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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.284 IMIGRAÇÃO ÁRABE NO PANTANAL Roney Salina de Souza Professor, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS Este trabalho aborda a imigração de povos sírios, libanesas e palestinos para a região do Pantanal dos anos 1850 até 1980. O primeiro momento é o das Grandes Migrações de diversos povos, notadamente europeus em direção à América, momento em que muitos árabes da região sírio-libanesa também emigraram em direção ao Brasil, Estados Unidos e Argentina, o segundo é após a Segunda Guerra mundial (1939-1945), quando se inicia o conflito entre judeus e palestinos na região da palestina fazendo com que muitos destes tomem como rumo o Brasil. Muitos destes árabes aprofundam sua rota em relação às regiões litorâneas paulistas e bonaerenses, já que a maior parte dos imigrantes se estabeleceu em São Paulo, no Brasil, e Buenos Aires, Argentina, no caso da imigração para a América do Sul, e vieram para a região do Pantanal mato-grossense cuja concentração maior foi na cidade de Corumbá, margem esquerda do rio Paraguai. A principal atividade econômica desenvolvida foi o comércio, iniciando como mascate, depois varejista e atacadista. Suas ações estenderam-se por toda a região pantaneira próxima a Corumbá: aos moradores ribeirinhos, ao longo do mencionado rio e seus afluentes, bem como moradores das fazendas de gado. Sua ação foi absolutamente importante não apenas no que concerne ao abastecimento, mas com relação às interferências culturais e espaciais. Este estudo está em andamento, os dados apresentados neste artigo são baseados na bibliografia disponível, bem como nos levantamentos nos arquivos de Corumbá (Diocese de Corumbá, Instituto Luiz de Albuquerque, Junta Comercial de Corumbá), Campo Grande (Junta Comercial do Estado de Mato Grosso do Sul) e entrevistas. Fiz, porém a opção de uma redação mais holística levando em consideração as conclusões com base metodológica nas fontes, portanto não centrarei em detalhes minuciosos, por entender que o leitor poderá ter uma compreensão melhor a partir dos resultados gerais e também pelo fato de a pesquisa ainda estar em conclusão. Teoricamente sigo uma bibliografia da história cultural, a qual discute os conceitos de identidades, migrações e hibridação, bem como da história ambiental, já que este objeto leva 1090 em consideração que os elementos naturais da região pantaneira também são agentes no processo histórico da imigração árabe deste espaço. Nas décadas de 1970 e 1980 quando a questão da ecologia começou a fazer parte das agendas mundiais, a História também começou a considerar objetos acerca da relação do ser humano com o meio ambiente. A história ambiental que começou a esboçar-se na virada para o século XXI possui uma epistemologia que considera principalmente esta relação sócioambiental e não apenas uma descrição dos fenômenos naturais, a natureza é vista como uma extensão das intenções humanas. Ela não se ocupa da mesma metodologia da biologia ou a geologia, mas considera os fenômenos humanos e sua relação com a natureza como portadores de temporalidade, assim Gilmar Arruda afirma: La historia ambiental toma en cuenta estas cuestiones, pero su eje principal no es una historia natural o geológica, ya que los hechos que examina están insertos en el tiempo histórico. La respuesta es entonces: el campo de investigación trata la forma en que las sociedades humanas se han relacionado con los ríos (ARRUDA, 2006, p. 20). E, de maneira geral, não apenas com os rios, mas com as florestas, animais, espaços, montanhas, morros e outros elementos, seus objetos correspondem ao emprego e o espaço do mundo natural na vida dos seres humanos. A análise da historia ambiental verifica também o caráter de apropriação dessa natureza, e, porque ela precisou ser levada em conta na formação de elementos estruturais das sociedades com seus espaços de vivência. A partir da experiência humana em determinado local os agentes criam representações, em geral paisagens do que a natureza os está dizendo: este rio é bravo, é difícil vencer a montanha, as árvores são gigantes, esta selva é um labirinto!; a natureza não é apenas algo a