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Universidade Federal do Rio de Janeiro Marina Borges de Carvalho Charles Baudelaire, a cidade e sua tradução Rio de Janeiro 2016 Marina Borges de Carvalho Charles Baudelaire, a cidade e sua tradução Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Literaturas de Língua Francesa) Orientador: Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes Rio de Janeiro 2016 AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, professor Marcelo Jacques, por acreditar no trabalho que começou na Iniciação Científica e hoje se concretiza em uma dissertação de mestrado. Obrigada pela força, pelo incentivo e pela paciência. Aos professores que dispuseram de seu tempo para participar da banca de defesa: prof. Rodrigo Ielpo e profa. Susana Kampff Lages. Aos professores que fizeram parte da minha trajetória, pelo incentivo a continuar. À Márcia, pelos conselhos e pelo estímulo. Ao meu pai, pelo amor, pelo apoio incondicional em todas minhas jornadas, por me ajudar a crescer, por acreditar em mim e por tornar meu caminho literário possível. Ao Víctor, pelo companheirismo, por me encorajar, estar sempre do meu lado e pelo amor. Aos que estão e aos que já fizeram parte da equipe do Bureau du Livre, em especial, Alice, André, Luiz, Marion, Rafael e Valérie, que sempre apoiaram meus estudos e me deram suporte para continuá-los. Ao Diogo e ao Breno pelos resultados, pela presença, pelo crescimento, pela paciência e por nós três. À Silvinha e à Mônica, por trazerem mais alegria à nossa vida. À Mariana, por me ensinar a enxergar a vida com olhos de criança e ter me feito renascer. À Ligia, por me ajudar a construir meu caminho. À Juliana, pelos debates literários, pela disposição, pela parceria e pela presença essencial na minha vida. À Lais, pelas críticas, pelas leituras, pela atenção e pelo carinho. À Naima, pela correção, pelas risadas, pela força, pela energia e pela companhia. À Sybelle, pelas conversas e pela calma. À Érica, Luana, Bárbara, Lara, Vanessa e Luna, pela amizade incondicional e pela compreensão. Ao Igor, pela disposição, pela leitura e pela amizade. À minha família, pela convivência e crescimento. A todos meus amigos que sabem sua importância. E à minha mãe. CARVALHO, M.B. Charles Baudelaire, a cidade e sua tradução. Rio de Janeiro, 2016. Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literatura Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. RESUMO Charles Baudelaire revolucionou a poesia do século XIX, especialmente a partir de sua reflexão sobre a modernidade, que o levou a ser considerado como o precursor da poesia moderna na França. Uma das características dessa poesia é a problematização da linguagem como expressão. Tentaremos retomar esse debate pelo viés dos escritos de Walter Benjamin, principalmente O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (1919) e A tarefa do tradutor (1921). Pretendemos, para tanto, e tendo como interlocutor privilegiado o crítico André Hirt, discutir as questões da atemporalidade, da transformação da representação na poesia moderna e da importância do olhar subjetivo do autor, do leitor e do tradutor, trabalhando-as, em especial, com os poemas “Chacun sa Chimère”, “Un hémisphère dans une chevelure” e “Le confiteor de l’artiste”, de Spleen de Paris. Palavras-chave: Charles Baudelaire, Walter Benjamin, André Hirt, linguagem, tempo, subjetividade, Tradução ABSTRACT Charles Baudelaire revolutionized poetry in the 19th century, mainly with his reflection on modernity which has lead him to be considered the precursor of modern poetry in France. One of his poetry characteristics is the questioning of language as expression. We will try to resume this discussion from the perspective of Walter Benjamin’s writings, mainly The concept of art criticism in German romanticism (1919) and The translator’s task (1921). In this regard, and having critic André Hirt as privileged interlocutor, we investigate aspects such as timelessness, representation changes in modern poetry and the importance of the author’s, the reader’s and the translator’s subjective perspectives. We examine these aspects mainly with the poems “Chacun sa Chimère”, “Un hémisphère dans une chevelure” and “Le confiteor de l’artiste” from the book Spleen de Paris – petits poèmes en prose. Keywords: Charles Baudelaire, Walter Benjamin, André Hirt, Language, Time, Subjectivity, Translation RÉSUMÉ Charles Baudelaire a révolutionné la poésie du XIXème siècle, particulièrement à partir de sa réflexion sur la modernité qui lui a valu le titre du précurseur de la poésie moderne en France. Une des caractéristiques de cette poésie se trouve dans la problématisation du langage comme expression. Nous essaierons de reprendre ce débat en nous appuyant sur les écrits de Walter Benjamin, notamment sur les textes Le concept de critique esthétique dans le romantisme allemand (1919) et La tâche du traducteur (1921). Ainsi, à travers l’interlocuteur privilégié qu’est le critique André Hirt, nous discuterons des concepts d’atemporalité, de transformation et de représentation dans la poésie moderne ainsi que l’importance du regard subjectif de l’auteur, du lecteur et du traducteur, en étudiant, spécialement, les poèmes « Chacun sa Chimère », « Un hémisphère dans une chevelure » et « Le confiteor de l’artiste » du livre Spleen de Paris – petits poèmes en prose. Mots Clés: Charles Baudelaire, Walter Benjamin, André Hirt, Langage, Temps, Subjectivité, Traduction Carvalho, Marina Borges de. Charles Baudelaire, a cidade e sua tradução./ Marina Borges de Carvalho. – Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2016. 85f; 30cm Orientador: Marcelo Jacques de Moraes. Dissertação (Mestrado) – UFRJ/Letras/ Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, 2016. Referências Bibliográficas: ff. 76-79. 1. Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia moderna. 2. O processo criativo e a linguagem a partir da filosofia da tradução. I. Moraes, Marcelo Jacques de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas. III. Título. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 11 CAPÍTULO 1 - Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia moderna ................................ 16 1.1 O cenário de Charles Baudelaire, modernidade e alegoria.................................................... 17 1.2 O tempo, o spleen e as imagens de Charles Baudelaire a partir de “Chacun sa Chimère” ... 27 1.3 Alegoria como descrição ....................................................................................................... 34 1.4 A morte como auge do spleen e sua contraposição: o idéal. ................................................. 38 CAPÍTULO 2 - O processo criativo e a linguagem a partir da filosofia da tradução ................. 51 2.1 “Le confiteor de l´artiste” e a problematização da linguagem .............................................. 51 2.2 A “experiência” da tradução ................................................................................................. 57 2.3 A tradução como “forma” ..................................................................................................... 61 OBSERVAÇÕES FINAIS .......................................................................................................... 72 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 77 ANEXOS..................................................................................................................................... 80 11 INTRODUÇÃO Esta dissertação pretende relacionar a poesia de Charles Baudelaire à filosofia da linguagem de Walter Benjamin presente, principalmente, em seu texto A tarefa do tradutor (1921, 2011). Considera-se aqui, o poeta, artista moderno, como um tradutor e seu leitor como tradutor de uma tradução. Este estudo, portanto, culmina na relação entre o processo da tradução e a expressão artística moderna. Dessa forma, o trabalho visa discutir a importância complementar do texto traduzido para a obra de arte. A visão do tradutor relacionada à do artista moderno e ao espectador de sua arte permite a percepção de que a tradução na verdade, é um fator complementar a ela sem o objetivo de concluir ou finalizar o elo entre leitor e artista. Dessa maneira, traduzir seria pensar junto à obra. E a demanda da arte pela tradução seria a demanda de reflexões e percepções latentes a ela. Assim sendo, esta dissertação se inicia com alguns fundamentos da poesia de Baudelaire discutindo a obra do poeta de forma a tentar demonstrar que o tema “cidade grande” aparece constantemente como elemento fundamental de sua representação artística. Com intuito de ilustrar e sublinhar a presença da cidade na poesia baudelairiana, três dentre os poemas inseridos no texto se destacam: “Chacun sa Chimère”, “Un hémisphère dans une chevelure” e “Le confiteor de l’artiste”. Todos extraídos do livro de poemas em prosa Le Spleen de Paris – petits poèmes en prose. Para desenvolver os raciocínios que aqui se propõem, esta pesquisa será dividida em duas partes. Na primeira, intitulada “Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia moderna”, pretende-se refletir sobre a maneira em que a cidade moderna – a Paris do século XIX na fórmula elaborada por Walter Benjamin, e várias de suas transformações operadas pela modernidade – é representada na obra do poeta. Na segunda, “O processo criativo e a linguagem a partir da filosofia da tradução”, se pretende dissertar sobre a filosofia da linguagem de acordo como a formulou Walter Benjamin, com ênfase na ideia da tradução como “experiência”, visto que esta filosofia está intrinsecamente relacionada à ideia da representação do artista moderno como tradução da cidade grande. De acordo como se tem consolidado na crítica especializada, a obra de Charles 12 Baudelaire se encontra intimamente ligada à Paris do Segundo Império, já que extrai das transformações que sofreu “a capital do século XIX”, os elementos que configuram sua poética. Desta forma, no primeiro capítulo, “Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia moderna”, em sua primeira seção “O cenário de Charles Baudelaire, modernidade e alegoria”, tomando como base as ideias de Eric Hobsbawm em seu livro A era das revoluções (1962), serão feitas algumas reflexões sobre as transformações históricas que sofreu Paris durante esse século, importantes para desenvolver a ideia da modernidade baudelairiana. Essa abordagem permitirá compreender como a Paris do século XIX é problematizada, literariamente, na obra de Charles Baudelaire. A cidade moderna sendo o referente fundamental de sua poesia, a coloca em um lugar de destaque para discutir o conceito de modernidade no século XIX, tarefa que será desenvolvida neste capítulo. Desenvolvendo este conceito, aborda-se o paradoxo complementar entre o que é passageiro e o que nunca muda, fundamentais para a modernidade baudelairiana e para a significação alegórica de Walter Benjamin formulada pelo estudioso em Origem do drama barroco alemão (1928, 1984). Nessa seção será desenvolvida a ideia, relacionada à de Benjamin, de que a representação alegórica da cidade grande está constituída de dois elementos: um elemento transitório, que seria tudo aquilo que é passageiro em uma época, e que de certa forma a caracteriza, e um elemento imutável, entendido como aquilo que é eterno e que foge a toda representação. A junção dos dois é indispensável para a compreensão da alegoria de Benjamin, porque uma representação alegórica deve ter um elemento estável, que nunca muda, e que, portanto, contém nele o germe de toda significação (que Benjamin exemplifica com a imagem da caveira), e um elemento transitório. Discutir esses elementos será fundamental para entender a representação do artista moderno como algo momentâneo que significa sempre, e que Baudelaire chama de “l’ébauche parfaite”. À discussão do paradoxo complementar entre os elementos “transitório” e “imutável”, relacionados à representação do artista moderno, será feita uma conexão com a ideia de “subjetividade”, tendo como base Matéria e memória (1896, 1999), de Henri Bergson. Nesse texto, o filósofo discorre sobre o modo em que o “grau de atenção à vida” de cada pessoa depende de uma relação com a “matéria”, à qual relaciona-se aqui com sua “percepção da matéria” que está ligada ao sujeito histórico presente na obra de Baudelaire. 13 Para essa relação, ainda nesta seção, também serão discutidas algumas ideias de André Hirt, filósofo e crítico da atualidade que tem desenvolvido uma ampla reflexão sobre a obra de Baudelaire, com especial atenção à leitura que Benjamin faz dela. O estudioso afirma que alegoria, modernidade e subjetividade estão intrinsecamente relacionadas na obra do poeta francês. Na segunda seção dessa pesquisa, “O tempo, o spleen, e as imagens de Charles Baudelaire a partir de “Chacun sa Chimère”, será abordada a questão da imagem, a partir das reflexões de Hirt. De acordo com ele, a imagem proporcionada pela obra de arte moderna é uma alusão à “imagem real” citada por Baudelaire em “Fusées”, porque está em constante movimento e não é condicionada ao tempo nem ao espaço. No entanto, não pode atingir o “real”, porque este foge a qualquer representação. E estaria no âmbito da “ideia da arte”, tal como foi desenvolvida pelos românticos alemães, e que foi exposta por Benjamin em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (1919, 2011). Nesse texto, Benjamin explica que toda obra de arte “é incompleta”, e, portanto, precisa do momento da crítica que a complemente. A crítica também pode ser associada ao olhar do espectador, que cria sentidos a partir da obra. De acordo com essa ideia, o artista moderno cria essa obra “incompleta” – que é aquilo que Baudelaire denomina “ébauche parfaite”. Esse “esboço”, caracterizado pela ideia de inacabamento, implica a necessidade do olhar do outro para que esteja sempre aludindo à significação. Na terceira seção do primeiro capítulo, “Alegoria como descrição”, será analisada a alegoria levando em consideração sua grafia maiúscula, que em diversos momentos aparece na obra de Baudelaire como personificação. Através dela, se introduz a ideia da limitação da linguagem, além da ideia do spleen que permeia as personificações em seus poemas. Para ilustrar essas reflexões, será feita uma análise de “Chacun sa Chimère” relacionada a algumas de suas traduções, o que permite uma abordagem mais explicativa dessa questão. Na quarta seção do primeiro capítulo, “A morte como auge do spleen”, estabelece-se uma relação do exposto nos pontos anteriores com o conceito de spleen, fundamental em Baudelaire. Na obra do poeta, este aspecto perpassa o presente, provoca o tédio e representa a passagem do tempo. Contrário a ele, e introduzindo a morte na obra do poeta, está o idéal, esfera em que não existiria mais a corrosão do tempo. Nessa equação, a morte pertence ao âmbito da natureza, do belo e da “imagem 14 real”. Ela apresenta a ideia do “eterno retorno” não apenas como um ciclo, mas como uma fuga para o desconhecido. Para complementar essa ideia de “ciclo”, analisa-se o poema “Un hémismisphère dans une chevelure”, utilizando-se de ilustrações de traduções que facilitam a abordagem de reflexões de Barbara Johnson sobre a “dualidade inquietante” e a reversibilidade nos poemas em prosa de Baudelaire. Dessa forma, será apresentado o paradoxo complementar que permeia a obra do poeta – e que já havia sido abordado aqui na exposição dos elementos “transitório” e “imutável”. Com base no poema analisado – “Un hémisphère dans une chevelure” –, desenvolve-se a ideia de que o poeta tem acesso a seu interior através de um aspecto externo. Nesse sentido, o poeta e crítico francês Michel Collot estabelece o conceito de “espaçamento do sujeito”, que designa os aspectos do mundo exterior que se confundem com o interior do artista. No caso do poema “Le confiteor de l’artiste”, essa ideia merece ser discutida, já que através da “Nature” o poeta se vê vencido. Walter Benjamin denomina esse processo de “experiência do choque”, e é nela que se encontra, segundo ele, o âmago do “processo de criação”, eis que torna evidente a insuficiência da linguagem. A ideia da impotência da linguagem, introduzida indiretamente através da alegoria como descrição, fará parte do segundo capítulo da dissertação: “O processo criativo e a linguagem na filosofia da tradução”. Este capítulo da pesquisa envolve uma discussão da filosofia da linguagem surgida através da formulação de Baudelaire de que a obra de arte é uma tradução do que o artista moderno vê. Dessa forma, se aborda aqui alguns fundamentos da obra A tarefa do tradutor de Benjamin, considerando que a obra do poeta seria a tradução da cidade grande, a Paris do século XIX. Na primeira seção desta segunda parte, “Le confiteor de l’artiste e a problematização da linguagem”, será discutida de forma mais densa a importância do olhar do espectador para Baudelaire em sua relação com o tradutor explicado por Benjamin, pois o espectador completa e proporciona dinamicidade à significação da obra de arte moderna e assim o faz quem traduz um texto literário, já que o espectador, de acordo com o poeta, é o tradutor de uma tradução. Como neste trabalho de dissertação se pretende também refletir sobre a questão da linguagem na obra de arte moderna exposta por Baudelaire como tradução, analisa-se a filosofia da tradução de Walter Benjamin abordada em três seções. Na segunda, denominada “A “experiência da tradução” será delineado um paralelo entre a obra de 15 Baudelaire e a de Benjamin – o que já se introduz na primeira parte do segundo capítulo. Com o intuito de articular a reflexão sobre a linguagem, a segunda seção pode ser vista como uma apresentação da terceira: “A tradução como forma”. Visando discutir a reflexão sobre a linguagem, na segunda e terceira seções, relaciona-se fortemente à questão da “experiência do choque” e da obra de arte moderna como tradução do entorno do artista – a cidade grande – em linguagem. Por isso, nela, se almeja evidenciar a relação intrínseca entre a filosofia da tradução e a filosofia da linguagem, o que possibilita entender a tradução enquanto “experiência” ou como reflexão da língua entanto imagem daquilo que só pode ser representado na relação realidade/signo, demandando necessariamente de outro olhar, ou do que Benjamin denomina “forma”. Nesse apartado, serão tecidas algumas considerações sobre a dificuldade nas escolhas lexicais que um tradutor enfrenta ao se deparar perante dois sistemas linguísticos totalmente distintos em suas estruturas sintáticas, gramaticais e lexicais. E que são dispostas como paralelo com o processo criativo do artista moderno enquanto tradutor da cidade grande. Nesta dissertação se privilegia a teoria de Walter Benjamin sobre a linguagem porque, além de estar intrinsecamente ligada aos escritos de Baudelaire, tem contribuído com importantes conceitos aos estudos literários e tradutórios, e tem desencadeado discussões que ainda não se esgotaram. Pela falta de unanimidade entre os especialistas, a abordagem desses conceitos será o mais cuidadosa, respeitando os limites necessários aos que não são especialistas em estudos sobre Benjamin. Assim sendo, nesse ponto a intenção é obter fundamentos para discussões, sem ousar conclusões, que permitam traçar um paralelo entre a obra de arte moderna como tradução da cidade grande, a execução do artista como tradutor e a complementação da tradução como parte fundamental no processo criativo dinâmico exigido pela representação artística moderna. 16 CAPÍTULO 1 - Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia moderna Este capítulo da presente dissertação pretende introduzir alguns fundamentos da poesia de Baudelaire com o intuito de desenvolver alguns pontos relevantes para a compreensão da importância da linguagem no processo criativo do poeta. Dessa forma, para complementar essa reflexão, são utilizados aqui três poemas em prosa do livro Le Spleen de Paris – petits poèmes en prose que constituem três alegorias da vida moderna, relevantes para esta pesquisa: “Chacun sa Chimère”, “Un hémisphère dans une chevelure” e “Le confiteor de l’artiste” – sendo este último necessário para a introdução do segundo capítulo. O primeiro poema trata do caminho de “vários homens que andavam curvados” em “uma grande planície poeirenta” “sob um grande céu cinzento” que levavam em suas costas “uma enorme Quimera”. Quanto a “Un hémisphère dans une chevelure”, o poema aborda as evocações que uma cabeleira desperta nos pensamentos e nas lembranças do poeta. Já em “Le confiteor de l’artiste”, apresenta-se um cenário natural em que o mar e o horizonte infinito oprimem o artista levando-o a perceber sua vulnerabilidade perante a natureza. Como é possível observar, cada poema apresenta tópicos diferentes que se entrelaçam para abordar de maneira alegórica diversos aspectos da cidade grande e da modernidade de Baudelaire. Este conceito, renovado pelo poeta em sua poesia e em seu texto Le peintre de la vie moderne (1859, 1976), suscita questões na reflexão sobre o tempo e sobre a obra de arte. Para empreender essa reflexão, torna-se necessário recuperar algumas tensões próprias da Paris em que o poeta viveu, dando ênfase àquelas que permitam desenvolver aspectos relevantes para uma discussão sobre a linguagem como expressão do artista moderno. 