar a area construída do palácio. Assim, em 1912, houve uma reconstrução e o início da descaracterização do conjunto. Naquela época, a torre menor foi demolida. Finalmente, em 1922, a segunda torre tambem foi derrubada, acabando completamente com o que havia do prédio antigo. — Sim. Em Vitória há a capela de Santa Luzia, a mais antiga, construída no século XVI por Duarte Lemos, dono da sesmaria onde se situava a vila. Fora concedida pelo donatário da capitania, com arquitetura em estilo colonial e altar barroco, atual sede regional do instituto do patrimônio histórico-nacional. Há o Convento Nossa Senhora do Monte do Carmo, construído em 1682, possuindo uma igreja e o convento propriamente dito. Há também a Igreja do Rosário, construída em 1765, e esta possui várias peças antigas de arte sacra. Existe, além dessas, a Igreja de São Gonaçalo, construída em 1766, sobre a qual já falamos. Ela se tornou a igreja matriz após a demolição da Igreja de São Tiago, onde é a sede da irmandade de Nossa Senhora do Amparo e da Boa Morte, hoje, uma arquiconfraria. — Quanta falta de preservação. Para nós, historiadores, isso é um sacrilégio. Mas será que sobrou alguma coisa daquela época? Há também o Convento de São Francisco, contruído pelos padres franciscanos a pedido do donatário Vasco Fernandes Coutinho. A arquitetura é em estilo colonial. Lá existe a capela de Nossa Senhora das Neves e vestígios de antigo cemitério. Hoje é sede da arquidiocese de Vitória. — Além do túmulo do padre Anchieta, ainda se tem vestígios do altar da Igreja de São Thiago nas dependências do palácio do governo; e uma imagem de Santo Inácio de Loiola e outra de São Francisco Xavier. Estas estão atualmente na Igreja de São Gonçalo, construída em 1776 pela Irmandade “Nossa Senhora do Amparo e da Boa Morte” existente desde 1707, para onde foram levadas na época da demolição da Igreja de São Thiago. — Existiram outras irmandades na vila? — Pelos registros que já examinamos existiram tambem a “Venerável Ordem Terceira da Penitência” e a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. — Existem outras igrejas antigas além destas? 162 Ele prosseguiu: — Em Vila Velha existe a Igreja do Rosário, construída em 1535, logo após a chegada do donatário Vasco Fernandes Coutinho, sendo a mais antiga do estado. Outra igreja é a capela do frei franciscano Pedro Palácios, contruída em 1560. Por último, há o Convento da Penha, construído em 1561 no cume do morro, a 154 m de altura, a pedido do filho do donatário. — E as outras das redondezas? — Existem várias, sempre cercadas de muitas lendas sobre tesouros ocultos, túneis e outras coisas do imaginário popular. 163 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Alguns exemplos são a Igreja de Nossa Senhora da conceição da Serra, construída em 1556, onde hoje é a Sede do município de Serra; a Igreja dos Reis Magos, construída entre 1569 e 1580 na localidade de Nova Almeida, também no município de Serra; a Igreja de Sant’Ana e Santa Maria, construída em 1585 em Guarapari ES; a Igreja de Santana, construída em 1619 em Meaípe, município de Guarapari. Além delas, há a Igreja de São Mateus, construída em 1764 em São Mateus e a Igreja de Nossa Senhora da Assunção, construída entre 1569 e 1604. Foi nessa que o padre José de Anchieta passou os últimos anos de sua vida e morreu. — Existe algo de característico nessas edificações? — Salvo algumas variações em seu estilo arquitetônico, alguns itens parecem ter sido sempre priorizados em função de suprimentos, segurança, exercício do ofício religioso, exercício da missão a que se propunham. Assim temos construções em locais elevados com vista privilegiada sobre toda a região, presença de torres que poderiam facilitar a observação, poços de água ou outros mananciais a distância relativamente curta, moradia contígua ao templo, rotas de fuga fáceis, abrigos em localidades próxima em forma de oratórios (grutas), etc. tórias. São exemplos disso o do morro do convento, que ligaria a igreja de Guarapari ao morro do Atalaia e o; que ligaria a igreja de Anchieta ao Monte Urubu. Tecnicamente, seria impossível a construção de túneis tão extensos como os citados nas lendas em terrenos de rochas sólidas e outros acidentes, especialmente em épocas onde as técnicas e ferramentas eram rudimentares e a mão de obra especializada nessa atividade, escassa. — Excelentes relatos, Pedro, vejo que estudou bastante o assunto, asim como eu. — Sim. Estamos afiados, como dizem. Mas e agora, qual será o nosso próximo passo? — Com certeza, a cidade de Anchieta, a 80 kilometros daqui de Vitória, a antiga aldeia de Iriritiba onde o padre Anchieta passou seus últimos anos. Antes, façamos uma visita a alguns pontos turísticos mais próximo dos nossos interesses. — E essas históriahistórias sobre túneis têm mesmo algum fundamento? — É possível que tenha existido uma rota de fuga na construção para que fosse possível sair rapidamente sem ser notado para uma área externa de fácil evasão. O resto fica por conta da imaginação popular. Existem relatos de algumas pessoas que afirmam ter encontrado algo que parecia a boca de algum túnel, o que foi devidamente aumentado pelos contadores de his164 165 Capítulo XVIII Os fantasmas do palácio Para cumprir o papel de turistas e tentar captar mais alguma coisa, decidiram visitar o palácio Anchieta, sede do governo do estado. Fizeram-no acompanhando um pequeno grupo de visitantes para usufruir da presença de um apresentador que narrava todos os fatos históricos e contava tudo sobre aquele monumento. Contou inclusive sobre lendas e histórias de fantasmas de pessoas que residiram ali no passado e insistiam em não deixar o prédio, por essa razão, assombravam as pessoas que os incomodavam para que elas saíssem rapidamente dali. Visitaram vários cômodos onde ainda funcionam departamentos do poder público. Visitaram os diversos salões. Ao chegar ao recinto onde está o túmulo do padre Anchieta, Paschoal e Pedro ficaram bastante entretidos com os detalhes do ambiente e examinaram tudo mais detalhadamente, então, acabaram se perdendo do grupo. Não demorou muito e apareceram coisas estranhas, e, por fim, dois fantasmas de pessoas vestidas com as roupas daquela época, no exato momento em que examinavam um fragmento de parede antiga. — Quem são vocês? — Falou o professor Paschoal em tom desafiador. — Não importa, o importante é que sabemos que são voces: professor Paschoal e professor Pedro, pesquisadores da universidade de Coimbra. — E o que vocês têm a ver com isso? João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Vocês nos devem a vida de quatro dos nossos companheiros. Lembram-se de Amsterdã e São Paulo? — Lembro-me, mas não morreram por isso, mas provavelmente pelo que procuravam. Àquela altura, eles já sabiam que a história dos fantasmas era um engodo. Estavam mais vivos do que nunca. Aliás, eram de um tipo físico bem parecido com os primeiros agressores. De fato, parecia que a organização ou seja lá o que fosse escolhia bem seus agentes. — Pode ser, mas agora nós viemos buscar. — Mas que diabos! Isso não vai acabar nunca? — Vai acabar hoje, professor, pelo menos para os senhores. — Não temos o que procuram. Nem livros, nem câmera fotográfica, nada portamos. — É claro que sim, professor. — Não, realmente não sei em que podemos ser úteis. — Oh, professor, não subestime a nossa inteligência. Passe o livro, agora, é a última coisa útil que vai fazer. Acredite, é para uma boa causa. Pena que não viverá para receber a recompensa. — Não há livro nenhum — tentou blefar o professor. — Não tem importância, professor, nós o conseguiremos de qualquer jeito. — É claro, professor, tambem não sabemos exatamente. Se soubéssemos, iríamos direto ao ponto e não nos daríamos ao trabalho de persegui-los. — Então por que nos perseguem? — Por que possivelmente as informações que possuem complementem as nossas. Seus pretensos protetores também o sabem, por isso mantêm vivos. Agora mudamos a estratégia: com suas informações seguiremos sozinhos. — Quer dizer que pretendem matar-nos por uma símples possibilidade? — Oh! Professor, nós somos colegas de profissão. Morrer pela causa faz parte de nossas vidas. — Não somos colegas. Nossos motivos são nobres. Vocês só pretendem tirar algum proveito disso. — Não seja pretencioso, professor. Não há ninguem mais nobre que o outro por aqui, todos somos mercenários. Uns trabalham para alguma organização, outros vendem seus achados para o museu que pagar melhor, os senhores transformam tudo em livros. No fim, tudo se transforma no vil metal. — A coisa não é bem assim. Saberíamos nos abster se julgássemos conveniente para a história da humanidade. — Muito comovente, professor, mas sua nobreza também não livrará sua pele. paz? — Por que não pegam o que querem e nos deixam ir em — Por que acha que temos o que procura? No livro não há nada que indique algo conclusivo, nem sei ao menos o que poderia ser. — Não somos tolos, professor. O pouco que sabem já é demais. Se saírem daqui e publicarem algo, brevemente a Euro- 168 169 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro pa inteira entrará num processo de caça ao tesouro, e isso não é bom para nimguem. Vocês representam um risco desnecessário para as operações e devem ser eliminados. — Mas voces ainda precisam... — Basta, professor. Tarde demais para tentar negociar. Agora serão sacrificados num ritual de expiação pelo sangue que nossos membros derramaram em missão pela causa. Será uma morte honrosa e purificadora das suas almas. — Não entregaremos nada e lutaremos se for preciso, isso atrairá a atenção da segurança. Se nos matarem, estarão encrencados também. — Professor, não nos ofenda. Somos profissionais, sabemos como realizar o nosso ofício. Imediatamente, os falsos fantasmas tiraram de dentro das longas capas um tipo de cutelo parecido com uma foice manual usada para ceifar plantações na época da colheita e se precipitaram sobre eles, prontos para executá-los num macabro ritual de sangue. Naquele momento, ouviram-se alguns breves chiados e os agressores caíram fulminados por tiros de pistolas com silenciadores. Só se ouviram mesmo aqueles silvos surdos e bem baixo, exatamente como acontecera em Amsterdã e São Paulo. Toda aquela sensação horrível voltou naquele momento. Procuraram fugir daquele lugar o mais depressa possível, dar por encerrada a visita e sumir dali rapidamente, antes que descobrissem os corpos e relacionassem o fato à presença deles. vam desanimados, não sabiam se conseguiriam levar a cabo a sua missão e seus pretensos protetores também eram perigosos e certamente não estariam fazendo aquilo de graça — além de sempre estarem nos locais onde estavam. A vigilância ostensiva era muito desagradável. E eram especialistas em operações secretas e arriscadas. Era incrível como a organização conseguia agir, fazendo desaparecer rapidamente todos os vestígios de uma cena de assasinato. Afinal, aquele era um lugar de muita circulação de visitantes e servidores públicos. Após algumas horas de perplexidade e tentativas de dscanso, conversaram muito e concluíram que já haviam ido longe demais para desistir. Assim, decidiram continuar. Precisavam ainda fazer uma visita à Igreja dos Reis Magos, na localidade de Nova Almeida, município da cidade de Serra — na verdade, região metropolitana de Vitória. Veriam o que conseguiam por lá, afinal, o princípio da construção em pedras datava de 1569 pelo padre Brás Loureço com auxílio dos índios tupiniquins, sendo a de 1557 de palhas. Qualquer informação poderia ser relevante. O nome de “Reis Magos” se deve à data de sua efetiva inauguração em seis de janeiro, dia dos Reis Magos pela tradição católica. O ano, segundo consta, foi de 1580. Chegaram ao hotel psicologicamente arrasados. Como anteriormente, não sabiam mais o que fazer. Ademais, esta170 171 Capítulo XIX A Igreja dos Reis Magos É uma edificação tipicamente jesuíta. Construída sobre um monte de onde se domina a entrada da barra, toda a chegada por mar, praias, enfim, toda a região. Um solo firme, propício para as fundações da edificação, uma cobertura de terra sobre a rocha nas regiões adjacentes. Era fácil construir túneis, se necessário, e estabelecer rotas de fuga seguras ou sair sem ser notado por olhos curiosos para pegar água e outros víveres não muito longe dali. Havia possibilidade de camuflar ou ocultar pertences valiosos, se fosse o caso. Havia um rio nas proximidades, terras férteis para uma agricultura de subsistência, as praias da redondeza ofereciam pedras de corais de tamanhos apropriados ao transporte e à própria edificação das paredes. Todas as condições necessárias para fundar uma vila estavam ali. Tudo indicava que haveria algo de interessante, até porque, como em todas as antigas construções jesuítas, ali também havia uma lenda a respeito de um túnel e ouro enterrado. Valia a pena conferir. Examinaram palmo a palmo todos os recônditos com tino profissional, mas tanto discernimento só serviu para produzir numerosas dúvidas a suscitar respostas convincentes. Como retirá-las de histórias tão infactíveis? Possivelmente, muitas das conjeturas estavam certas. Atrás de cada altar haveria uma passagem secreta; atrás de cada parede, a boca de um túnel; sob cada banco de pedra, uma entrada oculta; em cada laje do piso, um dissimulado mapa; e sob cada tampo de mesa, um diário, João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro registrando a história num linguajar apropriado — poemas metafóricos, códigos e cifras. Era realmente uma infinidade de coisas a serem examinadas; árdua tarefa que poderia levar anos. O melhor que poderiam fazer era registrar tudo em seus mínimos detalhes para numa segunda oportunidade retornar com indicações mais precisas. A construção em quadra seguia o estilo de várias edificações medievais da Europa e, ao que tudo indica, o arquiteto da ordem, o padre Brás Lourenço, conforme indica a história, fundamentou seu projeto nos aspectos utilitários da vida dos ocupantes. Alguns itens relativos à segurança, como passagens internas no subsolo comunicando cômodos, túneis e rotas de fuga, entre outros, não ficaram explícitos por razões óbvias. A torre onde os sinos ficariam cumpriria, também, a finalidade de segurança como de postos de observação e alguns detalhes específicos sobre elas poderiam servir de orientação aos navegantes se, de alguma forma codificada, exprimisse coordenadas geográficas, como era o caso dos faróis para a navegação. O altar-mor é entalhado em madeira e, segundo consta, seria de 1700, possivelmente tenha sido sobreposto a um antigo esculpido na parede de pedras. Igualmente antiga é uma pintura em óleo sobre madeira atribuída ao frei Belchior Paulo, de 1587, conhecida como Adoração dos Reis Magos.As telhas originais de formato meia cana não seguiam um rigoroso padrão de medidas, pelo que se supõe que tenham sido produzidas utilizando as coxas humanas como molde. Alguns poucos tijolos de barro cozido possuem o dobro do tamanho do padrão atual. A argamassa que une as pedras sugere uma composição de cal de conchas, areia, barro e alguma substância aglutinante e neutralizadora dos efeitos da salinidade que se supõe serem gordura de animais marinhos, como boto, golfinhos ou outros. Alguns autores admitem também baleias — hipótese carente de evidências. 174 As peças de mármore também são antigas e provavelmente vieram prontas da Europa, conforme denuncia seu estilo. O calabouço parece ter sido um espaço da construção adaptado para essa finalidade após a expulsão dos jesuítas em 1759, como as grades grossas e rudes. Num pequeno aposento, uma laje de pedra servia de assento ao que parecia ser um banco de pedras. Havia alguns riscos, como se fosse uma inscrição que, com algum abuso de interpretação, seriam letras minúsculas do alfabeto grego (Αυδαχεσ φορτυνα ϕυϖατ). Associadas, formariam uma célebre frase de Terêncio, da antiga literatura romana: “Audaces fortuna juvat”, ou seja: “A sorte favorece os audaciosos”. Soava como um desafio a quem desejasse remover a laje e entrar por ali para uma aventura — caso se admitisse que fosse a entrada de uma passagem secreta ou um túnel. Numa laje maior como o tampo de mesa havia algo como um tabuleiro de um jogo antigo com divisões onde peças se deslocam, como xadrez ou dama, mas de aspecto algo diferente. Continha diversos desenhos, indicações e inscrições. Com alguma imaginação e abuso de interpretação, não seria tão absurdo admitir tratar-se de um mapa daquela edificação e adjacências. Curiosamente, aquela mesma inscrição em letras gregas e várias outras apareciam disfarçadamente em vários pontos espalhados por toda a área, próximo a algumas figuras. Para formar-se uma ideia, estão descritas algumas a seguir. Aquela primeira frase citada acima aparecia no início de um desenho em formato de corredor, com poucas mudanças de direção e terminando num determinado lugar com outros desenhos e indicações. Todas as outras inscrições seguiam o mesmo estilo, ou seja, caracteres minúsculos do alfabeto grego, representando sempre frases célebres da literatura romana antiga, de diversos autores, em latim e numa sequência que parecia mesmo um jogo. Alem da primei175 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro ra comentada acima, vinha: Νοχτε λατεντ µενδαε: “Nocte latent mendae”; “A noite esconde os defeitos”, de Ovídio. Esta poderia indicar que no escuro seria muito mais fácil sair sem ser notado. Quase no fim deste havia: θυισ χυστοδεσ ιπσοσ χυστοδεσ: “Quis custodes ipsos custodes”, uma célebre frase de Juvenal, outro grande autor Romano antigo, que quer dizer: “Quem vigiará os guardas?”. Ela parecia sugerir que a guarda do lugarejo àquela hora ainda dormia. Logo no final havia: αλεα ϕαχτα εστ = Alea jacta est, uma frase do general e imperador Romano Júlio Cesar que se traduz por: “A sorte está lançada”. É, também, um possível desafio, como se indicasse: “Vá em frente, já não é possível voltar”. A essa frase, seguia-se a última dessa sequência χαρπε διεν: “Carpe diem”, uma frase de Horácio que significa: “Aproveite o dia”. Ela aparentava ser um cumprimento de despedida: “Boa viagem, aproveite a luz do dia para caminhar porque a viagem é longa”. O desenho do tabuleiro tem características peculiares: todas as figuras e indicações existentes estão circunscritas a um conjunto de círculos concêntricos em que o diâmetro de cada círculo contido pelo anterior diminui progressivamente, como se fosse uma escala logarítmica. Também circunscritas estão várias linhas que se cruzam da mesma forma que as existentes numa rosa dos ventos com os pontos cardiais, colaterais e subcolaterais e com uma pequena estrela desenhada na periferia do último círculo na extrema direita. Se essa hipótese for aceita, ela definiria a posição geográfica das figuras ou do que representam. A figura maior, constituída de vários quadrados circunscritos a outros e subdivididas em quadrados menores, com alguma abstração, do mesmo modo, sugere a planta baixa da edificação. O desenho do tabuleiro tem a aparência como a que segue: 176 Sabiam, no entanto, que tudo aquilo era um excesso de imaginação e um abuso de interpretações oriundas de uma vontade exacerbada de encontrar alguma indicação — o que fazia com que fossem tentados a enxergar algo nas entrelinhas. Poderia perfeitamente não ser nada daquilo. Claro, os historiadores possuem aquele mesmo racionalismo dos cientistas, que, como René Descartes, não aceitariam nada como verdadeiro a menos que houvesse alguma evidência. Num buraco na parede, muito disfarçadamente, encontraram algo singularmente interessante: um recipiente de bronze no qual havia uma luneta antiga, do tipo telescópio, que se subdivide em vários gomos. Muito mais interessante, no entanto, era o que a envolvia, um tipo antigo e rudimentar de papel feito com finas fibras vegetais no qual havia algo escrito numa linguagem bastante poética com figuras de linguagem impressionantes. Quando lida atentamente, parecia ser uma carta que deveria ter sido enviada a alguém e depois complementada. Algo como uma 177 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro carta de despedida desta vida. Ademais, parece indicar uma rota de fuga e um caminho a ser trilhado. Um texto poético, mas, ao mesmo tempo, realista e tenebroso como a própria história. O seu teor. Vejamos o seu teor a seguir: Assim fala o último ovo gestado no ninho dos reis: Os lobos odeiam os corvos porque estes conseguem enxergar seu desenfreado repasto, sua ferocidade diante das presas e disputas ferrenhas dentro do próprio covil. Os corvos devem estar atentos, pois os lobos os têm como pérfidos. Acusam-nos de usurpar suas presas e para retê-las utilizar os mesmos instrumentos de coação. Dizem que utilizam o látego de couro que escraviza o corpo, enquanto aqueles o látego da persuasão que escraviza a alma; e que o que os lobos conseguem à custa de ódio os corvos obtêm de bom grado. Que a privação de suas presas priva também seus senhores, e esse argumento tem sido forte e decisivo para o funesto desfecho que se avizinha. Cuidem os corvos para que essa ignomínia de modo algum se assemelhe à verdade. Até o presente, a sorte que determina que os corvos vivam não muito longe do covil é que os lobos estão tão famintos que não conseguem formar uma alcateia. Ávidos como estão, não admitem a partilha da carniça do seu território e procuram reservá-la só para si enquanto úteis aos seus propósitos malignos. O risco iminente dos corvos é que são guardiões dos tesouros do céu que os lobos pensam ser os da terra. Talvez por isso ainda não os devoraram e até aparentemente alguns os protegem, mas essa mesma causa de ventura pode tornar-se ruína. Urge que os corvos saibam para que lado sopram os ventos e tentem se proteger dos fatídicos vendavais. Os ventos marinhos anunciam que os abutres planejam expulsar os corvos, usurpar seus ninhos e afanar sua mísera carniça. Voam ligeiramente nas asas do vento sobre as vagas. Não tardarão a chegar e concretizar seu intento. Se alguém tem de penetrar o mundo 178 das trevas, urge que o faça sem delongas, pois este só se ilumina com fogo, enquanto no das luzes os ventos as apagam quando brilham, deixando o errante sem rumo. Só conseguirá chegar ao reino das luzes quem antes mergulhar no poço estéril, for digerido pelas entranhas do inferno e, finalmente, for expelido pela sua cloaca. Mas ai de quem pensar que ali se acabam todos os tormentos. Em verdade vos digo que é só o princípio das provações de uma longa jornada. Que não se arrefeçam os ânimos antes de suportar com determinação os primeiros sessenta mil côvados. Ali o corvo depositará seu ovo que, fecundo, se disseminará. Ultrajada pela ousadia de um audacioso que pretendia vê-la desnuda, a guardiã do Tártaro rugiu ferozmente e abriu sua horrenda garganta, mostrando as entranhas pavorosas de onde exala um hálito cálido, malcheiroso e sufocante. Após tragá-lo, cerrou para sempre seu olho mortiço e adormeceu no sono dos séculos. A princesa negra ansiava pelo rei que ainda dormia quando o penúltimo corvo alçou seu voo sinistro na escuridão, fingindo se esquecer do ovo gestado em árdua postura. Contudo, não nos iludamos com as aparências, pois esse sempre estará consigo. Não censuro o penúltimo corvo por não levar um ovo em casca para outro ninho, na verdade, eu o louvo, pois os abutres sempre estão à espreita para aniquilar qualquer projeto de vida em seu nascedouro. Exaurido em suas forças, não pleiteou o último corvo abandonar seu ninho onde pressente perecer para não malograr o voo seguro do penúltimo corvo — cujo ovo pode salvar a espécie. Nada teme, pois não sobreviverá ao desfecho. Agora é tarde. Ouço nitidamente o som das sete trombetas anunciando o início do fim. Logo, virão os abutres despojar os corvos que ainda encontrarem e expulsá-los de seus pobres ninhos. Mas não tardarão a chegar os quatro cavalheiros que vêm a galope exterminá-los. 179 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — É realmente intrigante e ao mesmo tempo assustador, voce não acha Paschoal? — Sim, como a história da humanidade. — Soa como um vaticínio de um feiticeiro que se cumpriu inteiramente. — Sim, o que está escrito aconteceu mesmo na história do Brasil. A propósito, Pedro, como voce analisa esse escrito? — Acho que esse último ovo gerado no ninho dos reis trata-se deste escrito, que teria sido o último documento gerado aqui na igreja dos Reis magos. A primeira parte do documento seriam os quatro primeiros parágafos, que parece ter sido uma carta que deveria ser enviada a algum lugar distante dali. A segunda parte, representada pelos dois parágrafos seguintes, parece indicar o momento certo de partir, o caminho a ser seguido e mais algumas recomendações. A terceira e última parte certamente teria sido escrito a posteriori no mesmo papel e parece descrever a saída do emissário que preferiu não portar o documento em espécie. Parece justificar também o porquê de o último ocupante que escreveu pelo menos o restante do documento ter resolvido não partir, além de descrever o desfecho da história. — É uma conjetura, mas perfeitamente cabível. Continue sua análise, por favor. — Então, vejamos passo a passo. Os corvos seriam os padres, em referência à sua batina preta. Por alguma razão que não está bem explícita, sobraram somente dois nesse lugar que denominaram “Ninho dos Reis”, cuja contrução é bem anterior a eles, pois o documento dá a entender que eles conheciam as rotas de fuga, embora nunca as tivessem utilizado; daí a necessidade de descrevê-las. 180 — Parece que esse documento teria sido escrito nos momentos precedentes à expulsão, você concorda, Pedro? —Sim. Por razões provavelmente escusas, mantiveram esses últimos cativos, pois provavelmente os outros teriam sido banidos um pouco antes da expulsão oficial e compulsória dos membros do clero. Prevendo a acirrada persegição final, processos judiciais, expropriação e expulsão, precisavam advertir e orientar algumas comunidades distantes dali através de uma carta. O ovo, como já disse, era a carta que possivelmente deveria ser multiplicada ou levada a outras comunidades. Como você mesmo observou anteriormente, o que descreve a primeira parte é exatamente o que registra a história do Brasil. Os lobos seriam os colonos que odiavam os padres, os corvos da carta, porque eles reprovavam muitos dos seus atos pagãos, tais como a poligamia, a avareza, a soberba, a luxúria e a ira. Contudo, o desprezo deles pelos membros do baixo clero era tão grande que eles nem se importavam de fato com suas reprovações. A maior de todas as razões desse ódio era a interferência no andamento das questões puramente administrativas, como a escravidão dos indígenas, principalmente porque consideravam a existência de dois pesos e duas medidas. Eles mesmos que condenavam a utilização de mão de obra indígena sem remuneração a utilizavam largamente para a construção de templos e escolas, com a única diferença, segundo eles, sendo que, enquanto outros usavam o chicote, eles usavam a boa lábia. A carência de mão de obra impedia um melhor rendimento e aproveitamento dos recursos, então, além de desfavorecer o enriquecimento da colônia, também fazia o mesmo com a metrópole. Esse argumento tambem foi decisivo para concretizar o processo de expulsão. O trecho seguinte parece afirmar que existia um grande risco à segurança controlado por uma espécie de trunfo que supostamento possuíam, embora fosse uma corda bamba. 181 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Será que existe algo mais nas entrelinhas de profundidade maior do que aparenta aqui? — De fato. Subtraindo-se o conhecido formalmente pelo que a história documenta, esse parágrafo talvez seja a novidade e a parte mais importante de toda a escrita, principalmente no trecho: “Tesouros do céu que os lobos pensam ser os da terra”. É uma frase de múltiplos sentidos que tanto pode ser aquele bíblico dito em Mateus 6.19—20 como algum valioso segredo que, por alguma razão, deveria ficar muito bem guardado e protegido de todas as formas. É claro que, se fossem os da terra ou, pelo menos, só ele, estariam protegidos até que se apossassem dele. Se fossem só os do céu, estariam seguros até que se descobrisse que era somente aquilo. No entanto, se fosse algum tipo diferente e muito importante, estariam perdidos se pelo menos desconfiassem, podendo inclusive serem acusados de conspiração. De qualquer modo, realmente havia algum tipo de tesouro, e eles se beneficiavam até então dessa corda bamba da dúvida. — O próximo paragrafo parece falar dos prenúncios do acontecimento final, você concorda? veladamente o princípio do trajeto, no qual esse poço estéril poderia ser um antigo fosso por onde teriam subido as pedras da contrução da edificação e mais tarde teria sido aproveitado como rota de fuga; depois de devidamente encoberta e camuflada. Ou seria um poço desativado por falta d’água ou ativo com uma saída lateral pouco antes do nível da agua continuando um trecho na horizontal até sair numa caverna ou gruta bem camuflada, aqui chamado de cloaca, numa alusão ao canal pelo qual saem as fezes das aves e outros animais. O mundo das luzes seria a continuação do caminho que precisava ser seguido rapidamente antes que anoitecesse, pois lá fora o vento apagaria as tochas e o viajante ficaria perdido. Ademais, haveria o perigo dos ataques de animais com hábitos de caça noturnos, como os grandes felinos. A seguir, o texto parece advertir que tudo não passa apenas do início de uma longa jornada, dando, inclusive, uma noção da distância do lugar onde a mensagem deve chegar primeiro a cerca de trinta kilômetros dali. Provavelmente, é a igreja matriz da Serra. — E as metáforas a seguir? — O trecho a suguir orienta a forma de evasão, o momento da partida, o trajeto e a forma de agir, ou seja se alguém quer seguir viagem, que seja cedo. O mundo das trevas, que seria o início do trajeto, só pode ser subterrâneo, onde é necessário usar tochas acesas para iluminar o caminho. Inclusive, ele descreve — Essa foi a parte escrita, ao que tudo indica, posteriormente no mesmo papel da carta que deveria ter sido levada. Começa descrevendo o exato momento da partida. O Tártaro é seguramente uma alusão à ideia mais próxima do inferno da mitologia grega situado no mundo subterrâneo, sendo seu guardião o recinto onde está essa garganta. Possivelmente, este seria algum alçapão disfarçado sob um inocente tampo de um banco. Esse “tragá-lo” evidencia a penetração do fugitivo por essa entrada, que, conforme o texto indica, se fechou e nunca mais seria utilizada. Por isso, talvez, tenha sido camuflado. A seguir, está escrito o momento da partida: de madrugada, ou “a princesa negra”, presente bem antes do nascer do sol, o rei. Depois, ele informa que o emissário não levou o objeto principal de sua missão e parece que o fez conscientemente por julgar desnecessário, devi- 182 183 — Inteiramente. Para mim, está muito claro. Os ventos marinhos são as notícias da metrópole dando conta que os maquinadores do poder, aqui chamados de abutres, estavam mesmo decididos a respeito da expropriação e expulsão e que certamente já estavam a caminho. — E as afirmações a seguir numa liguagem metafórica, como você as interpreta? João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro do a conhecer inteiramente o seu teor e por precaução, pois seria uma prova material de conspiração, caso fosse interceptado. — E a respeito do último que escreveu pelo menos essa parte final do documento? — No penúltimo parágrafo ele explica que não partiu porque já estava velho e doente; assim, se tentasse partir, ele seria um estorvo ao outro que teria condições de levar a missão a cabo. Parece prever que já estava nas últimas e que morreria a qualquer momento, porém não deixa de descrever os momentos finais quando os algozes chegariam. Numa última reflexão, ele prevê a chegada dos quatro cavalheiros, numa alusão ao texto de Apocalipse 6.2–7, ou seja o final dos tempos (que aconteceria mais à frente). Isto é, a dominação do anticristo, as disputas internas, desavenças desentendimentos e guerras, a escassez, dificuldades e fome. Finalmente, a morte em várias conotações. que os mais distantes. Isso permite representar tanto a edificação, que é o ponto central do mapa com maiores detalhes, como os pontos distantes a vários quilômetros apenas como pontos de referência. Os dois pontos a sudoeste e a sul-sudeste certamente seriam a Igreja da Serra e a de Vitória, respectivamente. Além disso, esse mapa é muito bem elaborado e corretamente orientado geograficamente. é real? — Você acha que a noção de distância sugerida no mapa — A meu ver, sim: o jogo. Na verdade, aquilo que aparenta ser um misto de mapa da edificação e áreas externas adjacentes e até mesmo as longínquas e um tabuleiro de jogo comum é muito mais do que isso. Primeiramente, o mapa é bastante sofisticado, do tipo circular com círculos concêntricos e com os diâmetros cada vez menores, sugerindo um gráfico de escala logarítmica; de modo que os objetos mais próximos são muito maiores do — As imprecisões possivelmente se devem à falta de instrumentos precisos. Além disso, é uma ideia subjetiva e pode não ter a mesma conotação que normalmente se atribuem aos mapas. Mesmo quando se indicam distancias numéricas, em côvados, provavelmente se refira a passos médios de alguém andando sem forçar demais a marcha. Somado a isso, as distâncias estariam possivelmente em quantidade de passos que produziriam medidas consideravelmente diferentes dos mapas como os de hoje, feitos por satélite e que consideram distâncias em linha reta, diferindo de quem anda e precisa acompanhar cursos de rio, desviar de áreas alagadas, contornar montes, etc. Muitas vezes, mediamse em tempo de viagem, isto é, alguém que ande sem forçar muito a marcha teria uma velocidade de 4 km/h. Se fizesse uma viagem de 12h e descontasse duas para descansar, alimentar-se, contornar obstáculos ou subir elevações, tendo assim, efetivamente 10h, conseguiria cobrir nessas condições 40 km. Forçando muito a marcha, o limite seria de 60 km ou 120.000 côvados, utilizando a linguagem adotada aqui. Considerando algo esculpido à mão sobre uma lápide de mármore amarelo, chega a ser uma obra de arte. Pela riqueza de detalhes, indicações e orientações, não é simplesmente um mapa ou somente um jogo, na verdade, constitui-se num poderoso instrumento pedagógico que, além de um passatempo para controlar o tédio e confortar com o caráter lúdico do jogo, também exercita o raciocínio em todos 184 185 — Pedro, a meu ver, ficou uma questão um tanto controversa. O emissário não levou a carta porque não achou necessário fazê-lo devido a supostamente conhecer o seu teor e ser capaz até mesmo de multiplicá-la depois. Contudo, segundo sua análise nessa carta, havia também uma orientação a respeito do trajeto e as possíveis dificuldades a serem encontradas. Se for válida a hipótese de que nunca haviam trilhado aquele caminho antes, haveria então alguma explicação ainda não considerada para que conhecessem de alguma forma inequívoca o caminho a ponto de o trilharem com segurança? João Roberto Vasco Gonçalves os sentidos: criativo, lógico, estratégico, espacial e tático. Assim, eles proveem um condicionamento psicológico necessário para enfrentar aquela vida de provações. Quem jogasse esse jogo várias vezes, seguramente teria memorizado cada um dos pontos, cada etapa, cada entrave e seguramente teria uma boa alternativa em mente para rapidamente contornar algum obstáculo, alguma situação adversa ou evitar algum percalço. Como sempre, Paschoal estimulava Pedro a falar porque era prazeroso ouvi-lo, embora (possivelmente) sempre soubesse das respostas. Tal era a sua sintonia, que parecia ouvir o que este lia de sua própria mente. Contudo, havia uma finalidade precípua nisso. Enquanto Pedro falava, ele anotava rapidamente em caracteres gráficos especiais que pareciam ser taquigrafia. Era como um filme devidamente editado, com enorme riqueza de detalhes e explicações de um especialista sobre tudo o que viam. — Sem dúvida, são informações interessantes e muito material para pesquisarmos — disse Paschoal — embora não esteja diretamente relacionado com o que temos no “livrinho”. Precisamos realinhar nossas investigações, e, se necessário, voltaremos depois. Por hora, voltemos ao hotel e sigamos nosso planejamento e viagens. No dia seguinte, tomaram o café da manhã no quarto ao mesmo tempo em que assistiram o noticiário. Nenhum comentário a respeito dos tais assassinatos do palácio. Logo depois, pagaram a conta do hotel e saíram decididos a viajar para Anchieta. Capítulo XX Anchieta Paschoal e Pedro tinham de trabalhar com muita discrição, pois 9 de junho é o dia da morte do padre José de Anchieta e é o dia da cidade. Durante uma semana acontecem eventos festivos que foram preparados previamente. Visitaram a casa da cultura, fizeram os passeios turísticos, visitaram praias, estudaram a topografia, o Rio Benevente, o Rio Salinas, as ruínas, etc. Visitaram os prédios mais antigos, a capelinha, e finalmente a igreja matriz, que seria o ponto culminante. Ali perceberam algumas diferenças construtivas que, pelo menos à primeira vista, não correspondiam exatamente às informações e desenhos do livro. Parecia faltar algo. Na história da cidade também parecia haver um período de silêncio, uma lacuna histórica de mais de um século. restava a impressão de que ela havia sido apagada propositadamente. Faltavam informações dos tempos mais antigos — entre a morte do padre Anchieta em 1597 e a expulsão dos jesuítas em 1759, ano em que foi elevada à categoria de Vila pelo alvará de 01/01/1759, o que passou a vigorar efetivamente em 14/01/1761. Precisavam, então, examinar também as lendas. Antes de qualquer coisa, entretanto, como sempre faziam, começaram uma análise histórica em forma de diálogo. — Pedro, faça uma retrospectiva desde a fundação do povoado. — Conforme os registros, o padre José de Anchieta, no ano de 1569, fazendo uma visita de inspeção, fundou o povoado de Iriritiba numa localidade a 80 km de distancia de Vitória 186 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro na direção sul, para onde voltaria algumas vezes. Consta que a primeira parte da igreja em pedra de recifes, cal de conchas e óleo animal, provavelmente de boto, tenha se iniciado efetivamente em 1579, atendendo ao funcionamento de uma igreja e à dependências básicas de moradia e ofícios. Em 1587, após conseguir a dispensa de suas funções como provincial e diretor do colégio jesuíta de Vitória, devido a motivos de saúde, mudouse definitivamente para a aldeia que fundara alguns anos antes. Provavelmente, deve ter imprimido uma reforma, que teria paralisado com sua morte em 1597 e recomeçado um pouco depois, tendo sido concluída em 1604. Desse período até 1759, ano da expulsão dos Jesuítas, não encontramos registros. Em 01 de janeiro desse mesmo ano ocorreu um decreto que elevou o povoado à categoria de vila, recebendo este o nome “Benevente”. Em 12/08/1887 tornou-se cidade através da lei provincial número 06. Em 30/12/1921 o nome da cidade mudou para Anchieta através da lei estadual 1307. — E