MULHERES DEFICIENTES E A COMUNIDADE DE

Transcrição

MULHERES DEFICIENTES E A COMUNIDADE DE
MULHERES DEFICIENTES E A COMUNIDADE DE DEVOTEES
Alison Kafer
Palestra apresentada durante a Conferência de Estudos sobre a Deficiência, junho
de 2000, Chicago.
Traduzido por Lia Crespo
Na primavera de 1996, eu tive meu primeiro encontro com a comunidade de
amputados e devotees. Eu conectei a Internet, digitei "amputada" em um site de
busca, e me vi confrontada com um mundo que eu jamais soube que existisse. Os
endereços de vários websites apareceram diante de mim, todos eles prometendo
companhia e amizade para pessoas amputadas. Estes sites ofereciam sala de
bate-papo, anunciavam oportunidades e locais onde os devotees e as pessoas
amputadas poderiam se encontrar, continham anúncios pessoais e vendiam
fotografias e vídeos de mulheres amputadas. Porém, os websites pareciam ter,
principalmente, o objetivo de explicar e defender as ações e motivações dos
devotees. "Devotees," eu rapidamente aprendi, eram homens e mulheres que se
sentiam atraídos por pessoas com amputações e outras deficiências. Em outras
palavras,
homens
atraídos
por
mim.
Eu tive uma estranha sensação de familiaridade, quando visitei esses sites,
apesar de nunca ter ouvido falar de devotees antes. A sensação de familiaridade
não era tanto por me sentir parte de uma comunidade, mas por um sentimento de
resignação. Devido aos olhares fixos e respostas hostis que eu normalmente
recebia nas ruas, eu me sentia terrivelmente sem atrativos, e estava convencida
de que ninguém poderia amar alguém como eu. Ninguém - quer dizer - exceto um
devotee. Visitando aqueles sites, eu percebi que as pessoas que me encaravam
na rua não eram a aberração, os devotees é que eram. O mero fato de eles terem
de se agrupar na Internet, para justificar o seu desejo por mulheres amputadas,
parecia testemunhar a natureza sem igual de sua atração. A retórica defensiva
desses sites confirmou meu temor de que a sociedade vê as mulheres como eu
como sem atrativos e indesejáveis. Caso contrário - eu argumentei comigo mesma
- por que tais organizações seriam necessárias? O descobrimento da comunidade
de amputados e devotees na internet me encheu de resignação: parecia oferecer
a única oportunidade que eu teria de fazer parte de uma comunidade, de ter apoio
e companhia. Eu estava, de repente, incluída numa comunidade da qual eu não
queria fazer parte, uma comunidade que me fez sentir calafrios.
Em meus primeiros encontros com a comunidade de amputados e devotees, as
mulheres com deficiência, nestas organizações, eram invisíveis para mim. Apesar
de minha intenção original de aprender mais sobre as mulheres amputadas,
apesar do espaço na Internet dedicado às fotografias e às histórias dessas
mulheres, tudo o que eu podia ver eram as histórias dos devotees. A idéia de um
fetichismo pela deficiência era tão nova para mim que eu me esqueci das
mulheres ao tentar entender os homens. Com o passar do tempo, porém, e como
eu me tornei mais interessada nas barreiras específicas que as mulheres com
deficiência tinham de enfrentar, eu voltei meu interesse para as mulheres
amputadas envolvidas nestes grupos. O que elas achavam nessa comunidade de
amputados e devotees que eu não estava entendendo? Embora, num primeiro
momento, eu tivesse ignorado estas mulheres, agora, eu me via compelida a
conhecer suas histórias. O que motivava o envolvimento delas em organizações
que muitas pessoas percebiam como exploradoras e desagradáveis? Que
possíveis benefícios poderiam resultar da interação delas com outras pessoas
com
amputações
e
com
os
devotees?