ser dominado, mas passa a ser um membro atuante. Existem, porém alguns questionamentos sobre a história ambiental área acerca das suas expectativas de pesquisa. Por exemplo, o trato romântico da natureza como paraíso, um espaço puro e indiferente, é um reducionismo. O mesmo Arruda propõe o trabalho interdisciplinar como alternativa a esse problema, pois buscas em conceitos e metodologias de outras ciências que tratam da natureza podem enriquecer o trabalho do historiador (ARRUDA, 2006, p. 22). Não seria muita ousadia dizer que no caso do Pantanal há dois nascimentos para os animais, dois brotos para os vegetais e duas nascentes para os rios. Não falo em morte e renascimento. Mas de nascer, e ainda, em vida nascer de novo, mas este renascimento dos 1091 fenômenos naturais é um renascimento, interpretado pelo ser humano na sua vivência com o local. Os rios, animais e plantas antes da chegada humana viviam, tinham sua própria estrutura e quando da interferência humana os seres naturais foram reinterpretados. Outra crítica é que em muitos casos, certos aspectos do espaço são tratados como limites naturais. Esta ocorrência é comum com os rios, entre dois Estados. Em geral o rio é visto como um limite natural, quando na verdade é uma conveniência entre acordos de grupos políticos. Febvre insiste que as fronteiras não são naturais e sim humanas: “não há fronteira quando duas dinastias, estabelecidas em terrenos que exploram, levantam [...] algumas cercas pintadas [...] ou traçam uma linha ideal de separação em meio de um rio [...]”, mas uma fronteira “em outros termos” são “Sentimentos, isto sim; paixões exaltadas – e ódios” (FEBVRE, 2000, p. 212). O determinismo biológico é um rico que o historiador deve estar atento, pois os elementos do espaço não determinassem as ações humanas, na verdade os fenômenos geográficos influenciam, mas não determinam: um morro só será um morro intransponível para uma linha de trem se os construtores o pensarem como um morro intransponível e não como apenas um obstáculo. Pensar o Pantanal como um paraíso, é criar um símbolo e negar as ações humanas e mesmo a história, pois um paraíso seria habitado por seres imaculados, diferentemente das ações humanas na região que passaram das apropriações índias e brancas, até o desmatamento pelas fazendas pecuaristas. O Pantanal também não é um local naturalmente equilibrado, ele é o que os humanos fizeram dele, neste caso, os comerciantes, os moradores que dele extraíram sua sobrevivência, seu lucro, suas vivências, o tornaram mais índio, mais brasileiro ou mais árabe. O espaço deste objeto foi delimitado por fronteiras sob interesse deste sujeito, aparentemente naturais, mas isso foi uma escolha, uma opção, e mais, a naturalidade do Pantanal é uma das fontes deste estudo, logo, aqui, o Pantanal é uma prática cultural em um tempo pretérito. Tratar da imigração de sujeitos árabes para o Pantanal é abordar de um objeto que considere a natureza como uma agente influenciadora das relações híbridas que estes árabes fizeram para apropriar-se dos códigos locais, exige uma metodologia que leve em conta a natureza como uma fonte, pois o mundo árabe no Pantanal é um mundo que os árabes ajudaram a fazer, porque não apenas deram valor à autoridade da geografia local, mas também a reformularam, como reformularam as suas identidades. 1092 Antes de prosseguir é preciso fazer uma explicação histórica a respeito dos adjetivos do Pantanal. Primeiro: Pantanal mato-grossense era toda a porção alagadiça, como meses de cheia e vazante até 1977. Nesta data ocorreu a divisão do Estado de Mato Grosso, assim hoje o Pantanal matogrossense faz parte apenas da porção alagadiça do Estado de Mato Grosso. Sendo que a antiga parte sul de Mato Grosso tornou-se o novo Estado de Mato Grosso do Sul, portanto toda a porção sul do Pantanal, que é a maior parte, está em território sul-mato-grossense, logo a parte que estudo é a cidade de Corumbá e suas proximidades no Pantanal Sul-Mato-Grossense. No período em questão, 1850 a 1980, o Pantanal teve diferentes representações. Ainda no século XVI com as viagens dos espanhóis e portugueses o Pantanal era visto com um mar interno, que junto à bacia do Amazonas e do Paraná, tornava o Brasil uma