IV COLÓQUIO TEMÁTICO as escalas

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IV COLÓQUIO TEMÁTICO as escalas
Municipal de Lisboa
04-12-2007
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Direcção Municipal de Cultura | Departamento de Bibliotecas e Arquivos | Divisão de Gestão de Arquivos
IV COLÓQUIO TEMÁTICO - As Escalas de LISBOA, Morfologias, População, Identidades
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IV COLÓQUIO TEMÁTICO
as
escalas
de
LISBOA
MORFOLOGIAS POPULAÇAO IDENTIDADES
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ACTAS DAS SESSÕES
IV COLÓQUIO TEMÁTICO
as
escalas
de
LISBOA
MORFOLOGIAS POPULAÇAO IDENTIDADES
FORUM LISBOA - EDIFÍCIO ROMA, Lisboa, 4, 5 e 6 de Julho de 2001
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O IV Colóquio Temático "As escalas de Lisboa", organizado pela Divisão de Gestão de Arquivos, ao abordar o estudo da Cidade e o fenómeno da globalização, não descura a articulação com a herança cultural do passado, proporcionando um leque interdisciplinar de testemunhos com a apresentação de propostas e discussão de variados
temas.
Novos projectos e novas leituras permitiram a análise sobre escalas de observação envolvendo a cidade, bairros
e ruas, o espaço urbano colectivo onde coabitam vivências tradicionais e actuais, a persistência de ruralidade nalguns bairros antigos, a heráldica autárquica, a preservação do património e a concepção e concretização de novos
modelos urbanísticos.
A publicação das Actas deste colóquio, embora mais tardiamente do que desejaríamos, vai colmatar uma lacuna e
reatar a ligação entre investigadores e comunicações, ponto de partida para novas reflexões sobre realidades e condicionantes culturais. A cidade de Lisboa fica mais enriquecida sempre que um evento como este se divulga, criando
um clima de investigação e conhecimento do seu passado e a possível resolução dos seus problemas actuais.
Rui Pereira
Director Municipal da Cultura
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As comunicações que agora se editam nas “Actas” do IV Colóquio Temático são o resultado de uma atitude reflexiva, um aprofundar de conhecimentos sobre a realidade patrimonial e social da cidade de Lisboa e as mutações
constantes a que se encontra sujeita em diversas escalas (morfologias, população e identidades).
Lisboa, encontro de culturas e povos, envolvida pelos novos desafios de modernidade e presa a um passado histórico, debate-se entre a concretização de novos projectos urbanísticos e a resolução da problemática social, numa
cidade em que a globalização domina a dinâmica das intervenções.
A valorização das memórias da cidade e a sua divulgação, presentes neste colóquio, contribuem, mais uma vez,
numa política de cidadania, para um maior relacionamento entre os cidadãos e o Arquivo Municipal de Lisboa consciente da sua missão cultural e garante do seu património.
Inês Morais Viegas
Chefe de Divisão de Gestão de Arquivos
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Programa
15h 00 José Luís Matias, Princesa Peixoto e Ana
Gomes Conversa Deliciosa no Forum: Olhares EstranQuarta-feira, 4 de Julho de 2001
geiros sobre Lisboa
Sessão de Abertura
9h 00 Entrega da documentação
9h 30 Sessão de Abertura pelo Presidente da Câmara
Municipal de Lisboa, Dr. João Soares
15h 15 Eunice Relvas De "Crianças Perigosas" a
"Crianças em Perigo": Delinquência Juvenil em Lisboa
15h 30 Luís Miguel Ruivo e João F. Santos Silva
Vivências - A População e a Arquitectura, Influências
9h 45 Dr. Walter Rodrigues Paisagens e Escalas das
Recíprocas. O Comportamento Social e o Espaço
Identidades de Lisboa
15h 45 Debate Geral
10h 15 Dra. Maria Calado Lisboa tem Memória
Quinta-feira, 5 de Julho de 2001
III Sessão de Trabalho - Manhã
10h 30 Café e Lançamento da edição das Actas do III
Colóquio Temático Lisboa Utopias na Viragem do Milénio
Tema 2: Bairros: Identidades Locais
Moderador:
Luís Vicente Batista
I Sessão de Trabalho - Manhã
Tema 1: População e Identidades
Moderadores: Dra. Inês Viegas
Dra. Lurdes Ribeiro
11h 00 Graça Índias Cordeiro Cidade, Bairro, Rua.
9h 15 José Luís Matias, Patrícia Sousa, Eduardo Leite,
Pollyanna
Jazzmine
e
Frédéric
Lacroix
Lisboa
Misteriosa!
9h 30 Adélia Carreira Benfica e Carnide, de Finais do
Séc. XVIII à 1ª Metade do Séc. XIX
Escalas de Observação Versus Escalas de Identidade
9h 45 Célia Lavado e Aldina Mendes Mouraria
11h 15 Francisco Rocha Diferenças de Comunicação
10h 00 Luís Filipe Maçarico Barbeiros de Alcântara
em Espaço Urbano na Cidade de Lisboa
10h 15 Alice Branco Persistência da Ruralidade no
11h 30 Francisco Serdoura e António Machado O
Sítio dos Olivais
Espaço Colectivo: Factor de Integração/Segregação
10h 30 Debate Geral
de Vida Pública
10h 45 Café
11h 45 Debate Geral
IV Sessão de Trabalho - Manhã
II Sessão de Trabalho - Tarde
Tema 1: População e Identidades
Moderador: Dr. Jorge Trigo
Tema 3: História e Património
Moderador:
Dr. Rodrigo Banha da Silva
11h 00 Ana Cristina Leite, Luís Aires Barros e Maria
14h 30 Luís Vicente Baptista A Escala da Metrópole e
Amélia Dionísio Conservação de Monumentos em
a Dimensão das Identidades: Problemas a Propósito
Espaços Urbanos: O Teatro Romano de Lisboa
de uma Lisboa que Emerge
11h 15 Miguel Gomes Martins - A Participação das
14h 45 Cristina Santos Silva Viver em Alfama:
Milícias de Lisboa na Campanha de 1386
Trajectórias Familiares e Solidariedades num Bairro
11h 30 Maria Luísa Pinheiro Blot - Lisboa, Memória
Histórico
Viva de Passados Portuários Distantes
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11h 45 Maria Conceição Rodrigues - A Presença das
17h 00 Ana Margarida Fragoso Imagem Institucional
Contas de Vidro como Elemento de Identidade do
das Cidades. O Emblema como Suporte Comuni-
Africano no Passado Histórico Arqueológico de Lisboa
cacional da Identidade Municipal - O Caso da
(dos Meados do Séc. XV ao Terramoto de 1755)
Emblemática da Cidade de Lisboa
12h 00 Debate Geral
17 h 15 Francisco Matos O Extinto Município dos
Olivais: Da Evolução Geo-Administrativa à Heráldica
V Sessão de Trabalho - Tarde
Autárquica
Tema 3: História e Património
Moderador:
17 h 30 Debate Geral
Dr. José Manuel Anes
Sexta-feira, 6 de Julho de 2001
14h 15 Margarida Garcês Ventura Contributo para a
Leitura Social do Espaço na Lisboa Quatrocentista: o
VI Sessão de Trabalho - Manhã
Tema 4: Formas Urbanas
Debate sobre a Localização da Judiaria
Moderador:
14h 30 Margarida Ruas dos Santos e Raúl Fontes Vital
Património e Progresso ou Património Versus
Arqto. Jorge Mangorrinha
10 h 00 Maria Alexandra Câmara O Pombalino: Mode-
los e Aplicações. Urbanismo, Arquitectura e Azulejaria
Progresso?
14h 45 Mafalda Enes Dias e Rui Matos (Re)Construção
de um Castelo - A Freguesia de Sta. Cruz de Alcáçova
10 h15 - Margarida Formosinho Um Conjunto Urbano
Singular. Necessidades/Janelas Verdes
10 h30 Maria Helena Barreiros A Escala da Casa na
de Lisboa
15h 00 João Cosme A População de Sta. Justa em 1630
15h 15 Maria Leonor Garcia da Cruz Formas de
Escala da Cidade: Espaços Domésticos da Lisboa
Romântica
10 h 45 Café
Diálogo e de Mediação Social na Lisboa Quinhentista
11 h 00 Maria de Lurdes Ribeiro Escala e Forma da
15h 30 Café
Cidade de Lisboa Oriental de Primórdios do Séc. XX
15h 45 José Luís Neto e Hugo Cardoso Estudo
11h15 Pedro Bebiano Braga O Mobiliário Urbano de
Preliminar sobre as Relíquias de S. Vicente
Lisboa no Final do Séc. XIX
16h 00 Teresa Campos Coelho, Clementino Amaro,
11 h 30 Alice Campos Martins e Maria Helena Salema
Armando Sabrosa, José Luís Monteiro e Nuno Dias
Em Torno da Construção de uma Ident(C)idade
Conjunto dos Lagares da Mouraria
Educativa: Contributos para a Concepção de um
16h 15
Rui de Matos Cronologia Histórica do
Nascimento
e
Morte
de
um
Aparelho
Módulo de Formação Destinado aos Professores
sobre o Património Industrial
de
Abastecimento de Água (Séc. XIII-XX): O Chafariz de
El-Rei e a Área Urbana Envolvente
11h45 Debate Geral
VII Sessão de Trabalho - Tarde
Tema : Formas Urbanas
16h30 Ana Cristina M. Barata A Intervenção da
Arqto. Sérgio Melo
Opinião Pública nos Melhoramentos de Lisboa
Moderador:
16h 45 Ernesto Castro Leal O Imaginário de Lisboa em
14h 00 José Manuel Fernandes Arquitectura e Espaço
António Ferro
Urbano Exemplos
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14h15 Filipa Roseta O Metropolitano na Leitura da
Forma Urbana
14h 30 João Pedro Costa O Eclectismo do Desenho
Urbano. Referências a Modelos Urbanísticos e sua
Síntese no Bairro de Alvalade 1945-1970
14h 45 Arqto. Alberto Souza Oliveira, Arqto. Manuel
Mateus e Arqta. Inês Cordovil Equipamentos Culturais
e Novas Centralidades O Novo Edifício do Arquivo
Municipal Lisboa
15h15 Debate Geral
15h 45 Apresentação das Conclusões
16h00 Sessão de Encerramento pela Vereadora do
Pelouro da Cultura, Dra. Maria Calado
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Quarta-feira, 4 de Julho de 2001
I Sessão de Trabalho | Manhã
Tema 1 - População e Identidades
Moderadores:
Dra. Inês Viegas
Dra. Lurdes Ribeiro
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Cidade, Bairro, Rua. Escalas de Observação nas Escalas de Identidade
Graça Índias Cordeiro*
RESUMO
Partindo de uma pesquisa de doutoramento, em antropologia
urbana, sobre a construção social e cultural de um "bairro típico" de
Lisboa (Cordeiro, 1997), o objectivo da presente comunicação é o
de reflectir sobre a própria noção de bairro popular nesta cidade e,
muito concretamente, sobre escalas de organização sócio-espacial
no seu interior. A identificação de um bairro concreto - a Bica levou-me, nessa investigação, à identificação de diferentes unidades
micro-locais de sociabilidade, desde o nível mais informal da rua até
ao nível mais institucional da associação de bairro e, consequentemente, ao estudo da relação estabelecida entre estas unidades. É,
pois, em torno da questão metodológica - qual será a escala adequada para o estudo de um bairro? - que esta reflexão sobre as
escalas de observação e escalas de construção de identidades territoriais se organiza.
*Professora Doutor em Antropologia
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Diferenças na Comunicação em Espaços Urbanos na Cidade de Lisboa
Francisco M. Rocha*
RESUMO
"Há uma relação muita estreita entre o espaço e os moldes de
comunicação, sejam estes de natureza verbal ou de natureza não-verbal.
Cada espaço, estruturado segundo uma interdependência, das características psico-sócio-culturais dos grupos que o frequentam e
as suas próprias características físicas, permitiu desenvolver e
manter de forma muito peculiar esses moldes de comunicar (e de
relacionar).
Os nossos estudos empíricos, assentes em observações efectuadas 'in loco', ao considerarem que, num mesmo macro-espaço
urbano, coexistem diferentes micro-espaços, quais habitats preferenciais de determinadas classes sociais - alguns onde as relações
constituem verdadeiras reminiscências de comportamentos semelhantes aos que ainda se observam em regiões de matriz rural confirmaram as hipóteses avançadas, permitindo concluir assim
que se podem relacionar, de forma não aleatória, determinados
espaços e seus residentes ou frequentadores, com determinados
moldes de comunicação, tendo cada um destes um quadro claro de
componentes, ou seja, de comportamentos comunicacionais grupais próprios".
*Professor Doutor em Psicologia
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O espaço urbano colectivo nas Avenidas Novas
Elemento de Integração e Segregação da vida pública
Francisco M. Serdoura 1, António Machado 2
Introdução
O presente artigo pretende avaliar os efeitos de âmbito urbanístico (físicos, funcionais e ambientais) que se observam no espaço
público, numa parte do Plano de Urbanização definido por Ressano
Garcia para as Avenidas Novas, centrando-se nos processos de
redefinição do espaço público quanto às áreas de circulação
automóvel (eixos/vias), às áreas pedonais (passeios e espaços de
estada), às áreas de estacionamento público à superfície, aos
espaços verdes, e ainda quanto ao modo como essas alterações no
espaço urbano público influenciam a vida pública dos cidadãos.
A escolha desta área do Plano das Avenidas Novas assentou em
critérios de ordem operacional e estrutural. Embora existam outras áreas na cidade de Lisboa com igual complexidade de efeitos no
espaço público, a opção considerada parece ser mais relevante pela
estabilidade e tipologia do espaço, por a área manter a mesma correlação entre o espaço privado (52,0% do total da área) e o espaço
público (48,0% do total da área), pelas alterações funcionais introduzidas no espaço público na última década e pelo conjunto de
actividades urbanas presentes na área.
Breve Caracterização da área de estudo - Avenidas Novas
Por razões de ordem operacional e facilidade de manuseamento da
informação cartografada em suporte digital, considerou-se que os
dois momentos de análise da área de estudo corresponderiam aos
levantamentos topográficos disponíveis. O primeiro foi realizado na
década de 80 (1985) e o segundo efectuado na década de 90 (1997)
como se apresentam nas figuras 1 e 2.
Importa ainda referir que, para as variáveis de análise e avaliação
das alterações introduzidas no espaço público, houve a necessidade
de fazer levantamentos e quantificações, para se caracterizar e
avaliar, com maior rigor, os efeitos produzidos pelas mudanças funcionais introduzidas no espaço urbano público da área de estudo.
RESUMO
A modernização e transformação que se verificaram nas últimas décadas nas Avenidas
Novas, em Lisboa induziram alterações na sua
estrutura urbana. As consequências dessas
dinâmicas desde logo se fizeram sentir na
estrutura funcional, social, de mobilidade e na
imagem urbana daquele território. Porém, foi no
espaço urbano colectivo onde mais se sentiram
os efeitos dessas mudanças.
O presente trabalho diagnostica um conjunto de
problemas físicos, funcionais e ambientais que se
observam actualmente no espaço urbano colectivo naquela zona central da cidade (multifuncional),
onde as populações residentes e flutuantes não
dispõem de espaços exteriores em condições de
desenvolverem relações sociais, contribuindo
para combater a desertificação e o sentimento
de insegurança que afecta a população (noite e
fim-de-semana), que vive e utiliza aquela área da
cidade. A transformação daquele território numa
área de infraestruturação de emprego condicionou o espaço urbano colectivo das Avenidas
Novas a constituir-se, não como um espaço de
fruição e apropriação para o cidadão, mas antes,
e tendencialmente, como um grande reservatório
de estacionamento automóvel.
Por último, apresenta-se uma avaliação crítica
(quantitativa e qualitativa) do espaço urbano
colectivo, orientada para estabelecer uma
reflexão sobre as bases de ordenamento propostas pelos instrumentos de planeamento
vigentes para as Avenidas Novas. Deste modo,
procura-se contribuir para a determinação de
parâmetros de qualidade do espaço urbano
colectivo com vista a fomentar nas populações
o desenvolvimento de actividades de sociabilização do espaço urbano com vista à realização de
uma vida urbana colectiva mais participada e
intensa. Pretende-se ainda, contribuir para
suscitar a discussão no processo de planeamento para a necessidade de produzir novos
espaços urbanos colectivos em áreas centrais
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O espaço urbano colectivo nas Avenidas Novas
Elemento de Integração e Segregação da vida pública
Enquadramento: aspectos determinantes na caracterização da
dinâmica de transformação da área de estudo - Avenidas Novas
A crescente procura de espaços edificados para a instalação de
actividades ligadas ao sector terciário fez da área de estudo Avenidas Novas - o espaço natural na cidade com condições para
alojar novos escritórios e novos espaços comerciais. Essa dinâmica
de transformação que começou de forma ténue nos anos 60, com
a substituição de algumas habitações por escritórios, rapidamente
evoluiu (década de 70 e 80), dando origem a um surto especulativo,
que resultou na substituição da maioria dos edifícios de habitação
(séc. XIX), com 5 pisos, por edifícios contemporâneos, de
escritórios, com 10 e mais pisos (Salgueiro, 1989).
Essa dinâmica de renovação do edificado e das actividades urbanas,
reforçou e sedimentou o prestígio da zona como área central de
Lisboa. A consolidação do seu prestígio da área resulta ainda das
boas condições de acessibilidade e mobilidade interna (veículos e
Figura 1: Área de estudo - Avenidas Novas (1985)
peões) e da boa serventia de transportes públicos (autocarros,
metropolitano e comboio) que o tecido urbano possui (Salgueiro
1989). Para melhor se entender esse processo de alteração do
espaço público sintetizam-se três factores dinâmicos que contribuíram para a transformação da área de estudo (dinâmica funcional, imobiliária e social).
Dinâmica funcional
Na década de 70, em resultado do efeito de área central, as
Avenidas Novas já possuíam Serviços Públicos, Ministérios e algumas empresas de serviços. Foi na década de 80, primeiro com o
reforço do terciário e depois com a construção de um conjunto significativo de novos edifícios que a área confirmou a sua importância
como área prestígio da cidade, situação que ainda mantém.
A localização do comércio e dos serviços na área desenvolveu, de
forma involuntária, dois pólos de concentração de terciário (Figura
3). O primeiro localiza-se na zona do Campo Pequeno, onde se
destacam os sectores financeiros e de comunicação (Caixa Geral de
Depósitos, Banco Nacional Ultramarino, Rádio Televisão Portuguesa
e Telemóveis Nacionais). O segundo pólo centra-se em torno da
Praça Duque de Saldanha, tem menor importância que o primeiro e
está mais vocacionado para as pequenas e médias empresas.
Funciona como contraponto ao primeiro e estabelece o equilíbrio na
distribuição das actividades urbanas (financeiras, serviços e comércio) na área de estudo (Serdoura, 1992), nele integram-se os edifíFigura 2: Área de estudo - Avenidas Novas (1999)
cios Monumental, Átrium Saldanha e Imaviz.
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O comércio apresenta uma lógica de localização semelhante à dos
serviços. Verifica-se que o comércio ocasional se concentrou ao
longo do eixo da Av. da República, enquanto o comércio diário
(restauração e pequenas lojas) vai-se distribuindo pelos eixos transversais.
Dinâmica imobiliária
A dinâmica imobiliária na área das Avenidas Novas tem-se enfatizado pela construção de produtos de qualidade, destinados a
escritórios e a habitação de prestígio. No caso dos edifícios de
escritórios, esta zona possui grandes potencialidades devido à sua
mais-valia como área central de Lisboa, não se esperando que a
tendência se inverta, nos próximos anos.
Nesta área o sub-segmento da habitação tem evidenciado sinais de
crescente procura, mas quando comparado com o dos escritórios
as expectativas ficam muito aquém em número de empreendimentos. O desenvolvimento do sub-segmento da habitação de qualidade
na área formou a convicção de que é possível desenvolver uma linha
de actuação baseada na construção de empreendimentos residen-
Figura 3: Localização dos pólos de concentração de
terciário na área de estudo
ciais destinados a quadros e profissionais liberais.
Dinâmica social
A dinâmica reflectida pela estrutura económica até aos finais da
década de 80 teve um papel determinante na expulsão de muitos
dos habitantes da área, retirando-lhes os "habitat's" onde os
hábitos e as necessidades culturais comuns reforçavam o equilíbrio
e a coesão social. Actualmente, verificam-se algumas assimetrias
sociais, sendo visíveis no território bolsas de marginalização de
estratos sociais mais desfavorecidos.
A população residente, um pouco envelhecida, assistiu principalmente nos anos 90, a um processo de rejuvenescimento devido à
construção de novos empreendimentos residenciais e à reabilitação
de alguns edifícios e fogos isolados. Esses espaços são ocupados
por uma classe média alta, constituída por quadros e profissionais
liberais, que abandonam a periferia da cidade, cada vez mais
desqualificada, para se instalarem no centro da cidade em busca de
prestígio e de alguma qualidade de vida.
Outros efeitos, induzidos pela tendência de terciarização da área,
foram o aumento da população presente e a "desertificação" social
da área nos períodos pós-laborais. Durante os períodos laborais a
área reflecte uma dinâmica de movimentos pendulares que provoca
grande pressão sobre o espaço público. A população trabalhadora,
Figura 4: O espaço urbano público nas Avenidas
Novas(1985)
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O espaço urbano colectivo nas Avenidas Novas
Elemento de Integração e Segregação da vida pública
embora permaneça na área durante um período significativo do dia,
não se identifica com ela nem com o tecido social existente. Os dois
grupos de população apresentam padrões de vida distintos e segregados relativamente ao espaço público. A população presente
utiliza mais intensamente os espaços fechados (centros comerciais), procurando proteger-se da falta de conforto e de qualidade que
o espaço urbano público reflecte.
O espaço Urbano colectivo nas Avenidas Novas
A partir de levantamentos digitalizados das Avenidas Novas foram
efectuadas medições sobre o espaço urbano público (circulação e
estada). A análise e avaliação do espaço público incidiu sobre dois
momentos. Um primeiro referente a 1985 e um segundo correspondente a 1999. Relativamente ao último momento (1999) foram efectuados levantamentos, por aferição de campo, no terreno para
Figura 5 O espaço urbano público nas Avenidas
Novas (1999)
obter maior rigor na identificação das mudanças introduzidas no
espaço público. Essa informação foi cruzada com outra, recolhida
através de conversas informais com técnicos da C. M. Lisboa, e que
teve por objectivo a determinação tão rigorosa quanto possível das
alterações efectuadas no espaço público de circulação e estada nos
últimos 10 anos na área de estudo.
A estrutura urbana da área, não sofreu qualquer alteração quanto à
importância do espaço privado relativamente ao espaço público. Isto
é, e observando a Tabela 1, o território apresenta um equilíbrio, correspondendo sensivelmente a cerca de metade para cada um dos
diferentes tipo de espaço urbano. Dos cerca de 80,4 ha a que corresponde a área de estudo, aproximadamente 41,8 ha (52,0%) estão
adstritos ao espaço privado, enquanto, 38,6 ha (48,0%) estão afectos ao espaço público -circulação e estada- (Figuras 4 e 5).
Tabela 1: Elementos da estrutura urbana na área de estudo - Avenidas Novas
Categorias
de espaço urbano
Figura 6: Estrutura de eixos/vias na área de estudo
(1985)
até 1980
em 1999
(m2)
(%)
(m2)
(%)
Esp. Urb. Privado
418417,00
52,00
418417,00
52,00
Esp. Urb. Público
386304,00
48,00
386304,00
48,00
TOTAL
804721,00
100,00
804721,00
100,00
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O espaço público nas Avenidas Novas. Alguns aspectos quantitativos e qualificativos
A superfície global afecta ao espaço urbano público na área de estudo não sofreu qualquer alteração nos últimos 40 anos. Na década
de 90, verificaram-se alterações funcionais na estrutura de vazio da
área, sobretudo onde o emprego apresentou maior concentração.
Nesse período, a maior preocupação tem sido a de satisfazer as
pressões crescentes induzidas pela utilização excessiva do transporte individual (automóvel) na área, em prejuízo da humanização do
espaço público procurando oferecer melhores condições para as
populações residente e comutadora realizarem vida pública. Essa
falta de preocupação com a humanização do espaço público tem
condicionado a capacidade das populações em gerar relações de
sociabilidade no espaço.
Desagregando a estrutura de vazio das Avenidas Novas em subcategorias, eixos/vias, passeios, estacionamento público à superfície
e espaços verdes, verifica-se que houve intenção, particularmente
na década de 90, em redefinir o espaço público (Tabela 2).
Figura 7: Estrutura de eixos/vias na área em estudo
(1999)
As transformações ocorridas na estrutura de vazio na década de
90 reflectem uma redução da área afecta à circulação automóvel
(eixos/vias - Figuras 6 e 7) em cerca de 10,3%, relativamente às
décadas anteriores (70 e 80). Na década de 80, esta subcategoria
do espaço público da área correspondia a 60,0% (23,0 ha) da superfície total da estrutura de vazio. Nos finais da década de 90, a
mesma subcategoria correspondia a 49,3% (19,4 ha). Essa redução
no espaço de circulação automóvel (eixos/vias) ganhou expressão
com a pedonalização de parte da Av. Conde Valbom, com o aumento da área de passeio na Av. Júlio Dinis e com a eliminação das bolsas de estacionamento, que existiam até meados da década de 90,
nos triângulos da Av. Marquês de Tomar. Simultaneamente foram
introduzidas outras alterações nesta subcategoria do espaço público (eixos/vias), com o objectivo de melhorar a circulação automóvel
de atravessamento da área, sacrificando a estrutura de "boulevard's" nas Avs. António José de Almeida, Miguel Bombarda e João
Crisóstomo.
A subcategoria passeios (ver Tabela 2 e Figuras 8 e 9) também registou uma redução de área nas alterações consumadas no final da
década de 90. Essa redução correspondeu sensivelmente a 4,6% de
área afecta a passeios existente na década de 80. Nos anos 80, a
superfície de passeios na área correspondiam a cerca de 36,0%
(13,9 ha) da superfície total de espaço público existente. No final
dos anos 90, a superfície de passeios correspondia apenas a 31,3%
Figura 8: Estrutura de passeios na área de estudo
(1985)
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O espaço urbano colectivo nas Avenidas Novas
Elemento de Integração e Segregação da vida pública
(12,8 ha) da área total de espaço público. Apesar de a área contar
com novos espaços pedonalizados (Av. Conde Valbom, Av. Júlio Dinis
e os triângulos da Av. Marquês de Tomar), estes apenas induziram
uma melhoria local. A redução da superfície total de passeios e
espaços de estada condicionou a utilização do espaço público, privilegiando a deslocação e desencorajando a apropriação do espaço
pelos cidadãos, limitando a realização de outras actividades de
sociabilização, como seja o convívio e o lazer públicos.
Os espaços verdes (ver Tabela 2 e Figuras 10 e 11) nas Avenidas
Novas registaram um acréscimo de 0,8% na década de 90, relativamente à área existente na década de 80. Os espaços verdes correspondem a 2,0% (0,8 ha) da superfície total do espaço público em
1989, contra 2,8% (1,6 ha) em 1999. Este acréscimo não pode ser
entendido como uma melhoria das condições ambientais na área. A
falta de qualidade estética, funcional e até ambiental das manchas
verdes faz delas espaços "sobrantes", que resultam do acerto de
Figura 9: Estrutura de passeios na área em estudo
(1999)
malhas, como é o caso dos dois triângulos na Av. Marquês de Tomar,
ou assumem-se como espaços "restantes" depois de satisfeitos os
compromissos com o espaço edificado, como é o caso da bolsa de
verde junto à Igreja de N. Sra. do Rosário de Fátima. Em qualquer
dos casos, os espaços verdes existentes na área não estimulam os
cidadãos (residentes e trabalhadores) a apropriá-los e a utilizá--los
no exercício da vida colectiva. A falta de apropriação que se observa nos espaços verdes pelas populações residente e comutadora
resulta da localização periférica que esses espaços possuem em
relação aos pólos de concentração de emprego e por se encontrarem limitados por eixos/vias de grande fluxo rodoviário.
Tabela 2: Evolução do espaço urbano público (subcategorias) Avenidas Novas
Subcategorias
de espaço público
até 1980
em 1999
Variação
(m2)
(%)
(m2)
(%)
(m2)
Eixos/Vias
230172,00
59,58
190415,00
49,29
-39757,00
Passeios
138628,00
35,89
120865,00
31,29
-17763,00
-4,60
Esp. Verdes
7603,00
1,97
10682,00
2,77
3079,00
0,80
Estac. à superfície
9901,00
2,56
64342,00
16,66
54441,00
14,09
386304,00
100,00
386304,00
00,00
0,00
0,00
TOTAL
1
(%)
-
10,29
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Francisco M. Serdoura , António Machado
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Na década de 90 a área assistiu ao "ordenamento" do estacionamento público à superfície (ver Figuras 12 e 13). Esta atitude
determinou que, em 2000, a área global de estacionamento à
superfície registasse um acréscimo de 14,1% em relação à área
total de estacionamento, existente em bolsas e à superfície, em
1989 (ver Tabela 2). Em finais dos anos 80, a área de estacionamen-
to público à superfície correspondia apenas a 2,6% (1,0 ha) da área
total de espaço público. Em 2000, essa área correspondia a 16,7%
(6,4 ha) da área total de espaço urbano público. Sem dúvida, esta
subcategoria de espaço público foi aquela que mais beneficiou das
alte-rações introduzidas na estrutura de vazio das Avenidas Novas.
A construção intensiva de bolsas de estacionamento à superfície
em toda a área de estudo, nos finais dos anos 90, contribuiu para
a redução da área de passeios, ao mesmo tempo que permitiu a eliminação da estrutura de "boulevard's" existente até aos anos 80. É
certo que esta estrutura já estava moribunda devido ao estacionamento abusivo e selvagem que se fazia nesses espaços. Também é
certo, que o processo de transformação do espaço público levado a
efeito nas Avenidas Novas, desperdiçou o ensejo de criar condições
Figura 10: Estrutura de espaços verdes na área
(1985)
para devolver o espaço público à estima colectiva.
A vida pública na área de estudo - Avenidas Novas
Para que se realize vida pública em qualquer território urbano é
determinante que haja estabilidade no meio físico envolvente, vitalidade funcional e que o espaço público evidencie qualidade (construtiva, ambiental). Um espaço público com qualidade estimula nos
cidadãos vontade e interesse em desenvolver actividades de sociabilização no espaço, potenciando a sua apropriação e utilização. O
espaço público é o suporte da vida colectiva e nele se reflectem os
hábitos e a cultura da sociedade que os vive.
A dinâmica de transformação que se observou na estrutura de vazio
das Avenidas Novas, na última década, foi determinante para limitar a
capacidade de utilização do espaço público, à actividade de deslocação
(Figura 14). A vida pública consumada pela circulação nas Avenidas
Novas é mais intensa nos dias úteis e em horário laboral, sendo pouco
expressiva nos períodos pós-laboral e fim-de-semana (Figura 15).
O convívio público que se observa na área ocorre quando a população
comutadora aproveita o período de pausa para almoço para fazer
refeições em grupo nas esplanadas que pontuam o espaço público
principalmente na Av. Conde Valbom (Figura 16). A troca pública das
Avenidas Novas é uma actividade desregrada e realiza-se em
espaços de passagem, paragem e atravessamento utilizados pelas
Figura 11: Estrutura de espaços verdes na área
(1999)
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O espaço urbano colectivo nas Avenidas Novas
Elemento de Integração e Segregação da vida pública
populações comutadoras quando se deslocam dos locais de trabalho para os locais onde almoçam (restaurantes, café, pastelarias e
esplanadas) (Figura 17). Esta actividade desenvolve-se em lugares
estratégicos, tais como sejam as saídas de metro, junto a edifícios
da Administração Central, instituições bancárias, entre outros, o
que provoca dificuldades na deslocação dos cidadãos, não só porque
reduz o já insuficiente espaço de passeios, mas também porque
obriga o peão a utilizar o espaço reservado ao automóvel.
O lazer público na área ocorre quando a população comutadora
aproveita o período de pausa para almoço para se descontrair apropriando alguns espaços de estadia para ler um livro (Figura 18) ou
quando os indivíduos de forma isolada utilizam os escassos espaços
verdes para fazerem refeições ao ar livre (Figura 19).
A ausência de vida pública em alguns locais da área, induz na população (residente e comutadora) sentimentos de insegurança, designadamente durante o período de interrupção do trabalho (Figura 20).
Figura 12: Estacionamento público à superfície
(1985)
Durante esse período o espaço público fica deserto ou é apropriado por outros grupos, como sejam, os sem-abrigo, os juvenis marginalizados, os toxicodependentes, entre outros (Figura 21). Deste
modo, para as populações residente e comutadora, a vida pública ao
ar livre é excluída das suas actividades sociais (Serdoura, Machado
e Bernardo, 2000).
Refira-se ainda que a renovação que se vem verificando na área da
estrutura social existente não conseguiu inverter a tendência de
Figura 14: A vida pública em período laboral (deslocação)
Figura 13: Estacionamento público à superfície
(1999)
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Francisco M. Serdoura , António Machado
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não apropriação do espaço público, já que a nova população residente não elege as Avenidas Novas como habitat, mas antes como
um símbolo de prestígio social e de poder (poder económico). A falta
de espaços de estada com condições para estimular a apropriação
por parte das populações (residente e comutadora) tem sido um
factor determinante para que a área tenha um défice de vida pública sustentada. A existência de espaços públicos exteriores de
estadia, com dimensões e escalas diferentes, será fundamental
para que a área passe a possuir vida colectiva activa e própria. Essa
vida colectiva será o resultado da interacção entre actividades privadas e públicas, que cada indivíduo desenvolverá no seu quotidiano.
Figura 15: A vida pública fora dos períodos laborais
Conclusão
As alterações produzidas no espaço público das Avenidas Novas
conduziram à dissociação dos cidadãos da vida pública. Ganha ênfase
a ideia de que o espaço público nas Avenidas Novas se constitui
essencialmente como um reservatório de estacionamento público à
superfície cobiçado e utilizado por populações comutadoras, transformando a área, essencialmente num território de infra-estruturação do emprego, e não, como seria sustentável, constituir-se
como uma área plurifuncional e equilibrada, onde o espaço público é
apropriado e utilizado pelas populações (residente e comutadora).
Constata-se a necessidade de requalificação dos espaços públicos
verdes e de estada da área, através da criação de condições físicas, funcionais, estéticas e ambientais para que se realize vida
Figura 16: O lazer público nas Avenidas Novas
colectiva. Será também determinante construir novos espaços
Figura 18: O lazer público nas Avenidas Novas
Figura 17: A troca pública nas Avenidas Novas
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O espaço urbano colectivo nas Avenidas Novas
Elemento de Integração e Segregação da vida pública
públicos, recorrendo a uma atitude mais dinâmica do Planeamento
Municipal, por exemplo, através do reordenamento do interior de
alguns quarteirões, actualmente ocupados com actividades incompatíveis com as funções urbanas dominantes, criando condições
para a construção de novas tipologias de espaço público, um pouco
à semelhança do que se fez na reconstrução do Chiado.
Conceber e construir novos padrões espaciais destinados à realização da vida colectiva, bem como promover a reabilitação de
padrões existentes, sobretudo numa área onde estes estão dissoFigura 19: O lazer público nas Avenidas Novas
ciados dos cidadãos. Este processo de planeamento terá necessariamente que reflectir sobre a evolução do território, a dinâmica
da localização das actividades urbanas, as tipologias de espaço
público e a multiplicidade de dimensões que pode encerrar em si.
Agradecimentos
Os autores expressam o seu agradecimento aos arqs. Pedro Balejo
e Jorge Pires pelo apoio concedido na elaboração das peças desenhadas, levantamentos de campo e fotográfico que permitiram a
realização e ilustração deste trabalho.
Referências
FERNANDES, José M. (1989). "Alguns Apontamentos sobre Urbanismo
Alfacinha". in Lisboa de Frederico Ressano Garcia 1874-1909. Câmara
Municipal de Lisboa/Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, págs. 42-56.
Figura 20: Espaços sem vida pública nas Avenidas
Novas
MACHADO, António, S.; SERDOURA, Francisco M. (1999). "Ordenamento
Urbano: construção de parâmetros de qualidade de vida urbana na estrutura de vazio da cidade de Lisboa" comunicação apresentada ao III
Congresso Ibérico de Urbanismo, Vilamoura, Algarve.
SALGUEIRO, Teresa B. (1989), "Transformação nas Avenidas Novas", Cidade
e Território, Edições Afrontamento, n.os 10-11, Dezembro, pág. 115-119.
SERDOURA, Francisco M. (1992). "Os Grandes Empreendimentos Urbanos em
Lisboa; uma leitura do fenómeno" Centro de Sistemas Urbanos e Regionais.
Instituto Superior Técnico, Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa.
SERDOURA, Francisco M.; MACHADO, António, S.; BERNARDO; Luís F.
(2000). "O Espaço Colectivo na Cidade de Lisboa: factores de apropriação
e utilização", comunicação apresentada no IX Congresso Ibericoamericano
de Urbanismo, Recife, Brasil.
(1) Arquitecto e Urbanista, Mestre e Assistente da Faculdade de Arquitectura da
Universidade Técnica de Lisboa, Rua Prof. Cid dos Santos, Pólo Universitário, Alto
da Ajuda, 1349-055 Lisboa, Portugal, e-mail:[email protected]
(2) Arquitecto e Urbanista, Doutor e Professor Auxiliar da Faculdade de
Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, Rua Prof. Cid dos Santos, Pólo
Figura 21: Apropriação do espaço público por grupos
marginais
Universitário, Alto da Ajuda, 1349-055 Lisboa, Portugal,
e-mail:[email protected]
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Quarta-feira, 4 de Julho de 2001
II Sessão de Trabalho | Tarde
Tema 1 - População e Identidades
Moderador:
Dr. Jorge Trigo
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A Escala da Metrópole e a Dimensão das Identidades: Problemas a
Propósito de uma Lisboa que Emerge
Luis V. Baptista*
RESUMO
A emergência e a afirmação da metrópole de Lisboa, construção
política e mecanismo de afirmação identitário, são hoje alvo de
diversos questionamentos. Isto porque falar e pensar em termos de
metrópole se torna relevante num mundo de metrópoles competitivas que disputam protagonismo entre si. Deste modo, a cidade de
Lisboa não é mais entendida pelos planeadores e decisores como
apenas o espaço interior de uma fronteira concelhia mas como uma
área de identificação e de consumação colectiva, agora apropriada
tanto pelos seus residentes como pelos seus cada vez mais
numerosos utilizadores. E logo aí se revela uma dimensão conflitual
importante. Que equilíbrio é possível estabelecer entre concepções
gradualmente separadas como são a da cidade dos residentes-cidadãos e a, que se vem generalizando nos meios técnico-políticos, da metrópole cosmopolita dos utilizadores-consumidores?
Esta conflitualidade , assaltado que foi o espartilho municipal, é relevante não só a nível da escala em que os problemas são pensados
mas também no protagonismo que os diversos interventores públicos e privados na vida da metrópole vão assumindo. É que os discursos sobre a metrópole, venham eles do governo central, das
autarquias, dos agentes económicos ou culturais, não levam frequentemente em conta a "realidade metropolitana" da cidade do
crescimento urbano. Afinal, do que é que falam quando falam de
metrópole?
Tal questionamento leva-nos à necessidade de discutir o sentido das
delimitações que se vão encontrando para a Área Metropolitana de
Lisboa, resultado incerto de várias combinações de ordem económica e política. Mas também da importância assumida pelos concelhos envolventes da cidade cuja progressiva visibilização parece passar antes de mais pela afectação do seu território à lógica (ainda)
imparável do crescimento urbano como ainda pela capacidade das
municipalidades arrabaldinas de protagonizarem estratégias de
maior autonomia e afirmatividade face ao centro metropolitano.
Para sustentar tal ponto de vista recorremos ilustrativamente à
componente demográfica.
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De seguida, em complemento às questões que se colocam em torno
da escala da metrópole, procuramos clarificar como é que a
emergência de territórios lúdicos, enquanto tal programados e
inseridos nas metrópoles, afecta a revelação ou a projecção das
identidades locais.
Recorremos a dois exemplos da Lisboa metropolitana: o da Expo 98,
edificação de um território lúdico, durável e aparentemente capaz
de ajudar a refazer ideias feitas sobre a zona oriental de Lisboa,
graças essencialmente à sua destinação lúdica, e o da institucionalização patrimonial da figura popular do saloio, exemplo da busca
identitária que tem por base as culturas e os territórios do contexto metropolitano. Procuramos com estes casos discutir o que há,
por um lado, de afirmação de uma identidade local(izada) no panorama complexo de economias e sociedades (e cidades) globalizadas, e
o que há, por outro lado de recuperação da tradição, ou da sua
invenção, como pretende Hobsbawn.
* Professor Doutor em Sociologia
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Viver em Alfama: Trajectórias Familiares e Solidariedades num Bairro
Histórico
Cristina Santos Silva*
1.Introdução: viver em Alfama
Ao entrarmos em Alfama, logo pela manhã, a primeira sensação que
nos assalta é a de luz e tranquilidade, ao mesmo tempo que somos
invadidos pelo passado. A vida matinal neste bairro é muito intensa
e traz-nos memórias de outros tempos, ao encontrarmos ainda os
vendedores ambulantes, o mercado de rua, as idosas nas sua compras matinais, o ritual do pequeno almoço na pastelaria de sempre... Alfama, como outros bairros antigos com todas as suas
especificidades, é um bairro onde se mantêm vivências quotidianas
e modos de estar e habitar a cidade que fazem parte do imaginário
colectivo alfacinha.
Quando pensei pela primeira vez privilegiar o estudo das dinâmicas
sociais e urbanas nos bairros antigos da cidade de Lisboa, não
estava consciente da dimensão e da complexidade das relações
humanas e dos fenómenos sociais aí presentes.
Uma imagem muito frequente identificava-os como locais de envelhecimento e inclusive morte, ou seja, zonas da cidade votadas ao
abandono e ao esquecimento, da população, em geral, e dos
poderes públicos, em particular. Por outro lado, associada a esta
imagem de degradação, encontramos a ideia de preservação de uma
cultura popular, no sentido bairrista do termo, traduzida pelas festas dos santos populares, pelo fado e pela história local que traz a
estes bairros milhares de turistas por ano.
No entanto, o que eu fui encontrar, quando iniciei a minha actividade
sociológica no âmbito do processo de reabilitação urbana, foi pelo
contrário um local de intensa dinâmica social, onde todos os
actores sociais conjugavam os seus esforços no sentido de devolver
ao bairro de Alfama a sua dignidade e a sua vivência características,
através da preservação dos valores simbólicos, dos espaços e dos
edifícios associados à memória do local.
Deparei-me, assim, com um conjunto de processos, estratégias,
interacções e dinâmicas sociais que pelo seu carácter insólito num
contexto de "recessão social" mereciam ser alvo de uma investigação mais aprofundada, que permitisse conhecer melhor as
RESUMO
A presente comunicação pretende apresentar
os resultados de uma investigação levada a
cabo no bairro histórico de Alfama, com o objectivo de caracterizar e compreender as dinâmicas familiares e os modos de vida e de apropriação do espaço das famílias aí residentes.
Este estudo partiu do processo de migração de
que foi alvo o bairro de Alfama, procurando caracterizar as trajectórias de vida e as histórias
de família de alguns grupos domésticos entrevistados, para chegar à actual vivência do
espaço e modo de vida urbano destas famílias.
Pretende-se também demonstrar a existência
de uma forte solidariedade intergeracional,
associada a fortes relações de vizinhança e
entreajuda características dos alfamistas.
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Viver em Alfama:
Trajectórias Familiares e Solidariedades num Bairro Histórico
estratégias de mudança e as aspirações das famílias que
"teimavam" em viver em Alfama.
Com o passar do tempo, pude aperceber-me de um conjunto de
interacções familiares e de relações de vizinhança muito características de um modo de vida comunitário, que se consubstanciavam em
formas de apropriação do espaço habitacional e do espaço público
muito específicas. A casa e a rua são espaços intensamente partilhados pelos membros do grupo doméstico, mas também pelos outros familiares e pelos vizinhos. E encontramos uma relação muito
afectiva com o bairro onde residem, que justifica uma aparentemente inexplicável vivência quotidiana em condições de extrema
degradação física, quer ao nível das habitações, quer ao nível da
falta de condições de fruição do espaço público.
A presente comunicação procura, então, reflectir sobre um percurso de investigação de vários anos no bairro histórico de Alfama,
através do qual tenho vindo a caracterizar a especificidade sociocultural da população deste bairro. No âmbito dessa especificidade que
se consubstancia em diversos fenómenos de ordem sociológica, a
minha curiosidade centrou-se na existência de numerosas famílias
alargadas e múltiplas que residem neste bairro, na maior parte dos
casos em habitações inadequadas a tais estruturas familiares.
Assim, partindo da constatação da existência de um elevado
número de grupos domésticos alargados e múltiplos em Alfama,
defini como objecto de estudo a complexidade familiar.
Pretende-se aqui, então, caracterizar estas famílias complexas que
vivem em Alfama em condições de sobreocupação, e que traduzem
um modo muito específico de viver num bairro antigo como Lisboa.
2. Processos de formação da complexidade familiar e
sua reprodução:
Em primeiro lugar, foi possível confirmar que os grupos domésticos
são unidades dinâmicas cuja estrutura varia ao longo do ciclo de
vida familiar como resposta quer, a condicionamentos externos,
quer a crises de transição internas. Neste sentido, identificámos
vários momentos de complexidade que correspondem a fases do
ciclo de vida familiar nas quais o grupo doméstico se alargou pela
inclusão de outros familiares.
Sendo assim, as famílias complexas formam-se hoje, essencialmente, devido à necessidade de acolher determinados familiares em
situação de crise, ou seja, a complexidade é uma resposta transitória a um problema familiar, como por exemplo a gravidez súbita
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Cristina Santos Silva
de uma filha e consequente casamento ou a doença grave de um dos
ascendentes do casal. Identificámos, então, dois grandes momentos de complexidade que decorrem do alojamento no seio do grupo
doméstico do novo casal formado por um dos filhos e do acolhimento dos pais ou sogros idosos. Estes momentos de complexidade são
assim previsíveis e surgem como uma resposta a uma fase do ciclo
de vida do grupo doméstico, na qual é necessário accionar as redes
de solidariedade familiares. Como nos diz Paulo:
"(…) e como a gente não tinha nada, o meu pai vem falar comigo e diz-me assim: 'então não casas com muito, casas com
pouco, eu quando casei também casei sem nada e hoje temos
a nossa casa. Tu tens aqui o teu quarto, vens para aqui e
casas-te!'. E assim foi, combinámos o casamento."
Paulo, 70 anos, reformado (ex-contínuo), família nuclear
A família demonstra, assim, desempenhar um papel assistencial
crucial ao longo de toda a sua trajectória. De facto, é notória a força
da ideia de troca e reciprocidade de serviços entre os membros da
família transmitida pelos nossos entrevistados, que se traduz numa
forte solidariedade intergeracional, ilustrada pelas ajudas financeiras aos filhos, pela guarda dos netos, pelo acolhimento de pais
viúvos ou doentes, entre outras manifestações de entreajuda.
"O primeiro local onde morámos foi até hoje a casa da minha
mãe. Então, passámos uma vida juntas, sempre a fazer tudo,
é assim mesmo, e de repente não ia deixar ficar a minha mãe
sozinha. Naquela altura não tinha lógica. Pronto, a casa é relativamente grande, não é?! Mas, exactamente porque ela
estava sozinha, eu estava no princípio e o ordenado também
não era muito grande, apesar do meu marido também trabalhar, mas... era também um dispêndio muito grande. Foi mais
uma questão económica e de bem-estar."
Marília, 42 anos, doméstica (ex- auxiliar de enfermagem), família alargada
Inclusive, esta solidariedade familiar substitui-se ao Estado na sua
função de apoio social, como por exemplo: através da guarda dos
netos pelos avós como resposta à carência de creches e infantários
públicos e através do acolhimento dos pais idosos dada a inexistência e o preço dos lares. As lógicas da sociedade-providência podem,
assim, funcionar como um complemento das instituições pertencentes ao Estado-providência, para as situações às quais este tem
dificuldade em encontrar soluções adequadas.
"Agora tenho cá os netos. Andam já na escola. Um tem quinze
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Viver em Alfama:
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anos, outro tem 11 e a pequenina tem três. Eles estão comigo porque a vida dos pais é difícil. O pai do meu neto foi-se
embora, levou as coisas todas à minha filha. Depois ela teve
outro rapaz e deixou-me o filho, mas esse morreu e ela ficou
sem ninguém... Claro que tinha de ser eu a mãe deles todos!
A menina é filha do meu filho, do Marco, do mais novo. O tribunal tirou-lhe a menina por problemas entre eles. Não podiam
criar a menina e então deixaram-na comigo..."
Maria dos Anjos, 60 anos, doméstica (ex-empregada de pastelaria),
família alargada
"O meu irmão mais novo ficou com a minha mãe já depois de
não estar ninguém, portanto é o que olha pela minha mãe,
pronto é o que está ali, mesmo que a minha mãe de hoje para
amanhã se vá, ele fica ali. A minha mãe não queria ficar sozinha, desde que faleceu o meu pai, sozinha não queria ficar, nem
que fosse até um neto, mas para ficar onde ela pede, para
morrer onde nasceu, tinha que ficar com alguém. Também era
a solidão, não é? Ela no fim de ficar com tantos netos, que já
tem 21 netos, já tem dois bisnetos, porque eu também já sou
avó e agora ver-se sozinha acho que também para ela, também
era um contratempo, pronto era muito vazio, mas assim sempre tem o meu irmão e um neto já a viver com ela. Já não é
como era, porque durante o dia a gente tem a nossa vida, não
é? Mas pronto chega à noite sempre tem o meu irmão, a
minha cunhada e o menino, porque senão era um vazio muito
grande, para quem viveu com tantos filhos e tanta preocupação, é o que ela diz, também já era muito sossego!"
Edite, 36 anos, empregada de limpezas e vendedora ambulante,
família nuclear
Apesar do ideal de família dos nossos entrevistados não corresponder à família complexa (pelo menos, enquanto estrutura permanente), verificámos que na prática a complexidade familiar é até em
certa medida desejada pelos pais que acolhem o novo casal, dado
que eles estão dispostos a fazer todo o tipo de sacrifícios pelo bem-estar dos seus filhos e principalmente porque desta forma não
ficam sozinhos. Verificámos, assim, que a complexificação do grupo
doméstico é aceite naturalmente por ambas as partes, sendo a
convivência pacífica.
"Não, não me sinto mal em casa dos meus sogros. Não digo
que me sentisse mal, pois há uma convivência muito sã, mas
só que tinha era que procurar uma casa… Não, o arrependi-
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mento às vezes é mais porque houve um, como hei-de dizer, um
encostar, vamos chamar assim um acomodar, mas não é um
acomodar por preguiça, é um acomodar porque na altura havia
dificuldades e os ordenados eram muito baixinhos. Foi uma
época talvez mais difícil que houve na minha geração, não só
para arranjar emprego, mas principalmente para comprar uma
casa, juros altíssimos, uma coisa maluca! E eu pensei nisso
também e andei a indagar mas não houve hipótese de nada.
Agora, a convivência com os meus sogros continua a ser muito
boa, muito sã."
Luís, 46 anos, aposentado (ex-conferente de armazém), família múltipla
Quanto aos filhos, o desejo de constituir uma família nuclear é algo
que se pode encarar como um ideal, por vezes, de difícil concretização, pois dadas as suas situações económicas seria quase impossível a sua sobrevivência sem o apoio e a ajuda dos pais.
Estas dificuldades económicas do início de vida são ainda agravadas
pela origem social dos nossos entrevistados, pois não se encontram situações de herança ou de existência de um património que
lhes permita fazer o arranque da vida conjugal sozinhos. Mais tarde,
quando a sua vida está mais estabilizada acabam frequentemente
por não sair de casa: porque se acomodaram à situação mas, fundamentalmente, porque agora que os pais estão velhos não seria
justo abandoná-los, pelo que os nossos entrevistados pensam ter
chegado a altura de lhes retribuir o apoio prestado e o afecto
demonstrado.
"Fiquei logo grávida, entretanto o meu padrasto adoeceu, a
casa era grande. Ainda arranjei uma casa a pagar renda, não
comprei, aluguei. Nunca cheguei a habitá-la porque entretanto
o meu padrasto adoeceu, ela ficou sozinha... E eu, pronto,
deixámos a casa e fico com a minha mãe. Porque nunca a deixei, não é? Fiquei sempre com ela. (…) Ela gostava que eu
tivesse o meu espaço, mas que também estivesse ali, queria
as duas coisas ao mesmo tempo. Porque ela nunca esteve
sozinha e acho que não se habituava…"
Helena, 32 anos, empregada de refeitório, família alargada
Deste modo, as justificações para a permanência em situação de
complexidade são essencialmente de ordem económica, mas também de ordem afectiva, estas últimas intimamente interligadas com
claras normas de retribuição e reciprocidade no seio da família.
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Viver em Alfama:
Trajectórias Familiares e Solidariedades num Bairro Histórico
Verificámos ainda outro fenómeno que é o da reprodução da complexidade: como a família de origem já passou por um processo de
complexidade, há uma disposição dos nossos entrevistados para a
constituição de grupos domésticos complexos ou para muito simplesmente permanecerem em casa dos seus pais depois de casados, casa essa que em muitos casos já foi antes lugar de complexidade nas gerações anteriores, sendo por isso natural que o volte
a ser. A complexidade familiar é assim um fenómeno cíclico ao longo
da trajectória familiar, constituindo-se como uma manifestação de
entreajuda e solidariedade entre os membros do grupo doméstico.
3. "Cá em casa cabe sempre mais um!" - Trajectórias
familiares de migração:
Em segundo lugar, verificou-se que a formação de grupos domésticos complexos foi também, no passado, consequência da conjuntura de migrações de trabalho de que foi alvo o bairro de Alfama, na
medida em que muitas das famílias entrevistadas complexificaram o
seu agregado através do alojamento quer de hóspedes, quer dos
seus parentes que vinham trabalhar para a cidade.
"Ficou lá em casa muita gente. Toda a gente que vinha das
aldeias do meu pai e da minha mãe, porque eram aldeias muito
juntas, era sempre para casa dos meus pais que vinham. Por
isso vieram os meus tios, que eu me lembre, vieram viver para
lá e trabalhar em Lisboa, ficavam lá todos. Algumas primas
minhas também vieram para lá, acabaram por casar na minha
casa, depois é que foram viver para a casa delas, pelo menos
três... quatro primas minhas. A minha casa teve sempre
gente e era uma casa muito pequenina e é!"
Jorge, 35 anos, desempregado (ex-servente de armazém), família nuclear
As situações de hospedagem (aluguer de quartos ou de partes de
casa) estavam predominantemente associadas a migrações de
famílias ou de indivíduos isolados que assim que possível traziam a
mulher e os filhos. Deste modo, a hospedagem implicava uma vivência partilhada do espaço habitacional e o ambiente era habitualmente considerado como familiar, ou seja, a família residente ao
acolher os hóspedes estava no fundo a constituir-se como um
grupo doméstico complexo. As refeições eram frequentemente realizadas em conjunto e os momentos de lazer eram intimamente partilhados, havendo inclusive casos em que as famílias se uniam
através de laços de aliança, com a morte de um dos cônjuges arrendatários do fogo e a viuvez de um dos hóspedes ou com o casamento de alguns dos seus filhos.
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"A maior parte deles vêm para quartos alugados e houve casos
em que continuaram a viver nessas casas o resto da vida,
houve casas que acabaram por as partes de casa serem separadas e fazerem duas casas. Partes da casa foram separadas da casa e acabaram por constituir um fogo para a
família que lá vivia. Eu penso que esta zona teria sido sempre,
maioritariamente, de migrantes e a gente via que os naturais,
os naturais eram uma minoria! Portanto eles vêm para casas
que já estavam ocupadas, aquilo foi uma sobre-ocupação. Na
casa onde eu vivia, no Beco da Lapa, era uma casa bastante
grande, também viviam duas famílias. Porque havia uma situação que as casas eram bastante caras, as rendas eram
muito caras."
João, 60 anos, reformado (ex-tipógrafo), família múltipla
Por outro lado, principalmente nas primeiras décadas do nosso
século, existiu outro tipo de processo migratório a que chamámos
de individual e que se traduzia pelo envio de jovens adolescentes da
província para a cidade pelos pais, com o objectivo de, através da
ajuda dos seus parentes já radicados no local de destino, conseguirem um futuro melhor para esses jovens migrantes. O seu
percurso profissional era quase sempre o mesmo: os rapazes vinham trabalhar como marçanos ou aprendizes de algum ofício e as
raparigas vinham trabalhar como criadas de servir das famílias mais
abastadas.
"A minha mãe era da Pampilhosa da Serra. Acho que veio para
cá muito novinha, para aí com dezoito anos e esteve cá a partir daí, como empregada. Naquela altura era a servir ali numa
família que eram os nobres de Alcântara. 'Teve muitos anos ali
e depois 'teve em casa de uma outra senhora..."
Marília, 42 anos, doméstica (ex-auxiliar de enfermagem), família alargada
Estas migrações individuais constituíam, também, um momento de
complexidade do grupo doméstico receptor que era quase sempre
constituído pelos tios do jovem. O acolhimento dos sobrinhos significava para muitas destas famílias uma oportunidade de ajudarem
os seus irmãos ou irmãs mais carenciados economicamente, mas
escondia também o interesse de melhorarem os seus rendimentos
através da exploração do sobrinho ou sobrinha, pois muitas vezes
estes jovens iam trabalhar no pequeno negócio dos tios, com uma
remuneração irrisória e sem hipóteses de evolução na profissão.
"Eu no meu caso passei muito... Davam a sopa de café de manhã e se eu não a comesse toda, depois não tinha nada. Lá na
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terra a gente graças a Deus comia, embora às vezes fossemos para a bicha do pão e estivéssemos de madrugada para
trazer uma carcaça de quatro tostões, mas bebíamos café
com leite. Cá era só café e o almoço era comida que sobrava
do dia antes, até uma peça de fruta, depois quando veio a
minha irmã também, era metade para um e metade para
outro. E casa de ricos, sinceramente, e casa de ricos! E sabe
Deus com que sacrifício no Natal os meus velhotes de vez em
quando lá mandavam os presuntos e isto e aquilo e eu até
cheguei a esfregar o meu quarto! Cheguei a esfregar o soalho
do meu quarto com sabão azul e branco, lá na terra alguma vez
fiz isso!? Eram as minhas irmãs ou a minha mãe. Mais tarde é
que puseram oleado, mas eu tinha que passar um pano em
cima e fazia a minha cama até quase ir para a tropa. Não fui
tratado como sobrinho e muito menos como afilhado!"
Manuel, 61 anos, empregado de balcão, família alargada
Verificámos, assim, que os primeiros migrantes já instalados em
Alfama estavam permanentemente dispostos a acolher os seus
familiares da província, mantendo inclusive o espaço residencial em
situação de polivalência - havia sempre colchões ou camas de abrir
e fechar disponíveis para quem chegasse, quer se tratasse de uma
família no início do seu processo de migração, de alguns parentes
em situação de doença ou de internamento hospitalar, ou de algum
sobrinho que vinha estudar ou trabalhar para a capital - complexidade esta que encontrámos ainda actualmente.
"Houve uma altura que já estava o meu irmão casado, que eram
duas pessoas, era a minha mãe, era eu éramos quatro, era a
minha prima, o marido e os dois filhos, oito, era a outra minha
prima, nove, e acho que ainda era outra pessoa que já não me
lembro bem quem era, que ficava na sala. Portanto éramos dez
pessoas lá em casa, numa casa com dois quartos, sala, cozinha e uma despensa!(...) Era tudo polivalente, desde a cozinha à sala. Eu lembro-me que na cozinha na altura havia um
divã de abrir e fechar com uma cortina que à noite era corrida, onde dormia uma das minhas primas. Na sala a mesma
coisa. Os quartos eram polivalentes do género ter duas camas
ou colchões no chão, ou coisa que o valha, por isso toda a casa
era ocupada e à noite transformava-se totalmente para caber
aquela gente toda lá em casa!"
Jorge, 35 anos, desempregado (ex-servente de armazém), família nuclear
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Confirma-se mais uma vez que a complexidade é cíclica e vai-se
reproduzindo de geração para geração, demonstrando neste caso a
existência de fortes laços de entreajuda entre os migrantes e a sua
família que permanece na comunidade de origem. O processo de
migração para Alfama desempenha assim um papel fundamental no
desenvolvimento das solidariedades familiares e na consequente
disposição para a complexificação dos grupos domésticos.
4. Sobreocupação e dificuldades económicas das
famílias complexas:
Verificámos, também, que a complexidade familiar das famílias
entrevistadas está associada à sua classe social. Como já referimos, a falta de qualificações escolares e a falta de recursos
económicos, decorrente das baixas categorias sociais a que pertencem os nossos entrevistados, não lhes deixa outra opção senão
recorrer à solidariedade familiar, o que é mais frequente ainda quando se trata de casais jovens em início de vida.
"Tenho aí um filho que mora aí em frente, que a sogra pô-lo na
rua, a ele e à mulher, e ele veio para aqui viver, dormiu aqui
nesta sala mais a mulher. Agora, pronto, arranjaram aquele
seu buraquinho e lá estão, mas está sempre aqui, come sempre aqui! A minha mulher põe a panela ao lume e se dá para 4
dá para 5... A gente é que tem que entrar com a comida para
todos! Faz-se uma panela de sopa, foram criados com sopa
nem notam, e pronto faz-se uma panela de sopa e todos
comem..."
António, 65 anos, reformado (ex-estivador), família alargada
A complexidade familiar surge-nos, assim, como uma estratégia de
maximização dos parcos recursos económicos do grupo doméstico,
pois o alargamento da família permite melhorar o orçamento familiar através da partilha de rendimentos e da divisão das despesas,
numa lógica em que todos os membros do agregado contribuem
para o bem-estar familiar.
"Neste momento estamos organizados assim: quem está a
trabalhar fora é a minha mulher e o meu mais velho. Eu já
estou aposentado. Os meus sogros, ela é doméstica, ele era
estivador também já está reformado. Os mais novos esses
estão a estudar, o meu sobrinho esse trabalha. (...) Eles ajudam em casa, ou por outra ajudaram até começarem a trabalhar. O do meio ajuda, o mais novo também dentro dos limites
dele, eu também ajudo naquilo que me é possível. A minha
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sogra também já é uma senhora de uma idade um bocado
avançada, doente, já não tem hipótese de fazer o mínimo em
condições. O meu sogro gosta muito de cozinhar e eu também.
Portanto, as tarefas da casa estão mais ou menos distribuídas. (...) As compras nós estabelecemos em casa, as compras
da casa, as mercearias, sei lá, o uso diário da casa, nós fazemos compras ao mês. Vamos a um supermercado e compramos o que necessitamos para o mês, às vezes pode não
chegar, mas é quase sempre. Agora assim aquelas despesas
correntes, vamos chamar assim, o telefone, água, luz, isso
estabelecemos é a parte dos meus sogros, são eles que
pagam e nós fazemos as outras despesas."
Luís, 46 anos, aposentado (ex-conferente de armazém), família múltipla
"Os meus pais eram os dois de Alfama...nascemos todos cá,
sete filhos todos nasceram em casa. E já lá nasceu a minha
mãe. Portanto, a minha mãe ficou a morar na casa onde
nasceu, no 28 do Beco da Lapa, o meu pai é que foi morar para
ao pé da minha mãe. Foi lá que nascemos todos, e os meus
sobrinhos, também. A minha irmã casou-se e ficou a morar lá
em casa, e depois nasceu o meu sobrinho, já faleceu, com 27
anos. Nós vivíamos muito pior, éramos sete, mas ela casou e
teve o meu sobrinho lá, a minha mãe amamentou-o, porque
tinha o meu irmão com um ano e meio, era quase nosso meio
irmão. A minha irmã casou, aconteceu ficar grávida e ficou lá
em casa. A minha mãe ao mesmo tempo que amamentava o
meu irmão, amamentava o meu sobrinho. E nesta altura não
havia trabalho, era a venda, a minha mãe vivia da venda, ia buscar coisas à Ribeira e vendíamos fruta, hortaliça e assim. E
pronto, vinha dar de mamar ao meu irmão mais novo e também
dava ao meu sobrinho. Eu também cresci na venda. Das raparigas sou a mais nova e depois tenho mais dois irmãos. A minha
mãe vendia peixe e depois dava outro tanto peixe para a gente
vender, na nossa porta, no r/c, e depois vendíamos, hortaliça,
também. Pronto era do que a gente vivia."
Edite, 36 anos, empregada de limpezas e vendedora ambulante,
família nuclear
A juntar a este cenário de dificuldades económicas, encontramos
ainda a falta de condições de habitabilidade da maior parte das
casas das famílias entrevistadas, que demonstram como a vivência
da complexidade se faz em condições de vida muito adversas.
"Antigamente a vida não permitia fazer casa e ter casa, então
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o pessoal tinha que se unir todo e passar pelo mesmo, pronto! Tínhamos que viver neste cubículo, olhe que chegaram a
viver aqui 14 e o último que entrava fechava a porta com os
pés, repare bem! Mas não era só aqui, no resto de Alfama toda
e nos bairros operários. Nos bairros mais modernos, têm mais
habilitações na questão de casas, não é? Ora se tiverem 4 ou
5 ou 6 quartos, se houver 10 pessoas são divididas por aque-
las casas todas e ninguém nota. Ao passo que a gente aqui,
como está a ver, veja bem quais eram as habilitações que se
podia ter 14 pessoas, torno a repetir que o último que entrava tinha que fechar a porta com os pés!... É o que está a ver,
é um quarto, é a cozinha e esta casa, não existia casa de
banho nessa altura. (...) Olhe era um colchão aqui no chão, uns
cobertores, uns lençoizinhos, umas almofadas e pronto!
Demanhã enrolava-se aquilo tudo, punha-se a um canto da
casa, depois à noite estendia-se tudo outra vez..."
António, 65 anos, reformado (ex-estivador), família alargada
Embora este cenário fosse típico das famílias de origem dos nossos
entrevistados, o que se verificou é que a carência de recursos
económicos e habitacionais se reproduz de pais para filhos, ou seja,
é também a necessidade de sobrevivência económica que explica a
complexidade familiar dos nossos entrevistados actualmente.
4. A família 'ainda' é o mais importante:
Para os nossos entrevistados a família é o valor mais importante e
esta é constituída por aqueles com quem se vive diariamente e
entre quem se dão as trocas afectivas e materiais quotidianas, mas
também por aqueles familiares mais afastados a quem se pede ou
se dá ajuda se necessário.
"Dos meus pais ficaram-me as ideias, principalmente de honestidade acima de tudo, e de convivência, de amizade, e principalmente família, familiar, que tento de alguma maneira
transmitir para os meus filhos. (...) A família é o mais importante... porque eu lembro-me na ocasião, o Natal por exemplo, toda a gente passava em casa do meu avô, vinham os filhos, os meus tios e os meus primos, era tudo ali! Hoje em dia
já não ligam muito, mas havia um aconchego familiar que hoje
não há...(...) Para mim o mais importante na família é a convivência..."
Luís, 46 anos, aposentado (ex-conferente de armazém), família múltipla
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Neste sentido, os fortes laços afectivos entre irmãos e irmãs são
uma das conclusões mais inequívocas da nossa pesquisa.
Efectivamente, os laços de germanidade mantêm-se por toda a vida
e são os irmãos que se constituem - para além dos pais e sogros como fonte de ajuda e apoio em caso de necessidade. Os irmãos e
irmãs vão ainda mais longe no apoio prestado, pois sempre que conseguiram ascender às camadas mais elevadas da estrutura social,
procuram dar aos seus irmãos ajuda no sentido da sua promoção
social, oferecendo-lhes hipóteses de empregos mais qualificados ou
ainda bens de consumo de luxo característicos das classes mais
favorecidas.
"Pronto e fico muito contente de as minhas irmãs até terem
mais que eu, mas tenho irmãs minhas que se me puderem ajudar e se eu precisar... como já me ajudaram a comprar a minha
casa, que é uma grande ajuda! Tenho irmãs minhas, além de
estarem melhor na vida, são muito minhas amigas, não diferem do meu marido e de eu andar na venda e a minha irmã ser
analista, eu para a minha irmã sou igual a ela, eu acho que o
respeito, uma pessoa ser educada e unida... a minha irmã vai
na rua e se eu estiver a vender na baixa fala-me e vai com pessoas amigas dela que são médicas e enfermeiras e tudo, e
sabem que eu sou da venda e não sou diferente da minha irmã,
só que eu sou da venda e ela é analista, e o marido dela é médico e o meu é segurança...somos iguais. Nunca houve aquela
indiferença 'a minha irmã anda a vender', ou isto ou aquilo, não,
nunca! Dão-me coisas para a casa, tenho ali aquela coisa 'limoges' que é bastante cara, a minha irmã ofereceu-me pelos
meus anos, tenho ali dois serviços da Vista Alegre, são elas
que me dão porque podem e dão-me coisas que eu se calhar
não podia comprar, para o comer tenho, como bem, mas há
coisas que eu não podia e elas dão-me, tenho imensas peças
de valor, tenho dois Vieiras da Silva que me trouxe a minha
irmã de França, que um vale a quase mil contos e outro seiscentos, também são oferecidos por elas, são Vieira da Silva
mesmo originais, eu é que só mandei fazer a moldura! Quando
faço anos elas oferecem-me coisas, ela trouxe-me este (outro
quadro) de Paris há um ano e depois trouxe-me aqueles que
são Vieiras da Silva e que cada ano que vai passando vão tendo
mais valor. Tenho uma boa garrafeira, também oferecida por
irmãs minhas, tenho aí vinhos com sessenta anos, que é essa
minha irmã que é casada com o médico dá-me, prontos tenho
muita coisa que as minhas irmãs me ajudam."
Edite, 36 anos, empregada de limpezas/vendedora ambulante, família nuclear
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Constatámos, assim, que apesar das relações verticais ocuparem
a fatia mais larga das relações familiares, os irmãos e os cunhados
fazem também parte daqueles que são considerados família, pois
são os que estão mais próximos afectivamente e com os quais se
estabelece a maior parte das trocas.
Mas foi possível, também, verificar a existência de trocas entre o
grupo doméstico complexo e a rede de parentesco mais alargada
(por exemplo, ajuda financeira, apoio em caso de doença, empréstimo de casa para férias, etc.), o que demonstra que, apesar de nalguns casos os contactos não serem frequentes, a rede de parentes funciona como um recurso latente que a família complexa
sabe que pode accionar em caso de necessidade. Por outro lado,
sempre que os parentes necessitarem abre-se a porta para os alojar pelo tempo que for necessário e inclusive os nossos entrevistados estão dispostos a ceder a sua cama.
"A família é sempre a família. Como se diz em Alfama há sempre comer para mais um! Em Alfama e não só em Alfama, como
noutros bairros históricos Mouraria, Graça e mesmo Castelo,
aqui tem-se muito o orgulho na família. Portanto não há
ninguém que não se possa valer, mesmo zangados ou coisa
assim parecida, um familiar que esteja a passar mal, com
excepções não há ninguém que diga que não dá um prato de
sopa, que não dá comida, que não dá uma atenção, seja aquilo
que for. Vou-lhe dar um exemplo, o caso do meu avô: o meu avô
nunca gostou do meu pai, e no entanto, quando ele estava às
portas da morte, era o meu pai que o tratava, que o lavava,
que lhe fazia a barba, que lhe fazia tudo! E mesmo assim, foi
ele o primeiro a estar livre, e o meu avô tinha outros filhos!"
Luís, 46 anos, aposentado (ex-conferente de armazém), família múltipla
Esta solidariedade e este espírito de entreajuda é essencialmente
familiar, mas no entanto, também se aplica aos vizinhos e amigos do
bairro ou até a estranhos que estejam em situação de carência
extrema, confirmando-se o seu carácter assistencial.
5. A porta sempre aberta! - solidariedade em Alfama:
Para além das trocas e interacções entre os membros da família,
existem ainda as relações de vizinhança e a entreajuda características de Alfama, que também reforçam a solidariedade que encontrámos entre as famílias entrevistadas e que conduzem em última
instância à complexidade familiar.
"A minha porta está sempre aberta, 'tá, 'tá sim senhor! Olhe
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esta porta por exemplo, olhe esta casa, olhe minha senhora
que isto é verdade, esta minha porta já a tenho aberto, esta
minha porta a muita gente, isto é verdade! Eu e a minha mulher, pronto. É o que a gente pode, é verdade é, não sei se é
por ter tido muitos filhos e muitos sobrinhos; toda a gente
bate à minha porta e eu sou amigo de toda a gente! Não posso
ver ninguém em dificuldades, não, é uma coisa que já nasceu
comigo também...não sei o que é que tenho comigo, não sei o
que é que me acompanha na vida, pronto não sei. Passa-se
qualquer coisa comigo e com os meus... Olhe que já apareceu
aqui gente sem ser cá de Lisboa, sem ser, sei lá, já apareceram aí estrangeiros, estrangeiros da Alemanha, sentam-se aí
a dormir aqui na rampa cheios de fome, cheios de frio,
descalços todos, há sempre aí qualquer coisa para eles, já se
tem feito a estrangeiros quanto mais aos daqui! (...) Mas é
verdade sim senhora que Alfama é um bairro de zaragateiros,
mas unidos, de zaragateiros aqui, eles e elas, matam, esfolam,
vem tudo abaixo, mas se houver alguém doente seja daqui ou
dacolá, mesmo sem ser daqui, não morre de fome e é ajudado,
tem o seu dinheiro, tem a sua roupinha para se agasalhar, é
verdade é. O povo de Alfama é um povo unido é um povo que,
já o disse, matam, esfolam, fazem tudo, mas atrás disso se
vier aqui um indivíduo, mulher ou homem ou uma criança, já não
sai daqui sem o seu agasalho, sem a sua alimentação e
tem...abrigam-no se possível for!"
António, 65 anos, reformado (ex-estivador), família alargada
"A minha casa é pobrezinha, mas cabe sempre mais um, arranja-se sempre lugar, seja para amigos seja para família!..."
Fernanda, 59 anos, (mulher a dias), família alargada
"Quando se diz cá em casa cabe sempre mais um, isso quer
dizer que noventa por cento das pessoas em Alfama não são
daqui, são pessoas que vieram quase todas elas do Norte, do
Sul, acho que um pouco de todo o país, são pessoas que vinham habituadas com um género de vida diferente do que
temos em Lisboa, que eram pessoas de porta aberta.
Normalmente nas aldeias, ainda hoje em algumas aldeias,
ainda se mantém a porta aberta e as pessoas trouxeram um
pouco disso para Alfama. Por isso Alfama é, eu costumo
dizer... Alfama está dentro duma cidade, mas é quase que uma
aldeia, precisamente porque todas as pessoas se conhecem,
toda a gente conhece o vizinho do lado, toda a gente se dá
bem, independentemente das guerrazinhas, as rixas e não sei
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quê, acho que isso faz parte do típico de Alfama, mas que as
pessoas mantiveram o que trouxeram de fora para dentro,
isso foi! Como a porta aberta, o gostar de receber, o gostar
de ajudar, acho que é mais ou menos isso. (...) Para mim abre-se sempre a porta e há sempre lugar para mais um, exactamente. Há três colchões descartáveis no sótão!..."
Jorge, 35 anos, desempregado (ex-servente de armazém), família
nuclear
* Socióloga
Câmara Municipal de Lisboa - DMCRU/Unidade de Projecto de Alfama
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De "Crianças Perigosas" a "Crianças em Perigo"
Delinquência Juvenil em Lisboa (1852-1912)
Eunice Relvas*
A escolha da temática da delinquência juvenil pareceu-nos pertinente pela actualidade e amplitude que esta assume na nossa
sociedade, particularmente no meio urbano. A sua origem perdeu-se na memória do tempo, mas foi com a cidade industrial, no século XIX, que assumiu maior visibilidade e importância. Nesse século o
debate sobre a infância centrava-se nos problemas do trabalho
infantil e da mendicidade, vagabundagem, menores abandonados e
pequenos criminosos.
Foram muitos os Congressos Internacionais Penitenciários que a
partir de 1846 se realizaram nas grandes cidades europeias1,
nestes delegados governamentais, directores de prisões, juristas,
advogados, arquitectos e filantropos colocavam questões, trocavam experiências e aprovavam soluções concernentes às leis
penais, reformas prisionais e assistência juvenil, influenciando, ou
tentando influenciar, o poder político. Chegando mesmo a constituir-se depois do Congresso de Londres, em 1874, uma Comissão
Penitenciária Internacional2; preocupada em estabelecer a idade a
partir da qual as crianças tinham discernimento moral para serem
responsabilizadas pela prática de crime. A evolução da legislação
penal vai caminhar no sentido da definição não só no grau do discernimento do jovem, mas também na natureza do crime cometido.
Variando as penas de acordo com a idade e crime, mas também os
locais de internamento como as prisões ou instituições de reeducação infanto-juvenil: casas de correcção ou reformatórios.
Em 1815 apareceu pela primeira vez, na Inglaterra, a expressão
"delinquência juvenil". A mesma expressão surgiu no ano de 1823
nos Estados Unidos da América3 tendo por base a ideia de que crianças e jovens não deviam ser tratados jurídica e socialmente como
os adultos. Com efeito, até Oitocentos o direito penal não os distinguia, partilhando os jovens e os adultos as mesmas penas e
prisões. A responsabilidade criminal dos menores era determinada
pelo critério dos tribunais. O desenvolvimento dos movimentos
filantrópicos originou a criação das casas de correcção destinadas
a jovens delinquentes e, também, neste contexto evolutivo foi criado o primeiro tribunal de menores, em 1899, em Chicago4.
RESUMO
A criminalidade infantil foi e é na actualidade
objecto de preocupação para a opinião pública e
de reflexão dos meios de comunicação social, de
juristas, antropólogos, sociólogos e demais
interessados pela temática. O que pretendemos com esta comunicação é estabelecer
o percurso das crianças e jovens que vagueavam pelas ruas de Lisboa, do Liberalismo à
I República.
Enquadrar os menores delinquentes da lei à
prática, desde a sua classificação em "crianças
perigosas", até à categoria de "crianças em
perigo". Inventariar os espaços de reclusão e
correcção. Olhar o quotidiano correccional e
caracterizar estes menores e os seus crimes
perscrutando o passado não muito longínquo.
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De "Crianças Perigosas" a "Crianças em Perigo"
Delinquência Juvenil em Lisboa (1852-1912)
Na actualidade a expressão "delinquência juvenil" emprega-se universalmente, se bem que não tenha a mesma definição em todo o
mundo, nem a maioridade penal seja igual em todos os países. Na
maioria das nações a maioridade penal é estabelecida entre os
quinze e os dezasseis anos5; em Portugal foi fixada nos dezasseis
anos. Regressemos, agora, ao passado para estabelecer os percursos e rostos das crianças e jovens delinquentes que povoavam as
ruas de Lisboa, da lei à prática.
1. A lei e o menor delinquente
A autonomia do direito de protecção à infância constituiu-se nas
legislações latinas e, por conseguinte, em Portugal tendo como
ponto de partida o direito penal. Com efeito, pelo Código Penal de
1852 foi inaugurada a irresponsabilidade criminal até aos catorze
anos de idade; até à sua publicação as crianças estavam sujeitas
às mesmas regras do adulto, existindo apenas algumas atenuantes
para os menores de sete anos. Porém, por este Código a
impunidade criminal entre os sete e os catorze anos ficava
entregue ao critério dos juizes.
Na prática uma criança a partir dos sete anos de idade poderia ser
considerada criminosa por entregar-se à vadiagem, mendicidade ou
roubo, sendo-lhe por esses crimes imputada uma pena de prisão.
Se fosse considerado irresponsável o menor de catorze anos deveria ser internado numa casa de correcção, mas somente vinte anos
depois da publicação deste Código foi fundada a primeira Casa de
Correcção de Lisboa. Na realidade os menores do sexo masculino
eram enviados até aos catorze anos para a cadeia do Aljube, correccional, e os outros para o Limoeiro6. Além disso, a Lei de 27 de
Julho de 1855, permitia que os vadios entregues ao governo fossem destinados ao serviço militar. Por isso até à fundação da
Correcção, o exército e a armada funcionaram como instituições de
correcção e integração social para os jovens vadios que fossem
robustos7.
O Código Civil de 1867 (art. 284.º e segs.) previa que os menores
abandonados com sete ou mais anos de idade fossem entregues a
um Conselho de Beneficência Pupilar para se lhes dar um rumo na
vida, quer colocando-os em estabelecimentos de beneficência ou
entregando-os a famílias que os educassem8. Os menores abandonados ou mendigos eram também enviados para os asilos particulares
e públicos existentes na capital, sendo-lhes aí fornecida educação
profissional, de que foi (e é) exemplo maior a Casa Pia de Lisboa9.
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O decreto de 11 de Março de 1875 criou uma comissão para estabelecer os meios para fundar mais casas de correcção e colónias
agrícolas destinadas a menores; mas a sua acção foi mal sucedida 10. A Lei de 22 de Junho de 1880 criou uma escola agrícola destinada a menores vadios, mendigos, desvalidos e desobedientes .11
Contudo, a primeira colónia só seria fundada passados quinze anos.
O Código Penal de 1886, mais rígido, continha várias disposições
sobre a responsabilidade criminal da criança, estipulando para os
menores com mais de dez anos e menos de catorze, quando praticassem o crime com discernimento, a prisão maior e a correccional.
A reincidência e o aumento progressivo da criminalidade entre os
menores originou que a Lei de 21 de Abril de 1892 englobasse os
menores de onze anos na via da deportação. Apesar de ter sido
dado parecer contrário da Procuradoria Geral em Dezembro de
1893, só o Decreto de 23 de Março de 1899 veio anular esta ordem
de degredo e considerar como único destino para os pequenos
vadios a Colónia Agrícola de Vila Fernando 12.
Em Abril de 1897 no Congresso Internacional de Direito Penal, realizado na Academia das Ciências de Lisboa, por acção do grupo português da União Internacional de Direito Penal, reflectiu-se grandemente sobre a delinquência infantil defendendo-se que esta deveria
ser retirada do direito penal geral e dos tribunais comuns; condenou-se o regime de cadeia civil da Correcção e manifestou-se a
necessidade de uma nova orientação do direito penal em relação aos
jovens. Dentro desta óptica foi aprovado o Regulamento da Casa de
Correcção, (1901) pelo qual deixou esta instituição de ser cadeia civil
(art. 1.º do decreto de 1871) transformando-se em casa de recolhimento, de educação e regeneração. Igualmente, em 1902, foi criada
a Comissão do Patronato em Lisboa, para servir de amparo aos que
abandonavam as casas de Correcção, porém a sua acção foi nula 13.
Após a instauração da República instituiu-se uma Comissão, pelo
decreto de 1 de Janeiro de 1911, de protecção aos menores em
perigo moral ou delinquentes, presidida pelo governador civil de
Lisboa, com o objectivo de classificação dos menores que lhes fossem presentes, tendo por fim a sua reabilitação. Porém, os maiores
de dezasseis anos continuavam sujeitos aos tribunais comuns.
Somente através da Tutoria da Infância 14, criada pela Lei de 27 de
Maio de 1911, a República inaugurou uma nova fase de prevenção
da criminalidade infantil e protecção à infância desamparada. Foi
este o diploma fundamental do direito de protecção a menores,
segundo os inspiradores princípios de outros países europeus,
porque criou e regulou o funcionamento das Tutorias de Infância, ou
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como eram designados no estrangeiro tribunais de menores, afastando o menor do direito penal tradicional. O menor vadio, mendigo
ou delinquente deixou de ser visto como "perigoso" porque conhecedor da corrupção, cheio de vícios, em suma um criminoso precoce,
para passar a ser visto como uma vítima da sociedade injusta que
com os seus defeitos e males colocava os menores "em perigo
moral", cabendo ao Estado o dever social de os proteger. Mais, a Lei
de 1911 classificou os menores de dezasseis anos sujeitos à acção
das Tutorias 15. Depois de classificado era-lhe dado o respectivo destino, tendo em atenção a sua idade, o seu desenvolvimento e o seu
futuro. As colónias e, mais tarde, os reformatórios, foram estabelecimentos de reeducação e correcção dos menores julgados
pelas Tutorias 16.
Devemos ainda referir que a inauguração da Tutoria de Lisboa, em
14 de Julho de 1911, foi seguida da sua congénere no Porto em
Novembro de 1912, a sua implantação em todas as comarcas só foi
concretizada em Maio de 1925. Desta forma enquanto um menor
preso por furto em Lisboa e no Porto era absolvido, no resto do país
era condenado a uma pena de 2 ou 3 anos de prisão 17! Na verdade
a Lei de 1911 teve uma aplicação reduzida mesmo na capital e no
Porto, onde não existiam casas de trabalho nem escolas de reforma com capacidade para acolher todos os menores levados à tutoria; devolvidos à rua, sem quaisquer mudanças nem noção dos erros
cometidos, reincidiam vez após vez, alcançando com rapidez a categoria de incorrigíveis. De assinalar que a Lei de 20 de Julho de
1912 prescreveu que os delinquentes dos dezasseis aos sessenta
anos, com várias condenações fossem considerados vadios, sendo
como tal condenados e colocados à disposição do governo para
internamento em casa de trabalho ou em colónia penal agrícola 18,
por período de mais três meses a seis anos. Os indivíduos do sexo
feminino eram internados na cadeia do Aljube.
Em Portugal tentou-se através da legislação solucionar o problema
da delinquência infantil e protecção jurídica aos menores, que foram
objecto de diplomas específicos e jurisdições especiais, se bem que
maioritariamente sob o aspecto da correcção da criança delinquente. Porém, os princípios consagrados na lei que previam a reeducação do menor delinquente, nalguns casos não foram concretizados e noutros revelaram-se insuficientes, conforme veremos de
seguida.
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2. O menor delinquente: a realidade
Na Lisboa de Oitocentos e do início do século vinte eram numerosos
os garotos, desocupados, abandonados à sua sorte, dormindo pelos
bancos, sendo a capital percorrida por uma multidão de crianças
que vendiam jornais, faziam recados e levavam bilhetes; que mendigavam e, para sobreviver chegavam a roubar. Muitas eram crianças
abandonadas ou que tinham fugido de casa, onde eram sujeitas a
maus tratos ou simplesmente onde a miséria dos pais tinha trocado o carinho pelo trabalho precoce, quantas vezes superior às suas
pequenas forças; sujeitas a uma disciplina dura pelo patrão, obrigadas a entregar em casa o que ganhavam, as crianças revoltavam-se; e, abandonavam o lar, entregando-se à ociosidade 19.
Na rua eram obrigadas a sobreviver a qualquer preço, roubando uma
peça de fruta para matar a fome, iniciando-se no roubo precocemente, num caminho fatal que as conduziria à cadeia. A solidariedade entre os pequenos vadios de Lisboa, criava uma identificação e sentimento de pertença a um grupo, que levava à adopção
de certas atitudes e comportamentos identitários: calão, escritas
secretas, tatuagens 20, uso de armas brancas e alcoolização precoce. A rua era deste modo o meio identitário, socializador e iniciático no mundo do crime do pequeno delinquente. O estado
paupérrimo e de abandono social estava patente nalgumas crianças
que eram enviadas para a Correcção: "o fato vem muitas vezes em
tal estado que é preciso ser logo queimado, e o corpo coberto de
imundice e de vermes 21". Muitos destes menores eram órfãos, filhos ilegítimos ou abandonados pelos pais. Em 1894, dos 129 internados na Casa de Correcção, 23 (17,8%) encontravam-se abandonados antes de cometerem algum crime, 23 (17,8%) eram órfãos
de mãe e 34 (26,3%) de pai 22, ou seja 61,9% destes menores não
possuíam um dos pais ou ambos!
Estes garotos que viviam n(d)a rua eram vítimas fáceis de uma polícia estúpida e ignorante, que os acusava de: "estar a olhar para a
Lua, ou de adormecer em qualquer canto da Avenida. (...). Garoto
que não reverenceie o polícia, que tenha para com ele uma atitude
de escárnio, já sabe que, mais dia menos dia, tem sobre os seus
ombros as unhas de qualquer cívico. E na acusação aparece o crime
mirabolante de "tourear um polícia". É a fórmula que se costuma
usar contra este irreverente que, às vistas do guarda esboçou um
sorriso ou espirrou mais alto sem a devida licença 23." Em visita ao
Limoeiro, em 1902, Raúl Brandão perguntou a dois rapazitos
porque estavam presos um respondeu que "por atirar pedras" e o
outro "por não ter onde dormir 24." Muitas vezes um correctivo a
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uma criança desobediente poderia resultar numa condenação como
vadio, por exemplo, num requerimento de 20 de Junho de 1898 uma
mãe relatava que o seu filho de 13 anos tinha sido por sentença
entregue ao governo pelo "simples facto do pai (…) se ter queixado
da ausência de casa" durante os festejos do centenário da Índia 25.
As pequenas transgressões aos regulamentos policiais condenavam
crianças e jovens a sucessivas penas correccionais nas cadeias
civis e depois dos anos 70 de Oitocentos nos estabelecimentos de
internamento destinados a menores.
3. Espaços de internamento de menores
Façamos então uma análise sucinta dos estabelecimentos para
menores delinquentes da capital - a Casa de Correcção e o Refúgio
da Tutoria da Infância. Por último, observemos a Colónia Agrícola de
Vila Fernando, pois situando-se no Alentejo, os seus internados
eram jovens delinquentes da capital.
A Casa de Detenção e Correcção de Lisboa
A 20 de Outubro de 1872 foi inaugurada a Casa de Correcção no
antigo convento das Mónicas, com um atraso de duas décadas 27. A
sua fundação foi estabelecida pela lei de 15 de Junho de 1871, que
a classificava como uma cadeia civil para menores e casa de trabalho (art. 1.º). Era destinada aos menores de dezoito anos em prisão
preventiva ou condenados a prisão correccional; aos menores presos à ordem da autoridade administrativa; aos que tinham menos
de catorze anos condenados a qualquer tipo de pena; e aos menores
presos por serem filhos desobedientes e incorrigíveis.
O seu Regulamento promulgado pelo decreto de 10 de Setembro de
1901, traduziu como já referimos, a preocupação por um nova pos-
tura relativamente à delinquência infantil, transformando a casa de
correcção em casa de recolhimento, regeneração e educação de
menores delinquentes do sexo masculino, alargando a sua alçada
aos menores condenados a prisão celular; aos menores postos à
ordem do governo nos termos da lei penal; aos menores expostos
abandonados a cargo das autoridades que se mostrassem desobedientes e incorrigíveis 28. Apesar disto, a Casa era uma prisão, onde
se amontoavam rapazes mendigos, abandonados, vadios, pequenos
criminosos, idiotas, doentes mentais, etc. sujeitando-os à promiscuidade, a castigos bárbaros e ao trabalho em oficinas. A partir da
direcção de Silva Pinto (1896) foram abolidos os castigos corporais
e reorganizado o ensino nas oficinas e aulas. Contudo, a permanência na Correcção não evitava que chegados aos dezoito anos, estes
rapazes a quem o trabalho fora ensinado como o rumo a seguir pela
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vida fora, fossem abandonados sem que o regime correccional completasse a sua protecção com a oferta de trabalho.
Esta cadeia civil para menores funcionou até 1903 nas Mónicas, ano
em que foi transferida para o Convento da Cartuxa, em Caxias. A
insuficiente capacidade de resposta determinou esta transferência
de instalações; porém, em 1905 estando aí albergados 121 reclusos, permaneciam mais do dobro à espera de vaga no Limoeiro, o que
levava alguns juizes a absolver os menores delinquentes, devolvendo-os à rua. Em 1903 estavam nas novas instalações da Casa, em
Caxias, 122 menores, possuindo esta uma banda musical e estando
em preparação a entrada em funcionamento de oficinas de serralheiro, sapateiro, carpinteiro e alfaiate entre outras. Inaugurou-se o
seu período áureo. Pela lei de 27 de Maio de 1911 passou a denominar-se Escola Central de Reforma de Lisboa, destinando-se à educação e regeneração dos menores do sexo masculino, com mais de
nove anos e menos de catorze, julgados delinquentes ou desamparados (art. 145.º). Ministrava-se instrução geral (escolar, familiar, física, artística e manual); ensino industrial (marcenaria, serralharia
mecânica ou artística, talha, litografia, tipografia, alfaiataria e sapataria) e ensino agrícola (horticultura, pomologia e jardinagem). Após
a Grande Guerra entrou em decadência. De tal forma as esperanças
depositadas na Correcção se esfumaram que o seu director, o padre
António d'Oliveira, afirmou em 1918 que sentia que não tinha abandonado a Casa de Correcção das Mónicas 29!
No dia 27 de Abril de 1904, inaugurou-se com duas reclusas, nas
Mónicas, a Casa de Detenção e Correcção de Lisboa, para menores
do sexo feminino, maiores de dez e menores de dezoito anos. Para
além do ensino primário, possuía sala de costura, engomadaria,
lavandaria e uma aula de ginástica. Sendo todo o serviço interno por
elas assegurado. Faziam também o trabalho de ajuntadeira nos sapatos dos internados da Casa de Correcção de Caxias. Levantavam-se às seis horas da manhã e deitavam-se às oito e meia da noite.
Aos Domingos e Dias Santos não trabalhavam e tinham de ir à
missa 30. Um quotidiano não muito diverso do existente nos asilos
destinados ao sexo feminino da capital.
Nos Anuários apurámos que de 1885 a 1900, entraram na casa de
correcção 6.943 menores do sexo masculino e, de 1904 a 1910,
entraram 129, o que perfaz para o conjunto dos anos em análise um
total de 7.072 menores. Se a estes juntarmos as 55 menores do
sexo feminino que entraram, de 1905 a 1910, chegamos ao número
total de 7.127 menores detidos e condenados a pena correctiva. De
notar o grande decréscimo de entradas verificado entre 1904-1910
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para os menores do sexo masculino 31. Entre 1887-1900 do total
dos 6.943 reclusos condenados 430 (6,2%) tinham de 7 a 10 anos,
3.246 (46,8%) de 11 a 14 anos, 3.226 (46,5%) de 15 a 18 anos e
41 (0,5%) de 19 a 20 anos; em 1904-1910 dos 129 menores entra-
dos 15 (11,6%) tinham entre os 7 a 10 anos, 81 (62,8%) de 10 a
14 anos e 33 (25,6%) de 15 a 18 anos. Quanto às 55 reclusas 3
(5,4%) tinham de 7 a 10 anos, 25 (45,5%) de 10 a 14 anos e 27
(49%) de 15 a 18 anos.
Sabemos também as causas de entrada dos menores do sexo masculino na Casa de Correcção de Lisboa 32. Por forma a possibilitar a
comparação de dados num período de quinze anos e detectar continuidades ou rupturas, optámos pela junção das causas de
detenção mais frequentes em três períodos temporais, o resultado
encontra-se no quadro 1.
A sua análise permite-nos verificar que a vadiagem, a par com o
furto, era dos crimes com maior representatividade nos três períodos em questão. Igualando em termos de percentagem o furto em
1885-1892; decaindo 7% em 1893-1900 (em relação ao furto desce
10%), mas atingindo quase os 50% das causas de detenção entre
1904-1910. O decréscimo verificado entre 1893-1900 pode
explicar-se pelo aumento da prisão por diversos delitos insignificantes (abuso de confiança; ultraje ao pudor, porte de arma proibida, embriaguez, dano, resistência, burla, ofensas à moral, etc.). Ser
um garoto da rua, sem casa e sem ninguém que dele cuide, é um
Quadro 1 - Causas de Detenção de Menores do sexo masculino na Casa de
Correcção de Lisboa - 1885-1900; 1904-1910 (percentual)
Crimes
1885-1892
1893-1900
1904-1910
Vadiagem
26
19
48
Furto
26
29
19,5
4
5
23
16
8
0
Ferimentos
8
5
4,8
Injúrias
6
2
0
Sem crime
3
3
0,8
Diversos*
11
29
3,9
100
100
100
Desobediência
Ofensas Corporais
Total
* categoria criada por nós. Fonte: Anuários Estatísticos.
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dos crimes mais cometidos pela maioria dos elementos do sexo
masculino.
Em relação ao sexo feminino a desobediência ocupa o primeiro lugar,
a par com a vadiagem, nas causas de detenção. Seguindo-se-lhes o
roubo e a prostituição com igual percentagem. De realçar a quantidade elevada de condenações, nos dois sexos, por desobediência; e
a presença dos "sem crime", que faziam da correcção uma espécie
de asilo para crianças desprotegidas.
Quanto aos antecedentes dos menores do sexo masculino entre
1887-1900 para 3.819 (55%) eram considerados bons, para 2.228
(32%) maus e para 896 (13%) menores péssimos 33; mais de metade
dos menores de 20 anos foram classificados como tendo bons
precedentes, não tendo tido até á entrada na Correcção qualquer
problema com a justiça, nem cometido qualquer acto reprovável.
Quanto ao sexo feminino, entre 1905-1910, temos 14 (25,5%)
reclusas na categoria de bons antecedentes, 12 (21,8%) com maus
e 29 (52,7%) com péssimos.
O tempo de reclusão, para ambos os sexos, era maioritariamente
superior a dois anos, correspondendo esta permanência na
Correcção, entre 1904-1910, a uma média de 77,4% para o sexo
masculino e 68,9% para o feminino. De assinalar que, entre 18871900, relativamente ao sexo masculino 52,6% dos menores ficavam
detidos de 1 a 10 dias sendo depois devolvidos à rua; só 1,8% ficava mais de 2 anos na Correcção. Alguns autores defendiam que uma
das causas da reincidência era devida à pequena duração das penas.
Quadro 2 - Causas de Detenção de Menores do sexo feminino na Casa de Correcção
de Lisboa 1905-1910 (percentual)
Crimes
1885-1892
Desobediência
25,5
Vadiagem
25,5
Furto
18,2
Prostituição
18,2
Sem crime
9
Ferimentos
1,8
Incorrigivéis
1,8
Total
100
Fonte: Anuários Estatísticos.
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Com efeito, entre 1886-1887, da Correcção de Lisboa saíram 743
menores, sendo que destes 252 estiveram encarcerados de um a
dez dias, sendo portanto impossível neste espaço de tempo conseguir-se a sua reeducação 34. Por tudo o que foi exposto podemos
concluir que o propósito de moralização da Correcção, a sua pretensa acção civilizadora foi praticamente nula.
A Tutoria da Infância e o Refúgio
A Tutoria, inaugurada em Lisboa a 14 de Julho de 1911, era um tribunal especial que julgava "no interesse dos menores (...) com o fim
de os guardar, proteger, defender ou corrigir 35," procurando integrálos na sociedade pela educação e trabalho.
Para a sua concretização era essencial a colaboração de instituições de beneficência e particulares bem como a criação de estabelecimentos de detenção e correcção, por isso o legislador reorganizou a Casa de Correcção, fundou a Federação Nacional dos Amigos
e Defensores das Crianças 36 e criou o Refúgio, internato anexo da
Tutoria Central de Lisboa, cuja divisão masculina foi instalada no edifício do extinto Colégio de S. Patrício, (rua da Bela Vista à Graça, 76);
que devido à falta de espaço, destinava-se aos menores de catorze
anos e mais de sete anos, e aos maltratados de mais de sete anos
e de menos de dezasseis anos. Os menores desamparados e delinquentes de mais de catorze anos e de menos de dezasseis anos
ficavam, provisoriamente, na sala dos menores da Cadeia Civil e
Central de Lisboa (art. 136.º). Somente pela Lei de 24 de Abril de
1912 estes jovens deixaram de ser levados para a cadeia civil sendo
recolhidos nas Mónicas, onde muitos permaneciam depois de julgados por as casas de Reforma estarem sobrelotadas e não os
poderem acolher 37. A divisão feminina do refúgio não foi organizada
recolhendo-se as menores numa sala distinta da Escola de Reforma
de Lisboa (art. 135.º). Os refúgios na sua essência eram estabelecimentos de detenção provisória dos menores até ao julgamento por
um período máximo de 60 dias, mas na prática acabaram por transformar-se em verdadeiros asilos. Os internados tinham aulas de
instrução primária, canto coral, trabalhos manuais e ginástica.
Se analisarmos as causa de entradas dos menores do sexo masculino na Tutoria de Lisboa, no ano judicial de 1910-1911, constatamos
que como sucedia anteriormente os principais motivos de julgamento e internamento de menores continuaram a ser o furto (24,9%) e
a vadiagem (21,6%), seguidos da mendicidade (19,8%), das ofensas
corporais (8,4%); abandono (8,1%); arremesso de pedras (5,1%)
surgindo depois o crime de desobediência (3,3%) que entre 1885-
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Quadro 3 Causas de Entradas de Menores do Sexo Masculino na Tutoria Central da
Infância de Lisboa 1910-1911 (percentual)
Crimes
Furto
24,9
Vadiagem
21,6
Mendicidade
19,8
Ofensas corporais
8,4
Abandonados
8,1
Arremesso de pedras
5,1
Desobediência
3,3
Jogo proibido
2,2
Transgressão
1,4
Ultrage à moral pública
1,1
Contenda com traseuntes
1,1
Dano
1,1
Injurias
0,7
Fogo posto
0,4
Homicidio
0,4
Tentativa de furto
0,4
Total
100
Fonte: Relatório do Juiz presidente da Tutoria
1910 ocupava o terceiro lugar nas causas de detenção na
Correcção.
Nas menores do sexo feminino verificou-se uma profunda alteração
nas causas de entradas na Tutoria passando a ser motivo de prisão
a prostituição (42,2%) para a maioria das presentes a tribunal,
seguindo a mendicidade (23,5%) e o abandono a par com a transgressão (os dois com 10,9%), em quinto lugar surgia a desobediência (3,1%) que de 1905 a 1910 era o crime mais cometido pelas
menores da Correcção, a par com a vadiagem.
Os menores chegavam à Tutoria conduzidos pela polícia por terem
cometido algum crime ou então esta instituição ordenava a sua
captura por delinquência, ou a sua simples entrada no Refúgio se
era um menor em perigo moral, dispondo para tal de polícia privativa. Ao dar entrada na Tutoria o menor era interrogado sendo clas-
Tutoria da Infância. Menores desamparadas e delinquentes.
Relatório do Juiz Presidente..., 1914-1915.
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Quadro 4 - Causas de Entradas de Menores do Sexo Feminino na Tutoria Central da
Infância de Lisboa 1910-1911 (percentual)
Crimes
Tutoria da Infância. Médico medindo um menor delinquente.
Prostituição clandestina
42,2
Mendicidade
23,5
Abandono
10,9
Transgressão
10,9
Desobediência
3,1
Maltratadas
3,1
Ofensas corporais
3,1
Furto
1,6
Ultraje à moral pública
1,6
Total
100
Fonte: Relatório do Juiz presidente da Tutoria...
Relatório do Juiz Presidente..., 1910-1911.
sificado em menor abandonado, maltratado, pobre ou vadio, mendigo, delinquente; sendo depois avaliado o motivo da captura era o
seu destino traçado atendendo à sua idade, antecedentes e situação moral e socio-económica. Depois do primeiro interrogatório,
após os cuidados higiénicos e de vestir o uniforme, todos os
menores, fosse qual fosse o motivo de captura, eram sujeitos ao
exame médico realizado no posto antropométrico da Tutoria:
fotografavam-nos, registavam-se sinais particulares, doenças
hereditárias conhecidas, taras visíveis, etc.. No caso dos em perigo moral ou desamparados eram remetidos para o refúgio e estabelecimentos de assistência pública; os delinquentes eram submetidos a julgamento.
O destino dos menores que entraram na Tutoria (1910-1911) foi o
seguinte: para o sexo masculino 49,6% foram soltos e entregues à
família enquanto 39,6% ficaram no Refúgio da Tutoria; os estabelecimentos de assistência pública recolheram 0,3% dos menores e a
Escola de Reforma recebeu apenas 4,4%; para a cadeia central
foram enviados 1,9% dos jovens delinquentes. Do sexo feminino
37,5% foram soltas e entregues à família, ingressando a maioria
60,9% na Escola de Reforma; 1,6% foram devolvidas à rua sob liber-
dade vigiada.
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Quadro 5 - Destino dos menores que transitaram pela Tutoria Central da Infância de
Lisboa 1910-1911 (percentual)
Destino
Sexo Masculino
Sexo Feminino
Soltos e entregues às famílias
49,6
37,5
Refúgio da Tutoria
39,6
-
Escola Central de Reforma
4,4
-
Escola de Reforma - sexo feminino
2,2
60,9
Cadeia Central - sala reservada
1,9
-
Consulado Geral de Espanha
1,1
-
Liberdade vigiada
0,3
1,6
Asilo Maria Pia
0,3
-
Juízos de Investigação Criminal
0,3
-
Refúgio da Assistência Pública
0,3
-
Total
100
100
Fonte: Relatório do Juiz presidente da Tutoria Central...
Na prática no Refúgio encontravam-se menores delinquentes e
menores em perigo moral; além dos anormais aos quais o médico
tinham indicado como destino o internato em estabelecimento apropriado. Todos conviviam no mesmo espaço, o que contrariava a lei,
por manifesta incapacidade de resposta da Escola de Reforma e da
assistência pública.
Colónia Agrícola Correccional de Vila Fernando
As colónias correccionais, na sua maioria agrícolas, difundiram-se
por volta dos anos quarenta de Oitocentos em França - em 1839
tinha sido fundada a primeira colónia agrícola penitenciária de
Mettray -, destinando-se especialmente aos jovens delinquentes,
numa tentativa de retirá-los do sistema prisional, fornecendo-lhes
igualmente uma reeducação profissional e moral 38. Em Portugal corria o ano de 1862, quando o governador civil de Lisboa, fundou na
Quinta do Poço, no concelho de Alenquer, uma pequena colónia agrícola para rapazes vadios. Se bem que a experiência tenha sido
efémera 39.
Já referimos que a lei de 1880 estipulava a fundação de uma escola correccional agrícola; porém, só a 6 de Outubro de 1895, entrou
em funcionamento a Escola Agrícola de Vila Fernando, no concelho
de Elvas, sendo inaugurada com cinquenta e um rapazes presos em
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Lisboa, durante as agitações ocorridas nas comemorações antoninas 40. A partir desta data os menores do sexo masculino postos à
disposição do governo, dos dez aos dezoito anos, eram transferidos
para a Colónia, que podia albergar até trezentos jovens. Contudo,
esta instituição e a Casa de Correcção não tinham capacidade para
acolher todos os menores, continuando o Limoeiro a ser o destino
de muitos deles 41.
O Regulamento provisório era datado de 1 de Agosto de 1895 sendo
substituído por um novo, pelo decreto de 17 de Agosto de 1901.
Por estes era objectivo desta instituição a educação moral, intelectual, religiosa e física dos seus internados e o ensino da agricultura
suficiente para um trabalhador agrícola. O mesmo regulamento pretendendo acentuar o carácter repressivo e intimidatório para os
menores vai modificar a sua nomenclatura substituindo a "Escola
Agrícola" por "Colónia Agrícola Correccional." Entre 1904-1910, foi
de 1.478 o número de colonos reclusos 42. Dos 398 menores entrados neste período as causas da sua reclusão radicavam para 362
(90,9%) da condenação por sentença, para 13 (3,3%) da sua
condição de expostos ou abandonados e para 23 (5,8%) por serem
incorrigíveis e desobedientes aos pais. Destes menores 21 (5,3%)
tinham menos de 10 anos, 210 (52,8%) tinham de 10 a 14 anos,
162 (40,7%) de 14 a 18 anos e 5 (1,2%) de 18 a 20 anos. O tempo
de reclusão era para 55% dos colonos superior a três anos; 29,4%
de 2 a 3 anos; 7,6% de 1 a dois anos; 4,1% de 6 a 12 meses; 3,1%
de 1 a 6 meses e, apenas, 0,8% ficavam internados menos de um
mês. A existência de maiores de dezoito anos na colónia explica-se
através dos doentes mentais, pois o seu internamento poderia ser
prolongado para além dos 21 anos.
A organização desta Colónia Agrícola teve por modelo a de
Ruysselede, na Bélgica, e pretendia regenerar os menores
Quadro 6 - Causas de Reclusão de Menores na Colónia Correccional Agrícola Vila
Fernando 1904-1910 (percentual)
Causas
Condenação por sentença
1904-1910
90,9
Incorrigíveis e deobedientes aos pais
5,8
Expostos ou abandonados
3,3
Total
100
Fonte: Anuários Estatísticos....
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Eunice Relvas
preparando-os para a lavoura. Os ofícios agrícolas predominavam
(hortelões, viticultores, jardineiros, moço de gado, criados de
lavoura, etc.); existiam ainda profissões ligadas à economia da instituição (como alfaiate, sapateiro, carpinteiro, ferrador, etc.); aos
serviços domésticos (cozinha, padaria, lavandaria, etc.); as
reparações e obras de construção de novos edifícios seriam executadas pelos colonos; e, além disso, ministravam-lhes educação cívica. Porém, a sua administração reconhecia que em muitos casos o
menor não saía corrigido 43. O padre António d'Oliveira foi contundente nas criticas às colónias agrícolas, defendendo que estas só
serviriam para incitar os jovens camponeses, através do contacto
com os colonos internados, a emigrarem para Lisboa; e para
fomentarem reincidentes 44.
O fracasso desta política de regeneração pelo trabalho agrícola todo o colono era abrigado a seguir a profissão agrícola, salvo se a
sua saúde o impedisse 45 - residia no facto de os menores habituados à vida na cidade não aceitarem de bom grado a aprendizagem
da agricultura, e também de ao serem soltos, entregues ou não à
sua família, regressarem ao meio urbano, inviabilizando-se assim
qualquer possibilidade de colocarem em prática os conhecimentos
adquiridos.
Conclusão
A preocupação com a protecção das crianças desprotegidas e educação correctiva dos menores delinquentes foi uma constante para
o Estado liberal. Contudo, se em Lisboa ao longo do século XIX
foram fundados vários asilos e outros estabelecimentos de
assistência para a infância e juventude, para os pequenos delinquentes os cárceres do Aljube e Limoeiro - espaços prisionais que
mantiveram um quotidiano de Antigo Regime, de insalubridade,
espaços em ruína e sem separação individual dos presos, por idades
ou crimes - tardaram em ser substituídos pela casa de correcção.
A imprensa relatava os crimes exigindo, em especial, se era oposicionista, medidas enérgicas relativamente à insegurança reinante.
O fascínio do público pela criminalidade manter-se-ia até aos nossos
dias, bem como a exigência de severas medidas disciplinares e prisionais para os delinquentes juvenis seria, na actualidade, aclamada por muitos.
No século XIX e início do século XX depositaram-se esperanças na
solução do crime e delinquência infantil na acção punitiva/regeneradora das prisões, casas de correcção e colónias agrícolas. No
espaço correccional os menores eram submetidos a uma disciplina
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Delinquência Juvenil em Lisboa (1852-1912)
férrea e a toda a sorte de constrangimentos físicos e psicológicos.
Porém, estas medidas revelaram-se infrutíferas. Igualmente a
instauração da Tutoria da Infância não produziu os efeitos desejados
pela falta de recursos económicos, meios humanos e de casas apropriadas. A caminhada dos menores continuaria, em 1915, em
direcção ao Limoeiro 46. Apesar dos esforços desenvolvidos pela I
República o panorama da delinquência juvenil, profundamente
alicerçado na miséria económico-social então vivida, não se alterou
nas ruas de Lisboa.
O debate das ideias, os projectos em torno dos menores delinquentes foi convenientemente esquecido, para ressurgir nos finais
das décadas do século XX face ao aumento acentuado da criminalidade infanto-juvenil. Hoje, as realidades esquecidas (reprimidas e
escondidas no Estado Novo) surgem perante todos nós, como que
transportadas do passado: a desintegração da vida familiar, o
insucesso escolar, a violência, o roubo, o crime fazem parte da vida
diária de muitas crianças da Lisboa do século XXI. Mais do que
nunca é urgente o diálogo e a procura de novas soluções, com a
responsabilização de todas as forças sociais, para combater o fenómeno da delinquência juvenil.
