baixas

Transcrição

baixas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Marina Borges de Carvalho
Charles Baudelaire, a cidade e sua tradução
Rio de Janeiro
2016
Marina Borges de Carvalho
Charles Baudelaire, a cidade e sua tradução
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Mestre em
Letras Neolatinas (Literaturas de Língua Francesa)
Orientador: Prof. Doutor Marcelo Jacques de
Moraes
Rio de Janeiro
2016
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, professor Marcelo Jacques, por acreditar no trabalho que começou
na Iniciação Científica e hoje se concretiza em uma dissertação de mestrado. Obrigada
pela força, pelo incentivo e pela paciência.
Aos professores que dispuseram de seu tempo para participar da banca de defesa: prof.
Rodrigo Ielpo e profa. Susana Kampff Lages.
Aos professores que fizeram parte da minha trajetória, pelo incentivo a continuar.
À Márcia, pelos conselhos e pelo estímulo.
Ao meu pai, pelo amor, pelo apoio incondicional em todas minhas jornadas, por me
ajudar a crescer, por acreditar em mim e por tornar meu caminho literário possível.
Ao Víctor, pelo companheirismo, por me encorajar, estar sempre do meu lado e pelo
amor.
Aos que estão e aos que já fizeram parte da equipe do Bureau du Livre, em especial,
Alice, André, Luiz, Marion, Rafael e Valérie, que sempre apoiaram meus estudos e me
deram suporte para continuá-los.
Ao Diogo e ao Breno pelos resultados, pela presença, pelo crescimento, pela paciência e
por nós três.
À Silvinha e à Mônica, por trazerem mais alegria à nossa vida.
À Mariana, por me ensinar a enxergar a vida com olhos de criança e ter me feito
renascer.
À Ligia, por me ajudar a construir meu caminho.
À Juliana, pelos debates literários, pela disposição, pela parceria e pela presença
essencial na minha vida.
À Lais, pelas críticas, pelas leituras, pela atenção e pelo carinho.
À Naima, pela correção, pelas risadas, pela força, pela energia e pela companhia.
À Sybelle, pelas conversas e pela calma.
À Érica, Luana, Bárbara, Lara, Vanessa e Luna, pela amizade incondicional e pela
compreensão.
Ao Igor, pela disposição, pela leitura e pela amizade.
À minha família, pela convivência e crescimento.
A todos meus amigos que sabem sua importância.
E à minha mãe.
CARVALHO, M.B. Charles Baudelaire, a cidade e sua tradução. Rio de Janeiro, 2016.
Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literatura Francesa)
– Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
RESUMO
Charles Baudelaire revolucionou a poesia do século XIX, especialmente a partir
de sua reflexão sobre a modernidade, que o levou a ser considerado como o precursor da
poesia moderna na França. Uma das características dessa poesia é a problematização da
linguagem como expressão. Tentaremos retomar esse debate pelo viés dos escritos de
Walter Benjamin, principalmente O conceito de crítica de arte no romantismo alemão
(1919) e A tarefa do tradutor (1921). Pretendemos, para tanto, e tendo como
interlocutor privilegiado o crítico André Hirt, discutir as questões da atemporalidade, da
transformação da representação na poesia moderna e da importância do olhar subjetivo
do autor, do leitor e do tradutor, trabalhando-as, em especial, com os poemas “Chacun
sa Chimère”, “Un hémisphère dans une chevelure” e “Le confiteor de l’artiste”, de
Spleen de Paris.
Palavras-chave: Charles Baudelaire, Walter Benjamin, André Hirt, linguagem,
tempo, subjetividade, Tradução
ABSTRACT
Charles Baudelaire revolutionized poetry in the 19th century, mainly with his reflection
on modernity which has lead him to be considered the precursor of modern poetry in
France. One of his poetry characteristics is the questioning of language as expression.
We will try to resume this discussion from the perspective of Walter Benjamin’s
writings, mainly The concept of art criticism in German romanticism (1919) and The
translator’s task (1921). In this regard, and having critic André Hirt as privileged
interlocutor, we investigate aspects such as timelessness, representation changes in
modern poetry and the importance of the author’s, the reader’s and the translator’s
subjective perspectives. We examine these aspects mainly with the poems “Chacun sa
Chimère”, “Un hémisphère dans une chevelure” and “Le confiteor de l’artiste” from the
book Spleen de Paris – petits poèmes en prose.
Keywords: Charles Baudelaire, Walter Benjamin, André Hirt, Language, Time,
Subjectivity, Translation
RÉSUMÉ
Charles Baudelaire a révolutionné la poésie du XIXème siècle, particulièrement à partir
de sa réflexion sur la modernité qui lui a valu le titre du précurseur de la poésie moderne
en France. Une des caractéristiques de cette poésie se trouve dans la problématisation du
langage comme expression. Nous essaierons de reprendre ce débat en nous appuyant sur
les écrits de Walter Benjamin, notamment sur les textes Le concept de critique
esthétique dans le romantisme allemand (1919) et La tâche du traducteur (1921). Ainsi,
à travers l’interlocuteur privilégié qu’est le critique André Hirt, nous discuterons des
concepts d’atemporalité, de transformation et de représentation dans la poésie moderne
ainsi que l’importance du regard subjectif de l’auteur, du lecteur et du traducteur, en
étudiant, spécialement, les poèmes « Chacun sa Chimère », « Un hémisphère dans une
chevelure » et « Le confiteor de l’artiste » du livre Spleen de Paris – petits poèmes en
prose.
Mots Clés: Charles Baudelaire, Walter Benjamin, André Hirt, Langage, Temps,
Subjectivité, Traduction
Carvalho, Marina Borges de.
Charles Baudelaire, a cidade e sua tradução./ Marina
Borges de Carvalho. – Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de
Letras, 2016.
85f; 30cm
Orientador: Marcelo Jacques de Moraes.
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/Letras/ Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, 2016.
Referências Bibliográficas: ff. 76-79.
1.
Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia
moderna. 2. O processo criativo e a linguagem a partir da
filosofia da tradução. I. Moraes, Marcelo Jacques de. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas. III. Título.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 11
CAPÍTULO 1 - Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia moderna ................................ 16
1.1 O cenário de Charles Baudelaire, modernidade e alegoria.................................................... 17
1.2 O tempo, o spleen e as imagens de Charles Baudelaire a partir de “Chacun sa Chimère” ... 27
1.3 Alegoria como descrição ....................................................................................................... 34
1.4 A morte como auge do spleen e sua contraposição: o idéal. ................................................. 38
CAPÍTULO 2 - O processo criativo e a linguagem a partir da filosofia da tradução ................. 51
2.1 “Le confiteor de l´artiste” e a problematização da linguagem .............................................. 51
2.2 A “experiência” da tradução ................................................................................................. 57
2.3 A tradução como “forma” ..................................................................................................... 61
OBSERVAÇÕES FINAIS .......................................................................................................... 72
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 77
ANEXOS..................................................................................................................................... 80
11
INTRODUÇÃO
Esta dissertação pretende relacionar a poesia de Charles Baudelaire à filosofia da
linguagem de Walter Benjamin presente, principalmente, em seu texto A tarefa do
tradutor (1921, 2011). Considera-se aqui, o poeta, artista moderno, como um tradutor e
seu leitor como tradutor de uma tradução. Este estudo, portanto, culmina na relação
entre o processo da tradução e a expressão artística moderna.
Dessa forma, o trabalho visa discutir a importância complementar do texto
traduzido para a obra de arte. A visão do tradutor relacionada à do artista moderno e ao
espectador de sua arte permite a percepção de que a tradução na verdade, é um fator
complementar a ela sem o objetivo de concluir ou finalizar o elo entre leitor e artista.
Dessa maneira, traduzir seria pensar junto à obra. E a demanda da arte pela tradução
seria a demanda de reflexões e percepções latentes a ela.
Assim sendo, esta dissertação se inicia com alguns fundamentos da poesia de
Baudelaire discutindo a obra do poeta de forma a tentar demonstrar que o tema “cidade
grande” aparece constantemente como elemento fundamental de sua representação
artística. Com intuito de ilustrar e sublinhar a presença da cidade na poesia
baudelairiana, três dentre os poemas inseridos no texto se destacam: “Chacun sa
Chimère”, “Un hémisphère dans une chevelure” e “Le confiteor de l’artiste”. Todos
extraídos do livro de poemas em prosa Le Spleen de Paris – petits poèmes en prose.
Para desenvolver os raciocínios que aqui se propõem, esta pesquisa será dividida
em duas partes. Na primeira, intitulada “Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia
moderna”, pretende-se refletir sobre a maneira em que a cidade moderna – a Paris do
século XIX na fórmula elaborada por Walter Benjamin, e várias de suas transformações
operadas pela modernidade – é representada na obra do poeta. Na segunda, “O processo
criativo e a linguagem a partir da filosofia da tradução”, se pretende dissertar sobre a
filosofia da linguagem de acordo como a formulou Walter Benjamin, com ênfase na
ideia da tradução como “experiência”, visto que esta filosofia está intrinsecamente
relacionada à ideia da representação do artista moderno como tradução da cidade
grande. De acordo como se tem consolidado na crítica especializada, a obra de Charles
12
Baudelaire se encontra intimamente ligada à Paris do Segundo Império, já que extrai das
transformações que sofreu “a capital do século XIX”, os elementos que configuram sua
poética.
Desta forma, no primeiro capítulo, “Charles Baudelaire e os fundamentos da
poesia moderna”, em sua primeira seção “O cenário de Charles Baudelaire,
modernidade e alegoria”, tomando como base as ideias de Eric Hobsbawm em seu livro
A era das revoluções (1962), serão feitas algumas reflexões sobre as transformações
históricas que sofreu Paris durante esse século, importantes para desenvolver a ideia da
modernidade baudelairiana. Essa abordagem permitirá compreender como a Paris do
século XIX é problematizada, literariamente, na obra de Charles Baudelaire. A cidade
moderna sendo o referente fundamental de sua poesia, a coloca em um lugar de
destaque para discutir o conceito de modernidade no século XIX, tarefa que será
desenvolvida neste capítulo. Desenvolvendo este conceito, aborda-se o paradoxo
complementar entre o que é passageiro e o que nunca muda, fundamentais para a
modernidade baudelairiana e para a significação alegórica de Walter Benjamin
formulada pelo estudioso em Origem do drama barroco alemão (1928, 1984).
Nessa seção será desenvolvida a ideia, relacionada à de Benjamin, de que a
representação alegórica da cidade grande está constituída de dois elementos: um
elemento transitório, que seria tudo aquilo que é passageiro em uma época, e que de
certa forma a caracteriza, e um elemento imutável, entendido como aquilo que é eterno
e que foge a toda representação. A junção dos dois é indispensável para a compreensão
da alegoria de Benjamin, porque uma representação alegórica deve ter um elemento
estável, que nunca muda, e que, portanto, contém nele o germe de toda significação (que
Benjamin exemplifica com a imagem da caveira), e um elemento transitório. Discutir
esses elementos será fundamental para entender a representação do artista moderno
como algo momentâneo que significa sempre, e que Baudelaire chama de “l’ébauche
parfaite”.
À discussão do paradoxo complementar entre os elementos “transitório” e
“imutável”, relacionados à representação do artista moderno, será feita uma conexão
com a ideia de “subjetividade”, tendo como base Matéria e memória (1896, 1999), de
Henri Bergson. Nesse texto, o filósofo discorre sobre o modo em que o “grau de atenção
à vida” de cada pessoa depende de uma relação com a “matéria”, à qual relaciona-se
aqui com sua “percepção da matéria” que está ligada ao sujeito histórico presente na
obra de Baudelaire.
13
Para essa relação, ainda nesta seção, também serão discutidas algumas ideias de
André Hirt, filósofo e crítico da atualidade que tem desenvolvido uma ampla reflexão
sobre a obra de Baudelaire, com especial atenção à leitura que Benjamin faz dela. O
estudioso afirma que alegoria, modernidade e subjetividade estão intrinsecamente
relacionadas na obra do poeta francês.
Na segunda seção dessa pesquisa, “O tempo, o spleen, e as imagens de Charles
Baudelaire a partir de “Chacun sa Chimère”, será abordada a questão da imagem, a
partir das reflexões de Hirt. De acordo com ele, a imagem proporcionada pela obra de
arte moderna é uma alusão à “imagem real” citada por Baudelaire em “Fusées”, porque
está em constante movimento e não é condicionada ao tempo nem ao espaço. No
entanto, não pode atingir o “real”, porque este foge a qualquer representação. E estaria
no âmbito da “ideia da arte”, tal como foi desenvolvida pelos românticos alemães, e que
foi exposta por Benjamin em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão
(1919, 2011).
Nesse texto, Benjamin explica que toda obra de arte “é incompleta”, e, portanto,
precisa do momento da crítica que a complemente. A crítica também pode ser associada
ao olhar do espectador, que cria sentidos a partir da obra. De acordo com essa ideia, o
artista moderno cria essa obra “incompleta” – que é aquilo que Baudelaire denomina
“ébauche parfaite”. Esse “esboço”, caracterizado pela ideia de inacabamento, implica a
necessidade do olhar do outro para que esteja sempre aludindo à significação.
Na terceira seção do primeiro capítulo, “Alegoria como descrição”, será
analisada a alegoria levando em consideração sua grafia maiúscula, que em diversos
momentos aparece na obra de Baudelaire como personificação. Através dela, se
introduz a ideia da limitação da linguagem, além da ideia do spleen que permeia as
personificações em seus poemas. Para ilustrar essas reflexões, será feita uma análise de
“Chacun sa Chimère” relacionada a algumas de suas traduções, o que permite uma
abordagem mais explicativa dessa questão.
Na quarta seção do primeiro capítulo, “A morte como auge do spleen”,
estabelece-se uma relação do exposto nos pontos anteriores com o conceito de spleen,
fundamental em Baudelaire. Na obra do poeta, este aspecto perpassa o presente,
provoca o tédio e representa a passagem do tempo. Contrário a ele, e introduzindo a
morte na obra do poeta, está o idéal, esfera em que não existiria mais a corrosão do
tempo. Nessa equação, a morte pertence ao âmbito da natureza, do belo e da “imagem
14
real”. Ela apresenta a ideia do “eterno retorno” não apenas como um ciclo, mas como
uma fuga para o desconhecido.
Para complementar essa ideia de “ciclo”, analisa-se o poema “Un hémismisphère
dans une chevelure”, utilizando-se de ilustrações de traduções que facilitam a
abordagem de reflexões de Barbara Johnson sobre a “dualidade inquietante” e a
reversibilidade nos poemas em prosa de Baudelaire. Dessa forma, será apresentado o
paradoxo complementar que permeia a obra do poeta – e que já havia sido abordado
aqui na exposição dos elementos “transitório” e “imutável”.
Com base no poema analisado – “Un hémisphère dans une chevelure” –,
desenvolve-se a ideia de que o poeta tem acesso a seu interior através de um aspecto
externo. Nesse sentido, o poeta e crítico francês Michel Collot estabelece o conceito de
“espaçamento do sujeito”, que designa os aspectos do mundo exterior que se confundem
com o interior do artista. No caso do poema “Le confiteor de l’artiste”, essa ideia
merece ser discutida, já que através da “Nature” o poeta se vê vencido. Walter
Benjamin denomina esse processo de “experiência do choque”, e é nela que se encontra,
segundo ele, o âmago do “processo de criação”, eis que torna evidente a insuficiência da
linguagem.
A ideia da impotência da linguagem, introduzida indiretamente através da
alegoria como descrição, fará parte do segundo capítulo da dissertação: “O processo
criativo e a linguagem na filosofia da tradução”. Este capítulo da pesquisa envolve uma
discussão da filosofia da linguagem surgida através da formulação de Baudelaire de que
a obra de arte é uma tradução do que o artista moderno vê. Dessa forma, se aborda aqui
alguns fundamentos da obra A tarefa do tradutor de Benjamin, considerando que a obra
do poeta seria a tradução da cidade grande, a Paris do século XIX.
Na primeira seção desta segunda parte, “Le confiteor de l’artiste e a
problematização da linguagem”, será discutida de forma mais densa a importância do
olhar do espectador para Baudelaire em sua relação com o tradutor explicado por
Benjamin, pois o espectador completa e proporciona dinamicidade à significação da
obra de arte moderna e assim o faz quem traduz um texto literário, já que o espectador,
de acordo com o poeta, é o tradutor de uma tradução.
Como neste trabalho de dissertação se pretende também refletir sobre a questão
da linguagem na obra de arte moderna exposta por Baudelaire como tradução, analisa-se
a filosofia da tradução de Walter Benjamin abordada em três seções. Na segunda,
denominada “A “experiência da tradução” será delineado um paralelo entre a obra de
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Baudelaire e a de Benjamin – o que já se introduz na primeira parte do segundo
capítulo. Com o intuito de articular a reflexão sobre a linguagem, a segunda seção pode
ser vista como uma apresentação da terceira: “A tradução como forma”.
Visando discutir a reflexão sobre a linguagem, na segunda e terceira seções,
relaciona-se fortemente à questão da “experiência do choque” e da obra de arte moderna
como tradução do entorno do artista – a cidade grande – em linguagem. Por isso, nela,
se almeja evidenciar a relação intrínseca entre a filosofia da tradução e a filosofia da
linguagem, o que possibilita entender a tradução enquanto “experiência” ou como
reflexão da língua entanto imagem daquilo que só pode ser representado na relação
realidade/signo, demandando necessariamente de outro olhar, ou do que Benjamin
denomina “forma”.
Nesse apartado, serão tecidas algumas considerações sobre a dificuldade nas
escolhas lexicais que um tradutor enfrenta ao se deparar perante dois sistemas
linguísticos totalmente distintos em suas estruturas sintáticas, gramaticais e lexicais. E
que são dispostas como paralelo com o processo criativo do artista moderno enquanto
tradutor da cidade grande.
Nesta dissertação se privilegia a teoria de Walter Benjamin sobre a linguagem
porque, além de estar intrinsecamente ligada aos escritos de Baudelaire, tem contribuído
com importantes conceitos aos estudos literários e tradutórios, e tem desencadeado
discussões que ainda não se esgotaram. Pela falta de unanimidade entre os especialistas,
a abordagem desses conceitos será o mais cuidadosa, respeitando os limites necessários
aos que não são especialistas em estudos sobre Benjamin. Assim sendo, nesse ponto a
intenção é obter fundamentos para discussões, sem ousar conclusões, que permitam
traçar um paralelo entre a obra de arte moderna como tradução da cidade grande, a
execução do artista como tradutor e a complementação da tradução como parte
fundamental no processo criativo dinâmico exigido pela representação artística
moderna.
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CAPÍTULO 1 - Charles Baudelaire e os fundamentos da poesia moderna
Este capítulo da presente dissertação pretende introduzir alguns fundamentos da
poesia de Baudelaire com o intuito de desenvolver alguns pontos relevantes para a
compreensão da importância da linguagem no processo criativo do poeta. Dessa forma,
para complementar essa reflexão, são utilizados aqui três poemas em prosa do livro Le
Spleen de Paris – petits poèmes en prose que constituem três alegorias da vida moderna,
relevantes para esta pesquisa: “Chacun sa Chimère”, “Un hémisphère dans une
chevelure” e “Le confiteor de l’artiste” – sendo este último necessário para a introdução
do segundo capítulo.
O primeiro poema trata do caminho de “vários homens que andavam curvados”
em “uma grande planície poeirenta” “sob um grande céu cinzento” que levavam em
suas costas “uma enorme Quimera”. Quanto a “Un hémisphère dans une chevelure”, o
poema aborda as evocações que uma cabeleira desperta nos pensamentos e nas
lembranças do poeta. Já em “Le confiteor de l’artiste”, apresenta-se um cenário natural
em que o mar e o horizonte infinito oprimem o artista levando-o a perceber sua
vulnerabilidade perante a natureza.
Como é possível observar, cada poema apresenta tópicos diferentes que se
entrelaçam para abordar de maneira alegórica diversos aspectos da cidade grande e da
modernidade de Baudelaire. Este conceito, renovado pelo poeta em sua poesia e em seu
texto Le peintre de la vie moderne (1859, 1976), suscita questões na reflexão sobre o
tempo e sobre a obra de arte. Para empreender essa reflexão, torna-se necessário
recuperar algumas tensões próprias da Paris em que o poeta viveu, dando ênfase àquelas
que permitam desenvolver aspectos relevantes para uma discussão sobre a linguagem
como expressão do artista moderno.
17
1.1 O cenário de Charles Baudelaire, modernidade e alegoria
Charles Baudelaire nasceu no ano de 1821 em Paris, onde viveu maior parte de
sua vida, e faleceu também nessa cidade em 1867. Portanto, a cidade grande e moderna
que embasa sua obra é a capital francesa do século XIX. O momento histórico da vida
do poeta é significante para a compreensão do caráter precursor e revolucionário de sua
abordagem literária.
Paris era o centro cultural e político do mundo, palco dos movimentos
revolucionários, das novas ideologias e das manifestações artísticas. A França foi um a
potência nos anos 1800: “os franceses inventaram ou foram os primeiros a desenvolver
as grandes lojas de departamentos, a propaganda e, guiados pela supremacia da ciência
francesa, todos os tipos de inovações e realizações técnicas” (HOBSBAWM, 1962,
p.126). A essas invenções e realizações está relacionada a velocidade dos meios de
comunicação a partir da proliferação das ferrovias e da produção industrial que
modificou a relação do homem e da sociedade com o tempo. A revolução tecnológica
desse século trouxe um ritmo jamais vivenciado que foi implementado pela revolução
industrial com a aplicação da tecnologia aos processos de produção. Em seu livro A era
das revoluções (1962), Eric Hobsbawm sintetiza o efeito transformador da revolução
francesa ao ressaltar a “multiplicação rápida e constante” consequente da “retirada dos
grilhões do poder produtivo”:
a certa altura da década de 1780, e pela primeira vez na história da
humanidade, foram retirados os grilhões do poder produtivo das sociedades
humanas, que daí em diante se tornaram capazes da multiplicação rápida,
constante, e até o presente ilimitada, de homens, mercadorias e serviços.
(HOBSBAWM, 1962, p.20)
Apesar dessas inovações e das grandes reservas de capital que o país acumulara
durante os anos posteriores à Revolução de 1789, a sociedade francesa do século XIX,
“burguesa em sua estrutura e em seus valores” (HOBSBAWM, 1962, p.131), estava
marcada por uma grande desigualdade social. Muitos enriqueciam graças à atividade
industrial, financeira e burocrática, no entanto, a “cada homem que ascendia no mundo
dos negócios, um grande número necessariamente descia”1 e a classe trabalhadora
permanecia na indústria “incansavelmente durante toda a semana para obter uma renda
1
Ibid p.140
18
mínima”2 marcando a França, potência econômica, com a miséria. Ressalta-se, para
salientar mais aspectos, grandes alterações urbanísticas que Paris sofreu, dentre 1850 e
1870, promovidas pelo Barão de Haussmann, resultando na destruição da cidade antiga
e a criação da cidade moderna, provendo-a de uma rede de esgoto, dos boulevares e
cafés, bem como o cenário da vida noturna propagado por consagrados escritores e
artistas de todos os tempos.
Além disso, as transformações dessa Paris que viveu Baudelaire acarretaram
muitas outras consequências à vida das classes baixas – empurradas à periferia da
cidade. Em seu livro Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo (1989),
Walter Benjamin cita a prostituição e a miséria como práticas desse setor da sociedade.
No entanto, a tradição boêmia de Paris estará marcada pelo pensamento revolucionário
da época. Exemplo disso é “a barricada”, “ponto central do movimento conspirativo”
(BENJAMIN, 1989, p.12) que caracteriza o século.
