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A interpretação do Tamba Trio da canção “Desafinado” Maria Beatriz Cyrino Moreira RA: 034530 Projeto Final de Graduação Instituto de Artes - UNICAMP Introdução Em 1959 surge o grupo Tamba Trio. Inicialmente formado por piano, baixo e bateria contava com os músicos Luiz Eça, Bebeto Castilho e Hélcio Milito. O trio é considerado um dos precursores da música instrumental brasileira do final da década de 50, momento posterior ao auge da Bossa Nova. Lançou seu primeiro disco Tamba Trio1 no ano de 1962. Com base na transcrição do arranjo da canção “Desafinado” (Tom Jobim e Newton Mendonça), presente no álbum Brasil saluda a México 2, pretendo traçar as características mais relevantes da estrutura musical, demonstrando como se desenvolve o planejamento do arranjo do Tamba Trio, marcado por surpresas rítmicas e rearmonizações. Para isso, utilizarei algumas referências teóricas. Dentre elas, a dissertação de mestrado de Paulo Signori 3 que reconstrói a trajetória do grupo historicamente e verifica as principais matrizes musicais que estão presentes em sua obra no período de 19621964. Sua tese demonstra que muitas vezes elementos vindos de diversas “matrizes” não aparecem “misturados” mas sim muito bem delimitados dentro do arranjo. Objetivos Muitos são os debates em torno da influência do jazz e sua fusão com o samba nos anos 60. O Tamba Trio é frequentemente citado como um dos representantes do samba jazz, gênero instrumental brasileiro nascido em Copacabana nos anos 60.4 Com este trabalho proponho associar os elementos musicais com este debate em torno da música instrumental e de suas “misturas”. 1 Tamba Trio. LP. Philips. 1962. Brasil saluda a México. LP. Philips.1966. 3 SIGNORI. Paulo César. Tamba Trio: A trajetória histórica do grupo e análise das obras gravadas entre 1962-1964. Dissertação de mestrado. Departamento de Música – Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 2009. 4 SARAIVA, Joana Martins. A invenção do sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de 1950 e início dos anos 1960. Dissertação de mestrado - Departamento de História da PUC-Rio, 2007. 2 Justificativa A escassez de trabalhos que associem as análises musicais com os debates sócioculturais no terreno da música popular é grande. A tentativa de dialogar com diversas fontes do conhecimento acadêmico é uma maneira de iluminar os objetos de pesquisa dos músicos, sempre restritos à uma análise musical descritiva. Um pouco de história Sabe-se que o final da década de 50 e início dos anos 60 são marcados pelo clima de desenvolvimento econômico do governo de Juscelino Kubitschek. Neste período, a cidade do Rio de Janeiro era o principal pólo musical: os músicos dispunham de diversos locais para atuar, como as rádios, as gravadoras e as boates da noite, que funcionavam como um espaço de experimentações e jams. Foi neste contexto que o grupo Tamba Trio surgiu. Formado por Hélcio Milito (bateria), Luís Eça (piano) e Bebeto Castilho (baixo), o grupo iniciou seus ensaios no ano de 1960, já com a idéia de criar arranjos instrumentais e vocais. Esta formação inicial lançou três discos em três anos consecutivos, de 1962 à 1963. São eles: Tamba Trio5, Avanço6 e Tempo7. Dentre suas principais participações em discos de outros artistas está a gravação do álbum da cantora Maysa, intitulado Barquinho8. Muitos autores se referem ao grupo como um dos precursores do sambajazz, termo que abrange basicamente os grupos musicais do início da década de 60 que se voltaram para a música instrumental, realizando uma “fusão” do jazz com o samba e a bossa nova. Joana Saraiva, em seu trabalho, localiza o nascimento do sambajazz na “cena noturna” do Rio de Janeiro, no então chamado “Beco das garrafas”, local onde havia um circuito e produção de uma música chamada “música de boite”.9 Paulo Signori cita dois outros autores e suas opiniões sobre o Tamba Trio; Zuza Homem de Mello, por exemplo, afirma que o trio foi “responsável pelos lançamentos de 5 Tamba Trio. LP. Philips. 1962. Avanço. LP. Philips. 1963. 7 Tempo. LP. Philips. 1963. 8 Barquinho.LP. Columbia. 1960. 9 SARAIVA. Joana. op.cit. p. 18. 6 composições de autores novos”.10 Acredito que este tenha sido um importante papel do grupo, visto que as primeiras versões de músicas como “Garota de Ipanema” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes) e “Sonho de Maria” (Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle) foram gravadas por eles. Signori também ressalta que o grupo tinha a preocupação de “mostrar um repertório atual, com músicas que estavam “saindo do forno”.11 Do disco em que “Desafinado” faz parte, 6 das 11 faixas são parcerias entre Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Desta maneira, não se pode negar que o Tamba Trio - apesar de demonstrar nos seus arranjos inúmeras peculiaridades para ser definido apenas como um grupo de “bossa-nova ou sambajazz” - em parte representou estes gêneros, levando adiante a idéia de um projeto “modernizador” da música brasileira. Outra referência reveladora retirada do trabalho de Signori é a citação da matéria do jornalista Robert Celierer sobre uma “pequena história” do sambajazz. Lendo este