Não digas a ninguém Jaime Bayly Título original

Transcrição

Não digas a ninguém Jaime Bayly Título original
Não digas a ninguém
Jaime Bayly
Título original: No se lo digas a nadie
Tradução: Ana Mafalda Tello
Breve Apresentação da Obra
Não Digas a Ninguém relata o percurso de um jovem homossexual que, oriundo da
conservadora burguesia da capital do Perú, Lima, se deixa envolver pelo mundo da droga
e prostituição. Apesar de ser a primeira obra de ficção de Jaime Bayly, o romance, já
traduzido em 5 línguas, mereceu rasgados elogios por parte da crítica que sublinha, a
propósito, a maturidade literária e a mestria do diálogo. Escreve, por exemplo, Mário
Vargas Llosa: "Este excelente romance descreve com desenvoltura e conhecimento de
causa a filosofia de vida de uma geração dominada pelo desencanto, niilismo e
sensualidade".
PRIMEIRA PARTE
O ESCRAVO
Quando Joaquín acabou o quinto ano da primária, sua mãe, Maricucha, decidiu mudá-lo
de colégio. Um dia de Verão, disse-lhe que o tinha tirado do Imaculado Coração e
matriculado no Markham. Então, ele desatou a chorar.
-
Não chores, meu príncipe, pois é para teu bem - disse-lhe ela, abraçando-o.
-
Não quero mudar de colégio, mamã - protestou ele.
-
Vais adorar o teu novo colégio, meu lindo - disse ela. - É o melhor colégio de Lima.
Mas não percebo por que me tiras do Imaculado se eu era o melhor aluno da
minha turma, mamã - insistiu ele.
O Imaculado não estava à tua altura, Joanquincito - disse ela, e beijou-o na face. Esse colégio já não é o que era. Eras o primeiro sem teres de fazer o menor esforço para
isso, meu filhinho.
Mas nem sequer me perguntaste se queria mudar de colégio, mamã. Não é justo
que me mudes assim.
-
Ainda és uma criança, meu amor. A tua mamã sabe o que é melhor para ti.
Aviso-te de que, se me mudares de colégio, nunca mais serei o melhor aluno da
minha turma.
-
Não digas parvoices, meu príncipe. Nasceste para ser sempre o melhor.
Joaquín correu para o quarto, fechou a porta e rasgou todos os diplomas que lhe tinham
dado no Imaculado Coração.
No primeiro dia de aulas no Markham, Maricucha acordou Joaquín mais cedo do que de
costume. Ainda estava escuro. Joaquín saiu da cama e abraçou a mãe.
-
Oferece o teu dia, meu lindo - disse-lhe ela.
Joaquín ajoelhou-se, benzeu-se, fechou os olhos e rezou: "Senhor, nas Tuas mãos
encomendo o meu espírito." Em seguida, levantou-se.
Que achas do teu novo uniforme? - perguntou Maricucha, mostrando-lhe o
uniforme do Markham: casaco castanho, calças curtas, gravata de riscas e boné castanho.
-
O uniforme do Imaculado era muito mais bonito - declarou ele.
Não sejas tontinho, meu lindo - disse ela, sorrindo. - Além disso, a ti o castanho
fica-te estupendamente. Diz com a cor da tua pele.
Maricucha e Joaquín saíram do quarto e entraram na casa de banho. Ela ajudou-o a
vestir-se e ensinou-o a fazer o nó da gravata. Depois, penteou-o com bastante gel.
Tens de ir muito bem penteadinho para que todos os teus amiguinhos saibam que
és um lord inglês - disse-lhe.
- É melhor não me pores essa coisa gordurosa na cabeça - disse ele, que detestava
pentear-se com gel.
É para ficares ainda mais bonitão, meu príncipe - disse ela, e continuou a
penteá-lo.
Pouco depois, acabou de arranjá-lo e saíram os dois da casa de banho; dirigiram-se à sala
de jantar. Então, Joaquín começou a tomar rapidamente o pequeno-almoço.
Nunca te perdoarei que me tenhas tirado do Imaculado, mamã - murmurou, sem
olhar para a mãe.
Não sejas rancoroso, meu lindo - disse ela, acariciando-lhe a cabeça. - Com o
tempo, compreenderás que faço tudo o que está ao meu alcance pela tua felicidade.
-
Não sei o que queres de mim, mamã.
-
Sabes perfeitamente o que espero de ti, Joaquincito. Que sejas sempre o melhor.
-
Sei muito bem o que queres. Queres que seja padre.
Não, meu amorzinho, só quero que sejas feliz, feliz como um passarinho. Mas,
claro, se o Senhor me abençoasse com um filho sacerdote, considerar-me-ia muito
honrada.
Aviso-te de que não vou ser padre, mamã. Começa a habituar-te à ideia de que
nunca serei padre.
-
Nunca se sabe o que nos reservam os caminhos do Senhor, meu lindo.
Assim que Joaquín acabou de tomar o pequeno-almoço, Maricucha levantou-se, foi ao
quarto e voltou com uma máquina fotográfica.
- Vou tirar-te umas fotografiazinhas - disse, sorrindo.
- Não quero, mamã - suplicou ele. - Odeio que me tires fotografias.
Não sejas maçador, meu amorzinho - disse ela. - Deixa-me tirar-te umas
fotografiazinhas para que, quando fores grande, tenhas uma recordação do teu primeiro
dia no Markham College.
Ele pegou na pasta, pôs o boné e parou em frente da porta de casa.
Tira o boné, Joaquincito - ordenou a mãe. - Um cavalheiro nunca aparece de boné
numa fotografia.
Ele tirou o boné.
-
Cheese - disse ela. - Sorri, passarinho.
Ele sorriu, contrafeito. Ela tirou-lhe várias fotografias.
Agora espera pelo papá no carro e a ver se não chegam tarde ao colégio - disse ela,
abraçando-o.
Ele começou a chorar.
A vida é assim, meu amor - disse-lhe ela. - Os pombinhos têm de sair do ninho e
aprender a voar.
Dez minutos mais tarde, Luis Felipe, o pai de Joaquín, saiu de casa e entrou no carro. Era
um homem alto e robusto. Havia pouco tempo, deixara crescer o bigode. Pôs a pasta no
assento traseiro, fechou a porta e viu que Joaquín estava a chorar.
-
Pára de chorar, porra - disse-lhe, numa voz rouca. - Os homens não choram.
A seguir, ligou o carro, procurou as notícias na rádio e dirigiu-se à estrada principal. Já
amanhecera. Pela estrada que conduzia a Lima passavam velhos camiÕes. Luis Felipe
guiava depressa e em silêncio. Estava mal-humorado, como quase todas as manhãs.
Pouco depois de sair de Chaclacayo, um camião obrigou-o a reduzir a velocidade. No
pára-choques do camião havia uma inscrição que dizia: "O Vingador Solitário de Jauja." Ao
lado dessa inscrição havia um autocolante de Che Guevara. Luis Felipe buzinou.
- índio de merda, mexe-me essa carroça - gritou. E continuou a buzinar.
Um pouco mais adiante, o camionista deixou-o passar. Antes de o ultrapassar, Luis Felipe
abriu a janela.
- índio filho de uma puta, vai mas é conduzir um lama - gritou.
Depois, acelerou e fez um gesto obsceno ao camionista.
Deveriam fuzilar em massa todos os índios e atirá-los ao rio Rímac, porra - disse. Só assim é que o Peru progrediria.
Meia hora depois, Luis Felipe e Joaquín chegaram ao Markham. Não tinham falado
durante todo o caminho.
Vou dar-te um conselho de homem para homem - disse Luis Felipe ao filho, assim
que estacionou em frente do colégio.
-
Diz, papá - disse Joaquín.
-
Se algum idiota quiser armar em espertalhaço contigo, não o deixes, okay?
-
Está bem, papá.
Enfias-lhe dois murros na cara, um pontapé nos tomates e dás-lhe um arraial de
porrada até que ele te peça desculpa. Só assim conseguirás que te respeitem. Se não,
fazem de ti o bobo da festa e vais lixar-te, filho.
-
Obrigada, papá - disse Joaquín.
-
Desanca o primeiro espertalhaço que te aborreça.
Joaquín desceu do carro e começou a andar depressa. Antes de entrar no colégio,
voltou-se para trás e fez adeus ao pai. Luis Felipe respondeu-lhe com uns gestos de
pugilista.
Nessa manhã, depois de terem cantado o hino nacional e ouvido o discurso de
boas-vindas do director do Markham, Joaquín dirigiu-se à sua nova sala de aula,
juntamente com os seus companheiros do primeiro ano do ciclo. Ao entrar,
cumprimentou o director de turma, o Sr. MacAlpine, um homem novo, magro e um pouco
pálido. MacAlpine
desejou-lhe sorte e indicou-lhe a carteira onde se devia sentar. Era uma carteira para dois
rapazes, como, aliás, todas as outras da sala. Joaquín sentou-se na carteira e olhou para o
rapaz que estava sentado ao seu lado.
-
Olá - disse o rapaz. - Chamo-me Jorge.
Jorge era baixo e um pouco gordo. Tinha um olhar inquieto.
-
Chamo-me Joaquín.
Deram um aperto de mão e puseram os cadernos na carteira. MacAlpine começou a fazer
a chamada.
-
Em que colégio andavas?
-
No Imaculado Coração - disse Joaquín.
Falava em voz baixa, para não chamar a atenção de MacAlpine.
-
Que aconteceu? - perguntou Jorge. - Expulsaram-te?
-
Nada disso - explicou Joaquín. - Eu tinha óptimas notas.
-
Então, por que te mudaram?
-
Porque a minha mãe não gostava do Imaculado.
Nesse momento, MacAlpine chamou Jorge Bermúdez. O rapaz sentado ao lado de Joaquín
levantou a mão e disse:
- presente.
-
Gostas de futebol? - perguntou Joaquín.
-
Mais ou menos - respondeu Jorge.
-
De que equipa és?
-
Da U, é claro. Nós, os brancos, somos todos da U.
Então, MacAlpine chamou Joaquín Camino. Joaquín levantou a mão e disse:
- presente.
-
Já foste a Miami? - perguntou Jorge.
-
Não, mas o meu pai prometeu levar-me lá nas férias, em Julho -
-
Miami é incrível. Estive lá no Verão.
disse Joaquín.
Que sorte! O meu pai contou-me que em Miami não há ladrÕes nem miúdos a
pedir esmola nas ruas.
-
Que faz o teu pai?
-
É gerente.
Ah, sim? O meu é director-gerente. Director-gerente é mais do que gerente. É o
posto mais alto que existe.
-
Caramba, que grande sorte a tua.
-
O teu pai é milionário?
-
Não sei, acho que não. Vou perguntar-lhe.
-
O meu é.
-
A sério?
-
Não é milionário. É multimilionário. Sortudo.
MacAlpine pediu silêncio e começou a ditar a primeira aula do ano.
Nessa tarde, às três em ponto, Joaquín saiu do colégio com os outros alunos do Markham.
A mãe esperava-o à porta. Abraçaram-se, deram-se um beijo e entraram no carro.
-
Como correu o teu primeiro dia de aulas? - perguntou ela.
-
Muito bem - respondeu ele.
-
Ah, que maravilha. Estás contente no Markham, meu amor?
-
Sim, mamã. Gostei muito. Obrigado por me teres mudado de colégio.
Já te tinha pedido que confiasses em mim, Joaquincito. Tinha a certeza de que era
para teu bem.
Nesse momento, Jorge passou ao lado do carro de Maricucha e fez adeus a Joaquín, que
sorriu e retribuiu o gesto.
-
Quem é aquele rapaz tão simpático? - perguntou Maricucha.
-
É o meu amigo Jorge.
Ora vejam, como o meu Joaquincito aprendeu a fazer amigos - disse Maricucha,
sorrindo e acariciando a cabeça do filho.
Jorge é uma óptima pessoa, mamã - disse Joaquín. - Sentamo-nos na mesma
carteira.
-
Jorge quê?
-
Jorge Bermúdez.
-
Filho da Rosita e do Cucho?
-
Não sei. Se quiseres, amanhã pergunto-lhe.
Pergunta-lhe, está bem? Porque eu era amiga íntima de Rosita Bermúdez no
colégio e seria magnífico que o teu amigo Jorge fosse filho da gorda Rosita, não achas?
-
Sabes, mamã, no Imaculado não havia nenhum rapaz tão boa pessoa como Jorge.
Que sorte, meu filho. Mas, pensando melhor, não é sorte, meu amor, foi o Senhor
que to pôs no teu caminho, como prémio por seres um filho obediente.
Joaquín sorriu. Maricucha pôs o carro em andamento.
-
Sabes se Jorge vai à missa todos os domingos? - perguntou.
-
Não faço a menor ideia.
Pergunta-lhe, está bem? Porque é muito importante que todos os teus amigos
tenham os valores morais correctos, Joaquincito. E pergunta-lhe também se reza todos os
dias.
-
Por que tenho de lhe perguntar tantas coisas, mamã? Não sejas intrometida.
É teu dever de cristão tentar salvar as almas de todos os teus amiguinhos, Joaquín.
Ou não queres encontrar-te com Jorge no céu?
-
Quero, mamã. Claro que quero. Jorge é uma óptima pessoa.
Então, preocupa-te com a sua formação espiritual e tenta ajudá-lo a encontrar o
caminho da santidade, meu amor.
Mas, se lhe falar destas coisas de religião, aborrece-se e não vai querer ser meu
amigo, mamã.
Não tenhas medo do ridículo, meu lindo. Não tenhas medo do que as pessoas
podem dizer. Tu és um líder. Um líder nato. Nasceste para ser presidente ou cardeal. E, de
repente, sinto-me pequenina. às vezes, penso que até ao Vaticano ninguém te pára, meu
filho.
Maricucha parou em frente de um semáforo e olhou para o filho. Os seus olhos estavam
cheios de ternura.
-
Vamos jogar a um jogo - disse Jorge.
-
Bestial - respondeu Joaquín.
Estavam na aula de Matemática. Tinham passado poucos dias desde o primeiro dia de
aulas. Jorge era o único amigo que Joaquín fizera no Markham.
O jogo é muito fácil - disse Jorge. - Tu és meu escravo e tens de me obedecer em
tudo.
-
Em tudo? - perguntou Joaquín, surpreendido.
-
Em tudo, é claro. És o meu escravo. Eu sou o teu senhor.
-
Está bem.
Falavam a sussurrar, enquanto o professor Tamayo fazia operaçÕes matemáticas no
quadro.
-
Agora diz-me: és o meu senhor e sou teu escravo - ordenou Jorge.
-
És o meu senhor e sou teu escravo - repetiu Joaquín.
É assim mesmo que eu gosto, escravo, Agora, quero que tires a borracha do bolso
da minhas calças.
-
Está bem, mas é apenas um jogo.
O jogo não desagradou a Joaquín. Achou graça à ideia de ser escravo de Jorge.
-
Tens de dizer: às tuas ordens, senhor - disse Jorge.
-
às tuas ordens, senhor - repetiu Joaquín.
-
Agora tira a borracha, escravo.
Joaquín meteu uma mão no bolso de Jorge. Procurou a borracha. Notou que o bolso tinha
um buraco. Tocou algo suave, morno.
-
Não há nenhuma borracha - disse, tirando a mão bruscamente.
-
Claro que há - disse Jorge, sorrindo. - Acabas de lhe tocar.
-
Aquilo não era uma borracha.
-
Toca-lhe de novo, escravo.
Joaquín meteu novamente a mão no bolso de Jorge.
-
Agora brinca com a minha borracha, escravo - ordenou Jorge.
Joaquín acariciou o sexo de Jorge. Sabia muito bem que não estava a mexer numa
borracha.
Uma noite, Joaquín foi de pijama para a sala e sentou-se a ver televisão ao lado do pai.
-
Então? Já brigaste com alguém no colégio? - perguntou Luis Felipe.
-
Não, papá, ainda não - retorquiu Joaquín.
Luis Felipe estava a tomar uma bebida e a fumar um cigarro.
-
E que esperas para brigar? - perguntou.
-
Não tive oportunidade, papá - explicou Joaquín.
-
Ninguém quis armar em espertalhaço contigo?
-
Ninguém, papá. Até agora, todos me têm tratado bem.
Que estranho, porque no colégio costuma haver muitos espertalhaços. Não me
estás a embarretar, pois não?
-
Não, papá, como podes pensar uma coisa dessas?
Luis Felipe bebeu um golo.
Sabes o que vais fazer então? - disse ele. - Vais observar quem são os galifÕes da
tua turma e agarras um desses idiotas no recreio e desanca-lo.
-
Mas porquê, papá? Por que hei-de lutar com ele, se não me fez nada?
Para que te respeitem, meu idiota. Para que saibam que contigo não se podem
meter.
-
Mas eu não gosto de lutar sem mais nem menos, papá.
-
Que se passa, Joaquín? Tens medo?
Joaquín ficou calado.
Tens medo de lutar? - perguntou Luis Felipe, levantando a voz. - O meu filho
mija-se nas calças porque não se atreve a bater num espertalhaço?
-
É que não sou bom a lutar, papá - disse Joaquín.
O quê? Fala alto, porra. A nós, os homens, a voz sai-nos dos tomates. Tu parece
que falas pelo cu, rapaz.
- É que não sou bom a lutar - gritou Joaquín.
Não sabes lutar? - disse Luis Felipe, sorrindo. - É esse o teu problema? Vou
ensinar-te a dar porrada, rapaz. O teu velho vai ensinar-te umas quantas coisas.
A seguir, levantou-se do sofá e apagou o cigarro.
-
Espera por mim - disse. - Volto já.
Luis Felipe caminhou devagar até ao quarto. Joaquín ficou a ver televisão. Já estava
arrependido de se ter sentado a ver televisão com o pai. Pouco depois, Luis Felipe
regressou com um par de luvas de boxe.
-
PÕe-nas - disse, e deu-lhe as luvas.
-
Para quê? - perguntou Joaquín, surpreendido.
-
Vou ensinar-te a lutar - anunciou Luis Felipe.
-
Não te preocupes, papá - disse Joaquín. - Não vale a pena.
-
PÕe-nas, porra - mandou Luis Felipe, erguendo a voz.
Resignado, Joaquín enfiou as luvas. Luis Felipe afastou a mesa e os sofás, deixando um
espaço livre no meio da sala.
Agora, vamos simular um combate - disse. - Podes bater-me onde quiseres da
cintura para cima. Eu limito-me a esquivar-me às tuas pancadas.
-
Não me vais bater? - perguntou Joaquín.
Não. Eu só danço à tua frente e esquivo-me. Tens de me atingir em qualquer ponto
da cintura para cima.
-
É melhor ser só na barriga, papá. Não te quero bater na cara.
-
Bate-me onde quiseres, desde que não me batas nos tomates, rapaz.
Joaquín riu-se. Não sabia o que havia de fazer. As pernas tremiam-lhe.
Vá, começa, mexe-te - disse Luis Felipe. - Imagina que sou um espertalhaço do teu
colégio.
Joaquín pôs-se em guarda. Luis Felipe começou a dançar à sua volta. Joaquín animou-se a
dar-lhe uns murrinhos na barriga. O pai desviou-os com as mãos.
Muito lento - disse, continuando a andar à volta dele. - Mais forte. Mais depressa.
Mais depressa.
Joaquín tentou dar-lhe um bom soco na barriga, o pai esquivou-se e respondeu,
ferrando-lhe uma bofetada. Joaquín riu nervosamente.
-
Não te rias - disse Luis Felipe. Continua a lutar. Concentra-te.
-
Mas tinhas dito que não me batias, papá...
-
Limita-te a lutar. Não percas o fôlego a falar.
Joaquín deu-lhe dois socos com força. Luis Felipe evitou-os facilmente e ferrou-lhe um par
de bofetadas. Joaquín sentiu a cara a arder.
-
Não vale, papá - disse, indignado. - Estás a fazer batota.
-
Luta como um homem, porra. Não sejas manhoso.
Joaquín tentou dar-lhe um soco na cara, mas o pai moveu-se a tempo, esquivou-se e
deu-lhe outro par de bofetadas. Joaquín sentiu a cara quente e a arder.
-
Não quero continuar a lutar - declarou.
Não vale baldar-se. Não armes em maricas, rapaz. Estou a ensinar-te a lutar como
um homem.
De repente, Luis Felipe espetou-lhe outra bofetada. Joaquín enfureceu-se e deu-lhe dois
murros na barriga.
-
Porra, agora revoltas-te - disse Luis Felipe, sorrindo.
Então, pregou-lhe duas bofetadas mais fortes do que as anteriores. Joaquín virou-lhe as
costas, tirou as luvas e deitou-as para o chão.
-
Assim não vale, papá - disse.
Estava a chorar. Não conseguia evitá-lo.
-
PÕe as luvas, porra - disse Luis Felipe. - Não me venhas com mariquices.
-
Não quero - disse Joaquín. - Não gosto deste jogo.
Sobe a guarda - ordenou Luis Felipe, e ferrou-lhe outra bofetada. - Vamos,
concentra-te. A luta continua.
-
És um abusador de caca - gritou Joaquín. E correu para o quarto.
-
Filho, vem cá imediatamente - gritou Luis Felipe.
Joaquín não parou.
-
Só estava a tentar ensinar-te a lutar, homem - gritou Luis Felipe.
Joaquín entrou no quarto, fechou a porta à chave e olhou para o espelho. Tinha a cara
vermelha. Chorou com raiva, apertando os dentes. Procurou o seu álbum de fotografias.
Abriu-o. Rasgou um par de fotos onde o pai aparecia. Depois, meteu-se na cama.
Continuava a chorar. Pouco depois, Luis Felipe bateu à porta.
-
Filho, abre - disse.
Joaquín não respondeu. Luis Felipe deu pontapés na porta.
-
Abre, porra - gritou.
Joaquín meteu a cabeça debaixo da almofada.
-
Oxalá te desfaçam à porrada no colégio - disse Luis Felipe.
Joaquín ouviu os passos do pai que se afastava. Odeio-o, pensou.
Uns dias depois, um sábado à tarde, Joaquín foi passar o fim de semana em casa dos pais
de Jorge. Depois de almoçarem, Joaquín e Jorge foram até ao segundo andar e entraram
no quarto de Jorge.
-
Vou mostrar-te uma coisa secreta - anunciou Jorge.
-
O que é? - perguntou Joaquín.
Jorge fechou a porta à chave. Depois, abriu o armário, procurou entre a roupa e tirou uma
revista.
Uma revista de mulheres nuas - disse, a sorrir, mostrando a Joaquín um exemplar
da Playboy.
-
Como conseguiste arranjá-la? - perguntou Joaquín.
Roubei-a em casa do meu tio Augusto - respondeu Jorge. - O espertalhão do meu
tio tem um montão de Playboys.
Sentaram-se em cima da cama e folhearam a revista. Era a primeira vez que Joaquín via
uma revista de mulheres nuas.
A fotografia de que mais gosto é esta - disse Jorge, apontando para a fotografia de
uma mulher loura, que se meneava, com as pernas abertas.
-
É uma fotografia bonita - comentou Joaquín, sem saber o que havia de dizer.
Tenho olhado tanto para ela que por vezes até sonho com a rapariga - disse Jorge.
- A noite passada sonhei que nos meneávamos em frente um do outro e quando
chegávamos lá acima eu enfiava-lhe a pila. Olha, vou mostrar-te como manchei a cama. Jorge abriu os lençóis e mostrou-lhe umas manchas.
-
Parece manteiga - disse Joaquín.
Jorge riu-se.
- Quando sonhas com mulheres deixas essas manchas - afirmou.
Ficaram calados. Continuaram a ver a revista.
-
Podemos jogar a um jogo que é muito giro - propôs Jorge.
-
Como é? - perguntou Joaquín.
Esfregamos a pila a olhar para estas fotografias e depois vemos quem dispara mais
longe.
-
E que vamos disparar?
-
Ora, essa coisinha branca que sai quando a esfregas!
Joaquín baixou a cabeça, envergonhado.
-
Nunca esfregaste a tua? - perguntou Jorge.
Nunca - disse Joaquín. - É pecado mortal. E por um pecado mortal vamos para o
Inferno.
-
Claro que sim, mas por enquanto ainda não vamos morrer.
Jorge levantou-se, pôs a revista no tapete e abriu-a na sua página favorita.
-
Agora vem para aqui, põe-te ao meu lado - disse.
Joaquín colocou-se ao lado de Jorge.
O jogo é assim: cada um de nós pÕe as calças para baixo e esfrega a pila - disse
Jorge. - Ganha o que disparar mais depressa.
-
Eu nunca disparei. Não posso disparar assim de repente.
-
Todas as pilas disparam, meu sonso.
Jorge levou as mãos à cintura.
-
Um, dois e três - disse.
Em seguida, pôs as calças para baixo e começou a masturbar-se. Joaquín olhou-o de lado.
-
Não vale olhar, ouviste? - lembrou Jorge.
-
Era para aprender - disse Joaquín, e pôs as calças para baixo.
-
Agora é que vou disparar - disse Jorge.
Joaquín começou a masturbar-se.
-
Estou a vir-me, estou a vir-me - disse Jorge, fechando os olhos. Então ejaculou.
-
Ganhei, ganhei - gritou.
Nessa noite, Jorge e Joaquín puseram-se de pijama e deitaram-se. Joaquín meteu-se na
sua cama e Joaquín enfiou-se num saco-cama que fora colocado no tapete.
-
Já alguma vez te hipnotizaram? - perguntou Jorge.
-
Nunca - disse Joaquín.
O quarto estava às escuras. Ouviam o tráfego na Rua Coronel Portulo.
- Tenho um disco para hipnotizar que comprei em Miami - disse Jorge. - Ainda não o ouvi,
porque tenho medo de o ouvir sozinho.
-
Acho que hipnotizar é pecado mortal - disse Joaquín.
Está bem, mas já fizemos um pecado mortal, quando esfregámos a pila, por isso, se
fizermos outro, tanto faz.
-
Tens razão.
Jorge levantou-se da cama, saiu do quarto e regressou com o gira-discos. Pô-lo no tapete
e retirou um disco do armário.
-
Se calhar é perigoso hipnotizar - disse Joaquín.
Jorge pôs o disco no gira-discos.
-
Não tenhas medo - disse. - Não vai haver problema.
Em seguida, deitou-se ao lado de Joaquín.
-
Concentra-te bem - sussurrou. - E, se tiveres medo, avisa-me.
Uma voz começou a dizer as instruçÕes em inglês. Seguindo as instruçÕes, Jorge e Joaquín
fecharam os olhos, respiraram profundamente, abriram as mãos e tentaram esvaziar as
mentes. A voz disse-lhes que estavam numa praia deserta. O disco reproduziu o barulho
do mar, o assobio do vento, o grasnar de gaivotas.
-
Agora estás hipnotizado, escravo - sussurrou Jorge.
Joaquín bocejou.
-
Não estou hipnotizado - disse. - Estou a morrer de sono.
-
Digo que estás hipnotizado, escravo.
-
Está bem, senhor.
É assim que gosto que te portes, escravo. Agora, concentra-te e pensa que és uma
mulher. Estás hipnotizado e és uma mulher, uma mulher, uma mulher.
Joaquín sorriu.
-
Diz que és uma mulher - ordenou Jorge.
-
Sou uma mulher - disse Joaquín.
-
Sou uma mulher, meu senhor - corrigiu Jorge.
-
Sou uma mulher, meu senhor - repetiu Joaquín.
Muito bem, muito bem. Agora quero que sejas a mulher da revista, a mulher que
se meneia.
-
Sou a mulher da revista, meu senhor. Sou a mulher que se meneia.
- Agora volta-te para lá. Não abras os olhos. Estás hipnotizado. És uma mulher.
Joaquín deitou-se de barriga para baixo. Jorge puxou-lhe as calças para baixo. Joaquín
abriu os olhos, surpreendido.
-
Não quero continuar a jogar - disse.
Vá, cala-te, não estragues o jogo - disse Jorge. - Fecha os olhos, caramba. Estás
hipnotizado.
Joaquín fechou os olhos. Jorge deitou-se por cima dele.
Eu enfio-ta primeiro e depois enfias-ma tu a mim, está bem? - sussurrou, e
introduziu o sexo entre as nádegas de Joaquín.
-
Dói muito - queixou-se Joaquín.
-
Só ao princípio, depois já não dói.
Jorge pôs bastante saliva na cabeça do sexo e meteu-o em Joaquín.
Diz-me que és a mulher da revista, por favor - sussurrou, movendo-se cada vez
mais rapidamente.
Jorge terminou e deixou-se ficar por cima de Joaquín.
- Metê-la no rabo é mil vezes melhor do que esfregá-la - disse.
-
Agora é a minha vez - disse Joaquín.
-
Não, já é muito tarde - disse Jorge. - É melhor ficar para outro dia.
Depois, voltou para a cama e tapou-se com os lençóis de Batman e Robin.
Algumas semanas depois, Joaquín estava a folhear o jornal na sala de sua casa quando a
mãe o chamou aos gritos. Assustado, levantou-se de um salto e correu para o quarto da
mãe.
Pode saber-se o que é que esta porcaria fazia no teu quarto? - perguntou-lhe ela,
mostrando-lhe uma Playboy.
Jorge emprestara a revista a Joaquín, que, por sua vez, a escondera atrás de uns quadros
pendurados na parede do seu quarto.
-
Não sei, mamã - disse Joaquin.
- Como é que não sabes? - perguntou Maricucha. - Irma diz que estava a limpar o teu
quarto e de repente encontrou esta imundície.
Ele baixou a cabeça, envergonhado.
Não posso acreditar que o meu filhinho adorado tenha a cabeça cheia de porcarias
- disse ela.
-
Perdoa-me mamã - disse ele. - Não voltarei a fazê-lo.
Ainda és uma criança e já estás a enlamear a tua alma, Joaquíncito - disse ela. - Se,
com a tua idade, lês estas revistas para doentes, que vai ser de ti quando fores grande,
meu filho?
A seguir, atirou a revista para o chão, sentou-se na cama e desatou a chorar.
-
Devo ter sido uma má mãe para o meu filho ter saído assim perverso - murmurou.
Joaquín ficou com pena da mãe, ao vê-la a chorar.
- É a primeira vez que vejo uma revista de mulheres nuas, mamã - disse. - Prometo que
nunca mais volto a fazê-lo.
Eu que tinha tantas esperanças em ti, meu filhinho adorado - disse ela, a soluçar. Não posso acreditar que me tenhas saído meio desviado, que desilusão.
Então Luis Felipe entrou no quarto. Viu a mulher desfeita em lágrimas e a revista no chão.
-
Que diabo aconteceu aqui? - gritou.
-
O nosso filho é um depravado sexual - disse Maricucha.
Luis Felipe agachou-se, apanhou a revista e observou-a com um meio sorriso.
-
Porra, lá vivaço és tu - disse a Joaquín.
- Luis Felipe, por favor, não fales assim com o miúdo - pediu Maricucha.
Cala-te, Maricucha, isto é um assunto de homens. Disto trato eu - declarou
Felipe.
Luis
Depois, olhou para Joaquín com um ar zangado.
-
Onde arranjaste a revista? - perguntou.
-
Não sei, papá - disse Joaquín.
Não armes em esperto comigo - gritou Luis Felipe; e bateu-lhe na cara com a
revista.
Maricucha abraçou o filho.
-
Luis Felipe, por favor, não batas no miúdo - gritou.
Foi por isso que o nosso filho se tornou uma princesinha - gritou Luis Felipe. Porque tu o mimas, o tratas como se fosse uma boneca.
-
Não lhe digas isso, vais complexá-lo - gritou Maricucha.
-
Onde arranjaste a revista, porra? - perguntou Luis Felipe a Joaquín.
-
Consegui-a no quiosque de Cristian - disse Joaquín.
Cristian era um homem calado e amável, que tinha um quiosque a poucos quarteirÕes da
casa dos pais de Joaquín.
-
Está lixado comigo esse maricas desse mestiço - disse Luis Felipe.
Agora mesmo nos vamos desfazer dessa porcaria - disse Maricucha, e tirou a
revista ao marido. - Vamos queimar esta revista imunda, antes que o diabo entre no nosso
lar.
- Mamã, por favor, não a queimes - disse Joaquín. - Essa revista não é minha. Tenho de a
devolver.
Luis Felipe agarrou Joaquín pelo pescoço e abanou-o com força.
-
Olha, miúdo de um raio, não sejas insolente com a tua mãe - gritou.
Vamos queimar este pasquim nojento agora mesmo - disse Maricucha, e saiu do
quarto com a revista na mão.
Joaquín correu atrás da mãe.
-
Tenho de devolvê-la, mamã - gritou. - Cristian emprestou-ma.
- Não vais devolver nada, porra - gritou Luis Felipe. - Vou falar com Cristian e vou meter na
ordem esse mariconço desse mestiço.
Maricucha, Luis Felipe e Joaquín foram para o terraço.
-
Marcelo, Marcelo! - gritou Maricucha.
Marcelo era um jardineiro que trabalhava na casa dos pais de Joaquín. Era um homem
baixo e meio corcunda. As empregadas da casa chamavam-lhe Hawan 5-0, porque era
parecido com um dos detectives dessa série da televisão.
Aqui estou, minha senhora - gritou Marcelo - Cá em cima, junto da capoeira dos
patos.
Luis Felipe, Maricucha e Joaquín foram até às capoeiras, onde Maricucha mandara
Marcelo criar patos, galinhas e coelhos "porque o meu lar terreno tem de ser igual ao
paraíso terrestre, Marcelo", dissera ela).
-
Marcelo, acenda-me imediatamente uma fogueira - disse Maricucha.
-
É para já, minha senhora - disse Marcelo, com uma cara assustada.
Juntou umas folhas secas e uns jornais velhos, puxou de uma caixa de fósforos e acendeu
uma fogueira.
Encontrámos uma revista de mulheres nuas no quarto de Joaquín - explicou
Maricucha.
-
Como é que isso aconteceu, Joaquincito? - disse Marcelo.
Esse índio ingrato do Cristian é que tem a culpa - disse Luis Felipe. - Vou
rebentar-lhe o quiosque a pontapé.
-
Esse Cristian é um índio muito sabido - disse Marcelo.
Maricucha aproximou-se da fogueira, olhou para a revista, fez um trejeito de nojo e
atirou-a para as chamas.
-
Que essas desavergonhadas despidas se transformem em cinzas - murmurou.
No dia seguinte, a caminho do colégio do filho, Luis Felipe parou em frente do quiosque
de Cristian, arrotou e desceu do carro.
-
A menina tem medo de descer? - perguntou a Joaquín, num tom trocista.
Bom dia, Sr. Camino, que milagre vê-lo por aqui - disse Cristian, sorrindo, ao
mesmo tempo que dava uma dentada num biscoito.
Não venhas para cima de mim com manteiguices, seu mestiço maricas - gritou Luis
Felipe, e agarrou Cristian pelo pescoço. - Ouve-me bem, meu filho da puta. Voltas a dar
uma revista de adultos ao meu filho e rebento com esta barraca. Desfaço-a ao pontapé e
queimo-a sozinho. Percebeste bem?
-
Sim, Sr. Camino - balbuciou Cristian.
Estava pálido, aterrado.
Além disso, os meus amigos da polícia informaram-me de que alugas este
quiosque à noite como prostíbulo - disse Luis Felipe. - Não julgues que és muito esperto,
parvalhão de mestiço. Já sei que aqui se fode mais do que no Cinco y Medio.
-
Mentiras, Sr. Camino, mentiras - disse Cristian.
Armas outra vez em vivaço e mando queimar o teu quiosque, já sabes - disse Luis
Felipe, e soltou-o.
-
Obrigado, Sr. Camino - disse Cristian, baixando a cabeça.
Luis Felipe começou a andar depressa em direcção ao carro.
-
Desculpa, Cristian, eu é que tenho a culpa de tudo - disse Joaquín em voz baixa.
Leva isto ao teu pai para que me desculpe, Joaquincito - disse Cristian, e deu-lhe
um maço de cigarros.
Joaquín correu para o carro do pai e entrou o mais rapidamente que pôde.
Todos os mestiços são iguais - disse Luis Felipe. - Atiras-lhe com dois ou três porras
e mijam-se nas calças.
Depois, ligou o motor e acelerou. Joaquín entregou-lhe o maço.
-
Cristian pede que o desculpes - disse.
Luis Felipe abriu o maço, tirou um cigarro e acendeu-o.
Viste a cara de assustado com que o índio ficou quando o agarrei pelo pescoço? disse a sorrir. - Aprende com o teu pai, Joaquín. Se queres triunfar no Peru, tens de saber
insultar os mestiços.
Essa manhã, quando entrou na aula, Joaquín sentiu que as suas mãos transpiravam.
Estava nervoso.
Perdi a tua revista - disse a Jorge, assim que se sentaram na carteira que
partilhavam.
-
Como é que a perdeste? - perguntou Jorge, surpreendido.
-
Foram os meus pais que ma tiraram - disse Joaquín, sem o olhar nos olhos.
Jorge bateu na carteira com uma mão.
Merda, que parvalhão me saiste - disse. - Nunca ta devia ter emprestado. Tens de
conseguir que ta devolvam.
-
É impossível - disse Joaquín. - Já a queimaram.
-
Queimaram-na? Como é que a queimaram?
-
A minha mãe perdeu a cabeça e atirou-a para uma fogueira, no jardim.
Jorge deu um pontapé na lancheira de Joaquín.
- Puta que me pariu! Como é que tive a ideia de dar a revista a um tanso como tu - disse
Jorge.
-
Perdoa-me, Jorge.
- Estúpido. Sabias que a revista não era minha, que a tinha roubado ao meu tio.
-
Estou disposto a fazer o que quiseres para que me perdoes - disse Joaquín.
-
Deixa-me pensar no castigo que te hei-de dar, escravo - disse Jorge.
Umas horas mais tarde, Jorge e Joaquín saíram para o primeiro recreio e andaram até ao
gradeamento.
Já sei qual vai ser o teu castigo - anunciou Jorge. - Quero que esvazies os pneus do
carro do Moulbright.
Harrv Moulbright era o director do Markham. Era um homem calvo e gordinho. Tinha
fama de ser alcoólico. No colégio corria o boato de que fora espião nazi e que chegara ao
Peru com uma falsa identidade, fugindo à justiça.
-
Os pneus do carro de Moulbright? - perguntou Joaquín, surpreendido.
-
Sim - confirmou Jorge. - Os quatro pneus.
-
E porquê Moulbright?
Porque é um estupor, um filho da puta. No ano passado, levou-me ao seu gabinete
e deu-me vinte reguadas na mão. O grande filho da puta tem uma régua de metal que dói
como a porra. A mão ficou vermelha e inchou-me desalmadamente. Esse inglês
degenerado é um sádico.
-
E que fizeste para te dar vinte reguadas?
Nada, uma idiotice. Nos recreios, ficava na aula, abria as lancheiras dos americanos
e comia as coisas melhores. Eram umas lancheiras bestiais, Joaquín. Tinham Bollycaos,
Donuts, Bongos, Kitkats, de tudo. Eu arrasava as lancheiras. Os americanos eram tão
parvos que nem notavam. Mas um dia o maricas do Fischer apanhou-me e fez queixa de
mim ao Moulbright.
Joaquín sorriu.
-
Não sei se vou poder fazer o que queres - disse.
-
Não sejas maricas - disse Jorge. - Tens de fazer.
-
Mas, se me apanham, podem expulsar-me.
Ninguém te apanha, Joaquín. Agora, à saída, procuras o carro do Moulbright e
esvazias os pneus num instante.
-
à saída há um montão de pessoas, Jorge. Alguém vai reparar.
Se queres continuar a ser meu amigo, tens de fazer o que te mandei. Se não, nunca
mais te falo.
-
Está bem, eu tento - disse.
Jorge sorriu e deu-lhe uma palmadinha nas costas.
-
Então, está combinado, hoje, à saída? - perguntou-lhe.
-
Hoje, à saída - confirmou Joaquín.
Deram um aperto de mão e sorriram.
Nessa tarde, como aliás em todas, a campainha do Markham tocou às três em ponto.
Jorge e Joaquín saíram juntos do colégio. Jorge deixou a pasta no seu carro, com o
motorista, e acompanhou Joaquín até ao carro de Moulbright, um Volkswagen verde que
estava parado em frente da direcção do colégio.
- Não me atrevo - disse Joaquín. - Há muita gente.
Em frente da porta principal do colégio havia dezenas de alunos de uniforme castanho,
condutores impacientes que tocavam a buzina dos seus automóveis, vendedores de
gelados com boné e corneta que vendiam menos gelados do que cigarros soltos e
professores ingleses que chamavam a atenção por irem para o colégio de fato e sapatos
de ténis.
- Nem que esvazies só um par de pneus - disse Jorge. - Sentas-te no chão e metes-lhes
uma lapiseira no pipo. Ninguém vai ver.
- Está bem, vou tentar - disse Joaquín. E sentiu as pernas tremerem-lhe.
- Despacha-te, pois o Moulbright pode sair a qualquer momento
-
disse Jorge. E foi-se dirigindo para o seu carro.
Joaquín agachou-se ao lado do carro de Moulbright, pegou numa lapiseira, meteu a ponta
da mesma no pipo de uma das rodas dianteiras e deixou sair o ar do pneu. Quando
acabou de o esvaziar, começou a fazer o mesmo ao pneu traseiro do mesmo lado.
- Oiça lá, menino, que diabo está aí a fazer? - foram as palavras que ouviu, pouco depois.
Ergueu os olhos e viu o professor Pérez-Mejia, prefeito do colégio, que o observava de
uma janela do segundo andar. Pérez-Mejia era um tipo moreno e muito magro. Os alunos
do colégio chamavam-lhe Lagartixa, Girino e A Boa.
-
Nada, professor - disse Joaquín. - Estava a apertar os sapatos.
-
Não saia daí - ordenou Pérez-Mejia.
Assustado, Joaquín parou e procurou Jorge, mas não o encontrou. Pérez-Mejia saiu do
colégio a correr e, ao ver o pneu do carro de Moulbright vazio, agarrou Joaquín pelo
cabelo.
- Foste surpreendido a cometer um acto de vandalismo contra a propriedade de mister
Moulbright - disse-lhe.
- Não fiz nada, professor, os pneus já estavam assim - disse Joaquín.
Puxando-o com força pelo cabelo, Pérez-Mejia levou-o de novo para o colégio.
Vou apresentar-te a mister Moulbright - disse-lhe a sorrir. - Vai achar muita graça,
quando souber que lhe estavas a esvaziar os pneus do carro.
-
Por favor, professor, não diga nada, peço-lhe - suplicou Joaquín.
- Neste colégio, a indisciplina paga-se caro - disse Pérez-Mejia.
-
No Markham não há lugar para vivaços.
Ao chegar ao gabinete do director do colégio, Pérez-Mejia bateu três vezes à porta.
Moulbright não demorou nada a abrir. Estava em camisa e gravata. Usava uns óculos de
lentes grossas.
- Surpreendi este aluno a tentar esvaziar os pneus do seu carro, mister - disse Pérez-Mej
ia. - Entrego-lho, para que se encarregue de lhe aplicar a sanção correspondente.
- Obrigado, professor - disse Moulbright, olhando para Joaquín por cima dos óculos.
Pérez-Mejia fez uma vénia e afastou-se.
- Faça o favor de entrar - disse Moulbright.
Joaquín entrou no gabinete. Moulbright fechou a porta, sentou-se no cadeirão, cruzou as
pernas e tirou uma garrafa de whisky. Em seguida, bebeu um golo da garrafa, olhou para
Joaquín e sorriu. Tinha uma cara redonda, como que inchada, e quase não tinha cabelo.
-
Nome e secção? - perguntou.
-
Joaquín Camino, primeiro A.
Moulbright tomou nota.
-
Agora conte-me o que estava a fazer ao meu carro - disse, sorrindo.
-
Nada, mister Moulbright - disse Joaquín. - Não fiz nada.
-
Não me minta.
-
Juro-lhe que não fiz nada.
Moulbright levantou-se e bebeu outro golo.
-
These damn peruvians are such liars - murmurou.
Então, abriu uma gaveta e retirou uma régua de metal.
Vai dizer-me por que estava a esvaziar-me os pneus ou vou deixar as suas mãos
inchadas.
Joaquín ficou calado.
-
A mão direita - ordenou Moulbright.
Joaquín estendeu-lhe a mão direita. Moulbright bateu-lhe dez vezes seguidas com a régua
de metal. Cada vez que lhe batia, sorria e um fiozinho de baba escorria-lhe pela comissura
dos lábios.
-
Por que estava a fazer aquilo? - perguntou.
-
Não estava a fazer nada - disse Joaquín, a chorar.
-
A mão esquerda - ordenou Moulbright.
A seguir, assestou a régua dez vezes na palma da mão esquerda de Joaquín.
-
Vai confessar por que me queria obrigar a voltar para casa de táxi? - perguntou.
Joaquín olhou para as mãos inchadas e vermelhas e continuou a chorar. Moulbright bebeu
mais um golo da garrafa de whisky.
- Volte-se e puxe as calças para baixo - ordenou.
Joaquín obedeceu-lhe em silêncio. Moulbright começou a bater-lhe nas nádegas com a
régua de metal.
- Só vou parar quando me disser - afirmou, e continuou a bater-lhe.
-
Fi-lo por um amigo - disse Joaquín. - Foi um amigo que me pediu.
Moulbright parou de lhe bater.
-
O nome dele.
-
Jorge Bermúdez.
Moulbright sorriu.
Pobrezinho, ficou com o rabinho vermelho - disse, e deu várias palmadas nas
nádegas de Joaquín. - Agora, vista as calças e vá para casa.
Na manhã seguinte, Jorge e Joaquín encontraram-se no pátio do colégio. Era uma manhã
cinzenta, como costumam ser as manhãs de Lima.
-
Que aconteceu ontem? - perguntou Jorge.
-
Nada - disse Joaquín, metendo as mãos nos bolsos para que Jorge não as visse.
-
Não te faças de parvo. Vi que o Lagartixa te apanhou.
-
Pois apanhou, mas não lhe disse nada.
-
Que te disse?
-
Nada, Jorge. Não aconteceu nada.
Não me mintas, Joaquín. Conta-me tudo o que aconteceu. Se mentires, estás
lixado comigo para sempre.
Joaquín baixou os olhos.
O Lagartixa levou-me ao gabinete de Moulbright e Moulbright deu-me um monte
de reguadas.
-
Disseste-lhe o meu nome? - perguntou Jorge.
-
Estás doido? Não lhe disse uma única palavra a teu respeito.
-
Então por que coras?
-
Não coro.
-
Estás corado como um tomate, meu idiota.
-
Juro que não fiz queixa de ti. Aguentei o castigo sozinho.
-
Mais vale que seja assim, Joaquín. Se me acusaste, estás lixado comigo.
Nesse momento, a campainha tocou. Jorge e Joaquín entraram na aula e sentaram-se na
carteira.
- Quantos pneus lhe esvaziaste? - perguntou Jorge.
- Dois - respondeu Joaquín. - Deixei-lhe dois pneus no chão.
- Bem feito, filho da puta de inglês. Bateu-te com muita força?
- Com muitissima. Fez-me chorar.
Joaquín mostrou-lhe as mãos. Ainda as tinha inchadas e vermelhas.
-
Esse inglês é um sádico - disse Jorge. - Tem prazer em bater nos alunos.
Pouco depois, o professor Candelares entrou na sala e pediu silêncio. Candelares ensinava
Química. Tinha o cabelo preto, cheio de gel e penteado para trás, e uns olhos grandes,
redondos, parecidos com os de um mocho. Candelares gostava de brincar com os alunos.
Por isso, era muito popular no colégio.
Chamo-me Napoleón Candelares - disse ao começar a aula. - Não combati em
Waterloo, mas todos os dias combato na retrete, pois tenho um problema de prisão de
ventre.
Os alunos riram à gargalhada.
A meio da aula de Química, um assistente de Moulbright, o Sr. Tapia, entrou na sala, falou
em voz baixa com o professor Candelares e disse:
-
Aluno Jorge Bermúdez, faça o favor de me acompanhar.
Um murmúrio percorreu a aula. Todos sabiam que ser chamado por Moulbright só podia
significar más notícias. Antes de se levantar, Jorge lançou a Joaquín um olhar ameaçador.
-
Juro que não disse nada de ti - sussurrou Joaquín.
-
Estás lixado comigo - sussurrou Jorge.
Em seguida, acompanhado pelo Sr. Tapia, Jorge saiu da aula. Joaquín ficou muito nervoso.
Sem se conseguir concentrar na aula, abriu o caderno e escreveu: "Jorge, peço-te perdão.
O que fiz foi uma baixeza. Juro que estou arrependido. Por favor, desculpa-me. Nunca tive
um amigo tão boa pessoa como tu. Não quero deixar de ser teu amigo. Estou disposto a
fazer o que disseres para continuar a ser teu amigo. Por favor, perdoa-me e dá-me mais
uma oportunidade. Joaquín (o teu escravo)." Depois, arrancou a folha e meteu-a na
carteira de Jorge.
Pouco depois, o Sr. Tapia voltou a interromper a aula de Química.
- Aluno Joaquín Camino, faça o favor de me acompanhar - disse.
Joaquín pôs-se de pé e saiu da aula. Sentia a cara a arder. Tinha medo.
Parece que se meteu numa grande embrulhada, jovem - disse-lhe Tapia, no
caminho para a direcção.
-
Acha que me vão expulsar, Sr. Tapia? - perguntou Joaquín.
-
Não sei, mas este inglês é muito torto - disse Tapia.
Entraram nos escritórios da direcção, subiram as escadas e percorreram um corredor em
cujas paredes estavam as fotografias de todas as turmas de finalistas do Markham.
Aconselho-o a não o contrariar, porque o inglês perde as estribeiras quando
alguém lhe faz frente - disse Tapia, baixando a voz. - É preciso dar sempre razão ao careca.
-
Obrigado, Sr. Tapia - disse Joaquín.
Tapia bateu à porta do gabinete de Moulbright e apressou-se a retirar-se.
-
Entre - gritou Moulbright.
Joaquín abriu a porta e entrou no gabinete. Jorge estava sentado em frente da secretária
de Moulbright.
Sente-se - disse Moulbright. - Um dos senhores mentiu-me - disse Moulbright. - E
quero averiguar qual é o mentiroso.
Jorge e Joaquín permaneceram em silêncio.
Joaquín Camino disse-me ontem que a ideia de esvaziar os pneus do meu carro foi
de Jorge Bermúdez e Jorge Bermúdez acaba de me dizer que não tem nada a ver com o
assunto - informou Moulbright.
- É verdade, foi uma invenção de Camino - disse Jorge, e olhou para Camino, como que a
prometer-lhe vingança.
-
Qual dos dois mente, Sr. Camino? - perguntou Moulbright.
Joaquín não quis meter Jorge em mais problemas.
-
Eu - disse. - Foi tudo ideia minha.
E posso saber por que me disse ontem que estava a esvaziar os pneus porque
Jorge Bermúdez lho tinha pedido? - perguntou Moulbright.
Menti-lhe porque sou cobarde, mister Moulbright - disse Joaquín. - Menti para
atirar a culpa para outro.
-
O que acontece é que Camino é maricas, mister Moulbright - disse Jorge.
Moulbright sorriu, como se lhe tivessem dado uma boa notícia.
-
Ah, sim? - disse. - Ora explique lá.
Camino várias vezes me quis tocar na aula - disse Jorge. Uma vez, na casa de
banho, pediu-me para fazer uma porcaria.
-
Que porcaria? - perguntou Moulbright.
Camino pediu-me que o deixasse chupar-ma na casa de banho, mas eu não deixei disse Jorge falando atabalhoadamente. - É, como lhe digo, mister Moulbright, Camino
tentou várias vezes tocar-me na aula.
Isso é verdade, Sr. Camino? - perguntou mister Moulbright. perversão desse tipo?
Tem
uma
É verdade que toquei o Bermúdez, mister Moulbright, mas foi ele quem me pediu disse Joaquín.
-
Mentira - gritou Jorge. - Eu nunca consenti.
Ou seja, temos um problema de mariquice no primeiro ano do ciclo, não é? inquiriu Moulbright.
-
O problema é de Camino, não é meu - disse Jorge.
-
Tem um problema de mariquice, Sr. Camino? - perguntou Moulbright.
Joaquín não sabia o que havia de dizer. Era a primeira vez que lhe faziam essa pergunta.
-
Creio que sim - confessou.
Caramba, caramba, isso é muito grave - disse Moulbright, metendo um dedo no
nariz. - E quanto a si, Sr. Bermúdez?
-
Eu, não, mister Moulbright - disse Jorge. - Eu odeio os mancas.
Muito bem, muito bem, porque a mariquice não é permitida neste colégio declarou Moulbright. - Pode voltar para a sua sala de aula, Sr. Bermúdez. E não o quero
ver metido em problemas. Na próxima, suspendo-o, já sabe.
Jorge levantou-se.
Obrigado, mister Moulbright - disse. - A única coisa que lhe peço é que me mude
de carteira, pois já não aguento o Camino.
-
Vou tomar as medidas que julgar pertinentes - disse Moulbright.
Jorge olhou para Joaquín, fez um gesto de desprezo e saiu do gabinete. Moulbright foi
buscar uma garrafa de whisky, bebeu um golo e arrotou.
Trata-se de um assunto muito delicado, Sr. Camino - disse. - Vou ter de o
suspender durante duas semanas.
Joaquín ficou calado.
Os actos de mariquice são severamente punidos neste colégio - prosseguiu
Moulbright. - A pior falta que um aluno pode cometer é incorrer em perversÕes sexuais.
- Juro-lhe que não foi ideia minha, mister Moulbright - disse Joaquín.
Isso não altera as coisas, Sr. Camino. Confessou-me que tem um desvio para a
mariquice. E, se quer continuar neste colégio, isso não pode continuar.
-
Compreendo, mister Moulbright. Prometo-lhe que não voltará a acontecer.
Moulbright sorriu.
-
Promessas, promessas - disse.
Em seguida, abriu uma das gavetas, retirou um caderno e escreveu a folha de suspensão
de Joaquín.
Fica suspenso durante duas semanas por comportamento imoral - informou. Agora, vá buscar as suas coisas, enquanto eu telefono aos seus pais.
-
Por favor, não lhes telefone, mister Moulbright - pediu Joaquín.
-
Lamento, Sr. Camino, mas é isso que diz o regulamento de disciplina.
Não poderia fazer uma excepção, mister Moulbright? Os meus pais são muito
severos. O meu pai vai bater-mé, se souber disto.
-
De qualquer maneira, o seu pai vai saber disto. O senhor está suspenso.
-
Mas que saiba só que lhe esvaziei os pneus e não da minha mariquice com Jorge.
Moulbright desapertou o nó da gravata.
Está bem, está bem, não lhes telefonarei - disse, sorrindo. - Mas, nesse caso, terei
de lhe dar umas palmadas no rabo. Acha isso justo, Camino?
-
Com certeza, mister Moulbright. Como o senhor quiser.
-
Venha cá, vire-se e puxe as calças para baixo.
Joaquín voltou-se de costas para Moulbright e baixou as calças. Moulbright começou a
dar-lhe palmadas no rabo. De repente, Joaquín virou-se.
-
Não olhe para mim, seu insolente - gritou Moulbright.
Puxara as calças para baixo e masturbava-se. Joaquín voltou-lhe as costas. Moulbright
continuou a dar-lhe palmadas no traseiro. Assim que terminou, disse a Joaquín que podia
sair.
-
Obrigado, mister Moulbright - disse Joaquín.
A seguir, saiu do gabinete e voltou para a aula. Quando entrou, ainda lá estava o professor
Candelares.
Que tem a rapaziada hoje que só me aparece gente de trombas? - perguntou
Candelares ao ver Joaquín.
Joaquín dirigiu-se à carteira e meteu as suas coisas na pasta.
Bem feito. Isto é para não seres maricas - sussurrou Jorge, enquanto Candelares
continuava a ditar a lição de química.
-
Eu só queria continuar a ser teu amigo - murmurou Joaquín.
-
Cala-te - sussurrou Jorge. - Nunca mais seremos amigos.
Joaquín pegou na mala, mostrou a folha de suspensão ao professor Candelares e saiu da
aula, cerrando os dentes e tentando não chorar.
Jorge e Joaquín não voltaram a falar-se até terem terminado os estudos no colégio.
Na noite da festa de fim de curso, Joaquín e Claudia, a rapariga que convidara para seu
par, estavam sentados numa mesa a conversar e tomar uma bebida, quando Jorge se
aproximou deles.
-
É simpática a festa, não achas? - disse Joaquín.
Foram essas as primeiras palavras que dirigiu a Jorge, após vários anos de silêncio entre os
dois.
-
Muito simpática - disse Jorge.
Os olhos brilhavam-lhe. Parecia meio embriagado. Continuava a ser gordinho e
bochechudo e a ter um olhar muito agudo.
-
Que aconteceu ao teu par? - perguntou Claudia.
Tive de ir levá-la a casa - disse Jorge. - Os velhos só lhe deram licença para sair até
às duas da manhã.
-
Caramba, que irritantes - disse Joaquín.
-
É o mal de sair com miúdas muito novas - disse Claudia.
Claudia tinha vinte e dois anos, mais seis do que Joaquín e Jorge. Joaquín conhecia-a
porque era amiga de sua irmã Ximena.
-
Vamos brindar - propôs Joaquín.
-
Boa ideia - disse Claudia. - Brindemos os três.
Por certas amizades que nunca morrem - disse Joaquín, e olhou para Jorge, a
sorrir.
Seguiu-se o barulho dos copos a tocarem uns nos outros.
-
Posso dizer um segredo ao teu par? - perguntou Jorge a Joaquín.
-
Claro, se ela quiser ouvir - disse Joaquín.
A mim fascinam-me os homens que me falam ao ouvido - afirmou Claudia, com um
sorriso sedutor.
Jorge sussurrou qualquer coisa ao ouvido de Claudia. Ela sorriu e deu-lhe uma palmada na
perna.
-
Malandro - disse.
Em seguida, Claudia pegou na mão de Joaquín.
-
Volto já. Vou à casa de banho - disse.
-
Também tenho de ir à casa de banho - disse Jorge.
Claudia e Jorge levantaram-se da mesa, atravessaram o jardim e entraram juntos no
edifício. Uns minutos depois, impaciente porque Claudia não voltava, Joaquín levantou-se
e foi procurá-la. Encontrou-a na sala, a conversar com Jorge.
- Que fazes aqui - perguntou, surpreendido.
-
Estou a conversar - disse Claudia. - A dar à língua e a dizer parvoices.
-
Queres dançar? - perguntou Joaquín.
-
Tinha acabado de prometer a Jorge que dançaria com ele - respondeu Claudia.
-
óptimo. Não há problema - disse Joaquín.
Claudia e Jorge foram dançar. Dançaram enlaçados pela cintura. Ele dizia-lhe coisas ao
ouvido. Ela ria-se. Quando acabaram de dançar, aproximaram-se de Joaquín.
Joaquincito, desculpa-me, mas Jorge pediu-me que o levasse a casa e vou dar-lhe
uma boleia - disse Claudia.
-
Claro, não há problema - disse Joaquín. - Acompanho-vos.
-
Não, é melhor ficares aqui - disse Claudia. - Eu volto já.
-
óptimo. Como quiseres.
-
Vou e volto já, não me demoro - disse Claudia. E deu um beijo a Joaquín.
A seguir apanhou a carteira e aproximou-se da mesa do lado, para se despedir de umas
amigas. Então, Jorge inclinou-se e falou ao ouvido de Joaquín.
- Continuas a ser meu escravo - sussurrou, e saiu com Claudia. Ao amanhecer, Joaquín
continuava à espera dela.
O ACAMPAMENTO
Nessa tarde, como em todas as tardes quando voltava do colégio, Joaquín sentou-se na
cozinha a lanchar e Meche, uma das empregadas da casa, apressou-se a servir-lhe um
copo de leite frio, um pão com compota de morango e uma banana com mel.
-
Como correram as coisas no colégio? - perguntou ela.
Era uma mulher gorda, baixa, de cabelos pretos e olhos grandes.
-
Mal - respondeu Joaquín.
-
Porquê, menino?
-
Porque tivemos educação física. Odeio educação física.
-
O menino é um malandro.
Assim que ela se distraiu, Joaquín esvaziou o copo de leite no lava-loiça: detestava beber
leite. Pouco depois, Maricucha entrou na cozinha e sentou-se ao seu lado.
-
Olá, mamã - disse Joaquín, e beijou a mãe.
Olá, meu lindo - disse Maricucha, acariciando a cabeça do filho. - Tenho uma
surpresa para ti.
-
Compraste-me o leitor de cassettes? - perguntou Joaquín.
Queria um leitor de cassettes para ouvir a música dos Bee Gees, de Donna Summer e de
Olivia Newton-John, a música que os rapazes da sua turma ouviam.
Não - disse Maricucha. - Já te expliquei que ainda és muito jovem para ter música
no quarto.
-
Então o que é? - perguntou ele.
Inscrevi-te num acampamento do Saeta para este fim de semana - comunicou ela,
sorrindo.
O Saeta era um clube frequentado por rapazes cujos pais pertenciam ou simpatizavam
com o Opus Dei. Maricucha era uma militante activa da secção feminina do Opus Dei de
Lima. A Joaquín aborrecia-o muito ir ao Saeta, mas a mãe obrigava-o a ir todas as
sextas-feiras, depois do colégio.
Onde é o acampamento? - perguntou ele, dando uma dentada no pão com
compota.
-
É pertinho daqui - disse Maricucha. - No desfiladeiro de Santa Eulalia.
Joaquín abanou a cabeça, contrariado.
-
Não me apetece ir - disse, baixando a voz.
- As pessoas não fazem o que lhes apetece, Joaquincito - disse Maricucha. - As pessoas
fazem o que têm de fazer segundo as leis do Senhor.
-
Mas sabes que não gosto de acampamentos, mamã.
É para teu bem, meu filhinho. Vais estar com os teus amigos, vais sair do buraco
em que vives metido.
-
Não tenho amigos no Saeta, mamã. Todos os rapazes do Saeta são uns sonsos.
Maricucha franziu o sobrolho.
-
Não me faltes ao respeito, senão mando-te para o quarto de castigo.
ele.
Por que tens de me obrigar a fazer coisas de que não gosto, mamã? - perguntou
Porque quero o melhor para ti - disse ela, e acariciou-o na cabeça. - Porque quero
colocar-te, desde pequeno, no caminho para a santidade.
-
Eu não quero ser santo - disse ele. - Quero ser feliz.
Mas só se tentares ser santo serás feliz, Joaquincito - disse ela numa voz muito
terna.
No sábado de manhã, Joaquín estava sentado à porta de casa dos pais, quando a
expedição do Saeta passou a apanhá-lo, numa camioneta azul. Ao volante estava
Armando, um jovem sacerdote espanhol com cara de pássaro e uma paixão por escalar
montanhas. A seu lado, estavam sentados Foncho e Alfredo, dois homens de meia idade,
membros laicos do Opus Dei. Foncho era baixo e meio calvo; Alfredo, mais para o alto e de
olhos achinesados. Mais atrás, nas quatro filas de assentos da camioneta, iam, um pouco
apertados, os rapazes mais aventureiros do Saeta. Joaquín pegou na mochila, desceu as
escadas a correr e subiu para a camioneta.
-
Olá, rapaz - disse o padre Armando. - Bem-vindo à expedição.
Armando estava todo vestido de preto. Sorria.
Um aplauso para receber mais um companheiro - gritou Foncho, entusiasmado, e
quase todos os rapazes aplaudiram.
Joaquín sentou-se na última fila, ao lado dos gémeos Muíler.
-
Bem, rapazes, continuemos com o terceiro mistério do rosário -
disse Foncho.
De repente, calaram-se todos e Foncho começou a rezar um pai-nosso.
Nessa manhã, assim que acabaram de armar três tendas junto ao rio, os rapazes do Saeta
alistaram-se para ir trepar cerros.
Ninguém pára até chegar ao alto do cerro - gritou o padre Armando, apontando
com entusiasmo para um cerro chato e pedregoso, a pouca distância do acampamento
que tinham instalado.
Os rapazes do Saeta aplaudiram e gritaram, cheios de alegria. Em seguida, encabeçados
pelo padre Armando, andaram um bom bocado e começaram a trepar o cerro. A manhã ia
a meio. O sol queimava fortemente.
Acho uma idiotice subir estes cerros - disse Joaquín a Juan Manuel Zegovia,
enquanto subiam o cerro.
-
Cala-te, não digas asneiras - disse Juan Manuel.
Juan Manuel era um rapaz baixo, gordinho e bochechudo. Joaquín e Juan Manuel eram
amigos porque ambos viviam em Chaclacayo.
- É que não vejo qual é a graça que pode ter transpirar loucamente para chegar ao cimo
de um cerro ridículo - disse Joaquín.
-
É a emoção de conquistar o desconhecido - declarou Juan Manuel.
-
Idiotices - disse Joaquín, avançando com cuidado, para evitar resvalar.
-
Se o padre Armando te ouve dizer asneiras, vai aborrecer-se contigo.
Achas que a padralhada não diz asneiras? - perguntou Joaquín com um sorriso
trocista.
-
Não digas padralhada - corrigiu-o Juan Manuel. - Diz-se os sacerdotes.
-
És um sonso - disse Joaquín.
-
E tu um medricas que não se atreve a subir o cerro - disse Juan Manuel.
- Despachem-se, seus fracalhotes, não fiquem tanto para trás - gritou o padre Armando,
que ia cerca de cem metros à frente deles.
Juan Manuel e Joaquín tinham ficado para trás, à medida que a subida se tornara mais
íngreme. Eram os últimos da expedição.
-
Já os apanhamos, padre Armando - gritou Juan Manuel.
Juan Manuel e Joaquín continuaram a trepar o cerro. Ofegavam, resvalavam, suavam
copiosamente. Pouco depois, Joaquín parou. Estava cansado. Tinham-se-lhe metido umas
pedrinhas nos sapatos de ténis. Tinha sede.
-
Não continuo - disse.
Juan Manuel parou e sentou-se numa pedra, exausto.
-
Não podes desistir de subir o cerro - disse, respirando agitadamente.
Que vão à merda mais a subida do cerro - disse Joaquín. - Eu volto para o
acampamento.
És um rebelde sem causa - disse Juan Manuel, secando o suor da testa e
arquejando.
-
E tu, um grande idiota - disse Joaquín.
Juan Manuel levantou-se e prosseguiu a subida. Joaquín empreendeu o caminho de
regresso.
-
Oxalá venha uma avalanche e os enterre a todos, para não serem idiotas - gritou.
Pouco depois, Joaquín chegou ao acampamento. Estava extenuado. Doíam-lhe os pés.
Que fazes aqui? - perguntou-lhe Foncho, com uma cara assustada, quando o viu
chegar ao acampamento.
Sentado, em frente do rio, Foncho lia Caminho, um livro escrito pelo fundador do Opus
Dei. Alfredo, por sua vez, cozinhava num pequeno fogão a gás.
-
Não conseguia subir o cerro - disse Joaquín. - Tenho umas bolhas enormes.
-
Caramba, que azar - disse Foncho. - Deixa-me cá vê-las.
Joaquín descalçou os ténis e as meias e mostrou-lhe as bolhas.
Puxa, que infeliz que tu és - disse Foncho. - Vem, vamos até à tenda, que já te vou
curar.
Foncho e Joaquín entraram numa das tendas. Foncho correu o fecho da porta. Estava
calor ali dentro.
-
Tenho uns cremezinhos que são muito bons para as bolhas - informou Foncho.
-
Bestial, pois não podes imaginar como me doem - disse Joaquín.
-
O melhor é despires as calças e deitares-te no meu saco-cama - disse Foncho.
Joaquín puxou as calças para baixo e deitou-se em calçÕes. Foncho ajoelhou-se a seu lado
e pôs-lhe creme nas bolhas dos pés.
Estás corado como um camarão - disse Foncho a sorrir. Tens uma erisipela
fortíssima.
-
Pois é. Estava um sol abrasador no cerro - disse Joaquín.
-
Se quiseres, ponho-te um creme para a erisipela.
-
Bestial.
Foncho tirou outro creme da sua mala e aplicou-o nos braços, pescoço e cara de Joaquín.
-
Com isto, o ardor passa-te imediatamente - disse-lhe.
Depois, continuou a espalhar creme pelo peito, pela barriga e pelas coxas.
-
Já chega, Foncho - disse Joaquín. - Aí não apanhei erisipela.
Foncho retirou bruscamente as mãos do corpo de Joaquín.
-
Puxa, que distraído que sou - disse, a sorrir.
Que tal darmos um mergulho no rio, antes que cheguem os rapazes do cerro? perguntou Foncho a Joaquín.
Alfredo fora na camioneta comprar umas bebidas para o almoço.
-
Que boa ideia! - disse Joaquín. - Estou a arder de calor.
-
Vamos mudar de roupa - disse Foncho.
Levantaram-se e dirigiram-se às tendas. Joaquín coxeava um pouco devido às bolhas.
-
Se quiseres, muda de roupa comigo na tenda dos numerários - propôs Foncho.
-
Não, o melhor é mudar logo na minha tenda - disse Joaquín.
Entraram em tendas separadas e vestiram calçÕes de banho.
Queres que te ponha mais creme para a erisipela? - perguntou Foncho, quando
saíram.
-
Não, obrigado, Foncho - respondeu Joaquín. - Assim está óptimo.
Caminharam até ao rio. Foncho era um homem magro, ossudo. Tinha uma pele muito
branca. O fato de banho ficava-lhe muito largo.
-
A água deve estar gelada - disse Joaquín, assim que chegaram à margem do rio.
Foncho inclinou-se e meteu uma mão na água.
-
Está fresquinha - confirmou.
O rio estava limpo e tranquilo. Na margem tinham-se formado pequenas poças. Foncho
apanhou uma pedrinha e atirou-a ao rio. A seguir, para surpresa de Joaquín, despiu os
calçÕes de banho.
-
Não há nada mais agradável do que tomar banho no rio nu - disse, sorrindo.
Joaquín sorriu, sem saber o que dizer. Foncho entrou numa das poças e mergulhou.
-
Que maravilha, caramba - gritou. - Está estupenda.
Joaquín entrou no rio com cuidado. Doeram-lhe os pés, quando pisou as pedrinhas que
estavam debaixo de água.
-
O melhor é tirares os calçÕes de banho.
-
Não, assim está bem - disse Joaquín.
-
Nu é completamente diferente - insistiu Foncho. - Não sejas tímido.
-
Não, é melhor não - disse Joaquín, e mergulhou.
Então Foncho aproximou-se de Joaquín, atirou-lhe água para a cara e tentou tirar-lhe o
fato de banho. Riram-se os dois.
-
Vá, Foncho, não me lixes - disse Joaquín.
-
Despe-te, homem - disse Foncho. - Ninguém nos está a ver.
-
Não quero, caramba, já te disse que não quero.
-
Está bem, mas não sejas irritadiço.
-
E tu não sejas manhoso. Não julgues que não noto.
Foncho riu nervosamente.
-
De que estás a falar? - perguntou.
Nessa tarde, quando acabaram de almoçar, os rapazes do acampamento disseram que
queriam jogar um desafio de fulbito.
-
Quem vai lavar a loiça? - perguntou o padre Armando.
Todos ficaram calados.
-
É Joaquín quem a vai lavar - disse Foncho, num tom cortante.
-
Porquê eu? - perguntou Joaquín, surpreendido.
-
Por seres um fraco - disse Foncho. - Porque não subiste o cerro.
Resignado, Joaquín foi lavar a loiça no rio.
Antes de jogar fulbito, todos têm de se confessar - gritou o padre Armando,
dirigindo-se aos rapazes do acampamento. - Vou confessar na tenda. Já sabem, quem não
se confessar não joga fulbito.
A seguir, pegou numa cadeira de praia e entrou na tenda maior.
-
Quem se confessa primeiro? - perguntou Alfredo.
Eu - gritou Ramiro Cruchaga, um rapaz baixo, de cabelo encaracolado. E correu
para a tenda onde o padre Armando entrara.
Joaquín sentou-se na erva, ao lado de uns rapazes que ali se tinham sentado, formando
um círculo.
Tu achas que ver a tipa nua da Caretas é pecado? - perguntou Miguel de los Heros,
um miúdo magro, moreno e muito alto.
-
Não sei - respondeu Joaquín.
- Depende dos olhos com que olhares para a fotografia - disse Juan Manuel.
-
Não te percebo, explica-te - pediu Miguel.
Se olhares para ela com olhos de luxúria e tiveres maus pensamentos, de
certezinha que é pecado - disse Juan Manuel. - Mas se a vires por acaso, não é pecado.
-
Ou seja, nunca viste a tipa nua da Caretas? - perguntou-lhe Joaquín.
-
Só uma vez e fechei logo os olhos - disse Juan Manuel.
Os rapazes sentados à sua volta desataram a rir à gargalhada.
A sério que não voltei a fazê-lo - disse Juan Manuel, levantando a voz e fazendo
estalar os ossos das mãos. - Além disso, o meu pai arranca sempre a página com a mulher
nua, para não cairmos na tentação de estar constantemente a olhar para ela.
- Que exagerado que o teu pai é - comentou Miguel.
- E olhar para uma rapariga bonita é pecado? - perguntou Fernando Muíler, um rapaz
sardento e ruivo, como o seu gémeo Felipe.
- É pecado se olhares para as suas partes de mulher - disse Juan Manuel.
- Todas as suas partes são de mulher, meu parvo - disse Miguel.
- Refiro-me às suas partes íntimas, é claro - explicou Juan Manuel.
- E quais são as suas partes íntimas? - perguntou Miguel.
- Todas menos a cara - respondeu Juan Manuel.
- Vá, não sejas tarado - disse Joaquín. - Então, se eu olhar para as pernas de uma rapariga
é pecado?
- Para as pernas, sim, de certezinha que é pecado.
- Estás doido - disse Miguel. - É totalmente normal olhar para as mamas e para o cu de
uma rapariga.
- Não digas essas palavras que é pecado - pediu Juan Manuel.
- Dizer mama ou cu não é pecado - disse Miguel, a sorrir.
- Claro que é pecado, caramba - disse Juan Manuel. - Agora mesmo estás a pecar diante de
mim.
- Mama, mama, mama, cu, cu, cu - disse Felipe.
Todos se riram, com excepção de Juan Manuel.
- Hás-de ir para o Inferno, gémeo - disse.
- Juan Manuel Zegovia - gritou Foncho.
- É a minha vez - disse Juan Manuel.
Levantou-se e correu para a tenda do padre Armando.
- Bem, agora que o sonso se foi embora, podemos falar de pecados verdadeiros - disse
Miguel, baixando a voz. - Acham que bater uma punheta é pecado?
- Uma punheta é pecado venial, não pecado mortal - disse Fernando.
- E qual é a diferença? - perguntou Miguel.
- Não vais para o Inferno por bater uma punheta - disse Fernando. - Só vais para o
Purgatório.
- Então - acrescentou Felipe - todos os punheteiros estão no Purgatório.
- E como é que digo ao padre Armando que a bati? - perguntou Miguel. - Como é que se
diz isso de uma maneira bonita?
-
Eu digo sempre que tive maus pensamentos - disse Joaquín.
Não pode ser assim - contestou Felipe. - Bater uma punheta é mais do que ter
maus pensamentos.
-
Então como se diz? - perguntou Miguel.
-
Eu digo que fiz porcarias sexuais - disse Felipe.
Miguel, Fernando e Joaquín riram-se.
-
Porcarias sexuais é exactamente o que aquilo é - disse Felipe.
Pois eu cá vou dizer que me masturbei, exactamente por estas palavras - disse
Miguel.
Vê lá se não é uma falta de respeito para com o padre Armando - lembrou
Fernando.
Vá, não sejas parvo - disse Joaquín. - Achas que o padre Armando nunca bateu
uma punheta?
Os padres não podem bater uma punheta - disse Felipe. - A pila dos padres não
entesa.
-
Como é que sabes isso? - perguntou Joaquín.
Sei porque sei - disse Felipe, erguendo a voz. - Quando uma pessoa vai para padre,
a pila deixa de funcionar.
-
E então por onde mija? - perguntou Miguel.
-
Isso não sei - disse Felipe. - Tínhamos de perguntar isso ao padre Armando.
Não sejas idiota, gémeo - disse Fernando ao irmão. - Não lhe vais perguntar: "por
onde é que o senhor mija", pois não?
Todos se riram.
-
Pois o que digo é que as pilas dos padres não funcionam.
Então, Juan Manuel saiu da tenda e correu para eles.
-
Se morrer agora mesmo, vou direitinho para o Céu - disse, sorrindo.
*
Quando chegou a sua vez de se confessar, Joaquín entrou na tenda. Sentado numa
cadeira de praia, o padre Armando sorriu, quando o viu entrar.
-
Vá, ajoelha-te - ordenou.
Joaquín ajoelhou-se na frente dele.
-
Avé Maria, puríssima - disse o padre Armando.
-
Sem pecado concebida - disse Joaquín.
-
Quando te confessaste pela última vez?
A última vez que Joaquín se confessara fora ao padre Jacinto, no Saeta. Dessa vez, o padre
Jacinto dissera-lhe: "conta-me todos os teus maus pensamentos, não guardes nenhum,
porque isso fica dentro de ti e vai apodrecendo, conta-me tudo, tudinho", e Joaquín
disse-lhe: "eu não tenho maus pensamentos, padre Jacinto, quando se me mete um
pensamento porco, vou depressinha para o jardim fazer uns abdominais", e o padre
Jacinto sorriu, acariciou-lhe a barriga e disse: "é por isso que tens estes músculos da
barriga tão durinhos", e Joaquín fechou os olhos e disse-lhe: "menti, fui soberbo, fui
ocioso, esqueci-me de rezar, fui mau filho e mau irmão, cometi o pecado da gula", e o
padre Jacinto sorriu e acariciou-lhe de novo a barriga e disse-lhe: "és um guloso, um
guloso, ah meu miúdo guloso, que vamos fazer para que não sejas tão guloso", e Joaquín,
como sempre, odiou confessar-se a esse padre que lhe parecia tão manhoso e que, além
disso, tinha um hálito horrível.
- Há duas semanas, no Saeta.
- Não deves estar mais do que uma semana sem te confessar - disse o padre Armando. - É
como viver numa casa que só se limpa de duas em duas semanas. Vamo-nos habituando a
viver nesse ambiente imundo, cheio de pó.
- Tem razão, padre Armando.
- Agora conta-me os teus pecados, filho.
- Menti.
- Que mais?
-
Fui soberbo.
-
Dá-me um exemplo.
Não sei. Por exemplo, no outro dia, a minha mãe disse-me que me inscrevera
neste acampamento e eu aborreci-me muito com ela e desatei a chorar de raiva e
disse-lhe que a odeio e que, quando for grande, me vou vingar dela e a vou meter num
asilo de velhas e nunca a vou visitar.
- Que horror, rapaz! Isso é uma crueldade inqualificável. Continua, por favor.
- Fui ocioso.
- Que mais?
- Esqueci-me de rezar. E cometi o pecado da gula.
- Que mais?
-
Nada mais.
- Não cometeste actos impuros?
-
Não.
- Nestas duas semanas não te tocaste onde não deves uma única vez?
-
Nem uma única vez, padre Jacinto. Nem uma única vez.
-
Não me estarás a mentir, Joaquín?
-
Não, padre Armando, como pode pensar uma coisa dessas?
-
Puxa as calças para baixo. Quero ver se tocaste as tuas partes.
-
Estou a dizer a verdade, padre Armando. Por que havia de lhe mentir?
-
Faz o que te mandei, filho. Não sejas rebelde.
Joaquín puxou as calças para baixo e o padre Armando tocou-lhe no sexo.
-
Está um pouco inchado - disse. - Parece-me que tens andado a tocar-lhe.
O sexo de Joaquín ergueu-se.
Caramba, o animalzinho despertou - disse o padre Armando. deixá-lo dormir sossegado.
O
melhor
é
Joaquín puxou as calças para cima.
-
Em penitência, reza quinze pai-nossos e quinze ave-marias.
Joaquín fez que sim com a cabeça, fechou os olhos e pensou que não iria rezar um único
pai-nosso.
Pouco depois, os rapazes do acampamento estavam prontos para começar o desafio de
fulbito. Já todos se tinham confessado.
-
Eu jogo como quê? - perguntou Joaquín a Foncho.
Foncho era o capitão da equipa de Joaquín.
-
Tu és o guarda-redes - respondeu Foncho.
-
Não, porque não gosto de defender a baliza - disse Joaquín.
Apesar das bolhas, tinha vontade de jogar.
Mas vais defender, caramba - disse Foncho, deitando-lhe um olhar antipático. - O
capitão sou eu e ordeno-te que defendas.
Aviso-te que sou péssimo à baliza, Foncho - disse Joaquín. - Sou um desastre como
guarda-redes e vão chover golos.
Para a baliza, homem - insistiu Foncho. - Não discutas. Pareces um advogado,
caramba.
Joaquín passou um mau bocado como guarda-redes. Não conseguiu evitar que lhe
metessem vários golos. A sua equipa perdeu o desafio.
Essa noite, os rapazes do Saeta acenderam um braseiro, fizeram pães com chouriço e
sentaram-se a comer em volta de uma fogueira. Depois de comerem, cantaram
Guantanamera, La bamba, Un beso y una flor, Nube gris, Quisiera tener un millón de
amigos, Quisiera ser picaflor, Vamos a la playa, Marisabel e El himno de la alegria.
Já são horas de dormir - disse o padre Armando, exactamente à meia-noite,
quando se fartou de cantar.
Então, os rapazes levantaram-se e dirigiram-se às tendas. No meio da escuridão, Foncho
aproximou-se de Joaquín.
- Acompanha-me a dar um passeiozinho - disse-lhe. - Aproveitamos para rezar um
mistério do rosário.
-
Puxa, Foncho, estou cansadíssimo - disse Joaquín.
Vamos, homem, é apenas um passeio higiénico para ajudar à digestão - insistiu
Foncho.
- Não, obrigado - disse Joaquín. - O melhor é ir já deitar-me. Joaquín dirigiu-se a uma das
tendas. Foncho aproximou-se de Juan Manuel.
-
Acompanha-me a dar um passeiozinho - disse-lhe.
Juan Manuel sorriu.
-
É para já - disse, entusiasmado.
- Já estás a dormir - perguntou Joaquín, num sussurro.
-
Não - respondeu Miguel, em voz baixa.
Estavam deitados ao lado um do outro. Os outros rapazes da tenda pareciam dormir.
-
Que tal irmos um bocado até à aldeia? - disse Joaquín.
-
Fica longe? - perguntou Miguel.
-
Fica pertinho. A pé são aí uns dez minutos.
-
Mas, se os numerários notam, é uma grande chatice.
-
Não notam, homem. Os numerários são uns idiotas.
-
Então, vamos.
Miguel e Joaquín saíram da tenda e afastaram-se do acampamento. Miguel puxou de um
maço de cigarros.
Acho uma idiotice que não deixem fumar no acampamento - disse, e ofereceu um
cigarro a Joaquín.
Acenderam os cigarros. Iam por um caminho de terra, em direcção à aldeia de Santa
Eulalia.
-
Já engataste alguma miúda? - perguntou Miguel.
Uma vez, numa festa, mas estava tão bêbedo que, no dia seguinte, nem sequer me
lembrava do nome dela - disse Joaquín, e riram-se.
Ficaram calados. Continuaram a andar depressa.
-
Eu quero engatar uma miúda, mas não me atrevo - disse Miguel.
-
Porquê? - perguntou Joaquín.
-
Porque mal a conheço.
-
Atira-te a ela e pronto. Engata-a de uma vez.
-
É ainda muito miúda.
-
Que idade tem?
-
Treze. Acabou de fazer.
-
Já está desenvolvida?
-
Sim. Tem maminhas e tudo.
Então, o que esperas? Se demoras muito, ainda há algum sabido que a engata
primeiro do que tu, Miguel.
-
É que nunca engatei uma miúda, Joaquín. Não sei como hei-de engatá-la.
É facílimo. Leva-la a uma matinée e à saída dás-lhe a mão e perguntas-lhe "queres
andar comigo" e pronto.
-
E se me diz que não?
-
Não sejas parvo. Isso é impossível.
-
Porquê? Se calhar, não gosta de mim.
Que disparate! Tu és giríssimo, Miguel. Se fosse rapariga, adoraria ser tua
namorada.
Miguel riu-se.
-
Que bom tipo que tu és - disse, e deu uma pancadinha nas costas de Joaquín.
-
à tua - disse Miguel.
-
à tua - disse Joaquín.
Estavam a tomar duas cervejas numa taberna de Santa Eulalia. Quatro ou cinco tipos
discutiam, aos gritos, um desafio de futebol recente. Num rádio velho ouvia-se um bolero.
O chão estava coberto de serradura.
-
Já debutaste? - perguntou Joaquín.
-
A que te referes? - disse Miguel.
-
Quer dizer, já fodeste?
Miguel tomou a sua cerveja e arrotou.
-
Foste a uma casa de putas? - perguntou Joaquín.
-
Não. Foi com a minha prima.
-
Não me lixes. Conta lá.
A minha prima tem uma casa na praia. O Verão passado fiquei lá. Uma noite a
espertalhaça meteu-se na minha cama e ensinou-me a foder.
-
Que maravilha, tens cá uma sorte.
Tomaram mais uma cerveja.
-
E tu já fodeste? - perguntou Miguel.
Claro, várias vezes - mentiu Joaquín. - Mas sempre com putas. Dizem que foder
com uma miúda é outra coisa, não achas?
Não sei, mas eu quero ir a uma casa de putas. Estou cheio de vontade de conhecer
uma boa casa dessas.
-
Se quiseres, um dia vamos juntos. Conheço uma excelente em Miraflores.
-
Porreiro. Diz-me e vamos quando quiseres.
Joaquín ergueu a garrafa.
-
à foda - disse.
-
à foda - repetiu Miguel.
Pouco depois, pagaram a conta e regressaram ao acampamento.
Miguel estava a dormir. Lentamente, Joaquín aproximou-se dele e meteu uma mão no seu
saco-cama. Tocou as suas pernas magras, morenas, peludas. Sentiu a mão tremer
enquanto procurava o volume entre as pernas de Miguel. Meteu a mão sob os calçÕes.
Tocou-lhe suavemente. Acariciou-o. Sentiu-o levantar-se, endurecer, crescer. De repente,
Miguel abriu os olhos.
-
Que estás a fazer? - perguntou com uma cara assustada.
-
Posso tocar-te? - sussurrou Joaquín.
-
Estás doido? - disse Miguel.
Joaquín retirou bruscamente a mão do saco-cama de Miguel.
-
Desculpa - disse.
-
Deixa-me dormir, está bem? - pediu Miguel.
-
Por favor, não digas nada - sussurrou Joaquín.
Miguel virou-lhe as costas e continuou a dormir. Joaquín fechou os olhos.
- Por favor, Senhor, ajuda-me a deixar de ser maricas - rezou.
Na manhã seguinte, depois de terem tomado o pequeno-almoço, os rapazes voltaram a
subir o cerro que tinham trepado no dia anterior. Joaquín não quis ir. Disse que lhe doíam
muito as bolhas e ficou a lavar a loiça. Para surpresa sua, Juan Manuel também ficou no
acampamento. Pouco depois, foram os dois tomar banho no rio.
- Estou farto deste acampamento - disse Juan Manuel. - Nunca mais venho a um
acampamento do Saeta.
Estavam sentados em cima de umas pedras na margem do rio. Tinham os pés dentro de
água. Podiam ver os pés a mexer-se na água fria, esverdeada.
-
Pensava que eras um fanático dos acampamentos - disse Joaquín.
- Já não sou - disse Juan Manuel, e desatou a chorar. - Estou farto até à ponta dos cabelos.
Joaquín abraçou-o.
-
Que tens? - perguntou-lhe.
-
Deixa-me - gritou Juan Manuel, e empurrou-o. - Não me toques, caramba.
-
Acalma-te, não te exaltes - disse Joaquín.
Estes acampamentos são uma manhosice pegada - disse Juan Manuel. - Os
numerários são uns abusadores de menores.
Porquê? - perguntou Joaquín, surpreendido, pois Juan Manuel não costumava
dizer mal do Opus Dei. - Que aconteceu?
Joaquín assuou o nariz com uma mão e atirou o ranho para o rio.
-
Não, o melhor é não te contar - disse, baixando os olhos, envergonhado.
- Conta-me, sonso - disse Joaquín. - Eu vou ajudar-te.
-
E eu que até pensava ser numerário do Opus Dei - disse Juan Manuel, suspirando.
-
Conta lá - insistiu Joaquín. - Não conto a ninguém.
Olharam-se nos olhos.
-
Juras que não dizes a ninguém.
-
Juro - disse Joaquín.
Juan Manuel baixou os olhos.
-
Foncho apalpou-me ontem à noite - articulou.
-
Já sabia - disse Joaquín. - Esse Foncho é um grande manhoso.
Levou-me para trás do acampamento, estávamos a rezar o rosário e de repente
puxou-me as calças para baixo.
-
Estás a gozar? E que te fez?
-
Apalpou-me. Fez-me malandrices. Quis chupar-ma.
-
E tu deixaste?
-
Não, mas ele obrigou-me.
Joaquín tentou abraçá-lo.
-
Não me toques - gritou Juan Manuel.
Ficaram calados.
Se morrer agora neste instante, se calhar já não vou para o Céu - disse Juan
Manuel a soluçar.
Quando o padre Armando voltou de subir o cerro, Joaquín aproximou-se dele.
-
Padre Armando, quero falar consigo - disse-lhe.
-
Diz, meu filho - disse o padre Armando, limpando o suor da testa.
-
Tem de ser em particular.
-
Vamos para a tenda, meu filho.
Entraram numa das tendas. O padre Armando sentou-se numa cadeira de praia, tirou uma
toalha da sua mala e limpou o suor da cara.
Não sabes o que perdeste - disse, ainda ofegante. - A subida ao cerro foi fantástica.
Imagina que até rezámoS um rosário lá no cimo.
Joaquín sorriu contrafeito. Ficou calado.
-
Diz lá, rapaz - disse o padre Armando.
Joaquín respirou profundamente antes de falar.
-
Foncho manuseou ontem Juan Manuel - informou.
O padre Armando franziu o sobrolho, tirou os óculos e olhou para Joaquín com um ar
suspicaz.
-
Isso é impossível - disse.
-
Juan Manuel contou-me, padre Armando - insistiu Joaquín.
-
Então está a mentir. Na Obra não acontecem coisas dessas, meu filho.
-
Juro, padre Armando. Pergunte a Juan Manuel.
Não jures em vão, Joaquín. E não inventes sujeiras. Essas coisas não acontecem na
Obra. Ponto final.
Então o padre Armando levantou-se.
-
Foncho também fez malandrices comigo - disse Joaquín.
Cala-te, rapazinho insolente - disse o padre Armando, erguendo a voz e levando as
mãos à cintura. - Não te atrevas a falar mal de um numerário na minha frente. Agora sai
da tenda e não fales disto com ninguém. Percebes? Com ninguém.
-
Porquê? - perguntou Joaquín. - Não percebo, padre Armando.
-
Porque to digo eu, que sou ministro do Senhor - gritou o padre Armando.
Joaquín saiu da tenda e maldisse o padre Armando, a sua mãe, Foncho e todos os
numerários manhosos do Opus Dei.
Essa tarde, por ordem de Foncho, Juan Manuel foi para o rio lavar a loiça do almoço.
Pouco depois, Joaquín aproximou-se dele e sentou-se a seu lado.
- Contei tudo ao padre Armando - disse, em voz baixa.
Surpreendido, Juan Manuel deixou escorregar um garfo que estava a lavar. O garfo caiu à
água e foi ao fundo.
- Juraste que não contavas a ninguém - disse. A cara corara-lhe. Parecia envergonhado.
-
Fi-lo por ti - disse Joaquín. - Não é justo que Foncho faça o que lhe dá na gana.
-
E que te disse o padre Armando? - perguntou Juan Manuel.
Não acreditou em mim - respondeu Joaquín, e cuspiu para o rio. - Disse-me que
essas coisas não acontecem no Opus Dei.
Juan Manuel suspirou, abatido.
- E eu que tinha a maior consideração pelo Opus Dei - murmurou, como que a falar
consigo próprio.
Queria avisar-te porque o padre Armando pode perguntar-te alguma coisa - disse
Joaquín.
-
Se me perguntar, nego tudo - disse Juan Manuel.
-
Porquê? - perguntou Joaquín.
Não sei. Porque tenho vergonha. Além disso, o Senhor obriga-nos a perdoar o
próximo.
-
Idiotices, Juan Manuel. Se negares tudo, vais fazer-me passar por mentiroso.
-
É para não seres um alcoviteiro e um linguarudo.
Joaquín enfureceu-se.
-
Cala-te, parvalhão - disse. - É bem feito que Foncho te tenha apalpado.
- Vai-te embora, Joaquín - pediu Juan Manuel levantando a voz. - Deixa-me
Preciso de meditar.
sozinho.
Joaquín pegou num prato e atirou-o ao rio.
-
Vai-te pôr num porco - disse.
A seguir, regressou calmamente ao acampamento.
Quando acabaram de levantar as tendas, os rapazes do Saeta subiram para a camioneta
azul. Joaquín sentou-se na última fila, ao lado de Miguel.
- O melhor é mudar de lugar - disse Miguel. E passou para a fila da frente.
Joaquín sentiu-se tão envergonhado que corou e a cara lhe ardeu.
Que tal o acampamento, meu filhinho? - perguntou Maricucha a Joaquín, e deu-lhe
um beijo na testa.
Joaquín acabava de entrar em casa dos pais. Como todos os domingos à tarde, estes
estavam a ver televisão e a folhear os jornais.
-
Mais ou menos - disse.
-
Que fizeram? - perguntou Luis Felipe.
-
Subimos cerros, jogámos fulbito, tomámos banho no rio - disse Joaquín.
-
Não rezaram? - perguntou Maricucha.
-
Também - respondeu Joaquín. - Rezámos vários rosários.
-
Chegaste ao cimo do cerro? - perguntou Luis Felipe.
-
Até lá mesmo ao cimo - disse Joaquín. - Fui um dos primeiros.
-
Que bem, filho, que bem - disse Luis Felipe.
-
Estes acampamentos são formativos do carácter, não há dúvida.
- É isso mesmo, mulher - disse Luis Felipe. - Os homens fazem-se homens nas guerras e
nos acampamentos.
Prenda de anos
Nesse dia, Joaquín fazia quinze anos e a mãe preparara um lanche para festejar.
Joaquín, já chegou o papá, desce para cantar Happy birthday - gritou Maricucha,
assim que Luis Felipe regressou do trabalho.
Joaquín estava no quarto, a ler um livro sobre a história dos mundiais de futebol.
-
Desço já, mamã - gritou.
- Despacha-te, está tudo pronto, estamos à tua espera - gritou Maricucha.
Joaquín saiu do quarto e desceu até à casa de jantar. Na mesa, havia dois jarros de
sangria, sanduíches triplas e de frango, bolos de creme, gelatina e um bolo de chocolate,
com quinze velas de cores. Em volta da mesa estavam Maricucha, Luis Felipe e os dois
irmãos de Joaquín: Ximena e Fernando. Ximena tinha dezasseis anos e Fernando, onze.
Como está o rei dos anos? - perguntou Maricucha a Joaquín. Em seguida, beijou-o
na testa.
-
Bem, obrigado - disse Joaquín.
Bem, temos de cantar - disse Fernando, olhando para os bolos de creme com
impaciência.
-
Ouve lá, não te ensinaram a cumprimentar - perguntou Luis Felipe a Joaquín.
Luis Felipe estava sentado numa das cadeiras da sala de jantar, a fumar um cigarro.
-
Olá, papá - disse, sem o olhar nos olhos.
- Assim, não - disse Luis Felipe. - Cumprimenta como deve ser.
Joaquín aproximou-se do pai e deu-lhe um beijo na cara. Odiava ter de o beijar.
- Agora sim - disse Luis Felipe.
-
Temos de cantar - insistiu Fernando.
Maricucha acendeu as velas do bolo e apagou as luzes da sala de jantar.
-
Vamos cantar primeiro em inglês e, depois, em espanhol propôs.
O melhor é cantarmos só em inglês - disse Ximena. - Em espanhol cantam os
mestiços.
- Ai, que caprichosa que és, minha filha - disse Maricucha, rindo-se.
Em seguida, começou a cantar com uma voz um pouco estridente. Ximena, Fernando e
Joaquín cantaram, olhando-se e sorrindo. Todos cantaram Happy birthday, menos Luis
Felipe
- Vá lá, canta, Luis Felipe, não sejas desmancha-prazeres - pediu Maricucha, a meio da
canção.
- Nós, os homens, não cantamos - declarou Luis Felipe numa voz rouca.
Quando acabaram de cantar, Joaquín soprou as velas com força, mas não conseguiu
apagá-las todas.
- Sopra como um homem, rapaz - disse Luis Felipe com um sorriso trocista. - Pareces uma
boneca de porcelana.
Ximena e Fernando riram-se. Joaquín soprou outra vez e apagou todas as velas.
- Bravo - exclamou Maricucha, e aplaudiu com entusiasmo.
Luis Felipe pôs-se de pé e acendeu as luzes da sala de jantar. Ximena e Joaquín
apressaram-se a provar as sanduíches. Fernando comeu dois bolos de creme ao mesmo
tempo.
- Fernandito, que horror - disse Maricucha. - Primeiro, comem-se os salgados e, depois, os
doces.
- Estava a morrer de vontade de provar os bolinhos, mamã - explicou Fernando, falando
com dificuldade, pois tinha a boca cheia.
- És um porco - disse-lhe Ximena.
- Cala-te, sua mamalhuda - respondeu Fernando.
- Vá lá, não briguem, pois estamos em plena festa familiar - disse Maricucha. - Joaquín, faz
um discursinho.
- Não, mamã, por favor, não me maces.
- Fala, fala, fala - gritaram, ao mesmo tempo, Ximena e Fernando.