É dessa “capital do século XIX”, marcada por profundas contradições, que
Baudelaire vai extrair todo um fundamento novo sobre modernidade, além do “idéal
obsédant” de sua prosa poética. Na “Dédicace” à Arsène Houssaye, disposta como
prefácio de Le Spleen de Paris, o poeta explicita: “C’est surtout de la fréquentation des
villes énormes, c’est du croisement de leurs innombrables rapports que naît cet idéal
obsédant.”3 (BAUDELAIRE, 1976, p.276). Portanto, é da observação da cidade
moderna, tomada por grandes transformações provocadas pela industrialização e a
mercadorização de tudo em um curto lapso de tempo, que Baudelaire extrai os
fundamentos de sua poesia.
O título de “poeta da modernidade” conferido a Baudelaire por Hugo Friedrich
em seu livro Structure de la poesia moderne (1956, 1999) provém, especialmente, de Le
peintre de la vie moderne, obra em que aquele tenta explicar o que busca o pintor da
vida agitada da cidade grande. Nesse texto, o poeta afirma que “il s’agit [...] de dégager
de la mode ce qu’elle peut contenir de poétique dans l’historique, de tirer l’éternel du
transitoire”4 (BAUDELAIRE, 1976, p.694). Apontando para um caráter transhistórico,
para ele “il y a eu une modernité pour chaque peintre ancien”, já que em todas as
2
Ibid p.36
Todas as citações serão traduzidas, salvo as dos três poemas principais, pois estão em anexo, e as
expressões francesas. As traduções de Baudelaire para o português, dispostas em notas, serão retiradas da
edição brasileira das Obras Completas Poesia e Prosa (2006), composta por textos assinados por
diferentes tradutores. “É sobretudo da frequentação das grandes cidades que nasce este ideal obsessor”.
Pequenos poemas em prosa, (2006), tradução de Aurélio Buarque de Holanda.
4
“Trata-se [...] de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do
transitório”. O Pintor da vida moderna (2006), tradução de Adolfo Cassais Monteiro
3
19
épocas existiu algum elemento passageiro que se contrapunha ao que é comum a elas.
Dessa forma, o elemento passageiro é o que se deteriora com a passagem do tempo, se
contrapondo a algo neutro que sempre permanece. Isto, para Baudelaire, constitui uma
parte importante da modernidade, porque é através do que nunca muda que se pode
detectar as mudanças provocadas pelo tempo, sem as quais não há como perceber o
imutável. Desta maneira, o poeta não rejeita o comum às diferentes épocas, mas o
incorpora ao presente. Assim, ele é valorizado como fator que possibilita separá-lo do
transitório característico do momento, ou do efêmero inovador. Por isso, o estudioso
Gérard Froidevaux (1989, pp.694-695) explica que para o autor de Le Spleen de Paris a
modernidade é um “projeto de salvação do presente”, já que nela se articulam, de forma
coesa, o eterno e o transitório “buscando em sua fusão a beleza ideal”. Portanto, a
modernidade de Baudelaire “c’est le transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié de
l’art, dont l’autre moitié est l’éternel et l’immuable”5 (BAUDELAIRE, 1976, p.695).
Isso significa que o transitório é complementar ao eterno porque o que varia só pode
existir a partir do invariável:
Cet élément transitoire, fugitif, dont les métamorphoses sont si fréquentes,
vous n’avez pas le droit de le mépriser ou de vous en passer. En le
supprimant, vous tombez forcément dans le vide d’une beauté abstraite et
indéfinissable. (BAUDELAIRE, p.695, 1976)6
Ao afirmar que não se pode desprezar esse “élément transitoire”, o poeta confere
importância ao que é passageiro, no sentido de que o eterno só pode ser vislumbrado
pelos elementos transitórios. Por outro lado, e de maneira complementar, a afirmação de
que é preciso “tirer l’éternel du transitoire” permite constatar que não pode existir o
transitório sem o eterno. Desta forma, para “tirer l’éternel du transitoire”, o artista da
modernidade deve observar a cidade grande e dela retirar sua poesia. Deve dar forma ao
que é passageiro de maneira que este sempre aluda ao eterno. Além disso, esse artista
deve se reconhecer, também, como um ser transitório dotado de um olhar finito, o que
significa ser um flâneur que se “embriaga” com a cidade pela qual “vaga sem rumo”
(BENJAMIN, 1989, p.186) em uma tentativa de representá-la a partir de sua condição
humana e efêmera.
5
“É o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o
imutável”
6
"Não temos o direito de desprezar ou de prescindir desse elemento transitório, fugidio, cujas
metamorfoses são tão frequentes. Suprimindo-os, caímos forçosamente no vazio de uma beleza abstrata e
indefinível"
20
Nessa concepção do ato criador, que só é possível vinculado à perambulação
pela cidade, o artista, antes de sê-lo, precisa ser um “homme du monde”
(BAUDELAIRE, 1976, p. 688), o que para Baudelaire significa “homme qui comprend
le monde et les raisons mystérieuses et légitimes de tous ses usages”7 (BAUDELAIRE,
1976, p.688). Esse homem do mundo, que “vaga sem rumo” pela cidade à luz do dia
como flâneur e cuja paixão e profissão “c’est d’épouser la foule”, “quand le soir est
venu”, faz com que as coisas renasçam “sur le papier”, exercendo assim sua função de
artista. A execução criativa, em que “une contention de mémoire réssurrectionniste,
évocatrice”8 aparece, está relacionada com a imaginação, denominada pelo poeta, em
seu Salon de 1859 (1859, 1976), “la reine des facultés”. Nesse texto, Baudelaire diz que
o artista moderno, “le vrai artiste, le vrai poète, ne doit prendre que selon qu’il voit et
qu’il sent. Il doit être réellement fidèle a sa propre nature”9
“Être fidèle a sa propre nature”, nessa concepção da criação poética, significa
deixar a memória recriar o que foi visto a partir do que sente o artista enquanto sujeito
histórico: sendo ele “uma espécie de historiador do presente”, “em vez de aprisionar o
espetáculo da vida contemporânea em uma representação objetiva, procura com que se
viva o presente através de uma imagem impressa de sua própria subjetividade.”
(FROIDEVAUX, 1989, pp. 12-13). Dessa forma, imaginação e memória se relacionam
na representação moderna porque a memória impulsiona o artista a criar a obra de arte
que só poderia ser executada a partir de sua imaginação. Ambas se entrelaçam naquilo
que se denomina “subjetividade”.
Em Matéria e Memória, Henri Bergson (1999, p.17) oferece valiosas reflexões
para entender o conceito de “subjetividade”. Nesse texto, o filósofo faz uma distinção
entre “matéria” e “percepção da matéria”, sendo esta o conjunto de “imagens
relacionadas à ação possível de uma certa imagem determinada”, que é o próprio
“corpo” do sujeito. Portanto, de acordo com Bergson, o homem percebe a matéria a
partir dos estímulos recebidos por seu corpo em conjunção com as reações que este
produz em si. Dessa maneira, a relação feita por Bergson para um melhor entendimento
do que seria matéria é a relação entre o cérebro e o universo. O primeiro, elemento que
percebe a matéria, segundo o filósofo, não pode condicionar a imagem do universo, do
infinito, ou seja, da matéria, o que implica que o universo continua existindo mesmo se
7
"Homem que compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de todos os seus costumes"
Ibid p. 699. “Um esforço de memória ressurreicionista, evocadora”
Ibid p. 620"O artista, o verdadeiro poeta só deve pintar o que vê e o que sente. Ele deve ser realmente
fiel à sua própria natureza" Salão de 1859 (2006). Tradução de Suely Cassal.
8
9
21
não houver as percepções cerebrais. Por isso, é possível estabelecer um paralelismo com
o fragmento anteriormente citado de Le peintre de la vie moderne, em que Baudelaire
afirma que eliminando o transitório cai-se “forcément dans le vide d’une beauté
abstraite”, porque não havendo a percepção, a matéria é vazia de interpretações e de
sentidos.
Daí se desprende que se o artista moderno trabalha a partir de sua “percepção da
matéria”, o ritmo do mundo em que vive é fundamental à sua criação. Por isso,
Baudelaire diz que “il y a dans la vie triviale, dans la métamorphose journalière des
choses extérieures, un mouvement rapide qui commande à l’artiste une égale vélocité
d’exécution”10 (BAUDELAIRE, 1976, p.686) já que o artista deve realizar uma obra de
arte que seja compatível com o que observa e com a velocidade desse entorno. Assim,
se produz o que o poeta denomina “ébauche parfaite”11, em que, segundo o autor de Le
Spleen de Paris, desenha a partir da memória e não do modelo, esforçando-se para não
perder nenhum detalhe do espetáculo incessante da cidade grande.
Ainda de acordo com Matéria e Memória, Bergson (1999, p.6) afirma que as
imagens “são representadas à consciência na forma de um esboço”, já que são alusivas e
evocam a matéria. Dessa forma, a memória tem fundamental importância nessas
percepções, visto que, segundo o filósofo, além de não haver percepção que não seja
“impregnada de lembranças”, a memória permite “representações infinitas” devido a
sua intrínseca ligação com a percepção momentânea e a substituição de uma pela outra:
Nada impede que se substitua essa percepção, inteiramente penetrada de
nosso passado, pela percepção que teria uma consciência adulta e formada,
mas encerrada no presente, e absorvida, à exclusão de qualquer outra
atividade, na tarefa de se amoldar ao objeto exterior. (BERGSON, 1997,
p.30)
Se a “percepção da matéria” é um esboço da “matéria”, e nela a memória é
necessária e imprescindível, isso significa que, ao relacionar-se a essas ideias, a obra de
arte moderna é um esboço em que estão contidas inúmeras representações alusivas,
visto que é uma percepção feita pelo presente e pela memória. Essa condição da obra de
arte moderna está vinculada a seu inacabamento que provém exatamente da condição
alusiva da percepção do artista moderno. Sendo assim, a representação moderna não
estagna o objeto representado e, por não estagná-lo, demanda olhares externos que
10
"Mas há na vida ordinária, na metamorfose incessante das coisas exteriores, um movimento rápido que
exige do artista idêntica velocidade de execução"
11 Ibid p. 700
22
possam se adaptar a ela para que suas inúmeras representações alusivas não se
degradem nem se percam com o tempo.
Nesse sentido, segundo Dolf Oehler em seu livro Quadros Parisienses (1997),
para Baudelaire, a arte “exige do público”, a quem o artista põe “o fardo diretamente
nas costas”. Desta forma, as contradições provindas da modernidade, e dispostas como
esboço pelo poeta, são incorporadas à obra de arte, que é abalada por elas, como
assinala Oehler:
[...] tornar o trabalho de auto-orientação e o esforço da compreensão mais
atraentes ao público (prazer estético antecipado, promesse de bonheur), mas
não subtrair-lhe a tarefa; pelo contrário: ela [a arte] exige que o público a
tome em suas mãos e põe-lhe o fardo diretamente nas costas mediante a
concentração e o acúmulo das contradições com que, no cotidiano (burguês),
ele se depara numa frequência que pode suportar ou ao menos evitar. Para
impedir a negação das contradições pelo público, a obra de arte tem de
incorporar as contradições em sua estrutura e por elas ser abalada...
(OEHLER, 1997, pp. 158 – 159)
Porque o “ébauche parfaite” demanda o olhar do público e o exige, ele pode ser
considerado como o que Benjamin chama de “obra de arte incompleta” já que “apenas o
incompleto pode ser compreendido, pode nos levar mais além. O completo pode ser
apenas desfrutado.” (BENJAMIN, 2011, p.78). Sendo “incompleta”, na obra de arte
estaria contida a “ideia da arte”12, que seria a arte em termos “absolutos”. No entanto, a
“ideia da arte” não pode ser representada, apenas aludida através da obra que, apesar de
evoca-la só pode complementar sua significação através de sua crítica. Esta, chamada
por Benjamin de “forma”, se relaciona aos olhares criados, as evocações suscitadas, as
inúmeras possibilidades e cenários que a obra propicia ao leitor, espectador ou
contemplador. Posto que a obra de arte permite diversas “formas”, ou diversos olhares,
esta é um “continuum de formas” e portanto, precisa necessariamente delas – dessas
“formas”. Benjamin explica essa relação no seguinte trecho de seu livro O conceito de
crítica de arte do romantismo alemão:
O conjunto da teoria da arte romântica repousa sobre a determinação do
medium-de-reflexão enquanto arte, ou melhor dizendo, enquanto Ideia da
arte. Dado que o órgão da reflexão artística é a forma, logo a Ideia da arte é
definida como o medium-de-reflexão das formas. Neste relacionam-se
constantemente todas as formas-de-exposição, transformando-se umas nas
outras e se unindo na forma-da-arte absoluta, que é idêntica à Ideia da arte. A
ideia romântica da unidade da arte assenta-se portanto na Ideia de um
continuum das formas. (BENJAMIN, 2011, p.94)
12
Ibid p.94
23
Se o medium-de-reflexão das formas pode ser relacionado ao que seria a “ideia
da arte”, Willi Bolle explica que para Benjamin, a cidade grande também pode ser
considerada como tal: “pode-se dizer que ele procurou não apenas retratar a metrópole,
mas considerá-la como medium-de-reflexão.” (BOLLE, p.93, 2007). Disso se depreende
que, apesar de poder ser aludida, a cidade grande não pode ser representada
efetivamente; talvez por isso, Benjamin afirma que “em As flores do Mal não há menor
indício de uma descrição de Paris” (BENJAMIN, 1989, p.167). No entanto, ainda que
não possa ser descrita ou representada, a cidade possibilita inúmeros olhares,
sentimentos e sensações, o que possibilita um constante movimento que existe a partir
das diversas perspectivas de quem a vê.
Por isso, ao representar através de seu esboço perfeito sua percepção da cidade
grande, o artista moderno atribui a ela diversas nuances que lhe permitem ser recriada.
Dessa forma, o portador do “olhar primeiro” é o artista, a quem Baudelaire denomina
flâneur, pois “vaga sem rumo”. Assim sendo, exige de seu público uma
complementação a sua obra, por isso, o artista deve ser um observador que, segundo o
crítico Claude Tuduri em “Baudelaire ou l’éternel confident” (2012), “procura a rima
interna e o sal das ruas”:
Andar pela cidade é o flâner mais comum, mas flâner com o olhar aguçado,
flâner procurando a rima interna e o sal das ruas e dos rostos para vivê-los e
decifrar um instante e um aumento de presença que poderia mudar tudo...
para ele, tudo "se transforma em alegoria" e esse trabalho de alquimista
reserva pouco espaço ao pitoresco descritivo que muitos outros poetas
puderam privilegiar para seduzir imediatamente seu leitor com paisagens
facilmente reconhecidas. (TUDURI, 2012, p.652)
Esse “trabalho de alquimista” é próprio do “alegorista”. Para Benjamin, marcada
pelo contraditório, em que a bela aparência esconde em seu cerne a ruína, a
modernidade, assim como o fez Baudelaire, só pode ser escrita com a alegoria. Escrever
e pensar a modernidade, para o filósofo, é uma tarefa que não pode ser feita com a clara
e distincta perceptio que está na base na teoria do símbolo – da significação concisa e
momentânea – ou seja, a modernidade não pode ser representada através de uma obra de
arte estática, presa a um momento determinado, porque exige uma representação
dinâmica que só pode existir sem a prisão do tempo e do espaço.
Nesse sentido, de acordo com Benjamin (1984, p.197), em Origem do drama
barroco alemão, na alegoria “cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar
24
qualquer outra coisa” e a palavra não pode ser fixada na coisa que ela pretende nomear.
Por isso, a condição alegórica da linguagem está relacionada a uma alusão à
significação, já que a verdadeira significação nunca pode ser atingida através da
expressão humana.
Ao explicar essa ideia benjaminiana, Paulo Sérgio Rouanet diz que “ao lacrar as
coisas com o selo da significação”, o alegorista as salva “contra a mudança”, já que
“arranca o objeto de seu contexto” e o “converte em chave para um saber oculto”
(ROUANET in: BENJAMIN, 1984, p.40). Esse “saber oculto” pode ser interpretado
como os potenciais olhares futuros ou como as “formas” por vir, em um “continuum de
formas” – o que pode ser associado à ideia de “obra de arte incompleta”. Dessa maneira,
o alegorista dá um “poder divino” (BENJAMIN, 1984, p.197) ao que representa, posto
que permite que a significação do objeto representado seja constante. Por isso, os
pormenores na obra de arte são importantes na “exegese alegórica da escrita” e a ideia
de que cada “pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra coisa”,
segundo Benjamin,
...profere contra o mundo profano um veredito devastador, mas justo: ele é
visto como um mundo no qual o pormenor não tem importância. Mas ao
mesmo tempo se torna claro, sobretudo para os que estão familiarizados com
a exegese alegórica da escrita, que exatamente por apontarem para outros
objetos, esses suportes da significação são investidos de um poder que os faz
aparecerem como incomensuráveis, às coisas profanas, que os eleva a um
plano mais alto, e que mesmo os santifica. Na perspectiva alegórica, portanto,
o mundo profano é ao mesmo tempo exaltado e desvalorizado. (BENJAMIN,
1984, p.197)
Nessa exposição, para Benjamin, o mundo profano é o mundo em que vivemos,
o mundo físico em que o “pormenor não tem importância”. No entanto, esse
“pormenor”, na alegoria, não só tem importância como é “investido de um poder que o
eleva a um plano mais alto”. Isto lhe permite aludir constantemente ao significado
absoluto. O que Benjamin explica é que a condição alegórica da expressão não retira o
presente do mundo físico, mas permite que alguns de seus aspectos não estejam sujeitos
ao tempo, e que este esteja a seu favor. Em outras palavras, a alegoria permite que o
tempo seja o fator chave que possibilita a um objeto “evoluir” em diferentes épocas,
convenções e conceitos. Walter Benjamin, recuperando do barroco a reflexão sobre o
tempo e o movimento, estabelece uma conexão entre alegoria e caveira:
25
A alegoria mostra ao observador a facies hippocratica da história como
protopaisagem petrificada. A história em tudo o que nela desde o princípio é
prematuro, sofrido e malogrado, se exprime num rosto – não, numa caveira.
E porque não existe, nela, nenhuma liberdade simbólica de expressão,
nenhuma harmonia clássica da forma, em suma, nada de humano, essa figura
de todas a mais sujeita à natureza, exprime não somente a existência humana
em geral, mas, de modo altamente expressivo, e sob forma de um enigma, a
história biográfica de um indivíduo. Nisso consiste o cerne da visão
alegórica: a exposição barroca, mundana, da história mundial como história
mundial do sofrimento. [...] Quanto maior a significação, tanto maior a
sujeição à morte, porque é a morte que grava mais profundamente a tortuosa
linha de demarcação entre a physis e a significação. (BENJAMIN, 1984, p.
188)
Essa citação explicita que na morte se encontra a significação da vida. Por isso, a
caveira está relacionada à significação, porque só ela pode ser o ponto de partida para
“qualquer desenho de rosto físico” (BENJAMIN, 1984, p.188) e não teria tempo e
espaço claros. Estaria sempre em movimento. A esse raciocínio, pode-se acrescentar a
ideia de André Hirt, contida em seu livro Baudelaire – l’éxposition de la poésie (1998),
de que a “imagem poética” “não está no presente” (HIRT, 1998, p.125), o que significa
que ela, assim como a caveira, não está condicionada a um momento ou a um lugar,
porque “rompe suas amarras com sua objetividade”, como indica Hirt no trecho a
seguir:
A imagem contém sob todos os aspectos um movimento propriamente
aberrante na medida em que o tempo e o espaço se acham liberados de todo
encadeamento mecânico ou habitual. Além disso, na imagem, são o tempo e
o espaço que se transformam no objeto da sensação e do pensamento e não
antes, o movimento tal como o conhecemos ou reconhecemos (são o tempo e
o espaço que permitem compreender o movimento e não o contrário). (HIRT,
1998 p.125)
Se a imagem não é corrompida pelo tempo e pelo espaço, mas se vale deles para
se perpetuar em seu movimento, ao alegorista corresponde a tentativa de dominá-los,
impedindo-os de agir contra a arte para que não a deteriore. Para isso, o artista deve
sempre evocar o infinito, ou seja, o que não é delimitado espacialmente nem
temporalmente. Nesse sentido, Hirt explica que, para Baudelaire “não existe natureza,
existe apenas a arte”, posto que ela é “trabalhada e penetrada pelo spleen” (HIRT, 1998,
p.138). Assim sendo, o estudioso cita o poeta em Fusées (1851, 1976): “les méprises
relatives aux visages sont le résultat de l’éclipse de l’image réelle par l’hallucination
26
qui en tire sa nature.”13 (BAUDELAIRE, 1976, p. 653). Essa frase explicita a ideia de
que a “real imagem” só pode ser vista através de suas “deformações”, mas que de certa
forma tem cifrada, em suas entrelinhas, a evocação da “imagem real”. Por isso, quando
Hirt explica que, para Baudelaire, “existe apenas a arte”, é possível deduzir que a arte é,
para o poeta, a única forma de representação autêntica, visto que somente através dela
tem-se a noção do infinito, ou seja, daquilo que o olhar humano passageiro não é capaz
de atingir, mas que pela representação artística é possível imaginar.
Esse raciocínio é complementado pela seguinte afirmação de Benjamin: “no
terreno prático, a imaginação prossegue ao infinito, até a ideia pura e simplesmente
indeterminada da suprema unidade, que só seria possível depois de uma infinitude
perfeita, que é por si só impossível.” (BENJAMIN, 2011, p.33). Dessa forma, se a
imaginação “prossegue ao infinito” e, segundo Baudelaire, “l’imitation exacte gâte le
souvenir” (BAUDELAIRE, 1976, p.455), não é pela cópia que o artista moderno
produz, e sim pelo “souvenir”, que pode ser considerado como aquilo que impulsiona o
artista a criar; e pela imaginação, que possibilita a ele executar sua obra de arte em sua
condição dinâmica, já que somente dessa forma, com a junção dos dois, essa
representação moderna pode aludir ao infinito. Desse modo, “l’ébauche parfaite” não
poderia ser aprisionado ao tempo e ao espaço, já que evoca a “imagem real”, ou “a Ideia
da arte”.
Por isso, esse “esboço” só pode ser executado na condição alegórica da
expressão porque apesar de ser produzido em um contexto definido, não é
temporalmente determinado, razão pela qual sua significação alude ao infinito. Portanto,
se para Baudelaire “tudo se transforma em alegoria”, a obra de arte deve resistir à
consolidação de toda e qualquer significação aprisionada pelo tempo.
Esse dinamismo da obra de arte está relacionado na modernidade baudelairiana à
rapidez do mundo moderno, como apresenta o poeta em seu texto Le peintre de la vie
moderne ao afirmar que, no momento da produção da obra de arte, aparece no artista,
“un feu, une ivresse de crayon, de pinceau” que deriva de “la peur de n’aller pas assez
vite, de laisser échapper le fântome avant que la synthèse n’en soit extraite et saisie.”14
(BAUDELAIRE, 1976, p.699). Dessa forma, a rapidez que esse artista precisa ter para
que nada lhe escape está ligada ao ritmo do mundo moderno, a sua produção em massa
13
"Os equívocos da apreciação de um rosto resultam do ocultamento da imagem real por outra,
alucinatória, que dela se origina". Projéteis (2006). Tradução de Fernando Guerreiro.