17 1.1 O cenário de Charles Baudelaire, modernidade e alegoria Charles Baudelaire nasceu no ano de 1821 em Paris, onde viveu maior parte de sua vida, e faleceu também nessa cidade em 1867. Portanto, a cidade grande e moderna que embasa sua obra é a capital francesa do século XIX. O momento histórico da vida do poeta é significante para a compreensão do caráter precursor e revolucionário de sua abordagem literária. Paris era o centro cultural e político do mundo, palco dos movimentos revolucionários, das novas ideologias e das manifestações artísticas. A França foi um a potência nos anos 1800: “os franceses inventaram ou foram os primeiros a desenvolver as grandes lojas de departamentos, a propaganda e, guiados pela supremacia da ciência francesa, todos os tipos de inovações e realizações técnicas” (HOBSBAWM, 1962, p.126). A essas invenções e realizações está relacionada a velocidade dos meios de comunicação a partir da proliferação das ferrovias e da produção industrial que modificou a relação do homem e da sociedade com o tempo. A revolução tecnológica desse século trouxe um ritmo jamais vivenciado que foi implementado pela revolução industrial com a aplicação da tecnologia aos processos de produção. Em seu livro A era das revoluções (1962), Eric Hobsbawm sintetiza o efeito transformador da revolução francesa ao ressaltar a “multiplicação rápida e constante” consequente da “retirada dos grilhões do poder produtivo”: a certa altura da década de 1780, e pela primeira vez na história da humanidade, foram retirados os grilhões do poder produtivo das sociedades humanas, que daí em diante se tornaram capazes da multiplicação rápida, constante, e até o presente ilimitada, de homens, mercadorias e serviços. (HOBSBAWM, 1962, p.20) Apesar dessas inovações e das grandes reservas de capital que o país acumulara durante os anos posteriores à Revolução de 1789, a sociedade francesa do século XIX, “burguesa em sua estrutura e em seus valores” (HOBSBAWM, 1962, p.131), estava marcada por uma grande desigualdade social. Muitos enriqueciam graças à atividade industrial, financeira e burocrática, no entanto, a “cada homem que ascendia no mundo dos negócios, um grande número necessariamente descia”1 e a classe trabalhadora permanecia na indústria “incansavelmente durante toda a semana para obter uma renda 1 Ibid p.140 18 mínima”2 marcando a França, potência econômica, com a miséria. Ressalta-se, para salientar mais aspectos, grandes alterações urbanísticas que Paris sofreu, dentre 1850 e 1870, promovidas pelo Barão de Haussmann, resultando na destruição da cidade antiga e a criação da cidade moderna, provendo-a de uma rede de esgoto, dos boulevares e cafés, bem como o cenário da vida noturna propagado por consagrados escritores e artistas de todos os tempos. Além disso, as transformações dessa Paris que viveu Baudelaire acarretaram muitas outras consequências à vida das classes baixas – empurradas à periferia da cidade. Em seu livro Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo (1989), Walter Benjamin cita a prostituição e a miséria como práticas desse setor da sociedade. No entanto, a tradição boêmia de Paris estará marcada pelo pensamento revolucionário da época. Exemplo disso é “a barricada”, “ponto central do movimento conspirativo” (BENJAMIN, 1989, p.12) que caracteriza o século. É dessa “capital do século XIX”, marcada por profundas contradições, que Baudelaire vai extrair todo um fundamento novo sobre modernidade, além do “idéal obsédant” de sua prosa poética. Na “Dédicace” à Arsène Houssaye, disposta como prefácio de Le Spleen de Paris, o poeta explicita: “C’est surtout de la fréquentation des villes énormes, c’est du croisement de leurs innombrables rapports que naît cet idéal obsédant.”3 (BAUDELAIRE, 1976, p.276). Portanto, é da observação da cidade moderna, tomada por grandes transformações provocadas pela industrialização e a mercadorização de tudo em um curto lapso de tempo, que Baudelaire extrai os fundamentos de sua poesia. O título de “poeta da modernidade” conferido a Baudelaire por Hugo Friedrich em seu livro Structure de la poesia moderne (1956, 1999) provém, especialmente, de Le peintre de la vie moderne, obra em que aquele tenta explicar o que busca o pintor da vida agitada da cidade grande. Nesse texto, o poeta afirma que “il s’agit [...] de dégager de la mode ce qu’elle peut contenir de poétique dans l’historique, de tirer l’éternel du transitoire”4 (BAUDELAIRE, 1976, p.694). Apontando para um caráter transhistórico, para ele “il y a eu une modernité pour chaque peintre ancien”, já que em todas as 2 Ibid p.36 Todas as citações serão traduzidas, salvo as dos três poemas principais, pois estão em anexo, e as expressões francesas. As traduções de Baudelaire para o português, dispostas em notas, serão retiradas da edição brasileira das Obras Completas Poesia e Prosa (2006), composta por textos assinados por diferentes tradutores. “É sobretudo da frequentação das grandes cidades que nasce este ideal obsessor”. Pequenos poemas em prosa, (2006), tradução de Aurélio Buarque de Holanda. 4 “Trata-se [...] de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório”. O Pintor da vida moderna (2006), tradução de Adolfo Cassais Monteiro 3 19 épocas existiu algum elemento passageiro que se contrapunha ao que é comum a elas. Dessa forma, o elemento passageiro é o que se deteriora com a passagem do tempo, se contrapondo a algo neutro que sempre permanece. Isto, para Baudelaire, constitui uma parte importante da modernidade, porque é através do que nunca muda que se pode detectar as mudanças provocadas pelo tempo, sem as quais não há como perceber o imutável. Desta maneira, o poeta não rejeita o comum às diferentes épocas, mas o incorpora ao presente. Assim, ele é valorizado como fator que possibilita separá-lo do transitório característico do momento, ou do efêmero inovador. Por isso, o estudioso Gérard Froidevaux (1989, pp.694-695) explica que para o autor de Le Spleen de Paris a modernidade é um “projeto de salvação do presente”, já que nela se articulam, de forma coesa, o eterno e o transitório “buscando em sua fusão a beleza ideal”. Portanto, a modernidade de Baudelaire “c’est le transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié de l’art, dont l’autre moitié est l’éternel et l’immuable”5 (BAUDELAIRE, 1976, p.695). Isso significa que o transitório é complementar ao eterno porque o que varia só pode existir a partir do invariável: Cet élément transitoire, fugitif, dont les métamorphoses sont si fréquentes, vous n’avez pas le droit de le mépriser ou de vous en passer. En le supprimant, vous tombez forcément dans le vide d’une beauté abstraite et indéfinissable. (BAUDELAIRE, p.695, 1976)6 Ao afirmar que não se pode desprezar esse “élément transitoire”, o poeta confere importância ao que é passageiro, no sentido de que o eterno só pode ser vislumbrado pelos elementos transitórios. Por outro lado, e de maneira complementar, a afirmação de que é preciso “tirer l’éternel du transitoire” permite constatar que não pode existir o transitório sem o eterno. Desta forma, para “tirer l’éternel du transitoire”, o artista da modernidade deve observar a cidade grande e dela retirar sua poesia. Deve dar forma ao que é passageiro de maneira que este sempre aluda ao eterno. Além disso, esse artista deve se reconhecer, também, como um ser transitório dotado de um olhar finito, o que significa ser um flâneur que se “embriaga” com a cidade pela qual “vaga sem rumo” (BENJAMIN, 1989, p.186) em uma tentativa de representá-la a partir de sua condição humana e efêmera. 5 “É o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável” 6 "Não temos o direito de desprezar ou de prescindir desse elemento transitório, fugidio, cujas metamorfoses são tão frequentes. Suprimindo-os, caímos forçosamente no vazio de uma beleza abstrata e indefinível" 20 Nessa concepção do ato criador, que só é possível vinculado à perambulação pela cidade, o artista, antes de sê-lo, precisa ser um “homme du monde” (BAUDELAIRE, 1976, p. 688), o que para Baudelaire significa “homme qui comprend le monde et les raisons mystérieuses et légitimes de tous ses usages”7 (BAUDELAIRE, 1976, p.688). Esse homem do mundo, que “vaga sem rumo” pela cidade à luz do dia como flâneur e cuja paixão e profissão “c’est d’épouser la foule”, “quand le soir est venu”, faz com que as coisas renasçam “sur le papier”, exercendo assim sua função de artista. A execução criativa, em que “une contention de mémoire réssurrectionniste, évocatrice”8 aparece, está relacionada com a imaginação, denominada pelo poeta, em seu Salon de 1859 (1859, 1976), “la reine des facultés”. Nesse texto, Baudelaire diz que o artista moderno, “le vrai artiste, le vrai poète, ne doit prendre que selon qu’il voit et qu’il sent. Il doit être réellement fidèle a sa propre nature”9 “Être fidèle a sa propre nature”, nessa concepção da criação poética, significa deixar a memória recriar o que foi visto a partir do que sente o artista enquanto sujeito histórico: sendo ele “uma espécie de historiador do presente”, “em vez de aprisionar o espetáculo da vida contemporânea em uma representação objetiva, procura com que se viva o presente através de uma imagem impressa de sua própria subjetividade.” (FROIDEVAUX, 1989, pp. 12-13). Dessa forma, imaginação e memória se relacionam na representação moderna porque a memória impulsiona o artista a criar a obra de arte que só poderia ser executada a partir de sua imaginação. Ambas se entrelaçam naquilo que se denomina “subjetividade”. Em Matéria e Memória, Henri Bergson (1999, p.17) oferece valiosas reflexões para entender o conceito de “subjetividade”. Nesse texto, o filósofo faz uma distinção entre “matéria” e “percepção da matéria”, sendo esta o conjunto de “imagens relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada”, que é o próprio “corpo” do sujeito. Portanto, de acordo com Bergson, o homem percebe a matéria a partir dos estímulos recebidos por seu corpo em conjunção com as reações que este produz em si. Dessa maneira, a relação feita por Bergson para um melhor entendimento do que seria matéria é a relação entre o cérebro e o universo. O primeiro, elemento que percebe a matéria, segundo o filósofo, não pode condicionar a imagem do universo, do infinito, ou seja, da matéria, o que implica que o universo continua existindo mesmo se 7 "Homem que compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de todos os seus costumes" Ibid p. 699. “Um esforço de memória ressurreicionista, evocadora” Ibid p. 620"O artista, o verdadeiro poeta só deve pintar o que vê e o que sente. Ele deve ser realmente fiel à sua própria natureza" Salão de 1859 (2006). Tradução de Suely Cassal. 8 9 21 não houver as percepções cerebrais. Por isso, é possível estabelecer um paralelismo com o fragmento anteriormente citado de Le peintre de la vie moderne, em que Baudelaire afirma que eliminando o transitório cai-se “forcément dans le vide d’une beauté abstraite”, porque não havendo a percepção, a matéria é vazia de interpretações e de sentidos. Daí se desprende que se o artista moderno trabalha a partir de sua “percepção da matéria”, o ritmo do mundo em que vive é fundamental à sua criação. Por isso, Baudelaire diz que “il y a dans la vie triviale, dans la métamorphose journalière des choses extérieures, un mouvement rapide qui commande à l’artiste une égale vélocité d’exécution”10 (BAUDELAIRE, 1976, p.686) já que o artista deve realizar uma obra de arte que seja compatível com o que observa e com a velocidade desse entorno. Assim, se produz o que o poeta denomina “ébauche parfaite”11, em que, segundo o autor de Le Spleen de Paris, desenha a partir da memória e não do modelo, esforçando-se para não perder nenhum detalhe do espetáculo incessante da cidade grande. Ainda de acordo com Matéria e Memória, Bergson (1999, p.6) afirma que as imagens “são representadas à consciência na forma de um esboço”, já que são alusivas e evocam a matéria. Dessa forma, a memória tem fundamental importância nessas percepções, visto que, segundo o filósofo, além de não haver percepção que não seja “impregnada de lembranças”, a memória permite “representações infinitas” devido a sua intrínseca ligação com a percepção momentânea e a substituição de uma pela outra: Nada impede que se substitua essa percepção, inteiramente penetrada de nosso passado, pela percepção que teria uma consciência adulta e formada, mas encerrada no presente, e absorvida, à exclusão de qualquer outra atividade, na tarefa de se amoldar ao objeto exterior. (BERGSON, 1997, p.30) Se a “percepção da matéria” é um esboço da “matéria”, e nela a memória é necessária e imprescindível, isso significa que, ao relacionar-se a essas ideias, a obra de arte moderna é um esboço em que estão contidas inúmeras representações alusivas, visto que é uma percepção feita pelo presente e pela memória. Essa condição da obra de arte moderna está vinculada a seu inacabamento que provém exatamente da condição alusiva da percepção do artista moderno. Sendo assim, a representação moderna não estagna o objeto representado e, por não estagná-lo, demanda olhares externos que 10 "Mas há na vida ordinária, na metamorfose incessante das coisas exteriores, um movimento rápido que exige do artista idêntica velocidade de execução" 11 Ibid p. 700 22 possam se adaptar a ela para que suas inúmeras representações alusivas não se degradem nem se percam com o tempo. Nesse sentido, segundo Dolf Oehler em seu livro Quadros Parisienses (1997), para Baudelaire, a arte “exige do público”, a quem o artista põe “o fardo diretamente nas costas”. Desta forma, as contradições provindas da modernidade, e dispostas como esboço pelo poeta, são incorporadas à obra de arte, que é abalada por elas, como assinala Oehler: [...] tornar o trabalho de auto-orientação e o esforço da compreensão mais atraentes ao público (prazer estético antecipado, promesse de bonheur), mas não subtrair-lhe a tarefa; pelo contrário: ela [a arte] exige que o público a tome em suas mãos e põe-lhe o fardo diretamente nas costas mediante a concentração e o acúmulo das contradições com que, no cotidiano (burguês), ele se depara numa frequência que pode suportar ou ao menos evitar. Para impedir a negação das contradições pelo público, a obra de arte tem de incorporar as contradições em sua estrutura e por elas ser abalada... (OEHLER, 1997, pp. 158 – 159) Porque o “ébauche parfaite” demanda o olhar do público e o exige, ele pode ser considerado como o que Benjamin chama de “obra de arte incompleta” já que “apenas o incompleto pode ser compreendido, pode nos levar mais além. O completo pode ser apenas desfrutado.” (BENJAMIN, 2011, p.78). Sendo “incompleta”, na obra de arte estaria contida a “ideia da arte”12, que seria a arte em termos “absolutos”. No entanto, a “ideia da arte” não pode ser representada, apenas aludida através da obra que, apesar de evoca-la só pode complementar sua significação através de sua crítica. Esta, chamada por Benjamin de “forma”, se relaciona aos olhares criados, as evocações suscitadas, as inúmeras possibilidades e cenários que a obra propicia ao leitor, espectador ou contemplador. Posto que a obra de arte permite diversas “formas”, ou diversos olhares, esta é um “continuum de formas” e portanto, precisa necessariamente delas – dessas “formas”. Benjamin explica essa relação no seguinte trecho de seu livro O conceito de crítica de arte do romantismo alemão: O conjunto da teoria da arte romântica repousa sobre a determinação do medium-de-reflexão enquanto arte, ou melhor dizendo, enquanto Ideia da arte. Dado que o órgão da reflexão artística é a forma, logo a Ideia da arte é definida como o medium-de-reflexão das formas. Neste relacionam-se constantemente todas as formas-de-exposição, transformando-se umas nas outras e se unindo na forma-da-arte absoluta, que é idêntica à Ideia da arte. A ideia romântica da unidade da arte assenta-se portanto na Ideia de um continuum das formas. (BENJAMIN, 2011, p.94) 12 Ibid p.94 23 Se o medium-de-reflexão das formas pode ser relacionado ao que seria a “ideia da arte”, Willi Bolle explica que para Benjamin, a cidade grande também pode ser considerada como tal: “pode-se dizer que ele procurou não apenas retratar a metrópole, mas considerá-la como medium-de-reflexão.” (BOLLE, p.93, 2007). Disso se depreende que, apesar de poder ser aludida, a cidade grande não pode ser representada efetivamente; talvez por isso, Benjamin afirma que “em As flores do Mal não há menor indício de uma descrição de Paris” (BENJAMIN, 1989, p.167). No entanto, ainda que não possa ser descrita ou representada, a cidade possibilita inúmeros olhares, sentimentos e sensações, o que possibilita um constante movimento que existe a partir das diversas perspectivas de quem a vê. Por isso, ao representar através de seu esboço perfeito sua percepção da cidade grande, o artista moderno atribui a ela diversas nuances que lhe permitem ser recriada. Dessa forma, o portador do “olhar primeiro” é o artista, a quem Baudelaire denomina flâneur, pois “vaga sem rumo”. Assim sendo, exige de seu público uma complementação a sua obra, por isso, o artista deve ser um observador que, segundo o crítico Claude Tuduri em “Baudelaire ou l’éternel confident” (2012), “procura a rima interna e o sal das ruas”: Andar pela cidade é o flâner mais comum, mas flâner com o olhar aguçado, flâner procurando a rima interna e o sal das ruas e dos rostos para vivê-los e decifrar um instante e um aumento de presença que poderia mudar tudo... para ele, tudo "se transforma em alegoria" e esse trabalho de alquimista reserva pouco espaço ao pitoresco descritivo que muitos outros poetas puderam privilegiar para seduzir imediatamente seu leitor com paisagens facilmente reconhecidas. (TUDURI, 2012, p.652) Esse “trabalho de alquimista” é próprio do “alegorista”. Para Benjamin, marcada pelo contraditório, em que a bela aparência esconde em seu cerne a ruína, a modernidade, assim como o fez Baudelaire, só pode ser escrita com a alegoria. Escrever e pensar a modernidade, para o filósofo, é uma tarefa que não pode ser feita com a clara e distincta perceptio que está na base na teoria do símbolo – da significação concisa e momentânea – ou seja, a modernidade não pode ser representada através de uma obra de arte estática, presa a um momento determinado, porque exige uma representação dinâmica que só pode existir sem a prisão do tempo e do espaço. Nesse sentido, de acordo com Benjamin (1984, p.197), em Origem do drama barroco alemão, na alegoria “cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar 24 qualquer outra coisa” e a palavra não pode ser fixada na coisa que ela pretende nomear. Por isso, a condição alegórica da linguagem está relacionada a uma alusão à significação, já que a verdadeira significação nunca pode ser atingida através da expressão humana. Ao explicar essa ideia benjaminiana, Paulo Sérgio Rouanet diz que “ao lacrar as coisas com o selo da significação”, o alegorista as salva “contra a mudança”, já que “arranca o objeto de seu contexto” e o “converte em chave para um saber oculto” (ROUANET in: BENJAMIN, 1984, p.40). Esse “saber oculto” pode ser interpretado como os potenciais olhares futuros ou como as “formas” por vir, em um “continuum de formas” – o que pode ser associado à ideia de “obra de arte incompleta”. Dessa maneira, o alegorista dá um “poder divino” (BENJAMIN, 1984, p.197) ao que representa, posto que permite que a significação do objeto representado seja constante. Por isso, os pormenores na obra de arte são importantes na “exegese alegórica da escrita” e a ideia de que cada “pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra coisa”, segundo Benjamin, ...profere contra o mundo profano um veredito devastador, mas justo: ele é visto como um mundo no qual o pormenor não tem importância. Mas ao mesmo tempo se torna claro, sobretudo para os que estão familiarizados com a exegese alegórica da escrita, que exatamente por apontarem para outros objetos, esses suportes da significação são investidos de um poder que os faz aparecerem como incomensuráveis, às coisas profanas, que os eleva a um plano mais alto, e que mesmo os santifica. Na perspectiva alegórica, portanto, o mundo profano é ao mesmo tempo exaltado e desvalorizado. (BENJAMIN, 1984, p.197) Nessa exposição, para Benjamin, o mundo profano é o mundo em que vivemos, o mundo físico em que o “pormenor não tem importância”. No entanto, esse “pormenor”, na alegoria, não só tem importância como é “investido de um poder que o eleva a um plano mais alto”. Isto lhe permite aludir constantemente ao significado absoluto. O que Benjamin explica é que a condição alegórica da expressão não retira o presente do mundo físico, mas permite que alguns de seus aspectos não estejam sujeitos ao tempo, e que este esteja a seu favor. Em outras palavras, a alegoria permite que o tempo seja o fator chave que possibilita a um objeto “evoluir” em diferentes épocas, convenções e conceitos. Walter Benjamin, recuperando do barroco a reflexão sobre o tempo e o movimento, estabelece uma conexão entre alegoria e caveira: 25 A alegoria mostra ao observador a facies hippocratica da história como protopaisagem petrificada. A história em tudo o que nela desde o princípio é prematuro, sofrido e malogrado, se exprime num rosto – não, numa caveira. E porque não existe, nela, nenhuma liberdade simbólica de expressão, nenhuma harmonia clássica da forma, em suma, nada de humano, essa figura de todas a mais sujeita à natureza, exprime não somente a existência humana em geral, mas, de modo altamente expressivo, e sob forma de um enigma, a história biográfica de um indivíduo. Nisso consiste o cerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da história mundial como história mundial do sofrimento. [...] Quanto maior a significação, tanto maior a sujeição à morte, porque é a morte que grava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a physis e a significação. (BENJAMIN, 1984, p. 188) Essa citação explicita que na morte se encontra a significação da vida. Por isso, a caveira está relacionada à significação, porque só ela pode ser o ponto de partida para “qualquer desenho de rosto físico” (BENJAMIN, 1984, p.188) e não teria tempo e espaço claros. Estaria sempre em movimento. A esse raciocínio, pode-se acrescentar a ideia de André Hirt, contida em seu livro Baudelaire – l’éxposition de la poésie (1998), de que a “imagem poética” “não está no presente” (HIRT, 1998, p.125), o que significa que ela, assim como a caveira, não está condicionada a um momento ou a um lugar, porque “rompe suas amarras com sua objetividade”, como indica Hirt no trecho a seguir: A imagem contém sob todos os aspectos um movimento propriamente aberrante na medida em que o tempo e o espaço se acham liberados de todo encadeamento mecânico ou habitual. Além disso, na imagem, são o tempo e o espaço que se transformam no objeto da sensação e do pensamento e não antes, o movimento tal como o conhecemos ou reconhecemos (são o tempo e o espaço que permitem compreender o movimento e não o contrário). (HIRT, 1998 p.125) Se a imagem não é corrompida pelo tempo e pelo espaço, mas se vale deles para se perpetuar em seu movimento, ao alegorista corresponde a tentativa de dominá-los, impedindo-os de agir contra a arte para que não a deteriore. Para isso, o artista deve sempre evocar o infinito, ou seja, o que não é delimitado espacialmente nem temporalmente. Nesse sentido, Hirt explica que, para Baudelaire “não existe natureza, existe apenas a arte”, posto que ela é “trabalhada e penetrada pelo spleen” (HIRT, 1998, p.138). Assim sendo, o estudioso cita o poeta em Fusées (1851, 1976): “les méprises relatives aux visages sont le résultat de l’éclipse de l’image réelle par l’hallucination 26 qui en tire sa nature.”13 (BAUDELAIRE, 1976, p. 653). Essa frase explicita a ideia de que a “real imagem” só pode ser vista através de suas “deformações”, mas que de certa forma tem cifrada, em suas entrelinhas, a evocação da “imagem real”. Por isso, quando Hirt explica que, para Baudelaire, “existe apenas a arte”, é possível deduzir que a arte é, para o poeta, a única forma de representação autêntica, visto que somente através dela tem-se a noção do infinito, ou seja, daquilo que o olhar humano passageiro não é capaz de atingir, mas que pela representação artística é possível imaginar. Esse raciocínio é complementado pela seguinte afirmação de Benjamin: “no terreno prático, a imaginação prossegue ao infinito, até a ideia pura e simplesmente indeterminada da suprema unidade, que só seria possível depois de uma infinitude perfeita, que é por si só impossível.” (BENJAMIN, 2011, p.33). Dessa forma, se a imaginação “prossegue ao infinito” e, segundo Baudelaire, “l’imitation exacte gâte le souvenir” (BAUDELAIRE, 1976, p.455), não é pela cópia que o artista moderno produz, e sim pelo “souvenir”, que pode ser considerado como aquilo que impulsiona o artista a criar; e pela imaginação, que possibilita a ele executar sua obra de arte em sua condição dinâmica, já que somente dessa forma, com a junção dos dois, essa representação moderna pode aludir ao infinito. Desse modo, “l’ébauche parfaite” não poderia ser aprisionado ao tempo e ao espaço, já que evoca a “imagem real”, ou “a Ideia da arte”. Por isso, esse “esboço” só pode ser executado na condição alegórica da expressão porque apesar de ser produzido em um contexto definido, não é temporalmente determinado, razão pela qual sua significação alude ao infinito. Portanto, se para Baudelaire “tudo se transforma em alegoria”, a obra de arte deve resistir à consolidação de toda e qualquer significação aprisionada pelo tempo. Esse dinamismo da obra de arte está relacionado na modernidade baudelairiana à rapidez do mundo moderno, como apresenta o poeta em seu texto Le peintre de la vie moderne ao afirmar que, no momento da produção da obra de arte, aparece no artista, “un feu, une ivresse de crayon, de pinceau” que deriva de “la peur de n’aller pas assez vite, de laisser échapper le fântome avant que la synthèse n’en soit extraite et saisie.”14 (BAUDELAIRE, 1976, p.699). Dessa forma, a rapidez que esse artista precisa ter para que nada lhe escape está ligada ao ritmo do mundo moderno, a sua produção em massa 13 "Os equívocos da apreciação de um rosto resultam do ocultamento da imagem real por outra, alucinatória, que dela se origina". Projéteis (2006). Tradução de Fernando Guerreiro. 