l`o sse rvator e romano - Diocese de Viana do Castelo
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L’OSSERVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum EM PORTUGUÊS Non praevalebunt Cidade do Vaticano Ano XLII, número 19 (2.159), sábado 7 de Maio de 2011 Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00 Na presença de um milhão e meio de fiéis provenientes de todo o mundo Bento XVI beatificou Karol Wojtyła És beato porque acreditaste «És beato, amado João Paulo II, porque acreditaste! Continua do Céu a sustentar a fé do Povo de Deus!». O anúncio foi ressaltado pelo interminável aplauso de uma multidão avaliada num milhão e meio de pessoas que no domingo 1 de Maio, encheram a praça de São Pedro e as áreas circunstantes desde as primeiras horas do dia. Na sua homilia — que publicamos nas páginas 8/9 — Bento XVI repercorreu as vicissitudes que marcaram o iter da beatificação de Wojtyła, sem esquecer a vontade tão claramente expressa pela multidão de fiéis que participaram nas exéquias. Inspirando-se nas leituras da missa o Pontífice repropôs as características da grande personalidade de João Paulo II, inserindo-a na bem-aventurança «que no Evangelho precede todas as outras»: a da Virgem Maria, Mãe do Redentor. Não foi uma coincidência que a beatificação do Papa Wojtyła tenha ocorrido precisamente no primeiro dia do mês mariano, «sob o olhar materno daquela que, com a sua fé, sustentou os apóstolos e continuamente sustenta a fé dos seus sucessores». Bento XVI quis recordar também o grande testemunho dado pelo seu predecessor no sofrimento: «O Senhor — disse — despojou-o lentamente de tudo, mas ele permaneceu sempre uma rocha». A fé de Pedro GIOVANNI MARIA VIAN Nos últimos sessenta anos foram três as cerimónias para a beatificação de um Romano Pontífice. De facto foram elevados às honras dos altares em 1951 Pio X (canonizado logo após três anos), em 1956 Inocêncio XI, e em 2000, juntos, Pio IX e João XXIII. Uma novidade histórica, por causa de uma intensificação hagiográfica que nunca antes se tinha verificado na Igreja de Roma e para a qual eventuais precedentes, aliás muito diversos, se encontram em idade tardio-antiga e depois na Idade Média, não por acaso em relação a Papas reformadores como Leão IX e Gregório VII. E é preciso remontar precisamente à segunda metade do século XI para encontrar o reconhecimento da santidade de um Pontífice por parte do seu imediato sucessor. Como aconteceu com a solene beatificação — um acontecimento único, num cenário global — de João Paulo II. Unicamente seis anos depois da morte, aquela morte que ainda está no coração de milhões de pessoas crentes e não crentes, como aconteceu com a agonia de João XXIII. O que explica a unicidade desta beatificação e o interesse que suscitou no mundo não foram contudo apenas a excepcionalidade da decisão papal — «no devido respeito» das normas mas ao mesmo tempo «com discreta rapidez», explicou Bento XVI — e a proximidade temporal ao longuíssimo pontificado de Karol Wojtyła. Certamente tudo isto ajuda a explicar a afluência a Roma de um milhão e meio de pessoas e, em parte, o consenso quase geral com o qual a beatificação foi acolhida. Na superação maturada e convicta, ou num esquecimento apenas superficial e aparente, das críticas duríssimas às quais João Paulo II foi submetido durante o pontificado, tempos dramáticos e exaltantes que agora estão entregues à história. Anos e obras dos quais já se começa a avaliar e a reconhecer historicamente a incisividade e a relevância, mencionadas por Bento XVI. De facto, o Papa disse que João Paulo II, herdeiro do Concílio Vaticano II e de Paulo VI, inverteu «com a força de um gigante — força que lhe vinha de Deus — uma tendência que podia parecer a do fechamento em relação a CONTINUA NA PÁGINA 8 Na dimensão de Deus CARLO DI CICCO eflectir interiormente sobre uma beatificação como a de João Paulo II ajuda a entrar, com liberdade interior, na dimensão de Deus: para a qual necessariamente remetem os beatos e os santos da Igreja católica e na qual encontram sentido. Espaços de silêncio antes de tudo ajudam a compreender o carácter espiritual de acontecimentos religiosos colectivos e a vivê-los pessoalmente. A maior surpresa que João Paulo II nos deixa em herança não é tanto a descoberta de uma intuição de governo pastoral, o estilo muito pessoal e nunca só protocolar no ministério de sucessor de Pedro, quanto aliás a sua capacidade de viver a relação com Deus. Do processo canónico sobre a sua prática heróica das virtudes cristãs e do carácter milagroso da cura do mal de Parkinson da religiosa atribuída à sua intercessão sobressai uma voz comum: a R união com Deus em toda a vida de Karol Wojtyła era tão normal que parecia uma sua segunda natureza. Ele mostra-se uma alma que procurou adequar-se à santidade de Deus, cuja presença respirava e agia com normalidade. Expressando uma tensão para o alto que cresceu com o passar dos anos e se tornou impressionante no último decénio de pontificado, quando a doença irrefreável minou progressivamente as suas forças físicas. De resto, enquanto na primeira fase do seu pontificado prevalecia a admiração, quando se tornou débil e frágil aos olhos do mundo — tão exigente no cuidado da imagem — João Paulo II tornou-se familiar e foi sentido por crentes e não-crentes como uma testemunha credível e humana do Evangelho pregado incessantemente em todo o mundo. O convite a abrir as portas a Cristo sem medo, feito no início do seu pontificado, foi depois encarnaCONTINUA NA PÁGINA 2 Faleceu o arcebispo emérito de Valência em Roma onde participava na beatificação O pesar do Papa Dor e pesar pela morte do cardeal Agustín García-Gasco Vicente, arcebispo emérito de Valência, falecido na manhã de 1 de Maio em Roma, foram expressos por Bento XVI a D. Carlos Osoro Sierra, arcebispo da mesma diocese. PÁGINA 2 Na audiência geral de quarta-feira o Papa deu início a uma série de catequeses sobre a oração Uma invocação que espera uma palavra do Céu PÁGINA 3 L’OSSERVATORE ROMANO página 2 - sábado 7 de Maio de 2011 edição semanal em português - número 19 O arcebispo emérito de Valência estava em Roma para participar na beatificação de João Paulo II Faleceu o cardeal García-Gasco Vicente O cardeal Agustín García-Gasco Vicente, arcebispo emérito de Valência, faleceu em Roma na manhã de domingo 1 de Maio. Tinha 80 anos. O purpurado espanhol participou na noite de sábado, na vigília de oração no Circo Máximo. Domingo de manhã, antes da cerimónia de beatificação, foi encontrado sem vida nos seus aposentos na casa de acolhimento San Juan de Ribera das Operárias da Cruz, onde estava hospedado. Levado ao hospital, os médicos constataram a morte indicando como causa um enfarte. García-Gasco Vicente nasceu a 12 de Fevereiro de 1931 em Corral de Almaguer, na arquidiocese de Toledo. Foi ordenado sacerdote no dia 26 de Maio de 1956 e eleito à Igreja Titular de Nona em 20 de Março de 1985, tendo sido nomeado bispo auxiliar de Madrid. Recebeu a ordenação episcopal no dia 11 de Maio. A 24 de Julho de 1992 foi promovido a arcebispo de Valência. No consistório de 24 de Novembro de 2007 Bento XVI criou-o e publicou-o cardeal do título de São Marcelo. Em 8 de Janeiro de 2009 renunciou ao governo pastoral da arquidiocese. Após as exéquias, de acordo com a sua vontade, o cardeal será sepultado na capela de São José da catedral de Valência. ras dos edifícios públicos foram hasteadas a meio-mastro. Particularmente comovido o actual arcebispo, D. Carlos Osoro Sierra, também em Roma para a beatificação de João Paulo II, que disse ser um dom que Deus tenha chamado a si D. Agustín precisamente em Roma, perto do sucessor de Pedro, no mesmo dia da grande festa da beatificação de João Paulo II: «É como um reconhecimento pela sua fé e fidelidade à Igreja, que testemunhou por toda a vida». A sua missão foi realizada em particular no eixo Madrid-Valência. Estudou no colégio «La Salle» dos Irmãos das escolas cristãs da sua cidade natal e depois, em 1944, entrou no seminário de Madrid-Alcalá. Foi ordenado sacerdote em Madrid, em Combativo sobre as questões centrais da educação e da família, para a defender inclusivamente dos ataques legislativos, o cardeal deu voz aos sentimentos dos católicos espanhóis e, em 2006, quis firmemente a realização do V Encontro mundial das famílias em Valência, sobre o tema: «A transmissão da fé na família», que culminou com a visita de Bento XVI, nos dias 8 e 9 de Julho. Naquela ocasião García-Gasco Vicente realçou o papel central que a família fundada sobre o matrimónio desempenha na Igreja e na sociedade. A cidade de Valência, da qual foi pastor por 17 anos — de 1992 a 2009 — recordou-o com particular afecto. Quando se difundiu a notícia do seu falecimento, os sinos da catedral tocaram em sinal de luto e as bandei- Na dimensão de Deus CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 1 do no sofrimento. Enfrentado com serena paciência porque em companhia de Cristo e ao mesmo tempo de milhões de homens e mulheres irmanados por sofrimentos análogos. As palavras pregadas eram verificadas pelo seu testemunho simplesmente cristão. Na máxima debilidade física, nunca escondida, o sucessor de Pedro foi ainda mais amado porque era muito semelhante ao Bom Pastor que dá a vida, e assim encoraja a viver. Era difundida a convicção de que o Papa compreendesse a pequena vida quotidiana de quantos têm uma existência difícil: todo este povo nas margens dos reflectores procurava compreender o segredo da força interior que dimanava de João Paulo II. Quando, depois da imposição do barrete vermelho, no adro da Basílica de São Pedro os novos cardeais se saudaram entre si e com os outros purpurados num clima de festa, o Papa Wojtyła — era o seu último consistório em Outubro de 2003 e o Parkinson já era muito evidente — observava em silêncio, quase com um olhar de despedida desta vida. Imprevistamente pareceu como que noutra dimensão que, naquele momento alegre e importante, se revelava ser um retiro habitual do seu espírito. Sempre presente para tudo e para todos enquanto que a sua alma residia alhures, num refúgio interior onde se dava um diálogo ininterrupto com Deus. Residia ali a fonte da sua amabilidade, da sua energia, da sua coragem pastoral. A necessidade de reabrir na Igreja e no tempo actual — secular e globalizado — o interesse por Deus, o Vivente, para voltar a edificar sociedades livres e fraternas, esteve sempre presente no seu ensinamento e constituiu o segredo da sua vida quotidiana. É a herança que João Paulo II deixa, questão moderna por excelência. Não foi por acaso que Bento XVI fez dela a razão do seu pontificado. L’OSSERVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum EM PORTUGUÊS Non praevalebunt 1956, pelo bispo Leopoldo Eijo y Garay, tornando-se pároco de Vaillamanta. No ano seguinte foi nomeado delegado episcopal da Cáritas diocesana e professor da escola dos cursilhos de cristandade. Obteve a licença em teologia na universidade de Comillas (1969), o diploma em sociologia industrial e relações humanas (1970), em ciências empresariais (1976) e em educação de adultos e técnicas de educação à distância (1977). De 1958 a 1970 foi consultor religioso da Comisaría de extensión cultural do ministério da Educação e da Ciência e da delegação provincial de Madrid. Foi membro da junta da pastoral diocesana (19631966) e pároco do Santíssimo Cristo do Amor (Madrid) em 1964. Em 1966 foi nomeado prefeito dos teólogos e professor do seminário de Madrid. Em 1970 foi pároco de Santiago e São João Baptista (Madrid), secretário-geral do Instituto Arcebispo Claret, membro do Secretariado nacional espanhol do clero de Madrid e conselheiro da Associação de pais do colégio do Sagrado Coração. Foi fundador e director do Instituto internacional de teologia «à distância» (actualmente chamado Instituto superior de ciências religiosas Santo Agostinho), professor de religião na Universidade Nacional de Educação à Distância e delegado diocesano do clero (1973). Em 1977, o então arcebispo de Madrid, cardeal Vicente Enríque y Tarancón, nomeou-o vigário episcopal do vicariato III de Madrid. Em 1979 tornou-se professor do Instituto teológico São Dâmaso e em 1982 presidente do Instituto Arcebispo Claret. No dia 20 de Março de 1985 foi nomeado bispo auxiliar de Madrid. Em 1988 foi eleito secretário-geral da Conferência episcopal espanhola por cinco anos. Em 1990 assumiu a presidência do Instituto internacional de teologia «à distância». Neste cargo GIOVANNI MARIA VIAN Redacção director via del Pellegrino, 00120 Cidade do Vaticano telefone +390669899300 fax +390669883675 Carlo Di Cicco Cidade do Vaticano [email protected] vice-director http://www.osservatoreromano.va TIPO GRAFIA VATICANA EDITRICE «L’OSSERVATORE ROMANO» don Pietro Migliasso S.D.B. director-geral Serviço fotográfico telefone +390669884797 fax +390669884998 [email protected] visitou vários países: Venezuela, Equador, Colômbia, México, Chile, Honduras, Panamá, Cuba, Argentina e Uruguai. Em 1995 tornou-se membro do comité de presidência do Pontifício Conselho para a Família e em 1996 presidente da Comissão episcopal das relações interconfessionais da Conferência episcopal espanhola e membro do conselho de presidência da Associação internacional lateranense. Cargos que foram confirmados em 1999. No mesmo ano foi nomeado também membro da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos (encargo renovado em 2005). Em Dezembro de 2003 fundou a Universidade católica de Valência São Vicente Mártir, tornando-se o Grão-Chanceler. Na assembleia plenária da Conferência episcopal espanhola, realizada nos dias 23-26 de Abril de 2007, foi eleito presidente da Comissão episcopal para a Doutrina da fé. O pesar do Papa Bento XVI enviou o seguinte telegrama de pêsames ao arcebispo de Valência, D. Carlos Osoro Sierra. Ao tomar conhecimento da triste notícia da morte do amadíssimo Cardeal Agustín García-Gasco Vicente, ofereço fervorosos sufrágios pelo eterno repouso daquele que exerceu com diligente solicitude apostólica o ministério episcopal, primeiramente como Bispo auxiliar de Madrid e secretário da Conferência episcopal espanhola, depois na guia dessa amada Arquidiocese de Valência, dedicando-se de modo constante à obra evangelizadora com sabedoria e generosidade e promovendo incansavelmente numerosas iniciativas pastorais, sobretudo no campo do ensino e da pastoral familiar. Ao evocar os grandes serviços prestados por ele à Igreja, e com a recordação afectuosa da minha permanência nessa insigne cidade para o V Encontro mundial das famílias, desejo apresentar as minhas mais sentidas condolências a Vossa Excelência, senhor Arcebispo, ao seu Bispo auxiliar, ao presbitério, aos seminaristas, às comunidades religiosas e aos fiéis dessa Igreja particular de Valência e, pedindo-lhe que transmita estes mesmos sentimentos aos familiares do purpurado falecido, concedo de coração a todos a confortadora Bênção Apostólica, como sinal de esperança cristã em Cristo ressuscitado. BENEDICTUS PP. XVI Assinaturas: Itália - Vaticano: € 58.00; Europa: € 100.00 - U.S. $ 148.00; América Latina, África, Ásia: € 110.00 - U.S. $ 160.00; América do Norte, Oceânia: 162.00 - U.S. $ 240.00. Administração: telefone +390669899480; fax +390669885164; e-mail: [email protected] Para o Brasil: Impressão, Distribuição e Administração: Editora santuário, televendas: 0800160004, fax: 00551231042036, e-mail: [email protected] Publicidade Publicinque s.r.l. via Fattori 3/c, 10141 Torino, [email protected] número 19 - edição semanal em português L’OSSERVATORE ROMANO sábado 7 de Maio de 2011 - página 3 Na audiência geral de quarta-feira o Papa deu início a uma série de catequeses sobre a oração Uma invocação que espera uma palavra do Céu «Senhor, ensina-nos a rezar», o Papa citou este versículo do Evangelho de Lucas (cf. 11, 1) para introduzir o novo ciclo de catequeses, inaugurado na quarta-feira 4 de Maio, durante a audiência geral na praça de São Pedro. Estimados irmãos e irmãs! Hoje gostaria de dar início a uma nova série de