14
"Um fogo, uma embriaguez de lápis, de pincel" "o medo de não agir com suficiente rapidez, de deixar o
fantasma escapar antes que sua síntese não tenha sido extraída e captada"
27
e a “la peur de n’aller pas assez vite”. Este medo, por sua vez, está relacionado à
passagem do tempo porque é ele que degrada o entorno do poeta e o sujeita ao tédio.
1.2 O tempo, o spleen e as imagens de Charles Baudelaire a partir de “Chacun sa
Chimère”
A velocidade do mundo moderno, ou, de acordo com André Hirt, “as novidades
do progresso”, provocam nos homens que as vivenciam, de acordo com noções que
caracterizam a poesia de Baudelaire, “spleen, ennui, péche originel” (HIRT, 1998,
p.140). Para este estudioso, apesar de que com o capitalismo tenham sido instauradas a
“inquietude do novo e a vontade frenética de mudança a qualquer preço”, da mesma
forma, para o poeta francês, o spleen é um afeto dessa época, cuja experiência é “tanto a
do tédio quanto a da melancolia”, como é possível observar no trecho a seguir:
Sua experiência [a do spleen] é tanto a do tédio quanto a da melancolia. É
essencialmente a deficiência existencial e ontológica do labiríntico, ou seja,
de um lado do que não tem saída clara, de outro o que insiste na
impossibilidade de toda realização. O spleen é a antítese de toda solução.
Além disso, o spleen é estruturado pela gravidade do tempo. (HIRT, 1998, p.
147)
O peso do spleen é de tal ordem no indivíduo, que este só pode vivenciá-lo “no
tédio” porque o spleen está relacionado à vida moderna cíclica que parece impor às
pessoas sempre a mesma desesperança. Isso explica porque toda vez que faz referência
a esse sentimento, Baudelaire leva o tempo a uma condição exponencial, porque ele se
refere à passagem dos dias como degradação do mundo físico de cada indivíduo.
Exemplo disso é a seguinte passagem de “Chacun sa Chimère”, que apresenta esse
aspecto degradante do spleen:
Tous ces visages fatigués et sérieux ne témoignaient d'aucun désespoir; sous
la coupole spleenétique' du ciel, les pieds plongés dans la poussière d'un sol
aussi désolé que ce ciel, ils cheminaient avec la physionomie résignée de
ceux qui sont condamnés à espérer toujours. (BAUDELAIRE, 1976, p.283)
Esse fragmento do poema se relaciona à seguinte afirmação de Hirt: “por causa
do seu caráter fundamentalmente extensível, o spleen consistirá em uma exposição do
28
tempo” e “possui como um de seus recursos paradoxais o de degradar tudo o que
encontra, todas as ocorrências cronológicas possíveis.” (HIRT, 1998, pp.147-148). É o
tempo que degrada tudo o existente, e é o responsável pelas fisionomias resignadas dos
homens. Por isso, nessas linhas de “Chacun sa Chimère”, Baudelaire representa
alegoricamente a vida do homem moderno através de imagens degradadas da fisionomia
destes e do caminho físico em que se encontram, o que situa o poema na esfera do
spleen.
Segundo Hirt, essa deterioração se liga à origem da palavra spleen, que surgiu
antes de Baudelaire e designava os “vapores ingleses”: a fumaça proveniente das
indústrias que dependia do carvão para funcionar era expelida à atmosfera, deixando o
céu e o ambiente cinzentos, como se indica na citação a seguir:
O spleen possui uma origem geográfica muito determinada: é uma questão de
spleen inglês para designar um céu inglês, um clima inglês, um nevoeiro,
bem inglês, sem falar que uma certa atmosfera se reconhecia na superfície do
céu tão ligada ao Moderno, aquela que é invadida pela poeira de carvão nas
grandes metrópoles do capitalismo triunfante na segunda revolução
industrial. (HIRT, 1998, p. 150)
Não é por acaso que esse céu também está relacionado à obra de Baudelaire. O
aspecto meteorológico ligado ao contexto industrial aparece muitas vezes ao longo de
seus escritos. Em “Chacun sa Chimère”, esse céu cinza é uma “coupole spleenétique”.
Este recebe um tratamento estético semelhante no poema “Spleen” do livro Les Fleurs
du Mal: “pèse comme un couvercle/Sur l'esprit gémissant”. Além disso, esse céu de
“Chacun sa Chimère” é descrito como “un grand ciel gris” que enclausura “une grande
plaine poudreuse”. Por outro lado, esse poema em prosa também põe em perspectiva a
relação com o tempo na medida em que ele aparece como fator degradante. O
vocabulário escolhido por Baudelaire representa, alegoricamente, a degradação da
sociedade que vive o sonho moderno. Palavras e expressões como “coupole
spleenétique”, “poussière d’un sol aussi desolé que ce ciel” “physionomie résignée”,
“condamnés à espèrer toujours”, “lourdement accablé” e “Indifférence”, compõem a
deterioração provinda do peso do tempo, segundo foi afirmado por Hirt. O “cortège”
com que se representam os “plusieurs hommés qui marchaient courbés” remete a “des
esprits errants et sans patrie” do poema “Spleen” (LXXVIII) de Les Fleurs du Mal, que
exemplifica mais uma vez a deterioração do mundo moderno através de imagens de
homens resignados ou espíritos errantes passivos à degradação da vida moderna.
29
A condição deteriorante da cidade submetida ao tempo da indústria é
representada na poesia de Baudelaire por meio da evocação dos trabalhadores na
sociedade moderna. No primeiro parágrafo do poema que aqui se analisa, é descrita a
seguinte situação : “Sous un grand ciel gris, dans une grande plaine poudreuse, sans
chemins, sans gazon, sans un chardon, sans une ortie, je rencontrai plusieurs hommes
qui marchaient courbés.”. Cada um desses “hommes courbés” carregava em seus costas
“une énorme Chimère aussi lourde qu’un sac de farine ou de charbon”. A utilização de
“un sac de farine ou de charbon” como termo de comparação ao peso do monstro
remete a uma sociedade que concebe a indústria como uma manifestação evidente do
progresso. No entanto, para Baudelaire, o progresso acarreta a “atrofia do espírito”,
como explica Hugo Friedrich:
Baudelaire define o progresso como “uma diminuição progressiva da alma,
uma dominação progressiva da matéria” e ainda como uma “atrofia do
espírito”. Ele nos fala de seu imenso desgosto perante os cartazes, os jornais,
perante o “fluxo crescente da democracia nivelando toda coisa.”
(FRIEDRICH, 1999, p.54)
Considerando o progresso como “uma diminuição progressiva da alma”, a
referência à indústria no poema é, de certa forma, uma alusão a essa “atrofia do
espírito” provocada pela “Chimère”, ou pelo peso da vida moderna, que está
diretamente relacionada aos sentimentos provocados pelo spleen: a melancolia e o tédio.
Desta forma, observa-se que, através do conceito de spleen, Baudelaire torna explícito
que ele confere um caráter objetivo às manifestações espirituais e afetivas do homem
moderno: a “plaine poudreuse” da qual fala o poeta, não deixa de ser uma representação
da vida dos trabalhadores condicionada por essa cidade grande onde vivem.
Através da negação, Baudelaire evoca os elementos que se espera encontrar
nessa planície. Em outras palavras, no poema, ele faz referência ao que está ausente.
Objetivamente, bastaria representar a “grande plaine poudreuse” vazia; no entanto, o
poeta opta por utilizar esses elementos que expõem tudo o que nela poderia ou deveria
existir, mas que não existe. A descrição de um ambiente “sans chemins, sans gazon,
sans un chardon, sans une ortie” se apresenta, portanto, como o que a vitrine de uma
loja oferece para quem tem o “sonho do consumo” ou simplesmente a vontade de ter,
mas que não pode comprar. Dessa forma, os “hommes qui marchaient courbés”
representam alegoricamente os trabalhadores que vivem em uma situação de acordar,
30
trabalhar e dormir, e não podem desfrutar daquilo que seu pouco dinheiro
eventualmente poderia comprar.
Dessa maneira, a evocação de imagens através de sua negação constitui uma
abordagem do spleen no sentido de que seria uma representação da desigualdade social
e da impossibilidade do poder de compra dos trabalhadores. Ou seja, uma representação
alegórica de uma das condições provocadas pela modernidade na cidade de Paris,
metrópole que, segundo Benjamin, (1989, p.167) nunca é “descrita” por Baudelaire
porque não é “a melodia” que o poeta “tem em mente” (BENJAMIN, 1989, p.161). Isso
acontece porque essa Paris está relacionada ao “elemento imutável” e não pode ser
representada com exatidão. Por isso, a evocação dessas imagens através de sua ausência
seria uma forma de “aguçar o olhar” para captar seus elementos transitórios que
caracterizam a cidade em sua modernidade. No entanto, o ritmo que a modernidade
imprimiu à vida na metrópole exige do artista moderno uma forma de expressão que lhe
permita usar a seu favor a condição limitante do tempo. Por isso, ao tentar captar os
elementos transitórios e valer-se deles de forma alegórica em sua obra, ele dispõe os
materiais artísticos de maneira a adaptá-los aos diversos formatos que poderiam aludir
ao elemento imutável.
Essa capacidade de adaptação da obra de arte moderna a novos olhares deriva
diretamente do ideal da prosa poética de Baudelaire. Exemplo disso é o seguinte trecho
de sua dedicatória à Arsène Houssaye, disposta como o prefácio de Le Spleen de Paris:
Quel est celui de nous qui n’a pas, dans ses jours d’ambition, rêvé le miracle
d’une prose poétique, musicale, sans rythme et sans rime, assez souple et
assez heurtée pour s’adapter aux mouvements lyriques de l’âme, aux
ondulations de la rêverie, aux sobressauts de la conscience ?
15
(BAUDELAIRE, 1976, p.275-276)
Essa “prose poétique, musicale, sans rythme et sans rime, assez souple et assez
heurtée pour s’adapter aux mouvements lyriques de l’âme.” destina-se, como explica
Max Milner, à “musicalidade por outros meios além da sonoridade e da métrica. Esses
meios nos sugerem, pela menção de muitas de suas relações, haver nascido da
frequentação das grandes cidades”. A cidade grande, portanto, é aludida na obra de
Baudelaire através da “estética de modulação e variação, que trabalha com afinidade
entre imagens e temas, suas evocações, choques e dissonâncias.” (MILNER in:
15
“Qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical, sem
ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica de contrastes para se adaptar aos movimentos líricos
da alma, às ondulações do devaneio e aos sobressaltos da consciência?”
31
BAUDELAIRE, 1979, p.16). Por isso, a obra não tem ritmo nem rima, já que a
representação só pode ser feita por elementos transitórios que são mutáveis e finitos.
Estes são organizados pelo poeta em um conjunto que não é estático, já que fazem parte
de algo que só pode ser evocado: a cidade grande. Esta é relacionada à serpente aludida
por Baudelaire ainda em sua dedicatória:
Nous pouvons couper où nous voulons, moi ma rêverie, vous le manuscrit, le
lecteur sa lecture ; car je ne suspends pas la volonté rétive de celui-ci au fil
interminable d’une intrigue superfine. Enlevez une vertèbre, et les deux
morceaux de cette tortueuse fantaisie se rejoindront sans peine. Hachez-la en
nombreux fragments, et vous verrez que chacun peut exister à part. Dans
l’espérance que quelques-uns de ces tronçons seront assez vivants pour vous
plaire et vous amuser, j’ose vous dédier le serpent tout entier.
16
(BAUDELAIRE, 1976, p.275)
A serpente evocada por Baudelaire anteriormente pode ser interpretada como
uma alusão a Paris ou à cidade grande. Suas vértebras podem ser consideradas como
elementos transitórios que se juntam para compor a representação da vida moderna
gerada por essa Paris vivida pelo poeta. Traspondo essas reflexões para uma
interpretação de “Chacun sa Chimère”, é possível estabelecer um paralelismo entre as
vírgulas e as vértebras: na composição dos elementos transitórios, elas dividiriam as
representações alegóricas de forma que cada uma delas possa ser lida e evocada
separadamente. Porque se “tudo se transforma em alegoria”, para Baudelaire cada
representação que compõe a imagem da cidade precisa significar.
Nesse sentindo, de acordo com Hirt, “a imagem do poema guarda o que está
antes do poema e aponta em direção ao seu porvir em geral assim como em direção ao
futuro transformado na sua recepção, como a memória de um futuro” (HIRT, 1998, p.
126). Dessa forma, a importância da vírgula em “Chacun sa Chimère” se torna
fundamental para a representação alegórica individual de cada elemento evocado.
A essa ideia da vírgula enfatizando cada elemento transitório está ligada a
seguinte afirmação de Baudelaire: “nous pouvons couper où nous voulons”. Porque se
cada poema constitui uma representação do transitório que alude ao elemento imutável
– ou à cidade grande –, assim como não existe ordem estática dos textos e a supressão
de algum deles não impede o conjunto de se refazer, a ordem das imagens que compõe
16
“Podemos interromper onde quisermos, eu o meu devaneio, você o manuscrito, o leitor a sua leitura,
pois a este não deixo vontade teimosa pendente do fio interminável de uma intriga supérflua. Tire uma
vértebra, e os dois pedaços desta fantasia tortuosa se tornarão a juntar sem esforço. Corte-a em numerosos
fragmentos, e verá que pode cada um deles existir à parte. Na esperança de que alguns desses pedaços
sejam bastante vivos para agradar e diverti-lo, ouso dedicar-lhe a serpente inteira”
32
cada poema também não é estática. Daí se depreende que se todos os poemas podem ser
lidos separadamente e cada um poderia ser considerado como um universo, assim
também o é cada representação alegórica individual e a alusão ao “immuable” se dá
através de cada uma ou do conjunto delas, os poemas e o livro completo. Dessa forma,
retirar algo de um poema estaria na mesma esfera de retirar um deles do conjunto Le
Spleen de Paris. Porque sendo o transitório, elementos de um poema ou o poema total,
eles continuam aludindo à mesma “matéria”, ou seja, a cidade grande, o que pode ser
corroborado pela interpretação de Barbara Johnson em seu livro Défigurations du
langage poétique (1979) onde ela explica a reversibilidade dos poemas em prosa de
Baudelaire:
Não poderíamos considerá-la [La Dédicace] como um poema em prosa? E se
essa primeira parte já é um poema em prosa, não poderíamos, pela mesma lei
de reversibilidade considerar os poemas que vem logo depois como
“préfaces”? (P.28-29)
Considerar os poemas em prosa como “préfaces” ou a “Dédicace” como poema
em prosa não alteraria a “matéria”, porque esta é um conjunto de suas “percepções” que
são apenas alusões ao “elemento imutável”. Como exemplo desta discussão, é possível
considerar a ideia de que cada poema configura todo um “universo” em que cada frase é
uma de suas “vertèbres”. Nesse sentido, é preciso voltar ao primeiro parágrafo de
“Chacun sa Chimère”: “Sous un grand ciel gris, dans une grande plaine poudreuse,
sans chemins, sans gazon, sans un chardon, sans une ortie, je rencontrai plusieurs
hommes qui marchaient courbés”.
Nessa passagem, é possível observar a importância da vírgula em cada
representação que faz o poeta. Cada elemento evocado pela negação é a alegoria de um
aspecto da cidade grande porque está disposta de forma a que sempre aluda a ela. A
“grande plaine poudreuse”, por exemplo, pode ser lida como o ambiente dos habitantes
da cidade grande. A vírgula, portanto, separa cada uma dessas representações, que
podem ser consideradas, isoladas, como um universo dentro de um maior. Esse aspecto
se torna mais claro ao comparar algumas das traduções do poema, porque é possível ver
nelas sutilezas nas evocações dos elementos que, apesar de não comprometerem o
conjunto, ajudam na compreensão dessa questão de que se ocupa Baudelaire no trecho
já visto de sua “Dédicace”: “Enlevez une vertèbre, et les deux morceaux de cette
33
tortueuse fantaisie se rejoindront sans peine. Hachez-la en nombreux fragments, et vous
verrez que chacun peut exister à part”.
A primeira tradução escolhida é a de Aurélio Buarque de Holanda, de 1966,
editada no Rio de Janeiro pela Civilização Brasileira com o título de Pequenos Poemas
em prosa. A segunda é a de Dorothée de Bruchard, de 1988, lançada em Florianópolis
pela editora da UFSC em edição bilíngue, intitulada Pequenos Poemas em prosa. A
terceira obra traduzida é de língua espanhola de Mercedes Sala feita em Barcelona no
ano 1995 pela editora Edicomunicación com o nome de Pequeños Poemas en prosa. E a
quarta tradução escolhida é de língua inglesa por Louise Varèse, lançada em Nova York
no ano de 1970 pela editora New Directions com o título de Paris Spleen.
Sob um grande céu
Sob um grande céu
Bajo un amplio cielo
Under a vast gray sky,
cinzento, uma grande
cinza, numa grande
grisáceo, en una
on a vast and dusty
planície poeirenta,
planície poeirenta,
amplia llanura
plain without paths,
sem caminhos, sem
sem caminhos, sem
polvorienta, sin
without grass, without
gramados, sem uma
relva, sem um cardo,
caminos, ni hierba,
a nettle or a thistle, I
urtiga, sem um cardo,
sem uma urtiga,
sin un cardo, sin una
came upon several
encontrei vários
encontrei vários
ortiga, me crucé con
men bent double as
homens que andavam
homens que
muchos hombres que
they walked.
curvados.
marchavam curvados.
caminaban
encorvados.
Nas duas traduções em português de Aurélio e De Bruchard, apesar das
alterações tradutórias de ordem linguística e formal, há os mesmos elementos
referenciais citados por Baudelaire: “une grande plaine poudreuse”, “sous un grand ciel
gris”, “sans chemins”, “sans gazon”, “sans un chardon”, “sans ortie”. Esses elementos
estão separados por vírgulas com as mesmas pausas feitas pelo poeta, o que significa
que o quadro total, ou a imagem do original, apresenta os mesmos referentes nessas
duas traduções. As seis pausas permanecem e as ausências do original que constituem a
planície como um todo também aparecem nessas traduções.
No entanto, na tradução do espanhol de Mercedes Sala, no lugar de “sans gazon”
aparece “ni hierba”. O “ni”, dá uma fluidez ao poema e parece, apesar da vírgula,
aproximar o elemento “caminos” de “hierba”, o que faz com que “caminos” e “hierba”
pertençam a uma mesma imagem. Dessa forma, as pausas colocadas por Baudelaire no
34
original são reduzidas na tradução de Sala. Esse fenômeno aparece de forma ainda mais
direta na tradução de Varèse para o inglês. A separação que a vírgula proporciona entre
“plaine” e “sans chemins” não existe, como também não existe em “chardon” e “ortie”.
Isso induz ao leitor à seguinte leitura: “a vasty and dusty plain without paths”, ao invés
de ler: “a vasty and dusty plain” antes de ler “without paths”. Assim, o que eram duas
imagens se transformou em uma só. Da mesma maneira, a tradutora optou por colocar
“without a nettle or a thistle” em um mesmo quadro, quando Baudelaire optou por
dizer: “sans un chardon” e depois “sans une ortie”. No entanto, a imagem da planície
permaneceu inalterada. O que se alterou foram os elementos evocados, ou a quantidade
de representações alegóricas alinhadas por Baudelaire.
Essas ilustrações corroboram a hipótese de que o conjunto não foi modificado
porque as representações alegóricas vistas individualmente seriam os elementos
transitórios evocados que, suprimidos ou acrescentados, não comprometeriam a alusão à
cidade grande. Nesse sentido, as partes transitórias que dão forma ao poema de
Baudelaire foram relacionadas, nas reflexões desta dissertação, ao que Benjamin
denomina “pormenores”, que, no “mundo profano”, carecem de importância, mas que,
dispostos em uma obra de arte que utiliza a representação alegórica como forma de
ultrapassar o tempo e o espaço, permitem uma alusão ao que não pode ser representado.
1.3 Alegoria como descrição
Esses “pormenores” dão à obra de Baudelaire a característica da atemporalidade
porque sua representação artística tem a condição alegórica. Como explica Benjamin: “o
arrancar as coisas de seu contexto habitual” “é um procedimento bastante característico
em Baudelaire” (BENJAMIN, 1989, p.163). Esse processo alegórico aparece com muita
frequência na obra do poeta através da personificação de alguns objetos ou figuras
como, no caso do poema “Chacun sa Chimère”, “Chimère” e “Indifférence”:
Chacun d’eux portait sur son dos une énorme Chimère, aussi lourde qu’un
sac de farine ou de charbon, ou le fourniment d’un fantassin romain.
Et pendant quelques instants je m’obstinai à vouloir comprendre ce mystère ;
mais bientôt l’irrésistible Indifférence s’abattit sur moi, et j’en fus plus
lourdement accablé qu’ils ne l’étaient eux-mêmes par leurs écrasantes
Chimères.
35
É preciso comparar novamente o texto original com a tradução para que a ideia
discutida neste item seja precisada com mais rigor. Na versão espanhola de Mercedes
Sala, ao traduzir do francês para sua língua, a tradutora optou por retirar a letra
maiúscula grafada por Baudelaire:
Llevaba cada uno, a sus espaldas, una quimera enorme tan pesada como un
saco de harina o de carbón, o la mochila de un soldado romano de infantería.
Me resistí unos momentos en querer penetrar el misterio; pero pronto la
irresistible indiferencia se dejó caer sobre mí, y me quedé más hondamente
agobiado que los otros con sus molestas quimeras.
De acordo com o Littré, dicionário francês de referência no século XIX,
Chimère significa, na mitologia, “monstro que lançava fogo pela boca e que tinha o
tronco de um leão, a barriga de uma cabra e o rabo de um dragão”, e também, de acordo
com o mesmo dicionário, “ideia favorita, sonho”. “Chimère” então, ganha uma
importância fundamental no poema, pois ela evoca o monstro mitológico e o peso do
sonho moderno, que se relaciona diretamente com o incentivo ao consumo e com a
impotência do não consumir.
Personificada pois, pelo uso da letra maiúscula, a “Chimère” se liga à palavras
como “Mort”, “Diable”, “Beauté”, “Indifférence”. Dessa forma, indica uma
personificação, ganhando assim uma força maior no texto, podendo ser interpretada
como uma personagem e não mais como um substantivo comum. Françoise RullierTheuret, em seu texto Allégorie et symbole dans Les Fleurs du Mal (1991) explica o uso
de maiúsculas nas alegorias do poeta:
Figura retórica apreciada pelos escritores da Idade Média, a alegoria, vista
por esse sentido particular [personificação do abstrato], consiste em
personificar abstrações. Ela é marcada com determinada ostentação (é uma
figura que se deixa ver) por uma maiúscula que sinaliza a elevação do nome
comum ao status de nome próprio. Nota-se evidentemente em Baudelaire
esse uso notável de maiúsculas como um entre tantos princípios de alegorias.