Notas
1
A importância crescente dos jovens no mundo do crime levou à criação
de uma nova secção dedicada a "Crianças e Menores", em 1895, no
Congresso Internacional Penitenciário de Paris.
No período entre 1846-1910 realizaram-se onze Congressos
Internacionais Penitenciários, a saber: 1846-Frankfurt; 1847-Bruxelas;
1857-Frankfurt; 1872-Londres; 1878-Estocolmo; 1885-Roma; 1890-S.
Petersburgo; 1895-Paris; 1900-Bruxelas; 1905-Budapeste e 1910Whashington. Ver Leonards, Chris, (2000), "Priceless Children?
Penitentiary Congresses debating Childhood. A Quest for Social Order in
19th Century' Europe, 1846-1895" in Social Control Conference, Lisbon,
17-20 February 2000 (working papers), p. 24.
2
Ibidem, pp. 5-6.
3
González, Eugénio, (1982), Bandas Juveniles, Barcelona, Edit. Herder, p.
33. Citado por Amaro, António Duarte, (1995), Delinquência Juvenil em
Portugal: contribuição para o estudo da sua génese, evolução e tratamento. Diss. de Mestrado em Sociologia, UTL-ISCSP, pp. 26-27.
4
Em 1906 nos 24 estados mais importantes dos EUA foram criados tri-
bunais de menores. Ver Relatório do Juiz Presidente da Tutoria Central da
Infância de Lisboa. Protecção a Menores, (s.d.), Lisboa, António Borges
Edit., p. 23.
5
Ibidem.
6
A cadeia do Limoeiro, a maior do país, era um antigo palácio real con-
struído por D. Fernando, foi depois Recolhimento das Comendadeiras de
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Eunice Relvas
Santos, mais tarde Casa da Moeda, passando a Casa da Suplicação e das
Cadeias no reinado de D. Manuel. Após a destruição do Terramoto de
1755 foi reconstruído para ser utilizado como cadeia civil. Ver Araújo,
Norberto de, (s.d.), Peregrinações em Lisboa, Liv. II, Parceria A. M.
Pereira, pp. 55-57.
7
Fatela, João, (2000), "Para se lhes dar destino…" in Exclusão na História,
Vaz, Maria João; Relvas, Eunice e Pinheiro, Nuno (orgs.), Oeiras, Celta, p. 158.
8
D'Azevedo, Fernando O. C., (1931), A Tutoria Central de Lisboa, Lisboa,
Imprensa Lucas, p. 7.
Neste ano o Decreto de 14 de Março fundou o Asilo D. Maria Pia, que possuía além da casa asilo uma "casa de detenção e correcção", onde eram
recolhidos os menores desamparados até aos dezoito anos que se encontrassem "divagando por qualquer ponto do districto" in Diário do Governo,
14-03-1867, p. 45.
Em 1876 fundou-se neste asilo a secção correccional destinada ao sexo
feminino. Ver Santos, Maria José M., (1999), A Sombra e a Luz. As prisões
do Liberalismo, Porto, Ed. Afrontamento, p. 174 (nota de rodapé).
9
No ano de 1780 o intendente Diogo Inácio Pina Manique fundou, no
Castelo de S. Jorge, a Real Casa Pia, para recolher e educar os pequenos
órfãos de ambos os sexos que vagueavam pelas ruas de Lisboa. Em 1807
aquando das invasões francesas a Casa Pia do Castelo foi desactivada. Foi
restabelecida, em 1812, no antigo convento do Desterro; mais tarde,
depois da extinção das ordens religiosas (1833) foi transferida para os
Jerónimos, em Belém. Ver Margiochi, Francisco Simões, (1895), A Real
Casa Pia de Lisboa (1780-1895), Lisboa, Tip. Portuense, pp. 7-9.
10
Santos, Maria José M., Op. Cit., p. 62 (nota de rodapé).
11
Publicada no Diário do Governo, 02-07-1880.
12
Santos, Maria J. M., Op. Cit., p. 172 (nota de rodapé).
13
Brazão, Arnaldo, (1932), "Protecção aos Menores Delinquentes: marcha
evolutiva da legislação portuguesa", Separata do Boletim do Instituto de
Criminologia de Lisboa, p. 9.
14
A organização das Tutorias como tribunais de menores ficaria consagra-
da no Estatuto Judiciário pela Portaria n.º 4.882, de 18 de Maio de 1927.
Ver "As Tutorias e o Julgamento de Menores", Boletim do Instituto de
Criminologia, A. VI-VII, vol. VIII-IX, 1927-1928, pp. 109-114.
15
A saber: menores em perigo moral (pobres, abandonados e maltrata-
dos), até aos 9 anos; menores desamparados (ociosos, vadios e libertinos); menores indisciplinados (insubordinação à autoridade paternal ou
tutelar); menores delinquentes (qualquer crime ou transgressão), maiores
de 9 anos e menores de 16 anos de idade; e menores anormais patológicos (doença ou desequilíbrio mental). De ressalvar que estas divisões não
estavam isentas de critica, por exemplo, o grupo dos menores desamparados era inútil porque "as características do desamparo, indicava umas que
o eram já do perigo moral, outras da indisciplina e outra - manifestas
tendências imorais ou criminosas, que deve antes caracterizar a delinquência." in D'Azevedo, F. O. C., Op. Cit., p. 30. Mais de uma década depois
(Decreto de 5 de Março de 1928) seria modificada a classificação quanto
aos menores indisciplinados e o conceito do menor delinquente.
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De "Crianças Perigosas" a "Crianças em Perigo"
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16
O Decreto de 15 de Maio de 1925, fora do período temporal do nosso
estudo, viria regulamentar e completar o Decreto de 1911; outros diplomas
surgiriam nos anos posteriores. Ver D'Azevedo, F. O. C., Op. Cit., pp. 8-9.
17
Ver Santos, Maria Manuela Lima, (1989), A Assistência Infantil na tran-
sição para o século XX e nos primeiros anos da República. Tese de
Mestrado em História Contemporânea, UCL/FLL, pp. 52-55.
18
A ser inaugurada na Quinta de Fontelo, em Viseu. Acabaria por ser fundada
em Sintra, em Agosto de 1915, com a denominação de Colónia Penal
Agrícola "António Macieira". A Casa de Trabalho nunca foi criada; in Fatela,
João, (1989), O Sangue e a Rua: elementos para uma antropologia da violência em Portugal (1826-1946), Lisboa, D. Quixote, p. 184 (nota de rodapé).
19
O antropólogo Mendes Correia apresentou deste modo a génese do
pequeno vadio: "Alguns tem um legitimo horror da casa paterna. O pai
embriaga-se, a mãe pragueja e bate-lhes; não há pão, não há conforto. A
um lar desorganizado a criança prefere a rua, (...). Um dia demora-se mais
e não regressa a casa a horas. Quando se lembra de voltar, é noite. Tem
medo que a castiguem. Fica na rua. E os pais não cuidam de procurar o
filho extraviado" in Correia, António A. M., (1914 [1ª ed. 1913]), Os
Criminosos Portugueses, Coimbra, F. F. Amado Edit., p. 240.
20
Sobre este assunto ver Castelo-Branco António de, (1887), "A Tatuagem
nos Delinquentes", Revista de Educação e Ensino, vol. III, pp. 206-208; pp.
225-226.
21
Ferreira-Deusdado, (1890), "Ideias sobre Educação Correccional", Revista
Educação e Ensino, vol. V, p. 196.
22
Lopes, Alfredo L., (1894), "Estudos de Antropologia de Criminal" in
Revista de Educação e Ensino, vol. IX, p. 399.
23
"A Obra da Tutoria", A Tutoria, (1912), s.l., p. 41.
24
"Miséria em Lisboa. O Limoeiro" in Baptista, Jacinto; Valdemar, António,
(s.d.), Repórteres e Reportagens de Primeira Página, vol. I, Lisboa, p. 17.
25
Fatela, J., (2000), "Para se lhes dar destino…" in Op. Cit., p. 166.
26
Em 1911 entraram na Tutoria menores de dezasseis anos que tinham
sofrido mais de 10 prisões, chegando um menor do sexo masculino a ter
inscrito no seu cadastro 105 prisões! Ver Relatório do Juiz presidente da
Tutoria..., p. 36.
27
Em 1902 seria criada a casa de correcção do Porto in Brazão, Arnaldo,
(1932), Op. Cit., p. 9.
28
Ibidem, pp. 6-7.
29
D'Oliveira, Pe. António, (1918), Criminalidade e Educação, Lisboa, Livraria
Aillaud e Bertrand, p. IV.
30
"A Casa de Correcção do Sexo feminino", Ilustração Portuguesa, 1905,
pp. 405-407. Passou a intitular-se Escola de Reforma de Lisboa, pela lei
de 27 de Maio de 1911.
31
No período de sete anos entrou uma média anual de 18,4 reclusos; para
o período anterior essa média era bastante mais elevada (quase 27 vezes
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Eunice Relvas
mais) correspondendo a 495,9 entradas anuais.
Anuário Estatístico...1885; p. 125; Ibidem... 1886, p. 213; Ibidem... 1892,
pp. 89-90; Ibidem... 1900, pp. 116-119; Ibidem... 1904-1910, pp. 158-159.
32
Fomos impossibilitados de apresentar os dados relativos aos
antecedentes de 1904-1910 porque o Anuário contém um erro não
referindo como foram classificados 44 reclusos.
33
34
Santos, Maria J., Op. Cit., p. 168 (nota de rodapé).
35
Ver Relatório do Decreto de 1911.
Era uma "união jurídica, moral e facultativa de várias instituições, oficiais
e particulares, de propaganda, educação e patronato." Mais tarde reformulada como Federação Nacional das Instituições de Protecção à Infância;
in D'Azevedo, F. O. C., Op. Cit., p. 8-9.
36
37
Relatório do Juiz Presidente da Tutoria Central da Infância de Lisboa,
(1916), Lisboa, Imprensa Nacional, p. 30.
Miranda, João Cardoso, (1857), Relatório acerca de alguns estabelecimentos de beneficência em Londres, Paris, Bélgica e Roma, s.l., p. 196.
38
39
Relatório do Governador Civil do Distrito Administrativo de Lisboa, 01-
04-1863, pp. 1-2; p. 15 citado por Fatela, J., "Para se lhes dar destino…"
in Op. Cit., p. 157.
40
Ibidem, p. 163.
Regulamento Geral da Colónia Agrícola Correccional de Vila Fernando,
(1901), Lisboa, Imprensa Nacional, pp. 3-4.
41
42
Anuário Estatístico....1904 a 1910, (1914), vol. II, fasc. I, Justiça, pp.
160-161.
Regulamento Geral da Colónia Agrícola Correcional de Vila Fernando,
(1901), p. 9.
43
44
D'Oliveira, Pe. António, (1918), Op. Cit., pp. 157-158.
45
Artigo 75º do Regulamento Geral (provisório) da Escola Agrícola de Vila
Fernando in Legislação sobre Menores Delinquentes. Colecção de Leis publicadas desde 1871 até 31 de Dezembro de 1930, (1930), Caxias, Tip. do
Reformatório Central de Lisboa, p. 21.
46
Com efeito, conforme se constatava neste ano: "rapaz que venha a reg-
*Mestre em História
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Vivências - A População e a Arquitectura - Influências Reciprocas
O Comportamento Social e o Espaço
João F. Santos Silva e Luís Miguel P. Ruivo*
RESUMO
"Se existe no espaço um lado infinito, não é tanto pelas possibilidades de expansão mas pelas de redução"
Joseph Brodsky
O tema proposto procura abordar as diversas formas de vivência do
espaço no bairro de Alfama.
Por ser um bairro com um forte espírito comunitário, onde se encontra uma sociedade com identidade bem marcada e que, de certa
forma, se relaciona com as características do espaço urbano e
arquitectónico que o definem, procura-se verificar de que forma ele
influencia as relações das pessoas entre si e o seu "modo de estar".
A estrutura morfológico-espacial de Alfama com espaços de ruas
apertadas, becos, escadinhas, pequenos largos, onde o automóvel
quase não circula, permite e potencia uma apropriação pelos residentes que é ainda acentuada pela exiguidade dos espaços das
habitações e a sua deficiente infra-estruturação. Aqui o espaço
interno e pessoal/familiar extravasa os limites do fogo e propaga-se
para a rua.
De forma geral, certas actividades propriamente domésticas são
exercidas no espaço público ou semi-público, tais como, os banhos
nos balneários, a lavagem de roupa nos lavadouros, ou ainda, os
assadores de sardinha colocados à porta de casa. Por seu lado, a
falta de espaço interior nas habitações quase obriga os moradores
a virem para a rua e a usá-la como espaço de estar e convívio.
A reabilitação integrada do bairro, de que a reabilitação dos edifícios é apenas uma parte, coloca questões muito particulares.
Desde logo, o projecto de reabilitação parte de um programa que
não é um mero esquema funcional a que haverá que dar resposta
em termos de adequação às necessidades, da sua exequibilidade e
integração estética.
As pessoas e o seu modo de vida são também um elemento fulcral
que importa considerar e que faz aqui do papel do arquitecto, mais
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João F. Santos Silva e Luís Miguel P. Ruivo
que um demiurgo, um simples operador que vai integrar as diversas
valências com o fim último de melhorar no quadro de vida dessas
pessoas.
No entanto, ao fazê-lo vai produzir alterações no espaço com o qual
essa gente está habituada a relacionar-se, alterando de alguma
forma a sua maneira de viver . A questão que se coloca é a de saber
qual o resultado do confronto com o espaço, criando uma nova
sociabilidade que será ainda uma continuidade com o carácter
"tradicional e secular" de Alfama ou produzirá uma rotura implacável naquilo que é o "espírito do lugar".
No âmbito da reabilitação como transformação do espaço - novas
formas de sociabilidade, pretende-se eleger um percurso de carácter abrangente, passando por um realidade tangente à identificação
do objecto.
Identificação esta, que passa por apresentar uma filosofia de
intervenção baseada, fundamentalmente, na reabilitação de todo o
edifício restituindo-lhe a dignidade perdida, repondo a coerência
construtiva, e tentando sempre a compatibilização das técnicas
tradicionais com os materiais actuais, não deixando de garantir o
regresso da população residente. Assim, o percurso deverá iniciar-se nos limites exteriores do bairro e, passando progressivamente
para o seu interior, se vai adensando até chegar ao espaço da
habitação.
* Arquitectos
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Quinta-feira, 5 de Julho de 2001
III Sessão de Trabalho | Manhã
Tema 2 - Bairros: Identidades Locais
Moderador:
Prof. Doutor Luís Vicente Batista
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Lisboa Misteriosa
José Luís Matias, Patrícia Sousa, Eduardo Leite, Pollyanna
Jazzmine, Frédéric Lacroix
Na 1ª parte, apresentação de poemas com base numa visão pessoal de Lisboa (o que é ser alfacinha e uma panorâmica actual da
cidade).
Na 2ª parte mostrar-se-ão vários diapositivos sobre "interiores" de
casas particulares de alfacinhas (mistérios alfacinhas).
Na última parte será apresentada uma pequena coreografia sobre
Lisboa.
Esta comunicação pretende "quebrar" o sistema tradicional e clássico dos trabalhos que são apresentados em Colóquios.
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Benfica e Carnide, de Finais do Séc. XVIII à 1ª Metade do Séc. XIX
Adélia Maria Caldas Carreira
RESUMO
Embora permanecessem inseridas até 1852 no Termo de Lisboa, as
aldeias de Benfica e Carnide começaram a mudar a partir de meados do séc. XVIII, altura em que aqui se fixaram muitos citadinos
fugidos das áreas urbanas sinistradas pelo sismo de 1755.
As alterações dos espaços privados e dos espaços públicos, decorrentes do crescente aumento populacional e da evolução da estrutura socio-económica, acentuaram-se após 1834, ou seja, após a
nacionalização dos bem conventuais.
Assim, tal como as actividades inerentes ao sector primário tenderão a diminuir face ao aumento das actividades mercantis e
industriais, também a percentagem do espaço constituído até meados de Setembro por terras de cultura e quintas tenderá a diminuir,
crescendo, em contrapartida, o espaço urbanizado.
Tentaremos compreender o processo evolutivo que converteu as
antigas freguesias rurais em freguesias urbanas, privilegiando dois
dos primeiros elementos da sua estrutura morfológica: a Estrada
de Benfica e o Largo da Luz.
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Mouraria
Célia Lavado e Aldina Brandão
RESUMO
A cultura popular da Mouraria fundamenta-se numa especificidade
territorial e cultural, individualizando-a em relação à cidade materna. Estas especificidades actualizam-se nos comportamentos, na
arquitectura, nos costumes, usos e tradições das suas gentes.
Esta cultura é uma criação do próprio povo que a frui, preserva e
transmite, embora reflectindo outros saberes e descobertas
entrevistas e assimiladas com particularidades específicas e naturalmente adaptadas às condições do meio em que se insere.
É uma identidade cultural com fundamentos tanto sociais como culturais, que resultam do perfil cultural do bairro: uma imagem
específica, com as suas regras, modelos, representações, valores,
etc. que as suas gentes constroem. Esta identidade não é tão
somente cultural mas também social, não resulta só da dinâmica
interna da colectividade e da sua cultura, depende também dos contactos sociais que ela mantém com outras áreas e com a sociedade
global.
De uma forma positiva a identidade cultural promove nestas gentes
um sentimento de pertença e uma ligação ao bairro, levando-o à
construção de uma identidade territorial. Este sentimento de
pertença estimula a solidariedade e reforça a resistência contra a
penetração excessiva de elementos exteriores, tal como contra tudo
o que apareça como uma ameaça à especificidade do seu território.
A identidade cultural fundamenta-se num sistema social fortemente
coeso: económico e familiar em que o político está imbricado e
cimentado pelo cultural. Este último tem por fundamento um
número considerável de manifestações e de traços culturais que
forjam este sentimento de pertença: festas, cerimónias, ritos,
paisagens, habitat, alimentação, etc.
Como nem todos os indivíduos reagem da mesma maneira não devemos falar em identidade, mas em identidades (diversas reacções
que produzirão diferentes símbolos, que, por sua vez, caracterizarão diversas identidades). Há um sentimento de posse por parte
da população em relação ao território, que entende como seu,
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Mouraria
sendo esse sentimento visualizado através dos símbolos de identidade.
O símbolo de identidade aparece como um conceito abstracto
inferindo na ligação do homem ao território e assumindo conteúdos
concretos, ou seja, é uma abstracção idealizada para transmitir o
sentimento de identidade entre o homem e o espaço geográfico,
sendo concreto o conteúdo que assumem os símbolos de identidade
quando caracterizam uma determinada região.
A cultura popular surge como o conjunto de factos ou características que provêm do senso comum, da pureza intelectual das
"gentes", onde o rigor da ciência ainda não penetrou. De facto, a
identidade de um povo não provém da ciência, mas sim do seu apego
à tradição do passar de geração em geração.
Estes pontos visam também mostrar a singularidade do espaço do
bairro dentro do espaço da cidade que dá às pessoas que nele
habitam a consciência da sua diferença, provocando um sentimento
de territorialidade, que de forma subjectiva cria um sentimento de
confraternização e participação entre elas. Territorialidade esta,
que pode ser encarada tanto como o que se encontra no território
e está sujeito à sua gestão, como ao processo subjectivo de consciencialização da população de fazer parte de um território, de integrar esse mesmo território.
Partimos do princípio que a cultura na qual se baseia a identidade
do bairro, não é só o património cultural, é também o modo de vida,
a cultura popular e local e a sua história envolvidas pelas características físicas do bairro que lhes serviu de berço e as modelou.
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Barbeiros de Alcântara
Luís Filipe de Almeida Vitória Maçarico
Esta pesquisa incidiu no eixo Largo do Calvário - Praça da Armada,
RESUMO
designado por vários autores como sendo o "coração de Alcântara".
Será que os barbeiros de Alcântara tendem a
Baseado em estudos sobre os aspectos característicos e as transformações operadas,bem como na experiência da observação da
realidade enquanto residente na freguesia de Prazeres, há quase
desaparecer, como exemplos de um espaço
social de convívio masculino e bairrista?
Em Alcântara, há quarenta anos havia vinte e
dois estabelecimentos; actualmente são sete,
cinco décadas, gostaria de sintetizar o percurso do desenvolvimen-
os artistas, distribuídos por cinco lojas.
to deste bairro, em seis momentos distintos. São eles:
Este número segue de perto uma tendência geral,
1.º) A fase aristocrática e rural, com predomínio de palácios,
conventos e quintas, (até ao séc. XIX);
2.º) O período fabril, com invasão dos terrenos agrícolas por
fábricas, assistindo-se igualmente à proliferação de pátios
operários;
3.º) A época do crescimento urbano - com o entaipamento da
velha ribeira e a demolição da ponte secular, (através da qual
provocada por diversas razões, de entre as quais
a inexistência de aprendizes, parece ser uma
hipótese de explicação para o declínio da Arte.
Nos últimos vinte cinco anos fecharam em
Lisboa mais de oito centenas de barbearias ...
A nível local, e no caso alcantarense poderemos
apontar causas específicas, como o encerramento das fábricas.
Terá a nossa suspeita a ver, de algum modo,
com a mudança de hábitos? (aparecimento da
se atingia no passado uma das portas da cidade), aparecendo
Gillette, máquinas de barbear, moda dos cabe-
novos bairros, ruas, transportes, a par do surgimento dum
los compridos e a inovação dos cabeleireiros
belo mercado da arquitectura do ferro; (1905-1940);
unisexo?)
Até que ponto os salões unisexo, reflectindo os
4.º) A concretização da ponte sobre o Tejo, quando 900 famílias
são desalojadas e o mercado demolido (início anos 60);
5.º) O tempo dos armazéns - que proliferam, na sequência da
desactivação das unidades fabris (anos 60-70);
6.º) A reutilização de inoperantes armazéns em vistosos entre-
ritmos da vida actual, contribuirão para
esbater a dicotomia sexual, ou o seu surgimento acontece na sequência da necessidade do
homem assumir aspectos ligados ao mundo
feminino?
Neste trabalho encontramos o barbeiro de bairro como um verdadeiro actor social e um
género muito específico de clientela, que bap-
postos do consumismo nocturno: discotecas, estúdios televi-
tizei de clientes do verbo.
sivos e um bingo!(anos 80-90).
Ao que julgo saber, depois do estudo de etnografia comparativa intitulado" A Barba em
A análise dos dados estatísticos revela que Alcântara possuía em
Portugal", do Dr. J. Leite de Vasconcelos, não
1900, 22.725 habitantes, chegou a ter 34.161 em 1950, acaban-
voltou a produzir-se no nosso país uma obra
do por nela residirem menos 28 indivíduos, que no princípio do século XX, por volta do ano 81.
É no quadro das mudanças descritas que, das 22 barbearias existentes nesta área, a meio do século XX, de acordo com fontes
onde o cabelo, barba e barbeiros fossem abordados de forma a esclarecer-nos quanto ao
comportamento e á mentalidade, por exemplo.
Nesse sentido, e em simultâneo com a observação-participante, procedeu-se a uma profunda pesquisa bibliográfica. A investigação mer-
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gulhou o mais para trás possível, ouvindo-se
"sobreviventes" e viúvas.
Numa parte inicial apresenta-se uma breve
história do cabelo e da barba e o relato sucinto
da actividade dos barbeiro no tempo.
Barbeiros de Alcântara
fidedignas, passou a haver apenas cinco desses estabelecimentos,
conforme constatei em 1994.
Uma tendência global terá levado a que se passasse, em Lisboa,
nas últimas décadas do século XX, de 900 dessas lojas para 60. Em
menos de trinta anos desapareceram por toda a cidade 840 barbearias. No perímetro alcantarense extinguiram-se dezassete!
Que motivos terão determinado esta decadência?
A nível geral, um certo individualismo, traduzido na feitura da barba
em casa e na falta de paciência para esperar, além de preocupações
sanitárias, poderão enquadrar uma explicação, muito embora me
pareça consistente encontrar na moda uma das razões, na medida
em que o decréscimo da ida aos barbeiros, por parte dos jovens
pode ter levado ao encerramento das lojas, nomeadamente pelo uso
de cabelos compridos, e também pela falta de adaptação dos velhos barbeiros aos novos cortes. Os cortes modernos e a sensualidade de algumas cabeleireiras dos salões unisexo cativam mais a
gente nova.
Outras causas que de alguma maneira abalaram esta profissão,
podem ser: a falta de continuidade e a dureza do trabalho, pois os
artistas com quem falei apontaram a asma e as varizes, entre outras doenças do sector, que não são, propriamente um aliciante. A
questão dos aprendizes, parece-me vital, pois a ausência de
"sangue novo" nas barbearias, após a reforma ou a morte dos velhos mestres, conduz à impossibilidade de sobrevivência da profissão. A prová-lo, os estabelecimentos que existiram em Alcântara
foram substituídos por: ourivesarias, loja de electrodomésticos,
croissanteria, arrecadação, sapateiro, armazém de móveis, lugar
de fruta e habitação.
Localmente, dois dos motivos de maior peso para a extinção de
mais de 75% das barbearias alcantarenses, que funcionavam há
meio século, foram os desalojamentos originados pela construção
dos acessos à ponte sobre o Tejo e o encerramento das fábricas.
Quanto às estratégias assumidas pelos barbeiros de Alcântara
para enfrentarem a crise, elas parecem ser mais de sobrevivência
do que de resistência. As cinco lojas não se modernizaram muito e
conservam a mesma clientela fiel, cuja maioria é constituída por velhos, mantendo rituais de convívio, comuns aos grupos de bairro.
Quase todos os artistas escutados apontam para o fim dos barbeiros e das barbearias, com um certo conformismo.
Introduzidos alguns dados essenciais, convido-vos a entrar no
pequeno mundo dos barbeiros do meu bairro…
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Do lado da freguesia com topónimo de origem árabe, cujo significado é "a ponte", em 1994, encontrei no n.º 70 E da R. das Fontaínhas
(Barbearia Costa) e na R. Cascais n.º 25 (Barbearia Marítima) dois
proprietários, executantes únicos, cuja média de idades rondará
agora, a manterem-se ainda os senhores Cristóvão Costa e António
Carvalho, os 70 anos…
Do lado da freguesia de Prazeres, na R. Gilberto Rola, 63, havia um
proprietário, João Garcez Oliveira, coadjuvado por dois executantes
e na Rua Vieira da Silva, 121, o proprietário- executante, Luís Rocha
Sousa, bem como na Rua da Costa, 8, sendo a idade média dos
Figura 1 O barbeiro Cristovão Costa, da R. das
Fontaínhas
cinco barbeiros de 66 anos…
O barbeiro de bairro, por aquilo que me foi dado observar, é aquele
cujo desempenho provoca impacto junto de um público fiel ("Sou
estimado por toda a gente,(…) procurando pela barbearia do João,
toda a gente sabe"), porque está integrado nas relações de vizinhança ("Até tenho aqui chaves de clientes que moram nesta rua")
partilhando cumplicidades que reforçam a sua popularidade.
Além de sítios de afectividade e de identidade, que atravessam gerações, as barbearias são também:lugares de lazer, de cultura e
informação,de sociabilização e comunicação.
No interior destas lojas para lá dos elementos indispensáveis como
a cadeira metálica, os espelhos e toda a panóplia de apetrechos
com que os profissionais se rodeiam, verificam-se algumas
"nuances".Salientarei três destes estabelecimentos, por, no caso
de um deles, a profusão de espelhos lhe conferir espectacularidade,
ao ampliar a dimensão espacial, enredando o visitante em multíplices, virtuais imagens; no caso de outra, a graciosa pequenez à
qual dois pares de bancos retrácteis, outrora pertencentes ao antigo "Éden Piolho" dão um cunho cinéfilo. Quanto à barbearia mais
espaçosa, há nela três cadeiras metálicas, um espelho grande e
banco corrido, com oito lugares. Aqui, o sentimento de pertença a
um grupo e ao bairro pareceu-me mais aguçado.
Entrevistado acerca do papel do barbeiro, um cliente afirmou "À partida tem logo uma utilidade que salta à vista: Presta um serviço que
é importante (...) depois (...) acaba por funcionar como uma tertúlia,
é um espírito que está a acabar".
António Carvalho, o dono da barbearia que está mais perto do Tejo,
definiu desta maneira a sua clientela: "Tanto tenho aqui ricos, como
pobres. Doutores, como operários”1. Entretanto, e segundo um dos
fígaros da R.Gilberto Rola, "aqui cortamos o cabelo a juízes e
Figura 2 O barbeiro António Carvalho, da “Barbearia
Maritima”
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ladrões, vêm aqui futebolistas, administradores, comandantes;
temos a porta aberta e por isso entra aqui de tudo.2"
Em Na cadeira do barbeiro, Ana Duarte escreve que: "Ir ao barbeiro
é como para os crentes a ida ao confessionário, e aos angustiados
a ida ao psicanalista (...) o barbeiro nota as olheiras de uma noite
mal dormida, os primeiros cabelos brancos, as ameaças da calvície
(...) e graças a isso, tem desde logo acesso à intimidade do
cliente.3"
Gostos parecidos e sentimentos análogos, expressos num espaço
comum, originam uma solidariedade que transcende o indivíduo e se
alarga ao conjunto de clientes que fazem daquele barbeiro um conselheiro, um amigo. Quase que podemos falar de um grupo psicológico, o que equivale a dizer que estamos perante "uma colecção de
indivíduos que introduziram a mesma pessoa no seu super-ego e,
com base nesse elemento comum, se identificaram no seu ego uns
com os outros" (Freud, 1989 B: 81)
Várias pessoas entrevistadas notaram a enorme semelhança entre
a cadeira metálica do barbeiro com a do dentista. Efectivamente,
Figura 3 O barbeiro João Garcez, da R. Gilberto
Rola
entre nós, e durante quase dois séculos, a partir de 1504, os barbeiros-sangradores ombrearam com médicos e cirurgiões do
Hospital de Lisboa, precedendo a prática que atrevidos tiradentes
de antanho ousaram… No decorrer do trabalho de campo, detectei
que um dos barbeiros de Alcântara, àparte alguma basófia, exercera
práticas de medicina, cuja veracidade os outros não aceitaram e que
me dispenso de relatar pela morbidez dos pormenores. Quando o
inquiri acerca das motivações que o teriam levado àquelas práticas,
respondeu-me descontraidamente: "Andava muito lá por fora e
tenho umas fórmulas muito giras para isso. Para gretados,
queimaduras, cieiros… quanto aos tumores e aos altos, sabia que
aquilo era rasgar, para sair tudo e depois lavar com água oxigenada
e compressas (…) saí-me bem, que eu não percebo nada disso!" 4
É curioso verificar como indivíduos fisicamente debilitados foram
destinados pelos pais à tarefa, de barbeiro, permitindo-lhes encarar
a vida como missão. No vocabulário utilizado durante as entrevistas,
a par das palavras "franzino", "fraquinho", "magro"e "aleijado", chegam
a aparecer por vezes termos como: "Foi talvez um "chamamento" ou
"Ainda estive em alfaiate, mas não gostava, não era por "devoção"...
Encontro no próprio ofício do barbeiro a razão da sua ligação às
artes. A necessidade de repelir o envelhecimento e de ser criativo
contra a banalidade dos dias, leva-o a "fazer cantar a tesoura," com
uma técnica encantatória, marcando o ritmo do tempo. O manuseamento de tesouras e palavras cria uma atmosfera. Quantas
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vezes um barbeiro não é vate, trovador ou seguidor de Shakespeare
e Molière?
Sob a luz dos projectores, pela craveira atingida no desempenho
magistral das suas capacidades, estão João Garcez, da R. Gilberto
Rola, que foi alvo de homenagem pelos 53 anos de carreira e António
Carvalho da Barbearia Marítima, que me revelou: "fui a Paris, subsidiado pela l'Oreal. Estava sempre lá nos congressos. Os meus
clientes viam-me nas actualidades dos cinemas a entrar para o
avião…"
Pequenas estrelas de bairro, os barbeiros são, na lembrança de um
septuagenário "pessoas desde sempre evoluídas e para o tempo
letradas. E para cativar os clientes compravam o jornal. Eram muito
ligados às Sociedades de Recreio. Muita dessa gente escrevia.
Como havia muitos que versejavam, inclusivamente faziam fados
para a malta, que cantava fados nas tabernas."
Segundo Alberto Abrantes, conceituado profissional, já falecido, que
tive o privilégio de conhecer, "nos anos 20-30, os barbeiros tocavam
muito bandolim, guitarra, viola (…)nesse tempo havia as cegadas, e
naqueles dias de Carnaval faltavam às lojas, vestiam-se de Pierrot
e andavam pelas ruas. Tinham predilecção por instrumentos de
corda; era raro o que não tocava, fosse patrão ou empregado!"
Entre espelho e palco,5 barbeiro e "performer,"cliente e público, barbearia e cenário, há um certo paralelismo, que me leva a concluir
que o barbeiro é um actor de rotinas improvisadas, pois os olhares
que sob ele incidem, desinibem-no, obrigando a apurar voz, ideias,
expressão corporal.
O "texto" é improvisado em cada dia, pois o artista sabe que lhe é
pedida a competência grangeadora de fama, através da palavra, que
predispõe bem e tem de ser sempre renovada para garantir um bom
show, a nível do desempenho vocal e dos gestos, que têm de ser eficazes, para garantir o triunfo de uma boa apresentação técnica.
Naturalmente, como em todas as profissões, esta possui indivíduos extrovertidos e introvertidos. Todavia, se contextualizarmos
em palcos os seus locais de trabalho e os transformarmos em
actores, na medida em que estão em permanente representação,
exibindo o seu talento, habilidade, arte, anedotário, e fornecendo
opiniões e conselhos, para um público que é simultâneamente,
cliente, confidente, paciente, ouvinte e espectador, teremos então
duas categorias de protagonistas:
- Os Comediantes, expansivos por natureza, gostam do
dichote e do espavento, metem-se com os clientes-claque, são
Figura 4 O barbeiro Luís Rocha Sousa, da R. Vieira
da Silva
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maliciosos. Atraem a sua plateia, pela dupla função do
entretenimento e da competência.
- Os Dramáticos, ao contrário dos antecedentes, "actuam" em
lojas pequenas, constatando-se que, enquanto os outros
exercem a função pela necessidade e pela falta física, eles
escolheram sê-lo por vontade ou por inspiração divina; são religiosos, não se expõem, preservando a sua intimidade…
Figura 5 “Aqui, o sentimento de pertença a um
grupo e ao bairro pareceu-me mais aguçado.”
Foi neste contexto que me surgiu a noção de clientes do verbo, uma
espécie de adeptos, ferverosos, que estimulam os barbeiros no seu
desempenho.
Esta militância parece explicar-se pela necessidade de garantir um
lugar de referência, que confirme que o bairro não morreu, resistindo-se assim à desumanização da cidade.
Os clientes do verbo são observáveis em duas categorias distintas:
uns mostram-se actuantes, entrando constantemente em cena;
contam histórias, interferem, participam nas conversas, têm um
desejo vital de serem escutados e vistos.
Outros, os expectantes, tendo em comum algumas destas características, contentam-se em ler o jornal, pois vão ali para se sentirem vivos e ainda que pareçam meros figurantes, não deixam de
ser parte integrante do jogo cénico...
Ambos participam do "lugar antropológico" definido por Marc Augé.
Em todas as barbearias, encontramos uma plateia, destacando-se
o já mencionado banco corrido da R. Gilberto Rola, com lotação para
oito pessoas e as quatro cadeiras de cinema da loja da R. Vieira da
Silva. Com um reposteiro à entrada -que tudo oculta-, o "décor" de
outro deles, remete-nos para um pequeno estúdio, com alguma
sofisticação. O termo teatro de bolso não é aqui descabido, pois a
"Casa da Comédia", também era assim, uma espécie de pequeno ovo
recheado.
Mesmo nos restantes espaços, e ainda que os protagonistas
pareçam ser mais apagados, haverá sempre a necessidade de se
contracenar com outro personagem, que lhes dará as "deixas".
Diálogo quase monólogo, mas ainda assim com traços teatrais.
Nuns locais, o espectáculo é aparatoso, com actores e público exuberantes. Noutros, a representação é intimista, a fazer lembrar a
mímica dos teatrinhos de Praga…
Fabulosos espaços do afecto e da memória, as barbearias de
Alcântara e os barbeiros de Lisboa bem mereciam uma Exposição,
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tal como uma evocação museológica, do tipo "musealização de sítio",
que contemplasse o espírito de um destes lugares. Se a CML
entender avançar com esta sugestão, disponho-me a dar o meu
contributo, através de uma participação empenhada, para que esta
faceta de um quotidiano lisboeta em extinção seja celebrada com
imagens e palavras que perdurem no tempo.
Lisboa, 2-7-01
Notas
1
Entrevista concedida em 19-7-94
2
declarações prestadas em 22-12-93
3
AAVV, "Na Cadeira do Barbeiro", Museus de Setúbal e do Trabalho e C.M.
Setúbal, 1991.
4
in "Barbeiros de Alcântara- A Identidade Masculina e Bairrista, entre
Estratégias de Sobrevivência e Ameaças de Extinção", do autor, tese de
licenciatura em Antropologia, UNL-FCSH, 1994, p.24;
5
Erving Goffman em A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias, diz-
-nos que "no palco as coisas que se mostram são simuladas; na vida,
provavelmente, as coisas que surgem são reais e nem sempre foram bem
ensaiadas (...) quando um indivíduo desempenha um papel exige implicitamente dos seus espectadores que levem a sério a impressão que neles
procura suscitar (...) o indivíduo organiza o seu desempenho e exibição em
intenção das outras pessoas"(Goffman,1993: 11-29)
Bibliografia (selecionada)
Livros
ARAÚJO, Norberto . Peregrinações, vol. II, livro IX, Lisboa, pp. 11-14;
AUGÉ, Marc (1994) Não-Lugares. Introdução a uma Antropologia da
Sobremodernidade, Bertrand, Lisboa;
BAUDRILLARD, Jean (1991) A Sociedade de Consumo, edições 70, Lisboa;
BARATA, J. P. Martins (1989) Pensar Lisboa, Livros Horizonte, Lisboa;
BARREYRA, Leonardo de Pristo (1719) Practica de Barbeyros
Phleobotomanos ou Sangradores Reformada, Coimbra;
CIRENE, Sinésio de (1982) O Elogio da Calvície, & Etc, Lisboa;
DIAS, Jorge (1990) Estudos de Antropologia, vol. I, IN-CM, Lisboa;
ECO, Humberto e outros (1982) Psicologia do Vestir, Assírio & Alvim, 2ª
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ELIAS, Norbert (1993) A Sociedade dos Indivíduos, D. Quixote, Lisboa;
FERREIRA, João Marques (s/d) Cabeleireiros de Homens de Portugal, edição
da escola Regional de Barbeiros, Cabeleireiros e ofícios correlativos do distrito de Lisboa;
FONSECA, Manuel da (1978) Aldeia Nova, Forja, 6ª ed., Lisboa ("Mestre
Finezas", pp. 191-199);
FREUD, Sigmund (1989 A ) Textos Essenciais da Psicanálise, vol. I, Europa-
Figura 6 “Aqui cortamos o cabelo a juízes e ladrões
(...) temos a porta aberta e por isso entra aqui de
tudo.”
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Barbeiros de Alcântara
América;
FREUD, Sigmund (1989 B) Textos Essenciais da Psicanálise vol. III, E-
América;
GONÇALVES, A. Custódio (1992) Questões de Antropologia Social e
Cultural, ed. Afrontamento, Porto;
GOURHAN, André Leroi- (1987) O Gesto e a Palavra.2-Memória e ritmos
ed. 70, Lisboa;
GOFFMAN, Erving (1993) A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias,
Relógio d'Água, Lisboa;
Figura 7 Os “clientes do Verbo”
LEYTÃO, Manuel (1604) Prática de barbeiros em 4 tratados, em os quais
se trata de como se há-de sangrar e as cousas necessárias para a sangria e juntamente se trata em que parte do corpo humano se hão-de
lançar as ventosas assi sêcas como sarjadas...com outras muitas curiosidades, pertencentes pera o tal ofício, Lisboa;
LIMA, Mª Amélia Fonseca Freire de (1971) Evolução dum bairro de Lisboa,
Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa;
PESSOA, Fernando (1986) Barbearias, ed.Rolim, Lisboa;
POURRIÈRE, Albert (1953) Coiffures d'Art par la mise en plis bouclée,
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SEQUEIRA, Mattos (s/d) História do Trajo em Portugal, Livraria Cherdron,
Lello & Irmãos, Porto;
VASCONCELOS, José LEITE de (1959) Páginas Olissiponenses, CML,
Lisboa,
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VÁRIOS (1991) Na Cadeira do Barbeiro-Ambientes em Setúbal, Museus de
Setúbal e do Trabalho e Câmara Municipal de Setúbal;
Periódicos:
ABC, n.º 160, 9-8-1923, Lisboa; Idem, n.º 182, 10-1-1924, Lisboa; Ibidem
n.º 188, 21-2-1924, Lisboa; Ibidem, n.º 194, 3-4-1924, Lisboa; Ibidem, n.º
226, 13-11-1924, Lisboa; Ibidem, n.º 229, 4-12-1924, Lisboa; Ibidem, n.º
232, 25-12-1924, Lisboa; Ibidem, nº 234, 8-1-1925, Lisboa; Ibidem, n.º
248, 16-4-1925, Lisboa; Ibidem, n.º 275, 22-10-1925, Lisboa; Ibidem, n.º
294, 4-3-1926, Lisboa Ibidem, n.º 315, 29-7-1926, Lisboa; Ibidem, n.º 362,
23-6-1927, Lisboa;
Archivo Pittoresco, vol II, Editores Proprietários Castro, Irmão & C.ª,18581859, Lisboa, pp.372-373;
Arquivo Alfacinha, vol II, caderno I, 1953, Lisboa, p.29;
Boletim do Sindicato Nacional dos Empregados Barbeiros, Cabeleireiros e
ofícios correlativos do Distrito de Lisboa, n.º 6, Agosto l969; Idem, nº 7,
Dezembro de 1969; Ibidem, n.º 8, Março de 1970;
Barbeiros & Cabeleireiros, n.º 1, Janeiro/Março 1993; Idem, n.º 2,
Abril/Junho 1993; Ibidem, n.º 4, Janeiro/Março 1994;
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Luís Filipe de Almeida Vitória Maçarico
Correio da Manhã n.º 5272, 7-10-1993, Lisboa, p. 17; Idem, 10-7-94,
Lisboa;
Diário de Lisboa, 10-2-1989, p. 21; Idem, 10-3-89, p. 21;
Exame, n.º 25, Abril 1991, Lisboa, p. 182;
Expresso, revista de 24-11-1990, Lisboa, p. 108-R;
Grande Reportagem, n.º 27, Junho de 1993, Lisboa,pp. 122-127;
Notícias Magazine, 11-5-86, Lisboa; Idem n.º 42, 14-3-93, Lisboa e Porto,
pp. 54-58;
Público, 10-2-92, Lisboa, 1992, p. 39; Idem, 5-3-1993, Lisboa, p. 54;
Século Ilustrado nº 1531, 6-5-67, Lisboa, pp. 34-38; Idem, n.º 1563, 1612-67, Lisboa, pp. 21-24; Ibidem, n.º 1574, 2-3-68, Lisboa; Ibidem, n.º
1575, 9-3-68. Lisboa, Ibidem, n.º 1577, 28-3-68, Lisboa; Ibidem, n.º 157
9, 6-4-68, Lisboa; Ibidem, n.º 1580, 13-4-68, Lisboa, pp. 48-53; Ibidem,n.º
1857, 4-8-1973, Lisboa; p. 34;
SOL XXI, revista literária, nº 18, Setembro 1996, pp. 24-32;
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A Persistência da Ruralidade no Sítio dos Olivais
Alice Branco
1. Brevíssima resenha histórica do Sítio dos Olivais
anterior à construção do bairro social
RESUMO
Não é propósito da nossa intervenção acrescentar algo de novo à
só perfil. "A Persistência da Ruralidade no Sítio
história dos Olivais antes da construção do seu bairro social, mas
impõe-se a feitura de um estado da questão no que toca às características rurais dos Olivais.
O trabalho que ora se apresenta não possui um
dos Olivais", constitui um conjunto de meditações que temos feito nos últimos 20 meses
de trabalho no Município, a prestar seviço na
Quinta Pedagógica dos Olivais, e que nos apraz
partilhar convosco por ser do âmbito da vivên-
O local é habitualmente designado por Sítio em função da sua vasta
cia na cidade.
extensão, tendo como limite a norte Sacavém e a Sul o sítio de
Resumir-se-á aos seguintes capítulos:
Chelas, incluía toda a zona ribeirinha, desde o Grilo, passando por
1. Brevíssima Resenha Histórica do Sítio
Marvila e Cabo Ruivo.
dos Olivais Anterior à Construção dos seus
Os Olivais têm origem neolítica, atestada pelos vestígios arqueo-
2. A implementação dos princípios da
lógicos encontrados aquando da abertura da Avenida Marechal
Carta de Atenas na construção do Bairro
Gomes da Costa, que comprovam a existência de uma povoação ou
Social dos Olivais Sul - A importância dos
necrópole neolítica de grandes dimensões (2).
Vamos sintetizar em breves palavras a história dos Olivais até meados do Século XVIII, (o que é um vastíssimo período histórico para
Bairros Sociais.
Espaços Verdes no equilíbrio psicológico
dos seus habitantes e a restruturação
orgânica que a sua plantação provocou
nos Serviços Municipais.
3. A Quinta Pedagógica dos Olivais enquan-
poder ser analisado em "vista aérea"), mas vamos ousar fazê-lo em
to laboratório sociológico. Experiência mo-
virtude das marcas humanas, na paisagem local, possuírem grandes
delar na óptica da Sustentabilidade da
traços de permanência.
cidade e da Integração do cidadão deficiente e marginalizado.
No período da Reconquista o sítio da Panasqueira (vulgo
4. A Escala Humana: concepção da Cidade
Encarnação) albergou uma comunidade muçulmana que desenvolveu
com base na actuação individual; a
as hortas e a cerealicultura na zona (3).
alguns exemplos de cidadania resultantes
Pode dizer-se que a caracterização da paisagem dos Olivais vai ser
exclusivamente rural até a meados do século XVIII, albergando uma
diversidade de culturas das quais se salientam os olivais e as vinhas e um aglomerado populacional que se caracteriza por uma
extrema dispersão no terreno. Esta última circunstância terá
inclusão das hortas no urbanismo actual,
de vivências em zonas com a adequada
estrutura verde.
Por um lado propõe-se publicamente a reflexão
sobre a experiência sociológica resultante do
contacto directo com as crianças, habitantes
da cidade de Lisboa ou seus arredores, e a
transposição desse seu universo cognitivo para
condicionado a instituição permanente do regime de Morgadio a
a interpretação do mundo rural.
partir do século XIV, século da fundação da paróquia dos Olivais,
Por outro lado, o bairro no qual a Quinta
regime esse que era tão característico na propriedade privada
Pedagógica se insere, Olivais Sul. Conferia-nos
como na eclesiástica. Este regime constituía a forma mais segura
de concentração fundiária e até populacional.
logo à nossa chegada pela manhã, uma sensação de bem-estar psicológico resultante da
abundante e bem cuidada estrutura verde, sem
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A Persistência da Ruralidade no sítio dos Olivais
paralelo noutro bairro da cidade de Lisboa.
No final do século XVIII, a par do vincado cunho agrícola, os Olivais
Na nossa mente não cessava contudo a insistente lembrança da persistência da ruralidade
nos Olivais até que, nos anos 60, o bairro
sofreu uma alteração radical na sua morfologia
face à premente necessidade da criação de
novas zonas habitacionais na cidade, correspondendo assim a uma outra escala de povoamento.
começam a receber as primeiras indústrias manufactureiras com a
Esta alteração súbita e radical na morfologia da
cidade, permitiu aos urbanistas criarem uma
urbanização de cunho social, com directrizes
concretas e uma sensibilização como em nenhuma outra zona da cidade para a necessidade
da criação de amplos espaços verdes, sendo
genericamente reconhecida como a melhor
interpretação dos princípios da Carta de
Atenas (1) em Portugal.
Nas visitas guiadas que fazíamos às crianças,
ao chegarmos à "Alameda das Oliveiras", junto a
um edifício de nove andares, proponhamos-lhes
um jogo de recuo no tempo, tentando sensibilizá-las para as noções operatórias da história,
alertando-as para o facto daqueles dois
hectares de Quinta, que hoje se encontram
rodeados de enormes edifícios terem, até há
bem pouco tempo (40 anos), tido o habitat
tradicional de muitas outras quintas.
As crianças eram solicitadas a fechar os olhos
e a imaginar a reconstituição do espaço extramuros, como uma realidade em tudo semelhante àquela em que estavam envolvidos na
Quinta Pedagógica. Os nossos instrumentos
pedagógicos limitavam-se aos restantes sentidos disponíveis das crianças, como é hábito
aliás na prática de inovação educativa que caracteriza as iniciativas da Quinta Pedagógica.
Os resultados obtidos com essas experiências
foram extremamente curiosos. O imaginário
infantil intrepretava a realidade rural através de
um primeiro filtro, o universo dos media.
consequente emergência da burguesia na zona.
A elevação dos Olivais a concelho entre 1852 e 1886, análise que
será alvo de uma comunicação do Senhor Doutor Francisco Matos
(4), não alterou radicalmente o cunho rural dos Olivais. No
Regulamento para o Serviço de Conservação e Reparação das
Estradas Municipaes do Concelho dos Olivaes de 1875 (5) atesta-se a existência de um já complexo serviço de administração das
estradas, divididas em cantões numerados, contendo cada cantão
uma ou mais estradas, e patenteando uma autonomia total.
Em 1886 era extinto o concelho dos Olivaes, passando este a ser
integrado no concelho de Loures.
Não resistimos a invocar a título de pitoresco um hábito tão tipicamente lisboeta que era o do consumo da abóbora, doce ou abóbora
coberta, que se relacionava de forma directa com a vivência rural
dos Olivais. Os confeiteiros de Lisboa pertenciam à irmandade de
Nossa Senhora da Oliveira que possuía ermida própria na Igreja de
S. Julião e um nicho na rua da Confeitaria (6), imagem que durante
o período pós Terremoto veio instalar-se na Igreja de Nossa Senhora
dos Olivais.
Em Junho os confeiteiros iam aos Olivais abastecer-se das abóboras, sendo as mais famosas as da Quinta do Patacão. Depois da
concretização do negócio, seguia-se o ritual do piquenique ao ar
livre regado com um bom vinho da região, após o que se processava o regresso à distante Lisboa. Este ritual é-nos precioso para
avaliar a noção que, naquela época havia, da distância entre os
Olivais e o centro de Lisboa. Tudo nos leva a supor que o escoamento da produção agrícola, de azeite e vinícola para a capital, fosse
integralmente feita por via fluvial (7), contudo carece de um estudo
que interessa realizar.
Mas nesta ruralidade dos Olivais falemos por último do caso concreto da criação do regime de morgadio instituído por João Baptista
Van Zeller e que é o alvo da nossa atenção directa, a Quinta do
Contador-Mor. Era a maior terratenência dos Olivais, mas sobremaneira nos interessa por ser no seu terreno que se vieram a
instalar os dois equipamentos culturais da Câmara de Lisboa
Bedeteca e Quinta Pedagógica, cujo enquadramento tinha sido previsto pelo Gabinete Técnico da Habitação (8). Citaremos essencialmente sobre este assunto, Quinta do Contador-Mor, o estudo de
Andrade Lemos publicado pela Junta de Freguesia de Santa Maria
dos Olivais (9).
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A Quinta do Contador-Mor usufruará de maior renome aquando da
passagem para as mãos de Lourenço Rudolfo Van Zeller. Este foi
nomeado em 1746 Contador-Mor do reino, cargo pelo qual a Quinta
passará a ser nomeada, vindo depois a dar ainda nome a uma azinhaga, que não se situa nesta zona.
O Livro das Décimas referente ao ano de 1763 diz o seguinte no que
toca à propriedade rústica: "Quinta de Lourenço Rodolfo Van Zeller,
que consta de Casaz nobrez com lojaz, quarto térreo, e primeyro
andar com todas as mais offecinaz, e Jardim, (...) a quinta compõe-se de vinha arvorez de fruta de caroço, parreyras e oliveyraz tudo
murado e arendado a Felis Teixeira de Mattoz em cento e sincoenta
e seiz mil reis" - terreno onde veio a ser instalada a Bedeteca, os
Espaços Verdes, os Ateliers da Divisão de Equipamentos Culturais
e a Quinta Pedagógica.
Noutra passagem: "Quinta do dito Lourenço Rodolfo Van Zeller, que
consta de casaz térreas, vinha arvorez de fruta de caroço, e
oliveyras tudo arendado a João Fernandes fazendeiro por contracto
verbal em secenta mil reis como consta do livro do Arruamento a f.
96" (10). Cem anos mais tarde, a 19 de Maio de 1863, é abolido o
Regime de Morgadio em todo o país. Em 1888 quem imortalizava a
Quinta do Contador não são os Van Zeller, mas sim Eça de Queiroz,
que a transformou no cenário da obra de "Os Maias".
Eça de Queiroz conhecia o então palacete que nada tinha a ver com
o anterior solar descrito no Livro das Décimas. Sobre a relação de
amizade que unia Eça de Queiroz aos Van Zeller muito se especula.
Registámos contudo, como curioso, pela análise feita ao artigo
"Descendência de Eça de Queiroz" (11), onde se demonstra ter uma
neta dele, D. Emília Maria d' Eça de Queiroz vindo a casar com um
elemento da família Van Zeller em 1944.
Entre os finais do Século XIX e os anos 40 do nosso século, as alterações do tipo de paisagem só mudaram à volta do seu núcleo central, ou seja no local hoje designado por Olivais-Velho que veio a ter
na actualidade o seu Gabinete Técnico (12). Vejamos os principais
marcos cronológicos dessas alterações de paisagem:
Em 1940 começa a laboração da refinaria de Petróleo em Cabo
Ruivo.
Em 1942 inaugura-se o Aeroporto da Portela.
Em 1946 é inaugurado o primeiro Bairro Social - o Bairro da
Encarnação. Este, tentava reproduzir um modelo de aldeia
portuguesa, deu lugar a 1130 fogos, mas o governo teve de o
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alienar a custos muito abaixo dos reais porque não haviam sido
previstos transportes públicos para o local.
De 1955 a 1958 surge o plano de Olivais Norte com 2500
fogos.
Em 1959 criação da freguesia dos Olivais e respectiva separação da de Marvila.
Em 1960 começa a estruturar-se o plano de Olivais Sul, o
mais arrojado plano de habitação social do Estado Novo. O
plano dos Olivais Sul criaria mais 8500 fogos.
2. A implementação dos princípios da Carta de Atenas
na construção do bairro social dos Olivais Sul - a
importância dos espaços verdes no equilíbrio psicológico dos seus residentes e a restruturação orgânica que
a sua plantação provocou nos serviços municipais.
O plano de urbanização dos Olivais Sul foi a consequência da aplicação do Decreto-Lei nº 42 454 (13), que estabelecia a tramitação
das expropriações e as normas para a construção das habitações
económicas, ocupava uma significativa área de 186,6 hectares.
Vejamos como a persistência da ruralidade nos Olivais se patenteia
até 1964, pela descrição minuciosa que o Gabinete Técnico da
Habitação, propositadamente criado para o efeito, faz sobre as características do Sítio no boletim n.º1 (14): "Olivais-Sul constituía
uma zona rural e as características da sua exploração agrícola
assemelhavam-se às correntemente praticadas nos arrabaldes de
Lisboa. Era assim preponderantemente de olivais, hortas e campos
cerealíferos, que nalguns casos impunham obras de modelação do
terreno de certa importância. (...) O tipo característico de propriedade rústica era a quinta, centrada em torno de um núcleo edificado, quase sempre erguido em pontos elevados, rodeado de
árvores e jardins. Os acessos a estas propriedades faziam-se por
azinhagas muradas a que vinham afluir em áleas sombreadas as
serventias da casa principal."
A respeito da flora existente no local, diz-se o seguinte (15):
"Predominam as oliveiras em toda a malha. Nas antigas zonas de
exploração hortícola aparecem ainda algumas árvores de fruto, e
junto das casas mais importantes certas espécies arbóreas exóticas dispersam-se por jardins há muito abandonados. A vegetação
espontânea é quase exclusivamente herbácea, apresentando apenas carácter arbustivo nos taludes, linhas de água e azinhagas."
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O terreno foi dividido em seis células, destinando-se uma delas (G)
a um centro cívico-comercial, como era designado na época, e as
outras cinco correspondiam à malha habitacional, sendo uma delas,
(F) ocupada maioritariamente pelo cemitério, no terreno anteriormente pertencente ao convento de S. Cornélio.
Só a seu cargo tinha o Município a construção de 6458 fogos a que
se somavam ainda 1014 do Ministério das Obras Públicas, 188 da
Companhia das Águas, 248 a cargo da iniciativa privada e 88 fogos
destinados a realojamentos de residentes no local.
Os fogos agrupavam-se essencialmente em quatro categorias distintas no que toca aos edifícios (quatro perfis). Estas tipologias
relacionavam-se directamente com os custos da produção e consequente distribuição de renda. Contudo, havia o cuidado de evitar a
provável segregação social que resultaria de grande concentração
de fogos de uma dada categoria, curiosamente previsto também já
pela legislação (16).
Logo no planeamento inicial fora prevista uma perecentagem de
18,50% de espaços verdes principais e uma área de reserva de
4,63% com vista ao possível alargamento do espaço de estaciona-
mento. A habitação ocupava 47,86%, os arruamentos 20,48%, dos
quais todos com abundantes espaços verdes e os restantes para
equipamentos infraestruturais.
Concentremo-nos porém naquilo que é a nossa preocupação essencial, a análise das novas zonas verdes plantadas com a construção
do bairro e que constituem no fundo, nesta nossa díspar pesquisa,
o elo de ligação entre a ruralidade dos séculos anteriores e a criação de um espaço pedagógico na área da realidade rural no Bairro
de Olivais-Sul destinado às crianças.
Nem tudo no Plano Olivais-Sul era pura e simplesmente um
parâmetro de modernidade urbanística. As extensas faixas verdes
constituíam muros de defesa contra os fumos e os cheiros das
zonas poluentes mais próximas. Por outro lado, constituíam barreiras de som para a elevada poluição sonora advinda da proximidade
do Aeroporto da Portela.
Acima de tudo, havia uma enorme preocupação com a aplicação dos
novos princípios urbanísticos bem patentes ainda nos nossos dias
(17): "A localização dos parques e jardins principais e a previsão de
árvores e faixas verdes nas zonas habitacionais obedece à intenção
de permitir, sem prejuízo da expressão urbana e concentrada, que
deliberadamente se procurou criar, o contacto fácil com a natureza,
através de uma paisagem repousante e vitalizadora."
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De salientar ainda uma preocupação com a ponte entre o passado
e a modernidade, o que, quanto a nós não foi conseguido (18):
"procura-se ainda manter algumas das características mais relevantes da paisagem local, (...) será possível nalguns casos manter
as actuais azinhagas, valorizando-as e utilizando-as como caminhos
de peões, e preservar grande parte dos taludes arborizados,
muitos deles integrados em zonas destinadas à construção."
Quando iniciámos a nossa pesquisa nos Arquivos da Câmara de
Lisboa, nomeadamente no Arquivo do Arco do Cego, e nos
mostraram o inventário do núcleo dos Espaços Verdes, ficámos
absolutamente assombradas com o peso percentual que os Bairros
da Encarnação, Olivais Sul e Olivais Norte detinham no cômputo
global da documentação da cidade. Das 83 caixas de documentação,
quase todas possuem documentos sobre as referidas zonas, nalguns casos, exclusivamente .
Mas mais importante do que tudo isso é verificar que a construção
dos Espaços Verdes no Bairro dos Olivais-Sul constitui um motor
propulsor de uma reforma orgânica na estrutura do Município.
Contrariamente ao que sucedeu com o Gabinete Técnico da
Habitação criado propositadamente para cumprir o artigo 22.º do
Decreto-Lei nº 42 454 e aprovado pela Câmara em 20 de Janeiro de
1960, o Serviço dos Espaços Verdes sofreu uma remodelação muito
sensível após vários desastres na actuação do antigo corpo de jardineiros no terreno, e das sucessivas queixas quanto à falta de
estruturas logísticas de apoio e material de trabalho (19).
Contudo, foi um incêndio numa barraca improvisada no terreno para
apoio de refeitório aos jardineiros o que despoletou imediatamente
a construção das instalações para o apoio naquela zona ao serviço
dos Espaços Verdes, construção feita mediante todas as garantias
de segurança e com uma adequada instalação para refeitório cuja
planta corresponde aos mais rigorosos requisitos de segurança
(20). Esta, localiza-se por trás da Quinta Pedagógica, e conjuntamente com esta descreve na paisagem urbana um monte alentejano.
Neste acervo documental dos Espaços Verdes encontramos sucessivamente nos últimos anos da década de 60, propostas para uma
reestruturação destes serviços com adequados quadros técnicos
que só vieram a ser aceites pela Câmara em 1970.
Os Espaços Verdes estavam previamente englobados no Gabinete
Técnico da Habitação, na sua Divisão de Obras, no seu 7.º Serviço Arborização e Ajardinamento e só em Janeiro de 1971 é criada a
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Divisão de Arborização e Jardinagem com duas repartições
acopladas - Planeamento e Instalação de Espaços Verdes; e
Conservação de Espaços Verdes (21).
A par de toda esta dinâmica que envolvia o Bairro dos Olivais-Sul,
na célula C, o Palácio do Contador-Mor permanecia imutável, como
ilha incluída num oceano em turbilhão. O município tinha contudo
projectos muito concretos para ele, como já foi visto anteriormente
pela leitura do Boletim n.º 2 do Gabinete Técnico da Habitação de
1964 de a transformar em centro cultural e biblioteca (22).
Não tendo sido viável pesquisar a história da Quinta desde a posse da
família Van Zeller, sabe-se contudo que foi vendida à Câmara Municipal
de Lisboa a 20 de Janeiro de 1955 pelo preço de dois mil setecentos
e vinte contos (23) por José Bento Pinto e sua mulher, D. Arminda
Branca dos Santos Pinto, tendo-a estes adquirido à Companhia Geral
do Crédito Predial Português em 24 de Maio de 1940.
Nas escrituras, e por se tratar de um processo de expropriação
(24), o destino previsto para o terreno era o seguinte: Dos
68428,78 m2 que compunham a maior terratenência dos Olivais,
18115 m2 destinavam-se a prédios de rendimento, 15393 m2 a
arruamentos; 12865 m2 a moradias económicas; 10835 m2 a ajardinamentos, e por isso se encontram isentos de sisa; 4785 m2 a
moradias; 4700 m2 a logradouro (parcela de terreno cuja extensão
é sensívelmente aquela que veio a ser ocupada pelos dois equipamentos culturais - Bedeteca e Quinta Pedagógica); 1735 m2 destinavam-se a edifícios de interesse público.
Mas enquanto o Palacete aguardava melhores dias, a propriedade
rústica transformou-se nos viveiros municipais de apoio à plantação
dos espaços verdes no bairro social.
Após inúmeros documentos, pressionando para que se façam os
arruamentos nos referidos viveiros e para a imperiosa ampliação do
barracão existente na Quinta do Contador-Mor, destinado a ferramentas, os pedidos lá vão sendo satisfeitos, permitindo assim um
serviço de apoio eficaz à grandiosa empresa de plantação de
espaços verdes no Plano Olivais-Sul (25).
Mas a par de toda esta dinâmica, chamou a nossa atenção um
curiosíssimo documento que, com uma regularidade anual é enviado
para conhecimento presidencial pelo Engenheiro Director do
Gabinete Técnico da Habitação, Jorge Carvalho de Mesquita e que
consiste na distribuição da produção de azeitona na quinta do
Contador-Mor. A produção aproximada de 100 quilos de azeitona é
assim distribuída pelas instituições de assistência social da zona
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(26). Trata-se, sem dúvida da persistência da ruralidade no Sítio dos
Olivais ou seja, a permanência de um tempo histórico longo num
presente em profunda transfiguração morfológica.
3. A Quinta Pedagógica dos Olivais enquanto laboratório sociológico. Experiência modelar na óptica da
sustentabilidade da cidade e da integração do cidadão
deficiente e marginalizado.
Será só nos anos 90, em conjugação com o plano do Centro Cívico
e Comercial, que a edilidade encontra o destino adequado para a
Figura 1 Grupo de crianças depois de terem feito
actividades lúdicas no celeiro da Quinta
Quinta do Contador-Mor, a qual permanecia como ilha do passado,
indiferente às modificações envolventes.
Os dois equipamentos culturais criados pela Câmara, Bedeteca e
Quinta Pedagógica (27) em 1996, tinham por público-alvo os mais
jovens e, preferencialmente os jovens do bairro dos Olivais, o qual,
com cerca de 30 anos de existência, apresentava já alguns problemas sociais.
Enquanto a Bedeteca caracterizava a sua filosofia pela dinamização
dos jovens e a ocupação de tempos livres em actividades de leitura
e espaços lúdicos de audiovisual e exposição, a Quinta Pedagógica,
por seu turno, pretendia recriar o ambiente rural de uma forma
pedagógica para poder transmitir estas noções básicas às crianças
das escolas da cidade.
Este último projecto, a Quinta Pedagógica, arrrojado e inovador por
não ter paralelo no nosso país, foi tão bem acolhido pelas escolas e
público em geral que passou a ser um dos equipamentos culturais
mais bem sucedidos no então Pelouro da Cultura. O reconhecimento internacional veio à posteriori, quando a Quinta Pedagógica foi
acolhida no seio do G.I.F.A.É. (Groupement International des Fermes
d'Animations Éducatives), em 1998.
Ao ser acolhida no seio da GIFAÉ, a Quinta Pedagógica possuía já as
Figura 2 Grupo varejando oliveiras
ferramentas indispensáveis para que as características gerais que
norteiam o projecto internacional fossem incluídas no equipamento
português, ou seja, a Vocação Social e Terapêutica e A Educação no
Meio Ambiente (28).
Nesse âmbito, as crianças quando chegam à Quinta são englobadas
em equipas onde aprendem a fazer actividades que se relacionam
com bens prioritários, indispensáveis no seu quotidiano, como é o
caso do pão. Desta forma, compreendem e interpretam corretamente os mecanismos da auto-subsistência, ao que se seguem as
visitas guiadas com professoras da Quinta que promovem a ligação
táctil com os animais de criação, particularmente com os mamífe-
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ros. Essa aproximação é sempre promovida mediante a troca e a
partilha de afectos.
A relação dos funcionários da Quinta com os munícipes, (com um
nível etário compreendido, na esmagadora maioria dos casos entre
os três e os cinco anos), é feita através de uma linguagem de cunho
maternalista, os afectos e a aproximação física com os animais são
promovidos pelas professoras da equipa pedagógica, pela intenção
terapêutica que a mesma encerra. Semelhante aproximação está
sobejamente estudada como benéfica para crianças com deficiências mentais e motoras, mas também no caso de outras crianças,
estes gestos contribuem para a sua adequada inserção social,
Figura 3 Técnica da Quinta incentivando o contacto
táctil com os animais
recuperação de auto-estima e prevenção da delinquência (29).
Assim sendo, a Quinta Pedagógica integra no seu quadro de funcionários uma colaboradora com Síndroma de Dawn, que tem tido
uma integração plena e efectiva no mundo do trabalho, dois estagiários do Colégio Eduardo Claparede com deficiência intelectual
profunda e existem também protocolos de trabalho conjunto com as
Cerci. Estes jovens realizam todos um trabalho específico na
Quinta, mediante horário e regras bem estipuladas, nas hortas, no
pomar, notando-se no entanto um especial apreço pelo trabalho em
contacto directo com os animais. É notória a sua integração diária
e a crescente harmonia comportamental.
Dentro do quadro dos princípios da sustentabilidade, a Quinta
desempenha também o seu papel ao afastar as crianças da solidão
que as envolve no meio citadino. A solidão dos idosos no âmbito
Figura 4 Integração Profissional
citadino é do domínio geral, os adultos são por si só uma realidade
muito complexa e heterogénea, mas o sentimento de solidão na
idade infantil não é muito divulgado e aí estavamos nós na Quinta
com um excelente laboratório de análise dos sucessivos grupos de
crianças com os quais contactávamos no nosso dia a dia. Desse
contacto resultaram as seguintes conclusões:
€ O desconhecimento integral da realidade concreta por parte
das crianças advêm de uma manifesta desadequação dos curricula escolares. Consistem num excesso de carga teórica que
as afasta da sua capacidade cognitiva relativamente à aprendizagem de noções básicas do seu quotidiano.
€ No meio urbano as crianças sentem-se em regra profundamente sós e tendem a transferir rapidamente os seus afectos
para os animais da Quinta Pedagógica, para os monitores com
quem aprendem a fazer actividades, ou aos professores que
lhes fazem a visita guiada.
Figura 5 O Ciclo da reprodução das aves
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€ O imaginário infantil faz uma transferência imediata entre os
estereótipos apreendidos nos media e os animais da Quinta
Pedagógica. Exemplo: O cão "Mickey" e a cadela "Minnie" são o
Sérgio e a Verónica do programa “Big Brother”. Da mesma
forma, ao verem o bode do rebanho de cabras os diversos grupos de crianças identificam-no de imediato com o famoso terrorista Bin Laden. Note-se que estamos a falar de grupos de
crianças de diferentes estratos sociais, e que não comunicaram entre si anteriormente.
€ As crianças tornaram-se precocemente adultas na actual
conjuntura urbana e face à crescente desagregação familiar.
Raramente se faz referência, por exemplo, à vivência tribal e
monogâmica que caracteriza os gansos sem que isso suscite
da parte de algumas crianças uma profunda emoção e as leve
a evocar uma situação de degradação familiar por elas vivida.
Todos os pontos que focámos nesta alínea não passam de reflexões
empíricas suscitadas pela sensibilidade de uma leiga em educação
que observa as situações in loco. Servem de mero pretexto para
convidar uma equipa multidisciplinar a deslocar-se à Quinta, e convenientemente interpretar os comportamentos das nossas
crianças do meio urbano. Venham os pedagogos, os psicólogos, os
sociólogos, os psiquiatras, e avaliem corretamente o extraordinário
laboratório sociológico que a Quinta Pedagógica dos Olivais constitue!
4. A escala humana: concepção da cidade com base na
actuação individual; a inclusão das hortas no urbanismo
actual, alguns exemplos de cidadania resultantes de
vivências em zonas com a adequada estrutura verde.
Entretanto, no que directamente nos moveu neste capítulo, poderemos dizer que a aplicação dos princípios da "Carta de Atenas"
respeitante aos espaços verdes foi amplamente respeitada (30), e,
nos nossos dias a aplicação dos valores minímos actuais urbanos,
postos em vigor pela Direcção Geral do Ordenamento do Território
de 1992 (31), foi ultrapassada, no caso específico dos Olivais.
Para além dos princípios da Carta de Atenas sobre a valorização dos
espaços verdes, pode ainda dizer-se que os Olivais Sul interpretam,
em versão portuguesa, o modelo anglo-saxónico da cidade-jardim. Tal
como referiu Howard, o criador da concepção da cidade-jardim "a vida
nas grandes cidades não era a vida natural do homem e era vital sentir a terra" (32).
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Se exceptuarmos a célula C, percorrer o restante bairro dá-nos a
perfeita sensação de estarmos mergulhados numa imensa mancha
verde, só lenta e harmoniosamente é que percepcionamos o aglomerado populacional que é, na sua generalidade constituído por
edifícios de fracas densidades populacionais. Por seu turno, também a célula C tem como compensação a proximidade do pulmão dos
Olivais que constitui o Vale do Silêncio, reserva com características
muito semelhantes às da natureza em estado puro.
Por seu turno, o grandioso projecto de instalação de espaços
verdes foi no imediato sedimentado por uma política sancionadora
da actuação negativa dos cidadãos, com a respectiva aplicação de
coimas por atentados ambientalistas (33).
O tempo veio comprovar o efectivo resultado desta política séria de
espaços verdes na sensibilidade revelada pela população do bairro
dos Olivais. A conjugação de todos os factores propiciou uma vivência mais saudável aos moradores dos Olivais e fez emergir neles
uma consciencialização ambientalista sem paralelo em qualquer
outro bairro de Lisboa. Como comprovativo desse seu civismo, aqui
se registam algumas notícias recentemente publicadas em diversos
periódicos da actualidade: "Lisboa Elege as Oliveiras para Recuperar
Identidade"; "Lisboa Discute Ambiente"; "Substituição de Árvores
Impedida nos Olivais"; "Moradores Travam Cortes de Árvores";
"População dos Olivais Impede Abate de Árvores"(34).
No caso específico destas três últimas notícias, as mesmas
tratam de um movimento de contestação por parte dos moradores
da Avenida Marechal Gomes da Costa, a qual fez com que os mesmos impedissem com o seu próprio corpo o transplante das árvores
com destino ao "Parque Expo", bem como cartazes afixados nas
árvores em que se dizia: "Não Me Tirem Daqui. Faço Falta". Este profundo respeito pelo espaço verde, bem como a intencional personificação da imagem da árvore revelam a positiva consciencialização
colectiva no que toca ao efeito benéfico das árvores contra a
poluição ambiental e sonora no bairro dos Olivais.
Mas saindo um pouco dos Olivais, ao analisarmos os espaços verdes
do resto da cidade, a tentativa ordenadora sofre um contraponto
com as resistências pessoais que a escala humana real lhe introduz. Serve isto de pretexto para analisarmos o fenómeno da agricultura urbana.
Desde a formação da cidade de Lisboa, ou seja desde a Baixa Idade
Média que, ao mesmo tempo que o conceito urbano está em crescimento, pela construção de um sistema defensivo amuralhado, está,
por outro, a receber dentro das suas muralhas a projecção do
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mundo rural. Aliás, já na tradição árabe a zona habitada é contígua
à horta e ao jardim, mas a partir do Século XII, com a reconquista
cristã, as permanências rurais inter-muralhas são uma constante,
como sobressai da visão da Professora Iria Gonçalves (35): "A
própria Lisboa, como se sabe, guardou até muito tarde as suas hortas do Rossio e os seus olivais, (...) também os animais prolongavam dentro da urbe a ruralidade exterior. Eram as aves de
capoeira, nomeadamente as galinhas, que esgaravatavam por toda
a parte os desperdícios lançados fora; eram os porcos, que circulavam em todas as cidades, (...), o pequeno rebanho do citadino
que cultivava algumas courelas no adro da povoação e que o levava
a pastar nos baldios municipais, mas à noite o trazia sempre, de
regresso ao curral, muitas vezes contíguo à sua casa."
Até aos nossos dias, a persistência destes comportamentos intergeracionais associados à realidade rural têm sempre coexistido dentro do contexto urbano. Bem próximo de nós, nos anos sessenta e
setenta, há a salientar a questão da migração dos campos para a
cidade, fenómeno que esteve também na origem da construção do
Bairro dos Olivais Sul. Pelo facto de transferirem a sua morada para
o contexto urbano não quer dizer que o respectivo comportamento
acompanhe a mudança física; "Essa população, agora urbana, tenta
manter a sua relação lúdica com a terra que traz do campo. A jardinagem e o cultivo das hortas passa a funcionar como uma forma de
descontracção face à pressão do dia-a-dia e de uma nova vida." (36)
Pela primeira vez em Lisboa o conceito de urbanismo convencional é
Figura 6 Trabalhando nas Hortas
abalado por este hábito contra-ordenador imposto pela própria população, e assim são os urbanistas relacionados com o ordenamento paisagista, como é o caso do Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles
que começam a repensar a cidade em função da actuação das populações. (37)
Em consonância com esta nova forma de sentir a cidade assumem-se publicamente as hortas ilegais e, inclusivamente iniciam-se concursos promovidos pela Culturgest com o apoio do IPAMB divididos
em duas categorias; hortas individuais e hortas pedagógicas, falando-se abertamente em agricultura urbana dentro de uma política de
desenvolvimento sustentável da cidade.
Conclusão:
Não se pretendeu com esta comunicação dar relevo à teoria do Bom
Selvagem de Jean-Jacques Rousseau, ou abordar o cenário da
cidade e do seu respectivo aglomerado populacional como negativo
para a vivência urbana, mas tão só elevar de sentido o equilíbrio
sustentável entre a aplicação correta da mancha verde no espaço
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urbanístico. quer, sob a forma ordenada do espaço jardim, quer sob
a forma de prevalência mental e lúdica da vivência pessoal, o quintal
ou a horta.
Agradecimentos
A dois colegas da Quinta Pedagógica, Engenheira Margarida Fonseca e
Hugo Filipe Raposo.
Notas:
(1) Legislação aprovada pelos C.I.A.M. (Congressos Internacionais de
Arquitectura Moderna) em 1932, traduzida para português, "A Carta de
Atenas" in Arquitectura, n.ºs 20 (Fev. 1948) a n.º 32 (Set. 1949).
(2) JORGE (Maria Júlia), "Olivais (Sítio dos)" in Dicionário da História de
Lisboa, dir. de Francisco Santana e Eduardo Sucena, Sacavém, Carlos
Quintas & Associados, 1994, pp. 667-670.
(3) CONSIGLIERI (Carlos), RIBEIRO (Filomena), VARGAS (José Manuel) e ABEL
(Marília), Pelas Freguesias de Lisboa. São João. Beato. Marvila. Santa
Maria dos Olivais, Lisboa, Câmara Municipal-Pelouro da Educação, 1993,
p.135.
(4) MATOS (Francisco), "O Extinto Município dos Olivais: Da Evolução GeoAdministrativa à Heráldica Autárquica", comunicação a proferir neste
Colóquio na V Sessão de Trabalho, (no prelo).
(5) Regulamento para o Serviço de Conservação e Reparação das
Estradas Municipaes do Concelho dos Olivaes, Approvado pela Camara em
sessão de 18 de Fevereiro de 1875.
(6) Segundo julgamos, a Rua da Confeitaria, situar-se-ía nessa altura na
zona de Santos-o-Velho.
(7) A comprovar a nossa afirmação lembremos a existência de inúmeros
cais e aterros que caracterizavam toda a zona ribeirinha até há cerca de
60 anos, e que sofreram um golpe mortal com o assoreamento e respecti-
vo aterro , in "Palácio da Mitra: Evolução Espaço-Temporal e sua Integração
na Lisboa Ribeirinha", a autora, II Colóquio Temático - Lisboa Ribeirinha,
Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa - Departamento de Património
Cultural/Divisão de Arquivos, 1997, p.140 e Francisco da Silva Dias e Tiago
da Silva Dias Lisboa. Freguesia de Santa Maria dos Olivais, Lisboa, Guias
Contexto Editora, 1993, pp. 42 -43.
(8) Boletim do G.T.H. - Gabinete Técnico da Habitação, Lisboa, Câmara
Municipal, vol. 1. n.º 2, Setembro/Outubro, 1964, p. 62.
(9) "Património Actual e Antigo dos Olivais - A "Toca" nos Olivais", in
Recolha de Textos, Coord. de Rita Lemos, Lisboa, Junta de Freguesia de
Santa Maria dos Olivais - Pelouro da Reabilitação Urbana, 1995, pp.36-39.
(10) Idem, p. 36 e p. 37, julgamos tratar-se do terreno que está por traz
da zona da Quinta. Vide A.M. do Arco do Cego, Núcleo de Notariado, Livro
de Notas n.º 171-A Escritura de venda de 4,700,00 m2 de terreno, na azinhaga do Contador-Mor a José Bento Pinto, fls. 51 V. Apesar da distância
entre as duas datas, 1763 e 1955, supomos que se pode inferir com alguma margem de segurança que se tratam das mesmas parcelas de terreno.
(11) Dicionário de Eça de Queiroz, Org. e coord. de A. Campos Matos, 2.ª
ed. rev. e aumentada, "Descendência de Eça de Queiroz" de Domingos de
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A Persistência da Ruralidade no sítio dos Olivais
Araújo Afonso, Ed. Caminho, s.d., pp. 264-267. "D.Emília Maria d'Eça de
Queiroz, n. A 25-11-1920. C. na Granja, a 13-4-1944, com o Dr. José
Rebelo Valente Pereira Cabral, médico, n. no Porto a 13-2-1915, filho do
engenheiro Luís Van Zeller Pereira Cabral e de sua mulher D. Maria de
Miranda Rebelo Valente. Tiveram nove filhos."
(12) Refira-se a esse propósito que a Câmara Municipal de Lisboa criou em
1990 o Gabinete Técnico dos Olivais-Velho, In Dicionário de História de
Lisboa, Idem, e Reabilitação em Lisboa - Um Novo Conceito de Ambiente
Urbano, ed. Câmara Municipal de Lisboa, s. d., s.p., "Reconhecendo o seu
centro principal na Praça da Viscondessa, espaço utilizado no passado
como provável terreno de feira, e posteriormente convertido em passeio
público, o Núcleo de Olivais Velho constitui uma significativa peça do
património histórico e cultural de Lisboa, que hoje é objecto do desenvolvimento de um plano de reabilitação e reconversão urbanística e arquitectónica promovido pela Câmara Municipal de Lisboa."
(13) Boletim do Gabinete Técnico da Habitação, Lisboa, Câmara Municipal,
vol. 1, n.º 1, Julho/Agosto, 1964; Olivais-Sul, Lisboa, Gabinete Técnico da
Habitação da Câmara Municipal, s.d.
(14) Boletim do Gabinete Técnico da Habitação, Lisboa, Câmara Municipal,
vol.1, n.º 1, Julho/Agosto, 1964, p.11.
(15) Idem, p.12.
(16) Idem, p. 15.
(17) Idem, p. 23.
(18) Ibidem, pp. 11-12.
(19) Arquivo Municipal do Arco do Cego, Inventário - Espaços Verdes, as
queixas estão sobremaneira patentes na Caixa n.º 29/EV, Pasta 1, Doc. 3.
(20) Idem, Caixa n.º 29/EV, Pasta n.º 4, docs. 9-13.
(21) Idem, Caixa n.º 76, Pasta ? , pp. 63-75; 111-114. ?. Vide Diários
Municipais n.º 10763 e 10765, Lisboa, Câmara Municipal, 7 e 9 de Janeiro
de 1971, p. 2; pp. 2-3.
(22) Boletim do Gabinete Técnico da Habitação, Lisboa, Câmara Municipal,
Vol.1, n.º 2, Setembro/Outubro 1964, pp. 62-63.
(23) Arquivo do Arco do Cego, Núcleo de Notariado , L. Notas 171-A,
fl.51V.
(24) Idem, fl.53v-54.
(25) Caixa n.º 29/EV - Pasta 2, Doc.54 - Caixa n.º 76/EV - Pasta n.º 1 Docs. 1 a 21 de 1968.
(26) Caixa n.º 76/EV - Pasta n.º 4 - Doc.57, Ibidem.
(27) Lisboa in the 90s, 1996, pp. 10-19, e Departamento de Construção
de Habitação, n.º 54, 1996, pp. 40-41.
(28) De la Ferme d'Animations Éducatives - Concept, Developpement et
Gestion, Groupement International des Fermes d'Animations Educatives, p. 30.
(29) A bibliografia sobre o tema é, de certo modo vasta, mas citaremos só
dois trabalhos: Valloton, Mion. A Criança e o Animal na Educação,
Civilização Editora, 1979; Lacerda, Sónia, "Mais do que um Amigo" in
Forum Ambiente, n.º 75, Novembro de 2001, pp. 57-60.
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Alice Branco
(30) Vidè nota 1, Capítulo II - Lazeres, parágrafos 30 a 38, pp. 22-23.
(31) "O valor global que, entre nós, se considera desejável para a estrutura verde urbana é de 40 m2 /hab e, deverá ser constituída por duas subestruturas para as quais se apontam os seguintes dimensionamentos:
estrutura verde principal 30 m2 /hab e estrutura verde secundária 10
m2/hab. A estrutura verde principal é constituída pelos espaços verdes
localizados nas zonas ecológicas mais favoráveis à sua implantação. A
estrutura verde secundária é constituída pelos espaços públicos adjacentes à habitação, aos serviços, aos equipamentos e actividades
económicas" in Direcção Geral de Ordenamento do Território e Boletim 1
do Gabinete Técnico da Habitação, vol.1, n.º 1.
(32) Cf. "Olivais Cidade Jardim", Ana Tostões in Diário de Notícias nº 48554
de 01/03 de 2002, pp. 28-29.
(33) Consultem-se a esse propósito os documentos 33, 34, 35, 37 e 39 da
Caixa nº 29/EV - Pasta 2 do Inventário - Espaços Verdes do Arquivo
Municipal do Arco do Cego.
(34) In Correio da Manhã de 17/02/2001, p.14; A Capital de 17/02/2001,
p.15 e Jornal de Notícias de 17/02/2001, p.18.
(35) GONÇALVES (Iria), Um Olhar Sobre a Cidade Medieval, Estudos,
Patrimonia Historica, Cascais, 1996, pp. 237-238.
(36) In "Hortas de Lisboa", Correio da Manhã, Sara Costa, 03/02/2001,
pp. 29-30.
(37) "A Toponímia dos Jardins de Lisboa", in II Jornadas de Toponímia de
Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1997, pp.17-18.
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Quinta-feira, 5 de Julho de 2001
IV Sessão de Trabalho | Manhã
Tema 3 - História e Património
Moderador:
Dr. Rodrigo Banha da Silva
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Preservação de Monumentos em espaços urbanos: O Teatro Romano de
Lisboa
L. Aires-Barros1, A. C. Leite2, A. Dionísio1
1. Enquadramento histórico
RESUMO
O Teatro romano de Olisipo foi erigido na vertente sul de uma das
A preservação e conservação de monumentos
colinas da cidade, no século I a.c., época de Augusto, num período
em áreas urbanas revela-se tarefa de difícil exe-
de grande expansão urbana, sobretudo no sector de obras públicas;
cução e sujeita a controvérsia, especialmente
tendo sido reconstruído, mais tarde, no ano 57 d.c, com intervenção levada a cabo pelo Augustal Caius Heius Primus, e dedicada
ao Imperador Nero, segundo reza uma inscrição votiva conhecida,
inserida no muro do Proscaenium.
Edifício de dimensões médias, comparado com outros teatros co-
quando se refere a espaços arqueológicos, como
é o caso das ruínas do Teatro Romano de Lisboa.
Estas constituem um espaço, classificado
como Imóvel de Interesse Público, construído
na época de Augusto (século I a.C.), reconstruído no tempo de Nero (século II d.C.) e que foi
parcialmente posto a descoberto na década de
nhecidos do mundo romano, tinha capacidade para cerca de cinco
sessenta do século XX (na actualidade aproxi-
mil espectadores que podiam usufruir da vista sobre o rio Tejo,
madamente 40% do que se julga ser a sua área
graças à localização e espectacular enquadramento urbano, desta
construção.
Como espaço público destinado à arte cénica, foi usado até ao século IV/V d.c., época em que se assistiu a um reaproveitamento das
ruínas para sobre elas surgir uma densa malha urbana que permaneceria até meados do século XVIII.
Hoje as suas ruínas localizam-se na encosta sul da colina do Castelo
total encontra-se a descoberto). Situa-se
numa área densamente urbanizada da Colina do
Castelo, na confluência da Rua da Saudade com
a Rua de São Mamede.
Presentemente as ruínas do Teatro encontramse em regime de semi-abrigo "protegidas" por
uma cobertura de chapa metálica e por algumas
protecções laterais- em fase de substituição-,
estando parte do seu espólio pétreo in-situ e o
restante material num armazém propriedade da
de S. Jorge, freguesia da Sé, no ângulo formado pela confluência
Câmara Municipal de Lisboa na área de Figo
das ruas de S. Mamede e da Saudade. Estão inseridas numa zona
Maduro. Uma das áreas mais peculiares deste
histórica de Lisboa, datada dos finais de setecentos, inícios de oitocentos, correspondendo à reconstrução da cidade pós-terramoto,
onde podemos observar um conjunto de edifícios, na sua maioria
prédios de rendimento, afins à arquitectura dita pombalina, entre
outros.
O Teatro Romano, monumento da tutela da Câmara Municipal de
teatro é o piso da Orchestra onde o padrão
geométrico é assegurado através da utilização
de diferentes tipos de rochas.
Tendo em vista a criação do Museu do Teatro
Romano e havendo a consciência que as
condições actualmente reinantes neste espaço
arqueológico não são as mais favoráveis para a
sua conservação e/ou preservação, foi feito um
Lisboa, foi classificado como Imóvel de Interesse Público, pelo Dec.
extenso trabalho in-situ. O objectivo foi o de
n.º 47984 de 6/10/1967, existindo desde 1969 a definição de uma
reconhecer alguns dos problemas existentes e
Zona Especial de Protecção das ruínas arqueológicas (DG, II série,
n.º 71 de 25 /3/ 1969).
A descoberta deste monumento ficou a dever-se ao Terramoto de
que condicionam a degradação manifestada por
parte dos seus elementos construtivos (pétreos ou não) por forma a eliminar ou minimizar
muitas das causas que estarão na sua origem,
conseguindo-se assim retardar o processo
1755 que arrasou uma parte significativa da cidade velha, e ao
degradativo em curso.
processo de reconstrução de Lisboa. Efectivamente, foi em 1798,
O trabalho de campo compreendeu não só o
durante a execução de alicerces dos novos edifícios, que uma parte
reconhecimento e avaliação do estado de con-
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O Teatro Romano de Lisboa
servação dos materiais pétreos aplicados no
Teatro (com recurso a técnicas não destrutivas) mas também a caracterização do microclima onde estas ruínas se inserem (fundamentalmente através do estudo de parâmetros termohigrométricos).
considerável do Teatro ficou visível. Este acontecimento mereceria
Apresentam-se os principais resultados dos
estudos feitos (v.g. mapeamento topoclimático)
bem como algumas das medidas que se julgam
necessárias levar a cabo em eventuais trabalhos de conservação.
Fabri (Prospecto e planta das ruínas do Teatro Romano de Lisboa,
a atenção da imprensa da época (Gazeta de Lisboa) e de alguns eruditos. Respeitando o estado das estruturas arqueológicas, foram
levantados alçados e plantas do edifício e dos elementos arquitectónicos avulsos, pelo arquitecto da Casa Real, Francisco Xavier
desenho aguarelado, Museu da Cidade de que se apresenta uma
cópia na Figura 1); e em 1815, o latinista Luis António de Azevedo,
publica o livro Dissertação Critico Filológica-Histórica sobre o verdadeiro anno, manifestas causas, e atendíveis circunstancias, da
erecção do Tablado e Orquestra do antigo Theatro Romano, que
contém uma longa e pormenorizada descrição e análise artística do
monumento, acompanhada de várias gravuras, entre as quais um
prospecto, certamente executado a partir do desenho original de
Fabri.
Apesar do interesse demonstrado pela ruína na época (e de existirem já Álvarás Régios para a protecção das "antiguidades"), as circunstâncias do tempo ditaram o desaparecimento do Teatro que
viria a ser, de novo, soterrado pela nova malha da reconstrução da
cidade. E muitos dos seus elementos arquitectónicos acabariam
por ser reaproveitados, como materiais de construção de fácil
acessibilidade, nas novas construções oitocentistas.
Só neste século, de facto, se voltaria a falar do Teatro. Em 1964,
baseado na importante documentação, atrás referida, D. Fernando
de Almeida levou a cabo uma sondagem arqueológica na cave de um
prédio da Rua de S. Mamede, tendo como resultado dos trabalhos
o aparecimento de vários materiais de construção e de um fragmento de um busto feminino (sec. I d.c.). Foi esta sondagem que
esteve na origem do primeiro projecto municipal para a redescoberta e recuperação do monumento.
Com a demolição do edifício, então em avançado estado de ruína
(Foto 1), que fazia gaveto entre a Rua da Saudade e a de S.
Mamede, entre 1966 e 1967, sob a responsabilidade de Irisalva
Moita, realizou-se uma primeira campanha de escavação arqueológica que põe a descoberto uma área significativa do monumento
compreendendo parte da Orchestra, Proscaenium, Pulpitum, e
começo da Cavea. Toda esta zona havia sido já muito remexida o
que, segundo o relatório dos trabalhos, limitou a intervenção muitas
vezes a uma recolha sistemática de elementos arquitectónicos
soltos ou reaproveitados.
Na sequência desta escavação e tendo em conta a importancia do
achado, Irisalva Moita elabora uma proposta de plano de recupe-
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ração do monumento que implicava prioritáriamente a redescoberta total das ruínas do Teatro, sendo para tal necessário proceder-se à demolição de um conjunto significativo de imóveis e a cortes
de arruamentos (Portaria 28/2/1969, D.G de 25/31969 deliberava
sobre os imóveis a demolir). Embora no decorrer desta proposta a
Câmara tenha vindo a adquirir alguns imóveis, apenas quatro, no
total, chegaram a ser demolidos. No entanto, vicissitudes de vária
ordem que vão desde as questões económicas e sociais (custos elevados na aquisição dos imóveis, resistência dos proprietárias, implicações com o desalojamento de uma população envelhecida e de
baixos recursos, etc) às questões culturais (relacionadas sobretudo com a opção da destruição de uma malha urbana que já começava a ser vista como um valor histórico e patrimonial), e às hesitações por parte de alguns dos responsáveis municipais, levaram ao
abandono desta proposta.
Entretanto em 1985 uma equipe do Instituto Arqueológico Alemão,
sob a orientação do Prof. Theodor Hauschild, procedeu ao levantamento da primeira planta pormenorizada das ruínas no estado em
que as deixaram as escavações de 1966.
Só alguns anos depois a Edilidade toma nova posição, criando o
"Gabinete do Teatro Romano de Lisboa" (hoje extinto), coordenado
por Adriano Vasco Rodrigues que apresenta novo projecto de recuperação do Teatro, decidindo-se então pela continuação imediata
dos trabalhos de arqueologia e futura reconstrução do monumento,
se possível. Assim a segunda campanha de intervenção arqueológica tem início em 1989, sob a responsabilidade do arqueólogo Dias
Diogo, que até 1994 alargou a área da ruína escavada pela Cavea
posta a descoberto sob a Rua da Saudade e no vazio ocupado pelos
prédios demolidos nos anos sessenta, (Rua da Saudade n.º 16 a 24).
Figura 1 - Prospecto do Teatro Romano. Desenho
aguarelado. Francisco Xavier Fabri. ca 1798.
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Preservação de Monumentos em espaços urbanos:
O Teatro Romano de Lisboa
A inexistência de propostas exequíveis de recuperação, sobretudo
pela ausência de alguns estudos científicos imprescindíveis, arrastaram por mais algum tempo a definição de um plano concertado de
acção. Todavia, o interesse renovado do actual executivo camarário
e Vereação da Cultura, conduziu à necessidade da elaboração de um
programa da responsabilidade da Divisão de Museus/Departamento
de Património Cultural, visando a recuperação, preservação e valorização do Teatro Romano (Foto 2).
Partindo de uma análise aturada da actual situação das ruínas, quer
tomadas do ponto de vista da história, da arqueologia, do urbano e
do social, foi possível estabelecer um programa de intervenção com
parâmetros de valorização patrimonial que pressupõe uma actuação
por forma a garantir a preservação da memória daquele lugar, tão
emblemático para a cidade de Lisboa, e do seu potencial informativo, cultural e histórico.
Desta forma, a recuperação e reabilitação do monumento deverá
Fotografia 1 - Gaveto da Rua da Saudade com a Rua
de S. Mamede - Prédio demolido em 1966 permitindo a redescoberta das ruinas do teatro Romano.
ser entendida, logo num primeiro nível, como uma grande operação
urbana de revitalização de um importante tecido histórico e de
todas as suas componentes (física e social), numa vasta acção multidisciplinar.
A Câmara Municipal de Lisboa, envolvendo vários técnicos, será
responsável por este Projecto Integrado que contempla o estudo,
conservação e musealização das ruínas do Teatro Romano, o alargamento da área arqueológica (em curso), a criação de um Museu
monográfico (em fase de conclusão), Gabinetes de Investigação, e
Fotografia 2 Vista geral das ruínas do Teatro Romano
de Lisboa na actualidade (tirada de W para E).
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Zona Multimédia. Além da recuperação de imóveis, arruamentos e
arranjos paisagísticos que irão reabilitar a zona envolvente, no sentido de a devolver à população local e aos lisboetas, para uma
fruição plena.
A preservação e conservação de monumentos em áreas urbanas
revela-se tarefa de difícil execução e sujeita a controvérsia, especialmente quando se refere a espaços arqueológicos como é o caso
das ruínas do Teatro Romano. Relembre-se que para por, parcialmente, a descoberto estas ruínas houve a necessidade de comprar,
desalojar e demolir um numero razoável de edificações. Tais vicissitudes explicam em parte a indefinição a que as mesmas estiveram
votadas durante largo período de tempo, impedindo uma qualificação
do espaço, e espelha quão complexa é e continuará a ser a prática
e a gestão de arqueologia em contexto urbano.
2. As Ruínas
Apesar das diversas campanhas arqueológicas conhecemos hoje
apenas um terço da totalidade do Teatro, um dos mais importantes
e significativos vestigíos de edifícios públicos da cidade romana de
Olisipo.
Parte da Cavea, de três aneis (suma cavea, media cavea, ima
cavea), escavada no maciço rochoso da colina, já muito danificada e
parcialmente ocupada por estruturas de épocas posteriores (com
Figura 2 - Identificação dos tipos litológicos dos elementos pétreos ocorrentes nas ruínas do Teatro Romano (tendo por base a planta apresentada por HAUSCHILD, 1990).
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O Teatro Romano de Lisboa
destaque para um edifício paleo-cristão, silos islâmicos, habitações
medievais e quinhentistas, restos da antiga Rua da Parreirinha, até
uma latoaria, já do século XIX). Uma das entradas para o topo da
Cavea, constituida por um Vomitorium. A Orchestra (não posta a
descoberta na totalidade) que conserva, em parte, vestígios de um
pavimento em mosaico de mármore colorido, de composição
geométrica. Restos de elementos das pedras dos nichos do
Proscaenium, e a estrutura argamassada de suporte dos mesmos.
O palco ou Pulpitum, do qual desapareceu o tablado de madeira,
mostra ainda os pilares de suporte e todo o Hiposcaenium revestido, com um bem conservado, opus signinum. E finalmente, um dos
acessos públicos ao recinto, o Aditus Maximus.
A Scaena permanece totalmente escondida sob o pavimento da Rua
de S. Mamede, bem como as restantes dependências e estruturas
que deverão estender-se sob as habitações adjacentes.
Todo o recinto arqueológico tem estado, desde os anos sessenta,
sobre a protecção de um telheiro de chapa e um tapume (com zonas
de rede), alargado às áreas mais recentemente descobertas.
Construído com caracter provisório e sem preocupações estéticas,
encontra-se hoje em avançado estado de degradação pelo que se
está actualmente a proceder à sua substituição.
Para além das campanhas de arqueologia e consequentes levantamentos gráficos e estudos de estruturas e materiais, nunca foi
feito qualquer levantamento do estado de conservação do monumento, nem foi previsto nas diversas abordagens um plano de conservação preventiva. Podemos contudo registar, através da observação directa ou de fotografias que o monumento tem sofrido alterações significativas, com especial incidência para os últimos anos,
tendo em conta a degradação da cobertura e a inexistência de um
eficaz escoamento de águas pluviais.
Assim, integrado no projecto, de recuperação do Teatro romano e
visando a definição de um plano de restauro das ruínas arqueológicas e futura musealização, está em curso uma análise do estado de
conservação do monumento e definição de patologias. Este trabalho contempla diversos estudos abrangendo as áreas de engenharia
de estruturas e de geotecnia, passando pelas áreas de conservação, pela análise e caracterização de argamassas, bem como pela
caracterização litológica e estudo do microclima.
Figura 3- Rochas utilizadas no revestimento do piso
da Orchestra e padrão obtido (E - Calcário
É destes dois ultimos estudos, já concluídos que apresentamos
alguns dos resultados mais significativos.
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L. Aires-Barros, A. C. Leite, A. Dionísio
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3. Caracterização Litológica e Estado de Conservação
dos materiais ocorrentes nas ruínas do Teatro Romano
Os monumentos, de que as ruínas do Teatro Romano são um exemplo, são entidades com características próprias que se modificam
com o passar dos séculos (o ter estado várias vezes soterrado e a
descoberto), que mostram as vicitudes que sofreram ao longo do
tempo (o ter sido desmantelado, os seus elementos terem sido
reutilizados em outras construções, o facto de lhe ter sido sobrepostas outras estruturas em outros períodos da História da ocupação da cidade ou o ter estado sujeito aos abalos sísmicos que
assolaram a cidade ao longo dos séculos) e que podem, caso sejam
Foto 3 - Pormenor do fuste de uma coluna com
caneluras esculpida em calcário miocénico fossilífero.
abandonados, deixar de ter valor dada a degradação avançada que
manifestam.
Tendo em vista a musealização das ruínas do Teatro e havendo a
consciência que as condições actualmente reinantes neste espaço
arqueológico não são as mais favoráveis para a sua conservação
e/ou preservação, foi feito um extenso trabalho in-situ por parte do
Laboratório de Mineralogia e Petrologia do Instituto Superior
Técnico (LAMPIST). No LAMPIST desenvolvem-se desde há anos linhas de investigação sobre a temática da alteração e alterabilidade
de rochas na vertente ligada ao decaimento de rochas aplicadas em
monumentos.
O objectivo deste trabalho foi então o de reconhecer alguns dos
problemas existentes e que condicionam a degradação manifestada
por parte dos seus elementos construtivos (pétreos ou não), por
forma a eliminar ou minimizar muitas das causas que estarão na
Foto 4 - Exemplo de um elemento pétreo talhado em
calcário miocénico gresoso
sua origem, conseguindo-se dessa forma retardar o processo
degradativo em curso. O trabalho de campo compreendeu o reconhecimento e avaliação do estado de conservação dos materiais
pétreos aplicados no Teatro (com recurso a técnicas não destrutivas) e a caracterização do microclima onde estas ruínas se inserem
(fundamentalmente através do estudo de parâmetros termohigrométricos).
3.1. O Teatro Romano e os materiais pétreos
A análise cuidada e minunciosa dos elementos pétreos existentes
nas ruínas do Teatro Romano de Lisboa, incluindo peças soltas como
colunas, bases, capitéis, etc, permitiu verificar que neste espaço
foram utilizados diferentes tipos litológicos (Figura 2), nomeadamente calcário miocénico fossilífero de tonalidades amareladas
(Foto 3), calcário miocénico gresoso também de tons amarelados
(Foto 4), calcário compacto creme, calcário cretácico bioclástico-
Foto 5 - Fragmento do Proscaenium em mármore
branco acinzentado, onde ainda se pode ler TRAM.
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Preservação de Monumentos em espaços urbanos:
O Teatro Romano de Lisboa
nas variedades Liós e Encarnadão (Foto 5)- e mármores- nas variedades branco e venado de tons de azul e cinzento (Foto 6).
De entre estes tipos litológicos, aquele que se encontra melhor
representado neste espaço é o calcário miocénico fossilífero, que
foi utilizado em elementos decorativos e em elementos funcionais
(caso da construção das bancadas). Ainda hoje em dia é visível, a
norte do Aditus Maximus, um estrato rochoso in-situ de calcário
fossilífero do Banco Real (?), onde terão sido talhados os degraus
da cavea e que conserva vestígios do trabalho de ponteiro, que
Foto 6 - Fragmento do Proscaenium em calcário bioclástico Encarnadão, onde ainda é possível ler
CLAVDIEU.
serviu para extracção de blocos e que terá funcionado posteriormente como pedreira possivelmente no século XVI/XVII (Foto 7).
Este tipo litológico foi empregue em outros monumentos da área
envolvente do Teatro como é o caso das muralhas do Castelo de São
Jorge ou os paramentos exteriores da Sé de Lisboa.
Uma das áreas mais peculiares deste Teatro é o piso da Orchestra
onde o padrão geométrico é assegurado através da utilização de
diferentes tipos litológicos. Os mosaicos que constituiram o revestimento deste espaço e que sobreviveram até aos nossos dias, são
em reduzido número. Na maioria das situações encontra-se unicamente o seu negativo nos opus, deixando no entanto antever a ritmicidade das cores através do uso de diferentes materiais pétreos
(Foto 8). Assim, foram utilizados neste revestimento,o calcário
Encarnadão, o mármore branco venado de cinza e o calcário creme
compacto. Na Figura 3 encontra-se representado o padrão do piso
Foto 7 - Estrato rochoso in-situ de calcário do
Banco Real, onde se podem observar as marcas dos
canteiros.
da Orchestra, com a indicação da disposição dos diferentes materiais pétreos.
Após a identificação, caracterização e mapeamento dos tipos
litológicos ocorrentes nas ruínas, o passo seguinte consistiu na
avaliação qualitativa e quantitativa do seu grau de degradação. Os
fenómenos de decaimento ocorrentes nos elementos pétreos são
sobretudo fenómenos de desintegração granular, fracturação e/ou
fissuração, lacunas, pátinas, abrasão mecânica causada pelo gotejar de águas pluviais que caem de altura elevada ao passarem pelos
orifícios da actual cobertura metálica, bem como colonização biológica por líquenes e musgos (também em estrita relação com a
acção das águas pluviais). Em certas alturas do ano observam-se,
ainda que pontualmente, eflorescências salinas, quer sob os elementos pétreos quer sob os revestimentos romanos (Foto 9).
No que respeita aos mosaicos que restam do piso da Orchestra, o
Foto 8 - Mosaicos que ainda se podem observar hoje
em dia na Orchestra. Apresentam-se na maioria dos
casos fracturados ou com fenómenos de desintegração granular
seu estado de degradação é na generalidade muito severo (principalmente nos que constituem a parte central do piso), apresentando-se alguns deles bastante fracturados, com perdas de material
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pétreo e com fenómenos de desintegração granular muito acentuados (Fotos 10 e 11). É necessária a tomada urgente de medidas
para a sua adequada salvaguarda e conservação.
Para a caracterização quantitativa do estado de decaimento dos
elementos pétreos, foi utilizada uma técnica não destrutiva que
tem larga aplicação no campo do estudo do comportamento dos
materiais e que começa também a aplicar-se no campo da alteração
dos materiais pétreos em monumentos. Trata-se do método ultrassónico (propagação do som através das rochas) de transmissão
directa. São métodos que necessitam valores de referência/padrão
para os diferentes materiais identificados de modo a ser possível
quantificar a intensidade do decaimento.
Foto 9 - Colonização biológica e fracturação no Opus
Caementitium.
Da aplicação deste método elaborou-se o mapa, que se apresenta
na Figura 4, onde os diferentes artefactos se encontram agrupados em diferentes classes de valores de velocidade de propagação
de ultrassons.
Como nota refira-se que os valores habituais para a velocidade de
propagação de ultrassons em mármores estão compreendidas
entre 3500-5000 m/s, para calcários cretácicos (onde se inserem
o Liós e o Encarnadão) entre 5200-5500 m/s e para os calcários
miocénicos (fossilífero e gresoso) entre 2500-2800 m/s.
Cruzando a informação proveniente da análise qualitativa com os
dados obtidos da avaliação quantitativa verificou-se que aproximadamente 77% dos artefactos estudados apresentavam fenómenos de decaimento ligeiros, 19% decaimento moderado e 4%
decaimento severo.
Foto 10 - Fenómenos de desintegração granular em
um dos elementos talhados em calcário Encarnadão
que faz parte do piso da Orchestra.
3.2. O Teatro Romano e o microclima onde se insere
Tendo como objectivo principal a protecção/preservação dos artefactos pétreos (ou não) existentes nas ruínas do Teatro Romano
procedeu-se também à caracterização das condições físicas ambientais em que este monumento se encontra hoje em dia.
A monitorização decorreu durante 16 meses e compreendeu o registo de parâmetros termohigrométricos em regime contínuo (interior e exterior das ruínas) e descontínuo (em sete pontos no interior das ruínas por forma avaliar a distribuição espacial destes
parâmetros climáticos, ou seja, permitir a elaboração de mapas
topoclimáticos). Na Figura 5 indicam-se os pontos utilizados para a
elaboração dos mapas topoclimáticos.
Comparando os valores médios de temperatura e humidade existentes na envolvente às ruínas do Teatro Romano de Lisboa e no seu
interior (regime de semi-abrigo) verifica-se que são na sua genera-
Foto 11 - Fracturação em um dos elementos talhados em mármore branco venado de cinzento que faz
parte do piso da Orchestra.
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O Teatro Romano de Lisboa
Figura 5- Indicação dos locais onde foram efectuadas as medições pontuais (tendo por base a planta apresentada por HAUSCHILD, 1990).
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lidade muito semelhantes. Pode no entanto afirmar-se que a temperatura e humidade reinantes no interior deste espaço arqueológico são ligeiramente superiores às verificadas no exterior (cerca de
6% e 4%, respectivamente).
No período em que decorreu o estudo microclimático verificou-se
que os valores de temperatura e humidade relativa do ar para o
exterior estavam contidos respectivamente no intervalo entre
3.6.ºC e 34.5.ºC e entre 21.8% e 100%. No que se refere ao ambi-
ente interior os valores de temperatura e humidade estiveram com-
Figura 6 - Temperatura do ar em 14/10/99 às
14h10min.
preendidos entre 5.3.ºC e 36.24.ºC e entre 22.66% e 99.53%. Os
valores mínimos de humidade atingidos no exterior foram sempre
inferiores aos alcançados no interior. De qualquer forma é já possível observar que o ambiente onde se encontra o espólio pétreo do
Teatro Romano de Lisboa está sujeito a elevados gradientes termohigrométricos.
A amplitude de variação diária da temperatura e humidade relativa
do ar varia segundo a época do ano. De forma genérica as maiores
variações de temperatura ocorreram nos meses de Verão onde
foram atingidos durante o mês de Julho/ 99 amplitudes de 10.ºC no
interior e 8.ºC no exterior. No que se refere à humidade relativa do
Figura 7 - Temperatura da superfície do material
pétreo em 14/10/99 às 14h10min.
ar, a estação do ano na qual ocorrem as maiores amplitudes diárias,
é variável: no caso do ambiente exterior as maiores amplitudes
ocorreram durante o Outono de 98 (tendo sido atingido o máximo
de 35% no mês de Novembro), no caso do ambiente nanoclimático,
as maiores amplitudes ocorreram durante o Verão de 1999 (tendo
sido atingido o máximo de 38% no mês de Julho).
Com vista a melhor conhecimento da variabilidade ambiental existente no interior do espaço das ruínas do Teatro Romano de Lisboa,
procedeu-se à medição dos parâmetros climáticos atrás mencionados em sete locais deste espaço. Os locais escolhidos procuraram
abranger a totalidade da área ocupada pelo monumento.
Figura 8 - Amplitude do ponto de orvalho em
14/10/99 às 14h10min.
As medições foram efectuadas em diferentes horas do dia e em
diferentes dias da semana por forma a serem estatisticamente
representativas dos fenómenos termohigrométricos reinantes
neste local.
Após a medição dos parâmetros temperatura do ar, temperatura
superficial do material pétreo, humidade relativa do ar, temperatura do ponto de orvalho e cálculo do afastamento ao ponto de orvalho foram construídos mapas topoclimáticos. Através destes
mapas é possível estudar a distribuição espacial de cada um dos
parâmetros climáticos considerados, as anomalias, a intensidade e
a forma dos gradientes. Refira-se que fisicamente a amplitude do
Figura 9 - Humidade relativa do ar em 14/10/99 às
14h10min.
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O Teatro Romano de Lisboa
ponto de orvalho representa o maior ou menor afastamento da temperatura do ar relativamente à temperatura a que ocorrem fénomenos de condensação, face aos níveis higrométricos ocorrentes
na zona em questão.
Exemplos de alguns dos mapas topoclimáticos elaborados com base
em informação colhida no interior do Teatro Romano de Lisboa são
apresentados nas Figuras 6 a 13.
Figura 10 - Temperatura do ar em 22/3/00 às 10h.
Com base na monitorização efectuada dos parâmetros termohigrométricos no interior das ruínas do Teatro foi possível verificar que
os locais onde se concentram níveis mais elevados de humidade relativa do ar encontram-se sobretudo no canto W, nas imediações do
ponto de amostragem 1 (PA1) e na zona central das ruínas, na vizinhança do ponto de amostragem 3 (PA3). São as áreas que se encontram, face às condições actuais de conservação das ruínas, mais
predispostas à ocorrência de fenómenos de condensação, ao desenvolvimento de vida microbiológica e a fenómenos de decaimento.