artigo datado de 1964, podemos perceber que Celierer faz referência à Bossa Nova como “introdutora ao grande público” das harmonias modernas, para que mais tarde, o sambajazz pudesse entrar pela porta entreaberta e ser reproduzido com mais facilidades nas noites cariocas. Porém, cabe aqui lembrar, que nem sempre as boates cediam um grande espaço aos músicos instrumentistas, visto a restrição que detinham a conjuntos com muitos integrantes (seção rítmica, naipe de sopros). Celierer coloca em seu artigo, que o melhor meio de divulgação deste tipo de música era o disco, e é neste argumento que se refere ao Tamba Trio como primeiro grupo a estrear, com estrondoso sucesso, os lançamentos da “moderna música instrumental”.12 Com isso podemos aferir ao Tamba Trio a primeira grande tentativa de abrir um espaço para a música instrumental dentro da indústria fonográfica, que ao meu ver só seria retomado com afinco na década de 1970, por artistas como Egberto Gismonti, Wagner Tiso, Hermeto Paschoal, Ivan Lins e Milton Nascimento. No entanto, não podemos esquecer que a facilidade comercial do grupo deveu-se também à mistura de arranjos instrumentais com vocais. Mesmo que as linhas vocais tenham assumido um caráter bastante diferenciado e criativo, levando a transfiguração de algumas melodias reconhecidas, as letras faziam parte dos atributos que os tornava mais vendáveis. A imagem dada por Ana Maria Baiana em seu artigo sobre música 10 SIGNORI.op.cit. p. 1. SIGNORI, Paulo. P. 13. 12 CELERIER. Robert. Correio da manhã. Caderno Cultura e diversão. p.3. 25/10/1964. 11 instrumental elucida bastante a relação da canção com este gênero 13 : a autora atribui fases cíclicas entre som e letra na música popular brasileira (auge do sambajazz na década de 60, auge das letras dos festivais pós-65). Esta informação reitera a idéia de que a música instrumental brasileira sempre tenha se servido da letra para ganhar espaço – é o caso do Tamba Trio e também dos artistas de música instrumental da década de 70, como por exemplo, Egberto Gismonti, que em seu primeiro disco lançado em 1969, 8 das 12 faixas possuem letras. Apesar do trabalho de Signori esclarecer diversos aspectos da trajetória musical do Tamba Trio, aponto também alguns comentários em relação à música instrumental um tanto delicados: em dado momento, o autor argumenta que o grupo “adicionou a música instrumental num país tradicionalmente surdo para ela”. Acredito que ainda faltam pesquisas sobre a música instrumental brasileira que mostrem a relação do músico brasileiro e dos ouvintes com este tipo de manifestação e desmistifiquem seus préconceitos: como o de ser frequentemente associada à improvisação, ao jazz, e a um tipo de discurso musical mais “complexo”. Desta maneira, pesquisas mais aprofundadas sobre as manifestações musicais instrumentais que estiveram inseridas principalmente na indústria cultural (sobretudo na rádio e nos discos), são indubitavelmente necessárias para que se possa clarear as estratégias de produção e recepção deste tipo de música no Brasil. Voltando ao Tamba Trio e à dissertação de Signori, a música que será analisada neste trabalho corresponde à fase de transição entre o que ele chamou de construção da identidade (1962-1964) e o período de certa decadência do reconhecimento do grupo no Brasil (1966), conseqüência principalmente do início da era dos festivais, que voltou o foco para a forma canção. No período correspondente à “construção de identidade” o grupo ainda era formado por Luiz Eça, Bebeto Castilho e Hélcio Milito. Estes três integrantes apresentam características muito próprias de estilos e contribuíram cada qual com um “elemento inovador” para a produção musical do trio. 13 Artigo de Ana Maria Bahiana “O caminho do improviso à brasileira” – presente em: NOVAES, Adauto. Anos 70: ainda sob a tempestade. Seleção de Artigos. Rio de Janeiro. Editora Senac Rio, 2005.p.65 Na concepção pianística de Luiz Eça, por exemplo, ouvimos frequentemente a influência da música erudita. Eça teve uma trajetória notória dentro do gênero, tendo estudado até com Frederich Gulda na Áustria. Hélcio Milito, por sua vez, tinha sua prática musical vinculada especialmente a trabalhos com as big bands dos anos 50 (participou do conjunto de Djalma Ferreira e tocou também na orquestra da rádio nacional). Porém, foi com a invenção de um “novo instrumento” que Hélcio marcou a música do Tamba. Criado por volta de 1957, o instrumento batizado por ele de “tamba” consistia em um instrumento de percussão formado “por três tambores apoiados num mesmo suporte e que são tocados com vassourinhas ou baquetas de tímpano. A esse kit podem ser acrescentados pratos, bem como outros acessórios de percussão”.14 Para Milito, o instrumento representava uma “bateria abrasileirada” que correspondia melhor aos efeitos requeridos pelos arranjos. O “tamba”, curiosamente, foi utilizado somente nas apresentações ao vivo, vindo aparecer tardiamente em gravações da década de 70. Isso faz-nos pensar também sobre a “preocupação da performance” dos integrantes. Arlette Milito, em depoimento presente no trabalho de Signori conta que “para que os garçons parassem de servir e durante a apresentação do trio, Hélcio