nos registros mais recentes, há algo importante para a região? — Sim. O primeiro núcleo habitacional de portugueses ficava no alto do morro, de onde se tem domínio visual desde a entrada da barra até o início da subida do Rio Benevente. Na primeira metade do século XIX, iniciou-se a imigração estrangeira, e, com ela, apareceram os problemas de saúde, tais como a epidemia de varíola e outras. Nem o poder público nem ninguém estava preparado para enfrentar aquela nova realidade. A situação era desesperadora, e o povo só podia contar mesmo com a fé. Assim, em 1873, foi construída uma capela no alto do morro dedicada a Nossa Senhora da Penha; como um pedido de socorro e proteção contra a terrível doença. A imigração só aumentava, a ponto de, em 1874, o porto de Benevente ser uma importante porta de entrada para os imigrantes italianos que deveriam subir o rio e se distribuir pelas terras da região para trabalhar 188 na agricultura. As terras em que se fixaram foram preferencialmente a região serrana, onde hoje são as localidades hoje conhecidas como: Arerá, Emboacica, Simpatia, Serra das Graças, Segundo Território, Dois Irmãos, Córrego da Prata, Itaperoroma, Alto Joeba e Alto Pongal. Na tentativa de controlar a propagação da doença, foi construída uma casa de quarentena em 1875. Em 1887 a vila passa a ter a categoria de cidade. Nesse mesmo ano é construída a sede da prefeitura, atual Casa da Cultura. Em 1921 o nome da cidade muda para Anchieta em homenagem ao padre José de Anchieta, seu fundador. — Vejo que os rios tiveram um papel importante para a história da região. Faça uma breve descrição da hidrografia. — O principal rio da região é o Benevente, quase todo navegável. Ele nasce na serra do tamanco entre os municípios de Alfredo chaves e Vargem Alta, percorrendo aproximadamente 34 km da nascente até o oceano atlântico. Os afluentes de sua margem direita são os rios Pongal, Joeba, São Joaquim, Maravila e Crubixá. Os da margem esquerda são os rios Salinas, Grande Corindiba, Caco de Pote e Batatal. Segundo estudos técnicos, sua bacia drena uma área total de 1190 km². — Desde quando se navega por esse rio? Algum registro? — O registro mais antigo é de 1637, um mapa de João Teixeira de Albernaz que menciona o rio Iriritiba e a presença de caravelas navegando através dele. — Falando-se do Rio Salinas, pelo que vimos, existe uma edificação antiga em ruínas; seria essa edificação atribuída aos jesuítas? — Não há evidências que sustentem essa tese. É possível que tenham passado por lá e talvez tenham tido um depósito ou fábrica de salitre, matéria prima da pólvora. Talvez, por questão de segurança, fosse conveniente mantê-lo afastado do litoral. A 189 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro construção na forma atual, pelo que aparenta foi construída sobre as fundações de outra ou aproveitando o material de outra. Comparando seu aspecto construtivo com outros no interior de São Paulo e outras partes do Brasil, chega-se à suposição de que tenha sido uma casa de engenho de uma fazenda. No entanto, a última coisa que teria funcionado ali, segundo registros (carta do suplente de vereador Alexandrino Jose Rodrigues Brandão à câmara de vereadores) de 12 de janeiro de 1890, teria sido uma escola primária rural, isso se ficar entendido que a localidade de Porto Salina se refira a esta localidade. Existem, ainda, as lagoas de Maebá e Ubú. Apesar de sua pouca importância histórica, elas fazem parte da história recente da região, tendo sido tremendamente impactadas ambientalmente. A lagoa de Membá está totalmente sob influência das grandes plantas industriais da região, e a de Ubú foi completamente descaracterizada pela construção da rodovia que passa às suas margens e a dividiu em três partes, conforme consta nos Relatórios de impacto ambiental, de cunho oficial. — E com respeito às lendas em torno dessas ruínas? — Realmente, elas existem, como acontece com todo o antigo patrimônio jesuítico. Por causa desse mito, ocorreram muitas depredações por parte de caçadores de tesouros que prejudicaram grandemente as pesquisas dos historiadores. — E o relevo da região? — Basicamente, temos uma região de baixada na faixa litorânea com algumas ondulações e morros e a região serrana, que já mencionamos, que também pode ser considerada de baixa altitude. Ele é possivelmente inferior a 500 m. — Também vi alguns estudos recentes que mencionam o Monte Urubu. O que temos sobre ele? 190 — O Monte Urubu é uma elevação que possui um pico de 332 m de altura que fica na parte oeste do município de Anchieta–ES, próximo a uma localidade conhecida como Belo Horizonte. Fica à margem direita de quem sobe o Rio Salinas. É uma importante área de preservação ambiental por conter vegetação de mata atlântica. A documentação mais recente que o menciona é um estudo técnico que compõe um relatório de impacto ambiental de âmbito oficial. É realizado como quesito básico para a obtenção da licença ambiental para a construção de uma linha de transmissão de energia elétrica que passa na região. — E quanto àquela lenda de que haveria um túnel ligando a igreja matriz ao Monte Urubu, o que você pensa disso? — Penso que realmente não passa de uma lenda, como tantas outras iguais a essa. Não há evidências que comprovem isso. Por outro lado, seria tecnicamente impossível para a época à qual atribuem sua origem. — Ótimo. Bela explanação. passo? — Sim, mas, e agora? O que você sugere como o próximo — Pesquisar algo sobre o que dizem as lendas. Você conhece alguém que saiba algo ou já mencionou algo a esse respeito? — Sim. Conheci um sujeito há muitos anos quando estive de passagem por aqui. Por acaso, antes de vir para cá, procurei saber e encontrei o número de telefone dele. Não mora mais por aqui. — Então comecemos pelo telefonema. — Tudo bem. Vou fazer isso. 191 Capítulo XXI Os telefonemas Pedro, informando-se aqui e ali, conseguiu obter informações sobre um certo “seu João”, que seria o garoto que conhecera muitos anos antes contando suas histórias loucas. Telefona e se identifica porém o homem demora a se lembrar dele. Começa falando coisas, fazendo perguntas capciosas, sempre aludindo a citações contidas no livro, que, até então, não menciona, mas somente no final da conversa. Faz insinuações a ponto de começar a aborrecê-lo seriamente. Ele responde primeiro com gozação e ironias, depois com evasivas e, finalmente, com certa inquietação e demonstração de desagrado. Ele nega peremptoriamente que saiba alguma coisa importante e declina sem titubear o convite de acompanhá-los. A conversa serve para despertar mais curiosidade e quase lhe dá a certeza de que realmente há alguma coisa, que as lendas têm um fundo de verdade e que o João sabe muito mais do que aparenta. Na verdade, ele parece fazer questão absoluta de esconder. — Sr. João? — Sim. — Eu preciso falar-lhe alguns minutos. — OK. Porém, a propósito, quem é o Sr. e em que posso servi-lo? — Sou o professor Pedro Cintra. Trabalho no departamento de história da Universidade de Coimbra e sou assistente João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro do professor Paschoal D’Ávila num projeto acadêmico. Estou em Anchieta, no Espírito Santo, e procuro pessoas que saibam algo antigo sobre a cidade. — Não sei se poderia ajudá-lo, professor. Não sei tanto assim e há muitos anos estou fora. Sugiro que procure pessoas mais bem informadas, como historiadores, bibliotecas, a Casa da Cultura, registros municipais oficiais... — Já fizemos isso. Não foi suficiente para o que precisamos. A história parece ter sido apagada em mais de um século. te? — Então por que acha que logo eu saberia algo importan- — Eu o conheci quando ainda éramos meninos há muitos anos quando passei por aqui. Lembro-me bastante das suas histórias. — Delírios pueris. As crianças têm muita imaginação. Contam muitas histórias. — Com certeza. Mas devem ter ouvido coisas aqui e ali. Lendas e afins. — Não vejo em que essas maluquices podem ajudar um professor europeu com tanta bagagem. Na verdade, não sei mesmo em que posso ajudá-lo. — O senhor sabe muito mais do que parece — provoca. A propósito, o senhor sabe onde fica o monte Horeb nestas redondezas? — Pelo que sei, ele fica ao sul da península do Sinai no Egito, conforme referências bíblicas. Aqui nas redondezas o nome mais parecido é o monte urubu, que qualquer anchietense sabe onde fica — ele responde entre risos. 194 — E isso não tem nada a ver com o túnel que vai da igreja matriz até esse monte, conforme a lenda que o senhor mesmo contava quando criança, não é? — Pedro provocou. — Isso é uma quimera. — Uma quimera com um fundo de verdade, suponho. — O senhor não sabe o que está dizendo. Esse monte fica a quase 20 km de distância. A igreja e todo o conjunto foram edificados sobre um maciço de granito. Depois de atravessar uma cadeia de montanhas até encontrar um solo mais favorável a uns doze quilômetros, ainda teria de fazer uma brusca mudança de rumo para norte e avançar mais alguns quilômetros. As condições técnicas da época nunca permitiriam uma obra de tal envergadura. Mesmo usando a antiga técnica de exploração de minas, com o precário ferramental da época, seria necessário um batalhão de operários experientes no ofício, e um túnel construído nessas condições avançaria poucos metros por ano. Levaria séculos para ser construído, na mais remota hipótese de que realmente conseguissem. — Sim, claro. Deve haver uma explicação razoável para fazer enquadrar a lenda à realidade, o senhor não acha? — Fora de cogitação. Não é razoável acreditar numa lenda sem pé nem cabeça como essa. — Sim. No entanto, esse sem pé nem cabeça não deve ter nada a ver com a serpente que nasceu mutilada no chão da igreja, suponho — ele provocou. — Mas que absurdo é esse agora. Isso não faz o menor sentido. O senhor deve assistir a muitos filmes na televisão. — Não tenho tanto tempo assim. Quanto a livros demais, todavia, o senhor pode ter certeza. 195 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Ah, sim. Certamente, o senhor deve ter lido sobre muitos segredos e tesouros ocultos guardados a sete chaves em épocas remotas e em lugares que ninguém imagina. — Certamente. Mas, a propósito, suponho que esses segredos e as sete chaves também não tenham relação nenhuma com a serpente mutilada. Da mesma forma, nesse tesouro não deve haver nenhuma peça parecida com um ostensório de ouro maciço, uma estrela de ouro de 24 quilates com pedras preciosas de cores diferentes nas pontas, um cálice de ouro trabalhado e cravejado de pedras preciosas. E também uns sete castiçais alem de muitos outros objetos de valor. — Agora o senhor exagerou na sua fértil imaginação. Eu sabia, o senhor acabaria mesmo confessando que é mais um daqueles malucos que nunca perderam aquela ideia juvenil da caça ao tesouro. Com toda certeza, haverá também um baú abarrotado de moedas de ouro. — Por falar nisso, o senhor também não deve saber nada sobre uma certa arca de madeira forrada de ouro por dentro e por fora, suponho. — Essa eu sei. O senhor está falando da arca da aliança, na qual as tábuas da lei impressas a fogo foram colocadas. Mas está procurando no lugar errado. Ninguém nunca soube exatamente do seu paradeiro, e, de qualquer modo, o último registro está no capítulo dois do livro Macabeus II, que informa que Jeremias a escondeu no monte Nebo, próximo às margens do mar morto. Ele tentava evitar que o rei babilônico Nabucodonosor II destruísse aquela peça de inestimável valor religioso para os judeus. Lamento decepcioná-lo, porém o senhor terá de procurar na Palestina. — Essa todo anchietense sabe. Já que o senhor está por aí, pode visitá-lo num passeio de barco subindo o Rio Benevente. — Isso nós já sabemos. Aliás, e aquelas ruínas às margens do Salinas? Elas têm mesmo algo a ver com os jesuítas? Seria mesmo o tal passo do salitre? — Não há evidências que comprovem isso. O último registro histórico é que ali tenha funcionado uma escola rural no final do século XIX, possivelmente, a partir de 1880. Especula-se, no entanto, que tenha sido várias coisas, como casa de fazenda com engenho e outras coisas. Pode ter funcionado algum tipo de instalação para o refinamento do salitre, matéria prima da fabricação da pólvora, como também qualquer outra coisa. O fato é que se pode notar na base dos pilares atuais vestígios de construções mais antigas. No entanto, não existem referências documentais. Essa informação o senhor pode encontrar em qualquer folder turístico ou verificar in loco. — Isso também já sabemos. — Mais alguma pergunta, Sr. Pedro? — Falou o Sr. João, já disposto a encerrar o diálogo. — Sim. O senhor sabe de alguém por aqui que se diga descendente distante do marques de Pombal? — Só se for de Pongal — brincou. Há um monte de gente de Pongal nas redondezas, eu só não sabia que lhes haviam conferido título de nobreza. E depois, até onde sei, o marquês de pombal era português. A comunidade de Pongal surgiu a partir de alguns colonos da época da imigração italiana. — Que pena. Permita-me, porém, fazer-lhe uma pergunta mais fácil. O senhor conhece o Rio Salinas? — Estou impressionado com a quantidade de conhecimentos que o senhor adquiriu. Além de ler a bíblia, deve ter examinado muitos documentos, não? 196 197 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — E eu, impressionado com esse monte de bobagens. Deve ter lido algum livrinho muito interessante. — Certamente — Pedro respondeu entre risos. A propósito, o senhor ainda continua contando aquelas histórias de tesouros enterrados por aí? — Sinceramente, há muito tempo não. Porém, pela quantidade de malucos que vivem procurando, se eu fosse desonesto, dava até para abrir um negócio. Bastaria arranjar um monte daquelas peças que mais procuram, espalhá-las por aí, imprimir uns mapas em papéis envelhecidos, contar as histórias falando tudo o querem ouvir e ganhar o dinheiro dos trouxas. Mas nem isso vale a pena. — Por quê? — Porque não se semeia o mal, pois esse é reflexivo. Sempre volta sobre quem o lançou. Além disso, muitos que procuram enriquecer da noite para o dia não sabem que as riquezas trazem consigo a semente da desgraça. Não percebem que a cobiça é uma grave moléstia que assola a humanidade desde as mais remotas épocas, geram as guerras e suas devastadoras consequências, e um dia ainda poderão determinar a extinção da raça humana. Espero que o senhor e seu parceiro de estudos não estejam incluídos nesse rol dos avarentos. ria cair nessa situação, não hesitaria em deixá-lo oculto, pelo menos enquanto não houvesse condições de segurança suficientes para garantir que realmente se tornasse um patrimônio histórico da humanidade. muito. — Fico feliz que pense assim. Lamento não poder ajudá-lo — O senhor poderia, sim, se concordasse em vir conosco. Seria de grande valia. — Desculpe-me, professor. Terminantemente, não. Por favor, não insista. — Muito obrigado, Sr. João, e desculpe-me o incômodo. Alguma recomendação a mais? — Sim. Se o senhor encontrar uma garrafa daquele vinho que Jesus tomou na última ceia, traga-a para bebermos dela juntos. E não se esqueça de trazer para o tira-gosto alguns pedaços de pão e peixe que sobraram do milagre da multiplicação. — Sr. João, sem falsa modéstia, eu sou um intelectual, gente do tipo que não é rica por opção. Também partilho dessa sua filosofia. Assim também pensa o meu colega, o professor Paschoal, de quem fui discípulo. Como historiadores, achamos que existem muitos tesouros que nem todo o dinheiro do mundo pode comprar. Alguns desses foram encontrados por oportunistas travestidos de estudiosos que, na verdade, só pensavam em dilapidar tudo que fosse encontrado e transformar no vil metal. Se encontrasse algum dia coisa semelhante e sentisse que pode- Risos de ambas as partes e despedida cordial. O telefone toca outra vez, e João pensa ser aquele professor incômodo outra vez, portanto, reluta em atender. Porém, depois recebe a ligação decidido a descartá-lo de imediato. Era o Sr. Moshê, que já estivera ali outras vezes e era identificado pelo povo da região como “Seu Moisés”. Ele tinha um sotaque carregado e chamava-o “Johan”, pronunciando o “j” como “i” e o “h” como “rr”, acentuando a primeira sílaba, já que o mais próximo de João que conseguia falar era “Choao”. Moshê fez perguntas sobre a conversa interceptada e ele lhe explicou que não dissera nada nem aceitou o convite. Moshê lhe disse que ele mesmo cuidaria do caso pessoalmente e, se precisasse de apoio, o chamaria, conforme se observa no estranhíssimo diálogo a seguir: 198 199 João Roberto Vasco Gonçalves — Johan, aqui é Moshê. Eu consegui captar o que vocês falavam ainda há pouco — disse com um sotaque pesado e alguns deslizes na concordância. Capítulo XXII — Bem que os antigos diziam que mato tem olho e parede tem ouvido. muito. João — Sim, os antigos tinham muita sabedoria. Você falou — Bom dia, seu Giacomo. — Sim, Sr. Moshê. É o eterno duelo entre a caça e o caçador. Estudávamos mutuamente. Ele precisava testar os meus conhecimentos sobre o assunto, e eu, os dele. Na verdade, eu precisava saber o quanto ele sabia. Ele sabe bastante. Talvez mais do que o conveniente, apesar de ser de boa índole e valorizar a integridade. — Sim, mas não se pode confiar. Pode ser um daqueles falsos profetas, lobo em pele de ovelha. Precisaria ser testado e, caso passasse, submetido ao juramento ao receber os votos. — Alguma recomendação? — Por enquanto, não. Começarei a cuidar do caso sozinho. Todavia, fique alerta. Posso precisar de sua ajuda. Despedidas cordiais. visita. — Bom dia, padre Bento. Ficamos muito felizes com a sua — Também fico feliz de ver meus paroquianos. Conversaram animadamente, falaram de terra, plantio, colheitas etc. Seu Giacomo convidou o padre para almoçar. Acomodaram-se à mesa que já estava posta. Terminando o almoço, passaram para a sala de estar, onde seu Giacomo, que, havia muito, vinha tentando entrar no assunto, finalmente teve a oportunidade de falar com o padre e fazer o seu pedido especial. — Padre Bento, há muito que venho pensando em falar com o senhor. — Sim, fique à vontade para falar, seu Giacomo. — Faço muito gosto que o meu filho primogênito seja dedicado aos serviços de Deus. Preciso arranjar um jeito de encaminhá-lo para isso, creio que o senhor pode me ajudar nisso. O padre entendeu direitinho o recado. Seu Giacomo pleiteava uma vaga para o seu filho estudar no seminário. Era como se vislumbrasse a possibilidade de ter futuramente um santinho na família, mas tinha seu lado econômico e social: prover-lhe o estudo numa boa escola. Apesar de ele ter prometido que não queria totalmente de graça. Fazia questão de dar substanciais contribuições quando as colheitas finalmente dessem o resulta- 200 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro do esperado. João estudava a duras penas num grupo escolar e tinha de caminhar quatro ou cinco horas por dia para frequentar a escola. Estava no meio do ano letivo, e isso era um empecilho para qualquer providência imediata. — Seu Giacomo, no momento é praticamente impossível porque estamos no meio do ano escolar, mas não vou esquecerme do seu pedido. Quando puder darei a resposta. Mas o menino tem de querer também. — Sim, padre, eu converso com ele. Aliás, pelo que já ouvi dele, ele gosta dessa ideia. Conversaram mais um pouco e depois se despediram. O tempo passou, e o padre, com tantos afazeres, acabou por se esquecer. No princípio do ano letivo seguinte, conversando com o padre Antônio, diretor do seminário, este comentou: — Padre Bento, já estamos com uma nova turma quase fechada para esse ano letivo, só falta um para completar. Se o senhor souber de alguém que esteja interessado... — Eu sei, sim, padre Antônio. Acabo de me lembrar de que, no meio do ano passado, o senhor Giacomo me fez um pedido de uma vaga para seu filho mais velho, João. — Graças a Deus e ao senhor, padre. Minhas orações foram ouvidas — respondeu o homem, não cabendo em si de felicidade. — Deus sempre ouve nossas orações, seu Giacomo. Mandou chamar o João, que chegou meio acanhado, tomou-lhe a bênção e ao padre e ouviu a boa notícia, mas falou muito pouco. João havia passado de ano na escola, apesar das dificuldades. Essa notícia o ajudou grandemente, além de se encaixar perfeitamente porque não precisaria perder o ano, pois começaria o próximo ano letivo no grau escolar subsequente. Gostava da ideia por um lado, pelo menos não precisaria andar tanto para ir à escola. Quanto ao trabalho, sabia que no seminário tinha a hora de trabalho também. Em compensação, também haveria a hora do estudo pós-aula, o esporte e o lazer que na roça ele não tinha. Apesar disso, ficava a saudade de casa, dos pais, irmãos e companheiros de caminhada para a escola. Aquela era uma oportunidade rara, no entanto, e que não poderia ser desperdiçada, como o próprio pai lhe orientara. O saldo do balanço que fez mentalmente era, a seu ver, positivo, e ele estava feliz com as novas perspectivas. Entraria no seminário no primeiro ano ginasial, como se dizia naquela época. — Bem, seu Giacomo. Ah, trago boas notícias. Surgiu uma vaga na nova turma do seminário, e a vaga é do João, conforme já acertei com o padre Antônio, o diretor do seminário. As férias escolares acabaram, e finalmente a hora chegou. Com lágrimas nos olhos, apesar de feliz pela questão prática, sua mãe já arrumara a sua modesta malinha com as poucas roupas que possuía e separado seu sapatinho surrado. Por último, as emoções da despedida e, em seguida, a curta viagem até o seminário. Durante o percurso, o pai conversou outra vez sobre tudo aquilo que já havia falado antes. Na hora de despedir-se, fez muitas recomendações sobre obediência, respeito e educação, de modo a não desonrar a família e para ser um grande homem mais tarde. Finalmente, ele o abraçou e saiu dali tentando disfarçar as duas lágrimas que insistiam em brotar nos seus olhos. No 202 203 — Ótimo, padre Bento, pode avisá-lo que a vaga é dele. Na próxima viagem, que ocorreu poucos dias após esse diálogo o padre Bento levou a preciosa notícia. — Bom dia, seu Giacomo. — Bom dia, padre Bento, como está o senhor? João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro dia seguinte, as aulas começaram, e com elas toda aquela rotina. O seminário era semelhante a uma caserna em termos de hierarquia, organização, execução de tarefas, etc. Tudo transpirava a ordem: os estudos, os trabalhos, os esportes, o lazer e até mesmo as orações. De certa forma, o regime explicava o alto rendimento escolar da turma. A ajuda mútua para superar as dificuldades no desenvolvimento das tarefas contribuía muito à integração e o desenvolvimento do espírito de equipe, fazendo estabelecer vínculos de amizade que ajudavam também nas suas carências afetivas e preenchiam o vazio deixado pela falta da família e dos ex-companheiros. Era um alívio para suas saudades. Um dia, aconteceu um incidente que mexeu muito com a sua sensibilidade, e ninguém conseguiu entender exatamente porque o incomodou tanto. No recreio, depois de terem saído de uma aula de história na qual se falara sobre os judeus e a sua cultura, um colega, por brincadeira, pegou um tampo de côco cortado em forma de cuia e colocou sobre a sua cabeça como se fosse um kipá e disse: “O judeu”. Todos os seus colegas riram. Mas João não. Ao contrário, sentiu como se tivessem lhe dado um grande soco ou uma ripada. Ficou pálido, sem voz e teve de sentar-se num murinho de pedra para não cair, uma vez que suas forças quase o abandonavam. O colega percebeu, pediu desculpas e tentou ajudá-lo de alguma forma. Ele lhe ofereceu água e não sabia mais o que fazer para reanimá-lo. João disse que fora uma pequena indisposição e que já ia passar, só precisava ficar quieto um pouco para descansar e que agradecia que o deixasse só por alguns instantes. Tudo poderia não ter passado de uma brincadeira sem maiores implicações, se não fosse algo que ele trazia marcado em seu subconsciente, que veio à tona naquele exato momento como se rasgassem as cortinas de sua mente e a deixassem desnuda. Num lapso que parecia um potente raio, ele se lembrou um antigo incidente na escola primária, na época da semana santa: 204 — ... vamos “cacetar” o judeu... — Isso não se diz, é uma discriminação. Digam “malhar o Judas”. Era uma professora que, por ser judia por descendência, muito se incomodava com certas expressões que denotavam perseguição ou discriminação racial. Mas não quis explicar muito mais, talvez para não esticar muito o assunto, não despertar aquele tipo de curiosidade ou talvez porque os alunos eram crianças e não estavam preparados para aprender sobre aquilo. Tudo aparentemente acabou por ali, pelo menos para a maioria dos alunos. Para João, aquilo se estenderia um pouco mais. Chegou em casa com aquela coisa que não saía da cabeça e acabou perguntado ao pai: — Pai o que é “judeu”? — Que bobagem é essa agora, menino? — Não, é porque a gente estava brincando na hora do recreio e ... — Basta, não diga mais nada. Nunca mais diga isso aqui nem para ninguém. — Mas pai, eu preciso... — Não precisa nada, e se voltar a falar sobre isso, vai levar uma surra. João, temeroso com as ameaças do pai, calou-se e nunca mais mencionou aquilo a quem quer que fosse, mas ficou curioso com a reação do pai. Era como se aquela palavra fosse um grande pecado, ou mencionasse alguma doença contagiosa, ou atraísse algo de muito ruim que pudesse acontecer ao mencionar esse nome. Deveria haver alguma razão que justificasse aquele tipo de comportamento, aquele medo, aquela reserva toda e, final205 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro mente, a imposição do silêncio sobre o assunto. Todavia, na falta de respostas convincentes e do mal que aquilo causava, a medida mais sensata era realmente esquecer tudo aquilo — até porque, na roça, o assunto geral e constante era trabalho, e o restante não tinha nenhuma utilidade. Assim, João deixou o assunto de lado completamente, até o dia daquela nova brincadeira. Recuperou-se do choque, fez de tudo para esquecer-se daquilo, mas aquilo o perseguia de forma atroz. Não havia saída, senão pesquisar e descobrir a razão fundamental de tudo aquilo. Talvez, assim, tudo se dissiparia e acabaria sem deixar marcas. Dessa vez, ele estava em um lugar propício. Poderia ir à biblioteca ou conversar com pessoas muito esclarecidas e até contar com o apoio do orientador para assuntos espirituais e psicológicos. Procedeu exatamente assim, mas não sabia que era só o começo do seu calvário, que duraria durante grande parte de sua vida. Logo no princípio de suas pesquisas, ele acabou descobrindo a razão de tanta inquietação e silêncio sobre o assunto por parte da sua família e toda a comunidade vizinha naquela parte do interior onde eram todos imigrantes e descendentes desses, italianos e outros povos de várias regiões da Europa. Verificou que, no século passado e nos anteriores, muitos de seus ancestrais haviam sido perseguidos por motivos étnicos e religiosos. Muitos simplesmente os detestavam e evitavam a proximidade, como se fossem leprosos, outros os demonizavam e propagavam a ideia de que eram gente ruim em quem não se podia confiar. Outros ainda exageravam na sua exacerbada xenofobia e partiam para agressões físicas e até promoviam ataques com o objetivo de expulsá-los de seu país e usurpar as suas terras. quando conseguiam viver sem serem molestados fisicamente, eram moralmente afetados, como se fossem cidadãos de classe social muito inferior. Tudo isso, potencializado pelos horrores das guerras que a tudo devastavam e impunham a fome e a miséria, além de impelir milhares de imigrantes de cruzar o atlântico em penosas viagens atrás de vãs promessas de abundância e assistência social. Não demoraram muito a perceber que estavam abandonados à própria sorte. Somente com muita fé conseguiram sobreviver, tudo à custa de muito trabalho, passando todo tipo de privações, isolamento e falta de assistência. Morreram aos milhares. Muitos nem chegavam a completar a viagem e tiveram o mar como sepultura. Outros morreram aqui de doenças, mordeduras de cobras e insetos, mas eram tantos os que chegavam que rapidamente aumentou o seu contingente, de modo que poucos se deram conta do extermínio. Enfim, os que sobraram constituíram famílias e fundaram comunidades espalhadas por todo o interior, que hoje vivem em paz. Essa paz não poderia ser perturbada e valia a pena fazer tudo para preservá-la, daí toda aquela reserva sobre assuntos que quase instintivamente consideravam proibidos. João aprendeu muito. Quanto à sua pesquisa familiar, ficou inconclusa ou, pelo menos, não o levou nem mesmo a indícios que determinassem a sua real ascendência. Tanto poderia ser judia, cigana ou qualquer outro povo que se acautelou de modo a não ser descoberto e perseguido. Ele poderia ter até mesmo ancestrais de várias etnias. Aquele fantasma, entretanto, continuava a persegui-lo. Alguns se convertiam ou simulavam essa conversão, chegando a trocar seus sobrenomes na tentativa de conviver pacificamente, mas ficava aquele estigma que os acompanhava por gerações a fio. E as perseguições continuavam. Então, mesmo O tempo passou, João evoluiu nos estudos, formou-se em filosofia e história e, entre outras coisas, estudou bastante latim, grego e hebraico. Estava cada vez mais confuso e acabrunhado. Sua crise chegou ao ápice na época em que deveria fazer os votos e se ordenar padre. Não conseguindo mais suportar tudo aquilo, 206 207 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro comunicou aos responsáveis pela ordem e solicitou a dispensa. Tentaram acalmá-lo e dissuadi-lo da ideia, mas não funcionou. Ele acabou saindo mesmo. Não voltou para casa, principalmente para evitar dar explicações. Seu pai já havia falecido, mas ainda havia a mãe e os irmãos e amigos. Arranjou um emprego como professor e foi morar sozinho num pequeno apartamento na cidade próxima. Era um celibatário e vivia bem com sua solidão. Seus afazeres no magistério aliviavam um pouco suas inquietações, porém os fantasmas de seu passado insistiam em persegui-lo. Resolveu encará-los de frente. Aprofundou-se nos estudos da cultura judaica e, inclusive, fez amizade com um rapaz que tinha aproximadamente a sua idade e era recém formado no rabinato que passou a ser seu confidente para aquelas dúvidas que o consumiam. Ter alguém versado no assunto para conversar e confidenciar de certa forma o aliviava. Ele pensava em frequentar uma sinagoga e tentar viver no meio dos judeus porque, àquela altura, já se sentia um deles. Isso, no entanto, tinha outra face que poderia ser igualmente dolorosa. Como nunca conseguiria provar sua real ascendência judia, poderia ser rejeitado também por eles. O seu amigo rabino o apresentou a algumas pessoas que trabalhavam em função de uma causa pretensamente judia, que procurava talentos para admitir em seu meio e que de alguma forma simpatizasse pelos objetivos da organização. Após a entrevista, foi admitido, começou a frequentar o local e trabalhar ativamente. Aquilo foi uma excelente saída, era como se realmente houvesse se tornado um deles. Ele estava praticamente curado. Para compreender em toda a extensão o drama de João e de toda aquela gente cujos descendentes talvez não lembrassem mais das agruras que sofreram seus ancestrais, seria proveitoso rever um pouco de sua história. Na verdade, ela é também de outros nos aspectos da formação étnica e demográfica — que só pode ser entendida estudando a 208 imigração pelos flancos históricos de quem geria todo o processo e de quem efetivamente vivia aquela situação. Na época da imigração em massa, gente de várias partes da Europa, de várias etnias, costumes, credos e outros veio para o Brasil. No Espírito Santo, por sua vez, aportaram principalmente italianos, pomeranos, alemães, tiroleses, árabes, dentre outros. Segundo a estatística e os relatos oficiais, a imigração italiana predominou. Abramos então um parêntesis e contemos uma história que parece ter sido a de muitos: A imigração Massacrados pelos horrores das constantes guerras no velho mundo — e algumas vezes iludidos por vãs promessas de inescrupulosos que se faziam passar por agentes do governo que lhes pintavam um doce paraíso com abundância de víveres, franca prosperidade, plena assistência e mais inúmeras benesses —, os pobres sofredores em seus países vislumbraram alcançar esse eldorado. No entanto, de fato, havia o programa oficial de imigração do governo brasileiro para povoar as regiões desabitadas e até então improdutivas a fim de transformá-las em verdadeiros celeiros para o abastecimento do país e geração de divisas com as exportações. Além disso, as lavouras de café já existentes estavam carentes de mão de obra devido à recente libertação dos escravos que se ocupavam dos trabalhos de plantio e colheita. Realmente, ali foram feitas inúmeras promessas aos que viessem a habitar sua nova Canaã. Lamentavelmente, omitiram a parte que falava das acres provações, a começar pela penosa travessia do deserto líquido do atlântico, no qual farrapos humanos amontoados e em péssimas condições eram carcomidos pelas moléstias e tiveram o oceano como sepultura. Mal sabiam que seus sofrimentos apenas come209 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro çavam. Às infecções que as grandes movimentações humanas ao longo do globo transformaram em pandemias somavam-se outras ainda desconhecidas, como a febre amarela e a palustre. Estas os dizimavam aos milhares, fato praticamente encoberto pelo intenso fluxo que sempre aumentava o contingente. Não bastasse o longo tempo de confinamento nos navios, ainda precisavam passar mais tempo nas casas de quarentena para que não se disseminassem as doenças — uma condenação à morte face às condições da época. Vencidos os primeiros obstáculos, estavam preparados para serem atirados às garras do monstro do abandono, da fome, da insegurança, dos ataques dos peçonhentos e de todas as privações. Aquela prometida panaceia que lhes curaria os males físicos e morais e transformaria os famintos e andrajosos plebeus em nobres abastados, com seus mantos azulados, bordados com fios de ouro, cujas cabeças ostentariam uma láurea coroa de Palas, não passavam de ilusórias miragens. Em pouco, descobriram que continuavam famintos, desabrigados, cobertos com seus malcheirosos molambos e que a coroa que receberam não era senão uma dolorosa coroa de espinhos. Possuíam a verdadeira panaceia, entretanto: a inabalável fé que faz suportar com dignidade todas as provações, que produz a esperança de alcançar as graças, que induz ao amor, que faz com que todos se deem as mãos, que produz a certeza de que o grande pai os proverá como “às aves do céu, que não semeiam nem ceifam” e os vestirá como os “lírios dos campos, que não trabalham nem fiam”. Que lhes fará chover o maná em forma dos frutos que a solícita terra fertilizada com o suor do árduo trabalho faz brotar. A mesma fé que dá a certeza de que as rudes provações são apenas os desígnios de Deus, que nossa pobre percepção jamais consegue compreender e que as linhas tortas por onde a mão dele escreve, na verdade, são perfeitamente retilíneas, apesar de a nossa mísera visão não percebê-las assim por mera ilusão e preconceitos. 