A temperatura medida sob a superfície dos artefactos pétreos é
em geral ligeiramente inferior à temperatura do ar medida na sua
Figura 11 - Temperatura superficial do material
pétreo em 22/3/00 às 10h.
envolvente, o que predispõe para a ocorrência de fenómenos de condensação.
Os gradientes da humidade relativa do ar medidos durante cada
campanha de amostragem,ou seja, quanto à sua distribuição espacial nas ruínas, são em geral pequenos, rondando em média 5%. No
entanto a humidade relativa do ar é bastante variável ao longo do
ano no interior deste espaço arqueológico, alcançando-se valores
mínimos na ordem dos 40% e máximos superiores a 90%.
4. Considerações finais
O estudo apresentado procura contribuir para a reabilitação, proFigura 12 - Amplitude do ponto de orvalho em
22/3/00 às 10h.
tecção, conservação e valorização do espaço das ruínas do Teatro
Romano de Lisboa. Com recurso a meios científicos e técnicos de
carácter não destrutivo procurou-se conhecer os materiais pétreos empregues, o seu estado de conservação, ambiente a que os
mesmos se encontram sujeitos e apresentar com base nos resultados alcançados algumas medidas que se julgam necessárias levar
a cabo em eventuais trabalhos de conservação.
Assim e dadas as condições de estado de conservação dos vários
materiais constituintes do Teatro Romano de Lisboa e a sua alterabilidade, as ruínas deverão manter-se ao abrigo da intempérie, ou
seja, cobertas. O estudo termohigrométrico mostrou que as
Figura 9 - Humidade relativa do ar em 22/3/00 às
10h.
condições ambientais reinantes no exterior e no interior pouco
diferem. Isto significa que a actual "cobertura" não tem o efeito pro-
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tector pretendido e que é tão necessário. Com efeito os materiais
a preservar estão sujeitos a grandes variações termohigrométricas que necessariamente conduzirão à sua fadiga mecânica.
A actual cobertura deverá ser removida, rapidamente, e substituída por um sistema de protecção que garanta não só a estanquicidade quanto às águas pluviais, como relativa estabilidade termohigrométrica. Será aconselhável ter valores de temperatura em
torno 18-20 C e humidade relativa 55-60%.
De igual forma é imprescindível fazer adequada colecta e escoamento das águas pluviais da zona envolvente, de modo a obviar que elas
se dirijam e concentrem no interior do Teatro Romano de Lisboa
dado que são um agente extremamente nocivo causando a usura
física dos materiais (extremamente nítida ao nível dos opus), alterações químicas e facilitando a génese de colonização biológica.
Ambas estas questões estão já a ser equacionadas, encontrando-se em fase de substituição a cobertura que embora não sendo a
protecção definitiva e a exigida pelas condições técnicas, permitirá
melhorar o escoamento de águas pluviais e garantir com segurança
as intervenções arqueológicas a desenvolver no local.
5. Referências Bibliográficas
HAUSCHILD, T. (1990) - Das Römische Theater von Lissabon. Planaufnahme
1985-88. Verlag, pp. 346-392.
MOITA, I. (1994) - O domínio romano - in "O Livro de Lisboa, Capítulo II".
Livros Horizonte.
6. Agradecimentos
Para a execução do extenso trabalho de campo agradece-se a colaboração prestada pela Eng.ª Fátima Correia e pela Conservadora
Marisa Pamplona, bolseiras no LAMPIST.
1
Laboratório de Mineralogia e Petrologia do Instituto Superior Técnico, Av. Rovisco
Pais, 1049-001 Lisboa
2
Museu da Cidade de Lisboa, Campo Grande, n.º 245, 1700-091 Lisboa
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O contexto
Enquanto que a tendência verificada durante o ano de 1384 e os
primeiros meses de 1385, tinha sido marcada pelo domínio das
armas castelhanas, a conjuntura político-militar portuguesa da
segunda metade de 1385 revelava-se bem diferente: os navios que
bloqueavam a entrada do Tejo tinham levantado ferro entre finais de
Agosto e inícios de Setembro deixando a principal cidade do reino
finalmente liberta de qualquer pressão inimiga e da eventualidade de
um novo cerco; a batalha ferida em Aljubarrota resultara numa
clara vitória das forças portuguesas; a hoste castelhana, profundamente depauperada, havia, finalmente, recuado para fora do território português e as fileiras dos apoiantes de D. João I iam
engrossando em razão proporcional às suas vitórias.
Apesar de persistirem alguns focos de resistência no norte do reino
e de não ter sido possível conquistar Torres Vedras em finais de
1384 /inícios de 1385, D. João I encontrava-se extremamente moti-
vado, não só pela sua eleição nas cortes de Coimbra de 1385, mas,
sobretudo, pela vitória alcançada em Aljubarrota em Agosto desse
mesmo ano.
Pelo contrário, do outro lado da barricada encontrava-se um inimigo enfraquecido, desorganizado, desmoralizado, fragilizado ao nível
das estruturas de comando e, por isso, com grandes dificuldades
quer em prestar qualquer auxílio significativo às fortalezas que
ainda mantinha em Portugal como em levar a cabo uma nova
invasão. Urgia, pois, aproveitar toda esta conjuntura.
Para tirar partido destas situações e, muito especificamente, do
enfraquecimento e do desnorte provocado nos castelhanos pela derrota de Aljubarrota, era fundamental que D. João I assumisse uma
postura claramente ofensiva. Só assim poderia obter as vitórias militares necessárias para anular os focos de resistência que ainda
subsistiam. A rapidez de reacção era ainda essencial para demonstrar ao inimigo uma forte capacidade de mobilização e de contraataque de modo a desorganizá-lo e desmoralizá-lo ainda mais
Perante a conjugação destas situações, a todos os níveis favorável, o monarca português toma a decisão de atacar algumas impor-
RESUMO
Em 1386, durante o cerco imposto à cidade de
Chaves, D. João I, face à resistência dos sitiados, fez apelo ao auxílio militar de diversos contingentes concelhios, entre os quais o de
Lisboa, apelo esse prontamente correspondido.
A descrição da participação Lisboeta no cerco
de Chaves e campanha subsequente é uma das
principais fontes para o conhecimento da composição e organização das milícias concelhias
dos finais da Idade Média. Porém, este trata-se
de um caso invulgar, na medida em que - comparativamente com participações anteriores e
com outros concelhos - a cidade se apresentou
em plena força com um contingente invulgarmente poderoso, reflexo da sua importância, do
seu poderio militar, da sua capacidade de mobilização e da sua escala de grandeza.
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tantes bolsas de resistência no norte do país, muito concretamente em Trás-os-Montes, onde os alcaides das praças de
Bragança, Vinhais, Outeiro de Miranda e Chaves ainda mantinham
voz por D. Juan I. Nos seus planos estava ainda um outro objectivo
mais ousado: entrar em território inimigo e levar a guerra ao seu
terreno pela primeira vez desde o início do conflito, atingindo algumas das suas bases de apoio raianas e, ao mesmo tempo, demonstrar uma capacidade militar ofensiva superior à do inimigo.
O início da campanha de 1386
De um modo geral a campanha portuguesa de 1386 pode ser dividida em duas fases distintas de acordo com os acima referidos objectivos do rei português: a primeira, coincidente com a tomada de
Chaves, com a preitesia de Bragança e com a conquista de Almeida;
a segunda, a da penetração em território castelhano com o consequente ataque a algumas povoações de importância secundária e
com o cerco à praça-forte de Coria. A campanha tem início na
cidade do Porto, local de partida dos primeiros contingentes da
hoste régia em direcção a Chaves, no dia 14 ou 15 de Outubro de
1385 2.
Por se tratar de uma campanha iniciada em pleno Inverno muitos
terão sido os que se manifestaram contra a escolha do momento 3.
Porém, essas vozes não foram impeditivas da partida da hoste
“com suas gemtes e muytos caros com emgenhos e mantimentos
e outras cousas a guerra pertencemtes ”4. Na comarca de EntreDouro-e-Minho, onde pretendia reunir os seus exércitos, D. João I
terá enviado novas convocatórias. Através dessas cartas chamava
para junto de si mais alguns dos seus vassalos e respectivas mesnadas sob pena de, se não o fizessem e caso tivessem já recebido
o soldo relativo àquele ano, perderem todas a concessões régias e
bens que possuíssem. Contudo, o monarca autorizava, em alternativa, o pagamento de uma quantia no valor de 100 dobras. Este
encaixe financeiro permitiria a contratação de outros combatentes,
o que possibilitava suprir as ausências daqueles vassalos e respectivos contingentes 5.
Chegado a Vila Real6, D. João I terá enviado novas convocatórias,
nomeadamente a Gonçalo Vasques Coutinho7 e aos irmãos Martim
Vasques8 e Lopo Vasques da Cunha. Prudentemente e até conseguir
reunir um número considerável de homens, terá aguardado nessa
localidade entre 18 de Novembro e 19 de Dezembro9. Só então, com
o seu exército mais fortalecido, terá percorrido os cerca de 50
quilómetros que o separavam de Chaves, primeiro objectivo militar
da campanha.
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De forma a ficar fora do alcance das armas inimigas posicionadas na
vila, mas também para não revelar a sua capacidade ofensiva,
instalou o arraial a uma légua de distância, na povoação de S. Pedro
de Agasté, onde chegou, segundo Fernão Lopes, na noite de Natal 10.
Em Chaves encontrava-se uma guarnição composta por cerca de
80 lanças de boõs escudeiros, por besteiros e peões sob o comando do alcaide-mor Martim Gonçalves de Ataíde 11 e reforçada pelo
contingente de Vasco Gomes de Seixas que consigo trouxera trinta lanças, besteiros e peões. Para a defesa contavam ainda com
alguma artilharia constituída por engenhos neurobalísticos e por
apenas uma boca de fogo de pequenas dimensões. Tudo indica que a
vila estivesse bem fornecida de mantimentos. Teria, também, abundantes reservas de água, pois tinha um acesso fácil ao rio Tâmega
que corria a escassas dezenas de metros de uma das portas da
cerca 12. O somatório destas circunstâncias fazia com que a tarefa
dos sitiadores não se apresentasse fácil, sendo provável que o
cerco se viesse a arrastar durante mais tempo que o desejado, o
que podia atrasar, colocando-a em risco, toda a planificação da
segunda fase da campanha.
Imediatamente após a chegada da hoste régia, terão sido lançados
os primeiros ataques exploratórios contra a vila de modo a avaliar
as suas defesas e a descortinar pontos mais fracos por onde seria
mais fácil lançar um assalto. Porém, o cerco propriamente dito só
teve início nos primeiros dias de Janeiro de 1386, não sem que,
antes, D. João I tivesse dado a Martim Gonçalves a hipótese de se
render 13, o que este, liminarmente, recusou.
Como em muitos outros, o cerco teve início com o bombardeamento da praça. Para isso o rei português lançou mão da artilharia
disponível e que, pelo que temos conhecimento, seria composta
apenas por engenhos neurobalísticos. O primeiro resultado visível
terá sido o derrube de duas torres da cerca, do lado do Tâmega.
O rei mandou também montar uma torre de assédio (feita de
madeira) para, por um lado, poder lançar um assalto sobre as
muralhas e, por outro, para cortar o acesso dos situados ao rio,
impedindo o recurso a essa importante fonte de abastecimento das
reservas de água. De acordo com Fernão Lopes, o engenho tinha
três sobrados, isto é, cerca de seis metros de altura. Era defendido em sistema rotativo (diário, segundo nos parece), por guarnições
que se encontravam sob as ordens de um responsável nomeado
para o efeito pelo rei. A torre era forrada de canas e de carqueja de
modo a amortecer o impacto dos projécteis contra ela lançados.
Contudo, o revestimento não impedia os efeitos do fogo, muito pelo
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contrário, potenciava-o 14. Foi precisamente este o fim dessa estrutura, pois durante uma surtida os sitiados incendiaram-na, destruindo-a por completo. Ficava, assim, restabelecido o acesso ao rio e
afastado o espectro da sede.
D. João I determinou então a construção de uma nova torre, segundo Fernão Lopes, mais alta e mais forte que a anterior. Por ter uma
altura superior às muralhas da vila, permitia um ângulo de fogo que
batia toda a zona dos adarves, dificultando a permanência e a circulação dos membros da guarnição pelas muralhas. Para que não
tivesse o mesmo fim que a antecessora, essa estrutura encontrava-se reforçada com traves e canas revestidas a couro cru, de
modo a prevenir eventuais ataques e tentativas de incêndio. Com os
mesmos objectivos decidiu-se instalar a torre numa zona um pouco
mais afastada das muralhas.
Entretanto, os engenhos da hoste régia não paravam a sua tarefa
destruidora atingindo tanto o castelo como a vila. Os sitiados
ripostavam conforme podiam com os escassos meios pirobalísticos
e neurobalísticos que tinham à disposição, mas sem que obtivessem
qualquer resultado visível.
Enquanto decorria o cerco os sitiantes enviavam regularmente
expedições a território inimigo em busca de mantimentos. Fernão
Lopes fala, talvez com algum exagero, em colunas de mais de 2000
azémolas, embora não esclareça quais as zonas de onde eram
provenientes esses géneros e qual a forma de obtenção, embora
seja legítimo depreender tratar-se de operações de pilhagem e/ou
de requisições forçadas.
Apesar da clara superioridade de meios do exército português, o
cerco não mostrava grandes resultados práticos. Este impasse
começava a comportar sérios riscos, não só pelos efeitos negativos
que podia ter no moral das tropas, mas, sobretudo, pelo perigo de,
devido à proximidade de Castela, D. Juan I poder enviar um exército de auxílio à guarnição de Chaves. Deste modo, para reforçar as
suas fileiras e, assim, abreviar a tomada da praça, D. João I, em
finais de Janeiro ou inícios de Fevereiro, solicitou o auxílio armado
do exército privado de Nuno Álvares Pereira 15 que, face ao apelo do
rei, reuniu as suas tropas e marchou para Trás-os-Montes.
Contudo, o condestável acabou por deixar a maior parte das forças
em frente das muralhas de Bragança, que também tinha voz por
Castela, por forma a obrigar o alcaide-mor, João Afonso Pimentel16,
a render-se, o que realmente veio a acontecer. O rei enviou ainda
cartas convocatórias para as milícias de diversos concelhos, entre
os quais, os de Coimbra, de Santarém e de Lisboa.
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Recebida a missiva em Lisboa iniciaram-se de imediato os preparativos para o envio de um contingente.
A participação de lisboa na campanha
O apelo do rei, cujo teor se desconhece, solicitava, tudo o parece
indicar, a máxima rapidez no envio das tropas. Na capital, os órgãos
concelhios compreenderam que “era compridoiro mandarem apresa
[as suas tropas], a aquell areaall”, pelo que passaram de imediato
à acção organizando um contingente que, logo que possível, se juntasse à hoste régia, em Chaves. A coordenação dos preparativos
foi entregue aos “que do regimemto e guovernamça da çidade tinham carego e cuidado; saber, Joham da Veiga o velho e Afomsso
Gomçallvez e Joham Annes da Pedreira com Esteveannës e Vaasco
Martinz com outros dos mesteres, seus parceiros e muytos honrrados cidadaãos que escusado he nomear”, isto é, à vereação,
procuradores dos mesteres e outros homens-bons do concelho em
estreita articulação, supomos, com os coudéis e anadéis, comandantes, respectivamente, dos aquantiados e dos besteiros do
conto, auxiliados por diversos oficiais e por escrivães.
A preparação das milícias deve ter tido carácter prioritário relativamente a todos os outros assuntos do foro municipal, pelo que, em
pouco menos de um mês, estavam prontas para partir em direcção
a Chaves 18.
Desconhecemos em pormenor quais os passos que levaram à constituição da força e escolha dos seus membros, no entanto, é possível que a experiência recentemente adquirida com a organização de
outros contingentes - como os que foram enviados para o cerco de
Torres Vedras (finais de 1384 /inícios de 1385) ou para a batalha de
Aljubarrota (Agosto de 1385) - tivesse dado ao concelho alguma
prática nessa matéria. No entanto, terão sido os métodos de aquantiamento e as medidas de recrutamento implementadas a partir do
reinado de D. Fernando e desenvolvidas por D. João I 19 - em que tinham um papel decisivo os róis de aquantiados e de besteiros do
conto, os alardos frequentes 20 e um elevado grau de prontidão -, os
elementos fundamentais para a celeridade com que o contingente foi
preparado. Assim, a avaliar pela rapidez com que em 1386 foi
cumprido o chamamento do rei, tudo parece ter sido fácil.
Apesar da forma com que os preparativos foram concluídos, não
deve ter sido uma tarefa isenta de problemas. Se o recrutamento
propriamente dito foi relativamente fácil, nem tudo se terá passado da mesma maneira. O primeiro obstáculo com que os órgãos
concelhios se defrontaram deve ter sido a dificuldade crónica em
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As Milícias de Lisboa na campanha de 1386
obter o dinheiro - o "combustível da guerra" 21 - vital para a prossecução de qualquer empresa bélica.
As despesas com os contingentes
Sendo o soldo das milícias pago adiantado 22, uma das primeiras
despesas a efectuar pelo concelho era a remuneração dos membros
do contingente. Estes recebiam montantes diferentes, conforme a
categoria sócio-militar a que pertenciam e, teoricamente, proporcionais tanto à quantia de cada um como ao investimento que haviam feito na aquisição de armamento e/ou de montada.
Segundo Fernão Lopes, para servir durante os três meses - Março,
Abril e Maio 23 - que se previa que durasse a participação do contingente lisboeta na campanha de 1386, cada lança de cavalaria recebia 300 libras (100 libras por mês). De acordo com o cronista,
parece não ter existido qualquer distinção entre o soldo pago a cada
uma das duas categorias de cavaleiros aquantiados (em cavalo e em
cavalo e armas) 24. Esta situação não nos parece de modo algum
verosímil, pois, a clara diferença existente entre as duas contias
reflectir-se-ia, certamente, no soldo recebido. Assim, as 100 libras
mensais a que o cronista se refere seriam o pagamento entregue a
cada aquantiado em cavalo e armas. Quanto aos aquantiados em cavalo seriam remunerados, imaginamos, entre 75 e 50 libras por mês,
num total que poderia ir das 150 às 225 libras pelos três meses.
Por outro lado, os peões recebiam, cada um, 60 libras (20 libras por
mês), ao passo que a cada besteiro do conto eram pagas 75 libras
(25 libras mensais) 25, o que, se tivermos em linha de conta as obrigações a que estariam sujeitos (aquisição de armamento e de
munições, elevado grau de prontidão, realização de exercícios regulares), penalizava bastante os últimos26 em comparação com a
peonagem.
Mas se alguns havia que tinham motivos de sobra para se queixar
do soldo recebido, o mesmo não acontecia com o comandante da
força. Este, para o mesmo trimestre, recebia 5 000 libras. Em termos relativos trata-se, sem dúvida, de uma soma avultada, mas
que, compreensivelmente, tinha que ser bastante superior à que
era paga aos seus subordinados, não só pela necessidade de valorizar o lugar máximo da hierarquia do contingente e quem o ocupava, mas, também, para tornar atractivo um cargo que, por muito
prestigiante que fosse, nem sempre era do agrado de quem para ele
era escolhido. Além disso, do montante recebido, o capitão teria
que despender o que fosse necessário para suportar algumas
despesas que viessem a surgir ao longo dos três meses da campa-
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nha 27, o que justificava ainda mais o valor aparentemente exorbitante da sua remuneração.
Mas não foi só para o pagamento dos soldos que o concelho teve
que despender elevados montantes. A preparação dos meios logísticos, designadamente a aquisição de munições, de mantimentos,
de armas, de tecido para os uniformes e de meios de transporte
deve, também, ter absorvido uma fatia considerável do orçamento
municipal destinado à participação na campanha. Porém, as fontes
nada informam a esse respeito.
Apesar de não serem conhecidas na totalidade as quantias gastas
pelo concelho de Lisboa com esta ou com outras campanhas em que
participaram as suas milícias, parece certo que todas aquelas
despesas podiam atingir valores muitos elevados e que, por vezes,
se tornavam impossíveis de ser comportados integralmente pelos
órgãos municipais. É sabido, por exemplo, que para poder enviar um
contingente - cuja constituição desconhecemos, mas que supomos
ter sido composto maioritariamente por peões - para o cerco de
Torres Vedras, em finais de 1384, o concelho necessitou, pelo
menos, de 4 000 libras. Porém, como não possuía esse montante
teve que contrair um empréstimo junto do Mestre de Avis 28 que,
paradoxalmente, um ano antes, tinha lançado na cidade um pedido
e um empréstimo por forma a suprir as suas carências financeiras
e, assim, garantir a resistência de Lisboa face ao cerco castelhano 29.
Nos inícios de 1386, só para o pagamento do soldo dos cerca de
700 combatentes destacados para a campanha desse ano, o con-
celho da capital terá gasto cerca de 45 000 libras. Curiosamente,
apesar de se tratar de um valor elevado e a que ainda se acrescentaram muitas outras despesas com a organização logística do contingente, não são conhecidas quaisquer dificuldades em obter esse
dinheiro, pelo que é natural que as finanças públicas da cidade
estivessem a atravessar um período de nítida recuperação da grave
crise financeira sentida durante e imediatamente após o cerco de
1384 e de que o pedido de empréstimo das acima referidas 4 000
libras é apenas um pálido reflexo.
A estas "despesas correntes" com a preparação das milícias (soldos, armamento, meios de transporte, víveres, etc) acrescia ainda
a criação de um fundo especial - cujo montante desconhecemos -,
de onde era retirado o necessário para pagar as informações
fornecidas pelas "enculcas", ou espiões, como lhes chamaríamos
hoje. Estas informações constavam essencialmente de dados relativos às posições do inimigo, aos seus planos e à composição da
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hoste, ao seu estado físico e moral e ainda aos seus hábitos quotidianos 30. Em 1386, ao longo do trajecto para Chaves, o pagamento a estes informadores era feito pelo procurador do concelho de
Lisboa, membro integrante do contingente, que para isso levava à
sua guarda “çertos dinheiros (...) em deposito pera dar a emculcas,
sse mester fezessem, e outras taaes cousas, sse mester
fezessem davisamentos ” 31.
Uma outra despesa com que o concelho de Lisboa teve de se confrontar aquando da preparação da milícia enviada para a campanha
de 1386 foi o pagamento, em complemento do soldo pago a cada
lança, de uma peça de tecido no valor de 30 libras - o que totalizava 630 libras - para que cada cavaleiro mandasse fazer uma libré 32,
uma das "imagens" mais marcantes desse contingente.
A constituição do contingente
Segundo Fernão Lopes, principal fonte de que dispomos para o estudo da campanha de 1386, tratava-se de um exército composto por
210 lanças, onde se incluíam cavaleiros aquantiados em cavalo (ca-
valaria ligeira) e em cavalo e armas (cavalaria pesada). Não é sabida a proporção numérica de cada uma destas duas categorias e o
seu peso na força, embora seja legítimo pensar que os primeiros,
por lhes ser exigida uma quantia inferior, seriam em maior número
que os segundos. O contingente era ainda composto por 250 dos
300 besteiros do conto que Lisboa estava obrigada a fornecer.
Estes apresentavam-se armados, supomos, tanto com bestas de
folga e polé como com bestas de "armar ao cinto" 33. Por fim, vinham
os homens de pé, também aquantiados, embora com uma quantia
claramente inferior à dos cavaleiros. Armados com besta de garrucha, com besta de polé, com lança ou com dardo (consoante a
quantia que eram possuíam), integravam o contingente em número
de 200 indivíduos. A cidade correspondia, em força, ao apelo de D.
João I, que solicitara - sem que tivesse adiantado quaisquer tipo de
especificações numéricas - “alguumas gemtes darmas, peoõs e
beesteiros ” 34.
Além dos combatentes e dos seus comandantes, o contingente lisboeta era ainda integrado pelos habituais trombetas 35, cuja forma
de recrutamento desconhecemos. Estes tinham, além de um forte
efeito moral sobre as tropas, um papel essencial na movimentação
e coordenação dos exércitos - tanto em marcha como em combate
- através de toques distintos com significados diversos como:
armar, selar, montar, reunir, atacar, retirar, etc...36.
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A esses cerca de 700 combatentes juntava-se um grupo diversificado de auxiliares que incluía 2 ferradores, 2 correeiros, 2 seleiros
e 2 alveitares37. A estes últimos cabia a vigilância da saúde dos animais que integravam a coluna de marcha. É bem provável que, na
ausência de físicos e de cirurgiões (cuja presença no contingente
não é referida pelo cronista), fossem também solicitados para fazer
algum curativo mais simples aos combatentes feridos durante o
trajecto. A presença de todos esses auxiliares advinha, sobretudo,
da necessidade de durante o percurso não serem feitos desvios ou
paragens extraordinárias para procurar um correeiro que consertasse uma sela, um ferreiro que ferrasse um cavalo ou um alveitar
que tratasse algum animal ferido ou doente. A milícia levava ainda
alguns tabeliães a quem competiam tarefas de carácter jurídico de
apoio ao comandante do contingente 38 e um jogral cuja função seria,
imaginamos, descontrair as tropas durante as pausas da viagem e
nos momentos de repouso dos cercos.
Por não possuirmos informações suficientemente detalhadas relativamente a anteriores participações dos contingentes de Lisboa na
hoste régia torna-se difícil afirmar com total segurança se as mais
de sete centenas de homens enviadas para a campanha de 1386
constituíam, ou não, um número elevado e em que medida se tratava de uma excepção relativamente a situações anteriores. Além
disso, não podemos, por não existirem dados relativos a outras
cidades do reino envolvidas igualmente na campanha de 1386,
avaliar até que ponto esse carácter, eventualmente, excepcional era
exclusivo das milícias de Lisboa ou se também se verificava com os
contingentes fornecidos, por exemplo, por Coimbra ou Santarém.
Contudo, se tomarmos em linha de conta que em 1384-1385 o concelho de Lisboa enviou para o cerco de Torres Vedras um contingente composto maioritariamente por peões, que em Agosto de
1385, participou na batalha de Aljubarrota com 100 lanças 39 e que,
em 1387, integrou a campanha anglo-portuguesa com 200
besteiros do conto 40, parece-nos legítimo interpretar os números
reunidos em 1386 como uma força invulgarmente poderosa, mesmo
para uma cidade como Lisboa e claramente superior às que foram
reunidas em anos anteriores e à que viria a ser recrutada para a
campanha do ano seguinte.
Tratava-se de um exército numeroso e poderoso que, rodeado de
todo o habitual aparato militar, devia fazer-se notar por onde quer
que passasse ao longo do seu trajecto até Chaves. De tal forma que
o próprio D. João I, quando os viu chegar, ficou “assaz ledo de como
[esse contingente] hia corregido e sua boa ordenança ” 41. Para tal
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contribuía, também, o facto absolutamente inovador - pelo menos
no que diz respeito às milícias concelhias portuguesas 42 - de os
cava-leiros aquantiados se encontrarem uniformizados com uma
libré, “pella guysa que foy acordado ” 43. Estas palavras de Fernão
Lopes levam-nos a pressupor que terá sido previamente determinado um padrão comum, o que facilitava a identificação daqueles que
as usavam e permitia aglutinar à sua volta os seus camaradas de
armas ou os que sob as suas ordens combatiam 44. As librés,
enquanto peças de uniforme, tinham, igualmente, o objectivo de
diferenciar as milícias lisboetas das restantes que constituíam a
hoste e, assim, de as destacar das suas congéneres, nomeadamente das de Coimbra e de Santarém que sabemos terem, também, recebido cartas convocatórias.
Não conhecemos em pormenor qual o aspecto desses uniformes,
porém, é muito natural que apresentassem as cores e os símbolos
heráldicos da cidade tais como o preto e o branco ou a barca com
os corvos, reconhecidos desde o século XIII como os elementos
heráldicos de Lisboa 4 5 .
Sendo feitas de um material tão sensível como o pano, estas peças
do uniforme acabavam frequentemente por se rasgar e sujar de pó,
de lama e de sangue durante a luta tornando imperceptíveis tanto
as cores quanto os símbolos 46. Para obviar a essa situação e de
acordo com as informações transmitidas pela "Crónica de D. João
I", para o cerco de Chaves e campanha subsequente, ficou estabelecido - eventualmente pelo concelho - que os cavaleiros das milícias
lisboetas deveriam apresentar colares iguais, feitos de prata, que
usariam por cima da libré, de modo a que se distinguissem dos
restantes combatentes caso o tecido se danificasse e sujasse a
ponto de ficar irreconhecível. Contudo, a utilização que lhes foi dada
acabou por ser bem diversa, pois aqueles que os iriam usar mandaram-nos fazer em ouro “todos tamanhos come huum comprido
dedo ” 47 e cravejados de pedras preciosas, convertendo-os em elementos de ostentação e identificadores da riqueza daqueles que os
usavam. Deixavam, assim, de ser uma peça que se pretendia uniformizadora, para passarem a ser um símbolo diferenciador e de
algum modo hierarquizador no seio da milícia, fazendo realçar o
estatuto sócio-económico daqueles que os usavam, face aos outros
membros do contingente e às outras forças concelhias.
O facto de tanto as instruções para o uso daqueles colares como a
atribuição de peças de tecido para os uniformes se destinarem apenas aos cavaleiros do contingente - deixando de fora tanto os
besteiros do conto quanto a restante peonagem - leva-nos a crer
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que a cavalaria devia manter alguma unidade durante as deslocações da hoste e, provavelmente, em combate, à semelhança do
que acontecia com os besteiros do conto, aglutinados em torno do
seu pendão. A coesão dos contingentes lisboetas durante os trajectos é igualmente confirmada pelas fontes, claras ao afirmarem
que os membros da milícia acampavam juntos, formando um arraial
distinto dos das restantes forças 49.
Mas não foi apenas devido à dimensão do contingente e ao uso de
uniformes que a campanha de 1386 foi uma experiência inovadora no
que diz respeito à constituição das milícias de Lisboa. Original foi
também a inclusão, entre as suas fileiras, de forças provenientes de
outras localidades. Das 210 lanças enviadas para o cerco de Chaves,
dez eram provenientes de Sintra. Porém, não tinham qualquer
autonomia encontrando-se agrupadas sob o pendão da capital50.
Apesar de as fontes nada afirmarem a esse respeito, acreditamos
que, além dos combatentes vindos de Sintra, o exército lisboeta
seria ainda acompanhado por contingentes (cavalaria e peonagem)
oriundos de Torres Vedras 51, de Alenquer 52, de Colares, da Ericeira,
de Mafra, de Vila Verde 53 e de outras localidades, embora com um
grau de autonomia superior ao das lanças de Sintra - verificável pelo
uso de pendão próprio -, o que acontecia ao abrigo da sua recente
integração no termo de Lisboa, em Setembro de 1385 54:
“[sempre que] a bandeira e pendom da dicta çidade de Lixboa
sair fora della em fecto de g[u]erra tambem por deffenssom
sua ou serviço come a outros logares por nosso serviço ou dos
nossos regnos que hos cavaleiros e piões e besteiros [dessas
loca-lidades] (...) sayam com o pendom da dicta villa seendo
ante chamados requeridos pera ello pellos da dicta çidade e
guardem e sejam theudos de aguardar a bandeira ou pendom
da dicta çidade e os acompanhem e pousem em seu araial e
deffendam e ajudem a deffender a dicta bandeira e pendom e
aquelles que forem com a dicta bandeira ou pendom as suas
despesas e custa desse conçelho (...) e emquanto os da dicta
cidade andarem com a dicta bandeira ou pendom em sua deffensom e serviço como dicto he" 55
Esta variedade de proveniências geográficas devia igualmente verificar-se no seio dos 250 besteiros do conto que, conforme tivemos
oportunidade de demonstrar num outro estudo, não eram todos
provenientes da cidade, mas também, de diversas localidades do
seu termo, tais como Alhandra (c. Vila Franca de Xira), Calhandriz
(c. Vila Franca de Xira), Bucelas (c. Loures), Vila de Rei (c. Loures)
e Sapataria (c. Sobral de Monte Agraço) 56.
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A deslocação da milícia
Quando a coluna de marcha era composta por infantaria, cavalaria
e trem de apoio, como sabemos ter sucedido com o contingente
enviado para Chaves em 1386, deveria fazer etapas diárias de cerca
de 20 a 35 Km 57. A essa velocidade, o trajecto desde Lisboa até
àquela localidade transmontana deverá ter sido cumprido em pouco
mais de 15 dias. A urgência exigida pela convocatória régia deve ter
feito com que o ritmo imprimido tenha sido bastante forçado, embora sempre à velocidade máxima permitida pela resistência física
da peonagem. O cansaço e o desgaste que essa viagem provocou,
sobretudo naqueles que efectuaram o percurso a pé - absolutamente compreensível devido à extensão e aos acidentes de terreno
encontrados ao longo da viagem - não impediu que, segundo as
palavras de Fernão Lopes, a chegada da milícia lisboeta ao arraial da
hoste régia deixasse D. João I espantado com a forma como esse
contingente “hia corregido e sua boa ordenança ” 58.
Mas, não era apenas a composição das colunas - com a peonagem
e os carros a imprimir um ritmo mais lento - que ditava a sua velocidade. Além do moral e do estado físico das tropas, algumas posturas tácticas de carácter defensivo adoptadas durante a travessia de regiões onde havia maior probabilidade de surgir um ataque
inimigo também podiam diminuir a sua velocidade. Nessas zonas, a
milícia deveria armar-se e, muito possivelmente, adoptar uma disposição de marcha mais lenta e em que fosse possível, rápida e
facilmente, ordenar batalha, isto é, com uma formação bastante
próxima daquela que seria a sua ordem em combate: com a cavalaria na frente da coluna, seguida da vanguarda, das alas e, por fim,
com a retaguarda no final da coluna 59. Terá sido precisamente o que
sucedeu durante o trajecto para Chaves, na parte final do itinerário,
a partir da entrada em Trás-os-Montes, onde ainda subsistiam
algumas bolsas de resistência como Bragança, Vinhais e Outeiro de
Miranda, fortificações cujos alcaides tinham tomado voz por
Castela ou que tinham sido nomeados pelo monarca castelhano.
Estas cautelas ao longo das marchas em território inimigo adivinham de um profundo conhecimento do percurso e das eventuais
dificuldades que podiam surgir face à aproximação de um contingente inimigo. Esse conhecimento era proveniente, em boa parte,
das informações transmitidas pelos batedores, mas sobretudo dos
dados fornecidos pelas "enculcas", a que, sabemos, o contingente
terá recorrido em 1386 60.
Pelo contrário, no final da campanha desse ano, o percurso efectuado pelos contingentes lisboetas entre Penamacor 61 - local onde,
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após o cerco de Coria, foram dispensados da hoste régia - e Lisboa
terá durado aproximadamente 12 ou 13 dias 62, percorridos a uma
média aproximada de 21 km diários 63, pautada, naturalmente, pelo
desgaste e pelo cansaço provocado por cinco meses de campanha.
A rigidez e cautelas tácticas adoptadas, por exemplo, no último
troço do trajecto entre Lisboa e Chaves, ter-se-ão aligeirado no
regresso à capital, o que permitiu uma viagem menos tensa, mas
nem por isso, a um ritmo mais rápido.
A cadeia de comando
Se bem que, em teoria, fossem eles os principais comandantes das
milícias concelhias, nem os coudéis (comandantes dos aquantiados)
nem os anadéis (comandantes dos besteiros do conto), tiveram - à
semelhança do que aconteceu no cerco de Torres Vedras e na
Batalha de Aljubarrota - qualquer papel de destaque na campanha
de 1386.
À partida para o cerco de Chaves, a milícia de Lisboa, composta,
como vimos, por aproximadamente 700 homens, entre cavaleiros,
besteiros e peões, era capitaneada pelo anadel-mor dos besteiros
do conto do reino, Estêvão Vasques Filipe uma figura cuja experiência de combate terá tido início 16 anos antes, na Primeira Guerra
Fernandina, durante a defesa de Ciudad Rodrigo face ao cerco
castelhano comandado pessoalmente pelo próprio Enrique II64. O seu
curriculum teve ainda como momentos altos a batalha de Saltes,
em 1381, o ataque à costa da Galiza, a batalha naval do Tejo e o
cerco de Lisboa, em 1384, e a batalha de Aljubarrota, em 1385 65.
A experiência militar adquirida nessas operações e o facto de ser o
comandante de todas as milícias dos besteiros do conto do reino
fazia dele um indivíduo habituado a liderar homens, pelo que, em
princípio, reunia as condições necessárias para capitanear a milícia.
Mas estes factores talvez não tenham sido os únicos a pesar na
escolha do concelho de Lisboa. É bem possível que nem tenham sido
os que mais influíram nessa decisão. A sua nomeação pode dever-se, por um lado, ao facto de pertencer a uma família prestigiada e
destacada da sociedade lisboeta e, por outro, por ser uma figura
proeminente da capital e, como tal, respeitada por todos quantos
sob as suas ordens serviam. Assinale-se ainda que não era a
primeira vez que o seu nome era apontado pelo concelho para uma
missão em que a sua experiência e autoridade eram fundamentais,
pois já em 1383, quando foi necessário nomear dois meirinhos para
coordenar o policiamento da cidade foi ele um dos dois escolhidos 67.
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Na qualidade de capitão do contingente de Lisboa e ao abrigo de um
privilégio renovado por D. João I, Estêvão Vasques detinha - além de
todas as prerrogativas de um chefe militar - jurisdição civil e criminal sobre todos os seus subordinados, à semelhança do que segundo o concelho - sempre acontecera. Deste modo, qualquer
membro dessa força que praticasse um delito era de imediato
entregue ao capitão para que este exercesse justiça 68, no que era
auxiliado por “taballiãaes da dita çidade que davam fee e testemunho em todolos logares onde o dicto conçelho fosse assi em
estes regnos como fora delles ” 69.
O contingente tinha, como alferes, Gonçalo Vasques Carregueiro,
outra figura de proa do panorama social de Lisboa 70. Era precisamente a uma personalidade destacada do concelho, eleita ou
expressamente nomeada para esse efeito, que cabia a honra de
transportar a bandeira da cidade, isto apesar de o rei procurar
sempre que fosse um seu criado a levar esse estandarte 71. A par
de funções essencialmente práticas, tais como servir, com a bandeira, de ponto de referência para as tropas em combate, sobre o
alferes recaía também um certo simbolismo e cerimonial 72. A
importância deste oficial advinha também do facto de ser uma espécie de imediato no comando 73.
Não foi possível encontrar, em períodos anteriores a 1386, qualquer
menção à participação de Gonçalo Vasques em combates. Aliás,
sobre esta figura, poucas são as referências anteriores a essa
data. No entanto, o facto de seu pai - Vasco Afonso Carregueiro ter sido coudel dos cavaleiros aquantiados de Lisboa no início do
reinado de D. Fernando 74 pode, de alguma forma, ter influenciado a
sua nomeação para o cargo de alferes 75.
Verifica-se, assim, que este contingente tinha, ao nível das suas
estruturas de comando, uma orgânica bipartida, em tudo semelhante à da hoste régia, com um capitão e um alferes, à imagem do
condestável e do marechal.
O exército lisboeta enviado para o cerco de Chaves incluía também
uma outra figura destacada da cidade e da sua administração
municipal: o procurador do concelho, Silvestre Esteves 76. Apesar de
não conhecermos em pormenor as funções que lhe estavam distribuídas, é possível que tivesse, no contingente, um cargo semelhante ao de "oficial de ligação" entre as estruturas concelhias e as
estruturas militares propriamente ditas da milícia. Sabemos ainda
que era da sua competência o pagamento dos serviços prestados
pelas "enculcas" 77. Na qualidade de representante do concelho terá
transportado à sua guarda algumas missivas para o rei, como aque-
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las a que D. João respondeu nos dias 25 78, 26 79 e 27 de Abril 80. A
experiência militar adquirida nesta e, supomos, noutras campanhas, pode ter sido fundamental para a nomeação, mais tarde, para
o cargo de coudel pelo rei em Lisboa 81.
Mesmo com uma estrutura hierárquica própria em que se destacava, como vimos, o capitão e o alferes, sempre que a situação o
exigisse, a cadeia de comando da milícia era modificada e adaptada.
Assim acontecia, por exemplo, a partir do momento em que integrava a hoste régia. Nessa altura ficava subordinada à estrutura de
comando do exército do rei, tal como se verificou em 1386 a partir
do momento em que chegou ao arraial sobre Chaves.
Apesar de a hoste poder ser subdividida em mais que um corpo,
nem mesmo assim a milícia recuperava a sua autonomia. Veja-se o
que sucedeu na campanha em análise, a partir da tomada de
Almeida, quando o exército de D. João I ficou dividido em 3 "forças"
distintas, ficando o contingente de Lisboa, de um momento para o
outro, sob o comando de Martim Vasques da Cunha, assim permanecendo até ao levantamento do cerco a Coria.
Considerações Finais
Apesar de possuirmos um conhecimento bastante detalhado da
preparação, da organização e da composição das milícias lisboetas
enviadas para a campanha de 1386, muito pouco se sabe acerca da
participação concreta desta força nos combates.
O pouco que se conhece depreende-se a partir dos acontecimentos
descritos na Crónica de D. João I de Fernão Lopes: tomada a praça
forte de Chaves o exército português terá partido para junto da
Ribeira da Valariça, onde teve lugar um imponente alardo. Daí,
dirigiu-se para Almeida, vila que acabou por tomar - embora tal não
estivesse nos planos de D. João I - na sequência de um incidente
que envolveu combatentes de ambos os lados. No percurso entre
Almeida e Coria a hoste foi dividida em três corpos distintos,
comandados pelo rei, pelo condestável Nuno Álvares Pereira e por
Martim Vasques da Cunha. Durante o cerco a Coria, esta estrutura tripartida ter-se-á mantido, ficando as forças de Lisboa sob o
comando de Martim Vasques. Frustrada a tentativa de tomar a
praça, a hoste partiu para Penamacor, local onde foi dispensada. A
milícia de Lisboa ficava, assim, livre para regressar à capital, onde
reentrou em pleno ambiente de festa, no dia 15 de Julho, isto é,
cerca de mês e meio depois da data prevista para a conclusão da
sua participação na campanha.
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Parece-nos, pois, que a inclusão das milícias lisboetas na campanha de 1386 - à escala da verdadeira grandeza e importância da
cidade - teve um carácter excepcional comparativamente com outras anteriores. Se bem que esta visão possa estar deformada pelo
volume de informações que temos sobre esta campanha, contrariamente a outras, parece inegável que houve elementos inovadores
que convém destacar: em primeiro lugar, a dimensão do contingente, claramente superior a outros reunidos em ocasiões anteriores; em segundo, a facilidade e a rapidez com que um exército de
cerca de 700 homens foi reunido, não sendo conhecidos quaisquer
problemas com o recrutamento; em terceiro lugar, a inovação introduzida com o uso de uniformes (librés e colares) atribuídos às
lanças dos aquantiados; em quarto, a distância percorrida pelas
milícias da capital, muito superior àquela que tiveram que percorrer
em campanhas anteriores ou que viriam a percorrer em ocasiões
posteriores; em quinto lugar, a participação em combates fora do
território nacional e, por fim, a inclusão de combatentes provenientes de localidades recentemente integradas no termo da cidade
(Sintra, Torres Vedras, Alenquer e outras).
Mas nem tudo eram inovações. A deslocação das milícias por vias
de comunicação terrestres (elemento que só se altera em 1389
com o transporte das tropas lisboetas por via marítima para Tuy);
o grau de autonomia perdido com a inclusão na hoste régia; a escolha de figuras de destaque do panorama social e económico da
cidade para o comando das forças e, por fim, o desvanecimento do
papel interventor dos coudéis e dos anadéis da cadeia hierárquica
do contingente eram apenas alguns dos elementos que persistiam
de outras campanhas e que continuariam a manter-se durante mais
alguns anos. Assim foi na campanha anglo-portuguesa de 1387 e no
cerco de Tuy de 1389, derradeira intervenção das forças concelhias
da capital no longo período de guerra mediado entre 1369 e 1411.
Notas
1
"Ally hordenou el-Rey de se hiir tras os Montes, que he terra de
Portugal, por cobrar alguns logares que aimda naquella comarca ainda
comtra ele revelavom des y per emtrar per Castella" (Fernão Lopes,
Cronica del Rei Dom Joham I. Parte Segunda, (copiada por William James
Entwistle), Lisboa, Imprensa Nacion al - Casa da Moeda, 1968, cap. LXIII,
p. 152). Daqui em diante referir-nos-emos a esta obra como: CDJ (II).
2
Humberto Baquero Moreno, Os Itinerários de El-Rei Dom João I, Lisboa,
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1988, p. 234.
3
Os chefes militares procuravam, tanto quanto o possível, fazer coincidir
as campanhas militares com os meses de Primavera e de Verão, o que se
ligava aos problemas de deslocação e de abastecimento da hoste (João
Gouveia Monteiro, A Guerra em Portugal nos Finais da Idade Média,
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Lisboa, Notícias, 1998, pp. 207-208). Além disso, é bem natural que uma
campanha lançada durante o Inverno, ao frio e à chuva, se tornasse bastante mais desagradável de suportar do que uma lançada na Primavera ou
no Verão.
4
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXIII, p. 152
5
Sobre a contratação de mercenários pela Coroa portuguesa, cf. João
Gouveia Monteiro, op. cit., pp. 85-88. As fontes disponíveis nada referem
quanto à efectiva contratação de mercenários, pelo que não sabemos se
D. João I se ficou apenas pelas intenções.
6
O primeiro documento que regista D. João I em Vila Real data de 18 de
Novembro de 1385 (Humberto Baquero Moreno, op. cit., p. 234).
7
Gonçalo Vasques, tal como toda a sua linhagem, manteve, durante o
primeiro semestre de 1384, uma postura expectante, sem tomar qualquer posição até Outubro/Novembro desse ano (Luís Filipe Oliveira, A Casa
dos Coutinhos: Linhagem, Espaço e Poder (1360-1452), Cascais,
Patrimonia Historica, 1999, p. 37).
8
Registe-se que após uma posição titubeante, Martim Vasques da Cunha,
em sequência do resultado da batalha de Aljubarrota, alinha ao lado de D.
João I. Contudo, em 1396 passa-se para Castela, de onde chega mesmo a
lançar ataques contra a Beira, em 1396 e 1398 (Salvador Dias Arnaut, A
Batalha de Trancoso, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra/Instituto Histórico Dr. António de Vasconcelos, 1947, p. 107).
9
10
Humberto Baquero Moreno, op. cit., pp. 234-235.
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXIII, p. 152. Não parece haver consenso re-
lativamente à data de início do cerco pois, contrariamente a Baquero
Moreno, que afirma que D. João I cercava Chaves desde meados de
Janeiro de 1386 (Humberto Baquero Moreno, op. cit., p. 235), Valentino
Viegas, baseado, provavelmente em Fernão Lopes - o cronista afirma que
D. João I passou o dia de Natal em S. Pedro de Agasté (Fernão Lopes, CDJ
(II), cap. LXIII, p. 153) - informa que D. João I se encontrava nas proximidades de Chaves, em S. Pedro de Agasté, desde 20 de Dezembro de
1385, a descansar do cerco de Chaves (Valentino Viegas, Cronologia da
Revolução de 1383-1385, Lisboa, Estampa, 1984, p. 168), o que implicaria
que o cerco tenha sido iniciado ainda em finais desse ano, situação que
não nos parece muito plausível.
11
Martim Gonçalves de Ataíde era casado com Mécia Vasques Coutinho e
tinha recebido a alcaidaria-mor de Chaves de Leonor Teles que também
tinha patrocinado o seu consórcio (Luís Filipe Oliveira, op. cit., p. 35).
12
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXIII, p. 153.
13
Sobre as preitesias, prática corrente em situações de cerco, cf. João
Gouveia Monteiro, op. cit., pp. 368-373.
14
Assinale-se que a carqueja era um excelente material combustível uti-
lizado como tal ainda nos séculos XVIII e XIX.
15
Segundo João Gouveia Monteiro, o exército de Nuno Álvares Pereira
"preservou sempre uma identidade muito particular e uma autonomia militar deveras considerável" (João Gouveia Monteiro, op. cit., p. 39).
16
João Afonso Pimentel era casado com Joana Teles de Meneses, meia-
-irmã de D. Leonor Teles. Na sequência da aproximação ao círculo familiar e
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político da rainha, recebeu de D. Fernando um importante conjunto de
doações e benesses (Bernardo Vasconcelos e Sousa, Os Pimentéis:
Percurso de uma Linhagem da Nobreza medieval Portuguesa (Séculos XIIIXIV), Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2000, p. 285), o que, em
certa medida, pode ajudar a explicar o seu posicionamento político-militar
nos anos que se seguiram à morte d’O Formoso.
17
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 157. O cronista refere-se, natural-
mente, aos membros do concelho de Lisboa. João Eanes da Pedreira tinha
sido vereador em 1383, tal como Afonso Gonçalves que, nesse ano, tinha
também acumulado a função de provedor do Hospital de D. Maria de
Aboim. Quanto a Estêvão Eanes, nada sabemos, excepto que pode ser o
mesmo indivíduo que, em 1373, foi alvazil geral. Sobre Vasco Martins, as
dúvidas são as mesmas (A Evolução Municipal de Lisboa, Lisboa, Câmara
Municipal de Lisboa - Arquivo Municipal de Lisboa, 1996, pp. 44-50).
18
Tendo a carta de D. João I, na qual chamava para junto de si o contingente
de Lisboa, chegado à cidade em Fevereiro, admitamos que no princípio do
mês, e sendo esse contingente pago para um período com início em Março,
parece-nos que a sua preparação terá demorado, no máximo, um mês.
19
Sobre o método de recrutamento de aquantiados e de besteiros do
conto utilizado em Lisboa durante os reinados de D. Fernando e de D.
João I, cf. Miguel Gomes Martins, Lisboa e a Guerra (1367-1411), Lisboa,
Livros Horizonte, 2001, pp. 17-28 e 39-41, respectivamente.
20
Sobre a frequência com que eram realizados os alardos em Lisboa, cf.
Miguel Gomes Martins, Lisboa e a Guerra (1367-1411), op. cit., p. 26.
21
Na expressão de Anthony Goodman (The Wars of the Roses, London and
New York, Routledge, 1991, p. 29).
22
Sobre o pagamento adiantado dos soldos aos membros dos contin-
gentes lisboetas, cf. Miguel Gomes Martins, op. cit. pp. 59-61.
23
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 157.
24
Pelo menos Fernão Lopes não dá conta de qualquer diferenciação.
Todavia, é bem natural que, na realidade, as coisas se passassem de outra
forma. Veja-se, por exemplo, o que é referido na “Crónica de D. Fernando”,
em que o mesmo cronista assinala que “pagavom de solldo ao de cavallo
tari com faca armado aa guisa, trinta solldos por dia, que eram oito
dobras por mes, e ao genete viinte, que eram por mes cinquo dobras, e ao
de cavallo sem faca quinze solldos” (Fernão Lopes, Crónica de D. Fernando
(Edição crítica por Giuliano Macchi), Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da
Moeda, 1975, cap. XXXVI, p. 119). Daqui em diante referir-nos-emos a
esta obra apenas como: CDF.
25
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 157.
26
Sobre as obrigações dos besteiros do conto de Lisboa, cf. Miguel Gomes
Martins, op. cit., pp. 44-46 e “Os besteiros do conto em Lisboa: De 1325
aos inícios do século XV", in Cadernos do Arquivo Municipal, n.º 1, Lisboa,
Câmara Municipal de Lisboa-Divisão de Arquivos, 1997, pp. 97-99.
27
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 157.
28
Miguel Gomes Martins, Lisboa e a Guerra (1367 - 1411), op. cit., pp. 57-58.
29
Miguel Gomes Martins, Lisboa e a Guerra (1367 - 1411), op. cit., pp.
100 e 103-104.
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Miguel Gomes Martins
30
João Gouveia Monteiro, op. cit., p. 244.
31
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 157. Sobre o papel das "enculcas" e
da espionagem em geral no quadro da guerra medieval, cf. João Gouveia
Monteiro, op. cit., p. 240 e ss e Christopher Allmand, "Les Espions au
Moyen Age", in L´Histoire, n.º 5, 1983, pp. 34-41.
32
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 157.
33
Miguel Gomes Martins, "Os besteiros do conto em Lisboa: De 1325 a
inícios do século XV", op. cit., 1997, pp. 108-112.
34
Pelo menos é esta a ideia transmitida pela "Crónica de D. João I" (Fernão
Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 157).
35
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 157.
36
João Gouveia Monteiro, op. cit., p. 294.
37
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 157.
38
IAN-TT, Leitura Nova, Estremadura, Livro 11, fls. 203v-204, de
27/Abril/ 1386.
39
Em Julho de 1385, o concelho de Lisboa enviou para Alenquer, onde se
iria juntar à hoste régia que viria a participar na Batalha de Aljubarrota,
um contingente composto apenas por 100 lanças, 21 das quais eram de
cavaleiros ingleses (Miguel Gomes Martins, Lisboa e a Guerra (13671411), op. cit., p. 56).
40
Miguel Gomes Martins, Lisboa e a Guerra (1367-1411), op. cit., p. 57.
41
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 158. É nos mesmos termos que a
"Crónica do Condestável" se refere à excelente impressão que as tropas do
concelho de Lisboa provocaram em D. João I: “E entom chegou tambem o
conselho de Lixboa, com que el rey foy asaz ledo” (Estoria de Dom Nuno
Alvrez Pereyra, Edição crítica da "Crónica do Condestabre", com introdução, notas e glossário de Adelino de Almeida Calado, Coimbra, por
ordem da Universidade, 1991, p. 135).
42
Esta prática estava já bastante divulgada no continente europeu, sobre-
tudo, graças a uma expansão verificada durante a Guerra dos Cem Anos.
Em 1341, a cidade de Tournai enviou para Philippe VI 2 000 homens de pé
vestidos de forma idêntica, enquanto que, a partir de meados do século XIV,
os homens provenientes do Cheshire e norte de Gales envergavam uniformes verdes e brancos (Christopher Allmand, The Hundred Years War:
England and France at War (c. 1300 - c. 1450), Cambridge, Cambridge
University Press, 1989, p. 101). Estes foram, segundo Contamine, os
primeiros guerreiros provenientes das ilhas britânicas a aparecer uniformizados num campo de batalha no continente (Philippe Contamine, War in
the Middle Ages, Oxford (UK) and Cambridge (USA), Blackwell, 1996, p. 191).
43
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 157.
44
É possível que, como uniformes que eram, possuíssem pequenas dife-
renças, de acordo com a posição que cada um ocupava na cadeia de
comando da milícia (Philippe Contamine, op. cit., p. 192).
45
Quanto às cores preta e branca, desconhecemos desde quando seriam
identificativas da cidade de Lisboa. Porém, a barca e os corvos, desde,
pelo menos, os inícios do século XIII que eram os seus símbolos heráldicos,
sendo utilizados, também, frequentemente nos selos do concelho. O mais
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antigo vestígio desse uso reporta-se, precisamente, a um selo apenso a
um documento do concelho de Lisboa datado de 1233, ou seja, 60 anos
depois da vinda para Lisboa dos restos mortais de S. Vicente (VIII
Centenário da Trasladação das Relíquias de São Vicente - Catálogo da
Exposição, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa-Serviços Culturais, 1973,
p. 83). Durante a conquista de Ceuta, João Vaz de Almada, alferes do contingente de Lisboa, transportava a "bandeira de São Vicente" (Gomes
Eanes de Zurara, Crónica da Tomada de Ceuta, Introdução e notas de Reis
Brasil, Mem Martins, Europa-América, 1992, p. 252).
46
João Gouveia Monteiro, op. cit., p. 295.
47
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 158.
48
Miguel Gomes Martins, Lisboa e a Guerra (1367-1411), op. cit., p. 42.
49
“que hos cavaleiros piões e besteiros da dicta villa de Torres Vedras
sayam com o pendom da dicta villa seendo ante chamados requeridos pera
ello pellos da dicta çidade [de Lisboa](...) e pousem em seu araial ” (AMLAH, Livro I de D. João I, doc. 8, de 7 /Setembro/ 1385).
50
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 157.
51
AML-AH, Livro I de D. João I, doc. 8, de 7/Setembro/ 1385.
52
Idem, doc. 9, de 7/Setembro/ 1385.
53
Idem, doc. 10, de 8/Setembro/ 1385.
54
Esta integração no termo de Lisboa pode, como já o sugeriu Oliveira
Marques, ser entendida como uma punição pela fidelidade demonstrada
relativamente à causa de D. Beatriz (A. H. de Oliveira Marques, Nova
História de Portugal, Vol. IV - Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV,
Lisboa, Presença, 1987, p. 532).
55
AML-AH, Livro I de D. João I, doc. 8, de 7/Setembro/ 1385. Utilizámos
um excerto do diploma que integrava a cidade de Torres Vedras no termo
de Lisboa. O texto relativo à integração de Alenquer no termo da cidade
de Lisboa (Idem, doc. 9, de 7/Setembro/ 1385) é do mesmo teor. Quanto
ao documento que inseria no seu termo as vilas de Colares, Ericeira,
Mafra e Vila Verde, bem como todos os lugares “que som des o termho
d´Alanquer ata a dicta çidade de Lixboa asi como vay o ryo do Tajo e que
som des o termho de Torres Vedras ata a dicta çidade e des Sintra ata
essa meesma çidade asi como vay a beyra do mar entendendo aqui todalas
villas e logares e aldeas que som antre os termhos da dicta çidade e os
das sobredictas villas d´Alanquer e de Torres Vedras e de Sintra e como
se vay pello dicto rio do Tajo a beyra do mar”, apresenta algumas diferenças. Assim estipula que as milícias oriundas desses locais procedessem
de maneira a “guardar a bandeyra e pendom da dicta çidade e de seus termhos em que aqueles casos e pela guisa e condiçom que som theudos d´a
guardar e defender os dos dictos logares d´Alanquer e de Torres Vedras e
de seus termhos” (Idem, doc. 10, de 8/Setembro/ 1385).
56
Miguel Gomes Martins, Lisboa e a Guerra (1367-1411), op. cit., pp. 37-38.
57
João Gouveia Monteiro, op. cit., p. 231.
58
Fernão Lopes, CDJ (II) cap. LXVI, p. 158. Sobre os contingente enviados
para esta campanha, cf. João Gouveia Monteiro, op. cit., pp. 78-99.
59
João Gouveia Monteiro, op. cit., p. 230.
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Miguel Gomes Martins
60
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 157.
61
Registe-se que Penamacor era a principal base de apoio da hoste
durante o cerco a Coria e o local para onde eram levados os feridos portugueses (Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXXVIII, p. 180).
62
No dia 2 de Julho de 1386 D. João I chegava a Penamacor (Humberto
Baquero Moreno, op. cit., p. 238), pelo que as milícias lisboetas devem ter
partido dessa localidade nesse mesmo dia ou no seguinte. A sua chegada
a Lisboa ter-se-à verificado, a acreditar em Fernão Lopes, no dia 15 desse
mesmo mês (Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXXVIII, p. 180).
63
As milícias de Lisboa regressaram á cidade debaixo de um ambiente fes-
tivo e foram recebidas na capital no dia 15 de Julho de 1386.
64
Durante a Primeira Guerra Fernandina foi enviado com Gomes Lourenço
do Avelar para Ciudad Rodrigo, onde resistiu ao cerco imposto em 1370
por Enrique II de Castela (Fernão Lopes, CDF, cap. XXXIX, pp. 127-135).
65
Estêvão Vasques Filipe, vassalo régio e de João Afonso Telo - irmão de
Leonor Teles - foi um dos patrões das galés portuguesas aprisionado na
batalha naval de Saltes. Foi nomeado anadel-mor dos besteiros do conto
do reino no início do reinado de D. João I e ter-se-á mantido nesse lugar,
pelo menos, até Junho de 1393. Para uma biografia mais desenvolvida
desta figura, cf. Miguel Gomes Martins, "Estêvão Vasques Filipe: O percurso de um guerreiro nos finais de Trezentos", in Cadernos do Arquivo
Municipal, n.º 5, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 2001, pp. 10-47.
66
Estêvão Vasques Filipe era filho de Vasco Esteves Filipe, vizinho de
Lisboa e morador nessa cidade, que encontramos registado como procurador do concelho de Lisboa na assinatura das pazes entre D. Afonso IV e
o infante D. Pedro no ano de 1356 (AML-AH, Livro II de D. Dinis, D. Afonso
IV e D. Pedro I, doc. 30, de post. 18/Janeiro/ 1356). Em 1358 ainda era
vivo (AML-AH, Livro I de Sentenças, doc. 11, de 14/Janeiro/1359).
67
O outro foi Afonso Furtado (AML-AH, Livro II de D. Fernando, doc. 25, de
12/Setembro/ 1383).
68
"em tempo dos ditos reys que ante nos forom quando algüuas jentes com
o capitam da dita cidade hiam a seu serviço que sempre avia jurdiçam o
capitam em todos aquelles que da dita çidade hiam assi crimes como çivees
e que se algum delles fazia alguum erro assi na oste d´el rey como em villa
ou em outro logar que era logo entregue ao capitam " (IAN-TT, Leitura Nova,
Estremadura, Livro 11, fls. 203v-204, de 27/Abril/ 1386). Sobre este assunto, cf. também Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, pp. 158-159.
69
IAN-TT, Leitura Nova, Estremadura, Livro 11, fls. 203v-204, de
27/Abril/ 1386.
70
Gonçalo Vasques Carregueiro, filho de Vasco Afonso Carregueiro, a quem
sucedeu como uma figura de destaque da sociedade lisboeta, ocupava, em
1385, o cargo de vereador, em 1386 o de procurador, em 1389 e 1390
novamente o de vereador, em 1394 o de procurador, em 1400 o de juiz do
cível, em 1408, novamente o de vereador, tal como em 1419 e 1424, o de
procurador em 1432, o de vereador em 1447, 1450 e 1457, altura em que
seria já bastante idoso (Miguel Gomes Martins, Lisboa e a Guerra (13671411), p. 154, n.º 129 e A Evolução Municipal de Lisboa: Pelouros e
Vereações, op. cit., 1996, pp. 41-53).
71
João Gouveia Monteiro, op. cit., p. 77. Desconhecemos qual seria o caso
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de Gonçalo Vasques Carregueiro, embora nos pareça, pela sua importância
entre as elites da capital, que a escolha terá partido do concelho.
72
João Gouveia Monteiro, op. cit., p. 222.
73
Gastão de Melo de Matos, "Alferes", in Diccionário de História de Portugal,
Dir. de Joel Serrão, Vol. II, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1963, p. 97.
Miguel Gomes Martins, Lisboa e a Guerra (1367 - 1411), op. cit., p. 33,
quadro 2.
74
75
Por outro lado, a sua madrasta encontrava-se em Castela “em
deserviço destes regnos e senhor” (IAN-TT, Chanc. de D. João I, Livro 1,
fls. 64-64v, de 8 /Outubro /1384). Contudo, tal não parece ter influenciado
a decisão de o escolher para o comando de um contingente tão importante.
Não são conhecidos muitos dados biográficos acerca deste indivíduo.
Sabemos, no entanto, que em 1383, também ocupava o cargo de procurador concelhio (A Evolução Municipal de Lisboa: Pelouros e Vereações, op.
cit., 1996, p. 45). Enquanto membro do concelho, organizou a recolha de
géneros enviados para Inglaterra com a embaixada composta por Lourenço
Eanes Fogaça e pelo Mestre de Santiago, em 1383-1384 (AML-AH, Livro I
de D. João I, doc. 31, de 14/Março/ 1390). Foi nessa qualidade que participou no assassinato do bispo de Lisboa durante a Revolução de 1383
(Fernão Lopes, Chronica del Rei Dom João I da Boa Memória. Parte
primeira (Reprodução facsimilada da Edição do Arquivo Histórico Português
(1915), preparada por Anselmo Braamcamp Freire, com prefácio de Luís
Filipe Lindley Cintra), Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1972,
cap. XII, p. 23 e ss). Apesar de ter incorrido num crime passível de excomunhão - tal como os restantes envolvidos -, foi absolvido através de um
breve do Papa Urbano VI, datado de 2 de Novembro de 1385 (AML-AH,
Livro de Bulas e Breves Apostólicos do Senado da Câmara, doc. 1, de
2 / Novembro / 1385). Em 1392 vamos encontrá-lo na qualidade de coudel
pelo rei na cidade de Lisboa (AML-AH, Livro I de D. João I, doc. 53, de
10/Novembro/ 1392).
76
Fernão Lopes, CDJ (II), cap. LXVI, p. 157. Conforme afirma Salvador Dias
Arnaut, "o dinheiro desempenhava grande papel nestes trabalhos de espionagem" (Salvador Dias Arnaut, op. cit., p. 169).
77
78
AML-AH, Livro I de D. João I, doc. 12, de 25/Abril / 1386.
79
AML-AH, Livro dos Pregos, doc. 143, de 26/Abril/ 1386.
80
IAN-TT, Leitura Nova, Estremadura, Livro 11, fls. 203v-204, de
27/ Abril / 1386).
81
AML-AH, Livro I de D. João I, doc. 53, de 10/Novembro/ 1392.
Registe-se que as tropas comandadas por Nuno Álvares não entraram
nesse combate, segundo Fernão Lopes, “por quamto o Comde nom fora
em comselho de combater o logar, nem lhe prouvera dello” (Fernão Lopes,
CDJ (II), cap. LXXVI, p. 175).
82
* Mestre em História da Idade Média pela Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra
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Lisboa, memória viva de passados portuários distantes
Maria Luísa Pinheiro Blot*
Nota prévia: A versão final deste trabalho teve a colaboração de Rui
Henriques (IPA), a quem agradecemos pela sua participação na
análise e adaptação comentada das ilustrações que apresentamos.
Muda a paisagem, mudam os espaços. Constrói-se a paisagem
urbana, cresce a cidade, e transformam-se as funções dos espaços
urbanos. É este o percurso da forma de povoamento que entendemos por cidade.
Os subsolos urbanos são os arquivos das cidades, e Lisboa é exemplo de uma cidade portuária viva cujo subsolo actualmente urbano,
constitui um arquivo dos registos de uma relação muito antiga de
um povoado com o elemento aquático, de antigas actividades portuárias que se inserem na origem da sua formação e que contribuiram para o crescimento urbano.
Do processo de formação e crescimento da cidade de Lisboa julgamos indissociáveis as provas arqueológicas que mais directamente evocam uma longa, e antiga, relação com o meio estuarino
envolvente.
Embora permaneça uma opacidade arqueológica relativamente à
materialização - do ponto de vista de equipamentos portuários - das
actividades náuticas e portuárias do passado, os actuais protagonistas da realidade portuária são os materiais arqueológicos exumados do subsolo da cidade, assim como o potencial arqueológico
que, pouco a pouco, vai surgindo do fundo do estuário.
É num cenário compreendido entre colinas sobranceiras a um antigo esteiro e a respectiva margem fluvial que devem ter-se inscrito
os pólos de povoamento que originaram Lisboa. Efectivamente, a
posição geográfica da cidade corresponde a um conjunto de pequenas elevações que dominam um antigo vale fluvial inserido na
margem direita da zona vestibular do estuário do Rio Tejo.
Do ponto de vista do contexto geomorfológico, a posição de litoralidade de Lisboa teve continuidade até à época actual. Inicialmente,
a ocupação humana ter-se-á repartido por dois pontos estratégicos - a acrópole sobranceira ao estuário, numa colina da sua
margem direita, e a zona ribeirinha do estuário do Tejo, mais pro-
RESUMO
Os subsolos urbanos são os mais remotos
arquivos das cidades. Lisboa, cidade portuária
viva, não escapa a esta regra.
As descobertas arqueológicas que têm ocorrido na Baixa lisboeta vão proporcionando novos
elementos que ajudam a compreender o passado de um povoado que, desde a mais longínqua
antiguidade, beneficiou de espaços portuários
activos. No caso de Lisboa, eles permitem-nos
recuar no mínimo, até um passado portuário
que remonta à Idade do Ferro.
Um diálogo estabelecido entre a arqueologia de
terra e a arqueologia do meio aquático permite
alargar o campo da análise, e da compreensão
do que precedeu a grande urbe de hoje. A zona
ribeirinha, verdadeiro repositório de memórias
que ligam a terra ao estuário de Tejo, continua
a ser alvo de projectos de urbanização, legando,
à passagem, testemunhos eloquentes.
O programa de um novo Museu na área de
Lisboa1, permite a articulação entre o conhecimento dos testemunhos arqueológicos, as
espécies biológicas presentes no estuário e a
realidade portuária, podendo vir a constituir
mais uma escala a incluir no percurso museológico da cidade do Tejo.
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Lisboa, memória viva de passados portuários distantes
priamente, nas praias de um esteiro que desaguava na margem
direita do Tejo. Essa litoralidade manteve-se relativamente ao curso
do Tejo, embora se tenha observado uma alteração da fachada fluvial do esteiro que, uma vez assoreado, se transformou numa área
mais interior, progressivamente habitada e que constitui hoje a
parte central da Baixa lisboeta. O actual subsolo urbano dessa área
constitui o arquivo dos testemunhos das actividades portuárias
mais remotas, assim como as de época romana.
Lisboa insere-se numa paisagem propícia às actividades que determinaram o seu crescimento. A imensidão do estuário navegável,
com fundos fluviais que proporcionavam ancoradouros seguros, a
riqueza da região envolvente e em que se inscreve o curso do Rio
Tejo, constituiram os factores essenciais e propícios quer a movimentos comerciais, quer à instalação de núcleos de povoamento.
Num artigo publicado no jornal O Público sobre um debate àcerca do
subsolo da Baixa lisboeta, o jornalista Francisco Neves escrevia
recentemente: "A Baixa de Lisboa é uma cidade lacustre; à maneira
de Veneza, mas sem os canais. (...) Os edifícios da Baixa foram
erguidos sobre um depósito aluvial, sobre areias acumuladas, que
nalguns pontos atinge os dez metros de profundidade, abaixo do
qual não há rocha firme, mas lodo" 2.
Parafraseando os especialistas do Departamento de Engenharia
Civil do Instituto Superior Técnico, o jornalista partilhava com o
leitor a noção de que a Baixa lisboeta e a actual faixa ribeirinha de
Lisboa constituem, efectivamente, ocupações urbanas de antigos
espaços navegáveis.
As fontes mais antigas (Estrabão, III, 3, 1; Plínio IV, 113, 117, 118;
Ptolomeu; Itinerário de Antonino Pio (referência a Olisipo 3), referiam
já as qualidades do porto de abrigo que a antiga forma geográfica
em que se inseria Olisipo oferecia à navegação da Antiguidade.
Outras fontes históricas, tais como Fernão Lopes (Crónica do
Senhor Rei Dom Fernando), Frei Nicolau Oliveira (Livro das
Grandezas de Lisboa, 1620), Damião de Góis (Chronica do
Sereníssimo Senhor Rei D. Manuel), e Damião de Góis (Urbis
Olisiponis Descripto ou Descriçao da Cidade de Lisboa), são sugestivas relativamente à actividade comercial portuária de Lisboa.
As próprias fontes cartográficas 4 ilustram a capacidade portuária
da cidade, nomeadamente a carta relativa ao porto de Lisboa inserida num conjunto, Descripção dos Portos Marítimos do Reino de
Portugal, de 1648, da autoria de João Teixeira, e reproduzido em
Cortesão, A. e Mota, A. T. (1987) - Portugaliae Monumenta
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Maria Luísa Pinheiro Blot
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Cartographica, vol. IV, Estampa 510 A e, sobretudo, a ilustração de
Pedro Teixeira, no seu "Atlas" de 1634, um conjunto de panorâmicas
dos principais portos,que, em sugestivas imagens, fornecem informação sobre a capacidade portuária dos casos ilustrados.
Encontramos ainda informações sobre a realidade portuária da
época moderna em outras fontes idênticas, tais como o Mapa de
Carlos Mardel (1750), do Terreiro do Paço a Belém, com projecto de
novo arsenal (C. P. L. (1988); General Filipe Folque e ContraAlmirante Pereira da Silva, Carta Topographica da Cidade de Lisboa
e seus arredores (...) (1856-1858).
Os documentos iconográficos relativos à Lisboa portuária de que
nos ocupamos parecem surgir a partir do início do século XVI
(Ramos 1990).
Enumeramos, entre outros, os seguintes documentos:
€ Panorâmica de Lisboa (iluminura), Livro de Horas de D. Manuel
(1517-1530)
€ Panorâmica de Lisboa (1530-1534), por António de Holanda.
British Library. Londres.
€ Panorâmica de Lisboa (c. 1535). Rijks Universiteit. Leiden.
€ Braun, Georg (ou Braunius) (1572 ?), Vista em perspectiva de
Lisboa. Civitates Orbis Terrarum. Vol. I. Colónia. T. Graminaeus.
€ Iluminura atribuída a António de Holanda de Panorâmica de
Lisboa no século XVI. Galvão, D., Crónica de D. Afonso
Henriques.
Figura 1 Panorâmica de Lisboa anterior a 1755.
"Partida de S. Francisco Xavier para a Índia". Nesta
imagem assinalámos os espaços portuários de fundeadouro e de varadouro, ambos praticáveis independentemente de estruturas construídas (Foto: R.
Henriques/CNANS).
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Figura 2 Panorâmica de Lisboa anterior a 1755.
Nela é possível observar os informais espaços portuários, testemunhos de trânsito terra/água, na
ausência de estruturas portuárias. Painel de azulejos de 1735. Lisboa, Museu da Cidade. (Foto: R.
Henriques/ CNANS).
€ Tinoco, João Nunes (1650), Planta da cidade de Lisboa.
Existe ainda uma panorâmica de Lisboa seiscentista representando
a partida de S. Francisco Xavier para a Índia (século XVII), atribuída
a Simão Gomes dos Reis e a Domingos da Cunha, conservada na
Academia Nacional de Belas-Artes. A referência que F. Castelo
Branco faz a este quadro constitui um elemento importante para
este estudo, na medida em que descreve a representação de dois
tipos de embarcações no Tejo: as de alto bordo, fundeadas ao largo,
e, por outro lado, e representadas em grande número, as pequenas
embarcações fluviais junto à praia (Castelo-Branco 1958: 49). Esta
descrição concorda plenamente com a dupla forma de espaço portuário: o ancoradouro, ao largo, por um lado, e o varadouro, na
costa, garantindo o contacto com terra, independentemente da
existência de estruturas portuárias específicas.Figura 1.
Do século XVIII, localizámos um desenho aguarelado (1767-1769) da
zona ribeirinha de Lisboa, referido por Vieira da Silva (Ramos
1990) 5. Reproduzimos na Fig. 2 uma panorâmica de 1735 em azule-
jos em que são observáveis os espaços com funções portuárias
anteriormente a estruturas portuárias construídas.
Vestígios arqueológicos de actividades portuárias.Fig. 3
A arqueologia urbana em Lisboa tem demonstrado que os mais antigos protagonistas dos gestos humanos relacionados com actividades portuárias deixaram testemunhos de contactos ocorridos
através de navegações de longo curso em que Lisboa funcionou quer
como porto de destino, quer como porto de escala.
Segundo esta perspectiva, propomos, nos parágrafos que se
seguem, os elementos que um olhar particularmente atento sobre
esses vestígios nos leva a destacar. (Blot, 2003)
Como testemunho de contactos com civilizações do mundo mediterrânico oriental, foi observado um contexto arqueológico de cariz o-
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rientalizante no Claustro da Sé de Lisboa, com paralelos na Quinta
do Almaraz e na Alcáçova de Santarém, tratando-se nos três casos
de cidades directamente ligadas ao tráfego marítimo e fluvial
(Amaro 1993; Arruda 1993; Barros, Cardoso e Sabrosa 1993;
Cardoso 1995; Diogo 1993).
Também as escavações do Teatro Romano de Lisboa proporcionaram
a exumação de materiais cerâmicos de época tardia e de origem
foceense e cipriota, bem como ânforas orientais consideradas pelos
autores não como resultados de simples introduções fortuitas, mas
pela existência de relativamente fortes circuitos comerciais, ligados
à manutenção de Lisboa como importante porto comercial, mesmo
após a sua submissão aos Alanos, cerca de 411. (Diogo e Trindade
1999: 87).
Relativamente a esta época, A zona portuária ter-se-á instalado
(...) na praia fluvial (...) onde os barcos seriam varados na praia e
onde, para além do comércio com o exterior, se irá instalando a área
industrial de conserva de peixe (Amaro 1993: 187), vindo posteriormente o forum romano - eventualmente um forum corporativo
(Ribeiro 1994) - a instalar-se na zona da Rua da Prata, na tradição
de um espaço fortemente marcado pela vida portuária e comercial.
(Amaro 1993: 187).
Figura 3 Principais descobertas arqueológicas relacionadas com funções portuárias na frente ribeirinha da cidade de Lisboa. (Foto: R.Henriques/ CNANS).
A. Na foz das ribeiras que desembocavam no antigo esteiro da Baixa lisboeta vestígios de ocupação da margem datáveis da Idade do Ferro, bem
como de elementos urbanos da Olisipo romana.
B. Vestígios de estaleiro naval medieval do Largo do Município, séc. XIII e XIV.
C. Vestígios de embarcação do século XIV, no Largo do Corpo Santo, inseridos numa paleo margem do Tejo.
D. Vestígios de processos construtivos em meio aquático e troço de caisem pedra. Mercado da Ribeira, séc. XVII - XIX.
E. Embarcação do Cais do Sodré, do séc. XVI, na paleo margem do Tejo.
F. Vestígios de embarcadouro (ou de carreira de estaleiro naval ?) do séc. XIX, no actual Largo Vitorino Damásio, numa reentrância da margem
fluvial.
G. Cofragem de aterro portuário, séc. XIX, na Avenida D. Carlos I.
H. Elementos em silhares de pedra de presumível doca seca, e alicerces em meio aquático, séc. XIX, em Alcântara - Rio, no local correspon
dente à antiga foz da Ribeira de Alcântara.
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Precisamente na Rua da Prata, as estruturas subterrâneas
descobertas em 1773 e classificadas por alguns autores como "termas", mas cujas funções permanecem discutíveis (Maciel 19931994), parecem articular-se com o espaço portuário do antigo
esteiro do Tejo, a que são associáveis as cetariae, sugerindo mais
uma interpretação como criptopórtico (Ribeiro 1994), num contexto de urbe já organizada em época pré-romana e com indissociáveis
funções portuárias (Maciel 1993-1994).
A própria orientação Sudeste/Noroeste das três fábricas de salga
romanas descobertas na Rua Augusta sugere o aproveitamento da
praia fluvial que se estendia ao longo do antigo esteiro, tendo esta
instalação sido efectuada sobre vestígios anteriores de ocupação
ibero-púnica, numa natural sobreposição que sugere o aproveitamento muito remoto da margem do esteiro (Amaro et al. 1996).
Igualmente a testemunhar este tipo de actividades no subsolo da
Baixa de Lisboa, contribuindo para uma cartografia da zona fabril do
povoado antigo, existem os vestígios de uma unidade de transformação de pescado descoberta na Rua dos Fanqueiros (Diogo e
Trindade 2000). A área estudada, que permite datar a fase de abandono da actividade fabril de transformação de pescado na antiga
Olisipo, correspondente à segunda metade do século V, explica ainda
a presença em Lisboa de cerâmicas finas oriundas do Mediterrâneo
oriental, testemunho de circuitos mercantis estáveis e com mercadorias de retorno (Diogo e Trindade 2000: 185).
Paralelamente, o panorama humano que parece delinear-se durante
a antiguidade tardia de Olisipo, surge associado à possível
importância que as comunidades helenizadas evidenciam através da
utilização do alfabeto grego tal como surge nos imbrices fabricados
localmente e descobertos na unidade fabril da Rua dos Fanqueiros
(Diogo e Trindade 2000).
Outros numerosos vestígios de importações figuram entre os
testemunhos arqueológicos relacionáveis com actividades portuárias. Entre os abundantes vestígios anfóricos encontrados no
subsolo urbano de Lisboa, existem elementos de importações tais
como ânforas vinárias de origem itálica, bética e tarraconense,
gaulesa e ainda de origem oriental na necrópole da praça da Figueira
(Fabião 1998).
Também durante as escavações do teatro Romano de Lisboa se registaram vestígios de ânforas vinárias itálicas (greco-itálica do século III a 130 a.C. e Dressel 1, c. 130 a.C. e início do século I), béticas
(vinária Haltern 70, datável de entre meados do século I a.C. e meados do século I d.C.; piscícola Dressel 10, e oleárias Dressel 20 e
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Dressel 23) bem como de ânforas oleárias ou piscícolas africanas
tardias originárias da Tunísia (Keay XXV e Keay LXI ou LXII), assim
como de ânforas vinárias tardias (século IV a V) do Mediterrâneo oriental (Ágora M 54, fabricada no sul da Turquia) e a vinária ou oleária
Keay LIII (século V a início do século VII) de produção assinalada no
sul da Turquia, Rodes e Chipre (Diogo 2000: 163-164).
Olisipo, the major Atlantic port of the province [a Lusitania]
(Edmondson 1987: 154), insere-se geograficamente num contexto
estuarino aproveitado desde tempos remotos como fonte de recursos e, a partir dos primeiros contactos com as civilizações do
Mediterrâneo oriental inventoras dos taricheiai (Counillon e Étienne
1997), como local preferencial para a instalação da indústria de
transformação do pescado. Dessas actividades existem evidências
arqueológicas reveladoras de dois tipos de produção directamente
relacionados: os complexos de salga e o fabrico de ânforas na
margem esquerda, além Tejo.
No que se refere a olarias de produção anfórica, será importante
destacar, já que estudamos a realidade portuária de duas margens
de um mesmo complexo portuário, a existência, na margem sul do
Tejo de unidades fabris conhecidas em Muge, Garrocheira, Quinta do
Rouxinol e Porto dos Cacos.
A produção destas olarias apresenta duas fases: uma fase compreendida entre o século I d.C. e finais do século II ou inícios do
século III; outra fase correspondente a finais do século II e inícios do
século III (Carvalho e Almeida 1996). Apenas Porto dos Cacos, (na
Herdade de Rio Frio, Alcochete), terá abrangido ambas as fases, ou
seja, numa continuidade desde o século I ao início do século III
(Carvalho e Almeida 1996), ou até mesmo ao século V (Raposo e
Duarte 1996), acompanhando as transformações da produção
anfórica, e coexistindo com grande parte da produção piscícola de
Cacilhas (século I a.C. a século I d.C.) (Raposo e Duarte 1996).
Todas estas olarias terão sido contemporâneas das cetariae de
Olisipo conhecidas.
Apenas as olarias mais próximas da foz, tanto do Tejo como do
Sado, por estarem perto das cetariae, parecem ter-se confrontado com a necessidade de produção de novas formas introduzidas,
Almagro 50 e 51 (Cardoso e Rodrigues 1996). No complexo fabril da
Rua Augusta, as formas de ânforas de presença mais frequente são
precisamente a forma Almagro 51c e, seguidamente, a forma
Almagro 50 (Amaro, Bugalhão e Sabrosa 1996).
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Relativamente à provável natureza orgânica (madeira) dos materiais
utilizados na construção de estruturas com funções portuárias6,
como cais, por exemplo - tal como se verificou no estudo arqueológico realizado na área em que se sucederam cronologicamente os
portos arcaicos de Marselha (Hesnard 1995) - encontramos um
pequeno eco possível se atentarmos na referência de V. Mantas à
notícia da descoberta, na Rua Arco da Bandeira, em Lisboa, de
restos de uma possível ponte talvez de tabuleiro de madeira, destinada a salvar o esteiro (Mantas 1990: 165). Efectivamente, as
Figura 4 Cais do Sodré: embarcação (séc. XV-XVI)
descoberta no subsolo urbano da zona ribeirinha de
Lisboa. (Foto: CNANS)
descobertas no subsolo reibeirinho de Lisboa, posteriores a 2000,
têm confirmado este tipo de procedimento, nomeadamente mediante a reutilização de elementos náuticos (peças de embarcações),
como se verificou no caso da Av. Dom Carlos I (Fig. 5).
Nos vestígios da Olisipo romana, a estrutura que foi interpretada
como um cais romano (Amaro 1995: 13, planta) é importante na
medida em que constitui uma materialização do arranjo da costa no
estuário do Tejo, em época romana, para funções portuárias da
parte baixa da urbe, abrindo hipóteses relativamente à existência
de outras situações análogas em locais costeiros com uma posição
geográfica semelhante (Blot, 2003).
Durante as obras de construção do metropolitano, na zona do Cais
do Sodré, na zona correspondente ao aterro da Boavista feito em
meados do século XIX, foi localizada em Abril de 1995 uma embarcação da segunda metade do século XV ou de inícios do século XVI
(datação C14). Os vestígios náuticos, que se encontravam a uma
profundidade de 5 a 6.5 m, assentavam na antiga margem do rio
Tejo (Rodrigues, Alves, Rieth e Castro 1998) Fig. 4. Apresentavam
características típicas da construção naval descrita em 1570-80
por Fernando de Oliveira. O segundo achado deste tipo, em 1996,
foi uma embarcação da segunda metade do século XIV (datação
C14), encontrada no Largo do Corpo Santo durante a desobstrução
Figura 5 Avenida D. Carlos I: descoberta no subsolo
urbano, em Lisboa, de estrutura portuária construída
a partir de uma cofragem de madeira (Foto: CNANS).
de um poço vertical de um túnel do metropolitano, no parque de
estacionamento das instalações da Academia de Marinha 7
(Rodrigues et al., 1998).
Durante a construção do Centro Cultural de Belém foram localizadas as ruínas de um cais, uma estrutura portuária solicitada em
1670 pelos moradores locais e que, construído a partir de 1716,
acabou por ficar soterrado (Vaz 1980) em época anterior às
grandes obras de aterros marginais que permitiram defender toda
a zona das inundações fluviais.
Finalmente, na Praça do Município, a descoberta, durante a construção de um parque de estacionamento em Junho de 1997, de um
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conjunto de elementos soltos (material de entreposto) destinados
à construção naval (cavernas de um navio de grande porte) Fig. 6
constitui mais um contributo de grande interesse para a história
daquela zona da Baixa, ou seja, a localização de um dos antigos
estaleiros da Ribeira das Naus. O material náutico descoberto data
dos séc. XIII-XIV, podendo estar associado ao espaço das tercenas
medievais ou a uma das zonas de retaguarda do estaleiro da Ribeira
das Naus .
Utilização do litoral
Observou-se continuidade nas actividades litorais, com o progressivo avanço da frente fluvial urbana, nomeadamente por meio de
aterros, e a especialização das zonas portuárias em que actualmente se encontra dividida a longa fachada fluvial lisboeta.
Olisipo, cidade cuja cronologia de promoção permanece polémica
(Faria 1999: 37) teve origem pré-romana, com importância
económica e comercial na Idade do Ferro (Amaro 1993).
O pólo constituído pela antiga área portuária nas margens do
esteiro da Baixa terá constituído um dos elementos que poderemos
inserir nos núcleos urbanos que vieram posteriormente a fundir-se
na realidade urbana e portuária que hoje conhecemos.
O papel de Olisipo na rede comercial da Idade do Ferro teve relevo,
segundo o mesmo autor, na ligação entre o litoral atlântico e a
Estrada da Prata (Amaro, Bugalhão e Sabrosa 1996), uma ligação
que permitia que cidades interiores como Cáceres e Mérida,
estivessem em contacto com as rotas atlânticas. Observou-se,
aliás, um papel idêntico no caso de Mértola como porto fluvial de
escoamento das minas desse mesmo interior (Torres 1997).
Segundo alguns autores, a gradual predominância de Olisipo como
cidade portuária teria estado na origem da decadência de Salacia
(Edmondson 1987) e de Scallabis como civitates, após o final do
século II (Cardoso e Rodrigues 1996).
Desde época pré-romana, o povoamento de Olisipo poderá ter-se
verificado na encosta da Sé, com uma ocupação de tipo residencial
(Cardoso 1995), e na zona baixa, portuária, junto da confluência do
esteiro com o estuário.
Por essa mesma época as embarcações penetravam na cidade por
um acesso correspondente ao chamado "esteiro da Baixa", um
esteiro navegável que chegaria ao actual Rossio, onde vestígios de
trabalhos portuários foram atestados pelo autor da "Primeira Parte
da História de S. Domingos: "Achamos por memorias antigas, q
Figura 6 Praça do Município: descoberta de elementos de cavername associáveis a uma área de estaleiro
naval (Foto: CNANS).
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entrava por este sitio hu grade esteyro do mar, que devia ter fundo
pera agasalhar navios: do que vimos por nossos olhos certeza, nao
so cojeituras no anno de 1571 quado se abriao os alicesses pera o
dormitorio que agora serve. Porque se descobrirao os sylhares de
pedraria be lavrada, & as partes grossas argollas de broze travadas
& pendentes della, como em ciz, pera servire de amarrar navios.
(Ramos 1994: 724).
O esteiro de Chelas8, zona actualmente inserida na malha urbana de
Lisboa, poderá naturalmente ter sido utilizado em época muito
recuada (Castelo-Branco 1958). Na proximidade do limite interior
desse antigo esteiro, os vestígios interpretáveis como possíveis villae localizadas na Quinta da Bela Vista, assim como outros testemunhos arqueológicos de épocas romana e visigótica existentes na
zona, coincidem com a vizinhança da estrada que ligava Olisipo a
Scallabis (Alarcão 1988a, II, 2: 123).
O foral de Lisboa de 1179 e o foral de Almada de 1190, privilegiando as tripulações das embarcações com foros de cavaleiros, são
documentos reveladores da importância que já na primeira dinastia
era dada ao porto da cidade de Lisboa, embora a primeira referência explícita ao porto de Lisboa só apareça na época de D. Dinis, em
1305.
No século XIV, a descrição que Fernão Lopes faz deste mesmo
porto, embora aparentemente anterior a instalações portuárias
construídas, e de relevo, não deixa dúvidas acerca da capacidade
navegável da parte vestibular do estuário do Tejo, pois refere que
carregavam de Sacavem e ponta de Montijo, sessenta a setenta
navios de cada logar, carregando sal e vinhos, embora, por ausência
de cais adequados, fosse natural que se recorresse aos ancestrais
serviços de embarcações de transbordo, pois por a gramde espessura de mujtos navios que assi jaziam ante a cidade, como dizemos,
hiam ante as barcas Dalmadaa aportar a Santos, que he hum
gramde espaço da çidade, nom podemdo marear perantrelles
(Fernão Lopes, apud Ramos 1994: 724).
Já no século XV, com a importância que tinham adquirido os portos
do Algarve e o porto de Viana do Castelo, o porto de Lisboa perdia
terreno por falta de infra-estruturas portuárias (Ramos 1994). Em
1473 o porto marítimo de Viana do Castelo dispunha de construções
portuárias: em esta villa ha um cais, o milhor de todos estes reinos
(...) (Ramos 1994: 724). Em Lisboa, à falta de estruturas portuárias
havia que recorrer ao Restelo, lugar de ancoragem antiga (João de
Barros apud P. Ramos 1994: 724), não se observando mais, afinal,
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do que um recurso de todas as épocas, ou seja, uma solução náutica típica dos locais desprovidos de estruturas portuárias.
Desde a Idade Média, a exploração de sal em Portugal tinha constituído uma enorme atracção para os navios norte-europeus. A exploração das marinhas encontrou no Norte da Europa (Países Baixos e
Báltico) os clientes para o sal produzido em Aveiro, assim como nos
arredores de Lisboa (Frielas, Loures e Alcochete), no vale do Sado
e no Algarve. Estas áreas, cuja paleopaisagem de esteiro navegável é actualmente denunciada pelas baixas cotas dos terrenos facilmente alagadiços, permitiram à Lisboa medieval competir no comércio com os Países Baixos e do Mar Báltico, com outros centros
salineiros importantes.
O porto de Lisboa era receptor e exportador de sal, o que, pelo
menos a partir do início do século XVI, lhe possibilitou importar produtos de troca essenciais tais como o bacalhau e os mastros para
os navios.
Como origem do sal que chegava a Lisboa existiam também no
termo desta cidade os conjuntos de salinas dos esteiros do Tejo que
se prolongavam até Loures e Sacavém, todos eles, aliás, navegáveis até época pós-medieval e responsáveis pela circulação de
muitas mercadorias (Castelo-Branco 1958: 57-58).
A situação geográfica da Ribeira das Naus era duplamente privilegiada: por um lado tinha na vizinhança um hinterland fornecedor de
madeiras ideais para a construção naval (pinheiro e sobreiro) directamente transportáveis quer por via fluvial, quer por via marítima,
no caso das madeiras recolhidas nos coutos de Alcobaça e embarcadas no porto de Pederneira; por outro lado estendia-se na
margem da amplíssima área estuarina de fundeadouros e com excelentes varadouros naturais, as praias fluviais da margem direita.
Compreende-se que esta posição favorecesse um contacto estreito com os portos do Norte da Europa de onde eram importadas
directamente as longas peças únicas necessárias aos mastros: o
pinheiro nórdico embarcado na Prússia, em Riga ou na Noruega
(Magalhães 1993).
Em 1625 numa Relaçam, António Alvarez descreve o porto de
Lisboa com fortalezas defendendo tanto o rio Tejo como o porto propriamente dito (Ramos 1994).
Uma descrição de 1640 refere Lisboa como cidade detentora do
melhor porto da Europa (Biblioteca Nacional de Paris, Manuscrits
espagnols, códice 324, fol. 29) (Serrão 1994: 185).
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Em Lisboa, no século XVI, a construção naval constituiu uma prioridade do Estado. A proximidade de florestas abastecedoras em
abundância permitia que a Ribeira das Naus fosse o primeiro
estaleiro do país. Como espaços especializados, as "Ribeiras"
surgem associadas a centros produtores de navios. A "Ribeira das
Naus" recebeu o nome confirmador da sua especialização - espaço
ribeirinho por ordem régia reservado exclusivamente a espalmar e
correger paus, segundo documento manuelino de 1515 (Magalhães
1993). Funcionava em articulação com outros espaços portuários
tais como os Armazéns da Guiné e Índia e Casa da Índia, áreas de
arrecadação e entreposto de materiais náuticos e de construção
naval. A Ribeira de Lisboa era um núcleo complexo movimentado por
corpos de funcionários específicos. Lado a lado com a indústria da
construção naval existiam outras indústrias subsidiárias cujos produtos se articulavam directamente com a organização da construção naval da Ribeira (velas, cordames, enxárcias, poleame, ferragens, pregaduras, âncoras e outros aprestos), muitas vezes razão
de importações por via marítima. A própria posição geográfica dos
estaleiros estava em estreita articulação, necessariamente, com
as zonas florestais abastecedoras (Magalhães 1993).
Por finais do século, no entanto, com o crescimento urbano e das
indústrias associadas que ameaçavam a construção naval, foram
tomadas medidas de preservação das madeiras disponíveis na
região para abastecimento dos estaleiros navais. Essas medidas
levaram à eliminação das indústrias consumidoras de madeira, tais
como os vidreiros e as refinarias de açúcar, num raio de dez léguas
em redor de Lisboa (Magalhães 1993).
A participação da Coroa no comércio de além-mar, nomeadamente
com o monopólio régio da pimenta, determinou toda uma organização espacial da margem fluvial de Lisboa segundo as necessidades
de especializações de áreas ao serviço das produções indispensáveis às navegações comerciais: estaleiros navais, incluindo as
indústrias subsidiárias de aprestos marítimos, fundições, armazéns
e tercenas (numa primeira fase correspondentes a locais de produção naval de galés para defesa da costa, depois depósitos de
artilharia, e, posteriormente, arsenais) (Magalhães 1993).
O Rossio seria, ainda no século XVIII, um imenso mercado e ponto
de reunião popular onde eram vendidas não só vitualhas, como artigos de importação e gado. Perdeu a importância com a construção
pombalina da Praça do Comércio para a qual passou a afluir grande
parte da vida activa lisboeta.
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A área portuária construída e o progressivo avanço da
frente urbana na margem do tejo
Aos poucos, Lisboa crescia e instalava-se também à beira do Tejo.
Assistia-se, na realidade, a uma verdadeira e progressiva "urbanização da água do Tejo" (Caetano, 2004: 246). As "Ribeiras" eram
espaços portuários com especializações variadas, nomeadamente
industriais, directamente relacionadas com a náutica e com os
movimentos comerciais atlânticos.
As primeiras grandes construções de carácter portuário, posteriores às tercenas navais da época de D. Dinis (Ramos 1990),
envolveram necessariamente transformações na zona ribeirinha de
Lisboa. Verificaram-se a partir de 1521, durante o reinado de
D. Manuel I, mudando radicalmente essa extremidade sul da cidade,
a margem direita, que se estende ao longo do mar, segundo
palavras de Damião de Góis na Chronica do Sereníssimo Senhor Rei
D. Manuel (Ramos 1994: 724), com muitas obras, aterros e construção de estaleiros, metamorfoseando a zona ribeirinha num verdadeiro porto, com condições de segurança para carga, descarga,
armazenamento, controlo e fiscalização das mercadorias.
Damião de Góis, na mesma crónica 9, refere o moles lapidum, ou cais
de pedra, mandado então construir, assim como aterros, taboleiros
ao longo da praia, sendo as construções assentes em estacas
muito juntas, espetadas a maço no mar (Ramos 1994: 724), de
acordo com o ancestral processo de assentamento de estruturas
arquitectónicas em meio aquático.
O crescimento da área portuária construída de Lisboa ocorre
depois da conquista da Índia, com novos cais, armazéns, tercenas
e fundições de artilharia. O arsenal da Ribeira das Naus, construído sobre antigas tercenas navais fervilhava em 1552 com 150
carpinteiros navais e 150 calafates, segundo João Brandão (de
Buarcos) em Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552, apud P. O.
Ramos (1994: 725), enquanto as cargas e descargas se efectuavam com os serviços prestados por uma multidão de embarcações
menores, incluindo as de transporte de passageiros.
Durante o período filipino, o testemunho do padre Duarte de Sande
refere a Ribeira das Naus como uma vasta zona ribeirinha largamente apetrechada de materiais de construção, oficinas especializadas e maquinaria portuária para elevação de pesos, abundando
tanto os equipamentos nacionais como as importações (Ramos
1990). Em 1650 a planta de J. N. Tinoco registava a mesma área
industrial naval como a que em primeiro lugar se destacava entre
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outras da zona ribeirinha de Lisboa, estando todas elas ligadas à
navegação e ao comércio marítimo.
Em 1720, a Casa da Moeda, instalada junto a S. Paulo, na chamada "Ribeira da Junta do Comércio", tinha também ela ocupado uma
área da zona da beira-rio, dispondo inclusivamente de um cais privativo. Para ocidente, na frente fluvial denominada "Junqueira", edificava-se, sob as ordens de D. Maria I, a Real Cordoaria para a
indústria nacional de aprestos marítimos (Ramos 1990).
Interessante testemunho (de cerca de 1750) sobre a importância que
significava, para a cidade portuária em crescimento, o estado de ocupação ribeirinha da margem do Tejo compreendida entre Pedrouços e
o Cais de Santarém (Ramos 1990), ou seja, a zona da Alfândega, a
oriente do Terreiro do Paço, é um documento de arquivo com o projecto de um cais de seis quilómetros para a zona ribeirinha de Lisboa,
da autoria do engenheiro Carlos Mardel (Ramos 1990).
Mas aparentemente, e à parte alguns cais construídos, como o
Cais de Belém, iniciado no final do século XVII (em 1686 não estava
terminado quando ficou arruinado pelas intempéries (Vaz 1998) e
reiniciado em 1753, e o edifício do Terreiro do Trigo (actual
Alfândega) construído entre 1766 e 1768, com cais próprio e
escadas de serviço (Ramos 1990), a frente fluvial lisboeta só terá
vindo a conhecer estruturas contínuas ao longo da margem direita
no século XIX, com a introdução em Portugal da navegação a vapor
(1821), e a construção de docas, cais, estações fluviais e marítimas, e terminais especializados (Ramos 1994).
A consulta de uma planta de Lisboa de finais do século XVIII ou início do século XIX (Ramos 1990: 7), aliás não referida de modo completo por este autor, permitiu localizar na frente ribeirinha de
Lisboa numa extensão razoável, mais de duas dezenas de estaleiros
e muitos armazéns cujos nomes são sugestivos relativamente à
especialização do espaço: Paço da Madeira, Casas da Ferraria,
Armazéns do Taboado, das Vergas e da Madeira, entre outros.
Face a esta ocupação industrial e portuária da zona ribeirinha de
Lisboa, cada vez mais densa, veio a surgir, por razões de ordem
sanitária, o arranjo de uma zona insalubre da margem (espaços de
acumulação de lodos, e de desaguamento de esgotos) que, rapidamente, se iria transformar num verdadeiro equipamento urbano de
dignificação dessa margem: foi o extenso aterro10 que em 1867 se
encontrava já transformado em terreiro ribeirinho de passeio público (Ramos 1990).
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Finalmente, verificamos que a consciência de um complexo portuário
constituído por ambas as margens (norte e sul) do estuário do Tejo
é visível, do ponto de vista dos projectos arquitectónicos do século
XIX11, no tratamento que então se destinava aos espaços ribeiri-
nhos das duas margens como um todo portuário formado por duas
frentes estuarinas (C. P. L. 1988: 9, 10 e 12).
Em 1939, com a transferência do Arsenal da Ribeira das Naus para
a margem sul, ficava materialmente assumida a expansão do porto
de Lisboa como um dos núcleos essenciais do vasto complexo portuário do estuário do Tejo (Ramos 1990).
Na década de 80, os projectos do Plano Director da Área de Jurisdição
da Administração Geral do Porto de Lisboa incluíam o desenvolvimento
portuário das margens sul e norte, incluindo os núcleos de TrafariaBugio, Seixal, Montijo e Beirolas (C. P. L. 1988: 17).
A microtoponímia de Lisboa, testemunho de actividades
portuárias
Um interessante levantamento da microtoponímia ribeirinha de
Lisboa, publicada por A. Nabais em 1995, contem elementos sugestivos que permitem reconstituir uma intensa vida portuária.
Junto à faixa litoral lisboeta, quer materializados em vestígios ainda
visíveis, quer registados em documentos históricos e iconográficos,
existem elementos que permitem identificar locais que foram, no
passado, espaços portuários especializados. Referimo-nos aos cais
de Lisboa tal como A. Nabais os enumera (1995: 46):
Cais:
da Alfândega do Tabaco
de Marvila
da Alhandra
dos Mouros
dos Armazéns do Reino
das Necessárias
de Belém
das Negras
da Bica do Sapato
da Pedra
da Boa Vista
a Xabregas (despejos)
do Campo da Lã
da Rainha
do Carvão
dos Remolares
do Conde de Portalegre
da Ribeira Nova
do Corpo Santo
de Santa Apolónia
do Duque de Aveiro
de Santarém
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Lisboa, memória viva de passados portuários distantes
da Embarcação das Bicas
do Terreiro do Paço
da Fundição
do Tojo
da Madeira
da Madre Deus
de D.Manuel
do Marquês de Gouveia
Esta interessante lista dos cais lisboetas permite reconstituir a
intensa vida portuária antiga articulada na actual malha urbana
marginal de Lisboa, em que cada especialização espacial revela o
tipo de mercadoria ou o tipo de função que lhe era atribuída.
Do ponto de vista náutico, correspondiam a estes espaços portuários individualizados toda uma série de tipos de embarcações,
por sua vez igualmente especializadas, quer para vários tipos de
pesca, quer de transporte, tais como a "muleta", a "enviada", o "bote
de tartarenha", o "buque", a "meia-lua", a "fragata", o "varino", a
"falua", o "barco de moinhos", o "batel", e tantos outros, perdidos na
maior parte, tal como muitos dos cais onde acostavam.
Os arredores de Lisboa dispunham de numerosos portos cuja localização se encontra, na generalidade, actualmente envolvida, ou
sepultada, pela expansão urbana.
No século XVIII, um levantamento dos portos fluviais enumera os
topónimos associados a portos, de ocidente para oriente, entre os
quais, Pedrouços, Junqueira, Santo Amaro, Alcântara, Pampulha,
Santos Velhos, Cais do Tojo, a Dízima, Alfama, Cruz da Pedra, Madre
de Deus, Grilo, Beato António, Poço do Bispo, Braço de Prata, Cabo
Ruivo, Olivais, Sacavém ou Trancão (Nabais 1995).
Tal como num espelho, Lisboa foi-se revendo na margem sul. A
"outra banda" assumiu o papel de margem de apoio, funcional e fabril, fervilhando em produções, em estaleiros de construção e
reparação naval, alimentando navios que aparelhavam para destinos
remotos, servindo de complemento portuário à grande urbe.
De modo semelhante a Lisboa, os povoados fluviais de estuário que
hoje fazem parte do concelho da cidade do Barreiro assim como
essa cidade, devem a sua formação e o seu desenvolvimento às
funções de portos que desempenharam dentro da litoralidade de
que beneficiaram em zona de esteiros do estuário do Tejo. Foram
também, e em grande parte, devedoras do seu desenvolvimento
quer à actividade salineira, quer à construção e reparação naval,
quer ainda ao transporte fluvial de pessoas e bens entre Lisboa e a
margem sul:
Em alguns locais foi a função de porto de passagem que pro-
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moveu o fortalecimento e afirmação de antigos centros
urbanos. Coina é um exemplo paradigmático nesse aspecto. A
antiga vila herdou desde as suas origens a função de porto de
embarque, com carácter regional, abrangendo uma vasta área
que ia de Setúbal até Sesimbra. (Nabais e Ramos 1995: 73).
No que se refere à construção e reparação naval, os estaleiros da
margem sul do Tejo desempenharam um papel relevante na expansão marítima, datando alguns do século XV, combinando as vantagens dos esteiros do Tejo (Rio da Telha e Seixal, mais abrigados das
nortadas que se faziam sentir na Ribeira das Naus de Lisboa) com
a proximidade das fontes abastecedoras de madeiras próprias à
construção de navios (Nabais e Ramos 1995).
As fortificações militares construídas em torno da extensa área da
foz do Tejo sucederam-se ao longo dos séculos, estrategicamente
colocadas em ambas as margens, para a defesa da barra e dos
acessos aos diversos portos que constituíam o amplo complexo
portuário do estuário do Tejo.
O acompanhamento arqueológico de obras efectuadas na malha
urbana ribeirinha de Lisboa, nomeadamente nas zonas antigamente
afectas quer aos espaços de construção naval, quer de varadouro
fluvial, tem permitido ao CNANS, Centro Nacional de Arqueologia
Náutica e Subaquática, instituição dependente do Instituto
Português de Arqueologia, desenvolver programas de investigação
na área da arqueologia naval. Também na área da arqueologia portuária, as recentes descobertas de estruturas portuárias em
madeira têm permitido confirmar o recurso a esse material como
solução portuária muito antiga, bem como estabelecer paralelos
com outros casos idênticos na Europa do Norte (Blot;Henriques, no
prelo; Blot, 2003).
Variado espólio proveniente do meio estuarino do Tejo tem vindo a
ser estudado e inventariado num corpo de dados que constitui a
actual Carta Arqueológica do Património Náutico e Subaquático, um
dos programas do CNANS.
O estudo e o conhecimento das formas náuticas do passado, tal como
dos equipamentos portuários de uma cidade como Lisboa, dependem
do que as paleoformas do litoral, progressivamente invadidas pelo
urbanismo, têm vindo a revelar ao acaso de intervenções antrópicas
tanto na Baixa lisboeta como na faixa ribeirinha da cidade (Blot, 2003).
Por outro lado, a perspectiva arqueológica de Lisboa como cidade
com uma experiência portuária milenar, constitui, pela riqueza do
seu potencial temático, uma das fases do programa de um novo
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Lisboa, memória viva de passados portuários distantes
museu para Lisboa: o Museu Municipal da Vida Subaquática e da
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Notas
1
As colecções de arqueologia e malacologia conservadas no CPAS (Centro
Português de Actividades Subaquáticas) inspiraram-nos um programa
museológico, proposto à Câmara Municipal de Lisboa no início da década
de 2000, cuja materialização não chegou a verificar-se.
2
Jornal O Público, de 29 de Junho de 2001, p. 55.
3
Relativamente à origem deste topónimo, é interessante verificar a
hipótese referida por J. L. Cardoso, baseado num estudo de A. V. da Silva,
de 1960, e em que é referida uma interpretação do século XVII, de Samuel
Bochart, segundo a qual a designação do local, Olisipo, deixaria transparecer as características náuticas favoráveis que oferecia, e pelas quais teria
sido o local eleito para um estabelecimento: os dois elementos componentes do topónimo Olisipo, alis e ubbo, de eventual origem fenícia, designariam "enseada amena" (Cardoso 1995: 53).
4
A publicação tardia deste texto permite-nos referir a recente descober-
ta, e respectiva publicação, do "Atlas de Pedro Teixeira, de 1634", obra em
que uma belíssima panorâmica da Barra do Tejo e do estuário em que se
encontra inserida a cidade portuária de Lisboa.
5
Silva, A. Vieira da (s.d.) - Dispersos, vol. II. C.M.L. Lisboa, p. 175 (apud
Ramos 1990).
6
As descobertas posteriores à inicial redacção deste texto têm vindo a
revelar uma grande continuidade na sistemática utilização de madeira na
construção de estruturas com funções de trânsito portuário.
7
8
Segundo Paulo J. Rodrigues, técnico superior do CNANS.
Duarte Nunes de Leão, em 1610, ano de publicação da Descripção do
Reino de Portugal, menciona o esteiro de Chelas que terá inclusivamente
servido o próprio mosteiro num passado ainda recente, mosteiro junto ao
qual podiam aportar barcas e ao qual segundo antiga tradiçam chegava a
maré que devia ser pelo valle de Enxobregas acima; o q se confirma polos
sinaes que a terra mostra: que do rio até ao dito mosteiro se vem hoje
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em dia muitas cascas de mariscos metidas pela mesma terra, como se ve
em muitas partes onde ja foi mar (Castelo-Branco 1958: 58).
Em 1567, Damião de Góis, num capítulo da Quarta e última parte da
Chronica do Felicíssimo Rei Dom Manuel dedicado às obras ribeirinhas de
Lisboa, menciona a construção de um nouo caes de pedra de Lisboa, e
taboleiros ao longo da praia (...)", assim como o ...Terreiro que eftá diante
dos paços da ribeira de Lisboa que era tudo praia (...), e ainda a casa da
alfândega de Lisboa, as casas dos armazéns (Almazes), as cafas de contrataçam de Guiné & India (...) e has tercenas da porta da Cruz (...)
(Damião de Góis (1926) - Quarta e última parte da Chronica do Felicíssimo
Rei Dom Manuel. Imprensa da Universidade. Coimbra, p. 204-205) (apud
Ramos 1990: 6).
9
10
Actual espaço ocupado pela Avenida 24 de Julho.
Efectivamente os projectos de 1873, 1883 e 1884 não só incluíam a
margem norte desde a Torre de Belém até Santa Apolónia e Beato, como também a margem fronteira desde a Trafaria até ao Pontal de Cacilhas (projectos
de Barão de Roeda (1873), de Miguel Pais (1883) e, em 1884, da Comissão de
11
1883, constituída por vários arquitectos (C. P. L. 1988: 9, 10 e 12).
*Mestre em Arqueologia (Área de Arqueologia Urbana).
Consultora do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (Instituto
Português de Arqueologia).
Ex-Responsável pelo Museu Municipal da Vida Subaquática e da História Submersa
(Lisboa).