Eu acho este tipo de pergunta intrigante porque a maioria das pesquisas
publicadas sobre a comunidade de amputados e devotees focalizou
exclusivamente os devotees. Não foram levantadas perguntas sobre as
experiências e motivações das mulheres amputadas envolvidas em tais grupos e
elas constituem a inspiração para escrever este artigo. No outono de 1999, eu
voltei à comunidade de amputados e devotees e perguntei a Jama Bennett, a
fundadora da Coalizão Mundial de Apoio aos Amputados (ASCOTWorld), se ela
estava disposta a discutir o grupo e a sua participação nessa comunidade. Eu
comecei uma exploração preliminar entre as mulheres amputadas para descobrir
como elas percebiam a ASCOTWorld e a sua função na vida delas. A própria
Bennett sugere que a ASCOTWorld sirva para dar apoio às mulheres amputadas,
fazendo com que se sintam fortalecidas para enfrentar os estereótipos culturais
dominantes segundo os quais as mulheres deficientes são assexuadas.
Neste artigo, eu discuto este potencial para o enfrentamento desses estereótipos.
Eu discuto que, embora a participação de mulheres deficientes na ASCOTWorld
possa não romper com os discursos fundamentalmente dominantes a respeito da
sexualidade das mulheres com deficiências, essa participação tem um efeito
positivo na vida delas. O potencial da ASCOTWorld para fortalecer a auto-estima
das mulheres deficientes frente os preconceitos precisa ser entendido como uma
negociação entre os efeitos que pode ter sobre a sociedade maior e o seu impacto
sobre
a
vida
de
cada
mulher
com
deficiência.
Discutindo as suposições que as pessoas não deficientes fazem em relação às
portadoras de deficiências, Jama Bennett afirma que "há uma percepção, por
parte da comunidade temporariamente não deficiente, de que as pessoas com
deficiências são assexuadas e eternamente infantis". Devido a este estereótipo,
acrescenta ela, "muitas mulheres que tiveram amputações recentes (incluindo eu
mesma) sentem-se maravilhadas por saber que ainda podem ser desejáveis ou
atraentes para um homem."(1) As observações de Bennett originam-se em suas
próprias experiências, enquanto uma mulher com deficiência que vive numa
sociedade na qual a sexualidade do corpo deficiente, particularmente do corpo
feminino deficiente, é negada, patologizada e/ou ignorada continuamente.
A maioria da literatura sobre a comunidade de amputados e devotees perpetua
estes estereótipos. A maior parte dos estudos focaliza, principalmente, os
devotees e retratam as mulheres deficientes como silenciosos e passivos objetos
do desejo dos homens. Além disso, esta literatura, ao tentar analisar as causas e
as repercussões do devoteísmo, coloca essa atração como uma patologia que
deve ser tratada ou deve ser eliminada. Eu não quero debater o mérito médico
desse diagnóstico. Ao contrário, eu quero realçar as idéias preconcebidas que a
cultura dominante tem a respeito da sexualidade das mulheres deficientes e que
são a base desses estereótipos. Se identificamos os devotees como "doentes", o
que estamos dizendo a respeito dos sentimentos que as mulheres deficientes
inspiram? Considerar atraente uma mulher com deficiência é sempre o sintoma de
uma doença? Mulheres amputadas não aparecem discutindo estas questões e,
quando aparecem, somente o fazem como vítimas porque foram molestadas ou
enganadas
por
devotees.
Algumas feministas reafirmam esta tendência quando vêem os devotees como
praticantes de uma forma perigosa de pornografia. R. Amy Elman, por exemplo,
afirma que as publicações de devotees contribuem "para que as mulheres e
meninas, particularmente aquelas com deficiência, continuem a ser consideradas
e tratadas como cidadãs de segunda categoria".(2) Ela examina vários artigos de
The Amputee Times, uma revista voltada aos devotees, que focaliza "o fetichismo
pela vulnerabilidade das mulheres", e os comentários dos devotees a respeito da
formação de um catálogo com mulheres deficientes atraentes. Embora eu
concorde com Elman de que o comportamento de alguns devotees é preocupante,
particularmente o ímpeto para criar um banco de dados de mulheres com
deficiência "disponíveis", alguns dos comentários dela também me preocupam.