catequeses. Depois das catequeses sobre os Padres da Igreja, sobre os grandes teólogos da Idade Média, sobre as grandes mulheres, gostaria de escolher um tema muito querido a todos nós: é o tema da oração, de modo específico da cristã, ou seja, a prece que Jesus nos ensinou e que a Igreja continua a ensinar-nos. Com efeito, é em Jesus que o homem se torna capaz de se aproximar de Deus com a profundidade e a intimidade da relação de paternidade e filiação. Com os primeiros discípulos, com confiança humilde, dirijamo-nos então ao Mestre e peçamos-lhe: «Senhor, ensina-nos a rezar» (Lc 11, 1). Nas próximas catequeses, aproximando-nos da Sagrada Escritura, da grande tradição dos Padres da Igreja, dos Mestres de espiritualidade e de Liturgia, queremos aprender a viver ainda mais intensamente a nossa relação com o Senhor, quase uma «Escola de oração». Com efeito, sabemos que a oração não se deve dar por certa: é preciso aprender a rezar, quase adquirindo esta arte sempre de novo; mesmo aqueles que estão muito avançados na vida espiritual sentem sempre a necessidade de se pôr na escola de Jesus para aprender a rezar autenticamente. Recebemos a primeira lição do Senhor através do seu exemplo. Os Evangelhos descrevem-nos Jesus em diálogo íntimo e constante com o Pai: é uma profunda comunhão daquele que veio ao mundo não para fazer a sua vontade, mas a do Pai que O enviou para a salvação do homem. Nesta primeira catequese, como introdução, gostaria de propor alguns exemplos de oração presentes nas antigas culturas, para relevar como, praticamente sempre e em toda a parte o homem se dirigiu a Deus. Por exemplo, no antigo Egipto um homem cego, pedindo à divindade que lhe restituísse a vista, atesta algo de universalmente humano, que é a pura e simples prece de pedido da parte de quem se encontra no sofrimento, este homem reza: «O meu coração deseja ver-te... Tu que me fizeste ver as trevas, cria a luz para mim. Que eu te veja! Debruça sobre mim o teu rosto dilecto» (A. Barucq — F. Daumas, Hymnes et prières de l’Egypte ancienne, Paris 1980, trad. it. em Preghiere dell’umanità, Brescia 1993, p. 30). Que eu te veja; eis o núcleo da prece! Nas religiões da Mesopotâmia predominava um sentido de culpa arcano e paralisador, porém não desprovido da esperança de resgate e de libertação da parte de Deus. Assim podemos apreciar esta súplica da parte de um fiel daqueles cultos antigos, que ressoa assim: «Ó Deus, que és indulgente também na culpa mais grave, absolve o meu pecado... Olha, Senhor, para o teu servo arrasado, e sopra a tua brisa sobre ele: perdoa-o sem demora. Alivia a tua punição severa. Livre dos vínculos, faz com que eu volte a respirar; quebra a minha cadeia, liberta-me dos laços» (M.-J. Seux, Hymnes et prières aux Dieux de Babylone et d’Assyrie, Paris 1976, trad. it. em Preghiere dell’umanità, op. cit., p. 37). Trata-se de expressões que demonstram como o homem, na sua busca de Deus, intuiu, embora confusamente, por um lado a sua culpa, mas por outro também aspectos de misericórdia e de bondade divina. No contexto da religião pagã da Grécia antiga assiste-se a uma evolução muito significativa: as preces, Pucci, Bari 1966). Gostaria de ser sobretudo bonito dentro e sábio, e não rico de dinheiro. Aquelas obras-primas excelsas da literatura de todos os tempos, que são as tragédias gregas, ainda hoje, depois de vinte e cinco séculos, lidas, meditadas e representadas, contêm preces que exprimem o desejo de conhecer a Deus e de adorar a sua majestade. Uma delas reza assim: «Sustento da terra, que imperas sobre a terra, quem quer que sejas, difícil de ser entendido, Zeus, sê tu a lei de natureza ou de pensamento dos mortais, dirijo-me a ti, uma vez que tu, procedendo por caminhos silenciosos, guias as vicissitudes humanas segundo a justiça» (Eurípides, As Troianas, 884-886, trad. it. G. Mancini, em Preghiere dell’umanità, op. cit., p. 54). Deus permanece um pouco nebuloso e todavia o homem embora continuem a invocar o auxílio divino para obter o favor celeste em todas as circunstâncias da vida diária e para alcançar benefícios materiais, orientam-se progressivamente para os pedidos mais desinteressados, que permitem ao homem crente aprofundar a sua relação com Deus e tornar-se melhor. Por exemplo, o grande filósofo Platão cita uma prece do seu mestre Sócrates, considerado justamente um dos fundadores do pensamento ocidental. Assim orava Sócrates: «Fazei que eu seja bonito dentro. Que eu considere rico quem é sábio, e que de dinheiro eu só possua quanto o sábio puder tomar e levar. Não peço mais» (Obras I. Fedro 279 c., trad. it. P. conhece este Deus desconhecido e ora àquele que guia os caminhos da terra. Também para os Romanos, que constituíram aquele grande Império em que nasceu e se difundiu em grande parte o Cristianismo das origens, a oração, embora associada a um conceito utilitarista e fundamentalmente vinculado ao pedido da salvaguarda divina sobre a vida da comunidade civil, abre-se às vezes a invocações admiráveis pelo fervor da piedade pessoal, que se transforma em louvor e acção de graças. É testemunha disto um autor da África romana do século II d.C., Apuleio. Nos seus escritos, ele manifesta a insatisfação dos contemporâneos em relação à religião tradicional e o desejo de uma relação mais autêntica com Deus. Na sua obra-prima, intitulada Metamorfoses, um crente dirige-se a uma divindade feminina com estas palavras: «Tu és santa, tu és em todo o tempo salvadora da espécie humana, na tua generosidade tu dás sempre ajuda aos mortais, tu ofereces aos miseráveis em dificuldade o doce carinho de uma mãe. Nem um dia nem uma noite, nem qualquer instante, por mais breve que seja, passa sem que tu o cumules com os teus benefícios» (Apuleio de Madaura, Metamorfoses IX, 25, trad. it. C. Annaratone, em Preghiere dell’umanità, op. cit., p. 79). Nesse mesmo período, o imperador Marco Aurélio — que também era um filósofo que meditava sobre a condição humana — afirma a necessidade de rezar para estabelecer uma cooperação fecunda entre acção divina e acção humana. Nas suas Recordações, ele escreve: «Quem te disse que os deuses não nos ajudam inclusive naquilo que depende de nós? Portanto, começa a pedir-lhes e verás» (Dictionnaire de Spiritualitè XII/2, col. 2213). Este conselho do imperador filósofo foi realmente posto em prática por inúmeras gerações de homens antes de Cristo, demonstrando assim que a vida humana sem a oração, que abre a nossa existência ao mistério de Deus, permanece desprovida de sentido e de referência. Com efeito, em cada prece manifesta-se sempre a verdade da criatura humana, que por um lado experimenta a debilidade e a indigência e por isso pede auxílio ao Céu e, por outro, é dotada de uma dignidade extraordinária porque, preparando-se para acolher a Revelação divina, se descobre capaz de entrar em comunhão com Deus. Caros amigos, nestes exemplos de orações das várias épocas e civilizações sobressai a consciência que o ser humano tem sobre a sua condição de criatura e da sua dependência de Outro, que lhe é superior e fonte de todo o bem. O homem de todos os tempos reza porque não consegue deixar de se interrogar sobre o sentido da sua existência, que permanece obscuro e desolador, se não se puser em relação com o mistério de Deus e do seu desígnio acerca do mundo. A vida humana é um entrelaçamento de bem e de mal, de sofrimento imerecido e de alegria e beleza, que espontânea e irresistivelmente nos impele a pedir a Deus a luz e a força interiores que nos socorram na terra e descerrem uma esperança que vá para além dos confins da morte. As religiões pagãs permanecem uma invocação que, da terra, espera uma palavra do Céu. Um dos últimos grandes filósofos pagãos, que viveu já em plena época cristã, Proclo de Constantinopla, dá voz a esta expectativa, dizendo: «Incognoscível, ninguém te contém. Tudo o que pensamos pertence a ti. Estão em ti os nossos males e os nossos bens, de ti CONTINUA NA PÁGINA 4 página 4 - sábado 7 de Maio de 2011 L’OSSERVATORE ROMANO edição semanal em português - número 19 Vigília de oração no Circo Máximo em vista da beatificação O singularíssimo amor pelos jovens Com a vigília de oração para os jovens que teve lugar a 30 de Abril, no Circo Máximo, foram inaugurados os tão esperados três dias para a beatificação de João Paulo II. A noite, organizada pela diocese de Roma, foi animada pelo coro diocesano e pela orquestra do conservatório de Santa Cecília, que hospedaram os coros da comunidade filipina da Urbe e a «Gaudium Poloniae». O encontro — encerrado com a recitação do terço em ligação directa com cinco santuários marianos espalhados pelo mundo e com a presença em vídeo de Bento XVI, que recitou a oração final e deu a bênção apostólica — iniciou com a celebração da memória e foi acompanhado pelas palavras e os gestos do Papa Wojtyła, narrados através das imagens comovedoras dos últimos meses de pontificado, marcados pelo sofrimento. Logo a seguir foi o momento dos testemunhos, entre os quais os do cardeal vigário de Roma e do cardeal arcebispo de Cracóvia. Queridos irmãos e irmãs! A Providência doa-nos esta noite a alegria de viver uma grande experiência de graça e de luz. Com esta Vigília mariana de Oração desejamos preparar-nos para as celebrações de amanhã, a solene Beatificação do Venerável Servo de Deus João Paulo II. Depois de seis anos da piedosa morte do grande Papa, é particularmente viva na Igreja e no mundo a sua memória, por vinte e sete anos bispo de Roma e pastor da Igreja universal. Pelo amado Pontífice sentimos veneração, afecto, estima e profunda gratidão. Da sua vida recolhemos em primeiro lugar o testemunho de fé: uma fé convicta e forte, livre de medos e compromissos, coerente até ao último respiro, forjada pelas provações, pelo cansaço e pela doença, cujo influxo benéfico se irradiou por toda a Igreja, aliás sobre o mundo inteiro; um testemunho acolhido em toda a parte, nas suas viagens, por milhões de homens e mulheres de todas as raças e culturas. Ele viveu para Deus, entregou-se inteiramente a Ele para servir a Igreja, como oferenda sacrifical. Costumava repetir frequentemente esta invocação: «Jesus, Pontífice, que te entregaste a ti mesmo a Deus como oferenda e vítima, tem piedade de nós». O seu grande desejo era tornar-se cada vez mais um só com Cristo Sacerdote, através do sacrifício eucarístico, do qual tirava força e coragem para a sua incansável acção Audiência geral sobre a oração CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 3 depende todo o nosso anseio, ó Inefável, que as nossas almas sentem presente, elevando-te um hino de silêncio» (Hymni, ed. E. Vogt, Wiesbaden 1957, em Preghiere dell’umanità, op. cit., p. 61). Nos exemplos de oração das várias culturas, por nós considerados, podemos ver um testemunho da dimensão religiosa e do desejo de Deus inscrito no coração de cada homem, que recebem cumprimento e plena expressão no Antigo e no Novo Testamento. Com efeito, a Revelação purifica e leva à sua plenitude o anseio originário que o homem tem de Deus, oferecendolhe na oração a possibilidade de uma relação mais profunda com o Pai celeste. Então, no início deste nosso caminho na «Escola da oração», queremos pedir ao Senhor que ilumine a nossa mente e o nosso coração, a fim de que a relação com Ele na oração seja cada vez mais intensa, afectuosa e constante. Mais uma vez, digamos-lhe: «Senhor, ensinanos a rezar» (Lc 11, 1). No final da audiência geral, o Papa saudou os vários grupos de fiéis presentes na praça de São Pedro, dizendo em português. Uma cordial saudação para todos os peregrinos de língua portuguesa, com menção particular dos fiéis de Salto de Pirapora e das Irmãs Franciscanas Catequistas do Brasil e do grupo «Ajuda à Igreja que sofre» de Portugal, que aqui vieram movidos pelo desejo de afirmar e consolidar a sua fé e adesão a Cristo: o Senhor vos encha de alegria e o seu Espírito ilumine as decisões da vossa vida, para realizardes fielmente o projecto de Deus a vosso respeito. Acompanham-vos a minha oração e Bênção. católica. Cristo estava no início, no centro e no ápice de todos os seus dias; Cristo era o sentido e o objectivo da sua acção; de Cristo hauria energia e plenitude de humanidade. Isto explica a necessidade e o desejo que tinha de rezar: todos os dias dedicava longas horas à oração, e o seu trabalho era permeado e atravessado pela oração. Nesta fé, vivida até às fibras mais íntimas, podemos compreender o mistério do sofrimento, que o marcou desde jovem e que o purificou como o ouro, o qual se prova pelo fogo (cf. 1 Pd, 1, 7). Todos nós ficamos admirados pela docilidade de espírito com a qual enfrentou a peregrinação da doença, até à agonia e à morte. Testemunha da trágica época das grandes ideologias, dos regimes totalitários e dos seus declínios, João Paulo II compreendeu antecipadamente a grande labuta, marcada por conflitos e contradições, da transição da época moderna para uma nova fase da história, demonstrando um cuidado constante a fim de que a pessoa humana fosse a sua protagonista. Foi um incansável defensor do homem e credível junto dos Estados e das instituições internacionais, que o respeitaram e homenagearam, reconhecendo-o como mensageiro de justiça e paz. Com o olhar fixo em Cristo, Redentor do homem, acreditou no homem e mostrou-lhe abertura, confiança e proximidade. Amou o homem e incentivou-o a desenvolver em si mesmo o potencial de fé para viver como pessoa livre e cooperar na realização de uma humanidade mais justa e solidária, como agente de paz e construtor de esperança. Convicto de que só a experiência espiritual pode encher o homem, afirmava: o destino de cada homem e dos povos está ligado a Cristo, único libertador e salvador. Escreveu na sua primeira encíclica: «O homem não pode viver sem amor... A sua vida [permanece] destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor... Cristo Redentor... revela plenamente o homem ao próprio homem...» (Redemptor hominis, 10). E a vibrante palavra com a qual deu início ao Pontificado: «Não tenhais medo! Abri, melhor, escancarai as portas a Cristo!..Cristo sabe o que está dentro do homem. Só ele o sabe!», revela que para ele o amor de Deus é inseparável do amor pelo homem e pela sua salvação. Neste seu extraordinário impulso de amor pela humanidade, amou com amor atencioso e carinhoso, todos os «feridos da vida» — como chamava os pobres, os doentes, os sem nome, os marginalizados a priori — mas com amor singularíssimo amou os jovens. As convocações das Jornadas mundiais da juventude tinham para ele o objectivo de levar os jovens a ser protagonistas do próprio futuro, tornando-os edificadores da história. Os jovens — dizia — são a riqueza da Igreja e da sociedade. E convidava-os a preparar-se para as grandes escolhas, a olhar para frente com esperança, confiando nas próprias capacidades e seguindo Cristo e o Evangelho. Queridos irmãos e irmãs, todos nós conhecemos a singularíssima devoção de João Paulo II a Nossa Senhora. O lema do brasão do seu Pontificado, Totus tuus, sintetiza bem a sua vida inteiramente orientada para Cristo através de Maria: «ad Iesum per Mariam». Como o discípulo João, o «discípulo amado», aos pés da cruz, na hora da morte do Redentor, recebeu Maria na sua casa (Jo, 19, 26-27), também João Paulo II quis Maria misticamente sempre ao seu lado, tornando-a partícipe da sua vida e do seu ministério, e sentiu-se por Ela acolhido e amado. A recordação do amado Pontífice, profeta de esperança, não deve significar para nós um regresso ao passado, mas valorizando a sua herança humana e espiritual, deve ser um incentivo para olhar para a frente. Possam as palavras, que escreveu na carta apostólica Novo millennio ineunte no final do grande Jubileu do ano 2000, ressoar esta noite no nosso coração: «Sigamos em frente, com esperança! Diante da Igreja abre-se um novo milénio, como um vasto oceano onde aventurar-se com a ajuda de Cristo. O Filho de Deus... continua também hoje em acção: devemos possuir um olhar perspicaz para a contemplar, e sobretudo um coração grande para nos tornarmos