a gaivota solitária
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a gaivota solitária
A GAIVOTA SOLITÁRIA As gaivotas, aves marinhas, são encontradas em todo o mundo. Voam vigorosamente e alternam as batidas lentas das asas com o vôo planado, mas raramente se afastam muito da terra. Não cantam, mas soltam gritos roucos e ruidosos. Vivem aos bandos e nidificam em colônias. Têm o bico em forma de arpão para caçar peixes. Essas aves voam sobre as águas e observam os peixes que nadam a pouca profundidade. Numa rápida descida sobre o mar, velozes, arrebatam a presa e a engolem. A gaivota Kauã era diferente das outras: era solitária e sonhadora. Às vezes demorava-se vagueando sem rumo; pois o seu espírito fixava-se em coisas indistintas do espaço celeste, outras, voava a esmo sobre os penhascos ou empoleirava-se no pico do rochedo à beiramar, os olhos embebidos na beleza das ondas, absorta em pensamentos... Buscava nos meandros da vida alguma pista que a levasse a desvendar o mistério de estar aqui, qual a missão que lhe foi destinada. A Mãe-Natureza encarregou-se de revelar-lhe o segredo. A sua função primordial era a procriação, a continuação da espécie. Sem ela perceber, um macho gaivota, chamado Pararú, aproximou-se fazendo volteios; escolheu-a para ser seu par. Ele bateu as asas, esticou o pescoço, eriçou e exibiu as mais bonitas penas, na dança do acasalamento. Com a bela e eficaz corte amorosa, conquistou-a e, num nicho cavado na pedra pelas ventanias e chuvas torrenciais, a gaivota Kauã construiu o seu ninho. Trazidas pelo companheiro Pararú, folhas, capim, gravetos e até pêlos de animais, com os quais teceu o ninho. Revestiu-o com penas e penugens e depositou ali quatro ovos, e Pararú participou da incubação. Após 21 dias, nasceram três filhotes saudáveis sendo que um ovo gorou. 1 As avezinhas eclodiram da casca, sem penas, incapazes de ver e ficar em pé. Pequeninas, só sabiam piar chamando pela mãe, apavoradas com o barulho do mar e o chuvisco que lhes caia molhando o seu corpo sem plumagem. Tudo o que podiam fazer é abrir o bico, para que os pais ai regurgitem os peixes que apanhavam. Essas aves são aquecidas pelos pais, até que suas penas cresçam o suficiente para esquentá-las. São alimentadas e cuidadas até deixarem os ninhos e aprenderem a pescar sozinhas. Alguns filhotes desenvolvem a plumagem adulta durante o primeiro ano de vida e são capazes de voar com independência. Alguns dias antes de voar, pode-se ver a avezinha acercando-se das bordas do ninho. Espiam para o abismo, ensaiam o vôo, depois se lançam para a imensidão das águas do oceano. Estão prontos para viver a sua vida. A tarde daquele dia apresentou-se com um calor abafado e pegajoso que pressagiava a tempestade. O oceano se pôs sombrio,o céu estava escuro como chumbo. O vento leste vergastava as ondas que encrespavam vertiginosamente e as empurrava cada vez mais forte até a praia. Em poucos minutos as nuvens negras carregadas de granizo povoaram o céu. O mar encapelado jogava a água às alturas, batendo nas rochas da orla, quase que alcançando o ninho, agitado, negrejante e ameaçador, rugia. O céu partia-se em raios e trovões e à noite a chuva torrencial desabou. O mar enfurecido varreu a costa de Guaratuba, amontoando a areia da Praia Brava em dunas lineares, coroando-as com espuma branca rendilhada. A gaivota Kauã e o companheiro tinham voado por dezenas de quilômetros sobre o oceano à procura de alimento, deixando os três filhotes na fenda do penhasco. Os pequenos aconchegaram-se uns aos outros para aquecer-se. 2 Após a borrasca, raiou um novo dia, no horizonte o sol, devagarinho, mostrava sua coroa cintilante acima das rugas do mar agora calmo. Um barco de pesca deslizava suavemente sobre a água. Subitamente, apareceram gaivotas vindas de todas as direções, soltando grasnidos que soavam como o próprio clamor da inquietação humana. Alvoroçadas, lançaram-se à luta para abocanhar os peixes descartados pelos pescadores. Mas lá longe da costa e do barco, voava lentamente a gaivota Kauã, triste e solitária. Seu parceiro Pararú tinha desaparecido, tragado pela tempestade da noite anterior. Ela estava sozinha para alimentar a pequena família. Absorvida pelo pensamento fixo de caçar alimento para os seus filhotes esfomeados que ficaram no ninho, estava desatenta, não percebeu que um falcão peregrino a espreitava. A trinta metros de altura da superfície azul brilhante, Kauã baixou seus pés com membranas, levantou o bico e tentou a todo custo manter suas asas numa curva. Cerrou os olhos para se concentrar melhor, susteve a respiração e desceu num vôo rasante sobre a água para apanhar o peixe da superfície. Lançou-se no mergulho vertical com o bico espetado, as asas bem abertas e firmes. O falcão não perdeu tempo. Caçaria a gaivota e o peixe que ela pegara. Estendeu as curtas e vigorosas asas, e, num vôo na vertical, rápido como um raio abateu a gaivota Kauã, levando-a nas garras como alimento para o seu filhote faminto, que o esperava no ninho, no pico da montanha Marumbi, na Serra do Mar. Os filhotes da gaivota Kauã e Pararú ficaram órfãos e teriam que enfrentar a vida, sozinhos. Já estavam emplumados e, portanto, prontos para dominar os perigos do grande oceano. Dentre eles, o filhote Tayná era sonhadora como Kauã sua mãe, e se destacava pela vivacidade e coragem, não temia o desconhecido. Ela 3 abeirou o ninho, olhou o abismo abaixo do penhasco e resoluta levantou vôo sem olhar para trás. O redemoinho da vida a absorveu. Muitos anos se passaram em que a gaivota Tayná viveu,lutou, pescou e procriou uma descendência numerosa. Mesmo assim não era feliz, sentia-se solitária, a saudade esmagava o seu coração de pássaro sonhador. Num dia ensolarado de verão empreendeu a última viagem em direção ao Sul, aos penhascos da Praia Brava, onde nasceu. Batendo as asas lentamente, num esforço incomum voava alquebrada sob o fardo da vivência impregnada de sonhos irrealizados, de frustrações e de vitórias, de amor e de muita, muita saudade do passado. Havia percorrido um longo caminho. Voava sobre o mar, quando reconheceu o penhasco onde fora o seu ninho. Pairou no céu, sozinha, feliz, e mergulhou diretamente em direção à escarpa sob o mar, na costa da baia de Guaratuba. De repente, ficou muito cansada, queria dormir. Algumas gaivotas que voavam junto à praia vieram ao seu encontro, sentiu que era bem-vinda e que esta era sua casa. Adormeceu ali mesmo, na grande viagem para a eternidade, sem que se tivesse ouvido um só queixume. Apenas o vento suave tecia melodias brincando com a areia, rolando-a e alinhando-a em dunas na praia. O corpo da gaivota Tayná foi incinerado pelo sol forte do verão e suas cinzas espalhadas pelo vento amigo, que as levou em direção ao mar. A sua alma sonhadora flutuará nas nuvens, como planam as gaivotas felizes, ao sabor do vento sobre o oceano. O rumorejar das ondas do mar será a canção de repouso, a embalá-la para sempre. De volta de outras dimensões, o espírito sonhador e aventureiro da gaivota Tayná reassumiu a forma material e instalou-se no corpo e na alma de uma menina. E à semelhança da gaivota Tayná a jovem Janice possuía a 4 inquietação perante a vida e arroubos de liberdade. Em devaneios o seu pensamento voava solto e veloz no mundo de sonhos e de fantasias, para onde quer que ela desejasse. A estratégia estava em deixar de se ver aprisionada dentro de um corpo limitado, sentir-se livre, e em saber que a sua verdadeira natureza vive em toda parte e ao mesmo tempo, através do espaço. Esgotado o tempo de sua permanência na terra, abriu-se-lhe a porta da eternidade e ela ingressou nela livre e feliz. Aqui deixou o pó dos seus ossos, mas sua alma voltou a integrar o Universo. *** Ao revolver as lembranças, no baú do passado, em primeiro plano me deparei com o terrível acontecimento que marcou a vida de Janice quando ainda era criança. A tragédia aconteceu no lusco-fusco do entardecer, num domingo, em que Álvaro Mendonça de Sá voltava de automóvel, para casa com a família. Vinha da comemoração das bodas de prata do cunhado Januário de Oliveira e Hermínia Bauer, irmã de Zenaide, sua mulher. As duas filhas pequenas do casal, Adélia e Janice vinham no assento traseiro do carro. As crianças estavam alegres, riam e brincavam com o cãozinho pequinês Mimoso. O veículo dirigido por Álvaro subia a Serra do Cadeado, perto de Mauá. Em sentido contrário, um ônibus de linha descia a ladeira em alta velocidade, os freios estavam falhando e o motorista assustado, desnorteado, numa curva fechada jogou o ônibus contra o barranco na pista contrária, tentou segurar o veículo desgovernado, pois na margem direita havia um grande precipício. Naquele exato momento Álvaro entrava na curva com o carro, e o ônibus colidiu violentamente com o automóvel. Sucedeu o irreparável. Álvaro, Zenaide e o motorista do ônibus morreram no acidente. Salvaram-se as 5 meninas Adélia e Janice, e o cachorrinho Mimoso. Por um milagre, os oito passageiros do ônibus nada sofreram, além de alguns arranhões e um grande susto. As meninas tiveram apenas ferimentos leves. Um cidadão que por ali passava avisou a polícia rodoviária; foi solicitada a ambulância, com o socorro médico. Os corpos achavam-se estendidos no chão, de costas, o sangue escorrendo das bocas e dos ferimentos. O cãozinho uivava, correndo em volta dos cadáveres, lambendo-lhes o rosto e puxando-os pelas vestes. Não demorou muito e o socorro chegou. Os paramédicos afastaram os curiosos, ajoelharam-se ao pé dos cadáveres, examinaram-nos cuidadosamente e concluíram que não tinham mais pulso e que seus corações cessaram de bater, estavam mortos. Não havia mais nada a fazer. Feito o laudo pericial os corpos foram liberados. O cunhado Januário, avisado da fatal ocorrência, veio com Laurindo, irmão de Álvaro, e levou o casal acidentado para sua casa em Palmeira do Sul, onde morava. Os dois homens olhavam consternados para os mortos, tragicamente silenciosos, sem acreditarem nessa fatalidade, mas era necessário tratar dos preparativos para o funeral. Januário tendo trazido as duas crianças órfãs consigo, entregou-as aos cuidados da esposa, que as acolheu, consolou, alimentou e fez dormir. Assustadas, elas não paravam de chorar. Ficou-lhes um grave trauma emocional que as marcou profundamente pelo resto da vida. Hermínia era uma mulher elegante, tratou de vestirse adequadamente para a ocasião. Vestiu o seu tailleur preto e blusa branca de seda, para receber as pessoas. Os parentes avisados logo começaram a chegar. Os amigos enviaram flores e coroas, que estavam sendo colocadas alinhadas ao longo da parede da sala. Impregnavam o ar com seu aroma adocicado. 6 Foi arrumada uma câmara ardente na sala de visitas do casarão dos Oliveira. Sobre a grande mesa de imbuia, coberta com toalha de linho muito alva, estavam expostos os dois caixões, contendo os corpos de Zenaide e Álvaro, vestidos com as roupas de festa que traziam nas malas. Os ataúdes foram cobertos de tecido de cor azul celeste, adornados com galões dourados e belas alças de metal prateado, internamente forrados com tecido de seda lilás, pregado com taxas douradas. Em volta foram colocados e acesos oito círios, de cera amarela, em candelabros de bronze que iluminavam os corpos com uma luz difusa. A sala estava pontilhada de pequenas chamas móveis que atiravam reflexos dourados nos rostos pálidos dos defuntos. O cheiro de cera derretida impregnava o ambiente mesclando-se com a fragrância das flores, dando ao ar um cheiro nauseante. Os familiares vestidos com seus trajes de luto entravam na sala mortuária na ponta dos pés. Ao aproximarem-se dos ataúdes, todos estremeciam chocados com a inesperada tragédia. Com os semblantes compungidos, os olhos baixos, desfilavam os amigos do casal acidentado; iam direto abraçar as pessoas da família que recebiam as condolências. Aproximavam-se depois dos esquifes, comtemplavam os mortos por breves instantes e, ajoelhavam-se ao pé dos ataúdes, juntavam as mãos, abaixavam a cabeça, cerravam os olhos e ficavam a rezar por alguns segundos. Erguiam-se fazendo o sinal da cruz. Isso feito sentavam-se nas poltronas, a pontuar a quietude do velório com murmúrios, cochichos, pigarros, suspiros e tosses. As cadeiras na sala tinham sido arrumadas em círculo, oferecendo conforto para as pessoas chorarem à vontade, externando as próprias tristezas sob o pretexto da morte alheia. 7 As mulheres rezavam o terço, depois a ladainha, o coro roufenho invadia a casa, doloroso, arrastado, funéreo. Quando se ouviram as badaladas da meia noite, tinha-se a impressão de que o velho relógio do casarão chorava também. Durante o velório, as pessoas circulavam pelo salão e corredores da ampla residência, apinhados de gente, falando em voz baixa. As empregadas da casa percorriam as salas oferecendo xícaras de café com biscoitos e bolo. Naquela madrugada o temporal desabou, choveu quase a noite toda. Às dez horas da manhã, à hora do enterro, chegou o coche, enorme, negro e reluzente, conduzido por motorista de uniforme marinho com galões dourados. O préstito fúnebre deixou a casa sob um tênue chuvisco que ameaçava prolongar-se, seguido por uma procissão de carros que levavam os parentes, os amigos e as dezenas de coroas de flores. Seguiu para a igreja onde ia ser celebrada a missa de corpo presente. Terminada a cerimônia religiosa, os irmãos Mendonça de Sá fizeram questão de levar os ataúdes nos ombros até o cemitério, e era com relutância, que cediam uma alça dos caixões a algum amigo da família. Colocaram os à beira das sepulturas abertas. O padre fez uma pequena preleção, encomendou as almas e benzeu os caixões antes de descerem à cova. Foram colocados um ao lado do outro, juntos, ali repousariam cobertos com terra para sempre. Laurindo, o irmão mais velho de Álvaro agachou-se, apanhou um punhado de terra e atirou-a sobre os caixões. Outros o imitaram.O coveiro tomou da pá e começou a cobrir a cova. Fixou as cruzes com os nomes de cada um escrito em placas douradas. As coroas e flores eram em tão grande quantidade, que enfeitaram e cobriram as sepulturas. Mais tarde foi construído ali um belo jazigo, revestido de mármore branco, adornado com dois anjos alados. 8 Mal, porém, o coveiro termina de jogar a última pá de terra, grossos pingos de chuva caem das nuvens escuras. O grupo de pessoas que assistiram ao enterro se move e começa a dispersar-se, buscando o refúgio nas varandas das casas próximas e debaixo da figueira grande da praça da Matriz. Uns poucos se precipitam para seus automóveis estacionados nos arredores. Os previdentes que trouxeram guarda-chuvas abrem-nos e saem a caminhar pelas ruas do cemitério, desviando-se das sepulturas. O recinto agora está vazio. O aguaceiro desaba com uma violência de dilúvio, o vento forte açoita ás arvores que dobram os galhos com gemidos, como a pedir socorro. Apesar de a morte estar tão presente neste momento, a vida lá fora continua, e é preciso viver. Esses são os contrastes surpreendentes de Vida e Morte. Enquanto os homens aparecem e desaparecem na face da terra, há Alguém no Universo que é Eterno. Esse Alguém está presente em todos os lugares e em todos os tempos. *** As duas meninas órfãs, Adélia de seis e Janice de quatro anos, não tinham idéia da grande perda que as atingiu com a morte dos pais. Compadecidos, seus tios Januário de Oliveira e Hermínia, adotaram Janice e a criaram junto com seus muitos filhos, cercando-a de cuidados, amor e carinho. A menina Adélia foi adotada por Etelvina e Laurindo Mendonça de Sá, irmão de seu pai. A infância de Janice transcorreu relativamente feliz, preenchida por folguedos infantis, pelas horas de estudo na escola e deveres de casa. Eram-lhe também cobradas as obrigações com o trabalho, que a tia fazia questão de ensinar. Era uma menina solitária e silenciosa, de 9 temperamento reservado, não tinha amigas para trocar confidências. Na verdade, ela não se sentia sozinha, ao contrário, ficava feliz em estar só para poder vasculhar a variada coleção de livros que enchiam as prateleiras do escritório do tio. Nos finais de semana seu tio Januário levava a família para passear no Jardim Zoológico. Essas visitas provocavam-lhe o horror à reclusão, às grades e ao isolamento, que manteve pelo resto da vida. Doía-lhe ver os pássaros e animais presos, engaiolados. Janice amava a liberdade. Aos dezesseis anos, era uma adolescente esguia, de grandes olhos azul-esverdeados, sonhadores, a voz quente e modulada de quem fala com emoção. De talhe esbelto, seu corpo já delineava formas de mulher, os seios ainda pequenos se pronunciavam sob o vestido que vestia, de tecido fino de palha de seda. O cabelo louro encaracolado voava solto pelas costas. Era uma bela garota. Freqüentava, com a família dos seus tios, festas e bailes da sociedade local, ali obtinha um grande êxito junto aos rapazes do seu convívio; alguns estavam enamorados dela, e naquele final de ano já recebera duas propostas de casamento. Rindo, ela recusara ambas. Disse que não tinha ainda aparecido o seu príncipe encantado. No revéillon do ano de 1940 conheceu Guilherme. Ele era um moço de 28 anos, alto, esbelto, de pele morena, queimada pelo sol, de compleição robusta.Tinha uma expressão altaneira que se revelava na cabeça sempre empinada, na vivacidade dos olhos castanhos e nos gestos incisivos. Narcisista e presunçoso considerava-se um homem bonito. Filho primogênito do abastado fazendeiro Lourenço de Castro Vasconcelos da região norteparanaense de Campina da Lagoa. 10 Naquele fim de ano visitava seus tios, Dorotéia e Nonato de Castro Vasconcelos, que residiam no sul do Estado. Seus tios eram moradores antigos da cidade de Palmeira do Sul e muito bem relacionados na sociedade local. Como sempre, eles foram convidados para o baile de comemoração da entrada do Ano Novo. O revéillon de gala do Clube do Comércio era uma festa tradicional que a sociedade palmeirense esperava sempre com ansiedade. Muitas senhoras e moças faziam vestidos especialmente para essa grande ocasião; os homens tiravam dos guarda-roupas seus melhores ternos pretos e smokings para arejá-los. Escolhiam as camisas e gravatas combinando. Deviam comparecer à festa muito elegantes. Guilherme iria na companhia do tio Nonato e dos primos para a festa. Eram oito horas da noite, e ele estava no quarto a arrumar-se para o baile. Havia tomado um prolongado banho morno de banheira e agora aspirava com delícia a fragrância do sabonete do Boticário, cujo aroma de lavanda evolava da sua pele. A luz fluorescente inundava o quarto duma claridade branca. À frente do espelho, de cuecas e de tronco nu, os pés metidos em chinelos, Guilherme pegou do armário o aparelho de gilete e com destreza passou no rosto, escanhoando a barba espessa, deixando um bigodinho fino, com retoques caprichados. Derramou na palma da mão uma loção após barba e passou vigorosamente no rosto. Gostava de perfumes, contanto que fossem importados legítimos. Começou a usar a fragrância Beverly Hills de Giorgio Armani, que tinha um aroma evocativo de amores clandestinos, em alcova na penumbra iluminada apenas com abajur a meia-luz. Sentou-se na beirada da cama e começou a calçar as meias pretas, de fio d´Escócia, e os sapatos novos de verniz preto. Apanhou a camisa branca, as calças e o paletó do 11 smoking e vestiu-as. Combinou a cor da gravata borboleta. Estava tudo impecável. Sabia que ia brilhar no baile daquela noite. Tinha certeza de que a sua chegada causaria sensação entre as moças da cidade. Já lhe haviam contado que as mães das jovens casadouras faziam apostas entre si, para adivinharem quem seria a felizarda escolhida pelo belo e rico filho do fazendeiro Lourenço de Castro Vasconcelos. – Você leva mais tempo que uma moça para se vestir – observou a tia Dorotéia – já são dez horas. Examinou minuciosamente Guilherme, mirou o sobrinho de alto a baixo, com olhar avaliador. – Vire-se – disse. Guilherme fez meia-volta. A tia aproximou-se dele e tirou-lhe do ombro um fio de cabelo, depois passou a mão de leve pela gola do smoking, alisando-o. – Agora está bem. Você está uma beleza. Pode ir com teus primos, eu e o tio iremos mais tarde – disse ela. O sobrinho tomou-lhe a mão e depositou um beijo de gratidão. Saiu assobiando uma música da moda. – Divirtam-se! Muito juízo! Deus os acompanhe! Irei mais tarde com Dorotéia – gritou o tio Nonato de dentro do escritório, onde procurava alguns papéis. Guilherme sorriu, parou diante do espelho no hall de entrada e ajeitou na cabeça o chapéu de feltro preto. Dirigiu-se para a porta, onde parou um instante para acender um cigarro. Pela porta aberta entrava o bafo morno da noite. Com uma sensação de felicidade e absoluto bemestar, satisfeito consigo mesmo e com o mundo, desceu os degraus e junto com os primos ganhou a calçada. Caminharam em passo rápido em direção ao Clube do Comércio. Os sapatos produziam na calçada um ruído de castanholas. – Linda noite, não? – gritou um conhecido. 12 – Linda para caçar corações – pensou Guilherme. Olhou para o alto. O céu estava coalhado de estrelas cintilantes. Andava no ar tépido um aroma de madressilvas e jasmins. Na Rua Quinze de Julho, muitas janelas estavam iluminadas e as calçadas apinhadas de gente. Sentia-se nas pessoas uma expectativa palpitante de festa. No salão do Clube reunia-se o que a cidade tinha de mais fino e representativo da sociedade local. Fora, em frente do edifício do clube, aglomeravam-se grupos de pessoas. Eram os que espiavam a festa; os que não iriam ao baile por qualquer razão. Os que desfrutavam de maiores privilégios eram os rapazes das famílias ricas, de fazendeiros, comerciantes e pessoas ilustres da localidade. Nos bailes do Clube do Comércio apareciam com freqüência caixeiros-viajantes, que gozavam entre as moças da terra de grande popularidade, por serem pessoas alegres, bem trajadas e bem-falantes, sempre com uma boa história ou uma piada na ponta da língua, sabiam animar uma festa e não havia ninguém como eles para inventar surpresas. Assim que adentrou o salão do clube, inexplicávelmente, Guilherme ficou ansioso e sua comoção era uma febre que lhe queimava o corpo, ao mesmo tempo lhe produzia calafrios. Seu pensamento andava às voltas na jovem dos seus sonhos. Ele a tinha visto na saída da missa de domingo. Apaixonou-se naquele instante por ela. – Quem seria aquela garota adolescente de cachos louros caindo pelo pescoço? Será que ela veio ao baile?– indagava-se, sonhador. Procurava-a com o olhar por entre as moças presentes, e teve a sua atenção despertada pela figura da jovem Janice. Era ela, sim, a adolescente que acordara nele aquele sentimento de expectativa e ansiedade. Avistou-a sentada à mesa com a família do comerciante Januário de Oliveira e da esposa Herminia, 13 conhecidos e amigos de seu tio. Fortemente impressionado não tirava os olhos da jovem. Fez o possível para chamar a sua atenção, não conseguindo, encaminhou-se para ela. Ia meio perturbado, consciente do fato de estar sendo alvo de muitas atenções dos presentes. Aproximou-se; pretendia disputar a primazia com outros rapazes para convidá-la a dançar. Janice parecia ter percebido que ele vinha ao seu encontro, pois desviara os olhos para o lado, enquanto seus dedos alisavam um cacho dos cabelos dourados. Guilherme dirigiu-se primeiro à tia: – Como está a senhora, Dona Hermínia? Sou Guilherme, filho de Lourenço e Perpétua de Castro Vasconcelos e sobrinho de Dorotéia e Nonato, seus conterrâneos e amigos – apresentou-se cortesmente. A esposa de Januário estendeu-lhe a mão e seu rosto iluminou-se num sorriso quando ele cortesmente depositou um beijo na sua mão. – Bem, e você Guilherme como vai? Muito prazer em revê-lo; já nos encontramos na saída da missa de domingo, você estava na companhia dos seus tios. – Como tem passado senhor Januário?– cumprimentou gentilmente. – Que bom que veio, fará companhia para nós. Aproveitando a oportunidade, apresento-lhe a minha sobrinha Janice. Guilherme voltou-se para ela. – É um grande prazer conhecê-la senhorita Janice, como vai? – inclinou-se numa mesura. A moça estendeu-lhe a mão. – Muito bem, obrigada - respondeu ao mesmo tempo em que retirava rápido a mão que ele apertava com força. Sem mais demora, Guilherme dirigiu-se a ela. 14 – A senhorita quer dar-me a honra de dançar comigo? – falou com a mais doce voz. Janice ergueu para ele os olhos meio alarmados. – Sim! com prazer – confirmou e sorriu, com faces afogueadas levantou-se da cadeira, deu dois passos para frente ajeitando o vestido de seda creme, de feitio singelo. Seus olhos de um azul-esverdeado evitavam o olhar apaixonado de Guilherme. De braços dados e em silêncio, ambos caminharam para o centro do salão. Ele tomou-lhe da mão, enlaçou-a pela cintura e começaram a rodopiar pelo recinto, onde outros pares já se achavam dançando. O conjunto tocava uma valsa. A delicadeza e a leveza daquele corpo que conduzia, a frágil suavidade daquela mão o encantavam, sentiu desejos de cantar, acompanhando a música que executavam. Estava eufórico e feliz. – Ela é linda – pensava ele – muito mais bela do que a imagem dela que eu guardei na memória... Não sei que tem essa carinha que tanto me atrai. Não são apenas as feições, mas também certo ar de inocência, de dignidade sem afetação. O porte não podia ser mais bem proporcionado: cintura fina, quadris curvilíneos e seios rijos apontando sob o vestido. Pequena e esbelta, frágil como um bibelô. Vou protegê-la, sim, fazê-la feliz, dar-lhe tudo que tenho: meu amor, meu nome, trabalharei por ela, tudo será dela. Cerrou os olhos e imaginou-a deitada a seu lado, a cabeça pousada em seu ombro, os cabelos louros recendendo a jasmim. Querida e amada Janice. Acompanhando os passos da dança, Guilherme voltou a cabeça para ela, e procurando ser gentil, iniciou uma conversa, que pensava ser interessante, sobre a fazenda e cavalos que criava, mas Janice não entendia nada sobre o assunto, ficou entediada, e deu graças quando a música silenciou por alguns instantes. 15 – Por que será que essa moça não me olha? Por que está tão distante? – intrigava-se ele. Guilherme segurava delicadamente os dedos de Janice, olhava-a de soslaio, via-lhe o perfil sereno, os lábios entreabertos como um botão de rosa. Houve um instante em que o olhar de Guilherme encontrou o da jovem, e ele ousou apertar-lhe os dedos com mais força. – Por favor, não aperte tanto a minha mão. – Desculpe – retrucou o rapaz, decepcionado. A música parou, os pares se dispersavam pelo salão. – Senhorita Janice, permite que lhe faça um pedido? – perguntou ao terminar a música. A moça voltou para ele os olhos azuis. – Que é? – Que me dê a honra de ser seu único par durante todo o baile? Por um instante a moça nada disse. Depois tornou a olhar para ele com ar de quem não havia compreendido. E antes que ela respondesse, Guilherme acrescentou: – Espero que isso não lhe traga nenhum transtorno. Um rubor cobria as faces da moça, que caminhava com os olhos postos no chão. – Pode ser? – perguntou ele. – Sim. Ela sacudiu a cabeça afirmativamente. – Por falar, você já pensou que dentro de alguns meses pode estar noiva e depois casada? – Não senhor, não pensei - respondeu ela categórica. Guilherme percebeu que a moça estava inquieta, olhando dum lado para o outro. – Onde está a mesa dos meus tios? Peço que me leve até eles – pediu e voltou-lhe as costas, saindo quase a correr na direção deles, quando os viu. – Espere um pouco. Já vamos para lá – disse ele. 16 Guilherme acompanhando Janice encaminhou-se para a mesa ocupada pela família de Januário, inclinou levemente a cabeça e balbuciou um agradecimento. – Sente-se conosco à mesa, meu jovem – convidou tio Januário e sorridente levantou da cadeira, estendeu a mão, abraçou-o e indicou-lhe o lugar ao lado da sobrinha. – Obrigado! Vou pedir uma garrafa de champanhe para comemorarmos a entrada do Ano Novo. Que o ano de 1940 seja muito feliz para todos nós – disse entusiasmado. Sentiu que estava emocionado. Sentado perto, não tirava os olhos de Janice, a qual, entretanto, lhe evitava o olhar. – Mas por que será que essa criatura não olha para mim? – indagava-se perplexo. E quando tornou a baixar a cabeça, surpreendeu a jovem a contemplá-lo. – Eu te amo! – murmurou ao seu ouvido – eu te amo com paixão! – repetiu em voz mais alta, com desejos de tomar a moça nos braços e beijá-la. Janice pareceu ficar em pânico. Olhou na direção da tia, como que em busca de socorro. Esta sorria plácidamente, recostada na cadeira. O tio Januário simpatizou logo com o rapaz, sondou o terreno entabulando uma conversa acerca da criação e negócios de gado, assunto que dominava com maestria. Dona Hermínia não parava de elogiar a desenvoltura e a inteligência do moço. Apressou-se em convidá-lo para fazer-lhes uma visita, fato que ele aceitou prontamente. O baile foi um sucesso. Na volta da festa, na companhia dos primos e do tio, Guilherme estava um tanto misterioso. Vinha cantarolando feliz da vida. –Tenho uma surpresa para lhes contar. Vou me casar ainda este ano, mas por enquanto é segredo. – Para que tanta pressa? – perguntou a tia Dorotéia. – Ora! Preciso ter minha mulher, meus filhos, meu lar. O tempo está passando... 17 – Mas tudo vem a seu tempo. – Sabe quem é ela, a minha noiva? – Ora! Não sei, você disse que é segredo! – Mas para a senhora eu vou dizer, ela è a moça mais bonita de Palmeira do Sul, Janice é o seu nome. Na primeira ocasião vou falar com o tio dela, que a criou – sabe, ela é órfã – confidenciou Guilherme. – Já falou com a moça? – Não. Mas tenho a certeza de que ela vai me dar o sim. Pelo menos os tios foram muito simpáticos comigo. – Você é muito presunçoso – comentou a tia rindo. – O homem não pode fugir ao seu destino, e o meu é a Janice como minha esposa – profetizou. Numa tarde de domingo Guilherme abalou-se no seu automóvel Mustang, esportivo, para a casa de Januário de Oliveira. Levou dois buquês de flores, orquídeas para dona Herminia e rosas vermelhas para Janice. Foi recebido com extrema gentileza pelo casal. Após os cumprimentos, conversa sobre o tempo e demais formalidades, Guilherme tratou de expor o seu propósito. Era de temperamento impulsivo e impaciente. Não podia mais perder tempo. Ardentemente desejava Janice para sua esposa, apesar da sua pouca idade. Resolveu falar com os tios que a criaram, naquele mesmo momento. Levantou-se da poltrona onde sentava, com o chapéu rodando na mão, amassando-o, nervoso, lançou de ímpeto, finalmente, as palavras: – Senhor Januário, Dona Herminia, talvez este não seja o momento oportuno, mas há tempo que desejo comunicar ao senhor e à senhora um fato importante que me diz respeito e à sua sobrinha. Fez uma pausa, um tanto perturbado. - Não farei rodeios, irei direto ao assunto. Apaixonei-me pela Janice à primeira vista, e minhas 18 intenções para com ela são as mais sérias. Estou com vinte e oito anos, tenho uma profissão e não é nenhum segredo que pertenço a uma família de posses. Pois bem, eu lhes peço que falem com sua sobrinha. Se ela corresponder à minha afeição, quero que o senhor me dê permissão para freqüentar a sua casa. – Já? Não é muito prematuro?- deixou escapar dona Hermínia. – E por que não? Creio que nós nos conhecemos o suficiente. Sou amigo do teu tio Nonato – comentou Januário - nós fazemos muito gosto, não é Hermínia? – É claro! Eu também aprovo – respondeu a tia. E assim, na sala de visitas da residência dos Vasconcelos, iluminada pela luz dum lampião a querosene, aqueles serões passavam depressa. A tia não se afastava da sala, ou quando o fazia mandava em seu lugar a filha ou o marido que conversava com a visita um pouco e depois se recolhia, pois era hábito seu ir para a cama antes das dez horas. Como sempre, ao ouvir o relógio cuco bater as primeiras badaladas das dez Guilherme despedia-se de Janice ali na sala, na presença da tia, num rápido aperto de mão. Dona Hermínia acompanhava-o até a porta. Naqueles dias Guilherme foi até a fazenda Marambaia pedir ao pai Lourenço licença para oficializar o noivado e marcar a data do casamento. Este deu a resposta positiva com um simples comentário: – Acho precipitado o pedido, pois faz muito pouco tempo que você freqüenta a casa da moça, mas em todo caso, você é maior de idade e sabe o que quer, eu aprovo, pois Janice e moça distinta e bem educada, e é sobrinha dum amigo meu. Você tem meu consentimento. Numa tarde de sábado Guilherme foi à casa da namorada. Recebido com muita simpatia pelo tio Januário, 19 encorajou-se em fazer o pedido. Seguro de si dirigiu-se à ele e à esposa : – Tenho o imenso prazer em pedir a mão de sua sobrinha Janice em casamento. Espero sinceramente que a concedam, estou perdidamente apaixonado por ela – falou de um fôlego. – Você falou com Janice a respeito de casamento? Ela te ama? – quis saber o tio, atônito diante da proposta. Peço-te algum tempo para refletir e consultar a sobrinha. – Eu ainda não falei nada com a moça, mas com certeza ela vai aceitar se vocês confirmarem – sugeriu esperançoso o pretendente. – O pedido será aceito pela nossa sobrinha, tenha certeza disso – apressou-se a garantir a tia. Seguiram-se freqüentes visitas do candidato à casa da jovem e o seu evidente amor por Janice deram motivo a primeira conversa séria entre os tios e a sobrinha criada como filha. Porém, o futuro de Janice provocou alguns desentendimentos entre o casal. A tia defendia Guilherme e dizia que não podia desejar nada melhor para a sobrinha. O tio argumentava que Janice não demonstrava nenhum interesse por ele, apesar de toda a família simpatizar e aprovar o rapaz. Numa tarde de domingo, na data prevista, o rapaz veio para confirmar a proposta com a namorada. O tio mandou chamar a jovem para a sala de estar onde se encontravam e interrogou-a: – Você aceita casar-se com Guilherme? Você o ama? – perguntou à sobrinha, na presença do futuro noivo. –Tio Januário, o senhor conhece a minha disposição afetiva a respeito deste ou de outro qualquer pretendente, mas se é do seu gosto e da tia Hermínia, eu me caso com Guilherme – respondeu humildemente. 20 O casamento foi confirmado pelos tios e, mesmo a contragosto, Janice ficara noiva de Guilherme. Marcada a data do enlace, Janice começou a experimentar a inquietação, o coração pulsava-lhe com violência e não era capaz de concentrar o pensamento. Foram grandes os receios que a moça teve, muitos questionamentos acerca do futuro, da vida sem graça e sem amor, que teria com o homem que não escolhera e não amava. Tudo foi arranjado rapidamente para a realização das bodas. A tia Hermínia autorizou, inclusive, ao pretendente, a dar andamento aos papéis que ela trataria da festa e de tudo que fosse necessário. Encomendou o vestido de noiva, a grinalda, e as flores. Comprou o enxoval conveniente. Esmerou-se nos preparativos; organizou uma bela recepção aos seus muitos convidados. Tudo sairia perfeito. No dia do casamento Janice parecia uma sonâmbula. Os olhos muito abertos, tremendo, insegura, sem chão, parecia-lhe que estava flutuando no ar, achando tudo tão estranho, impessoal, aquelas pessoas convencionais, subitamente deixava de reconhecê-las; seu tio, sua tia, as primas, a irmã, os avós, as amigas. Desejou com todas as forças que esse dia passasse rapidamente, que anoitecesse e que não amanhecesse nunca mais, nunca mais. Que tudo virasse uma única e imensa treva que haveria de engolir para sempre tudo e todos, como se nada jamais tivesse existido. Então por que aceitara esse casamento, por quê? Porque respondera “sim” ao padre no altar? O “sim” saiu num sopro, mas o fato consumou-se, também no cartório civil. Quando ela caiu em si, quando teve consciência do seu ato, desesperou-se. Ficou apavorada. Os seus amigos 21 vinham risonhos, abraçá-la e desejar felicidades. Sua irmã Adélia, consagrada como religiosa, chorara no seu ombro. - Alguém dizia – como você está pálida! Realmente estava pálida e tonta, desejava estar morta. Nunca teve tanta vontade de morrer. O noivo estava radiante, conversava alegremente com os convidados. – Mas afinal, o que é que você quer? Não está feliz? – perguntou a tia que a criara. Podia ficar calada ou, ter dado alguma desculpa. – O que eu tenho? – respondeu agressiva - a senhora ainda pergunta? Vocês me convenceram, pressionaram, vieram com aquela conversa de - ele é um homem bom, será um bom marido, é membro de família amiga, bem sucedido financeiramente. Pois bem, eu me casei, conforme o desejo de vocês, mesmo sem amá-lo, aceitei-o apenas pelo fato de simpatizar um pouco com ele. – Eu falei, sim, mas não a obriguei ninguém te obrigou - respondeu Herminia, com voz ríspida. – Dia e noite, todo mundo me cercando, insistindo, eu estava ficando maluca. Agora é que eu vi, que não devia ter feito isso, não devia ter obedecido e me casado com ele. Guilherme estava impaciente, seu desejo era ficar logo a sós com a noiva. Começaram as despedidas. Janice passava de braço em braço, era beijada na testa, nas faces, pelas tias, primas e amigas. Por fim veio o tio Januário, abraçou-a e teve uma crise de choro, súbita, e foi se embora, tapando o rosto com as mãos. A tia Hermínia, sorrindo, veio abraçá-la também. Em torno riam, conversavam, comentavam a festa que se prolongava até tarde da noite. Janice inquietava-se com o momento em que ficaria a sós com o marido. Sentia que aquela noite, em que eles se encontrariam, iria decidir-se o seu destino. Ela o pressentia, e não cessava de imaginá-lo. Ao pensar em Guilherme, uma 22 espécie de mal-estar a assaltava, não obstante ele ser um homem bonito, apresentar um caráter tranqüilo e bondoso, extremamente compreensivo (ou dissimulado?). Quando foi vestir a camisola do dia, branca com rendas, e se mirou no espelho, notou grande ansiedade estampada no seu semblante, mas se encontrava em pleno domínio de suas forças, coisa de que tanto precisava. Naquele momento percebeu que se tratava de sua felicidade, e estava na contingência de magoar o homem que dizia amá-la tanto, e que agora era seu marido. – Ofendê-lo de maneira cruel... E por quê? Porque era simpático, amável, porque lhe queria, porque estava enamorado dela? Mas não havia nada a fazer, era preciso, tinha de ser assim. – Meu Deus! – pensou – será possível que tenha de lhe dizer, eu mesma? Dizer que não o amo? Não! É impossível. Vou-me embora, simplesmente vou sumir. E já se aproximava da porta quando ouviu os passos de Guilherme no corredor. “Não, não seria certo. De que tenho medo? Aconteça o que acontecer, eu lhe direi a verdade”. Ao vê-lo aparecer, sorrindo, e fixando nela um olhar ardente, cheio de desejo, Janice fitou-o franca nos olhos. – Acho que cheguei cedo demais – disse Guilherme. – Oh, não pense assim – replicou a moça, sentandose na beirada da cama ao lado dele, de cabeça baixa, respirava com dificuldade. Levantou-se sem olhá-lo, para não perder a coragem. Despejou as palavras com ímpeto, sem refletir bem o que dizia. Um peso enorme lhe comprimia o coração. Nunca pensara que uma confissão tão absurda a abalasse tanto. – Perdoe-me, mas não posso e não quero entregarme a você! Seria um absurdo! Sei que agora sou sua esposa, 23 mas não o amo, fui obrigada a casar-me com você. Não pode aceitar uma mulher que não o ame como tens direito de ser amado. Deixe-me ir embora de sua vida. Por favor, deixe-me ir – suplicava. – Não esperava outra coisa de você – disse Guilherme sem a fitar – sei que é ingênua e inexperiente. Ignora tudo a respeito do amor e do relacionamento entre homem e mulher. Simplesmente você está com medo de enfrentar a vida de casada. Mas eu tenho muita paciência. Esperarei o tempo que for necessário. Afinal de contas, foi hoje que nos casamos. Nem pense em abandonar-me. O marido pacientemente retirou-se, trancou a porta do quarto levando a chave. – Guilherme! Não faça isso comigo, só vai piorar as coisas – reclamou Janice desesperada. Ouviu seus passos pelo corredor indo embora. Não voltou mais naquela noite para importuná-la. No dia seguinte de manhã, Guilherme veio chamá-la para o desjejum. Gracejou a respeito da noite de núpcias, tratou-a como se não tivesse acontecido nada de anormal. Conversou alegremente à mesa com a mãe, irmã, tios e demais comensais. – Querida, depois do café, arrume as nossas malas; providencie roupas para quinze dias, vamos viajar em luade-mel para o litoral – ordenou com voz calma. Ela arrumou tudo sem pressa, escolhia os vestidos, as blusas, saias e sapatos, para estar tudo de acordo. Pediu para dona Perpétua separar as roupas de Guilherme. Quando as malas estavam prontas e fechadas, tudo foi arrumado no automóvel. Depois das despedidas lacrimosas da família, o pai os levou até a estação ferroviária. Acomodaram-se na cabina especial do trem, que seguiu rumo à capital. 24 Viajaram a noite toda. Guilherme tentou conversar amavelmente, mas ela disse estar com muita dor de cabeça, queria descansar, tentaria dormir um pouco. O trem de ferro chegou de madrugada na estação da capital; em seguida foi feita a baldeação para os vagões da Litorina, que fazia a linha turística até Paranaguá. O amanhecer daquele dia estava esplêndido. A fímbria das montanhas da Serra do Mar se destacava do fundo azulado do céu. Do lado do nascente, os primeiros raios douravam o cimo das rochas, avermelhando-as. O sol despontava, fagueiro, por detrás das montanhas. Os raios eram suaves. A natureza despertava ressuscitada do langor da noite. Tudo era paz ao redor. A Litorina partiu às 6 horas da manhã. O trem sacolejava nos trilhos, assobiava nas curvas e túneis cavados na Serra do Mar. Majestoso, projetava-se contra o céu o pico Marumbi. Ouvia-se à distância o ribombar das águas da cascata Véu da Noiva que se lançavam de grande altura, formando névoa densa sobre o despenhadeiro. A ponte São João, de 113 m de comprimento e 58 m de altura, estendia-se sobre o precipício; paisagens fascinantes de vegetação, fendas e morros desfilavam diante dos olhos deslumbrados dos viajantes. A Litorina chegou à estação de Paranaguá ao meiodia. O casal em viagem de núpcias hospedou-se num hotel bastante simpático, pequeno, mas confortável, com vista para o mar. O marido, sentado ao lado, na cama, assobiava qualquer coisa. Ela deitou-se, pois estava cansada e com dor de cabeça. Não suportava aquele homem; nunca pensara que podia odiar tanto alguém. Mas Guilherme tinha paciência. Os dias foram preenchidos com passeios pelas praias, banhos de mar e jantares em restaurantes da moda. Ele era gentil com Janice, tratava-a com carinho, sabia 25 esperar pelo momento oportuno. Não impunha nada, não exigia nada. O dia certo iria chegar, evidentemente. O passeio já durava quinze dias, era tempo de voltar para casa.Desiludido, mas ainda assim, paciente, Guilherme marcou a data de retorno, que seria no outro dia pelo primeiro trem que subisse a serra, para a capital. Pernoitaram na cidade num hotel de luxo. Guilherme ofereceu a Janice todo o conforto, para agradá-la. À noite saíram para assistir a uma peça de teatro, de grande sucesso da temporada. De manhã, logo após o desjejum, alugou um automóvel para levá-los à fazenda Marambaia, propriedade de sua família, e que seria também a residência do casal. – O caminho é distante e a viagem será cansativa, chegaremos ao anoitecer, se tudo correr bem – comentou Guilherme a titulo de consolo – vamos passar próximo à sua cidade, mas não poderemos parar, pois meus pais nos esperam na fazenda, em nossa casa. Janice, conformada, assentiu com a cabeça. Estava absorvida olhando pela janela do automóvel. A paisagem ia passando, e logo avistou, à beira da estrada, as casas da pequena cidade do interior onde nascera e vivera até tornarse adulta, depois desfilaram os campos verdes com o gado pastando. Seguiram-se as plantações de trigo ondulando ao vento, capoeiras, morros e pinheirais. Ao longe se esboçavam os contornos da Serra da Esperança. O sol despontou no horizonte surgindo detrás da colina, e por momentos, escondeu-se detrás da neblina que pairava sobre o Rio dos Patos. Guilherme era um cavalheiro, gentil e atencioso, ia calado ao seu lado, olhando a paisagem que passava. Até agora, ele não tentara nada, nem uma carícia, nem um beijo. Parecia, inclusive, esquecido da sua presença, ignorava-a. 26 – Ah, meu Deus, se esse homem tentar dar-me um beijo, eu não sei o que faço! Mas estou casada, estou casada! – era o que ela pensava, chegando-se mais para o canto do assento do automóvel. Não queria ter nenhum contato com o marido; teve vontade de jogar-se do automóvel que corria veloz. O que clamava em todo o seu ser, era a vontade de fugir. Fugir do marido, do casamento, daquela desconhecida casa na fazenda para onde ele a levava. – Posso beijá-la?- sussurrou o marido ao seu ouvido. Janice teve um gesto de defesa; arrepiou-se até a medula dos seus ossos. – Não! – gritou, e logo emendou – agora, não! Por favor, não! Depois... Houve um silêncio inquietante. - “Meu Deus! eu sempre quis amar e ser amada, sempre, mas não assim. Sempre quis ter um namorado, um noivo, um marido. E casei-me por imposição dos tios, com um estranho, um homem que não conhecia e não amava”. De repente, ele começou a conversar, falando da sua casa, de coisas banais que, entretanto, horrorizavam a moça; que, ouvindo-o até o som de sua voz a irritava. A voz dele era pobre de inflexões, tinha um tom que lembravam batidas de martelo em madeira, lhe fazia mal aos nervos, era praticamente uma tortura física. – Você vai gostar da nossa fazenda – dizia o pobre diabo. – Passearemos pelos bosques, descansaremos sob a sombra das mangueiras, e se você quiser podemos tomar banho de cachoeira, ou pescar na Lagoa Dourada. – O que você disse? – perguntou com irritação. Tinha ouvido muito bem. – Não quer conversar agora? Talvez esteja cansada. – Tenho uma dor de cabeça horrível – disse. Vou ficar calada, fingir que adormeci. Fechou os olhos. 27 Seu rosto tornava-se sombrio, sentia uma determinação feroz de negar qualquer caricia, mas ele podia querer usar a força, já concebia uma cena de violência. Então teve vontade de chorar, uma necessidade de dar vazão aquele ódio concentrado, em lágrimas abundantes. Não tinha ninguém a quem apelar; não podia esperar socorro de espécie alguma. O seu destino estava traçado, estava viajando de encontro a uma vida desconhecida, no meio de estranhos. À margem da estrada por onde trafegavam, surgiam povoados com casas esparsas, à direita e à esquerda, casas pequenas, construídas de madeira, cercadas de ripas, com hortas verdejantes ao lado. Aqui e ali um riacho de águas cristalinas corria pelo meio do capinzal. Em toda parte viam-se grupos de árvores de várias espécies. Havia grandes plantações de eucaliptos e outras também vastas de pinus strobus e pinus heliotis. Imbuias e pinheiros nativos despontavam as copadas acima da mata, apareciam também gameleiras na periferia da floresta. Os delgados eucaliptos estavam povoados de periquitos verdes que faziam uma algazarra enorme, palrando, disputando, até parecia uma reunião de políticos; papagaios assobiavam suas imitações de melodias; dois sabiás pulavam de galho em galho, namorando, o macho cortejando à fêmea. Araras de crista vermelha e peito amarelo, equilibrando-se nos galhos da árvore, com a cabeça inclinada para o lado, confabulavam entre si. Enchia o ar o zumbido das abelhas colhendo o mel das flores; brilhantes e ligeiras libélulas esvoaçavam procurando a água do pântano, ao lado de borboletas lindamente coloridas, azuis e amarelas, e mariposas diurnas. Mais adiante um tamanduá-bandeira interrompeu sua busca de formigas, tomado de pânico com aproximação do automóvel. 28 Um ouriço escavava a terra tão depressa que suas robustas patas providas de garras sumiram em poucos segundos, ele começou a desaparecer debaixo de um tronco imenso. Fazia trejeitos divertidos enquanto cavava, e os espinhos eriçados se lhe achatavam ao longo do corpo a fim de lhe facilitar a entrada debaixo do solo, ao passo que a terra voava de todos os lados. Entardecia... Os últimos raios do sol poente aclaravam vastas e majestosas extensões de cafeeiros alinhados em fileiras a perder de vista. As folhas das árvores lampejavam de repente como pontas de fogo quando o vento sacudia os galhos, e grandes abismos de sombras se espalhava debaixo dos cafeeiros, tão misterioso como o mundo subterrâneo. Os sons que se ouviam eram apenas do vento quente nos cafezais, sibilando entre as folhas verde escuras, e um pássaro sonolento e próximo reclamando porque lhe haviam perturbado o repouso; o único cheiro era o aroma fragrante e indefinível da mata nativa. À distância desenhava-se uma parede da floresta de araucárias. Nos campos a perder de vista, floriam em tufos brancos os assa-peixes. Ao lado da estrada, por entre a relva, desabrochavam os primeiros lírios-do-campo. Pendidos para o ribeirão, quase roçando as águas, abriam-se em flores brancas e vermelhas, os galhos dos ingazeiros. O caminho que demandava à Fazenda Marambaia, não lhe trazia lembranças. A última porteira surgiu depois de uma touceira de açoita-cavalo e de um capão de bracatinga. O automóvel parou, com o motor funcionando. O homem apeou do carro, caminhou até o mourão de madeira, destravou e abriu a porteira puxando-a com impaciência. Logo após a curva da estrada apareceu a grande casa da fazenda. Construída de pedras e tijolos, a residência 29 tinha dois pavimentos, com grandes janelas de vidraças e cortinas de voil branco de algodão, esvoaçando ao vento. Tinha uma ampla varanda à volta de todo pavimento inferior. Junto ao muro, que cercava a casa, uma acácia de cachos floridos recendia em pólens amarelos. O sopro da brisa chovia flores sobre o chão, como um tapete dourado. Era outono, e a trepadeira glicínia, de cachos de flores de cor lilás claro, plantada pelo avô de Guilherme, há oitenta anos, era uma sólida massa de ramos e folhas subindo desordenadamente pelas paredes externas e pelo teto da varanda. Janice olhava a casa, estava apavorada com o seu novo lar desconhecido. Era lá que ia viver com esse homem, para ela um estranho. – “Vou ter que aturar a vida inteira um homem que mal conheço, vai viver comigo, vai mandar em mim.” E sempre seria um desconhecido... Sempre, pois não o amava. Ela sempre teria horror dele e nunca poderia suportá-lo. - “Um dia talvez eu encontre um grande amor. Como será ele, meu Deus? Será que vai corresponder aos meus anseios?”. Era mulher e frágil por ser carente de afeição, a sua vontade posta à prova talvez não resistisse a um amor que surgisse na sua vida, que fatalmente surgiria, mais dia menos dia, era inevitável, e ela o esperava ansiosamente, sonhando com seu primeiro beijo de amor. Enquanto Guilherme estacionava o automóvel e juntos atravessavam o gramado, caminhando em direção a casa, uma jovem bonita esperava na varanda da frente, com sorriso nos lábios finos. – Bom dia, querida irmã, como vê trago a minha esposa Janice para conhecer a casa – disse ele. – Oh, como é bom vê-los de novo – exclamou Adelaide radiante. 30 No vestíbulo, com o piso de granito escuro e a grande escada de corrimão de imbuia torneada, ele esperou que a mãe viesse recebê-los. Perpétua estava sentada na cadeira de jacarandá lavrado, de respaldo alto, o assento forrado de veludo carmesim, colocada próximo a uma janela aberta que dava para o pátio interno. Tinha as mãos pousadas no regaço, e em seus olhos havia uma expressão de indiferença, parecia não notar a chegada da visita. Seu cabelo escuro, semeado de fios encanecidos, estava preso num coque e emoldurava-lhe o rosto de feições severas. As rugas finas marcavam-lhe o semblante e pés de galinha em volta dos olhos escuros acentuavam ainda mais a dureza da expressão. Aparentava ter uns sessenta anos. Com o olhar triste, perdido no vazio, no início, repentinamente tornou-se risonho ao ver o filho. Levantouse da cadeira para abraçá-lo. – Guilherme! Meu filho querido, finalmente você voltou, tive muitas saudades. Agora vai ficar morando definitivamente conosco, na casa que também lhe pertence? – Sim! Eu e Janice minha esposa, vamos morar aqui, mamãe. – Sejam bem-vindos – disse a mãe. Abraçaram-se afetuosamente. Dona Perpétua não deu grande atenção a Janice, apenas cumprimentou-a amavelmente. Assim começou a convivência morna entre a sogra e a nora. Adelaide, chamou a criada e o mordomo para levar as malas ao quarto. Precedendo-os, tomou a cunhada pelo braço e conduziu-a pelo longo corredor até as dependências destinadas ao casal. Rindo, perguntou-lhe a respeito da viagem de núpcias. – Conte-me tudo, sem omitir nada! – insistia. – Não seja tão curiosa – falou envergonhada Janice, jamais confessaria à cunhada que não aconteceu nada entre ela e Guilherme, não teve lua-de-mel, porque ela não quis, 31 pois não o amava. Ele seria ultrajado e humilhado aos olhos da irmã, e nem ela nem ele mereciam isso. Cochichando e rindo as duas se envolveram em confidências, surgiu então uma grande amizade entre elas. O sol ocultou-se atrás das montanhas e as sombras da noite invadiram os corredores do casarão. Nesse momento Adelaide, o irmão e a esposa, estavam reunidos no quarto de dormir do casal e conversavam cordialmente. Guilherme alegremente, contava as peripécias da viagem. Depois do jantar, não querendo ser indelicado ou forçar a situação entre ele e a mulher, deixou-a bem à vontade. – Minha querida, você deve estar cansada, vá tomar seu banho, deite-se e descanse bem. Amanhã você pode locomover-se livremente pela fazenda. Vá para onde quiser, mais prático e seguro será se você for a cavalo, então terá a oportunidade de conhecer melhor a nossa vasta propriedade, eu não poderei acompanhá-la no passeio, pois devo reassumir, sem demora, o meu trabalho de administrar a nossa fazenda – justificou-se. Acatando a sugestão do marido, no outro dia à tarde, Janice saiu a passeio galopando tranqüilamente pelos pastos e sem perceber distanciou-se bastante da sede da fazenda, passou a meio galope, em seguida freiou o cavalo, apeou-se debaixo do frondoso ipê, florido, em cuja sombra atapetada por flores amarelas deitou-se para descansar. Em volta do córrego sussurrante pendiam das barrancas, espalhados, os galhos muito verdes das avencas. Ouvia-se o canto dos pássaros. Na vegetação a seiva corria, aos jorros, rebentando em flores. Os grilos cantavam escondidos no meio da folhagem dos arbustos. Um bando de maritacas verdes, de chilrear estridente, revoluteava no céu procurando o abrigo para a noite, e numa curva caprichada deitou por sobre as copas das árvores de um capão próximo. Alvoroçadas, 32 disputavam entre si o melhor lugar nos galhos e ramagens das frondosas árvores. De um lado e do outro da estrada aprumava-se a floresta de palmeiras esguias, elegantes, com a folhagem brilhante lavada pela chuva da véspera, palmeiras-juçara cujo palmito foi o alimento predileto do indígena. Ao passar pela mata, ouviu o ronco de um caititu levantando do lamaçal e fugindo barulhento, pelo matagal adentro. Pelas pastagens, cupins erguiam torres ferrugentas que se assemelhavam à arranha-céus em miniatura; exércitos ordenados de formigas saúvas, cortadeiras, corriam em fila carregando folhas, e desapareciam como água por buracos feitos no chão. Nessa região a vida alada era tão rica e variada que as espécies que se apresentavam pareciam não ter fim; viam-se papagaios palradores de asas escarlates, grandes araras azuis, outras com a plumagem totalmente da cor da púrpura, graciosos e minúsculos colibris de bicos compridos que revoluteavam ao redor de cálices de flores, sugando o néctar, tucanos de peito amarelo e bico enorme revoavam de galho em galho e pica-paus batiam na casca das árvores à procura de larvas. E os insetos! Cigarras, grilos, abelhas, moscas de todos os tamanhos e espécies, libélulas, mariposas enormes e miriades de borboletas de todas as cores. Aranhas estendiam a teia suspensa entre um galho e outro, algumas se embalavam em densos berços de fios prateados, presos entre hastes de capim gigante. Pela imensidão das pastagens onde o gado pastava, havia lagartos de papo amarelo espreguiçando-se a sombra ou espreitando uma ave para o repasto. As cobras deslizavam silenciosamente pelo solo, atrás da caça. Saídos da floresta vizinha apareciam porcos selvagens em manadas, bravos, de presas salientes, atacavam valentes, 33 quem se aproximasse. No silêncio tilintavam os guizos de um rebanho de cabras no pastoreio. A vida fervilhava nessas redondezas, no grande afã da luta pela sobrevivência; nos meses de temperaturas elevadas do verão, época da procriação, a competição se tornava maior. Havia rivalidades entre os machos na disputa pelas fêmeas, lutas às vezes violentas e mortais. Janice ficou ali, deitada na sombra, olhando sem ver, divagando, sem notar o correr das horas, a sentir a impressionante quietude da mata. Um silêncio pontilhado de pios, murmúrios, cicios, crepitações, sussurros, marulhos, mas apesar de tudo isso, sempre e cada vez mais profundamente, silêncio. Quando percebeu já o sol estava declinando no horizonte. Atemorizada, montou o cavalo, que estava pastando tranqüilamente, cavalgou ligeiro, partindo a trote largo rumo à fazenda. Encontrava-se longe de casa, no campo, quando estourou a tempestade. Assustada, apeou do cavalo, amarrou o animal, bem amarrado, a uma gameleira, e sentou-se debaixo para esperar a chuva passar. Deixou o seu olhar vagar, admirar esse evento fantástico da natureza. Ela gostava de modo especial da emanação que se erguia da terra quando sobre ela caiam as primeiras gotas de chuva. Sentir o vento forte, úmido, lamber seu rosto e o cheiro bom de terra molhada que se levantava no ar. Extasiava-se diante da tempestade. Ficava fascinada ao ver os campos alisados pelo pente dos temporais, o rolar das nuvens negras carregadas de eletricidade, o ribombar dos trovões, os raios explodindo ao longe riscando o céu com sua luz de fogo. Durante o verão quente, despojada da umidade a secura da terra e a do ar esfregava-se uma na outra, ásperas e crepitantes num atrito irritante que aumentava, cada vez mais, até poder terminar numa dissipação gigantesca de 34 energia acumulada. O tempo seco prejudicou a grama e tostou o capim colonião, que atingia o joelho das pessoas. Naquela tarde, o céu apresentava um aspecto tenebroso, parecia cair, e ficou tão escuro que as pessoas se viram obrigadas a acender as luzes dentro de casa; fora nos pastos os animais estremeciam e saltavam ao menor ruído; as galinhas procuravam seus poleiros e escondiam as cabeças nas penas do peito; os cães rosnavam e brigavam por nada; os porcos enfiavam os focinhos no barro e espiavam através dele com olhinhos assustados, roncavam agredindo-se mutuamente. Forças sombrias encerradas nos céus punham medo nos ossos de todos os seres vivos, enquanto vastas nuvens profundas engoliam o sol e preparavam-se para vomitar torrentes de água sobre a terra. O trovão veio rolando de muito longe, cada vez mais rápido, fortes lampejos no horizonte davam nítido relevo à floresta, que se vergava até o chão. O vento que rugia lúgubre açoitava e quebrava os galhos das árvores, arrancava os telhados das casas, fazendo-os girar, jogando-os ao chão, rodando e empurrando, sacudindo, levava-os para longe. Homem nenhum teria deixado de pular nervoso quando o trovão estalava e explodia com o fragor e a fúria de um mundo que parecia desintegrar-se. Grandes relâmpagos riscavam o céu como veias de fogo e raios pipocavam. Nuvens turbilhonaram negras, pelo céu, rasgadas em frangalhos, carregadas de granizo, empurradas pelo vento. Repentinamente um brilho fantástico, sobrenatural, tomou conta do ar, o céu abriu as comportas e desabou a chuva torrencial; não foi uma chuva mansa, mas um dilúvio atroador, que parecia não acabar mais. Ensopada pela chuva, tremendo de frio e de terror, Janice lembrou-se que naquele dia, ao passear pelo campo, 35 viu não longe dali, uma cabana feita de troncos, coberta de telhas de barro, que servia de apoio aos caçadores. Resolveu apressar o passo, depois saiu correndo para proteger-se do temporal que desabava. Encontrando a porta fechada, empurrou-a com força, abrindo-a por inteiro. Ao adentrar no cômodo ela estacou na soleira, olhando perplexa o homem que estava ali, nu, como tinha vindo ao mundo. A cabana estava ocupada por um viajante que, em trânsito pela região, refugiou-se da intempérie. Ele tinha acendido o fogo com gravetos e grimpas de pinheiro e naquele momento colocava a roupa encharcada de água para secar. Em seguida, completamente despido, saiu pela porta da frente para o gramado, os braços erguidos acima da cabeça, os olhos fechados, num delírio voluptuoso, deixou que a chuva caísse sobre ele, em duchas quentes, penetrantes; desfrutava a deliciosa sensação na pele nua fustigada pelo vento. Seu membro viril estava rígido e em ereção. Depois de usufruir do banho ocasional, entrou na cabana assobiando baixinho. E, sem nenhum constrangimento, começou a vestirse, com a roupa ainda úmida. Vestiu a sunga, a calça e a camisa, depois calçou as botas. Penteou os negros cabelos. Alcançou uma xícara da prateleira, na qual despejou o café fumegante que naquele instante tinha coado, colocou açúcar e ofereceu a Janice. – Desculpe-me pela original apresentação, mas eu não esperava que alguém aparecesse por aqui, com uma chuva torrencial como essa. Deixe apresentar-me, sou Adriano Silveira Dorsay, caixeiro-viajante, representante de firmas de São Paulo, do ramo de produtos veterinários, em visita a fazendeiros da região. Procurei abrigo do rigor da tempestade que se aproximava, encontrei essa cabana desabitada, instalei-me aqui até que o tempo melhore. 