210 O personagem descrito a seguir teve uma história tão comum que ninguém duvida que tenha sido a de muitos de seus patrícios. Giuseppe era um pobre rapaz como todos aqueles que embarcaram na Itália no navio Planeta em 1896, cujo destino final seria o porto de Benevente–ES, Brasil. Originário da província de Vicenza, em Vêneto, uma conhecida região da Itália, embarcou em companhia de seus pais, que então só o tinham, pois os outros filhos haviam morrido. Como estavam à míngua e sem esperanças de um futuro melhor, ficaram encantados com a propaganda de um mundo novo de plena fartura de tudo e pensaram na possibilidade de serem felizes naquele paraíso. Seria uma nova terra prometida, a sua nova Canaã. Não teriam muito do que se desfazer, nada a perder nem outra opção melhor, afinal, do jeito que estavam, nada poderia ser pior. Certamente, desconheciam aquela assertiva pessimista que diz que nada é tão ruim que não possa piorar. Inscreveram-se, cuidaram da documentação exigida e embarcaram com coragem num navio — meio de transporte totalmente estranho para eles num caminho totalmente estranho, mas tendo um rumo parcialmente conhecido. Deveriam desembarcar em Benevente e seguir rio acima em embarcações menores. Então, caminhariam muito até chegar ao efetivo local do assentamento. Definitivamente, não fora a maravilha prevista por Giuseppe. A primeira ceifada da sorte levou seu pai e sua mãe no meio da viagem devido a um surto de terrível doença. Como vários outros desafortunados, teve de assistir ao doloroso lançamento dos corpos ao mar que lhes serviu de sepultura. O oceano, até então desconhecido e alheio à sua vida, passou efetivamente a fazer parte dela, de sua história, de suas lembranças. Ele foi, enfim, o túmulo de seus pais e de boa parte de sua gente. Essa tragédia foi só o começo de suas desventuras. Naquela confusão, nem se lembrou de que precisava de documentos para apresentar à imigração ao desembarcar, o que só ficou sabendo quando 211 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro os agentes vociferavam imperativamente: “Todos com os seus documentos em mãos ou não poderão desembarcar”. Que complicação! Ele não tinha os seus e não fazia a menor ideia de como encontrá-los. Tentou revirar os pertences que seriam os seus em meio àquele amontoado de coisas, porém nada encontrou. Tentou esconder-se no meio da multidão e saltou. Inexperiente, assustado, faminto, desconhecedor da língua local, não demorou muito a ser capturado, o que lhe serviu pelo menos para mendigar comida e abrigo, mas lhe privou da liberdade e o ameaçou de deportação. Não lhe sobrou alternativa: na primeira oportunidade, ele fugiu e ficou à espreita em relação à chegada de algum patrício com quem pudesse contar. Na próxima leva de imigrantes, teve a sorte de encontrar uma família que embarcaria junto com a sua, mas acabou transferida para outro navio que partiu pouco mais de uma semana depois de ele ter embarcado com seus pais. Eles o reconheceram. Contou sua triste história e pediu ajuda. Ficaram comovidos, porém, devido à sua também precária condição em termos de posses, conhecimento e dificuldades com a língua, ficaram temerosos de serem prejudicados e ainda não conseguir ajudá-lo. Mas informaram para onde rumavam e que se ele, de alguma forma, conseguisse chegar até lá sem ser notado, o acolheriam. Não era uma solução, mas era um alento. Logo, após as barcaças subirem, saiu do esconderijo onde estava e, por sorte, encontrou alguém numa pequena embarcação que precisava de ajuda para descarregar as mercadorias trazidas do interior e carregar com víveres para o seu abastecimento e o dos vizinhos. Propôs que trabalharia por comida e pela viagem rio acima até o local em que o senhor Giocondo disse que iria assentar-se. O disfarce de trabalhador lhe caiu muito bem. Ali, ele dissipou as suspeitas, 212 proveu-se de alimento e finalmente valeu-lhe a viagem. Foi sua tábua de salvação. Estavam tão preocupados com sua sorte que quando o viram chegar alegraram-se e acolheram-no. Bem mais tarde, com a situação já definida, com conhecimento e com ajuda de alguém que falasse bem a língua, poderiam ir até os agentes da imigração acompanhados de algum advogado da cidade mais próxima, testemunhar sua procedência, sua filiação, a região de origem, informar o navio em que chegara, a perda dos documentos e tentar obter junto ao consulado uma segunda via. A ajuda seria mútua. Um rapaz disposto ao trabalho em sua casa seria de grande valia para tocar os serviços na terra. Ademais, seria um bom começo, pois o senhor Giocondo possuía apenas a mulher e uma filha. Giuseppe trabalhou arduamente por anos a fio, mas agradecido pela acolhida e confortado pela perda dos pais em condições tão trágicas. Os laços familiares se estreitaram muito mais e tornaram-se de direito e de fato pelo casamento de Giuseppe com Annette, a filha do senhor Giocondo — que muito se agradava da união, bem como sua esposa. Dias antes desse casamento, contudo, ainda aconteceu um fato novo que também estava atrelado à sua história. Giuseppe, sem eira nem beira, sem dote, morando (até então) de favor, embora feliz, nunca poderia imaginar que o mesmo acaso que o separara de seu passado o faria de novo trombar com ele. O mesmo que lhe restituiria em parte o que lhe dizimara. Numa gleba não muito longe dali, outro Giuseppe vivia muito tempo solitário por muito tempo. Já acamado e pressentido a morte, precisava reconciliar-se com sua consciência irremediavelmente atormentada durante muitos anos por um delito 213 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro cometido nos dias de sua juventude, nos quais a ganância e o desejo juvenil de “fazer a América” para retornar rico ao seu país, o haviam levado ao insano desatino de prejudicar um desvalido abandonado pela sorte. Essa mancha na honradez o perseguiu por toda a vida, por isso, nunca abandonou a ideia de que todas as desventuras sofridas, incluído aí a morte prematura da esposa e dos filhos pelas implacáveis doenças e o seu atual estado de abandono, era o preço do seu pecado. Desejava ardentemente fazer o seu ato de contrição, implorar o perdão e devolver ainda que tardiamente o que não lhe pertencia. Não seria difícil, pois pouco tempo antes ouvira de alguém a história do verdadeiro Giuseppe — e já sabia onde encontrá-lo. Conseguiu que um vizinho que o atendia em suas últimas necessidades lhe servisse de um emissário para comunicar e intimar o seu credor a comparecer urgente à sua casa. O que lhe foi concedido, pois ninguém negaria um último pedido ao moribundo. Assim, com sua voz fraca, cansada e várias vezes embargada pelas lágrimas, fez sua confissão no leito de morte. Obteve, então, o perdão, mas atribuindo-se a penitência de devolver o nome, o passado e os pertences a quem de direito. Assim falou: sem pudor de suas misérias e não tive o menor constrangimento em roubar-lhe os documentos e todos os míseros pertences nos momentos mais atrozes de sua vida. Passei-me por Giuseppe, me apossei da gleba de terra que era sua por direito e roubei a vida que seria a sua. Mas, acredite, fui severamente punido por esses pecados. Lentamente, o destino me tirou o que somente muitos anos depois fui compreender que era realmente o que havia de mais precioso para a vida de uma pessoa. As moléstias dizimaram meu gado, as pragas destruíram minhas plantações, minha família foi muito cedo exterminada pelas doenças e fui abandonado pela sorte, por tudo e por todos, menos pela culpa, que insiste em me acompanhar até o fim dos meus dias. Pegue a sacola que está sob a cama e tome de volta o que é seu. Aí estão seus documentos e de seus falecidos pais, mais o título de posse da terra que por direito lhe pertence. Eu imploro que limpe a minha alma imunda do pecado com o seu perdão. — Percebo que o céu foi complacente e lhe compensou com a felicidade, a despeito de suas misérias do passado da qual fui o único responsável. Naquela ânsia juvenil de conquistar o mundo, não hesitei em obter os favores da sorte à custa de sua desgraça. Vinha clandestino naquele navio e não era nada difícil ficar diluído no meio daquela multidão de desafortunados. Vi seus pais serem atirados ao mar como outros infelizes. Minha sede de conquista não permitiu que a túnica da compaixão envolvesse a minha alma impura e não se dissuadisse da ideia de varrer as pedras do caminho a qualquer custo. Aproveitei-me Deu o último suspiro e partiu em paz. Dali a alguns dias aconteceu o esperado casamento de Giuseppe com Annette. Eles viveram bem e tiveram muitos filhos e netos. Giuseppe foi pai de Giacomo, e avo do João da nossa história. 214 215 — Sim, eu lhe perdoo como nosso Cristo nos ensinou. — Obrigado pela sua generosidade que apaga os pecados de um moribundo em seu leito de morte. Capítulo XXIII A serpente mutilada Ao chegarem à matriz, procuraram as antigas indicações das histórias do seu João quando criança e começaram a procurar os indícios de alguma entrada secreta para um possível túnel. Consultaram o livro que dizia: “A serpente devora o defunto, e a mulher lhe esmaga a cabeça”. E também: No chão da casa de Deus uma serpente nasceu mutilada início e fim dos segredos seus na cabeça e na cauda cortada Cinco vértebras também feridas a cinco cabeças espaçadas o segredo das espadas inseridas a sete chaves guardadas. — Deveria haver algum sepulcro relacionado, de alguma forma, a uma mulher. E isso deveria estar de relacionado à serpente mutilada que, em ultima análise, poderia ser o túnel a respeito do qual a lenda tanto falava. — Num dos lados da sacristia, na parte mais ao fundo, desceram por uma pequena escada perto da qual, quase desper- João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro cebida, havia uma porta de aspecto bem antigo e que parecia não ser aberta por muito tempo. Com certo esforço, conseguiram abrir e entraram num cômodo sem iluminação e com a pintura de cal tão desgastada pelo tempo que até as luzes das lanternas não surtiam grande efeito; de modo que levaram alguns instantes para que seus olhos se habituassem à tênue luz. Ali havia vários móveis em estilo rústico e bem antigos. Num dos armários de 4 portas que abriram, encontraram uma sequência de livros bem volumosos colocados em ordem e com datas de abertura e fechamento contendo muitos registros de nascimentos, batismos, matrimônios e óbitos. Em outro armário igual encontraram muitos livros, a maioria deles em latim. Num outro móvel que parecia uma enorme cômoda, com muitas gavetas, econtraram uma enorme quantidade de peças de diversos tipos, a maior parte em bronze, mas existia também em prata e uma pequena parte de objetos sacros em ouro. Eram antigos instrumentos de navegação, tais como astrolábio, bússola, luneta, um sextante primitivo, esquadros, transferidores, mapas, tinteiros, penas, etc. Havia ferramentas antigas, como uma pequena enxada, picareta, ancinho e vários outros parecidos com ferramentas de jardinagem entre outras. Muitos utensílios domésticos de mesa e cozinha. Muitos objetos utilizados na liturgia (como cálices de ouro, galhetas de ouro, patenas de ouro e de prata, âmbulas de ouro, ostensórios de ouro e de prata, castiçais de prata e de bronze, turíbulos de bronze, etc.) também estavam lá. Em outras gavetas também havia roupas antigas, toalhas de altar e paramentos usados nas cerimônias litúrgicas. Numa outra, encontraram muitos tubos em finas folhas de flandres ou bronze com tampas do mesmo material, em cujo interior havia algo enrolado que aberto era uma folha de um papel primitivo ou tecido fino 218 com desenhos e inscrições; a maioria em latim. Em um deles era possível perceber claramente que era um mapa da região em que se via desde a entrada da barra até a subida do rio. Outro parecia ser a planta baixa de todo o conjunto, incluindo igreja, aposentos, cemitério, mausoléu e outros que precisavam ser examinados com calma em melhores condições para avaliar-se o que eram. Fotografaram tudo o que puderam. Precisavam algum dia voltar ali com calma e tempo suficiente para estudar todo aquele conjunto que, na verdade, formava um precioso museu, bem como verificar minuciosamente todo o seu conteúdo. Mas, por enquanto, tinham de procurar mais coisas. Vasculharam todo o ambiente e descobriram um contorno atrás do armário que lembrava uma porta. Na verdade, a porta parecia ter sido coberta com uma fina camada de reboco que se estendia por toda a parede e que tivera sua existência descoberta com o tempo devido às rachaduras localizadas. O armário provavelmente havia sido colocado ali propositadamente na tentativa de camuflar a porta. Afastaram o armário com cuidado e muito esforço devido ao seu peso. Com muita dificuldade e paciência, conseguiram remover o reboco na região das trincas até a porta ficar definida e, com muito jeito e paciência, conseguiram abrila. Havia uma pequena escadaria de madeira que rangia quando passaram sobre ela. Descia cerca de três metros. Entraram, então, num ambiente escuro. Parecia um mausoléu e, na verdade, o era. Conseguiram verificar que havia lápides retangulares nas paredes com o lado maior na horizontal, do tamanho de um ataúde de pessoa adulta, sugerindo que esses eram colocados nessa posição dentro da parede. Havia inscrições em cada uma, epitáfios comumente encontrados em sepulturas. 219 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Sobre cada uma, numa cavidade contendo esculturas de anjos ou santos. Numa delas ao canto estava escrito: “O sepulcro é a porta de entrada para o infinito, um caminho sem volta”. Acharam curioso. Verificaram, portanto, qual a escultura sobre ela e viram que era uma pequena imagem de Nossa Senhora da Assunção, a padroeira da Igreja Matriz. Lembraram-se da frase que haviam lido instantes antes: “A serpente devora o defunto, e a mulher lhe esmaga a cabeça” e não tiveram dúvidas, ali havia alguma coisa. Provavelmente, sob a base da imagem ou no interior dela, caso fosse oca, haveria alguma coisa escrita indicando o que deveriam fazer. Ao tentarem remover a imagem para examinarem-na, faltou-lhes o chão. Uma espécie de alçapão se abriu sob seus pés e eles levaram um enorme susto; escorregaram por uma rampa que parecia curvar-se e caíram dentro de um fosso alguns metros abaixo. frágil e rebocada com uma fina camada de barro e caiado. Desse modo, abriram mais até verificar que realmente existia um túnel à sua frente, semelhante aos existentes em minas subterrâneas. Acabaram de abri-lo e foram em frente. Somado à apreensão que já possuíam antes, aquele silêncio que fazia sobressair o som da respiração ofegante, a escuridão de que as lanternas pareciam não dar conta, a poeira da parede desfeita, o calor e a umidade produziam um estado de quase pânico que potencializava a sua falta de ar. O caso, no entanto, era ir em frente e procurar alguma saída. Acenderam as lanternas e verificaram que era um estreito cubículo que se assemelhava a uma pequena antessala. Ficaram com muito medo de terem caído em algum tipo de armadilha, principalmente quando se lembravam do epitáfio que dizia ser uma ida sem volta. Observaram, então, os arredores e verificaram que havia uma espécie de sombra por baixo da camada de reboco que cobria a parede que lembrava o contorno de uma porta. A técnica de camuflagem parecia ser a mesma utilizada anteriormente, exceto algumas especificidades. Com um canivete, rasparam a camada na região adjacente àquela sombra e descobriram que havia uma diferença construtiva na região que parecia ser de barro e tijolos mal cozidos. Aprofundaram o contorno de um dos tijolos e cuidadosamente conseguiram removêlo. Notaram, então, que, na verdade, aquela era uma passagem que teria sido fechada propositalmente com um material mais Lembraram-se dos versos que haviam lido pouco antes e analisaram o lugar. No “chão da casa de Deus” já estavam, a “serpente mutilada” seria o túnel, “devorar o defunto” deveria ser porque o sepulcro estava praticamente na boca do túnel. Faltava descobrir os segredos. Um deles, segundo as inscrições do livro, estava na cabeça, isto é, na entrada do túnel. As sete chaves poderiam ser objetos ou uma metáfora equivalente a uma chave do segredo, algo escrito — ou ainda as duas coisas. De fato, eram, como veriam mais tarde. No lado direito do que seria o marco da porta, a cerca de 1.70 m de altura, havia uma pequena cavidade e, ao fundo, havia algo metálico e dourado. Com certo receio das possíveis surpresas desagradáveis, decidiram puxar aquilo para fora e ver do se tratava. Poderia ser a chave do novo problema: sair dali. O professor Pedro puxou e ambos examinaram: era um objeto que media aproximadamente 8 cm de comprimento e tinha a forma que lembrava uma pequena espada. Nela, havia uma inscrição: “Mt 13.15”. Consultaram a Bíblia que levavam como parte de seus apetrechos e confirmaram se tratar da parábola do semeador, que, em última instância, concluía que deve-se ouvir com os ouvidos e entender com o coração. Claro estava para eles 220 221 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro que tudo era dito por metáforas e tinham de entendê-las da melhor forma possível. Precisavam sair dali. Como o epitáfio dizia que era uma ida sem volta, não havia outro recurso senão avançar e achar a saída do túnel. Deram mais uma olhada na cópia do livro que levavam e ficaram a imaginar o que seriam as vértebras da serpente dentro daquele túnel. Apontaram as lanternas para frente seguindo as laterais e descobriram que as vértebras realmente existiam: eram as escoras. Assim sendo, a situação começava a fazer sentido. Faltava, então, encontrar a próxima chave que estaria numa das vértebras. Mas em qual delas? Havia muitas. Consultaram o livro mais uma vez e viram que as vértebras onde os segredos estavam eram espaçadas de cinco cabeças. — Que curioso, Pedro. Como poderia haver espaçamento de cinco cabeças se entendemos ainda há pouco a cabeça como a entrada do túnel. Onde estariam as quatro restantes? Será que existe algo que ainda não sabemos, como objetos, desenho na parede ou estatuetas? Será que existe mais alguma indicação que permita encontrá-las? — Não, Paschoal. Pelo menos aparentemente, não há mais nada que se refira a isso. Temos de pensar muito mais e tentar deduzir o que possivelmente há nas entrelinhas dessa informação. Depois de muita análise, a única hipótese possível seria cinco vezes o diâmetro da boca do túnel, que media cerca de três metros na boca e depois afinava para 1,80 m. Contaram, então, quinze metros a partir da boca e verificaram a escora mais próxima. Isso foi fácil, pois, pelo que perceberam, o túnel tinha uma simetria impressionante e entre duas escoras havia uma distan222 cia de três metros. Logo ao lado dessa escora, à primeira vértebra, escavada na parede estava a pequena cavidade. Foi difícil para eles a encontrarem, pois, desta vez, estava à esquerda — à direita, era encostada na rocha e não poderia ser escavada facilmente. Aliás, essa era uma característica construtiva do túnel, engenhosamente planejada, aproveitando-se da topografia existente naquela região: uma camada de barro na encosta da rocha até o ponto em que esta ficava à mostra, alguns metros distante de sua parte mais baixa. A cavidade era semelhante à da entrada do túnel, fincado no fundo um objeto também semelhante ao primeiro. Nele, também havia uma inscrição: “Mt 13.44”, que, conforme consultaram, era: “O reino de Deus é semelhante a um tesouro escondido no campo...”. — Veja só, Pedro. Isso é sugestivo, não acha? Penso que é uma indicação muito importante para nós. — Certamente. Penso que seja um sinal que, seja lá o que for que procuramos, não está aqui. Em última instância, indicava que o tesouro, ou o que quer que procurassem, estava no campo, portanto, fora do túnel. Andaram mais 15 metros e encontraram mais uma escora, a segunda daquela sequência, com uma cavidade ao lado e com o objeto fincado no fundo como os primeiros. Retiraram e viram a inscrição: “Jo 12.35”. Consultando a Bíblia, viram que dizia: “Por pouco tempo a luz está em vosso meio”. — Intrigante, Pedro. O que quer dizer isso, considerando as nossas condições? Afinal, estamos num túnel sem iluminação. — Sim, mas talvez seja um lembrete para pouparmos as baterias da nossa lanterna ou que o nosso final está próximo. Isso 223 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro faria muito sentido se considerássemos que antigamente se usavam tochas acesas para iluminar e que elas consomem o oxigênio necessário à respiração. Por um instinto de preservação, prefiro acreditar na primeira hipótese. Tomaram aquilo como um aviso para realmente usar as lanternas o mínimo possível. Então, mantinham somente uma delas acesa, a menos que fosse muito importante acender as duas. Faltava ainda a terceira vértebra da indicação. Andaram mais 15 metros, localizaram a próxima escora, a cavidade e o objeto fincado. Retiraram e leram “Mt 7.14”, que corresponde a: “Estreita é a porta que conduz à vida”. — Veja só, Pedro. Aqui fala numa porta. Curioso, não há porta alguma, pelo menos visível por aqui. Aliás, pelas condições, é improvável que exista. — Sim. Deve haver alguma explicação para isso. Na próxima escora, a quarta da sequência, depois do mesmo espaçamento, a indicação encontrada era: “Mt19.24”, que diz: “É mais fácil um camelo passar no fundo de uma agulha do que o rico entrar no céu”. — Agora complicou, Pedro. Em nosso contexto, essa metáfora é quase impossível de servir para deduzir alguma coisa. — Com certeza. Essa é a mais difícil de todas. Parece que, a cada vez que a gente avança, as indicações ficam mais complicadas... ou fazem menos sentido. metros e tiveram uma grande surpresa ao constatar que o túnel havia acabado. Àquela altura, o pânico quase já tomava conta deles. Reunindo seus últimos esforços de concentração, tentaram desesperadamente manter-se calmos, e então começaram a conversar sobre as suas reais possibilidades. — Pedro, você não acha muito estranho alguém construir um túnel desse tamanho que não leva a lugar algum? — Sim, pois, pelo que consta, os túneis serviam como rotas de fuga. Seguramente, deve haver uma saída. — Concordo, mas a questão é como encontrá-la. — Por sorte, falta ainda mais um segredo. Procuremos nessa última vértebra. Naquele ponto do final do túnel havia uma última escora, ou “vértebra” como a chamavam. Próximo a esta escora conseguiram encontrar uma cavidade semelhante às primeiras e viram a inscrição em latim: “Pace est cum vos”, ou seja, a paz esteja convosco. Tremeram de medo. Aquilo soava como “descansem em paz, vocês já acabaram de viver esta vida”. Todavia, para seu consolo, sobrava também o linguajar popular: “relaxem ou acalmem-se”, conforme fizeram questão de entender — devido às suas imperiosas necessidades no momento. Faltava, então, encontrar a saída e a última chave. Examinaram detalhadamente cada centímetro quadrado do final túnel, incluindo o teto e o solo. A princípio, não souberam exatamente o que queria dizer aquilo, mas precisavam seguir em frente. Andaram mais quinze — E agora, Pedro? Se ainda nos falta a última mensagem e esta deveria estar na cauda da serpente, ou, como deduzimos, na saída do túnel, e o túnel acabou... 224 225 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Verifiquemos novamente as mensagens. Ah, achei uma interessante que talvez ajude em algo. A penúltima mensagem falava num fundo de agulha. Deve haver algo semelhante pelo chão. — Sim, essa é, talvez, a única possibilidade. Vamos testála. Com um canivete, sondaram o solo em diversos pontos e encontraram num canto o que procuravam. Sob uma fina camada de terra havia uma fina placa de bronze, na verdade, um alçapão. Ao levantarem-no, viram um buraco circular que permitiria no máximo um de cada vez. Iluminaram o seu interior e viram que dois metros abaixo o ambiente parecia ser um pouco maior. — Pedro, temo por surpresas desagradáveis. — Claro, Paschoal, eu também morro de medo, mas creio que não haja nenhuma outra opção. Alguma ideia? — Não. Lamentavelmente, nada mais me ocorre. — Então, vamos em frente. Resoluto, Pedro foi o primeiro a pular dentro do poço, disposto a tudo. Imediatamente, o professor Paschoal o seguiu. Viram que era um apertado cubículo em que ambos poderiam estar com muita dificuldade. — Que situação! Veja só, Paschoal, pelo menos aparentemente, não há nada. — Então, possivelmente, haverá algo parecido com a técnica usada nos casos anteriores. Aliás, na mensagem que vimos há pouco havia uma menção a uma porta estreita. Verifiquemos. Com muito custo, sondando as paredes com o canivete, acharam uma estreitíssima porta no canto/ camuflada com uma fina camada de barro. Com bastante esforço e usando as poucas ferramentas que levavam, conseguiram encontrar a porta — na verdade, uma fina parede que obstruía a passagem como a primeira que haviam encontrado. — Pedro, procuremos a sétima mensagem. Ela tem de estar por aqui. Procuraram por ela e a encontraram como na da entrada? a cavidade ao lado com o objeto cravado no fundo. — O que diz essa, Pedro? — A referência é: “Mt 5.41”. Ela corresponde à citação do versículo 41 do evangelho de São Mateus: “Se alguém te forçar a andar uma milha, vai com ele duas”. — Se bem entendi, essa dica, em outras palavras, nos informa que este não é o final do caminho. Ainda temos muito que andar. Será que esse túnel é tão comprido assim? — Não creio. Deve haver outra explicação para isso. — Ótimo, então vamos por partes. Primeiramente, a porta. — Sim, como das outras vezes. Deve estar muito bem camuflado. Ao abrirem a porta, tiveram a agradável surpresa: ar fresco e luz natural. Que alívio! Passaram com muita dificuldade e saíram numa pequena gruta no meio de um matagal. A última 226 227 João Roberto Vasco Gonçalves mensagem indicava que deveriam caminhar duas milhas. Abriram uma trilha cortando o mato com um facão o suficiente para passarem. O terreno era ligeiramente acidentado e tinha um declive acentuado. Desceram muito, até que chegaram à beira do rio. O enigma do túnel estava bem explicado. Na verdade, não era tão grande, conforme realmente supunham. Alias, analisando bem, a lenda não afirmava explicitamente que o túnel seria longo, logo, o resto do percurso obviamente seria fora dele. Capítulo XXIV A subida do Rio Benevente Chegaram às margens do Rio Benevente. Precisavam, assim, decidir o que fazer. Depois de conversarem alguns minutos sobre suas possibilidades, sem chegar a uma boa ideia, resolveram dar uma olhada no livro a fim de ver se havia algo que os orientasse. Depararam-se, então, com estranhos versos: Subindo 14000 côvados , depois do encontro das águas, o passo do salitre está, dobrando-se a tramontana, o novo Horeb estará. isso? — Que verso curioso, hein, Pedro? Como você analisa — Para mim, está bem claro: “subir” com certeza é navegar em sentido contrário ao seu curso, ou “rio acima”, como dizem. Côvado é uma medida antiga que equivale a aproximadamente meio metro, então 14000 côvados seriam aproximadamente 7 km. O “encontro das águas” é autoexplicativo, deve haver um afluente que deságua nesse rio. O “passo do salitre” ou “praça do salitre” seria uma localidade. Pelo que vimos na propaganda do passeio de barco, pelo rio existe uma edificação em ruínas às margens do Rio Salinas. Tramontana é uma palavra italiana que tem alguns significados, podendo ser “longe” ou “norte”, caso se refira a uma posição geográfica. Logo, “dobrar a tramontana” 228 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro certamente será mudar de direção seguindo para norte, o que corresponde a um afluente da margem direita de quem sobe o rio que, pela lógica, é o Salinas. — E o que o Horeb tem a ver com isso? — Segundo a Bíblia, esse é o monte onde Moisés recebeu as tábuas da lei. — Tudo bem, mas o que se pode concluir disso? — Ora, Horeb é um morro, se o verso diz que dobrando a tramontana o Horeb estará, certamente haverá um morro em alguma parte do caminho. — Portanto, vamos à viagem pelo rio. Havia um problema, o de conseguir um barco motorizado. No entanto, em primeiro lugar, teriam de sair dali e chegar ao local conhecido como “porto de cima”, onde sabiam que alugavam barcos. Descer o rio pela margem era impraticável, pois logo a encosta se tornava um enorme escarpado de granito sem a menor possibilidade de transposição. Foram, portanto, em sentido contrário, contornando as margens numa região onde o morro era mais acessível e encontraram um manguezal. Tiveram muito trabalho para achar um caminho. Contornaram e subiram o morro naquela região, saindo no outro lado, próximo à entrada oeste da cidade, na estrada que vem de Jabaquara, e entraram de volta em Anchieta. Caminharam um pouco e saíram na rua da praia. Precisavam, então, saber onde ficava o local conhecido como “porto de cima”, conforme ouviram alguém mencionar antes. — Bom dia. O Sr. poderia me informar onde fica o porto de cima? Apontando com o dedo, braço estendido, o homem indicou a direção, dizendo: 230 — Siga em frente margeando a praia até encontrar a ponte. Depois dela, siga a rua em frente por uns 50 metros e vire à direita, seguindo por essa rua por mais uns 100 metros. Então, dobre à esquerda e siga pela rua até encontrar o rio. Ali é o porto de cima. Ligeiramente confuso com a informação e a imprecisão das medidas (e anotando alguns pontos de referência), Pedro tomou um bloco de notas e um lápis e fez um croquis como pôde. Agradeceram pela informação e seguiram em frente. Perguntaram um pouco adiante e, em poucos minutos, já estavam lá. Fizeram uma pequena pausa para um lanche e para reporem as baterias das lanternas e depois começaram a procurar onde pudessem alugar um barco. — Você sabe onde podemos alugar um barco? — Perguntou Pedro a um menino que passava pela rua. — Ali — apontou para uma casa. — Obrigado. Chegaram à casa, chamaram; logo, alguém atendeu. — Vocês têm barco motorizado para alugar? — Saíram quase todos para a pesca, só resta um pequeno com motor de popa, mas agora não temos ninguém para guiar. — Não é necessário. Queremos só o barco mesmo. Pagamos adiantado. — Ótimo. O galão de combustível está ali naquele canto. Porém, antes de saírem, precisam ouvir algumas recomendações. — Sim, ouviremos. Pode começar, por favor. — Vocês devem tomar alguns cuidados, tais como não se aproximar muito das margens, evitar as moitas de vegetais de231 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro baixo d’água, ter cuidado com galhos de mato e restos de roçado boiando, ter cuidado com os bancos de areia e usar sempre os coletes salva-vidas. — Sim, tomaremos todas as precauções. — Há mais algumas recomendações importantes que os senhores precisam ouvir. — Pode falar. — É proibido pescar camarões, incomodar as aves, mexer nos seus ninhos, pegar ovos, capturar qualquer tipo de animal silvestre, cortar árvores ou pegar mudas de plantas. Era uma porção de “nãos”, de modo que o que sobrava de fato era olhar e fotografar. Se, por um lado, era incômodo todo aquele falatório, por outro, era muito bom saber que o pessoal do lugar estava empenhado em cuidar do meio ambiente. Ficaram mesmo impressionados com o nível de consciência ambiental na região. As indicações do livrinho eram realmente sugestivas. Subiriam o rio por cerca de 7 km até encontrar um afluente que seguisse para o norte. Isso excluía os afluentes à esquerda de quem sobe o rio. O primeiro afluente significativo que se desloca para norte é o Rio Salinas. Conforme já mencionado, iriam até lá. O barco que conseguiram era pequeno e bem modesto. O motor, de pequena potência, o que fazia com que rio acima se deslocasse vagarosamente. De certa forma, isso era desagradável, contudo, por outro lado, era uma boa oportunidade de observar a paisagem, as garças, os canais, os manguezais e pensar na real importância daquele ecossistema. Tudo isso suavizava a impaciência e de algum modo relaxava a tensão produzida pelos últimos acontecimentos. Era tudo de que precisavam para suportar o peso das aventuras e continuar suas pesquisas, que àquela altura dos acontecimentos, nem mesmo sabiam ao certo se chegariam a algum lugar ou produziriam algo de útil que pudessem 232 apresentar a quem lhes encomendara. Eles não eram bons em navegação e tiveram algumas dificuldades para pilotar prestando atenção às recomendações que haviam recebido. Desse modo, gastaram cerca de 40 minutos até chegar até ao Rio Salinas. — Olhe, Pedro, além de alguns canais há um afluente que segue para norte. Observe este estranho mapa que copiamos do livro original. Parece muito antigo e escrito em latim. Segundo suas informações, só pode ser o Rio Salinas. — Com certeza. Vamos entrar por ele. — Segundo a propaganda turística que vimos, logo adiante encontraremos as ruínas. — Certo, então vamos em frente. As ruínas realmente eram interessantes, como já haviam lido e escutado os comentários. Fizeram uma pequena parada, foram até lá, fotografaram, examinaram bastante o local, fizeram anotações e voltaram para o barco dispostos a continuar a viagem. — Paschoal, será que a perseguição acabou? — Duvido muito. Eles são muitos e parecem estar determinados. Devem ter outros planos em andamento. 233 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Provavelmente, mas ainda temos os defensores... — Pedro, já conseguimos chegar até aqui seguindo as indicações do livro. Creio que estamos no rumo certo. — Concordo, no entanto, pela proporção que sugere o mapa, nós ainda estamos a uma boa distância e temos de ter paciência para chegarmos lá. — Só falta agora achar o tal monte Horeb que o livro menciona. O que você acha? — Acho que seria o Monte Urubu. Pelo menos consultando o mapa e comparando com a posição e distancia relativa, seria realmente ele. — Claro, Pedro, é isso mesmo. Pelo estudo que fizemos da região, só pode ser o Monte Urubu, que fica à margem direita do salinas, não muito distante deste. — Se soubéssemos que esse seria o alvo, não precisáramos ter vindo de barco. Há uma estrada de Anchieta até lá. Seria muito mais rápido e nos pouparia de tanto sufoco. — Nesse caso, contudo, aparecem outros complicadores, pois chamaria muita atenção e teríamos de responder a muitas perguntas. — Tem razão. Além disso, dependendo do material que encontrássemos, seria muito mais discreto descer de barco longe de olhos curiosos e dar um jeito de esconder o item em algum lugar para o transferir depois para um carro que alugássemos. — E então, como faremos? — Iremos de barco até onde for possível. Depois, desembarcamos e caminhamos pelo melhor caminho que encontrarmos. Foram em frente de barco até onde foi possível. Depois, desembarcaram e caminharam bastante. Suas mochilas pareciam já pesar toneladas, e o cansaço já começava a incomodá-los. Entretanto, haviam chegado até ali e não poderiam desanimar. Restava-lhes seguir em frente. — Sim, mas não teríamos descoberto muitas coisas nem obtido esses objetos — disse, mostrando uma das pequenas espadas — que, possivelmente, mais adiante pode servir para algo, conforme sugere o livrinho. Mas ainda podemos fazer isso, abortar a subida do rio e ir de carro. aqui. — Creio que agora não seja apropriado, já que estamos — Certo, mas podemos ir até a estrada que vai de Jabaquara até Anchieta, e conseguir carona para lá e alugar um carro. — Mas ainda temos o problema do barco, que não podemos deixar ali, a menos que arranjássemos um caminhão pequeno para carregá-lo de volta. 234 235 Capítulo XXV A gruta — Pedro, a nossa cópia do livro diz algo interessante para a nossa posição atual? — A sétima frase começa dizendo: “A santíssima trindade/ repousa em três pontos distantes/1 aqui no Nebo...”. Isso poderia ser o nada, o vazio, algo desaparecido ou perdido, algo de sentido vago ou mesmo um monte citado pela Bíblia no capítulo 34, versículo 1 de Deuteronômio. Ali, é narrado que Moisés subiu no monte Nebo, de onde Deus lhe mostrou toda a terra prometida, conforme relata o versículo 4 desse mesmo capítulo. — E o Horeb, onde entra nessa história? — O mapinha antigo menciona o Horeb. Pela décima terceira frase do livrinho, é uma citação do livro do Êxodo, capítulo 17, versículo 6: “Eis que estarei ali diante de ti, sobre o rochedo do monte Horeb, ferirás o rochedo e a água jorrará dele: assim o povo poderá beber. Isso fez Moisés em presença dos anciãos de Israel”. Assim sendo, subiram o Rio Salinas, que se desloca para norte, por cerca meia hora. Depois, caminharam muito, conforme previsto. O Monte Urubu que haviam avistado ao longe, estava então praticamente ao seu lado. Não se cansaram de apreciar aquela maravilha que se descortinava diante se seus olhos. Não perderiam a oportunidade de caminhar pelas trilhas da região, o que, aliás, não deslocaria em nada o seu foco, muito pelo contrario. Olharam as anotações sobre o Monte Urubu, em que se po- João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro dia ler: “Possui um remanescente de Mata Atlântica situado no interior do município de Anchieta–ES a aproximadamente 20,7 lat e 40,7 long. Seu pico culminante é de 332 m. Fica na parte leste do município, à margem direita do Rio Salinas”. Não havia dúvida de que era aquele o ponto que procuravam. Segundo as propagandas turísticas que obtiveram, existem trilhas para fazer passeios eco-turístico, uma clareira num lugar elevado onde se pode observar toda a região. Era tudo de que precisavam no momento. Antes de começarem a caminhada em direção ao monte, folhearam mais uma vez o livro que haviam confeccionado e se surpreenderam com uma indicação num desenho, provavelmente um mapa em que parecia ser a posição do rio onde estavam. No ponto, estava indicado: “Ex: XVII, XLVI”. Poderia ser um anagrama ou (talvez) referir-se ao capítulo 17 do livro bíblico do Êxodo. Imediatamente, consultaram a Bíblia que tinham consigo e fazia parte de seus instrumentos de pesquisa do caso. A frase era a mesma que haviam lido anteriormente e ela soou como um despertador nos seus ouvidos tentando acordá-los: “Eis que estarei ali diante de ti, sobre o rochedo do monte Horeb[...]”. Sem querer exagerar muito, poderia Horeb ter sido transformado em Urubu? Ou seria simples coincidência? Acreditar nessa hipótese parecia aliviá-los um pouco. — Pedro, agora ficou uma pequena dúvida: o que lemos anteriormente era Ex 17.16, no entanto, a indicação desse mapa é “Ex:XVII, LXVI”. O que seria isso? — Podem ser várias coisas. Poderia ser a data de quando alguém esteve aqui, possivelmente, 1766, afinal, antigamente era comum escrever datas em algarismos romanos. — Concordo. Isso significa que, embora os jesuítas tenham ido embora, alguém ficou por aqui cuidando das coisas. Alguma pessoa ou talvez uma irmandade. — Podem ter sido guardiões de alguma coisa importante para a sua fé? Nesse caso, não seriam necessariamente jesuítas, mas alguém infiltrado em seu meio ou ao mesmo tempo participante da ordem. — Acho que sim. Pensando dessa forma, é possível que nunca tenham sido extintos; ou, mais precisamente, podem existir até hoje. Pelo que vimos no livro original, existem inscrições que aparentam ser consideravelmente mais recentes o que da uma ideia de atualização e dinamismo no processo de documentação do livro. — Nem me fale. Aquela última consideração era de gelar a espinha. Por um momento, passaram por suas cabeças todas aquelas peripécias vividas na Europa antes de chegarem ao Brasil. — Pedro, recapitulando o que lemos anteriormente sobre o Monte Nebo, o que ele tem de importante mesmo para a nossa pesquisa? — Segundo a Bíblia, segundo livro de Macabeus, capítulo 2, versículo 5, seria o local onde Jeremias teria escondido a arca da aliança para que essa não fosse destruída por Nabucodonosor II, rei da Babilônia, quando este invadiu e subjugou a terra santa. — Isso é bastante curioso, pois, se fosse mesmo verdade, teria acontecido depois da expulsão dos jesuítas, que ocorreu em 1759, ou seja, sete anos depois. Poderia ser um grande exagero, uma grande vontade de encontrar algo, o que os levava a inferências forçadas que poderiam ser totalmente falsas, no entanto, com tantas supostas coincidências, não poderiam sair dali sem ao menos verificar tudo de perto e fazer um teste de consistência nas hipóteses levantadas. Claramente, a imparcialidade seria um problema para quem de 238 239 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro antemão já estava inclinado a acreditar num encadeamento de hipóteses e que estas os levariam ao ponto culminante da história cujo desfecho já imaginavam. Já haviam avançado demais para retornar com um caso inconcluso. Foram em frente. Ao chegarem ao sopé do morro, fizeram um breve reconhecimento do terreno, e, depois, nos caminhos que subiam, procuraram avaliar o tipo de terreno, o tipo de rochas, etc. Fizeram várias conjeturas. — Pedro, como você avalia a nossa chance de encontrar algo por aqui? — Acho que se alguém tentasse esconder algo com a intenção de que alguém, algum dia, talvez por gerações adiante, encontrasse, certamente não deixaria muito à vista. Tentariam proteger esse algo das intempéries e possivelmente fariam algum tipo de balizamento que permitisse a quem fosse fazer o resgate encontra-lo. Possivelmente, mediante um mapa simples com indicações, conhecido apenas por alguém que fosse comprovadamente íntegro, sagaz, preparado e escolhido para a tarefa, conforme também alude o livro. — Penso que aí há uma questão não entendida claramente, pois as melhores opções recaem sobre enterrar ou colocar em alguma gruta ou caverna. O que você pensa a respeito? — Enterrar provavelmente seria difícil para a conservação ou talvez exigisse vasos de cerâmica de tamanhos descomunais, caso as peças fossem grandes. Outrossim, há uma referência no livro a Mt 6.19: “Não enterrar os tesouros na terra”. Seguindo essa indicação, o tesouro ou o quer que fosse não estaria enterrado. gruta? — E se esse “enterrado” for uma forma de se referir a uma fosse de um tipo conhecido popularmente como “molêdo” ou outra rocha menos dura do que o granito, fácil de ser escavada, o que não parece ser o caso desse monte. — Então, não haveria nenhuma outra opção. Como se explica isso? — Sobra a hipótese de uma falha geológica natural, algo como uma gruta natural ou caverna, como o caso citado em 2 Macabeus 2.5. Vasculharam toda a região, porém nada fora encontrado. Estavam quase a ponto de desistir quando resolveram dar mais uma olhada no livro. Encontraram, num desenho, uma indicação que os levou a um ponto onde encontraram um montículo de terra que, após removida, mostrou algo semelhante a uma laje de pedra. Os contornos os levaram a crer na hipótese de aquilo ser uma entrada de uma caverna que tivesse sido vedada, num local parecido com uma vala que descia no meio da rocha. — Veja só isso, Pedro: algo como um desenho que lembra um coração. Não há uma referência sobre isto no livro? — Sim, é a referência Mt 6.21, que diz: “Onde estiver o tesouro estará o vosso coração”. Dizendo de outra forma, aqui temos o coração, e o tesouro estaria aqui. — Portanto, estamos no caminho certo, vamos tentar remover isso. Com certa dificuldade removeram e viram que não haviam se enganado. — Olha, realmente há uma caverna! — Uma gruta escavada por alguém seria outro caso problemático. Escavar na rocha seria impraticável, a menos que essa — Só que é muito pequena e estreita e acaba logo ali naquela água. 240 241 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Vamos seguir em frente e examinar mais de perto. Seguiram alguns passos adiante até onde foi possível e parecia ser o final da linha. Já sentiam a respiração mais difícil, talvez pelo ar viciado. Por sorte, possuíam bombas de oxigênio como aquelas que os asmáticos costumam usar. — Veja, Pedro, parece haver uma fenda na pedra no fim deste pequeno túnel natural. Vamos examiná-la mais de perto. — É isso mesmo, Paschoal, e é maior do que imaginávamos. Com algum esforço, podemos passar, um de cada vez. — Então, vamos lá. — Venha também, Paschoal. Aqui existe outro túnel natural na rocha, duas vezes mais comprido do que o primeiro, até onde posso ver, pois ele parece curvar-se logo adiante. — É surpreendente, Pedro. Vamos em frente. Caminharam alguns passos até chegar à curva. Verificaram que, a partir dali, o ambiente se alargava, formando uma gruta. Resolveram entrar. — Pedro, nunca vi nada igual. A rocha das paredes lembra o mármore e tem uma tonalidade entre cinza e azul claro. A gruta era mesmo muito especial e tinha algumas propriedades curiosas e tecnicamente bem elaboradas, se analizadas com olhos de especialistas. No teto, de uma extremidade a outra, um veio translúcido de cristal de rocha em forma de arco com uma largura de aproximadamente 200 mm permitia que a luz do sol do lado externo transmitisse luminosidade ao interior da gruta ao longo de todo o dia (o que era totalmente aproveitado pelo tipo de revestimento da gruta, que difundia bastante, amplificando a claridade). Além disso, quando a claridade era intensa, a luz branca do dia se decompunha num espectro de cores 242 que lembravam as do arco-íris, pelo efeito do prisma constituído pelo cristal de rocha. Quando passava uma nuvem muito escura e a luminosidade caía, a fosforescência das paredes devolvia a luz armazenada. Nas extremidades próximas ao solo, onde o revestimento terminava, parecia haver uma subcamada de tom cinza escuro de aproximadamente 150 mm de espessura. Depois dessa, outra camada negra e fosca de mesma espessura de um material que lembrava um grafite; e só depois a rocha natural. Nos conceitos de hoje, lembrava um abrigo contra explosões nucleares e seus efeitos radioativos. Colheram algumas amostras para exames posteriores. — Olhe, Paschoal, na parte central parece haver um altar de pedra contendo algumas coisas. Vamos verificá-lo. — Sim, é realmente uma formação rochosa em forma de altar em dois planos, como se fosse um degrau. — Exatamente. E pelo, que vemos sobre o primeiro degrau, há um baú metálico que parece bronze. — E na parte superior não podemos ver muito bem porque há um anteparo em forma de cortina. — Vamos por partes. Verifiquemos primeiro o baú. Vamos tentar abri-lo para verificar o seu conteúdo. — Veja, há uma espécie de emblema com sete selos feitos em uma espécie de cera vermelha. — Deve ser isso. Rompamos os selos. — Veja, o emblema é, na verdade, uma estrela de seis pontas. Em cada ponta há uma fenda. E, no centro, há mais uma. — Deve ser algum tipo de fechadura. Onde estariam as chaves. 