pediu que eles fizessem a gentileza de segurar os holofotes de luz improvisados, enquanto o grupo estivesse tocando”.15 Portanto, percebe-se a preocupação do grupo com “a comunição, com o público e a concepção da apresentação”. Relaciono a utilização do instrumento “tamba” a dois fatos situados neste contexto: primeiramente, seu uso nas apresentações ao vivo revelava uma possível tentativa de “perpetuação” dos ideais da “legitimação do samba” como identidade brasileira, discurso promovido deste a década de 20 no Brasil, ao mesmo tempo em que, inseridos dentro de um período onde a indústria cultural já dava seus primeiros passos, o grupo já pensava em estratégias que propulsionassem sua imagem “comercial” e “moderna”– já que estavam vendendo um produto não totalmente afinado com o gosto das massas. Voltando as características musicais principais dos integrantes, temos ainda Bebeto Castilho, que além do contrabaixo, tocava instrumentos de sopro em bandas de 14 15 SIGNORI. op.cit. p. 6. Idem.p.22 baile e rodas de choro, incluindo-os (mais especificamente a flauta e o sax) em alguns arranjos do grupo. Vemos assim, que as diferentes atuações dos integrantes permitiam ao Tamba articular diversas questões ligadas ao “paradigma nacional” dos anos 60, termo utilizado por Elizabeth Travassos16 e re-citado por Signori em sua tese: a ligação com os modelos europeus, a dicotomia entre popular e erudito, e a busca de um caminho próprio dentro de uma indústria cultural crescente. Outra importante marca desta fase de construção de identidade do grupo foram suas constantes viagens ao exterior, marcando a incursão da bossa nova como gênero comercialmente explorado nos Estados Unidos. Um fato curioso que me chama a atenção é o grupo ter sido convidado pela Divisão Cultural do Ministério das Relações Exteriores do Brasil para representar o país antes de terminar a gravação de seu primeiro disco. Isto demonstra, que mesmo antes da entrada na indústria fonográfica, o Tamba Trio já era um grande representante daquilo que o governo poderia classificar de “música moderna com cara brasileira”, confirmando mais uma vez, e com razão, a preocupação dos músicos com as “apresentações ao vivo”, principais responsáveis pela divulgação e sucesso do grupo na imprensa e na audiência. Isto nos dá uma pequena amostra de como funcionava a lógica da indústria fonográfica no Brasil daquele período. Após o convite do Ministério de Relações Exteriores, o grupo partiu, em julho de 1962, para uma série de apresentações que incluíram Nova York, Minneapolis e Chicago. Os shows do Tamba Trio nos Estados Unidos significaram uma abertura do caminho para que a bossa nova se infiltrasse na terra do Tio Sam. É importante lembrar que é no mesmo ano que ocorre então, o discutido show realizado pelos artistas da bossa no Carnegie Hall, em Nova York. 16 “No início dos anos 60, o paradigma ‘ser nacional’ também era repensado. Segundo Elizabeth Travassos, a alternância entre a reprodução dos modelos europeus e a descoberta de um caminho próprio, bem como a dicotomia entre popular e erudito, são linhas que tencionam o entendimento da música no Brasil. Conforme coloca a autora, essas forças se manifestaram de maneira dramática em alguns momentos da história, entre os quais no período do auge da bossa nova, tropicalismo, da canção de protesto” SIGNORI. op.cit. p. 50. In: TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. , 2000. 2ª ed. Questiono, no entanto, a afirmação de Signori sobre a aceitação da música brasileira como “material acabado e não apenas como matéria-prima bruta de exotismo”.17 Para se fazer uma afirmação como esta, deve-se pensar até que ponto o reconhecimento dos artistas brasileiros em solo americano se deu através de uma pura e simples “aceitação”, ou por motivo de necessidade mútua de intercâmbio daquilo que poderia ser “vendido”, do ponto de vista da lógica da crescente influência que os Estados Unidos tiveram no Brasil naquelas décadas. Mesmo porque, caracterizar a bossa-nova de música “puramente brasileira” originada naturalmente, é ignorar as problematizações que são colocadas em torno do “hibridismo” entre o samba e o jazz, entre a canção e a música instrumental, entre o “tradicional” e o “moderno”. Em 1964, outro baterista entrou no lugar de Hélcio Milito: Rubem Ohana de Miranda, que antes de entrar no grupo, tocou na orquestra de música latina de Rui Rei e no conjunto de Waldir Calmon. Musicalmente, Ohana substituiu a vassourinha de Milito, que aproximava o som do grupo a uma estética mais cool, pelas baquetas, caminhando para uma estética mais agressiva, próxima ao hard bop.18 O primeiro disco gravado por Ohana foi o 5 na bossa – Nara, Edu Lobo, Tamba Trio 19 seguido de Tamba Trio 20 e o já citado, Brasil Saluda a México. Musicalmente, retomo algumas principais características que os arranjos do Tamba Trio tiveram nesta fase: a forma caminhava para um aproveitamento maior de temas e variações, as composições passaram a ter um enfoque mais camerístico e o grupo de compositores escolhidos para serem gravados passou a incluir nomes subseqüentes à bossa nova. Análise da música Após uma breve discussão sobre os principais aspectos da trajetória do Tamba Trio, iniciaremos a exposição da análise do arranjo de “Desafinado”. Para ela, pretendo utilizar os conceitos de “matrizes musicais” apontados por Signori em sua tese, que 17 SIGNORI. op.cit.p.24 SIGNORI. op.cit. p.31 19 5 na bossa. LP. CBD.Philips. 