14 "Um fogo, uma embriaguez de lápis, de pincel" "o medo de não agir com suficiente rapidez, de deixar o fantasma escapar antes que sua síntese não tenha sido extraída e captada" 27 e a “la peur de n’aller pas assez vite”. Este medo, por sua vez, está relacionado à passagem do tempo porque é ele que degrada o entorno do poeta e o sujeita ao tédio. 1.2 O tempo, o spleen e as imagens de Charles Baudelaire a partir de “Chacun sa Chimère” A velocidade do mundo moderno, ou, de acordo com André Hirt, “as novidades do progresso”, provocam nos homens que as vivenciam, de acordo com noções que caracterizam a poesia de Baudelaire, “spleen, ennui, péche originel” (HIRT, 1998, p.140). Para este estudioso, apesar de que com o capitalismo tenham sido instauradas a “inquietude do novo e a vontade frenética de mudança a qualquer preço”, da mesma forma, para o poeta francês, o spleen é um afeto dessa época, cuja experiência é “tanto a do tédio quanto a da melancolia”, como é possível observar no trecho a seguir: Sua experiência [a do spleen] é tanto a do tédio quanto a da melancolia. É essencialmente a deficiência existencial e ontológica do labiríntico, ou seja, de um lado do que não tem saída clara, de outro o que insiste na impossibilidade de toda realização. O spleen é a antítese de toda solução. Além disso, o spleen é estruturado pela gravidade do tempo. (HIRT, 1998, p. 147) O peso do spleen é de tal ordem no indivíduo, que este só pode vivenciá-lo “no tédio” porque o spleen está relacionado à vida moderna cíclica que parece impor às pessoas sempre a mesma desesperança. Isso explica porque toda vez que faz referência a esse sentimento, Baudelaire leva o tempo a uma condição exponencial, porque ele se refere à passagem dos dias como degradação do mundo físico de cada indivíduo. Exemplo disso é a seguinte passagem de “Chacun sa Chimère”, que apresenta esse aspecto degradante do spleen: Tous ces visages fatigués et sérieux ne témoignaient d'aucun désespoir; sous la coupole spleenétique' du ciel, les pieds plongés dans la poussière d'un sol aussi désolé que ce ciel, ils cheminaient avec la physionomie résignée de ceux qui sont condamnés à espérer toujours. (BAUDELAIRE, 1976, p.283) Esse fragmento do poema se relaciona à seguinte afirmação de Hirt: “por causa do seu caráter fundamentalmente extensível, o spleen consistirá em uma exposição do 28 tempo” e “possui como um de seus recursos paradoxais o de degradar tudo o que encontra, todas as ocorrências cronológicas possíveis.” (HIRT, 1998, pp.147-148). É o tempo que degrada tudo o existente, e é o responsável pelas fisionomias resignadas dos homens. Por isso, nessas linhas de “Chacun sa Chimère”, Baudelaire representa alegoricamente a vida do homem moderno através de imagens degradadas da fisionomia destes e do caminho físico em que se encontram, o que situa o poema na esfera do spleen. Segundo Hirt, essa deterioração se liga à origem da palavra spleen, que surgiu antes de Baudelaire e designava os “vapores ingleses”: a fumaça proveniente das indústrias que dependia do carvão para funcionar era expelida à atmosfera, deixando o céu e o ambiente cinzentos, como se indica na citação a seguir: O spleen possui uma origem geográfica muito determinada: é uma questão de spleen inglês para designar um céu inglês, um clima inglês, um nevoeiro, bem inglês, sem falar que uma certa atmosfera se reconhecia na superfície do céu tão ligada ao Moderno, aquela que é invadida pela poeira de carvão nas grandes metrópoles do capitalismo triunfante na segunda revolução industrial. (HIRT, 1998, p. 150) Não é por acaso que esse céu também está relacionado à obra de Baudelaire. O aspecto meteorológico ligado ao contexto industrial aparece muitas vezes ao longo de seus escritos. Em “Chacun sa Chimère”, esse céu cinza é uma “coupole spleenétique”. Este recebe um tratamento estético semelhante no poema “Spleen” do livro Les Fleurs du Mal: “pèse comme un couvercle/Sur l'esprit gémissant”. Além disso, esse céu de “Chacun sa Chimère” é descrito como “un grand ciel gris” que enclausura “une grande plaine poudreuse”. Por outro lado, esse poema em prosa também põe em perspectiva a relação com o tempo na medida em que ele aparece como fator degradante. O vocabulário escolhido por Baudelaire representa, alegoricamente, a degradação da sociedade que vive o sonho moderno. Palavras e expressões como “coupole spleenétique”, “poussière d’un sol aussi desolé que ce ciel” “physionomie résignée”, “condamnés à espèrer toujours”, “lourdement accablé” e “Indifférence”, compõem a deterioração provinda do peso do tempo, segundo foi afirmado por Hirt. O “cortège” com que se representam os “plusieurs hommés qui marchaient courbés” remete a “des esprits errants et sans patrie” do poema “Spleen” (LXXVIII) de Les Fleurs du Mal, que exemplifica mais uma vez a deterioração do mundo moderno através de imagens de homens resignados ou espíritos errantes passivos à degradação da vida moderna. 29 A condição deteriorante da cidade submetida ao tempo da indústria é representada na poesia de Baudelaire por meio da evocação dos trabalhadores na sociedade moderna. No primeiro parágrafo do poema que aqui se analisa, é descrita a seguinte situação : “Sous un grand ciel gris, dans une grande plaine poudreuse, sans chemins, sans gazon, sans un chardon, sans une ortie, je rencontrai plusieurs hommes qui marchaient courbés.”. Cada um desses “hommes courbés” carregava em seus costas “une énorme Chimère aussi lourde qu’un sac de farine ou de charbon”. A utilização de “un sac de farine ou de charbon” como termo de comparação ao peso do monstro remete a uma sociedade que concebe a indústria como uma manifestação evidente do progresso. No entanto, para Baudelaire, o progresso acarreta a “atrofia do espírito”, como explica Hugo Friedrich: Baudelaire define o progresso como “uma diminuição progressiva da alma, uma dominação progressiva da matéria” e ainda como uma “atrofia do espírito”. Ele nos fala de seu imenso desgosto perante os cartazes, os jornais, perante o “fluxo crescente da democracia nivelando toda coisa.” (FRIEDRICH, 1999, p.54) Considerando o progresso como “uma diminuição progressiva da alma”, a referência à indústria no poema é, de certa forma, uma alusão a essa “atrofia do espírito” provocada pela “Chimère”, ou pelo peso da vida moderna, que está diretamente relacionada aos sentimentos provocados pelo spleen: a melancolia e o tédio. Desta forma, observa-se que, através do conceito de spleen, Baudelaire torna explícito que ele confere um caráter objetivo às manifestações espirituais e afetivas do homem moderno: a “plaine poudreuse” da qual fala o poeta, não deixa de ser uma representação da vida dos trabalhadores condicionada por essa cidade grande onde vivem. Através da negação, Baudelaire evoca os elementos que se espera encontrar nessa planície. Em outras palavras, no poema, ele faz referência ao que está ausente. Objetivamente, bastaria representar a “grande plaine poudreuse” vazia; no entanto, o poeta opta por utilizar esses elementos que expõem tudo o que nela poderia ou deveria existir, mas que não existe. A descrição de um ambiente “sans chemins, sans gazon, sans un chardon, sans une ortie” se apresenta, portanto, como o que a vitrine de uma loja oferece para quem tem o “sonho do consumo” ou simplesmente a vontade de ter, mas que não pode comprar. Dessa forma, os “hommes qui marchaient courbés” representam alegoricamente os trabalhadores que vivem em uma situação de acordar, 30 trabalhar e dormir, e não podem desfrutar daquilo que seu pouco dinheiro eventualmente poderia comprar. Dessa maneira, a evocação de imagens através de sua negação constitui uma abordagem do spleen no sentido de que seria uma representação da desigualdade social e da impossibilidade do poder de compra dos trabalhadores. Ou seja, uma representação alegórica de uma das condições provocadas pela modernidade na cidade de Paris, metrópole que, segundo Benjamin, (1989, p.167) nunca é “descrita” por Baudelaire porque não é “a melodia” que o poeta “tem em mente” (BENJAMIN, 1989, p.161). Isso acontece porque essa Paris está relacionada ao “elemento imutável” e não pode ser representada com exatidão. Por isso, a evocação dessas imagens através de sua ausência seria uma forma de “aguçar o olhar” para captar seus elementos transitórios que caracterizam a cidade em sua modernidade. No entanto, o ritmo que a modernidade imprimiu à vida na metrópole exige do artista moderno uma forma de expressão que lhe permita usar a seu favor a condição limitante do tempo. Por isso, ao tentar captar os elementos transitórios e valer-se deles de forma alegórica em sua obra, ele dispõe os materiais artísticos de maneira a adaptá-los aos diversos formatos que poderiam aludir ao elemento imutável. Essa capacidade de adaptação da obra de arte moderna a novos olhares deriva diretamente do ideal da prosa poética de Baudelaire. Exemplo disso é o seguinte trecho de sua dedicatória à Arsène Houssaye, disposta como o prefácio de Le Spleen de Paris: Quel est celui de nous qui n’a pas, dans ses jours d’ambition, rêvé le miracle d’une prose poétique, musicale, sans rythme et sans rime, assez souple et assez heurtée pour s’adapter aux mouvements lyriques de l’âme, aux ondulations de la rêverie, aux sobressauts de la conscience ? 15 (BAUDELAIRE, 1976, p.275-276) Essa “prose poétique, musicale, sans rythme et sans rime, assez souple et assez heurtée pour s’adapter aux mouvements lyriques de l’âme.” destina-se, como explica Max Milner, à “musicalidade por outros meios além da sonoridade e da métrica. Esses meios nos sugerem, pela menção de muitas de suas relações, haver nascido da frequentação das grandes cidades”. A cidade grande, portanto, é aludida na obra de Baudelaire através da “estética de modulação e variação, que trabalha com afinidade entre imagens e temas, suas evocações, choques e dissonâncias.” (MILNER in: 15 “Qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica de contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio e aos sobressaltos da consciência?” 31 BAUDELAIRE, 1979, p.16). Por isso, a obra não tem ritmo nem rima, já que a representação só pode ser feita por elementos transitórios que são mutáveis e finitos. Estes são organizados pelo poeta em um conjunto que não é estático, já que fazem parte de algo que só pode ser evocado: a cidade grande. Esta é relacionada à serpente aludida por Baudelaire ainda em sua dedicatória: Nous pouvons couper où nous voulons, moi ma rêverie, vous le manuscrit, le lecteur sa lecture ; car je ne suspends pas la volonté rétive de celui-ci au fil interminable d’une intrigue superfine. Enlevez une vertèbre, et les deux morceaux de cette tortueuse fantaisie se rejoindront sans peine. Hachez-la en nombreux fragments, et vous verrez que chacun peut exister à part. Dans l’espérance que quelques-uns de ces tronçons seront assez vivants pour vous plaire et vous amuser, j’ose vous dédier le serpent tout entier. 16 (BAUDELAIRE, 1976, p.275) A serpente evocada por Baudelaire anteriormente pode ser interpretada como uma alusão a Paris ou à cidade grande. Suas vértebras podem ser consideradas como elementos transitórios que se juntam para compor a representação da vida moderna gerada por essa Paris vivida pelo poeta. Traspondo essas reflexões para uma interpretação de “Chacun sa Chimère”, é possível estabelecer um paralelismo entre as vírgulas e as vértebras: na composição dos elementos transitórios, elas dividiriam as representações alegóricas de forma que cada uma delas possa ser lida e evocada separadamente. Porque se “tudo se transforma em alegoria”, para Baudelaire cada representação que compõe a imagem da cidade precisa significar. Nesse sentindo, de acordo com Hirt, “a imagem do poema guarda o que está antes do poema e aponta em direção ao seu porvir em geral assim como em direção ao futuro transformado na sua recepção, como a memória de um futuro” (HIRT, 1998, p. 126). Dessa forma, a importância da vírgula em “Chacun sa Chimère” se torna fundamental para a representação alegórica individual de cada elemento evocado. A essa ideia da vírgula enfatizando cada elemento transitório está ligada a seguinte afirmação de Baudelaire: “nous pouvons couper où nous voulons”. Porque se cada poema constitui uma representação do transitório que alude ao elemento imutável – ou à cidade grande –, assim como não existe ordem estática dos textos e a supressão de algum deles não impede o conjunto de se refazer, a ordem das imagens que compõe 16 “Podemos interromper onde quisermos, eu o meu devaneio, você o manuscrito, o leitor a sua leitura, pois a este não deixo vontade teimosa pendente do fio interminável de uma intriga supérflua. Tire uma vértebra, e os dois pedaços desta fantasia tortuosa se tornarão a juntar sem esforço. Corte-a em numerosos fragmentos, e verá que pode cada um deles existir à parte. Na esperança de que alguns desses pedaços sejam bastante vivos para agradar e diverti-lo, ouso dedicar-lhe a serpente inteira” 32 cada poema também não é estática. Daí se depreende que se todos os poemas podem ser lidos separadamente e cada um poderia ser considerado como um universo, assim também o é cada representação alegórica individual e a alusão ao “immuable” se dá através de cada uma ou do conjunto delas, os poemas e o livro completo. Dessa forma, retirar algo de um poema estaria na mesma esfera de retirar um deles do conjunto Le Spleen de Paris. Porque sendo o transitório, elementos de um poema ou o poema total, eles continuam aludindo à mesma “matéria”, ou seja, a cidade grande, o que pode ser corroborado pela interpretação de Barbara Johnson em seu livro Défigurations du langage poétique (1979) onde ela explica a reversibilidade dos poemas em prosa de Baudelaire: Não poderíamos considerá-la [La Dédicace] como um poema em prosa? E se essa primeira parte já é um poema em prosa, não poderíamos, pela mesma lei de reversibilidade considerar os poemas que vem logo depois como “préfaces”? (P.28-29) Considerar os poemas em prosa como “préfaces” ou a “Dédicace” como poema em prosa não alteraria a “matéria”, porque esta é um conjunto de suas “percepções” que são apenas alusões ao “elemento imutável”. Como exemplo desta discussão, é possível considerar a ideia de que cada poema configura todo um “universo” em que cada frase é uma de suas “vertèbres”. Nesse sentido, é preciso voltar ao primeiro parágrafo de “Chacun sa Chimère”: “Sous un grand ciel gris, dans une grande plaine poudreuse, sans chemins, sans gazon, sans un chardon, sans une ortie, je rencontrai plusieurs hommes qui marchaient courbés”. Nessa passagem, é possível observar a importância da vírgula em cada representação que faz o poeta. Cada elemento evocado pela negação é a alegoria de um aspecto da cidade grande porque está disposta de forma a que sempre aluda a ela. A “grande plaine poudreuse”, por exemplo, pode ser lida como o ambiente dos habitantes da cidade grande. A vírgula, portanto, separa cada uma dessas representações, que podem ser consideradas, isoladas, como um universo dentro de um maior. Esse aspecto se torna mais claro ao comparar algumas das traduções do poema, porque é possível ver nelas sutilezas nas evocações dos elementos que, apesar de não comprometerem o conjunto, ajudam na compreensão dessa questão de que se ocupa Baudelaire no trecho já visto de sua “Dédicace”: “Enlevez une vertèbre, et les deux morceaux de cette 33 tortueuse fantaisie se rejoindront sans peine. Hachez-la en nombreux fragments, et vous verrez que chacun peut exister à part”. A primeira tradução escolhida é a de Aurélio Buarque de Holanda, de 1966, editada no Rio de Janeiro pela Civilização Brasileira com o título de Pequenos Poemas em prosa. A segunda é a de Dorothée de Bruchard, de 1988, lançada em Florianópolis pela editora da UFSC em edição bilíngue, intitulada Pequenos Poemas em prosa. A terceira obra traduzida é de língua espanhola de Mercedes Sala feita em Barcelona no ano 1995 pela editora Edicomunicación com o nome de Pequeños Poemas en prosa. E a quarta tradução escolhida é de língua inglesa por Louise Varèse, lançada em Nova York no ano de 1970 pela editora New Directions com o título de Paris Spleen. Sob um grande céu Sob um grande céu Bajo un amplio cielo Under a vast gray sky, cinzento, uma grande cinza, numa grande grisáceo, en una on a vast and dusty planície poeirenta, planície poeirenta, amplia llanura plain without paths, sem caminhos, sem sem caminhos, sem polvorienta, sin without grass, without gramados, sem uma relva, sem um cardo, caminos, ni hierba, a nettle or a thistle, I urtiga, sem um cardo, sem uma urtiga, sin un cardo, sin una came upon several encontrei vários encontrei vários ortiga, me crucé con men bent double as homens que andavam homens que muchos hombres que they walked. curvados. marchavam curvados. caminaban encorvados. Nas duas traduções em português de Aurélio e De Bruchard, apesar das alterações tradutórias de ordem linguística e formal, há os mesmos elementos referenciais citados por Baudelaire: “une grande plaine poudreuse”, “sous un grand ciel gris”, “sans chemins”, “sans gazon”, “sans un chardon”, “sans ortie”. Esses elementos estão separados por vírgulas com as mesmas pausas feitas pelo poeta, o que significa que o quadro total, ou a imagem do original, apresenta os mesmos referentes nessas duas traduções. As seis pausas permanecem e as ausências do original que constituem a planície como um todo também aparecem nessas traduções. No entanto, na tradução do espanhol de Mercedes Sala, no lugar de “sans gazon” aparece “ni hierba”. O “ni”, dá uma fluidez ao poema e parece, apesar da vírgula, aproximar o elemento “caminos” de “hierba”, o que faz com que “caminos” e “hierba” pertençam a uma mesma imagem. Dessa forma, as pausas colocadas por Baudelaire no 34 original são reduzidas na tradução de Sala. Esse fenômeno aparece de forma ainda mais direta na tradução de Varèse para o inglês. A separação que a vírgula proporciona entre “plaine” e “sans chemins” não existe, como também não existe em “chardon” e “ortie”. Isso induz ao leitor à seguinte leitura: “a vasty and dusty plain without paths”, ao invés de ler: “a vasty and dusty plain” antes de ler “without paths”. Assim, o que eram duas imagens se transformou em uma só. Da mesma maneira, a tradutora optou por colocar “without a nettle or a thistle” em um mesmo quadro, quando Baudelaire optou por dizer: “sans un chardon” e depois “sans une ortie”. No entanto, a imagem da planície permaneceu inalterada. O que se alterou foram os elementos evocados, ou a quantidade de representações alegóricas alinhadas por Baudelaire. Essas ilustrações corroboram a hipótese de que o conjunto não foi modificado porque as representações alegóricas vistas individualmente seriam os elementos transitórios evocados que, suprimidos ou acrescentados, não comprometeriam a alusão à cidade grande. Nesse sentido, as partes transitórias que dão forma ao poema de Baudelaire foram relacionadas, nas reflexões desta dissertação, ao que Benjamin denomina “pormenores”, que, no “mundo profano”, carecem de importância, mas que, dispostos em uma obra de arte que utiliza a representação alegórica como forma de ultrapassar o tempo e o espaço, permitem uma alusão ao que não pode ser representado. 1.3 Alegoria como descrição Esses “pormenores” dão à obra de Baudelaire a característica da atemporalidade porque sua representação artística tem a condição alegórica. Como explica Benjamin: “o arrancar as coisas de seu contexto habitual” “é um procedimento bastante característico em Baudelaire” (BENJAMIN, 1989, p.163). Esse processo alegórico aparece com muita frequência na obra do poeta através da personificação de alguns objetos ou figuras como, no caso do poema “Chacun sa Chimère”, “Chimère” e “Indifférence”: Chacun d’eux portait sur son dos une énorme Chimère, aussi lourde qu’un sac de farine ou de charbon, ou le fourniment d’un fantassin romain. Et pendant quelques instants je m’obstinai à vouloir comprendre ce mystère ; mais bientôt l’irrésistible Indifférence s’abattit sur moi, et j’en fus plus lourdement accablé qu’ils ne l’étaient eux-mêmes par leurs écrasantes Chimères. 