o estruturalismo de celso furtado
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O ESTRUTURALISMO DE CELSO FURTADO Carlos Mallorquín Celso já havia iniciado com empenho suas tarefas na CEPAL quando fui convidado a ir a Santiago para escrever a introdução do primeiro Estudo Econômico. Impressionou-me vivamente pelo talento extraordinário que exibia já na juventude. Sua colaboração foi inestimável. Sabemos todos o que representa sua grande tarefa intelectual: ninguém penetrou com tanta profundidade a interpretação do desenvolvimento. Sempre original e incisivo… Raúl Prebish, Crisis y transformación Nosso objetivo é descrever a concepção estruturalista da economia na obra de Celso Furtado. Não se trata de seguir de perto a história e a transformação de certos conceitos que culminariam nessa concepção. Contudo, abordaremos alguns aspectos de sua obra de juventude que permitem captar outros aspectos de sua visão estruturalista. Não seria difícil defender a tese de que não se encontra em Furtado uma “obra” acabada. As construções teóricas em que fundamenta seus diagnósticos do subdesenvolvimento surgiram entre 1958 e 1962, em seus anos de lutas políticas, quando apareceu como o primeiro Superintendente do Nordeste brasileiro. Emerge uma nova região econômica como tema de estudo a partir de noções sociológicas e históricas. Fernando H. Cardoso opina que a perspectiva teórica de Furtado pela metade dos anos sessenta com respeito ao desenvolvimento funda-se tão somente numa “ruptura parcial com o estilo cepalino de análise” e questiona sua dimensão transgressora com respeito ao discurso “ortodoxo”: 2 A síntese proposta por nosso autor vai desde o aproveitamento dos instrumentos de análise correntes na economia ‘ortodoxa’ até preocupações com os elementos estruturais e a racionalidade no uso dos fatores, mas mantém a fé no mais clássico que o século XIX legou à ciência social contemporânea: a idéia de otimização no uso de fatores e a crítica iniciada pelo marxismo à pura racionalidade formal.1 Como veremos mais adiante, dados o ponto de partida de sua leitura — Teoria e política do desenvolvimento econômico2 — e a falta de visão global, Cardoso produz uma síntese de Furtado assemelhando-o a um pensador envolvido em promiscuidade teórica e conceitual insanável.3 Por isso opino que as apreciações de Cardoso sobre Furtado são insuficientes, pois deixam de lado sua concepção “sociológica” da economia que incorpora agentes econômicos e políticos, e que por suas peculiaridades foi chamada de “estruturalismo”. Este não pode confundir-se com outros estruturalismos a exemplo do de Leontieff, para quem a estrutura são as caixas vazias da matriz de insumo-produto. Se tentamos captar os conceitos básicos desse estruturalismo que se conforma a partir de 1958 com propostas teórico-políticas e alimentam o discurso a partir de então, temos de referir-nos a obras que surgiram posteriormente. Além do Teoria e política... já citado, convém citar A economia latino-americana 4 como “clássico” do estruturalismo. Convém lembrar que é alto o preço que se paga por reunir num mesmo volume ensaios de épocas diversas. Reformulações de final de parágrafos, exclusões e redefinições obstruem a percepção da evolução conceitual. Noções como “escassez de capital”5 podem imiscuir-se quando se tenta explicar “subdesenvolvimento” ou “dependência”. 1 “El Desarrollo en Capilla”, em El análisis estructural en economía: Ensayos de América Latina y España, seleção de J. Molero, Fondo de Cultura Económica, México, 1981. 2 Teoría y política del desarrollo económico, Siglo XXI, México, 1974; primeira edição em português em 1967. O livro inclui textos da primeira metade dos anos 50. Ver também Desarrollo y subdesarrollo, Editorial Universitaria de Buenos Aires, Buenos Aires, 1964, primeira edição em português em 1961. 3 O mesmo se pode dizer do esboço de Furtado realizado por Werner Baer. Embora destaque a importância que tinha para Furtado a crítica e transformação das categorias da análise econômica convencional — e sua irrelevância para a América Latina —, não deixa de referir as importantes incursões nos campos da análise sóciopolítica. Indiretamente, avalia de forma negativa sua teorização por ecletismo e heterogeneidade; contudo, tem esperanças de que Furtado algum dia tente dar maior unidade a seu discurso e “reuna suas idéias sobre o processo de desenvolvimento com um tratamento mais sistemático”. “Furtado on development: a review essay”, em Journal of Developing Areas, n. 3, 1969. 