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A Presença das contas de vidro como elemento de identidade do
Africano no passado histórico e cultural de Lisboa
Dos meados do século XV ao terramoto de 1755
M. Conceição Rodrigues*
1 Introdução
RESUMO
Este nosso trabalho centra-se mais uma vez nas contas de vidro,
Este nosso trabalho centra-se no estudo de
após ter sido solicitada a nossa participação para efectuar o estudo deste tipo de material de grande significado, para o qual pre-
contas longas de vidro que consideramos ser
um elemento identitário de algumas das comunidades africanas que foram trazidas como
tendemos dar a nossa contribuição.
escravos, através das rotas comerciais desen-
O estudo tem por base os exemplares fornecidos pela intervenção
África Austral, desde meados do século XV.
das equipas de arqueólogos, do grupo de museus da Câmara
Os exemplares aqui em estudo são um dos ele-
Municipal de Lisboa, na sequência das obras realizadas da Baixa de
mentos materiais fornecidos como resultado
Lisboa nos finais da década de 90 do século XX.
das intervenções arqueológicas na Lisboa ante-
Vamos referenciá-las por núcleos para uma melhor identificação e
década de 90 do século XX.
evidenciar o respectivo contexto histórico. Serão desenhadas em
Vamos procurar efectuar o estudo de um núcleo
verdadeira grandeza (desenho tipológico) e fotografadas para uma
de contas de vidro, entre as quais se encontram
melhor caracterização.
as de cor azul tipo "Nueva Cadiz" e as contas
Assim, o núcleo I quadra o exemplar recolhido pela equipa de traba-
tonalidades. As primeiras mereceram uma
lho, cuja intervenção teve lugar na actual Praça do Município (frente
ao edifício da Câmara Municipal de Lisboa) de Março a Agosto de
volvidas entre Portugal e a costa Ocidental da
rior a 1755, e que tiveram lugar nos finais da
"Chevron ou em Estrela" que apresentam várias
atenção particular por se enquadrarem num tipo
de contas de fabrico mediterrânico, cujo estudo
vimos desenvolvendo desde os inícios dos anos
1997 (situação originada pela construção de um parque de esta-
90. Como metodologia, os exemplares que ante-
cionamento subterrâneo).
riormente estudámos irão servir como elemento
O núcleo II concentra os exemplares fornecidos pela equipa de trabalho que desenvolveu as suas actividades na Praça Luís de Camões
de comparação.
Importa ainda enquadrar a sua presença nos
acontecimentos e vivências socio-culturais dos
(ao Chiado), de Junho do ano de 1999 a Janeiro de 2000, tendo
africanos na Lisboa do século XV até ao ter-
como causa a mesma razão acima referida.
ramoto de 1755, dado terem sido usadas como
elemento de identidade para a sua valorização
Os exemplares recolhidos nos dois núcleos encontram-se fragmen-
social, além de efectuarmos o seu estudo téc-
tados, mas em bom estado de conservação. Dispomos de um total
nico-morfológico e mineralógico. Procurou-se
de 10 contas de diferentes tipos.
ainda, estabelecer a ligação entre este tipo de
elementos materiais e os dados históricos.
Vamos procurar enquadrar este significativo conjunto de contas
Palavras chave - Lisboa antiga, Contas de vidro,
nas vivências socioculturais de Lisboa desde o século XV, tendo em
Nueva Cadiz, Chevron, Comércio, Escravos.
atenção a sua proveniência, face aos dados arqueológicos que foi
The Presence of Glass Beads as an
Element of the Lisbon Cultural and
Historical African Identity
possível definir, adaptando a cronologia dos acontecimentos e ainda
estabelecer algumas das prováveis causas da sua presença em
contextos da Lisboa anterior a 1755.
Since the middle of the XV century until
the 1755 earthquake
Temos contas longas de pasta vítrea, cuja cor, morfologia e técnica
ABSTRACT
de fabrico são particularmente significativas, dada a sua raridade.
This paper is centered in the study of long glass
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A Presença das contas de vidro como elemento de identidade
do Africano no passado histórico e cultural de Lisboa
Dos meados do século XV ao terramoto de 1755
beads, which can be considered as an identity
element of some African communities. They
were brought to Lisbon by slaves through the
commercial routes developed between Portugal
and the South Western African Coast, since
the middle of the XV century.
Estas mostram analogias com os exemplares recolhidos nas intervenções havidas nos vestígios de outras construções anteriores a
1755 e igualmente referenciadas na "Baixa Pombalina" de Lisboa (M.
Conceição Rodrigues, 1997: 247 - 275), e ainda com as provenientes de Luanda, anteriormente por nós estudadas (ver biblio-
The studied specimens came from the archaeological interventions carried out in the Lisbon
downtown, of the prior to the 1755 earthquake,
in the end of the 1990's.
grafia). Regista-se também a presença de outro tipo de contas lon-
Among them are some "Nueva Cadiz" beads as
well as "Chevron" beads and the former deserve
special mention, since they are a Mediterranean manufacture. The author did similar
studies in other beads, which were used as
comparative elements in this paper.
mento de comparação para a construção deste trabalho.
These beads mirror some of the events and
socio-cultural aspects of the life of Africans in
Lisbon since the XV century until the 1755
earthquake. Beads were used as a distinguishing element towards the social valorization.
Through technical-morphological and mineralogical studies a connection between them and
historical data can be accomplished.
Key words: Old Lisbon, Glass Beads, Nueva
Cadiz, Chevron, Trade, Slaves.
gas, mas com várias cores, diferente morfologia e maior dimensão.
Os exemplares anteriormente estudados serão utilizados como ele-
2 Dados Históricos
As mais antigas notícias da fabricação do vidro na Antiguidade são
escassas: chegaram em placas de argila, sendo umas delas do
século XVII a.C. e encontradas em Tell'Umar (Iraque) - (Gadd e
Thompson,1936: 87 - 96). Outras são provenientes da biblioteca do
célebre rei neoassírio Assurbanipal em Nínive (668 - 627 a.C.).
Estas placas contêm, entre outros dados, uma série de fórmulas
para fabricar vidro, e as de Nínive registam normas de construção
de diferentes tipos de fornos, bem como toda uma série de procedimentos rituais e de escolha, nomeadamente dos dias favoráveis
para a sua manufactura.
O vidro, que segundo a "tradição", teria sido descoberto por acaso
nas margens do rio Belus (antiga Fenícia) como refere Plínio
(História Natural, livro XXVI: parágrafo 191), quando uns mercadores preparavam a comida utilizando os blocos de soda que comerciavam, para suporte das marmitas (por não encontrarem
pedras) verificaram que a soda se misturava com a areia dando um
novo produto. A excelência da areia da Síria é também assinalada
para o fabrico de vidro (Estrabão XVI, 758), a qual veio contribuir,
para a manufactura de contas.
As pequenas contas, conhecidas do III Milénio a.C. - período do
desenvolvimento do vidro moldado -, são consideradas imitações de
pedras preciosas, as quais tanta importância tiveram no comércio,
além do seu valor mágico e de prestígio com importância sociocultural. A produção de vidro veio também facilitar as imitações do
lápis lazuli, da malaquite ou da turquesa, as quais eram obtidas com
vidro de cor azul ou verde e por isso de menores custos o que as
tornava mais acessíveis a outras classes sociais.
O vidro de cor azul foi o preferido dos artesãos na Antiguidade,
sendo essa cor obtida usando óxidos metálicos de cobalto ou cobre
para produzir os vários tons de azul encontrados no vidro do Mundo
antigo. A peça de vidro de cor azul cobalto considerada mais antiga
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é proveniente de Eridu na Mesopotâmia e foi datada de cerca de
2000 a.C.
Os artesãos vidreiros, que a produziram, obtiveram-na quanto à cor,
provavelmente, a partir do cobalto vindo da Pérsia. Tecnicamente,
podemos referir que uma pequena quantidade de óxido de cobalto
(0,05%) é suficiente para dar como resultado a cor azul cobalto.
As análises do vidro egípcio antigo mostraram que os seus
artesãos usavam tanto o cobalto como o cobre, o que lhes permitia afinar a cor. Os vidreiros no Período Romano continuaram a usar
o cobre e o cobalto, mas as análises mostraram que eles tinham
conhecimento de que o azul se poderia produzir com base em ferro,
no seu estado ferroso. Para obterem a massa vítrea de cor azul,
utilizavam dentro da fornalha um tronco de madeira verde de modo
a reduzir o oxigénio existente, tal como refere R. Vose (1980: 30).
Quanto à pasta vítrea de cor branco opaco, usada principalmente
para imitar outros materiais, foi obtida pelos primeiros videiros utilizando um composto de cálcio e antimónio, tendo este elemento
químico sido utilizado como descolorante padrão na Antiguidade (R.
Vose,1980: 32).
Relativamente à tecnologia de manufactura do vidro, esta ter-se-á
desenvolvido em Veneza por volta do século VII, altura em que os
vidreiros foram fortemente influenciados pelos artesãos egípcios e
romanos e as contas teriam começado a ser manufacturadas desde
o século XI. O método inicial era moroso, mas as novas tecnologias
proporcionadas pela vinda de artesãos do Médio Oriente, como
resultado das alterações político-sociais e com um longo passado
de manufactura do vidro, permitiram um novo desenvolvimento.
As contas eram produzidas pelo método das "Contas Enroladas"Wound Beads - que era um tipo de manufactura lento e pouco rentável, mas seria alterado, passando estas a ser manufacturadas pelo
método das "Contas Puxadas" - Drawn Beads. Esta técnica desenvolveu-se a partir dos inícios do século XV, em Murano, dado que os
artesãos tinham sido "obrigados" a sair de Veneza por questões de
segurança, face às tecnologias então utilizadas, que exigiam a presença de fornos trabalhando a altas temperaturas. O novo método
de carácter mais artesanal teve um papel de grande significado, pois
permitiu o desenvolvimento da produção e o fim dos fornos de altas
temperaturas; o artigo conta tornou-se mais barato, possibilitando
a sua difusão (M. Conceição Rodrigues, 1997: 249- 250).
Nos exemplares em estudo regista-se a presença de contas longas,
pertencentes ao tipo considerado como dos mais belos produzidos
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ao longo dos tempos, sob a designação de contas "Chevron", também denominadas em "Estrela ou Roseta".
A conta "chevron", é um tipo cujo fabrico resulta de uma complexa
mistura de sucessivas camadas de pasta vítrea, moldadas e sobrepostas, que são depois aquecidas para proporcionar a sua aderência, puxadas, cortadas e acabadas à mão por reaquecimento. Esta
forma de manufactura artesanal utilizando lamparinas de óleo, designada por processo "Lamp-Wound-Beads", permite que o corpo da
conta apresente diferentes morfologias e, pelo simples corte em
cone truncado das suas extremidades, mostrar as várias camadas.
O resultado é um magnífico efeito estético, sendo uma técnica
ainda hoje praticada.
Deste modo, se pôde enriquecer e inovar com métodos artesanais
de manufactura as actividades que vinham sendo desenvolvidas
pelos artesãos venezianos e produzir diferentes tipos de contas
com grande variedade de designs, como a conta "chevron" que, devido à sua beleza, se tornou uma das contas mais divulgadas.
A forma final das contas depende fundamentalmente da sua tecnologia de fabrico, o que pode permitir documentar a sua origem e
até a data de manufactura.
É ainda de referir que as contas fizeram parte de um complexo
comércio, que veio a irradiar praticamente por todo o mundo, tendo
como núcleo de manufactura e desenvolvimento comercial Veneza,
que dominou mundialmente em qualidade e diversidade até ao século
XX.
O uso das contas foi largamente empregue pelos portugueses no
seu comércio com África, desde o início da época das descobertas,
nomeadamente desde o século XV no que se refere às populações
da costa Ocidental da África.
3 Os Trabalhos Arqueológicos
A valorização e salvaguarda da informação histórica e patrimonial
que a cidade de Lisboa encerra no seu subsolo, tem sido uma das
prioridades dos responsáveis do Ministério da Cultura, conjugado
com o plano desenvolvido pela Câmara Municipal de Lisboa, com a
modernização e transformação da cidade, o que vem permitindo a
concretização de diversas intervenções de carácter arqueológico.
O desenrolar dos trabalhos teria sido limitado pelas condicionantes
do local. A metodologia seguida implicou a escavação tradicional e
uma escavação com contenção periférica, devido à ocupação das
áreas limítrofes.
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As intervenções arqueológicas foram desenvolvidas na sequência da
abertura de áreas que permitissem a construção de novos equipamentos urbanos na parte antiga da cidade de Lisboa.
3.1 Localização das Intervenções
Uma das áreas alvo de intervenção arqueológica na Lisboa antiga,
foi a que teve lugar nos vestígios do conjunto urbano da antiga
Patriarcal de Lisboa (destruídos pelo terramoto de 1 de Novembro
de 1755), que referenciamos numa planta da época (Fig.1). Este
sítio hoje denominado Praça do Município, convencionámos designar
Figura 1 Localização da área de intervenção - Praça do Município -Núcleo I. Pormenor da Planta de Lisboa com a localização da igreja e praça da
Santa Patriarcal em época anterior ao terramoto de 1755 (segundo José V. Freitas).
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Dos meados do século XV ao terramoto de 1755
Figura 2 Localização da área de intervenção - Praça Luís de Camões - Núcleo II.Pormenor da Planta de Lisboa com a localização do Palácio dos
Marqueses de Marialva, ao Loreto, antes do terramoto de 1755 (obtida a partir da Carta de José Nunes Tinoco de 1650).
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por Núcleo I (PM - 97); tendo os trabalhos de campo sido dirigidos
pela Drª. Manuela Leitão e Dr. João Muralha.
O outro sítio alvo de intervenção arqueológica desenvolvida sob a
direcção da Drª. Lídia Fernandes e do Dr. António Marques, quadra
a zona hoje designado por Praça Luís de Camões, sob o qual jaziam
os restos do palácio dos Marqueses de Marialva que designámos
por Núcleo II (PLC- 99). Este palácio seiscentista foi parcialmente
destruído pelo terramoto de 1755 (Fig.2).
4 Lisboa - Escala de Identidade no seu Passado Social
e Cultural
O nosso estudo assenta no que se consideram ser macro-espaços
urbanos, onde coexistiram diferentes micro-espaços, quais habitats preferenciais de elites de determinadas classes sociais, constituindo as suas relações padrões com valores assentes no seu
poder económico, prestígio social e cultural.
Figura 3 Planta do conjunto urbano da igreja da Santa Patriarcal (à escala) e referência do sítio onde se recolheu a conta nº1 - Núcleo I.
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4.1 Praça do Munícipio (PM - 97)
O núcleo I corresponde à área fronteira ao edifício da Câmara
Municipal de Lisboa, tendo havido também todo o interesse em documentar a antiga ocupação naquele espaço. Naquele sítio, encontravam-se as ruínas de parte das construções do antigo conjunto
da igreja Patriarcal de Lisboa, que incluía o palácio do patriarca e
aposentos anexos, o seminário e uma biblioteca, cuja instalação se
desenvolveu no reinado de D. João V, a partir da segunda década do
século XVIII (Fig. 3).
A importância do lugar emerge com a criação da Patriarcal, e teve
como origem directa o prestígio daquele rei, que começou por criar
(em 1710) a Colegiada de S. Tomé na Capela Régia, a qual foi elevada à dignidade de Basílica Patriarcal pelo Papa Clemente XI (em
Novembro de 1716), e a ser presidida por um patriarca.
O rei D. João V queria alcançar as maiores distinções para a sua
nova igreja, que, entretanto, havia sido ampliada, dada as suas
exíguas dimensões. Outro Papa viria a conceder o título de Cardeal
ao Patriarca de Lisboa, em 1737, sendo o mesmo extensivo aos
seus sucessores; prerrogativas que levaram o monarca a criar o
Patriarcado de Lisboa, o qual passou a ser designado por "arcebispado de Lisboa Ocidental" 1. Este rei tinha-se empenhado em valorizar aquela igreja, que chegou a ser das mais luxuosas da Europa,
pormenor considerado na época, de grande conquista diplomática.
Foi assim, dado corpo ao que constituiu a Santa Igreja Patriarcal e
às construções que a apoiavam localizadas em redor da praça com
a mesma designação, tal como refere Manoel Portal (manuscrito de
1756), bem como a toda uma elite.
Todo este aparato como o documenta a planta deste núcleo de
construções (Fig. 3), pode ser desenvolvido por aquele rei graças
aos rendimentos proporcionados pelas minas de ouro do Brasil2.
Nessa escala de valores, uma certa ordenação e valorização foi
então também dada a Lisboa com outras obras e diversos melhoramentos; com efeito a cidade começava comercialmente a pesar
como contra-poder administrativo e nessa modernização os
escravos africanos participaram como mão de obra barata.
4.2 Praça Luís de Camões (PLC - 99)
O núcleo II surge na sequência da intervenção arqueológica realizada na Praça Luís de Camões, na qual houve todo o interesse em registar os dados relativos à ocupação daquela unidade micro-local na
sua fase mais recuada, para se poder documentar e valorizar
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Figura 4 Vista geral das ruínas do Palácio dos Marqueses de Marialva, em Dezembro
de1999, aquando da intervenção arqueoló-gica (PLC - 99) - Núcleo II.
aspectos do passado histórico daquela nobre residência, elementos
que interessa realçar.
Foi possível definir aspectos dos vestígios da estrutura arquitectónica do piso inferior do antigo palácio dos Marqueses de Marialva,
ao Loreto (Fig. 4) e ainda alguns pormenores da sua construção e
decoração no interior (Fig. 5).
A construção do palácio terá sido desenvolvida ao longo da terceira e
quarta década do século XVII, dado que a família do Conde de
Cantanhede, que veio a ser o primeiro Marquês de Marialva 3 ali residia
já, em 1651, como se assinala in Lisboa Antiga de Júlio Castilho
(1955: 78) e Lisboa Desaparecida de Marina Dias (1999: 51).
O abandono do palácio por parte dos seus nobres proprietários terá
ocorrido após o terramoto, pois, segundo o padre Manoel Portal
(1756) "grande parte do palácio veio abaixo e houve incêndio".
Posteriormente, existiu um projecto para a sua reconstrução, da
autoria do arquitecto-capitão Eugénio dos Santos, que não chegou a
ser implementado, talvez pela morte prematura daquele arquitecto
do Senado, ocorrida em 1760, ou devido ao desinteresse pelo sítio.
As acções de intervenção foram ainda dirigidas para os vestígios da
reocupação do palácio, face à realidade resultante do terramoto de
1755, porque se seguiu uma alteração naquela área, originada pela
Figura 5 Pormenor dos trabalhos de campo - Núcleo
II.- Tipos de revestimento interno das paredes no
Sector Sul III.
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presença de outros estratos da população de Lisboa, também vítimas da catástrofe, que reaproveitaram tudo o que restava daquela construção que os seus proprietários não conseguiram, ou não
quiseram recuperar. Foi, assim, redefinida uma nova área habitacional e até comercial, à qual viria a caber a designação de "casebres do Loreto".
O percurso histórico do lugar é assinalado por vários autores, dos
quais destacamos Ribeiro Guimarães (1875, Vol. V), que refere a
presença de 28 lojas de comércio localizadas no piso inferior do
antigo palácio.
Este quadro de componentes e necessidades teria levado na época, os
deserdados devido ao terramoto, a limpar e a remover os destroços,
a efectuar entulhamentos para melhor se instalarem e simultaneamente preservando (talvez inconscientemente) um pouco dessa
história passada, ao mesmo tempo que construíam a sua, sendo hoje
de grande significado o estudo de todos os vestígios/materiais resultantes dos trabalhos arqueológicos naquela malha urbana.
4.3 Os Materiais Arqueológicos Recolhidos
4.3.1 Núcleo I
No espólio móvel recolhido nos vestígios da antiga Patriarcal, destaca-se uma única conta, proveniente de uma camada não referenciada,
isto é, encontrava-se isolada, mais precisamente no substrato
geológico sob o embasamento de uma das estruturas desta construção e a cerca de 2 metros de profundidade, relativamente ao pavimento actual (cota 0).
- Conta (PM-97):
O exemplar, conta n.º1 teria ficado depositado ou talvez até
perdido, mais precisamente na área Oeste da praça, a qual
corresponderia à sala em que se vestiam os Monsenhores e
referenciada na planta (Fig. 3).
4.3.2 Núcleo II
A significativa dimensão desta estação e o desconhecimento da
estrutura do antigo Palácio dos Marialva no subsolo, levaram à execução de sondagens e à definição de diferentes camadas e sectores. A metodologia de trabalho do campo proporcionou a representação esquemática da área do palácio (Fig. 6a), e a definição parcial da planta do seu piso inferior (Fig.6b), bem como a recolha de
um significativo núcleo de elementos materiais, composto pelo seu
brazão, por cerâmicas de uso comum, porcelanas e faianças, vidros,
moedas e diversos tipos de contas de vidro.
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Figura 6 a) Representação esquemática da área de
intervenção - ruínas do Palácio dos Marqueses de
Marialva, correspondendo as divisões apresentadas
apenas a aspectos da metodologia adoptada na
escavação. - Referência dos sítios onde as contas
n.ºs. 5, 6 e n.º 9 foram recolhidas - Núcleo II.
Figura 6 b) Planta parcial das divisões do antigo
Palácio dos Marqueses de Marialva, com nomenclatura atribuída aos diversos compartimentos no piso
inferior. Referência dos sítios onde as contas nºs.1 a
4 e nºs.7 e 8 foram recolhidas - Núcleo II.
Os diversos tipos de contas são aqui o objecto de estudo.
- Contas (PLC - 99):
Os exemplares recolhidos em contexto arqueológico foram
ordenados face ás suas características e referenciados de
acordo com os dados fornecidos pelos Arqueólogos responsáveis, que serão sempre respeitados:
Conta n.º 1- fornecido pelo Sector SE - Camada 4 - (Fig. 6b) encontrava-se no contexto dos "casebres do Loreto".
Conta n.º 2 - proveniente do Sector W - Camada 12 Compartimento F1 (2.ª. Fase) (Fig.6 b) - por baixo de um pavimento em calçada de seixo rolado, zona que deverá corresponder a contextos palacianos (possivelmente cavalariças).
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Conta n.º 3 - fornecida pela Sondagem 5 - Camada 17 - vala
junto à parede W - (Fig.6 b).- em contexto nos "casebres do
Loreto.
Conta n.º 4 - recolhida no Sector Centro S - Camada 1- (2.ª.
Fase) - (Fig.6 b)- (no contexto do que seria a antiga copa, área
anexa à cozinha do palácio ), estava por debaixo da calçada
construída pelos ocupantes dos "casebres do Loreto" após o
terramoto, permitindo deste modo o acesso directo às
divisões interiores do palácio ou do que restava delas.
Contas n.ºs 5 e 6 - provenientes da Vala PT 1 - perfil N (Fig. 6
a) - área afecta ao palácio, por cima do pavimento nas
camadas de entulho. Podemos ainda referir que, no contexto
mais próximo se localizou uma moeda de cobre (com 39 mm de
diâmetro) de X reais, do reinado de D. João III.
Conta n.º7 - proveniente do Sector W - Camada 5 Compartimento G (2.ª Fase) (Fig.6 b) - nos contextos da área
afecta ao palácio, documentados também com cerâmicas dos
séculos XVI ao XVIII, por baixo da calçada construída, aquando
da reocupação após o terramoto de 1755
Conta n.º 8 - fornecida pelo Sector Centro E 2 - Camada 2 Compartimento 1 B -(Fig.6 b)- a camada 2 é uma camada
superficial, mas ainda em contextos das estruturas palacianas
do século XVII, provavelmente nos vestígios da destruição
provocada pelo terramoto de 1755, podendo, contudo, ser
anterior à instalação dos designados "casebres do Loreto" ou
na sua fase inicial.
Conta n.º 9 - recolhida no Sector S III - parede 5 da fachada do
Palácio (Fig.6 a) - mais precisamente integrada na camada de
argamassa do intradorso da alvenaria da porta de acesso que
Figura 6 c) Pormenor da estrutura de argamassa
que suportava as lajes de pedra do revestimento
das paredes, vendo-se in situ a conta n.º 9.
daria para a rua das Flores (Fig.6 c).
5 Análise e Caracterização das Contas
Os exemplares em estudo foram obtidos pelo método das "contas
puxadas", mas revelam diferentes tipos de manufacturas.
Dispomos de contas longas de uma só cor na face exterior, ou com
duas cores, devido á presença de embutidos na face exterior, além
de um exemplar com estrias preenchidas com uma cor diferente.
O outro tipo constituído pelas chamadas contas "Chevron ou em
Estrela" difere quanto à tecnologia de manufactura, por apresentar
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na sua constituição uma sobreposição de camadas de pasta vítrea
de várias cores, de modo a formarem desenhos em chevron.
5.1 Contas do Núcleo I (PM - 97)
A intervenção neste sítio forneceu (como já referido) apenas um
exemplar: é uma conta prismática, de vidro opaco (Fig. 7a), constituída por três camadas de pasta vítrea sobrepostas (Fig. 7 b). Este
exemplar parece ter sido intencionalmente fraccionado em duas
a) face exterior.
partes dada a diferença entre as suas extremidades.
5.2 Contas do Núcleo II (P LC - 99)
Como resultado desta intervenção dispomos de três tipos de contas distintas; seis dos exemplares são contas de vidro opaco, que
passamos a caracterizar:
As contas nºs.1 e 2 têm as faces prismáticas torcidas e documentam o mesmo tipo de manufactura (Fig.8); a conta n.º 3
apresenta as faces prismáticas planas (Fig.8).
b) área da extremidade, vendo-se a
zona burilada na sequência do seu
acabamento final.
Figura 7 Aspecto da conta nº.1 Núcleo I.
N.º 2
N.º 3
Figura 8 Aspecto da face exterior das contas n.ºs 1
a 3 ; n.ºs 5 e 6 - Núcleo II.
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Figura 9 Aspecto da morfologia e da sequência das
camadas de pasta vítrea que ,constituem as contas consideradas do tipo "Nueva Cadiz". - Contas
nº.3 ; nºs.5 e 6 - Núcleo II.
N.º 3
N.º 5
N.º 6
Os outros exemplares (contas nºs.5 e 6), mostram no
primeiro o corpo torcido e quase cilíndrico (Fig.8); no segundo
este é prismático e de faces planas (Fig.8), apresentando
ambos faixas longitudinais na sua face exterior.
A análise da estrutura interna destes seis exemplares mostra
que são constituídos por três camadas de pasta vítrea (Fig.9),
sendo a do meio sempre de cor branca, o que permite
enquadrá-los no tipo de contas designado por "Nueva Cadiz",
tal como o exemplar do Núcleo I.
A conta n.º4 tem o corpo cilíndrico, mas, obtido a partir de um
núcleo de pasta de uma só cor, e decorado com estrias
preenchidas por uma pasta de cor diferente (Fig. 10), documentando, portanto, outro tipo de manufactura (muito embora
a conta tivesse sido obtida pelo método das "contas puxadas").
Os exemplares denominados contas "Chevron", são longas e
largas, de extremidades duplamente chanfradas, e estão referenciados por três exemplares com os nºs.7, 8 e 9.
A conta n.º7 é a mais completa (Fig.11 a) -b). As conta n.º8
(Fig.11 c) e n.º9 estão referenciadas apenas por dois pequenos
fragmentos.
Da análise da face exterior da conta n.º 7, verificamos que o
vidro é opaco apresentando uma estrutura constituída por
Figura 10 Aspecto da face exterior da
conta n.º 4 - Núcleo II.
pasta de diversas cores. Quanto à sua constituição, este tipo
de contas pode ser bem analisado no seu interior graças aos
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exemplares fragmentados; verifica-se a presença de uma
sobreposição de camadas de pasta vítrea bem evidente, que
definem a sua estrutura.
Todas as contas em estudo apresentam uma perfuração central cilíndrica.
5.3 Estado de Conservação
a)
O estado de conservação deste conjunto de contas era estável,
muito embora se apresentem todas irisadas e fragmentadas.
a) Conta n.º.7 - morfologia da face exterior.
Apenas dois exemplares precisaram de ser objecto de acções de
conservação - a conta do Núcleo I e a conta n.º 4 do Núcleo II (foram
conservadas no vácuo com uma solução de Paralóide).
6 Estudo Morfológico das Contas
Quanto à morfologia, os exemplares em estudo enquadram-se em 4
tipos distintos, os quais podem documentar outras tantas manufacturas. Para melhor caracterização das contas em estudo, efec-
b)
tuámos o respectivo desenho tipológico, em verdadeira grandeza,
N.º 8
c)
dos exemplares que permitem a sua definição - Núcleo I (Fig.12); Núcleo II (Fig.13 e 14).
b) Conta nº.7 - vista de topo.
6.1 Núcleo I (PM/97) e II (PLC/99)
c) Conta nº.8 (fragmento) - Aspecto da zona interior.
Os exemplares n.º 1 do Núcleo I e n.º 3 do Núcleo II apresentam o
corpo prismático e uma secção transversal rectangular, bem como as
arestas esmeriladas, definindo formas triangulares numa das suas
extremidades, como resultado do tratamento final, situação que deveria ter ocorrido igualmente na outra extremidade. Na conta n.º 1, a
extremidade é esmerilada e a definição de formas triangulares mais
acentuados, mostrando as camadas interiores (Fig.7 b). No exemplar
n.º 3, a outra extremidade apresenta-se fragmentada (Fig. 13).
Os exemplares n.º 1 e 2 do Núcleo II com o corpo prismático torcido, são representados por pequenos fragmentos. Apenas a conta
n.º 2 regista igualmente uma das extremidades tratada por esmerilagem após o corte inicial (Fig. 13).
Podemos avaliar que estas contas apresentam uma secção transversal sub-rectangular, situação bem definida no respectivo desenho tipológico (Fig. 13).
As contas n.º 5 e 6 são semelhantes quanto à morfologia. O corpo
da primeira é bastante torcido e, por essa razão de secção transversal sub-circular, tendo as arestas desaparecido (Fig. 14). No
exemplar n.º 6 o corpo é prismático, de secção transversal rectangular e de arestas bem acentuadas, apresentando ambas o corpo
Esquema da estrutura das contas “Chevron”
Conta n.º 8
Ordenação das camadas da pasta vítrea
Camada 1-3-7- cor azul
Camada 2-4-6- cor branca
Camada 5- cor castanho avermelhado
d) Conta nº.8 - esquema das camadas interiores que
a constituem e respectiva ordenação das cores.
Figura 11 Aspecto das contas "Chevron ou em
Estrela" - Núcleo II.
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decorado por faixas longitudinais oblíquas, obtidas por embutidos, o
que lhes dá grande beleza. Nestas contas uma das extremidades
mostra ter sido esmerilada, criando facetas e a outra está fragmentada (Fig. 14).
O exemplar n.º 4 (que se pode considerar inteiro) tem o corpo cilíndrico, de secção transversal circular e decoração composta por
grupos de faixas de estrias triplas preenchidas com pasta vítrea.
Esta tecnologia documenta um fabrico diferente e mais pobre,
talvez seja uma imitação e, por isso, deveria ser uma conta mais
popular (Fig. 14).
Figura 12 Conta nº.1 - Desenho Tipológico (à
escala) - Núcleo I.
Figura 13 Contas nºs.1 a 3 - Desenho Tipológico (à
escala) - Núcleo II.
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Figura 14 Contas nºs.5 e 6 ; nº.4 e nº.7 - Desenho Tipológico (à escala) - Núcleo II.
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No que respeita às contas "chevron", apenas o exemplar n.º 7 permite definir a sua morfologia, e também documentar outro tipo de
manufactura. A conta apresenta um corpo cilíndrico duplamente
chanfrado nas extremidades, com seis facetas, mas de secção
transversal circular, sendo alguns alvéolos visíveis na zona das
extremidades da conta (Fig. 14). No seu corte transversal, as
cores do núcleo definem uma estrela, daí serem designadas por
contas "Chevron ou em Estrela", sendo as mais comuns as que
apresentam 12 pontos (como é o caso deste exemplar), os quais
determinam o tipo da sua estrutura (Fig. 14).
Da análise morfológica destas contas e de acordo com a tipologia
proposta por Horace Beck (Classification and Numenclature of
Beads, 1981) estas inserem-se:
- nas contas longas (Long Beads) Grupo IX (secção transversal quadrada) D.2.b. e Grupo I (secção transversal circular)
D.2.b..
- nas contas longas (Long Beads) Grupo I - Cilindro duplamente
chanfrado (long double - chamfered cylinder) D.2.b.f..
Nestes dois núcleos de contas foi possível distinguir 4 padrões
quanto à morfologia, situação documentada no desenho tipológico
que elaborámos (Fig.12, 13 e 14 ).
Tipo 1 Contas prismáticas de faces planas.
Tipo 2 Contas prismáticas de faces mais ou menos torcidas.
Tipo 3 Contas cilíndricas.
Tipo 4 Contas cilíndricas duplamente chanfradas.
6.1.1 Cor
Nos exemplares em estudo, as tonalidades em presença foram
definidas de acordo com o Methuen Handbook of Colour (1978).
As "contas puxadas" tipo "Nueva Cadiz", são de cor azul na face
exterior (como já referido), variando apenas quanto à tonalidade,
correspondendo essa tonalidade de azul aos valores definidos entre:
23-D-7 - conta n.º 1 do Núcleo I e n.º 6 do Núcleo II;
23-D-8 - conta n.ºs 1 a 3 e 5 do Núcleo II.
Nas contas n.ºs 5 e 6 os embutidos são de cor branco
leitoso.
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Na conta n.os 4 do Núcleo II, a cor da face exterior é azul uniforme 23-B-5 e as estrias longitudinais foram preenchidas com pasta de
cor castanha - 6-F-4 - dark brown.
Nas contas "Chevron", as cores estão também dispostas em
camadas, mas são diferentes e alternam-se.
Observando as cores das camadas de pasta vítrea da conta n.º 7,
vemos ao centro, na face exterior uma zona cilíndrica de cor azul,
que no sentido longitudinal apresenta umas listas resultantes da
transparência da cor branca da camada seguinte (Fig. 11 a).
Nesta conta, a sequência das diferentes camadas mostra: na
primeira a cor azul, e depois uma zona formando chevron, de cor
branca, que transparece na camada azul, seguida da camada de
tonalidade castanha-avermelhado; depois uma nova camada formando chevron, também de cor branca, seguida da camada de tonalidade castanha-avermelhado. A camada junto à furação (a sexta) é
também em chevron, de cor branca e a camada final é fina e de
tonalidade castanha-avermelhado neste exemplar (Fig. 11 b).
As cores registadas na conta n.º7 correspondem, por ordem das
camadas de pasta vítrea, às seguintes tonalidades:
21-E- 8 - deep blue - 1.ª camada ;
1-A-1 - white - 2.ª, 4.ª e 6.ª camadas ;
7-D-7 - brown - 3.ª, 5.ª e 7.ª camadas.
No caso dos exemplares n.os 8 e 9 em que a zona da furação é de
cor azul, essa tonalidade repete-se na primeira camada (Fig.11c).
Assim, no que respeita à conta n.º 8, a sequência das cores nas
diferentes camadas de pasta vítrea lidas a partir do seu interior
(isto é, em redor da furação ou sétima camada), a cor é azul, seguida da camada que desenha um chevron miudinho de cor branca,
depois novamente uma camada de cor castanha (a quinta) e, de
novo, um chevron de reduzidas dimensões, igualmente de cor branca (Fig. 11d). A terceira camada é de cor azul, segue-se a camada
de cor branca que transparece na cor azul que constitui a primeira
camada.
6.1.2 Dimensões
As dimensões da secção longitudinal neste núcleos de contas não
parece ter grande significado, dado que se apresentam fragmentadas, mas tendo em atenção os seus tipos morfológicos, importa
referir os respectivos diâmetros e assim, de acordo com a
metodologia proposta por H. Beck (1981) podemos referir:
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Tipo 1 Contas prismáticas de faces planas - Dispomos de três
exemplares neste tipo morfológico, a conta n.º 1 do Núcleo I e
as n.os 3 e 6 do Núcleo II. As duas primeiras têm quase a
mesma dimensão (secção longitudinal) 33 mm e 32,8mm
respectivamente. Quanto ao diâmetro (secção transversal),
as diferenças são também mínimas: a n.º 1 tem 11,5mm, a
conta n.º 6 mede 11mm, sendo o da n.º 3 o menor, pois tem
apenas 10mm.
Tipo 2 Contas prismáticas de faces mais ou menos torcidas Neste tipo morfológico há a considerar dois exemplares: a conta
mais longa (secção longitudinal) é a n.º 1 do Núcleo II com de
20mm; a menos longa a n.º 2 com 14mm. Quanto ao diâmetro
(secção transversal) o da conta n.º 2 é o maior, tem 10,5mm.
Tipo 3 Contas cilíndricas - São dois exemplares do Núcleo II os
enquadrados neste tipo morfológico. A conta n.º 5 é a mais
longa (secção longitudinal) deste conjunto, tem 55mm e, a que
se apresenta quase intacta é a n.º 4, medindo 31mm. Quanto
ao diâmetro (secção transversal) o maior é também o da n.º 5
que mede 14mm, medindo o da conta n.º 4 apenas 8,8mm.
Tipo 4 Contas cilíndricas duplamente chanfradas - Neste tipo
morfológico apenas um dos exemplares, a conta n.º 7 permite
avaliar as suas dimensões: tem 45mm (secção longitudinal) e
é também a mais volumosa e densa deste conjunto. O maior
diâmetro (secção transversal central) mede 37mm.
7 Estudo Comparado do Resultado das Análises
7.1 Quanto aos Aspectos Tecnológicos
A análise efectuada para o tipo contas ditas "Nuevas Cadiz", comparativamente com os estudos anteriormente realizados, quanto
aos seus aspectos tecnológicos, permite verificar que estas têm
sensivelmente o mesmo aspecto, sendo até visível nas fotografias
agora obtidas com lupa binocular 4 uma série de "bolhinhas" alongadas no sentido longitudinal, bem evidentes na camada superficial
- contas n.º 1 (Núcleo I) (Fig. 15a) e n.º 5 (Núcleo II) (Fig. 15b), o que
confirma o tipo de manufactura, designado por método das "contas
puxadas", ou seja, o esticar do bloco de pasta de vidro fundido de
várias camadas, para a produção dos tubos de vidro com o que
depois de cortados, se obtêm as contas.
Estas podem apresentar diferentes tipologias, situação condicionada pelo diâmetro do tubo, pelo método de corte, o que torna a conta
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prismática de faces planas ou torcidas e pelo tipo de acabamento.
O acabamento poderá ser por reaquecimento da conta ou esmerilagem, que define zonas de forma triangular mostrando o branco da
camada intermédia, o que lhe dá um certo estilo e beleza, como se
pode verificar na conta n.º 1 do Núcleo I (Fig. 7).
O vidro destas contas seria "luminoso" à partida, mas hoje apresenta a face exterior revestida de uma finíssima película de cor branco
marfim, como acontece, por exemplo, na conta n.º 3 (Fig. 16a), ou
um ligeiro prateado, como na conta n.º 1 (Fig. 16b) ambas perten-
a) A conta nº.1 - Núcleo I.
centes ao Núcleo II, o que será o resultado do irisado devido ao
enterramento.
A análise das zonas de corte ou de fractura permite verificar que
estes exemplares foram obtidos por uma sequência de camadas ou
multicamadas de pasta vítrea de cor azul e branco, bem documentadas nos exemplares n.º 1 (Fig.17a) e n.º 2 (Fig.17b) do Núcleo II. A
camada branca é sempre a mais fina e aparece na parte central a
seguir à que delimita a furação, como estes exemplares documentam.
A introdução da camada de cor branca poderá ser ainda o resultado de uma pretensão para tornar a conta opaca, metodologia que
era usada na produção de vidro na Antiguidade. Quando compara-
b) A conta nº.5 - Núcleo II.
Figura 15 Aspecto da superfície exterior das contas, evidenciando-se as "bolhinhas", testemunho do
alongamento no sentido longitudinal.
das com outras contas azuis, aparentemente deste tipo e presentes em Catálogos do século XIX existentes em museus ingleses
(como o publicado por L. Dubin, 1987/1995:109), verifica-se que
nestes as contas são transparentes e monocolores, tendo sido utilizadas na aquisição de escravos, em África. A sua manufactura,
neste caso, está também avaliada e é, na realidade, uma produção
de Veneza.
A conta n.º 4 (Núcleo II) é exemplar único, diferindo quanto à morfologia e manufactura, dado o tubo mostrar apenas uma camada
a) A face exterior da conta nº.3.
monocolor, apresentando na face exterior estrias longitudinais
preenchidas com uma pasta de cor diferente (Fig. 18).
Se atendermos ao referido por R. Vose (1980: 32) relativamente ao
vidro de cor branca que era usado para decoração, situação presente nos exemplares n.º 5 e 6 do Núcleo II (Fig. 9), que se apresentam decoradas com estrias embutidas de cor branca e que depois
seriam pintadas de dourado. O mesmo se poderá dizer relativamente ao acabamento das extremidades das contas em que se
procurou definir triângulos de modo a mostrar o branco, mas desta
vez da camada interior, como é o caso da conta n.º 1 do Núcleo I
(Fig. 7) e em especial nas contas "chevron".
b) A face exterior da conta nº.1.
Figura 16 As alterações na superfície exterior de
contas - Núcleo II.
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Da observação à lupa, as contas "chevron" revelam uma tecnologia
de manufactura bem diferente das contas azuis, muito embora
sejam todas obtidas pelo método das "contas puxadas", dado apresentarem uma sobreposição de camadas de pasta vítrea de diferentes cores e espessuras que no exemplar n.º 8 ( Núcleo II) pôde
ser bem referenciado e analisado por estar fragmentado (Fig. 19a).
Verifica-se que as diferentes camadas de pasta registam algumas
alterações na sua estrutura quanto às cores (Fig. 19b), as quais
são análogas às do exemplar n.º 9 (Núcleo II), mostrando também
que apenas a terceira camada é de cor castanha-avermelhado,
sendo a primeira e a quinta camadas, tal como a sétima, que define
a furação de cor azul, ao contrário da conta n.º 7 (Núcleo II), que
a) Aspecto da extremidade da conta nº.1.
apresenta apenas a camada exterior na cor azul (Fig.11a), além de
estar quase inteira.
Estas contas são certamente um produto de diferentes artesãos.
zona branca
7.2 Caracterização Química das Contas Apreciação do
Resultado das Análises
A caracterização química das contas do Núcleo I e II foi obtida por
análise de Fluorescência de Raios X (realizada pela técnica especialista, Eng. M. Eugénia Moreira, no Instituto Geológico e Mineiro) o
que permitiu confirmar a natureza vítrea da matriz, não se tendo
assinalado a presença de componentes cristalinos. Este tipo de
análise possibilitou também relacionar afinidades e diferenças, além
de contribuir para documentar o tipo de manufactura e, assim, se
b) Aspecto da extremidade da conta nº.2.
poder tentar avaliar qual o local de proveniência.
Figura 17 Aspecto das multicamadas de pasta
vítrea na zona do corte das contas - Núcleo II
7.2.1 Contas Azuis
O resultado das análises parece confirmar que estas contas são
efectivamente muito parecidas em termos de elementos químicos
presentes, mas registam também algumas diferenças que iremos
assinalar:
As contas azuis de corpo prismático de faces planas ou torcidas são idênticas, sendo os elementos predominantes o Silício
(Si), o Cálcio (Ca), o Potássio (K), o Ferro (Fe), o Cobre (Cu) e
o Estanho (Sn) .
A conta n.º 1 do Núcleo I é idêntica à n.º 3 do Núcleo II, registando-se na primeira a maior representatividade de Ferro (Fe)
de todo o conjunto na sua composição, estando o Cálcio e o
Estanho também com maior expressão, além de uma significa-
Figura 18 Aspecto da face exterior da conta n.º 4,
vendo-se as estrias preenchidas com pasta de cor
castanha - Núcleo II.
tiva presença de Cobre. Não se detectou Cobalto, o que terá
dado à conta n.º 1 do Núcleo I outra tonalidade de azul, além
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de também poder indicar ser uma manufactura de outro
artesão (Fig. 15a).
A conta n.º 3 (Núcleo II) regista um elevado teor de Silício e predomínio de Cálcio, além do Potássio, Estanho e Ferro, bem como
vestígios de Cobalto (Co), razão provável de uma tonalidade azul
turquesa mais aberta que se verifica (Fig.16a ou Fig. 8).
As contas n.ºs 1, 2 e 6 do Núcleo II são idênticas quanto à sua
composição, registando os mesmos teores de Silício, Cálcio,
a) A sobreposição das camadas de pasta vítrea.
Estanho e Ferro, apresentando apenas a n.º 6 uma maior representatividade de Potássio relativamente a todos os exemplares do conjunto deste tipo de contas.
Dadas as suas dimensões o exemplar n.º 5 não pôde ser analisado, mas sugere uma manufactura diferente da conta n.º 6 (Núcleo
II), quer quanto à morfologia, quer quanto à pasta vítrea, sendo
a camada de cor azul e a de cor branco como que intercaladas,
muito embora se evidencie a camada central de cor branca
(Fig. 9). A conta n.º 6 tem semelhanças com a n.º 3, tendo a
primeira maior concentração de Estanho e mais Potássio, na
b) As camadas na zona da furação da conta.
conta n.º3 há mais Cálcio e, regista-se a existência de Sódio,
Figura 19 Aspecto da estrutura interna da conta
"Chevron" nº.8 que se apresenta fracturada - Núcleo II.
sendo a presença de Cobre semelhante na sua composição.
As contas prismáticas de faces planas ou torcidas registam
ainda após a ordenação dos resultados obtidos, além do núcleo
de elementos dominantes, um cortejo de vestigiários dos quais
destacamos: o Titânio (Ti), o Níquel (Ni), o Cobalto (Co),
Estrôncio (Sr), o Chumbo(Pb), o Manganês (Mn), o Sódio (Na),
o Zinco (Zn) e o Crómio (Cr.).
A composição química nestes exemplares é muito homogénea,
o que demonstra um bom domínio da tecnologia dos metais e
igualmente um fabrico muito aperfeiçoado. Observa-se, ainda,
uma relativa constância quanto à presença de Cobre, Estanho
e Chumbo no núcleo de contas consideradas do tipo "Nueva
Cadiz" independentemente da sua morfologia.
A cor, no caso deste tipo de contas, terá sido obtida pela
adição de óxidos metálicos contendo a camada vítrea de cor
azul principalmente Cobre, Ferro, Crómio, muito embora se
registe a presença de Cobalto o que lhe dará as diferentes
tonalidades da cor azul turquesa presentes. No que respeita
ao branco leitoso da camada intermediária, poderá ser muito
provavelmente idêntico na sua composição às estrias embuti-
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das e presente nos exemplares n.ºs 5 e 6 do Núcleo II, as quais
seriam provavelmente produzidas numa segunda fase, isto é,
quando a pasta era puxada (Fig.8 e 9). Estas estrias apresentam o Fósforo (P) e o Sódio (Na) como elementos predominantes na sua composição após a sua análise qualitativa.
Comparativamente, na conta n.º 4 (Núcleo II), como elementos
químicos predominantes destaca-se o Antimónio (Sb), sendo
este exemplar o único em que este elemento está presente,
apresentando-se o Manganês (Mn) em grande concentração,
o Cobre em reduzida percentagem e o Silício (Si) também em
menor quantidade. A presença de Antimónio pode ser vista
como um elemento usado para facilitar a fusão da pasta
vítrea, o que parece demonstrar uma tecnologia mais pobre e,
por isso, um fabrico menos oneroso, tendo este tipo de contas sido valorizado pelas estrias (Fig. 10).
7. 2. 2 Contas "Chevron"
Estas contas são também, em termos de elementos químicos,
muito semelhantes entre si, embora se registem algumas diferenças. As análises efectuadas incidiram sobre a face interior das
contas por se apresentarem fragmentadas.
Devido às suas dimensões o exemplar n.º 7 (Núcleo II), não pôde ser
analisado do ponto de vista químico (Fig.11a).
A análise química das contas "Chevron" n.ºs 8 e 9 mostra como elementos predominantes o Silício, o Cálcio, o Potássio, o Sódio, o
Ferro e o Estanho, além de algumas diferenças que iremos referir:
O exemplar n.º8 (Fig.11c) regista na sua composição uma elevada concentração de Estanho e Chumbo, bem como muito
Cálcio, além de elementos vestígiários, nos quais se inclui o
Níquel, o Crómio, o Titânio e o Estrôncio.
A conta n.º 9 será uma manufactura de outro artesão, dado
apresentar pouca representatividade de Chumbo, registando-se a presença de Estanho, sendo a existência de Ferro, Cobre
e Cobalto idêntica nos exemplares n.º 8 e 9.
A significativa quantidade de Chumbo registada leva a considerar que possa ter sido utilizado como fundente, o mesmo
teria sucedido com o Estanho, mas em fase diferente da manufactura das contas.
As cores presentes teriam sido transmitidas pelos elementos
químicos designados cromóforos, sendo a zona de cor azul mais rica
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em Cobalto e a de cor castanha-avermelhado mais rica em Cobre e
Ferro. Nestes dois exemplares foi ainda registada a presença de
outros elementos cromóforos, como o Crómio, tendo sido alguns
deles certamente adicionados para obtenção das diferentes colorações, dado que a coloração é um processo complexo que depende
de muitos factores e a cor que aqueles elementos transmitem
decorrem, em parte, da estrutura na qual estão inseridos e da
posição ocupada na rede cristalina dos minerais, sendo também
significativo a capacidade do artesão.
8 Discussão
8.1. História e contexto
No presente estudo damos particular importância à presença das
contas de vidro como elemento de identidade sociocultural do
africano trazido como escravo da costa africana quando o projecto
das navegações parecia ser o de comercializar e evangelizar.
O africano tornou-se o sujeito da própria história, nomeadamente o
escravo trazido durante séculos do chamado "Reino do Congo", cuja
exploração
foi
iniciada
pelos
portugueses,
em
1483
(C. Santos,1971: 403-404), muito embora a ideia central fosse
dirigida para a chegada à Índia. Havia que estabelecer pontos de
comércio, tendo os navegadores participado inicialmente na vida
dos chefes africanos, aos quais eram oferecidos presentes, desenvolvendo depois o comércio de escravos, além de se procurar manter um bom relacionamento, nomeadamente ao nível político-religioso, o que muito terá agradado, à partida, aqueles chefes.
Nos finais da 1.ª dinastia, Lisboa era já uma praça forte do comércio e das mais creditadas na Europa, centrando-se um dos factores
mais importantes no facto do reino de Portugal ser um país unido e
com fronteiras definidas, ao contrário de outros países europeus.
O desenvolvimento do comércio com o mundo africano foi sendo
aumentado, e no início do século XVI este adquiriu uma situação de
relevo devido ao "Regimento da Casa da Mina e da Índia" (designação
das normas que registavam, controlavam e fiscalizavam todo o
comércio que Portugal desenvolvia e cujo organismo havia sido
transferido de Lagos, no ano de 1481). Esse "Regimento" determinava que todas as embarcações que regressavam de África tinham
que vir para Lisboa (ordenação do Livro 5 de 17 de Fevereiro de
1558).
A cidade de Lisboa viria deste modo a ter uma população sempre
crescente, devido às necessidades de abastecimento de bens ali-
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mentares e de consumo, o que lhe permitiu adquirir um enorme
prestígio social e cultural.
O interesse dos portugueses dirigido para os povos do Norte de
África, facilitado pelas conquistas naquela área, tinha permitido
obter informações acerca das terras do Alto Níger e do Senegal,
que era de onde o ouro vinha e circulava na "terra da Guiné", acrescido da lenda do Preste João considerado um poderoso rei cristão.
Esta foi a razão suficiente para ser visto como um bom aliado contra os muçulmanos, o que deu força e zelo para continuar a descobrir novas terras e ainda no que acreditava ser a defesa da fé
cristã. A situação seria ainda reforçada pelas "Bulas Papais", uma
vez que a obra praticada pelos portugueses era muito apreciada,
pois servia os interesses de Deus e da cristandade.
Um dos passos dados foi o desenvolvimento do comércio de
escravos, estes seriam primeiro o resultado de capturas no litoral
saariano, bem como nas aldeias africanas da região Senegalesa e
descritos por Gomes Eanes de Azurara em 1442, como grande
feito. O motivo destas capturas iniciais por meio de "razia", prende-se com o objectivo de provar o conhecimento daquela área e de
como ela era povoada. Este comércio vai depois ser desenvolvido
com o apoio dos chefes africanos e mercadores locais atraídos
pelos objectos/mercadorias levados para o "trato". Com a construção da feitoria de Arguim, numa ilha junto à costa da Mauritânia,
na segunda metade do século XV, os portugueses iriam conseguir
desviar consideravelmente o comércio transaariano para a costa e
daí para os seus barcos. Estava, assim, aberta a via do Atlântico.
O comércio viria ainda a ser mais implementado pelos portugueses
a partir da decisão de D. João II, ao ordenar a construção da fortaleza de S. Jorge da Mina (Elmina) na Costa do Ouro (hoje Gana),
em 1482. Muito embora nunca tivessem conseguido implantar nenhuma feitoria no interior, sendo o comércio do ouro e dos escravos
efectuado por intermediários africanos e árabes, não tendo os portugueses conseguido atingir as "fontes do ouro". Para dar um exemplo da dimensão desse comércio no reinado de D. Manuel I (1492-1521), verifica-se que se importou através da Mina um valor médio
anual de 170 mil dobras de ouro (C. Boxer, 1992: 45), além dos
escravos, que eram considerados um dos principais "artigos" e dos
mais lucrativos. Posteriormente, a Coroa iria ceder o seu direito de
comércio e importação de escravos e marfim a comerciantes privados, muito embora tenha mantido sob o seu controlo o comércio do
ouro.
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No que respeita a Lisboa, a presença do escravo africano fazia-se
sentir desde meados do século XV. Os primeiros teriam sido trazidos por Diniz Dias, em 1444, quando regressou da viagem de contactos com a costa africana, nomeadamente de Cabo Verde e da
costa do Senegal. O comércio de cativos do Norte de África tinha
também já tradições em Lisboa, havia mesmo a Rua dos Cativos,
como é assinalado por Cristóvão Rodrigues de Oliveira in Sumário de
Lisboa (1554), sendo este comércio praticado num posto de vendas, na rua Nova de Lisboa, desde meados do século XIV, como refere Pedro de Azevedo in Os escravos (1903).
A existência de escravos era uma realidade sempre crescente
desde meados do século XV e a sua fixação foi dirigida para as áreas
rurais, principalmente para o Alentejo, devido às necessidades de
trabalhar a terra. O uso de escravos era já uma situação comum,
como se pode verificar nas Cortes realizadas em Coimbra em 1472
e concluídas no ano seguinte, em Évora (em que se discutiu o estabelecimento dos assentamentos dos grandes do reino), dado que
aqueles já eram considerados como elementos necessários para o
desmatamento e avanço da agricultura. Desde os meados do século XV e a primeira metade do século XVII teriam sido trazidos cerca
de 1 milhão de africanos na sua maioria provenientes dos "postos de
tráfico" situados de Arguim à Serra Leoa e também do Reino do
Congo.
O relacionamento entre os reis de Portugal e os do Congo mereceram destaque na história da expansão portuguesa, situação decorrente da primeira viagem à costa africana de Diogo Cão e da sua
chegada à foz do Zaire/Mpinda, segundo M. Emília Santos (1988:45)
que terá ocorrido em 1482, data também referida por A. Ferronha
(1992:7).
Importa também não esquecer o projecto de navegação o qual era
fundamentalmente comercial, sendo a difusão da religião vista como
uma obra missionária. Esperavam por isso que os cativos se sentissem felizes, como escrevia o cronista João de Barros, sendo
essa pretensão simultaneamente, um meio de controlo das elites
africanas como aconteceu no Reino do Congo. O padre António
Vieira in História do Futuro (1992), refere "que se não houvesse
mercadores que fossem procurar tesouros, quem transportaria
para lá os pregadores que levavam os tesouros celestes". Assim, o
pregador levava o evangelho e o comerciante levava o pregador,
situação igualmente referenciada por C. Boxer (1992:77).
Como resultado evidente dessa política de intercâmbio e entendimento comercial com os chefes africanos, tivemos a chegada de
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escravos em tão grande número, que se impunha ou deveria impor a
capacidade de aproveitamento dessa "matéria-prima". Porém, a
estrutura administrativa do reino de Portugal não parece ter tido
essa capacidade e a decisão do rei revelou-se antes no sentido de
se desenvolver o comércio de exportação de escravos. O negócio
seria controlado directamente pelo poder real, bem como a concessão de licenças para a sua venda e Lisboa transformou-se num
interposto directo de comércio de escravos, situação, que segundo
o rei, se poderia suspender se as necessidades do país o justificassem.
Tal procedimento e interesses estavam muito longe da primeira
actividade desempenhada pelos africanos trazidos pelos navegadores portugueses, quando a finalidade era a de aprenderem o
português e desempenharem a função de intérpretes 5, pois o objectivo dos governantes de Portugal era "mandar saber, para conhecer
até onde chegava o poder e riqueza dos africanos".
Os escravos africanos eram ainda os preferidos para criados
domésticos, mas não desempenharam apenas tarefas menores.
Mostraram a sua capacidade de trabalho nas ferrarias 6, onde foram
utilizados para produzir nos fornos os materiais para a navegação
(como ferragens e âncoras), para a artilharia e até em tarefas
especializadas, como a das armas e outras actividades nas cidades,
da qual se destaca Lisboa.
Em Lisboa, a cidade evidenciava face aos registos iconográficos existentes uma leitura da sua realidade urbana (Fig. 20), com as construções navais a par das de carácter civil e religioso para a regularização do tecido citadino que teve grande desenvolvimento desde o
século XVI, quando o Rei D. Manuel mandou construir o Paço da
Ribeira e toda a Administração se instalou naquela área ribeirinha.
Por outro lado, os "Censos" realizados documentam que se teria
atingido em meados do século XVI uns 100 mil habitantes (Censos
realizados por Cristóvão Rodrigues de Oliveira, em 1551), e outro
por Damião de Góis (Évora 1554), que atribuiu a Lisboa 20 mil edifícios; constituindo os escravos de várias procedências cerca de 10%
ou 20% da população.
A presença dos negros - os "pequenos" como lhe chamava Fernão
Lopes - passou a ser em grande número, continuando, porém, colocados à margem do sistema social vigente, mostrando que tinham deixado de ser uma curiosidade, porque já não eram mostrados no círculo da corte, mas entretanto o seu elevado número tinha-lhes proporcionado participar nas festas e comemorações realizadas em Lisboa.
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Há também a assinalar a grande diversidade de grupos culturais o
que lhes permitia exibir as várias danças ou tipos de combate, o
trajar diferente e com os seus atributos, como seriam as contas,
usadas como elemento de identidade e prestígio 7. Este tipo de permissão conferida aos africanos constituía uma promoção oficial,
muito embora os mantivesse sob controlo e vigilância.
Pudemos avaliar que, apesar de todas as providências do poder
então vigente para manter à margem das estruturas socioculturais, o escravo africano, no qual se incluía os forros e afastá-los do
relacionamento com as camadas mais populares. Tal vontade oficial
não se tinha conseguiu impor em Lisboa, muito embora o escravo
não tivesse direitos e logo fosse chamado de "preto" 8. A condição
de escravo excluía a existência de personalidade jurídica, porém no
século XVII, com o terror criado pela Inquisição, o africano integrar-se-ia ainda mais nas classes populares principalmente na então
capital do Império Português.
Figura 20 Vista de Lisboa - Gravura do século XVI (que pertenceu ao Almirante Gago Coutinho).
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8.2 Lisboa Os Negros Nas Confrarias e Irmandades
Religiosas
A presença de Irmandades de Homens Negros de Nossa Senhora do
Rosário registam-se desde as primeiras décadas do século XVI, em
diferentes locais de Portugal.
Muito embora possa parecer contraditório, os reis teriam apoiado
a criação de Confrarias dos Homens Negros, onde a presença de
escravos e forros eram em número significativo.
Os africanos trazidos dos "reinos do Congo" eram em grande
número e estes orgulhavam-se muito da sua origem e do seu passado, tal como referiu o padre Cavazzi (1687), que viveu entre os
africanos. Razão porque com dificuldade haviam de suportar a ideia
de superioridade, manifestada pelos seus senhores e que se
traduzia em medidas de carácter punitivo, dado que o poder real
intervinha nas relações dos cativos, nomeadamente dos escravos
africanos. A memória tende a tornar-se autêntico poder, as
tradições adquirem um grande peso, aquele que dispõe de um passado usa-o segundo as suas necessidades, reorganiza-o ou transforma-o em sistema de comunicação. A apreensão da diferença permite uma relação com o passado, ao mesmo tempo que preserva a
sua origem no meio de um universo cultural hostil e mal compreendido, como seria o de Lisboa.
Nesta perspectiva, a condição de escravo teria dificultado a sua
participação nas actividades de associação profissional em torno
das confrarias (instituição de grande significado na época), muito
embora o mecanismo de entrada fosse simples. Para permitir a participação dos trabalhadores (normais) de determinado ofício, bastava a escolha de um Santo católico, em cuja biografia constasse pontos de contacto com a sua actividade profissional, o qual era então
facilmente escolhido para patrono.
Em Portugal, a organização dos ofícios sob a forma de cooperações
só começou nos fins do século XV, ao contrário da Flandres, França,
Veneza, Génova ou Nápoles, cuja arregimentação dos mesteres
(artífices) já vinha desde os séculos XI e XII. Entre nós, foi a Igreja
que, com o seu poder e através de instituições de carácter social
(como era a Confraria 9), desempenhou esse papel, o qual, além do
carácter associativo religioso, concedia protecção jurídica,
englobando a saúde e o socorro mútuo.
A importância deste tipo de núcleos de assistência foi determinante, dado não existir serviço médico destinado ao povo, tendo levado o rei D. João II à construção do Hospital de Todos-os-Santos,
nome bem ilustrativo e com o qual o monarca pretendia abranger
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Figura 21 A igreja de São Domingos (pormenor de
uma gravura da Lisboa anterior ao terramoto de
1755).
todos os patronos eleitos pelas diversas profissões e o atendimento seria público.
A Confraria era ainda a entidade encarregada das actividades comunitárias com carácter espiritual. Como os negros escravos, dada a
sua condição, não podiam nelas participar na qualidade de trabalhadores, passaram a aproximar-se como irmãos e formar uma confraria à parte, a Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos de Lisboa, que funcionava na Igreja do convento de
S. Domingos (Fig. 21) e que terá sido a primeira. Não se conhece
hoje o compromisso original desta confraria, por se ter perdido cer-
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tamente no incêndio que destruiu a biblioteca do Convento de
S. Domingos, aquando do terramoto de 1755.
A data da entrada dos escravos africanos nesta Confraria ou
noutras não parece saber-se, mas as resoluções das Cortes de
Almeirim, em 1524, face ao "Relatório da Congregação dos
Portugueses contra os negros", permite considerar que a sua criação tenha ocorrido durante a segunda década do século XVI. Um dos
objectivos era a procura de recursos para a obtenção da carta de
alforria, daí a reclamação dos cidadãos do reino. Por outro lado, os
negros baptizados não podiam ser vendidos pelos donos, mas apenas dados como presente (Tinhorão, 1988: 85).
A aceitação da Congregação dos Negros do Rosário, na qual os
provenientes do Reino do Congo tinham lugar sob a invocação da
Virgem (como ficou conhecida em Lisboa e se alargou depois a outras cidades portuguesas), mostra que o poder real apoiaria os
africanos, dada a importância do momento histórico como foi o
século XVI. Assim, seria valorizado o relacionamento dos reis de
Portugal com o rei do Congo, o "Manicongo", com quem a actividade
diplomática de intercâmbio pacífico se vinha desenvolvendo e de
onde os escravos eram trazidos em grande número, dado serem
também indispensáveis para a sustentação da economia que o
comércio com a Índia e a colonização do Brasil impunham.
A aproximação político-religioso e económica fora desenvolvida pelo
rei D Manuel I junto do N'Gola Manicongo, que tinha sido baptizado,
bem como a sua família, sendo o cristianismo entendido mais como
um meio suplementar de reforço e uma outra solenidade a acrescentar às suas tradições.
Os escravos africanos revelaram-se úteis, também na conversão
das almas dos seus irmãos, o que teria levado os seus "reis" na
África distante a mandar esmolas e pedir retábulos ou imagens da
Senhora do Rosário, segundo o Livro de São Domingos, citado por
Tinhorão (1988: 134). Certamente que esta situação seria muito
apreciada pelos governantes de Portugal, dado que facilitava o controlo dos africanos e, assim, os que seguiam ao serviço das naus
poderiam divulgar a importância e papel dos negros na sociedade.
O entendimento entre o rei de Portugal e o seu homólogo do Congo
distante obteve entre os africanos trazidos como escravos, uma
grande repercussão, sobretudo entre os que ocupavam posições
sociais de relevo no seu distante reino, e que ainda se consideravam
"politicamente" ligados ao Manicongo. Procuraram, então, alcançar
algum prestígio, ensejo que se concretizou sob a forma de encenação teatral.
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A importância do Reino do Congo, na distante África passou a ser
teatralmente interpretada por escravos africanos do Congo em
auto festivo, representados no interior da Igreja de São Domingos
em Lisboa. Estes autos assumiam o papel de embaixadas dos diferentes grupos culturais presentes ao Mbazi a Congo (praça ou terreiro, junto da residência dos reis do Congo), para a eleição do
"Rei" 10. A eleição era realizada pelo sistema de colegiada formada
pelos chefes regionais para a aceitação ou indicação do sucessor,
caso a escolha feita pelo rei antes de falecer não fosse aceite.
Com o passar dos tempos e o desaparecimento dos documentos da
época, apenas a tradição oral foi permanecendo na memória dos
escravos africanos, que refere os autos como tendo sido iniciados
na Confraria de Nossa Senhora do Rosário, na Igreja de São
Domingos, conforme se lê em Frei Luís de Sousa - a Confraria
começou em 1484.
Nos finais da década de 1860, o cronista José Ribeiro Guimarães
conta no Jornal do Comércio, com o título "O Congo em Lisboa" 11,
que havia ainda anexo à Confraria do Rosário, mas na Igreja de
Santa Joana, uma representação com dança intitulada "Reino do
Império do Congo", facto que parece poder confirmar que a primitiva teatralização tinha evoluído para uma forma recreativa de carácter mais urbano.
Não podemos deixar de referir que estas representações relativas
ao Reino do Congo tiveram, pelo menos, também lugar no Porto,
com o título "A Corte do Rei do Congo", estando documentadas até
quase aos finais do século XIX (Pedro de Azevedo, 1894) e estenderam-se até à ilha de São Tomé. Nesta ilha, os autos com carácter
histórico são referidos por António L. de Almada Negreiros, em
1895, na sua obra História Ethnographica da Ilha de S. Thomé, com
os nomes de: "A tragédia do Capitão do Congo", no "Reinado dos
Congo" e no "Baile do Congo" que seria o mesmo que Danço Congo.
Estes autos teriam tido a sua origem também em Lisboa e estariam associados à Irmandade de Nossa Senhora da Penha de
França, a qual se venerava na Igreja da Penha de França 12, que tinha
sido entregue aos Eremitas de Santo Agostinho, em Maio de 1598.
Nessa igreja foi organizado nesse mesmo ano autos entre os homens do mar e ficado a intitular-se protectora da cidade de Lisboa,
em 1599, como assinala António Ambrósio in "O Danço Congo de
São Tomé e suas Origens" (1992: 362).
A difusão dos autos terá contado com os missionários Agostinhos,
ordem que tinha casas em diferentes paragens como em São
Salvador da Baía e São Tomé. A sua representação naquela ilha é
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ainda referida por Santos Júnior, em 1945 (no âmbito da Missão
Antropológica de Moçambique - JIU), com a designação de "Dança
do Congo", mas como festa recreativa.
Os escravos africanos de Lisboa manifestavam também a sua presença nas procissões, nomeadamente na do Corpo de Deus, que
era um evento público e social de grande significado, como documenta o "Regimento" aprovado por D. João II nos finais do século XV
e não definido pela Igreja.
As procissões, designadamente no período Joanino (D. João V),
tiveram uma enorme carga dramática, incluíam música e danças
(Francisco da Fonseca, 1728), sendo aproveitadas pelos escravos
para exibir os seus símbolos identitários ou atributos e até os
instrumentos musicais. A sua participação na procissão do Corpo
de Deus seria uma consequência da identificação com a figura do
São Jorge, onde participavam na qualidade de arautos, tocando
tambores e instrumentos de sopro à frente dos cavaleiros que
escoltavam a imagem .
Ao permitir a participação de escravos africanos nestes acontecimentos sociais, o poder vigente possibilitava-lhes ser ao mesmo
tempo público e participante e ainda de exprimir as suas aptidões e
capacidades, além de poderem associar as suas tradições e
crenças, a uma nova simbologia e até conseguir sentirem-se livres.
A presença continuada em Portugal do escravo africano, durante
cerca de 300 anos, permitira-lhes alcançar, principalmente em
Lisboa, alguma relevância social e cultural, traduzida nos costumes,
em especializações profissionais, num tipo de religiosidade, nas
diversões, no canto, nas danças, nas touradas e no teatro; além de
um tipo original de literatura - o folheto de cordel -, como o escrito
pelo poeta negro, conhecido em Lisboa como "poeta Manicongo" e
intitulado Testamento do Zangalheiro, escrito no estilo de humor
típico de meados do século XVIII (Tinhorão,1988: 196 -197). Este
tipo de folhas estava sujeita à censura e era taxado tal como a
restante matéria impressa.
A cidade de Lisboa estava, como se pode verificar, imbuída na sua
identidade sociocultural pelo escravo africano, o qual constituía uma
imagem de referência no seu enquadramento social, político,
económico e religioso, que se tinha vindo a desenvolver desde o
século XVI, originando entre outros aspectos uma grande variedade
de expressões culturais.
Este enquadramento social só entrará em declínio com o Alvará
Régio do Marquês de Pombal datado de 19 de Setembro de 1761,
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ao estabelecer a proibição da entrada de escravos africanos em
Portugal. Uma das razões dessa decisão prendeu-se com o agravamento da vida citadina, onde passara a escassear o trabalho para
os jovens. No entanto, o trabalho de escravo era desenvolvido de
uma forma dissimulada, e, sobretudo, porque eram imprescindíveis
nos domínios ultramarinos para o cultivo das terras e para a actividade mineira.
O interesse pela mineração do ouro e da prata parece ter estado
sempre presente desde os homens de Quinhentos. Esta decisão,
porém, não tinha ainda na realidade posto fim à escravatura, porque
se os filhos seriam livres, os pais e os avós continuavam a ser
escravos e por isso a ser explorados, de acordo com o Alvará do
Marquês de Pombal de 16 de Janeiro de 1773. Este expediente revela ainda outros poderes em confronto, como era o dos comerciantes escravistas.
Os ideais e os interesses, contudo, estavam a mudar: tornava-se
necessário estimular a produção, isto é, passar a um tipo de trabalho produtivo em vez da procura de riquezas, tristes riquezas
como eram os escravos no sistema mercantilista, que se impunha
desde o século XV e, estes iriam passar de "coisa" a comprador
activo e o tempo iria fazer o resto.
9 Atribuição Cronológica
Não se dispõem de dados precisos para a datação deste núcleo de
contas recolhidas na Lisboa anterior ao terramoto de 1755.
A grande maioria dos exemplares aqui em estudo pode ser incluída
nas chamadas contas tipo "Nueva Cadiz", segundo o proposto por K.
Deagan in Artifacts of the Spanish Colonies 1500-1800, 1987 e L.
Dubin in History of Beads, 1987/1995. Dispomos de cinco exemplares deste tipo de contas e provenientes de um sítio de referência na Lisboa da primeira metade do século XVII (Palácio dos
Marqueses de Marialva), e em que duas delas apresentam embutidos que teriam sido revestidos a dourado, tal como o documenta
algumas contas do conjunto proveniente de Luanda (acervo do IICT),
o que permite considerar serem uma manufactura de fabrico mais
cuidado e logo mais oneroso, podendo reflectir o resultado da indústria vidreira do mundo islâmico e produzidas até 1517.
Como proposta para a chegada deste tipo de contas à África subsaariana foram consideradas as rotas do comércio desenvolvidas na
África no Norte a partir do Cairo (M. Conceição Rodrigues,1997:
273), e antes do fabrico do vidro nos cidades do Mediterrâneo ori-
ental ter vindo a ser sucessivamente destruído, além de ter deixa-
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do de interessar na sequência da chegada dos Turcos Otomanos na
segunda década do século XVI.
No que respeita à cronologia, para as contas tipo "Nueva Cadiz"
serem consideradas uma produção dos artesãos venezianos, teriam sido realizadas depois de estes terem saído de Murano e os
métodos de manufactura já não serem mantidos em segredo (sob
pena de morte), o que ocorre depois de 1592 quando os artesãos
começaram a voltar para Veneza 13.
Se atendermos aos registos históricos e ao mencionado por
K. Deagan (1987: 157 a 159), quanto às contas ditas "Nueva Cadiz",
este tipo de conta aparece apenas em contextos arqueológicos
anteriores a 1560, em lugares que fizeram parte das colónias
espanholas do Novo Mundo, nomeadamente na pequena ilha de
Cubagua, junto à costa da Venezuela, a qual terá sido ocupada pelos
Castelhanos no ano de 1498, bem como no sítio arqueológico,
chamada "Nueva Cadiz", que será uma espécie de estação "epónima".
A sua presença foi também registada no Perú, em sítios com ocupação datada até 1550. Quanto ao assinalado por L.Dubin (1987:
258), estas contas destinavam-se inicialmente ao Perú para onde
foram levadas desde os finais do século XV, até aos anos de 1560".
O seu local de manufactura está ainda a ser discutido.
Relativamente a Angola, há a acrescentar a presença de outros
dois exemplares recentemente recolhidos em escavações arqueológicas realizadas em Caotinha, próximo da aldeia de Caota, situada
a Sul de Benguela. Estas contas foram localizadas numa sepultura
escavada e reconhecida como um enterramento muito antigo, situada numa falésia de difícil acesso e à face do mar; tendo sido consideradas pelo chefe de equipa Prof. M. Gutierrez da Universidade
de Paris I (2001: 46 - 50) igualmente como contas do tipo "Nueva
Cadiz".
O núcleo de contas de Luanda que estudámos não tinha contexto
(foi adquirido a um coleccionador), mas face às pesquisas por nós
desenvolvidas podemos igualmente considerá-las como provenientes de antigos enterramentos e com data possivelmente anterior à chegada dos portugueses e vindas de um morro junto ao mar
(M. Conceição Rodrigues, 1993: 349), hipótese agora reforçada, se
atendermos ao tipo e à proveniência do achado efectuado em
Caotinha.
Ao procurar analisar comparativamente os dados em presença,
este tipo de manufactura seria dos meados do século XVI, quando
a técnica das "Contas Puxadas" já se encontrava completamente
desenvolvida em Murano, mas não parece que de modo algum essa
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produção fosse tão limitada e também não se registou a existência
deste tipo de contas no amplo contexto das contas de manufactura
veneziana.
O Núcleo II (PLC/99) forneceu ainda outros dois tipos de contas, o
exemplar n.º 4 (Fig.10) que poderá ser uma manufactura de Veneza
dos finais do século XVII, quando a nova técnica de "Contas Puxadas"
estava já plenamente desenvolvida, com uma produção em maior
escala e até já standardizada de modo a tornar as contas mais
baratas e populares.
O outro tipo referenciado pelos exemplares n.os 7 a 9 documenta
uma das produções reinventada pelos artesãos vidreiros de Veneza
e chamada contas "Chevron". A sua manufactura mais antiga deu-se depois de 1500, bem como ao longo de quase todo o século XVII,
sendo este tipo de fabrico definido por padrões e normas (para essa
produção muito terá contribuído a experiência dos artesãos vindos
do Médio Oriente).
A conta n.º 7 parece poder enquadrar-se, quanto à sua morfologia
e cor das camadas de pasta vítrea numa produção de Veneza dos
inícios do século XVI, em que esta paleta de cores está presente
(L. Dubin,1987/1995: 116). Os exemplares n.ºs 8 e 9 podem reflectir o resultado de uma produção do século XVII, logo mais alargada
(comparativamente, são análogos aos provenientes de Luanda, e
existentes no acervo do IICT), se atendermos ao proposto por
L. Dubin (1987/1995: 116 -117).
10 Considerandos Finais
As identidades culturais no universo da vida na Lisboa do século XV
ao terramoto de 1755, foi alargada a uma nova escala, com a
chegada de inúmeros escravos que transformaram o tecido social
da cidade, situação já aflorada quanto aos seus aspectos sociais,
económicos e religiosos, que terão sido dominantes e nos quais os
escravos africanos tiveram um papel activo.
Importou a mobilidade que levou ao emergir da cidade quanto ao seu
passado e à noção que temos dele, nomeadamente quanto à forma
como a cidade de Lisboa se libertou das muralhas medievais e se
alargou para Ocidente e Oriente de uma forma constante desde
D.Manuel I até aos meados do século XVIII.
Um dos objectivos deste trabalho, foi também o de dar a nossa contribuição para o estudo das contas de vidro e, nomeadamente, das
ditas "Nueva Cadiz", não procurando, propriamente, realizar um
estudo sistemático da sua tipologia, mas, antes de mais, realçar a
evidente expressividade da sua presença na Lisboa renascentista
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até aos meados do século XVIII, tendo em conta a dificuldade existente quanto ao seu local de manufactura e como se terá dado a
sua difusão, além da sua pouca representatividade no Mundo, como
referem K. Deagan ou L. Dubin.
O significativo número de contas deste tipo, descobertas na última
década do século XX, na Baixa de Lisboa, em contextos anteriores
ao terramoto de 1755 e em áreas de trabalho que seriam habitualmente destinadas a escravos com alguma qualificação, permite
reconhecer que estas eram para os seus possuidores um elemento de prestígio e usadas simultaneamente como elemento identitário do seu grupo cultural e trazido da sua terra de origem, permitindo manter simbolicamente a sua ligação com o passado na distante África, terra mãe.
O grande interesse dos africanos pelas contas é confirmado por
vários autores, quando se referem às diferentes variedades que
foram sendo utilizadas ao longo dos tempos, nas permutas comerciais com a África subsaariana.
Procurou-se por conseguinte, entender o pulsar da população existente na cidade de Lisboa, atendendo a que a partir do começo do
século XVI, esta capital se tornou a encruzilhada das rotas comerciais da Europa e da África Ocidental, alargando-se depois à Índia e
ao Novo Mundo. Tal modificação levaria na terceira década de 1500
a que Lisboa tivesse já uma população de cerca de 70 mil habitantes, o que correspondia a uns 5% da população de Portugal. Em
1620, esse número era já da ordem dos 165 mil habitantes
(T. Rodrigues, 1997), sendo comparável às cidades de Veneza e de
Amesterdão.
A nossa atenção incidiu sobre interesses e comércio desenvolvidos
na fase inicial da expansão dos descobrimentos, nomeadamente
com o Reino do Congo, o qual permitiu o desenvolvimento do comércio de escravos, passando-se depois ao das especiarias, especialmente trazidas da Índia, para o qual os escravos africanos tiveram
grande significado.
A partir de Lisboa, o comércio do ouro foi o elo de ligação entre esta
cidade e a fortaleza de São Jorge da Mina, na golfo da Guiné, para
onde os portugueses levaram mercadorias atractivas e trouxeram
escravos. Por outro lado, o interesse dos africanos (graças ao
fascínio religioso dos negros, que viam no poder dos homens vindos
do mar, uma relação sobrenatural) permitiu manter aberta a rota
Lisboa-Congo, actividades iniciadas após a chegada de Diogo Cão e
desenvolvidas pelos reis de Portugal com os reis da costa ocidental
da África. Este comércio levou à presença de grande número de
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escravos africanos em Portugal e à sua fixação em Lisboa, a qual
pode ser encarada como a expressão do desenvolvimento de diversas actividades do seu "tecido funcional", ligadas às cargas e
descargas no porto, às ferrarias e ao apoio à construção e valorização do património, nomeadamente religioso (como terá sido o da
reestruturação da Santa Patriarcal). Salienta-se também o apoio à
agricultura, aos serviços domésticos, à manutenção da limpeza e
bem estar social na cidade de Lisboa e outras actividades
necessárias.
Não podemos esquecer que foi com D. Manuel I que Lisboa se alterou e valorizou quanto à sua área urbana, quando se passou a construir fora das muralhas medievais, como sucedeu com a edificação
do Paço da Ribeira situado por cima da Casa da Mina e da Índia.
O Rei e a corte passaram a residir na entrada da Lisboa mercantil,
situação que terá de igual modo estimulado o desenvolvimento da
malha urbana da cidade, porque além do Paço foi erguido o que hoje
se designa por "Centro Administrativo". Este era constituído principalmente pelo Tribunal do Desembargo do Paço, o Conselho da
Fazenda, a Casa da Moeda e a Alfândega. O ordenamento arquitectónico deste núcleo de edifícios distribuindo-se em U alargado, permitiu criar um espaço que veio a ser designado por Terreiro do Paço.
Uma nova escala surgiu na parte baixa da cidade e Lisboa começou
a alargar-se em termos de urbanização civil a partir do Terreiro do
Paço, rua Nova dos Ferros até ao Rossio (onde se realizava uma
feira), tornando-se centros espaciais da sua vida urbana e lugares
de convívio por excelência da população. Foram ainda locais onde se
cruzavam mercadores e capitães, calafates e operários navais,
prestamistas e banqueiros, bem como os escravos no desempenho
quotidiano das suas actividades.
O desenvolvimento privilegiou o palácio, a igreja e o convento,
trindade que se inter-apoiava num processo que foi evoluindo. Os
investimentos foram sendo proporcionados pelo comércio das especiarias, dos escravos, do açúcar, do ouro e das pedras preciosas do
Brasil e, Lisboa continuou a alargar-se, dando origem às urbanizações do Cais do Sodré, Chagas, Bairro Alto e Santa Catarina. Será
neste contexto que surgiram os palácios, como o dos Marqueses
de Marialva ao Loreto (já uma Paróquia na Lisboa de 1551). Esse
alargamento deu-se igualmente em termos de núcleos periféricos,
que se foram adicionando aos anteriores, a par da construção de
dezenas de conventos, tendo com as suas cercas envolventes
servido de "âncoras urbanas" de expansão, como refere Luís de
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Matos (1997), dando à cidade um cunho marcadamente religioso,
mas mantendo o urbanismo um sentido social e cultural.
Neste contexto de religiosidade, D. João V criou a Igreja da Santa
Patriarcal (Ocidental), com todo o esplendor e luxo, contrastando
com o viver do povo, a quem era imposto o terror da Inquisição e do
Inferno, bem como o dos Impostos pelo Estado. A valorização do
tecido religioso e urbano teria contado, muito provavelmente, com
escravos africanos qualificados e certamente ligados à Confraria de
Nossa Senhora do Rosário da igreja de São Domingos, dado o seu
prestígio.
No que respeita à construção do Palácio dos Marqueses de
Marialva, não dispomos de dados. Sabemos que é uma construção
da primeira metade do século XVII e, portanto, mais antiga do que
a Patriarcal reformulada, permitindo considerar que a conta de
vidro agora encontrada teria pertencido, no caso do Núcleo I, a um
dos escravos que participou nas obras de construção.
Quanto às contas recolhidas no que restava nas ruínas das divisões
do Palácio, estas teriam pertencido aos diversos escravos que ali
foram prestando diferentes serviços, ao longo dos anos, primeiro no
âmbito da sua construção - atenda-se ao exemplar n.º 9 -, que estava integrado na argamassa das paredes (Fig.6 c). Havia ainda, as
necessidades de manutenção do bem estar dos Senhores que
habitaram o palácio até ao terramoto de 1755, além de participarem quando podiam em actividades socioculturais fora dos locais
de trabalho.
Na Lisboa do período de D. João V, viveu-se um regime de grande
sumptuosidade, principalmente religiosa. O controlo social era
desenvolvido pela Igreja (na lógica da ideologia da Contra Reforma),
sendo esta entidade também a grande beneficiária dos poderes
reais. O poder da Igreja fazia-se sentir através das Confrarias e
Irmandades, que beneficiavam os seus membros e simultaneamente
os controlavam, procurando manter a estabilidade social e política,
tanto do interesse dos reis de Portugal. Esta necessidade e
intenções vinham sendo desenvolvidas pelos nossos reis desde
D. Manuel I (nomeadamente com o Reino do Congo) e foram entendidas como de grande importância para a cristianização dos
africanos e o prestígio político, social e religioso de Portugal.
A presença de grande quantidade de escravos africanos, desde as
últimas décadas do século XV em Lisboa, pôde, graças ao interesse
que manifestaram relativamente à religião católica-romana, ter
facilitado a sua aceitação na Confraria de Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos de Lisboa, na qual se incluíam os
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escravos e os forros. Esta na igreja de São Domingos, levou a que
os escravos passassem a realizar junto daquela igreja as suas
reuniões, bem como a procurar algum prestígio no meio de uma
sociedade que os explorava e reprimia.
No contexto de manutenção do bom relacionamento com os
africanos, terão surgido os "Autos Festivos da Coroação do Rei do
Congo", que seriam representados no interior daquela igreja, e para
os quais um dos elementos de prestígio para os participantes
nessa representação seriam as suas contas de vidro, que deveriam
passar de geração em geração, tal como os saberes, dado o peso
da tradição na cultura africana.
As contas de vidro não tinham valor nem seriam consideradas, pois
a elite portuguesa usava o ouro e a prata como ornamento, sendo
a joalharia um dos grandes luxos das classes burguesas e considerada um dos símbolos da fé e do prestígio, ajudando à afirmação
do seu poder económico.
Registou-se também a presença de escravos em actividades de
carácter religioso, como eram as procissões espectáculo do período Barroco Joanino, cuja temática não seria na totalidade entendida por estes, mas permitia-lhes exprimir as suas aptidões, manter
algumas das suas tradições e ainda possibilitar a sua presença em
actividades de carácter público que tanto apreciavam.
Na continuidade desta perspectiva acerca da identidade a população de Lisboa como capital do reino e do Império virada para o Tejo,
porta da entrada e de comunicação com o resto do Mundo, estes
tipos de contas de vidro mereceram um estudo mais atento o que
nos levou a procurar desvendar a razão da sua presença em Lisboa,
até meados do século XVIII.
As contas de vidro teriam seguido também a rota das naus, entre
1500 - 1600, pois os portugueses levaram por mar contas para
comerciar em África. A partir dessa data, os ingleses, os holandeses, os franceses e, depois, os alemães também comerciaram
com os africanos usando contas, permitindo um grande desenvolvimento do comércio com a África. Esta situação decorreu inicialmente da aquisição de contas, desenvolvida directamente com os
artesãos de Veneza, muito embora estes mestres do vidro
tivessem posteriormente contribuído e auxiliado outros artesãos,
em diferentes cidades da Europa na sua manufactura.
A apreciação do resultado das análises de caracterização química
das contas aqui em estudo permitiu verificar que elas são muito
parecidas entre si em termos de elementos químicos presentes,
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Dos meados do século XV ao terramoto de 1755
tanto quanto ao núcleo das contas tipo "Nueva Cadiz", como no caso
das contas "Chevron", o que permite enquadrá-las nos contextos
referenciados por outros investigadores. A única que difere é o
exemplar n.º 4 (PLC/99), que parece pertencer a um tipo de produção mais económica e pode ser o resultado do comércio de
escravos desenvolvido no século XVII, em que este tipo de contas,
certamente proveniente de Veneza teria sido levado de Lisboa para
a sua aquisição.
Convém no entanto referir que antes da chegada dos Portugueses
à costa africana, já as contas constituíam uma imagem de referência e eram um dos elementos de prestígio e coesão social nas
sociedades africanas.
A recente descoberta de dois exemplares de contas prismáticas
longas de cor azul turquesa, recolhidos numa sepultura em
Caotinha, próximo de Benguela - Angola, e que estavam colocadas
lado a lado junto do morto, foram também considerados do tipo
"Nueva Cadiz"por M. Gutierrez (2001:50). Havia também outro tipo
de contas de vidro e de casca de ovo de avestruz, além de cauris
(Cypraea moneta) e outros artefactos.
Este achado permite considerar tratar-se de um enterramento da
primeira fase da Later Iron Age (ou seja do 2º período da Idade do
Ferro africana), no contexto da África Bantu, e logo anterior à
chegada dos portugueses, situação que já havíamos considerado
relativamente aos exemplares provenientes de Luanda, a que já
aludimos.
Pelo que referimos relativamente à sua cronologia e atendendo aos
resultados no que respeita à sua caracterização química, as contas ditas tipo " Nueva Cadiz", são um fabrico de grande qualidade e
certamente de custo elevado. Tudo aponta para que sejam o resultado de largos conhecimentos na produção de vidro. Este somatório
de elementos permite continuar a considerar, que a sua manufactura tenha ocorrido no Mediterrâneo Oriental, talvez na Síria até
aos finais do século XV ou inícios do XVI, isto é no Período
Mameluco, dinastia que reinou também no Egipto antes da sua
inclusão no Império Otomano (isto é, antes de 1517), e não seja,
portanto, um fabrico veneziano.
A sua chegada a África subsaariana poderá ser o resultado do
comércio do ouro, desenvolvido na África do Norte, sendo uma das
vias de entrada o Cairo, na altura em que o Mediterrâneo Oriental
era o centro do comércio.
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A Presença das contas de vidro como elemento de identidade
do Africano no passado histórico e cultural de Lisboa
Dos meados do século XV ao terramoto de 1755
As mudanças que se verificaram no Mediterrâneo Oriental, desde
os meados do século XV, teriam aberto o caminho à conquista do
Egipto pelos turcos Otomanos, situações que conduziram a
grandes alterações na produção de vidro, na qual se incluía as contas, dado que a sua manufactura tinha deixado de interessar, ao
contrário do que acontecia em Veneza. Nesta área do Mediterrâneo
Ocidental a produção de vidro estava em franco desenvolvimento
depois dos seus artesãos terem adquirido uma grande capacidade
na manufactura do vidro e das contas em particular, que foram
largamente adquiridas pelos mercadores das rotas do continente
africano e pelos exploradores do Novo Mundo
A presença de contas de vidro no Novo Mundo teria começado com
as levadas por Cristóvão Colombo, em 1492, e usadas como elemento de prestígio e moeda de troca, muito embora as designadas
por contas tipo "Nueva Cadiz" não tenham sido encontradas em
locais que teriam sido frequentados pelos europeus, o que poderá
confirmar a sua importância.
Registou-se também um controlo na produção de bens para o
comércio com o Novo Mundo em relação aos artesãos que teriam
vindo para o Sul de Espanha, o que pode ter conduzido ao seu desaparecimento. As contas continuaram, contudo, a circular na
América do Sul e Central (nas colónias espanholas), muito embora,
por volta de 1580, a Igreja tenha imposto que as contas ornamentais em vidro passassem a ser menos transportadas e substituídas pelas dos terços manufacturadas em osso e madeira.
No que respeita à presença deste tipo de contas na Lisboa do
Renascimento a 1755, o seu número revela-se até ao presente um
elemento de grande valia para o estudo deste tipo de artefactos de
grande beleza e significado sociocultural, bem como históricoarqueológico, cuja presença não se registou em contexto datável
posterior a 1560 d.C. no Novo Mundo, como assinala K. Deagan
(1987).
Os dados que apresentamos constituem mais uma tentativa de
esclarecimento da problemática do local de manufactura e difusão
das contas do tipo "Nueva Cadiz" , assim como do papel desempenhado por Lisboa no âmbito do comércio desenvolvido com a costa
Ocidental da África desde o século XV.
Quanto às contas "Chevron ou em Estrela", a sua morfologia e paleta de cores permite entendê-las, quanto à sua manufactura como
uma produção de Veneza, se atendermos ao proposto por L. Dubin
(1987/1995).
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Torna-se, contudo, necessário coligir mais elementos para consolidar as hipótese aqui apresentadas.
Lisboa, Agosto de 2005
Agradecimentos
Os nossos sinceros agradecimentos a todos quantos permitiram a
concretização deste trabalho e de um modo particular para:
Eng. Machado Leite e Eng. M. Eugénia Moreira do Instituto
Geológico e Mineiro pela realização da Análise de Caracterização
Química das contas aqui em estudo .
Dr. Paulo Oliveira do IPPA que efectuou as fotografias das contas
(excluindo as obtidas em lupa).
Ao Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências de Lisboa que
permitiu a realização das fotografias obtidas com lupa binocular.
Drª. Manuela Leitão e Dr. João Muralha - arqueólogos responsáveis
pelo trabalho de campo na Praça do Município ( ruínas da Santa
Patriarcal) que nos enviaram o exemplar de conta de vidro por eles
recolhido para estudo e a fotografia da figura 3. Assim como, à
Drª Margarida Bastos pela cedência de alguns elementos bibliográficos sobre Lisboa.
Drª. Lídia Fernandes e Dr. António Marques - arqueólogos responsáveis pelo trabalho de campo na Praça Luís de Camões ( ruínas do
Palácio dos Marqueses de Marialva), que nos enviaram o núcleo de
contas de vidro por eles recolhidas para estudo, bem como as
fotografias das figuras 4, 5 e 6a os desenhos das figuras 6 a) e 6
b). e nos forneceram alguns elementos bibliográficos sobre Lisboa.
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Dos meados do século XV ao terramoto de 1755
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Notas
1
Duas dioceses foram assim criadas em Lisboa , correspondendo a da
antiga Sé à designada por "arcebispado de Lisboa Oriental". Devido às dificuldades que foram surgindo, em 1740, este arcebispado passaria a estar
dependente da autoridade da Santa Patriarcal.
2
Segundo V. Magalhães Godinho, in Ensaios II, "em 1712, o ouro vindo do
Brasil e chegado oficialmente a Lisboa, foi de cerca de 15 toneladas e no
ano de 1720 esse valor teria sido de umas 25 toneladas". Esta súbita
riqueza terá permitido os gastos sumptuários do período de D. João V.
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Dos meados do século XV ao terramoto de 1755
Título atribuído por D.Afonso VI a D. António Luís de Meneses por ter
contribuído para a vitória sobre o exército castelhano na Batalha das
Linhas de Elvas, em Janeiro de 1659.
3
Representações fotográficas obtidas com o apoio do Departamento de
Geologia da Faculdade de Ciências de Lisboa (Figuras 15 a 19).
4
5
A instituição dos intérpretes ao serviço dos capitães, o emprego do
escravo africano como Turgimão tornou-se rotina, como informa Luís
Cadamosto (1445). Estes eram alugados aos navegadores pelos seus
Senhores, os quais como recompensa tinham o direito de escolher um
escravo dos trazidos na viagem de regresso por cada Turgimão que
prestasse bons serviços. Para interessar estes no trabalho, quando cada
um deles proporcionava ao seu senhor como paga um total de quatro
escravos, o Turgimão passava a escravo forro (livre). Este meio da
"Turgimania" tinha sido uma maneira original de emancipação criada pelos
portugueses, após o modelo de escravidão que vinham desenvolvendo para
a produção mercantil. O cronista Gomes de Azurara regista, em 1445,
outra significativa actividade dos escravos negros, ao referir que estes
desempenhavam a função de moços de bordo nas próprias viagem de
reconhecimento da costa africana.
Cumpre esclarecer que na África Austral as suas populações estavam
em plena Idade do Ferro africana -Iron Age- (que tivera início por volta de
+/- 500 a.C.) e os conhecimentos dos ferreiros fundidores e forjadores
6
são magníficos nomeadamente os provenientes do Reino do Congo. Estes
trabalhavam o ferro para as suas alfaias agrícolas e objectos de cerimonial
e de prestígio, além do cobre com que produziam diferentes artefactos
nomeadamente as manilhas.
7
Os escravos africanos apresentando as suas danças foram objecto de
notícia registada nos meados do século XV, quando em Lisboa tiveram
lugar as festas da comemoração do casamento da infanta D. Leonor, irmã
de D. Afonso V, com o Imperador Frederico III da Alemanha, descrição do
padre Nicolau Langmann de Falkenstein encarregado pelo imperador deste
casamento por procuração, a qual foi editada em Estrasburgo em 1717 e
referida por R. Cavalheiro e E. Dias (1945).
A expressão "preto", para designar negro africano encontra-se já nos
livros da Chancelaria do Rei D. Manuel e referida por Pedro de Azevedo
(1903), quando torna forro um velho escravo recebido de herança do Rei
D. João II e datado de Maio de 1501.
8
9
Confraria igual a confrade/co-irmão. C. Rodrigues de Oliveira (1544-
1545), in Sumário refere a existência de sete confrarias no Mosteiro de
São Domingos e uma era dos "negros escravos e forros de Lisboa". Esta
obra foi reeditada em 1939 por A. Vieira da Silva, edição Casa do Livro.
A mais antiga referência desta teatralização será a feita por um
holandês Gaspar Barlaeus na sua História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e editada em 1647. A sua descrição dá
uma imagem da vida socio-cultural e política e nela se descreve os
escravos como "negros ágeis e sadios", tendo os membros untados com
óleo, executavam danças tradicionais e o rei sentado no sólio aguardando
a chegada dos embaixadores e das suas cortesias. Depois da aceitação do
"Rei" a teatralização da imposição dos atributos reais: o barrete real - o
impud/impua - sobre a sua cabeça, a que se seguia a colocação no braço
10
*Investigador do Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), Lisboa
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Moderador:
Dr. José Manuel Anes
Quinta-feira, 5 de Julho de 2001
V Sessão de Trabalho | Tarde
Tema 3 - História e Património
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Contributo para a uma leitura social do espaço na Lisboa quatrocentista: o debate sobre a localização das judiarias
Margarida Garcez Ventura*
É indubitavelmente louvável o tema proposto para este IV Colóquio,
tema por certo suscitado pelas problemáticas que nascem da simples constatação das fissuras socio-urbanas no quotidiano das
cidades contemporâneas, a que Lisboa não é alheia.
É hoje difícil reconhecer os modelos morfológicos e a constituição
da população de Lisboa, ou mesmo definir a sua identidade: mais
difícil do que em épocas passadas, pois a diversidade e a aceleração
das transformações impede, por um lado, a racionalização das
diversas morfologias e, por outro, a assimilação coerente em modelos anteriores.
E contudo... convém lembrar que sempre as morfologias urbanas se
relacionaram com o status dos seus habitantes. Façamos uso da
nossa memória comum, ou seja, sirvamo-nos da História para actualizar essa lembrança.
A História irá dar-nos de imediato dois vectores para a compreensão do presente. O primeiro vector é o que sabemos ter sucedido.
O segundo vector é o debate, e o confronto ou compromisso entre
os protagonistas do fenómeno que estudamos. Ou seja, sem retirar a existência objectiva ao real histórico, não considerarmos completo o seu estudo se não identificarmos e trouxermos à colação as
propostas contemporâneas para que esse real pudesse ter sido de
outra forma. Esclarecemos desde já que a legitimidade desta afirmação não passa pela adesão a qualquer corrente historiográfica
pós moderna. Deriva tão somente do cuidadoso apego às fontes nas
quais o testemunho da lei, da norma ou do "universal", é tão relevante como o testemunho da casuística, da excepção, do desvio, do
"particular". Mais: fontes documentais, da mesma forma que nos
impõem o que realmente foi, contam-nos o que alguns desejavam
que tivesse sido. Queremos com isto dizer que o apego às fontes
não se traduz em positivismo, mas sim em certezas e em hipóteses fundamentadas.
Enfim, e para não cair no pecado da tal historiografia pós, terminamos aqui com considerações desligadas dos factos que as fizeram nascer, e vamos aos documentos para vos darmos um episódio
RESUMO
Nas cortes de Lisboa de 1439 os procuradores
de Lisboa insistem junto do regente D. Pedro
para que dê cumprimento a uma determinação
que, segundo eles, D. Duarte proclamara mas
que não chegara a ser efectuada: a mudança da
judiaria para outro local da cidade. Os argumentos aduzidos, o local proposto e a resposta do
regente irão servir-nos para descodificar uma
(possível) hierarquia do espaço urbano e para
nela situarmos a comunidade judaica.
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Contributo para a uma leitura social do espaço na Lisboa
quatrocentista: o debate sobre a localização das judiarias
em que uma determinada instituição representativa de um conjunto sociológico exige do poder uma determinada morfologia do
espaço urbano. Para aqueles leitores mais preocupados com os
axiomas, podemos dizer que esses documentos nos irão permitir
uma leitura social do espaço urbano, ao mesmo tempo que podemos
detectar a alteração do estatuto conferido a esse espaço.
Concretizando, iremos abordar a proposta formulada pelos procuradores do povo de Lisboa - representantes da identidade étnico-religiosa maioritária - no sentido de alterar a localização das judiarias, ou seja, dos lugares de morada que as leis canónicas e civis
impunham à minoria judaica.
Este estudo foi, pois, suscitado por uma queixa formulada pelos
procuradores do povo de Lisboa às cortes de 1439, as primeiras
reunidas após a morte de D. Duarte. Deste capítulo especial da
cidade possuímos dois registos. Um, quase contemporâneo, num
Livro de Chancelaria de D. Afonso V; outro, em cópia na Leitura
Nova1, no qual, como veremos, foi suprimido parte do texto.
Comecemos por referir que os procuradores da cidade solicitaram
ao regente D. Pedro que se desse cumprimento a uma ordenação
de D. Duarte no sentido de deslocar a morada dos judeus para a
zona que vai de Valverde até à Trindade2. Tudo isto porque tinham
reconhecido que as judiarias ocupavam o centro e os melhores
locais da cidade. Todavia, a "santa ordenança" do rei não chegara a
ser executada. O regente irá responder que têm - ele e o concelho
de Lisboa - trabalhos e despesas mais urgentes do que construir
uma nova judiaria.
Numa primeira abordagem factual, convém avaliar qual o local de
instalação das judiarias referido nas cortes para, num segundo
tempo, verificar a proposta de mudança.
Figura 1 As judiarias de Lisboa
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Margarida Garcez Ventura
Em meados do séc. XV existiam em Lisboa três judiarias: a judiaria
grande ou velha, a judiaria nova, das taracenas ou da moeda e a da
Alfama 3.
A judiaria grande ou velha estendia-se pelas actuais freguesias da
Madalena, São Julião e São Nicolau. Para além da sinagoga, que existia também nas outras judiarias, era aí que se localizava o hospital
dos homens, o hospital da comuna, o hospital dos pobres, vários balneários, as confrarias, o estudo (dito de Palaçano), as estalagens, a
carniçaria; aí se situavam, distribuídos pelas ruas que trazem o seu
nome, mercadores, ferreiros, tintureiros, sirguieros, gibiteiros. Em
suma: sendo esta a principal judiaria da cidade, aí se encontravam
os edifícios de interesse público para a comunidade judaica, assim
como as oficinas e tendas dos diversos mesteres.
A judiaria nova, criada por D. Dinis, situava-se a ocidente da igreja
de São Julião e da Rua Nova e a sul da Rua de Morraz, sendo composta por um só arruamento. A muralha dionisina limitava-a a sul,
e incluía duas torres das taracenas. Também nela existia uma sinagoga e um balneário 4.
Quanto à judiaria pequena, dita da Alfama, datava do reinado de
D. Pedro I e tinha em meados do século XV uma casa de oração.
Embora não haja unanimidade quanto à extensão da área ocupada
pelas três judiarias, podemos situá-la entre um hectare e meio e
dois hectares, isto é, cerca de dois por cento da área total da
cidade 5. Embora esteja por fazer o cômputo da população judaica de
Lisboa sabemos que, tal como no resto do reino, não pára de
crescer durante toda a Idade Média, nomeadamente na sequência
das perseguições efectuadas nos outros reinos peninsulares, em
contraste com a política de aceitação dos reis portugueses 6.
Antes de prosseguirmos o nosso trabalho, e porque nem todos os
presentes são medievalistas, será conveniente esclarecer o porquê
das judiarias ou bairros judaicos, porquê se institui uma discontinuidade na urbe medieval e que quebra social ela manifesta.
Começamos também por lembrar que, na ordem dos instrumentos
para análise histórica, se tem sempre de realizar o cotejo entre a
norma e a realidade: podem opor-se ou coincidir, ou tomar outras variadas formas de intercepção. Por isso, quando expusermos a norma
- e aqui trata-se de leis canónicas e leis civis - teremos sempre em
conta a diversidade do seu reflexo no terreno variável que é a vida quotidiana.
Comecemos, pois, pela norma, e, ainda antes, pela sua justificação.
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Contributo para a uma leitura social do espaço na Lisboa
quatrocentista: o debate sobre a localização das judiarias
Pesava sobre os judeus a culpa pela condenação à morte de Deus
Filho. É esse o fundamento para a sua rejeição e, combinado com
outros factores - entre os quais os de ordem económico-social e de
ordem psicológica - se tornava potencialmente gerador de ódio e de
perseguição. Em Portugal, até à sua expulsão por D. Manuel em
1497, foram pouco frequentes os ataques às suas pessoas e bens.
Mas, como em toda a cristandade, foram promulgadas leis que, de
acordo com o direito canónico, estabeleciam as regras da separação entre as duas comunidades e a proibição de qualquer autoridade dos judeus sobre os cristãos.
A criação de judiarias responde à primeira das exigências enunciadas, isto é, ao apartamento. De facto, um bairro separado do
resto do tecido urbano, com acesso condicionado por portas que se
fecham no final do dia (essencial à não convivência) foi estabelecido
no concílio de Latrão de 1214. Em Portugal, a separação generalizada a todo o reino só surge no reinado de D. Pedro, que responde
com uma ordenação nesse sentido às queixas dos procuradores do
povo nas cortes de Elvas de 1361 7. D. João I irá actualizar esta lei
em 1400, conferindo aos juizes e justiças a obrigação de coagir os
judeus a voltar a viver nas judiarias sob pena de prisão e confisco
de bens, conjugando esta medida com a obrigação de ampliar as
judiarias para que todos os judeus caibam nelas; sempre que haja
mais de dez judeus, deverão estabelecer bairros judaicos nos locais
"que forem mais convinhavees" 8.
Este assunto é, aliás, um tema recorrente 9 quer na legislação
régia, quer nas contínuas reafirmações da proibição de morada fora
da judiaria, ou seja, defesa de os cristãos aforarem casas ao
judeus.
A legislação canónica e régia não impedia, não só inevitável convívio
entre judeus e cristãos, mas também a morada destes fora das
judiarias, como fica provado pelas queixas ou medidas reguladores
que vemos consignadas em actas de vereações de concelhos, em
sínodos diocesanos, em cartas de visitação. Isto para não mencionar as inúmeras excepções consentidas por mercê da autoridade
régias.
Abstraindo estas flutuações entre a norma e a realidade, importa
lembrar ser constante a preocupação por alargar as judiarias
pequenas e por assegurar que ocupem lugares "convenientes".
Nas já citadas cortes de 1433, como nas de 1439, não está em
causa transferir os judeus para lugares não conformes à sua "honra"
que é reconhecida e defendida pelo poder régio, pelos papas e pelos
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concílios. Trata-se, sim, de colocar as judiarias num local "pior" do que
aquele em que vivem os cristãos, ou seja, trata-se de manifestar no
espaço ocupado pelas respectivas moradas a hierarquia que as leis
canónicas e civis estabeleciam entre cristãos e judeus. Ora, no dizer
dos procuradores do povo às cortes de 1433, em algumas cidades e
vilas do reino havia judiarias nos melhores locais, enquanto que os
cristãos viviam nos piores. A queixa dos povos termina com duas propostas. A primeira é acabar com a mistura de moradas entre judeus
e cristãos; a segunda, é a de assinalar aos judeus locais em que, de
acordo com o que eles próprios acharem ser seu proveito, possam
viver "honradamente."
Tendo em conta que se tratava das primeiras cortes reunidas por
D. Duarte enquanto rei, e que os próprios contemporâneos tinham
a noção de que o rumo do novo reinado poderia ser aí testado, é
provável que os procuradores do povo, embora dispusessem já de
legislação anterior adequada para resolver este assunto,
quisessem envolver o novo rei em medidas mais explícitas. Contudo,
a resposta de D. Duarte não traz novidades imediatas, pois remete
para os concelhos a responsabilidade de, eventualmente, tomar
medidas adequadas.
Esta proposta consubstancia, aliás, uma constante no comportamento dos reis portugueses medievais: cumprida a regra do apartamento entre cristãos e judeus e cumprida a regra da não proeminência destes sobre os cristãos, poderá a comunidade judaica
viver em paz, desde que não blasfeme contra Deus, a Virgem os
Santos ou a Igreja. Esta atitude régia de meados de quatrocentos
está, aliás, de acordo com a perspectiva de alguns papas (nomeadamente de Martinho V) e de certas correntes presentes no concílio
de Constança: os judeus deverão ser protegidos em terra cristã,
desde que não usufruam de proeminência social sobre os cristãos
e não ofendam Deus e a Igreja.
Sendo esta a posição aceite, quer pelo direito canónico, quer pela
lei do reino, é certo que encontramos posições extremadas a nível
popular. Assim, por exemplo, nas constituições sinodais do reino
abundam admoestações contra os fiéis que alugam casas a judeus
ou com eles convivem mais do o estritamente necessário por contactos profissionais. Mas, a par desta relação aberta, é no povo
que surgem os movimentos anti-judaicos, por vezes sustidos a
tempo pelos oficiais régios ou (já consumada a perseguição) fortemente castigados por ordem do rei.
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Porém, seja qual for a atitude quotidiana para com os judeus, a
norma permanece bem clara, e é a tentativa de adequar a realidade
à norma que nos surge nos capítulos de cortes que referimos.
Assim sendo, é inadmissível - citamos o texto das cortes de 1433
- que haja no reino judiarias nas melhores zonas das cidade e vilas
e é inadmissível que os judeus escarneçam dos cristãos por tal
motivo; por outro lado, é inadmissível que cristãos e judeus vivam
misturados, pois que tal é ocasião de pecado. A solução será obrigar os judeus a viver juntos, muito embora em locais que sejam do
seu agrado e onde o possam fazer "honradamente". A resposta de
D. Duarte, bastante ambígua, não instala nenhuma alteração na
legislação existente, antes encomenda aos concelhos a execução
con-creta da transferência das judiarias, de acordo com a proposta dos próprios judeus.
Se o alargamento das judiarias é um fenómeno conhecido e estudado, não temos notícia qualquer caso de transferência do bairro
judaico em qualquer ponto do reino. No que diz respeito a Lisboa,
vamos prosseguir com o que nos diz o já referido capítulo especial
desta cidade.
A exposição do caso perante D. Pedro abre com um discurso justificativo da ordem de D. Duarte: quem poderá dizer que esse rei, de
louvada memória, não pugnara sempre pelo bem e honra da cidade
de Lisboa, corrigindo zelosamente tudo quanto lhe alterasse o "bom
regimento"?. É nessa linha de conduta que os procuradores inserem
uma ordem - uma "santa ordenança" - contida numa carta que
exibem perante o regente D. Pedro. Ao contrário do que é habitual
nos registos de Chancelaria, a carta não é transcrita na íntegra,
faltando-lhe o protocolo e o escatocolo. Nessa carta, segundo os
procuradores, D. Pedro poderá ler que D. Duarte mandara reunir
todos os judeus moradores nas judiarias para que fossem mudados
para um "lugar honde chamam Valverde, assy como se diz ataa
Trindade". Não sabemos a que oficiais foi cometido este encargo,
nem a data da carta. A fazer fé nos procuradores, a carta teria
bem explícito o modo de "como se aviam de fazer as casas pera
morarem e per que guisa". Por certo que sim, tendo em conta o procedimento habitual de D. Duarte em questões administrativas: de
grande minúncia e clareza.
A ordenação de D. Duarte nunca fora cumprida. O registo contemporâneo, ou seja, o do Livro 20 da Chancelaria de D. Afonso V, aponta-nos os culpados dessa omissão: alguns oficiais corruptos não
teriam feito cumprir a ordem régia, tirando disso proveito. No re-
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gisto da Leitura Nova foi suprimida esta grave acusação aos oficiais encarregues da execução de ordem de D. Duarte.
Uma vez que, no capítulo das cortes que temos vindo a referir, o
protocolo da carta de D. Duarte não foi transcrito, não sabemos
quais os oficiais acusados: se régios, se concelhios, se ambos...
Quanto à data da ordenação, podemos supor que seja imediatamente anterior a toda a questão de Tânger, de tal forma que
D. Duarte, após o desastre, não tivera ensejo de cuidar pela sua
efectiva execução. Por outro lado, poderá ser significativo não termos encontrado rasto dessa carta entre os registos de cartas
régias e documentação concelhia conservada no espólio existente
no Arquivo Histórico Municipal de Lisboa 10.