35 É preciso comparar novamente o texto original com a tradução para que a ideia discutida neste item seja precisada com mais rigor. Na versão espanhola de Mercedes Sala, ao traduzir do francês para sua língua, a tradutora optou por retirar a letra maiúscula grafada por Baudelaire: Llevaba cada uno, a sus espaldas, una quimera enorme tan pesada como un saco de harina o de carbón, o la mochila de un soldado romano de infantería. Me resistí unos momentos en querer penetrar el misterio; pero pronto la irresistible indiferencia se dejó caer sobre mí, y me quedé más hondamente agobiado que los otros con sus molestas quimeras. De acordo com o Littré, dicionário francês de referência no século XIX, Chimère significa, na mitologia, “monstro que lançava fogo pela boca e que tinha o tronco de um leão, a barriga de uma cabra e o rabo de um dragão”, e também, de acordo com o mesmo dicionário, “ideia favorita, sonho”. “Chimère” então, ganha uma importância fundamental no poema, pois ela evoca o monstro mitológico e o peso do sonho moderno, que se relaciona diretamente com o incentivo ao consumo e com a impotência do não consumir. Personificada pois, pelo uso da letra maiúscula, a “Chimère” se liga à palavras como “Mort”, “Diable”, “Beauté”, “Indifférence”. Dessa forma, indica uma personificação, ganhando assim uma força maior no texto, podendo ser interpretada como uma personagem e não mais como um substantivo comum. Françoise RullierTheuret, em seu texto Allégorie et symbole dans Les Fleurs du Mal (1991) explica o uso de maiúsculas nas alegorias do poeta: Figura retórica apreciada pelos escritores da Idade Média, a alegoria, vista por esse sentido particular [personificação do abstrato], consiste em personificar abstrações. Ela é marcada com determinada ostentação (é uma figura que se deixa ver) por uma maiúscula que sinaliza a elevação do nome comum ao status de nome próprio. Nota-se evidentemente em Baudelaire esse uso notável de maiúsculas como um entre tantos princípios de alegorias. (RULLIER-THEURET, 1991, p. 3) No entanto, em Baudelaire a dimensão alegórica do poema não implica necessariamente uma grafia com “maiúsculas” (RULLIER-THEURET, 1991, p. 4), o que significa que é possível observar alegorias grafadas com minúsculas. Além dos elementos evocados pela negação, citados anteriormente neste trabalho, também é o caso dos termos Chimère e Indifférence na tradução de Mercedes Sala. A tradutora, ao 36 optar pela letra minúscula, retira deles sua característica de personificação e os dispõe como parte de uma representação alegórica. Porque “Chimère”, grafada com maiúscula, tem o caráter significativo próprio que exalta a importância do sonho moderno como utópico, que segundo Benjamin, “adota, cada vez mais brutalmente, a fisionomia da mercadoria” (BENJAMIN, 1989, p.163). Nessa perspectiva, sua grafia maiúscula se encontra na mesma dimensão da vírgula disposta no poema como pausa para que aluda constantemente à significação – como já foi discutido anteriormente, no sentido da ênfase dada à palavra. Além disso, a letra maiúscula evoca a personificação da figura do sonho moderno que tem o caráter de nome próprio ou “descrição”, como explica Michel Foucault em seu texto O que é um autor? (1969, 2001)”: Não é possível fazer do nome próprio, evidentemente, uma referência pura e simples. O nome próprio (e da mesma forma, o nome do autor) tem outras funções além das indicativas. Ele é mais do que uma indicação, um gesto, um dedo apontando para alguém: em uma certa medida, é o equivalente a uma descrição. (FOUCAULT, 2001, p.272) O nome próprio como descrição, de acordo com Foucault, está relacionado ao que afirma Benjamin em seu ensaio Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem dos homens (1916, 2011). Nele, o filósofo afirma que “a infinitude de toda a linguagem humana permanece sempre de natureza limitada e analítica em comparação com a infinitude absoluta, ilimitada e criadora da palavra divina.” (BENJAMIN, 2011, p.62). Por causa disso, o “nome”, depois do “pecado original”, já não teria mais a “condição divina” ou “lei essencial da linguagem, segundo a qual expressar-se a si mesmo e interpelar todas as outras coisas são só um movimento”17. Porém, o “nome humano” é, para ele, “o ponto em que a língua do homem participa mais intimamente da infinitude divina da pura palavra, o ponto em que essa língua não pode se tornar nem palavra finita e nem conhecimento”. Assim sendo, “a teoria do nome próprio é a teoria do limite da linguagem finita em relação à linguagem infinita.”18 Dessa forma, sendo o nome próprio uma descrição e estando no limiar da linguagem divina e da humana, seria o instrumento mais significativo da linguagem do homem. É através do nome próprio que há a possibilidade de exprimir de forma mais abrangente uma significação que a linguagem humana nunca poderia atingir, visto que é limitada. Portanto, o nome 17 18 Ibid p.57 Ibid p.58 37 humano pode ser relacionado à condição alegórica da linguagem, porque visa sua infinitude. A linguagem infinita, ou divina, segundo Benjamin, está em sua “dimensão nomeadora”, e nela se “localizariam as ideias”. Porém, como a linguagem humana já não pertence mais à esfera do “divino”, ela se transforma em “mero sistema de signos”, o que faz dela limitada, ou “coisa entre coisas”, como explica Sérgio Paulo Rouanet na introdução de O drama barroco alemão de Walter Benjamin: Mas onde se localizam as ideias? [...] A resposta de Benjamin é que elas estão na linguagem. Mais precisamente: na dimensão nomeadora da linguagem, em contraste com sua dimensão significativa e comunicativa. É a linguagem adamítica, que despertava as coisas, chamando-as por seu verdadeiro nome, e não a linguagem profana, posterior ao pecado original, que se degrada num mero sistema de signos, e serve apenas para a comunicação. O Nome transforma-se na palavra, mero fragmento semântico, coisa entre coisas, e que por isso mesmo perdeu a capacidade de nomeá-las. (ROUANET, in: BENJAMIN, 1984, p. 16) Desta forma, o termo Chimère, dotado pelo poeta de um caráter nomeador ao escrevê-lo com maiúscula – o que o coloca entre a linguagem divina e humana –, se torna, por si só, uma descrição do aspecto utópico da sociedade por ele representada. Porque, mesmo isolado, consegue visar de forma mais alusiva a linguagem divina. O mesmo acontece com Indifférence. No entanto, a “Indiferença” de Baudelaire está ligada à modernidade e à cidade grande pelos sentimentos que a sociedade moderna provoca: o tédio e a melancolia ou o spleen, que segundo Louis Aguettant em seu livro Lecture de Baudelaire (2001) é a “insensibilidade do blasé que abusou de seus próprios nervos”: O tédio baudelairiano [...] originalmente um "spleen físico", segundo a expressão de Paul Bourget. A insensibilidade do blasé que abusou de seus próprios nervos e para quem tudo ficou insípido. Desse estado de torpor e de atonia dolorosa, a vítima vai procurar sair por novos excessos que agravarão seu mal. A obra de Baudelaire é atravessada por essa queixa perpétua. (AGUETTANT, 2001, p.26) Essa insensibilidade é representada alegoricamente pela “irrésistible Indifférence” que abate o poeta. O “estado de torpor e de atonia dolorosa” existe porque o que a sociedade moderna oferece é um ritmo incansável de consumo e de mercadorias: “o sempre igual em grandes massas” (BENJAMIN, 1989, p. 155). Esse ritmo de consumo incansável do homem moderno, ou o estímulo da cidade moderna, 38 conduz àquilo que Benjamin denomina de “sempre igual”, e que se relaciona ao tédio, já que havendo uma grande oferta, uma quantidade enorme de mercadorias e vitrines, o homem dessa cidade grande se encontra sujeito ao estado de “embriaguez moderna da subjetividade” enfatizada por Hirt, provocado pela “potência que subtrai da subjetividade suas potências” (HIRT, 1998, p.154) que é o spleen. Na medida em que a sociedade vivida e observada por Baudelaire estava marcada pelas consequências da revolução industrial, dentre elas a mercadoria, a propaganda e o incentivo ao consumo, o torpor ou a “embriaguez” perante o excesso de estímulo seriam os responsáveis pelo tédio ou o spleen. Desta forma, quando Hirt se refere à “embriaguez moderna da subjetividade”, é plausível interpretar essa frase como uma referência a esse torpor gerado pelo estímulo que leva a um “esquecimento de si” (HIRT, 1998, p.154). É possível equacionar a essa ideia a afirmação de Benjamin de que o “taedium vitae em spleen é a auto-alienação”, o “tête à tête claro e sombrio do sujeito com ele mesmo” (BENJAMIN, 1989, p.153). No poema, a indiferença se abate sobre o poeta depois de “quelques instants” em que se obstinava “à vouloir comprendre” “le mystère”. Após esses instantes, tudo o que experimentou observando e refletindo sobre os “hommes courbés”, se transforma em spleen, em tédio, em apatia e em melancolia. A indiferença “se abate” sobre o poeta e o deixa mais “lourdement accablé” do que os próprios homens por suas “écrasantes Chimères”, porque o spleen provoca a insensibilidade a que se refere Aguettant. Dessa forma, a “Indifférence” é comparada ao peso da “Chimère”, visto que Indiferença e utopia, aqui, se encontram intrinsecamente relacionadas, já que esta última, ligada ao sonho moderno, gera a insensibilidade e a apatia que por sua vez é provocada pelo ritmo da sociedade moderna. Dessa forma, “Indifférence”, grafada com letra maiúscula, mostra, portanto, toda a força do resultado desse processo que vai desde o taedium vitae ao spleen. 1.4 A morte como auge do spleen e sua contraposição: o idéal. Na poesia de Baudelaire, o spleen gerado pela passagem do tempo na modernidade capitalista do século XIX parisiense, é o fator que degrada a 39 “fréquentation” da cidade grande, que nessas condições é vista como o palco da deterioração não apenas de seus objetos inanimados – ruas, avenidas, lojas –, mas da vida do homem, que se torna “vítima da modernidade” (FRIEDRICH, 1978, p.38). Desde essa perspectiva, o homem moderno se degrada porque o tempo, que age sobre ele, só deixa de agir em sua vida quando o mata. Nesse sentido, a morte representa o auge da degradação provocada pelo tempo, e o spleen, a “embriaguez moderna da subjetividade”. Embriaguez essa que tem por objetivo um “esquecimento” total de “si”. Portanto, o sentimento gerado pelo spleen parece conduzir Baudelaire a perceber a morte como uma tentativa de encontrar essa subjetividade sem o torpor provocado pelo tédio e pela melancolia da vida moderna. O trecho de “Chacun sa Chimère” em que o poeta descreve a fisionomia resignada dos homens que são “condenados a esperar sempre” ilustra essa ideia: Chose curieuse à noter : aucun de ces voyageurs n'avait l'air irrité contre la bête féroce suspendue à son cou et collée à son dos; on eût dit qu'il la considérait comme faisant partie de lui-même. Tous ces visages fatigués et sérieux ne témoignaient d'aucun désespoir; sous la coupole spleenétique' du ciel, les pieds plongés dans la poussière d'un sol aussi désolé que ce ciel, ils cheminaient avec la physionomie résignée de ceux qui sont condamnés à espérer toujours. A “condémnation à espérer toujours” se relaciona a toda a impotência, toda a indeterminação e toda a degradação da vida moderna. Nesse sentido, a morte seria a salvação dessa “condenação a esperar sempre”. Essa interpretação pode ser entendida como ausência do tempo porque é a culminação da própria espera e do próprio tempo. O fim nada mais seria do que um recomeço, a morte seria o alcançar de uma dimensão infinita que não existe na vida – como pode ser percebido no poema “Le Voyage VIII” de Les Fleurs du Mal: Ô Mort, vieux capitaine, Il est temps! levons l’ancre! Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons! Si le ciel et la mer sont noirs comme l’encre, Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons! Verse-nous ton poison pour qu’il nous reconforte! Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau, Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu’importe?] Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau! 40 (Le Voyage VIII – Les Fleurs du Mal) 19 Se o “Ciel” e o “Enfer” recobrem tudo de luto, a morte, associada ao “Nouveau” e “L´Inconnu”, é aguardada com esperança para que venha a derramar seu “poison” sobre a vida, a fim de terminar com a “condamnation à espérer”. Porque é desconhecida e está relacionada à ideia do novo, a morte seria de alguma forma a única maneira humana de atingir a esfera do infinito, ou do que não tem tempo. Nesse sentido, está ligada à fuga do tédio e do tempo, já que, segundo Hirt, ela se encontra na esfera da beleza, daquilo que foge à representação e ao ciclo do spleen, que de acordo com Hirt e Benjamin, pode ser equiparado ao “eterno retorno”, de Nietzsche. Para Hirt (1998, p.130), “o eterno retorno” em Baudelaire “está carregado de negatividade”, porque o “prazer próprio da repetição” “se converte existencialmente em taedium vitae, em desgosto da repetição, no tédio.”. Dessa forma, relacionada à noção de tédio, a morte é a fuga da repetição, conduzindo o homem moderno ao desconhecido. Ela é portadora da esperança que traz a ausência da repetição. Só ela pode ser a salvação, só ela é capaz de apontar em direção daquilo que não tem fim. Só a morte pode conter a vida “absoluta”, porque ela engloba a ideia do infinito. O poema “Une charogne”, de Les Fleurs du Mal, constitui um exemplo da concepção da morte como fuga da repetição em que está intrínseca a noção da vida. Seus versos giram em torno de uma carniça encontrada pelo poeta quando passeia com sua amada. Um animal morto sendo comido por vermes se torna objeto de um poema que evoca o amor, fazendo referência à beleza da morte. É possível perceber, nele, a ideia da proliferação da vida através de um objeto morto, como apresentam os seguintes versos: “On eût dit que le corps, enflé d'un souffle vague/Vivait en se multipliant.”20 (BAUDELAIRE, 1976, p.31). Só se pode falar de morte pela vida, porque se “a morte, para a qual toda semelhança é ainda imperfeita, exceto talvez no cadáver, não se parece a nada, como a beleza” (HIRT, 1998, p.138), em consequência, só se pode aludir alegoricamente a ela através do que está vivo. A associação entre “morte” e “belo” é possível porque ambos aludem ao infinito. Baudelaire afirma que o belo “est toujours, inévitablement d’une composition double, “Ó Morte, velho capitão, é tempo! Às velas!/Este país enfara, ó Morte! Para frente!/Se o mar e o céu recobre o luto das procelas,/Em nossos corações brilha uma chama ardente! Verte-nos teu veneno, ele é que nos conforta!/Queremos, tanto o cérebro nos arde em fogo,/Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?/Para encontrar no Ignoto o que tem de novo!” As Flores do Mal (2006). Tradução de Ivan Junqueira. 20 “Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,/Vivesse a se multiplicar.” 19 41 bien que l’impression qu’il produit soit une”21. (BAUDELAIRE, 1976, p.685). Se a morte não pode ser representada, assim como o belo – já que fazem referência ao infinito que pode apenas ser evocado –, também pode ser interpretada, na poesia de Baudelaire, de forma dual, pois, além de ser o auge da degradação do tempo, também contém em si a ideia de um infinito, o que permite ao homem pensar sobre ela. A morte, portanto, na poesia deste autor, se encontra no limiar entre o “divino” e o “profano” porque não pode ser representada verdadeiramente em sua essência, já que “a verdade não se diz a não ser no, pelo e do infinito” (HIRT, 1998, p.261). Dessa forma, como a verdade só pode ser aludida, ela deve ser evocada através do finito, da condição transitória do que é mortal. Por isso, Baudelaire afirma que o belo é feito de um elemento eterno; no entanto, só se apresenta na natureza humana a partir do que é transitório: Le beau est fait d’un élément éternel, invariable, dont la quantité est excessivement difficile à déterminer, et d’un élément relatif, circonstanciel, qui sera, si l’on veut, tour à tour ou tout ensemble, l’époque, la mode, la morale, la passion. Sans ce second élément, qui est comme l’enveloppe amusante, titillante, apéritive, du divin gâteau, le premier élément serait indigestible, inappréciable, non adapté et non approprié à la nature humaine. 22 (BAUDELAIRE, 1976, p. 685) A modernidade, assim como a beleza, está constituída dos dois elementos fundamentais: o transitório e o imutável. De certa maneira, toda a obra do poeta parece estar ligada a essa “dualidade inquietante”, conforme a expressão cunhada por Barbara Johnson: A dualidade inquietante pela qual o sujeito se acha dilacerado constitui então, paradoxalmente, o que garante ao mesmo tempo a unidade do universo poético. Se o mundo polarizado pode assim, de maneira binária, se dividir sem sobra, a soma desses dois elementos polares – qualquer que seja sua reversibilidade, e então, a dificuldade de distingui-los um do outro – deve constituir um Todo. (JOHNSON, 1979, p. 61) “O belo inevitavelmente sempre tem uma dupla dimensão, embora a impressão que produza seja una” “O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil de determinar, e por um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral e a paixão. Sem esse segundo elemento, que é como o invólucro aprazível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento seria indigerível, inapreciável, não adaptado e não apropriado à natureza humana” 21 22 42 Baudelaire afirma que “la dualité de l’art est une conséquence fatale de la dualité de l’homme.”23 (BAUDELAIRE, 1976, p.685-686). Essa condição dual do homem está ligada ao tédio e ao caráter melancólico que a sociedade moderna provoca nele. De acordo com Susana Kampff Lages em seu livro Walter Benjamin – Tradução e melancolia (2007), “as duplicidades na representação são correlatas da ambivalência inerente a toda disposição melancólica que se caracteriza pela oscilação entre as posições contraditórias: alto e baixo, triste e alegre, espiritual e material, infernal e divino.” (LAGES, 2007, p.49). Essas posições contraditórias, de acordo com a estudiosa, vão “além de uma mera representação maniqueísta de afetos e conceitos”, talvez porque se fundem e se complementam na arte e porque parecem precisar um do outro como condição existencial. Na poesia de Baudelaire, a posição contraditória e complementar do spleen e do idéal forma o fundamento de sua obra, além de estar intrinsecamente ligada à questão do transitório e do imutável, visto que o spleen se encontra no âmbito do que é degradado pelo tempo, enquanto que o idéal corresponde àquilo que não tem duração. É preciso salientar que essa dualidade se relaciona com a ideia de “percepção da matéria”, de Henri Bergson, na medida em que, de acordo com a citação do poeta sobre a dualidade da arte e do homem, este, portador de sentimentos ambivalentes, pode perceber um objeto de diferentes maneiras, dependendo do sentimento e do “grau de atenção à vida” (BERGSON, 1999, p.7). O poema em prosa “La chambre Double” é um exemplo das contradições geradas pelas diferentes percepções resultantes da dualidade do homem moderno. Ele apresenta um mesmo ambiente: um quarto que, em um primeiro momento, está imune à passagem do tempo, e que, em seu desfecho, é atravessado e degradado por ele. No começo do poema, o quarto “ressemble à une rêverie, une chambre véritablement spirituelle, onde “il n’est plus de minutes, il n’est plus de secondes ! Le temps a disparu ; c’est l’Éternité qui règne, une éternité de délices!”24. No entanto, posteriormente, esse mesmo quarto se transforma, porque “un Spectre est entré”: Oh ! oui ! Le Temps a reparu ; Le Temps règne en souverain maintenant ; et avec le hideux vieillard est revenu tout son démoniaque cortège de Souvenirs, de Regrets, de Spasmes, de Peurs, d’Angoisses, de Cauchemars, de Colères et de Névroses. “A dualidade da arte é uma consequência fatal da dualidade do homem” “Que parece um devaneio, um quarto verdadeiramente “espiritual”.” - “Já não há minutos, já não há segundos! O tempo desapareceu; é a Eternidade que reina, uma eternidade feita de delícias” 23 24 43 Je vous assure que les secondes maintenant sont fortement et solennellement accentuées, et chacune, en jaillissant de la pendule, dit : — « Je suis la Vie, l’insupportable, l’implacable Vie!» Il n’y a qu’une Seconde dans la vie humaine qui ait mission d’annoncer une bonne nouvelle, la bonne nouvelle qui cause à chacun une inexplicable peur. Oui ! le Temps règne ; il a repris sa brutale dictature. Et il me pousse, comme si j’étais un bœuf, avec son double aiguillon. — « Et hue donc ! bourrique ! 25 Sue donc, esclave ! Vis donc, damné! » Nesse poema em prosa, Baudelaire concebe o tempo como agente determinante para a felicidade do poeta, na medida em que transforma a atmosfera e seus sentimentos em relação aos objetos. No texto, explicita-se que o poeta, antes de perceber o passar do tempo, quando se encontrava em seu “instante fugitivo” (HIRT, 1998, p.139), o quarto era “une éternité de délices”, o que significa que estava na esfera do idéal, que de acordo com Walter Benjamin, “insufla a força do rememorar e o spleen lhe opõe a turba dos segundos” (BENJAMIN, 1989, p.135). O idéal é o exato reverso do spleen, porque além de não estar sujeito à ação do tempo, se conecta com a esfera da lembrança. Segundo o poeta, em seu poema em prosa “Laquelle est la vraie?”, a atmosfera do idéal propaga “le désir de la grandeur, de la beauté, de la gloire et de tout ce qui fait croire à l’immortalité”26. Por isso, tudo o que não é determinado pela “turba dos segundos” faz parte dessa atmosfera. Na poesia de Baudelaire, spleen e idéal são noções opostas que nascem dos sentimentos do tédio e da melancolia provocados pela cidade grande. Sendo opostas, parecem, a priori, incompatíveis. Porém, o que poderia ser considerado como contradição e incompatibilidade, segundo Barbara Johnson, é precisamente um dos fundamentos da poesia de Baudelaire. A “dualidade inquietante pela qual o sujeito se acha dilacerado”, explicada por Johnson, se reflete através do spleen e do idéal que se apresentam a partir de um mesmo lugar: a moderna cidade grande. Como já foi explicitado nestas páginas, em “Une chambre Double” o mesmo ambiente provoca simultaneamente sensações opostas que variam em função de estarem, ou não, expostas à degradação do tempo. Esta concepção do tempo, característica da poesia de Baudelaire, pode ser encontrada, também, no poema “L’horloge”, de Les Fleurs du Mal. 25 “Oh! Sim! ressurgiu o Tempo; o tempo agora reina como soberano; e com o horrendo velho retornou todo o seu cortejo demoníaco de Lembranças, de Espasmos, de Terrores, de Angústias, de Pesadelos, de Cóleras e de Neuroses./ Eu vos assevero que os segundos, agora, são fortes e solenemente assinalados, e cada um deles, jorrando do pêndulo, diz: - “Eu sou a vida, a insuportável, a implacável Vida!”/ Em toda a vida humana só há um Segundo que tem a missão de anunciar uma boa-nova, a boa-nova que causa inexplicável medo. / Sim! reina o Tempo; reassumiu a sua brutal ditadura. E acossa-me, como se eu fosse um boi, com seu ferrão: - Eia, burrico! Sua, escravo! Vive, condenado!” 26 “O desejo da grandeza, da beleza, da glória e de quanto faz crer na imortalidade.” 44 Nele, o relógio é descrito como um “dieu sinistre, effrayant, impassible,/Dont le doigt nous menace et nous dit : “Souviens-toi !”27, o que sugere que as horas, ao perpassarem todas as esferas da vida, são portadoras de uma repetição do sempre idêntico e igual. Nesta concepção do tempo, portanto, viver constitui uma “condamnation à espérer”, da qual só é possível se libertar com a morte. Em sua discussão sobre o spleen, Hirt afirma que este seria “o que esvaziaria a consciência, a faria desesperar-se por ser tão impotente no sentido de ter uma direção ou uma intenção” (HIRT, 1998, p. 148). Mas isso significa que, de alguma maneira, o spleen também evoca o idéal, cuja ausência é a responsável por que ele ocorra no homem moderno. O “desespero causado pela impotência” despertaria a ideia da fuga através da lembrança, por meio da qual o poeta pode recriar o passado, um lugar em que não existe mais o tempo nem o sentimento pesado causado pelo presente. O poema “Un hémisphère dans une chevelure” constitui um exemplo acabado dessa contradição. De acordo com Barbara Johnson (1979, p.45), “o poema estabelece uma ligação de correspondências perfeita entre o poeta e seu passado”. O idéal muitas vezes é evocado pela lembrança e pela memória, talvez porque ela não pode ser corrompida pelo tempo e não é estática, mudando de acordo com a vontade e com as sensações de quem lembra. Desta forma, a fuga, através da lembrança, implica recriar o passado continuamente e segundo Bergson, deslocar a percepção “encerrada no presente” transformando-a em inúmeras percepções, já que o passado pode ser considerado como um lugar em que não existe mais nem a duração nem o sentimento pesado que o presente desperta. A mulher da cabeleira, portanto, é essencial para que o poeta consiga imaginar, e se reportar, a outro lugar: “si tu pouvais savoir tout ce que je vois! tout ce que je sens! tout ce que j’entends dans tes cheveux!”. Esse outro lugar, é preciso salientá-lo, pertence ao território da imaginação do artista, a qual é atravessada, também, por suas lembranças: “quand je mordille tes cheveux elastiques et rebelles, il me semble que je mange des souvenirs.”. Para atingir essa esfera do passado em que não existe duração nem lembranças, o poeta deve estar necessariamente no presente, visto que, de acordo com Bergson, memória e percepção estão intrinsecamente relacionadas. O que significa que o âmbito do que não tem tempo só pode ser aludido através do que tem. O poeta só pode se referir a suas lembranças porque se encontra em um espaço e em um tempo 27 “deus sinistro, hediondo, indiferente,/Que nos aponta o dedo em riste e diz: “Recorda!” 