36 Janice aceitou o café contrafeita, e embaraçada sentou-se na ponta do velho sofá, para degustá-lo. Olhando para Adriano com olhar reprovador, comentou: – Você é um debochado, senhor Dorsay. Isso são modos de se apresentar à dona da fazenda? Que despudor! Sou Janice, esposa de Guilherme de Castro Vasconcelos, proprietário destas terras. Juro que jamais vi um homem mais atrevido e insolente, no entanto, o mais belo, que você. Todo seu corpo é assim moreno jambo, queimado pelo sol?Você é um desportista, ou um fauno dos bosques? – Ora, é só você conferir, senhora de Castro – respondeu ele rindo e olhando-a despudoramente. Um sorriso lascivo dançou na sua boca. Quando seus olhos se fitaram foi como uma explosão. Uma corrente elétrica atravessou-lhes o corpo desde os dedos dos pés à raiz dos cabelos. A magia dos olhos os hipnotizava, na maneira como se olhavam. Adriano sentou-se no sofá perto dela e inclinou a cabeça para frente, a boca tocando o cabelo dela, enquanto as mãos tiravam as botas, a camisa, a calça e a sunga; quando esta caiu ao chão, empurrou-a com o pé, levantouse e ali ficou, nu, belo como uma estátua grega, enquanto ela se erguia e dava uma volta completa em redor dele, devagar, olhando, admirando. – “Diante de um espetáculo assim, tão magnífico, nós mulheres não somos nada, ele não pede licença para nada. Quando quiser beijar, possuir, ah, quem é que pode resistir? Pega à força beija e subjuga”. – Raciocinava ela. - Aquela perturbação, só a emoção que sentia já era um pecado – pensava ela . Era casada, embora não amasse seu marido, não tinha direito de desejar e se emocionar tanto com um homem que não era seu esposo. Talvez nenhum ser humano esteja em condições de julgar o que é pior; se o desejo incipiente e a inquietude e a 37 irritabilidade dele decorrentes, se o desejo específico, e o seu impulso voluntário de satisfazê-lo. Ela desejava, embora não soubesse bem o quê, mas o impulso básico lá estava e arrastava-a inexoravelmente na direção de Adriano. E ela ansiava por ele, queria-o. – Bem você é jovem ainda para ter conhecimento das coisas boas do mundo, mas tem de aprender, se é que seu marido ainda não lhe ensinou; parece ser função minha ensinar-lhe, não lhe parece minha bela fazendeira? Janice com os dedos trêmulos, desabotoou a blusa molhada e tirou-a. Despiu o culote de montaria, as peças íntimas e as botas de cano alto, encharcadas de chuva. Ficara completamente nua. Seus lábios tremiam. Ao vê-la assim exposta e linda, exacerbou o desejo de Adriano a ponto de querer possui-la ali mesmo, no chão da choupana. Ela escorregou do sofá e aninhou-se nos braços dele, encostou a cabeça no seu peito, enquanto as palmas das suas mãos subiam e desciam por todo o corpo, com uma sensualidade deliberada que o atordoava cada vez mais. O ardor do primeiro beijo. Ela não sabia como era um beijo apaixonado, entregou-se a ele até desmaiar de emoção. Fascinado, ele pôs a mão debaixo do queixo dela, puxou lhe a cabeça para cima até que ela olhou para ele, encontrou-lhe a boca, forçou-a a abri-la, querendo mais e mais beijos dos lábios ardentes, entreabertos. Então, os braços dela deslizaram por baixo dos seus braços e foram juntar-se nas suas costas; ficaram como serpentes enroladas, apertadas em torno do corpo, estrangulando-o. Sobre o chão, aspirando o aroma da terra molhada, à luz difusa dos relâmpagos coados pelas frestas do casebre, rolaram pelo piso do casebre, beijando-se inteiros, endoidecidos pela paixão e desejo. Amaram-se a noite toda, indiferentes a tudo. Lá fora o vento rugia e o céu despejava torrentes de água. 38 Ao amanhecer tudo serenou, a chuva parou e o vento amainou, e quando a luz ainda pálida da lua aclarava vastas e majestosas extensões de mata, a relva do campo tremeluzia e se agitava com a aragem branda qual suspiro comovente; eles saíram da cabana, abraçados, ainda aos beijos. Levantando a cabeça, ela tentou em vão contar as estrelas; delicadas como gotas de orvalho que luziam e sumiam, luziam, sumiam, num ritmo eterno e infinito. Os únicos sons eram o vento quente no capim, as árvores que sibilavam, e um pássaro sonolento reclamando porque lhe haviam perturbado o sono; o único cheiro era o aroma fragrante e indefinível dos campos. - Você é natural daqui?– perguntou Adriano. - Não, nasci no sul do Estado. Vim para cá recentemente, depois de casada - respondeu Janice distraída. – Passamos a noite em claro e você continua linda, não parece estar cansada. Está feliz? – Oh, sim! Sinto-me imensamente feliz; como lhe falei, foi minha verdadeira e primeira noite de amor. – Pois eu gostaria de repetir esta noite, muitas e muitas vezes. Vou contar os minutos para o nosso próximo encontro. Sabe o que penso? Que você e eu somos um par de imãs feitos com um metal único.Eu fui irresistivelmente atraído por você – comentou ele. – Não posso mentir quanto ao fato de querer vê-lo mais, muitas outras vezes – disse ela – mas lembre-se que sou casada, e tenho um marido ciumento e possessivo. Devemos guardar maior sigilo. Na sua presença nós não nos conhecemos. Agora preciso ir embora. À beira da estrada, próximo à gameleira, havia uma cerca de arame farpado segura por mourões de cerne de madeira, onde Janice amarrara o cavalo. Caminharam pela relva, ainda molhada pela chuva, Adriano segurando-a pelo 39 braço para que não tropeçasse; ajudou-a a montar alçando o seu corpo com delicadeza. Despediram-se com um beijo. Adriano escalou com a máxima ligeireza o morro e começou a afastar-se lentamente, caminhava ao longo de uma trilha guarnecida de pés de laranjeiras que corria em ziguezague em volta da colina. Seu cavalo pastava tranqüilamente em cima do morro, amarrado a uma árvore. Os olhares de Janice e Adriano cruzaram-se mais uma vez, afirmando uma dor muda e pungente de saudade. Tinha sido muito forte a experiência que acabavam de viver. Era em vão que tentavam reagir contra a ansiedade que os dominava. Estavam tomados por uma paixão que os arrastava aos abismos. Janice não conseguia sufocar os soluços, e duas grossas lágrimas rolaram da sua face. – Dir-se-ia que vou morrer tão violenta é a angústia que estou sentindo – pensava desolada. Ela chegou à fazenda com um ar esquisito, vestígios de sonho nos olhos, um vago espanto e tristeza no rosto. Todo mundo estava na varanda esperando-a. Guilherme aguardava-a ansioso. A sogra ostentava nos lábios um sorriso falso. Apenas a Adelaide correu para ajudá-la apear do cavalo. – Querida! O que foi que aconteceu? A tempestade te pegou? Onde você pernoitou? Foi grande o meu susto ao chegar em casa, de madrugada, e não a encontrar. Você está bem? – o marido confuso com perguntas, atropelava a ordem dos fatos. – Agora está tudo bem, felizmente estou em casa e ao teu lado. Fui obrigada a me abrigar na cabana de caça, para me proteger do temporal. Fiquei com muito medo que a choupana desabasse com a ventania que abalou a redondeza. Mas tudo já passou. Como vê, estou sã e salva. Guilherme estendeu o braço envolveu-a e puxou-a para junto de si. 40 – Você está tremendo de frio, acho melhor entrarmos em casa; você vai tomar um bom banho, para se esquentar e descansar. Mandarei servir o desjejum para nos dois, no nosso quarto. Percorreram um longo corredor em direção às acomodações do casal. Dona Perpétua acompanhou-os com olhar cheio de ciúmes e inveja. Janice sentiu uma mudança no marido, uma diferença no braço que lhe passeava carinhosamente pelas costas. Mas era gostoso apoiar-se num homem cheio de vitalidade, sentir o calor que se irradiava dele, os contornos atléticos do seu corpo. Mesmo através da sua camisa grossa de lã, tinha consciência da mão dele, que agora se movia em pequenos círculos acariciantes. Ela não amava o marido, mas era jovem e anelava por saborear devidamente o amor, agora que experimentara as delicias do prazer carnal e, portanto, em princípio, por que não descobrir como eram os seus beijos? Tomando-lhe o silêncio como consentimento, Guilherme pôs a outra mão no ombro dela, virou-a para que ela o encarasse, e inclinou a cabeça. Colou os lábios nos lábios dela e comprimiu-os. Ela estremeceu de prazer e seu corpo juntou-se ao dele, embora seu pensamento estivesse longe. Guilherme era experiente em matéria de sexo – homem vivido, mas Janice não conhecia nada, pois até a véspera daquele dia era virgem. Ele encontrara um ponto sensível em seu pescoço e comprimiu-o com a boca. As mãos dela envolveram-no. Os lábios dele lhe deslizaram pela garganta abaixo e, com as mãos ele tirou-lhe a roupa e levou-a para a cama nos braços. As molas da cama rangeram com o peso dos dois corpos. Janice sentiu a pele quente do marido em contato com a sua e deu um pulo. Ele virou-se de lado, aninhou-a 41 entre os braços e beijou-a. A princípio, ela permaneceu passiva, tentando não pensar em nada, mas depois, começou a lutar para libertar-se, não querendo ser beijada, não mais desejando Guilherme. Mas ele subjugou-a com beijos, carícias, excitandolhe a libido. Então, o braço dela procurou-lhe o pescoço, seus dedos, que tremiam, enfiaram-se-lhe no cabelo, a palma da sua outra mão descansou na pele macia e morena. Sem largar-lhe a cabeça, ele beijou-lhe as faces, os olhos cerrados, a testa, e voltou à boca porque era tão ardente, entontecedora. Com o rosto enterrado entre o pescoço e o ombro dela, passou as pontas dos dedos pelas costas nuas, sentiu–lhe o arrepio e os bicos dos seios enrijecerem. As mãos de Guilherme apertaram-lhe as costas com um prazer agoniado. Ela percebeu que ele não estava pensando nela, enquanto deitava-se em cima dela, erguera os quadris e tateava-a com uma das mãos, e quando ele a penetrou, sua garganta expeliu um grito doloroso, mas apesar da dor, era como um afogar-se, um afundar cada vez mais, e arquejante o desejo tomou conta do seu corpo liberando o clímax numa torrente súbita, no momento exato em que ele gemeu e estremeceu atingindo o orgasmo. Saciado, ele depositou um beijo de amor e gratidão na sua boca e ficou inteiramente imóvel a não ser pelo arfar da respiração. Virou-se para o lado e adormeceu, caiu num sono profundo. Um justo repouso do guerreiro. Janice, deitada na cama ao lado dele, pensativa, olhava para o teto, e parou a vista no suave halo circular que a lâmpada projetava no forro, sem querer, fazia comparações entre o beijo do marido e de Adriano. Uma coisa, ao menos, estava provada, que nada havia nos beijos de Guilherme que lhe lembrassem os beijos ardentes de Adriano, que a elevavam aos céus. Não havia a mínima semelhança. Eram completamente 42 diferentes. Adriano era um desses homens de sonhos, quase inexistentes, que vieram ao mundo com o dom de amar e serem amados. Enquanto Guilherme a beijava, ela reconhecia em desespero: – “Eu amo Adriano, não posso negar, somos duas almas gêmeas que finalmente se encontraram”. *** Um fato que seria corriqueiro no dia-a-dia de qualquer um, veio transtornar a vida do fazendeiro Guilherme de Castro Vasconcelos, homem de caráter peculiar. Num certo dia de verão, o caixeiro-viajante Adriano Silveira Dorsay parou em frente à residência de Guilherme na Fazenda Marambaia. Veio fazer-lhe uma visita de cortesia e talvez vender alguns produtos veterinários para gado. Não o encontrando em casa, tinha viajado a negócios naquele dia de manhã, pediu ao empregado, para falar com a esposa dele. Adiantando-se a Janice, curiosas, atenderam prontamente a porta, a mãe Dona Perpétua e a senhorita Adelaide, irmã de Guilherme. – Qual das duas é a esposa do fazendeiro senhor de Castro? Gostaria de falar com ela, deixar um recado ao seu marido – explicou o viajante, pretendendo com esse ardil ter um encontro com ela. – Nenhuma das duas, eu sou irmã e essa é a mãe dele – informou Adelaide – vou chamar a esposa de Guilherme, o senhor aguarde aqui, desculpe, não vou convidá-lo para entrar porque estamos só nós, mulheres, em casa. As duas desapareceram no interior da casa. Minutos depois veio Janice. – Pelo amor de Deus! O que você está fazendo aqui? Está louco? – recriminou em voz baixa, surpresa. 43 – Ora! Vim ver você, estou morrendo de saudades! Vamos combinar um encontro hoje à noite, em baixo da grande figueira, na estrada que vai ao cafezal, esperarei ansioso por seus beijos – sussurrou Adriano. Ela não ouviu o bom senso, vacilou... Não resistiu... Foi correndo ao seu encontro. Cheia de coragem, quando a noite ia adiantada, e era hora em que legiões de fantasmas andavam pelos corredores dos casarões abandonados, levantou-se da cama sem fazer barulho, sem pensar nas conseqüências, silenciosamente, igual a uma assombração, saiu caminhando em direção à rua. A noite estava escura, uma neblina cobria tudo, as árvores do pomar eram apenas sombras indefinidas, e o chão molhado e escorregadio. Ao percebê-la, um dos cães da casa rosnou, ameaçou ladrar, ela silenciou-o passando a mão pela sua cabeça. O animal farejou-a, lambeu seu braço e voltou para o lugar onde dormia. O coração batendo acelerado dentro do peito, tremendo, assustada, ela tomou o caminho que levava até a árvore indicada por ele. Janice viu-o entre as sombras que os galhos frondosos projetavam no chão. Com o sorriso de alegria desenhado em sua boca, Adriano aproximou-se da mulher. Seus braços estenderam-se em torno do seu corpo numa paixão sem freios, suas mãos ansiosas percorriam a sua pele macia. Depois, num gemido, ele atirou-se a seus lábios. Assim, buscavam-se com as mãos e com a boca e, no meio daquele turbilhão dos corpos, sentiram que não havia mais nada que pudesse impedir a consumação daquela paixão. O desejo infiltrou-se pela pele, descobrindo segredos, levando-os por caminhos delirantes ao êxtase. Amaram-se, desvendando-se em carne e espírito até a exaustão. Depois da primeira noite na cabana de caça, vieram muitas outras mais, nos encontros secretos, combinados, 44 furtivos, longe dos olhares curiosos do mundo, no meio dos pastos sob a luz das estrelas, na sombra dos cafezais deitados sobre as folhas secas dos cafeeiros, tendo por testemunha apenas o cri-cri dos grilos e a luz da lua cheia. Nos motéis de beira de estrada, quando no auge da paixão, entregavam-se um ao outro com a fúria dos amantes insaciáveis. Assim, sem planejar, Adriano invadiu, de modo inexorável a vida de Guilherme, apossando-se do corpo e da alma de sua esposa, que lhe pertenceria por todo o resto dos seus dias. Era uma paixão desmesurada e trágica. O destino trouxe para Janice o único homem que ela realmente amou na vida. Foi um amor em chamas tão vivas que lhe incendiou a alma sem qualquer senão. Foi um amor tão absoluto que a fez ter certeza que era pessoa de tudo ou de nada, sujeita às intempéries da vida como barco perdido no oceano. Se ela pudesse pôr o tempo a pisar as suas próprias pegadas, não hesitaria nem por um instante a tornar a viver tudo outra vez. *** Janice não se lembrava, em toda sua vida, de ter visto um homem mais belo, nem que usasse a beleza daquela maneira. Adriano tinha consciência da própria aparência; a altura e as perfeitas proporções do corpo, os traços másculos e requintados. A barba cerrada, azulada, usava-a sem escanhoar um dia, o que lhe dava um charme especial. O cabelo farto e negro apresentava fios de prata nas têmporas. O brilho de fogo dos olhos cor-de-mel, no rosto moreno, possuía um magnetismo ímpar, exercia forte atração sobre as mulheres e no toque das mãos másculas passava fagulhas elétricas. – “Ah, como ela amava aquelas mãos morenas, sensuais. Mãos fortes de dedos longos, imaginava a 45 sensação que teria ao tocarem o seu corpo, que acordes celestiais arrancariam das cordas sensíveis de sua alma”. Corria nas veias de Adriano, uma mistura de sangue português e francês, donde as maneiras refinadas e o gosto aprimorado no trajar. Era um homem fascinante e sedutor que emitia o odor de masculinidade pelos poros. Ele nascera com o dom de encantar as mulheres. Vivia num intrincado jogo de conquistas. Insinuante nas maneiras e na aparência, utilizava a beleza sem escrúpulos para conseguir o que desejava, se ela o ajudasse. Era um bruxo que tinha a beleza de Adónis e o magnetismo sexual de Dom Juan ou talvez fosse um sátiro das florestas, disfarçado em homem. Casado, era um marido ausente, de viagens constantes e noitadas passadas no jogo de cartas. Assim, preso num emaranhado círculo de mesas de carteado e de amores ocasionais, insensato, vagava pelo mundo em busca de emoções fortes. Era visita freqüente na casa de luzes vermelhas, morada das mulheres de vida fácil da cidade. Essa casa estava sempre iluminada, e de suas grandes janelas de cortinas esvoaçantes, vinha o burburinho e o som de músicas alegres. Ali a vida parecia transcorrer em constante festa, bebidas e danças. Também, escondidas numa sala dos fundos, havia mesas de jogo, e era ali que Adriano se refugiava; absorvido pelo vício esquecia o passar das horas e muitas vezes dos dias. Conhecera muitas mulheres. Era um boêmio sedutor, com aqueles olhos cor-de-mel, cheios de promessas e seu riso espontâneo. Por onde passasse Adriano dilacerava corações femininos e, uma noite aqui outra acolá, aquecia as camas de suas amantes, mas sentia que seu coração andava vazio. Em verdade o belo Adriano sentia-se muito só, ele era um pássaro solitário, que sentia 46 prazer em revoar, era um itinerante da vida, sempre de passagem. Mas alguma coisa ardia em sua alma. Em seu peito, a angústia teimava, mas ele não sabia o porquê. Apesar de levar uma vida desregrada, possuir todo esse ardor e uma virilidade incansável, Adriano era um desses seres nascidos para a grandeza de um só amor. Procurara com persistência e aguardara por ele toda a vida. Esperara por um amor incondicional que é a energia fundamental que move todo o Universo. Por um amor que, como a palavra expressa, não coloca nenhuma condição para ser vivido. Nem condição de idade, de raça, de religião, de ideologia. Ama por amar. Entrega-se a energia universal que cria relações, gera laços, funda comunhão de almas. Vai ao outro e repousa no outro assim como ele é. Sem intenção de retorno e de cobrança. Janice ofereceu-lhe este amor absoluto e eterno. Amou-a logo assim que a viu, com um desses amores bruscos, violentos, possessivos, quase trágicos! Quantas mulheres não são vítimas de um amor assim, de uma dessas crises inesperadas, dessa força que as toma de assalto e as arrasta para o abismo? Era uma dessas paixões que nascem instantaneamente, que consomem a criatura que está dentro dela, no seu sangue, na sua alma, no seu sonho, como uma poderosa e terrível chama interior. Mas, oh desilusão! Adriano era igual à maioria dos homens, grandes mariposas noturnas, que se arrebentam e dilaceram no encalço da chama fulgurante atrás de um vidro tão transparente que seus olhos não vêem. E quando conseguem introduzir-se, tentando e lutando com dificuldade no interior do vidro para chegar à chama, caem ao chão queimadas e mortas. Embalados pela ilusão, não percebem que lá fora na noite fresca, há muitas mariposas esperando por eles. 47 Mas eles não vêem essas coisas. A eles não importam as coisas comuns e fáceis. Nunca! Jamais se interessam pelo que podem conseguir sem lutar, sem embate, sem precisar enfrentar obstáculos! E atrás da quimera da chama que volteiam até perderem os sentidos e morrerem queimados por ela. Essa é apenas uma imagem da natureza do homem. – “O objetivo é a aventura em si, o verdadeiro prêmio está na emoção, nos instantes vividos na busca, na tensão do desejo, em vez do relato da satisfação plena”. Assim pensava e agia o vaidoso Adriano. No entanto, Janice tinha idéia totalmente diferente sobre o amor. Era o pensamento de uma mulher, que anseia ser livre, de poder decidir o seu destino, mas está aprisionada por um pacto de casamento, por convenções sociais e por uma avalanche de sentimentos proibidos. – “Adriano, você jura sempre que ama incondicionalmente, mas não tem a menor idéia do que é o amor, a abnegação de si próprio em favor do ser amado. Sabe tanto o que é a vida e o amor quanto a mariposa com que foi comparado”. Ela pensava assim, seria porque amava Adriano e via o que ninguém mais via? Ou estaria apenas imaginando, tentando desvendar enigmas? Ao vê-lo tremiam-lhe as mãos, o coração se apertava angustiado. Tinha vontade de chorar, mas se continha diante dos outros. Infeliz paradoxo, na presença de Adriano ela ficava desorientada, e na sua ausência sentia-se a mais desventurada das criaturas. Chorava lágrimas amargas. Sobressaltou-se com a incoerência dos seus sentimentos. Pensou estar enlouquecendo. Não sabia ainda, a jovem Janice, que o amor não era sentimento tranqüilo, não era um rio de águas plácidas. O amor é um contínuo mar revolto, batendo em 48 ondas, quase afogando, acalenta nas calmarias e arrefece com a brisa do entardecer. *** Certo dia Adriano apareceu em sua casa, ao cair da tarde morna, saudoso para revê-la. Ele tinha uma justificativa. Trazia produtos veterinários lançados recentemente no mercado, para oferecer ao proprietário da Fazenda Marambaia, grande criador de gado vacum. Bateu palmas no portão de entrada da fazenda. O empregado Vitorio foi ver quem era. – O patrão está em casa? Preciso falar com ele – esclareceu o recém-chegado. – Está sim senhor! Por favor, entre, vou chamar o senhor Guilherme. O visitante seguiu o empregado até a entrada da varanda que circundava a casa grande. No recinto, sentados em cadeiras de vime, tomando refresco e conversando, estavam Guilherme, a esposa e outras pessoas da família. Ao vê-lo, de longe, Janice estremeceu, ficou paralisada. Um suspiro transformado num lamento não expresso, de alegria, que a sacudiu com tanta força que ela perdeu a consciência de tudo, além do impulso de correr para junto dele. O fazendeiro levantou-se e foi receber o recém-chegado, que lhe estendeu a mão em cerimonioso cumprimento. – Adriano Silveira Dorsay, as suas ordens apresentou-se o visitante - sou representante comercial, vendo produtos veterinários, talvez façamos negócio. – Muito prazer em conhecê-lo senhor Dorsay, sou Guilherme de Castro e essa é minha esposa Janice. De fato estou precisando de alguns medicamentos para gado, veremos o que traz – falou o fazendeiro. 49 Adriano e Janice defrontarem-se no momento da apresentação, ele de mão estendida para o cumprimento, mas nada nela parecia estar funcionando, nem a mãos, nem as pernas, nem a mente; não conseguia mover-se do lugar, tremia. O marido estava surpreso pela atitude incomum da esposa. – O que é que há com você, querida?- perguntou, beijando-a na face. Janice voltou a si, recuperou de imediato o sangue frio, e respondeu já tranqüila. – Nada! Não é nada, meu querido – disse e virou-se para o visitante - temos muito prazer em recebê-lo em nossa casa, senhor Silveira Dorsay. Por favor, entre e fique à vontade. – Está se sentindo bem, senhora de Castro? Aconteceu algo?– perguntou Adriano gentilmente, mas com uma ponta de cinismo. – Está tudo bem, senhor Dorsay, agradeço a preocupação – disse, sem olhar para ele – vou mandar servir um refresco. Aceitam? Está fazendo muito calor hoje. Aquele homem na sua frente era seu amado Adriano. Por que não sentia alegria? Por que não correra pela estrada ao seu encontro, para atirar-se em seus braços, inteiramente feliz por vê-lo, que nada mais importava? Ela tentara, durante meses, arrancá-lo do seu coração. Maldito seja esse homem! Por que teria ele de vir quando ela estava começando a excluí-lo dos seus pensamentos, do seu coração? Oh, meu Deus, tudo iria recomeçar! Desde aquele momento em que tudo aconteceu já se passaram muitos e muitos dias, mas ela ainda ouve a voz quente e sedutora dele, nos seus ouvidos, quando ao vê-la, na varanda da sua casa, olhou-a com brilho de fogo nos olhos misteriosos de bruxo. Neste instante, se viu presa novamente, nos raios de energia que seus olhos emanavam. 50 Janice sentiu um arrepio na alma e vontade de estar nos braços fortes daquele homem. Ruiu como castelo de cartas, a sua inflexível decisão de eliminá-lo da sua vida. Aturdida, suando, colérica, ficou esperando, estupidamente, observando o gesto elegante de Adriano estendendo-lhe a mão. Aquele contato das mãos fortes, de dedos longos, a deixou eletrizada. Estremeceu da sola dos pés à cabeça. O coração dela se pôs a bater, frenético, e parecia morrer de tanta dor. Os olhos dela buscaram os dele, atônitos, ultrajados, furiosos. Por que o destino zombava dela? As coisas acontecem, e não sabemos o porquê. Janice sentiu que mesmo se ela nunca mais tornasse a vêlo, tudo levava a crer que o seu último pensamento enquanto vivesse, seria dele. Como era assustador que uma pessoa pudesse significar tanto à outra, monopolizando até o seu alento. – Teria que aceitar a realidade! Se esse alguém que ela queria tanto era Adriano, ela nunca poderia tê-lo livremente. Como amante, porém, parece que ele anulou nela para sempre, a capacidade de amar qualquer outro homem, seu coração estava tomado por esse sentimento insano e assim permaneceria pelo resto da sua vida. *** Naquela tarde em que Adriano apareceu na Fazenda Marambaia, houve o momento, uma ocasião propícia de estar com Janice a sós, então acertaram os encontros às ocultas. Seguidamente, viam-se ora na estrada da mata, escondidos sob arbustos, ora no meio do pasto ou do cafezal. Combinavam seus encontros com a minúcia da paixão, esquivavam-se dos outros, inventavam compromissos, mentiam, faziam render esses minutos roubados a ocasiões, com uma ânsia semelhante à devoção. 51 Sentados à sombra do cafeeiro, os braços de Adriano rodeiam a cintura de Janice, seus lábios procuram sedentos os lábios dela. Ela sorri, enquanto aquelas mãos famintas sobem para o seu colo, para o pescoço, para o rosto, e contornam a sua boca. As mãos de Janice comichavam ao sentir as costas de Adriano quando ele a segurava junto de si; o contato dele e a sua revigorante vitalidade excitavam-na. Ela achava gostoso apoiar-se nele, sentir o calor que se irradiava dele, sentir o seu corpo e ao fitá-lo sentia uma admiração indefinível. Olhava embevecida como no dia em que se haviam conhecido. Adriano pôs a mão no ombro dela, virou-a para que ela o encarasse e procurou os seus lábios ávidos num beijo estonteante, depois os distribuindo por todo seu corpo, ansiosos e urgentes. Ela retribuía, beijando-lhe os olhos, o rosto, o pescoço úmido, sentiu o gosto daquele homem com quem sonha toda noite, por quem espera, anseia e arde. E ela cederá ao desejo, fará o que pede o seu corpo trêmulo. Seguirá aquele instinto que lhe nasce das entranhas, que vibra, pede, ordena. Suspendendo o beijo, ele comprimiu o pescoço dela com a boca, suas mãos envolveram-na. Então ele deitou-a suavemente no chão, em cima das folhas secas do cafeeiro. Ambos buscam-se e desvendam-se, mergulham naquele oceano de prazer de toques e sensações. Ela fecha os olhos, entrega-se toda. É como uma explosão. Átomo por átomo, célula por célula, todo o seu corpo se une ao dele nesse momento, alça-se, rebenta em mil fragmentos de prazer. Agora se sente voar no céu estrelado. Uma suave fragrância das madressilvas floridas, invade o ar com o hálito morno da noite. Após aquela noite de amor, Janice voltou para casa, meio zonza, absorta, com o pensamento longe, não conseguia se fixar em nada.Nos labirintos do seu coração 52 sentia a premonição do seu destino.Os fantasmas soltos da imaginação viam Adriano longe, afastado dela, em algum lugar do passado. Pela primeira vez na vida, não mantinha o eu consciente concentrado em pensamentos de trabalho deste ou daquele feitio. Surpresa compreendeu que a atividade física é o bloqueio mais eficaz que os seres humanos podem erguer contra a atividade totalmente mental. Precisava dum trabalho sério que a absorvesse que lhe permitisse certo controle sobre os seus anseios. – “Se não me dedicar totalmente, de corpo e alma, à algum mister, enlouquecerei. Não quero saber de gente, de barulho, não quero saber de nada que me incomode”. Janice afundava-se no trabalho, não gostava de conversa, e isso, esse silêncio profundo da sua índole veio daquele tempo de criança órfã. Sim, porque lhe ficou, daqueles dias, uma tristeza grudada na alma. Talvez pela quietude do espírito, ela gostava de revirar os livros da biblioteca. Lia tudo que lhe caia nas mãos, mas tinha preferencia pelos romances. Tinha uma inquietação dentro da alma, medo de ter tempo para pensar em Adriano, e então se ocupava quase com fúria; não queria sequer um minuto de sobra, que fosse para refletir sobre seu insensato envolvimento. Parecia estar refugiada em outro tempo, enquanto se ocupava das obrigações domésticas. Aquela consagração ao trabalho era a fuga dessa paixão louca, da vida que levava. – “O amor entrou em mim como uma erva daninha cuja semente cresce dentro do meu coração, que me tortura, me sufoca e me faz sofrer. Seria muito mais fácil viver sem ele. Esquecê-lo para sempre. Oh, Deus! espero que nenhum ser humano venha a sentir tamanha dor!” – Gemia ela no seu desespero. 53 - “Visto que o amor entre nós dois é impossível, procurarei canalizar todo o potencial desse sentimento nobre às pessoas de minha família e ao meu marido. Dedicar-lhes-ei toda a minha vida. Essa será a melhor solução para a minha tragédia particular. Devo banir total e para sempre, esse sentimento inqualificável e absurdo, que se instalou no meu coração“. Naquele momento foi a sua firme decisão.O bom senso e a tenacidade com que ela administrava os seus afazeres haviam permitido ganhar em pouco tempo uma relativa tranqüilidade e paz de espírito. Alguns dias atrás, rememorando os fatos ocorridos, descobriu o quanto amava Adriano, mas foi como tudo em sua vida, tarde demais. Tarde demais para ele, tarde demais para ela. Ambos já eram casados, comprometidos. Com a sucessão dos dias, agravou-se nela o sentimento de frustração e de culpa. Resignou-se a ser uma mulher sem amor pelo resto da vida. Enquanto vagava como fantasma pelo quarto vazio, o casarão da fazenda parecia-lhe enorme, solitário, assustador. O marido e o sogro idoso, quase sempre estavam viajando; Adelaide e Dona Perpétua viviam em outra ala da residência. Janice não esperava mais nada da vida, não queria nada; só esquecer e descansar em paz. Vivia assim, cheia de silêncio, desligada, triste; a sua solidão tinha o gosto de saudade. Mal sabia Janice que o destino implacável, preparou-lhe uma cilada da qual nunca conseguiria escapar. *** Guilherme, sem desconfiar do drama de emoções que se desenrolava tão próximo, pertinente a ele e aos dois apaixonados, convidou Adriano, com quem simpatizara de imediato, para o jantar que seria oferecido na noite seguinte à sua volta da convenção do partido, para personagens 54 importantes da política nacional. Seria uma festa muito formal, smoking e gravata borboleta para os homens, vestidos longos para as mulheres. O vestido de organza verde pálido de Janice assentava-lhe muito bem, chegando ao chão em pregas suaves, tinha o decote baixo delineando os fartos e belos seios. Alças bordadas de strass prendiam o vestido. Ela trazia o cabelo preso ao alto, fixo por uma pequena jóia, deixando cair alguns fios encaracolados pelo pescoço. Uma gargantilha de pedras preciosas, brincos e bracelete completavam o conjunto. Estava deslumbrante. – Está linda, senhora de Castro! – elogiou Adriano, cortesmente. – Agradeço o elogio. O senhor também está muito elegante! – retribuiu Janice. Adriano apresentou-se na festa vestido com elegância, de acordo com o protocolo. Belo e muito simpático, logo cativou os presentes com sua conversa inteligente. As mulheres ficaram deslumbradas com o seu charme. O jantar ia ser servido dentro de poucos minutos. Os convidados tinham o lugar marcado, observando-se a etiqueta social. Ao Adriano, como amigo, foi designado o lugar à esquerda do anfitrião, Janice sentou à direita do marido. Guilherme era extremamente sociável, cheio de entusiasmo; alegre e culto conduzia a conversa com maestria, cativando os ouvintes. Como entrada foi servido coquetel de camarão, canapés com caviar e champanhe francês. A mesa do banquete apresentava-se repleta de iguarias. Carnes temperadas com ervas finas e molhos sofisticados, leitões a pururuca, perdizes recheadas, marreco com laranja, lasanha a quatro queijos, pudins, doces de figo em calda e geléias diversas. Os convidados fartaram-se com o lauto jantar, 55 regado a excelente vinho importado, cerveja e sucos de frutas da época. A música em surdina embalava o ambiente. Havia lampejos em que o arco do violino mal roçava as cordas e o som ondulava tão espiritual como se fosse o sorriso de um anjo; o som pairava no ar, acariciante. Pensava-se ao ouvilo, em amores singelos, em primaveras de flores e fontes de águas claras murmurando em surdina sobre musgos. Nos suaves acordes ouvia-se o desabrochar dos lírios-docampo, numa harmonia celeste. O riso e a alegria pairavam no ar. Foi uma festa esplêndida, muito elogiada pelos convivas. Adriano não dirigiu a palavra diretamente a Janice durante o jantar, nem depois dele, durante toda a noite, de propósito não tomou conhecimento da sua presença. Magoada e com ciúmes das outras mulheres que o cortejavam e com as quais ele conversava e ria, ela o seguia com os olhos onde quer que ele estivesse. Cônscio disso, ele ansiava para explicar-lhe que seria desastroso para a reputação de ambos dar-lhe maior atenção. Oportunamente, justificaria o seu procedimento correto, porque também lhe doía muito ver o semblante tristonho da mulher amada. No dia seguinte ao dessa noite agitada, em que a tempestade do ciúme bramiu em seu íntimo, era já tarde da manhã quando Janice acordou de um sono pesado e inquieto. Com olhar fatigado, a moça fixou aquelas paredes pintadas de azul claro, muito suas conhecidas; sua cabeça estava oca, o coração oprimido. Chamou Edivaldo, moço que exercia a função de secretário da fazenda, pessoa de caráter discreto e leal, e que sabia da ligação amorosa de Janice com Adriano, mas que não comentava com ninguém, conservando em sigilo hermético, pois o assunto não lhe pertencia. 56 – Edivaldo, peço-te um grande favor, encontre e avise o senhor Adriano que tenho urgência em avistar-me com ele, deve ser no local costumeiro, mas que tenha máxima prudência. No início da semana seguinte, encontraram-se em segredo num lugar pouco freqüentado pelos colonos da fazenda. Janice entrou pela trilha no meio da plantação, deixou o seu cavalo amarrado a uma árvore, com espaço suficiente para que pastasse na grama da beira do caminho. Esperava inquieta, quando viu Adriano ao longe, caminhando a passos rápidos, desviando-se das touceiras de capim limão, que cresciam luxuriantes à beira da trilha que levava ao centro do extenso cafezal. Ele escondeu a sua montaria no meio dos cafeeiros. O tempo estava esplêndido. Desabrochou a primavera, os campos se cobriram de pasto verde, floresceram os ipês plantados ao longo da estrada que levava à fazenda, de longe pareciam cobertos de pepitas de ouro, com fragrância doce dos cachos amarelos, que pendiam dos galhos. Os pomares em flor se povoaram de pássaros e os campos vibravam com o zumbido dos insetos. O ar estava repleto do aroma da fertilidade. Os pares das espécies buscavam-se para o ato da procriação O amor pairava no ar. Quando Adriano chegou perto, Janice estava de pé recostada a uma árvore, esperando-o. Ambos respiravam agitados, ardentes, suspensos em seu próprio espaço, em seu próprio tempo. Ele não se moveu, comovido por uma emoção nova e totalitária em relação à moça, já para sempre ligada ao seu destino. Assim passaram longos momentos parados, extasiados, em silêncio. Ela olhava para o homem amado e via-o pelas pupilas nebulosas cobertas de lágrimas. Sem pensar, ele a atraiu para si e buscou sua boca. Foi um beijo no qual 57 repousavam dias de desejo e ardor ávido. O fogo de sempre, selvagem e insaciável, sedento, teve o efeito de um tremor telúrico em seus sentidos. Cada um percebeu a quentura da pele do outro, a tensão de suas mãos, a intimidade de um contato almejado desde o começo dos tempos. Um calor palpitante foi lhes invadindo os ossos, as veias, a alma, algo que não conheciam. Tudo desapareceu ao redor deles e só tiveram consciência de seus lábios úmidos, num sorver guloso, prolongado. Aquele beijo frenético durou como uma eternidade, o corpo colado ao corpo, e parecia que o corpo do homem absorvia a figura pequena da mulher, como uma aranha gigante fazia com uma efeméride, como um vampiro com uma vítima exaurida de sangue. Até que ela desmaiou nos seus braços. A tensão se acalmou pouco a pouco. Sorriram aliviados, trêmulos, seguros de que não pretendiam uma aventura fugaz, porque foram feitos para compartilhar a existência como um todo e assumir juntos o desafio de se amarem para sempre. Janice jamais amara assim, ignorava aquela entrega total, sem barreiras, sem reservas, não se lembrava de ter sentido tanto prazer, comunicação profunda, reciprocidade. – Somos uns doidos – comentou Adriano – nesse ritmo aloucado, destruiremos a nós mesmos... – Não é este o sentido? Não é maravilhoso amar de tal maneira que a gente se destrua? – sussurrou Janice. Permaneceram depois, estreitamente unidos em tranqüilo repouso, descobrindo o amor em plenitude, respirando e palpitando em uníssono. Com o céu por testemunha, arranhados por pedregulhos, cobertos de poeira da terra roxa e folhas secas de cafeeiros amassadas na desordem do amor, premidos por um ardor inesgotável, um desmedido desejo, se amaram sob a luz da lua cheia, até 58 que abraçados, adormeceram, sonhando o mesmo sonho de ventura, envolvidos pelas labaredas da paixão que parecia não ter fim. O transcorrer das horas, o vento morno e o rumorejar do córrego, o canto da passarada e o cheiro da terra molhada lhes devolveram o sentido da realidade. A Felicidade existia! Eles a viviam! Deus existia! Ele era Amor! Passava muito da meia-noite quando eles acordaram com o cantar do galo, e, apreensivos pelo adiantado das horas, despediram-se trocando beijos. Adriano sumiu na noite, como se nunca tivesse existido, como se fosse um sonho, que ela sonhou numa das muitas madrugadas, como se fosse um anjo ou demônio, qualquer ser, do céu ou do inferno, que tivesse vindo a ela para lhe roubar a alma. A jovem voltou para casa, entrou no quarto em silêncio, com cautela, procurando não fazer barulho. Andava cambaleando, sem firmeza, sentia-se como uma sonâmbula. Felizmente o marido ainda não tinha voltado da reunião política. Os demais moradores do casarão dormiam. Só o vento rosnava nos oitões do sobrado, vergando as árvores. Certa tarde Janice falou em segredo à prima Alicia, sua amiga íntima e confidente, o quanto era infeliz. Não amava o marido nem um pouquinho que fosse. Sentia remorsos por isso. Maldizia o momento desastrado, inoportuno, em que Adriano aparecera em sua vida. Por que não chegara antes quando ela era solteira? Poderiam ser muito felizes, sem prejudicar ninguém. A lembrança de Adriano não a abandonava. Ele era seu único amor, ora como um lago sereno, à beira do qual se podia refugiar, outras vezes era como uma tempestade rugindo dentro da sua alma. Era um amor profundo e escaldante como o sol de verão que queimava a pele até a 59 dor, e esse sofrimento só se acalmava com as lágrimas vertidas no aconchego da escuridão da noite. Janice, às vezes, sentia-se em estado de ventura plena, outras, amargurada e insegura, ficava sobremaneira temerosa em perder tudo de repente, então seu coração confrangia-se de dor e o pranto rolava pelas faces angustiadas. Foi por acaso ou por obra do destino que, embora tardiamente, descobrira o amor sem ressalvas e temia perdê-lo. Nunca fruíra com tanta intensidade o amor físico, a entrega absoluta de um ser à outro ser. - “ Fui talhada para ser de um único homem, e serei dele eternamente. Mesmo que nunca fiquemos juntos, mesmo que o destino o leve para longe de mim, permanecerei esperando-o na eternidade”. A moça, absorta em seus pensamentos, deixou o seu olhar vagar pelos campos que se estendiam a perder de vista. Olhava pela janela da sala admirando a riqueza das cores primaveris no jardim. Aspirava com volúpia o perfume das rosas sentindo na pele o suave calor do entardecer, que entrava pelas janelas abertas. Um sopro de brisa fresca agitou seus cabelos louros. A tarde caía lentamente tornando o céu róseo e fantástico. Uma luz intensa se derramava sobre o campo, enchendo de cores mágicas as flores e as folhagens. Um cheiro gostoso se erguia da terra molhada. Ouviam-se ao longe os latidos dos cães, perseguindo alguma presa. Os grilos cantavam na grama verdejante do jardim, em frente à janela. Um bando de quero-queros passou gritando, a caminho do seu recanto preferido de pouso. Meados de setembro era a época em que floresciam narcisos, azaleias, ipês amarelos, hibiscos escarlates e rosas. As buganvílias floridas, de cachos lilases, trepavam pelo muro alcançando o telhado da ampla varanda da casa da Fazenda. Ouvia-se o zumbido das abelhas que voltavam 60 carregadas de néctar para as colmeias. O cantar dos grilos na relva, e o coaxar dos sapos na lagoa próxima. O disco dourado do sol desceu por trás das nuvens na forma de esguios raios. A barra carmesim, que começava no ponto onde o céu e a terra se encontram, escondeu-se atrás do horizonte, adornando o céu com nuanças douradas e rubras, e a última luz do sol aprofundou o verde das campinas. A natureza toda se agitava, vivia o momento do anoitecer, depois reverente, silenciosa, começava a liturgia da noite; os sons e ecos sumiam, lentamente, no além. *** O grande fazendeiro e notável político Guilherme de Castro Vasconcelos mandou construir uma bela vivenda na cidade próxima. Contratou o arquiteto, engenheiros, decoradores, mobiliou a casa com todo luxo e conforto. Cercou de jardins, plantados com flores exóticas, roseiras e buganvílias (primaveras) de cachos lilases que trepavam pelo muro e subiam pelo telhado. A entrada da mansão era um enramado de trepadeiras, parecia uma gruta, abobadada internamente de dosséis de buganvílias de flores escarlate. Mudou-se para a nova casa na cidade, com a esposa e os serviçais. Na casa grande da fazenda Marambaia, ficaram vivendo seus pais e a irmã Adelaide. Contratou um bom administrador para gerir a propriedade rural. Ele ia dedicar-se aos negócios e à política em tempo integral. Fez um curso de oratória e dicção, aprendeu a arte de falar em público, com articulação e modulação apropriadas. O casal tendo a sua própria residência, teria a privacidade da qual necessitava para fortalecer a sua vida afetiva. Ele amava a esposa e queria lhe dar todo conforto. Tinha vida social intensa, gostava muito de recepcionar. Organizava festas e recepções para políticos e pessoas de influência na cidade. Fez boas amizades, ele era homem 61 carismático e comunicativo, qualidades pertinentes a um bom político. Freqüentavam-lhe a casa amigos e correligionários, que muitas vezes traziam as esposas, às quais Janice recebia com sorriso de anfitriã perfeita que deixava as convidadas à vontade. Atenciosa, não deixava nenhuma dama sem uma companhia agradável. Guilherme, de início, nada viu de anormal nas animadas conversas e amizade que existiam entre a sua mulher e seu distinto amigo Adriano Silveira Dorsay, representante comercial residente na capital, embora, presença assídua nos seus jantares e reuniões. Ao dar-se conta de que as outras pessoas presentes murmuravam e criticavam, decidiu chamar a atenção de Janice para o fato. Fora sempre de opinião que um marido deve ter plena confiança na mulher e não a ofender com cenas de ciúmes. Apesar de tudo o que presenciava, Guilherme recusava-se a deixar o ciúme dominá-lo, não aceitava a evidência. No entanto, entendia de seu dever chamar a atenção da esposa para a inconveniência da sua conduta. – Devo adverti-la de que a sua ingenuidade e inexperiência podem dar motivos a que falem mal de você, modere sua atitude com referência à Adriano – admoestoua com brandura. Mas, quanto mais ele falava e explicava, tanto mais ela baixava a cabeça, arrependida. Doutra feita, ele voltou a repreendê-la, já agora levantando a voz. – Devo insistir que o seu comportamento está sendo indecoroso – reclamou o marido. – Que lhe parece incorreto nas minhas atitudes? – perguntou Janice. – O ciúme que não soube disfarçar ao ver o homem por quem tem um exacerbado sentimento de amizade, galantear outra mulher - respondeu Guilherme com mágoa. 62 – Meu Deus! Perdoa-me Guilherme, sei que estou errada, estou me comportando como uma leviana desculpeme, por favor - implorava, apertando as mãos contra o peito. Ela sentia-se tão culpada, tão suja e indecente, que nada mais lhe restava senão humilhar-se e pedir perdão ao marido. O remorso roía-lhe a alma. Sentindo-se vulnerável, Janice voltou-se e, levantando-se, submissa, tomou o braço do marido e levou-o para os aposentos particulares, onde poderiam conversar reservadamente. Janice não ouvia as palavras de censura do marido, pois o seu pensamento estava com Adriano. A expressão do seu rosto era assustadora e sombria. –Talvez esteja enganado – disse Guilherme – nesse caso me perdoe. – Não, não se engana – respondeu-lhe Janice ingenuamente, fitando-o tristemente nos olhos. Eu estava desesperada, pois amo Adriano e sou amada por ele. Temos um relacionamento forte. Não suporto ver ele com outra mulher. Bem, esta é a verdade. Pode fazer de mim o que quiser, inclusive, pedir a separação – confessou – prorrompendo em soluços e escondendo o rosto nas mãos. – Estou pasmo com o que afirmou! Absolutamente não supunha que estivesse tão envolvida, mas exijo que guarde as aparências até que tomemos as medidas necessárias para resolver esse caso imoral e vergonhoso de adultério – falou Guilherme com voz irritada, possesso de ódio. A terrível confissão de Janice confirmando a leve suspeita, feriu-o em pleno coração. O choque foi brutal, o sofrimento profundo. – “ É uma mulher irresponsável, perdida para mim – pensava Guilherme – cometi um grande engano quando liguei a minha vida à dela, apesar de estar ciente de que ela 63 não me amava. Mas o meu erro nada tem de condenável, porque estava apaixonado e acalentava esperanças de ser compensado no futuro; a culpa é toda dela “. Pouco lhe importava agora o que ia ser de Janice, só uma coisa o preocupava; limpar de maneira mais conveniente a lama espalhada por ela, e isso sem que a sua vida fosse perturbada. Afinal, ele era um cidadão honrado. – “Porque uma mulher sem escrúpulos cometeu uma falta, eu hei de me sentir responsável? Não! – Refletia ele, como se fosse o modelo da virtude, – mas necessito encontrar a melhor saída possível, preciso reagir. Nem sou o primeiro, nem serei o último a passar por esse desatino „. Seu caráter pusilânime surgiu à superfície. Covarde que era não poderia enfrentar o rival. A solução certa seria o divórcio, mas Guilherme analisou as condições complexas de sua vida como político e sua posição ideológica. Não poderia servir-se das provas no processo sob pena de desclassificar-se perante a opinião pública. Devia sair daquela crise atingido o menos possível. Aliás, o divórcio lançaria definitivamente Janice nos braços de Adriano. Este pensamento arrancou-lhe um gemido de dor. Apesar de tudo ainda a amava muito, e não queria perdê-la para o rival. Guilherme pesou os prós e os contras da solução que acabava de tomar. Decidiu que a única forma de sair daquela confusão seria esconder do mundo a sua desgraça, conservar o seu casamento e empregar todos os recursos para que a ligação escandalosa terminasse, e que a culpada expiasse a sua falta severamente. – Estou avisando-a que, depois de ter estudado todas as soluções possíveis para a penosa situação em que nos encontramos, por tua e exclusiva causa, achei mais conveniente, conservá-la junto de mim, com a condição expressa de que imediatamente termine essa relação 64 vergonhosa com Adriano, esse indivíduo irresponsável e canalha. Ela devia pagar com sofrimento pelo erro cometido, regozijava-se o seu coração vingativo. Sentiu-se aliviado, pensando que ninguém o poderia acusar de, numa crise tão grave da sua vida, ter agido em contradição à sua posição de homem honrado e justo, que aparentava ser. – “Deixemos que o tempo resolva o problema concluiu ele – eu devo ser poupado, espero que ela seja atingida profundamente, que sofra e que sinta-se infeliz“. Nesse mesmo dia Janice lamentou a sua confissão. – Ele tem razão; como não haveria de tê-la, ele que parece justo e generoso? Mas como é, na verdade, desprezível e vil uma pessoa assim! Elogiam-lhe a honestidade, a probidade, a inteligência. Mas não vêem a arrogância, a soberba, a hipocrisia, a dissimulação e, mais condenável ainda, a hábil ocultação do seu verdadeiro caráter covarde e vingativo. - Ninguém supõe que durante toda a minha vida, sufocou tudo o que era de interesse para mim – a música, a literatura, as amizades, enfim toda a alegria de viver. Todos ignoram que ele me feria e torturava a cada momento com seus ciúmes e desconfianças. E vendo meu sofrimento ele sentia-se compensado e feliz. - “Apesar de tudo fiz o possível para amá-lo. Mas chegou um momento que compreendi que não podia continuar a iludir-me. Para viver precisava da alegria e do amor. E a vida mandou-me Adriano. Meu Deus, meu Deus! Terá existido alguma mulher mais feliz e ao mesmo tempo tão desgraçada como eu?”