O texto das cortes indicia que a carta eduardina estivera patente
aos olhos do regente. É o conteúdo dela que os procuradores
retomam, ou seja, tratar-se-ia, não de formular uma nova petição,
mas somente de solicitar a execução de uma ordem do rei anterior,
jamais cumprida. Nessa carta poder-se-ia ler que a localização das
judiarias no melhor local da cidade acarretava grande dano aos
moradores dela, pelo que a transferência dos judeus seria "grande
serviço de Deus e de Sua Madre Santa Maria e prol comunal de
todo concelho e dos homeens boons da dita cidade". Tais justificações são assim resumidas pelos procuradores de 1439: a localização dos bairros judaicos "nom era serviço de Deus nem seu nem
honrra da dita cidade".
Os procuradores têm, contudo, o cuidado de pedir que tudo se faça
sem dano e perda para os judeus.
Concluindo a sua proposta, os procuradores expõem o que dizem
ser os dois grandes proveitos que, para a cidade, resultariam da
mudança. Em primeiro lugar, Lisboa ficaria "mais fermosa e mjlhor
pobrada". O segundo proveito, seria a utilização das casas das judiarias para estalagens e aposentadoria dos senhores fidalgos
quando viessem a Lisboa.
O regente indefere o pedido por razões puramente económicas.
Tenhamos em conta, porém, o modo como o faz: envolvendo também
o concelho no encargo financeiro da construção de uma nova judiaria, declara que havia muitos encargos urgentes requerendo
grandes gastos de dinheiro. De facto, para além das negociações
para a libertação do infante D. Fernando (algumas das quais movimentando grandes somas de dinheiro), haveria de custear a defesa
do reino contra uma provável invasão de Castela, tal como referem
os capítulos das cortes 1441. Assim, e embora tal não tenha sido
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dito, ficaria em aberto a hipótese da transferência quando houvesse
disponibilidade económica para tal. Por falta de dinheiro ou por falta
de vontade, o certo é que o édito de expulsão de D. Manuel irá
encontar as judiarias onde sempre as conhecemos 11.
Talvez já por meados do século XIII existiria já em Lisboa a judiaria
"velha", que toma esta adjectivação quando D. Dinis manda criar a
"nova". Desde a época dessa primeira até à última a ser criada (a de
Alfama, por D. Pedro I) o movimento de expansão faz-se em direcção
à Rua Nova, aberta em tempos de D. Afonso III e prolongada, para
ocidente, por D. Dinis.
Os núcleos nevrálgicos de Lisboa no primeiro século após a reconquista são, primeiro, a alçáçova e o castelo e logo o largo da Sé:
nesse espaço se centrava a capacidade de defesa da cidade, a burocracia nascente nos scriptoria dos tabeliães e as reuniões dos
homens bons da cidade.
Com a construção de uma nova frente de muralhas, unindo as colinas de São Jorge com a de São Francisco, D. Dinis permite a reformulação da zona da actual Baixa para as funções económicas ligadas à construção de embarcações e ao tráfico marítimo. Também
é neste reinado que se abre uma nova rua do lado de fora das muralhas - a Rua dos Ferreiros e se aumenta o Largo dos Açougues,
situado no topo oriental da Rua Nova a qual, como já dissemos, é
prolongada para ocidente até ao sopé da colina de São Francisco,
construindo-se um novo cais e edifícios portuários e tercenas. É aí
que D. João I vai implantar a Casa da Moeda. A judiaria nova de
D. Dinis está, assim, ligada às actividades comerciais e portuárias,
não só no plano do trato, mas também no da contrução naval e da
fundição 13. Nos finais do século XV Lisboa terá, pois, não dois mas
quatro ou cinco polos aglutinadores: a alcáçova, a Sé, a Ribeira, o
Rossio e a Rua Nova 14
Quer isto dizer que as judiarias desde sempre se situaram paredes
meias com a actividade administrativa, mercantil e portuária,
podendo dizer-se que as acompanhavam, que creciam com elas e no
mesmo espaço urbano.
De fora, livres de morada de judeus (pelo menos legalmente) ficavam
os espaços defensivo e religioso mais fortes, ou seja, as zonas do
castelo e da Sé. E não seriam esses os "melhores lugares"? De
facto, não o são. Na verdade, quando, nos meados do século XV, o
incómodo dos povos pela localização das judiarias chega às cortes
(comprovadamente às de 1433), os melhores locais deixam de coincidir com as estruras defensivas e episcopais: num movimento que
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vinha desde D. Dinis, o prestígio destas vai-se apagando e a centralidade urbana será já marcadamente comercial e financeira.
Se as judiarias, a partir de meados do século XV, não podem ocupar os locais que "sempre ocuparam" porque eram os "melhores"
locais, ipodemos tirar disto duas lições:
1. A primeira, é que o espaço urbano é um espaço que, no
entender os homens medievais, deverá reflectir a hirerarquia
social. Os judeus, gente que, pelas leis vigentes, teria de estar
em posição de inferioridade perante os cristãos, não poderiam
ocupar os espaços urbanos "melhores";
2. A segunda lição, é que o prestígio relativo entre espaços
urbanos evolui ao ritmo da alteração dos critérios conducentes ao prestígio.Nos alvores da modernidade, já não era a
guerra ou a oração que detinham a primazia na mentalidade e
no quotidiano do reino nem das cidades, mas sim as actividades ligadas à finança e ao comércio.
Na Lisboa dos finais da Idade Média a identidade é plural porque se
relacionam diversos grupos supostamente antitéticos. Mas também a sociabilidade total é aparente, pois não é o povo que se
insurge contra os judeus morarem juntos com os cristãos ou ocuparem as melhores zonas da cidade?. Talvez que a identidade de
Lisboa esteja na pluralidade e na resolução do convívio com a alteridade.
Documento 1
Doc. 1 - Cortes de Leiria-Santarém de 1433, capítulos gerais
do povo, Arquivo Municipal de Ponte de Lima, Pergaminho nº
19, Santarém, 2 de Agosto de 1434
(52) Em alguns logares de vossos regnos ha Judiarias em mjlhores logares dellas E os christaaons viuem no pyor. E ainda
o pyor que he que por viverem em tall logar os christaaons
rreçebe, muitas vezes alguuns erros e escarrenhos destes
Judeus. E porque em esses logares ha alguuns logares mais
conuinhavees a elles ueereem (sic) e de asi sse teer seram
alguuns aazos de pecados, seja vossa merçee que dees logar
a esses lugares que assynem a esses judeus aquelles logares
para viverem hu sentirem por seus proveitos hu viverem honradamente e nom immistiços entre os christaaons.
Item, diz ElRey que nom mandara em esto fazer mudança
quanto aos Judeus que ataa ora som ffectas, mais sse sse
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daqui em diante fezerem alguas que lhe praz de as elles hordenarem que sejam nos logares hu entenderem por milhor.
Documento 2
Doc. 2 - Cortes de Lisboa de 1439, capítulos especiais de
Lisboa, Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo,
Chancelaria de D. Afonso V, Liv. 20, fl. 89
Item, quem podera dizer outra cousa do muy nobre Rey vosso
padre de muy louvada memoria salvo que sempre teve a esta
cidade como ja disemos huum muyto santo desejo d'acreçentar em todo bem e honrra e fazer muytas mercees e honde
[...]sentia que desfalecia alguma cousa de boo<m> regimento
provja-lhe logo. Mais (... ?).. de seos (... ?) boons oficjaaes corruptos ser per desvayradas guisas mostrando-lhes seer muito
seu proveyto o contrairo do que hordenava ho torvavam \da/
eixecuçom. E vendo elle como as judarias desta cidade
estavam no mjlhor lugar della, a qual cousa nom era serviço de
Deus nem seu nem honrra da dita cidade, mandou que fossem
tirados e que fossem morar a outro lugar dentro em ella.
E hordenando como se fezesse per sua carta que a vossa mercee pode beer cujo em o fundamento diz assy "que nos veendo
e consijrando como as judarias que ha na muy nobre e muy leal
cidade de Lixboa estam hedificadas na metade e no mjlhor
lugar da dita cidade, e que porem se recrece grande dano aos
moradores della, e porque outrossy seria grande serviço de
Deus e de Sua Madre Santa Maria e prol comunal de todo concelho e dos homeens boons da dita cidade e seria mais nobre
a cidade seerem moradas pellos cristãaos que pellos judeos,
nos de nosso proprio movjmento e certa ciençia e poder absoluto que temos mandamos-vos que os judeos dessas judarias
sejam removidos e mudados della e que vãao morar dentro em
esta cidade ao lugar honde chamam Valverde, assy como se diz
ataa Trindade et cetera". E poendo compridamente na dita
carta como se aviam de fazer as casas pera morarem e per
que guisa. Porem vos pidimos, senhor, por mercee que mandees dar a eixecuçom aquella santa hordenança feita pello Rey
de santa memoria vosso padre, a qual teemos muyto aazado
de logo fazer, sem dano e perda dos judeos, do que vos render
Vila Nova. E desto, senhor, assym comprides se seguem doos
grandes proveytos, o primeyro a cidade sera muyto mais fermosa e mjlhor pobrada, e as judarias ficarom pera estaos e
posentadorias dos senhores fidalgos que aa dita cidade beem.
Parece-nos que nos e vos temos agora tantas ocupaçoões en
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(sic) que dinheiros som conpridoiros de despender, que he bem
escusado agora de quererdes tomar cargo de fazerdes [co]
judaria nova.
Documento 3
Doc. 3 - Cortes de Lisboa de 1439, capítulos especiais de
Lisboa, Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo,
Estremadura, Liv. 20, fl. 89-89v.
Item, quem podera dizer outra cousa do (fl. 89v) muy nobre Rey
vosso padre da muy louvada memoria, salvo que sempre teve a
esta çidade como ja dissemos huum muyto santo deseio
d'acreçemtar em todo bem e homrra e lhe fazer muytas mercees.
E homde semtia que desfalleçia alguuma cousa de boom regimento prouvia-lhe logo. E veemdo elle como as judarias desta cidade
estavam no milhor lugar della, a quall cousa nom era serviço de
Deus nem seu nem homrra da dita cidade, mandou que fossem
tirados e fossem morar a outro lugar demtro em ella. E hordenamdo como sse fezesse per sua carta que a vossa mercee pode
veer cujo fundamento diz assy. "Que nos veemdo e comsijramdo
como as judarias que ha na muy nobre e muy leall çidade de Lixboa
estam hedificadas na meetade e no milhor lugar da dita çidade, e
que porem se recreçe gramde dano aos moradores dela; e porque
outrossy seria gramde serviço de Deus e de Sua Madre Samta
Maria e prol comunal de todo ho comçelho e dos homeens boons
da dita cidade e seria mais nobre a çidade seerem moradas pollos
cristãaos que pollos judeus, nos, de nosso proprio movimento e
certa çiemçia e poder absoluto que teemos, mamdamos-vos que
os judeus dessas judarias sejam removidos e mudados della, e que
vãao morar demtro em essa çidade ao lugar homde chamam
Vallverde, assy como se diz ataa Trimdade et cetera", poemdo
compridamente na dita carta como se aviam de fazer as casas
pera morarem e per que guisa. Porem vos pedimos, senhor, por
merçee, que mandees dar a execuçom aquela samta hordenamça
fecta polo Rey de samta memoria vosso padre, a quall teemos
muyto aazado de logo fazer, sem dano e perda dos judeus, do que
vos remder Villa Nova. E desto senhor assy comprirdes se
seguem dous gramdes proveytos, o primeyro a çidade sera muyto
mais fremosa e milhor pobrada, e as judarias ficarom pera estaos
e pousamtadorias dos se-nhores fidalgos que aa dita çidade vem.
Pareçe-nos que nos e vos teemos agora tamtas ocupaçõoes em
que dinheyros som compridoyros de despemder que he bem escusado agora de quererdes tomar cargo de fazerdes judaria nova.
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Notas
1
Chanc. D. Af. V, Liv. 20, fl. 89 e Estr., Liv. 20, fl. 89-89v.
Helder Carita, Lisboa Manuelina e a formação de modelos urbanísticos da
época moderna (1495-1521), Lisboa, Livros Horizonte, 1999, p. 24.
2
Maria José Pimenta Ferro Tavares, Os judeus em Portugal no século XV;
Lisboa, INIC,1984, pp. 46s.
3
4
Helder Carita, o. c., p. 31.
Maria José Pimenta Ferro Tavares indica 1,6 ha para a judiaria grande;
A. H. de Oliveira Marques indica 1,5 ha para a totalidade das judiarias
(História de Portugal, ed. Ágora, Lisboa, Vol. I, 1972, p. 237.
5
Nomeadamente a perseguição desencadeada pela pregação de S. Vicente
Ferrer (J. Mendes dos Remédios, Os judeus em Portugal, Coimbra, 1895,
p. 59). Cfr. para os finais da Idade Média Margarida Garcez Ventura, Igreja
e poder no século XV em Portugal. Dinastia de Avis e Liberdades
Eclesiásticas (1385-1450), Lisboa, Edições Colibri, 1997, pp. 471s
6
Artº 40º (Cortes Portuguesas - Reinado de D. Pedro I (1357-1367),
Lisboa, INIC, 1986, p. 52.
7
Ordenações Afonsinas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, Liv. II,
Tit. 76.
8
O apartamento de morada na judiaria é completado pela obrigação de os
judeus não circularem foram dela após o fecho das respectivas portas.
Para este tema em geral ver o capítulo relativo aos judeus em Margarida
Garcez Ventura, Igreja e poder...
9
Agradecemos ao nosso ex-aluno, o Mestre Miguel Martins, o auxílio
prestado nessa busca.
10
Cfr. Maria José Ferro Tavares, "O impacto do Édito da expulsão dos
judeus em Lisboa", in Actas das Sessões - I Colóquio Temático "O Município
de Lisboa e a Dinâmica Urbana (Séculos XVI-XIX), Lisboa, Câmara
Municipal, 1997, pp. 253-265.
11
12
Maria José Pimenta Ferro Tavares, Os judeus...,p. 46.
13
Helder Carita, Lisboa..., p. 32.
A. H. De Oliveira Marques, "Lisboa Medieval: uma visão de conjunto",in
Novos Ensaios de História Medieval Portuguesa; Lisboa, Editorial
Presença, 1988
14
15
Transcrição de Armindo de Sousa, As cortes de Leiria-Santarém de
1433, Cap. gerais do povo, n.º 52, p. 122. Nos outros docs. a transcrição
é nossa, com critérios que julgamos adequados ao público destas Actas.
Doutoramento em Universidade de Lisboa
Este trabalho foi entretanto publicado na Sep. da Revista Portuguesa de História,
tomo XXXVI (2002-2003), Homenagem aos Professores Luís Ferrand de Almeida e
António de Oliveira, Vol. I, pp. 229-240
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Património e Progresso ou Património versus Progresso?
Margarida Ruas dos Santos, Raul Fontes Vital
RESUMO
A presente comunicação visa contribuir para o debate acerca do
conflito existente entre o património histórico edificado e o
Progresso.
Destruir para edificar novas e diferentes estruturas em nome do
Progresso, ou sacrificar esse mesmo Progresso em nome da salvaguarda da memória do passado?
Quais os limites entre estas duas atitudes, quais as possibilidades
de conciliação dos vários interesses em jogo, que instrumentos
reguladores dos conflitos em presença, que mais-valias retirar das
diferentes possíveis soluções encontradas?
Face à dinâmica do desenvolvimento urbano, com a implantação de
novas estruturas e novos serviços, e com a construção de novas
edificações, que fazer perante o Património histórico edificado existente constitui uma questão a que nem sempre é fácil dar resposta satisfatória para as várias entidades envolvidas na questão.
O contributo que esta comunicação procura dar para o debate
baseia-se na acção que a EPAL e o Museu da Água vêm desenvolvendo ao longo dos tempos na defesa e valorização do seu
património histórico em geral, memória da Cidade, mas também do
País e do Mundo, e em particular do Aqueduto das Águas Livres,
com os seus diversos aquedutos subsidiários e de distribuição.
*Universidade de Lisboa
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(Re)Construção de um castelo - A Freguesia de Santa Cruz da Alcáçova
de Lisboa
M. Mafalda Enes Dias e Rui Manuel da Silva Matos
Em Maurília, o viajante é convidado a visitar a cidade e ao
mesmo tempo a observar certos velhos postais ilustrados que
a representam como era dantes: a mesma idêntica praça com
RESUMO
As muralhas são símbolos de poder, de características simultaneamente pragmáticas e sim-
uma galinha no lugar da estação dos autocarros, o coreto da
bólicas. O objecto aqui estudado é um espaço
música no lugar do viaduto, duas meninas de sombrinha bran-
único, rico em memórias, testemunhando
ca no lugar da fábrica de explosivos. Para não desiludir os habi-
utopias passadas e identidades colectivas, num
tantes o viajante tem de gabar a cidade nos postais e preferila à presente, com o cuidado porém de conter o seu desgosto
pelas mudanças dentro de regras bem precisas: reconhecendo que a magnificência e prosperidade da Maurília transforma-
conjunto de memória e utopia com um perfil de
uma população que resiste entre muralhas.
Depois do cerco cristão e depois de ter sido
baptizado com o nome do santo padroeiro dos
soldados, conhece os últimos tempos de pros-
da em metrópole, se comparadas com a velha Maurília provin-
peridade no início da expansão marítima de qua-
ciana, não compensam uma certa graça perdida, a qual contu-
trocentos, quando o castelo deixou de estar na
do só poderá ser gozada agora nos velhos postais, enquanto
vanguarda do sistema de defesa de Lisboa e de
outrora, com a Maurília provinciana debaixo dos olhos, de gracioso não se via mesmo nada, e igualmente não se veria hoje
acolher a sede do poder. De local nobre passou
a freguesia popular, recebendo soldados presos
e moradores de fracos recursos distribuídos
se Maurília houvesse permanecido tal e qual, e que no entan-
por duas zonas claramente distintas: a civil e a
to a metrópole tem mais esta atracção, que através do que
militar.
se tornou se pode repensar com nostalgia no que era.
Abalado pela falta de cuidados, por catástrofes
E nem pensem em dizer-lhes que por vezes se sucedem
cidades diferentes sobre o mesmo chão e sob o mesmo nome,
naturais e por construções menos cuidadas, a
grande operação de restauro e de reconstituição (ou de recriação), a que foi sujeito nos finais
nascem e morrem sem se terem conhecido, incomunicáveis
dos anos 30, transformam-no em símbolo da
entre si. Às vezes até os nomes dos habitantes permanecem
nacionalidade e da identidade portuguesas,
iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os delineamentos
dos rostos; mas os deuses que habitam debaixo dos nomes e
sobre os locais partiram sem dizer nada a ninguém e no seu
lugar aninharam-se deuses estranhos. É inútil interrogarmonos se estes são melhores ou piores que os antigos, dado que
reassumindo o lugar que hoje tem no imaginário
lisboeta e na estrutura da oferta turística.
O Projecto Integrado do Castelo, de que esta
comunicação
pretende
também
ser
uma
amostragem, surge inserido no trabalho de
Reabilitação Urbana dos Bairros Históricos de
não existe entre eles nenhuma relação, tal como os velhos
Lisboa, pretendendo-se com a sua implemen-
postais não representam Maurília como era, mas sim outra
tação a melhoria das condições de habitabili-
cidade que por acaso se chamava Maurília como esta.
(Italo CALVINO, As cidades invisíveis, Lisboa, 2.ª ed., Editorial
Teorema, 1996, pp. 33-34).
dade, e é, depois de 1940 a primeira grande
intervenção urbana em toda a freguesia, mas,
ao contrário de 1940, o projecto pretende
acabar com o fosso existente entre a parte
urbana, habitada e a apelidada "zona monumentalizada".
Introdução
As muralhas são símbolos de poder, de características simultaneamente pragmáticas e simbólicas e é sobre esta dupla perspectiva
Pretende-se, simultaneamente, divulgar o papel
do historiador nas operações da Reabilitação
Urbana.
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(Re)Construção de um castelo - A Freguesia de Santa Cruz da Alcáçova de Lisboa
da função prática e do simbolismo que deve ser encarada toda a
história da evolução urbana do Castelo de S. Jorge de Lisboa. Estas
muralhas envolvem o objecto aqui estudado, que é um espaço único,
rico em memórias, testemunhando utopias passadas e identidades
colectivas, num conjunto de memória e utopia em que se engloba o
perfil de uma população que resiste entre muralhas.
As fortalezas podem ser estudadas de muitas e diversas perspectivas, desde o ponto de vista económico, militar e político, combinando essas análises com os ritmos de evolução cronológica. Aqui
pretende-se abordar de relance apenas alguns destes aspectos,
que até agora não foram muito desenvolvidos por parte dos estudos de castelologia. Trata-se de estudar a função simbólica destes
edifícios e sua relação com a história social dos seus habitantes. O
castelo cumpre também uma função ideológico-simbólica no seio da
sociedade, quer esta seja medieval ou contemporânea, como arquitectura consagrada à violência que se converte também numa
arquitectura de poder e de imaginário, em que a ideologia castral
sempre esteve impregnada e deu predominância aos aspectos
nacionais e de história medieval.
Os castelos são um símbolo reconhecido de soberania nacional, não
se cingindo ou circunscrevendo a sua estrutura àquilo a que vulgarmente se chama "castelo" - e que corresponde à alcáçova ou
castelejo (ou seja, o centro nevrálgico do assentamento militar) mas alarga-se para além deste, ao incluir as cercas de muralhas
que definem ou definiam, em tempos pretéritos, as próprias
povoações. Além do mais, o seu papel evocativo faz de cada castelo uma peça única, capacitada como poucas para dinamizar a interacção cultural, educativa e social.
Os castelos, na sua condição patrimonial, são, na maior parte, resíduos, por haverem perdido integralmente a sua antiga função. Pode
mesmo falar-se de obras "falhadas", porque em alguns casos não
desempenharam função defensiva ou militar, nem foram objecto de
qualquer reconversão. Arruinaram-se pura e simplesmente e
perderam-se. Tratam-se assim de tipologias patrimoniais de difícil
tratamento, tratamento este que se pretende agora diverso
daquele que foi imprimido pela campanha de restauros empreendida
na década de 40 que, em rigor, recuperou apenas o "esqueleto" do
Castelo.
O Castelo de S. Jorge tem uma longa e diversificada história, que
neste momento é possível fazer remontar à Idade do Ferro, com
momentos de apogeu e declínio, mas depois do cerco cristão de
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1147 e de ter abrigado os primeiros tempos da monarquia portu-
calense, conhece os últimos tempos de prosperidade no início da
expansão marítima de Quatrocentos, quando deixou de estar na
vanguarda do sistema de defesa de Lisboa e de acolher a sede do
poder. De local nobre passou a freguesia popular, recebendo soldados, presos e moradores de fracos recursos, distribuídos por duas
zonas claramente distintas: a civil e a militar. A sua inexorável
decadência é acentuada pelo Terramoto de 1755 e pela sobreocupação de todo o agregado habitacional pela migração do mundo rural
para a Lisboa para-industrial, numa primeira fase destinada principalmente aos seus bairros históricos. Esta decadência só vai ser
refreada na sua parte monumental no final dos anos 30 e início dos
anos 40 do século XX.
A freguesia do Castelo corresponde à antiga freguesia militar,
muralhada, que engloba o Castelo Velho ou Castelejo, o que resta do
antigo Paço da Alcáçova e uma área habitacional. O tecido urbano
existente é pré-pombalino na sua definição orgânica embora seja
ocupado por edifícios em grande parte pombalinos, dado que o terramoto de 1755 atingiu particularmente esta área. A área monumental foi objecto de obras em 1938-1940 que levaram à destruição dos
edifícios dos quartéis e à recriação de um "castelo medieval", o que
não invalida que a sua área de implantação não se aproximasse
muito dos vestígios pré-existentes. Nessa época foi posta a
descoberto a base de um muro da provável barbacã, de construção
medieval e foram dispostos de forma cenográfica os elementos
escultóricos encontrados nos aterros, tal como se encontram hoje.
Abalado pela falta de cuidados, por catástrofes naturais e por construções menos cuidadas, a grande operação de restauro e de
reconstituição (ou de recriação) a que foi sujeito pelo Estado Novo
nos finais dos anos 30, por ocasião do "duplo centenário" da fundação e da restauração da nacionalidade e da "Exposição do Mundo
Português" de 1940, transformam-no em símbolo da nacionalidade
e da identidade portuguesas, reassumindo o lugar que hoje tem no
imaginário lisboeta e na estrutura da oferta turística. A operação
dos anos 40 reedificou e transformou o Castelo de S. Jorge, numa
opção estética que se ligava claramente ao enunciado político: dar
a Lisboa um rosto de "capital do Império".
Entrando pela porta de S. Jorge, actualmente a única entrada na
freguesia muralhada, circulando pela Rua do Recolhimento, à direita, ou pela Rua de Santa Cruz do Castelo, em frente, surgem os
becos, as ruas ou os pátios, e finalmente o castelo propriamente
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dito (o castelejo, a Torre de Ulisses, os arcos junto à Casa do Leão,
a Praça de Armas ou a Praça Nova).
Depois de 1940, a intervenção agora em curso constitui a primeira
grande operação urbana em toda a freguesia, mas, ao contrário de
1940, o projecto pretende acabar com o fosso existente entre a
parte urbana, habitada e a zona monumental/militar, a apelidada
"zona monumentalizada" - muralhas e espaços envolventes -, que
integra vestígios de várias épocas: a muçulmana, a medieval e a do
Estado Novo, esta última, que sobreveio a todas as outras, derrubou todas as edificações militares instaladas entre os séculos
XVIII e XIX, num exagero bélico muito ao gosto da época. Este é um
regresso às origens, ao tempo em que Lisboa ainda se chamava
Lisbona e na colina se albergava a alcáçova de uma cidade de comerciantes, mercadores e artesãos dos mais variados lugares.
Este é um pequeno contributo para a história de edifícios como o
castelejo, em que dificilmente se conseguirá perceber a diferença
entre as muralhas e ameias de 1940 e aquelas que são de origem
árabe, medieval ou mais recentes; o "caminho de ronda", que circundava todo o perímetro urbano do Castelo e que praticamente tinha
"desaparecido"; a Sala da Cisterna, em cujo interior se descobre
uma parte do antigo Paço da Alcáçova e dos cento e dez metros
acima do nível do mar da Torre de Ulisses (a mais imponente do conjunto), sendo provável que aí tenha estado instalado o Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, por ter ali funcionado o tombo ou arquivo do reino, cujo primeiro guarda-mor terá sido Fernão Lopes e onde
está instalada, actualmente, uma camâra escura/periscópio. Daqui
se distingue a envolvente de todo este conjunto, onde se destacam
objectos arquitectónicos mais ou menos preciosos como a Igreja de
Santa Cruz do Castelo, único elemento de arquitectura religiosa que
a freguesia possui hoje; o Pátio das Cozinhas (espaço que terá sido
a zona das cozinhas do Paço da Alcáçova) com a sua casa apalaçada do terceiro quartel do século XVIII e respectiva cisterna, considerada uma das peças de arquitectura civil mais representativas da
freguesia; a Casa do Governador, que serviu de abrigo durante trinta anos à Legião Portuguesa e o Pátio da Pascácia, que inclui uma
casa apalaçada com elementos dos séculos XVII, XVIII e XIX, uma
antiga fábrica de pão e a sede do Grupo Excursionista do Castelo.
Para terminar, gostaríamos de salientar que o que aqui se deixa é
apenas uma pequena contribuição para a divulgação de algumas das
"histórias" do Castelo, com alguma leveza na abordagem de certos
temas. Numa temática para a qual contribuíram os maiores oli-
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ssipógrafos não pretendemos mais do que uma breve introdução e
o levantar de algumas pistas.
Das origens ao terramoto
A freguesia de Santa Cruz do Castelo localiza-se numa plataforma
sobranceira ao Tejo, numa posição geográfica favorável à ocupação
humana pelo menos desde o séc. VII-VI a.C. (segundo as escavações
arqueológicas a decorrer neste espaço)1. De facto, a época do Ferro
encontra-se amplamente documentada por toda a freguesia e embora não tenha sido possível identificar até ao momento estruturas
de habitação bem definidas - fruto das dificuldades da prática
arqueológica em meio urbano onde a pressão urbanística impede a
possibilidade de se escavar áreas mais amplas - os muros, pavimentos e os materiais arqueológicos até agora exumados indiciam a
presença destas estruturas cujas remodelações parecem apontar
para uma ocupação sucessiva até à chegada dos romanos.
Da cidade de Felicitas Iulia Olisipo que se desenvolvia desde a área
do castelo até à zona ribeirinha, conhecem-se sobretudo alguns dos
edifícios públicos e áreas industriais. O parco conhecimento de
áreas habitacionais e respectivas ruas, ainda não permitiu propor
uma malha urbanística, com a definição das dimensões das insulae
da cidade.
A área do Castelo poderá eventualmente ter sido ocupada com uma
área monumental e religiosa como acontece noutras cidades
romanas com idêntica topografia. No entanto, as intervenções
arqueológicas realizadas até ao momento não permitiram identificar
quaisquer estruturas nem níveis de ocupação com excepção de uma
área de fossa onde foi identificado um conjunto bastante significativo de ânforas, duas lucernas e algumas moedas (século II a.C. I a.C.). Os escassos vestígios descontextualizados correspondem a
fragmentos de ânforas da mesma época e algumas inscrições que,
como muitas outras epígrafes, conhecidas por terem sido
reaproveitadas nas muralhas do Castelo, se encontram deslocadas.
Para o período que medeia a chegada dos povos muçulmanos, conhecido por Antiguidade Tardia, continuam a registar-se ausência
de estruturas e artefactos.
A ocupação árabe-islâmica da cidade introduz novas funcionalidades
neste espaço, com a instalação da alcáçova, da agora Aluxbuna
muçulmana, de características militares. As diversas descrições da
cidade quer de árabes quer de cristãos são coincidentes relativamente à geografia, que lhe deu uma posição privilegiada, e ao seu
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sistema defensivo que ia desde o topo do monte até praticamente
ao rio o que mostra o controlo e o carácter portuário desta cidade,
bem como a importância da zona baixa da cidade. O árabe Edrisi, na
sua Geografia (1139-1154), referindo-se à Lisboa mourisca, diz ser
ela defendida por uma cintura de muralhas e por um forte castelo.
A qasabah (alcáçova) constituía um dos núcleos vitais da Lisboa
árabe, a par da medina, que se estendia pela encosta sul até ao rio.
A alcáçova aristocrática e militar, com o seu palácio e agregado
urbano, era o centro político e militar da cidade.
A este papel estratégico de defesa e controlo da medina e dos arrabaldes da cidade, associa-se também uma zona residencial. As
escavações arqueológicas a decorrer neste espaço permitiram
identificar até ao momento um único bairro que se localiza a Este
do castelejo, entre este e a actual Igreja de Santa Cruz (actual
Praça Nova), que seria de acordo com as fontes o local da mesquita da alcáçova.
O bairro parece corresponder a uma expansão urbana para a zona
oriental da alcáçova em meados do séc. XI, época de uma grande
explosão demográfica. Esta instalação parece ter sido elaborada
com um projecto urbanístico pois sob este foi identificado um aterro geral da área que visava a regularização do terreno, perceptível
também na organização das casas e na sua articulação com áreas
de circulação e de saneamento. As escavações a decorrer neste
espaço permitiram identificar um conjunto de estruturas habitacionais com diferentes compartimentos bem definidos, que incluem
áreas de pátios lajeados - um dos quais com um outro compartimento associado que poderá corresponder a um possível jardim - salões
com pavimentos de argamassa, cozinhas com áreas de combustão
associadas, etc.
A qualidade arquitectónica destes edifícios reflecte-se nas paredes
por vezes pintadas a vermelho - com motivos geométricos e o
cordão da "felicidade" - e nos pavimentos de argamassa também por
vezes com pintura vermelha. A rua posta a descoberto, com uma
orientação Norte/Sul desde a "Porta do Moniz", levou a uma orientação coincidente das casas que a ladeiam.
Todos os vestígios de época islâmica exumados em contextos ocupacionais e em silos/fossas reportam-se de um modo geral ao último
século da presença islâmica na cidade. Da época califal existem alguns
objectos em contextos de aterro ou de nivelamento para a construção
do bairro islâmico da alcáçova. De épocas anteriores são ainda mais
raros, embora ainda se desconheça o que se passa na zona localizada
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a Noroeste e a Sudoeste da freguesia que corresponde grosso modo
à área onde se localizavam os paços e o Castelejo. Assim, a existência de ocupação mais antiga - Emiral e mesmo Califal - teria de se concentrar mais nessa área.
Na primeira tentativa de reconquista cristã de Lisboa por parte de
D. Afonso Henriques (1142), este deparou com uma cidade cingida
por uma forte cintura de muralhas entrecortadas por um número
indeterminado de torres e de cubelos que, apesar de todo o apoio
de uma frota de cruzados, o fez desistir da empresa. Esta estrutura defensiva teria sido reconstruída após Ordonho III de Leão, em
953, ter assaltado e saqueado a cidade, destruindo-lhe as fortifi-
cações, e apossando-se dela durante um breve período. Em 1147
essas mesmas defesas, que eram coroadas no alto pelo último
reduto - o Castelo -, provaram ser eficientes, pois só a tenaz persistência e a conjugação de esforços dos combatentes (portugueses e cruzados), a par da abundante e variada utilização de
máquinas de guerra, logrou vencer-lhe a resistência, após o cerco
que decorreu de Junho até 25 de Outubro.
Na Crucesignati anglici epistola de expugnatione olisiponis, do
cruzado autor da Carta a Osberno, há referências explícitas às
muralhas da cidade. Numa delas afirma-se: "O alto do monte é cingido de uma muralha circular, e os muros da cidade descem pela
encosta, à direita e à esquerda, até à margem do Tejo. Ao sopé dos
muros existem arrabaldes alcandorados nos rochedos cortados a
pique"2.
O ano de 1147 marca, pois, uma nova fase neste espaço. O cerco
da cidade, os pactos firmados para que a cidade se entregasse,
parecem confirmados pela ausência de níveis de incêndio e de
destruição, bem como o abandono de algumas áreas parecem indiciar uma continuidade de ocupação deste espaço.
A actual freguesia, baptizada pelos conquistadores cristãos com o
nome de Santa Cruz do Castelo, para que não restassem dúvidas
de que todo o chão da alcáçova se tornara chão cristão, nasce por
esta época, tendo sido uma das primeiras a ser fundada (a par com
a de Santa Maria Maior e a de Santa Justa e Santa Rufina), e vai
manter-se com as mesmas funções que anteriormente havia
desempenhado - controlo e defesa da zona portuária, da cidade e
dos arrabaldes - sendo ao mesmo tempo local de residência da
corte quando esta se encontrava em Lisboa. E se até à reconquista
definitiva do Alentejo o perigo muçulmano era constante, a alcáçova afirmou-se como uma cidadela defensiva, que pela sua fidelidade
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ao rei "de dia e de noyte", ganhou o privilégio de os seus habitantes
(cavaleiros, peões e clérigos) terem recebido de D. Sancho I a
mercê de não serem constrangidos a integrar a sua hoste militar,
nem a participar na construção e reparação dos castelos e outras
obras semelhantes, isto entre outros privilégios3. Não nos devemos
esquecer que as fortalezas são o elemento material que, na Idade
Figura 1 Castelo de S. Jorge [pormenor], in Vista de
Lisboa, inícios do século XVI (1505), iluminura in
Duarte GALVÃO, Crónica de D. Afonso Henriques,
Museu-Biblioteca Conde Castro Guimarães, Cascais
Média, expressa de maneira mais eficaz o exercício do poder, elementos vertebrais de um espaço jurisdicional coerente.
O provável Palácio do Alcaide muçulmano cede lugar ao Paço da
Alcáçova, do qual pouco se sabe. Uma descrição do Cardeal
Alexandrino, datada do reinado de D. Sebastião, parece evidenciar
um edifício de planta complexa, provavelmente resultado de várias
remodelações anteriores (fruto certamente da escolha de Lisboa
para sede da corte por D. Afonso III, que terá suscitado melhoria
nas instalações e onde D. Dinis teria certamente procedido a obras
de vulto), o que não constituiria novidade já que são numerosos os
reaproveitamentos testemunhados noutras zonas da alcáçova.
Este edifício incorporava a torre sudoeste do castelejo e desenvolvia-se para Sul, havendo ainda referências a uma torre conhecida por torre dos Leões, que a existir, estaria dentro deste recinto.
Este é um complexo conjunto arquitectónico formado por edifícios e
torres, do qual praticamente não existem representações fidedignas, abundando as representações mais ou menos fantasiosas das
quais se torna muito difícil separar os elementos credíveis. As representações existentes são no entanto unânimes em apresentar
o "Castello velho" (segundo legenda da panorâmica de Lisboa da
primeira metade do século XVI da Biblioteca da Universidade de
Leyde), com duas grandes torres e ao seu lado as construções do
Paço [Fig. 1 e 2].
Se a provável Mesquita da Alcáçova dá lugar à Igreja de Santa Cruz
do Castelo, no espaço do primitivo bairro islâmico, a evolução da
ocupação do espaço após a conquista - que se encontra bem documentada - caracteriza-se pelo recurso a soluções diversas: alguns
compartimentos e suas coberturas são reutilizados, outros muros
são construídos sobre os derrubes de telhados; outros ainda constroem-se sobre camadas de abandono de compartimentos de época
islâmica. Foram identificados uma série de alicerces de muros e
uma porta, cuja definição da funcionalidade não é linear, podendo
provavelmente corresponder a alas que circundavam uma área de
pátio, parecendo este edifício corresponder ao palácio dos bispos de
Lisboa, que tiveram os seus primeiros paços em terrenos doados
pelo primeiro rei português ao primeiro bispo de Lisboa, D. Gilberto.
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Também a rua associada ao bairro vai continuar em funções e continua a ser utilizada até muito tardiamente. Na planta da
Configuração de partes das Fortificações antigas da Cidade de
Lisboa (1761) aparece esta rua com a denominação de "Rua do
Moniz".
Um outro edifício importante na estratégia de defesa da alcáçova é
o castelejo. Este edifício de planta quadrangular e com cerca de
cinquenta metros de lado, teria cerca de dez torres e cubelos de
planta quadrangular e rectangular. Deste último reduto (no ângulo
entre a frente Norte e Oeste) sairia um pano de muralha e uma
torre avançada sobre S. Lourenço, o que permitiria o controle do
vale da cidade baixa e da Graça. Este troço teria sofrido algumas
alterações para ser incluído no sistema defensivo da "cerca fernandina" (1373-1375), cujo aparelho divergia completamente do das
muralhas da Alcáçova e da "moura" ou "velha". As muralhas deste
edifício teriam cerca de dois metros e vinte a dois metros e
cinquenta de espessura e o seu acesso far-se-ia através de uma
porta, protegida por uma torre - a torre de maiores dimensões -,
conhecida por torre de Ulisses, que possuía uma ponte levadiça, de
acordo com a documentação antiga e vestígios desaparecidos
encontrados nas obras de 40. Esta porta abria para um átrio onde,
através de outra porta, se acedia ao recinto oriental, cujo topónimo é "quartéis velhos". Um muro de cerca de dois metros e meio de
espessura separava este recinto do ocidental, conhecido como
"quartéis dos mouros". A única estrutura assinalada no seu interior é uma cisterna pluvial. Todas as torres, com excepção da torre
da cisterna, seriam maciças. O aparelho identificado nas muralhas
e torres do Castelejo parece corresponder a uma construção
recente que nada tem a ver com o aparelho das cercas4. As frentes
Norte e Oeste desta estrutura eram mais facilmente defensáveis,
dado o escarpado da zona, e na frente Norte localizava-se a "porta
da traição", que corresponderia a um pequeno corredor de dois metros por um metro e vinte e teria de altura cerca de dois metros e
vinte, com cobertura de lajes planas. Haveria, segundo Fernão
Lopes, um caminho que ligaria esta porta à Costa do Castelo. As
frentes Sul e Oriental, menos protegidas, dispunham de torres
maiores e mais fortes e provavelmente existiria um fosso seco
referido nas fontes5.
Embora não se disponha de informação arqueológica sobre o
castelejo, este edifício, pelo menos na zona exterior, aparenta o
mesmo tipo de construção das cercas "moura" e da Alcáçova6. As
escavações realizadas junto da porta do Norte, fronteira do castele-
Figura 2 Castelo de S. Jorge [pormenor], in
Panorâmica de Lisboa, primeira metade do século
XVI, desenho anónimo, Biblioteca da Universidade de
Leyde, dim. do original: 830 x 2745 mm.
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jo, e o acompanhamento de uma vala para saneamento, demonstram
que o desnível do afloramento calcário era mais acentuado do que
actualmente e que o acesso se faria, provavelmente, em rampa.
No que diz respeito à muralha, às torres e às portas da Alcáçova,
podemos afirmar que a primeira se encontra bastante destruída,
sendo sobretudo visível o troço oriental. Esta muralha tem actualmente visíveis cinco torres de secção quadrangular ou rectangular,
três torreões de secção semicircular; admite-se ainda a existência
de mais duas torres, uma incorporada no Palácio Belmonte e a
outra sob os actuais lavadouros públicos. Actualmente são visíveis
três portas admitindo-se a existência de mais uma. O troço oriental só torna a ser visível mais a Norte, praticamente junto das outras duas torres preservadas, que se considera pertencerem à
primitiva estrutura defensiva.
O troço ocidental desapareceu sob um conjunto de edifícios e de
acordo com a cartografia histórica da cidade já não aparece na planta de Tinoco de 1650. Numa planta anterior ao terramoto de 1755
já aparece um alargamento desta zona para Oeste, com uma muralha que vai ligar ao Castelejo. As obras da DGEMN vão alterar ainda
mais a zona, passando o Castelejo a estar rodeado de um grande
muro. Neste troço localiza-se um dos três torreões acima referidos.
A muralha que ficava sobranceira ao Chão da Feira terá sido
destruída nos finais do séc. XIV por ordem de D. João I, mas reaparece na referida planta de Tinoco. Os arranjos exteriores deste
troço e o levantamento do pavimento actual permitiram verificar
que o mesmo, entre os torreões e a porta de S. Jorge, se encontra construído sobre o afloramento rochoso, praticamente à superfície, não sendo possível verificar se o alinhamento actual corresponde ao do primitivo traçado. Este pano de muralha apresenta dois
torreões de forma semicircular e um aparelho muito irregular constituído por pedras de dimensão variada, reaproveitando diversos
materiais na sua construção. O aluimento de um edifício existente
no topo Sudeste deste troço permitiu reconhecer a torre ali existente como a torre que se encontra no ângulo entre a cerca da
alcáçova e a cerca "moura", bem como o arranque da cerca para o
troço oriental. As escavações realizadas neste espaço permitiram-nos ainda identificar o alargamento desta zona da alcáçova "à
custa" da própria muralha que ficaria integrada no edifício ali construído, sendo a própria torre incorporada neste, onde ainda é visível um banco revestido a azulejos hispano-árabes e o derrube de um
possível pavimento que faria parte do edifício do Recolhimento que
terá reaproveitado parte do pano desta muralha.
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O troço entre a torre da Igreja e a porta do Moniz terá ruído com
o terramoto de 1775. Na Praça Nova do Castelo procedeu-se a uma
sondagem junto deste troço que confirma a sua completa reconstituição, uma vez que, nesta vala, foi identificado material contemporâneo e alguns restos de materiais provenientes das obras do
Castelo no anos 40.
A alcáçova teria cerca de quatro portas, com duas a terem acesso
a partir da medina: a actual porta de S. Jorge, que teria uma orientação diferente - a Sul e a porta da Alcáçova, conhecida como porta
do Fradique. Nas outras duas o acesso far-se-ia a partir do arrabalde da Graça: a porta do Moniz, muito reconstituída aquando das
obras de restauro, e a porta do Norte, sobre a qual existem menos
referências e que poderá ser mesmo posterior à primitiva construção. Na porta do Moniz procedeu-se a uma sondagem do lado
exterior, que permitiu identificar o embasamento da torre localizada a norte da porta, bem como um conjunto de sucessivas calçadas
sendo a mais antiga provavelmente de época islâmica, e outra do
lado interior, onde se verificou que o acesso a esta porta parece
corresponder a uma rua denominada nos tombos de rua do Moniz,
que parece remontar à época islâmica. Relativamente à porta
denominada de D. Fradique levantam-se dúvidas, sendo difícil de
precisar a sua localização, mas tudo indica que corresponderia à
abertura no lanço da muralha que dá para a via pública do Chão da
Feira, e que foi posta a descoberto no decurso das actuais obras
de valorização das muralhas. Esta porta surge representada na
gravura de Braunio (1593) e na planta de Tinoco (1650); segundo o
primeiro nesta porta viria a desembocar uma das principais vias de
saída da alcáçova para o interior da cidade mura-lhada pela "Cerca
Velha", via que ele denomina de: Circuitus in sumitatis montis
moenib. Circumdatus, q vulgo alcacoua dicitur. Em 1750 encontrava-se tapada e, no seu interior, passava um cano de água do
Hospital dos Soldados.
Estas portas surgem normalmente protegidas por uma torre localizada a Norte das mesmas e os seus acessos seriam provavelmente em rampa (as diferentes sondagens arqueológicas realizadas
nas suas proximidades confirmam esta hipótese tendo-se identificado desníveis muito acentuados).
Na política régia de conservação e restauro de fortalezas e cercas
na Idade Média foi muito grande o peso dos sistemas amuralhados
urbanos, assim como a nova função residencial das fortalezas e os
problemas eventualmente colocados pela difusão das armas de
fogo. As reformas góticas nos castelos portugueses dão-se ao
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longo do século XIV e na primeira metade do século XV, essencialmente por D. Dinis (1279-1325), que empreendeu uma campanha
de construção e remodelação dos castelos, multiplicando-se então
as torres adossadas ao pano da muralha, permitindo o tiro cruzado sobre o embasamento das torres; regista-se um alargamento
dos adarves e merlões; as torres de menagem deslocam-se para
junto das muralhas e ampliam a sua área residencial, surgindo os
primeiros exemplos de torres de menagem com planta poligonal;
aparecem e difundem-se mecanismos de tiro vertical (balcões de
matacães, coroando torres de menagem e torreões). Mais tarde,
no reinado de D. Pedro I (1357-1367), surgirão ainda as barbacãs,
pequenos muros anteriores à muralha, circundando total ou parcialmente o perímetro da fortaleza.
Um outro aspecto importante são os sistemas de abastecimento
vitais desde tempos antigos em meios urbanos. Os diferentes sistemas de abastecimento detectados apontam para a existência de
diversas soluções: sistemas de armazenamento - as cisternas e os
poços - e os sistemas de distribuição - as canalizações. A utilização de sistemas de armazenagem, como as cisternas, remontam
pelo menos ao século XIV, podendo referir-se como exemplo a "torre
da cisterna" (de recolha pluvial). Para a época moderna assinala-se
a presença de diversas cisternas pluviais e de nascentes: a do
Paço, as duas da Praça Nova, as duas que provavelmente existiriam no denominado "Palácio das Cozinhas", a do Pátio do Cerqueira
(de nascente) e as duas do Castelejo. Nas proximidades deste foi
identificado um poço de nascente, que apresentava um aparelho
muito regular e já estaria aterrado quando das obras de reconstituição histórica já neste século. As escavações a decorrer na Praça
Nova permitiram-nos identificar uma possível cisterna com escada
de acesso, que poderá estar relacionada com o Palácio dos Condes
de Santiago - que aqui se instalam provavelmente desde os inícios
do século XVI. Pensamos que dada a persistência de poços e cisternas este sistema não seria muito divergente do que se verificaria
em época islâmica.
Os sistemas de distribuição foram identificados na Praça Nova, no
âmbito da escavação do bairro islâmico, onde se identificaram três
canalizações provavelmente derivando para uma central. Estas
canalizações, que utilizam tijoleira e pedra, encontravam-se sob o
pavimento dos compartimentos.
Reflexo do crescente desenvolvimento da cidade, e da sua expansão,
é a construção, em 1373-1375, de uma nova muralha, apelidada de
"Fernandina", em alusão ao rei que decidiu a sua construção, época
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em que as muralhas do castelo poderão ter sido também
reparadas, sobretudo o troço norte que continua a fazer parte integrante desta nova estrutura defensiva.
As escavações arqueológicas no Castelo permitem-nos documentar
algumas remodelações que os edifícios vão sofrendo ao longo da
Idade Média. No entanto, as grandes modificações dão-se já na
época moderna e deverão estar relacionadas, primeiro com o abandono do Paço, substituído pelo da Ribeira, fruto da importância do
rio para a nova cidade e depois com o estabelecimento da guarnição
filipina que deverá ter provocado algumas modificações.
A edificação do Paço da Ribeira foi uma opção estratégica de desenvolvimento urbanístico que trouxe a cidade medieval para fora das
muralhas. D. Manuel, "rei da pimenta" lhe chamaram, descendo da
alcáçova medieval, pretendeu exercer o controle da gestão mercantil dos produtos ultramarinos. Por iniciativa própria o rei deixa de
ser castelão. De 1498 o Arquivo Nacional da Torre do Tombo guarda uma cópia duma Carta-Regimento enviada pelo Desembargo do
Paço ao Senado da Câmara de Lisboa, com data de 29 de Outubro7,
onde se constata que nesta data a ideia da construção dum novo
Paço Real estaria já nas perspectivas do Rei e dos seus conselheiros. O abandono do Paço da Alcáçova como residência régia, em
favor das margens do Tejo, onde os destinos do país se ligavam, era
uma realidade que não se podia evitar e, assim, no início do século
XVI a velha alcáçova/cidadela começa a perder importância e o poder
político transfere-se para o Terreiro do Paço. Em 1502 D. João III
ainda nasce no Paço da Alcáçova, evento celebrado por Gil Vicente,
que ali encena pela primeira vez o Auto da Visitação ou Monólogo do
Vaqueiro. Posteriormente só D. Sebastião quis habitar o antigo
Paço, onde ainda mandou fazer obras. Mas a decadência desta antiga morada real era irreversível, mantendo-se aí a Torre do Tombo.
Apesar do poder político ter abandonado a Colina do Castelo, nela
mantém-se o centro religioso, na Sé, e os Paços do Concelho, que
aí permanecem até ao século XVIII, quando se dão as transformações inerentes à reformulação da cidade pós Terramoto de 1755.
Durante a ocupação filipina o castelo é aproveitado para guarnição
militar e prisão, utilizações que se mantiveram nos séculos
seguintes (em 1631, no âmbito do empréstimo do Reino para a
armada de socorro ao Brasil, são aí alojados os elementos provenientes da armada de D. António de Oquendo).8 Na rua que mais
tarde se chamaria do Recolhimento, estava instalada uma instituição de caridade para o abrigo de órfãos da nobreza, o
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Recolhimento de Nossa Senhora da Encarnação, que coexistiu com
um edifício onde funcionava o Hospital dos Soldados.
Em 1648, por ordem régia, decide-se reparar os muros antigos de
Lisboa, assim como os do Castelo, de acordo com o plano de finais
de 1645, ou inícios de 1646, com o titulo: Memorial que o Marquez
de Montalvão offereceu a el-rei D. João VI sobre o modo da defensão e conservação do reino 9. Estas obras decorreram até 1650,
sendo alvo de vários decretos com o intuito de possibilitarem as
condições financeiras para a sua continuação, assim como a marcação de tempos definidos para se irem executando10. Em 1650 é
feita uma vistoria às velhas cercas da cidade por parte do Senado
da Câmara de Lisboa, onde é proposta a introdução de algumas
alterações no desenho da fortificação existente, com o objectivo de
a tornar menos vulnerável, pretendia-se tapar dezoito das prováveis
quarenta portas e postigos considerados e construir duas de novo,
reparar alguns troços em ruínas e notificar os moradores e proprietários de casas construídas sobre aquela, no sentido de manterem
aí passagens sempre utilizáveis, sob pena de serem demolidas. Um
ano antes tinha o Senado da Câmara despendido a quantia de 500
mil réis nas obras de reparação do Castelo.11
Do terramoto aos nossos dias
Os efeitos do terramoto de 1755 alteraram necessariamente a
imagem do castelo. Desapareceram estruturas e edifícios e foram
criados e recriados outros. As torres e muralhas desmoronaram-se, havendo notícia de documentos da Torre do Tombo que terão
sido encontrados na encosta da Mouraria. Muitos dos materiais
remanescentes integram-se hoje na malha urbana, aproveitados
como material de construção, alguns deles postos a descoberto
nas actuais obras de reabilitação.
Além da ruína de inúmeras casas particulares ruiu também o Paço
da Alcáçova e edifícios anexos, incluindo a capela do paço.
Desapareceu também grande parte das estruturas militares do
castelejo e duas ermidas, e a Igreja de Santa Cruz teve que ser
totalmente reconstruída.
O trabalho de reconstrução da freguesia, feito fora do rigoroso
desenho do Marquês de Pombal para a Baixa da cidade, foi sendo
feito empiricamente, com os conhecimentos, meios e condições
possíveis no momento, o que é bem visível nas plantas da cidade
pós-terramoto.
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O núcleo urbano dentro das muralhas é definitivamente abandonado
pela classe nobre e passa a acolher todo o tipo de desprotegidos. As
casas senhoriais, os grandes edifícios, são reconstruídos mas com
outras características pois vão responder às necessidades de outro
tipo de população, de fracos recursos económicos. São compartimentadas e sobreocupadas para poderem albergar o fluxo constante
de migrantes do mundo rural, sobretudo do norte do país, que procuravam em Lisboa emprego na incipiente indústria e melhores
condições de vida.
No decorrer das obras de reabilitação, e após a picagem das paredes, ficaram à vista vãos entaipados com material pombalino, nas
paredes meeiras com os fogos contíguos, que indiciam esta subdivisão do espaço que tornou as habitações muito pequenas.
Estas características de sobreocupação e reduzidas dimensões
dos fogos levaram ao uso e apropriação de espaços pertencentes a
toda a vizinhança e de espaços públicos como pátios, logradouros,
ruas e pequenos largos com a consequente degradação deste
património urbano. Os pátios são transformados em habitação plurifamiliar esbatendo-se a sua feição nobre e acentuando-se a sua
deterioração.
Em finais de Oitocentos a freguesia de Santa Cruz não passava, na
opinião de Júlio de Castilho, de um "caos, sem valia senão para os
arqueólogos", podendo ser constatado em Vieira da Silva o estado
urbanístico da freguesia nessa época (1908) [Fig. 2].
Entre os exercícios urbanamente utópicos desta época cabe aqui
destacar Fialho de Almeida, que publicou de 29 de Outubro a 19 de
Novembro de 1906, na Ilustração Portuguesa, que o arquitecto
Álvaro Machado ilustrou, uma série de artigos intitulados Lisboa
Monumental [Fig. 3], onde foi descrita a utopia de uma nova monumentalidade: "(...) E como seria forçoso arranjar coração para essa
aorta, no ponto de chegada da ponte, adentro dos muros da álcaçova ou cidadela de Lisboa histórica veríamos levantar-se um palacio
da alcaçova, não o antigo palácio dos califas mouros, acrescentado
desordenadamente pelos reis portugueses até D. Sebastião mas
(...) alguma coisa de ofuscante, assim como um gigantesco solar de
policromias e de rendas, ferro e cobre dourado, faianças e mármore
branco, o que quer que fosse da cabeça desta cidade imensa de colinas, desta rainha deitada em que tudo são ombros e joelhos, por
falta de uma coroa heráldica que sobre um morro clássico altivamente a sagre e lhe dê brilho. Nesse recinto do chamado castelo de
S. Jorge adentro da cinta de muros (e isto sem lhe bulir com as
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pedras historicas) e onde hoje 1906 gorgulha uma infecta caserna
de soldados", devia-se "vestir a montanha toda de ciprestes, abrir
elevadores da cidade baixa até às portas históricas da muralha, e
nos terraplenos erguer o monumental palácio".
No início do séc. XX começa-se a pensar no aproveitamento turístico do castelo, reconhecendo-se legalmente o seu valor histórico
patrimonial com a classificação de Monumento Nacional em 1910.
São desta época projectos como o de um hotel monumental e de um
elevador, já na altura muito polémicos.
Figura 3 O Castelo de S. Jorge tal como o via Fialho
de Almeida, in "Lisboa Monumental", Ilustração
Portuguesa, 1906, 1, (39), p. 405
Mas a grande obra de reconstituição, que nos legou o castelo que
hoje conhecemos, foi efectuada pelo Estado Novo. O Castelo de
S. Jorge foi nesta altura incluído no conjunto de obras e monumentos a restaurar no âmbito das comemorações de 1940, procurando-se a sua "dignificação completa" (palavras de Duarte Pacheco)
efec-tuada com critérios mais ideológicos que históricos.
Decorria, então, o ano de 1938 e, em Portugal, o Estado Novo estava em plena ascensão. Salazar queria glorificar o seu regime e mandou preparar a Exposição do Mundo Português. É neste contexto
que o Castelo de S. Jorge foi objecto de uma reconstituição que
alterou profundamente a imagem que até então os lisboetas tinham
dele, sendo incluído no conjunto de monumentos a restaurar e de
obras a realizar no âmbito da comemoração, em 1940, do duplo
centenário da fundação e da restauração de Portugal. O Castelo
era, no entanto, um amontoado de edifícios de diversas épocas,
como bem espelha o Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais de 1941, onde se sintetizava: "Todos se lembram, sem dúvida, do que aparentemente restava, em 1938 (ano
em que principiaram os trabalhos de restauração), da antiquíssima
acrópole lisbonense: alguns lanços de muralha desguarnecidos de
ameias, algumas tôrres semi-desfeitas ou deformadas - e, dominando tudo, esmagadoramente, um acervo de edifícios de desmedidas
proporções, sem nenhum relêvo arquitectónico e revestidos de caliças modernas (...)".
Como se depreende da descrição, o estado do monumento coadunava-se pouco com os objectivos da exaltação nacional com que a
ditadura se queria, ela mesmo, consolidar. A "Capital do Império"
teria, por isso, não apenas uma exposição à sua medida, como um
castelo que a dignificasse, e os quartéis foram, então, todos demolidos e o Castelo refeito.
O objectivo da intervenção foi claramente explicitado em portaria de
29 de Agosto de 1938, assinada por Duarte Pacheco, então
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Ministro das Obras Públicas: "O Govêrno da República Portuguesa,
ao
preparar
a
comemoração
centenária
da
Fundação
da
Nacionalidade e da Restauração da Independência reunidas na data
conjunta de 1940, intenta levar a cabo a reintegração do castelo de
S. Jorge, a sua dignificação completa, mostrando de novo a Lisboa
e ao País o glorioso monumento em tôda a sua expressão militar,
numa tentativa de recomposição histórica em que todos os portugueses se vão decerto empenhar, uns com o seu trabalho, outros
com o seu conselho e todos com o seu amor pátrio."
A intervenção assim enunciada é ainda justificada no preâmbulo em
que o governante classifica o Castelo de S. Jorge como "o mais antigo Monumento de Lisboa, verdadeira acrópole da Nação, talvez a
peça de maior e melhor nobreza do nosso Património de glória,
merece incontestavelmente que se dignifique, desafrontando-o de
malefícios constructivos, isolando-o na sua solene beleza evocadora".
Neste, como em outros casos, a reconstrução foi quase total e
obedeceu a critérios muito mais ideológicos que históricos, mais
que recuperar testemunhos de outras épocas, procurou-se fabricar
símbolos, de que resultaram objectos mais ou menos bem conseguidos do ponto de vista cénico, mas aos quais falta toda a autenticidade [Fig. 5]. O decantado "ressurgimento nacional" implicava a glorificação da história pátria. As obras de reconstrução revelaram um
milagre de ressurreição, reinventando a história e seleccionando os
pedaços de tempo que, por motivos político-culturais, interessavam
particularmente.
Acentua-se ainda mais nesta altura a desarticulação entre a freguesia militar, onde incidiu toda esta intervenção, e a restante zona
intra-muralhada, o núcleo habitado, que ficou de fora. A degradação
já existente agrava-se e esta "aldeia" continua a não fazer parte de
qualquer projecto de passeio dos lisboetas ou turistas.
A malha urbana que hoje conhecemos não sofreu, no essencial,
grandes alterações com o terramoto. Esta malha pode ser associada à Idade Média pelas suas características irregulares e informais.
A cronologia dos edifícios é bastante mais recente, com raros
exemplos de construções de raiz anteriores ao séc. XVII. A arquitectura é corrente, de desenho simples, com um valor patrimonial
e histórico de conjunto. Os edifícios têm no geral dois/três pisos,
tendo sofrido acrescentos posteriores, geralmente pós-terramoto.
Nota-se em muitos casos uma sobreposição de construções em
que se podem detectar várias fases de intervenção e uma tentativa de rentabilizar o espaço.
Figura 4 Planta do Castelo de S. Jorge, segundo
Vieira da Silva, em 1908
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(Re)Construção de um castelo - A Freguesia de Santa Cruz da Alcáçova de Lisboa
O projecto integrado do castelo
A evolução histórica da freguesia, como referimos, levou a um
esquecimento da sua parte habitacional, que se traduziu numa
enorme degradação do edificado, e é por isso que a actual operação
de reabilitação está a ter um maior impacto. Trata-se da segunda
grande intervenção, iniciada no século XX nesta freguesia - a
primeira, em 1940, incidiu apenas no castelo-monumento, enquanto que esta incide sobretudo na zona habitada.
Procura-se uma reunificação histórico-geográfica entre as duas
grandes zonas da freguesia e uma adequação dos fogos às actuais
exigências de conforto, higiene e segurança (a maior parte das
casas não tinha casa de banho), tentando ao mesmo tempo não
descaracterizar o edifício ou retirar-lhe a sua autenticidade, o que
passa pelo restauro dos elementos com valor patrimonial postos a
descoberto e musealisados os mais relevantes.
Figura 5 Cartaz alusivo às comemorações do 28 de
Maio de 1926, onde o elemento "castelo" aparece
como um dos símbolos definidores da nacionalidade
tal como esta era concebida pelo Estado Novo
Trata-se da reabilitação de cento e dez edifícios com aproximadamente quatrocentos fogos, planeada em cinco fases, estando em
curso a terceira fase, o que inviabiliza praticamente a circulação
dentro deste núcleo, à excepção da Rua do Espírito Santo e Rua
das Flores.
Este processo inclui a substituição das infra-estruturas das redes
de distribuição de águas, esgotos, electricidade, gás e telefones e
a introdução da televisão por cabo.
Além do património edificado os seus habitantes são o outro factor
essencial e característico da ambiência urbana deste bairro. Manter
os edifícios, o cenário, reabilitando-o e manter a população são portanto duas premissas deste projecto. Para além da população residente existe o envolvimento e a participação de outros actores sociais como os comerciantes ou os proprietários dos imóveis.
O projecto envolve cerca de setecentos moradores, na sua grande
maioria idosos e de fracos recursos económicos. Assegurar o seu
retorno aos fogos de origem após as obras é uma das prioridades
do projecto.
Visa-se igualmente uma dinamização do comércio, quase inexistente,
e a instalação ou recuperação de equipamentos virados para a população local como o posto médico, as colectividades ou os balneários.
É de referir também a criação de uma unidade hoteleira e a procura de soluções que disciplinem o estacionamento e o acesso
automóvel à freguesia.
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No que toca á zona monumentalizada da freguesia a intervenção consistiu essencialmente no restauro das muralhas e estruturas monumentais, que se encontravam muito degradadas. Com o acentuar da
vocação turística da freguesia e a necessidade de exploração das
suas potencialidades a este nível são instalados novos equipamentos
como a Olisipónia-Centro de Interpretação da Cidade e o Periscópio,
instalado na Torre de Ulisses. É neste contexto que é entregue à
empresa municipal denominada EBAHL a gestão destes novos
equipamentos que visam dinamizar a fruição do bairro.
Este é o retrato aqui possível de uma área urbana onde os tempos
se sobrepõem em edifícios, onde a arquitectura contemporânea
coexiste com estruturas e fachadas pombalinas, com cisternas e
outros elementos arquitectónicos cuja época é indecifrável e a
origem desconhecida.
Notas
1
Existem notícias sobre eventuais achados arqueológicos no Castelo de
S. Jorge referentes ao Paleolítico Médio (100-35 mil anos) ou Superior
(35-10 mil anos), numa área já destruída e cuja localização do material é
também ela desconhecida, cf. João Muralha CARDOSO, "Carta arqueológica
do Concelho de Lisboa", in Lisboa, Revista Municipal, ano 49, 2.ª série, n.º
23 e 24, 1988, pp. 3-18 e pp. 3-25.
2
Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147, narrada pelo Cruzado
Osberno, testemunha presencial, texto latino e trad. para português da
autoria de José Augusto de OLIVEIRA, com prefácio de Augusto Vieira da
SILVA, Lisboa, CML, 1935, p. 41.
3
ANTT, Chancelaria de D. Manuel, Carta régia de 1206
4
As obras da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais
(DGEMN), dos anos 1938-1940, confirmam esta ideia, já que são referidos
os diversos apeamentos e reconstituições dos muros existentes, utilizando uma parte da alvenaria existente.
5
No decorrer das obras da DGEMN foi identificado um muro de barbacã do
castelejo e seria ainda visível uma estrutura que poderia corresponder a
uma contra-escarpa na Praça Nova.
6
Os documentos de contas das obras da DGEMN contribuem para esclare-
cer um pouco as razões pelas quais o Castelejo não apresenta um aparelho similar aos da muralha e que terá a ver com "os apeamentos" a que as
paredes e torres foram sujeitas. No entanto ainda é possível ver nalgumas
zonas das torres, quase ao nível do solo, áreas em que o aparelho se
encontra mais ou menos preservado ou as zonas de onde arrancaram as
reconstituições.
7
Texto citado pela primeira vez por A. Vieira da SILVA, in As muralhas da
Ribeira de Lisboa, 3.ª ed., Lisboa, CML, 1987, vol. I, pp. 58 e 63.
8
A Carta Régia de 27 de Novembro de 1631, E. F. de OLIVEIRA, in
Elementos para a história do município de Lisboa, 1ª Parte, Lisboa,
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(Re)Construção de um castelo - A Freguesia de Santa Cruz da Alcáçova de Lisboa
Tipografia Universal, 1882, vol. III, pp. 462-463, limita-se no entanto a
pedir "Camas e lume" para estes soldados.
Eduardo Freire de OLIVEIRA, Elementos para a História do Município de
Lisboa, Lisboa, 1884-1911, vol. 5, pp. 113-126; Assento de Vereação de 31
de Junho de 1648, Liv.º dos Assentos do Senado, fl. 19 (A.H.C.M.L.).
9
Eduardo Freire de OLIVEIRA, Elementos..., vol. 5, pp. 127-129; Decreto
de 29 de Agosto de 1648, Liv.º I de cons. e decr. dos reis D. João IV e
D. Afonso VI, fl. 36-v.º; Decreto de 17 de Setembro de 1648, Liv.º II de
cons. e decr. de D. João IV, fl. 224; Alvará régio de 1 de Outubro de 1648,
Liv.º I de cons. e decr. de D João IV e D. Afoso VI, fl. 37 (A.H.C.M.L.).
10
11
Eduardo Freire de OLIVEIRA, Elementos..., vol. 5, p. 165.
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Formas de Diálogo e de Mediação Social na Lisboa Quinhentista
Maria Leonor Garcia da Cruz
RESUMO
A formosa e narcisa Lisboa, posta em cena por Gil Vicente no
primeiro quartel de século XVI, é também a cidade do reboliço e dos
enganos de Francisco de Sá de Miranda e de António Ferreira.
Trata-se de duas leituras críticas complementares, ambas profundamente moralizadoras, de uma mesma cidade que, aos olhos dos
contemporâneos, surgia principalmente como ponto de partida, de
chegada, ou de permanência, de uma enorme mole de gente que se
mobilizava de todo o Reino e de terras estrangeiras para daqui se
propagar pelo extenso império ultramarino do Rei de Portugal.
Ressalta, sobretudo, das figurações de Lisboa, a cidade das naus e
das transacções comerciais, das trocas locais e regionais e do
comércio de longa distância, cadinho de mil raças, grupos sociais
heterogéneos, profissões e nacionalidades.
Mas a cidade é igualmente, apesar de local ainda não obrigatório de
residência da Corte e dos cortesãos, o centro administrativo por
excelência do Portugal quinhentista. Nela surpreende o crescimento espacial e, particularmente, a apropriação da zona ribeirinha ao
Tejo, onde não param as construções e melhoramentos com vista à
funcionalidade dos negócios e à exposição das riquezas.
É nesse espaço ribeirinho, nas dependências do Palácio real destinadas à prática da gestão administrativa, financeira e judicial, dos
negócios da Fazenda Real, nas Casas da Índia e Mina, na Mesa da
Fazenda, perto da Alfândega, da Ribeira das Naus, das Sete Casas,
do Terreiro do Trigo, que irei concentrar a minha observação. Nele
procuro a acção de fenómenos de longa e curta duração, não apenas da esfera política ou económica, mas sinais inequívocos da
dinâmica de uma sociedade em permanente mobilidade, com antinomias que abrangem diferentes aspectos da vivência social, das
representações mentais e da idealização de projectos, às condicionantes e dificuldades práticas de um comportamento quotidiano,
quantas vezes criticamente reflectido.
Acompanhando o labor rotineiro de um grande oficial da Fazenda
Real, testemunhado em escritos diversos, de expediente adminis-
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trativo, de validação ou invalidação de pequenos actos ou de
grandes acções, de relatos informativos sobre contactos pessoais
ou fenómenos ocorridos, de comentário ligeiro ou ponderada
opinião, captam-se vestígios de uma época e de uma sociedade conturbadas. É, de facto, na execução das determinações régias que
muito se prendem com a política ultramarina e a preparação das
armadas para a Índia, para a Guiné ou para o Brasil, que se levantam com frequência problemas, tanto de ordem técnica ou de
estratégia política, militar e comercial, quanto de âmbito jurídico,
ético e de disciplina social. Alia-se a esta análise do tempo imediato e da conjuntura o estudo das instituições enquanto organizações
sociais de longa duração, com tensões internas e pressões externas, agindo segundo normas mas onde as próprias normas se modificam de forma a permitir uma constante e melhor adequação ao
conjunto social.
Há que procurar uma clarificação da sociedade portuguesa de
Quinhentos, sociedade complexa, marcada por um grande
empreendimento ultramarino que se projecta nacional e unitário,
mas na sua estrutura interna manifestamente heterogéneo, abalada pelo debate, pela controvérsia em todos os campos, económico,
social, político, cultural. Nela se confronta a tradição com a novidade e a alteração, necessária, consentida, e, quiçá, incentivada
através de formas de diálogo e de mediação social, entre os governantes e o complexo conjunto dos governados.
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Estudo preliminar sobre as Relíquias de São Vicente
Hugo Cardoso1, José Luís Neto2
Introdução
Neste estudo preliminar é nossa intenção apresentar alguns dados
do trabalho que temos vindo a realizar junto das relíquias de São
Vicente.
As relíquias, constituídas na sua quase totalidade por material
osteológico, estão depositadas na Sé de Lisboa, onde temos vindo
a realizar esta análise. Esta situação só tem sido possível graças à
abertura que a Sua Eminência o Cardeal Patriarca de Lisboa D. José
Policarpo, o Cónego Orlando Leitão e o Prior da Sé Patriarcal de
Lisboa Luís Manuel Pereira da Silva têm demonstrado, e a quem
muito agradecemos.
É nossa intenção ao virmos a este Encontro sobre Lisboa, apresentando apenas dados de uma investigação ainda em curso, chamar à
atenção para outro género de Património existente na cidade,
Património esse muitas vezes estigmatizado, entendido como
reflexo de uma mentalidade pouco esclarecida, envolta em crendice
e piedade popular.
Quem melhor do que a emblemática figura de São Vicente, tão
importante e marcante na história Olisiponense, para veicular as
nossas preocupações no que respeita a esse Património que é ainda
vivente, mas que, noutras facetas, transcende a curiosidade etnográfica e é o rosto de posicionamentos passados, muitas vezes
pouco piedosos e claramente mais pragmáticos.
Alguns problemas históricos
São Vicente sofre o seu martírio em Valência, a 304 a. D. segundo a
versão hagiográfica de Mestre Estevão, a de André de Resende e a
de Júlio de Castilho, o Santo terá sido transladado para a Igreja do
Corvo, sita no Cabo que tem o seu nome, provavelmente em consequência da tomada de Valência por parte do exército muçulmano, nos
inícios do século VIII.
Em 1173, por ordem de D. Afonso Henriques, faz-se uma expedição
transladando o corpo do Algarve para Lisboa, onde, após alguns
episódios inusitados, o corpo é depositado na Sé desta cidade.
RESUMO
Neste estudo pretendemos colocar algumas
questões relacionadas com o estudo dos materiais osteológicos atribuídos a São Vicente, que
estão depositados na Sé de Lisboa.
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Estudo preliminar sobre as Relíquias de São Vicente
O que nos parece claro, partilhando da posição de Aires Augusto
Nascimento e de Saúl António Gomes, é que a vinda do corpo de São
Vicente é um símbolo material, palpável, daquilo que se desejava que
Lisboa se tornasse. De facto, quem melhor que este Santo para
congregar num mesmo espaço, em relativa harmonia, uma autoridade cristã reformada (rito romano) e uma comunidade constituída
maioritariamente por moçárabes, cristãos de rito hispânico.
Esta situação de compromisso parece-nos ser a leitura mais
plausível, dado que temos um mártir hispânico, contentando e homenageando os cristãos hispânicos, contentando também os
cristãos de rito romano visto que o culto Vicentino estava muito
divulgado entre estes através da tradição francesa. Permitia, por
fim, a ambos os grupos, um ensejo de transposição da imagem do
martírio de São Vicente para os seus tempos, relacionando-os com
os cristãos de rito hispânico ainda sob jugo muçulmano.
Assim, interpretando a viagem de São Vicente mais como um percurso estratégico de interesses sócio-políticos, do que um trajecto real, teríamos que obstar partindo da premissa, comprovada
pelos Miracula, que independentemente de todo o fantástico que
envolve esta peregrinação piedosa, o que nos interessa é que estas
relíquias foram, à época, muito importantes para a comunidade local
enquanto símbolo de uma coesão identitária que se desejou.
Contudo, a importância destas relíquias é também muito visível nas
graças/milagres que, através destas foram concedidas a vários
indivíduos. Estes milagres, associados a outros aspectos da
divinização destes ossos, como, por exemplo, a descoberta do
corpo por revelação divina, a cegueira provocada por piedoso roubo
de um osso, a calmaria dos mares, ou ainda, o incêndio que queimou
alguns edifícios mas não um outro osso que tinha sido piedosamente retirado, fazem com que este conjunto de ossos seja mais
do que o normal material osteológico.
Mas se estes estão associados a vários acontecimentos da ordem
do sobrenatural, não nos podemos esquecer da existência de
inúmeras relíquias de São Vicente espalhadas por Portugal,
Espanha, França (Fig. 1) e Itália, como países que maior quantidade
de relíquias possuem deste santo, se bem que existam ainda
noutros países. Juntando, hipoteticamente, todos esses conjuntos
osteológicos, teríamos, obviamente, muitos corpos para um só
santo, o que, no que concerne à sua veracidade, obriga-nos a partir, para esta análise, com muitas cautelas e reservas. Acresce
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Hugo Cardoso, José Luís Neto
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ainda a própria dificuldade de manter um corpo em trânsito ao longo
de quase mil e setecentos anos.
Se não temos dúvidas quanto à efectiva existência de São Vicente,
comprovada pela rápida difusão do seu culto na época da sua morte
e pelas várias fontes coevas que o referem, a própria história do
santo é coerente e perfeitamente enquadrável nas perseguições de
Dioclesiano. Contudo, o aspecto a que temos de dar mais relevo, num
estudo desta natureza, é o próprio martírio do santo. Este vem-nos
descrito por José Falcão (1974: 8-9), no seu estudo sobre o mártir:
"(...) foi Vicente sujeito a uma série de torturas, que sucessivamente se foram agravando: primeiro, o cavalete, onde o
corpo do levita é desconjuntado e dilacerado por unhas de
ferro; depois, dada a heróica resistência do confessor da fé, o
leito de ferro coberto de brasas espevitadas por grãos de sal
e as lâminas aguçadas que, na carne ferida, rasgam novas feridas. Inabalável na prova, é Vicente levado para um fundo calaboiço abóbadado onde não entrava um raio de luz e cujo pavimento é semeado com ásperos fragmentos de vasilhas quebradas, onde o seu corpo, deitado, se mortificasse ao menor
movimento; os pés são presos no cepo e as pernas ficam violentamente apartadas, num tormento que faz recordar o de S.
Paulo e de Silas em Filipos. (...) O carcereiro converte-se, e
Daciano, abismado e confundido manda colocar Vicente em
brando leito, afim de lhe diminuir a glória do triunfo e o reservar para novas dores. É nessa altura que o mártir exala o último suspiro e entra na posse da coroa celestial tão brilhantemente conquistada, enquanto a multidão dos fiéis, que então
lhe assistia, recolhe as primeiras relíquias. (...) Manda expô-lo
desnudado, em campo aberto, afim que as feras da terra e as
aves do céu lhe devorassem as carnes ensanguentadas. Surge
então, por disposição divina, um corvo, que o defende com as
asas e mantém em respeito um enorme lobo (Fig. 2).
Agastado pela cobardia das feras terrestres, ordena Daciano
que o santo corpo seja envolvido num saco e lançado, com uma
grande pedra, no mar alto (...) Mas as ondas, obidientes ao
Criador, devolvem o venerando espólio, que recebe em terra
sepultura conveniente. (...)"
Sobre esta descrição temos de ter algumas cautelas relativamente à
sua veracidade. Se nos parece, de facto, que S. Vicente teria sofrido
fisicamente pelo facto de ser cristão (o que era normal à época), não
nos podemos esquecer que os assentamentos de martírios eram
Figura 1 Relicário de S. Vicente contendo um fémur
Tesouro da Catedral de Notre-Dame (Paris).
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Estudo preliminar sobre as Relíquias de São Vicente
escritos com objectivos apologéticos, normalmente exacerbando a
morte destes indivíduos.
Alguns problemas antropológicos
As relíquias de S. Vicente estão em dois relicários do século XVIII
(devido ao incêndio que se seguiu ao terramoto de 1755) em
exposição no tesouro da Sé de Lisboa. Uma vez que as relíquias
ainda se encontram ao culto, o nosso estudo antropológico teve
algumas limitações.
Um dos relicários é uma pequena caixa de prata e a observação da
relíquia foi feita apenas através do vidro que formava a tampa, de
modo, que não foi possível um acesso directo ao material. Este
relicário contém uma mão direita, separada do resto do membro ao
nível da articulação rádio-procárpica ou do punho, que preserva
grande parte dos tecidos moles (músculos, tendões e pele) e que
Figura 2 Óleo sobre madeira de autor desconhecido.
Século XVI - Museu Municipal de Óbidos.
poderá ter sido alvo de um processo de mumificação ou dissecação
natural ou artificial. Todo o conjunto apresenta-se em bom estado de
conservação.
A mão encontra-se disposta sobre a face palmar numa cama de algodão. Conserva intactos os segundo, terceiro, quarto e quinto dedos,
aparentemente sem unhas. No entanto, o facto de os dedos se encontrarem ligeiramente flectidos com as extremidades cobertas de algodão, pode encobrir a observação das unhas. O primeiro dedo não é
visível e aparenta não existir.
A face dorsal da mão apresenta-se em menor estado de conservação, de modo que o osso se encontra exposto, nomeadamente os
metacarpos, exceptuando o primeiro e quinto. Todos os ossos do
carpo encontram-se cobertos por fragmentos de tecidos moles.
Nas articulações e superfícies articulares visíveis não se observam
epífises não fundidas ou em fusão. Do mesmo modo, não se observam quaisquer vestígios de patologia degenerativa. Estas duas
observações apontam no sentido de um indivíduo adulto relativamente jovem.
As extremidades dos dedos aparentam um estado de conservação
elevado, podendo fornecer dermatoglifos digitais.
O outro relicário é uma caixa de maiores dimensões (Fig. 3), igualmente em prata e madrepérola. Este relicário contém uma grande
quantidade de fragmentos ósseos, alguns em bom estado de conservação e uma grande parte deles apresenta-se em diversos estados de carbonização (compatível com o incêndio do relicário primiti-
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vo). O material osteológico existente aparenta ser consistente com
a presença maioritária de um só indivíduo. A análise efectuada refere-se a uma observação morfológica preliminar dos fragmentos
ósseos mais representativos e em melhor estado de conservação.
A maioria dos fragmentos do crânio são compatíveis com um
mesmo indivíduo, tendo a observação morfológica sugerido a presença de um adulto do sexo masculino (Ferembach et al., 1980). A
observação do grau de obliteração das suturas craninanas sugere
ainda tratar-se de um indivíduo jovem. Apenas existem alguns fragmentos da mandíbula e ausência total de dentes (perda pos-mortem da dentição superior).
A observação dos fragmentos da bacia sugerem igualmente a presença de um indivíduo do sexo masculino (Ferembach et al., 1980).
Por outro lado, o estado de metamorfose da sínfise púbica sugere
um adulto jovem com uma idade média à morte estimada em aproximadamente 25 anos (Brooks & Suchey, 1990).
O osso longo mais representativo é o úmero, do qual existem quatro fragmentos esquerdos e direitos, todos compatíveis com um
mesmo indivíduo. A observação morfológica permite afirmar tratar-se de um indivíduo relativamente robusto. Recorrendo à osteometria para diagnosticar o sexo destes fragmentos, verificou tratar-se muito provavelmente de um indivíduo do sexo masculino
(Cardoso, 2000). No entanto, a presença de outros dois fragmento
de úmero não compatíveis com os anteriores sugere a presença de
pelo menos um outro indivíduo, possivelmente mais velho já que
apresenta sinais de artrose.
Os diversos fragmentos de rádio não são totalmente compatíveis
entre si e sugerem a presença de mais dois ou três indivíduos.
A presença de vários ossos de ambas as mãos não são compatíveis
com a mão mumificada que se encontra no pequeno relicário. A estimativa da estatura, efectuada a partir de um dos metacarpos, permitiu obter um valor aproximado de 165 cm (Meadows & Jantz, 1992).
Não se observaram quaisquer outro tipos de patologias, à excepção
de dois fragmentos de vértebras torácicas que se encontravam fundidos ao nível do processo espinhoso.
Considerações Finais
A maioria do material osteológico parece atestar a presença de um
indivíduo adulto jovem do sexo masculino. No entanto, as restantes
relíquias parecem confirmar a existência de pelo menos mais três
Figura 3 Relicário setecentista de S. Vicente Tesouro da Sé de Lisboa.
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Estudo preliminar sobre as Relíquias de São Vicente
indivíduos, algum deles eventualmente mais idoso. Estes resultados
fazem com que o conjunto das relíquias do segundo relicário seja
compatível com S. Vicente. Todavia, em relação ao primeiro relicário,
se bem que não foi possível retirar muitas informações desta
relíquia, no que concerne ao facto de a mão se apresentar mumificada, parece-nos ser mais enquadrável num tipo de religiosidade
barroca portuguesa. Porém não podemos excluí-la totalmente de
uma análise mais aprofundada.
Quanto às informações do martírio temos de ter em consideração
que, se bem que S. Vicente aparenta ter sido efectivamente martirizado, a morte deste pode não ter sido a que vem descrita, tanto
mais que o circo de Valência estava ainda activo, o que demonstra a
vigência dos costumes romanos, e as hipóteses de martírio são,
efectivamente, variadas.
No entanto, a necessidade de se efectuar uma análise de 14C é premente, devido à probabilidade de se tratarem de relíquias compatíveis. Caso uma análise deste tipo nos forneça informações
também elas compatíveis, será muito difícil explicar que os restos
mortais tenham sido conservados sem pertenceram a S. Vicente,
ou a qualquer outro mártir, tanto mais que S. Vicente não é o único
mártir conhecido de Valência nestas perseguições, para além de
todos os outros cuja memória não foi mantida.
Agradecimentos
Os autores querem expressar os seus agradecimentos à
Dra. Maria Cristina Neto por todo o auxílio e sugestões prestados
ao longo da elaboração de todo este trabalho.
Bibliografia
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Portucalense, Porto.
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VVAA (2001). El Circo en Hispania Romana. Museo Nacional de Arte
Romano, Mérida. (no prelo).
1
Colaborador do Museu e Laboratório Zoológico e Antropológico (Museu Bocage) da
Universidade de Lisboa. Mestre em Evolução Humana pela Universidade de Coimbra.
2
Arqueólogo do Museu da Cidade de Setúbal/Convento de Jesus. Mestrando de
Filosofia em Portugal na Universidade de Lisboa.
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Conjunto dos lagares (Mouraria de Lisboa)
Teresa de Campos Coelho*, Nuno Maurício Dias
"Em memória de Armando Sabrosa pelo trabalho, investigação e amizade
partilhados ao longo destes anos na Mouraria de Lisboa"
I - Análise e enquadramento histórico
RESUMO
1 Características do quarteirão
Situado no coração do bairro, este conjunto é
Situado no coração da Mouraria, este conjunto é constituído pelos
limitado pela Rua e Travessa dos Lagares
rematando um quarteirão que, para além
lotes 6A07, 6A08, 6A09, 6A10 e 6A11, a que correspondem os
destas vias, é ainda limitado a sul pelo Largo do
números 23 e 23A da Rua dos Lagares e 3 a 23 da Travessa homó-
Terreirinho.
nima rematando um quarteirão que, para além destas vias, é ainda
Segundo António Lourenço Farinha estes
limitado a sul pelo Largo do Terreirinho.
Pertencendo, inicialmente, à freguesia de São Jorge, seria integra-
lagares terão pertencido, em 1502, a Pedro
Lopez de Carvalhal e ao Hospital de Todos-os-Santos. O edifício que constituem este conjun-
do em 1780 na dos Anjos, em virtude da reforma paroquial então
to são, na sua esmagadora maioria, de cons-
havida . Possuindo a mesma configuração desde longa data (como
trução pré-pombalina, à excepção do acrescen-
1
se pode verificar comparando a planta actual com a que foi elaborada por João Nunes Tinoco em 16502 - Fig.1), a sua toponímia sofre-
to feito após o terramoto sobre a Rua dos
Lagares, e de um outro lote de construção
mais recente, e adulterador de todo o conjunto.
ria algumas alterações. Com efeito a designação lagares só apare-
Estamos, como tal, perante um conjunto de
ceria após o terramoto, quer se trate da rua (conhecida até então
lotes que faziam parte de um todo caracteriza-
por Rua do pé do monte da Graça), quer do próprio beco, denominado Beco dos Captivos (Fig.2) até 1897 (nome por que aparece referenciado já em 15653), embora neste local seja conhecida esta
actividade agrícola desde tempos remotos, conforme documentos
publicados por Sousa Viterbo e mencionados por Gomes de Brito4 e
Luís Pastor de Macedo5.
do por uma pequena residência senhorial que,
embora dentro da urbe, manteve as características rurais, ao aproveitar as estruturas do
que parece ter sido uma exploração agrícola.
Com uma organização espacial de feição islâmica, patenteada na sua articulação em diferentes desníveis e pátios, impôs-se a sua
preservação, por constituir um dos raros exem-
Segundo António Lourenço Farinha6 os referidos lagares eram
plos que nos ficaram no centro histórico de
pertença, em 1502, de Pedro Lopez de Carvalhal e do Hospital de
Lisboa de um espaço vocacionadamente agríco-
Todos-os-Santos. Para este último passaram, em 1497, todos os
la. Estas características foram responsáveis
bens dos mouros e judeus, em virtude da ordem de expulsão decretada por D. Manuel, o que ainda hoje está documentado na existên-
pela sua definição no Plano de Urbanização da
Mouraria, como conjunto urbano edificado de
valor patrimonial, tornando-o objecto de um
cia da característica placa com S no n.º 17 da Travessa dos Lagares
programa funcional especial, pelo que viria a ser
(lote 6A10).
adquirido pela C.M.L. em 1998.
Os edifícios que constituem este conjunto são, na sua esmagadora
maioria, de construção pré-pombalina, em alvenaria com vãos e cu-
O aparecimento de uma pequena fonte de finais
de séc. XV /inícios de XVI conduziu à necessidade
de sondagens arqueológicas noutros pontos do
nhais em cantaria, à excepção do acrescento feito após o terramo-
terreno de que resultaram moedas, cerâmicas,
to sobre a Rua dos Lagares, e do n.º 3 (lote 6A08), de construção
elementos de construção, entre outros do
mais recente, e adulterador de todo o conjunto, embora dele faça
parte integrante aproveitando, sem dúvida alguma, estruturas
anteriores. No logradouro existe, ainda, uma cisterna. Estamos,
mesmo período, para além da existência de uma
outra fonte revestida a azulejo que se encontrava completamente aterrada. Estes trabalhos
setão a ser executados pela equipa de arqueó-
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logos do IPPAR que trabalhou, quer na igreja de
S. Lourenço quer noutros pontos da Mouraria.
Os trabalhos em curso confirmam estarmos
perante uma residência senhorial de finais do
séc. XV que se deve ter mantido pelo menos até
ao terramoto, após o que sofreu algumas alterações, como se pode inferir da construção em
gaiola da Rua dos Lagares. Estas alterações
seriam responsáveis pelo aterro de maior parte
do pátio, com o consequente camuflar da fonte
de azulejo agora posta a descoberto.
Pelas sua características, e respondendo a uma
necessidade antiga , este local pareceu-nos ser
o ideal para a instalação do Gabinete Local da
Mouraria uma vez que, deste modo, será possível a sua fruição por técnicos e população.
Figura 1 Excerto de planta de João Nunes Tinoco
(1650~
_)
como tal, perante um conjunto de lotes que faziam parte de um
todo caracterizado por uma pequena residência senhorial7, de composição assimétrica com janelas de sacada no andar nobre (Fig.3),
cuja entrada principal se situava no actual n.º 9 (lote 6A09)8. Mesmo
após o terramoto parece ter continuado a ser uma só propriedade,
apesar dos inúmeros arrendamentos que nos aparecem (e que já
existiam)9. Embora dentro da urbe, ela manteve as características
rurais, ao aproveitar as estruturas do que parece ter sido uma
exploração agrícola (Fig. 4).
Com uma organização espacial de feição islâmica, patenteada na
sua articulação em diferentes desníveis e pátios, impõe-se a sua
preservação, por constituir um dos raros exemplos que nos ficaram
no centro histórico de Lisboa de um espaço vocacionadamente agrí-
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cola, do então arrabalde da cidade. Estas características foram
responsáveis pela sua definição, no P.U. da Mouraria como conjunto
urbano edificado de valor patrimonial, prevendo-se para aqui um programa funcional especial.
Por escritura de 9 de Julho de 1998, todo o conjunto foi adquirido
pela C.M.L. pelo que se impôs, de imediato, e em virtude do seu elevado estado de degradação, o estudo de uma proposta de reabilitação. Informada por relatórios anteriores que chamavam a
atenção para o seu valor patrimonial, a equipa responsável procedeu
à limpeza de todo o terreno de modo que fosse possível, também,
uma melhor análise do edificado e o registo de elementos notáveis.
O aparecimento de uma pequena fonte de finais do séc. XV /inícios
de XVI (Fig.5), na qual estão integradas porcelanas orientais de início da expansão, conduziu à necessidade de sondagens arqueológiFigura 2 Excerto de levantamento de 1856-58
Figura 3 Conjunto de lagares (fachada principal)
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Figura 4 Pátio aterrado após o terramoto
cas noutros pontos do terreno, de que resultaram moedas, cerâmicas, elementos de construção, entre outros, do mesmo período,
para além da existência de uma outra fonte revestida a azulejo
Figura 5 Fonte de finais do século XV/início Séc. XVI
(Fig. 6), que se encontrava completamente aterrada. Estes trabalhos estão a ser executados pela equipa de arqueólogos do IPPAR
que se encontra na Igreja de S. Lourenço, equipa essa chefiada pelo
Dr. Clementino Amaro, tendo como elementos os arqueólogos
Armando Sabrosa e José Luis Monteiro.
Os trabalhos agora em curso confirmam estarmos perante uma
residência senhorial de finais do séc. XV que se deve ter mantido
pelo menos até ao terramoto, após o que sofreu algumas alterações, como se pode inferir da construção em gaiola sobre a Rua
dos Lagares. Estas alterações seriam responsáveis pelo aterro de
maior parte do pátio, com o consequente camuflar da fonte de
azulejo agora posta a descoberto.
Estes achados, reforçando intenções anteriores, conduziram à
necessidade de estudo de um programa funcional especial, que
preservasse não só a memória do local e o espólio encontrado mas
que permitisse, também, a sua fruição. Tal programa deverá contemplar a reposição da cota inferior do pátio (podendo continuar a
fazer-se o acesso à Rua dos Lagares por uma escada nele situado),
de modo a que seja o mais completa possível a sua leitura (o que lhe
conferirá, também, uma maior dignidade) e preservação da área edificada, com conservação e/ou reposição das técnicas e elementos
Figura 6 Pormenor do azuleo da 2.ª Fonte
construtivos próprios da época (cantarias, pavimentos, coberturas,
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tectos, etc), mesmo que em alguns pontos se possa vir a realizar
construção nova.
Pelas suas características, e respondendo a uma necessidade antiga,
este local parece-nos ser o ideal para instalação de equipamento, uma
vez que deste modo seria possível a sua fruíção por técnicos e população, podendo ser paradigmático do trabalho de recuperação urbana
a elaborar em centros históricos. Qualquer que seja o programa a
adoptar, ele não deverá alterar as principais características urbanas,
arquitectónicas e construtivas do conjunto, permitindo a sua continuidade mesmo em caso de alteração funcional.
II Conjunto dos lagares na mouraria - intervenção
arqueológica
O pátio que se desenvolve junto à Rua dos Lagares apresentava
sinais evidentes de ter sofrido significativas alterações na sequência do Terramoto de 1755.
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Com o fim de se conhecer a evolução daquele espaço e a sua articulação com o conjunto edificado, realizaram-se quatro sondagens no
Verão de 1999 em três lugares distintos.
A intervenção arqueológica constituiu-se, nesta primeira fase,
como mais um parceiro que disponibiliza um conjunto de informação,
ainda que parcelar e prévia, como mais uma peça a ter em consideração na definição de um programa funcional para o Conjunto dos
Lagares.
As sondagens 1 e 2 incidiram na zona central do pátio, junto ao
muro este de delimitação de propriedade, ao longo da actual Rua
dos Lagares. Aqui foi aberta uma porta de acesso após 1755, e o
interior do pátio foi aterrado em cerca de dois metros para permitir a cota de acesso à via.
A escavação das sondagens 1 e 2 revelaram uma área de jardim,
(fig.1) onde se destaca uma fonte com um reservatório quadrangular (fig. 1, 6) e revestida a azulejo (fig. 2). Esta encontra-se integrada mo muro de delimitação. Foi ainda evidenciada uma área de calçada em razoável estado de conservação (fig.1, 9 a 11), definindo um
corredor entre o referido muro de delimitação de propriedade e uma
das faces de um tanque (fig. 1, 21). Este tanque apresenta um
revestimento cerâmico "enxaquetado" a azul e branco na face do
corredor atrás referido. É ainda de destacar a presença de um canteiro (fig. 1, 16) no local onde o tanque evidencia uma fractura. Esta
terá sido uma consequência, tudo o indica, do Terramoto de 1755,
situação aliás que tem paralelos em outras estruturas arqueológicas já escavadas na cidade.
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Antes da opção de aterrar este espaço aberto, deu-se ainda início
a trabalhos de reconstrução de um muro, aproveitando materiais
resultantes do terramoto, mas esta iniciativa foi suspensa (fig. 1,
7 e 8 e fig. 3).
O revestimento cerâmico da fonte, de ornados policromos e onde se
destaca a presença de grotescos, terá sido uma das muitas produções de oficinas sem grande carácter erudito, numa interpretação ingénua, mas de genuína beleza (fig. 4).
Cronologicamente, tanto o revestimento azulejar da fonte como do
tanque, enquadram-se, a nível de paralelos, no último quartel do
século XVI e primeiro quartel do século XVII.
As tubagens da fonte são ainda em manilha de cerâmica.
A sondagem 3, aberta na mesma área, mas agora junto à parede
oeste do pátio, revelou uma nova área de calçada, mas aqui muito
destruída, dando acesso a uma porta que se encontra entaipada.
Esta situação estará associada à necessidade de nivelar este
espaço para a abertura de um acesso à Rua dos Lagares, na segunda metade do século XVIII. A porta em causa daria acesso à área
residencial.
A zona sul do pátio manteve a cota da primeira metade do século
XVIII, já que aqui foi construído um edifício após o terramoto, com
acesso pela Rua dos Lagares.
Na fase de limpeza dos escombros deste edifício, constatou-se a
presença de uma fonte também integrada, tal como a segunda identificada, no muro de delimitação de propriedade, ao longo da Rua
dos Lagares (fig. 5). Esta apresenta o arco da cobertura com uma
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decoração dentro da técnica do embrechado, de origem italiana, recorrendo-se à aplicação de conchas e fragmentos de porcelana da China,
numa composição geométrica. Este trabalho tem paralelos datáveis de
finais do século XVI, primeiras décadas do século XVII. A fonte apresenta uma mísula tardo-gótica, tendo-se, mais tarde, aplicado, sobre esta,
uma segunda bica. O tanque de recepção da água foi selado, provavelmente após a construção da edificação pombalina no local, ficando
agora a fonte ao nível da cave.
Achou-se pertinente proceder a uma sondagem arqueológica na base
daquela fonte. Aí verificou-se a presença de grande quantidade de
cerâmica, nomeadamente de loiça comum doméstica, para além de
vestígios de estruturas ainda de problemática leitura. O conjunto já
exumado é datável até ao século XV, ou seja, representa um momento
anterior à construção do espaço de jardim.
Os trabalhos foram entretanto suspensos a fim de ser avaliado e redimensionado todo o processo de intervenção no local, agora com mais
uma vertente na leitura do que terá sido uma residência senhorial, ainda
com laivos de influência islâmica, e que urge, globalmente, chegar às
suas origens e aos seus antecedentes, já que nos encontramos em
pleno espaço rural do arrabalde que foi a Mouraria.
III."Quarteirão dos Lagares" - Projecto de Reabilitação
3.1.O conjunto urbano designado por "Quarteirão dos Lagares",
pertença da freguesia do Socorro, situa-se no coração do bairro da
Mouraria, junto à escadaria do caracol da Graça, no sopé da colina com
o mesmo nome.
Este conjunto como que remata o quarteirão triangular definido pelo
Largo do Terreirinho e seu seguimento, a Calçada de Santo André, e pela
Rua e Travessa dos Lagares. Confronta a poente e a norte, com a rua
e travessa atrás mencionadas e a nascente com o Beco dos Lagares.
O seu limite sul é conformado pela empena do nº11 da Rua dos Lagares.
3.2. O "Quarteirão dos Lagares" é formado por cinco edifícios dispostos
em torno de um logradouro. A estes edifícios correspondem os nos 3 a
23 da Travessa dos Lagares e os nos 23 e 23A da rua homónima. A sua
organização espacial é feita segundo uma sucessão de diferentes níveis
e pátios. Os arruamentos que servem este conjunto são de escala
pedestre (com excepção da rua), apresentando ainda revestimentos de
basalto.
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Os edifícios são de construção em pedra com estrutura de madeira,
com vãos e cunhais em pedra. Exceptua-se o n.º 3, o qual se trata
de um raro exemplo de construção em taipa da cidade de Lisboa.
3.3. O "Quarteirão dos Lagares" surge como "problema urbanístico"
quando em 1983, o seu então proprietário, consegue deferimento
de um projecto que previa a demolição integral do conjunto. No seu
lugar seriam construídos edifícios de grande impacto volumétrico,
os quais descaracterizariam a envolvente. A Câmara Municipal de
Lisboa encetou então, um processo de anulação dos direitos anteriormente adquiridos. Este processo levou a uma negociação que
envolveu a permuta de solos, e teria o seu final a 9 de Julho de
1998, data em que a Câmara assinou a escritura, assumindo assim
a sua propriedade.
3.4. Dos trabalhos arqueológicos que tiveram lugar no Verão de
1999, resultou a descoberta de duas fontes: a primeira no muro
que confina o logradouro, a outra no interior do edifício n.º 23 da rua
dos Lagares. Resultou, ainda, a presunção da existência de um
jardim nobilitado, actualmente aterrado, no logradouro do conjunto.
Atendendo a estes valores históricos e àquele que constitui o conjunto urbano construído ele próprio, pretendeu-se a instalação de
um programa de carácter público, que permitisse o livre usufruto
deste património.
Este programa surgiu sob a forma de um Centro de Estudo de
Técnicas e Estratégias da Reabilitação Urbana. Partilhando o conjunto edificado, propõe-se um núcleo habitacional, o qual permitirá
conservar a vivência própria do lugar.
Figura 1 Planta de implantação
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Conjunto dos lagares (Mouraria de Lisboa)
Nível 1, entrada pelo n.º 9 da Tv Lagares
Nível 3, entrada pelo n.º 23A da R Lagares
Nível 4
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3.5. A habitação desenvolver-se-à maioritariamente no beco, fazen-
do com que esta sensível situação urbana, não se desertifique fora
dos horários em que funcionará o equipamento. Contempla a construção de dois fogos T2, um T3 e um T1. Estas tipologias servirão
para o realojamento da totalidade dos agregados familiares que
habitam no "Quarteirão dos Lagares".
O Centro de Estudos prevê espaços polivalentes para reuniões e
debates, salas de exposição temporária, exemplos de modelos e
trabalhos de recuperação, área de depósito de material arqueológico e as instalações do Gabinete de Reabilitação Local. Este funcionará como lugar para o atendimento à população, no sentido de
diagnosticar as questões físicas e sociais do bairro e promover a
sua inventariação e resolução.
O equipamento será servido por uma pequena cafetaria pública de
apoio, que ocupará a totalidade do edifício nº3 da travessa dos
Lagares.
Figura 3 Corte pelo Logradouro, vista da fonte do muro (sobre a esquerda), do edíficio novo, seccionando o saguão
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Conjunto dos lagares (Mouraria de Lisboa)
3.6. O projecto supõe a demolição de algumas paredes e a abertu-
ra pontual de vãos, permitindo assim a instalação das novas
funções propostas, bem como, conceder dignidade aos espaços
destinados à habitação.
O actual edifício n.º23 da rua dos Lagares, em elevado estado de
degradação, será demolido. No seu lugar será edificado um novo volume, em que funcionarão maioritariamente as instalações do
Gabinete de Reabilitação Local. Esta nova construção integrará a
fonte aí descoberta e funcionará segundo uma tipologia de meios
pisos.
Duas entradas servirão o equipamento. Uma pelo n.º 9 da travessa,
atravessando praticamente a totalidade do conjunto. O visitante
terá a oportunidade de cruzar a entrada nobilitada da casa senhorial, passando pelo passadiço coberto que se eleva sobre o saguão.
A segunda entrada realizar-se-á pelo n.º 23A da Rua dos Lagares,
através de uma passagem, que "pairará" sobre o logradouro, conduzindo ao novo edifício. Esta entrada reveste-se de particular
importância por ser ela a que permite o acesso a indivíduos de mobi
lidade reduzida.
Os espaços do Centro de Estudos e do Gabinete desenvolver-se-ão
em torno do logradouro/jardim, partilhando as mesmas circulações
horizontais e verticais, arrumos, etc..
3.7. A intervenção inclui áreas de reabilitação do edificado, restau-
ro e recuperação pontual de algumas estruturas (que ficarão
visíveis), construção nova e investigações arqueológicas, que decorrerão a céu aberto, durante o funcionamento do equipamento.
O objectivo do programa proposto será o de dotar o bairro da
Mouraria de um lugar próprio para o debate e discussão de ideias
sobre a reabilitação urbana, demonstrativo das técnicas e dos ofícios, fundamental à consciencialização da população e de todos os
agentes envolvidos, da importância do trabalho local e regional da
reabilitação dos bairros históricos, evidenciando a qualidade das
estruturas antigas, a necessidade de salvaguardar o património,
partilhando-o, articulado-o com o novo e revitalizando-o.
Notas
1
SANTANA, Francisco - Lisboa na 2.ª metade do séc. - XVIII, C.M.L., s/d.
2
VIEIRA DA SILVA, Augusto - Plantas Topográficas da cidade de Lisboa -
C.M.L., 1950, planta n.º 1.
3
Livro do lançamento e serviço que a cidade de Lisboa faz a El-Rei nosso
Senhor no ano de 1565, C.M.L., 1948.
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Teresa de Campos Coelho, Nuno Maurício Dias
4
Ruas de Lisboa, Livraria Sá da Costa, Lisboa 1935.
5
Lisboa de Lés-a-Lés, C.M.L., 1968.
In "Notícia Histórica do Bairro das Olarias"; referido por Luís Pastor de
Macedo, op.cit.
6
O referido levantamento de 1565 indica-nos que aqui residia uma tal
marquesa Lopez, muito possivelmente descendente de Pedro Lopez de
Carvalhal, o que nos é confirmado, em parte, pela existência do jardim
nobilitado recentemente posto a descoberto pelas intervenções arqueológicas em curso.
7
O mesmo levantamento não nos indica a possibilidade de existir outra
entrada pela Rua dos Lagares, como hoje se verifica (resultante, sem
dúvida, do terramoto), o que foi recentemente confirmado pela intervenção
arqueológica realizada, que nos mostra que o terreno junto desta via se
encontrava a uma cota mais baixa, tendo sido aterrado após o terramoto,
para igualar a cota da via.
8
Décimas da cidade, freguesia dos Anjos. Nesta fase da investigação, consultámos apenas os anos de 1762 a 1765.
9
* Arquitecta e Doutoranda em História da Arte, colaboradora do G. L. Mouraria.
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Cronologia histórica do nascimento e morte de um aparelho de
abastecimento de água (século XIII-XX):
O Chafariz de El-Rei e a área urbana envolvente
Rui Manuel da Silva Matos*
" (...) e depois descer sete degráos, para entrar pela mina,
que fica em frente, e conduz á Claraboia, já mencionada; a qual
tem as paredes de dentro muito rachadas; e observámos, que
o seu pavimento de lagedo está muito inclinado para a parte
da nescente da agua, que não é no centro da dita Claraboia,
como de costume, mas sim ao lado direito: o que inculca
escavação pela força da grande nascente; e isto póde um dia
dar logar a um grande prejuizo."
(José Sérgio Veloso de Andrade, Memória sobre chafarizes, bicas,
RESUMO
Sendo possuidora das águas mais mineralizadas da cidade, Alfama foi durante séculos,
referência obrigatória em cartas, relatos de
viagem ou estudos, sempre que o tema das
águas de Lisboa era abordado. À sua qualidade,
abundância e temperatura não ficaram estranhos os habitantes da Aschbouna muçulmana
que atribuíram à zona o único nome possível: Alhama, sinónimo de fonte de água quente ou
nascente termal.
fontes e poços públicos de Lisboa, Belém, e muitos logares do
O mais antigo chafariz de Lisboa, o que possui
termo, Lisboa, 1851, p. 112).
maior caudal, e possivelmente o primeiro marco
A pequena notícia histórica aqui apresentada resume-se a alguns
apontamentos sobre uma área de intervenção delimitada [globalmente o Chafariz de El-Rei e as suas estruturas hidráulicas subterrâneas [Fig. 6]; a mãe-de-água de S. João da Praça; os depósitos
no tardoz do chafariz e todo o edificado envolvente considerado pertinente nesta intervenção] e deve inserir-se num estudo de história
da distribuição das águas, foi inicialmente conhecido por Chafariz de S. João, ou de S. João
da Praça, possivelmente por que teria algumas
nascentes nessa freguesia, O porquê do nome
D'El Rei (ou chafariz real) é explicado por Júlio
de Castilho, por se tratar talvez do rei D. Dinis,
que teria aí feito as obras iniciais, e teria sido
este monarca a ordenar a sua transferência
para a parte exterior da referida cerca. O nome
urbana mais aprofundado que está neste momento a ser elaborado.
teria assim subsistido em veneração aquele
Aqui, pelo carácter sucinto desta explanação, procura-se apenas a
monarca. Julga-se que aqui teria sido a Aguada,
identificação dos momentos chave de um dos monumentos mais
importantes desta zona, e simultaneamente um dos mais mal conhecidos, - o Chafariz de El-Rei - e das estruturas hidráulicas e de
a que se referem documentos antigos, ou uma
das Aguadas de Alfama.
A Alfama primitiva, a calculada pela etimologia,
havia de corresponder a uma linha de nascentes
edificado conexas, que são no fundo o motivo essencial e polo
que viria desde o Cais da Fundição (ou até antes
dinamizador da intervenção de reabilitação urbana em curso.
na Bica do Sapato) até ao Chafariz de El-Rei:
Sendo possuidora das águas mais mineralizadas da cidade de
Beco do Penabuquel, Chafariz da Praia, Chafariz
Lisboa, a área histórica de Alfama foi durante séculos referência
obrigatória em cartas, relatos de viagem ou estudos, sempre que o
tema das águas da capital era abordado. À sua qualidade, abundância e temperatura não ficaram estranhos os habitantes da
Aschbouna muçulmana, que atribuíram à zona o único nome possi-
Boqueirão da Praia da Galé, Jardim do Tabaco,
de Dentro, Banhos do Doutor Fernando,
Alcaçarias do Mosteiro de Alcobaça, Alcaçarias
do Duque, Barrelas (Fonte das Ratas), Banhos
da Dona Clara e Banhos do Baptista. Vindas
duma profundidade que se calcula superior a
450 metros, no sopé da encosta de Alfama brotam estas nascentes de temperatura elevada,
vel: Al-hama, usualmente considerado sinónimo de fonte de água
de caudal interdependente e de composição
quente ou nascente termal (embora este identificação careça even-
quimica semelhante. São as nascentes das
tualmente de uma clarificação e de uma abordagem mais aprofundada).
Alcaçarias, de resíduo seco baixo, desprendendo azoto e de termalidade compreendida entre
20.º e 31.º, classificadas de hipossalinas azo-
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tadas quentes.
Na descrição da cidade do autor Ibne Abde
Almunime, que a tirou de Edrici, afirma-se que
no centro da cidade há nascentes de água
quente ("al-hamma", no plural) tanto de Inverno
como de Verão. Não se pode dizer exactamente
onde era, mas ficava mais ou menos no extremo
oriental da actual rua de S. João da Praça.
Tirante a fonte do Chafariz de El-rei, todas as
outras nascentes são exteriores aos limites da
cerca velha.
Cronologia histórica do nascimento e morte de um aparelho de abastecimento de água (século XIII-XX):
O Chafariz de El-Rei e a área urbana envolvente
A Alfama primitiva, a calculada pela etimologia, havia de corresponder a uma linha de nascentes que viria desde o Cais da Fundição (ou
até antes, da Bica do Sapato) até ao Chafariz de El-Rei: Boqueirão
da Praia da Galé, Jardim do Tabaco, Beco do Penabuquel, Chafariz
da Praia, Chafariz de Dentro, Banhos do Doutor Fernando,
Alcaçarias do Mosteiro de Alcobaça, Alcaçarias do Duque, Barrelas
(Fonte das Ratas), Banhos da Dona Clara e Banhos do Baptista.
Vindas duma profundidade que se calcula superior a quatrocentos e
cinquenta metros, no sopé da encosta de Alfama, estas nascentes
brotam com uma temperatura elevada, possuindo um caudal interdependente e composição química semelhante. Única excepção são
as nascentes das Alcaçarias, de resíduo seco baixo, desprendendo
azoto e de termalidade compreendida entre 20º e 31º, classificadas
de hipossalinas azotadas quentes.
O Chafariz de El-Rei, aquele que possuía maior caudal e possivelmente o primeiro marco da distribuição das águas em Lisboa, foi inicialmente conhecido por Chafariz de S. João, ou de S. João da
Praça, possivelmente por que teria algumas das suas nascentes
nessa freguesia. O porquê do nome de El-Rei (ou chafariz real) é
explicado por Júlio de Castilho pela eventualidade de hipoteticamente o rei D. Dinis ter aí feito obras e ter ordenado a sua transferência para a parte exterior da "cerca moura" ou, mais apropriadamente designada "cerca velha" (a primeira estrutura defensiva da
urbe, que é de facto uma muralha tardo-romana, como o demonstraram as escavações mais recentes - inseridas no âmbito do projecto aqui apresentado - efectuadas na rua de S. João da Praça).