45 determinados em sua condição finita de elemento transitório que faz parte do mundo palpável. Nesse sentido, no poema, é possível perceber que o poeta observando o mundo físico, consegue se remeter à seu passado. Dessa forma, pode-se interpretar “Un hémisphère dans une chevelure” como uma evocação de aspectos do idéal feita através da observação do mundo exterior, a partir da condição humana finita. Esse mundo exterior parece ser necessário, em “Un hémisphère dans une chevelure”, para a representação da fuga do spleen iminente ao homem moderno, que de acordo com Hugo Friedrich (1978, p.37-38) seria uma “vítima da modernidade”. Sendo assim, ao “falar a partir do eu”, primeira pessoa do singular, o poeta o faz como quem se percebe parte da sociedade moderna, como explica o estudioso no trecho abaixo: Quase todas as poesias de Les Fleurs du Mal falam a partir do eu. Baudelaire é um homem completamente curvado sobre si mesmo. Todavia este homem voltado para si mesmo, quando compõe poesias, mal olha para seu eu empírico. Ele fala em seus versos sobre si mesmo, na medida em que se sabe vítima da modernidade. Esta pesa sobre ele como excomunhão. Baudelaire disse com bastante frequência, que seu sofrimento não era apenas o seu. (FRIEDRICH, 1978, p.37-38) O poeta “fala” “a partir do eu” na medida em que sua individualidade é uma referência não a si mesmo, mas ao homem que se percebe como profundamente influenciado pela cidade grande. Sendo o poeta um “eu”, mas também um “outro”, o uso da primeira pessoa do singular caracteriza não apenas a “despersonalização” em sua poesia, mas a experiência denominada por Michel Collot (2007, p.15) de “espaçamento do sujeito”. Esta consiste na percepção que o artista tem de si mesmo a partir do outro. Esse outro, sendo o objeto de reflexão, seria o que evocaria a cidade grande como agente condicionante da efemeridade do homem moderno. A expressão “espaçamento do sujeito”, cunhada por Collot, explica a ligação entre o sujeito e o objeto como o reflexo de um no outro. No caso da poesia de Baudelaire, a cidade só se mistura ao homem moderno porque este só pode existir a partir dela. Michel Collot, em seu livro Paysage et poésie – du romantisme à nos jours (2005), afirma que existe uma repercussão da paisagem na consciência do sujeito: Que uma paisagem seja “romântica” supõe-se uma certa continuidade entre o imaginário e a realidade, o interior e o exterior [...] “uma paisagem qualquer é um estado da alma” [...], ela pressupõe não somente a projeção da afetividade sobre o mundo, mas também a repercussão deste na consciência do sujeito. “As passagens são como um arco de violino que brincam na minha alma” confidencia Stendhal. (COLLOT, 2005, p.43) 46 Ao explicar a importância da paisagem e sua relação intrínseca com o sujeito, Collot utiliza o termo “romântico”. O estudioso explica que “a modernidade de Baudelaire está estritamente misturada à herança do romantismo”, e cita o poeta: “qui dit romantisme dit art moderne, – c’est-à-dire intimité, spiritualité, couleur, aspiration vers l’infini, exprimée par tous les moyens que contiennent les arts.”28 (BAUDELAIRE, 1976, p. 421). Collot afirma que é a “transportação do interno em direção ao externo que define, segundo Baudelaire, a maneira lírica de sentir.” (COLLOT, 2007, p.15). O lirismo moderno “não é mais a expressão de uma identidade e de uma interioridade, mas sim a de uma alteridade e de uma exterioridade” (COLLOT, 2007). Por essa razão, na poesia moderna, o aspecto de uma “despersonalização” não é exatamente a recusa de “falar” de si, mas de se perceber inserido no mundo em que se vive, ou na cidade grande moderna. A isso, Collot denomina “espaçamento do sujeito”, que ele remete ao “transportar o interno em direção ao externo”, como ilustra o poema “Un hémisphère dans une chevelure”. A esta ideia se relaciona o spleen e o idéal, porque no poema supracitado, há uma passagem de um a outro sentimento. O primeiro indício dessa passagem é a utilização do “epíteto” “long” (HIRT, 1998, p. 147): “o termo possui uma redundância singular, cuja natureza tautológica permanece, na verdade, indefinida (o tédio possui nuances, não é pura e simples repetição, possui intensidades, cores, alterações, etc): “long vers”, “long ennuis”, “longs remords” (HIRT, 1998, p.147). No primeiro e no último parágrafo do poema nota-se a utilização desse vocabulário referente ao spleen: “laisse-moi respirer longtemps, longtemps, l’odeur de tes cheveux!” e “laisse-moi mordre longtemps, longtemps, l’odeur de tes cheveux!”. No seguinte trecho, Hirt ressalta que a cabeleira é um objeto de devaneio: O objeto da percepção, a mercadoria, tanto quanto o objeto do devaneio, uma cabeleira por exemplo, chegam a uma maneira de autonomia e constituem um mundo próprio muito enigmático. (HIRT, 1998, p.98-99) Sendo o “objeto do devaneio” do poeta e se contrapondo “ao objeto da percepção”, a “cabeleira” constitui o limiar entre o spleen e o idéal. A palavra “souvenirs”, que evoca o idéal, se contrapõe a “longtemps”, que caracteriza o spleen, 28 "Quem diz romantismo diz arte moderna - ou seja, intimidade, espiritualidade, cor, aspiração pelo infinito, expressos por todos os meios que contenham as artes" 47 visto que a “repetição e a natureza tautológica da palavra”, sublinhadas por Hirt, parecem ser o que evoca as lembranças e só podem existir quando inspirados pelos “cheveux”, como é possível observar no poema: “Laisse-moi mordre longtemps tes tresses lourdes et noires. Quand je mordille tes cheveux elastiques, il me semble que je mange des souvenirs.”. O idéal, portanto, só pode surgir a partir da vivência do spleen. Dessa forma, pode-se entender a “cabeleira” como limite entre o mundo temporal – pois trata-se de algo concreto – e o que ela evoca, ou seja, as lembranças, estando no âmbito da atemporalidade. A modo de exemplo, em “Un hémisphère dans une chevelure” se lê: Tes cheveux contiennent tout un rêve, plein de voilures et de mâtures; ils contiennent de grandes mers dont les moussons me portent vers de charmants climats, où l’espace est plus bleu et plus profond, où l’atmosphère est parfumée par les fruits, par les feuilles et par la peau humaine. (BAUDELAIRE, 1976, p.300) A referência à “peau humaine”, ligada aos “cheveux” remete ao mundo tátil. Por isso, a utilização de imagens que representam a deterioração do tempo permite interpretar o poema como uma proposição do idéal a partir do spleen. Dessa forma, os “Cheveux”, que evocam um “rêve plein de voilures et des matûres” e uma atmosfera “parfumée par [...] la peau humaine”, representam uma fuga do spleen, produto da “vitória da mercadoria” (HIRT, 1998, p.139) e que provoca o tédio através do “devaneio”. No entanto, ao utilizar a expressão “parfumée par la peau humaine”, o poeta permite ao leitor interpretar que suas lembranças são permeadas pelo o que é humano e pelo tempo - fator degradante que provoca o tédio da modernidade. Portanto, perpassada pela influência da duração, a “cabeleira” permite evocar lembranças porque está inserida no mundo concreto, o que significa que possibilita ao poeta escapar do spleen através de “tudo” “o que sente” “o que vê” “o que escuta” nos cabelos da mulher. Ela é o fator degradado pelo tempo externo ao poeta, algo “mundano” que lhe permite entrar em contato com suas lembranças. Isso significa que é preciso um elemento temporal para haver uma alusão ao que não tem tempo. Assim sendo, na poesia de Baudelaire, “a dualidade inquietante” consiste em que o poeta se encontra na esfera do idéal somente a partir do que observa na esfera do spleen, e se percebe como mortal e degradado a partir do contato com o que está no âmbito do idéal, como pode ser observado no poema “Le confiteor de l’artiste” – que será analisado no próximo capítulo. 48 Em “Un hémisphère dans une chevelure”, o poeta utiliza um vocabulário que remete ao navio e ao mar: “tes cheveux contiennent tout un rêve, plein de voilures et mâtures”. “grandes mers dont les moussons [...]”, “l’océan de ta chevelure”, “navires de toutes formes”, “beau navire”, “roulis imperceptible du port”. Para Hirt, o navio de Baudelaire remete à imagem “que viaja no tempo”, porque é capaz de se movimentar através dele e fazer com que “se escape de uma leitura catastrófica do poema” – associada àquela que não se encontra na órbita da alegoria, que pode ser degradada pelo tempo. A imagem poética, portanto, “nada mais é do que abertura do tempo, sua exposição” (HIRT, 1998, p. 127). “Abrir o tempo” significa, na verdade, transpassá-lo em sua condição, utilizar-se dele para que se torne fundamental na significação da imagem e expô-lo a ponto de que ele perca seu caráter aprisionador e possibilite o movimento através dele. Por isso, o navio, nesse poema, constitui um elo entre o spleen e o idéal, permitindo ao poeta escapar da prisão do tempo e transitar entre esses dois polos opostos. A partir da tradução de Dorothée de Bruchard é possível pontuar melhor essa transição entre os dois polos – que aqui será exemplificada no uso que o poeta e tradutora fazem da palavra “céu”. Em sua tradução para o português, há uma sutil escolha tradutória, já que optou por “céu” onde havia, no original, “azur”. Essa decisão, de certa forma, permite ilustrar a discussão sobre o trânsito que faz Baudelaire nesse poema entre o spleen e o idéal. No texto de Baudelaire se lê: Dans l’océan de ta chevelure, j’entrevois un port fourmillant de chants mélancoliques, d’hommes vigoureux de toutes nations et de navires de toutes formes découpant leurs architectures fines et compliquées sur un ciel immense où se prélasse l’éternelle chaleur. Dans l’ardent foyer de ta chevelure, je respire l’odeur du tabac mêlé à l’opium et au sucre ; dans la nuit de ta chevelure, je vois resplendir l’infini de l’azur tropical ; sur les rivages duvetés de ta chevelure je m’enivre des odeurs combinées du goudron, du musc et de l’huile de coco. E na tradução de Dorothée De Bruchard: No oceano de sua cabeleira, entrevejo um porto fervilhando de cantos melancólicos, homens vigorosos de todas as nações e navios de todas as formas recortando suas arquiteturas finas e complicadas num céu imenso onde se estira o eterno calor. Na ardente lareira de sua cabeleira, respiro o cheiro do fumo, mesclado de ópio e açúcar; na noite de sua cabeleira, vejo refulgir o infinito do céu 49 tropical, nas margens de penugem da sua cabeleira, me embriago com os cheiros combinados do alcatrão, do almíscar e do óleo de coco. Observa-se que a primeira escolha do poeta por “ciel” está seguida por “immense” e por “éternelle chaleur”. Estes dois elementos permitem a seguinte leitura dual: “éternelle chaleur” transmite a ideia de algo mundano que atinge a esfera do eterno, assim como “immense”, junto a “ciel”, a de algo que não pode ser medido pelo homem, mas ainda assim, transpassado pelo tempo e pelo espaço. Porém, como já foi mencionado, a palavra “ciel” é usada no âmbito temporal do spleen porque, segundo Hirt, de uma maneira geral, “o spleen e o tédio impedem radicalmente toda estetização do mundo exterior. Este é particularmente evidente no caso da evocação do céu, se acha reduzido às dimensões do espaço interior.” (HIRT, 1998, p.158-159). Isso não acontece com “azur” ou “l’infini”, usados sempre em referência a algo que não pode ser comprimido no espaço. Quanto à expressão “Ciel immense”, esta suscita algo que apesar de sua grandeza, ainda enclausura e ainda contém um aspecto “industrial” que retoma o spleen em sua origem. Baudelaire utiliza a expressão para exprimir que, através da cabeleira, consegue enxergar “un port fourmillant de chants mélancoliques, d'hommes vigoureux de toutes nations et de navires de toutes formes découpant leurs architectures fines et compliquées sur un ciel immense où se prélasse l'éternelle chaleur”. Ou seja, ele faz referência a uma elevação gradual que acontece a partir do “port”, dos “hommes” e dos “navires de toutes formes”. Estes últimos, estando ligados ao “ciel” que enclausura, parecem se deslocar progressivamente do spleen através do tempo em sua própria condição, como explicitado pela expressão da “abertura do tempo” de Hirt. Por outro lado, “azur”, ao ser traduzido por “céu” no texto de Dorothée de Bruchard, já não dispõe da gradação que conduz o poeta do spleen ao idéal. Além disso, a contraposição entre “nuit” e “azur tropical” não parece desencadear tanto efeito. Dessa forma, o poema traduzido retoma o aspecto spleen da obra do poeta de forma mais intensa do que faz o original. No entanto, essa força que a palavra “céu” suscita deixa mais claro que existe uma passagem necessária pelo tédio antes de chegar ao idéal. Para que exista a ausência do tempo, deve-se haver o tempo, demonstrando a “dualidade inquietante” da obra do poeta e a junção dos elementos transitório e imutável. Ao contrário do que acontece em “Un hémisphère dans une chevelure”, o poema “Le confiteor de l’artiste” também aborda a importância que tem o mundo exterior na 50 obra do poeta; porém, nesse poema, o aspecto idéal é o que remete ao aspecto spleen: o poeta se vê imerso na natureza e através dessa imersão, se percebe mortal. O spleen, dessa forma, é evocado através da impotência humana em exprimir tudo aquilo que vê. Neste poema, o mundo exterior tem uma força grande, porém, ao contrário do que acontece em “Un hémisphère dans une chevelure”, o aspecto idéal é o que remete ao aspecto spleen. O poeta se vê imerso na natureza, elemento imutável, e se percebe através dessa imersão, mortal. O spleen, dessa forma, é evocado através da impotência humana em exprimir tudo aquilo que vê. 51 CAPÍTULO 2 - O processo criativo e a linguagem a partir da filosofia da tradução 2.1 “Le confiteor de l´artiste” e a problematização da linguagem Em “Le confiteor de l’artiste”, a paisagem diante da qual se encontra o poeta tem grande impacto sobre ele. Exemplo disso é a primeira frase do poema, que denota uma expressão de êxtase: “Que les fins de journées d’automne sont pénétrantes ! Ah ! pénétrantes jusqu’à la douleur!”. Baudelaire prossegue evocando “l’immensité du ciel et de la mer”, e as sensações de “solitude” e “silence” que suscitam a “incomparable chasteté de l’azur”. Essas expressões desembocam em algo tão imenso que chega “à la douler”. Nos dois primeiros parágrafos, percebe-se que há uma mistura de sensações não apenas pelo vocabulário utilizado, que remete ao spleen e ao idéal – com o termo “Infini” fazendo referência ao último, seguido de “ciel” e “mer” que evocam o primeiro –, mas também pela frase “toutes ces choses pensent par moi, ou je pense par elles”, que representa a fusão que existe, a priori, entre o poeta e a natureza. Como já foi desenvolvido nestas páginas, segundo Hirt, para Baudelaire não existe natureza, somente arte porque, como explica o estudioso, para o poeta, a natureza “é trabalhada e penetrada pelo spleen” (HIRT, 1998, p. 161). Além disso, “la nature n’est qu’un dictionnaire” (BAUDELAIRE, 1976, p.624), o que significa que deveria ser observada como elemento transitório. Dessa forma, sendo a natureza corrompida pelo tempo, ela poderia ser representada, pois só é possível a representação daquilo que não é imutável ou do que se encontra na esfera do spleen: o que tem duração e é passível de degradar-se. No entanto, em “Le confiteor de l’artiste”, essa “Nature” da qual se ocupa o poeta, é a representação do belo: é observando-a que percebe que ela é uma “feiticeira” que parece ser perpassada pelo spleen, mas que na realidade é uma beleza que foge à representação. A gradação do processo em que o poeta se envolve com a Natureza se explica nessa chave de leitura. Nesse sentido, é possível observar que, no primeiro parágrafo, o artista é apenas espectador. No entanto, no segundo e no penúltimo, ele se compenetra com o que vê, sentindo-se parte desse espetáculo, sem saber se é “ele que pensa pelas coisas ou se são elas que pensam por ele”. 52 É preciso perceber que o poeta sente que sua existência é “une petite voile frissonante”, uma vela de embarcação. De acordo com Benjamin, “a imagem dos navios surge quando se trata do ideal profundo, secreto e paradoxal de Baudelaire: ser levado, ser acolhido pela grandeza” (BENJAMIN, 1989, p.93). Esse pensamento de Benjamin vai ao encontro da interpretação de Hirt, para quem o navio representa “uma abertura do tempo” pois é a imagem do movimento. A vela, portanto, é o elemento que orienta essa abertura. Nesse processo, a figura do artista tem um caráter que orienta o espectador, conduzindo-o a uma percepção da atemporalidade da obra, o que significa que a obra não deve ser estática, deve se movimentar através do tempo. Portanto, a partir do caráter orientador do artista, é possível afirmar que este se encontra entre o spleen e o idéal, já que somente ele é capaz de representar o mundo em que vive de maneira que a significação não se perca. Só ele pode criar algo que transpasse o tempo e que signifique para sempre. Desta forma, Benjamin compara o navio baudelairiano com o herói ou o poeta: Ele decifrou (a constelação especial de circunstâncias onde, também no ser humano, se reúnem grandeza e beleza), denominando-a “a modernidade”. Quando se perde no espetáculo dos navios no ancoradouro, é para neles colher uma metáfora. O herói é tão forte, tão engenhoso, tão harmonioso, tão bem estruturado como esses navios. Para ele, contudo, o alto-mar acena em vão. Pois uma má estrela paira sobre sua vida. A modernidade se revela como sua fatalidade. Nela o herói não cabe; ela não tem emprego algum para esse tipo. Amarra-o para sempre a um porto-seguro; abandona-o a uma eterna ociosidade. (BENJAMIN, 1989, p.93) A fatalidade a que Benjamin se refere, segundo Hirt, “é o tempo” (HIRT, 1998, p.156). Isso explica, portanto, o fato de que apesar do poeta ser o portador do elemento divino – o “beau diadème” do poema “Bénédiction”, de Les Fleurs du Mal –, ainda assim ele não seria menos vítima da modernidade do que seriam os homens que observa. Dessa forma, a intensidade gradual do poema “Le confiteor de l’artiste” vai se desenvolvendo a partir do momento em que, sabendo-se pessoa que transita entre o spleen e o idéal, justamente por seu caráter orientador, o poeta se percebe, de repente, mortal. E assim, se pergunta diante da beleza que vê: “Ah! faut-il éternellement souffrir, ou fuir éternellement le beau?”. Essa pergunta representa o auge da percepção de sua impotência de exprimir exatamente o que vê, o que o faz saber-se saber transitório e pequeno diante de algo imortal e infinito que não pode ser representado – aquilo Benjamin denomina “experiência do choque”: 53 A experiência do choque é uma das que se tornaram determinantes para a estrutura de Baudelaire. Gide trata das intermitências entre imagem e a ideia, a palavra e o objeto, nas quais a emoção poética de Baudelaire encontraria sua verdadeira sede. (BENJAMIN, 1989, p. 112) “A experiência do choque” vivida pelo poeta se anuncia no penúltimo parágrafo, em que as sensações são “trop intenses”, e culmina no último, em que se manifesta a “consternation”, a “exaspération” e a assimilação de que “l’étude du beau est un duel où l’artiste crie de frayeur avant d’être vaincu”. Esse duelo, explicado por Benjamin como “o processo de criação”, está, em “Le confiteor de l’artiste” ligado à natureza, que é a eterna rival vencedora: “enchanteresse sans pitié, rivale toujours victorieuse”. Essa natureza, uma “feiticeira sem piedade”, é, na verdade, a beleza que não pode ser representada pela linguagem. Ao perceber essa limitação, a exasperação do poeta aumenta, já que cobra consciência de que, apesar de fazer parte do cenário que contempla, e de estar na mesma esfera da natureza atravessada pelo spleen, é ele próprio o elemento transitório. A natureza, portanto, não é passageira, ela apenas ilude o poeta, e se revela, finalmente, como algo infinito, como o que “tem a última palavra”, conforme explica Hirt: O infinito figura a questão [do percurso de todo o espaço do spleen, da cela ao abismo, do finito ao infinito e da infinitude do finito ao infinito] para além de toda resposta. O espírito para além de toda natureza. O poeta, tocado pelo spleen, é vencido por sua dispersão, pelo devir de seu devaneio; no seio de sua mais extrema concentração, ele perde sua auréola, cai na “sarjeta” (“L’âme d’un vieux poete erre dans la gouttière/Avec la triste voix d’un fantôme frileux”). É o infinito que penetrou o sujeito. Mas então é, como enuncia Le confiteor de l’artiste, a natureza, tão desprezada, quem tem a última palavra, ela que não é nem poesia, nem eternidade, nem verdade, mas horror e demonstração da morte. (HIRT, 1998, p.174) No duelo com o belo, portanto, o artista é sempre vencido porque a “imagem real” está diante de seus olhos finitos e o máximo que pode fazer é, através da linguagem, deformá-la para que consiga de certa forma aludir a ela, posto que não consegue exprimi-la com exatidão. Esse é, portanto, o “processo criativo” do artista moderno, que, para Benjamin (1989, p.111), é processado na obra de Baudelaire como “choque” produzido no “âmago de seu trabalho artístico” que permite ao poeta se perceber como “élement transitoire”. Nessa percepção, e porque não consegue exprimir o que vê de forma exata, podendo apenas criar uma representação alusiva, o artista moderno pode ser relacionado a um tradutor, visto que sua obra tenta exprimir em elementos transitórios o que é imutável. Dessa forma, existe uma mudança de códigos 54 no momento da representação. Retomando a expressão de Bergson, sendo a obra de arte uma “percepção da matéria” e um esboço, ela precisa, para que nunca se degrade, do olhar do outro para permanecer “clara” e “embriagadora”. A esse respeito, em Le peintre de la vie moderne, Baudelaire explica o papel do espectador como tradutor de uma tradução: [...] et l’imagination du spectateur, subissant à son tour cette mnémonique si despotique avec netteté l’impression produite par les choses sur l’esprit de M. G. Le spectateur est ici le traducteur d’une traduction toujours claire et 29 enivrante. (BAUDELAIRE, 1976, p.698) Porque a representação, na modernidade artística instaurada por Baudelaire, opera a partir de uma mudança de códigos, para o poeta, o espectador é um “traducteur d’une traduction”. É ele a pessoa que vê a obra e a retraduz para acrescentar-lhe sua visão. Dessa forma, a imagem criada pelo artista moderno precisa de outra, que surge, necessariamente, a partir da primeira. O contínuo surgimento de imagens parece necessário à obra para que ela possa permanecer em movimento, pois este é o que permite à linguagem uma constante alusão à “imagem real”. O movimento, na poesia de Baudelaire, portanto, está relacionado ao que Benjamin denomina “experiência do choque” que, no poema “Le confiteor de l’artiste”, se manifesta na percepção da finitude humana, ligada também à finitude da linguagem como elemento transitório que, por ser passageiro, está condenado a se deteriorar. Por isso, o artista moderno tenta ultrapassar esse caráter finito da linguagem, dando a ela, a condição alegórica no que Baudelaire denomina “ébauche parfaite”. Nesse sentido, “l’ébauche parfaite” seria uma obra de arte que deveria permanecer “neutra em relação aos acontecimentos”, pois, como explica Hirt no trecho a seguir, “a obra é uma passagem ao ato”: A obra é uma passagem ao ato. Nessa medida e ao contrário, a imagem virtual, somente sonhada ou fantasiada, ficará neutra em relação ao real, puro fora em relação ao vento das coisas, dos acontecimentos e da história. (HIRT, 