a gaivota solitária

Transcrição

a gaivota solitária
A GAIVOTA SOLITÁRIA
As gaivotas, aves marinhas, são encontradas em
todo o mundo. Voam vigorosamente e alternam as batidas
lentas das asas com o vôo planado, mas raramente se
afastam muito da terra. Não cantam, mas soltam gritos
roucos e ruidosos. Vivem aos bandos e nidificam em
colônias. Têm o bico em forma de arpão para caçar peixes.
Essas aves voam sobre as águas e observam os peixes que
nadam a pouca profundidade. Numa rápida descida sobre o
mar, velozes, arrebatam a presa e a engolem.
A gaivota Kauã era diferente das outras: era
solitária e sonhadora. Às vezes demorava-se vagueando
sem rumo; pois o seu espírito fixava-se em coisas
indistintas do espaço celeste, outras, voava a esmo sobre os
penhascos ou empoleirava-se no pico do rochedo à beiramar, os olhos embebidos na beleza das ondas, absorta em
pensamentos... Buscava nos meandros da vida alguma pista
que a levasse a desvendar o mistério de estar aqui, qual a
missão que lhe foi destinada.
A Mãe-Natureza encarregou-se de revelar-lhe o
segredo. A sua função primordial era a procriação, a
continuação da espécie. Sem ela perceber, um macho gaivota, chamado Pararú, aproximou-se fazendo volteios;
escolheu-a para ser seu par. Ele bateu as asas, esticou o
pescoço, eriçou e exibiu as mais bonitas penas, na dança do
acasalamento. Com a bela e eficaz corte amorosa,
conquistou-a e, num nicho cavado na pedra pelas ventanias
e chuvas torrenciais, a gaivota Kauã construiu o seu ninho.
Trazidas pelo companheiro Pararú, folhas, capim,
gravetos e até pêlos de animais, com os quais teceu o ninho.
Revestiu-o com penas e penugens e depositou ali quatro
ovos, e Pararú participou da incubação. Após 21 dias,
nasceram três filhotes saudáveis sendo que um ovo gorou.
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As avezinhas eclodiram da casca, sem penas,
incapazes de ver e ficar em pé. Pequeninas, só sabiam piar
chamando pela mãe, apavoradas com o barulho do mar e o
chuvisco que lhes caia molhando o seu corpo sem
plumagem. Tudo o que podiam fazer é abrir o bico, para
que os pais ai regurgitem os peixes que apanhavam.
Essas aves são aquecidas pelos pais, até que suas
penas cresçam o suficiente para esquentá-las. São
alimentadas e cuidadas até deixarem os ninhos e
aprenderem a pescar sozinhas. Alguns filhotes desenvolvem
a plumagem adulta durante o primeiro ano de vida e são
capazes de voar com independência. Alguns dias antes de
voar, pode-se ver a avezinha acercando-se das bordas do
ninho. Espiam para o abismo, ensaiam o vôo, depois se
lançam para a imensidão das águas do oceano. Estão
prontos para viver a sua vida.
A tarde daquele dia apresentou-se com um calor
abafado e pegajoso que pressagiava a tempestade. O oceano
se pôs sombrio,o céu estava escuro como chumbo. O vento
leste vergastava as ondas que encrespavam vertiginosamente e as empurrava cada vez mais forte até a praia.
Em poucos minutos as nuvens negras carregadas de
granizo povoaram o céu. O mar encapelado jogava a água
às alturas, batendo nas rochas da orla, quase que alcançando
o ninho, agitado, negrejante e ameaçador, rugia. O céu
partia-se em raios e trovões e à noite a chuva torrencial
desabou. O mar enfurecido varreu a costa de Guaratuba,
amontoando a areia da Praia Brava em dunas lineares,
coroando-as com espuma branca rendilhada.
A gaivota Kauã e o companheiro tinham voado por
dezenas de quilômetros sobre o oceano à procura de alimento, deixando os três filhotes na fenda do penhasco. Os
pequenos aconchegaram-se uns aos outros para aquecer-se.
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Após a borrasca, raiou um novo dia, no horizonte o
sol, devagarinho, mostrava sua coroa cintilante acima das
rugas do mar agora calmo. Um barco de pesca deslizava
suavemente sobre a água. Subitamente, apareceram
gaivotas vindas de todas as direções, soltando grasnidos que
soavam como o próprio clamor da inquietação humana.
Alvoroçadas, lançaram-se à luta para abocanhar os
peixes descartados pelos pescadores.
Mas lá longe da costa e do barco, voava lentamente
a gaivota Kauã, triste e solitária. Seu parceiro Pararú tinha
desaparecido, tragado pela tempestade da noite anterior. Ela
estava sozinha para alimentar a pequena família. Absorvida
pelo pensamento fixo de caçar alimento para os seus
filhotes esfomeados que ficaram no ninho, estava desatenta,
não percebeu que um falcão peregrino a espreitava.
A trinta metros de altura da superfície azul brilhante,
Kauã baixou seus pés com membranas, levantou o bico e
tentou a todo custo manter suas asas numa curva. Cerrou os
olhos para se concentrar melhor, susteve a respiração e
desceu num vôo rasante sobre a água para apanhar o peixe
da superfície. Lançou-se no mergulho vertical com o bico
espetado, as asas bem abertas e firmes.
O falcão não perdeu tempo. Caçaria a gaivota e o
peixe que ela pegara. Estendeu as curtas e vigorosas asas, e,
num vôo na vertical, rápido como um raio abateu a gaivota
Kauã, levando-a nas garras como alimento para o seu
filhote faminto, que o esperava no ninho, no pico da
montanha Marumbi, na Serra do Mar.
Os filhotes da gaivota Kauã e Pararú ficaram órfãos
e teriam que enfrentar a vida, sozinhos. Já estavam
emplumados e, portanto, prontos para dominar os perigos
do grande oceano. Dentre eles, o filhote Tayná era
sonhadora como Kauã sua mãe, e se destacava pela
vivacidade e coragem, não temia o desconhecido. Ela
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abeirou o ninho, olhou o abismo abaixo do penhasco e
resoluta levantou vôo sem olhar para trás. O redemoinho
da vida a absorveu.
Muitos anos se passaram em que a gaivota Tayná
viveu,lutou, pescou e procriou uma descendência numerosa.
Mesmo assim não era feliz, sentia-se solitária, a saudade
esmagava o seu coração de pássaro sonhador. Num dia
ensolarado de verão empreendeu a última viagem em
direção ao Sul, aos penhascos da Praia Brava, onde nasceu.
Batendo as asas lentamente, num esforço incomum
voava alquebrada sob o fardo da vivência impregnada de
sonhos irrealizados, de frustrações e de vitórias, de amor e
de muita, muita saudade do passado. Havia percorrido um
longo caminho. Voava sobre o mar, quando reconheceu o
penhasco onde fora o seu ninho. Pairou no céu, sozinha,
feliz, e mergulhou diretamente em direção à escarpa sob o
mar, na costa da baia de Guaratuba.
De repente, ficou muito cansada, queria dormir.
Algumas gaivotas que voavam junto à praia vieram ao seu
encontro, sentiu que era bem-vinda e que esta era sua casa.
Adormeceu ali mesmo, na grande viagem para a eternidade,
sem que se tivesse ouvido um só queixume. Apenas o vento
suave tecia melodias brincando com a areia, rolando-a e
alinhando-a em dunas na praia.
O corpo da gaivota Tayná foi incinerado pelo sol
forte do verão e suas cinzas espalhadas pelo vento amigo,
que as levou em direção ao mar. A sua alma sonhadora
flutuará nas nuvens, como planam as gaivotas felizes, ao
sabor do vento sobre o oceano. O rumorejar das ondas do
mar será a canção de repouso, a embalá-la para sempre.
De volta de outras dimensões, o espírito sonhador e
aventureiro da gaivota Tayná reassumiu a forma material e
instalou-se no corpo e na alma de uma menina. E à
semelhança da gaivota Tayná a jovem Janice possuía a
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inquietação perante a vida e arroubos de liberdade. Em
devaneios o seu pensamento voava solto e veloz no mundo
de sonhos e de fantasias, para onde quer que ela desejasse.
A estratégia estava em deixar de se ver aprisionada
dentro de um corpo limitado, sentir-se livre, e em saber que
a sua verdadeira natureza vive em toda parte e ao mesmo
tempo, através do espaço. Esgotado o tempo de sua
permanência na terra, abriu-se-lhe a porta da eternidade e
ela ingressou nela livre e feliz. Aqui deixou o pó dos seus
ossos, mas sua alma voltou a integrar o Universo.
***
Ao revolver as lembranças, no baú do passado, em
primeiro plano me deparei com o terrível acontecimento
que marcou a vida de Janice quando ainda era criança.
A tragédia aconteceu no lusco-fusco do entardecer,
num domingo, em que Álvaro Mendonça de Sá voltava de
automóvel, para casa com a família. Vinha da
comemoração das bodas de prata do cunhado Januário de
Oliveira e Hermínia Bauer, irmã de Zenaide, sua mulher.
As duas filhas pequenas do casal, Adélia e Janice vinham
no assento traseiro do carro. As crianças estavam alegres,
riam e brincavam com o cãozinho pequinês Mimoso.
O veículo dirigido por Álvaro subia a Serra do
Cadeado, perto de Mauá. Em sentido contrário, um ônibus
de linha descia a ladeira em alta velocidade, os freios
estavam falhando e o motorista assustado, desnorteado,
numa curva fechada jogou o ônibus contra o barranco na
pista contrária, tentou segurar o veículo desgovernado, pois
na margem direita havia um grande precipício.
Naquele exato momento Álvaro entrava na curva
com o carro, e o ônibus colidiu violentamente com o
automóvel. Sucedeu o irreparável. Álvaro, Zenaide e o
motorista do ônibus morreram no acidente. Salvaram-se as
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meninas Adélia e Janice, e o cachorrinho Mimoso. Por um
milagre, os oito passageiros do ônibus nada sofreram, além
de alguns arranhões e um grande susto. As meninas tiveram
apenas ferimentos leves.
Um cidadão que por ali passava avisou a polícia
rodoviária; foi solicitada a ambulância, com o socorro
médico. Os corpos achavam-se estendidos no chão, de
costas, o sangue escorrendo das bocas e dos ferimentos. O
cãozinho uivava, correndo em volta dos cadáveres,
lambendo-lhes o rosto e puxando-os pelas vestes.
Não demorou muito e o socorro chegou. Os paramédicos afastaram os curiosos, ajoelharam-se ao pé dos
cadáveres, examinaram-nos cuidadosamente e concluíram
que não tinham mais pulso e que seus corações cessaram
de bater, estavam mortos. Não havia mais nada a fazer.
Feito o laudo pericial os corpos foram liberados. O
cunhado Januário, avisado da fatal ocorrência, veio com
Laurindo, irmão de Álvaro, e levou o casal acidentado para
sua casa em Palmeira do Sul, onde morava. Os dois homens
olhavam consternados para os mortos, tragicamente
silenciosos, sem acreditarem nessa fatalidade, mas era
necessário tratar dos preparativos para o funeral.
Januário tendo trazido as duas crianças órfãs
consigo, entregou-as aos cuidados da esposa, que as
acolheu, consolou, alimentou e fez dormir. Assustadas, elas
não paravam de chorar. Ficou-lhes um grave trauma
emocional que as marcou profundamente pelo resto da vida.
Hermínia era uma mulher elegante, tratou de vestirse adequadamente para a ocasião. Vestiu o seu tailleur
preto e blusa branca de seda, para receber as pessoas. Os
parentes avisados logo começaram a chegar. Os amigos
enviaram flores e coroas, que estavam sendo colocadas
alinhadas ao longo da parede da sala. Impregnavam o ar
com seu aroma adocicado.
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Foi arrumada uma câmara ardente na sala de visitas
do casarão dos Oliveira. Sobre a grande mesa de imbuia,
coberta com toalha de linho muito alva, estavam expostos
os dois caixões, contendo os corpos de Zenaide e Álvaro,
vestidos com as roupas de festa que traziam nas malas.
Os ataúdes foram cobertos de tecido de cor azul
celeste, adornados com galões dourados e belas alças de
metal prateado, internamente forrados com tecido de seda
lilás, pregado com taxas douradas.
Em volta foram colocados e acesos oito círios, de
cera amarela, em candelabros de bronze que iluminavam os
corpos com uma luz difusa. A sala estava pontilhada de
pequenas chamas móveis que atiravam reflexos dourados
nos rostos pálidos dos defuntos. O cheiro de cera derretida
impregnava o ambiente mesclando-se com a fragrância das
flores, dando ao ar um cheiro nauseante. Os familiares
vestidos com seus trajes de luto entravam na sala mortuária
na ponta dos pés. Ao aproximarem-se dos ataúdes, todos
estremeciam chocados com a inesperada tragédia.
Com os semblantes compungidos, os olhos baixos,
desfilavam os amigos do casal acidentado; iam direto
abraçar as pessoas da família que recebiam as condolências.
Aproximavam-se depois dos esquifes, comtemplavam os
mortos por breves instantes e, ajoelhavam-se ao pé dos
ataúdes, juntavam as mãos, abaixavam a cabeça, cerravam
os olhos e ficavam a rezar por alguns segundos. Erguiam-se
fazendo o sinal da cruz.
Isso feito sentavam-se nas poltronas, a pontuar a
quietude do velório com murmúrios, cochichos, pigarros,
suspiros e tosses. As cadeiras na sala tinham sido
arrumadas em círculo, oferecendo conforto para as pessoas
chorarem à vontade, externando as próprias tristezas sob o
pretexto da morte alheia.
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As mulheres rezavam o terço, depois a ladainha, o
coro roufenho invadia a casa, doloroso, arrastado, funéreo.
Quando se ouviram as badaladas da meia noite, tinha-se a
impressão de que o velho relógio do casarão chorava
também. Durante o velório, as pessoas circulavam pelo
salão e corredores da ampla residência, apinhados de gente,
falando em voz baixa. As empregadas da casa percorriam
as salas oferecendo xícaras de café com biscoitos e bolo.
Naquela madrugada o temporal desabou, choveu
quase a noite toda. Às dez horas da manhã, à hora do
enterro, chegou o coche, enorme, negro e reluzente,
conduzido por motorista de uniforme marinho com galões
dourados. O préstito fúnebre deixou a casa sob um tênue
chuvisco que ameaçava prolongar-se, seguido por uma
procissão de carros que levavam os parentes, os amigos e as
dezenas de coroas de flores.
Seguiu para a igreja onde ia ser celebrada a missa de
corpo presente. Terminada a cerimônia religiosa, os irmãos
Mendonça de Sá fizeram questão de levar os ataúdes nos
ombros até o cemitério, e era com relutância, que cediam
uma alça dos caixões a algum amigo da família. Colocaram
os à beira das sepulturas abertas. O padre fez uma pequena
preleção, encomendou as almas e benzeu os caixões antes
de descerem à cova.
Foram colocados um ao lado do outro, juntos, ali
repousariam cobertos com terra para sempre. Laurindo, o
irmão mais velho de Álvaro agachou-se, apanhou um
punhado de terra e atirou-a sobre os caixões. Outros o
imitaram.O coveiro tomou da pá e começou a cobrir a cova.
Fixou as cruzes com os nomes de cada um escrito
em placas douradas. As coroas e flores eram em tão grande
quantidade, que enfeitaram e cobriram as sepulturas. Mais
tarde foi construído ali um belo jazigo, revestido de
mármore branco, adornado com dois anjos alados.
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Mal, porém, o coveiro termina de jogar a última pá
de terra, grossos pingos de chuva caem das nuvens escuras.
O grupo de pessoas que assistiram ao enterro se move e
começa a dispersar-se, buscando o refúgio nas varandas das
casas próximas e debaixo da figueira grande da praça da
Matriz. Uns poucos se precipitam para seus automóveis
estacionados nos arredores.
Os previdentes que trouxeram guarda-chuvas
abrem-nos e saem a caminhar pelas ruas do cemitério,
desviando-se das sepulturas. O recinto agora está vazio. O
aguaceiro desaba com uma violência de dilúvio, o vento
forte açoita ás arvores que dobram os galhos com gemidos,
como a pedir socorro.
Apesar de a morte estar tão presente neste momento,
a vida lá fora continua, e é preciso viver. Esses são os
contrastes surpreendentes de Vida e Morte. Enquanto os
homens aparecem e desaparecem na face da terra, há
Alguém no Universo que é Eterno. Esse Alguém está
presente em todos os lugares e em todos os tempos.
***
As duas meninas órfãs, Adélia de seis e Janice de
quatro anos, não tinham idéia da grande perda que as
atingiu com a morte dos pais. Compadecidos, seus tios
Januário de Oliveira e Hermínia, adotaram Janice e a
criaram junto com seus muitos filhos, cercando-a de
cuidados, amor e carinho. A menina Adélia foi adotada por
Etelvina e Laurindo Mendonça de Sá, irmão de seu pai.
A infância de Janice transcorreu relativamente feliz,
preenchida por folguedos infantis, pelas horas de estudo na
escola e deveres de casa. Eram-lhe também cobradas as
obrigações com o trabalho, que a tia fazia questão de
ensinar. Era uma menina solitária e silenciosa, de
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temperamento reservado, não tinha amigas para trocar
confidências.
Na verdade, ela não se sentia sozinha, ao contrário,
ficava feliz em estar só para poder vasculhar a variada
coleção de livros que enchiam as prateleiras do escritório
do tio. Nos finais de semana seu tio Januário levava a
família para passear no Jardim Zoológico. Essas visitas
provocavam-lhe o horror à reclusão, às grades e ao
isolamento, que manteve pelo resto da vida. Doía-lhe ver os
pássaros e animais presos, engaiolados. Janice amava a
liberdade.
Aos dezesseis anos, era uma adolescente esguia, de
grandes olhos azul-esverdeados, sonhadores, a voz quente e
modulada de quem fala com emoção. De talhe esbelto, seu
corpo já delineava formas de mulher, os seios ainda
pequenos se pronunciavam sob o vestido que vestia, de
tecido fino de palha de seda. O cabelo louro encaracolado
voava solto pelas costas. Era uma bela garota.
Freqüentava, com a família dos seus tios, festas e
bailes da sociedade local, ali obtinha um grande êxito junto
aos rapazes do seu convívio; alguns estavam enamorados
dela, e naquele final de ano já recebera duas propostas de
casamento. Rindo, ela recusara ambas. Disse que não tinha
ainda aparecido o seu príncipe encantado.
No revéillon do ano de 1940 conheceu Guilherme.
Ele era um moço de 28 anos, alto, esbelto, de pele morena,
queimada pelo sol, de compleição robusta.Tinha uma
expressão altaneira que se revelava na cabeça sempre
empinada, na vivacidade dos olhos castanhos e nos gestos
incisivos. Narcisista e presunçoso considerava-se um
homem bonito. Filho primogênito do abastado fazendeiro
Lourenço de Castro Vasconcelos da região norteparanaense de Campina da Lagoa.
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Naquele fim de ano visitava seus tios, Dorotéia e
Nonato de Castro Vasconcelos, que residiam no sul do
Estado. Seus tios eram moradores antigos da cidade de
Palmeira do Sul e muito bem relacionados na sociedade
local. Como sempre, eles foram convidados para o baile de
comemoração da entrada do Ano Novo.
O revéillon de gala do Clube do Comércio era uma
festa tradicional que a sociedade palmeirense esperava
sempre com ansiedade. Muitas senhoras e moças faziam
vestidos especialmente para essa grande ocasião; os homens
tiravam dos guarda-roupas seus melhores ternos pretos e
smokings para arejá-los. Escolhiam as camisas e gravatas
combinando. Deviam comparecer à festa muito elegantes.
Guilherme iria na companhia do tio Nonato e dos
primos para a festa. Eram oito horas da noite, e ele estava
no quarto a arrumar-se para o baile. Havia tomado um
prolongado banho morno de banheira e agora aspirava com
delícia a fragrância do sabonete do Boticário, cujo aroma de
lavanda evolava da sua pele.
A luz fluorescente inundava o quarto duma
claridade branca. À frente do espelho, de cuecas e de tronco
nu, os pés metidos em chinelos, Guilherme pegou do
armário o aparelho de gilete e com destreza passou no
rosto, escanhoando a barba espessa, deixando um bigodinho
fino, com retoques caprichados.
Derramou na palma da mão uma loção após barba e
passou vigorosamente no rosto. Gostava de perfumes,
contanto que fossem importados legítimos. Começou a usar
a fragrância Beverly Hills de Giorgio Armani, que tinha um
aroma evocativo de amores clandestinos, em alcova na
penumbra iluminada apenas com abajur a meia-luz.
Sentou-se na beirada da cama e começou a calçar as
meias pretas, de fio d´Escócia, e os sapatos novos de verniz
preto. Apanhou a camisa branca, as calças e o paletó do
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smoking e vestiu-as. Combinou a cor da gravata borboleta.
Estava tudo impecável.
Sabia que ia brilhar no baile daquela noite. Tinha
certeza de que a sua chegada causaria sensação entre as
moças da cidade. Já lhe haviam contado que as mães das
jovens casadouras faziam apostas entre si, para adivinharem
quem seria a felizarda escolhida pelo belo e rico filho do
fazendeiro Lourenço de Castro Vasconcelos.
– Você leva mais tempo que uma moça para se
vestir – observou a tia Dorotéia – já são dez horas.
Examinou minuciosamente Guilherme, mirou o
sobrinho de alto a baixo, com olhar avaliador.
– Vire-se – disse.
Guilherme fez meia-volta. A tia aproximou-se dele e
tirou-lhe do ombro um fio de cabelo, depois passou a mão
de leve pela gola do smoking, alisando-o.
– Agora está bem. Você está uma beleza. Pode ir
com teus primos, eu e o tio iremos mais tarde – disse ela.
O sobrinho tomou-lhe a mão e depositou um beijo
de gratidão. Saiu assobiando uma música da moda.
– Divirtam-se! Muito juízo! Deus os acompanhe!
Irei mais tarde com Dorotéia – gritou o tio Nonato de
dentro do escritório, onde procurava alguns papéis.
Guilherme sorriu, parou diante do espelho no hall de
entrada e ajeitou na cabeça o chapéu de feltro preto.
Dirigiu-se para a porta, onde parou um instante para
acender um cigarro. Pela porta aberta entrava o bafo morno
da noite. Com uma sensação de felicidade e absoluto bemestar, satisfeito consigo mesmo e com o mundo, desceu os
degraus e junto com os primos ganhou a calçada.
Caminharam em passo rápido em direção ao Clube do
Comércio. Os sapatos produziam na calçada um ruído de
castanholas.
– Linda noite, não? – gritou um conhecido.
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– Linda para caçar corações – pensou Guilherme.
Olhou para o alto. O céu estava coalhado de estrelas
cintilantes. Andava no ar tépido um aroma de madressilvas
e jasmins. Na Rua Quinze de Julho, muitas janelas estavam
iluminadas e as calçadas apinhadas de gente. Sentia-se nas
pessoas uma expectativa palpitante de festa.
No salão do Clube reunia-se o que a cidade tinha de
mais fino e representativo da sociedade local. Fora, em
frente do edifício do clube, aglomeravam-se grupos de
pessoas. Eram os que espiavam a festa; os que não iriam ao
baile por qualquer razão. Os que desfrutavam de maiores
privilégios eram os rapazes das famílias ricas, de
fazendeiros, comerciantes e pessoas ilustres da localidade.
Nos bailes do Clube do Comércio apareciam com
freqüência caixeiros-viajantes, que gozavam entre as moças
da terra de grande popularidade, por serem pessoas alegres,
bem trajadas e bem-falantes, sempre com uma boa história
ou uma piada na ponta da língua, sabiam animar uma festa
e não havia ninguém como eles para inventar surpresas.
Assim que adentrou o salão do clube, inexplicávelmente, Guilherme ficou ansioso e sua comoção era uma
febre que lhe queimava o corpo, ao mesmo tempo lhe
produzia calafrios. Seu pensamento andava às voltas na
jovem dos seus sonhos. Ele a tinha visto na saída da missa
de domingo. Apaixonou-se naquele instante por ela.
– Quem seria aquela garota adolescente de cachos
louros caindo pelo pescoço? Será que ela veio ao baile?–
indagava-se, sonhador.
Procurava-a com o olhar por entre as moças
presentes, e teve a sua atenção despertada pela figura da
jovem Janice. Era ela, sim, a adolescente que acordara nele
aquele sentimento de expectativa e ansiedade.
Avistou-a sentada à mesa com a família do
comerciante Januário de Oliveira e da esposa Herminia,
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conhecidos e amigos de seu tio. Fortemente impressionado
não tirava os olhos da jovem. Fez o possível para chamar a
sua atenção, não conseguindo, encaminhou-se para ela. Ia
meio perturbado, consciente do fato de estar sendo alvo de
muitas atenções dos presentes.
Aproximou-se; pretendia disputar a primazia com
outros rapazes para convidá-la a dançar. Janice parecia ter
percebido que ele vinha ao seu encontro, pois desviara os
olhos para o lado, enquanto seus dedos alisavam um cacho
dos cabelos dourados.
Guilherme dirigiu-se primeiro à tia:
– Como está a senhora, Dona Hermínia? Sou
Guilherme, filho de Lourenço e Perpétua de Castro
Vasconcelos e sobrinho de Dorotéia e Nonato, seus
conterrâneos e amigos – apresentou-se cortesmente.
A esposa de Januário estendeu-lhe a mão e seu rosto
iluminou-se num sorriso quando ele cortesmente depositou
um beijo na sua mão.
– Bem, e você Guilherme como vai? Muito prazer
em revê-lo; já nos encontramos na saída da missa de
domingo, você estava na companhia dos seus tios.
– Como tem passado senhor Januário?–
cumprimentou gentilmente.
– Que bom que veio, fará companhia para nós.
Aproveitando a oportunidade, apresento-lhe a minha
sobrinha Janice.
Guilherme voltou-se para ela.
– É um grande prazer conhecê-la senhorita Janice,
como vai? – inclinou-se numa mesura.
A moça estendeu-lhe a mão.
– Muito bem, obrigada - respondeu ao mesmo
tempo em que retirava rápido a mão que ele apertava com
força.
Sem mais demora, Guilherme dirigiu-se a ela.
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– A senhorita quer dar-me a honra de dançar
comigo? – falou com a mais doce voz.
Janice ergueu para ele os olhos meio alarmados.
– Sim! com prazer – confirmou e sorriu, com faces
afogueadas levantou-se da cadeira, deu dois passos para
frente ajeitando o vestido de seda creme, de feitio singelo.
Seus olhos de um azul-esverdeado evitavam o olhar
apaixonado de Guilherme.
De braços dados e em silêncio, ambos caminharam
para o centro do salão. Ele tomou-lhe da mão, enlaçou-a
pela cintura e começaram a rodopiar pelo recinto, onde
outros pares já se achavam dançando. O conjunto tocava
uma valsa. A delicadeza e a leveza daquele corpo que
conduzia, a frágil suavidade daquela mão o encantavam,
sentiu desejos de cantar, acompanhando a música que
executavam. Estava eufórico e feliz.
– Ela é linda – pensava ele – muito mais bela do que
a imagem dela que eu guardei na memória... Não sei que
tem essa carinha que tanto me atrai. Não são apenas as
feições, mas também certo ar de inocência, de dignidade
sem afetação. O porte não podia ser mais bem
proporcionado: cintura fina, quadris curvilíneos e seios rijos
apontando sob o vestido. Pequena e esbelta, frágil como um
bibelô. Vou protegê-la, sim, fazê-la feliz, dar-lhe tudo que
tenho: meu amor, meu nome, trabalharei por ela, tudo será
dela. Cerrou os olhos e imaginou-a deitada a seu lado, a
cabeça pousada em seu ombro, os cabelos louros
recendendo a jasmim. Querida e amada Janice.
Acompanhando os passos da dança, Guilherme
voltou a cabeça para ela, e procurando ser gentil, iniciou
uma conversa, que pensava ser interessante, sobre a fazenda
e cavalos que criava, mas Janice não entendia nada sobre o
assunto, ficou entediada, e deu graças quando a música
silenciou por alguns instantes.
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– Por que será que essa moça não me olha? Por que
está tão distante? – intrigava-se ele.
Guilherme segurava delicadamente os dedos de
Janice, olhava-a de soslaio, via-lhe o perfil sereno, os lábios
entreabertos como um botão de rosa. Houve um instante em
que o olhar de Guilherme encontrou o da jovem, e ele
ousou apertar-lhe os dedos com mais força.
– Por favor, não aperte tanto a minha mão.
– Desculpe – retrucou o rapaz, decepcionado.
A música parou, os pares se dispersavam pelo salão.
– Senhorita Janice, permite que lhe faça um pedido?
– perguntou ao terminar a música.
A moça voltou para ele os olhos azuis.
– Que é?
– Que me dê a honra de ser seu único par durante
todo o baile?
Por um instante a moça nada disse. Depois tornou a
olhar para ele com ar de quem não havia compreendido. E
antes que ela respondesse, Guilherme acrescentou:
– Espero que isso não lhe traga nenhum transtorno.
Um rubor cobria as faces da moça, que caminhava
com os olhos postos no chão.
– Pode ser? – perguntou ele.
– Sim.
Ela sacudiu a cabeça afirmativamente.
– Por falar, você já pensou que dentro de alguns
meses pode estar noiva e depois casada?
– Não senhor, não pensei - respondeu ela categórica.
Guilherme percebeu que a moça estava inquieta,
olhando dum lado para o outro.
– Onde está a mesa dos meus tios? Peço que me leve
até eles – pediu e voltou-lhe as costas, saindo quase a correr
na direção deles, quando os viu.
– Espere um pouco. Já vamos para lá – disse ele.
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Guilherme acompanhando Janice encaminhou-se
para a mesa ocupada pela família de Januário, inclinou
levemente a cabeça e balbuciou um agradecimento.
– Sente-se conosco à mesa, meu jovem – convidou
tio Januário e sorridente levantou da cadeira, estendeu a
mão, abraçou-o e indicou-lhe o lugar ao lado da sobrinha.
– Obrigado! Vou pedir uma garrafa de champanhe
para comemorarmos a entrada do Ano Novo. Que o ano de
1940 seja muito feliz para todos nós – disse entusiasmado.
Sentiu que estava emocionado. Sentado perto, não tirava os
olhos de Janice, a qual, entretanto, lhe evitava o olhar.
– Mas por que será que essa criatura não olha para
mim? – indagava-se perplexo. E quando tornou a baixar a
cabeça, surpreendeu a jovem a contemplá-lo.
– Eu te amo! – murmurou ao seu ouvido – eu te amo
com paixão! – repetiu em voz mais alta, com desejos de
tomar a moça nos braços e beijá-la.
Janice pareceu ficar em pânico. Olhou na direção da
tia, como que em busca de socorro. Esta sorria
plácidamente, recostada na cadeira.
O tio Januário simpatizou logo com o rapaz, sondou
o terreno entabulando uma conversa acerca da criação e
negócios de gado, assunto que dominava com maestria.
Dona Hermínia não parava de elogiar a desenvoltura
e a inteligência do moço. Apressou-se em convidá-lo para
fazer-lhes uma visita, fato que ele aceitou prontamente.
O baile foi um sucesso. Na volta da festa, na
companhia dos primos e do tio, Guilherme estava um tanto
misterioso. Vinha cantarolando feliz da vida.
–Tenho uma surpresa para lhes contar. Vou me
casar ainda este ano, mas por enquanto é segredo.
– Para que tanta pressa? – perguntou a tia Dorotéia.
– Ora! Preciso ter minha mulher, meus filhos, meu
lar. O tempo está passando...
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– Mas tudo vem a seu tempo.
– Sabe quem é ela, a minha noiva?
– Ora! Não sei, você disse que é segredo!
– Mas para a senhora eu vou dizer, ela è a moça
mais bonita de Palmeira do Sul, Janice é o seu nome. Na
primeira ocasião vou falar com o tio dela, que a criou –
sabe, ela é órfã – confidenciou Guilherme.
– Já falou com a moça?
– Não. Mas tenho a certeza de que ela vai me dar o
sim. Pelo menos os tios foram muito simpáticos comigo.
– Você é muito presunçoso – comentou a tia rindo.
– O homem não pode fugir ao seu destino, e o meu é
a Janice como minha esposa – profetizou.
Numa tarde de domingo Guilherme abalou-se no seu
automóvel Mustang, esportivo, para a casa de Januário de
Oliveira. Levou dois buquês de flores, orquídeas para dona
Herminia e rosas vermelhas para Janice. Foi recebido com
extrema gentileza pelo casal.
Após os cumprimentos, conversa sobre o tempo e
demais formalidades, Guilherme tratou de expor o seu
propósito. Era de temperamento impulsivo e impaciente.
Não podia mais perder tempo. Ardentemente desejava
Janice para sua esposa, apesar da sua pouca idade. Resolveu
falar com os tios que a criaram, naquele mesmo momento.
Levantou-se da poltrona onde sentava, com o
chapéu rodando na mão, amassando-o, nervoso, lançou de
ímpeto, finalmente, as palavras:
– Senhor Januário, Dona Herminia, talvez este não
seja o momento oportuno, mas há tempo que desejo
comunicar ao senhor e à senhora um fato importante que
me diz respeito e à sua sobrinha.
Fez uma pausa, um tanto perturbado.
- Não farei rodeios, irei direto ao assunto.
Apaixonei-me pela Janice à primeira vista, e minhas
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intenções para com ela são as mais sérias. Estou com vinte
e oito anos, tenho uma profissão e não é nenhum segredo
que pertenço a uma família de posses. Pois bem, eu lhes
peço que falem com sua sobrinha. Se ela corresponder à
minha afeição, quero que o senhor me dê permissão para
freqüentar a sua casa.
– Já? Não é muito prematuro?- deixou escapar dona
Hermínia.
– E por que não? Creio que nós nos conhecemos o
suficiente. Sou amigo do teu tio Nonato – comentou
Januário - nós fazemos muito gosto, não é Hermínia?
– É claro! Eu também aprovo – respondeu a tia.
E assim, na sala de visitas da residência dos
Vasconcelos, iluminada pela luz dum lampião a querosene,
aqueles serões passavam depressa. A tia não se afastava da
sala, ou quando o fazia mandava em seu lugar a filha ou o
marido que conversava com a visita um pouco e depois se
recolhia, pois era hábito seu ir para a cama antes das dez
horas.
Como sempre, ao ouvir o relógio cuco bater as
primeiras badaladas das dez Guilherme despedia-se de
Janice ali na sala, na presença da tia, num rápido aperto de
mão. Dona Hermínia acompanhava-o até a porta.
Naqueles dias Guilherme foi até a fazenda
Marambaia pedir ao pai Lourenço licença para oficializar o
noivado e marcar a data do casamento. Este deu a resposta
positiva com um simples comentário:
– Acho precipitado o pedido, pois faz muito pouco
tempo que você freqüenta a casa da moça, mas em todo
caso, você é maior de idade e sabe o que quer, eu aprovo,
pois Janice e moça distinta e bem educada, e é sobrinha
dum amigo meu. Você tem meu consentimento.
Numa tarde de sábado Guilherme foi à casa da
namorada. Recebido com muita simpatia pelo tio Januário,
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encorajou-se em fazer o pedido. Seguro de si dirigiu-se à
ele e à esposa :
– Tenho o imenso prazer em pedir a mão de sua
sobrinha Janice em casamento. Espero sinceramente que a
concedam, estou perdidamente apaixonado por ela – falou
de um fôlego.
– Você falou com Janice a respeito de casamento?
Ela te ama? – quis saber o tio, atônito diante da proposta.
Peço-te algum tempo para refletir e consultar a sobrinha.
– Eu ainda não falei nada com a moça, mas com
certeza ela vai aceitar se vocês confirmarem – sugeriu
esperançoso o pretendente.
– O pedido será aceito pela nossa sobrinha, tenha
certeza disso – apressou-se a garantir a tia.
Seguiram-se freqüentes visitas do candidato à casa
da jovem e o seu evidente amor por Janice deram motivo a
primeira conversa séria entre os tios e a sobrinha criada
como filha. Porém, o futuro de Janice provocou alguns
desentendimentos entre o casal. A tia defendia Guilherme e
dizia que não podia desejar nada melhor para a sobrinha. O
tio argumentava que Janice não demonstrava nenhum
interesse por ele, apesar de toda a família simpatizar e
aprovar o rapaz.
Numa tarde de domingo, na data prevista, o rapaz
veio para confirmar a proposta com a namorada. O tio
mandou chamar a jovem para a sala de estar onde se
encontravam e interrogou-a:
– Você aceita casar-se com Guilherme? Você o
ama? – perguntou à sobrinha, na presença do futuro noivo.
–Tio Januário, o senhor conhece a minha disposição
afetiva a respeito deste ou de outro qualquer pretendente,
mas se é do seu gosto e da tia Hermínia, eu me caso com
Guilherme – respondeu humildemente.
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O casamento foi confirmado pelos tios e, mesmo a
contragosto, Janice ficara noiva de Guilherme.
Marcada a data do enlace, Janice começou a
experimentar a inquietação, o coração pulsava-lhe com
violência e não era capaz de concentrar o pensamento.
Foram grandes os receios que a moça teve, muitos
questionamentos acerca do futuro, da vida sem graça e sem
amor, que teria com o homem que não escolhera e não
amava.
Tudo foi arranjado rapidamente para a realização
das bodas. A tia Hermínia autorizou, inclusive, ao
pretendente, a dar andamento aos papéis que ela trataria da
festa e de tudo que fosse necessário. Encomendou o vestido
de noiva, a grinalda, e as flores. Comprou o enxoval
conveniente. Esmerou-se nos preparativos; organizou uma
bela recepção aos seus muitos convidados. Tudo sairia
perfeito.
No dia do casamento Janice parecia uma sonâmbula.
Os olhos muito abertos, tremendo, insegura, sem chão,
parecia-lhe que estava flutuando no ar, achando tudo tão
estranho, impessoal, aquelas pessoas convencionais,
subitamente deixava de reconhecê-las; seu tio, sua tia, as
primas, a irmã, os avós, as amigas.
Desejou com todas as forças que esse dia passasse
rapidamente, que anoitecesse e que não amanhecesse nunca
mais, nunca mais. Que tudo virasse uma única e imensa
treva que haveria de engolir para sempre tudo e todos,
como se nada jamais tivesse existido.
Então por que aceitara esse casamento, por quê?
Porque respondera “sim” ao padre no altar? O “sim” saiu
num sopro, mas o fato consumou-se, também no cartório
civil. Quando ela caiu em si, quando teve consciência do
seu ato, desesperou-se. Ficou apavorada. Os seus amigos
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vinham risonhos, abraçá-la e desejar felicidades. Sua irmã
Adélia, consagrada como religiosa, chorara no seu ombro.
- Alguém dizia – como você está pálida!
Realmente estava pálida e tonta, desejava estar
morta. Nunca teve tanta vontade de morrer. O noivo estava
radiante, conversava alegremente com os convidados.
– Mas afinal, o que é que você quer? Não está feliz?
– perguntou a tia que a criara.
Podia ficar calada ou, ter dado alguma desculpa.
– O que eu tenho? – respondeu agressiva - a senhora
ainda pergunta? Vocês me convenceram, pressionaram,
vieram com aquela conversa de - ele é um homem bom,
será um bom marido, é membro de família amiga, bem
sucedido financeiramente. Pois bem, eu me casei, conforme
o desejo de vocês, mesmo sem amá-lo, aceitei-o apenas
pelo fato de simpatizar um pouco com ele.
– Eu falei, sim, mas não a obriguei ninguém te
obrigou - respondeu Herminia, com voz ríspida.
– Dia e noite, todo mundo me cercando, insistindo,
eu estava ficando maluca. Agora é que eu vi, que não devia
ter feito isso, não devia ter obedecido e me casado com ele.
Guilherme estava impaciente, seu desejo era ficar
logo a sós com a noiva. Começaram as despedidas. Janice
passava de braço em braço, era beijada na testa, nas faces,
pelas tias, primas e amigas.
Por fim veio o tio Januário, abraçou-a e teve uma
crise de choro, súbita, e foi se embora, tapando o rosto com
as mãos. A tia Hermínia, sorrindo, veio abraçá-la também.
Em torno riam, conversavam, comentavam a festa que se
prolongava até tarde da noite.
Janice inquietava-se com o momento em que ficaria
a sós com o marido. Sentia que aquela noite, em que eles se
encontrariam, iria decidir-se o seu destino. Ela o pressentia,
e não cessava de imaginá-lo. Ao pensar em Guilherme, uma
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espécie de mal-estar a assaltava, não obstante ele ser um
homem bonito, apresentar um caráter tranqüilo e bondoso,
extremamente compreensivo (ou dissimulado?).
Quando foi vestir a camisola do dia, branca com
rendas, e se mirou no espelho, notou grande ansiedade
estampada no seu semblante, mas se encontrava em pleno
domínio de suas forças, coisa de que tanto precisava.
Naquele momento percebeu que se tratava de sua
felicidade, e estava na contingência de magoar o homem
que dizia amá-la tanto, e que agora era seu marido.
– Ofendê-lo de maneira cruel... E por quê? Porque
era simpático, amável, porque lhe queria, porque estava
enamorado dela? Mas não havia nada a fazer, era preciso,
tinha de ser assim.
– Meu Deus! – pensou – será possível que tenha de
lhe dizer, eu mesma? Dizer que não o amo? Não! É
impossível. Vou-me embora, simplesmente vou sumir.
E já se aproximava da porta quando ouviu os passos
de Guilherme no corredor. “Não, não seria certo. De que
tenho medo? Aconteça o que acontecer, eu lhe direi a
verdade”.
Ao vê-lo aparecer, sorrindo, e fixando nela um olhar
ardente, cheio de desejo, Janice fitou-o franca nos olhos.
– Acho que cheguei cedo demais – disse Guilherme.
– Oh, não pense assim – replicou a moça, sentandose na beirada da cama ao lado dele, de cabeça baixa,
respirava com dificuldade.
Levantou-se sem olhá-lo, para não perder a
coragem. Despejou as palavras com ímpeto, sem refletir
bem o que dizia. Um peso enorme lhe comprimia o
coração. Nunca pensara que uma confissão tão absurda a
abalasse tanto.
– Perdoe-me, mas não posso e não quero entregarme a você! Seria um absurdo! Sei que agora sou sua esposa,
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mas não o amo, fui obrigada a casar-me com você. Não
pode aceitar uma mulher que não o ame como tens direito
de ser amado. Deixe-me ir embora de sua vida. Por favor,
deixe-me ir – suplicava.
– Não esperava outra coisa de você – disse
Guilherme sem a fitar – sei que é ingênua e inexperiente.
Ignora tudo a respeito do amor e do relacionamento entre
homem e mulher. Simplesmente você está com medo de
enfrentar a vida de casada. Mas eu tenho muita paciência.
Esperarei o tempo que for necessário. Afinal de contas, foi
hoje que nos casamos. Nem pense em abandonar-me.
O marido pacientemente retirou-se, trancou a porta
do quarto levando a chave.
– Guilherme! Não faça isso comigo, só vai piorar as
coisas – reclamou Janice desesperada.
Ouviu seus passos pelo corredor indo embora. Não
voltou mais naquela noite para importuná-la.
No dia seguinte de manhã, Guilherme veio chamá-la
para o desjejum. Gracejou a respeito da noite de núpcias,
tratou-a como se não tivesse acontecido nada de anormal.
Conversou alegremente à mesa com a mãe, irmã, tios e
demais comensais.
– Querida, depois do café, arrume as nossas malas;
providencie roupas para quinze dias, vamos viajar em luade-mel para o litoral – ordenou com voz calma.
Ela arrumou tudo sem pressa, escolhia os vestidos,
as blusas, saias e sapatos, para estar tudo de acordo. Pediu
para dona Perpétua separar as roupas de Guilherme.
Quando as malas estavam prontas e fechadas, tudo foi
arrumado no automóvel. Depois das despedidas lacrimosas
da família, o pai os levou até a estação ferroviária.
Acomodaram-se na cabina especial do trem, que seguiu
rumo à capital.
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Viajaram a noite toda. Guilherme tentou conversar
amavelmente, mas ela disse estar com muita dor de cabeça,
queria descansar, tentaria dormir um pouco. O trem de ferro
chegou de madrugada na estação da capital; em seguida foi
feita a baldeação para os vagões da Litorina, que fazia a
linha turística até Paranaguá.
O amanhecer daquele dia estava esplêndido. A
fímbria das montanhas da Serra do Mar se destacava do
fundo azulado do céu. Do lado do nascente, os primeiros
raios douravam o cimo das rochas, avermelhando-as. O sol
despontava, fagueiro, por detrás das montanhas. Os raios
eram suaves. A natureza despertava ressuscitada do langor
da noite. Tudo era paz ao redor.
A Litorina partiu às 6 horas da manhã. O trem
sacolejava nos trilhos, assobiava nas curvas e túneis
cavados na Serra do Mar. Majestoso, projetava-se contra o
céu o pico Marumbi. Ouvia-se à distância o ribombar das
águas da cascata Véu da Noiva que se lançavam de grande
altura, formando névoa densa sobre o despenhadeiro.
A ponte São João, de 113 m de comprimento e 58 m
de altura, estendia-se sobre o precipício; paisagens
fascinantes de vegetação, fendas e morros desfilavam
diante dos olhos deslumbrados dos viajantes.
A Litorina chegou à estação de Paranaguá ao meiodia. O casal em viagem de núpcias hospedou-se num hotel
bastante simpático, pequeno, mas confortável, com vista
para o mar. O marido, sentado ao lado, na cama, assobiava
qualquer coisa. Ela deitou-se, pois estava cansada e com
dor de cabeça. Não suportava aquele homem; nunca
pensara que podia odiar tanto alguém. Mas Guilherme tinha
paciência.
Os dias foram preenchidos com passeios pelas
praias, banhos de mar e jantares em restaurantes da moda.
Ele era gentil com Janice, tratava-a com carinho, sabia
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esperar pelo momento oportuno. Não impunha nada, não
exigia nada. O dia certo iria chegar, evidentemente.
O passeio já durava quinze dias, era tempo de voltar
para casa.Desiludido, mas ainda assim, paciente, Guilherme
marcou a data de retorno, que seria no outro dia pelo
primeiro trem que subisse a serra, para a capital.
Pernoitaram na cidade num hotel de luxo.
Guilherme ofereceu a Janice todo o conforto, para
agradá-la. À noite saíram para assistir a uma peça de teatro,
de grande sucesso da temporada. De manhã, logo após o
desjejum, alugou um automóvel para levá-los à fazenda
Marambaia, propriedade de sua família, e que seria também
a residência do casal.
– O caminho é distante e a viagem será cansativa,
chegaremos ao anoitecer, se tudo correr bem – comentou
Guilherme a titulo de consolo – vamos passar próximo à
sua cidade, mas não poderemos parar, pois meus pais nos
esperam na fazenda, em nossa casa.
Janice, conformada, assentiu com a cabeça. Estava
absorvida olhando pela janela do automóvel. A paisagem ia
passando, e logo avistou, à beira da estrada, as casas da
pequena cidade do interior onde nascera e vivera até tornarse adulta, depois desfilaram os campos verdes com o gado
pastando. Seguiram-se as plantações de trigo ondulando ao
vento, capoeiras, morros e pinheirais. Ao longe se
esboçavam os contornos da Serra da Esperança.
O sol despontou no horizonte surgindo detrás da
colina, e por momentos, escondeu-se detrás da neblina que
pairava sobre o Rio dos Patos.
Guilherme era um cavalheiro, gentil e atencioso, ia
calado ao seu lado, olhando a paisagem que passava. Até
agora, ele não tentara nada, nem uma carícia, nem um beijo.
Parecia, inclusive, esquecido da sua presença, ignorava-a.
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– Ah, meu Deus, se esse homem tentar dar-me um
beijo, eu não sei o que faço! Mas estou casada, estou
casada! – era o que ela pensava, chegando-se mais para o
canto do assento do automóvel.
Não queria ter nenhum contato com o marido; teve
vontade de jogar-se do automóvel que corria veloz. O que
clamava em todo o seu ser, era a vontade de fugir. Fugir do
marido, do casamento, daquela desconhecida casa na
fazenda para onde ele a levava.
– Posso beijá-la?- sussurrou o marido ao seu ouvido.
Janice teve um gesto de defesa; arrepiou-se até a
medula dos seus ossos.
– Não! – gritou, e logo emendou – agora, não! Por
favor, não! Depois...
Houve um silêncio inquietante.
- “Meu Deus! eu sempre quis amar e ser amada,
sempre, mas não assim. Sempre quis ter um namorado, um
noivo, um marido. E casei-me por imposição dos tios, com
um estranho, um homem que não conhecia e não amava”.
De repente, ele começou a conversar, falando da sua
casa, de coisas banais que, entretanto, horrorizavam a
moça; que, ouvindo-o até o som de sua voz a irritava. A voz
dele era pobre de inflexões, tinha um tom que lembravam
batidas de martelo em madeira, lhe fazia mal aos nervos,
era praticamente uma tortura física.
– Você vai gostar da nossa fazenda – dizia o pobre
diabo. – Passearemos pelos bosques, descansaremos sob a
sombra das mangueiras, e se você quiser podemos tomar
banho de cachoeira, ou pescar na Lagoa Dourada.
– O que você disse? – perguntou com irritação.
Tinha ouvido muito bem.
– Não quer conversar agora? Talvez esteja cansada.
– Tenho uma dor de cabeça horrível – disse. Vou
ficar calada, fingir que adormeci. Fechou os olhos.
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Seu rosto tornava-se sombrio, sentia uma
determinação feroz de negar qualquer caricia, mas ele podia
querer usar a força, já concebia uma cena de violência.
Então teve vontade de chorar, uma necessidade de dar
vazão aquele ódio concentrado, em lágrimas abundantes.
Não tinha ninguém a quem apelar; não podia esperar
socorro de espécie alguma. O seu destino estava traçado,
estava viajando de encontro a uma vida desconhecida, no
meio de estranhos.
À margem da estrada por onde trafegavam, surgiam
povoados com casas esparsas, à direita e à esquerda, casas
pequenas, construídas de madeira, cercadas de ripas, com
hortas verdejantes ao lado. Aqui e ali um riacho de águas
cristalinas corria pelo meio do capinzal.
Em toda parte viam-se grupos de árvores de várias
espécies. Havia grandes plantações de eucaliptos e outras
também vastas de pinus strobus e pinus heliotis. Imbuias e
pinheiros nativos despontavam as copadas acima da mata,
apareciam também gameleiras na periferia da floresta.
Os delgados eucaliptos estavam povoados de
periquitos verdes que faziam uma algazarra enorme,
palrando, disputando, até parecia uma reunião de políticos;
papagaios assobiavam suas imitações de melodias; dois
sabiás pulavam de galho em galho, namorando, o macho
cortejando à fêmea. Araras de crista vermelha e peito
amarelo, equilibrando-se nos galhos da árvore, com a
cabeça inclinada para o lado, confabulavam entre si.
Enchia o ar o zumbido das abelhas colhendo o mel
das flores; brilhantes e ligeiras libélulas esvoaçavam
procurando a água do pântano, ao lado de borboletas
lindamente coloridas, azuis e amarelas, e mariposas
diurnas. Mais adiante um tamanduá-bandeira interrompeu
sua busca de formigas, tomado de pânico com aproximação
do automóvel.
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Um ouriço escavava a terra tão depressa que suas
robustas patas providas de garras sumiram em poucos
segundos, ele começou a desaparecer debaixo de um tronco
imenso. Fazia trejeitos divertidos enquanto cavava, e os
espinhos eriçados se lhe achatavam ao longo do corpo a fim
de lhe facilitar a entrada debaixo do solo, ao passo que a
terra voava de todos os lados.
Entardecia...
Os últimos raios do sol poente aclaravam vastas e
majestosas extensões de cafeeiros alinhados em fileiras a
perder de vista. As folhas das árvores lampejavam de
repente como pontas de fogo quando o vento sacudia os
galhos, e grandes abismos de sombras se espalhava debaixo
dos cafeeiros, tão misterioso como o mundo subterrâneo.
Os sons que se ouviam eram apenas do vento quente
nos cafezais, sibilando entre as folhas verde escuras, e um
pássaro sonolento e próximo reclamando porque lhe haviam
perturbado o repouso; o único cheiro era o aroma fragrante
e indefinível da mata nativa.
À distância desenhava-se uma parede da floresta de
araucárias. Nos campos a perder de vista, floriam em tufos
brancos os assa-peixes. Ao lado da estrada, por entre a
relva, desabrochavam os primeiros lírios-do-campo.
Pendidos para o ribeirão, quase roçando as águas, abriam-se
em flores brancas e vermelhas, os galhos dos ingazeiros.
O caminho que demandava à Fazenda Marambaia,
não lhe trazia lembranças. A última porteira surgiu depois
de uma touceira de açoita-cavalo e de um capão de
bracatinga. O automóvel parou, com o motor funcionando.
O homem apeou do carro, caminhou até o mourão de
madeira, destravou e abriu a porteira puxando-a com
impaciência.
Logo após a curva da estrada apareceu a grande casa
da fazenda. Construída de pedras e tijolos, a residência
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tinha dois pavimentos, com grandes janelas de vidraças e
cortinas de voil branco de algodão, esvoaçando ao vento.
Tinha uma ampla varanda à volta de todo pavimento
inferior. Junto ao muro, que cercava a casa, uma acácia de
cachos floridos recendia em pólens amarelos. O sopro da
brisa chovia flores sobre o chão, como um tapete dourado.
Era outono, e a trepadeira glicínia, de cachos de
flores de cor lilás claro, plantada pelo avô de Guilherme, há
oitenta anos, era uma sólida massa de ramos e folhas
subindo desordenadamente pelas paredes externas e pelo
teto da varanda. Janice olhava a casa, estava apavorada com
o seu novo lar desconhecido. Era lá que ia viver com esse
homem, para ela um estranho.
– “Vou ter que aturar a vida inteira um homem que
mal conheço, vai viver comigo, vai mandar em mim.” E
sempre seria um desconhecido... Sempre, pois não o amava.
Ela sempre teria horror dele e nunca poderia suportá-lo.
- “Um dia talvez eu encontre um grande amor.
Como será ele, meu Deus? Será que vai corresponder aos
meus anseios?”.
Era mulher e frágil por ser carente de afeição, a sua
vontade posta à prova talvez não resistisse a um amor que
surgisse na sua vida, que fatalmente surgiria, mais dia
menos dia, era inevitável, e ela o esperava ansiosamente,
sonhando com seu primeiro beijo de amor.
Enquanto Guilherme estacionava o automóvel e
juntos atravessavam o gramado, caminhando em direção a
casa, uma jovem bonita esperava na varanda da frente, com
sorriso nos lábios finos.
– Bom dia, querida irmã, como vê trago a minha
esposa Janice para conhecer a casa – disse ele.
– Oh, como é bom vê-los de novo – exclamou
Adelaide radiante.
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No vestíbulo, com o piso de granito escuro e a
grande escada de corrimão de imbuia torneada, ele esperou
que a mãe viesse recebê-los. Perpétua estava sentada na
cadeira de jacarandá lavrado, de respaldo alto, o assento
forrado de veludo carmesim, colocada próximo a uma
janela aberta que dava para o pátio interno. Tinha as mãos
pousadas no regaço, e em seus olhos havia uma expressão
de indiferença, parecia não notar a chegada da visita. Seu
cabelo escuro, semeado de fios encanecidos, estava preso
num coque e emoldurava-lhe o rosto de feições severas.
As rugas finas marcavam-lhe o semblante e pés de
galinha em volta dos olhos escuros acentuavam ainda mais
a dureza da expressão. Aparentava ter uns sessenta anos.
Com o olhar triste, perdido no vazio, no início,
repentinamente tornou-se risonho ao ver o filho. Levantouse da cadeira para abraçá-lo.
– Guilherme! Meu filho querido, finalmente você
voltou, tive muitas saudades. Agora vai ficar morando
definitivamente conosco, na casa que também lhe pertence?
– Sim! Eu e Janice minha esposa, vamos morar aqui,
mamãe.
– Sejam bem-vindos – disse a mãe.
Abraçaram-se afetuosamente. Dona Perpétua não
deu grande atenção a Janice, apenas cumprimentou-a
amavelmente. Assim começou a convivência morna entre a
sogra e a nora. Adelaide, chamou a criada e o mordomo
para levar as malas ao quarto. Precedendo-os, tomou a
cunhada pelo braço e conduziu-a pelo longo corredor até as
dependências destinadas ao casal. Rindo, perguntou-lhe a
respeito da viagem de núpcias.
– Conte-me tudo, sem omitir nada! – insistia.
– Não seja tão curiosa – falou envergonhada Janice,
jamais confessaria à cunhada que não aconteceu nada entre
ela e Guilherme, não teve lua-de-mel, porque ela não quis,
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pois não o amava. Ele seria ultrajado e humilhado aos olhos
da irmã, e nem ela nem ele mereciam isso.
Cochichando e rindo as duas se envolveram em
confidências, surgiu então uma grande amizade entre elas.
O sol ocultou-se atrás das montanhas e as sombras
da noite invadiram os corredores do casarão. Nesse
momento Adelaide, o irmão e a esposa, estavam reunidos
no quarto de dormir do casal e conversavam cordialmente.
Guilherme alegremente, contava as peripécias da viagem.
Depois do jantar, não querendo ser indelicado ou forçar a
situação entre ele e a mulher, deixou-a bem à vontade.
– Minha querida, você deve estar cansada, vá tomar
seu banho, deite-se e descanse bem. Amanhã você pode
locomover-se livremente pela fazenda. Vá para onde quiser,
mais prático e seguro será se você for a cavalo, então terá
a oportunidade de conhecer melhor a nossa vasta
propriedade, eu não poderei acompanhá-la no passeio, pois
devo reassumir, sem demora, o meu trabalho de administrar
a nossa fazenda – justificou-se.
Acatando a sugestão do marido, no outro dia à tarde,
Janice saiu a passeio galopando tranqüilamente pelos pastos
e sem perceber distanciou-se bastante da sede da fazenda,
passou a meio galope, em seguida freiou o cavalo, apeou-se
debaixo do frondoso ipê, florido, em cuja sombra atapetada
por flores amarelas deitou-se para descansar.
Em volta do córrego sussurrante pendiam das
barrancas, espalhados, os galhos muito verdes das avencas.
Ouvia-se o canto dos pássaros. Na vegetação a seiva corria,
aos jorros, rebentando em flores. Os grilos cantavam
escondidos no meio da folhagem dos arbustos.
Um bando de maritacas verdes, de chilrear
estridente, revoluteava no céu procurando o abrigo para a
noite, e numa curva caprichada deitou por sobre as copas
das árvores de um capão próximo. Alvoroçadas,
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disputavam entre si o melhor lugar nos galhos e ramagens
das frondosas árvores.
De um lado e do outro da estrada aprumava-se a
floresta de palmeiras esguias, elegantes, com a folhagem
brilhante lavada pela chuva da véspera, palmeiras-juçara
cujo palmito foi o alimento predileto do indígena. Ao
passar pela mata, ouviu o ronco de um caititu levantando do
lamaçal e fugindo barulhento, pelo matagal adentro.
Pelas pastagens, cupins erguiam torres ferrugentas
que se assemelhavam à arranha-céus em miniatura;
exércitos ordenados de formigas saúvas, cortadeiras,
corriam em fila carregando folhas, e desapareciam como
água por buracos feitos no chão.
Nessa região a vida alada era tão rica e variada que
as espécies que se apresentavam pareciam não ter fim;
viam-se papagaios palradores de asas escarlates, grandes
araras azuis, outras com a plumagem totalmente da cor da
púrpura, graciosos e minúsculos colibris de bicos
compridos que revoluteavam ao redor de cálices de flores,
sugando o néctar, tucanos de peito amarelo e bico enorme
revoavam de galho em galho e pica-paus batiam na casca
das árvores à procura de larvas.
E os insetos! Cigarras, grilos, abelhas, moscas de
todos os tamanhos e espécies, libélulas, mariposas enormes
e miriades de borboletas de todas as cores. Aranhas
estendiam a teia suspensa entre um galho e outro, algumas
se embalavam em densos berços de fios prateados, presos
entre hastes de capim gigante.
Pela imensidão das pastagens onde o gado pastava,
havia lagartos de papo amarelo espreguiçando-se a sombra
ou espreitando uma ave para o repasto. As cobras
deslizavam silenciosamente pelo solo, atrás da caça. Saídos
da floresta vizinha apareciam porcos selvagens em
manadas, bravos, de presas salientes, atacavam valentes,
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quem se aproximasse. No silêncio tilintavam os guizos de
um rebanho de cabras no pastoreio.
A vida fervilhava nessas redondezas, no grande afã
da luta pela sobrevivência; nos meses de temperaturas
elevadas do verão, época da procriação, a competição se
tornava maior. Havia rivalidades entre os machos na
disputa pelas fêmeas, lutas às vezes violentas e mortais.
Janice ficou ali, deitada na sombra, olhando sem
ver, divagando, sem notar o correr das horas, a sentir a
impressionante quietude da mata. Um silêncio pontilhado
de pios, murmúrios, cicios, crepitações, sussurros,
marulhos, mas apesar de tudo isso, sempre e cada vez mais
profundamente, silêncio. Quando percebeu já o sol estava
declinando no horizonte. Atemorizada, montou o cavalo,
que estava pastando tranqüilamente, cavalgou ligeiro,
partindo a trote largo rumo à fazenda.
Encontrava-se longe de casa, no campo, quando
estourou a tempestade. Assustada, apeou do cavalo,
amarrou o animal, bem amarrado, a uma gameleira, e
sentou-se debaixo para esperar a chuva passar. Deixou o
seu olhar vagar, admirar esse evento fantástico da natureza.
Ela gostava de modo especial da emanação que se
erguia da terra quando sobre ela caiam as primeiras gotas
de chuva. Sentir o vento forte, úmido, lamber seu rosto e o
cheiro bom de terra molhada que se levantava no ar.
Extasiava-se diante da tempestade. Ficava fascinada ao ver
os campos alisados pelo pente dos temporais, o rolar das
nuvens negras carregadas de eletricidade, o ribombar dos
trovões, os raios explodindo ao longe riscando o céu com
sua luz de fogo.
Durante o verão quente, despojada da umidade a
secura da terra e a do ar esfregava-se uma na outra, ásperas
e crepitantes num atrito irritante que aumentava, cada vez
mais, até poder terminar numa dissipação gigantesca de
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energia acumulada. O tempo seco prejudicou a grama e
tostou o capim colonião, que atingia o joelho das pessoas.
Naquela tarde, o céu apresentava um aspecto
tenebroso, parecia cair, e ficou tão escuro que as pessoas se
viram obrigadas a acender as luzes dentro de casa; fora nos
pastos os animais estremeciam e saltavam ao menor ruído;
as galinhas procuravam seus poleiros e escondiam as
cabeças nas penas do peito; os cães rosnavam e brigavam
por nada; os porcos enfiavam os focinhos no barro e
espiavam através dele com olhinhos assustados, roncavam
agredindo-se mutuamente.
Forças sombrias encerradas nos céus punham medo
nos ossos de todos os seres vivos, enquanto vastas nuvens
profundas engoliam o sol e preparavam-se para vomitar
torrentes de água sobre a terra. O trovão veio rolando de
muito longe, cada vez mais rápido, fortes lampejos no
horizonte davam nítido relevo à floresta, que se vergava até
o chão. O vento que rugia lúgubre açoitava e quebrava os
galhos das árvores, arrancava os telhados das casas,
fazendo-os girar, jogando-os ao chão, rodando e
empurrando, sacudindo, levava-os para longe.
Homem nenhum teria deixado de pular nervoso
quando o trovão estalava e explodia com o fragor e a fúria
de um mundo que parecia desintegrar-se. Grandes
relâmpagos riscavam o céu como veias de fogo e raios
pipocavam. Nuvens turbilhonaram negras, pelo céu,
rasgadas em frangalhos, carregadas de granizo, empurradas
pelo vento.
Repentinamente um brilho fantástico, sobrenatural,
tomou conta do ar, o céu abriu as comportas e desabou a
chuva torrencial; não foi uma chuva mansa, mas um dilúvio
atroador, que parecia não acabar mais.
Ensopada pela chuva, tremendo de frio e de terror,
Janice lembrou-se que naquele dia, ao passear pelo campo,
35
viu não longe dali, uma cabana feita de troncos, coberta de
telhas de barro, que servia de apoio aos caçadores.
Resolveu apressar o passo, depois saiu correndo para
proteger-se do temporal que desabava.
Encontrando a porta fechada, empurrou-a com
força, abrindo-a por inteiro. Ao adentrar no cômodo ela
estacou na soleira, olhando perplexa o homem que estava
ali, nu, como tinha vindo ao mundo. A cabana estava
ocupada por um viajante que, em trânsito pela região,
refugiou-se da intempérie. Ele tinha acendido o fogo com
gravetos e grimpas de pinheiro e naquele momento
colocava a roupa encharcada de água para secar.
Em seguida, completamente despido, saiu pela porta
da frente para o gramado, os braços erguidos acima da
cabeça, os olhos fechados, num delírio voluptuoso, deixou
que a chuva caísse sobre ele, em duchas quentes,
penetrantes; desfrutava a deliciosa sensação na pele nua
fustigada pelo vento. Seu membro viril estava rígido e em
ereção. Depois de usufruir do banho ocasional, entrou na
cabana assobiando baixinho.
E, sem nenhum constrangimento, começou a vestirse, com a roupa ainda úmida. Vestiu a sunga, a calça e a
camisa, depois calçou as botas. Penteou os negros cabelos.
Alcançou uma xícara da prateleira, na qual despejou o café
fumegante que naquele instante tinha coado, colocou açúcar
e ofereceu a Janice.
– Desculpe-me pela original apresentação, mas eu
não esperava que alguém aparecesse por aqui, com uma
chuva torrencial como essa. Deixe apresentar-me, sou
Adriano Silveira Dorsay, caixeiro-viajante, representante de
firmas de São Paulo, do ramo de produtos veterinários, em
visita a fazendeiros da região. Procurei abrigo do rigor da
tempestade que se aproximava, encontrei essa cabana
desabitada, instalei-me aqui até que o tempo melhore.
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Janice aceitou o café contrafeita, e embaraçada
sentou-se na ponta do velho sofá, para degustá-lo. Olhando
para Adriano com olhar reprovador, comentou:
– Você é um debochado, senhor Dorsay. Isso são
modos de se apresentar à dona da fazenda? Que despudor!
Sou Janice, esposa de Guilherme de Castro Vasconcelos,
proprietário destas terras. Juro que jamais vi um homem
mais atrevido e insolente, no entanto, o mais belo, que
você. Todo seu corpo é assim moreno jambo, queimado
pelo sol?Você é um desportista, ou um fauno dos bosques?
– Ora, é só você conferir, senhora de Castro –
respondeu ele rindo e olhando-a despudoramente.
Um sorriso lascivo dançou na sua boca. Quando
seus olhos se fitaram foi como uma explosão. Uma corrente
elétrica atravessou-lhes o corpo desde os dedos dos pés à
raiz dos cabelos. A magia dos olhos os hipnotizava, na
maneira como se olhavam.
Adriano sentou-se no sofá perto dela e inclinou a
cabeça para frente, a boca tocando o cabelo dela, enquanto
as mãos tiravam as botas, a camisa, a calça e a sunga;
quando esta caiu ao chão, empurrou-a com o pé, levantouse e ali ficou, nu, belo como uma estátua grega, enquanto
ela se erguia e dava uma volta completa em redor dele,
devagar, olhando, admirando.
– “Diante de um espetáculo assim, tão magnífico,
nós mulheres não somos nada, ele não pede licença para
nada. Quando quiser beijar, possuir, ah, quem é que pode
resistir? Pega à força beija e subjuga”. – Raciocinava ela.
- Aquela perturbação, só a emoção que sentia já era
um pecado – pensava ela . Era casada, embora não amasse
seu marido, não tinha direito de desejar e se emocionar
tanto com um homem que não era seu esposo.
Talvez nenhum ser humano esteja em condições de
julgar o que é pior; se o desejo incipiente e a inquietude e a
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irritabilidade dele decorrentes, se o desejo específico, e o
seu impulso voluntário de satisfazê-lo. Ela desejava,
embora não soubesse bem o quê, mas o impulso básico lá
estava e arrastava-a inexoravelmente na direção de
Adriano. E ela ansiava por ele, queria-o.
– Bem você é jovem ainda para ter conhecimento
das coisas boas do mundo, mas tem de aprender, se é que
seu marido ainda não lhe ensinou; parece ser função minha
ensinar-lhe, não lhe parece minha bela fazendeira?
Janice com os dedos trêmulos, desabotoou a blusa
molhada e tirou-a. Despiu o culote de montaria, as peças
íntimas e as botas de cano alto, encharcadas de chuva.
Ficara completamente nua. Seus lábios tremiam. Ao vê-la
assim exposta e linda, exacerbou o desejo de Adriano a
ponto de querer possui-la ali mesmo, no chão da choupana.
Ela escorregou do sofá e aninhou-se nos braços dele,
encostou a cabeça no seu peito, enquanto as palmas das
suas mãos subiam e desciam por todo o corpo, com uma
sensualidade deliberada que o atordoava cada vez mais.
O ardor do primeiro beijo. Ela não sabia como era
um beijo apaixonado, entregou-se a ele até desmaiar de
emoção. Fascinado, ele pôs a mão debaixo do queixo dela,
puxou lhe a cabeça para cima até que ela olhou para ele,
encontrou-lhe a boca, forçou-a a abri-la, querendo mais e
mais beijos dos lábios ardentes, entreabertos.
Então, os braços dela deslizaram por baixo dos seus
braços e foram juntar-se nas suas costas; ficaram como
serpentes enroladas, apertadas em torno do corpo,
estrangulando-o. Sobre o chão, aspirando o aroma da terra
molhada, à luz difusa dos relâmpagos coados pelas frestas
do casebre, rolaram pelo piso do casebre, beijando-se
inteiros, endoidecidos pela paixão e desejo. Amaram-se a
noite toda, indiferentes a tudo. Lá fora o vento rugia e o céu
despejava torrentes de água.
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Ao amanhecer tudo serenou, a chuva parou e o
vento amainou, e quando a luz ainda pálida da lua aclarava
vastas e majestosas extensões de mata, a relva do campo
tremeluzia e se agitava com a aragem branda qual suspiro
comovente; eles saíram da cabana, abraçados, ainda aos
beijos. Levantando a cabeça, ela tentou em vão contar as
estrelas; delicadas como gotas de orvalho que luziam e
sumiam, luziam, sumiam, num ritmo eterno e infinito.