4 La economía latinoamericana, Siglo XXI, México, 1980; edição brasileira de 1969. 5 Teoría y politica, op. cit., p. 187. 3 Veremos de início as características estruturais, nos anos sessenta, do estruturalismo de Furtado para em seguida abordar aspectos dessa primeira tentativa de teorização. No Teoria e política... são privilegiados os fenômenos histórico-sociológicos na explicação da “inflexibilidade” das variáveis econômicas. Isso implica numa exposição exaustiva do papel histórico-institucional dos “fatores produtivos”: propriedade da terra, formas de acumulação, ação empresarial e condição política dos atores sociais. São essas condições que explicam a fraca penetração do progresso técnico e a tendência ao desequilíbrio externo. Também aí encontramos explicação no comportamento da demanda em função da renda nos países que participam do comércio internacional, inclusive para o conhecido fenômeno da degradação dos termos do intercâmbio dos países subdesenvolvidos. As assimetrias referidas requerem uma explicação sóciopolítica e cultural. As especificações do estruturalismo que emergem no Teoria e política..., em particular no anexo metodológico e nos capítulos 14, 16, 18 e 20, apresentam uma abordagem e interpretação que se aproxima do pensamento de Hirschman, W. Lewis, R. Nurkse e Rosenstein Rodan e também do que se denominou teoria da dependência. Portanto, trata-se de uma obra que decifra os fenômenos econômicos a partir de uma matriz estrutural, vale dizer, da maneira como se relacionam e determinam as variáveis “ exógenas” e “endógenas”. Furtado assinala desde o início que os modelos econômicos contêm “um número indeterminado de estruturas”.6 No Prefácio à edição de 1970, Furtado sintetiza com ênfase o que considera como “teoria do desenvolvimento”, assinalando suas limitações. Também se refere ao discurso econômico convencional, o qual nega a possibilidade de teorização sobre o tema do subdesenvolvimento: Um dos primeiros frutos do avanço da teoria do desenvolvimento está sendo uma percepção mais lúcida da história econômica recente. A significação dos fatores nãoeconômicos no funcionamento e na transformação dos sistemas econômicos, bem como a importância do grau de informação dos agentes responsáveis pelas decisões econômicas, tornam-se cada vez mais evidentes. (…) 6 Teoría y política, op. cit., p. 79. 4 Ao estabelecer a significação do não-econômico nas cadeias de decisões que levam à transformação dos conjuntos econômicos complexos, a teoria do desenvolvimento encarrega-se de pôr a descoberto suas próprias limitações como instrumento de previsão. Na medida em que o não-econômico traduz a capacidade do homem para criar a história e inovar, no sentido mais fundamental, a previsão econômica tem necessariamente que limitar-se a estabelecer um campo de possibilidades, cujas fronteiras perdem rapidamente nitidez com a ampliação do horizonte temporal. Sem dúvida, esse campo se amplia com a elevação do nível de racionalidade das decisões econômicas. Se a esse maior campo de possibilidades corresponde espaço mais amplo para a ação do indivíduo, ou apenas maiores exigências de ação coletiva, é problema ao qual quiçá a psicologia social possa algum dia responder.7 Dessa forma, Furtado põe em evidência que a teorização do crescimento tem de levar em conta fatores psicológicos ou sociais que incidem no desenvolvimento de uma comunidade. Considera insuficiente a simples quantificação das variáveis para explicar a práxis dos agentes produtivos, pois “a previsão econômica tem necessariamente que limitarse a estabelecer um campo de possibilidades”. O aproveitamento pelo homem de um horizonte mais amplo de ação é algo que só a história social pode explicar. Quando Furtado aborda a delimitação do objeto teórico do estruturalismo utiliza F. Perroux para destacar o que se deve entender por