1998, p.297) Sendo uma passagem, a obra parece nunca chegar a esse ato – já que chegar a ele seria atingir a “verdade” ou a “imagem real” –, mas estar sempre no limite de 29 "E a imaginação do espectador, submetendo-se por sua vez a essa mnemônica tão despótica, vê com nitidez a impressão produzida pelas coisas sobre o espírito de C.G. O espectador é aqui o tradutor de uma tradução sempre clara e inebriante" 55 realizá-lo, quase como se pudesse exprimir o que não seria possível através da finitude humana. Por isso, na obra deve estar contido o elemento transitório sempre em aberto, já que é essa a condição que permite ao espectador acrescentar-lhe sua “percepção”. A “neutralidade” da representação artística moderna, portanto, se dá através da condição alegórica da linguagem: no inacabamento que o artista imprime à obra para que a ela se acresçam as significações complementadas pelo leitor, permitindo assim que esta permaneça moderna. Dessa forma, o que seria limitante é utilizado pelo artista em favor da obra. O poema “Le cygne”, de Les Fleurs du mal, é um exemplo da maneira em que o artista dota a linguagem de uma condição alegórica para que possa sempre aludir ao significado. Nesse poema, o poeta sabe que Paris se deteriora, como explicita nos seguintes versos: “Paris change! mais rien dans ma mélancolie/N’a bougé! palais neufs, échafaudáges, blocs/ Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie”30. A Paris que o poeta observa está em constante movimento. Sua visão voltada para a condição alegórica dos objetos – ou seja, para seu potencial de suscitar inúmeras percepções – o leva a percebê-los no que eles podem ter de atemporal, visto que eles carregam em si não apenas o presente, mas permitem ao poeta avocar suas lembranças. Por isso o que ele vê, semelhante ao “cygne”, o remete a momentos que passaram, “aux captifs, aux vaincus” e “à bien d’autres encor”. A linguagem, dessa forma, exprime “uma imagem em toda a sua ambiguidade” (HIRT, 1998, p.110), permitindo que o espectador possa traduzi-la a partir de sua percepção. Essa percepção do espectador seria o que Baudelaire chama de “élement transitoire, fugitif” (BAUDELAIRE, p.695, 1976) relacionado à “essência corporal e espiritual do homem”, que de acordo com Benjamin (2011, p.101.), “a arte pressupõe”. Dessa forma, algumas das reflexões do filósofo sobre tradução e linguagem, expostas em seu texto A tarefa do tradutor, são relacionadas aqui à importância do olhar do outro na obra de arte porque a tradução – da mesma maneira que a crítica de arte em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão – se liga ao contexto histórico do tradutor ou do crítico, e às influências desse contexto em suas escolhas tradutórias. Assim sendo, tradutor e crítico – assim como o espectador/leitor da obra de arte moderna – são fundamentais no constante movimento demandado pelo “esboço perfeito” que, na visão de Benjamin, caracteriza a constituição da obra de arte moderna. “Paris muda! mas nada em minha nostalgia/Mudou! novos palácios, andaimes, lajedos,/Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria” 30 56 A concepção baudelairiana de que o poeta é um tradutor, e de que o espectador/leitor é um tradutor da tradução que realiza o artista, tem seu paralelo na abordagem que Benjamin faz do tradutor e também do leitor, concebido como conhecedor do idioma original. De acordo com Benjamin (2011, p.102) “uma tradução” está voltada a “quem entende o original” porque seria só a partir do conhecimento da língua de origem e da língua de chegada que o texto permanece em movimento. Portanto, conhecer o idioma do original se torna fundamental para o caráter dinâmico da obra. Dessa maneira, é possível considerar a tradução como uma tentativa de “abrir o tempo” no sentido proposto por Hirt. Ela seria, vista dessa forma, como uma “experiência” (BERMAN, 1999, p.18) linguística e cultural transitória indispensável à alusão ao “infinito”. Para Baudelaire, o que o artista moderno exprime por meio da linguagem são elementos transitórios que compõem a cidade grande. No entanto, como esta cidade grande foge à representação, a expressão artística moderna é, na verdade, a tradução do entorno do poeta porque nessa expressão existe uma mudança de códigos. Isso implica, no momento da escrita, em escolhas que muitas vezes não contemplam com exatidão o objeto, em reflexões, perdas, e reescritas. Por isso, na próxima seção deste capítulo trabalha-se com questões tradutórias, exemplificando com os poemas e algumas de suas traduções as ideias aqui discutidas como forma de traçar um paralelo entre a impotência da expressão moderna que permeia a obra de Baudelaire e a filosofia da linguagem e da tradução desenvolvidas por Walter Benjamin. Dessa forma, considera-se aqui a obra do poeta, principalmente os poemas analisados, como traduções da cidade grande e o espectador/leitor como tradutor dessa tradução primeira. A partir das considerações tecidas até o momento, será desenvolvida a ideia da dinamicidade particular da obra de arte que a tradução proporciona. O empreendimento se origina na convicção de que esse olhar não se deve preocupar em captar o que não pode ser representado, ou seja, não se deve esforçar em entender a mensagem nem em transmiti-la, já que essa tentativa levaria a língua à condição de “símbolo do nãocomunicável”. (BENJAMIN, 2011, p.72). 57 2.2 A “experiência” da tradução Segundo Antoine Berman (1999, p.16), a tradução é “experiência. Experiência das obras e do ser-obra, das línguas e do ser-língua. Experiência, ao mesmo tempo, de si mesma, de sua essência”. Porque o “puro tradutor é aquele que tem necessidade de escrever a partir de uma obra, de uma língua e de um autor estrangeiro” (BERMAN, 1999, p.18). Dessa forma, “se o tradutor tem necessidade de escrever a partir de uma obra”, traduzir é reescrever, completar e acrescentar algo ao raciocínio e à imaginação do autor. É também fazer opções, refletir sobre o que é feito, experimentar contextos diferentes e misturá-los. Portanto, as escolhas tradutórias se fazem a partir dessas diferenças e a partir de preferências, seja na língua de chegada ou de partida. Porque, ao traduzir, o tradutor reescreve e reflete sobre o escrito em sua língua materna. Ao mesmo tempo, também faz uma reflexão sobre seu próprio idioma. A esse processo, Antoine Berman denomina “experiência da tradução”. Além de ser “experiência” e “reflexão”, a tradução é, na prática, uma maneira de divulgar diversos textos para leitores do mundo – o que conduz, também, a algumas conclusões equivocadas sobre a serventia da tradução literária, como a que discute Pere Comellas em seu artigo Algumas reflexões sobre a tradução à letra de Antoine Berman (2011): A serventia da tradução literária é a mesma que a do resto da literatura. Talvez alguém quisesse pôr em questão uma afirmação como essa. Porque de fato a tradução não criaria imaginários, mas se limitaria a difundir os imaginários criados pelas obras originais, certamente num âmbito linguístico e cultural diferente, mas com as mesmas imagens. Difundir, não alterar ou recriar. Ou seja, na mente dos leitores ingleses de Walter Scott teríamos uma representação do passado histórico europeu igual à que acharíamos na mente dos seus leitores em italiano, persa, catalão ou javanês. Não é preciso assinalar que é essa uma concepção um tanto ingênua da tradução. (COMELLAS, 2011, p.152) Para compreender melhor em que consiste essa “ingenuidade” da concepção da tradução, é preciso retomar Henri Bergson e seu pensamento sobre o “grau de atenção à vida”, segundo o qual existem “tons diferentes de vida mental, e nossa vida psicológica pode se manifestar em alturas diferentes, ora mais perto, ora mais distante da ação.” 58 (BERGSON, 1999, p.7). Dessa forma, existindo diferentes “percepções” e manifestações psicológicas que podem se distanciar da ação ou do objeto, não seria possível a existência de uma imagem idêntica na mente dos leitores. Nesse sentido, a ideia de que uma tradução exprime uma mesma representação para leitores do mundo inteiro só se justifica partindo da suposição de que traduzir seria captar uma mensagem verdadeira e única, o que significa pressupor que a língua não se transforma, que não existem culturas diferentes nem “tons diferentes”, que todas as “percepções da matéria” são iguais e que seria possível representar a “matéria” de maneira acabada e definitiva. No entanto, a “matéria” a que se refere Bergson está na mesma esfera da “ideia de arte” dos românticos alemães explicada por Benjamin, da “imagem real” e do “elemento imutável” de Baudelaire, ou seja, ela não pode ser representada. Sua representação é apenas uma percepção, apenas um olhar. Sendo assim, para não ser corrompida pelo tempo, deve valer-se dele para significar, utilizando para isso olhares externos que a complementem, já que se caracteriza por estar em movimento constante. Dessa maneira, se a obra de arte, para os autores que aqui vêm sendo estudados, envolve a ideia de um movimento constante, a tentativa de transmitir a mesma imagem, seja no mesmo idioma, seja em outro, torna-se impossível. Afinado com esta concepção da tradução, o filólogo espanhol Martín de Riquer na reedição de 1999 de Don Quijote, afirma: Buscou-se explicar tudo o que pudesse entorpecer a leitura do Quixote a um leitor culto de nossos dias, mas familiarizado com a língua, costumes e cultura da época de Cervantes. Muitos leitores perceberão que algumas notas sobram por se referirem a coisas muito sabidas, mas enquanto possam ajudar a outros leitores não tão ilustres, o objetivo de nosso comentário será cumprido. A maioria das notas esclarecem palavras ou problemas de linguagem; mas se procurou também dar notícia dos livros ou personagens literários tão abundantemente citados no Quixote e de aspectos da vida do século XVI e princípios do XVII que são necessários para entender algum aspecto determinado, por ínfimo que seja do grande romance. (RIQUER In. CERVANTES,1999, p.29) A opção tradutória adotada por Riquer permite compreender um dos efeitos da condição dinâmica da linguagem, porque se um idioma está em contínua transformação, uma reedição explicativa seria uma maneira de acompanhá-lo em seu desenvolvimento sem que sua história se perca. O constante movimento de um idioma – ou seja, suas transformações e variações provocadas pela passagem do tempo – é visto pelos signos e em seus arranjos, que de 59 acordo com Roman Jakobson em Aspectos Linguísticos da Tradução (2007), podem ser de dois tipos: Todo signo linguístico implica dois modos de arranjo: 1) A combinação. Todo signo é composto de signos constituintes e/ou aparece em combinação com outros signos, Isso significa que qualquer unidade linguística serve, ao mesmo tempo, de contexto para unidades mais simples e/ou encontra seu próprio contexto em uma unidade linguística mais complexa. Segue-se daí que todo agrupamento efetivo de unidades linguísticas liga-as numa unidade superior: combinação e contextura são as duas faces de uma mesma operação. 2) A seleção. Uma seleção entre termos alternativos implica a possibilidade de substituir um pelo outro, equivalente ao primeiro num aspecto e diferente em outro. De fato, seleção e substituição são as duas faces de uma mesma operação. (JAKOBSON, 2007, p.35) Na concepção de Jakobson, a combinação impede que o signo seja estático. Ele não significa por si só, já que precisa de arranjos. Relacionando essa concepção às ideias de Benjamin (2011, p.68) se o “homem transforma a linguagem em meio” e “com isso, pelo menos em parte, em mero signo”, o nome, no âmbito da língua humana, deve estar relacionado a outros, ser combinado e selecionado para significar. Esse arranjo de signos estaria na esfera da “linguagem dos homens”, que “nunca é somente comunicação do comunicável, mas é, ao mesmo tempo, símbolo do não-comunicável” (BENJAMIN, 2011, p.72). Assim sendo, a linguagem, na condição de símbolo, seria deteriorada pelo tempo e sua significação teria um “caráter momentâneo” que a alegoria não tem. No entanto, na linguagem, em sua dimensão alegórica, existe “uma progressão” e “uma sequência de momentos” (BENJAMIN, 1984, p.184) que deve ser considerada. Dessa forma, se um tradutor – não considerando a característica sequencial da linguagem do artista moderno – tentasse exprimir a mensagem do poeta, ele estaria retirando da obra seu caráter progressivo e agregando-lhe uma característica estática que deteriora a representação artística. Nesse sentido, no seguinte trecho, Benjamin explica que o essencial de uma obra poética não é a comunicação, por isso a tradução também não deve pretender comunicar: O que "diz" uma obra poética? O que comunica? Muito pouco para quem a compreende. O que lhe é essencial não é a comunicação, não é o enunciado. E, no entanto, a tradução que pretendesse transmitir algo não poderia transmitir nada que não fosse comunicação, portanto, algo de inessencial. (BENJAMIN, 2011, p.102) 60 O “duelo” que existe no poema “Le confiteor de l’artiste” se relaciona à nãocomunicação da obra e da tradução, pois o artista moderno teria o papel de tradutor da cidade grande, ou elemento imutável. Dessa forma, a tentativa do poeta de exprimir o que vê se relaciona com a tentativa do tradutor de comunicar algo oculto da obra original porque a comunicação direta é impossível, visto que os signos, como elementos transitórios, apenas aludem à significação. Dessa maneira, as palavras devem se juntar em arranjos, porque, segundo Benjamin, sozinhas não têm o caráter nomeador. Da mesma forma que as palavras precisam ser arranjadas para significar, a obra de arte combinada com suas traduções permite uma constante alusão ao elemento imutável. Por isso, a preocupação com a comunicação não deve existir, porque a obra não comunica, ela é alusiva. E seu caráter alusivo, quando combinado à tradução, é realçado. A tentativa de comunicação, portanto, implica na propagação de algo inessencial porque exprimir com exatidão algo infinito através de elementos finitos é impossível. Essa impossibilidade se reflete na obra de Baudelaire através do “choque” que é relacionado à impotência do tradutor ao fazer escolhas e ao se deparar com as diferenças linguísticas e culturais. O poeta, enquanto tradutor da cidade grande, nunca pode representá-la diretamente e a deforma com a mudança de códigos necessária à representação do elemento imutável a partir de elementos transitórios. Nesse sentido, o “choque”, no processo de criação, existe porque a tentativa de captar o “absoluto” desembocaria na transformação da linguagem em “símbolo do não-comunicável”. A impotência do poeta está em perceber-se um ser deteriorável que utiliza de elementos também deterioráveis. Dessa forma, para que não permita que sua linguagem seja degradada com o tempo, ele a emprega em seu caráter alegórico. No entanto, essa característica da linguagem que usa o tempo e o espaço a seu favor existe através de sua neutralidade, o que significa que, ao se valer do transitório para evocar o imutável, o artista deve retirar a historicidade do presente, deve tentar encontrar no elemento transitório, ou na modernidade, o que nunca pode ser deteriorado. Por isso, o tradutor, ao tentar captar a mensagem do artista, muitas vezes deixa de lado a neutralidade de sua obra – que é fundamental em seu caráter alegórico – e transforma a alusão de sua significação em símbolo. Proporciona a ela um caráter estático. Exemplo disso é a escolha tradutória de Louise Varèse, ao traduzir “moi” do francês por “ego” no inglês. Baudelaire escreveu: “toutes ces choses pensent par moi, ou je pense par elles (car dans la grandeur de la rêverie, le moi se perd vite!)” Vàrese verteu para o inglês da seguinte maneira: “all these things think through me or I through 61 them (for in the grandeur of reverie the ego is quickly lost!)”. Mesmo sem aprofundar em questões terminológicas próprias da psicologia, sabe-se que moi, depois do surgimento da psicanálise, tem uma conotação que não existia na época de Baudelaire. Porém, muitas vezes é inevitável, nos dias de hoje, pensar o moi a partir de conceitos agregados por esses estudos, mesmo sem grandes conhecimentos sobre esse tema. São conceitos que já estão enraizados nos tempos de hoje. Portanto, a opção de Louise Varèse, ego, é referente direto às concepções da psicanálise e exclui ao mesmo tempo todas as outras nuances de moi. Sua escolha por “ego” tirou o “moi” da esfera alegórica e o colocou na do símbolo, excluindo todos os outros sentidos que o pronome poderia ter. Ao fazer essa opção, Varèse retirou a neutralidade da palavra moi e usou de seu significado fixo e temporal. Isso leva a uma exclusão direta de seus outros significados. Ou seja, o uso de ego parece visar captar uma mensagem oculta da obra de arte e significa apenas em um contexto histórico determinado. No entanto, mesmo quando não há o objetivo de fazer um encaixe lexical em determinado contexto, este já é intrínseco à palavra. Nesse sentido, Benjamin (2011, p.109), em A tarefa do tradutor, explica que referentes iguais designam o mesmo objeto, porém com “modos de visar diferentes” que se excluem mutuamente, porque contêm intrinsecamente o contexto histórico. As línguas se excluem entre si porque refletem culturas diferentes, e na condição finita do homem, seria impossível não haver essa exclusão. Porém, a obra original, em conjunto com sua demanda de diversos olhares transitórios, relacionados aqui às traduções, permite agregar contextos e ameniza a exclusão potencial entre idiomas, aludindo com mais precisão ao que Benjamin ( 2011, p.73) denomina “plenitude das línguas”, ideia que será discutida mais adiante. 2.3 A tradução como “forma” A tradução está relacionada à produção da obra de arte moderna. O artista, para realizar seu trabalho, deve decodificar o elemento imutável, ou a cidade grande, e transformá-lo em elementos transitórios, que são elementos existentes dentro de um contexto e culturas demarcados, passíveis de serem degradados pelas transformações de época. Pode-se, a partir daí, estabelecer um paralelismo com a tradução pelas ideias de 62 Roman Jakobson: “a tradução envolve duas mensagens equivalentes em códigos equivalentes” (JAKOBSON, 2007, p.65). De acordo com isso, a primeira decodificação pela qual passa o texto original é a que é feita pelo tradutor quando lê a mensagem em um código e a transpõe para outro. A tradução, portanto, é feita levando em consideração, dentre outros aspectos, contextos históricos determinados, culturas diferentes, transformações de época. Por isso, as escolhas tradutórias estão condicionadas pela cultura e pela época a que pertencem. No entanto, ocorre muitas vezes a opção de um tradutor por uma palavra ou expressão mais próxima da língua do autor, seja pela sonoridade ou pelo contexto. Para ilustrar essa discussão, é possível mencionar o uso do verbo marcher, do poema “Chacun sa Chimère”. Para analisá-lo, aqui serão utilizadas as quatro traduções que vêm sendo usadas nestas reflexões.31 Aurélio Buarque de Holanda optou pelo verbo marchar. De Bruchard, Sala e Varèse se ativeram a correspondentes mais usuais às suas línguas: andavam, caminaban e walked. O verbo marcher contempla todos esses conceitos, mas o verbo marchar, em português, tem um significado usual diferente. A primeira definição do verbete constante no dicionário Houaiss é o “de seguir em ritmo de marcha”. Em francês, de acordo com os dois dicionários pesquisados, Littré e Le Petit Robert, a acepção primeira é a de “deslocar-se com os pés”. “Marcher” e “marchar” implicam a mesma ação, porém o verbo em português remete a um significado que, à primeira vista, não é o usual no francês. Mas ao comparar as versões, percebe-se que essa leitura também é possível na língua de Baudelaire, assim como é possível em português, já que andar, de acordo com o dicionário Houaiss, também inclui o significado de marchar na língua portuguesa. Uma palavra, ou signo, significa algo na medida em que está combinado a outros, formando assim um contexto. Portanto, o conjunto desses signos implica uma representação ou imagem. No entanto, ao substituir algum deles, ou mesmo uma seleção de signos por sinônimos, um tradutor obtém uma significação semelhante, e uma exclusão, porque marchar é um sinônimo de marcher; contudo, na prática, exclui o sinônimo que seria o mais próximo: andar. 31 1) Pequenos Poemas em prosa: tradução de Aurélio Buarque de Holanda, 1966, editada no Rio de Janeiro pela Civilização Brasileira. 2) Pequenos Poemas em prosa: tradução de Dorothée de Bruchard, 1988, lançada em Florianópolis pela editora da UFSC em edição bilíngue. 3) Pequeños Poemas en prosa: tradução de Mercedes Sala feita em Barcelona, 1995 pela editora Edicomunicación.4) Paris Spleen: tradução de Louise Varèse, 1970, lançada em Nova York no ano de 1970 pela editora New Directions. 63 Essas opções remetem ao questionamento que permeia as escolhas tradutórias: se o ato de traduzir implica sempre em operar uma exclusão quando se escolhe uma determinada palavra, como decidir? Comellas responde a essa pergunta deixando a questão em aberto, e explica que a opção tradutória se deve não apenas à “complexidade do fenômeno traslatório, nem ao grande leque de variáveis (gênero textual, [...] modalidade, contextos)”, mas que, para além disso, as opções de um tradutor “implicam escolhas éticas importantes, tanto para a própria cultura como para a cultura que tentamos traduzir.” (COMELLAS, p.154, 2011). Dessa forma, traduzir é fazer escolhas. No entanto, se uma tradução for voltada “a quem entende o original” – porque caso contrário, a tradução seria um original, (BENJAMIN, 2011, p. 102) –, é possível entender que não existem exclusões e sim complementações de significados. Assim, no exemplo do verbo marcher, ao invés de considerar a exclusão que há entre os dois verbos – marchar e marcher – na verdade se observa que ocorre uma complementação porque os dois códigos juntos aludem a um significado maior do que seria marcher sozinho ou marchar apenas em português. Ou seja, o tradutor, tendo optado por esse sinônimo, ajuda o leitor que conhece o original a fornecer à obra o seu olhar, porque o leitor pode ser considerado como “tradutor de uma tradução” como o é o espectador de Baudelaire. Dessa maneira, o seu olhar é uma “forma”, que, segundo Benjamin, é o mesmo que a tradução: “para compreendê-la como tal [como forma] é preciso retornar ao original” (BENJAMIN, 2011, p. 102). Como já foi assinalado aqui, em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão que “o órgão da reflexão artística é a forma”, e que a “Ideia da arte” seria um “medium-de-reflexão das formas”, o que implica que a “Ideia de arte” está contida na obra, e que as críticas e análises que lhe são feitas, são um meio de evocá-la permanentemente. Essa crítica é “forma” como também o é a tradução. Portanto, retomando a relação existente entre tradução e representação moderna, o artista, sendo um tradutor de algo que não é representável, somente aludido, e fornecendo a “forma” transitória do elemento imutável – “o esboço perfeito” –, torna o olhar de seu espectador também uma “forma” transitória necessária à primeira representação finita que só pode continuar aludindo ao infinito pelos diversos olhares por vir. Estes são fundamentais ao “esboço perfeito” porque – sendo relacionados às traduções – eles o “alçam a uma atmosfera mais elevada”, como explica Benjamin, no trecho a seguir, de A tarefa do tradutor, ao abordar a importância da tradução em relação ao original: 64 Na tradução o original cresce e se alça a uma atmosfera por assim dizer mais elevada e mais pura da língua, onde, é claro, não poderá viver por muito tempo, da mesma forma como está bem longe de alcançá-la em todas as partes de sua figura, mas à qual, de modo extraordinariamente penetrante, ele ao menos alude, indicando o âmbito predestinado e interdito da reconciliação e da plenitude das línguas. (BENJAMIN, 2011, p. 110) A crítica de arte e a tradução, enquanto “formas”, têm a mesma característica de remeter a obra de arte ou o original a uma “atmosfera mais elevada”, ou à “plenitude das línguas”, que os idiomas isolados não conseguiriam atingir. No entanto, o que não poderia ser alcançado em cada um dos idiomas se “complementa” “na totalidade” de suas “intenções”, que Benjamin denomina também “pura língua” (BENJAMIN, 2011, p.109). Nesse sentido, retomando o exemplo de marcher e marchar, na tradução de Aurélio Buarque de Holanda, o tradutor, ao usar o verbo marchar como correspondente do verbo marcher, exclui o significado de andar; porém, na comparação dos dois idiomas, percebe-se que existe uma alusão mais forte à “pura língua” exatamente pela complementação das duas palavras. Aurélio, portanto, atribui um sentido distinto da palavra em francês, da mesma forma que também proporciona a sua língua um sentido mais abrangente que aquele que existe na língua francesa, em outras palavras, a comparação entre uma tradução e o original permite uma referência maior a um potencial “absoluto” da palavra. Nesse sentido, Walter Benjamin exemplifica a relação de exclusão e de complementação existente entre duas línguas com os exemplos Brot e pain. O filósofo afirma que “o visado é o mesmo; mas o modo de visar, ao contrário, não o é.”