Os únicos sons eram o vento quente no capim, as
árvores que sibilavam, e um pássaro sonolento reclamando
porque lhe haviam perturbado o sono; o único cheiro era o
aroma fragrante e indefinível dos campos.
- Você é natural daqui?– perguntou Adriano.
- Não, nasci no sul do Estado. Vim para cá
recentemente, depois de casada - respondeu
Janice
distraída.
– Passamos a noite em claro e você continua linda,
não parece estar cansada. Está feliz?
– Oh, sim! Sinto-me imensamente feliz; como lhe
falei, foi minha verdadeira e primeira noite de amor.
– Pois eu gostaria de repetir esta noite, muitas e
muitas vezes. Vou contar os minutos para o nosso próximo
encontro. Sabe o que penso? Que você e eu somos um par
de imãs feitos com um metal único.Eu fui irresistivelmente
atraído por você – comentou ele.
– Não posso mentir quanto ao fato de querer vê-lo
mais, muitas outras vezes – disse ela – mas lembre-se que
sou casada, e tenho um marido ciumento e possessivo.
Devemos guardar maior sigilo. Na sua presença nós não
nos conhecemos. Agora preciso ir embora.
À beira da estrada, próximo à gameleira, havia uma
cerca de arame farpado segura por mourões de cerne de
madeira, onde Janice amarrara o cavalo. Caminharam pela
relva, ainda molhada pela chuva, Adriano segurando-a pelo
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braço para que não tropeçasse; ajudou-a a montar alçando
o seu corpo com delicadeza. Despediram-se com um beijo.
Adriano escalou com a máxima ligeireza o morro e
começou a afastar-se lentamente, caminhava ao longo de
uma trilha guarnecida de pés de laranjeiras que corria em
ziguezague em volta da colina. Seu cavalo pastava
tranqüilamente em cima do morro, amarrado a uma árvore.
Os olhares de Janice e Adriano cruzaram-se mais
uma vez, afirmando uma dor muda e pungente de saudade.
Tinha sido muito forte a experiência que acabavam de
viver. Era em vão que tentavam reagir contra a ansiedade
que os dominava. Estavam tomados por uma paixão que os
arrastava aos abismos. Janice não conseguia sufocar os
soluços, e duas grossas lágrimas rolaram da sua face.
– Dir-se-ia que vou morrer tão violenta é a angústia
que estou sentindo – pensava desolada.
Ela chegou à fazenda com um ar esquisito, vestígios
de sonho nos olhos, um vago espanto e tristeza no rosto.
Todo mundo estava na varanda esperando-a. Guilherme
aguardava-a ansioso. A sogra ostentava nos lábios um
sorriso falso. Apenas a Adelaide correu para ajudá-la apear
do cavalo.
– Querida! O que foi que aconteceu? A tempestade
te pegou? Onde você pernoitou? Foi grande o meu susto ao
chegar em casa, de madrugada, e não a encontrar. Você está
bem? – o marido confuso com perguntas, atropelava a
ordem dos fatos.
– Agora está tudo bem, felizmente estou em casa e
ao teu lado. Fui obrigada a me abrigar na cabana de caça,
para me proteger do temporal. Fiquei com muito medo que
a choupana desabasse com a ventania que abalou a
redondeza. Mas tudo já passou. Como vê, estou sã e salva.
Guilherme estendeu o braço envolveu-a e puxou-a
para junto de si.
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– Você está tremendo de frio, acho melhor
entrarmos em casa; você vai tomar um bom banho, para se
esquentar e descansar. Mandarei servir o desjejum para nos
dois, no nosso quarto.
Percorreram um longo corredor em direção às
acomodações do casal. Dona Perpétua acompanhou-os com
olhar cheio de ciúmes e inveja. Janice sentiu uma mudança
no marido, uma diferença no braço que lhe passeava
carinhosamente pelas costas.
Mas era gostoso apoiar-se num homem cheio de
vitalidade, sentir o calor que se irradiava dele, os contornos
atléticos do seu corpo. Mesmo através da sua camisa grossa
de lã, tinha consciência da mão dele, que agora se movia
em pequenos círculos acariciantes. Ela não amava o
marido, mas era jovem e anelava por saborear devidamente
o amor, agora que experimentara as delicias do prazer
carnal e, portanto, em princípio, por que não descobrir
como eram os seus beijos?
Tomando-lhe o silêncio como consentimento,
Guilherme pôs a outra mão no ombro dela, virou-a para que
ela o encarasse, e inclinou a cabeça. Colou os lábios nos
lábios dela e comprimiu-os. Ela estremeceu de prazer e seu
corpo juntou-se ao dele, embora seu pensamento estivesse
longe.
Guilherme era experiente em matéria de sexo –
homem vivido, mas Janice não conhecia nada, pois até a
véspera daquele dia era virgem. Ele encontrara um ponto
sensível em seu pescoço e comprimiu-o com a boca. As
mãos dela envolveram-no. Os lábios dele lhe deslizaram
pela garganta abaixo e, com as mãos ele tirou-lhe a roupa e
levou-a para a cama nos braços.
As molas da cama rangeram com o peso dos dois
corpos. Janice sentiu a pele quente do marido em contato
com a sua e deu um pulo. Ele virou-se de lado, aninhou-a
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entre os braços e beijou-a. A princípio, ela permaneceu
passiva, tentando não pensar em nada, mas depois,
começou a lutar para libertar-se, não querendo ser beijada,
não mais desejando Guilherme.
Mas ele subjugou-a com beijos, carícias, excitandolhe a libido. Então, o braço dela procurou-lhe o pescoço,
seus dedos, que tremiam, enfiaram-se-lhe no cabelo, a
palma da sua outra mão descansou na pele macia e morena.
Sem largar-lhe a cabeça, ele beijou-lhe as faces, os olhos
cerrados, a testa, e voltou à boca porque era tão ardente,
entontecedora. Com o rosto enterrado entre o pescoço e o
ombro dela, passou as pontas dos dedos pelas costas nuas,
sentiu–lhe o arrepio e os bicos dos seios enrijecerem.
As mãos de Guilherme apertaram-lhe as costas com
um prazer agoniado. Ela percebeu que ele não estava
pensando nela, enquanto deitava-se em cima dela, erguera
os quadris e tateava-a com uma das mãos, e quando ele a
penetrou, sua garganta expeliu um grito doloroso, mas
apesar da dor, era como um afogar-se, um afundar cada vez
mais, e arquejante o desejo tomou conta do seu corpo
liberando o clímax numa torrente súbita, no momento exato
em que ele gemeu e estremeceu atingindo o orgasmo.
Saciado, ele depositou um beijo de amor e gratidão
na sua boca e ficou inteiramente imóvel a não ser pelo arfar
da respiração. Virou-se para o lado e adormeceu, caiu num
sono profundo. Um justo repouso do guerreiro.
Janice, deitada na cama ao lado dele, pensativa,
olhava para o teto, e parou a vista no suave halo circular
que a lâmpada projetava no forro, sem querer, fazia
comparações entre o beijo do marido e de Adriano.
Uma coisa, ao menos, estava provada, que nada
havia nos beijos de Guilherme que lhe lembrassem os
beijos ardentes de Adriano, que a elevavam aos céus. Não
havia a mínima semelhança. Eram completamente
42
diferentes. Adriano era um desses homens de sonhos, quase
inexistentes, que vieram ao mundo com o dom de amar e
serem amados. Enquanto Guilherme a beijava, ela
reconhecia em desespero:
– “Eu amo Adriano, não posso negar, somos duas
almas gêmeas que finalmente se encontraram”.
***
Um fato que seria corriqueiro no dia-a-dia de
qualquer um, veio transtornar a vida do fazendeiro
Guilherme de Castro Vasconcelos, homem de caráter
peculiar.
Num certo dia de verão, o caixeiro-viajante Adriano
Silveira Dorsay parou em frente à residência de Guilherme
na Fazenda Marambaia. Veio fazer-lhe uma visita de
cortesia e talvez vender alguns produtos veterinários para
gado. Não o encontrando em casa, tinha viajado a negócios
naquele dia de manhã, pediu ao empregado, para falar com
a esposa dele. Adiantando-se a Janice, curiosas, atenderam
prontamente a porta, a mãe Dona Perpétua e a senhorita
Adelaide, irmã de Guilherme.
– Qual das duas é a esposa do fazendeiro senhor de
Castro? Gostaria de falar com ela, deixar um recado ao seu
marido – explicou o viajante, pretendendo com esse ardil
ter um encontro com ela.
– Nenhuma das duas, eu sou irmã e essa é a mãe
dele – informou Adelaide – vou chamar a esposa de
Guilherme, o senhor aguarde aqui, desculpe, não vou
convidá-lo para entrar porque estamos só nós, mulheres, em
casa.
As duas desapareceram no interior da casa.
Minutos depois veio Janice.
– Pelo amor de Deus! O que você está fazendo aqui?
Está louco? – recriminou em voz baixa, surpresa.
43
– Ora! Vim ver você, estou morrendo de saudades!
Vamos combinar um encontro hoje à noite, em baixo da
grande figueira, na estrada que vai ao cafezal, esperarei
ansioso por seus beijos – sussurrou Adriano.
Ela não ouviu o bom senso, vacilou... Não resistiu...
Foi correndo ao seu encontro. Cheia de coragem, quando a
noite ia adiantada, e era hora em que legiões de fantasmas
andavam pelos corredores dos casarões abandonados,
levantou-se da cama sem fazer barulho, sem pensar nas
conseqüências, silenciosamente, igual a uma assombração,
saiu caminhando em direção à rua.
A noite estava escura, uma neblina cobria tudo, as
árvores do pomar eram apenas sombras indefinidas, e o
chão molhado e escorregadio. Ao percebê-la, um dos cães
da casa rosnou, ameaçou ladrar, ela silenciou-o passando a
mão pela sua cabeça. O animal farejou-a, lambeu seu braço
e voltou para o lugar onde dormia.
O coração batendo acelerado dentro do peito,
tremendo, assustada, ela tomou o caminho que levava até a
árvore indicada por ele. Janice viu-o entre as sombras que
os galhos frondosos projetavam no chão. Com o sorriso de
alegria desenhado em sua boca, Adriano aproximou-se da
mulher. Seus braços estenderam-se em torno do seu corpo
numa paixão sem freios, suas mãos ansiosas percorriam a
sua pele macia.
Depois, num gemido, ele atirou-se a seus lábios.
Assim, buscavam-se com as mãos e com a boca e, no meio
daquele turbilhão dos corpos, sentiram que não havia mais
nada que pudesse impedir a consumação daquela paixão. O
desejo infiltrou-se pela pele, descobrindo segredos,
levando-os por caminhos delirantes ao êxtase. Amaram-se,
desvendando-se em carne e espírito até a exaustão.
Depois da primeira noite na cabana de caça, vieram
muitas outras mais, nos encontros secretos, combinados,
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furtivos, longe dos olhares curiosos do mundo, no meio dos
pastos sob a luz das estrelas, na sombra dos cafezais
deitados sobre as folhas secas dos cafeeiros, tendo por
testemunha apenas o cri-cri dos grilos e a luz da lua cheia.
Nos motéis de beira de estrada, quando no auge da paixão,
entregavam-se um ao outro com a fúria dos amantes
insaciáveis.
Assim, sem planejar, Adriano invadiu, de modo
inexorável a vida de Guilherme, apossando-se do corpo e
da alma de sua esposa, que lhe pertenceria por todo o resto
dos seus dias. Era uma paixão desmesurada e trágica.
O destino trouxe para Janice o único homem que ela
realmente amou na vida. Foi um amor em chamas tão vivas
que lhe incendiou a alma sem qualquer senão. Foi um amor
tão absoluto que a fez ter certeza que era pessoa de tudo ou
de nada, sujeita às intempéries da vida como barco perdido
no oceano. Se ela pudesse pôr o tempo a pisar as suas
próprias pegadas, não hesitaria nem por um instante a
tornar a viver tudo outra vez.
***
Janice não se lembrava, em toda sua vida, de ter
visto um homem mais belo, nem que usasse a beleza
daquela maneira. Adriano tinha consciência da própria
aparência; a altura e as perfeitas proporções do corpo, os
traços másculos e requintados. A barba cerrada, azulada,
usava-a sem escanhoar um dia, o que lhe dava um charme
especial. O cabelo farto e negro apresentava fios de prata
nas têmporas. O brilho de fogo dos olhos cor-de-mel, no
rosto moreno, possuía um magnetismo ímpar, exercia forte
atração sobre as mulheres e no toque das mãos másculas
passava fagulhas elétricas.
– “Ah, como ela amava aquelas mãos morenas,
sensuais. Mãos fortes de dedos longos, imaginava a
45
sensação que teria ao tocarem o seu corpo, que acordes
celestiais arrancariam das cordas sensíveis de sua alma”.
Corria nas veias de Adriano, uma mistura de sangue
português e francês, donde as maneiras refinadas e o gosto
aprimorado no trajar. Era um homem fascinante e sedutor
que emitia o odor de masculinidade pelos poros. Ele
nascera com o dom de encantar as mulheres.
Vivia num intrincado jogo de conquistas. Insinuante
nas maneiras e na aparência, utilizava a beleza sem
escrúpulos para conseguir o que desejava, se ela o ajudasse.
Era um bruxo que tinha a beleza de Adónis e o magnetismo
sexual de Dom Juan ou talvez fosse um sátiro das florestas,
disfarçado em homem.
Casado, era um marido ausente, de viagens
constantes e noitadas passadas no jogo de cartas. Assim,
preso num emaranhado círculo de mesas de carteado e de
amores ocasionais, insensato, vagava pelo mundo em busca
de emoções fortes. Era visita freqüente na casa de luzes
vermelhas, morada das mulheres de vida fácil da cidade.
Essa casa estava sempre iluminada, e de suas
grandes janelas de cortinas esvoaçantes, vinha o burburinho
e o som de músicas alegres. Ali a vida parecia transcorrer
em constante festa, bebidas e danças. Também, escondidas
numa sala dos fundos, havia mesas de jogo, e era ali que
Adriano se refugiava; absorvido pelo vício esquecia o
passar das horas e muitas vezes dos dias.
Conhecera muitas mulheres. Era um boêmio
sedutor, com aqueles olhos cor-de-mel, cheios de
promessas e seu riso espontâneo. Por onde passasse
Adriano dilacerava corações femininos e, uma noite aqui
outra acolá, aquecia as camas de suas amantes, mas sentia
que seu coração andava vazio. Em verdade o belo Adriano
sentia-se muito só, ele era um pássaro solitário, que sentia
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prazer em revoar, era um itinerante da vida, sempre de
passagem.
Mas alguma coisa ardia em sua alma. Em seu peito,
a angústia teimava, mas ele não sabia o porquê. Apesar de
levar uma vida desregrada, possuir todo esse ardor e uma
virilidade incansável, Adriano era um desses seres nascidos
para a grandeza de um só amor. Procurara com persistência
e aguardara por ele toda a vida.
Esperara por um amor incondicional que é a energia
fundamental que move todo o Universo. Por um amor que,
como a palavra expressa, não coloca nenhuma condição
para ser vivido. Nem condição de idade, de raça, de
religião, de ideologia. Ama por amar. Entrega-se a energia
universal que cria relações, gera laços, funda comunhão de
almas. Vai ao outro e repousa no outro assim como ele é.
Sem intenção de retorno e de cobrança.
Janice ofereceu-lhe este amor absoluto e eterno.
Amou-a logo assim que a viu, com um desses amores
bruscos, violentos, possessivos, quase trágicos! Quantas
mulheres não são vítimas de um amor assim, de uma dessas
crises inesperadas, dessa força que as toma de assalto e as
arrasta para o abismo? Era uma dessas paixões que nascem
instantaneamente, que consomem a criatura que está dentro
dela, no seu sangue, na sua alma, no seu sonho, como uma
poderosa e terrível chama interior.
Mas, oh desilusão! Adriano era igual à maioria dos
homens, grandes mariposas noturnas, que se arrebentam e
dilaceram no encalço da chama fulgurante atrás de um
vidro tão transparente que seus olhos não vêem. E quando
conseguem introduzir-se, tentando e lutando com
dificuldade no interior do vidro para chegar à chama, caem
ao chão queimadas e mortas.
Embalados pela ilusão, não percebem que lá fora na
noite fresca, há muitas mariposas esperando por eles.
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Mas eles não vêem essas coisas. A eles não
importam as coisas comuns e fáceis. Nunca! Jamais se
interessam pelo que podem conseguir sem lutar, sem
embate, sem precisar enfrentar obstáculos! E atrás da
quimera da chama que volteiam até perderem os sentidos e
morrerem queimados por ela.
Essa é apenas uma imagem da natureza do homem.
– “O objetivo é a aventura em si, o verdadeiro
prêmio está na emoção, nos instantes vividos na busca, na
tensão do desejo, em vez do relato da satisfação plena”. Assim pensava e agia o vaidoso Adriano.
No entanto, Janice tinha idéia totalmente diferente
sobre o amor. Era o pensamento de uma mulher, que anseia
ser livre, de poder decidir o seu destino, mas está
aprisionada por um pacto de casamento, por convenções
sociais e por uma avalanche de sentimentos proibidos.
– “Adriano, você jura sempre que ama
incondicionalmente, mas não tem a menor idéia do que é o
amor, a abnegação de si próprio em favor do ser amado.
Sabe tanto o que é a vida e o amor quanto a mariposa com
que foi comparado”.
Ela pensava assim, seria porque amava Adriano e
via o que ninguém mais via? Ou estaria apenas imaginando,
tentando desvendar enigmas? Ao vê-lo tremiam-lhe as
mãos, o coração se apertava angustiado. Tinha vontade de
chorar, mas se continha diante dos outros. Infeliz paradoxo,
na presença de Adriano ela ficava desorientada, e na sua
ausência sentia-se a mais desventurada das criaturas.
Chorava lágrimas amargas. Sobressaltou-se com a
incoerência dos seus sentimentos. Pensou estar
enlouquecendo. Não sabia ainda, a jovem Janice, que o
amor não era sentimento tranqüilo, não era um rio de águas
plácidas. O amor é um contínuo mar revolto, batendo em
48
ondas, quase afogando, acalenta nas calmarias e arrefece
com a brisa do entardecer.
***
Certo dia Adriano apareceu em sua casa, ao cair da
tarde morna, saudoso para revê-la. Ele tinha uma
justificativa. Trazia produtos veterinários lançados
recentemente no mercado, para oferecer ao proprietário da
Fazenda Marambaia, grande criador de gado vacum.
Bateu palmas no portão de entrada da fazenda. O
empregado Vitorio foi ver quem era.
– O patrão está em casa? Preciso falar com ele –
esclareceu o recém-chegado.
– Está sim senhor! Por favor, entre, vou chamar o
senhor Guilherme.
O visitante seguiu o empregado até a entrada da
varanda que circundava a casa grande. No recinto, sentados
em cadeiras de vime, tomando refresco e conversando,
estavam Guilherme, a esposa e outras pessoas da família.
Ao vê-lo, de longe, Janice estremeceu, ficou paralisada.
Um suspiro transformado num lamento não
expresso, de alegria, que a sacudiu com tanta força que ela
perdeu a consciência de tudo, além do impulso de correr
para junto dele. O fazendeiro levantou-se e foi receber o
recém-chegado, que lhe estendeu a mão em cerimonioso
cumprimento.
– Adriano Silveira Dorsay, as suas ordens apresentou-se o visitante - sou representante comercial,
vendo produtos veterinários, talvez façamos negócio.
– Muito prazer em conhecê-lo senhor Dorsay, sou
Guilherme de Castro e essa é minha esposa Janice. De fato
estou precisando de alguns medicamentos para gado,
veremos o que traz – falou o fazendeiro.
49
Adriano e Janice defrontarem-se no momento da
apresentação, ele de mão estendida para o cumprimento,
mas nada nela parecia estar funcionando, nem a mãos, nem
as pernas, nem a mente; não conseguia mover-se do lugar,
tremia. O marido estava surpreso pela atitude incomum da
esposa.
– O que é que há com você, querida?- perguntou,
beijando-a na face. Janice voltou a si, recuperou de
imediato o sangue frio, e respondeu já tranqüila.
– Nada! Não é nada, meu querido – disse e virou-se
para o visitante - temos muito prazer em recebê-lo em nossa
casa, senhor Silveira Dorsay. Por favor, entre e fique à
vontade.
– Está se sentindo bem, senhora de Castro?
Aconteceu algo?– perguntou Adriano gentilmente, mas com
uma ponta de cinismo.
– Está tudo bem, senhor Dorsay, agradeço a
preocupação – disse, sem olhar para ele – vou mandar
servir um refresco. Aceitam? Está fazendo muito calor hoje.
Aquele homem na sua frente era seu amado
Adriano. Por que não sentia alegria? Por que não correra
pela estrada ao seu encontro, para atirar-se em seus braços,
inteiramente feliz por vê-lo, que nada mais importava?
Ela tentara, durante meses, arrancá-lo do seu
coração. Maldito seja esse homem! Por que teria ele de vir
quando ela estava começando a excluí-lo dos seus
pensamentos, do seu coração? Oh, meu Deus, tudo iria
recomeçar!
Desde aquele momento em que tudo aconteceu já se
passaram muitos e muitos dias, mas ela ainda ouve a voz
quente e sedutora dele, nos seus ouvidos, quando ao vê-la,
na varanda da sua casa, olhou-a com brilho de fogo nos
olhos misteriosos de bruxo. Neste instante, se viu presa
novamente, nos raios de energia que seus olhos emanavam.
50
Janice sentiu um arrepio na alma e vontade de estar nos
braços fortes daquele homem. Ruiu como castelo de cartas,
a sua inflexível decisão de eliminá-lo da sua vida.
Aturdida, suando, colérica, ficou esperando,
estupidamente, observando o gesto elegante de Adriano
estendendo-lhe a mão. Aquele contato das mãos fortes, de
dedos longos, a deixou eletrizada. Estremeceu da sola dos
pés à cabeça. O coração dela se pôs a bater, frenético, e
parecia morrer de tanta dor. Os olhos dela buscaram os
dele, atônitos, ultrajados, furiosos. Por que o destino
zombava dela?
As coisas acontecem, e não sabemos o porquê.
Janice sentiu que mesmo se ela nunca mais tornasse a vêlo, tudo levava a crer que o seu último pensamento
enquanto vivesse, seria dele. Como era assustador que uma
pessoa pudesse significar tanto à outra, monopolizando até
o seu alento.
– Teria que aceitar a realidade! Se esse alguém que
ela queria tanto era Adriano, ela nunca poderia tê-lo
livremente. Como amante, porém, parece que ele anulou
nela para sempre, a capacidade de amar qualquer outro
homem, seu coração estava tomado por esse sentimento
insano e assim permaneceria pelo resto da sua vida.
***
Naquela tarde em que Adriano apareceu na Fazenda
Marambaia, houve o momento, uma ocasião propícia de
estar com Janice a sós, então acertaram os encontros às
ocultas. Seguidamente, viam-se ora na estrada da mata,
escondidos sob arbustos, ora no meio do pasto ou do
cafezal. Combinavam seus encontros com a minúcia da
paixão,
esquivavam-se
dos
outros,
inventavam
compromissos, mentiam, faziam render esses minutos
roubados a ocasiões, com uma ânsia semelhante à devoção.
51
Sentados à sombra do cafeeiro, os braços de
Adriano rodeiam a cintura de Janice, seus lábios procuram
sedentos os lábios dela. Ela sorri, enquanto aquelas mãos
famintas sobem para o seu colo, para o pescoço, para o
rosto, e contornam a sua boca. As mãos de Janice
comichavam ao sentir as costas de Adriano quando ele a
segurava junto de si; o contato dele e a sua revigorante
vitalidade excitavam-na. Ela achava gostoso apoiar-se nele,
sentir o calor que se irradiava dele, sentir o seu corpo e ao
fitá-lo sentia uma admiração indefinível. Olhava
embevecida como no dia em que se haviam conhecido.
Adriano pôs a mão no ombro dela, virou-a para que
ela o encarasse e procurou os seus lábios ávidos num beijo
estonteante, depois os distribuindo por todo seu corpo,
ansiosos e urgentes. Ela retribuía, beijando-lhe os olhos, o
rosto, o pescoço úmido, sentiu o gosto daquele homem com
quem sonha toda noite, por quem espera, anseia e arde.
E ela cederá ao desejo, fará o que pede o seu corpo
trêmulo. Seguirá aquele instinto que lhe nasce das
entranhas, que vibra, pede, ordena. Suspendendo o beijo,
ele comprimiu o pescoço dela com a boca, suas mãos
envolveram-na. Então ele deitou-a suavemente no chão, em
cima das folhas secas do cafeeiro.
Ambos buscam-se e desvendam-se, mergulham
naquele oceano de prazer de toques e sensações. Ela fecha
os olhos, entrega-se toda. É como uma explosão. Átomo
por átomo, célula por célula, todo o seu corpo se une ao
dele nesse momento, alça-se, rebenta em mil fragmentos de
prazer. Agora se sente voar no céu estrelado. Uma suave
fragrância das madressilvas floridas, invade o ar com o
hálito morno da noite.
Após aquela noite de amor, Janice voltou para casa,
meio zonza, absorta, com o pensamento longe, não
conseguia se fixar em nada.Nos labirintos do seu coração
52
sentia a premonição do seu destino.Os fantasmas soltos da
imaginação viam Adriano longe, afastado dela, em algum
lugar do passado.
Pela primeira vez na vida, não mantinha o eu
consciente concentrado em pensamentos de trabalho deste
ou daquele feitio. Surpresa compreendeu que a atividade
física é o bloqueio mais eficaz que os seres humanos podem
erguer contra a atividade totalmente mental. Precisava dum
trabalho sério que a absorvesse que lhe permitisse certo
controle sobre os seus anseios.
– “Se não me dedicar totalmente, de corpo e alma, à
algum mister, enlouquecerei. Não quero saber de gente, de
barulho, não quero saber de nada que me incomode”.
Janice afundava-se no trabalho, não gostava de
conversa, e isso, esse silêncio profundo da sua índole veio
daquele tempo de criança órfã. Sim, porque lhe ficou,
daqueles dias, uma tristeza grudada na alma. Talvez pela
quietude do espírito, ela gostava de revirar os livros da
biblioteca. Lia tudo que lhe caia nas mãos, mas tinha
preferencia pelos romances.
Tinha uma inquietação dentro da alma, medo de ter
tempo para pensar em Adriano, e então se ocupava quase
com fúria; não queria sequer um minuto de sobra, que fosse
para refletir sobre seu insensato envolvimento. Parecia estar
refugiada em outro tempo, enquanto se ocupava das
obrigações domésticas. Aquela consagração ao trabalho era
a fuga dessa paixão louca, da vida que levava.
– “O amor entrou em mim como uma erva daninha
cuja semente cresce dentro do meu coração, que me tortura,
me sufoca e me faz sofrer. Seria muito mais fácil viver sem
ele. Esquecê-lo para sempre. Oh, Deus! espero que nenhum
ser humano venha a sentir tamanha dor!” – Gemia ela no
seu desespero.
53
- “Visto que o amor entre nós dois é impossível,
procurarei canalizar todo o potencial desse sentimento
nobre às pessoas de minha família e ao meu marido.
Dedicar-lhes-ei toda a minha vida. Essa será a melhor
solução para a minha tragédia particular. Devo banir total e
para sempre, esse sentimento inqualificável e absurdo, que
se instalou no meu coração“.
Naquele momento foi a sua firme decisão.O bom
senso e a tenacidade com que ela administrava os seus
afazeres haviam permitido ganhar em pouco tempo uma
relativa tranqüilidade e paz de espírito.
Alguns dias atrás, rememorando os fatos ocorridos,
descobriu o quanto amava Adriano, mas foi como tudo em
sua vida, tarde demais. Tarde demais para ele, tarde demais
para ela. Ambos já eram casados, comprometidos.
Com a sucessão dos dias, agravou-se nela o
sentimento de frustração e de culpa. Resignou-se a ser uma
mulher sem amor pelo resto da vida. Enquanto vagava
como fantasma pelo quarto vazio, o casarão da fazenda
parecia-lhe enorme, solitário, assustador. O marido e o
sogro idoso, quase sempre estavam viajando; Adelaide e
Dona Perpétua viviam em outra ala da residência.
Janice não esperava mais nada da vida, não queria
nada; só esquecer e descansar em paz. Vivia assim, cheia de
silêncio, desligada, triste; a sua solidão tinha o gosto de
saudade. Mal sabia Janice que o destino implacável,
preparou-lhe uma cilada da qual nunca conseguiria escapar.
***
Guilherme, sem desconfiar do drama de emoções
que se desenrolava tão próximo, pertinente a ele e aos dois
apaixonados, convidou Adriano, com quem simpatizara de
imediato, para o jantar que seria oferecido na noite seguinte
à sua volta da convenção do partido, para personagens
54
importantes da política nacional. Seria uma festa muito
formal, smoking e gravata borboleta para os homens,
vestidos longos para as mulheres.
O vestido de organza verde pálido de Janice
assentava-lhe muito bem, chegando ao chão em pregas
suaves, tinha o decote baixo delineando os fartos e belos
seios. Alças bordadas de strass prendiam o vestido. Ela
trazia o cabelo preso ao alto, fixo por uma pequena jóia,
deixando cair alguns fios encaracolados pelo pescoço. Uma
gargantilha de pedras preciosas, brincos e bracelete
completavam o conjunto. Estava deslumbrante.
– Está linda, senhora de Castro! – elogiou Adriano,
cortesmente.
– Agradeço o elogio. O senhor também está muito
elegante! – retribuiu Janice.
Adriano apresentou-se na festa vestido com
elegância, de acordo com o protocolo. Belo e muito
simpático, logo cativou os presentes com sua conversa
inteligente. As mulheres ficaram deslumbradas com o seu
charme.
O jantar ia ser servido dentro de poucos minutos. Os
convidados tinham o lugar marcado, observando-se a
etiqueta social. Ao Adriano, como amigo, foi designado o
lugar à esquerda do anfitrião, Janice sentou à direita do
marido. Guilherme era extremamente sociável, cheio de
entusiasmo; alegre e culto conduzia a conversa com
maestria, cativando os ouvintes.
Como entrada foi servido coquetel de camarão,
canapés com caviar e champanhe francês. A mesa do
banquete apresentava-se repleta de iguarias. Carnes
temperadas com ervas finas e molhos sofisticados, leitões a
pururuca, perdizes recheadas, marreco com laranja, lasanha
a quatro queijos, pudins, doces de figo em calda e geléias
diversas. Os convidados fartaram-se com o lauto jantar,
55
regado a excelente vinho importado, cerveja e sucos de
frutas da época.
A música em surdina embalava o ambiente. Havia
lampejos em que o arco do violino mal roçava as cordas e o
som ondulava tão espiritual como se fosse o sorriso de um
anjo; o som pairava no ar, acariciante. Pensava-se ao ouvilo, em amores singelos, em primaveras de flores e fontes de
águas claras murmurando em surdina sobre musgos. Nos
suaves acordes ouvia-se o desabrochar dos lírios-docampo, numa harmonia celeste. O riso e a alegria pairavam
no ar. Foi uma festa esplêndida, muito elogiada pelos
convivas.
Adriano não dirigiu a palavra diretamente a Janice
durante o jantar, nem depois dele, durante toda a noite, de
propósito não tomou conhecimento da sua presença.
Magoada e com ciúmes das outras mulheres que o
cortejavam e com as quais ele conversava e ria, ela o seguia
com os olhos onde quer que ele estivesse.
Cônscio disso, ele ansiava para explicar-lhe que
seria desastroso para a reputação de ambos dar-lhe maior
atenção. Oportunamente, justificaria o seu procedimento
correto, porque também lhe doía muito ver o semblante
tristonho da mulher amada.
No dia seguinte ao dessa noite agitada, em que a
tempestade do ciúme bramiu em seu íntimo, era já tarde da
manhã quando Janice acordou de um sono pesado e
inquieto. Com olhar fatigado, a moça fixou aquelas paredes
pintadas de azul claro, muito suas conhecidas; sua cabeça
estava oca, o coração oprimido.
Chamou Edivaldo, moço que exercia a função de
secretário da fazenda, pessoa de caráter discreto e leal, e
que sabia da ligação amorosa de Janice com Adriano, mas
que não comentava com ninguém, conservando em sigilo
hermético, pois o assunto não lhe pertencia.
56
– Edivaldo, peço-te um grande favor, encontre e
avise o senhor Adriano que tenho urgência em avistar-me
com ele, deve ser no local costumeiro, mas que tenha
máxima prudência.
No início da semana seguinte, encontraram-se em
segredo num lugar pouco freqüentado pelos colonos da
fazenda. Janice entrou pela trilha no meio da plantação,
deixou o seu cavalo amarrado a uma árvore, com espaço
suficiente para que pastasse na grama da beira do caminho.
Esperava inquieta, quando viu Adriano ao longe,
caminhando a passos rápidos, desviando-se das touceiras de
capim limão, que cresciam luxuriantes à beira da trilha que
levava ao centro do extenso cafezal. Ele escondeu a sua
montaria no meio dos cafeeiros.
O tempo estava esplêndido. Desabrochou a
primavera, os campos se cobriram de pasto verde,
floresceram os ipês plantados ao longo da estrada que
levava à fazenda, de longe pareciam cobertos de pepitas de
ouro, com fragrância doce dos cachos amarelos, que
pendiam dos galhos. Os pomares em flor se povoaram de
pássaros e os campos vibravam com o zumbido dos insetos.
O ar estava repleto do aroma da fertilidade. Os pares das
espécies buscavam-se para o ato da procriação O amor
pairava no ar.
Quando Adriano chegou perto, Janice estava de pé
recostada a uma árvore, esperando-o. Ambos respiravam
agitados, ardentes, suspensos em seu próprio espaço, em
seu próprio tempo. Ele não se moveu, comovido por uma
emoção nova e totalitária em relação à moça, já para
sempre ligada ao seu destino. Assim passaram longos
momentos parados, extasiados, em silêncio.
Ela olhava para o homem amado e via-o pelas
pupilas nebulosas cobertas de lágrimas. Sem pensar, ele a
atraiu para si e buscou sua boca. Foi um beijo no qual
57
repousavam dias de desejo e ardor ávido. O fogo de
sempre, selvagem e insaciável, sedento, teve o efeito de um
tremor telúrico em seus sentidos. Cada um percebeu a
quentura da pele do outro, a tensão de suas mãos, a
intimidade de um contato almejado desde o começo dos
tempos.
Um calor palpitante foi lhes invadindo os ossos, as
veias, a alma, algo que não conheciam. Tudo desapareceu
ao redor deles e só tiveram consciência de seus lábios
úmidos, num sorver guloso, prolongado. Aquele beijo
frenético durou como uma eternidade, o corpo colado ao
corpo, e parecia que o corpo do homem absorvia a figura
pequena da mulher, como uma aranha gigante fazia com
uma efeméride, como um vampiro com uma vítima
exaurida de sangue. Até que ela desmaiou nos seus braços.
A tensão se acalmou pouco a pouco. Sorriram
aliviados, trêmulos, seguros de que não pretendiam uma
aventura fugaz, porque foram feitos para compartilhar a
existência como um todo e assumir juntos o desafio de se
amarem para sempre. Janice jamais amara assim, ignorava
aquela entrega total, sem barreiras, sem reservas, não se
lembrava de ter sentido tanto prazer, comunicação
profunda, reciprocidade.
– Somos uns doidos – comentou Adriano – nesse
ritmo aloucado, destruiremos a nós mesmos...
– Não é este o sentido? Não é maravilhoso amar de
tal maneira que a gente se destrua? – sussurrou Janice.
Permaneceram depois, estreitamente unidos em
tranqüilo repouso, descobrindo o amor em plenitude,
respirando e palpitando em uníssono. Com o céu por
testemunha, arranhados por pedregulhos, cobertos de poeira
da terra roxa e folhas secas de cafeeiros amassadas na
desordem do amor, premidos por um ardor inesgotável, um
desmedido desejo, se amaram sob a luz da lua cheia, até
58
que abraçados, adormeceram, sonhando o mesmo sonho de
ventura, envolvidos pelas labaredas da paixão que parecia
não ter fim. O transcorrer das horas, o vento morno e o
rumorejar do córrego, o canto da passarada e o cheiro da
terra molhada lhes devolveram o sentido da realidade.
A Felicidade existia! Eles a viviam! Deus existia!
Ele era Amor!
Passava muito da meia-noite quando eles acordaram
com o cantar do galo, e, apreensivos pelo adiantado das
horas, despediram-se trocando beijos. Adriano sumiu na
noite, como se nunca tivesse existido, como se fosse um
sonho, que ela sonhou numa das muitas madrugadas, como
se fosse um anjo ou demônio, qualquer ser, do céu ou do
inferno, que tivesse vindo a ela para lhe roubar a alma.
A jovem voltou para casa, entrou no quarto em
silêncio, com cautela, procurando não fazer barulho.
Andava cambaleando, sem firmeza, sentia-se como uma
sonâmbula. Felizmente o marido ainda não tinha voltado
da reunião política. Os demais moradores do casarão
dormiam. Só o vento rosnava nos oitões do sobrado,
vergando as árvores.
Certa tarde Janice falou em segredo à prima Alicia,
sua amiga íntima e confidente, o quanto era infeliz. Não
amava o marido nem um pouquinho que fosse. Sentia
remorsos por isso. Maldizia o momento desastrado,
inoportuno, em que Adriano aparecera em sua vida. Por que
não chegara antes quando ela era solteira? Poderiam ser
muito felizes, sem prejudicar ninguém.
A lembrança de Adriano não a abandonava. Ele era
seu único amor, ora como um lago sereno, à beira do qual
se podia refugiar, outras vezes era como uma tempestade
rugindo dentro da sua alma. Era um amor profundo e
escaldante como o sol de verão que queimava a pele até a
59
dor, e esse sofrimento só se acalmava com as lágrimas
vertidas no aconchego da escuridão da noite.
Janice, às vezes, sentia-se em estado de ventura
plena, outras, amargurada e insegura, ficava sobremaneira
temerosa em perder tudo de repente, então seu coração
confrangia-se de dor e o pranto rolava pelas faces
angustiadas. Foi por acaso ou por obra do destino que,
embora tardiamente, descobrira o amor sem ressalvas e
temia perdê-lo. Nunca fruíra com tanta intensidade o amor
físico, a entrega absoluta de um ser à outro ser.
- “ Fui talhada para ser de um único homem, e serei
dele eternamente. Mesmo que nunca fiquemos juntos,
mesmo que o destino o leve para longe de mim,
permanecerei esperando-o na eternidade”.
A moça, absorta em seus pensamentos, deixou o seu
olhar vagar pelos campos que se estendiam a perder de
vista. Olhava pela janela da sala admirando a riqueza das
cores primaveris no jardim. Aspirava com volúpia o
perfume das rosas sentindo na pele o suave calor do
entardecer, que entrava pelas janelas abertas. Um sopro de
brisa fresca agitou seus cabelos louros.
A tarde caía lentamente tornando o céu róseo e
fantástico. Uma luz intensa se derramava sobre o campo,
enchendo de cores mágicas as flores e as folhagens. Um
cheiro gostoso se erguia da terra molhada. Ouviam-se ao
longe os latidos dos cães, perseguindo alguma presa. Os
grilos cantavam na grama verdejante do jardim, em frente à
janela. Um bando de quero-queros passou gritando, a
caminho do seu recanto preferido de pouso.
Meados de setembro era a época em que floresciam
narcisos, azaleias, ipês amarelos, hibiscos escarlates e rosas.
As buganvílias floridas, de cachos lilases, trepavam pelo
muro alcançando o telhado da ampla varanda da casa da
Fazenda. Ouvia-se o zumbido das abelhas que voltavam
60
carregadas de néctar para as colmeias. O cantar dos grilos
na relva, e o coaxar dos sapos na lagoa próxima.
O disco dourado do sol desceu por trás das nuvens
na forma de esguios raios. A barra carmesim, que começava
no ponto onde o céu e a terra se encontram, escondeu-se
atrás do horizonte, adornando o céu com nuanças douradas
e rubras, e a última luz do sol aprofundou o verde das
campinas. A natureza toda se agitava, vivia o momento do
anoitecer, depois reverente, silenciosa, começava a liturgia
da noite; os sons e ecos sumiam, lentamente, no além.
***
O grande fazendeiro e notável político Guilherme de
Castro Vasconcelos mandou construir uma bela vivenda na
cidade próxima. Contratou o arquiteto, engenheiros, decoradores, mobiliou a casa com todo luxo e conforto. Cercou de
jardins, plantados com flores exóticas, roseiras e
buganvílias (primaveras) de cachos lilases que trepavam
pelo muro e subiam pelo telhado. A entrada da mansão era
um enramado de trepadeiras, parecia uma gruta, abobadada
internamente de dosséis de buganvílias de flores escarlate.
Mudou-se para a nova casa na cidade, com a esposa
e os serviçais. Na casa grande da fazenda Marambaia,
ficaram vivendo seus pais e a irmã Adelaide. Contratou um
bom administrador para gerir a propriedade rural. Ele ia
dedicar-se aos negócios e à política em tempo integral. Fez
um curso de oratória e dicção, aprendeu a arte de falar em
público, com articulação e modulação apropriadas.
O casal tendo a sua própria residência, teria a
privacidade da qual necessitava para fortalecer a sua vida
afetiva. Ele amava a esposa e queria lhe dar todo conforto.
Tinha vida social intensa, gostava muito de recepcionar.
Organizava festas e recepções para políticos e pessoas de
influência na cidade. Fez boas amizades, ele era homem
61
carismático e comunicativo, qualidades pertinentes a um
bom político.
Freqüentavam-lhe a casa amigos e correligionários,
que muitas vezes traziam as esposas, às quais Janice
recebia com sorriso de anfitriã perfeita que deixava as
convidadas à vontade. Atenciosa, não deixava nenhuma
dama sem uma companhia agradável.
Guilherme, de início, nada viu de anormal nas
animadas conversas e amizade que existiam entre a sua
mulher e seu distinto amigo Adriano Silveira Dorsay,
representante comercial residente na capital, embora,
presença assídua nos seus jantares e reuniões. Ao dar-se
conta de que as outras pessoas presentes murmuravam e
criticavam, decidiu chamar a atenção de Janice para o fato.
Fora sempre de opinião que um marido deve ter
plena confiança na mulher e não a ofender com cenas de
ciúmes. Apesar de tudo o que presenciava, Guilherme
recusava-se a deixar o ciúme dominá-lo, não aceitava a
evidência. No entanto, entendia de seu dever chamar a
atenção da esposa para a inconveniência da sua conduta.
– Devo adverti-la de que a sua ingenuidade e
inexperiência podem dar motivos a que falem mal de você,
modere sua atitude com referência à Adriano – admoestoua com brandura.
Mas, quanto mais ele falava e explicava, tanto mais
ela baixava a cabeça, arrependida. Doutra feita, ele voltou a
repreendê-la, já agora levantando a voz.
– Devo insistir que o seu comportamento está sendo
indecoroso – reclamou o marido.
– Que lhe parece incorreto nas minhas atitudes? –
perguntou Janice.
– O ciúme que não soube disfarçar ao ver o homem
por quem tem um exacerbado sentimento de amizade,
galantear outra mulher - respondeu Guilherme com mágoa.
62
– Meu Deus! Perdoa-me Guilherme, sei que estou
errada, estou me comportando como uma leviana desculpeme, por favor - implorava, apertando as mãos contra o
peito.
Ela sentia-se tão culpada, tão suja e indecente, que
nada mais lhe restava senão humilhar-se e pedir perdão ao
marido. O remorso roía-lhe a alma. Sentindo-se vulnerável,
Janice voltou-se e, levantando-se, submissa, tomou o braço
do marido e levou-o para os aposentos particulares, onde
poderiam conversar reservadamente.
Janice não ouvia as palavras de censura do marido,
pois o seu pensamento estava com Adriano. A expressão do
seu rosto era assustadora e sombria.
–Talvez esteja enganado – disse Guilherme – nesse
caso me perdoe.
– Não, não se engana – respondeu-lhe Janice
ingenuamente, fitando-o tristemente nos olhos. Eu estava
desesperada, pois amo Adriano e sou amada por ele. Temos
um relacionamento forte. Não suporto ver ele com outra
mulher. Bem, esta é a verdade. Pode fazer de mim o que
quiser, inclusive, pedir a separação – confessou –
prorrompendo em soluços e escondendo o rosto nas mãos.
– Estou pasmo com o que afirmou! Absolutamente
não supunha que estivesse tão envolvida, mas exijo que
guarde as aparências até que tomemos as medidas
necessárias para resolver esse caso imoral e vergonhoso de
adultério – falou Guilherme com voz irritada, possesso de
ódio.
A terrível confissão de Janice confirmando a leve
suspeita, feriu-o em pleno coração. O choque foi brutal, o
sofrimento profundo.
– “ É uma mulher irresponsável, perdida para mim –
pensava Guilherme – cometi um grande engano quando
liguei a minha vida à dela, apesar de estar ciente de que ela
63
não me amava. Mas o meu erro nada tem de condenável,
porque estava apaixonado e acalentava esperanças de ser
compensado no futuro; a culpa é toda dela “.
Pouco lhe importava agora o que ia ser de Janice,
só uma coisa o preocupava; limpar de maneira mais
conveniente a lama espalhada por ela, e isso sem que a sua
vida fosse perturbada. Afinal, ele era um cidadão honrado.
– “Porque uma mulher sem escrúpulos cometeu uma
falta, eu hei de me sentir responsável? Não! – Refletia ele,
como se fosse o modelo da virtude, – mas necessito
encontrar a melhor saída possível, preciso reagir. Nem sou
o primeiro, nem serei o último a passar por esse desatino „.
Seu caráter pusilânime surgiu à superfície. Covarde
que era não poderia enfrentar o rival. A solução certa seria
o divórcio, mas Guilherme analisou as condições
complexas de sua vida como político e sua posição
ideológica. Não poderia servir-se das provas no processo
sob pena de desclassificar-se perante a opinião pública.
Devia sair daquela crise atingido o menos possível.
Aliás, o divórcio lançaria definitivamente Janice nos braços
de Adriano. Este pensamento arrancou-lhe um gemido de
dor. Apesar de tudo ainda a amava muito, e não queria
perdê-la para o rival.
Guilherme pesou os prós e os contras da solução que
acabava de tomar. Decidiu que a única forma de sair
daquela confusão seria esconder do mundo a sua desgraça,
conservar o seu casamento e empregar todos os recursos
para que a ligação escandalosa terminasse, e que a culpada
expiasse a sua falta severamente.
– Estou avisando-a que, depois de ter estudado todas
as soluções possíveis para a penosa situação em que nos
encontramos, por tua e exclusiva causa, achei mais
conveniente, conservá-la junto de mim, com a condição
expressa de que imediatamente termine essa relação
64
vergonhosa com Adriano, esse indivíduo irresponsável e
canalha.
Ela devia pagar com sofrimento pelo erro cometido,
regozijava-se o seu coração vingativo. Sentiu-se aliviado,
pensando que ninguém o poderia acusar de, numa crise tão
grave da sua vida, ter agido em contradição à sua posição
de homem honrado e justo, que aparentava ser.
– “Deixemos que o tempo resolva o problema concluiu ele – eu devo ser poupado, espero que ela seja
atingida profundamente, que sofra e que sinta-se infeliz“.
Nesse mesmo dia Janice lamentou a sua confissão.
– Ele tem razão; como não haveria de tê-la, ele que
parece justo e generoso? Mas como é, na verdade,
desprezível e vil uma pessoa assim! Elogiam-lhe a
honestidade, a probidade, a inteligência. Mas não vêem a
arrogância, a soberba, a hipocrisia, a dissimulação e, mais
condenável ainda, a hábil ocultação do seu verdadeiro
caráter covarde e vingativo.
- Ninguém supõe que durante toda a minha vida,
sufocou tudo o que era de interesse para mim – a música, a
literatura, as amizades, enfim toda a alegria de viver. Todos
ignoram que ele me feria e torturava a cada momento com
seus ciúmes e desconfianças. E vendo meu sofrimento ele
sentia-se compensado e feliz.
- “Apesar de tudo fiz o possível para amá-lo. Mas
chegou um momento que compreendi que não podia
continuar a iludir-me. Para viver precisava da alegria e do
amor. E a vida mandou-me Adriano. Meu Deus, meu Deus!
Terá existido alguma mulher mais feliz e ao mesmo tempo
tão desgraçada como eu?”.
Sabia de antemão que tudo continuaria como antes e
até muito pior. Guilherme jamais lhe perdoaria e daria a
separação. Nunca seria livre para amar, viveria sempre
como uma mulher culpada, sob a ameaça de descobrir-se
65
que enganava o marido, que tinha um amante. Isso se lhe
apresentava como uma coisa terrível, vergonhosa, que não
se sabia como ia terminar. Ela era uma mulher decente,
errou de início por falta, depois por excesso de amor.
Janice dirigiu-se aos aposentos do casal, pensativa,
mergulhada nos seus problemas, e desatenta tocou o
interruptor que acende a luz. Não percebeu, de imediato, o
vulto do marido parado no meio do quarto. Ele chegou
perto, pegou-a pelo ombro e a puxou para a cama.
– Tire a roupa, prepare-se! Quero receber os meus
direitos de marido, beijos calorosos e o carinho que me
deve, como prodigaliza a outros! – falou com ar sarcástico.
Janice pegou a camisola. Despia-se... Quando caiu
no chão um bilhete, guardado dentro do seu soutien. Estava
endereçado para Adriano, dizia o seguinte:
– “Quero avisá-lo que, infelizmente, não podemos
mais nos encontrar, nesta e nem em outras noites. Está tudo
acabado entre nós. Cheguei à conclusão de que não posso
mais continuar a ser mulher de Guilherme amando você,
Adriano. Não estou mais agüentando levar esta farsa
adiante. Alguma coisa deve ser feita, antes que aconteça o
pior. Beijo daquela que o amará para sempre”.
Ela tentou apanhar o bilhete quando o marido
colocou o pé em cima dele. Abaixou-se e pegou para ler o
conteúdo, cujo teor deixou-o transtornado. Agora tinha nas
mãos a confirmação, por escrito, de que realmente estava
sendo traído. Olhou a mulher com rancor e informou que
tratariam do assunto no dia seguinte. Não estava em
condições de discutir o problema nesse momento.
Guilherme levantou cedo, tomou o café da manhã e
foi cuidar dos negócios e da política. Janice compreendeu
no fundo da alma que tudo ia continuar como até então. Ao
seu marido faltava a coragem para enfrentar o rival e a
opinião pública; não queria perder a posição que desfrutava
66
dentro da sociedade e no meio político. Estava ofendido,
mas preferiu silenciar. Era covarde demais.
Na primeira ocasião Janice mandou um recado
urgente, pelo mensageiro de sempre, para encontrar-se com
Adriano no lugar combinado. Era muito arriscado mas
necessário. Ele estava muito preocupado, sabia do risco que
corria comparecendo ao encontro.
- Que notícias têm você a comunicar-me?perguntou Adriano, apreensivo.
– Chamei-o aqui para informá-lo de que rompi com
Guilherme e pedi a separação. Ele já sabe de tudo.
– Perdoa-me – mas não me agrada a resolução que
tomou. Seu marido pode engendrar uma vingança terrível
contra nós. Devia esperar mais, dar tempo ao tempo comentou com cautela, demonstrando grande preocupação.
– Mas por amor de Deus, prefere que eu continue
esta vida humilhante? Nada mais me resta senão o nosso
amor. Quero que compreenda que, desde o momento em
que o conheci, amei-o com toda minha alma. Tudo na
minha vida mudou. Não suporto viver ao lado de
Guilherme.
– Não pode adiar o divórcio? – sugeriu Adriano,
afinal de contas existem seus tios, meus pais, minha esposa,
a família, a sociedade toda – pense na repercussão desse
fato escandaloso na comunidade em que vivemos.
– Estou decepcionada com você, pensei que ia ficar
feliz com a minha decisão – comentou ela tristemente.
Guilherme não foi tirar satisfações com Adriano,
como quem não sabia de nada. Somente cortou a amizade.
Procurou dissimular o seu ódio, era mestre nessa arte.
Como convém a um bom político, nunca expunha o seu
caráter hipócrita e vingativo. Teria que evitar a todo custo o
escândalo que prejudicaria sua carreira política
67
Janice tinha a convicção de que tudo permaneceria
como antes e não se tinha enganado. Marido e mulher
continuaram a viver juntos, na mesma casa e a dedicar-se
cada um ao seu trabalho. Viam-se e falavam o
indispensável. Faziam as refeições juntos, mas sua relação
era de total indiferença.
As vicissitudes da vida em comum acabaram
distanciando-os cada vez mais. Os parentes próximos
estranhavam a conduta do casal, mas Guilherme era
orgulhoso demais para dar explicações a alguém. Mas não
era nenhum segredo na Fazenda Marambaia que Guilherme
e Janice há muito estavam separados, embora vivessem na
mesma casa e mantivessem as aparências.
A vida amorosa estritamente sigilosa, de Janice e
Adriano nunca transpirou em público, portanto, não
prejudicou a carreira política de Guilherme; mais que isso,
Janice nunca consentiu que o problema do casal fosse
discutido ou sequer mencionado perto da sua família ou de
alguém próximo.
Adriano deixou de visitá-los, mas Janice
encontrava-se com ele em segredo e ocasionalmente. As
cobranças, os acessos de ciúmes que acometiam a mulher
nessas ocasiões, deixavam o amante perplexo, descontente,
em constante instabilidade de opinião acerca de seu caráter.
Claro que os ciúmes eram provas de amor, mas o
assustavam e arrefeciam o afeto que sentia por ela. Sentiase como que acorrentado para sempre à amante. Janice era
o seu destino, o pacto que assumira perante a vida, e devia
cumprir até o fim. A situação era penosa para os três,
especialmente para Janice, e só a esperança de que algum
dia tudo mudaria, faziam-na suportar.
Guilherme não pensava em separação O divórcio
seria o procedimento mais sensato nessa situação delicada,
mas afetaria a sua vida pública. Conservaria o seu
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casamento até quando fosse possível. Janice tinha medo
dele, não se sentia à vontade na sua presença e não o olhava
nos olhos, portanto, ele podia controlar a situação.
–Tentarei perdoá-la e esquecer o passado –
deliberou sinceramente – desde que não continue com essa
loucura esquecendo que esse canalha existe.
Mas Janice não esquecia seu grande amor, porque
tinha vocação para um só amor. A força desse sentimento
imutável salvou-a da mediocridade e da tristeza de seu
destino. Permanecia fiel, sem o amar menos, mesmo nos
momentos em que Adriano se perdia atrás de ninfas de
cabelos louros e nádegas roliças.
A princípio acreditava morrer cada vez que ele se
afastava atraído por uma nova conquista, mas logo se deu
conta de que suas ausências duravam pouco e que sempre
ele regressava e a procurava, apaixonado e mais carinhoso.
Janice ficava à espera de uma ocasião oportuna para
revê-lo. Ansiava por ele. Algumas vezes quase sucumbia à
tentação de pegar suas roupas e ir viver com Adriano, mas
sempre na última hora se acovardava. Temia que aquele
grandioso amor não pudesse resistir ao terrível desgaste da
convivência. Na luta perene com seus sentimentos
amadureceu a idéia de salvá-los da mediocridade.
Ela preferia aqueles breves encontros com seu
amante em quartos de hotéis ou fugas à sombra da noite, à
rotina de uma vida em comum, e ao tédio e cansaço de um
casamento do qual já tivera triste experiência ou ainda ao
pesadelo de envelhecer juntos, compartilhando as
dificuldades financeiras, o mau hálito da boca ao acordar, a
intimidade do sanitário e os achaques da idade que viriam
com certeza.
Pensando bem, foi melhor assim. Seguirem sendo
miragem, um para o outro. Juntos, o cotidiano da vida
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acabaria, talvez, transformando o que fora beleza, ilusão,
sonho - numa “coisa qualquer”...
Odiando-se, quem sabe? Ou, no mínimo, olhando-se
com indiferença. Porque, em verdade, amante algum ganha
algo em ser conhecido intimamente.
Na verdade ela temia a rotina, horrorizava-a
também, o estilo de vida de Adriano. Ele tinha a alma
peregrina, não se fixava em lugar nenhum. Sempre queria
mudar de um lugar para outro, de cidade em cidade, como
uma troupe de ciganos, levando a esposa e os filhos.
A incerteza do futuro, a indecisão do marido em
pedir o divórcio enchia-na de indignação. Culpava-o de
tudo o que havia de penoso na sua situação.
Responsabiliza-o pelo seu sofrimento e pela atormentadora
expectativa em que vivia. Apesar do rompimento com
Guilherme e das suas ameaças de vingança, Janice e
Adriano não desistiram do seu amor, continuaram a
encontrar-se secretamente nos mais inusitados lugares.
Num certo momento, em pleno ato de amor, Janice
sentira um complexo de emoções - euforia, tristeza e
desesperança. Uma reação intensa pelo medo de perdê-lo.
Na seqüência da entrega total, em que haviam esgotado de
uma vez, toda a felicidade terrena, teve a sensação de
encontrar-se no céu a vislumbrar o Divino.
De repente prorrompeu em soluços angustiantes. No
tumulto que havia na sua alma, um desejo crescia - o desejo
da morte. Seria maravilhoso se a vida dos dois acabasse
nesse instante, levando da existência uma recordação tão
deslumbrante!
Naquele instante de insânia, uma dessas rajadas de
loucura, que envolvem às vezes as mulheres que amam
muito, que amam demais, Janice teve desejo de matá-lo,
estava obcecada pelo medo de perdê-lo para outra mulher.
70
Ninguém jamais saberá se, realmente, ela quis matar
Adriano por amor, se por vingança, ou pelo medo do
abandono. O amor apresenta-se, às vezes, sob disfarces
inesperados. Ora é elevado, ora é violento. Pode ser
sublime como o dos santos, ou apresentar-se como delírio
de intensa paixão. Desejava ferir aquele homem que amava
tanto, tanto, que era o alento de sua vida, seu sonho, luz dos
seus olhos.
– Enquanto você viver não terei descanso nunca,
minha vida será isso, um martírio, eterno sofrimento –
desabafou ela amargurada.
– Você deseja a minha morte?
– Quero, sim! Queria que você morresse. Ao
menos, você não me trairia com outra mulher.
– E também não pensaria em você – disse ele rindo.
– Preferia que você não pensasse em mim, contanto
que também não me traísse.
– Quer mesmo que eu morra?– perguntou sério.
Ela se contradisse, no desespero de perdê-lo, de
ficar sem aquele amor que era a sua felicidade, mas também
o seu martírio.
– Não, não! Por amor de Deus, não! – gritou aflita.
Pois aquele amor era maior que a morte.
Ela que desejava a morte do homem a quem amava,
seria perversa e vingativa? Não! Ela apenas não consegue
controlar o seu ciúme e a paixão que a devoravam. É o
desespero que a levava a pensar nesse gesto fatal. Parecialhe que aquele era o único meio de assegurar-se da
fidelidade de Adriano. O ciúme punha a moça fora de si.
Era como se fosse uma rajada de insanidade mental
a envolvê-la. Seu olhar, naquele momento, parecia
realmente de loucura. Ela já não se dominava mais na sua
insânia. Passavam pela sua memória as mais diversas
recordações. Caricias suaves que ele lhe proporcionava;
71
ternura e êxtase como ninguém jamais sentira. Lembrou-se
dos beijos que ele lhe dera; beijo que transforma em chama
líquida o sangue de uma mulher e a consome e deslumbra.
Adriano assustou-se com a reação dela, seu ciúme
exagerado, sua insegurança e o desejo de morte. Comparou
mentalmente Janice dos primeiros tempos quando se
conheceram com a de hoje.
- Será que ela tinha alguma premonição, um
pressentimento de que estava prestes a ser abandonada por
ele? Por que tanto medo do futuro? – perguntava-se ele.
Ele a amava ainda, sim, e muito, não havia a menor
dúvida. Mas seria inútil esconder a verdade de que já não
sentia por ela a mesma atração, nem a desejava
sexualmente como antes. Com o passar dos anos a rigidez
de seu corpo dera lugar a uma flacidez incipiente, e ele
começou a achá-la menos atraente. Estava descontente e
frustrado nas suas expectativas amorosas, porque o tempo
estava destruindo o seu brinquedo predileto. Começou a
procurar outras mulheres, mais jovens.
Era ainda com um certo aperto no coração que
pensava nela, amou-a muito até então; a ferida deixada
estava cicatrizando – concluiu Adriano – mas a marca ainda
era sensível, causava dor e ao menor descuido podia abrirse e sangrar. Precisava encontrar uma solução amena,
desvencilhar-se com sutileza, aos poucos, daquela relação
doentia que o privava da liberdade, que o prendia em
grilhões, o encarcerava. Não queria magoá-la, mas buscava
a amante cada vez com menor freqüência.
Sua vontade mesmo era andar correndo o mundo,
sem pouso certo, sem obrigação marcada, pegando aqui e
ali uma mulher para saciar sua fome de sexo, assim como
quem apanha fruta em árvore na beira do caminho. E de vez
em quando jogar uma partida de pôquer ou cacheta, ou
qualquer outro jogo carteado.
72
Janice estava saudosa e procurou veemente uma
oportunidade para encontrá-lo naquela noite. Ele estava em
casa de um amigo, não longe dali, jogando pôquer. Ao
receber o recado dela solicitando o encontro negou-se a
atender ao chamado. Mandou dizer que não tinha nada para
falar ou dar explicações a ela. Isso a deixou furiosa, e ela
resolveu se vingar.
– Você vai me pagar – pensou. Ele deve estar na
companhia de alguma mulher. Está me traindo com certeza.
Janice se entregou toda à própria dor. Sofria como
jamais pensara que uma mulher pudesse sofrer. Ela não
queria escutar a voz da razão. Apenas uma idéia ocupava a
sua cabeça. Adriano cansara-se dela; procurava um outro
amor. Ela já não era bastante para ele.
– Deixa estar! Esse homem está pensando o quê?
Que pode fazer o que bem entende? Usar nosso corpo,
destruir nossas vidas, estraçalhar nossos sentimentos,
depois descartar como qualquer coisa inútil? Você vai ver!
Oh, se vai ver! – vociferava as ameaças.
Decidiu ficar de tocaia e esperá-lo na volta para a
casa. Demorou um pouco, mas ao amanhecer ela viu o
automóvel dele apontar na esquina da rua. Disfarçada, com
roupas de homem, escondida no matagal atrás de um toco
de árvore caída, ela esperava. Tremeu de susto quando
ouviu um cachorro uivar numa rua distante.
Depois caiu o silêncio em que apenas o cricri do
grilo continuou com uma insistência cadenciada de goteira.
Ela hesitou por um instante. Fora, os galos começaram a
amiudar, e o trecho do horizonte que a porta da casa dele
enquadrava, tingia-se de carmesim. O sol não tardaria a
despontar e precisava agir com rapidez.
A mão de Janice desceu para o bolso do paletó que
vestia e acariciou a coronha do revólver. Puxou a aba do
chapéu de palha que lhe cobria a cabeça, para esconder o
73
rosto. Uma expressão de rancor vincou a sua boca.
Avançou em direção ao automóvel que estacionava no pátio
da casa. O cano da arma estava voltado para ele e o dedo
segurava o gatilho, pronto para atirar.
– Vou matá-lo! – gaguejou – vou furá-lo de balas.
Não quero que ele seja de mulher nenhuma, nunca mais.
Seu pensamento voltava ao passado, sentindo uma
necessidade assustadora de retornar ao tempo em que ela
era tudo para ele, naqueles momentos em que seus beijos
demoravam tanto e pareciam não ter fim; eram carícias
bárbaras, quase brutais. Lembrava coisas secretas e
adoráveis, que deveriam ser guardadas em seu coração de
mulher. Ela delirava na sua insânia.
Aquilo não era mais amor, paixão, ciúmes; era
loucura, uma força demoníaca que se apossara da infeliz
criatura e a arrastava para o crime. Atirou! Uma, duas
vezes, uma saraivada de tiros. Com a mão insegura,
trêmula, não acertou em Adriano que era seu alvo, apenas
estraçalhou o vidro da frente do carro e furou o pneu.
Adriano assustado, não a reconheceu na noite, pois
que estava disfarçada. No momento, ele supôs que era uma
emboscada de algum desafeto para matá-lo; rápido deu
marcha ré no carro e fugiu, ziguezagueando pela rua, com o
pneu da frente furado. Foi pedir socorro e abrigar-se na
residência do amigo, onde passara a noite jogando cartas e
donde havia saído momentos antes.
– Alguém está querendo me matar – gritou Adriano
– descendo do carro pálido de susto.
Apagaram a luz da casa esperando um novo ataque.
Mas a cidade toda continuava dormindo no silêncio da
madrugada, ouvindo-se apenas o ladrar dos cães à distância.
Janice ficou parada no pátio da casa dele por um momento;
olhava estática o sumiço do carro. Depois, possuída pela
emoção do seu procedimento, pela frustração do seu
74
intento, foi embora desaparecendo na noite. Caminhou sem
destino e sem perceber o instinto levou-a para a sua casa.
Ela estava naquela situação de pessoa que não
manda em si mesma, que não controla os próprios atos, e
nem sequer os próprios sentimentos. Caminhava devagar
procurando abafar o rumor dos seus passos. Abriu o portão
do jardim da frente e entrou no vestíbulo da residência.
Torceu o trinco da porta e entrou na sala, pé ante pé.
Fechou a porta suavemente. Houve um rangido, mas só. Ela
esperou um pouco, com receio de que o ruído tivesse
acordado alguém na outra dependência da casa.
Guilherme tinha viajado a negócios dias antes, para
a capital. Ia demorar algum tempo para voltar. Ela veio
andando, lentamente, em direção ao dormitório do casal. O
soalho rangia de vez em quando. Sem tirar a roupa que
vestia, cansada, jogou-se na cama. O silêncio do quarto é
arranhado apenas pelo som da sua respiração agitada.
Precisava refletir, reconciliar-se com a vida e afastar
a idéia de vingança. Só agora compreendia o seu desatino.
Que diriam se a encontrassem ali de arma na mão,
tocaiando um homem? E se o tivesse matado? Que
conseqüência teria o seu ato tresloucado? A arma pertencia
ao seu marido que, sem saber de nada, seria incriminado.
Uma luta, estranha e incompreensível, acabava de
acender-se no seu coração. Estava fora de si, a cabeça lhe
rodava, a inquietação da consciência a culpava pelo duplo
crime de traição que estava cometendo, primeiro contra seu
marido com o adultério, depois contra a vida do homem que
amava. Era uma adúltera e criminosa, não merecia viver!
Que interessa viver se o homem a quem se ama
foge de nossos braços, à procura de outros beijos? Sem
Adriano, sem seu amor, a vida não lhe interessava. Como
toda a mulher que ama e não é correspondida, seu
75
pensamento voltava-se para a morte. Se morresse, pelo
menos não sofreria. Fugir da prisão terrena seria a solução.
Pensava na situação sem esperanças em que se
encontrava; tudo em seu redor lhe parecia sombras e nuvens
escuras, ameaçadoras. Andava de um lado para outro pelo
aposento, depois se deixou cair sem forças na poltrona
forrada de veludo azul e prorrompeu em soluços. Não
encontrava forças para desistir de Adriano.
Janice compreendeu que a sorte estava lançada. A
morte apresentou-se-lhe então como a única maneira de
acabar com aquele sofrimento. Nada podia esperar da vida.
Estava emaranhada num sentimento de culpa, sem
esperança, sem nenhuma visão do futuro. Não tinha idéia
do rumo que devia seguir. Sua mente tropeçava em
obstáculos intransponíveis.
Desesperada, abriu a gaveta da mesinha de
cabeceira e procurou o frasco de tranqüilizante, ainda cheio,
que ali guardava. Ela acaricia o vidro, abre-o e despeja todo
o conteúdo na palma da mão, joga os comprimidos na boca
e tenta engolir todos de uma só vez, engasga-se e começa a
tossir fortemente. Hesita em apanhar o copo de água de
cima da mesa-de-cabeceira. Para morrer é preciso ter
coragem, e a sua começa a falhar. Mas apesar do medo que
a domina conseguiu engolir grande parte dos comprimidos.
De súbito, as sombras invadiram o quarto e tudo se
fundiu em completa obscuridade. ”A morte está chegando”
– disse para si mesma. E uma paz profunda se apoderou
dela. Por algum tempo tentou concentrar as idéias sem
saber onde estava. Quis levantar e escorregou para o chão
desfalecendo, ficou estatelada no assoalho.
Passados alguns minutos ouvem-se batidas na porta
do quarto. Maria, a empregada, não ouvindo resposta,
adentra o aposento. Traz um copo de leite para a patroa. Vê
a mulher caída, com a respiração rouca e crepitante dos
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moribundos, a expressão de pavor na face, o frasco vazio na
mão e os comprimidos esparsos pelo chão. De imediato
compreende a situação.
– Por Deus, patroa, o que a senhora está fazendo,
está querendo morrer? – gritou chorando, Maria.
Janice tenta levantar-se do chão, mas não tem forças
e só com a ajuda da serviçal consegue deitar-se na cama;
fecha os olhos e começa a lastimar a sua triste sina.
– Deixei-me levar pelo desespero, é só isso, esqueça
o que viu – foi a resposta da infeliz criatura.
Maria foi correndo chamar por socorro. Veio a
ambulância e levou-a para o hospital.
– O que a fez proceder desta maneira tresloucada? –
quis saber o médico.
Ela não respondeu, tinha perdido os sentidos.
O médico fez uma lavagem estomacal com o fim de
remover as substâncias tóxicas. Vendo-a fora de perigo
imediato, mas com sintomas de uma depressão profunda
deu prosseguimento à terapia adequada ao caso – cura por
sonoterapia pelo período de três dias. Decorrido o prazo
teve alta do hospital. O médico receitou medicamentos
antidepressivos e recomendou descanso e tranqüilidade.
Com o tratamento prolongado, Janice parecia
superar a doença, melhorou o seu relacionamento
domestico e dedicou-se com tenacidade ao trabalho que
absorvia o seu tempo e sua mente; mas a sua alma
continuava gravemente enferma. Ela sentia uma grande
revolta, uma raiva surda corroê-la por não ter conseguido
fugir da vida. No momento decisivo não teve coragem
suficiente.
Janice remoia a pergunta para a qual não encontrava
resposta – por que não conseguira amar aquele homem com
quem casara e era seu marido, mas tinha que sofrer as penas
desse tormento atroz que padecia? Esse amor impossível
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era uma peça do destino insensato. Teria que suportar para
sempre aquele punhal cravado no seu peito?