- Um discursinho, Joaquín - insistiu Maricucha. - Sabes que adoro os teus discursinhos.
-
Fala, rapaz - ordenou Luis Felipe. - Tu tens muito jeito para isso.
Maricucha bateu no copo com uma colherzinha.
- Silêncio, o menino dos anos vai dizer umas palavras - anunciou.
Todos se calaram. Joaquín juntou as mãos atrás das costas.
-
Estamos aqui reunidos para celebrar o meu décimo quinto aniversário - disse.
-
Que bem fala o meu Joaquín, caramba - murmurou Maricucha.
Nesta ocasião festiva e de alegria familiar, gostaria de agradecer aos meus pais por
me terem trazido ao mundo - continuou Joaquín.
-
Não tarda nada começo a chorar como uma Madalena - murmurou Maricucha.
Também quero agradecer à minha irmã Ximena e ao meu irmão Fernando por
serem tão bons para mim e por me terem dado umas prendas tão bonitas - prosseguiu
Joaquín. - Prometo que vou tentar não brigar mais com vocês.
Ximena e Fernando sorriram. Fernando estava a comer mais um bolo de creme.
Para terminar esta breve alocução, creio que devo elevar uma prece ao Altíssimo
para que bendiga a nossa querida família e nos proteja de todo o mal - disse Joaquín.
-
Ah, o meu filho é um santo - murmurou Maricucha.
-
E disse - concluiu Joaquín.
Todos aplaudiram, com excepção de Luis Felipe.
Bravo, bravo - disse Maricucha, aplaudindo. - Falaste melhor do que o padre
Griffin.
-
Estás a levar o rapaz a falar como um maricas - disse Luis Felipe.
Queremos que partam o bolo, queremos que partam o bolo - gritaram Ximena e
Fernando.
- Vá, meninos, não sejam glutÕes, pois a gula é pecado - disse Maricucha.
Depois, pegou numa faca e partiu o bolo. Ximena e Fernando aplaudiram.
- Joaquín, acompanha-me à sala por um bocadinho - disse Luis Felipe. - Quero falar
contigo a sós.
-
Que vais dizer ao miúdo? - perguntou Maricucha ao marido.
Não tens nada que ver com isso, mulher - disse Luis Felipe. É um assunto de
homens.
Ximena e Fernando olharam um para o outro e sorriram.
-
Vem, Joaquín, não tenhas medo que não vou ralhar contigo - disse Luis Felipe.
Joaquín apanhou numa sanduíche e acompanhou o pai até à sala. Sentaram-se os dois
num velho sofá de couro. Nas paredes estavam penduradas as cabeças dos veados que
Luis Felipe caçara.
- Bem, meu filho, já tens quinze anos - disse Luis Felipe. E deu uma palmadinha nas costas
de Joaquín.
Joaquín sorriu. Não sabia o que havia de dizer. Baixou os olhos.
-
Já não és uma criança - continuou Luis Felipe. - Já te fizeste um homenzinho.
-
Pois é - confirmou Joaquín.
Olha, Joaquín, quero dar-te uma prenda muito especial pelos teus quinze anos,
mas é uma prenda de homem para homem - disse Luis Felipe, baixando a voz. - Isto tem
de ser um segredo entre ti e mim. A mamã não pode saber de nada.
-
Não te preocupes, papá.
Aos quinze anos já tens idade para fazer coisas de homens, Joaquín. Quero levar-te
a um sitio onde vais acabar de te fazer um homem.
-
Estupendo, papá. Como quiseres.
-
Diz-me uma coisa, rapaz. Já alguma vez molhaste a sopa?
-
Que sopa, papá?
- A pila, rapaz - explicou Luis Felipe, em voz baixa. - Já alguma vez montaste uma tipa?
Joaquín sorriu e ruborizou-se.
-
Não, papá - disse. - Nunca.
Pois já tens idade de molhar a sopa, rapaz. Vou encarregar-me de que debutes
oficialmente. É a melhor prenda que te posso dar, Joaquín. Vais agradecer-ma durante o
resto da vida.
-
Está bem, papá.
- Vamos lá ver se este fim de semana te consigo levar a um sitio para que te tornes um
homem, okay?
-
Okay, papá.
- Mas, cuidado, nem uma palavra acerca disto à tua mãe, Joaquín. Sabes que é uma
fanática da religião.
- Não te preocupes, papá.
Luis Felipe voltou a dar-lhe uma palmadinha nas costas.
- É assim mesmo que eu gosto - disse-lhe. - És um filho digno de teu pai.
Levantaram-se e voltaram para a sala de jantar.
- De que estiveram a falar? - perguntou Maricucha.
- Não te metas onde não és chamada, mulher - disse Luis Felipe.
-
Onde vamos, papá? - perguntou Joaquín.
Luis Felipe piscou-lhe o olho.
- à tua prenda de anos - disse, sorrindo.
- Vais comprar-me uma prenda? - perguntou Joaquín, surpreendido.
- Não é bem isso - disse Luis Felipe, e pôs o carro em marcha.
-
Mas vou dar-te uma prenda que nunca irás esquecer.
- Que prenda, papá?
Vamos a um sítio onde vais poder dar a tua primeira queca - disse Luis Felipe, e
voltou a arrotar. - Hoje vais debutar.
- Debutar? - perguntou Joaquín, sem entender de que falava o pai.
Uns dias depois, um sábado à tarde, Joaquín, os pais e os irmãos estavam a acabar de
almoçar quando Luis Felipe apagou o cigarro, se levantou e disse:
-
Joaquín, vamos dar uma volta.
-
Onde vão? - perguntou Maricucha.
-
Tomar café - disse Luis Felipe, e arrotou, tapando a boca.
Se quiserem, faço-lhes um café agora mesmo, para que não gastem dinheiro na
rua - propôs Maricucha.
ar.
Não maces, mulher - disse Luis Felipe. - Deixa-nos sair para apanhar um pouco de
Joaquín acabou de comer a sobremesa, levantou-se e deu um beijo na cara da mãe.
Não tomes café, meu amor, que ficas doente dos nervos - disse-lhe Maricucha ao
ouvido. - Pede antes um chazinho.
-
Está bem, mamã - disse Joaquín.
-
Voltamos daqui a umas horas - disse Luis Felipe.
-
Tanto tempo? - perguntou Maricucha, franzindo o sobrolho.
Porra, mulher, deixa-me respirar à vontade, não me persigas - disse Luis Felipe,
levantando a voz.
-
E tu não digas palavrÕes diante dos miúdos - disse Maricucha.
Joaquín já não é um miúdo - corrigiu Luis Felipe. - Já tem quinze anos. Já é um
homem.
Saíram de casa, desceram as escadas e subiram para o carro.
Luis Felipe riu-se.
Vamos a uma casa de putas, homem - disse. - Para montares uma tipa. Hoje sais da
categoria dos punheteiros e passas para a dos fodilhÕes, Joaquín.
Joaquín riu, nervosamente.
-
A sério, papá? - perguntou.
Claro, rapaz - disse Luis Felipe. - Já estás em idade de mandar o Bernardo às
compras. Se não, podes ir ficando parvo.
Joaquín imaginou-se com uma mulher desconhecida, os dois despidos, e teve medo.
O melhor é irmos comprar uma bola de futebol, papá - disse. Ouro vendem umas bolas lindas.
Na
-
Que há, rapaz? Tens medo de ir a uma casa de putas com o teu velho?
-
Não, mas o melhor é deixarmos isso para outro dia.
Pluma
de
Não tenhas medo, Joaquín, vais ver como é bom dar uma boa queca. Confia no teu
velho. Vou levar-te à melhor casa de tias de Lima. Vais ver como se mexem bem aquelas
indiazinhas. São jovens e muito limpinhas. Depois da primeira queca, vais sentir-te outra
pessoa.
-
Como quiseres, papá.
-
De certeza que és um tarado como o teu velho, não é?
Riram-se. Joaquín riu sem vontade. Sentiu que as mãos lhe tinham começado a transpirar.
Queres que te conte como debutei? - perguntou Luis Felipe, enquanto conduzia
velozmente pela estrada para Lima.
-
Se quiseres - respondeu Joaquín, olhando através da janela.
Porque eu não tive a sorte de o meu velho me levar a uma casa de putas para
debutar. O teu avô era lixado, Joaquín. Mas eu lá me arranjei para comer uma mestiça que
trabalhava em casa dos meus pais. Sabes que idade tinha quando debutei com a mestiça
Eugenia?
-
Não. Que idade?
Treze anos, Joaquín. Treze anos. Para que vejas que o teu pai é um malandro
desde muito novo. Pensas que aos quinze anos marcava zero quilómetros como tu? Não,
já tinha a minha quilometragem, rapaz, já sabia o que era bom. Nunca agarraste nenhuma
das mestiças que trabalham lá em casa, pois não?
-
Não, papá. Como podes pensar uma coisa dessas?
Não achas que à Angélica até seria fazer-lhe um favor? A essa mestiçazinha já lhe
morde a passarinha, Joaquín. Digo-te, tenho uma vontade enorme de a comer, mas a tua
mãe é muito esperta e nunca me deixa sozinho com a Angélica. Mas estava a contar-te o
meu debute. Sabes como saltei para cima da mestiça, da Eugenia?
-
Não.
-
Pois vou contar-te, para que descontraias, rapaz, para que vás aquecendo.
Joaquín esboçou um sorriso forçado.
Lembro-me de que os meus pais tinham ido fazer uma viagem à Europa continuou Luis Felipe. - Eugenia era a governanta da casa. Até era bem feia, a pobre índia.
Tinha uma cara de cavalo do caraças. Se a levasses ao hipódromo, punham-lhe uma sela e
obrigavam-na a correr. Mas, quando se é um rapaz e se está com o calor todo no sangue,
qualquer buraco serve, não é? Por isso, uma noite, discretamente, fui até ao quarto da
mestiça e saltei-lhe para cima, mas a égua da Eugenia não queria abrir as pernas e então
disse-lhe: olha, mestiça mal parida, se não deixas que te foda, vou acusar-te aos meus pais
de me teres violado quando estavam lá fora e eles põem-te na rua ao pontapé. E aí ela
fez-se de parva e lá me deixou, mas bem gostou, muito gemeu a desavergonhada. Diz lá se
o teu velho não era malandro, rapaz. Treze anos e já arranjava os meus programas
sozinho.
Luis Felipe soltou uma gargalhada. Joaquín sentiu o mau hálito do pai.
-
Papá, não te apetece lanchar no Cream Rica - perguntou.
O tanas, rapaz - disse Luis Felipe. - Hoje, faço de ti um homem, ainda que não
queiras.
Uns momentos depois, entraram num edifício a meio quarteirão da Miguel Dasso,
subiram até ao terceiro andar e Luis Felipe tocou à campainha de um apartamento.
Esta é uma casa de tias extremamente discreta - disse, em voz baixa. - Não deixam
entrar qualquer pessoa. E estão aqui as melhores putas de Lima.
Joaquín sorriu. As pernas tremiam-lhe. Luis Felipe tocou de novo à campainha.
-
Já estás teso? - perguntou.
-
Teso? - perguntou Joaquín, sem entender.
Luis Felipe riu-se, metendo as mãos nos bolsos.
-
De pau feito, rapaz, com a pila dura - disse. - Nem pareces filho do teu pai, porra.
Uma mulher abriu a porta. Era gorda e morena. Podia ter cerca de quarenta anos. Tinha
posto rolos no cabelo.
-
Boa tarde, Sr. Camino - disse, sorrindo. - Que alegria vê-lo por cá.
Olá, Monique - disse-lhe Luis Felipe. - Apresento-te Joaquín, o meu filho mais
velho.
Joaquín estendeu a mão a Monique.
-
Boa tarde, minha senhora - disse.
Monique deu uma gargalhada.
-
Ai, que piropo, há anos que ninguém me chamava senhora.
-
Ouve, mestiça, podes atender-nos?
-
Claro, Sr. Camino - disse Monique - Para si as raparigas estão sempre ready.
-
Bestial, pequena - disse Luis Felipe. - Tu és sempre um amor, não há nada a fazer.
Alguma vez já falhei, Sr. Camino? - perguntou Monique. - Quando é que o deixei
sem o carinho desta humilde casa?
Monique, Luis Felipe e Joaquín entraram no apartamento. Era um sítio escuro e
pobremente mobilado.
-
Viemos para o meu puto debutar - disse Luis Felipe.
-
O pequeno ainda está verde? -. perguntou Monique, olhando para Joaquín.
-
Pois está - disse Luis Felipe. - E já tem idade de debutar.
Que idade tens, meu filho? - perguntou Monique a Joaquín, acariciando-lhe a
cabeça.
-
Quinze, minha senhora - disse Joaquín. - Fi-los há pouco tempo.
Estás mortinho por experimentar as minhas meninas - disse Monique, a sorrir. - E
não me olhes assim, que o leitinho vai sair-te pelos olhos.
Luis Felipe soltou uma gargalhada e deu um beliscão na barriga de Monique.
-
Tens de barbear esse buço, Joaquincito - disse Monique.
-
Que buço? - perguntou Joaquín.
Monique acariciou-o mesmo por cima da boca.
-
Estes pelinhos, filho - disse, a sorrir. - Este bigodão de mariachi.
-
Nunca te barbeaste, filho? - perguntou Luis Felipe.
-
Nunca, papá - respondeu Joaquín.
Monique pôs uma mão entre as pernas de Joaquín.
Para mim, já pintaste, e estes tomates não são de criança - disse, com um sorriso
sedutor.
Monique e Luis Felipe riram à gargalhada. Joaquín sorriu, contrafeito.
- Bem, mestiça, mostra-nos lá as miúdas que tens hoje - disse Luis Felipe.
O senhor manda, o que o senhor pede é uma ordem - disse Monique. Acompanhem-me à salinha de estar, por favor.
Monique, Luis Felipe e Joaquín percorreram o corredor e entraram numa pequena sala.
Sentadas no sofá, a ver televisão, estavam três raparigas. Uma tinha o cabelo negro e
olhos rasgados. Outra tinha o cabelo pintado de loiro. A terceira era negra e parecia ser a
mais nova.
-
Meninas, já conhecem o Sr. Camino - disse Monique.
-
Boa tarde, Luisito - disse a loira.
-
Boa tarde, Luisinho - disse a de olhos rasgados.
A terceira permaneceu calada, sem desviar os olhos da televisão.
-
Como estão, meninas - disse Luis Felipe, a sorrir.
Este é o seu primogénito, Joaquín, que acaba de completar quinze primaveras e
vem debutar oficialmente neste templo do amor - disse Monique.
-
Ai que borrachinho tão lindo - disse a dos olhos rasgados.
-
O rapaz é bem giro, Luisinho - disse a loira.
-
Escolhe a que quiseres, Joaquín - disse Luis Felipe.
Joaquín baixou os olhos.
-
Não sei - disse. - Tanto me faz.
- As três são uma garantia, filhinho - disse Monique. - Estão extremamente limpas. Têm o
certificado de sanidade em dia. Obrigo-as a fazer um exame todas as semanas.
-
Escolhe sem medo, rapaz, não sejas tímido - disse Luis Felipe.
Queres que te faça coisinhas boas, queridinho? - perguntou a rapariga dos olhos
rasgados a Joaquín.
Joaquín não soube o que havia de responder. A rapariga do cabelo pintado olhou-o e
levantou os seios, sorrindo. A negra continuou a ver televisão.
-
Qual é que a senhora me recomenda? - perguntou Joaquín a Monique.
Monique esboçou um sorriso um pouco forçado.
Por uma questão de ética profissional, não te posso recomendar nenhuma,
filhinho - disse. - Mas asseguro-te que as três são muito eficientes e sabem trabalhar ao
gosto do cliente.
Bem, Joaquín, se não sabes, escolho eu por ti - disse Luis Felipe. - Eu fico com a
Amparo e tu debutas com a Flora, okay?
-
Qual é a Flora? - perguntou Joaquín.
-
Eu, para te servir, borrachinho - disse a dos olhos rasgados.
-
Vamos, Amparo - disse Luis Felipe. - Chegou a tua hora.
Ai, Luisinho, uma pessoa nem pode ver a sua telenovela, - queixou-se a do cabelo
pintado, e levantou-se.
Vestia uma minissaia alaranjada e uns sapatos vermelhos de salto alto.
-
Ouve, Flora, trata bem o meu puto - disse Luis Felipe.
Claro, Luisinho, tenho muito gosto em fazê-lo perder os três - disse a dos olhos
rasgados.
Pobre de ti se te limitares a chupar-lhe a piça - disse Luis Felipe, e a dos olhos
rasgados riu à gargalhada.
Luis Felipe pousou uma mão sobre o ombro de Joaquín.
-
Fá-la gemer, rapaz - disse.
Assim que Luis Felipe saiu da sala acompanhado de Amparo, Flora levantou-se, deu a mão
a Joaquín e levou-o para um dos quartos. Entraram. Flora fechou a porta à chave, correu
as cortinas e acendeu a luz. Era um quarto pequeno e um bocado sujo. Só tinha uma cama
com os lençóis revoltos.
-
Despe-te, queridinho - disse Flora.
Joaquín sorriu. As pernas continuavam a tremer-lhe.
-
Não tenhas medo - disse Flora, sorrindo. - Não te vou tirar coelhos da pila.
Em seguida, despiu a blusa e a saia, descalçou os sapatos e ficou em soutien e calcinhas
pretas. Ele não se atreveu a olhar para ela. Despiu-se lentamente e ficou em cuecas.
-
Agora, vem comigo ali à casa de banho - disse ela.
Passaram a uma casa de banho diminuta e mal cheirosa.
-
Vou lavar a tua coisinha linda, está bem? - disse ela.
Ele aproximou-se do lavatório. Ela puxou-lhe as cuecas para baixo.
-
Que linda pila, miúdo - disse, sorrindo. - Saíste ao teu velho, com uma piça grande.
Ele tentou sorrir. Ela lavou-lhe o sexo com água e sabão.
-
A água está gelada - queixou-se ele.
Lamento, queridinho - disse ela. - O cilindro está desligado por ordem da forreta da
Monique.
Ela continuou a ensaboar-lhe o sexo. Ele tremia de frio e de medo.
-
Pronto, vamos para a cama - disse ela, quando acabou.
Voltaram para o quarto. Ela acabou de se despir, deitou-se na cama e abriu as pernas. Ele
olhou para o sexo peludo de Flora e sentiu náuseas. A seguir, sentou-se à beira da cama,
sem saber o que fazer.
O que há? - perguntou ela, surpreendida. - Não tens vontade? Não gostas da
minha pachacha?
-
Não sei - disse ele. - Não me sinto bem.
É normal, queridinho, não te enerves - disse ela. - Na primeira vez, os rapazinhos
sempre ficam nervosos. Vem que vou fazer-te malandrices.
Ele não se mexeu. Estava de costas viradas para ela.
Vá, deita-te, queridinho - insistiu ela. - Eu faço tudo por atender bem os pequenos
como tu. Vais ver como fodo bem. Depois da queca, se não morreres, ficas louco.
Ela abraçou-o por trás e beijou-o na nuca. Ele deitou-se na cama, olhou para o seu corpo
nu no espelho do tecto e fechou os olhos.
-
Descontrai - sussurrou ela.
Em seguida, ajoelhou-se e começou a chupar-lha. Ele concentrou-se para ter uma erecção.
-
Nada, queridinho - disse ela. - Isto não se levanta nem com uma grua.
Não faz mal, Flora - disse ele, afastando-se um pouco dela. - O melhor é
vestirmo-nos.
-
Que tens, miúdo? Por que estás tão apressado?
-
Não sei. Acho que não tenho vontade.
Não te agrado? Olha para as minhas maminhas. São bem durinhas. Olha para a
minha pachacha. Cheira muito bem. Está molhadinha. Não gostas da minha pachacha?
-
És muito bonita, Flora, mas não sei o que tenho. A culpa é minha.
-
Queres que te dê outra mamada, para ver se fica dura?
-
Não, obrigado. É melhor não.
-
Como quiseres, miúdo. Para mim, o cliente tem sempre razão.
Ele levantou-se da cama e apanhou a roupa do chão. Ela entrou na casa de banho e
enxaguou a boca. Quando saiu, ele ofereceu-lhe uma nota de 5000 soles.
-
Por favor, não vás contar nada ao meu pai - disse em voz baixa.
Ela apanhou a nota e guardou-a.
-
Obrigada, queridinho - disse, sorrindo.
-
Lamento, Flora - disse ele. - A culpa é minha. Fazes muito bem o teu trabalho.
Joaquín tinha vontade de chorar. Sentia raiva. Tinha vontade de bater com a cabeça na
parede.
Sossega, queridinho, estou habituada a estes imponderáveis - disse ela,
acariciando-lhe a cabeça.
Disse ao meu pai que não queria vir, mas o velho idiota obrigou-me - disse ele,
esforçando-se por não chorar.
-
Qual é o teu problema, rapaz? - perguntou ela. - Gostas de pilas?
-
Não, não - disse ele, surpreendido. - Por que pensas isso?
Por nada, queridinho, por nada. Mas se gostas de pilas, não te preocupes, deixa-te
levar pelo instinto e só isso. Se não, vais fartar-te de sofrer.
-
Obrigado, Flora.
Se quiseres, volta outro dia e tentamos outra vez, miúdo. Eu por carne branca e
tenrinha trabalho de graça.
Ele sentou-se na cama e calçou os sapatos.
Peço-te que não contes ao meu pai, está bem? - disse, apertando os atacadores. Por favor, não digas a ninguém, Flora.
-
Sossega, queridinho - disse ela. - Sou uma profissional.
Ele pôs-se de pé e olhou-a nos olhos.
-
Mil desculpas, Flora - disse. - Não sei o que hei-de fazer para que me perdoes.
A seguir, inclinou-se e beijou-lhe uma mão.
-
Ai, que romântico que és, borrachinho - disse ela, sorrindo.
Saíram do quarto. Flora regressou à sala e sentou-se a ver televisão. Joaquín ficou parado
no corredor.
-
Que tal correu, filho? - perguntou-lhe Monique.
-
Lindamente, minha senhora - disse.
-
Bisaste?
-
O que é isso?
-
Fizeste duas viagens ou ficaste estoirado à primeira?
-
Duas viagens, minha senhora.
Monique riu-se, levando uma mão ao peito.
Esta juventude de hoje é mesmo espevitada, caramba - disse. E foi para a sala,
onde continuou a ver televisão.
Pouco depois, Luis Felipe e Amparo saíram de um dos quartos a sorrir e a dizer piadas.
-
E que tal correram as coisas, rapaz? - perguntou Luis Felipe ao filho.
-
Fi-la arquejar, papá - disse Joaquín.
Luis Felipe soltou uma gargalhada e deu uma palmadinha nas costas do filho.
-
Que tal o meu puto, Flora? - perguntou Luis Felipe.
Um demónio, quase me mata por asfixia, com a queca - disse Flora. - Tal pai, tal
filho, Luisinho.
Todos se riram.
-
Quanto te devo, índia? - perguntou Luis Felipe a Monique.
Cinquenta, Sr. Camino - disse Monique, pondo-se de pé. - Cobro-lhe só o serviço
básico. Não incluo a segunda queca de Joaquín.
-
Deste duas quecas, infeliz? - perguntou Luis Felipe.
-
Temos de aproveitar as oportunidades, papá - disse Joaquín.
-
Já sabia que ias sair um coelhinho, porra - disse Luis Felipe.
Em seguida, tirou umas notas e deu-as a Monique.
-
Fica com o troco - disse-lhe.
-
Obrigada - respondeu-lhe Monique. - É um cavalheiro.
-
Vemo-nos em breve, índia - disse Luis Felipe.
E tu volta quando quiseres, filhinho - disse Monique a Joaquín. - Eu aos estudantes
e universitários faço-lhes o desconto da praxe.
cá.
Com certeza, minha senhora - disse Joaquín, sorrindo. - Qualquer dia apareço por
Que vivaço, caramba - disse Monique, e beliscou Joaquín na barriga. - Igualzinho
ao pai.
Riram-se. Luis Felipe e Joaquín saíram do apartamento.
E como te sentes depois de teres comido uma bela pachacha? - perguntou Luis
Felipe, descendo as escadas.
-
Com fome - disse Joaquín, e riram-se.
Luis Felipe deu uma palmadinha nas costas do filho.
-
Porra, que o puto saiu aos seus - disse, com orgulho.
Pouco depois, de regresso a casa, Luis Felipe e Joaquín pararam para lanchar no Bar BQ.
Um rapaz aproximou-se do carro. Luis Felipe e Joaquín pediram um par de sanduíches. O
rapaz não tardou a voltar com o pedido. Ainda não era de noite.
Agora que já és um homenzinho, vou dar-te dois ou três conselhos sobre mulheres
- disse Luis Felipe, quando o rapaz se foi embora.
Joaquín mordeu a sanduíche e olhou para o carro do lado, onde um casal se beijava.
Primeiro conselho: nunca te esqueças de que todas as mulheres são umas putas disse Luis Felipe.
Joaquín sorriu.
Todas, filho - disse Luis Felipe. - Todas fazem qualquer coisinha por um bom
marzápio.
-
O que é um marzápio? - perguntou Joaquín, sorrindo.
Ora, é o animal que nós, os homens, temos entre as pernas - disse Luis Felipe
tocando nos genitais.
Riram-se.
- Eu sei muito de mulheres - continuou Luis Felipe. - E acredita, todas são putas, só que
umas sabem-no e outras, não.
- A mamã também é uma puta? - perguntou Joaquín. Luis Felipe soltou uma gargalhada.
- Não, a tua mãe, não. Todas são putas, menos a tua mãe.
-
Era o que eu pensava - disse Joaquín.
- A tua mãe é um caso raro, filho - disse Luis Felipe. - Não conheci outra mulher como ela.
A tua mãe prefere rezar a dar uma boa queca. às vezes, quando a estou a montar, chego a
pensar que a tua mãe está a rezar.
Riram-se de novo.
Segundo conselho: nunca faças caso quando uma mulher te diz que não - disse Luis
Felipe. - Lembra-te de que é possível foder todas. Umas são fáceis de engatar e outras
fazem-se caras, mas é possível foder todas. Quando uma tipa te diz que quer, é porque
quer, e quando te diz que não quer, é porque também quer.
-
E como é que sabes, papá? - perguntou Joaquín.
Porque sei, rapaz, porque sei - disse Luis Felipe. - As que te dizem que não querem
são as mais putas, Joaquín. Confia no teu velho. Eu tenho muitas cricas no meu palmarés.
Joaquín olhou para o carro do lado: o casalinho continuava a beijar-se.
-
A minha mãe nunca soube que a enganas? - perguntou, sem olhar para o pai.
Não, é claro - disse Luis Felipe, sorrindo. - Achas que sou maluco ou quê? A tua
mãe não sabe, nunca soube de nada. Dou as minhas escapadelas sem fazer estrilho. Além
disso, trago a tua mãe satisfazida. Diz-se satisfazida ou satisfeita?
-
Satisfeita.
-
Bem, seja lá como for que se diga.
Riram-se. Luis Felipe terminou a sanduíche e acendeu um cigarro.
Terceiro conselho, Joaquín: usa sempre um preservativo - disse, e expeliu o fumo. Anda sempre com um preservativo na carteira. Nada de fazê-lo sem camisa, rapaz. É
muito perigoso. Ainda que a tipa te diga que não há perigo, não acredites. Sei de muitos
casos em que as tipas se deixam emprenhar para te agarrarem pelos tomates. Não quero
que me faças avô antes de tempo, rapaz.
Não te preocupes, papá - disse Joaquín. - Também não tenho vontade de ter um
filho.
Eu sei, rapaz, mas o tesão é traiçoeiro. Pensas que muitas pessoas planeiam os
filhos? Imbecilidades. A grande maioria das pessoas está cá por causa do tesão e não por
amor. O tesão é a força que faz mover o mundo, Joaquín.
-
Tens razão, papá.
Ficaram calados. Luis Felipe arrotou.
-
E um último conselho: cuidado com a febre coneira.
-
Que é isso? - perguntou Joaquín, sorrindo.
Não deixes que uma tipa te domine pela crica - disse Luis Felipe. - Quantos amigos
meus se tornaram uns paus-mandados, porra. Muitos, rapaz, muitos. E porquê? Porque se
deixam dominar pela febre coneira. Não se apaixonam: deixam-se arrastar pela febre
coneira. Nunca permitas que uma mulher te desobedeça, Joaquín. às mulheres é preciso
habituá-las a estar caladas e na cozinha, como a tua
mãe.
-
Está bem, papá.
Digo-te isto porque gostaria que, no dia de amanhã, fosses um grande malandro
como o teu pai, Joaquín. Quando eu era novo, não tive um pai que me soubesse dar bons
conselhos, como eu te estou a dar a ti. Tudo o que sei de mulheres tive de o aprender à
minha custa.
-
Muito obrigado, papá. Os teus conselhos vão ser-me muito úteis.
Luis Felipe acendeu as luzes do carro e pediu a conta.
-
Tenho de te dizer uma coisa, Joaquín - disse.
-
Diz, papá.
-
Hoje, sinto-me orgulhoso de ti.
-
Então que tal? - perguntou Maricucha, quando entraram em casa.
-
Muito bem, muito bem - disse Luis Felipe, e beijou a face da mulher.
Joaquín ficou calado.
-
Onde foram? - perguntou Maricucha.
-
Fomos lanchar - disse Luis Felipe.
-
Foi bom? - perguntou Maricucha.
-
Que tal foi, Joaquín? - perguntou Luis Felipe.
- Foi estupendo - disse Joaquín.
Luis Felipe deu uma gargalhada.
-
De que te ris? - perguntou Maricucha.
De nada, mulher, de nada - disse Luis Felipe. - Qual é o problema? É proibido rir
nesta casa?
Em seguida abriu o bar e preparou uma bebida.
-
Não me dás um beijinho, Joaquín? - disse Maricucha.
Joaquín beijou a mãe na cara.
-
Ui, tresandas a mestiça - disse ela, fazendo uma careta de asco.
Joaquín sentiu que a cara lhe ardia.
-
Pode saber-se onde estiveram? - perguntou Maricucha, franzindo o sobrolho.
-
Filho, vai tomar um duche - disse Luis Felipe. - Quero falar a sós com a tua mãe.
Joaquín andou devagar em direcção ao quarto.
A primeira coisa que Joaquín fez ao entrar no quarto foi despir-se e meter-se no duche.
Parado sob um jorro de água quente, tocou o seu sexo, ensaboou-o, fê-lo crescer. Em
seguida, fechou os olhos e masturbou-se, pensando num rapaz do colégio. O rapaz
chamava-se Billy. Era loiro, forte, muito bom em desporto. Joaquín vira-o despido um par
de vezes no vestiário do colégio. Sentindo o jorro de água quente nas costas, as pernas
descontraídas, o sexo firme, Joaquín imaginou Billy transpirado no vestiário, imaginou-se a
puxar-lhe os calções, a puxar-lhe os suspensórios para o lado, a chupar-lha, a deitar-se de
barriga para baixo para que Billy lha enfiasse, imaginou Billy a mover-se atrás de si, a
morder-lhe as costas. "Sim, querido, faz-me coisas boas", disse, mordendo os lábios.
Acabou. Abriu os olhos. Riu-se sozinho, pensando que falara como Flora.
Essa noite, Joaquín estava metido na cama quando a mãe entrou no quarto e se sentou a
seu lado.
- Meu filho, temos de falar - disse.
Joaquín soergueu-se e apoiou-se numa almofada.
- Diz lá, mamã - disse.
- Não consigo falar, meu amor - disse Maricucha, e suspirou. - Estou tão triste que não
tenho palavras.
Em seguida, levou as mãos à cara e desatou a chorar. Joaquín acariciou-lhe a cabeça.
-
Que tens, mamã? - perguntou-lhe. - Por que choras?
Ai, Joaquín, custa-me a acreditar que o papá tenha feito semelhante barbaridade disse ela. - Estou desfeita.
-
Que barbaridade? - perguntou ele, surpreendido.
O papá contou-me que te levou a uma casa de má nota, meu amor - disse ela,
olhando-o nos olhos. - Não precisas de continuar a esconder a verdade.
Agora Joaquín estava envergonhado. Não sabia que dizer.
-
Lamento, mamã - disse, baixando os olhos.
Como me mancham assim o meu Joaquincito, pelo amor de Deus? - disse
Maricucha, como que falando consigo própria. - Como sujam a sua alminha? Como o
induzem a pecar?
-
Eu não queria ir, mamã - disse Joaquín. - Foi o papá que me obrigou.
Eu sei, meu amor, o teu pai é uma besta machista. Se o tivesse conhecido bem,
não teria casado com ele.
Joaquín sorriu.
Que triste deve estar agora o Altíssimo - disse Maricucha. - Deve estar a chorar só
de pensar que o meu Joaquincito esteve com uma prostituta. Como o Senhor deve ter
sofrido ao ver-te ter prazer com uma mestiça indecente. Oxalá lhe dê um cancro nas suas
partes íntimas.
-
Não tive prazer com a prostituta, mamã.
-
Não mintas, Joaquín. Não continues a pecar, que O Altíssimo está a olhar para nós.
-
Juro-te, mamã. Não fiz nada. Tive nojo.
-
Não chegaste a cometer o pecado da fornicação?
-
De quê?
Temos de reler juntos o Antigo Testamento, meu amor. Esqueceste-te das tuas
lições de fé. Aproveitaste-te da prostituta ou não?
-
Não consegui, mamã. Não quis. Tive vontade de vomitar.
-
Não fizeste nada?
-
Nada. Ela quis, mas eu não deixei.
Maricucha abraçou-o com força e beijou-o várias vezes na testa e nas faces.
Não posso crer que tenhas tido a temperança de guardar a tua castidade, meu
amor - disse, a sorrir. - Sempre soube que eras um rapaz extremamente piedoso, mas
surpreendeste-me. É preciso ter muita força de vontade para não cair na tentação da
carne.
Joaquín assoou o nariz no vestido da mãe.
-
Estou tão orgulhosa de ti, meu amor - disse ela. - És uma alma muito pia.
-
Foi horrível, mamã - disse ele. - Nunca mais quero ir a um sítio assim.
Não te preocupes, meu lindo. Vou cuidar da tua castidade como se fosse ouro em
pó. Só passando por cima do meu cadáver te tiram a tua castidade, Joaquín. Por cima do
meu cadáver.
Ele continuou a chorar.
Não sabes como estou orgulhosa de ti, meu Joaquín casto, castíssimo, meu filho
tão pio - disse ela, abraçando-o.
-
Mamã, não vás contar o que te disse ao papá, está bem?
Porquê, meu amor? Um bom cristão nunca se envergonha de saber guardar a sua
castidade.
-
É que eu menti-lhe. Ele acha que fiz aquilo com a prostituta.
E por que lhe mentiste? Deverias ter-lhe dito que não eras um porco mulherengo
como ele.
-
Não sei, tive vergonha.
Não tenhas medo de meter o teu pai na ordem, Joaquincito. Lembra-te que o
Senhor está do teu lado.
-
Peço-te que não lhe contes. Se lhe contares, vai aborrecer-se comigo e vai ser pior.
-
Está bem, não lhe digo nada. Mas tens de prometer-me uma coisa.
-
O que quiseres, mamã.
-
Que nunca mais vais a uma casa de má nota.
-
Nunca mais. Prometo-te.
E se o papá quiser levar-te de novo, dizes-lhe: alto, pecador, afasta-te de mim. E
vens ter comigo e acusa-lo.
-
Combinado, mamã.
Maricucha e Joaquín abraçaram-se de novo.
Por vezes, não aguento pensar nas horas que faltam para que o Senhor me leve
para o Céu - murmurou ela. - A vida terrena é desilusão atrás de desilusão, atrás de
desilusão.
-
Papá, esta manhã, senti um ardor forte ao urinar - disse Joaquín no dia seguinte.
Luis Felipe estava deitado na cama, a ler o jornal. Maricucha fora à missa.
pila?
Não brinques - disse Luis Felipe, e pousou o jornal na cama. -
Agora dói-te a
-
A sério - disse Joaquín. - Doeu-me toda a noite.
-
Porra, não me digas que a mestiça te ferrou um esquentamento. Que sentes?
-
Como se fosse uma queimadura. Uma espécie de ardor.
Era verdade: apesar de não ter sido capaz de fazer sexo com Flora, Joaquín sentia um
ardor intenso na zona genital.
Que azar se apanhaste um esquentamento no teu debute, rapaz. Mas, diz-me uma
coisa. Flora não te pôs uma camisinha?
-
Não, papá, não me pôs nada.
Porra, que índia manhosa, está lixada comigo. Vou falar com a gorda Monique para
que a ponha na rua.
-
A culpa não é dela, papá.
Nunca apanhei um esquentamento em casa da Monique, rapaz. Nunca. E tu à
primeira és premiado. Que infeliz que és, porra.
-
Tudo isto porque não pus o preservativo.
-
Exactamente. Usa sempre um preservativo, filho. Sempre.
Luis Felipe levantou-se da cama e coçou os genitais. Continuava de pijama.
Bem, mudamos de roupa já e vamos ter com o chinês - disse, e bocejou, esticando
os braços.
-
Que chinês? - perguntou Joaquín.
O chinês da farmácia Roosevelt, é claro - disse Luis Felipe. - Dá umas injecções
antivenéreas que são uma dose de cavalo. Em Lima, todos os que apanham um
esquentamento vão ter com o chinês.
A mim já me salvou diversas vezes.
-
Têm de dar-me uma injecção, papá? Não basta tomar uns comprimidos?
Não há outra hipótese, rapaz. Se tens um esquentamento, tens de aguentar a
injecção e ficas pronto para o combate. A vida é assim. Para um bom fodilhão, cada
esquentamento é como que uma medalha de guerra.
-
Maldição, que azar! Detesto injecções!
-É uma picada apenas, não sejas complicado. Ou preferes que a pila te caia aos bocados?
-
Não - disse Joaquín, rindo-se.
Veste-te e vamos ter com o chinês, antes que a velha saiba o que se passa - disse
Luis Felipe.
-
Que velha?
-
Perdão, a tua mãe.
Meia hora mais tarde, Luis Felipe e Joaquín entraram na farmácia Roosevelt. Duas ou três
pessoas olhavam para as vitrinas. Um homem de traços orientais atendia os clientes atrás
do balcão.
Boa tarde, meu querido Akira - disse Luis Felipe ao homem de olhos rasgados a
quem estendeu a mão.
-
Que tal, doutor Luis Felipe - disse Akira, baixando ligeiramente a cabeça.
Desta vez trago-lhe o meu filho Joaquín - disse Luis Felipe, e deu uma palmadinha
nas costas de Joaquín.
Joaquín estendeu a mão a Akira.
-
Que tem o jovem? - perguntou Akira.
-
Ferido de guerra - disse Luis Felipe, baixando a voz.
Akira tirou os óculos.
- Venérea, não? - sussurrou, aproximando-se de Joaquín.
-
Claro - disse Joaquín.
-
Ai, juventude, divino tesouro - disse Akira, suspirando.
Estes rapazes de agora são uns perversos, Akira - disse Luis Felipe. - Pode atender o
rapaz?
Mas com todo o gosto, doutor Luis Felipe - disse Akira. - Num abrir e fechar de
olhos ponho-o bom.
A seguir, saiu do balcão e pôs uma mão no ombro de Joaquín.
-
Por aqui, jovem cavalheiro - disse, mostrando-lhe um cortinado.
Akira e Joaquín passaram o cortinado e entraram no armazém da farmácia. Luis Felipe
ficou cá fora.
-
Quer dizer que lhe entraram bichos para a caneta? - perguntou Akira, sorrindo.
-
Lamentavelmente, é verdade - disse Joaquín.
Não se preocupe, jovem cavalheiro, que a mim chamam-me o bombeiro de Santo
Isidro: todos os que apanham um esquentamento vêm ter comigo e eu trato disso - disse,
rindo e ficando com os olhos mais achinesados.
Em seguida, pôs um avental branco e preparou a injecção.
- Oxalá não desmaie, porque as injecções causam-me pânico - disse Joaquín.
Não se preocupe, que não lhe vai doer - tranquilizou-o Akira. - É uma picadela
apenas, como se fosse uma mordidela de uma cegonha.
Joaquín fechou os olhos e amaldiçoou o pai. Akira acabou de preparar a injecção.
-
Quer ter a amabilidade de me mostrar a nádega? - disse.
-
Qual delas? - perguntou Joaquín.
Tanto faz - disse Akira, sorrindo. - Depois de ver tantos cus, já não tenho
favoritismos, jovem.
Joaquín virou-se de costas para Akira e puxou as calças e as cuecas para baixo, até aos
joelhos.
- É melhor ser o senhor a escolher a nádega - disse.
- Por norma, a nádega direita é mais suave - declarou Akira.
Em seguida, passou um algodão com álcool pela nádega direita de Joaquín e espetou-lhe a
agulha.
- Estou quase a acabar, quase, quase - disse, enquanto lhe dava a injecção.
Uns segundos depois, retirou a agulha.
- Pronto, jovem - disse. - Com isto já tem pila para muito tempo.
Joaquín puxou as calças para cima.
- De certeza que vou ficar bem? - perguntou.
- Ah, jovem cavalheiro, se lhe dissesse o número de esquentados que curei, não
acreditaria - disse Akira. - Muitissimas pilas me devem gratidão, menino. Muitíssimas.
Joaquín riu-se.
- Obrigado, senhor - disse.
- Tenha cuidadinho, que a saúde da pila é o que há de mais sagrado no mundo - disse
Akira.
Quando Luis Felipe e Joaquín chegaram a casa, Maricucha esperava-os, sentada na porta
de entrada.
-
Onde foram? - perguntou, assim que saíram do carro. Parecia aborrecida.
Que tens, mulher? - disse Luis Felipe. - Não posso ir dar uma volta com o meu
filho?
-
Onde foram, Joaquín? - perguntou Maricucha.
-
à farmácia, mamã - disse Joaquín.
-
De certeza? - perguntou ela, olhando-o nos olhos. - Não me estarás a mentir?
Mulher, por favor, não sejas ridícula - disse Luis Felipe. - Fomos à farmácia comprar
umas coisas.
Que coisas? - perguntou Maricucha pondo-se de pé. - Onde estão as coisas que
compraram?
-
Eu tinha dores de barriga e tomei os comprimidos na farmácia - disse Joaquín.
Não tenho de te prestar contas, porra - disse Luis Felipe. - Nesta casa quem manda
sou eu.
- Não vou permitir que dês cabo do miúdo, Luis Felipe - disse Maricucha, levantando a voz.
- Isso é que não vou permitir.
Já não é um miúdo, mulher - respondeu Luis Felipe. - Já é um homem, não é
verdade, Joaquín?
-
Sim, papá - disse Joaquín.
Ai de ti se voltares a sair com Joaquín sem me dizeres nada, que te denuncio à
polícia como corruptor de menores, infeliz - ameaçou Maricucha.
Luis Felipe riu-se com um ar cínico.
-
Vou com o meu filho aonde me der na real gana - disse.
-
Velho manhoso - atirou Maricucha. - Como te atreves a estragar o meu Joaquín?
Não estou a dar cabo dele, mulher - disse Luis Felipe -, estou a fazer dele um
homem. Quem o estraga és tu, com os teus mimos. Estavas a transformá-lo num maricas.
Mentira - gritou Maricucha. - Nada de maricas. Quero que o miúdo seja um bom
cristão e não um manhoso e um velho sabido e obsceno como o pai dele.
Luis Felipe pregou uma bofetada na mulher.
-
Não me faltes ao respeito, velha carraça - gritou.
-
Bate-me, mata-me, mas não dês cabo do Joaquín, infeliz - gritou Maricucha.
Agora ela chorava.
Joaquín vai ser um homem com os tomates no sítio e não um maricas como o teu
irmão Micky.
O que tu tens é ciúmes do Micky porque tem mais dinheiro do que tu - disse
Maricucha. - Vais acabar no Inferno por seres malvado, Luis Felipe.
Luis Felipe soltou uma gargalhada.
Ai, Maricuchita, a menopausa está a dar-te a volta ao miolo - disse, e entrou em
casa.
Uns meses depois, Joaquín estava no Davory a comer um gelado quando viu Flora. Esta
entrou no Davorv, pediu uma laranjada gelada e uma sanduíche de presunto e salada com
muita cebola e sentou-se ao balcão. Então, viu Joaquín e reconheceu-o.
- Olá, queridinho - disse-lhe sorrindo. - Voltamos a encontrar-nos.
-
Olá, Flora - disse Joaquín. - Tenho muito prazer em ver-te.
Flora pusera uma peruca negra. Tinha as unhas pintadas de roxo.
-
És um ingrato - disse. - Nunca mais foste visitar-me.
-
Não tive tempo - disse Joaquín.
-
Mentiroso - disse ela. - Quando há vontade, arranja-se sempre um tempinho.
Flora recebeu a sanduíche e deu-lhe uma grande dentada.
-
E continuas virgem? - perguntou ela, baixando a voz.
Falou com a boca cheia de comida. Ele pôde ver o pedaço de sanduíche na língua de Flora.
Teve nojo.
-
É - disse, sem olhar para ela.
-
Não queres tentar de novo? - perguntou ela.
-
Não, obrigado - disse ele. - Não tenho dinheiro.
Não te levo nada, queridinho - disse ela. - Ofereço-te a queca. Sabes uma coisa?
Ganhei-te afecto. Vê-se que és um óptimo rapaz, que tens sentimentos.
Ele continuou a chupar o gelado.
-
Animas-te ou não? - disse ela.
-
Não, é melhor não - disse ele.
Ela riu-se.
-
Por que te ris? - perguntou ele.
- Já te entendo, queridinho - disse ela, e fez-lhe uma festa nas costas. - Gostas de pilas,
não é verdade? És uma putazinha como eu.
- Não é nada disso - disse ele, baixando os olhos.
- Reconhece, queridinho - disse ela. - A mim não precisas de enganar. Vê-se à légua que és
larilas.
Ele chupou o seu gelado de baunilha e ficou calado.
- Pobre do meu queridinho - disse ela. - É uma doida, mas não quer reconhecê-lo.
A seguir, acabou de comer a sua sanduíche de presunto e salada, pôs-se de pé e voltou a
acariciá-lo nas costas.
- Tchau, queridinho - disse-lhe. - Quando quiseres, vem visitar-me, só para conversarmos.
E vou dar-te um conselho: experimenta com pilas; vais ver que vais gostar.
Joaquín ficou calado, sem saber o que dizer. Flora saiu do Davory fazendo ouvir o som dos
saltos altos. Ao vê-la passar, o tipo que estava na caixa atirou-lhe um piropo. Ela olhou-o,
fez uma careta de desprezo e continuou a andar.
A CAÇADA
Era um domingo de manhã. Joaquín estava sentado na sala, a ver a página desportiva de
El Comercio. Antes, fora com os pais à missa das oito e tomara o pequeno-almoço. De
repente, Luis Felipe entrou na sala e deitou-lhe um olhar desagradável.
- Que esperas para ir apanhar a trampa dos cães? - perguntou-lhe. Todos os domingos,
Joaquín tinha de lavar os carros dos pais, regar o jardim e apanhar as fezes de Blackie e
Orejón, os cães da casa.
- Vou já, papá - disse, sem olhar para o pai.
- Já te disse que não quero que leias o jornal antes de mim - disse Luis Felipe. - Fico lixado
porque o deixas todo desordenado. Vai imediatamente apanhar a trampa, porra!
- Já estou farto - murmurou Joaquín. - Não sou teu criado.
- Não sejas insolente, miúdo de um raio - disse Luis Felipe, erguendo a voz. - Obedece
imediatamente.
Joaquín não se mexeu.
- Porra, lá rebelde és tu - disse Luis Felipe.
Então aproximou-se de Joaquín, apanhou-o por um braço, abanou-o violentamente e
arrastou-o até ao jardim.
- Apanha a trampa, porra - gritou, empurrando-o em frente dos excrementos de cão.
- Não quero - disse Joaquín.
Luis Felipe agarrou com força uma das mãos do filho e meteu-a na caca de cão.
- Deixa-te de mariquices, porra - gritou. - Aprende a agarrar na trampa como um homem.
Joaquín desatou a chorar, enquanto o pai lhe sujava as mãos com merda.
- Já estou farto das tuas esquisitices de menina - gritou Luis Felipe. - Nem que seja à força
vou fazer de ti um homem, porra.
Em seguida, entrou em casa e sentou-se a ler o jornal. Joaquín correu para a casa de
banho, para lavar as mãos. Lavou as mãos repetidas vezes. Depois, deitou-se na cama.
Continuou a chorar. Enquanto chorava, ouvia os pombos andarem no telhado da casa.
Porra, estes pombos encheram-me o saco - gritou Luis Felipe pouco depois. Passam o dia inteiro a andar no telhado. Não deixam que uma pessoa se descontraia.
Então, levantou-se, abriu o móvel onde guardava as armas, retirou uma espingarda e saiu
para o pátio. Joaquín ouviu os disparos. Quando chegou ao pátio, viu os pombos mortos.
No dia seguinte, assim que regressou do trabalho, Luis Felipe entrou no quarto de
Joaquín, que estava deitado em cima da cama a ler um livro de aventuras. Luis Felipe
sentou-se a seu lado.
-
Gostavas de ir a uma caçada neste fim de semana? - perguntou-lhe.
-
Não sei - disse Joaquín, ainda ressentido com o pai.
Luis Felipe deu-lhe uma palmada numa perna.
Filho, desculpa a safadice que te fiz ontem - disse-lhe. - Acho que perdi um bocado
a cabeça.
-
Não te preocupes, papá - disse Joaquín.
Luis Felipe levantou-se e acendeu um cigarro.
Estou a planear ir este fim de semana a El Aguerrido, um couto de caça na serra de
Piura - disse, e expeliu o fumo do cigarro. - Seria porreiro se quisesses vir, Joaquín.
Podemos caçar esquilos, veados e até pumas.
-
Há pumas em Piura? - perguntou Joaquín, surpreendido.
-
Claro que há, porra, uns pumas grandalhões, de campeonato - disse Luis Felipe.
-
Já caçaste algum puma, papá?
-
Puma, nunca, porque é preciso ter muita sorte, mas matei vários veados.
-
Eu também iria caçar?
-
Com certeza que sim, filho. Já tens quinze anos. Já és um homenzinho.
-
E se a mamã não me der licença por causa do colégio?
-
A velha que se lixe - disse Luis Felipe. - Nesta casa, quem manda sou eu.
Riram-se.
Nessa noite, Joaquín aproximou-se da porta do quarto dos pais e ouviu: estavam a discutir
aos gritos.
- Vais estragar o meu Joaquín - disse Maricucha. - Vais metê-lo no teu mundo de caçadas e
de mulheres.
- Vou mas é deixá-lo arejar - disse Luis Felipe. - Tu converteste-o numa bonequinha de
porcelana. És a culpada das mariquices dele. Passaste a vida a apaparicá-lo, a desculpá-lo.
- Não é verdade, Luis Felipe. Procuro inculcar nele disciplina e valores morais, porque não
quero que o meu filho seja um mulherengo e um selvagem como tu.
- Cala-te, mulher, não me faltes ao respeito.
- E tu não me insultes, seu abusador. Deverias ter vergonha de falar assim com uma
mulher grávida.
- Se estás grávida é por tua culpa, minha idiota. Disse-te que usasses preservativo e
saiste-me com aquela de que a Igreja o proibe. Estou saturado das tuas beatices. E ai de ti
se me dás outro filho maricas. Pobre de ti.
Maricucha desatou a chorar.
- Como te atreves a dizer-me isso, desgraçado? - gritou. - Devia ter ouvido a minha mãe.
Nunca deveria ter-me casado contigo.
- Está bem, cala-te, mulher. Não chores. Vais acordar os miúdos.
- O meu Joaquín não vai à caçada contigo. Vais ensiná-lo a ser mau e cruel como tu. Não
vou permitir que o corrompas ainda tão jovem. O meu filho vai ser um homem de bem.
- Tu o que queres é que o parvalhão do Joaquín acabe por ir para padre, não é? É isso que
queres. Não sabes que todos os padres são uns maricas?
- Hás-de ir parar ao Inferno por falares assim, Luis Felipe. Ao Inferno, ouviste?
- Cala-te, beata do caralho. E quanto ao Joaquín, levo-o para onde quiser.
-
Nunca deveria ter casado contigo. Nunca. Arruinaste a minha vida, malvado.
-
Pára de chorar. Vem, pequenina, vem cá.
-
Não me toques.
-
Toco-te quando me apetecer. És minha mulher.
-
Deixa-me, seu abusador.
-
Tu és minha, Maricucha. Sustento-te para que me abras as pernas.
-
Deixa-me, Luis Felipe. Estou enervada. Vai-me doer.
-
A mim que me importa. Vou enfiar-ta ainda que não queiras, idiota.
Joaquín correu para o quarto e meteu a cabeça por baixo da almofada.
No dia em que Luis Felipe e Joaquín partiram para a caçada, Maricucha chorava.
Não precisas de matar animaizinhos, meu amor - disse ela a Joaquín. - Não ligues
ao que a besta do teu pai diz.
Não te preocupes, mamã - disse Joaquín. - Só quero passear. Sabes bem que não
gosto de caçar.
Ela acariciou-o na cabeça.
Lembra-te de que os animaizinhos estão no mundo porque Deus os criou recomendou-lhe. - Se matares um animalzinho, estarás a ofender a Deus.
- E quando matas uma mosca também ofendes a Deus? - perguntou Joaquín.
-
Não, filhinho, porque as moscas foi o diabo que as criou.
-
Ah, tens razão.
Faz ouvido surdos quando o papá te falar de mulheres, está bem? Não lhe ligues.
Ele perdeu toda a moral, toda a moral.
-
Está bem, mamã.
E não deixes que diga mal da tua mãe, que tanto gosta de ti. Quando te disser
coisas desagradáveis sobre mim, põe-no na ordem e não o deixes, Joaquín. Obriga-o a
respeitar-te. Recorda-te que a tua mãe é o que há de mais sagrado neste mundo.
-
Eu sei, mamã.
E lembra-te de oferecer o teu dia todas as manhãs e de agradecer ao Senhor todas
as noites. O papá já não reza, mas não copies os defeitos dele, meu amor.
-
Prometo-te que vou rezar bastante, mamã.
Maricucha meteu um livro na mala de Joaquín.
Olha, leva o Caminho, para leres os pensamentos sábios do Padre - disse-lhe. - Isso
vai compensar a influência negativa do teu pai.
Joaquín sorriu e beijou a mãe na face.
-
E não te esqueças: matar animaizinhos é pecado - disse ela.
Uns quilómetros depois de ter passado por Chiclayo, Luis Felipe parou o carro à beira da
estrada. Conduzira várias horas seguidas desde que tinham saído de Lima.
-
Vamos descer para uma mijinha - disse.
Luis Felipe e Joaquín desceram do carro. Estava calor. De ambos os lados da estrada havia
um deserto.
- Porra, não há nada como mijar ao ar livre - disse Luis Felipe, urinando em frente de um
dos pneus do carro.
Joaquín sorriu.
- Mija também tu, filho - disse Luis Felipe. - Aproveita.
-
Não tenho vontade, papá.
-
Mija, homem. Não sejas tímido, porra.
Joaquín parou ao pé de um pneu, desapertou a braguilha e tentou urinar. Não conseguiu.
Que tal dispararmos uns tiros para te ires adaptando às armas? - perguntou Luis
Felipe, quando acabou de urinar.
-
Bestial - disse Joaquín.
Luis Felipe entrou no carro e tirou uma pistola. A seguir, abriu uma lata de sumo de
laranja, bebeu uns golos e deu a lata a Joaquín, que acabou de beber o sumo e a devolveu
ao pai. Luis Felipe afastou-se do carro, juntou umas pedras e pôs a lata por cima delas.
- Vê-se bem? - gritou.
- Lindamente - gritou Joaquín.
Luis Felipe voltou para o carro e carregou a pistola.
- Dispara tu primeiro - disse. E deu a pistola a Joaquín.
- Porra, até parece que isso é uma ciência, rapaz - disse Luis Felipe. - Apontas bem e
apertas o gatilho; é só isso.
Joaquín apontou e apertou o gatilho. Não disparou.
- O gatilho é muito duro - disse.
-
Aperta com força - disse Luis Felipe. - Como um homem.
Joaquín apertou de novo: Disparou. Sentiu um apito nos ouvidos.
A lata ficou de pé.
- A pistola faz muito barulho - disse.
Luis Felipe abanou a cabeça, contrariado.
- A menina quer disparar com algodõezinhos nos ouvidos para proteger os seus tímpanos
virgens? - perguntou. E riu-se.
Joaquín deu a pistola ao pai. Luis Felipe apontou e disparou. A lata caiu ao chão.
- Que boa pontaria, papá - disse Joaquín.
- Vou dar-te um conselho, rapaz - disse Luis Felipe. - Para não falhares, imagina sempre
que estás a disparar contra um mestiço.
Riram à gargalhada e subiram para o carro.
No dia seguinte, Luis Felipe e Joaquín chegaram a El Aguerrido. Luis Felipe estacionou o
carro em frente da casa. Desceram, esgotados pela viagem. Um homem alto, moreno e de
bigode saiu de dentro da casa e aproximou-se deles.
- Bem-vindo a El Aguerrido, Sr. Camino - disse ele, sorrindo.
- Olá, meu bom Sixto - disse-lhe Luis Felipe e deu-lhe um abraço. - Que tal vai a tua vida,
homem?
- Lá vamos vivendo - disse Sixto.
- Este é Joaquín, o meu puto - disse Luis Felipe, apontando para Joaquín.
Sixto e Joaquín deram um aperto de mão.
- Sixto é o administrador de El Aguerrido - disse Luis Felipe a Joaquín.
- Muito prazer - disse Joaquín a Sixto.
Um rapaz saiu de casa e começou a correr em direcção a eles. Não usava sapatos. Tinha a
cabeça rapada. Sorria. Faltavam-lhe os dentes do meio.
- Este é Dioni, o meu filho mais novo - disse Sixto.
- Que idade tens, Dioni? - perguntou Luis Felipe.
- Catorze, patrão - respondeu Dioni.
- Menos um do que o meu puto - disse Luis Felipe, e deu uma palmadinha nas costas de
Joaquín.
alto.
É muito alto este Joaquincito - disse Sixto. - Parece uma cana delgada. Magro e
Joaquín sorriu e baixou os olhos.
Quem é que começa a dar? - perguntou Luis Felipe, olhando para Dioni e para
Joaquín.
- O seu Joaquín, é claro, Sr. Camino - disse Sixto. - É muito mais forte.
- Quem começa? - insistiu Luis Felipe, olhando para o filho.
- Não sei - disse Joaquín.
- Eu não vou nessa - disse Dioni. - Não ando à porrada com mais velhos.
- Porra, isto não fica assim - disse Luis Felipe, esfregando as mãos. - 1000 soles ao que
ganhar a luta.
Tirou a carteira e mostrou-lhes uma nota de 1000 soles.
- Caramba! - disse Dioni. - Por 1000 soles até luto com um puma.
Sixto soltou uma gargalhada.
- Este meu Dioni é um gaiato porreiro - disse.
- Vá, Joaquín, não deixes ficar mal o meu apelido - disse Luis Felipe. - Desfá-lo à pancada.
Joaquín sorriu.
- Não, papá - disse. - Por que havemos de lutar? O melhor é irmos conhecer a casa.
- Dá-lhe, homem - insistiu Luis Felipe. Não sejas maricas.
- Já trato dele - disse Dioni; e cuspiu para a palma da mão.
- Vamos, eu conto até três e a luta começa - disse Luis Felipe.
-
Vale tudo, menos nos tomates.
- Não obrigue o rapaz, Sr. Camino - disse Sixto.
Luis Felipe começou a contar.
- Um, dois... - disse.
- Não vou lutar, papá - disse Joaquín.
- Três - gritou Luis Felipe, e aplaudiu.
Então Dioni atirou-se a Joaquín, passou-lhe uma rasteira, atirou-o ao chão e agarrou-o
pelo pescoço.
- Ganhei, ganhei - gritou, sorrindo.
- Este meu Dioni parece um tigre - disse Sixto, orgulhoso do filho.
Luis Felipe deu a nota a Dioni. Joaquín levantou-se do chão. Estava a chorar.
Porra, não chores - disse-lhe Luis Felipe. - Aprende com Dioni. Pareces uma
menina, rapaz.
Essa noite, depois de comer, Joaquín despediu-se de Sixto e do pai, foi para o quarto que
lhe tinha sido atribuido e meteu-se na cama. Estava calor. No tecto havia uma ventoinha
que girava como se fosse uma hélice. Joaquín acendeu a luz da mesa-de-cabeceira e
pôs-se a ler o livro Caminho, que a mãe lhe dera. Pouco depois, ouviu uns ruidos no
quarto ao lado. Não conseguiu reprimir a sua curiosidade. Saiu do quarto em pijama. A
casa estava às escuras. Aproximou-se da porta do quarto do lado. Estava entreaberta.
Espreitou pela frincha. Viu que o pai estava na cama com uma mulher. Os dois estavam
nus. Luis Felipe mexia-se por cima da mulher. A cama rangia. A mulher era jovem, morena.
Tinha o cabelo preto. Arquejava.
- Senti a tua falta, mesticinha linda - disse Luis Felipe, beijando-a.
Ela sentou-se em cima dele e deitou a cabeça para trás, arquejando de prazer. Então
Joaquín reconheceu-a. Era Marita, a filha de Sixto. Marita preparara-lhes o jantar. Joaquín
voltou para o quarto. Teve dificuldade em adormecer.
Na manhã seguinte, depois de terem tomado o pequeno-almoço, Luis Felipe e Joaquín
partiram para a caçada.
-
Eu vou caçar com Sixto e tu vais com Dioni - disse Luis Felipe.
-
Com certeza, papá - disse Joaquín. - Dioni parece-me ser uma óptima pessoa.
Leva esta carabina .22, filho - disse Luis Felipe, dando a carabina a Joaquín. - Está
carregada, para o que der e vier. Tem uma correia, para a poderes levar ao ombro. Se
vires um veado, atira-lhe ao pescoço. Não o deixes vivo. Mata-o ao primeiro tiro. Se o
ferires, tens de lhe seguir o rastro até o encontrares. Lembra-te, Joaquín: um único tiro e
no pescoço.
Luis Felipe deu a arma ao filho. Joaquín deu-lhe um beijo na cara e saiu de casa. Dioni
esperava-o com duas mulas seladas.
- Desculpa lá a porrada, mas por cá o dinheiro é pouco - disse, e estendeu a mão a
Joaquín.
- Não te preocupes - disse Joaquín. - Eu compreendo. - Em seguida, subiram para as mulas
e afastaram-se da casa.
Umas horas depois, perto do meio-dia, Dioni parou bruscamente a mula e fez sinal a
Joaquín.
- Olha, um veado - sussurrou.
- Onde? - perguntou Joaquín.
- Ali, atrás daqueles ramos - murmurou Dioni.
Havia várias horas que procuravam um veado. Só tinham visto esquilos e pombos.
Desceram das mulas, procurando não fazer barulho. Joaquín puxou da carabina.
- Onde está? - perguntou.
Dioni apontou para o veado. Nesse momento preciso, Joaquín viu-o. Era um belo animal:
ágil, vivo, nobre. Não tinha chifres. Parecia um veado jovem.
- Que lindo - sussurrou Joaquín.
- Atira-lhe - disse Dioni. - Se não, perdemo-lo num instante.
Joaquín levantou a carabina e apontou para o pescoço do veado. Sentiu que o braço lhe
tremia.
- É melhor deixá-lo ir - disse. - Faz-me pena matá-lo.
- Dispara, senhor - disse Dioni. - Não o deixes escapar. É uma carne muito saborosa.
Joaquín fez pontaria de novo. Passaram um, dois, três segundos.
- Não consigo - disse. - Matar animais é pecado. São uma criação de Deus.
Dioni não deixava de olhar para o veado. Estava a cerca de cinquenta metros deles.
- É uma carne de comer e chorar por mais - disse - Dá-me a pistola.
Joaquín deu-lhe a carabina. Sem perder tempo, Dioni apontou e disparou. O veado deu
uma patada para o ar e caiu no chão.
- Acertei-lhe, acertei-lhe - gritou Dioni, entusiasmado.
Correram para o sítio onde o veado caíra. O animal estava a agonizar.
- Coitadinho - disse Joaquín. - Não deveíamos ter disparado.
- Dá-lhe outro tiro, para que não sofra - disse Dioni.
- Não sou capaz - disse Joaquín. - Dá tu.
Dioni encostou a carabina ao pescoço do animal e apertou o gatilho.
Meia hora depois, Dioni e Joaquín chegaram à casa da quinta com o veado que tinham
caçado.
Porra, Joaquín, no primeiro dia que foste caçar voltas com um veado - gritou Luis
Felipe, sorrindo.
-
Quem o caçou? - perguntou Sixto.
-
Joaquín, com uma única bala - disse Dioni, descendo da mula.
-
Não me lixes - disse Luis Felipe, surpreendido.
-
Juro por Deus, patrão - disse Dioni. - Tem boa pontaria cá o Joaquín.
Luis Felipe deu uma palmadinha nas costas do filho.
-
Estou orgulhoso de ti, rapaz - disse.
Joaquín esboçou um sorriso forçado.
-
Este veado é tenrinho - disse Sixto. - A carne deve desfazer-se na boca.
Sixto e Luis Felipe pegaram no veado e penduraram-no do ramo de uma árvore. Depois,
Luis Felipe abriu um par de cervejas para festejar o acontecimento.
Temos de tirar umas fotografias - disse. - O meu puto caçou um veado. Nem
consigo acreditar, porra.
Luis Felipe entrou em casa e voltou com uma máquina fotográfica.
-
Põe-te ao lado do animal, rapaz - disse a Joaquín.
Joaquín pôs-se ao lado do veado morto.
Agarra-o pela cabeça - ordenou Luis Felipe. - É assim que se costuma posar ao lado
do troféu de caça.
Joaquín pegou numa das orelhas do veado. Umas moscas voavam ao lado do animal. Luis
Felipe tirou várias fotografias ao filho.
-
Agora, como bom caçador, tens de o abrir.
Então, aproximou-se de Joaquín e deu-lhe uma faca.
-
Não percebo, papá - disse Joaquín.
Abre-lhe a barriga e tira-lhe as tripas - disse Luis Felipe. - Tens de o abrir para
cozinhar a carne. E, depois, corta-lhe a cabeça, para a dissecar. Tens de ter uma
recordação do teu primeiro animal, rapaz.
-
Não vou ser capaz, papá.
Deixa-te de histórias, homem - disse Luis Felipe, sorrindo. - Já és um caçador.
Caçador que mata, abre a sua presa.
-
Enterra-lhe a navalha, rapaz - disse Sixto. - Afinal de contas, o animal já está morto.
-
Faz-me nojo - sussurou Joaquín.
Luis Felipe olhou para o filho com desconfiança.
-
De certeza, foi o Joaquín que o matou? - perguntou a Dioni.
-
De certeza, patrão - disse Dioni.
Para não decepcionar o pai, Joaquín fechou os olhos e cravou a faca no ventre do veado.
-
Faz-lhe um corte grande - disse Luis Felipe. - Sem medo, rapaz.
Joaquín fez um corte na barriga do veado. Viu as tripas do animal. Sentiu náuseas. Correu
para uma árvore e vomitou.
Puta que o pariu - murmurou Luis Felipe. - Este rapaz não tem estômago de
caçador.
Nessa noite, Marita cozinhou o veado que Dioni e Joaquín tinham levado para casa e
serviu-o com arroz e batatas fritas. Luis Felipe, Sixto, Marita, Dioni e Joaquín sentaram-se
a comer à luz das velas.
- Esta carne parece frango, que delícia - disse Sixto, mastigando um bocado de veado.
- Desfaz-se, é tenrinha, sem nervos - disse Luis Felipe.
Joaquín olhou para o prato. Tinha nojo de comer o veado.
- Come, Joaquín - disse Luis Felipe.
- Não tenho fome, papá - disse Joaquín.
Todos continuaram a comer, menos Joaquín, que não provou o veado.
- Eu como o prato de Joaquín, se quiser, patrão - propôs Dioni, quando acabou de comer.
- Não, obrigado, Dionisito - disse Luis Felipe. - Joaquín vai comer o que tem no prato,
mesmo que não queira.
- Come, miúdo - disse Marita a Joaquín. - A carne de veado é muito rica em proteínas.
Joaquín sorriu e baixou os olhos.
- Não lhe sirvas a sobremesa enquanto não acabar o veado, Marita -
disse Luis Felipe.
Quando acabou de comer, Marita pôs-se de pé, levantou os pratos, foi para a cozinha e
serviu as sobremesas e o café. Todos comeram a sobremesa, menos Joaquín, que
continuou a não provar o veado que tinha na sua frente.
Não te vais deitar enquanto não acabares de comer - disse Luis Felipe ao filho,
olhando-o com severidade.
Pouco depois, levantaram-se todos da mesa. Joaquín ficou sentado.
-
Muito esquisito saiu o seu miúdo, Sr. Camino - disse Sixto.
É a má educação que a mãe lhe dá, Sixto - disse Luis Felipe, enquanto se dirigia
para o terraço. - A idiota da minha mulher habituou-o a comer franguinho com batatas de
El Rancho. Tudo o resto faz nojo a este vadio preguiçoso.
Sixto e Luis Felipe sentaram-se a tomar uma bebida no terraço. Marita foi para a cozinha
lavar a loiça. Dioni ficou ao lado de Joaquín.
-
Que tens? - perguntou-lhe em voz baixa. - Por que não comes?
-
Não consigo - disse Joaquín. - Faz-me nojo. Ainda me lembro das tripas.
-
Come, senhor. Está muito bom.
-
Pobre veado. Não deveríamos tê-lo matado, Dioni. Deus vai castigar-nos.
Dioni olhou para o pai e para Luis Felipe, certificou-se de que não o estavam a ver e
começou a comer o veado que tinham servido a Joaquín.
-
Obrigado, Dioni - sussurrou Joaquín.
-
às suas ordens, patrãozinho - disse Dioni, que não tardou a acabar com o veado.
A seguir, pôs-se de pé e foi para o terraço.
-
Ali o Joaquín já acabou de comer - disse, sorrindo.
Luis Felipe não acreditou nele.
Porra, saiste-me cá um espertalhão - disse-lhe, a rir. - Que estômago que tens.
Vem cá tomar um copo connosco.
Dioni aproximou-se de Luis Felipe. Joaquín levantou-se da mesa e foi para o quarto. Assim
que entrou, fechou a porta à chave, foi para a casa de banho e sentou-se na retrete a ler
Caminho. Estava arrependido de ter ido a El Aguerrido.
Joaquín estava a dormir, quando alguém o acordou bruscamente.
Arranje um lugarzinho para mim, jovem - ouviu; e sentiu que alguém o acariciava
na cabeça.
Joaquín assustou-se. Estava uma mulher sentada na sua cama. Era Marita. O quarto
estava às escuras.
-
Que fazes aqui, Marita? - perguntou em voz baixa.
-
Foi o seu pai que me mandou - disse ela.
Marita vestia um fato de treino. Sorria.
-
Mandou o quê? - perguntou Joaquín.
-
Mandou-me tratar de si, jovem - disse ela. E continuou a acariciar-lhe a cabeça.
A seguir, tirou a parte de cima do fato de treino. Não usava soutien. Tinha uns seios
pequenos e firmes.
-
Estou aqui para o servir, jovem - sussurrou, e beijou-o na testa.
Joaquín sentou-se na cama.
-
Não, não te preocupes, Marita - disse.
Eu cumpro as ordens do patrão Luis Felipe - disse ela, e tirou as calças do fato de
treino.
-
Não, não as tires - disse Joaquín. - O melhor é ficares vestida.
-
Como quiser, jovem - disse Marita, e voltou a pôr as calças.
Ficaram calados.
-
Que mais te disse o meu pai? - perguntou ele.
-
Que trate de si - disse ela. - Já lho disse antes. Queres que te chupe a tua coisa?
- Não, obrigado, Marita. O meu pai pagou-te?
- Claro, jovem. É muito generoso o patrão Luis Felipe.
- Deu-te dinheiro para te meteres na minha cama?
- Isso mesmo. Disse que precisas de montar umas tipas, para te fazeres um homem a
valer.
Joaquín ficou calado. Marita deu-lhe a mão e fez-lhe festas.
-
Ele paga-te para dormires comigo? - perguntou Joaquín.
-
O patrão é muito generoso - tornou ela. - Sabe recompensar uma pessoa.
-
E tu gostas?
-
Estou cá para obedecer ao patrão.
Joaquín saiu da cama.
-
Veste-te Marita - disse.
Não quer aliviar-se comigo? - perguntou ela, surpreendida. - Eu trato de si como
deve ser. Faço o que mandar, jovem.
-
Não, obrigado - disse Joaquín.
-
Mas o que é que o patrão vai dizer? Já me pagou. Vai chatear-se comigo.
- Não lhe digas a verdade. Conta-lhe que trataste de mim como deve ser. Eu digo-lhe o
mesmo, está bem?
Marita baixou os olhos, decepcionada.
-
Deixa que te faça só uma mamada, só para o patrão não ficar irritado - disse.
-
Não, Marita, é melhor não.
Em seguida, pegou nas calças e tirou a carteira.
- Vou dar-te uma gorjeta para me ajudares, combinado?
Retirou uma nota e deu-a a Marita.
- Diz ao meu pai que tudo correu bem - disse. - Por favor, Marita, sê boa pessoa,
ajuda-me.
Ela guardou a nota.
- Obrigada, jovem - disse.
Depois, acabou de se vestir e saiu.
Na manhã seguinte, quando Joaquín saiu do quarto, Luis Felipe estava a tomar o
pequeno-almoço no terraço.
-
Que tal dormiste esta noite? - perguntou.
-
Ultra bem, papá - disse Joaquín, esboçando um sorriso forçado.
-
Recebeste a minha surpresa? - perguntou Luis Felipe com um sorriso malicioso.
- Sim, mil vezes obrigado - disse Joaquín, sem o olhar nos olhos.
Luis Felipe soltou uma gargalhada.
A mestiça já me contou que lhe mandaste um grande pirafo - disse, baixando a
voz. - Assim, caladinho e tímido, saiste-me um bom coelhinho.
-
Pois foi - disse Joaquín.
Senta-te, rapaz - disse Luis Felipe. - A mestiça já te traz o teu pequeno-almoço.
Deves estar com uma fome de cão, porque as quecas abrem o apetite.
Joaquín sentou-se ao lado do pai.
É importante que saibas de mulheres, filho - continuou Luis Felipe. - E, por isso,
vou dar-te um conselho para a vida inteira. Há dois tipos de mulheres: umas, com as quais
casas, e outras, com quem te divertes. Lembra-te sempre disto.
- Obrigado, papá - disse Joaquín.
Nessa manhã, Dioni e Joaquín foram caçar juntos e Joaquín disse que não queria caçar
mais veados. Então Dioni sugeriu que caçassem pombos e Joaquín achou que era uma boa
ideia. Foram até um riacho, desmontaram das mulas e deitaram-se no pasto.
Temos de ficar caladinhos e esperar que os pombos passem por aqui para beber
água - disse Dioni.
- Demoram muito? - perguntou Joaquín.
-
Não - respondeu Dioni. - Ao meio-dia aparecem sempre.
Continuaram a esperar em silêncio.
- Vou fazer uma mijinha - disse Dioni.
Em seguida, pôs-se de pé, parou em frente de um arbusto e abriu a braguilha.
-
Eu também - disse Joaquín.
Parou ao lado dele, abriu a braguilha e olhou para o sexo de Dioni.
-
A tua pila é diferente da minha - disse-lhe, enquanto urinavam.
-
Porquê? - perguntou Dioni, surpreendido.
-
Porque da minha vê-se a cabecinha e da tua, não - explicou Joaquín.
Dioni olhou para o sexo de Joaquín.
- Tens razão - disse, sorrindo.
Quando acabaram de urinar, fecharam as braguilhas e deitaram-se no pasto.
-
Mostra-me outra vez a tua pila - pediu Joaquín, pouco depois.
-
Para quê? - perguntou Dioni.
-
Só para ver.
Dioni desabotoou-se e puxou as calças para baixo.
-
Posso tocar-lhe? - perguntou Joaquín.
-
Não - disse Dioni. - Os homens não se tocam.
Joaquín tirou uma nota enrugada do bolso.
- Eu pago-te - disse.
Dioni guardou a nota.
-
Está bem - disse.
Joaquín acariciou o sexo de Dioni, que se ergueu.
-
Ora aqui está a cabecinha - disse Joaquín. - Estava escondida.
-
Está bem, mas não me toques tanto - disse Dioni, ruborizando- se.
-
Não gostas?
-
Os homens não se tocam.
Joaquín puxou as calças para baixo e pôs-se de costas para ele.
-
Enfia-ma - disse-lhe.
Dioni puxou as calças para cima e pôs-se de pé.
- Não - disse. - É melhor irmos para casa.
- Eu dou-te mais dinheiro, Dioni - insistiu Joaquín. Dioni subiu para a mula.
-
Vamos regressando a casa - disse.
Essa tarde, depois do almoço, Luis Felipe disse a Joaquín que queria falar a sós com ele.
Entraram os dois para o quarto de Luis Felipe.
-
Fecha a porta - disse Luis Felipe, lançando um olhar irado ao filho.
Joaquín fechou a porta. Cada vez que o pai o olhava daquela maneira, como se o odiasse,
as pernas tremiam-lhe.
Dioni contou ao velho Sixto que esta manhã lhe fizeste uma mariquice - disse Luis
Felipe.
Joaquín baixou os olhos e ficou calado.
- É verdade que lhe tocaste na piça? - perguntou Luis Felipe, erguendo a voz.
Joaquín não respondeu.
-
É verdade? - insistiu Luis Felipe.
Não aconteceu nada, papá - disse Joaquín, sem olhar para o pai. - Dioni é um
mentiroso.
Não acredito em ti. Dioni é incapaz de inventar uma coisa daquelas. Porra, que
vergonha me fizeste passar com Sixto.
-
Arregaçámos o palhacinho juntos. Foi só isso.
-
Tocaste-lhe na piça? Sim ou não?
Joaquín não respondeu. O pai pregou-lhe um par de bofetões.
A culpa é minha, que vim caçar com um maricas - disse Luis Felipe. - Tu deverias
estar com a mamã, a brincar com as bonecas, porra. Agora vá para o seu quarto e não saia
de lá enquanto eu não disser.
No dia seguinte, Luis Felipe e Joaquín foram caçar juntos. Era a última manhã que iam
passar em El Aguerrido. Avançavam lentamente quando Luis Felipe parou a mula.
Olha para aquele esquilito - disse, apontando para os ramos de uma árvore. Parece um gato, porra.
-
Onde está? - perguntou Joaquín.
-
Ali, em cima da árvore, naquele ramo - disse Luis Felipe.
-
Já o vi - disse Joaquín. - É enorme.
-
Abate-o. Vamos lá ver se tens boa pontaria.
-
Não vou conseguir, papá. Está muito lá em cima.
Nessa manhã, tinham saído sem guias. Cada um estava escarranchado numa mula.
-
Atira, homem - insistiu Luis Felipe.
-
A mamã diz que é pecado mortal matar animais - disse Joaquín.
-
Velha idiota - disse Luis Felipe. - Não acredites em beatices.
Joaquín puxou da carabina e fez pontaria ao esquilo.
-
Se calhar é mãe e tem filhotes - disse.
-
Dispara - disse Luis Felipe. - Depois perguntamos-lhe.
Joaquín disparou. O esquilo chiou e caiu no solo.
-
Boa, porra - gritou Luis Felipe, a sorrir. - Vê-se bem que és meu filho.
Desmontaram e deram com o esquilo morto.
Esquilito, o meu filho quer saber se deixas orfãozinhos - disse Luis Felipe; e soltou
uma gargalhada.
Um pouco antes de a noite cair, Luis Felipe e Joaquín meteram as malas no carro e
despediram-se de Xisto, Marita e Dioni. Nos três dias que haviam passado em el
Aguerrido, Luis Felipe não avistara um único veado. Apenas matara uns quantos pombos.
-
Foi um prazer tê-lo cá de volta em El Aguerrido, Sr. Camino - disse Sixto.
- O prazer foi meu - disse Luis Felipe. E abraçou Sixto.
-
Quem diria que Joaquín ia ser o único a caçar um veado? - disse Sixto, sorrindo.
- Veado e esquilo - disse Luis Felipe.
Joaquín estendeu a mão a Sixto.
-
Muito obrigado, Sr. Sixto - disse.
-
Prazer em conhecer-te, rapaz - disse Sixto. - Volta em breve.
Então Joaquín estendeu a mão a Dioni.
-
Se lutarmos outra vez, aposto que te ganho - disse-lhe.
Dioni e Joaquín não se falavam desde o incidente no riacho.
-
Já te limpo o sebo - disse Dioni, muito seguro de si.
-
Ah, porra, desta vez é que é - disse Luis Felipe, entusiasmado.
-
Joaquín quer a desforra - disse Sixto.
-
Quem começa? - perguntou Luis Felipe.
Em seguida, abriu a carteira e retirou uma nota.
-
O vencedor recebe 1000 soles - disse.
-
A sério que querem lutar? - perguntou Sixto, surpreendido.
-
É - disse Joaquín.
-
Estou preparado - disse Dioni, esfregando as mãos com terra.
-
Vá, então vou contar até três - disse Luis Felipe.
Então, antes que o pai acabasse de contar, Joaquín aproximou-se rapidamente de Dioni,
deu-lhe um pontapé nos testículos e derrubou-o. A seguir, enterrou-lhe um joelho no
estômago e deu-lhe um murro na cara.
-
Isto é para não seres maricas - disse-lhe.
-
Boa, Joaquín, apanhaste-o desprevenido - gritou Luis Felipe.
-
Porra, que saiu cá um vivaço este meu puto.
Depois, Dioni e Joaquín separaram-se. Dioni levou uma mão ao nariz; estava a sangrar.
Luis Felipe deu a nota a Joaquín, que olhou para Dioni e sorriu.
"Já estamos quites, meu filho da puta", pensou.
- Merda - disse Luis Felipe.
Travou violentamente e tentou desviar o carro, mas não conseguiu deixar de o atropelar.
Ouviu-se um impacte forte. O tipo voou e caiu, estatelado, na estrada.
-
Filho da puta, mestiço de merda - disse Luis Felipe, e acelerou.
Joaquín voltou-se para trás, assustado. Não conseguiu ver o homem que acabavam de
atropelar. Estava demasiado escuro.
-
É melhor pararmos, papá - disse.
Estás parvo ou quê? - retrucou Luis Felipe. - Não vou apanhar aquele mestiço
bêbedo. Além disso, já deve estar morto. Teríamos de o levar a uma clínica e a família dele
havia de nos lixar. Tentariam arrancar-me dinheiro, os atrevidos. Que o parvalhão do
mestiço se lixe. É para não ser imbecil.
Luis Felipe acendeu os máximos e acelerou o mais que pôde. O carro corria a cento
quarenta, cento e cinquenta quilómetros por hora.
-
Achas que já morreu? - perguntou Joaquín.
-
Acho. Bati-lhe em cheio - disse Luis Felipe. - Aquele mestiço está mortinho da silva.
A seguir, acendeu um cigarro, inspirou o fumo e expeliu-o.
A vida é assim - disse, sorrindo. - Não cacei nada em El Aguerrido, mas, no
regresso, dei cabo de um mestiço. Sempre é alguma coisa.
Era noite. Luis Felipe conduzia a cento e vinte à hora pela estrada de regresso a Lima.
Joaquín estava meio a dormir.
-
Falta aí quanto para chegarmos a Lima? - perguntou.
-
Quatro ou cinco horas - disse Luis Felipe. - Estamos a sair de Chimbote.
-
Cheira mal como a peste - disse Joaquín.
É da farinha de peixe - disse Luis Felipe. - Toda a cidade de Chimbote cheira mal
como o caraças.
De repente, apareceu um homem na estrada. Tinha a camisa aberta. Parecia embriagado.
Na manhã seguinte, a família Camino chegou tarde à missa das oito na paróquia de
Chaclacayo. Como de costume, Luis Felipe entrou na igreja com uma pistola debaixo do
cinto e ficou na última fila. Com o rosto coberto por um véu, Maricucha levou Joaquín e
Fernando para um banco perto do altar (Ximena, a irmã mais velha, estava interna num
colégio de freiras alemãs). Joaquín não se atreveu a rezar. Sentia-se sujo, envergonhado.
Quando Maricucha e Fernando cantaram, permaneceu em silêncio. No momento da
comunhão, ficou sentado no banco. Para surpresa sua, Fernando, que comungava todos
os domingos, também não foi comungar. Surpreendida, Maricucha olhou para Fernando e
disse-lhe ao ouvido:
- Em casa quero falar contigo.
A FUGA
Todas as noites, antes de se deitar, Joaquín e Fernando, seu irmão mais novo, rezavam
três pai-nossos e três ave-marias ajoelhados aos pés do beliche onde dormiam. Depois,
benziam-se e apagavam a luz. Quase sempre, Fernando adormecia primeiro. Joaquín
costumava ficar acordado, observando-o. Gostava de espiar os seus movimentos, de ouvir
a sua respiração, de imaginar os seus sonhos. Agradava-lhe pensar que Fernando sonhava
com ele. Uma noite de Verão, Joaquín desceu do beliche e meteu-se na cama do irmão.
Fernando balbuciou algo incompreensível e continuou a dormir. Joaquín fechou os olhos e
acariciou o sexo do irmão, que continuou com os olhos fechados, respirando
profundamente, enquanto Joaquín lhe tocava suavemente. De repente, Joaquín abriu os
olhos, viu o quadro da Virgem na parede e assustou-se: pareceu-lhe que a Virgem o estava
a olhar nos olhos. Então, deu um beijo na cara do irmão e subiu para a sua cama. Não
conseguiu dormir. Rezou três mistérios do terço, pedindo à Virgem que lhe perdoasse.
Nessa manhã, enquanto Joaquín lavava a loiça do pequeno-almoço, Maricucha levou
Fernando para o quarto. Uns minutos mais tarde, chamou Joaquín aos gritos. Este correu
para o quarto da mãe, com as mãos molhadas. Maricucha esperava-o à porta. Sentado na
cama dos pais, Fernando chorava. Vestia uns calções curtos e um pólo dos Miaini
Dolphins.
- Nojento - gritou Maricucha, e deu uma bofetada a Joaquín. Joaquín correu para o quarto,
fechou-se na casa de banho e olhou-se ao espelho. A cara ardia-lhe de vergonha. Pouco
depois, sentiu que alguém entrara no quarto e fechara a porta. Saiu imediatamente da
casa de banho. Viu na sua frente o pai, que tinha um chicote na mão.
- Puxa as calças para baixo, miúdo de um raio - gritou Luis Felipe.
Joaquín obedeceu-lhe. Voltou-se de costas para o pai e contou as vinte chicotadas que
este lhe deu no rabo.
- Um filho maricas - murmurou Luis Felipe, fazendo um gesto de desprezo. - Porra,
preferia que tivesse sido mongolóide!
Nesse domingo, Luis Felipe e Maricucha não chamaram Joaquín para o almoço. Enquanto
os pais estavam na sala de jantar, Joaquín entrou no quarto da mãe, abriu a gaveta onde
ela guardava as jóias e retirou o colar que lhe pareceu mais valioso. Sem perder tempo,
voltou para o quarto e meteu numa mala alguma roupa, um rádio a pilhas e uma pistola
de alarme que o pai lhe oferecera. Em seguida, escondeu a jóia entre a roupa, fechou a
mala e saiu às escondidas pela cozinha sem que Irma e Meche, as empregadas da casa, o
vissem. Então, correu o mais depressa que pôde até à paragem da camioneta. O sol de
Chaclacayo queimava. Ao chegar à estrada, olhou para o rio seco, respirou
profundamente e sentiu-se mais leve. Pouco depois, apanhou uma camioneta com
destino a Lima. Aturdido pelo calor, o barulho e as pessoas, adormeceu. Teve um sonho.
Era um sonho que tinha com frequência.
Estava à beira da piscina da casa dos pais.
-
Vá, dá um mergulho de cabeça - disse-lhe o pai.
-
Não, papá, é melhor não - disse ele.
De cabeça, porra, e nada de mariquices, que temos convidados - disse
lançando-lhe um olhar desagradável.
o
pai,
Ele sabia que não ia conseguir mergulhar de cabeça. Saltou para a água e deu um enorme
chapão. Doeu-lhe a barriga. Ao sair da piscina, ouviu os risos abafados dos convidados.
-
Pareces uma senhora grávida - disse-lhe o pai.
Joaquín acordou a suar e com sede. Desceu no parque universitário. Caminhou sem
destino entre loucos, ladrõezecos, putas e mendigos.
Umas horas depois, cansado de dar voltas pelo centro de Lima, Joaquín propôs-se vender
a jóia que roubara à mãe. Andando pelo bairro Quilca, viu um letreiro que dizia: compro
ouro, prata, dólares. Sem pensar duas vezes, subiu umas escadas e tocou à campainha.
Um homem abriu a porta.
-
Quem é? - perguntou. - Em que posso servi-lo, amigo?
Era um tipo baixo, moreno e barrigudo.
-
Gostaria de vender um colar de ouro - disse Joaquín.
O tipo virou-lhe as costas.
-
Ouve, sócio, vem cá atender a clientela - gritou.
Um tipo magro aproximou-se da porta.
Entra, rapaz, entra - disse, sorrindo. - Aqui pagamos os melhores preços do
mercado.
O tipo barrigudo puxou uma cadeira.
Senta-te, por favor - disse a Joaquín. - É a única coisa que te podemos oferecer acrescentou. E soltou uma gargalhada.
O mais magro fechou a porta, sentou-se a uma secretária e retirou uma balança.
-
Aqui faz-se tudo legalmente - disse.
-
Então mostra lá o que aí tens - disse o gordo.
Joaquín apresentou a jóia.
Um, isto parece fantasia - disse o mais magro, abanando a cabeça, como se
estivesse decepcionado.
-
Não creio - disse Joaquín.
-
Ora deixa-me cá ver - disse o magro.
Joaquín deu-lhe a jóia. O tipo pô-la numa balança e retirou uma calculadora.
- Posso dar-te no máximo 500 soles por este colarzeco - disse. E mordeu um palito de
fósforo.
- Mas isso não é nada - disse Joaquín.
- É o preço justo, juro pela minha santa mãezinha que está no céu -
disse o tipo.
- Por esse preço, nem pensar; prefiro levá-la - disse Joaquín.
- Ninguém te vai dar mais do que isso, rapaz, não te faças esquisito - disse o gordo,
levantando a voz.
O magro abriu uma gaveta, tirou de lá uma pistola e pô-la sobre a mesa.
O que te convém é vendê-lo por 500 soles e continuamos a ser amigos, rapaz disse, com um sorriso forçado. - Afinal de contas, gamaste-o, não foi? Se não, mostra-me a
factura.
-
Não tenho factura - disse Joaquín.
-
Como é que havias de ter, se o gamaste - disse o gordo.
- Toma os teus 500 soles e põe-te a andar - disse o mais magro. - E mete a primeira, antes
que te levemos à esquadra pelo gamanço.
Joaquín guardou a nota e pegou na mala.
- De qualquer maneira, obrigado - disse.
Ao descer a escada, ouviu os dois a rirem à gargalhada.
Sem saber para onde ir, Joaquín comprou uma entrada no cinema Colón. Exibiam ali O
Último Tango em Paris, um filme para maiores de vinte e um anos. Joaquín ainda só tinha
quinze. Por isso, o porteiro do cinema impediu-o de entrar. Joaquín pediu-lhe que o
deixasse passar.
- Traz-me um Jubileu e deixo-te passar, miúdo - disse-lhe o porteiro em voz baixa.
Joaquín comprou o chocolate, deu-o ao porteiro, entrou no cinema e foi para o segundo
balcão. Havia poucos lugares vazios. Sentou-se na última fila, perto das casas de banho.
Tresandava. As luzes estavam acesas. Todos os espectadores eram homens. Quase todos
estavam sozinhos. Muitos escondiam-se atrás de um jornal da tarde. Um tipo ouvia um
desafio de futebol num rádio portátil. Quando a sessão começou, o tipo deixou o rádio
aceso. Ninguém protestou. Uns minutos mais tarde, o locutor da rádio gritou um golo.
Houve alguns aplausos no segundo balcão. Joaquín sorriu e continuou a ver o filme. Pouco
depois teve vontade de se masturbar. Então, foi à casa de banho, abriu a braguilha e
pensou no seu primo Raul. Raul era moreno, dizia palavrões e cuspia constantemente.
Fechou os olhos e recordou uma tarde em casa de Raul.
Estavam sentados no tapete, a ver televisão. A empregada trouxe-lhes um tabuleiro com
bolachas, leite e bananas. Deixou o tabuleiro na alcatifa e foi-se embora.
- Dou-te a minha banana - disse Raul.
- Está bem - disse Joaquín.
Raul abriu a braguilha e mostrou o sexo a Joaquín.
- Toma, come-a - disse-lhe.
Joaquín olhou para o sexo do primo.
- Como gostas dela, priminho - disse Raul, sorrindo. - Toca-lhe.
Joaquín teve vontade de lhe tocar, mas não fez nada.
- És tão paneleiro que nem sequer te atreves a ser paneleiro - disse Raul, e fechou a
braguilha.
- Incêndio, porra! - gritou alguém na plateia do Colón.
Joaquín saiu da casa de banho e viu que uma cortina ao lado do ecrã se tinha incendiado.
As luzes acenderam-se. O público correu para as saídas de emergência. O filme não foi
interrompido. Enquanto os espectadores procuravam sair a todo o custo, Brando e
Schneider faziam amor no ecrá, em parte já coberto pelo fumo. Entre cotoveladas e
empurrões, Joaquín desceu umas escadas e saiu para a rua.
- Queimaram-se por serem punheteiros, queimaram-se por serem punheteiros - gritavam
uns rapazes, rindo-se das pessoas que saiam a toda a pressa do Colón.
Dois policias de turismo tentavam impor a ordem em frente do cinema. Ao longe, ouvia-se
uma sirene. Joaquín correu e subiu para um autocarro com destino a Miraflores.
Sentou-se, ofegante, na última fila.
- Hoje não é dia de pagamento - disse uma mulher que estava sentada à frente dele.
Fechou a braguilha dissimuladamente.
Ao chegar a Miraflores, Joaquín reparou que tinha fome. Enquanto percorria a Avenida
Larco, procurou nos bolsos e viu que o pouco dinheiro que lhe restava não era suficiente
para comprar um hamburger ou uma sanduíche mista. Então, lembrou-se de que tinha
uma pistola de alarme na mala. Disposto a usar o revólver para obter algum dinheiro,
procurou uma rua sossegada. Deu várias voltas antes de escolher a Rua San Martín. Andou
dois ou três quarteirões, afastando-se da Avenida Larco. Retirou o revólver da mala,
escondeu-o num dos bolsos e parou numa esquina, à espera de uma oportunidade
propícia. Esperou uns minutos, que lhe pareceram longuissimos, até que viu uma mulher a
andar sozinha no passeio em frente. Atravessou a via, aproximou-se e parou em frente
dela, impedindo-a de avançar.
- A sua mala, minha senhora - disse-lhe com uma voz trémula. -
Dê-me a sua mala.
Ela olhou Joaquín nos olhos. Era uma mulher bastante idosa. Tinha o cabelo branco e a
cara coberta de rugas. Podia ter setenta anos ou mais.
- Dê-me a sua mala - insistiu ele. - Tenho uma pistola.
Então, puxou do revólver e apontou-o à mulher.
- Dê-ma ou disparo - disse-lhe.
Ela olhou-o, aterrada. Ele puxou-lhe a mala, mas ela ofereceu resistência.
- Ladrão! Ladrão! - gritou a mulher.
- Cala-te, sua velha de merda - disse ele, e disparou duas vezes.
Ela levou as mãos ao peito e encostou-se à parede.
- Mataram-me - gritou ela, chamando a atenção de uns transeuntes.
Joaquín correu a toda a velocidade, sem olhar para trás. Correu dez, vinte quarteirões.
Extenuado, sentou-se no muro e riu à gargalhada, a lembrar-se da cara da mulher quando
disparara.
Quando anoiteceu, Joaquín decidiu ficar a dormir no Parque Kennedy. Já era tarde e não
tinha dinheiro para alugar um quarto. Umas horas antes, os vendedores ambulantes
tinham-se ido embora do parque, deixando-o cheio de lixo. Deitado na relva, Joaquín ficou
a olhar para a lua cheia e lembrou-se do que a mãe lhe costumava dizer em noites como
aquela:
"Ali estão a Virgem e o Menino, vejo-os lindamente". Estava a tentar dormir quando
sentiu que algo se mexia perto dele.
Era uma ratazana. Estava aí a um metro da sua cara. Quis desatar a correr, mas não
conseguiu mexer-se. A ratazana aproximou-se um pouco mais. Juntou saliva e cuspiu-lhe.
A ratazana fugiu a chiar, alarmando muitas outras ratazanas que se haviam apoderado do
Parque Kennedy.
Documentos, jovem - disse um policia, iluminando-o na cara. Joaquín acordou
bruscamente. Estava deitado num banco do Parque Kennedy. Conseguira dormir um
bocado. - Documentos - repetiu o policia.
-
Não tenho, senhor guarda - disse Joaquín, pondo-se de pé.
-
Como é que não tem? - perguntou o policia levantando a voz.
- Documentos ou prendo-o agora mesmo, por estar indocumentado e suspeita de
terrorismo, porra.
Roubaram-me a carteira, senhor guarda - disse Joaquín. - Não tenho nenhum
documento comigo.
- E o que faz aqui deitado a estas horas da madrugada? - perguntou o policia. - Por que
não vai para casa?
Era um homem baixo, barrigudo, de bigode. Usava um uniforme verde-escuro. Estava a
fumar.
Saí tarde de uma festa e não há autocarros para minha casa, senhor guarda - disse
Joaquín. - Vivo em Chaclacayo.