Elman só vê as mulheres deficientes como vítimas que, por terem se convertido
em objetos, necessitam de proteção, e não as vê como agentes ou sujeitos. Além
disso, ela ignora as mulheres que se vê nos sites destinados aos devotees e só
discuti os fotógrafos e os que publicam essas imagem. Fazendo assim, ela insinua
que as mulheres deficientes só posariam para fotos "sensuais" quando enganadas
ou
coagidas
a
isto.
Freqüentemente, as mulheres deficientes são desencorajadas de participar de
qualquer forma de expressão sexual, e as mulheres que moram em instituições
têm sua sexualidade severamente controlada ou impedida. Gayla Frank discute as
experiências de Dianne DeVries, cujos quatro membros foram amputados e que
freqüentemente era criticada, no centro de reabilitação, por causa das roupas que
desejava vestir. Frank explica que a equipe médica recomendava que DeVries
usasse pernas e braços artificiais, que se vestisse com roupas de mangas
compridas, saias longas e largas para disfarçar a sua deficiência. Sua recusa em
usar estes dispositivos causavam consternação em seus médicos, que
consideravam sua decisão como um "desajustamento" e não como um sinal de
independência. A preferência dela para vestidos sem manga e camisetas de
mangas curtas eram ainda mais problemáticos para a equipe médica, que
considerava sua aparência "sem atrativos e possivelmente perturbadora".(3) A
sugestão dos médicos para que usasse roupas mais discretas não estava
relacionada à necessidade de facilitar seus movimentos, mas sim com o objetivo
de tornar sua aparência menos chocante para os outros. O desejo de seus
médicos para tornar invisíveis as deficiências de DeVries fizeram que com ela se
tornasse efetivamente invisível: foram ignorados seus desejos e suas opiniões
sobre seu próprio corpo e sua deficiência, foram desvalorizados seus julgamentos
e suas escolhas e ações foram consideradas como um desajustamento.
O impulso para esconder a deficiência é forte. Embora DeVries tenha se rebelado
contra seus doutores que queriam que ela cobrisse seus cotos com roupas e
próteses, muitos outros amputados voluntariamente usam roupas folgadas como
camuflagem para suas deficiências. Muitas pessoas com deficiência concordam
com a opinião dos médicos de DeVries - de que um coto amputado visível é "sem
atrativo e perturbador". Quando o ponto de vista dos "especialistas" combina com
a ausência de imagens de pessoas com amputações na mídia e na esfera pública,
isto desencoraja os amputados de tornar visíveis os seus corpos. A construção
cultural de uma imagem das mulheres com deficiências como assexuadas e sem
atrativos afeta sua auto-estima, impelindo-as a disfarçar suas deficiências por
vergonha delas. Como a própria Bennett declara: "Eu usei saias e vestidos longos
durante dez anos, nunca shortes ou bermudas, porque eu sentia que deveria
manter
escondida
minha
perna
amputada."
(4)
A partir de seu primeiro encontro com a comunidade de devotees, há sete anos,
Bennett mudou radicalmente sua atitude em relação ao próprio corpo. "Depois que
eu descobri sobre os devotees" - ela explica - "eu comecei a usar bermudas,
shorts e maiôs que deixam à mostra meu coto. Eu me dei conta de que esta é
minha perna, e se alguém prefere não vê-la, então, que não olhe."(5) Os
comentários de Bennett revelam o impacto imediato que a comunidade de
devotees
causou
em
sua
autoconfiança.
Simplesmente saber da existência de homens que a achariam atraente por sua
amputação, e não apesar dela, fez com que mudasse radicalmente a
compreensão de sua deficiência e foi essa mudança que a levou a se envolver na
ASCOTWorld e à sua interpretação da organização como um baluarte de
resistência.