Certa tarde, Guilherme, ao voltar para casa,
encontrou a mulher chorando convulsivamente sentada na
poltrona de veludo, no quarto do casal. Ela olhou-o
injuriada.
- Até quando vai me torturar? – perguntou chorosa.
- Essa situação começa a ficar insuportável! –
exclamou Guilherme, defrontando-a. De pé, diante de
Janice, com ar truculento, completou com arrogância:
– Para que pões à prova a minha paciência? Advirtote que tudo tem limites.
– O que quer dizer com isso? – gritou Janice, vendo
com horror a clara expressão de ódio que se refletia no
rosto do marido.
Com o revólver engatilhado na mão, o cano voltado
para a mulher, impaciente, esperava havia algum tempo.
Dominado pela cólera, não via outra alternativa para
executar a sua vingança, mataria a traidora sem
complacência ou remorsos.
– Eu avisei que mataria você, se continuasse a se
encontrar com aquele canalha – proferiu a sentença.
Estava possesso; aproximou-se e empurrou a mulher
contra a parede. Ela podia correr, gritar e pedir socorro, ou
talvez pedir perdão. Mas ela estacou no lugar, não se
mexeu. Estava serena e seus olhos não refletiam nem medo,
nem espanto. Postava-se diante dele como se realmente
esperasse e desejasse a morte. Guilherme encostara a arma
na sua cabeça, com o dedo no gatilho pronto para atirar;
jamais desprezara tanto a mulher.
Essa idéia, a de enfrentar a morte com dignidade, a
de aceitar o seu destino, ajudou-a a acalmar. O que o
exasperava era a sua coragem tranqüila, a calma com que
ela esperava o desfecho da sua resolução.
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– Atire! Por que não atira? Estou esperando! –
gritou ela, fuzilando-o com os olhos.
Uma janela aberta deixava entrar o vento que
balançava as cortinas, ela distraiu-se e desviou o olhar para
o cortinado. Cansada pela longa espera cerrou os olhos,
desejando um descanso, um repouso tão doce e completo de
corpo e alma, como só a morte pode dar.
Mas ele estava indeciso, tenso, não atirava, não
puxava o gatilho, parecia esperar uma reação dela, olhava
para Janice como se quisesse fixar para sempre aquela
imagem tão amada, e nesse momento tão odiada. Ela estava
imóvel, serena, parecia oferecer o peito à vingança. E como
ele não fizesse nada, Janice o desafiou novamente:
– Está com medo, ou está só querendo me assustar?
– indagou com sarcasmo.
Ele não respondeu, agarrou-a pelos ombros e
encostou o revolver no peito da mulher. Ainda assim, ela
não recuou, não pediu piedade.
– Não acredita então, que eu tenha coragem de
matá-la? – perguntou irritado.
– Acredito, mas não tenho medo.
Guilherme sentiu então, uma necessidade súbita de
saber o que tinha realmente acontecido entre ela e Adriano,
que tipo de relação ainda havia entre ambos, para ela tomar
essa atitude insensata, queria saber tudo, a verdade toda,
mesmo que sofresse, e ele sabia que ia doer muito.
– Eu não te direi nada! Absolutamente nada!
O marido percebeu a obstinação, compreendeu que
ela não diria nunca, nada.
– Covarde! Covarde! – ela insultou-o novamente.
Os dois fuzilaram-se com o olhar. Ele ia falar, mas
calou-se. Ocorreu-lhe uma idéia que era uma maneira mais
eficaz de feri-la, e de uma maneira mortal.
79
- Vou desforrar-me muito melhor da ofensa
recebida, matando Adriano em vez de matar você, ele não
viverá para consolá-la, me aguarde! – ameaçou Guilherme.
Janice apavorada com esse novo plano de vingança
avançou agredindo-o com pancadas no corpo e na cabeça,
batendo sem raciocinar. O marido revidou erguendo a mão,
sem que ela de momento pudesse supor o que ia suceder.
Foi atingida no rosto, de lado, e com tanta força, que
tonteou, cambaleou, sentiu uma névoa passar na frente dos
olhos, segurou a cabeça com as duas mãos para se libertar
da tonteira e não desmaiar.
– Ele me esbofeteou, me bateu, descarregou todo
seu rancor, não teve coragem de me matar, eu preferia a
morte a essa humilhação – foi o seu desabafo, a sua revolta.
Difícil seria ela imaginar quais as atrocidades que
ele arquitetava como vingança contra ela e Adriano. Mas a
dúvida espicaçou seu pensamento. Guilherme era vil e
covarde, não tentaria nada.
O desprezo e a intolerância romperam todos os
limites da consideração e respeito que havia entre eles. A
situação ficou insustentável. Entretanto, viveram juntos
ainda por muito tempo, dormindo em quartos separados; até
que um dia ele tomou a decisão final.
– Quero avisar que a nossa vida vai mudar, estou
farto dessa comédia; vou pedir o divórcio e resolverei de
maneira que me for melhor – amanhã mesmo terá a
solução. Ficará livre para viver a sua vida, mas sem
Adriano, pois não esqueci a minha vingança! O que é dele
está guardado! – Guilherme voltou a ameaçar – disse-o com
inflexão arrogante na voz e o olhar carregado de ódio.
Em seguida, dirigiu-se para a porta de saída levando
nas mãos a pasta com documentos e a mala com roupas
pessoais que mandara a empregada separar. Antes de passar
a soleira da porta voltou-se para dizer, ameaçador:
80
– Proíbo-te que comente com alguém a minha
decisão, eu mesmo comunicarei para minha família. Quanto
ao restante dos meus pertences, mandarei buscá-los depois.
Janice não ficou surpresa pela resolução repentina
de Guilherme, estava esperando havia muito tempo por esta
decisão. Agora livre do jugo do marido e do casamento
podia pensar no melhor caminho a seguir. Resolveu mudarse para a capital e recomeçar uma nova vida. Pensou
seriamente em desistir de Adriano. Faria todo possível para
sufocar o amor que sentia por ele. Sabia que ia doer muito,
mas precisava tentar.
Deslocada, sem rumo na vida, sentindo-se muito
infeliz, só e abandonada, Janice perdeu a fé. Tornou-se
descrente da vida, das pessoas, de tudo e de todos. E sem
esse divino refúgio, ela se debatia na armadilha do seu
destino. Desejava ardentemente que a morte viesse logo
para libertar sua alma da prisão terrena.
Certa manhã, passando em frente à uma igreja,
resolveu entrar, tentaria ali recuperar a paz e a esperança. A
penumbra que dominava o interior do templo convidava à
reflexão e a oração. Ajoelhou-se aos pés do altar e elevou
os olhos suplicantes para a imagem de Cristo, numa
instintiva busca de auxilio e perdão.
– Perdoe-me, meu Pai – orou – eu pequei muito e
tenho vivido na desesperança. Ajude-me, Senhor, a tirá-lo
do meu coração. Afaste-me de Adriano, se for preciso até
pela morte, pois a prefiro do que o tormento em que vivo.
Janice refletia... e perplexa reconheceu o domínio
da paixão que se implantou no seu coração. Pela primeira
vez analisou, essa luz que lhe permitia ver o fundo do poço,
de todas as coisas, avaliou a sua relação com Adriano, a
respeito da qual sempre evitava pensar. Era uma situação
desastrosa, tinha ultrapassado os limites. Sim, era tempo de
dar um basta, mais do que tempo de parar.
81
Procurou conselho com frei Gonzalo, amigo da
família, eminente psicólogo e grande conhecedor da alma
humana. Convidou-o para uma conversa reservada em sua
casa. Sentado numa poltrona, ele ouvia atentamente as
coisas que ela contava, o desfiar daquele trasbordamento
de mágoas. Notava-se a tristeza do religioso; sofria com ela.
Quem mais do que aquele que passou parte da sua vida
ajudando as pessoas a resolver os mais intrincados e
sofridos problemas, é capaz de entendê-la?
Ao analisar o fato com cuidado, ele julgou que a
relação deles era pecaminosa perante a Igreja e condenável
pela sociedade. Era necessário dar fim urgentemente ao
caso. Apesar de tudo ele como padre podia fazer muito
pouco, pois a solução do problema dependia totalmente
deles. Aconselhou que agissem rápido e com prudência.
Janice andava de um lado da sala para o outro.
Estava num estado de nervos terrível, e o seu tom de voz
era a um só tempo de amargura, lamento e de acusação.
– Eu sei padre, que Adriano não presta! Ele é de
caráter volúvel, tem uma conduta irresponsável, é
inconseqüente. E foi por um homem desses que eu me
apaixonei. Transgredi as leis da Igreja traindo o meu
juramento feito aos pés do altar. Pequei demais padre, estou
condenada, minha alma não tem salvação.
– Tem sim. Arrependa-se e Deus te perdoará!
– Eu sinto que estou errada, sabia sempre que estava
errada. Que adianta isso agora, se eu estava ciente do meu
comportamento reprovável e não consegui evitá-lo? Que
adianta lutar, se é inútil? É só ele aparecer aqui, eu me
esqueço de tudo, de todas as promessas que fiz a mim
mesma, e corro para os seus braços.
– Já é uma grande coisa reconhecer os seus próprios
erros. Você é apenas humana, e os seres humanos são
passíveis de cometer erros e os cometem e muitos. Não se
82
culpe tanto, confie na misericórdia divina – com a voz
piedosa e calma o religioso procurava consolar a jovem
desesperada e em lágrimas.
Janice continuou a desfiar seus dilemas e dúvidas.
– Que procurou ele em mim? Amor, sexo, paixão,
ou a satisfação do seu ego? Claro que me amava e muito,
mas acima de tudo tinha o orgulho da conquista. Agora
tudo isso iria terminar, não teria mais do que se vangloriar.
– Depois de ter tirado de mim o néctar da vida no
delírio amoroso, já não lhe farei falta. Ama-me, sim, mas de
que maneira? O prazer acabou... O instinto está saciado.
Não, ele já não anseia pelo meu corpo como antigamente.
Enquanto eu me torno cada vez mais, excessivamente
dependente, o amor dele se extingue pouco a pouco.
- Ele é tudo para mim, quero que seja meu por
inteiro, mas ele foge, desaparece, pois é aventureiro da vida
e anda à procura de emoção. Os amantes amam com furor,
enfastiam-se em seguida, e esquecem. É isso que eu temo.
Frei Gonzalo ouviu Janice atentamente e julgou
necessário aprofundar-se no caso, à luz da psicanálise.
– Penso que só há uma maneira de acabar com o
domínio dessa paixão doentia – disse o clérigo, pensativo.
– E qual é padre? Por amor de Deus! Faça o que for
possível – gemeu Janice esperançosa.
– De início serão orações de exorcismo, para
expulsar o espírito possessivo da paixão que se apoderou da
tua alma – esclareceu frei Gonzalo.
– Padre, ajude-me! Marque logo as sessões que eu
estou pronta a colaborar.
– Antes de iniciar o tratamento devo estabelecer se
os sintomas patológicos estão sendo causados por uma
doença de origem psicológica que requer tratamento
específico. Fique tranqüila e confie em Deus, que tudo se
resolverá, prometo.
83
Janice submeteu-se durante longo tempo a sessões
de psicoterapia, tratamento realizado por frei Gonzalo, que
a tirou do estado mórbido de desolação em que se
encontrava. Voltou-lhe a fé em Deus, a esperança, a paz de
espírito e a visão tranqüila da vida.
***
Guilherme ao sair de casa, levava na alma a tristeza
e a desilusão pelo amor a Janice. Martirizavam-no
profundamente a traição e o fracasso do seu casamento, e
também se sentia culpado. Havia feito tantos planos
magníficos para o futuro de ambos, mas que depois
negligenciara.
Decepcionado, foi viver com sua amante espanhola
Santina Hernandez, de cuja cama já partilhava havia muito
tempo. Comprou-lhe uma bela casa, contratou uma hábil
decoradora que mobiliou a residência em estilo moderno,
um tanto discutível. Não economizou nas despesas.
Fez questão em prover de tudo e da melhor
qualidade. Queria afrontar Janice com a liberalidade
concedida à companheira. Vivia com ela maritalmente
apresentando Santina à sociedade como sua esposa,
provocando uma situação constrangedora às pessoas.
Voltou a administrar pessoalmente as suas fazendas
de criação de gado, mas passava o maior tempo envolvido
em negócios de corretagem de terras e em reuniões
políticas. A azáfama do dia-a-dia, a sobrecarga de trabalho,
as questões políticas e o distúrbio emocional que sobreveio
no decorrer do processo de divórcio com Janice minaram
implacavelmente o seu coração. Manifestaram-se em
seguida a depressão e a diabete. Sua visão ficou
prejudicada.
Certa noite, Guilherme voltou de uma reunião
política, muito agitado. Tivera uma discussão violenta com
84
um membro da oposição. Deitou-se para dormir ainda
muito nervoso, não conseguia adormecer. O sono veio
inquieto, e pouco depois das três horas da madrugada ele
desperta de repente, soergue-se na cama, arquejante e
através da penumbra do quarto, sente uma presença
estranha, como alguém, um vulto o espiando. Um arrepio
de frio perpassa o seu corpo.
– Quem é? – pergunta assustado. A resposta é
apenas o silêncio e a escuridão da noite.
Uma cócega aflitiva na garganta provoca-lhe um
acesso de tosse curta e espasmódica. Ele toma consciência
do peso no peito, da falta de ar. Um suor viscoso e frio
umedece-lhe a pele do corpo. Vem-lhe de súbito o pavor de
um ataque cardíaco. Espalma ambas as mãos sobre o peito
e, agora sentado na cama, meio encurvado, fica imóvel
esperando a dor sufocante.
– Com certeza é o fim – pensa aterrorizado.
Sente o surdo pulsar do coração, a respiração
estertorosa. Continua a opressão no peito, a dificuldade de
respirar. A sensação de asfixia é agora tão forte que ele se
levanta da cama, tateando caminha até a janela, na busca
desesperada de ar. Apóia-se com as mãos no peitoril e ali
fica a ofegar, de boca aberta, olhando, mesmo sem ver, a
praça da Matriz deserta, e a escuridão da noite, mas
consciente duma fria sensação de solidão.
– Por que ninguém me socorre? Onde está Santina?
Vai me deixar morrer sozinho? Que ingratidão! – lastimase. Faz meia volta e, sempre tossindo e expectorando, dá
alguns passos cegos, na passagem derruba a cadeira que lhe
barra o caminho, procura a porta, em pânico.
– Socorro, Santina. Ajude-me, estou morrendo!
Chame o médico – grita desesperado.
Santina dormia com o filho pequeno no outro
quarto, e acorda com os gritos de Guilherme. Corre rápido
85
pelo corredor em direção ao chamado e, como um sino de
alarma despertando as pessoas da casa.
– Depressa! Parece que Guilherme está tendo um
ataque do coração. Vão chamar o médico! Rápido! – dava
ordens apressadas aos empregados.
A noite está quente, de ar parado. O médico não
tarda a atender. Minutos depois entra no quarto do doente,
em passo acelerado, leva na mão a maleta de emergência.
– Será um infarto? – pergunta Santina preocupada.
– Pode ser, vou examinar – diz o médico.
Guilherme está sentado na cama, a face lívida, o
peito arfante, a boca semi-aberta numa ansiada busca de ar,
o rosto, os braços, o torso reluzentes de suor frio. Pelas
comissuras dos lábios arroxeados escorre-lhe uma secreção
rosada. Inclinada sobre o marido, Santina de quando em
quando limpa-lhe a boca e o queixo com uma toalha branca.
O silêncio do quarto é arranhado pelo som estertoroso da
respiração de Guilherme.
Com o estetoscópio ajustado aos ouvidos o médico
por alguns segundos detém-se a auscultar o coração e os
pulmões do doente. Guilherme ergue o braço, sua mão
procura a de Santina. Ela segura a mão do marido, que volta
para ela um olhar patético, pedindo ajuda.
– Vou lhe dar uma medicação para baixar a pressão
arterial, o alívio não vai tardar. O acidente vai ser superado
com a medicação, e o nosso doente dormirá a noite toda.
Deixem que amanhã ele acorde espontaneamente. É
necessário que permaneça na cama, no mais absoluto
repouso – recomenda o médico.
- Farei possível em retê-lo na cama – diz a mulher.
- O futuro de seu marido é sombrio, por melhor
que seu estado de saúde possa parecer nos próximos dias ou
semanas. Há a hipótese de ele morrer de repente. Portanto,
vocês devem estar preparados. Podem levá-lo a um hospital
86
na capital ou em São Paulo, aqui nós não temos clínicas
especializadas para esse tipo de tratamento.
Mas Guilherme não quis nunca e não quer agora,
sujeitar-se a qualquer tratamento sério. Por conseqüência, lá
está ele seriamente doente reduzido à imobilidade, e a uma
invalidez que é a maior desgraça que podia acontecer a um
homem do seu temperamento agitado. Está perdendo a
visão afetada pela diabete, seu coração está fraco e ainda
por cima seu candidato perdeu a eleição. Ele está sem saber
que rumo tomar, porque seu mundo está ruindo.
Lembra-se com saudade da sua atuação na vida
pública. Sempre teve a volúpia do jogo da política. Fazialhe bem à alma ser admirado pelo povo, prestigiado pelos
donos do poder, indispensável no seu meio.
Janice soube por amigos, do estado preocupante da
saúde de Guilherme. Decidiu deixar de lado as mágoas do
passado e fazer-lhe uma visita. Foi recebida cordialmente
pela mulher Santina, que a conduziu ao quarto do doente e
deixou-os a sós, com a desculpa de providenciar um café.
A ex-esposa entra e olha para ele com compaixão expressa
nos grandes olhos azul-esverdeados.
– Como vai Guilherme? Como está sua saúde? Oh,
Deus! Quanto tempo não nos vemos! Parecem séculos.
– É! De fato faz muito tempo. Mas você está com
ótimo aspecto, parece que para você o tempo não passou.
Como vê, eu estou aqui, imobilizado na cama. É a pior
coisa que podia me acontecer. Não agüento mais isso!
Guilherme é tomado por uma confusão de
sentimentos - revolta, culpa, arrependimento, vergonha.
Como ficaria feliz se ela lhe pedisse perdão! Então,
bastaria ele abafar o orgulho, esquecer a deslealdade e o
ressentimento. Enfim, também pedir perdão a ela. Colocarse numa posição de homem superior. Apesar de todo mal
que aconteceu, ele a amava ainda.
87
– Sim, ele reconhece a sua culpa. Tinha sido um
marido omisso e negligente, muitas vezes cruel e apesar de
afirmar que a amava foi-lhe infiel, pois sempre correu atrás
de outras mulheres, e o tempo todo esteve envolvido com
negócios e tramas políticas. Mas, que diabo! Não é o único
no mundo e não será o pior de todos. E afora essas
infidelidades e descartada a aventura política que o seduzia
e o inebriava, ele sabe que foi sempre um marido exemplar.
– Nunca lhe faltou nada – murmura.
– Que disse? - pergunta Janice.
– Não é nada, estive pensando alto.
Santina, sua mulher, entra no quarto trazendo o
cafezinho e o remédio numa bandeja.
– Está na hora do remédio.
– Me dá logo este veneno – resmunga ele.
Guilherme pega o comprimido, põe-no na boca com
um gesto raivoso e a seguir bebe um gole de água, que está
no copo ao lado Olha guloso para o cafezinho da bandeja.
– Quero que me dê uma xícara de café – pede.
– O médico proibiu o café – diz Santina.
A mulher retira-se do quarto levando a bandeja e
eles ficam novamente sozinhos. Tem muito pouco a falar.
– Não me deixam fumar. Alimentam-me com
caldinhos, canjinhas. Proíbem-me de tomar sequer um
aperitivo. Não me deixam levantar da cama, nem receber
visitas. Acho que vou morrer de tédio e de solidão –
queixa-se.
E aqui está o Guilherme doente, quase cego, atirado
em cima de uma cama, reduzido a uma imobilidade
exasperante. E esquecido! Completamente à margem da
vida social e política. Os amigos e os correligionários não o
visitam, pois as visitas estão proibidas pelo médico.
– Devo ir embora, já demorei muito, desejo a você
rápida recuperação, Guilherme! Perdoe-me se te magoei,
88
esqueça o passado e conte com minha amizade – diz Janice,
abraçando-o, e em seguida dirigiu-se à porta de saída.
Santina a acompanha. Esperando na entrada está o pai de
Santina, Alfonso Hernandez que veio visitar o genro.
O velho senta-se ao pé da cama, tira a faca da
bainha, um pedaço de fumo de corda do bolso e começa a
fazer um cigarro com toda a pachorra, enquanto pergunta
coisas sobre a saúde do genro.
Guilherme segue os movimentos do sogro, vê o
velho picar o fumo, amaciá-lo no côncavo da mão esquerda
com a palma da direita. Depois alisa a palha com a lâmina
da faca, enrola o cigarro. Acende-o batendo o isqueiro e
tira algumas baforadas. A fumaça espalha-se pelo ar
enchendo o quarto de aroma adocicado de tabaco. O doente
aspira o perfume, deliciado.
– Dê- me um cigarro – pede ao sogro.
– O médico não te proibiu de fumar? - pergunta
Hernandez.
– Proibiu de fumar, de beber, de comer e fazer
coisas que eu gosto. Ele não vai saber se você não contar –
responde com uma risadinha.
Guilherme acende o cigarro de palha, que o outro a
contragosto lhe deu, e feliz traga e solta fumaça pelo nariz.
De novo desanda num acesso de tosse que o sacode todo.
Ergue-se brusco, cospe fora o cigarro, e sempre tossindo e
encurvado, torna a deitar-se arquejante, as mãos espalmadas
sobre o peito, o busto teso, fica olhando fixamente para fora
pela janela aberta como se dela esperasse socorro e alívio.
– É um teimoso! – sentencia o sogro e despede-se.
A visita de Hernandez demorou pouco. Ele deixou
o aposento e dirigiu-se para a cozinha onde a filha
preparava a canja de galinha, para o marido doente.
Guilherme ficou sozinho no quarto. Uma dor fininha lhe
risca transversalmente o peito, como um arranhão feito com
89
a ponta de um alfinete. Ele torna a recostar-se, alarmado, e
por alguns instantes fica esperando e temendo a volta da
agulhada, os olhos fechados, a respiração quase contida.
Deus queira que tenha sido só uma dor muscular.
Põe-se a olhar desconsolado para a torre da igreja na
praça. Qualquer dia, o velho sino da Matriz estará dobrando
para anunciar à Campina da Lagoa a morte do homem e do
político Guilherme de Castro Vasconcelos. Num misto de
autopiedade imagina o próprio enterro. Será que nesse
momento ele tem a premonição do já muito próximo
evento?
Vê luto na Fazenda Marambaia. A rua em frente da
sua casa na cidade apinhada de gente. Decidem levar o
caixão nos braços até o cemitério. O tráfego é interrompido
por onde passa o cortejo fúnebre. Agora o séqüito está no
cemitério, perto da cova aberta em baixo do pé de ficus.
– Quero descansar à sombra dessa árvore – apontara
o local, ao visitarem o cemitério no Dia dos Mortos.
E depois que o enterrarem na cova, coberto de terra
e flores, pensa Guilherme, a cidade continuará os seus
mexericos, as suas maledicências, lembrando-se apenas dos
seus defeitos. E ele ficará esquecido e caluniado como todo
político. Com a exceção dos que o amavam, alguns
parentes, filhos, poucos amigos e nenhum correligionário,
os outros lá estarão por obrigação social ou por puro prazer
sádico.
Eram uns invejosos, covardes, não podiam encontrar
um homem autêntico que não sentissem logo desejo de vêlo destruído e humilhado. Canalhas! Só de pensar nestas
coisas Guilherme sente a obrigação de viver.
Mas a morte verdadeira não tardou a chegar, e aos
69 anos de vida, num final de ano, ela veio de repente. De
manhã, logo depois do banho, Guilherme voltou ao quarto
para vestir-se. Debilitado pela doença do coração e com a
90
visão prejudicada, sentiu tontura, ajoelhou-se perto da
cama, colocou a cabeça sobre o travesseiro e ali adormeceu
para sempre. Não se ouviu um só gemido.
Quando Santina veio trazer-lhe o café matinal numa
bandeja, viu-o debruçado sobre a cama, bateu levemente no
seu ombro e não vendo nenhuma reação ficou alarmada.
– Guilherme! você está me ouvindo? – perguntou.
Não obteve nenhuma resposta, então correu para chamar
socorro. Veio o médico, examinou-o e deu o seu parecer.
– Aconteceu como eu previa. Morte repentina.
Foram avisados os amigos e vizinhos. Telefonaram
para parentes que moravam longe. Janice não guardara
rancor do passado, e quando soube do falecimento de
Guilherme veio junto com outros familiares para o velório.
O esquife foi colocado em cima da mesa, entre
quatro círios acesos. Um véu negro cobre o rosto do morto.
Seus dedos trançados sobre o ventre têm a cor de cera e
seguram um terço de cristal da Boêmia comprado por
Janice numa viagem do casal à Europa. Ela colocou-o em
suas mãos inertes, simbolizando paz e perdão; a última
lembrança que ela lhe oferecia.
Janice comovida com a morte do homem que foi seu
marido quis prestar-lhe uma homenagem. Reuniu as
pessoas presentes no velório, e começaram a rezar o terço
em intenção à alma de Guilherme. Um vento gelado entrava
pela porta entreaberta, fazendo oscilar a chama das velas.
Às dez horas da manhã, com o céu azul, límpido,
sem uma nuvem, seguiu o cortejo fúnebre para o cemitério
Municipal, onde o aguardava a cova aberta em baixo do
frondoso ficus, lugar que ele antecipadamente escolheu.
***
91
Certa manhã, Adriano levantou-se muito cedo
alegando ter muitos afazeres a realizar naquele dia. Silvia
sua esposa, ficou deitada mais um pouco. Espreguiçou-se e
resolveu levantar também. Enquanto saía da cama ouviu
murmúrios, uma espécie de gemidos.
Aproximou-se da escada que levava ao sótão onde
dormia a empregada da casa. Parou no meio da escada e
aguçou os ouvidos, atenta àqueles estranhos ruídos e
sussurros. Percebeu então, uma voz abafada de homem que
vinha do quarto do sótão.
Subiu o resto dos degraus e deparou-se com o
marido apressado, vestindo a calça. Parada ao lado dele,
envergonhada, estava a criada rapidamente enfiando a
blusa, deixando entrever os seios roliços. A moça ao ver a
patroa, soltou um grito de medo.
– Por favor, dona Silvia, não me culpe, ele me
obrigou a ter relações com ele – protestou.
Adriano, com a esposa a flagrá-lo em erro tão grave
e vergonhoso, não soube como explicar tal fato. Saiu do
quarto, impotente, humilhado, precipitando-se pela escada
abaixo e só apareceu em casa ao anoitecer.
A patroa perdoou a empregada e a mandou embora,
pois não poderia mandar embora o marido. O caso ficou
esquecido, como um fato apenas ocasional.
Jamais lhe ocorreu a idéia de outra traição por parte
de Adriano, que dizia amá-la e aos filhos, acima de tudo.
Não lhe passava pela cabeça que fosse infiel novamente.
Então pode-se imaginar a surpresa que foi para ela saber de
uma nova traição.Toda a confiança desmoronou.
Silvia interceptou uma carta com acrósticos, dele à
sua nova conquista. A descoberta foi uma coisa horrível,
não conseguia admitir mais uma infidelidade. Ele
enamorou-se da sua melhor amiga. Enganava-a com ela.
Continuava sendo o melhor dos maridos, enquanto
92
mantinha relações com a amiga! Isso era horrível!
Imperdoável! Silvia desesperou-se, chorava e os soluços
abafavam-lhe as palavras entrecortadas.
– Imagine... A situação agora... Será péssima. Não
vou perdoá-lo... Apesar de amá-lo muito – dizia Silvia,
chorando e confidenciando o segredo à amiga.
– Quase todos os homens cometem infidelidade, é
certo, mas o lar e a mulher com quem casaram são sagrados
para eles. Desprezam as mulheres fáceis. Perdoe-o –
aconselhava aquela.
- Sim, sou capaz de fazê-lo, se me pedir perdão –
disse Silvia. Não voltarei a ser a mesma, mas vou perdoálo por causa dos filhos, como se nada tivesse acontecido.
As relações entre os dois permaneceram tensas, mas
não se falava em separação. Havia a possibilidade de
chegarem a um acordo, e reconciliarem-se. Mas a
irresistível vocação de sedutor e o charme de Adriano
falavam mais alto. O brilho magnético dos seus olhos corde-mel e o sorriso insinuante lançado a uma mulher,
abrasava-a. Ao entrar na idade madura, Adriano não se
acalmara, ao contrário, acentuaram-se seus defeitos e,
apesar das têmporas encanecidas e rugas ao redor dos
olhos, aumentaram seus impulsos pela aventura.
Sumia durante dias em ausências inexplicáveis; às
vezes entocado em cafuas de jogatina, ou seguindo ao
extremo do país uma estudante alemã da qual estava
enamorado, ou chegava ao cúmulo de empreender uma
viagem a cidades desconhecidas, sem dinheiro, onde muitas
vezes era obrigado a dormir dentro do automóvel
estacionado no pátio do aeroporto local.
Seu charme cativava todo mundo, menos sua esposa
Silvia. Numa das discussões, ela perdeu o controle e o
humilhou com uma enxurrada de insultos. Já estava cansada
das suas ausências e traições. Adriano era homem de bons
93
modos, de índole pacífica, tinha aversão por discussões.
Ergueu a mão pedindo trégua.
– Já disse tudo?-perguntou com um sorriso
sarcástico. Vou até o bar da esquina comprar cigarros.
Volto já.
Pegou a mala com roupas que tinha arrumado
antecipadamente e colocado no corredor do apartamento, e
partiu discretamente sem dizer adeus. Não deixou recado e
nem direção para onde ia, a ninguém. Abasteceu de
gasolina seu automóvel Landau azul e partiu numa viagem
sem volta. Ia esconder-se em qualquer cidade grande, viveria incógnito e em paz.
Nessa tresloucada fuga de tudo e de todos, principalmente do problema suscitado com a descoberta de
Guilherme do seu caso de amor com Janice, temendo a
vingança do marido traído, ele iria até os confins do país,
onde ninguém o conhecesse, ali tentaria refazer a sua vida.
Tomou o rumo Noroeste do país, alcançou a estrada
364 e seguiu em direção a Rondônia. Num esforço
incomum percorreu quatro mil quilômetros. Só parava para
abastecer o carro e se alimentar; nesse ínterim cochilava
alguns minutos.
No quarto dia chegou à cidade de Porto Velho, que
se localiza na margem direita do rio Madeira, de clima
equatorial e com altitude de 85 m acima do mar. As origens
da cidade vinculam-se à construção da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré. No auge da corrida do ouro e da extração
da borracha, o local foi escolhido para a instalação do porto
fluvial Santo Antônio e da estação terminal da ferrovia.
Por volta de 1907, começou a formar-se um
povoado em torno da estação, que passou à vila, depois foi
elevada à categoria de cidade em 1919, e em1956 passou à
condição de capital do então Território do Guaporé, depois
Território de Rondônia em homenagem ao sertanista e
94
engenheiro, marechal Cândido Mariano Rondon. Em 1981,
Porto Velho torna-se capital do Estado de Rondônia.
Adriano chegou à cidade ao entardecer do quarto
dia. Procurou hospedagem num hotel modesto, pois lhe
sobrara pouco dinheiro para as despesas. Pediu um
sanduíche de pão e mortadela e um copo de refrigerante.
Após o lanche, recolheu-se para descansar da longa e
extenuante viagem. Dormiu a noite e o dia todo. Acordou
ao cair da tarde seguinte. Estava faminto. Tomou banho e
saiu à rua para jantar, conhecer pessoas e a cidade.
Além de trabalhar como representante comercial,
Adriano era advogado formado. Fizera o curso de direito
aos quarenta anos, numa Faculdade de renome. Tinha
profundo conhecimento de leis e se usasse sua excepcional
inteligência e muita dedicação, poderia ser um grande
causídico na área criminalística, que o fascinava e em cujas
leis e meandros havia se especializado, mas era displicente
demais para se entregar a causas complicadas e demoradas.
Ele tinha pressa em resolver tudo rapidamente.
Precisava de dinheiro.
Era pessoa sociável e comunicativa; gostava de
contar piadas, simpático, não demorou muito em fazer
amizade na cidade. Logo foi convidado para trabalhar em
parceria, em um escritório de advocacia de renome.
Nas suas idas obrigatórias ao Cartório de Registro
de Imóveis e Documentos era atendido pela cartorária, cujo
nome era Eunice Bezerra da Silva, mulata jovem, bonita,
sensual e atraente. Este era o imã que atraía Adriano. A
seiva da mocidade e o sangue quente de Eunice latejavamlhe na carne encarcerada.
Entre atenção especial e gentilezas mútuas surgiu
entre eles um relacionamento amoroso. Começaram a saír
juntos. Ele foi conhecer a família dela e continuou
freqüentar a sua casa. O pai de Eunice, Vitorio Bezerra,
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pardo, nascido no Ceará e criado em Porto Velho, antigo
seringueiro, era um chefe de família à moda antiga, zeloso e
severo. A mãe Marinalva e os filhos Acássio, Eunice e
Ventura obedeciam-lhe cegamente.
Com a assiduidade com que os visitava, o pai exigiu
de Adriano o compromisso de casamento, sem demora. O
pretendente alegou que estava se divorciando da esposa.
Por sugestão e pressão da família, o casal de namorados
viajou até Guajará-Mirim, atravessou a fronteira e na
Bolívia casaram-se de acordo com as leis daquele país.
Então passaram a viver juntos.
A união entre Eunice e Adriano durou apenas dois
anos, tempo em que ela engravidou e teve um filho. A
convivência diária, as obrigações caseiras e o choro da
criança à noite, logo o aborreceram. Viu a vida tornar-se
insípida, verdadeira prisão, ele era um boêmio, um pássaro
viageiro, precisava de liberdade e espaço para voar. Um
belo dia resolveu não voltar mais para casa e sem dar
explicações abandonou Eunice e o filho pequeno.
O pai dela e os irmãos exigiram o retorno,
prometeram vingança e juraram-no de morte, caso o vissem
envolvido com alguma outra mulher. Adriano não era
homem de ceder por coação de ninguém e seguiu sua vida
de aventureiro. Essa foi a sua armadilha e o fim de tudo.
Os irmãos Acássio e Ventura ficaram de espreita em
qualquer deslize do advogado, que se confirmado, eles não
vacilariam em executar a vingança. Tinham plena
consciência do caráter mulherengo de Adriano e do seu
procedimento aventureiro. Se o pegassem em flagrante
delito seria um homem morto.
Para não dar origem a qualquer suspeita que
surgisse, foram para o garimpo de ouro no Alto Madeira,
mas os outros familiares continuaram vigilantes. Depois de
dois meses de trabalho árduo, ficaram desapontados com os
96
resultados do garimpo no rio Madeira e os dois irmãos
foram tentar a sorte nas minas de cassiterita em Ariquemes.
A descoberta do potencial da jazida de cassiterita no
garimpo de Bom Futuro, situado a 250 quilômetros de
Porto Velho, levou para a região de Ariquemes multidões
de garimpeiros de todas as partes do país. Houve uma
invasão de aventureiros à procura do minério.
Mais de 15 mil pessoas trabalhavam nas jazidas.
Muitos se decepcionaram, pois descobriram que só os
garimpeiros antigos conseguiam vender o minério
diretamente aos grandes compradores. Os novatos, a grande
maioria, tinham de submeter-se aos preços baratos pagos
pela Empresa Brasileira de Estanho S.A. detentora do
monopólio da lavra, compra e venda do produto.
***
Adriano Silveira Dorsay era advogado experiente, e
com o passar do tempo, conquistou uma boa clientela. Seu
escritório de advocacia situava-se no centro da cidade de
Porto Velho. Bem conceituado, seus negócios prosperaram.
Certo dia, enquanto esperava a visita de um cliente,
agendada para aquela manhã, entrou na sua sala uma
mulher de longos cabelos negros, saia comprida estampada,
o corpete bordado com miçangas, grandes brincos dourados
enfeitavam-lhe as orelhas, levando ao pescoço colares
coloridos e braços cheios de pulseiras de ouro. Apresentava
o aspecto de uma cigana. Ao encarar Adriano se deteve
surpreendida, como se já o tivesse visto numa premonição.
Aproximando-se dele exclamou numa voz
rouquenha, quase inaudível:
– Leio em teu olhar, você viverá uma louca paixão
que o levará ao túmulo. Tenha muito cuidado com teus
amores. Quem te avisa é a cigana Zoya.
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Adriano terminara com seu último envolvimento
amoroso havia pouco tempo e estava decidido a manter-se
afastado de qualquer nova aventura a revelia da sua
natureza apaixonada. Sabia que estava jurado de morte
pelos seus cunhados, caso fosse infiel a Eunice.
A vidente lhe tocou a cabeça com dedos
experimentados, enfeitados de anéis reluzentes de ouro,
examinou lhe a palma das mãos e o declarou Sagitário,
tendo como ascendente o Escorpião. Estava marcado pelos
signos do sexo e da morte traiçoeira.
– Que conversa sem sentido, está querendo me
assustar? Fora daqui - gritou, apontando-lhe a porta.
A pitonisa Zoya olhou-o tristemente nos olhos,
abanou a cabeça com um sorriso de piedade e desapareceu
pelo longo corredor.
Poucos momentos depois apareceu Noemi Lopes
Ibarra. Era uma esplêndida mulata, de formas provocantes e
olhos buliçosos. Semelhante a uma estátua egípcia, era alta
e de talhe esbelto, pele morena cor de bronze, cabelos
negros, longos e lisos. Aparentava ter trinta anos cheios de
viço.
Era jamaicana em visita àquela capital. Vestia uma
saia longa indiana de tecido rústico, rajada de azul e
vermelho, camiseta de algodão branca, cinto trançado de
corda em várias cores com franjas nas pontas, apertando-lhe
a cintura fina e uma bolsa de contas marrom no ombro.
Estendeu a mão fina, de unhas compridas pintadas com
esmalte vermelho escarlate, ostentando uma larga aliança
de ouro no dedo anular da mão esquerda.
Adriano olhava-a, surpreso com sua formosura. O
cliente, ao qual esperava, era um homem que se nomeou
como Diego Ibarra. Disse por telefone, que veio à cidade
comprar diamantes brutos e ouro que eram garimpados
naquela região. Precisava fazer um contrato de compra e
98
venda dessas gemas. Para isso procurou o escritório do
advogado Silveira Dorsay, por indicação de um amigo.
– Desculpe-me doutor Dorsay, sou Noemi Lopes
Ibarra, vim representando o meu marido Diego Ibarra. A
razão que me trouxe até aqui é a elaboração dum contrato,
de cujo teor e formalidade ele já o informou. Trago as
informações, bem como os documentos necessários para
isso. Portanto, vamos trabalhar pois não disponho de muito
tempo, os interessados no negócio estão nos esperando.
– Ora essa! Porque tanta pressa. Vamos com calma.
Já fiz um esboço do contrato. Agora vou completar com as
informações que a senhora me fornecer e, se aprovado,
estará concluído dentro de poucos minutos. Poderá levá-lo e
entregar ao senhor Diego.
Noemi, a bela jamaicana, sentou-se perto da mesa,
ao lado do computador onde ele trabalhava. A proximidade
dela e o perfume francês que usava, e que se irradiava pelo
ambiente, incendiavam a imaginação aventureira de
Adriano, despertando nele o instinto animal voluptuoso. O
coração pulsava-lhe com violência. Fazendo grande esforço
para vencer aquela inquietude, e com voz alterada pela
comoção, dirigiu-se a ela:
– Desculpe-me a ousadia! Ficaria muito feliz se me
desses o prazer de jantar comigo hoje.
– Infelizmente hoje é impossível! Não posso deixar
de acompanhar Diego no jantar oferecido pelos vendedores
de diamantes brutos, mas podemos marcar para um outro
dia – respondeu ela.
– E amanhã, aceitará? Quero tornar a vê-la em breve
– insistiu Adriano - não querendo perder a oportunidade de
conquistar essa beldade jamaicana.
– Não creio que tenhamos outro compromisso
urgente para a próxima noite. Mas se tiver um impedimento
avisarei. Também estou interessada em trocarmos idéias
99
sobre as leis deste país. Pretendemos ficar mais tempo por
aqui do que programamos de início. Acho esta terra e seus
homens muito interessantes, fascinantes até. Foi um grande
prazer conhecê-lo, doutor Dorsay.
– Estou muito feliz em conhecê-la, senhora Noemi.
Na despedida, ela estendeu-lhe a mão morena, de
dedos longos cheios de anéis, que ele beijou galantemente.
– Até a vista – disse ele, com olhar cheio de desejo.
Simplesmente estava enamorado dela, desejando-a.
Passavam-se os dias e Noemi não dava sinal de
vida. Nenhuma notícia. Adriano não conseguia tirar a bela
jamaicana do seu pensamento. Até que uma tarde, de um
calor sufocante, ouviu-se o toque do telefone no seu
escritório. Era ela, a linda Noemi.
A tão esperada resolução da moça veio ao encontro
dos desejos do advogado. Ela desejava fazer um passeio
para conhecer a cidade e queria-o como cicerone, talvez
mais tarde poderiam jantar juntos. O marido estava
viajando e voltaria só no outro dia. Poderiam passear
tranqüilos.Adriano, quase enlouquecido de ansiedade
aceitou imediatamente. Combinaram a hora em que ele a
apanharia no bar do hotel.
Como todo apaixonado que aguarda a sua amada,
Adriano não conseguiu mais trabalhar naquele dia.
Esperava ansioso a hora em que poderia revê-la.
Resolveu passar no hotel com antecedência; estacionou o
automóvel na sombra duma árvore a duas quadras do hotel,
e foi caminhando até o bar onde ela o esperava tomando um
drinque na companhia de um amigo. Cumprimentou-os
cortesmente. A moça levantou-se de imediato, ele deu-lhe o
braço e os dois saíram para a tarde tropical.
Ao saírem da sombra da grande mangueira do
parque do hotel, o sol poente refletiu-se no cabelo negro de
Noemi, e Adriano embevecido pelo amor, achou que nunca
100
vira algo tão extraordinário. Não pôde evitar o impulso de
passar a mão neles. Os cabelos dela eram densos e lisos,
emolduravam o rosto de traços oriundos de miscigenação
das raças, espanhola, indígena caribenha e negra africana.
Ela era um belo exemplo dessa mistura.
Longe das vistas dos outros, Adriano e Noemi
trocaram um beijo apaixonado na boca. Caminhavam um ao
lado do outro silenciosos, aparentemente distraídos, mas
absortos em um pensamento comum, sentindo um pelo
outro uma atração irresistível.
A alguns passos, na retaguarda, caminhavam
algumas pessoas, entre eles um mulato alto e forte. Parecia
que seguia o casal, procurava não ser visto por eles. Podia
ser o espião mandado por Eunice ou pelo marido de Noemi.
O braço da moça apoiava-se nervosamente sobre o
do advogado. De súbito ele se curvou um pouco para a sua
companheira e sussurrou-lhe ao ouvido:
– Há uma coisa que está acima das minhas forças...
Estou perdidamente apaixonado por você. Quero tomá-la
nos meus braços agora e beijá-la muito, muito.
Noemi tremia, comovida, mas inquieta olhava para
os lados. Receava ser seguida a mando do marido.
– Eu também estou apaixonada por você. Não sei
como isso aconteceu. Só sei que perdi a paz desde que o
conheci. Sonho com você, quero-o loucamente. Você é um
bruxo sedutor. A paixão por você me dominou.
Num frenesi lúbrico Adriano agarrou-a, levantou-a
nos braços e beijou com delírio. A sombra dos dois corpos
enlaçados refletia-se na água da piscina, pertencente ao
restaurante chinês, para onde o casal se dirigia. Ficaram ali
por muito tempo namorando e trocando confidências.
Já era tarde da noite quando Adriano se lembrou do
jantar encomendado.
101
– Gosta de comida chinesa? – perguntou à moça – e
quando Noemi assentiu com um movimento de cabeça, ele
a tomou pelo braço e a conduziu em direção ao elegante
restaurante chinês, que ficava a uma quadra adiante, no
meio do bosque. Lugar de reunião dos boêmios, noctívagos
e empresários à procura do prazer gastronômico e
companhias agradáveis.
A essa hora o restaurante Pequim já estava lotado,
mas Adriano era cliente habitual. O gerente o saudou pelo
nome e os acomodou numa mesa pequena, no canto,
coberta por toalha e guardanapos brancos, no centro um
vaso com rosas vermelhas, encomendadas por Adriano.
Pediram um aperitivo, escolheram como prato
principal a especialidade da casa, o peixe caxara na brasa,
acompanhado de arroz e legumes com molho de soja.
Adriano escolheu um vinho branco seco para acompanhar o
peixe. Sem muita demora o jantar foi servido. E como
sobremesa, queijo catupiry com doce de goiaba em calda.
– Excelente! Adoro essa combinação à brasileira –
disse a moça.
Adriano e Noemi saborearam o jantar, lentamente;
conversando alegremente, trocavam olhares encantados,
apaixonados. Ela falou de sua vida, da viagem que fizera
desde Jamaica até o Brasil e à cidade de Porto Velho, onde
permanecia já há vários meses. De si mesma disse que era
casada há cinco anos, com o também jamaicano Diego
Ibarra.
O marido era um homem ciumento, possessivo,
desconfiado e violento. Não perdoaria qualquer traição,
portanto, deveriam ter toda cautela e sigilo no
relacionamento que começavam, para mais tarde não
arcarem com a demonstração dessa violência.
– E agora me fala de você – pediu Noemi.
102
Adriano não gostava de falar de sua vida, foi
lacônico e reticente, confirmou-lhe que era advogado
formado há oito anos, e que se estabelecera nessa capital
havia cinco anos. Nada mais disse sobre si, não aventou
nada sobre seu espírito aventureiro ou se tinha família
noutro lugar.
Quando trouxeram a conta, ela abriu a bolsa para
tirar dinheiro, mas Adriano tinha uma estrita educação de
cavalheiro, adiantou-se para pagar, mesmo dispondo de
seus poucos recursos que lhe sobravam da profissão, e da
vida incerta de jogador contumaz.
Ninguém sabia da sua vida secreta. Noemi
estranhava que Adriano às vezes desaparecia por um ou
mais dias, mas ele evitava as explicações. Nos meses
seguintes sua relação se estreitou. Encontros furtivos,
noitadas em boates e jantares aconteceram. Amavam-se no
anonimato dos motéis. Sempre atentos para não deixar a
menor pista. Mesmo assim, foram descobertos e seguidos
pelo mulato às ordens de alguém interessado no caso.
Diego Ibarra foi informado por um bilhete anônimo
do que acontecia com sua esposa. Surpreso, e tomado de
fúria não se conformou em perder a mulher que amava para
um rival qualquer. Resolveu procurar Adriano no seu
escritório de advocacia, para tirar satisfações.
Era um dia feriado. A porta do escritório estava
fechada, parecia que não havia ninguém no seu interior,
mas lá estava Adriano, dormindo num sofá. Diego tocou a
campainha e, não sendo atendido, disparou três tiros de
revólver na porta. Deu chutes com o pé e murros na parede.
– Um dia eu te encontro seu traidor! Se cuide, o que
é teu está guardado. Estou avisando, deixe Noemi em paz –
gritou furioso, bem alto para ser ouvido pelo advogado.
Adriano não deu atenção às ameaças de Diego. A
proibição foi como um estímulo para ele. Procurava-a mais
103
ainda. Naquela fatídica terça-feira, logo de manhã,
telefonou para Noemi, combinaram sair juntos à tarde.
Naqueles dias, o marido de Noemi, estava com
viagem marcada para os Estados Unidos levando diamantes
para vender. Mas primeiro iria para a cidade de Espigão do
Oeste, onde os índios da nação Nambikuara (da tribo CintaLarga), do Parque Indígena do Aripuanã, vendiam
diamantes brutos, por um preço razoável, conseguidos em
profusão na exploração do garimpo do Rio Roosevelt.
Empenhado nessa tarefa demoraria alguns dias para voltar.
Convidou-a para irem juntos, mas Noemi queixou-se de um
mal-estar e disse que preferia ficar repousando no hotel.
Dias antes desses fatos ocorrerem, Eunice, a mulher
com quem Adriano casara na Bolívia, e com a qual tinha
um filho, recebeu um bilhete anônimo com um recado,
que o marido a traía com uma jamaicana.
Furiosa, resolveu se vingar. Procurou no terreiro de
umbanda um bruxo vodu, poderoso, de nome Libório, para
que fizesse um trabalho de bruxaria forte e seguro,
acabando com a vida dos dois traidores. Libório concordou,
e lhe pediu que trouxesse para o ritual de quimbanda, uma
galinha preta, uma garrafa de cachaça e um par de sapatos
usados do seu marido e outro da moça com a qual ele saía.
Ela conseguiu o calçado de Noemi por intermédio
de uma camareira do hotel, sua conhecida. Tinha um par de
sapato do marido em sua casa. Levou tudo para o terreiro
na noite combinada.
No início da sessão de quimbanda, emergiu no
recinto do terreiro a figura do quimbandeiro. Um negro
retinto, esquelético, de chinelos de dedo, malvestido,
carapinha eriçada e olhar maligno.
Iniciou o ritual riscando um círculo duplo no chão,
com giz preto e vermelho. Acendeu velas ao redor, e
colocou as cuias de porongo, abertas, que continham
104
amuletos de chocalhos de cascavel, crânios secos de sapo e
azas de morcego. A galinha e os dois pares de sapatos
foram colocados no centro da roda.
Entrou dentro do círculo e em grandes goles
ruidosos, bebeu toda a cachaça. Logo se pôs a gesticular e,
com voz gutural, a proferir palavras rituais, invocando e
incorporando um exu, o espírito do mal. Dançou em volta,
freneticamente, uma dança macabra, rosnando sons
desconexos, com um punhal na mão cortando o ar.
Sacudindo o corpo, os olhos revirados, invocava a morte
dos dois condenados. A energia do ritual apossou-se do
feiticeiro, então ele pegou a galinha preta e degolou-a com
o punhal que tinha nas mãos.
Com o sangue esguichando do pescoço cortado da
ave, regou até apagar os nomes de Adriano e Noemi
escritos no chão dentro do circulo, conjurando com voz
horripilante. Depois sugou o resto do sangue que ainda
escorria do pescoço, rasgou a galinha em pedaços e comeu
a carne crua, jogando fora os restos ensangüentados. Com o
rosto e cabelos sujos de penas e de sangue, com voz
estranha, deu por encerrado o rito de quimbanda, que durou
mais ou menos uma hora.
Eunice e o pai assistiram a todo o trabalho de
feitiçaria estupefatos, mas insensíveis; queriam vingança.
Aquela noite, Adriano e Noemi foram dançar numa
boate, depois jantaram no restaurante chinês. Ao sair,
dirigiram-se para o automóvel estacionado no recinto. Os
amantes estavam tão envolvidos entre si que lhes passou
despercebido o passo leve de um vulto que se esgueirou
sorrateiro, atrás deles como uma sombra e se escondeu
detrás da árvore próxima ao carro parado no pátio do
restaurante.
Adriano conduziu a moça até o veículo e, gentil e
galante, foi abrir-lhe a porta do carro. Não viu que, oculto
105
pela escuridão da noite, estava de tocaia um homem. Nesse
momento, o assassino arrancou do revólver, engatilhou e
disparou um tiro certeiro na nuca de Adriano. A bala
atravessou e destroçou-lhe a cabeça. O segundo disparo foi
dirigido, por trás, para as costas de Noemi, que naquele
instante entrava e ia sentar-se no automóvel. Atingida
mortalmente ela caiu debruçada no painel. Estava morta.
Adriano caiu ao chão lavado em sangue. Pessoas
atraídas pelos tiros vieram correndo. Ao deparar-se com a
tragédia, chamaram socorro médico e
policial. A
ambulância e os paramédicos não demoraram a chegar,
após examinarem os corpos, o médico chefe deu o parecer:
– Ambos estão mortos. Não há mais nada que se
possa fazer.
A policia chegou, fez o registro da ocorrência e foi
atrás do assassino, que ninguém viu quem era, e que, com
certeza, naquela hora já estava longe, dirigindo-se para o
aeroporto e evadindo-se para o exterior. A policia
vasculhou o estacionamento, o parque e toda a redondeza.
Foram inúteis as diligências para capturar o assassino.
Os corpos de Adriano e Noemi foram levados para o
I.M.L, liberados e entregues a amigos para providenciarem
o enterro. Noemi não tinha parentes na cidade, apenas
amigos, que se preocuparam em avisar por telefonema, ao
marido Diego, que estava nos Estados Unidos. Ele não se
abalou com a notícia, simplesmente, autorizou o
sepultamento do corpo de Noemi no cemitério de Porto
Velho. As despesas que houvesse, ele as compensaria.
O corpo de Adriano foi embalsamado e levado ao
aeroporto de Porto Velho, donde foi enviado de avião, para
ser sepultado na sua cidade natal, no jazigo da família. A
esposa Silvia, filhos e familiares, avisados da trágica
ocorrência, aguardavam o caixão com os despojos no
aeroporto da sua cidade.
106
Janice recebeu a notícia da morte de Adriano por
telefonema de um amigo que estava no local na noite
fatídica. A informação teve o efeito de um raio, que a
atingiu em pleno coração, paralisando-a. Não teve lágrimas
para chorar, nem desesperar. Ouvia apenas o repetir das
palavras fúnebres na sua mente - ele morreu... Ele
morreu....
Passado o momento do choque, foi tomada por uma
incrível sensação de alívio, como se lhe tivessem tirado
cem quilos das suas costas. Ficara livre do difícil fardo que
o destino lhe reservou – a paixão e o desmedido amor por
um homem, que se sobrepôs à lucidez e a razão.
Agora não teria mais remorsos por ter traído o
marido e não sofreria mais por ciúmes de Adriano, pois ele
não amaria e não pertenceria mais a mulher nenhuma. Ela
estava ciente da vida aventureira que ele levava. Como
homem, gostava de viver perigosamente, portanto, não fora
nenhuma surpresa ficar sabendo que a morte sorrateira
truncou o percurso desse deslumbrado astro da aventura.
Alguns dias depois, subitamente, Janice sentiu que
se abriam as comportas da sua dor; o pranto derramou-se
em turbilhão, emergiu com toda a força dos confins de onde
fora relegado, quando ele foi embora; agora com a sua
morte, o sofrimento inundou-a toda numa enchente de
lágrimas. Ele morreu... Saiu da vida... Não existe mais...
– “Você Adriano, será a grata lembrança da minha
vida... eu o amei, e ainda o amo, e só Deus sabe quanto! E o
teria matado se desconfiasse que você deixou de me amar.
Mas a fatalidade adiantou-se e numa tocaia premeditada,
com um tiro certeiro na nuca, disparado por um pistoleiro
contratado a morte violenta levou-o para a eternidade “.
– “Como viverei sem você, meu amor? Como,
realmente? É isso viver?”...
107
Obstinadamente, Adriano não lhe saia do pensamento. Como deveria julgar essa criatura com quem viveu
os mais felizes momentos da sua existência? Por quem até
hoje anseia, passados todos esses anos, a cada instante, a
cada noite, no alvorecer de cada madrugada?...
De quem sente o odor do corpo másculo entre os
lençóis da cama solitária, nas roupas que ali ficaram, nas
velhas camisolas rotas daquele tempo, que guarda até
hoje, como relíquias da sua felicidade perdida.
Sabia que uma dor como essa demora a vida toda
para abrandar. Estava armazenada nos recônditos da
memória, nos mesmos rincões onde se esconde o vírus da
solidão. E quando a dor serenava, ficavam as cicatrizes
doloridas sem que se pudesse tocá-las, por se alojarem nas
profundezas do coração.
As lembranças dele estão impressas na sua pele,
como as digitais dos seus dedos. É nele que pensa, é ele
quem ocupa toda sua alma e o sonho de um amor que se
esvaneceu no tempo, mas que ainda arde sob sua pele,
agora tão baça, com a mesma pulsação inquieta daqueles
anos longínquos. É como um rio que sai do seu leito,
extravasa os seus limites e inunda os recantos que nem
ousaria imaginar existentes.
Assim o soube desde o primeiro instante em que o
viu, e esse amor não lhe veio como chuva fina, mas era um
temporal, era um oceano de emoções que soube ser,
verdadeiro e eterno, pois até hoje ainda o ama com igual
ardor, mesmo ao termo do seu itinerário terreno. Mesmo
que esse oceano já se tenha evaporado e dele só lhe reste o
seu sal e alguns escombros de sonhos, como fósseis que ela
acarinha com cuidado para que não virem pó.
– “Corri atrás das ilusões que aninhei na minha
alma, e só quando ela sumiu, sucumbiu, reconheci que era
apenas uma loucura, uma fantasia inacessível... Você se
108
foi... apenas sobrou um terrível vazio, como se tivesse
fugido a alma do meu corpo, como se fossem retiradas as
minhas entranhas, ficando apenas a pele, o esqueleto e a
roupa que o veste. O que farei agora?... Viverei de que?...
Acabou a minha ilusão! A esperança, fé! Tudo...
- “Afinal, que paradoxo! Por que choramos os
mortos? Eles têm sorte de escapar desta vida atribulada.
Talvez aqui seja o inferno, uma longa sentença de
escravidão terrena. Talvez soframos nossos infernos
vivendo”...
Janice só podia dizer a si mesma – “O tempo cura
todas as feridas” - conquanto não acreditasse nisso. E
perguntava-se por que continuava a doer tanto. A partida
dele criara um vazio tão grande que ela não tinha
esperanças de conseguir preenchê-lo algum dia. Pois a
felicidade é um estado relativo à disposição do nosso
espírito. E ela não queria e não podia esquecer...
Começou a sentir raiva da vida, daquela
engrenagem invisível que se chama destino. O desalento
apossou-se dos seus sentidos. Vagou pelo mundo com a
alma deserta no auge do seu tormento. O mundo
maravilhoso da sua juventude transformou-se em areia
movediça.
Ela viveu por Adriano, como poucas mulheres
viveram por um homem, um ente que nunca foi de todo seu.
Era como um cometa que se deslocava pelo céu da vida, de
braços em braços das mulheres que conquistava. Era como
uma ave de arribação que sentia a necessidade de migrar, de
voar, de seguir os seus anseios e, nesse vôo insensato, levou
consigo a alma de Janice, e se ela não seguiu com ele, foi
pelo capricho da vida que a impediu.
Hoje, passados tantos anos, ainda recorda aquele
primeiro encontro à tarde na cabana de caça, em todos seus
detalhes. Sim ainda hoje, milhares de tardes depois, busca
109
aquele corpo rijo, sensual, aquelas mãos cálidas, morenas,
de dedos longos, acariciando o seu corpo. Ainda escuta a
sua voz acariciante que vem de muito longe, do além,
talvez do fundo da sua própria alma, já pouco lúcida.
A vida, depois a morte, os separou, mas não para a
eternidade, pois o amor não se perde no tempo e no espaço;
fica ali de plantão esperando paciente, até a vinda do ser
amado para se reintegrarem.
Pela vida afora, Janice vagueou sem eira nem beira,
qual uma folha seca levada pelo vento, qual uma gaivota
solitária voando perdida sobre o oceano. Arrastava uma
existência morna e indiferente, sempre ocupada com suas
recordações.Os mesmos temporais avassaladores que lhe
haviam varrido a alma quando conhecera Adriano, agora
em suas lembranças a devastavam de novo.
Quando de manhã o sol assume o seu reino, a
desilusão e o desengano tornam-se um ritmo delirante que
precisa abrigar-se à sombra da noite Para sobreviver aos
seus fantasmas ela espera ansiosa a noite chegar e então
procura dormir... Sonhar...
Agora, quando ao olhar-se no espelho já não
reconhece a mulher que foi naquele tempo, mas ainda
cultiva com carinho as suas lembranças. Solitária, caminha
pelos corredores da casa apoiada numa bengala, repensando
a vida; depois, já cansada dirige-se a seus aposentos e senta
na poltrona azul do seu quarto. Lá dentro a luz velada do
abajour desenha fantásticas figuras na parede branca, que
dão ao lugar um ar misterioso e desconcertante.
Então ela procura na ampla coleção de livros que
possuí, romances que falam de amor com palavras tão belas
que a fazem esquecer a barbárie humana e a dor que a
tortura. Nessas ocasiões afunda-se na leitura por horas a fio.
Refletindo sobre o transcurso da sua vida, Janice
não tem do que se arrepender. Viveu um sentimento intenso
110
que valeu a vida, mas que só permaneceu indefinidamente
gravado no mundo paralelo dos seus sonhos... Indeléveis
ficaram pairando no espaço os resquícios dos devaneios de
amor e as cinzas esparsas dos desejos irrealizados.
Durante muitos anos Janice ficou perambulando,
perdida pelos labirintos da vida; sente o inverno na alma,
está fatigada e quer parar, está cansada do egoísmo das
pessoas, da hipocrisia, das injustiças, da corrupção
alarmante, da violência do mundo, dela mesma. Doem-lhe
as juntas, os pés, as costas, os ossos, o corpo todo. Só sua
cabeça funciona perfeitamente. O espírito está sempre
alerta, divagando, ainda sonhando...
Dentro desta carcaça envelhecida, ainda sente, ainda
sonha, e se impacienta com as restrições que o seu corpo
expressa. A velhice é a mais amarga vingança que o nosso
Deus, magnânimo, nos inflige. Por que não nos leva antes
de envelhecer o corpo e debilitar a nossa mente?
Janice lembrou-se que o tempo correu muito
depressa; não percebeu, mas já estava velha. Estava
próxima da libertação do seu espírito, da escravidão terrena.
A sege que levará seu corpo para a cremação está postada
em frente da sua casa, como um fantasma, esperando o
termo do itinerário predeterminado ao nascermos.
Concentrada em seus pensamentos, olhava os
telhados a gotejarem o que restou da chuva da noite.
Pingavam gotas d‟água das folhas das árvores do pomar.
Contemplava em silêncio, a terra molhada, a grama verde
brotando do chão, a vida continuava apesar de tudo...
De sobra, para seu maior sofrimento, doía-lhe ver as
árvores com os troncos descascados, os galhos quebrados,
os amores perfeitos arrancados dos canteiros, as calçadas
parecendo faces desdentadas, as paredes e muros sujos e
riscados por vândalos da rua. Móveis quebrados, roupa
rasgada e sapatos velhos jogados nos rios, já cheios de
111
entulho diverso, a água escura e fétida deslizando
lentamente por entre os barrancos desmoronando.
Mendigos e crianças maltrapilhas e cães esfomeados. O
trôpego velhinho a caminhar pela calçada com seu passo
vacilante. Parecia-lhe que cada uma destas formas e
criaturas estava doente, pedia socorro para as suas dores:
- “Veja como sofro, por ignorância e maldade das
pessoas, e só você me ouve e compreende a minha mágoa”.
Estava perplexa diante da iniqüidade, da miséria e
da dor do mundo. Este milagre, só o consegue o amor, este
sentimento puro que enternece e envolve a alma humana
quando a domina sem limites. E esta singular capacidade de
sentir a dor alheia acordou em Janice agora, quando a
imensa dor pessoal atingiu-lhe o coração.
Jesus Cristo, o Ser Iluminado, pregava que o amor é
a força mais poderosa do Universo. Ele ensinou que Deus é
Amor e o amor é a força criativa que supera todos os
problemas do mundo. A imagem Dele colocada na mesinha
do seu quarto, clareava com a pequena chama em azeite que
tremeluzia noite e dia, posta na esperança e na fé de
acalmar a inquietude do seu espírito.
Sentia-se sozinha num mundo solitário, mesmo
cercada por pessoas. Sua alma era sonhadora como a da
Gaivota Tayná, cujo espírito e energia da vida, vindos de
outras dimensões, alojaram-se no seu corpo material. Ela
ansiava pela volta da sua alma ao espaço cósmico.
Os espíritos, seres etéreos que povoam o espaço,
sabem o que ocorreu no passado e também o que sucederá
no futuro, porque em sua dimensão não existe o tempo.
***
Enquanto Janice se debate com o seu destino, a
cortina do fantástico palco da vida se abre novamente, e
entram em cena novos personagens, que fazem parte da
112
grande multidão que povoa o mundo, envolvidos entre si
pela sucessão de fatos que ocorrem, muitas vezes,
independente de sua vontade; também sofrem e vivem seus
mútuos dramas tanto ou mais dolorosos como os dela.
Assim, surge o cidadão Vital Gaudêncio da Silva,
baiano, de quarenta e oito anos e de pele morena;
conservava a beleza máscula da sua juventude, o vigor e o
gosto pela vida. Seus olhos negros e buliçosos não
deixavam passar mulher bonita sem segui-la, desejosos.
Casado com dona Francisca, mulher tranqüila e de hábitos
pacatos, dedicada inteiramente aos afazeres caseiros e aos
filhos; ela não dava importância aos galanteios do marido
às outras mulheres.
No ano de 1953, no auge da colonização do Norte
do Paraná, influenciado pela propaganda e pelos corretores
de terra, mudou-se com a família para a ainda incipiente
vila de Herveira. Estabeleceu-se com uma pequena loja de
tecidos e armarinhos. A afluência da clientela era grande, e
ele precisou ampliar a loja e empregar mais balconistas para
atenderem à demanda.
Antes de contratar os serviços das candidatas,
conferia os seus conhecimentos e a prática no ramo.
Dentre as moças contratadas estava Dalva, uma
morena bonita, de talhe esbelto, dona dum andar ondulante
que despertava a tentação nos homens. Sua face era de um
perfeito oval e a pele cor de canela ressaltava a cor dos
olhos de um intenso verde-cinza. Entretanto, o que era mais
fascinante naquele rosto emoldurado por cabelos longos de
um castanho escuro, com reflexos de bronze, era a boca
rasgada de lábios polpudos palpitantes e sugestivos.
Dalva era filha de Graciano Ferreira, irmão de
Perpétua, mulher de Lourenço de Castro Vasconcelos. O
pai de Dalva administrava a Fazenda Marambaia, de
propriedade de Lourenço e do sobrinho Guilherme.
113
Graciano possuía um sítio de dez alqueires de terra
com casa, onde moravam. Na gleba, cultivava vinte mil pés
de café, trabalho realizado com a ajuda dos filhos e de dois
peões contratados. Paulista de antiga estirpe era de natureza
severa, autoritário, opiniático, chefe de família de estilo
patriarcal. Zelava principalmente pela honra e pelo bom
nome da família. Jamais permitiria algum deslize no âmbito
moral.
A jovem Dalva era prima de Guilherme, marido de
Janice, e de natureza ambiciosa como ele. Após concluir os
estudos num colégio em Tupã, pretendia arrumar um
trabalho e ficar morando na cidade. Seu pai não permitiu e
por sua ordem, mesmo contra gosto, voltou para casa. De
temperamento irrequieto e voluntarioso, não se adaptou
com o trabalho doméstico, nem com a vida pacata do sitio.
Vivia às turras com a mãe. Então, se o pai permitisse, se
dispôs a ir trabalhar nalguma loja ou farmácia da vila.
Em férias escolares conheceu Adauto, filho do
comerciante Vital Gaudêncio da Silva. Nos encontros à
tarde, na roda de amigos, ele mostrava-se atencioso e
solícito com Dalva. A amizade logo passou a namoro firme
e promessa de casamento. Adauto estudava na capital do
Estado.Terminaria o curso no final de ano.Formado, com o
diploma de engenheiro civil na mão, iriam marcar a data do
casamento, que devia ser em breve. Diziam-se apaixonados.
Certo dia, em que a família almoçava Dalva arriscou
falar com o pai sobre o emprego.
– Peço permissão ao senhor, meu pai, para trabalhar
na loja de tecidos do senhor Vital Gaudêncio, pai do meu
noivo, que está precisando de balconistas.
– Em princípio a idéia não me agrada. Não gosto ver
minha filha trabalhando fora; preciso verificar as condições
e o ambiente onde você vai trabalhar, conversar com o dono
114
da loja, pessoa que já conhecemos e fazer certas
recomendações – comentou Graciano.
– Então o senhor vai me deixar trabalhar fora? –
perguntou Dalva, entre alegre e esperançosa.
– Calma, ainda vou resolver – respondeu o pai.
À tarde Graciano foi conversar com Vital. Tendo se
entendido nos detalhes mais importantes, o pai prometeu
mandar a filha para o emprego no outro dia cedo.
Dalva era uma moça inteligente e esperta, logo se
adaptou ao trabalho e era uma funcionária muito eficiente.
No contato diário entre patrão e empregada Vital
apaixonou-se perdidamente pela moça, mesmo sabendo que
ela era namorada e prometida de seu filho Adauto.
Certa vez, estando ela e Vital lado a lado, a mão
dele roçou de leve na sua. Nesse momento os olhos de
ambos se encontraram e ele lera nos olhos verdes da moça
tudo quanto desejava saber. Ela retirou a mão, desviou o
olhar, mas ficou toda perturbada, o rosto afogueado, os
lábios trêmulos. Impulsivamente despertou nele o desejo
libidinoso de possuí-la, sem medir conseqüências.
Que iria acontecer agora? Seus sentimentos para
com a moça eram de tal natureza que ele já achava difícil
escondê-los aos olhos dos outros. Estava perdidamente
apaixonado. O negócio estava ficando perigoso. Podia dar
complicações com sua esposa, com seu filho Adauto e com
o pai da moça.
Persuadiu-se que essa ansiedade que sentia na alma,
nos nervos, deixava-o desorientado. Gostava de Dalva,
necessitava de sua presença e, quando a tinha perto de si, a
vontade de tocá-la, de abraçá-la, de beijá-la era tão forte
que chegava quase a doer fisicamente.
Vital queria a moça, namorava-a com olhos
famintos. Disso ele tinha certeza, e quanto ao resto? Mas o
que era o resto? Possuí-la? Descobrir que ela o queria? Não
115
podia esperar que Dalva pudesse levar muito longe aquele
interesse por ele, um homem mais velho, casado e ainda por
cúmulo, pai do seu noivo.
Mais de uma vez surpreendera a moça a olhá-lo dum
modo estranho, que não deixava dúvida. Conhecedor da
arte da sedução, Vital insinua-se a ela, procura atraí-la com
belas palavras, enche-a de atenções e privilégios no
ambiente de trabalho. Assedia-a constantemente. Certa vez,
no final do expediente, quando todas as funcionárias já
tinham ido embora, a moça fechou o caixa, em seguida
dirigiu-se apressadamente ao lavabo, que ficava ao lado do
seu escritório.