ilha (COSTA, 1999). Na passagem para o século XX foi um local tido como atrasado, bárbaro, de difícil acesso, longe da civilização litorânea, longe do mar, local de endemias, cuja população era atrasada, indígena, negra, mestiça, os brancos eram tidos como “civilizadores do sertão”, evidentemente os imigrantes brancos eram preferidos (ZORZATO, 1998, p.15). É apenas no final do século XX que o Pantanal torna-se um local cuja paisagem representa um paraíso natural, o território passa a ser visto como recanto de animais e plantas que vivem em liberdade e a população do Pantanal como sua protetora. Alguns grupos empresariais turísticos e o Estado de Mato Grosso do Sul iniciaram uma escalada para tornálo um objeto de turismo, com passeios nas cidades de Bonito e Jardim, passando por Aquidauana e Miranda até chegar a Corumbá ou visse-versa. O que quer que se pense humanamente sobre o Pantanal isso será fruto da história empreendida sobre este objeto, que também se adaptou para receber e os imigrantes árabes e estes mesmos mudaram a face da história local. Assim a região em questão tem diferentes de identidades híbridas, pois ao mesmo tempo em pode-se dizer que os sírios, libaneses e palestinos se tornaram mais brasileiros e pantaneiros os brasileiros-pantaneiros se tornaram mais árabes, pois ambos os grupos apreenderam parte da cultura do outro tornando as fronteiras mais móveis. A imigração de árabes para o Pantanal é o encontro de dois mundos, um é o grupos formado por imigrantes árabes que vieram para a América em busca de melhoria de suas vidas e de suas famílias, o outro é o mundo pantaneiro que os recebeu, de paisagens heterogêneas como sua cidade mais importante, Corumbá, o rio Paraguai, seus afluentes, a população moradora das fazendas, cuidadora de gado e os ribeirinhos. 1093 A questão agora é entender como foi o processo de estabelecimento, as negociações culturais e econômicas destes árabes com o novo mundo que os estava recebendo, e quais as perguntas que este mundo fazia a estes novos atores do Pantanal. No final do século XIX o Oriente Médio era controlado pelo Império Turco-Otomano, com o avanço das potências imperialistas européias este Império começou a fragmentar-se. A França, a Inglaterra, a Alemanha e a Itália se interessaram por este Oriente na tentativa de controlar a terra, investindo em infra-estrutura e realizando empréstimos ao Estado Turco, aliando-se a uma elite interessada na produção para o mercado externo. Neste período muitos árabes sírio-libaneses cristãos começaram a vir para a América fugidos de perseguições religiosas por parte das autoridades turcas, que eram teocraticamente islâmicas. Quando iniciou a Primeira Guerra, 1914, nacionalistas árabes aliaram-se a França e Inglaterra contra os turcos na luta por independência em relação ao Império Otomano, porém os franceses e ingleses secretamente fizeram o acordo de Sykes-Picot em 1916 no qual dividiram o Oriente Médio em protetorados: à França coube a Síria e o Líbano, à Inglaterra a região da Palestina e o Iraque. Neste período muitos árabes, envolvidos nas lutas nacionalistas, emigraram devido às perseguições políticas e militares turcas. Além de fatores políticos e religiosos, outro motivo da emigração de árabes sírios e libaneses do Oriente Médio foi a estrutura da repartição social da terra. As famílias quase sempre numerosas não tinham condições de repartir os lotes deixando para as novas gerações do início do século XX numa situação de despossuídos e desempregados, fazendo com que muitos homens, quase sempre jovens emigrassem. O fato de muitos investidores estrangeiros implantaram melhorias em transportes e comunicações, como estradas de ferro, navios a vapor, telégrafos e automóveis. Isto possibilitou que mesmo as pessoas pobres, pudessem juntar algum dinheiro para viajarem em direção a outros locais a fim de tentarem melhorar suas vidas (TRUZZI, 1997). Com o fim da Guerra, 1918, o Império Turco-Otomano se esfacelou em protetorados sob controle europeu. A principal peça de luta dos árabes, a partir deste momento era contra a Europa, e isto ocorreu com maior sucesso a partir da década de 1930, seguida pela eclosão da Segunda Guerra (1939-1945) quando novos Estados Nacionais se