. Sabia de antemão que tudo continuaria como antes e até muito pior. Guilherme jamais lhe perdoaria e daria a separação. Nunca seria livre para amar, viveria sempre como uma mulher culpada, sob a ameaça de descobrir-se 65 que enganava o marido, que tinha um amante. Isso se lhe apresentava como uma coisa terrível, vergonhosa, que não se sabia como ia terminar. Ela era uma mulher decente, errou de início por falta, depois por excesso de amor. Janice dirigiu-se aos aposentos do casal, pensativa, mergulhada nos seus problemas, e desatenta tocou o interruptor que acende a luz. Não percebeu, de imediato, o vulto do marido parado no meio do quarto. Ele chegou perto, pegou-a pelo ombro e a puxou para a cama. – Tire a roupa, prepare-se! Quero receber os meus direitos de marido, beijos calorosos e o carinho que me deve, como prodigaliza a outros! – falou com ar sarcástico. Janice pegou a camisola. Despia-se... Quando caiu no chão um bilhete, guardado dentro do seu soutien. Estava endereçado para Adriano, dizia o seguinte: – “Quero avisá-lo que, infelizmente, não podemos mais nos encontrar, nesta e nem em outras noites. Está tudo acabado entre nós. Cheguei à conclusão de que não posso mais continuar a ser mulher de Guilherme amando você, Adriano. Não estou mais agüentando levar esta farsa adiante. Alguma coisa deve ser feita, antes que aconteça o pior. Beijo daquela que o amará para sempre”. Ela tentou apanhar o bilhete quando o marido colocou o pé em cima dele. Abaixou-se e pegou para ler o conteúdo, cujo teor deixou-o transtornado. Agora tinha nas mãos a confirmação, por escrito, de que realmente estava sendo traído. Olhou a mulher com rancor e informou que tratariam do assunto no dia seguinte. Não estava em condições de discutir o problema nesse momento. Guilherme levantou cedo, tomou o café da manhã e foi cuidar dos negócios e da política. Janice compreendeu no fundo da alma que tudo ia continuar como até então. Ao seu marido faltava a coragem para enfrentar o rival e a opinião pública; não queria perder a posição que desfrutava 66 dentro da sociedade e no meio político. Estava ofendido, mas preferiu silenciar. Era covarde demais. Na primeira ocasião Janice mandou um recado urgente, pelo mensageiro de sempre, para encontrar-se com Adriano no lugar combinado. Era muito arriscado mas necessário. Ele estava muito preocupado, sabia do risco que corria comparecendo ao encontro. - Que notícias têm você a comunicar-me?perguntou Adriano, apreensivo. – Chamei-o aqui para informá-lo de que rompi com Guilherme e pedi a separação. Ele já sabe de tudo. – Perdoa-me – mas não me agrada a resolução que tomou. Seu marido pode engendrar uma vingança terrível contra nós. Devia esperar mais, dar tempo ao tempo comentou com cautela, demonstrando grande preocupação. – Mas por amor de Deus, prefere que eu continue esta vida humilhante? Nada mais me resta senão o nosso amor. Quero que compreenda que, desde o momento em que o conheci, amei-o com toda minha alma. Tudo na minha vida mudou. Não suporto viver ao lado de Guilherme. – Não pode adiar o divórcio? – sugeriu Adriano, afinal de contas existem seus tios, meus pais, minha esposa, a família, a sociedade toda – pense na repercussão desse fato escandaloso na comunidade em que vivemos. – Estou decepcionada com você, pensei que ia ficar feliz com a minha decisão – comentou ela tristemente. Guilherme não foi tirar satisfações com Adriano, como quem não sabia de nada. Somente cortou a amizade. Procurou dissimular o seu ódio, era mestre nessa arte. Como convém a um bom político, nunca expunha o seu caráter hipócrita e vingativo. Teria que evitar a todo custo o escândalo que prejudicaria sua carreira política 67 Janice tinha a convicção de que tudo permaneceria como antes e não se tinha enganado. Marido e mulher continuaram a viver juntos, na mesma casa e a dedicar-se cada um ao seu trabalho. Viam-se e falavam o indispensável. Faziam as refeições juntos, mas sua relação era de total indiferença. As vicissitudes da vida em comum acabaram distanciando-os cada vez mais. Os parentes próximos estranhavam a conduta do casal, mas Guilherme era orgulhoso demais para dar explicações a alguém. Mas não era nenhum segredo na Fazenda Marambaia que Guilherme e Janice há muito estavam separados, embora vivessem na mesma casa e mantivessem as aparências. A vida amorosa estritamente sigilosa, de Janice e Adriano nunca transpirou em público, portanto, não prejudicou a carreira política de Guilherme; mais que isso, Janice nunca consentiu que o problema do casal fosse discutido ou sequer mencionado perto da sua família ou de alguém próximo. Adriano deixou de visitá-los, mas Janice encontrava-se com ele em segredo e ocasionalmente. As cobranças, os acessos de ciúmes que acometiam a mulher nessas ocasiões, deixavam o amante perplexo, descontente, em constante instabilidade de opinião acerca de seu caráter. Claro que os ciúmes eram provas de amor, mas o assustavam e arrefeciam o afeto que sentia por ela. Sentiase como que acorrentado para sempre à amante. Janice era o seu destino, o pacto que assumira perante a vida, e devia cumprir até o fim. A situação era penosa para os três, especialmente para Janice, e só a esperança de que algum dia tudo mudaria, faziam-na suportar. Guilherme não pensava em separação O divórcio seria o procedimento mais sensato nessa situação delicada, mas afetaria a sua vida pública. Conservaria o seu 68 casamento até quando fosse possível. Janice tinha medo dele, não se sentia à vontade na sua presença e não o olhava nos olhos, portanto, ele podia controlar a situação. –Tentarei perdoá-la e esquecer o passado – deliberou sinceramente – desde que não continue com essa loucura esquecendo que esse canalha existe. Mas Janice não esquecia seu grande amor, porque tinha vocação para um só amor. A força desse sentimento imutável salvou-a da mediocridade e da tristeza de seu destino. Permanecia fiel, sem o amar menos, mesmo nos momentos em que Adriano se perdia atrás de ninfas de cabelos louros e nádegas roliças. A princípio acreditava morrer cada vez que ele se afastava atraído por uma nova conquista, mas logo se deu conta de que suas ausências duravam pouco e que sempre ele regressava e a procurava, apaixonado e mais carinhoso. Janice ficava à espera de uma ocasião oportuna para revê-lo. Ansiava por ele. Algumas vezes quase sucumbia à tentação de pegar suas roupas e ir viver com Adriano, mas sempre na última hora se acovardava. Temia que aquele grandioso amor não pudesse resistir ao terrível desgaste da convivência. Na luta perene com seus sentimentos amadureceu a idéia de salvá-los da mediocridade. Ela preferia aqueles breves encontros com seu amante em quartos de hotéis ou fugas à sombra da noite, à rotina de uma vida em comum, e ao tédio e cansaço de um casamento do qual já tivera triste experiência ou ainda ao pesadelo de envelhecer juntos, compartilhando as dificuldades financeiras, o mau hálito da boca ao acordar, a intimidade do sanitário e os achaques da idade que viriam com certeza. Pensando bem, foi melhor assim. Seguirem sendo miragem, um para o outro. Juntos, o cotidiano da vida 69 acabaria, talvez, transformando o que fora beleza, ilusão, sonho - numa “coisa qualquer”... Odiando-se, quem sabe? Ou, no mínimo, olhando-se com indiferença. Porque, em verdade, amante algum ganha algo em ser conhecido intimamente. Na verdade ela temia a rotina, horrorizava-a também, o estilo de vida de Adriano. Ele tinha a alma peregrina, não se fixava em lugar nenhum. Sempre queria mudar de um lugar para outro, de cidade em cidade, como uma troupe de ciganos, levando a esposa e os filhos. A incerteza do futuro, a indecisão do marido em pedir o divórcio enchia-na de indignação. Culpava-o de tudo o que havia de penoso na sua situação. Responsabiliza-o pelo seu sofrimento e pela atormentadora expectativa em que vivia. Apesar do rompimento com Guilherme e das suas ameaças de vingança, Janice e Adriano não desistiram do seu amor, continuaram a encontrar-se secretamente nos mais inusitados lugares. Num certo momento, em pleno ato de amor, Janice sentira um complexo de emoções - euforia, tristeza e desesperança. Uma reação intensa pelo medo de perdê-lo. Na seqüência da entrega total, em que haviam esgotado de uma vez, toda a felicidade terrena, teve a sensação de encontrar-se no céu a vislumbrar o Divino. De repente prorrompeu em soluços angustiantes. No tumulto que havia na sua alma, um desejo crescia - o desejo da morte. Seria maravilhoso se a vida dos dois acabasse nesse instante, levando da existência uma recordação tão deslumbrante! Naquele instante de insânia, uma dessas rajadas de loucura, que envolvem às vezes as mulheres que amam muito, que amam demais, Janice teve desejo de matá-lo, estava obcecada pelo medo de perdê-lo para outra mulher. 70 Ninguém jamais saberá se, realmente, ela quis matar Adriano por amor, se por vingança, ou pelo medo do abandono. O amor apresenta-se, às vezes, sob disfarces inesperados. Ora é elevado, ora é violento. Pode ser sublime como o dos santos, ou apresentar-se como delírio de intensa paixão. Desejava ferir aquele homem que amava tanto, tanto, que era o alento de sua vida, seu sonho, luz dos seus olhos. – Enquanto você viver não terei descanso nunca, minha vida será isso, um martírio, eterno sofrimento – desabafou ela amargurada. – Você deseja a minha morte? – Quero, sim! Queria que você morresse. Ao menos, você não me trairia com outra mulher. – E também não pensaria em você – disse ele rindo. – Preferia que você não pensasse em mim, contanto que também não me traísse. – Quer mesmo que eu morra?– perguntou sério. Ela se contradisse, no desespero de perdê-lo, de ficar sem aquele amor que era a sua felicidade, mas também o seu martírio. – Não, não! Por amor de Deus, não! – gritou aflita. Pois aquele amor era maior que a morte. Ela que desejava a morte do homem a quem amava, seria perversa e vingativa? Não! Ela apenas não consegue controlar o seu ciúme e a paixão que a devoravam. É o desespero que a levava a pensar nesse gesto fatal. Parecialhe que aquele era o único meio de assegurar-se da fidelidade de Adriano. O ciúme punha a moça fora de si. Era como se fosse uma rajada de insanidade mental a envolvê-la. Seu olhar, naquele momento, parecia realmente de loucura. Ela já não se dominava mais na sua insânia. Passavam pela sua memória as mais diversas recordações. Caricias suaves que ele lhe proporcionava; 71 ternura e êxtase como ninguém jamais sentira. Lembrou-se dos beijos que ele lhe dera; beijo que transforma em chama líquida o sangue de uma mulher e a consome e deslumbra. Adriano assustou-se com a reação dela, seu ciúme exagerado, sua insegurança e o desejo de morte. Comparou mentalmente Janice dos primeiros tempos quando se conheceram com a de hoje. - Será que ela tinha alguma premonição, um pressentimento de que estava prestes a ser abandonada por ele? Por que tanto medo do futuro? – perguntava-se ele. Ele a amava ainda, sim, e muito, não havia a menor dúvida. Mas seria inútil esconder a verdade de que já não sentia por ela a mesma atração, nem a desejava sexualmente como antes. Com o passar dos anos a rigidez de seu corpo dera lugar a uma flacidez incipiente, e ele começou a achá-la menos atraente. Estava descontente e frustrado nas suas expectativas amorosas, porque o tempo estava destruindo o seu brinquedo predileto. Começou a procurar outras mulheres, mais jovens. Era ainda com um certo aperto no coração que pensava nela, amou-a muito até então; a ferida deixada estava cicatrizando – concluiu Adriano – mas a marca ainda era sensível, causava dor e ao menor descuido podia abrirse e sangrar. Precisava encontrar uma solução amena, desvencilhar-se com sutileza, aos poucos, daquela relação doentia que o privava da liberdade, que o prendia em grilhões, o encarcerava. Não queria magoá-la, mas buscava a amante cada vez com menor freqüência. Sua vontade mesmo era andar correndo o mundo, sem pouso certo, sem obrigação marcada, pegando aqui e ali uma mulher para saciar sua fome de sexo, assim como quem apanha fruta em árvore na beira do caminho. E de vez em quando jogar uma partida de pôquer ou cacheta, ou qualquer outro jogo carteado. 72 Janice estava saudosa e procurou veemente uma oportunidade para encontrá-lo naquela noite. Ele estava em casa de um amigo, não longe dali, jogando pôquer. Ao receber o recado dela solicitando o encontro negou-se a atender ao chamado. Mandou dizer que não tinha nada para falar ou dar explicações a ela. Isso a deixou furiosa, e ela resolveu se vingar. – Você vai me pagar – pensou. Ele deve estar na companhia de alguma mulher. Está me traindo com certeza. Janice se entregou toda à própria dor. Sofria como jamais pensara que uma mulher pudesse sofrer. Ela não queria escutar a voz da razão. Apenas uma idéia ocupava a sua cabeça. Adriano cansara-se dela; procurava um outro amor. Ela já não era bastante para ele. – Deixa estar! Esse homem está pensando o quê? Que pode fazer o que bem entende? Usar nosso corpo, destruir nossas vidas, estraçalhar nossos sentimentos, depois descartar como qualquer coisa inútil? Você vai ver! Oh, se vai ver! – vociferava as ameaças. Decidiu ficar de tocaia e esperá-lo na volta para a casa. Demorou um pouco, mas ao amanhecer ela viu o automóvel dele apontar na esquina da rua. Disfarçada, com roupas de homem, escondida no matagal atrás de um toco de árvore caída, ela esperava. Tremeu de susto quando ouviu um cachorro uivar numa rua distante. Depois caiu o silêncio em que apenas o cricri do grilo continuou com uma insistência cadenciada de goteira. Ela hesitou por um instante. Fora, os galos começaram a amiudar, e o trecho do horizonte que a porta da casa dele enquadrava, tingia-se de carmesim. O sol não tardaria a despontar e precisava agir com rapidez. A mão de Janice desceu para o bolso do paletó que vestia e acariciou a coronha do revólver. Puxou a aba do chapéu de palha que lhe cobria a cabeça, para esconder o 73 rosto. Uma expressão de rancor vincou a sua boca. Avançou em direção ao automóvel que estacionava no pátio da casa. O cano da arma estava voltado para ele e o dedo segurava o gatilho, pronto para atirar. – Vou matá-lo! – gaguejou – vou furá-lo de balas. Não quero que ele seja de mulher nenhuma, nunca mais. Seu pensamento voltava ao passado, sentindo uma necessidade assustadora de retornar ao tempo em que ela era tudo para ele, naqueles momentos em que seus beijos demoravam tanto e pareciam não ter fim; eram carícias bárbaras, quase brutais. Lembrava coisas secretas e adoráveis, que deveriam ser guardadas em seu coração de mulher. Ela delirava na sua insânia. Aquilo não era mais amor, paixão, ciúmes; era loucura, uma força demoníaca que se apossara da infeliz criatura e a arrastava para o crime. Atirou! Uma, duas vezes, uma saraivada de tiros. Com a mão insegura, trêmula, não acertou em Adriano que era seu alvo, apenas estraçalhou o vidro da frente do carro e furou o pneu. Adriano assustado, não a reconheceu na noite, pois que estava disfarçada. No momento, ele supôs que era uma emboscada de algum desafeto para matá-lo; rápido deu marcha ré no carro e fugiu, ziguezagueando pela rua, com o pneu da frente furado. Foi pedir socorro e abrigar-se na residência do amigo, onde passara a noite jogando cartas e donde havia saído momentos antes. – Alguém está querendo me matar – gritou Adriano – descendo do carro pálido de susto. Apagaram a luz da casa esperando um novo ataque. Mas a cidade toda continuava dormindo no silêncio da madrugada, ouvindo-se apenas o ladrar dos cães à distância. Janice ficou parada no pátio da casa dele por um momento; olhava estática o sumiço do carro. Depois, possuída pela emoção do seu procedimento, pela frustração do seu 74 intento, foi embora desaparecendo na noite. Caminhou sem destino e sem perceber o instinto levou-a para a sua casa. Ela estava naquela situação de pessoa que não manda em si mesma, que não controla os próprios atos, e nem sequer os próprios sentimentos. Caminhava devagar procurando abafar o rumor dos seus passos. Abriu o portão do jardim da frente e entrou no vestíbulo da residência. Torceu o trinco da porta e entrou na sala, pé ante pé. Fechou a porta suavemente. Houve um rangido, mas só. Ela esperou um pouco, com receio de que o ruído tivesse acordado alguém na outra dependência da casa. Guilherme tinha viajado a negócios dias antes, para a capital. Ia demorar algum tempo para voltar. Ela veio andando, lentamente, em direção ao dormitório do casal. O soalho rangia de vez em quando. Sem tirar a roupa que vestia, cansada, jogou-se na cama. O silêncio do quarto é arranhado apenas pelo som da sua respiração agitada. Precisava refletir, reconciliar-se com a vida e afastar a idéia de vingança. Só agora compreendia o seu desatino. Que diriam se a encontrassem ali de arma na mão, tocaiando um homem? E se o tivesse matado? Que conseqüência teria o seu ato tresloucado? A arma pertencia ao seu marido que, sem saber de nada, seria incriminado. Uma luta, estranha e incompreensível, acabava de acender-se no seu coração. Estava fora de si, a cabeça lhe rodava, a inquietação da consciência a culpava pelo duplo crime de traição que estava cometendo, primeiro contra seu marido com o adultério, depois contra a vida do homem que amava. Era uma adúltera e criminosa, não merecia viver! Que interessa viver se o homem a quem se ama foge de nossos braços, à procura de outros beijos? Sem Adriano, sem seu amor, a vida não lhe interessava. Como toda a mulher que ama e não é correspondida, seu 75 pensamento voltava-se para a morte. Se morresse, pelo menos não sofreria. Fugir da prisão terrena seria a solução. Pensava na situação sem esperanças em que se encontrava; tudo em seu redor lhe parecia sombras e nuvens escuras, ameaçadoras. Andava de um lado para outro pelo aposento, depois se deixou cair sem forças na poltrona forrada de veludo azul e prorrompeu em soluços. Não encontrava forças para desistir de Adriano. Janice compreendeu que a sorte estava lançada. A morte apresentou-se-lhe então como a única maneira de acabar com aquele sofrimento. Nada podia esperar da vida. Estava emaranhada num sentimento de culpa, sem esperança, sem nenhuma visão do futuro. Não tinha idéia do rumo que devia seguir. Sua mente tropeçava em obstáculos intransponíveis. Desesperada, abriu a gaveta da mesinha de cabeceira e procurou o frasco de tranqüilizante, ainda cheio, que ali guardava. Ela acaricia o vidro, abre-o e despeja todo o conteúdo na palma da mão, joga os comprimidos na boca e tenta engolir todos de uma só vez, engasga-se e começa a tossir fortemente. Hesita em apanhar o copo de água de cima da mesa-de-cabeceira. Para morrer é preciso ter coragem, e a sua começa a falhar. Mas apesar do medo que a domina conseguiu engolir grande parte dos comprimidos. De súbito, as sombras invadiram o quarto e tudo se fundiu em completa obscuridade. ”A morte está chegando” – disse para si mesma. E uma paz profunda se apoderou dela. Por algum tempo tentou concentrar as idéias sem saber onde estava. Quis levantar e escorregou para o chão desfalecendo, ficou estatelada no assoalho. Passados alguns minutos ouvem-se batidas na porta do quarto. Maria, a empregada, não ouvindo resposta, adentra o aposento. Traz um copo de leite para a patroa. Vê a mulher caída, com a respiração rouca e crepitante dos 76 moribundos, a expressão de pavor na face, o frasco vazio na mão e os comprimidos esparsos pelo chão. De imediato compreende a situação. – Por Deus, patroa, o que a senhora está fazendo, está querendo morrer? – gritou chorando, Maria. Janice tenta levantar-se do chão, mas não tem forças e só com a ajuda da serviçal consegue deitar-se na cama; fecha os olhos e começa a lastimar a sua triste sina. – Deixei-me levar pelo desespero, é só isso, esqueça o que viu – foi a resposta da infeliz criatura. Maria foi correndo chamar por socorro. Veio a ambulância e levou-a para o hospital. – O que a fez proceder desta maneira tresloucada? – quis saber o médico. Ela não respondeu, tinha perdido os sentidos. O médico fez uma lavagem estomacal com o fim de remover as substâncias tóxicas. Vendo-a fora de perigo imediato, mas com sintomas de uma depressão profunda deu prosseguimento à terapia adequada ao caso – cura por sonoterapia pelo período de três dias. Decorrido o prazo teve alta do hospital. O médico receitou medicamentos antidepressivos e recomendou descanso e tranqüilidade. Com o tratamento prolongado, Janice parecia superar a doença, melhorou o seu relacionamento domestico e dedicou-se com tenacidade ao trabalho que absorvia o seu tempo e sua mente; mas a sua alma continuava gravemente enferma. Ela sentia uma grande revolta, uma raiva surda corroê-la por não ter conseguido fugir da vida. No momento decisivo não teve coragem suficiente. Janice remoia a pergunta para a qual não encontrava resposta – por que não conseguira amar aquele homem com quem casara e era seu marido, mas tinha que sofrer as penas desse tormento atroz que padecia? Esse amor impossível 77 era uma peça do destino insensato. Teria que suportar para sempre aquele punhal cravado no seu peito? Certa tarde, Guilherme, ao voltar para casa, encontrou a mulher chorando convulsivamente sentada na poltrona de veludo, no quarto do casal. Ela olhou-o injuriada. - Até quando vai me torturar? – perguntou chorosa. - Essa situação começa a ficar insuportável! – exclamou Guilherme, defrontando-a. De pé, diante de Janice, com ar truculento, completou com arrogância: – Para que pões à prova a minha paciência? Advirtote que tudo tem limites. – O que quer dizer com isso? – gritou Janice, vendo com horror a clara expressão de ódio que se refletia no rosto do marido. Com o revólver engatilhado na mão, o cano voltado para a mulher, impaciente, esperava havia algum tempo. Dominado pela cólera, não via outra alternativa para executar a sua vingança, mataria a traidora sem complacência ou remorsos. – Eu avisei que mataria você, se continuasse a se encontrar com aquele canalha – proferiu a sentença. Estava possesso; aproximou-se e empurrou a mulher contra a parede. Ela podia correr, gritar e pedir socorro, ou talvez pedir perdão. Mas ela estacou no lugar, não se mexeu. Estava serena e seus olhos não refletiam nem medo, nem espanto. Postava-se diante dele como se realmente esperasse e desejasse a morte. Guilherme encostara a arma na sua cabeça, com o dedo no gatilho pronto para atirar; jamais desprezara tanto a mulher. Essa idéia, a de enfrentar a morte com dignidade, a de aceitar o seu destino, ajudou-a a acalmar. O que o exasperava era a sua coragem tranqüila, a calma com que ela esperava o desfecho da sua resolução. 78 – Atire! Por que não atira? Estou esperando! – gritou ela, fuzilando-o com os olhos. Uma janela aberta deixava entrar o vento que balançava as cortinas, ela distraiu-se e desviou o olhar para o cortinado. Cansada pela longa espera cerrou os olhos, desejando um descanso, um repouso tão doce e completo de corpo e alma, como só a morte pode dar. Mas ele estava indeciso, tenso, não atirava, não puxava o gatilho, parecia esperar uma reação dela, olhava para Janice como se quisesse fixar para sempre aquela imagem tão amada, e nesse momento tão odiada. Ela estava imóvel, serena, parecia oferecer o peito à vingança. E como ele não fizesse nada, Janice o desafiou novamente: – Está com medo, ou está só querendo me assustar? – indagou com sarcasmo. Ele não respondeu, agarrou-a pelos ombros e encostou o revolver no peito da mulher. Ainda assim, ela não recuou, não pediu piedade. – Não acredita então, que eu tenha coragem de matá-la? – perguntou irritado. – Acredito, mas não tenho medo. Guilherme sentiu então, uma necessidade súbita de saber o que tinha realmente acontecido entre ela e Adriano, que tipo de relação ainda havia entre ambos, para ela tomar essa atitude insensata, queria saber tudo, a verdade toda, mesmo que sofresse, e ele sabia que ia doer muito. – Eu não te direi nada! Absolutamente nada! O marido percebeu a obstinação, compreendeu que ela não diria nunca, nada. – Covarde! Covarde! – ela insultou-o novamente. Os dois fuzilaram-se com o olhar. Ele ia falar, mas calou-se. Ocorreu-lhe uma idéia que era uma maneira mais eficaz de feri-la, e de uma maneira mortal. 79 - Vou desforrar-me muito melhor da ofensa recebida, matando Adriano em vez de matar você, ele não viverá para consolá-la, me aguarde! – ameaçou Guilherme. Janice apavorada com esse novo plano de vingança avançou agredindo-o com pancadas no corpo e na cabeça, batendo sem raciocinar. O marido revidou erguendo a mão, sem que ela de momento pudesse supor o que ia suceder. Foi atingida no rosto, de lado, e com tanta força, que tonteou, cambaleou, sentiu uma névoa passar na frente dos olhos, segurou a cabeça com as duas mãos para se libertar da tonteira e não desmaiar. – Ele me esbofeteou, me bateu, descarregou todo seu rancor, não teve coragem de me matar, eu preferia a morte a essa humilhação – foi o seu desabafo, a sua revolta. Difícil seria ela imaginar quais as atrocidades que ele arquitetava como vingança contra ela e Adriano. Mas a dúvida espicaçou seu pensamento. Guilherme era vil e covarde, não tentaria nada. O desprezo e a intolerância romperam todos os limites da consideração e respeito que havia entre eles. A situação ficou insustentável. Entretanto, viveram juntos ainda por muito tempo, dormindo em quartos separados; até que um dia ele tomou a decisão final. – Quero avisar que a nossa vida vai mudar, estou farto dessa comédia; vou pedir o divórcio e resolverei de maneira que me for melhor – amanhã mesmo terá a solução. Ficará livre para viver a sua vida, mas sem Adriano, pois não esqueci a minha vingança! O que é dele está guardado! – Guilherme voltou a ameaçar – disse-o com inflexão arrogante na voz e o olhar carregado de ódio. Em seguida, dirigiu-se para a porta de saída levando nas mãos a pasta com documentos e a mala com roupas pessoais que mandara a empregada separar. Antes de passar a soleira da porta voltou-se para dizer, ameaçador: 80 – Proíbo-te que comente com alguém a minha decisão, eu mesmo comunicarei para minha família. Quanto ao restante dos meus pertences, mandarei buscá-los depois. Janice não ficou surpresa pela resolução repentina de Guilherme, estava esperando havia muito tempo por esta decisão. Agora livre do jugo do marido e do casamento podia pensar no melhor caminho a seguir. Resolveu mudarse para a capital e recomeçar uma nova vida. Pensou seriamente em desistir de Adriano. Faria todo possível para sufocar o amor que sentia por ele. Sabia que ia doer muito, mas precisava tentar. Deslocada, sem rumo na vida, sentindo-se muito infeliz, só e abandonada, Janice perdeu a fé. Tornou-se descrente da vida, das pessoas, de tudo e de todos. E sem esse divino refúgio, ela se debatia na armadilha do seu destino. Desejava ardentemente que a morte viesse logo para libertar sua alma da prisão terrena. Certa manhã, passando em frente à uma igreja, resolveu entrar, tentaria ali recuperar a paz e a esperança. A penumbra que dominava o interior do templo convidava à reflexão e a oração. Ajoelhou-se aos pés do altar e elevou os olhos suplicantes para a imagem de Cristo, numa instintiva busca de auxilio e perdão. – Perdoe-me, meu Pai – orou – eu pequei muito e tenho vivido na desesperança. Ajude-me, Senhor, a tirá-lo do meu coração. Afaste-me de Adriano, se for preciso até pela morte, pois a prefiro do que o tormento em que vivo. Janice refletia... e perplexa reconheceu o domínio da paixão que se implantou no seu coração. Pela primeira vez analisou, essa luz que lhe permitia ver o fundo do poço, de todas as coisas, avaliou a sua relação com Adriano, a respeito da qual sempre evitava pensar. Era uma situação desastrosa, tinha ultrapassado os limites. Sim, era tempo de dar um basta, mais do que tempo de parar. 81 Procurou conselho com frei Gonzalo, amigo da família, eminente psicólogo e grande conhecedor da alma humana. Convidou-o para uma conversa reservada em sua casa. Sentado numa poltrona, ele ouvia atentamente as coisas que ela contava, o desfiar daquele trasbordamento de mágoas. Notava-se a tristeza do religioso; sofria com ela. Quem mais do que aquele que passou parte da sua vida ajudando as pessoas a resolver os mais intrincados e sofridos problemas, é capaz de entendê-la? Ao analisar o fato com cuidado, ele julgou que a relação deles era pecaminosa perante a Igreja e condenável pela sociedade. Era necessário dar fim urgentemente ao caso. Apesar de tudo ele como padre podia fazer muito pouco, pois a solução do problema dependia totalmente deles. Aconselhou que agissem rápido e com prudência. Janice andava de um lado da sala para o outro. Estava num estado de nervos terrível, e o seu tom de voz era a um só tempo de amargura, lamento e de acusação. – Eu sei padre, que Adriano não presta! Ele é de caráter volúvel, tem uma conduta irresponsável, é inconseqüente. E foi por um homem desses que eu me apaixonei. Transgredi as leis da Igreja traindo o meu juramento feito aos pés do altar. Pequei demais padre, estou condenada, minha alma não tem salvação. – Tem sim. Arrependa-se e Deus te perdoará! – Eu sinto que estou errada, sabia sempre que estava errada. Que adianta isso agora, se eu estava ciente do meu comportamento reprovável e não consegui evitá-lo? Que adianta lutar, se é inútil? É só ele aparecer aqui, eu me esqueço de tudo, de todas as promessas que fiz a mim mesma, e corro para os seus braços. – Já é uma grande coisa reconhecer os seus próprios erros. Você é apenas humana, e os seres humanos são passíveis de cometer erros e os cometem e muitos. Não se 82 culpe tanto, confie na misericórdia divina – com a voz piedosa e calma o religioso procurava consolar a jovem desesperada e em lágrimas. Janice continuou a desfiar seus dilemas e dúvidas. – Que procurou ele em mim? Amor, sexo, paixão, ou a satisfação do seu ego? Claro que me amava e muito, mas acima de tudo tinha o orgulho da conquista. Agora tudo isso iria terminar, não teria mais do que se vangloriar. – Depois de ter tirado de mim o néctar da vida no delírio amoroso, já não lhe farei falta. Ama-me, sim, mas de que maneira? O prazer acabou... O instinto está saciado. Não, ele já não anseia pelo meu corpo como antigamente. Enquanto eu me torno cada vez mais, excessivamente dependente, o amor dele se extingue pouco a pouco. - Ele é tudo para mim, quero que seja meu por inteiro, mas ele foge, desaparece, pois é aventureiro da vida e anda à procura de emoção. Os amantes amam com furor, enfastiam-se em seguida, e esquecem. É isso que eu temo. Frei Gonzalo ouviu Janice atentamente e julgou necessário aprofundar-se no caso, à luz da psicanálise. – Penso que só há uma maneira de acabar com o domínio dessa paixão doentia – disse o clérigo, pensativo. – E qual é padre? Por amor de Deus! Faça o que for possível – gemeu Janice esperançosa. – De início serão orações de exorcismo, para expulsar o espírito possessivo da paixão que se apoderou da tua alma – esclareceu frei Gonzalo. – Padre, ajude-me! Marque logo as sessões que eu estou pronta a colaborar. – Antes de iniciar o tratamento devo estabelecer se os sintomas patológicos estão sendo causados por uma doença de origem psicológica que requer tratamento específico. Fique tranqüila e confie em Deus, que tudo se resolverá, prometo. 83 Janice submeteu-se durante longo tempo a sessões de psicoterapia, tratamento realizado por frei Gonzalo, que a tirou do estado mórbido de desolação em que se encontrava. Voltou-lhe a fé em Deus, a esperança, a paz de espírito e a visão tranqüila da vida. *** Guilherme ao sair de casa, levava na alma a tristeza e a desilusão pelo amor a Janice. Martirizavam-no profundamente a traição e o fracasso do seu casamento, e também se sentia culpado. Havia feito tantos planos magníficos para o futuro de ambos, mas que depois negligenciara. Decepcionado, foi viver com sua amante espanhola Santina Hernandez, de cuja cama já partilhava havia muito tempo. Comprou-lhe uma bela casa, contratou uma hábil decoradora que mobiliou a residência em estilo moderno, um tanto discutível. Não economizou nas despesas. Fez questão em prover de tudo e da melhor qualidade. Queria afrontar Janice com a liberalidade concedida à companheira. Vivia com ela maritalmente apresentando Santina à sociedade como sua esposa, provocando uma situação constrangedora às pessoas. Voltou a administrar pessoalmente as suas fazendas de criação de gado, mas passava o maior tempo envolvido em negócios de corretagem de terras e em reuniões políticas. A azáfama do dia-a-dia, a sobrecarga de trabalho, as questões políticas e o distúrbio emocional que sobreveio no decorrer do processo de divórcio com Janice minaram implacavelmente o seu coração. Manifestaram-se em seguida a depressão e a diabete. Sua visão ficou prejudicada. Certa noite, Guilherme voltou de uma reunião política, muito agitado. Tivera uma discussão violenta com 84 um membro da oposição. Deitou-se para dormir ainda muito nervoso, não conseguia adormecer. O sono veio inquieto, e pouco depois das três horas da madrugada ele desperta de repente, soergue-se na cama, arquejante e através da penumbra do quarto, sente uma presença estranha, como alguém, um vulto o espiando. Um arrepio de frio perpassa o seu corpo. – Quem é? – pergunta assustado. A resposta é apenas o silêncio e a escuridão da noite. Uma cócega aflitiva na garganta provoca-lhe um acesso de tosse curta e espasmódica. Ele toma consciência do peso no peito, da falta de ar. Um suor viscoso e frio umedece-lhe a pele do corpo. Vem-lhe de súbito o pavor de um ataque cardíaco. Espalma ambas as mãos sobre o peito e, agora sentado na cama, meio encurvado, fica imóvel esperando a dor sufocante. – Com certeza é o fim – pensa aterrorizado. Sente o surdo pulsar do coração, a respiração estertorosa. Continua a opressão no peito, a dificuldade de respirar. A sensação de asfixia é agora tão forte que ele se levanta da cama, tateando caminha até a janela, na busca desesperada de ar. Apóia-se com as mãos no peitoril e ali fica a ofegar, de boca aberta, olhando, mesmo sem ver, a praça da Matriz deserta, e a escuridão da noite, mas consciente duma fria sensação de solidão. – Por que ninguém me socorre? Onde está Santina? Vai me deixar morrer sozinho? Que ingratidão! – lastimase. Faz meia volta e, sempre tossindo e expectorando, dá alguns passos cegos, na passagem derruba a cadeira que lhe barra o caminho, procura a porta, em pânico. – Socorro, Santina. Ajude-me, estou morrendo! Chame o médico – grita desesperado. Santina dormia com o filho pequeno no outro quarto, e acorda com os gritos de Guilherme. Corre rápido 85 pelo corredor em direção ao chamado e, como um sino de alarma despertando as pessoas da casa. – Depressa! Parece que Guilherme está tendo um ataque do coração. Vão chamar o médico! Rápido! – dava ordens apressadas aos empregados. A noite está quente, de ar parado. O médico não tarda a atender. Minutos depois entra no quarto do doente, em passo acelerado, leva na mão a maleta de emergência. – Será um infarto? – pergunta Santina preocupada. – Pode ser, vou examinar – diz o médico. Guilherme está sentado na cama, a face lívida, o peito arfante, a boca semi-aberta numa ansiada busca de ar, o rosto, os braços, o torso reluzentes de suor frio. Pelas comissuras dos lábios arroxeados escorre-lhe uma secreção rosada. Inclinada sobre o marido, Santina de quando em quando limpa-lhe a boca e o queixo com uma toalha branca. O silêncio do quarto é arranhado pelo som estertoroso da respiração de Guilherme. Com o estetoscópio ajustado aos ouvidos o médico por alguns segundos detém-se a auscultar o coração e os pulmões do doente. Guilherme ergue o braço, sua mão procura a de Santina. Ela segura a mão do marido, que volta para ela um olhar patético, pedindo ajuda. – Vou lhe dar uma medicação para baixar a pressão arterial, o alívio não vai tardar. O acidente vai ser superado com a medicação, e o nosso doente dormirá a noite toda. Deixem que amanhã ele acorde espontaneamente. É necessário que permaneça na cama, no mais absoluto repouso – recomenda o médico. - Farei possível em retê-lo na cama – diz a mulher. - O futuro de seu marido é sombrio, por melhor que seu estado de saúde possa parecer nos próximos dias ou semanas. Há a hipótese de ele morrer de repente. Portanto, vocês devem estar preparados. Podem levá-lo a um hospital 86 na capital ou em São Paulo, aqui nós não temos clínicas especializadas para esse tipo de tratamento. Mas Guilherme não quis nunca e não quer agora, sujeitar-se a qualquer tratamento sério. Por conseqüência, lá está ele seriamente doente reduzido à imobilidade, e a uma invalidez que é a maior desgraça que podia acontecer a um homem do seu temperamento agitado. Está perdendo a visão afetada pela diabete, seu coração está fraco e ainda por cima seu candidato perdeu a eleição. Ele está sem saber que rumo tomar, porque seu mundo está ruindo. Lembra-se com saudade da sua atuação na vida pública. Sempre teve a volúpia do jogo da política. Fazialhe bem à alma ser admirado pelo povo, prestigiado pelos donos do poder, indispensável no seu meio. Janice soube por amigos, do estado preocupante da saúde de Guilherme. Decidiu deixar de lado as mágoas do passado e fazer-lhe uma visita. Foi recebida cordialmente pela mulher Santina, que a conduziu ao quarto do doente e deixou-os a sós, com a desculpa de providenciar um café. A ex-esposa entra e olha para ele com compaixão expressa nos grandes olhos azul-esverdeados. – Como vai Guilherme? Como está sua saúde? Oh, Deus! Quanto tempo não nos vemos! Parecem séculos. – É! De fato faz muito tempo. Mas você está com ótimo aspecto, parece que para você o tempo não passou. Como vê, eu estou aqui, imobilizado na cama. É a pior coisa que podia me acontecer. Não agüento mais isso! Guilherme é tomado por uma confusão de sentimentos - revolta, culpa, arrependimento, vergonha. Como ficaria feliz se ela lhe pedisse perdão! Então, bastaria ele abafar o orgulho, esquecer a deslealdade e o ressentimento. Enfim, também pedir perdão a ela. Colocarse numa posição de homem superior. Apesar de todo mal que aconteceu, ele a amava ainda. 87 – Sim, ele reconhece a sua culpa. Tinha sido um marido omisso e negligente, muitas vezes cruel e apesar de afirmar que a amava foi-lhe infiel, pois sempre correu atrás de outras mulheres, e o tempo todo esteve envolvido com negócios e tramas políticas. Mas, que diabo! Não é o único no mundo e não será o pior de todos. E afora essas infidelidades e descartada a aventura política que o seduzia e o inebriava, ele sabe que foi sempre um marido exemplar. – Nunca lhe faltou nada – murmura. – Que disse? - pergunta Janice. – Não é nada, estive pensando alto. Santina, sua mulher, entra no quarto trazendo o cafezinho e o remédio numa bandeja. – Está na hora do remédio. – Me dá logo este veneno – resmunga ele. Guilherme pega o comprimido, põe-no na boca com um gesto raivoso e a seguir bebe um gole de água, que está no copo ao lado Olha guloso para o cafezinho da bandeja. – Quero que me dê uma xícara de café – pede. – O médico proibiu o café – diz Santina. A mulher retira-se do quarto levando a bandeja e eles ficam novamente sozinhos. Tem muito pouco a falar. – Não me deixam fumar. Alimentam-me com caldinhos, canjinhas. Proíbem-me de tomar sequer um aperitivo. Não me deixam levantar da cama, nem receber visitas. Acho que vou morrer de tédio e de solidão – queixa-se. E aqui está o Guilherme doente, quase cego, atirado em cima de uma cama, reduzido a uma imobilidade exasperante. E esquecido! Completamente à margem da vida social e política. Os amigos e os correligionários não o visitam, pois as visitas estão proibidas pelo médico. – Devo ir embora, já demorei muito, desejo a você rápida recuperação, Guilherme! Perdoe-me se te magoei, 88 esqueça o passado e conte com minha amizade – diz Janice, abraçando-o, e em seguida dirigiu-se à porta de saída. Santina a acompanha. Esperando na entrada está o pai de Santina, Alfonso Hernandez que veio visitar o genro. O velho senta-se ao pé da cama, tira a faca da bainha, um pedaço de fumo de corda do bolso e começa a fazer um cigarro com toda a pachorra, enquanto pergunta coisas sobre a saúde do genro. Guilherme segue os movimentos do sogro, vê o velho picar o fumo, amaciá-lo no côncavo da mão esquerda com a palma da direita. Depois alisa a palha com a lâmina da faca, enrola o cigarro. Acende-o batendo o isqueiro e tira algumas baforadas. A fumaça espalha-se pelo ar enchendo o quarto de aroma adocicado de tabaco. O doente aspira o perfume, deliciado. – Dê- me um cigarro – pede ao sogro. – O médico não te proibiu de fumar? - pergunta Hernandez. – Proibiu de fumar, de beber, de comer e fazer coisas que eu gosto. Ele não vai saber se você não contar – responde com uma risadinha. Guilherme acende o cigarro de palha, que o outro a contragosto lhe deu, e feliz traga e solta fumaça pelo nariz. De novo desanda num acesso de tosse que o sacode todo. Ergue-se brusco, cospe fora o cigarro, e sempre tossindo e encurvado, torna a deitar-se arquejante, as mãos espalmadas sobre o peito, o busto teso, fica olhando fixamente para fora pela janela aberta como se dela esperasse socorro e alívio. – É um teimoso! – sentencia o sogro e despede-se. A visita de Hernandez demorou pouco. Ele deixou o aposento e dirigiu-se para a cozinha onde a filha preparava a canja de galinha, para o marido doente. Guilherme ficou sozinho no quarto. Uma dor fininha lhe risca transversalmente o peito, como um arranhão feito com 89 a ponta de um alfinete. Ele torna a recostar-se, alarmado, e por alguns instantes fica esperando e temendo a volta da agulhada, os olhos fechados, a respiração quase contida. Deus queira que tenha sido só uma dor muscular. Põe-se a olhar desconsolado para a torre da igreja na praça. Qualquer dia, o velho sino da Matriz estará dobrando para anunciar à Campina da Lagoa a morte do homem e do político Guilherme de Castro Vasconcelos. Num misto de autopiedade imagina o próprio enterro. Será que nesse momento ele tem a premonição do já muito próximo evento? Vê luto na Fazenda Marambaia. A rua em frente da sua casa na cidade apinhada de gente. Decidem levar o caixão nos braços até o cemitério. O tráfego é interrompido por onde passa o cortejo fúnebre. Agora o séqüito está no cemitério, perto da cova aberta em baixo do pé de ficus. – Quero descansar à sombra dessa árvore – apontara o local, ao visitarem o cemitério no Dia dos Mortos. E depois que o enterrarem na cova, coberto de terra e flores, pensa Guilherme, a cidade continuará os seus mexericos, as suas maledicências, lembrando-se apenas dos seus defeitos. E ele ficará esquecido e caluniado como todo político. Com a exceção dos que o amavam, alguns parentes, filhos, poucos amigos e nenhum correligionário, os outros lá estarão por obrigação social ou por puro prazer sádico. Eram uns invejosos, covardes, não podiam encontrar um homem autêntico que não sentissem logo desejo de vêlo destruído e humilhado. Canalhas! Só de pensar nestas coisas Guilherme sente a obrigação de viver. Mas a morte verdadeira não tardou a chegar, e aos 69 anos de vida, num final de ano, ela veio de repente. De manhã, logo depois do banho, Guilherme voltou ao quarto para vestir-se. Debilitado pela doença do coração e com a 90 visão prejudicada, sentiu tontura, ajoelhou-se perto da cama, colocou a cabeça sobre o travesseiro e ali adormeceu para sempre. Não se ouviu um só gemido. Quando Santina veio trazer-lhe o café matinal numa bandeja, viu-o debruçado sobre a cama, bateu levemente no seu ombro e não vendo nenhuma reação ficou alarmada. – Guilherme! você está me ouvindo? – perguntou. Não obteve nenhuma resposta, então correu para chamar socorro. Veio o médico, examinou-o e deu o seu parecer. – Aconteceu como eu previa. Morte repentina. Foram avisados os amigos e vizinhos. Telefonaram para parentes que moravam longe. Janice não guardara rancor do passado, e quando soube do falecimento de Guilherme veio junto com outros familiares para o velório. O esquife foi colocado em cima da mesa, entre quatro círios acesos. Um véu negro cobre o rosto do morto. Seus dedos trançados sobre o ventre têm a cor de cera e seguram um terço de cristal da Boêmia comprado por Janice numa viagem do casal à Europa. Ela colocou-o em suas mãos inertes, simbolizando paz e perdão; a última lembrança que ela lhe oferecia. Janice comovida com a morte do homem que foi seu marido quis prestar-lhe uma homenagem. Reuniu as pessoas presentes no velório, e começaram a rezar o terço em intenção à alma de Guilherme. Um vento gelado entrava pela porta entreaberta, fazendo oscilar a chama das velas. Às dez horas da manhã, com o céu azul, límpido, sem uma nuvem, seguiu o cortejo fúnebre para o cemitério Municipal, onde o aguardava a cova aberta em baixo do frondoso ficus, lugar que ele antecipadamente escolheu. *** 91 Certa manhã, Adriano levantou-se muito cedo alegando ter muitos afazeres a realizar naquele dia. Silvia sua esposa, ficou deitada mais um pouco. Espreguiçou-se e resolveu levantar também. Enquanto saía da cama ouviu murmúrios, uma espécie de gemidos. Aproximou-se da escada que levava ao sótão onde dormia a empregada da casa. Parou no meio da escada e aguçou os ouvidos, atenta àqueles estranhos ruídos e sussurros. Percebeu então, uma voz abafada de homem que vinha do quarto do sótão. Subiu o resto dos degraus e deparou-se com o marido apressado, vestindo a calça. Parada ao lado dele, envergonhada, estava a criada rapidamente enfiando a blusa, deixando entrever os seios roliços. A moça ao ver a patroa, soltou um grito de medo. – Por favor, dona Silvia, não me culpe, ele me obrigou a ter relações com ele – protestou. Adriano, com a esposa a flagrá-lo em erro tão grave e vergonhoso, não soube como explicar tal fato. Saiu do quarto, impotente, humilhado, precipitando-se pela escada abaixo e só apareceu em casa ao anoitecer. A patroa perdoou a empregada e a mandou embora, pois não poderia mandar embora o marido. O caso ficou esquecido, como um fato apenas ocasional. Jamais lhe ocorreu a idéia de outra traição por parte de Adriano, que dizia amá-la e aos filhos, acima de tudo. Não lhe passava pela cabeça que fosse infiel novamente. Então pode-se imaginar a surpresa que foi para ela saber de uma nova traição.Toda a confiança desmoronou. Silvia interceptou uma carta com acrósticos, dele à sua nova conquista. A descoberta foi uma coisa horrível, não conseguia admitir mais uma infidelidade. Ele enamorou-se da sua melhor amiga. Enganava-a com ela. Continuava sendo o melhor dos maridos, enquanto 92 mantinha relações com a amiga! Isso era horrível! Imperdoável! Silvia desesperou-se, chorava e os soluços abafavam-lhe as palavras entrecortadas. – Imagine... A situação agora... Será péssima. Não vou perdoá-lo... Apesar de amá-lo muito – dizia Silvia, chorando e confidenciando o segredo à amiga. – Quase todos os homens cometem infidelidade, é certo, mas o lar e a mulher com quem casaram são sagrados para eles. Desprezam as mulheres fáceis. Perdoe-o – aconselhava aquela. - Sim, sou capaz de fazê-lo, se me pedir perdão – disse Silvia. Não voltarei a ser a mesma, mas vou perdoálo por causa dos filhos, como se nada tivesse acontecido. As relações entre os dois permaneceram tensas, mas não se falava em separação. Havia a possibilidade de chegarem a um acordo, e reconciliarem-se. Mas a irresistível vocação de sedutor e o charme de Adriano falavam mais alto. O brilho magnético dos seus olhos corde-mel e o sorriso insinuante lançado a uma mulher, abrasava-a. Ao entrar na idade madura, Adriano não se acalmara, ao contrário, acentuaram-se seus defeitos e, apesar das têmporas encanecidas e rugas ao redor dos olhos, aumentaram seus impulsos pela aventura. Sumia durante dias em ausências inexplicáveis; às vezes entocado em cafuas de jogatina, ou seguindo ao extremo do país uma estudante alemã da qual estava enamorado, ou chegava ao cúmulo de empreender uma viagem a cidades desconhecidas, sem dinheiro, onde muitas vezes era obrigado a dormir dentro do automóvel estacionado no pátio do aeroporto local. Seu charme cativava todo mundo, menos sua esposa Silvia. Numa das discussões, ela perdeu o controle e o humilhou com uma enxurrada de insultos. Já estava cansada das suas ausências e traições. Adriano era homem de bons 93 modos, de índole pacífica, tinha aversão por discussões. Ergueu a mão pedindo trégua. – Já disse tudo?-perguntou com um sorriso sarcástico. Vou até o bar da esquina comprar cigarros. Volto já. Pegou a mala com roupas que tinha arrumado antecipadamente e colocado no corredor do apartamento, e partiu discretamente sem dizer adeus. Não deixou recado e nem direção para onde ia, a ninguém. Abasteceu de gasolina seu automóvel Landau azul e partiu numa viagem sem volta. Ia esconder-se em qualquer cidade grande, viveria incógnito e em paz. Nessa tresloucada fuga de tudo e de todos, principalmente do problema suscitado com a descoberta de Guilherme do seu caso de amor com Janice, temendo a vingança do marido traído, ele iria até os confins do país, onde ninguém o conhecesse, ali tentaria refazer a sua vida. Tomou o rumo Noroeste do país, alcançou a estrada 364 e seguiu em direção a Rondônia. Num esforço incomum percorreu quatro mil quilômetros. Só parava para abastecer o carro e se alimentar; nesse ínterim cochilava alguns minutos. No quarto dia chegou à cidade de Porto Velho, que se localiza na margem direita do rio Madeira, de clima equatorial e com altitude de 85 m acima do mar. As origens da cidade vinculam-se à construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. No auge da corrida do ouro e da extração da borracha, o local foi escolhido para a instalação do porto fluvial Santo Antônio e da estação terminal da ferrovia. Por volta de 1907, começou a formar-se um povoado em torno da estação, que passou à vila, depois foi elevada à categoria de cidade em 1919, e em1956 passou à condição de capital do então Território do Guaporé, depois Território de Rondônia em homenagem ao sertanista e 94 engenheiro, marechal Cândido Mariano Rondon. Em 1981, Porto Velho torna-se capital do Estado de Rondônia. Adriano chegou à cidade ao entardecer do quarto dia. Procurou hospedagem num hotel modesto, pois lhe sobrara pouco dinheiro para as despesas. Pediu um sanduíche de pão e mortadela e um copo de refrigerante. Após o lanche, recolheu-se para descansar da longa e extenuante viagem. Dormiu a noite e o dia todo. Acordou ao cair da tarde seguinte. Estava faminto. Tomou banho e saiu à rua para jantar, conhecer pessoas e a cidade. Além de trabalhar como representante comercial, Adriano era advogado formado. Fizera o curso de direito aos quarenta anos, numa Faculdade de renome. Tinha profundo conhecimento de leis e se usasse sua excepcional inteligência e muita dedicação, poderia ser um grande causídico na área criminalística, que o fascinava e em cujas leis e meandros havia se especializado, mas era displicente demais para se entregar a causas complicadas e demoradas. Ele tinha pressa em resolver tudo rapidamente. Precisava de dinheiro. Era pessoa sociável e comunicativa; gostava de contar piadas, simpático, não demorou muito em fazer amizade na cidade. Logo foi convidado para trabalhar em parceria, em um escritório de advocacia de renome. Nas suas idas obrigatórias ao Cartório de Registro de Imóveis e Documentos era atendido pela cartorária, cujo nome era Eunice Bezerra da Silva, mulata jovem, bonita, sensual e atraente. Este era o imã que atraía Adriano. A seiva da mocidade e o sangue quente de Eunice latejavamlhe na carne encarcerada. Entre atenção especial e gentilezas mútuas surgiu entre eles um relacionamento amoroso. Começaram a saír juntos. Ele foi conhecer a família dela e continuou freqüentar a sua casa. O pai de Eunice, Vitorio Bezerra, 95 pardo, nascido no Ceará e criado em Porto Velho, antigo seringueiro, era um chefe de família à moda antiga, zeloso e severo. A mãe Marinalva e os filhos Acássio, Eunice e Ventura obedeciam-lhe cegamente. Com a assiduidade com que os visitava, o pai exigiu de Adriano o compromisso de casamento, sem demora. O pretendente alegou que estava se divorciando da esposa. Por sugestão e pressão da família, o casal de namorados viajou até Guajará-Mirim, atravessou a fronteira e na Bolívia casaram-se de acordo com as leis daquele país. Então passaram a viver juntos. A união entre Eunice e Adriano durou apenas dois anos, tempo em que ela engravidou e teve um filho. A convivência diária, as obrigações caseiras e o choro da criança à noite, logo o aborreceram. Viu a vida tornar-se insípida, verdadeira prisão, ele era um boêmio, um pássaro viageiro, precisava de liberdade e espaço para voar. Um belo dia resolveu não voltar mais para casa e sem dar explicações abandonou Eunice e o filho pequeno. O pai dela e os irmãos exigiram o retorno, prometeram vingança e juraram-no de morte, caso o vissem envolvido com alguma outra mulher. Adriano não era homem de ceder por coação de ninguém e seguiu sua vida de aventureiro. Essa foi a sua armadilha e o fim de tudo. Os irmãos Acássio e Ventura ficaram de espreita em qualquer deslize do advogado, que se confirmado, eles não vacilariam em executar a vingança. Tinham plena consciência do caráter mulherengo de Adriano e do seu procedimento aventureiro. Se o pegassem em flagrante delito seria um homem morto. Para não dar origem a qualquer suspeita que surgisse, foram para o garimpo de ouro no Alto Madeira, mas os outros familiares continuaram vigilantes. Depois de dois meses de trabalho árduo, ficaram desapontados com os 96 resultados do garimpo no rio Madeira e os dois irmãos foram tentar a sorte nas minas de cassiterita em Ariquemes. A descoberta do potencial da jazida de cassiterita no garimpo de Bom Futuro, situado a 250 quilômetros de Porto Velho, levou para a região de Ariquemes multidões de garimpeiros de todas as partes do país. Houve uma invasão de aventureiros à procura do minério. Mais de 15 mil pessoas trabalhavam nas jazidas. Muitos se decepcionaram, pois descobriram que só os garimpeiros antigos conseguiam vender o minério diretamente aos grandes compradores. Os novatos, a grande maioria, tinham de submeter-se aos preços baratos pagos pela Empresa Brasileira de Estanho S.A. detentora do monopólio da lavra, compra e venda do produto. *** Adriano Silveira Dorsay era advogado experiente, e com o passar do tempo, conquistou uma boa clientela. Seu escritório de advocacia situava-se no centro da cidade de Porto Velho. Bem conceituado, seus negócios prosperaram. Certo dia, enquanto esperava a visita de um cliente, agendada para aquela manhã, entrou na sua sala uma mulher de longos cabelos negros, saia comprida estampada, o corpete bordado com miçangas, grandes brincos dourados enfeitavam-lhe as orelhas, levando ao pescoço colares coloridos e braços cheios de pulseiras de ouro. Apresentava o aspecto de uma cigana. Ao encarar Adriano se deteve surpreendida, como se já o tivesse visto numa premonição. Aproximando-se dele exclamou numa voz rouquenha, quase inaudível: – Leio em teu olhar, você viverá uma louca paixão que o levará ao túmulo. Tenha muito cuidado com teus amores. Quem te avisa é a cigana Zoya. 97 Adriano terminara com seu último envolvimento amoroso havia pouco tempo e estava decidido a manter-se afastado de qualquer nova aventura a revelia da sua natureza apaixonada. Sabia que estava jurado de morte pelos seus cunhados, caso fosse infiel a Eunice. A vidente lhe tocou a cabeça com dedos experimentados, enfeitados de anéis reluzentes de ouro, examinou lhe a palma das mãos e o declarou Sagitário, tendo como ascendente o Escorpião. Estava marcado pelos signos do sexo e da morte traiçoeira. – Que conversa sem sentido, está querendo me assustar? Fora daqui - gritou, apontando-lhe a porta. A pitonisa Zoya olhou-o tristemente nos olhos, abanou a cabeça com um sorriso de piedade e desapareceu pelo longo corredor. Poucos momentos depois apareceu Noemi Lopes Ibarra. Era uma esplêndida mulata, de formas provocantes e olhos buliçosos. Semelhante a uma estátua egípcia, era alta e de talhe esbelto, pele morena cor de bronze, cabelos negros, longos e lisos. Aparentava ter trinta anos cheios de viço. Era jamaicana em visita àquela capital. Vestia uma saia longa indiana de tecido rústico, rajada de azul e vermelho, camiseta de algodão branca, cinto trançado de corda em várias cores com franjas nas pontas, apertando-lhe a cintura fina e uma bolsa de contas marrom no ombro. Estendeu a mão fina, de unhas compridas pintadas com esmalte vermelho escarlate, ostentando uma larga aliança de ouro no dedo anular da mão esquerda. Adriano olhava-a, surpreso com sua formosura. O cliente, ao qual esperava, era um homem que se nomeou como Diego Ibarra. Disse por telefone, que veio à cidade comprar diamantes brutos e ouro que eram garimpados naquela região. Precisava fazer um contrato de compra e 98 venda dessas gemas. Para isso procurou o escritório do advogado Silveira Dorsay, por indicação de um amigo. – Desculpe-me doutor Dorsay, sou Noemi Lopes Ibarra, vim representando o meu marido Diego Ibarra. A razão que me trouxe até aqui é a elaboração dum contrato, de cujo teor e formalidade ele já o informou. Trago as informações, bem como os documentos necessários para isso. Portanto, vamos trabalhar pois não disponho de muito tempo, os interessados no negócio estão nos esperando. – Ora essa! Porque tanta pressa. Vamos com calma. Já fiz um esboço do contrato. Agora vou completar com as informações que a senhora me fornecer e, se aprovado, estará concluído dentro de poucos minutos. Poderá levá-lo e entregar ao senhor Diego. Noemi, a bela jamaicana, sentou-se perto da mesa, ao lado do computador onde ele trabalhava. A proximidade dela e o perfume francês que usava, e que se irradiava pelo ambiente, incendiavam a imaginação aventureira de Adriano, despertando nele o instinto animal voluptuoso. O coração pulsava-lhe com violência. Fazendo grande esforço para vencer aquela inquietude, e com voz alterada pela comoção, dirigiu-se a ela: – Desculpe-me a ousadia! Ficaria muito feliz se me desses o prazer de jantar comigo hoje. – Infelizmente hoje é impossível! Não posso deixar de acompanhar Diego no jantar oferecido pelos vendedores de diamantes brutos, mas podemos marcar para um outro dia – respondeu ela. – E amanhã, aceitará? Quero tornar a vê-la em breve – insistiu Adriano - não querendo perder a oportunidade de conquistar essa beldade jamaicana. – Não creio que tenhamos outro compromisso urgente para a próxima noite. Mas se tiver um impedimento avisarei. Também estou interessada em trocarmos idéias 99 sobre as leis deste país. Pretendemos ficar mais tempo por aqui do que programamos de início. Acho esta terra e seus homens muito interessantes, fascinantes até. Foi um grande prazer conhecê-lo, doutor Dorsay. – Estou muito feliz em conhecê-la, senhora Noemi. Na despedida, ela estendeu-lhe a mão morena, de dedos longos cheios de anéis, que ele beijou galantemente. – Até a vista – disse ele, com olhar cheio de desejo. Simplesmente estava enamorado dela, desejando-a. Passavam-se os dias e Noemi não dava sinal de vida. Nenhuma notícia. Adriano não conseguia tirar a bela jamaicana do seu pensamento. Até que uma tarde, de um calor sufocante, ouviu-se o toque do telefone no seu escritório. Era ela, a linda Noemi. A tão esperada resolução da moça veio ao encontro dos desejos do advogado. Ela desejava fazer um passeio para conhecer a cidade e queria-o como cicerone, talvez mais tarde poderiam jantar juntos. O marido estava viajando e voltaria só no outro dia. Poderiam passear tranqüilos.Adriano, quase enlouquecido de ansiedade aceitou imediatamente. Combinaram a hora em que ele a apanharia no bar do hotel. Como todo apaixonado que aguarda a sua amada, Adriano não conseguiu mais trabalhar naquele dia. Esperava ansioso a hora em que poderia revê-la. Resolveu passar no hotel com antecedência; estacionou o automóvel na sombra duma árvore a duas quadras do hotel, e foi caminhando até o bar onde ela o esperava tomando um drinque na companhia de um amigo. Cumprimentou-os cortesmente. A moça levantou-se de imediato, ele deu-lhe o braço e os dois saíram para a tarde tropical. Ao saírem da sombra da grande mangueira do parque do hotel, o sol poente refletiu-se no cabelo negro de Noemi, e Adriano embevecido pelo amor, achou que nunca 100 vira algo tão extraordinário. Não pôde evitar o impulso de passar a mão neles. Os cabelos dela eram densos e lisos, emolduravam o rosto de traços oriundos de miscigenação das raças, espanhola, indígena caribenha e negra africana. Ela era um belo exemplo dessa mistura. Longe das vistas dos outros, Adriano e Noemi trocaram um beijo apaixonado na boca. Caminhavam um ao lado do outro silenciosos, aparentemente distraídos, mas absortos em um pensamento comum, sentindo um pelo outro uma atração irresistível. A alguns passos, na retaguarda, caminhavam algumas pessoas, entre eles um mulato alto e forte. Parecia que seguia o casal, procurava não ser visto por eles. Podia ser o espião mandado por Eunice ou pelo marido de Noemi. O braço da moça apoiava-se nervosamente sobre o do advogado. De súbito ele se curvou um pouco para a sua companheira e sussurrou-lhe ao ouvido: – Há uma coisa que está acima das minhas forças... Estou perdidamente apaixonado por você. Quero tomá-la nos meus braços agora e beijá-la muito, muito. Noemi tremia, comovida, mas inquieta olhava para os lados. Receava ser seguida a mando do marido. – Eu também estou apaixonada por você. Não sei como isso aconteceu. Só sei que perdi a paz desde que o conheci. Sonho com você, quero-o loucamente. Você é um bruxo sedutor. A paixão por você me dominou. Num frenesi lúbrico Adriano agarrou-a, levantou-a nos braços e beijou com delírio. A sombra dos dois corpos enlaçados refletia-se na água da piscina, pertencente ao restaurante chinês, para onde o casal se dirigia. Ficaram ali por muito tempo namorando e trocando confidências. Já era tarde da noite quando Adriano se lembrou do jantar encomendado. 