1965. 20 Tamba Trio. LP. CBD. Philips. 1966. 18 abrangem os seguintes grupos: Matriz bossa-nova, engajada, afro-samba, jazz, música erudita, impressionismo e grupos vocais21. Através destas matrizes, pretende-se colocar algumas questões em relação à obra, entre elas: em relação à gravação analisada, o trio ainda pode ser considerado o “trio bossa nova”? Outras questões serão colocadas no momento da conclusão. Neste momento do artigo, utilizarei também o trabalho de Ricardo Nogueira de Castro Monteiro, intitulado “O Sincretismo na canção: as figuras de expressão e seu papel no processo de geração de efeitos de sentido em Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendonça” 22 uma análise semiótica da letra de “Desafinado”. Desafinado O primeiro fato do qual se fala sobre a canção “Desafinado” é de sua linha melódica “complexa” junto a sua harmonia sofisticada. No arranjo do Tamba Trio, estes elementos permanecem, porém estendem-se também na forma e no ritmo, nos quais aparecem inúmeras variações e surpresas ao longo da narrativa musical. Observamos então, que a concepção musical está voltada para a criação instrumental do arranjo, sem ignorar, contudo, a letra da música e sua sincronia com o material musical apresentado. Antes de nos aprofundarmos no arranjo, veremos um pouco sobre a interpretação da letra que adotarei, do trabalho de semiótica de Ricardo Nogueira. Se você disser que eu desafino, amor, Saiba que isto em mim provoca imensa dor; Só privilegiados têm ouvido igual ao seu; Eu possuo apenas o que Deus me deu. Se você insiste em classificar Meu comportamento de anti-musical, Eu, mesmo mentindo, devo argumentar Que isto é Bossa Nova, Que isto é muito natural. O que você não sabe, nem sequer pressente, 21 Signori. p. 105. Cap.3 – “As Matrizes Musicais na obra do Tamba Trio no período de1962-1964”. MONTEIRO, Ricardo Nogueira de Castro. “O sincrestismo na canção: as figuras de expressão e seu papel no processo de geração de efeitos de sentido em Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendonça.”Anais de congresso. ANPPOM.2007. http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2007/semiotica/semiot_RMonteiro.pdf 22 É que os desafinados também têm um coração; Fotografei você na minha Rolleiflex; Revelou-se a sua enorme ingratidão. Só não poderá falar assim do meu amor; Ele é o maior que você pode encontrar, viu? Você com a sua música esqueceu o principal: Que no peito dos desafinados, No fundo do peito, bate calado, No peito dos desafinados, Também bate um coração. De acordo com o autor, a letra possui um sujeito que critica a falta de “sensibilidade emocional” de um anti-sujeito que supostamente subestima a sensibilidade musical do primeiro. Desta maneira, algumas relações de sentido aparentes se estabelecem ao longo da narrativa: O anti-sujeito é colocado como um “ser superior” (ou “privilegiado”) e “frio” (ou “não pressente”). Assim, temos dois componentes no que o autor chama de “plano profundo” que seria a natureza do sujeito (“coração”, “que deus me deu”, “isto é muito natural”) e a cultura do anti-sujeito (“ouvido privilegiado”). Apesar de reconhecer a superioridade do anti-sujeito musicalmente, o sujeito tem a palavra final quando sobrepõe a superioridade do coração sobre o ouvido. (você com sua música esqueceu o principal(...)no peito dos desafinados também bate um coração). Entretanto, o discurso do sujeito ao longo da letra vai sendo “modificado” e outros elementos retóricos aparecem para “complexificar seu universo patêmico”.23 Na frase “Se você insiste em classificar/Meu comportamento de anti-musical,/Eu, mesmo mentindo, devo argumentar/Que isto é Bossa Nova,/Que isto é muito natural”, o sujeito utiliza uma “retórica irônica para desqualificar o anti-sujeito e seus valores”.24 Isto é sugerido pelo argumento de que a bossa nova é algo natural; no entanto ela se “caracteriza justamente pelo refinamento de suas conduções harmônicas- e não por sua suposta naturalidade, se igualando ao ouvido construído culturalmente do antisujeito”.25 Através desta compreensão que podemos aferir uma equivalência entre o 23 Patemização/Patêmico: relativo à pathos. De acordo com o Dicionário Houaiss (2001), o termo refere-se à “qualidade no escrever, no falar, no musicar ou na representação artística (ep. ext., em fatos, circunstâncias, pessoas) que estimula o sentimento de piedade ou a tristeza; poder de tocar o sentimento da melancolia ou o da ternura; caráter ou influência tocante ou patética.” 