a construção da desproteção social no contexto histórico

Transcrição

a construção da desproteção social no contexto histórico
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL
A CONSTRUÇÃO DA DESPROTEÇÃO SOCIAL NO
CONTEXTO HISTÓRICO-CONTEMPORÂNEO DO
TRABALHADOR EXPOSTO AO AMIANTO
Tese de Doutorado
Dolores Sanches Wünsch
Orientadora: Profª. Drª. Jussara Maria Rosa Mendes
Porto Alegre
Dezembro/2004
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL
A CONSTRUÇÃO DA DESPROTEÇÃO SOCIAL NO
CONTEXTO HISTÓRICO-CONTEMPORÂNEO DO
TRABALHADOR EXPOSTO AO AMIANTO
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social da
Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul como requisito
parcial para obtenção do título de
Doutora em Serviço Social.
Dolores Sanches Wünsch
Orientadora: Profª. Drª. Jussara Maria Rosa Mendes
Porto Alegre
Dezembro/2004
Porto Alegre, 25 de janeiro de 2005.
A CONSTRUÇÃO DA DESPROTEÇÃO SOCIAL NO
CONTEXTO HISTÓRICO-CONTEMPORÂNEO DO
TRABALHADOR EXPOSTO AO AMIANTO
Dolores Sanches Wünsch
Esta tese foi submetida ao processo de avaliação pela Banca Examinadora
para a obtenção do Título de:
DOUTORA EM SERVIÇO SOCIAL
E aprovada na sua versão final em ....................................................................,
atendendo às normas da legislação vigente da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social.
...................................................................
Profª. Dra. Jussara Maria Rosa Mendes
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
Banca Examinadora:
.............................................................
Profª. Drª. Jussara M. Rosa Mendes
..............................................................
Profª. Drª. Maria da Graça L. Hoefel
..................................................................
Prof. Dr. Ricardo Luiz Coltro Antunes
.........................................................
Profª. Drª. Annie Thébaud-Mony
................................................
Profª. Drª. Jane Cruz Prates
AGRADECIMENTOS
Agradecer é percorrer o caminho de volta, e (re)colher nele pessoas, sentimentos,
lembranças, esperanças e conquistas. Encontram-se nele pessoas especiais, cada qual com um
significado singular na trajetória percorrida para a construção desta tese e em nossa vida. São
pessoas que merecem meu reconhecimento, agradecimento e afeto. Tenho a certeza de que os
tempos presente e o futuro fortaleceram os sentimentos expressados nos agradecimentos que
seguem.
Para Paulo, Marina e Karla, pedaço inteiro do meu coração, que, muitas vezes, sofreu
pela ausência e pela distância de vocês. Ao meu pai, Carlos (in memória), à minha mãe,
Lourdes, e a meus irmãos, Berto, Silvio e Margarete, pela família da qual me orgulho.
À Jussara Maria Rosa Mendes, orientadora, mestre, mas também amiga e parceira,
que, com seus ensinamentos e exemplo, transformou os momentos difíceis dessa caminhada
em crescimento e aprendizado.
Aos trabalhadores que fazem e contam a história, em especial ao Jorge Rodrigues, exPresidente e Diretor do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Caxias do Sul, por sua
imprescindível contribuição histórica, e aos demais diretores, Ramiro, Adão e Camelo. A
5
todos os trabalhadores e a seus familiares, sujeitos da pesquisa, que, de forma singular,
resignificaram o presente.
A Paulo Antônio Barros Oliveira, co-orientador, que instigou a reflexão com
sabedoria, desafiando-nos a buscar respostas e a conexão nas inquietações.
Aos membros da banca de qualificação da Tese, Professores Doutores: Annie
Thébaud-Mony, Jane Cruz Prates, Jussara Maria Rosa Mendes e Maria da Graça Hoefel, pela
brilhante, precisa e insubstituível contribuição de cada um na construção e na finalização
desta tese. Bem como, ao Professor Doutor Ricardo Antunes, pela contribuição
imprescindível que, com certeza, trará na banca final.
Ao Sindicato dos Metalúrgicos de Caxias do Sul, pela acolhida e pelo apoio, através
de seus Diretores Assis, Eremi, Mari e Werner; aos advogados Maisa, Assis e João; aos
funcionários Aline, Fátima, Saulo, Alcebiades e Jô e demais integrantes que contribuíram de
forma indireta.
Aos Advogados Paulo Freitas e Paulo Ferreira e aos demais técnicos, médicos e
engenheiros, pelos depoimentos prestados, que se revelaram de grande valia à pesquisa de
campo.
À Engenheira Fernanda Giannasi, Coordenadora da Rede Virtual-Cidadã pelo
Banimento do Amianto para a América, pelo material disponibilizado e pelo exemplo de vida
e luta em defesa das vítimas. Também aos Professores René Mendes e Victor Wünsch Filho,
pela atenção dada aos questionamentos realizados e à contribuição bibliográfica.
6
Aos colegas da Previdência Social, que, de uma forma ou de outra, foram sendo
envolvidos no processo de pesquisa, quer pelas indagações trazidas, quer pela busca de
informações ocultadas no sistema previdenciário. Em particular, à Maria e à Loiva, ao Zir e
ao Walter, à Ana Luiza, à Eliege e à Clari.
Aos colegas professores e aos alunos do Curso de Serviço Social da
ULBRA/Carazinho, pela “escuta sensível” e pela compreensão de todos ao dividirem comigo
momentos de preocupação e alegria, em particular, aos de mais longa caminhada, Rosângela,
Jairo, Sheila e Tânia, cronologicamente citando.
Às médicas Virgínia Dapper e Luciana Nussbaumer do Serviço de Vigilância em
Saúde e da Saúde do Trabalhador da Secretaria Estadual de Saúde, pela contribuição dada ao
processo de busca de informações e pelo trabalho desenvolvido na área de vigilância da
população exposta ao amianto.
Aos demais técnicos da Secretaria Estadual de Saúde vinculados ao Núcleo de
Informações em Saúde, ao Núcleo de Pneunomologia e à 5ª Coordenadoraia de Saúde de
Caxias do Sul, pelas receptividade e disponibilidade de informação.
Aos professores do PPGSS/PUCRS, pelos ensinamentos recebidos e pelos espaços de
discussão oportunizados em todas as disciplinas, em especial, ao Professor Carlos Nelson dos
Reis e à professora da disciplina de Análise de Conteúdo e Documento Histórico, Drª. Núncia
Santoro De Constantino.
Aos colegas de Doutorado do PPGSS/PUCRS, por dividirem coletivamente espaços
de discussão e aprendizado, e aos funcionários, pelo impecável apoio administrativo. Aos
7
integrantes do Núcleo de Estudos em Saúde e Trabalho (NEST), pela contribuição de cada um
nos raros e imprescindíveis momentos em que compartilhei a companhia.
Aos amigos(as) que incentivaram, torceram e estavam ao nosso lado, mesmo que em
pensamento, e outros que, de uma forma ou de outra, tiveram participação nessa caminhada,
aos quais espero poder retribuir palavras e gestos maravilhosos, Fernando, Iara, Marta,
Tafarel, Graça, Bete, Eunice, Sônia, Flávia, Márcia, Solange, Sadi, David, Haidê, Uldejanes,
Beatriz, Karina, Ivadete, Neice, Eliana, Inês, Vera e muitos outros(as).
À CAPES, pelo apoio e pelo fomento dados ao presente Curso de Doutorado em
Serviço Social.
Por fim, a todas as pessoas que compartilham da luta por uma sociedade igualitária e
na defesa da saúde do trabalhador!
“O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião eu tenho sobre as causas e os efeitos?
[...]
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas)”
(Alberto Caeiro - heterônimo de Fernando Pessoa, 2004).
“O aspecto mais problemático do sistema do capital, apesar de sua força incomensurável
como forma de controle sociometabólico, é a total incapacidade de tratar as causas
como causas, não importando a gravidade de suas implicações a longo prazo”
(Istvàn Mészáros, 2002).
SUMÁRIO
Lista de Siglas...................................................................................................................... 11
Lista de Figuras ................................................................................................................... 13
Lista de Quadros .................................................................................................................. 14
Lista de Tabelas ................................................................................................................... 15
RESUMO................................................................................................................................ 16
RESUMÉ ................................................................................................................................ 17
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 18
1 – A DEGRADAÇÃO DO TRABALHO E SEUS REBATIMENTOS NA PROTEÇÃO SOCIAL ....................... 23
1.1 – AS MUTAÇÕES DO PARADIGMA TÉCNICO-PRODUTIVO E SUAS REPERCUSSÕES NOS
PROCESSOS DE TRABALHO .................................................................................................... 25
1.2 – TRABALHO E CONFIGURAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA NA ATUALIDADE .......................... 34
1.2.1 – Desenvolvimento das Forças Produtivas e Organização do Trabalho ...................... 35
1.2.2 – Classe Operária e suas Conformações Históricas e Contemporâneas ...................... 40
1.3 – CAPITAL-TRABALHO, ESTADO E PROTEÇÃO SOCIAL ...................................................... 54
2 – A LACUNA ENTRE SAÚDE E TRABALHO, CONSTRUÍDA A PARTIR DOS RISCOS “SOCIALMENTE”
ACEITÁVEIS ........................................................................................................................... 68
2.1 – O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DA SAÚDE DO TRABALHADOR ..................................... 70
2.2 – O RECONHECIMENTO DA SAÚDE-DOENÇA NO PROCESSO DE TRABALHO:
COMPONENTES DE UMA VISÃO MULTILATERAL ..................................................................... 72
2.3 – O ACIDENTE E A DOENÇA RELACIONADA AO TRABALHO ............................................... 76
2.4 – O AGENTE AMIANTO: GERMINANDO O OCULTO PROCESSO DE SAÚDE-DOENÇA ............. 93
2.4.1 – Revisão Epidemiológica sobre o Amianto................................................................. 94
2.4.2 – O Mineral Amianto como Matéria-Prima no Processo de Trabalho e os
Mecanismos de “Proteção” ao Trabalhador...................................................................... 106
2.5 – O POSICIONAMENTO DO GOVERNO BRASILEIRO FRENTE AO BANIMENTO DO AMIANTO
NO QUADRO ATUAL ............................................................................................................ 119
2.6 – AÇÕES CONTRA O AMIANTO NO CONTEXTO INTERNACIONAL E NACIONAL – OS
CONTRAPODERES ................................................................................................................ 123
10
3 – A GÊNESE DE UMA HISTÓRIA INVISÍVEL: A (DES)PROTEÇÃO SOCIAL NO CONTEXTO DO
TRABALHADOR EXPOSTO AO AMIANTO ................................................................................... 139
3.1 – CONSIDERAÇÕES ACERCA DO MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO .......................................... 141
3.1.1 – O Trabalhador enquanto Sujeito Histórico: A Unidade entre Objetividade e
Subjetividade ..................................................................................................................... 145
3.2 – A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA INVISIBILIDADE: APONTAMENTOS METODOLÓGICOS ........ 150
3.3 – APROXIMAÇÕES COM O OBJETO: SITUANDO O LUGAR E A CATEGORIA DO ESTUDO ....... 155
3.4 – O PERCURSO METODOLÓGICO NO MOVIMENTO DE INVESTIGAÇÃO E DESCOBERTA DA
REALIDADE ........................................................................................................................ 161
3.5 – AS REVELAÇÕES DE QUEM FAZ HISTÓRIA: AS DESCOBERTAS QUE REVERTEM A LÓGICA
DA SAÚDE NO TRABALHO.................................................................................................... 168
3.5.1 – Em Busca da Proteção à Saúde – Baixando a Neblina, Controlando Riscos........... 171
3.5.2 – Da Resistência em Busca do Uso Controlado a Luta pelo Banimento: A Ação
Sindical sob Nova Ótica..................................................................................................... 175
3.5.3 – O Estágio Atual: O Banimento e o Desaparecimento dos Riscos ............................ 178
4 – RESSIGNIFICANDO O PRESENTE: UMA APROXIMAÇÃO COM OS OCULTOS SUJEITOS DA
HISTÓRIA ............................................................................................................................ 181
4.1 – O ESPAÇO FABRIL: CONDIÇÕES E MEIOS DE PRODUÇÃO .............................................. 190
4.2 – A RELAÇÃO AMIANTO, DOENÇA E MORTE: O NEXO SILENCIADO ................................ 196
4.3 – ROMPENDO O SILÊNCIO: A BUSCA PELOS DIREITOS ..................................................... 213
CONCLUSÕES ...................................................................................................................... 216
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 226
ANEXOS
ANEXO 1 – Termo de Consentimento Pós-Informação
LISTA DE SIGLAS
ABEPSS
ABREA
ANDEVA
APS
CA
CAT
CEDOP
CI
CID
CIPA
CLT
CNC
CNI
CNIS
CNTI
CONAR
CRS
CUT
DIEESE
DORT
DPOC
DRA
DRT
EPI
FAT
FINAFF
FIOCRUZ
FMI
FNATH
GIA
IBGE
INAMPS
INPS
INSERM
INSS
L´ALERT
LER
LOAS
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social
Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto
Association Nationale de Défense dês Victimes de L´amiante
Agência da Previdência Social
Certificação de Aprovação
Comunicação de Acidente de Trabalho
Centro de Documentação, Pesquisa e Formação em Saúde e Trabalho
Comissão Interministerial
Código Internacional de Doenças
Comissão Interna de Prevenção de Acidentes
Consolidação das Leis do Trabalho
Comandos Numéricos Computadorizados
Confederação Nacional da Indústria
Cadastro Nacional de Inscrição Social
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria
Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária
Coordenadoria Regional de Saúde
Central Única dos Trabalhadores
Departamento Insersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos
Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho
Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica
Doença Relacionada ao Amianto
Delegacia Regional do Trabalho
Equipamentos de Proteção Individual
Fundo de Amparo ao Trabalhador
Fabrica Italiana Nastri Ed Anelli Per Freni e Frizioni
Fundação Oswaldo Cruz
Fundo Monetário Internacional
Fédération Nationale des Accidentés du Travail et des Handicapés
Grupo Interinstitucional do Amianto
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
Instituto Nacional de Previdência Social
Institut National de la Santé e de la Recherche Medicale
Instituto Nacional do Seguro Social
Association Pour L´etude des Risques au Travail
Lesões por Esforço Repetitivo
Lei Orgânica da Assistência Social
12
MME
MPAS
MT
NEST
NIS
NR
OIT
OS
PAIST
PCMSO
PED
PEP
PIB
PIS
PNAD
PUCRS
PPGSS
S/A
SEADE
SES
SIMECS
STIMMME
SUS
UFRGS
USP
VLE
WTC
Ministério de Minas e Energia
Ministério da Previdência e Assistência Social
Ministério do Trabalho
Núcleo de Estudos em Saúde e Trabalho
Núcleo de Informações sobre Saúde
Norma Reguladora
Organização Internacional do Trabalho
Ordem de Serviço
Política de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador
Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional
Pesquisa de Emprego e Desemprego
Programa de Educação Previdenciária
Produto Interno Bruto
Programa de Inscrição Social
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
Sociedade Anônima
Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados
Secretaria Estadual de Saúde
Sindicato das Indústrias Metalúrgicas de Caxias do Sul
Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metal Mecânica e Material
Elétrico de Caxias do Sul
Sistema Único de Saúde
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Universidade de São Paulo
Valor Limite de Exposição
World Trade Center
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 –
FIGURA 2 –
FIGURA 3 –
Foto do mineral (amianto) bruto..................................................................... 95
Foto das fibras do material ao microscópio.................................................... 95
Tripé de investigação...................................................................................... 188
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 –
QUADRO 2 –
Desenvolvimento conceitual da saúde do trabalhador...............................
Principais doenças relacionadas à exposição ao amianto, com suas
características, sintomas e períodos de latência.........................................
QUADRO 3 – Cronologia de leis sobre a proteção contra o amianto...............................
QUADRO 4 – Agentes patogênicos causadores de doenças profissionais – Anexo II e
Agentes ou fatores de risco de natureza ocupacional com a etiologia de
doenças profissionais – Lista A e Demais doenças relacionadas ao
trabalho – Lista B – relacionado ao amianto..............................................
QUADRO 5 – Síntese dos eventos mundiais na luta contra o amianto e as estratégias
traçadas.......................................................................................................
QUADRO 6 – Países que já decidiram pelo banimento total do amianto.........................
QUADRO 7 – Mecanismos sociais de invisibilidade das doenças provocadas pelo
amianto segundo a ABREA.......................................................................
QUADRO 8 – Síntese do percurso metodológico e das etapas da pesquisa......................
QUADRO 9 – Classificação das situações e/ou agravos relacionados à exposição ao
amianto que geraram a amostra representativa da pesquisa de campo......
QUADRO 10 – Amostra dos trabalhadores com doenças e óbitos relacionados ao
amianto.......................................................................................................
73
100
110
115
128
131
135
166
185
187
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 –
TABELA 2 –
TABELA 3 –
TABELA 4 –
TABELA 5 –
TABELA 6 –
TABELA 7 –
TABELA 8 –
TABELA 9 –
TABELA 10 –
Distribuição percentual dos ocupados no setor de atividade industrial, nas
Regiões Metropolitanas de São Paulo e Porto Alegre – 19891999.............................................................................................................
Taxas de desemprego total nas regiões metropolitanas do Brasil – 198999.................................................................................................................
Distribuição dos postos de trabalho gerados por empresas, segundo a
forma de contratação, nas Regiões Metropolitanas de São Paulo e Porto
Alegre – 1989, 1993-1999...........................................................................
Quantidade de acidentes de trabalho registrados, segundo o motivo, em
algumas Unidades da Federação – 2002......................................................
Quantidade de acidentes de trabalho registrados, segundo a parte do corpo
atingida, no Brasil – 2002..................................................................
Quantidade de acidentes de trabalho registrados, segundo o motivo e os
50 códigos da CID mais incidentes, no Brasil – 2002.................................
Quantidade de acidentes de trabalho registrados, por faixa etária e sexo,
no Brasil – 2002...........................................................................................
Freqüência de óbitos por mesotelioma (C-45) por município de residência
e faixa etária no RS – 1999-03...................................................
Freqüência de óbitos por pnemoconiose devida ao amianto e outras fibras
mineiras (J-61) por município de residência e faixa etária no RS – 199903.................................................................................................................
Fluxo de admissões e demissões dos metalúrgicos de Caxias do Sul –
1995.............................................................................................................
48
50
51
86
87
87
88
102
102
160
RESUMO
Esta tese analisa e desoculta a realidade social dos trabalhadores expostos ao amianto, no Rio
Grande do Sul, partindo do contexto sócio-histórico e das repercussões na contemporaneidade
sobre a sua saúde. Tem-se presente que as doenças relacionadas à exposição ao mineral se
manifestam após prolongado período de latência, com implicações sobre seu processo de
reconhecimento e a proteção social do trabalhador. Paradoxalmente, os mecanismos de
vigilância e monitoramento da população exposta são incipientes. Defende-se a tese de que a
desproteção social dos trabalhadores expostos ao amianto se apresenta duplamente invisível:
por um lado, mascara-se a história ocultando todo o processo de desproteção ocupacional e,
em conseqüência, o reconhecimento das doenças relacionadas e os direitos decorrentes no
âmbito da proteção social; e, por outro, a fase pós-banimento do mineral, que embora
represente um avanço imprescindível nessa luta, vem se constituindo em outra forma de
ocultamento dessa realidade, na medida em que tem ampliado os níveis de desinformação
sobre seus agravos. A pesquisa foi desenvolvida junto aos trabalhadores que, nos seus
processos de trabalho, utilizavam como matéria-prima o amianto na fabricação de autopeças,
constituindo-se nas duas últimas décadas, no maior segmento da população exposta no
Estado, localizando-se na Cidade de Caxias do Sul. Metodologicamente, trabalhou-se com a
perspectiva da construção social da invisibilidade, percorrendo diferentes caminhos e
combinando abordagens quantitativas e qualitativas, através de uma triangulação das
múltiplas modalidades de investigação, o que indicou a necessidade de centrar a pesquisa em
um estudo de caso dos trabalhadores da maior empresa brasileira do setor de automotivo.
Recompõe-se a história através da narrativa dos sujeitos envolvidos na luta pela proteção dos
trabalhadores e pelo banimento do amianto, constatando-se que esse contexto se reveste de
uma ambígua realidade, configurada nas décadas de 80 e 90, em meio a condições de trabalho
precárias e com altos níveis de exposição às fibras de amianto. Após, chega-se aos sujeitos
vitimados, compondo uma amostragem de trabalhadores que adoeceram e/ou morreram por
patologias associadas à exposição ao amianto. Estes compartilham histórias que vão
ressignificar o presente e contribuir para a identificação dos mecanismos sociais que vêm
ocultando os processos de doença e morte relacionados ao trabalho. Conclui-se que a
desproteção social do trabalhador exposto ao amianto é construída em meio à contraditória e
desigual relação entre capital e trabalho, num contexto histórico e também contemporâneo
que expressa e contribui para a invisibilidade dessa problemática, uma vez que a alienação da
força de trabalho, concebida como mercadoria e com um papel social secundarizado no
processo de produção, conjuga a ausência histórica da vigilância em saúde do trabalhador e as
dispersas informações sobre as doenças e mortes relacionadas à exposição ao amianto. Alia-se
a isso o não-reconhecimento das doenças de latência e a identificação do banimento do
mineral com o fim dos agravos sobre a saúde da população exposta. A perspectiva de ruptura
com o ocultamento do nexo, silenciado, entre amianto, doença e morte, será possível através
da organização social e sindical das vítimas na garantia do reconhecimento legal dos seus
direitos e por efetivos monitoramento, vigilância e assistência à população exposta.
Palavras-chave: Serviço Social; Trabalho; Saúde; Amianto; Doença e Morte no Trabalho;
Desproteção Social e Invisibilidade.
RÉSUMÉ
Cette thèse analyse et fait découvrir la réalité sociale des ouvriers exposés à l’amiante dans
l’État du Rio Grande do Sul, Brésil, à partir d’un contexte sócio-historique et de ses
répercussions sur leur santé dans la contemporanéité. On considère que les maladies qui ont
rapport avec l’exposition au minéral se manifestent après une longue période de latence, ce
qui cause des entraînements sur leur processus de reconnaissance et sur la protection sociale
de l’ouvrier. Paradoxalement, les mécanismes de surveillance et de contrôle de la population y
exposée sont encore naissants. On soutient la thèse que le délaissement actuel des ouvriers
exposés à l’amiante se présente doublement invisible : d’une part, on masque l’histoire quand
on cache tout le processus de délaissement dans le domaine du travail et, en conséquence, la
reconnaissance des maladies qui s’y rapportent et les droits qui en sont advenus dans le
domaine de la protection sociale ; et, d’autre part, la phase post-bannissement du minéral, qui
représente une avance indispensable dans cette lutte, vient de constituer, elle aussi, une autre
forme de cacher cette réalité à mesure qu’elle étend les niveaux de méconnaissance des
dommages qu’il cause. La recherche a été développée chez les ouvriers qui faisaient l’usage
de l’amiante comme matière-première dans la fabrication de pièces automobiles, ce qui est
devenu, pendant les deux dernières décades, le plus grand secteur de la population exposée à
l’amiante dans l’État, à la ville de Caxias do Sul. La méthodologie employée a été développée
sous la perspective de la construction sociale de l’invisibilité et a parcouru de différents
chemins en combinant des approches quantitatives et de qualité par le moyen d’une
triangulation parmi les multiples modalités de recherche, ce qui a indiqué le besoin de centrer
la recherche sur une étude chez la plus grande industrie brésilienne dans le secteur
automobile. On rétablit l’histoire à travers le récit de divers sujets mis à la lutte envers la
protection des ouvriers et le bannissement de l’amiante, en vérifiant que ce contexte se revêt
d’une réalité ambiguë configurée dans les décades 80 et 90, parmi des conditions de travail
précaires et sous des très hauts niveaux d’expositions aux fibres d’amiante. Ensuite, on arrive
aux sujets victimes, en composant un échantillon d’ouvriers qui sont tombés malades et même
sont morts à cause des pathologies concernant l’exposition à l’amiante. Ces ouvriers partagent
des histoires qui vont donner un nouveau signifié au présent et aussi contribuer à
l’identification des mécanismes sociaux qui sont en train de cacher les processus de maladie
et de mort qui se rapportent au travail. On conclut que le délaissement social de l’ouvrier
exposé à l’amiante est construit au milieu d’une relation contradictoire et inégale entre le
capital et le travail, dans un contexte historique et aussi contemporain qui contribue à
l’invisibilité de ce problème. On considère l’aliénation de la main-d’oeuvre, concue comme
une marchandise et ayant un rôle social sécondaire dans les moyens de production et qui
conjugue l’absence historique de la surveillance sur la santé de l’ouvrier et les informations
dispersées à propos des maladies et des morts causées par l’exposition au minéral et, en outre,
la non-reconnaissance des maladies de latence et l’identification du bannissement du minéral
à la fin des dommages sur la santé de la population y exposée. La perspective de rupture avec
cette suite amiante, maladie et mort,cachée et omise, sera possible à travers l’organization
sociale et syndicale des victimes en visant à la garantie de la reconnaissance légale de leur
droits et à obtenir la surveillance, l’assistance et le contrôle vraiment effectifs pour la
population exposée à l’amiante.
Les mots-clés: Service Sociale; Travail; Santé; Amiante; Maladie et Mort au Travail;
Délaissement Social et Invisibilité.
INTRODUÇÃO
Este estudo expressa a busca incessante do conhecimento sobre a realidade dos
trabalhadores que adoecem e morrem em conseqüência de doenças produzidas ou
desencadeadas pelo e no trabalho. Ele se lança, metodologicamente, por diferentes caminhos,
com o propósito de identificar e compreender os ângulos mortos1, que têm contribuído para
tornar invisível as desigualdades sociais reproduzidas no processo de saúde-trabalho. Todos
são plenamente desafiadores e permitem trazer para a atualidade a particularidade dos
trabalhadores expostos ao amianto2 e os efeitos sobre a sua saúde, a partir de um contexto
incontestavelmente contraditório e invisível.
A presente tese tem como ponto de partida a problematização de que a proteção social
no contexto da saúde dos trabalhadores expostos ao amianto é revestida por uma complexa e
obscura realidade, o que a torna multifacetada. O trabalhador, ao utilizar esse mineral como
matéria-prima no seu processo de trabalho, está sujeito a apresentar uma lesão residual e
progressiva na sua saúde. Assim, por tratar-se de doença de difícil diagnóstico e de longo
período de latência, poderá trazer implicações sobre sua capacidade produtiva e ao processo
de reconhecimento dos riscos e da doença profissional. Portanto, tem-se como primeiro
1
2
Termo cunhado pela Profª Jussara Mendes, referindo-se aos mecanismos sociais que têm contribuído para
ampliar a invisibilidade social dos acidentes e das mortes relacionadas ao trabalho.
O amianto/asbesto é uma fibra mineral considerada, cientificamente, como um agente patogênico causador de
doença profissional.
19
pressuposto, o fato de que, historicamente, os possíveis danos à saúde do trabalhador, em
particular à do exposto ao amianto, nunca foram reconhecidos e protegidos na dimensão que o
risco exige. Como segundo pressuposto, tem-se a ausência de mecanismos de monitoramento
e vigilância da população exposta que possibilitem a identificação de doenças relacionadas.
O objetivo central da pesquisa, portanto, foi investigar a realidade dos trabalhadores
expostos ao amianto e as expressões decorrentes desse fato relacionadas à proteção social,
envolvendo os aspectos de trabalho e morbi-mortalidade. Buscou-se aprofundar e contribuir
com um estudo sobre os processos de trabalho e suas implicações sobre a saúde do
trabalhador.
A pesquisa teve como foco os trabalhadores de empresas de fabricação de autopeças,
que se constituem no maior segmento da população exposta ao amianto no Estado do Rio
Grande do Sul, Brasil, com incidência na região serrana. Com base num estudo
multidimensional, procurou-se investigar a relação entre exposição do amianto no processo de
trabalho, nas décadas de 80 e 90, período de grande e desenfreada utilização do mineral na
indústria automotiva, e suas repercussões, no contexto histórico e contemporâneo, sobre a
saúde dos trabalhadores.
A abordagem dessa temática segue o enunciado de que a saúde do trabalhador
constitui-se em campo de permanente contradição entre capital e trabalho, reproduzindo nele
a tendência historicamente presente no desenvolvimento das forças do capital, que, enquanto
sistema hegemônico, conforma uma sociedade desigual. O descompromisso com a saúde no
trabalho reflete essa desigualdade, materializada na organização dos processos produtivos e
na secundarização do papel que o trabalhador ocupa nele, bem como não reconhece o trabalho
20
como desencadeante de doenças que danificam a saúde de quem produz, tornando-o
descartável e substituível, na mesma lógica da dinâmica produtiva.
A tese aqui defendida é a de que a desproteção social dos trabalhadores expostos ao
amianto apresenta-se duplamente invisível: por um lado, mascara-se a história, ocultando todo
processo de desproteção ocupacional e, em conseqüência, o reconhecimento das doenças
relacionadas ao amianto e os direitos decorrentes no âmbito da proteção social; e, por outro, a
fase pós-banimento do mineral, que, embora represente um avanço imprescindível nessa luta,
vem se constituindo em outra forma de ocultamento dessa realidade, na medida em que tem
ampliado os níveis de desinformação sobre seus agravos.
A tese está organizada em quatro momentos. Discute-se, inicialmente, a degradação do
trabalho e os rebatimentos na proteção social, partindo-se da análise dos processos de trabalho
e de suas formas de organização, numa permanente interlocução com a configuração da classe
operária em meio ao desenvolvimento das forças produtivas. Busca-se compreender, no
contexto evidenciado, o papel do Estado na relação capital-trabalho, tendo como pano de
fundo a proteção social, explicitada numa dimensão multifacetária.
Num segundo capítulo, evidencia-se a lacuna existente entre saúde e trabalho,
construída a partir de riscos “socialmente” aceitos pelo sistema do capital e que se refletem
nas perspectivas de abordagens sobre a saúde do trabalhador descontextualizada do processo
social e produtivo que permeia toda a sua vida. Assim, o movimento realizado foi o de
aproximar a relação entre saúde e trabalho, bem como o de revelar o contexto obscuro no qual
se processam os acidentes e as doenças relacionadas ao trabalho. Após, contextualiza-se o
amianto enquanto agente nocivo, utilizado mundialmente e em larga escala, mais
21
precisamente no âmbito ocupacional. Resgata-se a legislação acerca do mineral, bem como os
mecanismos e avanços obtidos para coibir e banir a sua utilização em diversas nações, a partir
de ações que visam estabelecer contrapoderes à ordem instituída secularmente.
A desproteção social no contexto do trabalhador exposto ao amianto constitui-se como
gênese de uma história, identificada no terceiro capítulo como invisível. Essa invisibilidade é
construída em meio a relações de poder socialmente determinadas, as quais promovem o seu
ocultamento, sendo possível caminhar e avançar metodologicamente tendo como bússola um
método que compõe uma teoria social crítica, referenciado pelo marxismo. Chega-se ao
objeto de estudo, rompendo-se com o fetichismo do fenômeno pesquisado através da
perspectiva metodológica da construção social da invisibilidade. Percorrem-se diferentes
caminhos, combinando abordagens quantitativas e qualitativas, através de uma triangulação
entre as múltiplas modalidades de investigação, o que indicou a necessidade de centrar a
pesquisa em um estudo de caso dos trabalhadores na maior empresa brasileira do setor de
autopeças e em número de trabalhadores expostos, neste segmento produtivo.
Assim, ainda no terceiro capítulo, revela-se o contexto sócio-historico do trabalhador
exposto ao amianto, apresentando a particularidade de uma empresa do setor automotivo que
produz pastilhas e lonas de freios tendo como matéria-prima o mineral amianto –, nas últimas
duas décadas. Recompõe-se a história deste período, que é contada por sujeitos que se
envolveram na luta pela proteção à saúde do trabalhador, inicialmente se atendo ao seu caráter
legal, mas que, progressivamente, ampliando a visão, culmina na busca da supressão do uso
de amianto de natureza ocupacional e ambiental. Revela-se, nesse terceiro momento, uma
realidade incontestável: a excessiva exposição ao amianto e a ausência de proteção
ocupacional, em que pese toda a ação sindical e fiscal. Demonstra-se, por sua vez, que o
22
banimento do amianto na atualidade traz, para os dias de hoje, as duas faces dessa história:
por um lado, representa uma conquista no campo da saúde do trabalhador e, por outro, cria
uma representação social equivocada de que os efeitos nocivos do mineral desapareceram.
Por fim, chega-se a uma aproximação com os sujeitos ocultados pela história
igualmente oculta. Assim, no quarto capitulo, traz-se a ressignificação do presente, ao se
identificarem trabalhadores que adoeceram ou morreram com doenças relacionadas ao
amianto. Os mesmos emergiram de uma busca ativa, estabelecida a partir da constituição de
uma rede que se ramifica em todas as etapas da pesquisa de campo e principalmente após a
ruptura com as estatísticas oficiais. A amostragem apresentada é, pois, representativa de um
fenômeno empírico mais amplo e explicita a convergência entre a história reconstruída e o
passado-presente narrado pelos sujeitos vitimados pelo uso indiscriminado do amianto.
É imprescindível, entretanto, reconhecer no processo de pesquisa o papel da incursão
teórica no seu desenvolvimento, à qual as descobertas de campo acrescentaram contribuições
inatingíveis, pela via do empirismo. Tem-se a consciência de que os fenômenos estudados e
aqui apresentados são constitutivos de momentos valorosos e, com a certeza, inacabados.
Perpassando todos os momentos da tese, apresentam-se algumas considerações finais,
as quais geram inquietações, indagações e inconformismo frente à realidade evidenciada, mas,
ao mesmo tempo, apontam perspectivas para que se possa romper com essa lógica,
estabelecendo novas relações envolvendo novos sujeitos. Assim como o conhecimento da
realidade social – matéria-prima a ser transformada –, já trouxe a possibilidade de substituição
da matéria-prima amianto, esta agora aponta, indiscutivelmente, a necessidade de tornar
visível o que, na atualidade, se manifesta de forma contraditória e duplamente invisível.
1 – A DEGRADAÇÃO DO TRABALHO E SEUS REBATIMENTOS NA PROTEÇÃO SOCIAL
A cronologia demarca períodos – breves ou prolongados –, da história que concentram
características comuns de uma sociedade e as suas principais transformações e contradições.
Talvez, por isso, vive-se com a impressão de que o momento presente sempre carrega algo de
novo e desafia cada época a construí-lo.
A virada para o século XXI trouxe consigo inúmeras projeções que recolocavam sobre
ele a responsabilidade do novo. O capital buscou uma nova etapa de acumulação, a qual
passou a ser chamada de flexível. O trabalho nutriu o desejo, sem muitas esperanças, de
reverter a tendência de sua degradação, que se instaurou no último quarteirão do século
passado.
Passados poucos anos do início da “nova” era, constata-se a afirmação dessas
tendências, legitimadas pelo curso histórico engendrado há mais de um século. Com esse
propósito, buscar-se-á trilhar, neste primeiro capítulo, pelo menos em parte, o percurso das
transformações históricas que subtraíram do trabalho, do Estado, e da proteção social
elementos constitutivos do seu papel histórico, forjados com o desenvolvimento das forças
produtivas. O exame do tempo presente indica um movimento evolutivo que redimensiona as
relações sociais de produção e identifica uma permanente instabilidade. Aquilo que outrora
24
era tido como conjuntural foi se afirmando como estrutural, ou seja, não mais uma crise
econômica momentânea do capitalismo, mas, sim, após sucessivas décadas, pode-se creditar
ao próprio sistema social em curso o fator desencadeante e revelador de sua crise inerente.
O trabalho, neste contexto, consolidou-se, principalmente no final do século XIX e em
meio ao século XX, como fator de integração social, quer pelo crescimento da absorção da
mão-de-obra, quer pela articulação entre a organização dos trabalhadores e conquistas sociais,
que se transformaram em direitos sociais, tendo, no Estado, o regulador e o provedor de
garantias legais. Portanto, os pilares da proteção social foram assentados nas necessidades
sociais que emergiram da relação capital e trabalho. Sua edificação consolidou-se com o
crescimento da classe operaria, sua organização e presença nos cenários político e social.
Propõe-se aqui um debate sobre o percurso histórico que engendrou o trabalho como
força insubstituível no processo de produção e suas mutações, as quais trazem rebatimentos
no contexto da proteção social e vice-versa. Busca-se elucidar as transformações que ocorrem
no seio destes e que, de forma degradante, vêm alterando os padrões da sociedade fundados
no trabalho assalariado. Desse cenário, desponta uma nova configuração da classe operária,
condicionada pelas modalidades de organização e gestão do trabalho, que fazem desaparecer
os velhos mecanismos de proteção social e que, retrogradamente, impedem a emergência de
novas formas de enfrentar o conflito capital e trabalho.
25
1.1 – AS MUTAÇÕES
DO
PARADIGMA TÉCNICO-PRODUTIVO
E SUAS
REPERCUSSÕES
NOS
PROCESSOS DE TRABALHO
A premissa inicial desta análise passa pela compreensão de que a categoria trabalho
não se restringe apenas a uma determinada atividade laboral do ser humano, mas de que essa
atividade o permeia na sua totalidade. A operação física e mental do trabalho acaba por
mediar um processo de transformação da natureza e da sociedade e contribui para a
reprodução da vida social e material. São dimensões que se complementam pela significação
ontológica enquanto necessidade humana e moral que constitui a especificidade do homem,
sua identidade e sociabilidade.
A existência humana pressupõe o trabalho como indissociável de sua condição;
historicamente, seu sentido e organização vêm sofrendo mutações sem, no entanto, alterar o
princípio básico da sua reprodução individual e social, pois a conexão entre homem e natureza
incide mutuamente sobre as condições materiais necessárias à sobrevivência da vida humana.
Abreviadamente, pode-se verificar que, desde as comunidades primitivas, onde existiam as
formas instintivas de trabalho, passando, pelo escravismo, pelo feudalismo e pelo capitalismo,
o trabalho foi constitutivo desses modos de produção.
Com o advento do modo de produção capitalista, o trabalho ganha nova dimensão
através das relações econômicas que se estabelecem entre o capitalista e o trabalhador,
quando o primeiro compra trabalho como mercadoria.
Assim sendo, Karl Marx, em O Capital, evidencia o duplo caráter do trabalho
materializado na produção da mercadoria. Esta nada mais é do que o produto do trabalho,
26
servindo para satisfazer determinadas necessidades humanas e possuindo dois valores: o valor
de uso e o valor de troca. O primeiro contém a dimensão qualitativa do trabalho e refere-se ao
seu caráter de utilidade onde está contido o trabalho concreto, portanto, gerador de valor de
uso.
Mas a mercadoria é, ao mesmo tempo, um objeto útil e um condutor de valor. Essa
duplicidade revela que a quantidade da força de trabalho despendida na produção da
mercadoria é o trabalho abstrato, aquele que cria valor de troca ou, simplesmente, valor, pois
o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade ou pelo tempo de trabalho
incorporado a ela. Em outras palavras, a produção da mercadoria traz em si a contradição
entre trabalho concreto e abstrato, entre valor de uso e valor de troca, e, portanto, a força de
trabalho é também uma mercadoria que, ao ser utilizada no processo produtivo, cria valor.
Nessa perspectiva, Marx (1980) amplia o conceito de trabalho para processo de
trabalho, que se constitui no próprio processo de produzir valor. Porém ressalta, antes de tudo,
o pressuposto do trabalho sob a forma exclusivamente humana, através do qual o ser humano
interage com a natureza e, atuando sobre ela, a modifica e transforma a si mesmo, dando,
assim, um sentido útil à vida humana.
Desse modo, no processo de trabalho, a atividade do homem opera uma transformação
no objeto sobre o qual atua por meio de um instrumental de trabalho e está subordinada a um
determinado fim. Esse processo extingue-se ao ser concluído o produto, que tem um valor de
uso, nas palavras do autor: “[...] um material da natureza adaptado às necessidades humanas através
da mudança de forma. O trabalho está incorporado ao objeto sobre que atuou” (MARX, 1980, p. 205).
27
Portanto, são três os elementos que compõem o processo de trabalho, ainda segundo
Marx (1980):
a) a atividade adequada a um fim, isto é, o próprio trabalho – ou a força de trabalho,
que significa a totalidade da capacidade física e mental do trabalhador aplicada ao
realizar o trabalho e que vai sendo aperfeiçoada pela sua habilidade e experiência;
b) a matéria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho, a matéria--prima sobre a
qual o trabalhador atua no processo de produção e que sofre uma transformação;
c) os meios de trabalho, o instrumental de trabalho, que formam um complexo de
coisas que se colocam entre o trabalhador e o objeto de trabalho, no sentido de
facilitar, tornar mais eficiente ou eficaz a sua ação sobre o objeto. Os instrumentos
de trabalho em conjunto com o objeto de trabalho formam os meios de produção.
O trabalho, ao se organizar através de um processo, ganha múltiplas formas, tais são as
diversidades de processos de naturezas distintas, porém têm em comum a produção de uma
mercadoria. Esta, por sua vez, é a unidade do valor de uso e do valor de troca, pois transgride
a simples satisfação de uma necessidade, na medida em que esta se efetiva através do uso
prolongado da força de trabalho, que, por conseguinte, gera valor excedente, comparado ao
tempo socialmente necessário à produção dessa mercadoria, o que se denomina mais-valia,
tema a ser melhor tratado no decorrer deste capítulo.
Retomando a análise dos processos de trabalho, constata-se, ao se fazer uma incursão
em sua evolução histórica, que as principais mudanças que foram ocorrendo na esfera
produtiva dizem respeito à sua base material, principalmente nos meios de trabalho e nas suas
formas de gestão. Estas, por sua vez, evidenciam as diferentes configurações econômicas e
28
sociais de cada período de desenvolvimento histórico, ou seja, “[...] o que distingue as diferentes
épocas econômicas não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz” (MARX, 1980,
p. 204).
As
profundas
transformações
sociais
e
econômicas,
portanto,
podem
ser
compreendidas sob as três revoluções industriais, partindo-se, retrospectivamente, do marco
histórico da Primeira Revolução Industrial3 – iniciada no século XVIII –, passando pelas duas
subseqüentes, ocorridas no século passado. A Primeira Revolução teve como base material,
fundamentalmente, a máquina a vapor e a de fiar e como base organizacional a produção
fabril e o trabalho assalariado. A ocupação da mão-de-obra deu-se basicamente no emprego
industrial. O trabalho realizado era em forma semi-artesanal, insalubre e pesada e exigia do
trabalhador pouca qualificação e, fundamentalmente, dispêndio físico, para dar conta do ritmo
imposto pela exigência da produtividade crescente. A mecanização trouxe também a
perplexidade aos trabalhadores diante de um novo paradigma produtivo, onde a máquina, ao
mesmo tempo em que impunha o ritmo e as condições de trabalho, concentrava os
trabalhadores em espaços comuns, onde passavam a vivenciar, de forma coletiva, processos
sociais que incidiam sobre suas condições de vida e de trabalho. Datam dessa época as
primeiras organizações dos trabalhadores.
Com o advento da indústria automobilística, em 1913, assentada na eletricidade e na
eletromecânica (JOFILLY, 2002), iniciou-se um novo ciclo produtivo, a chamada Segunda
Revolução Industrial, que teve como base organizacional uma nova forma de gestão do
trabalho, que protagonizou, no início do século passado, o emblemático paradigma
fordista/taylorista. Este se processava através da produção em série de linhas de montagem,
3
A Primeira Revolução Industrial é datada de 1780, tendo como país-líder a Inglaterra, com o surgimento da
indústria têxtil (algodoeira).
29
onde a rigidez do trabalho era expressa sob forte controle – fordismo – e onde a execução do
trabalho era submetida ao gerenciamento científico – taylorismo. Esse modelo de gestão
tornou o trabalho cada vez mais fragmentado, intenso, rotineiro, hierarquizado e, ao mesmo
tempo, não qualificado, mas com certo nível de especialidade. O trabalhador,
progressivamente, mais aglomerado nas grandes indústrias, reforçou sua organização sindical
e passou a lutar por garantias sociais, conquistando melhores salários, previdência social,
menores jornadas de trabalho, dentre outras. Após a década de 30, identificou-se o surgimento
do Estado de Bem-Estar Social, que, resumidamente, pode ser caracterizado como tendo por
base a doutrina keynesiana, em contraposição ao liberalismo, aliada ao fordismo/taylorismo.
A aliança entre o Estado e o sistema produtivo garantiu o pleno emprego, o desencadeamento
de um aumento no consumo de massas, e o ascender de um ciclo econômico onde o
crescimento do capital se efetivou através da ampliação dos monopólios e da verticalização
das relações interempresariais.
Por fim, chegou-se à Terceira Revolução Industrial, através da evolução da base
material, que manteve como carro-chefe o setor automobilístico, mas ampliou para o
eletroeletrônico, dando espaço a uma nova tecnologia de nível superior. O paradigma
organizacional assenta-se no toyotismo4. Verifica-se que essa fase do processo produtivo
mundial está aliançada na emergência da doutrina neoliberal, permitindo ao capital uma nova
retomada da sua composição, ou seja, a forma de acumulação não ocorre mais pelo consumo,
mas pela facilidade de concentração e centralização do capital, através da “mundialização” da
economia, que abre as fronteiras para os grandes aglomerados industriais e comerciais.
4
Assim chamado devido a referência ao modelo japonês de organização da produção e do trabalho.
30
Essa fase de acumulação capitalista começou a ganhar forma em meados da década de
70, assentada, então, no novo paradigma técnico-produtivo e sua reestruturação produtiva, o
qual pode ser analisado sob duplo aspecto: primeiro, como parte do desenvolvimento objetivo
da economia mundial, impulsionado pela Terceira Revolução Industrial e, segundo, como
resposta do capital à sua crise de acumulação. Buscava-se, assim, a retomada de um novo
ciclo de desenvolvimento capitalista e a recomposição da margem de lucro e introduzia-se a
flexibilização dos sistemas produtivos em busca de uma melhor adaptabilidade econômica.
Portanto, o que se tem em curso é um padrão de desenvolvimento tecnológico e
econômico tensionado, fundamentalmente, pela redução dos custos da produção e da força de
trabalho, como forma de manter e/ou de ampliar o padrão de acumulação. Isso se evidencia ao
se observarem as inúmeras estratégias adotadas pelas empresas para ampliarem os níveis de
produtividade com menor custo. Segundo pesquisa realizada por Stotz sobre a visão do
empresariado brasileiro frente ao novo paradigma, verificou-se que os processos de
reestruturação realizados pelos mesmos foram implementados de “[...] forma a reduzir custos e
ajustar a capacidade e especificidade da produção ao mercado” (STOTZ, 1997, p. 99). Predomina,
ainda segundo a pesquisa, na redução de custos, a diminuição do quadro de pessoal, incluindo
os cargos de direção e gerenciamento, e não há registros de ampliação dos investimentos em
capital fixo, ensejando, segundo o autor, a prevalência da intensificação do trabalho pelos
trabalhadores que permanecem empregados.
Essa mesma direção vem sendo apontada por Lojkine, ao indicar que a oposição entre
capital constante e variável5 “[...] não é nem uma convenção aleatória, nem um simples
resíduo da organização ‘taylorista’ da empresa. Ela assenta-se no fundamento capitalista da
5
Segundo Marx (1980), capital variável é a parte do capital destinada à compra da força de trabalho; e capital
constante é aquele empregado nas instalações físicas, maquinário e matéria-prima.
31
divisão entre trabalho ‘produtivo’ e ‘improdutivo’ de mais-valia” (LOJKINE, 1990, p. 45). O
autor questiona por que, se a automatização reduziu, em geral, 20% dos custos da mão de
obra, continua a ser esta decisiva na contabilidade das empresas? Aponta que a questão de
fundo está justamente no fato de a força de trabalho representar uma parcela menor no custo
da produção, o que torna, assim, mais fácil obter um acréscimo de 10% na produção do que
reduzir em 10% o custo da matéria Ou seja, a lógica explica-se pela facilidade de o capital se
impor sobre a força de trabalho e de esta fornecer maior produtividade com menor custo,
numa realidade econômica onde o investimento no trabalho morto (capital constante)
necessita renovação contínua frente às tendências do mercado.
Essas
práticas
produtivas,
segundo
Mézaros
(2002),
estão
presentes
no
desenvolvimento produtivo do sistema de capital, na sua história de expansão global, que se
vincula à subordinação das necessidades humanas à reprodução do valor de troca das
mercadorias, ou seja, o valor de uso relativo à necessidade e/ou utilidade das mercadorias é
suplantado pela produção de valor que se auto-expande a partir da criação de novas
necessidades. Desse modo, o aumento imperioso da produtividade deve responder à tendência
decrescente do valor de uso das mercadorias, em outras palavras, a vida útil das mercadorias
deve ter um tempo cada vez menor de duração, para que possa ser substituída por novos
produtos, preferencialmente distintos em qualidade e funcionalidade. Isso é demonstrado por
Antunes, ao trazer o exemplo da indústria de computadores “[....] as empresas, em face da
necessidade de reduzir o tempo entre produção e consumo, ditada pela intensa competição entre elas,
incentivam ao limite essa tendência destrutiva do valor de uso das mercadorias” (ANTUNES, 1999. p.
51).
32
Ocorre, portanto, a partir dessa máxima do capital e nessa fase da globalização dos
mercados, a intensificação do trabalho humano, que, ao ser incorporado à produção de
mercadorias, contribui para diminuir o custo da produção de forma inversa aos investimentos
no capital constante, que, juntos, ampliam a capacidade produtiva. Destaca-se, entretanto, que
o aumento no nível de produção não permitiu um novo ciclo de crescimento e de consumo, ao
contrário, a estagnação prevaleceu.
Portanto, a análise das características do processo de trabalho neste terceiro momento
das revoluções industriais, no capitalismo, evidencia sobremaneira que as mudanças na base
material constituem-se como estratégia mais ampla para elevar os níveis de competitividade e
diminuir o custo final da produção e têm na tecnologia e na informática o suporte logístico
para as novas ferramentas de trabalho (CNC, robôs, etc.), os quais vêm transformando os
sistemas produtivos e elevando de forma vertiginosa os níveis de produtividade.
Conseqüentemente, a forma de organização do trabalho está condicionada por esse novo
hardware, onde a produção é flexível à demanda do mercado, ajustada a um tempo
determinado – Just-in-Time – e submetida a uma qualidade total em que a gerência, agora,
está integrada à execução.
O trabalhador passa, então, a ser disciplinado por um “novo” modelo produtivo e deve
possuir características e habilidades para pertencer, ou melhor, permanecer no mercado de
trabalho, tais como ser polivalente, integrado e saber trabalhar em equipe, no entanto, o ritmo
imposto é cada vez mais intenso, estressante. Alteram-se também as relações de trabalho, a
hierarquia é menor, mas a flexibilização dessas relações torna-se uma camisa-de-força para os
trabalhadores. A conseqüência é evidenciada na forte retração do emprego, principalmente na
indústria, e nas formas de trabalho onde se multiplica o trabalho informal, parcial e precário.
33
Constata-se um aguçamento da contradição entre o nível de desenvolvimento das
forças produtivas e as relações capitalistas de produção (NAKATANI, 2003), revelando novas
características da crise estrutural do capitalismo. Estas, na atualidade, são distintas e mais
graves que em épocas passadas, o que, para Mészaros (2004), revela uma crise do sistema de
capital como um todo, apontando para uma tendência destrutiva crescente, como, por
exemplo, o desemprego crônico.
Retomando a análise das repercussões do novo paradigma técnico-produtivo sobre as
mudanças nos processos de trabalho, percebe-se que a reação dos trabalhadores, até o
momento, se reveste de um novo tipo de perplexidade, e a sua fragmentação tornou-se um
componente positivo para o capital. Ainda é importante verificar a tendência assumida pelo
trabalhador enquanto “parceiro” da empresa na execução do trabalho, bem como a sua
participação – força de trabalho –, nos processos se condiciona e se subjulga, cada vez mais,
ao desenvolvimento do instrumental de trabalho.
Portanto, a evolução da base material, ou seja, dos meios de trabalho – as ferramentas
– vêm determinando a base organizacional, que, por conseguinte, altera todas as formas de
produzir mercadorias. Os meios de trabalho possuem uma centralidade nos processos laborais,
na medida em que subjugam a força de trabalho a si. Com a introdução de novos
instrumentos, altera-se também o grau de desenvolvimento das forças produtivas. Assim,
primeiro, mudam-se os meios de trabalho, e, depois, mudam-se os homens.
Apontam-se, a partir dessa análise, algumas interrogações sobre o presente e o futuro
do trabalho e da classe operária frente às mutações evidenciadas nesse cenário e às
contradições que emergem da crise do sistema de capital. São contradições que se agudizam
34
pelo caráter cada vez mais privado dos meios de produção e pela sua apropriação, em
contraposição à socialização da produção, fruto de um trabalho mais intenso e coletivo. A
preocupação central, portanto, é identificar os determinantes que vêm contribuindo de forma
decisiva para o trabalho e o perfil da classe operária, que vem se metamorfoseando nas
últimas décadas.
1.2 – TRABALHO E CONFIGURAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA NA ATUALIDADE
Um dos principais debates contemporâneos iniciados no final do século XX e com
firme projeção de continuidade e aprofundamento para as décadas seguintes centra-se na nova
configuração da classe operária6. Discute-se sobre a composição da classe que historicamente
vem produzindo a riqueza social e as nuanças da conformação de sua classe social frente às
mudanças nos processos de gestão e organização do trabalho.
Não há aqui a pretensão de se estabelecer uma unidade conceitual sobre o objeto de
estudo, fundamentalmente por estar o tema assentado sobre terreno arenoso, o que se constata
ao fazer a revisão bibliográfica. Busca-se, assim, evidenciar alguns elementos-chave que estão
presentes no exame do desenvolvimento das forças produtivas e na organização do trabalho.