Ele seguiu-a numa insensata esperança. Entrou no
vestíbulo. Lá estava ela a olhar-se no espelho retocando a
maquiagem, correu para ela, agarrou-a pelos ombros, fê-la
dar meia-volta, puxou-a contra o peito e beijou-a com furor.
Sua boca sugou como uma ventosa os lábios da moça, que
no primeiro momento ficou como que paralisada, o corpo
retesado numa instintiva atitude de defesa.
Em seguida, porém, ele sentiu que os dedos dela
entravam em seus cabelos, numa carícia desordenada, e que
aquele corpo quente, terno e palpitante não apenas se
entregava, mas também procurava o seu. Pôs-se a beijar-lhe
as faces, a testa, os olhos, numa pressa gulosa. A boca da
moça então tomou a iniciativa, colou-se avidamente à sua, o
que o deixou desatinado. Suas mãos começaram a percorrer
o corpo dela, numa ânsia cega e dilaceradora de posse e
desejo.
Sentindo, porém, que ela desfalecia nos seus
braços, a cabeça atirada para trás, os olhos semicerrados,
um débil gemido a escapar-lhe da boca entreaberta, teve de
enlaçar-lhe a cintura para que ela não caísse. Ergueu-a nos
braços e levou ao seu escritório, deitando-a no grande sofá.
116
Esperou ela se recobrar do desmaio, e com toda a paixão
contida a possuiu. Tudo fora relativamente rápido.
Ela relutara muito, defendera-se durante um tempo,
mas ele a subjugara à força de seus músculos e beijos
ardentes. Depois do fato consumado, Dalva fora acometida
de uma crise de choro, de arrependimento. Ele procurou
consolá-la com beijos e palavras de carinho, até que ela
ficou mais calma. Depois ficaram deitados no sofá, com os
corpos enlaçados, peito contra o peito, ventre contra o
ventre, quietos, mudos, num delicioso torpor.
Sobressaltada com o adiantado da hora, Dalva
levantou-se do sofá, compôs a roupa, calçou o sapato e
penteou o cabelo. Mais tranqüila, pegou a bolsa com a
maquiagem e aproximou-se da porta.
– Por favor, deixe-me ir agora, sim!
Em resposta, ele a fez sentar-se sobre seus joelhos,
beijou-lhe a boca com uma ternura arrependida, que pouco
a pouco se foi transformando em desejo, fazendo com que
suas mãos começassem a passear pelo corpo da moça.
Queria-a novamente.
– Vamos parar com isso, agora! O que estamos
fazendo é errado, é pecaminoso. Isto tudo é uma loucura.
Eu o queria, sim, mas isso é abominável.
– Queres então terminar com tudo? – perguntou
estacando furioso diante dela – eu não permitirei. Não
quero, pois não consigo mais viver sem você!
– Meus pais me esperam em casa. Estão estranhando
o meu comportamento, estou chegando muito tarde do
emprego. Meu pai me avisou que se eu estiver fazendo algo
errado ele me mata.
– Então vá! É melhor você ir embora agora, antes
que teu pai apareça a tua procura – resolveu ele.
O relógio cuco de parede bateu a última badalada
das nove horas. Vital estava zonzo, perturbado, pôs o
117
chapéu na cabeça, abriu a porta do gabinete e saiu. Parou
no caminho, indeciso. Não seria melhor avisar o pai que ela
saíra mais tarde da loja, porque fizera serão para marcar
mercadorias? Deu de ombros, ela que se entenda com ele.
Fechou a porta da loja e começou a andar, as mãos
nos bolsos, o cigarro pendente dos lábios. Era uma noite
clara, grilos trilavam, estrelas luziam, cachorros latiam em
casas longínquas, sapos coaxavam na lagoa próxima.
Sentia ainda nos lábios a pressão dos lábios dela, e
nas narinas o perfume dos seus cabelos. Seu corpo inteiro
ainda latejava de desejo, o coração descompassado. Ela me
ama... Ela me deseja... Ela é minha... É só ter um pouco de
paciência. O resto não importa, o mundo que se dane.
O frescor da brisa noturna e o silêncio da rua
deserta contribuíam para essa impressão de irrealidade,
sentia-se aéreo e trêmulo, com um vácuo na cabeça.
Pensava naquela moça de dezoito anos que lhe entregou a
virgindade, sentia remorsos. Sentia pena de Dalva, sim,
pena, porque para ela aquele episódio representara
sofrimento. Não fora só um dilaceramento físico, mas
também psicológico.
Caminhando a esmo pela rua encontrou Amadeu da
Rocha Mendes, comerciante, um amigo fiel, em quem
depositava total confiança. Desabafou com ele, contou-lhe
todo seu desatino.
– Então você já possuiu a moça?- quis saber o
Amadeu.
– Ainda agorinha mesmo que aconteceu tudo –
respondeu eufórico Vital.
– Desista, não a procure mais, enquanto é tempo.
– Agora é tarde, estou loucamente apaixonado.
– Já pensou em tudo que pode acontecer?
– Já pensei muito.
118
– E está disposto a agüentar todas as conseqüências,
inclusive a vingança do pai? Estou lhe prevenindo; pense
no seu filho que é noivo dela. Qual será sua reação quando
souber do seu procedimento escuso?
– Espero que nunca fique sabendo. Por outra, sou
maior de idade e meu filho não é nenhuma criança, é um
homem adulto, vai compreender.
– Então lembre-se da tua mulher dona Francisca.
– Meu amigo, você está fazendo uma tormenta num
copo d‟água, por ora, não aconteceu nenhuma tragédia.
– Tem certeza que não há perigo nenhum?
– Pois que haja! Se houver, responderei por ele.
– Puxa! Então a coisa já está séria demais.
Vital admitiu que estava apaixonado. Não adiantava
negar. Por alguns momentos ficou apreensivo, temendo que
houvesse algum mexerico na cidade em torno da sua
relação com Dalva, fato que ocultava no maior sigilo.
– Quero evitar falatório, talvez uma tragédia.
– Desista dessa loucura que não haverá desgraça.
– Mesmo que eu queira, não vou conseguir esquecer
a minha grande paixão pela Dalva.
– Faça o possível, por você e por ela. Esqueça-a.
O relógio bateu a última badalada da meia noite.
Francisca sua mulher, já estava dormindo. A casa estava
silenciosa. Vital sabia que não conseguiria dormir e ali
estava a fumar, inquieto, com um sentimento de
arrependimento e de irritação que vinha do desejo
insatisfeito.
Aonde iria ele parar com aquela obsessão pela
moça? Conhecia-se suficientemente bem para saber que
não descansaria enquanto não a possuísse novamente e que,
mesmo depois, seu apetite por ela não ficaria saciado, pois
haveria de querer tê-la mais vezes, muitas vezes. Até
quando? Até quando?...
119
Naquela tarde de domingo, Vital viu Dalva passear
com o filho Adauto, que veio da capital do Estado visitálos, aproveitando um feriado prolongado, eles iam de mãos
dadas, pertinho um do outro, conversando e rindo; naquele
momento sentiu um ciúme violento, na forma de uma súbita
sensação de desfalecimento, dum choque fisicamente
doloroso. Sentiu-se logrado, insultado, feria-lhe o orgulho
de homem. Ela o estava traindo.
Não foi à loja no dia seguinte, pois seu estado de
espírito oscilou, entre uma melancolia depressiva e uma
irritação que o deixava impaciente com tudo e com todos.
Já não pensava mais em deixá-la em paz, conforme tinha
prometido a si mesmo. O que queria agora era tornar a vêla, tê-la nos seus braços. Esse desejo estava tornando-se
uma idéia fixa, uma espécie de doença crônica.
Pensou no filho Adauto e na esposa, com um
sentimento de culpa. Eles não mereciam aquilo. Pensou nas
conseqüências que aquela aventura poderia ter; não sabia
com certeza, mas sentia que agora era tarde demais para
recuar, mesmo que quisesse. Sabia que sua vida não corria
perigo imediato, mas a possibilidade de ser descoberto pelo
pai dela, naquela situação, causava-lhe um grande temor.
Detestava a idéia de ver-se envolvido num escândalo.
Pensava com horror no ridículo de ser pilhado com a moça.
Havia momentos em que ele pensava apreensivo, no
futuro. Não queria perder a esposa Francisca e era
insuportável a idéia de enfrentar o filho Adauto. Um dia em
que Dalva veio mais cedo ao trabalho na loja, Vital
chamou-a ao escritório. Enquanto ele, alvoroçado, fechava
a porta à chave, ela se sentava no sofá, constrangida. E
quando a beijou, seus lábios permaneceram frios, inertes.
– Que é que você tem? – quis saber Vital. Estava
enfadada dele? Havia outro? Entregara-se ao Adauto?
120
Tomando-a nos braços, sacudiu-a com violência.
Dalva olhava-o com os olhos cheios de lágrimas. Houve um
silêncio de alguns segundos, ao cabo do qual Dalva se
levantou do sofá, aproximou-se, fitou nele os olhos
alarmados e disse num ímpeto de choro:
– Estou grávida, grávida! – disse aos soluços.
– Grávida? – repetiu ele. – não é possível. Como é
que você sabe?
Sem coragem de encará-lo, os olhos postos no chão,
contou que sentia tonturas, enjôos, e que já fazia quarenta
dias que não menstruava.
– Santo Deus – balbuciou ele – isso é terrível.
– E agora – soluçava ela – e agora, que vai ser de
mim? Que fará meu pai quando souber? Com certeza ele
vai me matar.
Vital, por longos momentos ficou imóvel e calado,
enquanto Dalva continuava a chorar. Pensava no que podia
acontecer se as suspeitas da moça se confirmassem. Seria o
escândalo, o ridículo, seu nome arrastado na lama. Sem
pensar na reação do pai dela, que era um homem duro,
preconceituoso e implacável. Sua vida corria perigo.
Acercou-se dela, sentou perto e pôs-se a acariciá-la,
passando a mão, de leve, no cabelo e no rosto.
– Tenha calma – pediu – não desespere, daremos um
jeito. Agora o melhor a fazer é você sair do emprego, e não
nos vermos mais. Conheço um médico que dará uma
solução nesse problema. Darei o dinheiro para às custas.
Dalva levantou para ele a face desfigurada pelo
pranto. Tremia, totalmente descontrolada.
– Eu prefiro morrer a fazer o aborto.
Vital ergueu-se, começou a caminhar de um lado
para o outro, nervoso.
– Alguém mais sabe disso além de nós dois?
Dalva sacudiu a cabeça negativamente.
121
Vital pensava numa saída estratégica. Se ela estava
grávida, teriam ainda no mínimo três meses para agir, antes
que começasse a aparecer sinais externos do seu estado.
Tinham que recorrer ao aborto sem perda de tempo, ao que
ela se negava. Como tudo aquilo era sórdido, estúpido!
– E se Dalva casasse com seu filho Adauto? Eles
são noivos. Se casassem antes que se revelasse o estado da
moça, a honra dela ficaria salvaguardada. Adauto a ama de
verdade e não teria coragem de abandoná-la mesmo depois
de descobrir a verdade. Sim, o casamento seria uma solução
adequada para o caso. Depois ele podia ajudar o filho a
instalar um escritório e a residência em outra cidade, pois,
no final do ano Adauto estaria recebendo seu diploma de
engenheiro civil.
– Com discrição e habilidade tudo vai se arranjar,
sem escândalo – raciocinava – com o pensamento voltado
para a melhor maneira de solucionar o problema. Ao cabo
dessa longa e minuciosa reflexão Vital soltou um suspiro de
pesar. Só de pensar nessa saída, sentiu que o sangue lhe
subia à cabeça e o coração se apertava.
Como era capaz de pensar numa coisa tão torpe, tão
baixa? Enganar o próprio filho? A possibilidade daquele
casamento lhe dava um sentimento de culpa, de
arrependimento. Céus, como é que tenho coragem de
maquinar uma coisa destas? No entanto, era uma solução...
Sim, e a criança? Mesmo que casassem logo, poderia
Adauto acreditar que era o pai?
No entanto, por mais brutal que parecesse, a
solução mais prática e mais rápida era o aborto. Mas como
Dalva se justificaria perante os pais? Que desculpa daria a
eles? Viajar para outra cidade a fim de fazer a interrupção
da gravidez era impossível sem contar-lhes tudo, sem omitir
nada. Que reação teria o pai? Era de caráter violento, com
certeza iria limpar a honra com sangue.
122
A moça saiu do emprego da loja, com a desculpa de
ter encontrado uma melhor remuneração, como vendedora,
no armazém varejista de secos e molhados, ferragens e
defensivos agrícolas, pertencente à Amadeu da Rocha
Mendes, amigo e confidente de Vital.
Já haviam decorridos dois meses que Dalva
trabalhava no armazém, mas algo não estava bem, ela
estava deprimida, chorando pelos cantos. Os pais
desconfiavam de que algo grave a atormentava.
– O que você tem filha? Porque vive triste? Ouço-a
chorando à noite na cama. Se você está aprontando alguma
coisa errada de que possa se envergonhar, vai se ver
comigo, ouviu? – ameaçou o pai.
– Não tenho nada, pai, fique sossegado.
Naquela manhã, como em todos os outros dias
Dalva levantou cedo, não quis tomar café nem comer nada,
estava pálida, enjoada, vomitando. A mãe Ana ficou
preocupada O sexto sentido feminino alertou-a da
possibilidade de Dalva estar grávida.
– Filha! Você se entregou ao teu noivo? Fale a
verdade à sua mãe. Se for isso que aconteceu devemos
imediatamente tomar as providências, apressar o
casamento. Devo falar com teu pai. Confessa, diga alguma
coisa, filha!
– Não aconteceu nada, mãe, juro! Apenas estou com
dor de cabeça. Deixem-me em paz. Já vou indo trabalhar.
Por causa da desconfiança da mãe, que tinha
fundamento, Dalva estava desesperada, perdida, sem saber
o que fazer, pois tinha um verdadeiro pavor do pai. Naquele
dia estava desatenta no trabalho, apática, andava pelo
armazém como sonâmbula. Num certo momento, dirigiu-se
para os fundos do armazém, pegou a escada, encostou-a na
prateleira e do alto apanhou uma lata pequena de formicida.
123
Escondeu-a no bolso do uniforme. Em seguida
dirigiu-se à casa da gerente e pediu um copo d‟água.
Afastou-se, e num canto escondido, despejou o conteúdo da
lata no copo. Misturou com o dedo e tomou o veneno todo
num só gole. Dentro de instantes começou a gritar de dor e
contorcer-se segurando o estômago. Tremores violentos
sacudiam seu corpo.
Não eram ainda quatro horas da tarde, quando esse
fato terrível aconteceu no interior do armazém do Amadeu.
Havia gritos, correria e choro desesperado. Ninguém sabia
o que realmente tinha acontecido. Os balconistas da loja
não sabiam o que fazer para socorrer Dalva, pois não havia
médico nem hospital na vila. Chamaram o farmacêutico,
mas esse nada pôde fazer nessa circunstância.
Uma longa agonia seguiu-se então. Dalva gemendo
de dor, com a boca, a garganta, o esôfago, o estômago
corroídos pelo veneno, um vômito sanguinolento com
pedaços de mucosa a escorrer-lhe dos lábios queimados.
Sentia dor dilacerante, ânsia com violentos espasmos, a
respiração rouca e crepitante dos agonizantes. Nos últimos
estertores, tombou no chão, os olhos exorbitados e vítreos,
o rosto lívido contorcido numa expressão de dor violenta,
os lábios e o queixo queimados pelo veneno.
Estava morta. Sua agonia durou aproximadamente
duas horas.
Os pais, a sua tia Perpétua, seus primos Guilherme e
Adelaide, bem como outros parentes da moça, foram
avisados. A mãe acorreu de imediato, mas desolada não
agüentou o choque e caiu desmaiada, foi socorrida pela
cunhada Perpétua e levada para sua casa. Guilherme e
Amadeu, o proprietário do armazém, providenciaram o
enterro, pois o pai dela, Graciano, não compareceu.
Levaram o corpo da infeliz vítima da
inconseqüência humana, para a capela do cemitério local,
124
onde foi velado. O enterro foi logo de manhã acompanhado
por um pequeno grupo de parentes e pessoas amigas.
Pairava no ar um clima de tristeza e revolta. O mistério
sobre o suicídio perdurava, ninguém sabia o que levou a
moça a esse ato tresloucado. Especulava-se muito.
Amadeu não deixou de comunicar a infausta
ocorrência ao seu amigo Vital Gaudêncio da Silva, que não
compareceu ao velório da sua amada, desapareceu da vila
por um longo tempo. Esperou a poeira assentar sobre a
tragédia pela qual era responsável. Adauto o noivo, quando
soube da fatalidade ficou inconformado. Ele amava Dalva.
O pai de Dalva não veio ver a filha suicida e
ninguém o viu no enterro. Para afastar-se da morta, do
remorso que o corroia, desesperado pela crueldade com que
a tratava, encilhou um cavalo e nessa noite fatídica saiu a
correr, alucinado, pelos pastos com medo de enlouquecer.
Esporeava o animal para que corresse cada vez
mais, numa carreira doida. O bicho espumava pelas ventas
e corria enlouquecido, quando pisou numa pijuca, tronco de
árvore podre. Ao ouvir o estrondo da casca apodrecida,
assustou-se, empinou e derrubou Graciano da montaria.
O homem ao cair ficou com a perna direita presa no
estribo. O cavalo galopou desnorteado pelos pastos por
muitas horas arrastando o cavaleiro. Ao passar em cima
dum formigueiro de saúvas, que se estendia por intrincados
túneis subterrâneos, que são verdadeiras crateras, o
formigueiro afundou, e a pata traseira do cavalo caiu dentro
do buraco; ao tentar arrancá-la desvencilhou do estribo a
perna do homem, que rolou para dentro da toca das
formigas, já agonizante.
Ao cair da noite, o cavalo voltou para casa, sozinho,
veio correndo, cansado, escorrendo suor do pêlo do corpo.
Ao notarem a ausência de Graciano, os filhos ficaram
125
alarmados, e imediatamente foram procurá-lo. Vasculharam
minuciosamente os pastos, a mata, o cafezal e o rio.
Após a demorada busca, encontraram apenas o
esqueleto dentro do formigueiro onde tinha caído. As
formigas devoraram o corpo do pai de Dalva. Foi o final
desse doloroso drama de luxúria e intransigência humana.
***
Mais uma tragédia que se consumou, no rolar da
roda da vida; mas essa é apenas a continuidade, outras
virão, porque a vida não pára e os seres humanos incautos
e inconseqüentes as provocam. Pessoas de características
peculiares mesmo sem intenção, interferem na vida de
outros personagens.
Acássio Bezerra e o irmão Ventura tiraram uns dias
de folga do garimpo de ouro no Rio Madeira, próximo à
vila de Abunã, onde garimpavam, para visitar os pais em
Porto Velho.Iam aproveitar o tempo para pescar no Rio
Madeira, nas proximidades de aldeia Tinguá, distante vinte
quilômetros da cidade, rio abaixo. Alugaram uma canoa,
pegaram os apetrechos de pesca e desceram o rio, até o
local onde achavam houvesse fartura de peixes.
Envolvidos com a pescaria não perceberam a rápida
mudança do tempo, própria do clima tropical. O vento forte
que soprava do norte levava a canoa rio abaixo, apesar dos
esforços de ambos, remando contra a correnteza.
O grito de Acássio chamando por socorro perdeu-se
no ruído da tempestade, que se desencadeava com todo
fragor; os relâmpagos e estampidos do trovão sucediam-se
quase sem intervalo; torrentes de chuva caíam com ruído
atordoante sobre as rochas; o estrépito das ondas
aumentava, e tudo se fundia num caos grandioso, porém
terrífico.
126
O céu pardacento, carregado de nuvens plúmbeas,
como que se abaixava para afogar a terra. Nuvens que
pendiam ameaçadoras a poucos palmos da água. O vento
morno e pegajoso varria as folhas soltas e sacudia com
violência as árvores raquíticas que cresciam por entre as
pedras dos rochedos da margem. Rolava a areia branca da
praia fazendo montes alinhados.
Quanto tempo ficaram eles assim expostos à chuva,
lutando, tentando levar o bote até a margem, não o
saberiam dizer. A tormenta se afastou devagar; o ruído do
trovão perdeu-se ao longe; as nuvens se dissiparam, os raios
dourados do sol iluminaram a superfície pacificada do rio.
O sol saiu, arrancando do solo véus retorcidos de
fumaça, fazendo as folhas das árvores tremular e lançar de
si prismas de brilhantes e dando ao rio o aspecto de uma
enorme serpente de ouro rolando ribanceira abaixo.
Depois, esticando-se de um lado a outro da abóbada
celeste, um duplo arco-íris apareceu, perfeito em toda sua
extensão, tão rico em colorido sobre o fundo azul escuro
das nuvens, que teria deixado pálida e insignificante
qualquer outra realidade.
Os irmãos Acássio e Ventura conseguiram trazer o
bote até a margem. Amarraram-no com corda a uma árvore.
Encharcados pela chuva, os dois homens procuraram a
direita e a esquerda o caminho que os levaria à aldeia
próxima. Porém, viram perdendo-se na distância, a trilha
que buscavam.
Logo adiante, serpeava um caminho irregular, pelo
meio da mata, acidentado pelas chuvas e pelas patas das
mulas carregadas com cestos de bambu cheios de raiz de
mandioca, atravessados no lombo da alimária que por ali
passava, rumo à aldeia Tinguá. Era um povoado misto, de
descendentes de índios Caripuna e antigos seringueiros.
127
Abrigaram-se numa palhoça indígena, onde secaram
a roupa e se alimentaram com raiz de mandioca cozida e
carne de anta assada no espeto, fornecida pelos nativos. Os
visitantes estavam com sorte, pois à noite haveria festa com
forró na aldeia. Os habitantes iam comemorar a boa
colheita do milho, de tradição indígena. O terreiro
destinado às danças, apresentava-se seco e aplainado. Não
ia demorar a entardecer e o povo começou a chegar.
Primeiro os meninos adolescentes, curiosos, depois
os homens, as mulheres carregando ao colo as crianças de
peito, e junto a elas o resto da criançada da povoação com
seus cachorros magros, e atrás, de bengala, devagarinho, os
velhos. Vinham todos assistir às danças.
O velho Chico Seresteiro saiu de seu rancho
trazendo a velha rabeca e quando ele a tocava, de leve, ela
sorria, gemia, soluçava ao roçar o arco delicadamente como
pétalas de rosas caindo, ao tocar o chão. Era aquela beleza!
O caboclo Joaquim encarregava-se da sanfona, que
alardeava a batucada pelo terreiro e pelo sertão adentro.
E havia sempre alguém à mão para ocupar-se do
pandeiro e do triângulo, que davam o ritmo ao forró, ao
samba e ao baião. O baile ia solto, as caboclas na maior
animação rebolavam os quadris, os pares acompanhavam o
remelexo. A alegria era geral, as crianças e até os velhos
meio estropiados, se soltavam pelo salão de terra batida.
No final do baile, quase o dia amanhecendo, a
sanfona começou a tocar uma música lenta. Acássio pegou
na mão da linda cabocla Diadora, que o enfeitiçara com a
sua beleza morena, envolveu-lhe a cintura com o braço,
puxando-a para junto de si. Ele era um excelente dançarino.
Produzia na moça uma sensação extraordinária estar
assim em contato com ele, sentir-lhe os músculos do peito e
das coxas, absorver-lhe o calor do corpo. Isso era excitante;
as batidas do seu pulso se haviam acelerado, e ela notou
128
que ele o percebera pelo jeito como a fazia girar mais
depressa, apertando-a ainda mais contra si, encostando o
rosto no cabelo dela.
Terminado o baile Acásio acompanhou a jovem até
a cabana dos pais dela. Era uma choupana simples feita de
pau-a-pique, coberta de folhas de palmeira. Despediram-se
com um abraço e beijos no rosto. Ele tentou beijá-la na
boca, mas ela se esquivou.
Nos dias seguintes todos notaram na aldeia a
mudança na fisionomia da moça. Era como se vivesse em
eterna primavera; pois voavam andorinhas de felicidade em
sua alma. Floria e borbulhava em vitalidade e alegria. Seus
olhos negros, oblíquos, ganharam fulgor, às vezes, ficavam
tristes e melancólicos, outras vezes sonhadores.
Naquela semana Diadora foi para a cidade de Porto
Velho, onde eventualmente trabalhava como doméstica.
Caminhando pela rua, pensativa, percebeu que naqueles
poucos dias houve uma grande mudança no seu coração.
Apaixonara-se por Acássio.
Antes, semanas atrás, ontem ainda, andando pelas
ruas da cidade não encontrava nelas nada de original. Via as
pessoas apressadas caminharem pelas ruas atulhadas de
gente, automóveis circularem pela cidade buzinando nas
esquinas, os donos de lojas recebendo seus fregueses com
sorrisos. Para ela tudo era indiferente Nada a interessava.
Mas agora lhe veio uma nova visão do mundo,
começou a enxergar a realidade da vida e a sofrer junto.
Sentiu o indivíduo maltrapilho pedir socorro em silêncio,
lançando olhares desesperados; igual aquele cavalo com a
perna quebrada. Em cada mulher pobre via uma lavadeira
cujas mãos, carcomidas pelo sabão, alimentavam a família
à beira da miséria e da fome. Cada criança miserável
parecia-lhe já destinada, à passar o dia, remexendo nas latas
de lixo a procura de sobra de alimento.
129
E não só as pessoas a interessavam. Lastimava o
cansaço do cavalo que puxava as pesadas carroças, e a dor
que sentiam nos pescoços esfolados pelo arreame, as
chicotadas do condutor que batia sem piedade. Comovia-se
com o medo do cão que andava pela rua e uivava baixinho,
pois tinha perdido o dono. Com o desespero da esquálida
cachorra, com as tetas secas, que em vão corria pelos regos
da rua a procura de alimento para si e para os filhotes.
Diadora começou a sentir pena de todos esses seres.
No seu coração selvagem, igual a um diamante bruto,
aflorou um sentimento nobre, o da compaixão pelas
criaturas que sofrem, despertou para o mundo em volta,
porque começou a amar. E o amor opera milagres.
Surpresa consigo mesma, começou a admirar o pôr do sol,
a ouvir o murmúrio da cascata, o canto dos pássaros, o
desabrochar das flores do campo e o cintilar das estrelas nas
noites enluaradas, via e sentia a beleza das coisas, porque
seu coração estava feliz.
Naquela noite do forró na aldeia apaixonou-se pelo
moço Acássio o qual, de momento, não lhe correspondeu o
afeto. O interesse dele pela moça se extinguiu com o fim do
baile. Ao retornar ao garimpo, absorvido pelo trabalho,
relegou-a a um segundo plano, esquecendo-se dela por
completo. Mas, ela continuou pensando e sonhando com
ele. Em vão esperou a sua visita no final de semana, quando
voltou ao casebre dos pais.
Decidida a conquistá-lo procurou recurso com uma
bruxa. Conhecia a feiticeira índia Aragana que fazia
milagres nessa área; encarregou-a de preparar uma
beberagem poderosa a qual faria ele delirar de amor por ela.
Incumbiu-a de procurar um meio seguro e fazê-lo tomar o
chá mágico, invocando o seu nome. Pelo trabalho prometeu
pagar-lhe uma boa quantia em dinheiro.
130
Acertado o preço, Aragana foi para o acampamento
do garimpo “Bom Futuro” em Ariquemes, executar o
feitiço encomendado. Chegando lá perguntou por Acássio
Bezerra.
– Ele vai chegar neste momento, do trabalho –
informou-a o amigo dele.
– Eu espero – disse ela – e sentou-se no banco de
madeira da hospedaria.
Acássio chegou já de banho tomado, e sentou-se à
comprida mesa do jantar. A feiticeira Aragana era uma
mulher de meia-idade, ainda bonita de rosto, mas tinha algo
de maligno no olhar de pupilas escuras; os cabelos negros
longos, ela os prendeu com um lenço colorido. Ao pescoço
trazia uma fita preta da qual pendia um amuleto feito de
caveira de filhote de raposa.
Aragana era descendente de índios Caripuna,
habitantes da região do rio Madeira e seus afluentes desde o
norte da Bolívia. Charmosa e muito amável, levantou-se do
assento e foi conversar com Acassio, assentou-se ao seu
lado, pegou o prato para servir-se da comida variada e farta
posta à mesa.
- Quer que eu o sirva? – ofereceu-se solícita.
- Sim, agradeço, pode servir – respondeu.
Ela foi colocando os diversos alimentos no prato de
Acássio, no final pegou a garrafa de água e encheu o
copo. Sigilosamente misturou a beberagem preparada e
pôs o copo em frente dele. Continuou conversando
animadamente com todos que estavam sentados à mesa.
No final do almoço ela olhou o copo do Acássio. Estava
vazio. Com certeza ele tinha tomado a poção mágica.
Por um infeliz acaso a armação não deu certo e o
tiro saiu pela culatra. Em vez do objeto do amor de Diadora
beber a poção preparada, foi um velho rabugento, de nome
Pracídio que trocou o copo e bebeu o líquido vorazmente.
131
Por coincidência Pracídio morava na aldeia Tinguá e
voltava do garimpo nos finais de semana. Enlouqueceu de
amor o velho bode, com o rosto enrugado como maçã
assada. Sonhava com a jovem, fazia versos louvando-lhe a
beleza e a juventude. Passou a assediá-la em todo canto.
– Oh, minha doce amada – cantava Pracídio fazendo serenata em baixo da sua janela. Ela protestava
com violência, não sabia como se livrar deste tormento.
A cortina estava quase fechada, mas a luz da
lamparina a querosene que ardia dentro da sala dava às
coisas contornos fantásticos. A escuridão descia rápido do
céu. A mulher estava aí parada no canto, com cara de
assombração. Confusa, não sabia como resolver o problema
que sem querer criara. Ela queria o Acássio e viera para ela
um velho teimoso, que não parava de azucriná-la com seus
galanteios.
Até que uma noite quando o homem ensaiava com
sua voz esganiçada, mais uma serenata, a moça soltou o
cachorro Tigre e o açulou a investir no velho Pracídio. O
cantor não esperou para ser despedaçado pelo cão. Fugiu o
mais rápido possível, e nunca mais apareceu.
Nos dias de folga do emprego, Diadora gostava de
trabalhar na horta da sua mãe. Preparou e adubou um novo
canteiro. As sementes de alface jogadas por ela dormem no
segredo da terra, até que uma desperte à vida latente. Então
se espreguiça e lança timidamente para o sol um inofensivo
galhinho.
Regada pelo sereno da manhã ela solta uma folha,
depois outra, mas o mato é mais rápido, começa a invadir o
seu espaço, e pode sufocar a frágil plantinha. É necessário
capinar a erva invasora. A moça busca a enxada e começa a
trabalhar. A saia godê, curta e jovial, balança e toca de leve
as pernas roliças, enquanto a moça maneja a enxada.
132
Diadora, neta do cacique Uinaré, era uma deusa de
beleza rara, de tez bronzeada e olhos oblíquos. O
garimpeiro Acássio, de passagem pela aldeia, parou para
admirá-la, e teve a impressão de que aquele povoado
começava a tornar-se extremamente interessante. Sim,
voltaria para cá mais vezes nos finais de semana. Quem
sabe, a linda moça lhe daria uma chance.
De repente, o azul claro do céu tornara-se escuro,
um vento forte soprou do sul, impeliu nuvens espessas
sobre os campos e fez chover como se o céu se houvesse
rompido, despejando um aguaceiro em cima da terra. O
trovão rolando sobre as serras, um fato inesperado nessa
época do ano, em que tudo esverdeava e floria e o cheiro
doce de magnólia se misturava ao aroma das roseiras, um
odor que pairava sobre a horta e era disperso pelo vento.
A jovem procurou, contrariada, o abrigo de um
velho alpendre; apoiara-se no cabo da enxada e fitava malhumorada os grossos pingos de chuva que caíam.
O temporal também pegou Acássio de surpresa,
enquanto de longe, olhava embevecido para a moça da
horta. Vendo-a recolher-se no alpendre, para lá se dirigiu,
correndo, para fugir da chuva. E foi grande o seu espanto ao
deparar-se com a moça que conhecera no forró da aldeia,
da qual gostara tanto, mas esquecera depois.
Mais perplexa ficou ela, que tinha mandado preparar
o elixir do amor pela feiticeira Aragana, para fazê-lo tomar
às ocultas. A tramóia não alcançou o seu objetivo, mas
Acássio estava ali, ao seu lado. Realmente o destino era
imprevisível, e ela ficaria chocada com o desfecho final.
– É você, Diadora, o meu par predileto do forró da
aldeia Tinguá? Que surpresa agradável! – exclamou ele.
– Acássio, estou muito feliz com esse encontro,
quando você chegou do garimpo? Estava ansiosa para
encontrá-lo – comentou com ingenuidade.
133
Com essas palavras encorajadoras da jovem ele
aproximou-se, pegou a sua mão e puxou-a para junto de si.
Abraçou-a fortemente beijando-a no rosto, tentando os
lábios. Querendo safar-se, a moça encolheu o corpo macio e
esgueirou-se para escapar dos braços fortes do rapaz, mas
foi infeliz no gesto, caiu no chão batido escorregadio, liso
pela chuva que tinha caído do telheiro.
Acássio ao acudi-la caiu também. Envolvidos,
rolaram pela terra molhada até o rio e só pararam quando a
água freou a sua queda. O moço segurava-a forte e ria.
Mostrava os belos dentes brancos, fortes como os de um
jaguar, e soltou um grunhido profundo.
Diadora estava deitada sob ele na água rasa, a blusa
colava-se nela, e ele viu seus belos seios redondos e firmes,
que não se escondiam num soutien, mostrando-se livres e
provocantes na sua perfeição. Sentiu sob as suas mãos sua
carne nua e aí começou então a puxar e apalpar, rasgandolhe a blusa em tiras, arrancando-lhe a saia e o corpete, e
ainda lutando, deitou sob aquele corpo magnífico com todo
peso do seu corpo.
– Seu cachorro! – gritou ela. Me larga! Vá embora,
seu rato! – Batia nele, chutava-o e empurrava-o para longe.
Mas ele não a ouvia. Ele estava como que
embriagado, fazia coisas que jamais teria feito, de que mais
tarde, se envergonharia. Mas agora estava como que
tomado por uma loucura; arquejante e em estertores,
agarrava os seios desnudos dela, beijava-os, trêmulo, e
tentava ao mesmo tempo despi-la completamente e também
despir-se. Isto ele não conseguiu mais. Uma dor intensa
jogou-o para trás, escureceu-lhe os olhos. Sentiu essa dor
lancinante na parte inferior do abdômen. Ele uivava como
um cão ferido, rolando na areia molhada.
– Oh! – ele berrou – meu Deus! Que dor terrível.
134
O pontapé da moça, acertado na região dos genitais,
fora horroroso. Dor alguma é maior. Grito algum rasga
mais o ar do que esse pavoroso desespero. Quase meia hora
ele esteve deitado na areia da margem do rio antes de ser
capaz de pensar claro outra vez e mover-se lentamente.
Apertava com as duas mãos a genitália e batia terrivelmente
os dentes. Lágrimas de dor e ódio escorriam-lhe pela face.
– Essa humilhação eu nunca vou esquecer – gritou
ele com voz rancorosa.
– Pois saiba que a mim ninguém toma com violência
e você tentou me estuprar - disse ela lentamente,
acentuando bem as palavras. - O meu homem eu mesma
escolho, e ele vai receber de mim, no momento certo,
quando eu quiser, tudo espontaneamente, com maior
carinho.
– E por quem você está esperando hein? – gritou ele.
Tem que ser um príncipe? Você é fina demais para um
garimpeiro, não é? Que decepção! – pegou um punhado de
areia molhada e jogou no rosto da moça.
– Um porco permanece sempre um porco imundo –
disse ela – e levantou-se de um salto, deu-lhe um bofetão na
cara, de despedida, e saiu correndo pela estrada. Um minuto
depois já desapareceu atrás das árvores da floresta.
Com essa triste experiência, quando foi quase
estuprada pelo homem que ela pensava amar, Diadora
resolveu esquecer Acássio. Ele não merecia o seu amor, era
um abusado, não respeitava as mulheres. Devia ser
castigado e ela fez isso, ele foi atingido em cheio no seu
amor próprio.
No outro dia à tarde, para esquecer os seus recentes
dissabores, Diadora saiu a galopar no seu cavalo zaino,
quando soou atrás dela o típico trotar de um cavalo a
galope. Um moço apareceu na volta do caminho, acenou-
135
lhe e em poucos minutos estava a seu lado na areia molhada
da margem do rio.
– O que faz aqui, Acássio? Não bastou o castigo que
lhe apliquei? Vá embora, não quero vê-lo nunca mais, você
não sabe respeitar as pessoas, nem seus sentimentos.
– Estou de folga. Eu a vi cavalgar e resolvi
acompanhá-la no passeio. Peço-te, por favor, me perdoa o
acontecido ontem! Estou muito arrependido.
Ela não respondeu, apenas arrancou algumas folhas
da gramínea que crescia na margem do rio, na areia onde
sentava, amassou-a na palma da mão e jogou-a para longe.
Suspirou fundo, estava decepcionada com todos os homens.
Não acreditava em ninguém.
– Por favor, vá embora! Não quero companhia,
quero ficar sozinha. Gosto e prefiro ficar admirando as
águas do rio e o verdor da floresta.
– Pelo que vejo está de mal com a vida, não quer me
perdoar. Então adeus! Talvez algum dia possamos nos
encontrar novamente – comentou Acássio. Voltou a montar
o cavalo e saiu galopando pela trilha da mata.
Para certas naturezas toda a emoção, toda a afeição
perde o seu valor à medida que se lhas manifestam e
sabendo disso, Diadora repelira Acássio com dureza. Ele
teria que pagar o preço do desprezo por sua ousadia. Em
despedida acenou com a mão, lançando-lhe um olhar terno
que despertava o desejo, que nunca seria concedido, desejo
que se tornava mais profundo por ser negado.
Entardecia...
O céu aparecia translúcido entre nuvens azuladas,
vagas sombras escorregavam sobre a terra. Nessa hora os
pirilampos começaram a sair da mata e invadir o céu,
faiscando com sua luz fosforescente. A tarde estava cheia
de sussurros e silenciosa beleza. Da floresta e do brejo
flutuavam aromas, também cheiravam as águas do rio.
136
Os castanheiros centenários, as pacovas e o capim
da margem respiravam com o vento brando que lhes agitava
as folhas. O largo e agora novamente lento Madeira refletia
as estrelas e o grande disco da lua cheia que surgia no
horizonte, cuja luz desmanchava-se nas águas, em claras e
brilhantes manchas douradas.
Diadora desceu para o rio, queria banhar-se nas
águas mornas. Despiu-se e deixou o vestido na margem
sobre a areia e nua mergulhou nas, agora mansas ondas do
rio Madeira. Soltou o longo cabelo que flutuando dentro
d‟água dava à ela a aparência de uma sereia.
Seu vulto magnífico, bronzeado, brilhou por sobre a
transparência da água quando ela se levantou e deixou rolar
sobre o corpo o líquido que pegava na concha das mãos e
massageava o busto, o ventre e as coxas. Parecia que a
deusa das águas estava ali a oferecer o seu corpo escultural
às caricias do espírito das águas.
***
Na hora crepuscular em que a figura nebulosa da
ninfa Diadora usufrui tranqüilamente do contato tépido das
águas do Madeira, não se sabe, se por acaso ou por obra do
destino, outras pessoas entram em cena, correlacionadas
entre si, para viverem a cadeia de eventos dramáticos que a
vida lhes reservou.
Na manhã seguinte, com o céu encoberto pelas
nuvens, ouve-se o reboar longínquo do som rouco dum
motor de avião voando alto, muito acima da densa floresta
mato-grossense. Na aldeia indígena dos Apiacás os
guerreiros reunidos estavam alerta, olhavam para o céu a
procura da presumida aeronave, mas não se via nada.
O monomotor Cessna encontrava-se a 5.000 mil
metros de altura, muito próximo da massa densa de cirroscúmulus, nuvens de chuva cinzento-escuras constituídas de
137
cristais de gelo que começava a envolver o avião e sacudilo como se fosse uma pluma.
Ouviu-se a voz preocupada do comandante Menelau
da Fonseca:
– Estamos perdidos, sem rumo certo, a bússola não
funciona apesar de ter sido testada na última revisão.
Voamos muito acima da camada horizontal de cúmulosestratos que ficam abaixo de 3.000 mil metros. Não consigo
vislumbrar uma abertura entre a camada densa de nuvens,
que iguais a flocos de algodão, estão esparsos pelo céu
bloqueando a perspectiva para orientar-me visualmente.
– Não se preocupem, não fiquem com medo, pois
com sorte devo ultrapassar esse empecilho, em segurança.
Espero que algum avião que esteja voando nessa região não
se desvie da rota autorizada e não venha colidir com nosso
aparelho, o que seria um desastre fatal.
– E o rádio de bordo está funcionando, senhor
comandante? – perguntou aflito, um dos três passageiros.
– Infelizmente não, senhor. Há muita interferência
no ar por causa da tempestade que se avizinha, e não
consigo comunicar-me com a torre de controle de Vilhena.
Depois de várias horas de vôo incerto, o avião
começou a baixar por entre as nuvens pesadas. O piloto era
um navegador experiente, contornou as nuvens carregadas
de granizo e aproveitou uma clareira que se abriu nos
estratos-cúmulos, permitindo-lhe atravessá-los com
segurança.
Restabelecida a comunicação por rádio de bordo, o
comandante pediu a torre de controle a autorização para
aterrissagem no aeroporto de Vilhena. O Cessna pôs-se a
baixar, voando em grandes círculos. À medida que se
aproximavam do chão e o piloto pousava o avião na pista,
os passageiros puderam ver a cidade de Vilhena. Sede de
município situa-se próximo à divisa Oeste de Mato Grosso,
138
à beira da estrada de rodagem 364, que liga Cuiabá a Porto
Velho, capital do Estado de Rondônia.
Os viajantes eram o botânico Ronaldo Lemos
Queiroz, o etnólogo Hipólito Bueno da Costa e o médico
Dr. Juventino Pedrosa Junior, estudioso de doenças
tropicais. Os três profissionais eram recém-formados pela
Universidade Federal de São Paulo.
Não estava nos seus planos uma viagem em etapas,
o destino de todos era a cidade de Porto Velho, onde deveriam iniciar as pesquisas das quais foram incumbidos. Após
desatar os cintos de segurança, os passageiros desceram do
avião, refazendo-se do susto, mas felizes por estarem salvos
e em terra firme. Curiosos olharam em volta.
Desconheciam o lugar onde o comandante Menelau
aterrissou com a pequena aeronave em emergência.
Apresentou-se lhes uma paisagem empolgante, de extensos
cerrados cobertos de vegetação rasteira e árvores baixas
retorcidas, de casca grossa e suberosa, espaçadas, forradas
com um baixo tapete de gramíneas onde pastava em grupos
um grande rebanho de gado.
Próximo a Vilhena nasce o rio Roosevelt. As
nascentes de águas tranqüilas deslizam em linha sinuosa
pelas planícies verdes e cerrados deste município. Ao
invadir as terras do Oeste de Mato Grosso recebe as águas
de diversos tributários. Do lado direito tem como afluente
o rio Capitão Cardoso, o Jacutinga, o Santa Maria, o São
João e muitos igarapé-açus.
À esquerda o rio 14 de abril, o Kermit, do Tiroteio,
o rio Branco, o Panelas, o Madeirinha e diversos igarapés,
ou rios menores. Suas águas juntam-se às do rio Aripuanã
que deságua pela margem direita no rio Madeira, afluente
do Amazonas. Tem um percurso aproximado de 1.000 km.
O rio Roosevelt corre através das florestas da
Reserva Indígena do Roosevelt (tribo de índios Cinta-
139
Larga, da nação Nambikuara), desloca-se ruidoso entre os
desfiladeiros da Serra da Providência, no município de
Aripuanã e, precipitando-se estrondoso segue rugindo, a
carreira doida, chocando-se com violência nas escarpas dos
rochedos que lhe atrapalham o caminho.
Nuvens de cerração cobrem o vale condensando-se
ao longo do rio, dispersando-se na folhagem da floresta. É
selvagem, violento e espantoso o espetáculo que nos
apresenta. O visitante estaca deslumbrado ante as
cachoeiras trovejantes, o rio frenético a esbarrar,
espumando nas margens pedregosas e a correnteza
sibilante, saltando no seu leito acidentado como idéias
desorganizadas de um cérebro desvairado.
Além, muito além deste cenário fantástico, desce a
corrente suave e tranqüila e depois surgem novos saltos e
corredeiras, e o rio espalha-se abrindo os braços para
apertar num amplexo lindas pequenas ilhotas, circundadas
de praias de areias finas, cintilantes aos raios de sol, iguais
às gemas preciosas.
As águas revoltas, lambendo as escarpas da Serra da
Providência arrancam das pedras e expõe à luz do dia grãos
faiscantes de diamantes brutos e pepitas de ouro em
profusão, pois o rio é riquíssimo em pedras preciosas.
Garimpados pelos índios e comercializados com os
intermediários na vila do Espigão do Oeste em Rondônia.
Recentemente o garimpo foi invadido por milhares
de homens, vindos de diversos rincões do país, à cata de
diamantes. Os índios ameaçados e explorados nos seus
direitos, pelos garimpeiros intrusos e pelos atravessadores,
revoltaram-se ocasionando uma grande carnificina. Foram
30 homens massacrados pelos indígenas. Depois desse
incidente desastroso e muito comentado pela imprensa do
país, a mineração de diamantes da Reserva Indígena do Rio
Roosevelt foi interditada pelo Governo Federal.
140
Esse garimpo, como muitos outros, era palco de
violência, roubos e assassinatos, e acidentes com mortes
ocasionadas por desabamento de túneis cavados nas
profundezas das montanhas. Num desses acidentes morreu
soterrado, sem possibilidade de socorro, o garimpeiro
Ventura, irmão mais novo de Acássio Bezerra.
***
Os três passageiros e o piloto do Cessna, após um
descanso de uma hora no aeroporto de Vilhena, e tendo
reabastecido o avião de combustível, resolveram prosseguir
viagem até Porto Velho, o destino declarado no plano de
vôo do Sindacta III. Voltaram a embarcar no avião. O
comandante Menelau taxiou pelo campo de pouso
preparando-se para decolar. Impulsionado o motor a
aeronave subiu sob um céu límpido, no início da tarde,
rumo a Porto Velho. O percurso era de 600 km, três horas
de viagem aproximadamente.
O tempo na região amazônica, de clima equatorial,
muitas vezes nos surpreende. De repente, do nada, surgem
nuvens escuras que cobrem o céu, que minutos antes estava
limpo. Começou a soprar um vento forte que balançava o
pequeno avião como um brinquedo. O piloto tentou desviar
dos cúmulos-nimbo, nuvens de tempestade carregadas de
granizo. Correndo um grande risco, tomou outro rumo.
A vista lá do alto proporcionava uma visão extraordinária sobre o cobertor exuberante da floresta
amazônica, com árvores de até 60 metros de altura. Voaram
durante cinco horas sem direção certa, sem vislumbrar
Porto Velho e nenhum ponto de referência. Estavam
perdidos voando sobre a imensidão da selva, sobrevoando
montanhas, lagos, grandes rios, igarapés e pantanais; surgia
uma ou outra aldeia indígena plantada à margem do rio.
141
Finalmente o piloto avistou um campo de pouso,
num descampado no meio da mata, deu duas voltas
aproximando-se cada vez mais, soltou o trem de
aterrissagem e o avião desceu bruscamente roçando a
barriga nos ramos mais altos das árvores. Aterrissou dando
solavancos, como um grande pássaro ferido, enquanto no
seu interior as bagagens rolavam de um lado para outro. Os
homens atemorizados rezavam pedindo proteção Divina.
Rapidamente os passageiros arrastaram-se para a
porta do aparelho. Aberta, o primeiro a saltar foi o
comandante Menelau, os outros o seguiram.
– Onde estamos exatamente? – quis saber Ronaldo.
– Não tenho a menor idéia – admitiu o piloto –
como vê, estamos rodeados de selva e de pântanos. Não
poderemos sair daqui sem a ajuda dos habitantes locais, se é
que queiram nos auxiliar. Era um lugar remoto, onde
aterrissou o avião Cessna com os quatro ocupantes.
O campo de pouso situava-se na Bolívia a 700 km
distante para o sul das cidades de Guajará-Mirim e de
Abunã, e a 900 km de distância de Porto Velho. Era um
posto avançado do exército boliviano, distante 80 km da
fronteira com o Brasil, situado nas planícies de Chiquitos,
cobertas pela floresta equatorial, alagadiças, onde nasce o
rio Parágua, afluente do lado esquerdo do rio Guaporé.
O posto militar ficava a uma distância de 1.000 km
da capital La Paz, assistido pelas autoridades militares a
cada 15 dias, quando era reabastecido do necessário, como
remédios, armas, munição e roupas. Um antigo rádio de
bateria era o seu meio de comunicação com o comando na
capital. Quando a bateria descarregava não havia nenhum
outro meio de transmitir mensagens.
No meio da floresta virgem, os militares bolivianos
escolheram um lugar seco e desbravaram cinco mil metros
quadrados de terreno; ali construíram as suas moradias,
142
criavam animais domésticos e cultivavam mandioca, milho,
bananas, laranjas, limões e legumes. A terra era muito fértil
e produzia em abundância. Nessa aldeia, os soldados
vigilantes das fronteiras viviam com suas famílias.
Os passageiros do avião foram bem recebidos pelos
soldados. O comandante do destacamento Juan Ariza
surpreso mas atencioso, colocou à disposição dos infelizes e
inesperados hóspedes a acomodação de que dispunha; redes
presas em estacas de madeira, dentro de galpões sem
paredes e cobertos de folhas de palmeira.
Foi-lhes servida a comida pobre de que eles, os
soldados, se alimentavam: carne seca de boi, mandioca
cozida e banana verde frita em gordura de boi. Para beber,
ofereceram-lhes tereré, refresco de folhas de erva-mate,
sorvido com bombilha em cuia de porongo.
Apesar do temor e desconforto, os náufragos da
selva logo começaram a cochilar, estavam cansados, não
tinham dormido nas últimas vinte quatro horas. Tinham
vivido muitas emoções fortes desde o momento em que o
avião de Menelau da Fonseca se perdera na imensidão da
selva amazônica. Não souberam por quanto tempo
dormiram nem quantas cobras, lagartos, ratos, lacraias, e
outros animais passaram em baixo de suas redes.
Quando despertaram do prolongado sono, já
descansados, levantaram das redes e foram conhecer a
aldeia. Encontraram uma grande palhoça redonda com piso
de terra batida. Num dos cantos havia um altar com fetiches
de vodu. Nas estacas, em frente da aldeia, estavam enfiadas
cabeças empalhadas de onça e caititu, caveiras de macaco e
jacaré, mascaras talhadas em madeira, vasilhas de barro
moldadas pelas mulheres e tantos outros amuletos.
Depois de quatro dias de descanso, os brasileiros
acidentados, atendendo ao conselho do alcaide da aldeia,
resolveram continuar a viagem a pé. Juan Ariza forneceu-
143
lhes um barco, quatro índios quíchuas que iriam servir de
guia, alimentos e armas para a caminhada de retorno.
Infelizmente não havia nafta para abastecer o avião, que
forçosamente devia ficar no acampamento aguardando o
possível futuro resgate.
Portanto, não tinham outra opção, foram obrigados
a enfrentar a selva virgem, amedrontadora, caminhando,
penetrando na mata, margeando os rios ou navegando de
barco. Tinham a esperança de alcançar o rio Guaporé que
faz fronteira do Brasil com a Bolívia, poderiam navegar rio
abaixo, no rumo norte, até encontrar a civilização.
O rio Guaporé nasce na Serra dos Parecís, no oeste
do Estado de Mato Grosso, corre na direção noroeste até
atingir a margem direita do rio Mamoré, em Rondônia, na
altura de Rodrigues Alves, onde se juntam as águas dos
dois rios. São seus afluentes pela margem esquerda os rios
Beni e Abunã, e em seqüência as caudalosas águas recebem
o nome de Rio Madeira até a sua foz no Amazonas.
Assim que entraram na mata virgem foram atacados,
ferrados e sugados pelas muriçocas, pernilongos, carrapatos
e miríades de outros insetos vorazes. Estavam cobertos de
insetos da cabeça aos pés; não podendo livrar-se deles,
resignaram-se e decidiram suportá-los.
Os peregrinos avançavam por uma espécie de
vereda apenas marcada na selva, que árvores e arbustos
haviam fechado, mas ainda usada pelos índios e animais
que se dirigiam ao rio a fim de matar a sede. Caminharam
durante mais de uma hora, mas o esforço rendeu pouco, era
impossível adiantar o passo naquele terreno pantanoso.
Vagavam por entre as árvores, sem saber para onde
se dirigiam. Tiveram de atravessar vários charcos com a
água até a cintura. Em um deles, Hipólito pisou em falso e
deu um grito ao perceber que afundava no barro movediço
e eram inúteis seus esforços para sair do lodaçal. Ronaldo e
144
Juventino alcançaram-lhe a ponta de um galho seco de
arbusto que agarrou com as duas mãos, sendo puxado para
terra firme. Caminhar a pé pela selva, suportar um calor de
45°C, úmido e pegajoso, seria uma experiência ímpar,
arriscada e perigosa.
Ao anoitecer a vida aquietava-se, começava baixar o
calor sufocante do dia, era hora de repouso para os animais
da vasta floresta equatorial. A mata era habitada por
miríades de vidas, as mais diversas, de animais ferozes e
cobras venenosas. Formigas enormes cortadeiras - cuja
picada é muito dolorida - saíam dos formigueiros aos
milhares em formação, igual de um exército, subiam e
desciam pelos galhos e troncos das árvores carregando
fardos maiores que elas. Enxames de vaga-lumes saem
junto dos troncos das árvores e se espalham pelo espaço.
À noite a selva acordava, vivia. Sob o céu estrelado
centenas de espécies de animais saiam em busca de
alimento. A noite tropical ficava intensamente povoada de
sons e ruídos, de silvos, de grunhidos do queixada de pêlos
eriçados e presas ameaçadoras, o rugido da onça, o chiado
dos bugios assustados pela proximidade de uma jibóia
enroscada no tronco de uma velha árvore, o coaxar dos
sapos no banhado e o canto das cigarras.
Era um verdadeiro concerto de pássaros e animais,
entremeado pelo sussurro do vento entre as ramagens e
suspiros da selva que enchiam a escuridão. Havia um
ininterrupto murmúrio da natureza, formas sutis de
comunicação entre as espécies. Há uma conexão contínua
entre todos os seres do Universo, entrelaçados por correntes
de energia. Nada existe isoladamente. Era como se pudesse
ouvir a pesada respiração da terra.
Sob a copa das árvores a escuridão era total. O grito
dos macacos, o rosnar das feras, os guizos das cobras
cascavéis e os insetos peçonhentos que se arrastavam pelo
145
chão úmido, tudo isso misturado a funestos piados das
corujas e o bater de asas dos morcegos formava um clima
de terror.
Mas o perigo mais imediato, porém, era o de cair em
um pântano e ser engolido pelo lodo. A umidade empapava
as roupas dos caminhantes, os espinhos picavam sua carne,
insetos e enormes lagartas de cores vistosas revestidas de
pêlos flamejantes arrastavam-se sob as folhas de arbustos,
queimando como fogo a pele,se por descuido roçasse nelas.
Os homens andavam devagar, lutando com raízes e
cipós, evitando charcos, tropeçando em obstáculos
invisíveis, envolvidos pelo rumor constante da mata. Na
vegetação exuberante não havia como se orientar, tudo
parecia igual. As únicas manchas de cores diferentes,
naquele verde interminável, eram as orquídeas e os pássaros
de plumagem colorida, que cruzavam o espaço com seus
vôos fugazes.
A floresta tropical era densa; os cipós enroscavamse de uma árvore para outra, difíceis de serem cortados
porque eram duros como ferro. Luxuriantes tufos de flores
tombavam do copado das palmeiras gigantescas e
insultavam com sua beleza os exaustos e angustiados
passantes.
A barreira complicada das ramagens entrelaçadas
tirava-lhes a energia, e a escuridão era cada vez maior, na
proporção que se aprofundavam no interior da floresta. A
selva não oferecia nenhuma chance para a vida, aprisionava
os intrusos simplesmente. A umidade rachava os troncos
podres e o som dos vegetais na agonia da morte emitia ecos
rascantes. Ouvia-se os passos arrastados e indecisos dos
homens que procuravam encontrar uma passagem sobre a
densa e milenar camada de húmus podre e molhado.
A trilha na mata era invisível. O terreno não passava
de um lodaçal, trançado por ramos e raízes, e a todo o
146
momento os pés dos caminhantes afundavam em uma lama
pegajosa, mistura de folhas podres, insetos, vermes e
sanguessugas. Naquela vegetação luxuriante não era fácil
descobrir uma trilha segura. O grupo avançava quase às
cegas, tateando, enquanto os ruidosos macacos lhes
atiravam projéteis de fezes do alto das árvores.
Seguiam chapinhando em um terreno avermelhado e
mole, ensopado pela chuva e semeado de obstáculos, no
qual podiam, a qualquer momento, dar uma passada em
falso. Havia pântanos traiçoeiros ocultos sob um manto de
folhas flutuantes. Tinham de separar os cipós, que em
alguns locais formavam verdadeiras cortinas, e evitar os
agudos espinhos das cactáceas a enfrentá-los.
Levaram muitos dias movendo-se sem rumo fixo
cada vez mais perdidos e angustiados. Seus esforços
inauditos, vez por outra ilógicos como atos de loucura, que
à vontade de escapar das garras da selva, juntavam-se aos
ruídos da noite que chegava rápida num lúgubre ressoar.
A picada que abriam no meio da selva com esforço
incomum não passava de uma espécie de túnel por onde
eles iam penosamente avançando. Nuvens de insetos
atormentavam-nos, grudavam-se furiosamente sobre a pele
suada dos homens, picavam e sugavam o sangue das
vítimas, como enxames de vampiros.
Era estritamente necessário ficarem atentos a
qualquer barulho, principalmente ao bote traiçoeiro da
gigantesca cobra sucuri enroscada na árvore, ou deslizando
pelo chão da mata, espreitando uma presa qualquer, um
queixada, um veado ou um ser humano; a sucuri envolve a
vitima e após triturar-lhe os ossos por compressão
muscular, engole-a inteira. De acordo com o folclore
caboclo ela pode alcançar até 15 metros de comprimento, e
engolir um boi.
147
Os guias, índios quíchuas, carregavam a canoa nas
costas, dentro levavam as sacolas com a carne seca e bolo
de mandioca, jamais as deixando no chão para proteger dos
gambás e formigas que não davam trégua, invadiam e
comiam todo o alimento que encontravam. Andavam com
os pés descalços, enfrentando o chão perigoso coberto por
folhas podres caídas das árvores, onde se escondiam
aranhas e centopéias peçonhentas. Não podiam enxergar
onde pisavam porque a escuridão cobria tudo. Apenas a luz
da lua cheia se infiltrava entre as folhas dos gigantescos
castanheiros.
Os forasteiros calçavam botas de cano longo, que já
se mostravam desgastadas pela umidade descolando a sola,
que eram amarradas com cipó; mas pelo menos protegiam
suas pernas das picadas de serpentes e escorpiões.
Na floresta, palmeiras, pacovas, cipós, gigantescos
castanheiros, seringueiras, mognos e canjeranas, arbustos e
trepadeiras lançavam-se para cima à procura de luz, em
lampejos de gotas de orvalho que rebrilhavam como contas
de cristal. A selva não deixava que penetrassem nela
facilmente, resistia, interpunha obstáculos vários; cipós
trançados e lianas floridas e rendadas, que os golpes do
machado não causavam nenhuma espécie de dano, além da
escuridão que ficava cada vez maior.
Os três infaustos passageiros, o piloto do Cessna e
os quatro índios quíchua, caminhavam exaustos, com as
roupas molhadas, rasgadas pelos espinhos, sujos e
desgrenhados, empapados de barro e folhas mortas, mas
esperançosos em sair dessa enrascada. Como por um
milagre, ouviram o ribombar de uma cachoeira, sinal certo
que havia um rio próximo. Caminhando na direção e
orientados pelo barulho da água chegaram à margem do
grande rio Guaporé.
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Deslumbrados, olhavam o belo espetáculo da
natureza que se lhes apresentava. No íngreme rochedo da
margem do rio estavam dezenas de araras coloridas,
papagaios, tucanos e outros pássaros, revoando e esperando
a sua vez de comer a argila ferruginosa da barranca. Faziam
isso para repor os minerais que outros alimentos ingeridos
não contém e também para neutralizar as toxinas das frutas
consumidas. Também se utilizavam desse recurso natural
de cura, os macacos, os caititus, as antas, veados e outros
animais da selva. O barulho de gritos, chiados, roncos e
vozes era ensurdecedor.
Os homens ficaram felizes porque agora a viagem
seria mais rápida, mais fácil, menos sofrida. Lançaram a
canoa na água, colocaram os pertences e subiram a bordo.
Remando rio abaixo a viagem prosseguia tranqüila. Mas
não demorou muito, quando ocorreu uma tragédia
inesperada, de conseqüências dramáticas.
Ficou-lhes gravada na mente, a horrível catástrofe
que acabaram de viver. A canoa lotada com as oito pessoas
em retirada foi arrastada pela violência do rio Guaporé nas
proximidades da cachoeira. Balançando para os lados,
estava sendo levada pelas águas revoltas. Os homens
lutavam com os remos contra a correnteza. Retesando os
músculos, conseguiram desviar o bote para perto da
margem do rio.
Ronaldo jogou a corda para laçar um galho
inclinado à beira da água. Conseguiu prender a ponta, mas
no choque violento a canoa virou e os homens foram
arrastados para o torvelinho letal. Nadando e lutando contra
a correnteza, esperava que todos conseguissem se salvar.
Apanhados de surpresa, não acreditaram quando
viram o índio quíchua Aruanã ser tragado pela água
enfurecida, que gesticulando, lutava ainda com os braços
em busca de apoio; ferindo-se nas pontas de pedras afiadas
149
gritava, pedia socorro, mas a onda forte o levou rio abaixo
em direção à cachoeira, que se anunciava próxima, pelo
eco ensurdecedor e o rolar tempestuoso das águas revoltas.
Nada puderam fazer para salvar o homem. Viram-no
descer, arrastado pela força da íngreme e pedregosa queda
d‟água, depois desaparecer no abismo. Ainda alguns
minutos e estaria morto, afogado. Seu cadáver não pode
ser localizado, porque certamente estava preso no fundo do
rio logo abaixo da cachoeira, de águas profundas cheias de
galhos e troncos de árvores levadas pelas enchentes.
Com o balançar das ondas o bote preso no galho da
árvore desvirou-se, e começou a voltear arrastado pela
água, esticando a corda. Os homens nadaram contra a
correnteza, com braçadas fortes e com enorme esforço
enfrentaram as águas que, rolando e rugindo, reclamavam
mais vítimas. Um após o outro conseguiram alcançar e
subir na canoa que se equilibrou. Empregando as energias
conjugadas puxaram a corda espichada, até encostar a
embarcação na margem do rio.
Amarraram-na bem firme. Todos estavam exaustos
e deprimidos, pelo esforço despendido e pela perda de um
dos índios. Resolveram descansar e pernoitar na grande
praia de areia branca e fina.
Ronaldo, dirigindo-se aos companheiros, decidiu:
– Juventino, Hipólito e os índios Raoni e Goiatâ vão
providenciar estacas de bambu e folhas de palmeira para
armarmos a barraca. Enquanto isso, eu vou juntar gravetos
e folhas secas, tentar acender o fogo batendo uma pedra na
outra até conseguir faiscas. Assim feito vou preparar o
jantar. Tãupi, o índio guia, e Menelau vão pescar alguns
peixes para nosso jantar de hoje e desjejum de amanhã.
No curso para pilotos de aviação, o comandante
Menelau aprendeu durante uma palestra, regras básicas para
a sobrevivência na selva nos acidentes aéreos. Seguindo a
150
instrução, improvisou uma vara de pescar com bambu e um
pedaço de arame torcido como anzol, amarrou a uma linha
feita de fibra de cacto, espetou na ponta uma larva gorda de
borboleta, em seguida instalou-se na beira do rio na
esperança de pegar algum peixe para comer.
Não acreditava que algum peixe beliscasse seu
primitivo anzol, e por isso quase caiu de surpresa quando
sentiu um puxão no fio. Depois de muito lutar tirou da água
um pacu de bom tamanho. Durante vários minutos o peixe
se debateu na areia. Menelau limpou o peixe, envolveu em
folhas de bananeira e o assou. Jamais tinham provado algo
tão delicioso, pois todos estavam famintos.
Os outros homens, munidos de facões, entraram na
mata à procura de bambu. Não muito distante encontraram
uma grande moita, cortaram as estacas e arrastaram até a
praia, que naquela hora estava terrivelmente quente. Com a
colaboração de todos o acampamento foi planejado e
construído em pouco tempo.
Era uma cabana de palafitas de bambu, coberta de
folhas de palmeira, de uns dez metros quadrados, nos quais
estenderam as redes de juta para dormir; ao lado, um
caixote de madeira vazio, onde foi colocada uma lamparina
a querosene e outros pertences.
Para o jantar a sopa de peixe fervia borbulhando
numa panela de ferro, suspensa na trempe sobre o fogo, no
fogão improvisado de pedras recolhidas na margem do rio.
Cansados, os homens trataram de deitar e dormir, nas redes
estendidas na palhoça. Ronaldo estava preocupado com o
Juventino que ainda não voltara.
As sombras da noite encobriam o horizonte, ouviase somente o barulho da correnteza agora mansa do rio.
Juventino tinha caminhado na frente e separou-se dos
outros, adentrou na mata e andando sentiu os pés feridos; o
chão da floresta era molhado e fofo, parecia um grosso
151
tapete que afundava sob os pés doloridos; e como estava
muito cansado, sentou-se naquele tapete macio, encostou-se
no tronco de um castanheiro e adormeceu profundamente.
O calor pegajoso, grudava na pele como uma
película incômoda e trazia da selva o silêncio que precede a
tempestade. Como tudo nessa terra surpreendente, surgiu
inesperadamente no céu azul, até momentos atrás límpido,
nuvens escuras carregadas de eletricidade. O vento forte
uivava e agitava as árvores, parecia querer arranca-las do
chão. Um relâmpago seguido de um trovão acordou
Juventino, mas ele só abriu os olhos com muita dificuldade.
As pálpebras pesavam
e desabavam sem que ele
conseguisse firmar a vista. O ar ficava cada vez mais quente
e espesso.
Num momento as comportas do céu se abriram. A
chuva torrencial que caía molhava tudo. Tudo ficava
encharcado e flácido, com um intenso cheiro de terra
exalando odores de vida e de morte. Só havia a fúria da
chuva e dos trovões, quando a tempestade parecia querer
arrancar cada árvore, sacudindo-a com rajadas de vento.
Emitindo silvos animalescos queria arrebatá-las num vôo
alucinado. Cada folha da árvore fazia um esforço supremo
antes de se desprender e voltear no espaço.
Tateando o caminho no escuro, apenas iluminado
pelos clarões dos relâmpagos, assustado e encharcado pela
chuva, Juventino procurou o caminho de volta à praia e ao
acampamento.
Após a borrasca desceu sobre a floresta uma noite
clara, com a amplidão tropical povoada de estrelas onde a
via-láctea parecia tão próxima e solene. A lua refletia a luz
prateada nas águas agora mais calmas, e nas folhas das
árvores que farfalhavam ao sopro da aragem morna.
Os próximos dias passados na cabana da praia foram
tranqüilos, a chuva parou e o céu estava claro, aproveitaram
152
o tempo para colher algumas frutas e pescar. As condições
meteorológicas pareciam excelentes, eles não tinham idéia
do que os esperava, pois que, já havia começado a estação
das águas, o inverno equatorial.
Assim, quando o tempo mudou, ficaram isolados
pelas chuvas, pelos vendavais, pelas enchentes do rio que
arrastava em sua passagem troncos e animais inchados. A
provisão de víveres e remédios acabou, agora só havia
peixe que pescavam no rio, frutas silvestres e bananas
verdes que apanhavam na mata. Andavam, saltando pelas
trilhas enlameadas, de pés no chão com as calças rotas
arregaçadas até os joelhos.
Sentiam-se perdidos, numa luta estéril com a chuva,
que a cada investida ameaçava carregar a cabana, com os
mosquitos que em cada pausa do aguaceiro atacavam com
uma ferocidade terrível, subindo pelo corpo, picando,
sugando, deixando ardentes vergões, e larvas sob a pele,
que em pouco tempo abriam feridas supurantes. Com os
animais ferozes e famintos que vagavam pela selva,
povoando-o de sons ensurdecedores que tiravam o sono.
Um dia, reuniram-se com as primeiras luzes difusas
do alvorecer entrevisto entre as nuvens, para trocar idéias e
tentar resolver a situação desesperadora. Ronaldo sugeriu
que deviam arriscar e abandonar o acampamento da praia,
continuar a viagem a pé margeando o rio Guaporé, e de
canoa quando houvesse condições de navegar no rio, sem
cachoeiras e pedreiras no fundo do leito.
Partiram no outro dia logo de manhã. Levavam
víveres conseguidos na floresta e peixes do rio. Iriam
enveredando pelo caminho por entre as árvores seculares,
arbustos e touceiras de samambaiaçu. Caminharam doze
horas, sempre no rumo norte, vencendo riachos
transbordando, quebradas e clareiras que cruzavam olhando
153
o céu a confirmar o rumo certo, e ao chegar a uma laguna
paravam para pescar algum peixe e descansar.
Mas com as primeiras sombras da tarde, novas e
grossas nuvens se condensaram no céu, e desatou o dilúvio,
e em poucos minutos era impossível ver além de um braço
estendido. Não podiam vê-las, mas adivinhavam-nas na
escuridão que tornava a selva impenetrável.
– Não podemos prosseguir não se vê nada comentou Hipólito, desanimado.
Os três indígenas se encarregaram de cortar colmos
de taboca gigante e folhas de bananeira silvestre, com elas
armaram uma palhoça, forraram o chão e todos se deitaram
para descansar esperando a chegada do sono, embalados
pelo violento e monocórdio murmúrio da água onipresente.
Antes de dormirem, cozinharam o peixe e a raiz de
mandioca brava e alimentaram-se, comeram também frutas
silvestres e fatias de banana verde assada. O cansaço da
caminhada logo tomou conta dos homens. Dormiram
encolhidos, abraçando as pernas e cobrindo o rosto com os
chapéus. Suas respirações tranqüilas não interrompiam o
barulho da chuva.