-
Esteve a ingerir bebidas alcoólicas?
-
Não, senhor guarda. Eu não bebo.
-
Vamos lá ver se é verdade. Sopre-me para a cara.
-
Para a cara?
-
Efectivamente. Vou fazer-lhe uma dosagem etílica instantânea.
Joaquín aproximou-se do polícia e soprou.
-
Com mais força - disse o polícia. - Precisa de um fole ou quê?
Joaquín soprou com mais força.
-
Porra, que tosga - disse o polícia.
-
Mentira, senhor guarda, não bebi nada - protestou Joaquín.
Se calhar a boca também cheira mal, rapaz - disse o policia com um sorriso
trocista. - Andas ao ataque?
-
Que é isso?
Não me chateie, que o meto dentro por falta de respeito à autoridade - disse o
polícia, levando as mãos à cintura. -Trabalha no parque?
-
Não, senhor guarda. Sou estudante.
-
Que estuda? Ciências ocultas?
Riram-se.
-
Não - disse Joaquín. - Ando no colégio.
Que colégio? - perguntou o policia. - E fale como um homem, porra, não me fale
com essa voz esganiçada.
-
Ando no Markham, senhor guarda. Mas agora estamos de férias, porque é Verão.
-
Porra! Tens guita? Em que trabalha o senhor seu pai?
-
Num banco, senhor guarda.
-
Gaita! Tem milho o teu velho?
-
Bem, mais ou menos.
-
Tem um cartão do seu pai?
-
Agora não tenho, senhor guarda, mas posso consegui-lo.
-
Em que banco trabalha?
-
No Continental.
Bem, estamos a começar a entender-nos, jovem. Por acaso estou a precisar de um
empréstimo de uma entidade bancária para me financiar um terreno em Las Lomas de
Pachacamac. O sonho de ter casa própria, sabe, jovem...
-
Compreendo, senhor guarda. Se calhar, o meu pai pode facilitar-lhe o empréstimo.
O polícia retirou um bloco e uma lapizeira do bolso.
-
Nome, direcção e telefone do seu pai - disse. - Cante.
Joaquín deu-lhe os dados do pai. O policia escreveu-os no bloco. Em seguida, escreveu o
seu nome e telefone noutro papel, que arrancou e entregou a Joaquín.
Vamos lá ver se tem uma conversinha com o seu pai - disse-lhe. - Se não, vou ter
de o prender por estar indocumentado. Joaquín leu o papel: cabo Eudocio Rabanal.
Não se preocupe, senhor guarda - disse. - Amanhã mesmo falo com o meu pai.
Tratamos logo disto como amigos.
- Agora onde é que vai dormir? - perguntou o policia.
- Não sei - respondeu Joaquín.
- Por que não vamos até à esquadra e o deixo dormir no quarto dos hóspedes?
- Mas não me está a prender, pois não?
- Pelo contrário. Estou a convidá-lo para a esquadra, para que não passe a noite à
intempérie, jovem. Além disso, o parque está cheio de maus elementos, fique sabendo.
Andam muitos maricas às voltas por aqui. A qualquer momento levam-no e comem-no.
Riram-se.
- Vamos para o carro-patrulha - disse o cabo Rabanal.
- Obrigado, senhor guarda - disse Joaquín.
Atravessaram o parque e subiram para o carro-patrulha. Era um carro velho, com alguns
riscos e amolgadelas. Rabanal tentou ligar o carro. Não conseguiu. O motor fazia um
barulho metálico cada vez que Rabanal tentava pô-lo a trabalhar.
- Filho de uma grande puta - disse Rabanal. - Este carro-patrulha é uma sucata de merda.
Joaquín riu-se. Pouco depois, Rabanal conseguiu ligar o carro. Conduziu lentamente pela
Avenida Larco. Todas as lojas estavam fechadas.
- Chamo a Águia Negra, chamo a Águia Negra - ouviu-se uma voz no rádio do carro. - Aqui
Pantera Branca. Câmbio.
Rabanal pegou no rádio.
- Aqui Águia Negra - disse, numa voz rouca. - Quem é Pantera Branca? Câmbio.
Ouviu-se uma gargalhada no rádio.
- Ouve, gordo maricas, já te esqueceste dos nomes de código? - disse a voz.
- Não me lixes com o código, porra - disse Rabanal. - Quem és tu? Elmer, não é?
- Não, sou a tua velha - disse a voz.
Riram-se.
- Onde andam, meu imbecil? - perguntou Rabanal.
- Aqui em baixo, na Costa Verde. Vens para cá? Não te faças rogado, gordo.
- Que andavam vocês a fazer, seus preguiçosos?
- Estamos em El Solitario a enfiar umas cervejinhas. A preta Judith fez-nos uns petiscos
muito bons. E estamos à tua espera para jogar fidbito de mão, Eudocio.
- Vou deixar um suspeito na esquadra e volto já, meu imbecil. Guarda-me alguma coisa,
ouviste?
- Despacha-te, gordo de um raio. Liga a sirene e conduz depressa, que os petiscos estão a
acabar.
Riram à gargalhada. Rabanal desligou o rádio e acelerou.
- Uns colegas em serviço - disse.
- Estou a ver - disse Joaquín.
Pouco depois, Rabanal desviou-se da Avenida Arequipa, atravessou Petit Thouars e parou
em frente da esquadra de Miraflores. Desceram do carro-patrulha. Entraram na esquadra.
Uns guardas jogavam cartas e bebiam aguardente. Rabanal perfilou-se e saudou o
comissário.
- Trago-lhe aqui um indocumentado, para que cá passe a noite - disse-lhe.
- Isto não é um hotel, Rabanal - disse o comissário.
- Conheço o pai do indocumentado - informou Rabanal. - Peço autorização para o
depositar no quarto de hóspedes até amanhã de manhã cedo.
- Leva-o lá e volta para a rua - disse o comissário sem desviar os olhos das cartas que tinha
na mão.
Rabanal levou Joaquín para um quarto da esquadra. Em seguida, abriu um cadeado e
mandou-o entrar num quarto escuro.
- Logo de manhã telefono ao teu velho - disse-lhe. - Ai de ti se me embarretaste, pois
procuro-te e meto-te dentro.
- Não se preocupe, senhor guarda - disse Joaquín. - Pode telefonar-lhe.
- Recomenda-me como deve ser, ouviste?
- Com certeza, senhor guarda.
- Obrigado, rapaz.
- Eu é que tenho de lhe agradecer, senhor guarda.
Rabanal fechou a porta e foi-se embora.
- Bem-vindo ao Sheraton - ouviu Joaquín, assim que Rabanal fechou a porta.
Assustou-se. Havia outra pessoa no quarto. Era um rapaz. Estava deitado no chão, sobre
uns bocados de cartão.
- Olá - disse Joaquín.
Sentou-se ao lado do rapaz. Observou-o. Era jovem, tão jovem como ele. Tinha o cabelo
comprido, os olhos rasgados e a pele morena.
- Que te aconteceu? - perguntou o rapaz.
- Fui apanhado a dormir no parque - disse Joaquín.
O rapaz sorriu e ficou calado.
- E tu, por que estás aqui? - perguntou Joaquín.
- Apanharam-me durante uma rusga - disse o rapaz. - Estes chuis de merda não me
deixam fazer os meus biscates em paz.
- Em que trabalhas?
- Ando aos cabritos.
- Que é isso?
O rapaz riu-se.
- Não sabes? - perguntou. - Trabalho no parque.
- Que fazes?
- Tenho os meus clientes. O melhor é explicar-te antes amanhã.
- Como te chamas?
- Pedro.
- Eu chamo-me Joaquín.
Deram um aperto de mão.
- Temos de ferrar o galho - disse Pedro. - Estou podre de sono.
Pedro e Joaquín deitaram-se no chão, virando as costas um ao outro.
De manhã, puseram-nos a andar da esquadra. Estava um maravilhoso dia de Verão. Pedro
sugeriu que fossem para o seu quarto, na Barranco, e Joaquín disse que lhe parecia uma
ideia excelente, pois não tinha para onde ir. Tomaram um táxi e foram para o quarto de
Pedro. Ao chegarem, Pedro pagou a corrida. Desceram do táxi. Entraram no quarto. Havia
um colchão no chão, uma aparelhagem de som, revistas velhas e um cartaz de Marley na
parede.
- É hora dos espinafres, Popeye - disse Pedro, exibindo um sorriso malicioso.
Em seguida, abriu o roupeiro e retirou um saquinho de marijuana. Joaquín sentou-se no
colchão. Pedro enrolou o charro e acendeu-o. Deu várias fumaças. Tossiu. Ofereceu o
charro a Joaquín.
- Fuma - disse.
- Não, obrigado - disse Joaquín.
Pedro não insistiu. Continuou a fumar. Quando acabou, pôs uma cassette de reggae e
deitou-se no colchão.
- Como as coisas mudam depois de um charrito - disse, sorrindo. - Já não consigo viver
sem os meus espinafres.
O quarto cheirava a marijuana. O cheiro agradou a Joaquín.
- Agora conta-me que porra fazias tu a dormir no parque - disse Pedro. - Querias que te
violassem ou quê?
Riram-se.
- Não - respondeu Joaquín. - Raspei-me de casa.
- Já somos dois - disse Pedro.
- Também fugiste?
- Eu saí de casa quando fiz catorze anos. Imagina tu.
- E agora quantos tens?
- Dezassete.
- E não voltaste para casa?
- Nunca. Só as bichonas é que voltam. O que é lixado é aprender a viver na rua, amigão.
- Porra, admiro-te. E como te sustentas?
- Faço uns biscates, andando aos cabritos, claro. Já te disse.
- Não sei que merda quer dizer essa coisa de andar aos cabritos, Pedro.
- Dos tipos que alinham no ataque como eu dizem que andam aos cabritos.
- E que fazes no parque? Qual é o negócio?
- É um negócio difícil. É preciso ter estômago. Quando é que tu fugiste?
- Ontem.
- Quer dizer que és um novato. Quer dizer que não sabes nada da rua.
- Não, mas posso aprender.
- Nem toda a gente aguenta a rua, amigão. Nem toda.
- Achas que posso fazer um biscate no teu negócio? podes ajudar-me a conseguir um
biscate, Pedro?
- Já alguma vez sacaste um cabrito - perguntou.
- O quê?
Pedro riu-se.
-
Não sabes o que é um cabrito? - perguntou.
-
Não - disse Joaquín.
-
Estás muito verde, amigão. Estás a zero.
-
Que é um cabrito? Ajuda-me a aprender. Vontade não me falta.
Um cabrito é um velho que gosta de levar no cu. Em Miraflores há-os à caça. à
noite, vão ao parque, pegam em ti e levam-te à Costa Verde e vais-lhe ao pacote e depois
dão-te uma nota das grandes e, por vezes, até se descaem com um relógio ou uns ténis.
Vê estes ténis que tenho?
Pedro mostrou-lhe os ténis que calçava. Eram brancos com riscas alaranjadas
fosforescentes.
-
São lindos - disse Joaquín.
Importados, novinhos em folha - disse Pedro. - Ofereceu-mos um dos meus
clientes.
-
E quanto arrecadas por mês?
Depende. Não é um negócio fixo. Há noites boas e noites más. Mas em média faço
aí uns 500 dólares mensais.
-
Porra, nada mau.
-
Ganho mais do que o meu velho, imagina tu - disse Pedro. E riu-se.
-
Em que trabalha o teu velho?
É funcionário público. Pagam-lhe uma merda de um salário. E passam o tempo a
fazer greve. Eu prefiro o meu biscate de andar aos cabritos, amigão. Ninguém me tira a
minha liberdade.
-
Claro, entendo.
-
E por que te piraste de casa? - perguntou Pedro. - Chateaste-te com os teus pais?
-
Chateei, os meus velhos são uns caretas. Não me deixam viver em paz.
-
Apanharam-te com droga?
-
Não, não foi nada disso. Mas já não os suporto.
Digo-te uma coisa, amigão, viver na rua é bué de lixado. Se quiseres, fica aqui no
meu quarto, enquanto não arranjas um buraco.
-
Excelente, Pedro. Mil vezes obrigado.
E agora vamos à padaria, que estou a morrer de fome. Esta erva deu-me uma fome
dos diabos.
-
Vamos. Mas eu não tenho um tusto.
-
Eu empresto-te. à noite, no parque, tu pagas-me.
-
Com que dinheiro?
- Vou ensinar-te a ganhar dinheiro, amigão - disse Pedro. Com esse cuzinho tens o futuro
assegurado.
Riram-se e saíram do quarto.
- Vamos fazer uns biscates - disse Pedro. - A noite ainda é uma criança.
Acabava de acordar de uma longa sesta. Joaquín estava a seu lado, a ver uma Careta
velha. Antes de sair, Pedro acendeu um charro e deu umas passas. Depois, sairam do
quarto e andaram alguns quarteirões, até à Avenida Grau. Apanharam um táxi. Foram
para Miraflores. Desceram no Parque Kennedy, que parecia uma feira. Passearam entre
fotógrafos à la minuta, ciganas, vendedores de gelados, pregadores, reformados, hippies e
engraxadores.
- Senta-te e vê como é o negócio - disse Pedro.
Joaquín sentou-se num banco. Pedro meteu uma pastilha elástica na boca, enfiou as mãos
nos bolsos e parou numa esquina a olhar para os carros que passavam ao lado do parque.
Quando algum condutor olhava para ele, Pedro sorria-lhe, fazia-lhe sinais, mordia os
lábios, tocava-se entre as pernas. Pouco depois, um carro parou a seu lado. Pedro
aproximou-se do carro, falou com o condutor e foi ter com Joaquín a correr.
- Vamos - disse-lhe. - Tu não fazes nada. Só olhas.
Antes de lhe responder, Joaquín já subira para o carro. O tipo que conduzia era um
homem de meia idade. Usava casaco e gravata. Olhou Joaquín pelo espelho.
- És novo aqui, não és? - perguntou-lhe.
- O meu colega anda a aprender - disse Pedro.
- Bem-vindo, rapaz - disse o tipo. - Como te chamas?
- Jorge - disse Joaquín.
- O melhor é chamares-te Coco - disse o tipo. - Tem mais pinta.
Joaquín sorriu e ficou calado. O tipo conduziu por um caminho empedrado em direcção à
praia. Depois de conduzir lentamente pela Costa Verde, parou em frente do mar e
desligou o carro. Já era de noite. Pedro piscou o olho a Joaquín. O tipo despiu o casaco e
tirou os óculos.
- Cada dia tenho mais rugas - disse, olhando-se no espelho. - Que horror, o stress
mata-me.
Em seguida, abraçou Pedro e beijou-o.
- Ai, como gosto de te chupar, Pedrito - disse.
Joaquín abriu a janela. A praia cheirava a cerveja, a preservativos.
-
Enfia-ma, Pedrito - pediu o tipo.
Pedro olhou para Joaquín, enquanto satisfazia o cliente. Enojado, Joaquín desceu do carro
e sentou-se na praia. O rumor do mar confundia-se com os arquejos dos amantes.
Com o dinheiro que ganharam essa noite, Pedro e Joaquín comeram uma pizza e beberam
um jarro de sangria, num restaurante da Avenida Diagonal. Assim que acabaram de comer
foram de táxi para o quarto de Pedro. Quando ali chegaram, Pedro tirou a roupa e fumou
marijuana. Joaquín sentia-se um pouco enjoado. Bebera muita sangria e não estava
habituado a beber. Tirou a roupa e deitou-se em cuecas ao lado de Pedro.
-
Obrigado, Pedro - disse-lhe e deu-lhe um beijo na cara. - És uma óptima pessoa.
Pedro afastou-se bruscamente dele.
-
Calma, amigão, não te confundas - disse. - Não sou lilas como tu.
Em seguida, virou-lhe as costas e adormeceu. Joaquín ficou acordado, a ouvir Pedro a
ressonar.
Vamos um bocado até à igreja - disse Pedro a Joaquín, no dia seguinte, quando
chegaram ao parque. - Ali está mais fresco.
Estava calor. Pedro e Joaquín estavam sentados num banco, a comer um gelado.
Puseram-se de pé, andaram devagar, como se estivessem cansados, e entraram na
paróquia de Miraflores. Não havia ninguém. Pedro deitou-se num banco e acendeu um
charro.
-
Não devias fumar aqui - disse Joaquín.
-
Porquê? - perguntou Pedro.
-
Porque supostamente é a casa de Deus.
Pedro soltou uma gargalhada que o eco devolveu.
-
A casa de Deus é a passarinha do gato - disse.
Uma mulher entrou na igreja e dirigiu-se ao confessionário. Com as mãos postas junto ao
peito, ajoelhou-se, disse as suas faltas e foi-se embora devagar. Então, aproveitando o
facto de Pedro parecer estar adormecido, Joaquín aproximou-se do confessionário e
pôs-se de joelhos.
-
Ave-Maria, puríssima - disse o sacerdote que estava atrás da rede.
-
Sem pecado concebida - disse Joaquín.
-
Diz lá, meu filho.
-
Padre, cometi um acto impuro.
-
Conta-me, meu filho.
Joaquín ficou calado durante uns segundos.
-
Não posso. Não sei como hei-de dizer.
-
Deixa-me ajudar-te, meu filho. Foi com uma mulher?
-
Não, padre.
Ofendeste o Senhor com os teus pensamentos? Pecaste quando estavas sozinho?
Tocaste-te onde não devias?
-
Sim, mas isso não foi o pior.
-
Conta-me, meu filho. Não tenhas vergonha. Estou aqui para te perdoar.
-
Foi com o meu irmão mais novo.
-
Caramba! Que aconteceu, meu filho?
-
Meti-me na cama dele, uma noite.
-
Houve toques?
-
Sim.
-
Sodomia?
Joaquín nunca ouvira aquela palavra.
-
Não - disse.
-
Voltarias a fazê-lo?
-
Não - disse Joaquín e sentiu que mentia.
O sacerdote disse umas palavras em latim.
Em penitência, reza dez ave-marias - disse em seguida. - Agora podes ir-te embora
e deixa em paz essa criatura, pelo amor de Deus.
Joaquín voltou para o banco onde Pedro estava deitado. Ajoelhou-Se. Fechou os olhos.
Tentou rezar as dez ave-marias, mas ficou a meio. Sentiu que estava a perder tempo.
Essa noite, no parque, Pedro subiu para o carro de um dos seus clientes e Joaquín pôs-se
no lugar dele. Procurando chamar a atenção de algum transeunte, imitou as poses de
Pedro, o seu olhar provocante, O seu Sorriso descarado, mas ninguém parou.
Quando estava quase a dar-se por vencido, um Volvo passou a seu lado, abrandou e
prosseguiu a marcha. Decepcionado, Joaquín sentou-se num banco. Para surpresa sua, o
Volvo regressou e desta vez parou. Joaquín pôs-se de pé e aproximou-se do carro. O
condutor abriu a janela, sorrindo. Era um tipo calvo. Ao vê-lo de perto, Joaquín
reconheceu-o imediatamente: era o seu tio Micky.
- Que surpresa - disse Micky com uma voz um pouco estridente. - Que fazes por aqui?
-
Nada, tio - disse Joaquín. - Ando a passar o tempo, nada mais.
- Como estão os teus pais? Há muito tempo que não os vejo.
- Suponho que estão bem.
Micky tinha um lenço de seda em volta do pescoço. Parecia um pouco nervoso.
-
Sobe, por favor - pediu. - Levo-te onde quiseres.
Joaquín subiu para o carro do tio. O Volvo cheirava a carro novo. Micky acelerou. Joaquín
sentiu-se num avião.
- Tens fome? - perguntou Micky.
- Imensa - respondeu Joaquín.
-
Que achas da ideia de comermos na Tiendecita Bíanca?
- Perfeito, tio. Onde quiseres.
Alguns quarteirões mais adiante, Micky parou o carro. Ainda um pouco nervosos pelo
encontro inesperado, Micky e Joaquín desceram e entraram na Tiendecita Bíanca. Micky
saudou um senador famoso pelo poder da sua eloquência. Abraçaram-se, comentaram os
últimos mexericos políticos e despediram-se entre sorrisos. Depois de fazer vénias a
Micky, um empregado levou-os para a mesa ao lado do pianista. Micky pediu espargos e
um copo de vinho branco e respondeu desdenhosamente ao cumprimento do pianista.
Joaquín pediu um hamburger com queijo e um milkshake de chocolate. Depois de tomar
nota do pedido, o empregado afastou-se arrastando os pés.
- Pode saber-se o que fazia no parque de Miraflores um jovem decente como você? perguntou Micky com um sorriso trocista.
-
Fugi de casa, tio - explicou Joaquín em voz baixa.
Micky soltou uma gargalhada um pouco estridente.
- E por que fizeste semelhante disparate? - perguntou, enquanto olhava para as unhas.
- Porque odeio os meus pais - disse Joaquín. - Estou farto deles. Não me deixam viver
sossegado.
- Não digas asneiras, rapaz - disse Micky. - Os teus pais são boas pessoas. Tens de
aprender a compreendê-los e a perdoar-lhes.
- Os meus pais são estúpidos, tio. Já não os suporto.
Os teus pais são teus pais e não deves dizer mal deles. Um cavalheiro não diz mal
dos pais.
- O problema é que tu não os conheces bem. Não imaginas como me tratam mal.
Todos os rapazes se queixam dos pais. É a lei da vida, Joaquíncito. Aconselho-te a
voltar para casa, que é onde um rapazinho como tu deveria estar.
-
Não vou voltar, tio.
Micky sorriu, tapando a boca.
- És teimoso como a beata da tua mãe - disse.
Joaquín riu-se.
-
Achas que podia ficar uns dias em tua casa? - perguntou.
Micky deixou de sorrir.
- A minha casa não é um reformatório - disse, numa voz cortante.
Nesse momento, o empregado aproximou-se deles com uma bandeja e pôs na mesa a
comida que tinham pedido. Micky provou o vinho e acenou com a cabeça em sinal de
aprovação, embora sem muito entusiasmo. Joaquín sorveu o milkshake por uma palhinha.
O empregado retirou-se, sempre a arrastar os pés.
- Então, podes emprestar-me algum dinheiro, tio? - perguntou Joaquín.
- Para que queres o dinheiro? - perguntou Micky, coçando a cabeça.
rua.
Para comer. Para alugar um quarto. Não tenho um centavo, tio. Estou a viver na
- Nunca digas isso, Joaquín. Assim nunca vais fazer dinheiro.
-
Por favor, empresta-me dinheiro, tio.
Micky fez um gesto de desagrado.
- Não me fales de dinheiro enquanto comemos - disse. - É um sinal de péssima educação.
Joaquín ficou calado. Comeram em silêncio. Micky partiu os espargos com muita
delicadeza. Joaquín devorou o hamburger em cinco ou seis dentadas.
-
Vou um segundo à casa de banho - disse, quando acabou de comer.
Pôs-se de pé e entrou na casa de banho. Estava a abrir a braguilha quando viu entrar o tio.
Não havia mais ninguém na casa de banho. Micky correu o fecho da porta.
- Queres ganhar uns dolarzinhos? - perguntou, sorrindo.
- Claro - disse Joaquín. - Por dinheiro faço qualquer coisa.
Micky aproximou-se de Joaquín e baixou a cabeça.
-
Beija-a - disse-lhe.
-
O quê? - perguntou Joaquín, surpreendido.
- A cabeça - disse Micky. - Beija-me a cabeça.
Joaquín beijou a cabeça calva do tio. Estava cheia de sinais, cheirava a Old Spice.
- Agora lambe-a - disse Micky, sempre com a cabeça baixa. Joaquín passou a língua uma
única vez. Ficou com um sabor amargo na boca.
-
Ai, que bom - murmurou Micky.
Puxou da carteira e deu-lhe uma nota de 20 dólares.
- Dá um abraço meu aos teus pais - disse-lhe e deu-lhe uma palmadinha no ombro.
Em seguida, saiu da casa de banho e abandonou rapidamente a Tiendecita Bíanca.
-
Forreta - sussurrou Joaquín.
Um momento depois, Joaquín chegou ao quarto de Pedro e bateu à porta. Pedro abriu e
não disse uma palavra. Estava com o torso nu. Deixou entrar Joaquín e pôs-se a levantar
pesos em frente de um espelho rachado. Parecia aborrecido. Joaquín deitou-se no
colchão. O quarto cheirava a marijuana. Pedro estava a ouvir reggae.
-
Por que não me esperaste no parque? - perguntou, sem olhar para Joaquín.
- Porque encontrei o meu tio e ele levou-me a comer qualquer coisa - disse Joaquín.
- Combinámos encontrar-nos, parvalhão. Esperei-te aí uma meia hora.
- Sorry, Pedro. Estava a morrer de fome.
Ao levantar os pesos, Pedro fez um esgar de dor.
- Não podes cá ficar esta noite - disse. - Tenho um programa.
- Não me lixes - disse Joaquín.
- É verdade. Vem cá visitar-me uma ex-namorada.
- Não te preocupes. Eu raspo-me durante um bocado e nem sequer nos encontramos.
Pedro continuou a levantar pesos.
- Proponho-te um negócio - disse Joaquín.
- Fala - disse Pedro.
- Quero ir para a cama contigo.
Pedro não disse nada. Nem sequer olhou para ele.
- Quero que ma enfies - disse Joaquín.
Pedro tossiu e cuspiu para o chão.
- Já te disse que não sou lilas como tu - disse.
Joaquín sorriu. Sentiu que, ao mesmo tempo, desejava e desprezava Pedro.
- Tenho dinheiro - disse. - Pago-te.
Pedro olhou para Joaquín pelo espelho. Continuou a levantar pesos.
- Se te der dinheiro, enfias-ma?
Pedro não respondeu.
- Vinte dólares - disse Joaquín, mostrando-lhe a nota que Micky lhe dera na casa de banho
da Tiendecita Bianca.
Pedro atirou os pesos para o chão. O chão tremeu.
- Lilas de merda - disse Pedro. - São todos iguais.
Joaquín assustou-se. Pensou que Pedro lhe ia bater.
- Vira-te e puxa as calças para baixo - ordenou Pedro.
Joaquín obedeceu-lhe. Bruscamente, Pedro deitou-se por cima dele.
- Sê bom para mim, por favor - pediu Joaquín.
- Cala-te, seu maricas - disse Pedro, e enterrou o sexo entre as nádegas de Joaquín.
Pedro mexeu-se violentamente, com raiva. Joaquín mordeu o colchão para não gritar de
dor. Quando Pedro terminou, Joaquín secou as lágrimas e deu-lhe o dinheiro.
- Gostaste? - perguntou Joaquín.
- Não - disse Pedro. - Foi como ir ao cu a um cão.
Joaquín vestiu-se e saiu do quarto sem se despedir dele. Não sabia para onde ir. Não tinha
dinheiro. Não queria voltar para casa dos pais. Andou pela Avenida Grau. Sentiu-se um
tonto porque desatou a chorar.
SEGUNDA PARTE
A FESTA
Era a primeira vez que ela telefonava para a pensão onde Joaquín vivia.
- Caso-me este sábado e gostaria muito que assistisses - disse Ximena ao irmão.
Ximena casava-se com José Luis, o único namorado que tivera. Ximena era alta, bonita, de
cabelo preto e olhos grandes; sempre fora um pouco gordinha, mas emagrecera bastante
para o casamento. José Luis era alto, um pouco roliço; tinha o cabelo curto e usava uns
óculos grossos. Ela sonhava ter vários filhos e viajar todos os anos até Miami. Ele sonhava
com ser milionário e viver numa casa com piscina. Ambos tinham sonhado em casarem-se
desde o dia em que se tinham conhecido, quando ainda eram miúdos.
- Já sei que te chateia ver o papá e a mamã, mas faz isso por mim - pediu Ximena.
- Prometo-te que vou - disse Joaquín.
-
Prometes?
- Prometo.
No dia do casamento da irmã, Joaquín vestiu o seu melhor fato, aspirou umas riscas de
coca e foi de táxi para a Igreja da Virgen del Pilar. Chegou tarde à missa. Preferiu ficar de
pé, atrás da última fila. Sentiu alguns olhares de censura. Tentou ignorá-los, pondo uma
cara de quem está distraído.
Então recordou como Ximena e José Luis se tinham conhecido. Lembrava-se muito bem
desse dia: José Luis chegou, juntamente com outros rapazes do clube Saeta, a casa de
seus pais em Chaclacayo e, numa questão de minutos, instalaram um acampamento no
jardim. Muito inquieta, devido à presença de tantos rapazes, Ximena passou o dia inteiro
na cozinha, a preparar bolinhos de creme, um bolo de chocolate, bolas de coco e torta de
laranja. Quando acabou, despiu o avental, pintou os lábios, tirou os ganchos do cabelo e
foi até ao jardim, acompanhada por duas empregadas que levavam os doces que tinham
acabado de fazer e vários jarros de chicha morada. Uns anos depois, Ximena disse a
Joaquín que pressentia que se ia apaixonar por um dos rapazes do acampamento e que,
ao ver José Luis, não hesitou em partir a fatia maior de bolo de chocolate para ele.
Ao terminar a cerimónia, os noivos passaram para uma das salas da igreja, seguidos pela
numerosa assistência. Joaquín sentou-se num confessionário vazio e aspirou um pouco
mais de coca. Sem esse estímulo, talvez não tivesse sido capaz de se pôr na fila para
cumprimentar a irmã e o seu flamante cunhado.
Meu maroto, pensei que não vinhas - disse-lhe Ximena, abraçando-o, quando ele
chegou ao pequeno estrado onde a irmã e José Luis recebiam os cumprimentos de
parentes e amigos.
-
Parabéns, Xime - disse Joaquín, e beijou a irmã na cara.
Cunhadinho, que prazer ver-te - disse José Luis, sorrindo e dando-lhe uma
palmadinha nas costas.
-
Muitas felicidades, José Luis - disse Joaquín.
Parados ao lado dos noivos, vestidos a rigor, Luis Felipe e Maricucha olharam para
Joaquín. Pareciam surpreendidos por vê-lo ali, ao fim de tanto tempo.
-
Olá, meu filho, que magro estás - disse Maricucha, dando-lhe um beijo na cara.
-
Não estou assim tão magro, mamã - disse Joaquín.
Estás um pau de virar tripas - disse Maricucha, beliscando-lhe as bochechas, coisa
que gostava de fazer desde que ele era uma criança. - Pareces uma vassoura: magro,
fracote e com uma grande cabeleira. E sabes por que estás assim? Porque não vais
almoçar lá a casa de vez em quando.
Luis Felipe olhou Joaquín nos olhos e estendeu-lhe a mão com uma certa frieza.
-
Vais até lá casa para a recepção, não é? - perguntou.
Joaquín pensou que o pai parecia mais velho e mais cansado do que da última vez que o
vira.
-
Claro, com certeza que sim - respondeu. E foi cumprimentar os pais do noivo.
Ai, que surpresa, apareceu a ovelha negra da família Camino - disse D. Angelita,
mãe de José Luis; e apertou com força Joaquín e beijou-o, deixando-lhe a cara um pouco
molhada.
Pouco depois, Joaquín tocou à campainha da casa de seus pais.
Pode mostrar-me o seu convite? - disse-lhe o vigilante que abriu a porta, um
homem de pele morena e baixa estatura.
-
Não tenho, mas esta é a casa dos meus pais - disse Joaquín.
-
Posso ver um documento que o prove? - perguntou o vigilante.
Joaquín puxou da carteira e tirou o bilhete de identidade. O vigilante verificou-o,
iluminando-o com uma lanterna.
-
Desculpe, jovem, mas é o meu dever - disse, e abriu-lhe a porta.
Joaquín entrou lentamente em casa dos pais. Uma dúzia de empregados percorria a casa,
preparando os últimos pormenores da festa. No jardim ao lado da piscina tinham
montado um toldo que cobria várias mesas; a festa ainda não começara. Joaquín entrou
na cozinha.
Joaquín, que milagre vê-lo por aqui - disse Meche, a mulher baixa, gorda e
desdentada, que trabalhava há quase vinte anos como empregada naquela casa.
-
Que tal vai a tua vida, Mechita? - disse Joaquín.
-
Menino, andamos um pouco aflitos porque lá se nos casa a menina Ximena.
-
A vida é assim, Meche.
-
E o seu casamento, quando é que é?
-
Quando decidires aceitar-me, Mechita - disse ele, e ela soltou Uma gargalhada.
Depois de se servir de uma bebida, Joaquín subiu ao segundo andar e entrou no quarto
onde dormia quando era mais novo. Estava tudo Como deixara quando se fora embora: os
seus diplomas do colégio, os cartazes de futebol na parede, a colecção de El Gráfico, os
livros de aventuras, o jogo de xadrez, as luvas de boxe que o pai lhe oferecera. Oprimido
pelas recordações, entrou na casa de banho e aspirou algumas riscas de coca. Ao sair,
apanhou o seu álbum de fotografias e sentou-se na cama a vê-lo. Viu as fotografias a
preto e branco da sua ama Eva, ainda jovem, com o cabelo apanhado e a mandíbula
proeminente, sempre com ele ao colo. Viu as fotografias das suas primeiras festas de
aniversário: as mesas cheias de milho torrado, chicha morada e sanduíches de frango, ele
vestido com o seu uniforme do Barcelona FC de Espanha, rodeado dos seus melhores
amigos, todos preparados para irem jogar futebol depois de cantarem o Happy birthday.
Viu as fotografias do dia em que fez a sua primeira comunhão, todo vestido de branco e
com calções, no mesmo dia em que a mãe, enxugando as lágrimas, lhe disse que o Senhor
o escolhera para uma tarefa muito importante, que estava certíssima de que um dia iria
sentir a chamada do Senhor, e que nada a faria mais feliz do que ver o seu Joaquincito
adorado a levar ao mundo a palavra do Senhor, enquanto ele só pensava em que o
colarinho da camisa era muito duro e estava demasiado apertado. Viu as fotografias da
caçada em El Aguerrido, a que foi com o pai, daquela vez que opai o obrigou a abrir com
uma faca o ventre de um veado morto. Arrancou uma a uma as páginas do álbum,
rasgou-as aos bocados e atirou-as para o lixo. Depois, sentiu que precisava urgentemente
de outra bebida. Levantou-se e foi até ao jardim.
- Mamã, quero falar um bocadinho contigo - disse Joaquín a Maricucha, pouco depois,
quando a festa já começara.
Estava excitado, devido à coca que aspirara, e tinha vontade de dizer à mãe uma coisa que
lhe parecia muito importante. Maricucha continuava a falar com as amigas sobre como
Ximena estava bonita nessa noite. Ela olhou para ele, beliscou-lhe as bochechas e sorriu.
Vem, meu lindo, vamos dançar - disse-lhe, dando-lhe o braço e levando-o para a
pista de dança, onde os noivos e outros pares dançavam ao ritmo da música escolhida por
Michi Belaunde, o mais conhecido animador de festas em Lima.
Pelo brilho dos olhos dela, Joaquín apercebeu-se de que a mãe tomara várias taças de
champanhe.
Mamã, há já um tempo que quero dizer-te uma coisa - disse-lhe, enquanto
tentavam dançar ao mesmo ritmo uma canção em inglês de Julio Iglesias.
Precisas de dinheiro, meu amor? - perguntou ela, em voz baixa. - Meu querido,
sabes bem que te dava tudo o que tenho, que te dava agora mesmo estes brincos, este
colar e este anel, mas o teu pai proibiu-me terminantemente de te dar mais dinheiro. Tens
de falar com ele, meu amor, tens de fazer as pazes com o papá. Não podes continuar a
viver assim por tua conta e risco, como se fosses um orfãozinho.
-
Não, mamã, não te queria falar de dinheiro.
-
Ai, tens uma porcariazinha branca no nariz: limpa-te, filhinho.
São as gotas - mentiu ele, limpando discretamente o nariz. - Estou meio
constipado, pelo que ando a pôr umas gotas.
Ai, continuas a estar sempre constipado - disse ela, suspirando. - Se fizesses caso
da tua mãe, que tanto gosta de ti, se fosses ao ginásio todos os dias, como sempre te
aconselhei, não viverias constipado, não estarias magrinho e pálido, Joaquín.
-
Mamã, queria dizer-te uma coisa importante.
Diz lá, meu filho, já sabes que te adoro mais do que a ninguém no mundo - disse
Maricucha, dançando com aquela elegância que nela sempre fora tão natural.
-
Queria que soubesses que sou homossexual, mamã.
Maricucha inclinou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.
Por amor de Deus, não digas parvoices, Joaquín - disse. - Lá vens tu com as tuas
brincadeiras de mau gosto.
-
Não estou a brincar, mamã - disse Joaquín. - Gosto de homens.
Maricucha passou as mãos pelo cabelo do filho e olhou-o com ternura
- Não, meu amor, o que te havia de lembrar, tu sempre gostaste de raparigas - disse. - O
que acontece é que agora estás a atravessar uma fase má, estás meio confuso,
certamente devido a essas más Influências da universidade - acrescentou, ao mesmo
tempo que acenava a alguém. - Ui, nem imaginas o suplício que é dançar com estes saltos.
Não estou confuso, mamã, tenho mais certezas do que nunca - disse Joaquín. Gosto de rapazes. Sempre, desde que me lembro de mim, gostei de rapazes.
-
Não fales tão alto. Alguém pode ouvir o que estás a dizer.
-
Isso não me importa.
-
Mas a reputação da minha familia importa-me a mim, e muito, filhinho.
Aborrece-me que faças de conta que não te lembras, mamã. Sabes muito bem que
quando eu era miúdo já tinha tendências homossexuais.
Quais tendências sexuais, qual carapuça, meu filho. Lembras-te como estavas
louco pela Tati? Lembras-te de como estavas louco pela Sonia, a filha da tua tia
Milagritos? Lembro-me, como se fosse ontem, que estavas babado por elas. Lembras-te
daquela vez em que escreveste uma canção para a Tati? Sempre foste tão romântico,
Joaquín.
-
Nunca estive apaixonado por elas, mamã. Eram apenas minhas amigas.
Bem, se aquilo não era amor, então não sei o que é amor, querido - disse
Maricucha, suspirando.
Assim que a canção terminou, Michi Belaunde pôs um disco com todos os êxitos de
Sinatra. Maricucha e Joaquín continuaram a dançar, enlaçados.
ele.
O problema é que morres de medo de aceitar que sou homossexual, mamã - disse
Não, meu amor, não - disse ela. - Não percebes que te digo tudo isto para teu
bem? Quero que sejas uma pessoa normal. Quero que sejas o homem mais feliz do
mundo. Adoro-te, querido, e não quero que sejas um doente, um complexado.
A homossexualidade não é nenhuma doença, mamã. É a coisa mais normal do
mundo.
Isso será o que dizem as tuas más companhias da universidade (não julgues que
não sei dos teus amiguinhos, estou ultra bem informada de tudo), mas, para mim, os
maricas não são pessoas normais, são pessoas super traumatizadas e super infelizes. Além
disso, Sua Santidade o Papa disse claramente que a Igreja é contra os maricas e que todos
os maricas vão direitinhos para o Inferno.
-
Olha, mamã, desculpa lá, mas isso é uma grande estupidez.
-
Meu filho, não fales assim, não faltes ao respeito ao Papa.
-
É que Deus e o Papa não têm nada que ver com isto, mamã.
Claro que têm que ver, meu querido, claro que têm que ver. É esse precisamente o
teu problema, afastaste-te do Senhor, foste perdendo a fé, meu amor, a tua fé foi
murchando como uma flor.
- Mamã, por favor, não sejas pirosa.
- É a pura verdade, Joaquín. É por isso que agora tens ideias absurdas, que não sei quem
te meteu na cabeça. Mas, não te preocupes, querido, estás a atravessar uma crise de
identidade que não tardarás a superar.
Joaquín sentiu que estava a perder tempo e que lhe fazia falta um par de riscas de coca.
- Vem, meu amor, vou apresentar-te à filha da tua tia Natalia - disse Maricucha,
apontando para uma rapariga loira que estava a comer bolos perto da pista de dança. Olha bem para ela e diz lá se não é uma beleza.
- Volto já, mamã - disse Joaquín, e libertou-se dos braços da mãe. - Preciso de ir à casa de
banho.
Enquanto se dirigia à casa de banho, murmurou: "velha louca, nunca me hás-de
entender..."
Longe do bulício da festa, o Sr. Nicolás Camino, um homem magro, de hábitos austeros,
incapaz de qualquer excesso, conversava com outros senhores de idade avançada.
- Joaquincito, vem cá, que quero apresentar-te a um velho amigo da família - disse.
- Claro, Vovô - disse Joaquín, e aproximou-se do avô.
- Este senhor é Paco de Soria, um velho amigo meu - disse Nicolás Camino, apontando
para um homem de cabelos brancos e baixa estatura. - Tu não o chegaste a ver, mas Paco
foi a figura mais importante da história da televisão peruana. Tinha uns programas
estupendos, que fizeram época.
Paco de Soria sorriu e estendeu a mão a Joaquín.
- És o vivo retrato do teu avô - disse-lhe, numa voz rouca.
- Nos seus anos de glória, Paco era o homem mais querido de toda a Lima - declarou
Nicolás.
- Muito prazer, Sr. Soria - disse Joaquín, olhando com curiosidade para aquele homem
pequeno, com o peito inchado e os olhos aguados, como os de um peixe. - Que tipo de
programas fazia?
- Uns programas culturais fantásticos, uns programas fantásticos - disse Nicolás.
De tudo um pouco, rapaz - disse Paco de Soria. - Acima de tudo, programas para
cultivar a juventude, para a afastar do terrível flagelo da droga. E no meu tempo não havia
coca como agora.
-
Que interessante - disse Joaquín.
A televisão daquele tempo é que era uma boa televisão - disse Nicolás. - Agora
impera o puro mau gosto, a vulgaridade.
Modéstia à parte, acho que ainda não apareceram no Peru animadores como os
do meu tempo - declarou Paco de Soria.
-
E por que deixou a televisão? - perguntou Joaquín.
Porque já era altura de ceder o lugar às novas geraçÕes, rapaz - disse De Soria. Era preciso dar o lugar à juventude.
-
E tu, Paco, sempre tão generoso, caramba - disse Nicolás.
-
Bem, se me dão licença vou tomar uma bebida - disse Joaquín.
-
Já somos dois, também me apetece tomar qualquer coisa - disse Paco de Soria.
Entraram na cozinha e serviram-se de duas bebidas.
Caramba, não sabia que o meu amigo Nicolás tinha um neto tão bem-parecido disse De Soria, dando-lhe uma palmadinha nas costas.
-
Muito obrigado - disse Joaquín.
-
Como te sentes? Triste porque se casa a irmãzinha querida, hem?
-
Pois é, mas a vida é assim.
Olha, rapaz, queria fazer-te uma perguntinha, tens de me perdoar o atrevimento,
mas sinto-me um rapaz como tu - disse De Soria, piscando-lhe o olho. - Por acaso não
terás aí um pouco do pó que levanta os mortos?
-
Não, não - respondeu Joaquín, surpreendido.
Vamos, rapaz, não faças de mim parvo - disse De Soria. - Serei velho, mas não sou
parvo.
-
Não sei de que está a falar, Sr. De Soria.
-
Da caspa de Atahualpa, homem. Do talco dos deuses.
-
Que é isso?
Não armes em parvo comigo, Joaquín, pois com a minha idade já vi tudo e mais
alguma coisa. Anda cá, vamos à casa de banho, rapaz. tem piedade deste pobre velho.
Paco de Soria saiu da cozinha e dirigiu-se à casa de banho. Joaquín seguiu-o. De Soria
olhou em volta, para se certificar de que ninguém estava a vê-los, entrou na casa de
banho com Joaquín, correu o fecho. Sob a intensa luz da casa de banho, De Soria parecia
ainda mais velho, com a cara enrugada de tanto sorrir por obrigação, os olhos vidrados, os
dentes amarelados de fumador inveterado. Sem dizer uma palavra, Joaquín retirou a
cocaína do porta-moedas.
-
És um tipo fixe, rapaz - disse De Soria. - Já sabia que íamos fazer uma vaquinha.
Em seguida, bateu com tanto entusiasmo nas costas de Joaquín que a coca caiu e se
espalhou no chão.
-
Merda - disse Joaquín.
Filha da puta, que azar, porra - disse De Soria. - Não te preocupes, rapaz, que eu
apanho-a.
Então, ajoelhou-se, inclinou a cabeça e aspirou a coca com uma força descomunal.
Ximena e José Luis passeavam de mão dada em volta de uma mesa cheia de doces.
Procurando esquecer o incidente da casa de banho, Joaquín aproximou-se da irmã.
- A sério que não sabes como agradeço que tenhas vindo - disse ela, levando à boca um
doce de ovos em forma de passarinho.
-
Nunca te vi tão bonita como hoje, Xime - disse.
Ah, se soubesses o trabalhão que me deu - disse ela, suspirando. - Horas e horas
no cabeleireiro.
-
E tu quando te casas, Joaquincito? - perguntou José Luis aos gritos.
-
Não sei, não sei - disse Joaquín.
Já é hora de assentar a cabeça, cunhadinho - disse José Luis com um sorriso
trocista. - Deixa que te diga uma coisa: o casamento faz medo, mas é um passo
importante que é preciso dar na vida.
Extremamente importante, extremamente - acrescentou Ximena, enquanto
provava um brigadeiro de chocolate.
-
A verdade é que não penso casar-me - disse Joaquín.
Isso é o que dizem todos, é o que dizem todos, mas depois acabam por arrumar as
botas - disse José Luis, sorrindo.
Eu não penso arrumar botas nenhumas - disse Joaquín. sem conseguir dissimular a
antipatia que sentia pelo cunhado.
Está bem, não te irrites, cunhadinho - disse José Luis dando-lhe uma pancadinha
no braço.
-
A sério que não gostavas de te casar? - perguntou Ximena ao irmão.
-
A sério - respondeu Joaquín. ½
-
Não acredito em ti - disse Ximena, surpreendida. - Porquê, hem?
-
Porque sou homossexual - disse, olhando-a nos olhos.
Ainda mal acabara de o dizer e já estava arrependido. E pensou: "quando estou pedrado,
falo sempre de mais".
José Luis olhou-o, desconcertado. Ximena só conseguiu pestanejar nervosamente.
Que mau que tu és - disse ela, de sobrolho franzido e apertando os lábios. - Como
podes dizer-me isso no dia do meu casamento?
Pela face rolou-lhe uma lágrima, que estragou a maquilhagem que demorara tantas horas
a fazer.
-
Não tens vergonha de fazer chorar a noiva? - disse José Luis.
Quando amanheceu, já todos os convidados se tinham ido embora. Umas horas antes,
Ximena e José Luis tinham mudado de roupa, saído de casa entre uma nuvem de arroz e
partido para o aeroporto, onde tomariam um avião que os levaria às Caraíbas. Depois de
ter acompanhado os últimos convidados até à porta, Maricucha descalçou-se, atirou-se
para um dos sofás da sala e adormeceu. Sentado numa das mesas do jardim, Luis Felipe
tomava mais uma bebida. Joaquín foi também para o jardim e sentou-se ao lado do pai.
Não falara com ele durante toda a noite. Na realidade, havia muito tempo que não falava
com ele.
-
Que achaste da festa? - perguntou-lhe.
Luis Felipe bebera tudo o que pudera. àquela hora, já não conseguia ocultar os estragos
do álcool.
-
Correu tudo lindamente - disse, com uma voz rouca.
Graças à coca que aspirara durante toda a noite, Joaquín estava mais acordado do que o
pai.
Fico muito contente por te ver de novo aqui em casa, ao fim de tanto tempo - disse
Luis Felipe.
Ficaram calados.
Papá, há já um tempo que quero dizer-te uma coisa - disse Joaquín, falando
lentamente. Sentia a boca seca, os lábios gretados.
Não precisas de me dizer nada, filho - disse Luis Felipe. - Eu já sei. Soube-o desde
que eras miúdo.
Fez-se silêncio. Ao longe ouvia-se a corneta de um padeiro.
-
Tens vergonha de mim, não é verdade? - perguntou Joaquín.
Luis Felipe tomou mais uma bebida. A mão direita tremeu-lhe um pouco.
-
Não - disse, e tossiu com força. - Mas não és o filho que gostaria de ter tido.
-
Como gostarias que fosse, papá? - perguntou Joaquín.
- Militar - disse Luis Felipe, sem hesitar um minuto. - Sempre quis que o meu filho mais
velho fosse militar.
Joaquín recordou as muitas vezes que o pai tentara convencê-lo a ir para a Marinha.
Embora não mo tenhas pedido, vou dar-te um conselho franco, com o afecto que
continuo a ter por ti, porque, independentemente do que tu sejas, apesar de todos os
teus defeitos, continuas a ser meu filho - disse Luis Felipe, com uma voz muito rouca,
afectada pelos excessos dessa noite. - Tens de sair de Lima, Joaquín. Esta cidade é muito
pequena. Aqui, conhecemo-nos todos. O teu estilo de vida é contra a nossa moral, contra
a moral das famílias decentes de Lima. Vai para longe e vive como te apetecer, mas não
faças sofrer mais os teus pais, que sempre quiseram o melhor para ti.
Joaquín ficou calado, sem saber o que dizer. Luis Felipe bocejou, empurrou a cadeira para
trás e tentou segurar-se. Então, cambaleou como um animal ferido e bateu com as costas
no chão.
-
Porra, pus mal o pé, a perna adormeceu-me - disse, tentando levantar-se.
Joaquín ajudou o pai a levantar-se e limpou-lhe o traseiro, dando-lhe umas palmadas nas
costas.
-
Sentes-te bem? - perguntou-lhe.
Firmes! - disse Luis Felipe, juntando bruscamente os pés, leVando uma mão à testa
e fazendo continência como se fosse um militar.
AMIZADES PERIGOSAS
Alfonso e Joaquín falaram-se pela primeira vez no dia em que os expulsaram da
universidade. Esperavam que lhes entregassem as cartas de expulsão no gabinete do Dr.
Vilíalba, o decano de Letras, quando Alfonso olhou para Joaquín e sorriu.
-
Em que te chumbaram? - perguntou-lhe.
-
Em Lógica - disse Joaquín. - E a ti?
-
Em História Universal.
-
Não me trames. Pensei que essa cadeira era fácil.
-
Nem por sombras.
Ficaram calados. Não havia mais ninguém na pequena sala de espera onde aguardavam,
sentados. Alfonso era alto e muito branco. Tinha o cabelo castanho e os olhos azuis.
Joaquín vira-o várias vezes a dar voltas na rotunda da universidade e achara-o um tipo
bastante atraente.
-
Achas que nos pÕem na rua de qualquer modo? - perguntou Alfonso.
-
Claro - disse Joaquín. - O Vilíaba é um cabrão. Adora mandar gente para a rua.
Os meus velhos vão dar cabo de mim quando souberem - disse Alfonso. Felizmente, andam em viagem. Pelo menos ainda tenho uma semana para pensar bem no
que lhes vou dizer.
Pouco depois, uma secretária saiu do gabinete de Vilíalba e entregou-lhes uns sobrescritos
de papel Kraft.
Aqui têm as vossas cartas de expulsão, jovens - disse-lhes. - O Dr. Vilíalba lamenta
que não tenham sido capazes de ter um aproveitamento à altura deste estabelecimento
de ensino.
-
Obrigado - disseram os dois ao mesmo tempo. E saíram do gabinete.
Leram as cartas de expulsão enquanto se dirigiam para o estacionamento da universidade.
-
Por fim, a farsa acabou - disse Joaquín.
-
Mas nunca chegaremos a ser licenciados - disse Alfonso.
Que se foda! - disse Joaquín. - Neste país, os que sobem não são os licenciados,
mas sim os espertalhaços. Aqui, o diploma não vale nada. No Peru, o importante é saber
as manhas.
-
É verdade, tens toda a razão.
Quando chegaram ao estacionamento, Alfonso parou em frente do seu carro e tirou as
chaves.
-
Queres que te dê uma boleia? - perguntou.
-
Não, obrigado - disse Joaquín. - Também trouxe o carro.
-
Tens alguma coisa que fazer?
-
Não. Pensava ir até ao Suizo comer qualquer coisa.
-
Por que não vens até minha casa e almoçamos na piscina?
-
A sério?
-
Claro. Temos de aproveitar agora que os meus velhos andam a viajar, não achas?
-
Bem, por mim acho óptimo. Obrigadissimo, Alfonso.
-
Segues-me?
-
Combinado.
Vamos lá ver se chegamos a La Planicie em menos de treze minutos e eu bato o
meu recorde.
Alfonso entrou para o carro e pô-lo em funcionamento. Ao passar ao lado de Joaquín,
ultrapassou-o, rasgou a carta de expulsão aos bocados e atirou-a pela janela.
Vilíalba, meu filho de uma puta, pÕe-te num porco - gritou, e acelerou de repente,
fazendo chiar os pneus do carro.
Joaquín riu-se, ligou o motor do carro e acelerou, tentando aproximar-se de Alfonso. Os
dois saíram da universidade fazendo um barulhão com os motores.
-
Mais devagar, seus filhos da puta - gritou-lhes Poma, o vigi+lante da universidade.
Alfonso e Joaquín conduziram como loucos, passaram vermelhos. fizeram todo o tipo de
manobras temerárias, quase atropelaram um ou outro peão, provocaram insultos,
buzinadelas e gestos obscenos. Quinze minutos depois chegaram a La Planicie.
-
Quase batemos o recorde - disse Alfonso, ao descer do carro.
-
Até parecia que estávamos a jogar Nintendo - disse Joaquín.
Desligaram o motor de ambos os carros e entraram em casa. Era uma casa grande,
moderna, com piscina e jardins amplos.
-
Charito, já cá estou - gritou Alfonso. - Arranja almoço para dois.
Vou já - gritou Charito, a empregada da cozinha. - Só faltam dez minutinhos para
acabar de ver a novela, não seja mauzinho.
Está mesmo a pedir um castigo, esta Charito - disse Alfonso, baixando a voz e
sorrindo.
-
Que idade tem a mestiça? - perguntou Joaquín.
Dezassete, dezoito, anda por aí - disse Alfonso. - Já está mesmo boa para se lhe
tirarem os três.
Riram-se. Entraram no quarto de Alfonso. Era uma divisão grande, alcatifada, com ar
condicionado. Alfonso retirou dois calçÕes de banho do roupeiro.
-
Que tal uma banhoca na piscina? - perguntou.
-
Bestial - disse Joaquín.
Mudaram de roupa e foram para o terraço. Apesar de ainda não ser Verão, havia um
solário em La Planicie.
Linda casa - disse Joaquín, olhando para os jardins, que se estendiam até às
encostas de um cerro.
O meu velho não sabe se a há-de vender - disse Alfonso. Anda um pouco
preocupado com a situação. Está a pensar em cavar, se as coisas piorarem.
-
Se tivesse dinheiro, saía do Peru amanhã mesmo.
-
Eu também, meu irmão.
Alfonso atirou-se de cabeça para a piscina e atravessou-a de uma ponta a outra. Joaquín
entrou na piscina pelas escadas. Charito aproximou-se; trazia limonadas e aperitivos.
-
Boa tarde, meninos - disse.
Era uma mulher jovem, de aspecto agradável. Usava uma farda azul-clara e um
casaquinho azul.
-
Charito, aqui o meu amigo disse que te pode fazer feliz à noite - disse Alfonso.
Menino Alfonsito, se continua a aborrecer-me, conto tudo à sua mãe - disse ela, a
sorrir e voltou para a cozinha.
-
índia manhosa, um destes dias eu trato de ti - disse Alfonso, baixando a voz.
-
Já lhe saltaste para cima? - perguntou Joaquín.
Várias vezes, mas não deixa que a foda - disse Alfonso. - Agora que os meus velhos
andam a viajar, vai ter de pagar portagem.
Nadaram um pouco e sentaram-se nas escadas da piscina.
Os teus velhos já sabem que te puseram a andar da universidade? - perguntou
Alfonso.
Não - disse Joaquín. - E estou-me nas tintas para se souberem ou não, porque vivo
sozinho.
-
Não me trames. Como é isso?
-
Há já algum tempo que vivo sozinho. Não aguento os meus velhos.
-
Onde vives?
-
Numa pensãozinha em frente do Olivar.
-
E não te custa uma pipa de massa?
-
Nem por isso, é barato. Além do mais, é a minha velha quem ma paga.
-
Porra, que bom para ti.
Ficaram calados. Alfonso mergulhou na piscina, atirando a cabeça para trás. Saiu da água
penteado.
Olha, não gostarias de passar uma semaninha em minha casa, enquanto os meus
pais estiverem fora? - perguntou.
-
Não, nem pensar - disse Joaquín. - Seria um grande abuso da minha parte.
Não é abuso nenhum, homem, sou eu que te convido. Claro que ' só enquanto os
meus velhos estiverem fora. No dia que eles chegarem, raspas-te logo.
-
Não sei, Alfonso. Mal nos conhecemos. Não quero ser abusador.
Aproveita, homem. Poupavas umas massas e divertíamo-nos à brava. Temos a casa
inteira para nós.
-
Deixa-me pensar.
O almoço está servido, meninos - gritou Charito, pondo pratos na mesa que estava
no terraço.
Almoçamos e vamos buscar as tuas coisas à pensão - disse Alfonso, e saíram os
dois da piscina.
Nessa noite, depois de jantarem, Alfonso, sua irmã Tati e Joaquín sentaram-se a ver
televisão. Tati tinha dezasseis anos, menos quatro do que Alfonso e Joaquín. Era uma
rapariga não muito alta, de cabelo loiro e comprido. Tinha, tal como o irmão, uns grandes
olhos azuis.
Bem, Tati, já são horas de te ires deitar - disse Alfonso, olhando para o relógio. Amanhã tens de te levantar cedo, para ir para o colégio.
Ai, que chato que és, Alfonso - disse Tati. - Já sou suficientemente crescida para
saber a que horas tenho de me deitar.
-
Para a cama, menina - disse Alfonso, e apagou a televisão.
-
Ufa, odeio-te quando pensas que és o pai - disse Tati.
Em seguida, levantou-se, entrou no quarto e bateu com a porta. Alfonso ligou a televisão
e foi mudando de canal. Era meia-noite. Em todos os canais, tocava o hino nacional.
Que canção tão feia, porra - disse, e apagou de novo a televisão. - Não consigo
ouvir este hino ridículo. Deprime-me.
Pôs-se de pé e olhou para Joaquín com um sorriso malicioso.
- Que tal irmos um bocadinho até ao quarto de Charito? - perguntou.
-
Não, é melhor não - disse Joaquín. - A pobre da Charito já deve estar a dormir.
-
Vem comigo, não sejas paneleiro. Vamos morrer a rir.
-
Charito ainda é muito nova, homem. Até a podemos traumatizar.
-
Parece uma miúda, mas é uma sabida. Olha que sei o que estou a dizer, Joaquín.
-
E se depois vai contar tudo à tua mãe?
-
Não, eu já comprei Charito. A mestiça é leal comigo.
-
Então, vamos, mas eu fico fora do quarto dela.
Entraram na cozinha e saíram para o pátio das traseiras. Havia roupa húmida estendida
em vários arames e um forte cheiro a lixívia e a sabão barato. Alfonso bateu à porta do
quarto de Charito.
Charito abriu a porta. Vestia um fato de treino cinzento que dizia "Colegio La Musa".
-
Que deseja, menino Alfonsito? - perguntou.
Vá lá, deixa-me entrar, Charo - disse Alfonso. - Falei ao telefone com a mamã e ela
pediu-me que falasse contigo.
-
Diga lá, menino.
-
Deixa-me passar, que não te faço mal.
Alfonso entrou no quarto de Charito e sentou-se na cama.
Falei ao telefone com a minha mãe - comunicou. - Diz que de qualquer modo nos
mudamos para Caracas.
-
Que bom, menino - disse Charito, sorrindo.
-
E eu disse-lhe que tu tens de vir connosco, Charo.
-
Ai, menino, que bom que é, não sabe quanto lhe agradeço.
Na verdade, Charito, a minha mãe não está lá muito convencida, porque diz que ali
se conseguem facilmente empregadas baratas, mas eu disse-lhe que temos de te levar
porque és boa rapariga e fazes bem o teu trabalho.
-
Obrigada, menino Alfonsito.
-
Tu gostarias de ir, não é verdade?
-
Pois com certeza que sim, menino, eu vou feliz da vida.
-
Mas não vai ser nada fácil, Charito, vou ter de convencer os meus pais.
Pois, mas o menino convence-os, lá lábia não lhe falta e, para a senhora, a sua
opinião é lei.
-
Prometo-te que os vou convencer, mas tens de me fazer um favorzinho, Charo.
-
Diga lá, menino. Faço o que me mandar.
-
Uma mamada ao meu amigo e a mim.
Charito espreitou para fora do quarto e viu Joaquín escondido atrás da roupa estendida.
-
Menino Alfonsito, que atrevido me saiu - disse. - Saia do meu quarto, por favor.
-
Charito, se queres que te ajude, tens de ser simpática comigo - disse Alfonso.
-
Não seja malcriado, menino; o que é que o seu amigo há-de dizer disto?
O meu amigo diz que és uma mestiçazinha muito boa e que já te morde a
passarinha.
-
Menino, não fale assim - disse ela, rindo nervosamente.
Vá lá, Charito, dá-me uma mamada, primeiro a mim e, depois ao meu amigo - disse
Alfonso.
-
A mim é melhor não - disse Joaquín.
Vê, menino Alfonsito, aprenda com o seu amigo que não é tão sabido - disse
Charito.
Alfonso abriu o roupão e mostrou o seu sexo erecto a Charito.
-
Menino, que horror, tape-se - disse ela, levando uma mão à boca.
Charito, se queres ir para Caracas, tens de me fazer este favorzinho - disse Alfonso.
- Vá, ajoelha-te. Não te faças cara.
Ela ajoelhou-se diante de Alfonso.
-
Mas promete-me que me levam para Caracas? - perguntou.
-
Prometo-te, Charito - disse Alfonso. - Aconteça o que acontecer, tu vais connosco.
Ela tapou os olhos com uma mão e meteu o sexo de Alfonso na boca.
-
Muito bem, minha indiazinha, muito bem - disse Alfonso, sorrindo.
No dia seguinte, Alfonso e Joaquín acordaram depois do meio-dia e foram almoçar ao
clube de La Planície. Havia pouca gente. O dia estava esplêndido: fazia sol e corria uma
brisa fresca. Sentaram-se numa das mesas do terraço e comeram tudo o que lhes
apeteceu.
Adoro almoçar neste clube porque uma pessoa até se esquece de que está em
Lima - disse Alfonso, quando terminaram.
-
Realmente é um sítio lindo - disse Joaquín.
Além disso, aqui come-se maravilhosamente - disse Alfonso, esfregando a barriga.
- E o melhor é que não há mestiços. Neste clube, os mestiços só entram como
empregados.
Riram-se. Alfonso pediu a conta. Um empregado de pele escura e cabelo com fixador
baixou a cabeça e dirigiu-se à caixa registadora.
Porra, se os meus velhos se mudarem para Caracas, vou sentir a falta das atençÕes
destes índios peruanos - disse Alfonso; e arrotou ruidosamente.
O empregado aproximou-se com a conta. Alfonso assinou-a sem sequer a conferir.
-
É o meu velho que convida - disse.
-
Obrigadíssimo - disse Joaquín.
Puseram-se de pé, saíram do clube e voltaram para casa dos pais de Alfonso, que ficava a
três quarteirÕes do clube. Tati ainda não chegara do colégio. Charito estava a ver
televisão na cozinha.
-
Charito, não me passes as chamadas, pois vou dormir uma sesta - gritou Alfonso.
-
Está bem, menino - respondeu Charito da cozinha.
Alfonso entrou no quarto, seguido de Joaquín. Em seguida, fechou a porta e ligou o ar
condicionado.
Agora o ideal seria rematar o almoço com um charrinho disse, despindo-se. - Mas,
como sou um parvalhão, esqueci-me de comprar marijuana.
-
Eu tenho um bocadinho - disse Joaquín.
-
Não me lixes! E eu que pensei que tu não te metias nisso.
-
As aparências iludem.
Joaquín tirou um pouco de marijuana da mala e mostrou-lha.
-
Está fresquinha - disse Alfonso, depois de a cheirar. - Tens papel?
-
Também.
-
Porra, que maravilha.
Sentados na cama, separaram as folhinhas de marijuana, enrolaram a erva num dos
papéis e acenderam o charro.
-
Está porreira - disse Alfonso, tossindo, assim que deu a primeira passa.
Deram várias passas mais e apagaram o charro. Alfonso correu as cortinas e o quarto ficou
quase às escuras. Em seguida, deitaram-se na cama, um ao lado do outro. Ficaram
calados. Tinham os olhos inchados, avermelhados.
-
É verdade o que Carlos Miranda dizia de ti na universidade? - perguntou Alfonso.
-
Que dizia ele?
-
Que uma vez lha chupaste.
Joaquín não soube o que havia de dizer.
-
Carlos Miranda é um filho da puta - disse. - Mas é verdade que lha chupei.
-
Quer dizer que és maricas?
-
Não sei. Acho que sim. Isso chateia-te?
-
Não, de modo nenhum.
É uma coisa que não posso evitar, Alfonso. Por mais que queira mudar, não
consigo.
- Não tens de me explicar nada. Também sei o que isso é. às vezes também me sinto meio
maricas, sobretudo depois de fumar um charro.
Ah sim? Que surpresa. Nunca me teria passado isso pela cabeça. Eu também nunca
imaginaria que fumavas charros.
- Fumo porque a marijuana me faz sentir muito maricas, me faz sentir como sou de
verdade.
Ficaram calados. De repente, Alfonso deu a mão a Joaquín. Olharam-se nos olhos.
- Gosto de ti.
-
Também gosto de ti.
Beijaram-se. Acariciaram-se.
-
Queres...?
-
Não sei - disse Joaquín. - Dói.
- Quando há ternura não dói - disse Alfonso.
Fizeram amor devagar, com ternura.
Que tal se lhe déssemos à grande esta noite? - perguntou Alfonso, quando
acordaram da longa sesta.
-
Tens neve? - perguntou Joaquín.
Em Lima, à cocaína chamavam "coca", "branca" e "neve", entre outros nomes.
-
Não, mas sei onde podemos obtê-la - disse Alfonso.
- Onde?
-
No Parque Torres Paz, à entrada de Barranco.
- Caso não saibas, Marianito Peschiera foi apanhado a comprar coca em Torres Paz.
- Não me lixes, não fazia a menor ideia.
- Comprou coca a um polícia disfarçado de passador e levaram-no para a esquadra. Teve
de pagar uma coima do caraças para sair de lá.
É um bom parvo o Marianito, porque nunca tive problemas em Torres Paz. Tenho
o meu contacto, Chongo, que vende uma neve de primeira.
Joaquín hesitou.
-
Não sei se hei-de dar-lhe à grande - disse. - Odeio a ressaca.
-
Não te preocupes, homem, que a coca de Chongo não provoca ressaca.
Alfonso abraçou Joaquín.
-
Já alguma vez fizeste amor pedrado? - perguntou, falando-lhe ao ouvido.
Nunca - disse Joaquín. - Não consigo. Não se me entesa quando estou pedrado.
Pelo contrário, a pila encolhe-se.
-
Não digas parvoices. Fazer amor pedrado é uma experiência do caraças.
-
Juro, Alfonso. Com coca não consigo.
-
Experimentemos esta noite. Aposto que vais gostar.
-
Está bem, vamos lá então.
Entraram para a banheira, tomaram duche juntos usando sabonete de amêndoas,
puseram creme para evitar a secura da pele e vestiram roupa importada. Em seguida,
foram até à garagem e Alfonso decidiu usar o Mercedes do pai.
- É uma maravilha este carro - disse, ligando o motor. - Anda como se fosse um avião.
Joaquín abriu o porta-luvas e procurou uma cassette, enquanto Alfonso conduzia a toda a
velocidade pelas curvas de La Planície.
Vê se encontras alguma coisa de Luis Miguel - disse Alfonso. - O rapaz tem
qualquer coisa.
-
Pois tem. Canta bem e é giro.
-
Na verdade, não faz o meu género.
-
Mas não podes negar que tem uma boca que atrai.
Joaquín encontrou uma cassette de Luis Miguel, pô-la no gravador e rebobinou-a.
Acho incrível estar a falar assim contigo - disse Alfonso. - Parecemos dois
paneleiros.
-
Não parecemos. Somos.
-
Eu não me considero paneleiro, Joaquín.
Luis Miguel começou a cantar. O Mercedes subia a toda a velocidade as íngremes
encostas de La Molina.
- Um dia, vou deixar as drogas e os rapazes e vou ter de casar - disse Alfonso,
contemplando lá de cima as luzes da noite de Lima.
Joaquín olhou-o e viu no seu rosto um gesto de resignação.
Mas, enquanto pudermos, há que gozar a vida - acrescentou Alfonso, e entrou
numa curva fazendo chiar os pneus.
< Um momento depois, Alfonso estacionou o carro numa esquina do Parque Torres Paz,
apagou o motor e abriu a porta.
-
Espera-me aqui - disse. - Não me demoro mais de cinco mImnutos.
-
Nem pensar - disse Joaquín. - Vou contigo.
-
Como quiseres.
Fecharam o carro à chave e dirigiram-se a uma bodega. O Parque estava sujo, descuidado.
Três dos quatro postes de luz que deviam iluminá-lo estavam apagados. Num banco, um
casal beijava-se.
Ouve, amigão, que andas a fazer por aqui? - gritou um homem baixo, de bigode,
do passeio em frente.
Chonguito, meu irmão - disse Alfonso, sorrindo. - Andava precisamente à tua
procura.
Alfonso e Joaquín atravessaram a rua e deram um aperto de mão a Chongo, que vestia
uma camisa aberta, calças curtas e sandálias de lona.
-
Conta lá, amigão - disse Chongo, baixando a voz. - Uma palavra tua é uma ordem.
Quero a melhor neve que tiveres, Chonguito - disse Alfonso. - É para obsequiar o
meu amigo que se formou hoje na universidade.
Porra, um senhor doutor - disse Chongo, e estendeu novamente a mão a Joaquín. Para os bons momentos só coisas boas, meu caro amigo.
-
Purinha, Chongo - disse Alfonso. - Que não provoque ressaca.
Ai como o meu amigão gosta da sua cocazinha boa - disse Chongo, sorrindo. - De
quanto queres? De cinquenta ou cem?
-
É melhor de cem, para não nos faltar - disse Joaquín.
-
Porra que cá o doutor está embalado - disse Chongo, coçando a barriga.
-
Purinha, Chongo, hem? - insistiu Alfonso.
Digo-te uma coisa, vou dar-te da que vendem os rapazes da Colômbia - disse
Chongo. - Anda, traz o carro, que vou buscar o teu produto.
Alfonso e Joaquín meteram-se no carro, retiraram o dinheiro e aproximaram-se de luzes
apagadas da porta da casa onde Chongo entrara. Este não tardou a sair. Olhou
rapidamente à sua volta, deu a coca a Joaquín e recebeu das mãos de Alfonso o dinheiro
combinado.
É purinha como a água, amigos - avisou; e cuspiu para o chão. - Não se
empanturrem, convidem amigos, caso contrário vão ficar de ressaca três dias seguidos.
-
Obrigado, Chongo - disse Alfonso.
-
Tchau, estrangeiros - disse Chongo. - Bom proveito lhes faça.
Alfonso acelerou, virou a esquina e acendeu as luzes. Antes de descer o monte, olhou pelo
espelho e certificou-se de que ninguém os seguia.
Tudo numa boa, porra - gritou, entusiasmado. - Não te disse que não haveria
surpresas desagradáveis?
-
Experimentamo-la? - perguntou Joaquín.
-
Só umas risquinhas.
-
Só umas. Só para a experimentar.
Aspiraram umas riscas, enquanto desciam em direcção à Costa Verde. O Mercedes corria
como se fosse um avião. Abriram as janelas e sentiram o cheiro a mar e a cerveja.
Tira-me esse parvalhão do Luis Miguel - disse Alfonso. - PÕe no Noventa e Nove e
sobe o som.
Joaquín pôs no Noventa e Nove e subiu o volume do som.
O Peru será uma merda, mas consegue-se aqui a melhor coca do mundo a um
preço de caca - disse Alfonso. - Digo-te uma coisa, se os meus velhos decidirem cavar
daqui, vou sentir uma falta do caraças d'este país.
-
Onde vamos? - perguntou Joaquín.
Ali acima, à cruz do papa - disse Alfonso, apontando para a cruz iluminada no alto
do morro Solar.
-
Pode subir-se até à cruz?
-
Claro, lá em cima a vista é espectacular.
Alfonso continuou a conduzir depressa. Subiram por um caminho e terra batida, cheio de
curvas, até ao cimo do morro. Ao chegarem, Alfonso apagou as luzes do carro. Desceram.
-
Puta que a pariu, Lima é linda vista daqui de cima - disse Joaquin.
Viam o mar escuro, as escarpas por onde tantos suicidas se tinham Irado, as pálidas luzes
do molhe.
-
Vamos para o carro - disse Alfonso.
Meteram-se no carro, fecharam todas as janelas, aspiraram mais coca e beijaram-se.
-
Estás bem pedrado? - perguntou Alfonso.
-
Tesinho - disse Joaquín.
-
Então vamos foder.
Antes de fazer amor com Joaquín, Alfonso molhou um dos dedos em saliva, meteu-o no
pacotinho de coca e pôs um pouco na ponta do seu sexo.
-
Vais ver como é bom com neve na pontinha - disse.
Em seguida amaram-se com os olhos bem abertos, para não perderem a bela vista de
Lima.
-
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém - disse Alfonso a Joaquín.
Estavam de volta à casa de La Planicie. Tinham-se metido no jacuzzi dos pais de Alfonso.
Continuavam a aspirar coca, cada vez com mais frequência, com mais vontade de
conversar.
-
Prometo-te que não sai daqui - disse Joaquín.
-
Quando era miúdo, uma vez violaram-me - disse Alfonso.
-
Como? - perguntou Joaquín, surpreendido.
Alfonso aspirou mais coca e bebeu um golo de whisky puro. Em seguida, falou
lentamente.
Vivíamos aqui em La Planicie. Eu tinha doze ou treze anos, não me lembro bem.
Estava de férias do colégio. Todos os dias ia ao clube para ter liçÕes de golfe. A minha casa
ficava perto do clube, pelo que ia a butes. Um dia, um tipo muito amigo do meu pai, que
ia ao clube jogar golfe à tarde, disse que me trazia de volta para casa. O tipo era muito boa
pessoa. Além disso, tinha uma pipa de massa, não devido a negócios, mas herdada da
familia. Resumindo, meti-me no carro e no caminho ele disse-me que parasse um
bocadinho na casa dele. Tinha um casarão incrível, a melhor casa de La Planicie.
Passeou-me pela casa, mostrou-me o quarto, a piscina, o ginásio, tudo do melhor. De
repente, perguntou-me que tal irmos um bocadinho para a sauna. O tipo tinha uma sauna
pequena ao lado do quarto. Achei um pouco esquisito, mas não disse nada. O tipo ligou a
sauna e despiu-se imediatamente. Eu tirei a roupa e entrei na sauna tapado com uma
toalha. Ele sentou-se a meu lado, nu. A propósito, já se tinha entesado. Então, como quem
não quer a coisa, perguntou-me se já tinha visto uma pila tão grande como a dele.
Disse-lhe que não e tentei fazer-me de parvo. Não sabia que merda fazer, estava borrado
de medo, mas estava ali e só me restava tentar safar-me o melhor possível. Riu-se e
perguntou-me: "de que tamanho é a tua, Alfonsito, vá lá, deixa-me ver". Mostrei-lha e ele
disse-me: "não está mal, tens uma boa pistola". Pouco depois, saímos da sauna, tomámos
um duche e o tipo disse que me ia dar umas massagens. Eu disse que era melhor não, mas
ele não fez caso.
deitei-me na cama dele e começou a dar-me massagens nas costas. Tinha posto qualquer
coisa nas mãos. E começou a tocar-me no rabo, sem dizer nada, como se fosse uma coisa
normal. De repente, senti uma pressão forte no rabo e o tipo enfiou-ma toda. Doeu-me
como o caraças. Gritei. Lembro-me perfeitamente de que ele se movia por detrás de mim
e dizia que, se me portasse bem me dava um prémio. Nem calculas como me doeu,
Joaquín. E depois ofereceu-me um dos seus tacos de golfe e trouxe-me a casa, como se
não tivesse acontecido nada.
Olharam-se longamente, sem pestanejar, com os olhos muito abertos devido à coca. O
jacuzzi estava a ferver. Sobre as costas caia-lhes um jorro de água quente.
-
E não contaste nada aos teus velhos? - perguntou Joaquín.
-
Não - disse Alfonso. - Fiquei calado.
-
E que aconteceu a esse cabrão?
Alfonso inclinou a cabeça para a folha de prata onde dividira a coca e aspirou algumas
riscas por uma palhinha de plástico.
Passado pouco tempo, matou-se num acidente muito estranho - disse. - Uma noite
saiu do clube com uns copos, ia a caminho de casa e o carro capotou. Ele saiu a voar pela
janela. O carro caiu-lhe em cima e esmagou-o. Morreu esborrachado como uma barata.
Ficou feito em merda. Os meus velhos foram ao enterro. Eu não quis ir. Lembro-me de
que, ao voltar do cemitério, o meu velho chorava e dizia que ele era um dos melhores
homens que tinha conhecido.
- Se não tomarmos uns comprimidos, não conseguimos dormir - disse Alfonso.
A essas horas da madrugada, a coca já acabara. Alfonso tinha os olhos muito abertos e o
nariz inchado. Assoava-se constantemente a um lenço molhado em água quente. As mãos
de Joaquín tremiam.
- É perigoso tomar comprimidos quando se está pedrado - disse.
- Parvoices - disse Alfonso.
Em seguida, abriu as gavetas da casa de banho dos pais em busca de comprimidos para
dormir.
- Devem estar por aqui - disse, procurando entre perfumes, massagem, cremes e
medicamentos. - A minha velha tem um montão trunfos.
Por fim, encontrou um frasco de soníferos. Tomou três comprimidos e passou o frasco a
Joaquín.
Com isto dormes como se fosses uma criança e sonhas com negros nus - disse-lhe,
sorrindo.
Joaquín tinha a cara tão dura que não conseguiu sorrir. Tirou dois comprimidos e
engoliu-os com dificuldade. Depois, foram para o quarto de Alfonso e deitaram-se de
costas.
-
Ter nascido no Peru e ser homossexual é como que uma maldição - disse Joaquín.
Tenta não pensar - disse Alfonso. - Quando uma pessoa está a descer, a pior coisa
que pode fazer é pensar.
-
Eu queria ser presidente, mas foi tudo ao ar porque sou homossexual.
Calma, Joaquín, não fiques deprimido. Os que sabem dar-lhe conseguem descer
sem se deprimir.
-
Achas que teria sido um bom presidente?
-
Serias um presidente do caraças. Podes contar desde já com o meu voto.
-
Ninguém votaria numa bicha para presidente. Salvo as bichas claro.
Mas ninguém precisa de saber que és maricas. Casas-te com uma loira (porque já
sabes que os mestiços não votam em mestiços), arranjas logo um par de filhos e ninguém
te consegue parar, no ano 2000 és tu o candidato. Já imaginaste as orgias do caraças que
faríamos no palácio com as brasas dos ajudantes-de-campo?
-
Realmente não soa nada mal.
-
Além disso, aposto que não serias o primeiro presidente maricas.
Mas é impossível, Alfonso. Sou maricas, sou um agarrado à coca, expulsaram-me
da universidade. Digamos que não tenho o curriculo mais adequado para ser presidente.
-
Idiota, no Peru, qualquer pessoa com boa pinta e muita lábia pode ser presidente.
-
Além disso, não poderia ter filhos.
Os filhos são só uma fachada. Um presidente com um par de filhos loiros e um
cãozinho no jardim parece sempre bem.
-
Eu não suporto mulheres, Alfonso.
Nesse caso, emprestas-me a tua mulher, salto-lhe para cima e emprenho-a. Terias
um puto loiro e de olhos azuis.
- Boa ideia.
- Agora, vamos tentar dormir e amanhã começamos a planear a tua campanha.
Pouco depois, Joaquín levantou-se, foi à casa de banho, assoou várias vezes o nariz e ficou
um bocado em frente do espelho, dando uma imaginária conferência de imprensa como
presidente do Peru.
- Merda, que dor de cabeça - foi a primeira coisa que Alfonso disse na manhã seguinte.
Tinha a cara inchada, os lábios gretados, o olhar inexpressivo. Joaquín estava deitado na
cama e assoava-se constantemente. Pusera um rolo de papel higiénico a seu lado. Depois
de se assoar, atirava os papéis usados para a alcatifa.
- Vou dizer a Charito que nos prepare um pequeno-almoço de arromba - disse Alfonso,
levantando-se da cama com dificuldade.
Foram à cozinha de roupão e com óculos escuros. Andavam lentamente, de mãos nos
bolsos.
- Dói-me o peito, Alfonso.
- Não exageres, Joaquín. Foi só um bocadinho de coca, não foi propriamente uma
desbunda.
- Se continuo a snifar, uma noite destas morro.
Entraram na cozinha. Charito lia a página de espectáculos de EL Comercio.
- Ai, meninos, que horror - disse. - Estão com umas caras que metem medo.
- Faz dois pequenos-almoços completos, Charo - disse Alfonso. Foram para o terraço. O
dia estava enevoado. Quase não se podiam ver os cerros que ficavam por detrás do jardim
da casa.
- Deveríamos ir passar uns dias numa praia sossegada - disse
Alfonso.
- Eu adorava ir, porque a coca está a dar cabo de mim - disse Joaquín.
Alfonso tirou os óculos escuros e sorriu.
- Já sei - disse. - Vamos para Punta Sal.
- Que bom que seria.
- Fechamo-nos num bungalow a fumar charros todo o dia.
- Parece maravilhoso.
- Vamos hoje mesmo, Joaquín.
- Mas acho que Punta Sal é caro.
- Não te preocupes, os meus velhos deixaram massa que chega e sobra.
Alfonso entrou na sala, voltou para o terraço com um telefone portátil e, enquanto
tomava o pequeno-almoço, fez as reservas para a viagem. Nessa mesma tarde, subiram
para um Aeroperu com destino a Talara. Cada um levava vinte charros no bolso.
Quando descobriste que gostavas de homens? - perguntou Alfonso, estendido
numa rede.
Já era noite. Estava no terraço de uma cabana do Hotel de Punta Sal. O ar estava fresco,
agradável. A lua cheia, de matizes amarelos, iluminava o céu do norte peruano.
-
Quando era miúdo - disse Joaquín.
- Conta-me como foi.
- Uma vez que fui passear com um tio para a casa de campo dele.
- Não me digas que o teu tio se armou em malandreco contigo.
- Não, não aconteceu nada com o meu tio. Ele é um cavalheiro, é muito bom tipo, embora,
curiosamente, também seja maricas.
- Bem, então continua lá.
- Uma vez, fui a casa do meu tio em Canta, a cerca de três horas de Lima. Fomos o meu
tio, um amigo dele que era da Marinha e eu.
-
Quantos anos tinhas?
- Dez, onze, não tenho a certeza. Era um miúdo o mais inocente que há. Claro que não
fazia a menor ideia que o meu tio era maricas. Esse meu tio tem uma pipa de massa.
Fascinam-no os rapazes da Marinha. É famoso porque arranja umas orgias incríveis com os
marinheiros mais giros do Peru.
-
Porra, deverias apresentar-mo.
- O marinheiro era bem bonito e fortalhaço. Chamava-se Zaric e era capitão de fragata
Zaric. Uma tarde, o meu tio saiu a caçar lebres e Zaric e eu ficámos sozinhos. Pusemo-nos
a jogar cartas e Zaric disse que quem ganhasse três jogos seguidos escolhia o castigo a dar
ao outro. Como imaginarás, Zaric jogava muito melhor do que eu, isto é. ganhou-me três
jogos seguidos. Então, disse-me que o castigo era encontrar o periscópio que tinha
escondido entre a sua roupa.
-
Um bom malandro, esse capitão Zaric.
Sentei-me ao lado dele e comecei a procurar nos bolsos do casaco, da camisa, e ele
dizia-me frio, frio, estás longe do periscópio, meti as mãos nos bolsos das calças e ele disse
morno, morno, e em seguida, como que a brincar, meti a minha mão dentro das calças
dele e ele disse quente, quente, e quando lhe toquei na pila ele disse já está, encontraste
o periscópio, e eu tirei logo a mão, meio nervoso. Então, ele disse-me, se quiseres
mostro-te o meu periscópio e podemos jogar submarino. De repente, desapertou a
braguilha e mostrou-ma. Lembro-me de que era circuncisado. Meio a brincar, Zaric
disse-me para brincar ao submarino e eu perguntei como é que se jogava; ele agarrou-a e
disse-me: quando eu disser a flutuar, tu puxas a pele para baixo e a becinha sai e fica a
flutuar; e quando eu disser submarino, puxas para cima e a cabecinha fica debaixo de
água. Deitou-se no chão, agarrou a minha mão e pô-la por cima da pila dele. A seguir,
começou a dizer a flutuar, e eu descia, submarino, e eu subia, a flutuar, submarino, a
flutuar, submarino, mais depressa, marinheiro, mais depressa, a flutuar, submarino, e, de
repente, disse, prepare-se, marinheiro, que vamos disparar uns projécteis para as naves
inimigas, e ejaculou com tanta força que me manchou a cara. Depois, limpámo-nos e
continuámos a jogar às cartas.
Alfonso levantou-se da rede, ajoelhou-se ao lado de Joaquín e beijou-o na boca.
- És mesmo bicha, miúdo - disse-lhe.
- Já sei, já sei - disse Joaquín. - Mas não posso evitá-lo.
Em seguida, fumaram marijuana e foram tomar banho na piscina.
Na manhã seguinte, Alfonso e Joaquín ainda dormiam quando tocaram à porta do
bungalow onde tinham ficado instalados. Alfonso levantou-se, enfiou um roupão e abriu a
porta.
- Sr. Alfonso Cisneros? - perguntou-lhe uma mulher.
- O próprio - disse Alfonso.
- Muito prazer - disse a mulher. - Chamo-me Carolina Gonzága e sou a administradora do
hotel.
Joaquín saltou da cama e assomou à porta.
- Lamento tê-los acordado, mas é um assunto bastante delicado - disse ela.
Era uma mulher de meia idade. Vestia uma blusa amarela e uma saia preta e calçava
sapatos de salto alto.
-
Diga-me em que possa servi-la - disse Alfonso.
Olhe, Sr. Cisneros, vejo-me obrigada a informá-lo de que esta manhã recebemos
queixas de vários hóspedes sobre o comportamento que o seu amigo e o senhor tiveram
ontem nas instalaçÕes do hotel.
-
Ah sim? - disse Alfonso.
- E de que se queixaram esses hóspedes, minha senhora? - perguntou Joaquín.
- Olhe, repito que se trata de um assunto muito delicado, mas alguns hóspedes vieram à
administração informar-nos de que os senhores estiveram ontem na piscina e mantiveram
um comportamento impróprio, um comportamento incompatível com as regras morais
deste hotel.
- É verdade que ontem à noite tomámos banho na piscina, mas não sabia que era proibido
- disse Alfonso.
- Claro que não é proibido, Sr. Cisneros - disse a mulher. - O que efectivamente é proibido
é que dois homens se beijem na piscina do hotel à vista dos outros hóspedes.
- Com todo o respeito, minha senhora, parece-me que está a exagerar - disse Joaquín.
- Por último, que mal tem termo-nos beijado? - perguntou Alfonso. - Por acaso fizemos
mal a alguém?
- Claro que fizeram, senhor Cisneros - disse a mulher. - Este hotel tem uma reputação
sólida e não pode permitir essas exibiçÕes de imoralidade. Dois homens a beijarem-se
constituem uma ofensa à ética e à moral dos nossos clientes. Além disso, convém lembrar
que estão aqui alojados menores, que poderiam presenciar um espectáculo tão
vergonhoso.
- Dois homens a beijarem-se não são uma imoralidade nem uma vergonha, minha senhora
- disse Joaquín.
- Talvez seja essa a sua opinião, mas a administração do hotel não a perfilha - disse a
mulher.
- Nesse caso, aceite as nossas desculpas - disse Alfonso. - Garanto-lhe que a situação não
se irá repetir.
Lamento ter de lhes dizer que não podem permanecer no hotel - disse a mulher. Cometeram uma falta grave, que viola o nosso regulamento interno, de modo que lhes
peço que abandonem o hotel antes do meio-dia.
-
Isto é incrível - disse Alfonso. - Deveria ter vergonha.
O senhor é que deveria ter vergonha de andar a beijocar homens mulher.
-
disse
a
De certeza que a senhora é uma solteirona - disse Alfonso
Oiça, Sr. Cisneros, não me falte ao respeito, por favor, pois está a falar com uma
senhora - disse a mulher, elevando a voz.
Vou escrever uma carta à Caretas, para que todo o país saiba disto - ameaçou-a
Joaquín.
Façam o que quiserem, mas, por favor, saiam antes do meio-dia - disse a mulher,
e desceu as escadas do bungalow.
-
Sua solteirona frustrada - gritou Alfonso.
Joaquín soltou uma gargalhada, espantando uns caranguejos que ziguezagueavam na
areia.
- Atrever-te-ias a contar aos teus velhos que és homossexual? - perguntou Joaquín, no
avião de regresso a Lima.
• - Nem pensar, estás doido, fariam uma cena do caraças - disse.
-
Mas se gostas deles, deverias ser sincero com eles.
Pelo contrário, justamente porque gosto deles, prefiro que não o saibam. Se
chegassem a saber, ficariam muito infelizes comigo.
•
- Um dia, vão saber através de terceiros, Alfonso, e isso será pior, porque
parecerás um mentiroso.
- Não me parece que venham a saber, Joaquín. Em Lima, há montes de pessoas que têm
uma vida dupla. É tudo uma questão de saber fazer as coisas.
-
Mas não te sentirias mais sossegado se lhes contasses a verdade?
•
- Não. Neste país há certas coisas de que não se deve falar e a nossa fraqueza pelos
homens é uma delas. No Peru, podes ser agarrado à coca, um ladrão ou um mulherengo,
mas não te podes dar ao luxo de ser maricas.
•
- Que se lixem os beatos e os intolerantes que não estão dispostos a aceitar as
pessoas tal como elas são. Que vão para o caralho.
- Claro, parece muito bonito, mas tens de aceitar que o mundo está cheio de
espertalhaços. Os idealistas acabam a vagabundear. Se preferes subir, tens de ser
pragmático, frio.
Só se vive uma vez, Alfonso. Se não me atrevo a ser como sou, vou chegar a velho
a odiar-me, frustrado, cheio de amargura.
Tu não me compreendes. Não sou contra a homossexualidade. O que te estou a
dizer é que o faças pela calada, que não faças escândalo, que não lixes a tua reputação.
Eu não seria capaz de me casar para cuidar da minha reputação e dar alegria aos
meus pais, Alfonso. Sentir-me-ia um ser desprezível, manipulador. Não seria capaz de me
olhar no espelho todas as manhãs.
O casamento tem as suas vantagens, homem. Se nunca casares, acabas sozinho,
amargurado, como esses velhos que vão ao Haiti ver se conseguem engatar um desses
actores de meia-tigela que se passeiam por Miraflores. Pensa: deve ser bom chegar a casa
e a tua mulher ter-te preparado um bom jantar, ter as tuas camisas passadinhas a ferro,
que ela te corte as unhas e te ponha talco nos tomates; que os teus putos brinquem
contigo e te façam morrer a rir. Porque, deixa-te de parvoices, Joaquín, a vida familiar é
uma coisa estupenda. Seja como for, eu quero ter filhos, para os ver crescer.
E quando te apetecer estar com um homem, que é que fazes? Vais dar uma volta,
engatas um tipo, enfiam-ta e já está. É como quando um carro começa a falhar: leva-lo à
oficina, afinam-to, lavam-no, mudam-lhe o óleo e já está, fica como novo.
Acho horrível que os homens só existam para te mudar o óleo de vez em quando, Alfonso.
Eu gostaria de ter um companheiro, de viver com ele.
Neste país é impossível, Joaquín. Repara no que nos acaba de acontecer em Punta
Sal. Se queres viver com um homem e fazer vida de casal, tens de sair do Peru. O Peru não
é a Dinamarca. compadre.
Eu sei, eu sei, mas se todos formos uns cobardes e continuarmos a esconder-nos,
as coisas nunca vão mudar.
Eu prefiro ficar sossegadinho, sem me expor. Se achas que a tua missão é
imolares-te pela causa de uns quantos maricas e travestis que estão a tomar uma
cervejinha na rua das pizzas, felicito-te, tiro-te o chapéu e desejo-te toda a sorte do
mundo, mas não me peças que salte contigo para o precipício.
-
No fundo, estás borrado de medo, Alfonso.
-
Não tenho medo, Joaquín. O que não sou é um suicida como tu.
-
Joaquín, por favor, vem ao meu quarto, quero dizer-te uma coisa - disse Tati.
-
Com muito prazer - disse Joaquín.
Alfonso e Joaquín acabavam de regressar de Punta Sal. Joaquín entrou no quarto de Tati.
Ela estava sentada na cama. Ainda não despira o uniforme do colégio.
-
Há uma coisa que me traz muito preocupada. Se calhar, tu podes ajudar-me.
-
Diz lá, Tati.
-
Este sábado é a minha festa de fim de curso e não sei com quem hei-de ir.
-
Caramba, Tati, ora aí está uma coisa muito grave.
Tencionava ir com o Polito, o meu namorado, mas agora estamos zangados a sério
e não sei o que fazer.
-
Caramba!
Ficaram calados.
-
Gostarias de ir à minha festa de fim de curso? - perguntou ela.
Joaquín sorriu, surpreendido.
-
Não, já estou velho de mais para uma festa de finalistas - disse.
Vá lá, não sejas tonto, estás fantástico. Tenho a certeza de que nos divertiríamos à
brava, Joaquín.
-
A verdade, Tati, é que danço pessimamente.
-
Vá, não sejas mauzinho, Joaquín, não te faças rogado.
-
Por mim, encantado, mas primeiro tenho de falar com Alfonso.
-
Ai de Alfonsito se não estiver de acordo. Ai dele!
-
Então vamos falar com ele agora mesmo.
Joaquín saiu do quarto de Tati e entrou no quarto de Alfonso.
-
Tati acaba de me convidar para a sua festa de finalistas - disse.
Alfonso soltou uma gargalhada. Estava deitado em cima da cama a ver televisão.
-
Que lindo casalinho - disse.
Meu parvo, não te rias, que estou a falar a sério. A tua irmã diz que não quer ir
com o namorado porque estão zangados.
-
Por mim, fico muito feliz por ela não ir com aquele biltre do namorado.
-
Que hei-de fazer, Alfonso? Acompanho-a?
-
Sê apenas um cavalheiro. Acompanha-a.
-
Não ficarias lixado comigo?
-
Pelo contrário, isso dava-me vontade de morrer a rir.
Para ser franco, não tenho muita vontade de ir a uma estopada de uma festa de
fim de curso do Colégio Santa úrsula.
-
É só uma noite, Joaquín. Faz isso por ela.
-
Seja como for, faço-o por ti.
-
Só te peço uma coisa.
-
O que quiseres.
-
Nada de te meteres na coca nessa noite.
-
Prometo-te que não faço nada disso.
- Despacha-te, Joaquín, que vamos chegar tarde à missa - gritou Tati.
Era a noite da sua festa de finalistas. Joaquín estava na casa de banho, a pôr um pouco
mais de gel na cabeça.
-
Que missa? - gritou.
Há uma missa no colégio antes da festa - gritou Tati. - Jurei às freiras que ia. Não
demora nada.
-
Saio já - gritou Joaquín.
Fez o nó da gravata, sorriu em frente do espelho, penteou-se outra vez e saiu da casa de
banho. Tati esperava-o, andando nervosamente de um lado para o outro da sala. Estava
muito pintada. Cheirava a perfume de senhora. Usava uma orquídea presa ao vestido, à
altura do peito. Alfonso estava na sala a tomar uma bebida.
-
Estás lindíssima, Tati - disse Joaquín.
Vamos já embora, porque não temos tempo a perder, se queremos chegar a horas
- disse Tati, olhando para o relógio.
-
Em que carro vão? - perguntou Alfonso.
-
Podemos ir no Mercedes do papá? - perguntou Tati.
- Está bem, mas só porque é a tua festa de finalistas - disse Alfonso.
-
Obrigada, Alfonsito - disse Tati, beijando o irmão na cara.
Vai andando para o carro, Tati - disse Alfonso. - Preciso de dizer uma coisa ao teu
irmão.
-
Vem já, porque estamos atrasadíssimos - disse Tati, e dirigiu-se à garagem.
Alfonso levantou-se e arranjou o nó da gravata de Joaquín.
Se queres agarrar-te a Tati, não há problema - disse, baixando a voz. - Não sou um
irmão ciumento.
-
Se quisesse agarrar alguém a sério, ficava contigo, parvalhão - disse Joaquín.
Deram um beijo. Depois, Joaquín foi para a garagem e subiu para o carro do pai de
Alfonso. Tati estava a pintar as unhas. Saindo de La planicie, Joaquín pôs o Mercedes a
andar a toda a velocidade.
- Não te incomoda que ligue a rádio - perguntou Tati.
-
De modo nenhum - respondeu Joaquín.
-
Vais dizer que sou uma pirosa do pior, mas adoro a música da RBC.
Tati ligou a rádio e procurou a RBC, uma das muitas estaçÕes do mostrador.
-
Ai, que emoção, esta canção fascina-me:
suspeito que não tens pressa e que te agrada ver que pouco a pouco só penso em ti, só
penso em ti...
Nesse momento, Joaquín pensou que tinha de arranjar um pouco de paciência para
aguentar Tati toda a noite.
-
Sabes, Tati? - disse. - Estou cheio de fome.
-
Não te preocupes, pois na festa vão servir montes de comida.
-
Não consigo esperar pela festa. Tenho de comer qualquer coisa já.