(RULLIER-THEURET, 1991, p. 3)
No entanto, em Baudelaire a dimensão alegórica do poema não implica
necessariamente uma grafia com “maiúsculas” (RULLIER-THEURET, 1991, p. 4), o
que significa que é possível observar alegorias grafadas com minúsculas. Além dos
elementos evocados pela negação, citados anteriormente neste trabalho, também é o
caso dos termos Chimère e Indifférence na tradução de Mercedes Sala. A tradutora, ao
36
optar pela letra minúscula, retira deles sua característica de personificação e os dispõe
como parte de uma representação alegórica. Porque “Chimère”, grafada com maiúscula,
tem o caráter significativo próprio que exalta a importância do sonho moderno como
utópico, que segundo Benjamin, “adota, cada vez mais brutalmente, a fisionomia da
mercadoria” (BENJAMIN, 1989, p.163). Nessa perspectiva, sua grafia maiúscula se
encontra na mesma dimensão da vírgula disposta no poema como pausa para que aluda
constantemente à significação – como já foi discutido anteriormente, no sentido da
ênfase dada à palavra. Além disso, a letra maiúscula evoca a personificação da figura do
sonho moderno que tem o caráter de nome próprio ou “descrição”, como explica Michel
Foucault em seu texto O que é um autor? (1969, 2001)”:
Não é possível fazer do nome próprio, evidentemente, uma referência pura e
simples. O nome próprio (e da mesma forma, o nome do autor) tem outras
funções além das indicativas. Ele é mais do que uma indicação, um gesto, um
dedo apontando para alguém: em uma certa medida, é o equivalente a uma
descrição. (FOUCAULT, 2001, p.272)
O nome próprio como descrição, de acordo com Foucault, está relacionado ao
que afirma Benjamin em seu ensaio Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem
dos homens (1916, 2011). Nele, o filósofo afirma que “a infinitude de toda a linguagem
humana permanece sempre de natureza limitada e analítica em comparação com a
infinitude absoluta, ilimitada e criadora da palavra divina.” (BENJAMIN, 2011, p.62).
Por causa disso, o “nome”, depois do “pecado original”, já não teria mais a “condição
divina” ou “lei essencial da linguagem, segundo a qual expressar-se a si mesmo e
interpelar todas as outras coisas são só um movimento”17. Porém, o “nome humano” é,
para ele, “o ponto em que a língua do homem participa mais intimamente da infinitude
divina da pura palavra, o ponto em que essa língua não pode se tornar nem palavra finita
e nem conhecimento”. Assim sendo, “a teoria do nome próprio é a teoria do limite da
linguagem finita em relação à linguagem infinita.”18 Dessa forma, sendo o nome próprio
uma descrição e estando no limiar da linguagem divina e da humana, seria o
instrumento mais significativo da linguagem do homem. É através do nome próprio que
há a possibilidade de exprimir de forma mais abrangente uma significação que a
linguagem humana nunca poderia atingir, visto que é limitada. Portanto, o nome
17
18
Ibid p.57
Ibid p.58
37
humano pode ser relacionado à condição alegórica da linguagem, porque visa sua
infinitude.
A linguagem infinita, ou divina, segundo Benjamin, está em sua “dimensão
nomeadora”, e nela se “localizariam as ideias”. Porém, como a linguagem humana já
não pertence mais à esfera do “divino”, ela se transforma em “mero sistema de signos”,
o que faz dela limitada, ou “coisa entre coisas”, como explica Sérgio Paulo Rouanet na
introdução de O drama barroco alemão de Walter Benjamin:
Mas onde se localizam as ideias? [...] A resposta de Benjamin é que elas
estão na linguagem. Mais precisamente: na dimensão nomeadora da
linguagem, em contraste com sua dimensão significativa e comunicativa. É a
linguagem adamítica, que despertava as coisas, chamando-as por seu
verdadeiro nome, e não a linguagem profana, posterior ao pecado original,
que se degrada num mero sistema de signos, e serve apenas para a
comunicação. O Nome transforma-se na palavra, mero fragmento semântico,
coisa entre coisas, e que por isso mesmo perdeu a capacidade de nomeá-las.
(ROUANET, in: BENJAMIN, 1984, p. 16)
Desta forma, o termo Chimère, dotado pelo poeta de um caráter nomeador ao
escrevê-lo com maiúscula – o que o coloca entre a linguagem divina e humana –, se
torna, por si só, uma descrição do aspecto utópico da sociedade por ele representada.
Porque, mesmo isolado, consegue visar de forma mais alusiva a linguagem divina. O
mesmo acontece com Indifférence. No entanto, a “Indiferença” de Baudelaire está
ligada à modernidade e à cidade grande pelos sentimentos que a sociedade moderna
provoca: o tédio e a melancolia ou o spleen, que segundo Louis Aguettant em seu livro
Lecture de Baudelaire (2001) é a “insensibilidade do blasé que abusou de seus próprios
nervos”:
O tédio baudelairiano [...] originalmente um "spleen físico", segundo a
expressão de Paul Bourget. A insensibilidade do blasé que abusou de seus
próprios nervos e para quem tudo ficou insípido. Desse estado de torpor e de
atonia dolorosa, a vítima vai procurar sair por novos excessos que agravarão
seu mal. A obra de Baudelaire é atravessada por essa queixa perpétua.
(AGUETTANT, 2001, p.26)
Essa
insensibilidade
é
representada
alegoricamente
pela
“irrésistible
Indifférence” que abate o poeta. O “estado de torpor e de atonia dolorosa” existe porque
o que a sociedade moderna oferece é um ritmo incansável de consumo e de
mercadorias: “o sempre igual em grandes massas” (BENJAMIN, 1989, p. 155). Esse
ritmo de consumo incansável do homem moderno, ou o estímulo da cidade moderna,
38
conduz àquilo que Benjamin denomina de “sempre igual”, e que se relaciona ao tédio, já
que havendo uma grande oferta, uma quantidade enorme de mercadorias e vitrines, o
homem dessa cidade grande se encontra sujeito ao estado de “embriaguez moderna da
subjetividade” enfatizada por Hirt, provocado pela “potência que subtrai da
subjetividade suas potências” (HIRT, 1998, p.154) que é o spleen.
Na medida em que a sociedade vivida e observada por Baudelaire estava
marcada pelas consequências da revolução industrial, dentre elas a mercadoria, a
propaganda e o incentivo ao consumo, o torpor ou a “embriaguez” perante o excesso de
estímulo seriam os responsáveis pelo tédio ou o spleen. Desta forma, quando Hirt se
refere à “embriaguez moderna da subjetividade”, é plausível interpretar essa frase como
uma referência a esse torpor gerado pelo estímulo que leva a um “esquecimento de si”
(HIRT, 1998, p.154).
É possível equacionar a essa ideia a afirmação de Benjamin de que o “taedium
vitae em spleen é a auto-alienação”, o “tête à tête claro e sombrio do sujeito com ele
mesmo” (BENJAMIN, 1989, p.153). No poema, a indiferença se abate sobre o poeta
depois de “quelques instants” em que se obstinava “à vouloir comprendre” “le
mystère”. Após esses instantes, tudo o que experimentou observando e refletindo sobre
os “hommes courbés”, se transforma em spleen, em tédio, em apatia e em melancolia. A
indiferença “se abate” sobre o poeta e o deixa mais “lourdement accablé” do que os
próprios homens por suas “écrasantes Chimères”, porque o spleen provoca a
insensibilidade a que se refere Aguettant.
Dessa forma, a “Indifférence” é comparada ao peso da “Chimère”, visto que
Indiferença e utopia, aqui, se encontram intrinsecamente relacionadas, já que esta
última, ligada ao sonho moderno, gera a insensibilidade e a apatia que por sua vez é
provocada pelo ritmo da sociedade moderna. Dessa forma, “Indifférence”, grafada com
letra maiúscula, mostra, portanto, toda a força do resultado desse processo que vai desde
o taedium vitae ao spleen.
1.4 A morte como auge do spleen e sua contraposição: o idéal.
Na poesia de Baudelaire, o spleen gerado pela passagem do tempo na
modernidade capitalista do século XIX parisiense, é o fator que degrada a
39
“fréquentation” da cidade grande, que nessas condições é vista como o palco da
deterioração não apenas de seus objetos inanimados – ruas, avenidas, lojas –, mas da
vida do homem, que se torna “vítima da modernidade” (FRIEDRICH, 1978, p.38).
Desde essa perspectiva, o homem moderno se degrada porque o tempo, que age
sobre ele, só deixa de agir em sua vida quando o mata. Nesse sentido, a morte
representa o auge da degradação provocada pelo tempo, e o spleen, a “embriaguez
moderna da subjetividade”. Embriaguez essa que tem por objetivo um “esquecimento”
total de “si”. Portanto, o sentimento gerado pelo spleen parece conduzir Baudelaire a
perceber a morte como uma tentativa de encontrar essa subjetividade sem o torpor
provocado pelo tédio e pela melancolia da vida moderna. O trecho de “Chacun sa
Chimère” em que o poeta descreve a fisionomia resignada dos homens que são
“condenados a esperar sempre” ilustra essa ideia:
Chose curieuse à noter : aucun de ces voyageurs n'avait l'air irrité contre la
bête féroce suspendue à son cou et collée à son dos; on eût dit qu'il la
considérait comme faisant partie de lui-même. Tous ces visages fatigués et
sérieux ne témoignaient d'aucun désespoir; sous la coupole spleenétique' du
ciel, les pieds plongés dans la poussière d'un sol aussi désolé que ce ciel, ils
cheminaient avec la physionomie résignée de ceux qui sont condamnés à
espérer toujours.
A “condémnation à espérer toujours” se relaciona a toda a impotência, toda a
indeterminação e toda a degradação da vida moderna. Nesse sentido, a morte seria a
salvação dessa “condenação a esperar sempre”. Essa interpretação pode ser entendida
como ausência do tempo porque é a culminação da própria espera e do próprio tempo. O
fim nada mais seria do que um recomeço, a morte seria o alcançar de uma dimensão
infinita que não existe na vida – como pode ser percebido no poema “Le Voyage VIII”
de Les Fleurs du Mal:
Ô Mort, vieux capitaine, Il est temps! levons l’ancre!
Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons!
Si le ciel et la mer sont noirs comme l’encre,
Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons!
Verse-nous ton poison pour qu’il nous reconforte!
Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau,
Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu’importe?]
Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau!
40
(Le Voyage VIII – Les Fleurs du Mal)
19
Se o “Ciel” e o “Enfer” recobrem tudo de luto, a morte, associada ao “Nouveau”
e “L´Inconnu”, é aguardada com esperança para que venha a derramar seu “poison”
sobre a vida, a fim de terminar com a “condamnation à espérer”. Porque é desconhecida
e está relacionada à ideia do novo, a morte seria de alguma forma a única maneira
humana de atingir a esfera do infinito, ou do que não tem tempo. Nesse sentido, está
ligada à fuga do tédio e do tempo, já que, segundo Hirt, ela se encontra na esfera da
beleza, daquilo que foge à representação e ao ciclo do spleen, que de acordo com Hirt e
Benjamin, pode ser equiparado ao “eterno retorno”, de Nietzsche. Para Hirt (1998,
p.130), “o eterno retorno” em Baudelaire “está carregado de negatividade”, porque o
“prazer próprio da repetição” “se converte existencialmente em taedium vitae, em
desgosto da repetição, no tédio.”. Dessa forma, relacionada à noção de tédio, a morte é a
fuga da repetição, conduzindo o homem moderno ao desconhecido. Ela é portadora da
esperança que traz a ausência da repetição. Só ela pode ser a salvação, só ela é capaz de
apontar em direção daquilo que não tem fim. Só a morte pode conter a vida “absoluta”,
porque ela engloba a ideia do infinito.
O poema “Une charogne”, de Les Fleurs du Mal, constitui um exemplo da
concepção da morte como fuga da repetição em que está intrínseca a noção da vida.
Seus versos giram em torno de uma carniça encontrada pelo poeta quando passeia com
sua amada. Um animal morto sendo comido por vermes se torna objeto de um poema
que evoca o amor, fazendo referência à beleza da morte. É possível perceber, nele, a
ideia da proliferação da vida através de um objeto morto, como apresentam os seguintes
versos: “On eût dit que le corps, enflé d'un souffle vague/Vivait en se multipliant.”20
(BAUDELAIRE, 1976, p.31). Só se pode falar de morte pela vida, porque se “a morte,
para a qual toda semelhança é ainda imperfeita, exceto talvez no cadáver, não se parece
a nada, como a beleza” (HIRT, 1998, p.138), em consequência, só se pode aludir
alegoricamente a ela através do que está vivo.
A associação entre “morte” e “belo” é possível porque ambos aludem ao infinito.
Baudelaire afirma que o belo “est toujours, inévitablement d’une composition double,
“Ó Morte, velho capitão, é tempo! Às velas!/Este país enfara, ó Morte! Para frente!/Se o mar e o céu
recobre o luto das procelas,/Em nossos corações brilha uma chama ardente!
Verte-nos teu veneno, ele é que nos conforta!/Queremos, tanto o cérebro nos arde em fogo,/Ir ao fundo do
abismo, Inferno ou Céu, que importa?/Para encontrar no Ignoto o que tem de novo!” As Flores do Mal
(2006). Tradução de Ivan Junqueira.
20 “Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,/Vivesse a se multiplicar.”
19
41
bien que l’impression qu’il produit soit une”21. (BAUDELAIRE, 1976, p.685). Se a
morte não pode ser representada, assim como o belo – já que fazem referência ao
infinito que pode apenas ser evocado –, também pode ser interpretada, na poesia de
Baudelaire, de forma dual, pois, além de ser o auge da degradação do tempo, também
contém em si a ideia de um infinito, o que permite ao homem pensar sobre ela. A morte,
portanto, na poesia deste autor, se encontra no limiar entre o “divino” e o “profano”
porque não pode ser representada verdadeiramente em sua essência, já que “a verdade
não se diz a não ser no, pelo e do infinito” (HIRT, 1998, p.261). Dessa forma, como a
verdade só pode ser aludida, ela deve ser evocada através do finito, da condição
transitória do que é mortal. Por isso, Baudelaire afirma que o belo é feito de um
elemento eterno; no entanto, só se apresenta na natureza humana a partir do que é
transitório:
Le beau est fait d’un élément éternel, invariable, dont la quantité est
excessivement difficile à déterminer, et d’un élément relatif, circonstanciel,
qui sera, si l’on veut, tour à tour ou tout ensemble, l’époque, la mode, la
morale, la passion. Sans ce second élément, qui est comme l’enveloppe
amusante, titillante, apéritive, du divin gâteau, le premier élément serait
indigestible, inappréciable, non adapté et non approprié à la nature humaine.
22
(BAUDELAIRE, 1976, p. 685)
A modernidade, assim como a beleza, está constituída dos dois elementos
fundamentais: o transitório e o imutável. De certa maneira, toda a obra do poeta parece
estar ligada a essa “dualidade inquietante”, conforme a expressão cunhada por Barbara
Johnson:
A dualidade inquietante pela qual o sujeito se acha dilacerado constitui então,
paradoxalmente, o que garante ao mesmo tempo a unidade do universo
poético. Se o mundo polarizado pode assim, de maneira binária, se dividir
sem sobra, a soma desses dois elementos polares – qualquer que seja sua
reversibilidade, e então, a dificuldade de distingui-los um do outro – deve
constituir um Todo. (JOHNSON, 1979, p. 61)
“O belo inevitavelmente sempre tem uma dupla dimensão, embora a impressão que produza seja una”
“O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil de
determinar, e por um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou
combinadamente, a época, a moda, a moral e a paixão. Sem esse segundo elemento, que é como o
invólucro aprazível, palpitante, aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento seria indigerível,
inapreciável, não adaptado e não apropriado à natureza humana”
21
22
42
Baudelaire afirma que “la dualité de l’art est une conséquence fatale de la
dualité de l’homme.”23 (BAUDELAIRE, 1976, p.685-686). Essa condição dual do
homem está ligada ao tédio e ao caráter melancólico que a sociedade moderna provoca
nele. De acordo com Susana Kampff Lages em seu livro Walter Benjamin – Tradução e
melancolia (2007), “as duplicidades na representação são correlatas da ambivalência
inerente a toda disposição melancólica que se caracteriza pela oscilação entre as
posições contraditórias: alto e baixo, triste e alegre, espiritual e material, infernal e
divino.” (LAGES, 2007, p.49). Essas posições contraditórias, de acordo com a
estudiosa, vão “além de uma mera representação maniqueísta de afetos e conceitos”,
talvez porque se fundem e se complementam na arte e porque parecem precisar um do
outro como condição existencial.
Na poesia de Baudelaire, a posição contraditória e complementar do spleen e do
idéal forma o fundamento de sua obra, além de estar intrinsecamente ligada à questão
do transitório e do imutável, visto que o spleen se encontra no âmbito do que é
degradado pelo tempo, enquanto que o idéal corresponde àquilo que não tem duração. É
preciso salientar que essa dualidade se relaciona com a ideia de “percepção da matéria”,
de Henri Bergson, na medida em que, de acordo com a citação do poeta sobre a
dualidade da arte e do homem, este, portador de sentimentos ambivalentes, pode
perceber um objeto de diferentes maneiras, dependendo do sentimento e do “grau de
atenção à vida” (BERGSON, 1999, p.7).
O poema em prosa “La chambre Double” é um exemplo das contradições
geradas pelas diferentes percepções resultantes da dualidade do homem moderno. Ele
apresenta um mesmo ambiente: um quarto que, em um primeiro momento, está imune à
passagem do tempo, e que, em seu desfecho, é atravessado e degradado por ele. No
começo do poema, o quarto “ressemble à une rêverie, une chambre véritablement
spirituelle, onde “il n’est plus de minutes, il n’est plus de secondes ! Le temps a disparu
; c’est l’Éternité qui règne, une éternité de délices!”24. No entanto, posteriormente, esse
mesmo quarto se transforma, porque “un Spectre est entré”:
Oh ! oui ! Le Temps a reparu ; Le Temps règne en souverain maintenant ; et
avec le hideux vieillard est revenu tout son démoniaque cortège de Souvenirs,
de Regrets, de Spasmes, de Peurs, d’Angoisses, de Cauchemars, de Colères et
de Névroses.
“A dualidade da arte é uma consequência fatal da dualidade do homem”
“Que parece um devaneio, um quarto verdadeiramente “espiritual”.” - “Já não há minutos, já não há
segundos! O tempo desapareceu; é a Eternidade que reina, uma eternidade feita de delícias”
23
24
43
Je vous assure que les secondes maintenant sont fortement et solennellement
accentuées, et chacune, en jaillissant de la pendule, dit : — « Je suis la Vie,
l’insupportable, l’implacable Vie!» Il n’y a qu’une Seconde dans la vie
humaine qui ait mission d’annoncer une bonne nouvelle, la bonne nouvelle
qui cause à chacun une inexplicable peur.
Oui ! le Temps règne ; il a repris sa brutale dictature. Et il me pousse, comme
si j’étais un bœuf, avec son double aiguillon. — « Et hue donc ! bourrique !
25
Sue donc, esclave ! Vis donc, damné! »
Nesse poema em prosa, Baudelaire concebe o tempo como agente determinante
para a felicidade do poeta, na medida em que transforma a atmosfera e seus sentimentos
em relação aos objetos. No texto, explicita-se que o poeta, antes de perceber o passar do
tempo, quando se encontrava em seu “instante fugitivo” (HIRT, 1998, p.139), o quarto
era “une éternité de délices”, o que significa que estava na esfera do idéal, que de
acordo com Walter Benjamin, “insufla a força do rememorar e o spleen lhe opõe a turba
dos segundos” (BENJAMIN, 1989, p.135). O idéal é o exato reverso do spleen, porque
além de não estar sujeito à ação do tempo, se conecta com a esfera da lembrança.
Segundo o poeta, em seu poema em prosa “Laquelle est la vraie?”, a atmosfera do idéal
propaga “le désir de la grandeur, de la beauté, de la gloire et de tout ce qui fait croire à
l’immortalité”26. Por isso, tudo o que não é determinado pela “turba dos segundos” faz
parte dessa atmosfera.
Na poesia de Baudelaire, spleen e idéal são noções opostas que nascem dos
sentimentos do tédio e da melancolia provocados pela cidade grande. Sendo opostas,
parecem, a priori, incompatíveis. Porém, o que poderia ser considerado como
contradição e incompatibilidade, segundo Barbara Johnson, é precisamente um dos
fundamentos da poesia de Baudelaire. A “dualidade inquietante pela qual o sujeito se
acha dilacerado”, explicada por Johnson, se reflete através do spleen e do idéal que se
apresentam a partir de um mesmo lugar: a moderna cidade grande. Como já foi
explicitado nestas páginas, em “Une chambre Double” o mesmo ambiente provoca
simultaneamente sensações opostas que variam em função de estarem, ou não, expostas
à degradação do tempo. Esta concepção do tempo, característica da poesia de
Baudelaire, pode ser encontrada, também, no poema “L’horloge”, de Les Fleurs du Mal.
25
“Oh! Sim! ressurgiu o Tempo; o tempo agora reina como soberano; e com o horrendo velho retornou
todo o seu cortejo demoníaco de Lembranças, de Espasmos, de Terrores, de Angústias, de Pesadelos, de
Cóleras e de Neuroses./ Eu vos assevero que os segundos, agora, são fortes e solenemente assinalados, e
cada um deles, jorrando do pêndulo, diz: - “Eu sou a vida, a insuportável, a implacável Vida!”/ Em toda a
vida humana só há um Segundo que tem a missão de anunciar uma boa-nova, a boa-nova que causa
inexplicável medo. / Sim! reina o Tempo; reassumiu a sua brutal ditadura. E acossa-me, como se eu fosse
um boi, com seu ferrão: - Eia, burrico! Sua, escravo! Vive, condenado!”
26
“O desejo da grandeza, da beleza, da glória e de quanto faz crer na imortalidade.”
44
Nele, o relógio é descrito como um “dieu sinistre, effrayant, impassible,/Dont le doigt
nous menace et nous dit : “Souviens-toi !”27, o que sugere que as horas, ao perpassarem
todas as esferas da vida, são portadoras de uma repetição do sempre idêntico e igual.
Nesta concepção do tempo, portanto, viver constitui uma “condamnation à espérer”, da
qual só é possível se libertar com a morte.
Em sua discussão sobre o spleen, Hirt afirma que este seria “o que esvaziaria a
consciência, a faria desesperar-se por ser tão impotente no sentido de ter uma direção ou
uma intenção” (HIRT, 1998, p. 148). Mas isso significa que, de alguma maneira, o
spleen também evoca o idéal, cuja ausência é a responsável por que ele ocorra no
homem moderno. O “desespero causado pela impotência” despertaria a ideia da fuga
através da lembrança, por meio da qual o poeta pode recriar o passado, um lugar em que
não existe mais o tempo nem o sentimento pesado causado pelo presente. O poema “Un
hémisphère dans une chevelure” constitui um exemplo acabado dessa contradição.
De acordo com Barbara Johnson (1979, p.45), “o poema estabelece uma ligação
de correspondências perfeita entre o poeta e seu passado”. O idéal muitas vezes é
evocado pela lembrança e pela memória, talvez porque ela não pode ser corrompida
pelo tempo e não é estática, mudando de acordo com a vontade e com as sensações de
quem lembra. Desta forma, a fuga, através da lembrança, implica recriar o passado
continuamente e segundo Bergson, deslocar a percepção “encerrada no presente”
transformando-a em inúmeras percepções, já que o passado pode ser considerado como
um lugar em que não existe mais nem a duração nem o sentimento pesado que o
presente desperta. A mulher da cabeleira, portanto, é essencial para que o poeta consiga
imaginar, e se reportar, a outro lugar: “si tu pouvais savoir tout ce que je vois! tout ce
que je sens! tout ce que j’entends dans tes cheveux!”. Esse outro lugar, é preciso
salientá-lo, pertence ao território da imaginação do artista, a qual é atravessada,
também, por suas lembranças: “quand je mordille tes cheveux elastiques et rebelles, il
me semble que je mange des souvenirs.”.