Lolly Gibbs, uma amputada por problemas com diabetes, envolveu-se com a
ASCOTWorld logo após ter sido abandonada por seu noivo. Ele a abandonou,
logo após ela ter sido amputada, porque não conseguiu adaptar-se à sua
dependência de uma cadeira de rodas. Gibbs, eventualmente, encontrou dois
membros da comunidade de devotees, através de um anúncio em um jornal local.
"Nunca tinha ouvido falar de devotees" - ela explica - "mas, os homens eram
ambos simpáticos, atenciosos e compreensivos. Eles me deram vários artigos
para ler e aprender sobre suas preferências e me falaram dos Fins de Semana da
Fascinação.(6) Após ir a uma série de Fins de Semana e freqüentar a
ASCOTWorld, Gibbs apresentou uma transformação como a de Bennett:
"Finalmente senti-me desejada, atraente e até mesmo sexy. Não me
envergonhava
mais
por
ser
vista
em
público."(7)
Ambas, Gibbs e Bennett, descrevem seus encontros com os devotees como
experiências fortalecedoras. Após serem tratadas como não atraentes e
assexuadas, essas mulheres estavam encontrando homens que as achavam mais
desejáveis que as mulheres não deficientes. Valorizando as mulheres com
deficiências, os devotees parecem ignorar os ideais prevalecentes de beleza,
escolhendo mulheres que outros homens rejeitaram como sendo não-sexy e nãodesejáveis. Bennett explica que qualquer coisa que dê às mulheres deficientes
mais confiança ou crença em sua sexualidade é positiva e ela aprova
organizações como a ASCOTWorld por fazer exatamente isto para ela e para
inúmeras
mulheres
na
mesma
condição.
(8)
Bennett considera que na ASCOTWorld, a rejeição da assexualidade das
mulheres deficientes, traduz-se em vendas de fotos e vídeos e a veiculação de
suas imagens em sites da Internet, sites estes que seriam acessados só por
assinantes. Bennett estima que existam mais de 28.000 instantâneos de mulheres
deficientes.
Qualquer amputada que queira posar para fotos ou participar de vídeos recebem
assistência
de
Bennet
e
da
ASCOTWorld.
Muitos desses vídeos são vendidos por mais de US$100,00, dos quais 60% vão
para a modelo e 40% ficam na Associação para cobrir custos de "reprodução,
postagem,
propaganda
e
mão-de-obra".
(9)
Os vídeos são feitos com o propósito de promoção pessoal, apresentando
"mulheres solteiras para devotees que possam querer conhecê-las nas reuniões
de
fim
de
semana".
(10)
ASCOTWorld não é o único grupo a oferecer tais serviços. A CD Produções,
operada por Carol Davis é outra organização que produz e distribui fotos e vídeos
de
mulheres
amputadas.
Ambas, Davis e Bennett, asseguram que estas fotos e vídeos são benéficos para
as modelos não só do ponto de vista financeiro como também por promover um
aumento em sua autoconfiança e maior consciência de sua sexualidade.
Joy, uma das modelos da CD, explica: "Eu sei o que é ser rejeitada por homens
pela falta de um membro. Sinto-me gratificada por ser admirada como sou". (11)
Outras mulheres fazem eco a Joy. Kath Duncan, em seu VT "Minha Amante de
Uma Perna Só", comenta como foi excitante essa sessão de fotos, pois foi capaz
de colocar todo seu corpo à mostra e sentir seus cotos como sendo sexy.
Estes comentários sugerem que encontrar um ambiente no qual seus corpos são
(não somente aceitos mas também) admirados parece produzir um formidável
impacto
na
auto-estima
das
mulheres
deficientes.