101 – Gosta de comida chinesa? – perguntou à moça – e quando Noemi assentiu com um movimento de cabeça, ele a tomou pelo braço e a conduziu em direção ao elegante restaurante chinês, que ficava a uma quadra adiante, no meio do bosque. Lugar de reunião dos boêmios, noctívagos e empresários à procura do prazer gastronômico e companhias agradáveis. A essa hora o restaurante Pequim já estava lotado, mas Adriano era cliente habitual. O gerente o saudou pelo nome e os acomodou numa mesa pequena, no canto, coberta por toalha e guardanapos brancos, no centro um vaso com rosas vermelhas, encomendadas por Adriano. Pediram um aperitivo, escolheram como prato principal a especialidade da casa, o peixe caxara na brasa, acompanhado de arroz e legumes com molho de soja. Adriano escolheu um vinho branco seco para acompanhar o peixe. Sem muita demora o jantar foi servido. E como sobremesa, queijo catupiry com doce de goiaba em calda. – Excelente! Adoro essa combinação à brasileira – disse a moça. Adriano e Noemi saborearam o jantar, lentamente; conversando alegremente, trocavam olhares encantados, apaixonados. Ela falou de sua vida, da viagem que fizera desde Jamaica até o Brasil e à cidade de Porto Velho, onde permanecia já há vários meses. De si mesma disse que era casada há cinco anos, com o também jamaicano Diego Ibarra. O marido era um homem ciumento, possessivo, desconfiado e violento. Não perdoaria qualquer traição, portanto, deveriam ter toda cautela e sigilo no relacionamento que começavam, para mais tarde não arcarem com a demonstração dessa violência. – E agora me fala de você – pediu Noemi. 102 Adriano não gostava de falar de sua vida, foi lacônico e reticente, confirmou-lhe que era advogado formado há oito anos, e que se estabelecera nessa capital havia cinco anos. Nada mais disse sobre si, não aventou nada sobre seu espírito aventureiro ou se tinha família noutro lugar. Quando trouxeram a conta, ela abriu a bolsa para tirar dinheiro, mas Adriano tinha uma estrita educação de cavalheiro, adiantou-se para pagar, mesmo dispondo de seus poucos recursos que lhe sobravam da profissão, e da vida incerta de jogador contumaz. Ninguém sabia da sua vida secreta. Noemi estranhava que Adriano às vezes desaparecia por um ou mais dias, mas ele evitava as explicações. Nos meses seguintes sua relação se estreitou. Encontros furtivos, noitadas em boates e jantares aconteceram. Amavam-se no anonimato dos motéis. Sempre atentos para não deixar a menor pista. Mesmo assim, foram descobertos e seguidos pelo mulato às ordens de alguém interessado no caso. Diego Ibarra foi informado por um bilhete anônimo do que acontecia com sua esposa. Surpreso, e tomado de fúria não se conformou em perder a mulher que amava para um rival qualquer. Resolveu procurar Adriano no seu escritório de advocacia, para tirar satisfações. Era um dia feriado. A porta do escritório estava fechada, parecia que não havia ninguém no seu interior, mas lá estava Adriano, dormindo num sofá. Diego tocou a campainha e, não sendo atendido, disparou três tiros de revólver na porta. Deu chutes com o pé e murros na parede. – Um dia eu te encontro seu traidor! Se cuide, o que é teu está guardado. Estou avisando, deixe Noemi em paz – gritou furioso, bem alto para ser ouvido pelo advogado. Adriano não deu atenção às ameaças de Diego. A proibição foi como um estímulo para ele. Procurava-a mais 103 ainda. Naquela fatídica terça-feira, logo de manhã, telefonou para Noemi, combinaram sair juntos à tarde. Naqueles dias, o marido de Noemi, estava com viagem marcada para os Estados Unidos levando diamantes para vender. Mas primeiro iria para a cidade de Espigão do Oeste, onde os índios da nação Nambikuara (da tribo CintaLarga), do Parque Indígena do Aripuanã, vendiam diamantes brutos, por um preço razoável, conseguidos em profusão na exploração do garimpo do Rio Roosevelt. Empenhado nessa tarefa demoraria alguns dias para voltar. Convidou-a para irem juntos, mas Noemi queixou-se de um mal-estar e disse que preferia ficar repousando no hotel. Dias antes desses fatos ocorrerem, Eunice, a mulher com quem Adriano casara na Bolívia, e com a qual tinha um filho, recebeu um bilhete anônimo com um recado, que o marido a traía com uma jamaicana. Furiosa, resolveu se vingar. Procurou no terreiro de umbanda um bruxo vodu, poderoso, de nome Libório, para que fizesse um trabalho de bruxaria forte e seguro, acabando com a vida dos dois traidores. Libório concordou, e lhe pediu que trouxesse para o ritual de quimbanda, uma galinha preta, uma garrafa de cachaça e um par de sapatos usados do seu marido e outro da moça com a qual ele saía. Ela conseguiu o calçado de Noemi por intermédio de uma camareira do hotel, sua conhecida. Tinha um par de sapato do marido em sua casa. Levou tudo para o terreiro na noite combinada. No início da sessão de quimbanda, emergiu no recinto do terreiro a figura do quimbandeiro. Um negro retinto, esquelético, de chinelos de dedo, malvestido, carapinha eriçada e olhar maligno. Iniciou o ritual riscando um círculo duplo no chão, com giz preto e vermelho. Acendeu velas ao redor, e colocou as cuias de porongo, abertas, que continham 104 amuletos de chocalhos de cascavel, crânios secos de sapo e azas de morcego. A galinha e os dois pares de sapatos foram colocados no centro da roda. Entrou dentro do círculo e em grandes goles ruidosos, bebeu toda a cachaça. Logo se pôs a gesticular e, com voz gutural, a proferir palavras rituais, invocando e incorporando um exu, o espírito do mal. Dançou em volta, freneticamente, uma dança macabra, rosnando sons desconexos, com um punhal na mão cortando o ar. Sacudindo o corpo, os olhos revirados, invocava a morte dos dois condenados. A energia do ritual apossou-se do feiticeiro, então ele pegou a galinha preta e degolou-a com o punhal que tinha nas mãos. Com o sangue esguichando do pescoço cortado da ave, regou até apagar os nomes de Adriano e Noemi escritos no chão dentro do circulo, conjurando com voz horripilante. Depois sugou o resto do sangue que ainda escorria do pescoço, rasgou a galinha em pedaços e comeu a carne crua, jogando fora os restos ensangüentados. Com o rosto e cabelos sujos de penas e de sangue, com voz estranha, deu por encerrado o rito de quimbanda, que durou mais ou menos uma hora. Eunice e o pai assistiram a todo o trabalho de feitiçaria estupefatos, mas insensíveis; queriam vingança. Aquela noite, Adriano e Noemi foram dançar numa boate, depois jantaram no restaurante chinês. Ao sair, dirigiram-se para o automóvel estacionado no recinto. Os amantes estavam tão envolvidos entre si que lhes passou despercebido o passo leve de um vulto que se esgueirou sorrateiro, atrás deles como uma sombra e se escondeu detrás da árvore próxima ao carro parado no pátio do restaurante. Adriano conduziu a moça até o veículo e, gentil e galante, foi abrir-lhe a porta do carro. Não viu que, oculto 105 pela escuridão da noite, estava de tocaia um homem. Nesse momento, o assassino arrancou do revólver, engatilhou e disparou um tiro certeiro na nuca de Adriano. A bala atravessou e destroçou-lhe a cabeça. O segundo disparo foi dirigido, por trás, para as costas de Noemi, que naquele instante entrava e ia sentar-se no automóvel. Atingida mortalmente ela caiu debruçada no painel. Estava morta. Adriano caiu ao chão lavado em sangue. Pessoas atraídas pelos tiros vieram correndo. Ao deparar-se com a tragédia, chamaram socorro médico e policial. A ambulância e os paramédicos não demoraram a chegar, após examinarem os corpos, o médico chefe deu o parecer: – Ambos estão mortos. Não há mais nada que se possa fazer. A policia chegou, fez o registro da ocorrência e foi atrás do assassino, que ninguém viu quem era, e que, com certeza, naquela hora já estava longe, dirigindo-se para o aeroporto e evadindo-se para o exterior. A policia vasculhou o estacionamento, o parque e toda a redondeza. Foram inúteis as diligências para capturar o assassino. Os corpos de Adriano e Noemi foram levados para o I.M.L, liberados e entregues a amigos para providenciarem o enterro. Noemi não tinha parentes na cidade, apenas amigos, que se preocuparam em avisar por telefonema, ao marido Diego, que estava nos Estados Unidos. Ele não se abalou com a notícia, simplesmente, autorizou o sepultamento do corpo de Noemi no cemitério de Porto Velho. As despesas que houvesse, ele as compensaria. O corpo de Adriano foi embalsamado e levado ao aeroporto de Porto Velho, donde foi enviado de avião, para ser sepultado na sua cidade natal, no jazigo da família. A esposa Silvia, filhos e familiares, avisados da trágica ocorrência, aguardavam o caixão com os despojos no aeroporto da sua cidade. 106 Janice recebeu a notícia da morte de Adriano por telefonema de um amigo que estava no local na noite fatídica. A informação teve o efeito de um raio, que a atingiu em pleno coração, paralisando-a. Não teve lágrimas para chorar, nem desesperar. Ouvia apenas o repetir das palavras fúnebres na sua mente - ele morreu... Ele morreu.... Passado o momento do choque, foi tomada por uma incrível sensação de alívio, como se lhe tivessem tirado cem quilos das suas costas. Ficara livre do difícil fardo que o destino lhe reservou – a paixão e o desmedido amor por um homem, que se sobrepôs à lucidez e a razão. Agora não teria mais remorsos por ter traído o marido e não sofreria mais por ciúmes de Adriano, pois ele não amaria e não pertenceria mais a mulher nenhuma. Ela estava ciente da vida aventureira que ele levava. Como homem, gostava de viver perigosamente, portanto, não fora nenhuma surpresa ficar sabendo que a morte sorrateira truncou o percurso desse deslumbrado astro da aventura. Alguns dias depois, subitamente, Janice sentiu que se abriam as comportas da sua dor; o pranto derramou-se em turbilhão, emergiu com toda a força dos confins de onde fora relegado, quando ele foi embora; agora com a sua morte, o sofrimento inundou-a toda numa enchente de lágrimas. Ele morreu... Saiu da vida... Não existe mais... – “Você Adriano, será a grata lembrança da minha vida... eu o amei, e ainda o amo, e só Deus sabe quanto! E o teria matado se desconfiasse que você deixou de me amar. Mas a fatalidade adiantou-se e numa tocaia premeditada, com um tiro certeiro na nuca, disparado por um pistoleiro contratado a morte violenta levou-o para a eternidade “. – “Como viverei sem você, meu amor? Como, realmente? É isso viver?”... 107 Obstinadamente, Adriano não lhe saia do pensamento. Como deveria julgar essa criatura com quem viveu os mais felizes momentos da sua existência? Por quem até hoje anseia, passados todos esses anos, a cada instante, a cada noite, no alvorecer de cada madrugada?... De quem sente o odor do corpo másculo entre os lençóis da cama solitária, nas roupas que ali ficaram, nas velhas camisolas rotas daquele tempo, que guarda até hoje, como relíquias da sua felicidade perdida. Sabia que uma dor como essa demora a vida toda para abrandar. Estava armazenada nos recônditos da memória, nos mesmos rincões onde se esconde o vírus da solidão. E quando a dor serenava, ficavam as cicatrizes doloridas sem que se pudesse tocá-las, por se alojarem nas profundezas do coração. As lembranças dele estão impressas na sua pele, como as digitais dos seus dedos. É nele que pensa, é ele quem ocupa toda sua alma e o sonho de um amor que se esvaneceu no tempo, mas que ainda arde sob sua pele, agora tão baça, com a mesma pulsação inquieta daqueles anos longínquos. É como um rio que sai do seu leito, extravasa os seus limites e inunda os recantos que nem ousaria imaginar existentes. Assim o soube desde o primeiro instante em que o viu, e esse amor não lhe veio como chuva fina, mas era um temporal, era um oceano de emoções que soube ser, verdadeiro e eterno, pois até hoje ainda o ama com igual ardor, mesmo ao termo do seu itinerário terreno. Mesmo que esse oceano já se tenha evaporado e dele só lhe reste o seu sal e alguns escombros de sonhos, como fósseis que ela acarinha com cuidado para que não virem pó. – “Corri atrás das ilusões que aninhei na minha alma, e só quando ela sumiu, sucumbiu, reconheci que era apenas uma loucura, uma fantasia inacessível... Você se 108 foi... apenas sobrou um terrível vazio, como se tivesse fugido a alma do meu corpo, como se fossem retiradas as minhas entranhas, ficando apenas a pele, o esqueleto e a roupa que o veste. O que farei agora?... Viverei de que?... Acabou a minha ilusão! A esperança, fé! Tudo... - “Afinal, que paradoxo! Por que choramos os mortos? Eles têm sorte de escapar desta vida atribulada. Talvez aqui seja o inferno, uma longa sentença de escravidão terrena. Talvez soframos nossos infernos vivendo”... Janice só podia dizer a si mesma – “O tempo cura todas as feridas” - conquanto não acreditasse nisso. E perguntava-se por que continuava a doer tanto. A partida dele criara um vazio tão grande que ela não tinha esperanças de conseguir preenchê-lo algum dia. Pois a felicidade é um estado relativo à disposição do nosso espírito. E ela não queria e não podia esquecer... Começou a sentir raiva da vida, daquela engrenagem invisível que se chama destino. O desalento apossou-se dos seus sentidos. Vagou pelo mundo com a alma deserta no auge do seu tormento. O mundo maravilhoso da sua juventude transformou-se em areia movediça. Ela viveu por Adriano, como poucas mulheres viveram por um homem, um ente que nunca foi de todo seu. Era como um cometa que se deslocava pelo céu da vida, de braços em braços das mulheres que conquistava. Era como uma ave de arribação que sentia a necessidade de migrar, de voar, de seguir os seus anseios e, nesse vôo insensato, levou consigo a alma de Janice, e se ela não seguiu com ele, foi pelo capricho da vida que a impediu. Hoje, passados tantos anos, ainda recorda aquele primeiro encontro à tarde na cabana de caça, em todos seus detalhes. Sim ainda hoje, milhares de tardes depois, busca 109 aquele corpo rijo, sensual, aquelas mãos cálidas, morenas, de dedos longos, acariciando o seu corpo. Ainda escuta a sua voz acariciante que vem de muito longe, do além, talvez do fundo da sua própria alma, já pouco lúcida. A vida, depois a morte, os separou, mas não para a eternidade, pois o amor não se perde no tempo e no espaço; fica ali de plantão esperando paciente, até a vinda do ser amado para se reintegrarem. Pela vida afora, Janice vagueou sem eira nem beira, qual uma folha seca levada pelo vento, qual uma gaivota solitária voando perdida sobre o oceano. Arrastava uma existência morna e indiferente, sempre ocupada com suas recordações.Os mesmos temporais avassaladores que lhe haviam varrido a alma quando conhecera Adriano, agora em suas lembranças a devastavam de novo. Quando de manhã o sol assume o seu reino, a desilusão e o desengano tornam-se um ritmo delirante que precisa abrigar-se à sombra da noite Para sobreviver aos seus fantasmas ela espera ansiosa a noite chegar e então procura dormir... Sonhar... Agora, quando ao olhar-se no espelho já não reconhece a mulher que foi naquele tempo, mas ainda cultiva com carinho as suas lembranças. Solitária, caminha pelos corredores da casa apoiada numa bengala, repensando a vida; depois, já cansada dirige-se a seus aposentos e senta na poltrona azul do seu quarto. Lá dentro a luz velada do abajour desenha fantásticas figuras na parede branca, que dão ao lugar um ar misterioso e desconcertante. Então ela procura na ampla coleção de livros que possuí, romances que falam de amor com palavras tão belas que a fazem esquecer a barbárie humana e a dor que a tortura. Nessas ocasiões afunda-se na leitura por horas a fio. Refletindo sobre o transcurso da sua vida, Janice não tem do que se arrepender. Viveu um sentimento intenso 110 que valeu a vida, mas que só permaneceu indefinidamente gravado no mundo paralelo dos seus sonhos... Indeléveis ficaram pairando no espaço os resquícios dos devaneios de amor e as cinzas esparsas dos desejos irrealizados. Durante muitos anos Janice ficou perambulando, perdida pelos labirintos da vida; sente o inverno na alma, está fatigada e quer parar, está cansada do egoísmo das pessoas, da hipocrisia, das injustiças, da corrupção alarmante, da violência do mundo, dela mesma. Doem-lhe as juntas, os pés, as costas, os ossos, o corpo todo. Só sua cabeça funciona perfeitamente. O espírito está sempre alerta, divagando, ainda sonhando... Dentro desta carcaça envelhecida, ainda sente, ainda sonha, e se impacienta com as restrições que o seu corpo expressa. A velhice é a mais amarga vingança que o nosso Deus, magnânimo, nos inflige. Por que não nos leva antes de envelhecer o corpo e debilitar a nossa mente? Janice lembrou-se que o tempo correu muito depressa; não percebeu, mas já estava velha. Estava próxima da libertação do seu espírito, da escravidão terrena. A sege que levará seu corpo para a cremação está postada em frente da sua casa, como um fantasma, esperando o termo do itinerário predeterminado ao nascermos. Concentrada em seus pensamentos, olhava os telhados a gotejarem o que restou da chuva da noite. Pingavam gotas d‟água das folhas das árvores do pomar. Contemplava em silêncio, a terra molhada, a grama verde brotando do chão, a vida continuava apesar de tudo... De sobra, para seu maior sofrimento, doía-lhe ver as árvores com os troncos descascados, os galhos quebrados, os amores perfeitos arrancados dos canteiros, as calçadas parecendo faces desdentadas, as paredes e muros sujos e riscados por vândalos da rua. Móveis quebrados, roupa rasgada e sapatos velhos jogados nos rios, já cheios de 111 entulho diverso, a água escura e fétida deslizando lentamente por entre os barrancos desmoronando. Mendigos e crianças maltrapilhas e cães esfomeados. O trôpego velhinho a caminhar pela calçada com seu passo vacilante. Parecia-lhe que cada uma destas formas e criaturas estava doente, pedia socorro para as suas dores: - “Veja como sofro, por ignorância e maldade das pessoas, e só você me ouve e compreende a minha mágoa”. Estava perplexa diante da iniqüidade, da miséria e da dor do mundo. Este milagre, só o consegue o amor, este sentimento puro que enternece e envolve a alma humana quando a domina sem limites. E esta singular capacidade de sentir a dor alheia acordou em Janice agora, quando a imensa dor pessoal atingiu-lhe o coração. Jesus Cristo, o Ser Iluminado, pregava que o amor é a força mais poderosa do Universo. Ele ensinou que Deus é Amor e o amor é a força criativa que supera todos os problemas do mundo. A imagem Dele colocada na mesinha do seu quarto, clareava com a pequena chama em azeite que tremeluzia noite e dia, posta na esperança e na fé de acalmar a inquietude do seu espírito. Sentia-se sozinha num mundo solitário, mesmo cercada por pessoas. Sua alma era sonhadora como a da Gaivota Tayná, cujo espírito e energia da vida, vindos de outras dimensões, alojaram-se no seu corpo material. Ela ansiava pela volta da sua alma ao espaço cósmico. Os espíritos, seres etéreos que povoam o espaço, sabem o que ocorreu no passado e também o que sucederá no futuro, porque em sua dimensão não existe o tempo. *** Enquanto Janice se debate com o seu destino, a cortina do fantástico palco da vida se abre novamente, e entram em cena novos personagens, que fazem parte da 112 grande multidão que povoa o mundo, envolvidos entre si pela sucessão de fatos que ocorrem, muitas vezes, independente de sua vontade; também sofrem e vivem seus mútuos dramas tanto ou mais dolorosos como os dela. Assim, surge o cidadão Vital Gaudêncio da Silva, baiano, de quarenta e oito anos e de pele morena; conservava a beleza máscula da sua juventude, o vigor e o gosto pela vida. Seus olhos negros e buliçosos não deixavam passar mulher bonita sem segui-la, desejosos. Casado com dona Francisca, mulher tranqüila e de hábitos pacatos, dedicada inteiramente aos afazeres caseiros e aos filhos; ela não dava importância aos galanteios do marido às outras mulheres. No ano de 1953, no auge da colonização do Norte do Paraná, influenciado pela propaganda e pelos corretores de terra, mudou-se com a família para a ainda incipiente vila de Herveira. Estabeleceu-se com uma pequena loja de tecidos e armarinhos. A afluência da clientela era grande, e ele precisou ampliar a loja e empregar mais balconistas para atenderem à demanda. Antes de contratar os serviços das candidatas, conferia os seus conhecimentos e a prática no ramo. Dentre as moças contratadas estava Dalva, uma morena bonita, de talhe esbelto, dona dum andar ondulante que despertava a tentação nos homens. Sua face era de um perfeito oval e a pele cor de canela ressaltava a cor dos olhos de um intenso verde-cinza. Entretanto, o que era mais fascinante naquele rosto emoldurado por cabelos longos de um castanho escuro, com reflexos de bronze, era a boca rasgada de lábios polpudos palpitantes e sugestivos. Dalva era filha de Graciano Ferreira, irmão de Perpétua, mulher de Lourenço de Castro Vasconcelos. O pai de Dalva administrava a Fazenda Marambaia, de propriedade de Lourenço e do sobrinho Guilherme. 113 Graciano possuía um sítio de dez alqueires de terra com casa, onde moravam. Na gleba, cultivava vinte mil pés de café, trabalho realizado com a ajuda dos filhos e de dois peões contratados. Paulista de antiga estirpe era de natureza severa, autoritário, opiniático, chefe de família de estilo patriarcal. Zelava principalmente pela honra e pelo bom nome da família. Jamais permitiria algum deslize no âmbito moral. A jovem Dalva era prima de Guilherme, marido de Janice, e de natureza ambiciosa como ele. Após concluir os estudos num colégio em Tupã, pretendia arrumar um trabalho e ficar morando na cidade. Seu pai não permitiu e por sua ordem, mesmo contra gosto, voltou para casa. De temperamento irrequieto e voluntarioso, não se adaptou com o trabalho doméstico, nem com a vida pacata do sitio. Vivia às turras com a mãe. Então, se o pai permitisse, se dispôs a ir trabalhar nalguma loja ou farmácia da vila. Em férias escolares conheceu Adauto, filho do comerciante Vital Gaudêncio da Silva. Nos encontros à tarde, na roda de amigos, ele mostrava-se atencioso e solícito com Dalva. A amizade logo passou a namoro firme e promessa de casamento. Adauto estudava na capital do Estado.Terminaria o curso no final de ano.Formado, com o diploma de engenheiro civil na mão, iriam marcar a data do casamento, que devia ser em breve. Diziam-se apaixonados. Certo dia, em que a família almoçava Dalva arriscou falar com o pai sobre o emprego. – Peço permissão ao senhor, meu pai, para trabalhar na loja de tecidos do senhor Vital Gaudêncio, pai do meu noivo, que está precisando de balconistas. – Em princípio a idéia não me agrada. Não gosto ver minha filha trabalhando fora; preciso verificar as condições e o ambiente onde você vai trabalhar, conversar com o dono 114 da loja, pessoa que já conhecemos e fazer certas recomendações – comentou Graciano. – Então o senhor vai me deixar trabalhar fora? – perguntou Dalva, entre alegre e esperançosa. – Calma, ainda vou resolver – respondeu o pai. À tarde Graciano foi conversar com Vital. Tendo se entendido nos detalhes mais importantes, o pai prometeu mandar a filha para o emprego no outro dia cedo. Dalva era uma moça inteligente e esperta, logo se adaptou ao trabalho e era uma funcionária muito eficiente. No contato diário entre patrão e empregada Vital apaixonou-se perdidamente pela moça, mesmo sabendo que ela era namorada e prometida de seu filho Adauto. Certa vez, estando ela e Vital lado a lado, a mão dele roçou de leve na sua. Nesse momento os olhos de ambos se encontraram e ele lera nos olhos verdes da moça tudo quanto desejava saber. Ela retirou a mão, desviou o olhar, mas ficou toda perturbada, o rosto afogueado, os lábios trêmulos. Impulsivamente despertou nele o desejo libidinoso de possuí-la, sem medir conseqüências. Que iria acontecer agora? Seus sentimentos para com a moça eram de tal natureza que ele já achava difícil escondê-los aos olhos dos outros. Estava perdidamente apaixonado. O negócio estava ficando perigoso. Podia dar complicações com sua esposa, com seu filho Adauto e com o pai da moça. Persuadiu-se que essa ansiedade que sentia na alma, nos nervos, deixava-o desorientado. Gostava de Dalva, necessitava de sua presença e, quando a tinha perto de si, a vontade de tocá-la, de abraçá-la, de beijá-la era tão forte que chegava quase a doer fisicamente. Vital queria a moça, namorava-a com olhos famintos. Disso ele tinha certeza, e quanto ao resto? Mas o que era o resto? Possuí-la? Descobrir que ela o queria? Não 115 podia esperar que Dalva pudesse levar muito longe aquele interesse por ele, um homem mais velho, casado e ainda por cúmulo, pai do seu noivo. Mais de uma vez surpreendera a moça a olhá-lo dum modo estranho, que não deixava dúvida. Conhecedor da arte da sedução, Vital insinua-se a ela, procura atraí-la com belas palavras, enche-a de atenções e privilégios no ambiente de trabalho. Assedia-a constantemente. Certa vez, no final do expediente, quando todas as funcionárias já tinham ido embora, a moça fechou o caixa, em seguida dirigiu-se apressadamente ao lavabo, que ficava ao lado do seu escritório. Ele seguiu-a numa insensata esperança. Entrou no vestíbulo. Lá estava ela a olhar-se no espelho retocando a maquiagem, correu para ela, agarrou-a pelos ombros, fê-la dar meia-volta, puxou-a contra o peito e beijou-a com furor. Sua boca sugou como uma ventosa os lábios da moça, que no primeiro momento ficou como que paralisada, o corpo retesado numa instintiva atitude de defesa. Em seguida, porém, ele sentiu que os dedos dela entravam em seus cabelos, numa carícia desordenada, e que aquele corpo quente, terno e palpitante não apenas se entregava, mas também procurava o seu. Pôs-se a beijar-lhe as faces, a testa, os olhos, numa pressa gulosa. A boca da moça então tomou a iniciativa, colou-se avidamente à sua, o que o deixou desatinado. Suas mãos começaram a percorrer o corpo dela, numa ânsia cega e dilaceradora de posse e desejo. Sentindo, porém, que ela desfalecia nos seus braços, a cabeça atirada para trás, os olhos semicerrados, um débil gemido a escapar-lhe da boca entreaberta, teve de enlaçar-lhe a cintura para que ela não caísse. Ergueu-a nos braços e levou ao seu escritório, deitando-a no grande sofá. 116 Esperou ela se recobrar do desmaio, e com toda a paixão contida a possuiu. Tudo fora relativamente rápido. Ela relutara muito, defendera-se durante um tempo, mas ele a subjugara à força de seus músculos e beijos ardentes. Depois do fato consumado, Dalva fora acometida de uma crise de choro, de arrependimento. Ele procurou consolá-la com beijos e palavras de carinho, até que ela ficou mais calma. Depois ficaram deitados no sofá, com os corpos enlaçados, peito contra o peito, ventre contra o ventre, quietos, mudos, num delicioso torpor. Sobressaltada com o adiantado da hora, Dalva levantou-se do sofá, compôs a roupa, calçou o sapato e penteou o cabelo. Mais tranqüila, pegou a bolsa com a maquiagem e aproximou-se da porta. – Por favor, deixe-me ir agora, sim! Em resposta, ele a fez sentar-se sobre seus joelhos, beijou-lhe a boca com uma ternura arrependida, que pouco a pouco se foi transformando em desejo, fazendo com que suas mãos começassem a passear pelo corpo da moça. Queria-a novamente. – Vamos parar com isso, agora! O que estamos fazendo é errado, é pecaminoso. Isto tudo é uma loucura. Eu o queria, sim, mas isso é abominável. – Queres então terminar com tudo? – perguntou estacando furioso diante dela – eu não permitirei. Não quero, pois não consigo mais viver sem você! – Meus pais me esperam em casa. Estão estranhando o meu comportamento, estou chegando muito tarde do emprego. Meu pai me avisou que se eu estiver fazendo algo errado ele me mata. – Então vá! É melhor você ir embora agora, antes que teu pai apareça a tua procura – resolveu ele. O relógio cuco de parede bateu a última badalada das nove horas. Vital estava zonzo, perturbado, pôs o 117 chapéu na cabeça, abriu a porta do gabinete e saiu. Parou no caminho, indeciso. Não seria melhor avisar o pai que ela saíra mais tarde da loja, porque fizera serão para marcar mercadorias? Deu de ombros, ela que se entenda com ele. Fechou a porta da loja e começou a andar, as mãos nos bolsos, o cigarro pendente dos lábios. Era uma noite clara, grilos trilavam, estrelas luziam, cachorros latiam em casas longínquas, sapos coaxavam na lagoa próxima. Sentia ainda nos lábios a pressão dos lábios dela, e nas narinas o perfume dos seus cabelos. Seu corpo inteiro ainda latejava de desejo, o coração descompassado. Ela me ama... Ela me deseja... Ela é minha... É só ter um pouco de paciência. O resto não importa, o mundo que se dane. O frescor da brisa noturna e o silêncio da rua deserta contribuíam para essa impressão de irrealidade, sentia-se aéreo e trêmulo, com um vácuo na cabeça. Pensava naquela moça de dezoito anos que lhe entregou a virgindade, sentia remorsos. Sentia pena de Dalva, sim, pena, porque para ela aquele episódio representara sofrimento. Não fora só um dilaceramento físico, mas também psicológico. Caminhando a esmo pela rua encontrou Amadeu da Rocha Mendes, comerciante, um amigo fiel, em quem depositava total confiança. Desabafou com ele, contou-lhe todo seu desatino. – Então você já possuiu a moça?- quis saber o Amadeu. – Ainda agorinha mesmo que aconteceu tudo – respondeu eufórico Vital. – Desista, não a procure mais, enquanto é tempo. – Agora é tarde, estou loucamente apaixonado. – Já pensou em tudo que pode acontecer? – Já pensei muito. 118 – E está disposto a agüentar todas as conseqüências, inclusive a vingança do pai? Estou lhe prevenindo; pense no seu filho que é noivo dela. Qual será sua reação quando souber do seu procedimento escuso? – Espero que nunca fique sabendo. Por outra, sou maior de idade e meu filho não é nenhuma criança, é um homem adulto, vai compreender. – Então lembre-se da tua mulher dona Francisca. – Meu amigo, você está fazendo uma tormenta num copo d‟água, por ora, não aconteceu nenhuma tragédia. – Tem certeza que não há perigo nenhum? – Pois que haja! Se houver, responderei por ele. – Puxa! Então a coisa já está séria demais. Vital admitiu que estava apaixonado. Não adiantava negar. Por alguns momentos ficou apreensivo, temendo que houvesse algum mexerico na cidade em torno da sua relação com Dalva, fato que ocultava no maior sigilo. – Quero evitar falatório, talvez uma tragédia. – Desista dessa loucura que não haverá desgraça. – Mesmo que eu queira, não vou conseguir esquecer a minha grande paixão pela Dalva. – Faça o possível, por você e por ela. Esqueça-a. O relógio bateu a última badalada da meia noite. Francisca sua mulher, já estava dormindo. A casa estava silenciosa. Vital sabia que não conseguiria dormir e ali estava a fumar, inquieto, com um sentimento de arrependimento e de irritação que vinha do desejo insatisfeito. Aonde iria ele parar com aquela obsessão pela moça? Conhecia-se suficientemente bem para saber que não descansaria enquanto não a possuísse novamente e que, mesmo depois, seu apetite por ela não ficaria saciado, pois haveria de querer tê-la mais vezes, muitas vezes. Até quando? Até quando?... 119 Naquela tarde de domingo, Vital viu Dalva passear com o filho Adauto, que veio da capital do Estado visitálos, aproveitando um feriado prolongado, eles iam de mãos dadas, pertinho um do outro, conversando e rindo; naquele momento sentiu um ciúme violento, na forma de uma súbita sensação de desfalecimento, dum choque fisicamente doloroso. Sentiu-se logrado, insultado, feria-lhe o orgulho de homem. Ela o estava traindo. Não foi à loja no dia seguinte, pois seu estado de espírito oscilou, entre uma melancolia depressiva e uma irritação que o deixava impaciente com tudo e com todos. Já não pensava mais em deixá-la em paz, conforme tinha prometido a si mesmo. O que queria agora era tornar a vêla, tê-la nos seus braços. Esse desejo estava tornando-se uma idéia fixa, uma espécie de doença crônica. Pensou no filho Adauto e na esposa, com um sentimento de culpa. Eles não mereciam aquilo. Pensou nas conseqüências que aquela aventura poderia ter; não sabia com certeza, mas sentia que agora era tarde demais para recuar, mesmo que quisesse. Sabia que sua vida não corria perigo imediato, mas a possibilidade de ser descoberto pelo pai dela, naquela situação, causava-lhe um grande temor. Detestava a idéia de ver-se envolvido num escândalo. Pensava com horror no ridículo de ser pilhado com a moça. Havia momentos em que ele pensava apreensivo, no futuro. Não queria perder a esposa Francisca e era insuportável a idéia de enfrentar o filho Adauto. Um dia em que Dalva veio mais cedo ao trabalho na loja, Vital chamou-a ao escritório. Enquanto ele, alvoroçado, fechava a porta à chave, ela se sentava no sofá, constrangida. E quando a beijou, seus lábios permaneceram frios, inertes. – Que é que você tem? – quis saber Vital. Estava enfadada dele? Havia outro? Entregara-se ao Adauto? 120 Tomando-a nos braços, sacudiu-a com violência. Dalva olhava-o com os olhos cheios de lágrimas. Houve um silêncio de alguns segundos, ao cabo do qual Dalva se levantou do sofá, aproximou-se, fitou nele os olhos alarmados e disse num ímpeto de choro: – Estou grávida, grávida! – disse aos soluços. – Grávida? – repetiu ele. – não é possível. Como é que você sabe? Sem coragem de encará-lo, os olhos postos no chão, contou que sentia tonturas, enjôos, e que já fazia quarenta dias que não menstruava. – Santo Deus – balbuciou ele – isso é terrível. – E agora – soluçava ela – e agora, que vai ser de mim? Que fará meu pai quando souber? Com certeza ele vai me matar. Vital, por longos momentos ficou imóvel e calado, enquanto Dalva continuava a chorar. Pensava no que podia acontecer se as suspeitas da moça se confirmassem. Seria o escândalo, o ridículo, seu nome arrastado na lama. Sem pensar na reação do pai dela, que era um homem duro, preconceituoso e implacável. Sua vida corria perigo. Acercou-se dela, sentou perto e pôs-se a acariciá-la, passando a mão, de leve, no cabelo e no rosto. – Tenha calma – pediu – não desespere, daremos um jeito. Agora o melhor a fazer é você sair do emprego, e não nos vermos mais. Conheço um médico que dará uma solução nesse problema. Darei o dinheiro para às custas. Dalva levantou para ele a face desfigurada pelo pranto. Tremia, totalmente descontrolada. – Eu prefiro morrer a fazer o aborto. Vital ergueu-se, começou a caminhar de um lado para o outro, nervoso. – Alguém mais sabe disso além de nós dois? Dalva sacudiu a cabeça negativamente. 121 Vital pensava numa saída estratégica. Se ela estava grávida, teriam ainda no mínimo três meses para agir, antes que começasse a aparecer sinais externos do seu estado. Tinham que recorrer ao aborto sem perda de tempo, ao que ela se negava. Como tudo aquilo era sórdido, estúpido! – E se Dalva casasse com seu filho Adauto? Eles são noivos. Se casassem antes que se revelasse o estado da moça, a honra dela ficaria salvaguardada. Adauto a ama de verdade e não teria coragem de abandoná-la mesmo depois de descobrir a verdade. Sim, o casamento seria uma solução adequada para o caso. Depois ele podia ajudar o filho a instalar um escritório e a residência em outra cidade, pois, no final do ano Adauto estaria recebendo seu diploma de engenheiro civil. – Com discrição e habilidade tudo vai se arranjar, sem escândalo – raciocinava – com o pensamento voltado para a melhor maneira de solucionar o problema. Ao cabo dessa longa e minuciosa reflexão Vital soltou um suspiro de pesar. Só de pensar nessa saída, sentiu que o sangue lhe subia à cabeça e o coração se apertava. Como era capaz de pensar numa coisa tão torpe, tão baixa? Enganar o próprio filho? A possibilidade daquele casamento lhe dava um sentimento de culpa, de arrependimento. Céus, como é que tenho coragem de maquinar uma coisa destas? No entanto, era uma solução... Sim, e a criança? Mesmo que casassem logo, poderia Adauto acreditar que era o pai? No entanto, por mais brutal que parecesse, a solução mais prática e mais rápida era o aborto. Mas como Dalva se justificaria perante os pais? Que desculpa daria a eles? Viajar para outra cidade a fim de fazer a interrupção da gravidez era impossível sem contar-lhes tudo, sem omitir nada. Que reação teria o pai? Era de caráter violento, com certeza iria limpar a honra com sangue. 122 A moça saiu do emprego da loja, com a desculpa de ter encontrado uma melhor remuneração, como vendedora, no armazém varejista de secos e molhados, ferragens e defensivos agrícolas, pertencente à Amadeu da Rocha Mendes, amigo e confidente de Vital. Já haviam decorridos dois meses que Dalva trabalhava no armazém, mas algo não estava bem, ela estava deprimida, chorando pelos cantos. Os pais desconfiavam de que algo grave a atormentava. – O que você tem filha? Porque vive triste? Ouço-a chorando à noite na cama. Se você está aprontando alguma coisa errada de que possa se envergonhar, vai se ver comigo, ouviu? – ameaçou o pai. – Não tenho nada, pai, fique sossegado. Naquela manhã, como em todos os outros dias Dalva levantou cedo, não quis tomar café nem comer nada, estava pálida, enjoada, vomitando. A mãe Ana ficou preocupada O sexto sentido feminino alertou-a da possibilidade de Dalva estar grávida. – Filha! Você se entregou ao teu noivo? Fale a verdade à sua mãe. Se for isso que aconteceu devemos imediatamente tomar as providências, apressar o casamento. Devo falar com teu pai. Confessa, diga alguma coisa, filha! – Não aconteceu nada, mãe, juro! Apenas estou com dor de cabeça. Deixem-me em paz. Já vou indo trabalhar. Por causa da desconfiança da mãe, que tinha fundamento, Dalva estava desesperada, perdida, sem saber o que fazer, pois tinha um verdadeiro pavor do pai. Naquele dia estava desatenta no trabalho, apática, andava pelo armazém como sonâmbula. Num certo momento, dirigiu-se para os fundos do armazém, pegou a escada, encostou-a na prateleira e do alto apanhou uma lata pequena de formicida. 123 Escondeu-a no bolso do uniforme. Em seguida dirigiu-se à casa da gerente e pediu um copo d‟água. Afastou-se, e num canto escondido, despejou o conteúdo da lata no copo. Misturou com o dedo e tomou o veneno todo num só gole. Dentro de instantes começou a gritar de dor e contorcer-se segurando o estômago. Tremores violentos sacudiam seu corpo. Não eram ainda quatro horas da tarde, quando esse fato terrível aconteceu no interior do armazém do Amadeu. Havia gritos, correria e choro desesperado. Ninguém sabia o que realmente tinha acontecido. Os balconistas da loja não sabiam o que fazer para socorrer Dalva, pois não havia médico nem hospital na vila. Chamaram o farmacêutico, mas esse nada pôde fazer nessa circunstância. Uma longa agonia seguiu-se então. Dalva gemendo de dor, com a boca, a garganta, o esôfago, o estômago corroídos pelo veneno, um vômito sanguinolento com pedaços de mucosa a escorrer-lhe dos lábios queimados. Sentia dor dilacerante, ânsia com violentos espasmos, a respiração rouca e crepitante dos agonizantes. Nos últimos estertores, tombou no chão, os olhos exorbitados e vítreos, o rosto lívido contorcido numa expressão de dor violenta, os lábios e o queixo queimados pelo veneno. Estava morta. Sua agonia durou aproximadamente duas horas. Os pais, a sua tia Perpétua, seus primos Guilherme e Adelaide, bem como outros parentes da moça, foram avisados. A mãe acorreu de imediato, mas desolada não agüentou o choque e caiu desmaiada, foi socorrida pela cunhada Perpétua e levada para sua casa. Guilherme e Amadeu, o proprietário do armazém, providenciaram o enterro, pois o pai dela, Graciano, não compareceu. Levaram o corpo da infeliz vítima da inconseqüência humana, para a capela do cemitério local, 124 onde foi velado. O enterro foi logo de manhã acompanhado por um pequeno grupo de parentes e pessoas amigas. Pairava no ar um clima de tristeza e revolta. O mistério sobre o suicídio perdurava, ninguém sabia o que levou a moça a esse ato tresloucado. Especulava-se muito. Amadeu não deixou de comunicar a infausta ocorrência ao seu amigo Vital Gaudêncio da Silva, que não compareceu ao velório da sua amada, desapareceu da vila por um longo tempo. Esperou a poeira assentar sobre a tragédia pela qual era responsável. Adauto o noivo, quando soube da fatalidade ficou inconformado. Ele amava Dalva. O pai de Dalva não veio ver a filha suicida e ninguém o viu no enterro. Para afastar-se da morta, do remorso que o corroia, desesperado pela crueldade com que a tratava, encilhou um cavalo e nessa noite fatídica saiu a correr, alucinado, pelos pastos com medo de enlouquecer. Esporeava o animal para que corresse cada vez mais, numa carreira doida. O bicho espumava pelas ventas e corria enlouquecido, quando pisou numa pijuca, tronco de árvore podre. Ao ouvir o estrondo da casca apodrecida, assustou-se, empinou e derrubou Graciano da montaria. O homem ao cair ficou com a perna direita presa no estribo. O cavalo galopou desnorteado pelos pastos por muitas horas arrastando o cavaleiro. Ao passar em cima dum formigueiro de saúvas, que se estendia por intrincados túneis subterrâneos, que são verdadeiras crateras, o formigueiro afundou, e a pata traseira do cavalo caiu dentro do buraco; ao tentar arrancá-la desvencilhou do estribo a perna do homem, que rolou para dentro da toca das formigas, já agonizante. Ao cair da noite, o cavalo voltou para casa, sozinho, veio correndo, cansado, escorrendo suor do pêlo do corpo. Ao notarem a ausência de Graciano, os filhos ficaram 125 alarmados, e imediatamente foram procurá-lo. Vasculharam minuciosamente os pastos, a mata, o cafezal e o rio. Após a demorada busca, encontraram apenas o esqueleto dentro do formigueiro onde tinha caído. As formigas devoraram o corpo do pai de Dalva. Foi o final desse doloroso drama de luxúria e intransigência humana. *** Mais uma tragédia que se consumou, no rolar da roda da vida; mas essa é apenas a continuidade, outras virão, porque a vida não pára e os seres humanos incautos e inconseqüentes as provocam. Pessoas de características peculiares mesmo sem intenção, interferem na vida de outros personagens. Acássio Bezerra e o irmão Ventura tiraram uns dias de folga do garimpo de ouro no Rio Madeira, próximo à vila de Abunã, onde garimpavam, para visitar os pais em Porto Velho.Iam aproveitar o tempo para pescar no Rio Madeira, nas proximidades de aldeia Tinguá, distante vinte quilômetros da cidade, rio abaixo. Alugaram uma canoa, pegaram os apetrechos de pesca e desceram o rio, até o local onde achavam houvesse fartura de peixes. Envolvidos com a pescaria não perceberam a rápida mudança do tempo, própria do clima tropical. O vento forte que soprava do norte levava a canoa rio abaixo, apesar dos esforços de ambos, remando contra a correnteza. O grito de Acássio chamando por socorro perdeu-se no ruído da tempestade, que se desencadeava com todo fragor; os relâmpagos e estampidos do trovão sucediam-se quase sem intervalo; torrentes de chuva caíam com ruído atordoante sobre as rochas; o estrépito das ondas aumentava, e tudo se fundia num caos grandioso, porém terrífico. 126 O céu pardacento, carregado de nuvens plúmbeas, como que se abaixava para afogar a terra. Nuvens que pendiam ameaçadoras a poucos palmos da água. O vento morno e pegajoso varria as folhas soltas e sacudia com violência as árvores raquíticas que cresciam por entre as pedras dos rochedos da margem. Rolava a areia branca da praia fazendo montes alinhados. Quanto tempo ficaram eles assim expostos à chuva, lutando, tentando levar o bote até a margem, não o saberiam dizer. A tormenta se afastou devagar; o ruído do trovão perdeu-se ao longe; as nuvens se dissiparam, os raios dourados do sol iluminaram a superfície pacificada do rio. O sol saiu, arrancando do solo véus retorcidos de fumaça, fazendo as folhas das árvores tremular e lançar de si prismas de brilhantes e dando ao rio o aspecto de uma enorme serpente de ouro rolando ribanceira abaixo. Depois, esticando-se de um lado a outro da abóbada celeste, um duplo arco-íris apareceu, perfeito em toda sua extensão, tão rico em colorido sobre o fundo azul escuro das nuvens, que teria deixado pálida e insignificante qualquer outra realidade. Os irmãos Acássio e Ventura conseguiram trazer o bote até a margem. Amarraram-no com corda a uma árvore. Encharcados pela chuva, os dois homens procuraram a direita e a esquerda o caminho que os levaria à aldeia próxima. Porém, viram perdendo-se na distância, a trilha que buscavam. Logo adiante, serpeava um caminho irregular, pelo meio da mata, acidentado pelas chuvas e pelas patas das mulas carregadas com cestos de bambu cheios de raiz de mandioca, atravessados no lombo da alimária que por ali passava, rumo à aldeia Tinguá. Era um povoado misto, de descendentes de índios Caripuna e antigos seringueiros. 127 Abrigaram-se numa palhoça indígena, onde secaram a roupa e se alimentaram com raiz de mandioca cozida e carne de anta assada no espeto, fornecida pelos nativos. Os visitantes estavam com sorte, pois à noite haveria festa com forró na aldeia. Os habitantes iam comemorar a boa colheita do milho, de tradição indígena. O terreiro destinado às danças, apresentava-se seco e aplainado. Não ia demorar a entardecer e o povo começou a chegar. Primeiro os meninos adolescentes, curiosos, depois os homens, as mulheres carregando ao colo as crianças de peito, e junto a elas o resto da criançada da povoação com seus cachorros magros, e atrás, de bengala, devagarinho, os velhos. Vinham todos assistir às danças. O velho Chico Seresteiro saiu de seu rancho trazendo a velha rabeca e quando ele a tocava, de leve, ela sorria, gemia, soluçava ao roçar o arco delicadamente como pétalas de rosas caindo, ao tocar o chão. Era aquela beleza! O caboclo Joaquim encarregava-se da sanfona, que alardeava a batucada pelo terreiro e pelo sertão adentro. E havia sempre alguém à mão para ocupar-se do pandeiro e do triângulo, que davam o ritmo ao forró, ao samba e ao baião. O baile ia solto, as caboclas na maior animação rebolavam os quadris, os pares acompanhavam o remelexo. A alegria era geral, as crianças e até os velhos meio estropiados, se soltavam pelo salão de terra batida. No final do baile, quase o dia amanhecendo, a sanfona começou a tocar uma música lenta. Acássio pegou na mão da linda cabocla Diadora, que o enfeitiçara com a sua beleza morena, envolveu-lhe a cintura com o braço, puxando-a para junto de si. Ele era um excelente dançarino. Produzia na moça uma sensação extraordinária estar assim em contato com ele, sentir-lhe os músculos do peito e das coxas, absorver-lhe o calor do corpo. Isso era excitante; as batidas do seu pulso se haviam acelerado, e ela notou 128 que ele o percebera pelo jeito como a fazia girar mais depressa, apertando-a ainda mais contra si, encostando o rosto no cabelo dela. Terminado o baile Acásio acompanhou a jovem até a cabana dos pais dela. Era uma choupana simples feita de pau-a-pique, coberta de folhas de palmeira. Despediram-se com um abraço e beijos no rosto. Ele tentou beijá-la na boca, mas ela se esquivou. Nos dias seguintes todos notaram na aldeia a mudança na fisionomia da moça. Era como se vivesse em eterna primavera; pois voavam andorinhas de felicidade em sua alma. Floria e borbulhava em vitalidade e alegria. Seus olhos negros, oblíquos, ganharam fulgor, às vezes, ficavam tristes e melancólicos, outras vezes sonhadores. Naquela semana Diadora foi para a cidade de Porto Velho, onde eventualmente trabalhava como doméstica. Caminhando pela rua, pensativa, percebeu que naqueles poucos dias houve uma grande mudança no seu coração. Apaixonara-se por Acássio. Antes, semanas atrás, ontem ainda, andando pelas ruas da cidade não encontrava nelas nada de original. Via as pessoas apressadas caminharem pelas ruas atulhadas de gente, automóveis circularem pela cidade buzinando nas esquinas, os donos de lojas recebendo seus fregueses com sorrisos. Para ela tudo era indiferente Nada a interessava. Mas agora lhe veio uma nova visão do mundo, começou a enxergar a realidade da vida e a sofrer junto. Sentiu o indivíduo maltrapilho pedir socorro em silêncio, lançando olhares desesperados; igual aquele cavalo com a perna quebrada. Em cada mulher pobre via uma lavadeira cujas mãos, carcomidas pelo sabão, alimentavam a família à beira da miséria e da fome. Cada criança miserável parecia-lhe já destinada, à passar o dia, remexendo nas latas de lixo a procura de sobra de alimento. 129 E não só as pessoas a interessavam. Lastimava o cansaço do cavalo que puxava as pesadas carroças, e a dor que sentiam nos pescoços esfolados pelo arreame, as chicotadas do condutor que batia sem piedade. Comovia-se com o medo do cão que andava pela rua e uivava baixinho, pois tinha perdido o dono. Com o desespero da esquálida cachorra, com as tetas secas, que em vão corria pelos regos da rua a procura de alimento para si e para os filhotes. Diadora começou a sentir pena de todos esses seres. No seu coração selvagem, igual a um diamante bruto, aflorou um sentimento nobre, o da compaixão pelas criaturas que sofrem, despertou para o mundo em volta, porque começou a amar. E o amor opera milagres. Surpresa consigo mesma, começou a admirar o pôr do sol, a ouvir o murmúrio da cascata, o canto dos pássaros, o desabrochar das flores do campo e o cintilar das estrelas nas noites enluaradas, via e sentia a beleza das coisas, porque seu coração estava feliz. Naquela noite do forró na aldeia apaixonou-se pelo moço Acássio o qual, de momento, não lhe correspondeu o afeto. O interesse dele pela moça se extinguiu com o fim do baile. Ao retornar ao garimpo, absorvido pelo trabalho, relegou-a a um segundo plano, esquecendo-se dela por completo. Mas, ela continuou pensando e sonhando com ele. Em vão esperou a sua visita no final de semana, quando voltou ao casebre dos pais. Decidida a conquistá-lo procurou recurso com uma bruxa. Conhecia a feiticeira índia Aragana que fazia milagres nessa área; encarregou-a de preparar uma beberagem poderosa a qual faria ele delirar de amor por ela. Incumbiu-a de procurar um meio seguro e fazê-lo tomar o chá mágico, invocando o seu nome. Pelo trabalho prometeu pagar-lhe uma boa quantia em dinheiro. 130 Acertado o preço, Aragana foi para o acampamento do garimpo “Bom Futuro” em Ariquemes, executar o feitiço encomendado. Chegando lá perguntou por Acássio Bezerra. – Ele vai chegar neste momento, do trabalho – informou-a o amigo dele. – Eu espero – disse ela – e sentou-se no banco de madeira da hospedaria. Acássio chegou já de banho tomado, e sentou-se à comprida mesa do jantar. A feiticeira Aragana era uma mulher de meia-idade, ainda bonita de rosto, mas tinha algo de maligno no olhar de pupilas escuras; os cabelos negros longos, ela os prendeu com um lenço colorido. Ao pescoço trazia uma fita preta da qual pendia um amuleto feito de caveira de filhote de raposa. Aragana era descendente de índios Caripuna, habitantes da região do rio Madeira e seus afluentes desde o norte da Bolívia. Charmosa e muito amável, levantou-se do assento e foi conversar com Acassio, assentou-se ao seu lado, pegou o prato para servir-se da comida variada e farta posta à mesa. - Quer que eu o sirva? – ofereceu-se solícita. - Sim, agradeço, pode servir – respondeu. Ela foi colocando os diversos alimentos no prato de Acássio, no final pegou a garrafa de água e encheu o copo. Sigilosamente misturou a beberagem preparada e pôs o copo em frente dele. Continuou conversando animadamente com todos que estavam sentados à mesa. No final do almoço ela olhou o copo do Acássio. Estava vazio. Com certeza ele tinha tomado a poção mágica. Por um infeliz acaso a armação não deu certo e o tiro saiu pela culatra. Em vez do objeto do amor de Diadora beber a poção preparada, foi um velho rabugento, de nome Pracídio que trocou o copo e bebeu o líquido vorazmente. 131 Por coincidência Pracídio morava na aldeia Tinguá e voltava do garimpo nos finais de semana. Enlouqueceu de amor o velho bode, com o rosto enrugado como maçã assada. Sonhava com a jovem, fazia versos louvando-lhe a beleza e a juventude. Passou a assediá-la em todo canto. – Oh, minha doce amada – cantava Pracídio fazendo serenata em baixo da sua janela. Ela protestava com violência, não sabia como se livrar deste tormento. A cortina estava quase fechada, mas a luz da lamparina a querosene que ardia dentro da sala dava às coisas contornos fantásticos. A escuridão descia rápido do céu. A mulher estava aí parada no canto, com cara de assombração. Confusa, não sabia como resolver o problema que sem querer criara. Ela queria o Acássio e viera para ela um velho teimoso, que não parava de azucriná-la com seus galanteios. Até que uma noite quando o homem ensaiava com sua voz esganiçada, mais uma serenata, a moça soltou o cachorro Tigre e o açulou a investir no velho Pracídio. O cantor não esperou para ser despedaçado pelo cão. Fugiu o mais rápido possível, e nunca mais apareceu. Nos dias de folga do emprego, Diadora gostava de trabalhar na horta da sua mãe. Preparou e adubou um novo canteiro. As sementes de alface jogadas por ela dormem no segredo da terra, até que uma desperte à vida latente. Então se espreguiça e lança timidamente para o sol um inofensivo galhinho. Regada pelo sereno da manhã ela solta uma folha, depois outra, mas o mato é mais rápido, começa a invadir o seu espaço, e pode sufocar a frágil plantinha. É necessário capinar a erva invasora. A moça busca a enxada e começa a trabalhar. A saia godê, curta e jovial, balança e toca de leve as pernas roliças, enquanto a moça maneja a enxada. 132 Diadora, neta do cacique Uinaré, era uma deusa de beleza rara, de tez bronzeada e olhos oblíquos. O garimpeiro Acássio, de passagem pela aldeia, parou para admirá-la, e teve a impressão de que aquele povoado começava a tornar-se extremamente interessante. Sim, voltaria para cá mais vezes nos finais de semana. Quem sabe, a linda moça lhe daria uma chance. De repente, o azul claro do céu tornara-se escuro, um vento forte soprou do sul, impeliu nuvens espessas sobre os campos e fez chover como se o céu se houvesse rompido, despejando um aguaceiro em cima da terra. O trovão rolando sobre as serras, um fato inesperado nessa época do ano, em que tudo esverdeava e floria e o cheiro doce de magnólia se misturava ao aroma das roseiras, um odor que pairava sobre a horta e era disperso pelo vento. A jovem procurou, contrariada, o abrigo de um velho alpendre; apoiara-se no cabo da enxada e fitava malhumorada os grossos pingos de chuva que caíam. O temporal também pegou Acássio de surpresa, enquanto de longe, olhava embevecido para a moça da horta. Vendo-a recolher-se no alpendre, para lá se dirigiu, correndo, para fugir da chuva. E foi grande o seu espanto ao deparar-se com a moça que conhecera no forró da aldeia, da qual gostara tanto, mas esquecera depois. Mais perplexa ficou ela, que tinha mandado preparar o elixir do amor pela feiticeira Aragana, para fazê-lo tomar às ocultas. A tramóia não alcançou o seu objetivo, mas Acássio estava ali, ao seu lado. Realmente o destino era imprevisível, e ela ficaria chocada com o desfecho final. – É você, Diadora, o meu par predileto do forró da aldeia Tinguá? Que surpresa agradável! – exclamou ele. – Acássio, estou muito feliz com esse encontro, quando você chegou do garimpo? Estava ansiosa para encontrá-lo – comentou com ingenuidade. 