Com excepção da fonte do Chafariz de El-Rei todas as outras
nascentes são exteriores aos limites da "cerca velha". O nome teria
assim subsistido em veneração aquele monarca. Julga-se que aqui
teria sido a Aguada, a que se referem documentos antigos, ou uma
das Aguadas de Alfama.
Vieira da Silva admite, na Epigrafia de Olisipo, que os romanos
tivessem utilizado em edifícios próprios as nascentes medicinais de
Alfama (Alcaçarias) e construído as primeiras fontes ou chafarizes,
onde agora estão os chafarizes de El-Rei e de Dentro, ainda que disso
não haja documentação nem vestígios.
Na descrição da cidade do autor Ibne Abde Almunime, que a tirou de
Edrici, afirma-se que no centro da cidade há nascentes de água
quente ("al-hamma", no plural) tanto de Inverno como de Verão. Não
se pode dizer exactamente onde eram, mas ficavam mais ou menos
no "extremo oriental da actual rua de S. João da Praça"1.
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Outra informação que prova o aproveitamento contínuo das águas
termais é a Crónica da Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147,
narrada pelo Cruzado Osberno [Crucesignati anglici epistola de
expugnatione olisiponis - Carta de um cruzado inglês sobre a conquista de Lisboa]2, de Osberno, que se refere aos banhos quentes
da cidade. Aí se pode ler: "Os seus ares [de Lisboa] são saudáveis,
e há na cidade banhos quentes"3. Ainda no mesmo texto:
"Encontraram-se depois no arrabalde, do nosso lado [Alfama], e em
cavernas abertas na encosta do monte, perto de cem mil cargas de
trigo, cevada, milho e legumes, mantimentos da maior parte da
cidade, porque ao sopé dos muros tinham grande extensão de
espaço, e a dureza da rocha firme, para guardarem grande quantidade de objectos domésticos, ao passo que em baixo, no vale, a
abundância das águas não lhes permitia abrir fossos"4. Citação que
comprova a abundância de águas na zona baixa desta parte da
cidade.
O chafariz que aqui nos ocupa é mencionado por Fernão Lopes na
Crónica de D. Fernando, que o atribui ao tempo de D. Afonso II,
referindo-o o cronista a propósito do cerco posto a Lisboa por
D. Henrique de Castela no século XIV. Segundo consta da Memoria
para a historia das inquirições de D. Afonso II5, existia em 1220, na
freguesia de S. João da Praça, um chafariz denominado de Sancti
Johanis (S. João), situado no interior da "cerca velha".
D. Dinis, cerca de 1308, mandou executar aí obras, às quais se refere um documento de 10 de Outubro desse ano, citando privilégios
concedidos aos religiosos.
As notícias mais antigas (documentalmente comprovadas) que se
encontram no arquivo da municipalidade de Lisboa acerca do
Chafariz de El-Rei, remontam ao ano de 1487 (cartas régias
datadas de Alenquer, aos 16 de Setembro), no reinado de D. João
II, quando este monarca mandou proceder às obras indispensáveis
para que nele pudessem fazer aguada, da parte do rio, os batéis das
naus da armada real, assunto de que tratam as cartas régias do
Livro I de Provimento d'agua. Era das águas deste chafariz que se
provia boa parte da capital e também aqui se vinham abastecer as
barcas e navios desde o século XV. Os documentos referem-se à
construção de um encanamento (possivelmente subterrâneo), cujo
orçamento era feito em doze mil réis, e que ia desde o chafariz até
ao mar, possibilitando assim aos batéis e naus da Ribeira ali receberem as águas necessárias para as aguadas da marinha. Numa
segunda carta, com a mesma data, mandava-se participar ao
Corregedor de Lisboa, que estavam dadas ordens ao Patrão da Nau
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Cronologia histórica do nascimento e morte de um aparelho de abastecimento de água (século XIII-XX):
O Chafariz de El-Rei e a área urbana envolvente
para que falasse com os mestres de todos os navios que
estivessem no porto, dando indicações para que cada um com o seu
batel prestasse um dia de serviço na referida obra transportando
pedra e cal. Referia ainda, que caso se escusassem a fazer o dito
serviço, o Corregedor os constrangeria fazendo dar a cada um o
seu giro.
Existe notícia de uma outra carta régia, de D. Manuel I, datada de
Almeirim de 27 de Maio de 1494, em que se manda que não fossem
feitas experiências para subir mais as águas do chafariz. Também
neste ano fizeram-se diversas pesquisas relativamente às
nascentes que o alimentavam, parece que no propósito de conduzir
a água a algum ponto mais elevado, o que afinal se revelou impraticável. Sobre este caso particular veja-se a carta régia citada, cuja
transcrição é a seguinte: "Vereadores, procurador e procuradores
dos mesteres, Nos ElRey vos emuiamos muyto saudar. Vimos duas
cartas que nos emuiastes. E quamto aa que fala sobre a deligemçia
que se pos, açerca de se veer o naçimento da augua do chafariz
delRey, pareeçeonos muy bem, pº sempre nosso emtemder foy que
a dita augua nom poderia sobir tanto, que podese seer leuada homde
se fazia dello fumdamento; E por tanto avemos pr bem que se nam
faça sobre ello mais esperiemçias, e a leixem estar como esta"6.
A panorâmica de Lisboa da primeira metade do século XVI, da
Biblioteca da Universidade de Leyde [Fig. 1] (uma das mais fiéis e,
possivelmente, das mais antigas vistas de Lisboa), representa-o
com a fachada definida por três arcos e com as armas régias
ladeadas por duas esferas armilares, o que corresponde ao seu
aspecto depois das transformações efectuadas no período manuelino. No capítulo setenta e cinco da quarta parte da Crónica de
D. Manuel, diz Damião de Góis a propósito das obras efectuadas por
este monarca: "Mandou fazer de novo o caes da pedra de Lisboa, e
tabuleiros de longo da praia, e chafarizes da cidade tudo de pedra
canto". D. Manuel morre em 1521, portanto estas obras referem-se a um período anterior a esta data7.
Nota-se nesta imagem a existência de um pátio fechado defendendo a área do chafariz.
As casas sobre o chafariz pertenciam a Lopo de Albuquerque, que
morava numa casa atrás do fontanário e que tinha mandado fazer
uma cobertura de madeira e telha sobre os depósitos de água, em
1517 (justificada em consequência dos muitos limos que criava e
das muitas "sugidades" que lhe caiam), autorizando igualmente
nessa data a passagem dos canos pela sua propriedade. Estas
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casas foram adquiridas pelo Senado da Câmara em 1520, para
obviar a que delas fossem lançadas imundícies para o depósito.
Em 1551, dada a enorme afluência de gentes às bicas do chafariz,
teve de se criar uma espécie de regulamento, por forma a evitar
brigas e atropelos. A postura camarária do Senado tentou pôr cobro
a essa situação condicionando o acesso à água segundo uma hierarquia sexual e social correspondente à forte estratificação da cidade
Quinhentista e procurando disciplinar e reprimir os abusos que ali se
verificavam.
Esta postura é a seguinte: "Constando ao Senado que há homens
brancos, negros que vão à bicas do chafariz de El-Rei a vender água
a quem vai buscar, de que seguem brigas, ferimentos e mortos faz
a sua postura para a repartição das ditas bicas pela maneira
seguinte: na primeira bica indo da Ribeira para elas, encherão pretos-forros e captivos, e assim mulatos e indios e todos os mais
captivos, que forem homens. Logo na segunda seguinte poderão
encher os mouros das galés sómente a água que for necessária
para as suas aguadas, e tendo cheio os seus barris, ficará a dita
bica para os negros e mulatos conforme a declaração atráz. Na terceira e quarta, que são as duas do meio, encherão as mulheres pretas, mulatas, indias forras e captivas - e na derradeira bica da
banda de Alfama encherão as mulheres e moças brancas, conforme
a declaração das bicas, sob pena de quem o contrário fizer do que
está dito, sendo pessoa branca e forra, assim homem como mulher,
pagará dois mil reis de pena, ficando três dias na cadeia sem munis-
Figura 1 Lanço da "Cerca Velha ou Cerca Moura" ao
longo do Tejo (reconstituição conjectural de Vieira da
Silva do troço do Chafariz de El-Rei, a negro o existente e a tracejado o hipotético), in A. Vieira da Silva,
A Cêrca Moura de Lisboa, Lisboa, 3.ª ed., CML, 1987,
Estampa V [a preto a planta topográfica actual da
região, a vermelho a planta anterior ao terramoto de
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Cronologia histórica do nascimento e morte de um aparelho de abastecimento de água (século XIII-XX):
O Chafariz de El-Rei e a área urbana envolvente
são; de que haverá metade da pena do dinheiro quem o acusar, e a
outra metade para a cidade. - da mesma terão os ditos brancos,
mulatos, indios e pretos-forros, que encherem por dinheiro, ou
aclarando-se que enchão em qualquer outra das que se lhe nomeião,
posto que corra dita água no chão, e não poderão encher nas
declaradas, e os negros e captivos e os mais escravos, que o contrário fizerem do que está dito, serão publicamente assoutados
com pregão de redor do dito chafariz, conforme a provisão de El-Rei
Nosso Senhor novamente passada, as quais penas se executaram
três dias depois da publicação desta postura que se lhe dão para
vir primeiro à noticias dos moradores desta cidade"8.
Possuiria nesta altura (1551) seis bicas de pedra, com bocais de
bronze, ficando à sua frente um pequeno átrio com 17,6 m de comprimento, 8,8 m de largura e cerca de 1,32 m inferiormente ao terreno circundante, espaço para o qual se descia por duas escadas
laterais.
Damião de Góis (1502-1574) descreve o chafariz e a zona envolvente
na sua Descrição da cidade de Lisboa [1554]9: "No litoral, nascem
muitas fontes, com canalizações subterrâneas a partir de diversos
pontos da cidade, das quais a população se abastece de água.
A uma delas chamam Chafariz d'El-Rei: construção notável, com colunas e arcarias de mármore. Deita tal abundância de água, através
de seis bicas, que bastaria ela para dar de beber a toda a gente.
Pelo alto teor de pureza, sabor e leveza da sua água, esta fonte
iguala ou supera todas as fontes que me lembro de ter visto. A água
brota morna; mas, depois de repousar durante um breve espaço de
tempo, fica muito pura e fresquíssima e é um prazer bebê-la.
Perto daqui, mais duas fontes [ou chafarizes] jorram água em
grandes borbotões, que vão correndo para o mar como um regato.
Figura 2 Chafariz de El-Rei [pormenor], anónimo,
Panorâmica de Lisboa, primeira metade do século
XVI, Biblioteca da Universidade de Leyde, desenho,
dim. do original: 830 x 2745 mm.
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Se estivessem a maior distância do mar, muitas azenhas poderiam
ser facilmente movidas, em qualquer época do ano, com a força e a
intensidade desta corrente. Pelo menos, são de grande utilidade
para as lavadeiras, curtidores de peles e surradores.
A uma distância relativamente pequena, para os lados da porta da
Cruz, emerge uma outra fonte, ou, para melhor dizer, um tanque
chamado [Chafariz] dos Cavalos, isto porque tem umas esculturas
de cavalos cujos focinhos de bronze deitam jorros de água, formando, ao sair do tanque, uma espécie de riachos"10.
Francisco de Holanda afirma que Lisboa só possuía dois chafarizes
dignos desse nome, um para o povo (o de El-Rei) e outro para as
bestas (o chafariz de Dentro ou dos Cavalos), conforme se comprova pela citação de Da fábrica que falece à cidade de Lisboa [1571]:
"Em Lisboa onde todos bebem água não tem mais que um estreito
chafariz para tanta gente e outro para os cavalos".
Em 1584 o Padre Duarte Sande escreve: "É [o mencionado chafariz]
de boa construção, e todo de pedra mármore. De uma nascente
próxima recebe as águas, que naquela cidade são abundantes, e as
lança por bocas muito espaçosas e bem trabalhadas, sendo tal a
concorrência de servos e criados que a vão buscar, que até pela
noite adiante ali estão em carreira esperando a sua vez".
Uma representação iconográfica próxima desta data pode ser
encontrada na vista em perspectiva de Lisboa, com o título de
"Olissipo quae nunc Lisboa, civitas amplissima Lusitaniae, ad Tagum,
totius Orientis, et multarum insularum Aphricaeque et Americae
emporium nobilissimum," desenho anónimo da segunda metade do
século XVI, inserida na obra de Jorge Braunio, Civitates Orbis
Terrarum (vol. V, c. 1593). Esta é uma vista perspectivada aérea ou
em voo de pássaro, semi-panorâmica, semi-topográfica, mas cuja
fiabilidade merece algumas cautelas, devendo ser vista com algum
cuidado e que não nos elucida grandemente sobre a disposição geral
dos edifícios em estudo. O chafariz aparece aqui representado com
o nome de Fons uberrimus, fazendo deste chafariz o veterano das
fontes de Lisboa.
Uma outra representação do chafariz no final do século XVI surge
na pintura de mestre desconhecido dos Países Baixos11 (óleo sobre
madeira de castanho, 93x163 cm, Lisboa, Colecção Particular),
revelada por Vítor Serrão [Fig. 3]. Segundo este autor a pintura
teria sido realizada nos finais do século XVI, mais precisamente no
ano de 1598, para assinalar os melhoramentos realizados no chafariz pelo município de Lisboa, nesse ano, constituindo "exemplo de
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Cronologia histórica do nascimento e morte de um aparelho de abastecimento de água (século XIII-XX):
O Chafariz de El-Rei e a área urbana envolvente
um painel de gratulação municipalista, encomendado pelo Senado da
Câmara de modo a assinalar as grandes obras feitas"12. Contudo
não explica porque é que não estão representados dignatários do
Senado da Câmara, num painel de suposta gratulação municipal,
nem porque é que a imagem do chafariz que a pintura transmite é
ainda a da época manuelina e não a resultante da reforma de 1598,
pelo que a sua interpretação do tema e a proposta de cronologia
parecem inaceitáveis. Ainda segundo este autor estaríamos perante uma inédita obra de um mestre maneirista português de nível
secundário, ou então de um dos numerosos flamengos estabelecidos, à época, na cidade. Joaquim Oliveira Caetano, numa breve
referência à descoberta da pintura, considera o painel obra "de
autor quinhentista português, com uma rara perspectiva do
Chafariz d'El-Rei, em dia de festividades, peça de alto interesse
iconográfico olissiponense"13. Fernando António Baptista Pereira
afirma tratar-se muito provavelmente de um painel de autoria nórdica14. A hipótese levantada por Anísio Franco de se tratar de um
painel "à maneira de quinhentos" realizado já no século XX, a partir
de fontes iconográficas anteriores (que não nomeia), baseada em
supostas e muito frágeis incongruências iconográficas, foi liminarmente afastada após um cuidadosos exame material da pintura levado a cabo pelos conservadores-restauradores Carmem Almagro e
Luís Figueira e por Fernando António Baptista Pereira [exame realizado com o auxílio do aparelho scopeman, que permitiu analisar o
suporte e a camada cromática, revelando a antiguidade do craquelé e as próprias intervenções de restauro mais recentes, assim
como a técnica do pintor anónimo, estranha aos mestres portugueses da época mas muito próxima da dos miniaturistas e dos pintores "de género" nórdicos]. As pretensas objecções iconográficas
Figura 3 Chafariz de El-Rei [pormenor], mestre
desconhecido (Países Baixos), o Chafariz de El-Rei
no século XVI, c. 1570-1580, óleo sobre madeira de
castanho, 93 x 163 cm, Lisboa, Colecção Particular
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revelariam, antes de mais, um limitado conhecimento das convenções da pintura de género flamenga assim como a realidade
social de quinhentos. Esta será, assim, uma pintura realizada cerca
da década de 1570-1580, atendendo à imagem da cidade e do chafariz, assim como aos trajos representados, por um artista dos
Países Baixos que revela um olhar "documental" próprio da chamada
(e emergente na época) "pintura de género". A partir de esbocetos
"tirado do natural", o artista terá composto, eventualmente já na
sua terra natal, uma cena de clara intenção pícara e burlesca em
que "retrata" um treco da Lisboa miscigenada e "exótica", combinando-o com elementos totalmente estranhos à realidade portuguesa
de então (como os cisnes, patos e focas próprios de rios, canais e
mares do norte, ou a forma de abraçar na cena amorosa do barco)
mas familiares à tradição pictórica neerlandesa e alemã, quer dos
livros de horas, quer da pintura de cavalete. O facto de se saber
que os actuais possuidores compraram a pintura em Madrid, proveniente de uma colecção holandesa, pode ajudar a consolidar esta
hipótese de leitura.
Uma postura camarária publicada em 1604 voltou a tentar ordenar,
com disciplina, o abastecimento da água para reprimir os abusos e
excessos que praticavam os aguadeiros, de que por vezes resultavam lutas sangrentas. As seis bicas do chafariz, segundo aquela
determinação da edilidade, ficavam assim distribuídas pelos diferentes frequentadores. O teor do documento é o seguinte: "Sobre
a ordem que se ha de ter nas bicas do chafariz delRei. Foi acordado pellos sobreditos: Pellos grandes inconuenientes que a experiencia tinha mostrado de não auer opreção das bicas do chafariz
delRey, se vendia agoa delle ordinariamente, e auia homes brancos
e negros e mouros que se hião por as bicas a vender a dita agoa a
quem a hia buscar, de que socedião brigas, mortes e ferimentos; e,
querendo euitar isto, foi assentado e detreminado, como dito he
que p.ª bom gouerno e ordem da repartição da dita agoa, que as
bicas se repartissem pellas pessoas que no tit.º dellas hora estão
assignalados, a saber: Que na p.ª bica, indo da Ribeira pera ella,
encherão pretos, forros e captiuos, assim mulatos, indios como os
mais captiuos que sejam homes; e logo na segunda seg.te poderão
encher os mouros das galles, somente agoa que for neçess.ª pera
suas auguadas, e, tendo cheos seus barris, ficará a dita bica pera
os ditos negros e mulatos, conforme a declaração atras; na terceira e quarta, que são as duas do meo, encherão nellas os homes
e molheres brancos; na quinta seguinte logo encherão as molheres
pretas, mulatas indias, forras e captiuas; na deradeira bica da
banda d'Alfama, encherão as molheres e moças brancas, conforme
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Cronologia histórica do nascimento e morte de um aparelho de abastecimento de água (século XIII-XX):
O Chafariz de El-Rei e a área urbana envolvente
a declaração das bicas, sob pena que, quem o cont.rio fizer do que
está dito, sendo pessoa branca e forra, assim homes como molheres, pagarão dous mil rs de pena e dez dias de cadea, sem remissão, de que auerá a metade da pena de dr.º quem o accusar e a
outra ametade pª a cidade, e a mesma pena auerão os ditos brancos, mulatos, pretos, indios forros que encherem por dinheiro, ou
achandosse que enchem em qualquer outra bica das que se lhes
nomea, posto que corra a dita agoa no chão, e não poderão encher
nas declaradas; e os negros, captiuos e mouros e os mais escrauos e escrauas, como forem pessoas captiuas, que o cont.rio fizerem do que está dito, serão p.camente asoutados, com baraço e
pregão, deredor do dito chafariz, sem remissão, conforme a
prouisão delRey, nosso s.or, nouamente passada; as quaes penas se
executarão despois desta post.ra apregoada tres dias, p.ª vir a noticia de todos"15.
Em 1614 o velho chafariz voltou a sofrer algumas alterações, tendo
então um enriquecimento em termos aquiferos com a compra de um
dos poços a Beatriz Ayalla.
A primeira representação planimétrica deste espaço é feita na
"Planta da Cidade de Lisboa em que se mostrão os muros de vermelho com todas as ruas e praças da cidade dos muros adentro
com as declarações postas em seu lugar", delineada por João
Nunes Tinoco em 1650. Obra em que o espaço urbano aqui objecto
de intervenção já aparece com uma configuração próxima da actual, incluindo o pequeno espaço vazio existente no interior do quarteirão que interrompe a frente da rua de S. João da Praça, por baixo
do qual existe a "Mãe de Água" do Chafariz de El-Rei e algumas das
estruturas hidráulicas anexas.
Em 1700, ano em que sofre obras importantes, possuía seis bicas,
número que não se altera até 1726. Procederam-se então (1700)
a desentulhos, pois a água estava barrenta e a obras no interior e
na fachada.
Sem data é a "Relação do que contem o chafariz d'El-Rei", mas que
parece ter sido feita nos primeiros meses do ano de 1700, porque
se encontra no Livro V dos Assentos do senado oriental16, entre um
documento que a precede, com a data de 2 de Dezembro de 1699,
e outro que se lhe segue, com a data de 27 de Agosto de 1700.
Pela importância deste documento fazemos aqui uma transcrição
de parte significativa do extenso documento:
"Detraz da linha das bicas, 20 palmos para o Noroeste, está
uma grande arca e conserva d'agua de 50 palmos, 38 de largo
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e 8 de fundo, que tantos ha de primeiro n'ella subir a agua para
poder chegar ás bicas.
É descoberta pela parte de cima. Suas quatro paredes são de
cantaria (quanto alcança a agua), d'ali para cima é alvenaria, e
sobem á altura de 60, 80 e 100 palmos, ficando tudo fechado
tapado, de sorte que, para dentro, não ha janella nem fresta
alguma; o fundo d'ella é quasi todo de uma areia morta, molle,
na côr tirante a amarello, e misturada com barro, em parte é
rocha viva, e em parte pedra secca, e algumas lages tambem
assentadas em secco.
N'este fundo, entre as areias e o empedrado, nascem varios
olhos d'agua, que é a principal do chafariz.
D'esta grande arca, 80 palmos para a parte do Noroeste, fica
uma alfurja que serve para despejos das aguas dos telhados
interiores, situada entre duas escadas de pedra, que dão serventia aos dois quartos alto e baixo, das casas do conde de
Villa Verde; na ilharga d'esta alfurja, da parte do Poente,
nascem dois olhos d'agua, ambos juntos, dos quaes até ao
presente não havia noticia alguma, e agora se descobriram
pela occasião seguinte:
No anno de 1699 se perturbou esta agua do chafariz com
tanto barro, terra e entulho, que estava incapaz de se beber,
e, por se ignorar a causa d'esta perturbação, o senado a mandou examinar, o que logo se fez na fórma seguinte: Vasou-se o
tanque da conserva d'agua, e no fim d'elle, junto do angulo que
olha para o Norte, se achou uma emboccadura de cano, alta 2
palmos, larga 2/3, e por esta boca vinha uma grande porção
de agua turba, que infeccionava toda a mais; mas, porque
tambem se ignorava o principio e origem d'esta emboccadura,
se foi logo buscando e se achou na entrada do beco coberto,
que por detraz do chafariz sóbe para o arco de S. Pedro18, uma
arca pequena, de 5 palmos de comprido e 3 ½ de largo, feita
de tijolos, coberta com uma lage, enterrada 20 palmos,
porque ali vae o terreno alteando; e logo mais dentro, no
mesmo beco e no mesmo nível, appareceu outra arca da
mesma fórma que a primeira19.
A esta segunda arca, pela parte do Norte, acudia uma grossa
veia d'agua: esta foi-se seguindo por espaço de 80 palmos,
sempre por meio de entulho e terra movediça, por entre os
quaes, sem artificio algum a mesma agua naturalmente se
tinha encanado até se passar além d'alfurja. Aqui se achou um
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O Chafariz de El-Rei e a área urbana envolvente
vasio de 35 palmos de comprido, 25 de largo e 20 de alto, e
por cima tudo carregado de entulho até ao pavimento do pateo
descoberto da entrada alta das casas do conde de Villa Verde,
que fica mais alto 50 palmos.
No meio d'este vasio se acharam os ditos dois olhos d'agua até
aqui ignorados, os quaes, com o movimento do seu nascimento, tinham solapado todo aquelle vão, e levado comsigo até ao
tanque todas aquellas materias que viciavam e turbavam as
aguas do chafariz.
Remediou-se este damno, levantando-se duas paredes nos
lados d'estes olhos d'agua, cobertas com abodada dobrada, de
tijolo, para ficar servindo de mãe d'agua, em fórma de mina:
tem esta de comprido 25 palmos, altura 10 e largura 4 ½.
D'este logar, até á segunda arca do bêco coberto que vae a S.
Pedro, se fez de novo uma mina, seguindo a mesma direcção
que a agua trazia: larga 4 palmos, alta o que basta para entrar
um homem. Suas paredes no fundamento é pedra secca, no
alto são de pedra e cal, e coberta de abobada tambem dobrada; o chão é calçado de pedra secca, por se entender que
n'este caminho poderão haver alguns olhos d'agua, e d'esta
sorte se aproveitarem. Esta mina fica toda enterrada, mas
logo á flor da terra.
Para se entrar n'ella tem duas boccas ou entradas: uma na
ilharga da alfurja onde está uma porta com hombreiras, verga
e couceira, tudo de lancil; tem de alto 5 palmos, de largo 3,
está tapada de pedra e cal, e no tapume uma pedra de palmo
e meio em quadrado, e n'ella aberta esta legenda: - Arca do
chafariz. A outra bocca da mina fica no meio do bêco coberto
que sóbe para S. Pedro, e tem outra pedra semelhante de
palmo e meio, em quadro, embutida na parede da banda do
chafariz, 10 palmos alta do chão, com esta inscripção: - Ao pé
d'esta está a bocca do chafariz. 170021.
No meio d'este bêco, que tem 8 palmos de largo, se hão de
cavar 8 palmos, e logo achará a outra lage que cobre a bocca
da mina".
Pela sua leitura, embora não seja completamente conclusiva,
podemos conjecturar que teria sido nesta altura (1699-1700) construída a denominada "mãe-de-água" da rua de S. João da Praça.
Em 1744 a fachada do chafariz desmorona-se, tendo perecido
cerca de dezoito pessoas que se abasteciam na altura.
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Em 1746 foi reedificado já com nove bicas22. Vieira da Silva conjecturou que também nesta data teria sido feito o apainelado da
frontaria do corpo inferior, conservando-se assim até 1821 (segundo o desenho de Luís Gonzaga Pereira).
Com o Terramoto de 1755 o Chafariz de El-Rei foi afectado e o palácio do marquês de Angeja, a escassos metros, desmoronou-se. Este
terramoto fez com que a sua fachada fosse objecto de novos restauros. Entre 3 de Outubro de 1774 e 24 de Julho de 1775 (segundo
as folhas semanais), decorreu uma obra onde foram gastos
1.271$635 réis em obras de arranjo (sendo de "aviamentos"
298$790 réis e de "jornaes" 972$845). Esta quantia porém, por ser
muito escassa, não pode corresponder à obra que hoje ali se pode ver.
Em 17 de Outubro de 1812 um aviso régio ordenava que se
fizessem pela Repartição das Águas Livres, as obras de reedificação, que duraram até 1820. Foram então executados nove
panos, correspondentes a outras tantas bicas, tendo como centro
o Brasão Real e duas caravelas.
Em 1836 apainelou-se o frontispício do chafariz, tendo-se assentado nesse ano os painéis e vergas, algumas pilastras e uma parte da
cimalha. Em 1861 concluía-se o dito apainelado superior, a platibanda, a colocação de dez vasos com piteiras de folha de flandres e as
oito pirâmides. Estas são últimas obras de grande vulto que este
monumento sofreu, e que lhe dão a configuração actual, em que
este se apresenta como um chafariz de espaldar com tanque à
frente e átrio de acesso, possuindo somente três bicas.
O Decreto de 22 de Dezembro de 1852, que autoriza o Governo a
contratar, em concurso público, o fornecimento das águas precisas
para consumo na capital, inicia o processo que vai tornar inútil a utilização dos chafarizes públicos. Segundo este Decreto a empresa
deverá levar a água ao domicílio dos habitantes, por meio de um sistema de condutores ou encanamentos e deverá manter em perfeito
estado de conservação os encanamentos e chafarizes existentes,
ou outros quaisquer que se lhes substituam, para serviço de quem
neles se quiser continuar a abastecer.
Deste mesmo ano (12 de Abril) é o "Relatório á Excellentissima
Camara Municipal de Lisboa, sobre o estudo das nascentes que alimentam os chafarizes d'El-Rei, de Dentro, da Praia, e o tanque das
Alcaçarias: - e sobre os meios de estabelecer um melhor systema
de aproveitamento, e de distribuição destas mesmas aguas, no
Bairro Oriental de Lisboa, assim como na Cidade baixa"23, da autoria do engenheiro P. J. Pézerat, onde se afirma que as águas aqui
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Cronologia histórica do nascimento e morte de um aparelho de abastecimento de água (século XIII-XX):
O Chafariz de El-Rei e a área urbana envolvente
em questão não podem provir senão do mesmo manancial, isto é, do
lençol "que temos reconhecido, ha muito tempo, e que existe n'uma
camada ou extracto de arêias, um pouco argilosas, de terreno terciario ou calcario grosseiro, sobre que assenta esta parte de
Lisboa. (...) Extracto, que vem tocar ou sahir (affleurer) debaixo dos
cáes ou prais desta Cidade oriental (...). Nivel das nascentes, que
corresponde perfeitamente ao traço oriental, que determina a
direcção de todo o systema de extratificação".
A comparação entre as representações planimétricas urbanísticas
de 1858 (planta topográfica da autoria de Filipe Folque, elaborada
por uma equipa constituída por Carlos Pezarat, Francisco Goullard
e César Goullard, sob a orientação de Filipe Folque (1800-1874),
com data de Setembro de 1858 na folha que nos interessa [Fig. 4])
e de 1909 (planta topográfica de Silva Pinto, levantada e desenhada sob a direcção de Júlio António da Silva Pinto, com data de
1908-1911, com a folha que nos interessa a apresentar a data de
Maio de 1909 [Fig. 5]), onde os quarteirões apresentam planimetricamente a fisionomia actual, permite-nos fazer a evolução entre
estas duas datas, onde o facto mais significativo será a ocupação
por edificações do tardoz do chafariz, que teria ficado desocupado
após o terramoto de 1775 ter destruído o palácio do marquês de
Angeja.
Por volta de 1895 é começado a construir o palacete existente no
tardoz do Chafariz de El-Rei, imóvel erigido sobre os "restos" de três
dos elementos patrimoniais mais significativos que existiram nesta
parte da cidade: O palácio do marquês de Angeja (um dos edifícios
que não resistiram à catástrofe de 1755 e de que se encontram aí
ainda alguns vestígios supostamente atribuíveis); a denominada
Figura 4 Filipe Folque (orientação), Planta Topográfica
de Lisboa, Setembro de 1858 [pormenor]
"cerca velha" (que está integrada na própria estrutura do edificado,
embora não seja visível) e algumas das estruturas hidráulicas do
denominado Chafariz de El-Rei. Será aqui de salientar um outro
vestígio descoberto fortuitamente no pavimento das caves deste
imóvel e que pela sua raridade e importância é aqui revelado de uma
forma avulsa, necessitando de uma posterior investigação para justificar a sua presença, referimo-nos a uma pedra talhada visigótica
até agora desconhecida e que se vem juntar aos raros exemplos
conhecidos da presença civilizacional deste povo em Lisboa (séc. VVII) [Fig. 7]24.
As obras do edifício actual, que se implanta, como já foi referido, em
parte da antiga localização do palácio do marquês de Angeja, foram
levadas a efeito entre 1908 - talvez até um pouco antes - e 1910.
Mas o ímpeto construtivo não terá esmorecido por aqui: uma
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memória descritiva de 6 de Maio de 1915 explica as alterações que
João António dos Santos (n. 1853) desejava ainda fazer exteriormente. O edifício, concebido de forma ecléctica, parece testemunhar um desejo, por parte do seu proprietário, de incluir um
pouco de todos os estilos: temos assim elementos neo-árabes,
neo-barrocos e neo-clássicos, recriação de elementos medievais, a
par de motivos decorativos Arte Nova e de abundante aplicação do
ferro, estrutural mas também decorativamente. Ele é um exemplo,
raro nos bairros históricos, de revivalismo português e do espírito
romântico, na linha da evasão para o passado, onde se opta pelo
emprego historicista da arquitectura (veja-se o projecto arquitectónico de 1909 in Processo de Obra n.º 15011, Travessa do
Chafariz de El-Rei, 4 e 6, Arquivo de Obras da CML). Não estamos
já perante um simples historicismo (apesar da abundância de
revivalismos), nem perante um eclectismo principiante (junção de
vários elementos num todo incoerente), mas sim frente a um eclec-
Figura 5 Júlio António da Silva Pinto (orientação),
Planta Topográfica de Lisboa, Maio de 1909 [pormenor]
tismo amadurecido, que além de harmonizar soluções artísticas
diversas, lhes introduz a componente da funcionalidade, de influência Arte Nova, apesar da desconfiança em relação a novidades
estruturais e de apego a modelos historicistas.
Esta pequena síntese não pretende, de modo algum, ser o "estudo"
definitivo sobre este objecto urbano, aqui apenas me limitei a apresentar algumas sugestões e alguns escassos resultados do trabalho já desenvolvido, remetendo para ulteriores investigações em profundidade que, sem lugar para dúvidas, necessitam de um programa
de investigação coerente, quer ao nível histórico-documental, quer
ao nível de arqueologia e arquivística.
Notas
1
David LOPES, "Portugal no tempo dos mouros, notícias tiradas de um geó-
grafo árabe", Liceus de Portugal, n.º 2, Lisboa, Novembro de 1940, p. 97.
2
Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147, narrada pelo Cruzado
Osberno, testemunha presencial, texto latino e trad. para português de
José Augusto de OLIVEIRA, prefácio de Augusto Vieira da SILVA, Lisboa,
CML, 1935.
3
Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147, narrada pelo Cruzado
Osberno..., p. 41.
4
Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147, narrada pelo Cruzado
Osberno..., p. 60.
5
Memoria para a historia das inquirições de D. Afonso II, doc. 2.º, p. 14.
6
Liv.º I do Provimento d'agua, fls. 5, cit. in Eduardo Freire de OLIVEIRA,
Elementos para a História do Município de Lisboa, 1.ª Parte, Lisboa,
Câmara Municipal de Lisboa, 1884-1911, 17 vols, Tomo II, 1887, p. 420.
Figura 6 Chafariz de El-Rei e respectivo reservatório,
planta e cortes, 1875, Companhia das Águas de
Lisboa, Repartição Técnica
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O Chafariz de El-Rei e a área urbana envolvente
7
Damião de GÓIS, Chronica do felicíssimo rei Dom Emmanuel, Quarta
parte, Lisboa, em casa de Francisco Corrêa, 1567.
8
Cit. in Nuno de Drummond LUDOVICE, "O Chafariz de El-Rei", Lisboa,
Revista Municipal, n.º 17, 3.º Trimestre de 1986, Ano XLVII, 2.º série, pp.
15-22, pp. 19-21.
9
Damião de GÓIS, Descrição da cidade de Lisboa [Urbis Olisiponis
Descriptio], trad. do texto latino, int. e notas de José da Felicidade ALVES,
Lisboa, Livros Horizonte, 1988 [a primeira edição é de Évora em 1554
(BNL Res. 4343 P), com quatro edições posteriores em latim: 1602, 1603,
1791 e 1937, datando deste último ano a primeira tradução portuguesa].
10
Damião de GÓIS, Descrição da cidade de Lisboa..., p. 49.
11
Sendo esta objecto de alguma controvérsia quanto à sua datação
(1570/80 ou 1598).
12
Vitor SERRÃO, "A imagem do mar e da capital do império no século XVI,
um novo testemunho iconográfico da Lisboa das Descobertas", As rotas
Oceânicas, sécs. XV-XVIII, Lisboa, Colibri, 1999, pp. 171-187
13
Joaquim Oliveira CAETANO, "Uma desconhecida obra-prima de Gregório
Lopes", Estudos de Pintura Portuguesa, Oficina de Gregório Lopes, Lisboa,
Instituto José de Figueiredo, 1999, pp. 129-132.
14
Fernando António Baptista PEREIRA, [texto sem título], Os Negros em
Portugal, Lisboa, 1999, pp. 106-107.
15
OLIVEIRA, Eduardo Freire de, Elementos para a história do município de
Lisboa, vol. VII, 1894, pp. 59-60, (transcreve esta parte de 5 de Abril de
1604 mas não a data).
16
No fl. 95 v.
17
José Sérgio Veloso de ANDRADE, Memória sobre chafarizes, bicas,
fontes e poços públicos de Lisboa, Belém, e muitos logares do termo,
Figura 7 Pedra visigótica encontrada no pavimento do
edifício que foi construído por cima e no tardoz do
Chafariz de El-Rei, Travessa do Chafariz de El-Rei, n.º 4 - 6
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Lisboa, 1851, pp. 16-19, 104-115, 238-239, 254-257, 362-363, p. 112
refere a propósito: "Ao presente está muito alterada a descrição que se
menciona. Toda a Conserva, ou arca d'agua é cuberta por cima; e talvez
desde o anno de 1517, pelo contracto feito com Lopo de Albuquerque (...)
[penso tratar-se de confusão do autor, pois o que resultou das obras
feitas em 1517 foi bastante refeito já no final do século XVI, não sabemos
é até que ponto foi mexida a parte da conserva, de qualquer modo a
descrição física do objecto em 1700 deve ser correcta e resultar das
alterações posteriores a 1517] álem disto, da parte do Sueste não tem
parede; pois que entrando-se pela primeira porta que se encontra passado
o Arco, e que tem por cima as Armas da Cidade, acha-se um corredor, e a
Conserva fica á esquerda, tocando a agua quasi a aresta do pavimento do
mesmo corredor, sem parede, nem amparo algum, de maneira, que se
alguem ali estiver menos cauteloso, pode facilmente cahir dentro deste
grande lágo".
18
O Arco de S. Pedro era uma das antigas portas da cidade, integrando-
se no perímetro da cerca velha, cf. a figura para a sua localização conjectural em Augusto Vieira da SILVA, A Cêrca Moura de Lisboa, Lisboa, 1939,
pp. 148-152 [Fig. 1]. Uma das torres circulares que ladeava esta porta
surgiu nas escavações efectuadas recentemente pela equipa de arqueologia do Museu da Cidade.
19
A água do poço de Francisco de Sousa foi mandada levar para este cha-
fariz em cano separado por Alvará de 11 de Março de 1598, pode muito
bem acontecer que as duas arcas aqui referidas, e a embocadura de cano
no ângulo que olha para o Norte se fizessem para esse efeito.
20
A este propósito diz-nos José Sérgio Veloso de ANDRADE, Memória
sobre chafarizes..., p. 112: "Este local indica-se pela Claraboia que fica ao
lado direito na Rua de S. João da Praça, em frente da propriedade N.º 58
A, e á ilharga da Serralharia que foi de Marçal José Romão". Acontece que
esta passagem, tal como muitas outras ao longo do texto, é extremamente confusa e de difícil interpretação, nomeadamente pelas medidas que
são dadas e a que espaços estas se referem.
21
O beco coberto aqui referido é referenciado por José Sérgio Veloso de
ANDRADE, Memória sobre chafarizes..., p. 112, como sendo "(...) ao presente [1851] o Becco da Silva - o 2.º á direita, na Rua de S. João da
Praça, vindo da igreja, e termina no Becco das Moscas; - descendo por
elle se vê ao lado direito uma pequena porta, em fórma de janella de peito,
com seu ferrolho; e por cima a mesma pedra com a inscripção mencionada; com a diferença porém, que a arca d agua fica do lado esquedo. É preciso subir a esta dita porta ou janella, e depois descer sete degráos, para
entrar pela mina, que fica em frente, e conduz á Claraboia, já mencionada;
a qual tem as paredes de dentro muito rachadas; e observámos, que o
seu pavimento de lagedo está muito inclinado para a parte da nescente da
agua, que não é no centro da dita Claraboia, como de costume, mas sim
ao lado direito: o que inculca escavação pela força da grande nascente; e
isto póde um dia dar logar a um grande prejuizo (...)".
22
Fr. A. da CONCEIÇÃO, Demonstração histórica, 1750, p. 186.
23
In Representações dirigidas a sua Magestade a rainha e ao corpo leg-
islativo pela Camara Municipal de Lisboa sobre o abastecimento d'aguas na
Capital por meio de empreza, segundo as bazes estabelecidas no Decreto
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Cronologia histórica do nascimento e morte de um aparelho de abastecimento de água (século XIII-XX):
O Chafariz de El-Rei e a área urbana envolvente
de 22 de Dezembro de 1852, acompanhadas de pareceres, projectos e
relatorios mandados fazer pela mesma Camara, Lisboa, Imprensa Silviana,
1853 [documento com ilustrações de grande importância para o assunto
em estudo], pp. 30-42.
Apresentamos esta figura apesar da fraca qualidade da imagem pela
importância de que ela se reveste.
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* Historiador da Arte - CML - DMRU - Gabinete Local de Alfama e Colina do Castelo
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A intervenção da opinião pública nos melhoramentos de Lisboa
(1860-1930)
Ana Martins Barata*
Assistimos, no passado muito recente, a propósito da hipótese da
construção na cidade do chamado elevador do Castelo, à mobilização de uma parte significativa da opinião pública da capital que, de
formas diversas, reivindicou uma palavra na discussão do projecto.
A sua pressão contra a construção do elevador acabou por levar os
responsáveis municipais a desistir dos seus intentos. Nesta discussão a comunicação social desempenhou um papel importante,
nomeadamente, a televisão e os jornais. Durante o período em que
durou a polémica, sobretudo a imprensa escrita dedicou espaço,
nalguns casos quase diário, nas suas páginas para que os diversos
intervenientes instituicionais, assim como a população anónima de
Lisboa, pudessem apresentar e defender os seus argumentos contra e a favor da construção do elevador.
Não foi a primeira vez que se assistiu na capital a este tipo de mobilização. De facto, ao longo dos últimos cerca de 150 anos por diversas ocasiões a opinião pública expressou as suas impressões sobre
o rumo que tomavam os melhoramentos de Lisboa. Recuámos no
tempo e recordamos alguns desses momentos e algumas das vozes
que deram expressão às expectativas e desejos que foram sendo
enunciados sobre a capital.
Um dos primeiros testemunhos deste interesse e atenção públicos
pelo que em Lisboa se traduzia por melhoramentos materiais pode
ser lido nas páginas do semanário ilustrado Archivo Pittoresco, em
1858. Trata-se de um artigo onde se dava conhecimento aos leitores
das Muitas e importantissimas obras se tem desde 1834 realisado
em Lisboa, numa espécie de avaliação crítica positiva à acção da
Câmara Municipal no domínio dos melhoramentos da cidade1.
A partir da década de 60 de Oitocentos nas páginas do Jornal do
Commercio é possível ir acompanhando o modo como alguma da
opinião pública da capital se ia expressando, aplaudindo ou reclamando, sobre os melhoramentos em curso em Lisboa. Este jornal,
que contou desde a sua fundação, em 1853, com as colaborações
de alguns dos vultos mais marcantes da cena política e intelectual
portuguesa da segunda metade do século XIX, como Latino Coelho,
António Serpa Pimentel, Luciano Cordeiro, Pinheiro Chagas,
RESUMO
Durante a segunda metade de Oitocentos e as
primeiras décadas do século XX, Lisboa sofreu,
indiscutivelmente, uma série de transformações urbanísitcas e um crescimento
demográfico assinalável. Ao longo deste período
a opinião pública, nomeadamente a imprensa
periódica da capital, foi acompanhando atentamente as mutações em curso na cidade.
Discutiu-as, por vezes acaloradamente, defendendo ou denunciando os rumos que tomavam
os melhoramentos de Lisboa. Projectos como o
da construção da Avenida da Liberdade, nos
anos 70 de Oitocentos e, posteriormente, os
do seu prolongamento, por exemplo, ocuparam
largo espaço nos principais jornais da época.
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Ramalho Ortigão e Maria Amália Vaz de Carvalho, foi, durante as
últimas décadas do século XIX, um observador atento dos assuntos
da cidade assumindo-se, em 1869, a propósito do seu 17.º aniversário, como "... o advogado dos interesses ... de Lisboa, à qual se
vangloriza de ter prestado bons serviços". Ao longo de todos esses
anos, os seus responsáveis editoriais não se eximiram de criticar,
por vezes implacavelmente, a acção do município sempre que reconheciam haver razões para isso, ou colocaram-se a seu lado sem
reservas, contra o desprezo com que o poder central tratava a
principal cidade do país. Um dos aspectos mais visados nos diversos artigos publicados ao longo da década de 60 foi o da exiguidade
crónica do orçamento municipal, como por exemplo a quantia estipulada para o ano económico de 1862-63 - 305.560$053rs - que
mereceu ao Jornal do Commercio o seguinte comentário: "trezentos contos para prover ás necessidades do governo municipal de
uma cidade como a de Lisboa, é uma insignificância"2, considerando-se num outro artigo posterior que "poucas cidades, da cathegoria
da Lisboa", teriam à sua disposição "tão mesquinhos rendimentos",
e que o município da capital do Reino vivia "das esmolas que quer
dar-lhe o governo e que o parlamento vota" 3.
Na década de 1870 dois acontecimentos mobilizaram a opinião pública de Lisboa e ocuparam espaço diário em alguns dos seus principais
orgãos da imprensa : o primeiro foi a discussão acerca da conclusão
do edifício dos Paços do Concelho, em 1874, e o segundo foi a questão
da destruição do velho jardim do Passeio Público, para a abertura da
futura Avenida da Liberdade, no mesmo ano.
A "questão do frontão", título de vários artigos que vieram a lume
quase diariamente no Jornal do Commercio, no Jornal da Noite e no
Diário Popular, dividiu as sensibilidades de alguns lisboetas que nas
páginas destes jornais esgrimiram argumentos vários contra e a
favor do dito frontão, proposto como remate do novo edifício da
Câmara Municipal da capital. Mais do que uma discussão acerca da
qualidade estética da arquitectura do edifício, o que sobressai da
leitura dos artigos publicados é, por parte daqueles que rejeitavam
a solução do frontão, um ataque feroz e pessoal ao autor da proposta, o recém empossado no lugar de responsável pela Repartição
Técnica municipal, o engenheiro Frederico Ressano Garcia, formado
na famosa École des Ponts et Chaussés de Paris. De facto, colocavam-se sérias dúvidas que o engenheiro possuísse "auctoridade
superior á do illustre archicteto da camara o sr. Parente" 4, a outra
personalidade directamente envolvida na questão. O arquitecto
Domingos Parente da Silva era o autor do projecto do novo edifício
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dos Paços do Concelho5 e fazia já parte dos quadros da Repartição
Técnica quando Ressano Garcia ganhou o concurso 6 realizado para
preencher o lugar deixado vago em 1872 com a morte do anterior
responsável , o engenheiro Pierre Joseph Pézerat. Sobretudo mobilizados pelo Jornal do Commercio, os opositores da solução do frontão - de nítida inspiração clássica e decorado com um conjunto
escultórico da autoria do escultor francês Anatole Calmels - , e do
seu autor, realizaram um meeting no salão do antigo teatro da
Trindade e chegaram a pôr a circular um abaixo-assinado com representação ao Rei 7, sem grandes resultados práticos, como se
pode hoje observar....
Quando, em 1879, a Câmara Municipal decidiu avançar com o projecto do rasgamento de uma grande avenida ou bouvelard, enunciado no final da década de 50 pelo então presidente da edilidade, Júlio
de Oliveira Pimentel 8, os lisboetas encontravam-se divididos. Estava
em causa o desaparecimento do velho Passeio Público, onde Lisboa
se tinha habituado, com o senhor D. Fernando, a encontrar com
regularidade, aos domingos e quintas-feiras, a música das bandas
que alegravam o coreto e onde se maravilhava com as iluminações
a gás nas datas mais festivas. Assim, a hipótese da destruição
desde espaço vivencial vinha suscitando oposições várias desde
1874 9, apesar de ser reconhecimento geral de que Lisboa tinha
necessidade de acompanhar as exigências da "moderna civilização",
construindo o seu boulevard.
No Jornal da Noite apoiou-se desde o início a destruição do velho
jardim setecentista, considerado, num artigo publicado em Junho
de 1874, apenas como um jardim "sem flores, com arvores rachiticas; com o tanque de agua verde negra á entrada, com a cascata
ridicula do norte, com os candieiros alinhado e com a apparencia de
cemiterio" 10, cujas grades há muito que deveriam ter sido retiradas
sem receio de o recinto do jardim ser invadido pelas camadas mais
pobres da cidade, porque "no fim de tudo se ali forem os pobres descansar e catar-se" isso apenas deveria ser um motivo de contentamento, porque também em Lisboa, "os miseraveis"...tinham "...o
gôso que Paris lhes concede em todos os seus squares, preparados e dispostos para recreio da população que não vae de carruagem aos Campos Elysios e ao Bosque de Bolonha" 11. No Diario
Illustrado a opinião era coincidente, afirmando-se num artigo do dia
3 do mesmo mês e ano : "Nós queremos a avenida, o boulevard, a
estrada, seja o que for, queremos um caminho espaçoso, alegre,
por onde se possa sair de Lisboa, sem andar por montes e valles,
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sem acotevelar os transeuntes para fugir das carruagens, nem
ficar debaixo das carruagens para não cair sobre os transeuntes" 12.
Mas nem todos os lisboetas compartilhavam desde sentir. O intérprete principal da facção da oposição à construção da avenida foi o
escritor Ramalho Ortigão, para quem "o projecto do boulevard do
passeio do Rossio ao Campo Grande é uma concepção bem tristemente pretensiosa", conforme escreveu nas páginas de As Farpas,
em 1874 13. O resultado da sua incitação à oposição foi o muito falado abaixo-assinado em que vários lisboetas expressavam o seu
desagrado pela destruição do velho Passeio Público. Segundo uma
vez mais o Jornal do Commercio, favorável a este movimento oposicionista, este abaixo assinado terá sido entregue na Câmara
Municipal em 8 de Junho de 1874, contendo as assinaturas de
cerca de 1316 munícipes 14.
A facção a favor do projecto não ficou inactiva e, em 1877, quando
no Parlamento se discutia uma lei de expropriação por zonas, também ela colocou a circular um abaixo-assinado apoiando a construção do boulevard e, consequentemente, a destruição do Passeio
Público. Noticiada pela Jornal do Commercio, que chegou a publicar
a lista com cerca de 1500 assinaturas, esta iniciativa destinava-se
a dar a expressar o que "muitos centenares de habitantes da capital... resolveram fazer...á camara hereditaria, ...na qual singelamente expõem as principaes necessidades que aconselham a prompta realisação de melhoramento tão importante" 15.
Alguns anos passados foi exactamente o retomar da discussão de
uma lei de expropriação por zonas que voltou a agitar a opinião pública da capital e a fazer a primeira página de alguns dos seus jornais.
Em 28 de Junho de 1888 teve início na Câmara dos Deputados a discussão de uma proposta de lei de expropriação por zonas, por iniciativa do Ministério do Reino, através do seu titular, o chefe progressista José Luciano de Castro. A discussão foi acessa, com diversos
intervenientes, com destaque para o jurista José Ferreira Dias,
feroz opositor do projecto. Do Parlamento, a discussão saltou para
as páginas dos jornais, e durante o tempo que antecedeu a
aprovação da lei foram vários os artigos publicados contra e favor
desta medida legislativa.
No jornal Novidades que dedicou durante o tempo de discussão da
lei no Parlamento vários artigos de 1.ª página ao assunto, apoiava-se o projecto : "a expropriação por zonas...é uma condição indispensavel para o municipio de Lisboa poder effectuar melhoramentos
que façam d'esta cidade uma das amis bellas cidades da europa"16.
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No Correio da Manhã, na altura dirigido pelo também deputado pelo
Partido Regenerador na oposição, Manuel Pinheiro Chagas, a opinião
expressa não podia ser mais oposta! Considerava-se aí que tal lei
não passava de um expediente destinado a fazer a edilidade da capital sair do aberto financeiro em que se encontrava: "De que a camara precisa é d'esse dinheiro para se desentalar da situação financeira deploravek em que se acha n'este momento... não venham
dizer que vão fazer grandes obras, á moda do barão Haussinam
[sic]" 17.
O Jornal do Commercio alinhava pela mesma posição contra a lei,
considerando-a "verdadeiramente monstruosa, pois representa um
ataquecontra a propriedade, com o fim, não de favorecer o publico,
mas de endireitar as finanças do municipio!" 18. Pelo contrário, no
republicano O Século, dirigido por Sebastião Magalhães Lima, não se
podia ser mais favorável à aprovação desta lei pois, no entender dos
seus responsáveis, que ela permitiria à Câmara Municipal empreender em Lisboa as obras "inevitaveis porque absolutamente necessarias para a expansão, engrandecimento e melhoria da situação
das classes pobres, que vivem n'uma promiscuidade que, antihygienica, immoral e por todos os motivos nociva para o desenvolvimento da raça e para toda a ordem de progressos..." 19.
Os desejados melhoramentos de Lisboa tornaram a ocupar a
atenção da opinião pública no início do século XX. O motivo foi o
anunciado 3.º Plano Geral de Melhoramentos, preparado por
Frederico Ressano Garcia e a sua equipa da Repartição Técnica
municipal, em 1903. Uma vez mais, a imprensa da capital deu amplo
espaço nas suas páginas à apresentação deste plano. Um dos jornais que mais contribuiu para que os lisboetas tivessem conhecimento das principais linhas de acção contidas no plano foi O Dia,
numa série de artigos e diversas entrevistas com o engenheiro
Ressano Garcia, cujo o tema principal era a "Lisboa nova". Também
o Novidades deu voz ao responsável municipal para que ele pudesse
explicar aos seus concidadãos os seus projectos para disciplinar o
crescimento da cidade. Num desses artigos, apelidado de "O nosso
futuro "bois", era feito um balanço das transformações por que
Lisboa vinha passando desde as últimas décadas de Oitocentos.
Escrevia-se que "em cincoenta annos, nem tanto, talvez, Lisboa
progrediu mais do que em tres ou cinco seculos. Alargou-se,
expandiu-
-se, vestiu-se, lavou-se", sendo o plano do engenheiro
"não só grandioso", mas "principalmente, technicamente logico" 20.
O Novidades chegou mesmo a dedicar a primeira página da sua
edição de 12 de Fevereiro de 1903 à "Expansão de Lisboa", publican-
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do uma planta parcial da cidade, com o troço compreendido entre a
Praça do Comércio e o Paço do Lumiar. Foi também neste jornal que
Henrique de Vasconcelos afirmou que "Lisboa, hoje é a primeira ...
de fealdade" 21, e onde o então jovem crítico de arte José de
Figueiredo apelou para a constituição de uma comissão para evitar
de vez com "o mau gosto dos nossos proprietarios, ajudade da ignorancia dos mestres de obras ou da phantasia ainda peior de alguns
dos variados pseudo-architectos" 22.
Também no jornal O Século o tom era de entusiasmo em relação aos
melhoramentos que se anunciavam para a capital. Sobretudo o parque proposto, porque "posto em rapida e facil communicação com o
centro da cidade, constituiria o forum hygienico da capital, onde
todos nós, pobres e ricos, poderiamos respirar livremente o ar
puro", tão necessário aos "organismos depauperados dos lisboetas" 23.
Entrados pelas primeiras décadas do século XX, depois já das
mudanças políticas que, em 1910, substituiram a monarquia pela
I República e, em 1926, esta pela Ditadura, Lisboa tornou a ser
assunto de primeira página exactamente ainda nesse mesmo ano.
O jornal O Século foi um dos primeiros a saudar a nova equipa à
frente dos destinos da capital, que lhe parecia "disposta a cuidar a
valer do embelezamento da cidade, da sua higiene, do seu aspecto
externo, de tudo enfim quanto possa contribuir para que a capital de
Portugal se transforme quanto antes, na grande cidade europeia,
que ha muito devia ser" 24. Um ano depois, em 1927, o convite da
vereação chefiada por Quirino da Fonseca ao engenheiro francês
Jean Claude Forestier 25, para que este elaborasse para Lisboa um
plano de me-lhoramentos, tornou a ser objecto de análise crítica nas
páginas dos jornais da capital, com os depoimentos de diversas personalidades como o cineasta Leitão de Barros e o arquitecto Adães
Bermudes.
No Diário de Lisboa deu-se voz ao engenheiro francês para que
apresentasse algumas das suas ideias: "em primeiro logar respeitar
a parte monumental da cidade. Tocar só na velha Lisboa quando fôr
absolutamente indispensavel, quando a higiene, a circulação e a
comodidade dos seus habitantes o exijam" 26. Mas, a grande polémica aconteceria com a apresentação por Jean Claude Forestier, em
1928, duma nova versão do antigo projecto oitocentista do engenheiro Miguel Pais para o prolongamento da avenida da Liberdade,
retomado logo a seguir pelo arquitecto Luís Cristino da Silva.
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O Diário de Notícias, dirigido em 1928 pelo dramaturgo e jornalista
Eduardo Schwalbach, foi talvez o jornal que mais espaço dedicou à
discussão pública do projecto do prolongamento da avenida da
Liberdade. Durante esse ano sucederam-se nas suas páginas os
depoimentos de personalidade do meio cultural e intelectual, como
o médico, crítico e historiador de arte, Reinaldo dos Santos, o
então director do Museu de Arte Antiga, José de Figueiredo, o
escultor Francisco Santos, entre outros, todos favoráveis ao plano
apresentado por Forestier de prolongar a avenida através do
espaço reservado para o já denominado Parque Eduardo VII.
Também o Diário de Lisboa deu cobertura a esta discussão, embora de uma forma menos empenhada e entusiasta. Assim como o fez
o Noticias Ilustrado que, em 1929, realizou um inquérito junto de
alguns arquitectos para saber da sua opinião sobre a hipótese do
técnico francês. Carlos Ramos foi o mais entusiasta, afirmando que
considerava "deploravel que se sacrifique a execução de um belo
plano a considerações financeiras de momento e se aniquile, sem
remédio, o futuro da cidade" 27. Dos outros arquitectos indagados,
Pardal Monteiro não se pronunciou, alegando não ter conhecimento
suficiente do projecto, Tertuliano Marques e Jorge Segurado, embora reputando-o de interessante, eram de opinão que a cidade
carecia de outro tipo de trabalhos mais urgentes e Paulino Montês
achava muito discutíveis alguns dos detalhes e partes elementares
do projecto do técnico francês.
Quanto, no I Salão dos Independentes, realizado em Maio de 1930,
o arquitecto Cristino da Silva apresentou o seu projecto para o prolongamento da avenida, a vereação lisboeta tinha já desistido da sua
intenção de encomendar os melhoramentos de Lisboa a Jean Claude
Forestier. Logo a seguir à apresentação do projecto de Cristino da
Silva, o Diário de Lisboa encarregar-se-ia de lhe dar maior divulgação junto dos seus leitores, o mesmo acontecendo com o
Noticias Ilustrado, o Diário de Noticias e a revista Arquitectura.
Nas páginas de todos eles, o projecto de prolongar a Avenida, para
além da Rotunda do Marquês, apresentado por Luís Cristino da
Silva, foi amplamente comentado, discutido e apoiado. Uma vez
mais, a opinião pública da capital fazia ouvir a sua voz, reivindicando
o seu direito de intervir nos destinos da cidade.
Notas
1
Archivo Pittoresco: semanário illustrado, tomo II, 2.º ano, n.º 17, Outubro
de 1858, p. 129-130.
2
Jornal do Commercio, 2 de Março de 1862, p.1.
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3
Jornal do Commercio, 25 de Outubro de 1864, p.2.
4
MONTEIRO, Alfredo Schiappa - "Carta ao redactor". in Jornal da Noite, 17
e 18 de Outubro de 1874, p. 2. Nesta carta, as acusações feitas ao
engenheiro camarário iam mais longe, e o seu autor não se coíbia de escrever: "Creia o sr. Ressano que sabemos perfeitamente que o seu principal fim é promover a substituição do sr. Parente por um amigo que de bastantes fiascos o teem livrado ".
5
O edificio anterior construído após o terramoto de 1755, da autoria do
arquitecto Eugénio dos Santos, foi inteiramente destruído por um violento
incêndio ocorrido em 19 de Novembro de 1863.
6
A forma como Ressano Garcia ganhou este concurso não ficou isenta de
críticas. Contestou-se nas páginas do Jornal do Commercio "[...] o programa que se formulou para o concurso, além de não passar de ser na generalidade, um documento inepto, era tão deficiente que nem ao menos exigia
aos canditados certidão de baptismo, folha corrida e prove de ter satisfeitos os seus deveres de cidadão no tocante ao recenseamento militar".
Jornal do Commercio. 10 de abril de 1874, p. 2
7
Jornal do Commercio. 19 de Outubro de 1874, p. 1.
8
Annaes do Municipio de Lisboa. 3 de Julho de 1859, p. 322.
9
Em 1874 foi apresentada no Parlamento, pelos deputados Pereira de
Miranda e Saraiva de Carvalho, uma proposta para que a Câmara Municipal
fosse autorizada a realizar as expropriações necessárias para o arranque
do boulevard. As obras a empreender implicavam, numa primeira fase, a
destruição das grades do Passeio Passeio Público. Foram estas obras que
provocaram a reacção dos lisboetas.
10
Jornal da Noite. 1 e 2 de Junho de 1874, p. 2
11
Jornal de Noite. 30 e 31 de Maio de 1874, p. 2.
12
Diário Illustrado. 3 de Junho de 1874, p. 2.
13
ORTIGÃO, Ramalho - As farpas: O país e a sociedade portuguesa. Edição
integral. Lisboa: Livraria Clássica, 1943; p. 23.
14
"As grades do passeio". Jornal do Commercio. 9 de Junho de 1874, p. 1.
15
"A grande avenida do passeio publico". Jornal do Commercio. 17 de
Março de 1877, p. 1. A lista com as assinaturas foi publicada nas edições
dos dias 18 e 20 de Março, p. 1.
16
Novidades. 23 de Junho de 1888 p.1.
17
Correio da Manhã. 4 de Julho de 1888, p. 1.
18
Jornal do Commercio. 5 de Julho de 1888, p. 1
19
"Boletim parlamentar", in O Século, 29 de Junho de 1888, p. 2
20
"Lisboa de amanhã: o grande parque projectado- o nosso futuro "Bois"".
Novidades, 5 de Fevereiro de 1903, p. 2
21
VASCONCELOS, Henrique de - "A cidade". in Novidades, 26 de Fevereiro
de 1903, p.1.
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22
FIGUEIREDO, José de - " A cidade", in Novidades, 31 de Março de 1903, p. 1.
23
"Uma nova Lisboa", in O Século, 13 de Fevereiro de 1903, p. 1.
24
"Lisboa, cidade da Europa". O Século, 30 de Outubro de 1926, p. 1.
Jean Claude Nicolas Forestier (1861-1930) fez a sua formação académica em Nancy, na Escola Politécnica, onde se especializou em engenharia
florestal. Entrou para o serviço o município do Paris em 1887. Dois anos
mais tarde, foi nomeado por Alphand (1817-1891) - engenheiro e colaborador do barão Haussmann -, conservador do bosque de Vincennes. A sua
carreira foi progredindo e em 1923 atingiria o topo, ao ser promovido conservador das Águas e Florestas e engenheiro chefe do quadro do município
de Paris. Forestier foi também um dos fundadores, em 1911, juntamente
com Tony Garnier, Michel Auburtin, Donat-Alfred Agache, entre outros, da
Société Française des Urbanistes, fortemente influenciada do pensamento
de Camille Sitte e Raymond Unwin. Em 1925, por ocasião da Exposição
25
Internacional das Artes Decorativas e Industriais, foi nomeado inspector
geral da Arte dos Jardins. Entretanto, Forestier foi desenvolvendo trabalhos fora do espaço francês, em Marrocos, na Argentina e em Cuba. Sobre
a vida e a obra de Jean Claude Forestier ver: Jean Claude Nicolas
Forestier (1861-1930): Du jardin au paysage urbain. Paris: Picard, 1994.
Actes du Colloque international sur J.C.N.Forestier, Paris, 1990.
"Fala o engenheiro Forestier: Lisboa deve respeitar os seus monumentos", in Diário de Lisboa, 17 de Fevereiro de 1927, p. 5.
26
"Os nosso inquéritos :Lisboa quere pertencer à Europa! Teem a palavra
os arquitectos portugueses, in Notícias Ilustrado, nº70, II série, Outubro
de 1929, p. 20-21.
27
* Mestre em História da Arte. Fundação Calouste Gulbenkian-Biblioteca de Arte
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O Imaginário de Lisboa no jovem António Ferro.
Notas antológicas (1918-1923)
Ernesto Castro Leal*
O objectivo deste texto visa contribuir para o esclarecimento das
representações vivenciais sobre Lisboa, com as suas imagens
literárias e símbolos de reconhecimento identitários, que o jovem
modernista António Ferro (1896-1956) criou entre 1918 e 19231.
Cidadão de Lisboa, habitando a Baixa, durante a juventude, e a Alta
(Calçada dos Caetanos), após o casamento com Fernanda de
Castro, foi editor dos dois únicos números da revista Orpheu, saídos em 1915, e director do Secretariado da Propaganda Nacional,
nomeado em 1933.
Nasceu e viveu os primeiros anos na Rua da Madalena (n.º 237, 3.º E),
passando a morar com a família a partir de 1907 numa residência na
Rua dos Anjos (n.º 26, 2.º), renomeada Rua do Registo Civil na Primeira
República, mudança habitacional que se deveu à destruição da anterior provocada por um incêndio que sobressaltou os lisboetas, sendo
objecto de ressonantes textos de reportagem escritos por Esculápio
(i.e., Eduardo Fernandes)2. O seu percurso escolar lisboeta levou-o ao
Colégio Francês, ao Liceu Camões e à Faculdade de Direito, não
chegando a concluir a licenciatura, mesmo depois de regressar do
serviço militar obrigatório prestado em Angola, sob a chefia do
capitão de fragata Filomeno da Câmara.
Sentiu intensamente a sua Cidade e desenvolveu no referido período de tempo um conjunto de representações sobre Lisboa, que em
parte também eram sobre o País, a partir de alguns dos seus mais
importantes lugares monumentais de memória: Terreiro do
Paço/Praça do Comércio, Praça da Figueira, Rossio, Café Martinho
(no Largo D. João da Câmara), Estação do Rossio, Mosteiro dos
Jerónimos, entre outros.
Seduzido desde cedo pelas letras e pelas actividades culturais,
estimuladas na Associação de Estudantes do Liceu Camões, sob a
orientação de Mário de Sá-Carneiro, de quem se tornaria grande
amigo, essas representações sobre Lisboa, elaboradas fundamentalmente após o fim trágico da República Nova de Sidónio Pais,
estavam impregnadas de forte intencionalidade ideológica, onde a
estética literária se imbricava na política.
RESUMO
O objectivo desta comunicação visa contribuir
para o esclarecimento crítico das representações vivenciais sobre Lisboa, com as suas
imagens literárias e símbolos de reconhecimento identitários, que o modernista António Ferro
(1896-1956), criou entre 1918 e 1926. Cidadão
de Lisboa, habitando a Baixa na juventude e a
Alta (Calçada dos Caetanos), após o casamento
com Fernanda de Castro, foi editor dos dois únicos números da revista Orpheu, em 1915, e
director do Secretariado da Propaganda
Nacional, nomeado em 1933. Nasceu e viveu os
primeiros anos na Rua da Madalena, passando a
morar com a família, em 1907, numa residência
na Rua dos Anjos, depois da anterior habitação
ter sido destruída por um incêndio que sobressaltou os lisboetas, sendo objecto de ressonantes textos de reportagem escritos por
Esculápio (i.e., Eduardo Fernandes). O seu percurso escolar levou-o ao Colégio Francês, ao
Liceu Camões e à Faculdade de Direito, não
chegando a concluir o curso, mesmo depois de
regressar do serviço militar obrigatório prestado em Angola.
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O Imaginário de Lisboa no jovem António Ferro.
Notas antológicas (1918-1923)
António Ferro será, de entre todos os seus correligionários modernistas, aquele que mais intensamente se envolveu, ao longo dos
anos 20, na propaganda ideológica das ditaduras europeias3 e na
acção política defensora de uma república presidencialista, participando no Partido Republicano Conservador (1919), ainda moldado
num compromisso com o liberalismo republicano, e no Partido
Nacional Republicano Presidencialista (1921-1925), onde já se
exprimiam sectores do autoritarismo antiliberal, ao mesmo tempo
que acompanhava o oficial de Marinha Filomeno da Câmara nas
conspirações militares e projectos políticos por si organizados4.
A apologia da Cidade ou a "descoberta de Lisboa" - como escreveu em
1921 - filiava-se na sedução modernista e cosmopolita pelo progres-
so - futurista provavelmente só em Nós (1921) e em A Idade do JazzBand (1923) -, mas compunha a sua percepção identitária na teia de
tradições e costumes nacionais, o que tipifica um cosmopolitismo
enraizado, bem patente neste retrato vivo da Lisboa "alfacinha", a verdadeira Lisboa que reconhecia na crónica "Praça da Figueira", publicada em 19 de Novembro de 1921, no semanário Ilustração
Portuguesa, depois incorporada em 1923 no livro Batalha de Flores:
"A Praça da Figueira é Lisboa, é Lisboa em miniatura, é a Lisboa
que se esconde, a Lisboa que os estrangeiros não descobrem,
Lisboa para uso interno, uma Lisboa refilona, zaragateira e
florida. A Praça da Figueira é imensamente alfacinha, mais
ainda, imensamente couve lombarda. E, entretanto, apesar dos
seu lisboetismo, a Praça da Figueira é a única nota regional que
há na cidade. Ir à Praça da Figueira é andar em passeio pela
província, é saborear Portugal nos frutos que se provam,
sadios, coloridos, satisfeitos… A Praça da Figueira é tudo
quanto há de mais Lisboa, a Praça da Figueira é tudo quanto há
de mais província. A contradição desmancha-se em duas frases: é que Lisboa é mais Lisboa quando o não é, quando não se
lembra de que é cidade, quando se resigna docemente àquela
atmosfera carinhosa de aldeia grande, de aldeia, onde as
árvores e as flores se tornam humanas - no convívio dos
humanos… "5.
Há também, na construção do seu discurso sobre Lisboa, um lugar
simpático para com alguns tipos sociais característicos, como, por
exemplo, os "garotos dos jornais", o que se compreende visto
António Ferro ser desde 1919 um reputado jornalista de O Século
e da Ilustração Portuguesa, depois do Diário de Notícias, produzindo uma extensa colaboração nesses e noutros jornais, como o
Diário de Lisboa.
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A caracterização da República-regime pelo nacionalismo republicano
conservador e presidencialista apontava um diagnóstico "reservado", quer para o Estado quer para a sociedade civil, representando
Portugal como uma "nação-cadáver". Tipificava-se o crime generalizado, o clientelismo político, a desorganizada participação na
Grande Guerra, a agonia do Império, o misterioso Terreiro do Paço
e a permanente instabilidade política e social. António Ferro, em
texto fideísta de 5 de Dezembro de 1919, intitulado "Sinfonia
Heróica" e publicado em O Jornal, dá-nos disso um exemplo:
"Portugal anoitecera. Todo de negro, vestido de treva, sem uma
linha branca a clareá-lo …. Era o Terror, um quadro da revolução
francesa pintado a sangue, com o papel de Robespierre mediocremente desempenhado por Jacques - o estripador. O crime
passou a ser a melhor distracção, a vida humana foi transformada num pim-pam-pum… …. Atiraram-nos, levianamente,
criminosamente, para a fornalha da guerra… … o Portugal do
Ultramar começou a agonia …. O Terreiro do Paço, misterioso,
oculto-Palácio dos doges numa Veneza decrépita …, era a esfinge do momento político ….Tínhamos chegado ao fim. Ou deitar
abaixo o ministério - as sete cabeças do Dragão - ou esperar
resignadamente, a nossa vez, procurando prolongar a vida, evitando as esquinas, e as noites sem luar…"6.
A Europa desenhada por António Ferro mostrava uma feira "turbulenta, exótica, colorida", onde Portugal, "este tosco Portugal,
leviano, quebradiço, que parece talhado numa caixa de charutos,
este bom Portugal que na feira da Europa tanto pode ser o teatrinho de fantoches, como a barraca de Pim-Pam-Pum", assim nos
comunicou noutro texto, "Na feira da Europa", publicado em
O Jornal, no dia 23 de Setembro de 1919. As "levas da morte" ocupam um lugar destacado na produção do medo público, na criação
de um ambiente de instabilidade e de desagregação social e
económica, pode ler-se no texto "A Leva da Morte", também publicado em O Jornal, no dia 25 de Outubro de 1919:
"A primeira Leva da Morte vai no seu termo… É Sidónio quem
a fecha - Cristo da Raça, iluminura da Pátria… Morto o Grande
Presidente da República, direi melhor, o Grande Presidente de
Portugal, mais à vontade eles vão organizar a segunda Leva…
A segunda Leva…
Ela já se anuncia, já se pressente, muito maior do que a
primeira, mais longa, mais espectral, alucinada, doida, Leva
onde vou, também, Leva da Morte de todos os Portugueses,
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Notas antológicas (1918-1923)
olhos no solo, algemados, acorrentados, a caminho do abismo,
de
qualquer
país
novo-rico,
onde
nos
utilizem
como
escravos…".
O retrato feito pelo jovem modernista exprimiu um Portugal anémico, sem elites nem ordem, com um quotidiano feito de cenas de um
filme policial. Nesse jogo de sombras e penumbras moldou a sua
visão sobre a necessidade redentorista de um Chefe.
Breve antologia de António Ferro
I A imagem da Nação através do Mosteiro dos Jerónimos
Eu regresso do Portugal de Além-Mar, sucumbido, recolhido a
mim, como a um convento. A paisagem tropical desbotou-me
na alma. Foi-se-me a ironia: o Sol, em África, é gargalhada
maior, a gargalhada enorme, impressionante e triste… Trago
saudades da Raça, a Raça que jaz, ali, petrificada em Belém,
aguardando o desencanto. Vou vê-la. A noite cai, forrando a
Pátria de negro, armando-a em câmara ardente, com círios no
céu… O mosteiro enorme, teimosamente branco, espectral, é
a espuma da Treva. Resiste, insiste, insinua-se na luz, procura
salvar-se, vincar, teimosamente, na noite, o seu perfil místico
e guerreiro, a mais bela expressão arquitectónica dos Grandes
do Povo mártir …. O monumento, a agonizar na sombra, toma,
a meus olhos, as proporções do túmulo magnífico da Raça.
Desconheço a Pátria, acho-a maior…[….] Tento ressuscitar a
Pátria …. Nada posso …. Afinal, que importa o ódio, a mentira, a Treva… que importa a noite, quando o luar existe?...
("Nos Jerónimos",
in O Jornal, Lisboa, 18 de Agosto de 1919)
II A imagem do Estado através do Terreiro do Paço
Portugal anoitecera. Todo de negro, vestido de treva, sem uma
linha branca a clareá-lo...
Escorria a vida num perpassar de sombras… Os olhos
rompiam em cada rosto, como atrás de máscara bem segura.
A amizade tornara-se uma lenda… Em cada mão espalmada
que se nos estendia nós advinhamos uma panóplia com cinco
punhais afiados… Era o Terror, um quadro da revolução francesa pintado a sangue, com o papel de Robespierre mediocremente desempenhado por Jacques - o estripador. O crime
passou a ser a melhor distracção, a vida humana foi transformada num pim-pam-pum… com prémios a quem derrubasse
mais corpos… Matava-se como se fuma: aos molhos, aos
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pacotes…[…].
Atiraram-nos, levianamente, criminosamente, para a fornalha
da guerra…[…] o Portugal do Ultramar começou a agonia, sem
ter quem lhe assistisse, agonia lenta que se prolonga para
remorso dos que o feriram, Portugueses para quem a Pátria
é, apenas, um negócio.
O Terreiro do Paço, misterioso, oculto-Palácio dos doges numa
Veneza decrépita, com navalhas em vez de punhais e carrascão a substituir veneno - era a esfinge do momento político…
O Terreiro do Paço foi, durante anos, uma Associação Secreta,
com regulamentos sombrios, iniciações macabras… Criou-se a
escrituração dos escândalos, foi restabelecida a pena de
morte, fez-se um arremedo de Inquisição nos calabouços…
Andava o diabo à solta… Ouvia-se-lhe esganiçar a voz, sentia-se-lhe a destreza da mão esquerda…
Cruzes… cruzes, canhoto!… gritávamos todos, ao vê-lo passar, como um Satanás de guarda-roupa, a servir de compere
numa revista pobre…
Tínhamos chegado ao fim. Ou deitar abaixo o ministério - as
sete cabeças do Dragão - ou esperar resignadamente, a nossa
vez, procurando prolongar a vida, evitando as esquinas, e as
noites sem luar...
("Sinfonia heróica",
in O Jornal, Lisboa, 5 de Dezembro de 1919)
III As imagens de Lisboa através de alguns lugares
Os Cafés
O Martinho é a capital de Lisboa. É um conhecimento geográfico em que todos estamos de acordo, até o Kaiser do Rossio,
o Exmo Sr. Ponce Leão…
Na verdade, afora mais algumas cidades sem importância,
como a Brasileira de Cima e a Brasileira de Baixo, o Suíço, e o
La Gare - esta de poucos habitantes -, tudo o mais é província inculta e inabitável…
O Martinho é, além disso, a única cidade portuguesa que há
em Portugal, isto é, Lisboa, o que vem a ser o mesmo… As
outras, umas são brasileiras, outras suíças, outras francesas, outras ainda inglesas, como Londres e Royal, estas duas
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lá em baixo na longínqua província do Cais do Sodré…
É no Martinho que se acotovelam os literatos, os políticos, os
homens de ciência, os burgueses que o não querem ser, os filhos das famílias ricas, os filhos das famílias pobres, e até para
cúmulo o Sr. Governador Civil instala todas as noites o seu
gabinete em frente de uma chávena de café.
Quem tem duas frases feitas, um maço de cigarros chic, e um
pataco para gorjeta, vai despejar tudo isso ao Martinho…[…].
Cada café em Lisboa tem a sua especialidade…
A Brasileira do Rossio, o belo café "di lá", e revoluçõeszinhas de
trazer por casa…
O Gelo, como o Verol, militar à porta e umas sanduíches deliciosas a três vinténs…
O Suíço, cançonetistas sem empresários, e carnes frias de
tanto andarem no ar…
O La Gare é frequentado pelo que escorre dos outros e
comem-se lá muito bons bifes…
Falta a Brasileira do Chiado, que tem a mesma especialidade
em café que a do Rossio, e gente que vai lá para ter valor, e
para que se diga: "Aquele vai muito à Brasileira…".
Só o Martinho não tem especialidades.
O Martinho faz também revoluções, mas assim como o café é
mais caro um vintém do que na Brasileira, assim as revoluções
são mais finas, às vezes até fardadas...
Tem também militares à porta, mas em vez de simples
cadetes, autênticos generais, com barba e espada…
E se não há cançonetistas, pelo menos a sua cantora de
opereta aparece lá de vez em quando…
("Cartas do Martinho. I- O Martinho",
in O Século, Lisboa, ed. da noite, 3 de Fevereiro de 1918)
A Praça da Figueira
A Praça da Figueira é Lisboa, é Lisboa em miniatura, é a Lisboa que
se esconde, a Lisboa que os estrangeiros não descobrem, Lisboa
para uso interno, uma Lisboa refilona, zaragateira e florida. A Praça
da Figueira é imensamente alfacinha, mais ainda, imensamente couve
lombarda. E, entretanto, apesar dos seu lisboetismo, a Praça da
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Figueira é a única nota regional que há na cidade. Ir à Praça da
Figueira é andar em passeio pela província, é saborear Portugal nos
frutos que se provam, sadios, coloridos, satisfeitos…
A Praça da Figueira é tudo quanto há de mais Lisboa, a Praça da
Figueira é tudo quanto há de mais província. A contradição desmancha-se em duas frases: é que Lisboa é mais Lisboa quando o não é,
quando não se lembra de que é cidade, quando se resigna docemente àquela atmosfera carinhosa de aldeia grande, de aldeia, onde
as árvores e as flores se tornam humanas - no convívio dos
humanos…[…].
A Praça da Figueira, que nunca deixa de estar em festa, tem as
suas festas oficiais em Junho, no mês dos Santos - nas noites de
Santo António, S. João e S. Pedro. Nessas noites, noites em que o
manjerico é rei, não há frutos na praça, há corpos, corpos
saudáveis, corpos foliões - as melhores frutas da Praça…[…].
A rodear a Praça da Figueira estão os ourives, os talhos, as drogarias […].
A Praça da Figueira tem os seus tipos, tem a sua colecção de bilhetes postais… Além das criadas de servir, população habitual da
Praça da Figueira, há o impedido, impedido quase sempre com alguma dessas criadas; há o senhor grave de côco e sobretudo que leva
uma pescada à laia de badine; há senhorinhas que põem chapéu para
se darem ao respeito, uns pobresquicos lazarentos à prova de todas
as pragas, de todos os arrojos… Em criadas o sortido é completo.
Há-as magrinhas e espevitadas como nabiças, há-as anafadas e
abundantes como abóboras, há-as vivas e saracoteadas como
rabanetes, farfalhantes e espectaculosas como couves…
A Praça da Figueira, plebeia, íntima, foliona, é a saia debaixo da
cidade ….
("A Praça da Figueira",
in Ilustração Portuguesa, Lisboa, 19 de Novembro de 1921)
Os garotos dos jornais
Os garotos dos jornais são as gargalhadas da cidade. Lisboa ri nos
seus pregões. Eles são tão precisos no Rossio, às portas dos
cafés, como os pardais no Largo das Duas Igrejas, sobre as
árvores… No dia em que eles desaparecessem, Lisboa deixaria de
ser uma cidade alegre, deixaria de ser uma cidade faladora, uma
cidade em letras gordas, uma cidade em parangonas… Os próprios
jornais acabariam. Um jornal sem garoto é como um vadio sem lar,
é como uma cantiga que não encontra uns lábios que a recebam…
Os garotos dos jornais tornam os jornais garotos, emprestam-lhes
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mocidade, conservam-lhes a tinta fresca, dão-lhes um sabor de
fruta colhida… Eu não gosto de comparar jornais nas tabacarias:
ficam a saber-me a tabaco, a saber-me a rapé… Os jornais ganham
sabor comprados aos garotos, como as uvas comidas na parreira…
O garoto dos jornais é sempre um garoto, mesmo com cabelos brancos. O gesto de vender jornais é, por si, um gesto garoto, um gesto
moço, irreverente, um gesto de cinco pedrinhas… Vender um jornal
é dar à língua, é dar à língua o mais possível, é pôr uma cidade nas
ruas da amargura…Os garotos dos jornais nunca estão quietos:
cirandam, circulam, parece que foram dados à luz - em rotativas…
Há garotos de jornais de todas as idades, de todos os formatos […].
Os garotos dos jornais são bons, são generosos, respeitam os velhos e as crianças, são cruéis para os inúteis, para os profissionais
da elegância, para aqueles que nem sequer lhes compram as gazetas. Apesar das bulhas, das zangas constantes, advinha-se uma
grande solidariedade, uma grande ternura entre eles todos. Pelas
noites de Inverno quando se aconchegam aos portais, tem-se a
impressão de que eles se cozem uns aos outros, juntando todos os
seus farrapos numa grande manta, remendando corpos com corpos, apertando-se, aglomerando-se como o tipo nos caixotins…[…].
Em conclusão, o garoto e o jornal são dois garotos, os dois garotos da cidade, desta cidade que sem eles ficaria triste, triste como
uma costureirinha que fosse encontrar, certa manhã, morto na
gaiola, o seu canário garoto, o seu canário alegre.
("Os Garotos dos Jornais",
in Ilustração Portuguesa, Lisboa, 22 de Outubro de 1921)
Notas
1
Para uma visão geral, cf. Ernesto Castro Leal, António Ferro. Espaço
político e imaginário social (1918-32), Lisboa, Edições Cosmos, 1994.
Cf. "O Incêndio da Madalena (1907)", in Jacinto Baptista e António
Valdemar, Repórteres e Reportagens de Primeira Página, vol. I (19011910), Lisboa, Conselho de Imprensa, s.d. 1990, pp. 44-73.
2
António Ferro, Viagem à Volta das Ditaduras, Lisboa, Empresa do "Diário
de Notícias", 1927 (reportagens jornalísticas sobre as ditaduras italiana,
espanhola e turca, publicadas entre 1923 e 1924).
3
Ernesto Castro Leal, Nação e Nacionalismos. A Cruzada Nacional
D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-1938), Lisboa,
Edições Cosmos, 1999, pp. 167-233.
4
5
Cf. texto mais desenvolvido na breve antologia de António Ferro.
6
Cf. texto mais desenvolvido na breve antologia de António Ferro.
*Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
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suporte comunicacional da identidade Municipal. O caso da
emblemática da cidade de Lisboa.
Margarida Fragoso*
I - Razão de ser e origem
Muitas cidades adoptaram nos seus emblemas os feitos mais
importantes do seu passado e da sua história, como marcas de
identidade local e como afirmação do poder autárquico. O emblema
de Lisboa com raízes profundas na lenda, na história e no mito,
apresenta uma nau com dois corvos.
RESUMO
A cidade é um sistema complexo que se dá a
conhecer sobre inúmeras formas. A imagem
municipal como registo público dos sinais emergentes, consequentes da história, da tradição,
da personalidade, dos objectivos e das estratégias dessa organização, constitui um destes
veículos de transmissão de identidade.
O emblema das cidades, condensando as características da sua singularidade em símbolos
visuais, são um estímulo para a aprendizagem
do património municipal e constituem simultaneamente um elemento de interacção e de
relação afectiva com a cidade, convidando a
uma cidadania activa.
Lenda - A Nau com os Corvos
Conta a lenda que no ano de 304, Vicente, diácono do bispo de
Saragosa foi preso por ordem de um perfeito romano, de nome
Daciano. É, então, martirizado e sujeito a uma série de suplícios aos
quais miraculosamente resistiu. Vendo Daciano que não consegue
convertê-lo aos deuses do império, decide libertá-lo, mas nesse
preciso momento, Vicente morre. Em Valência o seu corpo é atirado para um pântano de modo a ser comido pelas aves. Sucedeu,
que, é guardado por um corvo que não permitiu que animal algum lhe
tocasse. Daciano manda então que o corpo seja lançado ao mar com
uma pesada pedra ao pescoço, mas ainda os marinheiros não tinham chegado a terra já o corpo se encontrava na areia. É recolhido por alguns cristãos, que no maior segredo, lhe deram uma sepultura em Valência sendo aí venerado durante quatro séculos.
Com a invasão árabe e as contínuas perseguições aos cristãos e
seus santuários resolveram meter o corpo do santo numa barca e
fizeram-se ao mar rumo a terras cristãs. Notaram que na proa do
barco poisou um corvo, o mesmo que não abandonara o santo desde
Por outro lado, a diversidade cultural da aldeia
mundial coloca a identidade de cada cultura em
risco. Nesta perspectiva global, é importante
não desprezarmos as nossas heranças culturais. O emblema da cidade como elemento de
identidade cultural, poderá constituir um
mecanismo de centralidade, uma imagem de
referência numa sociedade afectada por transformações radicais em todos os seus sectores,
em que o vazio existencial decorrente da ruptura do enquadramento social, político,
económico, religioso, espiritual, origina uma
grande variedade de expressões culturais.
Na comunicação serão apresentados os resultados de um trabalho sobre a emblemática da
cidade de Lisboa e propostos critérios que
devem estar na base da imagem coordenada
deste município de forma a que ela seja reconhecida pela comunidade e permitir assim a formação de uma identidade municipal.
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cidades como suporte comunicacional da identidade
Municipal. O caso da emblemática da cidade de Lisboa
o martírio. Vieram aportar ao antigo Promontório Sacro, ao Cabo
de S. Vicente. Aí edificaram suas casas e uma ermida para o santo
e, foi nessa ermida que repousaram os restos do mártir durante
mais quatro séculos. A ermida era designada também por Igreja dos
Corvos pois sempre se viram muitos corvos como que a velarem o
corpo do mártir.
Chegando ao conhecimento de D. Afonso Henriques a história de
S. Vicente, tomou este a iniciativa de mandar buscar o corpo do
santo. A primeira expedição não tem sucesso pois a aldeia tinha
sido completamente destruída com a passagem dos mouros. Só
após a tomada de Lisboa em 1173 e quando já era seguro ir ao
Algarve, é mandada uma segunda expedição ao Cabo de S. Vicente,
conseguindo descobrir graças aos indícios dos corvos, sob as ruínas da capela, o caixão onde estava colocado o corpo do santo.
Ao se meterem na barca com os despojos do mártir, dois corvos
poisaram um à proa e outro à popa acompanhando--os durante toda
a viagem até Lisboa, onde chegaram em 25 de Setembro de 1176,
ficando as relíquias depositadas na Sé.
Eis a explicação para os símbolos do emblema de Lisboa.
II - Evolução do emblema "Nau dos Corvos"
Segundo Jaime Lopes Dias, em Brazão da Cidade de Lisboa, a
primeira representação de Lisboa é um selo em lacre de 1233, que
apresenta uma nau de velas enfunadas, em pleno mar, equilibrando,
nos extremos, dois corvos.
Na sequência dos séculos, estes elementos têm sofrido alterações
ao gosto de cada época: avultam a diversidade de navios representados, desde a nau romana até ao navio do século de seiscentos e
havendo até exemplos de navios a vapor. A posição e número de corvos também têm variado ao longo dos tempos.
O brazão de Lisboa, fixado por decreto-lei em 1897 foi alvo de
sucessivas alterações municipais. Em 1940 estipula-se que a
embarcação como peça principal do brazão, deve figurar como uma
estilização das linhas gerais de um barco e não como um tipo de
contrução naval de acordo com o desejo de cada época. Fica assim
definido o brazão como mostra a figura ao lado.
Ficando assim sistematizado o brazão da cidade (e deixando as
respectivas considerações para outro estudo), assiste-se a uma
variedade sem limite de emblemas de que ficam os seguintes
exemplos:
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Receando a variedade de imagens, em 1992 é estipulado por despacho presidencial o seguinte emblema, estabelecendo que em "...toda
a comunicação institucional dirigida à população, a C.M.L. será identificada pelo logotipo apresentado, com exclusão de qualquer outro".
Mas, como de critérios fixos não reza a história da imagem municipal, em 1996 é criado um novo emblema. O despacho recomenda
que "...os serviços da C.M.L. utilizarão o logotipo em anexo, com
exclusão de qualquer outro".
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cidades como suporte comunicacional da identidade
Municipal. O caso da emblemática da cidade de Lisboa
CÂMARA MUNICIPAL
A estabilidade ou continuidade de uma imagem é um factor "securizante", estabelece familiaridade. Cada vez que há adaptação ou
mutação dos seus elementos de referência, perde-se a identificação. Caso este emblema se mantenha, é natural que estabeleça
relações familiares mas, o que acontece à identidade da Cidade
quando os seus símbolos significantes são abafados?
III - Vantagens de uma unificação
Num mundo de enorme concorrência visual da publicidade comercial
e política e da agressão visual do corporate design das grandes
empresas, é fundamental que as cidades procurem uniformizar e
dar eficiência visual aos seus símbolos. A sua imagem deve ser clara
e precisa de forma a que a população reconheça sempre a mesma
entidade.
Mas criar uma imagem municipal não pode ser meramente um trabalho criativo que não contemple a história, o presente, os objectivos da instituição. É preciso conhecê-la bem, analisar a sua personalidade! Ela deve obedecer ao conceito de imagem coordenada de
empresa (corporate identity), que tem como fundamento a sintonia
entre a identidade e a imagem.
Identidade
Este conceito abrange um conjunto de características que
permitem reconhecer a individualidade resultante da história,
da tradição, da personalidade, dos objectivos e das estratégias
de determinada organização. Embora tenda a evoluir ao longo
do tempo, a identidade não é fácilmente mutável. Ela permite
ligar o passado com o futuro sem perdas de referências.
Imagem
É o registo público dos atributos identificadores de uma organização. Requer uma gestão e coordenação extremamente
cuidadas de modo a evitar que públicos diferentes tenham
ideias igualmente diferentes, ou mesmo contraditórias àcerca
da identidade. A eficácia dessa imagem baseia-se numa gestão
forte, coerente e coordenada. Essa imagem é comunicada por
um conjunto de meios: o design gráfico, o design de ambientes
ou ainda o design de produtos são factores tangíveis e
fornecem indicações muito precisas àcerca dos valores e dos
padrões pelos quais se rege a empresa. No entanto a imagem
depende de muitos outros factores, com destaque para o
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comportamento das pessoas que constituiem a instituição.
Todas as organizações têm uma imagem, todas elas fazem comunicação. Mas, no mundo mediático em que vivemos só terão lugar as
empresas com capacidade de fascinação (qualidade estética) de
personalização e diferenciação (originalidade temática, ou de conceito), psicológico ou emocional (valor simbólico), de impacto (a
pregnância formal), de notoriedade (memorização e retenção).
A Câmara Municipal de Lisboa não é uma empresa, não está
no mercado concorrencial. A sua imagem não se destina a
vender bens e produtos mas, tem justamente como objectivo,
o reconhecimento dos munícipes naquela organização. A
imagem municipal reforça o sentido de pertencer a uma comunidade, estimulando as relações afectivas.
IV - Proposta para o Perfil de Uma Nova Imagem
O presente estudo, não se destina a apresentar uma solução para
o problema da reformulação e unificação da imagem coordenada do
Município de Lisboa, mas sim procurar estabelecer as bases sobre
as quais aquele trabalho deveria fundar-se e ser avaliado, e ao
mesmo tempo mostrar que um empreendimento desta natureza
comporta uma componente pedagógica exercendo-se através da
própria natureza da comunicação visual nos seus suportes.
Entendendo-se que o estabelecimento de um programa, a organização dos modos de consulta aos especialistas ou firmas capazes de
responder a uma tal solicitação, a elaboração dos documentos e
cadernos de encargos, etc. constituem por si só um processo
administrativo e profissional que está fora do âmbito de um trabalho de índole académica, procuram-se aqui os critérios que deveriam informar uma acção municipal naquele sentido.
Das análises e considerações feitas no corpo deste estudo decorre
a formulação de três critérios fundamentais cuja aplicação se julga
eficaz para conseguir os fins desejáveis para uma imagem coordenada municipal: um critério funcional, um critério histórico e um
critério técnico.
Critério funcional
A imagem coordenada de uma instituição não é vazia de intenções
ou resultado de simples gosto ou moda ou obrigação legal - destina-se a actuar, a servir uma finalidade, a atingir um objectivo
definido.
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cidades como suporte comunicacional da identidade
Municipal. O caso da emblemática da cidade de Lisboa
Essa intenção é clara: tornar identificável a presença da instituição
municipal aos olhos do público, e dentro deste, com primazia, o conjunto dos munícipes.
As empresas, públicas ou privadas, lutam pela afirmação de uma
presença num mercado duramente concorrencial, e têm por isso de
buscar permanentemente formas de visibilidade cada vez mais competitivas no plano visual e da comunicação discursiva. A fusão de
empresas cada vez mais frequente, a internacionalização dos complexos empresariais e a saturação do ambiente informacional da
sociedade contemporânea a isso obrigam.
Mas uma município não está no mercado.
Um município não "concorre", nos termos em que as empresas o
fazem.
Um município representa uma permanência e uma estabilidade, a
sua imagem deve ser "securizante" e representativa de valores
colectivos e intemporais com os quais a comunidade se identifique
e sinta como seus.
A percepção da modernidade, da eficácia da gestão, da capacidade
de resposta concreta aos anseios e necessidades dos munícipes
deve ser obtida através da "praxis", do bom exercício das funções,
da confiança inspirada - e não através das técnicas de persuasão
próprias da concorrência empresarial no mercado.
Isso aponta claramente para a necessidade de que a imagem,
sobretudo visual, da entidade municipal não concorra com as imagens projectadas pelo mundo empresarial, antes se afaste completamente delas, e se afirme com unidade.
Assiste-se entre nós à deplorável situação causada pela indisciplina
ou desgoverno que permite que no enquadramento do Estado
Português se multipliquem as imagens privativas de Ministérios e
até de Direcções Gerais e orgânicas secundárias. Numa altura em
que, até pelo facto de procurar não perder identidade visual dentro
da União Europeia, os países mais atentos estarem a reforçar os
cuidados com a manutenção da unidade e força da sua imagem, o
que se passa entre nós não pode deixar de causar inquietação.
Do mesmo modo, num tempo em que a concorrência entre cidades
europeias ou não tende a agudizar-se, e em que Lisboa se deseja
ver como um importante polo da Fachada Atlântica da Europa,
parece claro que uma imagem visual forte e unificada é essencial.
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Nesse sentido, e em termos de eficácia funcional, propõe-se como
primeiro critério que:
A imagem coordenada da Cidade de Lisboa representada pelo
seu município, não deve entrar em concorrência com as da
esfera empresarial, e sim assumir um carácter próprio, institucional e estável.
A fragmentação da emblemática e a proliferação de imagens privativas de partes da orgânica municipal não tornam fácil a criação de
um sentimento de pertença a uma entidade histórica como a do
Município de Lisboa, através dos meios de acção pedagógica sobretudo junto das camadas mais jovens junto das quais esse sentimento de pertença, que está na base da cidadania, tende a esbater-se.
Critério histórico
Lisboa, como cidade, não é um simples dispositivo administrativo ou
um mero órgão de serviço público.
Lisboa, como cidade, contém uma colossal carga histórica e afectiva, até a nível mundial, gerada e acrescentada ao longo de séculos.
Ao longo de vicissitudes, conflitos e regimes, constitui uma permanência.
Mostrou-se, nos capítulos anteriores, como a sua emblemática foi
traduzindo o gosto e o espírito de cada época, mas também como
desde muito cedo foram fixados os elementos da sua heráldica. E
esses, com algumas interpretações pontualmente variadas, mantiveram-se.
Também a nossa época deve exprimir-se através de um grafismo e
uma linguagem plástica actuais.
Porém, e dentro de estrito cumprimento das regras da heráldica,
deve ser buscada uma figuração que retome e evoque as tradições
mais sólidas e procure reencontrar o sentido de continuidade
histórica.
Enunciar-se-ia assim um segundo critério:
A reformulação da emblemática da Cidade de Lisboa deve
reencontrar a pureza essencial da figuração tradicional, com
exclusão de corruptelas, introdução de elementos novos ou
inovações temáticas, sem prejuízo da modernidade da sua
realização plástica.
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cidades como suporte comunicacional da identidade
Municipal. O caso da emblemática da cidade de Lisboa
Critério técnico
Dada a variedade de situações de aplicação da heráldica municipal,
decorrente mesmo da própria variedade de funções exercidas pela
entidade municipal, uma correcta realização concreta da imagem
coordenada nos seus aspectos plásticos exige uma abordagem
altamente profissionalizada e um perfeito domínio dos problemas
técnicos envolvidos. Não é, portanto, coisa que possa ser deixada
ao simples arbítrio e opinião de qualquer responsável camarário, ou
ser executada burocráticamente por um qualquer funcionário
"jeitoso", no meio de outras tarefas da sua função.
Implica um levantamento exaustivo das situações em que a
emblemática pode ser aplicada, a natureza dos suportes em que vai
ser usada, as escalas, distâncias de observação, técnicas de execução oficinal ou fabril, os custos, modos e estratégias das operações de substituição.
Implica igualmente um estudo da "concorrência" com situações congéneres no País e no estrangeiro, de forma a evidenciar a sua singularidade e evitar qualquer suspeição de plágio ou mimetização, e
por outro lado, um cuidadoso estudo das referências históricas
para evitar anacronismos ou erros factuais.
Poder-se-ia resumir deste modo o critério técnico:
A realização deve obedecer a todas as exigências técnicas
que são normais nas situações semelhantes no mundo empresarial, mas salvaguardando os valores definidos pelos
critérios, funcional e histórico, atrás mencionados.
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da evolução geo-administrativa à Heráldica autárquica
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Introdução
O objectivo desta investigação consiste em perspectivar a génese,
desenvolvimento e extinção transformante do Município dos Olivais
- enquanto produto político-legislativo do contexto autárquico liberal das reformas administrativas oitocentistas da Cidade de Lisboa
- reflectidos na sua iconografia heráldica, como símbolo de aristocracia territorial, autonomia burocrática e capitalidade alternativa.
Além do objecto de estudo aqui patente constituir, nas suas
múltiplas manifestações, uma preocupação estética dotada de características plástico-compositivas, bem como um marco político-institucional do contexto cultural olisiponense, é principal e evidentemente um símbolo identificativo autárquico-armorial, abrangentemente inserido em três domínios específicos distintos do âmbito
epistemológico nacional das ciências históricas, aqui mutuamente
permeáveis entre si: a História da Arte, a Olisipografia e a Heráldica
(neste caso, municipal).
Representativa de soberania territorial circunscrita, a Heráldica
autárquica assume-se, desde as suas origens medievais, como um
incómodo indício de afirmação autónoma, quer face à hegemonia
centrípeta da administração régia, quer face à sobrevivência centrífuga do senhorialismo nobiliárquico e eclesiástico - ambas amplamente dotadas da sua respectiva iconografia própria de Poder -,
contudo resultando o seu processo histórico-evolutivo numa lenta e
progressiva submissão à sanção ratificante da autoridade soberana, através da administração pública central, desde a já longínqua
assunção voluntária e livre de insígnias armoriais próprias.
É justamente neste percurso que se insere a análise monográfica
da génese e desenvolvimento do brasão do extinto Concelho dos
Olivais, que, posteriormente à sua criação e consequente dotação
de personalidade jurídica, solicita a mercê régia de direito à utilização e propriedade de armas institucionalmente identificativas.
A partir de todo um acervo documental integralmente inédito e disperso em arquivos públicos e privados, pretende-se investigar sinteticamente as implicações políticas, institucionais e simbólicas
RESUMO
O objectivo desta comunicação consiste em
perspectivar a génese, desenvolvimento e
extinção transformante do Município dos
Olivais - enquanto produto político-legislativo
do contexto autárquico liberal das reformas
administrativas oitocentistas da Cidade de
Lisboa - reflectidos na sua iconografia
heráldica específica, como símbolo de aristocracia territorial, autonomia burocrática e
capitalidade alternativa.
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deste elemento identificativo de autonomia administrativo-territorial, bem como questões ligadas à legitimidade da sua representação iconográfica e inerente significação iconológica, destacando o
seu até hoje negligenciado relevo na administração municipal portuguesa oitocentista.
1. O Sítio dos Olivais: percurso geo-administrativo
1.1. Origens e evolução da Freguesia
Os mais remotos vestígios arqueológicos da habitabilidade histórica da localidade dos Olivais referem-se às épocas paleolítica e
neolítica (integrando os acervos museológicos da autarquia lisbonense e dos Serviços Geológicos). Do período calcolítico, resta-nos
uma cripta funerária circular descoberta em Poço de Cortes
(durante a construção da Avenida Marechal Gomes da Costa) e
reaproveitada durante o domínio romano, contendo uma urna cinerária e três aras votivas do séc. III a. C.. Do domínio islâmico e
posteriormente à reconquista cristã, conhece-se apenas a preFigura 1 Mapa dos limites do Concelho dos Olivais
em 1852 (Augusto Vieira da Silva, Lisboa, 1940).
sença documentada de mouros nos arredores de Marvila, Sacavém
e Panasqueira (actual bairro da Encarnação) 1.
Entre os sécs. XII e o final do XIV, a maioria do território da actual
Freguesia dos Olivais integraria a de Santa Maria de Sacavém
(instituída antes de 1191), a mais antiga da zona oriental do Termo
de Lisboa, pertencendo o seu território à diocese desde 1149.
Até então, aquela seria uma área muito despovoada e pontuada por
casais agrícolas de vinhas e olivais - que constituiriam a sua génese
geotoponímico-etimológica - e os seus principais proprietários
exploradores seriam algumas Ordens militares e religiosas (representadas pelos Mosteiros de Santos da Ordem de Santiago da
Espada, de Chelas e de S. Vicente de Fora dos Cónegos Regrantes
de Santo Agostinho) em Beirolas, Cortes e Portela dos Judeus, de
Monconhos ou de Sacavém, Pipa, Sobrepipa, Olivais e Vale de
Gralhas (que constituem os topónimos locais mais antigos conhecidos), o próprio Rei de Portugal (D. Afonso III, em Beirolas), o Bispo
de Lisboa (D. Domingos Jardo, na Panasqueira) e o Cabido da Sé
Episcopal.
Em meados do séc. XIV, os casais agrícolas aglomeram-se concentradamente em quintas, que se constituem em posteriores propriedades vinculares das congregações monásticas, do alto clero e
da nobreza lisboeta. Esta assinalável expansão sócio-económica justifica então a criação, no lugar dos Olivais (inicialmente referido num
documento de um emprazamento vitivinícola de 1329 e decerto orig-
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inado na proliferação prestigiante de oliveiras e na mítica descoberta da sacra efígie da Virgem padroeira num desses troncos) a criação de uma Freguesia em 6 de Maio de 1397 pelo Arcebispo de
Lisboa, D. João Anes, confirmada por Bula pontifícia do Papa
Bonifácio IX, de 1 de Julho de 1400. Esta pertencia então ao Termo
de Lisboa (como território rural extravagante, doado à cidade por
D. João I em 1385 e consolidando assim a sua ascensão política
junto da capital), nele mantendo-se até meados do séc. XIX, quase
concomitantemente à vigência jurídica dos próprios morgadios 2.
Durante o séc. XV, o desenvolvimento sócio-económico da Freguesia
justifica a sua criação como sede de Julgado no Termo de Lisboa,
com dois juizes e um alcaide, em 1495. Além disso, o Prior da
Paróquia convida, em 1420, a então recém-fundada congregação
dos Cónegos Lóios ou Seculares de S. João Evangelista a fixarem-se na Igreja Matriz, deliberando, em 1483, o Cardeal D. Jorge da
Costa (ou de Alpedrinha), Arcebispo de Lisboa, uni-la à Capela de
Nossa Senhora da Conceição do Convento lóio de Santo Elói, sito
junto à Sé Catedral, e cujo Reitor passa a apresentar o Pároco.
Entrega-lhes então os dízimos paroquiais, acentuando assim esta
situação periférica e dependente face à capital hegemónica (mantida
até à extinção do Absolutismo em 1834). Paralelamente, os séculos. XV-XVII assistem a uma enorme expansão das propriedades vinculares dos Olivais (com quintas de recreio e casas de campo), resultando da crescente fixação territorial de proprietários eclesiásticos
e aristocráticos, principalmente da pequena nobreza e da abastada
burguesia emergente na época mais recente (algumas delas com
milagrosas ermidas afamadas entre a devota população local) 3.
Já no séc. XVIII, o Sítio dos Olivais era uma extensa região constituída de diversos lugares dependentes da sua jurisdição administrativa (segundo os Livros de Arruamentos para o lançamento do registo fiscal do imposto da Décima da Cidade): Castelo, Casas
Novas, Rio de Nossa Senhora, Cavalões, Alagueza, Encarnação,
Fonte do Louro, Bela Vista, Flamenga, Malapos, Chelas, Alto de
Chelas ou das Conchas, Prestes, Grilo, Cruz das Veigas, Marvila ou
Herdade, Poço do Bispo, Olival de São Bento, Beato, Alfundão ou
Vale Fundão, Vale Formoso de Cima (com Alfenim e Desterro), Vale
Formoso de Baixo (com o Braço de Prata), Cabo Ruivo, Hortas,
Moinhos de D. Garcia, Praia, Lage, Jardim, Castelo Picão, Vale de
Fonte, Rocio, Tanque Velho, Aldeia, Beirolas, Marcos e Murteira 4.
Tendo os Olivais uma proximidade estratégica de Lisboa e uma situação paisagística excepcional, com uma encosta virada a
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nascente e um solo extremamente fértil, vocaciona-se assim para
a agricultura, a pecuária e o lazer social requintado. Apresentando
um recenseamento demográfico de 650 fogos e 1650 residentes
em 1620 (bastante mais que outras Freguesias dos arredores da
capital), 1785 habitantes em 1736, e 1770 em 1758, a maioria da
população ocupa-se da agricultura, além de um núcleo litoral de
pesca, extracção de sal e transportes fluviais.
Contudo, os Livros da Décima apresentam ainda outras actividades
económico-profissionais, como carpinteiros, pedreiros, boticários,
cirurgiões, sapateiros, tanoeiros, alfaiates, barbeiros, fanqueiros,
taberneiros, tecelões, padeiros e mestres de meninos (quanto ao
surgimento da primeira escola local em 1780 no Convento arrábido
de S. Cornélio - venerado como protector do gado -, fundado em
1718 na Quinta de Nossa Senhora da Estrela e de S. João) 5.
Após o terramoto de 1 de Novembro de 1755, os limites urbanos
de Lisboa são fixados por Decreto régio de D. José I, de 3 de
Dezembro desse ano, e confirmados por Alvará de 12 de Maio de
1758, estendendo-se até Santa Apolónia e partindo os Olivais
Figura 2 Mapa dos limites da Cidade de Lisboa em 1874 (José Pires Barroso, Lisboa, 1940).
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desde o Vale de Chelas, demarcando-se a Freguesia do lado de
Sacavém, que abrangia os Marcos, Encarnação, Portela e Estrada
de Sacavém (anexa à Bela Vista).
Com a criação da Freguesia de S. Bartolomeu do Beato em 1770, a
dos Olivais perde as localidades de Chelas, Fonte do Louro (até à Cruz
do Almada), Rua Direita de Marvila (restituída em 1780), Grilo, Beato
e Poço do Bispo, tendo ainda já estado vinculada judicial e criminalmente aos Bairros de Lisboa, pela Lei de 20 de Agosto de 1654.
É também com o declinar do séc. XVIII que iniciam a emergir os
primeiros empreendimentos industriais nos Olivais. Assim, além do
surgimento de manufacturas de saboarias, oficinas de olarias, curtumes e metalurgias de pregos e tecelagens, intensificam-se as
indústrias de pesca e extracção de sal. Entretanto, a divisão da
propriedade, a agitação sócio-económica decorrente da Guerra Civil
de 1832-1834, e a abolição dos morgadios de 1863, aceleram a
conversão industrializante dos terrenos rurais, maioritariamente
transaccionados pela aristocracia insolvente (em geral ausente) a
empresários burgueses empreendedores.
Já em 1875, o parque industrial dos Olivais assinala a presença de
dezenas de empresas industriais nas actividades de mineração
metálica de cobre e ferro, e de transformação, tinturaria, cerâmica, sabão, sebo, tabaco, estamparia, moagem de farinha e
extracção de pedra, além das anteriores - processo acelerado em
1856 pela instalação da circulação ferroviária entre Lisboa e o
Carregado (com quatro estações nas Freguesias limítrofes de Poço
do Bispo, Olivais, Braço de Prata e Cabo Ruivo) 6.
1.2. Génese e desenvolvimento do Município
Então ligada ao Bairro de Alfama (incluindo as Freguesias de
S. Bartolomeu da Charneca, Campo Grande, S. João da Talha, Santa
Iria de Azóia, Olivais, Sacavém, Santiago dos Velhos e Vialonga, pela
Reforma Administrativa do Município de Lisboa de 21 de Maio de
1841) desde 1811, na nova divisão administrativa da cidade, a
Freguesia dos Olivais prossegue o seu notável incremento demográfico: 2000 habitantes para 629 fogos, em 1840; 2301 para 614, em
1864; e 3408 para 681, em 1878. Na sequência da planificação go-
vernamental de uma nova estrada de circunvalação administrativo-fiscal do Município de Lisboa em 1845 (e apenas concretizada em
1857), o Decreto régio de D. Maria II, promulgado pelo Ministério dos
Negócios do Reino, em 11 de Setembro de 1852, determina, no seu
artigo 2.º, a instituição do Concelho dos Olivais a nascente de Lisboa.