- Ai, que horror, todos os homens são uns comilÕes. Morro de inVeja porque vocês
comem o que querem e lhes apetece e nunca engordam. Em compensação, nós, as
mulheres, comemos um bocadinhO e engordamos logo. É uma coisa estranhíssima e, além
disso, muito injusta.
- Isso é porque nós, os homens, cagamos melhor do que as mulheres.
- Que ordinário me saiste - disse Tati, rindo-se. - Mas sim, talvez seja por isso, porque eu
entre as cólicas do período e a prisão de ventre estou a ficar doida.
Pouco depois, Joaquín estacionou o carro em frente do Pacifie Chicken, um restaurante de
San Isidro.
-
É só entrar e sair disse. - Não me demoro.
Tati acenou com a cabeça em sinal afirmativo. Cantava uma canção de Isabel Pantoja.
Joaquín entrou no Pacific Chicken e perguntou por Coqui, o administrador.
Está no escritório, no terceiro andar - disse-lhe um dos empregados. - Basta
bater-lhe à porta.
Joaquín pediu um quarto de frango, subiu as escadas e bateu à porta da administração.
Um tipo jovem abriu a porta. Era Coqui.
-
Caramba, que elegante, mestre, que bem encadernado que está - disse, sorrindo.
-
Preciso de vitaminas, Coqui - disse Joaquín. - Tens?
- Para os bons clientes como tu, há sempre, meu irmão.
- Tem de ser já. Vou a uma festa de finalistas e o meu par está à minha espera no carro.
-
Calma, irmão, não fiques ansioso.
Coqui abriu uma das gavetas da secretária, retirou de lá um pacotinho com cocaina e
deu-o a Joaquín.
-
Quanto te devo? - perguntou Joaquín.
-
Nada, meu irmão - disse Coqui. - Depois, fazemos contas.
-
És um verdadeiro cavalheiro, Coqui.
Obrigada, meu irmão. Se puderes, compra um franguinho à saida, para a
confundires.
Joaquín guardou o pacotinho no bolso e despediu-se de Coqui. Em seguida, meteu-se na
casa de banho e aspirou as primeiras riscas de coca da noite. à saída do Pacific Chicken
pegou no quarto de frango que pedira e correu para o carro.
Sem perder tempo, ligou o carro, deu uma mordidela no frango e acelerou pela Avenida
dos Conquistadores. Pouco depois, chegaram à capela do Colégio de Santa úrsula. A missa
já estava a acabar.
-
Pelo menos vou comungar - sussurrou Tati.
- Eu também - disse Joaquín.
Ela olhou-o surpreendida.
-
Mas tu acabas de comer frango no churrasco - disse.
-
Isso não tem importância - respondeu Joaquín. - Deus perdoa a fome.
-
Isso é contigo, não tenho nada que ver com os teus pecados.
Comungaram. Para Joaquín, foi uma sensação estranha ter, ao mesmo tempo, uma hóstia
na boca e um pouco de coca no nariz.
- Não posso acreditar, olha quem está ali - disse Tati a Joaquín, falando-lhe ao ouvido.
Estavam sentados no jardim de um casarão da Avenida Salaverry, onde se celebrava a
festa das alunas do quarto ano do ciclo do Santa úrsula.
Estou sem óculos, não vejo bem - disse Joaquín, e cuspiu para um guardanapo a
comida que tinha na boca. Aspirara tanta coca de uma vez que não conseguia engolir.
- Não posso acreditar que o Polito me faça uma coisa destas - disse Tati.
-
Que Polito? - perguntou Joaquín.
-
Polito, o meu namorado. Melhor, o meu ex-namorado.
-
Onde está?
-
Ali, a descer as escadas.
-Veio à festa? O teu namorado está cá?
Não posso crer que o Polito me tenha traido desta maneira e que, ainda por cima,
tenha o desplante de vir com aquela horrível da Mariana Torero.
-
Quem é a Mariana Torero?
- Aquela cara de cu que está com o Polito! Não olhes para eles. Não olhes para eles,
caramba! Não quero que o Polito me veja.
-
Coitadinha da rapariga. Não é assim tão feia.
- Oh, bem se vê que estás cegueta. A Mariana é um horror. Tem freios que parece um
cavalo. E ainda por cima fala como uma casada. Além de ter borbulhas no rabo.
-
Viste-lhe o rabo?
-
Não. Mas podia jurar que a Mariana Torero tem borbulhas no rabo.
-
Come, Tati. Esquece o Polito. A tua comida vai arrefecer.
- Come tu também. Não comeste nada, Joaquín.
-
Não tenho fome. Desculpa, mas tenho de ir à casa de banho.
- Outra vez?
- Sorry, Tati, mas não estou lá muito bem da barriga.
- Ai, coitado, que maçada.
Joaquín levantou-se, foi à casa de banho do segundo andar e aspirou algumas riscas de
coca. Quando voltou para o jardim, alguns pares já tinham começado a dançar.
-
Vamos dançar, Joaquín - disse-lhe Tati.
-
Aviso-te que danço pessimamente - disse Joaquín.
-
Não tem importância. Eu ensino-te.
Foram dançar. Estavam a tocar uma salsa da moda.
-
Vê-se que gostas de mexer o esqueleto - disse Tati, enquanto dançavam.
Faz-se o que se pode, faz-se o que se pode - disse Joaquín. Dançaram várias
cançÕes seguidas, até que ele sentiu a necessidade urgente de aspirar mais coca.
-
Vou à casa de banho agora mesmo - disse.
Ai, isto é incrível - disse Tati, levando as mãos à cintura. - Não posso acreditar que
o meu par tenha diarreia no dia da minha festa de finalistas.
-
Coisas da vida, Tati - disse Joaquín, e foi a correr para a casa de banho.
Assim que entrou, meteu-se numa das retretes e acabou com a coca. Depois, lambeu o
papel onde a coca estava embrulhada, lambeu os cantos do cartão de identidade que
usara para a meter no nariz, lambeu os lábios, lambeu os dedos. Quando voltou para a
pista de dança, estava nervoso, mal-humorado. A única coisa que lhe interessava naquele
momento era conseguir mais uns grãos de coca.
-
Vamos dançar - disse Tati, dando-lhe a mão.
-
Não consigo - disse Joaquín. - Sinto-me mal.
-
Que tens?
-
Não sei. Estou cansado.
-
Vamos dançar só mais uma, não sejas mau.
Joaquín agarrou Tati pela cintura e dançaram uma canção lenta. Quando a canção acabou,
Polito aproximou-se de Tati.
-
Queres dançar comigo? - perguntou-lhe.
Polito era um rapaz baixo, de nariz aquilino, olhos vivos e cabelo negro. Parecia estar um
pouco bêbedo. Tati não lhe respondeu.
-
Vá lá, não sejas ridícula, estou a falar contigo - disse-lhe Polito.
Tati ficou calada, ignorando-o, olhando para outro lado.
- Anda, borracho, vamos dançar - disse Polito e puxou-a pelo braço.
Tati refilou.
- Não me toques e não te atrevas a chamar-me borracho - gritou.
- Que diabo te deu? Por que é que estás irritada? - disse Polito, sorrindo. - Só quero
dançar uma vez contigo.
Tati abraçou Joaquín.
-
Emprestas-me o teu par, magricelas? - perguntou Polito a Joaquín.
Joaquín tentou responder-lhe, mas não foi capaz de dizer uma única palavra. Aspirara
demasiada coca.
Porra, o teu amigo está pedrado - disse Polito a Tati. - Anda, borracho, vamos
dançar.
-
Deixa-me, estúpido, e não me chames borracho disse ela.
Quando te irritas, ficas muito mais gira, borrachinho - disse Polito, sorrindo, e
tentou beijar Tati na cara.
-
Larga-me, porco - gritou Tati, e libertou-se dos braços de Polito.
No meio do estrondo da música, poucos pares se aperceberam do incidente.
-
Joaquín, faz qualquer coisa, por favor - disse Tati.
-
Joaquín parece uma estátua - disse Polito.
-
É da diarreia - explicou Tati.
-
Eu vou-me embora - disse Joaquín. - Não me sinto bem.
Mas é ainda tão cedo e a ideia era ir comer qualquer coisa em Lurin, quando
amanhecesse - disse Tati, surpreendida.
-
Não posso mais - disse Joaquín. - Se quiseres, fica com o Polito.
-
Deste-lhe na fruta, magricelas - disse Polito.
Joaquím saiu da festa e andou lentamente. Tati despediu-se das amigas e foi atrás dele.
Não posso acreditar que tudo tenha corrido tão mal esta noite - disse ela, à beira
das lágrimas, enquanto percorria a Avenida Salaverrry. - Encontrei o imbecil do Polito, a ti
dá-te uma diarreia, para cúmulo obrigas-me a sair da festa à uma da manhã.
Assim que entraram no carro, Tati desatou a chorar. Joaquím apercebeu-se de que tinham
roubado os quatro pneus do Mercedes quando acelerou uma e outra vez e o carro não se
mexeu.
Meia hora depois, Tati e Joaquín chegaram de táxi a casa dos pais de Alfonso. Tati desceu
do táxi descalça, com os sapatos na mão, e correu para casa. Chorara durante todo o
caminho até La Planicie. Joaquín pagou o táxi e desceu lentamente. Tati fez tanto barulho
ao entrar em casa que Alfonso saiu do quarto em cuecas e de pistola na mão.
Meu filho da puta, não me digas que te estampaste - disse a Joaquín, que estava
de pé, à porta de casa.
-
Não - respondeu Joaquín sem o olhar nos olhos.
-
Então onde está o Mercedes?
- Roubaram-lhe os pneus, Alfonso.
-
Onde?
-
à porta da festa.
-
Todos os pneus?
-
Os quatro. Está assente em tijolos.
-
Caramba, que chatice. Tinha a certeza de que ia acontecer alguma coisa.
Entraram em casa. Alfonso acendeu as luzes.
Parvalhão, estás ganzado - disse. Joaquín ficou calado. Aspirara tanta coca que não
conseguia falar
bem.
-
Prometeste-me que não ias dar na fruta - disse Alfonso.
-
Lamento - disse Joaquín.
-
Tati apercebeu-se de alguma coisa?
-
Não. Julga que estou com diarreia.
Foram para o quarto de Alfonso, que se vestiu rapidamente.
És um grande estúpido, Joaquín - disse. - É preciso saber quando nos podemos
meter na coca e quando não.
Alfonso estava aborrecido. Joaquín tirou as suas malas do armário.
Qualquer pessoa pode ser um agarrado à coca, Joaquín, mas nem todos são bons
agarrados - disse Alfonso. - E a ti ainda te falta muito para seres um bom agarrado.
Joaquín apanhou a sua roupa da alcatifa e meteu-a nas malas.
O bom agarrado conhece os seus limites - continuou Alfonso. O bom agarrado
ganza-se sem que ninguém note. O bom agarrado não faz caretas nem diz idiotices. O
bom agarrado nunca fica mudo e quedo como tu estás agora. Mas tu não és um bom
agarrado, Joaquín. És apenas mais um agarrado.
Joaquín pegou nas malas e saiu do quarto.
-
Para onde vais? - perguntou Alfonso.
-
Volto para a pensão - disse Joaquín.
Alfonso aproximou-se dele e pegou-lhe no braço.
- Tem calma, não precisas de ir já - disse-lhe.
- Prefiro ir-me embora - disse Joaquín.
-
Porra, pareces uma dama, não se te pode dizer nada.
- É isso mesmo, sinto-me uma dama, e se isso te lixa, problema teu.
- Parvalhão, não te irrites, fica mais uns dias.
-
Obrigado, mas é melhor ir agora mesmo.
-
Faz como quiseres.
Dirigiram-se à garagem em silêncio e meteram as malas no carro de Joaquín.
-
Vais conseguir guiar? - perguntou Alfonso.
-
Acho que sim - respondeu Joaquín.
-
Onde está o Mercedes?
-
No quarteirão 33 da Salaverry.
-
Não te preocupes. Eu trato de tudo. Fuma um charro e vai dormir.
•"£" Olharam-se nos olhos. Abraçaram-se. Joaquín assoou-se à sua gravata de seda azul.
Olha, antes de te ires embora, não tens por aí um pouco de branca? - perguntou
Alfonso.
-
Não - respondeu Joaquím. - Acabei com ela.
- É pena. Iam saber-me muito bem uns snifes matinais.
Alfonso subiu para o carro e saiu, conduzindo a toda a velocidade,
enquanto
marcava uns números no telemóvel.
Joaquím saiu de La Planicie a conduzir a vinte
quilómetros à hora. Olhava constantemente
pelo espelho. Podia jurar que alguém o seguia.
Uns dias depois, Alfonso foi à pensão onde Joaquím vivia. Não se viam desde a noite da
festa de Tati. Joaquím pensava que Alfonso não o queria ver mais.
- Os meus velhos vão mandar-me estudar para os Estados Unidos - disse Alfonso, assim
que entrou no quarto e se sentou na cama.
Como é que é isso? - perguntou Joaquín, surpreendido.
marijuana no meu quarto e contou à velha.
-
-
Charito
encontrou
Não me lixes!
- É verdade, Charito traiu-me. Tive um azar do caraças. Precisamente nesse dia tinha
comprado uma marijuana óptima em La Mar e escondera-a no roupeiro, dentro de uns
sapatos velhos. E, precisamente naquele dia, a minha velha lembrou-se de fazer uma
limpeza na casa, porque regressara de Caracas. Diz lá se não sou azarento, Joaquín. Ainda
por cima eu não estava em casa, tinha ido para as liçÕes de golfe. A minha mãe mandou
Charito arrumar o meu roupeiro e limpar todos os meus sapatos e a mestiça estava a
engraxá-los quando encontrou a erva, e a primeira coisa que aquela idiota fez foi levar o
pacote de erva à minha mãe. índia de merda, por que porra tinha de ir contar tudo?
- E como é que a tua velha reagiu?
Isso foi o pior de tudo, porque, em vez de esperar por mim e falar comigo, a velha
enervou-se, telefonou para o escritório do meu pai e disse que tinha encontrado drogas
no meu quarto. O meu velho saiu imediatamente da fábrica e regressou a casa possesso.
Quando cheguei do clube, os meus velhos estavam sentados na sala, à minha espera, com
o pacote de marijuana.
-
Merda, que cena!
- Furioso, o meu pai estava furioso... Fez-me um montão de perguntas, do tipo desde
quando te drogas, quando foi a primeira vez, quem te convidou. Eu fazia-me de parvo. A
minha velha chorava como uma histérica e gritava não quero que o meu filho seja um
droguista, estava completamente histérica, e então eu disse-lhe mamã não se diz
droguista, diz-se drogado, e o meu pai, furioso, disse-me não faltes ao respeito à tua mãe,
e ela continuava a gritar como uma louca, dizia ao meu pai que tinham de me internar na
Clínica San Felipe para que me fizessem uma cura de sono, que era uma questão de vida
ou de morte. que ela conhece um médico chinês, o famoso Dr. Pin, que te cura das drogas
espetando umas agulhinhas, e todo esse escândalo por um bocadinho de marijuana!
- É de morrer a rir, Alfonso.
- Espera lá que isto não termina aqui. O pior foi quando me empinei e disse à minha velha
que a marijuana não faz mal e que, se fumasse um charrinho, deixaria de gritar como uma
louca e ficaria descontraída e depois disse ao velho que a meia garrafa de whisky que
deita abaixo todos os dias faz muito pior do que os charrinhos que fumo de vez em
quando. Para que merda abri eu a boca, Joaquín, pois então aí é que foi o fim. O meu
velho veio para cima de mim e enfiou-me um par de sopapos e a minha mãe ficou sem
respiração e desmaiou. Imagina que tivemos de a levar de emergência à Clínica Tezza. O
que tem mais graça é que, no caminho, a velha não parava de dizer se eu morrer, é de
desgosto por ter um filho droguista.
-
É de morrer a rir. E afinal de contas, que tinha a tua mãe?
- Não tinha a ponta de um corno, deram-lhe uns comprimidos e trouxemo-la de volta para
casa. No dia seguinte, a velhaca, sem ne dizer nada, foi muito caladinha até à universidade
para averiguar se eu estava a ir bem, que notas estava a tirar e coisas do género, e falou
com o filho da puta de Vilíalba e aí soube que me tinham posto a andar.
-E como é que vais para os Estados Unidos? - O que aconteceu foi que, quando o meu pai soube que me tinham expulsado da
universidade, mexeu-se logo, falou com amigos dele da embaixada americana e
matriculou-me num cursinho de inglês numa universidade do Cobrado. Parto depois de
amanhã para um sítio que se chama Pueblo. Diz lá se não é de morrer a rir.
- E tens vontade de ir?
- Tenho, porque aqui tinha ficado sem fazer nada.
Ficaram calados.
- Vou sentir a tua falta - disse Joaquín.
- Meu parvalhão, tens de me ir visitar - disse Alfonso
- Na verdade, ia saber-me bem sair de Lima e deixar as drogas durante um tempinho.
- Claro, seria estupendo estarmos juntos lá.
- Vou sentir a tua falta, cabrão.
Beijaram-se, entraram no quarto e acabaram a fazer amor. Em seguida, Alfonso vestiu-se
à pressa.
- Vemo-nos no Cobrado - disse a Joaquín, e deu-lhe um beijo.
Uns meses depois, Joaquín deslocou-se a Denver para visitar Alfonso. Quando chegou,
Alfonso esperava-o no aeroporto. Deram um braço e dirigiram-se ao estacionamento.
- Que bom ver-te, meu maricas! - disse Alfonso.
- Há que tempos que não nos víamos - disse Joaquín.
-
Engordei aí uns quinze quilos. Pareço uma vaca.
-
Não exageres, homem. Não estás assim tão gordo.
Estou uma bola, Joaquín. Nunca pesei tanto na minha vida. O que acontece é que
este é o país ideal para engordar. Por toda a parte se vêem uns gordos tipo tractor. Que
tal a viagem?
- Uma chatice. No voo entre Lima e Miami, sentou-se ao meu lado aquele cómico, o
Pacochita, que por acaso estava com uma naça do caraças. Não vais acreditar, Pacochita
estava tão bêbedo que parou no meio do corredor e se pôs a contar anedotas
ordinaríssimas de maricas e, como calcularás, o avião inteiro ria desalmadamente,
aplaudia-o e pedia mais anedotas, e toda a gente batia palmas como se fosse um
café-teatro. O que teve mais graça foi que a certa altura Pacochita pôs-se meio pálido,
disse um anúncio e zás, agarrou os sacos para vomitar que pÕem nos aviÕes e deitou tudo
o que tinha no estômago cá para fora em pleno corredor. Aí foi de mais. Algumas
senhoras protestaram. As hospedeiras tiveram de levar Pacochita.
-
Caramba, a ti acontecem-te coisas incríveis - disse Alfonso, rindo-se.
-
E não sabes o que me aconteceu em Miami - continuou Joaquín.
- Conta lá.
Instalei-me num hotelzinho de Miami e fui à Warsaw, a melhor discoteca gay de lá,
e adivinha quem é que encontrei: Piero Santoro e Francesco Martinez, os famosos galãs
da televisão peruana.
-
Não me lixes! Queres dizer que Santoro e Martínez são um casal?
- Não sei, mas suspeito que há qualquer coisa, porque ficaram meio esquisitos quando os
cumprimentei.
Bem, é que se sai na Teleguia que Santoro e Martínez são amantes, há uma onda
lixada de suicídios de miúdas de quinze anos, Joaquín. Havia uma série de estudantes que
se atirariam do terraço do Centro Cívico.
-
Esses galãzinhos da televisão são todos uns paneleiros - disse Joaquín, e riram-se.
Assim que subiram para o carro, Alfonso deu-lhe um beijo.
-
Senti a tua falta, meu maricas - disse-lhe.
-
Eu também - disse Joaquín.
Alfonso pôs o carro em funcionamento. Pagaram a portagem, saíram do estacionamento e
entraram numa auto-estrada.
-
Tens dado muito na fruta ultimamente? - perguntou Alfonso.
- Todos os fins de semana, sem falta, uma desbunda - disse Joaquín. - Mas vim cá para me
desintoxicar.
Que pena. Tinha conseguido uma marijuana jamaicana para te dar as boas-vindas
ao Estado do Cobrado.
Alfonso retirou um charro do bolso do casaco.
- Como é que arranjas erva por aqui? - perguntou Joaquín, surpreendido.
- Eu cá não perco tempo, amigão.
- Raios partam, tu és mesmo de força, Alfonso.
- Fumamos?
- Não sei, talvez seja melhor não.
- Caramba, como mudaste.
- Estou a morrer de vontade, mas queria desintoxicar-me durante estes dias.
- Como quiseres. Quem perde és tu.
Alfonso acendeu o charro e deu umas passas. Joaquín cheirou o fumo da marijuana e
mudou de opinião.
- Só um bocadinho para descontrair - disse.
Alfonso riu-se e passou-lhe o charro.
- Fuma, meu maricas - disse-lhe. - Não te faças rogado.
Joaquím deu uma longa passa.
- Há duas coisas de que vou gostar a vida inteira - disse, retendo o fumo. - De marijuana e
de rapazes giros.
Ao chegarem ao apartamento de Alfonso, fizeram amor. Depois, ficaram despidos, em
cima da cama, a ouvir um disco de Tracy Chapman.
-
Sabes uma coisa? - disse Joaquím. - Estou farto de Lima.
- Não é a primeira vez que dizes isso - disse Alfonso.
- A sério, Alfonso, adoraria ir viver para outro lado.
- Porquê? Não sejas parvalhão. Em Lima, vives como um príncipe, Joaquím.
- Quero sair de Lima, Alfonso. Preciso de sair de Lima. A cidade é uma merda. E não quero
passar a vida inteira a viver numa sociedade de merda.
-
Não desatines, Joaquím. Leva as coisas com calma.
- Além disso, quero ficar longe da minha família. Os meus pais fizeram-me sempre a vida
impossível. Odeio-os. às vezes, creio que preferiria nunca mais os ver.
Joaquín desatou a chorar no peito de Alfonso.
Isso é tudo por causa de fumares marijuana - disse-lhe Alfonso. - Sempre que
fumas, ficas deprimido. Vá, vamos dar uma volta, para ficares a conhecer Pueblo Cobrado.
-
Está muito frio. Estou cansado. Não me apetece.
Vamos comprar qualquer coisa, para que te sintas melhor, homem. O melhor
quando se está deprimido é sair e fazer compras.
-
Está bem, vamos.
Agasalharam-se, puseram óculos escuros para ocultar o inchaço dos olhos e foram ao
único centro comercial de Pueblo Cobrado.
Vou ver de umas bolas de golfe que o meu velho me encomendou - disse Alfonso,
assim que entraram na Burdines; e dirigiu-se à secção de artigos desportivos.
Joaquín passeou pela Burdines até que viu as gravatas. Parou em frente delas e
observou-as com cuidado. Sempre tinha tido um fraco por gravatas. Escolheu as dez mais
bonitas, olhou à sua volta e escondeu-as debaixo do casaco. Em seguida, aproximou-se de
Alfonso.
-
Fez-me bem sair um bocado e fazer compras - disse-lhe.
Pareces uma menina de Lima - disse Alfonso, sorrindo. - Tens um ataque de nervos
e tens de ir a correr até ao shopping center mais próximo.
Quando saíram da loja, um tipo obeso pegou Joaquín pelo braço.
-
Security - disse-lhe. - Please, follow me.
-
O que é? - perguntou Alfonso.
-
Espera aqui por mim - disse Joaquín. - Depois explico-te.
O tipo levou Joaquín para um compartimento que ficava ao lado dos gabinetes de provas.
Aí, dois funcionários da segurança observavam, em diversos ecrãs de televisão, diferentes
pontos da loja.
-
Anotherjucking latin american - comentou um deles.
O tipo obeso meteu uma mão no casaco de Joaquín, tirou as gravatas e conferiu-as. Em
seguida, perguntou-lhe o nome e a morada. Joaquín respondeu. O tipo tomou nota dos
elementos num bloco e tirou-lhe diversas fotografias com uma máquina instantânea.
Assim que as fotografias ficaram reveladas, explicou-lhe que tinha duas opçÕes: obrigá-lo
a comprar as gravatas ou chamar a polícia. Joaquín
disse que preferia comprar as gravatas. O tipo fez a conta e disse-lhe o preço. Joaquín
pagou em dinheiro e assinou um papel, prometendo não voltar a pisar uma Burdines
durante um ano. Depois, disseram-lhe que se podia ir embora.
- For a latin american, you have a pretty good taste - disse-lhe o tipo obeso, olhando para
as gravatas.
Joaquín agradeceu-lhe e saiu da loja. Alfonso esperava-o à porta. Joaquín mostrou-lhe as
gravatas e contou-lhe o sucedido.
- És um grande parvalhão - disse Alfonso, rindo-se. - Aqui, quando roubas tens de ter
muito cuidado. Os Americanos não são tão idiotas como parecem, Joaquín. Neste país, se
quiseres roubar legalmente, tens de ser banqueiro.
- Vamos tomar umas cervejinhas - disse Alfonso, quando saíram do centro comercial de
Pueblo Cobrado.
- Por mim, encantado, mas fiquei teso disse Joaquín.
- Não te preocupes, sou eu que convido.
Subiram para o carro. Estava uma noite gelada. O aquecimento do carro não funcionava
bem.
- Tenho comichão no nariz - disse Alfonso, quando iam a caminho do bilhar. - Que tal uns
snifes?
- Tens? - perguntou Joaquín.
- Não, mas posso arranjar.
-Onde.
- Conheci um peruano. É um gago que já queimou o cérebro.
O tipo é de morrer a rir. De vez em quando vende-me coca.
- Combinado. Vamos lá. - Joaquín acendeu o rádio e subiu o volume do som. - Fala-me lá
desse peruano gago - pediu.
- Chama-se Augusto, Augustito para os amigos. É um preguiçoso do caraças. O pai dele é
podre de rico. Augustito vive com a miúda dele, uma americana que se mete na coca. A
infeliz é mais feia do que um pontapé nos tomates. Augustito convenceu-a de que é um
perito em computadores, mas na realidade a única coisa que sabe fazer é jogar Pacman.
Riram-se.
- É incrível como há peruanos em todo o lado, não achas? - disse Joaquín.
Em qualquer parte do mundo há pelo menos um peruano e um colombiano que
vendem a melhor coca lá do sítio - disse Alfonso, e riram-se de novo.
Pouco depois, chegaram ao apartamento de Augusto. Alfonso desceu do carro, correu
para a porta do edifício, falou pelo intercomunicador e voltou para o carro.
-
Temos sorte. Ele desce já - disse, esfregando as mãos.
Augusto não demorou a sair. Correu para o carro de Alfonso e sentou-se no assento de
trás. Era um tipo baixo, gordo, com uma cara redonda e cheia de borbulhas.
O meu amigo veio visitar-me e quero tratá-lo bem, Augustito - disse Alfonso,
estendendo-lhe a mão.
-
É para isso que cá estamos, é para isso que cá estamos.
-
Tens? - perguntou Alfonso.
-
Dois gramas, cem dólares - disse Augusto. - Preço especial para compatriotas.
-
Tudo bem - disse Alfonso. - Agora mesmo.
-
Volto já - disse Augusto.
Desceu do carro e entrou a correr no edifício.
Estamos com sorte, caramba - disse Alfonso, entusiasmado; e retirou uns dólares
da carteira. - Por alguma razão dizem que não há maricas que não tenha sorte, não é?
Que vontade que tenho de lhe dar - disse Joaquín. - E eu que tinha vindo para me
desintoxicar.
Já não podemos voltar atrás, Joaquín. Não podemos deixar de nos meter na coca.
Não podemos deixar de ser maricas. É tudo questão de nos habituarmos.
Augusto regressou ao carro, tirou um envelope e abriu-o cuidadosamente,
mostrando-lhes a cocaína.
-
Qualidade de exportação - disse-lhes. - Cem por cento pura.
Alfonso entregou-lhe o dinheiro e guardou a coca.
A propósito, no fim do mês chega-me uma encomenda a Los Angeles no
navio-escola da Marinha - disse Augusto.
-
Não me lixes - disse Alfonso.
É verdade - disse Augusto. - Tenho um amigo na Marinha que me traz dois
quilinhos de coca pura comprada em Tocache. Calcula tu, vou fazer uma pipa de massa.
-
Dois quilos é muita coca, Augustito - disse Alfonso.
Isso não é nada, meu irmão - disse Augusto. - O navio vem carregado de coca.
Quase todos os cadetes trazem um pouco. Os que trazem menos vêm com um quilinho e
voltam para Lima cheios de massa.
-
E o teu amigo não poderia trazer um pouco mais para mim? perguntou Alfonso.
-
Não - disse Alfonso. - O barco já descolou.
-
Queres tu dizer já zarpou - disse Alfonso, rindo. - Os barcos não descolam.
Tanto faz uma merda como outra - disse Augusto, também a rir. - Não armes em
purista, Alfonsito.
-
Oxalá não dês cabo da coca sozinho, meu cabrão - disse Alfonso.
way.
Olha quem fala, Alfonsito - disse. - A ti não te escapavam nem as riscas do free
Desceu do carro e entrou a correr no edifício.
Essa noite, depois de terem jogado várias partidas de bilhar, Alfonso e Joaquín decidiram
voltar para o apartamento. Entre uma partida e outra tinham aspirado muita coca na casa
de banho. Estavam na auto-estrada quando ouviram uma sirene. Alfonso olhou pelo
espelho e pôs-se tenso.
-
Merda - disse. - É a polícia. Estamos feitos.
-
Tem calma - disse Joaquín. - Não aceleres.
A sirene tocava com mais força. As pernas de Joaquín tremiam-lhe. Alfonso olhava
repetidamente pelo espelho.
-
Estamos lixados - gritou.
-
Que fazemos com a coca? - perguntou Joaquín.
Restava-lhes mais de metade da coca que tinham comprado a Augusto. Joaquín tinha-a na
carteira.
-
Dá-ma - gritou Alfonso.
Joaquín pensou em atirar a coca pela janela.
-
Dá-ma, meu parvalhão - insistiu Alfonso.
Joaquín deu-lhe o pacotinho de coca. Alfonso meteu-o na boca, mastigou-o e engoliu-o.
-
Vou parar - gritou.
- Tem calma, tem calma, que eles não vão perceber nada - gritou Joaquín.
Alfonso parou o carro bruscamente. Perplexos, viram passar uma ambulância. Joaquín
estava tão tenso que nem conseguiu sorrir.
Alfonso desceu do carro e meteu a mão à boca, para se forçar a vomitar.
Ao chegarem ao apartamento, deitaram-se na cama de água de Alfonso e acenderam um
charro, para descontrair um pouco.
- Nunca mais lhe dou - disse Joaquín. - Nunca mais.
-
Não digas parvoices, homem - disse Alfonso.
Estou a falar a sério, Alfonso. Estou farto de me meter na coca. Se continuamos
assim, vamos acabar mal.
-
Não comeces, Joaquín. Estamos a descer. É só isso.
-
Não quero ser um agarrado à coca a vida inteira.
Agora Joaquín chorava.
Merda, acabas sempre a chorar - disse Alfonso. - Depois de snifar, acabas sempre a
chorar. E, dois dias depois, estás a cheirar o tapete como se fosses um cão, para ver se
encontras um bocadinho de coca.
-
Juro que desta vez é que deixo a coca para sempre, Alfonso. Juro.
-
Claro. Todos os agarrados dizem isso quando estão a descer.
Sabes que mais? Fico lixado por não acreditares em mim. Fico lixado por não me
ajudares a deixar a coca.
-
Não me disseste uma vez que querias experimentar tudo e morrer cedo.
Isso é uma idiotice, homem. Estou arrependido de te ter dito uma parvoice dessas.
A vida de um agarrado é uma vida miserável. Só os estúpidos é que continuam metidos na
droga, Alfonso. Deixo a coca hoje mesmo.
-
"Hoje, um juramento, amanhã, uma traição."
-
Pois, arma-te em cínico.
Aconselho-te a não fazeres promessas impossíveis, Joaquín. Depois, tens uma
recaída e ainda ficas mais arrependido.
Não é impossível deixar a coca, tu também podes deixá-la. Basta que queiras
mesmo fazê-lo.
Eu não tenho o menor problema com a coca. Não me considero um dependente. A
mim a coca não me controla. Eu é que a controlo.
-
Isso é o que dizem todos os agarrados de Lima, meu parvalhão.
-
Por favor, acaba com isso, Joaquín. Cala-te e aguenta a descida, como um homem.
-
Está bem, já não te lixo mais, mas também não quero ficar aqui.
-
Não digas parvoices, homem. Acabas de chegar. Para onde hás-de ir?
Joaquín assoou-se e atirou o papel higiénico para a alcatifa.
-
Volto para Lima - disse. - Tu fazes-me mal, Alfonso.
-
Caramba, então sou um amigo descartável?
Não. Sabes bem que adoro estar contigo, mas não posso deixar as drogas se
estiver contigo. É por isso que me vou embora.
Está bem, está bem. Se queres ir, vai. Mas, nesse caso, prefiro não te voltar a ver
nunca mais.
Ficaram calados.
-
No fundo, não gostas de mim - disse Joaquín. - Só gostas de foder comigo.
-
Não sejas ridículo - disse Alfonso.
Joaquín assoou-se de novo.
-
Vem - disse Alfonso com uma voz terna. - Não chores.
Joaquín deitou-se ao lado dele.
Tens de aprender a ser um homem - disse Alfonso. - Lá por seres maricas não
precisas de te comportar como uma menina.
- Não quero ser um agarrado, não quero ser um agarrado - disse Joaquín.
Alfonso tentou puxar-lhe as calças para baixo.
-
Não tenho vontade - disse Joaquín.
Deixa-te disso. Não sejas paneleiro. Vai fazer-nos bem. Vai ajudar-nos a
descontrair.
-
É a última vez que fazemos isto, Alfonso.
Fizeram amor enterrados na cama de água. Depois, Alfonso tomou uns comprimidos e
adormeceu. Joaquín ficou a ver um jogo de basquete na televisão. Estava tão nervoso que
os braços e as pernas se moviam como se estivesse também a participar no jogo. Quando
amanheceu, fez as malas e chamou um táxi. Nessa manhã, partiu do Cobrado com o nariz
cheio de coca e com dez gravatas novas na mala.
Joaquín só voltou a ter notícias de Alfonso uns anos depois.
Uma noite, chegou ao seu apartamento e ouviu uma mensagem dele no atendedor de
chamadas.
Olá, Joaquín. Sou o Alfonso. Estou em Caracas. Tenho uma boa notícia a dar-te.
Telefona-me, se puderes.
Joaquín anotou o número de telefone que Alfonso deixara no atendedor. Assim que
acabou de ouvir a mensagem, telefonou-lhe. Alfonso respondeu ao primeiro toque.
-
Olá, Alfonso. Aqui Joaquín.
-
Joaquín, que prazer ouvir-te. Pensei que não me ias telefonar.
-
Porquê?
-
Não sei. Pensei que, se calhar, continuavas zangado comigo.
-
Nem por sombras.
-
Há que tempos que não nos vemos, não é?
-
É verdade. Como conseguiste o meu número?
-
Telefonei para casa dos teus pais e pedi-lhes. Isso chateia-te?
-
De maneira nenhuma. Fala-me de ti. Que estás a fazer em Caracas?
-
Vivo aqui.
-
Não me lixes! Julgava que estavas no Cobrado.
Não, isso foi para o galheiro. Agora estou a viver aqui com a minha família. Os
meus pais cavaram de Lima e vieram para Caracas com Charito.
-
Que bom para ela. Dá-me a boa notícia. Estou a morrer de curiosidade.
Alfonso ficou calado uns segundos.
-
Vou casar - disse.
Joaquín não soube que dizer.
-
Homem, parabéns - disse.
-
Obrigado. Suponho que ficaste contente.
-
Claro que sim. Se tu estás contente, eu também fico. Mas como é isso de casares?
-
Já é altura de assentar, não achas?
-
Suponho que sim. Quem é a felizarda?
-
É uma miúda daqui, uma venezuelana.
-
Fala-me dela.
-
É uma miúda muito sossegada, muito caseira. Vais gostar dela.
-
Como se chama?
-
Maricarmen.
-
E há quanto tempo a conheces?
-
Deixa-me pensar. Há cerca de meio ano que andamos juntos.
-
Só? Meio ano não é nada, Alfonso.
-
Para mim, é suficiente.
-
E estás seguro de que te queres casar?
-
Cem por cento. Há mais de um ano que procurava noiva.
-
A sério que procuravas noiva?
Sempre te disse que o casamento fazia parte dos meus planos, Joaquín. Além
disso, tive uma conversa com o meu pai que mudou a minha vida.
-
Não me lixes! Conta-me lá.
-
Não sei se sabias que o meu velho teve um enfarte.
-
Caramba, não fazia a menor ideia.
Quase morreu, salvou-se por milagre. Teve de fazer uma série de operações.
Depois do susto, tivemos uma conversa porreira. Nunca tínhamos falado assim. O meu
velho ainda estava nos cuidados intensivos e eu ficava com ele no quarto, a
acompanhá-lo, todas as noites. Uma noite, contei-lhe tudo. Não sei porquê, tive vontade
de me abrir com ele e contei tudo.
-
Caramba, que bom por ti!
Sim, foi espantoso. O meu velho chorou. Nunca o vira chorar assim. Chorámos os
dois, abraçados. Ele disse-me que me perdoava tudo e eu prometi-lhe que ia começar
uma vida nova. E ele pediu-me que casasse e tivesse filhos. Disse-me que essa era a maior
alegria que poderia dar-lhe. E eu prometi-lhe que me ia casar.
-
Percebo, percebo. Posso fazer-te uma pergunta pessoal, Alfonso?
-
Não armes em diplomata, meu parvalhão. Entre nós não há segredos.
-
Já foste para a cama com Maricarmen?
-
Claro, que pergunta.
-
E que tal te dás com ela sexualmente?
-
Bem, com as mulheres é diferente. Não é tão intenso, tu percebes-me.
-
Perfeitamente. Prefiro uma boa punheta a uma queca com uma venezuelana.
Alfonso riu-se.
-
És uma doida perdida, Joaquín - disse.
Para mim, fazer amor com uma miúda é como comer comida vegetariana: tudo
muito saboroso, mas sentes que faz ali falta um bocado de carne - disse Joaquín.
Alfonso riu-se novamente.
-
E quando te casas? - perguntou Joaquín.
-
No final do mês, na Igreja de San Francisco de Barranco. Tu irás, suponho.
-
Claro que vou.
-
Bestial. Então mando-te o convite amanhã.
-
Obrigado. E obrigadíssimo por te lembrares de mim.
-
Vemo-nos no dia do meu casamento?
-
Vemo-nos, pois, Alfonso.
Joaquín desligou o telefone, pôs um disco de Morrissey e dançou uma canção que dizia:
why do you come here when you know it makes things hard for me
when you know~ oh why do you come?
Joaquín chegou à Igreja de San Francisco de Barranco quando o casamento já estava a
acabar. Assim que a missa terminou, as pessoas que se encontravam na igreja
precipitaram-se para uma sala contígua para felicitarem Alfonso e Maricarmen. Só depois
de estar numa fila muito comprida é que Joaquín pôde felicitar os recém-casados.
-
Olá, muito prazer em ver-te - disse-lhe Alfonso.
Emagrecera bastante e deixara crescer a barba. Vestia um fato preto, uma camisa branca
e uma gravata cinzenta. Joaquín quis dar-lhe um abraço, mas Alfonso estendeu-lhe a mão,
friamente.
-
Que sejam muito felizes - disse Joaquín.
-
Obrigado - disse Alfonso, sem sorrir.
Em seguida, Joaquín estendeu a mão à noiva.
-
Está linda, Maricarmen - disse-lhe.
-
Obrigada, é muito amável - disse ela.
Era uma rapariga baixa, um pouco morena, de cabelo preto. Joaquín não a achou
atraente.
-
Muitas felicidades - disse.
-
Obrigadíssimo - disse ela, com um sorriso gelado.
Alfonso piscou o olho a Joaquín.
-
Vemo-nos na recepção - disse-lhe, sorrindo.
-
Lá estarei - disse Joaquín.
Em seguida, cumprimentou os pais de Alfonso - um homem alto, um pouco calvo, de olhos
azuis e rosto encovado; uma mulher baixa, roliça, com o cabelo pintado de loiro e a cara
coberta por várias camadas de maquilhagem - e saiu da igreja o mais depressa que pôde.
Depois, subiu para o carro e dirigiu-se à casa de La Molina, onde iria ser oferecida a boda.
Foi um dos primeiros a chegar à recepção. Como o champanhe estava delicioso,
aproveitou para tomar todas as taças que lhe ofereceram. Uns momentos depois, os
noivos chegaram no meio de aplausos e dançaram de mãos dadas. Joaquín teve de ir à
casa de banho. Estava a aliviar-se de todo o champanhe que tomara quando alguém bateu
à porta da casa de banho.
-
Está ocupada - disse.
-
Abre, meu parvalhão - disse Alfonso.
Joaquín abriu imediatamente. Alfonso entrou na casa de banho, correu o fecho e sorriu.
-
Pensei que não vinhas, meu maricas - disse.
Estás doido? - disse Joaquín. - Como é que pudeste pensar que podia faltar ao teu
casamento?
Alfonso abraçou Joaquín.
-
Estou borrado de medo - disse - Não sei se conseguirei aguentar.
-
Tem calma - disse Joaquín. - Tudo vai correr bem.
-
Pelo menos até que o meu velho morra, não é?
-
Claro. E depois pÕes a venezuelana com dono!
-
Adivinha como se vai chamar o meu primeiro puto.
-
Não faço a menor ideia.
-
Joaquín.
-
Não, Alfonso, peço-te. Sabes que acho o meu nome horrível.
-
Dá-me um beijo, meu maricas.
Joaquín beijou Alfonso.
- Não deveríamos - disse-lhe. - Agora és um homem casado.
- É a última vez - disse Alfonso. - Juro que é a última vez.
Beijaram-se de novo.
- Agora, sim, é que nunca mais - disse Alfonso.
- Vai buscar a tua mulher, canalha - disse Joaquín.
- Prometo-te que na lua-de-mel a vou foder a pensar em ti - disse Alfonso, sorrindo.
Depois, saiu da casa de banho e fechou a porta. Quando Joaquín voltou para a festa,
Alfonso estava a dançar com a mulher.
-
Fazem um lindo par, não acha? - comentou uma senhora.
-
Lindíssimo - disse Joaquín, sorrindo.
Um Amor Impossível
Um dia de Verão, Joaquín passava em frente da Igreja da Virgen del Pilar quando uma
rapariga lhe buzinou e acenou de um carro em andamento. Reconheceu-a logo: era
Alexandra López de Romana. Ela parou o carro e fez-lhe sinal para se aproximar. Ele
correu para o carro e deu-lhe um beijo.
-
Onde vais? - perguntou ela, sorrindo.
-
Já aqui perto, à Rua Dasso - respondeu ele.
-
Sobe, que eu dou-te boleia - disse ela.
-
Bestial - disse ele; e subiu para o carro.
Alexandra e Joaquín tinham-se conhecido na Universidade Católica. Não tinham chegado a
fazer-se amigos, mas, sempre que se encontravam, cumprimentavam-se afectuosamente.
Ela tinha o cabelo preto e encaracolado, uns olhos expressivos e o sorriso fácil de uma
rapariga de Lima que crescera com muitas coisas bonitas à sua volta. Nesse dia, usava
umas argolas de prata, óculos escuros, um blusão de jeans e ténis brancos.
Estou a morrer de vontade de tomar um cappuccino no D Onofrio - disse. Acompanhas-me?
-
Bestial - disse ele. - Vamos.
Ela sorriu e acelerou pelo Camino Real. Estava a ouvir uma cassette de Charlie Garcia. Ele
olhou-a de lado e pensou o que sempre pensara quando se encontrava com ela na
Católica: és linda, Alexandra, a mais bonita de todas.
Não sabes como tive pena, quando soube que te tinham posto fora da Católica disse ela, conduzindo devagar.
-
É a vida, sabes - disse ele, fingindo uma certa tristeza.
-
Tu também eras um preguiçoso, Joaquín. Nunca ias às aulas.
-
Lá isso é verdade.
-
E agora que fazes?
-
Pouca coisa. Vagabundeio por aí.
-
Preguiçoso - disse ela, rindo-se.
Pouco depois, Alexandra entrou na Rua Dasso e estacionou no primeiro sitio livre que
encontrou. Foi logo rodeada por uns rapazes que se ofereceram, aos gritos, para olhar
pelo carro. Alexandra e Joaquín disseram aos rapazes que tomassem bem conta dele,
entraram no D'Onofrio, sentaram-se numa mesa ao lado da janela e pediram dois
cappuccinos. Ela acendeu um cigarro, cruzou as pernas e sorriu.
-
E tu, que tal com o Ricardo? - perguntou ele.
Ricardo estudava direito na Católica. Alexandra e Ricardo costumavam andar juntos na
universidade.
-
Não sabias que nos zangámos? - perguntou ela.
-
Não fazia a menor ideia - respondeu ele, surpreendido. - Conta-me lá.
A verdade é que já estava um pouco farta dele. Já andávamos juntos há mais de
dois anos e eu estava a precisar de um break.
-
Foste tu que te zangaste?
-
Bem, zangámo-nos os dois, mas fui eu quem começou.
-
E agora estás melhor?
Ufa, mil vezes melhor, super-aliviada. Gozando a minha solidão. Ouvindo a minha
musiquinha de Charlie Garcia, Sui Generis, Nito Mestre, Serti Girán. Assistindo a aulas de
Francês na Alhance. Fazendo milhares de coisas que não podia fazer quando andava com
o Ricardo.
Alexandra abriu a carteira, retirou um pacotinho de Canderel, abriu-o e despejou-o na sua
chávena de café.
-
Ai, estou uma bola - disse.
-
Não sejas exagerada - disse Joaquín. - Estás linda, Alexandra.
Tu é que estás óptimo, bonitão - disse ela, sorrindo. - Agora fala-me de ti. Andas
com alguém?
-
Não.
-
Não posso acreditar, Joaquín. Que desperdício.
-
A vida é assim. Ninguém me ama.
Continuas um solitário como um gato do telhado - disse ela, com um sorriso
sedutor. - Por que não me dás o teu telefone e nos vemos um dia destes?
-
Claro, é uma boa ideia.
Joaquín escreveu o telefone num guardanapo e deu-lho.
-
Prometo-te que te telefono um destes dias - disse ela, e olhou para o relógio.
Ai que já me tinha esquecido das tangas - acrescentou, fazendo um gesto
preocupado.
-
Que tangas? - perguntou ele.
Tenho de ir ver umas tangas que uma amiga me trouxe do Brasil. Contaram-me
que são umas tangas lindas.
-
Vai lá, não te preocupes.
- Sorry por te deixar aqui, Joaquín. Mas tenho de ir a correr - disse ela, pondo-se de pé. Não sabes o que nós, raparigas, damos por ter essas tangas brasileiras.
Em seguida, deu um beijo na cara de Joaquín e saiu do D'Onofrio sem se lembrar de pagar
o cappuccino que tomara.
Uns dias depois, Alexandra telefonou a Joaquín e disse-lhe que precisava de o ver nesse
momento. Já passava da meia-noite. Ele não hesitou em dar-lhe a sua direcção. Dez
minutos mais tarde, ela chegou ao apartamento. Entrou a chorar, abraçou-o e sentou-se
no sofá.
-
Que aconteceu?
Ricardo foi a minha casa e tratou-me pessimamente - disse ela. - Disse-me coisas
horríveis. Não sabia como aquele tipo podia ser mau.
Ele sentou-se ao lado dela e acariciou-lhe o cabelo.
-
Que te disse ele? - perguntou.
- Que sou uma histérica e uma puta - disse ela, quase aos gritos. - Que fui eu a culpada de
a nossa relação se ter estragado, que maldiz o dia que me conheceu e que vai contar a
todos os amigos que lha chupei.
- É verdade que lha chupaste?
É, mas foi só uma vez e porque estava a cair de bêbeda. E não sabes como estou
arrependida, Joaquín. Não sabes como me sinto mal agora.
Espera um momento. Vou dar-te papel higiénico para te assoares. - Joaquín foi à
casa de banho, tirou um bocado de papel higiénico e deu-lho. Ela assoou-se e continuou a
falar.
Tudo se estragou por culpa dele, acredita, Joaquín - disse ainda bastante alterada.
- Ricardo é um machista, um possessivo. Não me deixava fazer nada. Não queria que fosse
às liçÕes de dança. Não queria que tivesse aulas de Francês. Não me deixava crescer,
amadurecer, ser uma pessoa melhor, compreendes-me? Ricardo só queria que estivesse
todo o dia ao lado dele, a cozinhar coisas boas para ele, a mimá-lo, a fazer-lhe festas nas
costas, a espremer-lhe as borbulhas. Que lhas esprema a avó, caramba. E o pior é que
quando estávamos juntos, não sabes, era um porco desavergonhado. Perdoa a franqueza,
Joaquín, mas é verdade, só pensava nisso. Todo o santo dia parecia um doente a tentar
despir-me. Tinha de lhe dizer não constantemente e ele, que era péssimo, dizia-me coisas
horríveis, dizia-me és uma anormal, uma frígida, e eu ao principio juro que acreditava, não
sabes como me sentia mal por causa dele. E eu não sou nenhuma frígida. O que também
não sou é uma ninfómana.
-
Ninfómana, Alexandra. Com um "n".
Riram-se. Abraçaram-se.
-
Perdoa-me por ter vindo aqui, mas precisava de te ver - disse ela, já mais calma.
-
Fiquei muito contente por teres vindo - disse ele.
Em seguida, ligou a televisão e baixou o volume.
Ai, não sabes como tenho as costas. Estou super tensa - disse ela. - Dás-me uma
massagenzinha?
-
Com muito gosto - disse ele.
Ajoelhou-se atrás dela e começou a dar-lhe massagens nas costas.
Ai, ai, é precisamente aí, faz-me festas - pediu ela, quando ele começou a
massajá-la.
Em seguida, baixou a cabeça e fechou os olhos. Ele continuou a dar-lhe massagens.
Quando se cansou, beijou-a na nuca e pôs-se de pé.
-
Pronto - disse.
-
Ui, que maravilha, sinto-me como nova - disse ela.
Olhou para o relógio e levantou-se de um salto.
-
Merda, faltam dez minutos para o recolher - disse. - Já não chego a minha casa.
-
Fica cá a dormir - propôs ele. - Por mim, encantado.
-
Ai, que vergonha, que distraída que sou.
-
Não te preocupes. Telefona para tua casa e avisa que não vais dormir.
Sem perder tempo, Alexandra telefonou para casa e disse à mãe que ficava a estudar em
casa da sua amiga Claudia.
-
Soriy, Joaquín, sou uma descarada - disse, quando desligou o telefone.
Não sejas tonta - disse ele. - Gosto muito de estar contigo. Importas-te de que
fume um pouco de marijuana?
-
Não, de modo nenhum - respondeu ela.
Joaquín entrou no quarto, abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira e tirou um charro.
Acendeu-o e deu várias passas.
-
Queres? - disse, oferecendo-lhe o charro.
-
Não sei. Nunca experimentei - disse ela.
-
Experimenta um bocadinho, não faz mal.
-
Está bem, mas só uma passa.
Ela pegou no charro e aspirou suavemente.
-
Ui, arranha a garganta - disse. A seguir, tossiu.
Ele riu-se.
-
Dá outra passa - propôs. - A primeira deixa sempre um sabor mau.
Ela aspirou de novo, reteve o fumo e devolveu-lhe o charro. Depois de fumar um pouco
mais, ele apagou o charro e pôs uma cassette dos Mec ano.
-
Que bom! Adoro os Mecano - disse ela.
Em seguida, levantou-se e dançou uma canção que dizia:
ai que chato, que chato sempre a pensar no passado, não penses demasiado que a vida
está à espera
Ele apagou a luz e dançou com Alexandra. A marijuana costumava dar-lhe vontade de
dançar. Quando a canção terminou, abraçou-a e beijou-a.
-
Com menos força - disse ela. - Beija-me mais devagar.
Ele beijou-a suavemente.
-
És a rapariga mais bonita de Lima - disse-lhe.
-
Dizes isso porque estamos às escuras - disse ela.
Deitaram-se na alcatifa e, sem deixarem de se beijar, começaram a despir-se.
-
Não deveríamos estar a fazer isto - disse ela. - Amanhã vou arrepender-me.
Ele continuou a beijá-la, deitou-se por cima dela e puxou-lhe as cuecas para baixo.
-
Não, Joaquín, é melhor não - disse ela.
Ele não tinha vontade de continuar a acariciá-la, mas sentiu-se obrigado a continuar.
Tentou fazer amor com ela. Não conseguiu. Não tinha uma erecção.
- Tenho de ir à casa de banho - disse, pondo-se de pé bruscamente.
A seguir, fechou-se na casa de banho, sentou-se na sanita e desatou a chorar. Sentia raiva
por não poder fazer amor com uma rapariga tão bonita como Alexandra. Pouco depois,
ela bateu à porta da casa de banho.
- Que tens? - perguntou. - Sentes-te mal?
- Não, não é nada - disse ele. - Saio já.
Assoou o nariz, pôs umas gotas nos olhos e saiu da casa de banho. Alexandra estava de pé
junto da porta. Ao vê-la, desatou a chorar de novo. Ela abraçou-o com força.
-
Que tens? - perguntou-lhe.
-
É muito complicado - disse ele. - Não entenderias.
Ouve lá, meu tonto, conta-me os teus problemas, a mim podes contar-me tudo disse ela.
Joaquín apoiou a cabeça num dos ombros de Alexandra.
- Odeio-me porque não tenho ponta.
- És estéril? - perguntou ela, surpreendida.
-
Queres dizer, impotente. Estéril é outra coisa.
-
Bem, tanto faz, sabes a que me refiro.
Não, não sou impotente. Quando estou sozinho, tenho ponta Mas quando estou
com uma mulher, não consigo.
-
Coitadinho. Vem, Joaquín, vamos para a cama.
Entraram no quarto. Deitaram-se na cama. Ela estava de soutien e calçinhas e ele, de pólo
e cuecas.
-
Agora, conta-me tudo, mas conta-me como deve ser - disse ela.
A verdade é que gosto de rapazes - disse ele. - Odeio-me por issO. Não quero ser
assim.
-
Desde quando é que isso te acontece?
-
Não me lembro bem, mas é esquisito, porque antes gostava de raparigas.
-
Coitadinho, Joaquín. Deves sofrer imenso.
-
Não quero ser maricas, Alexandra.
-
Não te preocupes, Joaquín. Não chores. Vou ajudar-te a superar esse trauma.
Ela abraçou-o e beijou-o na testa. Ele continuou a chorar.
No dia seguinte, Joaquín estava a dormir a sesta quando tocaram à campainha do seu
apartamento. Acordou de mau humor, levantou-se da cama e olhou pela janela. Era
Alexandra. Surpreendido, pois não a esperava, foi à cozinha e abriu-lhe a porta. Ela subiu
pelo ascensor e entrou no apartamento. Assim que entrou, abraçou Joaquín.
-
Que tal irmos juntos ao psiquiatra? - perguntou-lhe.
-
Excelente, parece-me uma grande ideia - disse ele.
-
Bestial, porque já marquei uma consulta no Dr. Mori para esta tarde - disse ela.
-
Que é o Dr. Mori? - perguntou ele, surpreendido.
O psiquiatra da mamã - disse ela. - É super genial. A mamã diz que não estaria viva
se não fosse o Dr. Mori. Desculpa-me por não te ter avisado antes, Joaquín, já sabes que
sou uma precipitada e além disso faço-o para teu bem.
-
A que hora é a consulta?
às três. Quer dizer que temos meia hora para chegar. Não te preocupes que o Dr.
Mori não leva nada pela primeira consulta.
-
És fantástica, Alexandra.
-
Faço isto porque te quero ajudar, Joaquín.
-
Eu sei, eu sei.
Joaquín entrou na casa de banho, deitou umas gotas nos olhos e pôs um pouco de água
de colónia para não cheirar a marijuana. Antes de adormecer, fumara outro charro. Todas
as tardes, depois de almoçar, costumava fumar marijuana.
-
Vamos lá então - disse ela, quando ele saiu da casa de banho.
-
Odeio estar com pressa.
Desceram pelo elevador, saíram do edifício e entraram no carro de Alexandra, que pôs
uma cassette dos Sui Generis e conduziu em silêncio. Ao chegar ao molhe Balta,
estacionaram o carro em frente do consultório do Dr. Mori. Esperaram uns minutos. às
três em ponto desceram do carro e tocaram à campainha. Abriu-lhes a porta um homem
de meia idade, magro, de óculos, já com alguns cabelos brancos.
Boa tarde, Dr. Mori - disse-lhe Alexandra. - Sou Alexandra López de Romana.
Venho da parte da minha mãe.
-
Boa tarde, muito prazer - disse o Dr. Mori, e estendeu-lhe a mão.
-
É Joaquín Camino, um amigo meu - disse Alexandra.
-
Muito gosto, doutor - disse Joaquín, e estendeu a mão ao Dr. Mori.
Os três passaram para o consultório e sentaram-se nuns sofás de couro. O Dr. Mori cruzou
as pernas e sorriu. Ao fundo ouvia-se música clássica.
-
Em que posso ajudá-los? - perguntou Mori.
Alexandra ganhou coragem. Parecia um pouco nervosa.
O meu amigo Joaquín tem um problema e queríamos saber se nos pode ajudar disse.
Mori olhou para Joaquim.
-
Qual é o problema de Joaquín? - perguntou.
-
Joaquim tem um trauma com as mulheres - disse Alexandra.
-
Um trauma de que tipo? - perguntou Mori.
Quer dizer, gosta de mulheres, mas não é capaz de ter uma ejaculação - disse
Alexandra.
-
Uma erecção - corrigiu Joaquín.
-
Desculpe, uma erecção - disse Alexandra.
-
Hum - disse Mori.
E, por iSSO, meteu-se-lhe na cabeça que é homossexual, mas ele não quer ser
homossexual - disse Alexandra.
-
Hum - disse Mori.
E queríamos saber se pode fazer com que Joaquín não se julgue homossexual e
sobretudo que possa deitar-se normalmente com uma mulher, isto é, não comigo, mas
com uma mulher em geral - continuou Alexandra.
-
Estou a perceber, estou a perceber - disse Mori.
Porque Joaquín contou-me que desde pequeno que tem fantasias con mulheres prosseguiu Alexandra, falando muito depressa. - Na realidade, ele sempre gostou de
mulheres.
-
Claro, claro - disse Mori
Na verdade, penso que Joaquim é super normal, mas está traumatizado porque a
primeira vez que fez amor foi com uma prostituta e, como é lógico, não funcionou, o que a
mim me parece o mais normal possível, porque se eu fosse homem (e, a propósito, não
gostaria de ser homem, não vá o senhor interpretar-me mal), se eu fosse homem,
dizia-lhe eu, de certeza que não poderia ir para a cama com uma prostituta, teria nojo.
-
Pois, pois - disse Mori.
E eu não quero que Joaquim continue a sofrer, doutor, quero ajudá-lo a ser feliz, a
ser plenamente feliz - terminou Alexandra.
Então levou as mãos à cara e desatou a chorar. Mori pegou na caixa de Kleenex e
passou-lha.
Obrigado, senhor doutor - disse Alexandra, e assoou o nariz com um Kleenex. Desculpe, mas eu sou muito, muito emotiva.
-
Receio não os poder ajudar, mas posso recomendar-lhes um colega - disse Mori.
-
Claro, senhor doutor, com certeza - disse Joaquim.
-
Quer dizer que não quer atender-nos? - perguntou Alexandra.
Não é isso, menina López de Romana, mas sim que sou especialista noutras áreas
do comportamento humano - disse Mori.
-
Está bem - disse Alexandra, e assoou de novo o nariz.
Mori escreveu um nome e um número num papelinho amarelo e deu-o a Alexandra.
Aí têm o telefone do Dr. Fernandez - disse-lhes. - Recomendo-o. Lamento não
poder ajudá-los.
Em seguida, olhou para o relógio, levantou-se e acompanhou-os à porta. Parecia aliviado,
quando os viu sair do consultório.
Ai, que maçador, que antipático - disse Alexandra, assim que entrou no carro. Quem é que este tipo se julga? Viste os ares de superioridade com que nos olhava? Este
mestiço branco imagina que é o neto de Freud ou o quê?
Uns dias depois, Alexandra passou pelo apartamento de Joaquín e foram os dois tomar
café a La Baguette.
-
E se sou lésbica? - perguntou ela, tirando os óculos escuros e baixando a voz.
Isso é uma parvoice, Alexandra - disse Joaquín, sorrindo. - Tu não és lésbica. Não te
podes tornar lésbica aos dezanove anos. Já te terias apercebido disso antes.
-
Mas tu próprio me contaste que em miúdo não te sentias gay, Joaquín.
É diferente. Eu sempre reparei nos rapazes. Tenho a certeza que nunca tiveste
fantasias com mulheres.
Não, nunca, mas isso é porque tenho a imaginação de uma formiga. Mas
lembro-me que, quando era miúda, adorava ficar a dormir em casa das minhas amigas.
Adorava ficar em casa de Araceul nos fins de semana; dormíamos as duas agarradas e
contentes. Se calhar, isso era uma primeira tendência para o lesbianismo, Joaquín.
Não era nada disso, Alexandra; o que contaste é a coisa mais normal do mundo.
Terias de te lembrar se alguma vez tiveste vontade de fazer amor com uma rapariga.
- Ai, Joaquín, até parece que sou uma devassa.
Então, esquece a tua crise de lesbianismo. A homossexualidade nãO é uma doença
contagiosa, querida. Lá porque eu sou gay, tu não tens de te tornar lésbica.
Ai, não sei, estou preocupadíssima, Joaquín. Ontem, à noite, não consegui dormir a
pensar que sou lésbica. Se sou lésbica, o meu mundo desaba, Joaquín. Juro-te que o meu
mundo desaba.
Vou fazer-te uma pergunta tola. Imagina que só te resta uma noite de vida. Sabes
que vais morrer no dia seguinte. Nessa noite, gostarias de fazer amor com um homem ou
com uma mulher?
Que pergunta mais tétrica, Joaquín. Com nenhum, ora essa. Se fosse a minha
última noite de vida, gostaria de passá-la com os meus pais, com a minha irmã adorada,
com o meu gato Zigzag, com a minha tartaruga Pasmosa.
-
Então, imagina antes que não vais morrer.
-
Ufa, que alívio!
Imagina que estás numa praia maravilhosa das Caraíbas, uma praia deserta, só
para ti, e estás nua, deitada na areia e a morrer de vontade de fazer amor. Pensas num
homem ou numa mulher?
Primeiro do que tudo, penso na erisipela, no cancro da pele e na areia que se me
mete no rabo e depois me deixa irritada.
-
Contigo é impossível, Alexandra - disse ele, rindo-se.
- O que se passa é que não sou uma hiperactiva sexual - disse ela.
Em seguida, abraçou Joaquín e suspirou.
- Não vou deixar que sejas maricas e tu não deixes que eu seja lésbica - disse-lhe.
-
Prometo-te - disse ele.
Uma tarde, depois de fumar marijuana, Alexandra e Joaquín deitaram-se na alcatifa do
apartamento, beijaram-se, despiram-se e ele pediu-lhe que lha chupasse.
- Não sei, é melhor não - disse ela. - Só fiz isso uma vez com Ricardo e acho que não gostei.
Se ma chupares, se calhar entesa e curas-me do meu trauma - disse ele, e sentiu-se
um manipulador.
Ela pôs de lado todo o seu pudor e começou a chupar-lha.
Entesou-se, entesou-se - disse, com entusiasmo, ao ver que o sexo de Joaquín
ficara duro.
- Vem, há que aproveitar, senta-te por cima de mim - disse ele.
- Joaquín, preciso de te dizer uma coisa.
- Diz, mas despacha-te, senão pÕe-se mole de novo.
-
Sou virgem.
- Não te preocupes. Eu também.
Mas não sei se quero fazer isso. Depois, vou arrepender-me, vou sentir que perdi
uma parte íntima do meu ser.
-
Só a pontinha, Alexandra. Prometo-te que é só a pontinha.
- Por favor, só a pontinha, está bem?
-
Prometo-te.
Ela tirou as calçinhas e sentou-se em cima de Joaquín. Ele tentou enfiar-lha.
- Ai, devagar, não sejas bruto - queixou-se ela.
- Desculpa, é a excitação - disse ele.
Em seguida, foi-lha metendo com dificuldade. Suava. Estava tenso.
-
Joaquín, disseste-me que era só a pontinha - protestou ela.
-
Desculpa, escorregou-me - disse ele. - Mexe-te e não te preocupes.
- Mas não te venhas dentro de mim, está bem?
-
Prometo-te que a tiro antes de me vir.
Mal Alexandra tinha começado a mexer-se, Joaquín terminou dentro dela.
dele.
Estúpido, pedi-te que não te viesses dentro - gritou, e separou-se bruscamente
-
Lamento, mas não consegui evitá-lo - disse ele.
Ela sentou-se na cama.
-
Merda, que chatice, se calhar fiquei grávida - gritou ela.
Em seguida, levantou-se e correu para a casa de banho. Joaquín vestiu as calças. Pouco
depois, ela saiu da casa de banho. Chorava.
Aposto que estou grávida - gritou. - Já nos tramámos, Joaquín, agora que vamos
fazer?
-
Não estás grávida, Alexandra - disse ele. - Não digas idiotices.
Estou precisamente nos dias mais perigosos, Joaquín. Aposto o que quiseres em
como estou grávida.
Joaquín pensou que tinha de fazer alguma coisa para a acalmar.
Não te preocupes - disse. - Tenho um tio que é ginecologista. Telefono-lhe agora
mesmo e ele resolve o problema.
Alexandra sentou-se na cama com as pernas cruzadas.
Ainda que não me acredites, senti os teus bichos a correr em busca do óvulo disse. - Foi como se me tivessem metido uma Alkaseltzer pela passarinha.
Joaquín procurou o número de telefone do tio, o Dr. Lucho Tudela. Assim que o
encontrou, telefonou-lhe.
Não lhe digas o meu nome, não quero que meio Lima fique a saber que perdi a
virgindade - disse ela.
Não te preocupes, ninguém vai ficar a saber de nada, o meu tio Lucho é óptima
pessoa - disse Joaquín.
O telefone tocou várias vezes. Por fim, Joaquín ouviu a voz do tio.
Olá, tio, sou Joaquín Camino, o seu sobrinho - disse-lhe. Telefono porque tive um
percalço.
Ora conta lá, sobrinho, diz-me em que posso ajudar-te - disse o Dr. Tudela, com
uma voz muito cordial.
Acabo de ir para a cama com a minha namorada e ela tem a certeza de que a
engravidei e não sabemos o que havemos de fazer, porque, como compreenderá, não
podemos ter um filho.
Caramba, Joaquincito, vejo que o senhor não perde tempo - disse Tudela. - Mas
que prazer em ouvir isso, porque diziam por aí que você jogava na outra equipa, meu
querido sobrinho.
-
Não, tio, como é que pôde pensar uma coisa dessas.
Olha, Joaquincito, vem agora mesmo até aqui e traz a tua pequena. Eu dou-lhe um
comprimido que não falha. Chama-se pílula do dia seguinte. Ela toma-a aqui e saem-lhe as
borras. E o problema está resolvido.
-
Nem sabe como lhe agradeço. Vou para aí imediatamente.
-
Cá te espero, sobrinho.
Joaquín desligou o telefone. Alexandra continuava a chorar.
- Vê o que me fizeste - disse. - Eu estava a tentar ajudar-te a superar o trauma e tu
engravidaste-me.
Mas não há problema, porque o meu tio Lucho vai dar-te a pílula do dia seguinte disse ele.
- E que porcaria é essa? - perguntou ela, fazendo um esgar de nojo.
Alexandra, não fales assim, o meu tio Lucho Tudela é o melhor ginecologista de
Lima. Disse-me que tomas esse comprimido e saem-te as borras, ou seja, vem-te o
período e deixas de estar grávida.
- Não pode ser. Deve ser uma invenção do perverso do teu tio.
- Vamos, despacha-te, que o meu tio está à nossa espera.
Saíram do apartamento e tentaram descer pelo elevador, mas foi impossível porque
acabara de haver um corte de electricidade. Desceram pelas escadas e subiram para o
carro de Alexandra. Ele conduziu a toda a velocidade, enquanto ela se agarrava à barriga.
- Se fosse homem, que nome lhe daríamos - perguntou ela, a caminho do consultório.
- Não faço ideia - respondeu ele. - Nunca tinha pensado nisso.
- Adoro Felipe. Diego não é feio, mas o meu preferido é Paul.
- Sim, Paul é bonito.
-
E se for mulher?
- Não faço a menor ideia. Tu dirás.
- Se for mulher, terá de se chamar Paola ou Verónica. São os meus nomes preferidos.
Pouco depois, chegaram a um edifício ao lado da Clínica Americana. Joaquín parou o carro
e desligou o motor.
-
Eu fico aqui - disse ela, e acendeu a rádio.
-
Vá lá, desce, não sejas tonta.
-
Não posso, morro de vergonha, o teu tio vai pensar que sou uma puta.
-
Bem, como quiseres.
Joaquín desceu do carro, entrou na clínica, subiu doze andares de escadas e chegou ao
consultório do tio. Ofegando, disse o nome à secretária. Ela mandou-o logo entrar.
- Olá, Joaquincito, que tal te tem corrido a vida, sobrinho? - disse o Dr. Tudela,
levantando-se da secretária.
Era um homem robusto, de olhos achinesados e olhar malicioso. Tinha uma cara redonda
e rosada.
-
Não tão bem como a si, tio - disse Joaquín, e abraçou o tio
-
E a tua namorada, sobrinho? - perguntou Tudela.
-
Ficou no carro, não quis subir.
-
Então fala-me dela. Que idade tem?
-
Dois anos menos do que eu, ou seja, dezanove.
Que maravilha, está na flor da idade a pequena. Quer então dizer, Joaquincito, que
encheste a tua miúda. E eu que pensava que você tinha a gaita meio fraca, sobrinho.
-
Não tio, que ideia, como é que podia ser.
Conta-me uma coisa, Joaquincito, quanto tempo aguentas dentro da pachacha
dela? Porque tu deves ser um galinho de combate, metes-lha e disparas logo, não é?
-
Pois é, dou-lha logo, não aguento nada.
O Dr. Tudela soltou uma gargalhada.
Na tua idade são todos assim, sobrinho, não duram nada, sucumbem logo - disse. Em compensação, eu, velho como estou, sabes quanto aguento? Meia hora como se não
fosse nada, meia hora em média por cada queca.
-
Bom, que inveja, tio.
Dá tempo ao tempo, sobrinho, dá tempo ao tempo. Com os anos vais aprendendo
a foder. Já percorri muitos quilómetros.
-
Imagino, tio, imagino.
Mas tens de ter cuidado contigo. PÕe sempre uma camisinha, por causa das
moscas.
-
Não se preocupe, tio, isto não me volta a acontecer.
Olha, sobrinho, aqui tens o comprimido que te prometi. Diz à tua miúda que a
tome agora mesmo.
O Dr. Tudela deu-lhe um comprimido envolvido num plástico Transparente.
Caramba, tio, nem sabe como lhe agradeço, livrou-me de boa - disse Joaquim. Quanto lhe devo?
- Que ideia, não deves nada, Joaquincito, fica tudo em família.
Riram-se. Joaquín guardou o comprimido e despediu-se do tio.
- Porra, sempre me saiu um coelhinho este Joaquincito - disse o Dr. Tudela sorrindo,
enquanto dizia adeus ao sobrinho.
Joaquim desceu as escadas do edifício a correr. Assim que entrou no carrO, mostrou o
comprimido a Alexandra.
- Mudei de opinião - disse ela.
Joaquín olhou-a, surpreendido.
Se for mulher, chama-se Alexandra como eu, mas ponho-lhe Alessandra com dois
"ss" porque tem pinta, não achas?
Ele deu-lhe a mão.
- Acompanha-me a à pastelaria ali em frente - disse-lhe. - Tens de tomar o comprimido
agora mesmo.
Ela desceu do carro. Foram a pé até uma pastelaria que ficava em frente da clínica.
Joaquín pediu dois sumos de morango.
- Simples ou com leite? - perguntou-lhe a mulher que estava ao balcão.
- Leite nem sonhar, que começam logo a crescer-me as mamas - disse Alexandra.
Pouco depois, a mulher deu os sumos a Joaquín. Ele tirou o comprimido e deu-o a
Alexandra.
-
Toma-a - disse-lhe.
Ela benzeu-se e fechou os olhos.
-
Perdoa-me, meu Deus, mas ainda nem sequer acabei a universidade - disse.
Em seguida, levou o comprimido à boca e tomou-o com um pouco de sumo.
- Tchau, Paul, tchau, Alessandrita - disse; e desatou a chorar.
*
Uns dias depois, Alexandra e Joaquín estavam a ver televisão. Era uma sexta-feira à noite.
- Estou a morrer de vontade de ir à Studio One - disse ele.
-
O que é iSSO? - perguntou ela.
-
É uma discoteca gay, em Miraflores.
-
Não sei, Joaquín, que vergonha. Se calhar encontramos alguem conhecido.
-
Vamos um bocadinho, só para ver como é. Não sejas maricas.
-
Está bem, mas, se não prestar, saímos imediatamente, combi nado?
-
Okay, como quiseres.
Antes de saírem fumaram marijuana. Depois, subiram para o caro de Alexandra. Joaquín
conduziu até chegarem à Studio One. A disco teca ficava num beco, perto da Avenida
Benavides. Estacionaram o carro, desceram e aproximaram-se da porta da Studio One.
Caso não saibam, esta discoteca tem um ambiente especial - avisou-os o rapaz que
cobrava as entradas.
-
Que é iSSO? - perguntou Alexandra.
-
Quero dizer um ambiente in - respondeu o rapaz, sorrindo
-
Já sabemos que é uma discoteca de maricas, filho - disse Alexandra.
- Não digas maricas, isso ofende - disse o rapaz. - É mais simpático dizer "homos".
Alexandra riu-se. Joaquim pagou as entradas.
-
Isto parece a gaiola das doidas - disse ela, assim que entraram na discoteca.
-
Cala-te, não fales tão alto - disse ele.
Sentaram-se numa esquina do balcão e pediram duas cervejas. A discoteca estava cheia
de homens, quase todos com calças muito justas. Uma música estridente agredia os
tímpanos.
Estou impressionadíssima, Joaquim - disse ela. - Nunca imaginei que houvesse
tantos maricas em Lima.
-
E alguns não são nada feios - disse ele.
Desculpa, mas parecem-me todos super vulgares, super amaneirados. Nem nós, as
mulheres, somos tão femininas como estes tipos.
-
Achas-me efeminado, Alexandra?
-
Nem por sombras. Tu não és como eles, tu és super normal.
Beberam as cervejas pela garrafa.
-
Já reparaste que também há raparigas? - perguntou ela.
-
Devem ser lésbicas, não achas? - disse ele.
-
Não sei por que razão as lésbicas são sempre tão feias.
-
Não digas parvoices, Alexandra, também há lésbicas lindas.
Nunca conheci uma lésbica bonita. Para mim, são todas umas frustradas que,
como não conseguem arranjar rapazes, se tornam azedas e se fazem de lésbicas como
prémio de consolação.
Ninguém se faz de lésbica ou maricas, Alexandra. A tua orientação sexual já está
em ti desde o princípio. Tu não a escolhes. Ela é que te escolhe a ti.
Mas não podes negar que os gays costumam ser giros e as lésbicas, mais feias do
que um pontapé nos tomates.
-
Também há maricas horrorosos.
Claro, mas andam sempre tão arranjadinhos, com um bigodinho muito certinho,
um pólo justinho, umas calças apertadas. Em compensação, as lésbicas andam
mal-enjorcadas, desleixadas. E tanto assim que uma vez que a minha mãe me viu a sair de
casa com a minha roupa hippie me disse: ai, filha, veste-te como deve ser, que assim até
pareces lésbica.
Riram-se.
- Tenho de ir urinar - disse ele. - Volto já.
- Piroso - disse ela, rindo-se.
Havia tanta gente na Studio One que só dificilmente se podia caminhar. Joaquín chegou à
casa de banho e encerrou-se num urinol. Estava a desapertar a braguilha quando um tipo
assomou por um orifício na parede de madeira do urinol.
- Não queres que te faça uma mamada, picha grande? - perguntou.
- Não, obrigadíssimo - respondeu Joaquim.
tipo.
PÕe-la neste buraquinho e dou-te uma chupadela que até ficas vesgo - insistiu o
- estou com pressa - disse Joaquín. - Mil vezes obrigado, mas - retirou a cara do orifício.
-
Que tacanho que és - disse o tipo; e
Joaquim urinou tão depressa quanto pôde e saiu da casa de banho. Alexandra continuava
na esquina do balcão. Uma rapariga de cabelo rapado e nariz aquilino falava-lhe ao
ouvido. Alexandra olhou para Joaquim, como que a pedir-lhe ajuda. Joaquim
aproximou-se dela e abraçou-a.
- ela se aborrece contigo - disse-lhe a rapariga do cabelo rapado.
-
Seja como for, não é problema teu - disse ele.
-
Como és macho. Vê como tremo de medo - disse a rapariga.
Parecia um pouco bêbeda.
- É para isso que bebes, para te embebedares - disse-lhe Joaquim.
Não te aborreces com este palhaço? - perguntou a rapariga a Alexandra. - Não
gostarias de sair antes comigo, querida?
Em seguida, pôs uma mão entre as pernas de Alexandra e tentou beijá-la.
-
Ai, soa estúpida, larga-me - gritou Alexandra.
-
Ouve, machona, anã de merda, deixa a minha namorada em paz - disse Joaquim.
A rapariga levantou-se e enfiou um murro em Joaquín, que perdeu o equilíbrio e caiu ao
chão.
-
Seu macho, palhaço, maricas reprimido - gritou a rapariga.
O tipo que atendia o bar saiu de trás do balcão, agarrou a rapariga e empurrou-a para a
porta. Joaquim levantou-se com muita dificuldade.
Vamos embora deste antro - disse Alexandra. Joaquín e Alexandra saíram da
discoteca.
- Nunca mais ponho os pés neste sítio nojento - disse ele.
No fim de semana seguinte, Joaquim e Alexandra foram viajar até Cusco. Ele convidou-a e
ela atreveu-se a ir sem licença dos pais.
Os locas sozinhos não faziam isto nem que se pintassem de verde - disse ela,
olhando para as ruínas de Machu Picchu. - Isto teve de ser feito pelos marcianos.
Tinha os olhos achinesados e os lábios gretados. Joaquim ou via-a sentado ao lado dela.
Tinham fumado marijuana quando chegaram a Machu Picciu. Ambos tinham um walkman
nos ouvidos. Ele escutava Peter Gabriel. Ela, Marilhom.
- Joaquín, juraria que está ali uma senhora igualzinha a ti a acenar-te - disse ela.
-Deves estar com alucinaçÕes - disse ele.
- A sério, olha para ali - insistiu ela, apontando para uma mulher.
Quando Joaquim viu a mãe a fazer-lhe adeus, pensou que ele é que estava com
alucinaçÕes.
-
Não pode ser - disse. - É a minha velha.
-
Que linda que é a tua mãe, é igual a ti - disse Alexandra.
Maricucha continuava a sorrir e a fazer-lhes adeus. Resignado, Joaquín aproximou-se dela.
Fala pouco, não vás dizer uma bacorada, porque estamos zangadissimos recomendou ele a Alexandra, baixando a voz.
-
Olá, meu amor, que surpresinha encontrar-te aqui - disse Marícucha.
-
Olá, mamã - disse Joaquim, e deu-lhe um beijo na cara.
-
É Alexandra, uma amiga minha - disse-lhe.
-
Finalmente, apresentas-me as tuas amigas, meu amor - disse Maricucha.
- Como está - disse Alexandra. - Estou impressionadíssima. A senhora e Joaquim são iguais
como duas gotas de água.
Ah, minha filha, se visses fotografias de antigamente, caías para o lado - disse
Maricucha. - Agora Joaquim tem a cara chupada, porque de certeza que não come como
deve ser, não é, filhinho?
- Que fazes aqui, mamã? - perguntou Joaquim.
Ai, filho, estou farta de Miami - disse Maricucha. - Agora propus-me conhecer o
Peru, que tem tantos sítios lindos. Nem te digo como está o teu pai. Está furioso. Diz que é
ultra perigoso eu vir sozinha para Cusco, por causa do terrorismo. Mas ninguém morre
antes de ter chegado a sua hora, filho. Além disso, Lima está horrível ultimamente. Nem
imaginas como os mestiços roubam agora na porta do Wong. No outro dia, à saída da
Igreja de Maria Reina, arrancaram a carteira à tia Camincha, que diga-se de passagem nem
calculas como sofre das hemorróidas.
Neste momento, Lima é muito mais perigosa do que Cusco - declarou Alexandra. Já não sabemos quando vai explodir ao nosso lado um carro armadilhado.
- Além disso, Cusco tem uma magia incrível, não acham? - continuou Maricucha. - Aqui,
uma pessoa cultiva-se extraordinariamente. A propósito, meninos, têm de ler o livro de
Shirley MacLaine sobre a questão extra-sensorial, é estupendo.
- Onde estás instalada, mamã? - perguntou Joaquim.
- Na suite que o teu tio Micky tem no Libertador - disse Maricucha.
- Não sabia que o tio Micky tinha uma suite no Libertador.
-
Pois é uma suite régia, com jacuzzi e lareira - informou Maricucha.
Nós estamos numa residencial muito simpática a uns quarteirÕes de distância da
Praça de Armas - disse Alexandra.
Em quartos separados, suponho - disse Maricucha. Alexandra sorriu. Joaquim não
soube o que havia de dizer. Maricucha soltou uma gargalhada.
-
Estou a brincar, meninos - disse.
De repente, um homem magro e moreno chamou Maricucha.
-
Quem é aquele índio? - perguntou Joaquín.
-
Ai, Joaquim, não sejas racista - disse Alexandra.
É o meu guia, o guia do tour - disse Maricucha. - E, apesar de índio, sabe a história
de Cusco melhor do que tu e do que eu. O seu quechua é mais fluente do que o meu
inglês. Deve ser a reincarnação de Atabualpa, o meu lindo guia.
-
Tem pinta de terrorista - disse Joaquim.
Bem, meninos, tenho de me ir embora, nunca é tarde para nos cultivarmos um
pouco - disse Maricucha. - Mas, antes, temos de tirar uma fotografiazinha, não acham?
Em seguida, pegou na máquina que trazia pendurada ao pescoço, aproximou-se de um
turista e pediu-lhe que lhe tirasse uma fotografia.
- É o meu filho, que não via há séculos - explicou-lhe, apontando para Joaquim.
O homem aceitou, encantado, e preparou a máquina fotográfica.
-
Ai, sou o menos fotogénica que há - disse Alexandra.
Maricucha abraçou Alexandra e Joaquim.
-
É melhor ficarem só os dois - disse Alexandra.
-
Não, minha filha, que ideia, os três juntos - disse Maricucha.
- É que vou estragar a fotografia - insistiu Alexandra.
Não digas burrices, filha, que estás lindamente - disse Maricucha. - O que é preciso
é sorrirem com a boca um pouco aberta para não se notarem as rugas.
Sorriram os três com a boca entreaberta. O homem tirou-lhes diversas fotografias. Depois,
insistiu em tirar uma ao lado de Maricucha.
voz.
Que conquistador nos saiu este americano fedorento - disse Maricucha, baixando a
Joaquim tirou uma fotografia à mãe e ao turista. Depois, o turista foi-se embora,
encantado.
-
É para que vejas que ainda me acham atraente - disse Maricucha ao filho.
Depois, deu dois beijos na face de Alexandra.
-
Vê se obrigas este magricelas a comer, está bem?
Se a senhora visse o prato de talharim com ovos estrelados que o magricelas
comeu ontem... - disse Alexandra.
Adeusinho - disse Maricucha, e beijou o filho na cara. - Telefona-me para o hotel
esta noite, para combinarmos ir jantar os três.
-
Está bem, mamã - disse Joaquim.
Maricucha pôs o chapéu de palha e foi-se embora a correr para apanhar o guia do tour.
Nessa noite, Joaquim e Alexandra foram ao Kamikaze, uma das melhores discotecas de
Cusco, onde Pochi Gonzales e o seu grupo interpretavam as suas cançÕes mais populares,
em frente da pista de dança.
Adoro a música de Pochi Gonzales - disse Alexandra, enquanto dançava com
Joaquim.
-
Eu também - disse ele, quase sem se mexer, pois não gostava de dançar.
Uma ex-namorada de Pochi contou-me que ele a amarrava na cama, imagina tu disse ela. - Tu eras capaz de amarrar o teu par na cama?
-
Prefiro que me amarrem a mim - respondeu ele.
Dançavam abraçados, falando ao ouvido.
Eu nunca deixaria que me amarrassem - disse ela. - Sentir-me-ia uma escrava, um
objecto sexual.
-
às vezes, deve ser óptimo que te tratem como um objecto sexual - disse ele.
-
Ai, Joaquín, por favor, não sejas maldoso - disse ela, rindo-se.
Quando a canção acabou, sentaram-se numa mesa. No meio da mesa estava uma vela
acesa. Alexandra pôs-se a brincar com a vela, passando os dedos pela chama.
Qual foi a coisa mais degenerada que fizeste na tua vida? - perguntou Joaquim,
baixando a voz.
Eu nunca fiz nada de degenerado - disse ela, sorrindo. - Eu sou uma rapariga do
Villa Maria, filho.
-
Mentirosa. Todos escondemos um segredo.
-
Em todo o caso, é melhor começares tu por me dizer o teu.
Ele apoiou a cabeça numa mão, recordando.
-
Uma vez, quando era miúdo, um amiguinho e eu violámos uma galinha.
Ela soltou uma gargalhada, tapando a boca.
- Que belo par de abusadores... coitadinha da galinha - disse.
-
A galinha morreu no acto. Creio que foi de pura vergonha.
Ela continuou a rir.
-
Agora é a tua vez - disse ele.
-
Ai, não sei - disse ela.
-
Vá lá, conta-me uma coisa, não sejas maricas.
-
Bem, mas jura que não contas a ninguém.
-
Juro.
Nas férias do terceiro ano fui esquiar para o Chile com uma amiga do colégio e os
pais dela. Um dia, estávamos na neve e tínhamos de subir nessas cabinas que estão
penduradas a uma altura enorme. Acho que se chamam funiculares, não é? Claro que eu
estava borrada de medo. Comecei a chorar, feita cobarde, e o papá de Pilar, o Cara de Ovo
(todas lhe chamávamos Cara de Ovo, mas não na frente dele, é óbvio), o Cara de Ovo
disse eu vou com Alexandra, vocês vão à frente, porque cada carrinho só levava duas
pessoas. Por isso, Pilar e a mãe foram num e o Cara de Ovo e eu subimos para outro. Olhei
para baixo e senti pânico. Então, o Cara de Ovo abraçou-me e sentou-me ao colo dele, o
mais paternal do mundo. De repente, eu nem sequer me apercebera de nada, ele tinha
uma mão nas minhas mamas e a outra dentro das minhas cuecas. O Cara de Ovo
apalpou-me como lhe deu na gana, porque a viagem foi interminável. E eu deixei, não lhe
disse nada, e deveria ter vergonha de te contar isto, Joaquín, mas a verdade é que gostei.
Acabei molhadíssima. Que horror, que puta que me sinto.
Nesse momento, um rapaz aproximou-se de Alexandra e ficou a olhar para ela.
-
Já não te lembras de mim? - perguntou-lhe.
-
Quem és? - perguntou ela, sorrindo.
Coelhinha, sou eu - disse o rapaz. - Não posso acreditar que te tenhas esquecido de
mim. lembra-te do dia em que ganhámos o festival de La Ilonda e fomos famosos.
Ela levantou-se de um salto e abraçou-o.
-
José Antonio - gritou. - Não posso crer. Não te tinha reconhecido.
-
Há anos que não nos vemos - disse ele.
-
É Joaquín, um amigo meu - disse ela.
-
Muito prazer - disse José Antonio. E estendeu a mão a Joaquín.
-
José Antonio e eu cantámos juntos em La Honda, num Verão, há quase mil anos.
-
Ganhámos com Arena bianca, mar azul, lembras-te? - perguntou José Antonio.
-
Que emoção, há montes de anos que não te via - disse Alexandra.
Sabes, é que eu, desde que entrei para a Marinha, deixei de ver toda a gente disse José Antonio.
-
Juras que estás na Marinha? - perguntou Alexandra, surpreendida.
Alferes del Solar, às suas ordens - disse José Antonio, sorrindo, fazendo a clássica
saudação militar.
- E pode saber-se o que faz um marinheiro no Kamikaze? - perguntou Alexandra com um
sorriso sedutor.
-
Vamos dançar que eu explico-te - disse José Antonio.
-
Bestial - disse Alexandra.
-
Podemos, não é verdade? - perguntou José Antonio a Joaquín.
-
Claro que sim - respondeu Joaquín.
Alexandra e José Antonio perderam-se entre a multidão que dançava no Kamikaze.
Joaquín aproveitou para ir à casa de banho. Estava a tentar urinar, quando ouviu um tipo
a oferecer coca.
-
A vinte dólares a gulosa, a 20 dólares a gulosa - disse o tipo.
-
Quanto custa um pacote? - perguntou Joaquín.
-
Não vendo pacotes, só vendo doses à unidade - disse o tipo.
-
Deves saber onde posso conseguir um bom pacotinho, meu irmão - disse Joaquín.
O tipo ficou calado e olhou Joaquín nos olhos.
-
U ou Alianza? - perguntou, com uma voz muito grave.
-
U para toda a gente - disse Joaquín.
-
Venha esse abraço, amigão - disse o tipo.
Abraçaram-se.
Lá em baixo, no Café Literario, pergunta no balcão pelo Quique - disse o tipo ao
ouvido de Joaquín.
-
Obrigado, meu irmão - disse Joaquín.
A seguir, saiu da casa de banho, viu que Alexandra e José Antonio continuavam a dançar,
atravessou a rua e entrou no Café Literario. Assim que entrou, perguntou no balcão pelo
Quique. Uma mulher apontou para um tipo gordo que estava a ver um velho exemplar de
Bohemia. Joaquín agradeceu-lhe e aproximou-se do tipo.
-
O senhor é o Quique?
-
O próprio, sem tirar nem pôr - respondeu ele.
- Venho do Kamikaze - disse Joaquín.
-Ora então diz lá - disse o tipo.
-
Preciso de um pacotinho.
-Para quando?
-Para já.
- Impossível, magricela. As encomendas fazem-se com um dia de antecedência.
-
Pago o que quiseres, Quique.
- Olha, magricela, estás com sorte, vou vender-te a que tenho para meu consumo pessoal,
mas sai-te a 40000 soles o pacote.
- Certo. Obrigado, Quique. És um cavalheiro a valer.
- Vamos lá para fora, que aqui há muitos mirones.
Quique levantou-se e saíram para a rua. Em questão de segundo fizeram a transacção.
-
Vais deixar-me dar o snife de honra, não vais - disse Quique.
- Claro, Quique, serve-te - disse Joaquim; e abriu o pacotinho de coca.
Quique apanhou um pouco de coca com os dedos e levou-a ao nariz.
- Nada de exageros, que a coca com a altitude é traiçoeira.
- Não te preocupes, meu irmão - disse Joaquín.
A seguir, puxou do seu cartão de eleitor e aspirou toda a coca que conseguiu. Depois de se
despedir de Quique, voltou para o Kamikaze e procurou Alexandra. Estava sentada com
José Antonio.
- Onde te meteste? - perguntou.
- Fui tomar um cafezinho - respondeu Joaquín, procurando dissimular os trejeitos.
- Não sabes quantas coisas porreiras estive a recordar com José Antonio - disse Alexandra.
- Recordar é viver, o resto são cantigas - disse José Antonio, e acariciou o cabelo de
Alexandra.
-
Bem, o melhor é deixá-los sozinhos - disse Joaquín; e dirigiu-se ao balcão.
Alexandra levantou-se e foi atrás dele.
-
Ouve lá, que tens tu? - perguntou, dando-lhe a mão.
És incrível, Alexandra - disse Joaquín, sem conseguir esconder que estava furioso
com ela. - Trago-te a Cusco, esbarras com este marinheirozito de água doce e deixas-me
pendurado.
Não te deixei pendurado, tu é que desapareceste. E não me fales assim de José
Antonio, que é um amor - disse ela.
- É um sabidão, a única coisa que quer é deitar-se contigo - disse ele.
Ela sorriu e abraçou-o.
-
Estás com ciúmes - disse. - Gosto muito de te ver exasperado. Ficas mais giro.
Vou comprar umas cervejinhas e tu pÕe o marinheiro com dono - disse ele. - De
certeza que é da marinha mercante, o imbecil.
-
Não podes negar que tem pinta, Joaquín.
Sim, mas deve ter gonorreia. Caso não saibas, quase todos os marinheiros têm
gonorreia.
Ela riu-se e voltou para a mesa. Ele comprou duas cervejas, entrou na casa de banho e deu
uma delas ao tipo que vendia coca.
-
Conseguiste? - perguntou o tipo.
-
Tudo correu bem - disse Joaquín. - Mil vezes obrigado.
A seguir, puxou da coca, deu uns bicos e pôs-se a falar de futebol com o tipo que vendia
coca. De repente, três polícias irromperam na casa de banho do Kamikaze.
-
Quietos, porra, isto é uma rusga - gritou um deles.
A ordem daqueles homens de uniforme silenciou logo a gritaria que se ouvia na casa de
banho do Kamikaze.
Isto é uma inspecção de rotina, para apanhar passadores e outros maus elementos
que consomem substâncias estupefacientes em locais nocturnos - disse o polícia que
parecia comandar a operação. - Façam o favor de formar já duas filas, uma de estrangeiros
e outra de cidadãos nacionais. Vamos revistá-los um a um. E, ao primeiro movimento
suspeito, disparamos, porra.
Sem qualquer ordem aparente, formaram-se duas filas na casa de banho e todos foram
submetidos a uma revista policial.
Estes dois vão dentro por se charrarem - disse um polícia ao encontrar marijuana
nos bolsos de dois turistas.
Em seguida, algemou os turistas e encostou-os à parede. Eram dois tipos barbudos, de
cabelo arruivado.
- Olá, olhem para este pacotão - disse outro Polícia, pouco depois, e retirou um saco com
cocaína das cuecas do tipo que vendia coca na casa de banho.
- Não diga pacotão, cabo Martínez - corrigiu o polícia que parecia ser o chefe. - Diga
pacote.
- Desculpe, meu sargento - desculpou-se o cabo.
Então, chegou a vez de Joaquín. Um Polícia revistou-lhe a carteira e encontrou o
pacotinho de coca que comprara no Café Literario.
- Detido por posse de cocaína de elevado poder narcotizante - disse-lhe.
Quando terminou a inspecção, os quatro detidos saíram da casa de banho sob a custódia
da polícia; Joaquín era um deles.
O concerto de Pochi Gonzalez fora interrompido. Havia um ambiente de tensão e
nervosismo no Kamikaze.
- Joaquín, que aconteceu? - perguntou Alexandra, ao ver que a polícia o levava aos
empurrÕes.
- Nada, não te preocupes, é um mal-entendido - conseguiu dizer-lhe Joaquín.
Os quatro detidos foram levados, em dois carros-patrulha, para a esquadra de Cusco.
Depois de comunicar Os seus dados pessoais ao chefe da esquadra, Joaquín foi encerrado
numa cela que tresandava a trampa.
Uma hora mais tarde, Joaquín estava a relatar um desafio de futebol imaginário, quando
ouviu os gritos da mãe.
- Onde está o meu filhinho, que fizeram ao meu filhinho adorado? - gritou Maricucha,
entrando na esquadra de Cusco.
Depois de a acalmar e ver os seus documentos, o chefe acompanhou-a até à cela onde
estava Joaquín.
- O seu filho tinha em seu poder vários gramas de cocaina - disse-lhe.
Era um homem moreno, roliço, de bigode. Maricucha usava um poncho e um chapéu de
palha. A seu lado, Alexandra soluçava.
- Não pode ser, o meu filho não é um droguista, isto deve ser um engano - disse
Maricucha.
- Joaquín é um rapaz conflituoso, mas não se droga - disse Alexandra.
- Lamento, mas o jovem incorreu numa falta grave tipificada no Código Penal - disse o
comissário.
Ai, meu comandante, não sei o que poderíamos fazer para solucionar isto como
amigos - disse Maricucha.
O polícia tossiu e cofiou o bigode.
-
Faço o que o senhor disser, o que o senhor mandar - disse Maricucha.
-
Por favor, senhor guarda, seja bonzinho - pediu Alexandra.
Por acaso estamos a construir uma ampliação da esquadra e lutamos com falta de
fundos - disse o comissário. - A verdade é que estamos muito necessitados de doaçÕes.
Ai, meu comandante, eu adoraria colaborar com as forças da ordem para uma
causa tão nobre - disse Maricucha, e abriu a carteira. - Aceitam cartÕes de crédito?
Não, que ideia, aqui não estamos assim tão modernizados, minha senhora! - disse
o comissário.
O livro de cheques, onde está o livro de cheques? - disse Maricucha, como se
falasse consigo própria.
Gostaria de dar uma pequena contribuição - disse Alexandra, e entregou ao
comissário duas ou três notas enrugadas.
Obrigado pela sua doação voluntária, menina - disse o comissário. - Agora, à saída,
entrego-lhe o seu recibo e o seu autocolante da polícia de Cusco.
Maricucha puxou do livro de cheques.
- Quanto precisa para acabar as obras, meu comandante? - perguntou.
- De modo nenhum, minha senhora, dá o que quiser - disse o comissário.
Ai, senhor chefe, não seja tão tímido, sei muito bem o que os senhores sofrem com
a recessão e com a actual situação - disse Maricucha. - Passo o cheque em soles ou em
dólares?