Durante a noite só um dos homens permaneceu de
olhos abertos. Sua tarefa era vigiar e alimentar a fogueira,
mas depois de um tempo foi vencido pelo sono. Enquanto
na palhoça as pessoas dormiam, ao redor a vida fervia.
Quando o dia começou a clarear Ronaldo subiu à árvore
onde o índio Goiatã ficou de vigília durante a noite, para
defender o acampamento improvisado do ataque de animais
selvagens. Encontrou-o sentado, enrolado num roto
cobertor seca-poço, no mais alto galho a espiar o mato e
arredores através da folhagem espessa.
– Viu alguma coisa, Goiatâ?
– Nada de novo. Estou vigilante a noite toda. Lá
pela duas horas da manhã, mais ou menos, vi uma grande
154
onça pintada saindo da mata, farejando alguma presa.
Passou não muito distante da cabana, rugindo baixinho –
confirmou.
Para comprovar o perigo iminente, de fora chegou o
ruído de um corpo que se movia em silêncio e dois olhos
amarelos, como faróis, brilhavam na escuridão da mata. As
pisadas não produziam sons, mas aquele corpo se colava
aos arbustos baixos e às plantas. Ao amanhecer,
aproveitando a luz mortiça filtrada pelo teto da selva, os
homens saíram para rastrear nas proximidades.
A chuva da noite não apagou o rastro de plantas
amassadas deixado pela onça, as pegadas se perdiam na
mata cerrada. Tãupi o guia quíchua, ao procurar as pegadas
encontrou-as estampadas sob grandes folhas de bananeira
silvestre. Eram patas grandes, como punhos de homem
adulto. O animal estava rondando próximo da cabana.
– Não sei não, mas é bom ficar prevenido, pode ser
uma cilada, o bicho é esperto. É bom não arriscar comentou o índio Tãupi.
– Pode até ser – confirma Ronaldo – desça Goiatã,
que Tãupi fica no teu lugar, vigiando. Vá comer alguma
coisa.
O vigia pulou da árvore para o chão úmido,
espreguiçou-se num estalar de juntas; ficou de cócoras a
noite toda e enrijeceram-lhe as articulações das pernas.
Desde cedo começou a evaporação e a selva sumiu
numa névoa densa que dificultava a respiração e a
enxergar um palmo adiante do nariz. A pausa da chuva
convocou imediatamente os mosquitos. Atacavam
procurando lábios, pálpebras e arranhões. Os diminutos
pólvoras se metiam nas narinas, nas orelhas, nos cabelos.
Era um inferno.
O intervalo durou pouco e a chuva voltou com
renovada intensidade Com isso, os homens foram obrigados
155
a retornar ao acampamento anterior, abandonado um dia
antes. Sabiam que o rio estava próximo, e alegraram-se ao
ouvir a correnteza da água. Não lhes restava mais que
descer uma encosta de uns quinze metros coberta de
arbustos para alcançar a margem do rio e o refúgio tão
esperado.
Só se ouvia o barulho da chuva que deslizava entre a
folhagem. Por entre a ramagem dos arbustos escondiam-se
os olhos amarelos da onça que espreitava a presa. O grito
do urutau alertava para a ameaça aos habitantes da floresta.
Ouvia-se a chiadeira e os gritos de pavor dos macacos no
topo das árvores.
Os homens tinham a sensação de que do interior da
floresta alguém os observava.
– Acho que estão nos espiando – disse Hipólito,
incapaz de suportar a tensão por mais tempo.
Alguns minutos mais tarde surgiram da selva
indígenas com as flechas apontadas para os viajantes. Eram
índios Caripuna em perseguição aos porcos selvagens que
se escondiam no meio do matagal próximo. Os índios
quíchuas mantinham relações amistosas com os Caripuna e
lhe explicaram a presença dos estranhos, eles não estavam
caçando seus animais. Portanto, tudo ficaria em paz.
No outro dia, ao nascer do sol, os homens do
acampamento acordaram-se com o ronco de um hidroavião.
Era uma aeronave com casco próprio para navegar sobre a
água. Os três pesquisadores flagelados da selva e o piloto
do Cessna saíram correndo para a margem do rio, gritando
e acenando com panos brancos, que não eram senão os
trapos das camisas que vestiam. Pediam socorro.
Logo foram avistados pelo comandante e
imediatamente o hidroavião desceu sobre as águas. Toda a
tripulação da aeronave desceu para prestar socorro. Após as
explicações e os entendimentos, ficou resolvido que os três
156
índios que serviram como guias, iriam voltar para a sua
aldeia, nas margens do rio Parágua na Bolívia.
Arrumaram o alimento indispensável para a viagem
dos indígenas, água limpa e armas. Os quíchuas
despediram-se e foram desamarrar o barco que estava preso
a um galho. Goiatã, Tãupi e Raoni empurraram-no da
margem para o rio. Começaram a remar parelho, de pé, na
popa da estreita embarcação, e o barco foi singrando rio
acima. Ronaldo, Hipólito, Juventino e Menelau,
permaneceram na praia até que a canoa sumisse tragada por
uma curva do rio.
Vinte minutos mais tarde os náufragos da selva e
seus parcos pertences foram recolhidos a bordo do
hidroavião. Nem todos tinham um assento na aeronave,
dois deles acomodaram-se em cima de bagagens, no fundo
da cabina Não havia cintos de segurança para todos.
O piloto Hermes Filgueira ligou os motores e sorriu
com imensa ternura ao ouvir o rugido da máquina, som que
sempre lhe provocava satisfação. O hidroavião sacudiu-se
como um cão molhado, tossiu um pouco e começou a
deslizar na pista aquática.
Os quatro passageiros do Cessna foram levados para
o acampamento dos exploradores e cientistas brasileiros
que atuavam naquela região, estudando a fauna e a flora
nacionais. A alegria do encontro entre esses profissionais de
objetivos afins foi algo emocionante. Não se cansavam de
relatar a impressionante aventura que os quatro amigos
viveram na selva. O piloto Menelau encontrou um ouvinte
atento das suas peripécias, no comandante do hidroavião.
O alojamento dos cientistas era constituído de
diversas cabanas, de armação tosca, sem paredes, com teto
de folhas de palmeira. Pés direitos de galhos fincados nas
laterais serviam para atarem as redes, paralelas umas às
outras. Cada rede era protegida por um mosquiteiro de tule
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que tombava da armação do teto. O mosquiteiro só protegia
dos mosquitos, mas no caso de chuva com vento, os
homens ficavam desabrigados. Cobras, lagartixas,
centopéias peçonhentas, ratos e até um jabuti arrastando-se
vagarosamente, deslizavam debaixo das redes. O recurso
era não se mexer, ficar quieto.
A chuva só parou depois do meio-dia e um sol forte
começava a secar rapidamente a lama levantando nuvens de
neblina que encobriam o horizonte. Não se via nada.
Diversas árvores gigantescas de troncos de mais de quatro
metros de circunferência, de galhos enormes tinham caído.
No pântano, cujas águas pareciam minar do solo, o
acúmulo de lama era traiçoeiro e poderia tragar um homem
pouco cauteloso. Muitos animais tinham soçobrado no
lamaçal. Quando desabava uma daquelas tempestades, a
água caia com tanta força e tamanha fúria, que mais parecia
lâminas de navalha estraçalhando a vítima.
Podia-se sentir no ar uma vingança amarga da
natureza pela violação da sua integridade física e das leis
que comandam aquele universo. Toda aquela região
tornara-se uma espécie de recanto do inferno, a natureza
agira impulsionada por forças anárquicas, atuara por uma
espécie de transe não premeditado e sua fúria ascendia
rapidamente até a destruição.
Hermes Filgueira, comandante do hidroavião dos
cientistas, depois de socorrer e hospedar por dois dias os
quatro homens perdidos na selva, se viu na obrigação de
levá-los em segurança até Porto Velho.
Saíram assim que o tempo permitiu, navegando com
sucesso pelo rio Guaporé ultrapassando a junção das águas
do Mamoré, Beni e Abunã, que daí em diante toma o nome
de Rio Madeira e num trecho de 80 km até Porto Velho,
apresenta um leito pedregoso, corredeiras e cachoeiras que
impediram o hidroavião de prosseguir navegando. O
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comandante Filgueira vendo o perigo em avariar o casco da
aeronave nas pedras pontiagudas, impulsionou os motores e
levantou vôo, seguindo rumo à cidade do destino.
Os indígenas Tãupi, Goiatã e Raoni subiram o rio
Guaporé até o seu afluente Parágua, já no território
boliviano, deixaram a canoa amarrada com cipó a uma
árvore e adentraram a floresta pela trilha sinuosa que os
levaria até a aldeia nativa. Caminharam durante pouco
tempo quando começou a chover.
Eles procuraram abrigo no oco de uma gigantesca
raiz exposta de figueira secular. Ficaram de cócoras,
encolhidos, com o rosto encostado nos joelhos dobrados,
apertando os braços em volta. Só os ruídos da chuva, raios e
trovões sobressaiam no silêncio da atmosfera carregada de
eletricidade. Eles não sentiam medo, estavam habituados
com a fúria da natureza, pensavam que ela tinha o direito
de revoltar-se assim, pois o território lhe pertencia.
Assim que o dia clareou, baço e entorpecido pelo
inverno, o sol, de má vontade, esgueirou seus raios pelas
frestas intermitentes das nuvens. Acossados pela fome,
apareceram no pantanal, por onde a vista se derrama, entre
a floresta e os grandes campos ribeirinhos, manadas de
antas e veados, que tranqüilos pastam a grama verde; os
filhotes brincam dando saltos e cambalhotas, ou correm e
estacam de repente, com orelhas sempre alertas.
A ribanceira, aqui e ali, apresenta-se desnudada,
limpa, pela freqüência do pé humano, lugar de passagem
dos indígenas que nadam e pescam no rio Parágua. Domina
no lugar, a ramaria de uma frondosa figueira. Árvores
caídas, com o desbarrancamento da última enxurrada,
preparam-se para partir ao arbítrio da corrente das águas,
rio abaixo, ao Deus dará; as folhas soltam-se uma a uma,
como lágrimas da planta chorando a despedida.
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Para os indígenas que convivem com a natureza,
cada árvore, cada animal, ave ou inseto, cada lufada de
vento trazendo gotas de chuva, era um espírito da floresta,
que queria proteger o seu domínio, a sua terra, a paz dos
antepassados. Acima de tudo e de todos, reina o deus Tupã,
e a ele eram dirigidas as danças e os cânticos rituais, para
que amaldiçoe e expulse todos aqueles que ferem e
perturbam a paz da selva, roubam as riquezas do solo, das
montanhas, dos rios e destroem as florestas da Amazônia.
***
Os três cientistas e o piloto, salvos pelo comandante
Filgueira das garras da floresta tropical, onde viveram uma
odisséia de peripécias e sofrimentos; agora felizes, queriam
apenas descansar em paz. Dormiam nos leitos macios do
Hotel Continental.
Mas o rumor das vozes e dos veículos que
transitavam pelas ruas tortuosas da cidade de Porto Velho
acordou-os. Ronaldo ergueu-se e olhou para a enseada pela
janela aberta. Levantava-se uma densa neblina sobre o rio
Madeira. Ele olhou o relógio que marcava sete horas da
manhã. Apesar de ser ainda muito cedo, a temperatura
estava elevada e o calor durante o dia prometia ser intenso.
– Vamos levantar o sol já está alto – disse Ronaldo.
Hipólito e Juventino pularam da cama, vestiram-se
às pressas, e dirigiram-se os três ao salão de café onde o
garçom, com aparência de índio, servia o desjejum.
Comeram em silêncio; cada um perseguindo seus
pensamentos.
Menelau da Fonseca, o piloto do Cessna, esperavaos no saguão do hotel com a mala nas mãos, queria
despedir-se; resolveu retornar no hidroavião do comandante
Hermes Filgueira ao acampamento boliviano, onde ficara o
160
seu avião. Tinha esperanças em resgatá-lo de alguma
maneira e voltar para São Paulo.
Depois de descansar e tentar esquecer a sofrida
aventura pela selva tropical da Bolívia, os novos
pesquisadores decidiram conhecer mais a fundo a região do
grande rio Madeira.
– O que acham da idéia de começarmos hoje a
explorar as margens do Madeira? – propôs Hipólito.
– Estamos de acordo – responderam os dois outros.
Naquele dia embrenharam-se pelo matagal ralo que
margeava o caudaloso rio. De passagem pela aldeia Tinguá,
decidiram acampar ali perto, para pescar. Adquiriram os
apetrechos de pesca no boteco da esquina e empunhando as
varas com os anzóis dirigiram-se ao rio.
Eram jovens e ansiosos por aventura, riam e
contavam piadas, conversavam sobre a pescaria e principalmente acerca de mulheres. Ao dobrarem uma curva do
caminho Ronaldo apontou para a luta encarniçada de uma
jovem índia com a água revolta do rio Madeira.
O rio rugia no seu leito, e grossas ondas amareladas
rolavam pelo fundo pedregoso, estalavam pelas margens
acima e rasgavam as bordas de cascalho amarelo, soavam
como se centenas de pessoas suspirassem ao mesmo tempo.
A noite toda tinha chovido. Uma chuva de inverno,
ainda prematura nessa época do ano. Era10 horas da manhã,
quando eles viram da margem, a moça na beira do rio. Ela
se agarrava com as pernas a uma cerejeira caída, entortada
pelo vento, e segurava com os braços muito esticados, uma
corda trançada com fibra de sisal.
Sobre o selvagem, escuro e revolto rio Madeira
dançava um barco plano, que era carregado pelas fortes
ondas, que se batia cheio d‟água e só era mantido preso
pela corda que a moça enrolara nos braços. Ela o puxava e
seus gemidos arfantes eram dominados pelo bramido do rio,
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mas via-se no seu rosto a urgência e o medo de perder as
forças. Não conseguira enrolar a corda no tronco da árvore,
e, para não ser ela mesma arrastada com o barco, agarrou-se
à árvore. Lutava com todas as forças.
– Vamos socorrê-la – gritou Ronaldo – o rio vai
arrancar-lhe os braços do corpo.
Ela sacudia a cabeça e os longos cabelos negros
flutuavam com o vento, cobrindo seu rosto coberto de suor
e desfigurado pelo esforço.
– Socorro! – gritava – socorro! Eu não consigo me
segurar mais.
Ronaldo disparou pela escarpa abaixo, tropeçou,
caiu, rolou alguns metros, parando bem perto da moça.
Com mais dois saltos ele estava junto dela; pegou na corda
e puxou com toda a força. Mas o rio Madeira não estava
para brincadeira, era mais forte. Suas ondas arrancaram a
corda das mãos de Ronaldo e feriram-lhe as palmas, pois as
fibras trançadas do sisal eram como facas grosseiras e
rasgavam a pele. De repente o laço estava cheio de sangue e
a moça gritava de dor.
– Não tenha medo! – acudiu Ronaldo – Hipólito!
Juventino! Venham ajudar a segurar o barco – gritou para
os amigos, que nesse momento escorregavam ladeira
abaixo.
– Nós não vamos entregar a canoa ao rio. Vamos
puxá-la em direção a terra outra vez!
Ele agarrou novamente, esticou as pernas de través
na margem no rumo do rio, colocou todo seu peso na
puxada e as veias do pescoço incharam como linhas
grossas, enfim a corda se moveu, a canoa cortou as ondas
trovejantes, cedeu por um metro, sobrepujou um passo o rio
e sua força... Mas, foi suficiente para livrar a moça e enrolar
a ponta do laço em torno do tronco da cerejeira.
– Será que a corda agüenta? – perguntou Ronaldo.
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Andou alguns metros ao lado da corda esticada e rangente,
tocando-a. Ela estava tão firme como os fios de aço de um
violão afinado. As ondas tormentosas do rio puxavam com
tanta força que as fibras trançadas gemiam
– Tomara que agüente – disse a moça – fizemos
todo o possível. Tirou o cabelo do rosto e fitou o rio com os
olhos negros apertados, rancorosos. – Hoje ele está
horrível... Fora disso ele é meu amigo.
– Esta canoa é sua? – perguntou Hipólito.
– Não. Pertence a meu pai. Usamo-la para pescar.
Ela agarrou de novo a corda esticada e puxou-a – não vai
suportar, não foi feita para resistir à correnteza deste rio.
– Então vamos trazer esse barco para a terra resolveu Ronaldo.
Os três homens puxaram empregando toda a força,
postados um atrás do outro, com Ronaldo à frente. O rio
rugia para eles e defendia-se e lutava pela sua presa com
toda a violência das ondas. Arrastavam e ganhavam espaço
metro a metro, deslocaram o barco com água pela metade,
batido e dançante, até a margem, trouxeram-no por sobre o
turbilhão e contra o rolar das ondas amarelas. A cada
puxada venciam a luta e superavam a força do rio.
Opunham-se contra a ressaca do rio e o barco foi
literalmente arrancado da correnteza por sobre as ondas; e
logo estava seguro, pelo menos enquanto a corda
agüentasse. A canoa rangeu na areia da margem.
Diadora deixou cair a corda de sisal, correu para o
bote, apoiou-se contra a proa na água rasa e empurrou-o,
com a ajuda dos outros, inteiramente para o seco.
Respirando pesadamente, Ronaldo encostou-se na árvore. A
moça caíra de joelhos, seus cabelos cobriam-lhe o rosto. Os
dedos paralisados pelo esforço enterravam-se na areia.
Fitava zangada o rio.
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– O barco está salvo – disse ela, erguendo a cabeça e
olhando-os agradecida. – É nosso único barco, se o rio o
tivesse levado nós não teríamos outra canoa para pescar.
A jovem índia levantou-se e sacudiu a areia
molhada da saia. Sua roupa estava encharcada e colava-se
ao escultural corpo moreno. Ronaldo descobriu que ela não
usava espécie alguma de roupa de baixo. Os seios fortes e
roliços e o colo desenhavam-se nitidamente, uma imagem
que, junto com os longos cabelos negros e olhos oblíquos
no belo rosto, penetraram em Ronaldo como um raio.
– Meu Deus – pensou Ronaldo, aqui neste sertão, à
beira do selvagem rio Madeira, num vestido de chita
desbotado pelo sol tropical, de pernas nuas, ombros
descobertos e ensopada de chuva está uma deusa índia.
Então ela caiu sobre o fundo do barco como que
morta, os braços pendurados na água, os seios arfando e o
corpo tremendo de exaustão. Neste momento Ronaldo
levantou a moça e carregou-a em seus braços até um lugar
seco e seguro. Sua cabeça deitara-se no seu ombro e os
cabelos flutuavam a sua volta cobrindo-lhe o rosto.
– O barco está em segurança – disse Ronaldo –
quando a moça sentou e juntou os cabelos na nuca.
– Onde você mora? Eu a acompanho até sua casa.
– Moro na aldeia Tinguá, com minha família. Meu
nome é Diadora. Meu pai é o chefe da comunidade. E
vocês vêem de onde, são da cidade grande?
– Sim! Nós somos de São Paulo – respondeu
Ronaldo – divertido com a curiosidade da moça.
– Vem diretamente de lá? Os olhos negros luziam,
ao pronunciar estas palavras – é o meu maior sonho
conhecer essa linda cidade.
– Você não conhece São Paulo?
– Não. Não conheço nenhuma outra cidade, só Porto
Velho, onde trabalho. Nunca saí para longe da nossa aldeia.
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A jovem recostou-se na árvore. O vestido molhado
esticou-se sobre o seu busto, grudou-se nas pernas,
desenhando o belo corpo da moça; ela soltou o cabelo, que
havia preso, esparramando-o ao vento.
Quirino dos Santos, cearense, antigo seringueiro, pai
de Diadora, estava preparando os anzóis e a vara de pescar
quando Ronaldo, Juventino e Hipólito, acompanhados da
moça, pararam diante da choupana.
– Deve ter acontecido alguma coisa – pensou ele.
Ao avistar o grupo que se aproximava contraiu o
rosto e ficou esperando de pé junto à cabana.
Diante da porta surgiu a sua esposa Luana, filha do
índio Uinaré, cacique da tribo Caripuna, e outros parentes
da família. Todos olhavam curiosos os recém-chegados. Os
cachorros magros latiam furiosamente, enquanto
disputavam os restos de comida. As galinhas cacarejavam
de cima do montão de detritos onde ciscavam, em frente do
casebre. Mulheres curiosas, com crianças a tiracolo, vieram
correndo e aumentando a confusão.
– Não, essa não! – disse Quirino, quando a filha
correu até a cerca de varas. Risonha, Diadora apontava para
ele que, pensativo, com passos vacilantes, vinha da
choupana para junto da cerca.
– Meu pai! – disse ela – então o abraçou com os
dois braços e gritou – este é Quirino, o melhor caçador e
pescador da aldeia.
Quirino parou a um metro da cerca, observava
criticamente os três amigos, sem chegar a nenhuma
conclusão definitiva. As roupas os denunciavam que eram
da cidade. Mas aí ele percebeu que o homem trazia as mãos
enroladas em tiras de pano tintas de sangue.
– Está ferido, senhor? – perguntou Quirino. Suas
mãos estão sangrando. Luana! Traga água quente e pano
limpo. Por favor, entrem em casa.
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Quirino foi à frente. Era a primeira vez que eles
pisavam numa cabana sertaneja. Casa construída de
troncos finos de árvore, a pique, rebocada com barro e
coberta com folhas de palmeira. Tinha uma porta baixa
amarrada com cipó, não tinha janelas, estas não eram
necessárias, pois a claridade entrava pelas frestas da parede.
Era um cômodo só, com divisões feitas com
cortinas de pano grosseiro, separando às destinadas ao
casal, à filha, e à cozinha em cujo centro estava acesa uma
fogueira alimentada de pedaços curtos de galhos de árvore,
alguns ainda verdes, que chiavam e pipocavam ao queimar,
jogando faiscas para o alto.Dependurado numa trempe de
ferro fumegava um caldeirão de barro, cozinhando feijão
com carne de porco.
Quirino voltou trazendo um maço de diversas folhas
medicinais do mato e cipó fino para amarrar.
– Como aconteceu isto? – perguntou, examinando as
palmas rasgadas das mãos de Ronaldo. A pele está em
farrapos. Eu vou lavar com infusão de ervas refrescantes e
enrolar com estas folhas que são ótimas cicatrizantes.
– Eles salvaram o nosso barco, pai – disse Diadora.
Quando eu cheguei, a corda que segurava o barco tinha se
soltado da estaca. Então eu tentei segurar o bote, mas se
eles não tivessem chegado e ajudado ele já estaria
estraçalhado nas corredeiras do Madeira.
– Que tempo – falou o caboclo, pensativo. Onde já
se viu um temporal tão violento nessa época do ano.
Diadora com carinho, amarrou ambas as mãos de
Ronaldo, e o pai assistiu a tudo com admiração.
– Não sei como lhe agradecer tanto desvelo – disse
Ronaldo – dirigindo-se à moça com brilho sedutor no olhar.
Ela já o havia conquistado pela sua beleza selvagem.
– Fiquem conosco – convidou Quirino. Caminhem,
percorram o lugar, dêem uma olhada por aqui e estejam à
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vontade. Sintam a emoção de uma pescaria nas águas do
Madeira. Se a sorte os ajudar podem pegar um grande
tucunaré para o almoço.
O convite era tentador, a paisagem deslumbrante.
Três grandes castanheiros esparramavam seus galhos
sombreando em circulo, evitando que o calor chegasse a
invadir o local, onde eles podiam se assentar placidamente.
O sol sublinhava com bastante contraste as sombras no
chão. O calor forte era quase uma linha na floresta trêmula
sob a cortina de neblina transparente, efeito da umidade em
evaporação.
– É uma boa idéia, chefe Quirino – respondeu o
botânico Ronaldo. Aceitamos com certeza, não é, amigos?
Sempre foi meu desejo conhecer a flora medicinal da região
amazônica e a vida efervescente dessas florestas.
– Esta terra me encanta. A consciência de viver em
meio aos seringueiros, garimpeiros, entre o povo da aldeia,
curar suas feridas e estudar os seus males – comentou
entusiasmado o médico Juventino.
– É um lugar fascinante, próprio para as pesquisas a
que nós nos propusemos, e melhor, poderei estudar a fundo
a cultura dos habitantes dessa região, pescar no rio Madeira
e domá-lo na sua vasta selvageria; esta aventura me atrai
fortemente – ficaremos sim, mas apenas por alguns dias –
decidiu o etnólogo Hipólito.
À tarde foram os três para a cidade, galopando nos
cavalos emprestados por Quirino, para buscar as bagagens
que ficaram no hotel Continental em Porto Velho, onde
estavam hospedados.
Já fazia uma semana em que os três cientistas
estavam na aldeia Tinguá. Passavam os dias pescando,
outros, adentravam pela mata á procura de plantas raras, e à
noite reuniam-se ao pé do fogo para cantar e tocar violão.
Diadora ouvia a música embevecida, encantada com a voz
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de Ronaldo. Também gostavam de ouvir as lendas
indígenas que Quirino sabia tão bem contar.
Uma tarde, à hora da sesta, a moça tornou a sentir
aquela agonia de outras tardes e noites. Era uma sensação
que não saberia descrever a ninguém. Tinha a impressão de
que lhe faltava alguma coisa no corpo, como se lhe
tivessem cortado um pedaço do ser. Era ao mesmo tempo
uma falta de ar, uma inquietude que ela não compreendia.
A jovem sentia um aperto nas têmporas, a cabeça
latejava, as pálpebras pesavam-lhe, veio-lhe um torpor de
febre, estava trêmula e aflita. Meio sem saber o que fazia,
atirou as pernas para fora da cama e levantou-se. Caminhou
devagarinho, sem ruído para a porta, abriu-a e saiu.
Fora, o sol poente envolveu-a como um manto. A
luz se diluía nas primeiras sombras, enquanto as cigarras
cantavam na relva verdejante. A jovem começou a descer a
encosta que levava ao córrego, tomaria um banho
refrescante na água cristalina. Os espinhos lhe picavam os
pés nus, mas ela continuava a andar; de repente como se
visse um fantasma precipitou-se a correr sem rumo,
apertando o vestido contra o peito.
Ficou numa lassidão dolorida, surgiram-lhe idéias
sombrias, de desencanto da vida. Ela corria desvairada,
porque não podia acreditar que a vida e a natureza eram tão
imprevisíveis nos seus segredos, encerrassem mansidão e
violência e, que depois da chuva – quando o vento cessasse,
as árvores parassem de balançar – tudo voltasse a ter a
mesma calma. E poderia novamente ouvir o murmúrio da
água, o canto da cigarra, o farfalhar das folhas e o pulsar
surdo do próprio sangue.
O vento e a garoa que começou ao anoitecer batiam
em seu rosto e traziam muitos cheiros: o odor de terra
molhada, perfume de folhas maceradas, de frutas
apodrecidas. Ela ganhava forças para continuar correndo,
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sem ligar para os espinhos e folhas de capim afiadas que lhe
cortavam a carne e reduziam seu vestido a farrapos.
Corria sem destino, tropeçando, caindo, batendo em
galhos que partiam, mergulhava por entre touceiras de
arbustos que se emaranhavam em seus braços.
O botânico Ronaldo, o homem por quem Diadora se
tinha apaixonado à primeira vista, saiu de manhã à procura
de plantas medicinais na floresta; já anoitecia e ele não
retornava, poderia ter acontecido algo terrível, a mata era
perigosa, cheia de armadilhas, índios e animais ferozes; ela
estava desesperada, correndo a procurá-lo no matagal.
No entanto, o homem deixava-se conduzir pela
intuição, caminhava com passo lento e cuidadoso pelo meio
da densa floresta, não longe dali. Seus passos soavam
solitários na trilha, ouvindo-se apenas o estalar das folhas
secas. Suava e reclamava do calor abafado, com a camisa
empapada de suor, o rosto reluzente e afogueado.
Que adiantava pensar? O instinto sempre tinha
razão, e ele o levava para junto da jovem. Andando, ele
pensava em Diadora e agora, sabedor da sua paixão por ela,
sua saudade aumentava de tal modo que ele sentia uma
necessidade urgente de revê-la. Muitas vezes durante
aqueles dias pensara nela. Nas suas andanças pela selva, a
doce imagem da moça lhe vinha à mente como um
refrigério e um apaziguamento para sua vida arriscada.
Depois daquelas cálidas noites de conversas alegres,
ao pé do fogo na cabana de Quirino, junto à ela, seu pai e
seus amigos, a moça voltava-lhe à lembrança como a
promessa duma límpida manhã de sol e céu azul,
recendendo a flores do campo e a coisas puras.
– Estou com uma sede danada – pensou ele. Vou
descer até o córrego para beber água fresca e banhar-me.
Tomou o rumo do riacho que rumorejava no vale.
Não suspeitava da grande surpresa que o esperava ali.
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Uma lembrança difusa trazia à memória de Diadora
o instante em que ela havia caído e não mais encontrara
forças para levantar e correr.Num dado momento sua
atenção foi despertada por um estalar de ramos secos que se
quebravam. Retesou os músculos e abriu os olhos. Onça ou
sucuri – pensou. Mas uma dormência invencível chumbavaa à terra. Virou um pouco a cabeça na direção do ruído e
vislumbrou confusamente um vulto de homem, quase
invisível na sombra, entre os troncos das árvores.
A moça então sentiu mais que viu que era Ronaldo.
Quis gritar, mas, a voz não saiu. Tentou levantar-se, mas,
não conseguiu. O sangue pulsava-lhe com mais força na
cabeça. O peito arfava-lhe com mais ímpeto, porém o
entorpecimento dos membros continuava. Tornou a fechar
os olhos. E ouviu o homem se aproximar, num ruído de
galhos quebrados, chapinhar na água, pedras se chocarem.
Apertava os lábios já agora com medo de gritar.
Ronaldo estava tão perto, que ela sentia sua
presença pelo seu cheiro e seu hálito quente. Levantou-se
rapidamente e saiu correndo. Com saltos grandes ele a
alcançou e a agarrou tão ligeiro que ela caiu, puxando-o
consigo na queda. Ele começou a alisar o busto da jovem,
mas ela afastava-se dele e defendia-se contorcendo o corpo.
Segurava com força a mão dele, que continuava tateando
ainda os seus seios.
– Devia bater-lhe na mão – disse ela docemente.
Arrancaram as roupas e dois corpos palpitantes
ficaram nus um ao lado do outro. Ela sentiu quando o corpo
do homem deitou sobre o dela, soltou um gemido quando a
mão dele lhe pousou num dos seios, teve um arrepio de
prazer quando essa mão lhe escorregou pelo ventre, entroulhe pelo meio das coxas, e apalpou-a como uma grande
aranha caranguejeira.
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O botânico começou a sentir o coração aos pulos,
queria e ao mesmo tempo não queria desvencilhar-se da
moça e acabou agarrado a ela como um moribundo se
agarra à vida. Os corpos nus e brilhantes se agitavam à luz
prateada do luar, no macio chão da floresta. E houve um
instante de intenso prazer e intensa angústia, um momento
de transfiguração e pânico em que teve a impressão de que
toda a seiva, todo o seu sangue, toda vida que tinha no
corpo jorravam para dentro dela. Passou-lhe rápido pela
cabeça o desejo de que aquilo fosse o fim, a morte.
Diadora sentiu o beijo escaldante da sua boca, e um
doloroso dilaceramento misturado de gozo, quando ele a
penetrou, aí ela chorou de felicidade e não por causa da dor
que lhe traspassava o ventre. Era sua primeira vez. E ela
sentiu em toda plenitude o prazer do amor, foi como se um
terremoto tivesse sacudido o mundo.
Num assomo de desvario, ela agarrou com fúria os
cabelos de Ronaldo como se os quisesse arrancar. Ele a
possuiu com paixão, deixando fluir generosamente a
magnífica seiva da juventude, há muitos dias reprimida. E,
depois estendido ofegante ao lado dela, ouvindo o pulsar
descompassado do próprio coração anteviu o absurdo que
seria morrer naquele momento de plena felicidade.
Os dias que se seguiram, foram para a jovem, de
felicidade mas também de constrangimento e receio.
Acanhamento perante Ronaldo quando o encontrava diante
das outras pessoas da casa; e medo de que estas pudessem
ler nos olhos dela o que havia acontecido entre eles. Aquele
momento de amor que passara com ele ficou gravado
profundamente em sua memória.
Que era mesmo que eles sentiam um pelo outro?
Paixão? Amor? Ou apenas uma necessidade de sexo da
parte dele, solidão e carência de afeto da parte dela. Ela
sentia-se atraída pelo moço. Talvez fosse melhor que esse
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encontro de amor não tivesse acontecido. Ou melhor, que
esse homem nunca tivesse aparecido na sua aldeia.
A agonia em que vivia desde o primeiro dia em que
pusera os olhos naquele homem persistia ainda. Sabia que
nunca poderia esquecê-lo. Chegara à conclusão de que o
horror de que o pai descobrisse tudo era o sentimento que
dominava todos os outros, até mesmo o anseio de ter novo
encontro de amor com Ronaldo.
E o tempo passava...
À noite Diadora dormia mal, pensava muito e temia
mais ainda. Procurava convencer-se a si mesma de que
podia viver sem Ronaldo. Achava que tudo tinha
acontecido só por causa da sua solidão. Mas se por um lado
ela queria levar os pensamentos para essa direção, por outro
seu corpo ia sempre que possível para o seu amado, com
quem continuava a encontrar-se na escuridão da noite, no
descampado próximo ao riacho.
Deitavam-se na grama verde, morna, aquecida pelo
sol de verão e se amavam buscando a satisfação plena.
Ficavam juntos por mais alguns instantes, se acariciando,
com o coração a bater descompassado. Falavam pouco,
eram momentos rápidos, excitantes e cheios de sustos.
Voltavam separados para casa, com a cabeça zonza, felizes,
como quem acabava de descobrir um tesouro.
Ela ansiosa por ruminar a sós aquele gozo
estonteantemente agudo que a fazia gritar alto. Quando ele
sumia entre as sombras do arvoredo, a moça ficava ainda
por algum tempo a contemplar as estrelas.
Ronaldo não conseguia dormir. Inquieto, virava-se
de um lado para outro, sentava-se e levantava-se, espreitava
na escuridão, mas ouvia só os sons da noite, um estalo nas
vigas, o ruído da raposa que fuçava em alguma panela da
cozinha, um distante ladrar de cães, o sussurro do vento na
folhagem e o bramido das cataratas do rio Madeira.
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Naquela cabana vivia uma mulher linda, que o amava, e ali
deitado na sua rede estava ele a arder de desejo por ela.
– Parece até feitiço, essa moça não me sai da
cabeça, penso nela o dia todo e quando durmo sonho com
ela. Ninguém pode avaliar o desespero que sinto. Portanto,
não deve haver na natureza nenhuma razão para que não
possamos nos encontrar e amar. Decidido, levantou e
vestiu-se, calçou as botas e saiu para o terreiro. Vou ou não
vou? – hesitava ainda.
Deu alguns passos indecisos, de um lado para outro,
começou a assobiar baixinho e, confuso, sentindo-se um
imbecil e infeliz, continuou a andar no rumo da cabana. A
parede do cômodo da moça dava para um terreno baldio.
Ronaldo aproximou-se dela, pisando de leve, e ficou a
escutar. Não viu o menor sinal de luz, a choupana estava
às escuras e silenciosa. Abaixou-se e pegou algumas
pedrinhas do chão e jogou-as contra parede do quarto dela.
Naquele exato momento ouviu um ruído e seu
coração disparou. Viu entreabrir-se a porta e ele divisou o
vulto da sua amada esgueirando-se através da abertura. Ele
correu para junto dela enlaçou-a pela cintura, beijou-lhe as
faces, os olhos, a boca. Os braços da jovem desceram e
envolveram-lhe o pescoço, e de novo ele lhe sugou os
lábios cortando-lhe a respiração. Pegou-a pela mão e
conduziu-a para a trilha que levava ao descampado perto do
riacho. Aqueles encontros secretos faziam-se cada vez mais
difíceis, arriscados e constrangedores.
Custou-lhe conciliar o sono na noite seguinte. Ficou
de olhos abertos a fumar na rede e a ouvir o ruído da noite.
A noite anterior continuava a viver nele intensamente,
fisicamente absorvendo em si os beijos da mulher amada
nas sombras da madrugada. Pulou da rede, vestiu-se e olhou
para a lua. Deviam ser, mais ou menos, três horas da
madrugada. Ronaldo saiu para o pátio e dirigiu-se no rumo
173
do casebre. Diadora estava sentada sobre um toco de
árvore, em frente do rancho, olhou para o botânico como se
estivesse esperando por ele.
– Você não está dormindo? – perguntou Ronaldo.
– E por que você está acordado?
– Minha cabeça está estourando de dor – disse ele.
– E meu coração não pára de comportar-se como um
louco – respondeu ela com voz sonhadora.
Ele se aproximou e sentou a seu lado, abraçando-a.
– O céu já está ficando claro, logo vai amanhecer, e
seu pai vai acordar. Temos ainda algum tempo pela frente.
Calaram-se de novo e fitavam-se mudos. Falavam
com os olhos, e era uma ternura tão grande para a qual não
havia palavras.
– Eu esperei por você a vida toda – disse ela
baixinho - eu não sabia como você seria, de onde você
viria, quem você seria, quando você me encontraria... Eu
só sabia de uma coisa... Um dia você estaria aqui junto de
mim. E você veio do mundo distante, para mim.
A luz da manhã inundava o céu, levantava-se uma
nuvem de neblina sobre o rio Madeira, e a floresta acordava
com o canto do uirapuru que soltava seu som musical,
melodioso que reboava pela selva, e era tão belo e tão forte,
que por minutos, outros pássaros silenciavam seu cantar
para escutá-lo.
Enquanto eles se beijavam tateando-se com as mãos,
deixando os dedos escorregarem pelos seus corpos,
absorvendo-se um ao outro com toda energia. Estavam
inebriados de felicidade. Ele deitou a cabeça entre seus
seios e respirou a doçura que lhe saia dos poros, como o
perfume das flores de jasmim. Diadora prendeu a respiração
para escutar as batidas do seu coração.
– Já está clareando o dia, temos de nos separar.
Beijaram-se de novo como se o mundo fosse acabar, e esta
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seria a última noite em que ficaram juntos. Então se
despediram e foram cada um para o seu lado, ele para a sua
rede e ela para o seu casebre, sem sequer desconfiarem que
a separação seria para sempre.
O destino assim decidiu...
Naquele dia, Ronaldo recebeu um telegrama de São
Paulo, convocando-o e aos dois amigos a comparecerem em
Porto Velho; apresentar o resultado do seu trabalho até
aquela data e receber novas instruções. No outro dia de
madrugada foram embora. Não voltaram mais para a aldeia
Tinguá. Foram orientados à percorrer outras regiões, com o
intuito de continuar as pesquisas.
Doutor Ronaldo, devia coletar e estudar a
diversidade da flora amazonense, Doutor Hipólito,
estudioso da cultura dos povos indígenas, devia efetuar
contatos pessoais com as diversas tribos silvícolas e Doutor
Juventino como médico, tinha por objetivo visitar os
hospitais da capital e das cidades do interior para pesquisar
nos centros de tratamento da malária, da febre amarela, do
fogo selvagem (pênfigo) e de outras doenças tropicais.
Diadora não esperou a hora da partida do seu
amado, fugiu para a beira do Madeira chorar a sua mágoa,
foi um golpe violento nos seus sentimentos.
O verão terminou, o outono começou a amarelecer
as folhas das árvores. E um dia, quando pescava sozinha no
rio, de pé na canoa segurando o caniço, ela sentiu uma
súbita tontura acompanhada de náusea. Ficou então, tomada
de pânico porque lhe ocorreu imediatamente que estava
grávida. Por longo tempo, quedou-se imóvel ajoelhada na
canoa, com as mãos na água, os olhos postos na correnteza,
pensando no horror daquela descoberta.
Voltou para casa aniquilada, com a morte na alma.
Ia pensando naquele minúsculo ser que lhe crescia no
ventre. Dentro de pouco tempo não seria mais possível
175
esconder que estava grávida. Que fazer? Ronaldo nada
sabia da conseqüência dos seus amores com a jovem; ela
guardara segredo dos primeiros sintomas que se
anunciaram. Apesar da contínua procura de informações,
não conseguiu notícias do paradeiro dele. Tempos depois
ela soube que, dando como encerradas as pesquisas a que se
propuseram, os três cientistas voltaram para São Paulo.
Ela estava desesperada, pensou em fugir, mas, para
onde? Ao chegar perto da cabana começou a temer que o
pai a ouvisse chegar. Começou a andar na ponta dos pés, o
coração a bater-lhe num ritmo acelerado. De repente uma
sombra avançou em sua direção. A jovem não pôde conter
um grito de espanto. Ficou com a respiração suspensa. O
vulto delineou-se com mais nitidez, e ela reconheceu a mãe.
As duas mulheres ficaram frente a frente, paradas,
sem dizer uma única palavra. Então a filha resolveu falar,
talvez a mãe a pudesse ajudar. Mas na hora não teve
coragem. Diadora percebeu que a mãe chorava de
mansinho, sem ruído; os soluços mal reprimidos sacudiamlhe os ombros magros. Dona Luana aproximou-se da filha,
abraçou-a e perguntou:
– Que será que faremos agora, minha filha?
A moça abafou os soluços contra os seios murchos
da mãe, e ali ficou fazendo um esforço doloroso para não
urrar de medo e desespero.
– E agora, mamãe, e agora? – lastimava-se.
– Não há de ser nada, tenha fé minha filha.
Num súbito acesso de nervos, Diadora desabafou:
– Mãe! Mas eu estou grávida, não podemos dar um
jeito nisso? E se eu tomasse um remédio para abortar?
– Nem pense nisso! Isso é um crime contra a vida –
reprovou Dona Luana.
– Então como vai ser?
176
– O único jeito é contar tudo a teu pai. Mais cedo ou
mais tarde ele tem que saber; não imagino que reação ele
vai ter. Maldito Ronaldo, esse homem que veio trazer
desgraça para nossa casa.
– Mas o pai me mata, mamãe!
– Não, não mata. Teu pai é um homem de bem. Mas
se ele encontrar Ronaldo, ele que se proteja porque vai
receber o castigo merecido.
Diadora deixou cair os braços, endireitou o busto,
afastou-se um passo. Depois enxugou as lágrimas com a
ponta da blusa.
– Tenha coragem, minha filha. Vamos contar tudo a
teu pai, aos poucos...
Da sombra que a cabana projetava no chão avançou
o pai Quirino. O rancor transparecia-lhe no olhar.
– Não precisa dizer nada. Eu ouvi tudo – gritou.
Foi como se a moça tivesse levado um soco no
peito. Amoleceram-lhe as pernas e os braços, pendeu a
cabeça, cambaleou e perdeu os sentidos, caiu estatelada no
chão batido do casebre.
– Você matou nossa filha, Quirino! – desesperou-se
Dona Luana.
Quirino continuava imóvel onde estava, olhando a
filha desmaiada. Não comentou nada. A mãe correu para
socorrê-la, chamando-a e tentando levantá-la do chão.
Esfregou-lhe as têmporas e a fez aspirar vinagre. Devagar
ela foi voltando a si. O corpo inteiro lhe tremia, como se
estivesse atacada de malária. Estendida no chão sentiu o
frio da terra na pele enregelar-lhe os ossos.
– O que aconteceu, mãe? – perguntou aos soluços.
– Você desmaiou – respondeu a mãe aflita.
Deitada no chão, tomada de uma invencível
canseira, a filha sem compreender bem o que via, seguia
com os olhos o movimento do pai que fez meia volta e
177
encaminhou-se lentamente para fora da cabana. Dona
Luana seguiu o marido. Encontrou-o sentado em cima de
um toco de árvore, encurvado, com a cabeça metida entre
os braços, soluçando como uma criança. Nunca o tinha
visto chorar.
Dias se passaram...
Os sintomas da gravidez se acentuaram. O ventre
começou a crescer. Não dava mais para esconder nada, da
curiosidade dos vizinhos. Quirino evitava a filha, não lhe
dirigia a palavra, não tomava conhecimento de sua presença
naquela casa, desconhecia-a.
Para Diadora vieram outros dias de desânimo e
outras noites insones, via nascer o sol pelas frestas do teto
de palha e sentia aperto na garganta, era mais um dia de
espera que começava. Mas era em vão, ele não dava
notícias. Foi rigorosamente proibido pelo pai, para que
nunca mais o nome dos três cientistas, principalmente o de
Ronaldo, fosse pronunciado naquela cabana.
O ventre da moça se salientava, ela evitava o pai e
ele nunca olhava para ela. Notava que quanto mais seu
ventre crescia, mais aumentava a irritação do pai. Ele comia
em silêncio, ficava de olhos baixos, pigarreando de vez em
quando, ou pedindo uma ou outra coisa à mulher.
Passou o tempo, e chegou o dia em que Diadora
começou a sentir as primeiras dores do parto. Foi numa
noite clara banhada pelo luar cintilante. O vento suave
farfalhava as folhas das árvores. Do interior da palhoça
ouvia-se um som lastimoso de sofrimento, vindo do
cubículo da moça. O pai, ao ouvir os gemidos da filha,
levantou da enxerga onde dormia, encilhou o cavalo,
montou e se foi sem dizer para onde.
Naquela noite nasceu Apoema, filho da índia
Diadora dos Santos e do paulista Ronaldo Lemos Queiroz
178
A avó, Dona Luana, cortou-lhe o cordão umbilical
com a tesoura de costura, esterilizada na chama do fogo.
Banhou-o na gamela de madeira e o enrolou em panos
limpos. Entregou o menino para os braços da mãe, que o
beijou com carinho, e deu-lhe o seio cheio de leite que o
menino sugou com avidez. Estava tranqüila, duma
serenidade de céu azul que vem depois da grande
tempestade.
Já era quase de madrugada quando o pai voltou.
Ouviu o choro de criança na cabana, mas não perguntou
nada nem foi olhar o recém-nascido. Quirino continuava a
ignorar a existência tanto da filha como do neto.
Dona Luana achava que quando a criança fosse
maior e pedisse o colo do avô, Quirino acabaria aceitando o
neto. Era sorumbático como uma esfinge, ilhava-se na
penumbra dos seus pensamentos a remoer cogitações
tristes, era teimoso, mas tinha um bom coração. Ela
conhecia bem o seu marido, por isso confiava e esperava o
milagre do perdão para a filha.
Os dias, semanas e anos chegavam e se iam. Mas o
trabalho e os cuidados com o filho faziam a jovem mãe
esquecer o tempo. Em certas ocasiões surpreendia-se a
esperar que alguma coisa acontecesse, que seu amado
voltasse e ficava feliz, para depois no desalento,
compreender subitamente que ele jamais voltaria. Para ela a
vida estava terminada, pois um dia era a repetição do
anterior, e assim seria até o fim, naquela infindável
monotonia.
Seu único consolo era Apoema que via crescer, dar
os primeiros passos, balbuciar as primeiras palavras. O
menino era alegre, aprendeu a correr e a brincar com os
cachorrinhos, escolheu o Mosca como preferido, porque era
pequeno e ágil e com ele saltava e rolava pelo pátio de
terra. Depois alongou os seus passeios até a mata próxima,
179
caçando passarinhos e pescando no riacho. O Mosca não se
separava nunca dele. Certa vez livrou-o da picada da cobra
urutu-cruzeiro, correndo de um lado para outro advertiu o
menino Apoema e espantando a perigosa serpente com seus
latidos furiosos.
Quirino sentado na sombra da árvore, fumava em
silêncio, acompanhando fixamente a nuvem de fumaça do
cigarro que fazia volteios, como se nada visse ou ouvisse.
Não era homem de conversas, nem de questionamentos. E
era assim que o tempo se arrastava, o sol nascia e sumia, a
lua passava por todas as fases, as estações iam e vinham
deixando sua marca nas árvores, na terra e nas pessoas.
Por muitos anos, nas tardes mornas Diadora
costumava sentar-se na frente da sua cabana para pensar no
passado. E no seu pensamento ouvia o vento de outros
tempos e sentia a vida passar, escutava vozes, via rostos
queridos e lembrava-se dos acontecimentos felizes ou
tristes, como o amor e o abandono de Ronaldo.
E entre as cenas que nunca mais lhe saíram da
memória estavam as da tarde em que a mãe Luana sentiu
uma dor aguda no lado direito, ficara gemendo e se
retorcendo durante horas, suando frio. E quando Quirino
resolveu encilhar o cavalo para ir buscar recursos, já era
tarde demais. A mãe estava morta. Diadora sofreu muito
com a perda da mãe, que era também a amiga que a
consolava e entendia nas horas amargas. Enterram-na no
alto do morro. A filha e o neto, aos domingos, levavam
flores para enfeitar o túmulo e oravam por sua alma.
Uma tarde Diadora olhou bem para o filho e
começou ver nele traços da avó índia Dona Luana. Tinha os
olhos negros meio oblíquos, as maçãs salientes, o mesmo
corte de boca, cabelos pretos e lisos. Apoema era um
menino de temperamento melancólico, gostava de passeios
solitários, somente o Mosca, pulando em sua volta o
180
acompanhava e, agora que completara doze anos, começava
a fazer perguntas.
– Mãe! E o meu pai, onde está? - perguntou um dia.
– Morreu, antes de você nascer.
– Onde foi que enterraram o meu pai?
– Ele foi enterrado longe daqui – disse tristemente. No seu trabalho dentro da mata ele contraiu febre amarela,
viajou para São Paulo para tratamento da saúde, e nunca
mais soubemos dele. Deve ter morrido no hospital onde foi
internado. Mas, não pense mais nisso.
E os dias iam passando...
Numa tarde de verão, chegou à aldeia Tinguá um
cavaleiro desconhecido, montado no seu cavalo alazão, com
aperos chapeados de prata, muito empertigado, de cabeça
erguida, com ares de pessoa importante. As largas abas do
chapéu sombreavam-lhe parte do rosto. Ficou parado sob a
figueira grande; os poucos habitantes do lugar vieram
correndo cercá-lo; mulheres com crianças agarradas nas
tetas magras, homens solícitos de chapéu na mão, cães
latindo, e meninas e meninos assustados.
O homem não apeou. De cima do cavalo informouse sobre o pessoal do pescador Quirino dos Santos.
– Moram ainda na aldeia? O senhor Quirino está
bem? A moça Diadora casou? – perguntava interessado.
– Moram na aldeia, sim, no mesmo lugar; é a
terceira casa – informou a vizinha. Por que o senhor não vai
até lá? Eles devem estar na choupana.
Ele esporeou o cavalo e foi trotando até a casa
indicada. Parou em frente à porta e bateu palmas.
– Oh, de casa! – gritou alto.
– Quem é? - perguntou Diadora de dentro do
casebre - assomou à porta acompanhada do filho Apoema.
Ao deparar-se com o desconhecido, recuou. O
chapéu ocultava totalmente o rosto do homem.
181
– O senhor Quirino está? Gostaria de conversar com
ele. Posso entrar? – perguntou o visitante.
Diadora ao ouvir a voz do cavaleiro, reconheceu o
botânico Ronaldo, pai de Apoema. Quase desfaleceu.
Tremia-lhe a voz ao responder.
– Por favor, apeie e entre, vou chamar o pai.
– Espere um pouco, diga-me, o rapaz é seu filho?perguntou olhando para Apoema.
– É sim senhor, é meu filho.
– Onde está o seu marido?
Diadora não hesitou, respondeu prontamente :
– Morreu há muitos anos, de febre amarela, no
hospital em São Paulo.
Agora era o visitante que recebia o choque, ficou
pálido e aturdido. Não sabia o que pensar.
Apoema olhava fascinado para o homem, o cavalo e
botas do cavaleiro e para as esporas de prata que
lampejavam ao sol. Ele adorava cavalos e cavalgar em
corridas loucas pelos campos e apostar carreira na raia do
povoado.
Ronaldo entrou no casebre, tirou o chapéu de abas
largas e, então ela viu quanto ele envelhecera. O trabalho na
mata, o sol e as preocupações marcaram seu rosto moreno
com rugas fundas de expressão; seu cabelo negro
encaneceu antes do tempo. A nostalgia revelava-se no seu
semblante. Parecia que carregava uma grande dor.
Diadora olhou para seu filho admirada, percebeu
pela primeira vez que Apoema já era quase um homem
feito, de voz grossa e barba incipiente. Ficou surpresa ao
notar que o filho estava mais alto que ela. Ia completar
dezoito anos no próximo mês. Mas espanto maior ainda lhe
causara a descoberta de que, embora o rapaz tivesse
herdado os olhos oblíquos da avó índia, e o gênio do avô,
182
calado, reflexivo e teimoso, a sua fisionomia lembrava
muito o pai.
– Quem está aí? – gritou de dentro o pai.
– Sou eu Ronaldo, amigo Quirino. Estava passando
por essas bandas e não podia deixar de fazer uma visita ao
senhor e sua família. Tenho gratas recordações do tempo
em que aqui estive com meus amigos.
Quirino apareceu de cara fechada, resmungando e
cuspindo raiva pelos olhos. Encarou o visitante com ódio,
que lhe estendia a mão para cumprimentá-lo. Apoema
olhava a cena, curioso, não sabia a razão da animosidade do
avô.
– Não sei como você tem coragem de vir até aqui e
me olhar nos olhos, depois de ter trazido a vergonha para
esta casa.
– Por favor, explique! O que eu fiz de errado? –
indagou o visitante surpreso.
– Apoema saia daqui, porque eu tenho uma conversa
muito séria com esse senhor – disse o avô.
– Pai, tenha calma, por favor, ele não sabe de nada –
implorava Diadora.
–Você fique quieta no seu canto, eu resolvo esse
embuste. Quero que ele me diga por que foi tão
irresponsável, a ponto de enganar e desgraçar a minha filha.
O resultado dessa pouca vergonha está lá fora, Apoema, o
filho sem pai. Criei-o, porque é meu neto e é de boa índole.
– Estou estarrecido com essa informação –
comentou Ronaldo. – Mas por que não me avisaram? Eu
assumiria a criança, e a levaria comigo se Diadora
permitisse. Eu sou casado, mas não temos filhos, o menino
seria benquisto e alegraria o nosso lar. Com satisfação o
levarei agora, se ele quiser me acompanhar.
– Avisar, como?! Se você não deixou endereço
nenhum. Não deu mais notícias – retrucou nervoso o avô.
183
Chamaram Apoema para expor-lhe toda a história
referente ao seu nascimento. Diadora chorava no canto do
aposento. Não podia se manifestar, porque o pai é que
resolvia tudo, não admitia intromissão.
O moço entrou e sentou no banquinho rústico perto
da mãe. Estava confuso e desconfiado, vendo os dois
homens trocando palavras ásperas e a mãe chorando.
– Avô, o que está acontecendo aí? Por que a mãe
está chorando? Este homem está ameaçando vocês? O que
ele veio fazer aqui? – perguntava bastante irritado.
– Tenha calma, meu neto, vamos explicar tudo a
você, agora mesmo. Fale você minha filha.
Então Diadora contou toda a história, desde quando
conheceu Ronaldo, na beira do rio Madeira, ajudando-a a
salvar a canoa arrastada pela água, sua curta permanência
na aldeia, e o nascimento de Apoema. Ele já era um homem
e devia compreender a atração e o amor, fatos que
acontecem na vida de qualquer homem e mulher.
– Eu o amo muito, meu filho, mas se você resolver
acompanhar o seu pai, que está disposto a reconhecê-lo,
dar-lhe estudo e encaminhá-lo na vida, eu estou de acordo,
porque aqui na aldeia você não tem futuro nenhum, será
mais um simples pescador ou trabalhador braçal.
– Estou com sessenta anos, já vivi muito, há anos
perdi minha mulher Luana, que Deus a tenha. Pretendo
terminar os meus dias nesta aldeia, mas você, meu neto, é
jovem, tem a vida inteira pela frente, siga com seu pai, com
a minha benção – disse o avô Quirino.
No outro dia de manhã, Diadora disse adeus ao filho
e ao homem que ainda amava. Apertou Apoema contra o
peito, cobriu-lhe o rosto de beijos e a muito custo conteve
as lágrimas. Os vizinhos vieram despedir-se do jovem,
principalmente as moças que o adoravam. Havia um ar de
tristeza nos seus rostos, algumas choravam discretamente.
184
Acenaram com a mão para as pessoas presentes, que
ficaram a acompanhar com os olhos os cavaleiros que se
afastavam, trotando nas suas belas montarias. Os arreios
chapeados de prata de Ronaldo reluziam ao sol nascente.
Longe, quando já começava o declive do morro,
Apoema fez estacar seu cavalo, torceu o busto, tirou o
chapéu e acenou para os que ficavam. As pessoas
responderam ao aceno, com lenços brancos na mão.
E de novo Diadora começou a esperar... Esperava
notícias do filho. Se era dia, desejava que caísse a noite,
porque dormindo esquecia a espera. Se era noite, queria que
um novo dia viesse, porque quanto mais depressa passasse
o tempo, mais cedo o filho voltaria para casa.
Os anos passaram e o dia da formatura chegou.
Como ela tinha visto em sonhos, finalmente Apoema vestia
a beca preta. Recebeu o diploma de formando em Biologia,
da mão do reitor da Universidade de São Paulo. Iria
especializar-se em botânica, como o pai, para dedicar-se à
pesquisa de plantas medicinais da flora amazonense.
Voltou a Porto Velho, onde iria assumir uma cadeira
de professor na Faculdade de Biologia. Entretanto, exerceu
por pouco tempo o magistério, pois a aventura na selva o
atraía. Nas suas viagens pelos sertões e no contato com os
índios interessou-se pela sua cultura, tornando-se um
notável indigenista e pesquisador.
De início, seguidamente voltava à aldeia Tinguá
para visitar a mãe e o avô Quirino, que já beirava aos
setenta anos, mas continuava forte, com boa saúde e
teimoso como sempre. Tranqüilo, quanto à segurança da
sua pequena família, foi espaçando suas visitas à aldeia e
alongando mais a expedição, até que desapareceu na
imensidão da selva amazonense. Não havia nenhuma
notícia dele.
185
Diadora estava com quarenta anos, amadurecera, e
sua beleza morena acentuava-se mais a cada dia, conservou
a esbeltez do corpo e o olhar brejeiro da mocidade. Depois
do relacionamento com o pai de Apoema, ela não se
interessou por mais ninguém. Dedicava-se apenas ao
trabalho doméstico e à pesca junto com o pai. Passados
vinte anos de solidão, o destino encarregou-se de mudar a
sua vida monótona, preparando-lhe uma grande surpresa.
Naqueles dias apareceu na aldeia Tinguá, Acássio
Bezerra da Silva, seu antigo apaixonado que após muitos
anos tentando a sorte no garimpo do Rio Roosevelt,
finalmente encontrou um diamante de tamanho regular, que
negociado, rendeu-lhe uma boa soma em dinheiro. Então
ele resolveu mudar de vida, abandonar o garimpo, casar,
constituir família, pois já estava com cinqüenta anos.
Planejava comprar alguns alqueires de campo com
pastagens para criar gado. Na procura do lote de terra para
adquirir, tomou o rumo da aldeia Tinguá. Já era noite
quando atravessava o campo por uma trilha tortuosa.
A lua cheia vinha assomando pelo cimo das
montanhas fronteiras, e com sua luz prateada iluminava o
espaço como se fosse dia. As estrelas cintilavam sobre a
aldeia, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério
abandonado. Era tanto o silêncio, que se alguém aguçasse o
ouvido podia escutar o sussurro das árvores da floresta
próxima.
Num certo momento, ouviu o estalar de galhos e
passos pesados, outros mais leves e cautelosos. Acássio
desceu da montaria e agachou-se atrás de um toco caído.
Tirou a espingarda do coldre e preparou-se para atirar, com
o cão da arma engatilhado. Descobriu que era uma anta
adulta acompanhada do filhote que pastava a grama verde,
tranqüilamente.
186
O caçador olhava atento; apenas dez passos
separavam-no da caça. Os segundos passavam, ele hesitava,
tinha pena da anta, se a matasse deixaria órfã a cria. Tinha o
coração sensível e medo de matar. Engraçado. A noite
estava fria mas o suor escorria-lhe pelo rosto e entrava-lhe
na boca, com gosto de salmoura.
Indeciso, Acássio sentou-se no chão, recostou-se na
árvore e acendeu o cigarro. Fumava, achando gostosa a
ardência da fumaça nos olhos e ainda tinha uma vantagem,
afugentava os pernilongos que cantavam em volta do seu
rosto. Renunciou abater o animal.
Outro caçador rondava a mesma caça, quando viu
Acássio desistir e sentar no chão. Foi até ele.
– Aceita um trago de pinga para te dar coragem?perguntou o outro, rindo e passando-lhe a garrafa de
cachaça que trazia no embornal. Acássio a apanhou e a
levou à boca, tomando um grande gole. Repetiu.
– Obrigado – disse.
O outro ficou um instante em silêncio, batendo a
pedra do isqueiro para acender o cigarro que se apagou. Um
grilo começou a cricrilar perto, escondido na grama.
Acássio tirou um cigarro da carteira, pôs entre os dentes e,
esquecido de acendê-lo, ficou olhando para o céu.
– Quem é você e o que procura por essas bandas? –
perguntou o outro.
– Primeiramente quero que saiba que não sou
caçador. Meu nome é Acássio Bezerra, garimpeiro de
profissão, venho da cidade de Porto Velho procuro um
pedaço de terra que me interesse, para comprar. Talvez o
amigo possa me indicar alguém nessa aldeia ou outra que
me auxilie nessa tarefa – pediu Acássio.
– Mas, é claro! Posso indicar-lhe o mais antigo
morador da aldeia Tinguá e chefe da comunidade, o meu
amigo Quirino das Santos – informou o homem.
187
– Tomara que eu o encontre em casa, que não esteja
viajando ou pescando longe nalgum rio – comentou
Acássio. Desejo resolver este assunto logo. Estou cansado
de procurar o pedaço de terra que me agrade, pela
fertilidade, localização e pelo preço.
– Bom, tenho de ir andando... Disse o outro –
desejo-lhe sorte no negócio. Dê meu abraço no amigo
Quirino.
Acássio levantou da grama, bateu o isqueiro, tornou
a acender o cigarro, tirou uma baforada e depois seguiu
indolente em direção à árvore onde estava preso o cavalo.
Desamarrou o cabresto e pulou na montaria. Saiu trotando
pela trilha estreita, no meio do matagal, rumo à aldeia.
O dia estava clareando quando chegou ao destino. O
horizonte empalidecia e as estrelas se iam apagando aos
poucos. Em torno, os campos estendiam-se ondulados, sob
a luz pálida, cinzenta. Era uma vasta extensão de terras
próprias para pastagens. Seria ótimo se conseguisse
comprar uma boa área para formar a sua tão desejada
fazenda.
Estava cansado e com sono, portanto, foi descansar
em uma pensão. Dormiu até o meio dia. Acordou
angustiado. Seu espírito relutou por alguns segundos,
emaranhado nas malhas de um sonho inquieto, como um
peixe que se debate na rede, na ânsia de voltar a seu
elemento natural. Sonhou com Diadora do tempo da sua
juventude. Ela continuava tão bela como antes, mas
desdenhava-o deliberadamente. Qual surpresa o tão
próximo encontro lhe traria? Será que ela casou? Acássio
não parava de perguntar-se.
Por fim, levantou da cama, tomou um cafezinho na
mesa da pensão e seguiu a direção do rio. Despiu-se e
deslizou para a água, mergulhou, voltou à tona e nadou até
o poço fundo perto da margem, ali ficou imóvel apreciando
188
o frescor da água, por um bom tempo. Depois do banho, foi
vestir-se para o encontro com Quirino dos Santos.
Cavalgando, foi até a cabana. Desceu da montaria em frente
da porta e bateu palmas:
– Oh, de casa! – gritou.
– Quem é? – perguntaram de dentro da casa.
– Sou eu, Acássio Bezerra, venho lhe fazer uma
visita, e falar de negócio.
– Apeie e entre, amigo! – convidou Quirino.
Quirino saiu para receber a visita, a qual não
reconheceu de imediato. Mas olhando bem, estendeu os
braços e agarrou-o num forte abraço.
– Bem-vindo à nossa cabana, amigo Acássio.
Diadora minha filha, venha ver quem veio nos visitar.
A jovem estava ocupada com os afazeres
domésticos, de avental na cintura e lenço de chita
prendendo-lhe os longos cabelos. Não esperava encontrar o
homem por quem tinha se apaixonado na sua juventude.
Ficou surpresa.
– Diadora! Você não mudou nada! Continua bela
como sempre foi – disse galantemente Acássio.
– É gentileza sua – respondeu ela ruborizando-se.
Entre e sente, não repare na simplicidade da nossa casa.
Não somos ricos. Vou passar um café fresco para você.
Quirino e Acássio, sentados em bancos rústicos de
madeira, entabularam a conversa acerca das terras que o
moço queria comprar.
– Vou levar você para os lados do Jaru, conheço o
proprietário de uma boa gleba, talvez ele se interesse por
vendê-la. Uma parte está formada com capim colonião,
uma boa parte é de cerrado e outra de mata nativa. Dá para
formar uma bela fazenda Podemos sair amanhã bem cedo.
– Está certo, amigo Quirino – aprovou Acassio.
189
Enquanto isso Diadora servia o café com bolinhos
de chuva feitos na hora. O moço lançava olhares
interessados para a dona da casa.
– Diadora você casou?– encorajou-se em perguntar.
– Não, não me casei, não encontrei ninguém por
quem pudesse me apaixonar, como falei no passado, só
casarei com o homem que me despertar amor.
Acássio foi até a porta da cabana, ali parado ficou
cismando acerca da resposta da moça. Que enigma
guardava ela? Será que tinha esquecido o romance que
iniciaram na juventude e que não prosperou entre os dois,
por causa de sua precipitação, ou por erro de avaliação da
situação existente entre eles? Resolveu esperar a ocasião
oportuna para desvendar esse mistério.
Logo que clareou o dia, Acássio e Quirino
encilharam os cavalos e tomaram o rumo de Porto Velho.
Dias antes, Acássio comprou um veículo Toyota, utilitário
de tração nas quatro rodas, resistente, próprio para enfrentar
as péssimas estradas do interior. Quando foi para a aldeia
Tinguá deixou a camioneta em casa do pai, na cidade.
Agora vinha apanhá-la para irem à procura de terras na
região de Jaru.
Abasteceu o carro com óleo diesel e dirigiram-se
para a estrada asfaltada BR364. Seguiram em direção à vila
de Jaru, que ficava a 250 km da capital, rumo sul. Durante a
viagem conversavam amigavelmente, o moço contava as
aventuras vividas no garimpo, e a morte do seu irmão
Ventura, no desabamento de um túnel no garimpo do Rio
Roosevelt. Chegaram a Jaru ao entardecer.
Alugaram um quarto numa pensão para o pernoite e
noutro dia de madrugada, engolindo apenas um cafezinho,
rodaram 50 km pelo caminho indicado, mal conservado,
cheio de declives e buracos, até a vila Gov. Jorge Teixeira,
de nome suntuoso, mas que tinha só uma rua, esburacada,
190
coberta de areia, de casas pobres sem iluminação, em frente
das quais crianças maltrapilhas, descalças e cachorros
esquálidos brincavam.
No boteco da esquina da vila, Acássio pediu
informações sobre a direção certa a seguir, virou à direita, à
esquerda e novamente à direita, rodou mais 20 km por uma
trilha sem conservação havia muito tempo, cheia de buracos
e desvios, atravessou o rio Jaru no vau, pois a ponte de
madeira, já muito precária, fora levada pela água da cheia.
Apesar das dificuldades e dos impedimentos que se
apresentavam a cada passo, os viajantes não perderam o
ânimo. Em toda a margem da estrada viam-se ranchos
improvisados e cercados, construídos para marcar as
posses. A invasão e a grilagem de terras devolutas era um
dos problemas da região.
Chegaram à fazenda pelo meio-dia. O proprietário
da gleba de 200 alqueires, Florisvaldo de Souza, fez
questão de lhes servir o almoço, que se compunha de feijão,
arroz, carne de anta assada no espeto e abóbora refogada.
Um café feito à moda tropeira arrematou o almoço.
Após a sesta, encilharam os cavalos e foram
percorrer a extensão de mata nativa intocada, do cerrado, e
dos 50 alqueires de pasto formado com capim colonião, que
alcançava mais de dois metros de altura. Nos campos
pastavam cento e noventa cabeças de gado misto, entre
vacas leiteiras com bezerros, novilhas, garrotes e bois de
canga.Quinze cavalos e mulas perfaziam o suporte da tropa.
As terras eram férteis, pouco onduladas e sem
grande incidência de pedras, o que era incomum, pois no
horizonte próximo desenhavam-se os picos da Serra dos
Pacaás Novos, sinal de atividade vulcânica não muito
remota. O rio Jaru nasce na encosta da referida Serra, assim
como inúmeros córregos.
191
Um riacho corre ao lado do cercado, as águas
represadas formam o açude; ali criam-se peixes nativos das
águas da Amazônia, como piapara, pirarucu, surubimpintado e bagres, nadam patos e marrecos. Um rego d‟água
passa dentro do chiqueiro dos porcos. Utilizando a
inclinação do terreno, a água é levada por mangueiras até à
cozinha e ao chuveiro.
Ajustado o preço do negócio de porteira fechada,
este foi concluído no cartório com a assinatura da escritura
definitiva. Acássio era o novo proprietário da fazenda Jaru.
Finalmente realizou um sonho acalentado por muito tempo
nas galerias do garimpo de ouro e de diamantes dos rios
Madeira e Roosevelt. Estava feliz e realizado. Começava
uma nova vida para ele. Erguendo o busto para o alto,
lançou um olhar sobranceiro pelos vastos horizontes que se
abriam diante dele, e exclamou:
– Aqui sou o dono. Aqui posso respirar à vontade o
ar puro dos campos. Nessa terra formarei o meu lar.
Em seguida tirou o chapéu, curvou o joelho para o
chão, fez o sinal da cruz e estendeu a mão direita sobre a
mata, abençoando-a.
Acássio precisava agora avisar o seu pai em Porto
Velho. Talvez conseguisse convencer a sua família a
mudar-se para a fazenda. Contava com eles nas lides da
formação do pasto e criação de gado na nova propriedade
Ali estava tudo por fazer. Os campeiros Raimundo e
Amadeu, solteiros, e o administrador Alaor Nunes, casado,
empregados da fazenda Jaru, continuariam a serviço do
novo proprietário. Na fazenda a vida era difícil e dura.