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Consequentemente, e em cumprimento dos artigos 9.º e 10.º do
mesmo diploma, o Governador Civil do Distrito de Lisboa,
D. Francisco de Almada Quadros Sousa de Lencastre da Fonseca e
Albuquerque, 14.º Senhor, 2.º Barão e 2.º Conde de Tavarede, promulga o Edital de 13 de Outubro de 1852, segundo o qual determina a composição do novo Concelho pelas seguintes Freguesias:
S. Bartolomeu do Beato António, Nossa Senhora da Purificação de
Sacavém, Santa Maria dos Olivais, S. João da Talha, Nossa Senhora
da Assunção de Vialonga, S. Saturnino de Fanhões, S. Pedro de
Lousa, S. Silvestre de Unhos, S. Julião do Tojalinho, Santo Antão do
Tojal, Nossa Senhora da Purificação de Bucelas, Santa Maria de
Loures, Nossa Senhora da Encarnação da Ameixoeira, Santo Adrião
da Póvoa, Nossa Senhora da Encarnação da Apelação, Santiago
Maior de Camarate, S. Bartolomeu da Charneca, S. João Baptista
e S. Mateus do Lumiar, Santos Reis Magos do Campo Grande e
S. Jorge de Arroios extramuros (esta última agregada civilmente à
anterior).
Em complemento do artigo 7.º do Decreto de 11 de Setembro, uma
Portaria régia de D. Maria II, emanada pela 1.ª Repartição da
Secretaria de Estado do Ministério dos Negócios da Fazenda, em
16 de Outubro de 1852, determina ainda a imediata nomeação de
Escrivães da Fazenda e Recebedores fiscais dos novos Concelhos,
Figura 3 Brasão de armas da Câmara Municipal dos
Olivais (Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do
Tombo, Lisboa, 1862-1886).
Freguesias e Bairros de Lisboa, de modo a dotá-los financeiramente
de verbas iniciais e não prejudicar o normal expediente da cobrança
tributária pública 7.
Posteriormente, um Decreto régio de D. Pedro V, promulgado conjunto através da Repartição da Justiça da Secretaria de Estado do
Ministério dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça e da Secretaria
de Estado do Ministério dos Negócios do Reino, em 24 de Outubro
de 1855, estabelece uma reforma judicial e administrativa da
divisão territorial nacional. Assim, dentro da Comarca, do Círculo de
Jurados e do Julgado de Lisboa, e apenas quanto ao território do
novo Município dos Olivais, mantêm-se todos os Distritos de Juizes
de Paz previamente existentes, excepto o de Santo Estevão das
Galés (que é então suprimido) e unindo a Freguesia de Lousa à de
S. Saturnino de Fanhões.
Dentro do 1.º Distrito Criminal, o 1.º Bairro orfanológico (correspondente à 1.ª Vara do Cível) integra as Freguesias de Olivais e
Sacavém; o 2.º Bairro (correspondente à 2.ª Vara) integra a de
Loures; o 3.º Bairro (correspondente à 3.ª Vara) integra as
Freguesias de Bucelas, S. João da Talha, Charneca e Vialonga, e o
4.º Bairro (correspondente à 4.ª Vara) integra as de Ameixoeira,
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Apelação, Campo Grande, Camarate, Fanhões, Frielas, Lousa,
Lumiar, Póvoa de Santo Adrião, Tojal, Tojalinho e Unhos 8.
Mais tarde ainda, o artigo 1.º do Decreto régio de D. Luís I, publicado pela 1.ª Secção da 3.ª Repartição da Direcção Geral de
Administração Política e Civil da Secretaria de Estado do Ministério
dos Negócios do Reino, de 10 de Dezembro de 1867, aprova uma
nova reforma administrativa do território nacional. Assim, o
Concelho dos Olivais passa a estar organizado nas seguintes
Paróquias civis, que agremiam as respectivas eclesiásticas:
Bucelas (com Bucelas e S. Julião do Tojal), Fanhões (com Fanhões,
Lousa e Santo Antão do Tojal), Lumiar (com Ameixoeira, Campo
Grande, S. Jorge extramuros e Lumiar), Loures (com Frielas,
Loures e Póvoa de Santo Adrião), Olivais (com o Beato António e os
Olivais), Sacavém (com Apelação, Camarate, Charneca, Sacavém,
S. João da Talha e Unhos) e Vialonga (com Póvoa de Santa Iria e
Vialonga) 9.
Sequencialmente, a Lei de D. Luís I, emanada pela Secretaria de
Estado do Ministério dos Negócios do Reino, em 18 de Julho de
1885 (vigorando apenas desde 1 de Janeiro do ano seguinte, excep-
to quanto à posterior construção da nova estrada de circunvalação), aprova uma nova Reforma administrativa do Município de
Lisboa no seu artigo 1.º, instituindo uma nova linha de cintura territorial, com anexações parcelares do extinto Concelho de Belém
aos de Sintra, Oeiras e Olivais. Esta determinação vem ainda a ser
especificamente contemplada pela Portaria de 14 de Setembro (que
aplica o artigo 226.º daquela, quanto à anexação das Freguesias) e
pelo Decreto da Secretaria de Estado do Ministério dos Negócios
do Reino, de 17 de Setembro (que aplica o § 2.º do artigo 222.º,
quanto ao estabelecimento da nova divisão administrativa do
Município de Lisboa).
Assim, este último diploma insere as Paróquias civis do Beato (integrando as Freguesias do Beato, Olivais e Charneca) no 1.º Bairro
Administrativo, e do Lumiar (integrando as Freguesias do Campo
Grande, Lumiar e Ameixoeira) no 2.º Bairro, subtraindo-as ao
Concelho dos Olivais. Além disso, o Decreto de D. Luís I, emitido
pela Secretaria de Estado do Ministério dos Negócios do Reino em
8 de Outubro de 1885 (aplicando o artigo 226.º da Reforma admi-
nistrativa do Município de Lisboa, promulgada pela Lei de 18 de
Julho), anexa ao Concelho dos Olivais as Freguesias de Carnide e
Odivelas (integrantes do Concelho de Belém até àquela data), tal
como o Decreto de 21 de Outubro do mesmo ano transfere a
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O extinto Município dos Olivais:
da evolução geo-administrativa à Heráldica autárquica
Freguesia de Santo Estevão das Galés para a jurisdição do Concelho
de Mafra 10.
Finalmente, o Decreto de D. Luís I, promulgado pela 2.ª Repartição
da Direcção Geral de Administração Política e Civil do Ministério dos
Negócios do Reino, em 22 de Julho de 1886 (vigente desde 1 de
Janeiro de 1887), interpreta a Lei de 18 de Julho e determina, nos
seus artigos 1.º a 3.º, uma rectificação do traçado prévio da nova
estrada de circunvalação, transferindo a sede do Concelho dos
Olivais para Loures e alterando assim a sua designação onomástico-toponímica. Assim, o concelho é desmembrado: a Freguesia da
Póvoa de Santa Iria é integrada no Concelho de Loures, a de
Vialonga no de Vila Franca de Xira, e as de Sacavém, Camarate e
Olivais no de Lisboa 11.
Uma existência tão efémera de apenas 34 anos é especialmente
assinalada por uma crescente prosperidade económica, quer agrícola, quer industrial (representada pelo prestígio territorial expresso na concessão do título nobiliárquico de Visconde dos Olivais ao
benemérito local Francisco José de Araújo, por Decreto de D. Luís
I, de 22 de Março de 1864), ao longo dos sécs. XVIII-XIX, pelo dis-
tanciamento social entre o operariado urbano, o campesinato rural
e a aristocracia sazonal (impedindo a constituição de um sólido teciFigura 4 Brasão de armas invertido da Câmara
Municipal dos Olivais (1969).
do comunitário autóctone).
Por outro lado, a itinerância geográfica da sede municipal em cinco
espaços distintos e nunca na Freguesia titular do Concelho (na Rua
do Salitre, 32 - 1.º, antiga Administração do Bairro da Mouraria,
desde 22 de Outubro de 1852; no Largo do Leão, n.º 3, edifício de
Diogo de Sales da Cunha, desde 22 de Dezembro de 1852; na
Estrada da Charneca, n.º 33, Quinta do Fole, desde 13 de Julho de
1854; na convergência Estrada do Lumiar/Campo Grande, antigo
palácio do 5.º Marquês de Valença e 12.º Conde de Vimioso, D. José
Bernardino de Portugal e Castro, desde 3 de Abril de 1855; no
Largo do Leão, n.º 9, desde 14 de Janeiro de 1858), além de periférica na amplitude geográfica da autarquia, conduziu a uma
patente ausência de identidade geo-institucional, cuja condição premente de satélite monstruoso da capital (com uma dimensão territorial 20 vezes superior à daquela) gera a sua progressiva extinção
autárquica, pela ampliação do Município lisboeta e através de
estratégias fiscais de consumo vitivinícola (conjuntas com o
Governo) 12.
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2. O brasão dos Olivais: génese e evolução
2.1. As armas do Concelho: itinerário de uma imagem
A primeira referência subsistente à eventual presença existente do
brasão-de-armas do actualmente extinto Município dos Olivais
encontra-se na acta da sessão autárquica da respectiva vereação
de 4 de Agosto de 1859, em que esta alude à sua explícita figuração
ornamental na decoração iconográfica da Praça do Comércio
durante a recepção protocolar à Princesa prussiana D. Estefânia
Josefina
Frederica
Guilhermina
Antónia
de
Hohenzollern-
Sigmaringen, Rainha de Portugal pelo seu casamento com o Rei D.
Pedro V, em Lisboa, em 18 de Maio de 1858, e vitimada a 17 de
Julho do ano seguinte, manifestando assim a edilidade o seu
respeitoso apreço condolente pelo régio casal 13.
Posteriormente, é emitida, em 25 de Julho de 1860, uma Portaria
da 2.ª Repartição da Direcção Geral de Administração Política do
Ministério dos Negócios do Reino, concedendo um brasão de armas
ao Concelho dos Olivais, posteriormente à recepção de uma representação endereçada ao monarca (actualmente desaparecida), e à
emissão do parecer fiscal do Procurador Geral da Coroa e da informação do Rei de Armas "Portugal". Apesar de também hoje desconhecido, o parecer fiscal - documento administrativo singularmente
interveniente neste ordenamento heráldico autárquico - é aqui emitido quanto à representatividade armorial deste ordenamento face
ao respectivo território titular, e à sua tributação oficializante perante uma virtual existência prévia.
Segundo este diploma, as armas do concelho compõem-se do
seguinte ordenamento:
Escudo partido (em pala, isto é, seccionado vertical e simetricamente):
I (primeira pala) - campo de azul, carregado de três figuras
antropomórficas de prata com coroas e espadas de ouro;
II (segunda pala) - campo de ouro, carregado de duas oliveiras de
sua cor (copas verdes e troncos castanhos).
Este símbolo heráldico representa e celebra a reconciliação familiar e
a pacificação militar entre o Rei D. Dinis (à dextra heráldica ou
esquerda do observador) e o Infante D. Afonso, Príncipe herdeiro do
Trono e futuro Rei sucessor D. Afonso IV (à sinistra heráldica ou direita do observador), através da súbita intermediação diplomática da
Rainha Santa Isabel (respectivamente esposa e mãe daqueles) em
1323, no actual sítio lisboeta de Alvalade, próximo à sede geográfica
dos Paços do Concelho, no Largo do Leão, incluindo ainda a presença
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de oliveiras (alusivas como armas falantes - isto é, fonética ou filologicamente referentes - à Freguesia toponímica do Município e símbolos bíblicos do armistício apaziguante estabelecido).
Adicionalmente, na sessão autárquica de 27 de Março de 1862, o
Escrivão Antero José de Brito apresentara um Relatorio para a
escolha do terreno e Cazas para Paços do Concelho, mencionando
a sua incumbência "(...) de proceder á escolha de cazas, ou de terreno apropriado para a construcção de um palacio Municipal, dentro da área que pela mesma Camara me foi indicada; isto é desde o
lugar em que se acha estabellecido o emblema historico, que serve
de brazão ás armas da Camara até ao logar em que actualmente se
acham estabellecidos os Paços deste Concelho; (...)" 14.
Pouco mais tarde face à promulgação do Decreto, a vereação
recebe o Ofício n.º 333 da 4.ª Repartição do Governo Civil de Lisboa,
de 1 de Agosto de 1860, e subscrito pelo seu Secretário Geral, D.
João Pedro da Câmara, informando, em nome do Governador Civil, a
concessão do brasão de armas ao Concelho dos Olivais, segundo o
ofício de 27 de Julho do Ministério do Reino (recebido pela
Repartição), e advertindo a autarquia para esta solicitar ao
Ministério do Reino a expedição do respectivo Alvará de Mercê no
prazo legal 15.
Correspondendo isto na prática à necessária solicitação pela autarquia ao Ministério do Reino do envio das guias competentes para o
pagamento tributário dos respectivos Direitos de Mercê e imposto
de selo, esta inteira-se da recepção daquele ofício na sua sessão de
9 de Agosto, deliberando despachar esta situação na sessão
seguinte. Contudo, é apenas na sessão de 23 que a Câmara
Municipal autoriza o respectivo pagamento fiscal de três importâncias de 10$000 de imposto de selo, 200$000 de Direitos de Mercê
e 10$000 de 5% adicionais à Secretaria de Estado dos Negócios da
Fazenda 16.
Consequentemente, em 12 de Setembro, as Guias de pagamento
dos Direitos de Mercê são entregues ao Procurador fiscal do
Concelho e, na sessão de 27 de Dezembro, refere-se o pagamento
de 21.000$000 a Augusto Fernando Gerard pela execução de um
sinete armoriado do Município para selar ofícios e de uma prensa de
selo branco para selar diplomas (eventualmente de concessão de
medalhas de serviços por combate ao contágio epidémico-infeccioso
da cholera morbus que então grassava em Lisboa) 17.
Posteriormente, a autarquia decide, na sua sessão de 6 de Junho
de 1861, endereçar uma Representação ao Rei D. Pedro V, através
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do Ministério da Fazenda, solicitando uma moratória pelo pagamento dos Direitos de Mercê, até ao despacho deferente de um outro
requerimento ao mesmo Ministério sobre isenção dispensante do
pagamento do mesmo imposto, argumentada em outros casos
precedentes semelhantes 18.
Muito mais tarde, é promulgada a Portaria da 1.ª Repartição da
Direcção Geral de Administração Política e Civil do Ministério dos
Negócios do Reino, de 26 de Agosto de 1881, relativa à reorganização estrutural do funcionamento do Cartório da Nobreza, através
do qual o subscritor Ministro do Reino e Presidente do Concelho de
Ministros, António Rodrigues Sampaio, determina que os
Governadores Civis sensibilizem as autarquias e as corporações das
respectivas jurisdições distritais, no sentido de registarem legalizadamente os seus diplomas heráldicos ou quaisquer outros documentos inerentemente alusivos naquela repartição da Coroa, objectivando-se num consequente reconhecimento oficial dos símbolos
utilizados pelas autarquias portuguesas, previamente requerido
através daquele Ministério, e num adicional enriquecimento histórico-documental do acervo arquivístico-armorial do Cartório da
Nobreza 19.
Apesar da Câmara Municipal dos Olivais ter sido informada da
necessidade do pontual cumprimento desta legislação, pelo Ofício-Circular n.º 12 da 1.ª Secção da Repartição Central do Governo Civil
de Lisboa, de 3 de Setembro de 1881, subscrito pelo seu
Secretário Geral, Eduardo Segurado, apenas se inteirou informativamente do respectivo processo na sua sessão do dia 15 20.
Adicionalmente, a autarquia também apenas tomou conhecimento,
na sua sessão de 29, da recepção de um singular Ofício do dia 15,
endereçado por Carlos Augusto da Silva Campos, Escrivão do
Cartório da Armaria e Nobreza do Reino da Mordomia Mor da Casa
Real, disponibilizando-se para auxiliar em todos os eventuais
esclarecimentos necessários à legalização das armas (virtualmente
devendo-se isto à ausência de qualquer registo administrativo-documental anterior lavrado no Registo Geral de Mercês, ou no
Registo de Cartas, Alvarás e Patentes do Ministério do Reino, ou
sequer no Arquivo Nacional da Torre do Tombo) 21.
Apesar de aparentemente a Câmara Municipal dos Olivais não ter,
pelo menos até então, deliberado a formalização plena da sua
heráldica junto à Coroa, publica em 1882 a terceira edição do seu
Código de Posturas, surgindo aquele pela primeira vez na sua capa.
Após a transferência da sua sede de concelho para Loures em 22
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de Julho de 1886, as armas continuam a ser usadas até à criação
das armas, selo e bandeira do Concelho de Loures, por Portaria da
2.ª Repartição da Direcção Geral de Administração Política e Civil do
Ministério do Interior, de 16 de Julho de 1955, e subscrita pelo seu
titular Joaquim Trigo de Negreiros, actualizada com a elevação da
vila à categoria geo-administrativa de cidade, pelo Aviso da Câmara
Municipal de Loures, de 13 de Fevereiro de 1995 e subscrita pelo
seu Presidente, Demétrio Alves 22.
2.2. A Heráldica dos Olivais: iconografia e iconologia
A primeira descrição do ordenamento heráldico do brasão de armas
do Concelho dos Olivais surge-nos no Decreto de 25 de Julho de
1860:
Escudo partido:
I - campo de azul, carregado de três figuras de prata coroadas e
armadas de espadas de ouro;
II - campo de ouro, carregado de duas oliveiras de sua cor.23
Estas armas assumem-se, assim, como representativas - como
menciona o mesmo diploma e já verificámos no subponto anterior Figura 5 Selo branco da Câmara Municipal de
Loures (Arquivo Histórico da Câmara Municipal de
Loures, 1886).
por um lado, da sede municipal junto a Arroios, da memória do
armistício de Alvalade de 1323, e da imediata estrada de circunvalação com o Município de Lisboa, e, por outro, da ligação onomástica ao principal foco geográfico do seu território.
Distinguem-se, então, os epicentros administrativo e histórico da
autarquia, ambos figurados nas suas armas e sem quaisquer vínculos prévios entre si, prevalecendo hegemonicamente aquele sobre
este pela sua funcionalidade burocrática e pela sua imediata vizinhança face à capital, usufruindo parasitariamente da sua densidade urbanística periférica.
De facto, já no reinado de D. João III, a autarquia lisboeta edifica um
cruzeiro memorial no Largo de Arroios (junto a uma das portas da
cidade), transferido em 1837 para o interior da Igreja paroquial de
S. Jorge de Arroios (por ampliação volumétrica do Largo respectivo) - de cujo significado monumental, contudo, o jovem Município olivalense assim se apropria na sua representação imagética e onde
pretendera edificar uma nova sede c. 1862 24.
Estas armas são divulgadas logo desde o início da sua promulgação
com a aposição autenticante do respectivo selo branco da autarquia (num alvará para desempenho de funções municipais de 4 de
Janeiro de 1858), ovado e rodeado da legenda elíptica em caracteres maiúsculos latinos (CAMARA MUNICIPAL DO CONCELHO DE
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OLIVAES), e o aparecimento de papel timbrado para alvarás de
licença (desde 18 de Março de 1869). Contudo, uma divulgação mais
abrangente surge logo posteriormente com a edição de um conjunto de 137 gravuras polícromas volantes de heráldica autárquica
entre 1862 e 1885 (sito no Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre
do Tombo), bem como com a capa do Código de Posturas da autarquia, editado em 1882 25.
É neste momento que nos surge uma curiosa diferença que altera
a leitura significativa do ordenamento original, até hoje inédita. De
facto, o verso da estampa volante menciona, parafraseando o disposto no Decreto de concessão, que O seu brasão é um escudo
partido em pala. Na parte superior, a rainha Santa Izabel, tendo á
direita El-Rei D. Diniz, e á esquerda D. Affonso, seu filho primogenito; na parte inferior, duas oliveiras, allusivas ao nome do lugar e
symbolisando a paz, que, entre aquelles dois principes alcançou a
Santa Rainha no anno de 1323 26.
Esta descrição citada encerra uma curiosa contradição técnico-vocabular heráldica até hoje negligenciada. Se, por um lado, a partição em pala é, como, já referido, simetricamente vertical, por
outro, a descrição do conteúdo das duas partições menciona-as
explicitamente como partes superior e inferior, e não de "primeira"
ou "segunda" palas laterais.
De facto, esta iconografia do ordenamento (a única conhecida ao
longo da existência institucional do Município dos Olivais e posteriormente reproduzida em circunstâncias esporádicas) assume uma
outra configuração heráldica:
Escudo partido:
I - Armas de Portugal (campo de prata carregado de cinco escudetes de azul postos em cruz e carregados cada um de cinco
besantes de prata, e de uma bordadura de vermelho carregada de
sete castelos de ouro);
II - Cortado:
1 - campo de azul carregado de três figuras de prata coroadas e
armadas de espadas de ouro;
2 - campo de ouro carregado de duas oliveiras de sua cor.
Coroa real fechada de ouro, com aro decorado de três gemas lisonjadas aparentes entremeadas de quatro ovadas e estas de seis
conjuntos de duas pérolas de prata sotopostas, contendo um
chapéu de veludo vermelho e encimado de uma arcada perfeita invertida de cinco hastes rematadas por florões, dos quais arrancam
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cinco arcos imperiais carregados de pérolas e encimados de um
orbe crucífero 27.
De facto, desconhecendo-se completamente a argumentação e a
época precisa desta alteração (ainda que tal se deva a uma eventual conjuntura estética de moda heráldica nacionalizante coeva e se
situe pelo menos ainda até 1862), verificamos que as palas do
brasão autárquico foram transformadas em dois quartéis da segunda pala, passando a primeira a ser ocupada pelas Armas Nacionais
e o escudo encimado da coroa real portuguesa, por via da presença
da Heráldica de domínio. Assim, as armas do Município dos Olivais
são efectiva e inexplicavelmente geminadas com as do Reino (e
coroadas por inerência), à semelhança de outros ordenamentos
autárquicos portugueses esporádicos no séc. XIX 28.
O corógrafo Augusto Pinho Leal descreve o ordenamento heráldico
original constante do Decreto de 25 de Julho de 1860, referindo
dever-se o empalamento armorial com o brasão nacional à interFigura 6 Selo branco da Câmara Municipal de
Loures (Arquivo Histórico da Câmara Municipal de
Loures, 1910).
venção autárquica indemonstrada do Visconde do Paço do Lumiar,
no que é posteriormente plagiado pelo enciclopedista Maximiano
Lemos. Este reproduz ainda as armas dos Olivais c. 1903, tal como
o olisipógrafo Ralph Delgado em 1969 - ainda que invertidas - e os
investigadores Tiago e Francisco Silva Dias em 1993 (por manifesto
desconhecimento armorial decorrente de compreensível e evidente
inversão tecnológica do suporte) 29.
Por outro lado, o heraldista Afonso de Dornelas menciona ainda e
também incorrectamente, no seu parecer histórico-armorial sobre
o ordenamento do brasão do Município de Loures (apresentado à
Comissão de Heráldica e Genealogia da Associação dos Arqueólogos
Portugueses em 20 de Dezembro de 1935, para cumprimento do
disposto no Despacho-Circular da Direcção Geral de Administração
Política e Civil do Ministério do Interior, de 14 de Abril de 1930), que
o ordenamento legal já era utilizado pela autarquia desde a sua fundação em 1852 e que o empalamento com as Armas Nacionais surgira com o Decreto de 1860 30.
Com a transferência da sede municipal da autarquia de Arroios para
Loures (mais geograficamente central face à respectiva amplitude
territorial), em 22 de Julho de 1886, o município transformado continua a usufruir legitimamente das mesmas armas anteriores, apesar de estas já não reflectirem a sua idiossincrasia histórico-geográfica.
Esta situação mantém-se até à implantação da República em 1910,
em que é apenas abolida a coroa real fechada do brasão, pela sua
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inerente representatividade imagética da Monarquia, e a vereação
altera ideologicamente o ordenamento heráldico da autarquia na sua
sessão de 26 de Novembro de 1911, por proposta unanimemente
aprovada de Tiago da Silva Santos, membro da Comissão
Administrativa do Município. As oliveiras falantes dos Olivais são
então substituídas por uma capela ou coroa fitomórfica de louros
falantes de Loures, envolvendo a legenda cronológica "4-X[Outubro][1]910 " posta em barra, alusiva à data da proclamação revolu-
cionária pioneira naquele território (ainda antes de Lisboa) 31.
Adicionalmente, e segundo Afonso de Dornelas, esse quartel passou a ter o campo de azul e os ramos de louro passaram a ser cozidos (isto é, conjugados pela sobreposição estético-heráldica de
duas quaisquer texturas cromáticas da mesma tipologia esmaltes, metais ou peles - interdita por motivos plásticos) de
verde e atados em ponta de vermelho, rodeando assim ao centro a
inscrição de ouro (criticada por ele como não heráldica) e sobrepondo-se o escudo a uma esfera armilar de ouro envolvida por uma
coroa de louros de verde atada no pé por uma fita de verde e vermelho 32.
Esta modificação denota uma clara intenção heráldica de destacar
como inusitada a proclamação pioneira da República em Loures,
expressa nas Armas do Concelho como "armas a inquirir" - ou seja,
aquelas cuja aparente contradição leva o observador a descobrir a
inerente razão interna de tal acto - e assimiladas às da própria
Nação republicana (como pretenso berço histórico do seu regime)
por suportes fitomórficos e simbólicos que lhe deveriam ser, contudo, exclusivos.
Na sequência da substituição legal dessas armas pelas actuais de
Loures em 1955, a Junta de Freguesia de Santa Maria dos Olivais
recupera revivalística, ainda que ilicitamente, desde c. 1985 o uso
público oficioso das armas do extinto Município a que deu apenas
nome, contudo aspirando à evidente preservação representante da
sua memória geo-administrativa de autonomia autárquica face a
Lisboa.
Assim, num evidente espírito contextual claramente saudosista, em
que se inscreve uma nítida auto-assunção sucessória da actual
autarquia face ao extinto município olivalense (quanto às implicações pró-municipalistas da inerente autonomia administrativo-territorial, nitidamente subsistentes na memória colectiva da população local), a edilidade usufrui, no seu papel timbrado e nos seus
veículos oficiais, com a legenda acompanhante "JUNTA DE FREGUE-
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SIA DE SANTA MARIA DOS OLIVAIS" em caracteres maiúsculos lati-
nos, as armas do seu antigo Concelho, sem utilizar armas próprias
legalmente reconhecidas pela Comissão de Heráldica da Associação
dos Arqueólogos Portugueses e publicadas no Diário da República,
por omissão casuística do disposto na Lei da Assembleia da
República n.º 53 / 91, de 7 de Agosto, que regula a Heráldica
autárquica e das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, em que uma Freguesia assume aqui as armas de um extinto
município que a antecedeu geotoponimicamente.
Figura 7 Brasão de armas da Câmara Municipal de
Loures (Arquivo Histórico da Câmara Municipal de
Loures, 1922).
Efectivamente, e segundo a oportuna reflexão do jurista e heraldista
Pedro Sameiro a este mesmo propósito: A cessação ou extinção do
direito aos símbolos autárquicos resulta do desaparecimento do seu
titular em tanto quanto pessoa colectiva de direito público. Todavia,
se um município perder esta categoria e passar à de freguesia, do
que existem numerosos exemplos na nossa história, parece que
poderá manter o uso das suas antigas armas desde que lhe modifique
apenas a coroa mural, que deverá passar a ser a de freguesia 33.
Conclusão
No termo desta nossa investigação, perspectivando contextualmente o percurso histórico-geográfico do extinto Município dos
Olivais, como produto do Liberalismo monárquico oitocentista, foi-nos possível percepcionar o seu reflexo identificativo evidente no
seu respectivo brasão de armas, como imagética sintetizante de
uma reconhecibilidade pública e de um reconhecimento oficial.
A Heráldica, neste caso autárquica, pretende sempre ser o rosto
nominal do seu sujeito titular, integrando características idiossincráticas, denotando as presentes armas a aplicação de uma moda
estética heráldica autárquica claramente nacionalizante, por um
lado, bem como uma flagrante rivalidade metropolitana face a
Lisboa.
De facto, a inidentificação recíproca das suas sedes histórico-toponímica e político-administrativa, expressa na Heráldica, demonstra uma efectiva insustentabilidade da autonomia prolongada
de um território monstruoso economicamente próspero, contíguo e
emanado de Lisboa. A capital cobiçava os seus profícuos rendimentos fiscais (reflexo social e agropecuário rivalizante), e aquela
cobiçava a sua capitalidade citadina (desde a sua periferia medieval),
sediando-se próximo à nova estrada de circunvalação e fazendo-se
representar com símbolos identificativos das escalas geomorfológicas de Lisboa nos meados do séc. XIX.
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Além disto e na sequência da análise hermenêutica previamente
efectuada, quanto à função eminentemente auto-afirmativa de protagonismo autárquico desempenhada pelo brasão em estudo,
apraz-nos referir que, na circunstância remotamente improvável de
concretização de uma reforma administrativa do município lisboeta
e consequente abolição do termo de circunvalação urbana oriental,
restaurando em consequência o extinto Concelho dos Olivais, as
suas antigas armas manter-se-iam legalmente inalteradas, como
aquando da sua criação jurídico-institucional.
Apesar do Despacho-Circular enviado aos diversos Governadores
Civis pela Direcção Geral de Administração Política e Civil do
Ministério do Interior, em 14 de Abril de 1930 (que constituíu a
primeira manifestação heráldica legislativa do regime republicano
implantado em 1910, desde a abolição da legalidade dos títulos
nobiliárquicos e a aprovação do projecto da nova bandeira nacional),
determinar expressamente, no seu ponto 4.º, que As armas de
dominio [isto é, brasões de autarquias] nunca poderão ser partidas,
cortadas ou esquarteladas, apresentando sempre um aspecto
absolutamente simetrico e regular, atendendo-se na sua composição, á verdade historica e á melhor estetica, sendo as peças
simbolicas que as compuzerem, estilisadas, em conformidade com
a melhor arte heraldica 34.
Além de virtualmente incluír todos e quaisquer escudos que contenham partições heráldicas nos seus campos, esta evidente
determinação manifestamente contraria a legitimidade jurídico-armorial do brasão dos Olivais, no caso hipotético de subsistência
contínua do seu Concelho, ao passo que já a Lei da Assembleia da
República n.º 53/91, de 7 de Agosto (que introduziu algumas inovações, apesar de confirmar as disposições anteriores de 1930 e
mesmo da Monarquia constitucional), actualmente em vigor, define,
no seu artigo 21.º, que a presente lei não põe em causa as ordenações de símbolos heráldicos municipais feitas ao abrigo do despacho de 14 de Abril de 1930, nem as que resultarem de acto comprovado de autoridade competente anterior a esta data e que não
tenham sido revistas ao abrigo do dito despacho 35, claramente confirmativo do que atrás se disse.
Rematando esta pormenorizada investigação, constatamos então
reflexivamente constituir o ordenamento heráldico em estudo o
fruto de uma vontade determinada e consolidante de projecção
municipalista nacional e resultante em relíquia arqueológico-etnográfica venerada pela nostalgia comunitária do território que, ape-
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sar das sucessivas reformas administrativas, nunca cessou de representar iconologicamente com plena legitimidade simbólica.
Notas
1
Ver Carlos Consiglieri, Filomena Ribeiro, José Manuel Vargas, Marília
Abel, Lisboa Oriental - São João, Beato, Marvila, Santa Maria dos Olivais,
Colecção 'Pelas Freguesias de Lisboa' vol. 2, Pelouro da Educação da
Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1993, p. 135.
2
Ver Carlos Consiglieri, Filomena Ribeiro, José Manuel Vargas, Marília
Abel, op. cit., pp. 135-136;
Ralph Delgado, "A Antiga Freguesia dos Olivais", in Olisipo - Boletim trimestral do 'Grupo dos Amigos de Lisboa', Grupo dos Amigos de Lisboa, Lisboa,
n.º 101, Janeiro de 1963, pp. 32-33;
Idem, A Antiga Freguesia dos Olivais, s. ed., Lisboa, 1969, pp. 15-17;
Francisco Silva Dias, Tiago Silva Dias, Lisboa - Freguesia de Santa Maria
dos Olivais, Colecção Guias n.º 53, Contexto Editora, Lisboa, 1993, pp. 9,
19;
Augusto Vieira da Silva, "O termo de Lisboa", in Dispersos, Câmara
Municipal de Lisboa, Lisboa, 1954, vol. I, pp. 35-54;
Idem, "ibidem", in Revista Municipal, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa,
1940, Ano I, n.º 4, pp. 11-22;
Maria Júlia Jorge, "Olivais (Sítio de)", in Francisco Santana, Eduardo
Lucena, Dicionário de História de Lisboa, Carlos Quintas & Consultores
Associados Lda., Lisboa, 1994, p. 667.
3
Ver Carlos Consiglieri, Filomena Ribeiro, José Manuel Vargas, Marília
Abel, op. cit., pp. 136-140;
Figura 8 Brasão de armas da Junta de Freguesia de
Santa Maria dos Olivais (Junta de Freguesia de
Santa Maria dos Olivais, c. 1993).
Ralph Delgado, "art. cit.", p. 37;
Idem, op. cit., pp. 17-19, 21, nota 10;
Francisco Silva Dias, Tiago Silva Dias, op. cit., p. 19;
Maria Júlia Jorge, "art. cit.", p. 667;
Frei Agostinho de Santa Maria, Santuario Mariano e Historia das Imagens
milagrosas de Nossa Senhora, e das milagrosamente aparecidas, em
graça dos Prégadores, e dos devotos da mesma Senhora, Lisboa, 1707,
vol. I, p. 429;
Padre João Bautista de Castro, Mappa de Portugal Antigo e Moderno,
Manoel Bernardes Branco, Lisboa, 1870, 3.ª edição, Tomo III, Parte V, pp.
282-286;
Padre António Carvalho da Costa, Corografia Portugueza e Descripçam
topografica do famoso Reyno de Portugal, com as noticias das fundaçoens
das Cidades, Villas, & Lugares, que contem; Varoens illustres, Genealogias
das Familias nobres, fundaçoens de Conventos, Catalogos dos Bispos,
antiguidades, maravilhas da natureza, edificios, & outras curiosas observaçoens, Typographia de Domingos Gonçalves Gouvea, Braga, 1869, 2.ª
edição, Tomo III, cap. XXXVII, pp. 412-413;
Anónimo, "Olivais (Santa Maria de)", in Maximino de Lemos, Encyclopedia
Portugueza Illustrada - Diccionario Universal, Lemos & Cª Sucessor, Porto,
s. d. [c. 1903], vol. VIII, p. 38.
4
Ver Ralph Delgado, "art. cit.", p. 33;
Idem, op. cit., pp. 25-58.
5
Ver Carlos Consiglieri, Filomena Ribeiro, José Manuel Vargas, Marília
Abel, op. cit., pp. 137, 140;
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Francisco Matos
Francisco Silva Dias, Tiago Silva Dias, op. cit., p. 22;
Samuel Alemão, Ascenção e queda do concelho dos Olivais (1852-1886),
Alface Voadora, s. l., 2000, pp. 3-5.
6
Ver Carlos Consiglieri, Filomena Ribeiro, José Manuel Vargas, Marília
Abel, op. cit., pp. 140-141;
Francisco Silva Dias, Tiago Silva Dias, op. cit., pp. 9, 11, 21-22;
Maria Júlia Jorge, "art. cit.", pp. 667-668;
Ralph Delgado, op. cit., pp. 21-23, 65-71, 72;
Américo Costa, Diccionario Chorographico de Portugal Continental e
Insular, ed. autor, Lisboa, 1943, vol. VIII, p. 735.
7
Ver Carlos Consiglieri, Filomena Ribeiro, José Manuel Vargas, Marília
Abel, op. cit., p. 141;
Ralph Delgado, "art. cit.", p. 36;
Angelina Vidal, Lisboa Antiga e Lisboa Moderna - Elementos históricos da
sua evolução, Typographia da "Gazeta de Lisboa", Lisboa, 1900, pp. 170172;
Augusto Vieira da Silva, "Os limites de Lisboa", in Revista Municipal,
Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, Ano II, n.º 6, 1940, pp. 11-14;
Idem, Dispersos, vol. I, pp. 80-86;
Mário Guedes Real, "Antigos Concelhos da Estremadura", in Boletim da
Junta de Província da Estremadura, Junta de Província da Estremadura,
Lisboa, Série II, n.º 12, Maio-Agosto de 1946, p. 158;
Esteves Pereira, Guilherme Rodrigues, Portugal - Diccionario historico,
chorographico, biographico, bibliographico, heraldico, numismatico e artistico abrangendo a minuciosa descripção historica e chorographica de
todas as cidades, villas e outras povoações do continente do reino, ilhas e
ultramar, monumentos e edificios mais notaveis, tanto antigos como modernos; biographias dos portuguezes illustres antigos e contemporaneos,
celebres por qualquer titulo, notaveis pelas suas acções ou pelos seus
escriptos, pelas suas invenções ou descobertas; bibliographia antiga e
moderna; indicação de todos os factos notaveis da historia portugueza,
etc., etc. Obra illustrada com centenares de photogravuras e redigida
segundo os trabalhos dos mais notaveis escriptores, João Romano Torres
& C.ª - Editores, Lisboa, 1911, vol. V, pp. 196-197;
José Máximo de Castro Neto Leite e Vasconcellos, Collecção Official da
Legislação Portugueza - Anno de 1852, Imprensa Nacional, Lisboa, 1853,
pp. 400-401, 563-564, 568;
Diário do Governo, Imprensa Nacional, Lisboa, n.º 218, 15 de Setembro de
1852;
Idem, n.º 245, 16 de Outubro de 1852;
Idem, n.º 246, 18 de Outubro de 1852;
Samuel Alemão, op. cit., pp. 5-11;
Figura n.º 1 (in Augusto Vieira da Silva, "O Termo de Lisboa", in op. cit., vol.
I, p. 50; Idem, "ibidem", in Revista Municipal, Câmara Municipal de Lisboa,
Lisboa, 1940, Ano I, n.º 4, p. 20).
8
Ver José Máximo de Castro Neto Leite e Vasconcellos, Collecção Official
da Legislação Portugueza - Anno de 1855, Imprensa Nacional, Lisboa,
1856, pp. 361, 384-387;
Diário do Governo, Imprensa Nacional, Lisboa, n.º 273, 19 de Novembro de
1855;
Augusto Vieira da Silva, op. cit., vol. I, pp. 49-53;
Idem, "O termo de Lisboa", in Revista Municipal, Câmara Municipal de
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O extinto Município dos Olivais:
da evolução geo-administrativa à Heráldica autárquica
Lisboa, Lisboa, 1940 Ano II, n.º 3, pp. 18-22.
9
Ver Collecção de Legislação Portugueza - Anno de 1867, Imprensa
Nacional, Lisboa, 1868, pp. 702-703, 722;
Diário de Lisboa, Imprensa Nacional, Lisboa, n.º 281, 11 de Dezembro de
1867.
10
Ver Collecção da Legislação Portugueza publicada pela Empreza do
Semanario 'O Direito', Tipografia do Jornal "O Progresso", Lisboa, 1885, pp.
101-123, 172-174, 347;
Diário do Governo, Imprensa Nacional, Lisboa, n.º 163, 25 de Julho de 1885;
Idem, n.º 207, 10 de Setembro de 1885;
Idem, n.º 209, 18 de Setembro de 1885;
Idem, n.º 229, 12 de Outubro de 1885;
Ralph Delgado, "art. cit.", p. 36.
11
Ver Collecção Official da Legislação Portugueza - Anno de 1886,
Imprensa Nacional, Lisboa, 1887, pp. 102-104;
Diário do Governo, Imprensa Nacional, Lisboa, n.º 165, 26 de Julho de
1886, e nota;
Augusto Vieira da Silva, op. cit., vol. I, pp. 52-53, 86-87, 207-208, 294;
Idem, "art. cit.", pp. 18-22;
Idem, As Freguesias de Lisboa (estudo histórico), Câmara Municipal de
Lisboa, Lisboa, 1943, p. 67;
Idem, "A evolução paroquial de Lisboa", in Revista Municipal, Câmara
Municipal de Lisboa, Lisboa, Ano III, n.os 13-14, 3.º trimestre de 1942, pp. 2122;
Idem, "Os limites de Lisboa", in Revista Municipal, Câmara Municipal de
Lisboa, Lisboa, 1940, Ano II, n.º 6, pp. 11-14;
Idem, "Notícia histórica das Freguesias de Lisboa", in Revista Municipal,
Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, n.º 16, 1943, p. 25;
Ralph Delgado, "art. cit.", p. 34;
Idem, op. cit., pp. 65-71, 72;
Carlos Consiglieri, Filomena Ribeiro, José Manuel Vargas, Marília Abel, op.
cit., p. 141;
Francisco Silva Dias, Tiago Silva Dias, op. cit., p. 21.
12
Ver Francisco Silva Dias, Tiago Silva Dias, op. cit., p. 21;
Afonso Eduardo Martins Zúquete, Nobreza de Portugal e do Brasil,
Editorial Enciclopédia Lda., Lisboa, 1984, 2.ª edição, vol. III, pp. 73, 469;
Samuel Alemão, op. cit., pp. 12-22.
13
Ver Documento n.º 1;
O promotor responsável pela concepção e legalização das armas do
Concelho dos Olivais fora o seu então Presidente da Câmara Municipal
entre 1859 e 1861, José Maria da Costa Bueno e Nieto Cevallos de Villa
Lobos Hidalgo e Moscoso, nascido em Portalegre em 1 de Março de 1816
e falecido em Lisboa em 4 de Dezembro de 1880, agraciado com o título
nobiliárquico de Visconde do Paço do Lumiar (onde residia) por Decreto de
D. Luís I de 30 de Abril de 1862;
Esteves Pereira, Guilherme Rodrigues, op. cit., vol. V, p. 344;
Afonso Eduardo Martins Zúquete, op. cit., vol. III, pp. 90-91.
14
Ver Documento nº 2;
Jorge de Matos, A Heráldica autárquica do extinto município de Belém,
Hugin, Lisboa, 1998, pp. 50, 57, nota 4;
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Francisco Matos
Augusto Soares d[e]'Azevedo Barbosa de Pinho Leal, Portugal Antigo e
Moderno - Diccionario Geographico, Estatistico, Chorographico, Heraldico,
Archeologico, Historico, Biographico e Etymologico de todas as cidades,
villas e freguezias de Portugal e de grande numero de aldeias se estas são
notaveis por serem patria de homens celebres, por batalhas e outros factores importantes que n'ellas tiveram lugar, por serem solares de familias
nobres, ou por monumentos de qualquer natureza alli existentes; Noticia
de muitas cidades e outras povoações da Lusitania de que restam vestigios ou somente a tradição, Livraria Editora Mattos Moreira e Companhia,
Lisboa, s. d. [c. 1877], vol. VI, p. 246;
Anónimo, "Olivais (Santa Maria de)", in Maximiano Lemos, Encyclopedia
Portugueza Illustrada - Diccionario Universal, Lemos & Cª Sucessor, Porto,
s. d. [c. 1903], vol. VIII, p. 38;
Esteves Pereira, Guilherme Rodrigues, op. cit., vol. V, p. 196;
Ver Carlos Consiglieri, Filomena Ribeiro, José Manuel Vargas, Marília Abel,
op. cit., p. 141;
Américo Costa, op. cit., p. 735;
Ralph Delgado, "art. cit.", p. 39;
Idem, op. cit., p. 73;
Maria Júlia Jorge, "art. cit.", p. 668;
Antero José de Brito, 1862 - Relatorio Para a escolha de terreno e Cazas
para Paços do Concelho appresentado em Sessão de 27 de Março (in
AHCMLRS - CMO);
Figura n.º 2 (in Augusto Vieira da Silva, "Os limites de Lisboa - notícia
histórica", in Dispersos, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1954, vol. I,
entre pp. 68-69; Idem, "ibidem", in Revista Municipal, Câmara Municipal de
Lisboa, Lisboa, 1940, Ano I, n.º 5, entre pp. 8 e 9).
15
Ver Documento n.º 3.
16
Ver Documentos n.os 4 e 5;
Augusto Soares d[e]'Azevedo Barbosa de Pinho Leal, op. cit., vol. VI, p.
246.
17
Ver Documentos n.os 3 e 6;
Este sinete está eventualmente integrado no acervo museológico da
Câmara Municipal de Loures, segundo informação verbal gentilmente
prestada pela Dr.ª Maria José Chaves, do Arquivo Histórico da Câmara
Municipal de Loures, que não foi possível confirmar ou infirmar.
18
Ver Documento n.º 7;
Augusto Soares d[e]'Azevedo Barbosa de Pinho Leal, op. cit., vol. VI, p.
246.
19
Ver Documento n.º 8;
Jorge de Matos, op. cit., pp. 55, 60, nota 23, 145-146, Documento n.º 22.
20
Ver Documento n.os 9 e 10;
Jorge de Matos, op. cit., pp. 56, 60, notas 23 e 24, 147-149,
Documentos n.os 23 e 24.
21
Ver Documentos n.os 11 e 12.
22
Ver Codigo de Posturas da Camara Municipal do Concelho dos Olivaes,
Imprensa Nacional, Lisboa, 1882;
Diário da República, Imprensa Nacional, Lisboa, II Série, n.º 167, 20 de
Julho de 1955, p. 4442;
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O extinto Município dos Olivais:
da evolução geo-administrativa à Heráldica autárquica
Idem, III Série, n.º 62, 14 de Março de 1995, pp. 4322-4323.
23
Ver Documento n.º 2;
nota 14.
24
Ver J. M. D. de Oliveira Travassos, "Monumento no Sítio de Arroyos", in
Archivo Pittoresco, Tomo VIII, 1865, n.º 4, pp. 25-26;
Inácio de Vilhena Barbosa, "Monumento no Sítio de Arroyos", in op. cit., p. 26;
Carta do Abade de Castro ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa,
de 30 de Janeiro de 1851 (in AHCMLSB - CMLSB, Misc., (Continuação)
Documentos Diversos - Pasta n.º 5 - 1834-1867; cota: AHM - 271, Pasta
9 - n.º 190D);
Antero José de Brito, op. cit..
25
Ver Figura n.º 5 (in acervo da Câmara Municipal dos Olivais, in Arquivo
Histórico da Câmara Municipal de Loures).
26
Ver Documento n.º 13.
27
Ver Figura n.º 3 (in Codigo de Posturas da Camara Municipal do Concelho
dos Olivaes, Imprensa Nacional, Lisboa, 1882; Anónimo, "Olivais (Santa
Maria de)", in Maximiano Lemos, Encyclopedia Portugueza Illustrada Diccionario Universal, Lemos & Cª Successor, Porto, s. d. [c. 1903], vol.
VIII, p. 38; cota: IAN/TT, Cartório da Nobreza e da Casa Real, Cx. 82, Mç.
73, Doc. 90).
28
Vejam-se os casos de Aveiro, Bragança, Viseu, Ponta Delgada,
Chamusca e Trancoso, entre outros.
29
Augusto Soares d[e]'Azevedo Barbosa de Pinho Leal, op. cit., vol. VI, p. 246;
Anónimo "Olivais (Santa Maria)", in Maximiano Lemos, op. cit., vol. VIII, p. 38;
Ver Figura n.º 4 (in Ralph Delgado, op. cit., p. 73; Francisco da Silva Dias,
Tiago da Silva Dias, op. cit., p. 17).
30
Ver Documento n.º 15.
31
Ver Documento n.º 14;
Figuras n.os 6 a 8 (in acervo da Câmara Municipal dos Olivais, in Arquivo
Histórico da Câmara Municipal de Loures).
32
Ver Documento n.º 16.
33
In Pedro Sameiro, "A Heráldica autárquica em Portugal", in Almansor,
Associação de Municípios do Distrito de Beja, Montemor-o-Novo, n.º 4,
1986, pp. 110-111;
Ver Figura n.º 9 (in Junta de Freguesia de Santa Maria dos Olivais).
34
In Manuel de Novaes Cabral, "Do direito ao uso de brasão de armas, selo
e bandeira pelas freguesias", separata de Armas & Troféus - Revista de
História, Heráldica, Genealogia e Arte, Instituto Português de Heráldica,
Lisboa, VI Série, Tomo I, n.os 1-3, Janeiro a Dezembro de 1987/1988, p. 25;
Afonso de Dornelas, "Heraldica de Dominio - organização official", in Elucidario
Nobiliarchico - Revista de Historia e de Arte, Affonso de Dornellas Editor,
Lisboa, vol. II, n.º IX, Setembro de 1929 (Junho de 1930), pp. 273-275.
35
In Diário da República, Imprensa Nacional, Lisboa, I Série A, n.º 180, 7 de
Agosto de 1991, pp. 3904-3906;
António de Sousa Lara, Benjamim de Quaresma Diniz, Genealogia,
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Francisco Matos
Heráldica e Ciências Sociais, Pedro Ferreira Editor, Lisboa, 1991, 154-183;
O sublinhado é nosso.
Documento n.º 1
Excerto de acta de sessão da Câmara Municipal dos Olivais alusivo à
existência utilitária do seu brasão de armas previamente à sua legalização
(4 de Agosto de 1859):
(in Livro de Actas das Sessões da Câmara Municipal dos Olivais, n.º
3, sessão de 4 de Agosto de 1859, 31.ª sessão, fl. 40v - cota:
AHCMLRS - CMOLV)
(...) não se esquecendo esta Camara dos Olivaes, interprete fiel dos
generosos sentimentos de cortezia e urbanidade dos seus administrados, de fazer ostentar entre todos os Brasões, Emblemas, e
mais ornamentos, que decoravam a elegante Praça do Commercio
de Lisboa, logar do desembarque da Augusta Princesa, Que vinha
ser rainha dos Portugueses, o novo Brazão das suas Armas, como
em tributo de homenagem, amor e dedicação aos Excelsos
Conjuges; (...)
Documento n.º 2
Decreto régio de concessão de brasão de armas à Câmara
Municipal dos Olivais (25 de Julho de 1860):
(in Diário de Lisboa, Imprensa Nacional, Lisboa, n.º 190, 22 de
Agosto de 1860;
José Máximo de Castro Neto Leite e Vasconcelos, Collecção Official
da Legislação Portugueza - Anno de 1860, Imprensa Nacional,
Lisboa, 1861, p. 233)
Ministerio dos Negocios do Reino
Direcção Geral de Administração Politica
2.ª Repartição
Attendendo ao que me representou a camara municipal do concelho dos Olivaes ácerca da concessão que pretende de um brazão de
armas, que, servindo para distinctivo honorifico d[e]'aquelle municipio, commemore o notavel facto historico da segunda reconciliação
entre El-Rei D.[om] Diniz e o infante D.[om] Affonso, meus augustos
predecessores, conseguida no anno de 1323 pelos rogos e instancias da Rainha Santa Isabel, nas proximidades do logar onde hoje
assentam os paços do mesmo concelho; e conformando-me com a
resposta fiscal do procurador geral da corôa, em vista da informação do rei de armas Portugal: hei por bem e me praz conceder
ao concelho dos Olivaes um brazão de armas para que d'elle possa
usar em devida fórma, o qual será composto do modo seguinte: um
escudo partido em pala, tendo na primeira em campo azul a Rainha
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O extinto Município dos Olivais:
da evolução geo-administrativa à Heráldica autárquica
Santa Isabel com seu esposo El-Rei D.[om] Diniz, á direita, e o
infante D.[om] Affonso, seu filho primogenito, á esquerda, todos
representados em figuras de prata com as espadas de oiro; e na
segunda pala, em campo de oiro, duas oliveiras de côr natural, allusivas ao nome do logar dos Olivaes, e como symbolo da paz que a
piedosa e Santa Rainha alcançou entre aquelles dois principes.
O ministro e secretario d'estado dos negocios do reino assim o
tenha entendido e faça executar. Paço das Necessidades, em 25 de
julho de 1860.= REI. = Marquez de Loulé.
Documento n.º 3
Ofício do Governo Civil de Lisboa enviado ao Presidente da Câmara
Municipal dos Olivais, informando-o oficialmente da concessão de
um brasão de armas à autarquia (1 de Agosto de 1860):
(in Correspondência recebida - 1860, Cx - cota: AHCMLRS - CMOLV)
GOVERNO CIVIL
DE
LISBOA
4.ª Rep.[artiç]ão
N[umer]º 333
ll[ustrissi]mo S[e]n[ho].r
Havendo sido concedido, por Decreto de 25 de Julho ult.[im]o, um
Brazão d[e]'armas a esse Concelho, conforme acaba de ser communicado a esta Rep.[artiç]ão em officio do Ministerio do Reino de 27
do dito mez; Sua Ex[celênci]a o S[e]n[ho]r Gov.[ernad]or Civil, em virtude do que no mesmo lhe é ordenado, incumbe-me de participar o
referido a V.[ossa] S.[enhori]a, para conhecimento da Cam.[ar]a
M[unicip]al de sua prezidencia, e a fim de fazer solicitar n'aquelle
Ministerio, a expedição do competente Alvará de mercê dentro do
prazo legal.
D.[eu]s G.[uar]de a V.[ossa] S.[enhori]a.
Lix.[bo]a 1 de Agosto de 1860.
Ill[ustrissi]mo S[e]n[ho]r Presidente da
Cam.[ar]a M.[unicip]al do Concelho dos Olivaes.
O Secret.[ari]o Geral
D.[om] João Pedro da Camara
[fl. v]
Acta n[umer]º 37 de 23 de Agosto
A ordem de pagamento -
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As Guias do pagamento p[or] os Direitos
De Mercê foram entregues ao portador
Digo ao Procurador a 12-9[Setembro]-[18]60.
Documento n.º 4
Excerto de acta de sessão da Câmara Municipal dos Olivais alusivo
ao do-cumento anterior (9 de Agosto de 1860):
(in Livro de Actas das Sessões da Câmara Municipal dos Olivais, n.º
3, 9 de Agosto de 1860, 35.ª sessão, fl. 130v - cota: AHCMLRS CMOLV)
Lêo-se um Officio expedido pela [
de L[i]x[bo]a, com data de [
[
] Rep.[artiç]ão do Governo Civil
] de Agosto corrente, sob o n[umer]º
] fasendo constar a esta Camara ter sido approvado por S.[ua]
Magestade, o Brasão d[e]'Armas desta Camara, devendo por isso
solicitar do Ministerio do Reino as Guias competentes para o pagamento dos respectivos Direitos de Mercê, Sello & isto dentro do
prazo legal. A Camara decidio tomar em consideração este negocio
para a sessão seguinte.
Documento n.º 5
Excerto de acta de sessão da Câmara Municipal dos Olivais alusivo
ao imposto de direitos de mercê da concessão do seu brasão de
armas (23 de Agosto de 1860):
(in Livro das Actas das Sessões da Câmara Municipal dos Olivais,
n.º 3, 23 de Agosto de 1860, 37.ª sessão, fl. 134v - cota: AHCMLRS
- CMOLV)
A Camara authorisou o pagamento dos impostos do Sêllo e Direitos
de Mercé do Brazão d[e]'Armas conferido a esta Camara por
Decreto de 25 de Julho ultimo; sendo 10$000 reis de sellos,
200$000 reis de Direitos de Mercé e 10$000 reis de 5% addi-
cionaes.
Documento n.º 6
Excerto de acta de sessão da Câmara Municipal dos Olivais alusivo
ao fabrico de um sinete armoriado autenticante de expediente
autárquico (27 de Dezembro de 1860):
(in Livro das Actas das Sessões da Câmara Municipal dos Olivais,
n.º 3, 27 de Dezembro de 1860, 56.ª sessão, fl. 167v - cota:
AHCMLRS - CMOLV)
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O extinto Município dos Olivais:
da evolução geo-administrativa à Heráldica autárquica
Mandou-se satisfazer a Augusto Fernando Gerard, a quantia de
21$000 reis, preço do custo de um signete para fechar Officios,
prensa e brasão de armas da Camara para sellar diplomas.
Documento n.º 7
Excerto de acta de sessão da Câmara Municipal dos Olivais alusivo
ao imposto de direitos de mercê do seu brasão de armas (6 de
Junho de 1861):
(in Livro das Actas das Sessões da Câmara Municipal dos Olivais,
n.º 4, 6 de Junho de 1861, 22.ª sessão, fl. 8 - cota: AHCMLRS CMOLV)
A Camara deliberou fazer uma Representação a Sua Magestade,
pelo Ministerio da Fazenda, pedindo moratoria pelos Direitos de
Mercê do Brazão desta Camara, em quanto lhe não for despachado
o requerimento affecto à mesma Repartição em que se pede a dispensa de taes Direitos fundado em outros precedentes de igual
naturesa.
Documento n.º 8
Portaria alusiva ao funcionamento regulamentar do Cartório da
Nobreza (26 de Agosto de 1881):
(in Diário do Governo, Imprensa Nacional, Lisboa, n.º 195, 1 de
Setembro de 1881)
Ministerio dos Negocios do Reino
Direcção Geral de Administração Politica e Civil
1.ª Repartição
Convindo regular o ramo de serviço publico que diz respeito á
armaria, a qual constitue uma parte importante da historia e da
archeologia, e não existindo no cartorio da nobreza d'estes reinos
os elementos indispensaveis para se poder organizar um trabalho
de reconhecida utilidade, como são, alem de valiosos documentos da
historia, especialmente a que respeita antiguidades, os titulos de
brazões concedidos a diversos municipios, já para commemorar factos celebres, já para perpetuar a memoria de serviços relevantes
feitos á patria, de que não ha conhecimento n'aquella repartição;
Considerando que algumas camaras municipaes e outras corporações usam desde tempos remotos, de brazões, sem haverem
solicitado os competentes diplomas:
Manda Sua Magestade El-Rei, pela secretaria d[e]'estado dos negocios do reino, que os governadores civis dos districtos do continente do reino e ilhas adjacentes, façam sentir ás camaras muni-
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cipaes e outras corporações dos seus districtos, a conveniencia de
dar cumprimento a este preceito da lei, convidando aquellas que
tiverem já os diplomas dos brazões, de que usam, a apresenta-los
no cartorio da nobreza, a fim de serem ali devidamente registados,
assim como quaesquer outros documentos e esclarecimentos que
nos seus archivos se encontrem e que tenham relação com o
assumpto; e pelo que pertence ás mesmas corporações que não
possuem titulo em devida fórma, que prove a legitimidade da posse
e a origem historica dos brazões de que fazem uso, cumpre que os
referidos magistrados lhes façam constar que o devem solicitar por
esta secretaria d[e]'estado, na conformidade da lei, sendo depois
igualmente registados n'aquelle cartorio.
Paço da Ajuda, em 26 de Agosto de 1881.= Antonio Rodrigues
Sampaio.
Documento n.º 9
Ofício-circular do Governo Civil de Lisboa enviado ao Presidente da
Câmara Municipal dos Olivais e alusivo ao documento anterior (3 de
Setembro de 1881):
(in Correspondência recebida - 1881, Cx - cota: AHCMLRS - CMOLV)
GOVERNO CIVIL
DE
Ill[ustrissi]mo
S[enho].r
LISBOA*
Rep.[artiç]ão Central
1ª Secção
N[umer]º 12
Circular
Sua Ex.[celênci]a o S.[enho]r Governador Civil encarrega-me de chamar a
attenção da Camara Municipal da sua presidencia sobre o pontual cumprimento na parte que lhe diz respeito das disposições da portaria do
Ministerio do Reino de 26 d[e]'Agosto proximo passado, publicada no Diario
do Governo n[umer]º 195 do 1.º do corrente, que regula o serviço publico relativo á armaria, a qual constitue uma parte importante da historia e da
archeologia.
N[umer]º 300
Deus Guarde a V.[ossa] S.[enhori]a. Lix.[bo]a 3 de Setembro de 1881.
Ill[ustrissi]mo Senhor Presidente da Cam.[ar]a
M.[unicip]al do Concelho dos Olivaes.
O Secretario Geral.
Eduardo Segurado
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O extinto Município dos Olivais:
da evolução geo-administrativa à Heráldica autárquica
*Selo branco elíptico das armas reais portuguesas orlado desta legenda
Documento n.º 10
Excerto de acta de sessão da Câmara Municipal dos Olivais alusivo
aos Documentos n.os 8 e 9 (15 de Setembro de 1881):
(in Livro das Actas das Sessões da Câmara Municipal dos Olivais, n.º 15,
15
de Setembro de 1881, 22.ª sessão, fl. 45v - cota: AHCMLRS -
CMOLV)
Circular n[umer]º 12 de 3 do corrente, expedida da Repartição Central do
Governo Civil chamando a attenção da Camara sobre a Portaria do
Ministerio do Reino de 26 de Agosto ultimo, que regula o serviço publico relativo á armaria, a qual constitue uma parte importante da historia e da
archeologia Inteirada -
Documento n.º 11
Ofício-circular do Cartório da Armaria e Nobreza do Reino da
Mordomia-Mór da Casa Real enviado ao Presidente da Câmara
Municipal dos Olivais e alusivo ao Documento n.º 8 (15 de Setembro
de 1881):
(in Correspondência recebida - 1881, Cx - cota: AHCMLRS - CMOLV)
"MORDOMIA MÓR*
Ill[ustrissi]mo e Ex.[celentissi]mo
CARTÓRIO DA ARMARIA
S[enho].r
E
NOBREZA DO REINO
110, Rua da Rosa, 110
LISBOA
Cumprindo-me facilitar a execução da Portaria do Ministerio do Reino de 26
d[e]'Agosto ultimo, publicada no Diário do Governo n[umer]º 195, do 1º do
corrente sobre o registo de documentos, informações e titulos de Brazões
d[e]'Armas, por ser eu o único funccionario incumbido d[e]'este ramo de
serviço publico, e persuadido de que as Camaras Municipaes e outras
Corporações precisarão de explicações e esclarecimentos para levar a effeito
esta providencia de honra Nacional; vou participar a V.[ossa] Ex.[celênci]a que
de bom grado me promptifico a prestar-lhe todo o auxilio de que possa carecer para autenticar e legalisar o Brazão de que usa esse Municipio, nos termos da citada Portaria; podendo V.[ossa] Ex.[celênci]a para esse fim dirigirse pessoalmente ou por escripto ao meu Cartorio na Rua da Rosa, n.[umer]o
110, por onde correm todos os respectivos processos.
N[umer]o 300
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Francisco Matos
Deus Guarde a V.[ossa] S.[enhori]a. Lix.[bo]a 15 de Setembro de
1881.
Ill[ustrissi]mo e Ex.[celentissi]mo
Senhor Presidente da Cam.[ar]a
M.[unicip]al do Concelho de Olivaes.
O Escrivão da Nobreza do Reino
Carlos Augusto da Silva Campos.
*Acima, encontra-se o brasão médio das Armas Reais
Documento n.º 12
Excerto de acta de sessão da Câmara Municipal dos Olivais alusivo
aos Documentos n.os 8 e 11 (29 de Setembro de 1881):
(in Livro das Actas das Sessões da Câmara Municipal dos Olivais, n.º 15,
29 de Setembro de 1881, 83.ª sessão, fl. 49v - cota: AHCMLRS CMOLV)
Officio do Escrivão da Mordomia Mor do Reino com data de 15 do
corrente partecipando que de bom grado se promptifica a prestar
todo o auxilio de que a Camara possa carecer para authenticar e
legalizar o Brazão d[e]'armas de que usa este municipio, em conformidade da Portaria do Ministerio do Reino de 26 de Agosto ultimo Inteirada
Documento n.º 13
Descrição do brasão de armas da Câmara Municipal dos Olivais no
reverso de uma gravura de um armorial autárquico volante (c.18621885):
(in IAN/TT, Cartório da Nobreza e Casa Real, Cx. 82, Mç. 73, Doc. 90)
O seu brasão é um escudo partido em pala Na parte superior, a
rainha S.[an]ta Izabel, tendo á direita El-Rei D.[om] Diniz, e á
esquerda D.[om] Affonso, seu filho primogenito; na parte inferior,
duas oliveiras, allusivas ao nome do logar e symbolisando a paz, que,
entre aquelles dois principes alcançou a Santa Rainha no anno de
1323.
Documento n.º 14
Excerto de acta de sessão da Câmara Municipal de Loures alusivo
à alteração parcial do brasão de armas do Concelho dos Olivais (26
de Novembro de 1911):
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O extinto Município dos Olivais:
da evolução geo-administrativa à Heráldica autárquica
(in Livro das Actas das Sessões da Câmara Municipal de Loures, n.º
26, 26 de Novembro de 1911, 22.ª sessão, fl. 162v - cota:
AHCMLRS - CMLRS)
(...) e a proposta do digno membro d[e]'esta Comissão Thiago da
Silva Santos, que visto não ter esta Camara, escudo d[e]'armas
seu, propôe para que adopte o do extincto Concelho dos Olivaes,
substituindo as oliveiras, por duas palmas de louro e entre ellas a
data tão gloriosa para este Concelho de 4-X-1910, o que foi
approvado por unanimidade, (...)
Documento n.º 15
Excerto do parecer heráldico alusivo ao novo ordenamento heráldico
do Município de Loures (De Setembro a 20 de Dezembro de 1935):
(in Processos de pareceres sobre Heráldica autárquica, fls.1, 2 cota: AAP-CH)
LOURES
Parecer apresentado por Afonso de
Dornelas à Comissão de Heráldica e
Genealogia
da
Associação
dos
Arqueólogos Portugueses e aprovado
em sessão de 20 de Dezembro de
1935.
(...)
Quando a sede do concelho era nos Olivais, o respectivo Município usava
umas armas partidas, tendo, no primeiro do partido, as armas nacionais e
no segundo, em campo de ouro, duas oliveiras de sua côr. Depois, por decreto de 25 de Julho de 1860, o segundo do partido foi cortado, tendo no
primeiro, as figuras da rainha Santa Isabel, de D.[om] Diniz e de seu filho
D.[om] Afonso, no encontro de Alvalade, e, no segundo desse partido, as
referidas oliveiras.
Quando Loures foi elevada a cabeça do concelho, passou a usar o selo e
armas dos Olivais, até que, em 1910, suprimiram as oliveiras do segundo do
cortado, colocando-lhe em campo azul, dois ramos de louro, atados em
ponta de vermelho e, no centro, com letras de ouro, a data de 4-10-[1]910,
por terem ali proclamado a República na véspera do dia em que foi proclamada em Lisboa.
Este escudo é assente sobre a esfera armilar acompanhada pelos ramos de
louro, tal como o selo do Estado.
Portanto, estas armas estão fora do estabelecido pela referida circular.
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Francisco Matos
A base destas armas foram as armas municipais dos Olivais que pertencem
à história dos Olivais e não à história de Loures.
(...)
Lisboa, Setembro de 1935.
(a) Afonso de Dornelas
Visto por
O Secretário Geral
Documento n.º 16
Descrição iconográfica do ordenamento heráldico da Câmara
Municipal de Loures ([Setembro de 1935?]):
(in Processos de pareceres sobre Heráldica autárquica - cota: AAP CH)
As côres dos ramos de louro são verdes, com fitas verdes e encarnadas.
A esfera armilar e letras em dourado.
Meio escudo em fundo encarnado com os castelos em dourado e as
quinas em azul.
Uma parte do outro meio escudo representa a reconciliação no
Campo de Alvalade, que fazia parte do antigo concelho dos Olivais,
ao qual sucedeu o concelho de Loures.
A outra parte tem a legenda 4-10-[1]910 data em que foi proclamada a Republica no concelho de Loures.
Lista de abreviaturas utilizadas
a. C. - antes de Cristo
AHCMLRS - Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Loures
AHCMLSB - Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa
AHM - Arquivo Histórico Municipal
art. cit. - artigo citado
c. - cerca de
C.ª - Companhia
cap. - capítulo
CMLRS - Câmara Municipal de Loures
CMLSB - Câmara Municipal de Lisboa
CMOLV - Câmara Municipal dos Olivais
Cx - Caixa
d' - de
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O extinto Município dos Olivais:
da evolução geo-administrativa à Heráldica autárquica
D. - Dom / Dona
Doc. - Documento
ed. - edição
fl. - fólio
fls. - fólios
IAN/TT - Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo
Mç. - Maço
Misc. - Miscelânia
n.º - número
n.os - números
op. cit. - obra citada
p. - página
pp. - páginas
S. - São [Santo]
s. ed. - sem editor
s. l. - sem local
séc. - século
sécs. - séculos
v - verso
vol. - volume
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Moderador:
Dr. José Manuel Anes
Sexta-feira, 6 de Julho de 2001
VI Sessão de Trabalho | Manhã
Tema 4 - Formas Urbanas
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O Pombalino - Urbanismo, Arquitectura e Azulejaria
Maria Alexandra Trindade Gago da Câmara*
O conceito de pombalino insere-se no âmbito deste colóquio, ligando-se a uma forma urbana, a uma identidade e simultaneamente a
uma escala, pois em termos epistemológicos, esta expressão
assume uma articulação entre "um modo de pensar" e um "modo de
fazer".
Realidade plural e diversificada afirmou-se como praxis e como
método de actuação constituindo uma implementação ideológica,
em Portugal de Setecentos.
Algumas problemáticas colocam-se hoje ao estudo do programa de
Pombal entendendo-se que o pombalino poderá reunir uma vertente
erudita, importada, iluminada e uma vertente mais vernacular, no
seguimento da nossa arquitectura militar 2.
Deveremos, então, levantar algumas questões, apresentando um
sucinto quadro de edificação urbana em Lisboa ao longo do Antigo
Regime, pontualizando uma genealogia e morfologia das formas
pombalinas e aplicando e estendendo este conceito aos seus diferentes suportes: a cidade, a arquitectura e a azulejaria.
1) Sintomas de um geometrismo
Em 1640 vimos nascer o primeiro levantamento topográfico da
cidade de Lisboa realizado por João Nunes Tinoco com o objectivo
de ter um conhecimento real da cidade como entidade e facto
urbano para nela se intervir. (figura 1)
Fazendo uma leitura atenta da planta de Tinoco apercebemo-nos da
marcação de diferenciados locais e edifícios sintomáticos de uma
Lisboa ainda manuelina, que em termos urbanos apresentava alguns
sintomas de geometrismo tais como: a Praça do Rossio envolvente
do conhecido Hospital Real de Todos os Santos, o Terreiro do Paço
sobressaindo o Paço da Ribeira, edifício que sofrerá importantes
remodelações ao longo do século XVII e XVIII, estando já concluído
em 1619, quando da visita de Filipe II a Lisboa com o famoso torreão desenhado por Filipe Terzi. O torreão, segundo dados iconográficos - especificamente o painel da vista de Lisboa do Museu
Nacional do Azulejo - seria rematado por lanternim, registando-se a
RESUMO
Tornando-se a cidade, cada vez mais um objecto de estudo, a designação de pombalino assume hoje o sentido de uma expressão vaga,
devendo-a entender no seu contexto histórico.
Estudos recentes e actuais linhas de investigação na área da História da Arte Portuguesa,
levantam questões relacionadas com a identidade deste estilo: genuinamente português criado pela elite intelectual de Pombal, ou se não
passou de um episódio pontual, circunstancial
não assumindo de forma alguma uma dimensão
nacional.
É através desta problemática, que procurámos
abordar a questão, levantando as genealogias
das formas pombalinas aplicadas em diferentes
suportes: a cidade, a arquitectura e a azulejaria.
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O Pombalino - Urbanismo, Arquitectura e Azulejaria
Figura.1 Planta topográfica de Lisboa desenhada por
João Nunes Tinoco em 1650 [B. N.], 1982
presença de pilastras serlianas e grandes grades coroadas com
frontões curvos e triangulares, Modelo que irá marcar profundamente a paisagem arquitectónica de Lisboa, persistindo como um
gosto até à época pombalina.
Situado a oeste da praça real, destacava-se o Palácio Corte Real,
mandado construir por Cristovão de Moura, exemplo de uma obra
de arquitectura civil enraízada no espírito da época. Deve-se a sua
originalidade às duas enormes salas que abriam ao mar e no passadiço que comunicava com os Paço(s) da Ribeira.
Sobressaindo de um tecido ainda medieval, surgiam no limite oriental dois edifícios com tempos e tipologias distintas: a Igreja de
S. Vicente de Fora e a Igreja de S. Engrácia. Era notória a diferenciação da malha urbana a ocidente da cidade. Um novo loteamento
urbano proposto pela nobreza surge designado por Vila Nova de
Andrade à ilharga de S. Roque. Ruas largas obedecendo ao traço
geométrico, fizeram do Bairro Alto a primeira intervenção urbanística da Lisboa proto-manuelina.
No entanto, apesar de acusar timidamente sintomas de um
geometrismo, Lisboa carecia, nas vésperas do terramoto, de alguma unidade arquitectónica.
2) A cidade pombalina: alguns aspectos construtivos
fundamentais
Em termos de conjunctura histórica, o terramoto de 1755 continua a representar um marco cronológico de enorme importância
para o reinado josefino.
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A extensão da área afectada exigiu a tomada de medidas rápidas e
eficientes, numa actuação governativa, envolvendo e trazendo para
primeiro plano Sebastião José de Carvalho e Melo, mais tarde
Marquês de Pombal.
A questão principal que interessa destacar é a da urbanização da
nova Lisboa que passou pela discussão de hipóteses de urbanismo
e apresentação de diferentes modelos arquitectónicos e observações originais sobre pormenores de construção referentes à
segurança dos edifícios, assim como à largueza e higiene das ruas
e das habitações.
A escolha do experiente engenheiro militar Manuel da Maia foi a pessoa certa para rapidamente intervir com soluções adequadas e devidamente fundamentadas e analisadas. Depressa se rodeou dos
seus capitães e formou uma equipa: Eugénio dos Santos, arquitecto do Senado, Elias Sebastião Poppe, o ajudante Pedro Gualter da
Fonseca e o tenente coronel Carlos Mardel que elaborou com
grande empenho, mestria e racionalidade cartesiana os desenhos-modelo das fachadas de rua e do Terreiro do Paço.
A Baixa - bairro compreendido entre o Terreiro do Paço e o Rossio
- vai ser a zona a intervir, correspondendo a velhos espaços agora
recriados.
Entre os diferentes planos propostos foi escolhido o do capitão
Eugénio dos Santos, dirigindo este a fase inicial dos trabalhos.
O projecto pessoal de Eugénio dos Santos será a peça básica do
processo da baixa pombalina. Surgem de imediato uma série de configurações para as ruas da Baixa, onde as fachadas serão classificadas em três tipos A B C, que embora obedecendo a um mesmo
esquema de composição variavam em pormenores, tais como: telhados de duas águas à portuguesa, telhados sobrepostos à alemã
(talvez introduzidos por Carlos Mardel como se denota em toda a
zona do Rossio), janelas de sacada, de peitoril, águas furtadas e/ou
portais, contribuindo para uma diferenciação nas tipologias e variantes da arquitectura pombalina. Esta aparência de uma zona da
cidade seriada foi sensível aos viajantes estrangeiros que nos visitavam, queixando-se quase sempre da inexistência de palácios, de
jardins recolhidos e da monotonia da cidade.
Jacôme Ratton 3 dedicou um interesse detalhado e objectivo aos projectos, técnicas e fases por que passou a reedificação da nova cidade.
O facto, que saltava mais à vista num primeiro momento, era o das
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ruínas e foi sobre este ponto que as impressões dos viajantes também
mais incidiram.
A questão principal é observar a cobertura de tão vasta área por
apenas 3 e 4 tipo de fachadas. Todos estes desenhos eram assinados pelo Marquês de Pombal e Eugénio dos Santos. A Baixa foi concebida como um todo programado, através de um regular tabuleiro
topográfico. O objecto arquitectónico foi o espaço público, ligando-se a ideia de arquitectura utilitária. O princípio fundamental constituiu a total subordinação da arquitectura ao urbanismo, respeitando-se as traças das ruas e a noção de quarteirão.
A construção fora acompanhada pelo novo sistema de gaiola 4
(estrutura de madeira que suportava o edifício). Os edifícios variavam entre 3 a 5 pisos, sendo o rés-do-chão destinado a comércio e os restantes andares para habitação.
Prédios de rendimento e palácios coexistiam, recuperando-se muito
do vocabulário seiscentista de raiz serliana e uma atenção especial
Figura 2 Desenhos de prospetos pombalinos,
Cartulário Pombalino, Lisboa, C.M.L., Arquivo
Municipal, 1999
dada ao elemento joanino constituído pelo aparatoso portal-janela.
A obra prima da urbanização pombalina é, sem dúvida, o Terreiro do
Paço, que nos termos do urbanismo setecentista se insere na
tipologia de praça real.
Este modelo erudito de construção cingia-se à introdução do valor
do desenho, impondo uma métrica seriada e um referencial na leitura da cidade como bem nos demostram os programas pombalinos:
métrica severa, um rigor no desenho, despojamento, ausência de
ornamento. (figura 2)
A grande questão do pombalino persite na continuação deste programa funcional, desornamentado, quantitativo e em série. O modelo de
prédio pombalino conotado com o prédio de rendimento desmultiplicase, persistindo uma arquitectura predial privada ao longo da primeira
metade do século XIX
A continução do programa da Baixa fez surgir uma tipologia de prédio de rendimento como nos demostram alguns exemplos na Rua do
Alecrim. Uma varanda corrida ao nível do último andar, impondo se
quisermos chamar, um “proto-neo-classicismo” (figura 3).
3) A identidade da azulejaria pombalina.Breves exemplos.
A identidade da estética pombalina e a aplicação do modelo pombalino não se cingem apenas à arquitectura, estendem-se à azulejaria
realizada durante a segunda metade de Setecentos. Contrastando
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com esta rigidez imposta na arquitectura, a azulejaria vai desempenhar neste momento um papel fundamental, revelando a sua
função eminentemente social. Revestindo átrios, escadas, salas,
cozinhas, jardins, igrejas, desponta uma brilhante produção - centrada não só em Lisboa, como Coimbra e Porto - designada por
azulejaria pombalina e, que apresentará uma multiplicidade e variantes de formas e gostos. Apresentando-se como um período bastante vasto, é possível traçar grandes ciclos e momentos de produção, no entanto algumas lacunas e imprecisões continuam a persistir na tentativa de caracterização deste período, pois, como
sabemos, nem todas as obras estão inventariadas, o que nos coloca sempre o considerável problema das metodologias mais aprofundadas, mais eficazes ou, mais recentemente necessárias.
Dentro de um significativo corpus de trabalho já levantado, centrado apenas na região de Lisboa, podemos traçar algumas tipologias.
Na concepção da azulejaria pombalina presidem princípios de fácil
ajustamento à arquitectura e de baixo preço, onde as composições
retomam um carácter repetitivo e estandartizado, revivendo
soluções seiscentistas ( tipologia de tapete) dando origem a múltiplas combinações. Tendo cada azulejo um motivo, este era passível
de ser encadeado em qualquer série, independentemente das
dimensões do conjunto.
Os painéis seriados com padronagem, mantêem a policromia,
cruzando em linhas diagonais motivos mais simples, como é o caso
de uma flor estrelada azul e uma aspa amarela.
Colocados quase sempre sob barras espongeadas ou assentes sob
frisos discretos, estes silhares animam os espaços, formando
diversos tipos de agrupamentos, nos quais era preponderante o
carácter animado dos motivos (quadrículas e florões). Os padrões
pombalinos evidenciam a capacidade de combinação criativa nos
diferentes motivos (figura 4).
Nesta fase pós- terramoto, desenvolve-se uma outra aplicação de
azulejos em fachadas. São os conhecidos Registos, pequenas placas de carácter devoto onde figuram imagens de santos protectores, consequência devocional natural após o medo e pânico do
sismo de 55 (figura 5)
Na sua imaginária, manifestam formas de religiosidade popular representando figuras de grande devoção como S. Marçal,
S. Francisco Xavier, S. Francisco de Borja, algumas tidas como
intercessoras contra terramotos e incêndios.
Figura 3 Prédio de rendimento na Rua do Alecrim
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O Pombalino - Urbanismo, Arquitectura e Azulejaria
Figura 4 Tipologia do azulejo de padrão pombalino
As composições ornamentais são outra das variantes da azulejaria
pombalina. O peso da ornamentação no painel acentua fortemente
uma linguagem cenográfica do azulejo. Vencem em fluidez quanto
aos motivos centrais, contrastando com a massa mais densa dos
concheados envolventes. À medida que se caminha para o final do
século XVIII, estes vão sendo substituídos algumas vezes por pilastras e enquadramentos arquitectónicos em notáveis exibições
cromáticas. É a fase derradeira do período rococó quando a ornamentação atinge o peso volumétrico de algumas composições.
É especificamente num conjunto arquitectónico fora da nova Lisboa,
mas ligado ao poder pombalino, que nos surge uma notável exibição
cromática, na varanda sul do palácio Pombal em Oeiras.
Esta decoração data de cerca de 1767 assumindo na complexidade
dos elementos ornamentais um papel arquitectónico preponderante
pelo preenchimento vertical dos espaços entre as portas. Denota-se com evidência a perfeita articulação entre arquitectura e o programa decorativo (figura 6).
Igualmente neste edifício (salas e jadins), encontramos uma série de
painéis interessantes cuja parte figurativa mais convencional pintada a cobalto e manganês está cercada por envolvimentos polícromos e cada vez mais fantasistas.
A criação da Real Fábrica de Faianças, em 1767, vulgarmente conhecida pela Fábrica do Rato, integrada no programa de desenvolvimemto manufactureiro do Marquês de Pombal destinou-se
essencialmente à produção de faiança fina, segundo modelos
europeus. Actualmente, estudos recentes incidem sobre uma
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história de sucesso contrariando o seu fracasso. Produziu azulejos
entre os anos 70 e 90 com confirmação documental.5
O azulejo da Real Fabrica do Rato foi um produto solicitado e de consumo da nova aristocracia criada por Pombal, sendo-lhe atribuída
alguma atenção na decoração dos espaços interiores. Como nos
indica o registo notarial de 17935: [...]Serão as casas da frente
azulejadas com azulejo da Fábrica Real[...], facto que indicia um
desejo de diferenciação a apropriação individual por parte de uma
arquitectura anónima. A valorização deste elemento nobilitador
impõe uma hierarquização social de ocupação materializada na designação de “andares pombalinos”.
Uma moderação decorativa foi compensada pela escala mais larga e
dilatada de alguns conjuntos existentes em palácios pombalinos e
jardins como o exemplo da Casa da Pesca na Quinta do Marquês de
Pombal em Oeiras de 1769-1770, talvez a obra mais bem conseguida (figura 7).
A utilização de azulejos nas novas residências particulares retoma de
certo modo uma situação de prestígio, servindo uma política de consumo ostentatório. Resultante de uma especialização funcional dos
interiores da casa-nobre da segunda metade de Setecentos, o azulejo tem necessidade de demarcar e caracterizar espaços e zonas sociais da casa relacionando-se com novos espaços de sociabilidade.
Neste brevíssímo enunciado sobre azulejaria pombalina, gostaríamos
de concluir que todo este vasto período é definido por variantes de
temas e gramáticas decorativas coexistentes que oferecem modelos
e hipóteses alternativas de decoração (que se estendem à escala
insular e atlântica), esbatendo-se neste objecto a diferença entre
centro e periferia.
O azulejo pombalino não pode, assim, ser entendido como mera forma
decorativa. Produzido em larga escala e sem interrupção, ele desempenhou neste período um papel social, revestindo casas-nobres, prédios e outros edifícios construídos de raiz ou redecorados - reflexo
de um gosto de época - e servindo de contraponto à depuração da
arquitectura, papel este, por vezes esquecido.
Considerações Finais
Em síntese, a ideia que de imediato se coloca no final desta sucinta abordagem, é a de saber se existiu na realidade um estilo, um
modelo designado por pombalino?,Quais as suas extensões e os
Figura 5 Registo em azulejo
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O Pombalino - Urbanismo, Arquitectura e Azulejaria
seus suportes físicos?, e, que validade apresenta hoje esta
expressão?
Questões problemáticas e que podem aceitar diferentes respostas.
Traçando a genealogia das suas formas o pombalino manifestou um
gosto hídrido, aceitando pormenores maneiristas, proto-barrocos,
e barrocos, recuperando valores tradicionais da arquitectura portuguesa, ao mesmo tempo que inovou numa atitude perante o
urbanismo, ou seja, na maneira de riscar uma nova cidade.
Criado à “pressa”, submeteu-se a um programa e executou uma
malha urbana, onde valores como o belo, o util, o funcional e
aparatoso foram sinónimos.
O pombalino foi utilizado como instrumento do regime de reformas
praticadas por um déspota iluminado, foi a própria reforma da
cidade. A reconstrução de Lisboa refere-se a um tempo motor e
reflexo de uma nova ordem, de uma nova mentalidade e de um novo
gosto de afirmação do poder, como depois da publicação da tese de
José Augusto França em 1965, não pode deixar de ser aceite.
Figura 6 Palácio Pombal, pormenor da varanda
Sendo apanágio da arquitectura, acabou por se aplicar à própria
cultura artística, marcando um tempo longo na história da arte portuguesa.
Notas
Texto reformulado a partir do original, (artigo com o mesmo título, publicado na revista Discursos, Língua, Cultura, Identidade, IIIª Série,n.º 1
Centro de Estudos Históricos e Interdisciplinares, Universidade Aberta,
Abril, 1999, pp.199-217).
1
2
Muitos autores da história urbana partilham hoje a ideia que o pombalino
está na continuidade de uma "escola portuguesa de urbanismo" Vejam-se
os trabalhos de Horta Correia, Walter Rossa entre outros.
Vd. Jâcome RATTON, Recordações de J.R sobre ocorrências do seu
tempo em Portugal (de 1747 a 1810), Londres 1813.
3
Vd. Teresa Campos COELHO, "A Utilização de madeira na Construção
Pombalina - Alguns Exemplos" in Estruturas de Madeira - Reabilitação e
Inovação - GEOCORPA - Setembro 2000 e COIAS E SILVA, " Um novo modelo
e uma nova visão do edificado pombalino" in Monumentos, n.º 6, Abril,
1997, pp. 80-85.
4
Cf. Real Fábrica de Louça do Rato, Catálogo, Museu Nacional do Azulejo,
Lisboa - Porto, 2003
5
6
Cf. IAN/ TT, Registos Notariais de Lisboa, Cartório n.º 1, Lisboa 136, fl. 14.
Figura 7 Casa da Pesca (Oeiras)
*Historiadora da Arte, Docente na Universidade Aberta
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Um conjunto Urbano Singular. Necessidades/Janelas Verdes
Margarida Formozinho*
A comunicação que venho apresentar tem como base o trabalho
final de estágio do curso de arquitectura de gestão urbanística que
foi efectuado no Departamento de Estudos e Informação Urbana, da
extinta Direcção Municipal de Planeamento Estratégico de Lisboa e
teve como tema: Um conjunto Urbano Singular. Necessidades/Janelas Verdes
Este conceito surgiu da reflexão feita pela equipa do PDM de Lisboa
sobre a singularidade de alguns tecidos urbanos da cidade que, ao
aliarem os aspectos urbanísticos e paisagísticos aos históricos e
patrimoniais, justificavam a definição de regras de intervenção particulares que garantissem a preservação e a qualificação do ambiente urbano.
Foram assim identificados 13 conjuntos urbanos singulares, cujos
condicionamentos, especificados no artigo 21.º do Regulamento do
PDM, apontam para uma maior articulação entre o espaço público e
o edificado.
Os conjuntos urbanos singulares integraram a Planta de
Ordenamento como uma das Componentes Ambientais Urbanas, as
quais têm como objectivos: "preservar a qualidade do espaço público e edificado, defender e valorizar características paisagísticas
marcantes, e identificar potenciais situações de riscos naturais e
de usos perigosos, por forma a criar condições para a melhoria
ambiental da Cidade, proporcionando maior segurança e conforto
aos utentes e a valorização da imagem e identidade de Lisboa."
(Regulamento do P.D.M.L., Título I, artigo 17.º, sublinhado nosso).
As áreas definidas como conjuntos urbanos singulares são as
seguintes:
- Luz;
- Ajuda;
- Belém;
- Belém/Junqueira;
- Necessidades/Janelas Verdes;
- Estrela;
- Cais do Sodré/Jardim das Amoreiras;
RESUMO
Esta participação no presente colóquio pretende dar a conhecer o trabalho-piloto realizado para a área das Necessidades/Janelas
Verdes, onde foram analisadas as dinâmicas
urbanas ao nível do edificado e do espaço público, assim como a apresentação de propostas
de intervenção e sua operacionalização.
Simultaneamente aborda-se a operacionalização do conceito de Conjunto Urbano Singular,
um dos aspectos criados pelo PDM de Lisboa
que se considerava dever ser atendido no
planeamento e na gestão urbanística da cidade
para se proporcionar a melhoria da qualidade
ambiental urbana e cuja implementação tem
carecido da atenção desejável.
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Um conjunto Urbano Singular. Necessidades/Janelas Verdes
- São Bento;
- Convento de Jesus/R. do Século;
- Avenida da Liberdade/Alto do Parque;
- Campo dos Mártires da Pátria;
- Santa Clara;
- Alameda /Pç. de Londres.
Na altura, não foi considerado nenhum conjunto urbano singular na zona
oriental, mas neste momento (Julho 2001), no âmbito do Plano de
Urbanização da Zona Ribeirinha Oriental, está em estudo o conjunto
urbano singular do Caminho do Oriente.
É importante deixar bem claro que estas áreas valem sobretudo
pela sua coerência enquanto conjunto e que se forem preservadas
as suas características ambientais e arquitectónicas, valorizam a
imagem e a identidade de Lisboa.
Em 1999, foi apresentada uma proposta de operacionalização do
conceito de Conjunto Urbano Singular, aplicado à zona das
Necessidades/Janelas Verdes. Esta foi uma primeira experiência de
operacionalização e de aprofundamento do conceito que teve como
objectivos:
€ redefinir os limites estabelecidos no PDM de Lisboa para
este conjunto;
€ caracterizá-lo nas vertentes patrimonial, ambiental e simbólica;
€ criar um instrumento de apoio à decisão, tendo em atenção
as dinâmicas de intervenção instaladas.
O Conjunto Urbano Singular das Necessidades/Janelas Verdes é
extremamente aliciante como percurso, transmitindo uma série de
sensações tanto pelo seu património histórico construído como
pelo ambiente urbano e diversidade social, que permanecem até aos
nossos dias.
A área definida no PDM como Conjunto Urbano Singular das
Necessidades/Janelas Verdes corresponde a um "eixo" de ligação da
cidade do século XVI com os arrabaldes a poente. Este eixo atravessa actualmente as freguesias dos Prazeres e Santos-o-Velho e
apresenta ainda características históricas e de ambiente urbano
muito marcantes. A análise comparada da cartografia histórica
desde 1856 até à actualidade - que identificou os tecidos urbanos
na sua evolução - e o levantamento de campo - traduzido numa
reportagem fotográfica - permitiram detectar as situações de
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homogeneidade ou de dissonância na leitura do espaço urbano, corrigindo em pormenor a delimitação da área em estudo.
O aprofundamento da análise local, tendo em atenção as dinâmicas de
intervenção instaladas, permitiu produzir um documento de apoio à
decisão dos diversos serviços municipais.
A metodologia adoptada para identificar as dinâmicas locais, recorreu a:
€ levantamentos de campo;
€ recolha de informação processual na Direcção Municipal de
Planeamento e de Gestão Urbanística; no Departamento de
Conservação de Edifícios e Obras Diversas; e na Direcção
Municipal de Reabilitação Urbana;
€ entrevistas com técnicos da Direcção Municipal de Ambiente
e Espaços Verdes e da Direcção Municipal de Intervenção
Local, responsáveis pelas intervenções no espaço público;
€ e entrevistas com responsáveis das Juntas de Freguesia
dos Prazeres e de Santos-o-Velho.
Para a análise das dinâmicas instaladas foram consultados os
processos iniciados entre 1994/1999, tanto ao nível do edificado
como ao nível do espaço público.
Ao nível do edificado, os processos foram analisados:
€ por tipo de obra (alteração, ampliação, beneficiação geral,
construção nova, reconstrução e remodelação);
€ por tipo de iniciativa (privada ou camarária);
€ e por serviço municipal.
Na análise processual por "tipo de obra", observou-se, que apesar
de 54% dos processos serem de beneficiação geral, as intervenções de construção nova, reconstrução, ampliação, alteração ou
remodelação têm um peso elevado para uma área histórica, o que
poderá levar à descaracterização da imagem deste Conjunto
Urbano Singular. Com efeito, a antiguidade do tecido urbano, o qual
é na sua maioria de propriedade particular, reflecte-se nas
condições de habitabilidade sentidas pelos moradores ou proprietários, o que justifica que a dinâmica formal apresente um maior
peso na beneficiação do edificado.
Destas intervenções, 88% são de iniciativa particular, havendo alguma apetência para a proposta de obras profundas, entendidas pelos
proprietários como economicamente mais rentáveis.
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Um conjunto Urbano Singular. Necessidades/Janelas Verdes
Estas intervenções são acompanhadas pelo Departamento de
Conservação de Edifícios e Obras Diversas (processos de beneficiação, recrias, etc.), pela Direcção Municipal de Planeamento e
Gestão Urbanística (obras particulares - construções novas,
remodelações e obras isentas de licenciamento) ou pela Direcção
Municipal de Reabilitação Urbana.
Ao nível do espaço público foram realizadas duas intervenções
importantes: uma no eixo das Janelas Verdes, efectuada pela
DMAEV em Fevereiro de 1999, e outra na Praça da Armada, efec-
tuada pela DMIL em Maio de 1997. Estas intervenções consistiram
essencialmente na colocação de mobiliário urbano e na distinção
entre percursos pedonais e de circulação automóvel no sentido
duma maior acessibilidade, mobilidade, conforto e segurança na utilização destes espaços, optimizando a articulação entre espaço edificado e espaço público.
Apesar da valorização da relação peão/circulação viária houve alguma dificuldade na correcção das dissonâncias ao nível da publicidade
e do mobiliário urbano em geral (sinalização, paragens de autocarro, eco-pontos, etc.).
Após a fase de análise e diagnóstico da situação, foi apresentada
uma acção-piloto com o objectivo de identificar e propor acções e
formas de actuação integradas que possam servir de referência
para eventuais intervenções noutros conjuntos urbanos singulares.
Esta proposta teve como base o levantamento dos valores patrimoniais da área, quer ao nível do edificado (imóveis e conjuntos com
valor histórico, arquitectónico e/ou ambiental) quer ao nível do
espaço público (largos e praças).
Com esta metodologia definiram-se 4 propostas de intervenção
para as zonas mais críticas deste conjunto urbano singular que
foram:
€ Tercenas do Marquês/Beco da Galharda/Corredor da
Torrinha;
€ Escadas da Rocha Conde de Óbidos;
€
Beco
dos
Contrabandistas/Chafariz
e
Jardim
da
Armada/Convento do Sacramento;
€ Largo Vitorino Damásio/Largo de Santos.
As Tercenas do Marquês (que integram o IMP) são propriedade
municipal e, à excepção de um edifício todas as outras construções
estão devolutas e num estado de degradação muito acentuado.
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Estão localizadas numa zona relativamente central na área do conjunto urbano e estabelecem o atravessamento pedonal entre R. das
Janelas Verdes e a Av. 24 de Julho. Nos anos 60, realizou-se um
estudo de renovação completa, posteriormente anulado, para o
quarteirão formado pela R. das Janelas Verdes, TV. José António
Pereira, Escadinhas da Praia e Av. 24 de Julho, no qual se pretendia
efectuar o alargamento da R. das Janelas Verdes, e a consequente
demolição do existente para construção de novos edifícios. Deste
estudo foram concretizadas duas intervenções que comprometeram e descaracterizaram a imagem urbana do conjunto.
Quanto às Escadas da Rocha Conde de Óbidos, a proposta de intervenção incide na pintura e limpeza da escadaria pois, para além do
seu valor intrínseco, existem na sua envolvente edifícios de grande
valor arquitectónico, o Palácio Óbidos e o Museu Nacional de Arte
Antiga ambos classificados como imóveis de interesse público. Esta
escadaria é uma peça de referência em toda a frente ribeirinha ocidental, pelo que a sua valorização causaria um forte impacto positivo na cidade.
Como conclusão e para finalizar esta apresentação realça-se a pertinência da definição dos Conjuntos Urbanos Singulares como percursos com vida própria e com qualidade urbana, que devem ser
objecto de uma preocupação especial por parte da administração
urbanística. O facto de existirem dinâmicas de transformação significa que há intenções de adaptação do tecido a novas exigências,
o que pode ser positivo se não contribuir para a sua descaracterização e perda de identidade. É portanto desejável uma intervenção
pró-activa por parte da Autarquia, no sentido de aproveitar as
potencialidades destes conjuntos, promovendo para tal estudos de
caracterização e diagnóstico dos problemas, dinâmicas e potencialidades de cada um deles. Os Conjuntos Urbanos Singulares constituem áreas que devem ser objecto de operações integradas, onde
se pode programar uma intervenção coordenada entre os serviços
que intervêm no espaço público e no edificado. A constituição de
áreas prioritárias na recuperação e reabilitação de imóveis, por um
lado, e de áreas exemplares de intervenção no espaço público, por
outro, serviria de motor para as intervenções de qualificação de iniciativa privada.
O alargamento destes estudos a outros Conjuntos Urbanos
Singulares à semelhança do que foi feito para as Necessidades/Janelas Verdes, iria permitir a transposição dos limites da
escala do PDML (estrutura urbana/zonamento) para a de desenho
urbano, através da elaboração de propostas de intervenção concre-
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tas e articuladas, quer como Planos de Pormenor quer como projectos de espaço público.
Creio que o objectivo deste trabalho foi atingido, ou seja, é possível
operacionalizar um conjunto urbano singular, a sua existência é pertinente; apenas exige um esforço de articulação entre os serviços que
poderão intervir na qualificação do conjunto.
* Arquitecta Urbanista, Câmara Municipal de Lisboa, Direcção Municipal
de Planeamento e Gestão Urbanística Departamento de Estudos e
Monitorização Urbana.
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No início do último quartel de Oitocentos, a capital tinha herdado um
número significativo de pequenos e grandes movéis da rua para satisfazer as diversas necessidades dos transeuntes, em deambulação
diurna ou nocturna. Tinham-se agenciado em espaço próprio, nos
passeios laterais e nos jardins de lazer, peças variadas de mobiliário,
como os marcos de pedra para protecção, os candeeiros para iluminação e segurança, os chafarizes e os bebedouros para matar a
sede, as fontes de repuxo para refresco, os bancos para repouso,
os coretos para música, os quiosques para o pequeno comércio, os
urinóis e as retretes para a higiene, entre outros mais.1
Em Lisboa copiava-se o modelo urbanístico francês, de Paris haussmanniana, onde a dupla do engenheiro Adolphe Alphand (1817-1891)
e do arquitecto Gabriel Davioud (1824-1881) tinha organizado o
Service de Promenades et Plantations. Alphand ficou encarregue das
zonas verdes, desde as fileiras de árvores aos parques citadinos;
Davioud, entre outros trabalhos de arquitectura, de riscar o mobiliário urbano. Este arquitecto projecta diversas pequenas construcções e móveis urbanos, simultaneamente funcionais e decorativos, num preponderante gosto pelo eclético.2
Estas peças muito decorativas, a par dos espaços verdes exuberantes e artificialmente desordenados, vão contrastar com o rigor
do urbanismo haussmanniano, animando-o e integrando as diversas
partes num todo, revelando-se o contributo mais original do
Segundo Império francês à arte urbana.3
Foi esta a “lição” aprendida em Paris pela recente Repartição
Técnica (1874) do município, chefiada por Frederico Ressano Garcia
(1847-1911), engenheiro pela Escola Politécnica de Lisboa e aluno
na École Imperiale des Ponts et Chaussés, e por José Luís Monteiro
(1848-1942), arquitecto pela École des Beaux-Arts que ocuparia o
lugar camarário ganho em concurso só em 1880. A este se juntaram o arquitecto Augusto César dos Santos (ca. 1855- dp.1900)
e o engenheiro António Maria de Avelar (1854-1912). A equipa técnica, assim constítuida, sob o controle pragmático e centralizador
de Ressano Garcia, vai acelerar os trabalhos urbanísticos em
Lisboa, onde se incluiu o desenho de móveis para a rua, de acentua-
RESUMO
Ao findar Oitocentos, a gestão urbana de
Lisboa - como em (quase) todo o mundo ocidental - regia-se pelos padrões de Paris haussmanniana, sendo o quadro técnico municipal chefiado por uma equipa de formação parisiense que
procura reordenar no espaço citadino o mobiliário urbano herdado e propõe novos móveis
para a rua, em risco original ou encomendados
por catálogo.
As dimensões, a qualidade e a quantidade de
mobiliário, como o candeeiro, o chafariz, o
banco, o quiosque, o coreto, etc, vão redefinir
morfologicamente as várias zonas da cidade
contribuindo para uma classificação escalonada
da capital.
A utência destes móveis vai suscitar ao transeunte novos hábitos quotidianos e a alteração
do seu horário diurno ou nocturno, propondo
uma outra vivência urbana que se traduz em
diferentes sociabilidades da população lisboeta
e a sua associação a tipos sociais.
O móvel torna-se um referente, um identificador geográfico na paisagem urbana, e obriga
ao escalonamento do espaço, sobretudo nos
arruamentos, estabelecendo-se uma dialéctica
entre a natureza e o urbano, característica
importante no perfil da urbe oitocentista.
Assim, este agenciamento do mobiliário na
cidade "marca" o espaço urbano e a forma de o
"habitar", fazendo com que nós o "reconheçamos" como parte da memória de um
tempo centenário...
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da influência davioudiana ou a sua aquisição, através de catálogos,
a firmas estrangeiras, sobretudo francesas, como a fundição de Val
d’Osne, a Burke & C.ª e a Lacarriére fréres et Delatour. Ao mesmo
tempo, procurou-se reordenar o diverso mobiliário herdado que
apresentava um desenho muito variado.
1. O espaço
A instalação programada de mobiliário uniformizado no desenho vai
redefinir morfologicamente as várias zonas da cidade, contribuindo
para uma classificação escalonada da capital. As dimensões, a qualidade do risco e dos materiais empregues e, ainda, a quantidade de
móveis, variam consoante o espaço a que se destinam.
Assim, a sua introdução faz-se de uma forma pontual no caso de
grandes peças, como o coreto, a fonte de repuxo e o quiosque, ou sistemática para as peças de menor porte, como o marco, o candeeiro,
o banco e o poste, geralmente alinhados com as fileiras de árvores.
Da qualidade diferenciada do desenho e dos materiais apontamos
alguns exemplos4. São um caso pioneiro, os riscos para os
primeiros quiosques (1868), distribuídos por quatro classes, segundo a importância que se conferia à zona onde se pretendia instalálos. Foram apresentados por D. Thomás J. F. de Mello Homem
(1836-1905), boémio escritor e dramaturgo que foi empresário
teatral e José M.ª Porto Miguéis (sem referência conhecida)5. Os
serviços camarários redefiniram a classificação (omitindo o de 4.ª
classe que era o menos ornamentado), ficando os de 1.ª nas praças
de D. Pedro IV e do Comércio, no Passeio Público e na Alameda de
S. Pedro de Alcântara; os de 2.ª nos largos da Estação dos caminhos de Ferro (St.ª Apolónia) e de S.º Roque, na Praça do Príncipe
Figura 1 Projecto de mesas de venda, Repartição
Técnica da CML, 1895 (AML - AC)
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Figura 2 Projecto de candeeiros a gás, Gás de
Lisboa, 1888, (AML - AC)
Real e no Aterro da Boavista; por último, os de 3.ª nos campos de
St.ª Clara e de St.ª Ana e ainda na Praça de Armas (Alcântara)6.
Após uma década de tentativas, em 1895, a nova Repartição
Técnica vai procurar reordená-los e uniformizá-los, aprovando o projecto de dois quiosques davioudianos, apenas diferenciados pelo
tamanho e decoração, e quatro classes de mesas para venda 7.
Pretendia-se que os quiosques de 1.ª fossem para as praças principais e avenidas; os de 2.ª para os largos de menor importância e
os de 3.ª (que não se chegaram a projectar) para os pontos mas
afastados do grande movimento. Se em relação aos quiosques esta
medida teve fraco resultado, ele é praticamente nulo quanto às
mesas que continuaram a adoptar outras fromas desrespeitando
ainda mais as tipologias aceites, que de quatro passaram a três.
Em 1900 as mesas somavam já sessenta e três, ao lado de vinte e
dois quiosques8.
Também os candeeiros foram alvo de uma classificação que acentuou a diferença já posta em prática com os primeiros modelos a gás
(1848). Logo em 1888, a nova companhia Gaz de Lisboa apresentou
três modelos diferentes de colunas, um modelo de consola - como
era hábito utilizar nas vias com passeios mais estreitos - e um só
modelo de lanterna quadrada9. Mais uma vez a diferença fez-se pelo
ornato, sendo destinado o n.º 1 às artérias principais e praças de
maior importância; o n.º 2 às vias públicas de menor importância e
o n.º 3 às ruas pequenas.
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Outro exemplo surge em 1897, quando a Carris (activa desde 1873
em Lisboa) apresentou um projecto de instalação da sua rede eléctrica que contemplava dois tipos de suportes. Um era o poste de ferro,
com dois braços laterais, que aumentava de ornamentação segundo
o local a ser instalado e que até podia ser feito de acordo com o candeeiro, numa preocupação de uniformização. Outro era a roseta decorada, com gancho, para ser utilizada nas ruas estreitas fixa às
fachadas, evitando o pejamento10. Ambos foram utilizados na rede
eléctrica dos transportes que veio a ser inaugurada só em 1901.
Mas também os móveis singulares como por exemplo o coreto, o
chafariz, a fonte de repuxo ou o chalet-retrete, contribuíram para
estabelecer a diferença entre as zonas. A sua aprovação pelos
serviços camarários dependia da forma como se harmonizavam, ou
não, com a importância que se atribuía ao local e com a arquitectura envolvente. O mesmo critério se nota no desenho de novos
móveis por parte da Repartição Técnica, procurando ajustá-los às
exigências do sítio a que se destinam.
Assim se foram registando fronteiras que vieram a ser, já no século XX, oficialmente reconhecidas através das taxas municipais a que
estavam sujeitos os móveis de exploração económica, como os
quiosques, as mesas e as cadeiras de esplanada ou os suportes de
publicidade 11. A zona central da capital, desde a Baixa-Chiado até à
primeira parte da Avenida da Liberdade (Praça da Alegria) e estendendo-se para Ocidente até ao Cais do Sodré, era valorizada no
dobro. A Câmara procurava retirar dividendos de uma zonificação
escalonada do espaço urbano que ela própria tinha ajudado a definir.
Desta forma suscitavam-se potenciais utilizadores e estabelecia-se
uma evidente geografia de sociabilização que os hábitos de
sociedade aperfeiçoaram num calendário semanal e respectivo
horário codificado pela etiqueta. Assim, A grande moda em Lisboa é
fazer! Fazer-se a Avenida a partir das 6 horas como se faz a Rua do
Ouro às quatro da tarde, como se faz o Chiado às cinco12 ou a
Avenida faz-se , sobretudo ao domingo. A burguezia em seguida às
missas mais tardias, até às quatro em que parte em debandada
para o jantar de família; e das quatro às seis o mundo official, aquelle de que se falla, que se cita, apregoado nas gazetas (...)13 são uma
mostra das escalas semanais e do horário por zonas da cidade.
2. O transeunte
A instalação de mobiliário também proporcionou novas sociabilidades de que são exemplo o prolongamento do horário diário através
da luz artificial dos candeeiros, o aumento do convívio e da difusão
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da informação aos pequenos balcões dos quiosques ou na publicidade afixada em suporte próprio e a conquista de maior território
pelo público feminino e infantil oferecendo-se-lhes assento, refresco
e música integrados em zonas ajardinadas - resultando todos estes
novos hábitos numa outra cultura feita de habitar a rua.
Nenhum outro móvel urbano influenciou tanto os hábitos sociais
como o candeeiro ou o candelabro. O facto de o espaço público
estar iluminado de noite proporcionou o prolongamento do tempo de
fruição ao ar livre, gozando da segurança oferecida por estes
móveis. À noite, sobretudo na estação calmosa, o peão solitário ou
em família podia deambular pelas ruas e praças, ou passear pelos
jardins, aproveitando o fresco e a oportunidade de convívio com outros trausentes.
Também outros móveis tiraram proveito da ilumunação ou suscitaram a sua instalação, como o coreto 14 e o quiosque, gerando
esplanadas à sua volta que funcionavam em horário nocturno; ou o
urinol e o chalet-retrete ou ainda, os suportes de publicidade que
não poderiam ser utilizados de noite sem estarem equipados com
candeeiros.
Em noites excepcionais realizaram-se festas ao ar livre, propositadamente “encenadas”, procurando tirar efeitos inusitados do uso
da iluminação, aumentando a sua intensidade, acrescentando-lhe
cor e “redesenhado” o espaço urbano. A celebração dos sucessivos
centenários, de Camões (1880), do Marquês de Pombal (1882), de
Figura 3 Coreto do Campo Grande em noite de Festa,
autor não identificado, Illustração Portugueza, 1905
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Santo António (1895), da Índia (1897), ou a comemoração do casamento do príncipe herdeiro D. Carlos (1886), foram ocasiões para
grandes arquitecturas efémeras, muitas vezes transformando os
candeeiros em candelabros, e excedendo em muito o habitual
horário de convívio nocturno. Deu-se continuidade a estas extraordinárias iluminações, já virado o século, por ocasião das Visitas de
Estado, de Eduardo VII e Afonso XIII (1903), ou Guilherme II e Émile
Loubet (1905)15.
Também os pequenos balcões dos quiosques eram pólos de convívio,
Figura 4 Quiosque na Praça Luís de Camões, Joshua
Benoliel, 1908 (AML - AF)
enquanto se tomava um refresco - se não mesmo, acompanhado de
um petisco, cujo comércio foi, por diversas vezes proibido - ou se
comprava o jornal, a revista e o tabaco, ouvindo e contando as novidades, nos populares “dois dedos de conversa”!
Ali se afixavam nos vidros os anúncios publicitários, os réclames e
as páginas abertas da última edição de um diário. Até que em 1909
o jornal O Século resolveria estabelecer, num inteligente e eficaz
golpe publicitário, os seus próprios quiosques sucursais de desenho estandardizado, fazendo uso das empenas como placard noticioso; neles vendiam as publicações e aceitavam os anúncios, vindo
a espalhar-se rapidamente pela cidade16.
Novidade importante foi a profusão dos bancos nas avenidas, nas
praças e, sobretudo, nos jardins, proporcionando assento para descanso e conversa em hora de lazer. O banco integrado no espaço
verde foi ocupado, primordialmente, pelo público feminino e infantil,
que encontrou nele um móvel que lhe era essencialmente dedicado,
tornando-se motor de uma nova sociabilidade. Crianças acompanhadas por amas ou por familiares ocupando bancos, constituem
cenas habituais no final deste tempo oitocentista, confirmando a
descoberta de um espaço próprio na urbe para este público. Disto
é sintomático, já virado o século, o seu desaparecimento das
praças e a sua acumulação nos jardins, onde os bancos eram cada
vez mais reclamados.
A utilização do mobiliário vai suscitar comportamentos diversos
conforme o trausente e este, por sua vez, fazendo uso dos móveis,
vai personalizá-los. Ressano Garcia a propósito da não colocação de
um chafariz na proximidade da alameda de S. Pedro de Alcântara,
em 1889, alega o seguinte: teria o inconveniente, como teem todos
os outros chafarizes publicos, de afugentar as familias que costumam procurar aquella alameda, para d’ali disfructarem o panorama
da cidade, e não quizessem ser incommodados pelos abusos de linguagem que são habituaes em aguadeiros e mais gente que os fre-
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quenta17; dá-nos pois, o retrato da vivência social à volta destes
móveis.
Assim a associação de tipos sociais ao mobiliário urbano é o resultado da sua utilização quotidiana por esses frequentadores. O
bêbado e o candeeiro ou o galego e o candeeiro ou, ainda, o vagabundo e o banco, motivaram cenas de rua que perduraram em diversos
registos humorístico-anedóticos no desenho, no teatro, e que mais
tarde passaram ao cinema...
Destas associações são exemplo, o desenho de autor desconhecido, de 1902, que parodia as peripécias do regresso a casa de um
bêbado18 esbarrando com um candeeiro ou, melhor de 1904, o
notável risco de Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) desenhador
humorista, que na Philosophia do Vagabundo19 põe escritos num
banco da rua para o alugar!
3. A paisagem
A colocação de mobiliário provocou uma enorme mudança na paisagem urbana, por um lado escansionando-a através das fileiras
regulares de candeeiros, postes e bancos, por outro, e muitas
vezes ao mesmo tempo, acumulando quiosques, fontes de repuxo,
urinóis, etc, pejando e embaraçando a circulação dos trausentes.