243 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Conosco — respondeu Pedro após refletir um pouco. Ele pegou as sete pequenas espadas que haviam recolhido no túnel “serpente mutilada” e mostrou. em baixo, na base. Duas galhetas em ouro bem claro, como se fosse liga de ouro com prata, uma patena também dessa liga e algo que parece ser umas toalhas ou talvez os paramentos. — Ótimo, se for isso, estamos bem adiantados. Introduza as espadinhas. — Pedro, encontramos algumas peças usadas na liturgia da missa católica, mas faltam ainda várias coisas, conforme informa o livro. Este insinua que existem documentos. — Não entrou na primeira fenda. Vou tentar nas outras. Observe, só entra em uma. — Faça a mesma tentativa com as outras. — Veja só, cada uma só entrou no lugar certo. É um tipo de segredo de chave. Porém, temos um problema: as chaves já foram inseridas, mas o baú não abriu. — Deve ser preciso girá-las, puxá-las, empurrá-las ou coisa assim. Possivelmente, numa sequência definida. Vamos fazer algumas tentativas. Após exaustivas tentativas, descobriram que tinham de girar cada uma no sentido horário, exceto a do centro, que era no sentido anti-horário. Finalmente, as travas foram liberadas. Eles poderiam, então, levantar a tampa do baú. Após alguns instantes de encantamento, imóveis e quase sem respirar, falaram quase ao mesmo tempo: “Finalmente, encontramos algo importante”. Depois de respirarem mais uma vez, decidiram abrir a tampa do baú e verificar o seu conteúdo. Ficaram estupefatos. Lá estavam todos os objetos sacros descritos. — Veja, Paschoal, são vários objetos usados na liturgia católica. Um ostensório de ouro com doze raios, um cálice de ouro contendo uma gravura trabalhada em pedras preciosas vermelhas, azuis, verdes e amarelas, conforme o desenho que formava. Provavelmente, um símbolo sagrado. Sete castiçais de prata com detalhes em ouro, contendo uma base com três apoios curvos em “S” no sentido da coluna em cima e curvos no sentido contrário 244 — Sim, precisamos examinar tudo detalhadamente. — Existe algo curioso aqui na parte interna da tampa. Parece algo como um pequeno lenço. Vamos ver se há alguma coisa escrita. Vou remover com cuidado. — Oh! O lenço cobre uma espécie de emblema, é uma estrela de ouro de 12 pontas, e em cada ponta há uma pedra. Cada pedra é de uma cor diferente. Em cima das duas que estão na parte mais alta há um símbolo gráfico. — Pedro, você consegue definir alguma coisa? — O símbolo da esquerda é a primeira letra do alfabeto hebraico, “Alef ”, o da direita é “Lamed”, décima segunda letra do alfabeto hebraico. Como em hebraico se escreve da direita para a esquerda, ou, neste caso, no sentido anti-horário, está coerente: a primeira letra está a esquerda; avançando sempre nesse sentido, a última estará à direita da primeira. — Boa explicação. Contudo, por que doze? — A antiguidade é cheia dessa coisa de números, como os doze deuses do Olimpo, os doze trabalhos de Hércules, etc. No caso judaico, temos vários casos, como, por exemplo, os doze filhos de Jacó, que geraram as doze tribos e, ainda, o caso dos profetas menores: Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias. — Faz sentido. E quanto às cores das pedras? 245 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Podem ser muitas coisas, pois as cores sempre foram carregadas de muito simbolismo em várias culturas ao longo da história. Sempre estiveram associadas a coisas como os signos zodíacos, divindades, comportamentos, cura de doenças e muito mais. Teríamos de pesquisar exaustivamente para formar uma ideia mais sólida. Faço, todavia, um prognóstico: observando as cores na sequência, vejo que começa com cores mais fechadas a partir do preto e elas clareiam à medida que avançam até chegar ao branco. Podem estar associados a graus de iluminação, aprendizado, hierarquia ou algo assim. — Mas, então, como se explica isso? O livro afirma que existem. Onde estariam? — A única opção que nos sobra é examinar as peças que já encontramos. — Vamos a isso, então. Comecemos pelo ostensório. — Achei. A base é oca e contém uma peça que parece um pedaço de pano encerado com inscrições em hebraico. — Veja agora sob o cálice. — Também contém uma peça igual à do ostensório e também com inscrições. — E sob os sete castiçais, o que há? — Perguntou Paschoal. — A mesma coisa. — Examine também as velas. — Veja, parecem ser ocas, formadas pelo mesmo material de pano cobertos de cera. — Vamos tentar abrir com cuidado e desenrolar para vermos se também contêm inscrições. — Sim, todas as peças das sete velas também possuem inscrições parecidas. — Há mais alguma coisa. — Não há nada de documentos, mas ainda há algumas peças — disse Pedro. — De documentos escritos, nada. Só existem as peças de que falei a pouco, ou seja, um candelabro de sete braços, também chamado de Menorah em hebraico, uma peça descrita em Ex 25.31–40, que consta no desenho do livro. Há um pequeno baú cheio de tabletes de ouro e um instrumento que lembra ligeiramente um cutelo que era utilizado para imolar as vítimas, mas com alguns detalhes característicos. Ele possui um cabo de um 246 247 — É muito curioso mesmo tudo isso. Já verificamos a tampa, passemos agora ao restante do baú. Verifique se há algo mais abaixo desse pano sob os objetos que já vimos. Afinal, ainda não encontramos nada de documentos. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro material na cor âmbar, possivelmente feito de alguma resina natural ou pedra. Ela tem uma guarnição quase elíptica com o raio maior na vertical, entre o cabo e a lâmina, feito do mesmo material e uma lâmina de um metal amarelo bem claro como se fosse uma liga de ouro e prata, sendo de um terço do comprimento total do instrumento, que deve medir uns quinze centímetros. — E o que mais? — Examinando bem esses panos, na verdade, são um conjunto de vestes sacerdotais como as descritas em Ex 28.4. — Algo mais? — Não há mais nada a ser verificado — Pedro respondeu. — Nesse caso, passemos às interpretações das inscrições encontradas: comecemos por essas do Deuteronômio. — A primeira referência é Dt 11.8–25, que fala da posse da terra; a segunda é Dt 10.11, que fala em tomar a terra; a terceira é Dt 11.24, que fala em limites da terra santa. Exatamente como está escrito no livro. — Isso é extremamente revelador. Para mim, estão muito claros os objetivos dos guardiões da organização, confraria ou o que for: libertar a Terra Santa. — Como os cruzados e templários? — Exatamente, porém em termos mais nobres e sob o ponto de vista judaico, ou seja, libertá-la, mas deixando-a sob o próprio domínio judeu. — Veja só, e nós pensando que havia algo de religioso nessa história toda. Na verdade, esses versículos da bíblia não passam de uma linguagem cifrada, assim como as frases de efeito escritas em hebraico, latim, etc. Fora as peças litúrgicas. Não me sinto nem um pouco confortável com isso, é como se tivéssemos 248 sido enganados. Já não sei nem mais o que pensar de tudo isto. Podemos estar sem saber no meio de uma conspiração. — Compreendo seu desencanto e o seu desabafo — disse Paschoal —, no entanto, como historiadores, sabemos que a figura do estado como instituição ainda não estava muito bem definida ou talvez nem existisse, de modo que suas sagradas escrituras eram como a nossa constituição civil de hoje. Possivelmente, muito mais ainda: os livros do Pentateuco eram verdadeiros manuais de instrução sobre saúde, comportamento social, aplicação da justiça, entre outros. Isso coloca a questão política e religiosa no mesmo plano ou até as funde. Em outras palavras, por esse aspecto, a religião e a política seriam a mesma coisa. Por outro lado, ninguém afirmou que seria algo religioso ou não. Nós é que estivemos inclinados a pensar assim devido à presença de versículos da Bíblia e instrumentos litúrgicos. — Concordo, mas vamos em frente. O que mais temos? — Lembro-me de mais uma coisa: o livro fala também de mais dois lugares além daqui onde a organização teria suas bases, sendo mais uma na América e uma na cidade eterna, que poderia ser Roma ou Jerusalém, como já discutimos. — Isso mesmo. Já conseguimos muitas informações, mas falta ainda examinar o restante. — Claro, eu quase me esquecia disso, porém há ainda a parte superior do altar. Vejamos o que há por trás desse pano que parece uma cortina de linho branco, apesar de estar encardida pelo tempo. Parece bipartida e corrediça, vamos afastá-la puxando um de cada lado. fatos. Oh! É a arca da aliança! — disseram em uníssono, estupe— O que pode haver nela? 249 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Se for exatamente como está na Bíblia, ela deve conter as tábuas da lei. — Essa seria original, a cópia do original ou outra mais recente? — Como conseguiremos abrir? Parece haver um tipo de fechadura ali e a fenda é diferente daquela em que usamos as pequenas espadas — disse Paschoal, apontando para a arca. — Não se pode afirmar com certeza. É possível que o original tenha sido escrito em uma língua anterior ao hebraico atual e que a cópia tenha sido exatamente como a primeira ou já escrita em aramaico e até mesmo o hebraico. Teríamos de estudar muito mais — concluiu Pedro. — Já sei, com isso — respondeu Pedro ao mostrar o estranhíssimo cutelo que haviam encontrado dentro do baú. Na verdade. era um tipo de chave. — Não sei o porquê de alguém após esconder tão bem ainda colocaria uma fechadura. — Talvez seja para forçar a inserir esta chave, um procedimento específico para que se consiga tocar na arca e abri-la sem correr o risco de morrer, como só os sacerdotes dedicados a isso poderiam fazer. — É possível, mas vamos lá, coloque a chave. Pedro colocou a chave na fenda e, depois de uma torção de aproximadamente noventa graus no sentido anti-horário, eles ouviram um forte estalo dentro da arca. Assemelhava-se ao som de uma chicotada e foi seguido pelo ruído das travas sendo liberadas. Bastava levantar a tampa e verificar o interior. Depois de passada aquela agitação com a surpresa, o encantamento e a apreensão, eles se viram diante de outro problema: o que fazer com a descoberta e qual destino dar a tudo aquilo de tanto valor material (e muito mais ainda histórico que não haveria dinheiro no mundo capaz de comprar)? — Paschoal, diante desta situação, se bem o conheço, você deve estar pensando o mesmo que eu a respeito deste material e mesmo deste lugar. pensa. — Sim, muito provavelmente. Diga exatamente o que — Esse lugar permanecerá desconhecido — disse, resumindo a ideia, utilizando a frase contida no versículo sete do capítulo dois do livro Macabeus, presente na Bíblia. — Precisamente. Como historiadores, sabemos, entre outras coisas, que valores históricos não têm preço. Por outro lado, a cobiça das pessoas é tão grande que não hesitariam em destruir tudo isto para transformá-lo em dinheiro ou fazê-las render milhões em leilões. — Veja, Paschoal, duas tábuas de um material que parece pedra, com inscrições em hebraico. Foram escavadas de uma forma que parece ter sido por fogo, como alude a Bíblia. — Sim, mas ainda há mais: caso publicássemos ou tão somente relatássemos nos estudos tudo isso, rapidamente o assunto se espalharia e não demoraria muito para aparecer muitos aventureiros do mundo inteiro vasculhando a área para tentar 250 251 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro encontrar coisas de muito valor. Alguns viriam até mesmo travestidos de honestos historiadores — afirmou Pedro. Assim, decidiram colocar tudo em seus devidos lugares, sair dali, selar outra vez a entrada da caverna e camuflá-la novamente. Quando já haviam guardado tudo e se preparavam para sair, foram surpreendidos pela presença de alguém que esteve por ali desde que haviam entrado, porém ficara oculto. Era o Sr. Moshê que os havia seguido juntamente com dois brutamontes. Ficaram muito assustados quando este os saudou. — Vocês são realmente íntegros e dignos porque, por livre iniciativa, decidiram guardar o segredo. Certamente, são os escolhidos. — É dessa forma que escolhem as pessoas? — Disse Paschoal um tanto exasperado. — Não escolhemos ninguém, professor Paschoal. Nós apenas os identificamos e os acompanhamos, depois, formalizamos sua entrada na irmandade. As pessoas já nascem predestinadas às missões que lhes cabem. Como acha que o senhor e o professor Pedro vieram parar aqui? Preciso que façam o juramento de fidelidade à causa. Fez um sinal para os seus acompanhantes e esses pegaram em suas maletas algumas coisas. Pedro e Paschoal, a princípio, temeram grandemente por pensar que seriam sacrificados em algum tipo de ritual de expiação. Na verdade, o que pegaram foram paramentos, mantos sacerdotais e todos vestiram, inclusive eles. vor. — Estendam suas mãos com as palmas para cima, por fa- fessor Pedro, dos dois acompanhantes e dele próprio, misturando o sangue de todos numa lâmina de vidro. Sobre ela, sobrepôs outra, colocou-as num pequeno estojo e guardou-o em uma espécie de bolso interno do manto. Pegou uma pitada de terra e colocou sobre a cabeça de Paschoal e de Pedro, dizendo: “Eras pó e em pó reverterás”, conforme está escrito em Gênesis, capítulo 3, versículo19. Em seguida, lavou suas mãos com um pouco d’água do local próximo. Finalmente, disse: — Vocês agora morreram para o mundo infiel e nasceram para a fé. Doravante, seremos irmãos para sempre. Pertencem agora à confraria dos guardiões do Torah Moshê. Sem ainda ter tempo para assimilar a ideia, girava pela cabeça dos novos irmãos muitas interrogações, e perguntas. Nem sabiam por qual começar. Tinham vontade de falar qualquer coisa. O professor Paschoal não se conteve e perguntou: — Vejo que o senhor possui dependurado num cordão uma estrela de doze pontas como aquela do baú, com a diferença de que existe somente uma pedra amarela. Posso saber o significado? — A estrela simboliza o crescimento espiritual e a sabedoria que coincidem com a hierarquia. — Como nos enquadramos nisso? — Por enquanto, vocês são diáconos. Em breve, receberão suas estrelas com uma pedra preta, primeiro grau na hierarquia da confraria. Atônito, não perguntou mais nada, nem o professor Pedro, pois suas mentes não tinham coordenação para isso. Após aquilo, selaram a entrada, camuflaram-na e saíram todos dali. Então, com um alfinete de ouro com um cabo de rubi, que parecia um broche, feriu os dedos do professor Paschoal, do pro252 253 Capítulo XXVI A sagração Já havia um carro esperando por eles. O senhor Moshê e os dois brutamontes (agora também seus irmão de fé) deram uma carona para eles até o local mais próximo de onde estava o barco, e eles embarcaram para fazer o caminho de volta. Rio abaixo, a viagem era muito mais rápida, de modo que gastaram pouco mais da metade do tempo de subida. Não conseguiram dizer muitas palavras. Passaram a maior parte do tempo mergulhados dentro de si, remoendo seus próprios pensamentos. Sentiam-se preocupados com o rumo que as coisas haviam tomado, temerosos e até mesmo acuados. Não estavam preparados para fazer parte de nenhuma confraria ou coisa parecida. Aliás, Pedro já tentara ser judeu uma vez e não dera certo, pois o mesmo destino que o impelira, no final, acabara por desviá-lo definitivamente. Paschoal também havia experimentado mudanças culturais e não lhe agradava nada repetir a história. Era como se houvessem caído numa bela armadilha. De certa forma, aquilo era mesmo verdade. Pior ainda, poderiam estar metidos no meio de uma conspiração política internacional. Afinal, aquela motivação religiosa fazia cada vez menos sentido. Aquilo era extremamente incômodo para pessoas como eles, que sempre haviam sido avessos às questões políticas. Chegando ao porto de cima, devolveram o barco e foram para o hotel. Seria uma longa noite mal dormida. No outro dia cedo estavam se preparando para o café da manhã, para, em seguida, cuidar da viagem de volta, o mais rápido que pudessem. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro O telefone do quarto tocou. Era um quarto de solteiros para dois ocupantes e os professores estavam juntos. Paschoal atendeu. — Alô, aqui é da recepção. Temos um recado urgente para os senhores. Queiram comparecer à sala da administração e assinar o aviso. — Perfeitamente, estaremos lá em alguns minutos. Ficaram imaginando o que poderia ser. Da Europa não era, pois ninguém fora avisado para onde iriam. rapidamente. As ideias não vinham. O jeito era começar pela verdade, até o ponto que pudesse ser dito e omitir o que não se podia nem mencionar. Finalmente, saíram apressados. Quando chegaram lá, já os estavam esperando. Foram conduzidos a uma antessala que dava num corredor e depois à outra sala. Logo na entrada, foram “convidados” a tirar seus calçados, lavar os pés e as mãos numa espécie de bacia de bronze e calçar algo semelhante a pantufas de pele de carneiro antes de atravessar a porta. — Bom dia, sou o professor Paschoal, fui informado de que há uma correspondência registrada para eu pegar e assinar o recibo. — Sim, professor, aqui está. Assine aqui, por favor. — Obrigado, senhor. Paschoal ficou bastante perturbado quando leu. Pigarreou, coçou a cabeça, e o balançar do papel em suas mãos denunciava que ele estava trêmulo. — Problemas? — Sim, Pedro, é uma intimação do patrimônio histórico para que compareçamos daqui a pouco numa sala contígua à Igreja Matriz para prestar esclarecimentos, sem os quais seremos impedidos de viajar de volta. Com certeza, eles nos viram bisbilhotando por lá. — Será que pensam que somos ladrões de artes sacras ou coisas assim, como vários que andam por aí? Temos de criar uma boa desculpa, pois essa coisa de pesquisa não vai convencer nem um pouco. Bacia de Bronze Perceberam, naquele momento, que não havia patrimônio histórico nenhum; foram atraídos para ali com alguma finalidade específica — e não era muito difícil imaginar o que era, embora não soubessem de tudo que aconteceria. — Que situação! O que significa isto, Pedro? Você tem alguma ideia? Tomaram o café às pressas, engolindo como podiam e tentando desesperadamente inventar algo convincente — e muito — Isso é um ritual que está escrito no livro do Êxodo, capítulo 30, do versículo 17 ao 21. 256 257 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Mas com que intenção? — Provavelmente vai haver uma cerimônia de sagração conosco, conforme Ex 29.4–9. — Mais essa! Apareceu então o senhor Moshê, os outros dois brutamontes, agora seus irmãos e o senhor João, com quem falaram anteriormente ao telefone. Ao sinal do senhor Moshê, trouxeram os paramentos. — Vistam as túnicas dos filhos de Arão. Eu também vestirei os paramentos completos. Paschoal estava tenso, e aquela situação o incomodava muito. Não tinha mais paciência para aquele tipo de coisa, mas sua curiosidade era maior. Naquela matéria, Pedro era versado, pois convivera desde a infância com judeus e tivera uma educação voltada para o judaísmo, embora fizesse tudo para esquecer. — Pedro, o que são exatamente essas túnicas dos filhos de Arão e esses tais paramentos completos? — São vestimentas sacerdotais apropriadas para esse tipo de cerimônia, conforme está escrito em Ex 28.40 e Ex 28.4, respectivamente. escrito em alguma parte dela. Pelas poucas coisas que já li, isso não é um bom sinal para a nossa segurança. Seremos ordenados como os padres ou coisa parecida. Ou vão nos circuncidar ou arrancar alguma parte do corpo? — De certa, forma seremos ordenados sacerdotes, sim. Essa cerimônia foi feita pela primeira vez quando Arão e seus filhos foram escolhidos para o sacerdócio. — E aquela cesta que contém algo parecido com bolachas de massa branca, mais os dois recipientes que parecem ânforas de metal branco amarelado? — É a cesta que contém pães e bolos feitos com farinha de trigo e um pouco de azeite. Os recipientes provavelmente possuem o óleo da sagração e o vinho para as libações. — Que tipo de óleo é esse? — Conforme as tradições antigas especificadas na Bíblia, é feito com óleo de oliva, adicionados de algumas plantas aromáticas utilizadas para a unção de quem é recebido na comunidade religiosa, se torna um iniciado na fé ou é consagrado ao serviço religioso. — E aquele fogareiro a carvão? — E essa tal cerimônia? — Conforme já mencionei, é a cerimônia de sagração dos sacerdotes descrita no capítulo 29 do livro do Êxodo, o segundo livro do antigo testamento da Bíblia. Veremos daqui a pouco como é, caso seja tudo conforme dizem as escrituras. — Não é possível. Eles devem ter algum problema com a Bíblia, como fixação ou fanatismo. Tudo que falam ou fazem está Fogareiro a carvão 258 259 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Deve ser uma forma simbólica do fogo do altar para queimar parte desse material das oferendas. Agora, façamos silêncio absoluto. Vai começar a cerimônia propriamente dita. Paschoal já estava inquieto, sentia-se angustiado com tudo aquilo e lutava para não deixar transparecer seu aborrecimento. Ele não tinha paciência para aquela coisa de rituais. Nos livros parecia interessante, mas ali, inserido na própria cena, era muito ruim. Não via a hora de tudo terminar e ele ir embora rapidamente. Tudo era desagradável, a começar por aqueles paramentos bastante desconfortáveis. Além das túnicas, uma espécie de capa de cobertura sobre a túnica e até uma cobertura para a cabeça que lembrava a mitra, com duas faixas franjadas penduradas. Para completar, havia também calções de cintura alta que iam até os joelhos. O calor já começava a incomodar. Uma vez paramentados, passaram a um cômodo adiante, separado por uma espécie de cortina branca. A cerimônia foi simbólica, não havendo o sacrifício de sangue dos animais, como descrito no livro sagrado, talvez pela impropriedade do local. A um sinal do senhor Moshê, devidamente paramentado, seus acompanhantes, Noach e Eliaú, seus nomes em aramaico na confraria, se aproximaram também paramentados. Um trouxe um tipo de turíbulo com brasas fumegantes e o outro, um pequeno pote contendo incenso. O portador do turíbulo puxou as correntes que sustentavam a tampa, suspendendo-a levemente. O senhor Moshê pegou uma pequena porção de incenso do pote com uma espécie de concha bem pequena e colocou-o dentro do turíbulo que, logo a seguir, foi fechado. Pegou o turíbulo da mão do auxiliar e balançou-o na direção do altar, fazendo a fumaça do incenso ir para essa direção. Na verdade, ela se disseminou abundantemente por todo o ambiente. uma ânfora de ouro, derramou um pouco sobre as cabeças de Paschoal e Pedro e recitou algumas palavras numa língua diferente — provavelmente hebraico — de uma forma que parecia um canto religioso. A seguir, pegou duas bolachas brancas que estavam na cesta, mandou que estendessem as mãos e colocou nelas as bolachas. Pegou, então, um pote contendo um líquido que parecia sangue, molhou o seu dedo polegar direito e, logo a seguir, o passou nos lóbulos das orelhas direitas de Paschoal e Pedro, pronunciando os nomes Yussef e Kepha para Paschoal e Pedro, respectivamente, doravante seus nomes na confraria. Pegando um instrumento parecido com um bastão com a ponta um tanto esférica e de diâmetro um pouco maior que o resto do bastão (na verdade, um aspersor), molhou esta parte dentro do pote e depois aspergiu sobre eles aquele líquido avermelhado, respingando inclusive em suas vestimentas. Ele ordenou que comessem as bolachas que tinham nas mãos. O senhor Moshê, oficiando a cerimônia, pegou o recipiente do óleo da santa unção, um pequeno utensílio que parecia Depois, ele e os dois sujeitos corpulentos que o acompanhavam também paramentados — de forma um pouco diferente da dele —, com túnicas de linho branco e que eram ditos anjos se aproximaram de Paschoal e Pedro. O senhor Moshê os apresentou como seus padrinhos e mencionou em forma de oração suas funções na orientação de suas caminhadas. Ordenou que Paschoal e Pedro se ajoelhassem. Então, os padrinhos colocaram as mãos sobre suas cabeças e o senhor Moshê sobre as cabeças destes, recitando orações em hebraico em forma de canto. Logo após, o Sr. Moshê pegou outra ânfora de ouro, um pouco maior que a primeira, contendo vinho, e colocou o conteúdo em seis cálices. Os padrinhos pegaram dois e ofereceram-nos aos recém-iniciados, depois pegaram seus próprios cálices. O Sr. Moshê pegou outro cálice, ordenou que Yokhaman (João), também paramentado, entrasse no recinto para servir de testemunha e lhe ofereceu um cálice, depois pegou o seu próprio. Os padrinhos 260 261 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro tomaram dois emblemas, estrelas de ouro de doze pontas com uma pedra preta no centro, pendurados num cordão de ouro, colocaram-nos nos pescoços de Paschoal e Pedro e disseram algumas palavras. Entoaram então um hino à meia voz e, a seguir, beberam todos. Após aquele ato, mandou que os novos membros já consagrados pegassem primeiramente as bolachas da cesta e os colocassem para queimar no fogareiro. Em seguida, o óleo que logo fez aumentar a chama. Depois de tudo consumido, o vinho restante serviu para apagar o fogo, cujo braseiro já apagado foi recolhido numa sacola de um tecido grosso que parecia lona. Esta foi enterrada pelos novos membros no átrio logo após a porta de saída para o interior da edificação, numa parte de terra que lembrava um jardim. Quando retornaram ao recinto, puderam retirar os paramentos, para alívio deles que já estavam bastante suados. Finalização do encontro, recomendações, despedidas Passaram para o primeiro cômodo onde estiveram antes, sem luxo, mas um ótimo ambiente para trabalho. Bem iluminado com luz natural, arejado e amplo. Não havia muita mobília nem excesso de decorações. Na parede apenas um quadro, desses que as pessoas menos aficionadas a pintura sentem dificuldades para analisar e até descobrir exatamente o que o artista imaginou, mas bem trabalhado; com uma combinação de cores impressionantes. A cor de fundo lembrava uma larga parede de pedra na parte central. Sobreposto a ela, em cores bem vivas, amarelo-avermelhadas, como se fosse o interior de uma fornalha, havia desenhos como se fossem sinais gráficos de alguma escrita antiga, cujo metal incandescente se sobressaía. Certamente, ela estava colocada ali propositalmente. 262 A escrita era, de cima para baixo, essas três: פסאר צנתאר דׁשדר Em hebraico, poderia, ser respectivamente: “pesar”, “contar” e “dividir”. Poderia haver inúmeros significados, tanto pelo sentido das palavras que poderiam ser outros, ou talvez ainda outro baseado na numerologia, uma vez que as letras hebraicas possuem tambem valores numéricos — ou talvez alguma máxima filosófica. Poderia ser simplesmente uma sugestão a um procedimento lógico de raciocínio exprimindo inclusive uma sequência: pesar, contar, dividir ou qualquer outro tipo de recomendação pertinente aos “ensinamentos” que acabaram de vivenciar. Mas a visão do quadro era aterradora como se quisesse lembrar o fogo do inferno ou o castigo supremo e exprimia muito mais aquela passagem bíblica Dn 5.25–28. Sim, havia um significado real para alguém que fora educado na cultura judaica, o que fez Pedro empalidecer por um momento e tentar dissimular da melhor forma possível. Aquilo, porém, era o suficiente para que Paschoal, que o conhecia muito bem, percebesse seu mal. E não deixasse de comentar: — Percebi a forte impressão que esse quadro causou em você. Claro que há um significado muito maior do que arte. Provavelmente sejam aqueles caracteres. O que são exatamente e porque o assustam tanto? — Paschoal, você me conhece mesmo profundamente e entendeu que as minhas inquietações não são vãs. Ali está escrito no alfabeto hebraico três palavras, que transliteradas são: Mene, 263 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Techel, Farsin, que, traduzidas significam: “Contado, pesado, dividido”. Você sabe o que é isso, não? — Como historiador, imagino muitas versões diferentes e sentidos diversos, o que poderemos conversar depois a esse respeito. Conheço também a passagem bíblica, que é o que provavelmente o deixa tão perturbado. O rei Baltasar da Babilônia, talvez para humilhar os judeus, utilizou os vasos sagrados utilizados no templo de Jerusalém, que os judeus usam com toda reverência em sua liturgia, para sua profana e escandalosa comemoração de vitória. Ele colocou neles alimentos e bebeu neles vinho, dizendo toda a sorte de blasfêmias contra o Deus de Israel e menosprezando tudo o que era mais sagrado para o seu povo. Em tal momento, viu aparecer na parede em letras de fogo essas palavras de maldição contra si e o seu reino, que, conforme explicou o profeta Daniel, falava a respeito da sua morte e do esfacelamento do seu reino. Isso consta no livro do profeta Daniel, capítulo 5, do versículo 25 ao 28. Inclusive, existe até um quadro: O banquete de Baltasar, do pintor Rembrandt, um dos grandes do movimento Barroco, com esse tema, talvez um pouco diferente na representação principalmente das letras, grafadas de outra forma. Aliás, ao longo da história tem sido grafado de várias formas diferentes por vários autores. — Exatamente. — Sim, eu compreendo o seu desespero — disse Paschoal sentindo o sangue gelar em suas veias, relembrando num relance todas as peripécias que já haviam passado até então. — Agora, prestemos atenção — disse Pedro. — O Sr. Moshê parece ter algo importante a nos comunicar. Além daquilo, não havia mais nem vestígios de nenhuma cena, apenas um escritório comum. Eles receberam uma pasta com muitas folhas, ao mesmo tempo em que foram passadas muitas instruções e feitas muitas recomendações. — Tomem essa pasta que será de grande utilidade para vocês — disse o Sr. Moshê, entregando-a nas mãos de Paschoal. — O que é isso, senhor? — Um dossiê completo com as informações que procuravam para executar seu trabalho. — Contém mesmo tudo? — Arriscou Pedro. — O suficiente para fazerem o trabalho. É tudo que pode ser dito, de certa forma, o óbvio, o que todos já conhecem, porém dito de uma forma interessante. Sem mencionar detalhes que não ajudariam em nada no trabalho e só trariam problemas, se publicados. Agora que são irmãos da confraria dos guardiões do Torah Moshê, estou certo de que compreendem tudo o que digo. — Certamente, senhor — disseram em uníssono. — Mas, em sua opinião, o que significaria isso aqui? — Esse quadro não foi colocado aqui despretensiosamente. Tem tudo a ver conosco e com o juramento que acabamos de prestar. São palavras judaicas de maldição contra quem desonra o compromisso com a causa. Esteja certo de eles farão cumprir a sentença, se esse for o caso. No fundo sabiam que ser um iniciado era um modo de eles os manterem em permanente contato e sob controle. Ademais, sabiam que a função dos padrinhos compreendia a sua doutrinação e a punição, caso desonrassem o compromisso ou até o sacrifício da vida, se colocassem em perigo a organização.O que haviam ouvido na cerimônia de sagração não deixava a menor dúvida a esse respeito. 264 265 Capítulo XXVII O regresso Paschoal e Pedro voltaram para o hotel com uma enorme sensação de cansaço e desânimo. Além disso, o atordoante cheiro do incenso, aqueles bolachas azedas arrematados com vinho não haviam feito muito bem a eles. Aquilo começara a fermentar, e seus estômagos davam voltas, produzindo uma sensação bastante desagradável. Pelo visto, as cerimônias ainda não haviam terminado, faltava a de expiação, então não tiveram alternativa senão tomar um remédio para má digestão e expelir tudo aquilo. Após a dor de cabeça e a sensação de tontura e alguns minutos de descanso sentiram-se aliviados. Mais tarde pensavam em sair, mas não tiveram ânimo. Devido aos acontecimentos, aquela paranoia de serem constantemente vigiados voltara. Não tiveram ânimo sequer para folhear a pasta que haviam recebido. Não sobrou mais nada a fazer senão se recolher e tentar dormir. Na manhã seguinte, um pouco mais dispostos, trataram de arrumar as coisas, pagar a conta e voltar para Vitória, onde tomariam o avião para o Rio e depois para Lisboa. — Pedro, que nomes foram aqueles que o Sr. Moshê pronunciou quando tocou com o dedo úmido em nossas orelhas? — Indagou Paschoal. — Ele disse para você “Yussef ”, agora seu nome na confraria, que em aramaico é “José”. Para mim, disse “Kepha”, o meu, que quer dizer “Pedro”. Inclusive, coincidentemente, era o meu antigo nome, quando convivi com a família judia. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — E os outros? — Eram Eliaú (Elias) e Noach (Noé), os dois sujeitos corpulentos, agora nossos padrinhos. Yokhaman (João), o sujeito a quem telefonamos; e Moshê (Moises), que presidiu a cerimônia. — Algo foge à minha compreensão. Também acho desnecessárias essas coisas de atribuir nomes diferentes. — Paciência, é coisa deles. Digo, agora, são nossas — respondeu Pedro, levando ambos às risadas. A viagem foi tranquila — apesar daquela horrível sensação de perseguição, voltar para casa era muito reconfortante. Quando finalmente estavam voltando para Coimbra, ficaram a pensar que para ficar tranquilos não poderiam, por exemplo, ir a um analista, nem mesmo conversar com alguém para desabafar e relaxar. Devido a isso, eles mesmos, assim que chegassem, teriam de tomar algumas providências para aliviar aquele estado. A primeira coisa que fizeram foi recolher todos os pertences que haviam feito parte da viagem, incluindo roupas, sapatos e tudo mais, e providenciar a devida incineração. O mesmo destino teve a câmera fotográfica e o próprio dossiê, depois de devidamente digitalizados, pois, assim, imaginavam que estariam livres — pelo menos dos rastreadores. Ainda mais, fizeram uma cópia de todos os documentos importantes e recomendaram a um especialista que formatasse a máquina e colocasse depois programas capazes de filtrar programas estranhos vindos da internet. Acreditavam que, pelo menos por enquanto, estavam livres das perseguições, até que aquela sensação desaparecesse com o tempo. Restava o trabalho que lhes fora recomendado pelo chefe do departamento. Selecionaram uma enorme quantidade do ma268 terial angariado nas pesquisas. Teriam, então, de ter muita coragem para superar o trauma e muita paciência para selecionar o material necessário copiado daquele maldito dossiê. Referências aos cristãos novos apenas dentro do que sempre era conhecido nos meios acadêmicos, suas riquezas materiais e culturais, seu material humano e a conversão forçada decretada por Dom Manuel I para não haver um esvaziamento de material humano de qualidade para o desenvolvimento do país. Ainda que os bens fossem expropriados, aqueles que dominavam os conhecimentos comerciais com o exterior e os conhecimentos de economia e outros poderiam evadir-se do país. Conteúdo assim, além de outras amenidades. Depois disso, restaria a eles compilar tudo e, finalmente, produzir o documento final. Foi realmente um grande exercício de paciência, de boa vontade e de autocontrole, mas aquilo, de certa forma, contribuiu para o tratamento psicológico que eles mesmos tiveram de realizar. Estavam praticamente curados, pelo menos até a próxima vez. A propósito, como das vezes anteriores, juraram solenemente que nunca mais entrariam em uma situação como aquela e que pensariam duas vezes antes de aceitar algum trabalho potencialmente perigoso — embora soubessem que as peripécias eram inerentes à vida dos pesquisadores como eles. Uma vez relativamente relaxados, começaram a conversar tecnicamente como historiadores a respeito de alguns lances da aventura. Um deles era aquele episódio do quadro, em que na época Paschoal falara a respeito de muitos significados e interpretações. A outra eram inconsistências históricas que até então guardavam para si e ainda não haviam tido tempo de conversar sobre elas. — Então, Paschoal, como você analisa a questão do quadro? 