. Isso acontece porque para um francês e para um alemão o significado dessas palavras não são intercambiáveis, mas ambas significam, em termos absolutos, a “mesma coisa”: Está implícito, pois, no modo de visar o fato de que ambas as palavras significam algo diferente para um alemão e um francês, respectivamente, que, para eles, elas não são intercambiáveis e que, aliás, em última instância, almejem excluir-se mutuamente; porém, no que diz respeito ao objeto visado, tomadas em termos absolutos, elas significam a mesma e idêntica coisa. (BENJAMIN, 2008, p.72) Brot e pain se referem a um mesmo objeto; no entanto, a percepção desse objeto muda de acordo com o “grau de atenção à vida” do espectador e com o contexto em que ele está inserido, seja ele o tradutor ou o leitor. Por isso, praticamente, “se excluem”, visto que não há maneira de existir, ao que se refere a tradução, contextos iguais. Na 65 medida em que é impossível haver a mesma percepção e a mesma imagem, essas diferenças de percepções são relevantes porque ambas, comparadas, permitem aludir de forma mais evidente à “mesma coisa visada” que não pode ser alcançada por nenhuma língua separadamente, mas ao serem dispostas juntas se “complementam em suas intenções”, como afirma Benjamin: Toda afinidade meta-histórica entre as línguas repousa sobre o fato de que, em cada uma delas, tomada como um todo, uma só e a mesma coisa é visada; algo que, no entanto, não pode ser alcançado por nenhuma delas, isoladamente, mas somente na totalidade de suas intenções reciprocamente complementares: na pura língua. Pois enquanto todos os elementos isolados – as palavras, frases, nexos sintáticos – das línguas estrangeiras se excluem, essas línguas se complementam em suas intenções mesmas. (BENJAMIN, 2011, p.109) A noção de “plenitude das línguas” tem uma relação estreita com a ideia exposta por Baudelaire de que o artista moderno produz uma obra que é uma tradução, e com a concepção de que o leitor é também um tradutor. Se o artista moderno faz uma tentativa de remeter ao elemento imutável, elemento este que pode ser relacionado à “pura língua” de Benjamin, o espectador, junto com o artista, é importante na alusão ao que nunca muda porque seria esse olhar do outro que permitiria que o texto original – ou a obra de arte – não se degrade pelo tempo, usando das transformações de época para sua própria transformação. Decorrente disso, a exclusão de acepções operada pela tradução remete à linguagem como “símbolo do não-comunicável”, visto que, dessa forma, ela explicita a condição da linguagem, que está fadada a ser corroída pelo tempo. Segundo Benjamin (2011, p.71) a que “sobrenomeia” o que designa e que foi transformada em mero signo porque já não mais nomeia os objetos: “o nome é aquilo através do qual nada mais se comunica, e em que a própria língua se comunica a si mesma, e de modo absoluto.” (BENJAMIN, 2011, p. 55). Dessa forma, Benjamin situa o nome na ordem da “palavra divina”, porque sua condição de “signo” surge a partir do “pecado original” com “a palavra humana”: “aquela em que o nome não vivia mais intacto, aquela palavra que abandonou a língua que nomeia” (BENJAMIN, 2011, p.67). Assim, ao se lançar ao pecado, o homem teria abdicado dessa língua, e teria dado lugar a “uma paródia da palavra imediata, da palavra criadora de Deus.” (BENJAMIN, 2011, p.67). Portanto, transformando a linguagem “em mero signo”, a combinação e seleção deles são necessárias, porque só através delas seria possível a tentativa de exprimir algo de que a palavra, por si só, não poderia dar 66 conta, já que não seria capaz de alcançar seu significado “absoluto”, devendo, assim, fazer uso de outros signos para que possa transmitir alguma mensagem. A frase “chose curieuse à noter”, no quinto parágrafo de “Chacun sa Chimère”, é um exemplo do que está sendo tratado a respeito dos limites da palavra. Existe aí um arranjo de signos que forma um significado; porém, na tradução de Aurélio Buarque de Holanda houve uma redução e o tradutor optou pelo termo “curioso”. A seleção de palavras feita por Baudelaire permite a seguinte leitura: na medida em que o verbo noter leva o leitor a notar algo, sublinha que se deve perceber o que é curioso. Na tradução para o português que aqui está sendo analisada, no entanto, parece apenas haver uma rápida pausa para introduzir o que vem a seguir. Baudelaire utilizou um arranjo de signos para expressar o que observava, que juntamente a “curioso” de Aurélio permite perceber que um só “signo” não seria suficiente para remeter o leitor a enfatizar o que via o poeta. No entanto, na comparação dos dois aparece “uma terceira presença ativa. Revela a fisionomia da “linguagem pura” que precede e subjaz nas duas línguas.” (STEINER, p.85, 2001). Porém, na prática, existe uma perda entre o original e texto traduzido. As perdas que acontecem na tradução se relacionam, também, com opções de referentes iguais porque estes possuem necessariamente “modos de designar” diferentes. E são esses “modos de designar” diferentes – visto que não há maneira possível de que sejam iguais – que, para o artista moderno, são necessários à dinamicidade da obra de arte. Ou seja, pelos diferentes contextos históricos do tradutor e do espectador, as escolhas tradutórias criam outra imagem que complementa a do original, já que a imagem criada pelo artista, por si só, é uma “deformação” da “imagem real”, e esta permite, portanto, inúmeras outras imagens. Dessa forma, não existiria uma verdadeira a ser expressa, e sim uma complementação de imagens. Assim sendo, se há na obra uma possibilidade de múltiplas percepções geradas a partir dela, o tradutor que pretendesse “transmitir algo”, pressuporia que o original também o faz, e que o texto traduzido está sempre aquém do texto em sua língua de origem. No entanto, Benjamin explica que a língua só pode exprimir algo em sua condição “divina”, ou seja, ela só é um “meio [Medium] de comunicação” em sua mais “pura essência” (BENJAMIN, 2011, p. 53). Dessa forma, o máximo que a linguagem humana consegue fazer é aludir à “verdade”, pois o “absoluto” não pode ser exatamente representado por ela. Por isso, um original é “incompleto” – porque já tem em si a mudança de códigos do infinito ao finito – e a 67 tradução também, do contrário, ela não acrescentaria nada a ele e apenas passaria uma mensagem que significaria de modo efêmero, ou seja, seria um “símbolo”. Dessa forma, para que exista essa complementação de maneira a fornecer uma dinamicidade ao original, um tradutor deve optar pelos melhores arranjos de maneira a completar o texto em sua língua materna, e deve “recusar-se a levantar o problema da dualidade da tradução”. Inês Oseki-Dépre explica essa ideia em seu livro De Walter Benjamin à nos jours... (2007): De algum modo, recusando-se a levantar o problema da dualidade da tradução, da escolha entre o fato de privilegiar a fonte ou a língua-alvo, abrese ao tradutor um novo espaço de liberdade e é esse o ponto que constitui o objeto de nossa reflexão. (OSEKI-DÉPRÉ, 2007, p.17) Daí se depreende que o tradutor deveria procurar, junto ao original, a “relação” entre os dois textos e não as palavras em seu idioma baseado na mensagem que o autor possa ter querido transmitir, porque isso implicaria em um distanciamento do texto traduzido e do texto original, visto que “o papel da tradução, seu papel essencial, não é o de perpetuar o original, mas, em um nível mais elevado, exprimir a relação mais íntima das línguas.” (OSEKI-DÉPRÉ, 2007, p.20). A expressão da relação entre as línguas abrange as perdas e ganhos inevitáveis da tradução porque trata-se da linguagem humana, que aprisionada a um contexto histórico, é sempre de algum modo “símbolo do não-comunicável”. Nesse sentido, George Steiner, em Depois de Babel (2001), afirma que, de certa forma, traduzir seria “um absurdo”: Cada ato genuíno de tradução é, ao menos de alguma forma, um absurdo, uma tentativa de reconstruir a escala do tempo e de recopiar voluntariamente o que foi um movimento do espírito. (STEINER, 2001, p.92) Partindo desta reflexão de Steiner, a tradução realiza um corte temporal na realidade e na evolução das línguas, pois as escolhas tradutórias se baseiam no tempo e no espaço do tradutor. Assim, traduzir um poema de Baudelaire para o português do século XXI é retirá-lo do século XIX e dispô-lo diretamente no século de hoje. Ou seja, conectar diretamente uma época a outra, de um contexto a outro. No entanto, reestabelecendo a relação com a obra de arte moderna, o artista que representa o elemento imutável também promove um corte temporal e espacial; porém, se utiliza dele como motor de dinamicidade e de inacabamento para que a obra não se degrade. Dessa maneira, esse corte temporal pode ser visto, do ponto de vista da poesia moderna, 68 como uma complementação de contextos e de percepções porque a representação artística moderna a demanda. Portanto, essa tentativa de utilizar do tempo e do espaço como elementos favoráveis à obra de arte e à tradução, de acordo com Antoine Berman, é uma “experiência” que acarreta uma “relação íntima entre as línguas”. Por isso, é possível concluir que ao traduzir pretende-se fazer com que uma obra sobreviva ao tempo, já que suas versões, produzidas em diferentes épocas, preservam as transformações de cada língua, de modo que em sua acumulação progressiva, cada vez mais aludiria à significação dessa obra a partir dos contextos trazidos por suas traduções. Dessa forma, tem-se, na tradução, uma “multiplicidade rica e desconcertante” de culturas e contextos, como indica Berman: Não existe a tradução (como a postula a teoria da tradução), mas uma multiplicidade rica e desconcertante, escapando a todas as tipologias, às traduções, aos espaços das traduções, que recobrem o espaço que existe por todo lado, em todos os lugares, para traduzir. Também a tradutologia não ensina a tradução, mas desenvolve de maneira transmissível (conceitual) a experiência que é a tradução em sua plural essência. (BERMAN, 1999, p. 23) A tradução é uma “multiplicidade rica e desconcertante”, como o é a linguagem humana, porque “a linguagem, implicando a necessária pluralidade das línguas implica a ideia da tradução como um de seus componentes definitivos. A teoria da tradução é então, antes de tudo, uma teoria da linguagem”, como o assinala Dessons (2014). 32 Dessa forma, fica mais clara a relação que se estabelece entre a obra de arte moderna e a tradução, visto que a impotência da linguagem existe porque é impossível transformar de maneira absoluta o elemento imutável em elemento transitório. Portanto, a tentativa de Baudelaire de representar a cidade grande com essa mudança de códigos se relaciona à prática da tradução. Por isso, a obra de arte moderna, assim como a tradução deve considerar a clareza de sua representação, que pode ser comparada à clareza do texto na língua de chegada, porque, se um texto traduzido, de certa forma, é um estudo da linguagem e sendo a linguagem uma forma de expressão, como afirma Benjamin, ela tem como objetivo prático tornar a “matéria” perceptível, ou seja, fazer com que o “vazio” “abstrato” do “elemento imutável” possa ser aludido. Dessa maneira, o artista moderno, ao produzir seu “esboço perfeito”, considera o seu contexto e o contexto por vir; por isso sua obra é uma “abertura do tempo”, segundo 32 Traduire-écrire – Cultures, poétiques, anthropologie. http://books.openedition.org/enseditions/4113#authors 69 a expressão de André Hirt. Ele não considera apenas a sua cultura ou a cultura de seu possível espectador, não utiliza uma em detrimento da outra – ideia essa que remete mais uma vez à modernidade baudelairiana, visto que a tentativa do poeta é captar na modernidade o que nunca se degrada – porque usar uma em detrimento da outra, seria partir do pressuposto já mencionado de que uma representação na ordem da linguagem é igual em todas as línguas, ou pressupor que existe uma única mensagem a ser transmitida pela obra. À pressuposição de que existiria uma mensagem a ser transmitida pela representação artística pode-se relacionar os diferentes tipos de tradução que são explicados por Antoine Berman, dentre eles, a tradução “etnocêntrica e hipertextual”, e a “platônica” (BERMAN, 1999, p.29). A tradução “etnocêntrica” é aquela que “leva tudo a sua própria cultura, a suas normas e valores, e considera o que está situado fora dela – o estrangeiro – como negativo”33Assim, esse tipo de tradução só aceita a cultura do original como algo a “ser adaptado e anexado” porque a língua de chegada pode dar conta de tudo o que pode ser representado. Outro tipo de tradução que deixa de lado a língua de origem é a “hipertextual”, que é “todo texto produzido pela imitação [...] adaptação, plágio, ou toda outra espécie de transformação formal de um texto que já existe”34. Este tipo poderia ser pensado como uma tradução que tem como princípio aperfeiçõar o texto original e proporcionar a ele um entendimento fácil, o que seria, de certa forma, descartá-lo como “continuum de formas”, implicando também em descartar a tradução como “forma” que complementa o original. Relacionados à obra de arte, estes dois tipos de tradução retiram dela seu caráter moderno, pois privilegiar apenas o contexto do tradutor, ou do artista, e explicá-lo ao espectador é representar apenas o que é transitório na época e rejeitar os diferentes tipos de olhares por vir assim como as diferentes interpretações que possam acrescentar algo a ela. A tradução “hipertextual” e a “etnocêntrica” são consideradas por Berman (1999, p.33) parte da tradução “platônica”, porque elas partem do princípio que “existe um ‘sentido’”, ou seja, algo fundamental e comum entre os textos, e que é “considerado como um ser em si, [...] como um certo ‘invariante’ que a tradução faz passar de uma língua a outra deixando de lado sua casca sensível, seu ‘corpo’” (COMELLAS, 2011, p. 156). A visão platônica da tradução, comparada à representação artística, também retira 33 34 Ibid Ibid 70 desta a condição moderna, já que a impotência da linguagem ou, segundo Benjamin, o “choque” de Baudelaire, se dá porque o poeta se percebe finito e incapaz de representar o imutável em sua condição absoluta e infinita. Por isso, a obra de arte moderna utiliza de sua condição finita para nunca se degradar, usando do olhar do espectador e de seu contexto, segundo Hirt, para se movimentar através do tempo. Essa ideia se relaciona a uma das propostas de Berman: “reconhecer e receber o Outro como Outro” (BERMAN, 1999, p. 74). Para que não se perca a identidade nem da língua de chegada e nem da de origem, os tradutores deveriam estrangeirizar a tradução. Essa reflexão retoma mais uma vez a “relação íntima das línguas” e permite ao tradutor um “novo espaço de liberdade” que lhe permite experimentar os dois idiomas com os quais está trabalhando e as inúmeras possibilidades que ele apresenta. Diferentemente de traduzir “palavra por palavra”, posto que as palavras sobrenomeiam e não podem significar sem o arranjo de signos. Berman explica esse recurso através da tradução de provérbios em que o tradutor se encontra “em uma encruzilhada: ou procurar seu suposto equivalente ou traduzir literalmente, palavra por palavra” (BERMAN, p.14, 1999), assim, “traduzir um provérbio literalmente não é um simples palavra por palavra, mas também traduzir seu ritmo, sua duração (ou concisão), suas eventuais aliterações, etc.” (BERMAN, p.14, 1999). Dessa forma, procurar equivalentes seria se recusar a introduzir na língua traduzida a “estrangeiridade” como explica o estudioso: Procurar equivalentes, não é somente colocar um sentido invariável, um ideal que se exprime nos diferentes provérbios de língua em língua. É se recusar a introduzir na língua traduzida a “estrangeiridade” do provérbio original [...] é se recusar a fazer da língua traduzida “o albergue do longínquo”, seria, para nós, afrancesar: velha tradição. (BERMAN, 1999, p.15) De acordo com a citação anterior, a estrangeirização do escrito em sua língua de chegada respeita o contexto dos dois textos, porque traduzir implica refletir e experimentar os dois idiomas, saber que são diferentes, que neles estão contidas culturas e histórias diversas. Dessa forma, ainda que estejam em um contexto histórico diferente, um tradutor não deve relevar a condição dinâmica da língua, mas respeitar o processo linguístico dos idiomas de partida e de chegada, já que pensar a tradução também consiste em utilizar o tempo e o espaço a seu favor e ultrapassá-los, para que assim, a linguagem nunca se deteriore. 71 Como tradutor da grande e moderna cidade de Paris do século XIX, Baudelaire procurou nela os elementos transitórios que permitissem sempre – através das traduções de sua tradução, ou do olhar do espectador – aludir a sua condição infinita de elemento imutável. Por isso, a representação da capital parisiense feita pelo poeta se relaciona com as questões tradutórias de Benjamin e com o processo do traduzir, visto que para que ocorresse essa mudança de códigos entre a condição infinita da metrópole e a linguagem em sua característica transitória, o autor de Le Spleen de Paris, como tradutor do que vê, através de sua condição de flâneur e de orientador do olhar do leitor, ao observar no transitório o que permanece, compôs com sua linguagem alegórica a representação moderna e alusiva do que não pode ser representado absolutamente, demandando sempre traduções para que seu significado não se perca com o tempo. 72 OBSERVAÇÕES FINAIS Esta dissertação pretendeu discutir a importância da tradução e do olhar do leitor na representação de arte moderna. Para isso, foi feito um paralelo entre a obra de Charles Baudelaire e alguns fundamentos da filosofia da linguagem de Walter Benjamin. A título de exemplo, foram utilizados três dentre os poemas em prosa do livro Le Spleen de Paris – petits poèmes en prose sendo eles: “Chacun sa Chimère”, “Un hemisphère dans une chevelure” e “Le confiteor de l’artiste”. Dessa forma, este trabalho foi dividido de maneira a abordar no primeiro capítulo a contextualização histórica da Paris do século XIX vivida pelo poeta para o entendimento da cidade moderna, pois a partir daí, desenvolve-se o conceito de modernidade através da concepção do autor de Le Spleen de Paris. A modernidade de Baudelaire tem como fundamento a junção dos elementos transitórios e do imutável, e se vale da não-renúncia ao passado, de sua agregação ao presente e da relevância do que não muda no que é passageiro em todas as épocas. No entanto, só é possível perceber a existência desse elemento imutável, posto que o homem é mortal e finito, através de alusões e de percepções. Estas alusões e percepções, relacionadas aqui aos elementos transitórios precisam ser dinâmicas, o que significa que não podem ser deterioradas pelo tempo, devem ser alegóricas. Benjamin explica a alegoria através da caveira, porque a partir dela pode ser criado qualquer rosto físico. Mas para isso, ela precisa do olhar do outro para significar. Dessa forma, pode-se entender alegoria como uma representação que utiliza do olhar do espectador para evocar sua significação. No entanto, um objeto alegórico não significa porque o verdadeiro significado, de acordo com Benjamin, só existiria em uma esfera que a humana não pode atingir. No âmbito humano, portanto, a alegoria é visar a significação e estar sempre aludindo a ela. Essa ideia está relacionada à da obra de arte incompleta que Benjamin explica em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão e que foi relacionada aqui ao que Baudelaire denomina de “ébauche parfaite”, a representação artística moderna. Uma obra de arte incompleta é aquela que precisa de outro olhar, estar aberta às interpretações possíveis. Por isso, o “esboço perfeito” está nessa esfera, porque 73 demanda necessariamente a percepção do leitor, elemento transitório que dinamiza a obra. Dessa forma, percebe-se que a questão da subjetividade é de extrema importância para a poesia moderna. Esse trabalho, portanto, abordou esse aspecto da lírica baudelairiana a partir das seguintes expressões do filósofo francês Henri Bergson: “percepções da matéria” e “grau da nossa atenção à vida”. No entanto, a importância do espectador na obra de arte moderna se dá a partir de sua condição de sujeito histórico. Por isso, entende-se que as expressões de Bergson e ideia de Benjamin de que a arte pressupõe do homem, apenas sua essência corporal e espiritual são afins. Assim sendo, a obra incompleta demanda o olhar do outro para que não se deteriore e que continue em movimento constante, dessa forma, o tempo é um fator fundamental na discussão da representação artística. Na obra de Baudelaire, ele está ligado ao tédio e à melancolia que por sua vez, está relacionado à velocidade do mundo moderno. A cidade industrial, os trabalhadores que vivem na miséria paradoxalmente ao crescimento econômico, as lojas com suas vitrines e o incentivo ao consumo apresentam-se ao homem moderno como inúmeras possibilidades de realizações, mas ao mesmo tempo como fatores entediantes e melancólicos. Seja porque não se pode ter tudo, porque a sociedade demanda mais do que se pode ter ou por não poder ter nada. Esse conjunto de fatores se relaciona ao que André Hirt, crítico e filósofo francês, denomina “embriaguez moderna da subjetividade”. Entende-se essa ideia como a perda de si mesmo do homem moderno nessa cidade grande que tudo tem a oferecer para uma pequena parte da população. Essa “embriaguez” de Hirt, que é o tédio e a melancolia, é o que Baudelaire chama de spleen. Este tem um caráter fundamental em sua obra. Esse tédio provindo da duração e da