instrumentos dela». Que a Virgem Maria, Mãe da Igreja, tanto amada por João Paulo II, que neste momento invocamos com a recitação do Terço, possa ajudar-nos a ser em cada circunstância, testemunhas de Cristo e anunciadores do amor de Deus no mundo. número 19 - edição semanal em português L’OSSERVATORE ROMANO sábado 7 de Maio de 2011 - página 5 Discurso aos participantes na assembleia da European Broadcasting Union Ao serviço das pessoas para o caminho da sociedade «O vosso é um “serviço público”, serviço às pessoas, para as ajudar todos os dias a conhecer e a compreender melhor o que acontece e por que motivo acontece», afirmou o Papa aos participantes na 17ª assembleia das rádios e televisões da «European Broadcasting Union», recebidos em audiência na manhã de sábado 30 de Abril, na Sala dos Suíços do Palácio Pontifício de Castel Gandolfo. Estimados amigos! Estou feliz por dar as boas-vindas a todos vós, membros e participantes na 17ª assembleia das rádios e televisões da European Broadcasting Union, que este ano é hóspede da Rádio Vaticano, por ocasião do 80° aniversário da sua fundação. Saúdo o Arcebispo Claudio Maria Celli, Presidente do Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais. Agradeço ao Presidente da European Broadcasting Union, Jean Paul Philippot, e ao Padre Federico Lombardi, DirectorGeral da Rádio Vaticano, as amáveis palavras com que explicaram a natureza do vosso encontro e os problemas que deveis enfrentar. Quando o meu predecessor Pio XI se dirigiu a Guglielmo Marconi para que dotasse o Estado da Cidade do Vaticano de uma Estação de rádio à altura da melhor tecnologia disponível naquela época, demonstrou que tinha intuído com perspicácia em que direcção se ia desenvolvendo o mundo das comunicações, e quais potencialidades a rádio podia oferecer para o serviço da missão da Igreja. Efectivamente, através da rádio, os Papas puderam transmitir para além das fronteiras mensagens de grande importância para a humanidade, como aquelas justamente famosas de Pio XII durante a segunda guerra mundial, que deram voz às aspirações mais profundas de justiça e de paz, ou como a de João XXIII no momento culminante da crise entre Estados Unidos e União Soviética, em 1962. Ainda através da rádio, Pio XII pôde fazer difundir centenhas de milhares de mensagens das famílias para os prisioneiros e os dispersos durante a guerra, desempenhando uma obra humanitária que lhe valeu uma gratidão imarscecível. Além disso, através da rádio foram por muito tempo sustentadas as expectativas de crentes e de povos submetidos a regimes que oprimiam os direitos humanos e a liberdade religiosa. A Santa Sé está consciente das potencialidades extraordinárias que o mundo da comunicação tem para o progresso e o crescimento das pessoas e da sociedade. Pode-se dizer que todo o ensinamento da Igreja neste sector, a partir dos discursos de Pio XII, passando pelos documentos do Concílio Vaticano II, até às minhas mais recentes mensagens sobre as novas tecnologias numéricas, é permeado por uma veia de optimismo, de esperança e de simpatia sincera por aqueles que se comprometem neste campo para favorecer o encontro e o diálogo, servir a comunidade humana e contribuir para a prosperidade pacífica da sociedade. Naturalmente, cada um de vós sabe que também no desenvolvimento das comunicações sociais se escondem dificuldades e riscos. Por isso, permiti que eu manifeste a todos vós o meu interesse e a minha solidariedade na importante obra que levais a cabo. Nas sociedades hodiernas estão em jogo valores basilares para o bem da humanidade, e a opinião pública, em cuja formação o vosso trabalho tem uma grande importância, encontra-se frequentemente desorientada e dividida. Vós sabeis bem quais são as preocupações da Igreja católica, a propósito do respeito pela vida humana, da defesa da família, do reconhecimento dos direitos autênticos e das justas aspirações dos povos, dos desequilíbrios que causam o subdesenvolvimento e a fome em muitas regiões do mundo, do acolhimento dos migrantes, do desemprego e da segurança social, das novas pobrezas e marginalizações sociais, das discriminações e das violações da liberdade religiosa, do desarmamento e da busca de uma solução pacífica dos conflitos. Referi-me a muitas destas questões na Encíclica «Caritas in veritate». Alimentar todos os dias uma informação correcta e equilibrada, e um debate aprofundado para encontrar as melhores soluções compartilhadas sobre estas problemáticas numa sociedade pluralista, é tarefa que compete às rádios e às televisões. Tratase de um trabalho que exige elevada honestidade profissional, justiça e respeito, abertura às diversas perspectivas, clareza na abordagem dos problemas, liberdade em relação às barreiras ideológicas e consciência da complexidade dos problemas. Trata-se de uma busca paciente daquela «verdade quotidiana», que melhor traduz os valores na vida e melhor orienta o caminho da socie- dade, e que deve ser procurada com humildade por todos. Nesta busca, a Igreja católica tem uma sua contribuição específica a oferecer, e tenciona fazê-lo, testemunhando a sua adesão à verdade que é Cristo, mas ao mesmo tempo com abertura e espírito de diálogo. Como afirmei no encontro com os qualificados representantes do mundo político e cultural britânico na Westminster Hall de Londres no passado mês de Setembro, a religião não procura manipular os não-crentes, mas ajudar a razão na descoberta dos princípios morais objectivos. A religião contribui para «purificar» a razão, ajudando-a a não ser vítima de desvios, como a manipulação da parte da ideologia, ou a aplicação parcial que não tem plenamente em consideração a dignidade da pessoa humana. Ao mesmo tempo, também a religião reconhece que tem necessidade da correcção da parte da razão, para evitar excessos, como o integralismo ou o sectarismo. «A religião não é um problema a resolver, mas um factor que contribui de modo vital para o debate público na nação». Por isso convido-vos também, «no âmbito das vossas esferas de influência, a procurar promover e encorajar o diálogo entre fé e razão», na perspectiva do serviço ao bem comum nacional. O vosso é um «serviço público», serviço às pessoas, para as ajudar todos os dias a conhecer e a compreender melhor o que acontece e por que motivo acontece, e a comunicar concretamente para as acompanhar ao longo do caminho comum da sociedade. Sei bem que este serviço encontra dificuldades, e que tem diferentes aspectos e proporções nos diversos países. Pode haver o desafio da competição por parte das transmissoras comerciais; o condicionamento de uma política vivida como divisão do poder, e não como serviço ao bem comum; a escassez de recursos económicos, acentuada por si- tuações de crise; o impacto do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação; e a busca insistente da audiência. Mas os desafios do mundo contemporâneo que vos comprometem são demasiado grandes e urgentes, para vos deixardes desanimar e sentir a tentação da renúncia, diante de tais dificuldades. Há vinte anos, em 1991, o Venerável João Paulo II, que amanhã terei a alegria de proclamar Beato, recebia a vossa Assembleia geral no Vaticano, encorajando-vos a desenvolver a vossa mútua colaboração, para favorecer o crescimento da comunidade dos povos do mundo. Hoje, penso nos processos em curso nos países do Mediterrâneo e do Próximo Oriente, vários dos quais são também membros da vossa Associação. Sabemos que as novas formas de comunicação desempenharam e ainda desempenham um papel não secundário nestes mesmos processos. Faço votos por que saibais pôr os vossos contactos internacionais e as vossas actividades ao serviço de uma reflexão e de um compromisso destinados a garantir que os meios de comunicação social sirvam o diálogo, a paz e o desenvolvimento dos povos na solidariedade, superando as distâncias culturais, as desconfianças e os temores. Enfim, caros amigos, enquanto vos desejo, a vós e à vossa Associação, um trabalho fecundo, desejo manifestar novamente a minha gratidão pela colaboração concreta que, em muitas circunstâncias, oferecestes e ainda ofereceis ao meu ministério, como nas grandiosas celebrações do Natal e da Páscoa, ou por ocasião das minhas viagens. Por conseguinte, também para mim e para a Igreja católica, vós sois aliados e amigos importantes na nossa missão. Neste espírito, é com prazer que invoco a Bênção do Senhor sobre todos vós, os vossos entes queridos e o vosso trabalho. L’OSSERVATORE ROMANO página 6 - sábado 7 de Maio de 2011 edição semanal em português - número 19 Quando o cardeal Joseph Ratzinger explicava quem era João Paulo II Identificou-se com a Igreja e por isso pode ser a sua voz Do volume «Giovanni Paolo II pellegrino per il Vangelo» (Cinisello Balsamo — Torino, Edizioni Paoline — Editrice Saie, 1988), publicamos na íntegra o artigo em que o cardeal Joseph Ratzinger repercorria e fazia sobressair os aspectos fundamentais dos primeiros dez anos de pontificado de Karol Wojtyła. Sem dúvida, João Paulo II é aquele que, nos nossos tempos, se encontrou pessoalmente com o maior número de seres humanos. São incontáveis as pessoas às quais ele apertou a mão, com as quais falou, com as quais rezou e que abençoou. Se o seu elevado ofício pode criar uma certa distância, a sua irradiação pessoal cria ao contrário proximidade. Nem as pessoas simples, incultas e pobres têm dele uma impressão de superioridade, de intocabilidade ou de temor, aqueles sentimentos que atingem com tanta frequência os indivíduos que se encontram nas salas de espera dos poderosos, das autoridades. Além disso, quando elas mantêm contactos pessoais com ele, é como se já o conhecessem há muito tempo, como se falassem com um parente próximo, com um amigo. O titulo de «Pai» (= Papa) não se parece apenas com um título, mas com a expressão daquele relacionamento real que se experimenta verdadeiramente diante dele. Todos conhecem João Paulo II: o seu rosto, o seu modo característico de se mover e de falar; a sua imersão na oração, a sua alegria espontânea. Algumas das suas palavras ficaram gravadas de maneira indelével na memória, a começar pela apaixonada evocação com que ele se apresentou no início do seu pontificado: «Escancarai as portas a Cristo, não tenhais medo dele!». Ou então estas: «Não se pode viver por prova, não se pode amar por prova!». É em palavras como estas que se resume todo um pontificado. É como se ele quisesse abrir em toda a parte caminhos de acesso a Cristo, como se desejasse tornar acessível a todos os homens o caminho rumo à vida verdadeira, rumo ao amor autêntico. Se, como são Paulo, o encontramos incansavalmente sempre a caminho, até «aos confins da terra», se quer permanecer próximo de todos e não perder qualquer ocasião para anunciar a Boa Nova, não é por finalidades publicitárias, nem por sede de popularidade, mas porque nele se realize a palavra apostólica: Charitas Christi urget nos (cf. 2 Cor 5, 14). Quem está ao seu lado sente isto: ele ama o homem, porque ama a D eus. Muito provavelmente conhecemos melhor João Paulo II quando concelebramos com ele e nos deixamos atrair pelo silêncio intenso da sua oração, mais do que quando analisamos os seus livros ou os seus discursos. Pois é precisamente participando na sua oração que compreendemos aquilo que é próprio da sua natureza, para além de qualquer palavra. A partir deste centro explica-se João Paulo II da janela dos seus aposentos olha para a praça de São Pedro também por que motivo ele, embora seja um grande intelectual, que no diálogo cultural do mundo contemporâneo possui uma voz que lhe é própria e importante, conservou também a voz da simplicidade, que lhe permite comunicar com cada pessoa individualmente. É aqui que se manifesta também outro elemento daquela sua grande capacidade de integração, que distingue o Papa vindo da Polónia: o facto de ter trocado o clássico «nós» do estilo pontifical com o «eu» pessoal e imediato do escritor e do orador. Uma semelhante revolução de estilo não deve ser subestimada. À primeira vista, pode parecer-nos óbvia a eliminação de um uso antiquado, que já não condizia com os nossos tempos. Todavia, não podemos esquecer que este «nós» não era apenas uma fórmula de retórica cortesã. Quando o Papa fala, não o faz em seu próprio nome. Naquele momento, em última análise, nada contam as teorias ou as opiniões particulares que ele elaborou durante a sua vida, por mais elevado que possa ser o seu nível intelectual. O Papa não fala como um homem douto individual, com o seu eu particular ou, por assim dizer, como um solista no cenário da história espiritual da humanidade. Ele fala haurindo do «nós» da fé da Igreja inteira, por detrás do qual o eu tem o dever de desaparecer. Vem-me ao pensamento, a este propósito, o grande Papa humanista Pio II, Enea Sílvio Piccolomini, que como Papa às vezes devia dizer, haurindo precisamento do «nós» do seu magistério pontifício, coisas que estavam em contradição com as teorias daquele doutro humanista que, precedentemente, ele mesmo tinha sido. Quando lhe eram indicadas semelhantes contradições, ele costumava respon- der: Eneam reicite, Pium recipite («Esquecei Enea e recebei Pio, o Papa»). Por conseguinte, num certo sentido não é um fenómeno inócuo se o «eu» substitui o «nós». Mas quem tiver a paciência de estudar atentamente todos os escritos do Papa João Paulo II, compreenderá depressa que este Papa sabe distinguir muito bem entre as opiniões pessoais de Karol Wojtyła e o seu ensinamento magisterial como Papa; mas, ele também sabe reconhecer que estas duas coisas não são reciprocamente heterogéneas, mas reflectem uma única personalidade impregnada da fé da Igreja. O eu, a personalidade, passou inteiramente ao serviço do «nós». Não degradou o «nós» no plano subjectivo de opiniões particulares, mas conferiu-lhe simplesmente a densidade de uma personalidade toda plasmada por este «nós», dedicada de maneira completa ao seu serviço. Na minha opinião esta fusão, amadurecida na vida e na reflexão de fé, entre o «nós» e o «eu» une de modo essencial a fascinação desta figura de Papa. A fusão permite-lhe mover-se neste seu sagrado ofício de maneira inteiramente livre e natural; consente-lhe ser, como Papa, inteiramente ele mesmo, sem ter medo de fazer decair demasiado o seu ofício na subjectividade. Mas como cresceu esta unidade? De que modo um caminho pessoal de fé, de pensamento e de vida conduz a tal ponto, ao centro da Igreja? Trata-se de uma interrogação que vai muito além da simples curiosidade biográfica. Uma vez que, precisamente esta «identificação» com a Igreja, sem qualquer véu de hipocrisia ou de esquizofrenia, parece hoje impossível para muitos homens, que se angustiam pela fé. Na teologia tornou-se, entretanto, como que uma relutância do mo- mento mover-se a uma distância crítica em relação à fé da Igreja e fazer com que o leitor sinta que ele, o teólogo, não é tão ingénuo, tão acrítico e tão servil a ponto de dedicar o seu pensamento inteiramente ao serviço desta fé. Deste modo, enquanto a fé é desvalorizada, as propostas apressadas destes teólogos não obtêm disto qualquer reavaliação; envelhecem depressa, como depressa nasceram. Então nasce de novo um grande desejo não só de reconsiderar intelectualmente a fé de modo leal, mas também de a poder viver de uma maneira renovada. A vocação de Karol Wojtyła amadureceu quando ele trabalhava numa empresa de produção química, durante os horrores da guerra e da ocupação. Ele mesmo definiu esse espaço de quatro anos, vivido no ambiente operário, como a fase formativa mais determinante da sua vida. Em tal contexto, ele estudou filosofia, aprendendo-a duramente dos livros, e o saber filosófico apresentava-se-lhe à primeira vista como uma selva impenetrável. Iniciou com a filologia, o amor pelas línguas, combinada com a aplicação artística da linguagem, enquanto representação da realidade numa nova forma de teatro. Deste modo nasceu aquela espécie particular de «filosofia» característica do Papa actual. É um pensamento em dialéctica com o concreto, um pensamento fundado