269 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — De muitas formas, conforme havia dito naquela oportunidade, a começar pelos múltiplos sentidos das palavras. “Pesar”, por exemplo, pode ser um ato de avaliar o peso de alguma coisa, um sentimento de tristeza ou uma consideração sobre uma situação. “Contar” poderia ser avaliar uma quantidade de algo, falar sobre algo que se viu, esperar a participação de alguém. “Dividir” pode ser uma operação de dividir, partilhar ou compartilhar algo ou separar algo em partes. Além dessas dificuldades semânticas, sobram as traduções entre vários idiomas em épocas diferentes e contextos diferentes. — Sim, mas, no nosso caso, parecia uma advertência ou até ameaça, como na passagem bíblica. A propósito, o que você pensa sobre essa passagem? — Como historiador, eu sou imparcial e até mesmo cético. O que está escrito no livro de Daniel pode ser perfeitamente oriundo de um sentimento libertário judeu que teria se aproveitado das alucinações de Baltazar pelo abuso do vinho e usado a situação como um estratagema para angariar-lhe o respeito e pleitear a libertação — respondeu Paschoal. — Você fala de um embuste? — Olhe, uma guerra santa não é boa para ninguém. Somado a isso, em sinal de respeito às crenças daquele povo, eu não gostaria de colocar nesses termos, mas muitos historiadores céticos, em seus estudos, colocam dessa forma muitos acontecimentos ao longo da história, como aquela suposta frase “In Hoc Signo Vinces” (Com este sinal vencerás), que o imperador Constantino jurou ter visto no céu acompanhado de uma voz. Com isso, angariava a simpatia dos cristãos, que eram cada vez mais 270 numerosos e fortes e os colocaria lutando a seu favor sob a promessa de que tornaria lícita a religião deles. — E quanto à idolatria dos gentios? — Indagou Pedro. — Bem, aí eu vejo questões distintas. A idolatria, inclusive judia, e o orgulho e intransigência judaicos sobre os que classificavam como gentios. — Você acha, então, que os judeus também praticavam a idolatria que tanto combatiam? — De certa forma, sim, eram veladamente idólatras: possuíam um cuidado, atenção e até veneração exagerada por seus escritos, vasos litúrgicos, símbolos, etc. Eles quase se equiparavam ao próprio Deus em importância. Os termos das inscrições mais antigas e a própria definição de Deus é complexa naqueles documentos, principalmente na visão de vários cabalísticos. Aliás, uma das características da Cabala é ela que sempre enxerga muitas verdades a mais, ocultas na entrelinhas. Claro que por serem uma sociedade teocrática a civilidade se confundia com a religião. De modo análogo, as sociedades laicas possuem seus símbolos, tais como: bandeira, idioma, moeda, hinos e constituição escrita, que a definem como uma nação soberana e a caracterizam. O povo morre por ela, se preciso. — Sim, mas e quanto à questão dos gentios? — Não existe, propriamente. É um equívoco desumano que Cristo depois tentou mostrar, quando em várias passagens do evangelho diz que o inimigo também é o próximo e que a salvação não é só para um povo ou comunidade religiosa, mas para toda a humanidade. O apóstolo Paulo entendeu perfeitamente 271 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro esse ensinamento e o repassou firmemente, tanto que foi taxado de “o apóstolo dos gentios”. Na verdade, o Cristo conceitua o significado de religião, estabelecendo como os pilares de sustentação desta apenas três personagens: Deus, cada um de nós e o próximo. E que tudo o mais que exista decorre disso. — No decorrer do trabalho, colhi algumas impressões curiosas que percebo que também as teve, e sobre as quais ainda não tivemos a oportunidade de discutir: as inconsistências históricas. Como você analisa isso? — Pedro perguntou. — Muitas coisas que passariam por novidades, curiosidades e afins aos olhos de historiadores experientes podem não passar de fraudes grosseiras, engenhosamente engendradas por inescrupulosos com interesses escusos. Nem as maquinações ditas mais perfeitas conseguem ocultar certas imiscibilidades. — Entendo. Mas o que você encontrou nesses termos? — Não afirmo que toda a história seja imiscível, muito pelo contrário. Muitas culturas se fundiram para formar uma terceira com características das que lhes deram origem. Esse tipo de sobreposição étnica, religiosa, linguística e cultural, de um modo geral, o historiador aceita muito bem e utiliza em suas pesquisas. Todavia, sobrepor coisas de épocas diferentes como se pertencessem a uma mesma época é um grave engano, se não for dolo; e só engana os leigos. — Concordo inteiramente. — disse Pedro. — Pedro, posso lhe fazer uma pergunta pessoal? — Claro, fique à vontade. Desde que eu saiba responder, serei absolutamente honesto na resposta. — Você tem alguma restrição ao judaísmo, ao cristianismo ou a alguma religião? — De modo algum. Tenho o maior respeito pelo judaísmo e seus seguidores, bem como o pelo cristianismo, pelo islamismo e outras. Admiro muito a sua fé. O que realmente não gosto é quando alguém usa a religião para outras finalidades que não sejam um instrumento de fé, como: políticas, econômicas e outras causas avessas à religião pura, capaz de transformarem-se em instrumentos de dominação e opressão do homem pelo homem. É no mínimo curioso que haja divergência e até ódio entre religiões que possuem as mesmas raízes. Como podemos admitir que um cristão tivesse ódio de um judeu a ponto de desejar exterminá-lo? Afinal, Cristo também era judeu. Isso só se explica pelos usos escusos da religião. — Foi exatamente o que eu percebi. Se nos acrescentar algo, poderemos trabalhar melhor essa questão futuramente. — Certamente, mas, por ora, nossas cabeças merecem um pouco de descanso. 272 273 Capítulo XXVIII Um trabalho realizado Finalmente, todo o trabalho foi concluído, tudo foi compilado, digitado e formatado, só faltava mesmo entregar o resultado ao chefe do departamento e amargar o prejuízo com os custos de viagem, deslocamentos, hospedarias, etc. Agendaram uma reunião com o chefe do departamento, que os receberia no dia seguinte ao agendamento, conforme a vaga que a secretária conseguira em sua apertada disponibilidade. Talvez por ironia do acaso, era na mesma sala onde haviam se reunido quando o estudo fora encomendado. — Professor Paschoal? Bom dia. Aqui é da secretaria do departamento de história. — Bom dia, em que posso ser útil? — O chefe do departamento aguarda o senhor e o professor Pedro dentro de quinze minutos na sala que reservamos. — Obrigado. Estaremos lá. Chegaram à sala, como combinado. Já estava acesa, e a porta, entreaberta. Como sempre, o chefe chegara um pouco antes e já os aguardava. — Bom dia, professor José. — Bom dia, senhores. Como foi o trabalho? — Árduo, mas compensador como sempre — respondeu o professor Paschoal, algo embaraçado, estendendo o volume devidamente encadernado. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Ótimo, professor. Tinha certeza de que dariam conta do recado. — Obrigado, professor. Estavam aliviados. Era como se tivessem tirado um peso enorme de suas costas. Finalmente estariam livres para fazer as atividades corriqueiras e esquecer de vez tudo aquilo. Seria possível? Quando se levantaram e se preparavam para sair, o professor José os deteve. — Esperem, por favor. — Sim, professor. Algo mais? — Sim, tenho algo para os senhores. — O que é professor? — Aqui está. Confiram, por favor — disse, estendendo um envelope a cada um. — Paschoal e Pedro abriram seus envelopes e viram que se tratava de um depósito bancário em suas contas. Não entenderam direito do que se tratava. Paschoal arriscou uma pergunta que ficou inconclusa e respondida imediatamente pelo professor José. — Professor José, o que é...? Como...? — É o ressarcimento das despesas que tiveram. Os patrocinadores fizeram questão de realizar. Ficaram tremendamente confusos. Atônitos, não tiveram condição de esboçar a menor reação. Olharam para o professor José e viram que possuía um cordão de ouro com algo dourado pendurado que não era totalmente visível, mas sobressaía a metade do que parecia ser uma estrela com uma pedra verde e reluzente no centro. Não precisavam ver mais nada. Era muito fácil 276 imaginar o que era, e, nesse caso, quem era o chefe. Não tiveram coragem de perguntar mais nada. Disfarçaram o melhor que puderam, agradeceram e saíram. De volta à sala, começaram aquela tradicional conversa, avaliando tudo por que haviam passado. — Pedro, tenho um sentimento agora que me perturba profundamente. — O que é exatamente? — Sinto como se tivesse sido enganado ou talvez posto à prova deliberadamente. forto. — Sim, muito provavelmente. Também sinto esse descon- — Parece que sabiam de tudo o tempo todo. É inacreditável, até o professor José, nosso chefe! O que você pensa disso? — Acho que é exatamente isso. Acontece em muitas irmandades. Primeiramente, fazem uma garimpagem na vida pregressa de um possível escolhido, desde criança até hoje, então, idealizam seu perfil. — Entendo, é mais ou menos como o divã do psicanalista sem a presença do paciente. — Sim, e, no momento oportuno, submetem os possíveis candidatos às provas. — Que provas? — Após perceberem a competência e o sucesso profissional como indicador de inteligência, fazem-nos passar pela prova da perspicácia. — Explique melhor. — É simples, a capacidade de ler nas entrelinhas, como dizem. É como achar que existe mais do que está escrito de uma 277 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro forma que chega às raias da loucura, como se tivesse imaginando coisas. — Concordo, acho que vivenciamos isso. E depois? — Vem ainda a prova da perseverança. — E como seria isso? — É a capacidade de focar seus objetivos e persegui-los até o fim, mesmo tendo de enfrentar dificuldades para isso. — Pedro, tive uma ideia inquietante. — O que é? — Diante de toda essa coisa de provas, essa história de perseguidores, fantasmas e afins pode ser um embuste, um teatro armado para conferir um pouco mais de realidade aos episódios. Afinal, não ouvimos nada a respeito nos noticiários. — É possível. Mas existe ainda outra coisa. — E depois? — Qual é? — A prova da coragem. Ser capaz de enfrentar e vencer o medo para continuar. — É, isso sabemos bem o que é. — Vem também a prova da fé. — Até isso? — Sim, entendendo-se que isso seja acreditar que a pessoa terá uma missão acima de tudo e fará o que for necessário para levá-la a cabo. — Claro isso diz respeito à conclusão do nosso trabalho. Tem mais? — Sim, as provas da integridade e da paciência. Capacidade de renunciar as riquezas e bens materiais em prol de uma causa maior. — E a paciência? — Suportar todas as coisas que não nos agradam em sinal de respeito ao próximo. Lembra-se da cerimônia de sagração? — Com certeza, tive de ser mesmo bastante paciente. Só aquele cheiro forte de incenso e aquele lanchinho pesado foram um verdadeiro desafio. 278 — Se essa ideia de prova for real, na verdade, a confraria estaria pretendendo também ser testada. — Explique isso melhor. Que teste seria esse? — Um teste de inviolabilidade, capacidade de manter-se oculta e mais ainda de manter seus segredos protegidos ao longo do tempo e prover os cuidados necessários para melhorar seus métodos e procedimentos de segurança. — Pode ser, mas tudo parecia tão bem guardado que seria praticamente impossível alguém chegar até lá. — A coisa não é bem assim e eles sabem muito bem disso, tanto que nós conseguimos. Possivelmente, eles imaginaram que, sob condições especiais, pessoas com as qualidades indicadas pelas provas pelas quais passamos poderiam desvendar todos os mistérios. Conhecendo essa possibilidade, só precisavam testar, e, assim, nos escolheram e nos puseram para trabalhar. berto? isso. — Você acha que eles arriscariam, caso tudo fosse desco— Claro que não, deve haver uma boa explicação para 279 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Eu a tenho límpida e cristalina: tudo o que passamos, que descobrimos, os locais onde estivemos e tudo o que encontramos não passou de uma farsa, um teatro com cenários muito bem planejados especialmente para a nossa prova. — Mas e o Sr. Moshê, a organização judia, os brutamontes perseguidores e seus exterminadores, como ficariam inseridos nessa história? — O Sr. Moshê e seus auxiliares poderiam até ser judeus praticantes, o que eu duvido muito, mas ali possivelmente seriam contratados para produzir todo aquele serviço. Quanto aos agressores e seus exterminadores, a julgar pelos tipos físicos e outras características que percebi, tratavam-se sempre das mesmas pessoas. tir um juízo de valor acertado. Contudo, pelas circunstâncias e a julgar por tudo que já analisamos, muito provavelmente não teria valor algum. — E todo aquele ritual, na cripta e depois lá naquela sala? — Cheio de inconsistências, completamente falso. Tudo para impressionar e tentar dar um tom mais real. Naquele momento poderia até parecer. Mas, depois, analisando-o friamente, à luz de todos os conhecimentos, é completamente fora da realidade. — É bem possível, mas há mais umas provas que ainda não falamos. — Mais ainda? Quais são? — E a tal arca da aliança e tudo que havia por ali, o que — São a capacidade de nos organizarmos, de racionalizar e de delegar as nossas tarefas para os nossos auxiliares. — Uma deslavada fraude. Se considerados alguns detalhes básicos, como medidas e outros aspectos, não passa de uma imitação grosseira. Além das diferenças nas dimensões da arca, faltaram dentro dela a vara de Arão que florescera e o frasco de ouro contendo o maná. Aquela fechadura sofisticada para a época também foi uma criação sem nenhum sentido histórico. —— Mas aí a coisa muda de figura: a organização seria a própria universidade. acha? — E toda aquela parafernália encontrada lá? — Nenhum valor histórico, só figuração, porém nada de útil. A única coisa que poderia ter algum significado, o que eu duvido muito, seriam as inscrições em hebraico nas tábuas de pedra, ou imitação delas. As frases poderiam ser subjetivas, conter anagramas de palavras ou codificação numéricas ou alfanuméricas, uma vez que as letras em hebraico também têm valores numéricos. Seria preciso estudar em maior profundidade para afirmar ou negar algo a respeito, não sendo por isso possível emi280 — E por que não as duas coisas? — Não entendi. Como isso seria possível? — Da seguinte forma: a universidade seria o braço intelectual da confraria, que a patrocina. Além de guardiã dos conhecimentos específicos, ela seria responsável por identificar talentos para serem os futuros membros, idealizar e promover as provas. — Nesse caso temos um padrinho comum, o professor José, responsável por nossa escolha. — Pelo menos não temos mais com que nos preocupar nem ter mais aquela síndrome do pânico. — Por quê? 281 João Roberto Vasco Gonçalves — Porque continuamos tão ignorantes quanto antes, não temos nada que interesse a ninguém. Tudo o que sabemos é que existe uma organização da qual já fazíamos parte mesmo antes dessa escolha formal. De nada mais temos conhecimento: nem dos seus objetivos, nem de seu funcionamento. Nem mesmo sabemos onde termina a realidade e começa a ficção. — Como nas lendas? — Exatamente, só que fazemos parte delas. — Mas pode ser também que essa tal confraria nem exista de fato e seja só a universidade. — Então não temos mesmo nada a temer e podemos ficar completamente à vontade, pois, como historiadores e pesquisadores, tudo isso faz parte de nosso ramo de atividades e até são nossas ferramentas de trabalho. — Concordo. Mas que história, hein! Aquela compulsiva sensação de perseguição que tinham quando saiam às ruas diminuía, mas, ao mesmo tempo, tinham o próprio chefe na sua cola, embora não ostensivamente. Só havia uma saída, acostumar-se com a ideia de que eram irmãos de fé da mesma confraria, tentar cumprir a risca os votos e até usufruir de sua proteção, isso se ela existisse mesmo. Capítulo XXIX Comentários finais da parte I Durante alguns dias, talvez quinze, Paschoal e Pedro fizeram uma espécie de quarentena dentro do campus por duas razões: precisaram finalizar o trabalho e essa total dedicação servia para acalmá-los. Era uma tentativa de se esquecer um pouco daquelas coisas desgastantes dos últimos dias, de forma que não foi nada penoso, muito pelo contrário, os agradou bastante. No primeiro sábado depois de entregarem o trabalho, resolveram dar uma saída à tardinha para beber algo, conversar sobre amenidades, enfim, espairecer. Por uma artimanha do destino ou talvez não por pura coincidência encontraram duas moças conversando. Uma delas Pedro conheceu imediatamente. Sem sombra de dúvida, aquela era Deborah sua namoradinha de adolescência que o destino insistia em jogar de volta no seu caminho. Naquela noite ela estava jovial e linda. Ele já estava um tanto desconfiado por se lembrar do seu último encontro e por pensar que ela podia ser uma agente da inteligência judia ou de outra qualquer, uma vez que aquela referência ao judaísmo soava cada vez mais como uma farsa. Independentemente do que fosse aquilo, ele já desconfiava de para quem trabalhava. Mas pensou bem e concluiu que não importava mais, afinal, já se tornara até membro da suposta confraria. Paschoal, por seu lado, parecia hipnotizado olhando para a outra moça. Era incrivelmente parecida com sua antiga namorada. Claro que não era, afinal, ela era muito jovem, e aquela 282 João Roberto Vasco Gonçalves morrera muitos anos antes. Começaram a conversar animadamente. Em pouco tempo, já estavam bastante à vontade, auxiliados, talvez, pelas generosas doses do delicioso vinho. Saíram dali para dançar numa boate, onde ficaram até muito tarde. Depois, cada um com a sua namorada, foram passar a noite em seus apartamentos, não muito longe dali. Na segunda-feira seguinte, Paschoal e Pedro tiveram uma reunião com sua equipe para avaliar o trabalho que recomendaram e acertar a situação. Quando voltaram para o seu gabinete, encontraram sobre suas mesas um envelope. Ao abrirem, verificaram que se tratava de um convite com ares de intimação para comparecerem a uma reunião fora do campus no endereço informado, conforme se poderia deduzir pela inscrição: “A constelação brilhará no céu na próxima sexta-feira às 19h30min”. O carimbinho abaixo era uma estrela de 12 pontas e não deixava nenhuma dúvida: era da confraria. Ou não! 284 Parte II Capítulo I A retomada Passados cerca de três meses, depois do merecido descanso e um relaxamento bastante reconfortante, Pedro e Paschoal começaram a sentir certa angústia. Aquela enorme quantidade de trabalho inútil soava como um insulto. Nenhum resultado, só caminhavam em círculos e voltavam à estaca zero. Não era aceitável. Precisavam acreditar que havia algo de proveitoso em tudo aquilo. Nem tudo deveria ter sido um simples teatro. Haveria um fundo de verdade em tudo aquilo? Essa era a questão que os incomodava tanto, mas, ao mesmo tempo, era a força mágica que crescia a cada momento e que os impelia a uma nova aventura. Mas havia algo a decidir, enfrentar ou até burlar, o que dependia do desenrolar dos fatos junto a pretensa confraria, da qual já faziam parte — mais por obrigação ou imposição, pois não tiveram a possibilidade de opção. Essa posição de vencidos de guerra não era nada confortável. Poderia ser uma condição adversa, caso sentissem que havia algum esforço em impedi-los no avanço dos estudos ou ameaça de retaliações por saber de mais. O raciocínio inverso poderia tambem acontecer, todavia, e seu progresso nos estudos talvez fossem bem vistos e apoiados. A confraria era supostamente a guardiã de um grande segredo, fracionado em três partes, ocultas em locais diferentes. Esta, agora, os intimava a reuniões de iniciados e sempre exigia estudos de textos ocultos, sem, por enquanto, mostrar com exatidão os outros lugares ou indicar o conteúdo de possíveis arcas a serem encontradas. Essa restrição velada que funcionava como um freio era a submissão à hierarquia, que preferiam João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro chamar de “graus de iluminação”. Isso era outro incômodo que sempre os irritava e provocava questionamentos do tipo: “Por que nos meteram nisso?”, “Por que nós?”. As respostas a essas perguntas apareceram rapidamente. Galgaram rapidamente novos graus, e a razão não era outra senão o profundo conhecimento que demonstravam sobre cada assunto apresentado para que estudassem. Demonstravam que sabiam sempre mais e até complementavam informações. Eles não haviam sido simplesmente escolhidos, estavam predestinados, segundo acreditavam os membros da confraria. Ademais, os dois professores eram considerados alma gêmea de conhecimentos, como se fossem um só, uma espécie de divindade dual em perfeita sintonia. Segundo já haviam escutado na cripta, no primeiro encontro com a confraria, a organização não escolhia ninguém, ela só identificava os predestinados. — Paschoal, você me parece intranquilo. O que o incomoda tanto? A primeira reunião, que compareceram em atendimento ao convite recebido (com ares de intimação), funcionou como uma recepção aos novos membros com cerimônias de iniciação. Era uma ideia mais próxima ao batismo nas religiões convencionais. Logo após, aconteceu a cerimônia de substituição da pedra preta de suas estrelas pela cinza, seu segundo grau de iluminação. — Claro, eu me lembro disso perfeitamente, Paschoal. Sem contar vários fatos anteriores a esses. Coisas que não tivemos a oportunidade de discutir lá na gruta e logo após a saída dela, por motivos óbvios. Paschoal não tinha muita paciência para aquelas cerimônias e ficava especialmente ansioso, aflito e exasperado com tudo aquilo, porém já até se acostumava àquilo. À medida que convivia, compreendia mais os significados e se sentia mais seguro. Pedro era um pouco mais paciente e tranquilo, embora, como qualquer outro, sempre sentisse o medo do desconhecido. Mas, como Paschoal, já se sentia mais seguro. Essa tranquilidade serviu para que eles voltassem ao assunto em que havia muito não tocavam e falassem abertamente de seus sentimentos, suas expectativas e seus planos. 288 — Você me conhece muito mesmo, Pedro. Ultimamente, voltei a pensar muito naquele assunto que jurara esquecer desde aqueles dias, depois que nos libertamos das aflições e entregamos o trabalho. Isso se potencializou depois dos primeiros estudos indicados como tarefas nossas naquelas reuniões da confraria. — Compreendo, Paschoal. Também sinto esse desconforto. Percebo que, possivelmente, a origem dessa ansiedade seja esse “freio” que nos impede de avançar com a velocidade com que gostaríamos. — Exatamente, Pedro. Mas, além disso, algumas coisas mal explicadas sobre as quais debatemos na nossa última conversa. — Sim, Pedro. O aparecimento surpreendente daquele pessoal, agora nossos irmãos, nos deixou naquele momento totalmente apáticos e não tivemos coordenação nem ao menos para organizar as ideias e fazer perguntas ou registrá-las mentalmente. Agora, elas me afloram à mente tardiamente, e fico a remoer tudo como um animal ruminante. — Compreendo perfeitamente, Paschoal, porque tenho essa mesma sensação. Aqueles pergaminhos disfarçados de velas contêm informações surpreendentes, e eu consegui memorizar muita coisa devido aos recursos de semiótica utilizados, acrescidos de algumas palavras escritas em hebraico e grego e a forma como se relacionavam. 289 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Você poderia explicar melhor, Pedro. Nessa parte, você é um especialista. — Sim, Paschoal. Comecemos pela semiótica, isto é, a linguagem dos símbolos. Sempre que me vejo envolvido com eles, lembro-me de que o melhor exemplo são os sinais internacionais de trânsito. Qualquer um que tenha estudado de antemão as convenções pode interpretar uma informação importante com uma rapidez e clareza que uma escrita de uma frase longa possibilitaria, somadas a isso há as dificuldades visuais das pessoas e sua velocidade de leitura e do carro em movimento. Ele prosseguiu: O primeiro pergaminho continha basicamente um quadro com muitos daqueles símbolos que eu conhecia de estudos anteriores, além de algumas inscrições com comentários sobre eles, seus usos, suas interpretações, etc. O segundo e o terceiro possuíam alguns dos símbolos e vários textos em hebraico, alternados com suas traduções em grego. Os quatro restantes eu não tive tempo de verificar, tamanha a ansiedade que sentia, como se pressentisse algo, o que realmente aconteceu com o aparecimento deles. Então, sutilmente, eu guardei para depois, com mais tempo e calma, analisar melhor. É uma pena eu não ter guardado os três primeiros, que já havia analisado. — Mas esses eu guardei instintivamente, Pedro. — Ótimo, Paschoal. Desse modo, nós temos os sete pergaminhos para estudar quando quisermos. Parece que o exercício da profissão, o hábito das pesquisas e afins potecializaram essa guarda instintiva e sutil dos materiais 290 importantes — e aquele sexto sentido para antever os perigos. O estudo das fotos e anotações, mais aqueles pergaminhos, mostrou algo espantoso. Aquela arca nada tinha da arca da aliança além do seu formato, constituição e cobertura. Faltavam o propiciatório e os dois querubins na tampa, e, igualmente, faltavam em seu interior o pote de ouro contendo o maná e a vara de Arão, que florescera. As inscrições tampouco eram o decálogo. Na verdade, formavam uma lista que aparentava ser um índice de documentos e livros importantes para a história, muitos deles já cobertos pelas cinzas dos séculos e há muito perdidos. Contudo, quais seriam exatamente e onde estariam — se é que ainda existiam? No último pergaminho havia um texto escrito em grego contendo o seguinte relato que parecia ser uma ATA: No ano 325, o imperador Constantino promoveu em Nicéia um concílio em que foram analisados os conteúdos de vários livros de todas as escrituras conhecidas até então e escolhidos os livros que melhor representavam o cristianismo sob a ótica do império. Esses foram adotados como o cânone oficial. Os livros que foram expurgados ficaram conhecidos como “Deuterocanônicos” ou “segunda referência”. Foram recolhidos e tornados ocultos para que não fossem do conhecimento geral. São eles: Apocalipse de Baruc; Apocalipse de Moisés; Apocalipse de Sidrac; Samuel Apócrifo; Ascensão de Isaías; Assunção de Moisés; Caverna dos Tesouros; Epístola de Aristéas; Livro dos Jubileus; 291 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Martírio de Isaías; Oráculos Sibilinos; Prece de Manasses; Primeiro Livro de Adão e Eva; Primeiro Livro de Enoque; Primeiro Livro de Esdras; Quarto Livro dos Macabeus; Revelação de Esdras; Salmo 151; Salmos de Salomão; Segundo Livro de Adão e Eva; Segundo Livro de Enoque ou Livro dos Segredos de Enoque; Segundo Livro de Esdras ou Quarto Livro de Esdras; Segundo Tratado do Grande Seth; Terceiro Livro dos Macabeus; Testamento de Abraão; Testamento dos Doze Patriarcas; Vida de Adão e Eva; A Nova Jerusalém; A Sedutora; Antologia Messiânica; Bênção de Jacó; Bênçãos; Cânticos do Sábio; Cânticos para o Holocausto do Sábado; Comentários sobre a Lei; Comentários sobre Habacuc; Comentários sobre Isaías; Comentários sobre Miquéias; 292 Comentários sobre Naum; Comentários sobre Oséias; Comentários sobre Salmos; Consolações; Eras da Criação; Escritos do Pseudo-Daniel; Exortação para Busca da Sabedoria; Génesis Apócrifo; Hinos de Ação de Graças; Horóscopos; Lamentações; Maldições de Satanás e seus Partidários; Melquisedec; O Príncipe Celeste; O Triunfo da Retidão; Oração Litúrgica; Orações Diárias; Orações para as Festividades; Os Iníquos e os Santos; Os Últimos Dias; Palavras das Luzes Celestes; Palavras de Moisés; Pergaminho de Cobre; Pergaminho do Templo; Prece de Nabonidus; Preceito da Guerra; Preceito de Damasco; Preceito do Messianismo; Regra da Comunidade; 293 João Roberto Vasco Gonçalves Rito de Purificação; Salmos Apócrifos; Samuel Apócrifo; Testamento de Amran. Outros escritos: História do Sábio Ahicar; Livro do Pseudo-Filon; Evangelho de Judas. Se houver alguma dúvida na interpretação do cânone atual, os guardiões dos documentos deverão consultar o segundo cânone e efetuar sua interpretação correta. Capítulo II O Grão-mestre Constantino e a Confraria do Torah Moshê Constantino, ou Flavius Valerius Constantinus, foi filho de Constâncio Cloro e de Helena, nascido em 27/02/272, em Naísso, atual Nis, Sérvia; morto em 22/05/337, aos 65 anos, em Nicomédia, atual Izmit–Turquia. Foi imperador do império Romano oriental situado em Bizâncio, posteriormente, Constantinopla, em sua homenagem. Alguns historiadores questionam a veracidade e até classificam como um sórdido estratagema para enganar os cristãos e pagãos de sua época aquela passagem histórica onde ele supostamente vira no céu uma imagem de uma cruz e a inscrição em latim In Hoc Signo Vinces — traduzido: “Com este sinal vencerás”. Provavelmente, vira mesmo o sinal de comunicação tão esperado da parte de seus aliados. Uma projeção holográfica de grande intensidade acompanhada de sons, uma fala que dizia: “Pace est cun vos”, que quer dizer: “A paz está contigo”, provavelmente de grande volume onde foi emitida, mas apenas audível no local onde ele estava. Era o sinal que orientava sobre a decisão a tomar, aliarse aos cristãos para derrotar seus oponentes numa luta mais ou menos equilibrada sem garantia de qual seria o vencedor. A força dos cristãos seria, no caso, o fiel da balança. Assim procedeu, e venceu. Em sinal de reconhecimento, teria concedido a liberda- 294 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro de de crença religiosa aos cristãos, paralelamente ao paganismo. Mais tarde, no reinado de Teodósio, o cristianismo tornou-se a religião oficial do Estado Romano. Depois, tratou de encomendar aos sábios de então, seus conhecidos, estudos que culminariam com o expurgo dos livros que na época faziam parte do conjunto das escrituras que tradicionalmente chamamos Bíblia. Esses 74 livros, assim como outros que foram perdidos, queimados ou escondidos, eram considerados repetições confusas, antirreligiosos ou contrários ao interesse do estado. Diante dessas considerações, esse conjunto de livros seria supostamente bombástico, caso o conhecimento deles viesse a ser conhecido pelo povo inculto, debatido e interpretado de vários modos, segundo o interesse particular de cada grupo de políticos, religiosos, pessoas influentes na sociedade, etc. Poderiam gerar violentas comoções sociais. Assim, no ano de 325, na cidade de Nicéia, convocou em concílio todos os sábios envolvidos no estudo dos livros, e, sob juramento solene, declaram-se adeptos a uma confraria que doravante continuaria os estudos e se reuniria periodicamente para aferir seus conhecimentos e expor os resultados alcançados. Acima de tudo, seriam guardiões perpétuos de todos aqueles segredos até que, algum dia, num futuro distante, a humanidade tivesse condições de absorver todos aqueles conhecimentos com segurança. Essa confraria adotou o nome de Torah Moshê, em referência ao Pentateuco, que continuou como canônico, cujas informações teriam sido compiladas por Moisés ou pela sua ordem. Deveria perdurar através das gerações, e seus membros natos, segundo acreditavam, deveriam ser identificados pela confraria e mediante o cumprimento de provas, admitidos e submetidos aos votos perpétuos. O primeiro grande Oriente foi Alexandria e o seu primeiro Grão-mestre, o próprio Constantino. conjetura que possuía a maior probabilidade de estar certa seria a de que estivesse antes no Recife, onde viviam cristãos novos portugueses que haviam migrado para a Holanda e terminado ali por influência da Companhia das Índias Ocidentais. No entanto, isso desfocava ligeiramente a questão dos guardiões estarem aqui infiltrados na Companhia de Jesus. De qualquer modo, precisavam estudar um pouco sobre o pessoal da Companhia das Índias Ocidentais no Recife, sua fuga pela América Central e chegada e estabelecimento na América do Norte — especificamente em Nova York. Certamente, o segundo lugar precisava ser visitado o mais urgentemente possível. As coisas agora pareciam fazer sentido, como uma primeira parte. Ainda assim, faltavam as outras. Parecia haver a preocupação de não colocar todas as moedas num mesmo pote, mas colocá-las em locais diferentes, provavelmente com uma cópia do básico em todos e mais algo específico em cada uma. Esse lugar, segundo as indicações, era a cidade de Nova York. Assim, passaram a estudá-la para depois traçar uma estratégia e fazer um planejamento. Uma questão intrigante (ou talvez mal explicada) era: se o segundo local fosse mesmo Nova York, como fora para ali?. A 296 297 Capítulo III Nova York História Até a chegada dos europeus, toda a área de onde hoje é a cidade de Nova York e adjacências era habitada pelos índios Algonquinos. No ano de 1524, aconteceu o primeiro contato europeu. Um explorador florentino chamado Giovanni de Verrazano descobriu uma baía que viria a ser a atual Nova York. Muitos anos depois, no ano de 1609, um explorador inglês chamado Henry Hudson subiu um rio, que nos dias de hoje chama-se Rio Hudson, em sua homenagem. Poucos anos mais tarde, em 1625, a Companhia das Índias Ocidentais comprou dos índios locais a ilha de Manhattan. Segundo a lenda, na verdade, ela negociou utilizando quinquilharias como colares, chocalhos, apitos, espelhos e algumas ferramentas manuais, tais como machados, facas, canivetes, potes metálicos e outros utensílios. Somando tudo, não valeria mais que 24 dólares. Ali estabeleceram uma cidade chamada por eles de: “Nova Amsterdam”, por serem eles e a companhia holandeses. Alguns anos mais tarde, em 1664, a cidade foi invadida e dominada pelos ingleses, que passaram a chamá-la “Nova York”, em homenagem ao duque de York. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Em junho de 1776, quase no final de Guerra de Independência dos Estados Unidos da América, os americanos detinham o controle total de todos os estados, mas a Marinha Real Britânica capturou Nova York, fazendo desta cidade a sua base principal. Em 1789, anos depois da independência, ocorrida a 4 de julho de 1776, a cidade de Nova York passou a ser a capital dos Estados Unidos da América, ficando nessa condição até o ano de 1790. Na verdade, o reconhecimento mundial da soberania dos Estados Unidos da América só ocorreu em 1783 com a assinatura do Tratado de Paris, que punha fim à guerra envolvendo, além dos Estados Unidos, também a França, a Espanha e os Países Baixos. Na oportunidade, foram fixados os limites: ao norte, o Canadá, ao sul, a Flórida, a oeste, o Rio Mississipi e a leste o Oceano Atlântico. Os demais territórios foram negociados mais tarde. Em meados do século XIX, a cidade tornou-se o maior porto de imigração do país e possivelmente do mundo, o que resultou em sua diversidade étnica atual. Formação da área urbana Nova York (em inglês New York City) situa-se na costa leste dos Estados Unidos, na foz do rio Hudson. Atualmente, a área metropolitana da cidade possui cinco distritos separados por água. Brooklyn e Queens estão na parte oeste da Ilha de Long Island. Ao norte, estão as ilhas de Manhattan, Staten Island e o Bronx. Na parte continental estão vários distritos, nos estados de Nova York e Nova Jersey. Manhattan Island área mais turística e o centro financeiro. O traçado da cidade foi concebido da seguinte forma: avenidas que correm no sentido norte–sul/sul–norte e ruas transversais a esta no sentido leste–oeste/oeste–leste. As ruas e avenidas são numeradas, e os endereços podem referir-se aos cruzamentos mais próximos de avenidas ruas. A Broadway é um caso especial, pois corta a cidade no sentido diagonal, direção norte–sul. Essa divisão em cinco distritos existe desde 1898, tendo sido definida por lei estadual. Dados geográficos: Segundo referências ao censo de 2000, Nova York possuía 8.008.278 habitantes, sendo a maior cidade dos Estados Unidos da América. Mas a população metropolitana era de 11.678.650 habitantes. Ocupa uma área de 946 km², possuindo uma densidade demográfica de 846,5 habitantes por km² . Sua altitude é ao nível do mar. Dados socioeconômicos A cidade de Nova York pode ser considerada o maior centro financeiro mundial. Em termos de diversões, artes e cultura também figura como um dos melhores lugares do mundo. Seu movimento turístico é impressionante. Segundo registros do ano 2000, recebeu mais de 38 milhões de visitantes naquele ano, e a tendência é de crescimento. A cidade também é a sede da Organização das Nações Unidas. A ilha de Manhattan, especificamente, possui a seguinte delimitação: a oeste, o Rio Hudson, a leste, o Rio East, sendo a 300 301 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Mapa do centro de Manhattan Upper West Side – entre as Ruas 59 e 110, a oeste da Quinta Avenida; Upper East Side – entre as Ruas 59 e 110, a leste da Quinta Avenida; Harlem – entre as Ruas 110 e 145; A área composta pelas ruas acima da 145 não possui designação especial. Ellis Island Está situado no porto de Nova York, entre dois estados e cidades, Jersey City, New Jersey e New York , New York. Foi a principal rota de entrada de imigrantes dos Estados Unidos entre o final do século 19 e meados do século 20, tendo iniciado em 01 de janeiro de 1892, indo até 12 de novembro de 1954. Mais de 12 milhões de imigrantes passaram por Ellis Island entre 1892 e 1954. É administrada pelo governo federal e atualmente faz parte do monumento nacional da Estátua da Liberdade, apesar de a estátua estar em outra ilha. É administrada pelo serviço Nacional de Parques. Ellis Island foi o tema de uma disputa de fronteira entre Nova Iorque e Nova Jersey. O mapeamento urbano da ilha de Manhattan tem o seguinte traçado: Downtown (Centro) – abaixo da Rua 1; Village – entre as Ruas 1 e 14; dividido entre Greenwich Village (a oeste da Broadway), e East village, a leste da Broadway; Chelsea – entre as Ruas 14 e 34; Midtown – entre as Ruas 34 e 59; 302 Ilha e Estátua da Liberdade A Ilha da Liberdade (Liberty Island), assim denominada após o ano de 1956, situa-se na baía de Nova York. Nesta ilha, está localizada a mundialmente famosa estátua. A Estátua da Liberdade, cujo nome oficial é A Liberdade, iluminando o mundo (Liberty Enlightening the World), foi um presente do imperador Napoleão III aos Estados Unidos, pois, com seu apoio, conseguira a vitória na guerra contra a Inglaterra. A estátua foi 303 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro construída e montada na França e, posteriormente, desmontada e montada em Nova York, na pequena ilha que recebeu o nome de “Ilha da Liberdade”, em referência ao nome da estátua. Foi idealizada pelo escultor francês Frédéric Auguste Bartholdi e sua equipe em 1875. Bartholdi também escolheu a localização. A base e o pedestal ficaram a cargo dos norte-americanos. A inauguração foi em 28/10/1886. A parte física da estátua foi inspirada no colosso de Rodes, outra da antiguidade situada na Ilha de Rodes, no mar Egeu, em homenagem a Helio, o deus sol da mitologia grega — principalmente se observado o diadema de sete espigões. A criação foi do escultor Carés de Lindos entre os anos 292 e 280 a.C. Ela media 30 metros de altura e pesava 70 toneladas, sendo toda feita de bronze obtido dos armamentos e utensílios dos antigos dominadores, depois vencidos. A Estátua da Liberdade mede um total de 92,9 m de altura, sendo 46,9 m a altura da base e 46 m a da estátua. Nessa escultura há também uma relação com a deusa grega da sabedoria, Sophia, se observados o livro na mão direita e a tocha na esquerda. Esses símbolos, igualmente adotados pela maçonaria, foram caracterizados na estátua pelo seu escultor que também era um maçom, referindo-se à ideia: a sabedoria iluminando o mundo. A formação da comunidade judaica de Recife–Brasil A formação de uma comunidade judaica em Pernambuco ocorreu efetivamente na primeira metade do século XVII, graças à liberdade religiosa durante o governo holandês, comandado aqui no Brasil, em Recife, pelo conde João Maurício de Nassau. Durante seu governo de sete anos (1637–1644), ocorreu uma contínua imigração de judeus. Além da motivação principal, que era a religiosa, também havia uma razão econômica para a imigração, já que os judeus portugueses que viviam em Amsterdã tinham fortes laços econômicos com negociantes holandeses. 