A proliferação de imagens representando deficientes como sexy e atraentes
poderá ser benéfica não só para as modelos mas também para todas as
deficientes. Jane Elder Bogle e Susan L. Shaul contam que um dos maiores
problemas para a expressão da sexualidade das mulheres com deficiência é a
falta de exemplos. Para muitas mulheres, particularmente as que sofrem
amputações em uma idade mais avançada, é difícil aprender a incorporar cadeira
de rodas, próteses, cicatrizes e braçadeiras ao rol das coisas consideradas
"sexies".
(12)
ASCOTWorld é um dos poucos lugares onde uma mulher amputada encontra
imagens de mulheres que são iguais a ela e que incorporam suas deficiências
àquilo que entendem como sensualmente atrativo. Ao divulgar essas imagens,
ASCOTWorld oferece exemplos de mulheres cujas deficiências não impedem a
sensualidade, contrapondo-se à cultura dos não deficientes, na qual as mulheres
deficientes
são
assexuadas.
Além disso, como notou Barbara Waxman Fiduccia, muitas das organizações de
devotees são dirigidas atualmente por amputadas (13): Fascinação, ASCOTWorld
e Produções CD são de propriedade e são dirigidas por amputadas. Elas decidem
a forma de conduzir e os estatutos das organizações. Além disso, todo o lucro dos
vídeos e das fotos são entregues às modelos. Waxman Fiduccia enfatiza que o
aspecto radical dessas empresas é que elas possibilitaram às pessoas deficientes
tirar suas vidas sexuais do controle dos médicos, psicólogos e, por extensão, dos
próprios
devotees.
As
mulheres
controlam
suas
produções.
Embora ainda sinta algum desconforto a respeito dos devotees, começo a sentir
uma afinidade com as modelos e suas organizadoras. Essas mulheres estão se
recusando a aceitar passivamente os estereótipos impostos a elas pela cultura
dos não deficientes. Ao afirmar, ativamente, seu direito de falar sobre, usar e
dispor de seus corpos da forma como consideram conveniente, essas mulheres
deficientes estão dando poderosos exemplos alternativos de como observar o
corpo
feminino
com
deficiência.
O impacto que essas imagens causam na sociedade em geral ainda precisa ser
determinado. Ainda que a participação na comunidade de devotees possa mudar
a percepção que algumas mulheres têm de si mesmas, isto pode não ter nenhum
efeito sobre o juízo que as pessoas não deficientes fazem delas.
Na realidade, algumas pessoas podem ver a formação de grupos como
ASCOTWorld como uma prova de que pessoas com deficiências são realmente
diferentes. A existência da comunidade dos devotees pode levar a crer que
somente eles acham deficientes atraentes e que sentir atração e desejo por uma
mulher deficiente pode ser visto como uma "condição" que só "afeta" alguns
membros "diferentes" da maioria da população. Tais pontos de vista não estão
limitados aos não deficientes, eu, no princípio, via os sites como o ASCOTWorld
não como uma prova de minha capacidade de ser desejada, mas, sim, como um
atestado exatamente do contrário. Visto dessa maneira, o envolvimento das
amputadas na comunidade devotee pode, na realidade, perpetuar o pensamento
de que as mulheres deficientes são assexuadas e de que não são desejáveis,
negando
assim,
o
potencial
transformador
da
ASCOTWorld.
Além disso, a comunidade de devotees ainda reflete muitos dos valores da
sociedade em geral e seus preconceitos. No vídeo "Minha Amante de Uma Perna
Só", Duncan expressa decepção ao descobrir que os devotees são tão críticos em relação aos corpos das mulheres - como são os não devotees. Podem divergir
da corrente principal, ao considerar cotos sensuais, mas os devotees também
menosprezam as mulheres que são gordas ou sem atrativo. Ou seja, a os
devotees não estão numa esfera utópica na qual a beleza e a aparência física são
irrelevantes. Simultaneamente, os devotees rejeitam o estereótipo de que as
mulheres deficientes são indesejáveis e perpetuam os ideais hegemônicos de
beleza.