formaram, dentre estes o Líbano em 1943, a Síria em 1946, porém na Palestina, região já habitada por árabes iniciou-se um conflito contra alguns poucos antigos moradores, mas que estavam imigrando em massa para o local: os judeus. (HOURANI, 2006) A fundação do nacionalismo judeu no século XIX, o sionismo, pretendia a criação de um Estado para integrar os judeus que estavam espalhados pelo mundo. Em 1917 na 1094 Inglaterra foi feita a Declaração Balfour que acolhia a idéia da criação na região palestina de um Estado judeu. Neste período os ingleses assumiram o compromisso com os árabes de ceder-lhes a independência em troca de apoio contra os turcos, mas também criaram perspectivas para os sionistas na cessão de terras. Iniciou-se uma migração de judeus em grandes grupos para a Palestina, que entraram em disputa com os árabes locais. Após a Segunda Guerra Mundial foi criada a Organização das Nações Unidas – ONU que projetou a divisão da Palestina em duas partes, uma para os judeus e outra para os árabes, porém Davi Ben Gurion proclamou o Estado de Israel em 1948 (BISHARA, 2003). Os judeus se apropriaram de terras além dos limites da ONU e muitos árabes da Palestina se tornaram refugiados, restando-lhes a emigração para diferentes locais, entre eles a América. Este conflito integrou estes árabes contribuindo para a formação de sua identidade cujo elemento principal passou a ser a “terra palestina” (STRADAL, 1968, p. 234) Portanto, é possível dizer que os primeiros imigrantes árabes no Brasil são os sírios e libaneses por fatores religiosos, políticos e econômicos, posteriormente os palestinos, motivados pela situação de pós-colonização cuja ênfase era o litígio da região palestina com os judeus. A América, no final dos Oitocentos atraia muitos imigrantes, principalmente europeus que tentavam escapar da penúria do campo onde não conseguiam terras, e, das cidades em virtude da falta de emprego e o barateamento da mão-de-obra nas fábricas. O acesso a terra na América não era difícil até porque um dos atrativos do Império brasileiro era a possibilidade de o imigrante vir a torna-se dono de uma pequena propriedade. Este era o sonho da maioria dos que cruzavam o Atlântico, mas era preciso primeiro trabalhar para o grande latifúndio agro-exportador e servir como mão de obra nas fazendas principalmente as cafeicultoras. A maior parte das entradas deu-se em São Paulo no Porto de Santos, porém, muitos navios vinham até o Estuário do Prata, região da foz do rio Paraná no oceano Atlântico, da qual fazem parte cidades importantes da América do Sul como Montevidéu no Uruguai e Buenos Aires, Argentina. Subindo o rio Paraná encontra-se a o rio Paraguai, pois este deságua no rio Paraná. Pelo rio Paraguai em direção à sua nascente, há cidades também importantes em suas margens como Assunción no Paraguai e Corumbá do lado brasileiro que concentrava a maior parte da população pantaneira e a abastecia desde o século XIX. Na entrada do século XX muitas cidades como São Paulo possibilitavam oportunidades econômicas aos imigrantes que quisessem inserir-se nas atividades urbanas. Não havia uma classe média significativa e a elite latifundiária estava no meio rural ocupada por fazer política. Logo os primeiros imigrantes sírios e libaneses se inseriram no comércio 1095 ambulante, a mascateação; fizeram poupanças que lhe permitiram abrir a loja, uma casa comercial de varejo e consequentemente respeito social. Com o tempo muitos se tornaram atacadistas e industriais, os novos imigrantes chegavam posteriormente buscavam ajuda com os já estabelecidos e procuram outros centros para comerciar e vender, mais distantes do litoral. Neste contexto a cidade de Corumbá era um local convidativo para o comércio, posto que muitos sírios e libaneses que imigraram para o local, trabalharam inicialmente como mascates. Corumbá, inicialmente um pequeno povoado, foi fundado no Sul de Mato Grosso (atualmente Mato Grosso do Sul) no governo de Pombal pelo administrador da Província, à época Luiz de Albuquerque Pereira e Cáceres em 21 de setembro de 1778, que seguia as instruções do Conselho Ultramarino e da Coroa Portuguesa, os quais intencionavam promover a proteção e povoamento da fronteira oeste da Colônia atraindo