Para atingir essa esfera do passado em que não existe duração nem lembranças,
o poeta deve estar necessariamente no presente, visto que, de acordo com Bergson,
memória e percepção estão intrinsecamente relacionadas. O que significa que o âmbito
do que não tem tempo só pode ser aludido através do que tem. O poeta só pode se
referir a suas lembranças porque se encontra em um espaço e em um tempo
27
“deus sinistro, hediondo, indiferente,/Que nos aponta o dedo em riste e diz: “Recorda!”
45
determinados em sua condição finita de elemento transitório que faz parte do mundo
palpável. Nesse sentido, no poema, é possível perceber que o poeta observando o
mundo físico, consegue se remeter à seu passado. Dessa forma, pode-se interpretar “Un
hémisphère dans une chevelure” como uma evocação de aspectos do idéal feita através
da observação do mundo exterior, a partir da condição humana finita.
Esse mundo exterior parece ser necessário, em “Un hémisphère dans une
chevelure”, para a representação da fuga do spleen iminente ao homem moderno, que de
acordo com Hugo Friedrich (1978, p.37-38) seria uma “vítima da modernidade”. Sendo
assim, ao “falar a partir do eu”, primeira pessoa do singular, o poeta o faz como quem se
percebe parte da sociedade moderna, como explica o estudioso no trecho abaixo:
Quase todas as poesias de Les Fleurs du Mal falam a partir do eu. Baudelaire
é um homem completamente curvado sobre si mesmo. Todavia este homem
voltado para si mesmo, quando compõe poesias, mal olha para seu eu
empírico. Ele fala em seus versos sobre si mesmo, na medida em que se sabe
vítima da modernidade. Esta pesa sobre ele como excomunhão. Baudelaire
disse com bastante frequência, que seu sofrimento não era apenas o seu.
(FRIEDRICH, 1978, p.37-38)
O poeta “fala” “a partir do eu” na medida em que sua individualidade é uma
referência não a si mesmo, mas ao homem que se percebe como profundamente
influenciado pela cidade grande. Sendo o poeta um “eu”, mas também um “outro”, o
uso da primeira pessoa do singular caracteriza não apenas a “despersonalização” em sua
poesia, mas a experiência denominada por Michel Collot (2007, p.15) de “espaçamento
do sujeito”. Esta consiste na percepção que o artista tem de si mesmo a partir do outro.
Esse outro, sendo o objeto de reflexão, seria o que evocaria a cidade grande como
agente condicionante da efemeridade do homem moderno.
A expressão “espaçamento do sujeito”, cunhada por Collot, explica a ligação
entre o sujeito e o objeto como o reflexo de um no outro. No caso da poesia de
Baudelaire, a cidade só se mistura ao homem moderno porque este só pode existir a
partir dela. Michel Collot, em seu livro Paysage et poésie – du romantisme à nos jours
(2005), afirma que existe uma repercussão da paisagem na consciência do sujeito:
Que uma paisagem seja “romântica” supõe-se uma certa continuidade entre o
imaginário e a realidade, o interior e o exterior [...] “uma paisagem qualquer
é um estado da alma” [...], ela pressupõe não somente a projeção da
afetividade sobre o mundo, mas também a repercussão deste na consciência
do sujeito. “As passagens são como um arco de violino que brincam na
minha alma” confidencia Stendhal. (COLLOT, 2005, p.43)
46
Ao explicar a importância da paisagem e sua relação intrínseca com o sujeito,
Collot utiliza o termo “romântico”. O estudioso explica que “a modernidade de
Baudelaire está estritamente misturada à herança do romantismo”, e cita o poeta: “qui
dit romantisme dit art moderne, – c’est-à-dire intimité, spiritualité, couleur, aspiration
vers l’infini, exprimée par tous les moyens que contiennent les arts.”28 (BAUDELAIRE,
1976, p. 421). Collot afirma que é a “transportação do interno em direção ao externo
que define, segundo Baudelaire, a maneira lírica de sentir.” (COLLOT, 2007, p.15).
O lirismo moderno “não é mais a expressão de uma identidade e de uma
interioridade, mas sim a de uma alteridade e de uma exterioridade” (COLLOT, 2007).
Por essa razão, na poesia moderna, o aspecto de uma “despersonalização” não é
exatamente a recusa de “falar” de si, mas de se perceber inserido no mundo em que se
vive, ou na cidade grande moderna. A isso, Collot denomina “espaçamento do sujeito”,
que ele remete ao “transportar o interno em direção ao externo”, como ilustra o poema
“Un hémisphère dans une chevelure”.
A esta ideia se relaciona o spleen e o idéal, porque no poema supracitado, há
uma passagem de um a outro sentimento. O primeiro indício dessa passagem é a
utilização do “epíteto” “long” (HIRT, 1998, p. 147): “o termo possui uma redundância
singular, cuja natureza tautológica permanece, na verdade, indefinida (o tédio possui
nuances, não é pura e simples repetição, possui intensidades, cores, alterações, etc):
“long vers”, “long ennuis”, “longs remords” (HIRT, 1998, p.147). No primeiro e no
último parágrafo do poema nota-se a utilização desse vocabulário referente ao spleen:
“laisse-moi respirer longtemps, longtemps, l’odeur de tes cheveux!” e “laisse-moi
mordre longtemps, longtemps, l’odeur de tes cheveux!”. No seguinte trecho, Hirt
ressalta que a cabeleira é um objeto de devaneio:
O objeto da percepção, a mercadoria, tanto quanto o objeto do devaneio, uma
cabeleira por exemplo, chegam a uma maneira de autonomia e constituem um
mundo próprio muito enigmático. (HIRT, 1998, p.98-99)
Sendo o “objeto do devaneio” do poeta e se contrapondo “ao objeto da
percepção”, a “cabeleira” constitui o limiar entre o spleen e o idéal. A palavra
“souvenirs”, que evoca o idéal, se contrapõe a “longtemps”, que caracteriza o spleen,
28
"Quem diz romantismo diz arte moderna - ou seja, intimidade, espiritualidade, cor, aspiração pelo
infinito, expressos por todos os meios que contenham as artes"
47
visto que a “repetição e a natureza tautológica da palavra”, sublinhadas por Hirt,
parecem ser o que evoca as lembranças e só podem existir quando inspirados pelos
“cheveux”, como é possível observar no poema: “Laisse-moi mordre longtemps tes
tresses lourdes et noires. Quand je mordille tes cheveux elastiques, il me semble que je
mange des souvenirs.”. O idéal, portanto, só pode surgir a partir da vivência do spleen.
Dessa forma, pode-se entender a “cabeleira” como limite entre o mundo temporal – pois
trata-se de algo concreto – e o que ela evoca, ou seja, as lembranças, estando no âmbito
da atemporalidade. A modo de exemplo, em “Un hémisphère dans une chevelure” se lê:
Tes cheveux contiennent tout un rêve, plein de voilures et de mâtures; ils
contiennent de grandes mers dont les moussons me portent vers de charmants
climats, où l’espace est plus bleu et plus profond, où l’atmosphère est
parfumée par les fruits, par les feuilles et par la peau humaine.
(BAUDELAIRE, 1976, p.300)
A referência à “peau humaine”, ligada aos “cheveux” remete ao mundo tátil. Por
isso, a utilização de imagens que representam a deterioração do tempo permite
interpretar o poema como uma proposição do idéal a partir do spleen. Dessa forma, os
“Cheveux”, que evocam um “rêve plein de voilures et des matûres” e uma atmosfera
“parfumée par [...] la peau humaine”, representam uma fuga do spleen, produto da
“vitória da mercadoria” (HIRT, 1998, p.139) e que provoca o tédio através do
“devaneio”. No entanto, ao utilizar a expressão “parfumée par la peau humaine”, o
poeta permite ao leitor interpretar que suas lembranças são permeadas pelo o que é
humano e pelo tempo - fator degradante que provoca o tédio da modernidade. Portanto,
perpassada pela influência da duração, a “cabeleira” permite evocar lembranças porque
está inserida no mundo concreto, o que significa que possibilita ao poeta escapar do
spleen através de “tudo” “o que sente” “o que vê” “o que escuta” nos cabelos da mulher.
Ela é o fator degradado pelo tempo externo ao poeta, algo “mundano” que lhe permite
entrar em contato com suas lembranças. Isso significa que é preciso um elemento
temporal para haver uma alusão ao que não tem tempo.
Assim sendo, na poesia de Baudelaire, “a dualidade inquietante” consiste em que
o poeta se encontra na esfera do idéal somente a partir do que observa na esfera do
spleen, e se percebe como mortal e degradado a partir do contato com o que está no
âmbito do idéal, como pode ser observado no poema “Le confiteor de l’artiste” – que
será analisado no próximo capítulo.
48
Em “Un hémisphère dans une chevelure”, o poeta utiliza um vocabulário que
remete ao navio e ao mar: “tes cheveux contiennent tout un rêve, plein de voilures et
mâtures”. “grandes mers dont les moussons [...]”, “l’océan de ta chevelure”, “navires
de toutes formes”, “beau navire”, “roulis imperceptible du port”. Para Hirt, o navio de
Baudelaire remete à imagem “que viaja no tempo”, porque é capaz de se movimentar
através dele e fazer com que “se escape de uma leitura catastrófica do poema” –
associada àquela que não se encontra na órbita da alegoria, que pode ser degradada pelo
tempo. A imagem poética, portanto, “nada mais é do que abertura do tempo, sua
exposição” (HIRT, 1998, p. 127). “Abrir o tempo” significa, na verdade, transpassá-lo
em sua condição, utilizar-se dele para que se torne fundamental na significação da
imagem e expô-lo a ponto de que ele perca seu caráter aprisionador e possibilite o
movimento através dele. Por isso, o navio, nesse poema, constitui um elo entre o spleen
e o idéal, permitindo ao poeta escapar da prisão do tempo e transitar entre esses dois
polos opostos.
A partir da tradução de Dorothée de Bruchard é possível pontuar melhor essa
transição entre os dois polos – que aqui será exemplificada no uso que o poeta e
tradutora fazem da palavra “céu”. Em sua tradução para o português, há uma sutil
escolha tradutória, já que optou por “céu” onde havia, no original, “azur”. Essa decisão,
de certa forma, permite ilustrar a discussão sobre o trânsito que faz Baudelaire nesse
poema entre o spleen e o idéal.
No texto de Baudelaire se lê:
Dans l’océan de ta chevelure, j’entrevois un port fourmillant de chants
mélancoliques, d’hommes vigoureux de toutes nations et de navires de toutes
formes découpant leurs architectures fines et compliquées sur un ciel
immense où se prélasse l’éternelle chaleur.
Dans l’ardent foyer de ta chevelure, je respire l’odeur du tabac mêlé à
l’opium et au sucre ; dans la nuit de ta chevelure, je vois resplendir l’infini de
l’azur tropical ; sur les rivages duvetés de ta chevelure je m’enivre des odeurs
combinées du goudron, du musc et de l’huile de coco.
E na tradução de Dorothée De Bruchard:
No oceano de sua cabeleira, entrevejo um porto fervilhando de cantos
melancólicos, homens vigorosos de todas as nações e navios de todas as
formas recortando suas arquiteturas finas e complicadas num céu imenso
onde se estira o eterno calor.
Na ardente lareira de sua cabeleira, respiro o cheiro do fumo, mesclado de
ópio e açúcar; na noite de sua cabeleira, vejo refulgir o infinito do céu
49
tropical, nas margens de penugem da sua cabeleira, me embriago com os
cheiros combinados do alcatrão, do almíscar e do óleo de coco.
Observa-se que a primeira escolha do poeta por “ciel” está seguida por
“immense” e por “éternelle chaleur”. Estes dois elementos permitem a seguinte leitura
dual: “éternelle chaleur” transmite a ideia de algo mundano que atinge a esfera do
eterno, assim como “immense”, junto a “ciel”, a de algo que não pode ser medido pelo
homem, mas ainda assim, transpassado pelo tempo e pelo espaço. Porém, como já foi
mencionado, a palavra “ciel” é usada no âmbito temporal do spleen porque, segundo
Hirt, de uma maneira geral, “o spleen e o tédio impedem radicalmente toda estetização
do mundo exterior. Este é particularmente evidente no caso da evocação do céu, se acha
reduzido às dimensões do espaço interior.” (HIRT, 1998, p.158-159). Isso não acontece
com “azur” ou “l’infini”, usados sempre em referência a algo que não pode ser
comprimido no espaço.
Quanto à expressão “Ciel immense”, esta suscita algo que apesar de sua
grandeza, ainda enclausura e ainda contém um aspecto “industrial” que retoma o spleen
em sua origem. Baudelaire utiliza a expressão para exprimir que, através da cabeleira,
consegue enxergar “un port fourmillant de chants mélancoliques, d'hommes vigoureux
de toutes nations et de navires de toutes formes découpant leurs architectures fines et
compliquées sur un ciel immense où se prélasse l'éternelle chaleur”. Ou seja, ele faz
referência a uma elevação gradual que acontece a partir do “port”, dos “hommes” e dos
“navires de toutes formes”. Estes últimos, estando ligados ao “ciel” que enclausura,
parecem se deslocar progressivamente do spleen através do tempo em sua própria
condição, como explicitado pela expressão da “abertura do tempo” de Hirt.
Por outro lado, “azur”, ao ser traduzido por “céu” no texto de Dorothée de
Bruchard, já não dispõe da gradação que conduz o poeta do spleen ao idéal. Além disso,
a contraposição entre “nuit” e “azur tropical” não parece desencadear tanto efeito.
Dessa forma, o poema traduzido retoma o aspecto spleen da obra do poeta de forma
mais intensa do que faz o original. No entanto, essa força que a palavra “céu” suscita
deixa mais claro que existe uma passagem necessária pelo tédio antes de chegar ao
idéal. Para que exista a ausência do tempo, deve-se haver o tempo, demonstrando a
“dualidade inquietante” da obra do poeta e a junção dos elementos transitório e
imutável.
Ao contrário do que acontece em “Un hémisphère dans une chevelure”, o poema
“Le confiteor de l’artiste” também aborda a importância que tem o mundo exterior na
50
obra do poeta; porém, nesse poema, o aspecto idéal é o que remete ao aspecto spleen: o
poeta se vê imerso na natureza e através dessa imersão, se percebe mortal. O spleen,
dessa forma, é evocado através da impotência humana em exprimir tudo aquilo que vê.
Neste poema, o mundo exterior tem uma força grande, porém, ao contrário do que
acontece em “Un hémisphère dans une chevelure”, o aspecto idéal é o que remete ao
aspecto spleen. O poeta se vê imerso na natureza, elemento imutável, e se percebe
através dessa imersão, mortal. O spleen, dessa forma, é evocado através da impotência
humana em exprimir tudo aquilo que vê.
51
CAPÍTULO 2 - O processo criativo e a linguagem a partir da filosofia da tradução
2.1 “Le confiteor de l´artiste” e a problematização da linguagem
Em “Le confiteor de l’artiste”, a paisagem diante da qual se encontra o poeta
tem grande impacto sobre ele. Exemplo disso é a primeira frase do poema, que denota
uma expressão de êxtase: “Que les fins de journées d’automne sont pénétrantes ! Ah !
pénétrantes jusqu’à la douleur!”. Baudelaire prossegue evocando “l’immensité du ciel
et de la mer”, e as sensações de “solitude” e “silence” que suscitam a “incomparable
chasteté de l’azur”. Essas expressões desembocam em algo tão imenso que chega “à la
douler”. Nos dois primeiros parágrafos, percebe-se que há uma mistura de sensações
não apenas pelo vocabulário utilizado, que remete ao spleen e ao idéal – com o termo
“Infini” fazendo referência ao último, seguido de “ciel” e “mer” que evocam o primeiro
–, mas também pela frase “toutes ces choses pensent par moi, ou je pense par elles”,
que representa a fusão que existe, a priori, entre o poeta e a natureza.
Como já foi desenvolvido nestas páginas, segundo Hirt, para Baudelaire não
existe natureza, somente arte porque, como explica o estudioso, para o poeta, a natureza
“é trabalhada e penetrada pelo spleen” (HIRT, 1998, p. 161). Além disso, “la nature
n’est qu’un dictionnaire” (BAUDELAIRE, 1976, p.624), o que significa que deveria ser
observada como elemento transitório. Dessa forma, sendo a natureza corrompida pelo
tempo, ela poderia ser representada, pois só é possível a representação daquilo que não é
imutável ou do que se encontra na esfera do spleen: o que tem duração e é passível de
degradar-se. No entanto, em “Le confiteor de l’artiste”, essa “Nature” da qual se ocupa
o poeta, é a representação do belo: é observando-a que percebe que ela é uma
“feiticeira” que parece ser perpassada pelo spleen, mas que na realidade é uma beleza
que foge à representação. A gradação do processo em que o poeta se envolve com a
Natureza se explica nessa chave de leitura. Nesse sentido, é possível observar que, no
primeiro parágrafo, o artista é apenas espectador. No entanto, no segundo e no
penúltimo, ele se compenetra com o que vê, sentindo-se parte desse espetáculo, sem
saber se é “ele que pensa pelas coisas ou se são elas que pensam por ele”.
52
É preciso perceber que o poeta sente que sua existência é “une petite voile
frissonante”, uma vela de embarcação. De acordo com Benjamin, “a imagem dos navios
surge quando se trata do ideal profundo, secreto e paradoxal de Baudelaire: ser levado,
ser acolhido pela grandeza” (BENJAMIN, 1989, p.93). Esse pensamento de Benjamin
vai ao encontro da interpretação de Hirt, para quem o navio representa “uma abertura do
tempo” pois é a imagem do movimento. A vela, portanto, é o elemento que orienta essa
abertura. Nesse processo, a figura do artista tem um caráter que orienta o espectador,
conduzindo-o a uma percepção da atemporalidade da obra, o que significa que a obra
não deve ser estática, deve se movimentar através do tempo. Portanto, a partir do caráter
orientador do artista, é possível afirmar que este se encontra entre o spleen e o idéal, já
que somente ele é capaz de representar o mundo em que vive de maneira que a
significação não se perca. Só ele pode criar algo que transpasse o tempo e que signifique
para sempre. Desta forma, Benjamin compara o navio baudelairiano com o herói ou o
poeta:
Ele decifrou (a constelação especial de circunstâncias onde, também no ser
humano, se reúnem grandeza e beleza), denominando-a “a modernidade”.
Quando se perde no espetáculo dos navios no ancoradouro, é para neles
colher uma metáfora. O herói é tão forte, tão engenhoso, tão harmonioso, tão
bem estruturado como esses navios. Para ele, contudo, o alto-mar acena em
vão. Pois uma má estrela paira sobre sua vida. A modernidade se revela como
sua fatalidade. Nela o herói não cabe; ela não tem emprego algum para esse
tipo. Amarra-o para sempre a um porto-seguro; abandona-o a uma eterna
ociosidade. (BENJAMIN, 1989, p.93)
A fatalidade a que Benjamin se refere, segundo Hirt, “é o tempo” (HIRT, 1998,
p.156). Isso explica, portanto, o fato de que apesar do poeta ser o portador do elemento
divino – o “beau diadème” do poema “Bénédiction”, de Les Fleurs du Mal –, ainda
assim ele não seria menos vítima da modernidade do que seriam os homens que
observa. Dessa forma, a intensidade gradual do poema “Le confiteor de l’artiste” vai se
desenvolvendo a partir do momento em que, sabendo-se pessoa que transita entre o
spleen e o idéal, justamente por seu caráter orientador, o poeta se percebe, de repente,
mortal. E assim, se pergunta diante da beleza que vê: “Ah! faut-il éternellement souffrir,
ou fuir éternellement le beau?”. Essa pergunta representa o auge da percepção de sua
impotência de exprimir exatamente o que vê, o que o faz saber-se saber transitório e
pequeno diante de algo imortal e infinito que não pode ser representado – aquilo
Benjamin denomina “experiência do choque”:
53
A experiência do choque é uma das que se tornaram determinantes para a
estrutura de Baudelaire. Gide trata das intermitências entre imagem e a ideia,
a palavra e o objeto, nas quais a emoção poética de Baudelaire encontraria
sua verdadeira sede. (BENJAMIN, 1989, p. 112)
“A experiência do choque” vivida pelo poeta se anuncia no penúltimo parágrafo,
em que as sensações são “trop intenses”, e culmina no último, em que se manifesta a
“consternation”, a “exaspération” e a assimilação de que “l’étude du beau est un duel
où l’artiste crie de frayeur avant d’être vaincu”. Esse duelo, explicado por Benjamin
como “o processo de criação”, está, em “Le confiteor de l’artiste” ligado à natureza, que
é a eterna rival vencedora: “enchanteresse sans pitié, rivale toujours victorieuse”. Essa
natureza, uma “feiticeira sem piedade”, é, na verdade, a beleza que não pode ser
representada pela linguagem. Ao perceber essa limitação, a exasperação do poeta
aumenta, já que cobra consciência de que, apesar de fazer parte do cenário que
contempla, e de estar na mesma esfera da natureza atravessada pelo spleen, é ele próprio
o elemento transitório. A natureza, portanto, não é passageira, ela apenas ilude o poeta,
e se revela, finalmente, como algo infinito, como o que “tem a última palavra”,
conforme explica Hirt:
O infinito figura a questão [do percurso de todo o espaço do spleen, da cela
ao abismo, do finito ao infinito e da infinitude do finito ao infinito] para além
de toda resposta. O espírito para além de toda natureza. O poeta, tocado pelo
spleen, é vencido por sua dispersão, pelo devir de seu devaneio; no seio de
sua mais extrema concentração, ele perde sua auréola, cai na “sarjeta”
(“L’âme d’un vieux poete erre dans la gouttière/Avec la triste voix d’un
fantôme frileux”). É o infinito que penetrou o sujeito. Mas então é, como
enuncia Le confiteor de l’artiste, a natureza, tão desprezada, quem tem a
última palavra, ela que não é nem poesia, nem eternidade, nem verdade, mas
horror e demonstração da morte. (HIRT, 1998, p.174)
No duelo com o belo, portanto, o artista é sempre vencido porque a “imagem
real” está diante de seus olhos finitos e o máximo que pode fazer é, através da
linguagem, deformá-la para que consiga de certa forma aludir a ela, posto que não
consegue exprimi-la com exatidão. Esse é, portanto, o “processo criativo” do artista
moderno, que, para Benjamin (1989, p.111), é processado na obra de Baudelaire como
“choque” produzido no “âmago de seu trabalho artístico” que permite ao poeta se
perceber como “élement transitoire”. Nessa percepção, e porque não consegue exprimir
o que vê de forma exata, podendo apenas criar uma representação alusiva, o artista
moderno pode ser relacionado a um tradutor, visto que sua obra tenta exprimir em
elementos transitórios o que é imutável. Dessa forma, existe uma mudança de códigos
54
no momento da representação. Retomando a expressão de Bergson, sendo a obra de arte
uma “percepção da matéria” e um esboço, ela precisa, para que nunca se degrade, do
olhar do outro para permanecer “clara” e “embriagadora”. A esse respeito, em Le
peintre de la vie moderne, Baudelaire explica o papel do espectador como tradutor de
uma tradução:
[...] et l’imagination du spectateur, subissant à son tour cette mnémonique si
despotique avec netteté l’impression produite par les choses sur l’esprit de M.
G. Le spectateur est ici le traducteur d’une traduction toujours claire et
29
enivrante. (BAUDELAIRE, 1976, p.698)
Porque a representação, na modernidade artística instaurada por Baudelaire,
opera a partir de uma mudança de códigos, para o poeta, o espectador é um “traducteur
d’une traduction”. É ele a pessoa que vê a obra e a retraduz para acrescentar-lhe sua
visão. Dessa forma, a imagem criada pelo artista moderno precisa de outra, que surge,
necessariamente, a partir da primeira. O contínuo surgimento de imagens parece
necessário à obra para que ela possa permanecer em movimento, pois este é o que
permite à linguagem uma constante alusão à “imagem real”.