estrutura: Proporções e relações que caracterizam um conjunto econômico localizado no tempo e no espaço.8 Mas Furtado vai mais longe em sua exposição teórica. De início critica os modelos econômicos por serem aistóricos, estáticos e abstratos, o que explica o surgimento de modelos que introduziram, com resultados modestos, um eixo diacrônico. Em seguida vai 7 Ibid, p. 3, prefácio à edição francesa. Os últimos três itálicos são meus. Ibid, p. 79. Em “Las fuentes del estructuralismo latinoamericano”, Joseph Love (Desarrollo Económico vol. 36, n. 141, 1996) menciona a importância de Perroux como uma das bases para a formulação do que ele entende por “estruturalismo”. 8 5 mais longe e afirma que estruturalismo latino-americano nada tem que ver com a escola estruturalista francesa: O que se entende por pensamento “estruturalista” em economia não tem relação direta com a escola estruturalista francesa, cuja orientação geral tem sido privilegiar o eixo das sincronias na análise social e estabelecer uma “sintaxe” das disparidades nas organizações sociais. O estruturalismo econômico (escola de pensamento surgida na primeira metade dos anos 50 entre economistas latino-americanos) teve como objetivo principal pôr em evidência a importância dos “parâmetros não-econômicos” dos modelos macroeconômicos. Como o comportamento das variáveis econômicas depende em grande medida desses parâmetros e a natureza dos mesmos pode modificar-se significativamente em fases de mudança social, ou quando se amplia o horizonte temporal da análise, os mesmos devem ser objeto de meticuloso estudo. Essa observação é particularmente pertinente com respeito a sistemas econômicos heterogêneos, social e tecnologicamente, como é o caso das economias subdesenvolvidas.9 É este portanto o significado primordial dos elementos históricos que devem integrarse ao modelo estruturalista de origem latino-americana. Embora a estratégia teórica de Furtado não abandone totalmente a noção teórica de Perroux, ela adquire um significado distinto ao ser incorporada ao discurso estruturalista, por meio de sua recomposição conceitual, introduzindo a história e as especificidades regionais. É o que observamos na teorização e crítica de Furtado aos modelos “macroeconômicos”.10 Segundo ele, esses modelos são construções que poderiam se generalizar fora do âmbito para o qual foram elaborados, sempre que a “matéria-prima” com que foram engendrados esteja marcada pela 9 Ibid, itálicos meus, pp. 80-81. Em seu livro anterior escrevia: “… as peculiaridades das estruturas socio-econômicas (…) indica [m] a possibilidade de uma generalização do enfoque estruturalista que predomina no pensamento econômico latino-americano contemporâneo, no sentido de abarcar em uma só explicação teórica não apenas os tipos de crescimento que se dão na região mas também a persistente elevação do nível geral de preços e a tendência à estagnação”, Subdesarrollo y estancamiento en América Latina, ed. EUDEBA, Buenos Aires, 1966; edição original de 1964; utilizamos a terceira edição, 1967, p. 59. 10 De forma semelhante, em A economia latino-americana, tanto no “Prefácio” da primeira edição (1969) como no da segunda (1975), se assinala a importância dos aspectos “institucionais” e da “matriz estrutural” — que são a base da mesma — para compreender tanto o desenvolvimento como a fonte de todos os seus obstáculos. 6 “realidade histórica” que deverá servir de guia e explicação ao processo de desenvolvimento; em outras palavras, esses modelos devem corresponder a uma realidade histórica determinada. Ele assinala que todos os modelos, tanto os da microeconomia como os da macroeconomia, se fundam em suposições sobre o comportamento dos agentes produtivos e portanto são simples “construções lógicas” para “tornar inteligível o comportamento da multiplicidade de agentes”.11 Assim, a fusão da micro e da macroeconomia é factível sempre que se entenda que a linguagem econômica descreve uma interação e condicionamento mútuos entre o econômico e o “não-econômico”, ou seja, esta envolve categorias um de um “processo histórico”.12 O avanço da análise econômica requer a combinação desse duplo enfoque: por um lado o estudo