na grande tradição, mas sempre em busca da sua verificação na realidade presente. Um pensamento que brota de um olhar artístico e, ao mesmo tempo, é orientado pelo cuidado do pastor: dirigido ao homem, para lhe indicar o caminho. Parece-me interessante rever por um momento a série cronológica dos autores determinantes que ele encontrou ao longo do percurso da sua formação. O primeiro tinha sido, como ele mesmo refere na entrevistaa que concedeu a André Frossard, um manual de introdução à metafísica. Enquanto os estudantes procuram compreender de certo modo só a lógica inteira da estrutura conceitual exposta no texto e fixá-la na mente em vista do exame, nele teve início, ao contrário, a luta por uma compreensão real, ou seja, para compreender a relação entre conceito e experiência, e depois de dois meses de árduo empenhamento, acendeu-se efectivamente a chamada «lâmpada»: «Descobri como era profundo o sentido de tudo o que antes eu tinha vivido e pressentido». Em seguida, chegou o encontro com Max Scheler e, sucessivamente, com a fenomenologia. Este ramo filosófico tinha a preocupação, depois das controvérsias infinitas a respeito dos confins e das possibilidades do saber humano, de ver de novo simplesmente os fenómenos do modo como eles se manifestam, na sua variedade e na sua riqueza. Esta exactidão do ver, esta inteligência do homem, não a partir de abstracções CONTINUA NA PÁGINA 7 número 19 - edição semanal em português L’OSSERVATORE ROMANO Karol Wojtyła ao lado do cardeal Ratzinger durante a viagem à Alemanha (21-23 de Junho de 1996) CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 6 nem de princípios teóricos, mas procurando captar no amor a sua realidade, foi e permaneceu decisiva para o pensamento do Papa. Finalmente, ele descobriu bastante cedo, antes da vocação ao sacerdócio, a obra de são João da Cruz, através da qual se lhe abriu o mundo da interioridade, «da alma amadurecida na Graça». Os elementos metafísico, místico, fenomenológico e estético, unindo-se uns aos outros, arregalam os olhos para as múltiplas dimensões da realidade, tornando-se no final uma única percepção sintética, capaz de se comparar com todos os fenómenos e de aprender a compreendê-los, precisamente transcendendo-os. A crise da teologia pós-conciliar é em ampla medida a crise dos seus fundamentos filosóficos. À filosofia apresentada nas escolas teológicas faltava a riqueza perceptiva; faltavam-lhe a fenomenologia e também a dimensão mística. Mas quando os fundamentos filosóficos não são esclarecidos, à teologia vem a faltar o terreno debaixo dos pés. Porque então já não é claro até que ponto o homem conhece verdadeiramente a realidade, e quais são os fundamentos a partir dos quais ele pode pensar e falar. Assim parece-me que foi uma disposição da Providência que, nesse tempo, subiu à cátedra de Pedro um «filósofo», que aplica a filosofia não seguindo-a à letra, mas partindo da labuta necessária para fazer valer, diante da realidade e do encontro com o homem que procura e que interroga. Wojtyła foi e é o homem. O seu interesse científico foi cada vez mais caracterizado pela sua vocação de pastor. Daqui, compreende-se que a sua colaboração para a Constituição conciliar sobre a Igreja no mundo contemporâneo, cujo texto se distingue de modo fulcral pela preocupação pelo homem, se tornou uma experiência decisiva para o futuro Papa. «O caminho da Igreja é o homem». Esta temática, extremamente concreta e radical na sua profundidade, encontrou-se sempre e ainda hoje se encontra no centro do seu pensamento, que é ao mesmo tempo acção. O resultado disto foi que a questão da teologia moral se tornou o âmago do seu interesse teológico. Também esta era uma importante predisposição humana para a tarefa do Sumo Pastor da Igreja. Pois a crise da orientação filosófica manifesta-se, sob o ponto de vista teológico, sobretudo como crise da norma teológico-moral. É aqui que se encontra a ligação entre filosofia e teologia, a ponte entre a investigação racional sobre o homem e a tarefa teológica, e ela é tão evidente, que não é possível evitá-la. Onde a antiga metafísica desaba, também os mandamento perdem o seu nexo interior: então, torna-se grande a tentação de os reduzir unicamente ao plano histórico-cultural. Karol Wojtyła tinha aprendido de Scheler a investigar, com uma sensibilidade humana até então desconhecida, a essência da virgindade, do matrimónio, da maternidade e da paternidade, a linguagem do corpo e, por conseguinte, a essência do amor. Ele assumiu no seu pensamento as novas descobertas do personalismo, mas precisamente assim aprendeu a compreender que o próprio corpo fala, que a criação fala e que nos delineia os caminhos a percorrer: o pensamento da era moderna descerrou para a teologia moral uma nova dimensão, e Wojtyła compreendeu-a numa contínua implicação de reflexão e de experiência, de vocação pastoral e especulativa, e entendeu-a na sua unidade com os grandes temas da tradição. Outro elemento também foi importante para este caminho de vida e de pensamento, para a unidade de experiência, pensamento e fé. Toda a batalha deste homem não foi combatida dentro de um círculo mais ou menos particular, unicamente no espaço interno de uma fábrica ou num seminário. Ela foi circundada pelas chamas da grande história. A presença de Wojtyła na fábrica foi uma consequência do aprisionamento dos seus professores universitários. O tranquilo curso académico foi interrompido e substituído por um duríssimo estágio no meio de um povo oprimido. A pertença ao seminário maior do cardeal Sapieha já era, enquanto tal, um gesto de resistência. E assim a questão da liberdade, da dignidade e dos direitos do homem e da responsabilidade política da fé não penetrou no pensamento do jovem teólogo como um sim- ples problema teórico. Era a necessidade, muito real e concreta, daquele momento histórico. Mais uma vez, a situação particular da Polónia, situada no ponto de intersecção entre leste e oeste, se tinha tornado o destino daquele país. Os críticos do Papa observam com frequência que ele, como cidadão polaco, conhece verdadeiramente apenas a piedade tradicional e sentimental do seu país, e portanto não pode compreender plenamente as complicadas questões do mundo ocidental. Nada é mais insensato do que uma observação semelhante, que atraiçoa um desconhecimento completo da história. É suficiente ler a Encíclica Slavorum apostoli para ter a ideia de que precisamente desta herança polaca o Papa tinha necessidade para poder pensar no âmbito de uma multiplicidade de culturas. Sendo a Polónia um ponto de confluência de civilizações, de modo particular das tradições germânicas, românicas, eslavas e greco-bizantinas, a questão do diálogo das várias culturas na Polónia é, sob numerosos aspectos, mais ardente que alhures. E assim, este é um Papa autenticamente ecuménico e deveras missionário, preparado de forma providencial também neste sentido para enfrentar as problemáticas do tempo sucessivo ao Concílio Vaticano II. Evoquemos mais uma vez o interesse pastoral e antropológico do Papa. «O caminho da Igreja é o homem». O significado autêntico desta afirmação, muitas vezes mal entendida, contida na Encíclica sobre o Redentor do homem», só pode ser verdadeiramente compreendido, se nos recordarmos que para o Papa, o «homem» em sentido pleno é Jesus Cristo. A sua paixão pelo homem nada tem a ver com um antropocentrismo auto-suficiente. Aqui, o antropocentrismo está aberto para o alto. Todo o antropocentrismo que vise eliminar Deus como concorrente do homem já se transformou há muito tempo em tédio do homem e para o homem. O homem já não pode considerar-se centro do mundo. Ele tem medo de si mesmo, por causa do seu próprio poder destruidor. Quando o homem é colocado no fulcro, excluindo Deus, o equilíbrio global permanece alterado: então, é válida a palavra da Carta aos Romanos (cf. sábado 7 de Maio de 2011 - página 7 8, 19.21-22), na qual se afirma que o mundo é arrastado para a dor e o gemido do homem; corrompido em Adão, está desde então à espera do aparecimento dos filhos de Deus, da sua libertação. Precisamente porque o Papa ama o homem, ele gostaria de lhe abrir as portas a Cristo. Uma vez que, só mediante a vinda de Cristo os filhos de Adão podem tornar-se filhos de Deus, e o homem e a criação alcançam a sua liberdade. Portanto, o antropocentrismo do Papa é, no seu núcleo mais profundo, teocentrismo. Se a sua primeira Encíclica concentrou-se sobre o homem, as suas três grandes Encíclicas coordenam-se naturalmente entre si num grande tríptico trinitario: no Papa, o antropocentrismo é teocentrismo, porque ele vive a sua vocação pastoral a partir da oração, faz a sua experiência do homem na comunhão com Deus e a partir daqui aprendeu a compreendê-la. Uma última observação. O profundo amor do Papa por Maria é sem dúvida, antes de tudo, uma herança que lhe advém da sua pátria polaca. Mas a Encíclica mariana demonstra como esta piedade mariana foi nele biblicamente aprofundada na oração e na vida. Do mesmo modo em que a sua filosofia se tinha tornado mais concreta e vivificada mediante fenomenologia, ou seja, através do olhar dirigido para a realidade aparente, assim também a relação com Cristo não permanece para o Papa no abstracto das grandes verdades dogmáticas, mas torna-se um encontro humano concreto com o Senhor, em toda a sua realidade e, desta maneira, logicamente, também um encontro com a Mãe, no qual Israel crente e a Igreja orante se tornaram pessoa. Mais uma vez, é sempre e só a partir desta proximidade concreta, em que se vê o mistério de Cristo em toda a riqueza da sua plenitude divino-humana, que a relação com o Senhor recebe o seu calor e a sua vitalidade. E, naturalmente, é algo que se repercute em toda a imagem do homem, o facto de que esta resposta da fé adquiriu uma figura para sempre numa mulher, em Maria. O que quero dizer com tudo isto? A minha finalidade consistia em demonstrar a unidade entre mistério e pessoa, na figura do Papa João Paulo II. Ele «identificou-se» realmente com a Igreja e, por conseguinte, também pode ser a sua voz. Tudo isto não é dito para glorificar uma criatura humana, mas para demonstrar que o crer não extingue o pensar, e não tem necessidade de excluir a experiência do nosso tempo. Pelo contrário: somente a fé confere ao pensamento a sua abertura, e à experiência o seu significado. O homem não se torna livre, quando se faz solista, mas quando consegue encontrar o grande contexto ao qual pertence. Dez anos de pontificado de João Paulo II. A amplitude da sua mensagem já parece ser incalculável, imensa. Desejei referir-me com poucos traços às energias portadoras que constituem a sua força profunda e, ao mesmo tempo, tornar deste modo mais compreensível a meta que ele nos indica. O Senhor queira conservar-nos este Papa ainda por muito tempo, a fim de que ele nos sirva de guia ao longo do caminho rumo ao terceiro milénio da história cristã. L’OSSERVATORE ROMANO número 19 - edição semanal em português Na presença de um milhão e meio de fiéis provenientes de todo o mundo Bento És beato João Paulo XVI II beatificou Karol Wojtyła durante a solene e comovida liturgia porque acreditaste «És Beato, amado Papa João Paulo II, porque acreditaste! Do céu continua a amparar a fé do Povo de Deus». Foi a invocação dirigida por Bento XVI ao seu imediato predecessor, presidindo à sua beatificação no adro da basílica Vaticana na manhã de 1 de Maio, domingo da Divina Misericórdia. O Pontífice celebrou a eucaristia proclamando beato o Papa Wojtyła, na presença de uma multidão imensa de fiéis reunidos na praça de São Pedro, mas também nas ruas adjacentes e em diversos outros lugares de Roma. Amados irmãos e irmãs! Passaram já seis anos desde o dia em que nos encontrávamos nesta Praça para celebrar o funeral do Papa João Paulo II. Então, se a tristeza pela sua perda era profunda, maior ainda se revelava a sensação de que uma graça imensa envolvia Roma e o mundo inteiro: graça esta, que era como que o fruto da vida inteira do meu amado Predecessor, especialmente do seu testemunho no sofrimento. Já naquele dia sentíamos pairar o perfume da sua santidade, tendo o Povo de Deus manifestado de muitas maneiras a sua veneração por ele. Por isso, quis que a sua Causa de Beatificação pudesse, no devido respeito pelas normas da Igreja, prosseguir com discreta celeridade. E o dia esperado chegou! Chegou depressa, porque assim aprouve ao Senhor: João Paulo II é Beato! Desejo dirigir a minha cordial saudação a todos vós que, nesta circunstância feliz, vos reunistes, tão numerosos, aqui em Roma vindos de todos os cantos do mundo: cardeais, patriarcas das Igrejas Católicas Orientais, irmãos no episcopado e no sacerdócio, delegações oficiais, embaixadores e autoridades, pes- A fé de Pedro CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 1 Cristo, único Senhor e salvador do mundo. Dando à Igreja uma orientação renovada: «Aquela carga de esperança que tinha sido cedida de certa forma ao marxismo e à ideologia do progresso, ele reivindicou-a legitimamente para o Cristianismo, restituindo-lhe a fisionomia autêntica». Orientando-a para o futuro de Cristo, o único capaz de responder às expectativas do coração humano e ponto final da história. Mas além da grandeza de um Papa — e da humanidade ainda maior do seu sucessor, que com comoção visível recordou João Paulo II — o que explica a unicidade da sua beatificação, foi sobretudo a dimensão da fé: a fé de Pedro, tal como foi descrita por Bento XVI. Entre o abanar de bandeiras e o repetir-se dos aplausos, entre lágrimas de alegria irrefreáveis e difundidas, num entusiasmo que depois da proclamação deixou lugar a um silêncio impressionante. Na oração a Deus diante do novo beato. Beato porque, como Maria e como Pedro, acreditou e se entregou ao Senhor. soas consagradas e fiéis leigos; esta minha saudação estende-se também a quantos estão unidos connosco através do rádio e da televisão. Estamos no segundo domingo de Páscoa, que o Beato João Paulo II quis intitular Domingo da Divina Misericórdia. Por isso, se escolheu esta data para a presente celebração, porque o meu Predecessor, por um desígnio providencial, entregou o seu espírito a Deus justamente ao anoitecer da vigília de tal ocorrência. Além disso, hoje tem início o mês de Maio, o mês de Maria; e neste dia celebra-se também a memória de São José operário. Todos estes elementos concorrem para enriquecer a nossa oração; servem-nos de ajuda, a nós que ainda peregrinamos no tempo e no espaço; no Céu, a festa entre os Anjos e os Santos é muito diferente! E todavia Deus é um só, e um só é Cristo Senhor que, como uma ponte, une a terra e o Céu, e neste momento sentimo-lo muito perto, sentimo-nos quase participantes da liturgia celeste. «Felizes os que acreditam sem terem visto» (Jo 20, 29). No Evangelho de hoje, Jesus pronuncia esta bem-aventurança: a bem-aventurança da fé. Ela chama de modo particular a nossa atenção, porque estamos reunidos justamente para celebrar uma Beatificação e, mais ainda, porque o Beato hoje proclamado é um Papa, um Sucessor de Pedro, chamado a confirmar os irmãos na fé. João Paulo II é Beato pela sua forte e generosa fé apostólica. E isto traz imediatamente à memória outra bem-aventurança: «Feliz de ti, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne e o sangue que to revelaram, mas sim meu Pai que está nos Céus» (Mt 16, 17). O que é que o Pai celeste revelou a Simão? Que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus vivo. Por esta fé, Simão se torna «Pedro», rocha sobre a qual Jesus pode edificar a sua Igreja. A bem-aventurança eterna de João Paulo II, que a Igreja tem a alegria de proclamar hoje, está inteiramente contida nestas palavras de Cristo: «Feliz de ti, Simão» e «felizes os que acreditam sem terem visto». É a bem-aventurança da fé, cujo dom também João Paulo II recebeu de Deus Pai para a edificação da Igreja de Cristo. Entretanto perpassa pelo nosso pensamento mais uma bem-aventurança que, no Evangelho, precede todas as outras. É a bem-aventurança da Virgem