-
A verdade é que em dólares a moeda é mais estável - disse o comissário.
Maricucha escreveu uns algarismos e mostrou-lhe o cheque.
-
Isto chegará? - perguntou.
Caramba, minha senhora, isso chega até para dar duas demãozinhas de pintura na
esquadra toda - disse o comissário.
Ai, comissário, nem sabe como estou contente por poder ajudar uma causa justa disse Maricucha.
Depois, assinou o cheque e entregou-o ao comissário.
- à saída dou-lhe o recibo e o seu autocolante, minha senhora - disse o comissário. Vamos lá, Lobatón, abre-me esta grade - gri tou, dirigindo-se a um dos seus subordinados.
Um policia com cara de assustado correu para a cela e abriu o cadeado. Joaquín saiu da
cela.
-
Fica em liberdade, mas que isto não se volte a repetir - disse-lhe o comissário.
- Não se preocupe, senhor chefe - disse Joaquín.
Maricucha abraçou o filho.
-
Estás a deitar um pouco de sangue pelo nariz - disse Alexandra.
-
É do frio - disse Joaquín.
Na realidade, sangrava devido à coca que aspirara.
Ai, que vergonha, estamos a fazer uma cena, o que é que o senhor comissário vai
pensar? - disse Maricucha.
Maricucha, Alexandra e Joaquín saíram da esquadra da polícia de Cusco acompanhados
pelo comissário.
-
Chefe, nem sei como lhe hei-de agradecer a sua benevolência - disse Maricucha.
Pelo contrário, minha senhora, a polícia de Cusco é que lhe fica infinitamente
agradecida - disse o comissário.
Maricucha estendeu-lhe a mão e o policia fez-lhe uma vénia. Em seguida, afastaram-se os
três da esquadra.
Se este mestiço pensava que se ia despedir de mim com um beijo, estava muito,
mas muito enganado - disse Maricucha.
Alexandra soltou uma gargalhada.
O telefone tocou quando Joaquín ainda dormia. Regressara de Cusco na noite anterior.
Apetecia-lhe dormir três dias seguidos.
-
Bom dia, sou Nicanor López de Romana, o pai de Alexandra - ouviu.
-
Ah, muito gosto - disse.
-
A minha filha fala muito em si ultimamente. Gostaria de conversar consigo.
-
Terei muito prazer, quando o senhor quiser.
-
Por que não vem esta tarde ao meu escritório?
-
Vou com certeza.
Anotou a direcção do Sr. López de Romana. Combinaram ver-se às seis.
Ah, e por favor não comente nada com Alexandra - recomendou o Sr. López de
Romana. - É um assunto entre nós os dois.
-
Claro, Sr. López de Romana, não se preocupe.
Pousou o telefone, pôs o despertador para as cinco da tarde e continuou a dormir até essa
hora. Depois de tomar um duche, foi até ao escritório do Sr. López de Romana. Chegou às
seis em ponto. A secretária mandou-o entrar imediatamente.
-
Olá, obrigado por ter vindo - disse-lhe o anfitrião, estendendo-lhe a mão.
Era um homem loiro, um pouco gordo, de meia idade.
-
Sente-se, por favor - disse, apontando para um sofá de couro preto.
Chamou a secretária e avisou-a de que não queria receber chamadas. Depois de acender
um cigarro, sentou-se, cruzou as pernas e sorriu. Joaquín sorriu também, sem saber por
que riam os dois.
Vou falar com toda a franqueza - disse o Sr. López de Romana. - Telefonei-lhe para
lhe falar da minha filha.
Joaquín acenou com a cabeça em sinal afirmativo e não disse nada.
A minha mulher e eu estamos muito preocupados porque o comportamento de
Alexandra mudou muito desde que sai consigo - continuou o Sr. López de Romana. - Para
começar, não gosto que seja ela sempre a ir ao seu apartamento e você nunca vá lá a
casa. Já dissemos várias vezes a Alexandrita que o convidasse para almoçar connosco, que
o queríamos conhecer, mas ela diz que você não quer. Isso é a primeira coisa que não me
agrada, Joaquín. E sabe porquê? Porque, quando eu era rapaz, havia dois tipos de
raparigas: as decentes e as outras, e se se queria sair com uma rapariga decente, tínhamos
de ir a casa dela bem vestidos e apresentarmo-nos aos pais. A coisa era assim, muito clara,
cristalinamente clara. Desde então, muitas coisas foram para o galheiro em Lima, mas isso
não mudou. E Alexandra é uma rapariga decente, decente com "d" maiúsculo. Quanto a
isso estamos entendidos?
-
Totalmente.
Ainda bem, ainda bem. Bom, aquilo que mais me preocupa é que Alexandra anda
meio descuidada. É insolente com a mãe, passa todo o dia na rua, traz ideias esquisitas
para casa, ideias que nunca tinha tido. Desde quando é que a minha filha diz que a
universidade não serve para nada? Desde quando diz que a marijuana não faz mal? Desde
quando nos foge e vai passar um fim de semana a Cusc? Naturalmente, essas coisas não
podiam deixar de chamar a atenção, Joaquín. Para mim, é muito claro, cristalinamente
claro, foi você que lhe meteu essas ideias más na cabeça e não vou permitir que Alexandra
dê cabo da vida dela. Você está a lavar o cérebro da minha filha e eu não posso permitir
isso. Vou fazer tudo o que for necessário para que Alexandra continue a ser uma rapariga
decente. Quanto a isso estamos entendidos, não é?
-
Claro que sim.
- Ainda bem, ainda bem. Agora, sugiro-lhe uma coisa (e digo com um afecto quase
paternal, para bem de Alexandra e para seu próprio bem), sugiro que se deixem de se ver
durante um período prudente, que as coisas voltem ao normal, okay? Desse modo, todos
continuamos a ser amigos e ninguém perde nada. Estamos entendidos?
-
Entendidissimos.
-
No fundo, você é bom rapaz, Joaquín.
O Sr. López de Romana levantou-se e acompanhou Joaquín até à porta do seu escritório.
Como compreenderá, não convém que Alexandrita saiba desta conversa, pelo que
tudo o que se disse fica entre nós. Estamos entendidos, rapaz?
-
Claro que sim.
O Sr. López de Romana abriu a porta e estendeu a mão a Joaquín.
-
Cumprimentos aos seus pais - disse-lhe, sorrindo.
No dia seguinte, Alexandra passou pelo apartamento de Joaquín e disse-lhe que tinham de
falar. Joaquín pôs umas gotas nos olhos, porque acabara de fumar marijuana, e foram a La
Herradura. Ao chegarem, estacionaram o carro em frente do mar e pediram duas cervejas.
-
Temos de nos separar, Joaquín - disse ela. - Não podemos continuar assim.
-
Como quiseres - disse ele.
Tu estás a fazer-me um mal horrível. Desde que saimos juntos, encheste-me de
preocupaçÕes, perdi a minha paz interior. Acho que é melhor deixarmos de nos ver
durante algum tempo.
-
Tens razão, Alexandra. É o melhor para os dois.
-
Tudo o que vivi contigo foi de mais para mim. Estou destroçada.
-
Talvez devesses consultar um psiquiatra, não te parece?
-
Sim, e tu deverias fazer o mesmo.
-
Eu estou bem assim.
Não, não estás bem assim. O que acontece é que já te habituaste a estar mal,
Joaquín.
-
Por favor, Alexandra, estás a falar como se fosses minha mãe.
-
É porque gosto de ti, Joaquín. Tens de reconhecer que estás mal, que estás doente.
-
Eu estou bem assim.
Pois eu não. Primeiro, vens-me com essa de que és maricas. Depois, venho a saber
que és um agarradão à coca. E o que me magoa horrorosamente é que não tenhas tido
confiança para mo dizeres, que te tenhas metido na coca nas minhas costas, fazendo-me
fazer a figura da típica rapariga idiota do Villa María que não sabe que o namorado é um
agarrado. Isso é que não te perdoo, Joaquín.
Em Cusco, Joaquín confessara-lhe que snifava coca de vez em quando e ela continuava
furiosa por causa disso.
Fico lixado quando te referes a mim como teu namorado, Alexandra. Nunca me
senti teu namorado.
Pois eu, sim. Deixei de ser virgem contigo. Pensei que estávamos apaixonados,
imbecil.
Alexandra levou as mãos à cara. Chorava.
-
Lamento - disse ele. - Prometo-te que vou deixar a coca, Alexandra.
-
O melhor é não nos vermos durante um tempo - disse ela.
-
Como quiseres - disse ele.
Uns meses mais tarde, Joaquín estava no aeroporto de Miami quando viu Alexandra. Não
hesitou em chamá-la. Ao vê-lo, ela parou e sorriu. Abraçaram-se com força, como nos
tempos da universidade.
-
Joaquim, que surpresa, que fazes aqui? - perguntou ela.
-
Nada, espero o meu voo para Lima - respondeu ele.
Alexandra estava acompanhada por uma mulher.
-
Olha, é Adriana, a minha mãe - disse, apontando para a mulher.
Joaquim e Adriana deram um beijo.
- Muito prazer, minha senhora - disse ele.
- Ai, filho, não sejas cruel, não me trates por senhora, chama-me simplesmente Adriana pediu ela.
- Ai, mamã, não há meio de teres juízo, sai-te a coquetterie pelos poros - disse Alexandra.
- Onde vão? - perguntou ele.
- Vamos a caminho de Nova Iorque para fazermos um pouco de shopping, filho - disse
Adriana. - Precisamos de sair de Lima de vez em quando, para nos desintoxicarmos.
- Caramba, que sorte - disse ele. - Quem pode, pode.
- Não queres vir connosco? - perguntou Adriana.
Joaquín pensou que era uma brincadeira. Sorriu.
- Claro, seria bestial, acompanha-nos, Joaquín - pediu Alexandra
- Só se puderes, claro - disse Adriana. - Se calhar, tens algo de importante que fazer em
Lima.
- Não, não tenho a menor pressa em voltar para Lima - disse Joaquín.
- Então, filho, não sejas tonto, aproveita a oportunidade - disse Adriana. - Não te
preocupes com os gastos, é tudo por minha conta. Bem, na realidade é tudo por conta do
meu marido, porque eu limito-me a assinar o cartãozinho.
Adriana e Alexandra olharam uma para a outra e riram às gargalhadas, como se fossem
duas miúdas travessas.
- Vamos, Joaquín, anima-te. Aproveita o convite da minha mãe - disse Alexandra.
- Bem, já que insistem, acompanho-as, mas eu pago as minhas despesas - disse Joaquín.
- Não, filhinho, engole o teu orgulho e deixa que te convide, não te faças difícil - disse
Adriana.
- Como quiser, minha senhora - disse Joaquín, sorrindo.
- Adriana, filho, nada de minha senhora, já te pedi que não me fizesses sentir uma velhota.
Uma hora depois, subiram os três para um avião com destino a Nova Iorque.
Ao chegarem à recepção do hotel em Manhattan onde fizera as reservas, Adriana López
de Romana tirou o chapéu, suspirou e pediu dois quartos: um duplo, para elas, e um
simples, para Joaquín. Um empregado do hotel disse-lhe que só tinha disponível o quarto
duplo que ela reservara e sugeriu que se pusesse uma cama suplementar para Joaquín.
- Importas-te de dormir connosco numa caminha do hotel, Joaquín? - perguntou Adriana.
-
De modo nenhum, por mim encantado - respondeu Joaquín.
Cuidadinho, olha que a velha é uma loba - sussurrou Alexandra ao ouvido de
Joaquín. Riram-se os dois.
Depois de se terem registado na recepção, subiram os três para o quarto, deixaram as
malas e desceram para comer qualquer coisa.
- Esta cidade fascina-me, tem uma electricidade incrível, sinto-me tão jovem, tão cheia de
vida aqui - disse Adriana, enquanto percorriam as ruas de Manhattan.
A mim os arranha-céus fazem-me medo, de noite parecem uns monstros horríveis
- declarou Alexandra.
-
É que, ao lado desta cidade, Lima não passa de uma aldeola - explicou Adriana.
É por isso que te digo, mamã, e tu discordas, que nascer no Peru foi um azar dos
diabos - disse Alexandra.
Nem penses nisso, filhinha, eu prefiro ser da classe alta de Lima do que da média
daqui - disse Adriana. - Ali, vivemos como rainhas. Se quiséssemos viver aqui com os luxos
que nos damos lá, teríamos de ser multimilionárias.
- Mas lá temos terroristas que nos querem matar, só por sermos brancas e bonitas, temos
mestiços que nos odeiam e nos dizem piropos porcos - disse Alexandra. - Cá as pessoas
são muito mais cool, não são tão exaltadas como lá.
Nem penses, filhinha, cá os pretos são tremendos - disse Adriana. - Se tomarmos o
subway, os pretos agarram-se a nós de todas as maneiras e violam-nos até pelo umbigo.
Olha que sei o que digo.
- Resumindo, já não sei se gostas de Nova Iorque, mamã - disse Alexandra.
Encanta-me, fascina-me, enlouquece-me (adoro esta cidade tal como a vaca adora
o touro), mas não se pode negar que tem um lado perigoso - disse Adriana.
Pode ser, mas aqui pode andar-se na rua e ver gente bonita - disse Alexandra - Em
Lima, só se vêem umas carantonhas que olham para ti como se estivessem reprimidas há
anos.
Isso não posso negar, mas não te esqueças de que aqui se calhar estás a andar pela
rua e, pumba, és atropelada por uma gorda, - disse Adriana. - E digo-te uma coisa, essas
gordas, com um encontrão com as ancas ou com uma pancada com as mamas, podem
matar-te. É como seres atropelada por um camião Volvo. Porque uma coisa terrível desta
sociedade tão materialista (e que conste que não tenho nada contra materialismo, até
gosto muito de andar bem arranjadinha), uma coisa terrível aqui é a gordura, em
nenhuma parte do mundo há tantos gordos como aqui.
-
A propósito de comida, mamã, está-se-me a abrir o apetite.
- Ah, sim, eu tenho uma fome atroz - disse Adriana.
Sem perder tempo, atravessaram a rua, entraram num restaurante italiano, escolheram
uma mesa na secção de não fumadores e pediram três pizzas vegetarianas e uma garrafa
de vinho sem álcool.
- Tenho de te confessar que és muito mais bonito do que Alexandra me contara - disse
Adriana a Joaquín, quando o empregado se retirou, depois de ter anotado o pedido.
Joaquín sorriu e não soube o que dizer.
-
Mamã, por favor, não comeces - disse Alexandra.
É que eu acredito na livre concorrência, filhinha - disse Adriana; e deu uma
gargalhada. - Ai, que horror, não devo rir por causa das rugas - acrescentou.
Em seguida, enquanto comiam, Joaquín contou as últimas mexeriquices políticas de Lima.
- Na minha opinião, este rapaz tem veia de político - disse Adriana. - Deverias estudar
ciências políticas, sociologia, uma coisa que pareça bem. Depois, lançamos-te como
candidato à presidência, filho, porque no Peru precisamos de esperança branca como tu.
De regresso ao quarto do hotel, Adriana, Alexandra e Joaquín foram à vez à casa de banho
vestir o pijama.
Amanhã, cedo, vamos ver museus e, mais tarde, vamos às compras - disse Adriana,
deitada na cama.
Antes de se deitar, pusera na cara cremes contra as rugas.
- Ai, mamã, já sabes como me aborreço de morte nos museus - disse Alexandra.
Alexandrita, não sejas inculta, deverias ter vergonha de falar assim diante de
Joaquín - disse Adriana.
Não tenho de armar em culta diante de Joaquín, para o impressionar - disse
Alexandra.
Adriana soltou uma gargalhada estridente.
Que horror, que irritadiça que és, filha! - disse. - Joaquín, sentes-te bem na tua
caminha?
-
Optimamente, minha senhora, muito confortável, obrigadíssimo.
-
Se me voltas a chamar senhora, ponho-te fora do quarto, já sabes.
-
Bem feito, mamã, que é para não te armares numa menina de quinze anos.
Bem, meninos, até amanhã, sonhem com os anjos - disse Adriana. - Ai, por favor,
se disser alguma coisa não me liguem, que eu falo de noite.
Em seguida, apagou a luz da mesa-de-cabeceira e fechou os olhos. Joaquín ficou às voltas
na cama, sem conseguir dormir. Quando teve a certeza de que Adriana adormecera, saiu
da cama desdobrável e meteu-se na cama de Alexandra.
-
Joaquim, não sejas louco, que fazes aqui? - sussurrou Alexandra, assustada.
- Não consigo dormir - sussurrou Joaquín. - É só um bocadinho.
-
Se a velha acorda, mata-nos.
Ele acariciou-a nas pernas.
-
Estás quentinha - sussurrou.
-
Joaquín, é melhor não, estou borrada de medo - sussurrou ela.
-
Tem calma, não vai acontecer nada - sussurrou ele. - Com medo sabe melhor.
Estavam a acariciar-se em silêncio quando Adriana tossiu, levantou-se da cama e dirigiu-se
à casa de banho. Então, ao passar ao lado da cama desdobrável, apercebeu-se de que
Joaquim não estava lá. Alarmada, parou e acendeu a luz. Alexandra e Joaquín fecharam os
olhos.
-
Pode saber-se o que significa isto? - perguntou Adriana.
Alexandra e Joaquín abriram os olhos, fingindo que tinham estado a dormir.
-
Que fazes aí, mamã? - perguntou Alexandra. - Pareces um fantasma.
- Olha, menina insolente, não faltes ao respeito à tua mãe - disse Adriana. - E tu,
desavergonhado, sai imediatamente da cama da minha filha - acrescentou, dirigindo-se a
Joaquín.
Joaquín saiu da cama de um salto.
- Mamã, que tens, não sejas histérica - disse Alexandra.
Que lhes passou pela cabeça, seus descarados, a fornicarem como coelhos diante
de uma senhora - disse Adriana.
-
Não estávamos a fazer nada de mal, mamã - disse Alexandra.
-
Não aconteceu nada, minha senhora, só estávamos a conversar - explicou Joaquin.
O que acontece é que tens ciúmes, Adriana, estás morta de ciúmes - disse
Alexandra.
-
Cala a boca, atrevida - disse Adriana.
Muito terias gostado que Joaquín passasse para a tua cama - disse Alexandra.
-
Insolente! - gritou Alexandra, e deu uma bofetada à filha.
Alexandra levou as mãos à cara e desatou a chorar.
Rapariga do diabo, como te atreves a chamar abaixo de puta à tua própria mãe? gritou Adriana. - E tu, ingrato, sai do meu quarto, não quero ver-te mais - gritou a Joaquín.
- Desculpe, minha senhora - disse Joaquín, e foi para a casa de banho vestir-se.
-
Se ele se for embora, eu também vou - gritou Alexandra.
-
Vão-se embora de uma vez, seu par de descarados - gritou Adriana.
Alexandra saltou da cama, enfiou um fato de treino e pegou na mala.
-
És uma bruxa, Adriana, morres de inveja, és uma reprimida de caca - gritou.
-
Cala-te, insolente! - gritou Adriana.
Joaquín saiu da casa de banho, pegou na mala e abriu a porta do quarto.
- Com sua licença, minha senhora - disse.
Com sua licença, minha senhora - imitou-o Adriana, fazendo cara de parva. Deverias ter-me pedido licença antes de começares a apalpar a minha filha diante de mim,
desavergonhado.
Alexandra e Joaquín saíram do quarto tão depressa quanto puderam.
-
Velha menopáusica! - gritou Alexandra, e bateu com a porta.
-
Puta, puta! - gritou Adriana.
Nessa noite, Alexandra e Joaquim tiveram de ir de hotel atrás de hotel até conseguirem
um quarto num hotel de três estrelas.
Como te ocorreu meteres-te na minha cama com a minha mãe ali mesmo ao lado?
- perguntou Alexandra, assim que entraram no quarto.
Pensei que não ia aperceber-se de nada - disse Joaquín. - Não consegui aguentar. A
culpa é tua, que me dás muita ponta.
Sentaram-se na cama. Ligaram a televisão.
-
Coitadinha da mamã, deixámo-la sozinha - disse Alexandra, pouco depois.
Pegou no telefone e ligou para a mãe. As mãos tremiam-lhe enquanto marcava os
números.
-
Mamã, olá, sou eu - disse. - Queria saber como estavas.
Ficou calada. Começou a chorar.
- Sorry, mamã, não sabes como lamento - disse.
Joaquim foi à casa de banho buscar papel higiénico.
- Não, não, a culpa é minha - continuou Alexandra.
Joaquín deu-lhe o papel higiénico. Ela assoou-se.
- Estou num hotelzinho cheio de baratas - disse, e riu-se. - Vou já para aí, espera por mim,
num segundo ponho-me aí.
Desligou o telefone. Assoou o nariz ao casaco.
-
Lamento, Joaquim, mas não a posso deixar sozinha - disse.
No dia seguinte, Alexandra telefonou a Joaquín. Passava já do meio-dia. Joaquín dormira
toda a manhã.
-
Que tal as coisas com a tua mãe? - perguntou.
Espectaculares, o melhor possível, já lhe passou a fúria - disse Alexandra. - De
manhã, fomos a museus, numa de muito cultas. Agora, ela quer dormir uma sestazinha,
por isso podemos aproveitar para ir ao cinema.
-
Bestial. O que é que te apetece ver?
-
Tenho uma vontade louca de ir ver o último filme de Harrison Ford.
-
Boa ideia.
Está bem. Sabes que sou louca por Harrison. Para mim, Harrison é O homem mais
bonito de todos os homens bonitos.
-
Então, vou tomar um duche e já passo aí.
-
O quê? Ainda estás de pijama?
-
Hum, hum.
Preguiçoso. Ouve, pÕe-te giro. Penteia-te como eu gosto e veste-te de preto,
adoro ver-te vestido de preto.
-
Prometo.
Joaquín desligou o telefone, tomou um duche, penteou-se da maneira que Alexandra
gostava - com um pouco de gel, o cabelo puxado para trás e uma mecha caída sobre a
testa - e vestiu-se de preto. Em seguida, saiu do hotel e chamou um táxi. Uns minutos
depois, apanhou Alexandra e foram juntos ao cinema.
Estes árabes são uns brutos a conduzir, conduzem como fanáticos - disse ela
quando desceram do táxi. - No máximo, devem ter uma licença para conduzir camelos e
os descarados armam em motoristas de táxi.
Entraram no cinema; compraram pipocas e Coca-Colas extra-grandes e sentaram-se na
última fila.
- Odeio sentar-me na última fila - disse ela. - Parece que viemoS para fazer marmelada.
- Viemos mesmo para fazer marmelada - disse ele, com um sorriso sedutor.
Ela riu-se.
- Joaquín, porta-te bem, por favor.
- Olha, entesei-me - disse ele, tocando-se entre as pernas.
- Olá, júnior - disse ela, sorrindo; e tocou-o entre as pernas.
Pouco depois, sentaram-se na última fila, a alguns lugares de distância de Alexandra, uma
rapariga e um rapaz. Joaquín olhou para o rapaz: achou-o muito atraente. Uns segundos
depois, o rapaz devolveu-lhe o olhar. Olharam-se nos olhos, sem sorrir. Antes de as luzes
se apagarem, olharam-se de novo. Assim que o filme começou, o rapaz pôs-se de pé,
olhou para Joaquín, fez-lhe sinal com a cabeça e saiu da sala. Joaquín sentiu um calafrio na
espinha. Sabia que não iria ser capaz de resistir à tentação.
- Tenho de ir dar de comer aos chilenos - disse a Alexandra, falando-lhe ao ouvido.
Aprendera aquela expressão com um tio-avô seu, que costumava dizê-la antes de ir à casa
de banho.
-
Estão a morrer de fome, os chilenos? - perguntou ela.
-
Coitados, estão famintos, já é hora de comerem - disse ele.
-
Vá, despacha-te, que eu depois conto-te o que perderes.
Joaquim levantou-se e foi à casa de banho. Assim que entrou, o rapaz olhou-o e sorriu.
Não havia mais ninguém ali. Meteram-se numa retrete e fecharam a porta. Beijaram-se.
Joaquín puxou-lhe as calças para baixo e chupou-lha. Depois, voltaram para o cinema.
-
Que tal comeram os chilenos - perguntou Alexandra.
-
Maravilhosamente - disse Joaquín. - Foi um banquete.
Quando Alexandra e Joaquín saíram do cinema, já era noite. Decidiram ir comer qualquer
coisa. Andaram alguns quarteirÕes, entraram num restaurante de comida rápida e
serviram-se de duas saladas grandes. Depois, sentaram-se em frente um do outro.
- Uma amiga contou-me que abriram uma discoteca incrível aqui, em Manhattan - disse
Alexandra, enquanto comia a salada. - É uma igreja que faliu e os padres venderam-na,
uma coisa assim, e agora transformaram-na numa discoteca.
-
Parece magnífico - disse Joaquim.
Dizem que é enorme e vai lá gente giríssima. Temos de ir, Joaquim, deve ser uma
grande experiência cultural.
O pior é que não tenho aqui comigo nenhum documento. Teríamos de passar pelo
meu hotel para apanhar o meu passaporte.
-
Não há problema, de passagem aproveito para fazer um telefonemazinho à velha.
O melhor é não lhe telefonares, não vá ela vestir a sua roupa psicadélica e
acompanhar-nos à discoteca - disse ele.
Não, a velha já se reformou de tudo isso - disse ela, rindo-se. - Já te contei que os
meus pais chegaram a provar marijuana, quando as drogas estavam na moda em Lima?
-
Ah, sim? Tanto quanto sei, Alexandra, creio que ainda não passaram de moda.
A minha mãe diz que a sua experiência com a marijuana foi alucinante. Diz que a
primeira vez que fumou, começou a imaginar ovelhinhas que saltavam, uma ovelhinha,
duas ovelhinhas (assim como mostram aos miúdos que não conseguem adormecer) e
contou um montão de ovelhinhas e, de repente, as ovelhinhas deixaram de ter cara,
foram-se deformando e zás, transforma-se nuns bolos de creme, uns bolos de creme
enormes, e, nesse instante, a minha mãe deu-se conta de que estava morta de fome, uma
fome louca, o desejo mais forte de doces que teve na vida, tão forte que acordou as
empregadas e as obrigou a fazer bolos de creme, as pobres das empregadas de pijama a
fazer bolos de creme às três da manhã, imagina, as pobres pensavam que a velha tinha
enlouquecido e, quando os bolos ficaram prontos, Adriana comeu tantos que, depois, o
meu pai teve que a levar de urgência à Clínica Tezza, para lhe fazerem uma lavagem de
estômago.
Riram à gargalhada.
- Ai, Alexandra, sabes cada história - disse ele.
- Juro-te que é verdade, Joaquim - disse ela. - Juro-te.
Quando terminaram as saladas, saíram do restaurante e foram de táxi até ao hotel onde
Joaquín se hospedara.
- O melhor é avisar a minha mãe de que vou chegar tarde - disse Alexandra, assim que
entraram no quarto.
Depois, sentou-se na cama e telefonou à mãe.
- Olá, mamã, sou eu - disse. - O filme era óptimo, não podes perdê-lo. Tu que tal?
Chegaste a descansar um bocadinho? Pois é, não há como uma sestazinha de pijama e um
chocolatinho de menta ao acordar. Quais são os teus planos? Não, já comi uma saladita,
por isso não te acompanho, mas, por favor, dá um abraço ao álvaro e à Marcela. Eu, nada,
acho que vou dançar um bocadinho e de lá vou para o hotel, está bem? Não, não te
preocupes, mamã, vou estar com Joaquín e ele olha muito bem por mim. Não, mamã,
ninguém me vai oferecer chocolates com drogas. Mamã, estás doida, as coisas não são
assim, ninguém me vai meter pastilhas na bebida, ninguém faz isso, as drogas estão
demasiado caras para as oferecerem sem mais nem menos. Não, não é porque eu saiba o
preço, digo isso por dizer. Está bem, não te preocupes, não chego tarde. Tchau, mamã, um
bom jantar. Tchau, tchau.
Alexandra desligou o telefone e tornou a pôr os brincos. Joaquín abriu a
mesa-de-cabeceira, retirou o seu passaporte e deu-lho.
- Guarda-o, por favor - pediu-lhe.
Ela meteu o passaporte na carteira. Sairam do quarto e, uma vez na rua, apanharam um
táxi e foram para a discoteca. Chegaram poucos minutos depois.
Não é linda a igreja? - perguntou ela, apontando para a discoteca-igreja, quando
desceram do táxi.
-
Lindíssima - disse ele. - Mais bonita do que a catedral de Lima.
Não seria bestial que a Igreja da Virgem del Pilar se convertesse numa
superdiscoteca, tipo Nirvana II, Joaquín?
-
Seria incrível. Seria um grande êxito.
Havia uma fila de pessoas à espera de entrar na discoteca Alexandra e Joaquín puseram-se
na fila e avançaram lentamente Quando por fim, chegaram à porta, um tipo pediu-lhes os
documentos
-
Merda, a minha carteira - disse Alexandra
-
Onde está? - perguntou Joaquín
-
Deixei-a no táxi - respondeu Alexandra - Esqueci-me dela no táxi.
Pediam desculpa ao porteiro e afastaram se um pouco das pessoas
-
Não posso acreditar - disse Joaquim levando as mãos à cintura
-
Lamento, sou uma idiota - disse Alexandra
Pois és, és uma grande idiota - disse Joaquim sem conseguir ocultar a raiva que
sentia.
Cala-te, estupor, eu posso chamar-me idiota, mas tu a mim, não - disse
levantando a voz.
ela,
Alexandra, por favor, cala-te, estás a fazer uma cena - disse ele, afastando-a um
pouco mais das pessoas.
Não me mandes calar, estou farta de que me mandes calar constantemente gritou ela. - És um repressivo, um machista, não me deixas ser como sou.
-
Ah, sim? Se estás farta de mim, pÕe-te a andar - disse ele.
-
E ponho mesmo - disse ela. - E, por favor, não me voltes a telefonar.
-
Não te telefonei, foste tu que me convidaste para vir a Nova Iorque - disse ele.
-
Eu não te convidei, foi a minha mãe - corrigiu ela.
Alexandra subiu para um táxi e foi-se embora, tapando a cara com as mãos. Joaquín
passou várias horas a procurar a carteira nas estaçÕes de táxis de Manhattan, mas não
conseguiu encontrá-la. Na manhã seguinte, tomou um comboio com destino a Miami.
Vinte horas depois, e com uma diarreia atroz, chegou a Miami. No consulado peruano,
demoraram uma semana a dar-lhe um novo passaporte. Só então pôde seguir viagem
para Lima.
Uns meses depois, Alexandra e Joaquim encontraram-se numa discoteca da Avenida
Pardo. Ele estava a tomar uma cerveja ao balcão do Biz Pix, quando a viu a dançar sozinha
um reggae que estava na moda. Sem pensar duas vezes, aproximou-se dela e pôs-se a
dançar a seu lado. Ao vê-lo, ela abraçou-o. Dançaram juntos sem dizer nada. Depois,
sentaram-se numa esquina do balcão. Abraçaram-se de novo.
-
Portei-me como um grosseirão em Nova Iorque - disse ele. - Lamento-o.
-
Não, a culpa foi minha - disse ela.
Deram-se a mão. Ele beijou-a na testa e na cara.
O que mais me danou foi que não chegámos a entrar naquela discoteca - disse ela.
- Eu voltei lá uns dias depois. E não imaginas, Joaquim. Nunca tinha visto tanta gente
bonita. As raparigas, um espanto, pareciam-se todas com a Madomna. Senti-me um
estafermo ao pé delas. E os rapazes, giríssimos, com muita pinta, todos a dançar sem pólo,
com uns corpos de fazer perder a cabeça, tipo propaganda ao iogurte Mikito, não sabes
como eram atraentes aqueles corpos, Joaquim.
-
Foste sozinha?
Não, fui com a minha mãe. E nem imaginas como foi, é de morrer a rir. A velha pôs
uns jeans apertadíssimos, uns saltos que pareciam o Empire State, pintou a cara como se
fosse uma mulher fatal, disse-me, filhinha, tens de me desculpar, mas apetece-me dar
uma queca, foi o que me disse Joaquim, exactamente o que ouviste. Não podia acreditar.
Não sei quantas vodkas a velha emborcou. Perdeu a cabeça. Preto que visse a dançar, zás,
punha-se ao lado dele e coquetava com ele sem vergonha. Eu estava perdida de riso.
Naturalmente, ninguém lhe passou cartão e, às seis da manhã, acabámos as duas
bebedíssimas a chorar no hotel e a minha mãe vomitou as tripas.
Joaquim riu-se.
- E que disse a tua mãe quando soube que tínhamos brigado? - perguntou.
- Para ser franca, a velha quase se alegrou com isso - respondeu Alexandra. - Disse
qualquer coisa do género: por fim, viste-te livre daquele maricas, os maricas dão sempre
azar. Ai, vamos dançar, Joaquim, adoro esta canção de Sting.
Foram dançar, de mão dada.
- Ui, olha para esses mestiços exasperados, odeio-os, dançam Sting como se estivessem a
dançar salsa - disse ela, pouco depois, olhando para uns rapazes que estavam a dançar ao
lado deles.
Realmente, este sítio está cheio de mestiços ultimamente - disse Joaquim. - Por
que não vamos um bocadinho até ao meu apartamento?
-
Bestial - disse ela.
Saíram da discoteca e cada um se meteu no seu carro. Ela seguiu-o até chegarem ao
edifício onde ele vivia.
Que bonito que está - disse ela, assim que entraram no apartamento de Joaquim,
na Avenida Pardo.
Ele abraçou-a e tentou beijá-la.
-
Joaquim, não comeces, por favor - pediu ela.
-
Porquê? - perguntou ele. - Não te apetece?
- É que ando com uma pessoa.
-
Não me digas. Quem é o felizardo?
- Não o conheces. Chama-se Aldo. É pintor.
-
É bonito?
-
É lindíssimo. Tão lindo que nem parece de Lima.
-
Ah sim? Acho que o vi uma noite no Solari.
- Não me parece, porque Aldo sai pouquíssimo. Adora estar sozinho.
-
Que bom para ele. E que tal se dão?
O melhor possível. É divertidíssimo, não sabes como me faz rir. E é adorável,
oferece-me flores, escreve-me poemas, dá-me livros, faz-me sentir a mulher mais
interessante de Lima.
-
E és, Alexandra.
- Demagogo. Foste sempre um demagogo.
Ficaram calados. Sentaram-se no sofá. Ele acariciou-lhe o cabelo.
-
Tive saudades tuas, borracho - disse-lhe.
- Eu também, mas é melhor estarmos separados, Joaquim, porque fazemos mal um ao
outro - disse ela.
Ele beijou-a. Ela fechou os olhos e abandonou-se.
-
Não deveríamos fazer isto - disse.
Ele abraçou-a e beijou-a de novo.
- Vamos para a cama, Alexandra - disse ele.
- Não - disse ela. - Não posso fazer isso a Aldo.
- Mas Aldo não vai saber de nada. Não precisa de saber.
Ela mordeu os lábios, como que hesitando.
- Tens preservativos? - perguntou, com um sorriso coquete.
- Não, mas venho-me fora - disse ele.
- O tanas, Joaquim. Não acredito um bocadinho em ti. Com preservativos ou nada feito.
- Que horror! Que dogmática que és, Alexandra!
- Lamento, Joaquim, mas não quero ficar grávida.
- Mas a esta hora é impossível arranjar um preservativo.
- A Farmácia Meza está aberta vinte e quatro horas por dia.
- Bestial. Vamos já até lá.
Sem perderem tempo, desceram pelo elevador, meteram-se no carro de Joaquín e foram
à Farmácia Meza.
- Merda, está fechada - disse ele, ao chegar.
- Não disse ela. - Toca à porta e o vigilante abre.
Joaquim desceu do carro e bateu na porta metálica da farmácia. Pouco depois, um
vigilante entreabriu a porta.
- Que deseja? - perguntou.
- Preservativos importados, por favor - pediu Joaquín.
- Porra, outro fodilhão - murmurou o vigilante, e fechou a porta.
Joaquim sorriu. O vigilante não tardou a regressar com uma caixa de preservativos.
- Porra, os fodilhÕes não me deixam dormir - disse; e entregou-lhe os preservativos. Compre-os com a devida antecedência, jovem. Não se devem deixar as coisas para a
última hora.
- É o que farei da próxima vez - disse Joaquim; e pagou.
A seguir, entrou no carro e mostrou os preservativos a Alexandra. Ela sorriu e deu-lhe um
beijo.
- Adoro sentir que te dou uma grande ponta - disse.
Voltaram para o apartamento sem dizer uma palavra, acariciando as pernas um do outro.
Ao chegar, despiram-se e meteram-se na cama.
- Já te deitaste com Aldo? - perguntou Joaquim, enquanto faziam amor.
- Hum, hum - disse ela.
-Que tal?
- Contigo é melhor.
- A dele é grande?
- Normal.
- Chupaste-lha?
- Hum, hum.
- Diz-me que gostaste.
-
Gostei, gostei.
-
Diz-me que és uma puta.
-
Sou uma puta, Joaquim, contigo sou uma puta.
-
Vou vir-me, Alexandra.
-
Eu também. Não pares, não pares.
No dia seguinte, Joaquim telefonou a Alexandra e propôs-lhe que fossem lanchar à
Tiendecita Bíanca. Alexandra aceitou, encantada. Ficaram de se encontrar na Tiendecita
Bíanca às seis em ponto. Foram os dois pontuais. Joaquim sugeriu que se sentassem numa
das mesas lá de fora, mas Alexandra insistiu em que entrassem; assim que entraram, ela
escolheu a mesa ao lado do pianista.
Não nos devemos sentar lá fora, porque nunca se sabe em que momento é que os
terroristas atiram uma bomba - disse ela.
Pouco depois, aproximou-se deles um empregado. Ela pediu um croissant e um café com
leite. Ele, uma bola de gelado de chocolate.
Ontem à noite foi tão bom - disse ela, assim que o empregado se retirou para a
cozinha. - Pouco a pouco, fui superando as minhas repressÕes. Agora sou capaz de gozar
muito mais o sexo. Não achas que ontem à noite foi mesmo bom?
Tenho de dizer-te a verdade, Alexandra - disse ele, muito sério. - Para mim, não foi
assim tão bom.
-
A que te referes?
A que cada vez que faço amor contigo é como se desse um pontapé na alma.
Depois, deprimo-me, sinto-me horrível, odeio-me.
Alexandra franziu o sobrolho, desconcertada.
Confesso-te que não entendo nada, Joaquim - disse. - Quiseste ir para o teu
apartamento comigo, quiseste ir comprar os preservativos e agora dizes que te dei um
pontapé na alma? Confesso que já não entendo nada.
-
Não te estou a culpar de nada, Alexandra. Não me interpretes mal.
- Eu interpreto-te sempre mal, eu interpreto-te sempre mal. Deverias contratar um
intérprete sempre que falas comigo.
-
Alexandra, não fiques assim, estou só a tentar ser franco contigo.
-
Deverias ter sido franco comigo ontem à noite, antes de me meteres na tua cama.
- Tens razão, mas estava meio bêbedo e apeteceu-me.
-
Claro, claro, estavas meio bêbedo, típica desculpa de um malandreco de Lima.
Não te estou a dar desculpas, Alexandra. Estou a tentar dizer-te a verdade. Embora
nos doa, tens de entender que não gosto de ir para a cama com uma mulher, nem sequer
com uma rapariga super sexy, super inteligente como tu.
-
Dispenso os elogios, querido.
Estou a falar a sério, Alexandra. És uma rapariga linda. Adoro estar contigo. Mas
não sinto nada quando me deito com uma rapariga. Imagina que, para me excitar, tenho
de pensar num rapaz. E isso deixa-me desfeito, acredita. Depois, sinto-me um mentiroso,
um mentiroso do piorio.
Explica-me só uma coisa, Joaquín. Se não gostas de ir para a cama comigo, por que
é que cada vez que me encontras me dizes que estás morto por fazer amor comigo?
-
Não sei, não sei. Talvez porque ainda não aceitei a minha homossexualidade.
-
Sabes que mais, Joaquim? Já estou farta da tua bendita homossexualidade.
-
Bem, lamento, mas sou assim.
Se queres ir para a cama com todos os rapazes giros de Lima, óptimo, é problema
teu. Mas odeio-te quando uma noite dizes que te dou ponta e acabamos a fazer amor e
no dia seguinte me dizes que estás arrependidissimo e que te faço mal.
-
Desculpa, Alexandra, sei que não deveríamos ter feito aquilo.
Podes ter a certeza de que nunca mais vai acontecer, Joaquim. É por isso que
adoro andar com Aldo, porque ele ama-me a sério, não é como tu, que és um
manipulador.
Tens razão, não deveríamos voltar a deitar-nos. Porque, além disso, eu também
ando com um rapaz.
-
Com quem?
-
Não o conheces. É um cantor.
-
E como sabes que não o conheço?
-
Porque não o conheces.
-
Olha, filho, eu conheço todos os rapazes giros de Lima. Como se chama?
- Michael.
- O que canta no Papaya Pop?
-
Hum, hum.
-
Na verdade, Joaquim, acho que poderias aspirar a uma coisa melhor.
-
Não achas que tem qualquer coisa de Mick Jagger?
-
Deves estar meio com os copos, filho.
-
Acho-o um rapaz super sexy.
-
Esse tipo é um madraço, um porco e um drogado, Joaquim.
-
Nem sequer o conheces, Alexandra.
Conheço-o perfeitamente. Esse rapaz já me convidou para dançar umas cinquenta
mil vezes no Tarot e no Nirvana. E, cada vez que acabávamos de dançar, o descarado
pedia-me dinheiro para ir comprar droga.
-
Se está metido na droga, o problema é dele. Eu adoro fazer amor com ele.
O quê? Que disseste, Joaquim? Não posso acreditar que te tenhas deitado com
aquele tipo!
- Porquê?
Não posso acreditar que tenhas estado com aquele drogado e depois te tenhas
deitado comigo.
-
Alexandra, por favor! Ontem à noite, pus um preservativo, se isso te enoja tanto.
- Não posso acreditar, Joaquín. Nunca me senti tão humilhada. Ninguém me tinha feito
uma sacanice dessas.
-
Parece-me que estás a exagerar, querida.
Não me chames querida, estúpido. Odeio-te quando me chamas querida. Tu não
me amas, nunca me amaste. Tu és um mamipuTador de caca, é o que tu és. Podes ir à
merda com o teu querido Michael, meu estúpido.
Alexandra levantou-se bruscamente e saiu da Tiendecita Bíanca. Algumas senhoras
voltaram-se para olhar para Joaquín.
Uns meses depois, Joaquim estava no seu apartamento a ver televisão quando o telefone
tocou.
-
Olá, Joaquim, sou eu - ouviu.
Era Alexandra. Não tinham voltado a ver-se desde aquela tarde na Tiendecita Bíanca.
-
Olá, borracho, que surpresa disse ele.
Telefono-te para me despedir, Joaquín - disse ela. - Vou partir daqui a umas horas
e não queria ir sem te dizer adeus.
-
Para onde vais?
- Vou estudar para Bostom. Há muito tempo que os meus pais me querem mandar lá para
fora e a verdade é que estou farta de Lima.
-
Que bom?. Parece-me uma ideia excelente. Felicito-te, Alexandra.
- Na realidade apetece-me muito estar um tempo lá fora.
-
Claro, compreendo-te. E o que aconteceu a Aldo?
Há muito tempo que não o vejo. Entre nós, não deu. E demasiado louco para mim.
-
Tens andado com alguém ultimamente?
Não, e senti-me muito só, Joaquim. Sinto que já conheci todos os rapazes
interessantes de Lima, que além do mais são pouquissimos, e que, se ficar nesta cidade,
acabarei sozinha e amargurada.
-
De certeza que vais conhecer um monte de rapazes giros em Boston, Alexandra.
Oxalá, e não é só isso, também vou poder sair e andar na minha bicicleta, vou
poder ir tomar o meu cafezinho sem que os conquistadores me digam piropos porcos, vou
poder fazer uma vida normal. Já estou farta dos cortes de energia, do toque do recolher
obrigatório e dos duches com baldinho.
-
Compreendo-te perfeitamente.
-
Fala-me de ti. Que aconteceu com Michael?
Michael? Deixámos de nos ver. Disse-lhe que tinha de escolher entre mim e a coca
e, é claro, escolheu a coca.
-
Melhor para ti, Joaquim. Eu disse-te. O tipo é um drogado nojento.
Ficaram calados.
-
Vou ter saudades tuas, Alexandra - disse ele.
-
Eu também vou ter montes de saudades tuas - disse ela.
-
Gosto de ti - disse ele.
-
Adoro-te - disse ela; e desligou.
Joaquín ficou tão inquieto que teve de sair para comprar marijuana. Conduziu até à Rua La
Mar, parou numa esquina e comprou um pacote de marijuana. Depois, foi até ao molhe,
estacionou o carro numa rua sossegada, enrolou um charro e fumou-o a contemplar o
mar, pensando nela.
O FUTEBOLISTA
Nessa manhã, a selecção peruana de futebol deslocava-se a Puerto Espana para jogar um
desafio com a selecção de Trimidad e Tobago. No aeroporto de Lima, os jogadores
peruanos despediram-se de familiares e amigos, assinaram autógrafos, acederam a tirar
fotografias ao lado de alguns dos seus admiradores e prestaram declaraçÕes à imprensa
local. Joaquim acompanhou a selecção durante a viagem, como repórter do diário
Expreso. Pouco antes de subir para o avião, cumprimentou Gianfranco Boneili, um dos
jogadores mais populares da selecção. Gianfranco era um rapaz alto, branco, de cabelo
encaracolado e olhos claros.
Muito obrigado pelos artigos tão elogiosos que escreveste sobre mim - disse ele a
Joaquim, estendendo-lhe a mão.
-
Homem, tu mereces - disse Joaquim.
-
Muito obrigado - disse Gianfranco, sorrindo. - Já nos vemos no avião.
Pouco depois, os membros da selecção peruana subiram para o avião, sem poderem
ocultar um certo nervosismo, pois havia pouco tempo que os futebolistas do clube Alianza
Lima tinham morrido, quando o avião em que viajavam caíra ao mar. Antes de o avião
descolar, Gianfranco levantou-se do seu lugar e sentou-se ao lado de Joaquim, deixando
entre os dois um assento desocupado.
-
Não te importas que me sente aqui, pois não? - perguntou.
-
Pelo contrário, tenho muito gosto - disse Joaquim, sorrindo.
-
Vens ver o desafio?
-
Sim, é o jornal que me manda.
Que esquisito que um rapaz branquinho como tu se dedique ao jornalismo
desportivo, que está cheio de mestiços que não passam de uns ladrÕezecos.
-
Sabes, sempre gostei muito de futebol.
-
Mas devem pagar-te mal, não?
-
Muito mal.
Por isso é que os jornalistas desportivos são uns vemdidos. E, ainda por cima, os
malandros têm várias tipas.
Riram-se. Quando o avião levantou voo, Gianfranco benzeu-se três vezes seguidas.
- Não me habituo aos aviÕes, amigão, fico meio nervoso - disse.
- Eu também rezo sempre um pouco, por causa das moscas - disse Joaquim.
A sério, não sabes como te agradeço que tenhas escrito essas colunas tão
elogiosas sobre a minha pessoa.
-
Foi um prazer enorme, Gianfranco. Tu mereces esses elogios e muitos mais.
As hospedeiras não tardaram a servir o pequeno-almoço. Gianfranco e Joaquim comeram
em silêncio.
Em Lima, andas com alguém, tens miúda? - perguntou Gianfranco, assim que acabou o
pequeno-almoço.
-
Agora não, mas há pouco tempo tinha.
-
Puseste-a a andar?
- Não, foi ela que me pôs a andar a mim. Foi estudar para os Estados Unidos e deixou-me
pendurado.
-
É assim o futebol, amigo.
-
Pois é, o futebol é assim. E tu, tens miúda?
Sim, estou meio amarrado. Ando com uma rapariga lá do bairro. Ainda não acabou
o colégio, mas é muito madura, gosto da maneira de pensar dela.
-
Gosta de futebol?
Não é fanática, mas, nos domingos em que jogo em Lima, vai ver-me no estádio. E
imagina que sabe de cor a tabela classificativa.
-
Caramba, que bonito, isso é que é amor.
Gianfranco sorriu, bocejou, esticou os braços.
-
Em que hotel vais ficar? - perguntou.
-
No Holiday Inn, o mesmo que vocês.
Que bom, que bom. Mas ainda agora me disseram que era preciso ter cuidado com
esses mulatos de Trinidad. É preciso andar sempre de costas para a parede. Esses grunhos
são do pior, não são esquisitos... Já sabes que carne branca, mesmo que seja de homem...
Riram-se.
à noite, quando acabaram de comer, os jogadores da selecção peruana foram para os seus
quartos no hotel HoTiday mm de Puerto Espaila. A caminho do quarto, Gianfranco parou e
sentou-se ao lado de Joaquim, que estava a comer uns gelados.
-
Tudo bem? - perguntou-lhe Joaquim.
Tudo porreiro - disse Gianfranco. - Apetecia-me telefonar à minha miúda, só isso.
Sinto a falta dela como o caraças, mas as chamadas são caras.
Se quiseres, telefona-lhe do meu quarto - disse Joaquim. - Não te preocupes com o
dinheiro. É o jornal que paga.
-
A sério? - perguntou Gianfranco, surpreendido.
-
Claro, o jornal paga-me todas as chamadas, quando estou em serviço. Aproveita.
-
Seria formidável, magricelas. Seria o máximo.
-
Vamos lá de uma vez, se quiseres.
- Vamos.
Joaquim assinou a conta e foram até ao quarto dele.
Assim que entraram no quarto, Gianfranco sentou-se na cama e viu um livro que Joaquim
deixara na mesa-de-cabeceira.
-
Que rato de biblioteca que tu és! É por isso que és um cérebro.
Joaquim sorriu e levantou o auscultador.
-
Qual é o número da tua namorada? - perguntou.
Gianfranco sabia o número de cor e deu-lho. Joaquim marcou-o e passou-lhe o telefone.
-
Vou sair para ficares à vontade - disse, quando se começou a ouvir o sinal.
-
Não sejas parvalhão - disse Gianfranco. - Fica, não há problema.
-
De certeza?
-
De certeza.
Joaquín ligou a televisão, sentou-se na alcatifa e foi mudando de canal até encontrar a
CNN. Ficou a ver as noticias para saber se havia alguma coisa sobre o Peru.
- Estou, Rosita, olá, sou eu - disse Gianfranco. - Por aqui, tudo bem, está só um calor dos
diabos. Sim, sim, um caloraço. A cidade é muito bonita, nota-se que há mais massa do que
em Lima, carros muito bonitos, as ruas limpas, menos porcaria do que por aí. O único
senão é que há mulatos por todo o lado, parece La Victoria à noite.
Deitou-se na cama e continuou a falar.
- Como estás, indiazinha? Tens saudades minhas?
Joaquín entrou na casa de banho, fechou a porta e continuou a escutar.
- Ouve, Rosa, nada de me enganares com os malandrecos do bairro. Olha que eu tenho
tudo muito bem controlado. Não, não te preocupes, aqui deitamo-nos cedo. Nem sequer
nos deixam sair à noite, tratam-nos como se fôssemos presos. Além disso, nem que eu
quisesse, porque aqui só há mulheres de cor e tu sabes que as mulatas não me atraem.
Rosita, não posso com grunhas, tenho um estômago fraco. Ouve, indiazinha, que queres
que te leve de presente? Pensa, mas pensa depressa que esta chamada sai cara. Um
relógio de pulso? Está bem, Rosita, porta-te bem, não te ponhas a conversar com esses
sabidos do bairro. Sim, amanhã jogamos, sim, contra os macacos daqui de Trinidad, vê-me
na televisão. Tchau, Rosita, cumprimentos aos teus pais, um beijo para ti.
Assim que Gianfranco desligou o telefone, Joaquim saiu da casa de banho.
-
Tudo bem? - perguntou.
-
Sim, muito obrigado, foste o máximo - disse Gianfranco.
Joaquín sentou-se na cama.
-
Gostas muito dela, não é? - perguntou.
Gramo à brava a Rosita - respondeu Gianfranco. - O que acontece é que a miúda
me pÕe doente. Ainda não a comi. Não deixa que a foda. Está tal como veio ao mundo,
virgenzinha, e todo o bairro a quer comer. É isso que me faz medo, compadre, que algum
malandro se atraque à Rosita quando estou a viajar.
Joaquín notou que Gianfranco tinha uma erecção.
- Não queres ficar aqui a dormir? - perguntou-lhe.
Não, não posso - disse Gianfranco. - Daqui a um bocadinho o chefe de equipa
passa a revistar os quartos.
Em seguida, levantou-se da cama.
-
Bem, compadre, vou ferrar o galho - disse. - Mil vezes obrigado pelo telefonema.
Estendeu a mão a Joaquim e dirigiu-se à porta.
-
Vem até cá, quando quiseres.
-
Obrigado, compadre - disse Gianfranco, sorrindo, e saiu do quarto.
*
Um pouco depois, Joaquim foi até ao bar do hotel.
Joaquincito, que fazes a estas horas por aqui? - perguntou Mamerto Salgado, um
jornalista desportivo veterano do diário El Nacional. - Vem, senta-te aqui, magricelas,
convido-te a tomar uma bebida.
Mamerto Salgado era um tipo alto, magro, com um rosto de ossos salientes. Usava uns
óculos grossos e tinha o cabelo pintado de preto. Joaquim sentou-se ao lado dele.
-
Que pensas do desafio de amanhã, Mamerto? - perguntou-lhe.
Lixado, magricelas, lixado - disse Salgado. - Trimidad está a jogar um futebol total,
com jogadores polifuncionais. Progrediram imenso, estes grunhos.
Salgado chamou o empregado e pediu mais duas cervejas.
-
Sabes que cheguei a jogar nos inferiores da U? - disse.
-
Homem, não fazia a menor ideia - disse Joaquim.
Era médio de ataque. Mexia bem a bola, magricelas, Cheguei a jogar no estádio do
Nacional. Uma emoção do caraças, apesar de o estádio estar vazio. Mas, um dia, num jogo
amigável (imagina que não havia pontos em jogo, isso foi o pior), um mulato mal parido
deu-me um pontapé e partiu-me a perna. E foi aí que a brincadeira acabou. Tive de
arrumar as chuteiras, pá. Mas digo-te uma coisa, magricelas, o futebol peruano perdeu
um grande médio de ataque.
-
Mas pelo menos ganhou um grande jornalista desportivo, Mamerto.
Pois é, uma pessoa faz o que pode, mas esta profissão (digo-to a ti que acabas de
começar, que estás a dar os teus primeiros passos), esta profissão é uma boa merda,
magricelas, está cheia de vendidos, de lambe-botas, de corruptos que se vendem por dá
aquela palha, gente de uma ignorância supina, pessoas que não sabem a ponta de um
corno de futebol. Porque é preciso saber ver o futebol, não se trata de saber de cor como
vão alinhar as equipas.
O empregado aproximou-se de Salgado e disse-lhe que o bar estava a fechar. Em seguida,
entregou-lhe a conta.
Quer dizer, estás a pôr-nos na rua, não é, mulato? - disse-lhe Salgado. - Estás-nos a
pôr a andar?
O empregado sorriu. Salgado assinou a conta, fazendo um gesto de desdém.
No meu quarto há um barzinho bem provido - disse. - Se quiseres, podemos subir
para tomar uma última bebida.
-
Okay, tomo um suminho - disse Joaquín.
Porra, esta nova geração, esta geração da Coca-Cola, não sei que se passa com ela
- disse Salgado, enquanto caminhavam em direcção aos elevadores. - Não bebem, não
fumam, não fodem, quase não comem. Isso não é vida, magricelas. No meu tempo,
morfava um panado com feijões, despachava três putas de seguida e jogava
tranquilamente, fresquinho que nem uma alface e em forma, os noventa minutos do
desafio. Agora, os rapazes da selecção parecem umas senhoras. Concentram-se, fazem
dietas especiais, deitam-se cedinho, nada de mulheres, nem sequer batem uma punheta
porque dizem que deita abaixo o físico e, no fim de contas, jogam mal como a porra.
passada meia hora já estão de língua de fora, a pedir para serem substituidos.
Saíram do elevador e caminharam por um corredor alcatifado. Ao chegar ao quarto,
Salgado tentou abrir a porta utilizando um cartão plástico com vários orifícios.
A puta que pariu estes mulatos - murmurou, irado. - usou chave a vida inteira e
agora lixam-me com estes cartÕes de merda.
A seguir, deu vários pontapés na porta.
Uma chave é uma chave e um cartão, um cartão - disse, levantando a voz. - Por
que porra é que estes mulatos piolhosos têm de me complicar a vida?
Então, Joaquín disse-lhe que estava a meter o cartão ao contrário e Salgado meteu o
cartão na posição correcta e a porta abriu-se.
-
Caraças, não nasci para esta época de computadores - disse, entrando no quarto.
Salgado abriu o bar do seu quarto, retirou uma pequena garrafa de vodka e abriu-a com
os dentes.
-
Vamos para a fresquinha - disse, abrindo uma porta corrediça.
Foram para a varanda. O rumor do tráfego misturava-se com uma música festiva que se
ouvia ao longe.
-
Linda vista - disse Joaquín.
-
Sim, mas nada que se pareça à minha Callao natal - disse Salgado.
Bebeu uns golos e arrotou.
Vais desculpar-me, magricelas, mas tenho de fazer uma mijinha e não há nada
melhor do que urinar ao ar fresco - disse.
Mamerto Salgado abriu a braguilha e sacudiu o sexo. A piscina do hotel brilhava lá em
baixo.
Ouve o que te digo, magricelas, não te dediques a esta profissão, não vale a pena,
é uma boa merda - disse Salgado, urinando para a piscina do hotel do décimo quinto
andar.
No dia seguinte, num desafio um pouco aborrecido, o Peru ganhou a Trinidad e Tobago
por dois a um. Gianfranco meteu o primeiro golo peruano e foi um dos melhores
jogadores da equipa. No final do desafio, Joaquín foi até ao camarim peruano para o
felicitar. Assim que entrou no camarim, encontrou-o.
Parabéns - disse-lhe, estendendo-lhe a mão. - Jogaste estupendamente,
Gianfranco. Foste o melhor.
Como os outros jogadores peruanos, Gianfranco estava a despir-se.
Obrigado, amigão, obrigado - disse, ainda com a respiração agitada, o corpo
empapado em suor. - A verdade é que hoje as coisas me saíram bem.
-
Ofereces-me a tua camisa? - perguntou-lhe Joaquín.
Não, como podes pensar que ta dou assim, empestando, toda suada? - disse
Gianfranco, sorrindo.
Em seguida, fez un sinal ao encarregado do equipamento da selecção.
Ouve, chinês, passa-me uma camisa nova aqui para o senhor jornalista que
amanhã vai falar bem de ti no jornal - gritou.
O encarregado foi buscar uma camisa limpa e deu-a a Joaquín, fazendo-lhe uma vénia. Era
um homem gordo, baixinho, de olhos achinesados.
-
Eu tenho o maior respeito pelo jornalismo nacional - disse-lhe.
-
Vá lá, chinês, não dês graxas - disse Gianfranco.
Um forte odor a homens jovens invadira o camarim peruano.
-
Bem, tenho de ir para o hotel escrever sobre o desafio.
-
Trata-me bem, amigão - disse Gianfranco.
Ao chegar ao hotel, Joaquín escreveu uma longa crónica do desafio, elogiando várias vezes
o desempenho de Gianfranco.
"Jogador de espírito indomável e de grande riqueza técnica, Gianfranco Boneili, o herói do
desafio, deu, em Puerto Espana, uma lição de futebol prático e ao mesmo tempo vistoso,
conseguiu um magnífico golo e conduziu à vitória a selecção peruana", escreveu.
Nessa noite, os jogadores da selecção peruana reuniram-se no corredor do último andar
do hotel para festejar o triunfo. A pedido dos dirigentes peruanos, a administração do
hotel mandou que levassem para lá várias caixas de cerveja. Depois de ter enviado as suas
crónicas para Lima, Joaquín foi até lá para se associar aos festejos. Então, procurou
Gianfranco entre os rapazes peruanos, mas não o encontrou.
Demos cabo dos macacos, demos cabo deles - gritou Bambam Aguirre, o mulato
avançado centro da selecção peruana.
Cala-te, ouve, orangotango, pau-mandado da mulher - gritou Piticim Núnez,
jogador magro e habilidoso. - Em tua casa não abres a boca e vens para aqui gritar.
Todos riram à gargalhada. Vestiam uns fatos de treino vermelhos, calçavam ténis e
estavam bastante bêbedos. Espalhadas pelo corredor havia umas quantas latas de cerveja.
-
A que horas chega a carne? - gritou Paiialón Chany, o guarda-redes peruano.
Que me tragam uma mulatinha para fazermos amor até perdermos a cabeça gritou El Apático Reyes, o defesa magro e elegante.
Vêm miúdas? - perguntou Joaquín a Ronald Muchotrigo, um dos suplentes da
equipa.
- Dizem que a direcção nos vai premiar com umas miúdas - respondeu Muchotrigo.
Joaquín esfregou as mãos.
-
E haverá mulheres para todos? - perguntou, com um sorriso malicioso.
Sim, mas os jornalistas não estão incluídos - disse El Chino Fukuda, ponta esquerda
da selecção.
-
Sempre que ganham festejam com miúdas? - perguntou Joaquín.
- Isso depende da direcção, mas por nós festejávamos sempre - disse Fukuda.
Foi então que Piticím Núfiez se aproximou de Bambam Aguirre por trás e lhe puxou as
calças do fato de treino para baixo.
-
Que rico cu, meu negro - gritou. Todos riram à gargalhada.
Furioso, Bambam perseguiu Piticliu até aos elevadores. Então, viu o extintor de
emergência, não conseguiu resistir à tentação e voltou para o corredor.
- Fogo, fogo - gritou, disparando o extintor sobre os companheiros.
Ouve, negro, não sejas selvagem - gritou Tito Rodríguez, o meio campo, que era de
estatura baixa.
Negro animal, volta para o teu jardim zoológico - gritou El Cirujano Díaz, um tipo
forte que era defesa central, antes de entrar para o seu quarto.
Uns minutos depois, Joaquín entrou no elevador e deu de caras com Gianfranco.
- Ouve lá, amigão, onde estavas, andei à tua procura ? - disse-lhe Gianfranco, e abraçou-o.
-
Eu também andava à tua procura - disse Joaquín.
Gianfranco cheirava a cerveja. Vestia um fato de treino vermelho e uns ténis brancos,
como os seus companheiros de equipa.
Queria telefonar à minha miúda, amigão - disse. - Não sei se poderás emprestar o
teu telefone. Já sabes que as ajudas de custo que nos dão os dirigentes são miseráveis.
Claro, homem, com muito prazer - disse Joaquín, e carregou no botão do sétimo
andar. - Vamos ao meu quarto.
-
És o máximo, amigo. Um autêntico cavalheiro.
-
Fantástica a festa do último andar, não achas?
-
Pois, mas tens de me desculpar, estou meio atordoado.
-
Depois do que jogaste hoje, mereces, Gianfranco.
Saíram do elevador, entraram no quarto de Joaquín e telefonaram a Rosita.
índia, sou eu - disse Gianfranco, deitando-se na cama com o telefone. - Eu, bem,
Rosita, e tu como estás, minha linda, tenho um montão de saudades tuas. Sim, obrigado,
índia, a verdade é que as coisas me correram bem, foram como eu queria, dei bem na
bola. O pior é que os negros de Trinidad são uns filhos da puta, foram uns brutos até dizer
chega. Não, não te preocupes, estou inteirinho, só tenho um par de arranhÕes. Que
achaste do meu golo? Estupendo, não foi? Sim, obrigado, e, para que saibas, a primeira
coisa em que pensei quando meti o golo foi em ti, índia, dediquei-o a ti. Não, não te estou
a dar música, logo que a bola entrou, lembrei-me de ti e disse golo do Peru, porra, toma,
Rosita, é para ti. Não tens de quê, não tens de quê. Ouve, diz lá minha linda, não tens
saído com o Toni, com o Chamán, com Malaspecto, pois não? Sinceramente, não me estás
a embarretar? Digo-te isto, Rosa, porque os tipos são uns malandrecos, são más
companhias para ti. A única coisa que querem é agarrar-te, atirarem-te para uma cama e
saltarem-te para cima. Digo-to eu que os conheço, por isso ouve-me, Rosita. Como está a
família, todos bem? Cumprimentos a todos. Bem, tenho de desligar porque estas
chamadas vão-me deixar teso e depois não tenho massa para comprar o teu relógio de
pulso, Rosita. Tchau, índia, até breve, também tenho saudades tuas.
Enquanto Gianfranco falava ao telefone, Joaquín pusera a camisa da selecção que lhe
tinham oferecido no camarim.
-
Fica-te lindamente - disse Gianfranco, depois de ter desligado o telefone.
-
Obrigado - disse Joaquín. - Queres tomar alguma coisa?
-- parajá.
Joaquín abriu o minibar, misturou um pouco de rum com Coca-Cola e bebeu um golo.
-
à minha Rosita, que está como veio ao mundo - disse Gianfranco sorrindo.
-
à Rosita - disse Joaquín.
Fizeram tilintar os copos. Beberam.
-
Conta lá, amigo, que escreveste sobre o desafio? - perguntou Gianfranco.
-
Queres ver o artigo?
-
Dá-mo cá.
Joaquín deu-lhe o artigo que enviara para Lima. Gianfranco deitou-se na cama e começou
a lê-lo.
Porra, que arrebicado que és, nota-se que és um cérebro, magricelas - murmurou,
enquanto lia.
Antes de chegar ao final da primeira página fechou os olhos, apoiou a cabeça na almofada
e começou a roncar. Joaquín retirou o artigo das mãos de Gianfranco e ficou sentado ao
lado dele. A seguir fechou os olhos e recordou o corpo nu de Gianfranco no camarim.
Então teve vontade de tocar nesse corpo jovem, firme, musculoso. Não conseguiu
conter-se. Pôs a mão no ventre de Gianfranco e foi descendo pelo seu corpo, enquanto o
acariciava. De repente, Gianfranco acordou bruscamente.
-
Ouve lá, amigão, que se passa? - perguntou assustado.
-
Nada, nada - disse Joaquín. - Só queria ser um pouco meigo contigo.
-
Porra, não perdes uma, magricela - disse Gianfranco.
Ficaram calados.
-
Posso chupar-ta por um bocadinho? - perguntou Joaquín, sem o olhar nos olhos.
Que havemos de fazer - suspirou Gianfranco. - Já me puseste de pau feito. Agora
continua.
Joaquín puxou-lhe as calças do fato de treino para baixo e chupou-lha.
-
Queres enfiar-ma? - perguntou pouco depois.
-
Gostas que te vão ao rabo?
-
Hum, hum.
-
Tens vaselina?
-
Hum, hum.
Joaquín foi à casa de banho e voltou com um frasco de vaselina. A seguir, tirou as calças e
deitou-se de barriga para baixo. Gianfranco pôs vaselina no sexo e meteu-o em Joaquín.
-
Sim, Rosita, sim, mexe-te bem, indiazinha - disse, mexendo-se.
Sentindo, ao mesmo tempo, prazer e dor, Joaquín mordeu a sua camisa da selecção
peruana.
Gianfranco e Joaquín voltaram a encontrar-se uns dias depois, no avião de regresso a
Lima.
- Que narsa que apanhei naquela noite - foi a primeira coisa que Gianfranco disse. - Perdi
os sentidos. Não me lembro de nada.
-
Eu também não me lembro de nada - disse Joaquín.
Depois, sentaram-se em filas separadas e não se falaram durante todo o voo. Quando o
avião aterrou no aeroporto de Lima, Joaquín atreveu-se a aproximar-se de Gianfranco.
-
Dás-me um autógrafo? - perguntou.
-
Claro, amigão - respondeu Gianfranco.
Um pouco impaciente, escreveu umas palavras numa folha e deu a Joaquín. Depois,
deram um aperto de mão e Gianfranco dirigiu-se para a porta do avião. Joaquín leu a
folha. "Um abraço do teu amigo sincero. Gianfranco", dizia.
Sábado à Noite
Era um sábado à noite. A Joaquín não lhe apetecia sair. Queria ficar deitado na cama a ver
qualquer coisa na televisão.
Estava a mudar de canal quando a campainha tocou. Saltou da cama, apagou as luzes,
assomou-se à janela e olhou lá para baixo. Reconheceu Juan Carlos. Correu para a cozinha
e levantou o intercomunicador.
-
Juan Carlos, que surpresa!
-
Joaquincito, que estás a fazer?
-
Estou para aqui quietinho.
-
Quietinho como um recém-operado?
-
Quietinho como um recém-operado.
-
Vamos dar uma volta.
-
Vamos a isso. É só vestir-me e desço já.
Riram-se. Tinham-se conhecido numa festa em La Honda havia uns anos. Desde então,
viam-se de vez em quando. Joaquín vestiu-se à pressa e desceu. Deram um aperto de
mão. O carro cheirava a marijuana. O rádio estava sintonizado no Noventa e Nove.
Que tal vai a vida, paneleiro? - perguntou Juan Carlos, sorrindo. Era alto, loiro,
magro. Tinha vinte e dois anos, mais um do que Joaquín.
-
Ando por aí, como sempre - disse Joaquín. - Onde vamos?
Gustavito está sozinho. Os pais dele foram viajar. Disse-me que aparecêssemos lá
por casa. Tem um pacotão de coca.
-
óptimo. Vamos.
Juan Carlos ligou o carro e acelerou pela Avenida Pardo.
- Que tal a universidade? - perguntou.
-
Foi para o caraças - disse Joaquín. - Não sabias que me puseram fora?
Juan Carlos riu-se. Tinha os olhos vermelhos, achinesados, como se tivesse fumado
marijuana.
-
Não me lixes com essa de que a universidade te pôs fora!
-
Mas pôs! - disse Joaquín. - Chumbaram-me em Lógica pela terceira vez.
-
És um preguiçoso de merda, rapaz.
-
Pois, é assim a vida. Que tal na de Lima?
-
Lá vamos arranhando, fazendo pela vida.
-
Ao menos na de Lima há tipas giras. Na Católica, havia exemplares feissimos.
Não penses nisso, a de Lima também está a ficar tão cheia de mestiços que mete
medo.
-
Toda a Lima está a ficar cheia de mestiços, meu irmão.
Não tardaram a chegar. Juan Carlos estacionou o carro na Rua Los Nogales, em frente do
edifício onde vivia Gustavo. Desceram do carro, falaram com Gustavo pelo
intercomunicador, entraram no edifício e subiram num elevador rodeado de espelhos.
-
Como estão, suas putas? - gritou Gustavo, quando saíram do elevador.
Deram um aperto de mão e entraram no apartamento.
-
Como estás, preguiçoso? - perguntou Juan Carlos.
-
A fazer a risca - disse Gustavo.
-
Não me digas que te estavas a pentear - disse Juan Carlos. E riram-se.
-
Não, meu parvalhão, a fazer a risca de coca - disse Gustavo.
-
Quanto tens? - perguntou Joaquín.
-
Seis meias - respondeu Gustavo.
Uma meia era meio grama. Dava para vários snifes. Um snife equivalia a uma pequena
risca de coca.
-
Merda, que bela desbunda que vai ser - disse Juan Carlos.
-
Mas primeiro é preciso chupar - disse Gustavo.
-
Provemos a coca, para ver se está boa - propôs Joaquín.
-
Dar-lhe a seco não é bom - disse Gustavo. - Faz buracos no nariz.
-
Gustavo fala por experiência própria - disse Juan Carlos, e riram-se.
-
Vou servir umas bebidas - disse Gustavo, e foi para a cozinha.
Juan Carlos e Joaquín foram para a varanda. à frente via-se o campo do Lima Golf.
-
Ainda andas com a Mili? - perguntou Joaquín.
-
Nem pensar - respondeu Juan Carlos. - Não sabias que foi para Genebra?
-
Não me lixes. Não fazia a menor ideia.
- É verdade, está a viver lá. Fartou-se, fez as malas e tchau.
-
E porquê para Genebra?
-
Tinha passaporte suíço.
-
Que bom para ela!
Ficaram calados.
-
Ficaste lixado por ela se ir embora? - perguntou Joaquín.
-
Não, a vida é assim - respondeu Juan Carlos. - Cada um trata de si.
-
Estavas apaixonado?
-
Não. Estava apaixonado pelas mamas dela.
Riram-se. Gustavo apareceu na varanda com as bebidas.
-
à vossa, meus paneleiros - gritou, sorrindo.
Tomaram whisky puro, sem água.
-
Que aconteceu aos teus velhos, Gustavito? - perguntou Juan Carlos.
-
Estão na bela Miami - respondeu Juan Carlos.
-
A fazer o quê?
A minha velha vai esticar as rugas e o meu velho vai tirar um par de pneus da
pança.
Riram-se.
-
E que aconteceu à tua miúda, meu paneleiro? - perguntou Gustavo a Joaquín.
-
Que miúda? - disse Joaquín, surpreendido.
Não te faças de parvo - disse Gustavo. - Aquela jogadora do camandro com quem
estavas uma destas noites em Los Olivos;
-
Ah, Natalia - disse Joaquín. - Não é a minha miúda. É minha amiga.
É boa como o milho a pequena, compadre - disse Gustavo. Vê-se que tem futuro.
Onde a engataste?
-
Conhecia-a por aí.
-
Já lhe saltaste para cima? - perguntou Juan Carlos.
-
Nem por sombras - disse Joaquín. - Mal a conheço.
Não acredito em ti, sabidão - disse Gustavo. - De certeza andas a comer a miúda
pela calada.
Joaquín sorriu e ficou calado.
-
E que aconteceu à tua francesa, Gustavito? - perguntou Carlos.
Já se foi embora - respondeu Gustavo. - Volta dentro de uns meses. Chiça, não
sabem as quecas que dei na Sabine.
-
Como a conheceste? - perguntou Joaquín.
Engatei-a uma noite em Baja Beach, essa discoteca meio esquisita de Coconut
Grove - disse Gustavo.
-
E como veio até cá? - perguntou Joaquín.
Veio visitar-me - disse Gustavo. - Queria passar por caixa, sabida. Ficou quase um
mês. Instalei-a numa pensãozinha de Miraflores e mandei-lhe umas penachadas valentes.
A francesa é de conato, compadre. Tinha de lhe saltar para cima todas as noites, se sofria
de insónia.
É que as europeias, nada de aperitivos, vão directas à sobremesa - dissse
Carlos.
-
Dava na coca? - perguntou Joaquín.
-
Parvalhão. Por que achas que veio a Lima? - perguntou Gustavo.
-
A propósito, venha lá essa coca, Gustavito - disse Juan Carlos.
-
Não armes em mesquinho, que já estou cheio de vontade.
Juan
Que raio, sempre me saíste um angustiado - disse Gustavo. - O melhor é irmos lá
para dentro, porque aqui a nossa rica coca pode voar.
Entraram na sala. Gustavo foi ao quarto, pegou na coca, regressou e pô-la sobre uma
mesa de vidro.
Esta é a que matou o senador Martinez Guerra - disse; e tirou uma palhinha de
plástico.
-
Não sabia que Martinez Guerra morreu ganzado - disse Joaquín.
-
Claro, homem - disse Joaquín. - Meia Lima sabe isso.
Mas no jornal dizia que se empanturrou com uma sanduíche de fiambre com
salada.
- Martínez Guerra era um agarrado do caraças, compadre - disse Gustavo. - Isso da
sanduíche de fiambre e salada é uma história da carochinha. A seguir, aspirou umas riscas
e passou a palhinha a Juan Carlos.
- Conta lá como foi a primeira vez que deste na coca, Gustavito - pediu Joaquín.
-
Foi na minha festa de finalistas - disse Gustavo.
-
E lembras-te? - perguntou Juan Carlos, e snifou várias riscas.
-
Onde foi? - perguntou Joaquín.
- Nessa discoteca que ficava ao lado do D'Onofrio - disse Gustavo.
-
O Black and White - disse Juan Carlos.
Ali onde não deixavam entrar mestiços e uma vez um mestiço perdeu a cabeça e
deu um arraial de porrada no porteiro, que era mulato - disse Gustavo.
-
Era por iSSO que lhe chamavam Blacks Outside - disse Juan Carlos.
Joaquín aspirou um par de riscas.
-
Toda a gente lhe deu? - perguntou.
- Não, as tipas não, mas quase todos nós estávamos pedradíssimos.
E Piti Sabogal estava tão pedrado que a mandíbula dele ficou aberta - disse
Gustavo. - Não conseguia fechar a boca.
- Tiveram de o levar de urgência para a Clínica Americana, porque não conseguia fechar a
bocarra, foi de morrer a rir - disse Juan Carlos.
Dizem que depois o op'eraram em Houston, que lhe limaram a mandíbula - disse
Gustavo.
-
Aqueles americanos são espectaculares - disse Joaquín.
Ficaram calados. Aspiraram mais umas riscas.
-
Uma vez, zanguei-me com o meu velho - disse Juan Carlos.
-
Não me lixes - disse Joaquín.
-
Nunca me tinhas contado iSSO, paneleiro - disse Gustavo.
-
Foi uma bronca - disse Juan Carlos.
-
Conta lá - pediu Joaquín.
-
Primeiro, mais um snifezinho - disse Juan Carlos.
Pegou na palhinha, agachou-se e aspirou mais coca.
Havia um jantar lá em casa - disse. - Eu estava a beber na cozinha. O meu velho
estava super acelerado. Eu não sabia que o malandro dava na coca. De repente, levou-me
à casa de banho das visitas, puxou de um pacotão e convidou-me. Lembro-me
perfeitamente que me disse: em Lima, tens de saber snifar, porque os melhores negócios
fazem-se nas casas de banho de homens com coca pelo meio.
-
É uma grande verdade - disse Joaquín.
No banco onde faço uns biscates, vários gerentes compram o pacotinho de coca
todos os fins de semana - disse Gustavo. - Há tipo que chega todas as sextas-feiras e
reparte branca por toda a gente.
É que Lima é o máximo, compadre - disse Juan Carlos. - Em nenhum lado se vive
tão bem como em Lima.
-
O teu velho continua a dar-lhe?
-
Não, já se retirou - disse Juan Carlos. - Teve um enfarte e deixou-se disso.
-
Como foi? - perguntou Joaquín.
Rebentou - disse Juan Carlos. - O desgraçado rebentou tanta coca. Uma manhã,
estava nas aulas de golfe, aqui no clube, pumba, caiu por terra, como um saco de batatas.
O caddie levou-o em ombros até à administração. A ambulância chegou mesmo à
rectinha. O velho quase ia desta para melhor.
-
Que herói esse caddie, porra - comentou Joaquín.
-
O meu velho ofereceu-lhe uma passagem para Miami, Juan Carlos.
-
Não me lixes - disse Gustavo. - Ganhou a sorte grande!
Ganhou - respondeu Juan Carlos. - E o caddie ficou em Miami. Nunca mais
soubemos nada dele.
Riram-se. Aspiraram mais coca.
-
Esta coca pôs-me eléctrico - disse Juan Carlos. - Tenho dentes duros.
A coca é a nossa perdição, compadres - disse Gustavo. - Se continuamos assim,
morremos jovens.
Como aquele rapaz, o Ferreyros, que, para tentar bater o seu recorde, aspirou
vinte riscas seguidas, imaginem o parvalhão, e teve um enfarte e levaram-no já teso que
nem um carapau para a Clínica Americana - disse Juan Carlos.
-
Morreu? - perguntou Joaquín.
Claro, o que é que querias? - disse Juan Carlos. - Eu não fui ao velório, mas
contaram-me que Ferreyros ainda empestava a coca no caixão, calcula tu.
-
Tenho de ir à casa de banho - disse Joaquín.
Levantou-se, entrou na casa de banho das visitas, fechou a porta e acendeu a luz.
Não sou um agarrado à coca, não sou um agarrado, não sou um agarrado - disse,
olhando-se ao espelho.
Abriu a braguilha e tentou urinar. Não conseguiu. Tinha o sexo encolhido. Fechou a
braguilha e saiu da casa de banho.
-
Vamos dar uma volta - disse.
-
Acabamos com estas riscas e saímos - disse Juan Carlos.
Joaquín ajoelhou-se na alcatifa e deu mais uns snifes.
-
Que tal irmos ao Nirvana? - disse.
-
Ao Nirvana vão muitos maricas - disse Gustavo. - Vamos antes ao Amadeus.
- Não me lixes, homem. O Amadeus está cheio de imbecis - disse Joaquín.
Mas não podes negar que se encontram lá as melhores tipas de Lima - disse Juan
Carlos.
- E podemos dar na fruta sem problemas - acrescentou Gustavo.
Não sei se lhes disse que Germancito Vega me contou que no outro dia estava no
Amadeus o famoso deputado Aguirre - disse Juan Carlos.
-
Não me lixes - disse Joaquín.
É verdade, diz que viu o desgraçado bebedíssimo a dançar uma canção de Azúcar
Moreno, a dançar o sapateado como se fosse um cigano - disse Juan Carlos
Essa é de morrer a rir, o deputado Aguirre a dançar Azúcar Moreno - disse
Gustavo.
E depois diz Germancito que o encontrou na casa de banho e que Aguirre lhe pediu
coca; e Germancito disse-lhe: okay, ofereço-te, mas tens de te ajoelhar.
-
Que nazi, que radical que ele me saiu! - exclamou Gustavo.
- E que fez Aguirre? - perguntou Joaquín.
-
O que havia de fazer? Ajoelhou-se - respondeu Juan Carlos.
A necessidade é mesmo assim - disse Gustavo. - Quando a vontade aperta, vale
tudo.
O pior é que, quando Aguirre estava ajoelhado, Germancito snifou, mas não lhe
ofereceu - disse Juan Carlos.
-
Não me lixes, o tipo é doido de pedra - disse Gustavo.
-
E por que humilhou ele assim o pobre do Aguirre? - perguntou Joaquín.
Juan Carlos inclinou-se e snifou várias vezes.
Diz Germancito que, quando o viu ajoelhado, lhe meteu nojo, teve vontade de
vomitar para cima dele - explicou. - Diz que lhe disse: é por tua culpa que estamos lixados
no Peru, por culpa de tantos políticos ladrÕes e agarrados como tu.
- Bem dito, porra - disse Joaquín.
- E Aguirre atirou-se a ele e desancou-o, porque Germancito é baixote e não sabe lutar.
-
Ah, porra - disse Gustavo. - Ou seja, tudo terminou num bate-fundo.
- Um bate-fundo do caraças, porque depois os guarda-costas de Aguirre atacaram os
amigos de Germancito - disse Juan Carlos.
-
Que rico bate-fundo, porra - disse Gustavo. - Que pena não termos lá estado!
Dizem que foi o melhor bate-fundo da história do Amadeus - disse Juan Carlos. - Os
mestiços de Aguirre puxaram das pistolas e desataram aos tiros. Dizem que Fermin
Buchanan acabou com uma bala na perna.
Ficaram calados. Aspiraram mais coca.
-
Bem, onde vamos? - perguntou Juan Carlos.
-
Vamos dar uma volta - disse Gustavo. - Vamos dar um giro por aí.
-
Em que carro vamos? perguntou Juan Carlos.
É melhor irmos no teu, porque há um mandado de captura contra o meu - disse
Gustavo.
- Como é isso? - perguntou Joaquín.
-
Atropelei um mestiço e pus-me em fuga - respondeu Gustavo.
-
Mataste-o? - perguntou Joaquín.
-
Não sei - disse Gustavo. - Que porra, não foi? Tanto faz.
Riram-se. Deram mais uns snifes. Acabaram com a coca. Saíram do apartamento.
-
Que tal arranjarmos mais branca - disse Gustavo, enquanto desciam pelo elevador.
-
Vamos a isso - disse Juan Carlos olhando-se no espelho, enquanto limpava o nariz.
Saíram do edifício. Entraram no carro. Juan Carlos ligou o motor e acelerou pela Avenida
El Golf.
-
Onde podemos arranjá-la? - perguntou Joaquín.
-
Vamos a casa de Lucho - disse Gustavo. - Lucho tem sempre branca.
-
Alguém me contou que, no outro dia, Luchito foi dentro - disse Juan Carlos.
-
Não me digas que o apanharam a vender coca? - disse Gustavo.
Não - disse Juan Carlos. - Estava pedrado e saiu para comprar coca em pleno toque
de recolher, às três da manhã.
-
É doido de pedra - disse Joaquín. - Podiam tê-lo matado.
Dizem que Luchito levava umas cuecas a sair pela janela do carro, tipo bandeira
branca, quando os chuis o mandaram parar - disse Juan Carlos.
- De certeza que estava numa desbunda - disse Gustavo. - Lucho é dos que começam a
desbundar na sexta-feira e acabam no domingo à noite a ver os programas políticos.
Juan Carlos estacionou o carro em frente da casa de Lucho, perto da Avenida Salaverry.
-
Esperem-me aqui - disse Gustavo. - Sei como fazer a cabeça ao Luchito.
Desceu do carro, tocou à campainha e entrou na casa de Lucho. Na porta havia um
vigilante.
-
Estava bem boa a coca do Gustavito, não achaste? - perguntou Joaquín.
-
De primeira - respondeu Juan Carlos.
-
Que bom que é estar pedrado, porra.
-
O pior é no dia seguinte. A ressaca na cama. E que ressaca.
-
Não me lembres tal coisa.
-
Mas vale a pena, meu. Os que não dão uns snifes não sabem o que perdem.
-
Eu penso melhor quando estou pedrado. Sinto-me mais inteligente.
-
Eu também. Além disso, a coca ajuda-nos a abrirmo-nos, a fazer amigos.
-
Mas são amizades falsas, Juan Carlos.
-
Sei lá. Não considero a nossa amizade falsa.
Eu também não. Mas há muitas pessoas que, quando estam danadas, falam
descontroladamente e dizem estupidezes de meia noite.
- Realmente, é. Nas festas de desbunda dizem-se muitas estupidezes.
Gustavo entrou no carro e bateu com a porta.
- Que têm, malucas? - gritou, sorrindo. - Por que estão Sérios?
-
Conseguiste? - perguntou Juan Carlos.
-
Já te disse, parvalhão, Lucho não falha.
-
Vendeu-ta? - perguntou Joaquín.
-
Lucho nunca vende aos amigos - disse Gustavo.
-
Passa-me a branquinha para ver que tal é - disse Juan Carlos
Aqui, não, meu parvalhão, por causa do vigilante - disse Gustavo. - Vamos a La Pera
del Amor, que é já aqui perto.
Juan Carlos ligou o carro, desceu a Salaverry, atravessou a Avenida do Exército e chegou a
La Pera del Amor. Conduziu depressa, com destreza.
- Pronto - disse. - Puxa lá da coca.
Gustavo puxou da coca.
-
Não é muita, mas é óptima - disse.
Deram mais uns snífes. Quando acabaram, Juan Carlos pôs o carro em funcionamento.
-
Que fazemos, onde vamos? - perguntou.
-
Primeiro, vamos a umas cervejas - disse Gustavo. - Tenho a garganta seca.
Boa ideia - disse Juan Carlos. - Paramos em El Pollón para comprar umas
cervejinhas.
Reduziu bruscamente a velocidade e entrou no estacionamento El Pollón, fazendo uma
manobra temerária. "Parvalhão", gritou-lhe alguém de um carro.
-
Quantas cervejas compro? - perguntou Juan Carlos.
-
Seis, de uma vez - disse Gustavo.
Juan Carlos desceu do carro e correu para a caixa registadora.
-
Aproveitemos de ele não estar para darmos mais uns snifes - propôs Gustavo.
Tirou a coca e aspirou um pouco, usando o cartão de crédito para levar o pó ao nariz.
Depois, passou a coca a Joaquín, que deu mais uns snifes. Gustavo ligou o rádio e foi
mudando de estaçÕes.
-
Tudo cançÕes românticas - disse.
-
Tenta sintonizar o Noventa e Nove - sugeriu Joaquín.
Gustavo encontrou o Noventa e Nove. Estavam a dar um programa em inglês.
-
Isto está a irritar-me, meu irmão - disse. - Estamos em Miami ou em El Pollón?
Riram-se.
Não sei se já alguma vez te contei que uma vez me aconteceu uma coisa alucinante
aqui em El Pollón.
-
Conta - disse Gustavo.
Estava a dar-lhe com um par de amigos. Era bem tarde, aí umas três ou quatro da
manhã. Nessa altura, ainda não havia recolher.
-
Que bela era a vida sem recolher, porra - disse Gustavo.
Estávamos pedrados e, nesse momento, chegaram uns carrÕes pretos com
sirenes.
-
Que chatice!
-
Imagina a nossa surpresa quando de um dos carrÕes sai o ministro da Economia.
-
Vai-te quilhar. E que fazia o ministro em El Pollón, às quatro da madrugada?
Ficámos gelados, Gustavito. Do seu Mercedes blindado desceu nada menos do que
o ministro Alberto Elías com todos os seus mestiços tipo "Marnani" Vice cheios de
pistolas.
-
Nunca sei se hei-de acreditar em ti, porra. És um grande aldrabão, compadre.
Juro-te, Gustavito. Elías caminhou na nossa direcção e disse-nos, todo simpático:
que tal, rapazes, parece que estão com uma insónia, hem? Depois, sentou-se e pediu uma
cerveja gelada.
-
Essa é de morrer a rir.
Juro-te que o Elías estava pedrado. Ficou pregado à cadeira e deu-nos uma seca do
caraças. Falou-nos durante cerca de meia hora sobre a inflação, a dívida externa, o défice
e a puta que o pariu.
- Que cavalheiro esse Elias. Que classe.
- Muita classe, mesmo muita classe. E foi de morrer a rir porque de repente um dos meus
amigos disse-lhe: na verdade, não percebo nada de economia, senhor ministro, mas
gostaria de saber se me convém comprar dólares, se calhar, o senhor podia informar-nos
sobre se o dólar vai subir.
Imagina o comentário! Que selvagem me saiu esse teu amigo! É verdade, era o
anão Rázuri, que é um desatinado famoso. E Elias disse-nos: olhem, rapazes, comprem
dólares, que em breve vai haver uma desvalorização acentuada. Disse-o mesmo assim,
recordo-me lindamente da palavra "acentuada" e, no dia seguinte, o taco do Rázuri
vendeu tudo o que tinha e comprou dólares. Para dizer a verdade, esqueci-me do assunto.
Não me digas que o dólar subiu.
- Disparou Gustavito. Uma semana ou semana
e meia depois, uma desvalorização do caraças e o taco do Rázuri viu o seu capital triplicar.
-
Cabrão do anão. Que sortudo, porra!
E, depois, o taco derreteu a massa toda que tinha ganho numa borga em La Granja Azul,
com as hospedeiras da Lufthansa.
Juan Carlos entrou no carro com as cervejas.
-
Pronto - disse. - Seis cervejinhas bem frescas.
Atirou as latas para o assento de trás, ligou o carro e saiu de El Pollón. Gustavo e Joaquín
abriram um par de cervejas. Beberam. Gustavo arrotou.
- Onde vamos? - perguntou Juan Carlos.
-
Podemos ir ver que tal está o Nirvana - propôs Joaquín.
E ele a dar-lhe com o Nirvana - disse Gustavo. - Se queres ver bichas, é melhor
irmos à Javier Prado.
Juan Carlos aplaudiu.
-
Boa ideia - gritou, entusiasmado. - Vamos lixar as bichas da Javier Prado.
-
Claro, vamos lixar maricas - gritou Gustavo.
-
Bestial - gritou Joaquín.
-
Uns snifes para festejar a ideia - disse Juan Carlos.
Gustavo tirou a coca. Aspiraram um pouco mais os três, Juan Carlos entrou na Coronel
Portillo e dirigiu-se para a Javier Prado a toda a velocidade.
-
Lembras-te daquela noite em que engatámos um travesti, Gustavito? - perguntou.
- Ui, que nojo - respondeu Gustavo. - Nem me lembres isso.
-
Como foi? - perguntou Joaquín.
-
Engatámos um travesti sem nos apercebermos disso, compadre - disse Gustavo.
-
Parecia uma mulher - disse Juan Carlos. - Juro que parecia mesmo uma mulher.
-
Tinha umas maminhas muito bem feitinhas - disse Gustavo.
-
E como é que perceberam? - perguntou Joaquín.
-
Conta lá, Gustavito - disse Juan Carlos.
-
Não me recordes aquilo que vomito já - disse Gustavo.
E de morrer a rir - disse Juan Carlos. - Foi para não seres egoísta, parvalhão, e a
quereres comer primeiro.
Ela queria que eu lhe desse por trás e quando tentei meter-lha pela frente é que
percebi - disse Gustavo.
Juan Carlos soltou uma gargalhada.
-
Agarraste-lhe a piTa - disse. - Aí é que foram elas!
Cala-te, parvalhão - disse Gustavo. - Pu-lo a andar do carro aos pontapés. Viste
como lhe arreei.
-
Bateste-lhe? - perguntou Joaquín.
-
Parti-lhe o nariz - disse Gustavo. - Deixei o paneleiro a sangrar.
Em seguida, aspirou mais coca.
-
Vivam os mata-bichas, porra - gritou.
Juan Carlos e Joaquín riram-se.
-
Vivam os mata-bichas - gritaram.
Juan Carlos entrou na Javier Prado e reduziu a velocidade.
-
PÕe as luzes altas e anda devagar - disse Gustavo.
Vamos só perder tempo estupidamente - disse Joaquin. - É melhor irmos ao
Amadeus.
-
Qual Amadeus, parvalhão - disse Juan Carlos. - Lixar bichas é mais porreiro.
-
Temos de conseguir que uma dessas bichas suba para o carro - disse Gustavo.
-
Isso vai ser lixado - disse Joaquín.
-
Porquê? - perguntou Gustavo.
Porque os maricas não são assim tão imbecis - disse Joaquín. tipos pedrados, não sobem para o carro.
Se virem três
-
Falas-lhes tu, Joaquín - disse Gustavo. - Tens muita lábia.
-
Não me lixes, homem - disse Joaquín. - Que merda lhes hei-de dizer?
-
Olha, ali estão - gritou Juan Carlos.
Numa esquina da Javier Prado haviam-se reunido várias prostitutas e travestis.
-
Pára, pára - disse Gustavo. - Vira e entra nessa ruazinha.
Juan Carlos deu a volta na esquina e parou o carro. Uma mulher aproximou-se a correr.
-
Olá, rapazes - disse-lhes.
-
Olá, borracho - disse-lhe Joaquín.
-
Ai que sedutor que és, magricelas - disse ela.
-
Por que não sobes para darmos uma voltinha? - perguntou Joaquín.
Só se fosse louca, meu amor - disse ela. - Eu sozinha contra vocês os três? Não
sejas abusador. Vão passar-me a ferro.
-
Não tenhas medo - disse Joaquín. - Só queremos passar um momento agradável.
Por mim, super encantada, mas a verdade é que não trabalho com grupos,
magricelas disse ela.
-
Mas fazemos turnos - disse Joaquín.
É melhor chamar ali uma colega para me acompanhar - diss ela. - Assim corre tudo
melhor e não me comem os três como fosse carne picada.
-
Não, não queremos com duas - disso Gustavo. - Só tu.
-
Como te chamas? - perguntou Juan Carlos.
-
Pelusa - respondeu ela.
-
Lindo nome - disse Joaquín.
-
Para te servir, magricelas - disse ela, com um sorriso coquete.
-
Olha, Pelusa, sobe para o carro e já combinamos tudo aqui disse Gustavo.
-
Se quiseres, pagamos-te mais - sugeriu Juan Carlos.
Cem por cento impossível, rapazes - disse Pelusa. - Vou chamar a minha coleguita
Fiorella.
-
Não chames ninguém, porra - disse Gustavo. - Sobe tu e pronto.
-
Fiore, Fiore - gritou Pelusa. - Vem cá, filha, está aqui uma rapaziada ansiosa.
Fiora aproximou-se a correr.
Ai, que horror, estas raparigas novas não têm o profissionalismo de antigamente queixou-se Pelusa.
-
Disse-te que não chamasses ninguém, porra - gritou Gustavo.
Agarrou o cabelo de Pelusa e puxou-o com toda a força, fazendo-lhe entrar a cabeça pela
janela.
-
Ui, ui, solta-me, ouve, branco mal parido e filho da puta - gritou pelusa.
Tinha metade do corpo dentro do carro. Gustavo deu-lhe várioS murros.
- Paneleiro de merda, vamos encher-te de porrada - gritou.
Juan Carlos arrancou a carteira de Pelusa e atirou-a para o banco.
-
Engomadinho, ladrão, filho da mãe - gritou Pelusa.
-
Socorro, meninas, estão a atacar a Pelusa - gritou Fiorella.
-
Acelera, Juan Carlos - gritou Gustavo.
-
Larga-a, Gustavo - disse Joaquín.
Juan Carlos deu um par de murros em Pelusa.
-
Todas as bichas vão morrer - gritou.
-
Eu não sou uma bicha, estúpido - gritou Pelusa. - Sou uma senhora.
Ao esforçar-se por resistir, Pelusa mordeu Gustavo no braço.
-
Ui, porra, a bicha mordeu-me - gritou Gustavo.
Joaquín ouviu um impacte no tecto do carro. Virou-se. Viu que as amigas de Pelusa
estavam a atirar pedras ao carro de Juan Carlos.
-
Estão a atirar-nos pedras - gritou.
-
Acelera, Juan Carlos - mandou Gustavo.
Eu agarro-te, Pelusita - gritou Fiorela, apanhando Pelusa pela cintura. - Eu
seguro-te, minha querida.
Juan Carlos acelerou violentamente. Pelusa libertou-se dos braços de Gustavo e caiu no
pavimento.
-
LadrÕes de merda - gritou. - Baratas dos canos.
Fiquei com a perruca dela, fiquei com a perruca dela - gritou Gustavo,
entusiasmado.
Tinha a perruca loira de Pelusa nas mãos.