24 MONTEIRO. op.cit.p.6 25 Idem. p.6. “desafinado” e “sofisticação harmônica”, confirmando o caráter irônico do discurso do sujeito, que de acordo com este ponto de vista, se mostra “munido de valores de sofisticação que o tornariam desta forma, excessivamente competente”.26 Após este breve esclarecimento sobre o conteúdo retórico da letra, veremos como se articulam os elementos musicais no arranjo do Tamba (plano de expressão) e como ele pode se articular com a letra (plano de conteúdo) revelando uma significância específica desta interpretação. Abaixo, apresento a forma da música no arranjo com suas respectivas especificidades: Forma: Introdução Tema A Tema A1 Tema B Tema A1 4 compassos 6/8 32 compassos 2/4 12 compassos 2/4 8 compassos 3/4 12 compassos 2/4 (Só bateria) divididos em divididos em “seções”: 16 compassos divididosem “seções”: 8+4 2/4 “seções”: 8+4 8 + 8 +4 Coda Convenções Solo Tema B Tema A1 7 compassos 2/4 8 compassos 2/4 27 compassos 2/4 8 compassos 3/4 12 compassos 2/4 divididos em: Divididos em: 16 compassos divididos em 4+4 Tema A 2/4 “seções”: Tema A1 (com um 8+4 compasso a menos) Coda Introdução Tema A 7 compassos 2/4 4 compassos 6/8 Primeiros 5 compassos (Só bateria) apenas. Dentre as especificidades da forma do arranjo, estão as duas seções que não fazem parte da música – Introdução e Convenções, bem como o número de compassos ímpares nas seções Coda e Solo. Mesmo os Temas A, A1 e B, são individualmente divididos em seções menores, de andamentos contrastantes. A música inicia com um toque de timbales durante quatro compassos, seguido de um ostinato rítmico executado pelo piano sobre os acordes Ab7 e Bb7 (sem a terça), em 26 SIGNORI.op.cit. p.7. 6/8. Segue então a entrada da melodia em 2/4 do Tema A sobre este ostinato, causando uma poliritmia, exemplificada no exemplo abaixo: Ex: Tema A: 8 primeiros compassos:27 Esta seção que junta às vozes o piano, poucas intervenções do baixo e acompanhamento rítmico ainda do timbale, sugere o que Signori chama de “matriz afrosamba”: “referência à música negra no ritmo e na melodia, especialmente candomblé”. 28 Coloca-se desta maneira, o primeiro embate de significados que o arranjo propõe. Ao mesmo tempo em que ritmicamente se recupera a noção de “tradição” com a referência aos ritmos afro-brasileiros, se complexifica o mesmo plano rítmico com uma “poliritmia”, equiparando a sofisticação rítmica à sofisticação harmônica da versão original. Ressalto ainda que, as palavras “provoca” e “dor” são acentuadas por convenções realizados por todos os instrumentos sobre os acordes (Eb7(9) e F7(b9,#11) ) enfatizando uma figura de gradação assim como é colocado no trabalho de Ricardo, sugerindo um efeito de tensionamento do conteúdo da letra, através não mais só do plano melódico mas também de um plano rítmico totalmente elaborado. Continua, assim como na versão original, o intervalo de 6ª maior sobre “imensa dor”, “caracterizando a passionalização 27 A sequencia de pautas no sistema corresponde a: 1ª clave de sol: vozes, 2ª clave de sol e clave de fá: piano, 2ª clave de fá: contrabaixo. 28 SIGNORI.op.cit.p.109. do discurso, gerando um sentido de hipérbole que empresta maior intensidade ao sofrimento ali representado”.29 A frase seguinte “Só privilegiados tem ouvido igual ao seu” também é feita sobre convenções em uma rítmica irregular, porém sem a poliritmia inicial. Na versão original, Ricardo Nogueira coloca que há uma inversão no plano do conteúdo, “gerando uma relação de antítese” 30 com as frases anteriores, desqualificando o sujeito nas primeiras e favorecendo o anti-sujeito na segunda. No arranjo do Tamba a antítese permanece no conteúdo da frase, porém vemos uma maior tensividade no plano da expressão do arranjo, através do andamento presto do compasso binário e das convenções realizadas durante a frase cantada, gerando quase que uma imagem de “competição” de habilidades entre sujeito e anti-sujeito. Sobre a palavra “seu” vemos as notas que montam o acorde da linha das vozes ressaltarem as extensões do acorde de F7 (b9, #11, b13). Permanece assim o que Ricardo chama de “metáfora da desafinação” 31 que apresenta uma contradição: elogia-se o antisujeito através desta figura metafórica da “desafinação” e mostra com humor a “incompetência do sujeito”. Ex: Tema A Durante a frase “eu possuo apenas o que Deus me deu”, ouvimos o ritmo do samba em 2/4 sobre a harmonia tradicional da canção e a adição de um compasso a mais com a repetição da frase “deus me deu” em convenções rítmicas. A harmonia original do trecho abaixo consiste na seguinte progressão: Bb7(9) – Bb7(9) – A7M – A7M(#11), 29 MONTEIRO. p.9. Idem.p.10. 31 Idem.p.11. 30 indicando um dominante secundária (Bb7(9) = V7/VI) e um acorde com função de subdominante – conhecido como “acorde de sexta napolitana”, por ser uma inversão do IV grau de um modo menor com a sexta menor acrescentada.32 Na progressão abaixo substitui-se este acorde de sexta napolitana por um Dbm e um Eb7(#9, #11), tendo o primeiro a função de subdominante menor, (IVm) e o segundo a de dominante primária (V7/I). Com isso, o Tamba de certa forma “simplifica” a harmonia, emprestando uma harmonização mais “óbvia” do ponto de vista da harmonia tradicional. Este fator pode corroborar para a suposição de que neste arranjo, o foco principal talvez não seja a harmonia como é na versão original. No trabalho de Ricardo o intervalo de 3ª maior (4ª diminuta) qualifica negativamente a expressão “o que deus me deu” reiterando a suposta incompetência do enunciado (lítote). A figura de linguagem “lítote” 33 consiste numa frase suavizada ou negativa para expressar uma afirmação. É o oposto da hipérbole. Relaciono