304 Com 600 famílias, a comunidade judaica de Recife se completou com a chegada do famoso líder religioso Rabino Isaac Aboab da Fonseca, mandado pela Congregação de Amsterdã. Foi então que a congregação Kahal Zur Israel e a construção da primeira sinagoga das Américas ocorreram. No mesmo momento, foram construídas as escolas religiosas Talmud Torah e Etz Hayim, que ficavam localizadas em edifícios multiníveis. Também havia um cemitério judeu fora dos limites da cidade, conforme manda a tradição, onde hoje está a Comunidade dos Coelhos. Provavelmente, a confraria estava infiltrada no meio judeu, sendo o rabino Izaac Abiad seu Grão-mestre e, possivelmente, o próprio conde Nassau um importante membro. Em 1654, os portugueses retomaram Recife, e os holandeses foram obrigados a se desfazer de todos os negócios e propriedades e desocupar o espaço num prazo curtíssimo, caso contrário, seriam perseguidos pela Inquisição, como ocorria em Portugal e suas possessões ultramarinas. Muitos retornaram para a Holanda, mas alguns preferiram se estabelecer em várias localidades da América Central e região do Caribe e continuar com seus negócios de fabricação e comercialização de açúcar e fumo. As perseguições continuaram e tiveram de fugir mais uma vez. A vida não foi fácil. Na fuga, um dos navios contendo 23 judeus caiu em poder de piratas espanhóis, no entanto, logo depois, próximo à Jamaica, foram libertados e resgatados pelo navio francês Saint Catherine, que depois de passar pelo cabo San Antônio, em Cuba, desembarcou-os na localidade que eles chamaram de “Nova Amsterdã”, hoje Nova York. Na época, tratavase apenas de um entreposto comercial. A comunidade Judaica de Nova York Depois de todas aquelas peripécias e enormes dificuldades por que passaram, chegaram a Nova Amsterdam praticamente 305 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro sem nada com que se manter e passaram até por privações. Sofreram, inclusive, entraves burocráticos por parte do poder público, que lhes discriminava e tudo fazia para dificultar sua vida. No entanto, por influência da Companhia das Índias Ocidentais, grandes comerciantes com influência nos mercados Europeus, acabaram sendo aceitos. Assim, no ano de 1655, foi fundada a primeira congregação judaica dos Estados Unidos da América na cidade de Nova Amsterdam, mais tarde chamada de Nova York. Essa congregação foi chamada inicialmente de Shearith Jacob, e, pouco mais tarde, Sheaith Israel. Um de seus fundadores foi Asser Levy, que provavelmente também se tornou o Grão-mestre da confraria naquele país. Semelhantemente, foi construída a primeira sinagoga, que funcionou no mesmo lugar até 1825. Autorizado também pelo governo local na compra de terras para construir o cemitério, que, pela tradição, deveria ficar fora dos limites urbanos. O cemitério era o item de maior importância e até prioritário em comparação com a sinagoga, pois, conforme a tradição, os ofícios religiosos poderiam se realizados em ambiente domiciliar, bastando que houvesse espaço suficiente e adequado e contasse com a presença de pelo menos 10 homens. Segundo registros, o primeiro culto judaico de maior importância celebrado em solo norte-americano foi em 12 de setembro de 1655, quando caiu o ano novo judaico, chamado Rosh Hashanah, do ano de 5415 do calendário judaico. Dali em diante, a comunidade judaica cresceu e se espalhando por outras partes — como Massachusetts, Connecticut, Rhode Island e Filadelphia. Segundo registros, no período colonial, seis sinagogas foram construídas — em Nova York, Montreal, Filadélfia, Savannah, Charleston e Newport. fosse que a confraria guardava e protegia com tanto empenho, teriam feito um longo caminho da Europa até o novo mundo de então, as Américas. Provavelmente, os principais guardiões, membros da confraria, estavam entre os cristãos novos, fugidos de Portugal para a Holanda. Quando sentiram a necessidade de proteger melhor tudo aquilo de importante que guardavam e protegiam, trataram de transportá-lo para a colônia Nova Holanda, a atual Recife, no Brasil, no meio das cargas de mantimentos, utensílios e víveres, além de imigrantes que vinham com o desejo de trabalhar e morar em paz, longe das perseguições europeias. Quando foram expulsos, alguns não voltaram para a Holanda porque precisavam cumprir sua missão como guardiões. Em vez disso, rumaram para o norte, passando e se estabelecendo em localidades pelo Mar do Caribe e Antilhas e fugindo cada vez que eram expulsos, mas sempre encontrando uma forma de carregar o que há muito já consideravam sagrado. A mão protetora da confraria estava sempre presente. Aquele navio Saint Catherine não era qualquer navio nem estava ali por mero acaso. Era um navio apropriado, tinha provisões e armas e gente apta a lutar e derrotar os piratas, que, provavelmente, eram contratados e pagos pelo pessoal da Inquisição para realizar aquela tarefa. Provavelmente, queriam se apropriar daquilo que também sabiam que continha, um farto material que poderia ser utilizado pelo tribunal da Inquisição, acusando-os de heresia. Entre os 23 adultos e crianças que estavam no navio e foram salvos pelo Saint Catherine, podemos citar três homens que figuram no relatório da cidade como pessoas que assinaram o livro de atas da Congregação Zur Israel do Recife, no ano de 1648: Abraham Israel, David Israel e Mose Lumbroso. Esse eram membros importantes da Confraria do Torah Moshê. Somente então muitas informações começavam a fazer algum sentido. Os documentos, secretos ou não, ou seja lá o que Paschoal e Pedro decidiram que realmente viajariam para Nova York a fim de verem o que descobririam. Juntaram todo o material que já haviam estudado e começaram a conversar sobre 306 307 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro suas expectativas, seus planos e tudo que fosse necessário para implementar sua estratégia. — Mas esse é o local mais vivitado do mundo. Como isso seria possível? — Pedro, você acha que o primeiro cemitério judaico pode conter algo do que procuramos? — Exatamente por isso. Ninguém suspeitaria que alguém esconderia algo logo ali. Ademais, construtivamente, ela reúne condições para acondiconar várias coisas em locais apropriados caso alguém a projetasse especialmente para essa finalidade. A metade da altura do monumeto é base. E, para sustentar aquele peso enorme, deve possuir fundações muito sólidas. Outro ponto a considerar é que a estátua propriamente dita veio da França, mas a base foi feita no local pelo pessoal dos Estados Unidos da América. Segundo consta o próprio escultor, esteve nos Estados Unidos para escolher o melhor lugar. Na hipótese de ele também ser um membro da confraria, poderia ter orientado a construção de forma a melhor atender aos propósitos vislumbrados. — Paschoal, segundo consta, lá existem referências sobre os primeiros judeus e possivelmente alguns documentos, inclusive ocultos nos túmulos. É possível que num primeiro momento todos os documentos que esperamos encontrar tenham passado por lá. No entanto, não creio que ficaram por lá por muito tempo, por ser um local retirado, de dificil manutenção da vigilância e haver gente constantemente procurando por algo. Possivelmente, o funcionario que cuidava da manutenção, sendo possivelmente membro da confraria, deve ter informado a seus confrades mais graduados, que providenciaram a remoção de forma a não levantar suspeitas. — Você acha que o lugar para onde levaram seria a sinagoga mais antiga de Nova York? — É possível que também tenha passado por lá e estivessem ocultos no subsolo de forma bastante resguardada. No entanto, esse era tambem um local muito visado. Então, possivelmente, devem ter levado os documentos para outro lugar, livre de suspeitas. — Pedro, Nova York é provavelmente a cidade mais visitada do mundo por turistas de muitos países. Fico bastante curioso para saber se realmente existe algum lugar livre de suspeitas onde se pudesse guardar por muitos anos algum documento secreto. Pela enorme lista que já examinamos, nenhum deles atenderia ao quesito segurança. — Concordo Paschoal, mas há um local que ainda não consideramos: a Estátua da Liberdade. 308 — Pedro, percebo que você fala como se tivesse a certeza de que tudo o que procuramos está ali. Voce tem ideia da forma como estariam acondicionados? — Paschoal, por enquanto, tudo são conjeturas, mas algo me diz que por ali há algo de muito Importante. Quanto a forma de guardar, não tenho uma ideia muito clara a respeito. Tudo que sei é que era um costume antigo colocar dentro de garrafas de vidro uma cópia do documento de lançamento do monumento ou prédio público e plantar essa garrafa nas paredes em local próximo a fachada, selando-o a seguir com argamassa, embolso, reboco e finalmente a pintura. Mas se a documentação for muito grande e volumosa, provavelmente não seja esse o caso. Então deveria haver outro local maior, porem oculto para acondicionar tudo. — Então, vamos fazer logo essa visita e ver o que conseguimos apurar. Como de costume, reuniram a equipe e seus imediatos responsáveis, nos moldes da primeira vez, e passaram todas as 309 João Roberto Vasco Gonçalves instruções sobre o desenvolvimentos dos projetos em curso. A seguir, foram arrumar toda a bagagem, examinando tudo cautelosamente e checando o material que costumavam levar nas suas mochilas nas viagens de pesquisas. Por sorte, conseguiram logo as passagens de ida e volta de que precisavam. Daí, a dois dias, viajaram. Capítulo IV Visita à Estátua da Liberdade Logo no dia seguinte à sua chegada a Nova York, rumaram para a tão esperada visita à Estátua da Liberdade. Algum tempo depois de iniciada a visita, desceram a um primero patamar do subsolo, o único de área pública, juntamente com o grupo de turistas. Em dado momento, propositadamente, eles se atrasaram em relação ao grupo e se esconderam atrás de uma columa. Observaram que havia uma porta de onde saíram dois sujeitos uniformizados com macacão. Na porta estava escrito: “Proibida a entrada de estranhos. Área restrita ao pessoal da manutenção.” Quando os dois sujeitos já estavam a uma certa distância, entraram. Primeiramente, havia uma antesala de uma subestação elétrica, com os devidos avisos de segurança. Nessa antesala havia também uma porta corta-fogo. Entraram e viram uma escadaria com vários lances que descia, e, no final dessa, outra porta cortafogo. Ao abrí-la, perceberam o ronco dos geradores, algo contidos pela eficiente proteção acústica. Desceram mais dois longos lances de escadaria até o piso dos geradores e seus quadros elétricos. Na extremidade oposta da sala, outra porta corta-fogo indicava que havia mais dois lances de escada para descer até o piso das unidades de refigeração das máquinas e centais de condicionadores de ar. Desceram e, depois de atravessar outra porta corta-fogo, tiveram acesso a tal sala, de enormes dimensões. Na extremidade oposta dessa sala, mais uma porta corta-fogo e mais dois lances de escada. Desceram e observaram que a única coisa que havia eram enormes tubulações de captação de água 310 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro de refrigeração e retorno de água aquecida, que penetravam em poços onde havia água. Após mais um lance de escada, a partir dali mesmo, descia até uma estrutura feita de pedras, como se fosse um cais primitivo onde a água chegava a até 30 cm da borda superior — situação curiosa, pois não saía para nenhuma área externa. A partir daí, não parecia haver mais nada a ser visto, era realmente o fim da linha. No entanto, descendo até a metade da escadaria, observava-se num dos lados uma abertura algo como uma entrada para a parte inferior de toda a construção, provavelmente para inspeção periódica das estruturas da edificação. As oscilações de ar fresco naquele ponto sugeria uma saída. Examinando com mais cuidado e discernimento aquela edificação subterrânea, perceberam que onde desciam os grossos tubos era uma espécie de canaleta embutida no concreto até o poço, formando uma reentrância que se sobressaía ao plano da parede. Examinando ao lado dela, descobriram que havia uma fenda de cerca de 45 cm de largura, que, aparentemente, fazia parte do sistema na parte posterior da canaleta da tubulação. Analisando cuidadosamente, acharam que aquilo seria dispensável e não haveria razão aparente que justificasse aquela abertura à primeira vista, a menos que fosse uma entrada de ar vindo dos andares superiores — o que seria muito difícil definir sem consultar a planta da construção. Resolveram entrar, empunhando suas lanternas. Para a surpresa deles, havia um pequeno corredor e no final deste uma porta robusta e rústica de modelo antigo. Inalando oxigênio de suas bombas portáteis, seguiram em frente. Com algum esforço, abriram a porta e perceberam uma espécie de corredor de cerca de 10 m, com cinco aberturas com a parte superior em arco romano, sem portas, cada uma levando a um túnel sem saída. Examinando detidamente esses túneis, descobriram que suas paredes eram cheias de cavidades retangulares onde estavam guardados vários livros e alguns objetos, possivelmente utilizados em rituais litúrgicos de várias religiões antigas. 312 Candelabros ao estilo do menorah, castiçais, turíbulos, ânforas, âmbulas, cutelos, patenas, bacias e uma infinidade de peças a mais de difícil listagem em pouco tempo. Resolveram verificar cada um deles para anotar e fotografar tudo o que viram. Os dois primeiros tuneis, da esquerda para a direira, pareciam ser um mausoléu, onde as lápides que cobriam prováveis aberturas longitudinais na rocha continham nomes e sobrenomes, datas e epitáfios comuns em sepulturas. O terceiro túnel continha os vasos e utensílios sagrados antigos. O quarto e o quinto abrigavam uma vasta biblioteca antiga com muitos documentos escritos em hebraico e grego antigos, todos manuscritos, mas redigidos com muita ordem e capricho — mostrando até certa preocupação com a inteligibilidade. Ali foram encontrados uma cópia do Pentateuco e de livros apócrifos, como o Livro de Adão (versão complementar do gênesis contando outros detalhes importantes), o Livro dos Segredos de Enoque e o Livro da Sabedoria do Céu e da Terra. Tiveram muito trabalho para fotografar tudo aquilo e precisaram repetir a visita algumas vezes mais usando disfarces para não levantarem suspeitas. A saída também era algo bastante complicado, e eles tinham de controlar muito bem o tempo para não perderem a última viagem de retorno dos turistas. Tiveram, inclusive, dificuldade para sair sem serem notados pelo pessoal da manutenção e para se juntar ao grupo. Na última vez, quase foram pegos e tiveram de falar que estavam perdidos e buscando ajuda para encontrar a saída e encontrar o grupo. 313 Capítulo V Volta a Coimbra e compilação das informações Assim que terminaram sua agenda de visitas, fizeram rapidamente a viagem de volta, ansiosos que estavam para começar a esmiuçar as informações colhidas. Chegaram a Coimbra, cumprimentaram os membros de suas equipes e disseram que continuassem seus trabalhos, pois eles precisavam continuar suas pesquisas. Logo a seguir, naquele mesmo dia, começaram a análise pelas fotos. Na lateral esquerda do pórtico de entrada do primeiro túnel estava escrito em hebraico, em letras cavadas na rocha, o que parecia ser a identificação daquele recinto, seguido imediatamente de sua tradução em grego antigo: “Caverna dos Tesouros”. Como constataram que aquilo era, na verdade, um mausoléu, logo entenderam que o nome era uma referência à caverna do tesouro citada em alguns livros deuterocanônicos, tais como: os livros de Adão e Eva, Caverna dos Tesouros e outros. As fotos das lápides mostravam inscrições curiosas. Os nomes grafados nas sete primeiras lápides eram, da esquerda para a direita, os mesmos nomes citados naqueles livros: Adão, Seth, Enos, Cainan, Mahalalel e Jared. Espaçados de uma lápide, estavam: Enoque, cujo nome estava circundado por um retangulo (talvez porque este tenha sido abduzido e não fora morto e enterrado; logo após: Matusalém, Lameque, e Noé, circundados da mesma forma que Enoque. Separados por mais uma lápide, vinham os nomes dos outros patriarcas: Sem, Arpachade, Selá, Éber, Pelegue, Reú, Serug, Naor, Terá, Abraão, Isaac e Jacó. O João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro nome de Sem também era ressaltado com o retângulo, porém, no texto hebraico, não traduzido, referia-se a Melquisedeque, como se fosse o nome do mesmo personagem, renomeado. O mesmo acontecia com Abraão em relação à sua renomeação. Nas fotos das lápides do segundo túnel apareciam muitos outros nomes, com destaque para José, filho de Jacó, Moisés, Josué, Davi e Salomão. Semelhantemente, era fato curioso que, se vistas em conjunto, as letras em destaque em cada lápide, em sequência, pareciam formar uma frase — cujo significado ainda precisava ser analisado melhor, por constituir-se provavelmente numa indicação inportante a respeito de algo que ainda não sabiam ao certo o que era. A frase formada pelas lápides do primeiro túnel dizia: “O espelho de Jerusalém reflete em Alexandria” e as do segundo túnel: “Em Alexandria se concentra o mundo”. Tudo fora cuidadosamente arrumado para transmitir aquelas mensagens. A engenhosidade era impressionante, assim como a arrumação geometricamente perfeita e a precisão matemática. Ainda assim, muitas eram as incógnitas, muito a ser estudado, analisado e concatenado para produzir algo coerente. Paschoal e Pedro começaram a sua tradicional conversa de diligentes historiadores e experientes investigadores. Inicialmente, a respeito dos dois túneis, o significado do mausoléu, seu possível conteúdo e as informações que possuía. — Pedro, proponho algumas questões a respeito dos dois primeiros tíuneis. Qual o significado do mausoléu? Qual o seu real conteúdo material? Qual o real significado das informações que possui? — Sim, Paschoal. Vamos por partes. — Paschoal, é difícil afirmar com absoluta certeza, mas é possível que existam corpos, sim. Não é razoável, contudo, pensar que esses correspondam aos nomes registrados nas lápides. Seus nomes reais devem estar anotados em alguma parte, possivelmente no mesmo recinto, referenciados aos números dos jazigos. Ali, provavelmente estejam guardados os restos mortais, talvez as cinzas dos confrades mais importantes da confraria; os Grão-mestres. — Bela dedução, Pedro. É curioso tambem que cada lápide possua epitáfios significativos, frases históricas e/ou bíblicas. Talvez, elas contenham referências para estudos futuros. — Também pensei nessa possibilidade, Paschoal. — Pedro, e quanto às informações contidas? — Paschoal, quanto aos nomes dos primeiros patriarcas, creio que façam referência tanto aos livros canônicos como aos deuterocanônicos. Quanto à primeira frase formada, penso que ela sugere que algo que esteve em Jerusalém e possivelmente tenha ido parar em Alexandria. A segunda parece indicar que em Alexandria há informações importantes sobre o mundo inteiro, muitos lugares, muitas culturas e muitas épocas. — Ótimas conjeturas, Pedro. Ainda assim, precisamos estudar tudo mais amiúde. Mas, vamos ao terceiro túnel. O que voce pensa daquela enorme variedade de objetos e utensílios? — Pashoal, penso que estão separados ou organizados por épocas e culturas como um pequeno Museu, porém oferecendo certa ideia de sequencia ou evolução temporal. Provavelmente, examinando-se a sequência, aparecerão informações adicionais. — Pedro, voce acha que isso realmente é um mausoléu? Em outras palavras: acha que contém corpos? De quem realmente seriam? — Pedro, observei isso e partilho dessa dedução, mas, igualmente, temos de estudar melhor. Passemos, então, ao estudo dos livros. Tomemos as fotos e as anotações e organizemos 316 317 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro um estudo. Alguns livros menos comuns, principalmente os deuterocanônicos, sabemos como conseguir. Outros dessa lista, mais corriqueiros, já os temos por aqui. Estudo dos livros Os primeiros livros canônicos indicados eram os cinco primeiros da bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Deuteronômio e Números. Eles possuíam características religiosas e históricas. Seus ensinamentos são, na verdade, cívico-religiosos, pois eles contêm regras de comportamento, ética, responsabilidades civís e criminais, aplicação da justiça, questões de saúde, organização social e econômica. Mostra que as sagradas escrituras não funcionavam apenas como livros religiosos, mas se confundiam com uma constituição civil, sugerindo que seu sistema de governo era teocrático. de outras coisas. Submetem o homem à prova, ideia conflitante com o princípio da onisciência, ou seja, se Deus conhecesse tudo profundamente, não precisaria testar até onde vai a fé e a obediência. Caso contrário, no conceito filosófico, não seria o deus de verdade. Isso remete à primeira ideia de que o deus bíblico não era o Deus verdadeiro. Não que ele não exista, mas, o Deus verdadeiro estaria infinitamente longe dessas ideias, sendo tremendamente anterior ao Deus que apregoavam. Esse, sim, seria o Deus verdadeiro, onipotente, onipresente, onisciente, senhor do tempo e do espaço em todas as dimensões possíveis, imagináveis e inimagináveis, criador do universo e de todas as coisas visíveis e invisíveis. O início do Gênesis possui uma dissertação quase infantil, cheia de alegorias e metáforas. Isso talvez fosse necessário para facilitar a compreensão de quem lesse sem o devido embasamento ou conhecimento mínimo suficiente, além de servir para várias épocas e estágios de evolução cultural. O restante do primeiro livro e os livros seguintes eram um pouco mais compreensíveis, mas, ainda assim, possuíam ambiguidades e outras dificuldades. Talvez, tudo isso se devesse às dificuldades semânticas e outras criadas nas múltiplas traduções, transliterações, interpretações, etc. De todo modo, muitas perguntas ficam no ar ou são respondidas com fracas argumentações fundamentadas em explicações inconvincentes que os teólogos tentam propor. Os livros deuterocanônicos, embora parte da septuaginta, estão escritos somente em grego. Não foram derivados dos documentos escritos em hebraico, mas em siríaco, copta e outras línguas antigas. Portanto, aquelas referências a eles encontradas nos jazigos, grafados em hebraico, são meras alegorias. Esses não possuem características religiosas. São no máximo históricos e se aproximam muito mais de descrições científicas. A única (porém gigantesca) dificuldade é que são frontalmente conflitantes com os livros de cunho religioso, principalmente no que concerne à criação da raça humana. Esses livros sugerem a preexistência de uma raça super avançada, tecnicamente, num planeta biofisicamente exaurido e com previsão de extinção em médio prazo. A criação do homem terrestre, segundo sua versão, mais se aproxima de uma experiência científica avançada. Seu objetivo era prover uma depuração genética para corrigir muitos problemas causados pelo seu próprio desenvolvimento científico. O Deus que aparece e os anjos possuem uma forte correlação e mesmo influência dos deuses da mitologia grega. São passionais, ciumentos, irados, odeiam, castigam, incoerentemente preferem a um povo ou tribos em detrimento de toda a humanidade que criaram, interagem diretamente com o homem, além Sua raça original fora deturpada por clonagens malsucedidas e outras realizações de engenharia genética buscando a criação de alguns atributos e desenvolvimento ou melhoramento de outros. O que pleiteavam inicialmente era a criação de uma super-raça, imune a doenças, fisicamente mais forte, com expec- 318 319 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro tativa de vida saudável muito superior, possibilidade de locomoção avançada. Dotariam os seres de asas como os pássaros. Semelhantemente, a capacidade mental seria muito maior, etc. Essas experiências, entretanto, não foram muito bem-sucedidas, e, na verdade, acarretaram enormes problemas que acabaram por degenerar a raça original. Outros problemas gravíssimos ocasionados pelo super desenvolvimento científico foram a contaminação com radioatividade de várias naturezas, tipos e níveis que provocaram alterações importantes no DNA e deturpações cromossômicas. Elas culminaram em problemas teratológicos ou alterações genéticas, produzindo seres híbridos, com características humanas misturadas com as de outros animais — asas, caldas, chifres, pelagem grossa, penas, escamas, crostas, cascos, etc. O objetivo da depuração genética da raça era manter os atributos considerados interessantes e eliminar os ruins.Assim, ao procurarem exaustivamente por várias galáxias, encontraram num sistema solar da via Láctea o planeta terra, dotado das condições quase ideais e precisaram esperar e até agir sobre ela até ficar propícia ao desenvolvimento do projeto “Vida Pura”. O jardim do Éden foi criado como uma espécie de redoma natural onde o ser depurado e em desenvolvimento poderia viver protegido, com a subsistência garantida, em estado de graça, sem um mínimo de conhecimentos, como os animais. As experiências, no entanto, tiveram seus problemas. Segundo a lenda, houve discórdia entre os cientistas. Uns achavam que precisavam ceder aos novos habitantes o “gene” da inteligência, da força física e da agressividade, além de ministrar-lhes conhecimentos básicos, para quando os seres selecionados precisassem sair daquele espaço protegido e favorável, assim, poderiam lutar pela sua sobrevivência. Isso exigiria uma alteração substancial no projeto científico, que já estava avançado. A maneira mais fácil e mais rápida que conceberam foi a miscigenação. Então, escolheram 200 de sua raça, dos considerados mais sadios e que ainda não haviam desenvolvido problemas teratológicos para cruzar com as fêmeas daqueles seres e obter filhos com as propriedades esperadas. Enquanto isso, atuavam como professores da nova raça que surgia, ensinando tudo que consideravam útil à sobrevivência. 320 321 O Livro dos Mistérios do Céu e da Terra diz: “Aqueles que ensinaram aos homens a arte da civilização é que provocaram a ira de ‘deus’ e que o levaram a fazer o dilúvio sobre a terra”. Era como se o dilúvio fosse um processo de correção, realinhamento ou retorno ao projeto original, deturpado pela ação dos cientistas descontentes, que, num paralelo ao Gênesis, funcionaram como a serpente tentadora e corruptora. Os nomes deles e seus ensinamentos são: Pipirôs ensinou sobre o sol, Ruridê, a extração de pedras; Zarrél os meses do calendário; Pineno mostrou o cavalo e sua utilidade, Galé instruiu sobre o machado, Tigana, sobre o escudo; Horeri, sobre os instrumentos musicais; Yuebê, a trabalhar o ferro; Meged ensinou a cavalgar, Negode, sobre as plantas e outras fontes medicinais, além de mostrar a época em que a influência dos planetas sobre as águas era mais favorável. Garge ensinou sobre o moedor de milho; Seter, como misturar a massa; Giner, o uso de vasos de barro para os alimentos, Zare ensinou a ordenhar os animais para obter o leite, Saper, a fazer manteiga. Hegge ensinou a fazer telhados e outras coberturas, Tentoreb, a fazer portas; Halage, a esculpir em madeira e pedra; Heder, a cultivar árvores; Sino, a construção de casas, Tof ensinou a fazer tijolos, Artorbegas ensinou sobre implementos agrícolas; Sebedegaz, sobre óleos e tintas. Zare ensinou a fabricar cerveja, Beteneladas ensinou sobre o forno, Nafil ensinou a fazer plantações, hortas e jardins; Yarbeh, como derrubar árvores, Elyô ensinou a dança; Penemos, a arquitetura e a escrita, Agalemum; sobre animais para arar e como efetuar os sulcos na terra, Kueses, sobre a fabricação de arados e chicotes de couro, Akor, sobre o trabalho com cobre e fabricação do bronze, Certos ensinou a trabalhar as madeiras de cedro e salgueiro. Akis ensinou sobre as artes circenses, Wasag, João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Aberegya e Zaberegued ensinaram vários tipos de jogos. Nem tudo deu certo, no entanto. Uma parte realmente evoluiu como pretendiam e, depois de poucos milhares de anos, produziu uma supercivilização de conhecimentos técnicos muito avançados em várias áreas científicas, passando a viver numa região chamada Atlântida, localizada entre o norte da África e da América do Sul e Central, bem como Australásia, que vem de Ásia Austral ou Austral Ásia, localizada próximo de onde hoje é a Oceania. Eram cópias daquela área protegida inicial, acrescida de algumas condições que julgavam necessárias. Contudo, a outra parte herdou os defeitos da raça geradora, em cuja memória genética estavam as deformidades. Essas foram, então, transmitidas integralmente. Curiosamente, o mesmo princípio que conferia a longevidade, também causava problemas teratológicos. O horizonte de vida previsto era de mil anos terrestres. O referido princípio era a multiplicação mais rápida das células para substituir outras já desgastadas, rejuvenescendo-as — o que evitava a morte prematura delas. O problema que aparecia quando algo saía errado era o aparecimento de tumores e partes extras, resultando o desenvolvimento excessivo das células por alguma razão que ainda não sabiam. Aquilo, no entanto, não era tudo, apareceu outro pior que ainda não havia sido previsto: para além de desenvolverem partes características de corpos de outros animais, quando chegavam à idade adulta, no terceiro jubileu, 75 anos terrestres, não paravam de crescer, como normalmente seria esperado, o que era acompanhado das deformidades e monstruosidades, que evoluíam muito para pior. Por consequência disso, a alimentação ficou cada vez mais escassa; somado a isso, eles começaram a se multiplicar com muita velocidade e em grande número. Em breve, devorariam tudo que encontrassem, inclusive seus semelhantes, atingindo estaturas descomunais — cerca de 25 a 30 metros. E suas deformações em nada lembravam mais espécies humanas. Pelas descrições detalhadas, eram figuras bem próximas aos dinossauros e outros animais pré-históricos que mencionamos hoje. 322 323 Quando a situação ficou insustentável, precisaram abortar o projeto e provocar uma explosão nuclear em pontos específicos para extirpar totalmente a raça indesejável, que àquela altura, já possuía uma superpopulação e estava espalhada por extensa área geográfica. A explosão, apesar de ser em pontos específicos, acarretou abalos sísmicos catastróficos. Foi forte demais e provocou a fratura da crosta do planeta, já devidamente resfriada e consistente, porém quebradiça. As fraturas evoluíram para rachaduras e fendas mais abertas e mais instáveis. Então, o que era inteiriço passou a ser o que chamamos de placas tectônicas, que apenas se encaixam e ou se apoiam sobre as extremidades umas das outras. Quando estavam inteiras, davam consistência e equilíbrio ao sistema geológico. Devido à mudança, a expansão súbita dos gases e do magma do centro da terra provocou movimentações importantes na crosta, criando montanhas e vales de grande amplitude, fazendo o mar virar continente e o continente virar mar em vários pontos. Então, a civilização da Atlântida submergiu, bem como a de Australásia. Os poucos que conseguiram se salvar acabaram se deslocando para áreas secas e agora montanhosas das Américas e criando as civilizações Incas, Astecas e Maias e outras na África, Ásia e Oceania. O passo seguinte foi limitar a velocidade de multiplicação celular, mesmo que isso baixasse substancialmente a expectativa de vida material, ficando a longevidade na faixa de média de 100 anos, gerando a expectativa de que as gerações futuras não teriam mais problemas como aqueles. O estudo de muitos outros livros antigos dava conta da existência de alguns personagens importantes, como homens do céu, como era o caso de Melquisedeque e Enoque e os filhos dos homens do céu ou “filhos do céu”, que eram derivados de relações entre homens do céu e as mulheres da terra. Falavam, ainda, João Roberto Vasco Gonçalves de seres que se encarnaram na raça humana em diversas épocas diferentes, várias gerações adiante, sendo, entretanto, espiritualmente ou intelectualmente a mesma pessoa. Outro fato curioso é que muitos dos seres mencionados não morreram nem foram enterrados como todos os humanos. Alguns casos de assunção, ascensão, abdução foram registrados, assim como o de Elias, que subiu aos céus numa carroça de fogo, Enoque foi chamado para os céus e simplesmente sumiu, etc. Outros casos curiosos de filhos dos homens do céu com as mulheres da terra, predestinados a serem salvadores de uma raça, também foram registrados. Um dos casos mais interessantes foi o de Noé. Voltando Lamec de uma viagem longa, ao retornar, deparou-se com uma criança que sua mulher jurara ser seu filho natural. Fazendo suas contas, poderia ser, no entanto, o menino tinha traços físicos completamente diferentes do de sua raça, como pele, olhos, cabelos, etc. Desconfiado, Lamec procurou seu pai, Matusalém, para se aconselhar. Matusalém também nada concluiu, então, foi procurar um sábio chamado Enoque. Este afirmou que realmente não era filho natural dele, mas que o recebessem como filho, pois haveria um grande extermínio da raça humana, que àquela altura, era desagradável ao Senhor por suas iniquidades. O menino, Noé, seria o pai dos escolhidos para serem salvos. De fato, ele teve a revelação sobre o dilúvio e construiu uma arca para passar incólume por tamanha catástrofe. Capítulo VI Comentários finais da parte II Era realmente um gigantesco volume de informações, eram de difícil análise e compreensão. A cada etapa que o estudo avançava, mais se tornava uma intrincada rede. Era realmente muito difícil ou talvez impossível filtrar tudo aquilo e produzir uma literatura única e definitiva com as verdades sobre tudo — sem cair naquela mesma armadilha em que tantos haviam caído ao longo da história. Depois de analisar e estudar exaustivamente todo aquele material de pesquisa obtido até então, acrescido das informações obtidas durante as visitas, fotos, estudos de inscrições e afins, Paschoal e Pedro concluíram: os livros Apócrifos e Deuterocanônicos sofriam afinal da mesma deficiência e dificuldade dos canônicos ou de quaisquer outros que apareceram na história da humanidade. Possuíam ambiguidades, imprecisões, inconsistências, improbabilidades, transliterações, traduções, imposições ideológicas dos que escreveram julgando que era o certo sem conferir a ninguém o direito à dúvida e, até mesmo, atos de má fé para atender interesses escusos. Poderiam dar por concluída aquela segunda parte e, até mesmo, dar por encerrado aquele estudo. Mas, apesar daquilo, havia uma terceira. Independentemente do que pudessem en- 324 João Roberto Vasco Gonçalves contrar, a curiosidade deles como historiadores e pesquisadores e o seu senso de responsabilidade sobre as informações à humanidade jamais permitiria que pusessem um ponto final em tudo aquilo. Assim, precisavam planejar a execução da terceira parte dos estudos. Parte III 326 Capítulo I A caminho do oriente – Encontro com o passado Paschoal e Pedro saíram de Portugal rumo a Istambul, porta de entrada do Oriente. Foram percebidos. Apesar de já serem membros bem graduados da confraria, dois elementos importantes dela os seguiram sem serem notados, a pretexto de ajudar em momentos difíceis e complicações que eles sempre acabavam por enfrentar. Da mesma forma, Moshê e João haviam viajado disfarçadamente. Mal sabiam todos que seria como atravessar um vestíbulo entre dois ambientes. Era como atravessar um portal de tempo, e quem se atrevesse a fazer aquela passagem era violentamente arremessado de volta ao passado, onde os minutos pareciam eternidade, os sentimentos eram revividos e potencializados. O ambiente era uma espécie de espelho mágico com uma vista panorâmica ou uma câmara de tortura onde se purgava o que se devia e o que não se devia — uma passagem incrivelmente rápida com sensação de parada no tempo. Paschoal foi o primeiro a sentir o impacto daquele contato com o portal do tempo. Logo ao desembarcar em Istambul, parecia ter levado a descarga de um raio, já que suava frio e foi acometido de um ligeiro tremor. Não sabia exatamente o que era. Seria um resfriado que sutilmente vinha chegando? Teria comido algo que não lhe fizera bem? O que estaria acontecendo? Não era nada disso. Era apenas um choque das imagens gravadas no seu subconsciente com as imagens reais da cidade que começou João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro a rever, a mesma da sua saída amargurada, que ele se dispunha a esquecer, sepultando-a dentro de si. Aquele choque era a colisão do passado com o presente, um incômodo sentimento que não havia como descartar. O único modo de neutralizá-lo era aceitar o seu divã, enfrentar os problemas, remoê-los até que o seu veneno perdesse sua força. Ele tinha de superar tudo, ainda que a duras penas, e, possivelmente, sair dali definitivamente de alma lavada. As imagens retrocediam na ordem inversa, como uma fita de vídeo rodando ao contrário. Primeiramente, ele visualizou sua partida para a Europa, rumo a Lisboa. Depois, viu seus tempos felizes como professor numa conceituada universidade de Istambul — mas era uma felicidade do tipo rolha, para tapar a garrafa vazia de sua vida. Era um vazio deixado pelas mortes em sequência do pai adotivo e, anos depois, da mãe, logo depois, sua noiva. Acometidos de peste, haviam falecido, assim como alguns amigos dele. Lembrou-se de como fora pesaroso concluir os negócios decadentes, vender tudo, pagar a dívidas e embrenharse de vez na universidade — na qual ele se afogou em trabalho para preencher todo aquele vazio e conseguir sobreviver à crise. Após aquilo, passou diante se si sua infância, o brutal assassinato de sua mãe, a usurpação de seus poucos pertences e sua captura para vendê-lo como escravo. Ouvindo a conversa escondido, descobriu em seguida que haviam conseguido um comprador e que a condição exigida era torná-lo eunuco. Viu sua fuga desesperada, sua premanência provisória no esconderijo, na colina próxima. Lembrou-se da ferroada do inseto, sua perda de sentidos e seu acordar numa nova família, sendo essa a melhor parte, um milagre da providência para o seu pobre destino. Tristes recordações. Como era amargo ser inesperadamente invadido por elas sem chance de recusa! frio que passou e parecia congelar até a alma.Teve, a seguir, certa indisposição; o sangue parecia latejar na cabeça, sentia-se ligeiramente desconfortável, com certa tontura e náusea. Atribuiu a sensação ao efeito daquele vento e pensou que um resfriado possivelmente estava a caminho. Os ventos, todavia, eram outros, que procediam do seu subconsciente, o que concluiu logo depois, quando foi invadido por um dilúvio de lembranças de fatos há muito soterrados na arca do tempo. Elas insistiam em aflorar agora, numa sequência inversa, como um filme a retroceder. Via sua partida do oriente para o seu desterro voluntário, as aulas que lecionava e seu afogamento em trabalho para preencher o vazio de sua vida. Viu o seu quase casamento com Débora ser desfeito por pressão da família da noiva, que o rejeitou quando soube que nem ele sabia ao certo sua nacionalidade — mesmo tendo sido adotado legalmente como filho de família judia. Viu a parte boa que havia ocorrido quando saíra da enfermaria militar para a casa da família que o adotou, seus estudos, seus primos, seu namoro com Débora — tudo para enchê-lo de felicidade e ser retirado com maior pesar depois. Viu seu acordar numa enfermaria de campanha da Cruz Vermelha, a batalha e seu ferimento no fogo cruzado. Viu a escola de formação de guerrilheiros, com sua rígida disciplina e os duros castigos aos faltosos. Viu, ainda, diante de si, a sua captura por aqueles brutamontes que o jogaram em um caminhão velho depois de uma bofetada por ter protestado e aquela viagem super desconfortável de vários dias. Depois, viu a parte mais triste: o assassinato em massa do povo da sua vila, que incluía seus pais, sua fuga para a colina e a posterior descida até ser encontrado por aqueles brutamontes do caminhão que o agarraram à força e bateram nele quando protestou. Concomitantemete, Pedro passava pelas mesmas agruras. Seu primeiro contato com a localidade foi um golpe de vento Todo aquele dilúvio de lembranças péssimas e difíceis de remoer era inexorável, e não havia como evitá-lo. Fora mesmo invadido sem permissão e o jeito era enfrentar. É, Istambul pa- 330 331 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro recia mesmo um portal mistico de passagem entre dois mundos, duas realidades, duas dimensões. Ninguém conseguiria passar por ali sem sentir determinada comoção. Com Moshê também não foi diferente. Assim que chegou, densas nuvens negras do passado pareciam ter pesado sobre ele, fazendo aquele homem aparentemente calmo, comedido e inabalável curvar-se diante si mesmo. Viu passar diante de si a retrospectiva de sua vida. Sua chegada a Amsterdan, procurando o Rabino Ariel, sua desolação e peregrinação após sair como persona non grata daquele grupo de judeus, responsabilizando-o por uma derrota prevista, sobre a qual não quiseram tomar conhecimento e que fora voto vencido. Viu seu retorno desastroso do campo de batalha após fragorosa derrota. Viu seu povo mal treinado e inexperiente lutando até a morte com um exército de mercenários cujo ofício era matar por dinheiro. Viu sua última insistência ser rejeitada pelo grupo que queria a guerra e o tratara grosseiramente. Viu a morte do velho rabino, seu mestre, mentor e quase um deus para ele, que lhe confirma uma missão e o manda procurar o rabino Ariel. Viu a sua admissão no grupo como judeu, por influência do velho rabino, seus estudos orientados por ele. Viu nitidamente o momento em que o velho o identifica como judeu e complementa a história que ele nunca soubera e lhe informa que ele possui uma missão que ainda descobriria. Lembrou-se de sua primeira entrevista com aquele velho de longos cabelos e barba brancas, e viu, ainda, diante de si sua pereginação pelo mundo com aquele enorme vazio que nem mesmo ele sabia o que era. Viu sua vida como um bravo soldado na legião estrangeira, sua mãe adotiva (a única que conhecera) morrendo em seus braços, o tempo em que exercia a profissão de ourives, herdada do pai, ganhando o seu sustento e de sua mãe. Viu tambem passar diante de si a morte de seu pai adotivo, que tanto lhe ensinara. A partir dali, não havia mais registros de nada a ser visto, embora ele soubesse que a história existia, a dos pais que não conhecera. Era como se fosse filho daquela estrela cuja imagem trazia pendurada no pescoço. Era realmente muito pesado aquele fardo que já estava muitos anos sedimentado no fundo da mente havia muitos anos, mas que reaparecia para atormentá-lo. Ainda assim, ele tinha de enfrentar aquilo. 