Moravam num rancho de taipa, com paredes de
estacas de palmito preenchidas com barro, coberto de palha
e com chão de terra batida. O rancho não era grande.
Constava duma só peça quadrada com repartições de pano
grosseiro.
192
A maior das divisões era onde faziam as refeições e
ficavam à noite conversando antes de irem para a cama; era
ao mesmo tempo refeitório e cozinha e a um canto dela
estava o fogão de pedra e uma talha com água potável.
Dentro de uma caixa de madeira com tampa, guardavam os
mantimentos protegendo-os dos ratos, raposas e formigas.
O mobiliário era simples e rústico, uma mesa de
tábuas brutas de castanheiro, bancos de tocos de árvore,
uma arca de madeira onde a dona da casa guardava as
roupas da família, um armário meio desmantelado com
pratos e canecas, uma armação com ganchos na parede,
para dependurar panelas de alumínio que de tão polidas
brilhavam ao sol, e sobre um estrado uma pequena imagem
de N.S.de Aparecida e a seus pés uma lamparina de azeite,
minúscula, bruxuleava dia e noite.
Em outra repartição ficava a cama do casal, sobre a
qual, na parede, pendia um crucifixo de madeira com um
Cristo carcomido; ao pé da cama ficavam o revólver e a
espingarda de dois canos, carregada. Na divisão seguinte
estavam os beliches das três crianças.
Firmina, a mulher de Alaor era uma dona de casa
ordeira e prestimosa. Cuidava com afinco dos seus afazeres,
das crianças, ordenhava as vacas, criava galinhas e porcos;
e ainda lhe sobrava tempo para folhear e ler algumas
revistas que o patrão trazia.
Acássio, após a compra da fazenda estava de retorno
à capital. Decidiu acompanhar o amigo Quirino até a aldeia
Tinguá. Estava com algumas idéias novas na cabeça. Com
insistência voltava-lhe à lembrança a imagem morena de
Diadora. Desejava revê-la, aproveitaria a ocasião para
conversar com ela sinceramente, de coração aberto. Deixou
a caminhonete na casa do pai, arrumou dois cavalos
arreados para levá-los para a aldeia. Já escurecia quando
chegaram à beira do rio e da choupana de Quirino.
193
Diadora foi recebê-los, contente e ansiosa por
notícias da capital e da compra da fazenda.
– Então, como foram de viagem? – perguntou.
– Fomos muito bem, acabo de adquirir a Fazenda
Jaru. É bastante longe daqui, uns 320 quilômetros da
capital, mas vale a pena, as terras são boas, bem localizadas
e o preço compensador – Acássio desfiava as vantagens da
aquisição, satisfeito com a compra.
– Pelo que vejo você está feliz – aprovou a moça.
– Estou sim, apenas para completar, falta-me uma
companheira para dividir comigo a vida atribulada da roça.
– Mas isso não é difícil, você é um cinqüentão
charmoso, bonito e rico - respondeu gracejando. Haverá
muitas moças que apreciem o seu cabelo grisalho.
Após dar seu parecer, achou que falou demais, ficou
encabulada e se retirou para preparar o jantar para os dois.
O rapaz ficou analisando a opinião de Diadora
acerca da sua pessoa, deduziu que ela não era totalmente
indiferente a ele e poderia tentar aproximar-se mais, talvez
conseguisse alcançar o seu objetivo. Afinal, ela era uma
mulher atraente e mesmo que já tenha passado dos quarenta
anos, conservava a beleza dantes, a esbelteza do corpo e o
brilho no olhar obliquo. Seria uma esposa à altura. Depois
do jantar convidou-a a dar um passeio, à luz do luar.
Caminharam em silêncio, até que ele olhando-a perguntou:
– Ainda se lembra do forró que dançamos aqui no
terreiro da aldeia, tempos atrás?
– Claro que me lembro, notei o teu interesse por
mim naquele baile, isso tinha despertado a minha vaidade,
gostei de você. Desde então alimentei a esperança de um
namoro, mas depois daquele impasse embaraçoso que
houve entre nós, no alpendre da horta, você sumiu do mapa,
nunca mais deu notícias, e o tempo passou.
194
– Eu juro que nunca esqueci de você, Diadora.
Aquele encontro no baile ficou gravado no meu
pensamento, mas a vida me levou de roldão. Absorvido no
meu trabalho no garimpo, não tive oportunidade de
procurá-la.
– Nesse tempo eu conheci um homem que foi meu
grande amor, mas houve um infeliz desencontro entre nós, a
vida dele tomou outro rumo. Deixou para mim um prêmio
maravilhoso, que é o meu filho Apoema. Criei-o sozinha.
Quando adolescente conheceu o pai que o reconheceu
legalmente, e o levou para São Paulo onde morava. Lá ele
estudou; atualmente é formado em Biologia, trabalha em
pesquisa na região amazonense – confidenciou Diadora.
– Gostaria muito de conhecer teu filho, podemos ser
bons amigos. – comentou Acássio.
– Possivelmente, Apoema vem visitar-nos no final
do ano, será uma boa ocasião para se conhecerem.
Acássio tomou a mão da moça e depositou um
prolongado beijo, olhando esperançoso nos seus olhos. Ela
sorriu e suas pupilas brilharam.
– O que você acha de revertermos o passado e
ressuscitarmos aquele afeto incipiente que deixamos
esquecido pelo caminho da vida? Mesmo que não sendo
mais jovens, mas ainda cheios de energia, talvez agora
possamos nos entender e acertar nossas vidas. Pense nisso
seriamente – pediu Acássio, quase implorando.
– Prometo que vou pensar – respondeu ela.
– Eu não tenho muito tempo para esperar, você não
poderia me dar essa resposta agora, neste momento?
Aceitaria casar-se comigo e ir morar na Fazenda? –
perguntou Acássio muito inseguro.
– Vamos com calma, homem, o mundo não vai
acabar.
– Desculpe-me, é que estou muito ansioso.
195
– Prometo que vou pensar à noite, e amanhã de
manhã, depois de falar com meu pai, lhe darei a resposta.
– Com certeza não conseguirei conciliar o sono esta
noite – comentou ele esperançoso, mas com tristeza.
Diadora sugeriu que já era tarde e deviam se
recolher. Ele a acompanhou até a porta da sua cabana,
despediu-se abraçando-a e depositando-lhe um beijo na
face. Combinaram que noutro dia tratariam do assunto em
suspenso.
Ainda acordado, Quirino esperava a volta da filha.
– Pela demora o passeio devia ser muito
interessante, não foi, filha?
– Pois foi, meu pai, tive uma proposta que me
surpreendeu muito – confidenciou.
– Que te falou Acássio?
– O senhor não vai acreditar na sua intenção. Ele
quer casar comigo e levar-nos para a Fazenda. Fiquei de
dar-lhe a resposta amanhã cedo. O homem está com pressa,
quer resolver esse assunto logo. Que lhe direi, meu pai?
– Acássio tem razão na urgência, pois a Fazenda
Jaru requer a sua presença constante. Tem muita coisa a ser
resolvida na área da administração. Quanto aceitar ou não o
pedido de casamento, esse assunto é totalmente de tua
competência. Veja o que é melhor para você e decida. Para
mim, o que você resolver será bom.
Diadora esteve loucamente apaixonada por Acássio
na juventude, mas ele a decepcionou muito quando quis
subjugá-la ao seu desejo, recordava o chute que teve de
dar-lhe para afastá-lo. Era possível ele ter esquecido tudo?
Será que o sentimento de amor ressuscitou ou resistiu ao
tempo?
Ela não conseguira pregar os olhos a noite toda, e
quando ainda amanhecia e a luz do sol nascente apenas
roçava a fímbria d‟água da lagoa, ao largo do campo, ela
196
levantou-se e foi caminhar pela praça da aldeia. Recordouse doutros tempos, da última festa do Divino, o coreto onde
tocava uma banda de música vinda da cidade, as
bandeirinhas de papel colorido, a quermesse, os fogos de
artifício e jogos, os bingos e leilões de prendas oferecidas
pela comunidade. Depois, lembrou-se do forró, quando o
povo dançava ao som de sanfona e pandeiro, numa louca
animação, até o sol raiar.
Lembrou-se de Ronaldo e seus momentos de
felicidade, Apoema menino, depois já adolescente
divertindo-se com os meninos da sua idade. Tudo isso lhe
vinha à memória, e analisava se valia a pena trocar todas
essas lembranças bonitas, para construir uma nova vida
com Acássio. Mas a vida restrita e monótona da aldeia
Tinguá, onde viveu até agora, não lhe oferecia nenhuma
nova perspectiva. Pensou... Analisou os prós e os contra, e
decidiu aceitar a proposta de casamento.
Naquele dia Diadora caprichou na arrumação do
café da manhã. Cobriu a mesa com toalha branca, bordada
por ela, e no centro colocou um vaso de flores do campo.
Assou pão e bolo de fubá. Colocou as xícaras coloridas,
talheres, açucareiro, manteiga, doce de goiaba. Serviu café
com leite.
– Pai! Por favor, convide a visita a entrar e sentemse à mesa, que o café está servido. Eu tenho uma
comunicação a fazer a vocês.
O moço adentrou e da porta olhava-a com olhar
interrogativo, queria adivinhar a resposta que ela ia lhe dar.
– Acássio, quero saber primeiro se você tem algum
sentimento por mim – indagou, olhando-o de frente.
– Claro, minha querida, se não fosse assim eu jamais
cogitaria em unir as nossas vidas. Eu amo você, Diadora,
nunca a esqueci durante esses anos, desde o nosso primeiro
197
encontro no forró da aldeia. Mas, diga, aceita casar-se
comigo? Fale! Livre-me dessa angústia de espera.
– Pai! Posso aceitar a proposta de Acássio?
– Se é do teu gosto e tens afeto por ele, eu os
abençôo – falou Quirino com lágrimas nos olhos.
– Vou viver para fazê-lo feliz – disse ela.
Trocaram um beijo para selar o compromisso. O
casamento seria oficiado dentro de quinze dias. Precisava
avisar o filho Apoema que estava embrenhado no sertão.
Apesar da busca insistente, junto com seus amigos
sertanistas, não conseguiram localizá-lo.
O enlace realizou-se sem a sua presença, mas
assistido por toda a gente da aldeia. A cerimônia foi
simples, oficiada pelo padre Agostinho, na igreja da vila
enfeitada com lírios brancos, flores da época. A noiva
estava vestida de branco, de véu e grinalda feita de flores de
laranjeira, que floresceram em profusão naquele ano.
O enlace foi comemorado com fogos de artifício e
um forró animado pela sanfona de Cícero da Malú,
sanfoneiro dos bons. Terminados os festejos os nubentes
viajaram para a Fazenda Jaru. Diadora e Acássio iam
começar uma vida nova, como donos daquelas terras.
Acássio estava realizando o seu sonho, o de ser
proprietário de terras com grandes pastagens onde poderia
criar gado, cavalos e porcos; e nas terras de cultura plantar
café e cereais. Este estilo de vida o fascinava.
Diadora, ao chegar em sua nova casa, logo foi-se
engajando no trabalho de arrumação e administração do seu
pequeno reinado. Alegre e feliz passava os dias entregue
aos afazeres domésticos. Apenas não estava totalmente
contente, pelo fato de ter deixado seu pai na aldeia Tinguá,
e não conseguir noticia do filho. Sentia muitas saudades
deles. Acássio esforçava-se por fazê-la feliz. A vida na
198
propriedade transcorria de modo habitual, dia após dia,
tranqüilos e sem surpresas.
Aquele dia foi diferente, amanheceu com o sol
despontando detrás da Serra, os raios tingindo de rubro
intenso os campos e a mata, a cor desmaiando aos poucos.
De repente, sem saber donde vinha, emergiu sobre a
floresta que cobria a Serra dos Pacaás Novos, uma nuvem
escura, pesada, carregada de chuva. Pela noite adentro
relampejou e o trovão rolou sobre a mata e os campos de
pastagem. Os animais do curral e do pasto estavam
inquietos e se agruparam junto ao cercado, coisa que deixou
as pessoas preocupadas, sentindo no íntimo uma
inquietação vaga.
Era como um sinal dos deuses, de algum fato
incomum e inesperado por acontecer, que espicaçou a
curiosidade da comunidade. O que de espantoso
prenunciavam os espíritos da natureza? A resposta a essa
pergunta veio logo de manhã do próximo dia.
Todos acharam estranha a maneira como o tropeiro
Bolívar Sanches entrara na Fazenda Jaru. Um dia chegou a
cavalo, vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu de
barbicacho de abas viradas, puxado para trás, a bela cabeça
de macho altivamente erguida, cabelos negros escorridos e
aquele olhar penetrante de águia, que perscrutava, prendia e
fascinava as pessoas.
Era um caboclo alto e espadaúdo, de pele trigueira.
Uma leve cicatriz atravessava-lhe uma das faces, da boca à
orelha. O aspecto que apresentava sugeria que era
audacioso e provocador. Homem rijo do campo capaz de
ficar dias sem comer e beber.
Devia andar lá pela casa dos trinta anos, montava
um alazão muito bem aperrado, vestia calça de brim escuro,
botas de couro negro de cano alto sanfonadas e esporas de
prata; o busto musculoso coberto de pêlos negros, aparecia
199
de dentro da camisa xadrez, desabotoada. Trazia um violão
a tiracolo; o poncho cinza, o embornal de couro com
roupas, a espingarda e o cantil presos aos arreios.
O vaqueiro apeou em frente do botequim da colônia,
amarrou o cavalo no tronco de uma árvore, entrou na venda
arrastando as esporas, batendo na coxa direita com o
rebenque, e foi logo dizendo:
– Boa tarde, senhores! Quem é o dono daqui?
– Sou eu, o proprietário da Fazenda Jaru. O que o
amigo procura? – perguntou Acássio, altivo.
– Nada de especial, apenas procuro colocação de
boiadeiro ou peão de fazenda, gosto de amansar cavalos e
lidar com gado – respondeu Bolívar sorrindo, olhando para
o outro com um ar de simpatia, estendendo-lhe a mão.
E enquanto ele se apresentava Acássio analisou-o
com olho frio e perspicaz. Não gostou do ar altivo do cabra,
do seu jeito de olhar os outros “de cima”. Depois de pensar
um pouco, estendeu-lhe a mão, dizendo:
– Chegou em boa hora, estou precisando de gente,
para conduzir uma tropa de gado para o frigorífico. Quando
pode começar?
– Agora mesmo, se for necessário – respondeu
Bolívar, prontamente.
Acássio alisava a palha para o cigarro com a lâmina
da faca, lentamente. Seus olhos continuavam ainda postos
no estranho, avaliando-o. Aquele violão a tiracolo lhe
inspirava desconfiança. Nunca tivera simpatia por violeiros.
– Enfim, é preciso haver de tudo um pouco neste
mundo de Deus – concluiu.
O sol estava quase sumindo por trás dos montes e
era uma luz de tons alaranjados que envolvia o vaqueiro,
que ali estava de cabeça erguida, mordendo o barbicacho.
Acássio começou a falar em coisas vagas como o
tempo, as derrubadas, a castração dos garrotes e
200
principalmente a carreira que iria realizar-se naquele
domingo. Mas estava mesmo ansioso por saber quem era
aquele tal Bolívar e de onde tinha vindo. Que era prosa,
logo se via; que era fanfarrão, não restava a menor dúvida.
Tinha entrado ali altivo e provocante.
Sentaram-se a uma mesa de tábua bruta de
castanheiro, sebosa e sem toalha, e sobre a qual estava uma
bandeja com xícaras e o bule de café. Ao lado, uma garrafa
com cachaça e pequenos cálices de vidro. Bolívar pegou a
garrafa, encheu dois cálices e ofereceu ao proprietário.
– À saúde – festejou.
– À nossa – respondeu Acássio e tomou a bebida
num só gole, depois bateu o isqueiro, acendeu o cigarro de
palha, tirou duas tragadas e ficou a observar o forasteiro.
Já começava a achar que ele tinha uma cara
simpática. Só o jeito de olhar é que não era muito
agradável. Havia naqueles olhos de gato muito atrevimento
e um constante ar dominador. Os cabelos caídos na nuca
eram negros, com lampejos dourados refletidos pelo sol.
O nariz aquilino e o basto bigode disfarçavam a
boca grande e o queixo voluntarioso. Acássio não pôde
deixar de reconhecer que o vaqueiro era um belo tipo de
homem. Isso o deixou irritado, estava enciumado.
Bolívar, pegou o bule de café, que estava no canto
da mesa, encheu uma xícara, pôs duas colheres de açúcar e
degustou.
– O café daqui não é grande coisa – comentou,
limpando a boca com a manga da camisa.
– É isso que a gente tem, é colheita própria –
respondeu o dono, meio azedo.
– Os homens daqui gostam de jogar cartas?
– Alguns gostam, mas é proibido o jogo nas
dependências da minha fazenda nos dias úteis, só é
201
permitido nos finais de semana e feriados, como
divertimento.
– E o senhor?
– Eu não jogo.
– Pelo que vejo o senhor é um homem sem vícios.
– Nem tanto, mas não gosto de jogo, bebedeira ou
arruaça nos meus domínios.
Houve uma pausa prolongada.
– Me arruma o serviço na fazenda? – perguntou o
peão, já impaciente.
Acássio tinha vontade de saber mais do passado
daquele homem antes de contratá-lo.
– Ainda preciso saber – começou - batendo a pedra
do isqueiro e acendendo o cigarro que apagou – donde vem
o amigo? Com quem trabalhou antes? Por acaso tem
referências por escrito?
Bolívar fez um gesto largo com as mãos
demarcando o largo horizonte e respondeu:
– Venho deste mundo sem fronteiras, trabalhei em
diversas fazendas, amansando mulas ou tropeando gado nas
estradas. Não trago papéis de recomendação. O meu
trabalho dirá o que sou.. Poderá avaliá-lo com o tempo. Sou
solteiro, não tenho parentes e pretendo fixar-me no
emprego. Gosto da lida com animais, o senhor vai apreciar
o meu desempenho.
Acássio sacudia a cabeça devagarinho em
aprovação, não sabia que opinião formar daquele homem,
nem a que ponto acreditar no que ele dizia. Resolveu
contratá-lo, por um tempo, em experiência.
– Sim, vou contratá-lo. Agora trataremos da sua
acomodação, rancho e das suas obrigações. Das condições
e do ordenado falaremos oportunamente, se estiver tudo de
acordo. De início, fará um teste de aptidão.
202
Diadora apontou na porta da venda para chamar o
marido, e seus olhos oblíquos, curiosos, ficaram espiando o
desconhecido por um instante.
Bolívar ergueu para ela os olhos sedutores, atrevidos
e um largo sorriso nos lábios.
– Há muita moça bonita por aqui.
– Tem sim. Esta senhora bonita que veio aqui é
minha mulher.
– Desculpe, não quis ser indelicado.
O cigarro de palha estava colado no lábio inferior de
Acássio, que tinha a boca entreaberta e uma expressão de
desaprovação nos olhos. Quase que estava se arrependendo
de ter contratado o forasteiro. Ficou assim algum tempo e
depois falou vagarosamente:
– Amigo, aqui todas as mulheres tem dono, as que
ainda não têm são moças de família e querem casar. Nós
queremos que haja muito respeito com as famílias desta
colônia. E é melhor ir lhe avisando, o povo desta terra é de
boa paz, mas não gosta que ninguém venha se intrometer na
sua vida particular.
O boiadeiro escutava com atenção, mastigando uma
ponta do cigarro de palha, que estava apagado.
– Entendido, patrão, da minha parte pode ficar
tranqüilo, eu não vou mexer com ninguém.
Acássio lembrou-se do chamado da mulher para o
almoço e dos seus afazeres na fazenda; tinha que ir buscar
mantimento e sal para o gado na vila de Jaru. A despensa da
casa estava quase vazia e sua mulher estava reclamando.
Teria que comprar, inclusive, uma boa remessa de alimento
para o rancho dos peões, algumas panelas e apetrechos.
Precisava ir dar algumas ordens aos empregados e tomar
outras providências.
Caminhou até a janela da venda, olhou a praça com
a grande figueira no centro, as casas dos colonos em torno e
203
os verdes pastos que circundavam a colônia. O sol da tarde,
escaldante iluminava tudo, deixava as pessoas e os animais
em profunda modorra. Era a hora da sesta. Mas antes de ir
para casa, foi mostrar o alojamento dos peões. Havia um
cômodo vago que destinou ao novo contratado.
– Esta é a tua acomodação. Por hoje pode ficar
descansando. Começaremos o trabalho amanhã bem cedo.
– Certo patrão! – respondeu.
O novo campeiro abriu a porta emperrada com um
supetão, estava presa apenas com frágeis tiras de couro de
boi. Entrou, olhou o quarto, jogou a mochila e os outros
apetrechos que trazia, no canto. Apressadamente, tirou a
roupa e jogou-se na cama. Minutos mais tarde, estendido de
borco, completamente nu, dormia profundamente. Ali
estava sobre o leito forrado de palha, aquele homem alto e
musculoso, cabeludo como um gorila.
A presença dele parecia entulhar o cômodo. O calor
de seu corpo aumentava a já quente temperatura ambiente.
Seu cheiro acre e seu próprio ressonar pareciam ocupar um
espaço físico. Num certo momento o homem rebolou-se,
ficou de ventre para cima, e começou a roncar. Um grilo
que saltava pela grama entrou no quarto e começou a
cricrilar. Os dois faziam um dueto de trombone e percussão.
Acássio depois de distribuir as ordens, fez meia
volta e encaminhou-se para sua residência. Levava um mau
pressentimento. Estava inquieto, não se sentia feliz. Aquele
homem que recebera na sua propriedade ia trazer-lhe
problemas. Por um momento a sombra de uma dúvida
invadiu-lhe o espírito. Que diria Diadora, quando lhe
dissesse que contratara aquele homem?
***
Naquela noite os peões da fazenda ouviram música
de violão, sentados ao redor da fogueira. Ouvia-se também
204
a voz quente e bonita do boiadeiro acompanhando o
instrumento. Acássio começou a sentir, desde o primeiro
momento ao ouvir o canto, uma inexplicável antipatia pelo
dono daquela voz. Podia não recebê-lo, era o dono, mas
contratou-o, à revelia de sua vontade.
Diadora não aceitou de bom grado essa figura
estranha; olhou com curiosidade e espanto para a cara do
desconhecido. Sentiu uma coisa esquisita sob seu olhar
provocante, suas faces e orelhas começaram a arder. Seu
corpo foi tomado por uma sensação incomum, uma espécie
de medo e euforia. Era também um prurido quente, como se
formigas estivessem lhe invadindo o corpo.
Bolívar tinha gostado da moça, mais que isso, tinha
ficado excitado ao olhar para suas nádegas curvilíneas.
Nunca tinha ficado tão impressionado por nenhuma mulher,
assim à primeira vista. Viu que ela tinha a pele do rosto de
cor acobreada como uma fruta madura e que seus seios
eram pontudos. Imaginou como deviam ser rijos. Apalpálos seria o mesmo que mimar duas mangas maduras. Sentiu
um calor percorrer-lhe o corpo.
Acássio tinha amealhado um bom dinheiro durante
o tempo que trabalhou no garimpo. Assim que tomou posse
da Fazenda, mandou construir uma boa e espaçosa
residência. E não só por capricho, mas em atenção à sua
esposa, procurou dar a essa habitação, construída no meio
do sertão, todo o conforto possível.
A casa tinha alicerces de pedra e paredes de madeira
serrada das árvores da fazenda. Era coberta de telhas de
cerâmica trazidas de Ji-Paraná. Continha uma sala de visitas
e três quartos de dormir. Era toda assoalhada de madeira
cepilhada e encerrada, coisa pouco comum naquelas
redondezas. A cozinha era a peça mais espaçosa, a qual o
pessoal da casa preferia. O chão de lajotas vermelhas,
cheiro de comida, crepitar de fogo, chiado da chaleira de
205
ferro, dava um ar acolhedor aquele ambiente; ficava bem
nos fundos da construção principal, com uma porta para a
despensa e outra maior para a horta e o terreiro.
Em volta da casa havia uma ampla varanda com
redes para o descanso. Ramos de buganvília enroscavam-se
no balaustre e subiam até o telhado, então pendiam em
cachos floridos, de lilás esmaecido, espalhando o doce
aroma no ar. Na frente um jardim cheio de flores bem
cuidadas dava um ar encantador à moradia.
Era a hora do descanso, depois do jantar. Foi nesse
momento que se ouviram os sons dum violão e uma voz
morna encheu o ar calmo da noite. O dono da casa deitado
na rede, na varanda, franziu o cenho, retesou as mãos,
apertou forte o cigarro entre os dentes e ficou atento,
escutando. Diadora olhou preocupada para o marido,
respirava com dificuldade, essa voz causava-lhe ansiedade,
uma forte perturbação de espírito, que no fundo era uma
premonição de algum fato inesperado que vinha pela frente.
Bolívar sentado num toco de raiz, de pernas
cruzadas, violão em punho, cantava melancólicas cantigas
de amor, de mulheres, de tropeiros e de boiada. Debruçados
sob os joelhos ou sentados no chão, em volta da fogueira,
os peões escutavam de olhos arregalados.
Ele cantava com entusiasmo porque sabia que a
mulher que o fascinara estava na cozinha e também o
escutava. Um cachorro veio devagar sacudindo o rabo,
deitou-se enrodilhado junto ao violeiro, descansou o
focinho sobre as patas dianteiras e fechou os olhos.
Também escutava a música dolente que Bolívar cantava.
Acre, úmida, a respiração do cão bafejava o rosto do rapaz.
O luar e as faíscas do fogo pareciam deixar
dourados os cabelos do violeiro. Um galo cantou
longamente num quintal próximo, outros galos
responderam em outros terreiros, e por instantes a noite
206
ficou cheia de cantar de aves. O luar caia suave sobre os
telhados e cobertas de palha, sobre os pomares, a horta e os
pastos em derredor.
O vaqueiro cantava e em pensamento dedicava a
música à mulher que o enfeitiçou. Para além das casas dos
colonos estendiam-se os campos, ora planos, ora dobrados,
sob a abóbada enorme do céu. As montanhas e cerros eram
como seios e nádegas de mulher formosa Ele comparou-os
com o corpo de Diadora, os seios rijos, as coxas roliças, os
lábios carnudos prontos para o beijo.
O coração do cantor começou a pulsar com mais
força, uma fração de segundo antes de ele próprio saber o
porquê daquele súbito alvoroço. Imaginou a moça no
quarto, deitada na cama, todinha nua. Só de pensar ficou
excitado. Mas lembrou que ela era um fruto proibido para
ele. Aquela mulher tinha dono, e esse dono era o seu
patrão. Tratou de aquietar o coração.
Ele era um homem alegre, cantava e tocava violão,
pagava bebida aos amigos e sabia perder no jogo. Nos fins
de semana faziam rodas de truco ou de pôquer na venda do
Juvenal. De vez em quando saia com os novos amigos a
caçar antas, porco-queixada ou jacutingas. Aos domingos
apostava ou corria com eles em corrida de cavalos nas
raias do povoado. As apostas eram moderadas e todos se
admiravam de nunca haver briga.
Quase todas as noites havia reuniões à beira da
fogueira, depois do jantar. Bolívar tocava violão e cantava,
e quando encontrava algum repentista, desafiava-o para
trovar; e sob risadas, ficavam os dois até tarde no seu duelo
poético. Vez ou outra tropeavam uma boiada para o
frigorífico da capital ou mudavam as reses de invernada.
O boiadeiro não conseguia tirar a esposa do patrão
do pensamento. Fizera muitas tentativas para falar com a
moça, mas não conseguira nada. Fez um gesto de
207
impaciência e desferiu um pontapé numa pedra,
arremessando-a contra o tronco nodoso da velha figueira.
Pensou que se ela o amasse como supunha, ele a
tiraria do marido e a levaria para longe na garupa do cavalo.
Olhou para o terreiro onde ela jogava milho para as
galinhas. Como era atraente essa índia. Ah! Se pudesse se
aproximar e dizer-lhe do louco desejo que sentia por ela.
Mas não se atrevia, iria esperar uma ocasião
propícia para abrir-lhe o coração. Ela tinha uma vida
confortável e um marido que a amava. Será que ela
arriscaria tudo para viver uma aventura de amor com ele?
Era essa a dúvida, o seu martírio lento, a atroz indagação.
A luz macia do entardecer cobria de sombras o
telhado da casa. Não havia vento e as árvores estavam
imóveis, sequer uma folha se movia. Os pêssegos
amarelavam entre as folhas verdes dos pessegueiros e o
chão, sob as árvores, era dum amarelo escuro manchado de
sombras arroxeadas. Dum outro quintal vinha uma fumaça
azulada, cheirando a cipó e ramos secos queimados.
Aquela noite Bolívar não cantou. Todos estranharam
ao vê-lo tão taciturno. Ele viu várias vezes a mulher, mas de
longe, e por mais que inventasse pretextos, não conseguiu
se aproximar e falar com ela. Mas só pensava nela, nos seus
seios empinados, no seu corpo moreno, nos quadris
curvilíneos, nos olhos negros enviesados. Como seria
maravilhoso tê-la nos braços. Amá-la com paixão.
E quanto mais o tempo passava, mais ele
compreendia ser-lhe impossível viver sem ela O que no
princípio fora apenas desejo carnal, agora era também uma
paixão desesperada. E ele inquietava-se com isso.
Bolívar estava no curral separando gado para o
corte. Ele manejava o laço e as boleadeiras com
desembaraço. Diadora olhava furtivamente da janela da
cozinha avaliando o seu desempenho magistral. Realmente
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ele era um profissional competente. E no rápido instante em
que o fixou os seus olhos se encontraram. E nesse olhar ele
viu, sentiu que a mulher o admirava e também o desejava.
- “Essa novilha está laçada. Já botei nela a minha
marca, que não sairá nunca mais, ficará para sempre”. Regozijou-se o boiadeiro, com sua vaidade satisfeita.
Os negócios da Fazenda Jaru iam bem, o gado
prosperava mais que em outra região; gado forte, ágil. As
fruteiras ali carregavam mais. Na maturidade das frutas era
comum galhos racharem ao peso da safra. Quase todas as
árvores arriadas de pomos tinham os galhos em escoras
com forquilhas de pau, sustentando o peso.Na vida rotineira
da fazenda as surpresas eram apenas no clima
variado.Aconteciam mudanças repentinas de cenários do
céu, ora límpidos e azuis, ora carregados de nuvens escuras.
Naqueles dias, Acássio havia realizado uma ótima
transação, vendeu uma grande boiada gorda e, para
comemorar, ordenou que no sábado fosse organizada uma
boa churrascada. Os homens mataram um novilho,
retalharam e temperaram a carne. As mulheres cozinharam
raiz de mandioca e prepararam os espetos.
Um buraco no chão serviu para acender a fogueira
com cerne de madeira seca colhida no campo e fazer o
brasido, onde seria assado o churrasco. Armaram-se mesas
com tábuas em cima de cavaletes. O pessoal da colônia e
os peões regalaram-se com a boa comida, acompanhada de
refresco de Tubaína. Bebidas alcoólicas eram proibidas
nessas ocasiões. Para a sobremesa foram cortadas dúzias de
melancias suculentas.
Quando o churrasco terminou, as mesas foram
desmanchadas, os bancos encostados, e o terreiro ficou
livre para o forró. As moçoilas de vestidos coloridos e
cabelos soltos ao vento, saltitando e chilreando que nem
passarinhos nos galhos, vieram para o centro do pátio. O
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tocador de sanfona Severo Mulato aboletou-se no banco
debaixo da figueira e começou a tocar. Seguiu-se uma
grande animação entre a moçada, que não perdeu tempo.
Acássio veio na companhia da esposa para participar
dos festejos. O casal era muito popular e benquisto pelos
trabalhadores da fazenda e moradores da colônia. Também
se comemorava o aniversário de Diadora.
Como presente, o marido comprou-lhe um jipe
Willys, veículo utilitário com tração nas quatro rodas, que
serviria para ela andar pela fazenda sem medo de encalhar,
ir à vila fazer compras ou visitar suas amigas. Ensinou-lhe a
dirigir o veículo, lição que ela aprendeu rapidamente.
O casal dançou no meio do povo, se divertiu
recordando o forró da aldeia Tinguá onde se conheceram na
juventude. Acássio tinha uma vaidade singular; decotava a
mulher sempre que podia, para mostrar aos outros as suas
venturas particulares. Ela era dona de um corpo de formas
sensuais, de pele bronzeada, de belo colo e seios fartos; os
olhos negros oblíquos, lhe davam um charme especial. Ele
gostava de aparecer com a mulher, elegantemente vestida,
para exibi-la como um troféu, para ser invejado.
– Entre todas as mulheres, você é a mais bela e eu a
amo – disse ele – mirando o colo da mulher e circulando
depois os olhos pela sala com uma expressão de posse e
domínio, que ela já conhecia e que lhe fazia bem; ela
dedicava ao marido um carinho especial, um afeto
tranqüilo.
Bolívar olhava-a embevecido, de longe, encostado
ao tronco da velha figueira, com os olhos esquecidos na
bela dama, que olhava para ele de soslaio, enquanto
dançava com o marido. Ele admirava-lhe a figura, o busto
bem talhado e os seios emergindo do decote basto.
Alguém observou a contemplação dos dois. Não
tardou em perceber que os olhos da fazendeira e os do
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tropeiro procuravam uns aos outros. Nunca antes a alma da
moça pareceu convidar a dele, com tamanha instância, a
voarem juntos até as terras clandestinas a saborear o êxtase
do amor. O homem ia devorando a mulher com olhar de
fogo. “Tenha calma, sujeito! Espere o momento oportuno.”
Refletia ele escrupulosamente.
Bolívar era arguto e inteligente, além de ser
esforçado no trabalho do dia-a-dia; não demorou a granjear
a amizade e a confiança do patrão, que o encarregava de
resolver os mais diversos problemas da propriedade. Com
isso teve a permissão e o acesso à casa do fazendeiro. Logo
em seguida foi nomeado capataz da Fazenda Jaru.
No outro dia, de manhã, Acássio convidou a mulher
para irem colher frutas no pomar, que já estavam bem
amadurecidas. O casal encontrava-se no meio do arvoredo,
quando o capataz, talvez casualmente, ou propositadamente
passava perto e não quis perder a ocasião de ser gentil.
– O patrão precisa de alguém para apanhar as frutas?
Posso ajudar se for necessário.
– Pode sim, mas primeiro vá à despensa apanhar
uma cesta para colocarmos as frutas. Vou colher laranja e
tangerina que devem estar maduras e deliciosas – e
dirigindo-se à esposa sugeriu:
- Querida, aproveite e colha algumas frutas de caju
– em seguida encaminhou-se para o lado do laranjal.
De cesta na mão, Bolívar apressou o passo e dirigiuse ao cajueiro cujas frutas estavam maduras, de um colorido
amarelo-avermelhado.Colheu uma bem madura e alcançoua para Diadora. Seus dedos roçaram nos dela. Um frêmito
perpassou o corpo de ambos. Ele derramou o mais quente
olhar, da cor de âmbar-gris, sobre os olhos negros dela, e
sussurrou:
– Estou apaixonado pela senhora! Desde a primeira
vez que a vi o meu pensamento lhe pertence.
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– Tome cuidado com o que diz – retrucou a mulher.
O homem segurou a mão dela entre as suas. Mãos
fortes, de cor morena, mãos que de imediato a fascinaram.
Foi como se o corpo dela se partisse em mil pedaços, como
se explodisse, como se um raio penetrasse no âmago do seu
ser. Deixou a sua mão entre as dele por um momento, como
um pássaro assustado, aconchegado em seu ninho. De
repente puxou-a, envergonhada.
– Ai, solte a minha mão! Você é muito atrevido –
reclamou baixinho.
Ele inclinava-se para beijar-lhe a boca, quando uma
voz, a alguns passos veio acordá-lo inteiramente. Era o
marido que retornava com a cesta cheia de laranjas, poncã e
tangerinas maduras e saborosas.
– Está na hora de irmos embora – alertou Acássio.
Ao ouvir aquela voz é que o capataz começou a
voltar a si, do encantamento.
– Vamos, então! – respondeu Diadora já totalmente
segura de si mesma.
Acássio olhou para Bolívar, viu-o risonho, tranqüilo,
impenetrável. Não denotava nenhum medo, nenhum
acanhamento; falava com tal desembaraço, que o marido
pensou ter visto mal a atitude de reciprocidade entre os
dois. Sorriu constrangido, não entendendo se o gesto do
capataz era inocente ou tendencioso. O marido confiava
cegamente na esposa.
O boiadeiro, ao recordar o caso do pomar, achou
que foi demasiado temerário e precipitado. Vendo a
resistência, a contrariedade da moça, chegou a arrependerse da tentativa do beijo. Teve então calafrios, ficou
amedrontado com a idéia de que podiam fechar-lhe a porta
e cortar inteiramente as relações de amizade e de confiança,
tudo porque tinha apressado os acontecimentos. Sim, devia
esperar; ter paciência, a ocasião não era própria.
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– Fui um maluco! – pensava.
Logo depois, a mente que o acusava, defendia-o,
pois Diadora não falou nada, mas o seu olhar disse-lhe
tudo, seus olhos estavam presos nele como pedras preciosas
incrustadas numa jóia. Ela parecia tê-lo estimulado ao que
fez; os olhares freqüentes, fixos, os modos, os sorrisos, a
distinção de o mandar sentar ao seu lado à mesa do jantar;
de só cuidar dele, de lhe falar coisas afáveis, que a seu ver,
eram mais que encorajar e solicitar. Ela o queria – concluiu.
A esposa do fazendeiro jogava com ele um jogo
perigoso de sedução. Mas ela, ingênua, sem imaginar
sequer as conseqüências maléficas do seu ato, estava apenas
se divertindo ao espicaçar a admiração e o desejo do
vaqueiro por ela. Sabia que não podia dar muita trela ou
avançar demais, pois o marido podia desconfiar e ele não
merecia uma traição, era um homem bom. Portanto, tomaria
mais precaução.
– Devia ter ido devagar e nunca segurar-lhe as mãos
com tanta força, e tentar beijá-la – censurava-se Bolívar.
Achava-se grosseiro. Pensava também na estima do
marido... Aqui estremeceu. Ele era seu patrão, e depositava
plena confiança nele.
– “Sei que é honrado, mas é exigente e ciumento, e
pode vingar-se, demitindo-me a qualquer hora, se
desconfiar de algo comprometedor. Reconheço que errei
em intrometer-me na vida do casal; devia ser mais esperto e
tirar proveito driblando a situação confusa em que me
envolvi, devido ao meu caráter aventureiro”. – Raciocinava.
- “Mas ela tem uns lindos olhos negros chamativos
e uma figura sensual, a qual é difícil resistir. Que admirável
criatura, meu pai do Céu! Hoje então estava divina. Quando
o braço dela roçou no meu, à mesa, apesar da manga da
camisa, senti um arrepio de excitação”.
213
- “Estou confuso, inseguro, pois devo lealdade ao
marido. Sua consciência partia-se em duas, uma censurando
a outra, mas ambas desorientadas. Não posso, não devo – ia
dizendo a si mesmo – não é bom ir adiante. Estou
arriscando a minha vida. Também é verdade que não sou
autor sozinho; ela é que, desde o primeiro encontro, anda
me desafiando” – desculpava-se a si próprio.
Acássio não sabia e nem desconfiava da grande
paixão de Bolívar Sanches por sua mulher; guardada,
sofrida, não podendo confessar a ninguém, esperando os
benefícios do acaso; contentando-se com a simples visão da
amada, febril, dormindo mal às noites, saia pelas ruas
desertas caminhando sem destino.
Os ruídos e os fantasmas das trevas o apavoravam.
Parecia-lhe que de todas as janelas debruçavam-se vultos de
mulher, todas Diadora, que vinham ao seu encontro num
tropel confuso. Entreabriu a porta do seu cômodo e ficou
esperando... e quando um vulto de mulher passou, Bolívar a
segurou pelos ombros e a puxou-a para dentro do quarto.
Mesmo no escuro, sentiu que ela tremia toda, como
se estivesse com maleita, mas não fez nenhum gesto, não
gritou, não disse nada quando ele a despiu e deitou na
cama. Acompanhou-o em silêncio no seu desabafo. E
naquela noite, com ela, o sujeito saciou sua sede de sexo.
Ele não tinha ciúmes do marido. Nunca a intimidade
do casal lhe excitava o ódio. Mas a possibilidade de um
rival vinha atordoar-lhe os pensamentos; aqui é que o ciúme
surgia a feri-lo profundamente.
Quando um homem sente que a mulher amada está
atraída por um outro, então algo começa a ferver dentro
dele, como um caldeirão a vapor. E se ainda por cima ele é
um indivíduo exaltado, vigoroso, forte, de sangue quente,
em quem os impulsos do seu temperamento rolam pelas
veias como as águas revoltas do Guaporé rugindo no seu
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leito selvagem, então torna-se incontrolável. E quando ama
ninguém o segura, porque a paixão é um sentimento
possessivo, e por ele somos capazes de enfrentar o mundo
todo, até de matar.
Bolívar observava a dona da casa todo o tempo,
como ela olhava embevecida para o visitante que chegara
naqueles dias à Fazenda Jaru, fixando-se encantada em seus
lábios, quando ele falava da cidade grande, de São Paulo. O
ciúme o devorava. Aguardava ansioso o horário do jantar
para ficar perto dela; nessa ocasião, sempre com o coração
pendurado por um fio, sempre zeloso de qualquer passo, de
qualquer palavra diferente que o denunciasse.
– Mas devia dizer-lhe o quê? Que ele a amava
mesmo sabendo que, tal amor era incoerente, mas
verdadeiro e incontrolável? Dizer que de repente o mundo
todo, e o céu sob sua cabeça ficavam pequenos para
acalentar tamanha paixão? – pensava Bolívar. Nesse
momento seus olhos luziam como os de um lobo
esfomeado, então ele montava no seu cavalo zaino e
disparava pelos pastos, numa carreira doida.
Na noite de Ano Novo houve festa na praça do
povoado, com missa, quermesse, jogos e forró. Foi acesa
uma grande fogueira no centro da praça, e desde o anoitecer
ela se encheu de gente, de conversas e risadas, e do som de
sanfona do velho Severo Mulato.
Acássio viajara para a capital Porto Velho para
vender uma grande boiada gorda. De sua casa onde tinha
ficado sozinha, Diadora debruçada à janela escutava a
música e as vozes. Viu passar Gherta, uma adolescente de
17 anos, de cabelos louros, e olhos azuis brejeiros, filha do
colono alemão Hanz. Ela ficava cada vez mais bonita, e
gostava de andar rebolando pela colônia enquanto o pai e os
irmãos tratavam do cafezal da Fazenda Jaru.
215
O tropeiro sedutor, a observava havia muito tempo,
de longe, sentia crescer seu desejo pela alemãzinha.
Naquela festa começou a persegui-la com olhares e
propostas. Ela aceitou em encontrar-se a só com ele.
Diadora tinha certeza de que Bolívar estava lá, no
meio daquele povaréu, dançando e cantando. Não se
aborrecia com isso, ao contrário, queria que ele se divertisse
namorando outras mulheres, pois enquanto estava dançando
deixava-a em paz e não arquitetava planos para assediá-la.
Puro engano dela, pois enquanto ela assim supunha,
o tropeiro sumiu sorrateiro das danças, e naquele momento,
estava no meio do capinzal, atrás do muro da capela,
contemplando o corpo nu de Gherta. Tinham feito sexo
com a fúria de um vendaval, pois o vinho, que ambos
tinham bebido na festa, contribuíra para aumentá-la.
Agora, ele olhava para a moça, que estava estendida
sobre o capim. Como era lindo aquele corpo. E como os
beijos de Gherta tinham um gosto diferente dos de outras
mulheres, dezenas delas, que já beijara. Mas foi somente
aquela noite que a teve. Três dias depois apareceu o noivo
Frederico e a levou na garupa do cavalo, para o sitio que
possuía no projeto Jaru. Casaram-se naquele sábado.
Bolívar idealizava mentalmente como seriam
divinos o corpo e os beijos da mulher que amava, e pelos
quais ansiava há tanto tempo. Ousado, ele resolveu arriscar
tudo para concretizar seu desejo. Era perigoso sim, mas
viver também é perigoso.
– Juro que terei você, antes que pensa, se não for
com seu consentimento, será à força – planejava o peão
aventureiro.
Aproveitando-se da liberdade de ação que o patrão
lhe deu, estava extrapolando os limites do bom senso,
tornara-se atrevido. Ele não sabia, mas caminhava sobre
216
areia movediça que podia tragá-lo de repente, quando
tentava seduzir a esposa do empregador.
O comportamento cada vez mais estranho de
Bolívar em relação à sua mulher despertou a atenção,
seguida de desconfiança, de Acássio. E nessa situação de
emergência, ele resolveu pô-lo à prova. Em sua esposa
confiava cegamente, ela era fiel. Arquitetou um plano para
surpreendê-lo em flagrante delito, se havia de fato algo
errado, ele o saberia.
O almoxarifado da fazenda precisava ser
reabastecido de mantimento, material para reparos diversos,
sal e remédios para o gado. Também Diadora tinha
necessidade de comprar tecido, louça e panelas. Acássio
resolveu mandá-los juntos para a cidade de Ji-Paraná.
Chamou Bolívar para lhe dar as instruções.
– Há necessidade de fazer compras na cidade, mas
estou com problemas inadiáveis a resolver aqui, não posso
viajar. Sei que você é um bom motorista, confio em você,
portanto irá no meu lugar, dirigindo a caminhonete. Minha
mulher vai junto, ela vai adquirir a mercadoria necessária
para a Fazenda. Assim ficarei mais tranqüilo.
– Estou à sua disposição, patrão, e não se preocupe;
farei tudo de acordo com as suas ordens – respondeu o
capataz – eufórico pela ocasião de estar, finalmente, a sós
com a mulher que amava e desejava loucamente. Era desta
vez que a teria, ou nunca mais.
Acássio fez a lista de compras e deu uma quantia
grande em dinheiro para a esposa. O dia amanheceu com o
sol despontando no horizonte de céu azul. Uma brisa fresca
soprava do norte. Após tomarem o café da manhã, na ampla
cozinha, Diadora despediu-se do marido com um abraço e
beijo na boca. Bolívar assistiu a tudo e teve um estremecimento de ódio do rival.
217
– “Aquele beijo e abraço deviam ser meus, mas
hoje vou cobrar a dívida com juros”. Planejava ele.
Rodaram em silêncio durante uma hora, pela estrada
estreita e esburacada que levava à vila de Jarú, distante 70
km; depois deviam pegar mais 100 km de estrada asfaltada
até a cidade de Ji-Paraná onde fariam as compras.
Acássio, executando seu plano, pegou o jipe Willys
da mulher e apressou-se para estrada, seguindo numa
distância regular a caminhonete Toyota dirigida pelo
capataz. A poeira da estrada agitada pelo veículo que
rodava na frente ocultava-o parcialmente.
E de permeio havia uma boiada em trânsito que
levantava uma enorme nuvem de pó. Repercutiam sonoros
nas quebradas, os gritos dos peões tangendo o gado. Com o
barulho ensurdecedor da tropa, não se ouvia o ruído das
conduções que rodavam pela estrada.
– Não diz nada, minha querida? Por que esse
acabrunhamento, não está feliz por estar na minha
companhia? Podemos aproveitar a ocasião e namorarmos
um pouco. Não acha que é uma boa idéia? – sugeriu
Bolívar.
– Não se atreva a tocar em mim, não te dei essa
liberdade, me respeite! – gritou Diadora raivosa.
– Isso veremos depois, mas quanto a respeitar-lhe,
isso não, você mesma se insinuava, provocava, me dando
esperanças – disse ele, ameaçador, achegando-se mais perto
e colocando a mão em cima da sua coxa.
– Tire essa mão nojenta da minha perna.
– Não seja tão arrisca minha andorinha! - ciciou ele.
O marido não perdia de vista a caminhonete, quando
viu o veículo ser desviado para uma trilha secundária, pelo
meio de um cafezal.
Bolívar dirigia em silêncio, mas vinha armando um
plano; surgiu-lhe uma idéia tenebrosa a qual estava
218
decidido a executar, e nada nem ninguém o impediria.
Tinha em mãos uma ocasião única de satisfazer o seu louco
desejo pela mulher do patrão, há tanto tempo reprimido.
Seria hoje ou nunca. Para saciá-lo sexualmente sem
resistência, ele a obrigaria a usar grande dose de cocaína,
cujo efeito a deixaria drogada e sem defesa. Querendo ou
não ela ia satisfazê-lo na sua paixão.
Depois de fartado no seu apetite sexual, ele ia
deixá-la ali mesmo, no meio do cafezal. Levaria o dinheiro
das compras e o Toyota, e afundaria no mundo sem
fronteiras. Enquanto dirigia, o capataz ia arquitetando os
pormenores do seu plano diabólico.
– Essa mulher nunca mais vai espicaçar o desejo de
um homem, brincar e pisar nos seus sentimentos – remoía.
Acássio sentiu atravessá-lo um arrepio com a
descoberta da intenção do boiadeiro ficar com sua esposa
em lugar ermo, sozinhos, com certeza para violentá-la. Isto
o deixou fora de si, com ódio a dominá-lo, quase perdeu o
controle do jipe. Rápido, virou a direção para o caminho
tomado pelo outro, iria surpreendê-lo no seu propósito.
– Por que desviou do caminho?
– É para atalhar e passar na frente da boiada que está
atrapalhando o trânsito – explicou Bolívar.
Entrou uns duzentos metros dentro do cafezal.
Parou o carro e desligou o motor.
– Por que parou? – perguntou Diadora desconfiada.
– Desça da caminhonete – ordenou o sujeito.
– Mas por que devo descer?
– É apenas para trocarmos alguns carinhos, não é
isso que você quer também? Pelo menos é o que
demonstrou sempre, ao me provocar! – disse ele com riso
zombeteiro nos lábios.
219
Tirou o revólver que trazia preso à cinta e colocou-o
em cima do assento do Toyota, desabotoou a camisa, tirou a
calça e as botas. Ficou completamente nu.
– Pare com essa pouca vergonha, senão eu grito,
chamo por socorro – ameaçou Diadora.
– Pode gritar à vontade aqui ninguém vai ouvir. É
melhor ficar quieta e obedecer.
Ele pegou-a pelo braço e puxou para fora do
veículo. Diadora ficou parada olhando-o, aterrorizada.
Bolívar estava de pé diante dela, despido, os ombros
levantados e a cabeça esticada, buscando-lhe a boca. Com
as mãos rasgava-lhe o vestido descobrindo os seios os quais
começou a beijar com volúpia; puxou a roupa para baixo
tirando-a e deixando nu o corpo da mulher, que ela
procurava cobrir com as mãos.
Todos os músculos do seu corpo viril se contraíram
para um salto de tigre; derrubou-a sobre as folhas secas do
cafeeiro que forravam o chão.
– Deixe mostrar-lhe o que é um homem de verdade,
dominado pela paixão e desejo – rosnava como um cão
raivoso, com os olhos injetados de lascívia. Ele agarrou-a
brutalmente pelos ombros, virando-a e jogando-a de rosto
para baixo sobre as folhas. Como um gato, pulou sobre ela,
apertou com a mão esquerda o seu rosto contra o chão e
enfiou-lhe a mão direita por entre as pernas a procura do
alvo desejado.
Ela gritava, tentava livrar-se, batia furiosamente
nele com os braços, beliscava, mordia-lhe a carne, mas ele a
sufocava, comprimindo-lhe os lábios com
beijos
impetuosos. Na ânsia do desejo, um suor de macho, de odor
forte, inundava-lhe o corpo e o rosto congestionado.
– Deixe-me! – gritava Diadora – seu demônio! Eu te
odeio! Socorro! Miserável! Eu te mato! Juro! Largue-me! –
A vítima esperneava, chorava, mas ele não ouvia nada.
220
E de repente estava livre. O corpo que estava sobre
ela escorregou, as mãos que a mantinham presa se soltaram.
Então ela virou-se, encolheu as pernas e fixou com os olhos
escancarados no espetáculo a seu lado.
Acássio tinha, com um puxão, arrancado Bolívar de
cima da mulher. Arrancou-o com tal violência que o peão
rolou pelo chão. De lá ele pulou de pé como um gato, e com
o rugido de uma onça, faiscou o adversário com olhos
congestionados. Saliva escorria do canto da sua boca.
– Seu infame traidor! Você quer ter a mulher do
patrão, não é? Não respeita ninguém? Mas espere! Eu vou
te abrir a cabeça, já que você não sabe pensar.
– Engano teu! Pois sou eu que vou te mostrar quem
é homem aqui! – gritou Bolívar avançando contra Acássio.
–Temos contas a ajustar, ladrão, covarde! E é agora
que vais me pagar – replicou o outro.
E atiraram-se como feras um contra o outro. Com a
cara contorcida de ódio e reluzente de suor, os dentes à
mostra, a respiração ofegante quase transformada em
estertor de feras malferidas, os dois rivais avançavam e
recuavam, batendo e socando-se com violência.
– Você me paga! Eu te mato miserável! – gritava o
peão, investindo, enlouquecido, sobre o desafeto.
– Você não vai viver para se vingar! – retrucou
Acássio, deu um passo à frente e pôs a mão nas costas para
arrancar a arma. Nesse momento despertou nele o valente
espírito de garimpeiro e não titubeou em sacar o revólver da
cintura. A mão crispava-se, nervosa, sobre o cão do
revólver engatilhado. Respirou fundo, antes de agir.
Custou-lhe muito controlar o tremor das mãos e o
ranger dos dentes. Estava tão perto, que poderia estourar os
miolos do rival, sem mirrar, mas decidiu esperar uns
segundos para que seu pulso se tranqüilizasse. Esse
momento de vacilo o traiu.
221
O instinto advertiu Bolívar do perigo. Numa fração
de segundo, pôs toda sua energia num incrível salto que, de
um só impulso, deixou-o a um metro do lugar em que se
cravou a bala. Acássio não conseguiu apontar de novo,
porque o vaqueiro se agachou, pegou um pedaço de pau nas
mãos e, aproximando-se rápido, bateu no revólver
apontado, que caiu ao chão, a dois passos dos lutadores.
– Tenho que proteger a cabeça do primeiro golpe e
agarrá-lo quando ele estiver perto de mim – pensou.
Levantou o braço diante do rosto e colocou a mão
espalmada sobre a fronte. O vaqueiro riu sinistramente
encarando-o de frente.
Observavam-se em silêncio, ofegantes, cada um
esperando o primeiro movimento do outro. Com um grito
de guerra, lançaram-se novamente um contra o outro, numa
luta selvagem. Bolívar levava vantagem, apertava a
garganta de Acássio com as duas mãos, querendo sufocá-lo.
O revólver estava a dois passos dos rivais, cada um deles
fazia esforços inauditos para alcançá-lo.
As faces de Diadora estavam alagadas de suor e
lágrimas, suas narinas palpitavam, e havia em seus olhos,
de ordinário doces, um brilho belicoso, de ódio e vingança.
Neste último segundo entre a vida e morte, ela teve um
instante de indecisão, mas a seguir, levantou-se e com um
salto de gazela alcançou o revólver ao marido, que, sem
mais hesitar, detonou uma bala no ouvido do adversário.
Tão de repente aconteceu e tão exata foi a pontaria,
que ele não teve tempo de esquivar-se. A bala atingiu-lhe a
cabeça, atravessando-a e saindo doutro lado. Lentamente
afrouxaram-se as mãos que asfixiavam Acássio, tremores
convulsivos percorreram o corpo do homem, na agonia da
morte. Tombou com o crânio estraçalhado.
222
Houve da parte do casal um instante de perplexidade
e ouviu-se um grito dilacerante de pavor. Diadora chorava
desesperada, olhando o cadáver de Bolívar.
Acássio estava pensando em sua luta recente e
ruminava o sabor violento, acre e embriagador daquele
momento. Havia muito que não sentia uma exaltação assim
tão grande. Era homem pacífico e evitava qualquer
contenda. Lembrou-se de uma briga inevitável, maior que
essa, no rancho do garimpo do Bom Futuro, onde quase
morreu. Levou a mão à testa e com a ponta dos dedos
apalpou de leve o ferimento feito pela pancada de Bolívar.
Ficou estarrecido, incapaz de falar alguma coisa. Uma
grande mágoa e desilusão lhe oprimiam o peito, por ter-se
enganado tanto acerca do caráter do capataz, pois este já
havia conquistado a sua confiança e amizade.
Acássio, estupefato, olhou ao redor. Em seguida
virou-se para Diadora, que, sentada no chão em cima de
folhas secas, chorava num dorido silêncio. Abraçou-a e,
com ambas as mãos, puxou sua cabeça e beijou-a com
ternura. Ela pendurou-se em sua nuca, chorando e rindo ao
mesmo tempo, por tê-la livrado da desgraça.
– Agradeço-te por ter salvado a minha vida – disse.
– Tornei-me um assassino para defender você, a
minha vida e minha honra, matei em legítima defesa, me
arrependo muito, sim, mas não pude evitar, era eu ou esse
infame traidor. Agora é necessário dar um sumiço no
cadáver. Já está anoitecendo, precisamos nos apressar.
Vamos levá-lo até o rio que corre no fundo do cafezal.
Arrastaram o corpo até a margem do rio, então
Acássio procurou uma pedra de tamanho médio, tirou da
caminhonete uma corda de sisal e com ela amarrou
fortemente a pedra nas pernas dele, e o jogaram nas águas
profundas, onde as piranhas, peixes carnívoros e vorazes, se
encarregaram de fazê-lo desaparecer sem deixar vestígio.
223
Quando terminaram a tarefa de dar sepultura ao
traidor e a seu revólver, nas águas do rio, já era tarde da
noite. Voltaram ao lugar onde haviam deixado o veículo.
Acássio entrou no Toyota, arfando. O coração ainda lhe
batia furiosamente e estava enjoado. Com as costas das
mãos limpou as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. Era
um assassino, sem querer, mas era.
– Querida, volte para casa dirigindo o jipe. Eu vou
seguir até Ji-Parana comprar a mercadoria que falta na
fazenda. Vá tranqüila. Peça para seu pai Quirino levar o
cavalo, o embornal com os pertences e o violão desse
infeliz para a pensão em Jaru. Que ele entregue tudo ao
dono da pensão, pois que Bolívar fora despedido da
Fazenda, por mau comportamento e bebedeira, proibido de
voltar lá.
- Que o seu pai informe ao dono, que o peão
procurará por seus pertences quando voltar à pensão. A essa
hora ele deve estar-se divertindo na casa das putas da
vila.Também é necessário pedir ao Quirino que não
comente nada com o pessoal da fazenda, que viaje à noite
para ninguém ver.
- Quero que me prometa nunca mais cometer esse
terrível equívoco, o de cultivar amizade e confiar em
pessoas que não conhece. Está aí o triste resultado da sua
ingenuidade. Também, não comente com ninguém sobre o
que ocorreu aqui. Este segredo ficará só entre nós dois.
Diadora entrou no jipe, acionou o motor e deu
marcha ré para ir embora. Como Acássio, estava chorando
arrependida, de medo e de raiva. Despediu-se do marido e
seguiu o rumo da Fazenda Jaru. No caminho para casa,
refletiu sobre o trágico acontecimento, que culminou com a
morte de Bolívar. Reconheceu o seu erro em divertir-se
com assunto tão sério como é o sentimento alheio. Jurou a
si mesma nunca mais praticar esse jogo perigoso.
224
A copiosa chuva da noite que caiu sobre o cafezal,
cobriu todo e qualquer vestígio da recente tragédia.
Depois daquele dia fatídico que ficara gravado na
memória do casal como uma lembrança triste e cujo
segredo só eles sabiam, a vida na Fazenda voltou à
normalidade. Ninguém se interessou pelo sumiço repentino
do tropeiro Bolívar. O homem era uma incógnita,
imprevisível, não comentava com ninguém sobre sua vida
aventureira, sobre o que pensava ou o que fazia.
- Assim como veio, assim se foi – diziam.
***
Pelo meado do ano, um acontecimento estranho
assombrou os moradores da Fazenda. De repente, sem
prever e sem saber de onde veio, irrompeu a praga da
formiga-cortadeira. Parecia um castigo mandado por Deus.
A formiga saúva é preta, de corpo bastante
alongado, com ferrão terminal, carnívora e terrícola. Faz
seus ninhos em baixo da terra, no subsolo, construindo
caminhos intermináveis e túneis em todas as direções. São
verdadeiras crateras em que pode cair qualquer animal ou
pessoa. As tanajuras-rainha, fêmeas da saúva, perdem as
asas após o vôo nupcial, indo formar novos formigueiros,
que se multiplicam assustadoramente.
As saúvas chegaram à Fazenda em grande migração,
como um exército organizado que marchava regularmente
seguindo as ordens de algum general-formiga, que as
guiava desde os confins da selva tropical úmida, dos
pantanais da Bolívia, numa esteira negra e móvel de alguns
quilômetros de largura. Nada as detinha. A invasão
começou com um rumorejar nos pastos, uma sombra escura
que deslizava com rapidez comendo tudo, o capim, os
canaviais, cafezais e as folhas das árvores frutíferas.
225
Para combatê-las jogavam gasolina e ateavam fogo,
mas elas reapareciam com nova força. Pintavam com cal
viva os troncos das árvores frutíferas e cafeeiros, mas elas
subiam sem parar, invadiam a horta e acabavam com as
verduras, entravam nos estábulos e comiam o alimento das
vacas, na leiteria contaminavam o leite, introduziam-se no
galinheiro e devoravam os ovos e os pintinhos vivos.
Faziam trilhas dentro das casas, entravam pelos
encanamentos e máquinas entupindo tudo, apoderavam-se
da despensa, dos armários e tudo que se cozinhava tinha
que ser consumido de imediato, porque se deixassem sobre
a mesa elas chegavam em procissão e devoravam tudo.
Foram combatidas com iscas de formicida, com
lança-chamas e inseticidas, as formigas, no entanto,
continuavam a enorme destruição, multiplicando-se
assombrosamente, invadindo tudo, até as camas das
crianças e dos adultos. Cada dia mais atrevidas comeram as
reservas de milho, feijão e sementes de café no depósito.
Acássio e toda a população das redondezas reuniram-se,
assustados, sem saber o que fazer, quando se aproximou o
índio Yurundiá, um dos peões da fazenda.
– Se me permite, patrão, vou chamar Anhariri, o
feiticeiro da tribo dos Caripunas. Há dias ele vem dizendo
que conhece o meio de expulsar as formigas – falou o peão.
– Não acredito em feitiçaria, mas não vamos perder
nada em experimentar. Vá chamá-lo – respondeu Acássio.
Trouxeram Anhariri, o velho feiticeiro, que chegou
arrastando os pés descalços, mirrado e desdentado, com
cocar de penas de arara na cabeça, tanga de fibra de
embirra, colares de sementes de frutas e pulseiras com
amuletos de caveiras de morcego e chocalhos de cascavéis.
O pajé escutou o pedido de Acássio, olhando o chão
e abanando a cabeça. Pediu um pano branco e saiu em
direção da horta. O velho feiticeiro abaixou-se com
226
dificuldade e começou apanhar formigas. Quando juntou
um punhado, colocou-as dentro do pano, atou as quatro
pontas e guardou a trouxinha no cocar da cabeça
– Vou lhes mostrar o caminho para irem embora,
formigas, e para levarem as outras também, sem deixarem
nenhuma para trás – ordenou o índio às invasoras.
Partiu a passo arrastado, murmurando conselhos e
recomendações às formigas, orações e fórmulas encantadas.
Viram-no afastar-se até os limites da fazenda. Ao anoitecer,
voltou e disse ao patrão que tinha posto as formigas na
estrada, ensinando-as o caminho de volta para a selva
boliviana. O velho pajé voltou para sua taba. Na manhã
seguinte viram que não havia formiga nenhuma na
propriedade toda.
– Como fez isso? - perguntou Acássio, admirado.
– Falando com elas. O feiticeiro Anhariri disse às
formigas que fossem embora, que aqui não são bem-vindas,
estão incomodando, e elas entenderam e se retiraram –
explicou o peão indígena Yurundiá.
***
Dias se passaram sem grandes acontecimentos no
povoado. De repente um fato jubiloso surpreendeu a todos;
talvez fosse para compensar os dias de tristeza e graves
problemas que recentemente ocorreram na Fazenda Jaru.
Já era tarde da noite quando chegou um cavaleiro,
numa montaria bem ajaezada, abriu a porteira da fazenda,
cavalgou dentro do cercado, com os cães o acuando, desceu
do cavalo e bateu palmas na porta da residência de Acássio.
– Oh, de casa! Tem alguém aí? – chamou o homem,
postado à entrada da casa.
– Quem é? – perguntou o dono da casa, que tinha se
levantado da cama para atender a porta.
– Apoema, o filho de Diadora – responderam-lhe.
227
Foi grande o sobressalto de Acássio ao ouvir o nome
do filho, que Diadora havia muito tempo esperava, sem ter
notícias precisas sobre onde ele se encontrava e o que fazia.
– Entre, por favor! – convidou – vou chamar tua
mãe. Ela terá uma grata surpresa ao te ver.
Apoema tornara-se um pesquisador e indigenista.
Especializado em botânica, afundou-se nos sertões da
Amazônia na procura, para estudo, de plantas medicinais.
Abrigava-se com freqüência nas palhoças indígenas para
trocar informações e experiências com os anciões, caciques
e pajés, das diversas nações da região amazônica que
visitava. Era respeitado e benquisto pelos povos da selva.
Atencioso para com todos, loquaz e alegre, fazia amigos
com facilidade.
Diadora, ao ver o filho após tantos anos de ausência,
quase desmaiou. Ficou olhando-o de longe, não o
reconhecia. Ele havia mudado muito. Seu aspecto físico
tornou-se diferente, era um homem alto, magro, de cabelo
e barba crescidos.O rosto moreno, queimado pelo sol
tropical, coberto pela barba negra, entre a qual o sorriso
brincalhão fazia brilhar a alvura de seus dentes. Tinha os
olhos rápidos de águia, negros e oblíquos de índio
Caripuna, a fronte larga, descoberta pelo chapéu desabado
para trás, uma constituição forte, ágil e musculosa; o
conjunto acentuava seus traços vigorosos. Era um homem
simpático e atraente.
A mãe correu em sua direção, abraçava-o e chorava
de emoção. Era muito para o seu coração saudoso. Esperava
a visita do filho com muita ansiedade, desde o dia em que
ele se foi embrenhando-se pelo sertão. Vivia preocupada,
não deixava de pensar no filho por um só momento. Longe
e sem meios de comunicação ele não mandava notícias.
228
– Filho, agora você vai ficar com tua mãe por muito
tempo, não? Precisa descansar e se alimentar bem para
recuperar as energias. Você está muito magro.
– Prometo mãe, vou ficar o tempo necessário.
Diadora cuidava do filho com desvelo, enchia-o de
cuidados, tanto que o marido ficou enciumado.
– Agora você, Diadora, não dá mais atenção para
mim, só se dedica a seu filho, estou com ciúmes – disse
com um sorriso nos lábios.
– É por pouco tempo, logo vou embora, deixe-me
aproveitar o carinho de minha mãe – respondeu, abraçando
o marido da sua mãe.
Apoema sentia-se feliz junto à sua família. Nas
tardes chuvosas de inverno, peões, vaqueiros e colonos da
Fazenda, também os vizinhos, vinham para um dedo de
prosa. Naquelas noites cálidas ouvia-se, apenas de longe, o
monótono tilintar dos cincerros pendentes do pescoço dos
cavalos no pasto. Em compassadas batidas, sem parar, batia
o monjolo no riacho, socando o milho para a farinha de
biju. O ar estava perpassado com estranhos sons, como
suspiros do sertão.
Grandes achas de lenha eram colocadas no fogão de
pedra, o fogo crepitando consumia-as rápido levantando
altas as chamas douradas. Uma nuvem transparente de
fumaça erguia-se das labaredas e, volteando em sinuosos
giros para o alto, desaparecia pelas frestas do telhado. A
casa, cercada por grande plantação de árvores frutíferas era
iluminada pelas tochas do fogo.
Sentados em bancos de madeira, estavam diversos
homens e mulheres. A chaleira cheia de água chiava em
cima da chapa quente. Tomavam chimarrão. A cuia passava
de mão em mão esvaziada em pequenos goles. O botânico,
glorioso, sentava entre eles, ao pé do fogão, e lhes desfiava
229
as suas aventuras pela selva. O silêncio na cozinha era total.
Ouviam atentamente a história, que Apoema, contava:
– Quando eu viajava pela região amazônica como
pesquisador, tive uma experiência singular. Eu era moço, de
uns vinte e oito anos, quando me embrenhei pelos sertões
até as margens do rio Solimões, que após a confluência do
Rio Negro, próximo à cidade de Manaus, toma o nome de
Amazonas, até a sua foz no Atlântico.
- O tempo estava propício para a viagem, as mulas
descansadas e gordas. Com facilidade fazíamos quatro
léguas, por picadas no mato, parando somente perto de
aguadas, para o descanso, e na busca de espécimes de
plantas raras, medicinais, ainda não catalogadas.
- Certo dia, cavalgando, como de costume, na frente
da tropa, abrindo caminho entre os cipós e arbustos com um
grande facão, senti de repente um delicado perfume,
adocicado, exalado por flores de uma árvore solitária, que
crescia no meio de um descampado. Tendo já conhecimento
das características estranhas desta planta, reconheci
imediatamente a “Árvore da Morte”. Segurei a montaria
para esperar os companheiros que iam atrás, enquanto isso
analisei detalhadamente essa árvore esquisita e invulgar.
- Num círculo de mais ou menos cem passos, o
terreno estava totalmente despojado de vegetação mais alta.
Em pé, no centro, somente a árvore, de tronco grosso, de
média altura, com os galhos tão emaranhados que a luz do
sol não conseguia infiltrar-se pela densa folhagem.
- Na sua sombra, e ao redor, na distância de alguns
passos, estendia-se denso e fofo, como lanugem, um tapete
de relva luxuriante. Em todos os seres e principalmente no
homem, esta planta exerce algum misterioso atrativo. No
calor do dia, sedento de descanso, fatigado, o indivíduo
deita-se preguiçosamente nesta oferenda proposital, macia e
230
convidativa. Embriagado pelo doce aroma das flores,
despreocupado, adormece.
- A planta narcotiza-o com seu odor e durante o
sono, incalculáveis quantidades de fininhas raízes
envolvem-no e apertam, e neste abraço afogam a
descuidada vitima. Depois de certo tempo o corpo some
dentro do verde tapete de relva, não deixando sinal visível
na superfície.