O movimento, na poesia de Baudelaire, portanto, está relacionado ao que
Benjamin denomina “experiência do choque” que, no poema “Le confiteor de l’artiste”,
se manifesta na percepção da finitude humana, ligada também à finitude da linguagem
como elemento transitório que, por ser passageiro, está condenado a se deteriorar. Por
isso, o artista moderno tenta ultrapassar esse caráter finito da linguagem, dando a ela, a
condição alegórica no que Baudelaire denomina “ébauche parfaite”. Nesse sentido,
“l’ébauche parfaite” seria uma obra de arte que deveria permanecer “neutra em relação
aos acontecimentos”, pois, como explica Hirt no trecho a seguir, “a obra é uma
passagem ao ato”:
A obra é uma passagem ao ato. Nessa medida e ao contrário, a
imagem virtual, somente sonhada ou fantasiada, ficará neutra em
relação ao real, puro fora em relação ao vento das coisas, dos
acontecimentos e da história. (HIRT, 1998, p.297)
Sendo uma passagem, a obra parece nunca chegar a esse ato – já que chegar a
ele seria atingir a “verdade” ou a “imagem real” –, mas estar sempre no limite de
29
"E a imaginação do espectador, submetendo-se por sua vez a essa mnemônica tão despótica, vê com
nitidez a impressão produzida pelas coisas sobre o espírito de C.G. O espectador é aqui o tradutor de uma
tradução sempre clara e inebriante"
55
realizá-lo, quase como se pudesse exprimir o que não seria possível através da finitude
humana. Por isso, na obra deve estar contido o elemento transitório sempre em aberto,
já que é essa a condição que permite ao espectador acrescentar-lhe sua “percepção”. A
“neutralidade” da representação artística moderna, portanto, se dá através da condição
alegórica da linguagem: no inacabamento que o artista imprime à obra para que a ela se
acresçam as significações complementadas pelo leitor, permitindo assim que esta
permaneça moderna. Dessa forma, o que seria limitante é utilizado pelo artista em favor
da obra.
O poema “Le cygne”, de Les Fleurs du mal, é um exemplo da maneira em que o
artista dota a linguagem de uma condição alegórica para que possa sempre aludir ao
significado. Nesse poema, o poeta sabe que Paris se deteriora, como explicita nos
seguintes versos: “Paris change! mais rien dans ma mélancolie/N’a bougé! palais
neufs, échafaudáges, blocs/ Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie”30. A Paris
que o poeta observa está em constante movimento. Sua visão voltada para a condição
alegórica dos objetos – ou seja, para seu potencial de suscitar inúmeras percepções – o
leva a percebê-los no que eles podem ter de atemporal, visto que eles carregam em si
não apenas o presente, mas permitem ao poeta avocar suas lembranças. Por isso o que
ele vê, semelhante ao “cygne”, o remete a momentos que passaram, “aux captifs, aux
vaincus” e “à bien d’autres encor”. A linguagem, dessa forma, exprime “uma imagem
em toda a sua ambiguidade” (HIRT, 1998, p.110), permitindo que o espectador possa
traduzi-la a partir de sua percepção. Essa percepção do espectador seria o que
Baudelaire chama de “élement transitoire, fugitif” (BAUDELAIRE, p.695, 1976)
relacionado à “essência corporal e espiritual do homem”, que de acordo com Benjamin
(2011, p.101.), “a arte pressupõe”.
Dessa forma, algumas das reflexões do filósofo sobre tradução e linguagem,
expostas em seu texto A tarefa do tradutor, são relacionadas aqui à importância do olhar
do outro na obra de arte porque a tradução – da mesma maneira que a crítica de arte em
O conceito de crítica de arte no romantismo alemão – se liga ao contexto histórico do
tradutor ou do crítico, e às influências desse contexto em suas escolhas tradutórias.
Assim sendo, tradutor e crítico – assim como o espectador/leitor da obra de arte
moderna – são fundamentais no constante movimento demandado pelo “esboço
perfeito” que, na visão de Benjamin, caracteriza a constituição da obra de arte moderna.
“Paris muda! mas nada em minha nostalgia/Mudou! novos palácios, andaimes, lajedos,/Velhos
subúrbios, tudo em mim é alegoria”
30
56
A concepção baudelairiana de que o poeta é um tradutor, e de que o
espectador/leitor é um tradutor da tradução que realiza o artista, tem seu paralelo na
abordagem que Benjamin faz do tradutor e também do leitor, concebido como
conhecedor do idioma original. De acordo com Benjamin (2011, p.102) “uma tradução”
está voltada a “quem entende o original” porque seria só a partir do conhecimento da
língua de origem e da língua de chegada que o texto permanece em movimento.
Portanto, conhecer o idioma do original se torna fundamental para o caráter dinâmico da
obra. Dessa maneira, é possível considerar a tradução como uma tentativa de “abrir o
tempo” no sentido proposto por Hirt. Ela seria, vista dessa forma, como uma
“experiência” (BERMAN, 1999, p.18) linguística e cultural transitória indispensável à
alusão ao “infinito”.
Para Baudelaire, o que o artista moderno exprime por meio da linguagem são
elementos transitórios que compõem a cidade grande. No entanto, como esta cidade
grande foge à representação, a expressão artística moderna é, na verdade, a tradução do
entorno do poeta porque nessa expressão existe uma mudança de códigos. Isso implica,
no momento da escrita, em escolhas que muitas vezes não contemplam com exatidão o
objeto, em reflexões, perdas, e reescritas. Por isso, na próxima seção deste capítulo
trabalha-se com questões tradutórias, exemplificando com os poemas e algumas de suas
traduções as ideias aqui discutidas como forma de traçar um paralelo entre a impotência
da expressão moderna que permeia a obra de Baudelaire e a filosofia da linguagem e da
tradução desenvolvidas por Walter Benjamin. Dessa forma, considera-se aqui a obra do
poeta, principalmente os poemas analisados, como traduções da cidade grande e o
espectador/leitor como tradutor dessa tradução primeira.
A partir das considerações tecidas até o momento, será desenvolvida a ideia da
dinamicidade particular da obra de arte que a tradução proporciona. O empreendimento
se origina na convicção de que esse olhar não se deve preocupar em captar o que não
pode ser representado, ou seja, não se deve esforçar em entender a mensagem nem em
transmiti-la, já que essa tentativa levaria a língua à condição de “símbolo do nãocomunicável”. (BENJAMIN, 2011, p.72).
57
2.2 A “experiência” da tradução
Segundo Antoine Berman (1999, p.16), a tradução é “experiência. Experiência
das obras e do ser-obra, das línguas e do ser-língua. Experiência, ao mesmo tempo, de si
mesma, de sua essência”. Porque o “puro tradutor é aquele que tem necessidade de
escrever a partir de uma obra, de uma língua e de um autor estrangeiro” (BERMAN,
1999, p.18). Dessa forma, “se o tradutor tem necessidade de escrever a partir de uma
obra”, traduzir é reescrever, completar e acrescentar algo ao raciocínio e à imaginação
do autor. É também fazer opções, refletir sobre o que é feito, experimentar contextos
diferentes e misturá-los. Portanto, as escolhas tradutórias se fazem a partir dessas
diferenças e a partir de preferências, seja na língua de chegada ou de partida. Porque, ao
traduzir, o tradutor reescreve e reflete sobre o escrito em sua língua materna. Ao mesmo
tempo, também faz uma reflexão sobre seu próprio idioma. A esse processo, Antoine
Berman denomina “experiência da tradução”.
Além de ser “experiência” e “reflexão”, a tradução é, na prática, uma maneira de
divulgar diversos textos para leitores do mundo – o que conduz, também, a algumas
conclusões equivocadas sobre a serventia da tradução literária, como a que discute Pere
Comellas em seu artigo Algumas reflexões sobre a tradução à letra de Antoine Berman
(2011):
A serventia da tradução literária é a mesma que a do resto da literatura.
Talvez alguém quisesse pôr em questão uma afirmação como essa. Porque de
fato a tradução não criaria imaginários, mas se limitaria a difundir os
imaginários criados pelas obras originais, certamente num âmbito linguístico
e cultural diferente, mas com as mesmas imagens. Difundir, não alterar ou
recriar. Ou seja, na mente dos leitores ingleses de Walter Scott teríamos uma
representação do passado histórico europeu igual à que acharíamos na mente
dos seus leitores em italiano, persa, catalão ou javanês. Não é preciso
assinalar que é essa uma concepção um tanto ingênua da tradução.
(COMELLAS, 2011, p.152)
Para compreender melhor em que consiste essa “ingenuidade” da concepção da
tradução, é preciso retomar Henri Bergson e seu pensamento sobre o “grau de atenção à
vida”, segundo o qual existem “tons diferentes de vida mental, e nossa vida psicológica
pode se manifestar em alturas diferentes, ora mais perto, ora mais distante da ação.”
58
(BERGSON, 1999, p.7). Dessa forma, existindo diferentes “percepções” e
manifestações psicológicas que podem se distanciar da ação ou do objeto, não seria
possível a existência de uma imagem idêntica na mente dos leitores. Nesse sentido, a
ideia de que uma tradução exprime uma mesma representação para leitores do mundo
inteiro só se justifica partindo da suposição de que traduzir seria captar uma mensagem
verdadeira e única, o que significa pressupor que a língua não se transforma, que não
existem culturas diferentes nem “tons diferentes”, que todas as “percepções da matéria”
são iguais e que seria possível representar a “matéria” de maneira acabada e definitiva.
No entanto, a “matéria” a que se refere Bergson está na mesma esfera da “ideia
de arte” dos românticos alemães explicada por Benjamin, da “imagem real” e do
“elemento imutável” de Baudelaire, ou seja, ela não pode ser representada. Sua
representação é apenas uma percepção, apenas um olhar. Sendo assim, para não ser
corrompida pelo tempo, deve valer-se dele para significar, utilizando para isso olhares
externos que a complementem, já que se caracteriza por estar em movimento constante.
Dessa maneira, se a obra de arte, para os autores que aqui vêm sendo estudados, envolve
a ideia de um movimento constante, a tentativa de transmitir a mesma imagem, seja no
mesmo idioma, seja em outro, torna-se impossível. Afinado com esta concepção da
tradução, o filólogo espanhol Martín de Riquer na reedição de 1999 de Don Quijote,
afirma:
Buscou-se explicar tudo o que pudesse entorpecer a leitura do Quixote a um
leitor culto de nossos dias, mas familiarizado com a língua, costumes e
cultura da época de Cervantes. Muitos leitores perceberão que algumas notas
sobram por se referirem a coisas muito sabidas, mas enquanto possam ajudar
a outros leitores não tão ilustres, o objetivo de nosso comentário será
cumprido. A maioria das notas esclarecem palavras ou problemas de
linguagem; mas se procurou também dar notícia dos livros ou personagens
literários tão abundantemente citados no Quixote e de aspectos da vida do
século XVI e princípios do XVII que são necessários para entender algum
aspecto determinado, por ínfimo que seja do grande romance. (RIQUER In.
CERVANTES,1999, p.29)
A opção tradutória adotada por Riquer permite compreender um dos efeitos da
condição dinâmica da linguagem, porque se um idioma está em contínua transformação,
uma reedição explicativa seria uma maneira de acompanhá-lo em seu desenvolvimento
sem que sua história se perca.
O constante movimento de um idioma – ou seja, suas transformações e variações
provocadas pela passagem do tempo – é visto pelos signos e em seus arranjos, que de
59
acordo com Roman Jakobson em Aspectos Linguísticos da Tradução (2007), podem ser
de dois tipos:
Todo signo linguístico implica dois modos de arranjo:
1) A combinação. Todo signo é composto de signos constituintes e/ou
aparece em combinação com outros signos, Isso significa que qualquer
unidade linguística serve, ao mesmo tempo, de contexto para unidades mais
simples e/ou encontra seu próprio contexto em uma unidade linguística mais
complexa. Segue-se daí que todo agrupamento efetivo de unidades
linguísticas liga-as numa unidade superior: combinação e contextura são as
duas faces de uma mesma operação.
2) A seleção. Uma seleção entre termos alternativos implica a possibilidade
de substituir um pelo outro, equivalente ao primeiro num aspecto e diferente
em outro. De fato, seleção e substituição são as duas faces de uma mesma
operação. (JAKOBSON, 2007, p.35)
Na concepção de Jakobson, a combinação impede que o signo seja estático. Ele
não significa por si só, já que precisa de arranjos. Relacionando essa concepção às
ideias de Benjamin (2011, p.68) se o “homem transforma a linguagem em meio” e “com
isso, pelo menos em parte, em mero signo”, o nome, no âmbito da língua humana, deve
estar relacionado a outros, ser combinado e selecionado para significar. Esse arranjo de
signos estaria na esfera da “linguagem dos homens”, que “nunca é somente
comunicação do comunicável, mas é, ao mesmo tempo, símbolo do não-comunicável”
(BENJAMIN, 2011, p.72). Assim sendo, a linguagem, na condição de símbolo, seria
deteriorada pelo tempo e sua significação teria um “caráter momentâneo” que a alegoria
não tem. No entanto, na linguagem, em sua dimensão alegórica, existe “uma
progressão” e “uma sequência de momentos” (BENJAMIN, 1984, p.184) que deve ser
considerada. Dessa forma, se um tradutor – não considerando a característica sequencial
da linguagem do artista moderno – tentasse exprimir a mensagem do poeta, ele estaria
retirando da obra seu caráter progressivo e agregando-lhe uma característica estática que
deteriora a representação artística. Nesse sentido, no seguinte trecho, Benjamin explica
que o essencial de uma obra poética não é a comunicação, por isso a tradução também
não deve pretender comunicar:
O que "diz" uma obra poética? O que comunica? Muito pouco para quem a
compreende. O que lhe é essencial não é a comunicação, não é o enunciado.
E, no entanto, a tradução que pretendesse transmitir algo não poderia
transmitir nada que não fosse comunicação, portanto, algo de inessencial.
(BENJAMIN, 2011, p.102)
60
O “duelo” que existe no poema “Le confiteor de l’artiste” se relaciona à nãocomunicação da obra e da tradução, pois o artista moderno teria o papel de tradutor da
cidade grande, ou elemento imutável. Dessa forma, a tentativa do poeta de exprimir o
que vê se relaciona com a tentativa do tradutor de comunicar algo oculto da obra
original porque a comunicação direta é impossível, visto que os signos, como elementos
transitórios, apenas aludem à significação. Dessa maneira, as palavras devem se juntar
em arranjos, porque, segundo Benjamin, sozinhas não têm o caráter nomeador. Da
mesma forma que as palavras precisam ser arranjadas para significar, a obra de arte
combinada com suas traduções permite uma constante alusão ao elemento imutável. Por
isso, a preocupação com a comunicação não deve existir, porque a obra não comunica,
ela é alusiva. E seu caráter alusivo, quando combinado à tradução, é realçado.
A tentativa de comunicação, portanto, implica na propagação de algo inessencial
porque exprimir com exatidão algo infinito através de elementos finitos é impossível.
Essa impossibilidade se reflete na obra de Baudelaire através do “choque” que é
relacionado à impotência do tradutor ao fazer escolhas e ao se deparar com as diferenças
linguísticas e culturais. O poeta, enquanto tradutor da cidade grande, nunca pode
representá-la diretamente e a deforma com a mudança de códigos necessária à
representação do elemento imutável a partir de elementos transitórios. Nesse sentido, o
“choque”, no processo de criação, existe porque a tentativa de captar o “absoluto”
desembocaria na transformação da linguagem em “símbolo do não-comunicável”. A
impotência do poeta está em perceber-se um ser deteriorável que utiliza de elementos
também deterioráveis. Dessa forma, para que não permita que sua linguagem seja
degradada com o tempo, ele a emprega em seu caráter alegórico. No entanto, essa
característica da linguagem que usa o tempo e o espaço a seu favor existe através de sua
neutralidade, o que significa que, ao se valer do transitório para evocar o imutável, o
artista deve retirar a historicidade do presente, deve tentar encontrar no elemento
transitório, ou na modernidade, o que nunca pode ser deteriorado. Por isso, o tradutor,
ao tentar captar a mensagem do artista, muitas vezes deixa de lado a neutralidade de sua
obra – que é fundamental em seu caráter alegórico – e transforma a alusão de sua
significação em símbolo. Proporciona a ela um caráter estático.
Exemplo disso é a escolha tradutória de Louise Varèse, ao traduzir “moi” do
francês por “ego” no inglês. Baudelaire escreveu: “toutes ces choses pensent par moi,
ou je pense par elles (car dans la grandeur de la rêverie, le moi se perd vite!)” Vàrese
verteu para o inglês da seguinte maneira: “all these things think through me or I through
61
them (for in the grandeur of reverie the ego is quickly lost!)”. Mesmo sem aprofundar
em questões terminológicas próprias da psicologia, sabe-se que moi, depois do
surgimento da psicanálise, tem uma conotação que não existia na época de Baudelaire.
Porém, muitas vezes é inevitável, nos dias de hoje, pensar o moi a partir de conceitos
agregados por esses estudos, mesmo sem grandes conhecimentos sobre esse tema. São
conceitos que já estão enraizados nos tempos de hoje. Portanto, a opção de Louise
Varèse, ego, é referente direto às concepções da psicanálise e exclui ao mesmo tempo
todas as outras nuances de moi. Sua escolha por “ego” tirou o “moi” da esfera alegórica
e o colocou na do símbolo, excluindo todos os outros sentidos que o pronome poderia
ter. Ao fazer essa opção, Varèse retirou a neutralidade da palavra moi e usou de seu
significado fixo e temporal. Isso leva a uma exclusão direta de seus outros significados.
Ou seja, o uso de ego parece visar captar uma mensagem oculta da obra de arte e
significa apenas em um contexto histórico determinado.
No entanto, mesmo quando não há o objetivo de fazer um encaixe lexical em
determinado contexto, este já é intrínseco à palavra. Nesse sentido, Benjamin (2011,
p.109), em A tarefa do tradutor, explica que referentes iguais designam o mesmo
objeto, porém com “modos de visar diferentes” que se excluem mutuamente, porque
contêm intrinsecamente o contexto histórico. As línguas se excluem entre si porque
refletem culturas diferentes, e na condição finita do homem, seria impossível não haver
essa exclusão. Porém, a obra original, em conjunto com sua demanda de diversos
olhares transitórios, relacionados aqui às traduções, permite agregar contextos e
ameniza a exclusão potencial entre idiomas, aludindo com mais precisão ao que
Benjamin ( 2011, p.73) denomina “plenitude das línguas”, ideia que será discutida mais
adiante.
2.3 A tradução como “forma”
A tradução está relacionada à produção da obra de arte moderna. O artista, para
realizar seu trabalho, deve decodificar o elemento imutável, ou a cidade grande, e
transformá-lo em elementos transitórios, que são elementos existentes dentro de um
contexto e culturas demarcados, passíveis de serem degradados pelas transformações de
época. Pode-se, a partir daí, estabelecer um paralelismo com a tradução pelas ideias de
62
Roman Jakobson: “a tradução envolve duas mensagens equivalentes em códigos
equivalentes” (JAKOBSON, 2007, p.65). De acordo com isso, a primeira decodificação
pela qual passa o texto original é a que é feita pelo tradutor quando lê a mensagem em
um código e a transpõe para outro. A tradução, portanto, é feita levando em
consideração, dentre outros aspectos, contextos históricos determinados, culturas
diferentes, transformações de época. Por isso, as escolhas tradutórias estão
condicionadas pela cultura e pela época a que pertencem. No entanto, ocorre muitas
vezes a opção de um tradutor por uma palavra ou expressão mais próxima da língua do
autor, seja pela sonoridade ou pelo contexto. Para ilustrar essa discussão, é possível
mencionar o uso do verbo marcher, do poema “Chacun sa Chimère”. Para analisá-lo,
aqui serão utilizadas as quatro traduções que vêm sendo usadas nestas reflexões.31
Aurélio Buarque de Holanda optou pelo verbo marchar. De Bruchard, Sala e
Varèse se ativeram a correspondentes mais usuais às suas línguas: andavam, caminaban
e walked. O verbo marcher contempla todos esses conceitos, mas o verbo marchar, em
português, tem um significado usual diferente. A primeira definição do verbete
constante no dicionário Houaiss é o “de seguir em ritmo de marcha”. Em francês, de
acordo com os dois dicionários pesquisados, Littré e Le Petit Robert, a acepção primeira
é a de “deslocar-se com os pés”.
“Marcher” e “marchar” implicam a mesma ação, porém o verbo em português
remete a um significado que, à primeira vista, não é o usual no francês. Mas ao
comparar as versões, percebe-se que essa leitura também é possível na língua de
Baudelaire, assim como é possível em português, já que andar, de acordo com o
dicionário Houaiss, também inclui o significado de marchar na língua portuguesa.
Uma palavra, ou signo, significa algo na medida em que está combinado a
outros, formando assim um contexto. Portanto, o conjunto desses signos implica uma
representação ou imagem. No entanto, ao substituir algum deles, ou mesmo uma seleção
de signos por sinônimos, um tradutor obtém uma significação semelhante, e uma
exclusão, porque marchar é um sinônimo de marcher; contudo, na prática, exclui o
sinônimo que seria o mais próximo: andar.
31
1) Pequenos Poemas em prosa: tradução de Aurélio Buarque de Holanda, 1966, editada no Rio de
Janeiro pela Civilização Brasileira. 2) Pequenos Poemas em prosa: tradução de Dorothée de Bruchard,
1988, lançada em Florianópolis pela editora da UFSC em edição bilíngue. 3) Pequeños Poemas en prosa:
tradução de Mercedes Sala feita em Barcelona, 1995 pela editora Edicomunicación.4) Paris Spleen:
tradução de Louise Varèse, 1970, lançada em Nova York no ano de 1970 pela editora New Directions.
63
Essas opções remetem ao questionamento que permeia as escolhas tradutórias:
se o ato de traduzir implica sempre em operar uma exclusão quando se escolhe uma
determinada palavra, como decidir? Comellas responde a essa pergunta deixando a
questão em aberto, e explica que a opção tradutória se deve não apenas à “complexidade
do fenômeno traslatório, nem ao grande leque de variáveis (gênero textual, [...]
modalidade, contextos)”, mas que, para além disso, as opções de um tradutor “implicam
escolhas éticas importantes, tanto para a própria cultura como para a cultura que
tentamos traduzir.” (COMELLAS, p.154, 2011). Dessa forma, traduzir é fazer escolhas.
No entanto, se uma tradução for voltada “a quem entende o original” – porque caso
contrário, a tradução seria um original, (BENJAMIN, 2011, p. 102) –, é possível
entender que não existem exclusões e sim complementações de significados.
Assim, no exemplo do verbo marcher, ao invés de considerar a exclusão que há
entre os dois verbos – marchar e marcher – na verdade se observa que ocorre uma
complementação porque os dois códigos juntos aludem a um significado maior do que
seria marcher sozinho ou marchar apenas em português. Ou seja, o tradutor, tendo
optado por esse sinônimo, ajuda o leitor que conhece o original a fornecer à obra o seu
olhar, porque o leitor pode ser considerado como “tradutor de uma tradução” como o é o
espectador de Baudelaire. Dessa maneira, o seu olhar é uma “forma”, que, segundo
Benjamin, é o mesmo que a tradução: “para compreendê-la como tal [como forma] é
preciso retornar ao original” (BENJAMIN, 2011, p. 102).