Esses elementos geram indicadores que deságuam sobre a complexa teia que envolve a classe
operária e suas diferentes conformações sócio-históricas. Enfim, retoma-se o indicativo de
6
O emprego do termo classe operária, neste estudo, objetiva revalidar o significado histórico da mesma na
atualidade. A classe operária como categoria de análise permitirá abstrair elementos que contribuirão para a
compreensão do seu processo de mutação e que estão presentes, fundamentalmente, nos quatro eixos
históricos: (a) a classe operária como um produto histórico do capitalismo que, ao longo do seu
desenvolvimento, vem sofrendo transformações quantitativas e qualitativas; (b) o protagonismo da classe
operária e seu papel estratégico na construção dos pilares de uma nova sociedade, referenciado na perspectiva
de análise marxista; (c) a expansão do padrão de trabalho industrial para o conjunto das relações sociais do
sistema de produção capitalista; (d) a centralidade do trabalhador da esfera industrial na construção de políticas
de proteção social, em especial da saúde do trabalhador.
35
que o trabalho e suas mutações permanecem centrais para o processo de valoração do capital e
para o exame das novas configurações da classe operária7.
1.2.1 – Desenvolvimento das Forças Produtivas e Organização do Trabalho
A vigência do sistema de produção capitalista historicamente patenteou o trabalho
como categoria central e estabeleceu uma dualidade contraditória e complexa entre capital e
trabalho. De um lado, o trabalho afirma-se como elemento insubstituível no processo de
produção e reprodução do capital, como impulsionador do desenvolvimento social,
tecnológico e econômico. De outra parte, os trabalhadores vêem-se restringidos a uma parcela
cada vez menor da riqueza socialmente produzida, o que ocorre, principalmente, pela redução
crescente da absorção da força de trabalho, em contraposição ao processo de acumulação do
capital.
O trabalho corporifica-se no capital através do processo de produção; este, além de
conservar o seu valor, cria novos valores, a mais-valia, através do excedente não pago pelo
uso da força de trabalho (MARX, 1980). Pode-se ressaltar, no entanto, que o trabalho
empregado no processo de produção também proporciona o desenvolvimento das forças
produtivas, especialmente na evolução de sua base material. Nessa base, os meios de trabalho,
as ferramentas, vêm sendo determinantes para as transformações nas bases organizacionais e,
7
Evidencia-se que o aprofundamento desse debate vem sendo secundarizado no processo de construção do
conhecimento e da formação profissional do assistente social. O Serviço Social como uma especialização do
trabalho coletivo, inscrito na divisão sociotécnica do trabalho (ABEPSS, 1997), é, ao mesmo tempo, um
produto determinado historicamente e condicionado à realidade social que requisita a profissão. Portanto,
aprender com e sobre a classe social “demandante” histórica do trabalho profissional é condição essencial para
o processo de afirmação do Serviço Social na dinâmica societária, contribuindo, assim, para a busca de novas
formas de articulação de ações profissionais voltadas ao enfrentamento da questão social, a qual emerge desse
novo contexto da organização da produção material e social.
36
por conseguinte, alteram todas as formas de produzir mercadoria, transformando os processos
de trabalho e, ao mesmo tempo, substituindo parte desse trabalho humano.
A produtividade, fruto de um trabalho socialmente combinado, é determinada por
diversas circunstâncias. Entre estas, segundo Marx, “[...] está a destreza média dos trabalhadores,
o grau de desenvolvimento da ciência e sua aplicação tecnológica, a organização social do processo de
produção, o volume e a eficácia dos meios de produção e as condições naturais” (MARX, 1980, p. 46).
Assim, quanto maior a produtividade do trabalho, menor o tempo necessário para a
produção de uma mercadoria. Marx adverte, porém, que não é a mercadoria o produto final do
processo de produção, mas, sim, a criação da mais-valia para o capital. Isso ocorre quando é
feita a conversão real do dinheiro, ou da mercadoria, em capital, pois o processo de produção
absorve mais trabalho do que o que foi comprado.
Tais reflexões evidenciam que as mudanças nos processos de trabalho têm implicações
nas formas das relações sociais e que, na verdade, esses processos são organizados e
executados como produto dessas relações. Em determinadas épocas, eles entram em conflito,
rompendo seus limites, mas, segundo Braverman, “[...] as mesmas forças produtivas
características do fecho de uma época de relações sociais são também características da abertura da
época seguinte” (BRAVERMAN, 1987, p. 27). Portanto, as mudanças nos processos de produção
incidem sobre as relações de produção e, conseqüentemente, sobre todas as relações sociais.
Vale ressaltar aqui, nesse sentido, a transição do processo de produção
fordista/taylorista para a vigência de um novo padrão industrial e tecnológico, com novas
modalidades de organização e gestão do trabalho. Essa transição, conforme já referenciado,
37
tem recebido a denominação de reestruturação produtiva – com base no modelo toyotista –
e/ou acumulação flexível8. Ela traduz essa nova era de transformação das relações sociais.
Para melhor exame dessa realidade, em primeiro lugar, está colocada a herança da
cultura do processo anterior no atual padrão de desenvolvimento capitalista. O trabalhador
massa do fordismo coexiste com o trabalhador polivalente, especializado e com maior nível
de instrução. A transformação nos processos produtivos criou novas exigências, deixando
para trás um passivo de trabalhadores úteis, desqualificados e hostilizados para os padrões do
“mundo” do trabalho desenvolvido em contraposição a um “mundo” do trabalho
subdesenvolvido. A grande questão, no entanto, é que ambos vivem no mesmo mundo,
subjugados a processos opostos.
Cria-se, portanto, um trabalho com novas formas, significados e sentidos. Assim, em
segundo lugar, está o exame do padrão de gestão industrial, bem como suas ramificações para
as diferentes áreas chamadas não produtivas. Isso estabelece novos padrões de
comportamento e estimula diferentes níveis de “participação”. Ocorre, por parte das
empresas, uma espécie de tentativa de despertar no trabalhador a consciência de que pode
aperfeiçoar o processo de trabalho por seu esforço e mérito. Desse modo, é desenvolvido
nesses trabalhadores, o sentimento de participação (IANNI, 1994). Como bem define
Braverman (1987), esse modelo industrial representa muito mais um estilo de administração
do que uma alteração na situação do trabalhador. A pretensa participação dá-lhe liberdade de
ajustar a máquina, trocar uma lâmpada, etc. e “[...] escolher entre alternativas fixas e limitadas,
projetadas pela administração, que deliberadamente deixa coisas insignificantes para escolha”
(BRAVERMAN, 1987, p. 43).
8
Segundo Ianni (1994), a acumulação flexível é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo e
apóia-se na flexibilidade dos processos de trabalho, dos produtos e nos padrões de consumo.
38
Verifica-se que o produto final desse processo tem sido o aumento da produtividade do
trabalho, com a conseqüente diminuição da força de trabalho a ser absorvida. A produtividade
decorrente dos avanços tecnológico e científico intensifica o trabalho humano. Essa
combinação diminui o trabalho vivo e amplia o trabalho morto, ou seja, o desenvolvimento
científico tende a reduzir, cada vez mais, a atividade humana (vivo) em relação ao trabalho
feito pela máquina (morto), sem, no entanto, jamais eliminar totalmente o trabalho vivo. Para
Antunes, a ciência não é a principal força produtiva; “[...] o trabalho vivo, em conjugação com
ciência e tecnologia, constituiu uma complexa e contraditória unidade” (ANTUNES, 1999, p. 121). O
autor conclui, no entanto, que ambas não têm lógica autônoma e nem curso independente, a
exemplo das máquinas inteligentes, nas quais se utiliza o trabalho intelectual do trabalhador
para interagir com elas.
Como desdobramento desse segundo elemento, que combina gestão do trabalho,
aumento da produtividade e redução do trabalho vivo, surge um terceiro componente no
exame das transformações das relações sociais e de produção: a relação entre trabalho
produtivo e improdutivo. E, aqui, depara-se novamente com dificuldades conceituais, mas que
conduzem a um esforço analítico, o que é essencial para o esboço que se pretende traçar. Na
verdade, essa discussão, que se iniciou entre os economistas clássicos, teve em Marx seu
principal interlocutor. Este talvez não tenha sido um aspecto suficientemente aprofundado
pelo autor, pois é no capítulo inédito de O Capital, denominado: Produtividade do Capital.
Trabalho Produtivo e Improdutivo, que Marx (s/d) aponta questões primordiais que exigem
um olhar mais atento de qualquer pesquisador. Ao tratar do trabalho produtivo, o autor
evidencia que só o trabalho que se transforma em capital é produtivo, ou seja, aquele que
produz mais-valia, bem como envolve uma relação determinada entre compra e venda do
trabalho. Ele sinaliza que a atividade produtiva é uma abreviação para designar o conjunto de
39
relacionamentos e dos modos em que a força de trabalho figura no processo capitalista de
produção. Por sua vez, o trabalho improdutivo, para Marx, pode ser entendido como um
processo onde o dinheiro é trocado diretamente pelo trabalho, sem produzir capital e sem ser,
portanto, produtivo, caso em que se está comprando um serviço. O autor alerta, porém, que a
mesma espécie de trabalho pode ser produtiva ou improdutiva e exemplifica através do
trabalho do professor, do escritor, do cantor. Segundo ele, isso ocorre quando o produto deste
trabalho reverte em capital para quem o contratou.
Nesse viés, Braverman destaca que a transformação do trabalho improdutivo em
trabalho produtivo, para os fins capitalistas, é a forma de extrair valor excedente presente no
próprio processo da criação da sociedade capitalista; em outras palavras, o autor é enfático ao
afirmar que “[...] o modo capitalista de produção subordinou a si mesmo todas as formas de trabalho”
(BRAVERMAN, 1987, p. 350).
Ao se rever essa composição entre trabalho produtivo e improdutivo elaborada à luz do
referencial marxista e transportando-a para o atual estágio de desenvolvimento do
capitalismo, pode-se inferir que há pouca distinção a ser feita, na atualidade, acerca do
trabalho produtivo e improdutivo. Isso ocorre principalmente pela apropriação do segundo
pelo primeiro no processo de acumulação capitalista. Quer dizer, embora o trabalho dito
improdutivo não gere diretamente valor excedente, ele se dirige estritamente para o capital,
dando evasão a esse valor distribuído entre os vários capitais. Então, quanto maior for esse
capital, maior será a tendência à ampliação das atividades improdutivas9. Essa realidade tem
sido constatada através do real crescimento do setor de atividade econômica chamado de
serviços (conforme dados a serem apresentados no decorrer deste capítulo).
9
Ver Braverman (1987), em especial, o Capítulo 19, Trabalho Produtivo e Trabalho Improdutivo.
40
Subjacentemente a essa análise, é importante destacar que se tem observado, também,
um decréscimo do trabalho tido como improdutivo no seio da indústria tradicional. Esse fator
vem ocorrendo por dois movimentos. O primeiro deles diz respeito à crescente terceirização
dessas atividades pelas empresas, a exemplo do que ocorre nos setores de alimentação,
limpeza, vigilância, recursos humanos, contabilidade, saúde ocupacional, etc. Esses setores
são operados por empresas prestadoras de serviços e, portanto, contabilizadas na estatística
oficial nesse ramo de atividade econômica. Como segundo movimento, destacam-se as
atividades tradicionalmente realizadas e pensadas pelos funcionários do escritório, nas
indústrias, as quais passam a ser realizadas por trabalhadores do chão-de-fábrica, agora
multifuncionais, os quais passam a incorporar o “improdutivo” às suas funções produtivas.
Transforma-se a natureza do seu trabalho, contribuindo para aumentar o seu valor excedente.
Amplia-se, então, para os trabalhadores que permanecem empregados, a extração da maisvalia nesse processo de trabalho combinado. O embricamento entre ambos e a redução da
absorção da força de trabalho, com o advento da ampliação da produtividade do trabalho, têm
constituído um excedente de trabalhadores com características distintas, mas que se
aproximam pelas circunstâncias econômicas e históricas.
1.2.2 – Classe Operária e suas Conformações Históricas e Contemporâneas
Novas características surgem na presente época de desenvolvimento capitalista,
expressando uma outra configuração de classe operária, fruto da transformação nas relações
sociais e de produção. Pode-se questionar, no entanto, se esta não seria apenas uma nova
forma de organização, com implicações sobre quantidade e materialidade do trabalho. Enfim,
o que, de fato, altera para e no trabalhador, sujeito histórico e coletivo, e, por conseguinte,
para a sua classe social na atual era de acumulação flexível do capital?
41
Segundo Thompson, a classe operária não surge numa determinada hora, “[...] ela
historicamente esteve presente ao seu próprio fazer-se” (THOMPSON, 1987, p. 10). O autor entende
por classe um fenômeno histórico que unifica uma série de acontecimentos díspares e
aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência.
Também não a vê como uma estrutura ou categoria, mas como algo que ocorre efetivamente
nas relações humanas. Thompson continua: “[...] a classe acontece quando alguns homens, como
resultado de experiências comuns, sentem e articulam a identidade de interesses entre si”
(THOMPSON, 1987, p. 10). Tais experiências são determinadas, em sua maioria, pelas relações
de produção. Assim, também o pertencimento a uma classe está relacionado ao papel social
ocupado pelo indivíduo, ou ao modo como ele veio a ocupar esse papel numa determinada
organização social.
Thompson (1987) conclui que o olhar sobre um determinado período da história
demonstrará que não existem classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos;
contudo, o exame dos homens durante um período adequado de mudanças sociais constata
padrões em suas relações, suas idéias e instituições. O autor considera, assim, que a única
definição de classe é estabelecida pelos próprios homens enquanto vivem sua própria história.
Para Marx, a existência das classes está ligada a determinadas fases históricas do
desenvolvimento da produção. Também, a análise marxista de classe operária, traz a
discussão da transformação da classe em si em classe para si. Esta se faz, historicamente,
através das relações objetivas e subjetivas de ação, que vão forjando sua consciência de
classe.
42
Ao examinar a noção de classe, ficam latentes as determinações históricas que
compõem sua estrutura e os processos sociais decorrentes, como bem explica Joffily: “As
classes sociais são seres históricos. Possuem uma inserção determinada, e relativamente estável, no
processo da produção e distribuição das riquezas e na luta que daí deriva” (JOFFILY, 2002, p. 66).
As formulações aqui apresentadas tendem a contribuir para uma reposição conceitual
sobre classe operária ou sobre a estrutura de uma “nova classe trabalhadora”. Essas
formulações se constituem numa temática atual, que suscita diferentes interpretações pelos
estudiosos do assunto. Embora com o mesmo sentido semântico, classe operária e classe
trabalhadora, na literatura clássica, apresentam designações diferenciadas. Classe operária,
segundo definição de Engels (1979)10, equivale ao proletariado, ou seja, “[...] a classe dos
assalariados modernos que, não tendo meios próprios de produção, são obrigados a vender a sua força
de trabalho para sobreviver” (ENGELS, 1979, p. 97), enquanto a expressão classe trabalhadora
vem sendo utilizada, na literatura e popularmente, para designar o conjunto de trabalhadores
assalariados urbanos e rurais. Apresentam-se, ainda, nas abordagens dos autores
contemporâneos, diferentes projeções acerca de seu real tamanho e composição na atualidade,
com tendência a indicar uma redução drástica, quantitativamente, do número de operários
fabris. Outras designações assinalam o fenômeno de proletarização da classe média face às
relações que emergem do mercado de trabalho.
Embora se busque aqui uma maior aproximação com a base conceitual da classe em
estudo, a questão central que norteia este trabalho parece não estar na denominação do
conjunto de pessoas que compõe essa parcela da população. Trata-se de abordar o modo como
se conforma ou se estrutura a camada social composta por indivíduos que sobrevivem da
10
Prefácio da edição inglesa do Manifesto do Partido Comunista –1888.
43
venda da sua força de trabalho, independentemente da forma como esta é comprada ou
utilizada no processo de valoração do capital.
Com esse propósito, merece especial atenção o estudo realizado por Braverman (1987)
sobre a estrutura da classe trabalhadora e seus exércitos de reserva. O autor, inicialmente,
discorda da concepção de “nova classe trabalhadora”, apregoada por diferentes escritores. Ele
entende que o próprio termo classe trabalhadora “[...] nunca delineou rigorosamente um
determinado conjunto de pessoas [...] e sim um processo social em curso” (BRAVERMAN, 1987, p.
31), cujas características ensejam um processo dinâmico e não passível de quantificação. O
autor ressalva, como método de análise, que o termo “novo” pode trazer duplo sentido, ou
seja, abranger a idéia de novas ocupações, recentemente criadas ou ampliadas, e ainda,
supostamente, pode ser entendido como algo superior ou avançado em relação ao antigo.
Sem dúvida, a análise de Braverman é composta por uma série de elementos que
demonstram, na essência, como o desenvolvimento dos processos de trabalho interage na
estrutura da classe operária. O autor entende que “[...] as novas massas de ocupação das classes
trabalhadoras tendem a crescer, não em contradição com a rápida mecanização e ‘automação’ da
indústria, mas em harmonia com elas” (BRAVERMAN, 1987, p. 323). Alguns indícios de tal
afirmação são: os setores industriais e ocupacionais que mais crescem na era “automatizada”
tendem, a longo prazo, a ser aqueles de intenso trabalho, que ainda não foram ou não podem
ser submetidos à tecnologia superior. Tal constatação, quase 30 anos depois, vem se
confirmando. É visível a diminuição de postos de trabalho na grande indústria tradicional;
porém, ao seu redor, formam-se inúmeras pequenas indústrias, que realizam trabalhos
terceirizados para a “fábrica mãe” e empregam um número expressivo de trabalhadores em
condições de trabalho e salários inferiores. Nas palavras do autor:
44
A mecanização da indústria produz um excedente relativo da população
disponível para o emprego a taxas inferiores de salário que caracterizam
essas amplas ocupações [...] à medida que o capital transita para novos
setores à busca de investimentos lucrativos, as leis de acumulação do capital
nos setores antigos operam para produzir a ‘força de trabalho’ exigida pelo
trabalho em suas novas encarnações” (BRAVERMAN, 1987, p. 323).
Nesse sentido, evidencia-se que a mecanização dos processos de trabalho produz mão-de-obra para a exploração de outros segmentos, com processos produtivos mais arcaicos.
Portanto, as novas ocupações, na maioria, não vêm ocorrendo, nas “modernas” indústrias, em
seus processos de trabalho “modelo”. A coexistência de ambos realimenta a acumulação
capitalista, e a classe operária vai sofrendo transformações que a fragmentam. Isso ocorre
tanto pela sua pulverização em espaços produtivos e ocupacionais distintos quanto pela
crescente diferenciação salarial e a qualificação profissional. Pode-se ressaltar, ainda, que o
trabalhador perde sua autonomia em relação ao seu processo de trabalho, que não é
organizado por ele. Na verdade, sua participação apenas vem contribuir para a maior
eficiência e produtividade do mesmo. Portanto, além do trabalho produtivo, ele passa a
contribuir com o chamado trabalho improdutivo, já que este era tradicionalmente realizado
exclusivamente pelos gestores e técnicos da empresa, conforme já mencionado. É justamente
o que mostra Lojkine, ao destacar a inexistência de oposição absoluta entre classe operária e
suas mutações, ou seja “[...] o que hoje está prestes a desaparecer não é a classe operária, mas a
secular divisão entre a classe dos trabalhadores manuais (os ‘colarinhos azuis’) e os ‘colarinhos
brancos’” (LOJKINE, 1990, p. 15).
Em seu estudo, Braverman refere que a condição do operário, no estrito senso, vem se
expandindo para o conjunto dos assalariados e trabalhadores em geral, como se “[...] quase toda
a população [tivesse se transformado] em empregada do capital” (BRAVERMAN, 1984, p. 342). O
45
autor aponta também que a força de trabalho que atua nas esferas administrativas e técnicas
das empresas em geral não pode ser comparada à da classe média, embora ocupem:
[...] posições intermediárias, não porque esteja fora do processo de aumento
do capital, mas porque como parte deste processo assumem características de
ambos os lados. Não apenas recebe suas parcelas de prerrogativas e
recompensas do capital como também carrega as marcas da condição
operária (BRAVERMAN, 1987, p. 344).
Ricardo Antunes, em suas contribuições à temática, defende uma noção ampliada de
classe. Utiliza-se da expressão classe-que-vive-do-trabalho, onde objetiva “[...] conferir
validade contemporânea ao conceito marxiano de classe trabalhadora” (ANTUNES, 1999 p. 101).
Antunes contrapõe-se aos autores que defendem o fim das classes sociais e do trabalho,
buscando dar atualidade e amplitude ao ser social que trabalha.
De sua parte, a classe-que-vive-do-trabalho inclui, nos dias atuais, a totalidade dos que
vendem a sua força de trabalho, mas que têm como núcleo central os trabalhadores
produtivos, encontrando no proletariado industrial o seu núcleo principal. Essa classe engloba
também os trabalhadores improdutivos, compostos de expressivo leque de assalariados,
principalmente inseridos no setor serviços, em bancos, no comércio, nos serviços públicos,
etc. Antunes (1999) considera os trabalhadores em serviços um segmento em expansão no
capitalismo contemporâneo, embora reconheça a retração de alguns setores.
Sua noção ampliada de classe trabalhadora inclui todos os que vendem sua força de
trabalho em troca de salário; portanto, além do proletariado industrial e dos assalariados de
serviços, “[...] também o proletariado rural, [...] o proletariado precarizado, o suproletariado moderno,
os trabalhadores terceirizados, [...] além dos trabalhadores desempregados” (ANTUNES, 1999, p.
103). O autor exclui os gestores do capital, seus altos funcionários, que detêm o controle do
46
processo de trabalho e o de valorização e reprodução do capital no interior das empresas. O
mesmo ocorre com os pequenos empresários e a pequena burguesia urbana e rural.
Além de formulações que indicam componentes qualitativos dessa conformação social,
interessa a aproximação de alguns elementos quantitativos sobre a composição da classe
operária, para um estudo mais acurado das ocupações que compõem a realidade do mercado
de trabalho. Nesse sentido, chama atenção a ponderação feita por Duarte Pereira (1981),
quando se refere à ausência de um tratamento mais adequado, pelos pesquisadores sociais, às
dimensões e à configuração da classe operária. Para ele, os estudos que se multiplicaram nos
últimos anos cuidaram mais da recuperação da história passada do movimento operário e de
debater suas experiências. Falta, segundo o autor, um estudo que trace os contornos
quantitativos da classe operária, de modo a fornecer elementos mais precisos sobre seu peso
no conjunto da população, sua composição, distribuição, concentração e instrução.
Nesse aspecto, para um estudo de maior profundidade, a efetivação de uma pesquisa
quantitativa depara-se com reais dificuldades. Estas não se impõem exclusivamente pelas
diferentes metodologias de coleta de informações dos órgãos de estatística de âmbito nacional
ou regional, que geram dados focalizados e setoriais. Acima de tudo, as dificuldades são
resultado das mudanças que vêm ocorrendo no mercado de trabalho e do crescimento da
informalidade. Constata-se, então, a carência de novas metodologias de pesquisa que possam
refletir os indicadores que surgem nesse novo contexto.
Há de se destacar, no entanto, o trabalho que vem sendo realizado pelo Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE), em parceria com órgãos
regionais, no esforço de fornecer à sociedade informações atuais acerca da situação dos
47
trabalhadores brasileiros – em especial, dados relativos à década de 90. O DIEESE apresenta,
em publicação denominada A Situação do Trabalho no Brasil – 2001, alguns indicadores que
evidenciam a regressão do trabalho no País. Este processo se evidencia pelo “[...] aumento de
todas as formas de desemprego, crescimento dos vínculos de trabalho vulneráveis, queda dos
rendimentos reais e concentração de renda” (DIEESE, 2001, p. 11).
Destacam-se, deste estudo11, algumas características gerais do mercado de trabalho
brasileiro. Inicialmente, com fonte na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)
de 1999 (IBGE, 2000), verifica-se que a maior parcela da População Economicamente Ativa
está concentrada em três regiões brasileiras – Sudeste, Nordeste e Sul, ou seja, em conjunto,
representam 88,1% da força de trabalho do Brasil. A maior parte dos trabalhadores brasileiros
é composta por jovens, ou seja, 50,5% destes têm entre 20 a 39 anos, com menos de oito anos
de estudo (59,6%), sendo a maioria do sexo masculino (59,7%). Esses dados evidenciam que,
apesar de os trabalhadores terem, na sua maioria, menos de 40 anos, aproximadamente 60%
do total de trabalhadores brasileiros não completaram o ensino fundamental. Isso acarreta,
portanto, implicações sobre a qualificação da mão-de-obra existente. É importante destacar o
expressivo número de mulheres no mercado de trabalho (49%) computado oficialmente, uma
vez que este tende a ser maior frente às características do trabalho feminino.
Quanto à estrutura ocupacional do mercado de trabalho, pode-se considerar que esse
demonstra não apenas sua heterogeneidade, mas sua estrita transformação, principalmente no
que tange às ocupações, conforme o setor de atividade econômica.
11
A publicação do DIEESE contempla informações sobre renda e trabalho; emprego e desemprego, rendimentos
do trabalho; as mulheres no mercado de trabalho; o trabalho da população negra; jovens no mercado de
trabalho; o trabalho de crianças e adolescentes menores de 16 anos; as negociações coletivas de trabalho; a
ocupação agrícola no Brasil; Previdência Social e aposentadorias; políticas públicas de emprego e de proteção
ao desemprego, comparações internacionais.
48
Embora no modo de contratação prevaleça a forma assalariada, ou seja, 58,7%
pertencem a essa modalidade, 23,2% declaram trabalhar por conta própria; 9,3% são
trabalhadores não remunerados em negócios de família; 4,5% produzem para consumo
próprio; e 4,1% são empregadores. A distribuição dos ocupados de acordo com a atividade
econômica, no entanto, consagra o que já se vem observando na realidade concreta: 41,2%
dos trabalhadores são absorvidos pelo setor serviços12; 24,2% estão na agricultura; 13,4%, no
comércio; 12,7% na indústria13, 6,6%, na construção civil. Importante ressaltar que o índice
de ocupação na indústria, na Região Sul, atinge 16%, sendo o mais alto do Brasil, em
contraposição aos 37,6% na área de serviços. Retrospectivamente, esse percentual vem
sofrendo alterações sem precedentes, conforme dados disponíveis nas regiões metropolitanas.
Nessas regiões, os ocupados na indústria (TABELA 1) sofreram uma redução superior a 50%.
TABELA 1
Distribuição percentual dos ocupados no setor de atividade industrial nas
Regiões Metropolitanas de São Paulo e Porto Alegre – 1989-1999
REGIÕES METROPOLITANAS
São Paulo
Porto Alegre
1989
1993
1998
1999
33,0
–
–
24,2
19,8
18,9
14,4
19,0
FONTE: DIEESE/SEADE, MET/FAT, 2001.
Quando se trata da distribuição desses ocupados segundo os ramos de atividades da
indústria, os dados disponíveis referem-se à Região Metropolitana de São Paulo, mas são
emblemáticos, principalmente no setor metal-mecânico, que lidera o ranking de perda de
postos de trabalho, uma vez que os dos trabalhadores empregados na indústria passaram de
33,0% em 1989 para 19,6 % em 1999 (DIEESE, 2001).
12
O setor serviços engloba prestação de serviços, serviços, auxiliares de atividades econômicas, transporte,
comunicação social e administração pública (DIEESE, 2001).
13
A industria envolve a industria de transformação e outras atividades industriais (DIEESE, 2001).
49
Verifica-se que, embora o assalariamento represente quase 60% das ocupações do
Brasil pela PNAD, os dados recentes da Previdência Social (2001) dão outros indicativos
sobre a ocupação dos trabalhadores brasileiros: dos 65,3 milhões da População
Economicamente Ativa, 26,7 milhões estão inscritos na Previdência Social, enquanto 38,7
milhões estão fora da sua cobertura14. Sob a ótica geral, constata-se que, de cada 10
trabalhadores, seis estariam fora da Previdência. Esses dados indicam o crescente número de
trabalhadores no mercado informal, desempregados, etc., revelando implicações para além da
sobrevivência desses trabalhadores, ou seja, também há conseqüências no campo da proteção
social.
Sobre a análise da classe operária hoje, interpõe-se o exame mais atento sobre a
correlação entre emprego e desemprego, assalariados e não assalariados, imposta pela nova
organização do trabalho sob a hegemonia do capital. Assim, evidenciam-se alguns elementos
que diretamente incidem e abalam a estrutura da classe que vive da venda da sua força de
trabalho.
O desemprego tem sido um fenômeno mundial, e vários aspectos da questão social
convergem para eles acentuando sua gravidade e as tensões por ela constituídas (IANNI,
1994). Para Ianni, o desemprego estrutural, tendo como expressão o desemprego prolongado,
pode formar uma subclasse, entendida como uma manifestação aguda da questão social.
No Brasil, o IBGE apontou, através da PNAD de 2001, uma taxa de “desocupação” de
9,4%. As estatísticas, porém, variam muito de região para região, mas, em média, o
desemprego tem sido maior nas regiões metropolitanas. Apresentam-se alguns dados, com
base também no estudo do DIEESE já referido, relativamente a variações anuais das taxas de
14
Dados do PEP/MPAS. Disponível em: <http:// www.previdenciasocial.gov.br>. Acesso em: abr. 2003.
50
desemprego nas principais regiões metropolitanas do País, entre 1989 e 1999, em percentual,
na TABELA 2.
TABELA 2
Taxas de desemprego total nas regiões metropolitanas do Brasil – 1989-99
REGIÃO
METROPOLITANA 1989 1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
Belo Horizonte
12,7
13,4
15,9
17,9
Distrito Federal
15,5
15,1
14,5
15,7
16,8
18,1
19,4
21,6
Porto Alegre
12,2
11,3
10,7
13,1
13,4
15,9
19,0
Recife
21,6
22,1
Salvador
21,6
24,9
27,7
São Paulo
8,7 10,3
11,7
15,2
14,6
14,2
13,2
15,1
16,0
18,2
19,3
FONTE DOS DADOS BRUTOS: Convênio DIEESE/SEADE, MET/FAT e convênios regionais, Pesquisa de
Emprego e Desemprego (DIEESE, 2001).
Constata-se que, embora ocorra variação no índice, principalmente nas regiões que
tradicionalmente apresentam menor nível de industrialização, o certo é que o fenômeno se
manteve crescente em todas as regiões. Nesse sentido, as conseqüências deságuam sobre o
crescimento do trabalho parcial e precário, onde os índices sobre a contratação flexível no
mercado de trabalho em relação à contratação padrão são reveladores. É o que pode ser
observado na TABELA 3. Em São Paulo, de cada 10 trabalhadores assalariados, em média 3,3
não têm registro na carteira de trabalho. Esse índice toma grandes proporções, se comparado
ao crescimento da informalidade, onde estão inseridos inúmeros trabalhadores, sem qualquer
garantia de renda mínima.
51
TABELA 3
Distribuição dos postos de trabalho gerados por empresas, segundo a forma de contratação,
nas Regiões Metropolitanas de São Paulo e Porto Alegre – 1989, 1993-1999
DISCRIMINAÇÃO
Contratação padrão
Contratação flexibilizada
Assalariados contratados diretamente:
Sem carteira – setor privado
Sem carteira – setor público
Assalariados terceirizados
Autônomos para uma empresa
SÃO PAULO
1989
1999
PORTO ALEGRE
1993
1999
79,1
–
66,9
33,1
82,2
–
75,2
24,8
–
–
–
–
17,9
1,7
4,0
9,5
–
–
–
–
12,3
2,2
4,4
5,9
FONTE: Convênio DIEESE/SEADE, MET/FAT e convênios regionais, Pesquisa de Emprego e Desemprego
(DIEESE, 2001).
Conclui-se que a queda no nível de emprego, principalmente no setor industrial, está
dialeticamente relacionada ao crescimento do trabalho flexibilizado. Este pode ser definido
como trabalho precário, com poucos mecanismos de proteção social e também assentado na
crescente terceirização de tarefas antes desenvolvidas no interior da empresa. Agora, os
trabalhos ditos improdutivos são transferidos a empresas de serviços e os produtivos, a
“novas” terceirizadas. Nestas últimas, os operários fazem as atividades de maior risco em
condições mais precárias.
O desemprego é um aspecto representativo das características centrais da realidade
social contemporânea. Na verdade, ele corresponde apenas à parte do excedente da população
trabalhadora necessária para a acumulação do capital, contabilizada oficialmente
(BRAVERMAN, 1987). Essa acumulação, por sua vez, é produzida, mesclando-se com as
diferentes formas de trabalho. Isso torna a população desempregada um grande exército
industrial de reserva15, que, nas palavras de Marx, fornece ao capital “[...] um reservatório
15
Para Marx (1980), com o crescimento do capital global cresce também a parte variável – a força de trabalho –,
mas ela é incorporada numa proporção cada vez menor. Assim, a acumulação capitalista produz uma
população trabalhadora supérflua relativamente, ou seja, que ultrapassa as necessidades médias de expansão
do capital, tornando-a excedente. Para o autor, a ampliação da força de trabalho disponível decorre da mesma
causa que faz aumentar a força expansiva do capital.
52
inexaurível de força de trabalho disponível” (MARX, 1980, p. 746). Alguns autores, como Ianni
(1994), apontam que o tamanho do exército de reserva, em países em desenvolvimento,
excede o total dos empregados na manufatura, na Europa Ocidental.
Importante destacar que a força de trabalho feminina se constitui numa parcela
expressiva desse exército. Ao mesmo tempo, constata-se o aumento significativo do trabalho
feminino, mas com diferentes nuanças na divisão sexual do trabalho. Para Braverman (1987),
a atração da mão-de-obra feminina ocorre em meio à repulsa da força de trabalho masculina.
Sua ocupação na indústria dá-se em atividades de menor qualificação e remuneração, mas é
no trabalho precarizado que se encontra o crescimento do trabalho feminino, na atividade
predominante informal e parcial (ANTUNES, 2000; THÉBAUD-MONY, 2000).
A principal interface emprego/desemprego está na ausência de uma linha divisória
entre inseridos e excluídos no “mundo” do trabalho. Essa linha é pontualmente sinalizada por
Matoso (1994). Para ele, o capital reestrutura-se, movendo-se contra o trabalho organizado,
gerando crescente insegurança e desestruturação do mesmo. Segundo esse autor, a
insegurança no emprego dá-se, fundamentalmente, pela elevação das facilidades patronais em
despedir e utilizar trabalhadores eventuais, assim como através da insegurança na renda. Essa
insegurança está relacionada à fragmentação da atividade remunerada, à contratação em
condições de eventualidade e de precariedade.
O desemprego, portanto, apresenta-se sob múltiplos aspectos: como expressão da
questão social, na constituição de incontável número de trabalhadores ativos que compõem o
exército de reserva, na insegurança no trabalho e no emprego. Acima de tudo, o desemprego
incide de maneira conjugada na configuração da classe operária, seja pela perda do papel
53
social de quem não consegue vender sua força de trabalho – o que afeta a sua subjetividade –,
seja pela mescla de diferentes formas de trabalho, imprimindo uma heterogeneidade à classe e
a seus integrantes.
Em meio a esse contexto, alteram-se as múltiplas determinações sobre a saúde do
trabalhador,
exigindo
um
redimensionamento
dos
conhecimentos
na
área.
Esse
redimensionamento deve contemplar as diferentes manifestações que emergem da relação
trabalho versus saúde/doença. Essa relação, fruto da dinâmica social, tende a ampliar o
surgimento das doenças relacionadas ao trabalho na atualidade e, ao mesmo tempo, a ocultá-las face às diferentes formas de precarização do e no trabalho. O ritmo e as novas exigências
impostas ao trabalho fabril são aspectos que se transpõem para os outros setores da atividade
econômica e para os que estão na informalidade, ou, ainda, se redimensionam quando se trata
de trabalhador desempregado. A saúde do trabalhador tem diferentes faces que expressam, ao
mesmo tempo, formas particulares e gerais desse conflito, bem como as tensões presentes na
relação capital e trabalho.
Retrospectivamente, na perspectiva de análise adotada neste estudo, procurou-se
evidenciar elementos que contribuíssem para a compreensão do perfil da classe que detém, a
priori, apenas a sua de força de trabalho. Na contemporaneidade, frente às tendências que
pautam a configuração da classe operária, viu-se que estão imbricados os trabalhadores que
exercem atividades produtivas e improdutivas, empregados e desempregados, trabalho formal
e informal, parcial e precário, feminino e masculino, ocorrendo, freqüentemente, uma
sobreposição dessas condições. O entrelaçamento das diferentes expressões de trabalhadores
denota, num primeiro momento, a inexistência de um divisor de águas, sobretudo entre o
trabalho produtivo e o improdutivo, como mecanismo para estabelecer o pertencimento à sua
54
classe. O modelo de acumulação flexível apropria-se de maneira combinada, de mecanismos
rudimentares e “modernos” e com um custo cada vez menor da força de trabalho, onde todos
contribuem para que o trabalho se transforme em capital, e este, por sua vez, não tem se
transformado efetivamente em trabalho.
Essa discussão em processo de permanente construção permite inferir que se fala de
um trabalhador que é sujeito histórico e, por isso, está envolto num processo coletivo. Esse
conforma uma classe social que concentra, na atualidade, um expressivo número de operários
e trabalhadores em geral, desprovidos do acesso à riqueza socialmente produzida. Sua
unificação necessária tem sido ainda insuficiente, por conta da vivência, sem a devida
consciência, numa mesma realidade social a ser potencialmente transformada.
1.3 – CAPITAL-TRABALHO, ESTADO E PROTEÇÃO SOCIAL
As mudanças que envolvem a esfera do trabalho na sociedade atual têm repercussões
na proteção social, estando contextualizadas na redefinição paradigmática do papel do Estado.
Há um descompasso no tripé capital-trabalho, Estado e proteção social, protagonizado pelas
necessidades que emergem das novas formas produtivas, as quais alteram não só a natureza
dos seus processos, como já se viu, mas principalmente o volume de emprego e as relações de
trabalho. Do mesmo modo, a incidência da questão social decorrente dessa nova configuração
social e recorrente de antigas manifestações socialmente reconhecidas em meio à fratura da
sociedade dividida em classes sociais, depara-se com a ausência de novas respostas do Estado,
circunscrita na regulação das relações sociais da produção capitalista, que foram garantindo a
base de legitimação ao capital. Como afirma Mészáros “A formação do Estado moderno é
55
uma exigência absoluta para assegurar e proteger permanentemente a produtividade do
sistema” (MÉSZÁROS, 2002, p. 106).
Num processo secularmente constituído, o capital e o Estado foram sofrendo
transformações que geraram mudanças societárias, as quais são, ao mesmo tempo,
condicionantes e condicionadas por processos sociais sincronizados entre a ação e a
intervenção de ambos.
O Estado moderno – na qualidade de sistema de comando político
abrangente do capital – é, ao mesmo tempo, o pré-requisito necessário de
transformação das unidades inicialmente fragmentadas do capital em um
sistema viável e o quadro geral para a completa articulação e manutenção
deste último como sistema global (MÉSZÁROS, 2002, p. 124).
Brevemente, podem-se destacar quatro momentos importantes na história mundial que
evidenciam a presença do Estado como agente facilitador do processo de acumulação
capitalista. Inicialmente, a passagem da sociedade feudal para a capitalista foi abreviada pelo
poder do Estado, que adotava sistemas de tributação e protecionista que potencializavam a
acumulação de capital, bem como contribuiu para prosperar o comércio e a navegação, “[...] as
riquezas apresadas fora da Europa pela pilhagem, escravização e massacre refluíam para a metrópole
onde se transformavam em capital” (MARX, 1984, p. 871).
A passagem do capitalismo para sua fase monopolista, resultante de um processo
crescente de concentração e centralização de capital, o consolidou como sistema hegemônico.
Nessa fase, denominada “imperialista”16, o chamado capitalismo monopolista de Estado
iniciou uma nova era, que se faz acompanhar do avanço das forças produtivas e à expansão do
capitalismo em nível mundial; na busca da manutenção da hegemonia, opor-se à organização
16
Para um maior aprofundamento sobre essa fase, ver Hobsbawm – A Era dos Impérios – e Lênin – O
Imperialismo. Fase Superior do Capitalismo.
56
ascendente da classe operária. O Estado, aqui, busca também suprir as distorções causadas
pelos mecanismos econômicos, atuando no conflito capital-trabalho.
Foi no século XX, em particular após o período entre-guerras, que o capitalismo viveu
seu grande momento de expansão, alavancado pelo apoio do Estado. O padrão produtivo
fordista que caracteriza essa fase é marcado pela produção e pelo consumo em massa, sendo
respaldado pelo chamado Welfare State ou Estado de Bem-Estar Social, onde “[...] o Estado é o
articulador, coordenador, financiador e programador das grandes linhas macroeconômicas da atividade
produtiva e da sociedade” (REIS, 1997, p. 82).
Com esse novo modelo, a economia avançou ainda mais no sentido de sua
internacionalização/globalização, contribuindo para a reestruturação do capitalismo. Isso
significou um espetacular crescimento econômico. Segundo Hobsbawm (1995), o capitalismo
reformado é uma espécie de casamento entre liberalismo econômico e democracia social, que,
na literatura clássica, é definido como keynesianismo. Esse modelo de desenvolvimento
começou a apresentar os seus limites no final da década de 60 e início da de 70, sendo
refreado pela sua própria dinâmica quando o mercado não conseguia absorver a sua
superprodução. A acumulação capitalista entrou em crise, e, assim, o modelo produtivo que
dava sustentação a essa fase do capitalismo começou a se esgotar, dando lugar a uma nova
forma de organizar o trabalho e de acumular capital.
Na década de 80 e, em particular, na de 90, para os países em desenvolvimento, o
quarto momento histórico emergiu como um novo projeto político e econômico que foi se
consolidando sustentado pelo paradigma neoliberal. Este se apresenta contra qualquer
limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, defende a estabilidade monetária
através da disciplina orçamentária, a contenção de gastos com bem estar e reformas fiscais
57
(ANDERSON, 1995). Opõe-se ao Estado de Bem-Estar Social, bem como restringe a visão de
proteção social, impondo cortes com os gastos sociais. Ou seja, a partir do Consenso de
Washington17, o Estado assumiu um outro papel, que, na particularidade do Brasil, resultou na
perda de autonomia para traçar a política econômica, a qual passou a ser definida pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI), com conseqüência sobre a soberania nacional.
Em síntese, as mutações da sociedade capitalista, no século XIX e ao longo do século
XX, apoiaram-se nas doutrinas de pensamento que se sucederam: inicialmente, no liberalismo
clássico, após, no keynesianismo e, por fim e atualmente, no neoliberalismo, onde o Estado
tem papel central na efetivação das mudanças sinalizadas pelo paradigma em curso.
Paradoxalmente, as mudanças estruturais que se verificam na sociedade atual criaram novos e
complexos problemas para o Estado capitalista (PEREIRA, 2002). Essa premissa ganha
visibilidade ao ser analisa sob a vertente da proteção social, esta entendida aqui como um
conjunto de ações que visam assegurar as necessidades sociais da população sob a égide do
Estado enquanto gestor de políticas sociais públicas. Estas últimas são compreendidas como
uma mediação entre Estado e sociedade, (FLEURY, 1994), conformadas através de um
sistema de proteção social na denominada seguridade social.
Trata-se de uma concepção de seguridade social que construiu o sistema universal de
proteção social ao longo do século XX, desenvolvendo-se endogenamente através da
sociedade salarial e constituindo-se num mecanismo de enfrentamento da questão social18,
que expressa o conflito das relações sociais na sociedade capitalista e as contradições entre
17
O Consenso de Washington constitui-se num modelo de desenvolvimento elaborado pelo Banco Mundial e
pelo Fundo Monetário Internacional. Segundo Ana E. Mota, (2000, p. 80), este deve ser pensado como um dos
meios pelos quais a burguesia internacional imprime uma direção política de classe às estratégias de
enfrentamento da crise dos anos 80, especialmente no que diz respeito às reformas a serem implementadas
pelos países periféricos, devedores do capital financeiro internacional.
18
Segundo Castel (2001), a questão social foi assim nomeada pela primeira vez em 1830, a partir da tomada de
consciência das condições de existência das populações que são, ao mesmo tempo, os agentes e as vítimas da
revolução industrial.
58
produção coletiva e apropriação privada da riqueza social. Essa desigualdade gera conflitos
que, por sua vez, provocam resistência e organização por parte da classe operária.
A questão social não é senão as expressões do processo de formação e
desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da
sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do
empresariado e do Estado (IAMAMOTO; CARVALHO, 1983, p. 49).
É possível identificar-se que a evolução das políticas sociais públicas respondeu ao
avanço da organização da classe operária, que buscava e continua buscando a proteção contra
os riscos inerentes às condições sociais em que vive, assim como a satisfação de necessidades
sociais básicas para a sua reprodução. A conformação de um sistema de seguridade social,
portanto, indicava a idéia de superação do conceito de seguro social, significando que a
sociedade seria solidária com o indivíduo colocado em dificuldades pelo mercado (VIANNA,
2002).
A questão da seguridade social, entretanto, tem como condicionante mais recente a
realidade econômica e política manifestada a partir da década de 80, que surgiu com o ideário
neoliberal. Segundo Mota (2000), ao se analisar a seguridade social no contexto da crise
econômica que se iniciou nesse período, identificam-se dois conjuntos de vetores
determinados pelo processo social em curso. São eles: (a) as mudanças no mundo do trabalho,
entendidas como parte do processo de reestruturação produtiva e como estratégia para a
superação do modelo fordista-keynesiano, em favor da acumulação flexível; e (b) as
mudanças na intervenção do Estado, marcadas pela crise do keynesianismo e pelo advento do
neoliberalismo.
59
Nesse cenário em que o trabalho passa por profundas transformações decorrentes da
reestruturação do capitalismo e o Estado apresenta novos contornos de ordem política e social
que privilegiam as relações de mercado, não só a questão social se reconfigura, mas também
seus padrões de proteção social. A questão social, hoje, faz-se acompanhar do velho e do
novo fluxo de necessidades sociais, diferenciando-se na sua materialidade, fruto,
principalmente, das alterações na gestão e na organização do trabalho e da extensiva
precarização no uso da força de trabalho. É a mesma questão social que tem como gênese a
desigualdade, mas “[...] ela evidencia hoje a imensa fratura entre o desenvolvimento das forças
produtivas do trabalho social e as relações sociais que a sustentam” (IAMAMOTO, 2000, p. 21).
Esse movimento tende a ampliar o que Castel denomina de hiato entre a organização
política e o sistema econômico, sendo justamente essa lacuna que permite demarcar o lugar do
social, pois, nas palavras do autor, “[...] o social consiste em sistemas de regulações não mercantis
instituídas para tentar preencher esse espaço” (CASTEL, 1998, p. 31), exigindo, para isso, a adoção
de certos mecanismos de regulação social. Sem dúvida, o Estado é o grande divisor de águas
no tratamento da questão social, porém este também é produto sócio-histórico e tem seu papel
redimensionado por um conjunto de condicionantes e pelo desenvolvimento das relações de
produção e das forças produtivas.
Em outras palavras, a questão social emerge da sociedade pré-capitalista como
resultante das contradições do sistema feudal. No entanto, com o advento do capitalismo e da
sociedade industrial, novas necessidades apresentam-se, com um crescente agravo das
desigualdades sociais, fruto de uma concentração cada vez maior do capital. Sucessivamente,
à dissociação entre a produção e a redistribuirão foi acrescentando um novo componente à
questão social em cada época e lugar.
60
O Estado passou a intervir no produto dessas contradições, que substancialmente estão
voltadas para situações de riscos sociais. Pela análise de Melo (1997), podem-se identificar
três momentos que caracterizam a intervenção social do Estado. O primeiro iniciou-se no final
do século XIX, quando este desenvolveu ações voltadas à regulação do mundo do trabalho:
proteção do trabalho infantil e das mulheres, regulação das condições de trabalho, incluindo a
jornada de trabalho, o contrato de trabalho, salário e férias, e, por fim, a definição de
responsabilidade no caso de acidentes de trabalho.
O segundo momento de intervenção do Estado ocorreu com a instituição do seguro
social, a partir de uma expansão do conceito de seguro à cobertura de acidentes, ou seja, o
trabalhador tem cobertura nos momentos de riscos sociais, portanto, quando seu vínculo com
o mercado de trabalho está sob algum impedimento por situações de velhice ou de perda da
capacidade laborativa. Por fim, Melo (1997) define a evolução do Welfare State como o
terceiro momento de intervenção do Estado, identificando sua ampliação pela multiplicação
horizontal de categorias de risco e de grupos sociais.
É possível perceber que a trajetória da intervenção do Estado representa uma resposta
das emergentes necessidades decorrentes da Primeira e da Segunda Revolução Industrial,
quando a organização da classe trabalhadora passou a ter papel decisivo na efetivação de
medidas de proteção social19, bem como a nova concepção de Estado, que, ao se sobrepor à
anterior, acabou por ampliar a cobertura de proteção. O sistema de seguridade social,
portanto, estruturou-se com o trabalho e para o trabalho, que tem como protagonista central o
trabalhador assalariado.
19
É preciso considerar também a influência dos Estados socialistas na composição do Estado de Bem-Estar, que
se constituía numa alternativa ao regime capitalista. Assim a bipolaridade dava-se no campo ideológico e
econômico.
61
Nas duas últimas décadas do século XX, contudo, essa tendência começou a se alterar,
inaugurando-se um novo momento, em que o Estado reduz a sua participação, e o padrão de
proteção social começa a sofrer profundas transformações. Esse modelo, norteado pelo
paradigma neoliberal, propõe:
[...] a retirada do Estado da organização e do financiamento de políticas
sociais voltadas ao conjunto da população e a restrição de sua atuação aos
absolutamente desvalidos. Em outras palavras, sugerem o desmonte das
políticas universalistas e o retorno do velho assistencialismo como único
objeto da ação social do Estado” (MARQUES, 1997, p. 46).
Por outro lado, a partir da crise da chamada sociedade do trabalho20, que, na prática,
representa um decréscimo impressionante no trabalho assalariado, a seguridade social, que
paradoxalmente volta a se aproximar cada vez mais da noção de seguro social, por estar
fundada na contribuição dos trabalhadores inseridos no mercado formal, tende a garantir
proteção a um número progressivamente mais restrito da população. Ela acaba por restringir-se à cobertura de situações de aposentadoria ou incapacidade para o trabalho para quem
contribui, o que, na América Latina, não ultrapassa 50% da População Economicamente Ativa
(SCHUBERT, 2001), em detrimento do seu caráter universal, enquanto direito à reprodução
da própria vida. Em outras palavras, o nível de inserção no mundo da produção tem
determinado o grau de proteção social. A crise no sistema produtivo compromete os próprios
mecanismos de reprodução social, na medida em que é crescente o número de trabalhadores
sem a garantia de renda de substituição21. Em suma, o contraste entre o desmonte das políticas
sociais e a fratura no padrão de seguro social pela queda do trabalho formal tem implicações
imediatas sobre a proteção social, as quais vêm embricadas a partir desses dois movimentos
20
21
Também definida como sociedade salarial; ver Castel (1998).
Segundo Marques (1997), corresponde à renda necessária para o segurado manter-se quando da falta de salário
derivado de motivo de doença, velhice, invalidez ou desemprego.
62
conflitantes: a pressão por reformas no que concerne aos direitos sociais e a queda do número
de trabalhadores “segurados” socialmente.
Ao mesmo tempo, o acesso ao seguro social reproduz-se sob outra face, na perspectiva
do direito do trabalhador no mercado formal, ou seja, mesmo quem está protegido fica
suscetível a riscos sociais, que não são enfrentados em suas causas, transferindo para a
“proteção social” a indenização das mazelas decorrentes das desigualdades sociais. Pode-se
citar como exemplo a crescente instabilidade no emprego e as condições em que o trabalho é
realizado, gerando risco de acidentes e doenças, como bem demonstra a emergência de novas
e antigas doenças relacionadas ao trabalho. Esta segunda, em particular, concernente aos
riscos decorrentes de acidentes de trabalho, teve grande impacto no desenvolvimento dos
seguros sociais, contribuindo para que estes se vinculassem à noção de risco indenizável, ou
seja, pagam-se as conseqüências, sem olhar as suas causas.
Como retrata Pezerat (2000), a implantação dos seguros permitiu pagar os estragos,
sem recriminar os erros, portanto, o conceito de risco suplantava o conceito de erro. Porém, a
sua evolução, tratando-se dos acidentes de trabalho, ainda segundo Pezerat, deu-se em dois
sentidos: um que questionava a culpa dos empregadores, e o outro exonerava os culpados,
uma vez que os trabalhadores estavam assegurados. Com a ampliação da cobertura dos
seguros sociais, no que tange às categorias profissionais e aos benefícios previdenciários,
assim como à ampliação da legislação trabalhista, tem-se um expressivo número de leis que
dão garantias e proteção ao trabalhador, principalmente com vinculação ao trabalho industrial,
e que foram legalmente conquistadas. Entretanto, no campo da saúde do trabalhador, a
contradição não se manifesta a priori da ausência de direitos, mas, sim, pela falta de seu
reconhecimento ou cumprimento legal. Ou seja, tem-se o direito, mas o seu acesso é
63
dificultado pela supremacia do capital em relação ao trabalho, como é o caso das doenças
profissionais em progressiva ascensão na última década, onde se verifica a negligência quanto
ao seu reconhecimento. Portanto, ao não reconhecê-las, também não se obtém o direito e, por
conseguinte, a devida proteção social imediata e as decorrentes da situação de adoecimento e
da incapacidade para o trabalho. Logo, sem reconhecimento, não há proteção social, e, ao
mesmo tempo se constitui mecanismo de ocultar as contradições sociais e suas conseqüências.