- Avisei aos companheiros do comboio, do perigo
que oferecia a sombra desta árvore fatídica. Não
acreditaram em nada do que lhes falei. Resolveram fazer a
experiência. Perto, havia uma nascente de água e, próximo
dela, armamos nosso acampamento. Depois do jantar, todos
os participantes da tropa, menos eu e o cozinheiro,
estenderam-se comodamente no fofo e perfumado cobertor
verde. Até o “Tigre”, nosso cão, deitou junto.
- Sentei perto, e comecei a observar esse bando
incrédulo, zombando do meu aviso. A noite caia tranqüila,
enluarada. Apenas ouvia-se o ruído das asas dos morcegos
atraídos pela presença humana e pelo fogo. Passada mais ou
menos uma hora, ficou claro que a planta narcotizante
começou agir, pois as vozes altas tornaram-se murmúrios e
calaram-se. Todos estavam sonolentos com o olhar perdido
e, como se estivessem bêbados, olhavam para mim. O
narcótico tirou-lhes toda energia, não podiam mover-se.
Chamei o cozinheiro e, um por um, arrastamos todos para
fora, longe da influência da maléfica árvore.
- Os homens passaram a noite com vômitos fortes e
dores de cabeça. No outro dia, quando todos já estavam
bem, cavamos a terra em baixo do traiçoeiro cobertor de
relva e não fiquei surpreso ao ver as picaretas afiadas
arrancarem inúmeros ossos, costelas, crânios e tíbias de
gente e de animais, vítimas do apetite singular dessa planta.
231
- Esta era a Antiáris toxicaria, vulgarmente
conhecida como “Árvore da Morte”, de tal forma venenosa
que destruía quaisquer seres ou coisas em sua vizinhança.
Os indígenas usavam a sua seiva para envenenar as pontas
das flechas. Além deste exótico espécime de árvore dotada
dum estranho comportamento, existem outras plantas e
flores carnívoras que se alimentam de insetos atraídos pelo
seu néctar e perfume embriagador.
- Nessa misteriosa selva amazônica, grande parte
ainda desconhecida, escondem-se muitos elementos
obscuros e enigmas a elucidar – comentei, finalizando.
Quando Apoema terminou de contar a história, a
água do chimarrão já tinha esfriado e a lenha do fogão tinha
apagado.Todos estavam pasmos, nunca tinham ouvido falar
de um fato tão estranho.
Doutra feita, à noite, reunidos os trabalhadores da
fazenda à beira do fogo, tocando violão e cantando modas
sertanejas, Apoema e Acassio foram juntar-se a eles.
Fidêncio, um dos peões mais antigos da Fazenda, meio
encabulado, chegou perto do sertanista e pediu:
– Doutor! Conte para nós mais uma das suas
fantásticas experiências passadas na selva.
– Vou atender ao seu pedido e contar mais uma
extraordinária aventura que vivi – concordou.
- Era meio-dia. O sol perpassava seus raios
escaldantes por entre a ramagem das gigantescas árvores.
Eu fazia parte de um grupo de cavaleiros, que constava
aproximadamente de quinze pessoas, costeávamos a
margem direita do rio Tapajós, um dos maiores tributários
do Amazonas. Esse fantástico rio nasce na Serra dos
Parecís (MT), onde corre pelos vales, florestas e cerrados
mato-grossenses com o nome de Rio Juruena. Habitavam
as suas matas os índios Munduruku, Mura, Sateré-Mawê e
diversas outras tribos belicosas.
232
- O nosso grupo se embrenhara no sertão
amazonense; viajava em caráter científico, pesquisando a
flora e a fauna da região. Os homens do comboio estavam
todos armados da cabeça aos pés. Cada um deles trazia
presas à cinta pistolas carregadas; da ilharga esquerda
pendia-lhes um grande e pesado facão, e a espingarda
passada a tiracolo pelo ombro esquerdo.
- Pouco adiante de nós iam dois homens a pé, que
tocavam as mulas carregadas de sacos de lona com
mantimento, e caixas com conjunto de instrumentos para
pesquisa, cobertos com lona, que as abrigava da chuva.
Margeávamos rios e atravessávamos terras ainda
desconhecidas. Fizemos aproximação, contato e amizade,
com muitas tribos de índios hostis, da região.
- Os homens do grupo que seguiam dispersos, se
aproximaram do comboio que seguia adiante, eu galopava
na frente governando o cavalo com firmeza. Às vezes,
dirigia o olhar pelo caminho como para medir a distância
que ainda tínhamos a percorrer, e outras vezes ficava
pensativo e preocupado.
Quebrei o silêncio que reinava na comitiva.
- Vamos rapazes – disse eu, alegremente, aos que
caminhavam a pé; um pouco de esforço e chegaremos cedo
ao acampamento. Faltam apenas quatro léguas de distância.
Um dos homens, ao ouvir estas palavras, chegou as
esporas à cavalgadura e avançando colocou-se ao meu lado.
– Ao que me parece, tem pressa em chegar, Doutor
Apoema – disse com um sorriso zombeteiro.
– Está certo, meu amigo. Nada mais natural a quem
viaja, do que o desejo de chegar, e é melhor chegar de dia
do que de noite.
- O nosso pequeno grupo tinha deixado a margem
do rio, que não oferecia mais condições de passagem e
entrara por uma estreita trilha aberta na floresta. Apesar de
233
ser pouco mais de quatro horas da tarde, o crepúsculo
reinava nas profundas e sombrias abóbadas da vegetação. A
luz coando entre a espessa ramagem se decompunha
inteiramente; nem uma réstia de sol penetrava nesse templo
da criação, ao qual serviam de colunas os troncos seculares
das cerejeiras e castanheiros.
- O silêncio da tarde mortiça, com os seus rumores
vagos e indecisos e os seus ecos amortecidos, dormia no
fundo dessa solidão e era apenas interrompido, no
momento, pelos passos dos animais, que faziam estalar as
folhas secas. Parecia que o dia tinha sumido, envolvendo a
terra nas sombras pardacentas do entardecer. A pequena
cavalgada continuou a marcha através da trilha estreita e
aproximou-se de uma dessas clareiras das matas virgens
que se assemelham a um grande domo de ramagem.
- Neste momento um miado terrível fez estremecer a
floresta e encheu a solidão com os ecos estridentes de gritos
dos macacos apavorados. Os homens empalideceram e
olharam um para o outro, engatilharam as espingardas e
seguiram lentamente lançando um olhar cauteloso pelos
ramos das árvores.
- Quando o grupo chegou à margem da clareira,
deparou-se com uma cena surpreendente. Em pé, no meio
do espaço que formava a grande abóbada de árvores,
encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um
jovem índio. Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro
enfeitada por penas coloridas de arara. Na cintura trazia
uma faixa de longas plumas escarlates.
- De talhe delgado e esbelto como um junco
silvestre, sua pele cor de cobre brilhava com reflexos
dourados; os cabelos pretos cortados rentes, os olhos
negros, oblíquos, cintilantes e rápidos como dum gavião, a
boca forte, mas bem modelada, guarnecida de dentes alvos,
davam ao rosto uma beleza rústica.
234
- Era alto, tinha as mãos másculas, fortes, a perna
ágil e nervosa, ornada com uma pulseira de frutos amarelos
e vermelhos, apoiava-se sobre o pé com firmeza. Segurava
o arco e as flechas com a mão direita caída, e com a
esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo
forcado de pau. Perto dele estava atirado ao chão um grande
e afiado facão com cabo de madeira lavrada.
- Nesse instante, o índio, erguia a cabeça e fitava os
olhos numa sebe de folhas que se elevava a quinze passos
de distância, e se agitava lentamente. Por entre a folhagem,
distinguia-se o dorso, de pelo ruivo-dourado, brilhante,
salpicado com listras e manchas redondas orladas de preto,
dum feroz gato selvagem, a jaguatirica. Tinha mais ou
menos um metro de comprimento e sessenta centímetros de
altura, pesava aproximadamente vinte e cinco quilos.Sua
cauda comprida, de pêlos macios movia-se nervosamente
- Às vezes via-se brilhar na sombra os olhos, dois
raios vítreos e amarelos, que se assemelhavam aos reflexos
de rocha, ferida pela luz do sol. A jovem jaguatirica, de
garras apoiadas sobre um grosso tronco de árvore e pés
suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando
o salto sobre o inimigo.
- Batia os flancos com a cauda, e movia a cabeça
pequena, como a procurar uma abertura entre a folhagem
para arremessar o pulo. Uma espécie de riso sardônico e
feroz contraía-lhe as fortes mandíbulas mostrando os dentes
afiados. As ventas dilatadas aspiravam fortemente e
pareciam deliciar-se já com o sabor do sangue da vítima.
- O indígena, sorrindo e levemente encostado ao
tronco seco, não perdia um só desses movimentos e
esperava o animal com calma e serenidade; apenas a
fixidez do olhar revelava um pensamento de defesa. Assim,
durante um curto instante, a fera e o homem mediram-se
ambos, com os olhos nos olhos um do outro; depois o
235
enorme gato selvagem agachou-se, e ia formar o salto,
quando a tropa apareceu na entrada da clareira. Então o
animal, lançando ao redor um olhar injetado de ódio, eriçou
o pelo, e ficou imóvel, hesitando se devia arriscar o ataque.
- O índio Naipi, ao ver a reação da fera curvara
ligeiramente os joelhos e apertara o forcado; endireitou-se
de novo, sem deixar sua posição, nem tirar os olhos do
animal, viu o grupo que parara à sua direita. Estendeu o
braço e fez com a mão um gesto intimando aos cavaleiros
para que continuassem a sua marcha. A um sinal meu, os
homens prosseguiram a viagem, e se embrenharam
novamente na selva. Eu fiquei ai, estacado, admirando e
esperando o desfecho desse embate feroz, entre os donos da
floresta.
- A jaguatirica, observava os viajantes, imóvel com
o pelo eriçado, não ousara investir nem retirar-se, temendo
expor-se aos tiros das espingardas, mas apenas viu a tropa
afastar-se sumindo no meio da mata, soltou um forte miado
de provocação. Ouviu-se o rumor de galhos que se
quebravam, e o vulto ruivo-dourado do felino passou no ar,
pousando num tronco mais distante do adversário. O
selvagem entendeu de imediato a razão disto. A jaguatirica,
com seu instinto carniceiro e a sede voraz de sangue tinha
visto os cavalos, uma presa fácil para saciar a sua fome. O
felino temia o homem.
- Com a mesma rapidez que pensou, o índio pegou
da cinta uma flecha e esticou a corda do grande arco.
Ouviu-se um forte sibilo, que foi acompanhado do miado
dolorido da fera. A jaguatirica voltou-se ameaçadora e
terrível, aguçando os dentes, rugindo de dor, fúria e
vingança. Com dois saltos aproximou-se novamente
- Era uma luta de vida e morte. Estes dois jovens
habitantes da selva, cada um com suas armas, cada um com
a consciência de sua força e coragem, consideravam-se
236
adversários dignos um do outro. A jaguatirica desta vez não
demorou. Assim que se achou próximo do inimigo, retraiuse com uma força de elasticidade extraordinária e atirou-se
como um estilhaço de rocha, cortada pelo raio.
- A velocidade deste salto admirável, foi tal que, no
mesmo instante em que se viram brilhar entre as folhas os
reflexos ruivos de sua pele, já a fera tocava o chão com as
patas. Então, o selvagem distendeu-se com a flexibilidade
da cascavel ao lançar o bote, fincando os pés e as costas no
tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da
jaguatirica, que, subjugada, prostrada, de costas, com a
cabeça presa ao chão pelo forcado, debatia-se, procurando
debalde alcançá-lo com as garras.
- Essa luta durou alguns minutos. O índio Naipi,
com os pés prendendo fortemente as pernas da jaguatirica e
o corpo apoiado sobre a forquilha, mantinha imóvel a fera.
Quando o animal, quase asfixiado pela estrangulação, já
não fazia resistência, o selvagem, segurando sempre a
forquilha, meteu a mão na cintura e tirou uma corda de
embira que passou nas patas dianteiras ligando-as
fortemente uma à outra; depois fez o mesmo às pernas, e
acabou amarrando as duas mandíbulas, de modo que a fera
não pudesse abrir a boca para arrancar as cordas.
- Quando Naipi satisfez o prazer de contemplar a
sua presa totalmente imobilizada, foi ao regato, bebeu
alguns goles d‟água, lavou as mãos, o rosto e os pés, e
cuidou em pôr-se a caminho. Passando pelas patas da
jaguatirica um galho forte, que suspendeu ao ombro, e
vergando ao peso do animal, de vinte e cinco quilos, que se
debatia, tomou a trilha por onde tinha seguido a nossa
tropa. O urutau no fundo da mata soltou as suas notas
graves e sonoras, solidário ao animal preso; grito que
reboou pelo sertão e foi extinguir-se na imensidão da
vegetação.
237
“Tinyiá,desejava ter uma jaguatirica como animal de
estimação, e eu fui buscar uma para ela – raciocinou ele”.
- Naipi arriscando a própria vida, capturou e trouxe
a jovem jaguatirica, viva, um lindo e grande gato selvagem
unicamente para satisfazer o capricho da sua amada, a filha
do cacique Kuará, da nação Munduruku.
- É que o amor e as paixões surgidas nesses ermos
incultos, e, sobretudo no seio desta natureza exuberante e
grandiosa, são verdadeiras epopéias do coração.
- Tinyiá, era uma jovem índia, cuja posse
disputavam todos os guerreiros que a conheciam. Seu pai, o
chefe da tribo, sentia o orgulho de ter uma filha tão
formosa, como a mais vistosa pena do seu cocar.
- As grandes nações indígenas, Munduruku, SateréMawé e Mura dominavam todo o território entre o Rio
Tapajós e o Madeira; eram povos guerreiros, valentes e
destemidos, que por diversas vezes fizeram sentir aos
conquistadores a força das suas armas. Os mais belicosos e
temidos eram da nação Sateré-Mawé, que viviam invadindo
os territórios dos seus vizinhos, roubando as suas mulheres.
- Nas minhas andanças pelo sertão, fiz amizade com
o cacique Kuará, e fui recebido com alegria na sua aldeia.
Para selar esse pacto de amizade e respeito, os indígenas
organizaram danças e festejos em nossa homenagem.
Caçaram uma grande anta e cinco catetos gordos, que
assaram na fogueira armada no meio do terreiro da taba,
envoltos em folhas de bananeira.
- Para dar maior destaque ao fato, naquele dia Naipi
trouxe a jaguatirica que tinha capturado, para oferecer à
jovem índia, a quem amava. Um átomo de vaidade surgiu
no fundo do olhar da moça ao contemplar o seu exótico
presente. Sorriu e aproximando-se do guerreiro, disse:
– “Meu amigo Naipi, agradeço pelo lindo felino que
me trouxe, mas tenho um pedido urgente a te fazer. Olha
238
para esse magnífico animal que está aprisionado. É valente,
no entanto, tremem seus músculos na expectativa de se
livrar dessas amarras e ganhar a liberdade. Solte a
jaguatirica para que vá viver na selva onde é o seu lugar,
aqui, enjaulada, ela vai morrer de desespero e tristeza, e eu
vou sofrer também, liberte-a, peço-te, por favor!.Estou
arrependida de ter desejado esse presente”.
- O índio sorriu de leve, apenas com uma leve
contração dos lábios, era um sorriso triste.
- “Naipi é um selvagem, filho das florestas; nasceu
nesses ermos, no meio dos animais que vivem na selva, eles
conhecem Naipi e o respeitam, e eu os respeito. Não vou
machucar o grande gato, só o capturei para oferecer a você,
para que o domesticasse e brincasse com ele, mas se tem
pena e o deseja livre, desatarei o laço que o prende e
soltarei na mata”.
- “Eu desejo que assim o faça, meu amigo Naipí confirmou a moça”.
- Ela sabia que era amada pelo valente guerreiro,
uma alma selvagem, livre como as aves que planam no ar,
ou como os rios que correm na várzea, admirava aquela
natureza forte e vigorosa que fazia prodígios de força e
coragem; aquela vontade indomável como a torrente que se
precipita do alto da serra. Mas seu coração virgem não batia
de amor por ele; a afeição que sentia por Naipi era um
enlevo, uma grande admiração de menina pelo seu herói, o
amor fraternal que consagrava a um irmão. Nunca admitira
que esse sentimento pudesse passar daquilo que sentia.
- No entanto, a minha pessoa, o homem branco, um
estrangeiro, produziu novas emoções, ainda desconhecidas
para Tinyiá. Assim que ela me viu adentrando a aldeia, na
companhia do cacique Kuará, seu pai, ficou atraída por
mim. O olhar de admiração que lhe dirigi ao cumprimentála, conquistou-a definitivamente. O amor revelou-se para
239
ela sob uma nova forma. Talvez fosse o fascínio do
desconhecido, dum mundo que ela não conhecia e nem
supunha existir e que o homem branco podia lhe oferecer.
- Eu tinha o hábito da vida arriscada de explorador,
obrigado a romper as matas virgens e abrigar-se em lugares
imprevisíveis. Montava nosso acampamento na margem do
rio ou nalgum descampado da mata. Aí o homem vê-se
cercado de perigos por todos os lados, pode surgir de
repente uma sucuri ou uma onça, um inimigo oculto pela
folhagem, que se aproxima sem ser visto.
- A única defesa é a sutileza do ouvido que sabe
distinguir, entre os rumores vagos da floresta, aquele que é
produzido por um movimento mais forte do que a do vento.
Assim como a rapidez e certeza da vista que vai perscrutar
as sombras das moitas e devassar a folhagem espessa das
árvores. Eu, felizmente, tinha esse dom dos caçadores
hábeis e também a sensibilidade para admirar a natureza.
- Mas, jamais poderia competir com os indígenas
que conhecem profundamente a vegetação da selva
amazonense, desde a parasita mimosa até o castanheiro
gigantesco; e no reino animal observam e respeitam a onça
e a anta, símbolos da ferocidade e da força, até o lindo
beija-flor e a multiplicidade de insetos, e a inteligente
organização social dos formigueiros.
- Olham este céu que de repente passa do mais puro
azul aos reflexos cinza e bronzeados que anunciam as
grandes tempestades. Eles observam e vêem, sob o verde
tapete da relva coalhada de flores que cobre as várzeas,
deslizar os mais inverossímeis répteis que levam a morte
num átomo de veneno.Os silvícolas, que nascem, embalamse nas redes de juta, banham-se nos rios, brincam e crescem
nesse berço selvagem, no meio de cenas tão diversas, entre
o eterno contraste do sorriso e da lágrima, da flor e do
240
espinho, do mel e do veneno; também têm a sensibilidade e
a alma de um poeta.
- Tinyiá, não entendia essa luta do amor com os
outros sentimentos do coração. Na sua ingênua
simplicidade acreditava que podia juntar o respeito que
tinha pelo pai e pela mãe, ao amor que sentia pelo homem
branco e o afeto fraternal que consagrava à seu amigo de
infância Naipi. Esses sentimentos eram sua razão de viver;
no meio deles sentia-se feliz, nada mais ambicionava.
- Naipi estava triste; depois da conversa que tivera
com Tinyiá, vira-a durante as danças, a menina evitava os
seus olhares, e nem uma só vez lhe dirigira a palavra. O
índio supunha que tudo isto era resultado de sua aventura
com o grande gato selvagem, mas isso não podia ser a
razão, pois ele atendeu o pedido dela, trouxe, e depois
soltou o animal na floresta. A maneira com que ela o
tratava, tinha-lhe dado a maior prova de falta de amor, de
indiferença e desinteresse.
- Tinyiá mostrava-se alegre e satisfeita com todos.
Dava atenção especial a mim, homem branco, que o
cacique Kuará convidara, para que participasse dos festejos.
O nosso acampamento fora armado perto do rio, na
proximidade da aldeia Munduruku, com consentimento do
chefe da tribo e do pajé Caaibaté.
- A tropa de cavalos e mulas, para que não se
extraviasse pela mata, fora recolhida ao cercado que
pertencia à aldeia. Os animais cansados e esfomeados
pastaram tranqüilamente a tarde toda, na pastagem
abundante. Mas depois, os homens observaram que algo
estava perturbando os animais, eles corriam endoidecidos
pelo campo cercado, relinchavam, escoiceavam e mordiam
uns aos outros. Fui avisado desse estranho comportamento
dos animais. Nesse momento eu estava conversando com
amigos, na companhia do pajé Caaibaté, que ouviu o relato
241
da invulgar ocorrência, e sorrindo com a boca desdentada,
deu a sua opinião:
- “Não se preocupe, os seus cavalos devem ter
comido uma planta alucinógena que existe nas pastagens e
que, quando comida pelos animais causa-lhes grande
euforia. Eles estão sobre o efeito da droga, que logo vai
passar, fique tranqüilo”.
- O pajé era um homem velho, de pele enrugada,
alto e magro; vestia duas peles de anta ligadas sobre os
ombros que cobriam seu corpo como uma túnica; um
grande cocar de penas escarlates e amarelas, ondeava sobre
sua cabeça e realçava lhe a grande estatura. Tinha o rosto
pintado com riscos em preto e branco, e o pescoço cingido
de uma coleira feita com as penas brilhantes de tucano. No
braço ossudo levava uma pulseira feita de pequenos frutos
coloridos e ossos de animais. Era uma pessoa sagaz e
inteligente, respeitado por toda nação Munduruku.
- Eu conversava com o pajé, que questionava as
guerras entre os brancos e silvícolas. Sentávamos nós sobre
dois grossos troncos de árvore lavrados toscamente, que nos
serviam de bancos. O pajé Caaibaté condenava, com razão,
a invasão das suas terras pelos estrangeiros, a expulsão
impiedosa da sua gente, o aprisionamento e os massacres
dos nativos. Eu dava-lhe todo apoio, comungava da mesma
idéia, não aprovava as atrocidades praticadas pelos homens,
ditos civilizados.
- Nesse momento aproximou-se de nós, a bela índia
Tinyiá. A moça fitou-me com seus grandes olhos negros;
havia tanto amor e tanto sentimento nesse olhar profundo,
que se eu compreendesse teria a resposta à pergunta que
me fiz. Mas eu não entendi, nem o olhar ardente que me
fascinava, nem o silêncio da moça. Supunha que havia nisto
um mistério, e queria esclarecê-lo.
242
- “A dileta filha do cacique Kuará tem algo a me
dizer? - Perguntei - pois fale, eu a ouvirei com todo
respeito! Por amor dos deuses da floresta, fale! Não me
deixe em dúvida, preciso saber o que se passa”.
- Tomei nas minhas as duas mãos da moça, e com os
olhos fitos nos dela esperava enfim uma resposta. O amor
profundo que dormia arraigado na alma selvagem de
Tinyiá, a paixão abafada e reprimida, acordara, e quebrando
as cadeias que a retinham, erguia-se impetuosa e indomável
O simples contato das minhas mãos tinha causado essa
revolução; o amor ia transbordar do coração como a
torrente caudalosa do leito profundo do Tapajós.
- “Eu te amo! – murmurou num ímpeto a moça –
você não conhece o segredo desse amor que vive só de
ilusões, sem que um olhar, ou uma palavra sua o alimente.
A pequena atenção que você me dava era um estímulo para
minha alma”.
- “É uma grande surpresa essa sua declaração,
jamais imaginei que houvesse, da sua parte, tal afeto
relacionado a mim, sempre supus que você era prometida e
amava o guerreiro Naipi, que a ama e lhe é totalmente
dedicado, prova disso está no risco de vida que correu para
trazer-lhe esse feroz e estranho presente“.
- “Realmente, fui prometida a Naipi e ele me ama,
no entanto, eu o respeito e amo como a um irmão. Fomos
criados juntos; corríamos pelos campos igual a cabritos
selvagens e tomávamos banho no rio, junto com as crianças
da tribo. Admiro muito ele, mas não consigo vê-lo como
meu marido. Preciso esclarecer este assunto com ele”.
- Nesse momento aproximou-se deles o guerreiro
Naipi. Cumprimentou com toda deferência o pajé Caaibaté
e o homem branco, que conversava com a sua pretendida.
Tinyiá, assim que o viu chegar, ficou com medo de
enfrentá-lo naquele instante, e afastou-se rapidamente.
243
Precisava estar só para refletir sobre o misterioso
sentimento, que tomava de assalto o seu coração, e achar a
melhor forma de discutir isso com Naipi, sem magoá-lo.
- “Estou achando estranho, a minha prometida,
evitar-me dessa maneira, será que eu a ofendi? O nosso pajé
sabe de alguma coisa? – perguntou Naipí”.
- “Você precisa procurar Tinyiá e falar com o pai
dela, o cacique Kuará, eu não posso te adiantar nada –
respondeu o pajé e também se retirou do grupo”.
- Naipi atravessou a ocara cheia de gente e colocando-se junto à sua amada, olhou-a por um instante com
um sentimento de profunda melancolia. Nesse olhar
ardente fazia uma última e solene despedida; partindo, o
apaixonado queria deixar a sua alma presa naquela imagem.
- Que epopéia de sentimento e abnegação não havia
naquela muda e respeitosa contemplação! Não ia
reivindicar nada, nem o direito que tinha de tomá-la como
esposa. O amor não se impõe, ele é uma dádiva divina.
- O guerreiro estava perplexo com a confusão dos
sentimentos, do seu amor frustrado; agora
estava
convencido que a jovem não o amava, e nunca o havia
amado. Decepcionado, sob o peso da mágoa dolorosa,
como é sempre a dor do coração, o guerreiro afastou-se
distraído, com a cabeça baixa; caminhou sem direção,
seguindo a linha que traçavam os grupos de árvores,
destacados aqui e ali sobre a campina.
- O índio desapareceu nas sombras da noite que
avançava rapidamente. Foi procurar a sua tribo e o campo
onde nasceu. Ele era um membro da nação Mura, da família
lingüística Mura, que veio com a mãe, ainda criança, para a
aldeia dos Munduruku, e quando ela voltou para sua tribo
ele ficou com os novos amigos. Agora desiludido,
malogrado no seu amor, voltava à sua gente. A mágoa
dilacerava seu coração selvagem. Precisava esquecer
244
Tinyiá! Amava-a desde a infância, esperava que algum dia
ela fosse sua esposa.
- Para esquecê-la era necessário embrenhar-se pelo
sertão atrás de caça ou talvez de um inimigo à sua altura.
Não voltou mais para a tribo dos Munduruku. Tomou como
esposa a índia Jandira, uma virgem belíssima, da sua tribo,
que o amava e o esperava na sua rede nupcial. No correr
dos anos ela lhe deu muitos filhos varões.
- O guerreiro Naipi da nação Mura não precisou
esperar muito tempo para extravasar toda sua desilusão com
o amor e a indiferença de Tinyiá. Surgiu uma guerra com o
inimigo antigo do seu povo, a numerosa e feroz tribo dos
indígenas Sateré-Mawé, do tronco Tupi, que habitavam as
margens do rio Maués.
- Eles sempre cobiçaram o território dos Mura, onde
havia abundante caça, e o grande rio Tapajós era pródigo
em peixes; mas principalmente cobiçavam as belas
mulheres Mura. Para tanto, espionaram a aldeia por muitos
dias e quando os homens adultos saíram em grupo, para
fazer a grande caçada, os Sateré-Mawé resolveram atacar.
Fariam uma encenação de um grande ataque, para assustar
as mulheres, crianças e alguns homens mais velhos, que
tivessem ficado como guardiões da aldeia.
- Ao amanhecer do terceiro dia, ouviu-se um som
rouco que se prolongou pelo espaço, como eco surdo de um
trovão distante. Uma linha movediça, longo arco de cores
vivas e brilhantes, agitou-se ao longe na planície irradiando
à luz do sol nascente.
- Homens quase nus, de estatura gigantesca e
aspecto feroz; com o rosto e corpo pintados com as cores de
guerra, levando na cintura faixas de penas amarelas e
vermelhas, armados de tacapes, espécie de longas espadas
de pau que cortavam como ferro, e de arcos e flechas
enormes, ameaçavam soltando gritos medonhos. A inúbia
245
retroava; o som dos instrumentos de guerra misturado com
os brados e alaridos formavam um concerto aterrorizador,
harmonia sinistra que revelava os instintos dessa horda
selvagem reduzida à brutalidade das feras.
– Os Sateré-Mawé! – gritaram apavoradas as
mulheres da aldeia Mura.
- Todos os homens fortes, guerreiros da tribo,
estavam ausentes, tinham ido à caça de antas e porcos-domato, caititus; ficaram apenas os mais velhos, mulheres,
crianças e o pajé Tiarayiú, que alertado sobre o perigo da
invasão, mandou com urgência um rápido mensageiro
avisar Naipi, o chefe da caçada.
- Eram seis horas da manhã.
- Longe, ao pé do morro descortinava-se o
acampamento dos Sateré-Mawé; a brisa que passava trazia
o rumor confuso das vozes e gritos dos guerreiros inimigos.
- O sol elevando-se no horizonte derramava cascatas
de ouro sobre o verde brilhante das vastas florestas e
refletia-se nas águas do rio Tapajós. Os invasores,
agrupados em torno de alguns troncos já meio reduzidos a
cinzas, faziam preparativos para dar um ataque decisivo à
aldeia dos Mura, situada doutro lado do rio.
- Nesse momento, os Sateré-Mawé preparavam setas
inflamáveis para incendiar as malocas da aldeia inimiga;
não querendo atacar de imediato e vencer pelas armas,
contavam primeiro destruí-la pelo fogo. Assim, poderiam
capturar as mulheres e crianças dispersas pela ocara.
- A maneira como preparavam esses terríveis
projéteis era muito simples; envolviam a ponta da flecha
com flocos de algodão embebido na resina de aroeira
(almécega) Essas setas assim inflamadas, despedidas por
seus arcos voavam pelos ares e iam cravar-se na cobertura
de palha das palhoças, incendiando-as; o vento alastrava o
fogo pela aldeia toda. Enquanto, atentos, se ocupavam com
246
esse trabalho, um prazer feroz se estampava nessas
fisionomias selvagens. A braveza, a ignorância e a cobiça
se acentuavam. Os cabelos negros cortados rentes e caídos
sobre a fronte ocultavam-lhes os olhos oblíquos, que
despediam chispas de fogo sobre a aldeia inimiga.
- Entre todos se distinguia um velho que parecia ser
o chefe. Sua alta estatura, reta apesar da idade avançada,
dominava seus companheiros sentados ou agrupados em
torno do fogo. Seu rosto e corpo estavam pintados com as
cores de guerra, preto e vermelho. Não trabalhava; presidia
apenas o trabalho e de vez em quando lançava um olhar de
ameaça para a aldeia que se achava doutro lado do rio.
- Ao lado dele, ficava uma bela índia na flor da
idade; queimava sobre a cova de uma pedra algumas folhas
de tabaco misturadas à maconha, cuja fumaça se elevava
em grossas espirais e cingia a cabeça do velho de uma
espécie de névoa. Ele aspirava esse aroma embriagador,
que fazia dilatar o seu vasto peito e dava à sua fisionomia
um aspecto incomum. Envolta pela fumaça espessa, aquela
figura fantástica parecia um ídolo selvagem.
- De repente a índia soltou um grito; todos se
voltaram para ela e a viram trêmula, ofegante, apoiando-se
com uma das mãos sobre o ombro do velho cacique e a
outra estendida na direção da floresta próxima do campo
onde estavam acampados. Ela ouvira um barulho estranho.
- O velho ergueu-se, sempre com a mesma calma
feroz e sinistra; e empunhando o seu pesado tacape, fê-lo
girar sobre a sua cabeça como um junco; depois fincando-o
no chão e apoiando-se sobre ele, esperou. Os outros
selvagens armados de arcos e flechas colocaram-se a par do
velho, esperavam a sua ordem, prontos para o ataque. O
estalido que a princípio tinham ouvido cessou
completamente, e os selvagens recobrando-se do susto
247
convenceram-se de que tinham sido iludidos por algum
vago rumor da floresta; voltaram à preparativos de guerra.
- A aldeia da tribo Mura estava em pânico. As
mulheres e crianças corriam pelo terreiro apavoradas.
Todos com os olhos fitos no campo inimigo, os sentidos
alerta, esperavam o ataque a cada momento e se
preparavam para defender-se com valentia que distinguia a
raça Mura. Esperavam ansiosos a volta do chefe Naipí e
seus guerreiros, que os defenderiam do ataque.
- Naipi foi avisado, por um veloz emissário da sua
comunidade, do iminente ataque dos Sateré-Mawé à sua
aldeia. Resolveu atacar o acampamento deles de surpresa.
Os guerreiros Mura, mastigando folhas de ipadu,
esgueiraram-se sorrateiros entre as árvores e ramagens,
silenciosos como uma sucuri, alcançaram o acampamento
inimigo por trás e investiram no flanco mais exposto,
disparando flechas envenenadas. Caíram no meio deles,
subitamente, sem que pudessem saber se tinham surgido do
seio da terra, ou se tinham descido das nuvens.
- Passado o primeiro espanto, os inimigos bramindo
atiraram-se todos como uma só mola, como uma avalanche,
uns contra os outros. Houve uma confusão, um turbilhão
horrível de homens que se enfrentavam, se repeliam,
tombavam e se estorciam; de cabeças que se levantavam e
outras que caíam; de braços e dorsos que se agitavam e se
contraíam desfechando golpes violentos com o tangapema.
Corpos tombados se misturavam naquele campo de batalha.
- No meio desse caos via-se brilhar aos raios do sol
o tacape de Naipi, que passava e repassava com a velocidade do relâmpago quando percorre as nuvens e
atravessa o espaço. O guerreiro ansiava por essa batalha e
lutava como uma fera. Um coro de gritos, urros e gemidos
roucos e abafados, confundindo-se com o choque das
248
armas, se elevava desse pandemônio, e ia perder-se ao
longe nos rumores das cachoeiras do Tapajós.
- O chefe Naipi, vencedor, deu o sinal de trégua no
combate; seguiu-se uma calma aterradora. Os selvagens
imóveis de espanto e de cansaço suspenderam o ataque; os
corpos dos mortos faziam uma barreira entre os inimigos.
Os guerreiros abaixaram as armas e não deram mais um
passo à frente; esse povo bárbaro tinha seus costumes e
suas leis, e uma delas era esse direito exclusivo do vencedor
sobre o vencido, sobre os prisioneiros de guerra.
- Os Sateré-Mawé sobreviventes, vendo a batalha
perdida, fugiram em debandada, correndo do risco de
ficarem cativos do povo Mura. O guerreiro Naipi com seus
homens voltou feliz à sua tribo. Entre os prisioneiros, trazia
a bela índia Maibi, que iria partilhar a sua rede, como sua
segunda esposa.
- O cacique dos Sateré-Mawé e mais cinco inimigos
capturados seriam sacrificados e devorados na festa dos
vencedores, cerimônia que costumavam celebrar após a
vitória. Os crânios deles, espetados, enfeitariam como
troféus o cercado da aldeia Mura, na margem do Tapajós.
- Depois de refletir muito sobre o amor que Tinyiá
me dedicava, dirigi-me à seu pai, chefe dos Munduruku e
solenemente, pedi a mão de sua filha em casamento.
Pedido que fez estremecer de felicidade o coração da jovem
índia e comoveu o do pai; ele admirava o homem branco.
- “O meu compromisso com o guerreiro Naipi
deixou de existir, depois que ele voltou para sua tribo.
Portanto, pode tomar minha filha Tinyiá como sua esposa.
Serei feliz se ela for feliz. Só te imponho uma condição,
não poderás levá-la para a taba dos brancos. Ela será sua
esposa aqui na nossa aldeia - decidiu o cacique Kuará”.
– “Sou conhecedor dos costumes da valorosa nação
Munduruku, concordo plenamente com a exigência do
249
grande chefe Kuará e assumo o papel de marido da vossa
filha Tinyiá – confirmei a determinação do pai “.
- A nossa união foi solenemente festejada. Passei a
habitar a oca da família de minha esposa Tinyiá, quando de
passagem por essas bandas. Ela já me deu dois filhos
homens, Pojucã e Itaquê, que são criados de acordo com os
costumes do povo Munduruku.
Já era quase madrugada; os galos cantavam pelos
terreiros e o sabiá madrugador entoava sua melodia,
empoleirado na árvore do pomar, quando Apoema, o filho
de Diadora, terminou de contar a aventura que viveu nas
margens do rio Tapajós, nos sertões amazonenses.
– Pelo que falou, eu sou avó de dois filhos teus com
a índia Tinyiá. Gostaria imensamente de conhecê-los.
– Na primeira oportunidade levarei a senhora para
conhecê-los, minha mãe – a viagem vai ser longa e cheia de
desafios, mas eu conheço a selva e somos bons amigos.
***
No grande espetáculo da vida surgem novos
figurantes que trilham o caminho predestinado, envolvidos
no drama sentimental cujo teor desvendamos por acaso:
“A história secreta de Alicia”.
Alicia era filha mais velha de Hermínia Bauer e
Januário de Oliveira. Alicia e Janice eram primas e foram
criadas juntas após a morte dos pais de Janice. Amigas
íntimas confidenciavam seus segredos e não os revelavam
a ninguém, nem sob tortura.
Quando Janice casou e se mudou para a Fazenda
Marambaia, de propriedade da família de Guilherme, Alicia
ficou muito triste e só, pois não teria mais a quem segredar
os seus problemas. De alma sensível, possuindo um dom
especial para música, dedicou-se a aprender tocar piano,
para isso foi contratada uma excelente professora.
250
Depois da aula distraia-se ajudando o pai no
atendimento à numerosa clientela do armazém. Januário era
estabelecido havia muitos anos na cidade de Palmeira do
Sul, comercializava cereais produzidos na região.
Para preencher a solidão de Alicia logo apareceu um
rapaz simpático, de cabelos crespos da cor de ouro velho.
Era de porte médio, esbelto, tinha uma fisionomia plácida e
algo de fraternalmente atrativo nos olhos muito azuis.
Valdir era filho caçula de Felício Rudgieri Junqueira
e de Gertrudes Waiss. O pai, era comerciante, possuía uma
loja de confecções na cidade. Nos encontros sociais Valdir
ficou conhecendo a jovem Alicia. Apaixonou-se por ela à
primeira vista. Alicia era uma moça muito bonita, alegre, de
olhos cinza-esverdeados, cabelos loiros e pele rosada.
Valdir e Alicia, como a maioria dos habitantes da
Região Sul do país, tinham correndo nas veias sangue de
descendentes de imigrantes de origem européia, italianos,
alemães e portugueses. O moço, apaixonado, não esperou
muito para pedir a mão da jovem em casamento.
Passadas algumas semanas foram juntos à igreja
marcar a data da cerimônia. Encontraram na sacristia da
igreja um pároco novo, fato que os surpreendeu, pois não o
conheciam. O padre atendeu-os com simpatia, palavras de
orientação e afeto, desejando-lhes felicidades.
O padre Genaro de Sordi fora transferido
recentemente da capital, para ocupar o cargo de reitor do
Seminário Diocesano São Vicente na cidade. Além das
aulas de Teologia que ministrava aos seminaristas, também
lecionava Ciências, História do Brasil e Universal no
Colégio Santa Maria, dirigido por irmãs Vicentinas e
freqüentado por alunos da classe média da cidade.
Nascido na Itália, o padre Genaro viera para o Brasil
logo depois de ordenado. Falava com um leve sotaque
251
italiano e tinha uma voz cantante e macia que enchia o
recinto e quando falava, seus olhos brilhavam.
O vigário era um homem alto e corpulento, de rosto
cheio e olhos de um castanho da cor-de-mel queimado.
Tinha um olhar magnético e uma irresistível capacidade de
atração. O sorriso tão cativante encantava as pessoas. O
padre tinha um aspecto másculo – a voz, os gestos, o andar,
tudo exprimia masculinidade. Era um personagem singular.
Certa vez, ao cair da tarde, aproximou-se da janela
da sala paroquial, o busto um pouco inclinado para a frente,
o olhar vago posto nos horizontes largos sobre a Serra do
Mar, que se desenhava ao longe. Sentiu saudade da sua
terra natal, Itália. Nesse momento um bando de hortulanas,
pássaros de arribação, sobrevoava em círculo o bosque
próximo à paroquia. Padre Genaro, embevecido, observava
o seu vôo ordenado.
Lembrou-se, que, quando ainda estava na Itália, sua
mãe preparava uma excelente iguaria de hortulanas assadas.
Decidiu pedir ao sacristão para ele pegar uma dúzia delas e
levar para a cozinheira Giordana para que as preparasse e
servisse no jantar daquela noite. Era uma extravagância do
paladar que se permitia.
Os vigários anteriores da paróquia sempre se
impacientavam com a falta de religião dos homens da
cidade, que em sua maioria nunca iam à missa ou, quando
iam, não se ajoelhavam nem oravam, limitando-se a ficar de
pé, atrás do último banco, com o ar contrariado, e em geral
se retiravam, mal começava o sermão.
O padre Genaro, porém, fizera-se amigo de todos,
conquistando-lhes a confiança. Tinha um comportamento
exemplar, e a maledicência local nunca conseguira
descobrir-lhe na vida o mais leve deslize moral e era
sentimentalmente intocado.
Até que um dia o destino o atingiu.
252
Nos primeiros tempos Genaro esteve tão ocupado
com seus deveres paroquiais, que não teve tempo de pensar
em mais nada. Deitava cansado das lides diárias e
levantava-se de madrugada para rezar a missa às seis horas
da manhã, que era assistida por meia dúzia de beatas.
Tomava o desjejum reforçado, que sua velha cozinheira
Giordana lhe preparava e saía em peregrinação pela cidade
e redondezas, para inteirar-se do modo de vida, dos
interesses e problemas dos paroquianos.
Ocupava-se também, como reitor, da administração
do Seminário e com as aulas que lecionava aos seminaristas
e aos alunos do Colégio Santa Maria. Não regressava à casa
paroquial até tarde, quando comia a única refeição completa
do dia, sozinho na sala de jantar da casa. Contudo, a fadiga
em conseqüência do trabalho não foi suficiente para sufocar
sua natureza vigorosa e sensual. Alguma coisa o
incomodava, deixava-o inquieto.
Vinda de tradição antiga, a celebração da festa de
Santo Agostinho padroeiro da cidade, no mês de maio,
realizar-se-ia neste ano com toda a pompa. O padre Genaro
se propôs a organizar e administrar os festejos. Esforçar-seia para que naquele ano sobrepujassem as comemorações
dos anos anteriores, em que o seu antecessor padre
Giácomo, já idoso, comandava na paróquia.
No dia da festa levantou-se de madrugada. Lá fora,
o campo sacudia-se da modorra da noite, e os primeiros
raios do sol cruzavam como sabres os cumes das
montanhas, aquecendo a terra e evaporando o orvalho da
noite, numa fina espuma branca que manchava todos os
contornos e fazia da paisagem uma visão de sonho. A
finíssima garoa empapara a terra e as árvores.
Àquela hora matutina tudo estava ainda calmo.
Passos de alguém que passava esmagavam as folhas caídas
e os galhos secos, produzindo um leve estalar, único ruído
253
naquele vasto espaço adormecido. Os raios do sol nascente
apareciam tímidos, acima dos picos mais elevados, mas o
dia ainda não acabara de se instalar e a terra bocejava.
Mais alguns minutos e o disco dourado, enfim,
surge majestoso e, aos poucos, os campos ao redor
emergem lentamente das sombras e ganham tons
esverdeados fortes. O orvalho, em cima das folhas, brilha
como vidro moído.
O dia está começando...
Em passos rápidos o vigário aproximou-se da janela
do seu quarto e olhou para fora. Sob um céu sem nuvens,
dum azul intenso, o Largo em frente da igreja cintilava ao
sol nascente. Soprava uma brisa morna e o ar estava leve.
Pela calçada de pedra da praça, impelidos pelo vento, folhas
caídas e uns pedaços de jornal velho arrastavam-se pelo
chão, batendo nas pernas dos passantes.
Genaro dirigiu-se à porta da sala e a abriu toda, deu
dois passos à frente para o jardim, gesticulou, respirou
fundo, e com o olhar abarcou o horizonte.O vento fazia
esvoaçar-lhe os cabelos ruivos; sentiu uma repentina
tontura e por momentos as imagens se lhe turvam diante
dos olhos.
Pouco antes das seis horas deixou a casa paroquial,
atravessou a praça em passadas vigorosas, na direção da
Matriz, cujos sinos badalavam anunciando que a missa das
seis, ia começar. Caminhava atento às pessoas que àquela
hora matutina se dirigiam para a igreja.
A Praça da Matriz estava toda ornamentada. Lá
estava a grande figueira, muito copada, dum verde-garrafa
sombreado de preto, e com seu tronco e galhos que
pareciam membros humanos espichados. Dos seus ramos
pendiam guirlandas de flores artificiais. Ela também era
participante daquela comédia da vida, mais do que mera
parte do cenário estático. Colados a fios suspensos entre as
254
árvores, que o inverno despira de folhas, esvoaçavam
bandeirinhas triangulares, azuis, vermelhas, verdes, amarelas e brancas, recortadas de papel de seda.
Os sinos cantavam na manhã rosada e o som claro e
vibrante parecia vir de longe, do céu, porque em toda a
cidade e arredores, até distantes, esse bimbalhar festivo
despertava nas almas dos fiéis a alegria de Deus. A cidade
vibrava com uma energia excepcionalmente intensa, era
uma festa popular e ninguém se preocupava com o dia
seguinte; chegasse da forma que quisesse e atingisse o
estado que fosse, tudo era festa.
São quase onze horas da manhã do dia santificado.
A luz do sol tem uma tonalidade âmbar, refletindose nas janelas de vidro das casas que dão para a praça.
Senhoras gordas, de ar plácido, acompanhadas dos maridos
e filhos apressam-se para participarem da Missa Solene. Os
fogos de artifício estalam no céu e, pelas ruas concorridas,
grupos de crianças e adolescentes brincam em algazarra,
lançam bombinhas e traques entre risos e correrias.
No Largo da Matriz, mocinhas que dão a impressão
de que acabaram de sair do banho, passeiam em bandos
pelas calçadas, algumas acompanhadas de namorados,
fazem voltas completas na praça, caminham em passo
lento, cochichando e rindo, enquanto os rapazes se deixam
ficar sentados nos bancos ou de pé junto do meio-fio,
vendo-as desfilar.
À frente da igreja erguia-se um coreto, também
enfeitado de bandeiras e flores, e no qual já estavam se
acomodando as autoridades municipais com suas famílias.
Terminado o ofício religioso, o padre atravessou a praça
diagonalmente em passadas rápidas, dirigiu-se ao coreto e
ocupou o seu lugar ao lado do prefeito. Os homens
conversavam animadamente entre si, comentando os fatos
255
novos e o andar da política nacional. Após a missa matutina
o espaço encheu-se de gente.
Armaram-se barracas de comestíveis, tendas de
jogos e diversões. O estrado, onde os músicos tocavam
marchas, ficava em frente das autoridades. Pombas,
assustadas com o bulício e a música voavam ao redor. O
vento que agitava as bandeirinhas cheirava a flores do
campo, e de vez em quando trazia a fumaça e o odor de
enxofre dos fogos de artifício lançados no ar pelos festeiros.
Os foguetes espoucavam fazendo volteios no ar,
despertavam a curiosidade e a alegria das crianças. O
ambiente estava cheio de rumor das conversas e de risos. A
comunidade festejava o santo padroeiro da cidade. O sibilar
dum foguete potente avisou do início da celebração da
Missa Solene, às onze horas da manhã. A igreja ficou
superlotada de gente, provinda de toda a região.
O padre Genaro desceu do tablado junto com as
autoridades e dirigiram-se todos, rapidamente, para a igreja.
O sacerdote adornado com seus paramentos de Missa
Solene saiu da sacristia na frente do cortejo dos coroinhas e
ministros da Eucaristia vestidos de branco; levando a Cruz
nas mãos, dirigiu-se ao altar. Os sinos repicavam, o coro
cantava o hino de entrada.
Também veio Alicia com o marido e os filhos
pequenos. Sentaram no banco de frente ao altar. O padre, ao
passar por eles, olhou de soslaio para Alicia e por um
instante ficou a contemplar-lhe a silhueta elegante. Ela
trajava o seu melhor vestido de seda azul clara e tinha uma
mantilha negra na cabeça. Nesse momento os olhos cinzaesverdeados da mulher fitaram o padre, mas desviaram-se
logo ante o olhar perscrutante do sacerdote, fixando-se no
altar, nas flores e velas que o enfeitavam.
Genaro tornou a voltar a cabeça para a mulher que
estava sentada à sua frente. Tinha uma simpatia particular
256
por Alicia, na qual ele descobriu um encanto secreto,
atraente, sempre que a via. Ela era de estatura mediana, de
talhe esbelto e quadris curvilíneos. Possuía cabelos loiros,
ondulados, a face de pele rosada e nariz afilado, lábios
vermelhos sensuais, numa boca de sorriso fácil.
Alicia não podia vencer a sensação de inquietação
que a presença do sacerdote lhe causava. Estava de tal
modo absorta em seus pensamentos que nem percebeu que
a assembléia se levantava, a liturgia da missa começava e o
coro cantava os cânticos rituais. O padre dirigiu-se ao
microfone para fazer o sermão. A voz potente do vigário
era um pano de fundo para o devaneio de Alicia.
– Deus seja louvado! – diz ele, de rosto iluminado.
– Para todo sempre, amém! - respondeu a multidão.
– Curiosos são os caminhos do mundo e misteriosos
os desígnios do Senhor – disse o sacerdote, olhando para
Alicia. Sorriu e por alguns segundos ficou com a cabeça
inclinada para o lado, com o ar sonhador.
Por breves instantes o seu olhar teimava em fixar-se
morno no exuberante relevo dos seios de Alicia
imaginando-a nua em seus braços. Mas repeliu logo esse
pensamento pecaminoso. Era indecente e absurdo, pois ele
era um sacerdote e ela uma mulher casada. Continuou o
sermão vergastando com palavras cruéis, como se
castigasse a si mesmo, arrebatado, cobrava amor e
fidelidade dos casais, e honestidade da comunidade.
– Arrependam-se e não pequem mais – clamava.
À medida que se aproximava o fim do culto, sentia
sua ansiedade aumentar. Quando a missa terminou e os fiéis
começaram a sair, levado pelo instinto, sem demora Genaro
postou-se do lado de fora do templo, no alto dos degraus, de
onde podia avistar Alicia com o marido, chegar perto e
cumprimentá-los. Satisfazia-se só de contemplá-la.
257
Suas noites começaram a ser ruins, sonhava e
delirava com a presença de Alicia. Durante a noite
excitava-se com pesadelos. Acordava tenso, com o sexo rijo
como um ferro entre as pernas, mais raivoso do que nunca e
já não se acalmava com as vergonhosas manipulações do
membro sexual. Compreendeu que seu desejo não se
satisfaria com tais paliativos, precisava urgente do amor de
uma mulher.
– Não se iluda meu caro – raciocinava. Os homens
inventam coisas admiráveis e úteis, não há dúvida, mas, no
que diz respeito a sentimentos, não estão em muito melhor
situação que seus antepassados das cavernas. Seus instintos
animais são basicamente os mesmos, a natureza primitiva
manifesta-se mediante o desejo sexual, com o intuito da
procriação. São seres lascivos, possessivos e sanguinários.
Quando se viu a dirigir olhares banhados de
concupiscência às moças da paróquia, seu senso prático
alertou-o do perigo, sentiu que deveria procurar Alicia e lhe
falar sinceramente da grande atração que sentia por ela. Em
várias ocasiões, com a intenção de conhecê-la melhor,
Genaro procurara levá-la a confidências, pois suspeitava de
que havia, naquela criatura muito mais sentimento por ele
do que suas palavras revelavam.
Alicia sempre se esquivava nas respostas, relutava
em reconhecer que sentia atração por ele, jamais admitiu
que o amasse. Morreria de vergonha se alguém viesse a
suspeitar desse sentimento que em vão procurava ocultar de
toda sua família e até de si mesma. Chegava a tratar o padre
com aspereza, dando aos outros a impressão de que não
simpatizava com ele. Sempre, porém, que o via ou lhe
ouvia a voz, ficava toda perturbada, com a garganta seca, as
mãos trêmulas, o coração a bater descompassado.
No seu íntimo, irritava-se com isso, pois tinha a
convicção firme de ser fiel ao marido. Alicia era muito
258
sensível aos comentários alheios. Seria horrível se um dia
começassem a murmurar na cidade; que ela, uma mulher
casada, com filhos, procedente de uma família tradicional,
estava apaixonada pelo padre Genaro. Só de pensar nessa
possibilidade, ela ficava nervosa, aflita, as faces quentes e a
respiração difícil.
Passava mal à noite, num sono agitado, mais
cansativo do que uma vigília forçada. De vez em quando
acordava, agoniada, com a sensação de não ter dormido um
só minuto e ficava olhando a escuridão, escutando o
silêncio da casa, ouvindo o relógio grande lá na sala, bater
as horas. De dia andava inquieta de um lado para o outro,
ora galopando à cavalo pelos pastos ou a pé, caminhando
pensativa, pelas trilhas do bosque. O marido começou a
preocupar-se.
– Que você tem minha querida? – perguntou aflito.
Anda distraída e triste. Conte-me o que te aborrece. Se
estiver doente, providenciarei uma consulta médica para
você.
– Não tenho nada, não se preocupe – respondeu
Alicia, recriminando-se por mentir e trazer preocupações ao
marido, que já era por índole resmungão e ranzinza, mas, às
vezes meigo e dedicado ao tratá-la com amor.
Alicia ia seguidamente à casa paroquial procurar
pelo padre Genaro, com a desculpa de ser informada sobre
os estudos dos filhos, que freqüentavam o Colégio Santa
Maria, onde ele era professor. Nos contatos freqüentes, em
conversas confidenciais, trocas de amabilidades, partituras
e poemas, surgiu entre eles um relacionamento, de início,
de amizade, depois, em pouco tempo, transformou-se numa
grande paixão, num amor desvairado. Segredavam entre si
os mais ocultos e delicados anseios de suas almas.
Já não podiam ficar sem se verem diariamente. Ou
ela ia encontrá-lo no Colégio ou ele ia à sua casa. Mas eles
259
precisavam de privacidade nos encontros, só se ver e
conversar não os satisfazia mais, então combinaram
encontrar-se na casa da chácara de Valdir, que estava
desabitada. Não podiam expor-se à maledicência do povo.
Genaro era italiano, de sangue quente, não via a
hora de saciar a sua paixão, mesmo sabendo que estava
transgredindo o voto da castidade, que jurara perante a
Igreja. Sabia que estava pecando, mas Deus era pai, o
perdoaria. Afinal de contas, era homem, e sua natureza
ansiava pelo carinho e amor de uma mulher, tendo ele
sufocado esse sentimento, dentro do seu coração, a vida
toda. Sim, ele o reconhecia, desejara-a fisicamente desde o
primeiro instante em que a conhecera, mas o desejo nunca o
atormentara tanto como o angustiava o amor incipiente.
– “Que posso fazer? Eu a amo! Não consigo lutar
contra isso” – gemeu ele, na profundeza do ser.
Toda essa força jazia latente, adormecida, e
necessitava apenas de detonar um sinal para provocar um
caos, em que a mente se submetia à paixão e a razão se
extinguia diante da vontade do corpo.
Eles foram para a chácara, ao cair da tarde, na data e
hora aprazada. Alicia com a desculpa de visitar Maria
Clara, sua amiga íntima, à qual confidenciara o seu
envolvimento com o padre. Naquele dia não foi trabalhar na
loja.
Genaro encontrou a mulher esperando-o em frente
da casa vazia, ansiosa e inquieta. Levou-a sem dizer uma só
palavra, para o fundo do quintal. E ali, debaixo duma árvore
frondosa, num ângulo formado pelo muro, olharam-se
intensamente e caíram abraçados, sobre a grama verde.
Ele não se despiu. Agarrou-a com impetuosidade,
cravando-se nela sem preâmbulos, beijou-lhe repetidamente
os lábios quentes, entreabertos. Depois procurou
260
avidamente o lóbulo da orelha, as têmporas, a testa, os
olhos, os seios desnudos, voltou a beijar-lhe a boca sensual.
Fez meia volta, puxou-a pela mão para a porta
aberta da casa e entrou. Alicia seguiu-o silenciosamente até
o quarto. Dentro estava apenas iluminado pela fresta de luz
que entrava pela janela entreaberta.. As bocas uniram-se
num beijo alucinado e assim colados, Genaro tomou o
corpo delgado de Alicia e carregou-a para cima duma cama
armada no canto do cômodo.
Ela deitou-se silenciosa, tremendo e esperando, e
ele a abraçou e a estreitou com força contra o peito.
Beijava o corpo quente, sensual e moço, recendendo a
perfume de rosas. Os braços dela subiram para cingir-lhe o
pescoço, os braços dele envolveram-lhe as costas, em
espasmos.O sangue martelava as têmporas de Genaro
quando suas mãos apalpavam e acariciavam os seios com
os mamilos rijos, descendo-lhe pelo ventre, pelas coxas e
por fim encontrando o tão almejado alvo. Ao toque das
mãos que investigavam sua intimidade, ela estremeceu de
prazer. Finalmente iam saciar sua sede de desejo.
Envolveu-a com os braços e contemplou com os
olhos marejados de lágrimas o rosto imóvel, em espera, viu
abrir-se-lhe a boca como um botão de rosa, arfar, tornar-se
um objeto indefeso de prazer maravilhoso. Os braços e as
pernas dela o envolviam como cordas vivas que o ligavam a
ela, e que o atormentavam, sedosos e insinuantes.
Ele colocou o queixo no ombro dela, encostou o
rosto na suavidade da sua face e entregou-se ao impulso
alucinante. Sua mente girou, deslizou, tornou-se
inteiramente nebulosa ofuscando-lhe a razão, e por um
momento se sentiu parte e dentro do sol, depois o brilho
foi diminuindo até desvanecer-se, num gemido angustiante
do êxtase fugaz.
261
Agarrou-se a ela como o náufrago se agarra a um
pedaço de madeira no mar solitário e, logo, animado,
subindo de novo com a maré que se aproximava, sucumbiu
nas águas revoltas da natureza humana. Amaram-se com
ardor e o ímpeto das grandes paixões em longa espera.
Minutos depois, Genaro, voltou a si do deslumbramento,
começou a refletir e a lamentar-se:
- “Senhor, não poderias ter-me evitado esse destino?
Sou um homem, com toda a fragilidade humana; sucumbi
ao amor e ao desejo da carne”.
E ficou ali, pasmo, atingido por um amor de
perdição, muito mais profundo do que qualquer outra coisa
que houvesse sentido antes. Ele nunca soubera viver pela
metade. E a vida tinha sido como tinha de ser, traçada de
modo intrincado, imprevisível e nem sempre justa.
Alicia sentia-se plenamente feliz, mais feliz do que
se lembrava de já ter sido alguma vez, nos seus quinze anos
de casada. Desde o momento em que ele a carregara para a
cama para junto de si, tudo fora um poema corporal, uma
sede incrível de braços, de mãos, de pele e de prazer total.
– “Fui feita para ele, e só para ele. Amo-o. Sempre o
amei, mesmo sem conhecê-lo, sem saber da sua existência,
e vou amá-lo, mesmo que viva cem anos”. Assim pensava
Alicia, no seu encantamento.
Amava-o a ponto de morrer por ele, embora sempre
soubesse que o destino de cada um estava traçado nas
estrelas e era imutável.
Dizem os gregos que é pecar contra os deuses amar
um ente mais do que manda a razão. E dizem que, quando
alguém é amado assim, os deuses invejosos, abatem o
objeto desse amor na plenitude do afeto.
Alicia levantou da cama silenciosa, hesitante e triste
em deixar Genaro, mas precisava retornar à sua casa com
urgência, as obrigações com os filhos e o marido a
262
esperavam. Não sabia como ia conseguir enfrentar a nova
situação que se armara na sua vida. Por enquanto Valdir
não desconfiara de nada.
Genaro, satisfeito na sua volúpia, virou-se para o
lado e adormeceu profundamente, não viu quando Alicia foi
embora. Acordou tarde, sobressaltado, com a brisa fria da
manhã envolvendo-o, dando-lhe a impressão de que
mergulhava o corpo na água fria dum açude. As suas faces
e orelhas ardem, e ele aspira com força o ar que cheira a
sereno e a flores do campo.
Por alguns minutos ele fica a ruminar o prazer
carnal que a mulher lhe proporcionou, lembra-se dos olhos
verde-cinza dela, da voz maviosa, das formas sensuais e do
contato gostoso do seu corpo. Excitado, voltou a desejá-la
novamente. Faria tudo para tão logo trazê-la de novo para a
chácara. Sentia o desejo insatisfeito fervendo-lhe nas
entranhas um fogo impossível de apagar, uma sede de
Alicia que nunca, nem mesmo nos encontros mais fogosos
e prolongados, conseguia saciar.
Dormia extenuado, com o coração a ponto de
explodir dentro do peito. Enlevado nas doces recordações,
olha para o lado e vê espantado, jogada em cima de uma
cadeira a sua batina negra de padre. Só nesse momento ele
voltou a si. Começa a pensar, no seu procedimento
pecaminoso perante o juramento de castidade que fez no dia
da ordenação sacerdotal. Uma grande e insistente pergunta,
surgiu de repente, dentro dele:
– Por que e para que tudo isso? Para que tanto
sacrifício, proibição e frustração? Tanta hipocrisia e
fingimento? Por que, se somos seres humanos com desejos
carnais e sequiosos de amor? Vivemos solitários, enquanto
nosso coração anseia por companhia de uma mulher e de
uma família? Por que a subjugação do celibato, dos votos
de castidade e obediência cega às ordens hierárquicas?
263
- Se um dia todos vamos parar numa cova de sete
palmos, onde ficaremos servindo de comida aos vermes da
terra. O que está certo ou errado, o que é verdade exata que
justifique todo esse procedimento? – questionava consigo o
padre Genaro, enquanto lutava com a insônia.
Passara a noite em claro, atormentado pelas dúvidas.
Censurava-se, pois caíra em pecado. Era profano amar
demais. Mas infelizmente, os caminhos de nossas vidas não
estão em nossas mãos. Nós nos conhecemos porque
tínhamos de nós conhecer, assim estava escrito.
Desde a tarde do primeiro encontro de amor, Genaro
e Alicia tinham continuado a ver-se, aproveitando as
escassas ausências do marido, ou as desculpas de visitas à
sua amiga Maria Clara. Quando se viam sozinhos na
chácara, sucumbiam no delírio dos amores atrasados e se
amavam com ardores amordaçados por preconceitos. Era
uma paixão insensata, alucinada, que fazia tremer de pavor
a alma de Alicia e a mantinha num estado de excitação
perene.
A impaciência do amor era às vezes tão intolerável
que Genaro se arriscava a ir à chácara durante o dia,
escondendo-se pelo mato, como um gatuno, até a porta da
casa onde Alicia o esperava com o coração apertado,
abraçavam-se com o desespero de uma despedida e
abrigavam-se em seu refúgio, sufocados de cumplicidade.
Em oportunidades ocasionais, a qualquer hora do
dia ou da noite que propiciasse seus encontros,
infelizmente, quase sempre interrompidos por avisos
enviados por Maria Clara, sobre impedimento, por regresso
imprevisto do marido, os carinhos e o prazer dos amantes,
explodiam do mesmo jeito às três horas da tarde ou às dez
da noite.
No aturdimento da paixão, perderam o sentido da
realidade, a noção do tempo, o ritmo dos hábitos cotidianos.
264
De repente, como um estampido naquele mundo de
inconsciência feliz, veio o aviso da suspeita do marido,
acerca de infidelidade da esposa envolvida com o padre
Genaro.
– Alicia, por onde você andava na minha ausência?
informaram-me que nalgumas noites não dormiu em casa
com nossos filhos – indagou Valdir, já bastante desconfiado
e muito irritado.
– Ora essa! Fui dormir na casa de meu pai – mentiu
ela, sem lembrar-se que a mentira tem pernas curtas.
– Pois vou confirmar com ele, se de fato dormiu lá–
ameaçou Valdir, e sem demora foi até a casa do sogro.
Januário, o pai de Alicia, já desconfiava da relação
de amizade muito íntima e afetuosa demais da sua filha
com o padre Genaro e para protegê-la, confirmou a mentira.
Chamou a filha para uma conversa séria.
– Filha! Que conduta espúria e vergonhosa, que está
mantendo com esse clérigo irresponsável?– repreendeu-a
severamente. Pare com isso, senão eu vou tomar
providências drásticas. Denunciarei você a seu marido e
seus filhos,se não terminar essa relação condenável, agora
mesmo.
– Pai! Por amor de Deus não faça isso – gemeu ela
no seu desespero. Estou enlouquecida de arrependimento e
de vergonha. Prometo-lhe, que tudo vai acabar, não vou
encontrá-lo mais, vou esquecê-lo, nem que seja a última
coisa que eu faça na vida.
Alicia despertou, num sobressalto, para a realidade.
Cumpriu a promessa feita ao pai. Mandou um recado ao
padre Genaro para não procurá-la mais, pois tinham sido
descobertos e não podiam expor-se ao escândalo. Que
procurasse esquecer aqueles momentos maravilhosos que
tinham vivido juntos, porque ela faria tudo para apagá-los
da sua vida.
265
Separaram-se com grande pesar, por serem
obrigados a renunciar a esse grande amor. Eles não eram
livres para vivê-lo impunemente; ela era casada e ele era
um sacerdote da Igreja Católica Apostólica Romana.
Perante as convenções sociais, eles eram pecadores,
transgressores das leis de Deus.
O padre Genaro ficou alarmado e, para evitar um
escândalo ou vislumbre de maledicência, que surgisse a
respeito da sua conduta, por menor que fosse, apressou-se
em pedir a seu superior hierárquico a sua urgente mudança
para outra paróquia, próxima a um centro maior.
Apresentou como desculpa, necessitar de exames e
tratamento médico. Sofria de dores no peito, podia ser o
começo de angina pectoris. O bispo da diocese percebeu de
imediato um problema maior camuflado atrás de problemas
de saúde, atendeu de imediato à sua reivindicação e
transferiu-o para uma paroquia na periferia da capital.
Alicia ficou sozinha, a prantear o seu amor perdido,
vagando nas brumas da noite, com o coração cheio de dor.
Seu mundo ruíra, e ela mergulhou dentro de si, tentando
recobrar algum encanto daqueles dias perdidos em que era
feliz. Sonhava ainda com o amor de Genaro. Sofrendo na
pele o infausto revés da vida, lutava para não cair na rede
da inconsciência. Precisava aprender a vencer as
dificuldades e aceitar o inevitável.
Mas infelizmente, o choque foi muito forte para sua
alma sensível, não resistiu, e caiu em depressão profunda.
Seu coração parecia um colibri ferido ao qual tinham
quebrado as asas e não podia mais voar. Sua mente cobriuse de sombras. Delirava. Via Genaro em cada esquina e nos
vultos de pessoas que passavam. Seu cérebro enfraquecido
era tomado por alucinações.
À noite acordava e ouvia vozes sussurrando-lhe ao
ouvido notas musicais e estrofes desconexas e
266
inverossímeis. Talvez compreensíveis apenas à luz da
simbologia. Então ela levantava da cama, pegava o lápis e o
papel e anotava tudo com precisão.
Não sentia a menor vontade de trabalhar, só queria
ficar deitada, em silêncio, pensando, lembrando-se das
coisas do passado, e concluindo que nada, nada mais valia a
pena. Andava amargurada, cansada da vida, impaciente
com os filhos e o marido, inclusive consigo mesma. Queria
esquecer tudo, mas a incapacidade de tomar qualquer
decisão prendia-a àqueles momentos do passado, como pela
ação dum sortilégio. Guardava o perfil amado em sua alma,
como a parte perdida de si mesma.
Procurou um médico especialista, que lhe receitou
fortes antidepressivos. Tratou-se por algum tempo, mas os
sintomas da depressão não cediam. Somente via a escuridão
de um túnel sem ver alguma luz no final. Achava que
estava louca, e o seu marido, agora mais ranzinza e de mau
humor, não a ajudava em nada, friamente confirmava a sua
loucura e a tratava como tal.
– O preço dessa louca paixão está me custando
muito caro – queixou-se, relatando o seu drama ao analista.
– Tudo na vida tem seu preço e é impossível
regatear com o destino – retrucou o médico.
Por sua própria determinação resolveu internar-se
no Instituto Pinel de Psiquiatria, para tratamento intensivo,
com intuito de curar-se logo, daquele sentimento de paixão
e culpa que lhe perturbava o juízo; verdadeira loucura que
se aninhara no seu coração.
Alicia consultou psiquiatras, psicólogos e procurou
outros meios de cura alternativos. Depois de um longo
tratamento, ela voltou a ser uma pessoa equilibrada e
tranqüila. Jamais transpareceu em público o seu drama
particular. Guardou o segredo do seu deslize a sete chaves,
no cofre da sua memória; ali ficaram registrados os
267
acontecimentos desse tempo, que graças a isso não se
perderam eliminados pela neblina do esquecimento.
Somente na velhice resolveu confidenciá-lo à prima
e amiga Janice. Aparentemente, o terremoto que lhe abalou
a vida naquela época, havia deixado pequenos, mas
dolorosos vestígios. No entanto, algum benefício sobrou
dessa aventura casual, pois ela descobriu que possuía um
dom maravilhoso para música. Estudou piano com
dedicação e aperfeiçoou-se na arte musical. Tornou-se
compositora e concertista de renome. Compunha belíssimas
músicas, com os acordes sussurrados à noite nos seus
ouvidos, pelos espíritos do além.
***
Mais um personagem vem ocupar o misterioso
palco da vida, desempenhando com galhardia o papel à ele
destinado: é o jovem Gilberto. Ele era filho primogênito de
Jurema e Laurindo Mendonça de Sá, irmão mais velho de
Álvaro Mendonça de Sá, falecido no acidente de carro na
rodovia do Café perto de Mauá da Serra.
Gilberto era um rapaz alto e esbelto, de cabelos
castanho-escuros e barba cerrada, gentil, de conversa
agradável e voz macia. Considerado um homem bonito, era
sem trégua assediado pelas mulheres, também por ser um
bom partido para as jovens casadoiras.
Mas seu coração, ainda na adolescência,
aprisionou-se nos olhos verdes da prima Adélia, irmã de
Janice. Era uma paixão secreta, da qual a parenta
adolescente não desconfiava. Desde pequena Adélia falava
em ser freira, tinha uma forte vocação para a vida religiosa.
Gilberto ciente da impossibilidade de qualquer
envolvimento entre os dois, escolheu afastar-se dela, no
entanto, não esqueceu o seu grande amor e sofria na sua
desesperança e desilusão.