Maria, a Mãe do Redentor. A Ela, que acabava de conceber Jesus no seu ventre, diz Santa Isabel: «Bem-aventurada aquela que acreditou no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito da parte do Senhor» (Lc 1, 45). A bem-aventurança da fé tem o seu modelo em Maria, pelo que a todos nos enche de alegria o facto de a beatificação de João Paulo II ter lugar no primeiro dia deste mês mariano, sob o olhar materno d’Aquela que, com a sua fé, sustentou a fé dos Apóstolos e não cessa de sustentar a fé dos seus sucessores, especialmente de quantos são chamados a sentar-se na cátedra de Pedro. Nas narrações da ressurreição de Cristo, Maria não aparece, mas a sua presença pressente-se em toda a parte: é a Mãe, a quem Jesus confiou cada um dos discípulos e toda a comunidade. De forma particular, notamos que a presença real e materna de Maria aparece assinalada por São João e São Lucas nos contextos que precedem tanto o Evangelho como a primeira Leitura de hoje: na narração da mor- sábado 7 de Maio de 2011 - página 8/9 te de Jesus, onde Maria aparece aos pés da Cruz (Jo 19, 25); e, no começo dos Actos dos Apóstolos, que a apresentam no meio dos discípulos reunidos em oração no Cenáculo (Act 1, 14). Também a segunda Leitura de hoje nos fala da fé, e é justamente São Pedro que escreve, cheio de entusiasmo espiritual, indicando aos recém-baptizados as razões da sua esperança e da sua alegria. Apraz-me observar que nesta passagem, situada na parte inicial da sua Primeira Carta, Pedro exprime-se não no modo exortativo, mas indicativo. De facto, escreve: «Isto vos enche de alegria»; e acrescenta: «Vós amais Jesus Cristo sem O terdes conhecido, e, como n’Ele acreditais sem O verdes ainda, estais cheios de alegria indescritível e plena de glória, por irdes alcançar o fim da vossa fé: a salvação das vossas almas» (1 Pd 1, 6.8-9). Está tudo no indicativo, porque existe uma nova realidade, gerada pela ressurreição de Cristo, uma realidade que nos é acessível pela fé. «Esta é uma obra admirável — diz o Salmo (118, 23) — que o Senhor realizou aos nossos olhos», os olhos da fé. Queridos irmãos e irmãs, hoje diante dos nossos olhos brilha, na plena luz de Cristo ressuscitado, a amada e venerada figura de João Paulo II. Hoje, o seu nome junta-se à série dos Santos e Beatos que ele mesmo proclamou durante os seus quase 27 anos de pontificado, lembrando com vigor a vocação universal à medida alta da vida cristã, à santidade, como afirma a Constituição conciliar Lumem gentium sobre a Igreja. Os membros do Povo de Deus – bispos, sacerdotes, diáconos, fiéis leigos, religiosos e religiosas — todos nós estamos a caminho da Pátria celeste, tendo-nos precedido a Virgem Maria, associada de modo singular e perfeito ao mistério de Cristo e da Igreja. Karol Wojtyła, primeiro como Bispo Auxiliar e depois como Arcebispo de Cracóvia, participou no Concílio Vaticano II e bem sabia que dedicar a Maria o último capítulo da Constituição sobre a Igreja significava colocar a Mãe do Redentor como imagem e modelo de santidade para todo o cristão e para a Igreja inteira. Foi esta visão teológica que o Beato João Paulo II descobriu na sua juventude, tendo-a depois conservado e aprofundado durante toda a vida; uma visão, que se resume no ícone bíblico de Cristo crucificado com Maria ao pé da Cruz. Um ícone que se encontra no Evangelho de João (19, 2527) e está sintetizado nas armas episcopais e, depois, papais de Karol Wojtyła: uma cruz de ouro, um «M» na parte inferior direita e o lema «Totus tuus», que corresponde à conhecida frase de São Luís Maria Grignion de Monfort, na qual Karol Wojtyła encontrou um princípio fundamental para a sua vida: «Totus tuus ego sum et omnia mea tua sunt. Accipio Te in mea omnia. Praebe mihi cor tuum, Maria – Sou todo vosso e tudo o que possuo é vosso. Tomo-vos como toda a minha riqueza. Dai-me o vosso coração, ó Maria» (Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, n. 266). No seu Testamento, o novo Beato deixou escrito: «Quando, no dia 16 de Outubro de 1978, o conclave dos cardeais escolheu João Paulo II, o Card. Stefan Wyszyński, Primaz da Polónia, disse-me: “A missão do novo Papa será a de introduzir a Igreja no Terceiro Milénio”». E acrescenta: «Desejo mais uma vez agradecer ao Espírito Santo pelo grande dom do Concílio Vaticano II, do qual me sinto devedor, juntamente com toda a Igreja e sobretudo o episcopado. Estou convencido de que será concedido ainda por muito tempo, às sucessivas gerações, haurir das riquezas que este Concílio do século XX nos prodigalizou. Como Bispo que participou no evento conciliar, desde o primeiro ao último dia, desejo confiar este grande património a todos aqueles que são, e serão, chamados a realizá-lo. Pela minha parte, agradeço ao Pastor eterno que me permitiu servir esta grandíssima causa ao longo de todos os anos do meu pontificado». E qual é esta «causa»? É a mesma que João Paulo II enunciou na sua primeira Missa solene, na Praça de São Pedro, com estas palavras memoráveis: «Não tenhais medo! Abri, melhor, escancarai as portas a Cristo!». Aquilo que o Papa recém-eleito pedia a todos, começou, ele mesmo, a fazê-lo: abriu a Cristo a sociedade, a cultura, os sistemas políticos e económicos, invertendo, com a força de um gigante — força que lhe vinha de Deus — uma tendência que parecia irreversível. Com o seu testemunho de fé, de amor e de coragem apostólica, acompanhado por uma grande sensibilidade humana, este filho exemplar da Nação Polaca ajudou os cristãos de todo o mundo a não ter medo de se dizerem cristãos, de pertencerem à Igreja, de falarem do Evangelho. Numa palavra, ajudou-nos a não ter medo da verdade, porque a verdade é garantia de liberdade. Sintetizando ainda mais: deu-nos novamente a força de crer em Cristo, porque Cristo é o Redentor do homem – Redemptor hominis: foi este o tema da sua primeira Encíclica e o fio condutor de todas as outras. Karol Wojtyła subiu ao sólio de Pedro trazendo consigo a sua reflexão profunda sobre a confrontação entre o marxismo e o cristianismo, centrada no homem. A sua mensagem foi esta: o homem é o caminho da Igreja, e Cristo é o caminho do homem. Com esta mensagem, que é a grande herança do Concílio Vaticano II e do seu «timoneiro» – o Servo de Deus Papa Paulo VI –, João Paulo II foi o guia do Povo de Deus ao cruzar o limiar do Terceiro Milénio, que ele pôde, justamente graças a Cristo, chamar «limiar da esperança». Na verdade, através do longo caminho de preparação para o Grande Jubileu, ele conferiu ao cristianismo uma renovada orientação para o futuro, o futuro de Deus, que é transcendente relativamente à história, mas incide na história. Aquela carga de esperança que de certo modo fora cedida ao marxismo e à ideologia do progresso, João Paulo II legitimamente reivindicou-a para o cristianismo, restituindo-lhe a fisionomia autêntica da esperança, que se deve viver na história com um espírito de «advento», numa existência pessoal e comunitária orientada para Cristo, plenitude do homem e realização das suas expectativas de justiça e de paz. Por fim, quero agradecer a Deus também a experiência de colaboração pessoal que me concedeu ter longamente com o Beato Papa João Paulo II. Se antes já tinha tido possibilidades de o conhecer e estimar, desde 1982, quando me chamou a Roma como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, pude durante 23 anos permanecer junto dele crescendo sempre mais a minha veneração pela sua pessoa. O meu serviço foi sustentado pela sua profundidade espiritual, pela riqueza das suas intuições. Sempre me impressionou e edificou o exemplo da sua oração: entranhava-se no encontro com Deus, inclusive no meio das mais variadas incumbências do seu ministério. E, depois, impressionou-me o seu testemunho no sofrimento: pouco a pouco o Senhor foi-o despojando de tudo, mas permaneceu sempre uma «rocha», como Cristo o quis. A sua humildade profunda, enraizada na união íntima com Cristo, permitiu-lhe continuar a guiar a Igreja e a dar ao mundo uma mensagem ainda mais eloquente, justamente no período em que as forças físicas definhavam. Assim, realizou de maneira extraordinária a vocação de todo o sacerdote e bispo: tornar-se um só Aos leitores de L’Osservatore Romano, aos fiéis de Roma e aos peregrinos provenientes do mundo inteiro, dirijo as minhas mais cordiais boas-vindas no dia da Beatificação do Papa João Paulo II. Esta festa da fé seja uma preciosa ocasião para abrir as portas a Cristo e um vigoroso convite a viver, com a generosidade do novo Beato, o Evangelho do Amor. Concedo a todos a minha Bênção! com aquele Jesus que diariamente recebe e oferece na Igreja. Feliz és tu, amado Papa João Paulo II, porque acreditaste! Continua do Céu – nós te pedimos – a sustentar a fé do Povo de Deus. Muitas vezes, do Palácio, tu nos abençoaste nesta Praça! Hoje nós te pedimos: Santo Padre, abençoa-nos! Amen. No final da missa o Papa guiou a prece mariana do Regina Caeli, introduzindo-a com a saudação nas várias línguas às delegações oficiais, às autoridades civis e eclesiásticas e aos fiéis de todo o mundo, dizendo em português: Dirijo uma cordial saudação aos peregrinos de língua portuguesa, de modo especial aos Cardeais, Bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas, e numerosos fiéis, bem como às Delegações oficiais dos países lusófonos vindos para a Beatificação do Papa João Paulo II. A todos desejo a abundância dos dons do Céu por intercessão do novo Beato, cujo testemunho deve continuar a ressoar nos vossos corações e nos vossos lábios, repetindo como ele no início do seu pontificado: «Não tenhais medo! Abri as portas, melhor, escancarai as portas a Cristo!«. Assim Deus vos abençoe! página 10 - sábado 7 de Maio de 2011 L’OSSERVATORE ROMANO edição semanal em português - número 19 O cardeal prefeito da Congregação para as Causas dos Santos falou sobre a beatificação de João Paulo II Um acontecimento extraordinário NICOLA GORI Um acontecimento extraordinário e universal, que abrange não só a Igreja mas também o mundo inteiro. O cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, fala nestes termos da beatificação de João Paulo II. Na presente entrevista concedida ao nosso jornal, o purpurado sublinha os aspectos da santidade do Papa Karol Wojtyła e afirma que imediatamente depois da beatificação terá início o processo de canonização, também tendo em consideração — acrescenta o cardeal — que todos os dias chegam notícias de graças alcançadas através da intercessão do Pontífice polaco. Por que a beatificação de João Paulo II pode ser definida como um acontecimento extraordinário? Trata-se de um acontecimento extraordinário que interessa e comove não só a Igreja, mas o mundo inteiro. Trata-se da glorificação de um Papa que cumulou com a sua figura a segunda metade do século passado e o início do presente milénio. O novo beato receberá um culto universal? A beatificação, por si só, já permitiria um culto local. No que diz respeito a João Paulo II, existe a possibilidade, apresentando-se o pedido, de poder celebrar a sua festa litúrgica também fora de Roma. Isto porque a fama de santidade e de milagres do Papa Wojtyła é tão difundida na Igreja inteira, que não se podia deixar de conceder esta excepção à regra geral. Qual é o fio condutor que, na sua opinião, permeia e caracteriza o pontificado de Karol Wojtyła? É o impulso, o entusiasmo espiritual de dar testemunho da presença de Deus na história da humanidade e de fazer com que Jesus Cristo seja conhecido pelo mundo inteiro. Pensemos na actualíssima, ainda hoje, Encíclica Redemptoris missio, com a corajosa proclamação de Cristo Salvador universal. As numerosíssimas viagens apostólicas do Papa Wojtyła eram verdadeiras missões ad gentes, para anunciar Cristo e o seu Evangelho de verdade e de bondade a todos os povos, também àqueles que ainda não O conhecem. Pode-se identificar um «centro» no seu magistério pontifício? O centro é Jesus Cristo, Senhor do universo e da história. É em volta desta sólida realidade cristocêntrica que se reúnem, depois, todos os demais elementos do seu magistério pontifício. Em primeiro lugar, a sua devoção mariana, que promana deste grandioso entusiasmo por Cristo. Não é por acaso que, na Encíclica Redemptoris mater, Nossa Senhora é apresentada como fiel e eficaz medianeira e cooperadora do Filho, a favor da humanidade. Ainda ao redor de Cristo, como ramos no tronco, são inseridas as demais realida- des da fé cristã, como a doutrina trinitária, a teologia moral, a catequese, a espiritualidade, a escatologia, o direito e a liturgia. O que se poderia acrescentar acerca do aspecto mariano? O aspecto mariano do magistério do Papa Wojtyła acentuou-se depois que sobreviveu ao atentado de 13 de Maio de 1981, o que constitui o ponto de partida de um pontificado mais fortemente consciente de ser sustentado pela proximidade materna de Maria, protectora desde sempre da sua existência, como o seu mote Totus tuus. Ele foi também o Papa da «Salvifici doloris». Digamos que, principalmente com os seus últimos anos de enfermidade, o Papa Wojtyła deixou-nos uma autêntica catequese viva sobre o significado salvífico do sofrimento. Uma catequese não pregada, mas vivida. O mundo inteiro compreendeu-a. Foi daqui que nasceu também o grande fascínio que João Paulo II exerceu no final da sua vida. Nos últimos meses, ele já não tinha voz, mas falava de modo eloquente com o corpo humilhado pela doença e oferecido como sacrifício ao Senhor. Isto ficou tão gravado no povo de Deus, que a partir da sua morte teve início aquela peregrinação ininterrupta até ao seu sepulcro, que ainda agora continua. Nada deteve a devoção dos fiéis. Até nos dias frios e chuvosos, há sempre uma longa fila de pessoas que esperam pacientemente para ir rezar junto do seu túmulo nas Grutas do Vaticano. Qual é a sua herança principal? Eu sublinharia duas: a primeira é missionária, e a segunda espiritual. Antes de tudo, o Papa Wojtyła edu- cou os fiéis a serem corajosos para viver a fé, mas também para proclamar a sua identidade, sem ter medo de testemunhar e de anunciar Cristo a quem crê — também disto hoje há necessidade — e inclusive àqueles que não acreditam. Mediante as suas viagens, até em terras tradicionalmente cristãs, o Papa Wojtyła foi sobretudo um missionário. Mas ele foi inclusive — e esta é a sua segunda herança — um grande místico, um gigante da fé. Era um adorador do Deus Trindade, através da Eucaristia. Os cristãos de hoje, que muitas vezes são distraídos e superficiais, deveriam aprender dele a rezar, a adorar e a ser mais ricos interiormente. Existe a possibilidade de chegar em breve tempo à sua canonização? Creio que sim. Imediatamente após a sua beatificação, a postulação realizará uma selecção e uma avaliação das graças e dos favores, que os fiéis do mundo inteiro alcançam por intercessão de João Paulo II. Sucessivamente, passar-se-á a preparar a documentação necessária. Ao chegar à Congregação, o dossier seguirá os passos obrigatórios do procedimento canónico previsto. Antes de tudo, haverá o controle da parte dos médicos ou dos técnicos, quer se trate de uma cura ou de um perigo evitado, ou de outro motivo ainda. Depois, há uma segunda passagem, que diz respeito aos consultores teólogos, que devem verificar a correspondência entre causa e efeito, entre a oração de pedido de intercessão ao beato e o efeito de cura ou de perigo evitado. Em seguida, passa-se à sessão ordinária dos membros cardeais e bispos da Congregação, para o seu voto definitivo sobre o milagre. Finalmente, o prefeito é recebido em audiência particular pelo Papa, que autorizará a publicação do decreto relativo ao milagre ocorrido. Uma vez concluída esta fase, o Sumo Pontífice anuncia num consistório público também a data da canonização. Já existem indicações de outros presumíveis milagres ocorridos graças à intercessão de Karol Wojtyła? Devo dizer que todos os dias nos são enviadas notícias de graças alcançadas mediante a sua intercessão. Naturalmente, nós transmitimos tudo à postulação, porque não somos nós que recolhemos esta documentação. É