colonos para morar e defender a região, para isso a construção de fortes e de moradias era estratégia básica da ocupação do poder português no local. Em 1856 ocorreu a abertura da navegação do rio Paraguai, no ano seguinte o primeiro comerciante, Manoel Cavassa, se instalou no povoado de Albuquerque. Em 1858 foi criada a Mesa de Rendas já com o objetivo de arrecadar impostos. Ao longo da segunda metade do século XIX outros comerciantes começaram a vir para Corumbá, instalando casas de comércio. Entravam na região produtos da Alemanha, Inglaterra, França, Áustria, Itália, Bélgica, Portugal. Desde alimentos até chapas de aço, ferragens, maquinarias, louças, móveis e armas. Em 10 de julho de 1862 a Assembléia Legislativa Provincial decretou a elevação da povoação de Albuquerque para Vila de Corumbá. Dos anos 1864 até 1870 se seguiu a Guerra da Tríplice Aliança cujos envolvidos eram Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina, esta guerra refletiu o mal resolvido acordo de limites e fronteiras entre Espanha e Portugal no período colonial, que ficou para os Estados Nacionais do século XIX resolverem. O Paraguai invadiu Corumbá e tomou a cidade por dois anos, mas em 1867, os paraguaios foram expulsos e os moradores retornaram reconstruindo o local (DORATIOTO, 2002). O comércio foi retomado e em 1869 o governo imperial isentou os comerciantes de Corumbá de pagarem impostos sobre produtos importados e exportados no porto. Novos comerciantes foram se estabelecendo na cidade a partir de 1872, construindo novas casas comerciais e ampliando a característica portuária da cidade. Neste mesmo ano foi reinstalada a Alfândega para armazenar produtos e arrecadar impostos de importação e exportação, seguida pela criação da Câmara Municipal, em 17 de agosto de 1872. 1096 O comércio internacional localizado em Corumbá colocou o Sul de Mato Grosso em ligação direta com centros comerciais dos países do Prata (Uruguai, Argentina, Brasil, Paraguai e Bolívia) e com a Europa. A cidade se tornou o centro urbano mais povoado, ou seja, concentrava populações de diferentes países, também se tornou pólo de referência em prestação de serviços e abastecimento para as populações moradoras da região pantaneira. Estas populações povoavam localidades específicas do pantanal matogrossense acessíveis por vias terrestres e principalmente fluviais nos afluentes do rio Paraguai: os rios Miranda, Taquari, São Lourenço, Cuiabá, Naitaca e Apa. Muitas outras firmas de importação e exportação foram sendo constituídas na medida em que o século XX começava. Entre os novos comerciantes havia portugueses, italianos, sírios e libaneses. Importante mencionar também que Corumbá, desde sua fundação, está próxima da fronteira seca com a Bolívia, cuja cidade boliviana, atual, mais próxima é Puerto Quijaro. Esta fronteira é volátil, pois aos seus moradores, frequentadores, visitantes e turistas, na maioria dos casos, basta terem conhecimento das normas legais e comportamentais para cruzá-la, posto que substancialmente não passe de um limite simbólico Em Corumbá os árabes exerceram diferentes atividades comerciais. Dado importante foi a existência de mascates árabes que comerciavam nos rios do Pantanal ao longo do rio Paraguai. Eram os mascates-fluviais, um fenômeno peculiar da história deste tipo de comércio no Brasil. Estes mascates abasteceram a população próxima a Corumbá através dos rios e estradas fluviais, para atingir a prática comercial era preciso articular-se a natureza: Eles [...] há mais ou menos trinta anos atrás [década de 1970] levava a diversão do povo pantaneiro, levava diversão para o povo ribeirinho [havia] um dos mascates, levava mulher pr’os homens, com isso trocava com banana da terra, couro de jacaré, onça. O mascate vendia roupas, caderno, temperos, alho e uma cachacinha também, a base de troca era a pele de animal onça, jacaré (Entrevista Delmarindo do Nascimento, 2008, p. 2). Nesta fala do Sr.