268
Formou-se em Ciências Econômicas aos vinte e
cinco anos, mas, na sua inquietude, não se adaptava em
nenhum emprego. Os anos passavam, e ele não encontrava
um objetivo, algo em que se fixasse. Atendendo ao
chamado da sua índole aventureira resolveu viajar,
conhecer outras pessoas, procurar outras terras.
Gilberto era primo de Janice, e de caráter idêntico
ao dela, possuía um espírito livre e sonhador, tendo a seu
favor acentuada vocação para o comércio.
Certo dia chegou-lhe uma noticia alvissareira à
respeito das terras férteis e baratas na nova Fronteira de
Colonização no Estado de Rondônia e em circunstâncias
favoráveis aos negócios. Ficou interessado no assunto,
poderia usufruir da euforia econômica que havia no Estado,
onde corria dinheiro vivo. A economia sendo estimulada,
por incentivos fiscais e grandes investimentos federais na
infra-estrutura, nas cidades e no campo.
Portanto, ficou seduzido pela idéia de ver de perto
essas maravilhas. A propaganda ampla promovida pelo
governo federal, prometia a distribuição de terras
gratuitamente. Nos anos de 1960, 1970 e 1980, Rondônia,
foi considerada o Novo Eldorado, atraindo milhares de
imigrantes do Sul, principalmente do Paraná.
Desde o ano de 1956, os sertões do Território de
Rondônia e do Acre estavam cheios de criminosos fugidos
das cadeias de São Paulo, do Sul, do Norte e de outras
regiões do país. Também vieram desordeiros, vagabundos e
ladrões, refugiavam-se eles nos acampamentos das grandes
fazendas em formação, que utilizavam os incentivos fiscais
da Sudene. Esses foragidos da Justiça eram empregados
como mão-de-obra nas derrubadas de mata para plantação
de pastagens para criação de gado, plantio de café e cacau.
Os fazendeiros contratavam um gato, homem que
recrutava trabalhadores, servindo de intermediário entre o
269
empreiteiro e o peão. A maioria dos homens eram angariados ali mesmo, nas hospedarias e tabernas locais, mas
grandes levas eram trazidas do Norte e Nordeste em caminhões paus-de-arara.
Ninguém lhes perguntava sobre seus bons ou maus
antecedentes. Todos serviam, desde que trabalhassem com
afinco, não fizessem reclamações e nem arruaças. Eram
levados aos acampamentos das derrubadas no meio do
sertão, de avião monomotor e lá ficavam até o término da
empreitada; não podiam nem pensar em ir embora ou fugir,
o lugar geralmente era distante d`alguma povoação e a
selva era inóspita, perigosa e cheia de animais selvagens.
Os gatos (intermediários) também recrutavam
trabalhadores para as empreiteiras das grandes jazidas, a
céu aberto, do minério de cassiterita no garimpo do Bom
Futuro no município de Ariquemes. Inclusive para os
garimpos de ouro e diamantes, nos rios Madeira, Guaporé e
Roosevelt.
Afluiu gente de toda espécie e aos borbotões para as
minas, para as derrubadas nas fazendas de criação de gado,
lavouras e cultivo de café. Todos sonhavam em ficar ricos,
o mais depressa possível, uns para voltar à sua terra outros
para adquirir bens e grandes extensões de terras férteis e
baratas.
Em 22 de dezembro de 1981, foi sancionada a lei,
pelo então presidente Figueiredo, que transformava o
Território de Rondônia no 23° Estado da Federação, antes
Território do Guaporé criado pelo presidente Getulio
Vargas em 13 de setembro de 1943, tendo como capital a
cidade de Porto Velho, situada à margem do rio Madeira.
Nessa época, o Território de Rondônia viveu um
grande crescimento populacional. A abertura da estrada BR
364, em comunicação com o Centro e o Sul do país,
favoreceu a produção agropecuária e a indústria madeireira.
270
A nova fronteira de colonização que se abria, com
acesso fácil à terra fértil e barata, incentiva multidões de
migrantes que sonham conquistar o novo Estado. É gratuita
a distribuição de lotes de terra entre 100 a 250 hectares para
famílias vindas do Sul. O governo regularizou as posses de
milhares de famílias de agricultores que ocupavam terras
devolutas, dando-lhes títulos de posse definitiva.
O INCRA é o grande responsável pela rápida
ocupação de Rondônia por colonos do Sul e do Nordeste.
Ao longo dos anos 1970 a 1980 o INCRA assentou 50 mil
famílias. Com seus projetos de colonização às margens da
BR364, o Instituto favorecia o surgimento de novos pólos
agrícolas e, nesse ritmo acentuado de expansão, surgiram
cidades como Vilhena, Espigão do Oeste, Rolim de Moura,
Pimenta Bueno, Cacoal, Ji-Paraná, Ouro Preto, Jarú,
Ariquemes e outras cidades pelo interior do Estado.
O clima nessa região é o equatorial, com chuvas
abundantes durante o verão e temperatura média anual de
25° a 30°. A vegetação é a característica da Floresta
Amazônica, últimas reservas florestais, com o solo
(latossolo vermelho e amarelo, arenito e argila), bastante
permeável, de camada fértil pouco profunda, são
ameaçados pela exploração predatória em larga escala. Até
o ano de 1990, a euforia econômica atraiu muita gente, mas
os sinais de declínio já eram evidentes, com uma economia
ainda limitada à agropecuária e ao extrativismo vegetal e
mineral.
Gilberto entusiasmado pela oportunidade de
conhecer e trabalhar em outros ambientes abalou-se para
Rondônia; viajou de ônibus durante cinco dias e quatro
noites até chegar a Porto Velho. Um trajeto de quatro mil
quilômetros de sacrifício, calor, sede e desconforto,
ocasionados pelos atrasos dos ônibus superlotados. Chegou
exausto, mas feliz por estar realizando seu sonho.
271
Finalmente estava em Rondônia onde ia começar
sua nova vida, que não seria fácil, pois devia iniciar da
estaca zero. Estava resolvido a enfrentar tudo com coragem,
procuraria superar com calma, as muitas dificuldades que se
apresentassem.
Foi descansar em um pequeno hotel próximo à
estação rodoviária. Dormiu a tarde e a noite toda.
Recuperado do cansaço, levantou cedo, tomou café e saiu
para conhecer a praça. Entrou num bar onde diversos
homens, sentados à mesa conversavam a respeito de
negócios, saboreando aperitivo de lingüiça frita e
bebericando cerveja. Entrou na conversa, apresentando-se
como caixeiro-viajante. Estava chegando do sul, à procura
de oportunidade de trabalho. Inicialmente pensava em
negociar mercadorias nos projetos e assentamentos do
governo.
– O que acham da idéia? – perguntou aos presentes.
– Ótima! Vá em frente – sugeriu um deles, mas para
isso você deve investir, comprar e organizar uma tropa de
mulas de carga e contratar tropeiros experientes. Eu
conheço alguns e posso lhe indicar. Procure-me à tarde no
meu escritório, aqui está o cartão com o nome e endereço.
Gilberto foi ao endereço indicado. Trocando idéias
com o agente comercial, este lhe conseguiu a tropa de
mulas e os tropeiros. Precisava fazer o contrato de aluguel
dos animais e tratar os ordenados dos peões. O corretor
orientou-o sobre quais mercadorias devia levar e indicoulhe o melhor depósito atacadista onde podia adquiri-las.
– Está mesmo resolvido a enfrentar as perigosas
trilhas do sertão como mascate? Como novato você é
audacioso demais – comentou o agente.
– Estou firmemente decidido a tentar essa aventura
– respondeu rindo Gilberto.
272
Acertados os contratos era necessário registrá-los
devidamente. No Cartório foi atendido por uma funcionária
morena, de quadris curvilíneos, sensual, de sorriso
cativante. Logo à primeira vista, Gilberto encantou-se por
ela. Precisava encontrar-se a só com a moça. Sussurrando
as palavras perguntou a ela:
– Morena bonita, qual é o horário que você sai do
emprego? Poderia esperá-la na saída? Diga sim, por favor!
– implorou o rapaz.
– Saio às quatro horas, se quiser pode me esperar na
calçada, em frente do escritório. Combinado, senhor
galanteador? - confirmou Eunice - era ela a moça
interpelada.
Também ela tinha simpatizado com o desconhecido.
Desde a morte de Adriano, seu pretenso marido e pai do seu
filho, ela não se interessara por nenhum homem. Desiludiuse a respeito do amor. Nenhum homem merecia confiança.
Gilberto, entretanto, despertara nela o desejo de ser feliz
novamente. Resolveu tentar a sorte, e na saída foi
encontrar-se com ele.
– Sou Gilberto Mendonça de Sá, caixeiro-viajante,
às suas ordens, senhora! – apresentou-se.
– Encantada! Você é um homem audacioso, e muito
interessante – meu nome é Eunice Bezerra da Silva, viúva,
funcionária pública.
Depois saíram caminhando pela calçada, trocando
informações e confidências. Entraram numa confeitaria
para saborear um doce e continuar a conversa, que já estava
ficando envolvente. Combinaram encontrar-se novamente
no dia seguinte, para jantarem juntos, depois irem ao cinema. Esses encontros repetiram-se indefinidamente, até
que não podiam passar um dia sem se ver. Estavam
apaixonados loucamente um pelo outro.
273
Já há três meses durava a felicidade sem sombras
dos amantes. Ele viajava com a tropa a negócios, visitando
os assentamentos dos colonos nas linhas dos projetos do
governo, mas voltava logo, pois ficava saudoso das carícias
de Eunice. O pai, Vitorio Bezerra, não desconfiava de nada,
sequer passava-lhe pela cabeça que a filha tinha
envolvimento amoroso com alguém, menos com um
desconhecido.
Uma tarde foi esperá-la na saída do emprego,
quando viu aproximar-se dela um homem, que a beijou na
boca, abraçou-a e foram embora juntos. O pai ficou
paralisado, não sabia como proceder naquela circunstância.
Eunice devia ter alguma explicação. Na volta para casa
encontrou a filha sentada tranqüilamente no sofá,
cantarolando feliz.
– Filha, pode explicar-me o teu procedimento? –
perguntou indignado.
– Pai, não sei do que está falando! – respondeu ela.
–Ora, ora! Não se faça de inocente. Vi você
beijando e abraçando um homem desconhecido. Não pode
negar porque eu vi tudo. Quem é ele?
– É um homem que eu amo – disse ela tranqüila.
– Pois eu proíbo que se encontre com ele, nunca
mais deve acontecer, entendido?– ordenou o velho Vitorio.
Depois desse impasse, ele a vigiava secretamente.
Se ela abusasse e não o obedecesse, ia castigá-la sem
complacência. Mas o casal apaixonado não ouviu as suas
ordens e continuou a encontrar-se às escondidas.
– Não vou permitir que um estranho me arrebate a
filha e o neto, únicas pessoas que me restam no mundo para
consolar a minha velhice – pensava aflito o velho.
Muito desgostoso, resolveu afastá-los definitivamente, mudando-se da cidade para o interior, sem dizer
para onde iam.
274
Depois do assassinato de Adriano, marido de
Eunice, e da morte súbita de sua mulher Marinalva de
ataque cardíaco, Vitorio Bezerra tornou-se taciturno,
desesperançado e sem rumo na vida. Andava de canto em
canto da casa procurando Marinalva, via a sua sombra,
ouvia-lhe a voz chamando-o para junto de si. Sentia-se
abandonado, sozinho, tornava-se cada vez mais ranzinza.
Ia ao botequim da esquina para uma prosa com os
amigos e voltava mais sorumbático, ilhava-se na solidão da
casa, a remoer cogitações tristes, sobre quanto
surpreendente é a vida, por vezes tão absurda. Nada o
contentava. Não se sentia bem morando na capital.
Resolveu mudar-se para longe dali, levando a filha e o neto.
Talvez morando noutro lugar lhe voltasse o animo de viver.
Seu filho Acássio possuía uma bela fazenda na
região de Jaru, convidou-o diversas vezes a irem morar com
ele, mas o pai era de índole independente, dono das
próprias decisões e não queria viver às expensas do filho.
Queria ter sua propriedade.
Eunice, de mau grado aceitou a sugestão de morar
no interior, sem conforto, gostava da cidade grande, do seu
emprego, do qual teve que pedir demissão, e do amor de
Gilberto, mas não podia ficar com o filho de quatro anos,
sozinha, morando em Porto Velho.
A casa deles se situava num bairro pobre, distante, à
beira da estrada principal que levava para o interior do
Estado, era uma casa simples, de madeira, de muitos
cômodos, que agora estavam vazios com a saída dos dois
irmãos, cada um seguindo seu destino, e com a morte da
mãe ficaram mais sombrios e assustadores. À noite o vento
assobiava nas frestas do telhado de tabuinhas, e as sombras
dos fantasmas desfilavam pelos corredores.
Altas horas da noite, Eunice já quase adormecendo,
no escuro, deitada ao lado do filho, que ressonava baixinho,
275
ouvia o tropel dos muares que saiam de madrugada para
compridas jornadas através de caminhos estreitos,
embrenhando-se pelos sertões do Acre e Rondônia,
carregados de farinha de trigo, sal, fumo de corda, facões,
espingardas e munição. Levavam também encomendas e
recados.
Escutava o tilintar dos guizos finos e graves dos
peitorais da tropa, batendo, vibrando à mudança dos passos,
Ouvia as ordens de Gilberto passadas aos tropeiros, nomes
de burros gritados de arranco e o silvo do chicote de couro
no lombo dos animais. Eles partiam com a tropa, para
marchas demoradas, vendendo ou trocando a mercadoria
por borracha, castanhas-do-pará ou pepitas de ouro; iam
muito além do rio Madeira embrenhando-se nas florestas de
castanheiros, seringais, minas de cassiterita e garimpo de
ouro nos leitos dos rios.
Era uma verdadeira aventura e Gilberto adorava
essa vida. Apenas o atormentava a saudade dos beijos e
carinhos de Eunice, sonhava com ela... À noite, deitado na
rede ficava a contemplar o pedaço do céu que a floresta
emoldurava, se entregava a devaneios eróticos em voz alta.
– “Este perfume de flores que o vento leva por toda
a parte. Esta primavera está me bulindo com o sangue. Faz
quase um mês que eu tive a moça pela última vez. Não
agüento mais a saudade. A falta que sinto dela às vezes
chega a doer, como se me tivessem cortado um pedaço do
meu corpo. E da voz dela, do cheiro dela, do jeito dela
beijar... Sinto falta de tudo“.
- “Não sei, tem qualquer coisa nela que me deixa
meio louco. Mas o que adianta a razão recomendar uma
coisa quando o corpo está gritando violentamente por outra
muito diferente? Estou cada vez mais convencido de que o
amor é doença, e doença infecciosa. Uma espécie de febre.
276
E o pior é que o doente não quer nem ouvir falar de cura” –
Raciocinava com a lógica dum apaixonado.
Vitorio Bezerra cultivou por muito tempo o
propósito de mudar-se da cidade grande para o interior.
Não comunicou nada ao filho Acássio, guardou sigilo
completo acerca do lugar para onde iriam. Não queria
palpites nem interferência nos seus planos. Era um homem
de caráter independente, tinha seu orgulho.
Como não dispunha de grandes recursos financeiros
para contratar um caminhão de mudanças, decidiu fazer a
viagem, como há muitos anos atrás seu pai fez ao mudar-se
de um acampamento de seringueiros, para Porto Velho.
Queria reviver a grande aventura da sua
adolescência. Contratou uma tropa de muares e um
carroção de toldo, puxado por quatro cavalos, para levarem
a mudança. Ele e a filha iriam cavalgando em animais
escolhidos, de boa montaria. Levariam uns quatro dias para
chegar ao destino planejado, mas isso o deixava contente.
Andava de um lado para outro organizando tudo, feliz,
assobiando. Vendeu a casa e tudo que não podia levar.
Depois de um dia estafante, Eunice deitou-se um
pouco no sofá da sala. Sentia a cabeça rodar, estava tonta
pelo excesso de trabalho na arrumação da mudança.
Lembrou-se então da viagem para a madrugada do dia
seguinte. Ergueu-se depressa, continuando a pôr nas malas
o resto do que era seu e do filho. As malas do pai estavam
prontas, encostadas na parede do quarto, e o resto dos
utensílios já estavam no carroção parado em frente da casa.
A moça sentia as pálpebras pesadas de sono. Deitouse, ao lado da criança, no colchão estendido no chão, as
camas já tinham sido desmontadas. Adormeceu logo mas
teve um sono agitado. Sonhou com Gilberto chamando-a.
Escreveu um bilhete de despedida, indicando a localidade
para onde iriam se mudar. Que ele na primeira
277
oportunidade fosse visitá-la. Estava saudosa, e mal podia
esperar.
Às quatro horas da madrugada, o carroção e a tropa
estavam carregados. A madrinha, uma mula pampa, foi
levada para a ponta do grupo de animais cargueiros.
Quando ela se moveu, abrindo o caminho por si própria,
num trote pesado sob a carga, se pôs na testa da fila. Estava
com cincerro pendente do pescoço que servia de guia às
outras bestas. As montarias levavam guizos no peitoril e
na cabeçada. O som do cincerro da ponteira estrondeou
ruidoso rompendo a marcha.
Começava a viagem. Na saída, deixou a carta
endereçada ao Gilberto com uma amiga. Depois que todos
apertaram as mãos em despedida, Eunice, montada, sacudiu
alto um lenço branco, sem poder falar, as lágrimas
escorriam pelo seu rosto. Dava adeus aos amigos. Olhou
mais uma vez para trás e fez o sinal da cruz.
Eram cinco horas da manhã e o dia começava a
clarear. Ventos mornos balançavam as folhas das árvores e
embalavam as águas do rio Madeira coberto pela neblina. A
terra estava úmida de chuva e poças d‟água acumulavam-se
na estrada. Eunice e o pai iam à frente da comitiva. Seria
uma viagem longa e cansativa. Viajaram durante quatro
dias; ao anoitecer descansavam a tropa nas pousadas de
beira de estrada.
Era quase noite quando a comitiva de Vitório
Bezerra chegou a um povoado próximo da vila de Jarú. O
pai apeou primeiro, depondo no chão o neto; a criança
viajava em cesto forrado com almofadas no lombo da mula.
Ajudou depois a descer Eunice, sua filha. O menino com as
pernas entorpecidas por um dia de marcha, choramingava,
estava com fome e com sono.
Veio ao encontro dos viajantes, um moço caboclo,
habitante do casebre existente na periferia do povoado,
278
ajudou-os a arriar as malas das mulas de carga, levando
para um cômodo coberto. Forrando o chão com seu poncho
deitou a criança, que continuava dormindo.
A tropa enlameada e cansada resfolegava faminta,
procurando touceiras de capim ao lado do rancho. Bezerra,
ainda vigoroso, apesar dos seus aparentes setenta anos,
alisava o cabelo branco, enquanto o peão desarreava os
animais de sela. Depois, colocou o arreamento sob a coberta do rancho com os suadouros para cima. O dono da
comitiva colocara os embornais com milho no focinho dos
cavalos. Feito isso, falou:
–– José, por favor, toma conta da tropa, porque eu
vou procurar algo para comer.
E subiu apressado a rampa, à procura d`algum
botequim. Eunice sentou em silêncio ao lado do filho que
dormia, e enxugou do rosto o suor poeirento e, com calma,
começou a passar um pente pelos longos cabelos.
O peão José, gritando alto, cercou a tropa que se
afastava à procura do capim do campo. Depois juntou
gravetos para o fogo do café. Arrumou o tripé de ferro,
pondo a água a ferver numa chaleira. Acocorou-se perto do
fogo e acendeu um cigarro de palha soltando baforadas de
fumaça. No silêncio da tarde ouvia-se o cri-cri dos grilos.
Quando Bezerra voltou, José serviu o café nas
canecas encardidas pelo uso, emprestadas pela dona da
choupana. O avô acordou o menino, que bebeu a infusão
calado, mordiscando pedacinhos do pão comprado na
venda, depois tomou a criança nos braços e com delicadeza
encostou-o no ombro.
– Vamos procurar uma hospedaria, antes que
anoiteça completamente – disse Bezerra, e dirigiram-se
para o centro do povoado.
Ainda era época das chuvas, mas a noite
apresentava-se muito clara, exibia um céu cheio de estrelas.
279
O grupo entrou na única pensão que havia nesse lugarejo.
Era uma casa humilde, de taipa, coberta de tabuinhas
lascadas de madeira. A dona da hospedaria serviu o jantar,
composto de feijão, arroz, couve e carne seca. Comeram
calados, mas com grande apetite, pois estavam com fome;
só a moça amargava uma visível tristeza. Terminada a
refeição, José foi buscar a bagagem, levando consigo um
ajudante. Os demais se instalaram nos seus quartos.
A dona da pensão não conseguia conter a
curiosidade, veio ao quarto da moça indagar.
– Como é o seu nome, donde vêem vocês e para
onde vão?– perguntou, atropelando as perguntas.
– Para começar a responder-lhe, informo que meu
nome é Eunice, do menino é Adrianinho e do meu pai
Vitorio Bezerra. Nós vamos para o Projeto Jaru, que ainda é
muito distante daqui, só tem mato e estrada ruim. Satisfeita
agora, minha senhora?
A proprietária insistia, alisando o cabelo da criança.
– Têm um nome bonito. Quantos anos têm?
– Tenho quatro anos – respondeu tímido,o menino.
– É muito acanhado diante de estranhos, em casa,
conosco, é vivo e buliçoso.
Quando o pai organizou a bagagem, entrou no
quarto para beijar o neto e desejar boa noite à filha. Depois
foi para a sala, onde conversavam dois hóspedes. O
pretexto de uma xícara de café, que o homem tomava, fez a
apresentação dos três.
– De onde é o senhor? – perguntou um deles.
– Meu nome é Vitorio Bezerra. Sou cearense,
criado em Porto Velho. Vou ver umas terras no Projeto
Jaru, se me agradar fico por lá – respondeu o velho.
O interlocutor deu sua opinião:
– Ah! O Projeto Jaru, conheço apenas por ouvir
falar. Elogiam muito a boa qualidade das terras, dizem que
280
são férteis, de matas fechadas e muita madeira de lei. O
governo quer colonizar rápido, o INCRA distribui lotes de
terra de até 250 hectares gratuitamente, desde que o
interessado construa casa e trabalhe na terra. O lote é
titulado após 10 anos de ocupação. O negócio é muito
interessante.
Sob a claridade do lampião a querosene, conversavam cordialmente.
– Trouxe também a família?- indagou o outro.
– Sim senhor, trouxe a filha e o neto. Sou viúvo,
minha filha também é viúva – explicou o velho Bezerra.
– Também sou viúvo e tenho oito filhos para criar.
– Deve ser muito triste e difícil para o senhor,
sozinho, cuidar de tantos filhos – opinou o velho.
– Sua filha enviuvou cedo – especulava o outro.
– É, foi muito cedo, está com vinte e dois anos.
– E seu genro com que idade morreu?
– Com trinta e cinco anos. Morreu moço, pegou
malária no garimpo do rio Madeira.
Um homem como Bezerra não mentia nunca, mas
por decoro, era obrigado a torcer a verdade ali, entre
estranhos. Não podia expor a filha á maledicência. A
verdade era que Eunice nunca fora casada, fora apenas
amigada com o advogado Adriano Silveira Dorsay, por
apenas um breve tempo de dois anos, e aquela inverdade
que dissera levava-lhe sangue ao rosto que ardia. Um tanto
sem jeito, comentou:
– Pois é o que lhes digo: viuvez é mais morte para
quem fica, do que para quem morre.
Todos estavam sonolentos, a conversa morria na
moleza dos primeiros cochilos. Houve um silêncio em que
se ouvia apenas o latido dos cães ao longe.
– Está na hora de irmos dormir. Vou ver se
descanso, amanhã terei uma longa viagem. Boa noite para
281
os senhores – comentou um dos hóspedes, que se levantou e
dirigiu para o seu quarto.
Todos responderam corteses.
Vitorio Bezerra foi para seu dormitório, despiu-se e
apagou a vela. A temperatura da noite esfriara e obrigou-o a
cobrir-se com um lençol bastante encardido. Vitorio não
dormiu logo. Às onze horas, ventos fortes começaram a
uivar nos oitões da casa, ventos que trouxeram chuva
repentina, e pareciam querer derrubar a choupana.
As goteiras despejavam água no chão batido. O
coração do Bezerra apertava, pensava na filha e no neto.
Ouvia o farfalhar das folhas das árvores sacudidas pelo
vento e o ranger triste dos galhos reagindo a rajadas da
chuva forte. O ploc-ploc das goteiras foi lhe sossegando o
espírito e finalmente adormeceu.
Acordou ás cinco horas da manhã, levantou e foi ao
rancho ver a tropa. Bebeu o café do peão, que estava parado
em frente do galpão olhando o dia clarear. Aparecia no
horizonte, à direita, a Serra dos Pacaás Novos, com
elevações agudas. À esquerda, ao longe, corria o rio Jaru
ainda pouco visível, coberto por uma camada espessa de
neblina. Ia clareando aos poucos e uma luz amarelada
espanava as derradeiras penumbras da noite.
Os campos da chapada eram cobertos por árvores
robustas e esgalhadas, sombreando o chão revestido pela
grama luxuriante. Bezerra regressou devagar, os olhos
embebidos na paisagem verde, além do horizonte.
Na porta da hospedaria, animais de viagem comiam
milho, nos embornais sujos de lama. É que os amigos de
véspera iam partir. Um deles saudou expansivo:
– Bom dia, amigo. É madrugador!
– Sim, sou madrugador por hábito. Em minha terra
às cinco horas já tomava café.
– Que tal lhe parece o lugarejo?
282
– Pelo que vejo, parece bom, de campos férteis.
Os viajantes partiram na rota de Porto Velho, iam
trabalhar no garimpo de cassiterita de Bom Futuro. As
minas eram o sonhado Eldorado, a esperança de
enriquecimento rápido.
Bezerra mandou atrelar os cavalos no carroção e
arrear as alimárias de carga. Estavam prontos para
prosseguir a viagem. Montaram as mulas que romperam
num passo cadenciado. Meia hora depois apareceu uma
encruzilhada, a estrada à direita levava ao Projeto Jaru, e à
esquerda seguia rumo à Fazenda Jaru que pertencia a seu
filho Acássio.
O homem parou o seu cavalo e lançou o olhar para a
estrada à esquerda, e depois de um silêncio doloroso apeou,
aproximando-se de Eunice. Calado, estendeu a mão e
carinhosamente passou-a na cabeça da filha e do neto; e
com lágrimas nos olhos, gritou aos peões:
– Sigam a estrada à direita, vamos para o Projeto,
depois de velho estou com coragem de aventurar, quero ser
dono de mim mesmo. Oportunamente visitaremos Acássio.
Em vista da grande facilidade em conseguir terras
gratuitamente, Bezerra resolveu requerer ao INCRA um
lote de 250 hectares. Triste, mais decidido seguiu com o
carroção de mudança e a tropa para o Projeto Jaru.
Procurou o escritório do Instituto, expôs a sua pretensão e
em poucos dias era proprietário das terras requeridas.
Felizmente era uma desistência, o requerente
anterior devolvia o lote ao Instituto, porque enviuvara e ia
voltar com os filhos pequenos para o sul. No terreno havia
uma casa construída de madeira bruta, móveis rústicos,
fogão de pedra e panelas. Comprou a casa do desistente.
Era uma casa pequena mas aconchegante, daria para ele, a
filha e o neto se acomodarem bem.
283
Bezerra alugara pasto para os animais, e procurava
ambientar-se. Em palestra com gente do lugar, indagava
sobre a compra de algumas cabeças de gado, sendo uma
vaca de leite; o seu neto precisava se alimentar bem. Nos
fundos da casa fez uma horta, plantou legumes e verduras.
Vitorio remoçou, vivia contente, madrugava na roça.
Trabalhava no eito com Matias e Juvêncio, dois
antigos agregados do sitio. Para vencer o mato eram
necessárias três capinas nas plantações, pois a terra era tão
fértil que as ervas bravas cresciam à vista, roubando seiva
às plantas úteis. E que havia cálcio, ferro e outros minérios
importantes nesse solo, provenientes da lava e cinza
vulcânica que se derramou outrora, no cataclismo que deu
formas aquele pedaço de chão.
– Isto é um presente de Deus. Esta terra vale o ouro
todo do mundo – falava Bezerra entusiasmado.
As lavouras de Vitorio cresciam na riqueza deste
chão, em que se pisava. Cresciam, floriam logo,
frutificavam generosamente. O milharal plantado
recentemente brotou rebentando o solo como um jorro
d‟água. As primeiras folhas nasciam verde-escuras e os
grossos troncos anunciavam que o solo era gordo e
prosperavam com as chuvas abundantes. A luz do sol
aquecia a terra e o calor brando germinava os grãos.
Quando as plantas cresciam com folhas largas,
escuras, floriam e engrossavam as espigas, era uma festa de
cabelos louros úmidos, com tonalidade de ouro novo.
Quando amadurecia, ao amarelar das palhas, os pés de
milho, a lavoura toda pendia ao chão carregada de espigas
enormes. Os paióis estouravam e mal comportavam a safra.
Uma fartura pródiga se percebia no relinchar dos cavalos,
no mugido do gado, no saltitar firme dos bezerros recémnascidos e no canto alegre dos pássaros.
284
Essa admirável região de clima temperado, nas
encostas da Serra de Pacaás Novos, estimulava o bem-estar
da gente da colônia. As crianças cresciam fortes e rosadas.
Todos se uniam em torno da esperança de vida melhor
como náufragos, numa jangada exígua, em mar aberto.
Vitorio Bezerra absorvido com o trabalho na lavoura
não percebia a tristeza da filha. Ela vivia em melancólico
silêncio e expectativa, de quem vê de longe uma cidade
iluminada, sua querida Porto Velho onde ficara seu grande
amor, lugar onde, pensa, nunca mais poderá pisar. Sempre
tristonha, considerando-se traída e prisioneira de seu pai.
Veio morar aqui contra sua vontade
Ninguém suspeitava quem fosse o pai de seu filho.
Seria moço? Belo? Moreno? Louro? Será que tinha morrido
mesmo de malária? Era viúva de verdade? Por mais que lhe
perguntassem ninguém conseguiu arrancar-lhe esse
segredo. Provavelmente era alguém que não pudera casar,
porque Eunice era bonita, singela e elegante.
Seus modos tristes realçavam-lhe a beleza morena.
Esse homem era decerto casado ou passante desconhecido,
pois Eunice nunca falava dele ou mencionava o seu nome.
Com o passar do tempo ela fez amizade com os
funcionários, inclusive, com o dirigente do escritório do
INCRA.
Certa tarde o chefe veio fazer-lhe uma visita.
Enquanto Eunice preparava o café a ser servido ao hóspede,
seu pai entabulava uma conversa interessante e informativa
a respeito do Projeto e das terras distribuídas pelo governo.
Eunice entrou trazendo a bandeja com as xícaras de
café e biscoitos.
- Aceita um café Dr. Linhares?- perguntou.
– Aceito, sim! Mas não precisava se incomodar,
agradeço pela gentileza – falou, e estendeu a mão para
pegar a xícara.
285
– Quero esclarecer o motivo da minha visita, senhor
Bezerra. Eu vim convidar a senhora Eunice para trabalhar
no nosso escritório. Fui informado de que ela tem bastante
prática nesse setor. Trabalhou num Cartório de Registro
Civil, na capital. Seria um prazer tê-la trabalhando
conosco. O que acha da proposta senhor Bezerra, ela está
liberada para o emprego? – indagou o visitante
– Vai depender de Eunice, por mim ela está
autorizada a aceitar o trabalho – disse Vitorio.
– Eu aceito de bom grado, assim posso ocupar o
meu tempo, ganhar algum dinheiro e fazer amizades –
respondeu Eunice feliz.
No início do mês começou a trabalhar no escritório
do INCRA, no Projeto Jaru.
Já fazia quase um ano que eles se mudaram de Porto
Velho para o Projeto. Não havia nenhuma notícia de
Gilberto. Será que ele tinha se esquecido do seu grande
amor? Ou não tinha recebido o seu bilhete com o endereço
novo? Eunice estava triste e decepcionada. Uma tarde,
quando saia do emprego ouviu uma buzina de carro atrás de
si. Parou para olhar, e foi enorme a sua surpresa ao ver ao
volante da caminhonete Ford, a sua grande paixão, o
mascate Gilberto.
– Suba no veículo, vou te levar para casa, senhora
Eunice. Será que teu pai não vai me expulsar? – perguntou
rindo - agora sou rico. Ganhei dinheiro como tropeiro,
vendi a minha tropa e comprei essa caminhonete utilitária.
Agora já posso me aventurar pelas estradas vicinais e linhas
dos assentamentos do INCRA sem grandes problemas.
– Levo fardos com tecido misto, cortado com
metragem ideal, brim para calça com dez metros, xadrez
para camisa com quinze metros, tecido estampado para
vestido em cortes de quatro metros, peças de algodão cru,
simples e enfestado, peças de morim branco, carretéis de
286
linha e botões, toalhas de mesa, colchas e cobertores de
algodão leve. Descobri o filão de ouro do negócio, pois
vendo tudo nas viagens que faço. Tornei-me um mascate
bem-sucedido.
– Por que demorou tanto para me procurar? –
perguntou Eunice, com sorriso triste nos lábios.
– Porque perdi contato com você, não sabia para
onde seu pai a levou. Passei muitas vezes em frente da tua
antiga casa e como de hábito, esperava encontrá-la
esperando por mim na esquina da rua. Perguntei a diversas
pessoas se sabiam para onde vocês se mudaram. Ninguém
sabia. Só depois de muito tempo encontrei a sua amiga, que
me entregou o bilhete datado de um ano atrás. Vim assim
que tive oportunidade – esclareceu Gilberto. Pretendo pedila em casamento se é que ainda me ama. Pode me dar essa
resposta agora? – pediu olhando-a fixamente nos olhos.
– Vamos um pouco mais devagar, meu noivo! Claro
que não o esqueci, amo-o muito. Mas antes de te dar a
resposta afirmativa, preciso falar com meu pai – disse a
moça, com enorme sorriso de felicidade.
O homem parou o veículo no acostamento, abraçou
Eunice e olhando diretamente nos seus olhos, depositou
beijos ardentes na sua boca. Ela correspondeu ao carinho.
– Esperei por você todo esse tempo que parecia não
ter fim. É claro que aceito o seu pedido de casamento.
Chegaram em casa ao anoitecer. Vitorio Bezerra
contava histórias infantis a seu neto Adrianinho sentado no
seu colo. Em volta deles estavam acocorados, crianças e
adolescentes, atentos à sua narrativa. O fogo crepitava no
fogão de lenha onde esquentava a água para o chimarrão,
que aprendera tomar com os colonos que vieram do sul.
Ele afirmava que sabia ver sinais de chuva no cheiro
do vento ou no jeito das nuvens. Quando as nuvens
pretejavam para as bandas do poente era chuva na certa.
287
“Céu pedrento chuva ou vento” – anunciava. Às vezes, de
manhãzinha averiguando, olhava pela janela a montanha
que se desenhava no horizonte e se o cume estava coberto
com neblina, profetizava: – O cocuruto da serra está
pitando, é chuva que vem aí.
Bezerra era um homem de estatura média,
atarracado, pele tostada pelo sol, olhos pretos e pícaros,
metidos no fundo de órbitas ossudas, barba e cabelos
grisalhos, cabeça-chata de nordestino coberta por carapinha
de mestiço. Com as abas do chapéu de palha quebradas na
frente, uma réstia de sol batia-lhe em cheio no rosto.
Gesticulava com as mãos e falava com entusiasmo.
Vitorio quando viu a filha chegar trazendo um
estranho em sua companhia, ficou intrigado.
– Quem é a pessoa que te acompanha? - perguntou
ríspido, sem rodeios.
– Pai, esse é Gilberto Mendonça de Sá, viajante que
conheci há tempos, ainda em Porto Velho. Veio visitar nós.
– Você sabe minha filha, que não gosto receber
estranhos em minha casa, depois daquela experiência triste
que tivemos – reclamou o velho.
– Eu sei pai, me desculpe, mas esse homem estranho
é meu amigo. Peço-te que o recebas com cordialidade.
– Está bem senhor Gilberto, entre e sente, sinta-se à
vontade – convidou – ainda um tanto contrariado.
Ao entrar na sala mal iluminada por um lampião à
querosene, de cuja manga de vidro subia para o teto uma
fumaça esfiapada e negra, viu um banco feito de madeira
bruta encostado na parede, dirigiu-se para sentar.
Bezerra pôs o menino no chão, pegou da cintura
uma faca de cabo incrustado de madrepérola, e começou a
picar fumo de corda para o cigarro. As partículas caiamlhe no côncavo da mão. Tirou a palha de milho enfiada
atrás da orelha, alisou-a com a lâmina da faca, colocou o
288
fumo na palha e começou a enrolar o cigarro com toda
calma. Bateu a pedra do isqueiro, levou fogo ao pavio,
aproximou a chama da ponta do cigarro de palha e tratou de
acendê-lo. Aceso, aspirou longamente a fumaça depois
soltou-a pelo nariz.
Sentou no banco de madeira perto de Gilberto, com
a perna direita dobrada em repouso, o peso do corpo sobre a
esquerda. Seu cigarro tinha se apagado. Levantou para
acendê-lo novamente, agora com um tição de lenha do
fogão. Tirou gostosas baforadas e sentou-se novamente,
olhando os volteios da fumaça no ar.
– Então é amigo de Eunice! – puxou a conversa.
– Sim senhor Bezerra, eu e Eunice nos conhecemos
há muito tempo. Eu ainda era tropeiro e morava em Porto
Velho. Agora sou proprietário de uma caminhonete
utilitária nova que adquiri há pouco tempo. Assim como
fazia de início, quando levava a mercadoria em lombo de
mulas, continuo com o negócio vendendo mercadoria pelos
assentamentos do INCRA. Consegui ganhar um bom
dinheiro. Pretendo casar e me estabelecer com loja de
tecidos, confecções, calçados e armarinho, na capital.
– Pelo que me contou, o senhor deve ser um homem
corajoso e um bom comerciante – comentou o pai.
Conversavam amigavelmente, quando começaram a
chegar colonos do assentamento, conhecidos de Vitorio,
para um dedo de prosa e roda de chimarrão,que acontecia
todos os dias na casa de Bezerra, sempre ao anoitecer.
Viram a caminhonete estranha estacionada à porta do
Bezerra e curiosos foram saber quem era.
Espantado pelo movimento de pessoas que
chegavam, um morcego saiu do beiral da casa, voejou por
um instante procurando saída e depois sumiu na escuridão.
Aquelas aves causam a todos um medroso mal-estar e
arrepios pelo corpo.
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O velho Bezerra bateu a pedra do isqueiro e quando
o pavio estava aceso aproximou-o do cigarro de palha que
segurava entre os dentes, o qual tinha se apagado outra vez.
Tirou uma baforada de fumo e cuspiu no chão com força.
– Cáspite! – xingou injuriado.
Passou o olhar ligeiramente por todos que estavam
sentados em volta dele. Os visitantes estavam curiosos para
ouvir a história, que pelo jeito misterioso do velho devia ser
interessante.
– Vou explicar-lhes por que não gosto de receber
estranhos em casa; tenho receio, precaução, desconfiança.
Tudo por causa de uma tragédia acontecida há um ano.
E o velho Bezerra desfiou durante horas o sinistro
acontecimento:
- Naquele anoitecer de começo de agosto, o vento
forte que soprava sobre a mata e as casas do assentamento
do INCRA no Projeto Jaru, punha inquietos os animais e as
pessoas. Batia as portas e janelas; arrancava as folhas das
árvores e chapéus de palha dos colonos, puxava e lançava
para longe a roupa estendida nos varais. Levantava
redemoinhos, juntando os ciscos e a poeira da estrada,
dando às criaturas um agourento arrepio na pele. A ventania
anunciava algum acontecimento sinistro por vir.
- Dias depois aconteceu um fato inesperado...
- Num sábado ao cair da noite um jovem casal
apareceu no portão da minha casa. Eles vieram do Rio de
Janeiro. A moça era parenta afastada da minha falecida
mulher Marinalva. Não sei como conseguiram o meu
endereço, nesse fim de mundo. Pediram hospedagem por
alguns dias, para descansar.
– Não tive como negar. Não comentaram a que
vieram à Rondônia. Achei meio estranho o seu
comportamento. Falavam aos sussurros e paravam quando
alguém se aproximava. Fora isso, tudo correu normalmente
290
e eles se foram para a capital, depois de dois dias de
repouso.
– Quando chegaram a Porto Velho, estranhamente,
pois apresentavam ter posses, o casal se aboletou num
casebre nos arredores da capital. Os forasteiros desde que
chegaram, e durante muito tempo, foram assunto predileto
das conversas do bairro.Se interpelados não satisfaziam a
curiosidade das pessoas especulas que afluíam à sua
cabana. Não davam satisfação a ninguém.
– Soubemos, tempos depois do fato ocorrido,
alguma informação sobre os dois. Constava que Genivaldo
ficou órfão aos sete anos de idade. Seus pais, ele negro e ela
mulata, foram mortos atingidos por balas perdidas dos
disparos das armas de policiais, que faziam varredura na
favela, onde moravam. A polícia estava à procura de
traficantes, armas e drogas. Criou-se no morro, ao Deus
dará. Para sobreviver fazia pequenos roubos e furtos. Ainda
criança ingressou no mundo do tráfico e do crime.
- Não tinha ou não conhecia seus parentes. Todos os
meninos de rua eram seus irmãos. Numa visita de um grupo
de assistentes sociais à favela, ele foi convencido a
matricular-se numa escola, onde receberia três refeições
diárias, além de aprender a ler e escrever e jogar futebol.
Freqüentou a escola e terminou a primeira série. Depois
disso voltou ao mundo do crime. Não tinha nada a perder;
arrojado e inconseqüente, gostava de viver perigosamente.
- Num baile funk conheceu Natália, jovem alegre e
expansiva. Era encantadora e ele enamorou-se dela.
Empenhou todo o seu charme para conquistá-la e em pouco
tempo conseguiu seduzi-la. Ficavam juntos com freqüência;
iludida, ela deixou a família e foi morar com ele na favela.
- Forçada pelas circunstâncias Natália começou a
traficar drogas. Também a drogar-se e beber nas reuniões e
bailes funk aos quais freqüentava na companhia de
291
Genivaldo. A vida dela mudou completamente, ela andava
parecendo sonâmbula, como que enfeitiçada. De
personalidade forte, teimosa, tornou-se submissa. Obedecia
cegamente às ordens do amante que a seduzia
proporcionando-lhe prazer e carinho e quando não,
obrigando-a com ameaças de violência. Apanhava se não
obedecesse.
- Genivaldo era um mulato de porte atlético, alto e
esbelto, de pele quase negra. Olhos dum castanho escuro
perspicazes, desconfiados, externavam uma constante
expressão de alerta. O cabelo pixaim trazia-o preso na nuca
por uma fita preta. Usava calça de jeans e camiseta branca
cavada. Calçava tênis Nike, importado. Trazia presa na
cintura uma pochete com documentos, e uma guaiaca
escondendo um punhal na bainha. Se portava revólver, não
deixava que ninguém percebesse.
- Natália era de origem estrangeira, talvez ucraniana
ou alemã. Loira, de pele clara salpicada de sardas, e
grandes olhos buliçosos. De baixa estatura, cintura delgada
e quadris roliços. Era bela, tinha um sorriso cativante e
sedutor. Falava com uma voz maviosa, quente e afável.
Parecia uma boneca de porcelana. O casal chamava atenção
pela disparidade da aparência. Faziam um par exótico. Não
combinavam, mas o amor tem dessas coisas.
- Os homens da vila não tiravam os olhos dela,
sentiam-se atraídos pela beleza da moça, conquanto
concluíssem que ela representava um risco muito perigoso e
qualquer um deles poderia sair perdendo. A mulher
causava-lhes um vago medo que não sabiam explicar com
clareza, mas que em geral resumiam para si mesmos numa
frase: “Ela é um perigo fascinante, um brinquedo para ser
admirado de longe.”
- Havia naquela bela mulher de vinte anos qualquer
coisa de perturbador, uma aura de drama, uma atmosfera
292
abafada de perigo. Ao conhecê-la, Murilo Fonseca,
morador da vila, ficara todo alvoroçado, como um
colecionador que descobre um espécime raro no lugar mais
inesperado. Que tinha ela de tão especial? Talvez os olhos...
Eram grandes e azuis, transmitiam uma energia misteriosa.
- Todos achavam um absurdo que duas pessoas tão
desiguais fossem casados, dormirem na mesma cama e se
amarem. Havia um mistério indecifrável nisso tudo.
- No entanto, desde o momento em que ela chegara,
Murilo ficou perdidamente apaixonado pela moça, vivia
rondando o casebre onde ela morava, cercava-a e não
perdia pretexto para falar-lhe. Ficava excitado só de ouvirlhe a voz. Aquela voz tinha feitiço, punha-lhe arrepios no
corpo todo. Sentia por Natália uma atração estranha, um
desejo insano de possuí-la à força, fazer sexo com
violência. Ele estava enfeitiçado, aquele sortilégio parecia
dominar-lhe os pensamentos e a vida. Perdera o sossego.
- Natália sofria com o Genivaldo, pois quando não
estava viajando, metia-se em bares, bebia e jogava.
Freqüentava os bailes funks e prostíbulos. Nesses
ambientes promíscuos e suspeitos vendia maconha e
cocaína, e pior de tudo, também era viciado em drogas,
além de ser traficante. Quando discutiam, ele batia nela
com brutalidade. Eram um escândalo as surras que ele dava
em Natália, quando ficava bêbado e drogado. Mas ela não
reclamava.
– Mas como ela consentia? – perguntavam.
– Porque o amava.
– Isso não é desculpa.
– Natália, por que não larga dele?! – perguntava-lhe
seu admirador Murilo.
– É por causa do amor que sinto por ele, sou feliz
assim, isso me basta – respondia com um sorriso
enigmático.
293
– Como ela conseguia agüentar que, além de traí-la,
ainda a agredisse?
– Porque o amava muito.
– Isso não justifica a violência dele.
- Era um fato curioso. Genivaldo tinha um não sei
quê naquele olhar magnético, e no sorriso da boca de dentes
muito brancos, destacando-se no rosto de pele escura, que
seduziam às pessoas a quem se dirigia. Isso, porém, era
apenas um tênue verniz de superfície, no fundo daquela
alma atocaiava-se a hiena. Era sanguinário e cruel, duma
crueldade fria e calculista.
- O que mais irritava naquele indivíduo era que seus
gestos, palavras e atitudes não estavam absolutamente de
acordo com o que ele era e fazia. Tinha sempre nos lábios
avolumados de mulato um sorriso hipócrita. Seu jeito era
obsequioso e sua voz grave, tocada duma afabilidade
paternal. Parecia uma cobra cascavel hipnotizando a sua
presa, esperando para dar-lhe o bote.
- Murilo não escondia seus sentimentos. Estava
apaixonado, fascinado pela Natália. Abordou-a um dia,
quando Genivaldo viajou para o Rio de Janeiro levando
uma grande quantidade de cocaína que adquirira em
Guajará-Mirim, na divisa com a Bolívia. Foi traficar a
droga nos morros cariocas. Possivelmente ia demorar dias
para voltar.
– Desejo você, estou apaixonado, sei que você
também me quer – investiu Murilo.
– Sim, desejo-o muito, desde o dia em que te
conheci naquela balada fank. Escolha o local e a hora, que
irei ao teu encontro – disse, olhando para ele
amorosamente.
- Encontraram-se muitas vezes na ausência do
pseudo-marido. Freqüentavam os motéis de beira de
estrada, passavam a noite juntos. Eles sabiam que corriam
294
perigo de vida, se ele os encontrasse em flagrante, mas o
desejo era mais forte.
- Certa tarde Genivaldo voltou; felizmente
encontrou a mulher em casa. Depois do jantar, ele foi
dormir, pois estava exausto da longa viagem.
– Se você vai descansar eu vou caminhar,
espairecer um pouco, posso? – pediu ela.
– Pode ir se quiser – consentiu prontamente. – Vai
se encontrar com alguém – pensou, e sorrateiro seguiu a
mulher sem que ela percebesse.
- Nunca se soube como ele descobriu que Natália o
enganava com Murilo Fonseca.
- Ela entrou num beco onde o amante a esperava.
Genivaldo sentiu o ciúme penetrar-lhe o coração como uma
facada,e o ódio apoderar-se dele. Entendeu nesse momento,
que teria que vingar-se dos dois; seu coração batia
violentamente. Começou a premeditar seu plano de
vingança.
- Ela não demorou para voltar. Quando entrou no
casebre o rancor desfigurava o rosto do marido, ele a
agarrou pelo braço e sacudia-a violentamente; ela procurou
desvencilhar-se com um repelão. Começou a gritar.
- Grita a vontade! Cadela! Puta é o que você é –
xingava e continuava a socá-la contra a parede.
- Natália se esforçava por livrar-se dele. Levantou os
braços e fincou as unhas no rosto dele que começou a
sangrar. Enlouquecido pelo ódio, ele jogou-a contra a
parede. Ela caiu e ficou sentada chorando de dor e
humilhação.
- Então ele teve uma idéia demoníaca. Ia obrigá-la a
marcar um encontro com o amante em seu próprio quarto
de dormir. Simularia uma viagem, mas ficaria escondido no
galpão vazio anexo ao casebre.
295
- Convide o teu amante para vir encontrar você no
nosso quarto de dormir esta noite, diga-lhe que eu viajei
para Guajará-Mirim. Não aceito negativa, senão você vai
pagar caro – ordenou ele
- Está bem! Eu convido, obedeço tua ordem, mas me
prometa não fará nada contra mim - implorou Natália.
- Fique tranqüila, nada te acontecerá – prometeu ele.
- Sem desconfiar de nada Murilo apareceu na hora
combinada. Achou um tanto estranho o comportamento de
Natália. Mas como estava cego pela paixão, entrou no
quarto cuja porta estava aberta, envolveu o corpo da amante
num abraço, beijando-a na boca levou-a para a cama.
- Genivaldo ao ouvir os gemidos de prazer dos
amantes, saltou do esconderijo, no exato momento da
exaltação dos sentidos. Com os olhos injetados de ódio
arrancou a faca peixeira da cintura e estripou o Murilo.
- Natália gritou de pavor, nesse momento ele virouse para ela e enlouquecido pelo ciúme cravou-lhe o punhal
no coração. Uma, duas, três, muitas vezes até vê-la expirar
o último suspiro. A expressão de medo que havia no rosto
da mulher, deu lugar a uma serenidade de morte. Duas
lágrimas rolaram-lhe pelas faces.
- Genivaldo olhava estupidamente para o cadáver da
companheira morta. Arquejante, a baba a escorrer-lhe da
boca entreaberta, por alguns segundos, ficou assim, como
que acuado, pensando no que fazer, por fim fez meia volta e
saiu em direção da cozinha. De lá trouxe dois sacos de lona
e colocou ao lado dos cadáveres.
- Olhando o belo corpo despido, de Natália, naquele
momento, surgiu nele o instinto primitivo da besta que
dorme dentro de cada indivíduo, que o impeliu no desejo
violento e carnal de possui-la ainda mais uma vez, ali no
meio da carnificina, em frente do amante estripado.
296
- Depois de saciado o seu instinto bestial, ele teve o
impulso de esquartejar os corpos em mil pedaços. Essa
seria a sua vingança pela traição dos dois.
- Nesse momento uma coruja piou agourenta no
telhado do casebre. Um frio gélido perpassou o corpo de
Genivaldo,como mau presságio. Transtornado, começou a
decepar as cabeças, braços e pernas, retalhar os cadáveres
em pedaços. Colocou os despojos, sangrando, dentro dos
sacos de lona impermeável, e arrumou tudo em cestos no
lombo de uma mula cargueira. Pegou do armário, uma
camiseta e um short, limpos.
- Já passava da meia noite e as casas estavam todas
fechadas. Tranqüilamente encilhou o seu cavalo de
montaria e tocou a mula pela estrada. De súbito ocorreu-lhe
uma idéia macabra. Deixaria um pedaço dos corpos
decepados em cada encruzilhada do caminho. Assim
ninguém conseguiria identificar as vitimas. Um pedaço
aqui, outro ali, e o problema ficaria solucionado, ninguém
jamais poderia incriminá-lo. Os corvos e os bichos do mato
dariam conta dos despojos.
- Já era madrugada, o dia estava clareando.
- Percebeu em tempo, que a sua camiseta branca e o
jeans estavam respingados de sangue, devia trocá-los por
roupa limpa. Quando passava em cima da ponte construída
sobre o despenhadeiro de nome “Boca do Inferno” viu ali a
oportunidade de desfazer-se dos restos das vitimas,
incluindo as duas cabeças decepadas e a roupa
ensangüentada.
- Um só espectador, involuntário, desse sangrento
drama, assistia a tudo escondido atrás de uma touceira.
- O caboclo tinha saído de madrugada apanhar
gravetos para acender o fogo e ferver a água do chimarrão.
Morava num rancho próximo do local. Grande foi seu susto
297
quando viu chegar um cavaleiro à cavalo, puxando atrás
uma mula com dois cestos atravessados no lombo.
- O homem parou na ponte, amarrou a montaria no
tronco de uma árvore e aproximou a mula cargueira do
despenhadeiro, em cima do pontilhão. Tirou dos cestos dois
sacos e retirou de um deles alguma coisa que transferiu para
o outro. Trocou a roupa suja que vestia por outra limpa.
Colocou tudo num só saco, amarrou, fazendo um nó cego,
deixando duas pontas compridas da corda.
- Depois se seguiu o fato inacreditável. O indivíduo
abeirou-se perigosamente do precipício, levantou o
invólucro macabro com a mão direita, segurando pela ponta
das cordas. Confiando na sua força e destreza, com riso
triunfante, sentindo-se vingado, rodopiou o saco com os
despojos, no ar, para depois lançá-lo no abismo.
- Nesse gesto descontrolado, desequilibrou-se e caiu
junto no despenhadeiro. Seu grito de desespero foi abafado
pelo rugido da água da cachoeira que despencava de oitenta
metros de altura no despenhadeiro. O caboclo foi ver de
perto se poderia socorrer o infeliz, mas só viu o espesso
matagal lá em baixo e ouviu o bramido da água, que,
rodopiando, espumando, corria rio abaixo.
- O destino juntou os três personagens dessa
tragédia numa só sepultura.
- O caboclo coçou a cabeça, pensou...pensou mais
um pouco... Foi e desamarrou os dois animais presos à
arvore e levou os com ele. Desgraça de um, sorte do outro.
Inesperadamente tinha ganho o dia.
- Havia pouco mais de um ano que, aquele hediondo
crime ocupara todas as atenções nos bairros e na imprensa
das cidades do Estado. Os habitantes mais antigos do
bairro, afirmavam que foi o mais horrível de quantos
tinham na lembrança.
298
- No povoado onde o casal morou, corria a conversa
sobre essa tragédia de vingança, que diziam, praticada por
Genivaldo, que sumira do lugar. O casebre que foi habitado
por ele e Natália, foi considerado mal-assombrado. As
pessoas afirmavam que ouviam gritos e gemidos á noite.
Ninguém quis comprar nem habitar nele.
- Certa noite, viram uma grande fogueira tomando
conta do casebre. Só sobraram cinzas e no meio delas foi
encontrado o punhal de Genivaldo. Essa era a história
macabra que corria nas redondezas.
Quando o velho Vitorio Bezerra terminou de relatar
o sinistro acontecimento, já era hora avançada da noite.
Alguns ouvintes estavam cochilando. Um arrepio de frio
perpassou os seus corpos semi-adormecidos, quando o
Bezerra deu um grito agudo, indicando com o dedo em riste
uma sombra humana deformada, deslocando-se pelo chão
do aposento.
Uma porta bateu com a rajada de vento e ouviu-se o
estalo da madeira. Um rato assustado correu pelo canto da
casa, para esconder-se atrás do fogão de lenha. A coruja
empoleirada no telhado piou tristemente tornando o clima,
dentro do ambiente, a apresentar-se mais fantasmagórico.
- É a assombração do Genivaldo - o velho falou,
apavorado. Vamos parar por ai, porque estamos chamando
almas penadas doutro mundo. Já é passado da meia-noite. É
hora de dormir. Boa noite meus amigos.
- Está certo, vamos nos despedir e ir embora - falou
um deles.
- Boa noite para todos – responderam os outros.
Os colonos e os peões se dispersaram, cada um indo
para sua casa. Caminhavam amedrontados olhando para os
lados, estremeciam ao ouvir a batida da placa de zinco,
presa no poste apenas por um prego, que o vento fustigava.
299
Um enorme cachorro preto com os pêlos arrepiados,
atravessou-lhes o caminho rosnando, com os dentes afiados
à mostra e os olhos amarelos brilhando igual farol. O
animal sumiu no matagal próximo, deixando atrás um
cheiro nauseabundo disperso no ar. Os cães das redondezas
começaram a uivar, revezando-se no coro lastimoso,
amedrontador.
- È o lobisomem, os cães o perceberam, por isso
uivam - disse um deles, aterrorizado. Começou a correr em
direção à sua casa.
Enquanto Bezerra contava a tétrica história à grande
assistência em volta do fogo, Gilberto e Eunice,
conversavam sentados no cômodo ao lado. O Bezerra viu
a filha na sala e foi juntar-se à eles. Quis desculpar-se pelo
ríspido acolhimento ao rapaz, amigo de sua filha.
- Você Gilberto, ouviu todo o relato da tragédia
ocorrida há pouco tempo. Portanto, deve ter entendido o
meu jeito ressabiado com as pessoas estranhas. Perdoe o
meu tratamento rústico com você. Agora está tudo bem. É
amigo de Eunice minha filha, portanto é nosso amigo
também. Sinta-se em casa.
- Agradeço pela gentileza – respondeu Gilberto e
deixou passar algum tempo conversando animadamente
com o pai da sua pretendida, para dissipar a atmosfera triste
ocasionada pela narrativa recente.
Depois querendo aproveitar o momento e a boa
disposição de animo do pai, arriscou fazer o pedido.
- Senhor Bezerra, me desculpe, sei que a hora não é
oportuna, mas nós temos pressa, portanto, peço que me
conceda a mão de Eunice em casamento. Eu e sua filha já
conversamos a respeito e estamos de acordo, agora depende
da sua licença. Esperamos que aprove. Eu a amo muito e
prometo fazê-la feliz.
300
- Quanto a mim, não só aprovo como abençôo essa
união. Eunice merece ser feliz.
Duas semanas depois se casaram na igrejinha local.
Ela vestida de noiva levando um bouquet de flores miosótis
brancos nas mãos. Entrou na igreja de braço dado com o pai
e desfilou ao som da marcha nupcial. O filho Adrianinho
levava as alianças no estojo de veludo. Gilberto,
acompanhado pelos pais e parentes que vieram do Sul para
a ocasião, esperava-a no altar, feliz mas muito ansioso.
Terminada a festa seguiram em viagem de núpcias
para a capital Porto Velho, onde iam residir. Não podiam se
dar ao luxo de viagem de núpcias dispendiosa, pois estavam
começando uma vida que dependia de muito investimento e
trabalho constante.
Era o ano de 1986.
Esse paranaense que começou sua carreira
percorrendo as linhas dos assentamentos do INCRA em
Rondônia, como mascate, prosperou, e mais tarde
estabeleceu um pequeno negócio em Porto Velho. Depois
de casado, junto com a esposa, empenhou todas as energias
ao trabalho no comércio, e a pequena loja foi progredindo.
Agora, ali está na rua principal da cidade, a
primeira loja, agora Matriz da firma de Gilberto, que com o
passar do tempo cresceu de tal maneira, que o homem
acabou expandindo seu comércio e suas lojas pela cidade e
municípios vizinhos.
O filho de Eunice, Adriano Júnior, adolescente,
estudava no Internato em São Paulo. Era um aluno
medíocre, um tanto revoltado pela ausência da mãe à qual
era muito apegado. Com o passar do tempo superou a
saudade e dedicou-se ao estudo. Formou-se em
Administração de Empresa, fator que o auxiliou muito,
quando, pela morte do padrasto, teve que auxiliar a mãe na
direção dos negócios.
301
Naquela época a mãe de Gilberto, Jurema, andava
inquieta, preocupada com a saúde do filho. Sonhava com
ele, tinha pesadelos. Sabia que alguma coisa ruim,
inesperada estava por acontecer. E o que ela temia que
ocorresse, o que pressentia, aconteceu.
Gilberto resolvera visitar a Fazenda Macuco que
adquirira meses antes. Situava-se a 120 quilômetros de
distância da capital. Queria estudar a possibilidade de
implantar ali uma criação de gado da raça Nelore. Sentado
em cima de um toco, em frente da casa da fazenda, estava
profundamente absorvido em pensamentos.
Entardecia...
O disco esbraseado do sol descia por trás das nuvens
rosadas. A barra carmesim que começa no ponto onde o céu
e terra se encontram, degrada-se em rosa, ouro e malva,
para se transformar num gelo esverdeado, que acaba por
fundir-se na abóbada de água marinha que é o resto do céu.
Uma doce luz de âmbar tocava nas árvores.
O sol descia por trás da montanha, em cujo topo as
nuvens brancas se enroscavam. Era a hora em que a paz do
céu descia sobre os campos, as águas da lagoa pareciam
mais paradas, sons e cores se amorteciam numa surdina, as
sombras começavam a tomar tonalidades de violeta.
Um galo carijó passeava como um rei por entre as
galinhas que ciscavam no chão de terra vermelhoqueimado, que despedia uma tepidez languida, como dum
corpo humano cansado. O cão de pelo manchado de preto e
amarelo dormia junto da porta da cozinha, de onde vinha
um cheiro de carne frita.
Gilberto estava inquieto. O que o perturbava?
Talvez fosse a melancolia natural da hora e do lugar. Mas
não! Havia mais alguma coisa. Sim, uma espécie de
premonição, de saudade, uma sensação de aperto no peito
que parecia ser expectativa do futuro. Sentia uma solidão
302
profunda, angustiante. Olhava em redor, para os pastos e
para a mata.
Teria muito trabalho pela frente, até organizar tudo
da sua maneira. O pasto estava invadido pelo mato. As
cercas precisavam ser concertadas e a casa da fazenda
estava em péssimas condições, chovia dentro. O rebanho de
gado, de cento e vinte cabeças, precisava de trato. Tudo
estava por fazer. Mas ele era um homem de coragem e
iniciativa.
Estava apostando no sucesso da sua empreitada.
Não podia se dar ao luxo de vacilar. Mas, ele não esperava
e nem suspeitava, que o destino já tinha demarcado o fim
da sua jornada aqui na terra.
O estresse ocasionado pela preocupação e o trabalho
exaustivo corroeram a saúde de Gilberto. Foi diagnosticada
uma lesão no coração. Apesar do tratamento médico, não
resistiu. Uma tarde aconteceu o desenlace repentino. Não
teve tempo de ser socorrido. O choque abalou toda a
comunidade onde ele morava e era benquisto. Ele morreu
ainda moço, tinha apenas cinqüenta anos. Sem demora, a
família que morava no Sul foi avisada.
Foi no começo do ano de 1995.
Certa madrugada, o telefone tocou insistente. A
primeira impressão era de que só podia ser um engano,
devido o adiantado da hora, portanto, ninguém levantou
para atender o chamado. Mas o telefone voltou a tocar
novamente.
A mãe Jurema levanta-se da cama e foi atender, suas
mãos tremiam quando pegou o aparelho.
- Alô! Quem é? – perguntou ansiosa.
- É de Porto Velho, sinto muito, mas a noticia da
qual fui incumbido de lhes passar não é boa – falou alguém.
- Fale! Por favor - suplicou a mãe.
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- Seu filho Gilberto faleceu repentinamente essa
noite – informou a pessoa no telefone.
- Ele está morto! Oh, meu Deus! – gemeu a mãe, e
caiu desmaiada de dor.
As pessoas acordaram com o grito de desespero de
Jurema. O marido Laurindo foi socorrê-la.
Todos ficaram abalados com a infausta notícia. Os
familiares apressaram-se para a viagem até Porto Velho,
pois pelo que constava, a esposa Eunice, não ia permitir
que o corpo do marido fosse trasladado para Palmeira do
Sul, sua terra natal.
Laurindo, sem perda de tempo foi informar-se sobre
o mais rápido meio de transporte que poderia utilizar nessa
emergência. Foi necessário fretar um avião particular que
levaria dez pessoas da família, com urgência e tempo de
assistir aos funerais de Gilberto. A viagem realizou-se num
vôo direto, com escalas apenas, para abastecimento do
tanque do avião.
Na chegada ao aeroporto de Porto Velho pessoas
da família os esperavam. Aflitos, desesperados, não
conseguiam conter as lágrimas no curto trajeto do aeroporto
até a residência, onde o falecido estava sendo velado.
Vieram ao encontro dos familiares que chegavam, a viuva
Eunice com o filho Adriano, o pastor evangélico e amigos
da família.
O pai e a mãe ao adentrarem no grande vestíbulo da
casa, depararam-se com o corpo inerte do filho deitado no
esquife. Estava com tampões de algodão no nariz para
vedar o sangue que aflorava do peito. O caixão mortuário
foi colocado em cima de uma mesa grande adornada de
flores e círios de cera acesos, dispostos nos quatro cantos da
mesa. Pessoas sentadas em volta oravam por ele.
A mãe Jurema não resistiu ao choque e caiu em
pranto desesperado. Cambaleou, sentiu tontura e uma súbita
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ânsia de vômito. Precipitou-se para a suíte do casal
procurando o banheiro, inclinou-se sobre o vaso sanitário e
ali lançou toda sua angústia. As contrações do estômago
expeliam somente a bílis amarga. Não houve alívio, os
espasmos continuaram acompanhados de dor e choro
convulsivo, até que ela exausta, deitou-se na cama do filho.
- Não se aflija tanto, filha, a vida é assim mesmo.
Todos morrem, mais cedo ou mais tarde. A morte não pede
licença para entrar na casa da gente e levar quem ela
escolher – consolava o pastor evangélico.
- Como pode ter acontecido uma desgraça dessas? –
gemeu a mãe, passando a mão no rosto gelado do filho.
- Não desespere senhora, Deus decide a hora da
nossa partida - falou o pastor, calmo, suprimindo as
próprias emoções - em que posso ajudar a senhora?
Havia uma tristeza infinita nos olhos da mãe.
Estavam cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelas faces
pálidas. Ela ergueu-os e os cravou firmes no rosto do
interlocutor.
- O pastor realmente quer me ajudar?- indagou ela –
então ajude-me a liberar o corpo do meu filho para que eu o
leve de volta. Peço apenas, que coloquem o seu esquife
no avião que está esperando e o mandem para casa. Lá está
toda a sua família – falou em prantos, e olhou-o com
expressão tensa.
- Farei tudo para ajudá-la, fique tranqüila.
- Quero meu filho de volta, quero levá-lo para casa,
a fim que possa dormir em seu lugar, na sua terra. Nada de
ofícios religiosos evangélicos para ele, somos católicos.
- Não se preocupe mãe, você terá seu filho de volta,
se bem que as coisas talvez não sejam tão fáceis assim disse o pastor, com olhar interrogativo para Eunice, que
reagiu instantaneamente.
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- Sou sua mulher, com quem ele casou e viveu por
vinte anos, portanto, tenho o direito, e reclamo-o para mim.
Quero que seja sepultado aqui, para que eu possa orar no
seu túmulo. Também serão realizados os ofícios religiosos
ecumênicos, para isso mandei chamar o padre católico –
comunicou com veemência a viuva.
- Precisamos conversar melhor! Vou consultar o pai
e outras pessoas da família.
Todos estavam em silêncio. O morto deitado no
ataúde, já não precisando de mais nada neste mundo. Que
os vivos resolvessem as questões terrenas.
A mãe Jurema convocou o pai e familiares para
darem a sua opinião. Depois de muito argumentar chegaram
a uma solução definitiva. Resolveram que, para respeitar o
direito e não magoar a viuva Eunice deixariam que o corpo
de Gilberto fosse sepultado em Porto Velho.
E ainda naquela tarde, atravessando a cidade,
passando pelas ruas lamacentas e esburacadas, seguiu o
grande cortejo fúnebre rumo ao Cemitério Municipal. A
mãe, inconsolável, gemendo de dor e saudade, caminhava
amparada pelo braço da filha.
Por muito tempo ainda, todo final de semana, a mãe
de Gilberto esperava o telefonema do filho, conforme ele
sempre costumava fazer, mesmo que fosse para jogar
conversa fora, ligava apenas para matar a saudade, feliz
pelo fato de conversar com a mãe que ele adorava.
Gilberto era um homem autêntico, maduro e
verdadeiro. O indivíduo autêntico é o ser que pode ter
consciência de sua existência e, portanto tornar-se
responsável por ela. Assim o ser autêntico é a pessoa que
aceita essa responsabilidade.
Amadurecer é aceitar sem alarme nem desespero as
contradições. Essas condições de discórdia que nascem do
mero fato de estarmos vivos. Alguém nos colocou aqui e
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acreditamos que nos deu livre arbítrio. Mas, para nossa
frustração não podemos escolher a nossa natureza, o corpo
que temos, nem a hora e o lugar ou a sociedade em que
nascemos, nem os nossos pais, nem nossos irmãos. Essas
coisas todas nos são impostas como fato consumado, de
maneira irreversível.
O homem verdadeiramente maduro procura vê-las
com lucidez e aceitar a responsabilidade de sua própria
existência dentro dessas condições temporais, espaciais,
sociológicas, psicológicas e biológicas.
Essa idéia de que somos livres e os únicos
responsáveis por nossa vida e destino é uma fonte
permanente de angústia e questionamento. É um tipo de
ansiedade do qual jamais nos livraremos, porque ela é
inerente à nossa existência. É o preço que pagamos por nos
darmos o luxo de ter uma consciência, por sabermos que,
desde que nascemos e estamos vivos, com certeza vamos
morrer algum dia.
No decorrer da vida e do tempo, acontecem fatos
que nos parecem isolados, no entanto, sem serem
premeditados relacionam-se uns com os outros. São
destinos entrelaçados e envolvidos na mesma teia de
emoções; pessoas marcadas com os signos da paixão e do
amor ilimitado, que fatalmente cruzaram seus caminhos no
mesmo e exato momento; seres que aninham no coração
sentimentos extremos que as deixam muitas vezes à beira
do precipício da loucura.
Colocar a poesia “Felicidade”, na página seguinte.
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