-
Lixámos o paneleiro, é de partir a rir - disse Juan Carlos.
Em seguida, subiu vários quarteirÕes pela Avenida Basadre e parou numa esquina.
-
O paneleiro mordeu-me disse Gustavo - Acho que estou a deitar sangue.
Acendeu a luz no interior do carro. Tinha uma feridazinha no braço direito.
-
É uma coisita sem importância - disse. - Não é nada.
-
Esperemos que o maricas não tenha SIDA, se não estás feito - disse Joaquín.
-
Porquê? - perguntou Gustavo, com uma cara assustada.
-
Porque a SIDA se transmite através de uma mordidela - diss Joaquín.
Juan Carlos soltou uma gargalhada.
-
Sidoso - disse ele a Gustavo. - Cão sidoso.
Cala-te, idiota - disse Gustavo. - Caraças, fiquei com vontade de dar porrada nestes
paneleiros.
Gustavo apagou a luz. Aspiraram mais coca. Tomaram uma cerveja.
Isto não fica assim - disse Gustavo. - Temos de meter uma bicha no carro e ir-lhe às
trombas.
Juan Carlos abriu a carteira de Pelusa e verificou o que continha.
Preservativos. Mais preservativos. Papel higiénico. Caramelos. Moedas. Baton.
Vaselina. Uma estampinha de Sarita Colonia - dissele.
-
Deita essa merda fora - disse Gustavo. - As bichas dão azar.
-
Não deites nada - disse Joaquín. - Eu fico com as coisas dela.
-
Ui, porra, gostaste da peruca - disse Gustavo.
-
Sai daqui, sidoso - disse Joaquín.
-
Bem, temos de voltar à Javier Prado - disse Gustavo.
-
Não sejas idiota, já tomaram nota do carro - disse Juan Carlos.
-
Então vamos ao Olivar - propôs Gustavo. - Lá há maricas a sério.
Juan Carlos acelerou por Basamadre e entrou no Camino Real.
-
Vivam os mata-bichas - gritou.
-
Vivam os mata-bichas, porra - gritou Gustavo, pondo a cabeça de fora da janela.
Ao passarem pela Igreja da Virgen del Pilar, Juan Carlos e Gustavo benzeram-se.
- Anda mais devagar, que as bichas aparecem logo - disse Gustavo.
Juan Carlos entrou no Olivar e reduziu a velocidade.
-
Ali, atrás daquela árvore, está uma bichona - gritou Gustavo.
Juan Carlos subiu o passeio com o carro e parou. Gustavo desceu do carro.
-
Anda cá, boneca - gritou.
Atrás de uma árvore estava uma mulher.
-
Que queres? - perguntou com uma voz rouca.
-
Anda cá - gritou Gustavo. - Queremos uma boa queca.
-
Segue o teu caminho, narigudo - gritou a mulher. - Não quero nada contigo.
Juan Carlos soltou uma gargalhada.
-
Chamou-te narigudo, Gustavito, que gozo - disse.
-
A quem julgas que faltas ao respeito, maricas filho de uma puta?- gritou Gustavo.
-
A ti, cara de piça de papagaio! - gritou a mulher.
Ouviram-se risos no parque.
Vou rebentar-te as trombas, paneleiro de merda - disse Gustavo e entrou no
parque a correr.
Juan Carlos e Joaquín desceram do carro e correram atrás dele. Prostitutas e travestis
correram pelo parque, no meio de um grande alarido.
-
Estamos a ser atacadas, estamos a ser atacadas - gritavam.
Gustavo apanhou a mulher que o insultara e deitou-a ao chão. Depois, atirou-se para cima
dela e começou a bater-lhe na cara.
-
Morre, bicha nojenta - gritou.
A mulher cuspiu-lhe.
-
Ai, porra, cuspiu-me a SIDA - gritou Gustavo.
Pôs-se de pé e continuou a dar-lhe pontapés por todo o corpo. Juan Carlos e Joaquín
chegaram, ofegantes, junto dele.
Matemos uma bicha, demos a nossa contribuição para a glória da pátria - gritou
Juan Carlos; e começou a dar pontapés à mulher.
-
Não é bicha, é uma mulher - gritou Joaquín.
-
É bicha, parvalhão - gritou Gustavo. - Dá-lhe pontapés, também.
Joaquín deu uns pontapés na mulher.
Tenham piedade desta pobre mulher - gritou ela. - Só estava a ganhar o pão
honradamente.
-
Cala-te, sua bicha - gritou Gustavo. - Somos os mata-bichas e vamos matar-te.
Continuaram os três a dar-lhe pontapés.
-
Pelo menos vê se é uma gaja - gritou Joaquín.
-
Vá lá, mostra-nos a piça, paneleiro - ordenou Juan Carlos.
-
Sou uma mulher, sou uma mulher - gritou ela.
-
Cala-te, paneleiro - gritou Juan Carlos.
Gustavo e Juan Carlos levantaram-lhe a saia e viram que usava umas calças amarelas.
-
Ainda não é Ano Novo, imbecil - disse Juan Carlos dando-lhe um pontapé.
Depois, puxaram-lhe as calças para baixo e viram o sexo erguido daquele homem que
estava vestido de mulher.
E ainda por cima entesaste-te - gritou Gustavo, fazendo careta de nojo. - És um
doente, meu filho da puta.
-
Por acaso tenho pila, mas sou mulher - gritou ela.
-
O paneleiro é masoquista - disse Juan Carlos, e continuaram aos pontapés a ela.
De repente, ouviram uma sirene.
-
Merda, os chuis, temos de nos pôr a andar - disse Gustavo.
Correram os três para o carro.
-
Cães malditos - gritou o travesti.
Subiram para o carro a toda a pressa. Juan Carlos ligou o motor, acelerou e virou na
primeira esquina. Depois entrou na Avenida do's Conquistadores.
Que curtido que foi - disse. - Desfizemo-lo à porrada. De certeza que lhe parti uns
ossos.
-
Vamos a uns snifes, para recompor as energias - disse Joaquín.
Gustavo procurou a coca, mas não a encontrou.
-
Merda - disse. - Acho que a branca me caiu no parque.
Juan Carlos mordeu uma mão.
-
Que trampa - disse.
Joaquín olhou para o relógio.
-
Dentro de meia hora começa o recolher - disse.
-
Vamos comprar agora e acabamos em cheio no apartamento - propôs Gustavo.
- É para já - disse Juan Carlos.
-
Eu não alinho - disse Joaquín. - Deixem-me no meu apartamento.
-
Como quiseres - disse Juan Carlos.
Em seguida, enfiou pela Camino Real, fez chiar os pneus na curva da oval da Gutiérrez e
desceu a Comandante Espinar.
-
Maldito recolher - disse Gustavo.
Juan Carlos entrou na Avenida Pardo e parou o carro em frente do edifício onde Joaquín
vivia.
-
Levo a perruca e a carteira - disse Joaquín.
Lava o nariz com água quente e bebe bastante leite, isso ajuda a não ter ressaca disse-lhe Juan Carlos.
-
E lava o rabo - disse Gustavo num tom trocista.
Joaquín desceu do carro.
-
Tchau, paneleiros - disse.
Entrou no edifício e subiu até ao seu apartamento. Ouviu ruídos. Assustou-se. Deixara a
televisão ligada. Apagou-a. Entrou na casa de banho. Enfiou a perruca na cabeça e pôs a
carteira ao ombro.
-
Olá, Pelusa - disse, olhando-se ao espelho.
RECORDAÇõES DOMINICANAS
Era quase meia-noite. O balcão da discoteca do Hotel Dominican Concorde estava deserto.
Joaquín sentou-se ao balcão, pediu uma limonada e olhou para os dois ou três pares que
dançavam, sem inspiração, um merengue meloso. Pouco depois, dois pares jovens
sentaram-se ao balcão e pediram cerveja para os quatro. Joaquín notou que todos
falavam inglês. Achou os dois rapazes muito bonitos. Um deles pareceu-lhe especialmente
atraente: era alto, branco, magro. Tinha o cabelo castanho e comprido e um olhar triste.
Enquanto as raparigas contavam as suas graças tolas e se riam escandalosamente, esse
rapaz tomava a sua cerveja, como que ensimesmado, e não parava de brincar com o
cabelo.
Joaquín e o rapaz do cabelo comprido olharam-se diversas vezes. Joaquín julgou ter
reconhecido no rapaz alguém semelhante a ele. Pouco depois, o rapaz bocejou
longamente, esticando os braços; parecia estar aborrecido. De repente, pôs-se de pé,
disse qualquer coisa às raparigas que o acompanhavam e entrou no casino que ficava ao
lado do balcão. Joaquín pagou a conta e entrou no casino, só pelo prazer de olhar durante
mais um bocado o rapaz do cabelo comprido. O casino estava cheio de gente ruidosa.
Dominicanos prósperos vestidos de branco exibiam as suas correntes de ouro e perdiam o
dinheiro às gargalhadas. O rapaz parou a observar um dos jogos. Então, Joaquín
aproximou-se da mesa, puxou de uns pesos e entrou no jogo. Não gostava de apostar,
mas queria chamar a atenção do rapaz. Quando a bolinha estava a dar voltas, o rapaz e
Joaquín olharam-se nos olhos. Ambos sabiam que Joaquín ia perder aquele dinheiro. Foi
de facto o que aconteceu. Então, o rapaz sorriu pela primeira vez a Joaquín. Joaquín
retribuiu-lhe o sorriso, fazendo um gesto de resignação. O rapaz passou ao lado dele e
disse "segue-me". Depois, continuou a andar e saiu do casino. Joaquín esperou um
momento e saiu por onde ele acabava de sair. Então, viu-o entrar numa porta. Foi atrás
dele. Entrou pela mesma porta. De repente, encontrou-se na cozinha do hotel. Procurou o
rapaz. Não estava ali. Uns mulatos com bonés brancos gracejavam uns com os outros,
enquanto faziam as tarefas da cozinha.
- O cavalheiro procura os lavabos? - perguntou um deles.
Joaquín acenou com a cabeça em sinal afirmativo.
- Depois de sair, é a primeira porta à direita - disse-lhe o mulato.
Joaquín saiu da cozinha e deu uma vista de olhos à casa de banho, mas o rapaz também ali
não estava. Resignado, voltou para o balcão do bar; os três acompanhantes do rapaz já se
tinham ido embora. Decidiu ir deitar-se. No elevador, a caminho do quarto, sentiu-se
muito só e
muito triste.
Um pouco depois, Joaquín estava na cama, a mudar a televisão de um canal para outro,
quando bateram à porta do quarto. Assustado, levantou-se e olhou pelo óculo de
segurança da porta. Era o rapaz do cabelo comprido. Abriu.
-
Onde te meteste? - perguntou o rapaz, sorrindo.
-
Procurei-te por todo o lado, mas não te encontrei - respondeu Joaquín.
-
Subi pelas escadas da cozinha. Tu desapareceste.
-
Sou um tonto, perdi-te. Entra, por favor.
O rapaz entrou no quarto, olhou-se ao espelho, passou uma mão pelo cabelo como que
acariciando-se e sentou-se na alcatifa. Tinha um ar inocente, distraído.
-
Que estás a ver? - perguntou.
Nada, qualquer coisa - disse Joaquín, sentando-se ao lado dele. - Não
dormir.
consigo
Joaquín estava de pijama. O rapaz usava uns blue jeans com um buraco no joelho, um
pólo branco e umas sandálias.
-
Donde és? - perguntou Joaquín.
-
De Toronto, no Canadá - respondeu ele.
-
E que estás a fazer em Santo Domingo?
-
A passear. A fazer turismo. E tu?
-
Também.
-
Vieste sozinho?
-
Hum, hum. E tu?
-
Não. Estou com um grupo de amigos, mas fartei-me deles.
-
Melhor para mim.
Olharam-se nos olhos. Sorriram. Joaquín apoiou a cabeça num ombro do rapaz, que, por
sua vez, procurou a boca de Joaquín. Beijaram-se suavemente. Foram-se despindo sem
pressas. Como nenhum dos dois tinha um preservativo, decidiram meter-se na banheira.
Encheram-na de água quente, entraram com cuidado, sentaram-se e o rapaz abraçou
Joaquín por trás. Depois, masturbaram-se lentament com os olhos abertos.
Como é que encontraste o meu quarto? - perguntou Joaquín enquanto se secavam
na casa de banho.
- Vi a tua conta no balcão - disse o rapaz, sorrindo. - Tinha escrito o número do teu quarto
na conta.
-
E como viste a minha conta?
-
Tive de dar uns pesos ao empregado.
-
Valeu a pena?
-
Não tenho a certeza - disse o rapaz, sorrindo.
Riram-se, abraçaram-se, escorregaram e quase caíram ao chão. O piso da casa de banho
estava molhado.
-
Queres cá ficar a dormir? - perguntou Joaquín.
-
Gostaria muito, mas não posso - disse o rapaz.
-
Porquê?
-
Tenho de ir ter com os meus amigos. Estão à minha espera num bar.
-
Compreendo.
Quando acabou de se vestir, o rapaz tirou uma pequena pulseira e deu-a a Joaquín.
-
Ofereço-ta. Para que não me esqueças.
O rapaz dirigiu-se à porta.
-
Não me disseste como te chamas - disse Joaquín. - Nem sequer sei o teu telefone.
O rapaz pegou num bloco que estava em cima da mesa e escreveu o seu nome e número
de telefone. Joaquín leu: Reid MacDonald.
-
Como os hamburgers? - perguntou, sorrindo.
-
Como os hamburgers - disse o rapaz.
Abraçaram-se e beijaram-se. Depois, Reid saiu do quarto.
No dia seguinte, Joaquín telefonou-lhe. Uma mulher disse-lhe que se enganara no número
e que ali não vivia nenhum Reid. Joaquín telefonou de novo. A mulher gritou-lhe que
deixasse de a incomodar e desligou com maus modos.
Passaram uns anos. Um dia, Joaquín estava num táxi velho a percorrer as ruas do centro
de Santo Domingo quando viu Reid a andar sozinho. Embora tivesse ficado surpreendido,
por vê-lo vestido de uma maneira tão formal, reconheceu-o imediatamente. Reid usava
umas calças cinzentas, uma camisa branca de mangas compridas e uma gravata preta.
Joaquín mandou parar o taxista, desceu do carro e conseguiu apanhar Reid.
-
Olá! - disse-lhe, tocando-lhe no ombro por trás.
Reid virou a cara, assustado. Olhou fixamente Joaquín, baixou os olhos e ficou calado. Algo
parecia ter mudado entre os dois. Reid tinha uma bíblia grossa entre as mãos. Apertou-a
com força, como que aferrando-se a ela.
-
Há que tempos que não te via - disse Joaquín. - Como tens passado?
Reid permaneceu em silêncio, de olhos pregados no chão.
Lamento, mas julgo que se enganou na pessoa - disse, sem olhar Joaquín nos
olhos.
-
Reid, sou eu, Joaquín. Não te lembras de mim?
-
Não. Lamento.
-
Conhecemo-nos uma noite no Dominican Concorde.
-
Deve estar confundido, senhor.
Então, Joaquín mostrou-lhe a pulseira que ele lhe dera. Punha-a sempre que ia a Santo
Domingo.
- Lembras-te? - disse-lhe.
Lamento, mas tenho de me ir embora, tenho pressa - disse Reid, e continuou a
andar.
Joaquín subiu para o táxi que o esperava. Ao passar ao lado de Reid, fez-lhe adeus.
Aferrado àsua bíblia, Reid continuou a andar e não lhe respondeu.
O ACTOR
Joaquín vira-o diversas vezes numa telenovela e desejava muito conhecê-lo: Gonzalo
Guzmán tornara-se o actor da moda em Lima. Gonzalo era jovem, bonito, encantador.
Uma noite, depois de ter hesitado muito, Joaquín atreveu-se a telefonar-lhe.
-
Gostaria muito de te fazer uma entrevista - disse-lhe.
-
Estupendo - disse Gonzalo. - Nunca perco o teu programa.
Nessa altura, Joaquín tinha um programa de entrevistas na televisão peruana. Em geral,
entrevistava actores e cantores.
- Que tal fazê-la amanhã mesmo? - perguntou.
Perfeito - disse Gonzalo. - Quanto antes, melhor. Mas já agora, faz-me um favor,
achas que poderias passar por minha casa a caminho da televisão?
Claro - disse Joaquín. - Terei muito prazer.
Em seguida, anotou a direcção de Gonzalo num papel.
-
Vemo-nos amanhã - disse Gonzalo antes de desligar.
Afinal de contas, trabalhar na televisão tem as suas vantagens, pensou Joaquín.
No dia seguinte, Joaquín chegou a casa de Gonzalo às nove da noite. Gonzalo vivia com os
pais num apartamento em frente do Clube Terrazas de Miraflores. Joaquín tocou à
campainha, anunciou-se pelo intercomunicador e esperou no carro. Pouco depois,
Gonzalo saiu do edifício. Sorria.
Sorry por te ter feito vir até cá, mas estou a juntar dinheiro para comprar um
carro.
-
Não há problema - disse Joaquín. - Tenho muito prazer.
Deram um aperto de mão.
Joaquín pôs o carro em marcha e dirigiu-se ao estúdio da televisão onde trabalhava.
-
Na novela, pareces um pouco mais gordo - disse.
- É que a televisão engorda sempre - disse Gonzalo, sorrindo. - Engorda e achata. É por
isso que os gordos parecem tão buchas e os baixos, anÕes.
Joaquín sorriu e olhou para Gonzalo: pareceu-lhe que já estava maquilhado.
-
Já te maquilhaste? - perguntou-lhe.
Sim, pus um pouco de pó em casa - disse Gonzalo, mexendo na cara. - Porquê?
Nota-se muito?
-
Não, não. Estás muito bem.
-
Obrigado. Tu também.
-
Maquilhas-te sempre em casa?
-
Sim. Na realidade, não sou eu que me maquilho, é a minha mãe.
-
Ah sim? Que graça.
É que na televisão usam uma maquilhagem péssima e a minha mãe só me
maquilha com produtos importados.
-
Claro, entendo.
Além disso, a velha adora maquilhar-me. Cada vez que tenho uma entrevista ou
uma sessão de fotografias, ela fica muito contente por me maquilhar. Se não a deixo, fica
ressentida comigo.
-
Que graça!
Joaquín conduzia pela Avenida Salaverry. Eram dez e pico da noite. Havia pouco tráfego.
- Diz-me lá o que me vais perguntar, por favor, pois estou super nervoso - disse Gonzalo.
-
Não faço ideia - disse Joaquín. - Qualquer coisa.
Olharam-se. Sorriram.
-
Posso pedir-te um favor? - perguntou Gonzalo.
-
Claro, o que quiseres - disse Joaquín.
-
Na entrevista podes perguntar-me se estou apaixonado?
-
Com certeza que sim.
É que a minha miúda vai estar a ver a televisão e quero aproveitar para lhe mandar
lembranças.
-
Claro, Gonzalo, é um bonito gesto da tua parte.
Ficaram calados. Pouco depois, chegaram ao canal, desceram o carro e entraram nos
estúdios de televisão. Joaquín foi para a sala de maquilhagem. Gonzalo ficou no estúdio, a
assinar autógrafos para telefonistas do canal. Uma maquilhadora veterana, que se gabava
ter naquilhado no mesmo dia Henry Kissinger e Gordo Porcel, maquilhou Joaquín
depressa, como fazia todas as noites. A seguir, Joaquín regressou ao estúdio,
cumprimentou os operadores de câmara e esperou pelo começo do programa. Havia
umas quinze ou vinte pessoas sentadas numa pequena plateia do estúdio. à hora de
sempre, às 10 da noite, um operador de câmara fez-lhe sinal, a indicar-lhe que estava no
ar.
Boa noite - disse Joaquín sorrindo para a câmara de televisão, - [Hoje, tenho o
prazer de lhes apresentar um actor talentoso e encantador, um rapaz que conquistou a
simpatia das pessoas de Lima, rapaz da moda na capital, nada mais nada menos do que o
famosíssimo e muito querido Gonzalo Guzmán.
Então, Gonzalo entrou no palco e o público aplaudiu-o com entusiasmo. Gonzalo e
Joaquín cumprimentaram-se, dando um aperto de mão, sentaram-se e conversaram
durante uns minutos sobre as coisas que Gonzalo fizera ultimamente: uma telenovela,
Jazmín, e uma peça de teatro, Quieres ser mi peor es nada? A meio da entrevista, já
estavam mais descontraídos, Joaquín decidiu fazer a pergunta que Gonzalo lhe pedira.
Diz-me uma coisa, Gonzalo - disse ele. - Isto é uma coisa que muitíssimas raparigas
querem saber; perdoa-me a indiscrição: estás apaixonado?
No estúdio ouviram-se risos e murmúrios.
Sim, estou profundamente apaixonado - disse Gonzalo olhando para a câmara. - A
minha namorada chama-se Rocio e é o grande amor da minha vida. Adoro-a, ela é tudo
para mim. No mês passado fez cinco anos que andamos juntos. Rocio é uma rapariga
lindíssima e super inteligente. Rocio, meu amor, sei que me estás a ver, aqui vai um
beijinho, adoro-te.
Gonzalo beijou a palma da mão e soprou em direcção à câmara. - Um beijo pelo ar para
ela - disse, sorrindo.
O público premeou com fortes aplausos esse gesto de ternura.
-
Caramba, que inveja, que sorte estares assim tão apaixonado - disse Joaquín.
-
É verdade - disse Gonzalo. - Sou o homem mais feliz do mundo.
Depois, conversaram os dois sobre como era difícil ser actor em Lima e sobre os projectos
de Gonzalo: "a minha meta é emigrar para o México ou para a Venezuela, por esta
ordem", disse ele. Quando o programa terminou, apressaram-se a sair do canal. Gonzalo
viu-se imediatamente rodeado por dezenas de mulheres que lhe pediam um autógrafo
aos gritos.
- É tão simples, tão humano, tão nice - gritou uma delas.
-
É um borracho - gritou outra.
Sem parar de sorrir, Gonzalo assinou autógrafos e deixou que lhe tirassem fotografias
abraçado pelas suas admiradoras. De repente, pareceu perder a paciência. Deixou de
sorrir, abriu o caminho entre a multidão à força de cotoveladas e empurrÕes, insultou
duas raparigas que lhe suplicavam um autógrafo: "porra, calem-se, índias de merda", e
subiu para o carro de Joaquín.
-
Vamos embora daqui - disse.
As raparigas continuaram a guinchar e começaram a bater nos faróis do carro, pedindo a
Gonzalo que assinasse mais autógrafos. Gonzalo esboçou um sorriso forçado e fez-lhes
adeus.
Estas parvalhonas estão a dar-me cabo do juízo - murmurou, enquanto sorria. Juro-te que, por vezes, tenho vontade de as atacar ao pontapé.
Joaquín ligou o carro, recuou bruscamente e acelerou. Quase ia atropelando uma
rapariga.
-
Mestiças de merda - disse Gonzalo, olhando-se ao espelho e arranjando o cabelo.
-
É tramado ser tão famoso - disse Joaquín, sorrindo.
Ficaram calados. Abriram as janelas. Joaquín passou um semáforo vermelho e entrou na
Avenida Salaverry.
-
Que tal foi a entrevista? - perguntou Gonzalo.
-
Excelente - disse Joaquín. - Saíste-te muito bem. O público aplaudiu-te imenso.
-
Não achas que estava um pouco nervoso?
-
Nem por sombras. Achei-te super descontraído.
-
Foi bonito quando falei da minha miúda, não foi?
-
Foi óptimo, óptimo. Foi um gesto do mais romântico que há. O público adorou.
- Obrigado, Joaquín, foste o máximo, fizeste-me uma entrevista o mais simpática possível.
- Graças a ti. Tu é que me fizeste um programa excelente.
Ficaram calados.
- Apetece-te tomar qualquer coisa? - perguntou Gonzalo.
- Claro, é boa ideia - respondeu Joaquín. - Se me deitar agora, nãO consigo dormir.
- O problema é: onde vamos?
Sendo uma celebridade local, Gonzalo não podia ir a qualquer lugar público sem sofrer os
incómodos da fama.
- Se quiseres, podemos ir até ao meu apartamento - propôs Joaquín.
- óptimo - disse Gonçalo. - É muito mais sossegado do que a rua.
Joaquín sorriu e acelerou pela Prescott. Gonzalo ligou o rádio, sintonizou o Noventa e
Nove e aumentou o volume. Estava a tocar uma canção de Sting.
- Adoro o Sting - disse, e pôs-se a cantar em inglês.
Pouco depois, chegaram ao apartamento de Joaquín. Assim que entraram, Gonzalo
levantou o auscultador e ligou para a sua namorada, Rocío. Joaquín foi à casa de banho
para tirar a maquilhagem.
- Olá, borracho, viste-me? - disse Gonzalo ao telefone. De pé, em frente do espelho,
Joaquín passava uma esponja com sabão pela cara.
- Sim, saiu lindamente, não achas? - continuou Gonzalo. - Gostaste do que disse de ti? A
sério que te emocionaste? Saiu-me do coração, Rocio, foi do fundo do coração que o
disse. Também te adoro, minha linda.
Joaquín saiu da casa de banho e tirou o casaco e a gravata. Gonzalo continuou a falar ao
telefone.
- Agora estou no apartamento de Joaquín - disse. - Vamos tomar uma bebida e depois vou
para casa. Claro, querida, vemo-nos amanhã. Telefono-te cedinho, para vermos juntos o
vídeo da entrevista, está bem? Sim, os meus pais gravaram-ma. Tchau, linda. Tchau e
sonha comigo, está bem?
Gonzalo desligou o telefone.
- Estava a marcar o ponto - disse, sorrindo. - Tu sabes, senão a miúda fica ofendida.
- Compreendo, compreendo.
Em seguida, serviu dois copos de vinho, abriu a janela e sentou-se na alcatifa.
-
Pelo prazer de nos termos conhecido - disse Joaquín.
-
à nossa - disse Gonzalo.
Bateram com os copos um no outro e provaram o vinho. Ficaram calados. olharam-se nos
olhos.
-
Se queres que te diga, morria de vontade de te conhecer - disse Gonzalo.
Eu também, eu também - disse Joaquín, baixando o olhar. - Na realidade, foi por
isso que te telefonei. A entrevista foi um pretexto para te conhecer.
Gonzalo sorriu.
-
Aldrabão, manipulador - disse, e deu uma palmada na perna de Joaquín.
Não me ocorreu outra maneira de conhecer-te - disse Joaquín. - Nunca perco a tua
novela. Gosto muito de te ver na televisão.
-
Mentiroso. Aposto que nunca vês a novela.
Sorriram. Ficaram os dois calados. Ouviam o tráfego na Avenida Pardo.
-
Posso fazer-te uma pergunta pessoal? - disse Gonzalo.
-
Claro - disse Joaquín. - Todas as perguntas que quiseres.
-
É verdade o que Osvaldo Gambini diz de ti?
Gambini era um dos actores peruanos mais famosos.
-
Que diz ele? - perguntou Joaquín.
-
Que tu e ele andam juntos - respondeu Gonzalo.
Joaquín pôs uma cara surpreendida.
-
Nem por sombras - disse.
-
Menos mal - disse Gonzalo. - Eu bem dizia.
-
Como podes ter pensado que tinha tão mau gosto, Gonzalo? Gambini é um nojo.
-
Eu sei, eu sei, mas juro que diziam isso de ti.
-
Quem?
-
Os rapazes do meio, a malta do teatro.
-
Idiotices. Essa malta nem sequer me conhece.
-
Okay, mas não te piques.
-
Não estou picado.
Ah isso é que estás, parvalhão - disse Gonzalo, e deu uma palmada na perna de
Joaquín. - Tu és do meio? - perguntou Gonzalo.
- De que meio? - perguntou Joaquín.
-Pois, do meio, ora essa.
- Não, não sou do meio de Gambini nem me sinto parte desse meio.
Gonzalo riu-se.
- Peludo! - disse.
Joaquín tomou mais vinho. Tinha-o aborrecido que Gonçalo lhe tivesse perguntado se
andava com Gambini.
- Porque se és do meio, como dizem por aí, acho que podias ser muito melhor do que
Gambini.
- Já te disse que não tenho nada a ver com Gambini. Mal o conheço. Entrevistei-o uma vez
e foi tudo.
- Pois a mim Gambini disse-me uma vez que tu e ele eram amantes.
- Mentiroso. Disse-te isso?
- Juro-te, Joaquín. Uma vez, no teatro, depois de um ensaio, contou-me que saía contigo e
que se davam lindamente e estavam apaixonadíssimos. Fiquei gelado. Não podia
acreditar.
- Que farsante me saiu esse Gambini. Como pode ser tão filho da puta e falar assim?
- Nem imaginas o ataque de ciúmes que tive dessa vez.
- Ficaste ciumento?
- Hum, hum.
- Porquê? Não percebo.
Gonzalo baixou o olhar.
- Porque me atrais - disse.
Joaquín não soube o que dizer.
- Também me atrais - disse, numa voz muito débil.
Olharam-se nos olhos.
- Juras-me que nunca houve nada entre ti e Gambini? - perguntou Gonzalo.
- Juro-te - disse Joaquín.
Abraçaram-se. Deitaram-se na alcatifa. Beijaram-se.
- Atrais-me muito, sabias? - disse Gonzalo.
- Tu a mim também - disse Joaquín. - Estava morto de vontade de te conhecer. Sabia que
nos íamos dar bem.
Beijaram-se de novo. Gonzalo abraçou Joaquín por trás.
É estranhíssimo - disse-lhe, mordendo-lhe a orelha, beijando-lhe o pescoço. Nunca tinha desejado ir para a cama com um rapaz. Nunca um rapaz me atraira como tu
me atrais.
-
Faz amor comigo - disse Joaquín.
Levantaram-se e entraram no quarto de Joaquín de mão dada.
No dia seguinte, Joaquín estava a dormir a sesta quando a campainha do seu apartamento
tocou. Acordou mal-humorado, levantou-se da cama e olhou pela janela. Era Gonzalo.
Correu para o antercomunicador e abriu-lhe a porta. Gonzalo subiu pelo elevador. Assim
que entrou no apartamento, abraçou Joaquín. Fecharam a porta, foram para
o quarto e fizeram amor. Depois, ficaram nus, deitados na cama, a acariciarem-se.
-
Tenho de te dizer uma coisa - anunciou Joaquín.
-
Diz lá.
-
Ontem à noite, menti-te. Não foi a primeira vez que fui para a cama com um rapaz.
-
Não te preocupes. Já suspeitava isso.
-
Soriy. Fui um parvalhão. Não sei por que te menti.
Joaquín pôs a cabeça sobre o peito de Gonçalo.
-
Desde quando gostas de rapazes? - perguntou-lhe.
Desde que estava no colégio - respondeu Gonzalo. - Havia um rapaz na minha
turma que era giríssimo. Chamava-se Patrick Fisher. Era loiro, lindo. Tinha um corpo e
tanto. E era excelente a praticar desporto. Eu estava perdidinho por Patrick. Adorava olhar
para as pernas dele quando jogávamos futebol, em Educação Física. Adorava espiá-lo nu,
quando nos despíamos no vestiário do colégio. Nunca disse a ninguém que estava
secretamente perdido de amores por Patrick. E nunca houve nada entre nós os dois.
-
Como foi a tua primeira vez? - perguntou Joaquín.
Gonzalo sorriu.
-
Tenho vergonha de te contar - disse. - Conta-me primeiro tu a mim.
Joaquín passou uma mão pelo seu cabelo. Tinha o olhar perdido no tecto.
- A primeira vez foi com um amigo do colégio - disse. - Foi feio. Deixou-me na merda.
-
Porquê?
Porque eu apaixonei-me por ele e ele não gostava de mim. nem sequer O atraía.
Até hoje ainda não entendi por que razão aconteceu.
-
Mas ele é gay ou o quê?
-
Não. Gosta de raparigas. Enfiou-ma apenas porque tinha Só isso.
-
Ainda são amigos?
Não. Quando nos vemos, nem sequer nos cumprimentamos É uma pena. às vezes,
penso que continuo apaixonado por ele.
-
Como se chama?
-
Jorge.
-
Que idade tinhas quando isso aconteceu?
Estava no primeiro ano do ciclo. Era um miúdo. Nem sequer sabia que gostava de
Jorge porque era homossexual. Só sabia que gostava de estar com ele, que gostava de rir
com ele.
Ficaram calados. Gonzalo acariciava-lhe a cabeça.
-
Eu também comecei cedo - disse.
-
Conta-me - pediu Joaquín.
-
Mas jura-me que não contas a ninguém.
-
Juro-te.
-
Foi com um motorista que trabalhava em casa dos meus velhos.
-
Com um motorista?
-
Hum, hum. Ai, que vergonha, nunca tinha contado isto a ninguém.
-
Não sejas parvo, homem, não tenhas vergonha.
O motorista era um negro grandote, ultra sabido. Chamava-se Leonidas. Leonidas
de la Cruz. Ia todas as tardes buscar-me ao colégio. Eu andava no terceiro ano do ciclo.
Tinha sempre imensa ponta. Estava entesado todo o dia. Um dia, pedi a Leonidas que me
ensinasse a conduzir e sentei-me ao colo dele. Ele continuou a conduzir normalmente.
Pouco depois, senti que estava entesado também. Sentia a piça enorne do negro,
continuava a guiar e tinha cada vez mais ponta. Quando chegámos, desapertei-lhe a
braguilha e chupei-lha na garagem de casa. O negro ficou caladinho, nunca disse nada. No
dia seguinte, quis-lha chupar outra vez, mas não deixou. Nunca mais aconteceu nada. E
nunca falámos disso um com o outro.
-
Não ta chegou a meter?
-
Não. E ainda bem, porque tinha uma pila de cavalo.
Riram-se.
-
E como foi a primeira vez que fizeste amor com um homem? - perguntou Joaquín.
Foi com um tipo lá do ginásio - contou Gonzalo. - Eu já andava no quarto ano do
ciclo. Ia quase sempre ao ginásio depois do colégio. Ia ao Workout, aquele ginásio que fica
na Dasso. Esse rapaz chamava-se Eduardo. Tratavam-no por Eddie. Era uma besta, passava
horas a fio no ginásio, tinha um corpo e tanto. Eddie era o meu instrutor. Pesava-me,
dizia-me qual a minha rotina de exercícios, dava-me dietas especiais para ganhar corpo,
recomendava-me vitaminas, toda essa onda. Um dia, disse-me que fosse a casa dele
porque queria dar-me umas vitaminas especiais que lhe tinham trazido de Miami. Bem,
fomos até casa dele. Eddie vivia com os pais na Jesús Maria, perto da Residencial San
Felipe. No sótão, tinha um quartinho que era como o seu ginásio particular. Fechámo-nos
nesse quartinho e começámos a fazer exercícios e, de repente, puxou os calçÕes para
baixo e disse-me que lha chupasse. Lembro-me de que tinha uma pila pequenina, ou se
calhar parecia pequenina porque tinha uns músculos impressionantes, não sei. Acabámos
por fazer de tudo. Era um sabidão aquele tipo. Ensinou-me muita malandrice.
-
E Rocio, a tua namorada, sabe de tudo isto?
Estás doido? Como te pode passar uma coisa dessas pela cabeça? Rocio não faz a
menor ideia de nada.
E, desde que namoras com ela, continuaste a ter as tuas experiências
homossexuais?
- Bem, sim, de vez em quando apenas. às vezes, não conseguia controlar-me e telefonava
a Eddie ou a uns amigos do teatro que também são do meio. Mas nunca contei estas
coisas a Rocio. Como é que isso te passou pela cabeça?
- Por que não lhe contas?
Porque não perceberia. Porque lhe faria um mal do caraças. Rebentar-lhe-ia o
esquema mental.
-
Se calhar estás a subestimá-la, Gonzalo.
Eu conheço-a, parvalhão. Rocio é uma rapariga do Colégio Villa Maria. Nunca na puta da
vida lhe passou pela cabeça que tenho o meu lado gay.
- Já fizeste amor com ela?
-
Claro. Ela era virgem. Foi comigo que foi para a cama pela primeira vez.
-
E gostas de ir para a cama com ela?
Adoro. Rocio fode muito bem. Mas não se pode comparar com uma queca
homossexual. Não há tanta ponta. É tudo mais puro, romântico.
-
Compreendo.
Ficaram calados.
-
A sério que a amas, Gonzalo.
-
Claro que sim. Adoro-a.
-
Então por que não lhe dizes como são as coisas?
-
Já te expliquei, porque não perceberia. Ficaria traumatizada, ficaria na merda.
Eu acho que, se tens por ela um pouco de afecto, um pouco de respeito, deves
dizer-lhe a verdade.
Não sejas parvo, Joaquín, uma miúda nunca se deve inteirar dessas coisas. Essas
coisas ficam entre homens.
-
Não estou de acordo, Gonzalo.
-
Porquê? Não te entendo.
-
Porque se fosse ela, não gostaria que me fizesses uma coisa dessas.
Bem, talvez tenhas razão, mas já é muito tarde. Andamos juntos há cinco anos,
Joaquín. Não tenho o direito de lhe fazer uma safadice dessas.
-
Vai acabar por saber, Gonzalo. É impossível que lhe mintas toda a vida.
Nunca vai saber de nada - disse Gonzalo, aborrecido. - Rocio nunca vai saber de
nada.
Em seguida, levantou-se bruscamente da cama, vestiu-se e disse que tinha de se ir
embora. Partiu sem dar um beijo a Joaquín.
Uns dias depois, Gonzalo telefonou a Joaquín.
-
Quero que conheças Rocio - disse-lhe. - Que tal se fôssemos os três à praia?
Era um sábado de meados de Janeiro. Fazia sol.
-
Excelente ideia - disse Joaquín.
Passo aí dentro de meia hora - disse Gonzalo. - Temos de ir cedo. Senão, o trânsito
é uma porra.
-
Perfeito. Espero por ti.
Joaquín vestiu uns calçÕes de banho, tirou do frigorífico umas garrafas de vinho branco e
sentou-se à espera deles. Meia hora mais tarde, ouviu uma buzina e assomou à janela: era
Gonzalo, numa carrinha, a acenar-lhe. Joaquín respondeu-lhe, pôs um chapéu e uns
óculos escuros e desceu. Assim que entrou, Gonzalo estendeu-lhe a mão.
-
Olá - disse. - Apresento-te a minha namorada, Rocio.
-
Olá, Joaquín.
-
Olá, como estás? - disse Joaquin, e deu um beijo na cara de Rocio.
Rocio era uma rapariga encantadora. Tinha o cabelo castanho, comprido, os olhos
também castanhos e um sorriso maravilhoso.
-
Onde vamos? - perguntou Gonzalo.
-
à Villa nem pensar - disse Rocio. - Fui lá ontem e o mar estava um nojo.
-
Vamos até ao Silencio? - perguntou Gonzalo.
-
O pior é que o Silencio tem-se enchido de mestiços ultimamente - disse Rocio.
-
Que havemos de fazer, querida, os mestiços estão em todo o lado - disse Gonzalo.
-
Então, vamos ao Silencio - disse Rocio, resignada.
Gonzalo pôs uma cassette de Bowie, aumentou o volume e dirigiu-se à estrada do Sul.
Joaquín abriu uma garrafa de vinho, serviu um pouco em três copos de plástico e deu um
a cada. Beberam. Gonzalo cantava em inglês. Rocio olhava pela janela com um ar
distraído, o cabelo ondulando ao vento. Joaquín olhava para as pernas de Gonzalo,
brancas e musculadas, e as pernas de Rocio, mais magras e morenas. Pouco depois,
pararam num semáforo da Avenida Benevides. Enquanto esperavam que a luz vermelha
mudasse, Gonzalo apercebeu-se de que os ocupantes de um carro parado ao lado deles o
estavam a olhar tinham-no reconhecido. Reconheciam-no em todas as esquinas de Lima.
Gonzalo esboçou um sorriso forçado e fez adeus às raparigas do carro ao lado. Quando o
semáforo mudou para verde, acelerou.
-
Idiotas das mestiças, não me deixam em paz - murmurou.
-
Olha, é o preço da fama, Gonza - disse Rocio.
Um pouco mais à frente, já na auto-estrada, Gonzalo permitiu-se uma sonora flatulência.
-
Ai, Gonzalo, não sejas porco - disse Rocio, e pôs a cabeça fora da janela.
-
Já te disse, minha querida - disse Gonzalo - Tens de te habituar aos meus peidos.
-
Nunca por nunca - disse Rocio. - No mínimo és porco.
Gonzalo olhou Joaquín pelo espelho.
Sabes qual foi o momento mais divertido destes cinco anos com Rocio? perguntou-lhe, sorrindo. - O dia em que dei o primeiro peido diante dela.
-
Gonzalo, cala-te, que vergonha - disse ela, e levou as mãos à cara.
Não sabes como ficou histérica - continuou Gonzalo. - Pôs-me fora de casa dela.
Brigou comigo. Não me quis falar durante uma semana.
-
Que mentiroso que és, Gonzalo - protestou Rocio.
-
Deixaste de me falar, querida - disse Gonzalo.
-
Mas apenas durante um dia.
Só uma menina do Villa Maria se ofende porque o namorado dá um peido - disse
Gonzalo.
Joaquín serviu-lhes mais vinho. Beberam.
Ah, mas isso não foi nada comparado com aquela vez em que ela deu o primeiro
peido ao meu lado - disse Gonzalo.
Rocio sorriu e pôs de novo as mãos em frente da cara.
-
Isso nunca aconteceu, mentiroso - disse, envergonhada.
Nesse dia, senti que tínhamos uma confiança total, que éramos um casal
supersólido.
-
Eu nunca tenho gases, idiota - disse Rocio.
-
Eu sei, querida - disse Gonzalo. - És a rapariga mais asseada do mundo.
Uns momentos depois, chegaram ao Silencio, fecharam o carro à chave e correram para a
beira-mar porque a areia queimava. Gonzalo estendeu as suas coisas na areia e tirou o
pólo.
-
Vou já para o mar - disse. - Alguém quer vir?
-
Eu fico - disse Joaquín.
-
Eu também - disse Rocio.
-
Preguiçosos - disse Gonzalo.
Depois, correu para o mar e atirou-se de cabeça para a água. Rocio tirou um creme para
se proteger do sol e pô-lo nas pernas e nos braços. Joaquin continuou a beber vinho.
-
Pões-me um bocadinho de creme nas costas? - perguntou ela.
-
Claro, com muito prazer - disse ele.
Pegou no protector, deitou um pouco nas costas de Rocio e começou a espalhá-lo
suavemente.
-
Tens um lindo corpo, Rocio - disse.
Obrigada, mas olha que bem me custa - disse ela. - Duas horas de aeróbica todas
as manhãs e um monte de iogurtes. Já estou enjoada de iogurtes, confesso-te. Um dia,
perco a cabeça e como um hamhurger cheio de gordura.
Joaquín acabou de lhe pôr o protector e serviu-se de mais vinho.
-
Que lindo dia! - exclamou ele.
-
Excelente para a praia - disse ela.
Gonzalo fez-lhes adeus do mar. Eles riram-se e acenaram-lhe também.
Sabes que mais? - disse Joaquín. - Invejo Gonzalo. Gostaria de ter um ego tão
grande como o dele.
às vezes chateia-me que Gonzalo goste tanto de si próprio - disse Rocio. - às vezes,
sinto que Gonzalo está apaixonado por ele, não por mim. Mas é preciso compreendê-lo.
Os actores são mesmo assim, não é?
-
E tu estás apaixonada por ele?
Super. Desde miúda. Não me imagino com outro homem, Joaquín. Há cinco anos
que andamos juntos. Imagina, cinco anos.
-
Percebo-te. Eu, se fosse mulher, apaixonar-me-ia facilmente por Gonzalo.
Ela sorriu, como que surpreendida pelo que acabava de ouvir. Ficaram calados.
-
Posso fazer-te uma pergunta?
-
Claro, a que quiseres - disse ele.
-
É verdade o que dizem por aí a teu respeito?
-
Que dizem?
-
Tu sabes, que és meio esquisito.
-
Meio esquisito?
-
Ou seja, que és maricas.
Joaquín sorriu. Ficou calado.
-
É verdade isso que dizem de ti? - insistiu ela.
-
Sim - respondeu ele. - Mais ou menos.
Ela bebeu um golo.
-
Ficaste aborrecido por te ter feito a pergunta?
- De modo nenhum - disse ele.
-
É que eu sou muito directa.
-
Não há problema. E a ti, incomoda-te que eu seja assim?
- Não, não me incomoda. Mas, se queres que te diga a verdade, tenho pena por ti.
-
Pena? Porquê?
- Não tenho nada contra os maricas, mas no teu caso parece-me um desperdício.
-
Porquê?
- Porque um rapaz giro, com pinta e ainda por cima inteligente como tu não deveria ser
maricas. Tu poderias arranjar uma rapariga espectacular. É por isso que te digo que me
parece um desperdício que sejas assim meio esquisito. Mas, bom, cada um tem a sua
loucura, não é?
Gonzalo saiu do mar e aproximou-se deles a sorrir.
-
Que tal a água? - perguntou-lhe rocio.
- Está uma maravilha - disse Gonzalo. - Mas tu és uma maravilha ainda maior, querida acrescentou; e abanou a cabeça para a salpicar.
-
Oh, estúpido, odeio-te - disse Rocio, rindo-se.
Essa noite, foram os três juntos ao Nirvana. Depois de terem tomado umas cervejas,
Gonzalo e Rocio foram dançar. Joaquín foi à casa de banho para ver se alguém lhe oferecia
um pouco de coca. Teve sorte: encontrou Pirana, um magricelas que vendia coca na casa
de banho do Nirvana. Joaquín pagou-lhe adiantado e aspirou um par de riscas.
- Para o caso de te apetecer, às seis da manhã vamos jogar fulbito na Costa Verde disse-lhe Pirana.
- Se calhar, ainda me animo e vou - disse Joaquín.
Saiu da casa de banho, voltou para o balcão e pediu uma cerveja. Pouco depois, Gonzalo e
Rocio cansaram-se de dançar e foram também para o balcão.
-
És um mole, não dançaste nada - disse Rocio a Joaquín.
-
É que danço mal - disse Joaquín.
-
Mentiroso - disse ela.
-
Juro-te - disse ele.
-
Anda comigo, quero ver como danças - disse ela, e deu-lhe a mão.
Foram para a pista de dança. Havia tanta gente que era difícil andar pelos corredores do
Nirvana. Numa esquina, encontraram um espaço desocupado e começaram a dançar.
Rocio mexia-se muito. Mexia especialmente o cabelo, como se estivesse orgulhosa dele.
Joaquín quase não se mexia. Não gostava de dançar.
- Vê-se bem que gostas de dançar, borracho - gritou Rocio.
Dançavam uma canção dos The Cure. A pista de dança estava cheia de gente. Numa das
paredes havia uma televisão ligada. De repente, Rocio chamou uma rapariga que dançava
ao seu lado. Abraçaram-se e beijaram-se na face.
Olha, vou apresentar-te uma amiga - disse Rocío a Joaquín, gritando-lhe ao ouvido.
- Chama-se Stephanie.
-
Olá, muito gosto - disse Joaquín, e deu-lhe um beijo na cara.
Continuaram os três a dançar juntos. Stephanie era uma rapariga baixa e loira. Tinha um
nariz grande e uns lábios sensuais. Quando a canção terminou, Rocio disse que estava a
morrer de calor e foi para o balcão. Puseram outra canção. Stephanie e Joaquín
continuaram a dançar.
-
Danças muito bem - disse ele.
-
Dança-se como se pode - disse ela.
-
Estás muito bonita - disse ele.
Ela deitou a língua de fora, como que a fazer troça dele.
-
Tu também, mas poderias estar muito melhor - disse ela.
-
Ah, sim? Diz-me como - pediu ele.
Stephanie tirou uma argola, abraçou Joaquín e cravou-lha numa das orelhas.
- Assim ficas muito melhor - disse, com um sorriso sedutor.
-
Idiota, magoaste-me - disse ele, furioso.
-
A primeira vez dói sempre - disse ela, rindo-se.
Ele deu-lhe o braço.
-
Vem comigo até lá fora tomar um pouco de ar - disse-lhe ele.
-
Ficas espectacular com a argola - disse ela.
Stephanie e Joaquín saíram do Nirvana.
"Está lixada comigo a filha da puta", pensou ele.
-
Que tal darmos uma volta? - propôs.
-
Que atiradiço que és - disse ela. - Acabas de me conhecer
-
Só para fumar um charrinho - disse ele.
Ela sorriu.
-
Vamos - disse, esfregando as mãos.
Subiram para o carro de Joaquín. Ele conduziu em direcção ao mar. Ela ligou o rádio,
sintonizou o Noventa e Nove e pôs-se a cantar, a cabeça de fora da janela. Poucos
minutos depois, chegaram à Costa Verde. Ele desligou o carro num terreno arenoso em
frente do mar.
-
Que lugar tão romântico para fumar um charro - disse ela.
-
Não vamos fumar nenhum charro - disse ele.
-
Que tens? Por que estás assim exaltado?
-
Tira-me a argola, Stephanie.
-
Só se me pedires como deve ser.
-
Tira-me a argola, porra - gritou ele.
-
Tens um piadão, meu parvo - disse ela.
Depois, aproximou-se de Joaquín e tirou-lhe a argola. Então, ele abriu a braguilha.
-
Chupa-ma - disse.
Não me apetece - disse ela, olhando para entre as pernas dele. - Não como pilas
pequenas. - Ele abriu o porta-luvas e tirou de lá um gás paralisante em aerossol. Chupa-ma ou faço-te vomitar, idiota - disse ele.
-
Que ta chupe a tua velha - disse ela.
Ele atirou-lhe o gás para a cara.
-
Ouve, meu filho da puta, não sejas doido - gritou ela, tapando a cara.
Ele continuou a disparar gás. Depois, abriu a porta do carro e empurrou Stephanie para
fora. Ela caiu na areia, a chorar. Ele fechou a porta, ligou o carro, fechou todas as janelas e
regressou ao Nirvana.
Assim que chegou, entrou na casa de banho, comprou coca a Pirana e deu uns snifes.
Quando saiu da casa de banho do Nirvana, Joaquín encontrou Gonzalo e Rocio.
-
Onde te meteste? - perguntou Gonzalo.
- Disseram-me que te viram sair com Stephanie - disse Rocio.
-
Sim, pediu-me que a levasse a casa - disse Joaquín.
-
Pois, claro, descarado - disse Rocio, sorrindo, como se não tivesse acreditado nele.
Gonzalo olhou para o relógio.
Já é tarde - disse. - Vamos levar Rocio. Os pais dela são uns chatos. Se chega depois
da uma e meia, aborrecem-se e fazem uma cena dos diabos.
Gonzalo, Rocio e Joaquín saíram do Nirvana cheirando a fumo. Uma miúda ofereceu-lhes
flores à porta da discoteca. Gonzalo comprou uma rosa vermelha e deu-a a Rocio. Ela
abraçou-o e deu-lhe um beijo.
-
É por isso que te adoro, Gonza, porque sempre me fazes sentir especial - disse.
Entraram no carro de Joaquín.
-
O teu carro tem um cheiro esquisitíssimo - disse Gonzalo. - Parece um químico.
O carro ainda cheirava ao gás paralisante.
-
Deve ser a água-de-colónia de Stephanie - disse Joaquín, e riram-se os três.
Conta, conta - disse Rocio, esfregando as mãos. - Como correram as coisas com
aquela maluca?
-
Muito bem - disse Joaquín, e ligou o carro. - Levei-a até perto de casa.
-
Não me venhas com histórias - disse Gonzalo. - Saltaste-lhe para cima ou não?
-
Tentei, mas não deixou - respondeu Joaquín.
-
Que esquisito - disse Rocío. - É que Stephanie é uma loba conhecida.
Joaquín não perdoa, querida - disse Gonzalo. - Assim, com este ar de sonso é um
perigo público, não imaginas os estragos que faz.
-
Os sonsos são sempre os piores - disse ela.
Enquanto conduzia pela Avenida Pardo, Joaquín pôs uma cassette dos Mecano. Gonzalo e
Rocio cantaram juntos: sabiam todas as letras de cor. Pouco depois, chegaram a casa de
Rocio. Ela vivia com os pais numa rua sossegada de San Isidro.
-
Tchau, meninos - disse Rocio antes de descer do carro.
- Tchau, beleza - disse Joaquín, e deu-lhe um beijo na cara.
- Tchau, borracho - disse ela.
- Chega, não exagerem - disse Gonzalo.
Rocio desceu do carro, sorrindo. Gonzalo acompanhou-a até à porta de casa. Depois,
abraçou-a e beijou-a na boca.
- Tchau, amorzinho - disse-lhe. - Sonha comigo.
Rocio entrou em casa, Gonzalo regressou ao carro.
- Pronto - disse. - Vamos até ao teu apartamento?
- Não precisas de mo dizer duas vezes - disse Joaquín, e acelerou.
Ficaram calados. Gonzalo começou a acariciar-lhe uma perna.
- Deveríamos deitar-nos os três juntos - disse Joaquín.
- És um degenerado - disse Gonçalo a sorrir.
- Talvez, mas devia ser bestial.
- Não tenhas ilusÕes, meu parvo. Não partilho Rocio com ninguém.
Ao chegarem ao apartamento, fizeram amor. Joaquín não conseguia deixar de pensar em
Rocio enquanto Gonzalo se mexia por trás dele.
- É a última vez que fazemos amor - disse, quando acabaram.
- Que tens, parvalhão - perguntou Gonzalo, surpreendido. - Por que dizes isso?
- Simplesmente acho mal que faças esta safadice a Rocio.
- Que safadice? De que estás a falar?
- Disto. De ires para a cama um dia com ela e outro comigo.
- Qual é o problema, Joaquín? Não gostas de foder comigo?
- Claro que gosto. Adoro ir para a cama contigo. Sabes bem.
- Então?
- Lixa-me que a enganes desta maneira. Rocío não merece que a trates assim.
- Não a estou enganar, parvalhão. Mas também não preciso de lhe contar toda a verdade.
Não percebes que faço isso para a proteger?
- Perfeito. Se não lhe queres contar que és bissexual, não há problema, mas deixamos de
nos deitar juntos.
- E tu a dares-lhe. Já te expliquei que não entenderia, Joaquín. Que vontade que tens
sempre de estragar tudo.
Gonzalo levantou-se da cama e procurou a sua roupa na alcatifa. Estava aborrecido.
- Picas-te porque sabes que tenho razão - disse Joaquín. - Ficas lixado porque digo a
verdade. Ficas lixado quando te lembras de que és um mentiroso.
- Sabes uma coisa, Joaquín? A coca está a queimar-te o cérebro - disse
levantando a voz.
Gonzalo,
- Bestial, porque quando acabar de mo queimar vou poder trabalhar contigo numa
telenovela.
- És um filho da puta.
Gonzalo saiu do apartamento, bateu com a porta e foi apanhar um táxi na Avenida Pardo.
Uns momentos depois, farto de dar voltas na cama sem conseguir adormecer, Joaquín
regressou ao Nirvana. Acabou às seis da manhã na Costa Verde, com o nariz cheio de coca,
a jogar fulbito na praia.
Uma semana depois, Joaquín encontrou Rocio no Nirvana. Era uma quinta-feira. Rocio
estava sozinha. Abraçaram-se e deram um beijo na cara.
-
Vieste com Gonzalo? - perguntou ele.
Não, Gonza está em Miami - disse ela. - Foi acompanhar a mãe a fazer umas
comprinhas.
Ainda bem por ele, mas uma rapariga bonita como tu não deveria vir sozinha para
estes sítios, Rocio.
Não contes a Gonzalo, está bem? Já sabes como ele é ciumento. Se sabe disto,
mata-me.
Riram-se. Tomaram uma bebida. Dançaram umas cançÕes. Havia pouca gente. Nessa
noite era possível dançar no Nirvana sem ser entre cotoveladas e pisadelas.
Tenho um vinho excelente no meu apartamento - disse ele, quando se cansaram
de dançar. - Que tal irmos até lá um bocadinho?
-
Estupendo - disse ela.
Saíram do Nirvana. Chegaram ao edifício de Joaquín em menos de cinco minutos.
Não te deprime horrivelmente viveres sozinho? - perguntou ela, enquanto subiam
no elevador.
-
Por vezes - disse ele.
-
Eu não poderia viver sozinha - disse ela. - Preciso que me mimem.
Entraram no apartamento. Ele acendeu as luzes.
Espectacular! Exactamente do tipo Nove Semanas e Meia - disse ela, e sentou-se
num sofá de couro preto.
Ele abriu um vinho tinto, serviu dois copos, deu um a Rocío e um disco dos Gipsy Kings.
-
Nem imaginas como sinto a falta de Gonza - disse ela.
-
Ama-lo, não é?
Ficaram calados.
-
Já alguma vez lhe puseste os palitos? - perguntou ele.
-
Nunca, jamais - disse ela.
-
E ele a ti?
Ela bebeu um golo e cruzou as pernas. Vestia uns jeans bem justos.
Uma vez brigámos e ele saiu umas vezes com uma idiotazinha que frequentava o
mesmo ginásio, mas foi só para fazer ciúmes - disse. - Depois, fizemos as pazes e jurou-me
que não acontecera nada, que nem sequer tinham dado um beijo na boca. Somos os dois
super fiéis um ao outro.
-
Tenho de ir à casa de banho - disse ele.
Foi à casa de banho, deu uns snifes, olhou-se ao espelho e disse: "Somos os dois super
fiéis um ao outro... Vou fodê-la que é para não ser idiota." Quando voltou para a sala,
encontrou Rocio deitada no sofá, a ver televisão. Nesse momento, passaram a
propaganda de Jazmín e a cara de Gonzalo apareceu no ecrá.
-
Gonza, amorzinho, tenho montes de saudades tuas - disse Rocio.
A seguir, saltou do sofá, aproximou-se da televisão e beijou a imagem de Gonzalo.
-
Caramba, isso é que é amor - disse Joaquín, sorrindo.
Rocio apagou a televisão e estirou-se no sofá.
Ai, que bem me sinto - disse, suspirando. - Estou super descontraída. Este vinho
caiu-me lindamente.
Joaquín sentou-se ao lado de Rocio.
-
Estás linda - disse-lhe, e acariciou-lhe uma perna.
-
Obrigada - disse ela. - Deve ser pelo vinho que me achas mais bonita.
Ele aproximou-se dela e tentou dar-lhe um beijo. Ela não deixou.
-
Não, nem por sombras, não posso fazer isto a Gonza - disse.
-
Porquê? - perguntou ele. - Isto fica como que um segredo entre nós os dois.
-
Não - disse ela. - Nunca poria os palitos a Gonza.
-
Vá lá, não te faças difícil.
-
Não, Joaquín, nem por sombras.
-
Só um beijinho, Rocio. Damos um beijo na boca e mais nada.
-
Nada de beijos na boca. Eu não sou nenhuma loba como Stephanie.
Ele levantou-se e foi até à janela. Agora estava aborrecido. Queria vingar-se.
-
És muito tonta, Rocio - disse. - Gonzalo pÕe-te os palitos.
-
Por que dizes isso? - perguntou ela, surpreendida.
isso.
Porque sei perfeitamente que Gonzalo te pÕe os palitos e não sente remorsos por
-
E tu como sabes?
-
É melhor não me perguntares. Só te digo que tenho a certeza.
Ah, não, isto não fica assim - disse ela, pondo-se de pé e levando as mãos à cintura.
- Tens de me dizer com quem é que Gonza me pÕe os palitos.
-
Já tos pôs mais do que uma vez - disse ele.
-
Diz-me um nome - disse ela.
-
Por exemplo, comigo - disse ele, sem a olhar nos olhos.
-Contigo... como? - perguntou ela.
Gonzalo gosta de homens, Rocio - disse ele, falando lentamente e sentindo-se
cruel. - Há anos que Gonzalo se deita com homens.
Mentira - gritou ela. - Dizes isso por inveja. Estás despeitado porque não quero ir
para a cama contigo.
Não é mentira, Rocio - disse ele. - Acredita em mim, Gonzalo foi para a cama
comigo.
-
Mentiroso - gritou ela.
Depois, pegou num disco e partiu-o. Era o último disco dos Mecano.
-
Como te atreves a falar-me assim de Gonzalo, estúpido? - gritou.
Joaquín baixou-se e apanhou os pedaços do disco. Que pena que tenha escolhido logo os
Mecano, pensou.
-
Ainda um dia me hás-de agradecer por to ter dito - declarou.
Rocio atirou o copo pela janela. O som do vidro a partir-se lá em baixo, no pavimento,
ouviu-se com nitidez no apartamento do sétimo andar.
- Vou telefonar a Gonza agora mesmo - disse ela.
Abriu a carteira, retirou uma agenda, encontrou o número de Goti zalo em Miami e
telefonou-lhe. As mãos tremiam-lhe.
- Bom dia, minha senhora, sou Rocio - disse, tentando dissimular que estava bastante
alterada. Ao que parecia, fora a mãe de Gonzalo que atendera. - Desculpe-me por lhe
telefonar a estas horas. Gonza está por aí, por favor? Muito obrigado. Um beijinho.
Joaquín sentou-se no sofá e cruzou as pernas.
- Olá, Gonza - continuou Rocio. - Bem, bem, amorzinho. Na realidade, não estou lá muito
bem.
Agora chorava.
- Soriy por estar assim meio nervosa, Gonza, mas tinha de
falar contigo. Telefono-te porque Joaquín me disse, ai, nem me saem as palavras,
disse-me que és maricas e já foram para a cama os dois. É mentira, não é? Juras, Gonza? É
tudo uma invenção de Joaquín, não é verdade? Sim, é um verme, no mínimo. Eu sabia que
era mentira, amorzinho, sabia. Como podes pensar que vou acreditar nessas sujeiras? Eu
sei, Joaquín é um invejoso. Para que saibas que tipo de amigo tens, Joaquín tentou
saltar-me para cima aproveitando a tua ausência, para que vejas como é um verme. O que
acontece é que Joaquín é um maricas e julga que todos são maricas como ele. Soriy por te
telefonar a estas horas, Gonza, mas tinha de esclarecer isto. Quando a tua mãe não
estiver no quarto, telefona-me, para falarmos com calma, está bem? Amas-me? Eu
também te adoro, meu amor. Tchau, amorzinho, um beijinho no umbigo. Tchau, tchau.
Rocio desligou o telefone, saiu do apartamento sem dizer uma palavra, chamou o
elevador e desceu.
- Joaquín Camino é um maricas, uma louca perdida - gritou antes de entrar para o carro.
Meteu-se no seu flamante Amazon vermelho e partiu a toda a velocidade.
Desde essa noite, Gonzalo e Rocio deixaram de falar a Joaquín. Como em Lima as pessoas
sempre se encontram, os três voltaram a cruzar-se no Nirvana, mas eles preferiram
ignorá-lo. Uns meses depois, Joaquín estava num quiosque a folhear os jornais quando leu
que Gonzalo ia casar com Rocio ("Galã Gonzalo Guzmán dá o nó com a
sua Amada", dizia o título). Joaquín não foi convidado para o casamento. No entanto,
mandou aos noivos como presente o último disco dos Mecano. Uns dias mais tarde, o
presente veio devolvido, juntamente com um cartão.
"Mete o disco no cu", dizia o cartão. Era assinado por Rocio.
A CONQUISTA DE MADRID
às seis em ponto da tarde, Joaquín chegou a casa dos pais de Juan Ignacio, uma velha
mansão de Miraflores, tocou à campainha e anunciou-se pelo intercomunicador. Um
mordomo abriu-lhe a porta, fez-lhe uma vénia, levou-o para uma sala e foi avisar Juan
Ignacio que tinha uma visita. Juan Ignacio não tardou a descer.
-
Caramba, Sr. Camino, parece que para si os anos não passam - disse, sorrindo.
Juan Ignacio e Joaquín deram um aperto de mão.
- Olá, Juan - disse Joaquín. - Também estás com um aspecto estupendo.
Havia dois ou três anos que não se viam. Tinham-se conhecido na Universidade Católica,
quando ambos estudavam Direito. Juan Ignacio acabava de regressar de Washington,
onde terminara um mestrado em Ciências Políticas.
-
Senta-te, senta-te - disse, apontando para um velho sofá de couro.
Sentaram-se. Cruzaram as pernas. Sorriram.
-
E então? Como achaste Lima? - perguntou Joaquín.
Juan Ignacio suspirou, como se tivesse preferido não falar disso. Era alto, magro, de cabelo
preto, cara alongada e olheiras marcadas. Tinha um ar de príncipe.
-
Esta cidade é uma merda - disse. - Não fico cá por nada deste mundo.
-
Caramba. Foi um choque assim tão grande voltares?
Estou traumatizado, Joaquín. Chegar aqui, depois de ter passado uns anos lá fora,
é um choque do caraças. Quando vives aqui, não te apercebes da espantosa mediocridade
de Lima, mas, quando vens do estrangeiro, é um choque brutal.
- É a sério que estás a pensar em ir-te embora?
- Sim, vou-me embora daqui seja como for e quanto antes, melhor. Este país não tem
remédio, Joaquín. Tudo vai continuar a piorar. O Peru é uma merda e isso não vai mudar
em cem mil anos.
Uma empregada negra entrou na sala com um tabuleiro onde trazia chá de tangerina,
bolachas de chocolate e caramelos importados. A mulher pousou o tabuleiro na mesa e
retirou-se, caminhando nas pontas dos pés. Juan Ignacio serviu o chá e continuou a falar.
- Tens de compreender que este é um país bárbaro, Joaquín - disse, e bebeu o chá. - Este é
um país cheio de gente vulgar, incivilizada. Ainda que isso nos custe, este país é um sítio
em decadência permanente, onde as pessoas acabam por se habituar ao caos, ao horror,
à violência. É preciso partir daqui quanto antes, porque o perigo reside em
habituarmo-nos à mediocridade do Peru.
Juan Ignacio parecia muito convencido do que dizia.
- Não sei, Juan - disse Joaquín. - Em todo o caso, acho uma pena que te tenhas zangado
com o teu país.
- Não, eu não poria as coisas nesses termos - disse Juan Ignacio, exibindo um sorriso um
pouco arrogante. - Eu diria antes que o Peru é um país de perdedores e que eu sou um
vencedor. E por isso quero ir daqui para fora, porque este país é pequeno para mim.
Ficaram calados. Comeram umas bolachas.
- E para onde irias? - perguntou Joaquín.
- Creio que para Espanha - respondeu Juan Ignacio.
- Estupendo. Espanha é um grande país.
- Pois é. Além disso, como os meus pais nasceram em Espanha, felizmente tenho
passaporte espanhol.
- Caramba, que inveja, Juan, que sorte que tens. Sempre sonhei viver em Espanha.
- Por que não vamos embora juntos, Joaquín? Tenho a certeza de que triunfarias lá.
-
Achas? A mim parece-me muito difícil.
- Anima-te, homem. Não sejas pusilânime.
- Difícil, muito difícil, Juan. Aqui tenho os meus amigos, a minha familia. Lá, não conheço
ninguém.
Juan Ignacio abanou a cabeça, como que se desaprovasse essa atitude.
- Tu lá sabes, tu lá sabes - disse. - Mas, com o tempo, vais aperceber-te de que te
enganaste quando decidiste ficar no Peru.
A seguir falaram das notícias políticas de Lima, de certos amigos comuns e das oito
namoradas que Juan Ignacio dizia ter tido em Washington.
Uma semana depois, numa manhã de Agosto, Juan Ignacio foi a Madrid. Antes de tomar o
avião no aeroporto de Lima, telefonou a Joaquín.
- Se regressar ao Peru, será como passageiro em trânsito - disse-lhe; e riram-se.
Joaquín mal teve tempo de lhe desejar sorte, porque Juan Ignacio lhe disse que estavam a
embarcar.
Em Dezembro desse ano, Juan Ignacio regressou a Lima, para passar o Natal com a família.
Uns dias depois, telefonou a Joaquín e combinaram ir lanchar juntos na Tiendecita Bíanca.
Joaquín chegou ao encontro dez minutos antes da hora combinada. Para sua surpresa,
Juan ignacio já estava à sua espera, a ler um exemplar da Esquire. Ao vê-lo, fechou a
revista e levantou-se. Deram um aperto de mão, sorrindo. Depois, sentaram-se e pediram
duas águas minerais.
- Como sempre, estás com um aspecto estupendo, Juan - disse Joaquín.
- Faz-se o que se pode, faz-se o que se pode - disse Juan Ignacio, simulando uma certa
humildade.
- Conta-me como te correram as coisas em Espanha. Estou morto de curiosidade.
Juan Ignacio falou lentamente.
- Bem, a princípio foi duro, mas o pior já passou - disse. - Para ser franco, quando cheguei
a Madrid, senti-me meio perdido. Estive umas semanas num hotelzinho da Gran Via. Esse
foi o período mais lixado. Chegou a haver momentos em que pensei dar o jogo por
terminado e voltar para Lima, mas não desisti. Agora mudei-me para uma pensão de
peruanos e já consegui um emprego como vendedor de seguros.
- Não me digas. E estás contente com esse trabalho?
- Bem, não creio que vender seguros seja a minha vocação, mas, pelo menos, sempre é
um começo, não achas?
- Claro, claro. E não preferirias estar em Lima a trabalhar numa coisa que te agradasse?
Juan Ignacio soltou um risinho trocista.
- Não, homem, não, de modo nenhum - disse. - Que poderia estar a fazer em Lima?
Trabalhar como advogado num país onde a lei não vale nada? Sobreviver miseravelmente
como jornalista? Escrever um romancezeco, para que seja lido por cem ou duzentas
pessoas e me digam que sou uma jovem promessa? Não, Joaquín, é preciso ter metas
mais elevadas.
Agora Juan Ignacio parecia um pouco irritado.
- Compreendo, compreendo - disse Joaquín. - E quais são as tuas metas lá?
- Bem, gostaria de ter um bom emprego, ganhar muita massa e ter todas as comodidades
que uma cidade como Madrid te oferece e que em Lima, com terrorismo, cólera, falta de
água e cortes de electricidade de cinco em cinco minutos, não podes ter, ainda que sejas
milionário.
- Tens razão, Juan. Aqui, os milionários estão lixados porque vivem fechados, cheios de
guarda-costas.
- Além disso, em Lima nada muda, Joaquín. É como se o tempo estivesse congelado.
Vais-te embora, voltas passado um tempo e tudo continua igualzinho. Repara nos
empregados da Tiendecita Bíanca: as mesmas caras de há quinze, vinte anos. Em Lima, as
pessoas estagnam. Quando alguém consegue um emprego é como se tivesse conseguido
um nicho: ali fica.
- Achas que estou a estagnar, Juan?
- O que acho é que deverias sair do Peru quanto antes, Joaquín. Estás a desperdiçar-te,
homem. Tens de aceitar um facto irreversível: nós, os brancos, os que éramos donos deste
país, estamos de saída, vivemos fechados e cada vez somos menos. Os mestiços estão a
expulsar-nos pouco a pouco. É normal, tinha de ser assim. Os mestiços são a maioria. São
eles os donos deste país.
- Mas, se me for embora, o que faço em relação ao meu emprego? Ao meu apartamento?
- Despede-te e vende as tuas coisas, homem. Acaba com tudo. Mete-te no teu navio e
levanta ferro. Rompe de uma vez com o Peru e vamos embora depois do Natal. Anima-te,
não sejas pusilânime. Quem não arrisca, não petisca.
Então, Joaquín deixou-se contagiar pelo optimismo de Juan Ignacio.
- Bem, está combinado - disse - Vamos os dois para Madrid.
- Magnífico - disse Juan Ignacio, sorrindo. - Não te hás-de arrepender, Joaquín. Vais ver
que Deus te há-de ajudar, porque a história de Deus ser peruano é uma das piores
calúnias que se disse sobre Deus.
Riram-se. Pediram a conta.
Em menos de duas semanas, Joaquín despediu-se do seu emprego e vendeu o
apartamento. Depois de ter passado o Natal com a família meteu-se com Juan Ignacio
num avião que os levaria para longe do Peru. Não pensavam voltar a Lima tão cedo.
Ah, que maravilha, a terra das oportunidades, o país da liberdade - disse Juan
Ignacio, suspirando.
Estava sentado ao lado de Joaquín, na praia de Key Biscayne. Tinham decidido passar uns
dias em Miami, antes de seguirem para Madrid. Tinham-se instalado no apartamento que
os pais de Juan Ignacio tinham em Key Biscayne.
- Os Estados Unidos da América, o melhor país do mundo - disse Juan Ignacio. - Como
gostaria de ter nascido aqui, no país da liberdade. Se pensares bem, vês que tivemos um
azar do caraças nacermos no Peru.
-
Estou de acordo - disse Joaquín.
Sabes que mais? Nestes dias que passamos em Miami, devemos falar apenas em
inglês.
-
Esquece, Juan. O meu inglês é muito mau.
Que pena, porque falar inglês é tão agradável que até nos sentíamos umas pessoas
melhores.
Riram-se. Juan Ignacio levantou-se e sacudiu a areia do corpo. Odia estava esplêndido. Um
sol tímido acariciava a pele.
Vou dar um passeiozinho - disse. - Quero alegrar a vista com tantas raparigas
bonitas.
Afastou-se, caminhando em passos lentos pela beira-mar. Joaquín ficou a ver um
exemplar de Vanity Fair. Não lia os artigos. Só via Os artigos onde apareciam rapazes e
raparigas giros.
- Joaquincito, que surpresa, não sabia que estavas por aqui - ouviu, de repente.
Levantou os olhos e deu de caras com a sua tia Mimi. Era uma mulher baixa, sardenta e
nariguda. As amigas chamavam-lhe Borrachinho.
-
Olá, tia Mimi, que prazer em vê-la - disse Joaquín.
Levantou-se e tentou dar-lhe um beijo na face, mas ela impediu-o delicadamente.
É melhor não me dares um beijinho, porque estou com a cara cheia de creme disse. - Quando chegaste, Joaquincito?
- Ontem à noite. E a tia?
- Ai, filho, se tu soubesses, o teu tio e eu viemos no dia a seguir ao Natal. Não sabes como
o convenci a subir para o American. É uma história divina. Um dia em que, para variar,
estávamos sem água em Lima, disse-lhe, Al (Já sabes que não lhe chamo álvaro, mas sim
Al), disse-lhe, Al, preciso de tomar um duche de água quente durante meia hora, não
aguento mais, sinto-me uma porca imunda, vamos até Key Biscayne; e o teu tio achou tão
engraçado vir a Miami só porque queria tomar duche que me disse está bem, Mi, pega já
nos passaportes, vamos no primeiro American, e foi assim que viemos os dois perdidos de
riso. Que achas, não é cómico?
- Engraçadíssimo - disse Joaquín, rindo-se também. - É um ponto, tia.
- Ai, filho, não imaginas que alivio sair do inferno de Lima. A verdade é que estou farta,
farta até à ponta dos cabelos, dos cortes de electricidade e das bombas e dos mestiços
que cheiram mal como a peste.
- E como está o tio?
- Gordo, gordíssimo como uma bola, mas feliz. Agora deve estar na piscina de Key Colony,
que é onde temos o apartamento. Aparece quando quiseres.
Mimi tirou o chapéu de palha e usou-o para se abanar.
- Ai, que calor atroz - murmurou. - Bem, conta-me lá que planos tens para esta noite,
Joaquincito?
Era o último dia do ano. Os jornais de Miami estavam cheios de festas latinas.
- Ainda não sei - disse Joaquín. - Estou no apartamento de um amigo e ele é super pacato.
A verdade é que não pensávamos fazer nada de especial.
Mimi abriu a boca, surpreendida.
Ai, que horror, não sejam monos, filho - disse, numa voz pouco estridente. - Como
se podem deitar cedo na véspera de ano novo e ainda por cima estando em Miami? Não,
Joaquincito, isso será um crime. Por que não aparecem à noite no Sonesta? Há uma festa
que vai ser linda. Todos os peruanos tambem vão estar ali.
-
Não fazia ideia. Parece excelente, tia.
Claro, convence o teu amigo, Joaquincito. Olha que além disso, vai lá estar um
monte de raparigas espectaculares.
Joaquín esfregou as mãos e pôs uma cara maliciosa.
-
Ah, então, nem pensar - disse. - Seja como for, vemo-nos à noite, tia.
Mimi riu-se, fazendo uma careta.
Ai, filho, não me faças rir, que fico com rugas na cara - disse. Bem,
tchauzinho. Vejo-te à noite no Sonesta e não apanhes sol, que agora a moda é estar
branco como se se fosse albino.
Depois, afastou-se com cuidado, porque havia alforrecas.
Essa noite, a última do ano, Juan Ignacio e Joaquín chegaram Hotel Sonesta de Key
Biscayne pouco depois das onze.
Como me sinto um vencedor quando me visto bem - disse Juan Ignacio olhando-se
ao espelho do carro que tinham alugado em Miami. - Comprar boa roupa e vestir bem são
duas coisas que me elevaram o moral.
-
Estás muito bem - disse Joaquín. - Pareces um modelo de GQ.
- Nem tanto, nem tanto - disse Juan ignacio, sorrindo. - Mas estamos tão bem vestidos
que nem parecemos peruanos.
Estacionaram o carro em frente do hotel, compraram as entradas e passaram ao salão
onde se celebrava a festa peruana. Era um salão grande, alcatifado, com um terraço em
frente da praia. Havia bastante gente, cerca de duzentas pessoas. Quase todas estavam
sentadas, a comer. Os homens usavam casaco e gravata. As mulheres, fatos escuros. Num
estrado, uma orquestra tocava música das Caraíbas. Todos os músicos estavam vestidos
de branco. Ninguém se tinha ainda animado a dançar.
-
Caraças, isto parece a sala de jantar do Clube Nacional, numa sexta-feira à noite.
- Sentemo-nos já aqui, pois não quero encontrar os meus tios - disse Joaquín.
Sentaram-se numa mesa e pediram águas minerais com limão. Pouco depois, alguns pares
foram para a pista dançar.
- Há uma quantidade de jovenzinhas que estão como querem - disse Juan Ignacio olhando
para uma das mesas vizinhas, onde um grupo de raparigas conversava com bastante
animação.
Joaquín notou que havia muitas raparigas com vestidos de cores chamativas, como fúcsia,
verde-alface e amarelo-fosforescente. Algumas tinham uma flor presa no cabelo.
- Acho que vou convidar para dançar uma rapariga que me está a fazer olhinhos.
- Bom proveito - disse Joaquín.
Juan Ignacio levantou-se, aproximou-se de uma mesa, falou com uma rapariga que
Joaquín achou bastante feia e foi dançar com ela. Joaquín passou a mão pelo cabelo e
sentiu que estava gorduroso. Seguindo um conselho de Juan Ignacio, penteara-se com gel
antes de ir para a festa. Arrependido de ter posto gel, levantou-se e foi à casa de banho,
para tentar arranjar o cabelo. Ao entrar na casa de banho do hotel, ficou surpreendido ao
deparar-se-lhe um tipo que ainda há pouco tempo fora ministro no Peru. Fazia caretas e
não parava de falar. Parecia muito nervoso.
Querem matar-me, querem matar-me, estou na lista negra, sei que me querem
matar - gritou. - Mas a mim não me agarram aqueles filhos da puta; primeiro, queimo-os a
todos, desfaço-os um a um.
A seu lado, dois ou três rapazes fingiam escutá-lo com interesse.
O ex-ministro ofereceu-lhes um pouco de coca. Eles deram uns snifes e continuaram a
ouvi-lo. Depois de urinar, Joaquín aproximou-se do ex-ministro.
Antes do mais, permita-me que o felicite pela sua gestão, senhor ministro disse-lhe.
Obrigado, rapaz, mas temos de estar alerta porque a qualquer momento aparecem
aqueles filhos da puta que me querem matar - disse o ex-ministro.
Era um homem calvo, olheirento, de meia idade. Estava a suar. Tinha a cara tensa. Parecia
muito preocupado.
Quer ter a amabilidade de me convidar para uns balázios, senhor ministro? - disse
Joaquín.
- Porra, com muito prazer - disse o ex-ministro.
A seguir, puxou de uma pistola e apontou para a testa de Joaquín.
- Pum, pum - gritou.
Joaquín empalideceu. O ex-ministro soltou uma gargalhada e guardou a pistola. Os
rapazes que estavam a seu lado riram ruidosamente.
- Não me disseste que querias uns balázios? - perguntou o ex-ministro.
-
Essa teve muita graça - disse Joaquín.
Então, sem deixar de fazer caretas, o ex-ministro tirou uma caixinha cheia de cocaína e
ofereceu-a a Joaquín.
-
Dou-ta se me disseres qual foi a minha pasta ministerial - disse.
-
Ministro da Agricultura - disse Joaquín, sem hesitar. - O melhor da nossa história.
O ex-ministro sorriu, orgulhoso.
- Este rapaz tem futuro, porra - disse e deu-lhe a caixa com coca.
Joaquín aspirou toda a coca que conseguiu e devolveu a caixa ao ex-ministro.
- Se vires alguém com ar suspeito, avisa-me, okay? - pediu-lhe o ex-ministro.
- Com certeza - disse Joaquín.
A seguir, saiu da casa de banho e olhou para o relógio: faltava pouco para a meia-noite.
Juan Ignacio continuava a dançar. Quando voltava para a mesa, viu que os seus tios Mimi
e álvaro lhe faziam sinais para que se aproximasse. Resignado, foi cumprimentá-los.
- Olá, meu velho, que prazer em ver-te, caramba - disse-lhe o seu tio álvaro.
Era um homem baixo e rechonchudo, que enriquecera a criar porcos a sul de Lima.
Joaquín abraçou o tio e deu um beijo à tia.
- Linda festa, não acham? - disse.
- Como as que havia em Lima antes da invasão dos mestiços - disse Mimi.
- Mimi, por favor, não fales assim - disse álvaro. - No Peru todos temos um pouco de
sangue índio.
- Isso é que não, Al - disse Mimi, ofendida. - Eu não tenho nem uma gotinha de sangue
índio.
- Vem, Joaquincito, vem comigo até lá fora, pois preciso de apanhar um pouco de ar disse álvaro.
Então, deu uns passos em direcção ao terraço, embateu na porta de vidro e retrocedeu, a
cambalear.
- Porra, não vi o vidro, pensei que a porta estava aberta - disse, como que falando consigo
próprio.
Fizera uma ferida na testa. Sangrava.
- Al, por amor de Deus, que fizeste? - gritou Mimi. - Joaquincito, corre, chama uma
ambulância.
- Não sejas exagerada, Mimi, não é nada, só tenho um galo - disse álvaro. - Vem, sobrinho,
acompanha-me à casa de banho para deitar um pouco de água nisto - acrescentou,
apoiando-se em Joaquín.
- Já vês, Al - disse Mimi, aborrecida. - Isto só aconteceu porque abusas dos martinis.
- Só tomei quatro e tu já vais no sexto gim tónico, Borrachinho - disse Alvaro.
- Odeio-te quando me chamas Borrachinho - disse Mimi. - Odeio-te.
Procurando não chamar a atenção das pessoas, Joaquín e seu tio álvaro foram à casa de
banho. Assim que entraram, deram de caras com o ex-ministro.
- Que se passa, porra? - gritou o ex-ministro, apontando para eles.
Ao ver a cara ensanguentada de álvaro, assustou-se ainda mais do que já estava.
-
Calminha, vá lá, guarde a sua arma - disse-lhe álvaro.
-
Tirem a arma a esse doido de merda - gritou alguém na casa de banho.
- Não aconteceu nada, senhor ministro - disse Joaquín. - O meu tio feriu-se num vidro e é
por isso que tem a cara cortada.
- Querem matar-me, querem matar-me - disse o ex-ministro, mordendo os lábios,
angustiado.
- Oiça lá, tenha calma - disse álvaro, pondo água na cara. - Aqui somos todos amigos. As
divergências políticas pÕem-se de lado, no estrangeiro.
- Já é meia-noite - gritou alguém na casa de banho. - Feliz Ano Novo!
De repente, o ex-ministro levou uma mão ao peito e começou a cantar o hino nacional do
Peru. Imediatamente a seguir, Joaquín, seu tio álvaro e os outros peruanos que estavam
na casa de banho do Sonesta uniram-se ao ministro e também cantaram o hino nacional.
Apesar de não ser 28 de Julho, foi, para todos eles, um momento de grande emoção
patriótica.
São horas de irmos embora - disse Juan Ignacio, à uma e pico da manhã. - É preciso
saber sair a tempo de uma festa e isto está a começar a degenerar.
Juan Ignacio e Joaquín saíram do Sonesta tão bem penteados como tinham chegado.
Joaquín preferiu não se despedir de seus tios álvaro e Mimi.
- Estes peruanos de Miami vestem roupa boa e cheiram bem, são terrivelmente
aborrecidos - disse Juan Ignacio, dirigindo-se ao estacionamento do hotel. - Nunca leram
um livro na puta da vida. A única coisa que estes snobs lêem é a Hola. Nem sequer lêem a
Caretas. No máximo, dão uma vista de olhos às fotografias de Elías e Elías - acrescentou, e
riram-se.
Meteram-se no carro. Joaquín conduziu. Juan Ignacio não sabia guiar. Já tinha vinte e oito
anos, mas nunca tentara aprender a conduzir. Em Lima, estava habituado a que o
motorista dos pais o levasse a todo o lado. Joaquín guiou devagar, em silêncio. As ruas de
Key Biscayne estavam vazias. Em menos de cinco minutos chegaram ao apartamento dos
pais de Juan Ignacio.
- Ai, que tranquilidade estar longe do Peru - disse Juan Ignacio, tirando o casaco e a
gravata, assim que entrou no apartamento. - Imaginas o que seria estar agora em Lima,
Joaquín? Devem estar todos às escuras a ouvir os carros armadilhados com bombas a
rebentarem - acrescentou, e soltou uma gargalhada.
Joaquín sentou-se na sala e ligou a televisão. Continuava um pouco inquieto, devido à
coca que aspirara na casa de banho do Sonesta. Ignacio entrou na casa de banho, vestiu
um pijama azul-celeste e pôs cremes na cara. Antes de se meter na cama, veio despedir-se
de Joaquín.
- Bem, até amanhã, Joaquín - disse. - E que este ano se realizem os teus maiores desejos.
Antes, tinham combinado que Juan ignacio dormia na cama de água dos pais e Joaquín, no
sofá-cama da sala.
- Até amanhã, Juan.
Juan Ignacio entrou no quarto, fechou a porta e apagou a luz. Joaquín estendeu-se no
sofá-cama da sala e continuou a ver televisão. Uns momentos depois, demasiado nervoso
para conseguir adormecer, entrou no quarto e sentou-se na cama de água, ao lado de
Juan Ignacio.
Que tens? - perguntou Juan Ignacio, surpreendido, e acendeu a luz da
mesa-de-cabeceira.
Juan, há uma coisa que nunca te disse e quero aproveitar o começo de um novo
ano para ta dizer - disse Joaquín, falando lentamente.
Juan Ignacio sentou-se na cama.
- Caramba, sou todo ouvidos - disse, cruzando os braços.
Então Joaquín atreveu-se a dizer-lhe o que lhe ocultara desde que se tinham conhecido na
Católica.
Já que vamos viver juntos em Madrid, parece-me importante que saibas que sou
homossexual - disse-lhe, olhando-o nos olhos.
Juan Ignacio acenou com a cabeça em sinal afirmativo e ficou calado. Não fez o menor
gesto de surpresa. Joaquín não conseguiu tolerar o silêncio. Continuou a falar.
- Todo este tempo em que fomos amigos, não me tinha atrevido a dizer-te isto, mas tu és
um dos meus melhores amigos, Juan, e acho que me vou sentir muito mais à vontade
contigo se souberes que sou homossexual - disse.
Juan Ignacio falou com uma voz calma, como se o assunto não tivesse importância de
maior.
Com todo o afecto, parece-me que cometes um erro quando te pÕes uma
etiqueta, Joaquín - disse. - A sexualidade das pessoas muda, evolui. Com o tempo,
certamente irás superar as dúvidas que hoje tens.
- Não são dúvidas, Juan. Tenho a certeza do que te digo.
- Estás a atravessar um estado de confusão temporário, Joaquín. Acredita. Digo-to por
experiência própria. A certa altura, também tive dúvidas desse tipo, mas foi só um
momento de confusão, que consegui superar fortalecendo a minha fé em Deus e nos
princípios morais que os meus pais me ensinaram.
- A sério que achas que estou confuso, Juan?
Agora, Joaquín sentia-se mais confuso do que antes de ter falado com Juan Ignacio.
Claro, Joaquín - disse Juan Ignacio. - Tu és um vencedor, um vencedor nato, e os
vencedores não se podem permitir desvios desse tipo.
- Então que me aconselhas?
- Que sublimes esses desejos errados, que canalizes essas energias negativas de outro
modo. Tudo está na cabeça, Joaquín, absolutamente tudo se controla com a cabeça.
- Mas, se me reprimir toda a vida, serei muito infeliz, Juan.
- Pelo contrário, pelo contrário. Se aprenderes a controlar esses impulsos nocivos vais
sentir-te muito bem. Os homossexuais são sempre uns perdedores, Joaquín. Tu não és um
perdedor. Tu és um vencedor. Além disso, pensa na tua mãe. Pensa no mal que lhe farias.
Não tens o direito de fazer uma coisa dessas à tua mãe.
Joaquín sentiu que Juan Ignacio não o compreendia e nunca o iria compreender.
Arrependido de lhe ter contado o seu segredo, levantou-se.
- O melhor é esqueceres o que te disse, Juan - disse. - Desculpa-me por te ter
interrompido.
A seguir, tentou dar-lhe um beijo na cara, mas Juan Ignacio impediu-o.
- Até amanhã, Joaquín - disse, com uma voz cortante.
Joaquín saiu do quarto, fechou a porta e estendeu-se no sofá-cama. Sobre o mar de Key
Biscayne continuava a resplandecer um colorido fogo-de-artifício.
Uns dias depois, numa manhã fria de Janeiro, Juan Ignacio e Joaquín chegaram à pensão
de Madrid onde aquele tinha um quarto alugado. Carregando várias malas, entraram num
velho edifício na Avenida Mediterráneo e tocaram à campainha de um apartamento do
segundo andar. Estavam exaustos. A viagem de avião fora esgotante. Só queriam tomar
um duche quente e deitar-se a dormir. Tiveram de tocar várias vezes à campainha. Por
fim, um tipo barbudo abriu-lhes a porta. O tipo estava de roupão e pantufas.
- Olá, Paco - disse-lhe Juan Ignacio, e estendeu-lhe a mão.
- Olá, Juanto - disse o tipo, sorrindo.
Era o dono da pensão. O seu hálito tresandava a álcool.
- Este é Joaquín, um amigo peruano - disse Juan Ignacio.
Paco estendeu a mão a Joaquín.
-
Entrem, entrem - disse.
Entraram os três na pensão.
- Vão desculpar-me, mas tenho uma convidada no meu quarto - disse Paco, baixando a
voz.
- Vai à tua vida - disse Juan Ignacio. - E bom proveito.
Paco sorriu, foi para o quarto e fechou a porta.
- Um verdadeiro coelhinho e, além disso, bebedolas, como todos os espanhóis - disse Juan
Ignacio a Joaquín, em voz baixa, e riram-se os dois.
Em seguida, entraram no quarto de Juan Ignacio. Era um compartimento pequeno, com o
chão de madeira. Havia uma cama, uma mesa e um retrato da Virgem.
- Como vês, não é uma suite, mas a renda é barata - disse Juan Ignacio.
-
Está óptimo, Juan - disse Joaquín. - Pelo menos temos onde dormir.
Pousaram as malas. Sentaram-se na cama.
- Estou moído - disse Juan Ignacio; e bocejou.
- Fala-me de Paco - pediu Joaquín.
- Ah, o bom Paco, um perdedor nato - disse Juan Ignacio, com um sorriso trocista. - Paco
vivia em Lima. Era administrador de uma fábrica de licores. Os pais dele são espanhóis.
Creio que têm um restaurante de comida espanhola em Barranco. Aqui são gente da
classe média baixa, mas no Peru conseguiram juntar um dinheirinho a vender arroz à
valenciana aos otários. Um bom dia, Paco pegou no passaporte espanhol e veio para
Espanha. Afinal de contas, não tinha nada a perder, pois não? No Peru andava a
vagabundear. Quando chegou, o bom do Paco passou os primeiros meses a viver do
subsídio de desemprego, a comer leite-creme e a ver telenovelas venezuelanas. Agora
conseguiu um empregozeco numa agência de viagens, uma coisa muito insignificante,
como imaginarás.
- E como tem esta pensão?
- Este apartamento é do pai dele, mas o velho vive em Lima e o malandro do Paco aluga
dois quartos, sem o velho saber. É assim que Paquito se defende, com a renda dos quartos
e o subsídio de desemprego que continua a receber do Estado espanhol, apesar de já ter
conseguido trabalho.
-
E quem é o inquilino do outro quarto?
- Ah, a índia, tens de a conhecer - disse Juan Ignacio, rindo-se. - É uma indígena da selva
peruana. A índia trabalha como empregada doméstica. Todos os dias vai com as suas
escovas e panos para diferentes sítios de Madrid. É uma bruxa de alto lá com ela. Tens de
tratá-la bem porque senão deita-te um mau-olhado e lixa-te para sempre. No quarto tem
bonecos esquisitos e ervas da Amazónia.
Riram às gargalhadas.
- Como se chama a índia? - perguntou Joaquín.
- Rosaura - disse Juan Ignacio. - Um nome perfeito para uma empregada, não achas?
- E ela dorme sozinha ou partilha o quarto com alguém?
- Tem uma amiga peruana, outra perdedora, que por vezes vem dormir com ela. É uma
gorducha, bastante escurinha. Em Lima, poderia ser tua empregada ou minha. Esta
gordinha trabalha como limpadora de piscinas, porque eu perguntei-lhe de caras,
perguntei-lhe, limpas a piscina mergulhando ou quê, e ela disse-me, não, como podes
pensar uma coisa dessas, nem sequer sei nadar, primeiro esvaziamos a piscina e depois eu
desço e limpo-a, é de morrer a rir.
- Limpadora de piscinas, é de morrer a rir.
- Sim, e acho que essa gordinha tem um caso com a índia. Devem ser fufas as duas nativas,
devem bater pratos, porque, quando a gordita fica a dormir com a índia, ouvem-se uns
risinhos e uns arquejos muito estranhos. De certeza que se aquecem as duas.
Riram à gargalhada. Estavam estendidos na cama.
- Ouve, Juan, e eu onde vou dormir? - perguntou Joaquín.
- Não sei - disse Juan Ignacio. - Temos de sair e comprar uma cama desdobrável ou uma
coisa do género. Acho que aqui em frente há uma loja que vende camas.
- O melhor é irmos já, não achas?
- Que preguiça. Bem, vamos lá, eu acompanho-te.
Levantaram-se, sairam da pensão e descobriram que, a meio quarteirão dali, havia uma
loja de camas e colchÕes. Sem pensar duas vezes, entraram na loja. Depois de consultar
os preços, Joaquín comprou a cama mais barata.
- Agora é que me sinto um perfeito sul-americano - disse, enquanto regressava a pé à
pensão, com a cama desdobrável debaixo do braço.
*
-
Merda, não consigo dormir - disse Juan Ignacio.
- Eu também não - disse Joaquín. - Está um frio do caraças.
Era a primeira noite que passavam em Madrid. Estavam sem sono, devido à diferença de
fusos horários. Ouviam os barulhos da rua. Joaquín tinha frio. Esquecera-se de comprar
lençóis e cobertores. Estava tapado com os seus casacos de malha e camisolas.
- De certeza que o idiota do Paco não pagou a conta do gás e que lhe cortaram o
aquecimento - disse Juan Ignacio.
- Merda, nunca pensei que fosse estar tanto frio - disse Joaquín.
Ficaram calados.
- Se quiseres, mete-te um bocado na minha cama, para aqueceres Ignacio.
disse
Juan
- Não, é melhor não - disse Joaquín. - Não quero incomodar-te.
- Não incomodas nada, homem. Tenho duas mantas. Deita-te um bocado aqui. Se não,
constipas-te.
- De certeza que não te incomodo, Juan?
- De certeza, homem, de certeza.
Joaquín mudou-se para a cama de Juan Ignacio.
- Não te preocupes que não vai acontecer nada - disse, acomodando-se na cama, sem
tocar em Juan Ignacio.
- Já sei, homem, não precisas de mo dizer - disse Juan Ignacio.
Ficaram calados.
- Que diferença, aqui dentro está quentinho - disse Joaquín.
- Odeio as viagens tão compridas - disse Juan Ignacio. - Quando for milionário, vou voar
sempre de Concorde.
Ficaram de novo em silêncio.
- Tu rezas sempre antes de adormecer? - perguntou Joaquín.
Antes de se meter na cama, Juan Ignacio benzera-se, fechara os olhos e permanecera uns
minutos em silêncio.
- Sempre - respondeu Juan Ignacio. - Todas as noites rezo um pai-nosso, três ave-marias,
um acto de contricção e a oração da estampinha de monsenhor Escrivá. Suponho que
também rezas, não é assim?
- Não, nunca rezo - disse Joaquín. - Só rezo nos aviÕes, quando descolam e quando
abanam muito.
- Homem, isso está errado, Há que estar perto de Deus nos bons e nos maus momentos.
Rezemos juntos um pai-nosso, para que o Senhor nos mostre o caminho aqui em Madrid.
Deitados na cama, Juan Ignacio e Joaquín rezaram um pai-nosso em voz alta.
- Rezar não custa nada e assim dorme-se mais sossegado - disse Juan Ignacio, quando
acabaram de rezar.
- Tens razão - disse Joaquín, sorrindo.
- A outra coisa que deves fazer antes de te meteres na cama é um creme para as rugas.
- Ah, sim?
-
Sim. Olha, passa-me esse boiãozinho que está aí.
Joaquín pegou num boião que estava em cima da mesa-de-cabeceira e deu-lho. Era um
creme hidratante. Juan Ignacio abriu-o e pôs um pouco de creme na cara de Joaquín.