Em meio a essa complexa análise, em que a seguridade social se apresentou sob o viés
securitário, registra-se a dicotomia histórica entre previdência social, incluindo seguro social e
saúde, com a assistência social no Brasil, enquanto política pública. A seguridade social
organizou-se no País sob o caráter contributivo incluindo a saúde, que há apenas pouco mais
de uma década passou a ser universal, sendo compreendida, de modo geral, como uma
prestação paga ao Estado que retorna ao contribuinte em forma de benefício a ser usufruído
em dado momento de sua vida, e a assistência, como um auxílio a quem necessita,
relacionado à situação de pobreza clássica, caracterizando-se como medida de caráter
paliativo. No entanto, o conceito de seguridade social ampliou-se a partir da Constituição de
1988, com a inclusão da assistência social concebida como uma política pública22, a saúde
como um direito universal, mas o terceiro componente, a previdência social, continua a ser
contributiva e contratual e não tem avançado de forma a possibilitar a inclusão de situações
decorrentes das novas necessidades produzidas pela queda do trabalho formal, razão esta que
vem contribuindo para a dissociação da seguridade social enquanto sistema de solidariedade
social, o que permitiria, na adversidade, a garantia de uma renda mínima ao trabalhador – que,
22
A sua implantação, no entanto, vem caminhando de forma lenta, a garantia dos mínimos sociais previstos pela
Lei Orgânica da Assistência Social nº 8.742/93 (LOAS), vem sendo negligenciada. Sobre esse tema, ver
Potyara P. Pereira (1998).
64
na grande maioria, já estiveram vinculados –, independentemente da sua vinculação
previdenciária na atualidade.
Como bem coloca Fleury “[...] o caráter público do seguro social introduz uma contradição
entre o vínculo individual e a garantia social do benefício” (FLEURY, 1994 p. 154). A proteção dos
riscos associados ao trabalho que fundou as primeiras leis de proteção social, foi
progressivamente evoluindo, entretanto, o trabalho foi retrocedendo, fragilizando as próprias
conquistas sociais e o acesso aos direitos legalmente constituídos.
Outra lacuna que se constata em meio ao sistema de seguridade social é na área da
saúde, que, ao ser concebida, na Constituição brasileira como um dever do Estado e um
direito de todos, revelou um imenso avanço para todos os trabalhadores e para a população
em geral, na medida em que deixou de ser contratual. No entanto, no campo da saúde do
trabalhador, o quadro que se identifica não corresponde a uma cobertura universal e
diferenciada, conforme a especificidade que a área exige. Cabe mencionar que, no âmbito da
saúde pública, o acidente de trabalho, assim caracterizado, recebia assistência diferenciada até
1993, enquanto estava sob a responsabilidade do extinto INAMPS. Com a introdução do
Sistema Único de Saúde (SUS), a saúde do trabalhador precisa, então, ser repensada sob novo
ângulo, não apenas assistencial, mas ser traçada a partir de uma política de atenção integral e
que englobe, inclusive, a vigilância da saúde dos trabalhadores23. Esse processo, porém, temse se mostrado lento, levando grande parte dos trabalhadores acidentados e/ou portadores de
patologias relacionadas ao trabalho a uma espera longa e coletiva, vivenciada por toda a
população usuária do SUS. Em outras palavras, a saúde, parte integrante do sistema de
23
O artigo 200 da Constituição Federal do Brasil de 1988 determina que as ações na área da saúde do
trabalhador são de exclusiva competência do SUS. A saúde do trabalhador está conceituada, portanto, na Lei
Federal nº 8.080/90 – Lei Orgânica da Saúde –, mas as ações a serem realizadas nessa área ocorreram apenas
em 1998, através da Norma Operacional sobre a Saúde do Trabalhador e de uma instrução normativa sobre da
vigilância em saúde do trabalhador.
65
seguridade social, caminha lentamente em direção à proteção ao trabalhador, à forma de
enfrentar a realidade dos trabalhadores que adoecem, assim como as metamorfoses pelas
quais o trabalho passa.
Em que pese a saúde estar distanciada justamente no campo que maior demanda ações
– o dos trabalhadores –, nos demais, o desafio da seguridade social na atualidade, presume-se,
é a necessidade de ultrapassar a visão dualista da proteção social – contratual e assistencial –,
concebida como um conjunto de medidas que se sobrepõe a saídas individuais, tal como
ideologizado pelo paradigma neoliberal, e que entende que a inserção no mercado de trabalho
e, conseqüentemente, nos demais mecanismos alicerçados pelo seu acesso está restrita à
responsabilidade e à capacidade do indivíduo de se inserir nesse mercado. Envolve, acima de
tudo, o que Rosanvallon (1995) chama de uma nova forma de gestão da desocupação,
indicando a necessidade de repensar a igualdade de oportunidades tal qual propõe o
liberalismo, demonstrando que a inclusão social, sob a ótica da inserção, se dá pela via do
direito ao trabalho.
Num plano mais geral, pode-se concluir que a adoção de mecanismos de proteção
social de inclusão/inserção concerne a mediações que efetivamente dizem respeito ao papel
do Estado, mas que são negligenciadas pela sua tendência a contribuir para o equilíbrio do
funcionamento do mercado. Por sua vez, essa sintonia tem ampliado o que Thébaud-Mony e
Appay (2000) chamam de precarização social, por entendê-la como um processo
multidimensional da institucionalização da instabilidade caracterizada pelo crescimento das
diferentes formas de precariedade e exclusão.
66
A concepção de proteção social afirma-se na premissa de que o trabalho é o
mecanismo central e histórico de garantia de acesso aos meios de produção e de reprodução
da vida material e social. Fundamentalmente, o trabalho incide sob a forma de organizar a
própria sociedade, e, na medida em que se desestruturam os pilares do trabalho, fragilizam-se
os meios de sustentação da sociedade. Porém, quem protege o trabalho? A quem cabe
protegê-lo como alicerce de proteção social?
Os agentes, Estado, capital e trabalho, ao interagirem nos diferentes contextos,
suplantaram uma nova ordem, que inevitavelmente trouxe um novo componente à questão
social, seja em decorrência das mutações do trabalho em meio à acumulação flexível, seja
pela forma com que esta vem sendo enfrentada ou negligenciada, em particular pelo primeiro
agente. O fortalecimento do paradigma neoliberal no final do século XX ampliou as
desigualdades sociais, que, na especificidade do trabalho, se traduzem na forma como o
ingresso ao mercado de trabalho vem sendo obstaculizado, assim como estar nele tem o signo
da “oportunidade” e da “capacidade”, marginalizando os que não se incluem.
Enfim, o entendimento sobre as transformações do papel do Estado, articuladas com a
reestruturação do capital e com as mudanças que recaem sobre o trabalho, demonstra que as
necessidades sociais decorrentes das relações de produção e do mercado tendem a
desestabilizar ainda mais os padrões de proteção social, conduzindo a saídas e a respostas
cada vez mais individualizadas, disciplinadas pela lógica concorrencial do capital. Porém,
essa questão, tratada sob a perspectiva da luta social, tem na nova configuração da classe
operária o elemento balizador que pode reverter essa realidade ou tornar a proteção social
ainda mais multifacetada. Entende-se que a primeira premissa, a qual envolve diferentes
atores sociais, pode contribuir para o estabelecimento de uma nova correlação de forças no
67
papel do Estado, ou seja, parte da sua capacidade e de poder de transformar suas necessidades
em demandas políticas (FLEURY, 1994), levando, assim, o Estado a dar respostas aos efeitos
produzidos pela base política e econômica que lhe deu sustentação, mas que não o tornou
absoluto. O curso da história recente tem demonstrado a premência, mesmo que focalizada, de
uma relativa autonomia por parte do Estado, que tende a estabelecer, num prazo ainda
indeterminado, uma nova correlação de forças.
2 – A LACUNA ENTRE SAÚDE E TRABALHO CONSTRUÍDA A PARTIR DOS
RISCOS “SOCIALMENTE” ACEITÁVEIS
As particularidades do campo da saúde e trabalho no processo engendrado pela própria
organização do trabalho se inscrevem numa perspectiva de totalidade, metamorfoseadas pelo
contexto sócio-histórico de ambos. Uma análise nessa área, (re)coloca para a sociedade o
anverso de uma realidade que está imersa e oculta no interior do “mundo” do trabalho, onde
uma face esconde a outra e vice versa. As determinações sociais e ocupacionais sobre a saúde
do trabalhador têm recebido um aprofundamento teórico-metodológico, que vem contribuindo
para a superação do modelo hegemônico, centrado nas causas meramente biológicas e
ambientais, passando a compreendê-las em meio ao processo econômico e social decorrente
das contradições sociais que se originam no interior da produção da riqueza gerada
socialmente.
O estudo empreendido sobre o desenvolvimento das forças produtivas e a nova
configuração da classe operária contribui para o presente processo de análise, ao evidenciar os
condicionantes históricos e atuais que incidem sobre o trabalhador e sua saúde. Verifica-se
não somente a persistência de trabalhos com riscos tradicionalmente conhecidos, como o
trabalho insalubre, pesado, ruidoso e tóxico e também a emergência de novos fatores de riscos
relacionados ao trabalho e sua forma intensiva e sob forte controle de tempo (THÉBAUDMONY, 1999).
69
Partindo do pressuposto de que a terminologia saúde do trabalhador traz consigo
novo viés ao conceito, tem-se em conta que a preocupação com a saúde no trabalho – e não
apenas com a doença –, é recente, se considerada a linha histórica da inserção do ser humano
na atividade laboral e pelas diferentes perspectivas de atenção à área da saúde. Embora se
constatem avanços recentes a partir da apropriação de conhecimentos e mecanismos de
enfrentamento dos males decorrentes do modelo fordista/taylorista e sua transição para o
modelo toyotista, não é possível dar conta da rapidez das transformações decorrentes da
implantação do novo paradigma industrial, que, ao mesmo tempo, contribui para a
manutenção, nem sempre marginal, do modelo anterior, trazendo rebatimentos para fora do
processo fabril. Assim, como a matriz inicial da saúde no trabalho centrada na medicina do
trabalho e no modelo médicohegemônico, característico do padrão fordista, continua presente
nos dias hoje, na grande maioria da empresas, sejam elas da indústria de transformação, do
comércio e de serviços, ignoram-se as transformações e as necessidades sociais e produtivas
dela decorrentes. Embora as ações preventivas de saúde ocupacional tenham evoluído, ainda
são poucos os avanços e as referências que atuam na perspectiva de uma saúde integral do
trabalhador, bem como no reconhecimento das doenças profissionais que se manifestam lenta
e progressivamente, a exemplo das doenças relacionadas ao agente amianto.
A preocupação central, neste capítulo, é identificar mecanismos que venham a
contribuir para a compreensão dos fatores de agravos sobre a saúde do trabalhador – os quais
não são facilmente identificáveis, para que estes não sejam aceitos como naturais no processo
de trabalho. Nesse sentido, a realidade atual exige a construção de novos rumos em busca de
uma lógica do direito à proteção e à promoção da saúde, com a participação de todos os atores
envolvidos.
70
2.1 – O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DA SAÚDE DO TRABALHADOR
A relação saúde-trabalho data do início da reprodução da espécie humana, pois a luta
pela sua sobrevivência era garantida através do seu próprio trabalho, a caça. A saúde e a
reprodução da espécie humana na comuna primitiva estavam relacionadas não somente às
possibilidades materiais de alimentação, mas também à sua capacidade de defesa, onde o
meio em que vivia era adverso.
O desenvolvimento da humanidade é repleto de indicações onde o trabalho humano é
sinônimo de garantia da subsistência, como também de força física, em regime de exploração
e servidão. Por outro lado, o surgimento das doenças denota, em cada época e lugar,
explicações diferentes. Segundo Facchini (1993), na Antigüidade, utilizava-se a interpretação
mágico-religiosa, mencionando a importância do ambiente, do trabalho e da posição social.
Na Grécia e na Idade Média até meados do século XI, as causas das doenças eram atribuídas à
variabilidade dos humores corporais. Para o autor, a partir do século XI até a o fim da Idade
Média, amplia-se a base técnica e racional da medicina, bem como na transição para o
capitalismo há inovação na explicação das causas das doenças.
A revolução industrial marca não só uma mudança no regime social, mas vem
acompanhada de diversas transformações sociais. O capitalismo, que surge como uma
revolução no modo de produção e reprodução social, desenvolve-se carregando consigo uma
contradição fundamental, sua produção é social, mas sua apropriação é individual. A riqueza
gerada pelo trabalho vai se concentrando na mão de poucos, ampliando o grau de
desigualdade em relação a quem a produz, materializada no seu modelo concentrador de
riqueza, embora seja produzida coletivamente. É o que se observa a partir do trabalho na
71
indústria, no século XIX, que se dava em condições precárias, onde homens, mulheres e
crianças passavam, em média, l8 horas em regime de trabalho intenso e insalubre. A frágil
saúde desses trabalhadores era reflexo de suas condições de vida e trabalho, conforme bem
demonstra Engels (1980) em seus estudos sobre a classe operária na Inglaterra, berço da
Primeira Revolução Industrial. O autor referencia, no entanto, a existência de uma certa
melhora da situação no setor mais protegido da classe operária, que era, na sua opinião, o dos
operários das fábricas, devido à legislação existente, que estabelecia limites relativamente
razoáveis para a jornada de trabalho, a qual permitiria restaurar, em certo ponto, as forças
físicas.
No Brasil, a transição de um modelo agrário-exportador para o industrial acelerou o
crescimento da população urbana e o número de trabalhadores no setor industrial. O exemplo
do setor têxtil algodoeiro é elucidativo: este passou de oito fábricas e 424 operários no ano de
l853 para 409 fábricas e 224.252 operários em 1948 (BAER, 1996). De imediato, surgiu a
preocupação da classe operária brasileira com a sua integridade física e mental. Esta aparecia
já no 1º Congresso Operário, em l909 (LOPES, 1990). A industrialização no Brasil absorvia
um número cada vez maior da população. O trabalhador inserido no processo produtivo ficou
condicionado a um novo modo de viver, fortemente relacionado com a organização do seu
próprio trabalho.
O trabalho industrial, que se desenvolveu de forma acelerada até a década de 80, começou a
dar sinais de refreamento, caminhando para a alteração da sua forma de organização e gestão, tendo
como força motriz a diminuição da força do trabalho necessária na produção por conta do avanço
tecnológico e da busca de um novo ciclo de desenvolvimento capitalista e da recomposição de sua
margem de lucro. Esse processo legitimou-se socialmente através de princípios fundados sobre a
72
lógica da modernização da organização do trabalho (THÉBAUD-MONY, 1999), como globalização,
competitividade, flexibilidade, produtividade e qualidade total. Seus princípios foram traduzidos pelo
nome de reestruturação produtiva, que, concomitantemente, excluíram na “modernidade”, uma
camada significativa de trabalhadores. Esse movimento tem favorecido a terceirização de trabalhos e
serviços, o aumento da informalidade e a domesticação do trabalho, levando esses trabalhadores a uma
exposição de riscos ocupacionais diversos, dada a natureza das atividades repassadas a esses
segmentos, que, na sua maioria, são insalubres, intensas e perigosas, ocorrendo, assim, uma espécie de
terceirização de riscos.
2.2 – O RECONHECIMENTO
DA
SAÚDE-DOENÇA
NO
PROCESSO
DE
TRABALHO: COMPONENTES
DE UMA VISÃO MULTILATERAL
A perspectiva da saúde do trabalhador na atualidade, contextualizada pelas mudanças
na organização e na gestão do trabalho e no perfil dos trabalhadores, não tem se distanciado
dos moldes do padrão industrial, progressivamente legitimado a partir de uma perspectiva
hegemônica – a proteção do trabalho fabril. Resguardadas as particularidades dos diferentes
ramos, o campo da saúde do trabalhador tem recebido diferentes enfoques, constatando-se
avanços em termos de conceituação, conforme sistematização feita por Oliveira e Mendes
(1996), no QUADRO 1. A realidade nesse campo tem-se demonstrado contraditória e
complexa, com limites não facilmente definidos (MENDES, 2004). A manutenção de
concepções atrasadas não dão conta das necessidades da área e perpetuam práticas que visam
proteger os riscos inerentes ao espaço produtivo e à ação humana.
73
QUADRO 1
Desenvolvimento conceitual da saúde do trabalhador
DETERMINANTES
AÇÃO
CARÁTER
ATOR
DO PROCESSO
PRINCIPAL PRINCIPAL PRINCIPAL
Biológico
Tratamento Técnico
Médico
da doença
Ambiental
Prevenção
da doença
Técnico
Equipe
Social
Promoção
da saúde
Técnico e
Político
Cidadão
CENÁRIO
PAPEL DO
USUÁRIO
Hospital
Usuário é
objeto da
ação
Ambulatório Usuário e
ambiente
são objetos
Sociedade
Sujeito
CAMPO DA
SAÚDE
Medicina do
trabalho
Saúde
ocupacional
Saúde do
trabalhador
FONTE: Oliveira; Mendes (1995).
Historicamente, o trabalhador torna-se objeto de ações que centram nele a
responsabilidade de evitar a iminência de dano ou risco à sua saúde, tendendo, ao mesmo
tempo, a responsabilizá-lo, em caso de acidente de trabalho, em detrimento das condições de
trabalho, caracterizando o acidente como conseqüência de “ato inseguro”. Essa visão, que
parece ter se consolidado em meio aos profissionais da área, desencadeou dois processos
opostos e linearmente construídos:
a) ao conceber o acidente de trabalho como produto da conduta do trabalhador no seu
ambiente laboral, este é entendido como resultante de causa endógena e
individualizada por parte do acidentado. A ação tende a proteger o indivíduo e a
educá-lo para prevenir;
b) centrar o foco no indivíduo contribui para um distanciamento da percepção da
saúde do trabalhador como algo implicado também com as condições de vida e com
a organização do trabalho – incluindo todos os componentes do processo de
trabalho, como a força de trabalho – desgaste físico, psíquico e social –, a matéria-prima – muitas vezes insalubre, penosa, pesada, tóxica, etc. –, e os instrumentos de
trabalho, o desgaste físico e mental e os riscos ao operacionalizá-los.
74
Para melhor compreender-se esse segundo processo e avançando na busca da
superação do modelo hegemônico, é central a formulação de Laurell e Noriega (1989), que
utilizam a categoria carga de trabalho em detrimento do conceito de risco. Nessa perspectiva
de análise, a carga de trabalho é definida pelos autores como abarcando tanto as condições
físicas, químicas e mecânicas quanto as fisiológicas, as quais interatuam dinamicamente entre
si e no corpo do trabalhador (MINAYO, 1997).
Tem-se, portanto, a partir da categoria processo de trabalho e seus componentes, uma
visão clara e totalizante da apreensão do conjunto de agentes que interagem sobre a saúde do
trabalhador. Tal categoria permite também se distanciar da visão unívoca de risco atribuído
apenas à conduta do trabalhador, avançando na compreensão dos determinantes profissionais
e sociais que envolvem a sua vida e a sua saúde.
Ter como referência analítica o processo de trabalho significa um aprofundamento
metodológico que parte do primeiro componente – o trabalho em si –, ou seja, uma atividade
adequada a um fim: ao utilizar a sua força de trabalho para a produção material, o trabalhador
põe em movimento as forças naturais do seu corpo, que, segundo Marx (1980), ao modificar a
natureza externa – objeto –, modifica a si mesmo, assim como imprime sentido útil à vida
humana. Há, portanto, uma metamorfose que contribui para definir a especificidade do ser
humano, a qual se manifesta em vários sentidos, em especial sobre a sua identidade e seu
corpo.
Ao analisar o segundo componente – a matéria-prima –, ou seja, o objeto que necessita
da ação sobre si para ser transformado materialmente, verifica-se que é composta, na sua
75
maioria, por agentes insalubres24, seja ela in natura, ou já modificada, orgânica ou química. O
trabalhador, assim, está à mercê de uma sucessiva exposição de agentes externos e internos,
que contribuirão de forma latente para o surgimento de doenças profissionais.
Por fim, o trabalhador, ao se utilizar de um instrumental para modificar a matéria-prima – agente central na composição da carga de trabalho – adequado para atuar sobre o
objeto e não para si, adapta-se a ele e, ao mesmo tempo, contribui para que este se modifique.
Os meios de trabalho evoluem a partir do desenvolvimento da própria força humana e das
condições de trabalho, interferindo na evolução das forças produtivas. Pode-se constatar que a
superação de um instrumental nem sempre significa a melhoria das condições produtivas;
como exemplo, pode-se utilizar a ferramenta manual, que, ao mesmo tempo em que demanda
maior domínio físico, exige um maior controle do trabalhador sobre ela, ao passo que um
maquinário com tecnologia avançada submete-o ao seu ritmo, gerando menor desgaste físico
e ampliando o mental, pelas novas exigências às quais o trabalhador está submetido no
contexto da era de acumulação flexível.
Em síntese, essa carga de trabalho se compõe de múltiplas formas e com
particularidades específicas em diferentes espaços produtivos. Assim, no campo da saúde do
trabalhador, a tentativa de superar a concepção tradicional de higiene e medicina no trabalho é
permeada por inesgotáveis determinações e ações que possam dar conta de identificar e
reconhecer os agravos e as doenças que nele se manifestam.
24
Segundo o artigo 189 da CLT “[...] são consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza,
condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância
fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos efeitos.”
76
Reconhecê-las no âmbito do processo de trabalho, numa visão de integralidade,
constitui-se no primeiro ato para ampliar o conhecimento sobre saúde e trabalho. Por sua vez,
os processos de trabalho são produto de relações sociais que determinam também as
condições de vida da população trabalhadora. Num dialético e amplo movimento, tem-se
presente que o campo da saúde do trabalhador é multicausal e está relacionado à forma de
trabalhar e viver dos trabalhadores, onde esta unidade ganha novos contornos, a partir do
novo contexto da organização da produção material e social, assim como os mecanismos de
reconhecimento e proteção social dele decorrentes.
2.3.– O ACIDENTE E A DOENÇA RELACIONADA AO TRABALHO
O acidente de trabalho e as doenças profissionais são denominações que expressam e
sintetizam o processo de saúde/doença e trabalho, e este, por sua vez, é também um processo
histórico. As leis, nessa área, se constituíram, ao longo do tempo, em respostas à crescente
inserção de trabalhadores no espaço fabril e buscavam, e ainda buscam, disciplinar aspectos
relacionados ao risco de acidentes e doenças. De forma predominante e pela natureza das
atividades existentes na indústria de transformação, as formas de atenção à saúde voltada à
prevenção e à comunicação de agravos se consolidaram, na perspectiva de garantir a produção
material e, num segundo aspecto, para a manutenção e à reprodução da força de trabalho. Elas
têm por objetivo assegurar um processo produtivo ininterrupto e a permanência da força de
trabalho em detrimento ao que um acidente pode representar em relação à produtividade do
trabalho e, conseqüentemente, à produção de mais-valia. Em suma, as leis são também
manifestação das contradições sociais presentes na sociedade capitalista.
77
Em 1919, surgiu a primeira lei de acidente de trabalho no Brasil – antes mesmo do
primeiro instituto de previdência, e sem ter sido votado o Código do Trabalho, que estava em
discussão –; sua aplicação baseava-se no conceito de risco profissional como algo natural à
atividade laboral e exigia que a comunicação fosse realizada por uma autoridade policial. A
legislação em vigor indenizava o acidentado ou sua família de acordo com o grau de
gravidade das seqüelas, e a indenização era paga pelo empregador em cota única.
Após o surgimento das caixas de aposentadoria e pensões, que tiveram como marco a
Lei Eloy Chaves, de 1923, a qual dava cobertura aos ferroviários, outras categorias
profissionais passaram a constituir os primeiros institutos públicos de previdência brasileiros,
unificados em 1966, com o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), mudando, em
1990, para Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O Estado assumiu a regulação das
relações trabalhistas e previdenciárias e promoveu várias alterações na legislação desde então,
porém o caráter de seguro social permaneceu inalterado. Assim, o acidente de trabalho passou
a integrar os demais benefícios previdenciários a partir de legislação própria, que estabelece
também mecanismos de caracterização do acidente e os direitos do segurado empregado e do
segurado especial. Esses mecanismos foram evoluindo através da Consolidação do Trabalho
(CLT) e de diversas Normas Reguladoras (NRs) relativas à segurança e medicina do trabalho,
estabelecendo competências do Ministério do Trabalho, através de suas delegacias regionais,
no que concerne ao cumprimento e à fiscalização das mesmas. A assistência à saúde dos
acidentados era de responsabilidade do empregador até a primeira década do século XX,
passando para as caixas de aposentadoria e pensões, e, posteriormente, para o Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). No Sistema Único de
Saúde, o acidentado do trabalho compartilha com o restante da população o atendimento
através da rede de serviços de saúde.
78
A natureza seguradora do acidente de trabalho faz com que o trabalhador, ao acidentar-se, ingresse no “seguro” e, em caso de seqüela, faz jus ao um “pecúlio”25. Essa concepção, ao
longo do tempo, favoreceu a formação de uma cultura ideologizada para o trabalhador, onde a
fatalidade e a indenização foram institucionalizas e passivamente aceitas, assim como para o
empregador a responsabilidade passou a esgotar-se com a comunicação do acidente de
trabalho. Mas essa realidade é ambivalente, entrando em questão os aspectos subjetivos para a
caracterização de um acidente de trabalho, de trajeto e, em particular, das doenças
profissionais. Dessa maneira, sua aplicabilidade legal tenciona o acesso ao seguro social
legalmente instituído para o trabalhador sob a proteção do trabalho formal, que engloba, o
segurado26 empregado, bem como o agricultor – segurado especial.
Uma revisão da legislação contribui para a melhor compreensão da análise em curso.
Assim, partindo do conceito de acidente de trabalho, verifica-se que este legalmente abarca no
seu conteúdo 14 situações que se equiparam a acidente de trabalho, sendo que quatro são as
modalidades em que os mesmos mais freqüentemente são caracterizados: o acidente típico de
trabalho; as doenças profissionais; as doenças do trabalho; e por fim os acidentes de
trajeto. A mesma legislação, garante ainda a cobertura do acidente de trabalho, apenas para
25
Tanto a palavra “seguro” como a “pecúlio” são expressões populares utilizadas por trabalhadores que se
acidentam no trabalho. O seguro refere-se ao auxílio-doença acidentário – benefício previdenciário por
incapacidade decorrente de acidente de trabalho –, e o pecúlio é o auxílio-acidente – valor pecuniário
concedido como indenização ao segurado quando, após a consolidação das lesões decorrentes de acidentes de
qualquer natureza ou de acidente de trabalho, resultar em seqüela definitiva que implique redução da
capacidade laborativa (art 152 do Decreto nº 2.172/97).
26
O artigo 9º da Lei nº 8213/91 estabelece, dentre os segurados obrigatórios da previdência social, as seguintes
pessoas físicas:
“I – como empregado:
a) aquele que presta serviço de natureza urbana ou rural a empresa, em caráter não eventual, sob sua subordinação e
mediante remuneração, inclusive como diretor empregado;
b) aquele que, contratado por empresa de trabalho temporário, por prazo não superior a três meses, prorrogáveis,
prestas serviço para atender a necessidade transitória de substituição de pessoal regular e permanente ou a acréscimo
extraordinário de serviço de outras empresas, na forma da legislação vigente;
“[...]
“VII – como segurado especial – o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o pescador artesanal e seus
assemelhados, que exerçam suas atividades, individualmente ou em regime familiar, com ou sem auxílio eventual de
terceiros, bem como seus respectivos cônjuges ou companheiros e filhos maiores de dezesseis anos de idade ou a eles
equiparados, desde que trabalhem comprovadamente com o grupo familiar.”
79
dois segmentos de trabalhadores inscritos na previdência social, conforme já mencionado, que
é o segurado empregado e o especial.
Segundo o artigo 19 da Lei nº 8.213/91 “Acidente de trabalho é o infortúnio que ocorre
pelo exercício do trabalho a serviço da empresa, ou, ainda, os sofridos pelo segurados especiais,
provocando lesões corporais ou perturbação funcional que cause a morte, a perda ou redução da
capacidade para o trabalho, permanente ou temporária” Na seqüência, o artigo 20 da mesma lei
define mais.
[...] considera-se também Acidente de Trabalho:
I – Doença Profissional aquela inerente à atividade desempenhada pelo
trabalhador, ou seja, aquela produzida ou desencadeada pelo exercício
do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva
relação elaborada pelos Ministérios do Trabalho e Emprego e
Ministério da Previdência Social [27].
II – Doença do Trabalho aquela adquirida ou desencadeada em função de
condições especiais em que o trabalho é realizado e que com ele se
relacione diretamente, constante da relação mencionada no parágrafo
anterior.
Em casos excepcionais o § 2º do inciso II do mesmo artigo reconhece que, em se
tratando de doenças não incluídas na relação, mas que resultam das condições especiais em
que o trabalho é executado ou que com ele se relacionem diretamente, a previdência social
deve considerá-la acidente de trabalho.
Ainda outras situações que se equiparam a acidente de trabalho são definidas na Lei,
artigo 21, tais como:
I – o acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido causa única,
haja contribuído diretamente para a morte do segurado, para redução ou
perda da sua capacidade para o trabalho, ou produzido lesão médica que
exija atenção médica para sua recuperação;
[....]
27
As doenças constantes nessa lei encontram-se no QUADRO.2, na página 99 desta tese.
80
III– a doença proveniente de contaminação acidental do empregado no
exercício da atividade.
E, por fim, há o acidente de trajeto, também equiparado ao acidente de trabalho, o qual
é definido, pelo mesmo artigo, no inciso IV, que equipara o acidente sofrido pelo segurado
ainda que fora do local e horário de trabalho, da seguinte forma: “c) No percurso da residência
para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive o
veículo de propriedade do segurado.”
Essas são conceituações com critérios abstratos de aplicabilidade, principalmente em
se tratando de acidentes de trabalho e da distinção entre doença profissional e do trabalho. Os
conceitos e sentidos que parecem ser semânticos contribuem para a adoção de formas distintas
de interpretação, pois as doenças às quais o trabalhador está exposto ao risco de forma
inerente a atividade desempenhada – a profissional –, e as que podem ser adquiridas ou
desencadeadas em função das condições especiais – do trabalho –, são, na verdade,
produzidas por condições de trabalho inadequadas e insalubres. Tanto a inerente, ou seja,
aquela que poderá vir a se manifestar com o tempo, a exemplo das pneumoconisoses, como as
passíveis de serem desencadeadas, como a Lesão por Esforço Repetitivo (LER/DORT), têm
como origem, sem dúvida, as condições de trabalho e se manifestam lentamente.
Talvez sejam esses os principais fatores que têm contribuído para a ausência do
reconhecimento e a caracterização das doenças relacionadas com o trabalho, ao passo que em
se tratando da caracterização de um acidente típico de trabalho, ou seja, o que provoca lesão
corporal – e ainda se deve acrescentar de forma externa e visível –, ocorrido na empresa, na
sua maioria, tem-se efetivado sem que haja necessidade de recorrer a meios de comprovação,
dada a visibilidade do fato ocorrido. Na verdade, o que se observa e é aceito por todos os
81
profissionais que atuam nessa área, independentemente de sua concepção de saúde no
trabalho, é que o acidente de trabalho ocasionado no âmbito do espaço laboral e que causa
lesão externa automaticamente tem sua caracterização confirmada através da Comunicação de
Acidente de Trabalho (CAT), emitida no máximo 24 horas após o agravo. Assim, as noções
do fato e do tempo andam juntas e têm constituído a cultura dos profissionais da área de
segurança e medicina do trabalho e empregadores, em particular no ramo industrial, onde há
maior incidência de acidentes.
Também é natural, concomitantemente à caracterização, a análise do acidente, ou seja,
a identificação dos fatores que contribuíram para que o mesmo ocorresse. Neste momento,
materializa-se a dissociação entre o indivíduo e as condições de trabalho e sociais. O
trabalhador acidentado carrega sozinho a marca do acidente, o que pode lhe trazer seqüelas de
grau mínimo a máximo no seu potencial produtivo, porém quaisquer que sejam, têm
repercussão sobre sua vida pessoal e laboral, com tendência à culpabilidade do trabalhador,
pois o fato foi considerado isolado, recolocando nele a insegurança e a incerteza. Para a
empresa, o acidente de trabalho acaba por ocasionar um certo desequilíbrio no espaço
produtivo, pois afeta o conjunto dos trabalhadores de forma subjetiva e, ao mesmo tempo,
exige que o trabalhador acidentado seja substituído, ou ainda, muitas vezes, por romper o
cronômetro de número de dias sem acidente de trabalho, e suas implicações econômicas,
administrativas e na renovação da certificação de qualidade.
Ao se tratar da caracterização de doença do trabalho, ou doença ocupacional, vê-se que
a sua lógica não é tão mais aceitável, embora igualmente conceituada como acidente de
trabalho. As doenças profissionais têm se constituído por agravos relacionados ao trabalho
durante e pós-períodos de realização de atividade e/ou exposição a um agente nocivo no
82
ambiente de trabalho. Isso, num primeiro olhar, poder-se-ia dizer que, para o estabelecimento
do nexo causal entre agente causador e atividade exercida, é o suficiente para assim ser
caracterizado.
No entanto, o elemento determinante, que também pode ser chamado de excludente, é
a ausência do efetivo reconhecimento da influência das condições de trabalho sobre a saúde
do trabalhador. E, nos casos das doenças de latência e/ou de exposição intermitente, o
elemento tempo também contribui para ocultar esse processo.
Alguns exemplos podem ser agregados a esta análise. O mais emblemático e numeroso
são as LER/DORT. Embora se constate um crescente número de CATs por essa patologia,
como conseqüência da assimilação e do reconhecimento, a partir da realização de estudos
epidemeológicos que contribuíram para o avanço legal, a realidade tem-se mostrado
contraditória. Inúmeros casos não são caracterizados como tal e, logo, não são comunicados
como doenças profissionais. Há um incontável número de trabalhadores portadores dessas
patologias, com diferentes quadros nosológicos, que se afastam do trabalho por incapacidade
sem o efetivo reconhecimento. O principal fator que contribui para essa situação é a
predominância da concepção de uma medicina do trabalho onde o indivíduo é o enfoque
principal e determinante do processo de saúde/doença (MENDES, 2003, p. 64). Os fatores de
risco, ou, melhor dizendo, a carga de trabalho, acabam sendo secundarizados, ocorrendo um
total descomprometimento por parte do empregador. Por outro lado, a comunicação do
acidente/doença profissional, que está a cargo dos profissionais da saúde, não se efetiva, em
decorrência da suscetível relação de poder a que estão submetidos, também pela condição de
trabalhadores assalariados.
83
Isso explica a crescente notificação de casos pelas entidades sindicais e pelos próprios
trabalhadores, embora estes últimos em número proporcionalmente bem inferior.
Recentemente, a Previdência Social alterou os critérios para a caracterização da LER/DORT,
através de uma nova Instrução Normativa – nº 98, de 05 de dezembro de 2003 –, que faz uma
atualização clínica sobre as patologias, contemplando questões conceituais, epidemiológicas e
legais, fatores de risco, diagnóstico, tratamento e notificação, além de normas técnicas para
avaliação da incapacidade laborativa. A instrução pode ser entendida como resposta às
necessidades de enfrentamento desse tipo de doença e, se destaca como avanço à necessidade
de emissão da CAT em caso de suspeita, bem como na avaliação das condições psicossociais
e emocionais, concomitantemente ao exercício da atividade profissional, como critério para
caracterização, e não mais apenas a consideração dos aspectos físicos.
Esse recorte demonstra que uma doença “invisível” passa a ter a atenção necessária28
quando se torna visível, ou seja, quando se amplia numericamente, bem como pela efetiva
ação dos diferentes atores sociais envolvidos na luta pelo enfrentamento de suas causas e
consequências. Na medida em que se ampliam as possibilidades de prevenção e tratamento da
doença, ela se torna socialmente mais compreensiva, o que não diminui o estigma perante o
mercado de trabalho. Os trabalhadores portadores de LER/DORT que saem voluntariamente
ou são demitidos de empresas com predominância de atividades manuais repetitivas acabam
não obtendo colocação em outra empresa, quando esta toma conhecimento da sua atividade
anterior. Também de forma subjetiva, perante a família, os colegas e o grupo de amigos,
sofrem preconceitos que, associados ao sentimento de incapacidade, contribuem para um
quadro depressivo, muitas vezes irreversível.
28
Embora tenha ocorrido um avanço legal e ampliado numericamente em casos identificados como LER/DORT
ainda é muito incipiente a comunicação das doenças profissionais, assim como a previdência social não tem
adotado medidas efetivas para o seu reconhecimento no que se refere à conduta médico-pericial.
84
Acredita-se que ainda se está longe de ver “a luz no fim do túnel”. A invisibilidade
socialmente construída ao longo dos anos na relação saúde-trabalho-doença, a qual tem sua
origem nos primórdios da Primeira Revolução Industrial, revela que o trabalhador, ao vender
sua força de trabalho, vende também a sua saúde. O conhecimento dos agentes ou dos fatores
de risco era apontado já em 1714, por Ramazzini, em sua principal obra De Morbis Artficum
Diatriba, traduzido no Brasil por As Doenças dos Trabalhadores, obra que traz de forma
brilhante uma análise das doenças típicas de acordo com a atividade exercida pelo
trabalhador. É sua a célebre frase “Qual o seu ofício?”29. O autor examina diferentes profissões
e seus riscos. E, a título de ilustração, transcrever-se-á uma passagem sobre as doenças dos
que trabalham em pé:
[...] Até aqui falei daqueles artífices que contraem doenças em virtude da
nocividade da matéria manipulada; agrada-me aqui tratar de outros operários
que, por outras causas, como sejam, a posição dos membros, dos
movimentos corporais inadequados, que, enquanto trabalham, apresentam
distúrbios mórbidos, tais como os operarias que passam o dia de pé,
sentados, inclinados, encurvados, correndo, andando a cavalo ou fatigando o
seu corpo por qualquer forma. Em primeiro lugar, aparecerão em cena os
que têm que permanecer parados, os carpinteiros, os podadores e cortadores,
os escultores, os ferreiros, os pedreiros e muitos outros (RAMAZZINI, 1988,
p. 107).
Contudo, o trabalho e as profissões transformaram-se ao longo do desenvolvimento da
humanidade, porém
[...] trabalhadores continuam adoecendo e morrendo por doenças conhecidas
desde a Antigüidade, como as intoxicações por chumbo e as
pneumoconioses, às quais são acrescentadas outras decorrentes da
incorporação de novas tecnologias aos processos produtivos, de novas
formas de organizar e gerir o trabalho (MENDES, 1995, p. 61).
29
Ramazzini lembra Hipócrates no livro Das Afecções, que tinha como preceito “[...] quando visitares um doente,
convém perguntar-lhe o que sente, qual a causa.[...]”, sugerindo que fosse acrescentado, “[...] que ofício exerce.”
85
A saúde do trabalhador foi negligenciada, historicamente, pelas relações de poder entre
capital e trabalho, obscurecendo as condições de trabalho e os limites da força humana. Os
meios de proteção à saúde têm se dado de forma externa ao trabalhador, fazendo com que não
seja sujeito do processo, como bem coloca Possas:
As condições de trabalho e saúde estão estreitamente associadas às condições
em que se realiza o processo produtivo e são por elas determinadas. O grau
de importância que será dado ao problema da saúde, da doença ocupacional
e do acidente do trabalho é determinado pela posição e pela importância
relativa dos trabalhadores como parte deste processo (POSSAS, 1989, p.
118).
Conclui-se que se conhece o dano à saúde, porém não se promove saúde e nem o
controle da carga de trabalho, bem como a prevenção e a eliminação dos riscos não têm
levado em conta a progressividade do desgaste humano lentamente acumulado, que não é só
físico Assim, embora se avance na identificação, na caracterização, no diagnóstico e no
tratamento, tem-se uma outra face dessa realidade, que é o passivo de trabalhadores colocados
para fora do meio produtivo e inutilizados física e socialmente. Algumas empresas chegam a
ter de 10% a 20% de trabalhadores afastados do trabalho por incapacidade, sem contar os que
estão em situação de desemprego. Embora lhe seja garantido, na maioria dos casos, benefício
previdenciário, constata-se que, de cada 10 benefícios por incapacidade, apenas dois são
decorrentes de acidente ou doença do trabalho30. Ressalta-se que as doenças do trabalho
representam aproximadamente 10% dos acidentes de trabalho, conforme se pode observar na
TABELA 4, organizada a partir de dados estatísticos da Previdência Social. Em 2002, foram
notificados 387.905 acidentes de trabalho em todo o Brasil, o que representa quase 50 mil
acidentes a mais do que os registrados em 2001. Dos notificados, 3.000 acidentes fizeram
vítimas fatais, e de 15 a 20 mil geraram incapacidade permanente, parcial ou total. Já o
30
Conforme dados da Previdência Social. (Disponível em: <http://www.previdenciasocial.gov.br>. Acesso em:
jan. 2004.
86
número de auxílio-doença por incapacidade31 passou de 770.962 para 1.294.728 nos anos de
2001 e 2002 respectivamente, demonstrando um aumento de 60% de um ano para outro.
A partir desses dados, pode se afirmar que inúmeros casos de doenças decorrentes do
trabalho acabam vinculadas à doença comum, ou seja, não há a emissão da CAT. Logo, essa
proteção é temporária e, ao mesmo tempo, parcial, pois o fato de não ocorrer a caracterização
do acidente de trabalho/doença do trabalho significa que não é assegurado ao trabalhador
nenhum dia de estabilidade ao voltar para a empresa, além de não ocorrer a obrigatoriedade
do empregador em depositar o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, previsto legalmente
apenas para os trabalhadores acidentados. Porém, o mais grave é que os dados apresentados
anteriormente e os detalhados na seqüência representam apenas 42% da população brasileira
ocupada formalmente.
TABELA 4
Quantidade de acidentes de trabalho registrados, segundo o motivo, em algumas
Unidades da Federação – 2002
ESTADO
TOTAL
ACIDENTE
DOENÇA DO
TÍPICO
TRABALHO
ACIDENTE DE
TRAJETO
São Paulo
Rio Grande do Sul
Bahia
Pernambuco
Pará
152145
39271
11758
7012
6312
120484
33496
8821
5432
5224
8860
2315
1637
477
416
18481
3460
1300
1103
672
FONTE DOS DADOS BRUTOS: Previdência Social (2002).
Os dados revelam ainda outras informações, que demonstram a predominância dos
acidentes típicos, estando, entre eles os que ocorrem a partir de lesão nos dedos, nas mãos,
nos pés e na coluna, o que denota a execução de trabalhos eminentemente de riscos, conforme
se pode observar na TABELA 5. Já as doenças profissionais vinculam-se às atividades
31
O auxílio-doença, segundo o Regulamento de Benefícios da Previdência Social, será devido ao segurado que,
após cumprida, quando for o caso, a carência exigida, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para sua
atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos.
87
intensivas e repetitivas, como a sinovite e a tenossinovite, as quais ocupam o 6º lugar na
classificação dos acidentes de trabalho, de acordo com o Código Internacional de Doenças
(CID), e estão relacionadas na TABELA 6.
TABELA 5
Quantidade de acidentes de trabalho registrados, segundo a parte do corpo atingida,
no Brasil – 2002
PARTE DO CORPO ATINGIDA
NÚMERO DE ACIDENTES DE TRABALHO
Total de Acidentes Registrados – 387905
Dedo
Mão (exceto punho ou dedo)
Pé (exceto joelhos)
Dorso (incluindo coluna)
Braço (entre punho e cotovelo)
87735
38221
32390
20341
15045
FONTE DOS DADOS BRUTOS: Previdência Social (2002).
TABELA 6
Quantidade de acidentes de trabalho registrados, segundo o motivo e os 50 códigos da
CID mais incidentes, no Brasil – 2002
CID CLASSIFICADOS POR INCIDÊNCIA – DO 1º AO 7º
COLOCADO
TOTAL DE ACIDENTES REGISTRADOS
TÍPICO TRAJETO DOENÇAS DO
TRABALHO
S61 Ferimento de punho e da mão
S62 Fratura ao nível do punho e da mão
S60 Traumatismo superficial do punho e da mão
S93 Luxação, entorse, distenção no tornozelo e no pé
S92 Fratura do pé (exceto tornozelo)
M65 Sinovite e Tenossinovite
M54 Dorsalgia
52752
24438
16808
11418
10103
5202
10418
824
2882
1285
3895
2555
272
524
60
70
58
49
24
6696
1114
FONTE DOS DADOS BRUTOS: Previdência Social (2002).
Já na análise segundo a faixa etária e o sexo dos trabalhadores acidentados, verifica-se
que 40% dos acidentados têm menos de 29 anos, e 78 % são homens. Esses indicadores
encontram-se na TABELA 7. Registra-se ainda que o ramo de atividade com maior incidência
de acidentes é a indústria, com 28,1% dos mesmos, seguido da agricultura, que representa
21.8%, e, em terceiro lugar, aparece o setor serviços, com 11.9%. Por fim, constata-se que
88
88% dos acidentes ocorrem, de acordo com o Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho e
Doenças Profissionais, de 2002, no ambiente de trabalho, demonstrando as condições de
trabalho como preponderantes nas determinações do acidente ocorrido.
TABELA 7
Quantidade de acidentes de trabalho registrados, por faixa etária e sexo,
no Brasil – 2002
GRUPO DE IDADE
TOTAL
MASCULINO
FEMININO
Até 19 anos
20 a 24 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 39 anos
40 a 44 anos
45 a 49 anos
Acima de 50 anos
15273
73207
70881
61715
54643
44747
32854
33976
12784
60256
56259
48146
41532
33320
24159
25919
2489
12949
1421
13569
13106
11427
8694
8057
FONTE DOS DADOS BRUTOS: Previdência Social (2002).
Os trabalhadores que adoecem estão condicionados a uma realidade, não rara, que os
torna incapazes para o trabalho e para o mercado. Assim, eles estão sujeitos a um futuro
incerto, com implicações sobre a sua permanência no mercado de trabalho. É importante
associar a esse dado a formação profissional, a escolaridade e a idade, ou seja, dependendo do
perfil profissional, o trabalhador ainda poderá ter uma “oportunidade” no “mundo do trabalho
desenvolvido”, caso contrário, resta-lhe ficar à margem. Nesse aspecto, têm se revelado
preocupante as inúmeras doenças incapacitantes e sua relação com o trabalho, tais como as
doenças osteomusculares, as pulmonares e respiratórias, dentre outras, que têm contribuído
para o afastamento definitivo de muitos trabalhadores do mercado de trabalho.
É justamente nesse momento crucial da vida do trabalhador que se revela a verdadeira
face dessa realidade, pois o adoecimento acaba ocultado e ocultando inúmeros fatores
relacionados à organização do trabalho.
89
Embora ainda prevaleça a responsabilização da doença ao indivíduo, este, ao se afastar
do processo produtivo, cria condições para identificar seus determinantes, até então
obscurecidos pela necessidade imperiosa do trabalho. Entretanto, esse afastamento das
atividades32 acarreta uma multiplicidade de conseqüências adversas, dentre elas: a perda da
identidade profissional, o redimensionamento da vida cotidiana e econômica, o sentimento de
inutilidade e invalidez, o isolamento social e a perda de vínculo com a empresa e os colegas,
além da insegurança ao retornar ao trabalho e o medo da perda do emprego. A doença, nesse
contexto, preenche o espaço deixado pela centralidade do trabalho, aguçando a sua
sintomatologia, comprometendo e dificultando suas possibilidades de reinserção ao processo
produtivo, quando não causando sua total exclusão.
Ampliando o foco de análise, pode-se identificar um incontável número de
trabalhadores do mercado informal excluídos do mercado formal também pela situação de
adoecimento que, sem dúvida, sofrem um processo mais acirrado de exclusão e
desqualificação. Nesses casos, a tendência à desproteção passa a ser ainda maior, ou seja, uma
exclusão leva à outra, pois o caráter contratual da previdência social, impede seu acesso ao
seguro social, caso tenha deixado de contribuir há mais de 12 meses33. Nesse sentido, as
doenças de latência podem ter um efeito explosivo no momento em que se manifestam, caso o
trabalhador não esteja mais no mercado formal ou sem vínculo previdenciário. A titulo
ilustrativo34, apresenta-se o caso de uma trabalhadora que por nove anos, em períodos
alternados, de 1975 a 1988, trabalhou numa mesma empresa do ramo metalúrgico, onde
exercia suas atividades no setor de fundição, em contato com a sílica. Após sua demissão,
32
Esse tema foi desenvolvido pela autora na sua dissertação de Mestrado, As Determinações e Implicações do
Afastamento do Trabalho: O Impacto Social do Adoecimento, sob a orientação da Profª. Jussara Maria Rosa
Mendes.
33
Esse prazo se amplia para 24 meses, caso o trabalhador tiver mais de 10 anos de contribuição, sem perda de
qualidade de segurado nesse período, conforme Decreto nº 3.048/99, inciso 1º do artigo 13.
34
Os dois relatos que seguem são verídicos. A aproximação com esses casos ocorreu através do exercício
profissional.
90
trabalhou como diarista por cinco anos, quando, em 1999, começou a apresentar cansaço e
falta de ar, sinais do diagnóstico de silicose que viria a se confirmar ao concluir a
investigação. Após sua saída da empresa, não mais contribuiu para a Previdência Social.
Através do sindicato da categoria (ex-categoria), encaminhou CAT, que aguarda vistoria
pericial do local de trabalho pelo INSS, para estabelecimento do nexo-causal35. No entanto,
mesmo que o laudo seja aceito, a trabalhadora não terá direito à proteção social, nesse caso,
ao benefício por incapacidade, que viria representar uma renda mensal, pois não é segurada da
previdência, e a doença não pode ser “desativada”.
Outro exemplo também oportuno a relacionar, por revelar uma outra face dessa mesma
realidade, é o de um trabalhador de 45 anos que, por 30 anos, exerceu atividade na extração
de pedra, metade desse período empregado e após como autônomo. Oito meses após retomar
sua condição de empregado, obteve o diagnóstico de pneumoconiose por sílica – silicose. O
empregador, alegando pouco tempo em sua empresa, embora tivesse vínculo anterior, não
emitiu a CAT, por considerar a necessidade de maior tempo de exposição. O sindicato da
categoria também considerou não ter elementos para a emissão da comunicação. Assim,
embora esse trabalhador tenha o direito ao benefício por incapacidade, não teve reconhecido o
seu direito como doença profissional e, por conseguinte, aos demais direitos que faz jus, bem
como não ingressou nas estatísticas dos acidentes de trabalho.
Esses dois exemplos, que são contraprovas históricas das inferências anteriormente
formuladas, dão a dimensão e a clareza da realidade que atinge um incontável número de
trabalhadores, anualmente, de forma anônima. Estima-se que 50% a 70% dos trabalhadores
estão expostos a fatores de risco no trabalho – ergonômicos, biológicos, físicos, químicos e
35
As normas técnicas sobre pneumoconioses, incluindo a avaliação da incapacidade para fins de benefício
previdenciário, constam na Ordem de Serviço nº 609, de 05 de agosto de 1998.
91
psicossociais –, segundo Schubert (2001), que aponta ainda, com base em informações da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), que ocorrem aproximadamente dois milhões de
acidentes de trabalho por ano na América Latina, sendo que 40% são segurados por sistema
de seguro social, o que, de forma alarmante, denuncia um sub-registro de 90% de doenças
profissionais (SCHUBERT, 2001).
Nesse contexto, a tendência é que se amplie o contingente de trabalhadores
desprotegidos socialmente, assim como a ausência do reconhecimento legal de acidentes e
doenças relacionadas ao trabalho – antigas e novas. A lógica da Previdência Social brasileira,
enquanto seguradora, não apenas se limita a dar cobertura aos que contribuem, mas, tratando-se dos benefícios por incapacidade, restringe-se ao aspecto legal e institucional – indenizável
–, sem responder às mudanças que a realidade social impõe. Ela se baseia na mesma
concepção de acidente e doença profissional que atravessou o século XX, legitimando-se em
meio às desigualdades nele produzidas.
A insuficiente cobertura e a necessidade de conceber e ampliar o sistema de seguro
social exigem um redimensionamento do olhar para a proteção à saúde do trabalhador
considerando a multicausalidade das doenças e dos acidentes de trabalho. Para tal, deve-se
superar a cultura prevencionista que centra no trabalhador os cuidados com os riscos a que
estão expostos e acaba ocultando a necessidade de se promover à saúde. É fundamental
também romper com a concepção hegemônica da medicina do trabalho e saúde ocupacional,
avançando para um conceito de saúde do trabalhador (OLIVEIRA; MENDES, 1995) que
supere a concepção anterior por uma que abarque os determinantes sociais, econômicos e
políticos.
92
Portanto, para uma nova concepção de saúde do trabalhador, os aspectos
prevencionistas e protecionistas ocupacionais devem reconhecer o processo doença-trabalho
também fora do âmbito produtivo, e, fundamentalmente, as diferentes expressões de como a
saúde se manifesta em diferentes épocas e espaços profissionais – fábrica, comércio, serviços
–, em situação de trabalho diverso – desemprego, subemprego, terceirizado, domiciliado. Para
se efetivar, é imprescindível, também, buscar o saber do próprio trabalhador (DIAS, 1995)
sobre as condições de vida e trabalho a que está subjugado.
Por fim, o acidente e a doença no trabalho, ao serem concebidos na mesma gênese
conceitual, trazem para a atualidade desafios que recolocam, especialmente nas doenças, a
necessidade de uma abordagem transdisciplinar. René Mendes (1995), ao resgatar a evolução
conceitual das doenças profissionais, as classifica inicialmente como doenças dos
trabalhadores, após, como doenças profissionais, evoluindo para doenças relacionadas ao
trabalho e, hoje, para saúde do trabalhador. Todas essas denominações contêm aspectos
epidemeológicos, causais e sociais que nunca foram suficientemente percebidos e
reconhecidos e, infelizmente, continuam não o sendo. Entretanto, é importante destacar que
colocar a doença e o acidente do trabalho como expressões que traduzem a relação saúde e
trabalho não significa que a saúde possa ser promovida exclusivamente dentro do “mundo” do
trabalho. Para tal, há que se reconhecer que os avanços do conhecimento no campo da saúde
do trabalhador – em permanente construção –, precisam ser dotados de força social, através
dos diversos atores e dos movimentos social, institucional e do meio científico, para que se
construam estratégias que possam reverter à lógica de viver, adoecer e morrer do trabalho.