a simplificação da harmonia também com esta intenção de “suavização” do conteúdo significativo da letra. Ex: Final do Tema A 32 FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Teoria da harmonia na Música Popular: uma definição das relações da combinação entre os acordes na harmonia tonal. Dissertação de mestrado -Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. São Paulo, 1995.p. 40 33 “Para que não se diga, por exemplo, que determinado indivíduo é burro, diz-se que é pouco inteligente, ou simplesmente que não é inteligente. Esse caso, que contém forte dose de ironia, chama-se "lítotes". É bom que se diga que com a lítotes a expressão não necessariamente se suaviza. Para que se diga que uma pessoa é inteligente, pode-se dizer que não é burra: "Seu primo não é nada burro". Segundo o dicionário Aurélio a litotes é "modo de afirmação por meio da negação do contrário". A próxima frase permanece no compasso 2/4, porém, com o andamento reduzido. A harmonia não é muito modificada, no entanto, adicionam-se algumas dominantes individuais dos acordes (dominantes secundárias, grifadas em cinza): Ex: Tema A1 – 8 primeiros compassos Ab7M – F7(9) – F7(#11) – Bb7sus4 – F7(#11,13) – Bb7(b9) – Bbm7 –Eb7 – Cm7(b5) – F7(b9) I7M – V7/II – V7/II - V7/VI - V7/II - V7/VI - [IIm7 – V7] - [IIm7(b5) – V7/IIm] Vemos acima a progressão iniciando na tônica e passando pelas dominantes secundárias do II e VI grau. Em seguida observamos um IIm7 – V7 de Ab e um IIm7(b5) V7 de Sib menor (II). Neste trecho podemos notar o retorno à uma “matriz bossa-nova” através dos seguintes elementos listados por Signori: “bateria utiliza vassourinhas, economia e clareza na linha de acompanhamento do piano, ausência de recursos virtuosísticos e contenção em relação a efeitos idiomáticos na exposição da melodia”.34 No final desta seção temos uma preparação para a entrada do Tema B. A harmonia é semelhante à original, porém temos agora uma textura mais homogênea ritmicamente: não há síncopas na melodia, o baixo toca especialmente semínimas e o piano realiza um acompanhamento arpejado muito próximo aos acompanhamentos da música erudita (matriz erudita). 34 Signori. op.cit.p.106. Ex: Final do Tema A1 É na seção de B que encontramos uma transfiguração da versão original. Nesta última, já vimos que a afirmação de que a bossa nova é “muito natural” pode ser interpretada como um dado irônico do discurso do sujeito, visto que a complexidade de suas conduções harmônicas elevam o sujeito ao patamar do anti-sujeito “elogiado”. No arranjo do Tamba há uma subversão destes valores através do discurso musical: o compasso binário se torna ternário, e em uma espécie de jazz waltz a melodia é entoada pelas vozes em andamento mais lento. Esta redução do caráter rítmico é contraposta por uma ampliação do vocabulário harmônico através da rearmonização da progressão original. Podemos dizer que o Tamba Trio retoma a noção da “naturalidade” descrita na letra explicitamente, ao mesmo tempo em que causa uma “surpresa” no arranjo, se afastando da matriz bossa-nova dos temas anteriores. Assim, esta suposta “naturalidade” ganha mais ênfase se vista dentro do “todo” do arranjo: ao mesmo tempo em que retorna a “valsa” não deixa de ter o dado irônico da versão original, por se contrastar completamente com as outras seções compostas. Ex: Tema B Harmonia original: C7M - B7(#5) Bb7(13) - A7(b13) I7M – SubV7/bVII - SubV7/VI – V7/IIm7 A progressão original consiste em uma descida cromática de acordes SubV7. Modulação para a região da mediante de Lá bemol (Dó maior). C7M - Eb7(9) - Ab7(#5) - Db7(#11) I7M - V7/bVI- V7/bII – SubV7 Rearmonização: Na rearmonização, aparecem dominantes estendidas de acordes de empréstimo modal e um SubV7 do I7M. Nos últimos 16 compassos do Tema B, o compasso retorna à forma binária. A melodia não é modificada, porém observamos muitas alterações na harmonia original. Ex: Continuação do Tema B Harmonia original: C7M – Dbº - Dm7 – G7(13) – C7M – Cm6 – Dm7(b5) – Db7(#11) I7M - V7/IIm7 –IIm7 – V7 - I7M - Im6 – IIm7(b5) – SubV7/Im6 A progressão inicia com a tônica, segue na dominante diminuta do acorde IIm7 que faz parte da cadência II – V7 – I da tonalidade original. Depois temos uma segunda cadência II – V7 de Cm, terminando com o Subv7 de Cm. Rearmonização: C7M - Em7(b5) - A7(b9) - Dm7 - G7(13) - C7M - C7M/B– Am7 - Ab(9,11,13) - Db7(9) - Bb7sus4(9) Bb7(13) I7M – [IIm7(b5) – V7] - IIm7 – V7(13) – I7M – I7M - VIm7 – V7/bII - SubV7 V7/bIII7 - V7/bIII7M Os acordes grifados são as adições e substituições da rearmonização. São eles um [IIm7(b5) – V7] de Ré menor, uma inversão da tônica, uma substituição de Cm6 por Am7 (função tônica) e uma dominante secundária (Ab(9,11,13) )35 de Db7. A progressão termina com o V7 do seguinte acorde que será Eb7M(9). Temos então os últimos 8 compassos de B, onde aparecem: Ex: 8 últimos compassos do Tema B Harmonia original: Eb7M – Eº - Fm7 – Bb7(13) – Bbm7 – B7(9) – Bb7(13) Bb7(b13) – Eb7(9) – Eb7(b9) I7M - V7/II- IIm7 – V7 - Vm – SubV7 – V7 - V7 - I= V7/Ab... Rearmonização: Eb7M(9) – Dbº - Cm7 – F7sus4 – Bbsus4(9) – Bbm7 – Gbº - Cm6 - Cm7 - Bb7(13) Bb7(b13) - Eb7(9) Eb7(b9) 35 Observamos que o acorde não possui a sétima menor. Atribuo, por