dos processos históricos, ou das realidades sociais globais, e a construção de tipologias referidas aos mesmos; por outro, o aprofundamento na compreensão e no comportamento dos agentes econômicos a partir de contextos perfeitamente definidos. Os dois enfoques se completam mutuamente e enriquecem. Que seja necessário combiná-los indica a complexidade do trabalho de teorização na ciência econômica.13 Pode-se dizer portanto que o discurso estruturalista vai muito mais longe do que os modelos “dinâmicos” de crescimento. Vemos que Furtado insiste na função transcendental do “institucional” e do “não-econômico”. Além da compreensão do funcionamento dos modelos macroeconômicos, é necessário abarcar um saber sobre a “estrutura agrária” a fim de compreender a “rigidez da oferta” e, ademais, os efeitos que traz consigo o “dualismo estrutural”. Note-se que essa concepção somente se “aproxima” dos modelos macroeconômicos dinâmicos do discurso convencional. 11 Teoría y política del desarrollo económico, op. cit., p. 82. Ibid., pp. 81-83. 13 Ibid., itálicos meus, pp. 82-82. 12 7 Com efeito, sem um conhecimento adequado da estrutura agrária não seria possível entender a rigidez da oferta de alimentos em certas economias; sem uma análise do sistema de decisões (cujo controle pode estar em mãos de grupos estrangeiros) não seria fácil entender a orientação das inovações técnicas; sem a identificação do dualismo estrutural não seria fácil explicar a tendência à concentração da renda, etc. Como esses fatores “não-econômicos” — regime de propriedade da terra, controle das empresas por grupos estrangeiros, existência de uma parte da população “fora” da economia de mercado — integram a matriz estrutural do modelo com que trabalha o economista, aqueles que deram ênfase especial ao estudo de tais parâmetros foram chamados de “estruturalistas”. Em um certo sentido, o trabalho desses economistas aproxima-se do daqueles outros preocupados em dinamizar os modelos econômicos.14 Mas Furtado não fica por aí. Descreve também o que supõe ser um dos elementos genealógicos do “estruturalismo”: o marxismo, de onde diz que extraiu a idéia de “estruturas”. Esse discurso dá ênfase às “estruturas sociais” que por sua vez descrevem o “comportamento das variáveis econômicas”. Não obstante, em relação à “construção” dos modelos, os mesmos são constituídos quase à maneira de Weber e de seus “tipos ideais”: Do ponto de vista de sua concepção, os modelos com que trabalha o economista apresentam grande similitude com os “tipos ideais” introduzidos por Max Weber. Em um e outro casos, trata-se de representações (que o economista procura sejam formalizadas) de elementos simples ou complexos da realidade social, nas quais todos os aspectos dos elementos representados são definidos com exatidão, isto é, possuem uma significação lógica precisa. Assim, o “mercado” com que trabalha o economista na teoria dos preços é um conjunto de elementos abstraídos da realidade que tem a virtude de ser inteligível em todos os seus aspectos. Se bem que a esse 14 Teoría y politica del desarrollo económico, op. cit., p. 81. 8 nível de abstração o modelo de mercado não represente nenhuma situação real, ainda assim o seu valor como instrumento analítico é inegável.15 As formulações teóricas não se esgotam pois sempre apresentam aspectos não totalmente superados. Assim, em obra do mesmo período — Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina —, o autor não conseguiu libertar-se totalmente do pensamento econômico convencional, atribuindo-lhe certa validade na explicação do subdesenvolvimento, ao ignorar as especificações antes assinaladas. No último livro citado se afirma que é possível abordar a análise fundando-se nos “princípios gerais da economia”, ainda que estes devessem ser transformados com base na história e no comportamento específico dos agentes produtivos, o que não se pode enquadrar na hipótese do homo economicus, ponto de partida do pensamento econômico ortodoxo. As tradições culturais, em particular as jurídicas, e as formas de propriedade são de grande pertinência na explicação dos “obstáculos estruturais” a se terem em conta. No texto citado, a estratégia