93
2.4 – O AGENTE AMIANTO: GERMINANDO O OCULTO PROCESSO DE SAÚDE-DOENÇA
Das doenças ocupacionais, as que mais têm suscitado preocupação nas últimas duas
décadas no mundo são, sem dúvida, as originadas da exposição ao amianto – uma fibra
mineral que, quando inalada de forma contínua, pode provocar doenças respiratórias, como
asbestose, câncer de pulmão, mesotelioma de pleura, e ocasionar muitas outras que podem
levar ao óbito. Os primeiros conhecimentos relativos aos seus efeitos tóxicos e à sua
identificação como doença associada datam da primeira década do século XX.
Mas a atualidade não só acumula novos conhecimentos, como também convive com
uma realidade mais complexa e contraditória. Por um lado, milhares de novos casos surgem
por ano, como denuncia o Seminário Europeu do Amianto, realizado em 2001: somente na
Europa Ocidental, estima-se que o total de mortes relacionadas ao amianto nos próximos anos
poderá exceder a 500 mil. Por outro lado, essa realidade é ainda invisível perante o conjunto
da sociedade e mesmo para a população diretamente exposta, em especial, os trabalhadores
que utilizam ou utilizaram o amianto como matéria prima no seu processo de trabalho.
Foi na Europa que ocorreram as primeiras proibições do uso do amianto, e, na
Inglaterra, a taxa de mortalidade por mesotelioma, pós-banimento, ainda permanecerá
próxima a 2000 casos/ano, até 2010, sendo que 50.000 pessoas já morreram dessa doença,
todas diretamente relacionadas à exposição ao amianto, naquele país36. A recente Conferência
Européia sobre Amianto, ocorrida em Dresden, Alemanha, em 2003, que reuniu 160
participantes de todos os membros da União Européia e de países de fora da Europa, como o
Brasil, a Tailândia e o Japão, reafirmou que o amianto permanece como o principal tóxico
36
Disponível em: <http://www.bmj.com>.
Acesso em: jun. 2003.
94
cancerígeno no ambiente de trabalho. Na maioria dos países, as doenças causadas pelas suas
fibras estão entre as mais sérias e custosas doenças profissionais. A Conferência alertou para o
fato de que, na Europa Ocidental, na América do Norte, no Japão e na Austrália, está prevista
a ocorrência de 20.000 cânceres de pulmão induzidos pelo amianto e de 10.000 casos de
mesotelioma por ano e sentenciou que, nos países em desenvolvimento, o risco é ainda maior
que nos de economia estável, sendo que, nesses países, nos próximos 20 a 30 anos, o amianto
se mostrará uma “bomba relógio” para a saúde.
2.4.1 – Revisão Epidemiológica sobre o Amianto
O Brasil já possui uma considerável bibliografia contento estudos sobre os efeitos
nocivos do amianto à saúde humana. Autores como Giannasi (1997, 1998, 2000), Mendes
(1995, 1999), Wünsch Filho (1987, 2001), Castro (1999), Algranti (1986, 1995) e Scavone
(2000) trazem várias e complementares contribuições que revelam o “estado da arte” relativo
ao estágio atual do conhecimento científico sobre os efeitos e riscos da inalação de fibras de
amianto sobre a saúde da população. Ao mesmo tempo, ainda se constata a prevalência de um
campo com pouca visibilidade social, sem condições de testemunhar a gravidade dessa
realidade e, por conseguinte, a necessidade de enfrentá-la.
No plano mundial e em particular na Europa, os avanços científicos37 resultaram em
ações políticas que levaram a banir o amianto, pois, segundo sentencia a principal
pesquisadora sobre o tema na França, Annie Thébaud-Mony, “[...] os 20 anos de socialização dos
conhecimentos permitiram demonstrar os efeitos patogênicos desta fibra mineral e evidenciam que o
37
Aqui se destaca o trabalho realizado pelo Institut National de la Santé e de la Recherche Medicale (INSERM),
na França, que é o principal e o mais respeitado órgão, naquele país, de pesquisas nessa área.
95
risco industrial ‘socialmente aceitável’ se revela, hoje, um dos mais graves problemas de saúde
pública” (THÉBAUD-MONY, 1999). Isso evidencia que o enfrentamento dessa problemática é
coletivo.
Amianto e asbesto são nomes comerciais de um grupo heterogêneo de minerais
(FIGURA 1), facilmente separáveis em fibras. As variedades fibrosas são provenientes de seis
minerais do grupo dos silicatos. Entende-se por fibra um particulado cuja relação
comprimento/diâmetro seja superior a 3:1. O amianto desfaz-se sob a influência atmosférica
em fibras microscópicas (FIGURA 2), que, devido à sua forma – finas e compridas –, podem se
manter durante muito tempo no ar e se depositar nas zonas aonde forem libertadas (MENDES,
1999; ALGRANTI, CAPITANI, BAGATIN, 1995; ABREA) O nome amianto/asbesto
significa “sem mancha”, “incorruptível” e “inextinguível”(MENDES, 1999).
FIGURA 1
Foto do mineral (amianto) bruto
FIGURA 2
Fibras do mineral ao microscópio
96
Constata-se a existência de mais de 350 minerais com estrutura fibrosa, provenientes
de rochas magmáticas e metamórficas, mas o amianto ou asbesto pertence a dois grupos de
minerais: a crisotila, asbesto branco, representando o grupo das serpentinas e os provenientes
do grupo dos anfibólios: a crocidolita, asbesto azul, amosita, asbesto marrom, antofilita,
actonolita e tremolita (SCLIAR, 1998 in MENDES, 1999). A crisotila – silicato hidratado de
ferro e magnésio, representa 100% do amianto atualmente minerado no Brasil, tornando-se o
quinto38 produtor mundial do mineral, com extração nos Estados de Goiás – onde está
localizada a maior mina desse mineral no Brasil –, em Minas Gerais39, Bahia e Piauí. Embora
em nível mundial tenha ocorrido um declínio na produção do amianto, principalmente após as
medidas adotadas na Europa, os países que não possuem nenhuma restrição mantêm o nível
de produção, a exemplo do Brasil, que mantém um beneficiamento de 208 mil toneladas/ano,
sendo que, em 1988, era de 227.000, segundo dados do Anuário Mineral Brasileiro de 1988 a
1997 (MENDES, 1999). Sua comercialização no mercado brasileiro data de 1940
(CAPELOZZI, 2001).
O uso do amianto, atualmente, concentra-se nos produtos cimento-amianto ou
fibrocimento, que representam 85% do consumo dessas fibras, seguido pelos materiais de
ficção, que consomem cerca de 19% da produção, 3% representam os produtos têxteis e, por
fim, a produção de juntas de vedação e demais produtos corresponde a 2% e 1%
respectivamente.
38
39
Outras publicações indicam o Brasil como terceiro e quarto produtor mundial.
A mina está localizada no Município de Minaçu e é ligada ao grupo francês Saint-Gobain.
97
Os dados que seguem sobre a utilização do mineral como matéria-prima são descritos
por René Mendes, no seu estudo Asbesto (Amianto) e Doença40 (1999), assim como os
principais produtos em cada segmento são:
- Fibrocimento: placas onduladas para telhados, placas planas para divisórias,
revestimentos para interiores e exteriores, caixas d’água, canos para água em baixa
pressão, canos e tubos para alta-pressão;
- Fricção (lonas, pastilhas de freio e discos de embreagem para automóveis,
tratores, caminhões e trens): é utilizado nesse produto devido à sua resistência
mecânica e térmica, além de sua durabilidade, com uma participação nos mesmos
de 25 a 79%,
- Vedação: juntas de revestimento e vedação e gaxetas, a partir de tecidos e papelões
com amianto, utilizado em automóveis e extração de petróleo;
- Equipamentos de proteção individual: luvas, aventais, mangotes, perneiras, etc.
O amianto vem sendo vastamente utilizado em diversos segmentos da indústria por
suas destacadas propriedades, como alta resistência mecânica, flexibilidade, indestrutibilidade
e baixo custo (SCAVONE, GIANNASI, MONY, 2004). Há de se destacar ainda a sua
utilização, num passado recente, como revestimento de paredes e tetos de prédios para
40
Esse estudo encontra-se publicado em forma de artigo no site: www.saudeetrabalho.com.br; o mesmo é amplo
e profundo, fazendo uma larga revisão sobre o tema e dividindo-o em três partes: Parte I – Síntese da evolução
do conhecimento científico do problema, com ênfase no caso brasileiro; Parte II – O atual debate sobre a
nocividade do asbesto-crisotila e a mobilização internacional pelo seu banimento; e Parte III – A inadequação
do atual posicionamento brasileiro e a necessidade urgente de uma política de proteção da vida, da saúde e do
meio-ambiente.
98
isolamento térmico, a exemplo de cinemas, clubes, bem como a mais atual e trágica
manifestação do seu uso, na queda da torres gêmeas (WTC), nos Estados Unidos. O mundo
inteiro viu as nuvens que se formaram e cobriram a região por dezenas de dias. O que não se
divulgou é que os responsáveis pela construção das torres já sabiam que o amianto era
cancerígeno. O WTC, além de símbolo do capital, passou a ser símbolo também do poder
econômico sobre a saúde da população, e os seus efeitos permanecerão por muito tempo,
mesmo após a morte dos responsáveis pelo atentado41. Esse conjunto de informações
demonstra que o amianto se tornou um grave problema não apenas de saúde ocupacional, mas
de saúde pública. Embora o conhecimento sobre a nocividade do amianto no espaço
ocupacional fosse identificado no primeiro século da era cristã, quando historiadores
descreveram a presença de doenças pulmonares em escravos tecelões de lã de asbesto
(GOTTLIEB, 1989 in MENDES), a asbestose só foi descrita pela primeira vez em 1907, pelo
médico inglês H. M. Murray, quando atendeu a um trabalhador vitimado pela doença que
exercia atividade de fiação e se encontrava exposto ao asbesto/amianto.
Os estudos multiplicaram-se, e novos casos foram sendo relacionados e identificados,
estabelecendo a relação nexo causal entre as doenças e a exposição ao mineral. Muitas das
situações estudadas apresentavam um período de latência variável entre 10 e 60 anos.
Também houve a descrição de casos de mulheres e crianças expostas ao amianto dentro de
suas próprias casas, advindas das roupas do pai ou cônjuges que trabalhavam expostos a ele.
As principais doenças ocupacionais são a asbestose e o mesotelioma. Registram-se, a seguir,
as características centrais dessas doenças (ALGRANTI; CAPITANI; BAGATIN, 1995;
ABREA, 1999).
41
Esse tema foi motivo de artigo publicado no site: <http://www.bmj.com>, em 11 set. 2002.
99
- Asbestose: é uma pneumoconiose (fibrose pulmonar), provocada pelo amianto,
que endurece o tecido pulmonar elástico em reação à irritação das fibras e das
inflamações daí resultantes. A respiração, em consequência do enfrossamento e da
calcificação dos tecidos conjuntivos cicatrizados, é afetada, e o perigo de uma
pneumonia adicional aumenta. É uma doença de cunho eminentemente
ocupacional. O sintoma principal é a respiração curta e forçada. Geralmente, o
período de latência é superior a 10 anos, mas varia de acordo com o período de
exposição do trabalhador;
- Mesotelioma – é um tumor maligno que se localiza no nível da pleura, do
peritônio e do pericárdio. Admite-se que 90% dos casos identificados estão
relacionados à exposição ao amianto. O crescimento incontrolável das células
começa imperceptível e, inicialmente, não traz nenhum incômodo; as
manifestações iniciais da doença em evolução são a tosse, a falta de ar e a dor
difusa no peito. O tumor pode se manifestar de 10 a 60 anos pós-exposição e
decorre, em média, a partir de 15 anos de exposição. Clinicamente, o mesotelioma
tem um curso desfavorável, onde a sobrevida é de, aproximadamente, 12 a 18
meses, e nenhuma modalidade de tratamento convencional, como cirurgia,
radioterapia e quimioterapia se revelaram promissoras em relação à sobrevida dos
pacientes tratados.
Após vários anos de pesquisa, que se transformaram em conhecimento sobre os efeitos
do amianto na saúde da população exposta de forma ocupacional ou ambiental, é possível
caracterizar outras doenças relacionadas à exposição que atingem, na sua maioria, o pulmão.
Porém, comprovou-se a existência de neoplasias localizadas em outros órgãos, como
estômago, esôfago, laringe e outros. As principais características de cada doença e as formas
de identificação são sintetizadas no QUADRO 2.
100
QUADRO 2
Principais doenças relacionadas à exposição do amianto, com suas características,
sintomas e períodos de latência
DOENÇA/AGRAVO
PULMÃO
Parêquima
Asbestose
(fibrose intersticial
difusa).
Doenças de pequenas
vias aéreas.
Doenças crônicas das
vias aéreas.
Câncer de pulmão
(todos os tipos de
células).
CARACTERÍSTICAS
PERÍODO DE LATÊNCIA
PRINCIPAIS SINTOMAS
Pnemoconiose associada à
exposição, por via respiratória,
ao amianto/asbesto.
Fibrose limitada à região
peribrônquica.
Bronquite, doença pulmonar
obstrutiva crônica e enfisema.
Os tipos celulares de câncer de
pulmão associado ao amianto
são semelhantes na população
em geral, com o predomínio
de adenocarcinomas, quando
da concomitância com a
asbestose moderada ou grave.
Acima de 10 anos.
Dispnéia de esforço,
cansaço e tosse seca.
Acima de 10 anos.
Idem.
Acima de 10 anos.
Idem.
Em média 15 anos.
Dor, tosse e
emagrecimento.
PLEURA
Mesotelioma maligno de São tumores de origem
Acima de 15 anos.
Dispnéia e dor
pleura.
mesodérmica,
e
a
torácica.
probabilidade de que as
pessoas portadoras tenham
trabalhado com o amianto é de
90%.
Alterações pleurais
As placas pleurais são as que
Longo período.
Dor torácica, dispnéia,
Bbenignas:
mais
prevalecem
das
tosse e febre.
Espessamento pleural
patologias relacionadas ao
difuso; espessamento
amianto.
pleural discreto (placas
calcificadas ou não);
atelectasias
arrendondadas; derrame
pleural benigno.
PERITÔNIO
Mesotelioma maligno de Apresenta-se com um quadro
Acima de 15 anos.
Dor toráxica e
peritônio.
de ascite progressiva e
insuficiência cardíaca
presença de massa tumoral no
congestiva.
abdômen.
OUTRAS NEOPLASIAS
- Mesotelioma maligno
Dor, febre,
do pericárcio e bolsa
emagrecimento, perda
escrotal;
de apetite.
- Câncer da laringe;
- Câncer de estômago;
- Câncer do esôfago;
- Câncer do cólon-reto;
- Outras localizações:
em ovários, vesícula
biliar, vias biliares,
pâncreas e rins.
FONTE: Quadro adaptado pela autora a partir das doenças relacionadas pelo Dr. René Mendes e das informações
descritas no Protocolo de vigilância à saúde da população e dos trabalhadores expostos ao amianto (Governo do
Estado do RGS/Brasil, 2002), bem como da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (ABREA).
101
A incidência das patologias relacionadas no QUADRO 2 não só traduz a gravidade dos
tipos de agravos à saúde dos trabalhadores e da população exposta, como explicita a
necessidade de um efetivo monitoramento,visando não apenas à associação causal, mas,
acima de tudo, a um controle epidemiológico que se transforme em ações no âmbito da saúde
coletiva. Os óbitos por mesotelioma e asbestose – pneumoconiose devido ao amianto –, no
Estado do Rio Grande do Sul, confirmam essa preocupação, uma vez que, segundo o Núcleo
de Informações sobre Saúde (NIS) da Secretaria de Saúde do Estado, nos últimos cinco anos,
ou seja, de 1999 a 2003, foram registrados 25 mortes por mesotelioma e duas por asbestose,
conforme a TABELA 8 e a TABELA 9. No entanto, não se dispõe de maiores informações sobre
esses óbitos, apenas a faixa etária e a freqüência por município. Essas informações sinalizam,
de forma imprescindível, a necessidade de se promover vigilância em saúde voltada, em
especial, para as patologias inerentes às condições de trabalho e que possam se manifestar a
longo prazo, bem como pela completa ausência de informações sobre os trabalhadores
vitimados, como se constatou na busca ativa dos que foram óbito, a qual foi realizada junto às
Secretarias de Saúde dos municípios relacionados.
102
TABELA 8
Freqüência de óbitos por mesotelioma (C-45) por município de residência e
faixa etária no RS – 1999-03
MUNICÍPIO DE
RESIDÊNCIA
Porto Alegre
Campestre da
Serra
Esteio
Santa Cruz do Sul
Restinga Seca
Uruguaiana
Canoas
Tapejara
Tucunduva
Tramandaí
São José do Norte
Guaporé
Vila Flores
Taquaraçu do Sul
TOTAL
FAIXA ETÁRIA
60-69 anos 70-79 anos + de 80 anos Total
30-39 anos
40-49 anos
50-59 anos
1
1
2
3
2
–
9
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
1
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
1
–
–
–
–
–
–
1
1
–
–
–
–
–
1
–
1
1
–
–
–
1
1
1
1
1
–
–
–
–
–
1
–
1
–
1
–
–
–
–
–
–
–
–
–
1
2
2
2
1
1
1
1
1
1
1
1
1
1
25
FONTE DOS DADOS BRUTOS: Núcleo de Informações em Saúde (NIS/SES-RS).
TABELA 9
Freqüência de óbitos por pnemoconiose devida ao amianto e outras fibras minerais (J-61) por
município de residência e faixa etária no RS – 1999-03
MUNICÍPIO DE
RESIDÊNCIA
Caxias do Sul
Campestre da
Serra
TOTAL
FAIXA ETÁRIA
60-69 anos 70-79 anos + de 80 anos Total
30-39 anos
40-49 anos
50-59 anos
–
–
–
1
–
–
1
–
–
–
1
–
–
1
2
FONTE DOS DADOS BRUTOS: Núcleo de Informações em Saúde (NIS/SES-RS).
Tem-se presente que a evolução do conhecimento sobre os efeitos das fibras de
amianto na saúde humana e a identificação de inúmeros casos de doenças, no mundo todo, em
circunstâncias que indicam a exposição ocupacional como principal agente causador têm em
comum a precarização das condições de trabalho. Porém, a ausência de uma política de saúde
pública que atue nesse sentido também tem contribuído para a subnotificação das doenças
103
relacionadas ao mesmo. O exemplo do que vem ocorrendo na Índia, recentemente denunciado
por profissionais da saúde, é emblemático. Eles apontam a negligência de determinados
médicos, que vêm atestando tratar-se de tuberculose ou bronquite situações que, na verdade,
são doenças decorrentes da exposição ao amianto. Segundo Mudur (2003), o fato está
associado às indenizações pagas às famílias das vítimas, que, até agora, só chegaram a 30
casos, quando 20% dos seis mil expostos diretamente nas minas e na indústria já apresentaram
problemas em exames realizados.
A preocupação com o seu uso ocupacional reafirma a necessidade de um controle
epidemiológico que adote medidas severas para monitoramento, vigilância e assistência
médica, assim como a capacitação dos profissionais da saúde para a identificação e o
tratamento das doenças a ele relacionadas. A necessidade de realizar um cadastro nacional de
toda a população exposta é também uma ação fundamental que vem sendo indicada e
proposta pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Embora não haja números precisos sobre
os percentuais de pessoas que estiveram ou continuam expostas ao amianto, a FIOCRUZ
apresenta uma estimativa de 25.000 expostos, empregados nos setores de industrialização.
Porém, deve-se considerar a exposição indireta, pois, segundo Seikoff (in Castro, 2001), para
cada trabalhador exposto diretamente, existem cinco que utilizam o amianto ou estão a ele
expostos indiretamente.
A morte do ator Steven McQueen por mesotelioma, em 1980, mostrou ao mundo, já
naquela década, a preocupação crescente dos males relacionados à exposição. O ator teria sido
exposto ao amianto quando utilizou o mineral como isolante em seus carros de corrida e,
possivelmente, também no período em que trabalhou em “marines” (Biography Filmography
Gallery, 2004).
104
Na França, a questão do amianto vem revelando a ruptura ideológica produzida no
campo das relações entre sistema econômico e saúde pública (Thébaud-Mony, 2001). O País
contabiliza um crescente número de óbitos e doenças ocupacionais nos últimos anos.
Recentemente, a situação relativa a Jussieu tem sido amplamente divulgada em todo o mundo.
Na região, constituiu-se o Comitê Anti-Amianto, em 1994, que agrupa personalidades e
estudantes das Universidades de Paris 6 e Paris 7. Este, inicialmente, organizou um retrato
completo sobre o amianto em Jussieu, e vem empreendendo a luta pela desamiantalização das
Universidades, além do controle da população exposta, bem como já solicitou judicialmente o
fechamento dos campos, como forma de pressão para a adoção de medidas de segurança.
Cinco casos de mesotelioma – casos específicos de câncer por amianto, foram declarados
como doença profissional entre 2001 e 2002, bem como indenizados em 35.000 euros. Estes
ganharam notoriedade, talvez não por se tratar de trabalhadores expostos ao amianto na
construção da Universidade, mas de pessoas que trabalhavam no seu interior: três docentespesquisadores (dois físicos e um geólogo) e dois engenheiros (oceanográfico e de
informática), um deles falecido em outubro de 2003.
O depoimento de uma das vítimas é impressionante42: G, físico de 66 anos, antigo
pesquisador da Universidade, relata a evolução do seu câncer e inicia com a seguinte frase
“Ao fim de 30 anos, eu sabia que a probabilidade de ter um mesotelioma tornava-se uma
possibilidade”. O pesquisador iniciou suas atividades aos 24 anos, em 1961, trabalhando no
laboratório de ultrasom, onde os armários metálicos eram revestidos de fibras de amianto,
que, com o passar do tempo, viravam pó. Saiu da universidade em 1981 e não teve mais
nenhum contato com o amianto. Os primeiros sinais da doença vieram em 2001, quando
começou a apresentar febre, e, ao procurar um especialista, e depois de realizados diversos
exames e alguns repetidos, foi confirmado o diagnóstico de mesotelioma. Desde então, tem
42
Essa matéria foi publicada pelo Comité Anti Amiante Jussuieu. Site oficial acessado em junho de 2004.
105
passado por rigoroso e difícil tratamento, com grau severo de comprometimento, lutando
contra a doença, porém, está consciente de que a esperança de vida de um mesotelioma não
ultrapassa 18 meses.
No Brasil, em recente matéria publicada na Folha de São Paulo (2004), dois
trabalhadores também relataram seu drama vivido atualmente. AJS, 53 anos, trabalhou
aproximadamente dois anos como funcionário de uma mina de amianto na Bahia. A atividade
era realizada em local subterrâneo, mais precisamente na limpeza dos equipamentos de dois
fornos de alta temperatura, e não utilizava qualquer equipamento de segurança. Desligou-se
da empresa em 1972 e coloca que, desde 1984, vem sendo reprovado nos exames
admissionais ao procurar emprego. Hoje, respira com dificuldades e pouco consegue
caminhar “[...] as minhas pernas ficam travadas, não tenho força para nada”. Por sua vez, VSC, 42
anos, com sintomas semelhantes aos de AJS, tem história diferente. Antes de completar 10
anos de idade, já trabalhava quebrando os resíduos de pedras para retirar fibras do amianto.
Descreve que, “[...] para ajudar no orçamento familiar, quase todas as crianças da vila vinham para a
mina quebrar pedras”. Hoje, sem qualquer proteção social e assistência à saúde, pois não foi
contemplado com o plano de saúde, como os demais trabalhadores, funcionários da empresa
responsável pela extração, que adoeceram, declara: “[...] os dirigentes alegam que eu nunca
trabalhei para a empresa, o que é verdade. Acontece que, por morar perto da mina, há mais de 30 anos
sou obrigado a respirar a poeira tóxica”.
O impacto do adoecimento devido à exposição ao amianto sobre a vida dos
trabalhadores e de seus familiares é eloqüente; as implicações de ordem social, econômica e
emocional ampliam-se a partir do agravamento das doenças. Os mecanismos que denunciam
essa realidade precisam extrapolar as fronteiras das vítimas e atingir diferentes instâncias,
106
como a imprensa de todas as formas e a organização social e política, visando à socialização
dos conhecimentos científicos possa repercutir num plano superior.
2.4.2 – O Mineral como Matéria-Prima no Processo de Trabalho e os Mecanismos de
“Proteção” ao Trabalhador
A utilização do mineral como matéria-prima no processo de trabalho torna-o inimigo
mortal que ronda a vida do trabalhador43. A força de trabalho empregada pelo operário ao
manusear o amianto no processo de transformação deste em uma mercadoria não só tem por
finalidade a produção de mais-valia, como agrega a esse trabalhador uma nova possibilidade:
a de vir a ter uma doença profissional, principalmente numa etapa da vida próxima à
aposentadoria, que traz perspectivas de viver com mais tranqüilidade, considerando as
condições em que estava submetido durante a sua trajetória profissional.
O trabalhador talvez não tenha compreensão suficiente sobre os riscos a que está
exposto, a exemplo de outras doenças invisíveis, como as LER/DORT e as pneumoconioses
de diferentes gêneses ocupacionais. A aparente inofesividade do mineral explica-se por não
causar nenhum tipo de lesão externa, e, mesmo quando os riscos são conhecidos, ainda assim
não há o devido convencimento, que acaba obscurecido pela necessidade do trabalho e pelo
adicional de insalubridade, que garante um acréscimo no salário. Mas, no Brasil, a vasta
propaganda sobre o uso controlado e, mais recentemente, sobre o banimento desse mineral em
alguns estados brasileiros também tem contribuído para obscurecer a verdade, uma vez que
muitos trabalhadores e a população em geral acreditam que os riscos cessaram.
43
Refere-se ao título da cartilha elaborada pela ABREA com o apoio de sindicatos e do CPAIST/SES-RS/Brasil:
O Inimigo Mortal que Ronda Nossas Vidas.
107
A obrigatoriedade do monitoramento pela empresa aos trabalhadores expostos ao
amianto ou que assim já o estiveram revela, ao mesmo tempo, a nocividade e os avanços
legais da proteção à saúde do trabalhador nessa área. Cabe ao empregador, durante e após o
término do contrato de trabalho, realizar de forma periódica os exames médicos de controle
dos trabalhadores, em particular dos que já não mais estão expostos, o que deve ocorrer
durante 30 anos, segundo a CLT, através da Lei nº 6.514, de 1977, que altera o seu artigo V,
relativo à segurança e medicina do trabalho, e disciplina, através da Norma Regulamentadora
(NR) 7, que trata do Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO) e da NR
15, sobre atividades e operações insalubres no seu Anexo nº 12. A NR 15 está juridicamente
assegurada pelos seguintes artigos da CLT:
Art. 189. Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que,
por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os
empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância
fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de
exposição aos seus efeitos.
Art. 190. O Ministério do Trabalho aprovará o quadro das atividades e
operações insalubres e adotará normas sobre os critérios de caracterização da
insalubridade, os limites de tolerância aos agentes agressivos, meios de
proteção e o tempo máximo de exposição do empregado a esses agentes.
Por sua vez, o Anexo 12 da referida NR 15 teve sua redação dada pela Portaria nº
3.214, de 08 de junho de 1978, sendo que a seção que trata sobre o asbesto foi alterada pela
Portaria nº 01, de 28 de maio de 1991 – regulamentação do Decreto nº 126 –, e pela Portaria
nº 22, de 26 de dezembro de 1994. Assim os itens mais relevantes presentes no Anexo 12 são:
Item 11. O empregador deverá realizar a avaliação ambiental de poeira de
asbesto nos locais de trabalho, em intervalos não superiores há seis meses.
Item 12. O limite de tolerância para fibras respiráveis de asbesto crisotila é
de 2,0 f/cm³.
Item 14. O empregador deverá fornecer gratuitamente toda vestimenta de
trabalho que poderá ser contaminada por asbesto, não podendo ser esta
utilizada fora dos locais de trabalho.
14.1. O empregador será responsável pela limpeza, manutenção e guarda da
108
vestimenta de trabalho, bem como pelos EPIs utilizados pelo trabalhador.
Item 15. O empregador deverá dispor de vestiário duplo para os
trabalhadores expostos ao asbesto.
Destacam-se também os itens que tratam sobre o controle médico periódico.
Item 18. Todos os trabalhadores que desempenham ou tenham funções
ligadas à exposição ocupacional ao asbesto serão submetidos a exames
médicos previstos no item 7.1.3 da NR-7, sendo que por ocasião da
admissão, demissão e anualmente, devem ser realizados, obrigatoriamente,
exames complementares, incluindo, além da avaliação clínica,
telerradiografia de tórax e prova de função pulmonar (espirometria).
18.2. As empresas são obrigadas a informar aos trabalhadores examinados,
em formulário próprio, os resultados dos exames realizados.
Item 19. Cabe ao empregador, após o término do contrato de trabalho
envolvendo exposição ao asbesto, manter disponível a realização periódica
de exames médicos de controle dos trabalhadores durante 30 anos (grifo
nosso).
19.1 Estes exames deverão ser realizados com a seguinte periodicidade:
a) a cada 3 anos para trabalhadores com período de exposição de 0 a 12
anos;
b) a cada 2 anos para trabalhadores com período de exposição de 12 a 20
anos;
c) anual para trabalhadores com período de exposição superior a 20 anos.
19.2. O trabalhador receberá, por ocasião da demissão e retorno posteriores,
comunicação da data e local da próxima avaliação médica.
Entretanto, a aplicabilidade legal dessa legislação, formulada à luz do conhecimento
científico, tem se revelado inoperante. O número de trabalhadores que realizam o pós-demissional é mínimo. A partir de informações obtidas junto à Vigilância em Saúde do
Estado do Rio Grande do Sul, estima-se que apenas entre 5% e 30% dos trabalhadores voltam
à empresa para a realização periódica dos exames, de acordo com o ramo produtivo. Esses
dados demonstram a necessidade de maior rigor legal no controle após a exposição, para dar
conta do cumprimento institucional e jurídico desse direito do trabalhador, o qual vem sendo
reiterado sucessivamente num aparato de leis relacionadas cronologicamente no QUADRO 3.
109
Há que se destacar que uma das principais iniciativas visando ao cumprimento legal da
proteção aos trabalhadores expostos ocorreu em 1987, com a criação, pelo Ministério do
Trabalho, o Grupo Interinstitucional do Amianto (GIA), no Estado de São Paulo, sob a
coordenação da DRT-SP, que, com base em informações preliminares do próprio Ministério e
em denúncias das entidades sindicais, passou a organizar ações que visavam à efetivação das
normas, resultando, em muitos casos, na necessidade de autuar empresas que utilizavam o
mineral sem a devida proteção estabelecida em lei. Só no setor de fibrocimento, chegava a
3.500 trabalhadores expostos. A proposta estendeu-se para os demais estados brasileiros, onde
fiscais do trabalho, inclusive do Rio Grande do Sul, passaram a integrar o GIA e a
desenvolver iniciativas similares no âmbito estadual.
110
QUADRO 3
Cronologia de leis sobre a proteção contra o amianto
ANO
1977
LEGISLAÇÃO
Lei nº 6.514
1978
Portaria nº 3.214
1986
Convenção 162
72ª reunião da Organização
Internacional do Trabalho
1986
Recomendação 172
72ª reunião da Organização
Internacional do Trabalho
Acordo nacional
pelo uso do amianto
em condições de
segurança.
1991 Decreto nº 126, que
ratifica a
Convenção 162 e
altera a NR-15 do
Capítulo V, do
título II da CLT.
1995
Lei nº 9.055
Assinado pela CNI e CNTI
1989
ORIGEM
Governo Federal
Ministério do Trabalho
Ministério do Trabalho
Governo Federal
Ministério do Trabalho
SÍNTESE
Altera o Capítulo V da CLT, relativo
à segurança e medicina do trabalho.
Aprova as normas regulamentadoras
previstas no Capítulo V da CLT,
dentre elas, a NR 15, que trata de
atividades e operações insalubres.
Estabelece normas sobre a utilização
do asbesto em condições de
segurança.
Recomenda, com base na Convenção
162, as diretrizes para a utilização do
asbesto em condições de segurança.
O acordo é revisto a cada três anos e
vem sendo homologado,
sistematicamente, pelo MT.
Altera o limite de tolerância de quatro
fibras para duas fibras por cm².
Aprovado pelo Poder
O projeto aprovado garante o uso do
Legislativo um substitutivo ao
amianto, mantendo as normas
projeto de uso controlado do relativas à crisotila, de acordo com os
amianto.
acordos internacionais ratificados.
1997 Decreto nº 2.350/97
Decreto federal que
Limita a extração, a industrialização,
regulamenta a Lei nº 9.055/95
a utilização, a comercialização e o
transporte de amianto/asbesto à
variedade crisotila.
2000
Lei nº 9.976
Lei federal que dispões sobre
Limita a utilização do amianto à
a produção de cloro com
variedade crisolita e estabelece
diafragma de amianto.
normas gerenciais de controle do uso.
2001
Diversas leis
Aprovadas leis de proibição
Todas as leis contêm medidas de
do uso do amianto nos
banimento progressivo da produção e
seguintes Estados: São Paulo
comercialização. No Estado do Rio
(nos Municípios de São Paulo, Grande do Sul, a lei estabelece três
Osasco, Mogi Mirim, Bauru,
anos para os estabelecimentos
São Caetano do Sul,
industriais e quatro anos para o
Campinas e Ribeirão Preto);
comerciais e adequarem a ela.
Rio de Janeiro, Mato Grosso
do Sul e Rio Grande do Sul.
FONTE: Quadro organizado pela autora a partir de informações da ABREA e da publicação das Normas
Regulamentadoras Comentadas – legislação de segurança e medicina do trabalho e da legislação estadual
específica.
111
A Lei nº 9.055, elaborada em 1995 e regulamentada pelo Decreto nº 2.350, de 15 de
outubro de 1997, regula o uso controlado do amianto no território nacional, disciplinando a
extração, industrialização, a utilização, a comercialização e o transporte, restringindo à
variedade crisotila. A legislação traduz o posicionamento do Governo brasileiro em
contraposição à proposta das centrais sindicais, que propunham a substituição do mineral,
mesmo que gradativamente. Essa legislação estabelece também a obrigatoriedade de
encaminhar ao Sistema Único de Saúde e aos sindicatos representativos dos trabalhadores a
listagem completa dos empregados, constando a indicação do setor, da função, da idade, da
data de admissão e da avaliação médica periódica com o respectivo diagnóstico, bem como a
necessidade da realização do acordo entre sindicatos de trabalhadores e empresas com
observância de normas de segurança e saúde no trabalho, os quais deverão ser encaminhados
para as Delegacias Regionais do Trabalho. Estabelece ainda a obrigatoriedade de as empresas
se cadastrarem junto ao Ministério do Trabalho e Emprego, sendo que atualmente, no Brasil –
dados de 2004 –, 168 possuem cadastro, cujo número obtido deve ser obrigatoriamente
apresentado quando da aquisição da matéria-prima junto ao fornecedor, que, por sua vez, só
poderá entregar a mesma às empresa cadastradas.
Entretanto, o segmento de fabricação de autopeças já vinha trabalhando pela
substituição do amianto desde de 1994, consolidando, nesse mesmo ano, um acordo que
permitia a empresas do ramo adotarem medidas visando substituir o mineral. Na ocasião, por
iniciativa do Ministério do Trabalho, foi criada uma comissão interinstitucional e firmado um
protocolo de intenções para a realização de estudos conjuntos envolvendo as entidades
empresariais e de trabalhadores, visando a substituição do amianto nesse setor de
industrialização. Participaram da comissão coordenadora dos trabalhos as seguintes entidades:
Central Única dos Trabalhadores, Força Sindical, Sindipeças (patronal), Fundacentro e
112
Ministério do Trabalho. A comissão concluiu os trabalhos propondo, de forma consensual, a
substituição do amianto na fabricação de autopeças até 31 de dezembro de 1997 e o término
da comercialização em 30 de junho de 1998. A proposta de acordo para a substituição do
amianto no setor de autopeças, porém, não extrapolou as fronteiras de São Paulo44. Segundo o
Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas e de Material Elétrico de Osasco e
região, os principais fabricantes informaram, na época, que se encontravam aptos a fabricar e
a comercializar todos os seus produtos automotivos sem amianto em quatro anos, bem como,
desde 1985, já forneciam, para fins de exportação, produtos isentos do mineral.
À trajetória pela substituição do amianto contrapõe-se a defesa do seu uso controlado,
sendo adotada como estratégia a garantia e o controle legal do Valor Limite de Exposição
(VLE), que é, na verdade, um valor médio referente a oito horas diárias de trabalho, o que
quer dizer que o trabalhador não pode estar submetido a uma concentração média no ar
superior ao valor estabelecido. No Brasil, conforme já citado na legislação vigente, esse limite
é de 2,0 fibras por cm³ 45. O entendimento daqueles que defendem o seu uso controlado é de
que, dentro dos limites de tolerância, ele não causa riscos à saúde dos trabalhares. Embora a
grande maioria dos estudos relacionados ao tema indiquem que não há limite tolerável46,
verifica-se que os países que o utilizam adotaram valores limites iguais ou muito abaixo dos
do Brasil. No caso do amianto crisotila aqui utilizado, os níveis percentuais nos Estados
Unidos são de 0,1 f/cm³; no Canadá, de 1,0 f/cm³; na Índia, de 2,0 f/cm³. Contudo, sabe-se
que, historicamente, não havia mecanismos de controle do VLE, assim como, na atualidade,
determinados segmentos, principalmente os que trabalham na extração do mineral, mesmo
44
Iniciativas de mesma natureza foram propostas, em 1997, no Estado do Rio Grande do Sul, na Cidade de
Caxias do Sul – onde se concentra a maior empresa do ramo de autopeças –, pelo Sindicato dos Trabalhadores
Metalúrgicos, sem que fossem levadas a efeito.
45
Alterado de quatro para duas fibras por cm³ pelo Decreto nº 126/91, conforme consta no QUADRO 3.
46
Todos os autores relacionados a esse tema assim o consideram, bem como a Conferência em Milão tem essa
premissa em sua Declaração Bastamianto.
113
com a utilização de equipamentos de segurança, não conseguem eliminar os riscos sobre a
saúde.
A questão do uso dos equipamentos de proteção individual (EPI), em particular as
máscaras de proteção, tem suscitado ampla polêmica em relação à sua eficácia. Sucessivas
denúncias foram feitas pela Auditora Fiscal do Trabalho de São Paulo, a Engenheira Fernanda
Giannasi, que constatou, após mandar examinar as máscaras, que “[...] o material não atendeu
aos requisitos mínimos especificados pelas normas quanto à eficiência de filtração”(Engenheira.
Fernanda Giannasi, 2001, informação verbal). Essa problemática foi motivo de notícia veiculada
pela imprensa nacional47, que denunciou a utilização de máscaras, por trabalhadores que
manuseiam amianto ou exercem outras atividades, sem a Certificação de Aprovação (CA)
pelo Ministério do Trabalho, bem como informou a cassação de certificados de máscaras que
não foram aprovadas no testes de qualidade realizados pela Fundacentro, que constatou que,
dos 54 equipamentos enviados em 1999 para análise por fiscais do trabalho, sindicatos e
trabalhadores, 25 estavam fora dos padrões legais. Isso demonstra a fragilidade e a
insuficiência de mecanismos de proteção individual no controle da exposição ao amianto.
Nesse sentido, entende-se que a preocupação com a proteção do trabalhador exposto
não se esgota no plano ocupacional, mas amplia-se ao ser analisada sob a ótica do
adoecimento. Tem-se em conta que a preocupação com aspectos epidemiológicos e
nosológicos das doenças relacionadas ao amianto precisa ser acompanhada de um sistema de
saúde e previdenciário, simultaneamente, que atenda ao trabalhador nas dimensões da saúde
47
Reportagem no Programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão, em 14 de maio de 2000, sob o título
Equipamentos de Insegurança, e em duas edições da Revista CIPA, em 2000. No centro da reportagem estão
as denúncias da Engenheira. Fernanda Gianansi, bem como a realidade de um trabalhador com asbestose que
utilizou máscara de proteção individual em parte do período de exposição.
114
preventiva e assistencial e, acima de tudo, no direito de ter reconhecida a doença ocupacional
e na garantia de proteção em caso de incapacidade para o trabalho.
Entretanto, tratando-se da legislação concernente à Previdência Social sobre as
doenças relacionadas ao amianto, destaca-se a complexidade existente nessa área, que deve
ser analisada de forma dual: uma que explicite a regulamentação e a identificação das doenças
profissionais e do trabalho na respectiva relação com seu agente patogênico, e outra que
questione a aplicabilidade legal destas. Parte-se da Lei nº 8.213/91, que institui o Plano de
Benefícios da Previdência Social no seu artigo 20, equiparando as doenças profissionais e do
trabalho ao acidente de trabalho, as quais estão definidas no Anexo II do Decreto nº 3.048/99,
atualizando a referida lei. O Anexo relaciona também os agentes patológicos e os trabalhos
que contêm risco e lista diversas doenças causadas por agentes etiológicos de natureza
ocupacional, identificados no QUADRO 4.
115
QUADRO 4
Agentes patogênicos causadores de doenças profissionais – Anexo II e Agentes ou fatores de
risco de natureza ocupacional com a etiologia de doenças profissionais – Lista A e Demais
doenças relacionadas ao Trabalho – Lista B – relacionados ao amianto
ANEXO II
AGENTES PATOGÊNICOS CAUSADORES DE DOENÇAS PROFISSIONAIS OU DO TRABALHO,
AGENTES PATOGÊNICOS
TRABALHOS QUE CONTÊM RISCO
QUÍMICOS
[...]
II- Asbesto ou amianto
- Extração de rochas amiantíferas, furação, corte,
desmonte, trituração, peneiramento e manipulação;
- Despejos do material proveniente da extração,
trituração;
- Mistura, cardagem, fiação e tecelagem de amianto;
- Fabricação de guarnições para freios, materiais
isolantes e produtos de fibrocimento;
- Qualquer colocação ou demolição de produtos de
amianto que produza partículas atmosféricas de
amianto
LISTA A
AGENTES ETIOLÓGICOS OU FATORES DE
DOENÇAS CAUSALMENTE RELACIONADAS COM OS
RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL
RESPECTIVOS AGENTES OU FATORES DE RISCO
(DENOMINADAS E CODIFICADAS SEGUNDO A CID-10)
I – [...]
II – Asbesto ou amianto
[...]
-
Neoplasia maligna do estômago (C16.-)
Neoplasia maligna da laringe (C32,-)
Neoplasia maligna dos brônquios e pulmão (C34,-)
Mesotelioma de pleura (45.0)
Mesotelioma de peritônio (C45.1)
Mesotelioma de pericárdio (C45.2)
Placas epicárdicas ou pericárdicas (I34.8)
Asbestose (J60,-)
Derrame pleural (J90,-)
Placas pleurais (J92,-)
FONTE: Regulamento da Previdência Social – Decreto nº 3.048, de 06 de maio de 1999.
Portanto, as doenças relacionadas ao amianto demonstram a necessidade de maior rigor
para a sua identificação no aspecto de classificação, mas ele deve ser ainda maior no que se
refere à caracterização das mesmas no que tange à sua natureza ocupacional. Assim, os
estudos têm evidenciado os entraves para esse estabelecimento, que podem ser constatados
pelo baixo número de doenças relacionadas ao amianto na base de dados da Previdência
Social, o que se agrava ainda mais quando inúmeros auxílios-doença por incapacidade são
116
concedidos como doença não relacionada ao trabalho. Logo, estatisticamente inexiste a
doença profissional, resultando, conseqüentemente, numa proteção social paliativa,
temporária e limitada quanto aos demais direitos trabalhistas.
Mesmo a OS nº 609, de agosto de 1998, do INSS, que trata das pneumoconioses e
estabelece normas técnicas de avaliação de incapacidade e procedimentos administrativos e
periciais para fins de benefício previdenciário, tem sua aplicabilidade sob suspeita no que
concerne à caracterização das mesmas. Porém, o que parece ser de maior gravidade é a
inexistência de lei que trate do que se pode chamar de riscos sociais; em outras palavras, ao se
manifestar a doença relacionada ao amianto, muitos trabalhadores poderão estar, além de
incapacitados para o trabalho, sem direito previdenciário, ou seja, não preencherem as
condições administrativas para ter acesso ao benefício, quer por situação de desemprego, quer
por estarem na informalidade. Por trata-se de doença de latência, é imprescindível que sejam
constituídas leis que garantam proteção a eles.
Desde 1991, identifica-se a vinculação do Ministério da Saúde com trabalhos
interministeriais, com a constituição de uma comissão que identificaria as doenças
relacionadas à exposição do amianto. Progressivamente, as Secretarias de Estado de Saúde –
que trabalharam na construção de legislações próprias, proibitivas – passaram a desenvolver
ações de vigilância sanitária e controle ocupacional. Porém, a rede pública carece de maior
capacitação para a identificação das doenças, que, na sua maioria, chegam através de outras
patologias e/ou sintomas não associados ao amianto.
A Oficina Nacional de Vigilância às Populações Expostas ao Amianto: ações
insterinstitucionais, assim denominada e realizada em Porto Alegre, em 2001, buscou definir
117
algumas estratégias de vigilância, bem como aspectos de monitoramento, assistência,
competências e responsabilidades para com as populações expostas. O evento, convocado em
conjunto pelo Ministério da Saúde e a Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul contou com
a presença de mais três estados48 que já haviam banido o amianto, como o Mato Grosso do
Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, além da rede Virtual Cidadã para o Banimento do Amianto
na América Latina, da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) e de pesquisadores da
Fundação Oswaldo Cruz, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Saúde e Trabalho (NEST) –
PUCRS e do CEDOP–UFRGS. O principal encaminhamento dado, após discussão dos pontos
já referenciados, foi o de estabelecer diretrizes e competências nas áreas de vigilância e
assistência, as quais nortearam a estruturação de um protocolo de vigilância à saúde da
população e dos trabalhadores expostos ao amianto, contemplando pontos específicos como: a
assistência aos trabalhadores expostos – dando ênfase à investigação diagnóstica –; a
vigilância, composta de diretrizes acerca da localização das fontes de informação – incluindo
a proposta de criação de um banco de dados de expostos ao amianto no Brasil e metodologia
de intervenção –; a capacitação dos profissionais da área de saúde e trabalho; e a criação de
uma comissão nacional de consultores sobre o amianto – de caráter interministerial e
institucional.
No Rio Grande do Sul, em junho de 2001, foi aprovada a Lei nº 11.643, que dispõe
sobre a proibição de produção e comercialização de produtos à base de amianto no Estado,
concedendo três anos para as empresas industriais e quatro para os estabelecimentos
comerciais. A Lei vem acompanhada de um protocolo de vigilância à saúde da população e
dos trabalhadores expostos, o qual foi apresentado na Oficina Nacional. A Secretaria de Saúde
do Estado, através da Política de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (PAIST), a partir
de algumas iniciativas conjuntas com a DRT, passou a visitar as empresas que utilizam o
48
Em 2004, Pernambuco também criou lei própria proibindo a utilização do mineral naquele estado.
118
mineral, exigindo informações sobre os trabalhadores expostos, em especial, o monitoramento
quanto aos exames periódicos. Num mapeamento inicial, a Secretaria de Saúde do Estado,
com fonte no cadastro do SEBRAE, constatou, em 2000, 23 empresas industriais que
utilizavam o amianto como matéria-prima, num total de 2.333 trabalhadores expostos no
Estado.
A Cidade de Caxias do Sul, na serra gaúcha, era o local que apresentava o maior índice
de trabalhadores expostos, totalizando 82%, dos postos de trabalho, ou seja, 1.917
trabalhadores estavam atuando, nessa data, em empresas metalúrgicas, na confecção,
reparação e fabricação de peças e acessórios para veículos automotivos, como lonas e
pastilhas de freios. Nesse mesmo ramo, foram encontrados mais 71 trabalhadores em outras
regiões do Estado. Os demais expostos concentravam-se na Região Metropolitana de Porto
Alegre e atuavam na produção de artefatos de fibrocimento e cimento para construção, que
tem como produto principal caixas d’água, constituindo-se no segundo maior segmento de
expostos, com 204 trabalhadores empregados. Outras empresas foram identificadas pelo
cadastro com os seguintes produtos: fabricação de estruturas pré-moldadas de cimento
armado, tubo de cimento amianto, artefatos de borracha para uso industrial, veículos e
máquinas como anel de vedação e borracha de vedação, e também confecção de roupas
profissionais impermeáveis.
Ao longo dos tempos, os mecanismos de proteção ao trabalhador foram se estruturando
em um conjunto de leis que refletem, ao mesmo tempo, o acumulo de conhecimento
produzido nesse campo da saúde do trabalhador e a expressão da mobilização de diferentes
segmentos sociais organizados, que, em diferente embates, foram buscando o seu
cumprimento legal e avançando na superação de todas as formas de extração, transformação e
119
uso do amianto no mundo inteiro, o que demonstra a ineficácia da utilização do seu uso
controlado, que prevaleceu hegemônico no Brasil até a metade da década de 90. Porém, os
aspectos ideológicos e legais que se perpetuam até hoje no Brasil vieram acompanhados de
um novo embate, a partir da entrada em cena da luta pelo seu total banimento.
Por fim, reitera-se que a proteção social nas suas múltiplas formas – ocupacional,
clínica, reconhecimento do nexo, seguro social, indenização –, tem-se mostrado permeada de
entraves revestidos por amplas contradições. A realidade de quem convive com a doença e a
morte provocadas pela exposição ao agente amianto invariavelmente é um drama silencioso e
perverso: a perda da potencialidade para o trabalho e para a vida e a impossibilidade de ser
reconhecido como um cidadão de direitos sociais.
2.5 – O POSICIONAMENTO DO GOVERNO BRASILEIRO FRENTE AO BANIMENTO DO AMIANTO NO
QUADRO ATUAL
O posicionamento do Governo brasileiro a respeito da utilização e da comercialização
do amianto no território nacional tem-se manifestado, nos últimos 20 anos, na defesa do uso
controlado em detrimento ao seu banimento. A legislação existente, em particular a Lei nº
9.055, de 1995, vem, na prática, ratificar mais uma vez a Convenção da OIT, difundida ainda
na década de 80 e lentamente implantada no Brasil através de um conjunto de leis e portarias,
conforme já mencionado no QUADRO 3 referente à cronologia de leis sobre a proteção contra
o amianto. Portanto, uma maior rigor no controle médico dos expostos só veio a ocorrer na
metade da década de 90, o que contribuiu para que as informações epidemiológicas sejam tão
incipientes.
120
Entretanto, em 2004, o Governo retomou a discussão interna, através da criação de
uma comissão interministerial para a elaboração de uma política nacional relativa ao
amianto/asbesto, implantada com a publicação da Portaria Interministerial n° 8, de 19 de abril
de 2004, integrada pelos Ministérios do Trabalho e Emprego, da Saúde, da Previdência
Social, do Meio Ambiente, do Desenvolvimento, da Indústria e Comércio Exterior e de Minas
e Energia. A referida comissão é compota por dois representantes de cada um dos seis
Ministérios, e a iniciativa fundamenta-se, segundo a portaria de criação, nos impactos nocivos
à saúde, detectados ao longo dos anos, causados pela exposição ao amianto/asbesto; na
comprovada cancerinidade do amianto/asbesto em todas as suas formas e na inexistência de
limites seguros de exposição; no número de indivíduos potencialmente expostos à substância
no longo ciclo de vida das fibras, inclusive fora dos locais de trabalho, dada a sua ampla
presença em numerosos produtos; na necessidade da definição de diretrizes gerais e
especificas para a implementação de uma política nacional relativa às questões que envolvem
o amianto/asbesto; e determina que tais medidas sejam precedidas de estudos de impacto e de
amplo debate entre os principais setores do Governo envolvidos na questão (BRASIL, 2004).
A comissão ficou sob a coordenação inicial do Ministério do Trabalho, estipulando-se
180 dias para a conclusão dos trabalhados. Percebe-se que, embora a referência quanto à
nocividade do amianto e à necessidade de definir diretrizes para uma política nacional, não há
menção explícita sobre possível banimento. Evidenciaram-se, na primeira reunião dessa
comissão, os diferentes posicionamentos no seio do Governo, conforme Ata de Instalação da
Comissão realizada, em 21 de junho de 2004. O Ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini, ao
iniciar a cerimônia de instalação da Comissão Interministerial do Amianto/Asbesto,
denominada CI – Amianto, fez considerações sobre a necessidade de definição de uma
política nacional a ser adotada pelo Governo quanto à questão do amianto/asbesto; definiu a
121
Comissão como um fórum de ampla discussão do tema, onde serão abordados, além da saúde
do trabalhador frente à exposição à substância, os aspectos e fatores socioeconômicos
envolvidos na questão; disse esperar que a Comissão “[...] encontre metodologias de soluções que
resultem em um trabalho que não tenha questionamentos futuros, seja com a decisão sobre o
banimento, prazos transitórios de utilização, seja com a utilização com restrições da substância”
(BRASIL, 2004). Já o representante do Ministério de Minas e Energia (MME) pronunciou-se
de maneira enfática quanto aos rumos a serem adotados no Brasil acerca do amianto, dizendo
que “[...] a representação do MME na CI pretende contribuir com conhecimento técnico, tanto
geológico quanto sobre a abrangência que o tema impacta na questão socioeconômica”, afirmou
também não ser fácil fazer tal definição em 180 dias e alertou que existem grandes diferenças
de opiniões dentro da CI, que poderão haver muitos consensos, mas que todos deveriam
ponderar mais sobre as questões divergentes. Destacou ainda que, em substituição ao amianto,
seria usado um produto sintético (PVA), uma fibra sintética que também tem problemas
quanto à nocividade à saúde humana; por fim, colocou que “[...] o problema dos trabalhadores é
econômico e que o grande problema de exposição ao amianto não está na mina (extração), mas, sim,
na construção civil” (BRASIL, 2004). Por sua vez, o representante do Ministério da Saúde
indicou a antecipação de questões, como, por exemplo, a fabricação de peças automotivas,
que deve ocorrer de forma imediata, com encaminhamentos sobre a proibição de utilização do
amianto nesse setor econômico dentro dos 180 dias. O representante da Casa Civil chamou
atenção sobre a “décima primeira sessão do Comitê Negociador Intergovernamental (INC-11)
e a primeira Conferência das Partes (COP-1)”, que se realizarão em Genebra – Suíça, em
setembro de 2004, salientando que os resultados advindos daqueles eventos deveriam ser
também observados pela CI (BRASIL, 2004). A iniciativa do Ministério de Minas e Energia
em constituir uma comissão interna para a realização de estudos pertinentes ao tema, foi
contestada por representantes de outros ministérios na reunião de instalação, mas acabou se
122
efetivando em 16 de julho de 2004, com a Portaria nº 197, contrariando, assim, a proposta do
Grupo de Trabalho Interministerial. Nesse sentido, expuseram-se publicamente as
divergências, tensionadas, fundamentalmente, pelo destaque que o MME vem dando aos
aspectos de ordem econômica e social, preocupação que também vem sendo manifestada pelo
Instituto Brasileiro de Crisotila.