a postulação que faz a selecção. As pessoas muitas vezes ignoram estas fases. Precisamente nestes dias, li um livro em que uma escritora dá testemunho de um presumível milagre alcançado graças à intercessão do Papa Wojtyła para o seu filho de nove anos. Neste livro são reunidos também todos os outros milagres ocorridos mediante a intercessão dos santos e dos beatos glorificados durante o seu pontificado. É importante esta reflexão «ampliada», porque a missão deste Papa consistiu também em valorizar a santidade presente de vários modos na Igreja católica. Com efeito, ele beatificou mais de mil servos de Deus, inclusive alguns grupos bastante consistentes de mártires, e canonizou cerca de quinhentos santos. Tudo isto implica uma multiplicidade de graças e de milagres, que praticamente inundaram a Igreja de favores celestiais. Trata-se de uma espécie de efusão de graças, que se expande sobre a Igreja e sobre o mundo — não só sobre os católicos — alcançada através da obra desta plêiade de beatos e de santos. Sob este ponto de vista, pode-se ver o Papa como uma espécie de «fonte» de bem para todos. O próprio João Paulo II interveio para simplificar o andamento dos processos de canonização da Congregação. Era necessária uma actualização? A legislação canónica procura sempre abreviar os procedimentos. Dos milhares de causas em curso, sobressai a exigência de chegar com solicitude ao seu bom êxito. São as chamadas recomendações, que para nós são importantes, porque demonstram que a causa está viva e os autores estão interessados no bom fim da mesma. Isto não significa que o andamento da causa progride com uma pressa superficial e sem os devidos critérios de profissionalidade. Quer dizer, ao contrário, que está viva a fama de santidade e de milagres de um servo de Deus, e que uma causa é tirada num certo sentido do esquecimento e levada para a meta almejada. Para nós, é importante que os autores se interessem e mantenham viva a causa mediante o diálogo contínuo com a Congregação para as Causas dos Santos, directamente ou através dos postuladores. Sinto-me muito feliz, quando os superiores-gerais ou os bispos vêm soCONTINUA NA PÁGINA 11 número 19 - edição semanal em português L’OSSERVATORE ROMANO sábado 7 de Maio de 2011 - página 11 to não é apenas um exemplo a contemplar, mas deve ser imitado. Este é o significado da santidade. Neste tempo intermediário, entre a beatificação e a canonização, a figura e o testemunho do Papa Wojtyła deveriam confluir sobre a exemplaridade dos cristãos, chamados a imitar as suas virtudes e as suas atitudes. De modo concreto, penso no compromisso para contrastar o ateísmo ideológico e principalmente o ateísmo prático, que hoje diz respeito a nações inteiras e a baptizados individualmente. Refiro-me à indiferença e ao relativismo ético, em que encontram raiz fenómenos como o aborto, a eutanásia, a manipulação genética incontrolada e a contracepção. O Papa Wojtyła sugeriu-nos continuamente a atitude de defesa e de acolhimento da vida nascente. A beatificação do Papa deve produzir estes efeitos. A este propósito, não podemos esquecer que, diante de certas questões teológicas e éticas, João Paulo II convidava a dirigir-se precisamente ao cardeal Joseph Ratzinger. 8 de Setembro de 1997: o cardeal Joseph Ratzinger apresenta ao Papa o Catecismo da Igreja Católica CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 10 licitar a sua causa, porque deixam compreender que as congregações religiosas ou as dioceses estão compromissadas e interessadas. Repito, os pedidos são importantes para nós, diria que são até indispensáveis, porque nos fazem compreender que a causa é de grande interesse dos fiéis. Concretamente, quais são as facilitações introduzidas pela legislação de João Paulo II? A maior facilitação diz respeito à necessidade de aprovar um só milagre para a beatificação, e outro para a canonização. Ponderando sobre isto, conclui-se que dois milagres para a canonização constituem uma garantia extremamente rigorosa e convincente do «selo divino» sobre a santidade de um servo de Deus ou de um beato. Sem contar o facto de que o exame de um «acontecimento milagroso» da parte dos peritos (médicos ou técnicos) é particularmente rigoroso. É necessário saber que no seu campo, os cientistas, os médicos e os técnicos são deixados completamente livres de agir e de tirar as suas conclusões, em conformidade com a ciência e a consciência. Deste ponto de vista a congregação, o prefeito, o secretário e os demais colaboradores não interferem de maneira alguma nos seus debates e conclusões: respeitam-nas, simplesmente. João Paulo II abreviou um pouco o procedimento, também porque às vezes as causas se prolongavam durante séculos. Houve outros documentos legislativos? Não, mas em 2007 a Congregação para as Causas dos Santos, a fim de facilitar o procedimento canónico, publicou a instrução Sanctorum Mater. Nela está descrito passo por passo o processo a seguir na fase diocesana, que é a etapa inicial mais importante para a causa. Para dar uma ideia, trata-se de pôr em movimento um comboio, de tal modo que chegue bem e pontual ao seu destino. Por conseguinte, com esta finalidade no início de cada causa são necessários discernimento e coragem. Por exemplo, o bispo deve decidir sobre a oportunidade ou não de dar início a um processo e, em seguida, pôr em acto todas as competências que servem para recolher os testemunhos, para verificar os escritos e para apresentar um juízo sobre a fama de santidade e dos sinais, ou seja, sobre aqueles favores divinos que demonstram como o servo de Deus levou uma vida divina trinitária, da qual derivam as graças. Este processo é descrito muito bem pela Instrução, que constitui um vade-mécum indispensável para a correcta elaboração de uma causa. O processo romano é facilitado enormemente pelo esmero com que um inquérito diocesano foi elaborado. Além dos médicos, quem são os técnicos aos quais é confiado o exame dos presumíveis milagres? Para chegar à beatificação, é necessária uma cura milagrosa, ou perigo evitado, ou ainda algum outro sinal prodigioso. Cito um exemplo. Um operário estava ao volante de um veículo que transportava traves de ferro. Procedia em alta velocidade, quando percebeu que os travões do veículo já não funcionavam. Numa curva, o veículo virou com a sua carga e caiu num precipício. Naquele instante, o homem invocou o servo de Deus Eustáquio Kugler, depois beatificado em Regensburg. As traves perfuraram a cabina e destruíram o veículo, mas o homem ficou ileso. É claro que aqui se trata de uma matéria reservada sobretudo aos técnicos da estrada, aos peritos mecânicos e àqueles que estão envolvidos na verificação e na avaliação destes acidentes. Outra pessoa que evitou um perigo graças a um milagre atribuído a Padre Carlo Gnoc- chi: um electricista que trabalhava em contacto com a alta tensão, que correu o risco de morrer. Invocou Padre Gnocchi e permaneceu ileso. É claro que também neste caso recorremos ao parecer de técnicos especializados. A partir do momento da beatificação de João Paulo II, caso se examine um seu presumível milagre, quanto tempo pode passar, antes que se chegue à sua canonização? Não existem tempos técnicos específicos. O processo depende de vários factores, entre os quais a solicitude do postulador e a dos técnicos ou dos médicos. Por outro lado, a Congregação não pode intervir no que se refere ao exame que levam a cabo os médicos individualmente, mas nem sequer pode pedir que acelerem os tempos. Estes especialistas devem ter à disposição todo o tempo necessário para a avaliação de um caso. Para Karol Wojtyła, depois, trata-se de uma avaliação que exige ainda mais rigor e atenção, porque estamos a falar de um protagonista que tem uma dimensão universal. Temos que garantir o tempo necessário de amadurecimento dos juízos, das avaliações e também das conclusões. Falando de prazos, gostaria de acrescentar algo a propósito do espaço de tempo que entrecorre entre uma beatificação e uma canonização. Quer se trate de meses, ou de anos, de qualquer modo não é um tempo perdido ou inútil. Uma canonização é um acontecimento espiritual que deve também amadurecer. Para o alcançar, há um tempo providencial, em que seria necessário alcançar duas finalidades. A primeira consiste em conhecer em maior medida a figura do beato, neste caso do Papa Wojtyła. Refiro-me ao conhecimento verdadeiro, o da sua doutrina, dos seus gestos, do seu comportamento e da sua abertura missionária. A segunda consiste na imitação das suas virtudes. Um bea- O cardeal Ratzinger era uma segurança, no que se referia à doutrina. João Paulo II — como lemos no livro de recordações que acabou de ser publicado pelo cardeal secretário de Estado Tarcisio Bertone Un cuore grande, e como eu mesmo posso confirmar, dado que durante quase três anos fui secretário da Congregação para a Doutrina da Fé — tinha uma confiança ilimitada em Ratzinger. A tal ponto, que lhe confiou uma obra fundamental, como a da preparação do Catecismo da Igreja Católica e do seu Compêndio. Com efeito, ele sabia que o cardeal Joseph Ratzinger teria garantido aos dados da fé uma dignidade e uma integridade admiráveis. Recordo também que Ratzinger, como presidente da comissão especial para a preparação do Compêndio, entregou ao Papa — nessa época internado na policlínica Agostino Gemelli — o texto definitivo para a sua promulgação. Numa carta muito bonita, João Paulo II assegurou-lhe que o teria promulgado quando tivesse obtido alta do hospital. Depois, quando o cardeal Ratzinger foi eleito Papa, numa das suas primeiras audiências, permitime perguntar-lhe o que devia fazer do Compêndio. A sua resposta foi que ele mesmo o teria promulgado. Com efeito, um dos primeiros actos do seu magistério foi precisamente a promulgação do Compêndio, a 28 de Junho de 2005, memória de santo Ireneu. Naquela circunstância teve lugar a entrega solene do texto a um cardeal, a um arcebispo (fui precisamente eu que o recebi), a um bispo, a um sacerdote, a um catequista, a duas catequistas, a uma religiosa, a uma família, a um jovem e a uma criança: um modo para fazer ver que o Compêndio representava um instrumento extraordinário e universal de catequese autêntica. Gostaria de acrescentar e sublinhar que a grande harmonia e consonância de fé e de doutrina entre João Paulo II e o cardeal Ratzinger — futuro Bento XVI — encontra precisamente neste texto uma espécie de síntese. O Compêndio pode ser chamado o Catecismo de dois Papas. página 12 - sábado 7 de Maio de 2011 L’OSSERVATORE ROMANO edição semanal em português - número 19 Missa de acção de graças presidida pelo cardeal secretário de Estado Tarcisio Bertone Abraçou o mundo com a oração Os três dias de celebrações para a beatificação de João Paulo II concluíramse na manhã de 2 de Maio, com a solene missa de acção de graças, presidida na praça de São Pedro pelo cardeal secretário de Estado, cuja homilia publicamos a seguir. «Simão, filho de João, amas-me? (...) Senhor, sabes tudo, Tu sabes que te amo» (Jo 21, 17). Eis o diálogo entre o Ressuscitato e Pedro. É o diálogo que precede o mandato: «Apascenta as minhas ovelhas», mas é um diálogo que primeiro perscruta toda a vida do homem. São porventura estas, a pergunta e a resposta que marcaram toda a vida e missão do Beato João Paulo II? Foi ele mesmo que o expressou em Cracóvia, em 1999, afirmando: «Hoje, sinto-me chamado de modo particular a agradecer a esta milenária comunidade de pastores de Cristo, clérigos e leigos, porque graças ao testemunho da sua santidade, graças a este ambiente de fé que por dez séculos eles formaram e formam em Cracóvia, foi possível no fim deste milénio, precisamente nas margens do Vístula, aos pés da Catedral de Wawel, pronunciar a exortação de Cristo: “Pedro, apascenta os meus cordeiros” (Jo 21, 15). Foi possível apoiar a debilidade do homem no poder da eterna fé, esperança e caridade nesta terra, e dar esta resposta: “Na obediência da fé diante de Cristo, meu Senhor, confiando-me à Mãe de Cristo e da Igreja — consciente das grandes dificuldades — aceito”». Sim, foi este diálogo de amor entre Cristo e o homem que caracterizou toda a vida de Karol Wojtyła e que o conduziu não só ao serviço fiel à Igreja, mas também à sua total dedicação pessoal a Deus e aos homens, que distinguiu o seu caminho de santidade. Penso que todos nós recordamos que no dia do seu funeral, durante a cerimónia, num certo momento o vento fechou docilmente as páginas do Evangelho colocado sobre o caixão. Era como se o vento do Espírito quisesse assinalar o fim da aven- tura humana e espiritual de Karol Wojtyła, inteiramente iluminada pelo Evangelho de Cristo. Deste Livro, ele descobria os desígnios de Deus para a humanidade, para si mesmo, mas principalmente aprendia Cristo, o seu rosto e o seu amor, que para Karol era sempre um chamamento à responsabilidade. À luz do Evangelho, ele lia a história da humanidade e as vicissitudes de cada homem e mulher, que o Senhor tinha colocado no seu caminho. Era daqui, do encontro com Cristo no Evangelho, que brotava a sua fé. Era um homem de fé, um homem de Deus, um homem que vivia de Deus. A sua vida era uma oração contínua e constante, uma prece que abraçava com amor cada habitante do nosso planeta, criado à imagem e semelhança de Deus, e por isso digno de todo o respeito; redimido com a morte e ressurreição de Cristo, tornou-se por isso verdadeiramente glória viva de Deus (Gloria Dei vivens homo, santo Ireneu). Graças à fé que se manifestava sobretudo na oração, João Paulo II era um autêntico defensor da dignidade de cada ser humano e não mero combatente por ideologias político-sociais. Para ele, cada mulher, cada homem, era uma filha, um filho de Deus, independentemente da raça, da cor da pele, da proveniência geográfica e cultural, e até do credo religioso. A sua relação com cada pessoa resume-se nesta frase maravilhosa, que ele escreveu: «O outro pertence-me». Todavia, a sua oração era também uma intercessão constante por toda a família humana, pela Igreja, por cada comunidade de fiéis, em toda a terra — talvez tanto mais eficaz, quanto mais marcada pelo sofrimento que caracterizou as várias fases da sua existência. Não é acaso daqui — da oração, da prece ligada a muitas vicissitudes dolorosas, suas e dos outros — que derivava a sua preocupação pela paz no mundo, pela convivência pacífica dos povos e das nações? Ouvimos na primeira Leitura: «Como são belos sobre as montes, os pés do mensageiro que anuncia a paz» (Is 52, 7). Hoje damos graças ao Senhor por nos ter oferecido um Pastor como ele. Um Pastor que sabia ler os sinais da presença de Deus na história humana, e depois anunciava as Suas grandes obras no mundo inteiro, em todas as línguas. Um Pastor que mantinha radicado em si mesmo o sentido da missão, do compromisso na evangelização, na pregação da palavra de Deus em toda a parte, no seu anúncio sobre os telhados: «Como são belos sobre as montanhas os pés (...) do mensageiro que anuncia as boas novas, que anuncia a libertação e que diz a Sião: “O teu Deus reina!”» (Ibidem). Hoje damos graças ao Senhor por nos ter oferecido uma Testemunha como ele, tão credível, tão transparente, que nos ensinou como se deve viver a fé e defender os valores cristãos, a começar pela vida, sem complexos e sem temores; como se deve dar testemunho da fé com coragem e coerência, praticando as BemAventuranças na experiência quotidiana. Damos graças ao Senhor por nos ter oferecido um guia como ele que, vivendo profundamente a fé fundamentada num vínculo sólido e íntimo com Deus, sabia transmitir aos homens a verdade segundo a qual «Cristo Jesus, que morreu, ou melhor, que ressuscitou e está à direita de Deus, é quem intercede por nós!» e «somos mais que vencedores pela virtude daquele que nos amou (...) e nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem as alturas, nem os abismos, nem qualquer outra criatura nos poderá separar do amor que Deus nos testemunha em Cristo Jesus, nosso Senhor» (Rm 8, 34.37-39). A vida, o sofrimento, a morte e a santidade de João