deformação que existe pela passagem dos dias, só pode ser vencido pela ausência do tempo, ou o oposto do spleen, o idéal. Esses dois pólos, spleen e idéal, compõem o que a crítica Barbara Johnson denomina “dualidade inquietante” que permeia toda a obra do poeta. É importante observar como apesar desses polos serem opostos e paradoxais, são eles, de acordo com Johnson, o que compõem a totalidade de sua obra. Isso implica também que ao fazer referência a um, o poeta evoca o outro, muitas vezes utilizando elementos que estão no limiar dos dois. A morte é um exemplo disso, e pode ser interpretada como a ausência do tempo, visto que só se pode morrer estando vivo, 74 estando sujeito à ação da passagem dos dias. Baudelaire aborda a morte como salvação do tédio e da vida moderna. Pode-se entendê-la também como a passagem, ou elo, do spleen para o idéal e como a única saída e a única forma de transformar o que é passageiro em permanente. O presente trabalho abordou desde o início os elementos transitórios e o imutável, que foram relacionados ao spleen como sentimento provindo da modernidade ou como transitório que faz parte do imutável; e ao idéal como o que já está nessa esfera atemporal do que permanece. A contraposição dos dois e seu caráter complementar são trabalhados na leitura do poema “Un hémisphère dans une chevelure” pelo qual se analisa a importância do spleen ao evocar o idéal. Essa discussão evoca a alusão do elemento imutável através do transitório, porque só se pode ter noção do infinito através do finito. O poeta utiliza um vocabulário que remete ao mundano e ao palpável fazendo uma referência aos sonhos e à lembrança, que de acordo com Benjamin é característica do idéal de Baudelaire, talvez porque aí não exista mais a ação do tempo. O mesmo ocorre em “Le confiteor de l’artiste”. No entanto, ao contrário do que acontece em “Un hémisphère dans une chevelure”, o artista se percebe finito através do infinito, e é nessa percepção que acontece o que Benjamin denomina “experiência do choque”, onde o poeta se entende como ser mortal que se degrada e que está fadado a ser sempre vencido pelo que permanece através do tempo, que em “Le confiteor de l’artiste” seria a Natureza. Benjamin relaciona essa experiência de choque e de impotência que é vista na obra de Baudelaire ao processo de criação. Pois nesse processo, de acordo com o poema, existe uma certa gradação que começa com o êxtase de se sentir parte da Natureza, seguido do fracasso de se ver finito e pequeno em relação a ela. Este último é relacionado aqui com o fracasso da expressão da linguagem, que não pode transmitir as sensações e os sentimentos exatamente como eles são e que está fadada a se deteriorar. De acordo com Benjamin, ela não contém mais a verdade, é apenas uma paródia da linguagem verdadeira, divina, que o homem, já não consegue mais atingir. Com isso, no segundo capítulo deste trabalho, após a análise dos fundamentos da poesia de Charles Baudelaire, estabelece-se uma relação entre o artista moderno como tradutor e a filosofia da linguagem de Walter Benjamin. Entende-se o poeta como tradutor da cidade grande, já que para expressar o que está vendo e sentindo, deve mudar o código. Isso significa que ao escrever ou representar algo, ele produz uma mudança de códigos entre o imutável e o transitório, que dispostos pelo artista moderno 75 são transitórios, e por isso sua representação é realizada pela condição alegórica da linguagem, o que implica que essa representação que seria degradada pelo tempo e pelo espaço, usa deles para aludir sempre à significação. Para isso, faz-se necessário o olhar do espectador, porque dessa forma, o artista proporciona à obra o caráter dinâmico composto pela demanda de alegorias e percepções. A mudança de códigos que deve ser feita pelo artista ao expressar através da arte a cidade grande pode ser relacionada a alguns fundamentos do texto A tarefa do tradutor – sendo eles, principalmente, a relação entre tradução e original e o questionamento sobre o que comunica o escrito em sua língua de origem e de chegada. Esses fundamentos foram abordados neste trabalho porque são importantes para a discussão da insuficiência da linguagem e da experiência do choque que, segundo Benjamin, perpassa o artista moderno. O filósofo explica que uma tradução deve ser voltada a quem entende a língua de partida, porque caso contrário, ela já não estaria em sua condição de tradução, mas de original. No entanto, ao ler um texto traduzido de uma língua conhecida pelo leitor e comparando-a com o original pode-se perceber que existe uma complementação de significados. Esse processo é relacionado aqui ao que ocorre no espectador da obra de arte moderna, que para Baudelaire é um “tradutor de uma tradução”. Dessa forma, a complementação feita pelo espectador, pelo leitor ou pelo tradutor à obra de arte ou ao original promove a este uma alusão maior à significação, fazendo com que a obra de arte seja dinâmica. Assim, a tradução se relaciona à experiência do choque do artista moderno, visto que ambos devem fazer escolhas, reflexões, e devem experimentar no momento da mudança de códigos. Portanto, estando também ligada à ideia de Antoine Berman, de que não se deveria trazer o original à língua de chegada e aprisioná-lo ali – ou seja, não se deveria aportuguesar os poemas de Baudelaire, mas deixar com que o francês possa ampliar o português – a representação artística moderna, como uma tradução, não deveria tentar captar alguma mensagem, porque os elementos transitórios apenas aludem a verdade que não pode ser atingida diretamente. Portanto, não existiria o que captar, mas sim o que agregar. Por isso, um tradutor que pretende transmitir a mensagem, da mesma forma que um artista que tenta representar com exatidão o elemento imutável, transforma a linguagem em algo estático, deteriorante, que não pode fazer uma alusão a uma significação absoluta porque, ao permitir que o tempo deteriore a obra, ela passaria a ser 76 símbolo e sairia da esfera da obra de arte incompleta, não precisando de outros olhares para aludir ao significado. Dessa forma, a insuficiência da linguagem existe porque o artista percebe que o tempo pode deteriorar sua expressão, visto que ele é o fator que permite uma degradação de qualquer comunicação. E a cidade grande, seu ritmo e sua expressão moderna, culminam nessa impotência porque na modernidade, a partir do conceito de Baudelaire, a duração parece transformar o mundo em ruína. No entanto, é essa mesma ruína que é usada a favor do poeta porque, como explica Benjamin, é a partir dela que se pode ter a visão de toda a história da humanidade. Assim, o artista moderno, usa do transitório como elemento chave de significação e do tempo a favor de sua arte para que ela nunca seja degradada por ele. Por abordarem a importância complementar do olhar alheio na obra de arte, relacionou-se no presente trabalho as visões de Benjamin e de Baudelaire procurando discutir que não existe uma mensagem oculta na representação artística, mas diferentes percepções necessárias e demandadas por ela e que compõem uma alusão dinâmica à significação. Dessa forma, tempo e linguagem são abordados como fatores alusivos e essenciais para o movimento da obra de arte, e não mais como agentes degradados e degradantes que limitam a representação. 77 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Obras de Charles Baudelaire: BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes. Tome 1. Bibliothèque de la Pleiade. Paris: Éditions Gallimard, 1976. ___________Œuvres complètes. Tome 2. Bibliothèque de la Pleiade. Paris: Éditions Gallimard, 1976. ___________ Charles Baudelaire - Poesia e Prosa. 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São Paulo: Nova Cultura, 1999 80 ANEXOS Poemas: Chacun sa Chimère Sous un grand ciel gris, dans une grande plaine poudreuse, sans chemins, sans gazon, sans un chardon, sans une ortie, je rencontrai plusieurs hommes qui marchaient courbés. Chacun d’eux portait sur son dos une énorme Chimère, aussi lourde qu’un sac de farine ou de charbon, ou le fourniment d’un fantassin romain. Mais la monstrueuse bête n’était pas un poids inerte ; au contraire, elle enveloppait et opprimait l’homme de ses muscles élastiques et puissants ; elle s’agrafait avec ses deux vastes griffes à la poitrine de sa monture ; et sa tête fabuleuse surmontait le front de l’homme, comme un de ces casques horribles par lesquels les anciens guerriers espéraient ajouter à la terreur de l’ennemi. Je questionnai l’un de ces hommes, et je lui demandai où ils allaient ainsi. Il me répondit qu’il n’en savait rien, ni lui, ni les autres ; mais qu’évidemment ils allaient quelque part, puisqu’ils étaient poussés par un invincible besoin de marcher. Chose curieuse à noter : aucun de ces voyageurs n’avait l’air irrité contre la bête féroce suspendue à son cou et collée à son dos ; on eût dit qu’il la considérait comme faisant partie de lui-même. Tous ces visages fatigués et sérieux ne témoignaient d’aucun désespoir ; sous la coupole spleenétique du ciel, les pieds plongés dans la poussière d’un sol aussi désolé que ce ciel, ils cheminaient avec la physionomie résignée de ceux qui sont condamnés à espérer toujours. Et le cortège passa à côté de moi et s’enfonça dans l’atmosphère de l’horizon, à l’endroit où la surface arrondie de la planète se dérobe à la curiosité du regard humain. Et pendant quelques instants je m’obstinai à vouloir comprendre ce mystère ; mais bientôt l’irrésistible Indifférence s’abattit sur moi, et j’en fus plus lourdement accablé qu’ils ne l’étaient eux-mêmes par leurs écrasantes Chimères. Le confiteor de l’artiste Que les fins de journées d’automne sont pénétrantes! Ah! pénétrantes jusqu’à la douleur! car il est de certaines sensations délicieuses dont le vague n’exclut pas l’intensité ; et il n’est pas de pointe plus acérée que celle de l’Infini. Grand délice que celui de noyer son regard dans l’immensité du ciel et de la mer! Solitude, silence, incomparable chasteté de l’azur ! une petite voile frissonnante à l’horizon, et qui par sa petitesse et son isolement imite mon irrémédiable existence, mélodie monotone de la houle, toutes ces choses pensent par moi, ou je pense par elles (car dans la grandeur de la rêverie, le moi se perd vite!) ; elles pensent, dis-je, mais musicalement et pittoresquement, sans arguties, sans syllogismes, sans déductions. Toutefois, ces pensées, qu’elles sortent de moi ou s’élancent des choses, deviennent bientôt trop intenses. L’énergie dans la volupté crée un malaise et une 81 souffrance positive. Mes nerfs trop tendus ne donnent plus que des vibrations criardes et douloureuses. Et maintenant la profondeur du ciel me consterne ; sa limpidité m’exaspère. L’insensibilité de la mer, l’immuabilité du spectacle me révoltent… Ah! faut-il éternellement souffrir, ou fuir éternellement le beau? Nature, enchanteresse sans pitié, rivale toujours victorieuse, laisse-moi! Cesse de tenter mes désirs et mon orgueil! L’étude du beau est un duel où l’artiste crie de frayeur avant d’être vaincu. Un hémisphère dans une chevelure Laisse-moi respirer longtemps, longtemps, l’odeur de tes cheveux, y plonger tout mon visage, comme un homme altéré dans l’eau d’une source, et les agiter avec ma main comme un mouchoir odorant, pour secouer des souvenirs dans l’air. Si tu pouvais savoir tout ce que je vois ! tout ce que je sens ! tout ce que j’entends dans tes cheveux ! Mon âme voyage sur le parfum comme l’âme des autres hommes sur la musique. Tes cheveux contiennent tout un rêve, plein de voilures et de mâtures ; ils contiennent de grandes mers dont les moussons me portent vers de charmants climats, où l’espace est plus bleu et plus profond, où l’atmosphère est parfumée par les fruits, par les feuilles et par la peau humaine. Dans l’océan de ta chevelure, j’entrevois un port fourmillant de chants mélancoliques, d’hommes vigoureux de toutes nations et de navires de toutes formes découpant leurs architectures fines et compliquées sur un ciel immense où se prélasse l’éternelle chaleur. Dans les caresses de ta chevelure, je retrouve les langueurs des longues heures passées sur un divan, dans la chambre d’un beau navire, bercées par le roulis imperceptible du port, entre les pots de fleurs et les gargoulettes rafraîchissantes. Dans l’ardent foyer de ta chevelure, je respire l’odeur du tabac mêlé à l’opium et au sucre ; dans la nuit de ta chevelure, je vois resplendir l’infini de l’azur tropical ; sur les rivages duvetés de ta chevelure je m’enivre des odeurs combinées du goudron, du musc et de l’huile de coco. Laisse-moi mordre longtemps tes tresses lourdes et noires. Quand je mordille tes cheveux élastiques et rebelles, il me semble que je mange des souvenirs. 82 Traduções: ARTIST’S CONFITEOR – Tradução de Louise Varèse. Nova York: New Directions, 1970. Edição com o título de Paris Spleen. HOW POIGNANT the late afternoons of autumn! Ah! poignant to the verge of pain, for there are certain delicious sensations which are no less intense for being vague; and there is no sharper point than that of Infinity. What bliss to plunge the eyes into the immensity of sky and sea! Solitude, silence, incomparable chastity of the blue! a tiny sail shivering on the horizon, imitating by its littleness and loneliness my irremediable existence, monotonous melody of the waves, all these things think through me or I through them (for in the grandeur of reverie the ego is quickly lost!); I say they think, but musically and picturesquely, without quibbling, without syllogisms, without deductions. These thoughts, whether they come from me or spring from things, soon, at all events, grow too intense. Energy in voluptuousness creates uneasiness and actual pain. My nerves are strung to such a pitch that they can no longer give out anything but shrill and painful vibrations. And now the profound depth of the sky dismays me; its purity irritates me. The insensibility of the sea, the immutability of the whole spectacle revolt me… Ah! must one eternally suffer, or else eternally flee beauty? Nature, pitiless sorceress, ever victorious rival, do let me be! Stop tempting my desires and my pride! The study of the beauty is a duel in which the artist shrieks with terror before being overcome. UM HEMISFÉRIO NUMA CABELEIRA – Tradução de Dorothée de Bruchard. Florianópolis: editora da UFSC, 1988. Edição bilíngue com o título de Pequenos Poemas em prosa Me deixe respirar, por longo, longo tempo, o cheiro dos seus cabelos, neles mergulhar todo o meu rosto , como um homem sedento na água de uma fonte, e agitálos com minha mão como a um lenço cheiroso, para sacudir lembranças no ar. Se você pudesse saber tudo o que vejo! Tudo o que sinto! Tudo o que ouço em seus cabelos! Minha alma viaja por sobre o perfume como a alma dos outros homens por sobre a música. Seus cabelos contêm todo um sonho, repleto de velas e mastros; contêm grandes mares cujas monções me levam a encantadoras regiões, onde o espaço é mais azul e mais profundo, onde a atmosfera é perfumada pelas frutas, pelas folhas, e pela pele humana. No oceano de sua cabeleira, entrevejo um porto fervilhando de cantos melancólicos, homens vigorosos de todas as nações e navios de todas as formas 83 recortando suas arquiteturas finas e complicadas num céu imenso onde se estira o eterno calor. Nas carícias de sua cabeleira, reencontro os langores das longas horas passadas num sofá, no quarto de um belo navio, embaladas pela arfagem imperceptível do porto, entre os vasos de flores e as moringas refrescantes. Na ardente lareira de sua cabeleira, respiro o cheiro do fumo, mesclado de ópio e açúcar; na noite de sua cabeleira, vejo refulgir o infinito do céu tropical, nas margens de penugem da sua cabeleira, me embriago com os cheiros combinados do alcatrão, do almíscar e do óleo de coco. Me deixe morder, por longo tempo, suas tranças pesadas e negras. Quando mordisco seus cabelos elásticos e rebeldes, me parece estar comendo lembranças. CADA UM COM SUA QUIMERA - Tradução de Aurélio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. Edição com o título de Pequenos poemas em prosa. Sob um grande céu cinza, numa grande planície poeirenta, sem caminhos, sem relva, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei vários homens que marchavam curvados. Trazia cada um deles às costas uma enorme Quimera, tão pesada como um saco de farinha ou de carvão, ou como o equipamento de um infante romano. Porém o monstruoso animal não era um pêso inerte; ao contrário, envolvia o homem, e oprimia-o, com seus músculos elásticos e possantes; aferrava-se-lhe ao peito com suas duas garras imensas; e sua cabeça fabulosa sobrelevava a cabeça do homem, tal um dêsses horríveis capacetes com que os antigos guerreiros procuravam agravar o terror do inimigo. Interroguei um daqueles viajantes, perguntei-lhes aonde êles iam assim. Respondeu-me que não sabia de nada, nem êle, nem os outros; mas que, evidentemente, iam a alguma parte, pois eram impelidos por uma necessidade invencível de caminhar. Curioso: nenhum dêles se mostrava irritado contra o animal feroz que trazia pendente do pescoço e agarrado às costas; dir-se-ia considerá-lo parte integrante de si mesmo. Nenhuma daquelas fisionomias extenuadas e graves denotava o mínimo desespêro; sob a tediosa cúpula do céu, os pés mergulhados na poeira de um solo tão desolado como o céu, êles marchavam com o ar resignado daqueles que são condenados a esperar eternamente. E o cortejo passou ao meu lado e afundou-se nos longes do horizonte, no ponto em que a redonda superfície do planêta se furta à curiosidade do olhar humano. E durante alguns momentos obstinei-me em querer compreender êsse mistério; mas logo a irresistível Indiferença caiu sôbre mim, e eu fiquei mais rudemente oprimido do que o estavam aquêles homens pelas suas esmagadoras Quimeras. 84 CADA QUAL COM SUA QUIMERA – Tradução de Dorothée de Bruchard. Florianópolis: editora da UFSC, 1988. Edição bilíngue com o título de Pequenos Poemas em prosa Sob um grande céu cinzento, uma grande planície poeirenta, sem caminhos, sem gramados, sem uma urtiga, sem um cardo, encontrei a vários homens que andavam curvados. Cada um deles carregava nas costas uma enorme Quimera, tão pesada quanto um saco de farinha ou de carvão, ou os apetrechos de um soldado da infantaria romana. Mas a monstruosa besta não era um peso inerte; pelo contrário, envolvia e oprimia o homem em seus músculos elásticos e possantes; grampeava-se com suas duas vastas garras no peito de sua montaria; e sua cabeça fabulosa sobressaía acima da fronte do homem, como um daqueles capacetes horríveis com os quais os antigos guerreiros esperavam acirrar o terror do inimigo. Interroguei um destes homens, e perguntei-lhe onde iam assim. Respondeu-me que de nada sabia, nem ele, nem os outros, mas que evidentemente iam a algum lugar, já que eram levados por uma invencível necessidade de andar. Coisa curiosa de se notar: nenhum dos viajantes parecia irritado com sua besta feroz pendurada em seu pescoço e colada em suas costas, dir-se-ia que a considerava como fazendo parte de si mesmo. Todos estes rostos cansados e sérios não demonstravam nenhum desespero; sob a cúpula spleenética do céu, com os pés mergulhados na poeira de um solo tão desolado quanto este céu, entre eles caminhavam com a fisionomia resignada daqueles que estão condenados a ter sempre esperança. E o cortejo passou ao meu lado e se afundou na atmosfera do horizonte, no lugar em que a superfície arredondada do planeta se esquiva à curiosidade do olhar humano. E durante alguns instantes, teimei em querer compreende este mistério; mas em seguida a irresistível Indiferença se abateu sobre mim, e me deixou mais duramente oprimido do que eles próprios por suas esmagadoras Quimeras. CADA CUAL SU QUIMERA – Tradução de Mercedes Sala. Barcelona: Edicomunicación, 1995. Edição com o título de Pequeños Poemas en prosa Bajo un amplio cielo grisáceo, en una amplia llanura polvorienta, sin caminos, ni hierba, sin una ortiga, me crucé con muchos hombres que caminaban encorvados. Llevaba cada uno, a sus espaldas, una quimera enorme tan pesada como un saco de harina o de carbón, o la mochila de un soldado romano de infantería. Pero el monstruoso animal no era un peso muerto; envolvía y oprimía, por el contrario, al hombre, con sus músculos elásticos y poderosos; agarrábase con sus dos enormes garras al pecho su montura, y su fabulosa cabeza dominaba la frente del hombre, como uno de aquellos cascos horribles con que los guerreros antiguos intentaban acrecentar el terror de sus enemigos. 85 Pregunté a uno de aquellos hombres hacia dónde se dirigían de aquella manera. Me respondió que ni él ni los demás lo sabían; pero sin duda, iban a algún lugar, ya que les impulsaba una necesidad irresistible de andar. Reflexión curiosa: ninguno de aquellos viajeros parecía molesto por el violento animal colgado de su cuello y pegado a su espalda; hubiérase dicho que lo consideraban como parte de sí mismos. Tantos rostros agotados y serios, ninguna irritación mostraban; bajo la capa melancólica del cielo, hundidos los pies en el polvo de un suelo tan desolado como el cielo mismo, caminaban con la faz resignada de los condenados a esperar. Y el cortejo pasó por mi lado y se perdió en la atmósfera del horizonte, por el lugar donde la superficie redondeada del planeta se sustrae a la curiosidad del mirar humano. Me resistí unos momentos en querer penetrar el misterio; pero pronto la irresistible indiferencia se dejó caer sobre mí, y me quedé más hondamente agobiado que los otros con sus molestas quimeras. TO EVERY MAN HIS CHIMERA – Tradução de Louise Varèse. Nova York: New Directions, 1970. Edição com o título de Paris Spleen. Under a vast gray sky, on a vast and dusty plain without paths, without grass, without a nettle or a thistle, I came upon several men bent double as they walked. Each one carried on his back an enormous Chimera as heavy as a sack of flour, as a sack of coal, as the accoutrement of a Roman foot-soldier. But the monstrous beast was no inanimate weight; on the contrary, it hugged and bore down heavily on the man with his elastic and powerful muscles; it clutched at the breast of its mount with enormous claws; and its fabulous head overhung the man’s forehead like those horrible helmets with which ancient warriors tried to strike terror into their enemies. I questioned one of these men and asked him where they were going like that. He replied that he did not know and that none of them knew; but that obviously they must be going somewhere since they were impelled by an irresistible urge to go on. A curious thing to note: not one of these travelers seemed to resent the ferocious beast hanging around his neck and glued to his back; apparently they considered it a part of themselves. All those worn and serious faces showed not the least sign of despair; under the depressing dome of the sky, with their feet deep in the dust of the earth as desolate as the sky, they went along with the resigned look of men who are condemned to hope forever. And the procession passed by me and disappeared in the haze of the horizon just where the rounded surface of the planet prevents man’s gaze from following. And for a few moments I persisted in trying to understand the mystery; but soon irresistible Indifference descended upon me, and I was more cruelly oppressed by its weight than those men had been by their crushing Chimeras.