Não é mera coincidência que o Instituto Brasileiro de Crisotila, que agrega a indústria
do amianto no Brasil, tenha lançado campanha na mídia em defesa da crisotila, no mesmo
período em que a CI do amianto deveria pronuciar-se sobre a posição do Governo brasileiro.
Em ampla campanha publicitária – lançada, no início de novembro de 2004, nas principais
revistas de circulação nacional, emissoras de TV e outdoor, sob o mote “A verdade tem dois
lados: o amianto crisotila gera mais de 200 mil empregos no Brasil”, ou ainda “Amianto
Crisotila. Respeitando a vida fazendo o Brasil crescer”, com um custo de, aproximadamente,
R$ 4 milhões, a propaganda buscava a defesa pública do amianto de tipo crisotila. Essa
campanha não só não obteve o resultado que desejava, como foi suspensa, através de uma
ação junto ao Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (CONAR), impetrada
pela Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (ABREA), e, segundo o parecer do
CONAR, a omissão de dados confunde o consumidor e a opinião pública.
A expectativa quanto aos resultados da CI do amianto deverá estender-se acima do
prazo previsto e encaminha-se uma disputa acirrada entre os Ministérios. Não há consenso, e
a tendência é a de que se tenham posicionamentos favoráveis ao banimento, nos Ministérios
do Trabalho, Saúde, Previdência e Meio Ambiente, e à manutenção do uso controlado, nos
Ministérios de Minas e Energia, Desenvolvimento, Indústria e Comércio (BRUM, 2004, p.
48).
123
O posicionamento do Governo brasileiro deve, sim, responder à necessidade imperiosa
de banir o mineral, assim como tem ocorrido em, aproximadamente, 40 países no mundo.
Entende-se que a manutenção do uso e sua utilização há quase um século vem acarretando um
custo social, em todos os sentidos, indiscutivelmente maior que qualquer impacto econômico.
Muitos trabalhadores pagam com a vida, e a sociedade, por sua vez, é coletivamente
penalizada.
2.6 – AÇÕES PELO BANIMENTO DO AMIANTO NO CONTEXTO INTERNACIONAL E NACIONAL – OS
CONTRAPODERES
Com o avanço no campo do conhecimento científico sobre os riscos à saúde da
população exposta ao amianto, a sociedade acumulou saberes que se somam a outros,
advindos dos próprios trabalhadores na sua vivência cotidiana, onde é gestado o processo de
saúde-doença. As relações sociais de produção no regime de produção capitalista expressam
uma lógica social onde o econômico impõe formas de garantir sua supremacia e reprodução.
A situação do amianto, por sua vez, não só reflete a dicotômica relação entre saúde e trabalho,
como a tem ampliado pelo contexto político e econômico, que tem se constituído num espaço
de resistência e de luta pelo seu banimento.
Diferentes grupos organizaram-se em torno da mobilização pela proibição desse agente
cancerígeno, compostos por atores sociais, na sua maioria, vítimas do amianto, sindicalistas,
ativistas sociais e personalidades públicas e acadêmicas. Os movimentos em prol dessa causa
são alternativos e buscam construir contrapoderes ou, ainda, uma “globalização” contra-hegemônica. Segundo Giannasi (2000),
124
A experiência vivenciada pelos expostos ao amianto tende a rediscutir o
significado do trabalho, da vida, do adoecer e desconstruir paradigmas, como
a identificação do progresso com o crescimento industrial ou o
desenvolvimento das forças produtivas e a concepção de política como algo
que se faz através de e pelo Estado, por meio de organizações hierárquicas
que visam acumular o poder e exercê-lo em nome da base, sem a
participação desta (GIANNASI, 2000).
A criação de organizações sociais em diversos países deu novo rumo à luta pelo
banimento do amianto, assim como cumpriu importante papel no reconhecimento das doenças
a ele relacionadas e sobretudo na solidariedade para com as vítimas. Na França, a criação da
Association Nationale de Défense des Victimes de l'Amiante (ANDEVA), em 1996, ocorreu
através da iniciativa de três organizações49 que já vinham lutando nessa área. São inúmeras as
entidades em todo o mundo: a Associazione Esposti Amianto, na Itália; a BANJAN- Japão,
criada em 1987; a ADS, na Austrália; e a ABREA, no Brasil, dentre outras.
Registra-se um sucessivo número de eventos, de proporção mundial, que contribuíram
e, ao mesmo tempo, são produto da mobilização anti-amianto que, de forma coletiva, buscam
sua proibição no plano mundial. Segundo o Chamado para a Proibição Mundial do Amianto
pelo Colégio Ramazzini, a indústria do amianto tem poderosa influência econômica e política
sobre muitos países50. As corporações multinacionais do amianto, historicamente, vêm
explorando grandes e rentáveis mercados internos e externos no Brasil e em outros países da
América Latina, como o Uruguai e a Argentina, e também na Índia, na Tailândia, na Angola e
no México. O Brasil é o quinto maior produtor e consumidor de amianto do mundo, depois da
Rússia, do Canadá, do Cazaquistão e da China.
49
Association pour l'Etude des Risques au Travail (L´ALERT), a Fédération Nationale des Accidentés du
Travail et des Handicapés (La FNATH) e Le Comité Anti-Amiante de Jussieu
50
Nos Estados Unidos, a indústria do amianto conseguiu, em l991, derrubar a recomendação do banimento e sua
eliminação progressiva por decisão técnica nos tribunais (Colégio Ramazzini).
125
[...] países transferem a produção a populações que desconhecem os efeitos
nocivos deste produto, enquanto eles buscam outras alternativas menos
perigosas, recorrendo à política do duplo padrão (double standart): produtos
proibidos nos países desenvolvidos e liberados para produção e
comercialização nos em desenvolvimento (SCANONE; GIANNASI;
MONY, 2004).
Por outro lado, a crescente mobilização internacional vem atuando como contrapoder
ao movimento liderado pelas grandes corporações econômicas do amianto. Sistematizados no
QUADRO 5, os eventos mundiais contaram com uma expressiva participação de delegações
dos mais diferentes continentes, dentre eles está a Conferência de Milão Bastamianto, em
1993, o Seminário Internacional do Amianto: uso controlado ou banimento?51, que criou
bases para a criação da Rede Mundial Ban Asbestos, em 1994, cujos princípios estão contidos
na Declaração de São Paulo. Em 2000, ocorreu, em Osasco, o Congresso Mundial do
Amianto. Na Europa, dois recentes eventos apontam recomendações importantes na luta
contra o amianto: o Seminário Europeu, em junho de 2001, ocorrido no Parlamento europeu,
e, em 2003, a Conferência Européia em Dresden, Alemanha. No Brasil, ainda se registra, em
2001, o Seminário Internacional, intitulado Impactos do Banimento do Amianto no Brasil,
organizado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e realizado em Brasília.
Por fim, destaca-se no âmbito do Rio Grande do Sul, mas com repercussões nacional e
internacional, a realização do Seminário Estadual de Saúde e Trabalho, que teve como tema
central A Questão do Amianto no Rio Grande do Sul, em abril de 2001. O mesmo foi
organizado pela PUCRS, através do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Saúde e Trabalho,
vinculado ao Programa de Pós Graduação em Serviço Social, da Faculdade de Serviço Social,
e pela Coordenadoria da Política de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador, da Secretaria
Estadual da Saúde. Esse evento, que antecedeu a criação da lei estadual que baniu o amianto
51
Organizado pela CUT/FORÇA SINDICAL E FUNDACENTRO.
126
no Estado, teve a participação de personalidades mundiais52 e nacionais que atuam na
construção dos contrapoderes. Sem dúvida, constituiu-se em base para o estabelecimento de
nova correlação de forças, sociais e legais, no Estado do Rio Grande do Sul e no Brasil A
forte presença interinstitucional composta por representantes de diferentes instâncias –
governamentais, acadêmicas, empresariais e de trabalhadores –, e por posicionamentos
distintos em relação ao banimento e ao uso controlado do amianto sinalizou a dimensão da
problemática e os rumos da substituição do mineral.
Desse modo, é importante citar que a experiência em colocar frente a frente posições e
interesses distintos permitiu suplantar a ideologia do uso controlado, desmascarando práticas
empresariais que, ao mesmo tempo em que criticam o fim do uso do mineral na produção de
diferentes produtos, já redimensionam seus produtos e a própria empresa para novas áreas
produtivas ou na substituição do mineral53.
Conclui-se que a luta pelo banimento vem percorrendo o mundo e evidenciado a frágil
e oposta relação entre saúde e trabalho, empresariado e trabalhadores, econômico e social,
Estado e movimento social. Politicamente, é possível estabelecer uma contra-hegemonia
nesse campo, frente à iminência da doença e da morte pelo uso indiscriminado de um agente
patogênico amplamente denunciado. O embate pelo lado dos defensores do uso controlado
tem ocorrido por conta da polêmica em dissimular os riscos associando-os à ausência de
estatísticas que o evidenciem, argumentando que é possível o limite seguro. Por sua vez, a
defesa do banimento, enfaticamente revela que não há limite de exposição que seja saudável,
52
A Conferência de abertura do evento foi proferida pela Profª Drª. Annie Thebaud-Mony, pesquisadora e
doutora do INSERME – Universidade de Paris VII, que abordou a luta na França pelo banimento do amianto e
os movimentos sociais em relação a isso.
53
Neste sentido, quer-se trazer o exemplo da Empresa B, da área do fibro-cimento, onde o seu representante
questionou aos presentes no Seminário sobre o custo social do banimento do amianto. Este, por sua vez, já se
encontra instalando uma nova empresa, no ramo de produção moveleira, cuja planta recebeu apoio
governamental. Também os representantes da empresa do setor automotivo revelaram já utilizar um coquetel
de fibras sintéticas em substituição ao amianto, face às exigências do mercado internacional.
127
porém, os mecanismos de invisibilidade social dos riscos, ancorados principalmente na
desinformação, têm contribuído para perpetuar a sua defesa, mas não têm conseguido inibir a
emergência de novos movimentos na sociedade, que se ampliam com a presença de diferentes
atores e que têm em comum a consciência e o poder da organização política e social.
128
QUADRO 5
Síntese dos eventos mundiais na luta contra o amianto e as estratégias traçadas
ANO
1993
EVENTO
Conferência Bastamianto
LOCAL
Milão
DECLARAÇÃO/PREÂMBULO
“O amianto é perigoso em qualquer forma,
independente da qualidade e em todos as etapas
do processo produtivo: extração, transporte,
transformação, utilização e eliminação.”
“É conhecido há décadas como sendo uma
substância cancerígena, seja inalado ou ingerido:
não existem valores limites abaixo dos quais não
haja risco para a saúde.
1994
Seminário Internacional do
Amianto: Uso Controlado
ou Banimento?
São Paulo
“Estamos convencidos de que a produção,
transformação e uso de todos os tipos de amianto
ou asbesto representam um grande perigo para a
saúde dos trabalhadores e da população em geral.”
1994
Criação da Rede Mundial
Ban Asbesto
Constituída durante o
Seminário Internacional
sobre o Amianto: Uso
Controlado ou Banimento?,
ocorrido de 28 a 30 de
março de 1994, em
São Paulo.
Congresso Mundial do
Amianto
São Paulo
Rede constituída por cidadãos de todos os
continentes que se dispõem a doar parte de seu
tempo voluntário e sem remuneração em prol da
defesa de um mundo sem amianto.
2000
Osasco
RECOMENDAÇÕES/ESTRATÉGIAS/ENCAMINHAMENTOS
Mostra que é urgente proibir todos os tipos de uso, mas que a lei de
banimento não disciplinará todos os problemas causados pelo amianto. A
descontaminação dos locais afetados, a vigilância epidemiológica das
populações expostas e a indenização das vítimas estarão ainda, por muito
tempo, na ordem do dia.
Os cientistas, os médicos, os sindicalistas, os ecologistas, as associações e as
vítimas do amianto, reunidos em Milão, reivindicam à Comunidade
Econômica Européia (CEE) que promulgue uma diretiva que proíba o
amianto, em todos os seus usos, nos países da CEE, e ao governo desses
países que acolham esses elementos em suas legislações nacionais.
Por um mundo sem amianto.
Denunciam as multinacionais do amianto e seus métodos de intimidação e
de desinformação.
Solicitam que os governos que ainda não proibiram a utilização do amianto
assim o façam, bem como ponham em prática meios de atendimento
médico, vigilância e mecanismos legais de indenização das vítimas.
A Rede Mundial Ban Asbestos tem como objetivos lutar por um mundo
desamiantizado (asbestos free world) e é composta por organizações não-governamentais (ONGs) e movimentos sociais das Américas, Ásia e
Europa, como a Federação Européia Ban Asbestos (Ban Asbestos European
Federation – BAEF), que organizou o Seminário Internacional Bastamianto,
em 17 e 18 de abril de 1993, na Itália, cujo documento final é o Apelo de
Milão, referendado por todos os presentes ao evento e renomados cientistas
em todo o mundo.
Declaram a intenção de constituir e participar de Dentre as 10 intenções definidas pelo Congresso estão:
uma nova rede: a Rede Virtual do Congresso Apoiar e participar dos esforços globais de promover a solidariedade entre
Global do Amianto.
os ativistas anti-amianto, grupos e outras organizações;
Fazer campanhas para alcançar o banimento do amianto em todos os países;
Interceder junto a políticos, sindicatos e outros atores sociais para a adoção
de políticas de “transição dos empregos”.
129
ANO
2001
EVENTO
Seminário Europeu do
Amianto
2001
Seminário Internacional:
Impactos do Banimento do
Amianto no Brasil
LOCAL
DECLARAÇÃO/PREÂMBULO
Parlamento “Embora a União Européia tenha adotado
Europeu diretivas para banir o uso de todos os tipos de
amianto até 2005, cientistas prevêem que o total
de mortes relacionadas ao amianto possa exceder
a quinhentos mil somente na Europa Ocidental. A
origem das exposições ao amianto é
predominantemente ocupacional [...]”
Brasília
A Carta de Brasília propõe garantir uma transição
justa no banimento do amianto, considerando,
dentre vários pontos, ser uma substância
comprovadamente cancerígena, sem limite seguro
de exposição; a tendência mundial pela proibição
é indicativa, para a saúde, da gravidade da
exposição; a necessidade de garantir vigilância
específica à saúde, durante e pós exposição, dentre
outros.
2003 Conferência Européia sobre
Dresden Apresentam estimativas de mortes e doenças
Amianto
(Alemanha) profissionais anualmente na Europa.
“Os 27 países na Europa e outras regiões já viram
a necessidade de banir a produção, o manuseio e o
uso do amianto para a proteção da saúde dos
trabalhadores e da população em geral. Todavia, 2
milhões de toneladas de amianto ainda são
produzidas todo ano ao redor do mundo.”
FONTE: Quadro elaborado pela autora.
RECOMENDAÇÕES/ESTRATÉGIAS/ENCAMINHAMENTOS
Considerando o aumento do número de vítimas do amianto, os delegados
presentes, apresentaram recomendações à Comissão Européia, ao
Parlamento europeu e aos governos dos estados-membros, referentes às
políticas de prevenção; ao direito das vítimas, à prioridade de novas
pesquisas, à prática de duplos-padrões.
E concluem reconhecendo o papel-chave dos grupos organizados de vítimas
do amianto pelas conquista obtidas. Reafirmam que não há “limite seguro”,
onde qualquer exposição ou contato com o amianto pode causar doença fatal
de pulmão. Terminam com o indicativo de pressionar os quatro países da
Comunidade Européia que não baniram o amianto, para fazê-lo
imediatamente.
Propõe medidas visando garantir que a transição seja socialmente justa,
economicamente equilibrada e ambientalmente positiva, contemplando:
proteção ao emprego; garantias sociais e sindicais, garantias de reparação e
indenização às vítimas; proteção à saúde; proteção ao meio ambiente;
participação da sociedade civil nas ações de políticas públicas de combate às
conseqüências da substituição do amianto.
Propõe a implantação de estratégias em segurança e saúde ocupacional de
2002 a 2006, com as seguintes diretrizes:
Assegurar constante implementação da legislação e monitoramento
abrangente, incluindo a inibição de importação de materiais contendo
amianto de países de fora da Europa.
130
Os países que adotaram legislações proibindo o amianto em todas as suas formas são
36 em todo o mundo, segundo fonte da ABREA, até 2003. Os referidos países constam no
QUADRO 6 e têm como marco a Islândia, que tomou essa iniciativa em 1983, sendo que, nos
dois países da Europa, Portugal e Grécia, que ainda não adotaram medidas, o banimento será
feito pela União Européia até 2005. É interessante observar o movimento das empresas
multinacionais, quando do banimento do amianto, nos países em que possuíam unidades
produtivas. As mesmas deslocavam-se para outros países que permitiam o seu uso, a exemplo
da transferência da Inglaterra para a França – quando na Inglaterra já havia legislação
proibindo –, bem como para países periféricos, após a Comunidade Européia ditar diretrizes
para a proibição em todo o território europeu.
131
QUADRO 6
Países que já decidiram pelo banimento total do amianto
PAÍSES
Alemanha
Arábia Saudita
Argentina
Austrália
Áustria
Bélgica
Burkina-Faso
Chile
Dinamarca
El Salvador
Emirados Árabes(2)
Escócia
Eslovênia
Espanha
Finlândia
França
Grécia(1)
Holanda
Inglaterra
Irlanda do Norte
Islândia
Itália
Lativia
Liechtenstein(2)
Luxemburgo
Noruega
Nova Zelândia(2)
País de Gales
Polônia
Portugal (1)
Principado de Mônaco
República Checa(2)
República da
Irlanda/Eire(2)
Suécia
Suíça
Vietnã
ANO DO BANIMENTO
1993
1998
2001
2003
1990
1998
1998
2001
1986
Metade da década de 80
–
1999
1996
2002
1992
1996
2005
1991
1989
1999
1983
1992
2001
–
2002
1984
–
1999
1997
2005
1997
–
–
1986
1989
2004
FONTE: ABREA.
NOTAS:
(1)
A União Européia efetuará o banimento do amianto nesses dois
países em 1º de janeiro de 2005.
(2)
Não há informação disponível quanto ao ano da proibição.
132
No Brasil, a criação da ABREA, em 1995, foi o marco nacional da luta contra o
amianto e, ao mesmo tempo, a materialização dos danos à saúde da população exposta e dos
desafios para a garantia dos direitos das vítimas, que lutam contra a sua total invisibilidade,
sendo constituída, na sua maioria, por ex-trabalhadores da Eternit e da Thermoid, em estágio
adiantado das doenças relacionadas à exposição do amianto. A criação da ABREA foi
antecedida por uma série de fatores relevantes, os quais foram descritos por Giannasi (2000).
Caso Eternit
Essa empresa foi, por 50 anos, a maior do ramo da indústria de cimento-amianto,
chegando a empregar 2.000 trabalhadores, estando localizada em Osasco (SP), foi fechada em
1993, quando houve a fusão dos grupos Eternit e Brasilit, sob controle da multinacional
francesa Saint-Gobais. O controle da saúde ocupacional só começou a ser realizado 39 anos
após o início da exposição, ou seja, em 1978. Quando a GIA, em 1987, informou ter
conhecimento de seis casos de asbestose, a empresa negou-se a reconhecer como doença
profissional e, conseqüentemente, não notificou a Previdência Social, alegando que os
trabalhadores já haviam sido demitidos ou estavam aposentados. Em 1993, quando ocorreu o
fechamento da empresa, os trabalhadores foram demitidos, sendo que muitos, prestes a se
aposentarem e apresentando sintomas de doenças, alegaram nunca ter recebido informações
sobre os reais riscos a que estavam expostos. Na ocasião a FUNDACENTRO avaliou 12
trabalhadores suspeitos e identificou quatro casos de asbestose e sete de placas pleurais.
Assim, com a triste constatação, esse grupo começou a busca pelos companheiros,
encontrando-os desempregados, doentes e sem terem conseguido a aposentadoria especial
pela atividade insalubre aos 25 anos. Passaram a se reunir, e, em cada reunião multiplicava-se
o número de participantes, estimando-se que chegou a oito mil o número de trabalhadores que
passaram pela empresa durante seu funcionamento.
133
Caso Thermoid
A empresa metalúrgica que fabricava lonas e pastilhas de freios na Cidade de São
Paulo encerrou suas atividades em 1994. Com o apoio da GIA, um grupo de trabalhadores
atuou de forma clandestina mapeando as áreas de risco, em especial a exposição ao amianto,
após requerem a sua substituição. Com a identificação de 14 casos de abestose, a empresa
acabou sendo interditada pela DRT, com apoio dos trabalhadores. Com o fechamento
definitivo da empresa, que se negou a substituir o amianto, todos os empregados foram
demitidos, mesmo os que estavam doentes. A empresa não emitiu CAT para os mesmos,
valendo-se das divergências sobre incapacidade laborativa emitida pelos médicos do INSS, do
SESI e da FUNDACENTRO.
Portanto, unidos, os ex-trabalhadores da empresa de cimento-amianto e da metalúrgica
fundaram a ABREA, e, no transcorrer dos anos, novos trabalhadores expostos aderiram à
entidade. Eram eles vítimas da exposição nas empresas Brasilit, de São Caetano, Lonaflex54,
de Osasco, e em outras empresas do Rio de Janeiro.
Com base em informações obtidas junto à entidade através do site oficial da ABREA,
transcrevem-se algumas notas importantes acerca da ação e da opinião da entidade sobre a
realidade dos trabalhadores expostos.
54
A empresa Lonaflex acabou sendo comprada por um grupo de Caxias do Sul que atua no mesmo ramo
produtivo, uma vez que havia encerrado suas atividades em Osasco, em 1991, e acabou sendo transferida para
a cidade da empresa matriz alguns anos depois.
134
Objetivos Principais da ABREA:
-
Aglutinar trabalhadores e os expostos ao amianto em geral;
-
Cadastrar os expostos e as vítimas do amianto;
-
Encaminhar os expostos para exames médicos;
-
Conscientizar a população em geral, trabalhadores e opinião pública sobre os riscos
do amianto;
-
Propor ações judiciais em favor de seus associados e das vítimas em geral;
-
Integrar-se a outros movimentos sociais e a ONGs pró-banimento nos níveis
nacional e internacional;
-
Lutar para o banimento do amianto.
Informações Epidemiológicas:
No Brasil, não há estatísticas sobre doenças relacionadas ao amianto, mas trabalhos
desenvolvidos pela DRTE–SP comprovam a gravidade da exposição e descrevem os
mecanismos sociais da invisibilidade dessas doenças no País. Até janeiro de 2002, foram
encaminhados pela ABREA 960 trabalhadores da ex-Eternit de Osasco para exames médicos.
Tem-se, a partir de então, o seguinte quadro de doenças55: 101 casos de asbestose; 190 placas
pleurais; 222 disfunções respiratórias; quatro casos de morte por mesotelioma; oito mortes por
asbestose; sete mortes por câncer de pulmão; dois cânceres de pulmão ainda vivos; uma morte
por câncer de laringe; 24 outras mortes sem reconhecimento oficial pelo amianto (oito
gastrointestinais, seis de pulmão e 10 por outras afecções pulmonares). Somam-se a esses os
14 casos de asbestose da ex-Thermoid (indústria de freios) de São Paulo e mais de 50 casos de
mesotelioma (pleura e peritoneal), embora só três deles tenham seu nexo relacionado ao
55
A maior parte dos trabalhadores tem mais de uma patologia relacionada ao aparelho respiratório.
135
amianto, e outros 56 casos de asbestose e dois de câncer de pulmão publicados na literatura
médica deste século no Brasil.
A ABREA atribui a vários fatores e/ou causas à invisibilidade social das doenças
provocadas pelo uso do amianto no Brasil, os quais estão sistematizados no QUADRO 7.
QUADRO 7
Mecanismos sociais de invisibilidade das doenças provocadas pelo amianto,
segundo a ABREA
MECANISMOS SOCIAIS DE INVISIBILIDADE
Grande período de latência das doenças atribuídas ao amianto.
Somente a partir de 1996, a CID passou a ter incorporada, em sua 10ª revisão, a morfologia para
tumores malignos, isto é, o tipo de tumoração, no caso de mesotelioma, para fins de registro
(anteriormente, só existiam os dados sobre topografia, por exemplo, câncer de pleura, peritônio, etc.).
Subordinação dos profissionais da área médica aos critérios da OIT(1), Asbestos Institute do Canadá e
AIA(2) e da versão nacional, a ABRA(3).
A alta rotatividade encontrada nas plantas industriais(4), chegando em alguns casos a 90% em um
ano(5).
Inexistência de trabalhos epidemiológicos de busca ativa de casos, quer entre trabalhadores, quer
entre populações não ocupacionalmente expostas.
Não acesso da classe trabalhadora aos serviços médicos especializados em diagnóstico de câncer.
Atribuição ao fumo em casos de câncer de pulmão, em função do sinergismo existente entre o mesmo
e o amianto.
A legislação brasileira(6) só a partir de 1991 instituiu a obrigatoriedade da realização de rigoroso
controle médico(7) nos expostos e até por 30 anos após sua demissão.
Até a promulgação da Constituição Federal, em 1988, as mulheres eram proibidas, formalmente, de
trabalhar em atividades insalubres, nas quais se incluem as em contato com o amianto.
Fonte: ABREA.
Notas:
(1)
OIT – Organização Internacional do Trabalho ligada às Nações Unidas (ONU) e constituída em 1919, com
sede em Genebra, da qual o Brasil é um dos signatários de suas Convenções e Recomendações. As
relacionadas ao amianto (Convenção 162 – ratificada pelo Decreto Executivo nu 126, de 22 de maio de 1991
– e Recomendação nº 172) foram regulamentadas no País através da Portaria nº 1, de 28 de maio de 1991, sob
fortes pressões favoráveis dos defensores do “uso controlado do amianto”.
(2)
Associações internacionais do amianto, entidades que representam os produtores e utilizadores do amianto.
(3)
Associação Brasileira do Amianto criada em 2 de janeiro de 1984, para defender a ideologia do “uso
controlado do amianto” e que congrega em torno de 60 empresas do Brasil e da América Latina.
(4)
Estratégia empresarial para que os trabalhadores estejam fora das empresas quando os efeitos da exposição se
manifestarem tardiamente.
(5)
Segundo dados colhidos pelo GIA nas indústrias de fibrocimento do Estado de São Paulo.
(6)
Anexo 12 da NR-15 – Atividades e Operações Insalubres, que regulamenta o artigo 190 do Capítulo V, do
Título II, da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovado através da Portaria nº 3.214/78 e alterado pela
Portaria nº 1, de 28 de maio de 1991.
(7)
Os exames previstos pela legislação citada incluem, além do exame clínico, telerradiografia de tórax e prova
de função pulmonar.
136
A entidade solicitou judicialmente indenização para 2.5000 vítimas, sendo que não vê
possibilidade de acordo, uma vez que a empresa multinacional Eternit S/A, através de seus
advogados, ofereceu uma indenização de R$ 5 reais a todos. A ABREA, na ocasião,
considerou-a ofensiva, humilhante e desrespeitosa (GIANNASI, 2003), haja vista que a
mesma empresa pagou a outros trabalhadores, sem processo judicial, pelas mesmas
patologias, R$ 15.000,00.
Mas, recentemente, a luta dos trabalhadores teve o desfecho esperado. A Justiça
condenou a empresa a indenizar os trabalhadores, bem como foi declarada culpada. O
despacho proferido na sentença tem os seguinte teor: “Diante do exposto, julgo parcialmente
procedente a ação, para declarar a culpa da ré Eternit S/A por ter exposto seus trabalhadores, durante o
pacto laboral, ao manuseio e exposição ao asbesto, bem como condená-lo [...]” (18ª Vara Civil do
Tribunal de Justiça de São Paulo – Despacho proferido em 26 de agosto de 2004). A condenação foi
dividida em duas modalidades: uma por danos patrimoniais, que estabeleceu uma pensão
vitalícia mensal, que varia de 0,5 a 4 salários mínimos, de acordo com a classificação da
doença; e, da mesma forma, a indenização por danos morais aos trabalhadores que
comprovarem ser portadores de doenças relacionadas à exposição, variando de 50 a 300
salários mínimos.
O feito obtido com a condenação da empresa por expôr seus trabalhadores ao amianto
representa não apenas uma vitória para as vítimas, mas a quebra do silêncio que se impõe pela
invisibilidade das doenças e da realidade vivenciada pelos trabalhadores e por suas famílias a
partir do adoecimento. Os processos judiciais vêm se constituindo em mecanismos de
resistência para o movimento dos expostos, que têm obtido vitórias significativas na luta
contra grandes corporações econômicas.
137
Entretanto, para alguns trabalhadores, o reconhecimento através da indenização obtida
judicialmente acaba chegando tarde demais. A morte de Sebastião Alves da Silva, um dos
símbolos da luta contra o amianto, ocorrida em outubro de 2004, é significativa e indigna. Ex-operário da Brasilit morreu, segundo a declaração de óbito, de “adenocarcinoma pulmonar e
fibrose pulmonar por asbestose” e assim, veio a integrar uma lista de 128 ex-trabalhadores
mortos por doenças causadas pela exposição ao amianto (ABREA). Sua morte ocorreu no
mesmo dia em que havia sido depositado o cheque com o valor da indenização obtida
judicialmente, valor que, segundo a família, possibilitou apenas cobrir grande parte das
despesas feitas durante os seis anos da doença. As despesas dos últimos 50 dias em que
Sebastião esteve internado foram custeadas pelo Sistema Único de Saúde, embora a empresa,
concomitantemente com a indenização, tenha “fornecido um plano de saúde”, que ele só pôde
usar por uma semana, e, o que é mais grave, é que se optasse por não aceitar o referido plano
de saúde56, o valor indenizatório teria sido maior. Sebastião esteve à frente da luta contra o
amianto, integrando a ABREA e, recentemente, um documentário, A Lenta Morte do
Amianto, foi dedicado a ele pela TV franco-alemã Arte (BRUM, 2004, p. 48).
O panorama aqui apresentado com base na entidade representativa dos expostos talvez
ainda não dê a total dimensão da realidade vivida pelos trabalhadores no contexto brasileiro.
Há que se considerar que as principais ações vêm sendo desenvolvidas no Estado de São
Paulo, necessitando ramificar-se para outros estados brasileiros que já baniram o seu uso, bem
como para os que ainda não adotaram legislação nesse sentido. O passivo de trabalhadores
expostos e “ex-expostos” não tem recebido a atenção devida, o que impõe uma busca ativa
destes e reflete a urgência de se ampliarem os mecanismos de controle e a ações nessa área da
saúde do trabalhador.
56
Segundo declaração do representante da empresa Brasilit à revista Época (25.10.2004), de acordo com a
política de indenização da empresa, o funcionário que abre mão do plano de saúde recebe um valores
superiores ao ser indenizado pela doença.
138
Por fim, o desafio do banimento do amianto no mundo ainda passa, e passará, por
inúmeras dificuldades como as aqui expressadas. Essa luta, porém, deve continuar sendo
marcada pela ação conjunta das diferentes organizações e instituições e acompanhada pelo
movimento social organizado, em especial pelas vítimas do amianto, aliançadas
internacionalmente nas forças que se opõem à mercantilização da saúde do trabalhador.
3 – A GÊNESE DE UMA HISTÓRIA INVISÍVEL: A (DES)PROTEÇÃO SOCIAL NO
CONTEXTO DO TRABALHADOR EXPOSTO AO AMIANTO
Ao longo do século XX, e, talvez, ainda por boa parte do século XXI, a problemática
relacionada ao amianto não despertou e não despertará nenhum interesse de pessoas que não
convivem de forma sistemática com os danos à saúde por ele produzidos. Mesmo aqueles que
a ele estão expostos carecem de uma melhor compreensão acerca da realidade social a qual
estão submetidos.
O que ocorre com o fenômeno amianto se repete em outros inúmeros acontecimentos
que fazem parte da vida cotidiana dos trabalhadores. Tanto por ter se tornado um fato comum,
como por estar encoberto, acaba despercebido. Toma-se como exemplo o acidente de
trabalho; por mais que esteja presente no cotidiano de um incontável número de
trabalhadores, não tem recebido suficiente atenção por parte do conjunto da sociedade. Muitas
vezes, é apenas mais um número que amplia as estatísticas, em outras, ele simplesmente não
existe, tal é a realidade de sua subnotificação, em particular no que tange aos trabalhadores do
mercado informal. Mesmo quando reconhecido, o fato restringe-se à vida privada da vítima,
não sendo considerada a sua dimensão coletiva.
Outro exemplo, correlato ao primeiro, refere-se aos mecanismos de proteção social, ou
seja, de que maneira é substituída a incapacidade para o trabalho, seja em decorrência de
140
doença, acidente de trabalho ou velhice, numa realidade onde aproximadamente 50% da
população latino americana não tem cobertura de nenhum sistema de proteção? Tem-se,
portanto, uma realidade que é um produto social e historicamente construído de forma
contraditória, uma vez que, ao mesmo tempo em que não produz mecanismos para atender às
necessidades decorrentes do sistema social, contribui para torná-los invisíveis.
Desenha-se, neste capítulo, a gênese de uma história invisível, que se manteve oculta
analogicamente comparada ao revestimento isolante do amianto utilizado no acabamento de
prédios na área da construção civil, ou seja, criou-se em torno do tema amianto uma camada
protetora que isolou, por muitos anos, da sociedade, os possíveis danos à saúde coletiva e à
ocupacional. No espaço interior dessa “proteção”, estavam os trabalhadores diretamente
expostos, e, do lado de fora, a sociedade. No entanto, essa camada começou a apresentar
sinais de deteriorização, quando ambos os lados, progressivamente, tomaram conhecimento e
se manifestaram acerca dos males por ele causados.
Faz-se, aqui, uma reconstituição histórica desse processo, destacando suas implicações
no âmbito da proteção social da maior parcela dos trabalhadores expostos diretamente ao
amianto no Estado do Rio Grande do Sul. Metodologicamente, configuraram-se diferentes
perspectivas de investigação, que, num movimento de ir e vir, tornaram o objeto de estudo
repleto de incertezas, mas potencialmente pleno de possibilidades, na medida em que os
desafios foram enfrentados no percurso de descoberta que a própria realidade se encarregou
de revelar.
Inicialmente, parte-se do método científico que guiou a presente tese, explicitando-o.
Entende-se ser imprescindível, por parte da ciência, construir essa realidade à luz de uma
141
concepção crítica de mundo, no sentido de produzir explicações e soluções para os problemas
sociais. Dessa forma, faz-se a articulação da ciência com os diferentes sujeitos sociais e
políticos, para que, de forma coletiva, contribuam não só para tornar a realidade dos
trabalhadores expostos ao amianto visível, mas também para criar mecanismos de proteção e
promoção da saúde desses trabalhadores.
3.1 – CONSIDERAÇÕES ACERCA DO MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO
A interpretação do real é um processo complexo e contraditório, onde a ação do ser
humano diante da realidade tende a ser determinada e fragmentada, e, como bem coloca
Kosik (1986), a sua práxis está baseada na divisão do trabalho, na divisão da sociedade em
classes e na hierarquia de posições sociais erguidas sobre ela. Porém, alerta o autor que essa
realidade é multilateral, ou seja, é divergente para aqueles que efetivamente determinam as
condições sociais e para os que a vivenciam.
A realidade de um fenômeno, por sua vez, não se manifesta de imediato ao homem.
Este se revela na busca de sua essência. É o mundo da pseudoconcreticidade identificada por
Kosik (1986), onde os fenômenos, os acontecimentos, penetram na consciência dos
indivíduos e assumem características de independência e naturalidade. Para o autor “O mundo
da psedoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano” (KOSIK, 1986, p. 11) Portanto,
conclui que o fenômeno, ao mesmo tempo em que indica a essência, a esconde. Assim, para
se compreender verdadeiramente um fenômeno, é preciso atingir a sua essência, o que só é
possível quando da sua manifestação na própria atividade do fenômeno. Para destruir o
mundo da pseudoconcreticidade que oculta o mundo real, é preciso um pensamento crítico,
que possibilite a construção da realidade concreta na sua totalidade.
142
Esse movimento é guiado por um método científico de conhecimento, o qual vem
conduzindo todo o processo de conhecimento na construção da presente tese, o materialismo-dialético-histórico desenvolvido por Marx e Engels. Para o materialismo a realidade é
primária, ou seja, o pensamento é derivado dessa realidade, portanto, um produto dela; e para
a dialética, tanto a realidade quanto o pensamento estão em constante transformação; e, na
perspectiva histórica, implicados pelo processo de desenvolvimento da sociedade.
Para Lenin (1982), o mundo é matéria eternamente em movimento e em
desenvolvimento, o que se reflete na consciência humana, também em transformação. Buscase, portanto, compreender a realidade a partir das seguintes categorias, constitutivas do
método e da própria realidade:
a) a historicidade: a realidade é, ao mesmo tempo, histórica e contemporânea e
condicionada pelas leis que regem a sociedade, e esta, por sua vez, produz novas
regras e formas de desenvolvimento. Esse movimento busca a gênese dos
fenômenos através de um devir, onde as transformações são consideradas em seu
próprio processo;
b) a totalidade concreta: busca-se compreender a realidade como um todo não no
sentido de conhecer todos os fatos ou juntá-los, mas de compreendê-los na sua
totalidade, pela conexão e interdependência existentes entre os fenômenos; a
realidade é um todo articulado;
c) a contradição: na realidade, os diferentes processos ou fenômenos se compõem de
contradições implícitas ou explícitas, onde ocorrem, ao mesmo tempo, uma
143
unidade e uma luta entre eles, ou seja, entre o velho e o novo, entre o presente e o
futuro,
onde
cada
qual
se
constitui
pela
negação
do
outro,
mas,
concomitantemente, o incorpora. Assim, a contradição é inclusiva e dá-se pelo
tensionamento entre a superação, a ruptura e a continuidade dos processos sociais.
A construção da presente tese, em sua abordagem da realidade perpassou todos esses
movimentos, buscando na história a gênese da desproteção do trabalhador exposto ao
amianto, compreendendo, a partir de um contexto mais amplo, os seus determinantes e as suas
contradições. Sua explicitação materializa-se no trabalho de campo, na investigação do real
que requer “[...] apoderar-se da matéria, em seus pormenores, analisar suas diferentes formas de
desenvolvimento e perquirir a conexão íntima que há entre elas” (MARX, 1980, p. 14). Essa
realidade, no entanto, ainda segundo o autor, só pode ser descrita depois de concluído o
movimento que permitiu conhecê-la, ou seja, após um “dètour”57, como denomina Kosik
(1986). Distingue, Marx, portanto, o método de investigação do método de exposição,
ocorrendo, na verdade, uma interpretação do real e sua explicitação após a sua posse, com o
propósito de romper com a construção preexistente dos fenômenos investigados, buscando a
ressignificação dos mesmos em meio a realidade social.
A realidade objetiva é, pois, a matéria em movimento independentemente da
consciência dos indivíduos a respeito dela, pois a consciência também está condicionada pelo
processo da vida social e material. Isso revela, segundo Lenin (1982), que a matéria não pode
se mover senão no espaço e no tempo. Acrescenta que as noções humanas são relativas e, de
acordo com o tempo e o espaço, podem se aproximar de verdades absolutas. Esse autor
57
Do francês: volta; termo também utilizado por Kosik para referir-se ao movimento do método dialético em
busca do conhecimento da realidade, na superação do aparente.
144
também reconhece a relatividade de todos os conhecimentos humanos, tais são as condições
históricas dos limites da aproximação do conhecimento em relação à verdade objetiva.
Complementando esta análise, chama-se atenção para a causalidade dos fenômenos,
uma vez que, em meio à realidade objetiva, estes são estudados de maneira singular e a
investigação recai sobre a particularidade de suas causas e efeitos, existindo, para a concepção
dialética, uma verdadeira conexão e sobreposição entre ambos.
Causa e efeito são representações que só têm significado como tais aplicadas
a um caso particular; mas, logo que consideramos este caso particular na sua
conexão geral com todo mundo, estas representações encontram-se e
entrelaçam-se na representação da interação universal, na qual causas e
efeitos mudam constantemente de lugar: aquilo que aqui ou agora é causa
torna-se efeito ali ou depois, e vice-versa (ENGELS, 1979, p. 21).
Certamente, ao contrário da concepção positivista, os fenômenos sociais não advêm de
uma causalidade naturalizante e nem podem ser classificados ou quantificados de acordo com
as leis das ciências naturais. Ou seja, a dialética tem como pressuposto a história do homem
social, e, como assinala Vico (in Marx, 1980), a história humana distingue da história natural
por ter-se feito uma e não se ter feito a outra. Isso implica no reconhecimento do sujeito e do
seu papel na transformação social. Entende-se, porém, que suas relações sociais estão
condicionadas ao processo histórico, que tem como força motriz as contradições decorrentes,
que acabam subjetivadas em meio às condições da vida social e material.
145
3.1.1 – O Trabalhador enquanto Sujeito Histórico: A Unidade entre Objetividade e
Subjetividade
“O homem cria a história já muito tempo antes de
conhecer a si mesmo como ser histórico”
(KOSIK, 1987).
A origem da condição humana e sua forma de reprodução social e material, sintetizada
no livro a Ideologia Alemã, de Marx e Engels, tem como primeiro pressuposto de toda história
humana a existência de indivíduos humanos vivos, que se distinguem dos animais tão logo
começam a produzir seus meios de vida. Para os autores, historicamente os homens são o que
produzem e como produzem, embricadamente com as condições naturais e materiais para sua
produção. Para fazerem história, necessitam estar em condições de viver, e a produção dos
meios de vida são, assim, para a satisfação das necessidades básicas. Esse ato primário e
perpetuado até hoje é seguido pela satisfação de novas necessidades, dentre elas, a de
reprodução da própria vida. Nesse aspecto, a vida, em todos os sentidos, inclusive no trabalho,
ganha dupla relação, ainda segundo Marx e Engels (1987): de um lado, a relação natural e, de
outro, a relação social, esta segunda entendida no sentido da cooperação de vários indivíduos
em quaisquer condições, modo e finalidade. Assim, um determinado modo de produção – que
conjuga as forças produtivas e as relações de produção características de cada época –, está
ligado a um determinado modo de cooperação, que é propriamente uma força produtiva.
Conclui-se, portanto, que a “[...] história da humanidade deve ser estudada e elaborada em conexão
com a história da industria e das trocas” (MARX; ENGELS, 1987, p. 42).
Esse preâmbulo indica que o homem, ao mesmo tempo em que é produto da natureza,
incorpora a ela sua prática social, onde a força produtiva e as relações sociais de produção se
146
constituem como base objetiva para tal. O trabalho enquanto energia humana aplicado à
natureza se torna força produtiva – composta por força de trabalho, natureza e instrumentos. E
o homem, por sua vez, enquanto ser social, é constituído e constituinte, desde o seu
nascimento, por e de relações sociais próprias da condição humana. No entanto, na divisão
social do trabalho, as relações sociais de produção adquirem novas características, as quais
incorporam a ação do homem e acarretam mudanças sobre as próprias forças produtivas.
Nesse sentido, a produção do mundo material e social, é objetivação do ser social que cria
uma realidade objetiva, com características humanas e sociais, e que leva a uma nova
apropriação, não mais só do homem sobre a natureza, mas uma apropriação subjetivada por
sua ação e seu caráter sociocultural.
O homem sofre múltiplas determinações sociais que o constituem e que lhe são
constitutivas, tornando sua individualidade uma síntese de diferentes conhecimentos
objetivados pela sua ação/apropriação e subjetivado pela ação do coletivo que lhe é
incorporado enquanto ser social, como ser único e ao mesmo tempo múltiplo, que transforma
e é transformado. (PEIXOTO, 2003).
Leontiev (1978) afirma que a assimilação do homem é um processo de reprodução
tanto das propriedades individuais como das propriedades e aptidões historicamente formadas
pela espécie humana. O indivíduo, ao se apropriar da história social, forma-se e objetiva-se
como sujeito no curso da história, e sua individualidade é mediatizada pelas relações sociais,
apresentando enormes diferenças, quer pelas aptidões físicas, mentais, genética, quer pelas
condições e pelo modo de vida de cada um. No entanto, o autor enfatiza que a desigualdade
entre os homens não provém de suas diferenças biológicas naturais, mas é produto da
desigualdade humana, da divisão social das classes.
147
Na sociedade capitalista, as relações sociais assumem características naturalizantes que
mascaram as relações de troca estabelecidas entre os desiguais. A origem está na relação que
o homem mantém com a mercadoria – esta como produto do trabalho humano –, e com o
trabalho – este objetivado em capital –, que possibilita o processo de alienação do segundo
pela primeira. A mercadoria esconde, portanto, as relações sociais existentes na sua produção,
pois são evidenciadas apenas suas propriedades materiais e sociais, ocultando o próprio
trabalho nela contido. Essa relação social estabelecida entre os homens, transforma-se,
segundo Marx (1980), de forma fantasmagórica, em uma relação entre coisas, o que o autor
chama de fetichismo da mercadoria, ou seja, a ação humana – o trabalho –, está oculta no
mundo da mercadoria, a qual, pelo seu caráter social, é produto inseparável da mesma.
O fetichismo é uma relação alienada e alienante que os homens estabelecem
com a mercadoria enquanto objetivação humana, pelo fato do próprio
processo de objetivação ocorrer no capitalismo sob relações sociais de
dominação, isto é, sob forma de apropriação privada dos meios de produção
e do produto do trabalho. As relações sociais alienadas assumem, assim,
aparência de fenômenos da natureza. Estamos perante a questão da
naturalização das relações sociais, que na sociedade capitalista invade todo
pensamento dos indivíduos [...] A reprodução ideológica do fetichismo se
realiza através das muitas formas de naturalização dos fenômenos que,
ao invés de serem analisados como fenômenos históricos e sociais, são
encarados como fenômenos naturais (DUARTE, 2004, p. 38, grifo nosso).
A naturalização dos fenômenos e das relações sociais ocorre em diferentes instâncias
da sociedade, tais como: na relação entre compra e venda da força de trabalho e sua
apropriação como mercadoria; entre saúde e doença; entre educar e aprender; entre arte e
estética; entre conhecimento científico e senso comum. Percebe-se que as relações sociais são,
na verdade, mediações de poder que partem de uma estrutura socialmente construída.
148
Essa estrutura pode ser analisada também a partir da noção gramsciana de hegemonia,
que a concebe pelo entendimento de que a classe dominante dirige a sociedade através do
consenso obtido para o controle da sociedade civil. Controle este que se caracteriza e se
particulariza pela difusão de sua concepção de mundo junto aos grupos sociais, que é o senso
comum (PORTELLI, 1987). Isso resulta numa sociedade que se mantém coesa a partir de um
“bloco histórico”, ou seja, devido a um conjunto de forças políticas e sociais que garantem o
consenso entre interesses antagônicos, entre a estrutura econômica e o Estado e destes com a
classe operária. Esse consenso se impõe, entretanto, não apenas pela influência política, mas
também pela ideologia, que, segundo a teoria de Gramsci, é o cimento de todo bloco histórico
(GRUPPI, 1980).
Assim, a constituição de um novo sistema hegemônico pressupõe a criação de um
novo bloco, que deve vir acompanhado do desencadeamento de uma crise orgânica,
representando a ruptura entre estrutura e superestrutura. Estas, em linhas gerais, podem ser
compreendidas, a partir da análise gramisciana de Portelli (1987), a primeira, como o
conjunto de forças sociais e do mundo da produção, e, a segunda, como agrupadora da
sociedade política, incluindo o aparelho de Estado, e a sociedade civil58.
A construção de novo sistema hegemônico implica, necessariamente, a organização
das classes subordinadas para a construção de uma direção política e ideológica, o que denota
não ser uma tarefa fácil, pois perpassa todas as formas de luta política e de construção de
estratégias que apontem a superação do modelo hegemônico.
58
O conceito de sociedade civil em Grasmsci parte da noção de Hegel, cuja formulação deriva de Marx, mas
apresenta sentidos diferentes, segundo Bobbio (in Portelli, 1987). O primeiro interpretou-a como o complexo
da superestrutura ideológica, e o segundo, como um conjunto de relações materiais no interior de um estágio
do desenvolvimento das forças produtivas.
149
Sem dúvida, o processo social em curso incita inúmeras formas de resistência frente às
contradições sociais, as percebidas e também as não percebidas, advindas do que se denomina
de invisibilidade socialmente construída.
Complementando esta análise, evidencia-se o apontamento feito por Hobsbawm
(1989), tendo como ponto de partida a análise em Marx acerca das estruturas das relações
sociais. Ele mostra a necessidade de ultrapassar a aparência da estrutura – constitutiva de um
conjunto de relações que mantêm íntima conexão e interdependência, buscando, no seu
interior, o que está oculto numa realidade em permanente movimento. O autor coloca, ainda, a
necessidade de conhecer a história para decifrar o presente, através de dois movimentos: o
regressivo, que parte do presente, retornando ao passado, para revelar o presente na forma
que é hoje; e o progressivo, o qual parte do passado e chega ao presente, demonstrando o seu
desenvolvimento. Por fim, mostra a correlação entre a estrutura econômica e as demais
estruturas sociais, revelando a supremacia da primeira no desenvolvimento dos sistemas
econômicos e sociais.
Sintetizando, o reconhecimento do sujeito como ser histórico implica conectá-lo ao
movimento da estrutura social, construída pela sua manifestação objetiva, subjetivada pelas
relações socialmente determinadas que contribuem para que muitos fenômenos sejam
invisíveis, dado o status socialmente a ele atribuído na sociedade repleta de desigualdades
sociais e econômicas.
À luz do método, busca-se mostrar um todo articulado, interligado, e as relações e
contradições existentes na realidade social que se manifestam no desenvolvimento objetivo da
sociedade em que se vive. Esse movimento permeou todo o processo de descoberta da
150
realidade, partindo da compreensão do contexto sócio-histórico que produziu a desproteção
social dos trabalhadores expostos ao amianto e avançando na identificação de sua gênese e de
suas contradições, ao se aproximar dos trabalhadores vitimados. Essas categorias aparecem de
forma implícita, como na ausência de informações e estatísticas sobre doença e morte
relacionadas, e explícita, no nível de exposição, nas precárias condições de trabalho e em
muitas outras formas ocultas, as quais demonstram que a realidade atual mantém sua
interdependência direta com esses condicionantes. O desvendamento do fenômeno
pesquisado, a partir da compreensão de sua totalidade, impõe a necessidade de se promover a
superação de processos sociais encobertos pela naturalização das relações sociais. Isso
implica, conforme já demonstrado, a construção de mecanismos sociais que dêem visibilidade
social à problemática relacionada ao amianto, a exemplo da constituição dos contrapoderes
que lutam de forma contra-hegemônica pelo banimento do mineral no mundo em detrimento
da ideologia do uso controlado, sustentado ao longo da história por grandes corporações
econômicas e legitimado pelo Estado e por diferentes segmentos sociais.
3.2 – A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA INVISIBILIDADE: APONTAMENTOS METODOLÓGICOS
“[...]
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor”
(Alberto Caeiro – heterônimo de Fernando Pessoa, 2004).
Este fragmento da poesia de Fernando Pessoa sob o heterônimo de Alberto Caeiro59,
que tem a dominação Há Metafísica Bastante em não Pensar em Nada, é instigante e, ao
mesmo tempo, revelador da manifestação subjetiva dos fenômenos. A implicação fenomênica
59
Esse fragmento compõe a poesia apresentada na epígrafe desta tese.
151
expressa-se, por vezes, em abstrações que, concomitantemente, escondem o fenômeno e
permeiam sua existência em todos os sentidos, contribuindo para descortiná-lo ou para mantêlo na invisibilidade. Isso demonstra que a compreensão sobre a invisibilidade social de um
fenômeno é tão subjetiva quanto sua visibilidade é objetiva. Essa aparente obviedade se
constitui a partir da falta de clareza sobre os processos de conhecimento do real, que podem
comprometer a cientificidade de um objeto de pesquisa. No percurso metodológico
empreendido na efetivação da pesquisa que embasou a presente tese, tornou-se imprescindível
revelar-se contra todas as formas dissimuladas com que o objeto de estudo – a desproteção
social dos trabalhadores expostos ao amianto –, se apresentou no transcorrer da mesma, fosse
pela recorrente manifestação da inexistência de casos de adoecimento relacionados à
exposição ao mineral, na região e no Estado, na fase ainda exploratória da pesquisa; fosse
pelo seu banimento, que coincide com o ano do início do trabalho de campo; ou, ainda, pelas
sucessivas aproximações ao objeto indiscutivelmente invisível perante a sociedade. A
persistência empírica, articulada ao método que norteia a construção desse conhecimento,
exigiu que se transitasse por diferentes caminhos na busca do rompimento da invisibilidade do
fenômeno. E, assim, Marx e Engels, afirmam:
O fato é o seguinte: indivíduos determinados, que como produtores atuam de
um modo também determinado, estabelecem entre si relações sociais e
políticas determinadas. É preciso que, em cada caso particular, a observação
empírica coloque necessariamente em relevo – empiricamente e sem
qualquer especulação ou mistificação – a conexão entre estrutura social e
política e a produção (MARX; ENGELS, 1987, p. 35).