Paulo II são um testemunho e uma confirmação tangível e certa disto. Damos graças ao Senhor por nos ter oferecido um Papa que soube conceder à Igreja católica não só uma projecção universal e uma autoridade moral a nível mundial, jamais conhecidas, mas também, especialmente mediante a celebração do Grande Jubileu do Ano 2000, uma visão mais espiritual, mais bíblica e mais centrada na palavra de Deus. Uma Igreja que soube renovar-se, delinear uma «nova evangelização», intensificar os vínculos ecuménicos e inter-religiosos, reencontrando inclusive os caminhos de um diálogo frutuoso com as novas gerações. E finalmente damos graças ao Senhor por nos ter oferecido um Santo como ele. Todos nós tivemos a oportunidade — alguns de perto, outros de longe — de entrever como eram coerentes a sua humanidade, a sua palavra e a sua vida. Ele era um homem verdadeiro, porque inseparavelmente ligado Àquele que é a Verdade. Seguindo Aquele que é o Caminho, era um homem sempre a caminho, sempre orientado para o maior bem de toda a pessoa, para a Igreja, para o mundo e para a meta que para todos os fiéis é a glória do Pai. Ele era um homem vivo, porque repleto da Vida que é Cristo, sempre aberto à sua graça e a todos os dons do Espírito Santo. A sua santidade foi vivida, especialmente nos últimos meses e semanas, em total fidelidade à missão que lhe fora confiada, até à morte. Embora não se tratasse de um verdadeiro martírio, todos nós vimos como se verificaram na sua vida as palavras que ouvimos no Evangelho de hoje: «Em verdade, em verdade te digo: quando eras mais jovem, cingias-te e andavas aonde querias. Mas quando fores velho, estenderás as tuas mãos, e outro cingir-te-á e levar-te-á para onde não queres» (Jo 21, 18). Todos nós vimos como lhe foi tirado tudo aquilo que, humanamente, podia impressionar: a força física, a expressão do corpo, a possibilidade de se mover, e até a palavra. E então, mais do que nunca, ele confiou a sua vida e a sua missão a Cristo, porque apenas Ele pode salCONTINUA NA PÁGINA 13 número 19 - edição semanal em português L’OSSERVATORE ROMANO sábado 7 de Maio de 2011 - página 13 Karol Wojtyła e o mundo do sofrimento Nos doentes viu o rosto do Crucificado ZYGMUNT ZIMOWSKI* «Gostaria que hoje, através da Maria, fosse expressa a minha gratidão por este dom do sofrimento». São as palavras pronunciadas por João Paulo II a 29 de Maio de 1994, de regresso da policlínica Gemelli onde fora hospitalizado por causa de uma fractura. «Quero agradecer — continuava — por este dom. Compreendi que é um dom necessário». Karol Wojtyła conheceu desde o início muitos aspectos da dor: a perda prematura de entes queridos e, quase no final da sua vida, de capacidades físicas, como as habilidades motoras e a palavra. Entre os lutos sofridos, a morte da mãe, ocorrido em 1929, quando tinha apenas oito anos, depois a do irmão médico e, alguns anos mais tarde, a do pai. A tudo isso acrescentaram-se os anos do pesadelo da guerra e da ocupação nazi e, sucessivamente, do regime comunista filo-soviético na nativa Polónia. Logo após alguns anos da sua nomeação para Bispo de Roma, a 16 de Outubro de 1978, começou o seu calvário físico. Como é possível não lembrar o atentado sofrido a 13 de Maio de 1981 na praça de São Pedro e as sucessivas numerosas hospitalizações na policlínica Gemelli que, precisamente por isso, ele próprio definiu numa ocasião o «terceiro Vaticano» depois do Estado da Cidade do Vaticano e do Castel Gandolfo. Aquele homem que, desde do início do seu pontificado, manifestou visivelmente o seu amor pelas actividades desportivas e os passeios na montanha, adoeceu de Parkinson, perdeu progressivamente a capacidade de caminhar de forma autónoma e, pouco antes da morte, a 2 de Abril de 2005, ficou quase totalmente sem o uso da palavra. Todavia, nada lhe impediu de continuar a exprimir o próprio testemunho em todas as actividades pastorais nas quais — os biógrafos concordam — manifestou sempre uma atenção especial pelos idosos, os doentes, sobretudo se eram crianças e jovens, os deficientes e os seus acompanhadores, os agentes de saúde. Como recordou o cardeal Roberto Tucci num artigo publicado em 2005 em «La Civiltà Cattolica», «Nestes encontros havia uma intensa participação que demonstrava quanto vivamente ele visse nos sofredores o rosto de Cristo crucificado». Com efeito, o próprio João Paulo II sublinhou, na carta apostólica Salvifici doloris, publicada a 11 de Fevereiro de 1984, que «em Cristo cada um dos homens se torna o caminho da Igreja». Isto acontece especialmente quando na vida da pessoa «entra o sofrimento», definido «mistério intangível». «Aquilo que nós expressamos com a palavra “sofrimento” — explicava — parece ser particularmente essencial à natureza humana. É algo tão profundo como o homem, precisamente porque manifesta a seu modo aquela profundidade que é própria do homem e, a seu modo, a supera. O sofrimento parece pertencer à transcendência do homem; é um daqueles pontos em que o homem está, em certo sentido, “destinado” a superarse a si mesmo, e é chamado de modo misterioso a fazê-lo». Além da Salvifici doloris, se se tomar em consideração a Redemptor hominis e a Dives in misericordia, sobressai uma continuidade do pensamento da Igreja acerca do mérito salvífico da paixão e da morte de Jesus e, por conseguinte, o direito e o dever da Igreja de circundar de amor todos os doentes e os sofredores. Por um lado, um serviço eclesial da caridade, e por outro, uma oportunidade para os doentes de contribuir com os seus sofrimentos para a redenção que nos é oferecida por Jesus crucificado. Além disso, a grande atenção dedicada pelo Papa Wojtyła ao mundo do sofrimento concretizou-se com a instituição de várias realidades destinadas a promover e valorizar os doentes e quem lhes dá assistência. Com o motu proprio Dolentium hominum deu vida, a 11 de Fevereiro de 1985, à Pontifícia Comissão pro Abraçou o mundo com a oração CONTINUAÇÃO DA PÁGINA 12 var o mundo. Sabia que a sua debilidade corporal fazia ver ainda mais claramente o Cristo que age na história. E oferecendo os seus sofrimentos a Ele e à sua Igreja, deunos a todos uma última, grandiosa, lição de humanidade e de abandono nos braços de Deus. «Cantai ao Senhor um cântico novo, cantai ao Senhor, homens de toda a terra. Cantai ao Senhor, bendizei o seu nome!». Entoemos ao Senhor um cântico de glória, pelo dom deste grande Papa: homem de fé e de oração, Pastor e Testemunha, Guia na passagem entre os dois milénios. Este cântico ilumine a nossa vida, a fim de que não veneremos só o novo Beato mas, com a ajuda da graça de Deus, sigamos o seu ensinamento e o seu exemplo. Enquanto dirijo um pensamento grato ao Papa Bento XVI, que desejou elevar o seu grande Predecessor à glória dos altares, apraz-me concluir com as palavras que ele mesmo pronunciou, no primeiro aniversário da morte do novo Beato: «Estimados irmãos e irmãs (...) o nosso pensamento volta com emoção ao momento da morte do amado Pontífice, mas ao mesmo tempo o coração é como que impelido a olhar para a frente. Sentimos ressoar na nossa alma os seus reiterados convites a progredir sem medo pelo caminho da fidelidade ao Evangelho, para sermos anunciadores e testemunhas de Cristo no terceiro milénio. Voltam à nossa mente as suas incessantes exortações a cooperarmos com ge- nerosidade para a realização de uma humanidade mais justa e solidária, a sermos promotores de paz e construtores de esperança. Que o nosso olhar permaneça sempre fixo em Cristo, “o mesmo ontem, hoje e por toda a eternidade” (Hb 13, 8), que orienta solidamente a sua Igreja. Nós cremos no seu amor, e é o encontro com Ele “que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (cf. Deus caritas est, 1). Queridos irmãos e irmãs, a força do Espírito de Jesus seja para todos, como foi para o Papa João Paulo II, um manancial de paz e de alegria. E a Virgem Maria, Mãe da Igreja, nos ajude a ser em todas as circunstâncias, como ele, apóstolos incansáveis do seu Filho divino e profetas do seu amor misericordioso». Amém! valetudinis administris, a seguir elevada a Pontifício Conselho com a constituição apostólica Pastor bonus de 1988. A 13 de Maio de 1992 instituiu o Dia mundial do doente, que se celebra anualmente no dia 11 de Fevereiro, memória litúrgica de Nossa Senhora de Lourdes, e com a finalidade de sensibilizar em relação ao valor humano e cristão do sofrimento, às necessidade dos doentes e sofredores, aos problemas da tutela da saúde, à solidariedade e à colaboração a nível nacional e internacional. No seu impulso inextinguível de apostolado, com a sua determinação e a sua coragem, João Paulo II soube oferecer-nos também muito por ocasião da sua despedida da vida terrena. «O Santo Padre, com as suas palavras e as suas obras, doounos coisas grandes; mas não menos importante é a lição que nos deu da cátedra do sofrimento e do silêncio», sublinhou Bento XVI no discurso dirigido à Cúria romana, por ocasião da apresentação dos bons votos de Natal, a 22 de Dezembro de 2005. «A resposta que o mundo inteiro deu à morte do Papa foi uma impressionante manifestação de reconhecimento pelo facto de que ele, no seu ministério — continuou — se ofereceu totalmente a Deus pelo mundo; um agradecimento pelo facto de que ele, num mundo repleto de ódio e de violência, nos ensinou novamente a amar e a sofrer ao serviço dos outros; mostrou-nos, por assim dizer, ao vivo o Redentor, a redenção, e deu-nos a certeza de que, de facto, o mal não tem a última palavra no mundo». O dicastério vaticano para a pastoral no campo da saúde, por ocasião da beatificação, como sinal também de gratidão por este seu alto magistério, preparou um oração apropriada, que será distribuída em diversas línguas. *Arcebispo presidente do Pontifício Conselho para a Pastoral no Campo da Saúde página 14 - sábado 7 de Maio de 2011 L’OSSERVATORE ROMANO edição semanal em português - número 19 Em diálogo com o cardeal arcipreste Angelo Comastri Aquela procissão ininterrupta de fiéis na Basílica vaticana NICOLA GORI Uma torrente ininterrupta de peregrinos prestou homenagem aos despojos de João Paulo II. A basílica de São Pedro foi testemunha silenciosa dos dias da beatificação: desde que os seus despojos foram exumados da capela das Grutas do Vaticano até à exposição diante do altar da Confissão, até à inumação, na segunda-feira 2 de Maio, na capela de São Sebastião. O cardeal Angelo Comastri, arcipreste da basílica, presidente da Fábrica de São Pedro e vigário-geral para a Cidade do Vaticano, narra o extraordinário acontecimento eclesial nesta entrevista ao nosso jornal. O que o impressionou na celebração da beatificação de João Paulo II? Digo sinceramente, foi a humildade de Bento XVI. Parecia que se tinha tornado pequeno para mostrar à Igreja e ao mundo a grandeza espiritual de João Paulo II que definiu, com voz comovida, um gigante da fé. Este não é um facto secundário. Devemos verdadeiramente bendizer o Senhor que nos doa homens como João Paulo II e Bento XVI. E nos dias precedentes? Quando na manhã de sexta-feira, 29 de Abril, a grande lápide branca foi removida e apareceu o caixão de carvalho que continha o relicário de chumbo, que por sua vez conservava o relicário de cipreste com os despojos de João Paulo II, parecia que o tempo tinha regredido. Os funcionários da Fábrica de São Pedro foram os mesmos que o sepultaram há seis anos e estavam emocionadíssimos. Observei-os e reparei que as lágrimas caíam dos seus olhos e também eu senti um arrepio de emoção. Revivi naquele momento o dia 8 de Abril de 2005. Estava sentado ao lado direito da capela nas Grutas do Vaticano. Diante de mim estava o então cardeal Joseph Ratzinger, de- cano do Sagrado Colégio. A cerimónia de inumação prolongava-se. Com a mão acenei ao cardeal Ratzinger se se podia recitar o terço. Do outro lado, ele ergueu delicadamente a mão e fez-me sinal de que podia tranquilamente fazê-lo. Recitámo-lo com uma emoção fortíssima e enquanto rezávamos a Maria, o relicário com os despojos de João Paulo II, que tinham a ferida de um atentado, foi sepultado. E eu pensei no que João Paulo II dissera: «Enquanto uma mão assassina tencionava matar-me, uma mão materna deteve o Papa no limiar da morte. Desde aquele dia a minha vida é um dom e um dom a cada dia. É um dom de Deus. E eu desejo despender tudo por Ele, com as mãos de Maria nas minhas». Pensei nesta frase de João Paulo II enquanto as Ave-Marias enchiam as Grutas do Vaticano. De qualquer modo, elas abraçavam este filho extraordinário de Maria, que quis pôr no seu brasão episcopal e papal, como recordou Bento XVI, um grande «M» encimado por uma cruz. Maria, que nos conduz para Jesus, para cruz de Jesus e a glória de Jesus. O que aconteceu depois da exumação dos despojos do Papa Wojtyła? No momento em que o féretro de João Paulo II foi colocado diante do túmulo de São Pedro surgiu uma torrente espontânea de funcionários do Estado da Cidade do Vaticano. Esta inundação não estava prevista, mas não pudemos detê-la. Pela ordem pública tínhamos pensado em fazer tudo com as portas fechadas, mas não se podia deter este fluxo espontâneo de devoção. Inclusive a Gendarmaria Pontifícia, com o comandante Giani, entendeu esta exigência do coração e deixámos que os sentimentos fossem expressos. Vimos os funcionários de todas as administrações aproximarem-se do féretro de João Paulo II, como se não tivessem passado seis anos. Cada um veio em silêncio para reviver uma recordação, para oferecer uma oração. Para dar graças ao Senhor que doa à Igreja pastores santos. O primeiro que transmitiu o afecto a João Paulo II foi o cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado, seguido pelo cardeal Stanisław Dziwisz. Também eu estive presente, o arcebispo Fernando Filoni, substituto da Secretaria de Estado, e muitas pessoas que, impulsionadas pelo coração, quiseram unir-se a este abraço de afecto e gratidão. Devo exprimir a minha gratidão à Gendarmaria Pontifícia, que tutelou a ordem nesta homenagem espontânea. Dirijo também um obrigado comovido aos funcionários da Fábrica de São Pedro, que realizaram um trabalho impecável, e à associação dos Santos Pedro e Paulo, que se colocou à disposição com os seus voluntários dia e noite. Quando o féretro foi levado para a basílica? Na manhã do dia 1 de Maio, de forma privada, das Grutas do Vaticano o féretro foi levado para a basílica, e colocado diante do altar da Confissão, exactamente diante daquele altar onde muitas vezes João Paulo II celebrou a Eucaristia, falou, fazendo ouvir a sua voz antes juvenil depois cada vez mais débil, cansada, mas sempre convicta e apaixonada do anúncio do Evangelho. A partir daquele momento a Guarda Suíça desempenhou a guarda de honra dia e noite ao lado do féretro de João Paulo II e essa presença dava um toque de delicadeza e solenidade. E depois da beatificação? A basílica foi aberta a todos, a fim de que pudessem deter-se um momento diante do féretro, com o brasão pontifical, as datas da sua vida e uma cruz humilde e em cima o evangeliário. É claro que aquele evangeliário trouxe a todos a recordação de que há seis anos o vento parecia uma mão invisível que fo- lheava as páginas e quase dizia: se quiserdes saber quem era João Paulo II procurai o segredo nestas páginas. Foi um homem que viveu o Evangelho e agora é a nossa vez. Passaram diante do féretro do Papa os chefes de Estado, todos com grande devoção, as várias delegações, os embaixadores e depois um rio, verdadeiramente uma torrente de pessoas, a tal ponto que inclusive durante a noite tivemos que deixar as portas da basílica abertas, porque esse mar humano era irreprimível e, como há seis anos, queria abraçar João Paulo II. Propusemos por três vezes a recitação do terço, tão amada por João Paulo II. A beatificação foi realizada a 1 de Maio, e como realçou o Papa, é o dia do início do mês de Maria. Também este foi um sinal muito bonito. E parecia-nos que as flores mais lindas que podíamos colocar sobre o féretro de João Paulo II eram exactamente as Ave-Marias que marcaram toda a sua existência, toda a sua vida. A 