de construção não nega explicitamente, como ocorrerá posteriormente, os supostos da teoria convencional. Daí surge o fundamento racional das inovações técnicas, por sua vez produto da busca por parte dos empresários da maximização da renda; é assim que Furtado pode falar de “relações estruturais” que integram o sistema macroeconômico. Funda-se aí a maximização do “bem-estar social”. Afirma-se nesse modelo que a maximização do bemestar social possibilitada no sistema econômico deriva dos “indicadores políticos” que encarnam as “tensões estruturais”, que por sua vez surgem da materialização não-optimal do “bem-estar social”. Este provoca uma “introdução oportuna de convenções no marco institucional que assegurem a compatibilidade”. Mas, ao incorporar a noção de “indicadores políticos”, Furtado já está superando a utilidade da concepção da economia convencional, que se torna inadequada na América Latina, pois os indicadores políticos são manejados pela classe dominante. Dessa forma, Furtado prepara o terreno para os esclarecimentos posteriores e as definições do modelo estruturalista tal qual como este se apresenta em Teoria e política... 15 Ibid., p. 80. 9 A apresentação da evolução do vocabulário conceitual da perspectiva estruturalista entre Subdesenvolvimento e estagnação... e Teoria e política... poderia ser interpretada como uma inconsistência teórica. Mas existe a possibilidade de entendê-la como parte de um processo de transição. Tudo depende de como se concebe o processo de teorização, sua transformação e seus produtos, assim como a forma em que se deve analisar as relações entre os distintos textos e seus respectivos objetivos teóricos. Se partimos da idéia de que o discurso teórico é uma entidade infinita, desaparece a possibilidade de ter um ponto terminal a partir do qual avaliar elaborações prévias discursivas. O importante, em todo caso, é dar uma explicação da evolução, escolha ou pertinência dos conceitos que se privilegiam na teorização. As ambivalências conceituais que podem aparecer em qualquer ensaio de teorização e as interpretações posteriores, inclusive por parte do seu autor, podem ser o fundamento a partir do qual se assinalam as mais diversas e variadas problemáticas e as respectivas “deficiências”. Portanto, a história e exposição das idéias está por sua vez condenada a ser interpretada e ocasionalmente caricaturada. A ausência de uma elucidação teórica do significado das categorias e dos conceitos em seu contexto discursivo tende a confundir o uso de alguns termos com certos conceitos teóricos específicos mas apresentados posteriormente. Portanto, a busca de “fontes” ou “precursores” no uso de certos termos não esclarece o significado, a pertinência e a importância dos conceitos na teoria em debate. Não deve surpreender, portanto, que a evolução do processo de construção/deslocamento conceitual de uma formação teórica tente buscar origens e ‘pais’ para legitimar o projeto. Neste sentido, em Subdesenvolvimento e estagnação na América latina Furtado, consciente de estar formulando heresias com respeito ao pensamento econômico da época, nos remete a J. Noyola16 e a Osvaldo Sunkel 17, e não menciona a Prebisch. 16 O hoje clássico artigo de Noyola: “El desarrollo económico y la inflación en México y otros países latinoamericanos” foi publicado em 1956, versão que se encontra em Desequilibrio externo e inflación. Investigación Económica, UNAM, Faculdade de Economia, México, 1987. 17 Sunkel publica artigo similar dois anos depois, no qual se estabelece nova diferenciação das “pressões básicas” da noção de inflação desenvolvida por Noyola, assinalando três tipos de pressões: a básica, as inflacionárias circunstanciais e as acumulativas, o que de fato problematiza a causalidade implícita no esquema de Noyola, fundado originalmente na 10 Da mesma forma, as escolhas de autores/pais ou de influências para propor e construir certos conceitos estão guiadas por alguma apreciação teórica, consciente ou não. O mesmo se pode dizer sobre as interpretações a respeito da obra de Furtado. A consistência ou o significado dos conceitos se deduzem da suposta paternidade ou origem, sem examinar a especificidade