Tem-se claro que a invisibilidade, aqui destacada, é determinada por um conjunto de
mecanismos sociais, políticos e econômicos que obscurecem a realidade que precisa ser
desvendada e ressiginificada. Como diz Bourdieu (1983), as relações entre os homens
constituem-se em relações de poder, e estas reproduzem o sistema objetivo de dominação, que
152
é interiorizado enquanto subjetividade. Ele acrescenta ainda que essa ordem constituída não é
reproduzida apenas pelos aparelhos oficiais e ideológicos, mas está inscrita em diferentes
níveis da sociedade e também, de acordo com Thompson (1990), na reprodução de valores e
crenças socialmente partilhadas.
Assim, ao tematizar sobre um objeto produto dessa relação social, verifica-se que ele é
duplamente obscurecido, quer pelo contexto em que o mesmo ocorre, quer pelo longo período
de tempo necessário para sua manifestação.
No entanto, a sua própria manifestação é, por vezes, também obscurecida pela ausência
de reconhecimento, que ocorre num amplo espectro das relações estabelecidas no espaço e no
tempo. Esses dois fatores contribuem para a construção de uma realidade que não corresponde
ao real, no sentido de que dela não foi ainda abstraída de sua essência; desse modo, a
apropriação do real reduz-se a um fenômeno isolado e descotextualizado.
Pode-se afirmar, portanto, que se tem uma construção social da invisibilidade das
doenças relacionadas à exposição ao amianto no processo de trabalho. Esta conduz, por
conseguinte, à não-proteção social dessa necessidade, incluído o não-reconhecimento e a
ausência dos direitos decorrentes.
A articulação do real, por sua vez, exige uma abordagem que extrapole o plano
imediato e quantitativo. No campo da saúde do trabalhador, essa premissa ganha maior
relevância, pois ele é permeado por inúmeras contradições sociais, que o tornam
essencialmente qualitativo, a exemplo do que nos diz Minayo: “[...] se falamos de saúde ou
doença, essas categorias trazem uma carga histórica, cultural, política e ideológica que não pode ser
contida apenas numa fórmula numérica ou num dado estatístico” (MINAYO, 2000, p. 21-22).
153
Essas categorias trazem, principalmente, significados que são indissociáveis da
condição em que os trabalhadores se encontram ao estarem suscetíveis de adoecerem pelo e
no trabalho, o que é destacado por Martinelli quando afirma “[...] não desconectamos esse sujeito
da sua estrutura, buscamos entender os fatos, a partir da interpretação que faz dos mesmos em sua
vivência cotidiana” (MARTINELLI, 1994, p. 13).
A opção pela pesquisa qualitativa justifica-se, contudo, na perspectiva metodológica da
construção social da invisibilidade, por se constituir de múltiplas abordagens que não se
excluem, mas, ao contrário, contribuem para tornar possível o aparente, o impossível e o
invisível. Nesse sentido, as narrativas e as histórias de vida dos sujeitos foram incorporadas ao
processo de pesquisa como parte de um todo que privilegiou a triangulação60 das informações
– ou seja, utilizaram-se diferentes metodologias que permitissem aproximações sucessivas ao
objeto de investigação –, que se traduziram em descobertas, fruto de informações
reincidentes. Outras tentativas, por sua vez, foram uma espécie de caminho de volta, isto é,
tornava-se necessário recomeçar as investigações por outros ângulos, a partir de sinalizações
feitas pela diversidade e fragmentação das mesmas.
O processo empírico foi sistematicamente acompanhado por leituras correlatas ao
tema, que permitiram a emergência de inferências associativas, as quais foram ampliando a
formulação de novos conhecimentos. Segundo Thiollent (1988), a inferência é considerada
um passo de raciocínio que possui qualidades lógicas e meios de controle e que leva à
generalizações. Na perspectiva metodológica da análise de conteúdo, utiliza-se um conjunto
de técnicas e operações para obter inferências sobre textos e narrativas, constituindo-se numa
importante ferramenta para buscar neles indícios e sentidos. A análise de conteúdo permite a
60
Segundo Minayo (2000, p. 102), o termo triangulação é utilizado nas abordagens qualitativas para indicar o
uso concomitante de várias técnicas de abordagens e de várias modalidades de análise, de vários informantes e
pontos de vista de observação, visando à verificação e à validação da pesquisa.
154
construção de unidades de análise e/ou referência que contribuem para a categorização
temática da pesquisa. Assim, as categorias resultam de abstrações, são construções do
pesquisador (CONSTANTINO, 2001).
Considera-se, na presente pesquisa, o papel de sua fase exploratória, isto é, a etapa
inicial, que contou com a busca de informações preliminares, constitutivas das narrativas de
trabalhadores expostos. A partir dessa etapa, produziram-se indícios que levaram à
formulação da primeira unidade de análise, que é a configuração histórica da exposição dos
trabalhadores ao amianto, logo, fruto de uma inferência que advinha de pessoas e/ou sujeitos
que eram fontes de informações com autoridade para serem fonte oficial e direta do objeto
investigado. Naturalmente, o cuidado para assim denominá-los teve por princípio o que
Vasconcelos de Luna (2000) propõe ao dizer que a atribuição de status de autoridade a uma
pessoa deve ser resultado de avaliação e deve responder a questões como: o que a recomenda
como autoridade e que condições existem para que o pesquisador possa discriminar o que ela
sabe sobre o que está opinando?
Dessa forma, a pesquisa na relação teórico-prática seguiu um percurso metodológico
que se iniciou com as aproximações sucessivas ao objeto de pesquisa, encadeadas de forma
permanente com a construção do problema de pesquisa, e seguiu produzindo muitas
indagações, recolhendo muitas evidências e estabelecendo um novo olhar para a realidade,
que necessita de muita visibilidade para revelar as condições de adoecimento e morte no
trabalho.
155
3.3 – APROXIMAÇÃO COM O OBJETO: SITUANDO O LUGAR E A CATEGORIA DO ESTUDO
As primeiras aproximações ao objeto de estudo iniciaram-se junto ao NEST do
Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social da PUCRS. Filiada à concepção
metodológica da construção social da invisibilidade do adoecimento e da morte no trabalho
desenvolvida pelo referido núcleo, coordenado pela Professora Jussara Mendes, prosseguiase, em meados de 2000, os estudos sobre saúde-trabalho. O enfoque, então, direcionava-se a
investigar a realidade dos trabalhadores que adoecem e encontram-se sem proteção social.
Até então, pouco era o conhecimento desta pesquisadora sobre os efeitos nocivos do
amianto sobre a saúde da população exposta. O desafio de pesquisá-los foi absorvido, tendo
em conta que o interesse primário era, e continua sendo, a desproteção social, que, com o
recorte do agente amianto, veio a se constituir num intrigante pólo de novos conhecimentos,
dada a amplitude de possibilidades de investigação do tema, por ser fator de risco para
doenças de latência, as quais trazem implicações mais agudas para os trabalhadores que assim
adoecem, pois sua manifestação ocorre a longo prazo; e; num segundo momento, por
contribuir para o fortalecimento da luta pela saúde no trabalho, em particular dos
trabalhadores metalúrgicos da região de Caxias do Sul. Essa cidade concentra a maior parte da
população exposta no Estado, criando-se um vínculo pela inserção política sindical e pela
aproximação geográfica, onde, há mais de 15 anos, esta pesquisadora atua nessa área, no
município vizinho de Bento Gonçalves, vinculada à regional sindical.
Contudo, a área de saúde e trabalho instiga cotidianamente o trabalho profissional
como assistente social desenvolvido junto a uma Unidade de Reabilitação Profissional da
Agência da Previdência Social do referido município de atuação, onde é crescente e
156
desenfreado o número de trabalhadores afastados do trabalho com perda de suas capacidades
laborativas. Estes, tornados incapazes pela condição a que estão submetidos no processo de
trabalho, onde seus corpos e mentes são extensão da máquina-ferramenta de trabalho,
adoecem. São centenas de trabalhadores que advêm, sobretudo, das indústrias moveleira,
alimentícia e metalúrgica, na sua maioria encaminhados como portadores de doenças não
relacionadas ao trabalho61, e que apresentam possibilidades mínimas de retornarem ao espaço
fabril.
Retomando o objeto da presente pesquisa, esta se dirige a um expressivo segmento da
população exposta ao amianto, que são os trabalhadores da indústria metalúrgica na área de
fabricação de autopeças, lonas de freios, pastilhas e revestimentos. Estes são materiais de
fricção utilizados em carros, ônibus, caminhões e trens. O local de estudo é a Cidade de
Caxias do Sul, e os trabalhadores investigados pertencem à categoria metalúrgica, que
congrega a maior parcela destes do Estado do Rio Grande do Sul, aproximando-se de 28.000
trabalhadores62. Os trabalhadores que estavam expostos63 na data da proibição da utilização
do mineral e que permanecem atualmente vinculados são, aproximadamente, 2.000.
Concentram-se em duas empresas do ramo, a maior emprega 1.793 operários, e a segunda, em
torno de 200.
A Cidade de Caxias do Sul está localizada na região nordeste do Estado, distante
120km de Porto Alegre, com uma área de 1.588,4 km² de extensão. A Cidade foi fundada em
1878, é de colonização italiana, composta, hoje, por diferentes etnias. O Censo Demográfico
61
O estudo desta temática encontra-se na Dissertação da autora sobre as determinações e implicações do
afastamento do trabalho já referenciado.
62
Esse número amplia-se para 35.0000 trabalhadores enquanto base territorial de cobertura do Sindicato, que
inclui os Municípios de Farroupilha, Garibaldi, Carlos Barbosa, São Marcos, Flores da Cunha, Antônio Prado,
Nova Pádua Vale Real e Nova Roma do Sul.
63
Conforme mencionado no Capítulo 2, de acordo com a Lei Estadual nº 11.643, de 2001, onde as indústrias
receberam um prazo de três anos para substituírem o uso do amianto como matéria-prima de seus produtos.
157
2000 aponta como de 360.419 a população residente no Município, com uma renda per capita
de R$ 10.318,57, e o PIB é de 6,472%. A cidade é o principal pólo metal-mecânico do Rio
Grande do Sul, sendo que a participação da indústria na economia do Município é de 64,66%,
seguida da de comércio e serviços, que é de 33,34%, e da agricultura, que representa 2%. O
setor metalúrgico compõe 60% da economia industrial – 40% metalurgia de bens de capital, e
20% de bens de consumo. O segundo segmento é o da indústria da alimentação, com 12%, e,
após, vem a fiação e tecelagem, com 11%.
A categoria metalúrgica não só é a maior no município, como está organizada no maior
sindicado do Interior do Estado, o qual possui longa trajetória e se constitui, atualmente, num
dos mais atuantes do Estado e do País. Reconhecido pela sua concepção sindical classista,
faz-se presente em todas as formas de manifestação social e política. Completou 70 anos de
organização em 2003, possuindo, aproximadamente, 14.000 associados64. O movimento
sindical65 dos metalúrgicos em Caxias do Sul começou por volta de 1928, época de forte
controle policial. As principais reivindicações eram pela jornada de oito horas diárias e pelo
registro em carteira profissional. Esses trabalhadores participavam da Sociedade dos
Metalúrgicos – com 82 associados –, que fazia parte da Sociedade União Operária. Essa
entidade era formada por metalúrgicos, tanoeiros, trabalhadores em construção civil,
curtumes, tecelagem, alimentação e técnicos em cantinas. A Sociedade Operária foi extinta
porque a legislação proibia que trabalhadores de categorias diferentes se associassem a uma
mesma entidade. Então, em 6 de março de 1933, foi fundado o Sindicato dos Metalúrgicos.
Na sua longa trajetória de lutas, sofreu duas intervenções, a primeira em 1948, no Governo
Dutra e, a segunda em 1964, com o golpe militar. Sucederam-se várias formas de
mobilização, reivindicações e greves, ao longo das sete décadas seguintes, nos mais diversos
64
65
Os números são de março de 2004, sendo que 2.700 associados são trabalhadores aposentados.
As informações históricas foram obtidas a partir de estudo (não editado) realizado pelo Professor de História e
Assessor Sindical Saulo Velasco.
158
contextos sociais e políticos. Atualmente, a direção do Sindicato é composta por 124
dirigentes66, com uma executiva de 15 diretores.
Dados do Sindicato das Industrias Metalúrgicas (SIMECS) registram a existência de
2.000 empresas que compõem o pólo metal-mecânico do Município. As principais empresas
desse segmento adotaram inovações tecnológicas nos seus processos de trabalho, ao longo da
década passada, as quais permitiram substituir, em parte, a base material e organizacional das
mesmas. Segundo estudo de Heredia e Peruzzo (1998) 67, as mudanças efetivaram-se a partir
da introdução de equipamentos microeletrônicos, que, segundo as autoras, eram “[...] adaptadas
à tecnologia convencional, o que significa que houve introdução de novas tecnologias, através de
máquinas e controles, mantendo a estrutura tradicional do tecido industrial” (HEREDIA; PERUZZO,
1998, p. 153). Destacam ainda a cultura ambígua do empresariado, que opta não pela criação
dessas tecnologias, mas, sim, pela sua aquisição, permitindo uma maior competitividade no
mercado internacional. Porém, a sua introdução não se revelou uma total modernização nessa
área, onde se constatou a coexistência de tecnologias avançadas e de processos de trabalho
tradicionais e arcaicos. O estudo mostra também que o desenvolvimento da indústria
metalúrgica não se deu de forma simultânea à qualificação da força-de-trabalho, ou seja, não
houve investimento na especialização dos trabalhadores para acompanharem o avanço
tecnológico.
66
A empresa metalúrgica estudada na presente tese, que utilizava o amianto, conta, atualmente, com 13 diretores
sindicais.
67
O estudo intitulado Implicações Tecnológicas nos Processos de Trabalho na Indústria Caxiense teve sua
amostra composta por 10 indústrias, incluindo entre elas a maior empresa do ramo automotivo: a Freios S/A.
159
Diante disso, a realidade revela-se perversa para o trabalhador metalúrgico, na medida
em que a situação ocupacional é marcadamente precária, ou seja, a mão-de-obra não recebeu
incentivos no sentido de aperfeiçoamento profissional, nem no que se refere à elevação da
escolaridade68. O mais drástico é que a categoria está subjugada a uma rotatividade sem
precedentes. As relações de trabalho sinalizam que o novo paradigma industrial se afirma na
precarização do e no trabalho, e, tratando-se da categoria metalúrgica, em particular, esta se
utiliza também da experiência do operário como fator propício para a rotatividade, mais uma
forma de exploração do trabalho pelo capital.
Isso é o que demonstra a pesquisa feita pela assessoria econômica do Sindicato dos
Metalúrgicos de Caxias do Sul, editada sob o título Cruel Rotatividade. O giro da ocupação da
mão-de-obra é impressionante. Como mostram os dados obtidos junto ao Ministério do
Trabalho, entre 1993 e 1995 foram demitidos 33.124 metalúrgicos e admitidos 33.568; dentre
os demitidos, 66,1% tinham de um ano a nove meses de serviço, e 84,5 % foram demitidos na
condição de reemprego, ou seja, muitos foram admitidos em outra empresa. A pesquisa
constata, dentre as 10 empresas que mais demitiram69, que o número de rescisões se aproxima
ao de admissões e desvenda que a rotatividade “[...] é um mecanismo que os patrões utilizam para
rebaixar o preço pago pela mão-de-obra, reduzir os custos de produção e, com essa vantagem,
competir melhor com outros capitalistas (SILVA in STIMMME,1996, p. 5).
68
Segundo pesquisa realizada pelo sindicato da categoria, a maioria dos metalúrgicos não ultrapassa o ensino
fundamental. Ainda com fonte no Sindicato, um levantamento realizado pela Fundação Gaúcha do Trabalho
constata que, na opinião dos responsáveis pelos recursos humanos da região serrana, na hora da contratação
não é levada em conta a escolaridade, mas, sim, a experiência.
69
Dentre as empresas, estava a Empresa Freios S/A e mais três do mesmo grupo empresarial.
160
Ainda com fonte no Ministério do Trabalho, a pesquisa revela que, do total de
rescisões ocorridas no ano de 1995, 47,5% dos operários recebiam entre três e cinco salários
mínimos (SM), e os 63,1% admitidos no mesmo período passaram a ganhar até três salários
mínimos, conforme TABELA 10.
TABELA 10
Fluxo de admissões e demissões dos metalúrgicos de Caxias do Sul – 1995
FAIXA A FAIXA B
DISCRIMINAÇÃO
ADMITIDOS
DEMITIDOS
FAIXA C
FAIXA D
FAIXA E
De 0,5 a
Mais de
Mais de
Mais de
Mais de
1,01 SM 1,01 a 1,51 1,51 a 2,01 2,01 a 3,01 3,01 a 5,01
SM
SM
SM
SM
3192
325
1313
3855
3393
3065
260
1286
3519
4329
FAIXA F
Mais de TOTAL
5,01 SM
1686
2702
13764
15461
FONTE: Módulo II – Lei nº 4.923/65 – Ministério do Trabalho – Publicado em Cartilha do STIMMME – Caxias
do Sul: Cruel Rotatividade.
Por fim, a pesquisa conclui que a rotatividade, além de rebaixar o salário e diminuir o
poder de compra dos trabalhadores, também resulta em insegurança: “[...] é uma espécie de
precarização do trabalho com carteira assinada. A rotatividade renova o quadro funcional da empresa
impedindo que o trabalhador nela se mantenha por um tempo médio superior a 3 anos” (SILVA in
STIMMME, 1996, p. 6-7).
Ampliando essa perspectiva de análise, constata-se que a rotatividade significa, no
campo da saúde do trabalhador, um componente a mais no mascaramento das doenças
profissionais. Em outras palavras, na medida em que esse trabalhador “roda”, cria-se um
quadro propício, que tenta desconectar as doenças que advêm da exposição a produtos tóxicos
ou do desgaste físico pelo fator tempo do vínculo empregatício atual, desconhecendo e
negando o trabalho anterior. Facilita, assim, a omissão empresarial, principalmente frente aos
riscos, à comunicação e ao reconhecimento das doenças ocupacionais.
161
3.4 – O PERCURSO METODOLÓGICO
NO
MOVIMENTO
DE INVESTIGAÇÃO E
DESCOBERTA
DA
REALIDADE
“O real não está na saída nem na chegada,
ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”
(Guimarães Rosa, 1995).
O problema de pesquisa colocado para a presente investigação é: como se constróem
socialmente a proteção dos trabalhadores expostos ao amianto e o processo de
reconhecimento do nexo das doenças relacionadas, considerando a ambígua realidade sócio-histórica e os mecanismos de ocultamento nela presentes? Dessa forma, parte-se do
pressuposto de que a proteção social no contexto da saúde dos trabalhadores expostos ao
amianto ocorre em meio a uma complexa realidade. A utilização do amianto pelo trabalhador
como matéria-prima no seu processo de trabalho pode provocar dano à sua saúde de forma
residual e progressiva. As doenças relacionadas ao amianto manifestam-se após longo período
de latência, assim como apresentam dificuldades para a definição de um diagnóstico preciso,
fato este que tem revelado sérias implicações sobre a capacidade produtiva e o processo de
reconhecimento dos riscos e da doença profissional. Portanto, o segundo pressuposto desse
problema é o de que, historicamente, os possíveis danos à saúde do trabalhador pela
exposição ao amianto nunca foram reconhecidos e protegidos na dimensão que o risco exige,
bem como inexistem instrumentos de monitoramento e vigilância na área que garantam a
identificação de doenças associadas a ele.
A partir dessa problematização, são suscitadas as seguintes questões norteadoras:
- O trabalhador conhecia os riscos a que estavam expostos? E, hoje, que compreensão
têm, após o banimento do uso do mineral?
162
- Como se dava o processo de proteção ocupacional? Qual sua evolução histórica?
- Que fatores têm contribuído para a identificação, na atualidade, de um número
inexpressivo de casos de doenças profissionais pela exposição ao amianto?
Estariam eles relacionados ao baixo índice de trabalhadores que realizam o exame
pós-demissional; à rotatividade dos trabalhadores nesse ramo produtivo; à
dificuldade de se realizar um diagnóstico sobre a doença, tendo em vista os fatores
de risco secundários; à ausência de um sistema de vigilância e assistência à saúde
do trabalhador que exerça um efetivo monitoramento da população exposta?
- Que condicionantes e/ou determinantes históricos vêm contribuindo para ampliar a
invisibilidade das doenças relacionadas?
- Qual o tratamento dispensado hoje ao processo de reconhecimento da doença
ocupacional no âmbito da Medicina do Trabalho e da Seguridade Social?
- As patologias identificadas foram reconhecidas como doenças profissionais?
Como? Por quem?
- Que condições e possibilidades de acesso aos direitos existentes têm os
trabalhadores vitimados e seus familiares?
- Como os avanços legais têm repercutido para a garantir os direitos sociais dos
trabalhadores expostos?
- Que estratégias podem ser implementadas para ampliar as possibilidades de acesso
à proteção social?
163
Na busca de dar respostas a essas perguntas, que em síntese também respondem
questões anteriormente formuladas, foram se estabelecendo, de imediato, contatos com
pessoas que conheciam o processo atual e o histórico, bem como, paralelamente, se buscaram
informações epidemiológicas sobre exposição ocupacional e dados sobre morbi-mortalidade.
Esses momentos iniciais conduziram a uma aproximação histórica que estimulava a
investigação crítica da atualidade. Entretanto, a busca de informações atuais revelava-se
destituída de fatos, vazia e invisível nas diferentes tentativas de aproximação ao objeto de
estudo. No que concerne à investigação sobre informações epidemiológicas, esbarrou-se na
ausência de um controle efetivo da exposição ao amianto, pois, apenas em 2001, a Secretaria
de Saúde do Estado começou a voltar-se para a vigilância em saúde dos trabalhadores e da
população em geral exposta. Por outro lado, também não existe, no Município de Caxias do
Sul e no Estado, maiores informações sobre morbidade, assim como, junto à Coordenadoria
Regional de Saúde, encontram-se apenas dados sobre mortalidade e causa mortis, verificandose que não há o devido zelo quanto ao registro da efetiva ocupação exercida, quando emitida a
declaração de óbito.
Entretanto, cada nova aproximação ao objeto de estudo era dotada de iniciativas que
tinham como vetor impulsionador as narrativas históricas, a partir de entrevistas e contatos
com sujeitos envolvidos no processo de enfrentamento dos riscos de exposição ao amianto.
As informações, as quais eram registradas no diário de campo, tornaram-se, potencialmente,
fonte de pesquisa.
O percurso metodológico, guiado pelo método de investigação, conduziu aos mais
diferentes caminhos, num movimento de ir e vir, de busca e descoberta, de busca e não-descoberta, que, para prosseguir, exigia um recomeçar por novas trilhas, à procura de novas
164
evidências. Assim, como ensina Bourdieu, foi necessário “[...] mobilizar todas as técnicas que,
dada à definição do objeto, possam parecer pertinentes e que, dadas as condições práticas de
recolhimento dos dados, são praticamente utilizáveis” (BORDIEU, 2000, p. 26). Acima de tudo, foi
a ausência de dados quantitativos que mobilizou a pesquisadora e se transformou, ao mesmo
tempo, em informação de relevância metodológica.
Teve-se, portanto, a partir da triangulação das informações, um mosaico a ser montado,
onde cada peça era única, mas, ao ser disposta, mantinha uma conexão estética, porém,
também apresentava lacunas entre as partes. A cada pergunta lançada, deparava-se com o
passado próximo, que trazia indícios, sinais de um processo em curso, o qual foi sendo
configurado. Isso resultou na necessidade metodológica de centrar a pesquisa num estudo de
caso, uma vez que as narrativas e as demais informações convergiam para a maior empresa de
fabricação de autopeças, a qual concentrou, nas últimas décadas, a maioria dos trabalhadores
expostos no Município, no Estado e no País70, e que será denominada, para fins de referência
nesta tese, de Freios S/A71. Segundo Bruyne (1977), o estudo de caso deve reunir informações
numerosas e detalhadas e criar a possibilidade de apreender a totalidade de uma situação; para
isso, é necessário recorrer a variadas técnicas de coleta de informações, como observação,
entrevista, documentos. Acrescenta o autor que o estudo de caso, na sua particularidade,
obtém cientificidade integrando-se no processo global da pesquisa, à teoria, de modo que o
seu papel não seja deformado, assim como “[...] a crítica epidemiológica dos problemas e
conceitos não é negligenciada” (BRUYNE, 1977, p. 225).
70
Não há dados precisos sobre isso, porém, segundo o Anuário Mineral Brasileiro, em 2001, o número de
trabalhadores empregados na extração do mineral em minas de amianto no Estado de Goiás, era de 800,
inferior, portanto, ao da indústria metalúrgica citada. Considerou-se também que a empresa Eternit, maior do
ramo de cimento-amianto, fechou em 1993, com a fusão com a Brasilit, permanecendo empregado um número
inferior de trabalhadores.
71
O nome aqui utilizado é fictício, por questões éticas que envolvem o processo de pesquisa.
165
Descrevem-se, a seguir, de forma sistematizada, o percurso metodológico da pesquisa
e os passos que envolveram o trabalho de campo, porém, pela própria natureza do método
utilizado, não há uma linearidade cronológica dos mesmos, os quais podem ser assim
apresentados conforme visto no QUADRO 8.
166
QUADRO 8
Síntese do percurso metodológico e das etapas da pesquisa
PERCURSO METODOLÓGICO
PASSOS DA PESQUISA DE CAMPO
Investigação preliminar.
Entrevista do Presidente do STIMMME de Caxias do Sul, de
1993 a 2002, e também trabalhador exposto ao amianto nas
décadas de 80 e 90, responsável pelos primeiros movimentos em
busca da proteção contra o amianto.
Investigação de dados epidemiológicos Contato com a Coordenadoria Regional de Saúde – 5ª
sobre morbi-mortalidade.
Coordenadoria Regional de Saúde.
Entrevista com o médico coordenador da epideomologia da 5ª
CRS, visando identificar dados sobre óbitos por CID e profissão.
Contato com a chefia da Agencia da Previdência Social
(APS/Caxias do Sul), visando à autorização e à definição de
estratégias para a coleta de dados acerca dos benefícios por
incapacidade de acordo com o CID.
Coleta de dados junto ao sistema informatizado da Previdência
Social, identificando benefícios com doenças relacionadas à
exposição ao amianto – que constam no Anexo II da Lei de
Regulamentação da Previdência Social, com a espécie e patologia,
a partir dos CIDs predefinidos.
Investigação referente à vigilância da Contato com a Secretaria de Saúde do Estado – Programa de
população exposta.
Atenção à Saúde Integral do Trabalhador (PAIST).
Contato com a 5ª CRS, com a responsável pela área da saúde do
trabalhador.
Reunião com os responsáveis técnicos pela vigilância aos
trabalhadores expostos ao amianto da SES/PAIST.
Apresentação e discussão do projeto de Reunião com dirigentes sindicais para apresentação da pesquisa.
pesquisa – Diretoria do STIMMME.
Reunião com área técnica do referido sindicato: médico do
trabalho, advogado e auxiliar do ambulatório médico.
Entrevista inicial com um trabalhador Narrativa de trabalhador exposto, atualmente aposentado por
exposto, a partir de identificação da tempo de serviço.
equipe técnica, com suspeita de patologia
relacionada ao amianto, para fim de
estudo exploratório.
Analise documental e visual.
Estudo de documentos das décadas de 80 e 90, jornais, boletins e
fitas de vídeo das condições de trabalho daquele período.
Grupo de discussão com trabalhadores e Realização de duas reuniões seqüenciais com quatro dirigentes
líderes sindicais expostos – narrativas e sindicais que estão e estiverem expostos ao amianto:
reconstrução histórica.
– dois são dirigentes que estão na empresa, um com 24 anos de
trabalho e exposição, e outro com 18 anos de trabalho e
exposição;
– um dirigente liberado para atividade sindical há oito anos e com
sete anos de exposição;
– um ex-presidente com oito anos de exposição.
Identificação e entrevistas com os sujeitos Entrevista com o médico do trabalho que atuou na principal
e/ou técnicos envolvidos na proteção empresa de autopeças por 14 anos.
contra o uso do mineral, na década de 80.
Entrevista com o auditor fiscal do Ministério do Trabalho
(DRT/RS) que autuou diversas vezes a referida empresa no final
da década de 80.
167
PERCURSO METODOLÓGICO
PASSOS DA PESQUISA DE CAMPO
Novas entrevistas com
dirigentes
sindicais.
Identificação a partir da reconstrução com
os dirigentes sindicais de trabalhadores
expostos que supostamente morreram de
patologias relacionadas à exposição ao
amianto.
Retomada da investigação buscando
identificar novos sujeitos portadores de
patologias relacionadas à exposição.
Entrevista com os dirigentes participantes das reuniões, para a
obtenção de informações complementares.
Duas entrevistas com viúvas de dois trabalhadores identificados
pelos sindicalistas, a partir da história oral.
Realização de nova pesquisa junto à APS – Caxias do Sul,
identificando a partir do CID relacionado aos trabalhadores, para,
após, identificar junto ao Cadastro Nacional de Inscrição Social
(CNIS – PIS) os vínculos profissionais.
Realização de pesquisa junto ao quadro de associados do
STIMMME, expostos ao amianto pelo vínculo profissional,
buscando identificar, entre os trabalhadores ativos e os
aposentados, os portadores de patologias associadas.
Identificação dos sujeitos.
Nova pesquisa junto à APS – Caxias do Sul e da entidade sindical
dos trabalhadores metalúrgicos identificados na etapa anterior.
Identificação
de
novos
sujeitos Realização de entrevistas com trabalhadores vitimados e/ou seus
supostamente portadores de patologias familiares, através de história oral.
relacionadas ao amianto.
FONTE: Elaborado pela pesquisadora, a partir do registro do Diário de Campo.
O percurso empírico, que tinha como objetivo inicial uma aproximação com os sujeitos
vitimados pelos agravos relacionados à exposição ao amianto, acabou resultando numa
(re)construção histórica de fatos que foram narrados num novo momento da própria história.
Assim, as fontes supostamente secundárias tornaram-se fontes primárias e com autoridade no
assunto, vindo a contribuir não apenas para a identificação dos sujeitos, mas para,
fundamentalmente, tornar visíveis determinantes históricos até então dispersos e
esquecidos em meio à nova realidade, que tornou os agravos relacionados ao amianto ainda
mais invisíveis. No entanto, os diferentes sujeitos envolvidos nesse processo de pesquisa
talvez não tenham o privilégio do pesquisador – também sujeito –, de embutir as peças
(descobertas) no mosaico, mas levam consigo a marca de uma história que passa a ser
recontada.
168
3.5 – AS REVELAÇÕES DE QUEM FAZ HISTÓRIA: AS DESCOBERTAS QUE REVERTEM A LÓGICA
DA SAÚDE NO TRABALHO
Talvez o tempo passado-presente não tenha sido, ainda, suficiente para que o real
possa se manifestar na sua absoluta concreticidade. Mas a verdade presente nas narrativas dos
sujeitos participantes da pesquisa é aquela vivenciada por quem conviveu e ainda convive
com o risco e o fato de adoecer e morrer no trabalho. Essa verdade se cruza com uma verdade
incontestável: havia uma exposição excessiva ao amianto nas décadas de 80 e 90, conforme
será descrito na seqüência dessa reconstrução. Portanto, as evidências obtidas no decorrer da
pesquisa são partes de um todo que busca, de forma fidedigna, a realidade do ontem e do hoje.
Todavia, é preciso advertir que ainda existe o amanhã! O que está por vir se encontra
germinando, sem que se possa ter visibilidade suficiente, mas traz indicativos de que é preciso
se voltar a atenção para essa inquietante problemática.
Assim, conforme o percurso da investigação, já mencionado, chegou-se às descobertas
que passam a ser apresentadas. Estas se compõem de dois momentos: a realidade das décadas
de 80 e 90 – dividida em duas partes –, e, em seguida, a atualidade, que se inicia no ano de
2001. Essa separação, em que se nomina o passado-presente, ontem, e o presente-futuro, hoje,
tem como linha divisória o ano de aprovação de leis que baniram o uso do mineral em
diversos municípios e estados brasileiros, incluindo o Rio Grande do Sul. Buscou-se, num
primeiro momento, recompor a história a partir dos depoimentos de sete entrevistados – sete
entrevistas individuais e duas reuniões com a participação de quatro dos entrevistados –, e do
estudo documental – jornal e boletim informativo e visual, filmagem, através de fita de
videocassete, das condições de trabalho na empresa de autopeças por ocasião da interdição
169
pela DRT/RS72. Destaca-se que, conforme já referenciado, os depoimentos, na totalidade das
informações, se direcionaram para a realidade dos trabalhadores de uma única empresa de
autopeças, a mais antiga e maior em número de trabalhadores expostos.
Portanto, o histórico que segue está centrado no âmbito da empresa Freios S/A, que
iniciou suas atividades em 1954. A mesma faz parte de um grupo empresarial que congrega
sete empresas ligadas ao setor automotivo e exporta para mais de 70 países em todos os
continentes. Ela está entre as 10 maiores empresas do segmento de materiais de fricção do
mundo, detendo Flexa S/A73. É a primeira no ramo, no Brasil, produzindo mais de 9.000
referências de produtos, dentre os quais, pastilhas e lonas de freios. Em Caxias do Sul, possui
duas unidades fabris – em processo de unificação –, sendo que uma concentra atualmente
1.800 funcionários. Também possui mais duas unidades fora do País, uma na Argentina –
fabril –, e outra nos Estados Unidos – escritório de vendas e armazém para distribuição. A
empresa tem certificação de qualidade ISO 9001, bem como está certificada pela norma ISO
14001, que trata da gestão ambiental, devido aos investimentos nessa área, nas últimas
décadas. A produção propriamente dita, de autopeças, iniciou em 1955, quando chegaram as
duas primeiras prensas da Itália. A aproximação com a Itália, segundo Frizzo (1997),
começou em 1953, quando o proprietário da empresa foi em busca de negociações com
fabricantes italianos de autopeças e constatou serem altos os investimentos para viabilizar a
produção. Mas, em Torino, a partir de uma revenda comercial de lonas de freios, conseguiu
contato com a empresa Fabbrica Italiana Nastri ed Anelli per Freni e Frizioni (FINAFF)74,
localizada em Ciriê, onde obteve licenciamento da mesma para produzir as autopeças. Assim,
72
A filmagem foi realizada pelo auditor fiscal da DRT/RS, membro do GIA, que a disponibilizou para fins de
estudo.
73
Nome também fictício.
74
A partir de investigação realizada com o auxílio de uma liderança antiamianto na Itália, Carmelo Mandosio,
constatou-se que a FINAFF não existe mais, foi declarada falida pelo tribunal de Torino em 10.12.92, com a
sentença nº 525, conforme declaração enviada por Carmelo, obtida junto à Câmara de Comércio, Artesanato e
Agricultura de Torino. Nos dados de identificação da empresa, consta que a mesma foi fundada em 01.11.24 e
fechada em 31.12.90. Não foi possível precisar o motivo da situação falimentar da empresa.
170
dois diretores da Freios S/A realizaram estágio na empresa italiana e assimilaram as técnicas
de elaboração de lonas de freio, adquirindo as duas primeiras máquinas.
Embora a utilização do mineral como matéria-prima acompanhe praticamente o início
das atividades da empresa, a preocupação com o seu uso por parte dos trabalhadores só
ocorreu no início da década de 8075 e se consolidou na década seguinte. A organização dos
trabalhadores transita entre a hegemonia de seu uso controlado e, depois, pelo seu total
banimento.
As perspectivas de resistência dos trabalhadores ocorreram em dois cenários distintos.
O primeiro, em meio à abertura democrática brasileira e ascensão dos movimentos sociais, em
especial dos trabalhadores brasileiros – a década de 80 –, e, o segundo, quando o movimento
sindical passou a enfrentar a crise do trabalho no Brasil. Nesse segundo período, os efeitos do
novo modelo econômico adotado na década de 90 repercutiram profundamente sobre a
ocupação brasileira. Segundo Pochmann (2001), o saldo negativo foi de 3,2 milhões de
empregos assalariados formais destituídos na economia brasileira, além do crescente
desemprego, os novos postos de trabalho caracterizavam-se pela precariedade das condições e
das relações de trabalho, e os salários médios reais representavam apenas dois terços do que
eram nos anos 80. No setor metal-mecânico de Caxias do Sul, essa realidade também se
manifestou, porém, com particularidades, já mencionadas, as quais se assemelham às de
milhares de trabalhadores brasileiros, conjugando insegurança e precariedade das relações de
trabalho através de uma severa rotatividade da força de trabalho.
75
Não se obtiveram informações da existência de mecanismos de proteção ocupacional antes desse período,
assim como de algum movimento por parte dos trabalhadores com esse objetivo.
171
Ao mesmo tempo, a realidade dos trabalhadores expostos, sofre mudanças que são
resultados justamente de um contexto propicio a transformações, mas que em seguida são
reprimidas por mecanismos que ameaçam o emprego. Entretanto, as dificuldades são
enfrentadas por novas formas de organização dos trabalhadores e que passa, mais
recentemente também pelo papel do Estado, na adoção de legislação social que proteja de fato
a saúde no trabalho.
3.5.1 – Em Busca da Proteção à Saúde – Baixando a Neblina, Controlando Riscos
Na década de 80, o movimento sindical brasileiro reascendeu sob novas formas de
mobilização, dentre elas, as greves gerais e as paralisações por categorias e empresas. Na
pauta, está a busca de melhores salários e condições de trabalho. Em Caxias do Sul, o
movimento operário/sindical foi intenso. O ano de 1985 é demonstrativo dessa nova fase do
movimento sindical, onde uma greve da categoria metalúrgica paralisou várias empresas,
dentre elas, três empresas do grupo empresarial vinculado à Freios S/A, onde 100% dos
trabalhadores cruzaram os braços por mais de 15 dias. Na pauta de reivindicações, estava o
pedido de reposição salarial frente à exorbitante inflação, mas também havia a exigência da
adoção de medidas de proteção da saúde no trabalho contra os riscos a que estavam
submetidos pela exposição ao amianto. Era o marco da ação coletiva dos trabalhadores desse
segmento, que passou a ser organizada e dirigida pelo sindicato da categoria, uma vez que a
comissão de greve da empresa tornou-se comissão de fábrica, que, por sua vez, ao esgotar a
estabilidade – negociada por seis meses –, concorreu à Comissão Interna de Acidentes de
Trabalho (CIPA), passando a dirigi-la e, assim, seus participantes obtiveram estabilidade por
172
mais um ano, o que viria a culminar com o ingresso do seu principal dirigente na diretoria do
Sindicato dos Metalúrgicos. A preocupação, no entanto, já fazia parte de alguns profissionais
da área de segurança e medicina do trabalho da empresa, que, com a inclusão de trabalhadores
de origem sindical, passaram a ter uma ação mais efetiva no que se refere ao uso controlado
do mineral.
Em seu depoimento Jorge Rodrigues, Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos por
três mandatos, de 1993 a 2002 – que iniciou sua trajetória sindical76 na Freios S/A –, relata
que participou inicialmente de duas comissões, a de greve e a de fábrica, e, após, também
passou a integrar a CIPA. Este evidencia a conduta do médico do trabalho, do Presidente da
CIPA e dos demais integrantes, que, na época, pautavam as reuniões com discussões sobre a
necessidade de a empresa adotar mecanismos de proteção aos trabalhadores. Registra que o
médico do trabalho buscava sensibilizar os trabalhadores para o uso do EPI, utilizando como
recurso visual um pulmão de cadáver com óbito por câncer de pulmão, para demostrar os
efeitos nocivos do amianto e a importância do uso de EPI, e também procurava convencer,
nesse mesmo sentido, os empregadores, entregando-lhes documentos, relatórios, etc.
Acredita-se que estava buscando a aplicação do Anexo 12, da NR15 da CLT, que data de
1978, a qual estipula uma série de medidas, já referenciadas. Esse mesmo profissional, que
exerceu por 14 anos suas funções como médico da empresa, relatou ter tomado conhecimento
sobre a nocividade através da especialização em medicina do trabalho na década de 70. Sua
demissão – a pedido –, ocorreu um ano após o movimento iniciado no interior da empresa.
76
Jorge Rodrigues é atual diretor do Sindicato e ingressou na empresa Freios S/A em 1981, na condição de
laboratorista-físico. Progressivamente, tomou conhecimento dos malefícios do mineral pelos colegas, técnicos
do setor de química da empresa onde atuava.
173
Em 1986, a OIT aprovou a Convenção nº 162 sobre o uso do amianto e as condições
de segurança. No Brasil, através do Ministério do Trabalho, passou-se a atuar mais
efetivamente sobre o uso do mineral, criando-se o GIA, em 1987, o que resultou em
mecanismos mais efetivos de fiscalização, bem como possibilitou que emergissem novos
estudos científicos comprovando sua nocividade.
Essas ações acerca da prevenção e da segurança no trabalho derivaram de um contexto
com características extremamente preocupantes, tais eram as condições de trabalho na época.
O amianto vinha sendo utilizado na empresa metalúrgica em estudo desde a década de 50. Em
depoimento, um trabalhador que ingressou na empresa em 1979, descreve que o ambiente de
trabalho, nesse período e até final da década de 80, “[...] era uma neblina só [...]”, fato que pode
ser visualizado através da filmagem disponível. Constatou-se que não havia nenhum
mecanismo de proteção, e, o mais alarmante, é que a exposição estava extremamente acima
do limite de tolerância, ou seja, havia 50 fibras por m³, quando o valor limite de exposição
(VLE), era de 2 fibras por m³, conforme determina o item 12 do Anexo 12/NR. A exposição
ocorria em todos os níveis do processo de trabalho da fábrica. Iniciava pelo recebimento da
matéria-prima, que ficava ao lado do refeitório da empresa; nesse momento, os sacos eram
abertos e colocados numa caçamba que os levava para a pesagem e, em seguida, para o
misturador, saindo para a prensa e, após, para a máquina de corte, para fazer o acabamento, na
seqüência, para a lixadeira e, depois, para a furadeira, onde o processo era concluído com a
embalagem do produto.
Os trabalhadores não usavam qualquer equipamento de produção individual, fato que
só começou a mudar quando passaram a tomar conhecimento de sua nocividade, mesmo
assim, apenas um número reduzido de trabalhadores. Inicialmente, também não havia sistema
174
de exaustão do ar, e as máquinas eram limpas com ar comprimido. As roupas usadas no
trabalho eram levadas para casa para serem lavadas. Parte dessa realidade começou a se
alterar quando houve a presença constante da fiscalização do Ministério do Trabalho.
A denúncia do sindicato da categoria junto à Delegacia Regional do Trabalho coincidiu
com o momento em que a mesma vinha fazendo inspeções nas empresas que usavam amianto,
fruto do trabalho do GIA. Assim, em 1991, ocorreram sucessivas inspeções junto à empresa,
devido ao descumprimento legal das medidas protecionistas e preventivas, resultando em
várias interdições, mesmo com a empresa, por vezes, parando por conta o trabalho, ao saber
da vinda do Ministério do Trabalho, segundo relato dos entrevistados. A primeira interdição
ocorreu na sacaria – entrada da matéria-prima – sendo que a empresa ficou praticamente
paralisada por 30 dias –,, em vista de não poder receber o mineral. O jornal Folha de Hoje
noticiou em 28 de dezembro de 1991, que
A Divisão de Relações de Trabalho do Ministério do Trabalho interditou há
15 dias um setor de uma das unidades da [...] e notificou a empresa para que
providencie melhorias para oferecer melhores condições de trabalho aos
funcionários. A interdição atingiu a abertura da sacaria de asbestos (material
fibroso utilizado na fabricação de lonas de freios) (Ministério do Trabalho
Interdita Setor da [...], Jornal Folha de Hoje, 1991).
Na seqüência, as máquinas de usinagem de presa foram interditadas, ou seja, nesses
locais, além de ocorrer concentração de fibras extremamente altas, não havia mecanismos de
proteção e exaustão, bem como a preocupação com a segurança no trabalho era precária.
Esses fatos obrigaram a empresa a fazer um projeto visando adequar-se às normas legais de
utilização do amianto e às condições de segurança. Assim, passaram a ser instalados
exaustores, e os trabalhadores foram conscientizados da importância do uso do EPI, em que
pese o fato de esse trabalho já estar sendo feito pela CIPA, em particular pelo médico do
175
trabalho. Porém, a desconfortável máscara não era utilizada por todos, além de a jornada de
trabalho ser, por vezes, prolongada. Embora as roupas embora fossem lavadas pela empresa, a
partir de então, não havia banho no local de trabalho, logo, os trabalhadores dirigiam-se para
suas casas com o corpo impregnado pelo pó.
3.5.2 – Da Resistência pelo Uso Controlado à Luta pelo Banimento: A Ação Sindical sob
Nova Ótica
Na década de 90, o problema ainda estava longe de acabar. Nos primeiros cinco anos,
buscou-se esgotar a pauta de reivindicações, que incluía: a substituição das máscaras por
outras anatomicamente mais leves, banheiros adequados, lavagem da roupa, dentre outros.
Porém, em 1995, a ótica começa a mudar. Nesse período, a Freios S/A transferiu a empresa
Flexa S/A para a Cidade de Caxias do Sul. Esta última havia sido comprada pelo grupo
caxiense, ainda em 199177. A transferência ocorreu logo após o movimento pelo banimento do
amianto em São Paulo. O Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, que protagonizara a ação
naquele estado, denunciou para o sindicato local a realidade vivida pelos trabalhadores e
entregou-lhe um dossiê, assim como encaminhou cópia para a Promotoria Pública.
A instalação da empresa de São Paulo, portanto, ocorreu em meio à pressão sindical: o
Sindicato estava mais engajado no movimento nacional pela proteção aos trabalhadores
expostos ao amianto e começou a lutar pelo banimento juntamente com as principais
entidades e personalidades que organizavam o movimento em nível nacional e que, no mesmo
ano, fundaram a ABREA. A ação do sindicato dirigiu-se, então, para que a empresa local
77
A Freios S/A justificou a compra e a transferência com o propósito de evitar que a Flexa S/A fosse vendida a
uma empresa estrangeira do mesmo ramo.
176
deixasse de utilizar o amianto como matéria-prima, fazendo diversas tratativas e exigindo a
sua substituição imediata. Como poder de pressão, houve o término da licença concedida pelo
Ministério do Trabalho para que a empresa cumprisse as medidas relativas ao uso controlado,
que ainda sequer haviam sido concluídas. O sindicato propôs um acordo por escrito pelo
banimento, a exemplo do quê havia sido assinado em São Paulo; a empresa, por sua vez,
propõe um novo acordo sobre o uso controlado. Ambos não foram assinados. A empresa
pressionou ainda mais e ameaçou mudar-se para a Argentina, onde já possuía uma filial. As
negociações avançaram, e ela permaneceu. Há de se destacar que a empresa já fabricava lonas
e pastilhas de freios sem amianto desde 1980, com fins específicos de exportação para países
que proibiam seu uso e comercialização (Encarte Especial – Freios S/A 50 Anos, Jornal
Pioneiro, 2004).
Os anos 90 também se caracterizaram pela demissão crescente dos funcionários, sendo
que, de 1990 até 2002, 2.400 funcionários foram demitidos78. Na opinião dos dirigentes
sindicais, essa atitude se constituiu numa estratégia da empresa, que alegava estar em crise,
para diminuir o tempo de exposição. Assim, a rotatividade tornou-se um mecanismo para
mascarar o nexo causal das doenças profissionais (MINAYO; GOMES, 1997), ou, ainda,
visto de outra forma, como bem lembra um entrevistado, “[...] o trabalhador ajuda a melhorar a
produtividade e após é descartado”. Portanto, a rotatividade e a produtividade vindas das
mudanças nos processos de trabalho, além de contribuírem para o rebaixamento da massa
salarial dos trabalhadores, conforme já mencionado, ampliaram a insegurança no trabalho e
contribuíram para dissimular o nexo causal de possíveis doenças profissionais.
78
Informações obtidas junto ao STIMMME.
177
Chamaram atenção, nos depoimentos, três aspectos que destacam a noção de agravo da
saúde do trabalhador: o primeiro refere-se aos diferentes agentes nocivos à saúde durante o
exercício do trabalho concomitantemente ao amianto, como o carvão mineral, as vibras de
vidros79, além do ruído; o segundo relaciona-se à jornada de trabalho, pois várias referências
foram feitas sobre o seu prolongamento – a empresa, que opera em quatro turnos de oito
horas, constantemente solicitava horas-extras aos seus empregados –, e, o terceiro, como
conseqüência deste e pelas condições de trabalho, diz respeito aos trabalhadores, que
acabavam levando consigo alimentos que ingeriam junto ao posto de trabalho. Contudo, é
importante destacar também que o refeitório da empresa ficava junto ao setor de sacaria, o
primeiro a ser interditado pelo Ministério do Trabalho, e, assim, ao se alimentarem,
permaneciam sem o EPI e expostos por períodos prolongados.
A empresa, nesse período, combinava a utilização do amianto e das fibras sintéticas
alternativas como matéria-prima nos seus produtos. Com isso, crescia no mercado interno e
no exterior. A mesma sempre fez a defesa do uso do amianto com base em informações norte-americanas que mantinham a decisão de não banir o mineral. Também se baseava em
pesquisa sobre os efeitos à saúde dos trabalhadores em contato com fibras sintéticas, pois
havia tomado conhecimento de que as mesmas poderiam ser fator de risco de câncer. Essa
informação, embora não confirmada, era considerada positiva para que o amianto
permanecesse como matéria-prima na fabricação das autopeças.
79
Já utilizadas para os produtos exportados.
178
3.5.3 – O Estágio Atual: O Banimento e o “Desaparecimento” dos Riscos
A partir de agosto de 2002, a empresa substituiu definitivamente o amianto, em
decorrência da legislação estadual já mencionada. A passagem para o estágio atual carrega
consigo todo o passado de riscos e agravos à saúde do trabalhador. No entanto, a primeira
constatação feita pela pesquisa empírica foi a de que essa transposição não se efetivou de
maneira imediata na compreensão dos trabalhadores e da população em geral. Isso se percebe
em duas formas diferentes de manifestação.
Primeiro, acabou o uso do amianto, a conquista do banimento, ao mesmo tempo em
que se constitui numa medida única para garantir a saúde (futura) dos trabalhadores, contribui
para que se faça uma representação equivocada da mesma no seio dos trabalhadores e da
sociedade. Segundo, a matéria-prima que substituiu definitivamente o amianto também é
considerada nociva – essa preocupação surge de imediato. Os depoimentos registram que os
atuais trabalhadores consideram as fibras de vidro – principal substituto –, de maior
nocividade que o amianto. Alegam ter mais pó, bem como a pele acaba machucada pelo
processo alérgico (aparentando picada de mosquito), e desacreditam por completo da opinião
do médico do trabalho, que informou aos mesmos que a sua absorção não é nociva para o
organismo80.
Não só as duas situações obscurecem a realidade pós-exposição ao amianto, como a
mais grave de todas é o percentual de trabalhadores que vem realizando o exame pós-demissional. Ações da Vigilância em Saúde do Estado do Rio Grande do Sul constataram
que, aproximadamente, 30% dos trabalhadores que saíram da empresa de 1990, para cá,
80
Importante ressaltar que essa preocupação dos trabalhadores faz sentido, uma vez que pouco ainda se conhece
sobre os efeitos das fibras de substituição do amianto sobre a saúde.
179
fazem acompanhamento através dos exames indicados, ou seja, em média 70% não fazem
qualquer controle de risco. A empresa, por sua vez, atribui como causa do baixo percentual de
controle o não-comparecimento do trabalhador, quando chamado para a realização dos
exames periódicos. Nesse sentido, os dirigentes sindicais que atuam na sede da entidade
registram que nunca foram chamados para a realização de exames, o que corre há,
aproximadamente, 10 anos, bem como desconhecem que essa rotina esteja em vigor. Ao
contrário, um dos depoentes declarou ter tomado a iniciativa de ir à empresa para os exames
de controle. Já em outra entrevista, feita com um trabalhador aposentado, a alegação foi de
que ele considera sem sentido comparecer à empresa para ser examinado, uma vez que não
tem e não terá acesso aos resultados dos exames, assim, opta por fazê-los por iniciativa
própria (se é que de fato o faz). Mas, através de investigação, constatou-se que a rotina
estabelecida para a realização dos exames periódicos pós-demissionais ocorre por meio,
apenas, do agendamento da primeira avaliação; assim, a não-presença no primeiro exame
implica a não-realização dos subseqüentes.
O ambulatório do Sindicato possui uma médica do trabalho, que tem atuado de forma
cautelosa no atendimento dos atuais trabalhadores e dos que tiveram passagem por empresas
que utilizam o amianto. Os que lá procuram o serviço são investigados, e os casos suspeitos,
acompanhados. Essa profissional, inclusive, foi capacitada pela SES para realizar
interpretação radiológica, considerando as doenças causadas pelo amianto, conjuntamente
com um médico do Sistema Único de Saúde do Município.
Os dirigentes sindicais registram em seus depoimentos a constatação de uma crescente
incidência de câncer e de óbitos em vários colegas. No entanto, as informações são dispersas,
mas referem-se ao fato de ser comum ouvir falar de situações de colegas que adoecem ou que
180
vão a óbito. Sem conseguir precisar essa informação, foi solicitado aos trabalhadores a
indicação de nomes de colegas que fossem de seu conhecimento em que o óbito se dera em
decorrência de câncer. O retorno veio com a indicação de quatro nomes: dois por óbito, e dois
por patologia associada.