Como já foi assinalado aqui, em O conceito de crítica de arte no romantismo
alemão que “o órgão da reflexão artística é a forma”, e que a “Ideia da arte” seria um
“medium-de-reflexão das formas”, o que implica que a “Ideia de arte” está contida na
obra, e que as críticas e análises que lhe são feitas, são um meio de evocá-la
permanentemente. Essa crítica é “forma” como também o é a tradução. Portanto,
retomando a relação existente entre tradução e representação moderna, o artista, sendo
um tradutor de algo que não é representável, somente aludido, e fornecendo a “forma”
transitória do elemento imutável – “o esboço perfeito” –, torna o olhar de seu espectador
também uma “forma” transitória necessária à primeira representação finita que só pode
continuar aludindo ao infinito pelos diversos olhares por vir. Estes são fundamentais ao
“esboço perfeito” porque – sendo relacionados às traduções – eles o “alçam a uma
atmosfera mais elevada”, como explica Benjamin, no trecho a seguir, de A tarefa do
tradutor, ao abordar a importância da tradução em relação ao original:
64
Na tradução o original cresce e se alça a uma atmosfera por assim dizer mais
elevada e mais pura da língua, onde, é claro, não poderá viver por muito
tempo, da mesma forma como está bem longe de alcançá-la em todas as
partes de sua figura, mas à qual, de modo extraordinariamente penetrante, ele
ao menos alude, indicando o âmbito predestinado e interdito da reconciliação
e da plenitude das línguas. (BENJAMIN, 2011, p. 110)
A crítica de arte e a tradução, enquanto “formas”, têm a mesma característica de
remeter a obra de arte ou o original a uma “atmosfera mais elevada”, ou à “plenitude
das línguas”, que os idiomas isolados não conseguiriam atingir. No entanto, o que não
poderia ser alcançado em cada um dos idiomas se “complementa” “na totalidade” de
suas “intenções”, que Benjamin denomina também “pura língua” (BENJAMIN, 2011,
p.109).
Nesse sentido, retomando o exemplo de marcher e marchar, na tradução de
Aurélio Buarque de Holanda, o tradutor, ao usar o verbo marchar como correspondente
do verbo marcher, exclui o significado de andar; porém, na comparação dos dois
idiomas, percebe-se que existe uma alusão mais forte à “pura língua” exatamente pela
complementação das duas palavras. Aurélio, portanto, atribui um sentido distinto da
palavra em francês, da mesma forma que também proporciona a sua língua um sentido
mais abrangente que aquele que existe na língua francesa, em outras palavras, a
comparação entre uma tradução e o original permite uma referência maior a um
potencial “absoluto” da palavra.
Nesse sentido, Walter Benjamin exemplifica a relação de exclusão e de
complementação existente entre duas línguas com os exemplos Brot e pain. O filósofo
afirma que “o visado é o mesmo; mas o modo de visar, ao contrário, não o é.”. Isso
acontece porque para um francês e para um alemão o significado dessas palavras não
são intercambiáveis, mas ambas significam, em termos absolutos, a “mesma coisa”:
Está implícito, pois, no modo de visar o fato de que ambas as palavras
significam algo diferente para um alemão e um francês, respectivamente,
que, para eles, elas não são intercambiáveis e que, aliás, em última instância,
almejem excluir-se mutuamente; porém, no que diz respeito ao objeto visado,
tomadas em termos absolutos, elas significam a mesma e idêntica coisa.
(BENJAMIN, 2008, p.72)
Brot e pain se referem a um mesmo objeto; no entanto, a percepção desse objeto
muda de acordo com o “grau de atenção à vida” do espectador e com o contexto em que
ele está inserido, seja ele o tradutor ou o leitor. Por isso, praticamente, “se excluem”,
visto que não há maneira de existir, ao que se refere a tradução, contextos iguais. Na
65
medida em que é impossível haver a mesma percepção e a mesma imagem, essas
diferenças de percepções são relevantes porque ambas, comparadas, permitem aludir de
forma mais evidente à “mesma coisa visada” que não pode ser alcançada por nenhuma
língua separadamente, mas ao serem dispostas juntas se “complementam em suas
intenções”, como afirma Benjamin:
Toda afinidade meta-histórica entre as línguas repousa sobre o fato de que,
em cada uma delas, tomada como um todo, uma só e a mesma coisa é visada;
algo que, no entanto, não pode ser alcançado por nenhuma delas,
isoladamente, mas somente na totalidade de suas intenções reciprocamente
complementares: na pura língua. Pois enquanto todos os elementos isolados –
as palavras, frases, nexos sintáticos – das línguas estrangeiras se excluem,
essas línguas se complementam em suas intenções mesmas. (BENJAMIN,
2011, p.109)
A noção de “plenitude das línguas” tem uma relação estreita com a ideia exposta
por Baudelaire de que o artista moderno produz uma obra que é uma tradução, e com a
concepção de que o leitor é também um tradutor. Se o artista moderno faz uma tentativa
de remeter ao elemento imutável, elemento este que pode ser relacionado à “pura
língua” de Benjamin, o espectador, junto com o artista, é importante na alusão ao que
nunca muda porque seria esse olhar do outro que permitiria que o texto original – ou a
obra de arte – não se degrade pelo tempo, usando das transformações de época para sua
própria transformação. Decorrente disso, a exclusão de acepções operada pela tradução
remete à linguagem como “símbolo do não-comunicável”, visto que, dessa forma, ela
explicita a condição da linguagem, que está fadada a ser corroída pelo tempo. Segundo
Benjamin (2011, p.71) a que “sobrenomeia” o que designa e que foi transformada em
mero signo porque já não mais nomeia os objetos: “o nome é aquilo através do qual
nada mais se comunica, e em que a própria língua se comunica a si mesma, e de modo
absoluto.” (BENJAMIN, 2011, p. 55).
Dessa forma, Benjamin situa o nome na ordem da “palavra divina”, porque sua
condição de “signo” surge a partir do “pecado original” com “a palavra humana”:
“aquela em que o nome não vivia mais intacto, aquela palavra que abandonou a língua
que nomeia” (BENJAMIN, 2011, p.67). Assim, ao se lançar ao pecado, o homem teria
abdicado dessa língua, e teria dado lugar a “uma paródia da palavra imediata, da palavra
criadora de Deus.” (BENJAMIN, 2011, p.67). Portanto, transformando a linguagem
“em mero signo”, a combinação e seleção deles são necessárias, porque só através delas
seria possível a tentativa de exprimir algo de que a palavra, por si só, não poderia dar
66
conta, já que não seria capaz de alcançar seu significado “absoluto”, devendo, assim,
fazer uso de outros signos para que possa transmitir alguma mensagem.
A frase “chose curieuse à noter”, no quinto parágrafo de “Chacun sa Chimère”,
é um exemplo do que está sendo tratado a respeito dos limites da palavra. Existe aí um
arranjo de signos que forma um significado; porém, na tradução de Aurélio Buarque de
Holanda houve uma redução e o tradutor optou pelo termo “curioso”. A seleção de
palavras feita por Baudelaire permite a seguinte leitura: na medida em que o verbo noter
leva o leitor a notar algo, sublinha que se deve perceber o que é curioso. Na tradução
para o português que aqui está sendo analisada, no entanto, parece apenas haver uma
rápida pausa para introduzir o que vem a seguir. Baudelaire utilizou um arranjo de
signos para expressar o que observava, que juntamente a “curioso” de Aurélio permite
perceber que um só “signo” não seria suficiente para remeter o leitor a enfatizar o que
via o poeta. No entanto, na comparação dos dois aparece “uma terceira presença ativa.
Revela a fisionomia da “linguagem pura” que precede e subjaz nas duas línguas.”
(STEINER, p.85, 2001). Porém, na prática, existe uma perda entre o original e texto
traduzido.
As perdas que acontecem na tradução se relacionam, também, com opções de
referentes iguais porque estes possuem necessariamente “modos de designar” diferentes.
E são esses “modos de designar” diferentes – visto que não há maneira possível de que
sejam iguais – que, para o artista moderno, são necessários à dinamicidade da obra de
arte. Ou seja, pelos diferentes contextos históricos do tradutor e do espectador, as
escolhas tradutórias criam outra imagem que complementa a do original, já que a
imagem criada pelo artista, por si só, é uma “deformação” da “imagem real”, e esta
permite, portanto, inúmeras outras imagens. Dessa forma, não existiria uma verdadeira a
ser expressa, e sim uma complementação de imagens. Assim sendo, se há na obra uma
possibilidade de múltiplas percepções geradas a partir dela, o tradutor que pretendesse
“transmitir algo”, pressuporia que o original também o faz, e que o texto traduzido está
sempre aquém do texto em sua língua de origem. No entanto, Benjamin explica que a
língua só pode exprimir algo em sua condição “divina”, ou seja, ela só é um “meio
[Medium] de comunicação” em sua mais “pura essência” (BENJAMIN, 2011, p. 53).
Dessa forma, o máximo que a linguagem humana consegue fazer é aludir à “verdade”,
pois o “absoluto” não pode ser exatamente representado por ela. Por isso, um original é
“incompleto” – porque já tem em si a mudança de códigos do infinito ao finito – e a
67
tradução também, do contrário, ela não acrescentaria nada a ele e apenas passaria uma
mensagem que significaria de modo efêmero, ou seja, seria um “símbolo”.
Dessa forma, para que exista essa complementação de maneira a fornecer uma
dinamicidade ao original, um tradutor deve optar pelos melhores arranjos de maneira a
completar o texto em sua língua materna, e deve “recusar-se a levantar o problema da
dualidade da tradução”. Inês Oseki-Dépre explica essa ideia em seu livro De Walter
Benjamin à nos jours... (2007):
De algum modo, recusando-se a levantar o problema da dualidade da
tradução, da escolha entre o fato de privilegiar a fonte ou a língua-alvo, abrese ao tradutor um novo espaço de liberdade e é esse o ponto que constitui o
objeto de nossa reflexão. (OSEKI-DÉPRÉ, 2007, p.17)
Daí se depreende que o tradutor deveria procurar, junto ao original, a “relação”
entre os dois textos e não as palavras em seu idioma baseado na mensagem que o autor
possa ter querido transmitir, porque isso implicaria em um distanciamento do texto
traduzido e do texto original, visto que “o papel da tradução, seu papel essencial, não é
o de perpetuar o original, mas, em um nível mais elevado, exprimir a relação mais
íntima das línguas.” (OSEKI-DÉPRÉ, 2007, p.20). A expressão da relação entre as
línguas abrange as perdas e ganhos inevitáveis da tradução porque trata-se da linguagem
humana, que aprisionada a um contexto histórico, é sempre de algum modo “símbolo do
não-comunicável”. Nesse sentido, George Steiner, em Depois de Babel (2001), afirma
que, de certa forma, traduzir seria “um absurdo”:
Cada ato genuíno de tradução é, ao menos de alguma forma, um absurdo,
uma tentativa de reconstruir a escala do tempo e de recopiar voluntariamente
o que foi um movimento do espírito. (STEINER, 2001, p.92)
Partindo desta reflexão de Steiner, a tradução realiza um corte temporal na
realidade e na evolução das línguas, pois as escolhas tradutórias se baseiam no tempo e
no espaço do tradutor. Assim, traduzir um poema de Baudelaire para o português do
século XXI é retirá-lo do século XIX e dispô-lo diretamente no século de hoje. Ou seja,
conectar diretamente uma época a outra, de um contexto a outro. No entanto,
reestabelecendo a relação com a obra de arte moderna, o artista que representa o
elemento imutável também promove um corte temporal e espacial; porém, se utiliza
dele como motor de dinamicidade e de inacabamento para que a obra não se degrade.
Dessa maneira, esse corte temporal pode ser visto, do ponto de vista da poesia moderna,
68
como uma complementação de contextos e de percepções porque a representação
artística moderna a demanda. Portanto, essa tentativa de utilizar do tempo e do espaço
como elementos favoráveis à obra de arte e à tradução, de acordo com Antoine Berman,
é uma “experiência” que acarreta uma “relação íntima entre as línguas”. Por isso, é
possível concluir que ao traduzir pretende-se fazer com que uma obra sobreviva ao
tempo, já que suas versões, produzidas em diferentes épocas, preservam as
transformações de cada língua, de modo que em sua acumulação progressiva, cada vez
mais aludiria à significação dessa obra a partir dos contextos trazidos por suas
traduções. Dessa forma, tem-se, na tradução, uma “multiplicidade rica e desconcertante”
de culturas e contextos, como indica Berman:
Não existe a tradução (como a postula a teoria da tradução), mas uma
multiplicidade rica e desconcertante, escapando a todas as tipologias, às
traduções, aos espaços das traduções, que recobrem o espaço que existe por
todo lado, em todos os lugares, para traduzir. Também a tradutologia não
ensina a tradução, mas desenvolve de maneira transmissível (conceitual) a
experiência que é a tradução em sua plural essência. (BERMAN, 1999, p. 23)
A tradução é uma “multiplicidade rica e desconcertante”, como o é a linguagem
humana, porque “a linguagem, implicando a necessária pluralidade das línguas implica
a ideia da tradução como um de seus componentes definitivos. A teoria da tradução é
então, antes de tudo, uma teoria da linguagem”, como o assinala Dessons (2014). 32
Dessa forma, fica mais clara a relação que se estabelece entre a obra de arte moderna e a
tradução, visto que a impotência da linguagem existe porque é impossível transformar
de maneira absoluta o elemento imutável em elemento transitório. Portanto, a tentativa
de Baudelaire de representar a cidade grande com essa mudança de códigos se relaciona
à prática da tradução. Por isso, a obra de arte moderna, assim como a tradução deve
considerar a clareza de sua representação, que pode ser comparada à clareza do texto na
língua de chegada, porque, se um texto traduzido, de certa forma, é um estudo da
linguagem e sendo a linguagem uma forma de expressão, como afirma Benjamin, ela
tem como objetivo prático tornar a “matéria” perceptível, ou seja, fazer com que o
“vazio” “abstrato” do “elemento imutável” possa ser aludido.
Dessa maneira, o artista moderno, ao produzir seu “esboço perfeito”, considera o
seu contexto e o contexto por vir; por isso sua obra é uma “abertura do tempo”, segundo
32
Traduire-écrire – Cultures, poétiques, anthropologie.
http://books.openedition.org/enseditions/4113#authors
69
a expressão de André Hirt. Ele não considera apenas a sua cultura ou a cultura de seu
possível espectador, não utiliza uma em detrimento da outra – ideia essa que remete
mais uma vez à modernidade baudelairiana, visto que a tentativa do poeta é captar na
modernidade o que nunca se degrada – porque usar uma em detrimento da outra, seria
partir do pressuposto já mencionado de que uma representação na ordem da linguagem
é igual em todas as línguas, ou pressupor que existe uma única mensagem a ser
transmitida pela obra.
À pressuposição de que existiria uma mensagem a ser transmitida pela
representação artística pode-se relacionar os diferentes tipos de tradução que são
explicados por Antoine Berman, dentre eles, a tradução “etnocêntrica e hipertextual”, e
a “platônica” (BERMAN, 1999, p.29).
A tradução “etnocêntrica” é aquela que “leva tudo a sua própria cultura, a suas
normas e valores, e considera o que está situado fora dela – o estrangeiro – como
negativo”33Assim, esse tipo de tradução só aceita a cultura do original como algo a “ser
adaptado e anexado” porque a língua de chegada pode dar conta de tudo o que pode ser
representado. Outro tipo de tradução que deixa de lado a língua de origem é a
“hipertextual”, que é “todo texto produzido pela imitação [...] adaptação, plágio, ou toda
outra espécie de transformação formal de um texto que já existe”34. Este tipo poderia ser
pensado como uma tradução que tem como princípio aperfeiçõar o texto original e
proporcionar a ele um entendimento fácil, o que seria, de certa forma, descartá-lo como
“continuum de formas”, implicando também em descartar a tradução como “forma” que
complementa o original.
Relacionados à obra de arte, estes dois tipos de tradução retiram dela seu caráter
moderno, pois privilegiar apenas o contexto do tradutor, ou do artista, e explicá-lo ao
espectador é representar apenas o que é transitório na época e rejeitar os diferentes tipos
de olhares por vir assim como as diferentes interpretações que possam acrescentar algo
a ela. A tradução “hipertextual” e a “etnocêntrica” são consideradas por Berman (1999,
p.33) parte da tradução “platônica”, porque elas partem do princípio que “existe um
‘sentido’”, ou seja, algo fundamental e comum entre os textos, e que é “considerado
como um ser em si, [...] como um certo ‘invariante’ que a tradução faz passar de uma
língua a outra deixando de lado sua casca sensível, seu ‘corpo’” (COMELLAS, 2011, p.
156). A visão platônica da tradução, comparada à representação artística, também retira
33
34
Ibid
Ibid
70
desta a condição moderna, já que a impotência da linguagem ou, segundo Benjamin, o
“choque” de Baudelaire, se dá porque o poeta se percebe finito e incapaz de representar
o imutável em sua condição absoluta e infinita.
Por isso, a obra de arte moderna utiliza de sua condição finita para nunca se
degradar, usando do olhar do espectador e de seu contexto, segundo Hirt, para se
movimentar através do tempo. Essa ideia se relaciona a uma das propostas de Berman:
“reconhecer e receber o Outro como Outro” (BERMAN, 1999, p. 74). Para que não se
perca a identidade nem da língua de chegada e nem da de origem, os tradutores
deveriam estrangeirizar a tradução. Essa reflexão retoma mais uma vez a “relação
íntima das línguas” e permite ao tradutor um “novo espaço de liberdade” que lhe
permite experimentar os dois idiomas com os quais está trabalhando e as inúmeras
possibilidades que ele apresenta. Diferentemente de traduzir “palavra por palavra”,
posto que as palavras sobrenomeiam e não podem significar sem o arranjo de signos.
Berman explica esse recurso através da tradução de provérbios em que o tradutor
se encontra “em uma encruzilhada: ou procurar seu suposto equivalente ou traduzir
literalmente, palavra por palavra” (BERMAN, p.14, 1999), assim, “traduzir um
provérbio literalmente não é um simples palavra por palavra, mas também traduzir seu
ritmo, sua duração (ou concisão), suas eventuais aliterações, etc.” (BERMAN, p.14,
1999). Dessa forma, procurar equivalentes seria se recusar a introduzir na língua
traduzida a “estrangeiridade” como explica o estudioso:
Procurar equivalentes, não é somente colocar um sentido invariável, um ideal
que se exprime nos diferentes provérbios de língua em língua. É se recusar a
introduzir na língua traduzida a “estrangeiridade” do provérbio original [...] é
se recusar a fazer da língua traduzida “o albergue do longínquo”, seria, para
nós, afrancesar: velha tradição. (BERMAN, 1999, p.15)
De acordo com a citação anterior, a estrangeirização do escrito em sua língua de
chegada respeita o contexto dos dois textos, porque traduzir implica refletir e
experimentar os dois idiomas, saber que são diferentes, que neles estão contidas culturas
e histórias diversas. Dessa forma, ainda que estejam em um contexto histórico diferente,
um tradutor não deve relevar a condição dinâmica da língua, mas respeitar o processo
linguístico dos idiomas de partida e de chegada, já que pensar a tradução também
consiste em utilizar o tempo e o espaço a seu favor e ultrapassá-los, para que assim, a
linguagem nunca se deteriore.
71
Como tradutor da grande e moderna cidade de Paris do século XIX, Baudelaire
procurou nela os elementos transitórios que permitissem sempre – através das traduções
de sua tradução, ou do olhar do espectador – aludir a sua condição infinita de elemento
imutável. Por isso, a representação da capital parisiense feita pelo poeta se relaciona
com as questões tradutórias de Benjamin e com o processo do traduzir, visto que para
que ocorresse essa mudança de códigos entre a condição infinita da metrópole e a
linguagem em sua característica transitória, o autor de Le Spleen de Paris, como
tradutor do que vê, através de sua condição de flâneur e de orientador do olhar do leitor,
ao observar no transitório o que permanece, compôs com sua linguagem alegórica a
representação moderna e alusiva do que não pode ser representado absolutamente,
demandando sempre traduções para que seu significado não se perca com o tempo.
72
OBSERVAÇÕES FINAIS
Esta dissertação pretendeu discutir a importância da tradução e do olhar do leitor
na representação de arte moderna. Para isso, foi feito um paralelo entre a obra de
Charles Baudelaire e alguns fundamentos da filosofia da linguagem de Walter
Benjamin. A título de exemplo, foram utilizados três dentre os poemas em prosa do
livro Le Spleen de Paris – petits poèmes en prose sendo eles: “Chacun sa Chimère”,
“Un hemisphère dans une chevelure” e “Le confiteor de l’artiste”.
Dessa forma, este trabalho foi dividido de maneira a abordar no primeiro
capítulo a contextualização histórica da Paris do século XIX vivida pelo poeta para o
entendimento da cidade moderna, pois a partir daí, desenvolve-se o conceito de
modernidade através da concepção do autor de Le Spleen de Paris. A modernidade de
Baudelaire tem como fundamento a junção dos elementos transitórios e do imutável, e
se vale da não-renúncia ao passado, de sua agregação ao presente e da relevância do que
não muda no que é passageiro em todas as épocas. No entanto, só é possível perceber a
existência desse elemento imutável, posto que o homem é mortal e finito, através de
alusões e de percepções.
Estas alusões e percepções, relacionadas aqui aos elementos transitórios
precisam ser dinâmicas, o que significa que não podem ser deterioradas pelo tempo,
devem ser alegóricas. Benjamin explica a alegoria através da caveira, porque a partir
dela pode ser criado qualquer rosto físico. Mas para isso, ela precisa do olhar do outro
para significar. Dessa forma, pode-se entender alegoria como uma representação que
utiliza do olhar do espectador para evocar sua significação. No entanto, um objeto
alegórico não significa porque o verdadeiro significado, de acordo com Benjamin, só
existiria em uma esfera que a humana não pode atingir. No âmbito humano, portanto, a
alegoria é visar a significação e estar sempre aludindo a ela.
Essa ideia está relacionada à da obra de arte incompleta que Benjamin explica
em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão e que foi relacionada aqui ao
que Baudelaire denomina de “ébauche parfaite”, a representação artística moderna.
Uma obra de arte incompleta é aquela que precisa de outro olhar, estar aberta às
interpretações possíveis. Por isso, o “esboço perfeito” está nessa esfera, porque
73
demanda necessariamente a percepção do leitor, elemento transitório que dinamiza a
obra.
Dessa forma, percebe-se que a questão da subjetividade é de extrema
importância para a poesia moderna. Esse trabalho, portanto, abordou esse aspecto da
lírica baudelairiana a partir das seguintes expressões do filósofo francês Henri Bergson:
“percepções da matéria” e “grau da nossa atenção à vida”.
No entanto, a importância do espectador na obra de arte moderna se dá a partir
de sua condição de sujeito histórico. Por isso, entende-se que as expressões de Bergson
e ideia de Benjamin de que a arte pressupõe do homem, apenas sua essência corporal e
espiritual são afins.
Assim sendo, a obra incompleta demanda o olhar do outro para que não se
deteriore e que continue em movimento constante, dessa forma, o tempo é um fator
fundamental na discussão da representação artística. Na obra de Baudelaire, ele está
ligado ao tédio e à melancolia que por sua vez, está relacionado à velocidade do mundo
moderno. A cidade industrial, os trabalhadores que vivem na miséria paradoxalmente ao
crescimento econômico, as lojas com suas vitrines e o incentivo ao consumo
apresentam-se ao homem moderno como inúmeras possibilidades de realizações, mas
ao mesmo tempo como fatores entediantes e melancólicos. Seja porque não se pode ter
tudo, porque a sociedade demanda mais do que se pode ter ou por não poder ter nada.