Além disso, alguns segmentos dos amputados e devotees refletem o padrão
heterossexual que permeia a cultura ocidental. Embora haja vários sites na
Internet destinados a homens amputados e devotees gays, os sites destinados a
lésbicas são menos comuns. Um dos poucos sites para lésbicas que eu descobri é
freqüentado, principalmente, por homens devotees heterossexuais à procura de
"deusas do amor lésbicas e amputadas". Esse site foi atacado, pelo menos uma
vez, com comentários e desenhos homófobos. Um outro exemplo desse
preconceito é a opinião de uma mulher amputada com quem conversei: ela acha
que a existência de deficientes lésbicas é uma prova da necessidade dos
devotees. Segundo ela, muitas mulheres com deficiências se tornam lésbicas
porque não podem encontrar parceiros masculinos. Para ela, se tais mulheres
conhecessem os homens devotees, elas não seriam "forçadas" a se tornar
lésbicas para ter uma vida sexual ativa. Os comentários dela refletem o
preconceito da sociedade, segundo o qual todas as lésbicas são heterossexuais
fracassadas. Assim, dentro do discurso da comunidade de amputados e devotees,
freqüentemente, a sexualidade de lésbicas deficientes é negada, patologizada
e/ou ignorada, Portanto, nem todas as mulheres com deficiência são bem-vindas
na
comunidade
de
devotees
e
deficientes.
Eu também quero ressaltar que nem todas as mulheres deficientes tiveram boas
experiências com devotees, nem se beneficiaram de uma elevação de sua autoestima e independência. Muitas mulheres deficientes tiveram encontros
terrivelmente amedrontadores, sendo perseguidas por devotees que as
fotografaram sem sua permissão. Outras mulheres - como eu - tiveram seus
nomes e atributos físicos disseminados pela comunidade de devotees sem o seu
conhecimento ou sua permissão. Embora nem todos os devotees se comportem
dessa maneira, a existência de alguns faz com que algumas mulheres com
deficiências desconfiem e temam todos eles. O potencial da ASCOTWorld para
contribuir para a elevação da auto-estima sexual das mulheres deficientes
contrapõem-se ao fato de o site, ao expor as mulheres, torna-as suscetíveis ao
molestamento
e
abuso
por
parte
de
devotees.
Porém, é importante dizer que o comportamento agressivo não é exclusivo de
devotees. Violência contra mulheres é inerente às culturas patriarcais, e muitos
não devotees são culpados de molestar, espionar e aterrorizar as mulheres. O alto
número de mulheres não deficientes que são molestadas, espionadas e agredidas
todos os anos é a prova de que estes comportamentos estão mais relacionados à
misoginia latente na sociedade do que à atração específica dos devotees. Assim,
o comportamento inadequado de alguns devotees deve ser considerado como
integrante de uma cultura patriarcal. A atitude agressiva de alguns deles não pode
ser
vista
como
exclusiva
da
comunidade
de
devotees.
Embora estas preocupações sejam importantes e não devamos ignorar as
acusações de coerção, abuso e molestamento, os efeitos de ASCOTWorld não
podem ser considerados como completamente negativos. Para Bennett e as
mulheres amputadas de ASCOTWorld, a participação delas na comunidade de
amputados e devotees alterou radicalmente a percepção de sua deficiência.
Assim, para algumas mulheres com deficiências, ASCOTWorld atua como um
lugar de resistência pessoal que lhes permite restaurar a auto-estima, a
independência e a sensualidade. Ainda que posar para fotografias e participar de
reuniões possam não contribuir, fundamentalmente, para desmantelar os
estereótipos dominantes na sociedade a respeito do corpo feminino portador de
deficiência, o impacto positivo em suas vidas, que algumas mulheres acreditam ter
sido causado por essas atividades, não pode ser ignorado. Nas palavras de Lolly
Gibbs: "Finalmente, eu me sinto atraente e, até mesmo, sensual. Eu não tenho
mais
vergonha
de
meu
corpo."
(1) Correspondência pessoal , 25/11/99.