Todas as noites pÕes um pouco no nariz, um bocadinho na testa, e sobretudo aqui,
por baixo dos olhos e ao lado da boca, que é onde as rugas ficam mais marcadas disse-lhe, espalhando cuidadosamente o creme na cara de Joaquín. - Pronto, vais ver
como chegamos aos cem anos inteirinhos.
Em seguida, pousou o creme na mesa-de-cabeceira, virou as costas a Joaquín e fechou os
olhos.
-
Agora, sim, até amanhã - disse.
-
Até amanhã - respondeu Joaquín.
Uns minutos depois, Joaquín ouviu Juan Ignacio soluçar.
-
Estás a dormir, Juan? - perguntou.
-
Não - disse Juan Ignacio.
-
Que tens?
-
Nada, nada.
Joaquín acariciou a cabeça de Juan Ignacio.
-
Sossega - disse. - Tudo vai correr bem.
Não sei por que Deus tinha de nos submeter a uma prova tão dura - disse Juan
Ignacio. - Eu não merecia um castigo como este.
-
De que estás a falar?
-
Dos desejos impuros. Dos desejos contranatura.
Não digas isso, Juan. Ser homossexual não é um castigo, Nascemos assim. Não nos
devemos sentir mal.
-
Abraça-me, Joaquín.
Joaquín abraçou Juan Ignacio por trás.
-
Gosto de ti - disse-lhe.
-
Espera um momentinho - pediu Juan Ignacio.
Saiu da cama, tirou o retrato da Virgem da parede, fechou os olhos e deu-lhe um beijo.
-
Peço descúlpa, Senhora - murmurou.
A seguir, meteu o retrato debaixo da cama e voltou a deitar-se ao lado de Joaquín.
-
Beija-me nas costas - sussurrou com os olhos fechados.
Joaquín beijou-o nas costas. Juan Ignacio tinha a pele suave e muitos sinais.
-
Cheiras divínamente, Juan - disse Joaquín.
-
Chama-me antes Verónica - sussurrou Juan Ignacio.
Na manhã seguinte, o rádio começou a funcionar automaticamente às oito em ponto.
Joaquín acordou de repente e ouviu uns cânticos religiosos: tinham começado a transmitir
a missa pela rádio. Era domingo. Pouco depois, Juan Ignacio acordou, benzeu-se e saltou
da cama.
-
Bom dia - disse.
-
Bom dia - disse Joaquín, deitado na sua cama desdobrável.
Juan Ignacio deitou-se no chão, fez trinta abdominais e olhou-se ao espelho do roupeiro.
Estou forte, porra - disse, inchando o peito. - Estou forte mesmo. Nunca na vida
estive em melhor forma.
Parecia de muito bom humor essa manhã. Agachou-se e fez trinta pranchas.
Agora, um duche e à missa das nove - disse, quando acabou os seus exercícios
matinais.
-
Vais à missa? - perguntou Joaquín, surpreendido.
-
Claro - respondeu Juan Ignacio. - Vou à missa todos os domingos do Senhor.
-
Incomoda-te que te acompanhe?
-
De modo nenhum. Teria muito gosto por ti.
Juan Ignacio foi para a casa de banho, tomou um duche e voltou para o quarto com a
toalha amarrada à cintura. Sem perder tempo, abriu o roupeiro e tirou um fato. Joaquín
saiu da cama e abriu a mala.
-
Achas que também devo vestir um fato para ir à missa? - perguntou.
Claro - disse Juan Ignacio vestindo-se depressa. - à casa de Deus devemos ir bem
vestidos. É como se fôssemos ao palácio presidencial.
Joaquín tirou o fato menos enxovalhado que encontrou na sua mala. Vestiram-se em
silêncio. Quando ficaram prontos, Juan Ignacio pôs um pouco de perfume. Em seguida,
passou o frasco a Joaquín.
É uma água-de-colónia especial para ir à missa - disse-lhe. - Fresca, mas não muito
agressiva. Definitivamente conservadora.
Joaquín sorriu e pôs um pouco. Antes de saírem, olharam-se ao espelho.
Um par de vencedores - disse Juan Ignacio, arranjando a gra vata. - Não há nada a
fazer, alguns de nós nascemos para triunfar
Saíram do quarto. Juan Ignacio fechou a porta à chave.
-
Esta índia deve ser uma ladra de merda - murmurou.
- Vamos depressa, Joaquín, que não quero chegar atrasado à missa.
Desceram pelo elevador e saíram à rua. Soprava um vento gelado. Andaram uns
quarteirÕes até chegar a uma igreja do bairro. Quando chegaram, ainda não começara a
missa das nove. Sentaram-se num dos últimos bancos. Havia bastante gente na igreja.
- Eu volto já - disse Juan Ignacio. - Vou confessar-me. Levantou-se, deu uns passos e pôs-se
na fila para o confessionário.
Pouco depois, quando chegou a sua vez, ajoelhou-se, murmurou umas palavras, ouviu a
absolvição do sacerdote e voltou para o lado de Joaquín.
-
Pronto. - disse, sorrindo. - Purificado. Impoluto. Branco como a neve.
-
Ainda bem por ti - disse Joaquín.
-
Tu também te deverias confessar, homem.
-
Tens razão, Juan. Se calhar, no próximo domingo.
Nesse momento, um sacerdote dirigiu-se ao altar acompanhado por dois miúdos, pegou
num microfone, benzeu-se e começou a dizer a missa. Para surpresa de Joaquín, Juan
Ignacio rezou todas as oraçÕes em voz alta e cantou com os outros paroquianos. Antes de
rezar o credo, o sacerdote pediu que todos dessem as mãos. Uma velha tentou pegar na
mão de Juan Ignacio, mas ele não consentiu.
-
Vamos, homem, a mão, que o padre pediu - disse a velha.
Juan Ignacio nem olhou para ela. Fingiu que não a tinha ouvido.
-
Deus castiga a soberba - disse ela.
-
Cala-te, velha de merda - murmurou ele.
Joaquín teve de fazer um esforço para não se rir. Quando saíram da missa, perguntou a
Juan Ignacio por que fora tão duro com a mulher.
Eu venho cumprimentar Deus, mas não tenho de tocar numa velha pulguenta disse Juan Ignacio, enquanto desciam as escadas da igreja, e riram os dois à gargalhada.
No dia seguinte, Juan Ignacio voltou do trabalho pouco depois das seis da tarde. Vestia um
fato azul. Saíra para trabalhar muito cedo, com o cabelo penteado com fixador.
Despedi-me - disse a Joaquín, assim que entrou no quarto da pensão. - Mandei à
merda o trabalho como angariador de seguros.
-
Que aconteceu? - perguntou Joaquín, surpreendido.
Estava metido na cama. Passara o dia a ler números antigos da Hola e a ver televisão.
Era um emprego de merda - disse Juan Ignacio. - Não estou disposto a rebaixar-me
tanto. Eu fui feito para grandes coisas, não para esses empreguinhos de segunda.
Parecia contrariado. Sentou-se na cama e tirou os sapatos.
Não teria sido melhor ficares nesse trabalho até conseguires outro melhor? perguntou Joaquín.
Juan Ignacio deitou-lhe um olhar furioso.
Não, Joaquín - disse, zangado. - Sei muito bem o que faço. - Depois, despiu-se,
dobrou a roupa com cuidado e pendurou-a numas cruzetas de plástico. Em cuecas,
sentado na cama, continuou a falar: Aquele trabalho era insuportável - disse. Tinham-me dado uma secretária mínima. Era uma humilhação. Nessas condiçÕes de
superlotação não se pode trabalhar, Joaquín. Além disso, estava rodeado de gente
ordinária, derrotada pela vida. E a primeira lição que deves aprender é a seguinte; se te
juntas a perdedores, tornas-te um perdedor. Mas o que mais me lixava era que aqueles
espanhóis pouco asseados passavam o dia a fumar, porra. Fumavam que nem umas
chaminés, enchiam o escritório de fumo. Não sabem que fumar já passou de moda e é
muito mal visto nos países civilizados. E ainda por cima passavam o tempo a arrotar. Não
sei por que se arrota tanto em Espanha, caraças. Deve ser porque estão sempre a
empanturrar-se de tortilhas gordurosas, dobrada, orelha de porco, chouriço, coisas
terríveis para uma boa digestão.
Joaquín riu-se.
-
Caramba, que desagradável - disse.
- Como compreenderás, tudo isso foi demasiado para mim - continuou Juan Ignacio. - às
cinco, já estava pelos cabelos e disse para mim, não, Juan Ignacio, já chega, tu és um
individualista, não um burocrata obscuro como eles, sai daqui antes que seja tarde
demais, deixa de comer merda, não mates a criança que há dentro de ti. Assim, fui falar
com o meu chefe (um espanhol típico, com uma dessas barbas espessas onde, se
procurares bem, encontras aranhas com os seus olhinhos de intelectual de meia-tigela,
um cigarro na boca e uma pança do caraças, uma pança de lutador de sumo, imaginas) e,
num tom muito respeitador, disse-lhe, Sr. Alpuente, agradeço-lhe muito a oportunidade
que me deu nesta firma, mas lamento, tenho de me despedir por motivos estritamente
pessoais, ele disse-me: mas porquê, Sr. Garcia, se só entrou para esta firma apenas há uns
meses, e então eu disse-lhe: porque isto não é compatível com as minhas expectativas, Sr.
Alpuente, e ele riu-se, todo gozão, e disse-me, bom, Sr. Garcia, vindo da América do Sul,
talvez devesse empobrecer as suas expectativas; e eu, a conter-me: disse-lhe isso nunca,
Sr. Alpuente, posso empobrecer materialmente, mas nunca vou empobrecer as minhas
expectativas, e ele a sorrir, muito porreiro, disse-me, bem, lamento, Sr. Garcia, mas, se
mudar de opinião, será sempre bem-vindo na Companhia de Seguros da Estrelia, onde
cada angariador é uma estrela, e eu quase lhe disse: ouve, gordinho, cara de lua cheia,
não me chateies, com quem julgas que estás a lidar, pensas que vais vender caricas ao
dono da Coca-Cola, mas felizmente controlei-me e agradeci-lhe e adeusinho que se faz
tarde e já nem me lembro que te conheci.
Juan Ignacio soltou uma gargalhada. Parecia muito orgulhoso por se ter despedido.
-
E agora que vais fazer? - perguntou Joaquín.
O mesmo que tu, Joaquín - disse. - Comprar o meu Segundamano, procurar ofertas
de emprego, mandar o meu currículo para todo o lado e sentar-me à espera.
-
Oxalá tenhamos sorte - disse Joaquín.
Todas as manhãs, Juan Ignacio e Joaquín esperavam que Paco e Rosaura deixassem a
pensão para saírem do quarto que partilhavam.
Então, tomavam um duche de água quente - sempre Juan Ignacio antes de Joaquín, o que
aborrecia este, porque lhe restava muito pouca água quente -, almoçavam ovos estrelados
e saíam para comprar jornais. Juan Ignacio comprava sempre o ABC num quiosque que
ficava a poucos quarteirÕes da pensão.
Não ler o ABC é como faltar ao respeito a Sua Majestade o Rei contrariado, quando Joaquín comprou El País.
disse uma vez,
Depois, voltavam para a pensão e passavam umas horas a ler os jornais, a comentar as
notícias do dia e a comer bolachas Maria. Raras vezes saíam notícias sobre o Peru nos
jornais espanhóis.
Duas vezes por semana compravam também o Segundamano. Nesses dias, antes de lerem
os' jornais, sentavam-se na mesa da cozinha e liam cuidadosamente o Segundamano.
Reviam as ofertas de emprego, marcavam os anúncios que lhes pareciam interessantes e
respondiam imediatamente, Depois, almoçavam. Almoçavam sempre na pensão, excepto
aos domingos, em que iam a um MacDonald's.
Gosto muito do MacDonald's porque me sinto como se estivesse nos Estados
Unidos - disse uma vez Juan Ignacio a Joaquín, enquanto comia um hamburger duplo.
Todas as tardes, quando acabavam de almoçar, iam juntos ao cinema. Iam sempre de táxi
ou de autocarro. Nunca utilizavam o metropolitano. Juan Ignacio recusava-se a ir de
metro. Dizia que os vencedores nunca usam o metro. Gostava muito dos filmes
americanos de acção, como os de Schwarzenegger, Stallone, Van Damme e Segal. Depois
da matinée, voltavam sem pressa para a pensão.
-
Faz figas, Joaquín, hoje é o grande dia - costumava dizer Juan Ignacio, ao chegar.
A seguir, abria a caixa do correio, para ver se tinham recebido alguma resposta aos muitos
empregos a que se tinham candidatado, mas só encontrava publicidade e, por vezes, uma
ou outra carta de Lima. Então, procurando animar-se subiam até ao apartamento, comiam
qualquer coisa, punham-se em pijama e sentavam-se a ver televisão na sala.
O uso da televisão da pensão estava sujeito a uma regra.
- O primeiro a ligar a televisão tem o direito de escolher o programa, - dissera Paco a Juan
Ignacio e Joaquín, no dia em que lhes explicou as regras da pensão. (As outras regras
eram: não comer a comida dos outros, cada um lavar os pratos que sujasse, não usar a
máquina de lavar roupa mais do que uma vez por semana e não trazer pessoas da rua. A
última regra não se aplicava a Paco.) Juan Ignacio recusava-se a obedecer à regra da
televisão. Quando chegava à sala e Rosaura estava a ver um programa, apoderava-se do
controlo remoto e, cada vez que o programa era interrompido pela publicidade, mudava
de canal para Rosaura se ver obrigada a pedir-lhe que voltasse a pôr no programa que ela
escolhera.
Chega, caramba, já estou farta de que me mudes o programa constantemente disse-lhe uma noite Rosaura.
Juan Ignacio soltou uma gargalhada.
Tem calma, por favor, não te exaltes - disse. - Afinal, se estás com o período, a
culpa não é minha.
Paco e Joaquín riram à gargalhada. Rosaura levantou-se, saiu da sala e fechou-se no
quarto. Desde essa noite, não voltou a sentar-se na sala a ver televisão.
Joaquín estava no metro quando o viu: estava parado numa plataforma em frente da dele.
Era um rapazinho. Teria uns catorze ou quinze anos. Tinha cabelo loiro, olhos verdes e um
olhar lânguido, triste. De repente, olhou para Joaquín e sorriu. Impressionado pela beleza
do rapaz, Joaquín caminhou depressa, subiu e desceu as escadas a correr e chegou à
plataforma da frente mesmo a tempo de entrar na carruagem para a qual o rapaz acabava
de subir. Ele olhou para Joaquín e sorriu. Depois, pôs-se a ver o jornal do tipo que estava
sentado ao seu lado. Três ou quatro estaçÕes depois, levantou-se e saiu da carruagem.
Joaquín não hesitou em segui-lo. Saíram do metro. Já na rua, Joaquín conseguiu
apanhá-lo.
-
Olá - disse Joaquín, caminhando ao lado dele.
-
Olá - disse ele, sem parar.
Ainda conservava a voz de criança.
-
Lembras-me muito o meu irmão - disse-lhe Joaquín. - Como te chamas?
-
Cayetano - respondeu ele.
-
Nome de duque - disse Joaquín.
Cayetano sorriu.
-
Tens fome? - perguntou Joaquín. - Gostarias de comer algo por aqui?
-
Eu só como em casa - disse Cayetano.
-
É um bom hábito - disse Joaquín.
-
Além disso, a minha mãe disse-me que não falasse com estranhos.
-
Não te preocupes. Só quero ser teu amigo.
-
Tu já és muito crescido para ser meu amigo.
Joaquín continuou a andar sem saber onde estava nem para onde ia.
Olha, há aqui uma pastelaria - disse a Cayetano. - De certeza que não queres um
bolo?
Está bem, aceito, mas é só um instante, estão à minha espera em casa - disse
Cayetano.
Entraram numa pastelaria que cheirava a pão fresco, a canela. Cheirava como a Tiendecita
Bíanca nos dias antes do Natal.
-
Escolhe o que quiseres - disse Joaquín.
Cayetano pediu uma tarte de morango com natas.
-
Tudo o que quiseres - disse Joaquín.
Caetano sorriu e pediu um bolo de maçã, bolachas com mel, passas e nozes, uma
cornucópia e pirâmides cobertas de chocolate.
Não comas tantos doces, miúdo, que vais ficar gordo como eu estava a atender ao balcão.
-
As crianças não engordam - disse Cayetano, e riram-se os três.
Joaquín pagou a conta. Saíram da pastelaria.
-
Bem, foi um prazer - disse Joaquín.
-
Para mim também - disse Cayetano.
Deram um aperto de mão.
-
Só queria dizer-te que és lindo - disse Joaquín. - Pareces um anjo.
Cayetano sorriu.
-
É o que a minha mãe diz.
Depois, afastou-se a comer a sua tarte de morango.
disse o tipo que
Joaquín estava na sua cama desdobrável sem conseguir dormir. Ouvia a respiração de
Juan Ignacio, sentia uma forte erecção e não conseguia dormir. Sem poder conter-se mais,
saltou da cama e meteu-se na cama de Juan Ignacio.
-
Quero fazer amor contigo, Verónica - disse-lhe ao ouvido.
Que tens, porra? - disse, afastando-se de Joaquín. - Não sou nenhuma Verónica.
Sou Juan Ignacio, o teu amigo da vida inteira, Juan.
Joaquín retrocedeu, envergonhado.
-
Desculpa - disse. - Pensei que gostavas de fazer amor comigo.
Não, não gosto nada, não gosto nada - disse Juan Ignacio com uma voz cortante e
agressiva. - A sodomia parece-me algo abominável, Joaquín. Só de pensar que fizemos
aquilo sinto náuseas.
Arrependido por ter dado um passo em falso, Joaquín saiu da cama de Juan Ignacio e
sentou-se na sua cama desdobrável.
O que fizemos naquela noite não me pareceu abominável, Juam - disse, em voz
baixa. - Para mim, foi algo bonito. Senti muito prazer.
Pois eu, não - disse Juan Ignacio. - Para mim, foi uma experiência aviltante. Diria
que foi o ponto mais baixo da nossa amizade. Os amigos existem para se ajudarem,
Joaquín, não para se fazerem mal. E eu não quero que tu me contagies as tuas fraquezas.
Se escolheste um estilo de vida que é contrário à moral, é contigo, pois é problema teu.
Mas não me obrigues a fazer coisas que rejeito profundamente. Por favor, que isto não
volte a repetir-se, porque caso contrário vais obrigar-me a tomar medidas drásticas.
Joaquín sorriu.
- Estás a falar como o meu pai me falaria - disse.
É porque gosto de ti, Joaquín, e porque neste momento me sinto teu irmão mais
velho - disse Juan Ignacio. - Agora mais do que nunca temos de ser fortes e estar unidos
para vencermos. Como vês, as coisas são mais dificeis do que tínhamos imaginado. Os dias
passam e continuamos sem trabalho. Estou extremamente preocupado, Joaquín. Isto não
pode continuar assim.
-
E que fazemos se não conseguirmos trabalho?
Não sei, não faço ideia, mas deixa que te diga uma coisa: não vim para Madrid para
viver como mais um sul-americano. Sou um profissional, terminei com todos os louvores
um mestrado em Washington, D. C., e não vou acabar a lavar pratos numa taberna de
Madrid. Isso de modo nenhum. Antes de começar a lavar pratos, regresso a Lima e
acabou-se.
Mas voltar para Lima seria sacrificar o nosso orgulho, Juan. Voltaríamos como
perdedores.
Pode ser, pode ser, mas, na verdade, já estou farto de comer feijão todos os dias,
de lavar as cuecas no duche, de dormir neste colchão mole, porra. Já tenho o saco cheio
de suportar a índia de merda que não me deixa ver televisão sossegadamente, que me
olha com um rancor antigo, como se eu tivesse culpa de que ela seja índia e feia, a puta
que a pariu. Não estou habituado a viver nestas condiçÕes de aperto, Joaquín. A mim, em
Lima, só me servem os pratos que eu aprecio. Nunca na puta da vida lavei um tacho em
minha casa. Lavei um tacho pela primeira vez nesta pensão de meia-tigela. Em minha
casa, trazem-me o pequeno-almoço à cama, lavam-me a roupa que dá gosto e
entregam-ma passadinha a ferro, impecável, e pobre da empregada se as minhas camisas
estão um bocadinho enxovalhadas ou não têm goma, porque apanha uma descompostura
do caraças. Para que te hei-de mentir, a verdade é que sinto muito a falta das
comodidades de minha casa.
-
Pois é, não se pode negar que em Lima vivíamos melhor do que aqui.
Portanto, já sabes os meus planos. Se não conseguir um trabalho muito em breve,
faço as malas e volto para o Peru de cabeça bem erguida.
Ficaram calados.
Não estás arrependido por te teres despedido da companhia de seguros, Juan? perguntou Joaquín.
- Eu nunca me arrependo de nada - disse Juan Ignacio. - Só os perdedores se arrependem
das coisas que fazem.
Se calhar, deverias receber temporariamente o subsídio de desemprego. Isso
dar-te-ia mais tempo para encontrares um bom lugar.
Juan Ignacio abanou a cabeça.
De modo nenhum - disse, peremptoriamente. - Não vou viver como um parasita, a
chupar na teta do Estado espanhol. Isso é contra os meus princípios.
-
Não exageres, Juan. Temos de ser pragmáticos.
É uma questão de princípios, Joaquín. Sempre achei que a esses preguiçosos que
recebem o subsídio de desemprego deviam acabar-lhes com a mama e que deveriam
chamar um canhão de água como no Peru e atirar-lhes para cima com um bom jorro de
água com ácido muriático, para ver se deixam de ser parvos e aprendem a ganhar a vida,
porra.
Riram-se. Agora Juan Ignacio parecia optimista, seguro de si, o vencedor de sempre.
- Quanto tempo mais estás disposto a esperar? - perguntou Joaquín.
- No máximo, até ao final do mês - disse Juan Ignacio. - Senão, todos voltam, como diz a
valsa.
A seguir, voltou as costas a Joaquín e meteu a cabeça debaixo da almofada. Esta viagem a
Espanha vai ser um grande fracasso, pensou Joaquín. Não deveria ter partido de Lima à
doida.
Numa das suas últimas noites em Madrid, Joaquín foi dar uma volta, para ver se se
cruzava com algum rapaz giro. Estava muito frio nessa noite. Mandou parar um táxi e
subiu.
- Leve-me à melhor discoteca gay de Madrid, por favor - pediu ao taxista.
- Gay, gay... não me lembro nada dessa discoteca - disse o taxista, um homem já velho. Em que rua fica?
- Não, senhor, a discoteca não se chama gay - explicou Joaquín. - Refiro-me a uma
discoteca de rapazes.
- Ah, essas discotecas novas onde os rapazes vão tomar Coca-Colas? - perguntou o taxista.
- Não, na realidade queria ir a uma discoteca para homossexuais.
O taxista pôs uma cara aborrecida.
- Pois não conheço nenhuma e, se conhecesse, também não o levava lá - disse,
peremptório. - Agora saia do meu carro, que eu não trabalho com maricas.
Joaquín desceu do carro e subiu para outro táxi. Desta vez, O condutor compreendeu
perfeitamente onde Joaquín queria ir e levou-o a uma discoteca frequentada por
homossexuais. Joaquín entrou na discoteca, sentou-se ao balcão e pediu uma Coca-Cola
sem cafeína. Não havia muita gente na discoteca. Estavam a tocar uma canção que lhe
pareceu demasiado estridente.
- Tu és peruano, não és? - ouviu, pouco depois.
A seu lado sentara-se uma rapariga. Tinha o cabelo preto, os olhos achinesados e o nariz
um pouco grande.
- Sou - disse Joaquín.
Ela sorriu.
-
Eu também.
-
Como te apercebeste? - perguntou ele.
-
Acho que te vi em Lima umas vezes - respondeu ela. - Que fazes por aqui?
-
Nada - disse ele. - Estou de passagem.
-
Não sabia que eras gay.
-
Eu também não - disse ele, e riram-se.
-
Mas és ou não és?
-
às vezes.
-
Isso não vale.
-
Porquê?
-
Porque eu sou sempre lésbica, não apenas às vezes - disse ela.
Ele tomou a sua Coca-Cola.
-
És a primeira lésbica que conheço - disse.
-
Deves ter conhecido várias, sem o saberes - disse ela.
Ficaram calados.
-
Vives em Madrid? - perguntou ele.
-
Hum, hum - disse ela.
-
Há quanto tempo?
-
Cinco anos, já há quase seis.
-
Que sorte! Vives com a tua família?
-
Não, vivo sozinha. A minha familia não me aguenta.
-
A minha também não.
-
É normal.
-
E como ganhas a vida?
-
Vivo dos rendimentos.
-
Caramba, que bom para ti, quem pode, pode. Como te chamas?
-
Luciana. Luciana Ravello.
-
És alguma coisa ao banqueiro famoso?
-
Sou. Sou filha dele.
Poucos anos antes, José Maria Ravello fora um dos banqueiros mais ricos do Peru. Depois,
caiu em desgraça: no meio de um escândalo político, foi preso, por usar indevidamente o
dinheiro das poupanças dos depositantes do seu banco.
-
Que aconteceu ao teu pai? - perguntou Joaquín.
-
Saiu da cadeia há uns anos - disse Luciana. - Agora vive na Costa Rica.
- Continua ligado a bancos?
- Não, agora tem um pomarzito e umas quantas vacas. Já não trabalha. Está reformado.
Não ficou bem, depois da cadeia.
- E tu, por que não vives na Costa Rica?
- Porque o meu velho sabe que sou lésbica e, para evitar um escândalo, mandou-me para
aqui.
Luciana pediu uma cerveja. Joaquín animou-se a pedir outra. Beberam uns golos. Foram
dançar.
- Agora sentes-te gay?
- Depois de uma cerveja, sinto-me sempre gay - disse ele.
Uns momentos depois, ela convidou-o a ir até ao seu apartamento. Saíram da discoteca,
meteram-se num táxi e foram para o apartamento de Luciana. Ela vivia na Menéndez y
Pelayo, em frente do Retiro.
- Vou mostrar-te uma coisa que só mostro aos meus amigos - disse a Joaquín, quando
entraram no apartamento.
Em seguida, foi ao quarto e voltou com uma barra de ouro. Era do tamanho de um tijolo,
só que era dourada e brilhava.
- Conseguimos trazê-la do Peru mesmo antes de o meu velho ser preso - disse.
- Que sorte do caraças!
Luciana acariciou a barra de ouro.
- Agora é minha - disse sorrindo. - O meu velho ofereceu-ma quando fiz vinte e um anos.
- Quanto achas que valerá? - perguntou.
- Toda a massa de que preciso para não voltar para Lima - disse Luciana; e riram à
gargalhada.
No último dia de Janeiro desse ano, Juan Ignacio disse a Joaquín que tinha decidido voltar
para Lima e este disse que também queria voltar porque já lhe restava pouco dinheiro.
Nessa manhã, foram os dois juntos ao escritório de uma companhia de aviação e
reservaram dois lugares num voo para Miami no dia seguinte.
- Temos de nos despedir de Madrid em grande - disse Juan Ignacio, quando chegaram à
pensão com as passagens. - Que tal pormo-nos elegantes e irmos jantar ao Palace?
Acho uma excelente ideia - disse Joaquín. - Há já muito tempo que não comemos
bem.
Mas antes quero comprar uns fatos para chegar a Lima bem arreado - disse Juan
Ignacio. - Quero que os mestiços da alfândega digam porra, este branco deve ser dono de
algum banco, deve estar cheio de milho. Tu sabes que em Lima te tratam consoante te
vestes, Joaquín. Tu também deverias comprar uns fatinhos.
-
Tens razão, Juan.
Então, vamos lá comprar boa roupa. Ah, caraças, não há nada de que eu goste
mais do que comprar roupa fina.
Vestiram os sobretudos, saíram da pensão e foram até à rua.
- Hoje, vamos de táxi - disse Juan Ignacio. - Já estou farto de apanhar esses autocarros
cheios de velhinhos com última paragem na morgue, caraças.
Riram-se. Mandaram parar um táxi.
-
Se está a fumar, não subimos - disse Juan Ignacio.
Abriram a porta do carro. O taxista estava a fumar.
- Desculpe - disse Juan Ignacio ao taxista. - Eu não viajo em táxis contaminados.
-
Vai levar no cu - gritou o taxista.
Eu não pago para que me envenenem, careca - gritou Juan Ignacio, rindo-se,
quando o táxi se afastou.
Joaquín riu à gargalhada. Tiveram de deixar passar vários táxis até encontrarem um cujo
condutor não fumasse. Então, meteram-se no carro e Juan Ignacio disse ao taxista que os
levasse à loja Milano, na Puerta del Sol.
Ao chegar à Milano, pagaram o táxi a meias, entraram na loja e pararam a ver os fatos.
Um vendedor ajudou-os a procurar os tamanhos e cores que queriam.
- Os fatos, sempre escuros e assertoados - disse Juan Ignacio a Joaquín. - Primeiro, porque
emagrece, segundo, porque dão uma imagem de poder.
Então, o vendedor explicou-lhes que cada cor tem a sua própria personalidade.
- O cinzento é sossegado, mais para o tímido - disse-lhes. - Não tem tanto carácter como o
azul-escuro, que sabe sempre o que quer. E o preto é um individualista puro, que não
teme a morte.
Depois, foi buscar uma fita métrica para lhes tirar as medidas.
- Este parece que se desmancha todo - disse Juan Ignacio a Joaquín, baixando a voz e
apontando para o vendedor. - Tem cuidado que ainda espirra e nos pega a SIDA acrescentou; e riram-se.
O vendedor regressou e mediu-os de alto a baixo.
- Qual é a cor dos vencedores? - perguntou-lhe Juan Ignacio.
- Definitivamente, o azul - disse o vendedor.
- Mas azul-escuro - acrescentou Juan Ignacio.
- Exacto, escuro, azul-escuro - disse o vendedor.
- E branco - disse Juan Ignacio. Só um homem bem sucedido veste um fato branco.
- Bem, sim, o branco é sempre uma afirmação peremptória, um grito de esperança - disse
o vendedor.
- Quando me casar, vou vestir um fato branco e um cravo vermelho - disse Juan Ignacio.
- Deves ficar lindamente, Juan - disse Joaquín.
- O branco fica bem com o azeviche radical do seu cabelo - disse o vendedor a Juan
Ignacio.
- E vou fumar um havano, o único havano que vou fumar na minha vida - disse Juan
Ignacio.
- Quando é que o cavalheiro casa? - perguntou o vendedor.
- Um dia destes - respondeu Juan Ignacio.
- Desde já, os meus parabéns - disse o vendedor.
Nessa noite, Juan Ignacio e Joaquín puseram os fatos que tinham comprado na Milano e
foram jantar ao Hotel Palace.
- Isto é que é vida, porra - disse Juan Ignacio, enquanto comiam umas sobremesas
esplêndidas.
Durante a refeição, tinham tomado uma garrafa de vinho tinto. Joaquín sentia-se um
pouco bêbedo.
- Lembras-te de mim no colégio, Juan? - perguntou.
- Na verdade, não - disse Juan Ignacio. - Mas as minhas recordaçÕes do colégio são
maravilhosas. Tenho muito orgulho em ter estudado no Markham College, o melhor
colégio do Peru.
Ficaram calados. Continuaram a comer.
- Pois eu lembro-me de ti no colégio - disse Joaquín. Juan Ignacio sorriu, lisonjeado.
-
De certeza que te lembras de me terem nomeado house captam - disse.
Não - disse Joaquín, sem o olhar nos olhos. - Lembro-me de ti um dia, na casa de
banho dos mais novos.
Juan Ignacio pôs uma cara surpreendida.
-
Na casa de banho dos mais novos? - perguntou.
-
Hum, hum - disse Joaquín.
-
Que estranho - disse Juan Ignacio. - Não me lembro desse dia.
Joaquín sorriu, como se não acreditasse nele.
-
A sério que não te lembras desse dia na casa de banho? - perguntou.
-
De verdade que não me lembro de nada - disse Juan Ignacio.
-
Que aconteceu?
Joaquín bebeu um golo antes de falar.
Eu estava no quinto ano da primária. Tínhamos saído do segundo recreio. Eu
estava numa das casas de banho da primária. Tu entraste com a tua capa negra de
capitão. Havia poucos miúdos na casa de banho. Tu disseste-nos que ias fazer uma revista
à higiene pessoal. Pusemo-nos todos em fila. Tu revistaste-nos o cabelo, as mãos, as
unhas e o colarinho da camisa. Depois, disseste que todos tinham ficado aprovados menos
eu. Quando os outros rapazes saíram do vestiário, disseste-me que tinhas de me fazer um
exame mais profundo. Levaste-me para a retrete, fechaste a porta e mandaste-me baixar
as calças. Então, tocaste-me na pila e disseste-me: estás um bocadinho sujo, não te vou
chumbar, mas tenho de limpar-te com saliva, para que aprendas. Aí, cuspiste para a palma
da mão e começaste a esfregar-me a pila. Depois, abriste a braguilha e disseste-me agora
vamos praticar juntos, deita saliva na mão e dá-me uma limpadela, só para ver se
aprendeste; se o fizeres bem, ficas aprovado no exame. Cuspi na mão e masturbei-te.
Quando acabaste, manchaste-me a mão. Antes de te ires embora, disseste-me que me ias
dar vinte valores e fizeste-me prometer que não dizia nada a ninguém.
Juan Ignacio bebeu mais um golo. Estava pálido.
Que vergonha, meu Deus - murmurou. - Lamento, Joaquín. Lamento do fundo da
alma.
- Não te preocupes, homem - disse Joaquín. - Isso já foi há muito tempo.
- Se te fiz mal, peço-te que me perdoes, Joaquín. Juro-te pelo que mais amo que não sabia
que aquele rapaz tinhas sido tu. Lembro-me da cena no vestiário dos mais novos, mas não
sabia que eras tu.
Tu é que tens de desculpar que tenha trazido para esta conversa recordaçÕes
amargas, Juan.
Se puder fazer alguma coisa para que me perdoes, diz-me, Joaquín. Pede-me o que
quiseres.
Joaquín pensou no que lhe apetecia fazer naquela noite. Não precisou de pensar muito.
- Esta é a nossa última noite em Madrid - disse. - Fiquemos a dormir neste hotel.
Juan Ignacio sorriu, aliviado, talvez porque sentisse que Joaquín' não lhe tinha rancor.
-É parajá - disse.
-
Pagamos a meias, é claro - disse Joaquín.
-
De maneira nenhuma - disse Juan Ignacio. - Esta noite sou eu que convido.
A seguir, pediu a conta e pagou com um cartão de crédito. Um pouco bêbedos,
levantaram-se e foram até à recepção do hotel. Juan Ignacio pediu um quarto duplo,
entregou o cartão de crédito, preencheu uma ficha e recebeu a chave do quarto. Subiram
pelo ascensor. Caminharam em silêncio pelo corredor alcatifado. Joaquín pressentia o que
ia acontecer. Assim que entraram no quarto, abraçaram-se e beijaram-se.
- Peço-te que me perdoes - sussurrou Juan Ignacio.
- Hei-de gostar sempre de ti - sussurrou Joaquín.
Depois, deixaram-se levar pelos instintos. Nessa noite, fizeram amor pela segunda e
última vez.
Uns dias depois, estavam de regresso a Key Biscayne, antes de seguirem viagem para
Lima. Tal como na viagem de ida, alojaram-se no apartamento dos pais de Juan Ignacio.
No dia seguinte, decidiram jogar ténis num dos courts do edifício. Foram a um centro
comercial, compraram raquetes, bolas de ténis e roupa desportiva e foram até ao court de
ténis. Era um campo de cimento, rodeado de palmeiras. Nessa manhã, estava um sol
radiante.
-
Prepara-te, que te vou dar uma abada - disse Juan Ignacio, entrando no court.
- Não vale discutir - disse Joaquín, sorrindo.
Juan Ignacio fez uns exercícios para aquecer os músculos.
- Estou cem por cento em forma esta manhã - declarou. - Sinto-me bem como o caraças,
como se fosse um rapazinho de quinze anos. Não há nada como uma vida sã e metódica.
-
Com este sol vamos acabar mortos - disse Joaquín.
Juan Ignacio soltou uma gargalhada.
- Já começam as desculpas - disse, num tom de troça. - Que o sol me cegou, que o vento
estava contra, que as gaivotas fizeram muito barulho, que a bola não prestava. Ai,
Joaquín, quando vais aprender a perder? - acrescentou. E riram-se os dois.
Juan Ignacio flectiu as pernas, deu uns saltos e benzeu-se.
- Estou pronto - gritou. - Quando quiseres.
- Quem toma nota da pontuação? - gritou Joaquín do outro lado do campo.
- Tu, por favor - gritou Juan Ignacio. - Não há-de ser assim tão dificil, porque vais estar
sempre a zero.
Então, começou o jogo. Joaquín começou a jogar melhor. Foi somando pontos sem grande
dificuldade. Juan Ignacio parecia algo lento e impreciso nessa manhã. As suas jogadas
eram débeis, mal colocadas. Era rara a vez que acertava.
- Seis a dois, primeiro set - gritou Joaquín, depois de ter ganho um ponto facilmente.
- Cinco a dois queres tu dizer - corrigiu Juan Ignacio. - Ainda falta um game.
- Tenho a certezinha, Juan. Já acabou o primeiro set.
- Estás com pressa ou o quê? Falta um game, homem. Não comeces com as tuas manhas,
por favor.
Joaquín resignou-se a dar-lhe razão e não teve dificuldade em ganhar os pontos seguintes.
Aí, Juan Ignacio aceitou que perdera o primeiro set.
Então, começou a bater na bola com mais força, mas todas as bolas saíam do campo ou
batiam na rede. Joaquín continuou a somar pontos, sem se esforçar demasiado.
- Quatro a um - gritou pouco depois, quando Juan Ignacio atirou uma bola para longe do
campo.
- Estás doido, homem - gritou Juan Ignacio. - Três a um, homem.
Agora Juan Ignacio parecia irritado. Fazia muito calor, estava a perder e não gostava de
perder.
Não, Juan - disse Joaquín. - Estou a tomar nota da pontuação e tenho a certeza.
São quatro a um e é a tua vez de servir.
Não posso acreditar que sejas tão batoteiro - gritou Juan Ignacio, sem conseguir
dissimular que estava aborrecido.
Não estou a fazer batota - disse Joaquín. - Estou a tomar nota da pontuação
porque tu me disseste que o fizesse. Se quiseres, a partir de agora fazemo-lo juntos.
-
Perfeito - disse Juan Ignacio. - Três a um. É a minha vez de servir.
Quatro a um - insistiu Joaquín. - Não podes fazer-me isso constantemente, só
porque estás a perder, Juan.
De maneira nenhuma. Por que porra hei-de ceder à tua batotice, se tenho a
certeza de que estamos a três a um?
Então Joaquín perdeu a paciência.
-
O melhor é pararmos de jogar - disse, e saiu do campo.
Caraças - gritou Juan Ignacio, levando as mãos à cintura. Ameaças-me? Fazes-me
um ultimato?
Joaquín sentou-se num banco ao lado do court e limpou o suor da testa.
-
Não continuo - disse. - Assim não tem sentido jogar.
És um peludo, um peludo de merda - gritou Juan Ignacio. Quer dizer que, se tu não
ganhares, não tem sentido jogar? Que porra é essa? Estou fartinho dos teus caprichos, das
tuas manias de menina.
- O peludo és tu, que quando perdes fazes batota - gritou Joaquín. A seguir, levantou-se e
dirigiu-se à porta do court.
A menina fica picada, atira a raquete para o chão e vai-se embora - gritou Juan
Ignacio, num tom trocista. - Porra, que horror? Isso reflecte a tua atitude perante a vida,
Joaquín. Se não te dão sempre razão, se as coisas não correm como te apetece, mandas
tudo à merda e pÕes-te a andar. É uma atitude de perdedor. O que se passa é que és um
perdedor.
Joaquín parou, virou-se e olhou para Juan Ignacio.
Por favor, não comeces com o teu estúpido discurso de vencedores e perdedores disse-lhe.
Juan Ignacio riu com um riso forçado.
- Custa-te porque é verdade - gritou. - És um perdedor, um perdedor de merda, Joaquín.
Sempre foste um perdedor e sempre hás-de ser um perdedor. E sabes isso.
- Se calhar tu hás-de ser um vencedor, porque és um grande idiota -
gritou Joaquín.
- Cala-te, maricas de merda - gritou Juan Ignacio.
- Quem fala, Verónica? - gritou Joaquín.
- Dizes isso outra vez e parto-te a cara, meu filho da puta - gritou Juan Ignacio.
- Eu já não te aguento - disse Joaquín. - Vou-me embora.
A seguir, foi até ao apartamento, pegou nas malas, desceu até ao estacionamento e
meteu-se no carro. Saiu do edificio a conduzir lentamente e a pensar vou chorar assim que
passar pela casinha do porteiro.
- Perdedor - gritou-lhe Juan Ignacio do campo de ténis.
TERCEIRA PARTE
UMA SEMANA DE FÉRIAS
Joaquín estava a tomar o pequeno-almoço quando o telefone tocou. Atendeu. Era Luis
Felipe, seu pai. Haviam passado uns meses desde a última vez que se tinham falado.
Olá, filho - disse Luis Felipe, com uma voz que Joaquín achou invulgarmente
afectuosa. - Telefono-te porque decidi tirar uma semaninha de férias e gostaria de a
passar contigo, aí em Miami.
Joaquín vivia sozinho num pequeno apartamento em Key Biscayne. Fora viver para Miami
porque estava farto de Lima. Porém, cada dia estava mais arrependido de ter saído do seu
país. Cada dia detestava mais o calor, os mosquitos e o ar condicionado de Key Biscayne.
-
Caramba, que boa ideia - disse.
Pois é, filho, preciso de desligar durante uns dias deste caos do caraças de Lima disse Luis Felipe. - Ando muito tenso na fábrica. Temos problemas no sindicato. Há
terroristas infiltrados. Não sei se te contei que há pouco tempo os terroristas mataram o
nosso gerente de relaçÕes industriais.
- Caramba, não fazia a menor ideia - disse Joaquín.
Mentiu. Lera a notícia num dos números da Caretas, que se vendia no posto de gasolina
de Key Biscayne.
- Deverias tomar precauçÕes, papá - acrescentou, só para lisonjear o pai.
- Bem, vou para todo o lado com o .38 de cano curto e com Martínez Lara - disse Luis
Felipe.
-
Quem é Martínez Lara?
-
O meu guarda-costas.
Luis Felipe vivia obcecado com a sua segurança pessoal. No armário do quarto tinha um
bom número de armas e muniçÕes. Todas as noites, retirava as armas, punha-as em cima
da cama, limpava-as cuidadosamente e contava as muniçÕes. Nos fins de semana,
reunia-se num clube de tiro com dois ou três militares reformados e passava horas a
disparar as suas armas, a apurar a pontaria e a comentar os planos secretos dos
terroristas. Luis Felipe costumava dizer que no Peru é preciso ter amigos militares,
porque, no fim de contas, são eles que mandam.
- E quando virias? - perguntou Joaquín.
- Já amanhã - disse Luis Felipe.
- Ah, caramba. Assim tão depressa?
- Porquê? Tens algum problema?
- Não, não, de modo algum. Tenho muito prazer em que venhas, papá.
Joaquín nunca se atrevera a ser franco com o pai. Preferia contar-lhe mentiras, dizer
evasivas e frases educadas. Depois, odiava-se, porque se sentia um cobarde.
- Se te causo transtorno, diz-me - pediu Luis Felipe. - Se calhar, apetece-te ter a tua
privacidade, filho. Nesse caso, vou para o Sonesta e escusamos de arranjar problemas.
- Como podes pensar uma coisa dessas, papá? Fico muito contente por te ter aqui comigo.
- Porreiro, então fico no teu apartamento. Os meus planos são passar uma semaninha
deitado em frente do mar, a tomar a minha cervejinha e a fumar o meu cigarrito. E, à
noite, temos de ir ao restaurante chinês do Sonesta e apanhar umas boas pançadas, não
achas?
- É um programa óptimo, papá - disse Joaquín, pensando que era um programa péssimo.
- Bem, então telefono-te à noite, para confirmar a que horas chega o meu avião - disse
Luis Felipe.
- Por favor, avisa-me, para que possa ir esperar-te ao aeroporto.
- Não, homem, não te preocupes. Eu apanho um táxi.
- De maneira nenhuma, papá. Vou buscar-te ao aeroporto.
- Correcto. Então telefono-te à noite.
- Tchau, papá. Obrigado por teres telefonado.
Joaquín desligou o telefone, foi até à cozinha e abriu o frigorífico. Eram apenas dez horas
da manhã, mas estava tão nervoso que comeu um litro de gelado de chocolate.
-
Olá, Joaquín, sou o papá. Estás aí?
Era a voz de Luis Felipe no atendedor de chamadas. Joaquín adormecera a ver o programa
de Letterman. Saltou da cama e atendeu a chamada.
-
Olá, papá - disse.
-
Olá, Joaquín. Espero não te ter acordado.
-
Não, não. Estava a ver televisão.
Olha, telefono para te informar de que tive a confirmação da minha reserva para
amanhã. Chego a Miami às dezassete e trinta.
-
A que horas?
-
às dezassete e trinta. Isto é, às cinco e meia.
Luis Felipe sempre gostara de falar como um militar. Dizia "positivo, negativo", em vez de
"sim, não". Dizia "visibilidade zero" em vez de "não vejo nada".
- Perfeito - disse Joaquín. - Em que companhia, viajas?
Na American, é claro - disse Luis Felipe. - Não viajo em aviÕes peruanos. Quero
chegar a velho.
Riram-se.
Ouve, filho, queria pedir-te um favorzinho, abusando da tua disponibilidade - disse
Luis Felipe.
-
Diz, papá. Tudo o que quiseres.
-
Queria dar-te uma lista de coisas, para que me faças umas comprinhas.
-
Ora diz lá. Tenho aqui papel e lápis.
Toma nota. Duas garrafas de Stolichnaya, duas de Johnnie Walker Black Label, aí
umas vinte e quatro latas de Budweiser (mas não da light, da cerveja normal de sempre),
umas latinhas de sumo de tomate para fazer o meu bloody Mary, uns quantos vinhinhos
tintos e aí uns dois pacotes de Camel.
-
Perfeito - disse Joaquín. E pensou: este idiota julga que vai para um acampamento.
-
Depois, dou-te um cheque para te reembolsar da despesa, filho - disse Luis Felipe.
-
Não há problema, papá.
-
Então, está tudo conforme?
-
Tudo okay, papá. Tudo conforme.
Joaquín teve vontade de dizer: "Câmbio e passo, por que não me deixas viver sossegado,
porra, por que não vais embebedar-te com os teus amigos generais para um desses
deprimentes clubes militares onde as pessoas vão dar uns tirinhos e dizer umas idiotices,
beber sem parar e acabar a vomitar numa dessas casas de banho enormes que têm
vomitórios, os únicos vomitórios oficialmente reconhecidos como tais em Lima?"
- Então, até amanhã, filho - disse Luis Felipe. - Vai ser óptimo ver-te ao fim de tanto
tempo.
Joaquín desligou o telefone e ficou a ver o programa de Letterman. Não conseguiu
descontrair e apreciar o programa, como fazia quase todas as noites. Estava tenso, Tentou
masturbar-se para ficar mais calmo. Mas também não conseguiu. Teve de tomar uns
Xanax para adormecer.
Luis Felipe saiu do aeroporto de Miami a andar lentamente. Vestia um casaco azul, calças
cinzentas e uma gravata roxa. Usava óculos escuros. Antes de o chamar, Joaquín
observou-o por um instante: parecia mais velho e macilento do que da última vez que o
vira.
-Papá-disse.
Luis Felipe virou-se, viu o filho e sorriu.
- Olá, rapaz - disse. - Pensei que não tinhas vindo.
Joaquín não soube se lhe havia de dar um abraço, um beijo na cara ou um aperto de mão.
Luis Felipe tomou a iniciativa e abraçou-o. Joaquín sentiu o mau hálito do pai.
Que tal a viagem? - perguntou-lhe, e sentiu que a voz lhe saíra tímida e débil.
Lembrou-se de quando o pai lhe dizia não fales como uma bonequinha de corda, porra,
parece que a voz te sai do cu, a nós, os homens, a voz sai-nos dos tomates.
Tudo conforme - disse Luis Felipe e mexeu a mandíbula, um tique nervoso que se tornara
mais notório com os anos.
-
Queres que leve a tua mala?
-
Não. O pretinho leva-a.
Um carregador preto, magro e de uniforme pegou na mala de Luis Felipe, ao mesmo
tempo que assobiava despreocupadamente.
-
Porra, que calor dos diabos que está aqui - disse Luis Felipe, mal chegaram à rua.
- Não te preocupes que não tarda nada estás no carro.
Andaram até ao estacionamento. Luis Felipe suava e limpava a testa com um lenço que
tinha bordadas as suas iniciais: LFC.
- Onde está o carro? - perguntou o carregador, com um forte sotaque das Caraíbas.
- Estamos quase a chegar - disse Joaquín.
Na realidade, estava perdido. Não se lembrava do nível do estacionamento onde o
deixara.
Luis Felipe, Joaquín e o carregador caminhavam sob um sol escaldante, sem saberem para
onde iam. De repente, o carregador parou.
- Eu só venho até aqui - disse, e pousou a mala de Luis Felipe.
- Que te deu?
- Se não sabem onde está o carro, a culpa não é minha - disse o carregador. - Eu tenho de
voltar para o meu trabalho.
- Vai lá, vai lá trabalhar - disse Luis Felipe, metendo as mãos nos bolsos.
Joaquín ficou nervoso. Sabia que o pai estava sempre pronto a bater no primeiro vivaço
que se lhe atravessasse no caminho.
- São cinco dólares - disse o carregador.
Luis Felipe olhou para o filho e sorriu.
- Este mulato de merda julga que somos uns idiotas - disse-lhe.
Depois, deitou um olhar irado ao carregador.
- Não te vou dar gorjeta, por isso podes pôr-te a andar - disse.
- Se não me der o meu dinheiro, chamo a polícia - disse o carregador.
- Então chama, que eu cá fico à tua espera - disse Luis Felipe, erguendo a voz. - Vamos a
ver se acreditam em ti, que és um preto de merda, ou em mim, que sou um senhor.
- Não me fales assim, merdoso - gritou o carregador.
- Olhe, aqui tem os cinco dólares - disse Joaquín, dando-lhe uma nota.
O carregador apanhou a nota e foi-se embora.
- Os macacos como tu deveriam estar numa jaula - gritou-lhe Luis Felipe. - Escarumba de
merda.
O carregador nem se virou. Fez um gesto obsceno e continuou a andar.
-
Grandessíssimo filho da puta de preto - murmurou Luis Felipe.
- Espera-me aqui, papá - disse Joaquín. - Eu volto já com o carro, para não termos de
carregar com a mala.
Em seguida, correu pelo estacionamento à procura do carro, Subiu e desceu pisos,
aproximou-se de vários carros semelhantes ao seu, pensou que lhe tinham roubado o
carro, que a vida voltava a ser uma merda quando estava com o pai, que perdia a calma e
se tornava um tipo nervoso, assustado, sem personalidade, até que, por fim, alagado em
suor, encontrou o carro. Entrou rapidamente nele, desligou o alarme e foi ter com o pai.
Desculpa a demora, papá, mas não havia meio de encontrar o carro - disse, assim
que saiu e pegou na mala do pai.
-
Passas a vida a perder coisas - murmurou Luis Felipe.
Joaquín sorriu e pensou: velho de merda, mais valia teres ficado em Lima.
A primeira coisa que Luis Felipe fez, ao entrar no apartamento de Joaquín, foi atirar-se
para cima de um sofá e acender um cigarro.
-
Tomas um whisky? - perguntou Joaquín.
-
Se fazes favor, filho. Duplo e sem água. Com umas pedrinhas de gelo.
Joaquín foi à cozinha, serviu a bebida e deu-a ao pai.
-
Deves estar cansado - disse-lhe.
-
Com um par de whiskies fico como novo - disse Luis Felipe, e deu um golo.
Ficaram calados.
-
A propósito, fiz todas as compras que me pediste - disse Joaquín.
- Porreiro. Quanto te devo?
- Não, papá, não falei nisto por causa do dinheiro.
Luis Felipe puxou de um par de notas e deu-lhas.
- Obrigado - disse Joaquín, e guardou o dinheiro.
Acho que fizeste bem em vir para Key Biscayne - disse Luis Felipe, enquanto
brincava com uma pedra de gelo que tinha na boca.
-
A sério que achas isso? - perguntou Joaquín.
Bem, se eu vivesse em Miami, não pensaria duas vezes e viria para esta ilhazinha,
que acho o máximo - disse Luis Felipe. - Não há pretos, há poucos americanos (e isso
também é uma vantagem, porque quando há muitos americanos deixamo-nos
impressionar, não é) e as pessoas que aqui vivem são de boas familias, como nós.
Sabes que os meus dois irmãos têm apartamento em Key Biscayne? Juan Francisco tem
um em Key Colony e Carlos tem um no Cornrnodore, com uma vista espectacular.
Juan Francisco e Carlos eram mais simpáticos, mais bem sucedidos e mais ricos do que
Luis Felipe. Viviam em La Planicie e passavam os verÕes em Las Palmas, a sul de Lima.
Tinham feito muito bons negócios, graças aos quais tinham umas vidas confortáveis e
sossegadas. Ambos tinham feito lipo-sucçÕes, coisa que Luis Felipe costumava comentar
com um sorriso trocista, como que a dizer: "os meus irmãos podem ter mais massa do que
eu, mas não sou tão maricas que tire os pneus a fazer lipo-sucçÕes às escondidas numa
clínica de Miami."
- E por que não compras um apartamento em Miami, papá? - perguntou Joaquín,
sentando-se ao lado do pai. - Poderias vir até cá descansar de vez em quando.
- Não é má ideia - disse Luis Felipe. - Mas tu sabes, filho, que eu cá sou peruano até aos
tomates, não sou como os da tua geração, que assim que podem pÕem-se a andar para
um sítio qualquer.
- É verdade - disse Joaquín. - Para a minha geração, o patriotismo é uma graça de mau
gosto.
Pegou no copo do pai e foi à cozinha servir-lhe outra bebida. Luis Felipe acendeu um
cigarro.
- Não te incomoda que fume, pois não? - perguntou.
- Não, de modo nenhum - disse Joaquín. - Estás em tua casa.
Mentiu. Detestava que fumassem no seu apartamento. Tinha vontade de dizer "sim, papá,
fico lixado por fumares aqui, fico lixado por deixares o meu apartamento empestado com
o cheiro a fumo, porque não sabes o trabalhão que tive para tirar o cheiro a fumo quando
o aluguei, o inquilino anterior era um médico cubano que de certeza que fumava que nem
uma chaminé e passei um mês inteiro a deitar aerossóis perfumados, a pôr folhinhas
aromáticas em todos os cantos da casa, a pôr essas plantinhas que absorvem os maus
cheiros e tudo isso para quê, para que venhas para aqui fumar com a tua lata e estilo
brilhante, não, velho de um cabrão, não exageres, se queres fumar, não há problema, mas
mete a primeira e vai até à praia".
Luis Felipe abriu uma porta de correr e foi para o terraço.
- Caraças, isto é uma sauna - disse, e bebeu um golo.
Joaquín também foi para o terraço. O ar estava quente e pesado.
- E como vão as coisas em Lima? - perguntou.
Luis Felipe respirou profundamente, como que dando-se uma certa importância.
- Muito lixadas, filho, muito lixadas - disse. - Embora muitas pessoas nem se apercebam
disso, vivemos uma guerra civil. Temos de viver em estado de alerta, na defensiva,
preparados para puxar a nossa arma e abater o primeiro turra que se atravesse no nosso
caminho.
- Caramba - disse Joaquín.
Ficaram calados.
- Não contes isto à tua mãe, mas tenho sido ameaçado a valer - disse Luis Felipe.
- Não me digas. A sério?
- Por três vezes recebi telefonemas anónimos na fábrica a ameaçar-me. Disseram-me que
estou na lista negra porque na fábrica não pagámos dinheiro aos terroristas. Que vão à
merda, os grandessíssimos filhos da puta dos índios. Não me matei a trabalhar a vida
inteira para que agora estes turras de merda me venham chantagear.
Agora Luis Felipe estava tão exaltado que quase gritava.
- Talvez devesses passar mais tempo em Miami, papá - disse Joaquín.
- A mim ninguém me pÕe fora do meu país, filho - disse Luis Felipe. - Os paneleiros que se
vão embora. Eu cá, fico.
Calaram-se outra vez. Estavam a transpirar. Fazia muito calor.
- Não te mexas, não te mexas - disse Luis Felipe.
Abriu a mão direita, deu uma bofetada no filho e mostrou-lhe a mão: via-se uma mancha
de sangue.
- Tinhas um mosquito - disse sorrindo. - Posso estar velho, mas ainda tenho bons reflexos.
- Bem, estes whiskies abriram-me o apetite - disse Luis Felipe, coçando a barriga. - Que tal
irmos ao restaurante chinês do Sonesta e oferecermo-nos um belo jantarão?
Joaquín não gostava do restaurante chinês, mas não disse nada, pois não queria
decepcionar o pai.
- Um segundinho que vou pôr repelente para mosquitos - disse.
Entrou na casa de banho e pôs um aerossol nos braços e no pescoço.
- Não queres pôr também um bocadinho? - perguntou, mostrando o aerossol ao pai.
- Não, obrigado - respondeu Luis Felipe. - Isso são mariquices dos Americanos, rapaz.
Joaquín sorriu, contrafeito.
- Acontece que os mosquitos me devoraram algumas vezes e agora não saio à rua sem pôr
repelente - disse. E pensou: oxalá os mosquitos te comam como se fosses papa, velho
parvalhão.
Apagaram as luzes, saíram do apartamento e foram para o carro.
- Que diferença sair à rua sem pistola, sem telemóvel, sem um mestiço atrás de ti que te
segue por todo o lado - disse Luis Felipe, enquanto desciam as escadas.
- Realmente deve ser horrível viver assim.
- É que no Peru vivemos numa guerra civil, filho. E há anos que víamos vir essa guerra civil.
Essa guerra começou com Velasco, aquele filho de uma puta que tanto mal fez ao país.
Todo o terrorismo vem daí, de quando Velasco despertou os mestiços e os igualou aos
brancos.
- É isso mesmo, papá - disse Joaquín; e abriu a porta do carro.
- Não, o melhor é irmos a pé - disse Luis Felipe. - Uma caminhada vai fazer-me bem. De
passagem, aproveito para fumar um cigarro.
Estavam a cinco ou seis quarteirÕes do Hotel Sonesta.
- Como quiseres - disse Joaquín.
Saíram do edifício. Luis Felipe acendeu um cigarro, aspirou com força e olhou para o céu.
Depois, continuou a falar.
- Bem, como te estava a dizer, qual é o problema do Peru? É bem claro, filho,
perfeitamente claro. O problema é que os brancos e os mestiços se odeiam, mas também
precisam uns dos outros. Vamos a ver se me entendes: nós, os brancos, não gostamos dos
mestiços, falamos mal deles, achamos que cheiram mal, afastamo-nos deles, estás a
perceber?
- Hum, hum.
- Mas a desgraça é que nós, os brancos, não podemos viver sem os mestiços, Joaquín.
Porque, então quem trabalha para nós, quem são os nossos operários, a nossa
mão-de-obra? Têm de ser os mestiços, é claro. E quem são as nossas empregadas, as
nossas cozinheiras, as nossas lavadeiras? Têm de ser as mestiças, claro.
- Claro.
- E inversamente ou vice-versa (não sei como merda se diz, tu é que deves saber isso
porque és o intelectual da familia), os mestiços também não gostam dos brancos.
Olham-nos com inveja. São uns ressentidos do caraças. Gostariam de ser como nós. Mas
não podem, claro, porque são mestiços, brownies, índios. E o que nasce mestiço, morre
mestiço. Pode ser um mestiço com massa, mestiço branco, mas o que nasce mestiço
morre mestiço, o resto são histórias. E a desgraça onde é que está? É que os mestiços
odeiam-nos, mas também precisam de nós, estás a perceber?
- Hum, hum.
- Porque eles não têm nem a educação, nem o dinheiro, nem a inteligência, para triunfar
no mundo empresarial e dos negócios. Tira um negócio a um branco e dá-o a um mestiço
e verás como vai por água abaixo em menos de um abrir e fechar de olhos. O mestiço tem
de trabalhar para o branco, é essa a lei. Não pode trabalhar sozinho porque se embebeda,
vai às mulheres e acaba por falir. É essa a grande tragédia do Peru: os brancos e os
mestiços odeiam-se, mas não se podem separar.
- Claro.
- Agora, uma pessoa pode sair do Peru, pode vender as suas coisas e mudar-se, como
fizeram tantos amigos meus, mas isso é uma idiotice, porque lá fora não és ninguém, filho.
Lá fora és sempre um estrangeiro, um cidadão de segunda. Para mim, ser latino em Miami
é como ser mestiço em Lima, os Americanos olham-te por cima do ombro.
- Tens razão, papá.
De repente, Luis Felipe calou-se e esmagou um mosquito que o estava a picar num dos
braços.
- Puta que os pariu, estes mosquitos mordem a valer - disse. - Até parece que têm dentes.
Joaquín sorriu e pensou: bem feito, velho parvalhão, que é para não seres teimoso.
- Estou com uma fome descomunal - disse Luis Felipe, ao entrarem no restaurante chinês
do Sonesta. - Tenho tanta fome que comeria uma vaca crua.
Uma mulher de olhos achinesados deu-lhes as boas-vindas e conduziu-os a uma mesa.
Estava pouca gente no restaurante. Tal como em alguns restaurantes chineses de Lima, no
terraço havia um lago artificial com peixes coloridos.
-
Já volto com a lista - disse a mulher, e retirou-se.
Falava espanhol, como a grande maioria dos residentes de Miami.
-
Esta chinesa está muito apetitosa - disse Luis Felipe, olhando para a mulher.
-
Sim, é muito bonita - disse Joaquín.
Que idade terá a chinesinha? - perguntou Luis Felipe. - Vinte, vinte e dois anos. No
máximo. Já deve comer sozinha, não achas?
Riram-se. A mulher voltou com a lista. No peito tinha um cartão com o nome: Kim.
-
Prontos para dizer o que querem?
Prontíssimos - disse Luis Felipe, esfregando as mãos e olhando descaradamente
para o peito da mulher.
-
Que desejam? - perguntou ela.
Luis Felipe pediu vários pratos.
-
Mas há mais uma coisa que desejo - acrescentou, sorrindo.
-
Diga, por favor - disse ela.
-
Desejo-a a si, Kim - disse Luis Felipe.
Ela sorriu, tapando a boca.
-
Isso não se pode pedir, senhor - disse. - Isso não está na lista.
Caramba, que pena! - disse Luis Felipe. - Pagaria o que fosse preciso para passar
uns bons momentos com uma mulher tão bela como você.
Nesse momento, Joaquín odiou o pai. Achou-o um sujeito vulgar, desprezível.
-
Obrigada, é muito amável - disse ela.
Diz-me, a tua passarinha é tão achinesada como os teus olhos? - perguntou Luis
Felipe, e soltou uma gargalhada.
Ela sorriu, mantendo um ar muito profissional, e regressou à cozinha.
Esta chinesa deve ser das que gritam - murmurou Luis Felipe, olhando-lhe para o
traseiro.
- Prepara um whisky para ti, homem - disse Luis Felipe. - Não sejas chato. Olha que o teu
pai te veio visitar.
- Bem, então só um para te acompanhar - disse Luis Felipe.
Estavam de volta no apartamento. Joaquín serviu uma bebida e sentou-se ao lado do pai.
- à tua - disse Luis Felipe.
- à tua e bem-vindo - disse Joaquín.
Fizeram tilintar os copos. Ficaram calados.
-
Joaquín, temos de ter uma conversa de homem para homem.
-
Diz, papá. Podemos falar do que quiseres.
Luis Felipe acendeu um cigarro e expeliu o fumo em forma de anéis.
-
A tua mãe e eu vamos separar-nos - disse, numa voz grave.
Joaquín pôs uma cara surpreendida.
-
Caramba, não sabia - disse.
- Sim, tomámos a decisão de mútuo acordo, por mútuo consentimento, ou como raio se
diz.
-
Caramba, não fazia ideia.
O problema é que a tua mãe não quer a separação porque, como sabes, é uma
fanática da religião. Parece que os padres lá do Opus Dei não a autorizam a separar-se, e
já sabes que ela não mexe um dedo sem consultar os beatos do Opus Dei.
-
Pois é, o Opus Dei é uma calamidade.
Luis Felipe bebeu um golo e cruzou as pernas.
-
É uma pena, porra, porque foram quase trinta anos de casamento - disse.
-
Trinta anos é muito tempo - disse Joaquín.
Mas as coisas já estão lixadas, já não têm arranjo. Estes maricas de merda do Opus
Dei (e desculpa que te fale assim, mas estamos a falar de homem para homem, não é,
filho?), estes paneleiros foram mudando pouco a pouco a tua mãe. Fizeram um trabalho
de sapas para me lixarem e finalmente conseguiram, porque não se pode negar que os
filhos da puta são inteligentes.
Joaquín acenou a cabeça em sinal de concordância.
- Lá isso não se pode negar - disse.
- Quando a conheci, a tua mãe era uma rapariga alegre, uma rapariga normal. Ia à missa e
tinha as suas ideias religiosas, é claro, como qualquer rapariga de boas familias de Lima,
mas não era a fanática da religião que é hoje. Aqueles tipos do Opus Dei foram-lhe
metendo ideias na cabeça, fizeram-lhe crer que sou um merda, que sou seu inimigo. E,
para ela, o que o Opus Dei diz é lei.
- Incrível.
Luis Felipe moveu a mandíbula. Costumava fazer isso quando estava nervoso.
- A tua mãe (não quero dizer mal da tua mãe, tenho muito respeito por ela), a tua mãe
encheu-me o saco, e perdoa-me por te falar assim, com esta franqueza - disse.
-
Não há o menor problema, papá.
Se quero tomar um whisky, a tua mãe aborrece-se, põe má cara, diz-me idiotices.
Diante de convidados diz-me que sou um alcoólico. Como é que me vai dizer uma idiotice
dessas, caraças? Não sou nenhum alcoólico, homem. Acontece é que tomo umas
bebidazinhas para abrandar a tensão, como qualquer homem de negócios de Lima. Se
quero ir almoçar ou jantar com os meus amigos, a velha aborrece-se, diz que não deveria
estar a esbanjar dinheiro com os meus amigos alcoólicos, é assim que aquela idiota me
fala. Que porra! Então eu não posso ir jantar fora com os meus amigos e ela pode fazer
donativos aos maricas do Opus Dei?
Arrotou. Continuou a falar.
Se não vou à missa um domingo, porque trabalhei como uma mula a semana
inteira e no domingo quero ficar na cama a ler os jornais e a ver televisão, a tua mãe fica
fula e a filha da puta da velha não fala comigo durante todo o dia.
-
Que coisa horrível!
Resumindo, depois de um dia de merda, depois de trabalhar na fábrica onde há
turras infiltrados que me querem matar, chego a minha casa, à minha própria casa, e não
posso descontrair. Está lá a tua mãe, para me amargurar a vida. Tudo o que digo está
errado. Só o que dizem os paneleiros do Opus Dei está correcto.
-
Que horror!
-
Isto não pode continuar, filho. Este casamento, perdoa que te fale assim, foi ao ar.
Luis Felipe bebeu mais um golo da bebida e voltou a arrotar. Joaquín ficou calado.
É evidente que vou continuar a sustentar a tua mãe, que não a deixo desamparada
- prosseguiu Luis Felipe. - Mas, isso sim, vou dar-lhe estritamente o dinheiro de que
precisa, bem calculadinho, porque estou de saco cheio de ver como me explora, me saca a
massa para a dar ao Opus Dei. Nem imaginas o montão de dinheiro, cheque atrás de
cheque, que a fanática da tua mãe dá ao Opus Dei.
- O importante é que os dois estejam bem, papá - disse Joaquín. - E se os dois vão estar
melhor separados, acho bem que se separem.
Luis Felipe olhou o filho nos olhos. Foi um olhar duro, inquiridor.
- Então apoias-me? - perguntou-lhe. Joaquín baixou o olhar.
Bem, nem sei o que te hei-de dizer - confessou. - Tudo isto me apanhou de
surpresa, papá.
Porque eu preciso saber se o meu filho mais velho está do meu lado ou do da
mamázinha e dos maricas do Opus Dei - disse Luis Felipe, erguendo a voz.
Eu estou contigo, papá, mas também não estou contra a mamã - disse Joaquín. Estou com os dois.
Luis Felipe deu um murro na mesa.
-
Não se pode estar com os dois, não se pode - gritou.
Joaquín assustou-se.
Ou estás comigo ou estás com ela - gritou Luis Felipe. - Não se pode estar com os
dois. Estás comigo ou com a velha?
-
Estou contigo, papá - disse Joaquín.
Luis Felipe sorriu.
-
É assim que gosto das coisas, filho - disse. - Eu sabia que não me ias falhar.
Mais tarde, enquanto dava voltas na cama, tentando adormecer, Joaquín sentiu-se um
cobarde.
Na manhã seguinte, Joaquín levantou-se da cama, saiu do quarto e encontrou o pai de
cuecas, a preparar o pequeno-almoço.
- Bom dia, filho - disse Luis Felipe.
Era largo de ossos, robusto e peludo. Ao pescoço usava um fio de ouro com uma medalha
da Virgem.
- Olá, papá - disse Joaquín. - O que é que fazes?
- Um pequeno-almoço como o dos militares - respondeu Luis Felipe. - Ovos mexidos com
bacon. Já sabes que o pequeno-almoço é a refeição mais importante do dia.
-
Obrigado, mas eu não tomo.
Vá lá, não sejas maçador, tens de comer bem. Estás magro, pareces um
trinca-espinhas, um pau de virar tripas. No dia em que vier um furacão, leva-te pelos ares
como se fosses uma folhinha de papel.
Riram-se. Joaquín acendeu a televisão. Luis Felipe serviu o pequeno-almoço. Sentaram-se
na mesa da cozinha e comeram em silêncio, a ver as notícias.
- Quem toma banho primeiro? - perguntou Luis Felipe, quando acabaram.
-
Como quiseres - disse Joaquín.
- Então, vou tomar um duchezinho rápido.
Luis Felipe pegou num número da People e entrou para a casa de banho.
Enquanto lavava a loiça, Joaquín lembrou-se de quando ele e o pai tomavam banho
juntos, na casa de Chaclacayo. Todas as manhãs o pai o acordava bem cedo e dizia:
"Vamos tomar um duchezinho rápido." Joaquín não gostava de ir para a casa de banho
com o pai, mas também não se atrevia a dizer-lho. Então, iam juntos para a casa de
banho. Luis Felipe despia-se e metia-se no duche e Joaquín sentava-se na sanita, à espera
que o pai acabasse de tomar banho. Uma manhã, Luis Felipe estava a ensaboar os genitais
e Joaquín observava-o. Luis Felipe perguntou-lhe: "para onde estás a olhar?"; Joaquín
ficou corado e respondeu: "para lado nenhum". E Luis Felipe disse: "a tua pila e as tuas
bolas também te hão-de crescer, quando fores grande", e Joaquín pensou que nunca
queria ter a pila e as bolas como o pai.
Luis Felipe saiu da casa de banho com uma toalha amarrada à cintura.
Pronto - disse. - Toma um duchezinho rápido, porque temos de ir a uma loja em
Hialeah comprar armas.
- Não demoro cinco minutos, papá - disse Joaquín, e entrou na casa de banho
rapidamente.
Depois de se terem perdido várias vezes, Luis Felipe e Joaquín chegaram a uma loja de
armas em Hialeah. Joaquín estava de mau humor, porque o pai não parara de lhe dar
instruçÕes erradas para chegar a Hialeah. Um empregado da loja deu-lhes as boas-vindas.
O tipo falava espanhol. Usava um casaco curto de um tecido leve. Disse que era cubano. A
loja não tinha ar condicionado. O tipo suava.
- Sou um empresário peruano e preciso de comprar mercadoria para a minha protecção
pessoal - disse Luis Felipe.
- Diga-me em que posso servi-lo - disse o vendedor.
- Preciso de armas curtas - disse Luis Felipe.
Temos uma grande variedade de armas curtas, mas, por lei, é preciso fazer uma
encomenda com a devida antecedência - disse o vendedor.
Luis Felipe tirou um cartão do bolso e mostrou-o ao vendedor.
- Venho da parte de Jack - disse, baixando a voz.
-
Caramba - disse o vendedor. - Trago-lhe já o catálogo.
Não é preciso - disse Luis Felipe, e deu-lhe um papel escrito à máquina. - Está aqui
anotado aquilo de que necessito.
O vendedor leu o papel e franziu o sobrolho.
-
A situação no Peru está assim tão má? - perguntou.
-
Muito lixada, muito lixada - disse Luis Felipe.
Joaquín acenou com a cabeça, como que a confirmar.
Bem, se me dão licença, vou buscar o que pediu - disse o vendedor; e passou por
umas cortinas para ir para o armazém da loja.
Ou este gordinho amaneirado me consegue as armas de que preciso ou vou fazê-lo
dançar o mambo ao pontapé - disse Luis Felipe.
Joaquín riu-se.
- Quantas pistolas vais comprar aqui, papá? - perguntou.
Quatro revólveres, não são pistolas - disse Luis Felipe. - O revólver é mais seguro.
Nas pistolas, às vezes a bala encrava.
- São todos para ti?
-
Não. Dois para mim, um para a tua mãe e outro para o meu guarda-costas.
Joaquín lembrou-se de que, quando era pequeno e Luis Felipe lhe oferecia metralhadoras
para brincar, Maricucha lhas tirava logo, dizendo "não quero que saias um maluco pela
guerra como o papá".
- Tens a certeza de que a mamã vai usar uma pistola, papá?
-
A tua mãe vai viver sozinha. Tenho de lhe dar uma protecção.
Ficaram calados.
- Pensando bem, tu também vais precisar de usar uma arma - disse Luis Felipe.
- Obrigado, papá, mas não necessito de uma arma.
- Nunca se sabe, filho, nunca se sabe. Ter um revólver é como ter um preservativo: nunca
se sabe quando vamos precisar dele.
Riram-se. O vendedor voltou do armazém com umas caixas nas mãos.
- Aqui está a sua encomenda, meu estimado amigo - disse; e pôs as caixas no balcão. - Os
quatro Smith & Wesson calibre 38 e as muniçÕes. Oxalá nunca tenha de as usar.
- Oxalá possa usá-las, quer o senhor dizer - corrigiu-o Luis Felipe. - Como me sentiria bem
se pudesse caçar uns quantos terroristas!
- Mão pesada com os comunistas, meu amigo - disse o vendedor. - Nisso estamos total e
matematicamente de acordo.
Luis Felipe puxou do cartão de crédito dourado e pagou a conta.
- E quando é que o cabrão do Fidel cai? - perguntou.
- Deste ano não passa - gritou o vendedor, dando um murro no balcão.
- Isso é o que os Cubanos dizem há trinta anos - disse Luis Felipe, e soltou uma gargalhada.
- Agora, sim, vamos para a praia - disse Luis Felipe, assim que entrou no apartamento de
Joaquín.
Pôs as caixas na cozinha, desceu a temperatura do ar condicionado e tirou um fato de
banho.
- Eu fico mais um bocadinho, para fazer uns telefonemas, papá - disse Joaquín.
Não lhe apetecia ir para a praia e ainda menos com o pai. Nunca gostara de praia. Quando
era miúdo, o pai levava-o todos os anos para o Silencio e ele sofria na praia. Ao chegarem,
a primeira coisa que tinha de fazer era colocar o chapéu-de-sol: Joaquín não sabia fazer
bem o buraco na areia e o chapéu-de-sol acabava sempre por cair. Depois, jogavam
badmington. Joaquín odiava jogar, porque sentia que meia praia se ria ao ver que ele e o
pai jogavam tão mal. Mas o pior era quando tomavam banho: o mar do Silencio tinha um
buraco logo a seguir à borda da água e isso fazia-lhe medo, porque tinha ouvido dizer que
muitas pessoas se haviam afogado nesse buraco, e por isso quando entrava no mar tremia
de medo, benzia-se e não conseguia deixar de pensar: "o buraco vai engolir-me, vai
engolir-me até ao fundo do mar e vou encontrar todos os afogados". Também não
gostava de almoçar com o pai nos restaurantezinhos da praia: odiava comer o peixe
guizado, odiava o hálito que a cebola deixava, odiava provar os mariscos que o pai comia
chupando os dedos. E, por último, a erisipela: Joaquín estava proibido de usar protector,
porque o pai lhe dizia "só os maricas usam protectores e cremes", e por isso cada vez que
voltavam da praia tinha a pele afectada pelo sol e à noite não conseguia dormir porque
todo o corpo lhe ardia, e ele odiava a erisipela, odiava a praia e odiava o pai.
- Então espero-te na praia? - perguntou Luis Felipe.
- Claro, papá - respondeu Joaquín. - Eu vou já.
Luis Felipe mudou de roupa na sala, pôs umas sandálias e enrolou uma toalha sobre os
ombros.
- Vamos a ver que tal estão as americanas - disse com um sorriso malicioso. - Se calhar,
alguma morde o anzol.
Riram-se. Luis Felipe saiu do apartamento. Assim que ficou sozinho, Joaquín limpou a sala
e arrumou-a cuidadosamente. Passeou pela casa e espalhou um aerossol perfumado para
eliminar o cheiro a álcool e a cigarro. Então, viu a carteira do pai. Abriu-a. Viu os cartÕes
de crédito, os seguros médicos, as fotografias da família. De repente, encontrou uma
fotografia que lhe chamou a atenção. Era a fotografia de uma mulher jovem. Não a
conhecia. A mulher era loira. Tinha a boca muito pintada de vermelho. Sorria. Joaquín
virou a fotografia.
Leu: "Ao meu jaguar, com amor." Soltou uma gargalhada. Pôs a fotografia no lugar
onde a encontrara.
- Ai, jaguar, és um coelhinho, sempre pronto a fornicar - murmurou.
Então lembrou-se da mãe. Sentiu pena dela. Pegou no telefone e ligou para ela. Enquanto
ouvia o telefone tocar, lembrou-se de que havia meses que não lhe falava. Nem sequer no
dia dos anos dela, pensou. Irma, uma das empregadas de Luis Felipe e Maricucha, atendeu
o telefone. Joaquín reconheceu a voz dela.
- Irma, bom dia, sou o menino Joaquín - disse. - Passa-me a minha mãe, por favor.
- É para já, menino - disse Irma.
Joaquín nunca sentira simpatia por Irma. Aborrecia-o que Maricucha a mimasse tanto, que
lhe comprasse roupa na Camino Real e a levasse a comer bolos ao Cherrv's.
- Meu amor, a que se deve este milagre? - perguntou Maricucha, assim que pegou no
telefone.
- Nada, mamã - disse Joaquín. - Apeteceu-me simplesmente falar contigo.
- Ai que alegria, querido. Não sei nada de ti. Perdeste-te. Es um ingrato.
- Que novidades me contas daí, mamã? Como tens passado?
- Ai, filho, feliz da vida, como imaginarás, porque o papá ausentou-se durante uns dias e
deixou-nos de férias - disse ela, e riu à gargalhada; ele ouviu Irma a rir também.
- Calculo - disse. - Deves estar aliviadíssima.
- Como se me tivessem tirado um peso de cima, querido.
- Mamã, o papá disse-me que está farto de ti, que se vão separar. É verdade?
- Ai, meu amor, a verdade é que não sei o que hei-de fazer com o teu pai - disse ela.
- Mas, se estás farta dele, que esperas para te separares?
- Desfazer um casamento religioso é pecado mortal, Joaquín. Tenho um compromisso aos
olhos do Senhor.
-
Mamã, por favor, não sejas antiquada.
A fé não passa de moda, meu querido. Só me resta rezar, continuar a carregar a
minha cruz e pedir ao Senhor que me dê forças.
-
Quer dizer que não se vão separar?
- Eu não posso separar-me, meu amor. Não posso fazer uma coisa dessas ao Altíssimo.
Joaquín pensou que a mãe era uma beata e uma tonta e aborreceu-se com ela.
- Mamã, achas que o papá te engana com outras? - perguntou-lhe.
- O teu pai vai ter de prestar contas dos seus pecados a Nosso Senhor - disse Maricucha. Não é a mim que me compete julgá-lo.
- Queres dizer que não te importas que o papá te engane?
- A única coisa que me importa é salvar a minha alma e juntar-me no Céu com os meus
filhos queridíssimos, contigo em primeiro lugar, Joaquín.
Ele soltou uma gargalhada, como que a troçar dela.
- Reza, meu amor - disse ela. - Reza sempre. Não deixes de rezar à estampinha do Padre
que te mandei.
- Reza antes tu por mim.
- Eu todos os dias rezo um mistério do terço por ti, meu amor.
- Bem, mamã, tenho de ir para a praia.
- Tchauzinho, Joaquín. PÕe a tua loção Coppertone porque os raios de Sol provocam
cancros de pele e eu não quero que chegues ao Céu antes de mim, está bem, meu amor?
Joaquín desligou o telefone e pensou que, bem feitas as contas, era compreensível que
Luis Felipe precisasse de vez em quando de uma mulher bem jovem, bem puta e bem loira
que lhe dissesse ao ouvido "sim, meu jaguar, arranha-me, arranha-me", enquanto faziam
amor numa residencial de três estrelas. A seguir, vestiu o fato de banho e foi para a praia.
Essa tarde, depois de almoçar, Luis Felipe deitou-se a dormir a sesta na cama do filho.
Joaquín não suportou ouvir o pai a ressonar. Por isso, foi dar uma volta por Key Biscayne.
Mais tarde, quando regressou ao apartamento, encontrou o pai na sala, a tomar uma
bebida.
- Filho, temos de falar - disse Luis Felipe.
-
Diz, papá - disse Joaquín, e sentou-se ao lado do pai.
- Primeiro, prepara uma bebida para ti.
-
Não, obrigado, papá. Já sabes que não bebo.
- Quem diria que o meu filho iria sair abstémio e não saberia beber... - disse Luis Felipe. Lembro-me sempre do dia em que te embebedaste em casa do teu tio Frederico. Porra,
que figura...
Daquela vez, Luis Felipe levou Joaquín a um almoço em casa do seu cunhado, Federico
Orelíana, um dos advogados mais prósperos de Lima. Quando chegaram a casa de
Orelíana, Joaquín sentiu-se deslocado: só havia adultos no almoço e ele tinha apenas treze
anos. Pouco depois, Luis Felipe disse-lhe: "Já estás crescido, rapaz, toma uma
aguardentezinha para ires aprendendo a beber." Joaquín tomou três aguardentes e
sentiu-se mais descontraído. Então, atreveu-se a intervir na conversa que o pai estava a
ter com os outros senhores. Ele também queria dar a sua opinião sobre os assuntos
políticos. Foi assim que de repente lhes disse "é imperioso que todos os partidos políticos
cheguem a um acordo quanto aos problemas mais críticos da nação". Queria demonstrar
que lia os jornais e que também podia falar como um adulto. Luis Felipe olhou-o,
surpreendido, e disse: "porra, parece que a bebida te subiu à cabeça", e as pessoas que
estavam à sua volta riram à gargalhada. Joaquín sentiu-se muito envergonhado e decidiu
ficar calado. Pouco depois, sentiu-se enjoado. Foi a correr para a casa de banho. Tentou
abrir a porta. Não conseguiu. Estava ocupada. Bateu à porta. Não aguentava mais. Então,
o senador Soto saiu da casa de banho. Joaquín reconheceu-o, porque aparecia muitas
vezes na televisão, e não aguentou mais e vomitou na frente dele, e o senador Soto abriu
a boca, horrorizado, e disse "Porra, que avalanche!", e afastou-se rapidamente.
Olha, filho, vamos direitos ao assunto - disse Luis Felipe. - Agora, quando acordei,
estive a ver os teus livros e a verdade é que fiquei muito preocupado.
Joaquín deu uma vista de olhos aos livros. Notou que estavam fora dos lugares. Luis Felipe
acendeu um cigarro e continuou a falar.
Sabes que não tenho papas na língua - disse. - Sempre gostei de ser directo
contigo. Não li os teus livros nem estou a lê-los, mas fiquei extremamente preocupado.
Joaquín ouvia, mordendo as unhas.
Não me meto na tua vida privada, filho, mas é inadmissível que tenhas todos estes
livros de maricas - acrescentou Luis Felipe. - Isso tem de fazer-te muito mal, rapaz.
Joaquín baixou o olhar. Sentiu que a cara lhe ardia de vergonha.
- Não vais dizer nada? - perguntou Luis Felipe.
- Não - respondeu Joaquín.
Então, Luis Felipe enfureceu-se.
- Não me ponhas a tua carinha de mosca morta, porra - gritou. - Tens de estar doente
para ler essas idiotices. Esses livros são lixo puro. E se te digo isto é porque quero
ajudar-te. És um homem com os tomates no lugar. És meu filho e tens de velar pela honra
do apelido.
Joaquín esboçou um sorriso trocista. Luis Felipe deu um murro na mesa.
- Na minha família não há nem nunca haverá maricas - gritou. permitirei.
Não
o
Em seguida, bebeu um golo e respirou profundamente, como que a tentar acalmar.
- Olha, filho, vamos fazer uma combinação - disse. - Eu dou-te toda a minha ajuda para
que superes esse problema. Ofereço-te a minha ajuda económica, para que vás a todos os
médicos e psiquiatras que quiseres, até ficares curado. Mas, isso sim, ponho uma única
condição: que me prometas que te vais deixar de mariquices e que vais portar-te com um
homem com os tomates no sítio.
- Não posso prometer-te isso, papá - disse Joaquín. - Sentiria que te estou a prometer uma
coisa que não vou poder cumprir. - Idiotices, homem, idiotices - gritou Luis Felipe. - Tu
não queres ser maricas. Tu estás apenas confuso. Tens de reagir de uma vez, filho.
Em seguida, pôs-se de pé com uma certa dificuldade. Parecia cansado.
- Vamos deitar fora estes livros de maricas agora mesmo - disse.
- Traz um saco e vamos começar a curar-te dessa doença.
Bruscamente, Luis Felipe começou a tirar livros das estantes. Joaquín comprara-os nas
livrarias de Miami. Eram contos e romances sobre amores homossexuais.
- Traz um saco, filho. - disse Luis Felipe. - Ajuda-me a deitar fora este lixo.
Joaquín pôs-se de pé. Sentiu que as pernas lhe tremiam.
- Eu não quero deitar fora os meus livros, papá - disse. - Por favor, deixa os meus livros.
Luis Felipe moveu a mandíbula, surpreendido.
- Não te perguntei se os queres deitar fora - gritou. - Disse-te que os vamos deitar fora.
Agora, traz lá o saco, porra.
Joaquín agarrou-se à cabeça e pôs-se a chorar.
- Não chores, porra, não chores - disse Luis Felipe. - Não vou deitar fora os teus livros. Fica
lá com os teus livrinhos de maricas. Se queres ser um paneleiro, que se lixe.
Em seguida, atirou uns quantos livros para a alcatifa, fazendo um gesto de desprezo.
- Mas uma coisa é certa, não fico aqui nem mais um minuto - acrescentou. - Não vou
consentir estas mariquices.
Pegou nas coisas dele e começou a emalá-las.
- Ajuda-me a levar as armas - disse.
Joaquín carregou as caixas que o pai comprara de manhã. Saíram do apartamento,
desceram até à porta do edifício e esperaram ao lado da casinha do porteiro. Luis Felipe
acendeu um cigarro. Joaquín esforçava-se por não chorar. Quando o táxi chegou, Luis
Felipe meteu-se nele e foi-se embora sem dizer uma palavra.
O telefone tocou. Joaquín atendeu. Era Maricucha.
-
Olá, meu amor - disse ela. - Que voz de além-túmulo é essa?
- Olá, mamã? Que contas?
Olha, Joaquín, telefono-te porque fiquei muito preocupada com a tua chamada.
Fiquei a pensar, consultei as minhas amigas e acho que deveria ir para aí quanto antes.
-
Vens para Miami?
Estou muito preocupada, meu amor. É inadmissível que o teu pai tenha ido a tua
casa para te falar mal de mim, da sua mulher, da tua mãe que te adora. Não há direito. É
preciso pôr as coisas no seu lugar.
-
E que ganhas vindo a Miami? Só vais complicar mais as coisas, mamã.
Não, meu amor. Tenho de falar cara a cara com o teu pai. Tenho de ir salvar o meu
casamento.
Ele riu-se.
- Mamã, por favor, o teu casamento já não tem salvação - disse.
Dizes isso porque és um incréu, mas eu vou lutar até ao fim para salvar o meu
casamento.
-
Mamã, caso ainda não saibas, o papá tem uma amante.
Ficaram calados.
-
Filho, por favor, não faltes ao respeito à tua mãe - disse ela.
A sério, mamã. Vi uma fotografia na carteira do papá. É uma pirosa com o cabelo
pintado. Atrás da fotografia dizia: "Ao meu jaguar, com amor."
-
Não inventes coisas, Joaquín. Sempre tiveste tendência para mentir.
-
Juro-te que é verdade, mamã.
-
Bem, então mais uma razão para eu ir a Miami.
Ele arrependeu-se de ter mencionado a fotografia na carteira do pai.
- Mamã, pensa bem - pediu.
Já pensei e repensei, filhinho. Além disso, consultei o meu director espiritual e ele
aprovou inteiramente esta viagem.
-
E que sabe o teu director espiritual de casamentos, se nunca na vida foi casado?
Agora Joaquín estava irritado e não o conseguia dissimular.
- Não vou discutir contigo, meu filhinho - disse ela. - Sei que tens uns anticorpos
tremendos contra a Obra, uma coisa que infelizmente herdaste do teu pai.
Ele ouviu um apito na linha.
-
Mamã, espera um segundinho, que está a entrar outra chamada na linha.
-
Quê?
-
Não desligues. Volto já.
Joaquín carregou num botão e passou para a outra linha.
-
Filho, fala o teu pai - ouviu.
Era a voz rouca de Luis Felipe.
-
Olá, papá, como estás? - disse Joaquín.
- Estou aqui no Sonesta. Por que não vens até cá comer qualquer coisa? Não quero ficar
com o fígado em papas. Não quero partir de Miami zangado contigo.
- Papá, tenho a mamã na outra linha.
-
Onde está a velha?
-
Em Lima.
-
Ah, porra, que susto me pregaste.
-
Parece que a mamã está meio nervosa. Diz que tem vontade de vir a Miami.
-
Disse-te isso?
-
Hum, hum.
-
Passa-ma. Vou meter a velha na ordem.
-
Não posso passar-ta, papá.
Não lhe disseste que tivemos uma pequena discussão, pois não? Não é por isso
que quer vir?
-
Não, papá, como pudeste pensar uma coisa dessas.
A tua mãe está doente, Joaquín. Anda mal dos nervos. Anda a tomar comprimidos,
por isso, tem muito cuidado com o que lhe dizes.
-
Não te preocupes, papá.
Bem, vou telefonar-lhe agora mesmo para a meter na ordem. E aparece, quando
quiseres, para irmos almoçar juntos.
-
Estupendo. Obrigado.
Joaquín voltou à outra linha.
-
Mamã, desculpa, era o papá - disse.
Maricucha já desligara.
Luis Felipe saiu do ascensor do Sonesta; Joaquín já estava à espera dele na recepção. Luis
Felipe deu-lhe uma palmada nas costas e um beijo na cara.
-
Caraças, estás chiquérrimo - disse.
Joaquín sorriu. Vestira o fato mais elegante que tinha.
Mas tenho de fazer-te uma crítica construtiva - disse Luis Felipe, andando em
direcção à porta principal do hotel.
-
Ora diz lá, papá.
- Esse Brut que puseste é perfume de mestiços, filho.
Joaquín sorriu, surpreendido. Efectivamente, antes de ir para o Sonesta pusera um pouco
de Brut.
Obrigado pelo conselho - respondeu, tentando dissimular que o comentário do pai
o aborrecera.
-
Espero que não fiques ofendido, porque a ti não se te pode dizer nada.
-
Não te preocupes, papá.
Saíram do hotel e chamaram um táxi.
-
Achas bem se formos ao Stefano's? - perguntou Luis Felipe.
-
Acho óptimo - respondeu Joaquín.
-
Tenho ouvido dizer que vão lá as melhores febras de Key Biscayne.
- É o que dizem, é o que dizem.
Meteram-se num táxi. Luis Felipe disse ao motorista que os levasse ao Stefanos. O
condutor pôs o carro em andamento.
-
Falei com a velha - disse Luis Felipe.
-
Que te disse? - perguntou Joaquín.
-
Está furiosa porque não a trouxe.
-
Ah, sim?
Sim. Diz que nunca a levo a viajar. Era o levavas, olha. Eu o que quero é descansar
um pouco da louca da tua mãe.
Riram-se.
-
Creio que ela não quer separar-se de ti, papá - disse Joaquín.
- O que acontece é que a idiota está com a menopausa e por isso não pára de me dar cabo
do juízo.
Riram-se de novo, como que celebrando uma nova cumplicidade.
-
Achas que ela vem? - perguntou Joaquín.
Ai dela se vier. Já lhe disse que está terminantemente proibida de usar o cartão de
crédito.
-
Oxalá ela te oiça.
Ficaram calados.
Vou dar-te um conselho - disse Luis Felipe. - Nunca dês um cartão de crédito a uma
mulher. Nunca.
-
Obrigado, papá.
Pouco depois, o taxista parou à porta do Stefanos. Luis Felipe e Joaquín desceram do carro
e entraram no restaurante. Uma mulher jovem levou-os até uma mesa perto da pista de
dança. Havia poucas pessoas a dançar.
- Que quantidade de borrachos - disse Luis Felipe, esfregando as mãos.
- Aposto que são todas cubanas - disse Joaquín.
- Estas cubanas têm o motor fora de bordo, caraças - disse Luis Felipe, com um sorriso
malicioso. - Uns cus tremendos, dignos de um campeonato.
Riram-se. Luis Felipe chamou um empregado e pediu bebidas. O empregado tomou nota e
retirou-se.
- Este só não é mais paneleiro porque não tem tempo para praticar - disse Luis Felipe,
olhando para o empregado e fazendo um gesto de desprezo. Olha como ele anda. Parece
que tem uma moeda no cu.
Riram-se. O empregado voltou com as bebidas. Luis Felipe ergueu o copo.
- à tua e por continuarmos a ser amigos - disse.
- à tua - disse Joaquín.
Os copos tilintaram. Beberam.
- Está uma tipa ao balcão que não pára de olhar para nós - disse Luis Felipe, baixando a
voz.
Joaquín olhou para a mulher ao balcão. Era loira. Sorria.
- Acha-la bonita? - perguntou.
- Bonita? - disse Luis Felipe. - Caraças, está mesmo boa para lhe aplicar a técnica do
helicóptero.
Joaquín riu-se. Por um momento, queria brincar a ser o filho machista e mulherengo que o
pai não tinha encontrado nele.
- Como é a do helicóptero? - perguntou.
- Levantas-lhe o vestido, apoia-la no piano e enfias-lha de pé - disse Luis Felipe, baixando a
voz.
Riram-se. Ela sorriu-lhes.
- Parece que tem comichão na pachacha - disse Luis Felipe. - Por que não a convidas a vir
tomar uma bebida connosco?
- Vamos a ver se morde o anzol - disse Joaquín.
Depois, levantou-se e aproximou-se da mulher.
- Fala espanhol? - perguntou-lhe.
Claro, querido - respondeu ela. - Quem não falar espanhol o melhor que tem a
fazer é sair de Miami.
- O meu pai convida-a a tomar uma bebida na nossa mesa - disse Joaquin.
-
Que amável que é o seu pai - disse ela. - Por mim, encantada.
Joaquín e a mulher aproximaram-se da mesa de Luis Felipe, que se pôs de pé e beijou a
mão da mulher.
-
Que honra poder gozar a sua companhia - disse-lhe.
-
A honra é minha - disse ela.
Sentaram-se os três. Luis Felipe aplaudiu e pediu uma bebida para a mulher.
-
É a mulher mais bela desta ilha - disse-lhe.
Ela sorriu e arranjou o decote.
-
Mil vezes obrigada - disse.
-
Chamo-me Luis Felipe, para a servir. Este é o meu filho Joaquín.
-
Muito prazer. Chamo-me Chantín.
Nos altifalantes do Stefanos começou a ouvir-se um merengue dengoso.
-
Peço-lhe que me dê a honra desta dança, Chantín - disse Luis Felipe.
Chantín levantou-se imediatamente. Parecia estar cheia de vontade de dançar.
-
Por mim, tenho muito prazer.
Luis Felipe e Chantín deram a mão e foram dançar. Joaquín levantou-se e foi à casa de
banho. Quando saiu, viu que o pai continuava a dançar com Chantín. A música era um
nojo. A sala tresandava a fumo. Achou as pessoas muito desagradáveis. Decidiu ir-se
embora, Saiu do Stefanos e foi a pé até ao seu apartamento.
Joaquín estava meio a dormir quando atendeu o telefone. Eram nove e picos da manhã.
Na noite anterior deitara-se tarde. Doía-lhe a cabeça. O cabelo tresandava a fumo.
-
Olá, Joaquín. Que fazes a dormir a estas horas?
Era Luis Felipe.
-
Olá, papá.
-
Que te aconteceu ontem à noite? Desapareceste?
-
Claro. Preferi deixar-te à vontade com a cubana.
Luis Felipe riu-se.
Agradeço esse gesto cavalheiresco da tua parte, rapaz - disse. muito esperto.
-
Que tal as coisas com Chantín?
-
Estupendamente bem. Trouxe-a comigo para o hotel.
-
A sério?
Sempre
foste
Chantín é uma verdadeira fera. Brincámos toda a noite. Caraças, é um bombom, a
cubana. Fez-me sentir um rapaz da tua idade.