332 333 João tambem não passou incólume por Istambul. Sua hipersensibilidade o fazia perceber a atmosfera tóxica da superfície do Averno, como se Istambul fosse localizado às suas margens. Era só impressão. O Hades, o Averno tinto de sangue e a lama incandecente do Aqueronte povoavam mesmo suas lembranças, suas dúvidas, suas ansiedades. Passaram diante dele muitas visões. Viu sua chegada no grupo de judeus que o recebeu por recomendação do amigo rabino, sua saída do seminário, apesar de ter estudado e ser versado em filosofia e muitos outros conhecimentos, cheio de dúvidas e de coisas que jamais conseguira explicar, o que o mortificavam demais. Viu seus anos de seminarista, com muitos estudos, muita disciplina e as constantes idas e vindas às bibliotecas na tentativa de encontrar-se nos livros. Viu quando um colega fez aquela brincadeira que o deixou perturbadíssimo exacerbando seus sentimentos, sua entrada no seminário depois de seu pai muito batalhar para consegui-la, seu trabalho anterior na roça e a sua vida em família e com os amigos locais, com quem ia junto para a escola. Lembrou-se do dia em que o pai quase lhe deu uma surra por causa da pergunta sobre judeus, pois sua professora falara sobre na escola depois de uma brincadeira. Nada daquilo deveria ter mais importância, mas os caminhos tortuosos da mente parecem determinar o seu próprio rumo sem pedir licença para aflorarem quando bem entendem. Não adiantava resistir. Restava-lhe mesmo enfrentar a situação com coragem e vencer seus traumas. Todos eles passaram maus bocados, mas resistiram bravamente à passagem pelo seu inferno astral, passaram pelo portal e atingiram outra dimensão mais elevada. Curiosamente, sentiam-se fortificados. Seus espíritos foram enrijecidos numa for- João Roberto Vasco Gonçalves ja, a fornalha do seu próprio purgatório, independentemente de dever algo ou não. Tão somente para prepará-los para uma nova vida e levar suas missões a bom termo. Sim, estavam preparados para seguir seu caminho e cumprir a missão a que se propunham, independentemente do que fariam com o resultado. Capítulo II Istambul – Conhecendo a cidade Situa-se a noroeste da Turquia, na Região de Marmara. É a capital da província de Istambul. Foi chamada de Bizâncio até 330 a.C., depois, Constantinopla, até 1453. Posteriormente, foi renomeada em 1930 para Istambul. Sua área metropolitana é de 5.343 km², sendo 65% ou 3.479 km² do lado europeu e 35% ou 1.864 km² no lado asiático. Foi fundada em 667 a.C. por Bizas, rei de Mégara. Possui altitude máxima de 537 m, População de13.120.596 — senso de 2010 — e densidade demográfica de 7166,12 habitantes/ km². O estreito de Bósforo divide a cidade em duas partes, ficando a Rumélia na Europa e a Anatólia na Ásia. O Estreito de Bósforo é ligado ao Mar Negro ao norte e ao Mar de Marmára ao sul. O Mar de Mármara é ligado ao Mar Mediterrâneo pelo Estreito de Dardanelos. A parte histórica do lado europeu é dividida no sentido leste-oeste pelo Corno de Ouro, que é um porto natural e estuário de um rio que flui no sentido noroeste-sudeste. Fica ao norte da península onde era a antiga Bizâncio, no Cabo do Serralho, atual distrito urbano de Faith. Istambul é a maior cidade da Turquia e a quinta maior do mundo. A maioria da população é muçulmana, mas há, também, um grande número de ateus e uma minoria de cristãos e judeus. Apesar de a capital da Turquia ser Ancara, Istambul continua a ser de enorme importância por ser o principal polo industrial, comercial, cultural e 334 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro universitário. É a sede do patriarcado ecumênico de Constantinopla, sede da Igreja Ortodoxa. yasidis, além de alguns poucos sufistas. Segundo dados de 2007, há 2944 mesquitas em Istambul. Devido a estar localizada próximo à Falha Setentrional de Anatólia, já sofreu vários terremotos, sendo os mais devastadores o de 1509, que causou um grande tsunami que ultrapassou as muralhas, destruiu muitas mesquitas e causou muitos mortos e o de 1999, ou o terremoto de Izmit, que levou à morte mais de 18000 pessoas, sendo 1000 somente em Istambul. 81,33% da população se identifica como turca. A maior parte da minoria étnica é curda. Outros dados informam que os curdos representam 25% da população de Istambul. O clima é classificado entre o úmido subtropical e o medeiterrâneo. Caracteriza-se por verões longos, quentes e úmidos e invernos frios, chuvosos e poucos dias de neve. A temperatura média no inverno fica entre 3 e 8 °C, podendo esporadicamente chegar a -5 ºC. No verão, a média de temperatura é de 28 °C. A temperatura mínima já registrada foi de -16 °C em 08/02/1927, e a máxima, 40,5 °C em 12/06/2000. A chuva é comum no verão, sendo, às vezes, intensa. O outono e a primavera são tipicamente temperados e frequentemente úmidos, havendo, no entanto, dias quentes e dias frios — apesar de as noites serem sempre frias. Quanto ao aspecto econômico, consta que é o maior centro industrial e financeiro, concentrando cerca de 20% dos empregos nas indústrias — ou 38% em relação ao país, dados de 2000. Quanto ao comércio, concentra 55% do varejista e 45% do atacadista. É responsável por 21% do PIB e 27% do PNB da Turquia. Da receita em Impostos da Turquia, 40% são geradas em Istambul, bem como 27,5% do consumo nacional, dados de 2006. Nesse mesmo, ano o PIB da cidade foi de 133 milhões de dólares. Em relação ao movimento bancário, Istambul detém 35%, sendo que 20% das dependências bancárias da Turquia estão lá. Talvez, o que explica esses dados são o fato de a cidade estar no meio de todas as rotas marítimas, ferroviárias e rodoviárias que atendem a vários países. Educação Em termos de religião, podemos assim distribuir a população: 70 a 85% de muçulmanos sunitas, 15 a 30% de alevitas; igualmente, há minorias de xiitas duodecimanos, yarsanistas e Istambul tem um grande número de universidades, dentre as quais há oito estatais e mais de vinte privadas — a maior partes destas últimas criadas nos últimos anos. Entre elas encontram-se algumas das mais prestigiadas da Turquia, como a Universidade de Istambul e a Universidade Técnica de Istambul. Há, também, sete escolas superiores profissionalizantes. Em 2007 existiam em Istambul 4350 escolas não superiores (comuns e profissionais), sendo que cerca de metade delas eram primárias. O número de professores nessas escolas era de 90.784, e o de estudantes, 2.991.320. No total, havia 59.238 salas de aula. O número médio de alunos por escola era de 688, o de alunos por professor, 33, e de alunos por sala de aula, 50. Nos últimos anos, houve um 336 337 O índice de precipitação pluviométrica de 844 mm de chuva é distribuída tipicamente em 152 dias. A umidade é muito alta o ano inteiro, aumentando a sensação de calor nas temperaturas mais altas. Geralmente, pela manhã, atinge 80%, sendo comum o nevoeiro, que normalmente só se dissipa próximo ao meio dia, sendo comum em média, 228 dias por ano e mais observado no período de inverno. Em Istambul venta bastante, sendo a velocidade do vento, em média, 18 km/h. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro grande reforço das infraestruturas de educação — por exemplo, de 2000 para 2007, quase duplicaram o número de professores e de salas de aula, e o número de alunos aumentou mais de 60%. Saúde A cidade tem inúmeras unidades de saúde, tanto estatais como privadas, entre hospitais, clínicas, laboratórios e unidades de investigação médica. Muitas dessas unidades dispõem de equipamento de alta tecnologia. Transporte Istambul tem dois aeroportos internacionais de grande dimensão. O Aeroporto de Ataturk está em Yesilcöy, no lado Europeu, 20 km a oeste do centro histórico, e o Aeroporto de Sabiha Gökçen está em Pendik, lado oriental, a 35 km do centro da cidade. Os transportes marítimos são uma componente importante da infraestrutura de transportes públicos da cidade. Há inúmeras linhas de ferryboats que cruzam o estreito de Bósforo, o Mar de Mármara e o Corno de Ouro. A maior parte são os comuns, chamados Vapur, mas existem, além deles, os catamarãs rápidos. Existe uma linha ferroviária que liga os dois continentes com cerca de 14 km de extensão, passando a maior parte por baixo do fundo do Estreito de Bósforo e do Mar de Mármara. A cidade possui uma frota de 2768 ônibus, segundo dados de 2010, percorrendo diariamente 448.000 km em 468 linhas e 7889 pontos de parada. Possui também o transporte rápido do tipo metrobus, duas linhas de metrô de superfície e uma linha de metrô convencional, além de duas linhas de trolleys elétricos e duas linhas ferroviárias suburbanas. 338 Cultura A cidade oferece espetáculos de ópera, jazz, teatro, balé, etc. Recebe vários artistas internacionais que lotam os estádios. Alguns eventos sazonais importantes são realizados na cidade, tais como o Festival Internacional de Cinema de Istambul, a Bienal de Istambul e uma exposição de Arte Contemporânea. O principal centro cultural estatal é o Centro Cultural Atatürk, localizado num dos edifícios que domina a Praça Taksim. A cidade conta com, pelo menos, 15 centros culturais importantes, 11 salas de concerto de grande qualidade e centenas de galerias de arte. Um dos centros culturais mais modernos é o Santralistambul, que inclui um museu de arte moderna, um museu de energia, um anfiteatro, uma sala de concertos e uma biblioteca pública. Uma das melhores salas de concerto de Istambul é a Semal Resid Rey Konser Salonu. Há inúmeros Museus, como o Istambul Modern — de arte contemporânea —, o Museu de Pera — que contém coleções de azulejo e arte oriental — o Museu Sakip Sabance — que possui coleções de porcelana chinesa e europeia, além de mobiliário, caligrafia e pintura islâmica, principalmente as obras orientais de pintores otomanos e europeus. O museu Rahmi M Koç exibe vários equipamentos industriais, como automóveis, locomotivas, etc. Os museus arqueológicos de Istambul possuem mais de um milhão de peças oriundas da bacia do Mediterrâneo, dos balcãs, oriente médio, norte da África e Ásia Central. O Museu dos Mosaicos abriga mosaicos do grande palácio de Constantinopla. O Museu de Arte Turca e Islâmica possui mais de 40.000 peças de arte islâmica, que vão desde o Califado de Omíada até os dias de hoje. 339 Capítulo III A cidade eterna No último manuscrito que haviam copiado havia as indicações do terceiro lugar referido como “Cidade Eterna”, que, para os ocidentais, trata-se de Roma. Realmente, havia essa possibilidade, pois, em termos de possíveis informações antigas, essas poderiam ser encontradas numa parte reservada da biblioteca do Vaticano para a qual haviam ido parar muitos livros supostamente sumidos ou destruídos — ou mesmo guardados como peças de processos inquisitórios que acabaram caindo no esquecimento ao longo dos séculos. Apesar disso, a cidade poderia, igualmente, ser Jerusalém, muito mais antiga e com histórias da antiguidade muito interessantes alem de disputada por inúmeras nações dominadoras e seus chefes militares desde os primórdios da civilização humana. Coincidência ou não, muitas eram as indicações que apontavam para Jerusalém. Assim acabaram optando por essa cidade. De um modo ou de outro, o fato é que faltava a última parte e muito trabalho e haveria pela frente. Jerusalém Desta vez, a tarefa seria árdua, portanto, eles precisavam de um plano muito bem elaborado e de pessoas influentes em várias esferas das sociedades judias, árabes, cristãs orientais e ortodoxas. Jerusalém é uma cidade extremamente complexa. Além de ser uma cidade com bairros de várias nacionalidades, não seria o que poderíamos chamar de “uma” cidade cosmopolita. Na João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro verdade, são várias cidades dentro de uma. Vários comandos políticos, várias disputas por pontos históricos, principalmente pelos lugares considerados sagrados, muitas vezes, ao mesmo tempo por várias religiões — e todas elas sendo irredutíveis em seus direitos sobre ela. Muros, proteções, vigilâncias e afins também existem ali. Conflitos abundam, sempre exacerbando os ânimos cada vez mais e potencializando desavenças históricas. Em suma, a cidade pode ser considerada um barril de pólvora sempre na iminência de explodir. As dificuldades de ordem legal eram imensas. O modo mais fácil que encontraram era o de sempre. Inicialmente, eles se passarem por turistas, e, depois, buscariam uma forma de se infiltrarem no meio de arqueólogos e outros grupos de pesquisadores já autorizados por acordos internacionais. Numa dessas investidas, acabaram indo a profundos túneis, ao que tudo indicava, sob onde fora o palácio de Salomão. Na ramificação de um daqueles túneis, na parte próxima ao final, na face lateral direita, Pedro acidentalmente tropeçou, e ao apoiar-se para manter o equilíbrio, seu braço direito empurrou uma pedra que caiu, quase ferindo seus pés. No local de onde a pedra saíra ficou um buraco. Instintivamente, ele acionou sua lanterna e verificou que se tratava de um recinto muito maior, uma gruta. Ele e Paschoal resolveram remover mais pedras até criar espaço suficiente para passarem e fazer uma minuciosa inspeção como historiadores utilizando seus olhos experientes em investigações daquele tipo. Quando finalmente conseguiram penetrar, ficaram pasmos. Guardava uma grande semelhança com aquela que viram pela primeira vez. Da mesma forma, havia uma arca, não exatamente igual a da aliança, como da primeira vez, mas, igualmente, continha informações muito parecidas com aquelas. Mas havia uma particularidade: havia o que seria a vara de Arão, sem o florescimento, é claro. Mas uma simples inspeção revelou que essa era oca. Examinando, verificaram que na verdade era uma folha 342 de pergaminho enrolada. Desenrolando-a, descortinou-se um mapa. Com uma análise deste, descobriram que se tratava de um mapa geográfico da região, porém com as delimitações do tempo antigo. Era um curioso mapa circular centrado em Jerusalém, com vários círculos concêntricos, marcando acidentes geográficos e dando perfeita noção de distâncias. Alem de Jerusalém, havia em destaque um ponto localizado sobre a ilha de Faros, no Egito, com a notação: “Alexandria”. Olhando o interior da arca, encontraram o pote de ouro em que haveria o maná, porém no seu interior havia um fragmento de um documento antigo com as bordas um tanto chamuscadas e com aquelas mesmas inscrições encontradas no subsolo da Estátua da liberdade. Paschoal e Pedro fizeram questão de ler letra por letra as frases: “O espelho de Jerusalém reflete em Alexandria”; e: “Em Alexandria se concentra o mundo”. Abaixo dessas frases, havia o desenho de algo que parecia ser um mapa de algo imcomum, como se fossem túneis formando um labirinto — e cada segmento possuindo notações como se fossem coordenadas ou endereços. Analisando essa primeira frase, seria como se Alexandria fosse uma colônia ou fizesse parte de Jerusalém, ou, abusando um pouco da dedução, seria ideologicamente a mesma. A análise da segunda frase parecia mostrar que quaisquer referências à história mundial estariam de alguma forma concentradas ali ou a alma do mundo estaria em Alexandria. Aquelas eram frases sugestivas. Então, o que quer que fossem os tesouros a serem encontrados, certamente não se encontravam ali no subsolo de Jerusalém, mas em Alexandria, seu espelho, como sugeria a primeira frase. Assim, não havia duvida alguma. Deveriam interromper suas pesquisas em Jerusalém e partir para Alexandria para tentarem descobrir algo de significativo. 343 Capítulo IV Jerusalém – Conhecendo a cidade História Falar da história de Jerusalém não é tarefa muito fácil. Seu nome Hebaico é Yerushaláyim, que significa: “Cidade da paz”. Em Árabe é Al-Quds, que significa: “A sagrada”. A cidade tem uma história que data do IV milênio a.C. Segundo a arqueologia, teria sido habitada desde a idade do cobre, cerca de 3000 a 2000 anos a.C. Alguns arqueólogos acreditam que, na qualidade de cidade, teria sido fundada por povos semitas ocidentais em cerca de 2600 anos a.C., e, segundo a tradição judaica, a cidade foi fundada por Sem, filho de Noé e Éber, seu bisneto, que foram antepassados de Abraão. David, segundo relatos bíblicos, conquistou a cidade e a declarou a capital do Reino Unido de Israel e Judá, cerca de 1000 anos a.C., o que parece estar coerente com os estudos arqueológicos. Jerusalém passou por muitas disputas em vários períodos históricos. A despeito das imprecisões e aproximações, esses períodos são: Período Templário – 970 a.C. a 152 a.C.; Guerras Romano-Judaicas – 6 d.C. ao século VII.; Guerras Romano-Persas – 614 d.C. a 629 d.C.; João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Estado Islâmico – 638 d.C. a 1099 d.C.; Cruzadas – De Saladino até os Mamelucos – 1099 d.C. a 1517 d.C.; Domínio Otomano – 1517 d.C. a 1860 d.C.; Mandato Britânico – 1917 d.C. a 1948 d.C.; Controvérsia sobre a divisão – Pós-Britânico – 1946 a 1967 – Guerra dos 7 dias. Dias de hoje – Após 1967. Continuam as controvérsias, as disputas, as declarações próprias e o desacordo das comunidades internacionais que esperam por negociações entre israelenses e palestinos. Jerusalém foi destruída duas vezes, sitiada 23 vezes, atacada 52 vezes, e capturada e recapturada 44 vezes. Hoje, Jerusalém é, ao mesmo tempo, a Cidade Santa dos judeus, cristãos e muçulmanos, possui muitos lugares sagrados para os cristãos e é a terceira cidade mais sagrada dos muçulmanos, depois de Meca e Medina. A cidade antiga, apesar de pequena (cerca de 0,9 km²), abriga os principais pontos religiosos, como a Esplanada das Mesquitas, o Muro das Lamentações, o Santo Sepúlcro, a Cúpula da Rocha e a Mesquita de Al-aqsa. Nos dias de hoje a cidade é dividida basicamente em quatro bairros: Armênio, Cristão, Judeu e Muçulmano. Essa divisão ocorreu a partir do século XIX. A cidade é sede do governo de Israel, residência do presidente, repartições do governo, Suprema Corte e Parlamento. Israel, segundo a lei básica, declara a cidade, completa e unida ser sua capital, o que não é reconhecido pela comunidade internacional. Por isso, as embaixadas dos países, atendendo à resolução 478 do conselho de segurança da ONU, passaram a sua sede para Tel Aviv, principal centro financeiro do país. A Jordânia disputa com Israel a parte oriental da cidade. 346 Localização Jerusalém está situada no sul do planalto da Judeia, onde está o Monte das Oliveiras, ao leste e o Monte Scopus, a nordeste. A altitude máxima, 760 m, ocorre na cidade velha. A Grande Jerusalém é cercada por vales e leitos de rios secos. Os Vales de Cédron, Hinom e Tyropoeon se unem ao sul da cidade antiga. O Vale do Cédron segue para o leste da Cidade Velha e divide o Monte das Oliveiras a partir da cidade propriamente dita. Ao longo do lado sul da antiga Jerusalém está o vale do Hinom, uma escarpa íngrime e esburacada, sempre associado à ideia de Geena, ou “Inferno”, em hebraico. O Vale de Tyropoeon começa na região noroeste, próximo ao Portão de Damasco, dirige-se ao sudoeste através do centro da Cidade Velha e para baixo até o reservatório de Siloé. A parte inferior é dividida em duas colinas, o Monte do Templo, no leste, e o resto da cidade no oeste. O abastecimento de água é uma notória dificuldade desde os tempos antigos. Essa é a razão de tantos artifícios, como aquedutos, túneis, reservatórios e cisternas. Jerusalém está localizada na região central do país, a 60 quilômteros ao leste de Tel Aviv e do Mar Mediterrâneo. No lado oposto da cidade está o Mar Morto, a cerca de 35 km de distância. Clima O clima é mediterrânico, com verões quentes e secos e invernos frescos e chuvosos. A queda de neve é rara — em torno de uma ou duas vezes a cada inverno. A temperatura média no inverno é 8 °C, em janeiro e no verão, em julho e agosto, 23 °C. As variações de temperatura entre o dia e a noite são grandes, esfriando muito à noite, mesmo nas épocas de verão. O índice de precipitação pluviométrica médio anual fica em torno de 590 mm, sendo o período chuvoso em outubro e maio. 347 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Demografia Transportes A população da cidade, segundo o senso de 2007, era de 732.100 habitantes. Desses, 64% eram judeus, 32% muçulmanos e 2% cristãos. A densidade demográfica era de 5.750,4 habitantes/ km². A porcentagem de judeus na cidade tem decrescido; o que foi atribuído a uma maior taxa de natalidade dos palestinos e a moradores judeus que deixaram a cidade. A taxa total de fecundidade em Jerusalém, 4,02, é superior à de Tel Aviv (1,98) e bem acima da média nacional de 2,90. O tamanho médio das 180.000 famílias de Jerusalém é de 3,8 pessoas.3 Economia A economia de Jerusalém ainda tem forte relação com o turismo religioso, sendo os pontos mais visitados, o Muro das Lamentações e a Cidade Antiga. Hoje, é de entendimento geral que a cidade não pode continuar a viver só de turismo. As famílias com pessoas empregadas são 76,01% árabes e 66,8% judaicas. A taxa de desemprego em Jerusalém é de 8,3%, pouco melhor que a média nacional de 9,0%. O número de pessoas abaixo da linha de pobreza chegou a crescer 40% em 2006. A renda per capita mensal foi de 1410 dólares, menor que em Tel Aviv. O aeroporto mais próximo de Jerusalém é Atarot, situado entre Jerusalém e Ramallah. Foi usado para voos domésticos até ao seu fechamento em 2001. Hoje, está sob controle das Forças Armadas. O Aeroporto de Ben Gurion é o maior e mais movimentado, possuindo um fluxo anual de nove milhões de passageiros. As linhas de Ônibus, locais e interurbanas, saem da Estação Central, na estrada de Jaffa, próximo à entrada ocidental de Jerusalém, pela Autoestrada nº1. Ônibus, carros particulares e táxis continuam a ser meios de transportes importantes, mas existe ainda a Light Rail de Jerusalém, uma ferrovia capaz de atender a 200.000 passageiros por dia, possuindo cerca de 24 pontos de parada.Tambem importante é o trem de alta velocidade entre Jerusalém e Tel Aviv. A Via Rápida Begin é uma das maiores vias transversais norte-sul de Jerusalém; vai desde o lado ocidente da cidade, fundindo no norte com a Via 443, que continua em direção a Tel Aviv. A Via 60 atravessa o centro da cidade perto da Linha Verde entre Jerusalém Leste e Oeste. Educação Não é estimulada a instalação de indústria pesada em Jerusalém. Nas imediações, somente 2,2% da área é dedicada a indústrias e infraestrutura. Essa é duas vezes maior em Tel Aviv e sete vezes em Haifa. Somente 8,5% da força de trabalho do distrito de Jerusalém é empregada no setor de manufatura. O restante é: 17,9% na educação; 12,6% na saúde; 6,4% em comunidade e serviços sociais; 6,1% em hotéis e restaurantes e 8,2% na administração. Há uma tendência de empresas de alta tecnologia serem instaladas em Jerusalém, tendo chegado a oferecer 12.000 empregos em 2006. Existe um plano de expansão para o parque industrial, que prevê uma centena de novos negócios. O governo, centrado em Jerusalém, gera um grande número de empregos. A Universidade Hebraica é constituída de três unidades em Jerusalém: um campus no Monte Scopus, um em Givat Ram e um campus médico no Hospital Hadassah. A Universidade de Al-Quds é principal universidade para os povos árabes e palestinos. Há, também, a Academia de Música e Dança de Jerusalém e a Academia de Arte e Design Bezalel cujos edifícios ficam no Campus da Universidade Hebraica. O Instituto de Tecnologia de Israel ministra Engenharia e outras matérias de alta Tecnologia, sendo uma das muitas de ensino tanto fundamental como superior que inclui estudos seculares e religiosos. 348 349 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Para além das escolas públicas, existem várias do sistema Haredi — judeus ortodoxos avessos a mudanças e adaptações dentro do judaísmo. Essas escolas não têm preparado seus alunos para os exames oficiais, Bagrut, porque o ensino secular não os atrai. O governo tem criado incentivos financeiros no intuito de atraí-los para que cheguem às universidades. Colégios para árabes em Jerusalém e em outras partes de Israel são criticados por oferecerem uma educação de qualidade inferior à provida aos israelenses judeus. Cultura Somada à religiosidade, Jerusalém apresenta tambem uma intensa vida cultural. O museu de Israel recebe um milhão de visitantes por ano. O Santuário de Livro, entre outras coisas, possui os pergaminhos do Mar Morto, descoberto na cavernas de Qumran. O Museu Rockefeller, localizado no lado leste de Jerusalém, foi o primeiro museu arqueológico do oriente médio; ele existe desde 1938, ainda durante o mandato britânico. O Museu Islâmico no Monte do Templo, estabelecido em 1923, guarda muitos artefatos islâmicos, do menor Kohl cantil e manuscritos raros a colunas gigantes de mármore. Yad Vashem, o memorial nacional de Israel para as vítimas do holocausto, guarda a maior biblioteca do mundo de informações relacionadas ao holocausto, com estimados 100.000 livros e artigos. O complexo contém um museu de arte que explora o genocídio dos judeus através de exibições que focam em histórias pessoais de indivíduos e famílias mortas no holocausto e uma galeria de arte apresentando o trabalho de artistas que pereceram. Yad Vashem também relembra as 1.5 milhões de crianças judias assassinadas pelos nazistas. 350 A Orquestra Sinfônica de Israel, estabelecida nos anos 1940, se apresentou pelo mundo. Outros estabelecimentos de arte incluem o Centro Internacional de Convenções, próximo à entrada da cidade, onde a Orquestra Filarmônica de Israel se apresenta; a Cinemateca de Jerusalém, o Centro Gerard Behar, na parte baixa de Jerusalém; o Centro de Música de Jerusalém e o Centro Musical de Targ. O festival de Israel, com a apresentação de cantores locais e internacionais, tem ocorrido regularmente. O teatro de Jerusalém apresenta 150 concertos por ano. O Festival de Cinema de Jerusalém tambem é realizado anualmente, com filmes locais e internacionais. O Teatro Nacional Palestino é um dos poucos centros de cultura árabe. Há, também, o Al-Hoach, uma galeria de arte palestina. Religião Jerusalém tem um significado especial para as três religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Na cidade há 1204 sinagogas, 158 igrejas e 73 mesquitas. A manutenção de uma coexistência pacífica não vem sendo fácil, pois alguns lugares são disputados como sagrados ao mesmo tempo por mais de uma religião — como, por exemplo, o Monte do Templo. Jerusalém é sagrada para os judeus porque o Rei David a teria declarado sua capital no século X a.C. É sagrada para os muçulmanos porque acreditam ser o lugar onde o proféta Maomé teve sua ascenção aos céus para se encontrar com os profetas anteriores a ele. Semelhantemente, ela é sagrada também para os cristãos por ser o lugar em que viveu, pregou e foi crucificado Jesus Cristo. Em Jerusalém foi construído o Templo de Salomão e o Segundo Templo, ambos destruídos. O Muro das Lamentações é a única edificação que sobrou do muro que cercava o Segundo Templo. O Santo dos Santos fica no próprio Monte do Templo. Esses últimos são os lugares mais sagrados para os judeus. 351 João Roberto Vasco Gonçalves Igreja do Santo Sepulcro Para os cristãos, talvez seja esse o local mais sagrado. Ainda hoje, há certa controvérsia sobre o local da crucificação, Gólgota, e o local do Santo Sepulcro. O Evangelho de João o descreve como sendo localizado fora de Jerusalém, mas evidências arqueológicas recentes indicam que Gólgota fica a uma curta distância do muro da Cidade Antiga, dentro do confinamento dos dias de hoje. De qualquer forma, tem sido um local de peregrinação dos mais visitados por cristãos pelos últimos dois mil anos. O Cenáculo é outro local sagrado para os cristãos. Acreditam ser o local da última ceia de Jesus. É localizado no Monte Sião, no mesmo prédio que sedia a Tumba de David. Para os muçulmanos, Jerusalém é a terceira cidade mais santa do Islã, mas já foi a primeira, na antiguidade. Acreditam que a Pedra Fundamental, que fica hoje dentro da Cúpula da Rocha, foi o local da Noite de Ascensão do Profeta Maomé ao paraíso para encontrar-se com os profetas anteriores a ele. Além desse lugar, há também a Mesquita de Al-Aqsa (que significa: “A mais distante”). Creem que numa noite o profeta foi transportado, por milagre, de Meca para o monte do templo de Jerusalém, nesse local. 352 Capítulo V História de Alexandria No ano 322 a.C., Alexandre Magno venceu Dario III, rei dos persas, que dominava o Egito com mão de ferro. O povo egípcio o aclamou como libertador, até porque não o consideravam estrangeiro, pois havia por ali grande quantidade de colônias gregas. Alexandre III, mais tarde conhecido como Alexandre, o grande, ou Alexandre Magno, era oriundo da Macedônia antiga que conquistara sua hegemonia na Magna Grécia no reinado de seu pai Felipe II. Alexandre era culto, tendo sido educado por Aristóteles, o grande filósofo grego que fora discípulo de Platão e Sócrates. Da Macedônia, Alexandre levou seus exércitos até o Egito, vencendo os dominadores de então. Alexandre fundou no delta do rio Nilo a cidade que foi chamada de Alexandria, em honra do seu nome. Localiza-se a oeste do delta, no istmo entre o Mar Mediterrâneo e o lago Mareótis, perto do braço canópio do rio Nilo. A escolha do lugar foi excelente, pois ficava imune às variações do rio, que, em determinado período do ano, inundava a várzea, mas ao mesmo tempo, suficientemente próximo dele para receber as mercadorias que vinham através dele em direção ao porto. Para isso, há um canal que liga o rio ao lago Mareótis e ao porto. Como a cidade ficava de frente para a ilha de Faros, contrataram o arquiteto Dinócates de Rodes para construir um dique de 1295 m de extensão unindo esses dois pontos, o que permitiu a construção de dois portos: o Grande Porto e o Porto do Bom Regresso, a oeste. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro O Farol de Alexandria foi construído na ilha de Faros (por isso o nome “Farol”), em 280 a.C. pelo arquiteto Sóstrato de Cnido. Possuía 120 m de altura. Servia principalmente para a orientação à navegação por emitir um facho de luz visto a 50 km de distância. Foi alimentado à lenha, depois, a gás acetileno produzido pela reação do carbureto de cálcio com a água. Ademais, servia para previsões meteorológicas, direção do vento, informar as horas e, ainda, dispunha de alarme sonoro ouvido a grande distância para avisar sobre mau tempo. Foi o primeiro farol do mundo. Existiu até o ano de 1340, quando foi destruído por um terremoto. Biblioteca de Alexandria No século III a.C., durante o reinado de Ptolomeu I, foi construído um rico palácio de mármore com fontes, jardins e estátuas. Do outro lado do jardim, construiu o templo das Musas, ou Museum. A ideia era concentrar ali todo o saber da época. O museu possuia uma enorme biblioteca cuja proposta era conter um exemplar de cada documento escrito do mundo. Seu primeiro organizador foi Demétrio de Faleros. Essa biblioteca era depositária de obras de enorme importância para a humanidade, tais como obras de geometria, trigonometria, astronomia, medicina, literatura, idiomas, etc. cando essa tradução conhecida como “Septuaginta”, em referência aos 72 tradutores. Orientados por mapas antigos, localizaram onde teria sido a antiga bibioteca, próximo à parte que resistira às depredações (voluntárias ou não), invasões militares, incêndios, terremotos e afins. Em meio a um monte de pedras de uma edificação muito antiga em ruínas, havia uma abertura que lembrava uma gruta com um amontoado de pedras no centro, tendo ao fundo uma abertura — início de uma caverna que se alongava, aprofundava e se distribuia em vários túneis. Era semelhante à descrição mitológica do labirinto da ilha de Creta, que o rei Minos mandara construir para guardar tesouros. Ficava, então, mais difícil, e o risco de se perder naquele emaranhado era uma possibilidade real. Pedro se lembrou daquele mapa que pegara no pote, local onde também estavam escritas as frases. Fazendo uma inspeção minusciosa com uma lanterna, verificou que na entrada de cada túnel, na face lateral direita, à cerca de 1,5 m de altura, havia uma inscrição escavada na rocha que nada mais era do que aquelas notações do mapa. Se isso fosse um padrão, conforme concluíram depois, ficava mais fácil explorar. Segundo a história registra, foi ali que 72 sábios judeus traduziram as sagradas Escrituras do hebraico para o grego, fi- Outra curiosidade era que as paredes dos túneis, que avançavam vários metros adiante, tinham uma constituição parecida com a daquela gruta que viram pela primeira vez no Monte Urubu. Além de camadas protetoras (à prova de tremores e radiações) possuíam luminescência, como se a claridade do sol exterior, de alguma forma, fosse transmitida por veios de rocha translúcidas e retida ali, além de toda a extensão interna ser recoberta por uma camada de algo que remetia a uma tinta fosforescente. De fato, era mesmo um plâncton de algas microscópicas com essa propriedade, típicas de algumas cavernas. Isso permitia haver alguma luminosidade quando o sol se escondia. 354 355 Frequentaram esssa biblioteca muitos estudiosos famosos da história — Euclides, Aristarco de Samos, Arquimedes, Calímaco, Eratóstenes, Galeno, Hipátia, Herófilo, Ptolomeu e outros. Muitos trabalhos científicos e experiências históricas foram feitas ali. Na verdade, a Biblioteca de Alexandria seria o que hoje chamamos de universidade. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Consulta ao mapa Era curioso. O mapa era bastante tosco, parecia ter sido desenhado à mão livre e às pressas. Quem o fizera, deveria tê-lo copiado do projeto original e, provavelmente, tenha sido surpreendido ou atacado por alguém que ateou fogo em algum lugar onde ele esteve com intuito de destruir todas as referências. Provavelmente, à duras penas, deve ter salvado pelo menos aquele mapa, única forma rápida de entrar no labirinto, acessar o endereço certo que procurava e conseguir sair de lá. O desenho geral mostrava os caminhos internos (ou túneis), e as paredes à sua volta formavam ilhas, tudo devidamente indicado ou endereçado. Os endereços das ramificações dos túneis pareciam referir-se à serventia e ao conteúdo. Observando o traçado, verificaram também que existia um caminho único para se chegar até o recinto principal, onde estariam os tesouros. No entanto, a lista do conteúdo de cada ilha despertava o interesse de qualquer pesquisador de não perder nenhum detalhe, e, por isso, visitar ponto por ponto para conhecer o conteúdo geral. Observando de modo geral, o traçado do labirinto lembrava a figura de um besouro do tipo escaravelho estilizado, o que sugeria a ideia de que quem fizera o projeto possuía a cultura do Antigo Egito. Notações sobre o desenho: O escaravelho é um tipo de besouro que vive a revirar o esterco. Ali, capta resíduos e os empurra e aglutina até torná-lo de formato esférico. Em seguida, ele o empurra até seu ninho, onde abriga seus ovos. Esse globo foi relacionado ao sol, deus egípcio; os ovos, à fertilidade, à reprodução e à vida e o renascer da vida a partir de algo no último estágio de degradação, considerado divino — como a semente, que morre para nascer uma nova árvore. Devido a isso, o escaravelho era o amuleto preferido dos antigos egípcios. Era associado à renovação, ao renascimento e à ressurreição. Quem trouxesse consigo esse amuleto pleiteava continuar vivo, e quem fosse enterrado com ele pleiteava renascer. Era um símbolo tão importante que constava dos selos do rei, e das vestes dos defuntos, que também tinham seus corações substituídos por esse amuleto feito de pedra. 