dos mesmos, e com base nas relações e significado que adquirem ao ser integrados em outra formação discursiva. Surgiram exposições de suas idéias a partir de mais de um sinal ideológico, que em certos casos extremos poderíamos chamar de “reconstruções” ou “revisões ideológicas”. O caso mais eloqüente é a desconstrução do “estruturalismo” realizada pelo neoliberalismo que situa Prebisch como seu mais proeminente expositor-criador 18, e na qual se pode perceber não só um desconhecimento das idéias deste como do próprio Furtado. De outra perspectiva há a interpretação oblíqua e surpreendente de Pedro Paz, dada sua trajetória no pensamento latino-americano. A explicação de Paz, negando à elaboração teórica de Furtado sua possível incorporação ou ligação com o corpus dependentista, está fundamentada na ausência de referência explícita ao marxismo: O enfoque da dependência está constituído por um conjunto de trabalhos que têm uma apreciação distinta [da estruturalista] e também uma base teórica própria, já que boa parte deles procura apoiar-se no pensamento marxista.19 A apreciação das idéias de Furtado entre 1950 e 1964 deixa ver duas imagens de Marx: numa delas aparece a teoria do valor-trabalho e do colapso do capitalismo; na outra aparece o Marx das classes e forças político-sociais, do Estado e da luta política. Esta última versão, hegemônica na obra de Furtado a partir de 1964, nasce sob a influência dos anos de experiência teórico-política e de administrador do desenvolvimento brasileiro (1958-1964).20 dicotomia “pressão” e “propagação” das forças inflacionárias. Veja-se O. Sunkel, “La inflación chilena: un enfoque heterodoxo”, em El Trimestre Económico, vol. XXV, n. 4, 1958. 18 Cf. Carlos Mallorquín, “Un recuento de la deconstrucción del ‘estructuralismo’ latinoamericano”, Estudios latinoamericanos, n. 2, Nueva Época, jul.-dez. 1994. 19 Pedro Paz, “El enfoque de la dependencia en en desarrollo del pensamiento económico latinoamericano”, em Economía de América Latina, Cide, México, 1981, n. 6, p. 64. 20 Para uma descrição de suas idéias e atividades por essa época, veja-se Carlos Mallorquín, “Celso Furtado y la problemática regional: el caso del Nordeste brasileño”, Revista Estudios Sociológicos, El Colegio de Mexico, n. 42, set.-dez. 1996; assim como La idea del subdesarrollo: el pensamiento de Celso Furtado, op. cit. 11 Subseqüentemente Furtado se empenharia em grande parte de seus escritos, e em incontáveis ocasiões, em destacar a paternidade marxista de algumas de suas idéias, o que já expusemos à propósito da explanação da genealogia do conceito de “estrutura”. De toda forma, se a apreciação de Paz sobre o uso e a apropriação do marxismo por parte dos dependentistas é consistente, sem dúvida pode ser ampliada para fundamentar o “marxismo” do próprio Furtado. Que os [dependentistas] consigam ou não, que o uso [do marxismo] tenha sido mecânico ou não, que se observem evidentes imprecisões conceituais a respeito da utilização de certas categorias marxistas, já é outro problema (...) Só se destaca o esforço explícito desses autores para incorporar o pensamento marxista à análise da dependência.21 Não se trata de reivindicar o uso da categoria “dependentista” ou outra para etiquetar o pensamento de Furtado, e sim de explicitar sua concepção estruturalista da economia. Ainda assim, qualquer estratégia teórica que se utilize para apresentar Furtado como “dependentista” exige um esclarecimento prévio da significação desse termo, pois a mera utilização do vocábulo não implica a existência de uma construção teórica. Para contornar a estratégia apoiada na busca de “origens” ou “precursores” e data de nascimento, temos de distinguir entre a aparição de certas palavras e a construção de conceitos. De outra forma Furtado já seria dependentista em seu livro de 1956, Uma economia dependente, 22 e Aníbal Pinto no seu de 1945, La economia dependiente.23 Cabe assinalar que grande parte das interpretações recentes de ângulos os mais variados fizeram de Furtado, para bem ou para mal, o teórico e mesmo 21 Pedro Paz, op. cit., pp. 63-64. Ed. Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 1956. Esse livro apresenta as idéias do autor pela metade dos anos 50. Uma análise desse período teórico está em Carlos Mallorquín, La idea del subdesarrollo: el pensamiento de Celso Furtado, particularmente “La interpretación de la historia económica del Brasil” e “Las ausencias presentes en la ciencia convencional: tiempo y geografía”, respectivamente capítulos 4 e 5. 22 23 Um capítulo dessa obra encontra-se em Aníbal Pinto, América latina: una visión estructuralista, UNAM, Faculdade de Economia, México, 1991 12 o inspirador da teoria da dependência.24 Se repassamos as estratégias com essas características, temos que aceitar o que afirma H. W. Arndt,25 de que Furtado foi o primeiro teórico da dependência, o que se manifesta em Formação econômica do Brasil,26 obra que incorpora os capítulos fundamentais de A economia brasileira, publicado em 1954. Este livro também deu origem a outro escrito da época que mereceu o título de Uma economia dependente. Um exame da obra teórica de Furtado prévia à Formação econômica do Brasil revela que esse livro recolhe idéias que se foram sedimentando a partir de 1954.27 As mudanças conceituais entre um e outro livros têm escapado a alguns exegetas. Assim a noção “economia colonial” foi substituída pela de “economia subdesenvolvida”. Da mesma forma, dado o seu conhecimento de A economia brasileira, Joseph Love28 e Ricardo Bielschowsky29 sustentam que o primeiro livro já representa uma análise estrutural da história econômica brasileira. Convém ter em conta que essa discussão tem lugar sem antes determinar os conceitos e categorias em que se funda a concepção estruturalista de Furtado. Em outra oportunidade argumentei que A economia brasileira (1954) representa um período de transição teórica e que o estruturalismo de Furtado somente adquire consistência entre 1958 e 1962.30 Não há dúvida de que certas idéias germinaram anteriormente mas não é o caso dos conceitos básicos que se incorporaram — com ou sem menção — ao corpus dependentista de autores 24 Cf. Joseph Love, “The Origins of dependency analysis”, Journal of Latin American Studies, vol. 22, 1990, e do mesmo autor, “Modelling internal colonialismy: History and Prospect”, World Development, vol. 17, n. 6, 1989; W. Arndt, Economic Development – The History of an Idea, University Chicago Press, Londres, 1987; H. Brookfield, Interdependent Development, Metheun Co. & Ltd., Londres, 1975; M. Blomstrom e B. Hettne em Development Theory in Transition, Zed Books Ltd., Londres, 1984; Cristóbal Kay, Latin American Theories of Development and Underdevelopment, Routledge, Londres, 1989. 25 Arndt escreveu: “O primeiro a traduzir essa interpretação [refere-se à tese de Prebisch centro-periferia] em uma teoria da ‘dependência’ parece haver sido o economista brasileiro Celso Furtado em seu estudo histórico de Formação econômica do Brasil (1957 sic)”, Economic Development – The History of an Idea, op. cit., p. 120. 26 FCE, México, 1962, primeira edição em português em 1959. 27 Uma análise dessa obra e desse período encontra-se em Carlos Mallorquín, “Celso Furtado y la problemática regional: el caso del Nordeste brasileño”, op. cit., e “Celso Furtado: un retrato intelectual”, em Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales, n. 163, UNAM, México, 1996. 28 “The Origins of Dependecy Analysis”, em Journal of Latin American Studies, vol. 22, 1990, nota de pé de página, p. 153. Em obra posterior, Love tem muito cuidado quando fala das “fontes do estruturalismo” e suas possíveis bases teóricas; menciona alguns economistas europeus posteriores à Segunda Guerra Mundial: “Las fuentes del estructuralismo latinoamericano”, op. cit. 29 “Formação econômica do Brasil: uma obra-prima do estruturalismo cepalino”, em Revista de economia política, vol. 9, n. 4, 1989. 30 Uma análise detalhada da integração de A economia brasileira em Formação econômica do Brasil encontra-se no capítulo 4, segunda e terceira seções: Carlos Mallorquín, La idea del subdesarrollo: el pensamiento de Celso Furtado, op. cit.; recordemos de novo que mais de três quartos do último texto de Furtado foram escritos antes de 1958. 