Riram-se.
-
Alegra-me por ti - disse Joaquín.
-
Obrigado, obrigado. Ouve, rapagão, por que não vens tomar um brunch connosco?
-
Chantín está aí contigo?
Hum, hum. Está na casa de banho. Deixei-a quase amolgada de tantas lhe ter dado
- disse Luis Felipe; e soltou uma gargalhada.
Joaquín riu sem vontade.
-
Não sei, papá - disse. - É cedo. Não tenho fome.
-
Não me lixes. Não te faças rogado. Não me quero ir embora sem me despedir de ti.
-
Vais-te já embora?
-
Chantín e eu partimos esta tarde num cruzeiro.
-
Caramba!
- Só uns dias. Preciso de descontrair.
- Compreendo.
-
Então, esperamos-te?
-
Está bem. Vou tomar um duche e sigo já para aí.
Pouco depois, Joaquín entrou no Hotel Sonesta.
- Ouve lá, não és peruano? - perguntou-lhe um rapaz.
- Sou - respondeu Joaquín. - Conhecemo-nos?
- Também sou peruano - disse o rapaz. - Vi-te várias vezes no Nirvana.
Era um rapaz baixo, corpulento, de cabelo preto e olhos escuros. Vestia um uniforme
castanho, como os restantes grooms do Sonesta.
- Chamo-me Peter - disse.
- Muito prazer. Joaquín.
Deram um aperto de mão.
- Que fazes por cá? - perguntou Peter.
- Pouca coisa - respondeu Joaquín. - E tu?
Peter olhou para o uniforme que vestia.
- Como vês, uns biscates - disse.
- E que tal é o biscate?
- Mais ou menos. É apenas um começo. Pelo menos, não estou em Lima, compadre. Já
estava farto de Lima.
-
Compreendo, oh, se compreendo... E já estás cá há muito tempo?
- Não muito, no máximo aí há uns seis meses. Comecei a fazer este biscate há cerca de um
mês. Antes, defendia-me vendendo papagaios em Bayside.
- Vendendo papagaios?
- Quando cheguei, fiquei um tempo com uma prima minha e ela tem uma loja de
papagaios em Bayside. Eu ajudava-a a tratar dos papagaios enquanto procurava uma coisa
melhor, mas era lixado porque os papagaios chiavam como o caraças e estavam a pôr-me
surdo. Um dia, fiquei meio louco e estrangulei um papagaio que custava cem dólares e a
minha prima despediu-me.
Riram-se.
- Se calhar, podemos ver-nos um dia destes - disse Joaquín.
- Claro, excelente - disse Peter.
Pediram um papel na recepção e trocaram os números de telefone.
- Bem, tenho de continuar a trabalhar - disse Peter.
- Boa sorte - disse Joaquín.
Deram um aperto de mão. Joaquín continuou a andar e entrou na sala de jantar do hotel.
Luis Felipe e Chantín estavam sentados ao lado da janela, de mão dada.
- Olá, rapagão! - disse Luis Felipe, ao vê-lo.
- Olá, papá - disse Joaquín.
Depois, beijou o pai na cara e estendeu a mão a Chantín. Ela usava o mesmo vestido da
noite anterior.
- Senta-te, senta-te - disse Luis Felipe.
Joaquín sentou-se.
- Lindo dia - disse, olhando para a praia.
- Divino - disse Chantín.
-Vá, serve-te do que quiseres, que o brunch está de comer e chorar por mais.
- Mil vezes obrigado, mas não tenho fome - disse Joaquín.
Porra, nunca tens fome - disse Luis Felipe. - Não entendo estes rapazes de agora
que se alimentam de iogurtes e frutas. Na tua idade, eu bebia três litros de leite por dia,
Joaquín.
-
É por isso que estás tão firme, meu cherry - disse Chantín.
-
Eu cá vou servir-me outra vez - disse Luis Felipe.
Depois, levantou-se e foi à mesa onde estava servido o brunch.
O teu daddy é um homem super charming - disse Chantín, enquanto comia uma
salada de frutas.
-
A sério? - perguntou Joaquín.
-
Charming a valer - disse Chantín. - Um cavalheiro à moda antiga.
-
E tu, a que te dedicas? - perguntou-lhe Joaquín.
Chantín arranjou o decote.
-
Sou professional model - disse.
Joaquín pôs uma cara surpreendida.
-
Caramba, nunca imaginei.
-
Porquê?
-
Não sei. Não pareces modelo. Tens mais cara de secretária.
Chantín soltou uma gargalhada. Depois, bocejou.
-
Dormiste pouco ontem à noite? - perguntou Joaquín.
-
Um poucochinho - respondeu Chantín.
-
É preciso ganhar a vida de alguma maneira, não é?
-
A que te referes?
-
Calculo que trabalhes sempre de noite.
Joaquín estava a ser rude com ela e não conseguia evitá-lo.
-
Olha, darling, se estás assado, pÕe pó de talco e take it easy, okay? - disse Chantín.
-
Deixem passar que aqui vem um homem com fome - disse Luis Felipe.
Pôs o prato em cima da mesa e sentou-se.
-
É preciso recompor as forças depois de uma noite agitada - disse.
A seguir, deu uma palmadinha numa perna de Chantín e sorriu.
-
Ai, és tão wild que fico shy - disse ela.
-
Quer dizer que vão fazer um cruzeiro? - perguntou Joaquín.
-
É verdade, um cruzeirinho de apenas dois dias, para descontrair - disse Luis Felipe.
-
Dentro de uma hora temos de estar no port, papá - disse Chantín.
-
Aonde os leva o cruzeiro, papá? - perguntou Joaquín.
Disse "papá" deliberadamente porque queria incomodar Chantín.
Porra, não me chamem papá, que me fazem sentir um velho de merda - disse Luis
Felipe, e riu-se.
Bem, vão desculpar-me, mas tenho de ir ao drugstore do hotel fazer um shopping
bem quick - disse Chantín.
A seguir, levantou-se e estendeu a mão a Joaquín.
-
Muito prazer e boa sorte nos estudos - disse-lhe.
-
Obrigado - disse Joaquín. - Que te divirtas no cruzeiro!
Chantín saiu da sala de jantar. Luis Felipe deitou-lhe um olhar apreciador.
-
Saiu-me a lotaria e foste tu que me compraste o bilhete, filho -
disse.
Riram-se.
-
Não imaginas como a maldita fode bem - acrescentou, baixando a voz.
-
Calculo - disse Joaquín. - Parece boa como o milho.
Ficaram calados. Luis Felipe comia vorazmente.
Filho, peço que me desculpes as idiotices que te disse sobre os teus livros - disse. Agora entendo que tu és um intelectual, um literato, um homem de letras, de artes
liberais. Não és como a besta do teu pai, que, quando muito, lê a parte A de El Comercio.
-
Não te preocupes, papá.
Mas não contes nada disto à tua mãe. Já sabes que a velha tem uma saúde
delicada. Não convém que saiba estas coisas de homens.
-
De maneira nenhuma, papá. Isto é um segredo entre os dois.
-
Obrigado, filho. Estou extremamente orgulhoso de ti.
Luis Felipe assinou a conta.
Disse a Chantín que da próxima vez tem de arranjar uma amiguinha - disse. Assim, podemos ir os quatro num cruzeiro.
Riram-se. Levantaram-se. Luis Felipe pôs um braço sobre os ombros do filho.
Deixa-me dar-te um conselho de homem para homem, rapaz disse.
Garanto-te que todas as tuas confusÕes e problemas mentais passam imediatamente se
te deixares foder por uma tipa como Chantín.
Joaquín sorriu e pensou: nunca me vais entender, papá.
Acredita em mim, filho - continuou Luis Felipe. - Arranja uma escurinha
mamalhuda e despachada e vais ver como todas as tuas dúvidas intelectuais
desaparecem.
Depois, abraçou Joaquín e entrou para o elevador.
-
Telefono-te quando voltar do cruzeiro - disse, antes de a porta se fechar.
Joaquín e Peter estavam abraçados na cama a ver o programa de Letterman quando o
telefone tocou. Era uma da manhã. Joaquín não quis atender. Preferiu ouvir a voz no
atendedor.
Olá, Joaquín. é a mamã - ouviu. - Estou no aeroporto de Miami, filhinho. Acabo de
chegar. Queria ver se podes vir buscar-me porque, como imaginas, estou perdida, há um
monte de pessoas e de letreiros.
-
Eu bem sabia que esta velha louca vinha - murmurou.
Atendeu o telefone.
-
Mamã, que fazes em Miami? - perguntou.
Joaquín, por favor, que maneiras são essas de receber a tua mamã que tanto gosta
de ti - disse Maricucha. - Deverias estar alegre, por te ter vindo visitar, meu amor.
-
As pessoas telefonam antes de partir de viagem, mamã.
Ai, filho, se soubesses a azáfama em que andei. Cheguei ao avião mesmo à
rectinha.
-
Onde estás neste momento, mamã?
No aeroporto, é claro, filhinho. Já recolhi as malas e tudo. Que horror, os cães a
cheirarem as nossas malas como se fôssemos toxicodependentes, já se viu tamanha falta
de respeito.
-
Espera-me ao pé das InformaçÕes, mamã. Vou já para aí.
-
Sabes alguma coisa do papá?
-
Depois te conto.
-
Conta-me já, nem que seja só uma coisa pequenina.
-
Conto-te quando te for buscar, mamã.
-
Mau. Fico aqui à tua espera.
Desligaram.
Velha louca - disse Joaquín. - Já sabia que havia de vir até cá dar-me cabo da
paciência.
Estava irritado com a mãe. Não lhe apetecia vê-la.
-
Acho que o melhor é cavar daqui - disse Peter.
-
Não me deixes - pediu Joaquín.
Tudo fora muito fácil entre Peter e Joaquín. Joaquín telefonara-lhe, tinham ido comer ao
cais de Miami Beach, ido para o seu apartamento, para não perderem o programa de
Letterman, e acabado a fazer amor.
-
Vou dizer à minha velha que fique no hotel - disse Joaquín.
-
Não podes fazer-lhe isso - disse Peter. - É a tua mãe.
-
Mas eu quero estar contigo. A velha que se lixe, que é para não ser imprudente.
Riram-se e abraçaram-se. Joaquín vestiu-se.
-
Deixo-a num hotel e volto para cá - disse. - Não te preocupes.
Depois, deu um beijo a Peter e saiu do apartamento. Entrou no carro, ligou o ar
condicionado e conduziu a uma velocidade superior aos cento e dez quilómetros horários
permitidos por lei.
Olá, mamã - disse Joaquín a Maricucha, no aeroporto de Miami. - Por que tens
essa cara de assustada?
-
Meu Joaquín adorado - disse Maricucha, sorrindo.
Abraçou o filho e deu-lhe um beijo em cada face. Usava um vestido escuro e sapatos
rasos. Por razÕes morais nunca vestia calças.
Estás magro como um pau de virar tripas, meu amor - disse ela. - Pareces uma
caveira.
-
Vamos sair daqui - disse ele, e pegou na mala da mãe. - Este sítio faz-me náuseas.
Saíram do aeroporto.
-
Maldição - disse ele, quando viu o papel rosado no pára-brisas do carro.
-
Que aconteceu, Joaquincito? - perguntou ela.
-
Acabam de me passar uma multa por ter estacionado mal.
Como são severos os Americanos, já se viu. É por isso que este país funciona às mil
maravilhas.
-
Mamã, cala-te, por favor.
Joaquín abriu o carro, pôs a mala da mãe no banco traseiro e entrou.
Noutros tempos eras mais educadinho e abrias-me a porta primeiro - disse
Maricucha, subindo para o carro. - Devagar, filho, não me vás matar - queixou-se ela.
Ele olhou-a de soslaio.
-
Quem te corta o cabelo, mamã? - perguntou.
Corto-o no Sammy's, que é um boom - disse ela. - Não sabes o êxito que o
Sammy's tem em Lima.
Perdoa a franqueza, mas acho que te fizeram um corte horrível - disse
acendeu a luz e olhou-se ao espelho.
ele.
Ela
Pois eu cá estou contentissima com o meu Sammy's - disse. Ele entrou na
auto-estrada e acelerou. Estava nervoso e de mau
humor.
-
Como ganhaste coragem para vir, mamã? - perguntou.
-
Primeiro, fala-me do papá - disse ela.
Ele sorriu.
-
Partiu ontem para um cruzeiro - disse.
Ela abriu a boca, surpreendida.
-
Não me digas que brigou contigo? - disse.
-
Não - disse ele. - Tivemos uma discussão, mas depois fizemos as pazes.
Que alegria saber isso, porque tu precisas de uma identificação masculina. Se não,
vais continuar com os teus problemas de sempre.
Ficaram calados.
-
Agora, conta-me por que vieste a Miami - pediu ele.
Ela suspirou.
-
Porque tenho de pôr os pontos nos "ii" ao teu pai - disse.
Ele soltou uma gargalhada.
Continuas a mesma ingénua de sempre, mamã - disse. - Pode saber-se onde vais
ficar?
-
Bom, se não houver inconveniente de maior, posso ficar contigo.
-
O problema é que há um pequeno inconveniente, mamã.
Ela levou a mão ao peito.
-
Ai, não me digas - disse, suspirando.
-
Sim, mamã. Lamento, mas tenho um amigo lá em casa.
Não te preocupes, meu amor. Lá nos arranjamos os três. Fico feliz por conhecer o
teu amigo.
-
É impossível, mamã. Lamento, mas é impossível.
Ela beliscou-o nas bochechas..
Não sejas tão egoísta com a tua mãe que te mudou as fraldas, que te tirou o cocó,
que te ensinou a limpar o rabo - disse-lhe, numa voz muito terna.
Ele fingiu ignorá-la. Continuou a conduzir depressa.
Aqui em Brickell há um hotelzinho bom e barato - disse. - Senão, podes sempre
ficar no Sonesta.
Estou morta de curiosidade por conhecer a tua casa, por ver como vives, meu
amor - disse ela
Ele ainda se aborreceu mais.
-
És teimosa como uma mula, mamã - disse.
E não deixes de me apresentar o teu amigo. Sempre disse que deverias ser mais
sociável, Joaquín.
-
É mais do que um amigo, mamã.
Maricucha pestanejou e olhou pela janela, como se não tivesse ouvido nada.
Que maravilha a vista de Miami à noite - disse ela, de repente. Ele parou o carro na
entrada para Key Biscayne, pagou a portagem
e acelerou. Ficaram calados, enquanto entravam na ilha.
Olha para aquele esquilo tão grandote - disse ela, de repente. Um esquilo
atravessou a estrada passando em frente do carro de Joaquín. Este acelerou e esmagou-o.
Que horror! - gritou Maricucha. - Que coisa tão cruel esborrachar assim um
esquilinho tão bonito.
-
Não o vi - disse ele.
Tentaste atropelá-lo - gritou ela. - Como podes ter feito iSSO? Nesta cidade
perdeste toda a tua humanidade, Joaquín.
Um pouco depois, Maricucha tirou o lenço e assoou-se. Estava a chorar.
-
Peter, acorda - sussurrou Joaquín ao ouvido de Peter.
Peter abriu os olhos. Adormecera com a televisão acesa.
-
A minha velha está lá fora - disse Joaquín.
Peter sentou-se na cama, assustado.
-
E agora? - perguntou.
-
Lamento, não consegui evitá-lo - disse Joaquín. - Ela insistiu em vir.
-
Não te preocupes, por mim não há problema - disse Peter.
Saiu da cama. Estava despido. Foi para a casa de banho, pôs água na cara e vestiu-se.
-
Estou pronto - disse. - Já me podes apresentar a minha sogra.
Joaquín riu-se e abraçou-o. Peter sentou-se na sala. Joaquín abriu a porta à mãe.
-
Já podes entrar, mamã - disse.
Maricucha estava parada à porta do apartamento, a espantar os mosquitos.
- Mais um bocadinho e tinhas-me encontrado dessangrada - disse. - Estes mosquitos
tiveram um bom banquete graças a mim.
Entrou no apartamento. Joaquín pegou na mala e entrou atrás dela.
-
Isto ainda cheira ao teu pai - disse Maricucha.
Mamã, este é o meu amigo Peter, que estava a dormir e que por tua culpa teve de
se levantar - disse Joaquín.
-
Muito prazer, minha senhora - disse. - Perdoe a cara de sono
-
Olá, filho - disse ela, arranjando-lhe o colarinho da camisa
Depois, foi dar uma vista de olhos ao apartamento.
-
É lindo o teu apartamento, meu amor - disse. - Está tudo muito bem arranjadinho.
-
Queres tomar alguma coisa, mamã? - perguntou Joaquín.
-
águinha, meu amor, águinha - respondeu
-
Mas não tenho água benta - disse ele, troçando dela.
-
A água benta não se bebe - disse ela, muito séria. - É um sacrilégio.
Joaquín e Peter riram-se.
-
Bem, minha senhora, já são horas de me ir embora - disse Peter.
Não precisas de te ir embora, filho - disse Maricucha. - Fica que cá nos havemos de
arranjar os três.
-
Mas não quero incomodar - disse Peter.
Não incomodas nada, filho, há aqui espaço de sobra para os três - disse ela. - Vão
desculpar-me, mas tenho de ir à casa de banho.
Maricucha entrou na casa de banho das visitas. Peter aproximou-se de Joaquín.
-
O melhor é ir andando - disse, em voz baixa.
-
Fica, homem - disse Joaquín. - A velha que se lixe.
-
Não sei... Não ficará aborrecida?
-
Se ficar, que se lixe, estou-me nas tintas.
Felicito-te, Joaquín, tens a casa de banho que dá gosto - disse. - E
o
higiénico, que maravilha, que macio... porque o papel de Lima até parece lixa.
papel
Joaquín sorriu.
-
Mamã, Peter vai ficar cá a dormir - disse.
-
Mas é claro que sim, por mim, encantada, meninos - disse Maricucha.
-
Tu vais dormir no sofá-cama, que é a cama dos convidados - disse Joaquín à mãe.
Em seguida, abriu o sofá-cama e pôs lençóis lavados.
-
E tu onde vais dormir, Peter? - perguntou Maricucha, surpreendida.
Peter levantou os ombros, sem saber o que dizer.
-
Peter vai dormir no meu quarto - disse Joaquín.
Mas vê lá se não é incómodo para ele - disse Maricucha. - Se calhar, prefere dormir
no sofá-cama e eu durmo contigo, Joaquincito.
-
Como quiser, minha senhora - disse Peter.
Nesse momento, Joaquín odiou a mãe.
Não te preocupes, mamã - disse-lhe, numa voz cortante. - Peter está habituado a
dormir na minha cama.
Maricucha baixou o olhar, brincou com as mãos, fez como se não tivesse ouvido nada.
-
Bem, já é tardíssimo e estou muito cansada - disse.
Joaquín beijou a mãe na face.
-
Dorme bem, mamã - disse.
-
Até amanhã, minha senhora - disse Peter.
Tchauzinho, meninos - disse ela. - E não se esqueçam de agradecer ao Senhor,
antes de se deitarem.
Peter e Joaquín entraram no quarto. Joaquín fechou a porta e correu o fecho.
-
Velha de merda, passa a vida a lixar a paciência das pessoas - sussurrou.
És um estupor - sussurrou Peter. - Como é que tens cara para lhe dizer que estou
habituado a dormir contigo?
Que se lixe, que abra os olhos, que aprenda que há pessoas diferentes dela e dos
seus amiguinhos do Opus Dei.
-
Que é iSSO?
-
É um clube de beatos finaços.
Joaquín apagou a luz do quarto. Despiram-se, meteram-se na cama e abraçaram-se.
-
Fode-me, por favor - sussurrou Joaquín.
-
Não sejas doido - sussurrou Peter. - A tua velha está lá fora.
-
Justamente por isso - sussurrou Joaquín.
Peter e Joaquín uniram os seus corpos.
Na manhã seguinte, Peter levantou-se muito cedo, vestiu-se, deu um beijo a Joaquín e
saiu do apartamento em bicos dos pés. Joaquín continuou a dormir. Pouco depois, às nove
em ponto, tocou o despertador. Então, ligou a televisão, pôs o programa de Donahue,
levantou-se da cama, lavou os dentes e saiu do quarto. Maricucha já estava acordada.
-
Olá, meu amor - disse ela.
Não se tinha ainda maquilhado. Tinha um livro nas mãos.
-
Olá, mamã. Que estás a ler?
-
O meu livrinho de oraçÕes. É a minha leitura de todas as manhãs.
Ele deu-lhe um beijo na cara.
-
Ofereceste o teu dia? - perguntou ela.
-
Ofereci, mamã - mentiu ele.
Ela sorriu.
-
Sempre foste muito piedoso - disse.
Ele empurrou a televisão para a sala. O programa de Donahue estava a começar.
-
Não podes viver sem a televisão ligada - disse ela.
-
Que queres para o pequeno-almoço, mamã? - perguntou ele.
-
Por enquanto, nada. Tenho de ir à missa em jejum.
Ele riu-se.
-
Estás louca? - perguntou. - A que missa pensas ir?
-
A qualquer missa católica, meu amor - respondeu ela.
-
Mas, mamã, estás em Key Biscayne, aqui as pessoas não vão à missa.
Não digas tolices, filhinho. Não posso acreditar que te tenhas tornado tão
descrente.
-
A sério, mamã, aqui não há missas.
-
Há missas em todas as partes do mundo, Joaquín.
Bem, se quiseres, telefono já para as informaçÕes e averiguo onde há missas
católicas em Miami. Entretanto, come qualquer coisa, mamã.
-
Não, obrigada, meu querido.
Por que tens de ser tão sacrificada, mamã? Por que gostas de armar em Santa Rosa
de Lima?
Joaquín estava de novo irritado com a mãe.
Porque, para receber a sagrada comunhão, é preciso estar em jejum há pelo
menos uma hora.
Ele sorriu, como que troçando dela.
Mamã, essas coisas já passaram de moda - disse. - Caso não saibas, nas missas de
Miami vendem popcorn.
-
A fé nunca passa de moda, filhinho - disse ela.
Joaquín telefonou para as informaçÕes e perguntou se havia alguma igreja católica em
Key Biscayne. Não lhe disseram uma palavra e deixaram-no à espera, na linha.
-
Que horror estas coisas que passam na televisão - disse Maricucha.
Agora estava a ver o programa de Donahue.
-
De que estão a falar? - perguntou Joaquín.
Esta mulher que está a falar disse que antes era homem e que decidiu mudar de
sexo e cortou a pilinha em pedacinhos como se fosse chouriço - disse Maricucha.
-
Puxa, que valente!
-
O pior é que a infeliz está arrependida.
A telefonista voltou à linha e deu a Joaquín a direcção e o telefone da igreja católica de
Key Biscayne. Ele anotou os dados num papel e desligou.
- Estás com sorte, mamã - disse - Há uma igreja católica em Key Biscayne.
- Tinha de ser, meu amor. Se não, tu não terias escolhido este sítio para viver.
Joaquín telefonou para o número que a telefonista lhe dera. Respondeu um atendedor de
chamadas. Ouviu o horário das missas. Havia uma às dez. Desligou.
-
Há uma missa dentro de meia hora, mamã - disse.
Ai, que sorte, nesse caso visto-me a correr - disse ela. - Apronta-te, Joaquín, que
temos o tempo contado.
-
Sorry, mas não te acompanho - disse ele.
Ela pôs uma cara triste.
-
É que não sei chegar lá sozinha - disse.
-
Bem, então acompanho-te só até à porta da igreja.
-
Por que não queres assistir à missa, meu amor?
-
Porque me aborreço de morte, mamã.
-
Só os burros se aborrecem, Joaquín.
-
Mamã, deixo-te na igreja e acabou-se. Por favor, não insistas.
Maricucha e Joaquín vestiram-se à pressa. Para provocar a mãe, Joaquín pôs um pólo que
dizia I Can't Even Think Straight. Ao ver o pólo, ela disse-lhe:
-
Ai, Joaquín, que espirituoso que és, se sempre pensaste como um homem direito.
Quando ficaram prontos, saíram do apartamento e meteram-se no carro. A igreja ficava a
poucos quarteirÕes do apartamento. Maricucha e Joaquín fizeram o percurso em silêncio.
Assim que chegaram, Joaquín estacionou o carro em frente da igreja.
- Ai, como sinto a falta da minha igreja de Maria Reina - disse Maricucha, suspirando. - Cá
por mim não troco a minha Lima, a minha Maria Reina, o meu Wong, o meu mendigo, por
nada do mundo.
-
Bem, mamã, deixo-te aqui - disse Joaquín.
Ela pegou na mão do filho.
Entra, meu querido, não sejas rebelde - pediu-lhe. - Ouve a voz do Senhor no teu
coração.
O que oiço são os barulhos do meu estômago, mamã - disse Joaquín. - Estou a
morrer de fome.
Quando fores velho, vais arrepender-te de teres dado tantas bofetadas ao
Altíssimo - disse ela, e desceu do carro.
A caminho do apartamento, Joaquín parou num Seven-Eleven, comprou uma caixa de
donuts e comeu-os todos.
"Sou um alarve", pensou. "Peter vai deixar-me".
Nessa tarde, Maricucha e Joaquín foram almoçar a Miami Beach.
A última vez que o papá me trouxe aqui, isto estava cheio de velhos - disse
Maricucha, arranjando o chapéu. - E olha como está agora: tão lindo, tão colorido, com
tanta gente jovem.
-
Pois é, este sitio está na moda - disse Joaquín.
Estavam sentados num terraço de um restaurante de Ocean Drive, em frente do cais.
É por isso que gosto de viver em Miami, mamã, há pessoas bonitas nas ruas - disse
Joaquín. - Não é como em Lima, que está cheia de carantonhas.
Não fales assim do teu país, da tua gente - pediu Maricucha. - Falar assim do teu
Peru querido é como falares mal da tua família.
Mamã, por favor, não sejas pirosa - disse ele, rindo-se. - O patriotismo é a pior das
piroseiras.
Não sei por que razão os meus filhos me saíram tão antiperuanos - murmurou ela,
e suspirou.
Eu não sou antiperuano, mamã, mas aborrece-me viver no Peru porque é um país
meio selvagem - disse ele.
Ai, meu amor, não armes em muito civilizado, não armes em suíço - disse ela,
sorrindo. - Bem gostas de ler a tua Caretas. Bem gostas de comer o teu doce de milho e
mel, a tua galinha com pimentos picantes, as tuas batatinhas com molho.
-
Isso é verdade, mas também se arranja tudo isso em Miami.
Mas não é igual, nunca é igual, meu filho. Não há nada como viveres na tua terra,
no teu torrão natal.
- Mamã, por favor, estás a falar como uma provinciana - disse ele, com um sorriso trocista.
.
Eu sou bem peruana, bem mestiça. Sou natural de Lima e não renego as minhas
origens.
Tu dás-te ao luxo de armar em grande patriota porque no Peru vives como uma
rainha, mamã.
Ela soltou uma gargalhada.
Que ideia a tua, Joaquín - disse. - Eu vivo apenas como uma senhora da classe
média. Bem, se quiseres, da classe média alta.
-
Não venhas com essa de que és da classe média, mamã. Nunca lavaste um prato.
-
Mas vou todas as manhãs ao mercado e faço as compras sozinha.
Para ser mais correcto, vais ao Wong, para bisbilhotar com as tuas amigas
elegantes.
Que horror, meu amor, que ressentido te tornaste, que amargo te tornou a vida
materialista de Miami - disse ela. - Deverias voltar para Lima, Joaquín. Aqui, estás a
tornar-te um pouquinho egoísta.
-
Esquece, mamã. Não penso regressar a Lima.
Porquê, meu amor? - perguntou ela, com uma voz triste. Porquê esse
ressentimento para com o teu país, a tua gente?
-
Porque quero viver longe do papá e de ti - disse ele, olhando-a nos olhos.
Então, ela deixou cair o garfo no prato.
-
Por que dizes isso? - perguntou, surpreendida.
-
Porque os dois me fizeram muito mal - disse ele.
Ela ficou calada e olhou para o mar. Ficara pálida.
-
Não posso continuar a comer - murmurou.
É a verdade, mamã - disse ele. - Não me deixam viver em paz. Desde miúdo que
me fazem a vida impossível.
Não é verdade, Joaquín. Sempre quis o melhor para ti. Eu nunca vi outra coisa
senão tu, meu amor. É por isso que se me parte a alma quando te vejo assim tão
diminuído, tão amargo, quando poderias estar a fazer grandes coisas.
-
Coisas como quê? - perguntou ele, zangado. - Coisas como quê?
Não sei, poderias estar a estudar filosofia da mente, alta política internacional.
Poderias estar a cultivar a mente super-dotada que Deus te deu. Eu só quero que sejas
feliz, feliz como um passarinho.
Ele riu-se, fazendo um gesto cínico.
Volta para Lima, meu querido - pediu ela. - Continua os teus estudos. Termina a
tua carreira profissional na universidade.
Esquece, mamã. Não me interessa ser advogado e muito menos no Peru, onde
ninguém respeita as leis.
-
Que pena sinto de ti, Joaquín. Pareces uma planta murcha.
Mamã, se vamos falar de plantas murchas, por que não falamos antes do teu
casamento?
Ela pestanejou, um pouco nervosa.
-
A minha relação com o teu pai é um tema muito diferente.
-
Mamã, admite isso, o teu casamento é um fracasso.
-
Ainda o posso salvar - disse ela, com uma voz firme.
Ele sorriu, como que troçando dela.
-
Se soubesses o que o papá diz de ti - disse.
-
O teu pai só diz tolices, quando está com os copos - disse ela.
-
Sabes o que me disse? Disse-me que está farto de ti e ansioso por se separar.
O teu pai nunca me vai abandonar, Joaquín. Tudo o que fez na vida mo deve a
mim.
-
Ah, sim? E então por que não te levou no cruzeiro?
Ela levantou os ombros, como se isso não tivesse importância.
-
Ora, porque precisa de descontrair.
Queres saber a verdade? O papá foi no cruzeiro com uma cubana inapresentável
que engatou numa discoteca.
Ela ficou a olhá-lo nos olhos, surpreendida.
Não vou permitir que me faltes ao respeito desta maneira - disse, numa voz seca e
cortante. - Pede a conta imediatamente e vamo-nos embora daqui.
-
Como quiseres - disse ele.
Chamou o empregado e pediu a conta.
-
Mamã, dás-me o cartão de crédito, por favor? - pediu Joaquín.
-
Já não me apetece convidar-te - disse ela, olhando para o mar. - Paga antes tu.
Joaquín precisava de ver Peter. Eram quatro da tarde e Peter acabava de trabalhar às
cinco, mas Joaquín precisava de o ver naquele momento. Por isso, deixou a mãe no
apartamento e foi de carro até ao Sonesta. No caminho, viu Mónica, uma amiga peruana.
Mónica corria, como todas as tardes. Joaquín acenou-lhe e mandou-lhe um beijo. Tudo
seria mais fácil se eu fosse uma rapariga bonita como ela, pensou. Um pouco mais à
frente, estacionou o carro e entrou no Sonesta.
-
Olá, Joaquincito - ouviu e parou. - Como o mundo é pequeno. Que fazes aqui?
Joaquín voltou-se e viu sua tia Rosita, amiga de sua mãe. Rosita carregava vários
embrulhos. Era evidente que vinha de fazer compras.
-
Olá, tia - disse ele e deu-lhe um beijo na face.
-
Que horror! Que alto que estás! - exclamou Rosita. - Não páras de crescer.
-
Não, tia, há anos que não cresço - disse ele.
Então, devo ser eu que estou a diminuir de altura, filho, porque nós, as velhas,
perdemos um centímetro por ano - disse Rosita e riu-se. - Que estás a fazer por aqui?
-
Ando a fugir da família, tia - disse ele, sorrindo.
A tua mãe já comentou comigo, no grupo das sextas-feiras, que estás meio rebelde
- disse ela.
-
Como está Guillermo? - perguntou ele.
Guillermo e Joaquín tinham estudado juntos no Markham. Uns anos atrás tinham ido
juntos à Reflejos e ao Up and Down, as discotecas que então estavam na moda em Lima.
Ai, se soubesses, estou tão preocupada - disse Rosita. - O meu Guillermo está a
deixar-se arrastar pela vida de boémia. Parte-se-me o coração quando o vejo chegar a
casa num estado lastimoso.
- Não te preocupes, tia, essas coisas são passageiras - disse Joaquín; e viu Peter a sair do
elevador. - Sorry, tia, mas tenho de ir - acrescentou.
Se puderes, escreve uma cartinha a Guillermo - disse ela. - Aconselha-o e
mostra-lhe que a boémia não é um bom caminho.
-
Com certeza, tia - disse ele. - Prometo-te.
Joaquín despediu-se de Rosita e aproximou-se de Peter.
-
Que fazes aqui? - perguntou Peter, surpreendido.
-
Precisava de te ver - disse Joaquín.
-
Espera aqui que vou entregar estas malas.
Peter deixou umas malas na recepção e voltou para o lado de Joaquín.
-
Aconteceu-te alguma coisa? - perguntou-lhe.
-
Podemos ir a um sitio privado?
-
Agora estou a trabalhar.
-
Só cinco minutos, por favor.
Peter olhou pelo canto do olho para os companheiros de trabalho.
-
Sobe ao piso 8 e espera lá por mim - murmurou, sem olhar para Joaquín.
Joaquín entrou no elevador, saiu no piso 8 e esperou uns minutos que lhe pareceram
longos. Peter apareceu quando Joaquín já estava a pensar ir-se embora.
-
Vem cá, despacha-te - disse, abrindo a porta de um quarto.
Entraram no quarto. Peter fechou a porta. A cama estava desfeita.
-
Este quarto acaba de ficar livre - explicou Peter.
Joaquín abraçou-o e deu-lhe um beijo.
-
Preciso de saber se me amas - disse.
Peter pôs uma cara surpreendida.
-
Que tens? - perguntou.
-
Diz que me amas - insistiu Joaquín.
-
Não sei. Acabo de te conhecer.
Beijaram-se de novo.
-
Quero que venhas viver comigo - disse Joaquín.
-
Não sejas louco, mal nos conhecemos.
Joaquín pôs uma mão entre as pernas de Peter.
-
Excitas-me com o teu uniforme de groom - disse.
-
Tenho de ir trabalhar - disse Peter.
Joaquín abriu-lhe a braguilha e ajoelhou-se diante dele.
-
Diz que me amas - pediu.
-
Amo-te - disse Peter, enquanto Joaquín lha chupava.
Pouco depois, Joaquín entrou no apartamento e viu que a mãe adormecera com a
televisão ligada. Apagou-a. Maricucha acordou.
-
Que horror, dormi que nem uma santa - disse ela, e bocejou demoradamente.
Joaquín sentou-se ao lado dela.
- Mamã, lamento ter sido rude contigo durante o almoço - disse.
-
Não te preocupes, filhinho. Não vale a pena chorar sobre leite derramado.
Maricucha não era mulher de rancores. Estava habituada a perdoar.
-
Que te apetece fazer, mamã? - perguntou ele.
-
Adoraria ir às compras.
-
Queres ir a um centro comercial?
-
Não, que ideia. Vamos já aqui perto, ao Wong mais próximo.
Mamã, em Miami não há Wong - explicou ele, a rir. - Essas lojas só existem em
Lima.
Ai que burra que sou - disse ela, levando uma mão ao peito. - Pensei que havia
Wong em todo o lado, que era uma cadeia internacional.
Aprontaram-se, saíram do apartamento e meteram-se no carro.
Diz lá o que achaste de Peter, mamã - pediu ele, enquanto guiava o carro em
direcção ao supermercado de Key Biscayne.
- Bem, que te posso dizer, pareceu-me um rapaz normal - disse Maricucha. - Na verdade,
não me impressionou.
-
Porquê?
Só estive com ele por uns momentos, mas pareceu-me um rapaz tímido, sem
personalidade.
-
Hum, hum.
É bom rapaz, mas não está à tua altura, Joaquincito. Aquele rapaz não chega aos
teus calcanhares.
Joaquín decidiu ficar calado. Não queria discutir de novo com a mãe. Pouco depois,
estacionou o carro em frente do supermercado. Ambos desceram e foram fazer compras.
-
Estou impressionadissima, que maravilha este supermercado - disse ela.
Em seguida, abriu a carteira e tirou um bloco de apontamentos, enquanto Joaquín
empurrava o carrinho metálico.
Isto que sinto agora deve ser a tentação de cair no consumismo, que é uma doença
que o papá condena sem piedade - disse ela, suspirando.
Maricucha e Joaquín percorreram os corredores do supermercado. Ela pôs no carrinho
umas caixas de gelatina e disse: "isto é para a minha lima, a gelatina faz-lhe bem ao cabelo
e às unhas e a infeliz está ficar meio careca"; pôs bolachas de chocolate e disse: "isto é
para a marota de Meche, que adora bolachinhas"; pôs marshmallows e disse: "isto é para
os filhos da Meche, para ver se a sabida finalmente mos baptiza"; pôs uns sacos de
chocolates kisses e disse: "isto para a mamã de lima, que já está com um pé na cova, e
para o meu afilhado Winston, que é um espertalhão"; e pôs latas de caramelos e disse:
"isto para a Natividade, a lavadeira, porque gosta de chupar caramelos quando trata da
roupa"; pôs chocolates de amêndoas e disse: "isto é para Marcelo, que me roubou
colherzinhas do faqueiro de prata, mas o Senhor obriga-me a perdoar e eu perdoo,
perdoo-te Marcelo infeliz, mestiço pilha-galinhas."
Nessa noite, Maricucha e Joaquín deitaram-se cedo porque estavam muito cansados.
-
Baixa o volume, que não consigo rezar - disse Maricucha.
Joaquín baixou o volume da televisão. Era meia-noite. Estava à espera de que começasse
o programa de Letterman. Maricucha estava deitada ao lado dele. Não queria dormir de
novo no sofá da sala. Dizia que era muito duro e que o ar condicionado lhe batia na cara.
Por que não rezas comigo a estampinha do Padre? - perguntou. Tinha uma
estampinha amarela com a fotografia do fundador do Opus Dei.
-
Reza tu por mim - disse ele.
Joaquín lembrou-se da última vez que rezara: fora quando tinha feito o teste da SIDA, em
Miami. Antes de saber os resultados, prometeu a Deus que, se não tivesse SIDA, lutaria
contra os seus desejos homossexuais. O teste deu negativo e a promessa não durou muito
tempo.
Só a estampinha, não sejas mau - insistiu ela. - Faz isso pela tua mamãzinha, que já
está velha.
-
Está bem, mas só a estampinha - disse ele, só para lhe agradar.
Ela beijou-o na cara e deu-lhe a estampa.
-
Lê tu a estampinha - disse-lhe. - Eu sei-a de cor.
Ele acendeu a luz da mesa-de-cabeceira.
O melhor é apagares o televisor para que a nossa energia positiva não se cruze
com as más vibraçÕes que saem da televisão - disse ela.
Ele sorriu e apagou o aparelho.
-
Sentemo-nos, meu filhinho - disse ela. - Rezar deitado não é o melhor.
-
Porquê?
Porque quando rezas deitado a oração sai com pouca vontade, não sobe ao Céu
com a mesma força.
-
Tu deverias ter sido freira, mamã.
Ela sorriu e fechou os olhos. Rezaram juntos a oração ao fundador do Opus Dei.
-
Agora vamos rezar meia novena à Virgem - disse ela.
-
Não, mamã, de modo nenhum. Não exageres.
-
Meia novena, meu amor. Só meia novena. Não sejas mauzinho.
-
Nem meia novena nem três oitavos.
-
Não sei por que mudaste tanto, Joaquín. Em miúdo eras tão piedoso.
-
O que acontece é que já não acredito na Igreja, mamã.
Ela abriu a boca, surpreendida.
-
Que disseste? - perguntou.
Que já não acredito na Igreja - disse ele. - A Igreja tem de se modernizar e aceitar
que está errada em certas coisas.
Como te atreves a dizer que a Igreja está errada? - disse ela, furiosa. - Como te
atreves a ser tão soberbo?
-
Porque eu sei por experiência própria que a Igreja está errada em certas coisas.
-
Como, por exemplo, em quê?
Ele não hesitou um segundo.
-
Como, por exemplo, quanto à homossexualidade - disse.
Ela fez um gesto de asco ao ouvir aquela palavra.
A posição da Igreja é muito clara - disse. - A homossexualidade é um acto
contranatura que ofende o Senhor.
-
Pois eu discordo.
-
Como é que discordas?
-
A homossexualidade é uma coisa muito natural, mamã.
Não digas asneiras, filhinho. Como pode ser natural dois homens fazerem
porcarias?
Ele sentiu-se ofendido. Tentou manter a calma.
-
Se dois homens se amarem, por que é uma porcaria que façam amor? - perguntou.
Dois homens não podem fazer amor, Joaquín. Só existe amor entre um homem e
uma mulher. Não posso crer que a tua mente esteja tão distorcida.
Odiou a mãe. Teve vontade de a pôr fora de casa.
-
És uma intolerante, uma homofóbica - disse-lhe.
-
Uma quê? - perguntou ela, desconcertada.
-
Uma homofóbica.
Ai, que disparate, meu amor. Sou um bocadinho claustrofóbica nos elevadores e
nos aviÕes, mas só isso.
Não consigo falar com ignorantes como tu. Até amanhã, mamã. - Joaquín saiu do
quarto, baixou a temperatura do ar condicionado, para que a mãe não tivesse muito frio,
e deitou-se no sofá-cama. Ouviu os trovÕes. O homem do boletim meteorológico dissera
na televisão que nessa noite ia haver trovoada.
Joaquín ficara sozinho. A mãe fora à missa das dez. Andava nu pelo apartamento quando
o telefone tocou. Atendeu.
-
Olá, Joaquín. Acabo de regressar do cruzeiro. Estou no Sonesta.
-
Olá, papá. Que tal correu?
-
Foi bestial. Estou como novo, recauchutado.
-
Alegro-me muito com isso.
Chantin e eu mandámos brasa como dois pombinhos em lua-de-mel. Foi foder e
foder e foder, e que físico que aquela maldita tem! Eu tenho uma grande resistência, mas
esta cubana é de primeira!
Riram-se.
Não te preocupes, rapagão - continuou Luis Felipe. - Já falei com ela para que,
quando eu voltar para Lima, tu te encarregues de a manter bem afinadinha.
-
Caramba, não seria nada mau.
É um animal a foder, a cubana, e olha que não sou um principiante. Cheguei a dar
oito quecas numa noite.
-
Suponho que não foi com a minha mãe, pois não?
Luis Felipe riu-se.
Não, com a velha não mando brasa há anos - disse. - Ela deita-se, toda feliz, com as
suas estampinhas dos santos. A velha já deve ter dormido com toda a santalhada.
A propósito, a mamã dormiu ontem à noite no meu apartamento Joaquín.
disse
Disse-o num tom distraído, como se fosse algo sem importância.
-
Não me gozes, rapaz - disse Luis Felipe.
-
A sério. A mamã chegou a Miami no dia em que partiste no cruzeiro.
-
Velha irritante, não me deixa descansar sossegado, caraças.
-
Chegou de surpresa. Apareceu sem avisar.
-
Beata de merda. Não lhe disseste nada sobre Chantin, pois não?
Não, papá, como podes pensar uma coisa dessas. Não disse uma palavra acerca de
Chantín.
-
De certeza?
-
Claro que sim.
-
E para que porra veio ela até cá?
-
Diz que para salvar o casamento.
Luis Felipe soltou uma gargalhada.
Esta harpia nunca me vai dar o divórcio - disse. - Os maricas do Opus Dei
meteram-lhe na cabeça que tem de salvar o casamento e a tua mãe é mais teimosa do
que uma grandessissima puta de uma mula.
Para dizer a verdade, papá, parece-me que a separação será muito difícil, a menos
que saias de casa, claro.
Só se fosse um grande estúpido, homem., É precisamente isso o que querem os
maricas do Opus Dei, que ela fique com a casa, para depois a deixar ao Opus Dei, como fez
a maluca da Manuelita Gutiérrez, que deixou ao Opus Dei uma mansão do caraças na
Avenida Pardo.
Nesse momento tocaram à porta do apartamento.
-
Está a chegar a mamã - sussurrou Joaquín.
-
Velha irritante - disse Luis Felipe. - Não lhe digas que telefonei, okay?
-
Okay.
Desligaram. Joaquín abriu a porta. Era Maricucha. Vestia um vestido branco e um chapéu
vermelho.
-
Rezei durante toda a missa para que voltes comigo para Lima - disse, sorrindo.
Ele sorriu e deu-lhe um beijo na cara.
-
Telefonou-me o papá - disse.
Ela levou uma mão ao peito.
-
Telefonou-te do barco? - perguntou, bastante nervosa.
-
Não - respondeu ele. - Já chegou a Miami.
Ela abriu a carteira, tirou um comprimido e meteu-o na boca.
-
Para acalmar Os nervos - disse, e engoliu o comprimido. - E onde está o teu pai?
No Sonesta, com a cubana - disse ele. - Diz que aquela corista não o deixou dormir
sossegado, que pareciam dois pombinhos no seu ninho de amor.
Ela fechou os olhos e baixou a cabeça.
-
Pára, por favor - murmurou.
-
Parecíamos dois pombinhos em lua-de-mel - disse ele, imitando a voz do pai.
-
Basta, filho - gritou Maricucha.
Umas horas mais tarde, Maricucha e Joaquín animaram-se a ir até à praia.
Há que tempos que não vestia um fato de banho, porque, na minha idade, já não
devemos andar por aí a mostrar os presuntos - disse Maricucha, entrando na praia.
Que presuntos, mamã, se estás magríssima? - disse Joaquín. Maricucha vestira um
fato de banho preto e pusera um chapéu de palha. Joaquín besuntara o corpo todo com
creme para se proteger do sol.
Lembras-te daquele Verão, há mil anos, em que fomos à praia todos os dias? perguntou ela.
Claro - respondeu ele. - Lembro-me de que me levavas a Conchán e que o mar era
bravíssimo.
E ficávamos horas e horas na praia. Apanhámos tanto sol que tu ficaste preto,
pretíssimo, e um dia a tua avó Lourdes foi lanchar lá a casa e, quando te viu assim tão
preto, quase ia caindo para o lado. Lembro-me perfeitamente de que disse: mas que
horror, este miúdo parece filho da criadagem.
Riram-se. Andavam à beira-mar, a molhar os pés. Havia pouca gente na praia. Soprava um
vento fresco.
-
Lembro-me de que tinha um amigo salva-vidas em La Herradura - disse ele.
-
Claro, claro. Um mestição com boa figura. Não me lembro do nome dele.
-
Elmer. Elmer Pachas.
Joaquín lembrou-se de Elmer: era um homem novo, moreno, corpulento. Elmer era o
primeiro a chegar à praia e um dos últimos a ir-se embora. Vestia sempre o mesmo fato
de banho: era preto e muito apertado. Joaquín adorava estar com Elmer em La Herradura.
Corriam pela beira-mar, faziam pranchas e abdominais, jogavam fulbito, conversavam
juntos. Além disso, Maricucha oferecia gelados aos dois. Elmer pedia sempre um Corneto;
Joaquín preferia um Magno. Um dia, quando andavam pela praia, Elmer disse a Joaquín:
"não é por nada, mas a tua mãe é giríssima, como gostaria de lhe fazer respiração boca a
boca", e Joaquín riu-se, sem saber o que dizer. Noutro dia, quando estavam os dois a
tomar banho, Elmer disse-lhe: "cada vez que olho para a tua mãe, com as suas pernas
branquinhas, os peitos bem-feitinhos, fico com a picha dura, mesmo dura". Nessa tarde,
no regresso da praia, Joaquín contou à mãe tudo o que Elmer tinha dito dela. Então,
Maricucha ficou furiosa e disse: "o que acontece é que todos os mestiços são manhosos e
sabidos, são como animaizinhos que não sabem controlar os seus instintos". No dia
seguinte, quando chegaram a La Herradura, Maricucha disse a Joaquín: "não quero que
voltes a andar com aquele mestiço, que morde pela calada", e desde então Joaquín deixou
de ser amigo de Elmer.
-
Estás a ver o mesmo que eu? - perguntou Maricucha.
Estava a olhar para um par abraçado no mar. Eram dois rapazes. A água cobria-os até à
cintura.
-
Vejo dois rapazes abraçados - disse Joaquín.
Maricucha parou, tirou os óculos escuros e levou as mãos à cintura.
-
Devo estar a ter visÕes - murmurou.
Joaquín sorriu.
-
Mamã, não sejas tão antiquada - disse.
-
Uma deve ser uma mulher com o cabelo curto, não é?
-
Não, mamã, são os dois homens.
-
Caramba, que par de desavergonhados.
Então, Maricucha aproximou-se da beira-mar.
-
Desavergonhados, amorais - gritou. - Vou chamar a polícia.
Os rapazes riam à gargalhada. Ela continuou a caminhar à beira-mar.
-
O fim do mundo deve estar próximo - murmurou.
Joaquín riu-se da mãe.
-
Por que não vamos até à piscina do Sonesta tomar uma limonada? - sugeriu.
-
Ai, que bom, tenho a garganta sequíssima - disse ela.
Entraram nos duches do hotel e tiraram a areia dos pés. Maricucha olhou para o relógio.
-
Caramba, nem dei pelo meio-dia - disse, fazendo um gesto de preocupação.
-
Que tinhas de fazer? - perguntou Joaquín.
-
Rezar o Angelus - respondeu ela.
Sem perder tempo, saiu do duche e deu o braço ao filho.
-
Rezemos o Angelus pelas almas daqueles dois pobres rapazes -
disse-lhe.
Maricucha e Joaquín rezaram três ave-marias perto dos duches do Sonesta.
"Tenho a certeza de que nunca ninguém aqui tinha rezado o Angelus", pensou ele. Depois,
foram até à piscina do hotel e pediram duas limonadas no bar.
-
Acho que é o papá que está ali deitado do outro lado da piscina - disse Joaquín.
-
O papá? - perguntou Maricucha, surpreendida.
-
Hum, hum - disse Joaquín. - Parece-me.
Luis Felipe e Chantín estavam a apanhar sol do outro lado da piscina.
-
Vamos aproximar-nos, porque estou cada vez mais cegueta - disse Maricucha.
Talvez seja melhor deixarmos isso para mais tarde, mamã - disse Joaquín. - Acho
que o papá não está sozinho.
Não, não, vamos fazer-lhe uma surpresa - insistiu Maricucha. vai ficar contente por nos ver.
De certeza que
Maricucha e Joaquín aproximaram-se de Luis Felipe, que, deitado num colchão, parecia
dormir. A seu lado, Chantín parecia dormir também. Maricucha tirou a palhinha da
limonada e meteu-a numa das orelhas do marido. Luis Felipe coçou a orelha, sem abrir os
olhos. Ela meteu outra vez a palhinha. Então Luis Felipe acordou.
-
Caramba, que fazem aqui? - perguntou.
Sentou-se no colchão. Olhou pelo canto do olho para Chantín. Forçou um SOrriSo.
Viemos tomar uma limonadazinha e Joaquín viu-te - disse Maricucha, com uma voz
muito doce.
Eu disse à mamã que era melhor telefonar-te mais tarde - disse Joaquín, como que
desculpando-se.
- Não me vais dar um beijinho? - perguntou Maricucha. - Não me vais dar as boas-vindas a
Miami?
Luis Felipe levantou-se e beijou Maricucha sem grande vontade.
-
Vamos tomar qualquer coisa - disse. - Estou a morrer de sede.
Quem é esta senhora? - perguntou Maricucha, apontando para Chantín. - Não ma
apresentaste.
Luis Felipe pôs uma cara surpreendida.
-
A quem te referes? - perguntou.
-
à tua amiga, claro - disse Maricucha.
-
Não é minha amiga, bem gostaria de a conhecer - disse Luis Felipe.
Depois, virou as costas à mulher e dirigiu-se ao bar. Maricucha passou ao lado de Chantín
e olhou-a de cima abaixo.
Mulher ruim e desavergonhada, vou denunciar-te à polícia - murmurou e
continuou a andar.
Pouco depois, Maricucha, Luis Felipe e Joaquín reuniram-se no bar da piscina.
-
A este encontro familiar - disse Luis Felipe, erguendo o copo.
-
à vossa - disse Joaquín.
Maricucha levantou o copo de limonada.
-
à vossa - disse de má vontade.
Luis Felipe bebeu um golo e mergulhou na piscina.
-
Está óptima - gritou.
-
Velho descarado, sem vergonha - murmurou Maricucha.
Depois de ter tomado banho, Luis Felipe foi ao quarto mudar de roupa. Maricucha e
Joaquín ficaram à espera dele no bar da piscina. Chantín continuava deitada no colchão.
- Espera um bocadinho que vou falar com aquela rapariga que está ali em frente - disse
Maricucha.
- Mamã, por favor, deixa-a sossegada - pediu Joaquín.
- Tenho de lhe dar um conselho, para que se afaste do mau caminho, meu amor.
A seguir, levantou-se e aproximou-se de Chantín. Joaquín seguiu-a.
- Desculpe se a interrompo, mas gostaria de falar consigo - disse Maricucha, sentando-se
no colchão onde antes estivera Luis Felipe.
Chantín manteve os olhos fechados. Maricucha pegou-lhe por um braço.
- Oiça, estou a falar consigo - disse-lhe.
Chantín abriu os olhos e pôs uma cara desconcertada.
- I don't speak Spanish, lady - disse.
- Não te faças de parva, filha, que o teu inglês não engana - disse Maricucha.
- Fala assim por inveja, porque de certeza que não fala a ponta de um corno de inglês disse Chantin.
- Olha que aprendeste a falar espanhol bem depressinha - disse Maricucha.
Chantín tinha a parte superior do biquini desapertada.
- Apertas-me o biquini, querido? - pediu a Joaquín.
- Com certeza, encantado - disse ele.
- É melhor ajudar-te eu - disse Maricucha. - Não quero que corrompas o meu Joaquín.
Pegou no biquini de Chantín e apertou-o por trás. Chantín sentou-se no colchão e limpou
o suor da testa.
- Que bela peitaça que tem Juana, a cubana - murmurou Maricucha, num tom trocista.
- Em que posso servi-la, lady? - perguntou Chantín.
Maricucha tirou os óculos escuros.
- Olha, menina, vou dar-te um conselho - disse, baixando a voz e olhando Chantin nos
olhos. - Não te metas com homens casados, está bem? Isso não é próprio de uma mulher
decente.
Oiça, lady, isto já é um abuso da sua parte - disse Chantín. - Em primeiro lugar, não
a conheço de lado nenhum e não sei a que propósito me vem dar estes tips.
- Olha, desavergonhada de cabelo pintado (e perdoa que te fale assim, filha, mas é o que
tu és) com quem pensas que estás a falar, hem? Julgas que não sei que tiv'este
intimidades com o meu marido. Julgas que não tenho conhecimento do cruzeiro que
fizeste o malandro do meu marido pagar-te? - disse Maricucha.
- Para que fique a saber, não conheço o seu maridinho - disse Chantín.
A seguir, pôs-se de pé e enrolou uma toalha à cintura.
Sim, sim, o melhor é tapares os presuntos, se não vê-se-te a celulite toda disse-lhe Maricucha.
Por alguma razão o seu marido procura mulheres jovens e, bem dotadas como a
minha pessoa - disse Chantín. - Certamente é uma mulher frígida que já não lhe provoca a
menor excitação sensual.
Maricucha soltou uma gargalhada.
- Que rebuscadinha que me saiu a desavergonhada - disse. Eu serei frígida, mas
isso tem cura, filha. Em compensação, tu és uma puta, e isso não tem cura.
Chantín não respondeu. Fazendo um gesto de desprezo, virou-lhe as costas e dirigiu-se à
praia
Nunca te metas com mulheres destas, meu amor - pediu .Mari- cucha a Joaquín. Estas desavergonhadas só procuram a fornicação pelo prazer em si, não pelo milagre da
reprodução.
Para que porra me serve chegar aos oitenta anos se não posso comer um
hamburger saboroso? - perguntou Luis Felipe, e deu uma dentada no seu hamburger
duplo.
Apesar de Maricucha e Joaquín não apreciarem hamburgers, Luis Felipe tinha insistido em
que fossem a um MacDonalds.
Quando te der um petetéu pela quantidade de gordura que comes, vou ser a
primeira a rir, Luis Felipe - disse Maricucha.
Sei muito bem que vais' ser a primeira a festejar, mulher - disse Luis Felipe. - Tu e
os teus amigos do Opus Dei vão dar uma festa no dia em que eu morrer.
Maricucha soltou uma gargalhada.
- Luis Felipe, por favor, não fales assim diante do nosso filho - pediu.
- Faz-me um favor, mulher, o nosso filho já é um grande paspalhão - disse Luis Felipe.
Joaquín sentiu que o pai continuava furioso com ele. Sabia que, quando lhe chamava
paspalhão, na realidade queria chamar-lhe parvalhão, maricas.
- Além disso, não gosto que digas mal da Obra - disse Maricucha.
Luis Felipe mexeu a mandíbula.
- De que obra estás a falar? - perguntou. - De uma obra de arte? De uma obra de
construção?
- Não te faças tonto, Luis Felipe - disse Maricucha. - Sabes muito bem que, quando falo da
Obra, me refiro ao Opus Dei.
Luis Felipe costumava ficar de mau humor quando a mulher falava do Opus Dei.
- Olha, mulher, vou pedir-te um favor - disse. - Na minha frente não voltes a dizer a Obra,
okay? Diz Opus Dei, está bem? Fico de saco completamente cheio quando dizes a Obra,
com a tua carinha de beata de merda.
A seguir, deu uma grande dentada no hamburger. Um pedaço de carne escorregou-lhe e
caiu na bandeja de plástico.
- Badamerda! - disse; e deu um murro na mesa.
Maricucha soltou uma gargalhada.
- De que te ris? - perguntou Luis Filipe
Joaquín não conseguiu conter o riso.
- De que te ris tu também? - perguntou Luis Felipe.
- De nada - disse Joaquín.
- Grande paspalhão, a rir com cara de parvo, com as suas batatas fritas porque os
hamburgers lhe metem nojo - disse Luis Felipe, fazendo um gesto de desprezo.
Joaquín sentiu, mais uma vez, que odiava o pai. Maricucha continuava a rir. A sua cara
estava a ficar vermelha de tanto rir.
- Maldita a hora em que casei com uma beata - disse Luis Felipe. - Deveria ter casado com
a americana Maddie.
- Não deveria repeti-lo, mas disseram-me que a pobre da Maddie está com problemas de
alcoolismo - disse Maricucha.
- Preferia sinceramente estar casado com uma mulher que tomasse uns whiskies do que
com uma beata que passa a vida com os seus amigos maricas e as suas amigas fufas do
Opus Dei - disse Luis Felipe.
Então, Maricucha levantou-se e olhou severamente para o marido.
Os membros da Obra não são maricas nem fufas, Luis Felipe - disse. - Não fales
assim, que Deus castiga-te.
São uns paneleiros tremendos esses numerários ou super-numerários ou como
porra se chamam, todos metidinhos na mesma casa disse Luis Felipe. - Calculo as
orgias que farão lá dentro.
Maricucha abanou a cabeça indignada.
- Falas mal dos membros 'da Obra porque ficaste manchado perante eles.
Luis Felipe riu de uma maneira algo forçada.
- Não digas idiotices, mulher - disse.
-
Sabes bem a que mancha me refiro, Luis Felipe - disse Maricucha.
Alguém quer mais uma Coca-Cola? - perguntou Joaquín, procurando mudar de
assunto
- E tu a dares-lhe com a tua maldita mancha, porra - disse Luis Felipe. - Já te disse mil
vezes que aquela Angela armava em freira canonizada mas, no fundo, a passarinha bem
lhe mordia.
- Foste tu que a corrompeste - disse Maricucha erguendo a voz. - Tu arruinaste a vida dela.
Por tua culpa, Angela teve de abandonar a Obra. Agora, a infeliz está desfeita.
- De certeza que ninguém quer outra Coca-Cola? - insistiu Joaquín.
- Não digas idiotices, mulher - disse Luis Felipe. - Eu não a violei. Ela bem gostou.
- Tu corrompeste a pobre da Angela, e quando ela contou tudo, a tua reputação perante
os membros da Obra ficou de rastos - disse Maricucha. - É por isso que te empenhas em
dizer mal deles, porque não és capaz de viver uma vida de santidade como eles.
Luis Felipe riu-se com arrogância.
- Idiotices - disse. - Estou a cagar-me para ser santo. O que quero é gozar a vida. Não
quero cravar espinhos no cu para ser santo.
- Contigo não se pode falar, Luis Felipe, porque levas tudo para o campo da grosseria disse Maricucha.
- Bem, se não te podes rebaixar a falar comigo, por que não vais viver com as fufas do
Opus Dei? - perguntou Luis Felipe, levantando a voz.
Porque quero salvar o meu casamento e salvar a tua alma - disse Maricucha. Porque quero que purifiques a tua alma manchada.
- Quer dizer que tu não estás manchada? - gritou Luis Felipe. Quer dizer que tu não estás
manchada?
Pegou no frasco de ketchup, apontou-o na direcção da mulher e apertou-o com força. Um
pedaço de ketchup saiu disparado e caiu no peito de Maricucha.
-
Agora já estás manchada - disse Luis Felipe. - Agora estamos todos manchados.
Enquanto Maricucha limpava o vestido com um guardanapo de papel, Luis Felipe acendeu
um cigarro.
- Uma mulher beata e um filho maricas - murmurou. - Porra, que azar! Por que não casei
com a americana Maddie!
- O telefone está a tocar, meu amor - disse Maricucha. - Acorda. Atende.
Joaquín abriu os olhos e ouviu a campainha do telefone. Ao regressarem do MacDonald's
tinham adormecido a ouvir um disco de Edith Piaf.
- Atende, meu amor - disse ela. - Deve ser o papá, que está arrependido.
Joaquín respondeu antes do atendedor de chamadas.
- Olá, filho, que estavam a fazer?
Era Luis Felipe. Tinha voz de quem estava arrependido.
- Nada, estávamos a descansar - disse Joaquín, e ligou a televisão.
- Ouve, acho que fui um bocado malcriado com a tua mãe, não fui?
- Sim, talvez.
Maricucha pegou no controlo remoto e mudou de canal até encontrar o canal em
espanhol.
- Cristina - gritou, sorrindo, e aumentou o volume.
- Ouve, estou aqui na varanda do meu quarto a tomar uma bebida e a ver o pôr-do-sol e
lembrou-me que, se calhar, lhes apetece dar um salto até aqui para conversarmos - disse
Luis Felipe.
- Claro, parece uma boa ideia - disse Joaquín.
-
Ou tinham algum plano?
- Não, papá, não tínhamos nenhum plano.
- Então, apareçam por aqui, quando lhes apetecer. Podemos mandar vir uns drinks e uns
queijinhos.
-
Perfeito. Daqui a um bocadinho estamos aí.
- Então fico à vossa espera.
Desligaram.
- O papá diz para irmos até ao quarto dele comer qualquer coisa - disse Joaquín.
Maricucha sorriu.
- Já sabia que se iria arrepender - disse. - O teu pai não muda.
- Mas mostra-te ressentida, mamã. Não lhe perdoes logo. Senão, vai continuar a tratar-te
mal.
O primeiro dever de um cristão é saber perdoar o próximo, meu amor - disse
Maricucha.
A seguir, calçou-se, foi à cozinha e abriu o frigorífico.
- Ai, que horror, meu filho, pensei que eras abstémio - gritou.
- Não, mamã, são as bebidas que comprei para o papá - disse ele, saltando da cama.
- Vamos deitar fora esse veneno agora mesmo - disse ela.
Tirou as cervejas e começou a despejá-las no lava-loiça.
- Mamã, não sejas arrebatada - disse ele, rindo-se.
- Gostas do teu pai, Joaquín? - perguntou ela, muito séria.
-
Suponho que um bocadinho - disse ele.
- Então, não lhe podes dar veneno - disse ela, e continuou a despejar as cervejas no
lava-loiça.
-
As bebidas alcoólicas não são veneno - disse ele.
Meu amor, as bebidas alcoólicas são uma coisa maligna que embrutece os homens
e os transforma em animais - disse ela. - A bebida é a perdição do teu pai.
Assim que acabou de esvaziar as cervejas no lava-loiça, começou a deitar fora o vinho.
- É melhor não deitares fora o vinhinho - disse ele. - Nem que seja para tomarmos um
copinho a meias.
- Mas a mim o vinho faz-me um sono horrível - disse ela.
- Ai, mamã, que chata que tu és.
Ficaram calados. Olharam-se nos olhos.
- Já que falas nisso, que tentação - disse ela.
-
Brindemos - disse ele.
-
Bem, já que insistes.
Ele serviu dois copos de vinho.
-
A sério que pensas que o papá é alcoólico? - perguntou Joaquín.
-
Alcoólico, paranóico e esquizofrénico.
-
Então, ao esquizofrénico.
Brindaram. Beberam um pouco de vinho.
Só um bocadinho, porque a bebida diminui as nossas defesas morais e faz-nos cair
nas tentaçÕes.
Depois, arranjaram-se, saíram do apartamento e foram para o carro. Estava um calor
sufocante. Os assentos escaldavam. Havia mosquitos por todo o lado.
-
Não há nada como o clima temperado da minha Lima querida - disse ela.
Joaquín saiu do edifício, parou no Seven-Eleven e comprou o jornal.
-
Vê lá se há alguma novidade do Peru - disse ele à mãe.
Maricucha olhou com atenção para a primeira página do jornal Las Américas.
-
Carro armadilhado explode em Lima, três mortos, doze feridos - disse.
Quando irás entender que já não se pode viver em Lima, mamã? - perguntou
Joaquín.
Uns momentos depois, Maricucha e Joaquín batiam à porta de um quarto do Sonesta. Luis
Felipe não demorou a abrir a porta. Estava em fato de banho. Cheirava a álcool.
-
Entrem, entrem - disse, sorrindo. - Que bom terem vindo.
Luis Felipe beijou a mulher na cara, como que a pedir-lhe desculpa.
-
Vamos para a varanda, lá está fresquinho - disse.
Foram os três para a varanda. Via-se o mar azul-turquesa de Key Biscayne e, ao longe,
algumas embarcaçÕes.
-
Que vista maravilhosa - disse Maricucha.
-
Deveríamos tirar umas fotografias - disse Luis Felipe.
-
Ai, que boa ideia - disse Maricucha.
-
Vou buscar a máquina fotográfica - disse Luis Felipe, e entrou no quarto.
Adorava tirar fotografias quando estava meio bêbedo. Joaquín aproximou-se da mãe.
- Tens razão, o papá é um esquizofrénico - disse-lhe, baixando a voz. - Agora
transformou-se num anjinho.
No fundo, o teu pai é um homem excelente - disse ela. - O que acontece é que tem
muitas tensÕes.
- Está meio entornado, não está?
-
Que havemos de fazer, filhinho, temos de perdoar-lhe os vícios.
Luis Felipe voltou para a varanda com uma máquina fotográfica.
No fim de contas somos uma família unida e vamos manter-nos monoliticamente
unidos até ao fim - disse sorrindo.
- Até ao fim - disse Maricucha.
- Vá, filho, tira-nos uma fotografia à tua mãe e a mim - disse Luis Felipe.
- Claro, papá, com muito prazer - disse Joaquín.
Luis Felipe deu-lhe a máquina e abraçou Maricucha.
- Trinta anos de casados, como o tempo passa, porra - disse.
- Ai, Luis Felipe, não digas tantos palavrÕes - disse ela.
- Trinta anos e ainda te amo como ao princípio - disse Luis Felipe. - És uma velha chata,
mas ainda te amo, Maricuchita.
Então, tentou dar-lhe um beijo.
-
Ui, estás ébrio - disse ela.
Luis Felipe deu um beijo na cara de Maricucha.
Que lixada que és, mulher, que difícil te fazes - disse. - É por isso que te amo tanto,
porque te fazes cara.
Ai, Luis Felipe, que horror - disse ela, rindo. - Não digas essas grosserias diante do
nosso filho.
Joaquín estava a observá-los através da máquina fotográfica.
- Vá lá, filhinho, tira umas fotografias.
- Espera que vou pousar o copo - disse Luis Felipe. - Um senhor nunca aparece a beber
numa fotografia.
Pousou o copo e abraçou Maricucha. Joaquín tirou-lhes várias fotografias.
-
Agora uma fotografia dos três juntos - gritou Luis Felipe.
Maricucha riu à gargalhada.
- Ai, Luis Felipe, como se nota que estás com os copos, quem é que tira a fotografia? disse.
-
Esta máquina tira fotografias sozinha, velha - disse Luis Felipe.
- Não posso acreditar - disse Maricucha, surpreendida. - É incrível como a ciência avança.
- Vou fazer uma assinatura das SelecçÕes para ti, para que te mantenhas actualizada disse Luis Felipe.
- Primeiro, deixa-me consultar o meu guia espiritual - disse Maricucha. - Nunca se sabe por
onde é que o demónio chega a um lar cristão.
- As SelecçÕes são uma revista muito moral, não tem mulheres nuas nem nada disso disse Luis Felipe, preparando a máquina. Está pronta, sorriam todos - gritou.
Depois, correu e abraçou Maricucha e Joaquín. Sorriram os três e ouviram um cli que.
Assim que chegou ao apartamento, Joaquín abriu a mala da mãe. A mala cheirava a
perfumes. Tirou as blusas, as saias, os vestidos. Cheirou cada uma das peças. Tirou a roupa
interior da mãe. Despiu-se.
"Se fosse mulher, seria putíssima", pensou.
Estava sozinho no apartamento. Os pais tinham ficado no Sonesta. Olhou-se ao espelho.
"A única coisa que agradeço aos meus pais é terem-me dado um belo rabo", pensou.
Pôs umas cuecas da mãe. Olhou-se ao espelho. Lambeu a sua imagem no espelho.
"Preciso de um homem que me faça feliz", pensou.
O telefone tocou. Assustou-se. Correu para ele em cuecas. Atendeu.
- Estou?
- Onde foste buscar essa voz tão engraçada, filhinho?
-
Mamã, que surpresa.
- Estavas na casa de banho?
- Não, estava a ler.
- Pois é, sempre foste o intelectual da família. Ouve, Joaquincito, telefono para te avisar
de que fico a dormir com o papá.
-
Caramba, que boa notícia.
-
O papá insistiu em que ficasse.
- Claro, óptimo.
- Não queres vir comer connosco a um restaurante chinês?
- Mamã, por favor, não me fales de comida. Estou cheiíssimo.
- Diz que vais sentir a minha falta, filhinho.
- Vou sentir a tua falta, mamã.
-
Assim já posso dormir sossegada - disse ela, e desligou.
Joaquín desligou o telefone e entrou na casa de banho. Pintou os lábios com o baton da
mãe. Beijou a sua imagem no espelho. Deixou uma mancha vermelha. Pegou no telefone
e ligou para Peter.
- Preciso que venhas - disse-lhe.
-
Aconteceu alguma coisa de mal? - perguntou Peter.
-
Hum, hum.
- Que aconteceu?
-
Sinto muitíssimo a tua falta.
Peter riu-se.
- Es uma doida perdida - disse.
- Perdidamente apaixonada por ti.
- Não digas idiotices.
- Vens ou não?
- Não sei, estava a ver televisão, estava a pensar mandar vir uma pizza.
-
Se vieres, faço um prato delicioso e faço tudo o que pedires.
- Tudo o que eu pedir?
- Tudo o que pedires.
- Então vou já para aí.
Desligaram. Joaquín vestiu um soutien da mãe. As caixas pareciam enrugadas. Encheu-as
com papel higiénico. Depois pôs espuma nas pernas e rapou os pêlos.
"Estás quase a parecer uma rapariga", pensou.
Maquilhou-se, enfiou um vestido preto e olhou-se ao espelho.
"Divina. Passarias por uma menina do Villa Maria", pensou.
Depois, foi para a sala e pôs um disco de Edith Piaf. Fechou a mala, serviu-se um copo de
vinho e sentou-se à espera de Peter. Pouco depois, a campainha tocou. Abriu a porta.
Peter riu-se.
- Que fizeste, parvalhão? - perguntou-lhe, surpreendido.
Joaquín beijou-o nos lábios.
- Esta noite, chama-me Edith - pediu.
Na manhã seguinte, quando Joaquín acordou, Peter já se tinha ido embora. Como não lhe
apetecia levantar-se, ligou a televisão e ficou a ver um dos noticiários da manhã. Não lhe
interessava o que diziam. Só reparava nas gravatas, nos óculos, nas argolas, nos vestidos
das pessoas que apareciam na televisão. Pouco depois, apagou o aparelho. Levantou-se
preguiçosamente e abriu as janelas. O sol já nascera. Pegou na roupa da mãe e meteu-a
na mala. Estava arrependido de se ter vestido de mulher na noite anterior. Lentamente,
vestiu um calção de banho, pôs um chapéu e espalhou creme para se proteger do sol. Foi
até à praia. Pequenas lagartixas fugiram quando passou por elas. O sol começava a
queimar. A areia parecia arder. Teve de correr para não queimar os pés. Molhou-os à
beira-mar. A água estava morna. Entrou no mar. Sentiu as pernas barbeadas, os testículos
e a barriga humedecerem. Ajoelhou-se na areia. A água mal se mexia. Umas ondas muito
leves acariciavam o seu corpo. Puxou os calçÕes de banho para baixo. Sentiu o seu sexo
livre, mexendo-se no mar morno. Fechou os olhos. Lembrou-se de uma manhã no mar de
Boca Chica, na República Dominicana. Daquela vez, entrara pelo mar dentro sem perder o
pé e estava a espiar os pares que se beijavam quando um rapaz magro e moreno se
aproximou dele e lhe disse: "bom dia, mister, não fique muito tempo na água porque o
mar está sujo por tanta gente transar aqui", e Joaquín disse-lhe: "desculpa, mas não sou
daqui, que significa transar?", e o moreno riu-se e disse: "transar é acasalar, fazer o acto
de penetração sexual, aqui nestas mesmas águas não imagina quantas pessoas transaram,
agora mesmo aqueles pares de namorados que estão lá longe estão a transar que nem
uns loucos", e Joaquín sorriu e disse: "quer dizer que se transa muito aqui em Santo
Domingo, hem?", e o moreno disse: "o único dominicano que não transa é o presidente,
que está velho e cego dos olhos; os outros todos transam que nem uns doidos", e Joaquín
disse: "que sorte, caramba, que inveja", e o moreno sempre a sorrir disse: "vê aquelas
tendas ali? As pessoas enfiam-se lá dentro para transar, se quiser posso mostrar-lhe", e
Joaquín disse-lhe que achava uma boa ideia; saíram os dois do mar e antes de entrar
numa das barracas que havia na praia o moreno disse: "é preciso pagar quarenta pesos
para ver como cá se transa", e Joaquín deu-lhe o dinheiro e entraram numa barraca, e o
moreno correu o fecho da tenda, despiu o fato de banho e mostrou-lhe o sexo, e Joaquín
deitou-se de costas e o moreno fez amor com ele como se estivesse a dançar um
merengue.
- Transa comigo, negro atrevido - disse Joaquín, antes de ejacular no mar.
Quando regressou a casa, Joaquín viu que o número um brilhava no atendedor de
chamadas. Carregou no botão do gravador e ouviu:
Está, sou a mamã, meu amor. Ai, Deus Santíssimo, não percebo estes telefones
com voz. Estás aí ou não estás? Que faço, Luis Felipe? Continuo a falar? Bem, filhinho,
queria avisar-te de que o papá e eu regressamos a Lima esta tarde e gostaríamos muito de
almoçar contigo, por isso dá-nos uma telefonadela para ver o que podemos arranjar.
Tchauzinho. Beijos e xi-coraçÕes apertados da mamã.
Joaquín desligou o telefone e telefonou para o quarto dos pais no Sonesta. Foi Luis Felipe
a atender.
-
Papá, olá, sou eu.
-
Porra, que decepção! Pensei que fosse Chantin.
Riram-se.
-
Queria falar com a mamã. Ela telefonou-me há bocado.
-
A velha não está, Joaquín. Foi à missa das nove.
-
Claro, deveria ter calculado.
Levantou-se feliz, a velha. Pôs-se a fazer os seus exercícios da Jane Fonda, que,
para mim, são uma patada nos tomates, porque uma coisa é ver um mulherão como a
Jane Fonda a mexer o rabo e outra coisa, muito diferente, é ver a velha da tua mãe a
saltar de roupão como se fosse um fantasma.
Riram-se.
E tudo isto porque mudei o óleo à velha - continuou Luis Felipe. - Já era altura de
ela mudar o óleo. Se não lhe faço o favor de vez em quando, a velha fica lixada, rabugenta.
Alguém tem de se sacrificar para ter um pouco de harmonia na família, não é verdade?
Joaquín soltou uma gargalhada. Achava o pai cínico, vulgar, mas, às vezes, também
engraçado.
- A que horas partem? - perguntou.
Esta tarde, no American das cinco - disse Luis Felipe. Parece mentira, mas já sinto a
falta da tensão de Lima.
-
Incrível.
-
Olha, rapaz, queria pedir-te um favor.
- Diz lá, papá, o que quiseres.
-
Quero despedir-me de Chantín, percebes?
- Perfeitamente.
- E estou lixado porque a velha se instalou aqui no quarto. Se me deres uma mãozinha, eu
digo à velha que tenho de ir ao banco, vou até ao teu apartamento e encontro-me ali com
Chantín. Ela está à espera da minha chamada com a passarinha perfumada.
- Não há problema, papá. Conta com o apartamento.
-
Seria apenas questão de uma hora, no máximo.
-
Todo o tempo que quiseres, papá.
Porreiro, rapaz. Tiras-me um problema de cima, porque não posso partir de Miami
sem me despedir como deve ser daquela febra.
Eu vou sair agora mesmo. Deixo as chaves no porteiro. Depois, espero-te no
Sonesta com a mamã.
-
Perfeito. Porreiro.
-
Então fica assim.
-
Olha, rapaz, só mais uma coisa, desculpa o descaramento do teu pai.
-
Diz, papá.
-
Por acaso tens uns preservativos que me emprestes?
Joaquín riu-se.
-
Claro, tenho uma caixa novinha em folha - disse.
-
É que assim não perco tempo a ir a uma farmácia.
-
Deixo-te os preservativos num lugar à mão.
Oxalá me sirvam porque sou tamanho extra large - disse Luis Felipe; e soltou uma
gargalhada.
Depois de falar pelo telefone com o pai, Joaquín pôs uma roupa desportiva, deixou as
chaves ao porteiro e foi a correr até ao Sonesta, para fazer um pouco de exercício. Ia
correr todas as manhãs. Gostava de ir correr. Por vezes, pensava que o Peru seria um país
melhor se mais pessoas fossem correr todos os dias. Habituara-se a correr desde que
tinha doze anos. Nessa idade, corria pelas ruas de Chaclacayo com o instrutor de ginástica,
o professor Vilca. Todas as tardes, depois do colégio, punha a camisa da selecção peruana
de futebol e corria com o professor Vilca desde Los Côndores até ao Clube El Bosque, ida e
volta. Quando fez treze anos, o professor Vilca ofereceu-lhe o disco de Rocky e disse-lhe
"Rocky é o melhor filme que vi na vida, de longe melhor do que O Tubarão ou O
Terramoto. Rocky tem uma mensagem que me fez chorar." Essa noite, Joaquín ouviu o
disco de Rocky várias vezes e pensou que era uma música linda, emocionante. Uns dias
depois, o professor Vilca disse a Maricucha: "minha senhora, quero levar o campeão a ver
Rocky no cinema Peru de Chosica", e ela achou a ideia excelente. No fim de semana
seguinte, Maricucha levou-os ao cinema, comprou-lhes as entradas e disse a Vilca:
"professor, se vir alguma cena imprópria, tape os olhos do meu rapaz". Então, Vilca sorriu
e disse: "não se preocupe. Rocky é um grande filme". Depois de se despedirem de
Maricucha, Vilca e Joaquín entraram no cinema e sentaram-se numa das filas da frente.
Quando o filme começou, Vilca aplaudiu e gritou "yes, Rocky, yes" e Joaquín sentiu-se um
bocado envergonhado. Depois, Vilca passou todo o filme a falar, a mexer-se, a dar
conselhos a Rocky, a dizer-lhe: "dá-lhe, bate-lhe com força, não deixes, tu consegues,
Rocky, tu consegues, fá-lo ir ao tapete, pÕe-no na horizontal, olhem como se batem, não
se estão a bater a brincar, arrasa-o, Rocky, acaba com ele de vez, assenta-lhe com força".
Assim que o filme acabou, levantou-se, aplaudiu e gritou: "boa, Rocky, deste um enxugo a
todos, és o campeão". Vilca estava a chorar de felicidade. Ao sair do cinema, disse a
Joaquín que voltasse para casa de Los Cóndores a correr. Joaquín disse que era melhor
não, que estavam muito longe, mas o professor desatou a correr a trautear a canção do
filme e Joaquín sentiu-se obrigado a segui-lo. Caminharam pela estrada central. Foi-se
fazendo noite. Demoraram mais de uma hora a chegar a Los Cóndores. Joaquín chegou
extenuado. Quando chegaram, Vilca abraçou-o e disse: "boa, campeão, és o Rocky de
Chaclacayo". Joaquín odiou Vilca, pensou que era um idiota e que se ia vingar dele. Nessa
noite, disse à mãe que não queria continuar a ter liçÕes com Vilca. Ela olhou-o
surpreendida e perguntou-lhe porquê, se até aí estava tão contente com Vilca, e ele
disse-lhe "porque o professor é um sabido, à tarde não fomos ver Rocky; ele devolveu os
bilhetes e levou-me a ver um filme para maiores de dezoito anos no cine-teatro Chosica".
Uns dias depois, Maricucha despediu Vilca, dizendo-lhe: "o senhor sabe por que o
despeço, professor, pergunte à sua consciência e vai encontrar a resposta". Vilca foi-se
embora tão depressa, tão desconcertado, que nem sequer se pôde despedir de Joaquín.
Passaram os anos. Um dia, chegou a casa de Maricucha um postal de boas-festas. Nele,
Vilca contava que estava a viver na Califórnia, que chegara lá como membro da selecção
peruana de luta livre, que ficara ilegalmente nos Estados Unidos, que casara com uma
americana e que estava a trabalhar como instrutor num ginásio. Depois, acrescentava que
já tinha o green card e que só lhe faltavam dois anos para requerer a cidadania
norte-americana. "Dê saudades ao Rocky de Chaclacayo", dizia ele, a terminar.
Joaquín chegou ao Sonesta cansado e a transpirar. Entrou com o seu traje desportivo no
hotel, subiu pelo elevador e tocou à porta do quarto onde os pais estavam alojados.
-
Quem é - gritou Maricucha.
-
O teu filho, mamã - disse Joaquín.
Maricucha abriu a porta.
- Estou a fazer uma chamada de longa distância lá para casa - disse, e correu para o
telefone.
Joaquín entrou no quarto. Maricucha continuou a falar ao telefone.
Está, Irma, era o menino Joaquín que acabou de entrar. Bem, como te dizia, tira
todos os sapatos do meu armário e dá-os a Meche para que os limpe todos, que os
engraxe bem e lhes puxe o brilho. Tu já sabes como gosto de voltar das minhas viagens e
encontrar todos os meus sapatinhos a brilhar. Depois, diz a Marcelo que cuide das minhas
hortenses, das minhas petúnias e dos meus jarros, mas toma nota, não me digas sim,
senhora, sim, senhora, e depois esqueces-te de tudo. Diz a Marcelo que mude a terra das
hortenses, que deite o seu caracolicida em todas as minhas plantinhas, que deite um
pouco de cerveja na terra das minhas plantinhas. Sim, cerveja, cerveja, tem cuidado,
porque não pode ser muita, que Marcelo é tremendo com a bebida, não o deixes sozinho
com a cerveja que se não o sabido embebeda-se logo. Outra coisa, deixa-me a carne de
vaca em molho de papaia. A carne de vaca, sim, aquela que comprámos no Wong no
outro dia. Bem, pÕe a carne em molho de papaia para que fique bem tenrinha para o
almoço de amanhã. Tu já sabes que o senhor regressa das viagens com uma fome de lobo.
Tira também o frango, não vá ser preciso, e pÕe-no a marinar num bocadinho de vinho. Se
não há já vinho de cozinha abre uma das garrafas do senhor, que só lhe fazemos bem com
isso, filha. Irma, o pobre está alcoolizado e temos de fazer alguma coisa para o curar.
-
Mamã, por favor, não grites - disse Joaquín. - Estás a berrar como um papagaio.
Bem, filha, tenho de desligar porque o menino Joaquín já está a refilar comigo. Não
te esqueças do que te pedi e reza à estampinha do Padre para que o avião não caia.
Tchauzinho, Irma.
Maricucha desligou o telefone.
- Tinha de lhe telefonar - disse, como que desculpando-se.
- Para lhe dizeres que pusesse a carne de vaca de molho? - perguntou Joaquín, sorrindo. És incrível, mamã, não podes passar um dia sem falar com a Irma.
-
É porque gosto dela como dos meus próprios filhos, amor.
- Mais do que dos filhos, queres tu dizer.
- Ai, o meu filhinho está com ciúmes.
- Não, não. Em todo o caso, quem deveria estar com ciúmes és tu.
- Porquê, Joaquincito?
- Porque neste mesmo instante o papá te está a enganar.
Maricucha pôs uma cara surpreendida.
- Por que me dizes isso, meu amor, se precisamente ontem à noite o papá e eu tivemos
uma linda reconciliação? - perguntou.
Ele sorriu, como que a troçar dela.
- Pois é, o papá disse-me que ontem te fez o favor - disse.
- Não posso acreditar que te tenha dito essa grosseria - disse ela.
Agora estava indignada.
- Disse-me textualmente: "fiz o favor à velha porque alguém tem de manter a harmonia
familiar", - disse ele, imitando a voz do pai.
- Não te pode ter dito essa canalhada - disse ela. - Tu sempre tiveste tendência para
mentir, Joaquín.
Ficaram calados.
- Vá, diz lá, onde é que está o meu papá agora mesmo? - perguntou ele.
- Disse-me que tinha de ir aos bancos.
- Pois é uma pura mentira.
- Então, diz-me onde foi - disse ela, abanando-se com o boletim paroquial. - Não me faças
um filme de suspense, Joaquín, que com a minha idade já não estou para estes mistérios.
-
O papá está no meu apartamento.
- E que foi lá fazer?
- Ficou de se encontrar lá com Chantín.
-
Quem é Chantín?
- A cubana da piscina, ora.
Maricucha abriu a boca, surpreendida.
- A descarada cheia de celulite e de cabelo pintado do outro dia? - perguntou.
- Essa mesma.
- A mamalhuda desavergonhada? O batoque?
- Essa mesma.
Maricucha levantou-se, pegou na carteira e pôs os óculos escuros.
- Vamos imediatamente ao teu apartamento - disse ela, e dirigiu-se à porta do quarto.
pai.
Acalma-te, mamã, não faças uma loucura - disse ele, arrependido de ter delatado o
Então, Maricucha parou, tirou os óculos escuros e olhou o filho nos olhos.
O Senhor ensinou-nos a dar a outra face, mas também nos ensinou a expulsar os
mercadores do Templo - disse.
-
Começou o sermão das três horas - murmurou Joaquín com um sorriso trocista.
-
Cala-te, blasfemo - disse ela, e saiu do quarto.
Saíram do hotel em passos rápidos e chamaram um táxi.
Mamã, não sejas imprudente - disse ele. - O melhor é dares-lhe uma telefonadela
primeiro, para evitar uma situação embaraçosa.
Olha, filho, tenho visto o teu pai despido nos últimos trinta anos da minha vida e,
quanto àquela descarada, já a vi no outro dia com todos os presuntos à mostra - disse
Maricucha.
Meteram-se num táxi conduzido por uma mulher. Joaquín deu-lhe a direcção do seu
apartamento. A mulher acelerou.
- Não vou permitir que o meu marido troce de mim - disse Maricucha. - Eu, quando tenho
de lutar pelos meus princípios, sou uma fera.
Todos os homens são iguais, manhosos e sabidos - disse a mulher que conduzia. Só trazem problemas.
- Donde é a senhora? - perguntou-lhe Joaquín.
ela.
Chilena, com residência legal neste país desde há quinze anos, para o servir - disse
Maricucha suspirou.
- Ai, que emoção - disse. - Pensar que a minha lua-de-mel foi nos lagos do Sul do Chile.
-
Paisagens belíssimas - disse a taxista.
Divinas, filha, divinas, mas o bruto do meu marido nem me deixava sequer ir até à
varanda - disse Maricucha. - Que apetite carnal o daquele homem!
Manhosos e sabidos é o que são os homens, digo-lhe eu - afirmou a taxista. - O que
todos querem é a sua satisfação e mais nada.
-
Mas os lagos, ai, que nostalgia... - disse Maricucha.
-
Usam-nos e depois deitam-nos fora - disse a taxista.
Olha, filha, sabes como posso fazer para ir ao programa de D. Francisco? perguntou Maricucha.
Acho que a entrada é gratuita - disse a taxista. - E ainda por cima oferecem pães
com salsicha, fraldas e a revista Cristina.
-
Esse D. Francisco é o máximo - disse Maricucha.
Pouco depois, chegaram ao edifício onde vivia Joaquín. Maricucha abriu a carteira e pagou
o táxi
Obrigada, minha filha - disse-lhe a taxista. - E chegue cedo ao programa, porque a
fila chega a Key West.
Maricucha bateu à porta do apartamento de Joaquín.
-
Quem é? - gritou Luis Felipe.
-
Abre, Luis Felipe - gritou Maricucha. - Sou tua mulher à face da religião e da lei.
-
Mamã, não grites, não faças escândalos - disse Joaquín, em voz baixa.
Luis Felipe abriu a porta. Estava sem sapatos e com a camisa aberta.
Que fazem aqui? - perguntou surpreendido, ao vê-los. - Pensei que nos íamos
encontrar no hotel.
- E tu que fazes aqui, desavergonhado? - gritou Maricucha.
Em seguida, empurrou' o marido e entrou no apartamento. Luis Felipe lançou um olhar
gelado a Joaquín.
-
És um verme - disse-lhe.
Joaquín baixou os olhos, envergonhado. Maricucha entrou no quarto, na casa de banho.
Procurava desesperadamente Chantín.
- Onde está aquela descarada? - gritou. - Onde está?
Estou sozinho, mulher - gritou Luis Felipe. - E, porra, deixa de gritar como uma
histérica.
Joaquín disse-me que estavas em intimidades com a tua amiga cubana - gritou
Maricucha
Idiotices, mulher - gritou Luis Felipe. - Já te disse que não tenho nenhuma amiga
cubana. O que se passa é que o nosso filho está doente. É um maricas. Tem inveja de mim
porque não é um homem como eu.
Maricucha não aguentou mais. Sentou-se na cama e desatou a chorar.
-
O nosso filho não é um maricas - murmurou.
É maricas, sim, senhor - gritou Luis Felipe. - Foi sempre um maricas. Agora
demonstrou-mo uma vez mais.
Joaquín tinha o olhar fixo na alcatifa.
-
Mas tu disseste-me que ias aos bancos, Luis Felipe - protestou Maricucha.
- Fui ao banco, mulher - disse Luis Felipe. - Fui ao banco e depois passei por aqui, para
fazer umas chamadas para Lima, porque do hotel custam o dobro.
-
Não posso crer que o meu filho tenha uma mente tão distorcida - disse Maricucha.
- A mim as mariquices de Joaquín já não me surpreendem - disse Luis Felipe. - Vamo-nos
embora, mulher. Saiamos quanto antes deste antro de má vida.
Ai, Luis Felipe, por amor de Deus não fales assim - disse Maricucha, levando as
mãos ao peito.
Luis Felipe puxou a mulher pelo braço.
Vamos embora, mulher - disse. - Não posso ver a cara dessa lagartixa acrescentou, olhando para o filho.
Joaquín tentou sorrir. Saiu-lhe um esgar triste.
Quando morrer, não te vou deixar um centavo, por seres maricas Luis Felipe, e pegou na mala da mulher.
disse
Luis Felipe e Maricucha saíram do apartamento sem dizer mais uma palavra. Joaquín
fechou a porta e correu para a casa de banho. Então viu que havia uma mensagem no
atendedor de chamadas. Carregou no botão e ouviu:
Meu querido, sou eu, Chantín. Telefono para pedir mil sorrys, mas não posso ir ao
nosso date, devido ao meu sobrecarregado schedule de trabalho. Mil vezes obrigada pela
tua companhia tão polite e afectuosíssima. Passei uns dias super inolvidáveis na tua
companhia. Um beijinho e telefona-me quando voltares. Bye, bye.
Nessa tarde, Joaquín acordou da sesta meio estonteado. Tomara uns quantos Xanax antes
de se meter na cama. Levantou-se e caminhou em direcção do telefone. Uma luz
vermelha marcava o número três. Ouviu as mensagens.
Olá, Joaquín, sou a mamã. Se estás aí, por favor, atende, que este aparelho põe-me
ultranervosa. Bem, meu filho, queria perguntar-te se nos podemos ver um bocadinho,
antes de eu ir para o aeroporto. Gostaria de te dar um beijinho de despedida. O papá
continua furioso contigo, mas a mim já me passou a irritação. Já estou velha e não quero ir
para a tumba zangada com nenhum dos meus filhos. Além disso, tu sabes, meu amor, que
és o meu ai Jesus, o meu boneco de porcelana. Entendo que estás a atravessar um túnel
negro, negríssimo, mas garanto-te que, se rezares um bocadinho ao Padre, vais ver a luz
no final do túnel. Ai, estou a ouvir um apito, que nervos, é que estou num telefone aqui
em baixo no hotel. Bem, telefona-me depressinha, já que dentro de meia hora vamos para
o aeroporto e terei uma pena horrível se não nos pudermos despedir como deve ser. Ai,
outra vez o apito, tchauzinho.
Joaquín ouviu a segunda mensagem.
Olá, olá, coisa doce, sou eu, a tua mamã querida. Vá lá, atende, não sejas
mauzinho. Não guardes todo esse veneno, deita-o cá para fora, meu amor, deita-o cá para
fora porque se não apodrece dentro de ti. Bem peninha tenho, já estamos no aeroporto, o
papá já está a fazer o check in e eu aproveitei para me escapar até um telefone público.
Estou morta de pena por não te poder dar um beijinho, estou a olhar nervosissima para as
pessoas, para ver em que momento aparece o meu Joaquín. Ai, meu filho, parte-se-me a
alma, não posso continuar a falar, espera que vou tirar o meu lenço de assoar da carteira,
caramba, onde está o maldito do lenço, ai, aqui está, por fim, é que a minha carteira é um
caos, dizia que estou morta de pena, tenho a alma desfeita, espera que vou secar as
lágrimas porque se me está a derreter a maquilhagem, que vergonha chorar assim no
aeroporto internacional de Miami, mas Deus compreenderá, Deus sabe como amo os
meus filhos, os meus filhinhos adorados, que saíram das minhas próprias entranhas. Ai, o
apito, estes apitos vão matar-me de enfarte. Bem, meu amor, mando-te um beijinho com
toda a minha ternura. Depois, telefono-te de Lima. Não te esqueças de rezar as tuas
oraçÕes, não sejas mau. Tchauzinho, então tchauzinho.
Agora Joaquín também estava a chorar. Chorava porque lhe apetecia dizer à mãe: "tens
de compreender que sou homossexual, mamã, sempre fui homossexual, provavelmente
quando estava na tua barriga já me estava a tornar homossexual, mas, por isso, não sou
má pessoa, por isso não deixo de te amar, se ao menos pudesses compreender que não
sou maricas para te chatear, para me vingar de ti, que sou homossexual porque é essa a
minha natureza e porque eu não a posso mudar, e, por favor, não vejas a minha
homossexualidade como um castigo de Deus, como uma coisa terrível, porque não é,
olha-a antes como uma oportunidade para compreender melhor as pessoas, para
compreender que as coisas são mais complexas do que parecem, que as coisas nem
sempre são brancas ou pretas, compreende, por favor, mamã, que no fim de contas a
única coisa importante é que eu também te amo, te amo muitíssimo, adoro os teus
caprichos e as tuas beatices, mas não posso deixar de ser quem sou, não posso nem quero
deixar de ser quem sou, e tenho de aprender a gostar de mim e a respeitar-me e a não
atraiçoar a minha orientação sexual, e a dizer às pessoas que sou homossexual sem ficar
por isso corado e sem me sentir sujo, porco, má pessoa, porque não o sou, sou teu filho,
amo-te muito, sou homossexual e sou boa pessoa, e, se Deus existe, Ele contar-te-á algum
dia no Céu por que lhe apeteceu fazer-me homossexual."
Joaquín ouviu a terceira mensagem. Era Peter.
Olá, sou eu. São cinco em ponto. Estou a sair do hotel. Vou para minha casa. Não
te demores, que estou cheio de vontade de te ver. Se puderes, lembra-te de trazer
bolachas quaker e gelado de chocolate.
Joaquín sorriu, beijou o telefone, pôs umas gotinhas nos olhos, porque estavam
vermelhos de ter chorado, e saiu do apartamento. Ao vê-lo sair, o porteiro do edificio
fez-lhe sinal. Joaquín parou o carro e desceu o vidro.
O senhor seu pai deixou esta encomenda para si - disse o porteiro, e entregou-lhe
um envelope.
-
Obrigado, Sr. Heberto - disse Joaquín.
Saiu conduzindo lentamente. Abriu o envelope. Continha um cheque em seu nome e um
cartão do pai. Leu o cartão. Em letras impressas, dizia: "Luis Felipe Camino Grande". Na
parte superior, Luis Felipe escrevera "obrigado pelas tuas atençÕes". Mais abaixo, anotara
o telefone de Chantin. Joaquín sorriu, ligou o rádio e acelerou. Ao subir a ponte de Key
Biscayne, parou, desceu do carro e abeirou-se do parapeito metálico. Olhou para o mar.
Rasgou o cartão do pai e lançou-o ao vento. Depois, mordeu os dentes para não chorar.
Fim