(2) R. Amy Elman, "Disability Pornografhy: The Fetishization of Women's
Vulnerabilities", violence Agaist Women, 3.3 (june 1997): 258.
(3) Gayla Frank, "On Embodiment: A Case Study of Congenital Limb Deficiency in
American Culture," Women with Disabilities: Essays in Psychology, Culture, and
Politics, Ed. Michelle Fine and Adrienne Asch (Philadelphia: Temple University
Press, 1988), 42, 47, 60. See also her Venus on Wheels: Two Decades of
Dialogue on Disability, Biography, and Being Female in America (Berkeley:
University of California, 2000).
(4) 25/11/99
(5) 25/11/99
(6) Bob Storrs, "Amputees, Inc.: Amputees Pitching Products -- and Themselves -to Devotees of Disability," New Mobility: Disability Culture and Lifestyle, 8:45 (June
1997): 28. Fascination is another organization devoted to bringing amputees and
devotees together. Founded in Chicago by Bette Hagglund, Fascination hosts a
huge conference once a year.
(7) Storrs, "Amputees, Inc.," 28.
(8) 25/11/99
(9) 17/11/99.
(10) Storrs, "Amputees, Inc.," 29.
(11) Storrs, "Amputees, Inc.," 29.
(12) Tom Shakespeare, Kath Gillespie-Sells, and Dominic Davies, The Sexual
Politics of Disability: Untold Desires (New York: Cassell, 1996), 74.
(13) Barbara Faye Waxman Fiduccia, "Sexual Imagery of Physically Disabled
Women: Erotic? Perverse? Sexist?" Sexuality and Disability, 17.3 (Fall 1999): 280282.
Bibliografia
Bruno, Richard L. "Devotees, Pretenders, and Wannabes: Two Cases of Factitious
Disability Disorder." Sexuality and Disability. 15.4 (Winter 1997): 243-260.
Child, Margaret. "What are Disability Paraphilias, and Who are Devotees?"
OverGround. www.ardgrain.demon.co.uk/overground/features/theory/whata.html.
Elman, R. Amy. "Disability Pornography: The Fetishization of Women's
Vulnerabilities." Violence Against Women. 3.3 (June 1997): 257-270.
Everaerd, Walter. "A Case of Apotemnophilia: A Handicap as Sexual Preference."
American Journal of Psychotherapy. 37.2 (April 1983): 285-293.
Frank, Gayla. "On Embodiment: A Case Study of Congenital Limb Deficiency in
American Culture." Women with Disabilities: Essays in Psychology, Culture, and
Politics. Ed. Michelle Fine and Adrienne Asch. Philadelphia: Temple University
Press, 1988. 41-71.
Venus on Wheels: Two Decades of Dialogue on Disability, Biography, and Being
Female in America. Berkeley: University of California, 2000.
Money, John. "Paraphilia in Females: Fixation on Amputation and Lameness: Two
Accounts." Journal of Psychology and Human Sexuality. 3.2 (1990): 165-172.
Money, John, Russell Jobaris, and Gregg Furth. "Apotemnophilia: Two Cases of
Self-Demand Amputation as a Paraphilia." Journal of Sex Research. 13.2 (May
1977): 115-125.
Money, J. and K. W. Simcoe. "Acrotomophilia, Sex, and Disability: New Concepts
and Case Report." Sexuality and Disability. 7 (1984-1986): 43-50.
Shakespeare, Tom, Kath Gillespie-Sells, and Dominic Davies. The Sexual Politics
of Disability: Untold Desires. New York: Cassell, 1996.
Storrs, Bob. "Amputees, Inc." New Mobility: Disability Culture and Lifestyle. 8.45
(June 1997): 26-31.
Waxman Fiduccia, Barbara Faye. "Sexual Imagery of Physically Disabled Women:
Erotic? Perverse? Sexist?" Sexuality and Disability. 17.3 (Fall 1999): 277-282.