Esse conjunto de fatores se relaciona ao que André Hirt, crítico e filósofo francês,
denomina “embriaguez moderna da subjetividade”.
Entende-se essa ideia como a perda de si mesmo do homem moderno nessa
cidade grande que tudo tem a oferecer para uma pequena parte da população. Essa
“embriaguez” de Hirt, que é o tédio e a melancolia, é o que Baudelaire chama de spleen.
Este tem um caráter fundamental em sua obra. Esse tédio provindo da duração e da
deformação que existe pela passagem dos dias, só pode ser vencido pela ausência do
tempo, ou o oposto do spleen, o idéal. Esses dois pólos, spleen e idéal, compõem o que
a crítica Barbara Johnson denomina “dualidade inquietante” que permeia toda a obra do
poeta.
É importante observar como apesar desses polos serem opostos e paradoxais, são
eles, de acordo com Johnson, o que compõem a totalidade de sua obra. Isso implica
também que ao fazer referência a um, o poeta evoca o outro, muitas vezes utilizando
elementos que estão no limiar dos dois. A morte é um exemplo disso, e pode ser
interpretada como a ausência do tempo, visto que só se pode morrer estando vivo,
74
estando sujeito à ação da passagem dos dias. Baudelaire aborda a morte como salvação
do tédio e da vida moderna. Pode-se entendê-la também como a passagem, ou elo, do
spleen para o idéal e como a única saída e a única forma de transformar o que é
passageiro em permanente.
O presente trabalho abordou desde o início os elementos transitórios e o
imutável, que foram relacionados ao spleen como sentimento provindo da modernidade
ou como transitório que faz parte do imutável; e ao idéal como o que já está nessa esfera
atemporal do que permanece. A contraposição dos dois e seu caráter complementar são
trabalhados na leitura do poema “Un hémisphère dans une chevelure” pelo qual se
analisa a importância do spleen ao evocar o idéal. Essa discussão evoca a alusão do
elemento imutável através do transitório, porque só se pode ter noção do infinito através
do finito. O poeta utiliza um vocabulário que remete ao mundano e ao palpável fazendo
uma referência aos sonhos e à lembrança, que de acordo com Benjamin é característica
do idéal de Baudelaire, talvez porque aí não exista mais a ação do tempo.
O mesmo ocorre em “Le confiteor de l’artiste”. No entanto, ao contrário do que
acontece em “Un hémisphère dans une chevelure”, o artista se percebe finito através do
infinito, e é nessa percepção que acontece o que Benjamin denomina “experiência do
choque”, onde o poeta se entende como ser mortal que se degrada e que está fadado a
ser sempre vencido pelo que permanece através do tempo, que em “Le confiteor de
l’artiste” seria a Natureza.
Benjamin relaciona essa experiência de choque e de impotência que é vista na
obra de Baudelaire ao processo de criação. Pois nesse processo, de acordo com o
poema, existe uma certa gradação que começa com o êxtase de se sentir parte da
Natureza, seguido do fracasso de se ver finito e pequeno em relação a ela. Este último é
relacionado aqui com o fracasso da expressão da linguagem, que não pode transmitir as
sensações e os sentimentos exatamente como eles são e que está fadada a se deteriorar.
De acordo com Benjamin, ela não contém mais a verdade, é apenas uma paródia da
linguagem verdadeira, divina, que o homem, já não consegue mais atingir.
Com isso, no segundo capítulo deste trabalho, após a análise dos fundamentos da
poesia de Charles Baudelaire, estabelece-se uma relação entre o artista moderno como
tradutor e a filosofia da linguagem de Walter Benjamin. Entende-se o poeta como
tradutor da cidade grande, já que para expressar o que está vendo e sentindo, deve
mudar o código. Isso significa que ao escrever ou representar algo, ele produz uma
mudança de códigos entre o imutável e o transitório, que dispostos pelo artista moderno
75
são transitórios, e por isso sua representação é realizada pela condição alegórica da
linguagem, o que implica que essa representação que seria degradada pelo tempo e pelo
espaço, usa deles para aludir sempre à significação. Para isso, faz-se necessário o olhar
do espectador, porque dessa forma, o artista proporciona à obra o caráter dinâmico
composto pela demanda de alegorias e percepções.
A mudança de códigos que deve ser feita pelo artista ao expressar através da arte
a cidade grande pode ser relacionada a alguns fundamentos do texto A tarefa do
tradutor – sendo eles, principalmente, a relação entre tradução e original e o
questionamento sobre o que comunica o escrito em sua língua de origem e de chegada.
Esses fundamentos foram abordados neste trabalho porque são importantes para a
discussão da insuficiência da linguagem e da experiência do choque que, segundo
Benjamin, perpassa o artista moderno.
O filósofo explica que uma tradução deve ser voltada a quem entende a língua
de partida, porque caso contrário, ela já não estaria em sua condição de tradução, mas de
original. No entanto, ao ler um texto traduzido de uma língua conhecida pelo leitor e
comparando-a com o original pode-se perceber que existe uma complementação de
significados. Esse processo é relacionado aqui ao que ocorre no espectador da obra de
arte moderna, que para Baudelaire é um “tradutor de uma tradução”. Dessa forma, a
complementação feita pelo espectador, pelo leitor ou pelo tradutor à obra de arte ou ao
original promove a este uma alusão maior à significação, fazendo com que a obra de
arte seja dinâmica.
Assim, a tradução se relaciona à experiência do choque do artista moderno, visto
que ambos devem fazer escolhas, reflexões, e devem experimentar no momento da
mudança de códigos. Portanto, estando também ligada à ideia de Antoine Berman, de
que não se deveria trazer o original à língua de chegada e aprisioná-lo ali – ou seja, não
se deveria aportuguesar os poemas de Baudelaire, mas deixar com que o francês possa
ampliar o português – a representação artística moderna, como uma tradução, não
deveria tentar captar alguma mensagem, porque os elementos transitórios apenas
aludem a verdade que não pode ser atingida diretamente. Portanto, não existiria o que
captar, mas sim o que agregar.
Por isso, um tradutor que pretende transmitir a mensagem, da mesma forma que
um artista que tenta representar com exatidão o elemento imutável, transforma a
linguagem em algo estático, deteriorante, que não pode fazer uma alusão a uma
significação absoluta porque, ao permitir que o tempo deteriore a obra, ela passaria a ser
76
símbolo e sairia da esfera da obra de arte incompleta, não precisando de outros olhares
para aludir ao significado.
Dessa forma, a insuficiência da linguagem existe porque o artista percebe que o
tempo pode deteriorar sua expressão, visto que ele é o fator que permite uma
degradação de qualquer comunicação. E a cidade grande, seu ritmo e sua expressão
moderna, culminam nessa impotência porque na modernidade, a partir do conceito de
Baudelaire, a duração parece transformar o mundo em ruína. No entanto, é essa mesma
ruína que é usada a favor do poeta porque, como explica Benjamin, é a partir dela que
se pode ter a visão de toda a história da humanidade. Assim, o artista moderno, usa do
transitório como elemento chave de significação e do tempo a favor de sua arte para que
ela nunca seja degradada por ele.
Por abordarem a importância complementar do olhar alheio na obra de arte,
relacionou-se no presente trabalho as visões de Benjamin e de Baudelaire procurando
discutir que não existe uma mensagem oculta na representação artística, mas diferentes
percepções necessárias e demandadas por ela e que compõem uma alusão dinâmica à
significação. Dessa forma, tempo e linguagem são abordados como fatores alusivos e
essenciais para o movimento da obra de arte, e não mais como agentes degradados e
degradantes que limitam a representação.
77
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80
ANEXOS
Poemas:
Chacun sa Chimère
Sous un grand ciel gris, dans une grande plaine poudreuse, sans chemins, sans
gazon, sans un chardon, sans une ortie, je rencontrai plusieurs hommes qui marchaient
courbés.
Chacun d’eux portait sur son dos une énorme Chimère, aussi lourde qu’un sac de
farine ou de charbon, ou le fourniment d’un fantassin romain.
Mais la monstrueuse bête n’était pas un poids inerte ; au contraire, elle
enveloppait et opprimait l’homme de ses muscles élastiques et puissants ; elle s’agrafait
avec ses deux vastes griffes à la poitrine de sa monture ; et sa tête fabuleuse surmontait
le front de l’homme, comme un de ces casques horribles par lesquels les anciens
guerriers espéraient ajouter à la terreur de l’ennemi.
Je questionnai l’un de ces hommes, et je lui demandai où ils allaient ainsi. Il me
répondit qu’il n’en savait rien, ni lui, ni les autres ; mais qu’évidemment ils allaient
quelque part, puisqu’ils étaient poussés par un invincible besoin de marcher.
Chose curieuse à noter : aucun de ces voyageurs n’avait l’air irrité contre la bête
féroce suspendue à son cou et collée à son dos ; on eût dit qu’il la considérait comme
faisant partie de lui-même. Tous ces visages fatigués et sérieux ne témoignaient d’aucun
désespoir ; sous la coupole spleenétique du ciel, les pieds plongés dans la poussière d’un
sol aussi désolé que ce ciel, ils cheminaient avec la physionomie résignée de ceux qui
sont condamnés à espérer toujours.
Et le cortège passa à côté de moi et s’enfonça dans l’atmosphère de l’horizon, à
l’endroit où la surface arrondie de la planète se dérobe à la curiosité du regard humain.
Et pendant quelques instants je m’obstinai à vouloir comprendre ce mystère ;
mais bientôt l’irrésistible Indifférence s’abattit sur moi, et j’en fus plus lourdement
accablé qu’ils ne l’étaient eux-mêmes par leurs écrasantes Chimères.
Le confiteor de l’artiste
Que les fins de journées d’automne sont pénétrantes! Ah! pénétrantes jusqu’à la
douleur! car il est de certaines sensations délicieuses dont le vague n’exclut pas
l’intensité ; et il n’est pas de pointe plus acérée que celle de l’Infini.
Grand délice que celui de noyer son regard dans l’immensité du ciel et de la
mer! Solitude, silence, incomparable chasteté de l’azur ! une petite voile frissonnante à
l’horizon, et qui par sa petitesse et son isolement imite mon irrémédiable existence,
mélodie monotone de la houle, toutes ces choses pensent par moi, ou je pense par elles
(car dans la grandeur de la rêverie, le moi se perd vite!) ; elles pensent, dis-je, mais
musicalement et pittoresquement, sans arguties, sans syllogismes, sans déductions.
Toutefois, ces pensées, qu’elles sortent de moi ou s’élancent des choses,
deviennent bientôt trop intenses. L’énergie dans la volupté crée un malaise et une
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souffrance positive. Mes nerfs trop tendus ne donnent plus que des vibrations criardes et
douloureuses.
Et maintenant la profondeur du ciel me consterne ; sa limpidité m’exaspère.
L’insensibilité de la mer, l’immuabilité du spectacle me révoltent… Ah! faut-il
éternellement souffrir, ou fuir éternellement le beau? Nature, enchanteresse sans pitié,
rivale toujours victorieuse, laisse-moi! Cesse de tenter mes désirs et mon orgueil!
L’étude du beau est un duel où l’artiste crie de frayeur avant d’être vaincu.
Un hémisphère dans une chevelure
Laisse-moi respirer longtemps, longtemps, l’odeur de tes cheveux, y plonger tout
mon visage, comme un homme altéré dans l’eau d’une source, et les agiter avec ma
main comme un mouchoir odorant, pour secouer des souvenirs dans l’air.
Si tu pouvais savoir tout ce que je vois ! tout ce que je sens ! tout ce que
j’entends dans tes cheveux ! Mon âme voyage sur le parfum comme l’âme des autres
hommes sur la musique.
Tes cheveux contiennent tout un rêve, plein de voilures et de mâtures ; ils
contiennent de grandes mers dont les moussons me portent vers de charmants climats,
où l’espace est plus bleu et plus profond, où l’atmosphère est parfumée par les fruits,
par les feuilles et par la peau humaine.
Dans l’océan de ta chevelure, j’entrevois un port fourmillant de chants
mélancoliques, d’hommes vigoureux de toutes nations et de navires de toutes formes
découpant leurs architectures fines et compliquées sur un ciel immense où se prélasse
l’éternelle chaleur.
Dans les caresses de ta chevelure, je retrouve les langueurs des longues heures
passées sur un divan, dans la chambre d’un beau navire, bercées par le roulis
imperceptible du port, entre les pots de fleurs et les gargoulettes rafraîchissantes.
Dans l’ardent foyer de ta chevelure, je respire l’odeur du tabac mêlé à l’opium et
au sucre ; dans la nuit de ta chevelure, je vois resplendir l’infini de l’azur tropical ; sur
les rivages duvetés de ta chevelure je m’enivre des odeurs combinées du goudron, du
musc et de l’huile de coco.
Laisse-moi mordre longtemps tes tresses lourdes et noires. Quand je mordille tes
cheveux élastiques et rebelles, il me semble que je mange des souvenirs.
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Traduções:
ARTIST’S CONFITEOR – Tradução de Louise Varèse. Nova York: New Directions,
1970. Edição com o título de Paris Spleen.
HOW POIGNANT the late afternoons of autumn! Ah! poignant to the verge of
pain, for there are certain delicious sensations which are no less intense for being vague;
and there is no sharper point than that of Infinity.
What bliss to plunge the eyes into the immensity of sky and sea! Solitude,
silence, incomparable chastity of the blue! a tiny sail shivering on the horizon, imitating
by its littleness and loneliness my irremediable existence, monotonous melody of the
waves, all these things think through me or I through them (for in the grandeur of
reverie the ego is quickly lost!); I say they think, but musically and picturesquely,
without quibbling, without syllogisms, without deductions.
These thoughts, whether they come from me or spring from things, soon, at all
events, grow too intense. Energy in voluptuousness creates uneasiness and actual pain.
My nerves are strung to such a pitch that they can no longer give out anything but shrill
and painful vibrations.
And now the profound depth of the sky dismays me; its purity irritates me. The
insensibility of the sea, the immutability of the whole spectacle revolt me… Ah! must
one eternally suffer, or else eternally flee beauty? Nature, pitiless sorceress, ever
victorious rival, do let me be! Stop tempting my desires and my pride! The study of the
beauty is a duel in which the artist shrieks with terror before being overcome.
UM HEMISFÉRIO NUMA CABELEIRA – Tradução de Dorothée de Bruchard.
Florianópolis: editora da UFSC, 1988. Edição bilíngue com o título de Pequenos
Poemas em prosa
Me deixe respirar, por longo, longo tempo, o cheiro dos seus cabelos, neles
mergulhar todo o meu rosto , como um homem sedento na água de uma fonte, e agitálos com minha mão como a um lenço cheiroso, para sacudir lembranças no ar.
Se você pudesse saber tudo o que vejo! Tudo o que sinto! Tudo o que ouço em
seus cabelos! Minha alma viaja por sobre o perfume como a alma dos outros homens
por sobre a música.
Seus cabelos contêm todo um sonho, repleto de velas e mastros; contêm grandes
mares cujas monções me levam a encantadoras regiões, onde o espaço é mais azul e
mais profundo, onde a atmosfera é perfumada pelas frutas, pelas folhas, e pela pele
humana.
No oceano de sua cabeleira, entrevejo um porto fervilhando de cantos
melancólicos, homens vigorosos de todas as nações e navios de todas as formas
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recortando suas arquiteturas finas e complicadas num céu imenso onde se estira o eterno
calor.
Nas carícias de sua cabeleira, reencontro os langores das longas horas passadas
num sofá, no quarto de um belo navio, embaladas pela arfagem imperceptível do porto,
entre os vasos de flores e as moringas refrescantes.
Na ardente lareira de sua cabeleira, respiro o cheiro do fumo, mesclado de ópio e
açúcar; na noite de sua cabeleira, vejo refulgir o infinito do céu tropical, nas margens de
penugem da sua cabeleira, me embriago com os cheiros combinados do alcatrão, do
almíscar e do óleo de coco.
Me deixe morder, por longo tempo, suas tranças pesadas e negras. Quando
mordisco seus cabelos elásticos e rebeldes, me parece estar comendo lembranças.
CADA UM COM SUA QUIMERA - Tradução de Aurélio Buarque de Holanda. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. Edição com o título de Pequenos poemas em
prosa.
Sob um grande céu cinza, numa grande planície poeirenta, sem caminhos, sem
relva, sem um cardo, sem uma urtiga, encontrei vários homens que marchavam
curvados.
Trazia cada um deles às costas uma enorme Quimera, tão pesada como um saco
de farinha ou de carvão, ou como o equipamento de um infante romano.
Porém o monstruoso animal não era um pêso inerte; ao contrário, envolvia o
homem, e oprimia-o, com seus músculos elásticos e possantes; aferrava-se-lhe ao peito
com suas duas garras imensas; e sua cabeça fabulosa sobrelevava a cabeça do homem,
tal um dêsses horríveis capacetes com que os antigos guerreiros procuravam agravar o
terror do inimigo.
Interroguei um daqueles viajantes, perguntei-lhes aonde êles iam assim.
Respondeu-me que não sabia de nada, nem êle, nem os outros; mas que, evidentemente,
iam a alguma parte, pois eram impelidos por uma necessidade invencível de caminhar.
Curioso: nenhum dêles se mostrava irritado contra o animal feroz que trazia
pendente do pescoço e agarrado às costas; dir-se-ia considerá-lo parte integrante de si
mesmo. Nenhuma daquelas fisionomias extenuadas e graves denotava o mínimo
desespêro; sob a tediosa cúpula do céu, os pés mergulhados na poeira de um solo tão
desolado como o céu, êles marchavam com o ar resignado daqueles que são condenados
a esperar eternamente.
E o cortejo passou ao meu lado e afundou-se nos longes do horizonte, no ponto
em que a redonda superfície do planêta se furta à curiosidade do olhar humano.
E durante alguns momentos obstinei-me em querer compreender êsse mistério;
mas logo a irresistível Indiferença caiu sôbre mim, e eu fiquei mais rudemente oprimido
do que o estavam aquêles homens pelas suas esmagadoras Quimeras.
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CADA QUAL COM SUA QUIMERA – Tradução de Dorothée de Bruchard.
Florianópolis: editora da UFSC, 1988. Edição bilíngue com o título de Pequenos
Poemas em prosa
Sob um grande céu cinzento, uma grande planície poeirenta, sem caminhos, sem
gramados, sem uma urtiga, sem um cardo, encontrei a vários homens que andavam
curvados.
Cada um deles carregava nas costas uma enorme Quimera, tão pesada quanto um
saco de farinha ou de carvão, ou os apetrechos de um soldado da infantaria romana.
Mas a monstruosa besta não era um peso inerte; pelo contrário, envolvia e
oprimia o homem em seus músculos elásticos e possantes; grampeava-se com suas duas
vastas garras no peito de sua montaria; e sua cabeça fabulosa sobressaía acima da fronte
do homem, como um daqueles capacetes horríveis com os quais os antigos guerreiros
esperavam acirrar o terror do inimigo.
Interroguei um destes homens, e perguntei-lhe onde iam assim. Respondeu-me
que de nada sabia, nem ele, nem os outros, mas que evidentemente iam a algum lugar, já
que eram levados por uma invencível necessidade de andar.
Coisa curiosa de se notar: nenhum dos viajantes parecia irritado com sua besta
feroz pendurada em seu pescoço e colada em suas costas, dir-se-ia que a considerava
como fazendo parte de si mesmo. Todos estes rostos cansados e sérios não
demonstravam nenhum desespero; sob a cúpula spleenética do céu, com os pés
mergulhados na poeira de um solo tão desolado quanto este céu, entre eles caminhavam
com a fisionomia resignada daqueles que estão condenados a ter sempre esperança.
E o cortejo passou ao meu lado e se afundou na atmosfera do horizonte, no lugar
em que a superfície arredondada do planeta se esquiva à curiosidade do olhar humano.
E durante alguns instantes, teimei em querer compreende este mistério; mas em
seguida a irresistível Indiferença se abateu sobre mim, e me deixou mais duramente
oprimido do que eles próprios por suas esmagadoras Quimeras.
CADA CUAL SU QUIMERA – Tradução de Mercedes Sala. Barcelona:
Edicomunicación, 1995. Edição com o título de Pequeños Poemas en prosa
Bajo un amplio cielo grisáceo, en una amplia llanura polvorienta, sin caminos, ni
hierba, sin una ortiga, me crucé con muchos hombres que caminaban encorvados.
Llevaba cada uno, a sus espaldas, una quimera enorme tan pesada como un saco
de harina o de carbón, o la mochila de un soldado romano de infantería.
Pero el monstruoso animal no era un peso muerto; envolvía y oprimía, por el
contrario, al hombre, con sus músculos elásticos y poderosos; agarrábase con sus dos
enormes garras al pecho su montura, y su fabulosa cabeza dominaba la frente del
hombre, como uno de aquellos cascos horribles con que los guerreros antiguos
intentaban acrecentar el terror de sus enemigos.
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Pregunté a uno de aquellos hombres hacia dónde se dirigían de aquella manera.
Me respondió que ni él ni los demás lo sabían; pero sin duda, iban a algún lugar, ya que
les impulsaba una necesidad irresistible de andar.
Reflexión curiosa: ninguno de aquellos viajeros parecía molesto por el violento
animal colgado de su cuello y pegado a su espalda; hubiérase dicho que lo consideraban
como parte de sí mismos. Tantos rostros agotados y serios, ninguna irritación
mostraban; bajo la capa melancólica del cielo, hundidos los pies en el polvo de un suelo
tan desolado como el cielo mismo, caminaban con la faz resignada de los condenados a
esperar.
Y el cortejo pasó por mi lado y se perdió en la atmósfera del horizonte, por el
lugar donde la superficie redondeada del planeta se sustrae a la curiosidad del mirar
humano.
Me resistí unos momentos en querer penetrar el misterio; pero pronto la
irresistible indiferencia se dejó caer sobre mí, y me quedé más hondamente agobiado
que los otros con sus molestas quimeras.
TO EVERY MAN HIS CHIMERA – Tradução de Louise Varèse. Nova York: New
Directions, 1970. Edição com o título de Paris Spleen.
Under a vast gray sky, on a vast and dusty plain without paths, without grass,
without a nettle or a thistle, I came upon several men bent double as they walked.
Each one carried on his back an enormous Chimera as heavy as a sack of flour,
as a sack of coal, as the accoutrement of a Roman foot-soldier.
But the monstrous beast was no inanimate weight; on the contrary, it hugged and
bore down heavily on the man with his elastic and powerful muscles; it clutched at the
breast of its mount with enormous claws; and its fabulous head overhung the man’s
forehead like those horrible helmets with which ancient warriors tried to strike terror
into their enemies.
I questioned one of these men and asked him where they were going like that.
He replied that he did not know and that none of them knew; but that obviously they
must be going somewhere since they were impelled by an irresistible urge to go on.
A curious thing to note: not one of these travelers seemed to resent the ferocious
beast hanging around his neck and glued to his back; apparently they considered it a
part of themselves. All those worn and serious faces showed not the least sign of
despair; under the depressing dome of the sky, with their feet deep in the dust of the
earth as desolate as the sky, they went along with the resigned look of men who are
condemned to hope forever.
And the procession passed by me and disappeared in the haze of the horizon just
where the rounded surface of the planet prevents man’s gaze from following.
And for a few moments I persisted in trying to understand the mystery; but soon
irresistible Indifference descended upon me, and I was more cruelly oppressed by its
weight than those men had been by their crushing Chimeras.