133 Com essas palavras encorajadoras da jovem ele aproximou-se, pegou a sua mão e puxou-a para junto de si. Abraçou-a fortemente beijando-a no rosto, tentando os lábios. Querendo safar-se, a moça encolheu o corpo macio e esgueirou-se para escapar dos braços fortes do rapaz, mas foi infeliz no gesto, caiu no chão batido escorregadio, liso pela chuva que tinha caído do telheiro. Acássio ao acudi-la caiu também. Envolvidos, rolaram pela terra molhada até o rio e só pararam quando a água freou a sua queda. O moço segurava-a forte e ria. Mostrava os belos dentes brancos, fortes como os de um jaguar, e soltou um grunhido profundo. Diadora estava deitada sob ele na água rasa, a blusa colava-se nela, e ele viu seus belos seios redondos e firmes, que não se escondiam num soutien, mostrando-se livres e provocantes na sua perfeição. Sentiu sob as suas mãos sua carne nua e aí começou então a puxar e apalpar, rasgandolhe a blusa em tiras, arrancando-lhe a saia e o corpete, e ainda lutando, deitou sob aquele corpo magnífico com todo peso do seu corpo. – Seu cachorro! – gritou ela. Me larga! Vá embora, seu rato! – Batia nele, chutava-o e empurrava-o para longe. Mas ele não a ouvia. Ele estava como que embriagado, fazia coisas que jamais teria feito, de que mais tarde, se envergonharia. Mas agora estava como que tomado por uma loucura; arquejante e em estertores, agarrava os seios desnudos dela, beijava-os, trêmulo, e tentava ao mesmo tempo despi-la completamente e também despir-se. Isto ele não conseguiu mais. Uma dor intensa jogou-o para trás, escureceu-lhe os olhos. Sentiu essa dor lancinante na parte inferior do abdômen. Ele uivava como um cão ferido, rolando na areia molhada. – Oh! – ele berrou – meu Deus! Que dor terrível. 134 O pontapé da moça, acertado na região dos genitais, fora horroroso. Dor alguma é maior. Grito algum rasga mais o ar do que esse pavoroso desespero. Quase meia hora ele esteve deitado na areia da margem do rio antes de ser capaz de pensar claro outra vez e mover-se lentamente. Apertava com as duas mãos a genitália e batia terrivelmente os dentes. Lágrimas de dor e ódio escorriam-lhe pela face. – Essa humilhação eu nunca vou esquecer – gritou ele com voz rancorosa. – Pois saiba que a mim ninguém toma com violência e você tentou me estuprar - disse ela lentamente, acentuando bem as palavras. - O meu homem eu mesma escolho, e ele vai receber de mim, no momento certo, quando eu quiser, tudo espontaneamente, com maior carinho. – E por quem você está esperando hein? – gritou ele. Tem que ser um príncipe? Você é fina demais para um garimpeiro, não é? Que decepção! – pegou um punhado de areia molhada e jogou no rosto da moça. – Um porco permanece sempre um porco imundo – disse ela – e levantou-se de um salto, deu-lhe um bofetão na cara, de despedida, e saiu correndo pela estrada. Um minuto depois já desapareceu atrás das árvores da floresta. Com essa triste experiência, quando foi quase estuprada pelo homem que ela pensava amar, Diadora resolveu esquecer Acássio. Ele não merecia o seu amor, era um abusado, não respeitava as mulheres. Devia ser castigado e ela fez isso, ele foi atingido em cheio no seu amor próprio. No outro dia à tarde, para esquecer os seus recentes dissabores, Diadora saiu a galopar no seu cavalo zaino, quando soou atrás dela o típico trotar de um cavalo a galope. Um moço apareceu na volta do caminho, acenou- 135 lhe e em poucos minutos estava a seu lado na areia molhada da margem do rio. – O que faz aqui, Acássio? Não bastou o castigo que lhe apliquei? Vá embora, não quero vê-lo nunca mais, você não sabe respeitar as pessoas, nem seus sentimentos. – Estou de folga. Eu a vi cavalgar e resolvi acompanhá-la no passeio. Peço-te, por favor, me perdoa o acontecido ontem! Estou muito arrependido. Ela não respondeu, apenas arrancou algumas folhas da gramínea que crescia na margem do rio, na areia onde sentava, amassou-a na palma da mão e jogou-a para longe. Suspirou fundo, estava decepcionada com todos os homens. Não acreditava em ninguém. – Por favor, vá embora! Não quero companhia, quero ficar sozinha. Gosto e prefiro ficar admirando as águas do rio e o verdor da floresta. – Pelo que vejo está de mal com a vida, não quer me perdoar. Então adeus! Talvez algum dia possamos nos encontrar novamente – comentou Acássio. Voltou a montar o cavalo e saiu galopando pela trilha da mata. Para certas naturezas toda a emoção, toda a afeição perde o seu valor à medida que se lhas manifestam e sabendo disso, Diadora repelira Acássio com dureza. Ele teria que pagar o preço do desprezo por sua ousadia. Em despedida acenou com a mão, lançando-lhe um olhar terno que despertava o desejo, que nunca seria concedido, desejo que se tornava mais profundo por ser negado. Entardecia... O céu aparecia translúcido entre nuvens azuladas, vagas sombras escorregavam sobre a terra. Nessa hora os pirilampos começaram a sair da mata e invadir o céu, faiscando com sua luz fosforescente. A tarde estava cheia de sussurros e silenciosa beleza. Da floresta e do brejo flutuavam aromas, também cheiravam as águas do rio. 136 Os castanheiros centenários, as pacovas e o capim da margem respiravam com o vento brando que lhes agitava as folhas. O largo e agora novamente lento Madeira refletia as estrelas e o grande disco da lua cheia que surgia no horizonte, cuja luz desmanchava-se nas águas, em claras e brilhantes manchas douradas. Diadora desceu para o rio, queria banhar-se nas águas mornas. Despiu-se e deixou o vestido na margem sobre a areia e nua mergulhou nas, agora mansas ondas do rio Madeira. Soltou o longo cabelo que flutuando dentro d‟água dava à ela a aparência de uma sereia. Seu vulto magnífico, bronzeado, brilhou por sobre a transparência da água quando ela se levantou e deixou rolar sobre o corpo o líquido que pegava na concha das mãos e massageava o busto, o ventre e as coxas. Parecia que a deusa das águas estava ali a oferecer o seu corpo escultural às caricias do espírito das águas. *** Na hora crepuscular em que a figura nebulosa da ninfa Diadora usufrui tranqüilamente do contato tépido das águas do Madeira, não se sabe, se por acaso ou por obra do destino, outras pessoas entram em cena, correlacionadas entre si, para viverem a cadeia de eventos dramáticos que a vida lhes reservou. Na manhã seguinte, com o céu encoberto pelas nuvens, ouve-se o reboar longínquo do som rouco dum motor de avião voando alto, muito acima da densa floresta mato-grossense. Na aldeia indígena dos Apiacás os guerreiros reunidos estavam alerta, olhavam para o céu a procura da presumida aeronave, mas não se via nada. O monomotor Cessna encontrava-se a 5.000 mil metros de altura, muito próximo da massa densa de cirroscúmulus, nuvens de chuva cinzento-escuras constituídas de 137 cristais de gelo que começava a envolver o avião e sacudilo como se fosse uma pluma. Ouviu-se a voz preocupada do comandante Menelau da Fonseca: – Estamos perdidos, sem rumo certo, a bússola não funciona apesar de ter sido testada na última revisão. Voamos muito acima da camada horizontal de cúmulosestratos que ficam abaixo de 3.000 mil metros. Não consigo vislumbrar uma abertura entre a camada densa de nuvens, que iguais a flocos de algodão, estão esparsos pelo céu bloqueando a perspectiva para orientar-me visualmente. – Não se preocupem, não fiquem com medo, pois com sorte devo ultrapassar esse empecilho, em segurança. Espero que algum avião que esteja voando nessa região não se desvie da rota autorizada e não venha colidir com nosso aparelho, o que seria um desastre fatal. – E o rádio de bordo está funcionando, senhor comandante? – perguntou aflito, um dos três passageiros. – Infelizmente não, senhor. Há muita interferência no ar por causa da tempestade que se avizinha, e não consigo comunicar-me com a torre de controle de Vilhena. Depois de várias horas de vôo incerto, o avião começou a baixar por entre as nuvens pesadas. O piloto era um navegador experiente, contornou as nuvens carregadas de granizo e aproveitou uma clareira que se abriu nos estratos-cúmulos, permitindo-lhe atravessá-los com segurança. Restabelecida a comunicação por rádio de bordo, o comandante pediu a torre de controle a autorização para aterrissagem no aeroporto de Vilhena. O Cessna pôs-se a baixar, voando em grandes círculos. À medida que se aproximavam do chão e o piloto pousava o avião na pista, os passageiros puderam ver a cidade de Vilhena. Sede de município situa-se próximo à divisa Oeste de Mato Grosso, 138 à beira da estrada de rodagem 364, que liga Cuiabá a Porto Velho, capital do Estado de Rondônia. Os viajantes eram o botânico Ronaldo Lemos Queiroz, o etnólogo Hipólito Bueno da Costa e o médico Dr. Juventino Pedrosa Junior, estudioso de doenças tropicais. Os três profissionais eram recém-formados pela Universidade Federal de São Paulo. Não estava nos seus planos uma viagem em etapas, o destino de todos era a cidade de Porto Velho, onde deveriam iniciar as pesquisas das quais foram incumbidos. Após desatar os cintos de segurança, os passageiros desceram do avião, refazendo-se do susto, mas felizes por estarem salvos e em terra firme. Curiosos olharam em volta. Desconheciam o lugar onde o comandante Menelau aterrissou com a pequena aeronave em emergência. Apresentou-se lhes uma paisagem empolgante, de extensos cerrados cobertos de vegetação rasteira e árvores baixas retorcidas, de casca grossa e suberosa, espaçadas, forradas com um baixo tapete de gramíneas onde pastava em grupos um grande rebanho de gado. Próximo a Vilhena nasce o rio Roosevelt. As nascentes de águas tranqüilas deslizam em linha sinuosa pelas planícies verdes e cerrados deste município. Ao invadir as terras do Oeste de Mato Grosso recebe as águas de diversos tributários. Do lado direito tem como afluente o rio Capitão Cardoso, o Jacutinga, o Santa Maria, o São João e muitos igarapé-açus. À esquerda o rio 14 de abril, o Kermit, do Tiroteio, o rio Branco, o Panelas, o Madeirinha e diversos igarapés, ou rios menores. Suas águas juntam-se às do rio Aripuanã que deságua pela margem direita no rio Madeira, afluente do Amazonas. Tem um percurso aproximado de 1.000 km. O rio Roosevelt corre através das florestas da Reserva Indígena do Roosevelt (tribo de índios Cinta- 139 Larga, da nação Nambikuara), desloca-se ruidoso entre os desfiladeiros da Serra da Providência, no município de Aripuanã e, precipitando-se estrondoso segue rugindo, a carreira doida, chocando-se com violência nas escarpas dos rochedos que lhe atrapalham o caminho. Nuvens de cerração cobrem o vale condensando-se ao longo do rio, dispersando-se na folhagem da floresta. É selvagem, violento e espantoso o espetáculo que nos apresenta. O visitante estaca deslumbrado ante as cachoeiras trovejantes, o rio frenético a esbarrar, espumando nas margens pedregosas e a correnteza sibilante, saltando no seu leito acidentado como idéias desorganizadas de um cérebro desvairado. Além, muito além deste cenário fantástico, desce a corrente suave e tranqüila e depois surgem novos saltos e corredeiras, e o rio espalha-se abrindo os braços para apertar num amplexo lindas pequenas ilhotas, circundadas de praias de areias finas, cintilantes aos raios de sol, iguais às gemas preciosas. As águas revoltas, lambendo as escarpas da Serra da Providência arrancam das pedras e expõe à luz do dia grãos faiscantes de diamantes brutos e pepitas de ouro em profusão, pois o rio é riquíssimo em pedras preciosas. Garimpados pelos índios e comercializados com os intermediários na vila do Espigão do Oeste em Rondônia. Recentemente o garimpo foi invadido por milhares de homens, vindos de diversos rincões do país, à cata de diamantes. Os índios ameaçados e explorados nos seus direitos, pelos garimpeiros intrusos e pelos atravessadores, revoltaram-se ocasionando uma grande carnificina. Foram 30 homens massacrados pelos indígenas. Depois desse incidente desastroso e muito comentado pela imprensa do país, a mineração de diamantes da Reserva Indígena do Rio Roosevelt foi interditada pelo Governo Federal. 140 Esse garimpo, como muitos outros, era palco de violência, roubos e assassinatos, e acidentes com mortes ocasionadas por desabamento de túneis cavados nas profundezas das montanhas. Num desses acidentes morreu soterrado, sem possibilidade de socorro, o garimpeiro Ventura, irmão mais novo de Acássio Bezerra. *** Os três passageiros e o piloto do Cessna, após um descanso de uma hora no aeroporto de Vilhena, e tendo reabastecido o avião de combustível, resolveram prosseguir viagem até Porto Velho, o destino declarado no plano de vôo do Sindacta III. Voltaram a embarcar no avião. O comandante Menelau taxiou pelo campo de pouso preparando-se para decolar. Impulsionado o motor a aeronave subiu sob um céu límpido, no início da tarde, rumo a Porto Velho. O percurso era de 600 km, três horas de viagem aproximadamente. O tempo na região amazônica, de clima equatorial, muitas vezes nos surpreende. De repente, do nada, surgem nuvens escuras que cobrem o céu, que minutos antes estava limpo. Começou a soprar um vento forte que balançava o pequeno avião como um brinquedo. O piloto tentou desviar dos cúmulos-nimbo, nuvens de tempestade carregadas de granizo. Correndo um grande risco, tomou outro rumo. A vista lá do alto proporcionava uma visão extraordinária sobre o cobertor exuberante da floresta amazônica, com árvores de até 60 metros de altura. Voaram durante cinco horas sem direção certa, sem vislumbrar Porto Velho e nenhum ponto de referência. Estavam perdidos voando sobre a imensidão da selva, sobrevoando montanhas, lagos, grandes rios, igarapés e pantanais; surgia uma ou outra aldeia indígena plantada à margem do rio. 141 Finalmente o piloto avistou um campo de pouso, num descampado no meio da mata, deu duas voltas aproximando-se cada vez mais, soltou o trem de aterrissagem e o avião desceu bruscamente roçando a barriga nos ramos mais altos das árvores. Aterrissou dando solavancos, como um grande pássaro ferido, enquanto no seu interior as bagagens rolavam de um lado para outro. Os homens atemorizados rezavam pedindo proteção Divina. Rapidamente os passageiros arrastaram-se para a porta do aparelho. Aberta, o primeiro a saltar foi o comandante Menelau, os outros o seguiram. – Onde estamos exatamente? – quis saber Ronaldo. – Não tenho a menor idéia – admitiu o piloto – como vê, estamos rodeados de selva e de pântanos. Não poderemos sair daqui sem a ajuda dos habitantes locais, se é que queiram nos auxiliar. Era um lugar remoto, onde aterrissou o avião Cessna com os quatro ocupantes. O campo de pouso situava-se na Bolívia a 700 km distante para o sul das cidades de Guajará-Mirim e de Abunã, e a 900 km de distância de Porto Velho. Era um posto avançado do exército boliviano, distante 80 km da fronteira com o Brasil, situado nas planícies de Chiquitos, cobertas pela floresta equatorial, alagadiças, onde nasce o rio Parágua, afluente do lado esquerdo do rio Guaporé. O posto militar ficava a uma distância de 1.000 km da capital La Paz, assistido pelas autoridades militares a cada 15 dias, quando era reabastecido do necessário, como remédios, armas, munição e roupas. Um antigo rádio de bateria era o seu meio de comunicação com o comando na capital. Quando a bateria descarregava não havia nenhum outro meio de transmitir mensagens. No meio da floresta virgem, os militares bolivianos escolheram um lugar seco e desbravaram cinco mil metros quadrados de terreno; ali construíram as suas moradias, 142 criavam animais domésticos e cultivavam mandioca, milho, bananas, laranjas, limões e legumes. A terra era muito fértil e produzia em abundância. Nessa aldeia, os soldados vigilantes das fronteiras viviam com suas famílias. Os passageiros do avião foram bem recebidos pelos soldados. O comandante do destacamento Juan Ariza surpreso mas atencioso, colocou à disposição dos infelizes e inesperados hóspedes a acomodação de que dispunha; redes presas em estacas de madeira, dentro de galpões sem paredes e cobertos de folhas de palmeira. Foi-lhes servida a comida pobre de que eles, os soldados, se alimentavam: carne seca de boi, mandioca cozida e banana verde frita em gordura de boi. Para beber, ofereceram-lhes tereré, refresco de folhas de erva-mate, sorvido com bombilha em cuia de porongo. Apesar do temor e desconforto, os náufragos da selva logo começaram a cochilar, estavam cansados, não tinham dormido nas últimas vinte quatro horas. Tinham vivido muitas emoções fortes desde o momento em que o avião de Menelau da Fonseca se perdera na imensidão da selva amazônica. Não souberam por quanto tempo dormiram nem quantas cobras, lagartos, ratos, lacraias, e outros animais passaram em baixo de suas redes. Quando despertaram do prolongado sono, já descansados, levantaram das redes e foram conhecer a aldeia. Encontraram uma grande palhoça redonda com piso de terra batida. Num dos cantos havia um altar com fetiches de vodu. Nas estacas, em frente da aldeia, estavam enfiadas cabeças empalhadas de onça e caititu, caveiras de macaco e jacaré, mascaras talhadas em madeira, vasilhas de barro moldadas pelas mulheres e tantos outros amuletos. Depois de quatro dias de descanso, os brasileiros acidentados, atendendo ao conselho do alcaide da aldeia, resolveram continuar a viagem a pé. Juan Ariza forneceu- 143 lhes um barco, quatro índios quíchuas que iriam servir de guia, alimentos e armas para a caminhada de retorno. Infelizmente não havia nafta para abastecer o avião, que forçosamente devia ficar no acampamento aguardando o possível futuro resgate. Portanto, não tinham outra opção, foram obrigados a enfrentar a selva virgem, amedrontadora, caminhando, penetrando na mata, margeando os rios ou navegando de barco. Tinham a esperança de alcançar o rio Guaporé que faz fronteira do Brasil com a Bolívia, poderiam navegar rio abaixo, no rumo norte, até encontrar a civilização. O rio Guaporé nasce na Serra dos Parecís, no oeste do Estado de Mato Grosso, corre na direção noroeste até atingir a margem direita do rio Mamoré, em Rondônia, na altura de Rodrigues Alves, onde se juntam as águas dos dois rios. São seus afluentes pela margem esquerda os rios Beni e Abunã, e em seqüência as caudalosas águas recebem o nome de Rio Madeira até a sua foz no Amazonas. Assim que entraram na mata virgem foram atacados, ferrados e sugados pelas muriçocas, pernilongos, carrapatos e miríades de outros insetos vorazes. Estavam cobertos de insetos da cabeça aos pés; não podendo livrar-se deles, resignaram-se e decidiram suportá-los. Os peregrinos avançavam por uma espécie de vereda apenas marcada na selva, que árvores e arbustos haviam fechado, mas ainda usada pelos índios e animais que se dirigiam ao rio a fim de matar a sede. Caminharam durante mais de uma hora, mas o esforço rendeu pouco, era impossível adiantar o passo naquele terreno pantanoso. Vagavam por entre as árvores, sem saber para onde se dirigiam. Tiveram de atravessar vários charcos com a água até a cintura. Em um deles, Hipólito pisou em falso e deu um grito ao perceber que afundava no barro movediço e eram inúteis seus esforços para sair do lodaçal. Ronaldo e 144 Juventino alcançaram-lhe a ponta de um galho seco de arbusto que agarrou com as duas mãos, sendo puxado para terra firme. Caminhar a pé pela selva, suportar um calor de 45°C, úmido e pegajoso, seria uma experiência ímpar, arriscada e perigosa. Ao anoitecer a vida aquietava-se, começava baixar o calor sufocante do dia, era hora de repouso para os animais da vasta floresta equatorial. A mata era habitada por miríades de vidas, as mais diversas, de animais ferozes e cobras venenosas. Formigas enormes cortadeiras - cuja picada é muito dolorida - saíam dos formigueiros aos milhares em formação, igual de um exército, subiam e desciam pelos galhos e troncos das árvores carregando fardos maiores que elas. Enxames de vaga-lumes saem junto dos troncos das árvores e se espalham pelo espaço. À noite a selva acordava, vivia. Sob o céu estrelado centenas de espécies de animais saiam em busca de alimento. A noite tropical ficava intensamente povoada de sons e ruídos, de silvos, de grunhidos do queixada de pêlos eriçados e presas ameaçadoras, o rugido da onça, o chiado dos bugios assustados pela proximidade de uma jibóia enroscada no tronco de uma velha árvore, o coaxar dos sapos no banhado e o canto das cigarras. Era um verdadeiro concerto de pássaros e animais, entremeado pelo sussurro do vento entre as ramagens e suspiros da selva que enchiam a escuridão. Havia um ininterrupto murmúrio da natureza, formas sutis de comunicação entre as espécies. Há uma conexão contínua entre todos os seres do Universo, entrelaçados por correntes de energia. Nada existe isoladamente. Era como se pudesse ouvir a pesada respiração da terra. Sob a copa das árvores a escuridão era total. O grito dos macacos, o rosnar das feras, os guizos das cobras cascavéis e os insetos peçonhentos que se arrastavam pelo 145 chão úmido, tudo isso misturado a funestos piados das corujas e o bater de asas dos morcegos formava um clima de terror. Mas o perigo mais imediato, porém, era o de cair em um pântano e ser engolido pelo lodo. A umidade empapava as roupas dos caminhantes, os espinhos picavam sua carne, insetos e enormes lagartas de cores vistosas revestidas de pêlos flamejantes arrastavam-se sob as folhas de arbustos, queimando como fogo a pele,se por descuido roçasse nelas. Os homens andavam devagar, lutando com raízes e cipós, evitando charcos, tropeçando em obstáculos invisíveis, envolvidos pelo rumor constante da mata. Na vegetação exuberante não havia como se orientar, tudo parecia igual. As únicas manchas de cores diferentes, naquele verde interminável, eram as orquídeas e os pássaros de plumagem colorida, que cruzavam o espaço com seus vôos fugazes. A floresta tropical era densa; os cipós enroscavamse de uma árvore para outra, difíceis de serem cortados porque eram duros como ferro. Luxuriantes tufos de flores tombavam do copado das palmeiras gigantescas e insultavam com sua beleza os exaustos e angustiados passantes. A barreira complicada das ramagens entrelaçadas tirava-lhes a energia, e a escuridão era cada vez maior, na proporção que se aprofundavam no interior da floresta. A selva não oferecia nenhuma chance para a vida, aprisionava os intrusos simplesmente. A umidade rachava os troncos podres e o som dos vegetais na agonia da morte emitia ecos rascantes. Ouvia-se os passos arrastados e indecisos dos homens que procuravam encontrar uma passagem sobre a densa e milenar camada de húmus podre e molhado. A trilha na mata era invisível. O terreno não passava de um lodaçal, trançado por ramos e raízes, e a todo o 146 momento os pés dos caminhantes afundavam em uma lama pegajosa, mistura de folhas podres, insetos, vermes e sanguessugas. Naquela vegetação luxuriante não era fácil descobrir uma trilha segura. O grupo avançava quase às cegas, tateando, enquanto os ruidosos macacos lhes atiravam projéteis de fezes do alto das árvores. Seguiam chapinhando em um terreno avermelhado e mole, ensopado pela chuva e semeado de obstáculos, no qual podiam, a qualquer momento, dar uma passada em falso. Havia pântanos traiçoeiros ocultos sob um manto de folhas flutuantes. Tinham de separar os cipós, que em alguns locais formavam verdadeiras cortinas, e evitar os agudos espinhos das cactáceas a enfrentá-los. Levaram muitos dias movendo-se sem rumo fixo cada vez mais perdidos e angustiados. Seus esforços inauditos, vez por outra ilógicos como atos de loucura, que à vontade de escapar das garras da selva, juntavam-se aos ruídos da noite que chegava rápida num lúgubre ressoar. A picada que abriam no meio da selva com esforço incomum não passava de uma espécie de túnel por onde eles iam penosamente avançando. Nuvens de insetos atormentavam-nos, grudavam-se furiosamente sobre a pele suada dos homens, picavam e sugavam o sangue das vítimas, como enxames de vampiros. Era estritamente necessário ficarem atentos a qualquer barulho, principalmente ao bote traiçoeiro da gigantesca cobra sucuri enroscada na árvore, ou deslizando pelo chão da mata, espreitando uma presa qualquer, um queixada, um veado ou um ser humano; a sucuri envolve a vitima e após triturar-lhe os ossos por compressão muscular, engole-a inteira. De acordo com o folclore caboclo ela pode alcançar até 15 metros de comprimento, e engolir um boi. 147 Os guias, índios quíchuas, carregavam a canoa nas costas, dentro levavam as sacolas com a carne seca e bolo de mandioca, jamais as deixando no chão para proteger dos gambás e formigas que não davam trégua, invadiam e comiam todo o alimento que encontravam. Andavam com os pés descalços, enfrentando o chão perigoso coberto por folhas podres caídas das árvores, onde se escondiam aranhas e centopéias peçonhentas. Não podiam enxergar onde pisavam porque a escuridão cobria tudo. Apenas a luz da lua cheia se infiltrava entre as folhas dos gigantescos castanheiros. Os forasteiros calçavam botas de cano longo, que já se mostravam desgastadas pela umidade descolando a sola, que eram amarradas com cipó; mas pelo menos protegiam suas pernas das picadas de serpentes e escorpiões. Na floresta, palmeiras, pacovas, cipós, gigantescos castanheiros, seringueiras, mognos e canjeranas, arbustos e trepadeiras lançavam-se para cima à procura de luz, em lampejos de gotas de orvalho que rebrilhavam como contas de cristal. A selva não deixava que penetrassem nela facilmente, resistia, interpunha obstáculos vários; cipós trançados e lianas floridas e rendadas, que os golpes do machado não causavam nenhuma espécie de dano, além da escuridão que ficava cada vez maior. Os três infaustos passageiros, o piloto do Cessna e os quatro índios quíchua, caminhavam exaustos, com as roupas molhadas, rasgadas pelos espinhos, sujos e desgrenhados, empapados de barro e folhas mortas, mas esperançosos em sair dessa enrascada. Como por um milagre, ouviram o ribombar de uma cachoeira, sinal certo que havia um rio próximo. Caminhando na direção e orientados pelo barulho da água chegaram à margem do grande rio Guaporé. 148 Deslumbrados, olhavam o belo espetáculo da natureza que se lhes apresentava. No íngreme rochedo da margem do rio estavam dezenas de araras coloridas, papagaios, tucanos e outros pássaros, revoando e esperando a sua vez de comer a argila ferruginosa da barranca. Faziam isso para repor os minerais que outros alimentos ingeridos não contém e também para neutralizar as toxinas das frutas consumidas. Também se utilizavam desse recurso natural de cura, os macacos, os caititus, as antas, veados e outros animais da selva. O barulho de gritos, chiados, roncos e vozes era ensurdecedor. Os homens ficaram felizes porque agora a viagem seria mais rápida, mais fácil, menos sofrida. Lançaram a canoa na água, colocaram os pertences e subiram a bordo. Remando rio abaixo a viagem prosseguia tranqüila. Mas não demorou muito, quando ocorreu uma tragédia inesperada, de conseqüências dramáticas. Ficou-lhes gravada na mente, a horrível catástrofe que acabaram de viver. A canoa lotada com as oito pessoas em retirada foi arrastada pela violência do rio Guaporé nas proximidades da cachoeira. Balançando para os lados, estava sendo levada pelas águas revoltas. Os homens lutavam com os remos contra a correnteza. Retesando os músculos, conseguiram desviar o bote para perto da margem do rio. Ronaldo jogou a corda para laçar um galho inclinado à beira da água. Conseguiu prender a ponta, mas no choque violento a canoa virou e os homens foram arrastados para o torvelinho letal. Nadando e lutando contra a correnteza, esperava que todos conseguissem se salvar. Apanhados de surpresa, não acreditaram quando viram o índio quíchua Aruanã ser tragado pela água enfurecida, que gesticulando, lutava ainda com os braços em busca de apoio; ferindo-se nas pontas de pedras afiadas 149 gritava, pedia socorro, mas a onda forte o levou rio abaixo em direção à cachoeira, que se anunciava próxima, pelo eco ensurdecedor e o rolar tempestuoso das águas revoltas. Nada puderam fazer para salvar o homem. Viram-no descer, arrastado pela força da íngreme e pedregosa queda d‟água, depois desaparecer no abismo. Ainda alguns minutos e estaria morto, afogado. Seu cadáver não pode ser localizado, porque certamente estava preso no fundo do rio logo abaixo da cachoeira, de águas profundas cheias de galhos e troncos de árvores levadas pelas enchentes. Com o balançar das ondas o bote preso no galho da árvore desvirou-se, e começou a voltear arrastado pela água, esticando a corda. Os homens nadaram contra a correnteza, com braçadas fortes e com enorme esforço enfrentaram as águas que, rolando e rugindo, reclamavam mais vítimas. Um após o outro conseguiram alcançar e subir na canoa que se equilibrou. Empregando as energias conjugadas puxaram a corda espichada, até encostar a embarcação na margem do rio. Amarraram-na bem firme. Todos estavam exaustos e deprimidos, pelo esforço despendido e pela perda de um dos índios. Resolveram descansar e pernoitar na grande praia de areia branca e fina. Ronaldo, dirigindo-se aos companheiros, decidiu: – Juventino, Hipólito e os índios Raoni e Goiatâ vão providenciar estacas de bambu e folhas de palmeira para armarmos a barraca. Enquanto isso, eu vou juntar gravetos e folhas secas, tentar acender o fogo batendo uma pedra na outra até conseguir faiscas. Assim feito vou preparar o jantar. Tãupi, o índio guia, e Menelau vão pescar alguns peixes para nosso jantar de hoje e desjejum de amanhã. No curso para pilotos de aviação, o comandante Menelau aprendeu durante uma palestra, regras básicas para a sobrevivência na selva nos acidentes aéreos. Seguindo a 150 instrução, improvisou uma vara de pescar com bambu e um pedaço de arame torcido como anzol, amarrou a uma linha feita de fibra de cacto, espetou na ponta uma larva gorda de borboleta, em seguida instalou-se na beira do rio na esperança de pegar algum peixe para comer. Não acreditava que algum peixe beliscasse seu primitivo anzol, e por isso quase caiu de surpresa quando sentiu um puxão no fio. Depois de muito lutar tirou da água um pacu de bom tamanho. Durante vários minutos o peixe se debateu na areia. Menelau limpou o peixe, envolveu em folhas de bananeira e o assou. Jamais tinham provado algo tão delicioso, pois todos estavam famintos. Os outros homens, munidos de facões, entraram na mata à procura de bambu. Não muito distante encontraram uma grande moita, cortaram as estacas e arrastaram até a praia, que naquela hora estava terrivelmente quente. Com a colaboração de todos o acampamento foi planejado e construído em pouco tempo. Era uma cabana de palafitas de bambu, coberta de folhas de palmeira, de uns dez metros quadrados, nos quais estenderam as redes de juta para dormir; ao lado, um caixote de madeira vazio, onde foi colocada uma lamparina a querosene e outros pertences. Para o jantar a sopa de peixe fervia borbulhando numa panela de ferro, suspensa na trempe sobre o fogo, no fogão improvisado de pedras recolhidas na margem do rio. Cansados, os homens trataram de deitar e dormir, nas redes estendidas na palhoça. Ronaldo estava preocupado com o Juventino que ainda não voltara. As sombras da noite encobriam o horizonte, ouviase somente o barulho da correnteza agora mansa do rio. Juventino tinha caminhado na frente e separou-se dos outros, adentrou na mata e andando sentiu os pés feridos; o chão da floresta era molhado e fofo, parecia um grosso 151 tapete que afundava sob os pés doloridos; e como estava muito cansado, sentou-se naquele tapete macio, encostou-se no tronco de um castanheiro e adormeceu profundamente. O calor pegajoso, grudava na pele como uma película incômoda e trazia da selva o silêncio que precede a tempestade. Como tudo nessa terra surpreendente, surgiu inesperadamente no céu azul, até momentos atrás límpido, nuvens escuras carregadas de eletricidade. O vento forte uivava e agitava as árvores, parecia querer arranca-las do chão. Um relâmpago seguido de um trovão acordou Juventino, mas ele só abriu os olhos com muita dificuldade. As pálpebras pesavam e desabavam sem que ele conseguisse firmar a vista. O ar ficava cada vez mais quente e espesso. Num momento as comportas do céu se abriram. A chuva torrencial que caía molhava tudo. Tudo ficava encharcado e flácido, com um intenso cheiro de terra exalando odores de vida e de morte. Só havia a fúria da chuva e dos trovões, quando a tempestade parecia querer arrancar cada árvore, sacudindo-a com rajadas de vento. Emitindo silvos animalescos queria arrebatá-las num vôo alucinado. Cada folha da árvore fazia um esforço supremo antes de se desprender e voltear no espaço. Tateando o caminho no escuro, apenas iluminado pelos clarões dos relâmpagos, assustado e encharcado pela chuva, Juventino procurou o caminho de volta à praia e ao acampamento. Após a borrasca desceu sobre a floresta uma noite clara, com a amplidão tropical povoada de estrelas onde a via-láctea parecia tão próxima e solene. A lua refletia a luz prateada nas águas agora mais calmas, e nas folhas das árvores que farfalhavam ao sopro da aragem morna. Os próximos dias passados na cabana da praia foram tranqüilos, a chuva parou e o céu estava claro, aproveitaram 152 o tempo para colher algumas frutas e pescar. As condições meteorológicas pareciam excelentes, eles não tinham idéia do que os esperava, pois que, já havia começado a estação das águas, o inverno equatorial. Assim, quando o tempo mudou, ficaram isolados pelas chuvas, pelos vendavais, pelas enchentes do rio que arrastava em sua passagem troncos e animais inchados. A provisão de víveres e remédios acabou, agora só havia peixe que pescavam no rio, frutas silvestres e bananas verdes que apanhavam na mata. Andavam, saltando pelas trilhas enlameadas, de pés no chão com as calças rotas arregaçadas até os joelhos. Sentiam-se perdidos, numa luta estéril com a chuva, que a cada investida ameaçava carregar a cabana, com os mosquitos que em cada pausa do aguaceiro atacavam com uma ferocidade terrível, subindo pelo corpo, picando, sugando, deixando ardentes vergões, e larvas sob a pele, que em pouco tempo abriam feridas supurantes. Com os animais ferozes e famintos que vagavam pela selva, povoando-o de sons ensurdecedores que tiravam o sono. Um dia, reuniram-se com as primeiras luzes difusas do alvorecer entrevisto entre as nuvens, para trocar idéias e tentar resolver a situação desesperadora. Ronaldo sugeriu que deviam arriscar e abandonar o acampamento da praia, continuar a viagem a pé margeando o rio Guaporé, e de canoa quando houvesse condições de navegar no rio, sem cachoeiras e pedreiras no fundo do leito. Partiram no outro dia logo de manhã. Levavam víveres conseguidos na floresta e peixes do rio. Iriam enveredando pelo caminho por entre as árvores seculares, arbustos e touceiras de samambaiaçu. Caminharam doze horas, sempre no rumo norte, vencendo riachos transbordando, quebradas e clareiras que cruzavam olhando 153 o céu a confirmar o rumo certo, e ao chegar a uma laguna paravam para pescar algum peixe e descansar. Mas com as primeiras sombras da tarde, novas e grossas nuvens se condensaram no céu, e desatou o dilúvio, e em poucos minutos era impossível ver além de um braço estendido. Não podiam vê-las, mas adivinhavam-nas na escuridão que tornava a selva impenetrável. – Não podemos prosseguir não se vê nada comentou Hipólito, desanimado. Os três indígenas se encarregaram de cortar colmos de taboca gigante e folhas de bananeira silvestre, com elas armaram uma palhoça, forraram o chão e todos se deitaram para descansar esperando a chegada do sono, embalados pelo violento e monocórdio murmúrio da água onipresente. Antes de dormirem, cozinharam o peixe e a raiz de mandioca brava e alimentaram-se, comeram também frutas silvestres e fatias de banana verde assada. O cansaço da caminhada logo tomou conta dos homens. Dormiram encolhidos, abraçando as pernas e cobrindo o rosto com os chapéus. Suas respirações tranqüilas não interrompiam o barulho da chuva. Durante a noite só um dos homens permaneceu de olhos abertos. Sua tarefa era vigiar e alimentar a fogueira, mas depois de um tempo foi vencido pelo sono. Enquanto na palhoça as pessoas dormiam, ao redor a vida fervia. Quando o dia começou a clarear Ronaldo subiu à árvore onde o índio Goiatã ficou de vigília durante a noite, para defender o acampamento improvisado do ataque de animais selvagens. Encontrou-o sentado, enrolado num roto cobertor seca-poço, no mais alto galho a espiar o mato e arredores através da folhagem espessa. – Viu alguma coisa, Goiatâ? – Nada de novo. Estou vigilante a noite toda. Lá pela duas horas da manhã, mais ou menos, vi uma grande 154 onça pintada saindo da mata, farejando alguma presa. Passou não muito distante da cabana, rugindo baixinho – confirmou. Para comprovar o perigo iminente, de fora chegou o ruído de um corpo que se movia em silêncio e dois olhos amarelos, como faróis, brilhavam na escuridão da mata. As pisadas não produziam sons, mas aquele corpo se colava aos arbustos baixos e às plantas. Ao amanhecer, aproveitando a luz mortiça filtrada pelo teto da selva, os homens saíram para rastrear nas proximidades. A chuva da noite não apagou o rastro de plantas amassadas deixado pela onça, as pegadas se perdiam na mata cerrada. Tãupi o guia quíchua, ao procurar as pegadas encontrou-as estampadas sob grandes folhas de bananeira silvestre. Eram patas grandes, como punhos de homem adulto. O animal estava rondando próximo da cabana. – Não sei não, mas é bom ficar prevenido, pode ser uma cilada, o bicho é esperto. É bom não arriscar comentou o índio Tãupi. – Pode até ser – confirma Ronaldo – desça Goiatã, que Tãupi fica no teu lugar, vigiando. Vá comer alguma coisa. O vigia pulou da árvore para o chão úmido, espreguiçou-se num estalar de juntas; ficou de cócoras a noite toda e enrijeceram-lhe as articulações das pernas. Desde cedo começou a evaporação e a selva sumiu numa névoa densa que dificultava a respiração e a enxergar um palmo adiante do nariz. A pausa da chuva convocou imediatamente os mosquitos. Atacavam procurando lábios, pálpebras e arranhões. Os diminutos pólvoras se metiam nas narinas, nas orelhas, nos cabelos. Era um inferno. O intervalo durou pouco e a chuva voltou com renovada intensidade Com isso, os homens foram obrigados 155 a retornar ao acampamento anterior, abandonado um dia antes. Sabiam que o rio estava próximo, e alegraram-se ao ouvir a correnteza da água. Não lhes restava mais que descer uma encosta de uns quinze metros coberta de arbustos para alcançar a margem do rio e o refúgio tão esperado. Só se ouvia o barulho da chuva que deslizava entre a folhagem. Por entre a ramagem dos arbustos escondiam-se os olhos amarelos da onça que espreitava a presa. O grito do urutau alertava para a ameaça aos habitantes da floresta. Ouvia-se a chiadeira e os gritos de pavor dos macacos no topo das árvores. Os homens tinham a sensação de que do interior da floresta alguém os observava. – Acho que estão nos espiando – disse Hipólito, incapaz de suportar a tensão por mais tempo. Alguns minutos mais tarde surgiram da selva indígenas com as flechas apontadas para os viajantes. Eram índios Caripuna em perseguição aos porcos selvagens que se escondiam no meio do matagal próximo. Os índios quíchuas mantinham relações amistosas com os Caripuna e lhe explicaram a presença dos estranhos, eles não estavam caçando seus animais. Portanto, tudo ficaria em paz. No outro dia, ao nascer do sol, os homens do acampamento acordaram-se com o ronco de um hidroavião. Era uma aeronave com casco próprio para navegar sobre a água. Os três pesquisadores flagelados da selva e o piloto do Cessna saíram correndo para a margem do rio, gritando e acenando com panos brancos, que não eram senão os trapos das camisas que vestiam. Pediam socorro. Logo foram avistados pelo comandante e imediatamente o hidroavião desceu sobre as águas. Toda a tripulação da aeronave desceu para prestar socorro. Após as explicações e os entendimentos, ficou resolvido que os três 156 índios que serviram como guias, iriam voltar para a sua aldeia, nas margens do rio Parágua na Bolívia. Arrumaram o alimento indispensável para a viagem dos indígenas, água limpa e armas. Os quíchuas despediram-se e foram desamarrar o barco que estava preso a um galho. Goiatã, Tãupi e Raoni empurraram-no da margem para o rio. Começaram a remar parelho, de pé, na popa da estreita embarcação, e o barco foi singrando rio acima. Ronaldo, Hipólito, Juventino e Menelau, permaneceram na praia até que a canoa sumisse tragada por uma curva do rio. Vinte minutos mais tarde os náufragos da selva e seus parcos pertences foram recolhidos a bordo do hidroavião. Nem todos tinham um assento na aeronave, dois deles acomodaram-se em cima de bagagens, no fundo da cabina Não havia cintos de segurança para todos. O piloto Hermes Filgueira ligou os motores e sorriu com imensa ternura ao ouvir o rugido da máquina, som que sempre lhe provocava satisfação. O hidroavião sacudiu-se como um cão molhado, tossiu um pouco e começou a deslizar na pista aquática. Os quatro passageiros do Cessna foram levados para o acampamento dos exploradores e cientistas brasileiros que atuavam naquela região, estudando a fauna e a flora nacionais. A alegria do encontro entre esses profissionais de objetivos afins foi algo emocionante. Não se cansavam de relatar a impressionante aventura que os quatro amigos viveram na selva. O piloto Menelau encontrou um ouvinte atento das suas peripécias, no comandante do hidroavião. O alojamento dos cientistas era constituído de diversas cabanas, de armação tosca, sem paredes, com teto de folhas de palmeira. Pés direitos de galhos fincados nas laterais serviam para atarem as redes, paralelas umas às outras. Cada rede era protegida por um mosquiteiro de tule 157 que tombava da armação do teto. O mosquiteiro só protegia dos mosquitos, mas no caso de chuva com vento, os homens ficavam desabrigados. Cobras, lagartixas, centopéias peçonhentas, ratos e até um jabuti arrastando-se vagarosamente, deslizavam debaixo das redes. O recurso era não se mexer, ficar quieto. A chuva só parou depois do meio-dia e um sol forte começava a secar rapidamente a lama levantando nuvens de neblina que encobriam o horizonte. Não se via nada. Diversas árvores gigantescas de troncos de mais de quatro metros de circunferência, de galhos enormes tinham caído. No pântano, cujas águas pareciam minar do solo, o acúmulo de lama era traiçoeiro e poderia tragar um homem pouco cauteloso. Muitos animais tinham soçobrado no lamaçal. Quando desabava uma daquelas tempestades, a água caia com tanta força e tamanha fúria, que mais parecia lâminas de navalha estraçalhando a vítima. Podia-se sentir no ar uma vingança amarga da natureza pela violação da sua integridade física e das leis que comandam aquele universo. Toda aquela região tornara-se uma espécie de recanto do inferno, a natureza agira impulsionada por forças anárquicas, atuara por uma espécie de transe não premeditado e sua fúria ascendia rapidamente até a destruição. Hermes Filgueira, comandante do hidroavião dos cientistas, depois de socorrer e hospedar por dois dias os quatro homens perdidos na selva, se viu na obrigação de levá-los em segurança até Porto Velho. Saíram assim que o tempo permitiu, navegando com sucesso pelo rio Guaporé ultrapassando a junção das águas do Mamoré, Beni e Abunã, que daí em diante toma o nome de Rio Madeira e num trecho de 80 km até Porto Velho, apresenta um leito pedregoso, corredeiras e cachoeiras que impediram o hidroavião de prosseguir navegando. O 158 comandante Filgueira vendo o perigo em avariar o casco da aeronave nas pedras pontiagudas, impulsionou os motores e levantou vôo, seguindo rumo à cidade do destino. Os indígenas Tãupi, Goiatã e Raoni subiram o rio Guaporé até o seu afluente Parágua, já no território boliviano, deixaram a canoa amarrada com cipó a uma árvore e adentraram a floresta pela trilha sinuosa que os levaria até a aldeia nativa. Caminharam durante pouco tempo quando começou a chover. Eles procuraram abrigo no oco de uma gigantesca raiz exposta de figueira secular. Ficaram de cócoras, encolhidos, com o rosto encostado nos joelhos dobrados, apertando os braços em volta. Só os ruídos da chuva, raios e trovões sobressaiam no silêncio da atmosfera carregada de eletricidade. Eles não sentiam medo, estavam habituados com a fúria da natureza, pensavam que ela tinha o direito de revoltar-se assim, pois o território lhe pertencia. Assim que o dia clareou, baço e entorpecido pelo inverno, o sol, de má vontade, esgueirou seus raios pelas frestas intermitentes das nuvens. Acossados pela fome, apareceram no pantanal, por onde a vista se derrama, entre a floresta e os grandes campos ribeirinhos, manadas de antas e veados, que tranqüilos pastam a grama verde; os filhotes brincam dando saltos e cambalhotas, ou correm e estacam de repente, com orelhas sempre alertas. A ribanceira, aqui e ali, apresenta-se desnudada, limpa, pela freqüência do pé humano, lugar de passagem dos indígenas que nadam e pescam no rio Parágua. Domina no lugar, a ramaria de uma frondosa figueira. Árvores caídas, com o desbarrancamento da última enxurrada, preparam-se para partir ao arbítrio da corrente das águas, rio abaixo, ao Deus dará; as folhas soltam-se uma a uma, como lágrimas da planta chorando a despedida. 159 Para os indígenas que convivem com a natureza, cada árvore, cada animal, ave ou inseto, cada lufada de vento trazendo gotas de chuva, era um espírito da floresta, que queria proteger o seu domínio, a sua terra, a paz dos antepassados. Acima de tudo e de todos, reina o deus Tupã, e a ele eram dirigidas as danças e os cânticos rituais, para que amaldiçoe e expulse todos aqueles que ferem e perturbam a paz da selva, roubam as riquezas do solo, das montanhas, dos rios e destroem as florestas da Amazônia. *** Os três cientistas e o piloto, salvos pelo comandante Filgueira das garras da floresta tropical, onde viveram uma odisséia de peripécias e sofrimentos; agora felizes, queriam apenas descansar em paz. Dormiam nos leitos macios do Hotel Continental. Mas o rumor das vozes e dos veículos que transitavam pelas ruas tortuosas da cidade de Porto Velho acordou-os. Ronaldo ergueu-se e olhou para a enseada pela janela aberta. Levantava-se uma densa neblina sobre o rio Madeira. Ele olhou o relógio que marcava sete horas da manhã. Apesar de ser ainda muito cedo, a temperatura estava elevada e o calor durante o dia prometia ser intenso. – Vamos levantar o sol já está alto – disse Ronaldo. Hipólito e Juventino pularam da cama, vestiram-se às pressas, e dirigiram-se os três ao salão de café onde o garçom, com aparência de índio, servia o desjejum. Comeram em silêncio; cada um perseguindo seus pensamentos. Menelau da Fonseca, o piloto do Cessna, esperavaos no saguão do hotel com a mala nas mãos, queria despedir-se; resolveu retornar no hidroavião do comandante Hermes Filgueira ao acampamento boliviano, onde ficara o 160 seu avião. Tinha esperanças em resgatá-lo de alguma maneira e voltar para São Paulo. Depois de descansar e tentar esquecer a sofrida aventura pela selva tropical da Bolívia, os novos pesquisadores decidiram conhecer mais a fundo a região do grande rio Madeira. – O que acham da idéia de começarmos hoje a explorar as margens do Madeira? – propôs Hipólito. – Estamos de acordo – responderam os dois outros. Naquele dia embrenharam-se pelo matagal ralo que margeava o caudaloso rio. De passagem pela aldeia Tinguá, decidiram acampar ali perto, para pescar. Adquiriram os apetrechos de pesca no boteco da esquina e empunhando as varas com os anzóis dirigiram-se ao rio. Eram jovens e ansiosos por aventura, riam e contavam piadas, conversavam sobre a pescaria e principalmente acerca de mulheres. Ao dobrarem uma curva do caminho Ronaldo apontou para a luta encarniçada de uma jovem índia com a água revolta do rio Madeira. O rio rugia no seu leito, e grossas ondas amareladas rolavam pelo fundo pedregoso, estalavam pelas margens acima e rasgavam as bordas de cascalho amarelo, soavam como se centenas de pessoas suspirassem ao mesmo tempo. A noite toda tinha chovido. Uma chuva de inverno, ainda prematura nessa época do ano. Era10 horas da manhã, quando eles viram da margem, a moça na beira do rio. Ela se agarrava com as pernas a uma cerejeira caída, entortada pelo vento, e segurava com os braços muito esticados, uma corda trançada com fibra de sisal. Sobre o selvagem, escuro e revolto rio Madeira dançava um barco plano, que era carregado pelas fortes ondas, que se batia cheio d‟água e só era mantido preso pela corda que a moça enrolara nos braços. Ela o puxava e seus gemidos arfantes eram dominados pelo bramido do rio, 161 mas via-se no seu rosto a urgência e o medo de perder as forças. Não conseguira enrolar a corda no tronco da árvore, e, para não ser ela mesma arrastada com o barco, agarrou-se à árvore. Lutava com todas as forças. – Vamos socorrê-la – gritou Ronaldo – o rio vai arrancar-lhe os braços do corpo. Ela sacudia a cabeça e os longos cabelos negros flutuavam com o vento, cobrindo seu rosto coberto de suor e desfigurado pelo esforço. – Socorro! – gritava – socorro! Eu não consigo me segurar mais. Ronaldo disparou pela escarpa abaixo, tropeçou, caiu, rolou alguns metros, parando bem perto da moça. Com mais dois saltos ele estava junto dela; pegou na corda e puxou com toda a força. Mas o rio Madeira não estava para brincadeira, era mais forte. Suas ondas arrancaram a corda das mãos de Ronaldo e feriram-lhe as palmas, pois as fibras trançadas do sisal eram como facas grosseiras e rasgavam a pele. De repente o laço estava cheio de sangue e a moça gritava de dor. – Não tenha medo! – acudiu Ronaldo – Hipólito! Juventino! Venham ajudar a segurar o barco – gritou para os amigos, que nesse momento escorregavam ladeira abaixo. – Nós não vamos entregar a canoa ao rio. Vamos puxá-la em direção a terra outra vez! Ele agarrou novamente, esticou as pernas de través na margem no rumo do rio, colocou todo seu peso na puxada e as veias do pescoço incharam como linhas grossas, enfim a corda se moveu, a canoa cortou as ondas trovejantes, cedeu por um metro, sobrepujou um passo o rio e sua força... Mas, foi suficiente para livrar a moça e enrolar a ponta do laço em torno do tronco da cerejeira. – Será que a corda agüenta? – perguntou Ronaldo. 162 Andou alguns metros ao lado da corda esticada e rangente, tocando-a. Ela estava tão firme como os fios de aço de um violão afinado. As ondas tormentosas do rio puxavam com tanta força que as fibras trançadas gemiam – Tomara que agüente – disse a moça – fizemos todo o possível. Tirou o cabelo do rosto e fitou o rio com os olhos negros apertados, rancorosos. – Hoje ele está horrível... Fora disso ele é meu amigo. – Esta canoa é sua? – perguntou Hipólito. – Não. Pertence a meu pai. Usamo-la para pescar. Ela agarrou de novo a corda esticada e puxou-a – não vai suportar, não foi feita para resistir à correnteza deste rio. – Então vamos trazer esse barco para a terra resolveu Ronaldo. Os três homens puxaram empregando toda a força, postados um atrás do outro, com Ronaldo à frente. O rio rugia para eles e defendia-se e lutava pela sua presa com toda a violência das ondas. Arrastavam e ganhavam espaço metro a metro, deslocaram o barco com água pela metade, batido e dançante, até a margem, trouxeram-no por sobre o turbilhão e contra o rolar das ondas amarelas. A cada puxada venciam a luta e superavam a força do rio. Opunham-se contra a ressaca do rio e o barco foi literalmente arrancado da correnteza por sobre as ondas; e logo estava seguro, pelo menos enquanto a corda agüentasse. A canoa rangeu na areia da margem. Diadora deixou cair a corda de sisal, correu para o bote, apoiou-se contra a proa na água rasa e empurrou-o, com a ajuda dos outros, inteiramente para o seco. Respirando pesadamente, Ronaldo encostou-se na árvore. A moça caíra de joelhos, seus cabelos cobriam-lhe o rosto. Os dedos paralisados pelo esforço enterravam-se na areia. Fitava zangada o rio. 163 – O barco está salvo – disse ela, erguendo a cabeça e olhando-os agradecida. – É nosso único barco, se o rio o tivesse levado nós não teríamos outra canoa para pescar. A jovem índia levantou-se e sacudiu a areia molhada da saia. Sua roupa estava encharcada e colava-se ao escultural corpo moreno. Ronaldo descobriu que ela não usava espécie alguma de roupa de baixo. Os seios fortes e roliços e o colo desenhavam-se nitidamente, uma imagem que, junto com os longos cabelos negros e olhos oblíquos no belo rosto, penetraram em Ronaldo como um raio. – Meu Deus – pensou Ronaldo, aqui neste sertão, à beira do selvagem rio Madeira, num vestido de chita desbotado pelo sol tropical, de pernas nuas, ombros descobertos e ensopada de chuva está uma deusa índia. Então ela caiu sobre o fundo do barco como que morta, os braços pendurados na água, os seios arfando e o corpo tremendo de exaustão. Neste momento Ronaldo levantou a moça e carregou-a em seus braços até um lugar seco e seguro. Sua cabeça deitara-se no seu ombro e os cabelos flutuavam a sua volta cobrindo-lhe o rosto. – O barco está em segurança – disse Ronaldo – quando a moça sentou e juntou os cabelos na nuca. – Onde você mora? Eu a acompanho até sua casa. – Moro na aldeia Tinguá, com minha família. Meu nome é Diadora. Meu pai é o chefe da comunidade. E vocês vêem de onde, são da cidade grande? – Sim! Nós somos de São Paulo – respondeu Ronaldo – divertido com a curiosidade da moça. – Vem diretamente de lá? Os olhos negros luziam, ao pronunciar estas palavras – é o meu maior sonho conhecer essa linda cidade. – Você não conhece São Paulo? – Não. Não conheço nenhuma outra cidade, só Porto Velho, onde trabalho. Nunca saí para longe da nossa aldeia. 