13 como André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini, Fernando H. Cardoso, Vania Bambirra, Osvaldo Sunkel, Teotonio dos Santos, entre outros. Mais próximo de nosso ponto de vista, Cristóbal Kay em Latin American Theories of Development and Underdevelopment 31 opina que a melhor parte da teorização sobre estruturalismo feita por Furtado aparece após sua partida da CEPAL em 1958. Para captar a pertinência das idéias de Furtado necessitamos de uma abordagem teórica que destaque a importância de certos conceitos e idéias que governaram o seu discurso. Daí a necessidade de expor sua concepção “estruturalista” da economia. Conforme vimos, certos autores singularizam determinados textos de Furtado para comprovar seu “estruturalismo” ou sua “teoria da dependência” ou suas noções de “crescimento” sem perceber que obras posteriores já não se referem a esses pontos. Este é sentido da crítica das idéias de Furtado apresentada por Jaime E. Estay Reino em “El neodesarrollismo: Prebisch, Furtado y Pinto”.32 Ao abordar três obras de Furtado surgidas em contextos diversos, como seriam Teoria e política do desenvolvimento econômico (1967), O mito do desenvolvimento econômico (1974) 33 e Pequena introdução ao desenvolvimento econômico – um enfoque interdisciplinar (1980) 34, busca uma homogeneidade discursiva que não existe. Não se trata de uma simples leitura errônea mas de uma leitura “ateórica”, quiçá provocada pelo próprio Furtado que afirma na obra de 1980 que ela projeta nova luz sobre alguns temas tratados em Teoria e política... Se se leva a sério a noção de que o processo de transformação e renovação teórica deve ser analisado e avaliado a partir dos conceitos e objetos criados pelo próprio processo, omitindo as apreciações que faça o próprio autor sobre a sua evolução teórica,35 os pontos de partida das interpretações devem ser fundamentados e têm que ser avaliados. 31 Ed. Routledge, Londres, 1989. Veja-se por exemplo Jaime E. Estay Reino, “El neodesarrollismo: Prebisch, Furtado y Pinto”, em La teoría social latinoamericana (coord. Ruy Mauro Marini e Márgara Millán), UNAM-Caballito, México, 1995. 33 Siglo XXI, México, 1982; primeira edição em português em 1974. 34 FCE, México, 1983, edição em português de 1980. 35 Anos depois, quando o “estruturalismo” de Furtado vai emergindo como uma especificidade “interdisciplinar”, o autor acredita que existe certa congruência entre a noção surgida em Pequena introdução ao desenvolvimento e em Teoria e política: “Não se trata de transformar a análise econômica em algo acessível aos não economistas, num esforço de divulgação, mas de construir um quadro conceitual que permita apreender a realidade social em suas múltiplas dimensões. Não se pretende substituir o trabalho que realizam independentemente as diversas disciplinas sociais, mas de completá-lo e enriquecê-lo”, em “Introdução” de Pequena introdução ao desenvolvimento econômico – um enfoque interdisciplinar, op. cit., pp. 9-10. 32 14 Se a unidade de uma obra está garantida pela existência de uma assinatura-autor ou de um texto-livro, a sua procura, se for esse o objetivo, transforma-se num problema teórico. Para concluir convém abandonar a idéia de que o estruturalismo de Furtado culminou com uma “sociologia econômica” no estilo de Talcott Parsons:36 se excluímos “Dependência externa e teoria econômica”,37 onde o seu pensamento margeia o de Parsons, é fácil perceber que entre os dois existe uma diferença abismal. Para Parsons, a noção de “diferenciação estrutural” é um processo que se dá de maneira automática e funcional pois o “mercado” (o subsistema econômico) é preeminente na sociedade em questão. Esta opinião pressupõe o que deve ser explicado: o surgimento do mercado ou a mudança estrutural em questão. Em contraste, para Furtado pode-se dizer que a mudança estrutural é um problema a ser enfrentado com as políticas de desenvolvimento. Daí a importância de se conceber estratégias adequadas para levar a cabo as referidas “transformações estruturais”. 36 Talcott Parsons e Neil J. Smelser, Economy and Society; a study in the integration of economic and social theory, ed. New York Free, 1965. 37 Em El Trimestre Económico, n. 150, México, 1971.
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