2 de Maio, foi celebrada a missa de acção de graças pelo dom deste beato, desta santidade heróica que marcou o encerramento do século XX e o início do XXI. À tarde foi recitado o último terço e às 18h00 foram fechados a basílica e o acesso aos peregrinos. Às 19h15, de forma privada, o féretro foi levado em procissão pelos cónegos do Cabido do Vaticano para a Capela de São Sebastião, onde se realizou a inumação. Foi colocada uma lápide com uma escrita humilde, mas bonita e sintética: «Beatus Joannes Paulus II». O altar de São Sebastião, por uma coincidência não procurada, contém um retábulo em mosaico que representa o santo atingido por flechas, um mártir da perseguição de Diocleciano. Embaixo há um mártir dos tempos modernos, um homem não trespassado pelas flechas, mas por um projéctil que, à distância de séculos, reencarnou o mistério da Igreja, perseguida e vencedora através da perseguição. L’OSSERVATORE ROMANO número 19 - edição semanal em português sábado 7 de Maio de 2011 - página 15 INFORMAÇÕES Audiências Bento XVI recebeu em audiências particulares: No dia 30 de Abril O Senhor Cardeal Dionigi Tettamanzi, Arcebispo de Milão (Itália). No dia 2 de Maio Os Senhores Cardeais Giovanni Lajolo, Presidente da Pontifícia Comissão para o Estado da Cidade do Vaticano; e Stanisław Dziwisz, Arcebispo de Cracóvia (Polónia); e o Rev.do Pe. Saverio Cannistrà, O.C.D., Prepósito-Geral dos Carmelita Descalços. Sua Ex.cia o Senhor Bronisław Komorowski, Presidente da Polónia, com a Ex.ma Esposa e o Séquito. No dia 5 de Maio Os seguintes Prelados da Conferência episcopal da Índia, em visita ad limina Apostolorum: D. Dominic Jala, Arcebispo de Shillong; D. Dominic Lumon, Arcebispo de Imphal e Administrador apostólico de Kohima; D. Thomas Menamparampil, Arcebispo de Guwahati; e D. Lucas Sirkar, Arcebispo de Calcutá, com o Arcebispo Coadjutor, D. Thomas D’Souza. Renúncias O Santo Padre aceitou a renúncia: A 2 de Maio De D. William Martin Morris, ao governo pastoral da Diocese de Toowoomba (Austrália). A 4 de Maio De D. Vitório Pavanello, S.D.B., ao governo pastoral da Arquidiocese de Campo Grande (Brasil), em conformidade com o cânone 401 § 1 do Código de Direito Canónico. Nomeações O Sumo Pontífice nomeou: No dia 29 de Abril Enviado Especial às celebrações do VI centenário da dedicação da Catedral de Włocławek (Polónia), o Cardeal Zenon Grocholewski, Prefeito da Congregação para a Educação Católica. No dia 30 de Abril Membro do Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, D. Piero Coccia, até hoje Arcebispo de Pesaro (Itália). Consultor do mesmo Pontifíco Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, Sua Ex.cia o Senhor Johan Ketelers, Secretário-Geral da International Catholic Migration Commission, com sede em Genebra. Bispo de Puerto Cabello (Venezuela), D. Saúl Figueroa Albornoz, até hoje Bispo Titular de Amudarsa e Auxiliar da Arquidiocese de Caracas. No dia 3 de Maio Bispo de Tulcán (Equador), D. Fausto Feliciano Gaibor García, até agora Bispo Titular de Naraggara e Auxiliar de Riobamba. No dia 4 de Maio Núncio Apostólico na Macedónia, D. Janusz Bolonek, Arcebispo Titular de Madaurus, até esta data Núncio Apostólico na Bulgária. Membros da Congregação para as Causas dos Santos, os Senhores Cardeais Velasio De Paolis e Kurt Koch; D. Zigmunt Zimowski, D. Ambrogio Spreafico e D. Santos Abril y Castelló. Consultor da Congregação para a Doutrina da Fé, D. Joseph Augustine Di Noia, até hoje Arcebispo Titular de Oregon City, Secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Arcebispo Metropolitano de Campo Grande (Brasil), D. Dimas Lara Barbosa, até agora Bispo Titular de Megalopolis in Proconsulari e Auxiliar de São Sebastião do Rio de Janeiro. Auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte (Brasil), o Rev.do Pe. Wilson Luís Angotti Filho, do Clero da Diocese de Jaboticabal, até esta data Assessor da Comissão para a Doutrina da Fé da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em Brasília, simultaneamente eleito Bispo Titular de Tabae. D. Wilson Luís Angotti Filho nasceu em Taquaritinga (Brasil), a 5 de Abril de 1958. Estudou filosofia na diocese de São Carlos (1976-1978) e teologia no centro de estudos da arquidiocese de Ribeirão Preto (1978-1982). Obteve a licenciatura em teologia dogmática na Pontifícia Universidade Gregoriana (1987-1988) e a licenciatura em filosofia na Universidade do Sagrado Coração de Jesus em Bauru (1988). Foi ordenado Sacerdote a 19 de Dezembro de 1982 e incardinou-se no Clero da diocese de Jaboticabal, onde desempenhou os seguintes cargos: Vigário paroquial de São João Batista e Nossa Senhora Aparecida em Bebedouro (1982-1986); Coordenador diocesano da pastoral vocacional (19821986); Membro da equipe de formação dos seminários diocesanos (19831986); Coordenador da região pastoral de Bebedouro (1983-1986); Professor de teologia dogmática no centro de estudos da arquidiocese de Ribeirão Preto (1990-1995); Membro do Conselho presbiteral e do colégio dos consultores (1992-1997 e 2004-2007); Pároco de Nossa Senhora do Carmo (20002003); Pároco de São Judas Tadeu (2003-2007); Assessor diocesano para a catequese (2002-2007); e Coordenador diocesano para a pastoral (20032007). Desde 2007 é Assessor da Comissão para a Doutrina da Fé da Conferência episcopal em Brasília; desde 2008 é Professor de Teologia dogmática na Faculdade teológica da arquidiocese de Brasília. Auxiliar da Arquidiocese de Vitória (Brasil), o Rev.do Pe. José Aparecido Hergesse, C.R., até agora Procurador-Geral da Ordem dos Clérigos Regulares (Teatinos) em Roma, simultaneamente eleito Bispo Titular de Assava. D. José Aparecido Hergesse nasceu a 15 de Julho de 1957, em Paranapanema (Brasil). Estudou filosofia na Faculdade filosófica do Mosteiro de São Bento, em São Paulo, e teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana. Recebeu a Ordenação sacerdotal no dia 26 de Janeiro de 1985. Obteve a licenciatura em teologia dogmática na Pontifícia Faculdade teológica Nossa Senhora da Assunção, na arquidiocese de São Paulo, e a licenciatura em teologia bíblica na Pontifícia Universidade Gregoriana. Desempenhou os seguintes cargos: Vigário paroquial de Fartura, na diocese de Ourinhos e Reitor no Seminário Menor (1985-1987); Pároco de São Geraldo e Reitor do Seminário Maior (1987-1990); Pároco de Fartura (1992-1994); Vigário paroquial em São Domingos do Prata, na diocese de Itabira — Coronel Fabriciano, no Estado de Minas Gerais (1995-1997); e Professor no Seminário diocesano; Pároco em Taquarituba (1998-2007) e Vigário-Geral da diocese de Itapeva (2001-2004); Pároco de São Lucas, na arquidiocese de Sorocaba (20072009). Desde 2010 é Consultor-geral, Presidente da área da vida comunitária da família secular teatina e Procurador-Geral da Ordem dos Clérigos Regulares junto da Santa Sé. Auxiliar da Arquidiocese de São Paulo (Brasil), o Rev.do Pe. Júlio Endi Akamine, S.A.C., até hoje Superior Provincial da Província de São Paulo da Sociedade do Apostolado Católico (Palotinos), simultaneamente eleito Bispo Titular de Thagamuta. D. Júlio Endi Akamine nasceu no dia 20 de Novembro de 1962, em Garça (Brasil). Estudou filosofia e teologia no Studium Teologicum Claretianum da arquidiocese de Curitiba. Foi ordenado Sacerdote a 24 de Janeiro de 1988. Obteve o diploma (1993-1996) e a licenciatura (2002-2005) em teologia dogmática na Pontifícia Universidade Gregoriana. Como sacerdote palotino desempenhou o cargo de Vigário paroquial (1988-1990) e Pároco (1990-1993) de Santo Antônio em Cambé, na arquidiocese de Londrina, Reitor do Seminário Maior palotino em Curitiba (1996-2001); Assessor da Conferência episcopal regional Sul 2 dos bispos do Brasil (1996-1998); Membro do Secretariado regional para a formação dos Palotinos (19992005); Consultor da casa general dos Palotinos (2001-2003); Director do período propedêutico do Seminário da província palotina Regina Apostolorum em Grottaferrata, secretário provincial para a formação em Curitiba (20052007); Director espiritual do Seminário Maior dos Palotinos em Curitiba (2006-2007). Desde 2008 é superior provincial da província palotina em São Paulo, com sede na homónima arquidiocese. Auxiliar da Arquidiocese de Medellín (Colômbia), o Rev.do Pe. Edgar Aristizábal Quintero, do Clero da Diocese de Cartago, até à presente data Director do Departamento para a Doutrina da Conferência Episcopal, simultaneamente eleito Bispo Titular de Castra Galbae. D. Edgar Aristizábal Quintero nasceu em Cartago, a 2 de Dezembro de 1965. Recebeu a Ordenação sacerdotal no dia 7 de Dezembro de 1990. Auxiliar da Arquidiocese de Medellín (Colômbia), o Rev.do Pe. Hugo Alberto Torres Marín, do Clero da Diocese de Santa Rosa de Osos, até agora Reitor do Seminário Maior diocesano de Santo Tomás de Aquino, simultaneamente eleito Bispo Titular de Bossa. D. Hugo Alberto Torres Marín nasceu em Briceño (Colômbia), a 9 de Agosto de 1960. Recebeu a Ordenação sacerdotal no dia 24 de Novembro de 1987. Prelados falecidos Adormeceram no Senhor: A 23 de Abril De D. Pietro Li Hongye, Bispo da Diocese de Luoyang (China Continental). O saudoso Prelado nasceu a 6 de Janeiro de 1920, em Xicunxian (China). Foi ordenado Sacerdote no dia 22 de Abril de 1944. A partir de 1955, foi aprisionado várias vezes. Em 1956 foi julgado «obstinado» e condenado à cadeia na distante província de Qinghai, onde permaneceu por 28 anos. Libertado em 1984, era o único sacerdote de toda a diocese de Luoyang. Recebeu a Ordenação episcopal a 10 de Setembro de 1987. A 28 de Abril De D. Paul V. Donovan, Bispo Emérito de Kalamazoo (EUA). O saudoso Prelado nasceu em Bernard (Estados Unidos da América), a 1 de Setembro de 1924. Foi ordenado Sacerdote no dia 20 de Maio de 1950. Recebeu a Ordenação episcopal em 21 de Julho de 1971. A 29 de Abril De D. Salim Ghazal, Bispo Titular de Edessa in Osrhoëne dos grecomelquitas, Auxiliar Emérito do patriarcado de Antioquia e Presidente do Conselho episcopal melquita para o diálogo islâmico-cristão (Líbano). O ilustre Prelado nasceu a 7 de Julho de 1931, em Machghara (Líbano). Foi ordenado Sacerdote a 22 de Junho de 1958. Recebeu a Ordenação episcopal no dia 5 de Agosto de 2001. D. Anthony Francis Mestice, Bispo Titular de Villa nova e ex-Auxiliar de New York (Estados Unidos da América). O saudoso Prelado nasceu a 6 de Dezembro de 1923, em New York (Estados Unidos da América). Foi nomeado Sacerdote a 4 de Junho de 1949. Recebeu a Ordenação episcopal no dia 27 de Abril de 1973. A 4 de Maio D. Jacques Georges Habib Hafouri, Arcebispo Emérito de Hassaké-Nisibi dos Síros (Síria). O venerando Prelado nasceu a 20 de Agosto de 1916, em Damasco (Síria). Recebeu a Ordenação sacerdotal no dia 28 de Janeiro de 1940. Foi ordenado Bispo a 13 de Agosto de 1982. L’OSSERVATORE ROMANO página 16 - sábado 7 de Maio de 2011 edição semanal em português - número 19 Em defesa da vida humana João Paulo LUCETTA SCARAFFIA arol Wojtyła testemunhou a sua atenção e o seu respeito pelas mulheres — mas também a simpatia com que considerava a outra metade do género humano — na Carta apostólica Mulieris dignitatem com a qual, pela primeira vez na história da Igreja, reconheceu solenemente a importância e a especificidade das mulheres na história da salvação, e na qual até chegou a inclinar-se diante daquilo a que chamou «génio feminino». Este documento é o ponto de chegada de uma experiência pessoal formada por importantes amizades com mulheres, amizades prosseguidas também durante o pontificado: com efeito, nunca se tinha visto um Papa abraçar as suas amigas sem temor, manifestando-lhes afecto fraterno. Uma abertura confirmada pela grande actriz polaca Halina KrólikiewiczKwiatkowska, que na juventude tinha subido ao palco com Wojtyła no teatro clandestino, forma de resistência cultural à ocupação nazi. K II e o génio feminino Mas certamente a mulher que esteve mais próxima de Karol Wojtyła foi Wanda Półtawska, que lhe chamava Irmão. Wanda foi sua amiga desde o início dos anos 50, como demonstram os pensamentos e as cartas trocados entre eles, até à morte de João Paulo II, publicados na Itália com o título Diario di una amicizia (São Paulo). Pe. Karol passava com a família de Wanda — o marido Andrzej, filósofo, e as quatro filhas — os dias de festa e sobretudo as férias, compartilhando com eles o amor pelos bosques e montanhas, os acampamentos sob as estrelas e as missas matutinas à sombra das árvores. Quando foi eleito Papa, confirmou que os sentia próximos «como as pessoas que me são mais queridas», e continuou a transcorrer com eles, sobretudo com Wanda, os momentos mais importantes da sua vida, também particular: como o primeiro Natal passsado em Roma. As cartas revelam indubitavelmente a sua influência sobre Wanda, médica psiquiatra de quem o jovem sacerdote se tinha tornado padre espiritual, mas também a da amiga sobre ele. Como mulher e como mãe, além disso médica, a doutora revelou-se imediatamente uma consultora perfeita para os problemas da família e da sexualidade, que Wojtyła considerava os mais urgentes entre aqueles que a Igreja do seu tempo devia enfrentar. A consultoria de Półtawska foi útil sobretudo durante a preparação da Humanae vitae, para a qual o cardeal Wojtyła — que fazia parte da comissão instituída por Paulo VI, para estudar este problema — ofereceu uma contribuição fundamental. Assim como sucessivamente, quando Wanda dedicou todas as suas horas livres para explicar a encíclica a leigos e sacerdotes, com artigos e conferências, e foi durante anos a alma do Instituto para a família, fundado pelo arcebispo em Cracóvia. Mas a contribuição não foi só apoio e consultoria médica e familiar: a experiência de Wanda — por quatro anos prisioneira em Ravensbruck, com apenas quinze anos, por ter participado como escoteira na resistência polaca, e onde tinha sido submetida a experiências científicas muito dolorosas, que em seguida a obrigaram a graves operações — esteve na base da sua batalha apaixonada pela vida humana. Wanda escreve que a sua defesa das crianças afundava as raízes na experiência feita no campo: havia mulheres grávidas, e «os nazis não obrigavam as prisioneiras grávidas ao aborto, mas esperavam até ao parto», e não «por motivos altruístas, mas simplesmente para obter mão-de-obra» e para «não ter mulheres doentes». Porém, depois do parte aquelas crianças eram abandonadas à morte de fome na enfermaria, ou então lançadas vivas nos fornos. Dado que teve de assistir várias vezes a estas cenas horríveis, «decidiu — recorda Półtawska — de uma vez para sempre que, se tivesse saído viva daquele inferno, teria defendido todas as crianças, sem qualquer excepção». Wojtyła compartilha esta batalha, em que considera indispensável o papel dos leigos, como escreve à amiga. Por sua vez Wanda, como mãe e como médica, dá-se conta de quanto é necessária uma «teologia do corpo» que explique claramente como «a transmissão da vida deve ser um desígnio de Deus», que é necessário descobrir. E precisamente à teologia do corpo Wojtyła dedicará um importante e inovativo ciclo catequético, depois da eleição como Sumo Pontífice. Portanto, o compromisso assumido por ambos em prol da família e da defesa da vida nasce também de uma reflexão sobre aquilo que aconteceu nos campos de extermínio. E que havia um vínculo entre o mal do século XX e o uso do progresso científico sem respeito pela moral, foi bem compreendido por Romano Guardini, que — no breve texto Il diritto alla vita prima della nascita, escrito para esconjurar a legalização do aborto na Alemanha recém-saída do nazismo — identifica claramente um nexo entre o desprezo pela vida humana em todas as suas formas e as utopias ditatoriais do século passado. A Rússia comunista e a Alemanha nazi foram, efectivamente, entre os primeiros países a legalizar o aborto. A história recente fez compreender quais perigos se escondiam num abandono da moral cristã em nome de uma confiança cega no progresso tecnocientífico. Wanda, que vivera o bem e o mal destas novas capacidades humanas, ofereceu uma ajuda insubstituível ao Irmão, ao Papa João Paulo II.