164 A jovem recostou-se na árvore. O vestido molhado esticou-se sobre o seu busto, grudou-se nas pernas, desenhando o belo corpo da moça; ela soltou o cabelo, que havia preso, esparramando-o ao vento. Quirino dos Santos, cearense, antigo seringueiro, pai de Diadora, estava preparando os anzóis e a vara de pescar quando Ronaldo, Juventino e Hipólito, acompanhados da moça, pararam diante da choupana. – Deve ter acontecido alguma coisa – pensou ele. Ao avistar o grupo que se aproximava contraiu o rosto e ficou esperando de pé junto à cabana. Diante da porta surgiu a sua esposa Luana, filha do índio Uinaré, cacique da tribo Caripuna, e outros parentes da família. Todos olhavam curiosos os recém-chegados. Os cachorros magros latiam furiosamente, enquanto disputavam os restos de comida. As galinhas cacarejavam de cima do montão de detritos onde ciscavam, em frente do casebre. Mulheres curiosas, com crianças a tiracolo, vieram correndo e aumentando a confusão. – Não, essa não! – disse Quirino, quando a filha correu até a cerca de varas. Risonha, Diadora apontava para ele que, pensativo, com passos vacilantes, vinha da choupana para junto da cerca. – Meu pai! – disse ela – então o abraçou com os dois braços e gritou – este é Quirino, o melhor caçador e pescador da aldeia. Quirino parou a um metro da cerca, observava criticamente os três amigos, sem chegar a nenhuma conclusão definitiva. As roupas os denunciavam que eram da cidade. Mas aí ele percebeu que o homem trazia as mãos enroladas em tiras de pano tintas de sangue. – Está ferido, senhor? – perguntou Quirino. Suas mãos estão sangrando. Luana! Traga água quente e pano limpo. Por favor, entrem em casa. 165 Quirino foi à frente. Era a primeira vez que eles pisavam numa cabana sertaneja. Casa construída de troncos finos de árvore, a pique, rebocada com barro e coberta com folhas de palmeira. Tinha uma porta baixa amarrada com cipó, não tinha janelas, estas não eram necessárias, pois a claridade entrava pelas frestas da parede. Era um cômodo só, com divisões feitas com cortinas de pano grosseiro, separando às destinadas ao casal, à filha, e à cozinha em cujo centro estava acesa uma fogueira alimentada de pedaços curtos de galhos de árvore, alguns ainda verdes, que chiavam e pipocavam ao queimar, jogando faiscas para o alto.Dependurado numa trempe de ferro fumegava um caldeirão de barro, cozinhando feijão com carne de porco. Quirino voltou trazendo um maço de diversas folhas medicinais do mato e cipó fino para amarrar. – Como aconteceu isto? – perguntou, examinando as palmas rasgadas das mãos de Ronaldo. A pele está em farrapos. Eu vou lavar com infusão de ervas refrescantes e enrolar com estas folhas que são ótimas cicatrizantes. – Eles salvaram o nosso barco, pai – disse Diadora. Quando eu cheguei, a corda que segurava o barco tinha se soltado da estaca. Então eu tentei segurar o bote, mas se eles não tivessem chegado e ajudado ele já estaria estraçalhado nas corredeiras do Madeira. – Que tempo – falou o caboclo, pensativo. Onde já se viu um temporal tão violento nessa época do ano. Diadora com carinho, amarrou ambas as mãos de Ronaldo, e o pai assistiu a tudo com admiração. – Não sei como lhe agradecer tanto desvelo – disse Ronaldo – dirigindo-se à moça com brilho sedutor no olhar. Ela já o havia conquistado pela sua beleza selvagem. – Fiquem conosco – convidou Quirino. Caminhem, percorram o lugar, dêem uma olhada por aqui e estejam à 166 vontade. Sintam a emoção de uma pescaria nas águas do Madeira. Se a sorte os ajudar podem pegar um grande tucunaré para o almoço. O convite era tentador, a paisagem deslumbrante. Três grandes castanheiros esparramavam seus galhos sombreando em circulo, evitando que o calor chegasse a invadir o local, onde eles podiam se assentar placidamente. O sol sublinhava com bastante contraste as sombras no chão. O calor forte era quase uma linha na floresta trêmula sob a cortina de neblina transparente, efeito da umidade em evaporação. – É uma boa idéia, chefe Quirino – respondeu o botânico Ronaldo. Aceitamos com certeza, não é, amigos? Sempre foi meu desejo conhecer a flora medicinal da região amazônica e a vida efervescente dessas florestas. – Esta terra me encanta. A consciência de viver em meio aos seringueiros, garimpeiros, entre o povo da aldeia, curar suas feridas e estudar os seus males – comentou entusiasmado o médico Juventino. – É um lugar fascinante, próprio para as pesquisas a que nós nos propusemos, e melhor, poderei estudar a fundo a cultura dos habitantes dessa região, pescar no rio Madeira e domá-lo na sua vasta selvageria; esta aventura me atrai fortemente – ficaremos sim, mas apenas por alguns dias – decidiu o etnólogo Hipólito. À tarde foram os três para a cidade, galopando nos cavalos emprestados por Quirino, para buscar as bagagens que ficaram no hotel Continental em Porto Velho, onde estavam hospedados. Já fazia uma semana em que os três cientistas estavam na aldeia Tinguá. Passavam os dias pescando, outros, adentravam pela mata á procura de plantas raras, e à noite reuniam-se ao pé do fogo para cantar e tocar violão. Diadora ouvia a música embevecida, encantada com a voz 167 de Ronaldo. Também gostavam de ouvir as lendas indígenas que Quirino sabia tão bem contar. Uma tarde, à hora da sesta, a moça tornou a sentir aquela agonia de outras tardes e noites. Era uma sensação que não saberia descrever a ninguém. Tinha a impressão de que lhe faltava alguma coisa no corpo, como se lhe tivessem cortado um pedaço do ser. Era ao mesmo tempo uma falta de ar, uma inquietude que ela não compreendia. A jovem sentia um aperto nas têmporas, a cabeça latejava, as pálpebras pesavam-lhe, veio-lhe um torpor de febre, estava trêmula e aflita. Meio sem saber o que fazia, atirou as pernas para fora da cama e levantou-se. Caminhou devagarinho, sem ruído para a porta, abriu-a e saiu. Fora, o sol poente envolveu-a como um manto. A luz se diluía nas primeiras sombras, enquanto as cigarras cantavam na relva verdejante. A jovem começou a descer a encosta que levava ao córrego, tomaria um banho refrescante na água cristalina. Os espinhos lhe picavam os pés nus, mas ela continuava a andar; de repente como se visse um fantasma precipitou-se a correr sem rumo, apertando o vestido contra o peito. Ficou numa lassidão dolorida, surgiram-lhe idéias sombrias, de desencanto da vida. Ela corria desvairada, porque não podia acreditar que a vida e a natureza eram tão imprevisíveis nos seus segredos, encerrassem mansidão e violência e, que depois da chuva – quando o vento cessasse, as árvores parassem de balançar – tudo voltasse a ter a mesma calma. E poderia novamente ouvir o murmúrio da água, o canto da cigarra, o farfalhar das folhas e o pulsar surdo do próprio sangue. O vento e a garoa que começou ao anoitecer batiam em seu rosto e traziam muitos cheiros: o odor de terra molhada, perfume de folhas maceradas, de frutas apodrecidas. Ela ganhava forças para continuar correndo, 168 sem ligar para os espinhos e folhas de capim afiadas que lhe cortavam a carne e reduziam seu vestido a farrapos. Corria sem destino, tropeçando, caindo, batendo em galhos que partiam, mergulhava por entre touceiras de arbustos que se emaranhavam em seus braços. O botânico Ronaldo, o homem por quem Diadora se tinha apaixonado à primeira vista, saiu de manhã à procura de plantas medicinais na floresta; já anoitecia e ele não retornava, poderia ter acontecido algo terrível, a mata era perigosa, cheia de armadilhas, índios e animais ferozes; ela estava desesperada, correndo a procurá-lo no matagal. No entanto, o homem deixava-se conduzir pela intuição, caminhava com passo lento e cuidadoso pelo meio da densa floresta, não longe dali. Seus passos soavam solitários na trilha, ouvindo-se apenas o estalar das folhas secas. Suava e reclamava do calor abafado, com a camisa empapada de suor, o rosto reluzente e afogueado. Que adiantava pensar? O instinto sempre tinha razão, e ele o levava para junto da jovem. Andando, ele pensava em Diadora e agora, sabedor da sua paixão por ela, sua saudade aumentava de tal modo que ele sentia uma necessidade urgente de revê-la. Muitas vezes durante aqueles dias pensara nela. Nas suas andanças pela selva, a doce imagem da moça lhe vinha à mente como um refrigério e um apaziguamento para sua vida arriscada. Depois daquelas cálidas noites de conversas alegres, ao pé do fogo na cabana de Quirino, junto à ela, seu pai e seus amigos, a moça voltava-lhe à lembrança como a promessa duma límpida manhã de sol e céu azul, recendendo a flores do campo e a coisas puras. – Estou com uma sede danada – pensou ele. Vou descer até o córrego para beber água fresca e banhar-me. Tomou o rumo do riacho que rumorejava no vale. Não suspeitava da grande surpresa que o esperava ali. 169 Uma lembrança difusa trazia à memória de Diadora o instante em que ela havia caído e não mais encontrara forças para levantar e correr.Num dado momento sua atenção foi despertada por um estalar de ramos secos que se quebravam. Retesou os músculos e abriu os olhos. Onça ou sucuri – pensou. Mas uma dormência invencível chumbavaa à terra. Virou um pouco a cabeça na direção do ruído e vislumbrou confusamente um vulto de homem, quase invisível na sombra, entre os troncos das árvores. A moça então sentiu mais que viu que era Ronaldo. Quis gritar, mas, a voz não saiu. Tentou levantar-se, mas, não conseguiu. O sangue pulsava-lhe com mais força na cabeça. O peito arfava-lhe com mais ímpeto, porém o entorpecimento dos membros continuava. Tornou a fechar os olhos. E ouviu o homem se aproximar, num ruído de galhos quebrados, chapinhar na água, pedras se chocarem. Apertava os lábios já agora com medo de gritar. Ronaldo estava tão perto, que ela sentia sua presença pelo seu cheiro e seu hálito quente. Levantou-se rapidamente e saiu correndo. Com saltos grandes ele a alcançou e a agarrou tão ligeiro que ela caiu, puxando-o consigo na queda. Ele começou a alisar o busto da jovem, mas ela afastava-se dele e defendia-se contorcendo o corpo. Segurava com força a mão dele, que continuava tateando ainda os seus seios. – Devia bater-lhe na mão – disse ela docemente. Arrancaram as roupas e dois corpos palpitantes ficaram nus um ao lado do outro. Ela sentiu quando o corpo do homem deitou sobre o dela, soltou um gemido quando a mão dele lhe pousou num dos seios, teve um arrepio de prazer quando essa mão lhe escorregou pelo ventre, entroulhe pelo meio das coxas, e apalpou-a como uma grande aranha caranguejeira. 170 O botânico começou a sentir o coração aos pulos, queria e ao mesmo tempo não queria desvencilhar-se da moça e acabou agarrado a ela como um moribundo se agarra à vida. Os corpos nus e brilhantes se agitavam à luz prateada do luar, no macio chão da floresta. E houve um instante de intenso prazer e intensa angústia, um momento de transfiguração e pânico em que teve a impressão de que toda a seiva, todo o seu sangue, toda vida que tinha no corpo jorravam para dentro dela. Passou-lhe rápido pela cabeça o desejo de que aquilo fosse o fim, a morte. Diadora sentiu o beijo escaldante da sua boca, e um doloroso dilaceramento misturado de gozo, quando ele a penetrou, aí ela chorou de felicidade e não por causa da dor que lhe traspassava o ventre. Era sua primeira vez. E ela sentiu em toda plenitude o prazer do amor, foi como se um terremoto tivesse sacudido o mundo. Num assomo de desvario, ela agarrou com fúria os cabelos de Ronaldo como se os quisesse arrancar. Ele a possuiu com paixão, deixando fluir generosamente a magnífica seiva da juventude, há muitos dias reprimida. E, depois estendido ofegante ao lado dela, ouvindo o pulsar descompassado do próprio coração anteviu o absurdo que seria morrer naquele momento de plena felicidade. Os dias que se seguiram, foram para a jovem, de felicidade mas também de constrangimento e receio. Acanhamento perante Ronaldo quando o encontrava diante das outras pessoas da casa; e medo de que estas pudessem ler nos olhos dela o que havia acontecido entre eles. Aquele momento de amor que passara com ele ficou gravado profundamente em sua memória. Que era mesmo que eles sentiam um pelo outro? Paixão? Amor? Ou apenas uma necessidade de sexo da parte dele, solidão e carência de afeto da parte dela. Ela sentia-se atraída pelo moço. Talvez fosse melhor que esse 171 encontro de amor não tivesse acontecido. Ou melhor, que esse homem nunca tivesse aparecido na sua aldeia. A agonia em que vivia desde o primeiro dia em que pusera os olhos naquele homem persistia ainda. Sabia que nunca poderia esquecê-lo. Chegara à conclusão de que o horror de que o pai descobrisse tudo era o sentimento que dominava todos os outros, até mesmo o anseio de ter novo encontro de amor com Ronaldo. E o tempo passava... À noite Diadora dormia mal, pensava muito e temia mais ainda. Procurava convencer-se a si mesma de que podia viver sem Ronaldo. Achava que tudo tinha acontecido só por causa da sua solidão. Mas se por um lado ela queria levar os pensamentos para essa direção, por outro seu corpo ia sempre que possível para o seu amado, com quem continuava a encontrar-se na escuridão da noite, no descampado próximo ao riacho. Deitavam-se na grama verde, morna, aquecida pelo sol de verão e se amavam buscando a satisfação plena. Ficavam juntos por mais alguns instantes, se acariciando, com o coração a bater descompassado. Falavam pouco, eram momentos rápidos, excitantes e cheios de sustos. Voltavam separados para casa, com a cabeça zonza, felizes, como quem acabava de descobrir um tesouro. Ela ansiosa por ruminar a sós aquele gozo estonteantemente agudo que a fazia gritar alto. Quando ele sumia entre as sombras do arvoredo, a moça ficava ainda por algum tempo a contemplar as estrelas. Ronaldo não conseguia dormir. Inquieto, virava-se de um lado para outro, sentava-se e levantava-se, espreitava na escuridão, mas ouvia só os sons da noite, um estalo nas vigas, o ruído da raposa que fuçava em alguma panela da cozinha, um distante ladrar de cães, o sussurro do vento na folhagem e o bramido das cataratas do rio Madeira. 172 Naquela cabana vivia uma mulher linda, que o amava, e ali deitado na sua rede estava ele a arder de desejo por ela. – Parece até feitiço, essa moça não me sai da cabeça, penso nela o dia todo e quando durmo sonho com ela. Ninguém pode avaliar o desespero que sinto. Portanto, não deve haver na natureza nenhuma razão para que não possamos nos encontrar e amar. Decidido, levantou e vestiu-se, calçou as botas e saiu para o terreiro. Vou ou não vou? – hesitava ainda. Deu alguns passos indecisos, de um lado para outro, começou a assobiar baixinho e, confuso, sentindo-se um imbecil e infeliz, continuou a andar no rumo da cabana. A parede do cômodo da moça dava para um terreno baldio. Ronaldo aproximou-se dela, pisando de leve, e ficou a escutar. Não viu o menor sinal de luz, a choupana estava às escuras e silenciosa. Abaixou-se e pegou algumas pedrinhas do chão e jogou-as contra parede do quarto dela. Naquele exato momento ouviu um ruído e seu coração disparou. Viu entreabrir-se a porta e ele divisou o vulto da sua amada esgueirando-se através da abertura. Ele correu para junto dela enlaçou-a pela cintura, beijou-lhe as faces, os olhos, a boca. Os braços da jovem desceram e envolveram-lhe o pescoço, e de novo ele lhe sugou os lábios cortando-lhe a respiração. Pegou-a pela mão e conduziu-a para a trilha que levava ao descampado perto do riacho. Aqueles encontros secretos faziam-se cada vez mais difíceis, arriscados e constrangedores. Custou-lhe conciliar o sono na noite seguinte. Ficou de olhos abertos a fumar na rede e a ouvir o ruído da noite. A noite anterior continuava a viver nele intensamente, fisicamente absorvendo em si os beijos da mulher amada nas sombras da madrugada. Pulou da rede, vestiu-se e olhou para a lua. Deviam ser, mais ou menos, três horas da madrugada. Ronaldo saiu para o pátio e dirigiu-se no rumo 173 do casebre. Diadora estava sentada sobre um toco de árvore, em frente do rancho, olhou para o botânico como se estivesse esperando por ele. – Você não está dormindo? – perguntou Ronaldo. – E por que você está acordado? – Minha cabeça está estourando de dor – disse ele. – E meu coração não pára de comportar-se como um louco – respondeu ela com voz sonhadora. Ele se aproximou e sentou a seu lado, abraçando-a. – O céu já está ficando claro, logo vai amanhecer, e seu pai vai acordar. Temos ainda algum tempo pela frente. Calaram-se de novo e fitavam-se mudos. Falavam com os olhos, e era uma ternura tão grande para a qual não havia palavras. – Eu esperei por você a vida toda – disse ela baixinho - eu não sabia como você seria, de onde você viria, quem você seria, quando você me encontraria... Eu só sabia de uma coisa... Um dia você estaria aqui junto de mim. E você veio do mundo distante, para mim. A luz da manhã inundava o céu, levantava-se uma nuvem de neblina sobre o rio Madeira, e a floresta acordava com o canto do uirapuru que soltava seu som musical, melodioso que reboava pela selva, e era tão belo e tão forte, que por minutos, outros pássaros silenciavam seu cantar para escutá-lo. Enquanto eles se beijavam tateando-se com as mãos, deixando os dedos escorregarem pelos seus corpos, absorvendo-se um ao outro com toda energia. Estavam inebriados de felicidade. Ele deitou a cabeça entre seus seios e respirou a doçura que lhe saia dos poros, como o perfume das flores de jasmim. Diadora prendeu a respiração para escutar as batidas do seu coração. – Já está clareando o dia, temos de nos separar. Beijaram-se de novo como se o mundo fosse acabar, e esta 174 seria a última noite em que ficaram juntos. Então se despediram e foram cada um para o seu lado, ele para a sua rede e ela para o seu casebre, sem sequer desconfiarem que a separação seria para sempre. O destino assim decidiu... Naquele dia, Ronaldo recebeu um telegrama de São Paulo, convocando-o e aos dois amigos a comparecerem em Porto Velho; apresentar o resultado do seu trabalho até aquela data e receber novas instruções. No outro dia de madrugada foram embora. Não voltaram mais para a aldeia Tinguá. Foram orientados à percorrer outras regiões, com o intuito de continuar as pesquisas. Doutor Ronaldo, devia coletar e estudar a diversidade da flora amazonense, Doutor Hipólito, estudioso da cultura dos povos indígenas, devia efetuar contatos pessoais com as diversas tribos silvícolas e Doutor Juventino como médico, tinha por objetivo visitar os hospitais da capital e das cidades do interior para pesquisar nos centros de tratamento da malária, da febre amarela, do fogo selvagem (pênfigo) e de outras doenças tropicais. Diadora não esperou a hora da partida do seu amado, fugiu para a beira do Madeira chorar a sua mágoa, foi um golpe violento nos seus sentimentos. O verão terminou, o outono começou a amarelecer as folhas das árvores. E um dia, quando pescava sozinha no rio, de pé na canoa segurando o caniço, ela sentiu uma súbita tontura acompanhada de náusea. Ficou então, tomada de pânico porque lhe ocorreu imediatamente que estava grávida. Por longo tempo, quedou-se imóvel ajoelhada na canoa, com as mãos na água, os olhos postos na correnteza, pensando no horror daquela descoberta. Voltou para casa aniquilada, com a morte na alma. Ia pensando naquele minúsculo ser que lhe crescia no ventre. Dentro de pouco tempo não seria mais possível 175 esconder que estava grávida. Que fazer? Ronaldo nada sabia da conseqüência dos seus amores com a jovem; ela guardara segredo dos primeiros sintomas que se anunciaram. Apesar da contínua procura de informações, não conseguiu notícias do paradeiro dele. Tempos depois ela soube que, dando como encerradas as pesquisas a que se propuseram, os três cientistas voltaram para São Paulo. Ela estava desesperada, pensou em fugir, mas, para onde? Ao chegar perto da cabana começou a temer que o pai a ouvisse chegar. Começou a andar na ponta dos pés, o coração a bater-lhe num ritmo acelerado. De repente uma sombra avançou em sua direção. A jovem não pôde conter um grito de espanto. Ficou com a respiração suspensa. O vulto delineou-se com mais nitidez, e ela reconheceu a mãe. As duas mulheres ficaram frente a frente, paradas, sem dizer uma única palavra. Então a filha resolveu falar, talvez a mãe a pudesse ajudar. Mas na hora não teve coragem. Diadora percebeu que a mãe chorava de mansinho, sem ruído; os soluços mal reprimidos sacudiamlhe os ombros magros. Dona Luana aproximou-se da filha, abraçou-a e perguntou: – Que será que faremos agora, minha filha? A moça abafou os soluços contra os seios murchos da mãe, e ali ficou fazendo um esforço doloroso para não urrar de medo e desespero. – E agora, mamãe, e agora? – lastimava-se. – Não há de ser nada, tenha fé minha filha. Num súbito acesso de nervos, Diadora desabafou: – Mãe! Mas eu estou grávida, não podemos dar um jeito nisso? E se eu tomasse um remédio para abortar? – Nem pense nisso! Isso é um crime contra a vida – reprovou Dona Luana. – Então como vai ser? 176 – O único jeito é contar tudo a teu pai. Mais cedo ou mais tarde ele tem que saber; não imagino que reação ele vai ter. Maldito Ronaldo, esse homem que veio trazer desgraça para nossa casa. – Mas o pai me mata, mamãe! – Não, não mata. Teu pai é um homem de bem. Mas se ele encontrar Ronaldo, ele que se proteja porque vai receber o castigo merecido. Diadora deixou cair os braços, endireitou o busto, afastou-se um passo. Depois enxugou as lágrimas com a ponta da blusa. – Tenha coragem, minha filha. Vamos contar tudo a teu pai, aos poucos... Da sombra que a cabana projetava no chão avançou o pai Quirino. O rancor transparecia-lhe no olhar. – Não precisa dizer nada. Eu ouvi tudo – gritou. Foi como se a moça tivesse levado um soco no peito. Amoleceram-lhe as pernas e os braços, pendeu a cabeça, cambaleou e perdeu os sentidos, caiu estatelada no chão batido do casebre. – Você matou nossa filha, Quirino! – desesperou-se Dona Luana. Quirino continuava imóvel onde estava, olhando a filha desmaiada. Não comentou nada. A mãe correu para socorrê-la, chamando-a e tentando levantá-la do chão. Esfregou-lhe as têmporas e a fez aspirar vinagre. Devagar ela foi voltando a si. O corpo inteiro lhe tremia, como se estivesse atacada de malária. Estendida no chão sentiu o frio da terra na pele enregelar-lhe os ossos. – O que aconteceu, mãe? – perguntou aos soluços. – Você desmaiou – respondeu a mãe aflita. Deitada no chão, tomada de uma invencível canseira, a filha sem compreender bem o que via, seguia com os olhos o movimento do pai que fez meia volta e 177 encaminhou-se lentamente para fora da cabana. Dona Luana seguiu o marido. Encontrou-o sentado em cima de um toco de árvore, encurvado, com a cabeça metida entre os braços, soluçando como uma criança. Nunca o tinha visto chorar. Dias se passaram... Os sintomas da gravidez se acentuaram. O ventre começou a crescer. Não dava mais para esconder nada, da curiosidade dos vizinhos. Quirino evitava a filha, não lhe dirigia a palavra, não tomava conhecimento de sua presença naquela casa, desconhecia-a. Para Diadora vieram outros dias de desânimo e outras noites insones, via nascer o sol pelas frestas do teto de palha e sentia aperto na garganta, era mais um dia de espera que começava. Mas era em vão, ele não dava notícias. Foi rigorosamente proibido pelo pai, para que nunca mais o nome dos três cientistas, principalmente o de Ronaldo, fosse pronunciado naquela cabana. O ventre da moça se salientava, ela evitava o pai e ele nunca olhava para ela. Notava que quanto mais seu ventre crescia, mais aumentava a irritação do pai. Ele comia em silêncio, ficava de olhos baixos, pigarreando de vez em quando, ou pedindo uma ou outra coisa à mulher. Passou o tempo, e chegou o dia em que Diadora começou a sentir as primeiras dores do parto. Foi numa noite clara banhada pelo luar cintilante. O vento suave farfalhava as folhas das árvores. Do interior da palhoça ouvia-se um som lastimoso de sofrimento, vindo do cubículo da moça. O pai, ao ouvir os gemidos da filha, levantou da enxerga onde dormia, encilhou o cavalo, montou e se foi sem dizer para onde. Naquela noite nasceu Apoema, filho da índia Diadora dos Santos e do paulista Ronaldo Lemos Queiroz 178 A avó, Dona Luana, cortou-lhe o cordão umbilical com a tesoura de costura, esterilizada na chama do fogo. Banhou-o na gamela de madeira e o enrolou em panos limpos. Entregou o menino para os braços da mãe, que o beijou com carinho, e deu-lhe o seio cheio de leite que o menino sugou com avidez. Estava tranqüila, duma serenidade de céu azul que vem depois da grande tempestade. Já era quase de madrugada quando o pai voltou. Ouviu o choro de criança na cabana, mas não perguntou nada nem foi olhar o recém-nascido. Quirino continuava a ignorar a existência tanto da filha como do neto. Dona Luana achava que quando a criança fosse maior e pedisse o colo do avô, Quirino acabaria aceitando o neto. Era sorumbático como uma esfinge, ilhava-se na penumbra dos seus pensamentos a remoer cogitações tristes, era teimoso, mas tinha um bom coração. Ela conhecia bem o seu marido, por isso confiava e esperava o milagre do perdão para a filha. Os dias, semanas e anos chegavam e se iam. Mas o trabalho e os cuidados com o filho faziam a jovem mãe esquecer o tempo. Em certas ocasiões surpreendia-se a esperar que alguma coisa acontecesse, que seu amado voltasse e ficava feliz, para depois no desalento, compreender subitamente que ele jamais voltaria. Para ela a vida estava terminada, pois um dia era a repetição do anterior, e assim seria até o fim, naquela infindável monotonia. Seu único consolo era Apoema que via crescer, dar os primeiros passos, balbuciar as primeiras palavras. O menino era alegre, aprendeu a correr e a brincar com os cachorrinhos, escolheu o Mosca como preferido, porque era pequeno e ágil e com ele saltava e rolava pelo pátio de terra. Depois alongou os seus passeios até a mata próxima, 179 caçando passarinhos e pescando no riacho. O Mosca não se separava nunca dele. Certa vez livrou-o da picada da cobra urutu-cruzeiro, correndo de um lado para outro advertiu o menino Apoema e espantando a perigosa serpente com seus latidos furiosos. Quirino sentado na sombra da árvore, fumava em silêncio, acompanhando fixamente a nuvem de fumaça do cigarro que fazia volteios, como se nada visse ou ouvisse. Não era homem de conversas, nem de questionamentos. E era assim que o tempo se arrastava, o sol nascia e sumia, a lua passava por todas as fases, as estações iam e vinham deixando sua marca nas árvores, na terra e nas pessoas. Por muitos anos, nas tardes mornas Diadora costumava sentar-se na frente da sua cabana para pensar no passado. E no seu pensamento ouvia o vento de outros tempos e sentia a vida passar, escutava vozes, via rostos queridos e lembrava-se dos acontecimentos felizes ou tristes, como o amor e o abandono de Ronaldo. E entre as cenas que nunca mais lhe saíram da memória estavam as da tarde em que a mãe Luana sentiu uma dor aguda no lado direito, ficara gemendo e se retorcendo durante horas, suando frio. E quando Quirino resolveu encilhar o cavalo para ir buscar recursos, já era tarde demais. A mãe estava morta. Diadora sofreu muito com a perda da mãe, que era também a amiga que a consolava e entendia nas horas amargas. Enterram-na no alto do morro. A filha e o neto, aos domingos, levavam flores para enfeitar o túmulo e oravam por sua alma. Uma tarde Diadora olhou bem para o filho e começou ver nele traços da avó índia Dona Luana. Tinha os olhos negros meio oblíquos, as maçãs salientes, o mesmo corte de boca, cabelos pretos e lisos. Apoema era um menino de temperamento melancólico, gostava de passeios solitários, somente o Mosca, pulando em sua volta o 180 acompanhava e, agora que completara doze anos, começava a fazer perguntas. – Mãe! E o meu pai, onde está? - perguntou um dia. – Morreu, antes de você nascer. – Onde foi que enterraram o meu pai? – Ele foi enterrado longe daqui – disse tristemente. No seu trabalho dentro da mata ele contraiu febre amarela, viajou para São Paulo para tratamento da saúde, e nunca mais soubemos dele. Deve ter morrido no hospital onde foi internado. Mas, não pense mais nisso. E os dias iam passando... Numa tarde de verão, chegou à aldeia Tinguá um cavaleiro desconhecido, montado no seu cavalo alazão, com aperos chapeados de prata, muito empertigado, de cabeça erguida, com ares de pessoa importante. As largas abas do chapéu sombreavam-lhe parte do rosto. Ficou parado sob a figueira grande; os poucos habitantes do lugar vieram correndo cercá-lo; mulheres com crianças agarradas nas tetas magras, homens solícitos de chapéu na mão, cães latindo, e meninas e meninos assustados. O homem não apeou. De cima do cavalo informouse sobre o pessoal do pescador Quirino dos Santos. – Moram ainda na aldeia? O senhor Quirino está bem? A moça Diadora casou? – perguntava interessado. – Moram na aldeia, sim, no mesmo lugar; é a terceira casa – informou a vizinha. Por que o senhor não vai até lá? Eles devem estar na choupana. Ele esporeou o cavalo e foi trotando até a casa indicada. Parou em frente à porta e bateu palmas. – Oh, de casa! – gritou alto. – Quem é? - perguntou Diadora de dentro do casebre - assomou à porta acompanhada do filho Apoema. Ao deparar-se com o desconhecido, recuou. O chapéu ocultava totalmente o rosto do homem. 181 – O senhor Quirino está? Gostaria de conversar com ele. Posso entrar? – perguntou o visitante. Diadora ao ouvir a voz do cavaleiro, reconheceu o botânico Ronaldo, pai de Apoema. Quase desfaleceu. Tremia-lhe a voz ao responder. – Por favor, apeie e entre, vou chamar o pai. – Espere um pouco, diga-me, o rapaz é seu filho?perguntou olhando para Apoema. – É sim senhor, é meu filho. – Onde está o seu marido? Diadora não hesitou, respondeu prontamente : – Morreu há muitos anos, de febre amarela, no hospital em São Paulo. Agora era o visitante que recebia o choque, ficou pálido e aturdido. Não sabia o que pensar. Apoema olhava fascinado para o homem, o cavalo e botas do cavaleiro e para as esporas de prata que lampejavam ao sol. Ele adorava cavalos e cavalgar em corridas loucas pelos campos e apostar carreira na raia do povoado. Ronaldo entrou no casebre, tirou o chapéu de abas largas e, então ela viu quanto ele envelhecera. O trabalho na mata, o sol e as preocupações marcaram seu rosto moreno com rugas fundas de expressão; seu cabelo negro encaneceu antes do tempo. A nostalgia revelava-se no seu semblante. Parecia que carregava uma grande dor. Diadora olhou para seu filho admirada, percebeu pela primeira vez que Apoema já era quase um homem feito, de voz grossa e barba incipiente. Ficou surpresa ao notar que o filho estava mais alto que ela. Ia completar dezoito anos no próximo mês. Mas espanto maior ainda lhe causara a descoberta de que, embora o rapaz tivesse herdado os olhos oblíquos da avó índia, e o gênio do avô, 182 calado, reflexivo e teimoso, a sua fisionomia lembrava muito o pai. – Quem está aí? – gritou de dentro o pai. – Sou eu Ronaldo, amigo Quirino. Estava passando por essas bandas e não podia deixar de fazer uma visita ao senhor e sua família. Tenho gratas recordações do tempo em que aqui estive com meus amigos. Quirino apareceu de cara fechada, resmungando e cuspindo raiva pelos olhos. Encarou o visitante com ódio, que lhe estendia a mão para cumprimentá-lo. Apoema olhava a cena, curioso, não sabia a razão da animosidade do avô. – Não sei como você tem coragem de vir até aqui e me olhar nos olhos, depois de ter trazido a vergonha para esta casa. – Por favor, explique! O que eu fiz de errado? – indagou o visitante surpreso. – Apoema saia daqui, porque eu tenho uma conversa muito séria com esse senhor – disse o avô. – Pai, tenha calma, por favor, ele não sabe de nada – implorava Diadora. –Você fique quieta no seu canto, eu resolvo esse embuste. Quero que ele me diga por que foi tão irresponsável, a ponto de enganar e desgraçar a minha filha. O resultado dessa pouca vergonha está lá fora, Apoema, o filho sem pai. Criei-o, porque é meu neto e é de boa índole. – Estou estarrecido com essa informação – comentou Ronaldo. – Mas por que não me avisaram? Eu assumiria a criança, e a levaria comigo se Diadora permitisse. Eu sou casado, mas não temos filhos, o menino seria benquisto e alegraria o nosso lar. Com satisfação o levarei agora, se ele quiser me acompanhar. – Avisar, como?! Se você não deixou endereço nenhum. Não deu mais notícias – retrucou nervoso o avô. 183 Chamaram Apoema para expor-lhe toda a história referente ao seu nascimento. Diadora chorava no canto do aposento. Não podia se manifestar, porque o pai é que resolvia tudo, não admitia intromissão. O moço entrou e sentou no banquinho rústico perto da mãe. Estava confuso e desconfiado, vendo os dois homens trocando palavras ásperas e a mãe chorando. – Avô, o que está acontecendo aí? Por que a mãe está chorando? Este homem está ameaçando vocês? O que ele veio fazer aqui? – perguntava bastante irritado. – Tenha calma, meu neto, vamos explicar tudo a você, agora mesmo. Fale você minha filha. Então Diadora contou toda a história, desde quando conheceu Ronaldo, na beira do rio Madeira, ajudando-a a salvar a canoa arrastada pela água, sua curta permanência na aldeia, e o nascimento de Apoema. Ele já era um homem e devia compreender a atração e o amor, fatos que acontecem na vida de qualquer homem e mulher. – Eu o amo muito, meu filho, mas se você resolver acompanhar o seu pai, que está disposto a reconhecê-lo, dar-lhe estudo e encaminhá-lo na vida, eu estou de acordo, porque aqui na aldeia você não tem futuro nenhum, será mais um simples pescador ou trabalhador braçal. – Estou com sessenta anos, já vivi muito, há anos perdi minha mulher Luana, que Deus a tenha. Pretendo terminar os meus dias nesta aldeia, mas você, meu neto, é jovem, tem a vida inteira pela frente, siga com seu pai, com a minha benção – disse o avô Quirino. No outro dia de manhã, Diadora disse adeus ao filho e ao homem que ainda amava. Apertou Apoema contra o peito, cobriu-lhe o rosto de beijos e a muito custo conteve as lágrimas. Os vizinhos vieram despedir-se do jovem, principalmente as moças que o adoravam. Havia um ar de tristeza nos seus rostos, algumas choravam discretamente. 184 Acenaram com a mão para as pessoas presentes, que ficaram a acompanhar com os olhos os cavaleiros que se afastavam, trotando nas suas belas montarias. Os arreios chapeados de prata de Ronaldo reluziam ao sol nascente. Longe, quando já começava o declive do morro, Apoema fez estacar seu cavalo, torceu o busto, tirou o chapéu e acenou para os que ficavam. As pessoas responderam ao aceno, com lenços brancos na mão. E de novo Diadora começou a esperar... Esperava notícias do filho. Se era dia, desejava que caísse a noite, porque dormindo esquecia a espera. Se era noite, queria que um novo dia viesse, porque quanto mais depressa passasse o tempo, mais cedo o filho voltaria para casa. Os anos passaram e o dia da formatura chegou. Como ela tinha visto em sonhos, finalmente Apoema vestia a beca preta. Recebeu o diploma de formando em Biologia, da mão do reitor da Universidade de São Paulo. Iria especializar-se em botânica, como o pai, para dedicar-se à pesquisa de plantas medicinais da flora amazonense. Voltou a Porto Velho, onde iria assumir uma cadeira de professor na Faculdade de Biologia. Entretanto, exerceu por pouco tempo o magistério, pois a aventura na selva o atraía. Nas suas viagens pelos sertões e no contato com os índios interessou-se pela sua cultura, tornando-se um notável indigenista e pesquisador. De início, seguidamente voltava à aldeia Tinguá para visitar a mãe e o avô Quirino, que já beirava aos setenta anos, mas continuava forte, com boa saúde e teimoso como sempre. Tranqüilo, quanto à segurança da sua pequena família, foi espaçando suas visitas à aldeia e alongando mais a expedição, até que desapareceu na imensidão da selva amazonense. Não havia nenhuma notícia dele. 185 Diadora estava com quarenta anos, amadurecera, e sua beleza morena acentuava-se mais a cada dia, conservou a esbeltez do corpo e o olhar brejeiro da mocidade. Depois do relacionamento com o pai de Apoema, ela não se interessou por mais ninguém. Dedicava-se apenas ao trabalho doméstico e à pesca junto com o pai. Passados vinte anos de solidão, o destino encarregou-se de mudar a sua vida monótona, preparando-lhe uma grande surpresa. Naqueles dias apareceu na aldeia Tinguá, Acássio Bezerra da Silva, seu antigo apaixonado que após muitos anos tentando a sorte no garimpo do Rio Roosevelt, finalmente encontrou um diamante de tamanho regular, que negociado, rendeu-lhe uma boa soma em dinheiro. Então ele resolveu mudar de vida, abandonar o garimpo, casar, constituir família, pois já estava com cinqüenta anos. Planejava comprar alguns alqueires de campo com pastagens para criar gado. Na procura do lote de terra para adquirir, tomou o rumo da aldeia Tinguá. Já era noite quando atravessava o campo por uma trilha tortuosa. A lua cheia vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras, e com sua luz prateada iluminava o espaço como se fosse dia. As estrelas cintilavam sobre a aldeia, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio, que se alguém aguçasse o ouvido podia escutar o sussurro das árvores da floresta próxima. Num certo momento, ouviu o estalar de galhos e passos pesados, outros mais leves e cautelosos. Acássio desceu da montaria e agachou-se atrás de um toco caído. Tirou a espingarda do coldre e preparou-se para atirar, com o cão da arma engatilhado. Descobriu que era uma anta adulta acompanhada do filhote que pastava a grama verde, tranqüilamente. 186 O caçador olhava atento; apenas dez passos separavam-no da caça. Os segundos passavam, ele hesitava, tinha pena da anta, se a matasse deixaria órfã a cria. Tinha o coração sensível e medo de matar. Engraçado. A noite estava fria mas o suor escorria-lhe pelo rosto e entrava-lhe na boca, com gosto de salmoura. Indeciso, Acássio sentou-se no chão, recostou-se na árvore e acendeu o cigarro. Fumava, achando gostosa a ardência da fumaça nos olhos e ainda tinha uma vantagem, afugentava os pernilongos que cantavam em volta do seu rosto. Renunciou abater o animal. Outro caçador rondava a mesma caça, quando viu Acássio desistir e sentar no chão. Foi até ele. – Aceita um trago de pinga para te dar coragem?perguntou o outro, rindo e passando-lhe a garrafa de cachaça que trazia no embornal. Acássio a apanhou e a levou à boca, tomando um grande gole. Repetiu. – Obrigado – disse. O outro ficou um instante em silêncio, batendo a pedra do isqueiro para acender o cigarro que se apagou. Um grilo começou a cricrilar perto, escondido na grama. Acássio tirou um cigarro da carteira, pôs entre os dentes e, esquecido de acendê-lo, ficou olhando para o céu. – Quem é você e o que procura por essas bandas? – perguntou o outro. – Primeiramente quero que saiba que não sou caçador. Meu nome é Acássio Bezerra, garimpeiro de profissão, venho da cidade de Porto Velho procuro um pedaço de terra que me interesse, para comprar. Talvez o amigo possa me indicar alguém nessa aldeia ou outra que me auxilie nessa tarefa – pediu Acássio. – Mas, é claro! Posso indicar-lhe o mais antigo morador da aldeia Tinguá e chefe da comunidade, o meu amigo Quirino das Santos – informou o homem. 187 – Tomara que eu o encontre em casa, que não esteja viajando ou pescando longe nalgum rio – comentou Acássio. Desejo resolver este assunto logo. Estou cansado de procurar o pedaço de terra que me agrade, pela fertilidade, localização e pelo preço. – Bom, tenho de ir andando... Disse o outro – desejo-lhe sorte no negócio. Dê meu abraço no amigo Quirino. Acássio levantou da grama, bateu o isqueiro, tornou a acender o cigarro, tirou uma baforada e depois seguiu indolente em direção à árvore onde estava preso o cavalo. Desamarrou o cabresto e pulou na montaria. Saiu trotando pela trilha estreita, no meio do matagal, rumo à aldeia. O dia estava clareando quando chegou ao destino. O horizonte empalidecia e as estrelas se iam apagando aos poucos. Em torno, os campos estendiam-se ondulados, sob a luz pálida, cinzenta. Era uma vasta extensão de terras próprias para pastagens. Seria ótimo se conseguisse comprar uma boa área para formar a sua tão desejada fazenda. Estava cansado e com sono, portanto, foi descansar em uma pensão. Dormiu até o meio dia. Acordou angustiado. Seu espírito relutou por alguns segundos, emaranhado nas malhas de um sonho inquieto, como um peixe que se debate na rede, na ânsia de voltar a seu elemento natural. Sonhou com Diadora do tempo da sua juventude. Ela continuava tão bela como antes, mas desdenhava-o deliberadamente. Qual surpresa o tão próximo encontro lhe traria? Será que ela casou? Acássio não parava de perguntar-se. Por fim, levantou da cama, tomou um cafezinho na mesa da pensão e seguiu a direção do rio. Despiu-se e deslizou para a água, mergulhou, voltou à tona e nadou até o poço fundo perto da margem, ali ficou imóvel apreciando 188 o frescor da água, por um bom tempo. Depois do banho, foi vestir-se para o encontro com Quirino dos Santos. Cavalgando, foi até a cabana. Desceu da montaria em frente da porta e bateu palmas: – Oh, de casa! – gritou. – Quem é? – perguntaram de dentro da casa. – Sou eu, Acássio Bezerra, venho lhe fazer uma visita, e falar de negócio. – Apeie e entre, amigo! – convidou Quirino. Quirino saiu para receber a visita, a qual não reconheceu de imediato. Mas olhando bem, estendeu os braços e agarrou-o num forte abraço. – Bem-vindo à nossa cabana, amigo Acássio. Diadora minha filha, venha ver quem veio nos visitar. A jovem estava ocupada com os afazeres domésticos, de avental na cintura e lenço de chita prendendo-lhe os longos cabelos. Não esperava encontrar o homem por quem tinha se apaixonado na sua juventude. Ficou surpresa. – Diadora! Você não mudou nada! Continua bela como sempre foi – disse galantemente Acássio. – É gentileza sua – respondeu ela ruborizando-se. Entre e sente, não repare na simplicidade da nossa casa. Não somos ricos. Vou passar um café fresco para você. Quirino e Acássio, sentados em bancos rústicos de madeira, entabularam a conversa acerca das terras que o moço queria comprar. – Vou levar você para os lados do Jaru, conheço o proprietário de uma boa gleba, talvez ele se interesse por vendê-la. Uma parte está formada com capim colonião, uma boa parte é de cerrado e outra de mata nativa. Dá para formar uma bela fazenda Podemos sair amanhã bem cedo. – Está certo, amigo Quirino – aprovou Acassio. 189 Enquanto isso Diadora servia o café com bolinhos de chuva feitos na hora. O moço lançava olhares interessados para a dona da casa. – Diadora você casou?– encorajou-se em perguntar. – Não, não me casei, não encontrei ninguém por quem pudesse me apaixonar, como falei no passado, só casarei com o homem que me despertar amor. Acássio foi até a porta da cabana, ali parado ficou cismando acerca da resposta da moça. Que enigma guardava ela? Será que tinha esquecido o romance que iniciaram na juventude e que não prosperou entre os dois, por causa de sua precipitação, ou por erro de avaliação da situação existente entre eles? Resolveu esperar a ocasião oportuna para desvendar esse mistério. Logo que clareou o dia, Acássio e Quirino encilharam os cavalos e tomaram o rumo de Porto Velho. Dias antes, Acássio comprou um veículo Toyota, utilitário de tração nas quatro rodas, resistente, próprio para enfrentar as péssimas estradas do interior. Quando foi para a aldeia Tinguá deixou a camioneta em casa do pai, na cidade. Agora vinha apanhá-la para irem à procura de terras na região de Jaru. Abasteceu o carro com óleo diesel e dirigiram-se para a estrada asfaltada BR364. Seguiram em direção à vila de Jaru, que ficava a 250 km da capital, rumo sul. Durante a viagem conversavam amigavelmente, o moço contava as aventuras vividas no garimpo, e a morte do seu irmão Ventura, no desabamento de um túnel no garimpo do Rio Roosevelt. Chegaram a Jaru ao entardecer. Alugaram um quarto numa pensão para o pernoite e noutro dia de madrugada, engolindo apenas um cafezinho, rodaram 50 km pelo caminho indicado, mal conservado, cheio de declives e buracos, até a vila Gov. Jorge Teixeira, de nome suntuoso, mas que tinha só uma rua, esburacada, 190 coberta de areia, de casas pobres sem iluminação, em frente das quais crianças maltrapilhas, descalças e cachorros esquálidos brincavam. No boteco da esquina da vila, Acássio pediu informações sobre a direção certa a seguir, virou à direita, à esquerda e novamente à direita, rodou mais 20 km por uma trilha sem conservação havia muito tempo, cheia de buracos e desvios, atravessou o rio Jaru no vau, pois a ponte de madeira, já muito precária, fora levada pela água da cheia. Apesar das dificuldades e dos impedimentos que se apresentavam a cada passo, os viajantes não perderam o ânimo. Em toda a margem da estrada viam-se ranchos improvisados e cercados, construídos para marcar as posses. A invasão e a grilagem de terras devolutas era um dos problemas da região. Chegaram à fazenda pelo meio-dia. O proprietário da gleba de 200 alqueires, Florisvaldo de Souza, fez questão de lhes servir o almoço, que se compunha de feijão, arroz, carne de anta assada no espeto e abóbora refogada. Um café feito à moda tropeira arrematou o almoço. Após a sesta, encilharam os cavalos e foram percorrer a extensão de mata nativa intocada, do cerrado, e dos 50 alqueires de pasto formado com capim colonião, que alcançava mais de dois metros de altura. Nos campos pastavam cento e noventa cabeças de gado misto, entre vacas leiteiras com bezerros, novilhas, garrotes e bois de canga.Quinze cavalos e mulas perfaziam o suporte da tropa. As terras eram férteis, pouco onduladas e sem grande incidência de pedras, o que era incomum, pois no horizonte próximo desenhavam-se os picos da Serra dos Pacaás Novos, sinal de atividade vulcânica não muito remota. O rio Jaru nasce na encosta da referida Serra, assim como inúmeros córregos. 191 Um riacho corre ao lado do cercado, as águas represadas formam o açude; ali criam-se peixes nativos das águas da Amazônia, como piapara, pirarucu, surubimpintado e bagres, nadam patos e marrecos. Um rego d‟água passa dentro do chiqueiro dos porcos. Utilizando a inclinação do terreno, a água é levada por mangueiras até à cozinha e ao chuveiro. Ajustado o preço do negócio de porteira fechada, este foi concluído no cartório com a assinatura da escritura definitiva. Acássio era o novo proprietário da fazenda Jaru. Finalmente realizou um sonho acalentado por muito tempo nas galerias do garimpo de ouro e de diamantes dos rios Madeira e Roosevelt. Estava feliz e realizado. Começava uma nova vida para ele. Erguendo o busto para o alto, lançou um olhar sobranceiro pelos vastos horizontes que se abriam diante dele, e exclamou: – Aqui sou o dono. Aqui posso respirar à vontade o ar puro dos campos. Nessa terra formarei o meu lar. Em seguida tirou o chapéu, curvou o joelho para o chão, fez o sinal da cruz e estendeu a mão direita sobre a mata, abençoando-a. Acássio precisava agora avisar o seu pai em Porto Velho. Talvez conseguisse convencer a sua família a mudar-se para a fazenda. Contava com eles nas lides da formação do pasto e criação de gado na nova propriedade Ali estava tudo por fazer. Os campeiros Raimundo e Amadeu, solteiros, e o administrador Alaor Nunes, casado, empregados da fazenda Jaru, continuariam a serviço do novo proprietário. Na fazenda a vida era difícil e dura. Moravam num rancho de taipa, com paredes de estacas de palmito preenchidas com barro, coberto de palha e com chão de terra batida. O rancho não era grande. Constava duma só peça quadrada com repartições de pano grosseiro. 192 A maior das divisões era onde faziam as refeições e ficavam à noite conversando antes de irem para a cama; era ao mesmo tempo refeitório e cozinha e a um canto dela estava o fogão de pedra e uma talha com água potável. Dentro de uma caixa de madeira com tampa, guardavam os mantimentos protegendo-os dos ratos, raposas e formigas. O mobiliário era simples e rústico, uma mesa de tábuas brutas de castanheiro, bancos de tocos de árvore, uma arca de madeira onde a dona da casa guardava as roupas da família, um armário meio desmantelado com pratos e canecas, uma armação com ganchos na parede, para dependurar panelas de alumínio que de tão polidas brilhavam ao sol, e sobre um estrado uma pequena imagem de N.S.de Aparecida e a seus pés uma lamparina de azeite, minúscula, bruxuleava dia e noite. Em outra repartição ficava a cama do casal, sobre a qual, na parede, pendia um crucifixo de madeira com um Cristo carcomido; ao pé da cama ficavam o revólver e a espingarda de dois canos, carregada. Na divisão seguinte estavam os beliches das três crianças. Firmina, a mulher de Alaor era uma dona de casa ordeira e prestimosa. Cuidava com afinco dos seus afazeres, das crianças, ordenhava as vacas, criava galinhas e porcos; e ainda lhe sobrava tempo para folhear e ler algumas revistas que o patrão trazia. Acássio, após a compra da fazenda estava de retorno à capital. Decidiu acompanhar o amigo Quirino até a aldeia Tinguá. Estava com algumas idéias novas na cabeça. Com insistência voltava-lhe à lembrança a imagem morena de Diadora. Desejava revê-la, aproveitaria a ocasião para conversar com ela sinceramente, de coração aberto. Deixou a caminhonete na casa do pai, arrumou dois cavalos arreados para levá-los para a aldeia. Já escurecia quando chegaram à beira do rio e da choupana de Quirino. 193 Diadora foi recebê-los, contente e ansiosa por notícias da capital e da compra da fazenda. – Então, como foram de viagem? – perguntou. – Fomos muito bem, acabo de adquirir a Fazenda Jaru. É bastante longe daqui, uns 320 quilômetros da capital, mas vale a pena, as terras são boas, bem localizadas e o preço compensador – Acássio desfiava as vantagens da aquisição, satisfeito com a compra. – Pelo que vejo você está feliz – aprovou a moça. – Estou sim, apenas para completar, falta-me uma companheira para dividir comigo a vida atribulada da roça. – Mas isso não é difícil, você é um cinqüentão charmoso, bonito e rico - respondeu gracejando. Haverá muitas moças que apreciem o seu cabelo grisalho. Após dar seu parecer, achou que falou demais, ficou encabulada e se retirou para preparar o jantar para os dois. O rapaz ficou analisando a opinião de Diadora acerca da sua pessoa, deduziu que ela não era totalmente indiferente a ele e poderia tentar aproximar-se mais, talvez conseguisse alcançar o seu objetivo. Afinal, ela era uma mulher atraente e mesmo que já tenha passado dos quarenta anos, conservava a beleza dantes, a esbelteza do corpo e o brilho no olhar obliquo. Seria uma esposa à altura. Depois do jantar convidou-a a dar um passeio, à luz do luar. Caminharam em silêncio, até que ele olhando-a perguntou: – Ainda se lembra do forró que dançamos aqui no terreiro da aldeia, tempos atrás? – Claro que me lembro, notei o teu interesse por mim naquele baile, isso tinha despertado a minha vaidade, gostei de você. Desde então alimentei a esperança de um namoro, mas depois daquele impasse embaraçoso que houve entre nós, no alpendre da horta, você sumiu do mapa, nunca mais deu notícias, e o tempo passou. 194 – Eu juro que nunca esqueci de você, Diadora. Aquele encontro no baile ficou gravado no meu pensamento, mas a vida me levou de roldão. Absorvido no meu trabalho no garimpo, não tive oportunidade de procurá-la. – Nesse tempo eu conheci um homem que foi meu grande amor, mas houve um infeliz desencontro entre nós, a vida dele tomou outro rumo. Deixou para mim um prêmio maravilhoso, que é o meu filho Apoema. Criei-o sozinha. Quando adolescente conheceu o pai que o reconheceu legalmente, e o levou para São Paulo onde morava. Lá ele estudou; atualmente é formado em Biologia, trabalha em pesquisa na região amazonense – confidenciou Diadora. – Gostaria muito de conhecer teu filho, podemos ser bons amigos. – comentou Acássio. – Possivelmente, Apoema vem visitar-nos no final do ano, será uma boa ocasião para se conhecerem. Acássio tomou a mão da moça e depositou um prolongado beijo, olhando esperançoso nos seus olhos. Ela sorriu e suas pupilas brilharam. – O que você acha de revertermos o passado e ressuscitarmos aquele afeto incipiente que deixamos esquecido pelo caminho da vida? Mesmo que não sendo mais jovens, mas ainda cheios de energia, talvez agora possamos nos entender e acertar nossas vidas. Pense nisso seriamente – pediu Acássio, quase implorando. – Prometo que vou pensar – respondeu ela. – Eu não tenho muito tempo para esperar, você não poderia me dar essa resposta agora, neste momento? Aceitaria casar-se comigo e ir morar na Fazenda? – perguntou Acássio muito inseguro. – Vamos com calma, homem, o mundo não vai acabar. – Desculpe-me, é que estou muito ansioso. 195 – Prometo que vou pensar à noite, e amanhã de manhã, depois de falar com meu pai, lhe darei a resposta. – Com certeza não conseguirei conciliar o sono esta noite – comentou ele esperançoso, mas com tristeza. Diadora sugeriu que já era tarde e deviam se recolher. Ele a acompanhou até a porta da sua cabana, despediu-se abraçando-a e depositando-lhe um beijo na face. Combinaram que noutro dia tratariam do assunto em suspenso. Ainda acordado, Quirino esperava a volta da filha. – Pela demora o passeio devia ser muito interessante, não foi, filha? – Pois foi, meu pai, tive uma proposta que me surpreendeu muito – confidenciou. – Que te falou Acássio? – O senhor não vai acreditar na sua intenção. Ele quer casar comigo e levar-nos para a Fazenda. Fiquei de dar-lhe a resposta amanhã cedo. O homem está com pressa, quer resolver esse assunto logo. Que lhe direi, meu pai? – Acássio tem razão na urgência, pois a Fazenda Jaru requer a sua presença constante. Tem muita coisa a ser resolvida na área da administração. Quanto aceitar ou não o pedido de casamento, esse assunto é totalmente de tua competência. Veja o que é melhor para você e decida. Para mim, o que você resolver será bom. Diadora esteve loucamente apaixonada por Acássio na juventude, mas ele a decepcionou muito quando quis subjugá-la ao seu desejo, recordava o chute que teve de dar-lhe para afastá-lo. Era possível ele ter esquecido tudo? Será que o sentimento de amor ressuscitou ou resistiu ao tempo? Ela não conseguira pregar os olhos a noite toda, e quando ainda amanhecia e a luz do sol nascente apenas roçava a fímbria d‟água da lagoa, ao largo do campo, ela 196 levantou-se e foi caminhar pela praça da aldeia. Recordouse doutros tempos, da última festa do Divino, o coreto onde tocava uma banda de música vinda da cidade, as bandeirinhas de papel colorido, a quermesse, os fogos de artifício e jogos, os bingos e leilões de prendas oferecidas pela comunidade. Depois, lembrou-se do forró, quando o povo dançava ao som de sanfona e pandeiro, numa louca animação, até o sol raiar. Lembrou-se de Ronaldo e seus momentos de felicidade, Apoema menino, depois já adolescente divertindo-se com os meninos da sua idade. Tudo isso lhe vinha à memória, e analisava se valia a pena trocar todas essas lembranças bonitas, para construir uma nova vida com Acássio. Mas a vida restrita e monótona da aldeia Tinguá, onde viveu até agora, não lhe oferecia nenhuma nova perspectiva. Pensou... Analisou os prós e os contra, e decidiu aceitar a proposta de casamento. Naquele dia Diadora caprichou na arrumação do café da manhã. Cobriu a mesa com toalha branca, bordada por ela, e no centro colocou um vaso de flores do campo. Assou pão e bolo de fubá. Colocou as xícaras coloridas, talheres, açucareiro, manteiga, doce de goiaba. Serviu café com leite. – Pai! Por favor, convide a visita a entrar e sentemse à mesa, que o café está servido. Eu tenho uma comunicação a fazer a vocês. O moço adentrou e da porta olhava-a com olhar interrogativo, queria adivinhar a resposta que ela ia lhe dar. – Acássio, quero saber primeiro se você tem algum sentimento por mim – indagou, olhando-o de frente. – Claro, minha querida, se não fosse assim eu jamais cogitaria em unir as nossas vidas. Eu amo você, Diadora, nunca a esqueci durante esses anos, desde o nosso primeiro 197 encontro no forró da aldeia. Mas, diga, aceita casar-se comigo? Fale! Livre-me dessa angústia de espera. – Pai! Posso aceitar a proposta de Acássio? – Se é do teu gosto e tens afeto por ele, eu os abençôo – falou Quirino com lágrimas nos olhos. – Vou viver para fazê-lo feliz – disse ela. Trocaram um beijo para selar o compromisso. O casamento seria oficiado dentro de quinze dias. Precisava avisar o filho Apoema que estava embrenhado no sertão. Apesar da busca insistente, junto com seus amigos sertanistas, não conseguiram localizá-lo. O enlace realizou-se sem a sua presença, mas assistido por toda a gente da aldeia. A cerimônia foi simples, oficiada pelo padre Agostinho, na igreja da vila enfeitada com lírios brancos, flores da época. A noiva estava vestida de branco, de véu e grinalda feita de flores de laranjeira, que floresceram em profusão naquele ano. O enlace foi comemorado com fogos de artifício e um forró animado pela sanfona de Cícero da Malú, sanfoneiro dos bons. Terminados os festejos os nubentes viajaram para a Fazenda Jaru. Diadora e Acássio iam começar uma vida nova, como donos daquelas terras. Acássio estava realizando o seu sonho, o de ser proprietário de terras com grandes pastagens onde poderia criar gado, cavalos e porcos; e nas terras de cultura plantar café e cereais. Este estilo de vida o fascinava. Diadora, ao chegar em sua nova casa, logo foi-se engajando no trabalho de arrumação e administração do seu pequeno reinado. Alegre e feliz passava os dias entregue aos afazeres domésticos. Apenas não estava totalmente contente, pelo fato de ter deixado seu pai na aldeia Tinguá, e não conseguir noticia do filho. Sentia muitas saudades deles. Acássio esforçava-se por fazê-la feliz. A vida na 198 propriedade transcorria de modo habitual, dia após dia, tranqüilos e sem surpresas. Aquele dia foi diferente, amanheceu com o sol despontando detrás da Serra, os raios tingindo de rubro intenso os campos e a mata, a cor desmaiando aos poucos. De repente, sem saber donde vinha, emergiu sobre a floresta que cobria a Serra dos Pacaás Novos, uma nuvem escura, pesada, carregada de chuva. Pela noite adentro relampejou e o trovão rolou sobre a mata e os campos de pastagem. Os animais do curral e do pasto estavam inquietos e se agruparam junto ao cercado, coisa que deixou as pessoas preocupadas, sentindo no íntimo uma inquietação vaga. Era como um sinal dos deuses, de algum fato incomum e inesperado por acontecer, que espicaçou a curiosidade da comunidade. O que de espantoso prenunciavam os espíritos da natureza? A resposta a essa pergunta veio logo de manhã do próximo dia. Todos acharam estranha a maneira como o tropeiro Bolívar Sanches entrara na Fazenda Jaru. Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu de barbicacho de abas viradas, puxado para trás, a bela cabeça de macho altivamente erguida, cabelos negros escorridos e aquele olhar penetrante de águia, que perscrutava, prendia e fascinava as pessoas. Era um caboclo alto e espadaúdo, de pele trigueira. Uma leve cicatriz atravessava-lhe uma das faces, da boca à orelha. O aspecto que apresentava sugeria que era audacioso e provocador. Homem rijo do campo capaz de ficar dias sem comer e beber. Devia andar lá pela casa dos trinta anos, montava um alazão muito bem aperrado, vestia calça de brim escuro, botas de couro negro de cano alto sanfonadas e esporas de prata; o busto musculoso coberto de pêlos negros, aparecia 199 de dentro da camisa xadrez, desabotoada. Trazia um violão a tiracolo; o poncho cinza, o embornal de couro com roupas, a espingarda e o cantil presos aos arreios. O vaqueiro apeou em frente do botequim da colônia, amarrou o cavalo no tronco de uma árvore, entrou na venda arrastando as esporas, batendo na coxa direita com o rebenque, e foi logo dizendo: – Boa tarde, senhores! Quem é o dono daqui? – Sou eu, o proprietário da Fazenda Jaru. O que o amigo procura? – perguntou Acássio, altivo. – Nada de especial, apenas procuro colocação de boiadeiro ou peão de fazenda, gosto de amansar cavalos e lidar com gado – respondeu Bolívar sorrindo, olhando para o outro com um ar de simpatia, estendendo-lhe a mão. E enquanto ele se apresentava Acássio analisou-o com olho frio e perspicaz. Não gostou do ar altivo do cabra, do seu jeito de olhar os outros “de cima”. Depois de pensar um pouco, estendeu-lhe a mão, dizendo: – Chegou em boa hora, estou precisando de gente, para conduzir uma tropa de gado para o frigorífico. Quando pode começar? – Agora mesmo, se for necessário – respondeu Bolívar, prontamente. Acássio alisava a palha para o cigarro com a lâmina da faca, lentamente. Seus olhos continuavam ainda postos no estranho, avaliando-o. Aquele violão a tiracolo lhe inspirava desconfiança. Nunca tivera simpatia por violeiros. – Enfim, é preciso haver de tudo um pouco neste mundo de Deus – concluiu. O sol estava quase sumindo por trás dos montes e era uma luz de tons alaranjados que envolvia o vaqueiro, que ali estava de cabeça erguida, mordendo o barbicacho. Acássio começou a falar em coisas vagas como o tempo, as derrubadas, a castração dos garrotes e 200 principalmente a carreira que iria realizar-se naquele domingo. Mas estava mesmo ansioso por saber quem era aquele tal Bolívar e de onde tinha vindo. Que era prosa, logo se via; que era fanfarrão, não restava a menor dúvida. Tinha entrado ali altivo e provocante. Sentaram-se a uma mesa de tábua bruta de castanheiro, sebosa e sem toalha, e sobre a qual estava uma bandeja com xícaras e o bule de café. Ao lado, uma garrafa com cachaça e pequenos cálices de vidro. Bolívar pegou a garrafa, encheu dois cálices e ofereceu ao proprietário. – À saúde – festejou. – À nossa – respondeu Acássio e tomou a bebida num só gole, depois bateu o isqueiro, acendeu o cigarro de palha, tirou duas tragadas e ficou a observar o forasteiro. Já começava a achar que ele tinha uma cara simpática. Só o jeito de olhar é que não era muito agradável. Havia naqueles olhos de gato muito atrevimento e um constante ar dominador. Os cabelos caídos na nuca eram negros, com lampejos dourados refletidos pelo sol. O nariz aquilino e o basto bigode disfarçavam a boca grande e o queixo voluntarioso. Acássio não pôde deixar de reconhecer que o vaqueiro era um belo tipo de homem. Isso o deixou irritado, estava enciumado. Bolívar, pegou o bule de café, que estava no canto da mesa, encheu uma xícara, pôs duas colheres de açúcar e degustou. – O café daqui não é grande coisa – comentou, limpando a boca com a manga da camisa. – É isso que a gente tem, é colheita própria – respondeu o dono, meio azedo. – Os homens daqui gostam de jogar cartas? – Alguns gostam, mas é proibido o jogo nas dependências da minha fazenda nos dias úteis, só é 201 permitido nos finais de semana e feriados, como divertimento. – E o senhor? – Eu não jogo. – Pelo que vejo o senhor é um homem sem vícios. – Nem tanto, mas não gosto de jogo, bebedeira ou arruaça nos meus domínios. Houve uma pausa prolongada. – Me arruma o serviço na fazenda? – perguntou o peão, já impaciente. Acássio tinha vontade de saber mais do passado daquele homem antes de contratá-lo. – Ainda preciso saber – começou - batendo a pedra do isqueiro e acendendo o cigarro que apagou – donde vem o amigo? Com quem trabalhou antes? Por acaso tem referências por escrito? Bolívar fez um gesto largo com as mãos demarcando o largo horizonte e respondeu: – Venho deste mundo sem fronteiras, trabalhei em diversas fazendas, amansando mulas ou tropeando gado nas estradas. Não trago papéis de recomendação. O meu trabalho dirá o que sou.. Poderá avaliá-lo com o tempo. Sou solteiro, não tenho parentes e pretendo fixar-me no emprego. Gosto da lida com animais, o senhor vai apreciar o meu desempenho. Acássio sacudia a cabeça devagarinho em aprovação, não sabia que opinião formar daquele homem, nem a que ponto acreditar no que ele dizia. Resolveu contratá-lo, por um tempo, em experiência. – Sim, vou contratá-lo. Agora trataremos da sua acomodação, rancho e das suas obrigações. Das condições e do ordenado falaremos oportunamente, se estiver tudo de acordo. De início, fará um teste de aptidão. 202 Diadora apontou na porta da venda para chamar o marido, e seus olhos oblíquos, curiosos, ficaram espiando o desconhecido por um instante. Bolívar ergueu para ela os olhos sedutores, atrevidos e um largo sorriso nos lábios. – Há muita moça bonita por aqui. – Tem sim. Esta senhora bonita que veio aqui é minha mulher. – Desculpe, não quis ser indelicado. O cigarro de palha estava colado no lábio inferior de Acássio, que tinha a boca entreaberta e uma expressão de desaprovação nos olhos. Quase que estava se arrependendo de ter contratado o forasteiro. Ficou assim algum tempo e depois falou vagarosamente: – Amigo, aqui todas as mulheres tem dono, as que ainda não têm são moças de família e querem casar. Nós queremos que haja muito respeito com as famílias desta colônia. E é melhor ir lhe avisando, o povo desta terra é de boa paz, mas não gosta que ninguém venha se intrometer na sua vida particular. O boiadeiro escutava com atenção, mastigando uma ponta do cigarro de palha, que estava apagado. – Entendido, patrão, da minha parte pode ficar tranqüilo, eu não vou mexer com ninguém. Acássio lembrou-se do chamado da mulher para o almoço e dos seus afazeres na fazenda; tinha que ir buscar mantimento e sal para o gado na vila de Jaru. A despensa da casa estava quase vazia e sua mulher estava reclamando. Teria que comprar, inclusive, uma boa remessa de alimento para o rancho dos peões, algumas panelas e apetrechos. Precisava ir dar algumas ordens aos empregados e tomar outras providências. Caminhou até a janela da venda, olhou a praça com a grande figueira no centro, as casas dos colonos em torno e 203 os verdes pastos que circundavam a colônia. O sol da tarde, escaldante iluminava tudo, deixava as pessoas e os animais em profunda modorra. Era a hora da sesta. Mas antes de ir para casa, foi mostrar o alojamento dos peões. Havia um cômodo vago que destinou ao novo contratado. – Esta é a tua acomodação. Por hoje pode ficar descansando. Começaremos o trabalho amanhã bem cedo. – Certo patrão! – respondeu. O novo campeiro abriu a porta emperrada com um supetão, estava presa apenas com frágeis tiras de couro de boi. Entrou, olhou o quarto, jogou a mochila e os outros apetrechos que trazia, no canto. Apressadamente, tirou a roupa e jogou-se na cama. Minutos mais tarde, estendido de borco, completamente nu, dormia profundamente. Ali estava sobre o leito forrado de palha, aquele homem alto e musculoso, cabeludo como um gorila. A presença dele parecia entulhar o cômodo. O calor de seu corpo aumentava a já quente temperatura ambiente. Seu cheiro acre e seu próprio ressonar pareciam ocupar um espaço físico. Num certo momento o homem rebolou-se, ficou de ventre para cima, e começou a roncar. Um grilo que saltava pela grama entrou no quarto e começou a cricrilar. Os dois faziam um dueto de trombone e percussão. Acássio depois de distribuir as ordens, fez meia volta e encaminhou-se para sua residência. Levava um mau pressentimento. Estava inquieto, não se sentia feliz. Aquele homem que recebera na sua propriedade ia trazer-lhe problemas. Por um momento a sombra de uma dúvida invadiu-lhe o espírito. Que diria Diadora, quando lhe dissesse que contratara aquele homem? *** Naquela noite os peões da fazenda ouviram música de violão, sentados ao redor da fogueira. Ouvia-se também 204 a voz quente e bonita do boiadeiro acompanhando o instrumento. Acássio começou a sentir, desde o primeiro momento ao ouvir o canto, uma inexplicável antipatia pelo dono daquela voz. Podia não recebê-lo, era o dono, mas contratou-o, à revelia de sua vontade. Diadora não aceitou de bom grado essa figura estranha; olhou com curiosidade e espanto para a cara do desconhecido. Sentiu uma coisa esquisita sob seu olhar provocante, suas faces e orelhas começaram a arder. Seu corpo foi tomado por uma sensação incomum, uma espécie de medo e euforia. Era também um prurido quente, como se formigas estivessem lhe invadindo o corpo. Bolívar tinha gostado da moça, mais que isso, tinha ficado excitado ao olhar para suas nádegas curvilíneas. Nunca tinha ficado tão impressionado por nenhuma mulher, assim à primeira vista. Viu que ela tinha a pele do rosto de cor acobreada como uma fruta madura e que seus seios eram pontudos. Imaginou como deviam ser rijos. Apalpálos seria o mesmo que mimar duas mangas maduras. Sentiu um calor percorrer-lhe o corpo. Acássio tinha amealhado um bom dinheiro durante o tempo que trabalhou no garimpo. Assim que tomou posse da Fazenda, mandou construir uma boa e espaçosa residência. E não só por capricho, mas em atenção à sua esposa, procurou dar a essa habitação, construída no meio do sertão, todo o conforto possível. A casa tinha alicerces de pedra e paredes de madeira serrada das árvores da fazenda. Era coberta de telhas de cerâmica trazidas de Ji-Paraná. Continha uma sala de visitas e três quartos de dormir. Era toda assoalhada de madeira cepilhada e encerrada, coisa pouco comum naquelas redondezas. A cozinha era a peça mais espaçosa, a qual o pessoal da casa preferia. O chão de lajotas vermelhas, cheiro de comida, crepitar de fogo, chiado da chaleira de 205 ferro, dava um ar acolhedor aquele ambiente; ficava bem nos fundos da construção principal, com uma porta para a despensa e outra maior para a horta e o terreiro. Em volta da casa havia uma ampla varanda com redes para o descanso. Ramos de buganvília enroscavam-se no balaustre e subiam até o telhado, então pendiam em cachos floridos, de lilás esmaecido, espalhando o doce aroma no ar. Na frente um jardim cheio de flores bem cuidadas dava um ar encantador à moradia. Era a hora do descanso, depois do jantar. Foi nesse momento que se ouviram os sons dum violão e uma voz morna encheu o ar calmo da noite. O dono da casa deitado na rede, na varanda, franziu o cenho, retesou as mãos, apertou forte o cigarro entre os dentes e ficou atento, escutando. Diadora olhou preocupada para o marido, respirava com dificuldade, essa voz causava-lhe ansiedade, uma forte perturbação de espírito, que no fundo era uma premonição de algum fato inesperado que vinha pela frente. Bolívar sentado num toco de raiz, de pernas cruzadas, violão em punho, cantava melancólicas cantigas de amor, de mulheres, de tropeiros e de boiada. Debruçados sob os joelhos ou sentados no chão, em volta da fogueira, os peões escutavam de olhos arregalados. Ele cantava com entusiasmo porque sabia que a mulher que o fascinara estava na cozinha e também o escutava. Um cachorro veio devagar sacudindo o rabo, deitou-se enrodilhado junto ao violeiro, descansou o focinho sobre as patas dianteiras e fechou os olhos. Também escutava a música dolente que Bolívar cantava. Acre, úmida, a respiração do cão bafejava o rosto do rapaz. O luar e as faíscas do fogo pareciam deixar dourados os cabelos do violeiro. Um galo cantou longamente num quintal próximo, outros galos responderam em outros terreiros, e por instantes a noite 206 ficou cheia de cantar de aves. O luar caia suave sobre os telhados e cobertas de palha, sobre os pomares, a horta e os pastos em derredor. O vaqueiro cantava e em pensamento dedicava a música à mulher que o enfeitiçou. Para além das casas dos colonos estendiam-se os campos, ora planos, ora dobrados, sob a abóbada enorme do céu. As montanhas e cerros eram como seios e nádegas de mulher formosa Ele comparou-os com o corpo de Diadora, os seios rijos, as coxas roliças, os lábios carnudos prontos para o beijo. O coração do cantor começou a pulsar com mais força, uma fração de segundo antes de ele próprio saber o porquê daquele súbito alvoroço. Imaginou a moça no quarto, deitada na cama, todinha nua. Só de pensar ficou excitado. Mas lembrou que ela era um fruto proibido para ele. Aquela mulher tinha dono, e esse dono era o seu patrão. Tratou de aquietar o coração. Ele era um homem alegre, cantava e tocava violão, pagava bebida aos amigos e sabia perder no jogo. Nos fins de semana faziam rodas de truco ou de pôquer na venda do Juvenal. De vez em quando saia com os novos amigos a caçar antas, porco-queixada ou jacutingas. Aos domingos apostava ou corria com eles em corrida de cavalos nas raias do povoado. As apostas eram moderadas e todos se admiravam de nunca haver briga. Quase todas as noites havia reuniões à beira da fogueira, depois do jantar. Bolívar tocava violão e cantava, e quando encontrava algum repentista, desafiava-o para trovar; e sob risadas, ficavam os dois até tarde no seu duelo poético. Vez ou outra tropeavam uma boiada para o frigorífico da capital ou mudavam as reses de invernada. O boiadeiro não conseguia tirar a esposa do patrão do pensamento. Fizera muitas tentativas para falar com a moça, mas não conseguira nada. Fez um gesto de 207 impaciência e desferiu um pontapé numa pedra, arremessando-a contra o tronco nodoso da velha figueira. Pensou que se ela o amasse como supunha, ele a tiraria do marido e a levaria para longe na garupa do cavalo. Olhou para o terreiro onde ela jogava milho para as galinhas. Como era atraente essa índia. Ah! Se pudesse se aproximar e dizer-lhe do louco desejo que sentia por ela. Mas não se atrevia, iria esperar uma ocasião propícia para abrir-lhe o coração. Ela tinha uma vida confortável e um marido que a amava. Será que ela arriscaria tudo para viver uma aventura de amor com ele? Era essa a dúvida, o seu martírio lento, a atroz indagação. A luz macia do entardecer cobria de sombras o telhado da casa. Não havia vento e as árvores estavam imóveis, sequer uma folha se movia. Os pêssegos amarelavam entre as folhas verdes dos pessegueiros e o chão, sob as árvores, era dum amarelo escuro manchado de sombras arroxeadas. Dum outro quintal vinha uma fumaça azulada, cheirando a cipó e ramos secos queimados. Aquela noite Bolívar não cantou. Todos estranharam ao vê-lo tão taciturno. Ele viu várias vezes a mulher, mas de longe, e por mais que inventasse pretextos, não conseguiu se aproximar e falar com ela. Mas só pensava nela, nos seus seios empinados, no seu corpo moreno, nos quadris curvilíneos, nos olhos negros enviesados. Como seria maravilhoso tê-la nos braços. Amá-la com paixão. E quanto mais o tempo passava, mais ele compreendia ser-lhe impossível viver sem ela O que no princípio fora apenas desejo carnal, agora era também uma paixão desesperada. E ele inquietava-se com isso. Bolívar estava no curral separando gado para o corte. Ele manejava o laço e as boleadeiras com desembaraço. Diadora olhava furtivamente da janela da cozinha avaliando o seu desempenho magistral. Realmente 208 ele era um profissional competente. E no rápido instante em que o fixou os seus olhos se encontraram. E nesse olhar ele viu, sentiu que a mulher o admirava e também o desejava. - “Essa novilha está laçada. Já botei nela a minha marca, que não sairá nunca mais, ficará para sempre”. Regozijou-se o boiadeiro, com sua vaidade satisfeita. Os negócios da Fazenda Jaru iam bem, o gado prosperava mais que em outra região; gado forte, ágil. As fruteiras ali carregavam mais. Na maturidade das frutas era comum galhos racharem ao peso da safra. Quase todas as árvores arriadas de pomos tinham os galhos em escoras com forquilhas de pau, sustentando o peso.Na vida rotineira da fazenda as surpresas eram apenas no clima variado.Aconteciam mudanças repentinas de cenários do céu, ora límpidos e azuis, ora carregados de nuvens escuras. Naqueles dias, Acássio havia realizado uma ótima transação, vendeu uma grande boiada gorda e, para comemorar, ordenou que no sábado fosse organizada uma boa churrascada. Os homens mataram um novilho, retalharam e temperaram a carne. As mulheres cozinharam raiz de mandioca e prepararam os espetos. Um buraco no chão serviu para acender a fogueira com cerne de madeira seca colhida no campo e fazer o brasido, onde seria assado o churrasco. Armaram-se mesas com tábuas em cima de cavaletes. O pessoal da colônia e os peões regalaram-se com a boa comida, acompanhada de refresco de Tubaína. Bebidas alcoólicas eram proibidas nessas ocasiões. Para a sobremesa foram cortadas dúzias de melancias suculentas. Quando o churrasco terminou, as mesas foram desmanchadas, os bancos encostados, e o terreiro ficou livre para o forró. As moçoilas de vestidos coloridos e cabelos soltos ao vento, saltitando e chilreando que nem passarinhos nos galhos, vieram para o centro do pátio. O 209 tocador de sanfona Severo Mulato aboletou-se no banco debaixo da figueira e começou a tocar. Seguiu-se uma grande animação entre a moçada, que não perdeu tempo. Acássio veio na companhia da esposa para participar dos festejos. O casal era muito popular e benquisto pelos trabalhadores da fazenda e moradores da colônia. Também se comemorava o aniversário de Diadora. Como presente, o marido comprou-lhe um jipe Willys, veículo utilitário com tração nas quatro rodas, que serviria para ela andar pela fazenda sem medo de encalhar, ir à vila fazer compras ou visitar suas amigas. Ensinou-lhe a dirigir o veículo, lição que ela aprendeu rapidamente. O casal dançou no meio do povo, se divertiu recordando o forró da aldeia Tinguá onde se conheceram na juventude. Acássio tinha uma vaidade singular; decotava a mulher sempre que podia, para mostrar aos outros as suas venturas particulares. Ela era dona de um corpo de formas sensuais, de pele bronzeada, de belo colo e seios fartos; os olhos negros oblíquos, lhe davam um charme especial. Ele gostava de aparecer com a mulher, elegantemente vestida, para exibi-la como um troféu, para ser invejado. – Entre todas as mulheres, você é a mais bela e eu a amo – disse ele – mirando o colo da mulher e circulando depois os olhos pela sala com uma expressão de posse e domínio, que ela já conhecia e que lhe fazia bem; ela dedicava ao marido um carinho especial, um afeto tranqüilo. Bolívar olhava-a embevecido, de longe, encostado ao tronco da velha figueira, com os olhos esquecidos na bela dama, que olhava para ele de soslaio, enquanto dançava com o marido. Ele admirava-lhe a figura, o busto bem talhado e os seios emergindo do decote basto. Alguém observou a contemplação dos dois. Não tardou em perceber que os olhos da fazendeira e os do 210 tropeiro procuravam uns aos outros. Nunca antes a alma da moça pareceu convidar a dele, com tamanha instância, a voarem juntos até as terras clandestinas a saborear o êxtase do amor. O homem ia devorando a mulher com olhar de fogo. “Tenha calma, sujeito! Espere o momento oportuno.” Refletia ele escrupulosamente. Bolívar era arguto e inteligente, além de ser esforçado no trabalho do dia-a-dia; não demorou a granjear a amizade e a confiança do patrão, que o encarregava de resolver os mais diversos problemas da propriedade. Com isso teve a permissão e o acesso à casa do fazendeiro. Logo em seguida foi nomeado capataz da Fazenda Jaru. No outro dia, de manhã, Acássio convidou a mulher para irem colher frutas no pomar, que já estavam bem amadurecidas. O casal encontrava-se no meio do arvoredo, quando o capataz, talvez casualmente, ou propositadamente passava perto e não quis perder a ocasião de ser gentil. – O patrão precisa de alguém para apanhar as frutas? Posso ajudar se for necessário. – Pode sim, mas primeiro vá à despensa apanhar uma cesta para colocarmos as frutas. Vou colher laranja e tangerina que devem estar maduras e deliciosas – e dirigindo-se à esposa sugeriu: - Querida, aproveite e colha algumas frutas de caju – em seguida encaminhou-se para o lado do laranjal. De cesta na mão, Bolívar apressou o passo e dirigiuse ao cajueiro cujas frutas estavam maduras, de um colorido amarelo-avermelhado.Colheu uma bem madura e alcançoua para Diadora. Seus dedos roçaram nos dela. Um frêmito perpassou o corpo de ambos. Ele derramou o mais quente olhar, da cor de âmbar-gris, sobre os olhos negros dela, e sussurrou: – Estou apaixonado pela senhora! Desde a primeira vez que a vi o meu pensamento lhe pertence. 211 – Tome cuidado com o que diz – retrucou a mulher. O homem segurou a mão dela entre as suas. Mãos fortes, de cor morena, mãos que de imediato a fascinaram. Foi como se o corpo dela se partisse em mil pedaços, como se explodisse, como se um raio penetrasse no âmago do seu ser. Deixou a sua mão entre as dele por um momento, como um pássaro assustado, aconchegado em seu ninho. De repente puxou-a, envergonhada. – Ai, solte a minha mão! Você é muito atrevido – reclamou baixinho. Ele inclinava-se para beijar-lhe a boca, quando uma voz, a alguns passos veio acordá-lo inteiramente. Era o marido que retornava com a cesta cheia de laranjas, poncã e tangerinas maduras e saborosas. – Está na hora de irmos embora – alertou Acássio. Ao ouvir aquela voz é que o capataz começou a voltar a si, do encantamento. – Vamos, então! – respondeu Diadora já totalmente segura de si mesma. Acássio olhou para Bolívar, viu-o risonho, tranqüilo, impenetrável. Não denotava nenhum medo, nenhum acanhamento; falava com tal desembaraço, que o marido pensou ter visto mal a atitude de reciprocidade entre os dois. Sorriu constrangido, não entendendo se o gesto do capataz era inocente ou tendencioso. O marido confiava cegamente na esposa. O boiadeiro, ao recordar o caso do pomar, achou que foi demasiado temerário e precipitado. Vendo a resistência, a contrariedade da moça, chegou a arrependerse da tentativa do beijo. Teve então calafrios, ficou amedrontado com a idéia de que podiam fechar-lhe a porta e cortar inteiramente as relações de amizade e de confiança, tudo porque tinha apressado os acontecimentos. Sim, devia esperar; ter paciência, a ocasião não era própria. 212 – Fui um maluco! – pensava. Logo depois, a mente que o acusava, defendia-o, pois Diadora não falou nada, mas o seu olhar disse-lhe tudo, seus olhos estavam presos nele como pedras preciosas incrustadas numa jóia. Ela parecia tê-lo estimulado ao que fez; os olhares freqüentes, fixos, os modos, os sorrisos, a distinção de o mandar sentar ao seu lado à mesa do jantar; de só cuidar dele, de lhe falar coisas afáveis, que a seu ver, eram mais que encorajar e solicitar. Ela o queria – concluiu. A esposa do fazendeiro jogava com ele um jogo perigoso de sedução. Mas ela, ingênua, sem imaginar sequer as conseqüências maléficas do seu ato, estava apenas se divertindo ao espicaçar a admiração e o desejo do vaqueiro por ela. Sabia que não podia dar muita trela ou avançar demais, pois o marido podia desconfiar e ele não merecia uma traição, era um homem bom. Portanto, tomaria mais precaução. – Devia ter ido devagar e nunca segurar-lhe as mãos com tanta força, e tentar beijá-la – censurava-se Bolívar. Achava-se grosseiro. Pensava também na estima do marido... Aqui estremeceu. Ele era seu patrão, e depositava plena confiança nele. – “Sei que é honrado, mas é exigente e ciumento, e pode vingar-se, demitindo-me a qualquer hora, se desconfiar de algo comprometedor. Reconheço que errei em intrometer-me na vida do casal; devia ser mais esperto e tirar proveito driblando a situação confusa em que me envolvi, devido ao meu caráter aventureiro”. – Raciocinava. - “Mas ela tem uns lindos olhos negros chamativos e uma figura sensual, a qual é difícil resistir. Que admirável criatura, meu pai do Céu! Hoje então estava divina. Quando o braço dela roçou no meu, à mesa, apesar da manga da camisa, senti um arrepio de excitação”. 213 - “Estou confuso, inseguro, pois devo lealdade ao marido. Sua consciência partia-se em duas, uma censurando a outra, mas ambas desorientadas. Não posso, não devo – ia dizendo a si mesmo – não é bom ir adiante. Estou arriscando a minha vida. Também é verdade que não sou autor sozinho; ela é que, desde o primeiro encontro, anda me desafiando” – desculpava-se a si próprio. Acássio não sabia e nem desconfiava da grande paixão de Bolívar Sanches por sua mulher; guardada, sofrida, não podendo confessar a ninguém, esperando os benefícios do acaso; contentando-se com a simples visão da amada, febril, dormindo mal às noites, saia pelas ruas desertas caminhando sem destino. Os ruídos e os fantasmas das trevas o apavoravam. Parecia-lhe que de todas as janelas debruçavam-se vultos de mulher, todas Diadora, que vinham ao seu encontro num tropel confuso. Entreabriu a porta do seu cômodo e ficou esperando... e quando um vulto de mulher passou, Bolívar a segurou pelos ombros e a puxou-a para dentro do quarto. Mesmo no escuro, sentiu que ela tremia toda, como se estivesse com maleita, mas não fez nenhum gesto, não gritou, não disse nada quando ele a despiu e deitou na cama. Acompanhou-o em silêncio no seu desabafo. E naquela noite, com ela, o sujeito saciou sua sede de sexo. Ele não tinha ciúmes do marido. Nunca a intimidade do casal lhe excitava o ódio. Mas a possibilidade de um rival vinha atordoar-lhe os pensamentos; aqui é que o ciúme surgia a feri-lo profundamente. Quando um homem sente que a mulher amada está atraída por um outro, então algo começa a ferver dentro dele, como um caldeirão a vapor. E se ainda por cima ele é um indivíduo exaltado, vigoroso, forte, de sangue quente, em quem os impulsos do seu temperamento rolam pelas veias como as águas revoltas do Guaporé rugindo no seu 214 leito selvagem, então torna-se incontrolável. E quando ama ninguém o segura, porque a paixão é um sentimento possessivo, e por ele somos capazes de enfrentar o mundo todo, até de matar. Bolívar observava a dona da casa todo o tempo, como ela olhava embevecida para o visitante que chegara naqueles dias à Fazenda Jaru, fixando-se encantada em seus lábios, quando ele falava da cidade grande, de São Paulo. O ciúme o devorava. Aguardava ansioso o horário do jantar para ficar perto dela; nessa ocasião, sempre com o coração pendurado por um fio, sempre zeloso de qualquer passo, de qualquer palavra diferente que o denunciasse. – Mas devia dizer-lhe o quê? Que ele a amava mesmo sabendo que, tal amor era incoerente, mas verdadeiro e incontrolável? Dizer que de repente o mundo todo, e o céu sob sua cabeça ficavam pequenos para acalentar tamanha paixão? – pensava Bolívar. Nesse momento seus olhos luziam como os de um lobo esfomeado, então ele montava no seu cavalo zaino e disparava pelos pastos, numa carreira doida. Na noite de Ano Novo houve festa na praça do povoado, com missa, quermesse, jogos e forró. Foi acesa uma grande fogueira no centro da praça, e desde o anoitecer ela se encheu de gente, de conversas e risadas, e do som de sanfona do velho Severo Mulato. Acássio viajara para a capital Porto Velho para vender uma grande boiada gorda. De sua casa onde tinha ficado sozinha, Diadora debruçada à janela escutava a música e as vozes. Viu passar Gherta, uma adolescente de 17 anos, de cabelos louros, e olhos azuis brejeiros, filha do colono alemão Hanz. Ela ficava cada vez mais bonita, e gostava de andar rebolando pela colônia enquanto o pai e os irmãos tratavam do cafezal da Fazenda Jaru. 215 O tropeiro sedutor, a observava havia muito tempo, de longe, sentia crescer seu desejo pela alemãzinha. Naquela festa começou a persegui-la com olhares e propostas. Ela aceitou em encontrar-se a só com ele. Diadora tinha certeza de que Bolívar estava lá, no meio daquele povaréu, dançando e cantando. Não se aborrecia com isso, ao contrário, queria que ele se divertisse namorando outras mulheres, pois enquanto estava dançando deixava-a em paz e não arquitetava planos para assediá-la. Puro engano dela, pois enquanto ela assim supunha, o tropeiro sumiu sorrateiro das danças, e naquele momento, estava no meio do capinzal, atrás do muro da capela, contemplando o corpo nu de Gherta. Tinham feito sexo com a fúria de um vendaval, pois o vinho, que ambos tinham bebido na festa, contribuíra para aumentá-la. Agora, ele olhava para a moça, que estava estendida sobre o capim. Como era lindo aquele corpo. E como os beijos de Gherta tinham um gosto diferente dos de outras mulheres, dezenas delas, que já beijara. Mas foi somente aquela noite que a teve. Três dias depois apareceu o noivo Frederico e a levou na garupa do cavalo, para o sitio que possuía no projeto Jaru. Casaram-se naquele sábado. Bolívar idealizava mentalmente como seriam divinos o corpo e os beijos da mulher que amava, e pelos quais ansiava há tanto tempo. Ousado, ele resolveu arriscar tudo para concretizar seu desejo. Era perigoso sim, mas viver também é perigoso. – Juro que terei você, antes que pensa, se não for com seu consentimento, será à força – planejava o peão aventureiro. Aproveitando-se da liberdade de ação que o patrão lhe deu, estava extrapolando os limites do bom senso, tornara-se atrevido. Ele não sabia, mas caminhava sobre 216 areia movediça que podia tragá-lo de repente, quando tentava seduzir a esposa do empregador. O comportamento cada vez mais estranho de Bolívar em relação à sua mulher despertou a atenção, seguida de desconfiança, de Acássio. E nessa situação de emergência, ele resolveu pô-lo à prova. Em sua esposa confiava cegamente, ela era fiel. Arquitetou um plano para surpreendê-lo em flagrante delito, se havia de fato algo errado, ele o saberia. O almoxarifado da fazenda precisava ser reabastecido de mantimento, material para reparos diversos, sal e remédios para o gado. Também Diadora tinha necessidade de comprar tecido, louça e panelas. Acássio resolveu mandá-los juntos para a cidade de Ji-Paraná. Chamou Bolívar para lhe dar as instruções. – Há necessidade de fazer compras na cidade, mas estou com problemas inadiáveis a resolver aqui, não posso viajar. Sei que você é um bom motorista, confio em você, portanto irá no meu lugar, dirigindo a caminhonete. Minha mulher vai junto, ela vai adquirir a mercadoria necessária para a Fazenda. Assim ficarei mais tranqüilo. – Estou à sua disposição, patrão, e não se preocupe; farei tudo de acordo com as suas ordens – respondeu o capataz – eufórico pela ocasião de estar, finalmente, a sós com a mulher que amava e desejava loucamente. Era desta vez que a teria, ou nunca mais. Acássio fez a lista de compras e deu uma quantia grande em dinheiro para a esposa. O dia amanheceu com o sol despontando no horizonte de céu azul. Uma brisa fresca soprava do norte. Após tomarem o café da manhã, na ampla cozinha, Diadora despediu-se do marido com um abraço e beijo na boca. Bolívar assistiu a tudo e teve um estremecimento de ódio do rival. 217 – “Aquele beijo e abraço deviam ser meus, mas hoje vou cobrar a dívida com juros”. Planejava ele. Rodaram em silêncio durante uma hora, pela estrada estreita e esburacada que levava à vila de Jarú, distante 70 km; depois deviam pegar mais 100 km de estrada asfaltada até a cidade de Ji-Paraná onde fariam as compras. Acássio, executando seu plano, pegou o jipe Willys da mulher e apressou-se para estrada, seguindo numa distância regular a caminhonete Toyota dirigida pelo capataz. A poeira da estrada agitada pelo veículo que rodava na frente ocultava-o parcialmente. E de permeio havia uma boiada em trânsito que levantava uma enorme nuvem de pó. Repercutiam sonoros nas quebradas, os gritos dos peões tangendo o gado. Com o barulho ensurdecedor da tropa, não se ouvia o ruído das conduções que rodavam pela estrada. – Não diz nada, minha querida? Por que esse acabrunhamento, não está feliz por estar na minha companhia? Podemos aproveitar a ocasião e namorarmos um pouco. Não acha que é uma boa idéia? – sugeriu Bolívar. – Não se atreva a tocar em mim, não te dei essa liberdade, me respeite! – gritou Diadora raivosa. – Isso veremos depois, mas quanto a respeitar-lhe, isso não, você mesma se insinuava, provocava, me dando esperanças – disse ele, ameaçador, achegando-se mais perto e colocando a mão em cima da sua coxa. – Tire essa mão nojenta da minha perna. – Não seja tão arrisca minha andorinha! - ciciou ele. O marido não perdia de vista a caminhonete, quando viu o veículo ser desviado para uma trilha secundária, pelo meio de um cafezal. Bolívar dirigia em silêncio, mas vinha armando um plano; surgiu-lhe uma idéia tenebrosa a qual estava 218 decidido a executar, e nada nem ninguém o impediria. Tinha em mãos uma ocasião única de satisfazer o seu louco desejo pela mulher do patrão, há tanto tempo reprimido. Seria hoje ou nunca. Para saciá-lo sexualmente sem resistência, ele a obrigaria a usar grande dose de cocaína, cujo efeito a deixaria drogada e sem defesa. Querendo ou não ela ia satisfazê-lo na sua paixão. Depois de fartado no seu apetite sexual, ele ia deixá-la ali mesmo, no meio do cafezal. Levaria o dinheiro das compras e o Toyota, e afundaria no mundo sem fronteiras. Enquanto dirigia, o capataz ia arquitetando os pormenores do seu plano diabólico. – Essa mulher nunca mais vai espicaçar o desejo de um homem, brincar e pisar nos seus sentimentos – remoía. Acássio sentiu atravessá-lo um arrepio com a descoberta da intenção do boiadeiro ficar com sua esposa em lugar ermo, sozinhos, com certeza para violentá-la. Isto o deixou fora de si, com ódio a dominá-lo, quase perdeu o controle do jipe. Rápido, virou a direção para o caminho tomado pelo outro, iria surpreendê-lo no seu propósito. – Por que desviou do caminho? – É para atalhar e passar na frente da boiada que está atrapalhando o trânsito – explicou Bolívar. Entrou uns duzentos metros dentro do cafezal. Parou o carro e desligou o motor. – Por que parou? – perguntou Diadora desconfiada. – Desça da caminhonete – ordenou o sujeito. – Mas por que devo descer? – É apenas para trocarmos alguns carinhos, não é isso que você quer também? Pelo menos é o que demonstrou sempre, ao me provocar! – disse ele com riso zombeteiro nos lábios. 219 Tirou o revólver que trazia preso à cinta e colocou-o em cima do assento do Toyota, desabotoou a camisa, tirou a calça e as botas. Ficou completamente nu. – Pare com essa pouca vergonha, senão eu grito, chamo por socorro – ameaçou Diadora. – Pode gritar à vontade aqui ninguém vai ouvir. É melhor ficar quieta e obedecer. Ele pegou-a pelo braço e puxou para fora do veículo. Diadora ficou parada olhando-o, aterrorizada. Bolívar estava de pé diante dela, despido, os ombros levantados e a cabeça esticada, buscando-lhe a boca. Com as mãos rasgava-lhe o vestido descobrindo os seios os quais começou a beijar com volúpia; puxou a roupa para baixo tirando-a e deixando nu o corpo da mulher, que ela procurava cobrir com as mãos. Todos os músculos do seu corpo viril se contraíram para um salto de tigre; derrubou-a sobre as folhas secas do cafeeiro que forravam o chão. – Deixe mostrar-lhe o que é um homem de verdade, dominado pela paixão e desejo – rosnava como um cão raivoso, com os olhos injetados de lascívia. Ele agarrou-a brutalmente pelos ombros, virando-a e jogando-a de rosto para baixo sobre as folhas. Como um gato, pulou sobre ela, apertou com a mão esquerda o seu rosto contra o chão e enfiou-lhe a mão direita por entre as pernas a procura do alvo desejado. Ela gritava, tentava livrar-se, batia furiosamente nele com os braços, beliscava, mordia-lhe a carne, mas ele a sufocava, comprimindo-lhe os lábios com beijos impetuosos. Na ânsia do desejo, um suor de macho, de odor forte, inundava-lhe o corpo e o rosto congestionado. – Deixe-me! – gritava Diadora – seu demônio! Eu te odeio! Socorro! Miserável! Eu te mato! Juro! Largue-me! – A vítima esperneava, chorava, mas ele não ouvia nada. 220 E de repente estava livre. O corpo que estava sobre ela escorregou, as mãos que a mantinham presa se soltaram. Então ela virou-se, encolheu as pernas e fixou com os olhos escancarados no espetáculo a seu lado. Acássio tinha, com um puxão, arrancado Bolívar de cima da mulher. Arrancou-o com tal violência que o peão rolou pelo chão. De lá ele pulou de pé como um gato, e com o rugido de uma onça, faiscou o adversário com olhos congestionados. Saliva escorria do canto da sua boca. – Seu infame traidor! Você quer ter a mulher do patrão, não é? Não respeita ninguém? Mas espere! Eu vou te abrir a cabeça, já que você não sabe pensar. – Engano teu! Pois sou eu que vou te mostrar quem é homem aqui! – gritou Bolívar avançando contra Acássio. –Temos contas a ajustar, ladrão, covarde! E é agora que vais me pagar – replicou o outro. E atiraram-se como feras um contra o outro. Com a cara contorcida de ódio e reluzente de suor, os dentes à mostra, a respiração ofegante quase transformada em estertor de feras malferidas, os dois rivais avançavam e recuavam, batendo e socando-se com violência. – Você me paga! Eu te mato miserável! – gritava o peão, investindo, enlouquecido, sobre o desafeto. – Você não vai viver para se vingar! – retrucou Acássio, deu um passo à frente e pôs a mão nas costas para arrancar a arma. Nesse momento despertou nele o valente espírito de garimpeiro e não titubeou em sacar o revólver da cintura. A mão crispava-se, nervosa, sobre o cão do revólver engatilhado. Respirou fundo, antes de agir. Custou-lhe muito controlar o tremor das mãos e o ranger dos dentes. Estava tão perto, que poderia estourar os miolos do rival, sem mirrar, mas decidiu esperar uns segundos para que seu pulso se tranqüilizasse. Esse momento de vacilo o traiu. 221 O instinto advertiu Bolívar do perigo. Numa fração de segundo, pôs toda sua energia num incrível salto que, de um só impulso, deixou-o a um metro do lugar em que se cravou a bala. Acássio não conseguiu apontar de novo, porque o vaqueiro se agachou, pegou um pedaço de pau nas mãos e, aproximando-se rápido, bateu no revólver apontado, que caiu ao chão, a dois passos dos lutadores. – Tenho que proteger a cabeça do primeiro golpe e agarrá-lo quando ele estiver perto de mim – pensou. Levantou o braço diante do rosto e colocou a mão espalmada sobre a fronte. O vaqueiro riu sinistramente encarando-o de frente. Observavam-se em silêncio, ofegantes, cada um esperando o primeiro movimento do outro. Com um grito de guerra, lançaram-se novamente um contra o outro, numa luta selvagem. Bolívar levava vantagem, apertava a garganta de Acássio com as duas mãos, querendo sufocá-lo. O revólver estava a dois passos dos rivais, cada um deles fazia esforços inauditos para alcançá-lo. As faces de Diadora estavam alagadas de suor e lágrimas, suas narinas palpitavam, e havia em seus olhos, de ordinário doces, um brilho belicoso, de ódio e vingança. Neste último segundo entre a vida e morte, ela teve um instante de indecisão, mas a seguir, levantou-se e com um salto de gazela alcançou o revólver ao marido, que, sem mais hesitar, detonou uma bala no ouvido do adversário. Tão de repente aconteceu e tão exata foi a pontaria, que ele não teve tempo de esquivar-se. A bala atingiu-lhe a cabeça, atravessando-a e saindo doutro lado. Lentamente afrouxaram-se as mãos que asfixiavam Acássio, tremores convulsivos percorreram o corpo do homem, na agonia da morte. Tombou com o crânio estraçalhado. 222 Houve da parte do casal um instante de perplexidade e ouviu-se um grito dilacerante de pavor. Diadora chorava desesperada, olhando o cadáver de Bolívar. Acássio estava pensando em sua luta recente e ruminava o sabor violento, acre e embriagador daquele momento. Havia muito que não sentia uma exaltação assim tão grande. Era homem pacífico e evitava qualquer contenda. Lembrou-se de uma briga inevitável, maior que essa, no rancho do garimpo do Bom Futuro, onde quase morreu. Levou a mão à testa e com a ponta dos dedos apalpou de leve o ferimento feito pela pancada de Bolívar. Ficou estarrecido, incapaz de falar alguma coisa. Uma grande mágoa e desilusão lhe oprimiam o peito, por ter-se enganado tanto acerca do caráter do capataz, pois este já havia conquistado a sua confiança e amizade. Acássio, estupefato, olhou ao redor. Em seguida virou-se para Diadora, que, sentada no chão em cima de folhas secas, chorava num dorido silêncio. Abraçou-a e, com ambas as mãos, puxou sua cabeça e beijou-a com ternura. Ela pendurou-se em sua nuca, chorando e rindo ao mesmo tempo, por tê-la livrado da desgraça. – Agradeço-te por ter salvado a minha vida – disse. – Tornei-me um assassino para defender você, a minha vida e minha honra, matei em legítima defesa, me arrependo muito, sim, mas não pude evitar, era eu ou esse infame traidor. Agora é necessário dar um sumiço no cadáver. Já está anoitecendo, precisamos nos apressar. Vamos levá-lo até o rio que corre no fundo do cafezal. Arrastaram o corpo até a margem do rio, então Acássio procurou uma pedra de tamanho médio, tirou da caminhonete uma corda de sisal e com ela amarrou fortemente a pedra nas pernas dele, e o jogaram nas águas profundas, onde as piranhas, peixes carnívoros e vorazes, se encarregaram de fazê-lo desaparecer sem deixar vestígio. 223 Quando terminaram a tarefa de dar sepultura ao traidor e a seu revólver, nas águas do rio, já era tarde da noite. Voltaram ao lugar onde haviam deixado o veículo. Acássio entrou no Toyota, arfando. O coração ainda lhe batia furiosamente e estava enjoado. Com as costas das mãos limpou as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. Era um assassino, sem querer, mas era. – Querida, volte para casa dirigindo o jipe. Eu vou seguir até Ji-Parana comprar a mercadoria que falta na fazenda. Vá tranqüila. Peça para seu pai Quirino levar o cavalo, o embornal com os pertences e o violão desse infeliz para a pensão em Jaru. Que ele entregue tudo ao dono da pensão, pois que Bolívar fora despedido da Fazenda, por mau comportamento e bebedeira, proibido de voltar lá. - Que o seu pai informe ao dono, que o peão procurará por seus pertences quando voltar à pensão. A essa hora ele deve estar-se divertindo na casa das putas da vila.Também é necessário pedir ao Quirino que não comente nada com o pessoal da fazenda, que viaje à noite para ninguém ver. - Quero que me prometa nunca mais cometer esse terrível equívoco, o de cultivar amizade e confiar em pessoas que não conhece. Está aí o triste resultado da sua ingenuidade. Também, não comente com ninguém sobre o que ocorreu aqui. Este segredo ficará só entre nós dois. Diadora entrou no jipe, acionou o motor e deu marcha ré para ir embora. Como Acássio, estava chorando arrependida, de medo e de raiva. Despediu-se do marido e seguiu o rumo da Fazenda Jaru. No caminho para casa, refletiu sobre o trágico acontecimento, que culminou com a morte de Bolívar. Reconheceu o seu erro em divertir-se com assunto tão sério como é o sentimento alheio. Jurou a si mesma nunca mais praticar esse jogo perigoso. 224 A copiosa chuva da noite que caiu sobre o cafezal, cobriu todo e qualquer vestígio da recente tragédia. Depois daquele dia fatídico que ficara gravado na memória do casal como uma lembrança triste e cujo segredo só eles sabiam, a vida na Fazenda voltou à normalidade. Ninguém se interessou pelo sumiço repentino do tropeiro Bolívar. O homem era uma incógnita, imprevisível, não comentava com ninguém sobre sua vida aventureira, sobre o que pensava ou o que fazia. - Assim como veio, assim se foi – diziam. *** Pelo meado do ano, um acontecimento estranho assombrou os moradores da Fazenda. De repente, sem prever e sem saber de onde veio, irrompeu a praga da formiga-cortadeira. Parecia um castigo mandado por Deus. A formiga saúva é preta, de corpo bastante alongado, com ferrão terminal, carnívora e terrícola. Faz seus ninhos em baixo da terra, no subsolo, construindo caminhos intermináveis e túneis em todas as direções. São verdadeiras crateras em que pode cair qualquer animal ou pessoa. As tanajuras-rainha, fêmeas da saúva, perdem as asas após o vôo nupcial, indo formar novos formigueiros, que se multiplicam assustadoramente. As saúvas chegaram à Fazenda em grande migração, como um exército organizado que marchava regularmente seguindo as ordens de algum general-formiga, que as guiava desde os confins da selva tropical úmida, dos pantanais da Bolívia, numa esteira negra e móvel de alguns quilômetros de largura. Nada as detinha. A invasão começou com um rumorejar nos pastos, uma sombra escura que deslizava com rapidez comendo tudo, o capim, os canaviais, cafezais e as folhas das árvores frutíferas. 225 Para combatê-las jogavam gasolina e ateavam fogo, mas elas reapareciam com nova força. Pintavam com cal viva os troncos das árvores frutíferas e cafeeiros, mas elas subiam sem parar, invadiam a horta e acabavam com as verduras, entravam nos estábulos e comiam o alimento das vacas, na leiteria contaminavam o leite, introduziam-se no galinheiro e devoravam os ovos e os pintinhos vivos. Faziam trilhas dentro das casas, entravam pelos encanamentos e máquinas entupindo tudo, apoderavam-se da despensa, dos armários e tudo que se cozinhava tinha que ser consumido de imediato, porque se deixassem sobre a mesa elas chegavam em procissão e devoravam tudo. Foram combatidas com iscas de formicida, com lança-chamas e inseticidas, as formigas, no entanto, continuavam a enorme destruição, multiplicando-se assombrosamente, invadindo tudo, até as camas das crianças e dos adultos. Cada dia mais atrevidas comeram as reservas de milho, feijão e sementes de café no depósito. Acássio e toda a população das redondezas reuniram-se, assustados, sem saber o que fazer, quando se aproximou o índio Yurundiá, um dos peões da fazenda. – Se me permite, patrão, vou chamar Anhariri, o feiticeiro da tribo dos Caripunas. Há dias ele vem dizendo que conhece o meio de expulsar as formigas – falou o peão. – Não acredito em feitiçaria, mas não vamos perder nada em experimentar. Vá chamá-lo – respondeu Acássio. Trouxeram Anhariri, o velho feiticeiro, que chegou arrastando os pés descalços, mirrado e desdentado, com cocar de penas de arara na cabeça, tanga de fibra de embirra, colares de sementes de frutas e pulseiras com amuletos de caveiras de morcego e chocalhos de cascavéis. O pajé escutou o pedido de Acássio, olhando o chão e abanando a cabeça. Pediu um pano branco e saiu em direção da horta. O velho feiticeiro abaixou-se com 226 dificuldade e começou apanhar formigas. Quando juntou um punhado, colocou-as dentro do pano, atou as quatro pontas e guardou a trouxinha no cocar da cabeça – Vou lhes mostrar o caminho para irem embora, formigas, e para levarem as outras também, sem deixarem nenhuma para trás – ordenou o índio às invasoras. Partiu a passo arrastado, murmurando conselhos e recomendações às formigas, orações e fórmulas encantadas. Viram-no afastar-se até os limites da fazenda. Ao anoitecer, voltou e disse ao patrão que tinha posto as formigas na estrada, ensinando-as o caminho de volta para a selva boliviana. O velho pajé voltou para sua taba. Na manhã seguinte viram que não havia formiga nenhuma na propriedade toda. – Como fez isso? - perguntou Acássio, admirado. – Falando com elas. O feiticeiro Anhariri disse às formigas que fossem embora, que aqui não são bem-vindas, estão incomodando, e elas entenderam e se retiraram – explicou o peão indígena Yurundiá. *** Dias se passaram sem grandes acontecimentos no povoado. De repente um fato jubiloso surpreendeu a todos; talvez fosse para compensar os dias de tristeza e graves problemas que recentemente ocorreram na Fazenda Jaru. Já era tarde da noite quando chegou um cavaleiro, numa montaria bem ajaezada, abriu a porteira da fazenda, cavalgou dentro do cercado, com os cães o acuando, desceu do cavalo e bateu palmas na porta da residência de Acássio. – Oh, de casa! Tem alguém aí? – chamou o homem, postado à entrada da casa. – Quem é? – perguntou o dono da casa, que tinha se levantado da cama para atender a porta. – Apoema, o filho de Diadora – responderam-lhe. 227 Foi grande o sobressalto de Acássio ao ouvir o nome do filho, que Diadora havia muito tempo esperava, sem ter notícias precisas sobre onde ele se encontrava e o que fazia. – Entre, por favor! – convidou – vou chamar tua mãe. Ela terá uma grata surpresa ao te ver. Apoema tornara-se um pesquisador e indigenista. Especializado em botânica, afundou-se nos sertões da Amazônia na procura, para estudo, de plantas medicinais. Abrigava-se com freqüência nas palhoças indígenas para trocar informações e experiências com os anciões, caciques e pajés, das diversas nações da região amazônica que visitava. Era respeitado e benquisto pelos povos da selva. Atencioso para com todos, loquaz e alegre, fazia amigos com facilidade. Diadora, ao ver o filho após tantos anos de ausência, quase desmaiou. Ficou olhando-o de longe, não o reconhecia. Ele havia mudado muito. Seu aspecto físico tornou-se diferente, era um homem alto, magro, de cabelo e barba crescidos.O rosto moreno, queimado pelo sol tropical, coberto pela barba negra, entre a qual o sorriso brincalhão fazia brilhar a alvura de seus dentes. Tinha os olhos rápidos de águia, negros e oblíquos de índio Caripuna, a fronte larga, descoberta pelo chapéu desabado para trás, uma constituição forte, ágil e musculosa; o conjunto acentuava seus traços vigorosos. Era um homem simpático e atraente. A mãe correu em sua direção, abraçava-o e chorava de emoção. Era muito para o seu coração saudoso. Esperava a visita do filho com muita ansiedade, desde o dia em que ele se foi embrenhando-se pelo sertão. Vivia preocupada, não deixava de pensar no filho por um só momento. Longe e sem meios de comunicação ele não mandava notícias. 228 – Filho, agora você vai ficar com tua mãe por muito tempo, não? Precisa descansar e se alimentar bem para recuperar as energias. Você está muito magro. – Prometo mãe, vou ficar o tempo necessário. Diadora cuidava do filho com desvelo, enchia-o de cuidados, tanto que o marido ficou enciumado. – Agora você, Diadora, não dá mais atenção para mim, só se dedica a seu filho, estou com ciúmes – disse com um sorriso nos lábios. – É por pouco tempo, logo vou embora, deixe-me aproveitar o carinho de minha mãe – respondeu, abraçando o marido da sua mãe. Apoema sentia-se feliz junto à sua família. Nas tardes chuvosas de inverno, peões, vaqueiros e colonos da Fazenda, também os vizinhos, vinham para um dedo de prosa. Naquelas noites cálidas ouvia-se, apenas de longe, o monótono tilintar dos cincerros pendentes do pescoço dos cavalos no pasto. Em compassadas batidas, sem parar, batia o monjolo no riacho, socando o milho para a farinha de biju. O ar estava perpassado com estranhos sons, como suspiros do sertão. Grandes achas de lenha eram colocadas no fogão de pedra, o fogo crepitando consumia-as rápido levantando altas as chamas douradas. Uma nuvem transparente de fumaça erguia-se das labaredas e, volteando em sinuosos giros para o alto, desaparecia pelas frestas do telhado. A casa, cercada por grande plantação de árvores frutíferas era iluminada pelas tochas do fogo. Sentados em bancos de madeira, estavam diversos homens e mulheres. A chaleira cheia de água chiava em cima da chapa quente. Tomavam chimarrão. A cuia passava de mão em mão esvaziada em pequenos goles. O botânico, glorioso, sentava entre eles, ao pé do fogão, e lhes desfiava 229 as suas aventuras pela selva. O silêncio na cozinha era total. Ouviam atentamente a história, que Apoema, contava: – Quando eu viajava pela região amazônica como pesquisador, tive uma experiência singular. Eu era moço, de uns vinte e oito anos, quando me embrenhei pelos sertões até as margens do rio Solimões, que após a confluência do Rio Negro, próximo à cidade de Manaus, toma o nome de Amazonas, até a sua foz no Atlântico. - O tempo estava propício para a viagem, as mulas descansadas e gordas. Com facilidade fazíamos quatro léguas, por picadas no mato, parando somente perto de aguadas, para o descanso, e na busca de espécimes de plantas raras, medicinais, ainda não catalogadas. - Certo dia, cavalgando, como de costume, na frente da tropa, abrindo caminho entre os cipós e arbustos com um grande facão, senti de repente um delicado perfume, adocicado, exalado por flores de uma árvore solitária, que crescia no meio de um descampado. Tendo já conhecimento das características estranhas desta planta, reconheci imediatamente a “Árvore da Morte”. Segurei a montaria para esperar os companheiros que iam atrás, enquanto isso analisei detalhadamente essa árvore esquisita e invulgar. - Num círculo de mais ou menos cem passos, o terreno estava totalmente despojado de vegetação mais alta. Em pé, no centro, somente a árvore, de tronco grosso, de média altura, com os galhos tão emaranhados que a luz do sol não conseguia infiltrar-se pela densa folhagem. - Na sua sombra, e ao redor, na distância de alguns passos, estendia-se denso e fofo, como lanugem, um tapete de relva luxuriante. Em todos os seres e principalmente no homem, esta planta exerce algum misterioso atrativo. No calor do dia, sedento de descanso, fatigado, o indivíduo deita-se preguiçosamente nesta oferenda proposital, macia e 230 convidativa. Embriagado pelo doce aroma das flores, despreocupado, adormece. - A planta narcotiza-o com seu odor e durante o sono, incalculáveis quantidades de fininhas raízes envolvem-no e apertam, e neste abraço afogam a descuidada vitima. Depois de certo tempo o corpo some dentro do verde tapete de relva, não deixando sinal visível na superfície. - Avisei aos companheiros do comboio, do perigo que oferecia a sombra desta árvore fatídica. Não acreditaram em nada do que lhes falei. Resolveram fazer a experiência. Perto, havia uma nascente de água e, próximo dela, armamos nosso acampamento. Depois do jantar, todos os participantes da tropa, menos eu e o cozinheiro, estenderam-se comodamente no fofo e perfumado cobertor verde. Até o “Tigre”, nosso cão, deitou junto. - Sentei perto, e comecei a observar esse bando incrédulo, zombando do meu aviso. A noite caia tranqüila, enluarada. Apenas ouvia-se o ruído das asas dos morcegos atraídos pela presença humana e pelo fogo. Passada mais ou menos uma hora, ficou claro que a planta narcotizante começou agir, pois as vozes altas tornaram-se murmúrios e calaram-se. Todos estavam sonolentos com o olhar perdido e, como se estivessem bêbados, olhavam para mim. O narcótico tirou-lhes toda energia, não podiam mover-se. Chamei o cozinheiro e, um por um, arrastamos todos para fora, longe da influência da maléfica árvore. - Os homens passaram a noite com vômitos fortes e dores de cabeça. No outro dia, quando todos já estavam bem, cavamos a terra em baixo do traiçoeiro cobertor de relva e não fiquei surpreso ao ver as picaretas afiadas arrancarem inúmeros ossos, costelas, crânios e tíbias de gente e de animais, vítimas do apetite singular dessa planta. 231 - Esta era a Antiáris toxicaria, vulgarmente conhecida como “Árvore da Morte”, de tal forma venenosa que destruía quaisquer seres ou coisas em sua vizinhança. Os indígenas usavam a sua seiva para envenenar as pontas das flechas. Além deste exótico espécime de árvore dotada dum estranho comportamento, existem outras plantas e flores carnívoras que se alimentam de insetos atraídos pelo seu néctar e perfume embriagador. - Nessa misteriosa selva amazônica, grande parte ainda desconhecida, escondem-se muitos elementos obscuros e enigmas a elucidar – comentei, finalizando. Quando Apoema terminou de contar a história, a água do chimarrão já tinha esfriado e a lenha do fogão tinha apagado.Todos estavam pasmos, nunca tinham ouvido falar de um fato tão estranho. Doutra feita, à noite, reunidos os trabalhadores da fazenda à beira do fogo, tocando violão e cantando modas sertanejas, Apoema e Acassio foram juntar-se a eles. Fidêncio, um dos peões mais antigos da Fazenda, meio encabulado, chegou perto do sertanista e pediu: – Doutor! Conte para nós mais uma das suas fantásticas experiências passadas na selva. – Vou atender ao seu pedido e contar mais uma extraordinária aventura que vivi – concordou. - Era meio-dia. O sol perpassava seus raios escaldantes por entre a ramagem das gigantescas árvores. Eu fazia parte de um grupo de cavaleiros, que constava aproximadamente de quinze pessoas, costeávamos a margem direita do rio Tapajós, um dos maiores tributários do Amazonas. Esse fantástico rio nasce na Serra dos Parecís (MT), onde corre pelos vales, florestas e cerrados mato-grossenses com o nome de Rio Juruena. Habitavam as suas matas os índios Munduruku, Mura, Sateré-Mawê e diversas outras tribos belicosas. 