A pesquisa prosseguiu a partir dos indícios trazidos pelos depoentes, bem como se
redimensionou a investigação em busca de novos suspeitos. Fez-se uma busca junto ao
cadastro de associados do Sindicato com a participação de um dirigente, que identificou,
através de nomes e fotografias, trabalhadores com suspeita de serem portadores de patologias
relacionadas ao amianto. Buscou-se também junto ao departamento jurídico do Sindicato.
Dessa maneira, criaram-se condições para uma procura ativa de possíveis trabalhadores
vitimados, a qual ocorreu a partir da constituição de uma rede estabelecida com todos os
envolvidos na pesquisa realizada até a presente data.
Na busca da história dos trabalhadores que vão sendo identificados pela rede, iniciou-se uma nova etapa da pesquisa de campo. Esta tem o propósito de ultrapassar a história
recomposta para chegar à história viva, nos depoimentos dos familiares das vítimas e dos
trabalhadores doentes.
4 – RESIGNIFICANDO O PRESENTE: UMA APROXIMAÇÃO COM OS OCULTOS SUJEITOS DA HISTÓRIA
Talvez a principal e mais difícil tarefa do pesquisador seja a de transformar o processo
de pesquisa em um movimento real e dinâmico em que a verdade que tenta desvendar possa
emergir de forma viva após concluída a investigação. Esse movimento do real é construído na
sua concretude pela voz dos sujeitos que protagonizam a vivência de uma realidade silenciada
ao longo da história e que se esconde na atualidade em meio a uma teia de relações sociais
determinadas e reproduzidas pelo poder político e econômico que conforma as estruturas
social e de produção.
Os sujeitos que adoecem e morrem face à exposição ao amianto nos seus processos de
trabalho compartilham histórias de vida que legitimam o binômio saúde-doença desencadeado
pelo modo de produção capitalista e pela sua forma de organizar o trabalho e as condições em
que este é realizado. Mas esse antagonismo é resultante, sobretudo, de um processo social
invisivelmente construído. A aproximação com esses sujeitos permite ressignificar o presente
de uma história repleta de contradições e desprovida de uma visibilidade socialmente
necessária.
Dessa forma, a pesquisa identificou sujeitos que estavam hermeticamente ocultos
nesse processo que conjuga passado e presente sincronizadamente. Assim, a identificação
do que já se denominou “ângulos mortos” foi o que possibilitou o trânsito por diferentes
182
caminhos, buscando romper com os mecanismos sociais que vêm ocultando os processos de
adoecimento e morte relacionados ao trabalho, os quais foram descortinados no percurso da
pesquisa e podem ser assim sistematizados:
a) a ausência de estatísticas de doenças profissionais com as respectivas patologias
pelas diferentes instâncias, que envolvem a Previdência Social, o Ministério do
Trabalho, o Ministério da Saúde e as Secretarias de Saúde, em particular as doenças
relacionadas à exposição ao amianto;
b) o não-reconhecimento das doenças profissionais, principalmente das que se
manifestam após longo período de latência, quando, conseqüentemente, o
trabalhador não está mais exposto ao agente patogênico;
c) a dispersão das informações e a ausência de estatísticas, o que fomenta a descrença
sobre o real risco de adoecimento, pelo lado do empregador, e da inexistência de
doenças associadas, pelos órgãos governamentais. Por sua vez, os trabalhadores têm
a crença de que vários óbitos e doenças ocorrem em conseqüência da exposição ao
amianto, porém, essa associação é feita em relação ao período temporal de
exposição, ou seja, durante a utilização no processo produtivo;
d) a ampliação do nível de desinformação sobre os reais danos à saúde do trabalhador,
no período atual, pós-banimento, no Rio Grande do Sul;
e) as recentes ações de vigilância da saúde da população exposta, sem, ainda, o
monitoramento necessário.
183
O rigor investigativo no trabalho de campo esteve atento a todas as possibilidades,
fazendo-se acompanhar de uma “lupa” para identificar situações de doença e morte
desencadeadas por esse agente, porém não reconhecidas, pelas instâncias “legais” como riscos
ocupacionais dos trabalhadores que se encontraram expostos ao amianto. Com base no
fundamento teórico-metodológico amplamente referenciado nos capítulos 2 e 3 desta tese,
construíram-se estratégias de investigação sobre a população em estudo, partindo-se de
fenômenos mais amplos, como o resgate histórico, que levou a se considerar a probabilidade
de existirem situações representativas dele e desencadeou a busca ativa de trabalhadores
portadores de doenças ou que tivessem sofrido óbito em decorrência da exposição ao amianto,
junto aos do setor automotivo, com a investigação direcionada para a maior empresa de
autopeças do Brasil.
Ressalva-se, no entanto, que, no transcorrer do processo de investigação, se optou por
uma ruptura com as estatísticas oficiais, uma vez que estas, ao mesmo tempo em que não
permitiam identificar situações de adoecimento e morte relacionadas ao amianto, reafirmavam
a invisibilidade social desse fenômeno. Assim, cada nova etapa, significava uma
recomposição do quadro de possíveis sujeitos portadores de patologias desencadeada pelo
amianto, o que permitiu avançar na sua identificação, antes oculta e inexistente.
Há que se considerar, entretanto, que o percurso empreendido para se chegar aos
sujeitos foi extremamente difícil, e suas vias eram campos fechados e esquecidos. A opção foi
trilhá-las, buscando não apenas identificar os trabalhadores, mas também compreender o que
a ausência de patologias relacionadas poderia representar. As etapas de pesquisa que se
sucederam, mais especificamente, a da descoberta dos sujeitos, apresentaram dois diferentes
movimentos, os quais se retomam a seguir, incorporando um terceiro movimento,
184
denominado inclusivo, por representar a identificação dos sujeitos que compuseram a amostra
da pesquisa na sua fase final.
Movimento Inicial
- os depoimentos dos dirigentes sindicais e de profissionais da área que
possibilitaram a reconstrução histórica;
- pesquisa junto à Previdência Social dos benefícios por CID;
- busca ativa junto a familiares das vítimas previamente identificadas e a
profissionais das áreas médica e jurídica ligados à categoria metalúrgica;
- pesquisa junto aos trabalhadores metalúrgicos na condição de aposentados.
Movimento Intermediário
- contato com os familiares dos trabalhadores identificados pelos dirigentes
sindicais;
- consulta a mais de 80 benefícios previdenciários, a partir do CID relacionado e do
respectivo Cadastro Nacional de Inscrição Social (CNIS) do trabalhador
identificado, buscando a identificação dos vínculos profissionais;
- formação de uma rede de informações com os familiares e os profissionais
envolvidos;
- identificação da causa mortis dos associados aposentados.
Movimento Inclusivo
- aglutinação e classificação de situações similares de trabalhadores expostos;
- seleção e amostragem dos sujeitos;
- localização dos trabalhadores e/ou familiares;
185
- entrevistas/narrativas e depoimentos;
- retroalimentação da rede, com identificação de novos sujeitos que emergiram dos
depoimentos dos sujeitos entrevistados.
A amostra e a seleção dos sujeitos foram, portanto, sendo construídas a partir de uma
progressividade advinda da identificação de trabalhadores expostos ao amianto, a partir da
modalidade de classificação, apresentadas no QUADRO 9 com os respectivos sujeitos
identificados.
QUADRO 9
Classificação das situações e/ou agravos relacionados à exposição ao amianto que geraram a
amostra representativa da pesquisa de campo
CLASSIFICAÇÃO
SUJEITOS E CASOS IDENTIFICADOS
A – Apresentavam causa morti Quatro óbitos assim distribuídos: dois
suspeita
de
ter
sido cânceres de pulmão, um câncer de estômago e
ocasionada pelo amianto.
um melanoma com metástase no pulmão
(motivo pelo qual ocorreu a relação com o
amianto).
B – Apresentavam causa morti
desconhecida.
Três óbitos de associados aposentados, sendo
identificadas as seguintes causas mortis: uma
neoplasia de estômago e dois cânceres de
pulmão.
ENTREVISTADOS
Três
entrevistas
e/ou
narrativas: uma descartada
pelo CID não associado e
uma não realizada por não
comparecimento
ao
agendamento da entrevista.
Não foi possível localizar
os familiares, portanto,
nenhuma entrevista foi
realizada
nessa
modalidade.
Duas entrevistas/narrativa
e dois depoimentos.
C – Portadores de patologias
Seis trabalhadores que buscaram a assessoria
suspeitas de relação com o
jurídica do Sindicato da categoria.
amianto na condição de
empregados ou na de
aposentados.
D – Portadores de patologias Um caso de trabalhador encaminhado para Uma entrevista/narrativa.
incapacitantes de causas atendimento ambulatorial no Sindicato e, após
diversas em processo de processo de investigação, foi constatado se
investigação no ambulatório tratar de asbestose.
de saúde do Sindicato dos
Trabalhadores Metalúrgicos
de Caxias do Sul.
E – Trabalhadores em auxílio- Nesse segmento, não foi possível identificar –
-doença previdenciário por nenhuma situação que pudesse compor a
CID 10 relacionado à amostragem.
exposição do amianto.
F – Demais trabalhadores em Dois trabalhadores em auxílio-doença com –
relacionadas
a
doenças
auxílio-doença previdenciário patologias
com suspeita de patologia osteomusculares e, portanto, não incluídos na
desencadeada pelo amianto.
amostragem.
FONTE: Quadro organizado pela pesquisadora.
186
As seis classificações representam, de forma didática, o resultado da busca ativa que
ocorreu a partir de um cruzamento das informações obtidas nos três movimentos acima
descritos e que permitiu se construir a amostragem por situações diferenciadas, tal qual foi
possível aglutinar. Contudo, é imprescindível destacar-se novamente que só foi possível
identificar trabalhadores capazes de compor a amostragem pretendida no segundo momento
da pesquisa empírica, ou seja, após a reconstrução histórica e a retomada das informações
existentes, buscando-se sua ampliação junto aos sujeitos e às instituições anteriomente
denominadas, tendo como contribuição fundamental a formação de uma rede com
trabalhadores e seus familiares. Registra-se também que se tomou conhecimento da existência
de uma listagem de trabalhadores com suspeita de patologia associada ao amianto que se
encontravam em atividade na empresa Freios S/A, em 1990. A referida lista acompanhava a
denúncia junto à DRT, a qual acabou resultando na interdição da empresa, conforme
mencionado no capítulo anterior. No entanto, após diversas tentativas, não foi possível
localizá-la, nem junto ao arquivo do Sindicato, nem nos arquivos da DRT. A mesma, com
certeza, poderia vir a constituir-se em importante e potencial fonte de pesquisa para integrar a
amostra.
Concluída essa fase, foi possível compor definitivamente a amostra com os
trabalhadores que tiveram óbitos e doenças causados pela excessiva exposição ao mineral. A
mesma é representativa de uma população que vivenciou um processo histórico permeado por
circunstâncias intrinsecamente ligadas, em outras palavras, a amostra é parte de um fenômeno
mais amplo e agrega valor explicativo sobre a população investigada.
A amostra representativa, portanto, foi composta por cinco casos de diferentes
situações de agravo, totalizando cinco entrevistas e/ou narrativas, sendo dois familiares e três
187
trabalhadores, e mais dois depoimentos de trabalhadores classificados no item C do QUADRO
9, ou seja, também portadores de patologia suspeita. Destes, um tinha doença associada ao
amianto, o outro não, porém, ambos optaram por não gravar entrevista, mas concordaram em
prestar depoimento, sendo que suas declarações são de extrema relevância para os resultados
da pesquisa. No QUADRO 10, apresenta-se uma síntese identificando os sujeitos que
concederam as entrevistas, os quais assinaram o Termo de Consentimento Pós-Informação
(ANEXO 1), as quais foram gravadas e transcritas.
QUADRO 10
Amostra representativa dos trabalhadores com doenças e óbitos relacionados ao amianto
IDADE
51 anos
TEMPO DE
EXPOSIÇÃO
26 anos
80 anos
29 anos
77 anos
77 anos
59 anos
22 anos
25 anos
15 anos
AGRAVO/PATOLOGIA
Óbito por
neoplasia de estômago
Óbito por
neoplasia de pulmão
Asbestose
Asbestose
Doença crônica das
vias aéreas
(suspeita de asbestose)
SITUAÇÃO OCUPACIONAL
DEPOENTE
Aposentado em atividade Esposa
na mesma empresa.
Aposentado por invalidez
Esposa
Aposentado
Trabalhador
Aposentado
Trabalhador
Aposentada
após Trabalhadora
contribuição previdenciária
individual
FONTE: Quadro organizado pela pesquisadora.
As entrevistas realizadas81 seguiram unidades de análise predefinidas, porém, com
seqüências diferenciadas durante a sua realização. A base que compõe as entrevistas, através
da história oral, assentou-se no tripé de investigação a seguir apresentado.
81
Todos os entrevistados assinaram o Termo de Compromisso pós-informação, conforme texto no ANEXO 1.
188
FIGURA 3
Tripé de investigação
Relação entre exposição do amianto no processo de trabalho e a saúde dos trabalhadores
Situação/inserção atual dos
trabalhadores identificados
e movimento após o
adoecimento e/ou morte
Reconhecimento do
adoecimento e/ou morte
e seguridade social.
FONTE: Figura organizada pela pesquisadora.
Ao privilegiar categorias de análise que envolvem trabalho, morti-morbidade e
seguridade social, buscou-se chegar às expressões decorrentes relacionadas à proteção social
desses trabalhadores. Assim, foi possível compor três eixos de investigação a partir de
questões abertas previamente incluídas no roteiro das entrevistas.
Eixo 1: A relação entre exposição ao amianto e a saúde dos trabalhadores
a) Trajetória no trabalho: início da vida profissional, tempo na atividade, sentido dado
ao trabalho;
b) Vida no trabalho: condições de trabalho, processo produtivo, turno e jornada de
trabalho, mudanças de função, intensidade e produtividade, desgaste físico e
mental, normas disciplinares e controle da produção, tempo de exposição, etc.;
c) Vida fora do trabalho: família, lazer, etc.
Eixo 2: Manifestação da doença e reconhecimento:
a) Sobre a doença: em que momento a doença surgiu na vida; identificação e relação
com o trabalho; outras doenças associadas e/ou secundárias;
189
b) Sobre a investigação, o diagnóstico e o tratamento: exames periódicos e o pós-demissional; espécie do benefício previdenciário; vida e sobrevida após a
confirmação do diagnóstico;
c) Identificação de outros colegas de trabalho que adoeceram e/ou faleceram;
d) Que conhecimentos e/ou informações dispunha sobre a exposição ao mineral.
Eixo 3- Situação dos trabalhadores na atualidade
a) Inserção após adoecimento: trabalho, aposentadoria;
b) Movimento realizado para a obtenção de direitos relacionados;
c) Demais informações relevantes.
Deste conjunto de questões, emergiram histórias diferentes e, ao mesmo tempo,
muito parecidas, contatadas ora pelos próprios trabalhadores, ora por familiares (esposas e
viúvas). São histórias de pessoas diferentes, porém de vivência comum no trabalho, que
permeia toda sua vida, e que raramente se enxergam como comuns. Isolados pelos
mecanismos sociais de invisibilidade, compartilham uma mesma realidade compostas por
partes – a história de cada um dos sujeitos. Estas possuem uma conexão com o todo, o que,
para Kosik, significa uma mediação com o todo estruturado: “[...] os fatos isolados são
abstrações, são momentos artificiosamente separados do todo, os quais só quando inseridos no todo
correspondente adquirem verdade e concreticidade” (KOSIK, 1986, p. 41). Buscando compor essa
realidade atual, dialeticamente estruturada, trazem-se os resultados das falas, dos
depoimentos, do sentido, do vivido pelos sujeitos que participaram das entrevistas, com o
olhar de quem não apenas viveu, mas ainda convive muito próximo com o “inimigo oculto”.
Visando preservar a identidade dos entrevistados, adota-se como referência iniciais de nomes
190
fictícios, as quais não foram colocadas ao lado das situações registradas no quadro que
compõe a amostra da entrevista pelo mesmo motivo. Portanto, as iniciais serão apresentadas
no decorrer da inclusão das narrativas.
Apresentam-se os resultados da pesquisa, partindo-se das condições de trabalho a
que os operários estavam submetidos, demonstrando, logo após, que existe um pacto de
silêncio em torno da relação causal amianto e doença ou morte. Em seguida, evidencia-se
como vem ocorrendo a ruptura com a ordem estabelecida e o comportamento das vítimas
frente à mesma. Em meio às narrativas, a emoção, e por que não dizer perturbação, em
relação ao tema doença e morte vem culminar com a certeza dos sujeitos de poderem
contribuir com o presente ressignificando-o.
4.1– O ESPAÇO FABRIL: CONDIÇÕES E MEIOS DE PRODUÇÃO
De maneira imprescindível, a aproximação com a história de vida dos trabalhadores
entrevistados conduziu a um “détour” sobre o espaço fabril e as condições a que estes
estavam submetidos no exercício do seu trabalho. Imagens e representações são produzidas a
partir dos depoimentos e das narrativas que equivalem às descrições realizadas no capítulo
anterior desta tese, onde foram evidenciadas as condições de trabalho nas décadas de 80 e 90,
bem como a transição ocorrida na ação sindical, que iniciou na década de 80, buscando a
proteção da saúde dos trabalhadores expostos através do banimento do mineral, após ampliar
a compreensão sobre a irreversibilidade dos danos sobre a saúde e a falácia do uso controlado.
191
Aqui, as falas dos trabalhadores ampliam o significado dos reais condicionantes que
incidem sobre o binômio saúde-doença desencadeado pelo processo de trabalho e, dessa
forma, acrescentam uma reflexão a mais: qual foi a contribuição e/ou participação da
organização fordista/taylorista de trabalho e, após, do modelo toyotista, sobre as condições de
trabalho na indústria, em especial sobre o trabalho insalubre, periculoso e intenso, nas últimas
cinco décadas? A pertinência dessa interrogação busca demonstrar que o paradigma que
engendrou o trabalho no Brasil esteve de costas para a saúde do trabalhador, tornando-o mais
uma peça de engrenagem do processo produtivo, o qual vem sendo reproduzido pelo modelo
atual. Essas formas de gerenciamento, na verdade, se constituem, indubitavelmente, como
uma forma de controle do trabalho, respondendo às exigências da produtividade do capital,
conforme se pode confirmar ao se aproximar das vivências narradas.
Em todas as histórias, identifica-se que os trabalhadores conviviam com condições de
trabalho perversamente contrárias a sua saúde, sem as mínimas precauções. Os riscos não
eram apenas socialmente aceitos, mas também ignorados, conforme se pode observar na
seqüência de depoimentos apresentados. As entrevistas são reveladoras de que o trabalho,
fruto de uma necessidade material e social, ocorria em meio a condições que não apenas
negligenciavam a integridade física dos trabalhadores, mas comprometiam a saúde mental,
pois a preocupação com o risco de adoecer ou de se acidentar era uma constante, os quais
eram potencializados pelo conhecimento dos perigos da exposição e dos demais agentes
insalubres.
Pode-se inferir que essa realidade que iniciou para os mesmos no final da década de 60
permaneceu sem muitas alterações até o final da de 90. Por todo o período, diferentes agentes
atingiram a saúde do trabalhador: a poeira do amianto e suas fibras vistas a olho nu, as fibras
192
de vidro (substitutivas ao amianto), que “picam a pele”, o ruído, dentre outros. Assim,
contextualiza-se a década do acontecimento referido, ao lado dos depoimentos dos
trabalhadores.
“[...] naquela época, tinha poeira, que nem aquelas fogueiras [...]” (E.V., década de 70).
“[...] ultimamente, tava puxado para ele, pois voltava para casa lavado do óleo [...]“Tinha pó e
óleo, e todos os componentes químicos juntos, ele tinha que entrar dentro das máquinas [...] aí vinha o
banho de óleo e não tinha o que fazer” (T.R., final de década de 90).
“Quando entrava no setor [....] e através dos raios de sol, tua via as fibras de amianto [....] tinha
que escapar” (P.R., década de 80).
“Não tinha aquela coisa que puxava o amianto, nos varria e botava no saco de lixo, era mais
que limpar, tinha a furadeira que soltava o pó, que ficava alto assim [sinalizando a altura de
aproximadamente 20cm]” (D.T., década de 80).
“A pele ficava toda machucada, parecia ‘picadas’, por causa das fibras de vidro” (E.V., início
da década de 90).
“Ele era um pouco surdo” (T.R., década de 90).
“[...] este aí já faz tempo” (E.V., referindo-se ao questionamento da pesquisadora sobre o
prótese auditiva do entrevistado, 2004).
193
Verifica-se que a combinação de diferentes agentes insalubres tornava as condições de
trabalho precárias, ao mesmo tempo em que os trabalhadores se viam obrigados a submeter-se
as mesmas, as quais foram sendo compensadas por ganhos de insalubridade, conquistados
pelos próprios trabalhadores.
E.V. relata que, devido ao pó que era excessivo “[...] todos começaram a se queixar a aí
viemos no sindicato. Resolveram mandar um médico fazer exame para ver como era, e viu que tinha
que dar insalubridade para nós”. No entanto, o que impressiona é que a mesma só foi concedida
aos que buscaram o sindicato, não se estendendo aos demais trabalhadores, os quais tiveram
que buscar individualmente esse direito (década de 80). Impressiona também o fato de que,
indistintamente, todos os entrevistados tiveram perda auditiva, demonstrando que, por um
lado, a concessão do adicional mascarou a adoção de medidas protetoras dando sustentação às
condições que geraram o dano, e, por outro, produziu uma legião de trabalhadores
parcialmente surdos.
Retomando os aspectos relativos às condições de trabalho relacionadas à exposição ao
amianto, constata-se a falta de tempo para o banho na empresa e, igualmente, a falta dos
vestiários, que deveriam ser construídos com a unidade de banho entre ambos, para
justamente poder ocorrer a troca da vestimenta, lembrando que essa situação compunha o rol
de irregularidades encaminhada para a DRT na época. O agravante na situação era o horário
de saída dos ônibus que ocorria ao término do expediente, sem dar tempo para os
trabalhadores se banharem, o que poderia também ser solucionado com a antecipação do
término da jornada de trabalho. Conforme aparece no depoimento que segue e de acordo o
advogado que elaborou a denúncia na época, por diversas vezes havia sido solicitado à
empresa a alteração do horário dos ônibus, para evitar que o banho fosse feito nas próprias
194
residências dos trabalhadores – “[...] ele vinha todo sujo de pó na pele, só trocava a roupa, mas
tomava banho em casa, não dava tempo, devido o horário do ônibus”.
Essa situação não se alterava quando da necessidade do prolongamento da jornada de
trabalho, uma vez que com exceção de um entrevistado, todos declararam fazer horas-extras,
a qual, ao permitir a ampliação da renda, multiplicava o desgate físico. Como bem lembra a
viúva de um dos trabalhadores, com cinco filhos, “[...] ele saia às quatro horas da manhã, levava
uma garrafa de café preto e um pedaço de pão, pra comer de meio-dia, fazer horas-extras e pagar as
dívidas”. E a outra entrevistada declara: “[...] trabalhava à noite, trabalhava pra cuidar dos filhos
pequenos, quatro filhos, era viúva [...] fazia muito serão”
Porém, em outra narrativa, as horas extraordinárias estavam relacionadas a reuniões,
que, estima-se, faziam parte dos sistemas de qualidade já no novo modelo produtivo.
[...] eu reclamei muito destas horas-extras, pois meu marido vinha para casa
às 7 horas da manhã, chegava em casa, tomava banho, tomava café, ia
dormir, ao meio-dia, ele tinha que levantar para ir às reuniões, e a maioria
das horas não recebeu as horas extras (T.R., 2000).
Contextualizando essa realidade, percebe-se que o processo de trabalho já gerenciado
pelo modelo toyotista, além de trazer novas exigências, impôs mecanismos de pressão e
cooptação dos trabalhadores. Como bem coloca Harnecker, “[...] as transformações técnicas têm
como correlatas a segmentação e a desintegração da classe operária” (HARNECKER, 2000, p. 147) e
acrescenta, citando Gorz (1995) “[...] ganhou-se uma elite para colaboração do capital” (GORZ
apud HARNECKER, 2000, p. 147). Para a autora, essa elite está submetida a grandes tensões,
exemplificando através do estudo realizado por Sassen (in HARNECKER, 1992), que afirma
que muitos trabalhadores japoneses sofrem de fadiga crônica e de doenças vinculadas à
195
atividade laboral, sendo que, desde 1989, a mortalidade atingiu uma média de 10.000
trabalhadores/ano no Japão por hemorragias cerebrais causadas por tensão no trabalho e por
horários de trabalhos, excessivamente prolongados.
É oportuno agregar-se aqui o depoimento de um trabalhador – P.R. –, que suspeitava
ser portador de doença relacionada ao amianto, mas não confirmada. O fato estava associado
às fortes tensões por que passou ao realizar trabalhos com novas responsabilidades. P.R.
afirma que “[...] ficava sem dormir à noite de preocupação, [...] sentia falta de ar e o coração
disparava”, sintomas que o levaram a acreditar que a doença estaria associada ao amianto, mas
complementa “[...] chegaram à conclusão que era muita preocupação”. Esse mesmo trabalhador
relata que, ao voltar para suas antigas funções, a cobrança se dava em outro nível, ou seja,
compartilhava com a chefia a responsabilidade de aumentar a produtividade: “O chefe voltava
da reunião dele e me chamava na salinha e dizia, a máquina tal tem que produzir tantas peças por dia,
e eu não tenho ninguém para te ajudar”.
Assim, o entrelaçamento dos diferentes fatores de agravo sobre a saúde dos
trabalhadores assinala as variações ocorridas nos processos produtivos, as quais convergem
para a lacuna entre saúde e trabalho, ampliando o leque de doenças desencadeadas a partir do
segundo. Esta pesquisa, ao se direcionar às patologias relacionadas à exposição ao amianto,
tem demonstrado com singularidade, mas de maneira exemplar, o retrato de uma era que não
se esgota, mas que se transforma, trazendo novos desafios e, por conseguinte, a necessidade
de novas formas de enfrentamento das diferentes manifestações sobre a saúde do trabalhador.
196
4.2 – A RELAÇÃO AMIANTO, DOENÇA E MORTE: O NEXO SILENCIADO
A primeira impressão que se obtém ao se aproximar do universo de histórias sobre
doença e morte associadas à exposição ao amianto é de que existe um pacto de silêncio que
circunda todas as instâncias por onde passaram ou passarão as vítimas. Como se numa redoma
de vidro estivessem aprisionados e responsabilizados pela manifestação da doença, que acaba
sendo concebida, conforme Machado e Minayo-Gomez (1995), em decorrência da ignorância
e da negligência dos próprios trabalhadores, o que caracteriza uma dupla penalização.
Conclui-se que a relação entre adoecimento e morte com o agente amianto é, na
verdade, silenciada, ou seja, não há nexo entre ambos, até que se prove o contrário. Porém, a
prova nem sempre é possível, dadas as circunstâncias em que a mesma se manifesta – lenta,
progressivamente e, acima de tudo, após a exposição –, e a dificuldade de realização de
diagnóstico precoce e preciso; dentre outras. Assim, o ônus da prova é da vítima, que, na
maioria das vezes, não só não é ouvida, como não a detém a priori.
Porém, ao fazer a análise de todas as histórias de adoecimento e morte, constata-se a
plena conexão entre a atividade exercida e a doença diagnosticada, sendo esta resultante de
condições de trabalho que levaram as vítimas a conviverem diariamente com fibras de
amianto impregnando no ar e revestindo suas roupas e peles.
Os sujeitos são, ou foram, portadores de patologias que constam da lista de doenças
(denominadas e codificadas segundo o CID-10) causalmente relacionadas com os respectivos
agentes ou fatores de risco de natureza ocupacional, o amianto/asbesto, conforme prevê a
legislação previdenciária (QUADRO 4) já referenciada. São elas: a neoplasia de estômago, a
197
asbestose, o câncer de pulmão e um caso de doença crônica das vias aéreas82. As doenças de
que os sujeitos são portadores serão retomadas e confrontadas com os depoimentos dos
entrevistados, tendo como ponto de partida a própria doença, onde se percebe, na seqüência
da exposição, não apenas a ausência de seu reconhecimento, como a tentativa de dissimular
qualquer relação de causa e efeito, ignorando-se por completo, também, que, na manufatura
do amianto, a exposição é mais direta e intensa (CASTRO, 1995). Apresenta-se, portanto,
cinco histórias de vida, trabalho e doença.
Neoplasia maligna do estômago (C-16)
A história aqui ressignificada é a de um trabalhador de 51 anos que faleceu devido à
neoplasia gástrica avançada. A aproximação da mesma deve-se ao fato de ele ter falecido por
câncer, sem o devido conhecimento da sua etiologia. Assim, estava-se diante de uma doença
que apareceu também em outros dois trabalhadores identificados na pesquisa, a qual, embora
prevista na legislação em vigor como relacionada ao amianto, consiste na de maior nível de
complexidade para o estabelecimento do nexo causal; primeiramente, porque a maioria das
doenças relacionadas são de ordem respiratória e, segundo, porque, na literatura especializada,
poucos são os estudos que tratam dessa particularidade.
Portanto, partiu-se em busca de elementos que permitissem justificar a inclusão da
neoplasia de estômago nas doenças ocupacionais relacionadas. Junto ao Ministério da
Previdência Social, constatou-se que a lista de doenças foi elaborada pelo Ministério da
Saúde, em 1999, ano de vigência do Decreto Lei nº 3.048, com o respectivo Anexo que
atualiza as doenças profissionais e do trabalho.
82
Doença também relacionada à exposição ao amianto pela área da saúde (conforme QUADRO 2).
198
Em contato com o Ministério da Saúde, chegou-se ao especialista que coordenou o
estudo e definiu o rol de doenças relacionadas à exposição ocupacional ao amianto, Dr. René
Mendes, o qual possui não apenas diversas publicações na área da medicina do trabalho e da
saúde do trabalhador, como também estudos específicos sobre amianto e doença ocupacional.
Com a colaboração do mesmo, foi possível acessar várias publicações sobre o tema
pesquisado, uma vez que, segundo o autor, “[...] predomina na literatura o registro da associação
causal entre exposição ocupacional ao asbesto (crisotila e outras fibras) e câncer gastrointestinal
(genérico) e, especificamente, câncer gástrico” (MENDES, 2004). Os diferentes estudos de Selikoff
e colaboradores do Mount Sinai Hospital em Nova Iorque (1964), Doll e Peto (1987), Neugut
e Wylie (1987), Frumkin e Berlin (1988), Andersen e colaboradores (1993), apontados por
René Mendes (1995), trazem indicativos sobre a associação entre exposição ao amianto e
câncer de estômago. Utilizando metodologias distintas, apresentam resultados de pesquisas
com relação causal83.
Ainda segundo Mendes, mesmo a ampla revisão realizada pelo International
Programme on Chemical Safety (IPCS) e publicada em literatura especializada, em 1998,
embora apontando fragilidades encontradas em alguns estudos, conclui pela associação causal
entre as exposições ocupacional à crisotila e o câncer de estômago.
É nessa perspectiva que se traz a história de R.S., 51 anos, matrizeiro, com 24 anos e
seis meses de exposição ocupacional. O depoimento foi dado pela esposa do trabalhador e
registra que o mesmo ingressou na empresa na década de 70. Nessa época e nos anos
subseqüentes, a utilização do amianto, conforme já relatado, era indiscriminada, e mesmo
com a adoção de medidas protetivas, no final dos anos 80, devido à natureza do trabalho
83
Parte dessa bibliografia, a exemplo do Dr. René Mendes, também foi indicada pelo Dr. Victor Wünsch Filho,
especialista em câncer ocupacional da USP.
199
realizado, pouco se conseguia proteger os operários: “[...] davam equipamentos, mas o amianto
era muito. Às vezes, quer ver, ele tava com o equipamento, só que molhava com óleo, tinha que tirar,
meio complicado, meio complicado [...]”. Mais adiante, a depoente complementa: “[...] ele falava,
tu não vai usar a máscara toda hora, tu vai tirar para alguma coisa, tu tira para comer, e eles não
comiam no refeitório, levavam um lanche (trabalhava a noite) e comiam dentro da fábrica”.
R.S. começou a adoecer, e, em virtude de diagnósticos distintos, a família não sabia
precisar inicialmente de que doença ele de fato era portador, o que só foi possível confirmar
dois meses antes da data do óbito: “[...] o resultado veio na sexta-feira e era para levar na segunda
[...] trabalhou até sábado ao meio-dia, ele estava na mesa almoçando, levantou da mesa e saiu
vomitando sangue por toda casa [...] faleceu um mês e 25 dias após baixar o hospital.”
Para a família, ficou a indignação pela ausência de um diagnóstico precoce, ainda mais
pelo fato de R.S. ser pessoa de hábitos saudáveis e queixar-se dor de longa data. Porém, o
inconformismo está relacionado à certeza de a doença ter sido desencadeada pela exposição
ao amianto e em nenhum momento ter ocorrido qualquer reconhecimento oficial pela área
médica, que admitiu a relação verbalmente, e pela empresa, que se omitiu completamente.
Um dia eu perguntei a ele, será que essas dores que tu tem não é por causa
do amianto? É... provavelmente seja, mas agora, se eu tiver alguma coisa,
não adianta mais. Eu acho que ele sempre soube o que ele tinha, quando
começou a fazer os exames [...]
Assim, a esposa também tinha outros elementos que lhe permitiam relacionar a morte
do esposo ao amianto, conforme declarou: “[...] eu tenho a certeza, tenho certeza que foi do
amianto”. Também os colegas de trabalho reiteravam essa certeza, mas a confirmação que a
levou a ampliá-la veio a partir da manifestação do médico assistente, o qual, questionado
sobre o fato, fez uma declaração repleta de subterfúgios:
200
[...] eu perguntei para o Dr. [...], ele me disse que provavelmente, só que,
assim, ele disse assim ó, ele disse para mim mas, não disse para outras
pessoas, entendeu? Eu não vou poder dizer que foi ele, porque ele vai dizer
que não foi, entendeu? Ele não pode, ele não pode, ele me deu a entender
que não pode ficar contra uma empresa; pra saber, tem que fazer biópsia
então [...]
Agrega-se à história a ausência de acompanhamento da empresa na ocasião do óbito,
bem como, depois, em relação aos familiares: “[...] meu marido trabalhou 24 anos, eu fui lá,
pois ele ia ganhar uma [....] depois que ele faleceu ninguém mais [silêncio] ninguém mais,
como se eu não existisse, como se ele nunca tivesses existido [...]”. Esta fala, mais do que um
desabafo, demonstra que esse trabalhador, ao falecer, foi desconectando do meio em que
viveu; sua vida profissional e a família que o representa foram completamente alijadas de
qualquer apoio material (para custear o enterro) e moral que pudesse confortar a perda.
A narrativa apresentada e a certeza de que esse óbito tem relação com a exposição ao
amianto foram os grandes impulsionadores para que, como pesquisadora, buscasse
explicações e nexos que evidenciassem o que a ciência vem comprovando. Sem dúvida, essa
aproximação passou por momentos difíceis, mas o mais significativo é que a família rompeu
com o “indizível”, dando visibilidade ao que está obscurecido e a uma realidade conhecida,
mas negada.
Asbestose (J-60)
A asbestose é também conhecida como pnemoconiose devida ao amianto, é doença
ocupacional com bom grau de reconhecimento publico, em especial tratando-se de legislação
previdenciária e trabalhista. É importante destacar que a presença da asbestose84 é um indicador de alta
84
Na Cidade de Caxias do Sul, um caso de óbito por asbestose foi registrado pela Secretaria Estadual de Saúde,
segundo dados da NIS-RS, em 1999.
201
exposição ao agente e também pode ser considerada um risco adicional para o câncer de pulmão
(CAPELOZZI, 2001).
Trazem-se aqui, entretanto, duas histórias de trabalhadores que têm em comum serem
portadores dessa patologia, porém, o que os distingue é que um a tem reconhecida como tal, e o outro,
além de não tê-la reconhecida, passou muitos anos com sintomas e em busca da confirmação de um
diagnóstico, que só veio a ocorrer 14 anos depois. Inicia-se por este último.
E.V., hoje, tem 77 anos, mas com 60 anos começou a lutar contra a doença que iniciou
antes de parar de trabalhar. Aposentou-se em 1978, após 22 anos na empresa Freios S/A. Sua
atividade era realizada no setor de fiação, manuseando diretamente o amianto, sendo que
permaneceu por mais 12 anos em atividade após a aposentadoria, portanto, afastou-se
definitivamente em 1990, totalizando 34 anos de exposição. Segue um pouco de sua história,
onde E.V. identifica a causa do adoecimento, nos primeiros anos de trabalho na empresa.
[...] depois de 10 anos que eu estava trabalhando, começaram a dar proteção,
mas o que estragou mesmo e continuou do mesmo jeito, o que estragou
mesmo foi aqueles primeiros 10 anos que ficamos sem nenhuma, e dentro da
firma, naquela época, tinha poeira que nem [...].
Ainda antes de sair da empresa, realizou um exame que apresentou alterações
radiológicas, porém, tempos depois, os exames já não mais apresentavam qualquer sinal da
doença.
[...] Daí foi, foi, foi, comecei a fazer exames, e o exame tinha problema. E,
depois, disseram que não tinha mais nada, se antes disseram que tinha
problema, como agora está tudo bem, como é esse negócio?! Quem é que
curou se esse problema não tem solução, esse problema se fica uma
manchinha preta e vai aumentando não sei como é, daí ficou assim, quando
saí da firma, não mandaram eu fazer exames para ver como eu tava, como eu
não tava [...].
202
Essa referência de que um novo exame pode não vir a confirmar a suspeita da doença
leva a se considerar que outros trabalhadores temiam no seu imaginário que os exames fossem
adulterados. Esse medo que aparece na fala de E.V. também é explicitado por B.N.,
aposentado por invalidez devido à doença pulmonar, que afirma no seu depoimento:“[...]
nunca mais fiz nenhum exame de acompanhamento, tenho medo de fraude nos exames e assim posso
perder a aposentadoria por invalidez, não quero mexer nisso, não quero mexer nisso.”
Para E.V., ao contrário, a busca pelo reconhecimento apenas estava começando e, em
1990, por não mais se sentir em condições físicas para trabalhar, pediu demissão. “[...] pedi
para sair pois não agüentava mais trabalhar, não agüentava o serviço mais. Tinha vindo o exame, e eu
queria sair. Mas eu disse não tenho mais condições de trabalhar, não agüento mais”
Assim, retomou, por iniciativa própria, a realização de novos exames, após a negativa
da empresa em custeá-los. Mas, conforme se pode verificar no depoimento que segue, a
associação com a exposição ao amianto era completamente ignorada pelos profissionais que o
atendiam.
[...] e os exames começaram a dar problemas no pulmão, mas não dizem
certo o que tem, fui continuando a fazer exame por conta, eles não pagavam,
eu falei: como vocês dão exames para os outros e não dão pra mim, eu
também trabalhei aqui, eu falei como [....], não sei, aí comecei a fazer por
conta, aí foi no instituto do pulmão, tem problema, sim, mas tu não sabe se é
de fumar, de uma pneumonia, de poeira de rua, mas como poeira de rua dá
problema de pulmão, mas então é de fumar, mas eu nunca fumei na minha
vida, alegaram, então, que era uma cirurgia, eu nunca tinha feito cirurgia,
sempre assim, sempre caíam fora [...] via que tinha uma cicatriz no pulmão
direito.
É justamente a tentativa médica de relacionar os sintomas com outros fatores de risco,
mesmo tendo conhecimento da existência do contato com o mineral, que evidencia o quanto é
203
mascarada a relação entre doença e trabalho e, tratando-se do amianto, é completamente
silenciada. No caso do Sr. E.V., a busca por um diagnóstico preciso e a tentativa de obter
tratamento condizente com a doença a que vinha incapacitando-o levou-o a persistir, e, assim,
realizou novos exames, mas sem ainda precisar de fato que era portador. Segundo Capelozzi
(2001), “A radiografia de tórax constitui-se na ferramenta básica de screening para identificar
as DRA[85] [...] na grande maioria dos casos, a utilização de biopsias pulmonares em
trabalhadores com história de exposição e de exames compatíveis com asbestose não se faz
necessária”. Mas não é o que ocorreu com E.V., conforme narrativa que segue, que, apesar de
se submeter a todos os exames possíveis e à biopsia, não teve uma relação estabelecida com
as condições de trabalho.
[...] aí comecei a me sentir fraco, não conseguia subir morro, faltava ar, daí
consultei com [...] mandou à POA,[...] o exame era computadorizado, e eu vi
que tava tudo branco, pulmão que tá doente é branco, se não é preto, então
aqui não apareceu nada na chapa [...] Daí o médico disse ‘vamos tirar um
pedaço do pulmão’, aí eu tirei e ele disse ‘tem problema tem, mas não dá pra
dizer se é do amianto’
A partir disso, E.V., dispunha de novos elementos e, assim, buscou a assessoria
jurídica do sindicato da categoria. No seu depoimento, relata que lembrou de procurar a
advogada para pedir uma opinião, pois já havia sido assistindo, em outro momento, pela
mesma profissional, quando teve a perda auditiva. Assim, após levar os exames para a
advogada, foi encaminhado para o ambulatório do mesmo sindicato, onde recebeu a atenção
da médica do trabalho, que levou os exames para serem analisados em Porto Alegre, bem
como solicitou novas avaliações: “[...] ela mandou tudo para Porto Alegre, mandou fazer os exames
em POA, e aí veio que tem problema e não é nada bom, sei que não é”.
85
Doenças relacionadas ao amianto.
204
Em síntese, o Sr. E.V., além de se sentir desacreditado pelos profissionais com os
quais buscou assistência, também o foi por parte da empresa. Nunca foi chamado para fazer
um exame pós-demissional e, após longo e sofrido período de tratamento, desejando saber de
que mal sofria, esse direito foi-lhe negado, e, o que é mais drástico, em 14 anos, além da
invisibilidade da doença, o temor aumentava vendo colegas falecerem sem terem a doença
reconhecida. Lutou pela verdade, o que, de forma impressionante, aparece nesta fala:
[...] Depois de 90 pra cá, nunca, nunca atestam nada, vai aparecendo coisa e
nenhum médico te atesta que é, sei que lá na firma morreu cinco, que tava
como problema de pulmão, e diziam que não era nada, e quando morrem dão
certidão de óbito falso, mas pra que não se fala a verdade?!
Na trajetória de B.N., a verdade apareceu ainda quando se encontrava em atividade,
em meados da década de 80, ao se iniciar na empresa a luta pelo controle de riscos (ver item
3.5.1). O mesmo médico que coordenava esse trabalho e buscava sensibilizar os funcionários
para o uso de EPIs, deu-lhe o laudo com o diagnóstico de pnemoconiose e afastou-o de suas
atividades laborais. Segundo o depoimento do trabalhador, hoje com 77 anos, trabalhou 25
anos na Empresa Freios S/A, assim como o seu colega no setor de fiação, fazendo exames
anuais, através dos quais foi constada a doença. Esteve por três anos em auxílio-doença
acidentário e em programa de reabilitação profissional, reinserindo-se na empresa em
ambiente externo, pois o próprio laudo do médico do trabalho apontava que o setor de origem
do trabalhador, a fiação, tinha poeira acima dos limites estabelecidos pelo Anexo 12 da NR15. Permaneceu em atividade por mais alguns anos, quando se aposentou definitivamente. Na
fala de B.N., percebe-se o quanto ele mantém vinculação com a empresa mesmo após muitos
anos aposentado. Essa forte relação vem ainda do tempo em que estava em atividade, uma vez
que a empresa, além de reconhecer o nexo, prestou toda a assistência necessária, a qual vem
se mantendo. “É como se ainda estivesse na firma”, e acrescenta que o auxilio recebido é em
205
todos os sentidos: “[...] eles orientam a gente, eu sou operário-padrão, lá dentro, então, com isso, eu
entro pela porta dos fundos, eu sou considerado lá dentro”. Constata-se que o maior vínculo é com
a Assistente Social da empresa, pois mesmo com a troca da profissional, essa relação se
mantém. Anualmente, através de agendamento prévio, faz exames de acompanhamento. Por
fim, registra que não teve dificuldades para reconhecer, na época, a doença profissional,
devido ao empenho do médico da empresa.
Cercado de cuidados especiais, B.N., vem levando uma vida normal dentro das
limitações físicas imposta pela doença, a qual é denominada de fibrose pulmonar.
As duas histórias têm uma origem comum, trajetórias de vida traçadas pela mesma
doença, porém com processos diferentes. Ficam evidentes o percurso e o tratamento
diferenciados ao trabalhador que teve a doença reconhecida pela empresa daquele que, por
muitos anos, lutou sozinho pelo direito de saber sobre a sua saúde. A situação de B.N., se
constitui, aparentemente, numa situação isolada em relação ao reconhecimento e ao
tratamento dado a outros trabalhadores na mesma situação. No entanto, justamente por ser
conduzida de forma diferenciada, permite concluir que a existência de trabalhadores
sabidamente portadores de asbestose não tem levado a empresa a adotar uma política
específica nessa área e que os fatos isolados advêm do comprometimento de alguns
profissionais da saúde que, de forma solitária, conseguem precisar o diagnóstico. Entretanto, o
que realmente prevalece é o entendimento de que a manifestação da doença posteriormente à
saída do processo produtivo não diz respeito à empresa e ao trabalho exercido, tornando a
associação ainda mais ignorada.
206
Câncer de Pulmão (C-34)
O câncer de pulmão86 é a doença mais associada ao amianto pelos trabalhadores a ele
expostos. Essa constatação aparece em várias falas, desde os representantes dos trabalhadores,
até os demais sujeitos envolvidos no processo de reconstituição histórica. Mas é nos
trabalhadores entrevistados que essa preocupação mais se fez presente, lembrando E.V.: “[...]
sei que lá na firma morreram cinco [...] quem morreu foi [...], era do pulmão, o último que morreu faz
mais ou menos três anos.”
Outra associação ao óbito por câncer de pulmão está no depoimento de P.R., um
trabalhador com suspeita de doença não confirmada. Ele se encontrava hospitalizado, fazendo
avaliação cardiológica, com sintomas de falta de ar e dor no peito, quando se deparou com
uma colega de trabalho no quarto ao lado. O seu depoimento é revelador: “[...] estava num
quarto e escutava uns berros, perguntei à enfermeira ‘o que tem ali ao lado que tem gente que grita e
chora’. Ela respondeu, ‘tem uma mulher que tem câncer de pulmão, e ela também trabalha na [...]”. E
complementa: “[...] lá morreu gente a fuzel” e a esposa reforça “[...]ele vinha para casa e dizia,
aquele cara tá com câncer de pulmão”.
Assim, as descobertas dos sujeitos levaram às viúvas dos trabalhadores. Traz-se aqui
uma situação, a de P.O., narrada pela esposa. Destaca-se que, das quatro identificadas, uma
não quis dar entrevista; uma concedeu entrevista, mas, no decorrer da mesma, constatou-se
que a causa morti foi melanoma e insuficiência respiratória grave, o pulmão estava atingindo
por metástase; e outra não foi localizada. Ressalta-se que nenhum desses trabalhadores
86
Os dados de mortalidade por câncer de pulmão na cidade da pesquisa revelam uma média de 56 óbitos por
100.000 habitantes entre 1997 e 2000. Buscando identificar a categoria profissional de maior incidência,
constatou-se que 25% é ignorado, 20% são donas-de-casa, 11% são agricultores, 7,3% são aposentados, 6,2%
são comerciantes, 4,7% são motoristas e 4.7% são pedreiros. O coeficiente médio de óbitos da população no
Rio Grande do Sul, no período 1995-99, foi 43.
207
coincide com os cinco nomes levantados pelo entrevistado E.V., anteriormente citado, os
quais faleceram devido a câncer de pulmão, e nem com o do depoimento de P.R.
P.0. trabalhou 28 anos, interrompendo a atividade após adoecer, o que o levou à
aposentadoria por invalidez. Segundo a viúva, decorreu muito tempo entre o adoecimento e a
aposentadoria, pois, mesmo doente, permaneceu trabalhando sem que houvesse uma
preocupação maior com a sua saúde: “Aí, quando começou a ficar doente, corriam atrás dele, mas
eles não se importaram, fizeram ele trabalhar o mesmo”. O trabalhador, cada vez mais debilitado,
foi resistindo e mantendo-se em atividade até que, próximo à data do seu falecimento,
recentemente aposentado: “[...] tossia de noite e não conseguia dormir, vomitava, e ia trabalhar, até
que agüentou, foi trabalhar, mas não adiantava mais falar, queriam, que nem os burros velhos de
canga, que trabalhassem e, quando foi no fim, descobriram isso”, referindo-se ao câncer de pulmão
que foi constatado quando levado de ambulância de casa ao hospital.
Na narrativa da esposa, não fica qualquer dúvida sobre a causa da doença. Chorando
muito em toda a entrevista, ela registrou: “[...] mas a última vez que levaram ele daqui, bem dizer
levaram morto, por causa do pulmão. E todos os médicos me diziam, aquela poeira lá, aquela. Tu vê,
nem máscara davam para ele botar!” e reforça: “[...] quando fomos lá, não tinha mais recurso, que foi
o Dr. [...], no caso, ele morreu com aquela doença dos pulmão [choro], e o médico me dizia ‘aquele pó
é dos pulmão, é da firma’” De forma dramática, a mesma surpreende com uma revelação, a
perda do filho: “Tenho um filho que morreu desta mesma doença, o mais velho [...] deixa que eu te
mostro a fotografia [...] O meu filho morreu com 41 anos, intoxicado de poeira [choro] [...] ele
começou a trabalhar cedo na empresa, que nem o pai, com 12, 13 anos”. Sem dúvida, essa foi uma
entrevista que causou muita emoção, mas também indignação. Acredita-se que também da
parte do profissional que atendia o trabalhador vitimado, mas que não se traduziu em ação.
208
A perda do esposo deixou a viúva vivendo com muitas dificuldades. Ela mora sozinha
em uma moradia simples, encontra-se bastante deprimida, há pela casa várias fotos do casal e
dos filhos. Questionada sobre o reconhecimento da doença ligada ao trabalho, responde
indignada “[...] vieram aqui ver se eu precisava de um pedaço de pão”.
Nesse caso, observa-se um afastamento silencioso, ou seja, ao adoecer parou de
trabalhar, e a família conviveu sozinha com o sofrimento e a dor da perda anunciada, e sendo
esse trabalhador esquecido por aqueles a quem dedicou muitos anos de sua vida.
Doença Crônica das Vias Aéreas
Inúmeras situações de trabalhadores com doenças crônicas das vias aéreas emergiram
durante o processo de pesquisa, através de indicação dos entrevistados, bem como por terem
recorrido judicialmente para o reconhecimento da doença ocupacional. Tais doenças são,
freqüentemente, patologias como bronquite, doença pulmonar obstrutiva crônica e enfisema
pulmonar. Uma dessas situações, em particular, remeteu a uma história de vida e trabalho com
sentimentos de tristeza e indignação, mas, ao mesmo tempo, de resistência, a qual se passa a
narrar.
D.T, hoje com 59 anos, trabalhou por 15 anos na empresa Freios S/A. Os primeiros
sintomas da doença surgiram após oito anos de trabalho, quando foi constado que estava com
um “probleminha” no pulmão e acabou se afastando do serviço. Ao retornar, permaneceu na
mesma função, na fabricação de lonas de freios para caminhão, até 1995, quando novamente
adoeceu, conforme seu relato:
209
Sentia falta de ar, desanimada, não tinha mais força para trabalhar. E eu
trabalhava muito, fazia serão o ano inteiro, quando eu não pude mais, aí eu
fui no médico, já tinha oito anos de firma, fui ao médico da firma, e ele
mandou fazer uns exames e aí encostou; quando eu voltei a trabalhar, ele
achava que eu tava com probleminha no pulmão, e daí fui assim, eu fui em
outro médico. E daí eu trabalhei até 15 anos, e eles não foram mais o que
eram, eu trabalhei 15 anos nesta firma, fiquei doente de novo, do pulmão de
novo, aí me encostei.[...]
Entretanto, no segundo afastamento, ao ser encaminhada para o INSS como Auxílio-Doença, D.T. procurou o médico do sindicato, o qual a vinha assistindo. Este, então, decidiu
emitir CAT, informando tratar-se de doença profissional – asbestose87, e não apenas Doença
Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), ou, ainda, enfisema pulmonar, como sugeriam exames
e profissionais da área. A comunicação da doença profissional fundamentava-se no exame
realizado em 1995, com a seguinte conclusão: “Enfisema Pulmonar. Micronódulos de alta
densidade localizados em lobos inferiores, podem estar relacionado com o histórico
ocupacional inalatório”. O reconhecimento da doença, mesmo com o diagnóstico explícito,
no entanto, não foi aceito pela empresa, bem como, por conta da ausência do estabelecimento
imediato do nexo causal, ficou longo período sem receber. O INSS aceitou o nexo causal a
partir da vistoria pericial ao posto de trabalho, considerando não apenas as condições deste,
mas também as alterações pulmonares registradas nos exames da trabalhadora.
[...] fui até o sindicato, pois me mandaram pro auxílio-doença e eu me
tratava no médico do sindicato, foi em 1995, aí o médico disse ‘não, a
senhora está com problema da firma, a senhora não pode se encostar como
auxílio-doença’ e aí ele me deu todos os papéis para encostar como acidente
de trabalho. Daí eu levei os papéis no INSS, e a firma não gostou, não
gostou, ficou sete meses sem me pagar, sete meses sem receber, passei
trabalho, com os filhos e eu ainda tenho um filho doente, e eu perdi depois o
meu filho e daí continuou. Aí, quando eu voltei para a firma trabalhar,
daquele benefício que estava encostada, eles me botaram pra rua.