A colocação de colunas de candeeiros, de postes para suspensão
de vários fios e de bancos, todos eles alinhados e a uma distância
métrica regular entre si, vai possibilitar uma “medição” visual do
espaço urbano, criando um ritmo próprio, para quem o percorre.
Esta cadência, vai, ainda ser acentuada pelas higiénicas fileiras de
árvores que passam a fazer parte integrante obrigatória dos programas urbanísticos de inspiração haussmanniana.
Os vários alinhamentos de mobiliário urbano e de árvores, alternados, sublinhando os passeios laterias vêm acentuar a ortogonalidade
dos projectos de remodelação ou de abertura de novos arruamentos, caracterizando a paisagem da urbe no final de Oitocentos. Aliás,
a própria rede de abastecimento de gás, escondida e protegida no
solo, seguia este princípio, “espelhando” o que se via à superfície.
Num outro plano, mais linhas se foram “tecendo” com a electrificação dos transportes pela Carris, no dealbar do novo século.
Trata-se dos fios dos eléctricos que também mereceram comentários: os elegantes e confortáveis carros eléctricos, vieram dar
uma feição alegre e de progresso à nossa em tanta coisa arcaica e
rotineira Lisboa, e, se não fossem os postes e essas teias de ara-
Figura 5 Desenho humorístico com bêbado e candeeiro,
Autor não identificado, A Paródia, 1902
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nha dos fios condutores, tinham realmente sido um melhoramento
de primeira ordem em toda a extensão da palavra 20. Acusava-se
pois, a introdução de uma nota dissonante na paisagem citadina,
obrigada pela modernização do ritmo dos transportes públicos.
O uso quotidiano destes móveis e a sua repetida visualização torna-os pontos de referência na paisagem, criando-se uma geografia
urbana na memória do traseunte que os elege como elementos
definidores da fisionomia citadina, permitindo como reconhecê-la
através da legibilidade do seu espaço e do modo como é vivido.
Exemplo maior desta geografia urbana memorizada pelo traseunte
é o notável desenho humorístico do Drama Lisbonense em oito
esquinas, riscado por Rafael Bordalo21: em 1880, depois de terem
sido retirados urinóis da cidade, na sequência de reformas municipais, um cidadão acorre desesperadamente, sem resultado, a todos
os oito locais de que se recorda ter existido um urinol, para terminar no desabafo: Em nome das necessidades públicas pede-se com
urgência um vereador para verter um requerimento!
Figura 6 Desenho humorístico com vagabundo e
banco, Rafael Bordalo Pinheiro, A Paródia, 1904.
Da importância que a presença do mobiliário urbano ganha na paisagem citadina é testemunho a sua referência pelos escritores, na
descrição dos lugares da capital. É exemplo a obra de Eça de Queiroz
(1845-1900), notável romancista, que dando conta de que os móveis
da rua faziam parte da paisagem da Capital, refere-os por diversas
vezes na sua escrita dedicada à vida lisboeta do último terço de
Oitocentos, conferindo credibilidade a uma narrativa apoiada nessas
peças urbanas que a memória dos leitores reconhece. Por exemplo:
no Rossio, sob as árvores passeava-se; pelos bancos, gente imóvel
parecia dormitar; aqui e além pontas de cigarro reluziam; sujeitos
passavam, com o chapéu na mão, abanando-se, o colete desabotoado; a cada canto se apregoava água fresca do Arsenal 22, fazendo
Figura 7 A Avenida António Augusto de Aguiar,
Bilhete Postal, Martins & Silva, ca. 1900 (Col.
Olisiponense Vieira da Silva,DGED - GEO)
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Pedro Bebiano Braga
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Figura 8 A Praça D. Pedro IV, Emílio Biel, A Arte e a
Natureza em Portugal, 1907
referência aos bancos e às mesas de venda ou vendedores ambulantes; ou no monumento aos Restauradores onde os largos globos
dos candeeiros que o cercavam, batidos do Sol brilhavam(...) como
grandes bolas de sabão suspensas no ar 23, referindo-se poeticamente aos antigos globos de vidro, excepcionalmente à inglesa.
Outros registos da importância do mobiliário no cenário urbano,
encontramos no desenho humorístico (já apontado), na pouca pintura
dedicada à cidade que pontualmente foi aparecendo, nas mais abundantes cromolitografias e, sobretudo, na fotografia que vai ganhando
fôlego e elege a cidade como um dos alvos para o “retrato”. Os fotógrafos Francesco Rocchini (1820?-1893?), Emílio Biel (1832-1915),
Joshua Benoliel (1873-1932) e José Artur L. Bárcia (1871?-1945)
captarão cenas da vida urbana, com trausentes utilizando os móveis
da rua, desde os finais de Oitocentos até à viragem do século.
Assim, ao terminar estes apontamentos, podemos dizer que a paisagem urbana lisboeta, à semelhança do que acontecia em outras capitais do mundo ocidental, sofreu uma importante modificação física
com a difusão do mobiliário para a rua e num tempo mais lento, uma
notável alteração social, com o aparecimento de novos hábitos de
sociabilidade suscitados pelo uso desse mesmo mobiliário; alterações
escalonadas no território que os móveis urbanos ocupam, no seu uso
quotidiano pelo trausente e na paisagem citadina daí resultante.
Notas
1
O tema foi desenvolvido na Dissertação de Mestrado em História da Arte
Contemporânea: Pedro Bebiano Braga - Mobiliário Urbano de Lisboa 1838-
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O Mobiliário Urbano de Lisboa no Final do Século XIX
1939, Lisboa, FCSH/Universidade Nova de Lisboa, 1995.
Gabriel Davioud architecte de Paris (1824-1881), (catálogo de exposição),
Paris, Delégation à l’Áction Artistique, 1981.
2
Françoise Choay - “Pensées sur la Ville, Arts de la Ville”, in Histoire de la
France Urbaine: la Ville de l’Âge Industriel, vol. 4, Paris, Seuil., 1983, p.
204.
3
Esta temática foi desenvolvida no seguinte artigo: Pedro Bebiano Braga “O Desenho de Móveis para Lisboa”, in Arte e Teoria (5), Lisboa, Faculdade
de Belas Artes/Universidade de Lisboa, 2004.
4
5
AML - AC; Equipamento Urbano, Requerimento, s. n.º, Setembro de 1868,
Gaveta 42.
6
AML - AC; Equipamento Urbano, Parecer da Rep. Téc., 29 Setembro de
1868, Gaveta 42.
AML - AC; cx. n.º 37/V, doc. de 5 de Novembro de 1895; e Idem; Ibidem, pl. s.
n.º. 8 AML - AC; cx. n.º 37/V, doc.s. n.º de 19 de Junho de 1900
7
AML - AC; pl. 10.663, pl. 10.664, pl. 10.665, pl. 10.666 e pl. 10.667,
anexas ao doc. de 13 de Dezembro de 1888.
9
Carris - Arquivo Central; Memória Explicativa sobre a Aplicação da
Tracção Eléctrica dos Americanos de Lisboa, Pasta n.º 2, doc. 1a, s.p.
10
CML - Código de Posturas do munícipio de Lisboa, Lisboa, Tip da
Empresa do Diário de Notícias, 1923, pp. 13-15
11
Mariano Pina - “Notas sobre Lisboa” in A Illustração, 20 de Setembro
de 1886.
12
13
Carlos de Moura Cabral - Lisboa em Flagrante, Lisboa, M. Gomes Editor,
1899, p. 81.
Sobre esta relação, entre os candeeiros e estes móveis, veja-se a obra de
Eunice Relvas e Pedro Bebiano Braga - Coretos em Lisboa 1790-1990, Lisboa,
Editorial Fragmentos, 1991, pp. 92-93, 95, 102 e 133, entre outras mais.
14
Vejam-se as entradas das peças e os textos do catálogo Arte Efémera
em Portugal, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Museu Calouste
Gulbenkian, Dez. 2000 /Fev. 2001.
15
Illustração Portugueza (192) 1909, p. 544. Vejam-se ainda as fotografias
na obra de Baltazar Matos Caeiro - Os Quiosques de Lisboa, Lisboa, Distri
Editora, 1987, pp. 28-31.
16
17
AML - AC; Serviço Geral de Obras, cx. n.º 66 de Agosto de 1889.
18
A Paródia (111), 1902, p. 70.
19
Idem (71), 1904, p. 4.
Vanguarda, de 20 de Outubro de 1901, citado por Cruz Magalhães Eléctricos, Lisboa, (1909), s.p.
20
21
O António Maria, 16 de Dezembro de 1880, p. 412.
N’O Primo Basílio, citado no artigo s. a. “Rossio, Praça do”, in Dicionário de
Eça de Queiroz, (org. e coord. A. Campos Matos), Lisboa, Caminho, 1993, p. 855
22
N’Os Maias, referido por Appio Sottomayor e Ana Maria Homem de Melo Lisboa nos romances queirosianos, Lisboa, CML-GEO, Setembro de 2000, s.p.
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Em torno da construção de uma ident(C)idade educativa: contributos
para a concepção de um módulo de formação destinado aos professores sobre património industrial.
Alice Campos Martinsa, Maria Helena Salemab
Com a presente comunicação pretende-se apresentar, de forma
exploratória, questões centradas na relação História, Património
Industrial e Cidadania que podem contribuir para fundamentar a
construção de uma identidade educativa, per si, da cidade de
Lisboa, no quadro da concepção de um módulo de formação para
professores de História do 3.º Ciclo do Ensino Básico e do Ensino
Secundário.
Para o desenvolvimento desta proposta de reflexão concorreram os
conceitos de cidade patrimonial, uma vez que os elementos de
património industrial contribuem para a sua definição; de cidade
educadora, constituída como realidade fundadora da relação cultura/educação/cidadania; de educação patrimonial e de educação
museológica, como áreas de intervenção do professor de História;
e, ainda, os conceitos de património cultural, de património industrial e de arqueologia industrial.
Subjacentes estão também as finalidades da disciplina de História,
pelo facto da sua natureza científica estar mais directamente ligada à defesa do património histórico-cultural, o que contribuiu para
o desenvolvimento de práticas didácticas relacionadas com a sua
exploração pedagógica. Neste caso concreto interessam-nos as
práticas didácticas relacionadas com a exploração pedagógica do
património industrial, sendo para o efeito apresentados sumariamente alguns exemplos que resultaram de experiências desenvolvidas por grupos de professores, de instituições museológicas e por
professores a título individual.
Subjacente à nossa proposta de módulo de formação de professores está também a ideia de que o professor é um investigador
que reflecte de forma crítica sobre a sua prática lectiva. Ao promover esta atitude reflexiva pensa-se estar a contribuir para (1) a
mudança de atitude dos professores no que se refere à utilização
do património industrial como recurso educativo e para (2) o aprofundamento de conhecimentos relacionados com a sua investigação
e a sua utilização didáctica.
RESUMO
Com a presente comunicação pretende-se
apresentar, de forma exploratória, questões
centradas na relação História, Património
Industrial e Cidadania que podem contribuir
para fundamentar a construção de uma identidade educativa, per si, da cidade de Lisboa, no
quadro da concepção de um módulo de formação para professores de História do 3.º Ciclo
do Ensino Básico e do Ensino Secundário.
Como ponto de partida da proposta de reflexão
constituem-se, entre outros, os seguintes
tópicos:
1. o conceito de cidade educadora, constituída como realidade fundadora da relação
cultura, educação e cidadania;
2. as finalidades formativas da disciplina de
História;
3. a fundamentação da relação arqueologia e
património industrial e educação;
4. as concepções e práticas dos professores em relação ao tema;
5. as potencialidades pedagógicas de alguns
exemplos de património industrial existente
na cidade de Lisboa.
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Em torno da construção de uma ident(C)idade educativa:
contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
Com as reflexões desenvolvidas nesta comunicação pretende-se
contribuir igualmente para a fundamentação da relação arqueologia
industrial/património industrial/educação e para a reflexão sobre os
conteúdos a inserir num possível plano curricular de um módulo de
formação destinado a professores de História do 3º Ciclo do Ensino
Básico e do Ensino Secundário.
Por último, inerente à organização do texto está a ideia de que a
preparação pedagógica de um módulo de formação assenta numa
experiência já havida, a qual constitui um ponto de partida, e, numa
reflexão sobre os seus resultados, que contribui para a formulação
das finalidades, objectivos, temas e conteúdos do plano proposto.
1. O meio urbano enquanto agente e conteúdo educativo:
a história local e a preservação do património industrial.
Subjacente à responsabilidade colectiva de preservação da "cidade
patrimonial" 1, enquanto legado cultural, para além das acções de
investigação e de conservação, encontra-se a necessidade de valorizar e de divulgar as memórias da cidade e os seus símbolos
materiais, como resultado do reconhecimento de que estes bens
pertencem e interessam à sociedade.
Entre os elementos do público interessado na sua cidade e na oferta cultural/educativa que ela proporciona, destacam-se os jovens,
os quais contribuem para a emergência de um núcleo de múltiplas
acções relacionadas, nomeadamente, com a cultura e o lazer que
promovem a valorização e o desenvolvimento do meio urbano. Estas
acções integram a multiplicidade de possibilidades educadoras de
que a cidade dispõe actualmente, pelo facto de conterem em si "elementos importantes para uma formação integral" do indivíduo
("Carta de Cidades Educadoras", 1994).
Neste contexto, a escola assume um papel importante, motivado,
pelas relações que aí se têm vindo a estabelecer, a partir do alargamento da escolaridade obrigatória, entre a renovação das
metodologias pedagógicas e a diversidade de património cultural
(em particular, o património industrial) e natural que a cidade proporciona. Esta diversidade é determinante para a sua valorização
como recurso educativo ao alcance de professores e de alunos.
A valorização do património cultural como recurso educativo e, em
geral, a valorização do estabelecimento de relações entre a educação e a cidade concretiza-se através da selecção de métodos, de
meios de comunicação, de recursos pedagógicos e de materiais
didácticos e, ainda, de programas dirigidos aos alunos, aos adultos
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e ao ensino das responsabilidades cívicas e dos princípios éticos.
Nesta perspectiva (ver Quadro n.º 1), esta aprendizagem relaciona-se com o meio urbano, pelo facto deste ser contexto, recurso
educativo e conteúdo de educação.
Através das múltiplas possibilidades de aprendizagem que a cidade
proporciona promove-se o conhecimento das características
económicas, culturais, sociais e políticas da região onde o estabelecimento de ensino se encontra inserido. O seu estudo permite
desenvolver um conhecimento cada vez mais alargado da história
local, contribuindo para a crescente consciencialização da sua
importância por parte da população, em particular da população
escolar.
Por exemplo, o estudo de testemunhos de importantes facetas da
actividade do homem, nomeadamente as relativas à transformação
das matérias-primas, aos transportes e comunicações e, inclusive,
ao próprio lazer (cinemas, teatros, etc.) ou à transacção de bens
(mercados e armazéns) (Mendes, 1990, p.326), ou seja, o estudo
do património industrial, com recurso a metodologias da arqueologia industrial, pela diversidade de abordagens investigativas que
proporciona, permite aos alunos conhecer/compreender os contextos técnico/científico e socio-económico circundantes.
Quadro n.º 1 Representação esquemática da perspectiva didáctica da relação educação-cidade.
Objectivos fundamentais
Principais factores encorajadores
Principais orientações
da perspectiva didáctica
1)Educação e/ou ensino fundado
1)O movimento de educação
1)Programas, meios e recursos
sobre o contexto urbano
relativa ao ambiente
pedagógicos fornecidos aos alunos
*Programas e guias práticos para
introduzir os temas urbanos nas aulas
*Preparação dos materiais didácticos
a partir de métodos experimentados:
modelos nas aulas e itinerários
*Novo equipamento
2)Educação referente e/ou
2)Interpretação do ambiente
ensino do contexto urbano
2)Programas, meios de comunicação e recursos
pedagógicos fornecidos à população adulta.
3)Ensino da geografia
*Programas de interpretação
*Novo equipamento
3)Educação do bom cidadão
4)Educação cívica e moral
3)Programas que visam estimular o ensino de
responsabilidades cívicas e de princípios de ética.
Fonte: J. S. Negre e J. T. Bernet, "L'éducation en milieu urbain: la ville éducatrice" in Bulletin du Bureau International d'Education, Paris,
UNESCO, (266/267), 1993, p.50. (tradução nossa)
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Em torno da construção de uma ident(C)idade educativa:
contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
Através do desenvolvimento de acções, que integrem a cultura técnica e científica, como o levantamento e o estudo dos instrumentos
utilizados, dos costumes populares e de factos relativos à vida laboral, dá-se a possibilidade aos alunos de conhecerem, para além
das relações económicas e sociais, as relações que se estabelecem
entre história/indústria/técnica/cultura, ou seja, de obterem uma
compreensão integral da sociedade.
Estas acções permitem ainda, desenvolver uma consciência estética, por exemplo, a partir da análise dos produtos técnico-industriais, através de actividades como o estudo das embalagens, das
marcas comerciais, das características ergonómicas dos espaços
destinados ao processo produtivo, entre outras.
É através destas e doutras acções, como as acções de salvaguarda e de preservação de monumentos industriais da região onde se
insere a escola, de campanhas de sensibilização da população e de
pesquisa subsidiária para a concepção de processos de classificação a enviar à autarquia e ao IPPAR, que se tem vindo a valorizar
o património industrial e a contribuir para o inventário dos bens técnico-industriais de carácter móvel e imóvel do nosso país.
1.1. O inventário do Património Industrial de Lisboa: fundamentos e práticas.
A rapidez da transformação tecnológica que caracteriza os nossos
dias e a contínua evolução da sociedade e dos espaços urbanos e
rurais de que ela usufrui, bem como, dos objectos quotidianos que
ela necessita, integram o conjunto de factores que contribuem para
o constante desaparecimento de património industrial, como vilas
operárias e fábricas e de objectos do quotidiano, como objectos de
vidro e de serralharia artística e de máquinas, caracterizadores da
sociedade industrial.
A necessidade de obstar ao desaparecimento contínuo de bens do
património industrial e de contribuir para a perduração do conhecimento destes bens patrimoniais, pelo interesse que tem para a
história local e pelo carácter universal da industrialização moderna,
são determinantes para a importância que se atribui às actividades
de inventário. O inventário do património industrial é fundamental
para a defesa, a salvaguarda, a conservação, a recuperação, o
estudo e o conhecimento do património industrial.
No que se refere ao inventário do património industrial de Lisboa,
inicialmente um dos objectivos da Associação Portuguesa de
Arqueologia Industrial2, posteriormente assumido também pela
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autarquia e pelo IPPAR, incidiu sobre as zonas de Belém, Alcântara,
Vale de Chelas e Campo Grande. Na base da organização deste
inventário estavam preocupações relacionadas com a preservação
da memória industrial de Lisboa, uma cidade em constante
mutação.
1.1.1. O exemplo do Inventário do Património Industrial de
Belém.
O Inventário do Património Industrial de Belém, realizado por Alice
Campos Martins3, entre 1989 e 1994, contribuiu para identificar
vestígios materiais caracterizadores da importante realidade industrial que constituiu a zona do Bom Sucesso em Belém, a qual se
encontra associada à introdução da máquina a vapor em Portugal.
Desse trabalho de inventário (do trabalho de campo e do trabalho
de arquivo) resultou um conhecimento mais aprofundado do tipo de
actividades industriais implantadas na zona (ver Quadro n.º 2) e permitiu o desenvolvimento de diversos estudos com características
monográficas, como por exemplo a Fábrica de Gás de Belém4 e a
Fábrica de Moagem do Bom Sucesso5. Este conjunto de acções com
vista ao conhecimento deste núcleo industrial constituíram contributos para a história local e para o desenvolvimento de actividades
pedagógicas como visitas de estudo (ver ponto 2.4. da presente
comunicação).
As fábricas identificadas no Quadro n.º 2 permitem caracterizar a
actividade industrial do período correspondente aos finais do séc.
XIX
e inícios do séc. XX como uma actividade dinâmica.
Relativamente à sua disposição espacial, embora se verifique que
está tendencialmente concentrada na zona do Bom Sucesso, não é
possível, no entanto, localizar a totalidade das unidades fabris,
nomeadamente pelo facto de através do trabalho de campo se ter
constatado que já existiam poucos vestígios materiais, cujo número
entretanto foi substancialmente reduzido pelas demolições efectuadas em 1990 para dar lugar ao Centro Cultural de Belém, como
por exemplo a Companhia de Redes de Pesca, a Repenicado &
Bengala, Lda e a Fábrica de Conservas do Bom Sucesso, Lda.
De lamentar, neste contexto, que não tenham sido desenvolvidos
esforços, por parte das entidades competentes, no sentido de criar
um projecto de musealização destes vestígios industrias, de modo
a preservar vestígios materiais exemplificativos do processo de
industrialização verificado nos finais século XIX, na zona de Belém.
Proposta justificada, também, pelo facto da História de Belém se
caracterizar pela diversidade de acontecimentos históricos6 que aí
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contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
Quadro n.º 2 O Núcleo Industrial de Belém (Bom Sucesso)
Unidade Fabril
Datas conhecidas*
de
a
OBS.
Nacional Fábrica de
Máquinas Movidas a Vapor
1819
1831
Construída junto ao Convento do Bom Sucesso.
Fábrica de Vidros movida a vapor
1824
1831
Junto da Nacional Fábrica de Máquinas Movidas a Vapor.
Fábrica de velas de estearina
1865
-
João Basptista Paulino& Irmãos
1869
1881
Fábrica de Moagem do Bom Sucesso
1884
c. 1908
M. Carp, Lª
1889
1964
Fábrica têxtil e de lanifícios.
Fábrica da Companhia Gaz de Lisboa
1889
1948
Em 1949 terminou a produção de gás, ficando os seus
gasómetros da Vila Correia a funcionar até 1954, ano
da sua demolição.
Companhia de Linificios Portugueza
1890
1930/40
Fábrica de Alpargatas
1893
-
-
Fáb. Produtos Químicos
1893
-
Dependente de sub-produtos da produção de gás.
Tanoaria
1893
-
-
Estrella & Cª
1903
1990
Nova Companhia Nacional de Moagem
1908
1920/21
M.A.Brito & Cª
1916
-
Fábrica de Conservas Bom Sucesso Lda
1918
1989
Coexistiu com uma oficina de descasque de arroz. No
ano de 1930 a fábrica pertence à firma Manuel da Silva
Torrado & Irmãos. Aí viria a funcionar o Cinema Belém
Jardim. Em 1948 é sua proprietária a E. I. Repenicado
& Bengala.
1920/21
1971
Sucessora da Nova Companhia Nacional de Moagem.
Cordeiro, Santos & Ferreira, Lda
1924
1982
Fábrica de conservas.
Companhia de Redes de Pesca
1927
1989
Instalou-se num edifício construído em 1920, pertencente à Sociedade Industrial de Belém Lª.
E. I.Repenicado & Bengala, Lda
1932
1989
Fábrica de calçado de borracha.
Fábrica de peles
1933
-
Companhia Industrial de Portugal e Colónias
Propriedade do Conde de Farrobo.
Fábrica de Curtumes.
Parece utilizar as instalações da fábrica de máquinas a
vapor e de vidro.
Anterior a 1890, tendo sido reedificada e ampliada.
Fábrica de lanifícios, que em 1933 se encontrava na
posse da firma Martinho & Matos, Lª, a qual passa sete
anos depois para a firma Matos Lª.
Sucessora da Fábrica de Moagem do Bom Sucesso.
Fábrica de Conservas Alimentícias.
Pertencente à firma F. Matos Garcia Lª, tendo substituído ou coexistido com a Estrella & Cª.
* Datas recolhidas em diversas fontes documentais e bibliografia consultada. Quadro elaborado por Alice Campos Martins a partir da pesquisa
realizada no âmbito do Inventário do Património Industrial de Lisboa - Belém.
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tiveram lugar, entre os quais se indica, como exemplo, a Exposição
do Mundo Português em 1940.
1.2. O museu como espaço de divulgação e de sensibilização
para o estudo e a preservação do Património Industrial.
A organização de museus e núcleos museológicos subordinados à
temática do património industrial e de objectos técnicos e científicos, segundo A. Nabais (1999) desenvolveu-se a partir do último
quartel do século XX (p.178). Estes projectos de musealização concorreram para fundamentar o movimento e o interesse pelo
Património Industrial, reforçado pela fundação de uma Associação
Portuguesa de Empresas com Museu - a APOREM. (idem, p.80)
Em Lisboa, são exemplos desta forma de preservação do património
industrial a Cordoaria Nacional, para fins culturais, a Central Tejo,
para Museu da Electricidade, o Chafariz de Dentro para Museu do
Fado e a Estação Elevatória dos Barbadinhos para Museu da Água
da EPAL.
O Museu da Electricidade na Central Tejo e os núcleos do Museu da
Água da EPAL, constituem-se como exemplos representativos do
tipo de intervenções museológicas no campo do património industrial e no contexto de reutilização de edifícios industriais (ibidem, p.
179). Estes museus têm-se assumido como espaços pelos quais o
público, nomeadamente o público escolar, tem revelado bastante
interesse.
No primeiro caso, o Museu de Electricidade na Central Tejo (Figura
n.º 1), o projecto de musealização do monumento, consistiu na criação de um percurso expositivo com objectos técnicos, máquinas,
equipamentos e outros elementos relacionados com a sua activi-
Figura n.º1 Museu de Electricidade - Central Tejo.
Edifício de património industrial datado de 1919,
classificado como imóvel de interesse público pelo
Decreto n.º 1/86 de 3-1 e como zona especial de
protecção pela Portaria n.º 140/93 de 237. Fotografia
de Alice Campos Martins. Data: Maio / 2001.
dade.
No segundo caso, o Museu da Água da EPAL, o projecto de musealização baseou-se na apresentação do imóvel em funcionamento
para contar a sua história. Este segundo caso, constitui também
um exemplo da reutilização de edifícios industriais, onde foi aplicado
o conceito de ecomuseu, pelos núcleos que o integram: Estação
Elevatória dos Barbadinhos (Figura n.º 2), Aqueduto, Mãe D'Água e
o Reservatório da Patriarcal. Sendo também possível visitar as
nascentes de água de Carenque/Belas que alimentam o aqueduto.
O Museu da Água da EPAL8, foi pioneiro na conservação e reutilização dos seus Núcleos para fins museológicos, bem como no domínio
da recolha e exposição de objectos técnicos. (Nabais, 1999. p. 179)
Aqui também está bem representada a aplicação do conceito de
Figura n.º 2 Estação Elevatória dos Barbadinhos.
Sede do Museu da Água da EPAL. Fotografia de Alice
Campos Martins. Data: Junho/ 2001.
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Em torno da construção de uma ident(C)idade educativa:
contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
museu de empresa, o qual se tornou uma referência para a organização de outros museus. (idem)
2. O recurso ao Património Industrial na formação de
professores.
No Museu Nacional de História Natural foi realizada uma experiência de formação inicial desenvolvida no ano lectivo de 1998/1999.
Nesse ano lectivo foi criado o Serviço Educativo do Projecto
CulturaNatura - SEP9, para funcionar como estrutura de apoio ao
desenvolvimento do Projecto CulturaNatura10 e da exploração
pedagógica da exposição "CulturaNatura. Preparar o Século XXI.",
que esteve patente ao público, no referido museu, entre o dia 22 de
Abril e o dia 14 de Novembro de 1999.
No âmbito das actividades realizadas pelo SEP11 foi desenvolvido um
plano de formação que visava contribuir para a formação integral de
30 alunos do 3.º ano de diversos cursos de via de ensino da Escola
Superior de Educação Jean Piaget - Almada, que constituíram a
equipa de monitores do referido serviço educativo. O grupo estava
organizado em duas turmas - a turma A era constituída por 9
alunos dos cursos de Português/Francês e Educação Musical e a
turma B integrava 21 alunos dos cursos de Educação Visual e
Tecnológica, Educação Física e Matemática/Ciências.
Esta equipa coordenadora e orientadora do núcleo de estágio definiu
como principal objectivo que os alunos, futuros professores do 2.º
Ciclo do Ensino Básico, desenvolvessem o seu trabalho de
preparação da exploração pedagógica da exposição orientado em
três direcções: (1.ª) a ligação Museu/comunidade educativa constituída pelas escolas da Sétima Colina (onde estava instalado o
Museu); (2.ª) a relação entre investigação científica/adequação
pedagógica; e (3.ª) o acompanhamento de visitas guiadas à
exposição "CulturaNatura. Preparar o Século XXI".
A diversidade de áreas disciplinares existentes nas duas turmas, foi
determinante para a criação deste programa de formação/actividades, prevendo-se o desenvolvimento de uma componente de
interdisciplinaridade, que foi concretizada com a introdução do conceito de património industrial na abordagem da relação do Museu
com o Meio - a Rua da Escola Politécnica, onde existem vestígios de
actividade industrial e no próprio contexto da exposição, no núcleo
relativo à exploração do ouro em Minas Gerais - Brasil. O Aqueduto
das Águas Livres, a Fábrica das Sedas e a Fábrica de Louça do Rato
constituíram os temas do projecto de investigação, que foi entre-
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tanto inserido no projecto educativo definido para concretizar a
relação do Museu com as escolas da Sétima Colina.
Para o desenvolvimento do projecto foi elaborado um programa de
formação com diversas actividades, representado no Quadro n.º 3.
A experiência obtida com o desenvolvimento do programa de formação explicitado no Quadro n.º 3 permitiu definir proposições orientadoras da concepção de um módulo de formação destinado a
professores sobre a utilização do património industrial como recurso educativo.
O módulo de formação deve ter um objectivo específico bem
delimitado que tenha por referência o contexto educativo em
que o formando desenvolve a sua actividade como docente.
O módulo de formação deve constituir uma motivação para a
construção do conhecimento sobre o património industrial
existente no meio onde a escola está inserida.
Para o desenvolvimento do plano curricular do módulo de formação devem convergir os interesses particulares de formação
Quadro n.º 3 Programa de formação/actividades do Núcleo de Estágios do Serviço Educativo do Projecto CulturaNatura - 1998/99
Período
de realização
01.10.1998 a 11.06.1999
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Turmas
Componente
Teórica
(por turma)
Turma A
15h
16h
Área de formação:
(sessões presenciais)
(sessões
presenciais)
a)Português/Francês
6 alunos;
Componente Prática (por turma)
b)Educação Musical
3 alunos
Turma B
Área de formação:
a)Educação Visual
e Tecnológica - 7 alunos
b)Educação Física
3 alunos
c)Matemática/Ciências
11 alunos
c.18 semanas
de trabalho
autónomo, com
possibilidade de
apoio individualizado para
análise das dificuldades/desenvolvimento do
trabalho individual e de grupo.
c. 7 semanas de
acompanhamento da montagem
da exposição, de
monitorização
de visitas e de
desenvolvimento
das actividades
planificadas
junto de algumas escolas de
diversos níveis
de ensino da
Sétima Colina de
Lisboa.
Avaliação: Observação directa nas sessões presenciais, assiduidade, empenho, participação e capacidade de realização de trabalho autónomo, concepção de materiais para as diversas actividades, realização de relatórios escritos mensais, apresentação
de trabalhos orais e escritos, desenvolvimento das actividades planificadas e acompanhamento e observação da dinâmica de
trabalho dos grupos em visita de estudo à exposição "CulturaNatura. Preparar o Século XXI", instalada no Museu Nacional de
História Natural entre o dia 22 de Abril e o dia 14 de Novembro de 1999.
Elaboração própria.
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Em torno da construção de uma ident(C)idade educativa:
contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
e as reais necessidades de formação dos seus formandos.
As actividades pedagógicas que visam a utilização do
património industrial como recurso educativo desenvolvidas no
âmbito do módulo de formação são diversificadas quando têm
por objectivo incrementar a interdisciplinaridade.
As dificuldades de concepção de materiais pedagógicos são
sentidas a nível da investigação e da adequação pedagógica do
património industrial, devido a um conhecimento insuficiente
sobre o seu âmbito e à escassez de informação que estabeleça
a sua relação com as práticas pedagógicas, quando comparada, por exemplo, com o manancial de informação disponível
sobre o património cultural, na sua vertente artística.
A concepção de um módulo de formação sobre património
industrial que tenha por base os conceitos de cidade patrimonial e de cidade educadora caracteriza-se pela diversidade de
conteúdos e de abordagens pedagógicas que integram o seu
plano curricular.
2.1. A necessidade de formação de professores de História
em Património Industrial.
O património industrial (parte integrante do património cultural) caracteriza-se pela sua variedade e acessibilidade, pelo que é da maior
importância que na prática educativa aumente a frequência da sua
utilização como recurso pedagógico.
A diversidade de contributos que proporciona a exploração pedagógica do património industrial e da arqueologia industrial, permite a
aquisição de saberes simultaneamente culturais e técnicos e diversifica as possibilidades do professor responder aos desafios
pedagógicos que actualmente se lhe colocam, nomeadamente no
que respeita à educação para a cidadania.
No entanto, em comparação com outros recursos patrimoniais
locais, o património industrial é menos utilizado pelos professores
no ensino da História. Entre os diversos factores que contribuem
para esta prática de ensino aponta-se a escassez de conhecimentos aprofundados dos professores relativamente à investigação do
património industrial e à sua utilização didáctica (A. Mendes, 1990,
p. 328; A. Martins e A. Coelho, 1999, p 238).
Reconhecida a importância dos professores obterem uma formação
que lhes proporcione os instrumentos e as técnicas necessárias
para a sua auto-formação na área (P. Ramos, 1993, p. 108), pre-
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tende-se contribuir para o desenvolvimento de actividades de formação que promovam a reflexão sobre as potencialidades da utilização do património industrial como recurso educativo e o aprofundamento dos conhecimentos de métodos e técnicas que permitam
investigar e produzir conhecimentos e ampliar as possibilidades de
utilização didáctica do património industrial. Pretende-se, ainda, que
a formação de professores na área do património industrial contribua para a divulgação do património industrial de Lisboa e sensibilize para a necessidade da sua preservação.
2.2. O carácter formativo do património industrial como
recurso educativo no ensino da História (local).
O carácter formativo atribuído ao património industrial (cf. Figura n.º
3) advém da natureza do seu conhecimento, posto em prática
através de metodologias da arqueologia industrial, disciplina privilegiada do seu estudo. O estudo de objectos e de sistemas técnicos
proporciona o conhecimento das necessidades e carências condicionantes da evolução cultural da comunidade. A partir da análise de
património industrial, na sua tripla vertente científica, técnica e
social, proporciona-se ao aluno o acesso a conceitos físicos e tecnológicos concretos. A compreensão destes conceitos permitem ao
aluno compreender, para além do domínio de novos materiais e de
novas tecnologias, o processo através do qual estes determinaram
a forma e a estrutura de diversos objectos, bem como, a sua
função, a sua receptividade comercial, o seu valor social e ecológico.
Figura n.º 3 O carácter formativo do Património
Industrial como recurso educativo. Elaboração
própria.
NOTAS
(1) Como por exemplo: "A civilização industrial no século
XIX" (grupo H da linha de conteúdos da disciplina de História
do 3.º Ciclo do ensino Básico). In http://www.deb.minedu.pt/rcurricular/LivroCompetenciasEssenciais/Historia.p
df (p.103).
(2) Entre outras refere-se a seguinte: "Mobilizar
saberes culturais, científicos e tecnológicos para
compreender a realidade e para abordar situações e
problemas
do
quotidiano."
http://www.deb.min-
edu.pt/rcurricular/LivroCompetenciasEssenciais/Histo
ria.pdf (p.88).
(3) Por exemplo os seguintes conceitos: Fordismo,
Taylorismo e Estandardização inseridos no programa
de História do 9.º ano na linha de conteúdos 9.1. intitulada "Hegemonia e declínio da influência europeia." In
Programa de História. Ensino Básico. 3.º Ciclo,
[Lisboa], Ministério da Educação, 1991, p.63.
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Em torno da construção de uma ident(C)idade educativa:
contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
O recurso a metodologias da arqueologia industrial possibilita o
desenvolvimento de projectos inter e multidisciplinares e a sua utilização no ensino permite a concretização de conteúdos programáticos de natureza mais abstracta e aumenta a possibilidade
da comunidade escolar estabelecer inter-relações com o seu
património e a história local. (Mendes, 1993, p.12)
As estratégias e actividades mais comuns de estudo do património
industrial (e das suas múltiplas abordagens) são o trabalho de
campo e o trabalho de arquivo. A inventariação das unidades produtivas da zona onde a escola está inserida, permite conhecer as características do património industrial da região e fazer a sua
selecção em função da sua representatividade para a localidade,
dos objectivos educacionais do estabelecimento de ensino, dos
objectivos disciplinares e dos interesses dos alunos. A sua prática
de investigação permite ao(s) aluno(s) a aquisição e o aperfeiçoamento de uma série de capacidades que pode aplicar noutros ramos
do saber, através do mecanismo de "transfer of training" (Mendes,
1990, p. 328).
2.3. Contextos de acção educativa: o meio e o museu
O ensino da História com recurso ao meio e à História Local permite a inserção do(s) aluno(s) na realidade do passado da comunidade local, o que contribui para a sua compreensão e o capacita
para nela intervir. Esta capacitação advém do desenvolvimento de
capacidades e competências específicas como o pensamento reflexivo, o sentido crítico e o rigor de análise, realizado através da
familiarização do(s) aluno(s) com o método histórico, a partir do
recurso às fontes locais, através do incentivo na utilização de
métodos como os inquéritos, as entrevistas, a análise de textos
históricos, entre outros.
O recurso à História Local proporciona, também, o contacto com
as instituições locais para percepcionar melhor o seu funcionamento e deste modo contribui para uma integração mais consciente
do(s) aluno(s) na sociedade. Contribui, também, para desenvolver a
concepção da escola como um espaço de relação multicultural e de
construção da(s) identidade(s), concretizada a partir do conhecimento da(s) memória(s) (nomeadamente da memória familiar e da
memória colectiva), o que concorre para a compreensão da aldeia
global em que vivemos.
Neste contexto, o museu surge como um local pedagógico por
excelência, a partir do qual se podem desenvolver aprendizagens
disciplinares e promover a educação patrimonial e a educação
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museológica. Através dos museus aprende-se a observar e a ler
objectos, obras de arte, monumentos, cidades e regiões. A educação patrimonial consiste sobretudo em "aprender a saber ver, ou
seja, saber escolher o que se quer ver, parar por momentos, descobrir, falar sobre os objectos, os espaços, as pessoas." (Duarte,
1994, p. 67) A educação museológica define-se pela formação que
os cidadãos obtêm através das actividades dos museus e pelas
relações que estes estabelecem com a escola. (Campos, 2001, p.
10) "A educação museológica desenvolve-se em três momentos
específicos de aprendizagem que são o 'antes', 'o durante' e 'o
depois' da visita ao museu, e em dois espaços distintos: escola e
museu." (idem, p. 15)
2.3.1. As experiências pedagógicas e as potencialidades da
interdisciplinaridade: exemplos e características.
Conscientes de que a interdisciplinaridade surge na escola e se concretiza através de experiências de ensino que visam a integração
dos saberes disciplinares e do trabalho de colaboração entre duas
ou mais disciplinas12, apresentam-se sumariamente duas experiências pedagógicas que visam sobretudo exemplificar as possibilidades
de utilização do património industrial, musealizado ou não, como
recurso educativo.
Primeira experiência pedagógica:
O projecto "Conhece e descobre o nosso porto" foi desenvolvido
durante alguns anos13 por um grupo de professores em colaboração
com a Junta del Puerto de Sevilla (actual Autoridad Portuaria) e a
Consejería de Educación y Ciencia.
Com este programa, desenvolvido na Andaluzia, pretendeu-se
aproximar a escola do meio, dando-lhe uma dimensão mais próxima
da educação ambiental e promover atitudes nos alunos, nomeadamente de tomada de consciência em relação ao meio, entendido na
sua complexidade (natural e artificial/tecnológica e social). Neste
contexto foi privilegiado o tratamento de conteúdos no âmbito do
património industrial, uma vez que os portos têm sido através dos
tempos centros receptores de inovações técnicas e aí se
aplicaram, experimentaram, comprovaram e difundiram os resultados das novas tecnologias, por vezes, com aplicação em estruturas
de outras áreas económicas e de outros espaços geográficos.
(Carlos e Simal, 1998, p. 11) Como objectos de estudo (unidades de
observação de um tema mais vasto: as obras públicas) os portos
permitem ensinar e aprender conhecimentos de história, geografia,
economia e tecnologia. O estudo de um porto constitui uma experiência global e multidisciplinar e flexível e aberta a outras possibi-
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destinado aos professores sobre património industrial.
lidades de trabalho, pelo facto de se encontrar submerso em realidades que, por sua vez, também são sistemas, onde se produzem
múltiplas relações. (idem p. 26)
Para o desenvolvimento das actividades pedagógicas foram criados
diversos mapas de conceitos, do quais se destaca, como exemplo,
o Mapa de Conceitos que a seguir se apresenta, o qual inclui o conjunto de conteúdos seleccionados: (1.) Porto-território; (2.) Porto-artefacto; (3.) Porto-economia; e (4.) Porto-história (ibidem, p. 33)
Para cada um dos conteúdos seleccionados foi definido um conjunto de objectivos gerais (a atingir a curto prazo), entendidos como
um guia clarificador e orientador da(s) actividade(s) e divididos entre
objectivos conceptuais (por exemplo, compreender que o espaço
não está organizado ao acaso, senão como resposta a uma série de
necessidades), objectivos procedimentais (por exemplo, adquirir e
utilizar vocabulário específico) e objectivos atitudinais (por exemplo,
Mapa de conceitos Projecto "Conhece e descobre o
nosso porto".
Fonte: Marina Sanz Carlos e Julián Sobrino Simal,
"Patrimonio Industrial y Obra Pública como recurso
didáctico. Los Puertos." Sevilha, Consejería de
Educación Y Ciencia, 1998, p.27. (Tradução nossa.)
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ser capaz de respeitar e valorizar o nosso património cultural e
querer contribuir para a sua conservação e melhoria).
De seguida foi definido e organizado um repertório de actividades,
concretizado em cada etapa através de materiais concebidos para
os alunos. Por exemplo, actividades para determinar a acção do
passar do tempo em zonas ocupadas por um porto (no conteúdo
Porto-território); estudo das funções e ofícios que se desempenham dentro de um porto (no conteúdo Porto-artefacto); estudo
das indústrias instaladas nos arredores de um porto e que utilizam
o barco como meio de transporte das suas mercadorias (no conteú-
Quadro n.º 4 Procedimentos e instrumentos de avaliação
Observação sistemática
Escalas de observação
Listas de controle
Registo de casos
Diários de classe
Jogos de simulação e dramáticos
Análise das produções
dos alunos
Monografias
Resumos
Trabalho de aplicação e síntese
Cadernos de classe
Cadernos de campo
Resolução de exercícios e problemas
Textos escritos
Produções orais
Produções plásticas
Produções motoras
Intercâmbios orais
com os alunos
Diálogos
Entrevistas
Assembleias
Apresentações
Provas específicas
Objectivas
Abertas
Interpretação de dados
Exposição de um tema
Resolução de exercícios e problemas
Provas de capacidade motora
Questionários
Gravações em audio ou vídeo e análise posterior
Fonte: Marina Sanz Carlos e Julián Sobrino Simal, "Patrimonio Industrial y Obra
Pública como recurso didáctico. Los Puertos." Sevilha, Consejería de Educación Y
Ciencia, 1998, p.56 (Elaboração e tradução nossa.)
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Em torno da construção de uma ident(C)idade educativa:
contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
Quadro n.º 5 O património industrial. Elementos constitutivos.
Fonte: Eusebi Rahola e Magda Fernández Cervantes,
"Un modelo para trabajar el patrimonio industial. La
propuesta del Museu de la Ciència i de la Tècnica de
Catalunya" in IBER. Didactica de las Ciencias Sociales,
Geografia e Historia, 1994, (2), p. 56.
do Porto-economia); e estudo de diferentes tipos de embarcações
através da história, tamanho, energia utilizada, etc., e sua relação
com o desenvolvimento das actividades portuárias, transformações
tecnológicas, etc. (no conteúdo Porto-história).
Para além da definição de orientações metodológicas habituais na
realização de visitas de estudo foram definidos os objectivos e os
critérios de avaliação, que visavam comprovar o grau de desenvolvimento dos objectivos gerais a partir dos seguintes procedimentos
e instrumentos de avaliação (ver Quadro n.º 4).
Estas possibilidades de um ensino integral, apresentadas sumariamente nesta proposta de exploração didáctica, constituíram a principal justificação para a utilização dos portos como recurso educativo.
Segunda experiência pedagógica:
A segunda experiência pedagógica consiste na apresentação de um
modelo para trabalhar o património industrial, proposto pelo Museu
da Ciência e da Técnica da Catalunha, baseado no seu programa
educativo que tem por objectivo mostrar a história industrial do
passado da região. O programa assenta em três eixos14, dos quais
se destacam os seguintes itens: (1) compreender o passado no
presente, nomeadamente através dos elementos constitutivos do
património industrial (ver Quadro n.º 5); (2) fomentar o conhecimento e a compreensão da mudança; e (3) efectuar um conjunto de procedimentos vinculados na observação, investigação e interpretação
do objecto de estudo.
Vinculada a estas orientações pedagógicas está uma série de
Cadernos de Didáctica e de Difusão concebidos, entre outros, com
o objectivo de divulgar o património industrial catalão. Através
destes cadernos é feito o estudo do edifício, da energia e da técni-
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ca empregada, das matérias-primas utilizadas, dos processos produtivos, dos aspectos humanos e sociais e da paisagem onde se
encontra inserido.
Trata-se de uma proposta concebida por uma instituição museológica que produziu mecanismos para divulgar e promover a investigação da História Local e explorar o meio como recurso educativo.
Deste modo tornam-se acessíveis ao público, em particular ao
público escolar, os procedimentos de observação, investigação e
interpretação do património industrial como objecto de estudo.
2.4. Os instrumentos e as técnicas de exploração didáctica
do Património Industrial no ensino da História: a ficha de
inventário e a visita de estudo.
Remete-se para o ponto 2.3.1. da presente comunicação a apresentação sumária de instrumentos e técnicas de exploração didáctica do património industrial. De salientar somente a utilização da
ficha de inventário e a realização da visita de estudo.
Figura n.º 4 Ficha de Unidade Produtiva. Fonte: Alice
Campos Martins e Adriano Pinto Coelho, "O valor
educativo do património industrial", in Arqueologia &
Indústria, Lisboa, Associação Portuguesa de
Arqueologia Industrial (APAI), (2/3), 1999, p. 246.
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contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
Existem diversos exemplos de fichas de inventário, as quais o professor pode adaptar para serem utilizadas pelos seus alunos. O
modelo que se apresenta (ver Figura n.º 4) foi elaborado a partir das
fichas de inventário da Associação Portuguesa de Arqueologia
Industrial.
A utilização da ficha de inventário como instrumento de recolha de
dados no trabalho de campo e de arquivo, contribui para conhecer
melhor o meio onde a escola está inserida e contribui para o desenvolvimento da história local. Através deste tipo de actividades e de
procedimentos investigativos podem-se identificar matérias-primas
exploradas na região, empresários, localizar indústrias, caracterizar as habitações operárias, etc. A organização, selecção e tratamento desta informação pode contribuir para a realização de diversas actividades pedagógicas, nomeadamente guiões de visitas de
estudo, como o exemplo que se pode observar na Figura n.º 5.
A concretização de projectos de investigação sobre património
industrial, ou que pretendam divulgar práticas de investigação no
âmbito desta temática em contexto escolar, através de visitas de
Figura n.º 5 Visita de estudo a Belém e seus monumentos. Página do guião de uma visita de estudo
realizada no âmbito da disciplina de História no ano
lectivo de 1993/1994, pelos alunos dos 8.os B e F da
Escola Secundária N.º 1 do Montijo. Professora
responsável pelo guião: Alice Campos Martins. Página
elaborada com base no Inventário do Património
Industrial de Belém (cf. ponto 1.1.1.). As duas figuras
representativas da mudança de "tempos" foram retiradas do plano de actividades do serviço educativo do
Museu da Cidade, elaborado para esse ano lectivo.
estudo, possibilita ao professor e aos seus alunos o empenho na
concepção da sua adequação didáctica. Através deste envolvimento na planificação da actividade, na definição de objectivos e conteúdos, na construção de materiais de exploração pedagógica e de
avaliação desenvolve-se nos alunos capacidades e competências
específicas referidas no ponto 2.3. da presente comunicação,
resultantes das potencialidades formativas do património industrial como recurso educativo (cf. Figura n.º 3 do ponto 2.2.)
2.4.1. Contributos para a sua utilização didáctica.
a)O projecto "Defender/Descobrir o nosso Património
Industrial. A importância do gás no quotidiano. A Fábrica de
Gás da Matinha."
A concepção do projecto "Defender/Descobrir o nosso Património
Industrial. A importância do gás no quotidiano. A Fábrica de Gás da
Matinha." foi impulsionada por uma notícia publicada no dia 22 de
Abril de 2001 intitulada "Fábrica de gás da Matinha em risco de
desaparecer" (ver Figura n.º 6). Estava-se perante uma situação em
que era necessário alertar para a necessidade de se salvaguardar
este património industrial. Entendia-se, também, que este compromisso permitia sensibilizar os alunos para a importância da intervenção individual como forma de garantir a preservação de
património cultural ameaçado e divulgar informações que valorizassem a história local.
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A urgência de alertar para a necessidade de se salvaguardar a
Fábrica de Gás da Matinha e a vontade de elaborar um projecto que
contribuísse para o envolvimento de conteúdos programáticos da
disciplina de História, foram determinantes para a definição dos
seguintes objectivos:
1 Inserir aspectos da política cultural, social e económica da
cidade de Lisboa no período do Estado Novo, através da utilização de documentação relativa à Exposição do Mundo
Português e à transferência da Fábrica de Gás de Belém para
a Quinta da Matinha;
2 Aproveitar este estudo para conhecer aspectos tecnológicos
relacionados com a produção e distribuição do gás e reconhecer a importância do património industrial para um conhecimento mais completo da história local;
3 Confrontar objectivos políticos, sociais e culturais que fundamentaram a concepção e realização de grandes eventos
como a Exposição do Mundo Português em 1940 e a EXPO 98.
4 Promover a intervenção cívica e o exercício de cidadania
como instrumentos de compromisso individual/colectivo na
defesa e preservação do património industrial, nomeadamente,
através da concepção de materiais que de uma forma fundamentada alertem para a necessidade de salvaguardar a
Fábrica de Gás da Matinha, uma das primeiras indústrias de
distribuição edificada em Portugal e que contribuiu para modernizar o dia-a-dia.
Este projecto foi concebido para ser aplicado nas unidades de ensino 10.2. "Entre a ditadura e a democracia" (Portugal: a ditadura
salazarista) e Subtema B "Massificação e Pluralidade na Cultura
Contemporânea do programa de História do 9.º ano (3.º Ciclo do
Ensino Básico).
Para a primeira unidade de ensino entre os diversos recursos seleccionados e elaborados (para os quais contribuiu o Inventário do
Património Industrial de Belém - cf. o ponto 1.1.1. e a Figura n.º 5
do ponto 2.4.), destacam-se a elaboração de guião de visita de
estudo à Fábrica de Gás da Matinha e a elaboração de um teste de
avaliação sumativa que integrava o tema da distribuição de gás em
Lisboa.
Com a realização da visita de estudo pretendia-se que os alunos
ficassem a conhecer:
Figura n.º 6 A notícia "Fábrica de gás da Matinha em
risco de desaparecer" publicada no Público (22.04.2001,
p. 50) contribuiu para a definição de um projecto
pedagógico que, para além de incluir saberes disciplinares, permitiu promover a educação para a cidadania.
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contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
1.Os dados mais importantes da história da distribuição do
gás em Lisboa.
2.As razões que levaram o Estado Novo a determinar a transferência da Fábrica de Gás de Belém para a Quinta da Matinha.
3.As dificuldades verificadas nas obras de instalação da nova
fábrica de gás provocadas pela II Guerra Mundial.
4.O tipo de equipamento técnico que permitia o funcionamento da fábrica de gás.
5.As principais fases da produção de gás e da sua distribuição.
6.A relação entre o aumento do consumo de gás e a expansão
Figura n.º 7 A Fábrica de Gás da Matinha em notícia
n'O Século de 21 de Setembro de 1940, p.1.
do espaço ocupado pela Fábrica de Gás da Matinha.
7.O modo como a utilização do gás alterou o quotidiano das
pessoas.
8.A importância da preservação das instalações da Fábrica de
Cronologia dos principais marcos da história da
empresa
1848 Atribuição da concessão da iluminação públi-
ca de Lisboa à Companhia Lisbonense de Iluminação
a gás e arranque do sistema de gás iluminante
1887 Constituição de uma segunda sociedade
de iluminação a gás - a Gás de Lisboa
1891 Fusão das duas empresas e lançamento
das "Companhias Reunidas
Electricidade" - CRGE
de
Gás
e
Gás da Matinha para a história da cidade.
Na base da elaboração do guião da visita de estudo esteve também
um trabalho de pesquisa sobre a história da distribuição do gás em
Lisboa, em particular sobre a Fábrica de Gás da Matinha (ver Figura
n.º 7).
Para a elaboração do guião e das actividades da segunda unidade de
ensino também se fez uma pesquisa na internet, no site da
1940 Inauguração da fábrica de gás da Matinhaa
LisboaGás, onde se recolheram diversos materiais como a cronolo-
1957 Constituição da Sociedade Portuguesa de
gia que a seguir se apresenta.
Petroquímica, SARL, para a produção de Gás de
Cidade, Amoníaco e Hidrogénio
Também se procedeu à realização de uma visita preparatória ao
1961 Arranque da actual fábrica de Gás de
Cidade, em Cabo Ruivo
espaço da Fábrica de Gás da Matinha, onde com base num pré-
1975 A empresa passa a designar-se por EPG, EP
se fez um levantamento fotográfico dos edifícios (ver Figura n.º 8) e
1979 A EPG funde-se com a Petrofibras,
maquinismos existentes. Infelizmente no decurso das duas visitas
guião se discutiu a possibilidade de realização da visita de estudo e
tomando a designação PGP-Petroquímica e Gás
de Portugal
realizadas ao espaço da fábrica, fomos informados da demolição a
1983 A empresa arranca com um estudo sobre
dentes ao período de produção de gás anterior à introdução do gás
a introdução do Gás Natural em Portugal
natural na cidade de Lisboa 15.
1988 Decisão governamental de avançar com o
Projecto do Gás Natural
1989 A empresa adquire o estatuto de
Sociedade Anónima, passando a designar-se
GDP - Gás de Portugal, SA
curto prazo da maioria dos edifícios e gasómetros, correspon-
Por fim, para a segunda unidade de ensino foram elaborados três
jogos da glória a partir dos materiais recolhidos em diversas fontes
bibliográficas e na pesquisa realizada no site da LisboaGás (ver o
exemplo do jogo da glória que se apresenta na Figura n.º 9). O prin-
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1991 É atribuída à empresa a concessão para a
distribuição de Gás Natural no Distrito de Lisboa
1995 Alteração da designação da empresa para
GDL-Sociedade Distribuidora de Gás Natural de
Lisboa, simultaneamente com a constituição da
Holding GDP-Gás de Portugal, SGPS, congregando as participações da empresa em todas as
concessionárias de Transporte e Distribuição
1998 Lançamento do brand name Lisboagás e
arranque da Operação da Mudança de Gás
1999 Constituição do Grupo GALP, Holding que
detém 100% da GDP e 100% da Petrogal (A GDP
detém 100% da Lisboagás)
a
O início da laboração da nova fábrica de gás sofreu
sucessivos atrasos por causa das dificuldades de
abastecimento provocadas pela II Guerra Mundial.
Figura n.º 8 Vista do conjunto dos edifícios relativos ao fabrico do gás e ao aproveitamento dos subprodutos da sua produção, onde se destacam os gasómetros
telescópicos. Fotografia de Alice Campos Martins. Data: Outubro/2001
cipal objectivo era permitir a exploração de materiais já utilizados
na primeira unidade de ensino em conjunto com novos materiais,
preparados especificamente para a nova actividade pedagógica,
como fotografias, textos, documentos legais (nomeadamente a Lei
n.º 13/85, relativa ao Património Cultural Português). Como produto final do projecto, previa-se que, após a conclusão desta actividade, os alunos elaborassem um desdobrável destinado à comunidade escolar, que de uma forma fundamentada alertasse para a
necessidade de se preservar a Fábrica de Gás da Matinha.
Este projecto foi elaborado e discutido no âmbito de uma oficina de
formação intitulada "Património, História e Cidadania". Esta oficina
de formação de 50 horas, organizada pelo Centro de Formação da
Associação de Professores de História, realizou-se entre os meses
de Março e Julho de 2001 16.
b) A visita de estudo ao Museu da Água e ao Museu de
Electricidade - o percurso e os recursos (humanos e materiais).
No período compreendido entre os meses de Abril e de Maio de
2001 procedeu-se ao acompanhamento de grupos de professores17
e de alunos em visita guiada ao Museu da Água da EPAL e ao Museu
da Electricidade na Central Tejo (EDP). Durante esse período fizeram-se diversos registos (notas, audio, vídeo e fotográfico), dos
quais se faz uma apresentação sumária através do grupo de
fotografias seleccionadas para a presente comunicação, agrupadas
de acordo com o espaço museológico:
Fonte: http://www.lojagasnatural.com/sobrelisboagas/sobrenos_historia.asp (Adaptado.)
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Em torno da construção de uma ident(C)idade educativa:
contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
Lê com atenção as seguintes instruções:
€ Vais jogar com o(a) colega de carteira.
€ Para jogar só precisas de uma moeda, dos documentos fornecidos pela professora e de uma folha devidamente identificada
com o teu nome, número e turma.
€ Sempre que surgir uma nova tarefa/questão escolhes "CARA" ou "COROA" e jogas a moeda com o(a) colega.
€ Depois de verificarem a face da moeda que ficou para cima... cada um responde à questão ou tarefa que lhe "calhou".
€ Ganha quem chegar primeiro ao fim e tenha respondido às questões e cumprido as tarefas correctamente.
€ Se ainda tiveres dúvidas.... pede ajuda à tua professora.
Boa Sorte e VAMOS JOGAR!
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Alice Campos Martins, Maria Helena Salema
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Museu da Água (EPAL) 18:
A possibilidade de se visitar um ou vários núcleos do museu contribuiu
para o acompanhamento de diversos grupos escolares, não só de
alunos mas, também, de professores. E foi determinante para a organização do tipo de registos que se realizou. Para restringir o nosso
trabalho a um grupo mais específico, seleccionámos sete visitas de
estudo dos níveis de ensino do 3.º Ciclo do Ensino Básico e do Ensino
Secundário, realizadas ente os meses de Abril e de Maio de 2001.
Entre outros aspectos, procurou-se durante o acompanhamento
dos grupos verificar que tipo de recursos materiais e humanos
eram utilizados e se eram recursos disponibilizados pelo museu ou
se eram concebidos pelos professores a partir da sua própria investigação. Previa-se neste item a possibilidade do professor recorrer
a informação sobre o acervo de outros museus que de alguma forma
contribuísse para compreender este contexto museológico.
Concluímos que os grupos de professores e de alunos das visitas de
estudo que nós acompanhámos utilizaram somente os recursos
materiais (o acervo, os desdobráveis e os vídeos) e humanos (o
monitor) disponibilizados pelo museu. Entre estes recursos foram
utilizados maioritariamente o monitor da visita guiada e os espaços
físicos disponibilizados para a visita de estudo. Em nenhuma das visitas foi utilizado um guião para orientar o seu percurso. Quanto ao
registo de informações no decurso das visitas, foi utilizado principalmente o registo de imagens fotográficas ou em vídeo. Entre as
razões identificadas para esta prática salientam-se o âmbito
pedagógico em que se realizaram as visitas - para ilustrar conteúdos programáticos, para concretizar projectos desenvolvidos no
espaço escolar e para cumprir planos de actividades de turma
(neste último caso encontra-se uma visita realizada pela directora
de turma).
Figura n.º10 0 Aqueduto das Águas Livres19 Museu
da Água da EPAL. Visita de estudo de alunos do 12.º
ano da Escola Secundária Rainha D. Leonor, realizada no dia 24 de Abril de 2001, pela directora de
turma (professora de Português), no âmbito do projecto de área-escola intitulado "Água um bem
intemporal". Fotografia de Alice Campos Martins.
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Em torno da construção de uma ident(C)idade educativa:
contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
Figura n.º 11 Mãe D'Água (Amoreiras). Grupo de
professores (portugueses, espanhóis e italianos) em
visita de estudo realizada no dia 19 de Abril de
2001, no âmbito de um projecto de intercâmbio intitulado "Água e cultura", implementado pela Escola
Secundária Pedro Nunes. Fotografia de Alice
Campos Martins.
Figura n.º 13 Estação Elevatória dos Barbadinhos. Visita de estudo de alunos do 12º
ano da Escola Secundária Rainha D. Amélia, realizada no dia 22 de Maio de 2001.
Esta visita de estudo foi realizada em regime de voluntariado. Responderam à proposta da professora de Física e Química oito alunas. Fotografia de Alice Campos
Martins.
Figura n.º 12 Reservatório da Patriarcal (Príncipe
Real). Grupo de professores em visita de estudo
realizada no dia 10 de Maio de 2001, pertencentes
à Escola Secundária de Carcavelos. Esta visita realizou-se no âmbito de uma série de actividades de
formação e de promoção de colaboração interdisciplinar auto-propostas pelo corpo docente da escola.
Fotografia de Alice Campos Martins.
Figura n.º 14 Visita de estudo de professores de Geografia às nascentes de Belas,
Caneças e Carenque, realizada no dia 05 de Maio de 2001, no âmbito de uma acção
de formação de professores sobre visitas de estudo e trabalho de campo. Entre outros objectivos, com esta acção de formação pretendia-se que os professores aprofundassem os seus conhecimentos sobre vestígios representativos do património
cultural nacional. Fotografia de Alice Campos Martins.20
Os professores organizadores das visitas pertenciam a grupos disciplinares diversificados, como por exemplo, Geografia, Física e
Química, Português, Matemática e História. O número de alunos
por grupo variou entre os oito alunos e os quarenta alunos. O tempo
da visita de estudo era variável entre a metade de um dia ou o dia
inteiro, dependendo do núcleo museológico visitado e do interesse
do grupo.
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Museu de Electricidade21 - Central Tejo (EDP)
Procedeu-se ao acompanhamento somente de grupos escolares em
visita de estudo, porque no período de observação (Abril/Maio de
2001), não se realizaram visitas de estudo de professores. Os
níveis de ensino observados foram os mesmos (3.º Ciclo do Ensino
Básico e do Ensino Secundário) e verificou-se que realizaram a visita de estudo diversos grupos de cursos tecnológicos na área da
Electricidade. Outra disciplina, em cujo âmbito também se
realizaram várias visitas de estudo foi a Física e Química. O número
de alunos por grupo correspondeu ao número habitual por turma,
entre vinte e trinta alunos. O tempo de visita tinha a duração de
cerca de uma hora. Só num grupo em visita de estudo se observou
a utilização de um guião, elaborado para a parte do percurso correspondente à exposição interactiva intitulada "O que há por detrás
da tomada?", tendo para o efeito a professora utilizado o material
previamente cedido pelo museu.
O percurso da visita guiada tinha início junto à recepção do museu
onde a monitora fazia a introdução da visita e em seguida o grupo
entrava pela Antiga Sala dos Cinzeiros das Caldeiras de Baixa
Pressão (H). Dentro do edifício a visita estava orientada por espaços
Figura n.º 15 O percurso de visita no Museu de
Electricidade - Central Tejo. Fonte: Maria Luísa
Mendes Moller Freiria e Maria Odete da Silva
Amador Ferreira, "A Central Tejo", Lisboa, Museu de
Electricidade, 1999, p.122.
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Em torno da construção de uma ident(C)idade educativa:
contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
Figura n.º 17 Museu de Electricidade - Central Tejo. Visita estudo de alunos do 6.º, 7.º
e 9.º anos da Escola Básica Integrada de Ammaia - Marvão, realizada no dia 10 de
Maio de 2001. Através da maquete, instalada dentro da vitrine, a monitora explicava
aos alunos o processo de distribuição da electricidade. Fotografia de Alice Campos
Martins.
onde o grupo parava e ouvia a explicação da monitora. Assim o perFigura n.º 16 Museu de Electricidade - Central Tejo. O
início da visita de estudo de alunos do 10.º ano
(Curso Tecnológico) da Escola Secundária da Ramada
- Odivelas, realizada no dia 9 de Maio de 2001. Neste
espaço a monitora explicava a importância do carvão
para o funcionamento da Central Tejo. Fotografia de
Alice Campos Martins.
curso da visita guiada (ver Figura n.º 15) organizava-se da seguinte
forma: 1º espaço Sala dos Condensadores (G); 2.º espaço Sala das
Máquinas - Turbinas a Vapor - Alternadores (C); 3.º espaço Exposição
"Electricidade e Modernização do Quotidiano" colocada perto das
escadas, quando se descia da Sala das Máquinas (C) para a Sala dos
Condensadores (G); atravessava-se a Galeria das Bombas de
Alimentação (F) e a Antiga Sala dos Cinzeiros das Caldeiras de Baixa
Pressão (E); 4.º espaço Sala dos Cinzeiros das Caldeiras de Alta
Pressão (D) e 5.º espaço Sala de Exposições Temporárias (B) no Piso
1 (antiga Sala das Caldeiras de Baixa Pressão), onde estava instala-
da a Exposição Interactiva "O que há por detrás da tomada?".
3. Considerações Finais.
A diversidade de aspectos expostos sumariamente na presente
Figura n.º 18 Museu de Electricidade - Central Tejo
- Exposição interactiva "O que há por detrás da
tomada?". A professora da disciplina de
Electricidade e dois alunos do 10.º ano da Escola
Profissional de Setúbal - visita de estudo realizada
no dia 15 de Maio de 2001. Fotografia de Alice
Campos Martins. Com as exposições interactivas
os museus têm por objectivo encorajar o visitante
a "participar" através da utilização e manuseamento
do equipamento que para o efeito se encontre na
exposição. Pretende-se desta forma despertar o
interesse pela aprendizagem e que esta assuma um
carácter voluntário e autónomo. (Campos, 2001,
comunicação não esgota a reflexão sobre o tema nem a totalidade de
potencialidades e possibilidades da utilização didáctica do património
industrial. No entanto, considera-se que contribui para a reflexão
sobre o recurso ao património industrial no desenvolvimento de
actividades pedagógicas e na definição de conteúdos e objectivos a
incluir num módulo de formação para professores sobre o tema.
Introduziu-se nesta reflexão a cidade de Lisboa nas suas vertentes
de património e educação, pela diversidade de vestígios patrimoniais que o seu espaço contém e que podem ser utilizados como
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recursos pedagógicos. Por este motivo, considerou-se ser fundamental apresentar exemplos de algumas abordagens de utilização
pedagógica do património industrial inserido em espaços urbanos.
Estas actividades foram seleccionadas tendo em atenção a diversidade de acções que envolveu a sua concepção e a sua implementação e a capacidade de exemplificação das múltiplas possibilidades
de utilização do património industrial como recurso educativo.
Esta proposta de abordagem do tema justifica-se pelos objectivos
previamente definidos e contribuiu para repensar a pertinência
destes no contexto de reflexão e concepção de uma proposta de
módulo de formação para professores sobre património industrial.
Assim, considera-se que a concepção do módulo de formação deve
ser norteada pelos seguintes objectivos:
Mudar a atitude dos professores no que se refere à utilização
do património industrial como recurso educativo;
Debater as potencialidades pedagógicas deste tipo de
património cultural, através da divulgação de actividades
pedagógicas realizadas com o recurso ao património industrial e do conhecimento da diversidade de património industrial
existente em Lisboa.
Promover a integração regular da exploração pedagógicodidáctica da diversidade de recursos materiais disponibilizados
pelos museus e núcleos museológicos de património industrial, nas práticas correntes de utilização do património como
recurso educativo.
Contribuir para o aprofundamento de conhecimentos relacionados com metodologias de investigação do património
industrial e da sua utilização didáctica.
Proporcionar a criação de um espaço de reflexão sobre a construção e aplicação de instrumentos de exploração didáctica do
património industrial.
Promover a reflexão sobre a importância da preservação do
património industrial e do lugar que, nesse âmbito, ocupam as
actividades de sensibilização na Educação para a Cidadania.
Quanto aos conteúdos deste módulo de formação, considera-se que
estes devem fornecer ao(s) professor(es) conhecimentos e instrumentos que lhe(s) possibilitem desenvolver actividades de investi-
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Em torno da construção de uma ident(C)idade educativa:
contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
gação/aplicação didáctica sobre o tema. Por esta razão, definiram-se os seguintes conteúdos:
1. As metodologias de investigação de Património Industrial.
1.1. O Património Industrial: conceito(s) e tipologia(s).
1.2. A Arqueologia Industrial: fontes e métodos.
2. O meio urbano enquanto agente e conteúdo educativo: a
História Local e a preservação do Património Industrial.
2.1. O estudo do Património Industrial de Lisboa: fundamentos
e práticas.
2.1.1. O exemplo do Inventário do Património Industrial de
Belém.
2.2. O museu como espaço de divulgação e de sensibilização
para o estudo e preservação do Património Industrial.
2.2.1. O Museu da Cidade como espaço de definição e de caracterização da cidade patrimonial.
2.2.2. O Museu da Água e o Museu de Electricidade: exemplos de preservação e musealização de monumentos industriais - a sua actividade e o seu percurso expositivo.
3. O recurso ao Património Industrial: práticas pedagógicas e
exploração didáctica.
3.1. As experiências pedagógicas: exemplos e características.
3.1.1. As potencialidades da interdisciplinaridade.
3.2. Os instrumentos e as técnicas de exploração didáctica do
Património Industrial no ensino da História: a ficha de inventário e a visita de estudo.
3.2.1. Os contributos para a sua utilização didáctica: o gás, a
água e a electricidade.
a) A Fábrica de Gás da Matinha - a concepção do projecto
"Defender/Descobrir
o
nosso
Património
Industrial.
A
importância do gás no quotidiano. A Fábrica de Gás da
Matinha."
b) A visita de estudo ao Museu da Água e ao Museu de
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Electricidade - o percurso e o(a) monitor(a) da visita guiada:
possibilidades de construção e de aplicação de instrumentos
de exploração didáctica do Património Industrial.
4. O carácter formativo do património industrial como recurso educativo no ensino da História (local): contributos para a
integração do(s) aluno(s) no meio social e para a construção
de lugares de cidadania.
A terminar, considera-se que a definição destes objectivos e a
selecção destes conteúdos contribuem para a construção de uma
identidade educativa da cidade de Lisboa, pelo que se atribui ao
módulo de formação destinado aos professores o título "Património
Industrial de Lisboa como recurso educativo: métodos, processos e
meios."
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Telmo, Isabel Cottinelli, O Património e a Escola - Do Passado ao Futuro,
Lisboa, Texto Ed., 1994
Notas
1
Entendida enquanto referente ideal de cidade que procura proteger o seu
legado cultural e conservá-lo de forma crítica, de modo a integrá-lo em
novos usos e na cultura actual, com o objectivo de gerar a sua va-lorização e a sua rentabilização social. Cf. Román Fernández-Baca Casares, "La
ciudad patrimonial" in PH, Sevilha, Instituto Andaluz del Patrimonio
Histórico, (14), 1996, p. 88.
2
Ana Maria Cardoso de Matos, Albertina Ramos, Alice Martins, Clara
Assunção e Maria de Fátima Afonso, "Inventário do Património Industrial de
Lisboa" in I Jornadas Ibéricas del Patrimonio Industrial y la Obra Pública,
Sevilha, Consejería de Cultura y Medio Ambiente, 1994, p.135.
3
Alice Martins, "Inventário do património industrial de Lisboa. Belém"
I Jornadas Ibéricas del Patrimonio Industrial y la Obra Pública, Sevilha,
Consejería de Cultura y Medio Ambiente, 1994, pp.137-148.
4
Por exemplo: Alice Campos Martins e Adriano Pinto Coelho, "As insta-
lações industriais como elementos poluidores da cidade: o caso da Fábrica
de Gás de Belém" in Actas do II Colóquio Temático Lisboa Ribeirinha (2 a 4
de Julho de 1997), Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1999, pp.299-327;
e Alice Martins e Adriano Pinto Coelho, "A Fábrica de Gás de Belém: os
projectos e os processos nos finais do Século XIX" in revista Arqueologia &
Indústria, Lisboa, Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial, Julho
1998, pp.23-36.
5
Por exemplo: Alice Martins, "Fábrica de Moagem do Bom Sucesso", Actas
das II.as Jornadas Ibéricas do Património Industrial, (Fevereiro de 1994),
Lisboa, APAI, (no prelo).
6
Ver, por exemplo, João B. M. Néu, Evolução da zona ocidental de Lisboa,
Lisboa, Livros Horizonte, 1994.
7
Cf. Património Arquitectónico e Arqueológico Classificado. Distrito de
Lisboa, Lisboa, IPPAR, 1993, p. 30 e http://www.ippar.pt/patrimonio/itinerarios/industrial/ind_ctejo.html.
8
"A ideia de se criar um museu dedicado à Água surgiu em 1919, por ini-
ciativa da CAL - Companhia da Águas de Lisboa. A partir de então foi possível reunir e preservar uma colecção de objectos antigos e documentação
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Em torno da construção de uma ident(C)idade educativa:
contributos para a concepção de um módulo de formação
destinado aos professores sobre património industrial.
alusivos à história do abastecimento de água à cidade de Lisboa. Em
1987, a EPAL, sucessora da CAL, lançou um novo projecto e o Museu da
Água da EPAL foi inaugurado no dia 1 de Outubro de 1987." In
http://www.epal.pt/museu/museu.htm.
9
10
Alice Campos Martins integrou a equipa de coordenação do referido SEP.
Coordenado por Ana Luísa Janeira. Professora Associada com agregação
em Filosofia das Ciências, do Departamento de Química da Faculdade de
Ciências da Universidade de Lisboa.
11
Adriano Pinto Coelho, Alexandra Escudeiro, Alice Campos Martins, et. al,
"A exploração dos recursos naturais brasileiros: intervenções educativas
no âmbito do Projecto CulturaNatura" in Actas do Congresso LusoBrasileiro "Portugal-Brasil: memórias e imaginários" (9 a 12 de Novembro
de 1999), Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, pp. 461-507.
12
Olga Pombo et al., A interdisciplinaridade. Reflexão e experiência, Lisboa,
Texto Editora, 1994, p. 8.
13
Em 1998 foi publicado um livro sobre o projecto que pretendeu ser uma
exemplificação prática do tipo de materiais didácticos elaborados para a
exploração do Porto de Sevilha, com o objectivo de constituir um modelo
aplicável a outras cidades portuárias da Andaluzia. Cf. Marina Sanz Carlos
e Julián Sobrino Simal, Patrimonio Industrial y Obra Publica como recurso
didáctico. Los Puertos. Sevilha, Consejería de Educación y Ciencia. Junta
de Andalucía, 1998
14
In Eusebi Casanelles Rahola e Magda Fernández Cervantes, "Un modelo
para trabajar el patrimonio industial. La propuesta del Museu de la Ciència
i de la Tècnica de Catalunya" in IBER. Didactica de las Ciencias Sociales,
Geografia e Historia, 1994, (2), p. 56.
15
O nosso agradecimento para o Senhor Brigadeiro Mariz Fernandes,
administrador da empresa Cabo Ruivo e o Senhor Engenheiro Cavaco
Guerreiro, membro da direcção da referida empresa, proprietária da
Fábrica de Gás da Matinha.
16
O nosso agradecimento pelo apoio e interesse demonstrado pelo for-
mador, Dr. António Manique, e, pela directora do Centro de Formação,
Dra. Ana Espanha.
17
O nosso agradecimento aos professores responsáveis pelas visitas que
se mostraram receptivos à recolha de dados.
18
O nosso agradecimento ao Museu da EPAL (em particular à
Dr.ª Margarida Ruas, ao Dr. Pedro Inácio, ao Dr. Raul Vital e à Dr.ª. Bárbara
Bruno) pelo apoio e pela autorização concedida para acompanhar grupos de
alunos e de professores em visita de estudo e registar a sua realização,
nomeadamente através de fotografias.
19
Classificado como monumento de interesse nacional (16-06-1910). A
classificação deste património industrial (Obras públicas/Infra-estruturas)
inclui a Mãe d'Água, os troços do Alto da Serafina, Vale de Alcântara e a
zona das Amoreiras. (Cf. Património Arquitectónico e Arqueológico
Classificado. Distrito de Lisboa, Lisboa, IPPAR, 1993, p. 21 e
http://www.ippar.pt/patrimonio/itinerarios/industrial/ind_aqueduto.html)
20 O nosso agradecimento também para a Escola Secundária do Restelo e
para a Associação dos Professores de Geografia, responsáveis pela orga-
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Alice Campos Martins, Maria Helena Salema
nização desta acção de formação e aos professores participantes pela
receptividade relativamente à recolha de dados no decurso da visita.
21 O nosso agradecimento ao Museu de Electricidade - Central Tejo por
ter concedido autorização para seguir grupos de alunos em visita de estudo e efectuar o seu registo, nomeadamente áudio, fotográfico e em vídeo,
em particular ao Senhor Engenheiro Abelaira Gomes, à Drª. Sara Silva e às
Drªs. Maria José Dantas e Ana Paula Jorge. Um agradecimento especial
também aos professores organizadores e participantes nas visitas de
estudo pela receptividade que demonstraram à recolha de dados.
a
Professora de História. Escola Secundária José Gomes Ferreira. Associação
Portuguesa de Arqueologia Industrial (APAI).
b
Professora Auxiliar do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa. Centro de Investigação em Educação da FCUL.
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Moderador:
Arqto. Sérgio Melo
Sexta-feira, 6 de Julho de 2001
VII Sessão de Trabalho | Tarde
Tema 4 - Formas Urbanas
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Reflexão e Síntese sobre a Baixa Pombalina, na sua Situação Actual e
Perspectiva para o Futuro
José Manuel Fernandes
RESUMO
O tema é abordado a partir de três aspectos complementares e
interligados:
1. Da recuperação do "Chiado Queimado" à problemática actual
da decadência do centro histórico de Lisboa e da Baixa;
2. O passado e o futuro da Baixa Pombalina, entendido a partir da bibliografia existente e das possibilidades de actuação
prática;
3. Crítica a partir de acções restritas e equivocadas, como a
do projecto do elevador do Castelo, por forma a pensar a Baixa
numa perspectiva de actuação global.
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Cidade em Zapping - o metropolitano na leitura da forma urbana
Filipa Roseta*
O metropolitano apareceu em meados do século XIX para resolver a
circulação dentro das cidades que, com a crescente concentração
populacional, se tornara incomportável. Em Londres, nas duas
primeiras décadas do século XX, a lentidão da travessia quotidiana
do Tamisa permitia aos mercadores a observação do apodrecimento dos seus produtos acelerado pelos raios do sol. (fig. 1).
O tradicional caminho-de-ferro, determinante para ligar centros
urbanos, não servia para a circulação intramuros. Este modo vai
introduzir-se na forma urbana com dois elementos: as estações e
os carris. Se as primeiras são estruturantes enquanto centralidades urbanas, os carris fracturam o território, gerando barreiras
como a que Lisboa sofre com a linha Cais-do-Sodré/Cascais, em
grande parte responsável pela difícil relação da cidade com o rio.
O metropolitano surgiu para resolver este tipo de fracturas, eliminando cruzamentos de nível com a restante circulação urbana. Para
o efeito, este modo apresenta duas alternativas: eleva os carris ou
coloca-os no subterrâneo. O metropolitano elevado traz desvantagens como o barulho e, principalmente, o impacto na imagem da
cidade consolidada. Em Lisboa, a ascensão da linha no Campo
Grande revela a transformação do metro num obstáculo urbano de
difícil resolução. (fig. 2) (fig. 3)
Se a linha elevada impõe uma presença marcante na imagem da
cidade, a subterrânea permite uma integração eficaz e visualmente
silenciosa que os centros consolidados das cidades oitocentistas
pareciam pedir. Apesar da solução estar à vista, o homem do século XIX hesitava. Esbarrava nos mitos que a civilização ocidental
construíra sobre o mundo subterrâneo, lugar dos mortos, lugar do
inferno, lugar de tormento para os espíritos do mal. Alguns acidentes alimentaram este receio como o ilustrado pela imagem de
Theophile Steinlen (fig. 4). A 10 de Agosto de 1903, em Paris, morreram 77 viajantes encurralados nos túneis da cidade subterrânea.
Circunstâncias históricas fizeram com que, também em Paris, o
mundo subterrâneo provasse novas virtudes: no primeiro bombardeamento aéreo de uma cidade, em 1916, os cidadãos da capi-
RESUMO
Lisboa assume o seu carácter metropolitano e
ambiciona a construção de uma rede de metro.
Este modo de circular na cidade, responsável
pela construção de centralidades e consequente valorização do solo, vai alterar a percepção da forma urbana pela sua condição
subterrânea. A cidade da superfície é vista por
zapping, entendida nos momentos de entrada e
saída das estações, traduzindo uma leitura
ancorada por pontos. Por baixo de terra, as
estações pretendem estabelecer uma relação
com a cidade tradicional através dos nomes e
temas de decoração, remetendo o tempo de
percurso para a escuridão do túnel. Esta
análise morfológica observa os espaços gerados pelo metro na cidade subterrânea, procurando a sua identidade e qualificação.
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tal francesa utilizaram as estações mais profundas como refúgio,
passando o metropolitano de túmulo a abrigo das populações.
O modo subterrâneo vai generalizar-se pelas metrópoles, dividindo
a experiência da forma urbana por dois mundos: o superficial e o
subterrâneo. O toque entre estes dois mundos acontece nas saídas de passageiros, sendo a própria estação resolvida no subsolo.
Estas saídas (fig. 5) aparecem na forma urbana em grande quantidade e com um anonimato distante do terminal de comboio,
abraçando a condição de peça de mobiliário integrada em qualquer
passeio de maior dimensão. Podem ainda ser absorvidas por
grandes edifícios, como no caso do Centro Comercial Colombo,
anunciando uma vivência urbana apenas subterrânea onde o cidadão
circula ao abrigo de todas as alterações climatéricas. Além das saídas pedonais, o mundo subterrâneo toca na superfície para resolver
a ventilação e saídas de emergência, deixando com estas funções
pegadas insólitas (fig. 6) na superfície.
Se sobrepusermos os dois mundos em planta, verificamos um paraFigura 1 " O trânsito da cidade" de Doré (fig. in
BOBRICK, Labyrinths of Iron, p. 117)
lelismo entre a estrutura da forma urbana superficial e a estrutura subterrânea do metropolitano. O caso de Lisboa evidencia esta
relação (fig. 7). As razões para este paralelismo são a adaptação às
condições topográficas (fig. 8) e a apropriação do espaço público
que evita tanto expropriações como interferências nas fundações
do edificado. (fig9). No entanto, estes mundos paralelos apresentam modos diferentes de experimentar a cidade. A cidade da superfície apresenta um contínuo de referências variadas potenciando
uma leitura narrativa da forma urbana. O mundo subterrâneo é
visto por zapping, lido como pontos intercalados pelo vazio do túnel.
Figura 2 Imagem crítica do metropolitano elevado (fig
in BOBRICK, Labyrinths of Iron,p. 239)
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Figura 3 Metropolitano elevado no Campo Grande
O lugar do túnel é o não-lugar. (fig. 10) É o espaço sempre uniforme
sem associação a qualquer paisagem, sem referências como a mancha
verde de Monsanto, o Castelo, o rio ou a própria orientação solar. No
túnel não nos é permitida qualquer orientação. O subterrâneo é idêntico em qualquer localização do mundo. O contexto único determina-se
pelos vizinhos do subsolo: as infra-estruturas da metrópole (esgotos
e afins) e os carcomidos vestígios das cidades de outros tempos.
Para nos orientarmos no mundo subterrâneo precisamos do mapa
como o cego precisa da sua bengala. (fig. 11) A dificuldade de orientação neste novo mundo chegou a pôr em causa a existência deste
tipo de transporte. Em Nova Iorque, o primeiro cruzamento de duas
linhas levou as multidões apressadas a enganarem-se nos corredores. Perdido o sentido da entrada e da saída, instalava-se o pânico e, entre encontrões, os passageiros lutavam por regressar a
céu aberto. A situação levou ao encerramento do serviço até arranjar uma solução que não passasse pela distribuição de bússolas à
entrada, retomando hábitos do mundo das minas. Reza a história
que o filho de um dos engenheiros de trânsito, lendo o mito do
Minotauro, sugeriu ao pai que, como Teseu tinha saído do labirinto,
seguindo o rasto de uma linha, deveriam ser utilizadas cores que
referenciassem cada linha para que os passageiros pudessem,
como Teseu, encontrar o seu caminho. Estava delineada a base do
esquema que hoje assumimos para nos orientarmos nas
metrópoles. As cores, esvaziadas de referências simbólicas, foram
eleitas como modo eficaz para decifrar a orientação nestes labirintos subterrâneos.
Figura 4 Imagem de Theophile Steinlen publicada
numa edição especial de L'Assiette au Beurre. (fig
in BOBRICK, Labyrinths of Iron, p. 167)
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urbana
Figura 5 Saida de passageiros da Estação de
S.Sebatião (foto-Largo de São Sebastião)
Figura 6 Presenças insólitas do mundo subterrâneo
na superfície (foto-Av.Sidónio Pais)
Este modo de cartografar prova a distinção da experiência entre os
mundos subterrâneo e superficial. Trata-se de uma representação
topológica, não topográfica, que pode ser distorcida sem qualquer
perturbação do conteúdo. (fig. 12) Neste esquema só interessam
as relações entre os lugares, não mais as formas dos lugares em
si. Desenha-se a rede de relações entre as estações, eliminando as
singularidades que cada uma apresenta na forma. O resultado uniformiza os mapas de qualquer metrópole, esbatendo diferenças
entre realidades tão distintas como Londres ou Berlim. (fig. 13) Por
outro lado, este esquema simples acaba por ser a única hipótese
para visualizar o conjunto da mancha metropolitana já que a escala
da sua expansão impede uma apreensão enquanto forma tradi-
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Figura 7 Sobreposição da rede de metro de Lisboa
com a planta da cidade (foto - estação Laranjeiras)
cionalmente estruturada por espaços públicos e edificado, como se
de um único objecto se tratasse.
A toponímia reflectida nos nomes das estações acaba por ser o elo
que nos liga à realidade da superfície. Quando passamos uma
estação com a reprodução nas paredes da palavra Avenida recebemos com satisfação a mensagem de estarmos a circular a boa
velocidade por baixo dos engarrafamentos da Avenida da Liberdade.
Serão poucos os que ociosamente recordam o primeiro passeio
público da cidade. Os vestígios das luzes, entalados entre as faixas
rodoviárias, e o seu patrono, aprisionado pela rotunda, são
pegadas, registos incompletos da memória colectiva remetidos
para o mundo da superfície, para quem se aventura ao trânsito ou
aos humores do clima.
Momentos nostálgicos não podem distorcer a realidade: o metro é
um meio eficaz para o funcionamento da metrópole dada a capacidade de transportar concentrações populacionais elevadas a
grande velocidade. Estas qualidades acontecem num reduzido
espaço, são acompanhadas de percursos exclusivos que oferecem
uma confortável segurança de horários, e alimentam-se de electricidade reduzindo a poluição. As características técnicas do metropolitano atribuem-lhe, segundo Vuchic, a classificação de modo de
transporte urbano mais evoluído da era industrial, possibilitando
uma última fronteira do transporte urbano: o veículo automático
que dispensa a condução humana.
Se a tecnologia do metropolitano lhe atribui características de último da era industrial, a experiência que proporciona da forma urbana
Figura 8 Adaptação da rede de metropolitano de
Lisboa ao relevo da cidade (fig in FARINHA, Brazão O Metropolitano de Lisboa, p. 29)
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urbana
por zapping anuncia a era das telecomunicações. A ligação entre
pontos de referência materializada na escuridão do túnel prepara o
cidadão para o zapping televisivo ou entre sites da internet. A
experiência do metropolitano coloca o passageiro numa charneira
entre duas eras, num curioso limbo, naquele lugar onde as coisas
deixaram de ser mas ainda não são.
Os comportamentos neste não-lugar são aconselhados por um
código de conduta (devidamente afixado nas paredes das estações)
que revela a intromissão do cidadão no primado da eficácia. Aqui,
somos todos passageiros e devemos fazer tudo com a maior rapidez. A ausência de habitantes, de moradores que à janela ou nos
Figura 9 Ocupação do espaço público, construção do
metropolitano ao longo da Avenida António Augusto
Aguiar (fig. in Jornal dos Arquitectos, n.º 191)
seus quartos controlam naturalmente a rua, torna obrigatório o
uso de máquinas de vigilância para segurança dos utentes. Para
além da vigilância e do código de conduta a exiguidade do espaço
coloca a distâncias íntimas passageiros que não têm qualquer
afinidade. Utilizo a distância íntima como foi definida por Edward
T. Hall: do encosto aos 40 cm com variantes culturais. A proximidade aceite em concertos, comícios ou outros momentos colectivos
onde o próprio motivo da festa gera laços de afectividade, não
encontra justificação quando o único objectivo: chegar rapidamente,
apesar de comum a todos é uma conquista individual.
Dentro da carruagem o cenário é de combate pelo espaço onde se
utiliza todo o tipo de artilharia para sair da distância íntima do próximo. Desde logo, tenta-se alcançar um estado de imobilidade que
evite qualquer contacto físico. Qualquer toque estranho desperta a
tentativa de fuga que, caso não seja exequível, dará lugar a uma
contracção dos músculos. As mãos reduzem-se à função de evitar
o desequilíbrio ficando, de resto, ao longo do corpo para evitar qualquer contacto. Ao recordar o código de conduta "Ter correcta postura e asseio de forma a não incomodar nem sujar os outros passageiros", os olhos fixam o infinito para fugir à intimidade de quem
nos está próximo. Se existirem, como num autocarro, referências
exteriores colocamos toda a atenção na paisagem. No mundo subterrâneo resta o espectáculo da carruagem enclausurada nas galerias de betão. Vive-se no quotidiano, segundo palavras de Marc
Augé, "a colectividade sem festa e a solidão sem o isolamento".
Este modo de transporte urbano coloca-nos no dilema que as civilizações industrializadas travaram ao longo do século XX em praticamente todas as áreas do conhecimento: qualificar uma quantifi-
Figura 10 Túnel de Metropolitano (fig in ROLLO, Mª
Fernanda - Um Metro e uma Cidade)
cação incomportável mas fundamental para o funcionamento, e até
sobrevivência, das civilizações metropolitanas.
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As estações que se vão construindo têm revelado a preocupação de
qualificar o mundo subterrâneo. A decoração temática tem sido utilizada para dotar cada estação de uma identidade distinta, normalmente enfatizando o nome que nos liga à superfície. Tenta-se
particularizar deste modo uma tecnologia que, sem ter de se confrontar com contextos urbanos distintos, tornar-se-ia numa
imagem globalizada, uniforme para todas as estações. O caso de
Lisboa tem sido exemplar no uso do azulejo.
Além da decoração temática a própria definição arquitectónica e
urbana da estação ou das saídas pedonais pode celebrar o encontro entre o mundo subterrâneo e o superficial como um momento
único na metrópole, atribuindo-lhe características próprias tais
como a impossibilidade de definir onde se situa o verdadeiro nível do
Figura 11 Mapa da rede de Metropolitano de Lisboa
(foto)
solo. A luz pode descer ao mais profundo cais e escadas podem
subir numa progressão aparentemente infinita. A estação do
Oriente, do Arquitecto Santiago Calatrava, mostra as potencialidades desta ambiguidade. (fig. 14) Este sentido de clausura num
espaço infinito foi imaginado há mais de 200 anos pelo arquitecto
Giovanni Batista Piranesi. Os "Carceri d'Invencioni" (fig. 15) de
Piranesi, além de definirem qualidades do espaço moderno sem limites dentro/fora, apresentam o humano acorrentado às suas
próprias criações. O sentido trágico das suas gravuras é superado
pela qualidade estética das mesmas, anunciando uma esperança na
criação humana para sair dos labirintos em que a própria teima em
se aprisionar.
Se existem referências arquitectónicas para qualificar as estações,
como valorizar o vazio quotidiano do túnel? Proponho que se procurem modos de transformar o subterrâneo num lugar com um
genius loci próprio e irreproduzível na superfície. Como? Os aborígenes mediam distâncias a cantar. David Hockney associa uma
ópera de Wagner a um percurso pelas montanhas, densificando
para quem experimenta o sentido do percurso e o sentido da músi-
Figura 12 - Esquema da rede distorcido (foto - em trânsito)
Figura 13 Mapas das redes de metropolitano de
Londres e Berlim (foto)
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urbana
ca. Apelo a arquitectos, músicos, urbanistas para conceberem
composições inspiradas nos lugares por onde as linhas passam,
para construírem paisagens musicais destinadas a um mundo carente de imagens. A melodia seria um fio de compreensão que permitiria, no reconhecimento da composição, situar a proximidade da
saída. A articulação das qualidades narrativas das estações com o
tempo da música instalar-se-ia como modo complementar de orientação. Seria uma nova paisagem urbana, uma paisagem feita à
medida do mundo de Hades, uma nova escala para a cidade de
Lisboa.
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Sobremodernidade. Trad. de Lúcia Mucznik. 2.ª ed. Venda Nova: Bertrand
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Taschen, 2000. ISBN 3-8228-6620-2.
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Lisboa EP, 1999. (vol I ) ISBN 972-8588-01-1
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Nova Jersey: Prentice Hall, 1981. ISBN 0-13-939496-6.
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O Eclectismo no Desenho Urbano
Referências a Modelos Urbanísticos e sua Síntese no Bairro de Alvalade, Expansão
de Lisboa 1945-1970
João Pedro Costa*
"Se partilharmos a convicção de que a criação se apoia sobre
um adequirido e procede a experimentações sucessivas, é possivel escolher referências de um outro modo, é possivel utilizar
modelos ou experiências realizadas como base de trabalho de
projecto, pelas suas qualidades urbanas, pelas qualidades que
sugerem, pelas manipulações a que se prestam"
Jean Castex, Charles Depaule, Phillipe Panerai;
Formes Urbaines, de l'Îlot à la Barre.
Do mesmo modo que Jean Castex, Charles Depaule e Phillipe
Panerai defendem a existência de continuidades no processo criativo, afirmando que o desenho urbano evolui sobre adquiridos (os
modelos e experiências anteriores), também na investigação
urbanística essas continuidades existem.
A investigação que se apresenta é disso um exemplo.
Dando continuidade à citação apresentada, verifica, numa experiência concreta (o Bairro de Alvalade, expansão de Lisboa 1945-1970),
a tese defendida por Jean Castex, Charles Depaule, e Phillipe
Panerai em "Formes Urbaines, de l'Îlot à la Barre".
Trata-se pois de uma viagem, em paralelo, pelo urbanismo da
primeira metade do século XX e pelas propostas do Bairro de
Alvalade, procurando identificar modelos e referências a experiências no seu desenho urbano.
Mas não se trata de uma viagem sem destino.
A investigação propõe uma tese muito clara: o Bairro de Alvalade é
um exemplo ecléctico de desenho urbano.
Ecléctico, no sentido de método:
"Reunião de teses conciliáveis retiradas de diferentes sistemas de filosofia e que são justapostas, negligenciando-se
pura e simplesmente as partes que não são conciliáveis desses sistemas" [André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da
Filosofia].
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e sua Síntese no Bairro de Alvalade, Expansão de Lisboa 1945-1970
Figura 1 Plano de Urbanização da Zona a Sul da
Avenida Alferes Malheiro, Planta de Apresentação.
Ou,
"Conciliação através da descoberta dum ponto de vista superior de teses filosóficas, apresentadas no início como opostas"
[idem].
(nada tendo a ver, pois, com o ecletismo enquanto escola,
caso, por exemplo, do sentido atribuído ao ecletismo da arquitectura do século XVIII)
No Bairro de Alvalade são identificados conceitos urbanísticos retirados de diferentes modelos de cidade e de várias experiências
anteriores, algumas constituindo paradigmas na teoria do urbanismo.
O desenho urbano do Bairro de Alvalade não se vai limitar a simplesmente reinterpretar um desses modelos, não se vai inspirar exclusivamente numa determinada experiência anterior.
Pelo contrário, no Bairro de Alvalade vai ser realizada uma síntese
dessas variadas influências, algumas tidas inicialmente como totalmente antagónicas - por exemplo, a cidade barroca e o movimento
moderno.
No Bairro de Alvalade, cada um desses 'adquiridos' anteriores é
entendido enquanto herança cultural da disciplina urbanística,
passível de reinterpretações, e não como simples modelos puros,
prontos a ser reutilizados.
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Da experiência do Bairro de Alvalade, fica-nos a lição da APLICAÇÃO
DOS MODELOS NÃO PELO SEU IDEAL, MAS SIM RETIRANDO DELE
TÉCNICAS, FORMAS E CONCEITOS PARTICULARES - CAPACIDADES DE
RESOLUÇÃO DE SITUAÇÕES ESPECÍFICAS DE DESENHO URBANO, as
quais constituem instrumentos de um vocabulário nas mãos dos
urbanistas.
E a síntese alcançada constitui um novo paradigma, pelo menos no
contexto do urbanismo em Portugal; por isso o eclectismo.
A metodologia aplicada consiste numa análise morfológica do Bairro
de Alvalade, abordando, em separado, os diferentes elementos morfológicos do espaço urbano: sistema viário, espaços públicos, edificado, logradouros, espaços verdes, etc, conforme os define José
Lamas [Morfologia Urbana e Desenho da Cidade].
Pela análise em separado de cada um desses elementos morfológicos são identificadas as referências a modelos e experiências
urbanísticas.
Como resultado da aplicação da metodologia enunciada, foram identificados elementos morfologicos provenientes de:
1) Cidade tradicional':
€ definição de espaços urbanos com base na rua-canal rectilinea, definida pelos planos marginais de fachadas;
€ aplicação do conceito oitocentista de recurso a avenidas e a
praças como elementos estruturadores dos tecidos urbanos,
mesmo que construindo esses espaços urbanos com recurso
a arquitectura moderna;
€ definição de perspectivas urbanas na sua estrutura principal
e local, marcando os espaços longitudinais de rua-canal com
arte urbana, no cruzamento entre eixos, ou através de enfiamentos sobre equipamentos públicos, nos remates.
2) Cidade jardim:
€ proposta tipológica para a célula 4, com recurso a uma ocupação do seu interior através de moradias unifamiliares e
respectiva proposta de desenho urbano;
€ aplicação do modelo urbanístico do impasse habitacional,
proposto por R. Unwin em Town Planning in Practice e utilizado de forma sistemática em diferentes células, detalhado por
diferentes estudos de pormenor e construído por diferentes
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sua Síntese no Bairro de Alvalade, Expansão de Lisboa 1945-1970
arquitecturas;
€ recurso a outras tipologias de forma urbana propostas por
Unwin em Town Planning in Practice, nomeadamente o recuo
do edificado de remate nas intercepções de ruas secundárias,
quando uma termina;
€ aplicação de uma rede de caminhos pedonais interiores para
acesso ao equipamento escolar;
€ no conceito do espaço público central de cada célula, dominado por uma massa verde intensa;
€ na multiplicação de espaços verdes, com forte presença da
natureza no interior das células, incluindo os espaços de rua;
3) Movimento moderno:
€ aplicação de formas de zonamento funcional - segregação de
funções urbanas -, em particular nas propostas iniciais do
plano, com a proposta de distribuição das casas de renda
económica e concentração de emprego e comércio em áreas
localizadas;
€ recurso à tipologia do bloco perpendicular às vias, em particular nos eixos principais de atravessamento;
€ o estudo sistematizado do fogo nas casas de renda económica, com reflexos nos fogos dos estudos de pormenor
seguintes;
€ forma racionalista como não são tratados os gavetos nas
zonas de casas de renda económica, afirmando a construção
da cidade a partir do fogo - o fogo-tipo gera o edifício-tipo e a
Figuras 2 e 3 O impasse proposto por R. Unwin em Town Planning in Practice e de um impasse da célula 2 do Bairro de Alvalade.
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repetição deste gera a forma urbana; as situações que o edifício-tipo não resolve ficam intencionalmente assinaladas, numa
atitude de extremo racionalismo, por oposição à grande
riqueza dos gavetos como situação de excepção, por exemplo,
na expansão de Amesterdão-Sul;
€ aplicação localizada do edifício sobre pilotís e do bloco habitacional em altura, embora quase sempre correspondendo a
dois/três edifícios de esquerdo-direito agrupados;
4) Expansões de Amesterdão, 1915 (Berlage) e 1934
(van Eesteren):
€ o processo de abertura do quarteirão, de que é paradigmática a evolução do quarteirão comercial previsto no plano como
fechado, construído na célula 3 como um quarteirão em 'U'
desenvolvido no Bairro das Estacas como um quarteirão aberto, suprimindo os seus topo;
€ o estádio intermédio de abertura de quarteirão, elegido
como a forma corrente - ver quarteirão tipo;
€ equipamento pontual de interiores de quarteirão - o potencial que ficou por desenvolver em Alvalade;
Figuras 4 e 5 A Unidade de Habitação de Marselha de Le Corbusier e edifício do estudo de conjunto para o cruzamento da Av. dos Estados Unidos da América com a
Av. de Roma, de Filipe Figueiredo e Jorge Segurado.
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e sua Síntese no Bairro de Alvalade, Expansão de Lisboa 1945-1970
€ referências ao tratamento dos interiores de quarteirão nestas expansões paradigma do urbanismo do século XX;
5) Siedlungs de Berlim:
€ referências formais dos conjuntos edificados a vários
Siedlungs, sendo a mais significativa a proposta de quarteirão
semi-aberto integrando um impasse desenvolvida no Siedlung
Diesdorferstrasse, J. Goderitz, Berlim 1925;
€ estudo do fogo em planta, em particular os estudos de
Alexander Klein;
€ a escala, volumetria e imagem da arquitectura adoptadas,
em particular primeiras realizações de "arquitectura de
regime", até 1949;
€ referências ao desenho urbano de casos localizados, em particular ao tratamento dos interiores de quarteirão;
6) Unidade de Vizinhança:
€ aplicação do conceito de Unidade de Vizinhança, com recurso a células habitacionais de 5.000 habitantes centradas
sobre o equipamento escolar, desenvolvendo vida de bairro;
No Bairro de Alvalade, OS ELEMENTOS MORFOLÓGICOS, tendo
Figuras 6 e 7 Comparação da resolução de um fogo
de tipologia esquerdo direito no Bairro de
Durrenberg, Leipzig, por Alexander Klein, 1931
(seguindo os seus estudos modernistas de racionalização do fogo) com um fogo do projecto das casas
de renda económica, tipo 6, Miguel Jacobetty, 1945.
referências a modelos ou experiências urbanísticas enunciados, têm
o valor de instrumentos de desenho urbano, com características
próprias, que podem ser retirados do seu contexto de origem e
reaplicados no novo desenho em função de objectivos determinados:
SÃO TIPOLOGIAS DOS ELEMENTOS DE COMPOSIÇÃO URBANA.
Todos estes elementos são, assim, descontextualizados da sua
origem e combinados numa nova síntese: o plano do Bairro de
Alvalade (e seu processo de gestão urbanística), que é, por isso, um
exemplo ecléctico de desenho urbano (eclectismo enquanto método)
- tese enunciada.
A rua canal com perspectiva não é aplicada por se pretender refazer a cidade barroca, o bloco sobre pilotís não é aplicado por se pretender recriar a cidade dos CIAM, o conceito de "unidade de vizinhança" é enquadrado na dimensão dos distritos escolares
nacionais e a sua aplicação não cria sub-bairros isolados e separados entre si, a aplicação do impasse e o investimento na estrutura
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verde não significam que se esteja a procurar uma variante à
cidade-jardim.
Cada um destes elementos não vale pelo modelo ou experiência de
origem no qual foram desenvolvidos ou ao qual estão referenciados.
Cada elemento morfológico passa a ser entendido como uma tipologia separada do seu contexto, à qual está associado um determinado potencial de cidade e de combinação, constituindo uma unidade
dentro de um vasto léxico que definem os ELEMENTOS DE DESENHO URBANO.
O acto criativo de fazer cidade é assim uma disciplina de cultura,
onde o conhecimento teórico informa a prática.
Tal como na escrita, a cultura urbanística é a base para a prática
disciplinar, simultaneamente enquadrando conceitos, modelos e
experiências paradigma anteriores e aumentando o léxico conceptual (nunca apenas formal), que serve de suporte ao acto de projectar/planear a cidade.
Nota
O texto apresentado é retirado da dissertação de mestrado Bairro de
Alvalade: Considerações sobre o Urbanismo Habitacional, apresentada na
Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, em 1998, a
qual foi parcialmente publicada, no final do ano de 2001, com edição da
Faculdade de Arquitectura e Livros Horizonte.
Bibliografia
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e de Estudos de Execução: sobre o caso do Bairro de Alvalade, em Lisboa,
Figuras 8 e 9 Protecção dos edifícios habitacionais
relativamente à rua através de um espaço verde em
Oostzaan Garden Suburb, Amesterdão Sul, 1924, e
numa rua local das células I e II, no Bairro de
Alvalade.
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O Eclectismo no Desenho Urbano Referências a Modelos Urbanísticos e sua
Síntese no Bairro de Alvalade, Expansão de Lisboa 1945-1970
in: GEHA - Revista de História, Estética e Fenomenologia da Arquitectura
e do Urbanismo; Grupo de Estudos de História da Arquitectura, Faculdade
de Arquitectura, UTL; n.º1, Julho 1998
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Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa,
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*Arquitecto, Assistente no Departamento de Urbanismo, Faculdade de Arquitectura, UTL.
Contacto: [email protected]
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Índice
Apresentação
Rui Pereira, Director Municipal da Cultura
3
Apresentação
Inês Morais Viegas, Chefe de Divisão de Gestão de Arquivos
5
Programa
6
I Sessão de Trabalho | Manhã
Tema 1 - População e Identidades
9
Cidade, Bairro, Rua. Escalas de Observação Versus Escalas de Identidade
Graça Índias Cordeiro
11
Diferenças de Comunicação em Espaço Urbano na Cidade de Lisboa
Francisco Rocha
13
O Espaço Colectivo: Factor de Integração/Segregação de Vida Pública
Francisco Serdoura e António Machado
15
II Sessão de Trabalho | Tarde
Tema 1 - População e Identidades
25
A Escala da Metrópole e a Dimensão das Identidades: Problemas a Propósito de uma Lisboa que Emerge
Luís Vicente Baptista
27
Viver em Alfama: Trajectórias Familiares e Solidariedades num Bairro Histórico
Cristina Santos Silva
29
De "Crianças Perigosas" a "Crianças em Perigo": Delinquência Juvenil em Lisboa
Eunice Relvas
45
Vivências - A População e a Arquitectura, Influências Recíprocas. O Comportamento Social e o Espaço
Luís Miguel Ruivo e João F. Santos Silva
65
III Sessão de Trabalho | Tarde
Tema 2 - Bairros: Identidades Locais
67
Lisboa Misteriosa!
José Luís Matias, Patrícia Sousa, Eduardo Leite, Pollyanna Jazzmine e Frédéric Lacroix
69
Benfica e Carnide, de Finais do Séc. XVIII à 1ª Metade do Séc. XIX
Adélia Carreira
71
Mouraria
Célia Lavado e Aldina Mendes
73
Barbeiros de Alcântara
Luís Filipe Maçarico
75
Persistência da Ruralidade no Sítio dos Olivais
Alice Branco
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IV Sessão de Trabalho | Manhã
Tema 3 - História e Património
101
Conservação de Monumentos em Espaços Urbanos: O Teatro Romano de Lisboa
Ana Cristina Leite, Luís Aires-Barros e Maria Amélia Dionísio
103
A Participação das Milícias de Lisboa na Campanha de 1386
Miguel Gomes Martins
117
Lisboa, Memória Viva de Passados Portuários Distantes
Maria Luísa Pinheiro Blot
139
A Presença das Contas de Vidro como Elemento de Identidade do Africano no Passado Histórico Arqueológico de
Lisboa (dos Meados do Séc. XV ao Terramoto de 1755)
Maria Conceição Rodrigues
161
V Sessão de Trabalho | Tarde
Tema 3 - História e Património
209
Contributo para a Leitura Social do Espaço na Lisboa Quatrocentista: o Debate sobre a Localização da Judiaria
Margarida Garcês Ventura
211
Património e Progresso ou Património Versus Progresso?
Margarida Ruas dos Santos e Raúl Fontes Vital
223
(Re)Construção de um Castelo - A Freguesia de Sta. Cruz de Alcáçova de Lisboa
Mafalda Enes Dias e Rui Matos
225
Formas de Diálogo e de Mediação Social na Lisboa Quinhentista
Maria Leonor Garcia da Cruz
245
Estudo Preliminar sobre as Relíquias de S. Vicente
Hugo Cardoso e José Luís Neto
247
Conjunto dos Lagares da Mouraria
Teresa Campos Coelho, Clementino Amaro, Armando Sabrosa, José Luís Monteiro e Nuno Dias
255
Cronologia Histórica do Nascimento e Morte de um Aparelho de Abastecimento de Água (Séc. XIII-XX): O Chafariz de
El-Rei e a Área Urbana Envolvent
Rui de Matos
269
A Intervenção da Opinião Pública nos Melhoramentos de Lisboa
Ana Cristina M. Barata
287
O Imaginário de Lisboa em António Ferro
Ernesto Castro Leal
297
Imagem Institucional das Cidades. O Emblema como Suporte Comunicacional da Identidade Municipal - O Caso da
Emblemática da Cidade de Lisboa
Margarida Fragoso
305
O Extinto Município dos Olivais: Da Evolução Geo-Administrativa à Heráldica Autárquica
Francisco Matos
317
VI Sessão de Trabalho | Manhã
Tema 4 - Formas Urbanas
349
O Pombalino: Modelos e Aplicações. Urbanismo, Arquitectura e Azulejaria
Maria Alexandra Câmara
351
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433
Um Conjunto Urbano Singular. Necessidades/Janelas Verdes
Margarida Formosinho
359
O Mobiliário Urbano de Lisboa no Final do Séc. XIX
Pedro Bebiano Braga
365
Em Torno da Construção de uma Ident(C)idade Educativa: Contributos para a Concepção de um Módulo de Formação
Destinado aos Professores sobre o Património Industrial
Alice Campos Martins e Maria Helena Salema
375
VII Sessão de Trabalho | Tarde
Tema 4 - Formas Urbanas
411
Arquitectura e Espaço Urbano Exemplos
José Manuel Fernandes
413
O Metropolitano na Leitura da Forma Urbana
Filipa Roseta
415
O Eclectismo do Desenho Urbano. Referências a Modelos Urbanísticos e sua Síntese no Bairro de Alvalade 1945 - 1970
João Pedro Costa
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Ficha Técnica
Edição
Câmara Municipal de Lisboa
Direcção Municipal de Cultura
Departamento de Bibliotecas e Arquivos
Divisão de Gestão de Arquivos
Comissão de Honra
João Soares
Maria Calado
Isabel Rodrigues
Inês Morais Viegas
Comissão organizadora
Ana Paula Moita
Ana Albuquerque
Carla Serôdio
Jorge Mangorrinha
Apoio Logístico
Aldina Mendes
Filomena Júlio
Francisco Matos
Isabel Ribeiro
Jaqueline Borralho
José Luís Neto
Luís Filipe Amaral
Manuela Tavares
Margarida Duarte
Maria João Liberato
Maria José Silva
Nuno Gonçalo Almeida
Rui Colorado
Design Gráfico
Joana Pinheiro
Margarida Aires Barros
Marília Afonso Lopes
Depósito Legal
ISBN: 978-972-8517-48-9
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Municipal de Lisboa
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Direcção Municipal de Cultura | Departamento de Bibliotecas e Arquivos | Divisão de Gestão de Arquivos
IV COLÓQUIO TEMÁTICO - As Escalas de LISBOA, Morfologias, População, Identidades
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IV COLÓQUIO TEMÁTICO
as
escalas
de
LISBOA
MORFOLOGIAS POPULAÇAO IDENTIDADES

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