enquanto a função de dominante. Mas este acorde será discutido adiante. I7M - V7/II - IIm7 – V7/V7 – Vsus4 - Vm - dim.aux.36-VIm - VIm - V7/I - V7/I - I = V7/Ab.... Os acordes destacados acima são todos modificados da harmonia original. Chamo a atenção para o uso de dois acordes sus4 na progressão. Junto com o acorde Ab(9,11,13) indicam a presença neste momento do que Signori indica como a “matriz impressionista”: “Uso de acordes de 5 ou 6 vozes a partir de 3ª superpostas (9ª, 11ª, 13ª); acorde do tipo X7(9) ou X7(9/13) com fundamental nas vozes internas; acordes que usam 4ª superpostas (quartal)”37 Quando a música está em 2/4 no Tema A, A1 e B, pudemos ver que Luiz Eça utiliza basicamente levadas de samba “onde os acordes são tocados com ataque e curta duração. O efeito rítmico resultando se assemelha à função do tamborim no samba”.38 Passemos agora para a Coda, que apresenta a mesma melodia original em um compasso binário de andamento lento. A harmonia é tensionada através das extensões adicionadas aos acordes originais (Bb7 e A7M). Aponto novamente para a “matriz erudita” no último compasso, onde o piano realiza um arpejo na mão esquerda e muda-se a harmonia de uma cadência perfeita para uma plagal: Ex: Coda Cadência perfeita original: Ab6,9 - Eb7(#5) – Ab (I – V7 - I) Cadência plagal: Ab7M(9) - Db ( I – IV (?) ) Chegamos à seção que chamo de “convenções”; uma parte inventada pelo Tamba Trio que precede o solo de piano. Ela causa a estranheza por iniciar em um acorde a partir 36 Diminuto auxiliar. Sobre a influência do trabalho de Debussy sobre Luiz Eça ver a dissertação de mestrado de Sheila Zagury: ZAGURY, Sheila. A harmonia criativa: uma descrição dos procedimentos didáticos de Luiz Eça. Dissertação de Mestrado – Centro de Letras e Artes -Universidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 1996. 38 SIGNORI. op.cit.p.73. 37 da nota encontrada uma quinta aumentada acima de Lá bemol (mi), enfatizando a “desafinação” significativa do texto, ao mesmo tempo em que a melodia é construída sobre intervalos de quarta sobre o término da palavra “coração” – “ção”. Nos últimos quatro compassos, optei por não cifrar os acordes, pois acredito que o foco central neste momento está na sonoridade em que as dissonâncias acontecem, não exercendo nenhuma função harmônica ou estrutural específica. Podemos apenas dizer que o padrão é construído sobre possíveis acordes menores com sétima e nona sem as quintas (na ordem: dó, sib, ré, mib) com a terça maior sobre o quarto tempo da estrutura (circulado abaixo). São em exemplos como esse que podemos considerar o Tamba Trio muito mais que um trio de samba-jazz ou bossa nova. O tema da desafinação no arranjo é levado ao extremo, do ponto de vista da época e do contexto em que o Tamba Trio produzia. A sessão do solo é aberta exclusivamente para o piano. Luiz Eça ainda não termina de apresentar seções contrastantes: inicia seu solo realizando o tema A em estilo clássico, com direito a baixo de Alberti e convenções inesperadas (“efeito das vozes: imitação de naipes de big-bands) 39: 39 SIGNORI. op.cit.p112. O arranjo termina após a repetição de Tema A, A1 B e Coda, com a volta da Introdução e o retorno aos 4 primeiros compassos de A. Conclusões Com a análise de alguns aspectos do arranjo pudemos realmente encontrar exemplos condizentes com as matrizes musicais propostas por Signori, mesmo sendo ele de um período posterior àquele que as análises musicais do autor abrangeram. Observamos também bastante semelhança com as figuras retóricas descritas por Ricardo Nogueira em seu trabalho. Este dado demonstra que o Tamba Trio ficou fiel à melodia “canonizada” de Desafinado, não necessitando mudá-la para obter outros resultados sonoros. Observamos também que enquanto o foco da versão original de “Desafinado” está na melodia e harmonia, matéria primordial dos compositores da bossa nova, o arranjo do Tamba Trio se volta para o ritmo: polirritmias e mudanças não preparadas de andamento enfatizam a “metáfora da desafinação” da canção elevando-a a outro plano de subjetividade. Num pensamento de vistas mais alargadas poderíamos especular que o Tamba trio propõe uma outra “metáfora” para a canção: a da “arritmia” ou “falta de ritmo”, explorando um possível dado “brasileiro” (a excelência do samba e do brasileiro nos ritmos, em detrimento da complexidade harmônica do jazz). Esta obra também demonstra a preocupação do grupo com arranjos “mais camerísticos” como ressaltado no início deste artigo. Inúmeras convenções e o pouco espaço para a improvisação nos dão a prova deste argumento. Não podemos deixar de pensar na contribuição para a tensividade do arranjo das “matrizes eruditas”, “impressionista” impressa principalmente na maneira de tocar de Luiz Eça. Acompanhamentos utilizando baixo de Alberti, e algumas rearmonizações (como a substituição de A7M por Dbm e o acorde sem sétima Ab(9,11,13) ) representam esta contradição entre música erudita e música popular, outro paradigma da “cultura” e “natureza”. Considero o Tamba Trio, a partir destas observações, mais do que um típico trio de sambajazz, ou um grupo representante da bossa-nova. Não há dúvidas de que o momento histórico no qual o grupo