356 357 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro A1 - Livros antigos 1 algum catálogo ou índice, indicando o conteúdo e os respectivos endereços. B1 - Livros antigos 2 A2 - Banco Mineral 1 B2 - Banco Mineral 2 A3 - Banco Genético Animal B3 - Banco Genético Vegetal A4 - Euclides, Aristarco, Arquimedes B4 - Clímaco, Eratóstenes, Galeno A5 - Hipátia, Herófilo, Ptolomeu B5 - Biblioteca das 7 Artes e Ciências C - Arca da Aliança Mausoleu dos Patriarcas: A-Adão, S-Set, E-Enos, C-Cainan, M-Mahalabel, J-Jared, N-Noé, A-Abraão, I-Izaac, J-Jacó, D-David, S-Salomão. Paschoal e Pedro fizeram um planejamento de visita ao local seguindo as indicações do mapa de modo a não perder nenhum detalhe importante. Embora estivesse determinado o caminho para chegar à parte principal, resolveram começar em ordem crescente a partir da entrada. Assim, passaram a examinar o conteúdo das “ilhas” A1 e B1. — Veja, Paschoal, é exatamente o que eu acabo de encontrar na primeira posição, à esquerda, da primeira fileira de baixo. É bom que guardemos esse conceito, pois, se isso for um padrão organizacional, em todas as ilhas encontraremos um desses com os endereços e o conteúdo de cada livro nessa mesma posição. Isso adiantará bastante o trabalho. — Pedro, eu proponho que façamos uma verificação geral de tudo que existe em cada “ilha” mediante a consulta a esses catálogos. A seguir, analisemos os pontos mais interessantes para o nosso trabalho. Assim, gastaremos menos tempo para ter uma visão geral do todo. — Sim, Paschoal, continuaremos a seguir as ilhas na ordem crescente, sempre examinando os livros índices e consultando alguns específicos que julgarmos mais interessantes. — Sim, Pedro. Eu observei também que há um tipo de identificação ou endereçamento de cada escaninho dentro do conjunto, talvez para identificar melhor e mais rapidamente o assunto que se quer localizar. A ideia seguinte é que houvesse Desse modo, verificaram no índice o conteúdo das “ilhas” A1 e B1 e fizeram uma verificação rápida nos livros. Na “ilha” A1 estavam todos os livros antigos da Bíblia, incluindo os que não foram eleitos para o cânone oficial, e mais alguns livros antigos escrito em hebraico e grego — e outros de algumas línguas antigas que ainda precisavam ser melhor estudados. Na ilha B1 apareciam livros referidos como receituários de manufatura, que ensinavam a produzir perfumes, venenos, remédios, poções, bebidas, sabões, cremes, tintas e corantes de um modo geral. Igualmente, ensinavam suas aplicações, processos de mumificação, tratamentos médicos, construção de edifícios, construção de canais de irrigação, construção de açudes, construção de barcos a vela e produtos navais de um modo geral, construção de silos e métodos de armazenamento, construção de carros de transporte e de combate e outros. Era realmente uma universidade. 358 359 — Veja só, Paschoal, toda a extensão das paredes está repleta de escaninhos. Cada um deles contém muitos livros em forma de rolos de papiro e um tipo de tecido primitivo. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro Nas ilhas A2 e B2 encontraram uma espécie de museu contendo amostras minerais diversas. Cada escaninho possuía potes contendo as amostras. Cada pote era acompanhado de uma ficha de identificação com o nome escrito em hebraico e grego antigo, acompanhado de um tipo de código de identificação específico que provavelmente estava no índice. Como ocorria nas ilhas examinadas anteriormente, havia no primeiro escaninho da parte de baixo e à esquerda um livro índice, e em outros adjacentes um completo catálogo com todas as informações sobre o conteúdo de cada pote, muitos deles, completamente desconhecidos ou dos quais só se ouvira falar alguma vez na vida em estudos específicos. Na ilha A3 também encontraram o livro índice e os livros catálogo, todos completos. Verificaram tratar-se de um banco genético animal. Havia uma particularidade: além da descrição e identificação por um código específico, havia outro que parecia referir-se ao DNA. O conteúdo dos potes era seco, sugerindo que talvez possuíssem o conhecimento de clonagem de seres a partir de células específicas. Muitas eram as espécies de animais ali contidas, desde alguns microscópicos até os enormes seres conhecidos, além de muitos desconhecidos. Na ilha B3 encontraram uma organização semelhante à que fora observada para o reino animal. Além de material genético seco, de diversas texturas, encontraram, também sementes diversas e vários outros tipos de amostras, desde as algas, líquenes e fungos microscópicos até as mais frondosas arvores das mais variadas espécies conhecidas — e muitas desconhecidas. Valia, ali, a sugestão de que conheciam o processo de reprodução das espécies por métodos especiais em laboratório. Num dos livros encontrados, havia o conhecimento de produção de seres híbridos e manipulação genética para melhorar suas características, tornando-os mais produtivos, mais resistentes às doenças e pragas gerais, com maior conteúdo energético, acentuando odores e 360 sabores de produtos alimentícios. Algumas propriedades, como eliminação de caroços, aumento de polpa ou líquido e muitas outras coisas que só foram conhecidas nos últimos anos pela civilização atual, também estavam ali. Na ilha A4, consultando o livro índice e, depois, os livros específicos indicados, viram ali os estudos do grande sábio Euclides, do século IV a.C., dedicados à matemática, geometria e até ótica, cujos conceitos fundamentam nossos conhecimentos sobre o assunto até nossos dias. Em escaninhos seguintes, os estudos do astrônomo Aristarco de Samos, do século III a.C., precursor da teoria do heliocentrismo — segundo a qual os planetas giram em torno do sol. Num desses estudos, mediante a trigonometria, tentava calcular a distância entre o sol e a lua, Assim como o tamanho desses corpos celestes. Semelhantemente, vinham os escaninhos com os estudos do grande Arquimedes, matemático, engenheiro, inventor e pesquisador com enormes descobertas científicas, como as noções de peso específico ou densidade dos materiais, armas de guerra avançadas com a utilização de espelhos concentradores de raios solares, catapultas e outras. Foram igualmente notórios seus estudos matemáticos que culminaram com a determinação da constante pi, obtida quando se divide a circunferência pelo diâmetro num circulo. Na ilha B4 encontraram nos primeiros escaninhos os estudos de Clímaco, que viveu entre 305 e 240 a.C., um jogo de 120 rolos contendo todos os conceitos sobre as bibliotecas, sua organização, sua indexação e controle. Ali estava o catálogo completo de tudo que havia naquela biblioteca, minuciosamente relatado e especificado com todos os índices e códigos. Realmente, uma perfeição organizacional. Nos escaninhos a seguir vinham os estudos de Eratóstenes de Polímata, sábio que dominava muitos conhecimentos científicos da época e um dos primeiros bibliotecários de Alexandria, 361 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro tendo vivido no século III a.C. Num dos estudos constantes, num daqueles livros, aparecia a famosa experiência que culminou com a determinação do exato comprimento da circunferência da Terra, utilizando cálculos trigonométricos e medindo a distância entre pontos situados naquela cidade e na cidade vizinha. Segundo informações que captou na época num livro de curiosidades, a imagem do sol dentro de um poço ocorrida com o sol a pino aparecia na cidade seguinte algum tempo após a que se observava ali. Muito engenhoso, seu cálculo vale até hoje, e, curiosamente, naquela época, o único aparelho que havia era a cabeça do sábio. Nos escaninhos seguintes apareciam os livros do sábio Galeno, que viveu no século II da era atual, contendo estudos sobre a medicina e tudo que se sabia a respeito naquela época, estando o conteúdo distribuído em 15 rolos. Aqueles conhecimentos serviram de referência para praticamente tudo que se sabia e se fazia até vários séculos adiante. Na ilha A5, por sua vez, depararam-se com os primeiros escaninhos dos estudos de uma grande sábia chamada Hipátia, que vivera no século IV e dominava os conhecimentos de astronomia, matemática e filosofia, tendo, inclusive, dirigido a Biblioteca de Alexandria em sua época. Segundo os registros históricos, ela teria sido assassinada por cristãos num ato de intolerância religiosa, pelo simples fato de ela ser pagã. ográficas e astronômicas foram aceitas sem questionamentos até os tempos de Kepler, Galileu e Newton. Na época da Inquisição, Galileu, defensor do heliocentrismo, chegou a ser condenado por defender posições contrárias aos ensinamentos de Ptolomeu. A teoria do heliocentrismo ficou, no entanto, a de Ptolomeu não atrapalhava em nada às orientações as quais pretendia. Apenas o seu referencial era diferente, ou seja, não importava quem estava em movimento, caso se tomasse como referência onde estava localizado o observador. Na ilha B5, a última que Paschoal e Pedro visitaram, eles encontraram os livros sobre as sete ciências (ou artes liberais) do mundo antigo, cuja classificação provavelmente tenha sido feita por Aristóteles poucos séculos antes da era atual. Arquimedes disse: “Ordenar é o ofício dos sábios”. Provavelmente, ele deve ter ordenado todo o conhecimento disponível na época conforme as prioridades que julgava dessas artes e ciências em relação à sua utilidade à humanidade. Portanto, ele classificoua dialética, que propiciava a percepção entre o verdadeiro e o falso; a retórica, que ensinava como falar e argumentar para convencer; a música, estudos do som, da voz, do canto e dos instrumentos musicais; a aritmética, que estuda os cálculos com números; a geometria, que ensina as medidas sobre a terra, objetos, acidentes geográficos, daí evoluindo para a construção de edifícios; a gramática, que ensina a falar e escrever corretamente e a astronomia, que estuda a trajetória e os ciclos do sol, da lua e dos demais corpos celestes, propiciando a construção de calendários e ajudando na demarcação da história. Nos escaninhos seguintes, encontraram os rolos referidos a Herófilo, que teria sido um grande médico e pesquisador. Foi o primeiro a revelar em seus estudos que o centro de toda a inteligência, sentimentos e emoções, de modo geral, se encontravam no cérebro, e não no coração, como se acreditava na época — e como até hoje aparece em sentido figurado quando nos referimos a emoções e entendimentos. Nos últimos escaninhos dessa ilha, encontraram os livros de Ptolomeu, que viveu no século II e que defendia a teoria do geocentrismo, segundo a qual a Terra era fixa e tudo girava ao seu redor. Todas as suas referências ge- Paschoal e Pedro vasculharam aquele imenso material. Eram livros de muitos autores da antiguidade. Na verdade, eles são a base de tudo que dominamos hoje. Acharam tudo muito interessante, e a forma como tudo fora catalogado arrumado e guardado era impressionante. Somente grandes bibliotecários e 362 363 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro museólogos do quilate de Clímaco, Eratóstenes e Hipátia conseguiriam conceber e colocar em prática tudo aquilo. Faltava agora a nave principal, cuja visita eles ansiavam por fazer. — Pedro, depois de tantos dias, finalmente nós conseguimos, com o auxilio do mapa, cobrir toda a extensão dos túneis e examinar o material contido em cada ilha. Foi um estupendo trabalho, mas, afinal, vencemos mais esta etapa. — Sim, Paschoal. Agora só nos falta a nave principal, que embora conheçamos o percurso correto para chegar lá sem nos perder, deixamos para o final. — Claro, não poderíamos deixar de verificar cada parte, para que tivéssemos a ideia do todo. Agora, portanto, vamos à etapa final. No dia seguinte, ainda muito cedo, começaram a última visita. Agora que já haviam passado alguns dias se orientando pelos túneis através do mapa, não parecia tão complicado nem assustador avançar túneis adentro até chegar à nave ou recinto principal daquele labirinto. Depois do último e curto corredor, de número 13, penetraram no recinto em que — pretensamente — estaria o grande tesouro da humanidade. Era um ambiente circular. Simetricamente espaçadas estavam lápides com as iniciais dos nomes dos 12 patriarcas, gravadas em hebraico e grego antigo, numa disposição em sentido anti-horário, cujos nomes eram: Adão, Set, Enos, Cainan, Mahalabel, Jared, Noé, Abraão, Isaac, Jacob, David e Salomão. Observando os nomes, faltavam alguns na ordem sucessiva genealógica, parecendo que alguns nomes haviam sido pulados e cujos significados não lhes era possível determinar. Também não estavam ali nomes, como Enoque, Elias, Melquisedeque e outros importantes na história, embora constassem referências a eles nos livros deuterocanônicos. O 364 Gênesis (canônico) o Livro de Adão e outros fazem referência à gruta mortuária como caverna dos tesouros. Parece vir daquela época o costume de guardar os falecidos em locais apropriados e assegurar sua integridade, além de respeitar a sua memória e lamentar a sua perda. Não sabiam se de fato sob aquelas lápides estavam realmente os restos mortais daqueles aos quais se referiam e sob qual pretexto haviam decidido por ajuntarem-nos num único recinto. E não sabiam se sob aquelas lápides haveria algo mais de relevante para a história. De qualquer modo, o que ninguém duvidaria é que o grande tesouro da humanidade era o conhecimento guardado através de gerações em sua memória, ou seja, a própria história do desenvolvimento humano. Faltava, então, a verificação final. No centro do recinto, num espaço igualmente circular, separado do restante por finas cortinas brancas já encardidas que pendiam do teto, estaria algo que realmente era o final de toda a história. Ao descerrar as cortinas bipartidas, tiveram a suntuosa visão e não puderam deixar de exclamar em alta voz: “A Arca da Aliança!”. Realmente, ela tinha a aparência que mais se aproximava à descrição bíblica: Era uma arca de madeira de acácia, forrada com uma fina folha de ouro por dentro e por fora, com duas argolas de ouro onde se podia encaixar os varões para transporte. Sobre a tampa, os dois querubins de ouro e o propiciatório donde falaria o senhor. Dentro, a cópia da Lei, pois a primeira Moisés quebrara ao ver o povo cultuando o bezerro de ouro. Outrossim, havia ali a vara de Arão que florescera depois de seca. Finalmente, havia ali o pote de ouro com o maná. Aquela, se não fosse a original, seria uma cópia fiel do símbolo mais importante e antigo da humanidade, que o profeta Jeremias escondera no Nebo, que, segundo informação de um 365 rabino versado em expressões hebraicas antigas, poderia ser um local incerto ou desconhecido. Essa atitude seria uma prevenção, pois temia que o invasor Nabucodonosor, rei da babilônia, a destruísse, talvez por medo, achando que a destruição era o único meio de se livrar da maldição. A arca, talvez por conter símbolos e escritos em letras estranhas, venerada com todo o respeito e protegida com todo o ardor, causava muito medo nos povos inimigos dos judeus, que a tinham como um objeto de bruxaria que atraía a maldição e a ira dos deuses. Seja qual for a história, ela estava ali diante deles: a original ou uma cópia exata consagrada como objeto de veneração e lembrança mais antiga e notória da história da humanidade. Cerraram as cortinas e deixaram tudo ali da forma como a haviam encontrado, adormecido no sono dos séculos. Saíram com a sensação daquela parte importante da missão cumprida. Poderiam, naquele momento, fazer o caminho de volta para a universidade e tentar colocar as ideias em ordem, discutir tudo profundamente e tentar escrever algum documentário. Moshê e João estiveram ali presentes o tempo todo, mas, dessa vez, não apareceram. Ao saírem dali, não deixaram de comentar as qualidades dos escolhidos, agora seus irmãos e tão graduados quanto eles na confraria. Sua integridade e sua boa índole eram inquestionáveis. Eles sempre preservavam todo o material que encontravam, cuidavam para deixá-lo totalmente oculto e camuflar os caminhos de acesso. Eram membros natos da confraria, só fora necessário encontrá-los e lapidá-los convenientemente para realçar o seu brilho. Sim, mais uma vez, eles haviam cumprido sua tarefa com êxito: haviam identificado dois novos membros e os inserido no seio da confraria. Missão cumprida. Capítulo VI Estudo do material colhido e discussão final — Pedro, o que você pensa a respeito do grande tesouro? — Paschoal, essa é uma ideia que carece de explicação e precisa ser avaliada em maior profundidade. A ideia geral de um tesouro é algo de valor incalculável ou inestimável. Partindo-se da ideia de um valor material e um raciocínio utilitário, esse valor serviria como meio de aquisição de tudo que atenda a alguma necessidade física ou psicológica. Em outras palavras, poder adquirir um imóvel, um meio de transporte, ser bem quisto por possuir riquezas, comprar os serviços de alguém, contratar um guarda-costas para proteger-se. Poder, poder, poder, ou seja, algo relacionado ao poder. Mas o poder também tem seu lado nocivo: por ele mata-se, morre-se, o poder gera ambição, o poder corrompe, o poder gera a guerra, o poder semeia a discórdia, o poder pode todo o seu inverso ou em última análise se auto destruir. Olhando o lado não material, o conhecimento seria poder ou um valor. Assim, um grande conhecimento seria um tesouro. A grande diferença entre o conhecimento e um bem material é que o conhecimento não pode ser subtraído de ninguém, além de ser conversível em bem material sem seu dispêndio definitivo, ou seja, utiliza-se o conhecimento para conseguir o bem material, mas ele não precisa ser dado como moeda de troca: permanece-se com ele. No Evangelho segundo Mateus, Cristo expressou muito bem essa ideia quando disse: “Não acumuleis João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro vossos tesouros na terra onde os ladrões desenterram e roubam”. Diante de toda essa análise, a biblioteca de Alexandria e sua proposta de abarcar todo o conhecimento possível, seria um verdadeiro tesouro. vivido escondido por bastante tempo. Depois de muito tempo adiante, um de seus seguidores teria feito a transposição. Nesses termos, Jeremias teria sido o criador e primeiro Grão-mestre da Confraria do Torah Moshê. — Pedro, você acha que a Arca da Aliança em si seria um grande tesouro? — Pedro, como você avalia aquele pretenso banco genético, caso seja mesmo? — Paschoal, penso que sim, nos seguintes termos: ela continha as Escrituras, símbolo do alimento espiritual e fonte de todo o conhecimento capaz de reger um povo. Também possuía o pote com o maná, símbolo do alimento material doado por Deus, que, diante da escassez total, alimentou seu povo. Possuía, também, a vara de Arão, símbolo da justiça. A capacidade dos ensinamentos ali contidos, de aglutinar um povo e mantê-lo coeso, mesmo na ausência de uma pátria física, mesmo no cativeiro, no cisma, nas diásporas, eram atributos da Arca. Tudo isso é de um valor inestimável, um verdadeiro tesouro; infinitamente superior a qualquer valor material por maior que fosse. — Paschoal, eu acho que, se for isso mesmo, conforme você mesmo menciona, seria uma versão mais exata e atual da alegórica Arca de Noé. O sentido seria o mesmo, a preservação das espécies, caso algum dia tudo fosse destruído. Nesse caso, a civilização responsável por essa reabilitação deveria possuir os conhecimentos sobre genética e reprodução em laboratório necessários e suficientes para essa tarefa, caso contrário, não teria nenhuma utilidade. nal? — Pedro, você acha que aquela arca é realmente a origi- — Paschoal, não há evidência capaz de sustentar essa afirmação. Pode ser ou não. — Na hipótese de ter sido real, você acha que ela teria sido levada diretamente de Jerusalém para Alexandria na época da invasão de Nabucodonosor? — Pedro, você acha que todos aqueles livros dos sábios da antiguidade e suas experiências e descobertas estavam ali guardadas na qualidade de segredos ou conhecimentos ocultos que precisavam ser protegidos? — Paschoal, fazia parte da proposta da Biblioteca de Alexandria concentrar ali todo o saber disponível na época, porém muito mais como uma referência do que como propriamente um segredo. No entanto, a necessidade de proteger os documentos contra as depredações era uma necessidade real. Prova disso é que essa biblioteca sofreu vários incêndios e outras depredações, voluntárias ou não. — Muito provavelmente não, pois a invasão de Nabucodonosor ocorreu em 586 a.C., muito antes da construção da Biblioteca de Alexandria. A não ser que fosse colocada numa caverna em local de difícil acesso na ilha de Faros. A ideia mais aceitável é que tenha ficado com Jeremias numa masmorra no subsolo do próprio palácio em Jerusalém, onde, segundo consta, ele teria — E sobre todo aquele material referente às sete artes (ou ciências) da antiguidade? 368 369 — Penso que quase a totalidade daqueles livros veio de várias partes da Magna Grécia, algumas junto com o pessoal de Alexandre, outras mandadas vir de lá pela sua ordem, tarefa confiada ao primeiro bibliotecário. João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro — Pedro, tenho algumas questões que me afligem profundamente como perguntas sem respostas ou respostas não convincentes, de modo que nem ao menos consigo formular uma teoria. Diante disso, eu lhe pergunto: você acha que todos aqueles livros bíblicos deuterocanônicos são autênticos? Suas afirmações são corretas? Quem consta como autor será mesmo quem escreveu? Onde o autor buscou aqueles conhecimentos? Esses conhecimentos são válidos e reais ou não passam de um punhado de ideias inconsistentes, conjeturas, suposições e falsas deduções? — Paschoal, eu penso em termos de referências a serem melhor estudadas. Da mesma forma como acontece com os livros canônicos, eles sofrem dos mesmos problemas. São eles: afirmações sem provas evidentes, afirmações sujeitas à exegese de cada estudioso, imprecisões, inconsistências, ambiguidades, dificuldades de ordem semântica, épocas e estágios de desenvolvimentos diferentes, de transliterações e traduções, etc. Seria extremamente difícil construir uma teoria com total exatidão. As questões básicas permanecem inexplicadas: quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? — E quanto ao grande segredo oculto a sete chaves e que exige a preservação? — É uma questão um tanto subjetiva. Os segredos, de certa forma, possuem prazos de validade, pois se deterioram à medida que o desenvolvimento humano avança. Muitos grandes segredos antigos são hoje óbvios e de domínio geral, além de vários já estarem completamente defasados ou ultrapassados. Seu valor é praticamente histórico. — No contexto atual, não sei se realmente existe algum que tivesse esse efeito tão devastador. Claro que algo que pudesse mudar a ordem natural vigente poderia causar certa convulsão social, revolta, descrença, desânimo, etc. Mas creio que seria passageiro, em termos. No atual estágio de desenvolvimento humano, o impacto seria menor que em épocas anteriores. Por outro lado, as nações hoje enfrentam tantos problemas que estão praticamente na esfera fisiológica, pois são questões como nutrição, saneamento básico, saúde e todos aqueles levados em consideração no IDH — mal podendo cuidar de suas necessidades básicas. Na prática, ofuscaria qualquer outra questão de cunho mais elevado. Ainda assim, observa-se hoje que a ignorância é mais confortável do que o saber. Em outros termos, as pessoas não sabem e fazem questão de não saber para não ter de arcar com o ônus do conhecimento. Paschoal tinha suas próprias ideias sobre tudo aquilo, mas fazia suas perguntas a Pedro na quase certeza de poder adivinhar suas respostas. Na verdade, gostava muito de ouvir suas explanações simples e concisas, oriundas de uma capacidade de análise espantosa e organização de raciocínio, seguidas de uma brilhante síntese. A sintonia entre eles era tal que era como se roubasse suas próprias respostas. — Pedro, Você acha que concluímos algo de útil, com uma resposta definitiva e satisfatória ou voltamos à estaca zero? — Paschoal, lamentavelmente, eu também não tenho essa resposta. Na verdade, o meu sentimento hoje é que o mundo é uma grande pergunta sem resposta. — Mas e aquele pretenso segredo bombástico que, se revelado, poderia causar um verdadeiro caos à ordem das coisas atuais? — Então, vamos tratar de conceber um meio de dizer tudo isso na conclusão dos nossos estudos. O que você colocaria no fechamento do trabalho? 370 371 João Roberto Vasco Gonçalves — A menos que consigamos mais alguma informação palpável que explique cabal e definitivamente todas as questões que formulamos até agora, o que acho que dificilmente ocorrerá, eu colocaria exatamente a única verdade a que cheguei e escreveria: “Por tudo que vi, ouvi e estudei, concluo que o mundo é uma grande pergunta sem resposta”. Capítulo VII Os tesouros da confraria A confraria recebeu seu relatório da parte de Moshê e João informando que levaram a termo suas tarefas e aqueles eram mesmo os membros enviados de Deus pelas mãos do destino para serem os novos membros. Missão cumprida, portanto. Paschoal e Pedro receberam novo convite para uma reunião social na confraria. No dia e hora marcada, com a costumeira pontualidade que os caracterizava, compareceram. Foram recebidos festivamente e receberam sua nova comenda. A pedra de suas estrelas mudou para a cor amarela, o grau imediatamente superior, o penúltimo da escala da confraria. Agora, não havia mais nenhum segredo diante deles. Todos os anais da confraria, desde os mais remotos tempos, estavam disponíveis para eles, e era sua obrigação estudá-los profundamente e tentar produzir mais resultados, avançar e tentar evoluir aqueles conhecimentos. Os profundos conhecimentos específicos que possuíam e todo aquele adquirido nas suas andanças, análises, pesquisas e sínteses, poderia ser de grande valia para a confraria. Doravante, essa seria a sua missão. Concluída a calorosa recepção e a noite festiva, os dias subsequentes foram de muito trabalho de pesquisa de todo material constante dos anais da confraria. O exame da documentação antiga e a comparação de seu conteúdo com tudo que viram e pesquisaram era coincidente. O grande tesouro era mesmo o conhecimento. Quanto a revelação 372 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro ser bombástica dependia muito do contexto em que acontecesse a revelação, do tempo, do estagio cultural, da receptividade. Ali também havia a dúvida sobre a autenticidade da arca, mas igualmente informava que independentemente disso, sua validade como símbolo e como ensinamento era inquestionável. Os personagens, prováveis antigos Grão-mestres da confraria que constavam nos registros, igualmente, pareciam coincidir com os de suas deduções pós análises. Os grandes pesquisadores antigos da confraria também achavam, como eles, que a ignorância é mais confortável do que o saber. Em outros termos, as pessoas não sabem e fazem questão de não saber para não terem de arcar com o ônus do conhecimento. Por isso, muitas pessoas nunca questionam nada e preferem aceitar tudo como vem sendo transmitido. Também acharam até então que as perguntas existenciais básicas ainda estavam sem resposta. Seus estudos continuariam ainda por tempo indeterminado e sempre à espera de fatos novos a serem pesquisados e analisados. Os estudos e as buscas incessantes da confraria tinham uma razão especial: a falta de alguns, na verdade, muitos documentos em seus anais, a respeito dos quais havia apenas registros e referências completas. Em dois momentos distintos da história eles desapareceram. Na primeira, quando Jeremias escondeu a Arca da Aliança, com medo de sua destruição por Nabucodonosor, parecem ter omitido propositadamente todo o restante que já havia na época. Possivelmente, as próprias tábuas da Lei continham referências a esses de forma cifrada. Mesmo assim, ainda não estariam lá os que foram escritos depois em locais e línguas diferentes, que alguém recolheu e deu um jeito de juntar aos que já haviam. Além disso, nos anais, nada afirmava com cem por cento de certeza que os livros deuterocanônicos eram autênticos, se o seu conteúdo realmente tinha algum valor científico, se eram confiáveis ou não, se alguns deles deveriam fazer parte do cânone oficial, em sua opinião. Se sua comparação com os livros canônicos de mesmo assunto era divergente ou de alguma forma coincidente, embora pudessem não ser à primeira vista. Então, não puderam deixar de acrescentar no resultado dos seus estudos a conclusão a que chegaram no diálogo que tiveram: “Da mesma forma como acontece com os livros canônicos, esses sofrem dos mesmos problemas: afirmações sem provas evidentes, afirmações sujeitas a exegese de cada estudioso, imprecisões, inconsistências, ambiguidades, dificuldades de ordem semântica, criação em épocas e estágios de desenvolvimentos diferentes, alem de transliterações e traduções. Seria extremamente difícil construir uma teoria com total exatidão”. Por outro lado, não era possível saber com certeza se aqueles documentos encontrados nos túneis subterrâneos de Alexandria eram os originais ou foram transcritos e traduzidos de línguas muito antigas como as pré-Babilônicas, o próprio hebraico antigo, e várias outras sob o pretexto de padronização, uniformização linguística, atualização e facilidade de compreensão. Isso poderia ser também um enorme fator de inclusão de erros importantes, capazes de desvirtuar completamente o sentido, a interpretação e a real compreensão das coisas. Na segunda, um dos sábios dedicados a tradução das sagradas escrituras do hebraico para o grego detinha o segredo da localização e conseguiu buscálo, e, depois de usados, encarregou-se de novamente ocultá-los. Mesmo assim, só passaram para o grego, confeccionando, então, a septuaginta, os textos em hebraico. Os outros escritos em aramaico, siríaco, língua copta e outras mais antigas não foram traduzidas para o grego, não fizeram parte da septuaginta e ficaram fora do cânone oficial. Isso aconteceu provavelmente em 325 d.C. Provavelmente, Constantino ordenou que continuasse 374 375 João Roberto Vasco Gonçalves oculto e que esse único detentor do segredo não fosse conhecido. Depois, esse tal desapareceu. Provavelmente, foi eliminado como queima de arquivo. A partir desse ponto, a cortina negra do passado encobriu esse segredo. Ninguém sabe exatamente quem o guardou ou onde. O próprio Constantino pode, antes de morrer, tê-lo confiado a alguém e lhe passado a missão de guardião. Mais tarde, nas sucessivas fugas durante as perseguições, tudo isso ficou oculto em alguma parte e, até hoje, ninguém sabe exatamente. Há somente poucos indícios e uma lista de prováveis locais onde ele poderia estar oculto. E, como ainda não conseguiam formular uma teoria com total exatidão, conforme escreveram acima, sugeriam que tudo ainda continuasse em segredo por tempo indefinido, até quando efetivamente pudesse ser concluído de modo cabal algo definitivo e pudesse ser revelado ao mundo sem medo de uma possível destruição. Assim, continuaria ainda por muito tempo a guardiã dos tesouros do conhecimento perdidos no tempo e vitaliciamente seria sua guardiã. Essa era a razão de ser e o objetivo mor da Confraia do Torah Moshê. Epílogo O dia seguinte à última reunião da confraria não foi muito alentador. Todo aquele imenso volume de informações não resultava em certeza de nada, só aumentava as interrogações e as perguntas sem respostas convincentes. Afinal, tudo continuaria segredo. Tudo continuaria em questão. Os estudos continuariam e também as expectativas de algum dia tudo aquilo fazer mais sentido e aparecerem mais respostas confiáveis, convincentes e irrefutáveis. Mas, por enquanto, tudo ficava como estava. Custava muitíssimo admitir, mas voltavam à estaca zero. Paschoal estava extenuado. Não tinha mesmo paciência para mais nada. Sua cabeça fervilhava com aquele dilúvio de informações mal ordenadas e pouco assimiladas e não suportava mais nada. Ele era racional, então, quando as emoções oscilavam e tendiam a se perder no espaço e no tempo, a razão simplesmente assumia e determinava o caminho a seguir. Repentinamente, foi como um travamento num ponto final. A partir dali, foi mais um final de tarefa como outro qualquer. Decidiu que finalizaria os relatórios de estudo, fosse qual fosse a conclusão, e sua vida levaria o curso normal de antes. Pedro, apesar de ser igualmente racional, tinha o seu lado emocional um pouco mais presente. Sempre levava algum tempo para digerir todos os acontecimentos para depois racionalizá-los 376 João Roberto Vasco Gonçalves Os guardiões do tesouro e se estabilizar. Saiu atordoado de sua sala de estudos com a cabeça fervilhando com os resultados inconclusos de tudo que pesquisara, das verdades ou pseudoverdades que a confraria julgava possuir e em que tendia a crer. Estava aflito, agitado, angustiado. Mal conseguia respirar. Como um autômato, saiu quase sem rumo para o jardim interno à edificação da universidade. Percorreu sem se dar conta algumas alamedas. De repente, encontrou alguém. Era o jardineiro, um senhor de idade avançada, de barba e cabelos longos e brancos como a neve. Era o mais humilde dos funcionários, mas parecia calmo e feliz. Segundo comentavam, conversava com as flores e parecia se entender com elas. Tocava as plantas com tal delicadeza que uma luva de veludo não conseguiria. Manuseava a terra com a reverência de um sacerdote em seu ofício litúrgico, e parecia que nesse contato havia uma sinergia, vital ao crescimento das plantas. Era calmo e paciente. Isso parecia ser o segredo de sua felicidade. Pedro instintivamente travou um diálogo com ele: — O senhor crê que Deus existe? — Certamente. Nunca duvidei disso. — Se não houvesse um deus, o que você faria? — Criaria um à minha própria imagem e semelhança porque nós somos um. Sim, somos deuses por isso. — Porque? — Porque um homem não consegue viver sem a proteção do templo divino, senão a tristeza, a desesperança e o tédio consumiriam sua alma vazia. Já imaginou: a quem pediria ajuda quando estivesse oprimido? A quem dirigiria as suas orações? Com quem partilharia seus momentos de alegria? A quem agradeceria? — Que diria você se lhe provassem que Deus não existe? 378 — Eu acreditaria. Esse deus a quem querem provar a inexistência, realmente não existe. O verdadeiro Deus está acima de tudo, de todos os conceitos religiosos que produzem a falsa certeza do certo, que tornam o homem egoísta, semeiam a discórdia e o fazem derramar o sangue do seu semelhante em nome dessa convicção. Está alem dos conhecimentos da ciência e a percepção pela razão, que jamais o alcança. O único modo de percebêlo é com o coração. — Mas afinal onde está o seu Deus? — Em mim, em ti, nas estrelas do firmamento, nas águas que correm pelo solo, no voo das aves do céu, nas pétalas das flores, em cada ínfimo fragmento de tudo que existe. É na força de sua presença que a cada momento tudo se recria. É milagroso porque permite o nascimento de um ser segundo sua espécie. Onisciente porque conhece os mistérios de uma vida que se inicia e o enigma da morte para uma nova vida. É onipresente porque nele o passado, presente e futuro coexistem. É onipotente porque nele se concentra toda a força do universo. Não está oculto, porém presente em tudo: no sol que se declina, para levantar fulgurante no raiar de um novo dia. Na beleza das flores que nos enchem os olhos, na delícia dos frutos que nos alimentam, na magia das sementes que germinam. Nas folhas caídas que viram alimentos, retornam na seiva e voltam à vida anterior. Na eloquência do silêncio que ensina a contemplar tudo à volta, na linha do horizonte que une o mar ao firmamento. Na essência do amor que perpetua a vida. Pedro ficou maravilhado com aquela imensa sabedoria que os mestres da ciência não conseguem ensinar, pois jamais aprenderam. Nunca imaginaria que logo ali, em contato com a terra, um simples jardineiro lhe revelaria os segredos do universo. O mais humilde dos funcionários era o Grão-mestre da sabe379 João Roberto Vasco Gonçalves doria. Seu templo era um jardim com toda a sua manifestação de vida. Sua confraria era o mundo. Saiu dali calmo, com enorme sensação de felicidade por ter encontrado tão perto de si os portões do paraíso. Fosse o que fosse que escreveria no seu relatório final, nada abalaria os pilares daquele templo que encontrara: Deus era ele, seus semelhantes, a terra, a água, o firmamento, o princípio e o fim. Tudo agora fazia sentido: tudo possuía a sua essência. Tudo era Deus, tudo estava com Deus. DEUS era tudo. Certamente esse era o grande segredo do universo, transmitido pelo evangelho segundo João: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus”. Tão evidente e diante de nossos olhos e nós procurando nas profundezas do nada. Quanto às questões: “Quem somos, de onde viemos e para onde vamos?”, que importa, se somos Deuses? O Cristo disse, pelo seu evangelista João (10:34), referindo-se ao antigo salmo 82:7 (“Vós sois Deuses e todos filhos do altíssimo” “Todavia morrerão como homens e caireis como qualquer dos príncipes”). O mundo poderia continuar a ser uma grande pergunta sem uma resposta racional. Talvez, porque a razão fosse insuficiente para perceber e explicar a essência imaterial. O grande tesouro fora encontrado e não precisariam ocultá-lo. Pertencia a todos. FIM Bibliografia http://antt.dgarq.gov.pt/ http://antt.dgarq.gov.pt/exposicoes-virtuais/projecto-da-inquisicao-de-lisboa-online-workshop/ http://www.genealogiafreire.com.br/inquisicao_de_lisboa_antt. htm, http://antt.dgarq.gov.pt/identificacao-institucional/historia/ http://www.inct-tmcocean.com.br/pdfs/Monografias/13_Petry2009.pdf http://culturamaratimba.blogspot.com/2009_08_01_archive. html http://www.meioambiente.es.gov.br/download/RT_409_09_ RIMA.pdf http://www.meioambiente.es.gov.br/download/RIMA_ RT_045_09.pdf http://www.palacioanchieta.es.gov.br/pdf/livro_palacio_anchieta.pdf http://www.ape.es.gov.br/pdf/O%20Estado%20do%20Espirito%20Santo%20e%20a%20Imigracao%20Italiana.pdf - O Estado do Espirito Santo e a Imigracao Italiana - Carlo Nagar – Fevereiro de 1895, Um relato do cavalheiro Carlo Nagar, cônsul real da Italia em Vitória-ES http://www.ape.es.gov.br/imigrantes/Imigra.aspx . 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