º Delmarindo (cuja referência, assim como de outras fontes não bibliográficas estão dispostas ao final do texto), um dos entrevistados observamos que os imigrantes árabes aprenderam dos brasileiros as estratégias de vida no ambiente pantaneiro. O uso de canoas e barcos para a navegação e no caso de atravessar riachos, estradas longínquas, atoleiros e pedras eram utilizados carros de tração animal, armas para possíveis ocasiões de enfrentar animais, como a onça pintada ou assaltantes brancos, bem como índios defendendo territórios. A moeda usada no pagamento das mercadorias compradas (dentre elas inclusive mulheres) pelos consumidores que os árabes vendiam, era geralmente dinheiro no caso dos 1097 moradores das planícies menos alagadas. Mas os ribeirinhos negociavam com o meio ambiente pantaneiro, eram caçadores e pescadores, pagavam os mascates com peixes, peles de onça e jacaré, pena de pássaros como a garça, e mesmo carne de caça como capivara, lontra e tatu. Isto só era possível porque a natureza local, os rios e a floresta pantaneiros permitiam. Quando já tinham a possibilidade de ter uma casa comercial se instalaram na cidade, foi o caso das famílias Haddad, Neder, Azar, Bacha, Chain, Safadi e Jebara. Estabelecidos formaram uma comunidade, em 7 de março de 1909 fundaram uma agremiação chamada “Sociedade de Beneficiencia Ottomana” (ALBUM GRAPHICO, 1914, p. 337). A maioria tornou-se comerciante. Muitos ascenderam ao ramo financeiro, caso do sírio Alfredo Zamlutti, que montou a primeira casa bancária da região de Corumbá em 1938. Outros se tornaram atacadistas como Salin Kassar, sírio, João Dolabani, argentino de ascendência síria, e Alfredo Katurchi, sírio, os quais fundaram o “Moinho Mato-grossense (1952), a Fiação Mato-grossense e a Tecelagem Mato-grossense (1959) e, ainda um curtume (1960)” (OLIVEIRA, 2001, p. 35-36). Houve outras casas de comércio. No levantamento dos registros de abertura de firmas de donos de origem árabe em Corumbá, dos anos 1920 até a década de 1960 se observa que nas décadas de 1920 e 1930 houve 17 aberturas de firmas/lojas (Livro de Registro de firmas nº. 01, Corumbá, 1924-1934). Nas décadas de 1950 a 1960 foram abertas 34 lojas (Livro de Registro de firmas nº. 05, Corumbá, 1952-1956; Livro de Registro de firmas nº. 09, Corumbá, 1956-1959 e Livro de registro de arquivamento de aditivos e contratos de firmas 1953-1969); e especificamente na década de 1960: 11 lojas (Livro de Registro de firmas nº. 17, Corumbá, 1961-1962 e Livro de Registro de firmas nº. 09, Corumbá, 1965-1966). Isso demonstra, previamente, que a partir do início do século XX houve um aumento de abertura de casas de comércio, concentrado nas décadas de 1950 e 1960. Esse fenômeno ocorreu pela integração de três fatores. Primeiro: os primeiros sírios e libaneses mascates aplicaram suas poupanças de mascates em lojas de varejo. Segundo: em meados do século XX outros imigrantes sírios e libaneses que já tinham capital, o aplicaram em Corumbá, motivados pelo já ocupado comércio varejista árabe em outras regiões do Brasil litorâneo, bem como por terem parentes estabelecidos e Corumbá. Terceiro: os novos imigrantes palestinos, em geral refugiados do conflito com Israel se estabeleceram em Corumbá em função de esta cidade possuir uma comunidade árabe relativamente sólida. Na década de 1950 quando os palestinos tornaram-se refugiados em várias partes do mundo, o Brasil tornou-se novamente local de atração de populações árabes, 1098 e Corumbá recebeu muitos destes imigrantes, agora, porém, palestinos, que mantinham relações com os imigrantes sírios e libaneses já estabelecidos em Corumbá, seja por identidade religiosa, nacional ou familiar. Estes imigrantes palestinos de Corumbá criaram frente aos brasileiros não apenas uma identidade religiosa e econômica, como seus predecessores sírio-libaneses, mas uma identidade política paralela aos diferentes partidos e posicionamentos de poder da Palestina onde o conflito acontecia (Gaza, Cisjordânia e Golã), isso ajudou a manter a unidade e disparidade das populações árabes na sociedade corumbaense/pantaneira. Unidade no sentido de que todos estavam de certa maneira interessados, em maior ou menor grau, nas questões da terra pré-imigratória, e disparidade porque os membros da comunidade árabe tinham diferentes posicionamentos, alguns davam crédito à luta armada outros pensavam que o caminha para o fim do conflito seria não-violento. Um de meus entrevistados, cujo nome é fictício, revelou que houve casos de lojas de donos