87
Assim pode-se definir pelo CID – 504.99, colocado na CAT, pois em nenhum atestado ou exame realizado há
descrição nominal da doença, assim como a entrevistada não verbalizou durante a entrevista o nome técnico da
doença de que era portadora, reinterando sim, ter “problemas no pulmão”.
210
A história de doença e afastamento do trabalho de D.T., resultou em demissão, a qual
ocorreu exatamente após um ano de estabilidade, adquirida com a confirmação da CAT,
levando à incerteza sobre o futuro. O sentimento de tristeza de não poder mais voltar ao
trabalho, foi assim expressado: “Eu senti tanto, tu nem pode imaginar, o sentimento que eu tive, até
hoje sinto, porque eu trabalhei muito naquela firma, eles me ajudaram, mas eu trabalhei, e eles me
afastaram assim como [...], me botaram para a rua [...]”
D.T. transformou a sua indignação em busca de seus direitos, retornando ao sindicato
e ingressando na Justiça, e, após quatro anos, teve judicialmente reconhecida sua doença
profissional, sendo indenizada financeiramente, embora, nas audiências, a empresa
argumentasse tratar-se de doença pré-ingressa. “Não queriam, inclusive, quando nós ia nas
audiências, ele disse [o representante da empresa] a D.T. tem doença do pulmão é de quando ela
entrou lá ela já tinha esta doença e juiz disse como a firma ia pegar uma pessoa doente?”
A demissão, que ocorreu próxima à aposentadoria, trouxe outras implicações para
D.T., pois não tinha condições de obter novo emprego, uma vez que, além da doença
pulmonar, era portadora de lesão na coluna e nos membros superiores devido à atividade
repetitiva realizada ao manusear a furadeira, sua atividade predominante nos anos de trabalho
na empresa. Ainda sem a decisão judicial, contribuiu para a previdência através da ajuda de
um filho, assalariado, sem muitos recursos. “[...] tava perto de me aposentar, né, mais dois anos
me aposentava, não se importaram comigo, aí paguei INSS por conta, na base um salário mínimo, a
gente não tinha condições, meu filho era [...], a gente passava por muitas dificuldades”
Embora tenha sido indenizada, a entrevistada reconhece a necessidade de um
acompanhamento quando da evolução da doença. Assim, novamente, a exemplo dos demais
211
entrevistados, verifica-se a ausência de monitoramento legal por parte da empresa quanto à
realização dos exames pós-demissionais, em especial, neste caso, havia registros de alterações
pulmonares nos exames que antecederam à sua demissão. “[...] me acertaram meus direitos tudo
certinho, mas nunca mais me procuraram para saber como eu tava, sabe, trabalhei todos estes anos,
nunca me chamaram pra fazer um exame”. Recentemente, ela realizou por conta própria novos
exames, os quais tiveram os seguintes resultados: “Presença de nódulos calcificados nos
lobos”, em 2001, e, em 2004, registraram existir “múltiplos nódulos parenquimatosos com
densidade cálcica em ambos os pulmões”. Não têm-se elementos e nem domínio técnico para
afirmar que doença, de fato, detém a portadora e se a mesma vem se agravando, mas é
possível concluir, sem sombra de dúvida, que a saúde de D.T. precisa ser monitorada. O
médico que assiste à mesma, mesmo tendo sido informado sobre sua ocupação egressa,
acredita que seu “problema” tem origem em uma gripe “mal curada”. Considerando o seu
quadro clínico atual, é D.T. que tem tomado a iniciativa de controlá-lo, com a sabedoria que a
vida e o trabalho lhe proporcionaram: “[...] Eu tenho medo disso daí, por isso eu peço RX, pode ser
que ele [o médico] não entenda do amianto, mas eu disse que trabalhava com o pó. Se eu caminho
ligeiro, sinto falta de ar, não posso erguer peso”. Observou-se que a sua preocupação é
determinada por dois condicionantes principais: o nível de exposição ao amianto a que esteve
submetida, conforme relato destacado das condições de trabalho, onde, ao furar as lonas de
freio, o pó expelido, além de inalado, permanecia concentrado nas suas roupas e no chão da
fábrica, e, após, ao ser varrido, novamente causava pulverização; e, as condições de saúde dos
colegas, sobre as quais informa enfaticamente: “Todo mundo saía doente de lá, os meus amigos,
que a gente trabalhava junto, todos eles saíam doentes”; registra também a situação particular de
dois colegas, uma que acredita ter falecido – “[...] Inclusive tinha uma senhora que trabalhava, eu
numa máquina e ela na outra, nem sei se ela é viva, tinha amianto mesmo nos pulmão, eles tiraram ela
fora da firma, botaram ela no refeitório, limpar banheiro, eu acho que ela [...]” – e outro caso de um
212
colega que, após sair da empresa, só conseguiu trabalhar por intermédio de pessoas de sua
relação – “Tem o M. Aquele lá disse que o pulmão dele tá todo tomado. Ele trabalha aí numa firma,
mas é conhecido dele, pois nenhuma outra firma ia pegar ele”
Ao narrar com emoção a sua história, D.T. explicita um sentimento que nem sempre é
possível mensurar, pois, muitas vezes, com a voz trêmula, fala do sofrimento de não ser
reconhecida como pessoa, como trabalhadora após adoecer: “[...] a gente fica doente, a gente
não vale mais nada”. Ela, como os demais entrevistados e milhares de trabalhadores
“descartados” pelo sistema produtivo, vivencia sentimentos de ser e não ser após o
adoecimento, como nos sugere Pablo Neruda (1999), na sua poesia Saúde, Dizemos Cada
Dia:
Saúde, dizemos a cada dia,
A cada um,
É o cartão de visita
Da falsa bondade
E da verdadeira
É o sino para reconhecer- nos:
Aqui estamos, saúde!
Saúde, reconhece-me,
somos iguais
e não nos queremos,
nos amamos e somos desiguais,
cada um com colher
com lamento especial,
encantado de ser e de não ser” [...]
213
4.3 – ROMPENDO COM O SILÊNCIO: A BUSCA PELOS DIREITOS
O reconhecimento da relação causal entre as doenças e as mortes com o agente
amianto constitui-se na primeira medida para romper o silêncio. Reconhecer é uma palavra de
múltiplos sinônimos, dentre eles, os mais representativos são: conhecer novamente (quem se
tinha conhecido noutro tempo); admitir como certo, verificar, compreender, certificar-se,
examinar a situação de; explorar, declarar, afirmar; admitir como verdadeiro ou legítimo.
Essas são atitudes que foram esquecidas na trajetória das vítimas e que contribuíram para a
construção da invisibilidade das doenças e das mortes no e pelo trabalho.
Como já mencionado, apenas um dos sujeitos teve o nexo reconhecido com o amianto
e, conseqüentemente, toda a proteção social decorrente das necessidades pós-adoecimento. Os
demais, e também muitos outros trabalhadores anônimos, não tiveram esse “destino”.
Os caminhos escolhidos pelas vítimas e por seus familiares em busca dos direitos não
foram os mesmos, seguindo três direções diferentes. Percebe-se que a opção muito tem a ver
com o grau de consciência adquirido na história de vida desse trabalhador, mas também com
o descrédito sobre as possibilidades reais de obter o reconhecimento legal e indenizatório.
A família de R.S., inicialmente, pensou em ingressar com uma ação contra a empresa,
o que foi incentivado por colegas de trabalho, mas, diante da necessidade de exumar o corpo,
a opção foi desistir, conforme declarou a viúva: “[...] me diziam ‘o que tu está esperando? Depois
de cinco anos tu não tem mais direito’. Só que, para fazer isso, tem que fazer biópsia, tem que exumar
o corpo, e daqui de casa ninguém quer ir lá” Também desistiu de buscar o resíduo da participação
nos lucros da Empresa que R.S. teria direito, uma vez que já havia lhe sido negado outro
214
prêmio concedido após a morte: “[...] nem tenho vontade de ir lá, nunca mais fui, nem sei se tem
ainda direito, pois nem mais me interessei”.
Já a viúva de P.O., nunca tomou qualquer iniciativa visando ao reconhecimento; na
verdade, esperava que isso ocorresse por parte do empregador. Acredita que o seu marido
também não teria interesse em recorrer judicialmente, ela o define como um homem inocente
“[...] nunca quis botar questão, sempre foi um homem inocente”, e reafirma: “[...] nunca vieram ver
se eu precisava um pedaço de pão”. A visão subalterna prevalece no caso de P.O., o que levou a
si e à sua viúva a acreditarem num auxílio “natural”, espontâneo, o que nunca se concretizou.
Para E.V., a escolha de buscar assistência jurídica ocorreu antes da confirmação do
diagnóstico definitivo de asbestose, conforme já relatado, ao ser encaminhado do
departamento jurídico do Sindicato para o ambulatório da mesma instituição, que confirmou a
doença após longos anos de investigação. Desse modo, retornou para a mesma profissional,
que encaminhou a ação indenizatória.
Por sua vez, B.N., com apoio da empresa, recorreu ao INSS para obter o auxílio-acidente, o qual não foi concedido pelo Instituto ao ser reintegrado ao trabalho, com perda da
capacidade laborativa habitual face à doença profissional. Só através do recurso lhe foi
garantido o benefício, o qual recebe e se soma à renda mensal da aposentadoria por tempo de
serviço.
O exemplo de D.T., é o mais elucidativo, na medida em que demonstrar que, ao buscar
os seus direitos, os teve reconhecidos, mesmo que isso tenha implicado a perda do emprego.
Primeiramente, lutou para que o seu afastamento temporário do trabalho não fosse registrado
como doença “comum”, mas sim, como doença profissional e, após, ao ser demitida, lutou
215
para ser indenizada. O valor monetário percebido foi baixo, mas representou o
reconhecimento. A fala do juiz em defendê-la como portadora de doença adquirida no
trabalho, a defesa do advogado e o apoio do Sindicato foram decisivos para amenizar o
sofrimento de não mais poder voltar ao mercado de trabalho ao 50 anos, doente, sem
escolaridade e faltando dois anos para o cumprimento legal de uma aposentadoria por tempo
de serviço.
Todos os trabalhadores entrevistados, conforme já mencionado, com exceção de D.T.,
que não fez menção a isso, tiveram perda auditiva devido à exposição a ruídos com decibéis
muito acima dos níveis legais, ingressando na Justiça e recebendo indenização pelas perdas.
Junto ao sindicato da categoria, inúmeros são os pedidos de ação indenizatória requeridos
pelo departamento jurídico.
O direito à informação é uma vertente que emerge no processo de pesquisa, ou seja,
até que ponto se pode considerar que esses trabalhadores de fato tinham conhecimento sobre
os riscos ou, melhor dizendo, sobre a carga de trabalho a que estavam submetidos? A ação
sindical foi decisiva não apenas para desencadear medidas de proteção à saúde, mas para
alertar sobre o direito à saúde e à vida.
Nessa nova etapa, a busca pelos direitos revela-se uma forma de dar visibilidade à
realidade oculta e, mesmo ao fazê-lo individualmente, tem repercussão no coletivo, uma vez
que é possível estabelecer conexão com uma realidade mais ampla. Entretanto, ainda se está
longe de enfrentar o problema na dimensão que ele exige. Ressignificar o presente, significa
contribuir para uma ação mais coletiva. É imperativo organizar as vítimas de forma a se
implementarem medidas que venham a estabelecer uma nova correlação de força e romper
com
o
pacto
de
silêncio
construído
há
dezenas
de
anos.
CONCLUSÕES
A construção da desproteção social dos trabalhadores expostos ao amianto passa, sem
sombra de dúvida, pela compreensão de que ela é resultante de uma ótica socialmente
invisível, que se produz e reproduz na medida em que é considerada desnecessária e
insignificante aos olhos de quem deve proteger. Isso evidencia também que diferentes
processos sociais passam a ser aceitos com naturalidade e, conseqüentemente, sem a
visibilidade e o reconhecimento necessários para que ocorram mudanças sociais sobre os
mesmos. Nesse sentido, é possível se identificarem como principais determinantes, os quais
têm contribuído e perpetuado a reversão da lógica da saúde no trabalho e são também
mecanismos de invisibilidade social presente nos processos de saúde-doença-morte e trabalho,
os seguintes:
a) as relações sociais de produção, que, de forma alienada, concebem a força de
trabalho como uma mercadoria a ser consumida em detrimento das condições em
que esta se encontra no processo de produção material, uma vez que sua
incorporação ao capital ocorre de forma alienante;
217
b) a saúde do trabalhador, que se torna, por conseguinte, instrumento de dominação de
quem detém o poder econômico, subjugando os trabalhadores a condições de
trabalho que lhe são agravantes;
c) a luta pela sobrevivência e as mudanças no mercado de trabalho, que impõem
condições cada vez mais desfavoráveis a quem vende a força de trabalho;
d) a relação de causa e efeito, que, a partir de uma concepção positivista presente nos
acidentes de trabalho, não só torna as doenças profissionais difíceis de serem
identificadas e de estabelecer o seu nexo causal, como também ignoradas dentro e
fora dos processos de trabalho, principalmente quando a mão de obra apresenta
altos níveis de rotatividade no mesmo segmento produtivo, distanciado-se ainda
mais quando transita por outras atividades;
e) ausência histórica de uma efetiva vigilância sobre a saúde do trabalhador,
particularmente sobre as doenças profissionais, já conhecidas de longa data do
sistema de saúde, mas não monitoradas. Assim, as doenças profissionais que
necessitam de maior tempo de latência para se manifestarem são desacreditadas
quanto ao seu efetivo dano;
f) as informações epidemiológicas sobre doença e morte associadas ao trabalho e as
relacionadas ao amianto são dispersas e fragmentadas, não existindo mecanismos
de controle que possibilitem a identificação das mesmas a partir da suspeita de
agravo;
218
g) as legislações previdenciária e trabalhista, que não se efetivam na prática,
principalmente no que concerne à realidade dos trabalhadores expostos ao amianto,
embora existam de forma vasta. Identifica-se uma omissão legal pelas empresas no
que tange ao seu cumprimento, bem como por parte dos órgãos de fiscalização,
principalmente nos períodos pós-banimento e pós-exposição, a exemplo dos baixos
índices de exames de monitoramento e de comunicação da doença profissional.
No campo da proteção social, em vista da ausência de reconhecimento legal das
doenças e fundamentalmente pelo seu caráter securitário, não são consideradas as de ordem
progressiva, as quais podem se manifestar num momento da vida dos trabalhadores em que
estes estarão fora da cobertura previdenciária. Ainda, em se tratando dos trabalhadores
inseridos em outros ramos e/ou aposentados, a identificação torna-se complexa, e o registro
estatístico, praticamente nulo.
Conclui-se que o conhecimento dos riscos passados e presentes não tem representado
o reconhecimento da problemática e das necessidades atuais, bem como a fase pós-banimento,
no Estado do Rio Grande do Sul, vem, contraditoriamente, contribuindo para ampliar o
ocultamento da parte submersa do “iceberg”, que contém os efeitos intermináveis da
exposição ao amianto. Tem-se presente que todo tipo de exposição é perigoso e independente
do tempo que estiveram submetidos, homens e mulheres continuaram adoecendo e morrendo
devido ao uso deste mineral.
A pesquisa de campo revela um contexto atual, duplamente interligado com o passado.
Inicialmente, pela história narrada sobre as condições de trabalho nas últimas décadas e,
concomitantemente, pela ausência de enfrentamento da problemática e pelo fato de o
219
empresariado isentar-se da responsabilidade sobre as causas e os efeitos que se alastram aos
dias atuais. A empresa Freios S/A, que manteve o amianto como matéria-prima, ganhou maior
competitividade no mercado, apesar de, em vários países europeus, o seu uso já ser proibido.
Assim, titular de um produto com excelentes propriedades, cresceu e se consolidou como uma
grande empresa. Demonstrou, também, que a substituição do amianto não resultou na redução
da força de trabalho utilizada na produção, mantendo-se na atualidade, no mercado, com o
mesmo número de empregados dos períodos que utilizou matérias-primas, de forma distintas
e/ou combinadas.
As descobertas de campo expressam uma sinergia entre a realidade narrada por
dirigentes sindicais e profissionais envolvidos no movimento histórico e a proteção
ocupacional do uso do amianto no tempo presente, ressignificado pelos sujeitos e pelos
familiares de trabalhadores que adoeceram ou morreram por patologia desencadeada pela
exposição ao mineral e, sobretudo, por não a terem associada e reconhecida como tal. Alguns
deles eram jovens, outros tinham idade mais avançada, mas todos representam a luta pela
sobrevida, a qual já deixou de existir para muitos.
A incisiva associação feita pelos entrevistados de que diversos óbitos decorrentes de
cânceres ocorreram entre os trabalhadores instigou extremamente esta pesquisadora e, ao
mesmo tempo, provocou novas indagações, que, com certeza, já foram parcialmente
respondidas, ao se evidenciarem os determinantes que contribuem para a sua invisibilidade;
entretanto, outras carecem de respostas mais efetivas. A denúncia dos trabalhadores associada
aos estudos epidemiológicos evidenciados por Landrigan (in Wünsch Filho, 2001) de que a
exposição ao amianto nas indústrias de processamento indicam maior risco de câncer entre os
trabalhadores do que o observado entre os que exercem atividade de mineração contribuíram
220
ainda mais para os questionamentos que seguem. Ou seja, por que a relação desses óbitos com
o amianto nunca foi comprovada, uma vez que não se chegou a nenhuma informação de que
algum familiar tivesse obtido esse reconhecimento? Qual a atitude das famílias das vítimas?
Será que estas foram desaconselhadas a seguirem em frente por ter sido a doença associada a
outros fatores de risco, como tabagismo, origem genética, etc., ou permaneceram caladas por
desconhecimento e, por que não dizer, medo de seguir em frente? Essas perguntas talvez
fiquem sem respostas, mas uma afirmação impõe-se em meio a essas interrogações: a
dispersão de informações sobre os óbitos tornou-se fator positivo para o ocultamento da
problemática. Reinou o silêncio!
Hoje, já se pode afirmar que a preocupação trazida pelos sujeitos participantes da
pesquisa sobre inúmeros possíveis casos de mortes associadas ao amianto tem levado muitos
outros trabalhadores a questionarem se são ou serão portadores de doenças ocupacionais, em
que pese, ainda, a predominância do entendimento de que o risco se esgotou com o
banimento. O cruzamento das informações epidemiológicas referentes ao número de óbitos
por mesotelioma e por asbestose no Rio Grande do Sul e ao baixo nível de controle pós-demissional dos trabalhadores expostos, constatado pelas ações de vigilância em saúde,
demonstra o quanto é alto o índice de trabalhadores sem qualquer monitoramento de sua
saúde. Entretanto, mesmo havendo ausência de reconhecimento, dispersão de informações e
ausência de controle pós-exposição, os trabalhadores temem, sim, sofrer agravos relacionados
ao amianto, embora em número menor, uma vez que poucos são os trabalhadores brasileiros
que têm a devida consciência dos seus riscos a longo prazo e timidamente se manifestam em
busca do reconhecimento de seus direitos. Essas iniciativas apenas se fortalecem quando da
organização dos trabalhadores, a exemplo do que vem ocorrendo com os trabalhadores
filiados à ABREA, e revelam, como no caso da morte do principal símbolo da luta contra o
221
amianto, Sebastião Alves da Silva, a urgência nos processos indenizatórios, que, para ele, só
se efetivou na data de seu falecimento. Isso também ficou demonstrado por dois sujeitos da
pesquisa que ingressaram judicialmente para terem reconhecidas suas doenças profissionais, o
que se constituiu na única forma de obtenção do direito, em face da negativa do empregador e
das instâncias percorridas para tal. Foi evidenciado, aqui, nesses casos, o papel da entidade
sindical na condução do processo de reconhecimento e assistência aos trabalhadores expostos
e na defesa e na conquista do direito social.
Na realidade norte-americana, os números de pedidos de indenizações por exposição
ao amianto avançam e apontam um novo perfil de trabalhadores nesse movimento. Constatou-se que, em 2002, nos Estados Unidos88, mais de oito mil trabalhadores já haviam ingressado
na Justiça, contra 250 companhias que expuseram seus trabalhadores ao agente nocivo. Trata-se de trabalhadores não incapacitados para o trabalho, mas portadores de suspeita de virem a
desenvolver doenças relacionadas. Estes se somam aos outros 200.000 trabalhadores já com
doenças confirmadas; esses dois grupos, juntos, poderão chegar de 1,1 milhão a 2,5 milhões
de trabalhadores que utilizaram o amianto e estão solicitando indenização por possíveis danos
presentes
e
futuros
(Spreading
out
of
Control,
2002.
Disponível
em:
<http://www.economist.com>. Acesso em: 29 jun. 2004).
Uma verdade incontestável, evidenciada pelas próprias empresas do ramo, tende a
contribuir para ampliar a consciência sobre os males causados pelo amianto, mas,
contraditoriamente, faz com que a consciência sobre os efeitos futuros diminua. Está-se
falando aqui das campanhas de mídia feitas pelas duas maiores empresas de utilização do
mineral, a Freios S/A, que vem divulgando amplamente que seus produtos estão livre de
amianto, e a Eternit, do ramo de fibrocimento, que tem anunciado seus produtos com a
88
Há que se lembrar, aqui, que o limite de tolerância de fibras por cm³ nos Estados Unidos é de 01 f/m³.
222
mensagem “Brasilit sem Amianto”, freqüentemente veiculada pela televisão durante a
transmissão de jogos de futebol, através de placas com a mensagem fixadas junto aos
gramados. Entretanto, a campanha protagonizada pelo Instituto Brasileiro de Crisotila, que se
desenvolvia paralelamente em defesa do uso controlado do amianto e sua geração de
emprego, foi interrompida pelo Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária, por
veicular informações e confundir a opinião pública. São campanhas, portanto, que acabam
expondo para a sociedade os efeitos do amianto e ampliando os conhecimentos também sobre
a saúde coletiva e não apenas sobre a ocupacional, amplamente evidenciada nesta tese.
A tomada de posição do Governo brasileiro a partir das conclusões da Comissão
Interministerial do Amianto é fator decisivo para que se busque um novo rumo para a área,
embora se acredite – em vista da correlação de forças estabelecida –, não seja possível
precisar se o Governo será favorável ao banimento. Considera-se, nesse sentido, além das
suas divergências internas, as inúmeras ações de inconstitucionalidade movidas contra os
estados que proibiram a utilização do mineral, inclusive o Rio Grande do Sul, por
representantes de órgãos empresariais e também sindicais, como a Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Indústria (CNTI). Assim, na atualidade, independentemente da decisão
adotada pela CI, esta tem causado repercussões importantes, na medida em que se passam a
discutir diretrizes e estratégias para a definição de uma política nacional para o amianto,
trazendo, ao mesmo tempo, para a sociedade organizada, a necessidade de um maior
envolvimento na busca da garantia de um posicionamento pelo banimento em nível nacional.
No entanto, deve, ainda, fazer parte dessa agenda, a garantia de uma política na área da saúde
do trabalhador visando a ações interministeriais cada vez mais conjuntas e com objetivos
comuns.
223
No universo que se apresenta no campo da saúde do trabalhador, a tendência é se
ampliarem às ações nessa área. Os indicadores de acidentes e morte no trabalho, no Brasil,
são alarmantes e particularizados nos trabalhadores do mercado formal. Entretanto, é preciso
constituir outra lógica nessa perspectiva de ação, primeiramente voltando a atenção a todos os
trabalhadores, independentemente do seu nível de inserção no mercado de trabalho, e,
segundo, ouvindo o trabalhador sobre o processo saúde-doença-trabalho. O oposto já foi
demonstrado no desenvolvimento da pesquisa como mecanismo de distanciamento desse tripé
e entre dois tipos de saberes. Embora fosse possível estabelecer de forma presumida o nexo
epidemiológico impôs-se à exigência do nexo etiológico, através de biópsias, para o
estabelecimento causal da doença, em todas as circunstâncias investigadas.
No processo de desocultamento do fenômeno estudado, a perspectiva de abordagem
metodológica da construção social da invisibilidade teve o papel central de explicitar a
conexão entre os fatos narrados e a estrutura social, política e econômica que contribui de
forma direta ou indireta para obscurecê-los.
Guiada pelo método e por sua teoria social crítica, esta tese procura avançar em busca
da essência do fenômeno pesquisado, uma vez que, da mesma forma com que a desproteção
social dos trabalhadores expostos ao amianto se tornava evidente, encontra-se escondida e
mistificada pelos determinantes já explicitados. Mas decorre desta conclusão uma segunda e
complementar forma de análise, que vem revelar um elemento essencial na invisibilidade
socialmente construída, que é o lugar social ocupado pelo objeto de estudo, ou seja, qual a sua
importância no conjunto da sociedade? Em resposta, verifica-se que, na relação capital-trabalho, ocorre a secundarização do papel desse último e, logo, de quem o executa. Dessa
224
forma, a invisibilidade apontada é construída pela desigualdade social das relações sociais de
produção e, ao mesmo tempo, torna-se seu produto final.
Para ilustrar a relação entre invisibilidade e desigualdade social, traz-se aqui o
exemplo do estudante de Mestrado de Psicologia da Universidade de São Paulo89 que, ao se
vestir de gari no meio acadêmico, se tornou invisível perante seus colegas e professores. Mas
o que fez com que o mesmo não fosse reconhecido? Teria sido o uniforme que vestia, e que a
imprensa assim tratou para divulgar como causa da invisibilidade? Ou seria a condição social
inferior por ele adotada? A invisibilidade não estaria associada ao status social do gari
fundamentalmente? Trazendo isso para o campo da saúde do trabalhador, constata-se que a
lógica é a mesma, uma vez que a sua importância social é desconsiderada no seio da relação
desigual entre compra e venda da força de trabalho.
Sintetizando, a preocupação em trazer à luz o que se esconde em meio à escuridão,
além de revelar o fenômeno estudado, contribui para o descortinamento e a fragililização de
sua invisiblidade. Buscou-se romper com processos sociais que têm sua origem na
desigualdade econômica e social. Em outras palavras, de forma propositiva, a contribuição do
Serviço Social para essa área não se restringe ao tratamento dessa temática, que vem
abarcando uma multiplicidade de enfoques, mas aponta a perspectiva de se avançar na
construção de contrapoderes e na ruptura do ocultamento do nexo, silenciado, na relação
amianto-doença-morte, através da organização social e sindical dos expostos comprometidos
com processos de mudanças. Assim, buscando o envolvimento de novos sujeitos
potencialmente vitimados, identificados na pesquisa, bem como de muitos outros que
89
O estudante, por oito meses, fez-se passar por gari da USP, durante o período de mestrado, desenvolvendo sua
dissertação com a temática sobre a invisibilidade social. Assim, pôde perceber que as pessoas não o
reconheciam quando estava usando o uniforme de gari. O seu tema recebeu ampla divulgação na imprensa
nacional.
225
surgiram e continuaram se manifestando ao tomarem conhecimento da investigação que
norteou esta tese e da rede construída a partir dela. Exige-se, portanto, um efetivo controle
epidemiológico, um monitoramento, uma assistência e indenização aos trabalhadores expostos
ao amianto, na busca da garantia legal e social da proteção social, na tentativa de
desativar a “bomba-relógio”. Por isso a certeza que este estudo não se esgota ao chegar-se ao
término desta etapa. A continuidade e engajamento na luta pela garantia dos direitos dos
trabalhadores devem continuar mobilizando pesquisadores, docentes, profissionais e
trabalhadores envolvidos com essa causa, trazendo novas contribuições e outras perspectivas
para a superação da desproteção social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABEPSS. Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. Revista Temporalis.
Ano III, n. 6, jul.-dez. 2002.
ABREA. Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto. Amianto ou Asbesto. O Inimigo
Mortal que Ronda Nossas Vidas: o que você precisa saber para se defender. Cartilha, 2002.
ABREA. Associação Brasileira dos Expostos
<http://www.abrea.com.br>. Acesso em: 2001-2004.
ao
Amianto.
Disponível
em:
ALBORNOZ, Suzana. O que é Trabalho? São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
ALGRANTI, Eduardo; CAPITANI, Eduardo M.; BAGATIN, Ericson. Sistema Respiratório.
In: MENDES, René. Patologia do Trabalho. Rio de Janeiro: Atheneu, 1995.
ALLEN, Roger. More on Mesothelioma, Miracles and 11th September. Disponível em:
<http://www.bmj.com>. Acesso em: 2003.
ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER, Emir (Org.). Pósneoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho. Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do
mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, l995.
ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho. Ensaio sobre a afirmação e negação do
trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.
ANTUNES, Ricardo.O Trabalho, a Produção Destrutiva e a Des-Realização da Liberdade. In:
CARRION, Raul K. M; VIZENTINI, Paulo F. (Orgs.). A Crise do Capitalismo Globalizado
na Virada do Milênio. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000.
BAER, Werner. A Economia Brasileira. São Paulo: Nobel, 1996.
BIOGRAPHY FILMOGRAPHY GALLERY. Merchandise
<http://www.geocities.com.>. Acesso em: abr. 2004.
Links.
Disponível
BOURDIEU, Pierre. (Coord.) A Miséria do Mundo. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2001.
em:
227
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1998.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. São Paulo: Editora Berfran do Brasil, 1996
BRASIL. A Reforma da Previdência Social: análise e perspectivas sobre o sistema
previdenciário brasileiro após a promulgação da Emenda Constitucional nº. 20. Deputada
Jandira Feghali. Câmara dos Deputados. Brasília, l999.
BRASIL. Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais. Ministério
da Previdência Social. Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.previdenciasocial.gov.br>.
Acesso em: jan. 2004.
BRASIL. Ata da Comissão Interministerial do Amianto. Ministério do Trabalho e Emprego.
Brasília, jun. 2004
BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ministério do Trabalho e Emprego.
Brasília, 2002.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Congresso Nacional. Brasília,
1988.
BRASIL. Decreto nº. 3.048, de 06 de maio de 1999. Aprova o Regulamento da Previdência
Social. Ministério da Previdência e Assistência Social. Brasília, 1999.
BRASIL. Lei nº 8.2l3, de 24 de julho de l99l e Decreto nº 2.172, de 05 de março de l997.
Dispõe sobre o Plano de Benefícios da Previdência Social. Ministério da Previdência e
Assistência Social. Brasília, l997.
BRASIL. Lei nº 9.055, de 1º de Junho de 1995. Disciplina extração, industrialização,
utilização, comercialização e transporte do asbesto/amianto e dos produtos que o contenham,
bem como das fibras naturais ou artificiais, qualquer origem, utilizadas para o mesmo fim.
Brasília, 1995.
BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência
<http://www.previdenciasocial.gov.br>. Acesso em: abr. 2003.
Social.
Disponível
em:
BRASIL. Portaria Interministerial nº. 8, de 19 de abril de 2004. Ministério do Trabalho e
Emprego. Brasília, 2004.
BRAVERMAN, Harry. Trabalho e Capital Monopolista. A degradação do trabalho no século
XX. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabarra, 1987.
BRUM, Eliane. Morto pelo Amianto. Revista Época, São Paulo, n. 336, 25 out. 2004.
BRYNE, Paul de: HERMAN, Jacques; SCHOUTHEETE, Marc de. Dinâmica da Pesquisa
em Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1982.
BUONICORE, Augusto Cesar Os Assalariados Urbanos: novo proletariado ou nova classe
média? Revista Princípios. São Paulo, n. 64, p. 48-53, 2002.
CAPELOZZI, Era L. Asbesto, Asbestose e Câncer: critérios diagnósticos. Jornal de
Paneumologia, v. 27, n. 4, São Paulo, 2001.
228
CASTEL, Robert. As Armadilhas da Exclusão. In: WANDERLEY, Mariângela Belfiori;
BÓGUS, Lúcia; YASBEK, Maria Carmelita (Orgs.). Desigualdade e a Questão Social. São
Paulo: EDUC, 2001.
CASTEL, Robert. As Metamorfoses da Questão Social – uma crônica do salário. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1998.
CASTLEMAN, Barry. Globally Asbestos-free Automobiles. Editorials, v. 4, n. 4, oct.-dec.
1998.
CASTRO, Hermano A; GOMES, Vera R. B. Doenças do Aparelho Respiratório
Relacionadas à Exposição ao Asbesto. Disponível em: <http://www.saudeetrabalho.com.br>.
Acesso em: 2004.
CATTANI, Antônio. Trabalho e Autonomia. Petrópolis: Vozes, l996.
CHAMPAGNE, P.; LENOIR, R.; MERLLIÉ, D.; PINTO, L. Iniciação à Prática Sociológica.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
CHESNAIS, François. Por trás do discurso sobre a mundialização “inevitável”. In:
CARRION, Raul K. M; e VIZENTINI, Paulo F. (Org.). A Crise do Capitalismo Globalizado
na Virada do Milênio. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000.
COMITÉ ANTI AMIANTE JUSSIEU. A Jussieu, ça tombait em poudre. Disponível em:
<http://www.logique.jussie.fr>. Acesso em: out. 2003.
COMITÉ ANTI AMIANTE JUSSIEU. Déjà cinq cas dus à l’amiante. Disponível em:
<http://www.logique.jussie.fr>. Acesso em: out. 2003.
COMITÉ ANTI AMIANTE JUSSIEU. L’ Amiante à Jusssieu. Disponível em:
<http://www.logique.jussie.fr>. Acesso em: out. 2003.
CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Pesquisa Histórica e Análise de Conteúdo: uma
questão de afinidades. Porto Alegre: PUCRS/FFCH/PPGH, 2001, mimeo.
DIAS, Elizabeth C. Aspectos Atuais da Saúde do Trabalhador no Brasil. In: ROCHA, L. E.;
RIGOTTO, R. M.; BUSCHINELLI, J. T. (Orgs.) Isto é Trabalho de Gente? Vida, doença e
trabalho no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
DIAS, Elizabeth C. O manejo dos agravos à saúde relacionados com o trabalho. In:
MENDES, René. Patologia do Trabalho .Rio de Janeiro: Atheneu, 1995.
DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos. A Situação
do Trabalho no Brasil. São Paulo, 2001.
DUARTE, Newton. A crítica de Marx à naturalização do histórico. Revista Princípios. n. 71.
São Paulo, 2003.
ENGELS, Friedrich. A Dialética da Natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
229
FACCHINI, Luiz Augusto. Porque a Doença? A inferência causal e os marcos teóricos de
análise. In: ROCHA L.; RIGOTTO, R. M.; BUSCHINELLI, J. T. (Org.). Isto é Trabalho de
Gente? Vida, doença e trabalho no Brasil. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1993.
FALEIROS, Vicente de Paula. A Política Social do Estado Capitalista. As funções da
Previdência e da Assistência Social. São Paulo: Cortez, l985.
FALEIROS, Vicente de Paula. O Trabalho da Política, Saúde e Segurança dos
Trabalhadores. São Paulo: Cortez, l992.
FEE, FGTAS/SINE-RS, DIEESE, SEADE-SP, FAT/TEM, PMPA. Transformações do
Mercado de Trabalho Metropolitano. Porto Alegre, nov. 2002.
FERNANDES, Luis. Os mitos da globalização e os desafios do desenvolvimento. In: Revista
Princípios. São Paulo: Editora Anita Garibaldi. n. 43. nov.-dez. 1996.
FLEURY, Sônia. Estado sem Cidadãos. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994.
FRIZZO, Leoni M. Industrialização de Caxias do Sul: da gênese às exportações. 1997. Tese
(Doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas. São Paulo, 1997.
GIANNASI, Fernanda. A Construção de Contra-Poderes no Brasil na Luta Contra o
Amianto: a globalização por baixo. São Paulo, 2000, mimeo.
GIANNASI, Fernanda. Alerta duplo: os cuidados na escolha dos EPIs para quem está exposto
ao amianto e os EPIs fabricados com amianto. São Paulo, 2000, mimeo.
GIANNASI, Fernanda; SCAVONE, Lucila; THÈBAUD-Mony, Annie. A Invisibilidade
Social das Doenças Profissionais Provocadas pelo Amianto no Brasil. Revista CIPA. São
Paulo, 1999.
GOMES, Luiz M. Construindo o Estado de Mal-Estar Social. Revista Princípios. São Paulo:
Editora Anita Garibaldi. n. 43, nov.-dez., l996.
GOUNET, Thomas. Fim do Trabalho, Fim do Emprego? In: CARRION, Raul K. M;
VIZENTINI, Paulo F. (Org.). A Crise do Capitalismo Globalizado na Virada do Milênio.
Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000.
Governo vai Banir o Uso do Amianto no Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 mar.
2004.
GRUPPI, Luciano. Tudo Começou com Maquiavel – As concepções de estado em Marx,
Engels, Lênin e Gramsci. Porto Alegre: Editora L&PM, 1986.
HARNECKER, Marta. Tornar Possível o Impossível – a esquerda no liminar do século XXI.
São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000.
HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, l993.
230
HEREDIA, Vânia B. M; PERUZZO, Juliana F. Implicações Tecnológicas nos Processos de
Trabalho na Indústria Caxiense. Cadernos de Pesquisa. Universidade de Caxias do Sul. v.6,
n.3. Caxias do Sul: UCS, 1998.
HOBSBAWN, Eric. J. A História do Marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
HOBSBAWN, Eric. J. Era dos Extremos: o breve século XX. 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
IAMAMOTO, Marilda V. O Serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e formação
profissional. São Paulo: Cortez Editora, 2000.
IAMAMOTO, Marilda; CARVALHO, R. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil. São
Paulo: CELATS, 1983.
IANNI, Otavio. O Mundo do Trabalho. Revista São Paulo em Perspectiva. v. 8, n. 1.
Fundação Seade, 1994.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. PNAD – 2001. Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br>.
JOFFILY, Bernardo. O Proletariado do Século XXI. Revista Princípios. São Paulo, n. 64, p.
66-69, 2002.
KOSIK, Karel. A Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1986.
LACAZ, Francisco A. C. Saúde dos Trabalhadores: cenário e desafios. Cadernos de Saúde
Pública, vol.13, supl. 2., Rio de Janeiro, 1997.
LARONCHE, Martine. Un réseau associatif de victimes et d’organisations syndicales milite
pour une supression totale du minéral. Le Monde. França. Disponível em:
<http://www.lemonde.fr>. Acesso em: 2002.
LAURELL, Ana Cristina; NORIEGA, Mariano. Processo de Produção e Saúde. São Paulo:
Editora Hucitec, l989.
LENIN, Vlademir I. Materialismo e Empiriocriticismo. Lisboa: Edições Avante, 1982.
LEONTIEV, Alexis. O Desenvolvimento do Psiquismo. Rio de Janeiro: Livros Horizonte,
1981.
LOJEKINE, Jean. A Classe Operária em Mutação. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990.
LOPES, Augusto. As Leis Trabalhistas e Situação da Saúde nas Fábricas Paulistas. São
Paulo: Ìcone Editora, Edusp, 1990.
MARQUES, Rosa. A Proteção Social e o Mundo do Trabalho. São Paulo: Bienal, l997.
MARTINELI, Maria Lúcia. O Uso de Abordagens Qualitativas na Pesquisa em Serviço
Social. Um instigante desafio. Caderno do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Identidade NEPI, São Paulo, n.1, l994.
MARX, Karl. A Ideologia Alemã. 6 ed. São Paulo: Hucitec, l987.
231
MARX, Karl. O Capital –Crítica da economia política. Tradução de Reginaldo Sant Anna,
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, l980.
MARX, Karl. Produtividade do Capital – Trabalho Produtivo e Improdutivo. Disponível em:
<http://www.vermelho.org.br> – Biblioteca Marxista. Acesso em: 2002.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Martin
Claret, 2002.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista – Obras Escolhidas.
São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1980.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1980.
MATTOSO, Jorge. A Desordem do Trabalho. São Paulo: Scritta, 1995.
MATTOSO, Jorge. O trabalho sob fogo cruzado. Revista São Paulo em Perspectiva, v. 8, n.
1. Fundação SEADE, 1994.
MELO, Marcus A. Crise do Mundo do Trabalho e Seguridade Social. Revista São Paulo em
Perspectiva, v. 9, n. 4, out.-dez., 1995.
MENDES, Jussara R. M. O Acidente e a Morte no Trabalho. Porto Alegre: Edipucrs, 2003.
MENDES,
René.
Asbesto
(Amianto)
e
<http://www.saudeetrabalho.com.br>. Acesso em 2001.
Doença.
Disponível
em:
MENDES, René. Patologia do Trabalho. Rio de Janeiro: Atheneu, 1995.
MÉSZAROS, István. O Poder da Ideologia. Tradução de Paulo Castanheira. São Paulo:
Editora da Unicamp e Boitempo Editorial, 2004.
MÉSZAROS, István. Para Além do Capital. Tradução Paulo Castanheira e Sérgio Lessa. São
Paulo: Editora da Unicamp e Boitempo Editorial, 2002.
MINAYO, Maria C. (Org.). Pesquisa Social, Teoria, Método e criatividade. 7. ed. Rio de
Janeiro: Editora Vozes, l997.
MINAYO, Maria C. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. Rio de
Janeiro: ABRASCO; São Paulo: HUCITEC, 1992.
MINAYO-GOMEZ, Carlos; THEDIM-COSTA, Sonia M. F. A Construção do Campo da
Saúde do Trabalhador: percurso e dilemas. Cadernos de Saúde Pública, v.13, supl. 2. Rio de
Janeiro, 1997.
MINAYO-GOMEZ, Carlos; VERTHEIN, Marilene A. R. As Armadilhas: bases discursivas
da neuropsiquiatrização das LER. Ciência e Saúde Coletiva. v. 6, n.2. São Paulo, 2001.
Ministério do Trabalho Interdita Setor da [...]. Jornal Folha de Hoje, Caxias do Sul, 28 dez.
1991.
232
MOTA, Ana Elizabete (Org). A Nova Fábrica de Consensos. São Paulo: Cortez Editora,
1998.
MOTA, Ana Elizabete. A Cultura da Crise e Seguridade Social – um estudo sobre as
tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo:
Cortez Editora, 2000.
MUDUR, Ganapati. Asbestos poisoning was covered up by doctors, claims health team.
Disponível em: <http://www .bmj.com>. Acesso em 2003.
NAKATANI, Paulo. A Crise do Sistema Capitalista Mundial. São Paulo, 2003, mimeo.
NARDI, Henrique C. Saúde do Trabalhador. In: CATTANI, Antônio D. (Org). Trabalho e
Tecnologia. Dicionário Crítico. Petrópolis: Editora Vozes; Porto Alegre: Editora da
Universidade, 1997.
NERUDA, Pablo. Os Últimos Poemas – O Mar e os Sinos. Porto Alegre: L&PM, 1999.
NETO, José Menelau. Desemprego e a Luta de Classes: as novas determinidades do conceito
marxista de exército industrial de reserva. In. OLIVEIRA, Manfredo A. (Org).
Neoliberalismo e Reestruração Produtiva. São Paulo: Cortez, l996.
OLIVEIRA, Manfredo A. (Org.). Neoliberalismo e Reestruturação Produtiva. São Paulo:
Cortez, l996.
OLIVEIRA, Paulo A.; MENDES, Jussara M. R. As Novas Perspectivas da Saúde do
Trabalhador. Tendências do trabalho. São Paulo, n. 265, p.13-17, set.1996.
ORTIZ, Renato (Org.); FERNANDES, Florestan (Coord.). Pierre Bourdieu. Sociologia.
Coleção Grandes Cientistas Sociais. n. 39. São Paulo: Ática, 1983.
PEIXOTO, Madalena. Apontamentos sobre a crise do capitalismo e suas manifestações
subjetivas. Curso: A crise do capitalismo e as alternativas para o Brasil. Caxias do Sul, dez.
2003, mimeo.
PEREIRA, Duarte. Um Perfil da Classe Operária – a ditadura nas fábricas. São Paulo:
Hucitec, 1981.
PEREIRA, Potyara A. P. A política social no contexto da seguridade social e do Welfare
State: a particularidade da assistência social. Serviço Social e Sociedade, nº 56. São Paulo:
Cortez Editora, mar. l998.
PEREIRA, Potyara A. P. Estado, Regulação Social e Controle Democrático. In: BRAVO, M.
I. S; PEREIRA, P. A. P. Política Social e Democracia. São Paulo: Cortez Editora e UERJ,
2002.
PEREIRA, Potyara A. P. Política Social e Democracia. São Paulo: Cortez Editora e UERJ,
2002.
PESSOA, Fernando. Poesia de Alberto Caieiro. São Paulo: Cia das Letras, 2004
233
PEZERAT, Henri. A Defesa das Vítimas do Amianto: implicações políticas e significado.
ANDEVA, Paris, ago. 2000, mimeo.
PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a Teoria do Mundo Social. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2000.
POCHMANN, Márcio. A Década dos Mitos – o novo modelo econômico e a crise do trabalho
no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2001.
POCHMANN, Márcio. As trajetórias do Trabalho no Final do Século XX. In: CARRION,
Raul K. M; VIZENTINI, Paulo F. (Org.). A Crise do Capitalismo Globalizado na Virada do
Milênio. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000.
POCHMANN, Márcio. O Trabalho sob Fogo Cruzado. São Paulo: Editora Contexto, 1999.
PORTELLI, Hugues. Gramsci e o Bloco Histórico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
POSSAS, Cristina. A Crise da Previdência Social. Saúde, Sociedade e Trabalho. São
Paulo:Hucitec, l989.
PREFEITURA
MUNICIPAL
DE
CAXIAS
<http://www.caxias.rs.gov.br>. Acesso em: mar. 2004.
DO
SUL.
Disponível
em:
RAMAZZINI, Bernardino. As Doenças dos Trabalhadores. Tradução brasileira de “De
Morbis Articum Diatriba” por Dr. Raimundo Estrêla. São Paulo: Fundacentro, 1988.
REIS, Carlos Nelson dos; PRATES, Jane C. Fragmentos de uma Metrópole. Porto Alegre:
Edipuc, 1999.
REZENDE, Ana M. de. Saúde: dialética do pensar e do fazer. São Paulo: Cortez Editora,
1989.
RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 11.643, de 22 de junho de 2001. Dispõe sobre a proibição de
produção e comercialização de produtos à base de amianto. Diário Oficial do] Estado do Rio
Grande do Sul.
ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias: a terceira margem do rio. In: ROSA, Guimarães.
Ficção Completa. v. II. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1995.
ROSANVALLON, Pierre. La Nueva Cuestión Social: repensar el Estado providencia.Buenos
Aires: Ediciones Manantial, 1995.
SANTOS, Lenir. A Saúde do Trabalhador – Conflito de Competências: União, Estado e
Municípios. Interface Ministérios do Trabalho e Emprego, Ministério da Saúde e Ministério
da Previdência Social. Conselho Nacional da Saúde e Organização Pan-Americana da Saúde.
Brasília, 2000.
SAVIANI, Nereide. Sobre o conceito de proletariado em Marx: situando o debate. Revista
Princípios, São Paulo, n. 63 , p. 56-63, 2002.
234
SCAVONE, L; GIANANASI, F; MONY, A.T. Doenças Profissionais Provocadas pelo
Amianto no Brasil e a Construção dos Contra-Poderes: uma abordagem em saúde, trabalho e
gênero. Disponível em: <http://www. Saudeetrabalho.com.br>. Acesso em: 2004.
SCHUBERT, Baldur. Accidentes del Trabajo: América del Sur y Central. Asociación
Internacional de la Seguridad Social (AISS). Simpósio Internacional, Melbourne, Austrália,
2001. Disponível em: <http://www.previdenciasocial.gov.br>. Acesso em: 2001.
SCHUBERT, Baldur. Problemas Actuales del Seguro Obligatorio de Accidentes a Escala
Mundial: una escuesta de la AISS. Asolciación Internacional de la Seguridad Social AISS. 27ª
Asamblea
General.
Estocolmo,
Suécia,
2001.
Disponível
em:
<http://www.previdenciasocial.gov.br>. Acesso em: 2001.
SERRA, Rose (Org). Trabalho e Reprodução – enfoques e abordagens. São Paulo: Cortez
Editora, 2001.
SINDICATO DAS INDÚSTRIAS METALÚRGICAS, MECÂNICAS E DE MATERIAL
ELÉTRICO DE CAXIAS DO SUL. Disponível em: <http://www.simecs.com.br>. Acesso
em: mar. 2004.
SINDICATO DOS TRABALHADORES NAS INDÚSTRIAS METALÚRGICAS,
MECÂNICAS E DE MATERIAL ELÉTRICO DE CAXIAS DO SUL. 70 anos de História:
resgatando o passado para fortalecer as lutas presentes. Caxias do Sul, 2004.
SINDICATO DOS TRABALHADORES NAS INDÚSTRIAS METALÚRGICAS,
MECÂNICAS E DE MATERIAL ELÉTRICO DE CAXIAS DO SUL. Cruel Rotatividade:
uma das faces mais dolorosas da exploração do trabalho pelo capital. Publicado pela
Assessoria Econômica do Sindicato. Economista Responsável: Edson Silva. Caxias do Sul,
1996.
SINDICATO DOS TRABALHADORES NAS INDúSTRIAS METALÚRGICAS,
MECÂNICAS E DE MATERIAL ELÉTRICO DE CAXIAS DO SUL. Disponível em:
<http://www.metalurgicoscaxias.com.br>. Acesso em: mar. 2004.
SINGER, Paul. Economia Política do Trabalho. 2 ed. São Paulo: Hucitec, l979.
SINGER, Paul. Globalização e Desemprego. Diagnóstico e Alternativas. São Paulo: Editora
Contexto, l999.
SOUZA, Carlos R. C.; ARAUJO, Giovanni M.; BENITO, Juarez. Normas Regulamentadoras
Comentadas – Legislação de Segurança e Medicina do Trabalho. Rio de Janeiro:[s.n], 1998.
STOTZ, Eduardo. N. A Reestruturação Industrial na Visão dos Empresários Brasileiros.
Serviço Social e Sociedade, n 52, São Paulo: Cotez Editora, 1997.
TEITELBAUM, Daniel. Book Review. Amiante. Le dossier de l’Air Contaminé, by Fraçois
Malye. Ol 5/n. 1, jan-mar 1999.
THE ECONOMIST. Disponível em: <http://www.economist.com>. Acesso em: 29 jun. 2004.
THÉBÀUD-MONY, Annie. La Sante au Travail: approche sociologique. Journées Michel
Despax La Santé des Salariés. Université de Toulouse, maio 1999.
235
THÉBÀUD-MONY, Annie. Précarisation Sociale, Travail et Santé. Paris: Institut de
Recherche sur les Sociétes Contemporaines, 2000.
THÉBÀUD-MONY, Annie; APPAY. B. Précarisation Sociale. Paris: Institut de Recherche
sur les Sociétes Contemporaines, 2000.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-Ação. São Paulo: Cortez Editora, l988.
THOMPSON, Edward P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Editora
Paz e Terra, 1987.
THOMPSON, Johan B. Ideologia e Cultura Moderna – teoria social crítica dos meios de
comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.
TONI, Dilermando. Apontamentos sobre o proletariado. Revista Princípios, São Paulo, n. 64 ,
p. 62-65, 2002.
VIANNA, Maria L.W. O Silencioso Desmonte da Seguridade Social no Brasil. In: BRAVO,
M. I. S; PEREIRA, P. A. P. Política Social e Democracia. São Paulo: Cortez Editora e UERJ,
2002.
WHITE, Caroline. Annual Deaths from Mesothelioma in Britain to Reache 2000 by 2010.
Disponível em: <http://www.bmj.com>.Acesso em: 2003.
WÜNSCH FILHO, Victor F; NEVES, H.; MONCAU, J.E Amianto no Brasil: Conflitos
científicos e econômicos. Revista da Associação Médica Brasileira, v. 47 n. 3, São Paulo,
2001.
WÜNSCH FILHO, Victor. Câncer e sua Relação com o Trabalho. In: MENDES, René.
Patologia do Trabalho. Rio de Janeiro: Atheneu, 1995.
WÜNSCH FILHO, Victor; MAGALDI, Cecília; NAKAO, Neusa; MONCAU, José E.C.
Trabalho Industrial e Câncer de Pulmão. Revista de Saúde Pública, v. 29, n. 3, São Paulo,
1995.
WÜNSCH, Dolores S. As Determinações e Implicações do Afastamento do Trabalho: o
impacto social do adoecimento. 2001. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Faculdade
de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2001.
YASBEK, Maria Carmelita. Globalização, Precarização das Relações de Trabalho e
Seguridade Social. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 56, São Paulo: Cortez Editora,
1998.
50 Anos da [...]. Jornal Pioneiro, Caxias do Sul, fev. 2004, Encarte Especial, Informe
Comercial.
ANEXO 1
Termo de Consentimento Pós-Informação
Eu,.....................................................................................................................................
declaro para os devidos fins que cedo os direitos de minha entrevista, transcrita e autorizada
para leitura, para a pesquisa sobre Desproteção Social do Adoecimento – uma aproximação
com a realidade dos trabalhadores expostos ao amianto no Rio Grande do Sul, que está
sendo desenvolvida pela Assistente Social e Doutoranda em Serviço Social Dolores Sanches
Wünsch, para que seja usada integralmente ou em partes, sem restrições de prazo e citações, a
partir da presente data.
Fui informado(a) dos objetivos específicos e da metodologia de investigação proposta
nessa pesquisa. Estou disposto(a) a participar da mesma, permitindo as entrevistas e as
observações, e respondendo aos questionamentos pertinentes. Todas as minhas dúvidas foram
esclarecidas e sei que poderei solicitar esclarecimentos, a qualquer momento. Além disso, sei
que, durante o estudo, novas informações me serão fornecidas.
Fico ciente ainda de que as informações colhidas terão caráter confidencial e só serão
divulgado dados gerais dos participantes da pesquisa sem identificação dos entrevistos. Fui
informado(a) de que, se desistir da participação dessa pesquisa, deverei avisar ao pesquisador
responsável, assim como comunicar qualquer alteração ou situação imprevista que venha a
ocorrer.
Abdicando direitos autorais meus e de meus descendentes, subscrevo a presente
declaração.
Caxias do Sul, 26 de janeiro de 2004.
Entrevistado(a)
Pesquisadora