surgiu se faz presente em sua obra. A escolha do repertório, as viagens para o exterior para representar a “música brasileira” são motivos pelo qual aparentemente o grupo ganhou essas definições. Mas quando nos aprofundamos na análise dos elementos musicais percebemos que a composição tem muito mais a nos dizer com seus conflitos, tensões, contraposições e surpresas. Estes conflitos na música do Tamba, ao meu ver, revelam-se principalmente pela estrutura do arranjo. Esta estrutura é formada por um conjunto de escolhas musicais; elementos que carregam consigo identidades “matriciais” que acabam adquirindo outras significações dependendo do lugar onde se encontram. Estas matrizes musicais sugeridas por Signori, iluminam determinados “gestos musicais”, que, citando um termo do pesquisador Acácio Piedade, são compreendidos através da idéia de “tópicas”. As tópicas seriam “recortes das unidades musicais do discurso (frases melódicas, rítmicas, sequencias harmônicas, etc.)” que além de terem um “feição particular”, ocupam uma determinada posição no discurso, “esta posição sendo um dado importante na análise estrutural da musicalidade”.40 Isso nos mostra que a escolha (consciente ou não) de algumas matrizes musicais no arranjo do Tamba Trio, atingem sua “plenitude significativa” através desta posição que ocupa na estrutura do arranjo, como por exemplo, a escolha de um compasso ternário na seção em que se diz “isso é bossa nova, isso é muito natural”, que não produziria o mesmo efeito se fosse utilizada em outro momento do arranjo. Com isto, concordo e reitero a colocação de Signori em sua tese quando se dirige a outro conceito do pesquisador Acácio Piedade sobre “fricção de musicalidades” 41 : de que embora este conceito denote um caráter de tensão e conflito, os procedimentos do jazz e da música erudita são "bem delineados na obra do grupo, não implicando em "falta 40 Piedade, Acácio Tadeu de Camargo. "Análise musical e música popular brasileira: em busca de tópicas.” II Jornada de Pesquisa do Centro de Artes, Florianópolis, 2006. Anais, Florianópolis: UDESC, 2006. 41 “Fricção de musicalidades surgiu então como uma situação na qual as musicalidades dialogam mas não se misturam: as fronteiras musical-simbólicas não são atravessadas, mas são objetos de uma manipulação que reafirma as diferenças. Este diálogo fricativo de musicalidades, característico da música instrumental, espelha uma contradição mais geral do pensamento: uma vontade antropofágica de absorver a linguagem jazzística e uma necessidade de brecar este fluxo e buscar raízes musicais no Brasil profundo. Creio que o duplo movimento deste gênero musical pode ser pensado em diversos universos da música brasileira.” Na visão de Acácio a música instrumental brasileira e o jazz dialogam mas não se fundem. PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. "Jazz, música brasileira e fricção de musicalidades". Revista Opus. 11, 2005.p.197207. de uniformidade ou unidade" aos arranjos. Estes arranjos, em sua visão, apresentam coerência, unidade e sentido musical.” 42 Acredito que futuras pesquisas sobre a música instrumental brasileira, principalmente aquelas inseridas na indústria cultural, poderão mostrar com mais clareza que a música instrumental nem sempre se resume ao conflito “samba X jazz” ou tem sua base na improvisação dos moldes jazzistas. Bibliografia BAHIANA. Ana Maria. O caminho do improviso à brasileira – presente em: NOVAES, Adauto. Anos 70: ainda sob a tempestade. Seleção de Artigos. Rio de Janeiro. Editora Senac Rio, 2005. FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Teoria da harmonia na Música Popular: uma definição das relações da combinação entre os acordes na harmonia tonal. Dissertação de mestrado -Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. São Paulo, 1995. MONTEIRO, Ricardo Nogueira de Castro. O sincrestismo na canção: as figuras de expressão e seu papel no processo de geração de efeitos de sentido em Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendonça. Anais de congresso. ANPPOM.2007. PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. Análise musical e música popular brasileira: em busca de tópicas. II Jornada de Pesquisa do Centro de Artes, Florianópolis, 2006. Anais, Florianópolis: UDESC, 2006. PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. Jazz, música brasileira e fricção de musicalidades. Revista Opus. 11, 2005.p.197-207. SARAIVA, Joana Martins. A invenção do sambajazz: discursos sobre a cena musical de Copacabana no final dos anos de 1950 e início dos anos 1960. Dissertação de mestrado - Departamento de História da PUC-Rio, 2007. SIGNORI. Paulo César. Tamba Trio: A trajetória histórica do grupo e análise das obras gravadas entre 1962-1964. Dissertação de mestrado. Departamento de Música – Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 2009. 42 Signori. op.cit.p. 57. ZAGURY, Sheila. A harmonia criativa: uma descrição dos procedimentos didáticos de Luiz Eça. Dissertação de Mestrado – Centro de Letras e Artes -Universidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 1996. Artigos CELERIER. Robert. Pequena história do Samba Jazz.Correio da manhã. Caderno Cultura e diversão. p.3. 25/10/1964.