palestinos em Corumbá de fachada, ou seja, sujeitos ligados a grupos radicais palestinos que traficavam armas na fronteira pantaneira, pois a cidade de Corumbá está próxima da Bolívia e alguns carregamentos vêm do território boliviano ou paraguaio via rio Paraguai (Entrevista José de Souza, 2008, p. 1). Quando os imigrantes chegaram ao Brasil estes imigrantes, tanto os sírios e libaneses no final do século XIX, quanto os palestinos na década de 1950, foram tratados como turcos apesar de os primeiros pertencerem à culturas diferentes da dos seus opressores, porém estavam sob a jurisdição dos turcos, o que obrigou as populações de imigrantes árabes a receberem uma representação no passaporte diferente das suas nacionalidades, mas que no Brasil esteve ligada a prosperidade e urbanização. Os palestinos, de maneira quase que instantânea também foram integrados a imagem do turco. No final do século XIX o Pantanal mato-grossense era um local estigmatizado como sendo bárbaro, atrasado, local de índios bravios, pestes e doenças. A elite local, por sua vez seguia a pratica das outras elites litorâneas que tinham como base o racialismo, doutrina que afirma serem os humanos classificados hierarquicamente sendo os brancos superiores, portanto eram desejados os imigrantes brancos para que através da miscigenação clareassem a população brasileira. Neste contexto os sírios e libaneses, e posteriormente palestinos, não eram nem totalmente brancos ou negros. Havia uma brecha pela qual eles construíram redes de relações entre si, formando uma identidade de árabes imigrantes em busca de oportunidades, que poderiam ser aceitos pelos brasileiros. 1099 O fato de não serem negros ou índios e alcançarem relativo sucesso comercial possibilitou a aceitação social dos brasileiros, sendo que estes árabes acabaram por criar uma cultura de mobilidade caracterizada por uma fronteira oblíqua que lhes permitia não apenas sobreviver, mas também estabelecer relações que lhes garantiram prestígio e participação no poder, mesmo que por vezes de forma indireta, tornando-se árabes-brasileiros. Portanto é possível dizer que os imigrantes árabes no Pantanal assumiram “novas categorias hifenizadas”, ou seja, identidades negociadas e “criadas sob a rubrica de ‘brasileiros’”, mas na verdade identidades híbridas: árabes-brasileiros. Eles e os descendentes “desenvolveram maneiras sofisticadas e bem-sucedidas de tornarem-se brasileiros, alterando a idéia de nação”, se a nação para a elite, tanto matogrossense quanto litorânea, era algo homogêneo, para estes étnicos era algo heterogêneo, disposto a englobar também os outros, o estranho (LESSER, 2001, p. 19-20). A característica destes imigrantes é a hibridação, pelo fato de terem criado um conjunto de “processos sócioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada [...] se [...] [combinaram] para gerar novas estruturas, objetos e práticas”, (CANCLINI, 1998, p. 19). Logo o espaço das práticas culturais. O Pantanal se tornou um entre-lugar. Um local de experiências de fronteira, pois estes árabes reterritorializaram-se num “meio [between]”, não sendo nem um nem outro, estando na circularidade da vivência (HALL, 2003, p. 27). A temática das imigrações contribui para o entendimento do processo de configuração das identidades brasileiras, amplia os estudos do Oriente Médio no Brasil e dá significado à geo-história do povoamento não-índio no Pantanal e as negociações que os sírios, libaneses e palestinos, todos filhos de diferentes diásporas árabes, mantiveram com o meio-ambiente local, o qual também condicionou e participou da experiência da vida humana em seu espaço. Referências Bibliografia ALBUM GRAPHICO DE MATTO-GROSSO. Corumbá; Hamburgo: 1914. ARRUDA, Gilmar. Historia de Ríos: ¿História Ambiental? Signos Históricos, Iztapalapa, Distrito Federal, México, n. 16, jul.-dez. 2006. Disponível em: <http://redalyc.uaemex.mx>. Acesso em: 10 jul. 2009. BISHARA, Marwan. Palestina/Israel: a paz ou o apartheid. São Paulo: Paz e Terra, 2003. 1100 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 1998. COSTA, Maria de Fátima. História de um país inexistente: o Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. 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