232 - O nosso grupo se embrenhara no sertão amazonense; viajava em caráter científico, pesquisando a flora e a fauna da região. Os homens do comboio estavam todos armados da cabeça aos pés. Cada um deles trazia presas à cinta pistolas carregadas; da ilharga esquerda pendia-lhes um grande e pesado facão, e a espingarda passada a tiracolo pelo ombro esquerdo. - Pouco adiante de nós iam dois homens a pé, que tocavam as mulas carregadas de sacos de lona com mantimento, e caixas com conjunto de instrumentos para pesquisa, cobertos com lona, que as abrigava da chuva. Margeávamos rios e atravessávamos terras ainda desconhecidas. Fizemos aproximação, contato e amizade, com muitas tribos de índios hostis, da região. - Os homens do grupo que seguiam dispersos, se aproximaram do comboio que seguia adiante, eu galopava na frente governando o cavalo com firmeza. Às vezes, dirigia o olhar pelo caminho como para medir a distância que ainda tínhamos a percorrer, e outras vezes ficava pensativo e preocupado. Quebrei o silêncio que reinava na comitiva. - Vamos rapazes – disse eu, alegremente, aos que caminhavam a pé; um pouco de esforço e chegaremos cedo ao acampamento. Faltam apenas quatro léguas de distância. Um dos homens, ao ouvir estas palavras, chegou as esporas à cavalgadura e avançando colocou-se ao meu lado. – Ao que me parece, tem pressa em chegar, Doutor Apoema – disse com um sorriso zombeteiro. – Está certo, meu amigo. Nada mais natural a quem viaja, do que o desejo de chegar, e é melhor chegar de dia do que de noite. - O nosso pequeno grupo tinha deixado a margem do rio, que não oferecia mais condições de passagem e entrara por uma estreita trilha aberta na floresta. Apesar de 233 ser pouco mais de quatro horas da tarde, o crepúsculo reinava nas profundas e sombrias abóbadas da vegetação. A luz coando entre a espessa ramagem se decompunha inteiramente; nem uma réstia de sol penetrava nesse templo da criação, ao qual serviam de colunas os troncos seculares das cerejeiras e castanheiros. - O silêncio da tarde mortiça, com os seus rumores vagos e indecisos e os seus ecos amortecidos, dormia no fundo dessa solidão e era apenas interrompido, no momento, pelos passos dos animais, que faziam estalar as folhas secas. Parecia que o dia tinha sumido, envolvendo a terra nas sombras pardacentas do entardecer. A pequena cavalgada continuou a marcha através da trilha estreita e aproximou-se de uma dessas clareiras das matas virgens que se assemelham a um grande domo de ramagem. - Neste momento um miado terrível fez estremecer a floresta e encheu a solidão com os ecos estridentes de gritos dos macacos apavorados. Os homens empalideceram e olharam um para o outro, engatilharam as espingardas e seguiram lentamente lançando um olhar cauteloso pelos ramos das árvores. - Quando o grupo chegou à margem da clareira, deparou-se com uma cena surpreendente. Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores, encostado a um velho tronco decepado pelo raio, via-se um jovem índio. Tinha a cabeça cingida por uma fita de couro enfeitada por penas coloridas de arara. Na cintura trazia uma faixa de longas plumas escarlates. - De talhe delgado e esbelto como um junco silvestre, sua pele cor de cobre brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, os olhos negros, oblíquos, cintilantes e rápidos como dum gavião, a boca forte, mas bem modelada, guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto uma beleza rústica. 234 - Era alto, tinha as mãos másculas, fortes, a perna ágil e nervosa, ornada com uma pulseira de frutos amarelos e vermelhos, apoiava-se sobre o pé com firmeza. Segurava o arco e as flechas com a mão direita caída, e com a esquerda mantinha verticalmente diante de si um longo forcado de pau. Perto dele estava atirado ao chão um grande e afiado facão com cabo de madeira lavrada. - Nesse instante, o índio, erguia a cabeça e fitava os olhos numa sebe de folhas que se elevava a quinze passos de distância, e se agitava lentamente. Por entre a folhagem, distinguia-se o dorso, de pelo ruivo-dourado, brilhante, salpicado com listras e manchas redondas orladas de preto, dum feroz gato selvagem, a jaguatirica. Tinha mais ou menos um metro de comprimento e sessenta centímetros de altura, pesava aproximadamente vinte e cinco quilos.Sua cauda comprida, de pêlos macios movia-se nervosamente - Às vezes via-se brilhar na sombra os olhos, dois raios vítreos e amarelos, que se assemelhavam aos reflexos de rocha, ferida pela luz do sol. A jovem jaguatirica, de garras apoiadas sobre um grosso tronco de árvore e pés suspensos no galho superior, encolhia o corpo, preparando o salto sobre o inimigo. - Batia os flancos com a cauda, e movia a cabeça pequena, como a procurar uma abertura entre a folhagem para arremessar o pulo. Uma espécie de riso sardônico e feroz contraía-lhe as fortes mandíbulas mostrando os dentes afiados. As ventas dilatadas aspiravam fortemente e pareciam deliciar-se já com o sabor do sangue da vítima. - O indígena, sorrindo e levemente encostado ao tronco seco, não perdia um só desses movimentos e esperava o animal com calma e serenidade; apenas a fixidez do olhar revelava um pensamento de defesa. Assim, durante um curto instante, a fera e o homem mediram-se ambos, com os olhos nos olhos um do outro; depois o 235 enorme gato selvagem agachou-se, e ia formar o salto, quando a tropa apareceu na entrada da clareira. Então o animal, lançando ao redor um olhar injetado de ódio, eriçou o pelo, e ficou imóvel, hesitando se devia arriscar o ataque. - O índio Naipi, ao ver a reação da fera curvara ligeiramente os joelhos e apertara o forcado; endireitou-se de novo, sem deixar sua posição, nem tirar os olhos do animal, viu o grupo que parara à sua direita. Estendeu o braço e fez com a mão um gesto intimando aos cavaleiros para que continuassem a sua marcha. A um sinal meu, os homens prosseguiram a viagem, e se embrenharam novamente na selva. Eu fiquei ai, estacado, admirando e esperando o desfecho desse embate feroz, entre os donos da floresta. - A jaguatirica, observava os viajantes, imóvel com o pelo eriçado, não ousara investir nem retirar-se, temendo expor-se aos tiros das espingardas, mas apenas viu a tropa afastar-se sumindo no meio da mata, soltou um forte miado de provocação. Ouviu-se o rumor de galhos que se quebravam, e o vulto ruivo-dourado do felino passou no ar, pousando num tronco mais distante do adversário. O selvagem entendeu de imediato a razão disto. A jaguatirica, com seu instinto carniceiro e a sede voraz de sangue tinha visto os cavalos, uma presa fácil para saciar a sua fome. O felino temia o homem. - Com a mesma rapidez que pensou, o índio pegou da cinta uma flecha e esticou a corda do grande arco. Ouviu-se um forte sibilo, que foi acompanhado do miado dolorido da fera. A jaguatirica voltou-se ameaçadora e terrível, aguçando os dentes, rugindo de dor, fúria e vingança. Com dois saltos aproximou-se novamente - Era uma luta de vida e morte. Estes dois jovens habitantes da selva, cada um com suas armas, cada um com a consciência de sua força e coragem, consideravam-se 236 adversários dignos um do outro. A jaguatirica desta vez não demorou. Assim que se achou próximo do inimigo, retraiuse com uma força de elasticidade extraordinária e atirou-se como um estilhaço de rocha, cortada pelo raio. - A velocidade deste salto admirável, foi tal que, no mesmo instante em que se viram brilhar entre as folhas os reflexos ruivos de sua pele, já a fera tocava o chão com as patas. Então, o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote, fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da jaguatirica, que, subjugada, prostrada, de costas, com a cabeça presa ao chão pelo forcado, debatia-se, procurando debalde alcançá-lo com as garras. - Essa luta durou alguns minutos. O índio Naipi, com os pés prendendo fortemente as pernas da jaguatirica e o corpo apoiado sobre a forquilha, mantinha imóvel a fera. Quando o animal, quase asfixiado pela estrangulação, já não fazia resistência, o selvagem, segurando sempre a forquilha, meteu a mão na cintura e tirou uma corda de embira que passou nas patas dianteiras ligando-as fortemente uma à outra; depois fez o mesmo às pernas, e acabou amarrando as duas mandíbulas, de modo que a fera não pudesse abrir a boca para arrancar as cordas. - Quando Naipi satisfez o prazer de contemplar a sua presa totalmente imobilizada, foi ao regato, bebeu alguns goles d‟água, lavou as mãos, o rosto e os pés, e cuidou em pôr-se a caminho. Passando pelas patas da jaguatirica um galho forte, que suspendeu ao ombro, e vergando ao peso do animal, de vinte e cinco quilos, que se debatia, tomou a trilha por onde tinha seguido a nossa tropa. O urutau no fundo da mata soltou as suas notas graves e sonoras, solidário ao animal preso; grito que reboou pelo sertão e foi extinguir-se na imensidão da vegetação. 237 “Tinyiá,desejava ter uma jaguatirica como animal de estimação, e eu fui buscar uma para ela – raciocinou ele”. - Naipi arriscando a própria vida, capturou e trouxe a jovem jaguatirica, viva, um lindo e grande gato selvagem unicamente para satisfazer o capricho da sua amada, a filha do cacique Kuará, da nação Munduruku. - É que o amor e as paixões surgidas nesses ermos incultos, e, sobretudo no seio desta natureza exuberante e grandiosa, são verdadeiras epopéias do coração. - Tinyiá, era uma jovem índia, cuja posse disputavam todos os guerreiros que a conheciam. Seu pai, o chefe da tribo, sentia o orgulho de ter uma filha tão formosa, como a mais vistosa pena do seu cocar. - As grandes nações indígenas, Munduruku, SateréMawé e Mura dominavam todo o território entre o Rio Tapajós e o Madeira; eram povos guerreiros, valentes e destemidos, que por diversas vezes fizeram sentir aos conquistadores a força das suas armas. Os mais belicosos e temidos eram da nação Sateré-Mawé, que viviam invadindo os territórios dos seus vizinhos, roubando as suas mulheres. - Nas minhas andanças pelo sertão, fiz amizade com o cacique Kuará, e fui recebido com alegria na sua aldeia. Para selar esse pacto de amizade e respeito, os indígenas organizaram danças e festejos em nossa homenagem. Caçaram uma grande anta e cinco catetos gordos, que assaram na fogueira armada no meio do terreiro da taba, envoltos em folhas de bananeira. - Para dar maior destaque ao fato, naquele dia Naipi trouxe a jaguatirica que tinha capturado, para oferecer à jovem índia, a quem amava. Um átomo de vaidade surgiu no fundo do olhar da moça ao contemplar o seu exótico presente. Sorriu e aproximando-se do guerreiro, disse: – “Meu amigo Naipi, agradeço pelo lindo felino que me trouxe, mas tenho um pedido urgente a te fazer. Olha 238 para esse magnífico animal que está aprisionado. É valente, no entanto, tremem seus músculos na expectativa de se livrar dessas amarras e ganhar a liberdade. Solte a jaguatirica para que vá viver na selva onde é o seu lugar, aqui, enjaulada, ela vai morrer de desespero e tristeza, e eu vou sofrer também, liberte-a, peço-te, por favor!.Estou arrependida de ter desejado esse presente”. - O índio sorriu de leve, apenas com uma leve contração dos lábios, era um sorriso triste. - “Naipi é um selvagem, filho das florestas; nasceu nesses ermos, no meio dos animais que vivem na selva, eles conhecem Naipi e o respeitam, e eu os respeito. Não vou machucar o grande gato, só o capturei para oferecer a você, para que o domesticasse e brincasse com ele, mas se tem pena e o deseja livre, desatarei o laço que o prende e soltarei na mata”. - “Eu desejo que assim o faça, meu amigo Naipí confirmou a moça”. - Ela sabia que era amada pelo valente guerreiro, uma alma selvagem, livre como as aves que planam no ar, ou como os rios que correm na várzea, admirava aquela natureza forte e vigorosa que fazia prodígios de força e coragem; aquela vontade indomável como a torrente que se precipita do alto da serra. Mas seu coração virgem não batia de amor por ele; a afeição que sentia por Naipi era um enlevo, uma grande admiração de menina pelo seu herói, o amor fraternal que consagrava a um irmão. Nunca admitira que esse sentimento pudesse passar daquilo que sentia. - No entanto, a minha pessoa, o homem branco, um estrangeiro, produziu novas emoções, ainda desconhecidas para Tinyiá. Assim que ela me viu adentrando a aldeia, na companhia do cacique Kuará, seu pai, ficou atraída por mim. O olhar de admiração que lhe dirigi ao cumprimentála, conquistou-a definitivamente. O amor revelou-se para 239 ela sob uma nova forma. Talvez fosse o fascínio do desconhecido, dum mundo que ela não conhecia e nem supunha existir e que o homem branco podia lhe oferecer. - Eu tinha o hábito da vida arriscada de explorador, obrigado a romper as matas virgens e abrigar-se em lugares imprevisíveis. Montava nosso acampamento na margem do rio ou nalgum descampado da mata. Aí o homem vê-se cercado de perigos por todos os lados, pode surgir de repente uma sucuri ou uma onça, um inimigo oculto pela folhagem, que se aproxima sem ser visto. - A única defesa é a sutileza do ouvido que sabe distinguir, entre os rumores vagos da floresta, aquele que é produzido por um movimento mais forte do que a do vento. Assim como a rapidez e certeza da vista que vai perscrutar as sombras das moitas e devassar a folhagem espessa das árvores. Eu, felizmente, tinha esse dom dos caçadores hábeis e também a sensibilidade para admirar a natureza. - Mas, jamais poderia competir com os indígenas que conhecem profundamente a vegetação da selva amazonense, desde a parasita mimosa até o castanheiro gigantesco; e no reino animal observam e respeitam a onça e a anta, símbolos da ferocidade e da força, até o lindo beija-flor e a multiplicidade de insetos, e a inteligente organização social dos formigueiros. - Olham este céu que de repente passa do mais puro azul aos reflexos cinza e bronzeados que anunciam as grandes tempestades. Eles observam e vêem, sob o verde tapete da relva coalhada de flores que cobre as várzeas, deslizar os mais inverossímeis répteis que levam a morte num átomo de veneno.Os silvícolas, que nascem, embalamse nas redes de juta, banham-se nos rios, brincam e crescem nesse berço selvagem, no meio de cenas tão diversas, entre o eterno contraste do sorriso e da lágrima, da flor e do 240 espinho, do mel e do veneno; também têm a sensibilidade e a alma de um poeta. - Tinyiá, não entendia essa luta do amor com os outros sentimentos do coração. Na sua ingênua simplicidade acreditava que podia juntar o respeito que tinha pelo pai e pela mãe, ao amor que sentia pelo homem branco e o afeto fraternal que consagrava à seu amigo de infância Naipi. Esses sentimentos eram sua razão de viver; no meio deles sentia-se feliz, nada mais ambicionava. - Naipi estava triste; depois da conversa que tivera com Tinyiá, vira-a durante as danças, a menina evitava os seus olhares, e nem uma só vez lhe dirigira a palavra. O índio supunha que tudo isto era resultado de sua aventura com o grande gato selvagem, mas isso não podia ser a razão, pois ele atendeu o pedido dela, trouxe, e depois soltou o animal na floresta. A maneira com que ela o tratava, tinha-lhe dado a maior prova de falta de amor, de indiferença e desinteresse. - Tinyiá mostrava-se alegre e satisfeita com todos. Dava atenção especial a mim, homem branco, que o cacique Kuará convidara, para que participasse dos festejos. O nosso acampamento fora armado perto do rio, na proximidade da aldeia Munduruku, com consentimento do chefe da tribo e do pajé Caaibaté. - A tropa de cavalos e mulas, para que não se extraviasse pela mata, fora recolhida ao cercado que pertencia à aldeia. Os animais cansados e esfomeados pastaram tranqüilamente a tarde toda, na pastagem abundante. Mas depois, os homens observaram que algo estava perturbando os animais, eles corriam endoidecidos pelo campo cercado, relinchavam, escoiceavam e mordiam uns aos outros. Fui avisado desse estranho comportamento dos animais. Nesse momento eu estava conversando com amigos, na companhia do pajé Caaibaté, que ouviu o relato 241 da invulgar ocorrência, e sorrindo com a boca desdentada, deu a sua opinião: - “Não se preocupe, os seus cavalos devem ter comido uma planta alucinógena que existe nas pastagens e que, quando comida pelos animais causa-lhes grande euforia. Eles estão sobre o efeito da droga, que logo vai passar, fique tranqüilo”. - O pajé era um homem velho, de pele enrugada, alto e magro; vestia duas peles de anta ligadas sobre os ombros que cobriam seu corpo como uma túnica; um grande cocar de penas escarlates e amarelas, ondeava sobre sua cabeça e realçava lhe a grande estatura. Tinha o rosto pintado com riscos em preto e branco, e o pescoço cingido de uma coleira feita com as penas brilhantes de tucano. No braço ossudo levava uma pulseira feita de pequenos frutos coloridos e ossos de animais. Era uma pessoa sagaz e inteligente, respeitado por toda nação Munduruku. - Eu conversava com o pajé, que questionava as guerras entre os brancos e silvícolas. Sentávamos nós sobre dois grossos troncos de árvore lavrados toscamente, que nos serviam de bancos. O pajé Caaibaté condenava, com razão, a invasão das suas terras pelos estrangeiros, a expulsão impiedosa da sua gente, o aprisionamento e os massacres dos nativos. Eu dava-lhe todo apoio, comungava da mesma idéia, não aprovava as atrocidades praticadas pelos homens, ditos civilizados. - Nesse momento aproximou-se de nós, a bela índia Tinyiá. A moça fitou-me com seus grandes olhos negros; havia tanto amor e tanto sentimento nesse olhar profundo, que se eu compreendesse teria a resposta à pergunta que me fiz. Mas eu não entendi, nem o olhar ardente que me fascinava, nem o silêncio da moça. Supunha que havia nisto um mistério, e queria esclarecê-lo. 242 - “A dileta filha do cacique Kuará tem algo a me dizer? - Perguntei - pois fale, eu a ouvirei com todo respeito! Por amor dos deuses da floresta, fale! Não me deixe em dúvida, preciso saber o que se passa”. - Tomei nas minhas as duas mãos da moça, e com os olhos fitos nos dela esperava enfim uma resposta. O amor profundo que dormia arraigado na alma selvagem de Tinyiá, a paixão abafada e reprimida, acordara, e quebrando as cadeias que a retinham, erguia-se impetuosa e indomável O simples contato das minhas mãos tinha causado essa revolução; o amor ia transbordar do coração como a torrente caudalosa do leito profundo do Tapajós. - “Eu te amo! – murmurou num ímpeto a moça – você não conhece o segredo desse amor que vive só de ilusões, sem que um olhar, ou uma palavra sua o alimente. A pequena atenção que você me dava era um estímulo para minha alma”. - “É uma grande surpresa essa sua declaração, jamais imaginei que houvesse, da sua parte, tal afeto relacionado a mim, sempre supus que você era prometida e amava o guerreiro Naipi, que a ama e lhe é totalmente dedicado, prova disso está no risco de vida que correu para trazer-lhe esse feroz e estranho presente“. - “Realmente, fui prometida a Naipi e ele me ama, no entanto, eu o respeito e amo como a um irmão. Fomos criados juntos; corríamos pelos campos igual a cabritos selvagens e tomávamos banho no rio, junto com as crianças da tribo. Admiro muito ele, mas não consigo vê-lo como meu marido. Preciso esclarecer este assunto com ele”. - Nesse momento aproximou-se deles o guerreiro Naipi. Cumprimentou com toda deferência o pajé Caaibaté e o homem branco, que conversava com a sua pretendida. Tinyiá, assim que o viu chegar, ficou com medo de enfrentá-lo naquele instante, e afastou-se rapidamente. 243 Precisava estar só para refletir sobre o misterioso sentimento, que tomava de assalto o seu coração, e achar a melhor forma de discutir isso com Naipi, sem magoá-lo. - “Estou achando estranho, a minha prometida, evitar-me dessa maneira, será que eu a ofendi? O nosso pajé sabe de alguma coisa? – perguntou Naipí”. - “Você precisa procurar Tinyiá e falar com o pai dela, o cacique Kuará, eu não posso te adiantar nada – respondeu o pajé e também se retirou do grupo”. - Naipi atravessou a ocara cheia de gente e colocando-se junto à sua amada, olhou-a por um instante com um sentimento de profunda melancolia. Nesse olhar ardente fazia uma última e solene despedida; partindo, o apaixonado queria deixar a sua alma presa naquela imagem. - Que epopéia de sentimento e abnegação não havia naquela muda e respeitosa contemplação! Não ia reivindicar nada, nem o direito que tinha de tomá-la como esposa. O amor não se impõe, ele é uma dádiva divina. - O guerreiro estava perplexo com a confusão dos sentimentos, do seu amor frustrado; agora estava convencido que a jovem não o amava, e nunca o havia amado. Decepcionado, sob o peso da mágoa dolorosa, como é sempre a dor do coração, o guerreiro afastou-se distraído, com a cabeça baixa; caminhou sem direção, seguindo a linha que traçavam os grupos de árvores, destacados aqui e ali sobre a campina. - O índio desapareceu nas sombras da noite que avançava rapidamente. Foi procurar a sua tribo e o campo onde nasceu. Ele era um membro da nação Mura, da família lingüística Mura, que veio com a mãe, ainda criança, para a aldeia dos Munduruku, e quando ela voltou para sua tribo ele ficou com os novos amigos. Agora desiludido, malogrado no seu amor, voltava à sua gente. A mágoa dilacerava seu coração selvagem. Precisava esquecer 244 Tinyiá! Amava-a desde a infância, esperava que algum dia ela fosse sua esposa. - Para esquecê-la era necessário embrenhar-se pelo sertão atrás de caça ou talvez de um inimigo à sua altura. Não voltou mais para a tribo dos Munduruku. Tomou como esposa a índia Jandira, uma virgem belíssima, da sua tribo, que o amava e o esperava na sua rede nupcial. No correr dos anos ela lhe deu muitos filhos varões. - O guerreiro Naipi da nação Mura não precisou esperar muito tempo para extravasar toda sua desilusão com o amor e a indiferença de Tinyiá. Surgiu uma guerra com o inimigo antigo do seu povo, a numerosa e feroz tribo dos indígenas Sateré-Mawé, do tronco Tupi, que habitavam as margens do rio Maués. - Eles sempre cobiçaram o território dos Mura, onde havia abundante caça, e o grande rio Tapajós era pródigo em peixes; mas principalmente cobiçavam as belas mulheres Mura. Para tanto, espionaram a aldeia por muitos dias e quando os homens adultos saíram em grupo, para fazer a grande caçada, os Sateré-Mawé resolveram atacar. Fariam uma encenação de um grande ataque, para assustar as mulheres, crianças e alguns homens mais velhos, que tivessem ficado como guardiões da aldeia. - Ao amanhecer do terceiro dia, ouviu-se um som rouco que se prolongou pelo espaço, como eco surdo de um trovão distante. Uma linha movediça, longo arco de cores vivas e brilhantes, agitou-se ao longe na planície irradiando à luz do sol nascente. - Homens quase nus, de estatura gigantesca e aspecto feroz; com o rosto e corpo pintados com as cores de guerra, levando na cintura faixas de penas amarelas e vermelhas, armados de tacapes, espécie de longas espadas de pau que cortavam como ferro, e de arcos e flechas enormes, ameaçavam soltando gritos medonhos. A inúbia 245 retroava; o som dos instrumentos de guerra misturado com os brados e alaridos formavam um concerto aterrorizador, harmonia sinistra que revelava os instintos dessa horda selvagem reduzida à brutalidade das feras. – Os Sateré-Mawé! – gritaram apavoradas as mulheres da aldeia Mura. - Todos os homens fortes, guerreiros da tribo, estavam ausentes, tinham ido à caça de antas e porcos-domato, caititus; ficaram apenas os mais velhos, mulheres, crianças e o pajé Tiarayiú, que alertado sobre o perigo da invasão, mandou com urgência um rápido mensageiro avisar Naipi, o chefe da caçada. - Eram seis horas da manhã. - Longe, ao pé do morro descortinava-se o acampamento dos Sateré-Mawé; a brisa que passava trazia o rumor confuso das vozes e gritos dos guerreiros inimigos. - O sol elevando-se no horizonte derramava cascatas de ouro sobre o verde brilhante das vastas florestas e refletia-se nas águas do rio Tapajós. Os invasores, agrupados em torno de alguns troncos já meio reduzidos a cinzas, faziam preparativos para dar um ataque decisivo à aldeia dos Mura, situada doutro lado do rio. - Nesse momento, os Sateré-Mawé preparavam setas inflamáveis para incendiar as malocas da aldeia inimiga; não querendo atacar de imediato e vencer pelas armas, contavam primeiro destruí-la pelo fogo. Assim, poderiam capturar as mulheres e crianças dispersas pela ocara. - A maneira como preparavam esses terríveis projéteis era muito simples; envolviam a ponta da flecha com flocos de algodão embebido na resina de aroeira (almécega) Essas setas assim inflamadas, despedidas por seus arcos voavam pelos ares e iam cravar-se na cobertura de palha das palhoças, incendiando-as; o vento alastrava o fogo pela aldeia toda. Enquanto, atentos, se ocupavam com 246 esse trabalho, um prazer feroz se estampava nessas fisionomias selvagens. A braveza, a ignorância e a cobiça se acentuavam. Os cabelos negros cortados rentes e caídos sobre a fronte ocultavam-lhes os olhos oblíquos, que despediam chispas de fogo sobre a aldeia inimiga. - Entre todos se distinguia um velho que parecia ser o chefe. Sua alta estatura, reta apesar da idade avançada, dominava seus companheiros sentados ou agrupados em torno do fogo. Seu rosto e corpo estavam pintados com as cores de guerra, preto e vermelho. Não trabalhava; presidia apenas o trabalho e de vez em quando lançava um olhar de ameaça para a aldeia que se achava doutro lado do rio. - Ao lado dele, ficava uma bela índia na flor da idade; queimava sobre a cova de uma pedra algumas folhas de tabaco misturadas à maconha, cuja fumaça se elevava em grossas espirais e cingia a cabeça do velho de uma espécie de névoa. Ele aspirava esse aroma embriagador, que fazia dilatar o seu vasto peito e dava à sua fisionomia um aspecto incomum. Envolta pela fumaça espessa, aquela figura fantástica parecia um ídolo selvagem. - De repente a índia soltou um grito; todos se voltaram para ela e a viram trêmula, ofegante, apoiando-se com uma das mãos sobre o ombro do velho cacique e a outra estendida na direção da floresta próxima do campo onde estavam acampados. Ela ouvira um barulho estranho. - O velho ergueu-se, sempre com a mesma calma feroz e sinistra; e empunhando o seu pesado tacape, fê-lo girar sobre a sua cabeça como um junco; depois fincando-o no chão e apoiando-se sobre ele, esperou. Os outros selvagens armados de arcos e flechas colocaram-se a par do velho, esperavam a sua ordem, prontos para o ataque. O estalido que a princípio tinham ouvido cessou completamente, e os selvagens recobrando-se do susto 247 convenceram-se de que tinham sido iludidos por algum vago rumor da floresta; voltaram à preparativos de guerra. - A aldeia da tribo Mura estava em pânico. As mulheres e crianças corriam pelo terreiro apavoradas. Todos com os olhos fitos no campo inimigo, os sentidos alerta, esperavam o ataque a cada momento e se preparavam para defender-se com valentia que distinguia a raça Mura. Esperavam ansiosos a volta do chefe Naipí e seus guerreiros, que os defenderiam do ataque. - Naipi foi avisado, por um veloz emissário da sua comunidade, do iminente ataque dos Sateré-Mawé à sua aldeia. Resolveu atacar o acampamento deles de surpresa. Os guerreiros Mura, mastigando folhas de ipadu, esgueiraram-se sorrateiros entre as árvores e ramagens, silenciosos como uma sucuri, alcançaram o acampamento inimigo por trás e investiram no flanco mais exposto, disparando flechas envenenadas. Caíram no meio deles, subitamente, sem que pudessem saber se tinham surgido do seio da terra, ou se tinham descido das nuvens. - Passado o primeiro espanto, os inimigos bramindo atiraram-se todos como uma só mola, como uma avalanche, uns contra os outros. Houve uma confusão, um turbilhão horrível de homens que se enfrentavam, se repeliam, tombavam e se estorciam; de cabeças que se levantavam e outras que caíam; de braços e dorsos que se agitavam e se contraíam desfechando golpes violentos com o tangapema. Corpos tombados se misturavam naquele campo de batalha. - No meio desse caos via-se brilhar aos raios do sol o tacape de Naipi, que passava e repassava com a velocidade do relâmpago quando percorre as nuvens e atravessa o espaço. O guerreiro ansiava por essa batalha e lutava como uma fera. Um coro de gritos, urros e gemidos roucos e abafados, confundindo-se com o choque das 248 armas, se elevava desse pandemônio, e ia perder-se ao longe nos rumores das cachoeiras do Tapajós. - O chefe Naipi, vencedor, deu o sinal de trégua no combate; seguiu-se uma calma aterradora. Os selvagens imóveis de espanto e de cansaço suspenderam o ataque; os corpos dos mortos faziam uma barreira entre os inimigos. Os guerreiros abaixaram as armas e não deram mais um passo à frente; esse povo bárbaro tinha seus costumes e suas leis, e uma delas era esse direito exclusivo do vencedor sobre o vencido, sobre os prisioneiros de guerra. - Os Sateré-Mawé sobreviventes, vendo a batalha perdida, fugiram em debandada, correndo do risco de ficarem cativos do povo Mura. O guerreiro Naipi com seus homens voltou feliz à sua tribo. Entre os prisioneiros, trazia a bela índia Maibi, que iria partilhar a sua rede, como sua segunda esposa. - O cacique dos Sateré-Mawé e mais cinco inimigos capturados seriam sacrificados e devorados na festa dos vencedores, cerimônia que costumavam celebrar após a vitória. Os crânios deles, espetados, enfeitariam como troféus o cercado da aldeia Mura, na margem do Tapajós. - Depois de refletir muito sobre o amor que Tinyiá me dedicava, dirigi-me à seu pai, chefe dos Munduruku e solenemente, pedi a mão de sua filha em casamento. Pedido que fez estremecer de felicidade o coração da jovem índia e comoveu o do pai; ele admirava o homem branco. - “O meu compromisso com o guerreiro Naipi deixou de existir, depois que ele voltou para sua tribo. Portanto, pode tomar minha filha Tinyiá como sua esposa. Serei feliz se ela for feliz. Só te imponho uma condição, não poderás levá-la para a taba dos brancos. Ela será sua esposa aqui na nossa aldeia - decidiu o cacique Kuará”. – “Sou conhecedor dos costumes da valorosa nação Munduruku, concordo plenamente com a exigência do 249 grande chefe Kuará e assumo o papel de marido da vossa filha Tinyiá – confirmei a determinação do pai “. - A nossa união foi solenemente festejada. Passei a habitar a oca da família de minha esposa Tinyiá, quando de passagem por essas bandas. Ela já me deu dois filhos homens, Pojucã e Itaquê, que são criados de acordo com os costumes do povo Munduruku. Já era quase madrugada; os galos cantavam pelos terreiros e o sabiá madrugador entoava sua melodia, empoleirado na árvore do pomar, quando Apoema, o filho de Diadora, terminou de contar a aventura que viveu nas margens do rio Tapajós, nos sertões amazonenses. – Pelo que falou, eu sou avó de dois filhos teus com a índia Tinyiá. Gostaria imensamente de conhecê-los. – Na primeira oportunidade levarei a senhora para conhecê-los, minha mãe – a viagem vai ser longa e cheia de desafios, mas eu conheço a selva e somos bons amigos. *** No grande espetáculo da vida surgem novos figurantes que trilham o caminho predestinado, envolvidos no drama sentimental cujo teor desvendamos por acaso: “A história secreta de Alicia”. Alicia era filha mais velha de Hermínia Bauer e Januário de Oliveira. Alicia e Janice eram primas e foram criadas juntas após a morte dos pais de Janice. Amigas íntimas confidenciavam seus segredos e não os revelavam a ninguém, nem sob tortura. Quando Janice casou e se mudou para a Fazenda Marambaia, de propriedade da família de Guilherme, Alicia ficou muito triste e só, pois não teria mais a quem segredar os seus problemas. De alma sensível, possuindo um dom especial para música, dedicou-se a aprender tocar piano, para isso foi contratada uma excelente professora. 250 Depois da aula distraia-se ajudando o pai no atendimento à numerosa clientela do armazém. Januário era estabelecido havia muitos anos na cidade de Palmeira do Sul, comercializava cereais produzidos na região. Para preencher a solidão de Alicia logo apareceu um rapaz simpático, de cabelos crespos da cor de ouro velho. Era de porte médio, esbelto, tinha uma fisionomia plácida e algo de fraternalmente atrativo nos olhos muito azuis. Valdir era filho caçula de Felício Rudgieri Junqueira e de Gertrudes Waiss. O pai, era comerciante, possuía uma loja de confecções na cidade. Nos encontros sociais Valdir ficou conhecendo a jovem Alicia. Apaixonou-se por ela à primeira vista. Alicia era uma moça muito bonita, alegre, de olhos cinza-esverdeados, cabelos loiros e pele rosada. Valdir e Alicia, como a maioria dos habitantes da Região Sul do país, tinham correndo nas veias sangue de descendentes de imigrantes de origem européia, italianos, alemães e portugueses. O moço, apaixonado, não esperou muito para pedir a mão da jovem em casamento. Passadas algumas semanas foram juntos à igreja marcar a data da cerimônia. Encontraram na sacristia da igreja um pároco novo, fato que os surpreendeu, pois não o conheciam. O padre atendeu-os com simpatia, palavras de orientação e afeto, desejando-lhes felicidades. O padre Genaro de Sordi fora transferido recentemente da capital, para ocupar o cargo de reitor do Seminário Diocesano São Vicente na cidade. Além das aulas de Teologia que ministrava aos seminaristas, também lecionava Ciências, História do Brasil e Universal no Colégio Santa Maria, dirigido por irmãs Vicentinas e freqüentado por alunos da classe média da cidade. Nascido na Itália, o padre Genaro viera para o Brasil logo depois de ordenado. Falava com um leve sotaque 251 italiano e tinha uma voz cantante e macia que enchia o recinto e quando falava, seus olhos brilhavam. O vigário era um homem alto e corpulento, de rosto cheio e olhos de um castanho da cor-de-mel queimado. Tinha um olhar magnético e uma irresistível capacidade de atração. O sorriso tão cativante encantava as pessoas. O padre tinha um aspecto másculo – a voz, os gestos, o andar, tudo exprimia masculinidade. Era um personagem singular. Certa vez, ao cair da tarde, aproximou-se da janela da sala paroquial, o busto um pouco inclinado para a frente, o olhar vago posto nos horizontes largos sobre a Serra do Mar, que se desenhava ao longe. Sentiu saudade da sua terra natal, Itália. Nesse momento um bando de hortulanas, pássaros de arribação, sobrevoava em círculo o bosque próximo à paroquia. Padre Genaro, embevecido, observava o seu vôo ordenado. Lembrou-se, que, quando ainda estava na Itália, sua mãe preparava uma excelente iguaria de hortulanas assadas. Decidiu pedir ao sacristão para ele pegar uma dúzia delas e levar para a cozinheira Giordana para que as preparasse e servisse no jantar daquela noite. Era uma extravagância do paladar que se permitia. Os vigários anteriores da paróquia sempre se impacientavam com a falta de religião dos homens da cidade, que em sua maioria nunca iam à missa ou, quando iam, não se ajoelhavam nem oravam, limitando-se a ficar de pé, atrás do último banco, com o ar contrariado, e em geral se retiravam, mal começava o sermão. O padre Genaro, porém, fizera-se amigo de todos, conquistando-lhes a confiança. Tinha um comportamento exemplar, e a maledicência local nunca conseguira descobrir-lhe na vida o mais leve deslize moral e era sentimentalmente intocado. Até que um dia o destino o atingiu. 252 Nos primeiros tempos Genaro esteve tão ocupado com seus deveres paroquiais, que não teve tempo de pensar em mais nada. Deitava cansado das lides diárias e levantava-se de madrugada para rezar a missa às seis horas da manhã, que era assistida por meia dúzia de beatas. Tomava o desjejum reforçado, que sua velha cozinheira Giordana lhe preparava e saía em peregrinação pela cidade e redondezas, para inteirar-se do modo de vida, dos interesses e problemas dos paroquianos. Ocupava-se também, como reitor, da administração do Seminário e com as aulas que lecionava aos seminaristas e aos alunos do Colégio Santa Maria. Não regressava à casa paroquial até tarde, quando comia a única refeição completa do dia, sozinho na sala de jantar da casa. Contudo, a fadiga em conseqüência do trabalho não foi suficiente para sufocar sua natureza vigorosa e sensual. Alguma coisa o incomodava, deixava-o inquieto. Vinda de tradição antiga, a celebração da festa de Santo Agostinho padroeiro da cidade, no mês de maio, realizar-se-ia neste ano com toda a pompa. O padre Genaro se propôs a organizar e administrar os festejos. Esforçar-seia para que naquele ano sobrepujassem as comemorações dos anos anteriores, em que o seu antecessor padre Giácomo, já idoso, comandava na paróquia. No dia da festa levantou-se de madrugada. Lá fora, o campo sacudia-se da modorra da noite, e os primeiros raios do sol cruzavam como sabres os cumes das montanhas, aquecendo a terra e evaporando o orvalho da noite, numa fina espuma branca que manchava todos os contornos e fazia da paisagem uma visão de sonho. A finíssima garoa empapara a terra e as árvores. Àquela hora matutina tudo estava ainda calmo. Passos de alguém que passava esmagavam as folhas caídas e os galhos secos, produzindo um leve estalar, único ruído 253 naquele vasto espaço adormecido. Os raios do sol nascente apareciam tímidos, acima dos picos mais elevados, mas o dia ainda não acabara de se instalar e a terra bocejava. Mais alguns minutos e o disco dourado, enfim, surge majestoso e, aos poucos, os campos ao redor emergem lentamente das sombras e ganham tons esverdeados fortes. O orvalho, em cima das folhas, brilha como vidro moído. O dia está começando... Em passos rápidos o vigário aproximou-se da janela do seu quarto e olhou para fora. Sob um céu sem nuvens, dum azul intenso, o Largo em frente da igreja cintilava ao sol nascente. Soprava uma brisa morna e o ar estava leve. Pela calçada de pedra da praça, impelidos pelo vento, folhas caídas e uns pedaços de jornal velho arrastavam-se pelo chão, batendo nas pernas dos passantes. Genaro dirigiu-se à porta da sala e a abriu toda, deu dois passos à frente para o jardim, gesticulou, respirou fundo, e com o olhar abarcou o horizonte.O vento fazia esvoaçar-lhe os cabelos ruivos; sentiu uma repentina tontura e por momentos as imagens se lhe turvam diante dos olhos. Pouco antes das seis horas deixou a casa paroquial, atravessou a praça em passadas vigorosas, na direção da Matriz, cujos sinos badalavam anunciando que a missa das seis, ia começar. Caminhava atento às pessoas que àquela hora matutina se dirigiam para a igreja. A Praça da Matriz estava toda ornamentada. Lá estava a grande figueira, muito copada, dum verde-garrafa sombreado de preto, e com seu tronco e galhos que pareciam membros humanos espichados. Dos seus ramos pendiam guirlandas de flores artificiais. Ela também era participante daquela comédia da vida, mais do que mera parte do cenário estático. Colados a fios suspensos entre as 254 árvores, que o inverno despira de folhas, esvoaçavam bandeirinhas triangulares, azuis, vermelhas, verdes, amarelas e brancas, recortadas de papel de seda. Os sinos cantavam na manhã rosada e o som claro e vibrante parecia vir de longe, do céu, porque em toda a cidade e arredores, até distantes, esse bimbalhar festivo despertava nas almas dos fiéis a alegria de Deus. A cidade vibrava com uma energia excepcionalmente intensa, era uma festa popular e ninguém se preocupava com o dia seguinte; chegasse da forma que quisesse e atingisse o estado que fosse, tudo era festa. São quase onze horas da manhã do dia santificado. A luz do sol tem uma tonalidade âmbar, refletindose nas janelas de vidro das casas que dão para a praça. Senhoras gordas, de ar plácido, acompanhadas dos maridos e filhos apressam-se para participarem da Missa Solene. Os fogos de artifício estalam no céu e, pelas ruas concorridas, grupos de crianças e adolescentes brincam em algazarra, lançam bombinhas e traques entre risos e correrias. No Largo da Matriz, mocinhas que dão a impressão de que acabaram de sair do banho, passeiam em bandos pelas calçadas, algumas acompanhadas de namorados, fazem voltas completas na praça, caminham em passo lento, cochichando e rindo, enquanto os rapazes se deixam ficar sentados nos bancos ou de pé junto do meio-fio, vendo-as desfilar. À frente da igreja erguia-se um coreto, também enfeitado de bandeiras e flores, e no qual já estavam se acomodando as autoridades municipais com suas famílias. Terminado o ofício religioso, o padre atravessou a praça diagonalmente em passadas rápidas, dirigiu-se ao coreto e ocupou o seu lugar ao lado do prefeito. Os homens conversavam animadamente entre si, comentando os fatos 255 novos e o andar da política nacional. Após a missa matutina o espaço encheu-se de gente. Armaram-se barracas de comestíveis, tendas de jogos e diversões. O estrado, onde os músicos tocavam marchas, ficava em frente das autoridades. Pombas, assustadas com o bulício e a música voavam ao redor. O vento que agitava as bandeirinhas cheirava a flores do campo, e de vez em quando trazia a fumaça e o odor de enxofre dos fogos de artifício lançados no ar pelos festeiros. Os foguetes espoucavam fazendo volteios no ar, despertavam a curiosidade e a alegria das crianças. O ambiente estava cheio de rumor das conversas e de risos. A comunidade festejava o santo padroeiro da cidade. O sibilar dum foguete potente avisou do início da celebração da Missa Solene, às onze horas da manhã. A igreja ficou superlotada de gente, provinda de toda a região. O padre Genaro desceu do tablado junto com as autoridades e dirigiram-se todos, rapidamente, para a igreja. O sacerdote adornado com seus paramentos de Missa Solene saiu da sacristia na frente do cortejo dos coroinhas e ministros da Eucaristia vestidos de branco; levando a Cruz nas mãos, dirigiu-se ao altar. Os sinos repicavam, o coro cantava o hino de entrada. Também veio Alicia com o marido e os filhos pequenos. Sentaram no banco de frente ao altar. O padre, ao passar por eles, olhou de soslaio para Alicia e por um instante ficou a contemplar-lhe a silhueta elegante. Ela trajava o seu melhor vestido de seda azul clara e tinha uma mantilha negra na cabeça. Nesse momento os olhos cinzaesverdeados da mulher fitaram o padre, mas desviaram-se logo ante o olhar perscrutante do sacerdote, fixando-se no altar, nas flores e velas que o enfeitavam. Genaro tornou a voltar a cabeça para a mulher que estava sentada à sua frente. Tinha uma simpatia particular 256 por Alicia, na qual ele descobriu um encanto secreto, atraente, sempre que a via. Ela era de estatura mediana, de talhe esbelto e quadris curvilíneos. Possuía cabelos loiros, ondulados, a face de pele rosada e nariz afilado, lábios vermelhos sensuais, numa boca de sorriso fácil. Alicia não podia vencer a sensação de inquietação que a presença do sacerdote lhe causava. Estava de tal modo absorta em seus pensamentos que nem percebeu que a assembléia se levantava, a liturgia da missa começava e o coro cantava os cânticos rituais. O padre dirigiu-se ao microfone para fazer o sermão. A voz potente do vigário era um pano de fundo para o devaneio de Alicia. – Deus seja louvado! – diz ele, de rosto iluminado. – Para todo sempre, amém! - respondeu a multidão. – Curiosos são os caminhos do mundo e misteriosos os desígnios do Senhor – disse o sacerdote, olhando para Alicia. Sorriu e por alguns segundos ficou com a cabeça inclinada para o lado, com o ar sonhador. Por breves instantes o seu olhar teimava em fixar-se morno no exuberante relevo dos seios de Alicia imaginando-a nua em seus braços. Mas repeliu logo esse pensamento pecaminoso. Era indecente e absurdo, pois ele era um sacerdote e ela uma mulher casada. Continuou o sermão vergastando com palavras cruéis, como se castigasse a si mesmo, arrebatado, cobrava amor e fidelidade dos casais, e honestidade da comunidade. – Arrependam-se e não pequem mais – clamava. À medida que se aproximava o fim do culto, sentia sua ansiedade aumentar. Quando a missa terminou e os fiéis começaram a sair, levado pelo instinto, sem demora Genaro postou-se do lado de fora do templo, no alto dos degraus, de onde podia avistar Alicia com o marido, chegar perto e cumprimentá-los. Satisfazia-se só de contemplá-la. 257 Suas noites começaram a ser ruins, sonhava e delirava com a presença de Alicia. Durante a noite excitava-se com pesadelos. Acordava tenso, com o sexo rijo como um ferro entre as pernas, mais raivoso do que nunca e já não se acalmava com as vergonhosas manipulações do membro sexual. Compreendeu que seu desejo não se satisfaria com tais paliativos, precisava urgente do amor de uma mulher. – Não se iluda meu caro – raciocinava. Os homens inventam coisas admiráveis e úteis, não há dúvida, mas, no que diz respeito a sentimentos, não estão em muito melhor situação que seus antepassados das cavernas. Seus instintos animais são basicamente os mesmos, a natureza primitiva manifesta-se mediante o desejo sexual, com o intuito da procriação. São seres lascivos, possessivos e sanguinários. Quando se viu a dirigir olhares banhados de concupiscência às moças da paróquia, seu senso prático alertou-o do perigo, sentiu que deveria procurar Alicia e lhe falar sinceramente da grande atração que sentia por ela. Em várias ocasiões, com a intenção de conhecê-la melhor, Genaro procurara levá-la a confidências, pois suspeitava de que havia, naquela criatura muito mais sentimento por ele do que suas palavras revelavam. Alicia sempre se esquivava nas respostas, relutava em reconhecer que sentia atração por ele, jamais admitiu que o amasse. Morreria de vergonha se alguém viesse a suspeitar desse sentimento que em vão procurava ocultar de toda sua família e até de si mesma. Chegava a tratar o padre com aspereza, dando aos outros a impressão de que não simpatizava com ele. Sempre, porém, que o via ou lhe ouvia a voz, ficava toda perturbada, com a garganta seca, as mãos trêmulas, o coração a bater descompassado. No seu íntimo, irritava-se com isso, pois tinha a convicção firme de ser fiel ao marido. Alicia era muito 258 sensível aos comentários alheios. Seria horrível se um dia começassem a murmurar na cidade; que ela, uma mulher casada, com filhos, procedente de uma família tradicional, estava apaixonada pelo padre Genaro. Só de pensar nessa possibilidade, ela ficava nervosa, aflita, as faces quentes e a respiração difícil. Passava mal à noite, num sono agitado, mais cansativo do que uma vigília forçada. De vez em quando acordava, agoniada, com a sensação de não ter dormido um só minuto e ficava olhando a escuridão, escutando o silêncio da casa, ouvindo o relógio grande lá na sala, bater as horas. De dia andava inquieta de um lado para o outro, ora galopando à cavalo pelos pastos ou a pé, caminhando pensativa, pelas trilhas do bosque. O marido começou a preocupar-se. – Que você tem minha querida? – perguntou aflito. Anda distraída e triste. Conte-me o que te aborrece. Se estiver doente, providenciarei uma consulta médica para você. – Não tenho nada, não se preocupe – respondeu Alicia, recriminando-se por mentir e trazer preocupações ao marido, que já era por índole resmungão e ranzinza, mas, às vezes meigo e dedicado ao tratá-la com amor. Alicia ia seguidamente à casa paroquial procurar pelo padre Genaro, com a desculpa de ser informada sobre os estudos dos filhos, que freqüentavam o Colégio Santa Maria, onde ele era professor. Nos contatos freqüentes, em conversas confidenciais, trocas de amabilidades, partituras e poemas, surgiu entre eles um relacionamento, de início, de amizade, depois, em pouco tempo, transformou-se numa grande paixão, num amor desvairado. Segredavam entre si os mais ocultos e delicados anseios de suas almas. Já não podiam ficar sem se verem diariamente. Ou ela ia encontrá-lo no Colégio ou ele ia à sua casa. Mas eles 259 precisavam de privacidade nos encontros, só se ver e conversar não os satisfazia mais, então combinaram encontrar-se na casa da chácara de Valdir, que estava desabitada. Não podiam expor-se à maledicência do povo. Genaro era italiano, de sangue quente, não via a hora de saciar a sua paixão, mesmo sabendo que estava transgredindo o voto da castidade, que jurara perante a Igreja. Sabia que estava pecando, mas Deus era pai, o perdoaria. Afinal de contas, era homem, e sua natureza ansiava pelo carinho e amor de uma mulher, tendo ele sufocado esse sentimento, dentro do seu coração, a vida toda. Sim, ele o reconhecia, desejara-a fisicamente desde o primeiro instante em que a conhecera, mas o desejo nunca o atormentara tanto como o angustiava o amor incipiente. – “Que posso fazer? Eu a amo! Não consigo lutar contra isso” – gemeu ele, na profundeza do ser. Toda essa força jazia latente, adormecida, e necessitava apenas de detonar um sinal para provocar um caos, em que a mente se submetia à paixão e a razão se extinguia diante da vontade do corpo. Eles foram para a chácara, ao cair da tarde, na data e hora aprazada. Alicia com a desculpa de visitar Maria Clara, sua amiga íntima, à qual confidenciara o seu envolvimento com o padre. Naquele dia não foi trabalhar na loja. Genaro encontrou a mulher esperando-o em frente da casa vazia, ansiosa e inquieta. Levou-a sem dizer uma só palavra, para o fundo do quintal. E ali, debaixo duma árvore frondosa, num ângulo formado pelo muro, olharam-se intensamente e caíram abraçados, sobre a grama verde. Ele não se despiu. Agarrou-a com impetuosidade, cravando-se nela sem preâmbulos, beijou-lhe repetidamente os lábios quentes, entreabertos. Depois procurou 260 avidamente o lóbulo da orelha, as têmporas, a testa, os olhos, os seios desnudos, voltou a beijar-lhe a boca sensual. Fez meia volta, puxou-a pela mão para a porta aberta da casa e entrou. Alicia seguiu-o silenciosamente até o quarto. Dentro estava apenas iluminado pela fresta de luz que entrava pela janela entreaberta.. As bocas uniram-se num beijo alucinado e assim colados, Genaro tomou o corpo delgado de Alicia e carregou-a para cima duma cama armada no canto do cômodo. Ela deitou-se silenciosa, tremendo e esperando, e ele a abraçou e a estreitou com força contra o peito. Beijava o corpo quente, sensual e moço, recendendo a perfume de rosas. Os braços dela subiram para cingir-lhe o pescoço, os braços dele envolveram-lhe as costas, em espasmos.O sangue martelava as têmporas de Genaro quando suas mãos apalpavam e acariciavam os seios com os mamilos rijos, descendo-lhe pelo ventre, pelas coxas e por fim encontrando o tão almejado alvo. Ao toque das mãos que investigavam sua intimidade, ela estremeceu de prazer. Finalmente iam saciar sua sede de desejo. Envolveu-a com os braços e contemplou com os olhos marejados de lágrimas o rosto imóvel, em espera, viu abrir-se-lhe a boca como um botão de rosa, arfar, tornar-se um objeto indefeso de prazer maravilhoso. Os braços e as pernas dela o envolviam como cordas vivas que o ligavam a ela, e que o atormentavam, sedosos e insinuantes. Ele colocou o queixo no ombro dela, encostou o rosto na suavidade da sua face e entregou-se ao impulso alucinante. Sua mente girou, deslizou, tornou-se inteiramente nebulosa ofuscando-lhe a razão, e por um momento se sentiu parte e dentro do sol, depois o brilho foi diminuindo até desvanecer-se, num gemido angustiante do êxtase fugaz. 261 Agarrou-se a ela como o náufrago se agarra a um pedaço de madeira no mar solitário e, logo, animado, subindo de novo com a maré que se aproximava, sucumbiu nas águas revoltas da natureza humana. Amaram-se com ardor e o ímpeto das grandes paixões em longa espera. Minutos depois, Genaro, voltou a si do deslumbramento, começou a refletir e a lamentar-se: - “Senhor, não poderias ter-me evitado esse destino? Sou um homem, com toda a fragilidade humana; sucumbi ao amor e ao desejo da carne”. E ficou ali, pasmo, atingido por um amor de perdição, muito mais profundo do que qualquer outra coisa que houvesse sentido antes. Ele nunca soubera viver pela metade. E a vida tinha sido como tinha de ser, traçada de modo intrincado, imprevisível e nem sempre justa. Alicia sentia-se plenamente feliz, mais feliz do que se lembrava de já ter sido alguma vez, nos seus quinze anos de casada. Desde o momento em que ele a carregara para a cama para junto de si, tudo fora um poema corporal, uma sede incrível de braços, de mãos, de pele e de prazer total. – “Fui feita para ele, e só para ele. Amo-o. Sempre o amei, mesmo sem conhecê-lo, sem saber da sua existência, e vou amá-lo, mesmo que viva cem anos”. Assim pensava Alicia, no seu encantamento. Amava-o a ponto de morrer por ele, embora sempre soubesse que o destino de cada um estava traçado nas estrelas e era imutável. Dizem os gregos que é pecar contra os deuses amar um ente mais do que manda a razão. E dizem que, quando alguém é amado assim, os deuses invejosos, abatem o objeto desse amor na plenitude do afeto. Alicia levantou da cama silenciosa, hesitante e triste em deixar Genaro, mas precisava retornar à sua casa com urgência, as obrigações com os filhos e o marido a 262 esperavam. Não sabia como ia conseguir enfrentar a nova situação que se armara na sua vida. Por enquanto Valdir não desconfiara de nada. Genaro, satisfeito na sua volúpia, virou-se para o lado e adormeceu profundamente, não viu quando Alicia foi embora. Acordou tarde, sobressaltado, com a brisa fria da manhã envolvendo-o, dando-lhe a impressão de que mergulhava o corpo na água fria dum açude. As suas faces e orelhas ardem, e ele aspira com força o ar que cheira a sereno e a flores do campo. Por alguns minutos ele fica a ruminar o prazer carnal que a mulher lhe proporcionou, lembra-se dos olhos verde-cinza dela, da voz maviosa, das formas sensuais e do contato gostoso do seu corpo. Excitado, voltou a desejá-la novamente. Faria tudo para tão logo trazê-la de novo para a chácara. Sentia o desejo insatisfeito fervendo-lhe nas entranhas um fogo impossível de apagar, uma sede de Alicia que nunca, nem mesmo nos encontros mais fogosos e prolongados, conseguia saciar. Dormia extenuado, com o coração a ponto de explodir dentro do peito. Enlevado nas doces recordações, olha para o lado e vê espantado, jogada em cima de uma cadeira a sua batina negra de padre. Só nesse momento ele voltou a si. Começa a pensar, no seu procedimento pecaminoso perante o juramento de castidade que fez no dia da ordenação sacerdotal. Uma grande e insistente pergunta, surgiu de repente, dentro dele: – Por que e para que tudo isso? Para que tanto sacrifício, proibição e frustração? Tanta hipocrisia e fingimento? Por que, se somos seres humanos com desejos carnais e sequiosos de amor? Vivemos solitários, enquanto nosso coração anseia por companhia de uma mulher e de uma família? Por que a subjugação do celibato, dos votos de castidade e obediência cega às ordens hierárquicas? 263 - Se um dia todos vamos parar numa cova de sete palmos, onde ficaremos servindo de comida aos vermes da terra. O que está certo ou errado, o que é verdade exata que justifique todo esse procedimento? – questionava consigo o padre Genaro, enquanto lutava com a insônia. Passara a noite em claro, atormentado pelas dúvidas. Censurava-se, pois caíra em pecado. Era profano amar demais. Mas infelizmente, os caminhos de nossas vidas não estão em nossas mãos. Nós nos conhecemos porque tínhamos de nós conhecer, assim estava escrito. Desde a tarde do primeiro encontro de amor, Genaro e Alicia tinham continuado a ver-se, aproveitando as escassas ausências do marido, ou as desculpas de visitas à sua amiga Maria Clara. Quando se viam sozinhos na chácara, sucumbiam no delírio dos amores atrasados e se amavam com ardores amordaçados por preconceitos. Era uma paixão insensata, alucinada, que fazia tremer de pavor a alma de Alicia e a mantinha num estado de excitação perene. A impaciência do amor era às vezes tão intolerável que Genaro se arriscava a ir à chácara durante o dia, escondendo-se pelo mato, como um gatuno, até a porta da casa onde Alicia o esperava com o coração apertado, abraçavam-se com o desespero de uma despedida e abrigavam-se em seu refúgio, sufocados de cumplicidade. Em oportunidades ocasionais, a qualquer hora do dia ou da noite que propiciasse seus encontros, infelizmente, quase sempre interrompidos por avisos enviados por Maria Clara, sobre impedimento, por regresso imprevisto do marido, os carinhos e o prazer dos amantes, explodiam do mesmo jeito às três horas da tarde ou às dez da noite. No aturdimento da paixão, perderam o sentido da realidade, a noção do tempo, o ritmo dos hábitos cotidianos. 264 De repente, como um estampido naquele mundo de inconsciência feliz, veio o aviso da suspeita do marido, acerca de infidelidade da esposa envolvida com o padre Genaro. – Alicia, por onde você andava na minha ausência? informaram-me que nalgumas noites não dormiu em casa com nossos filhos – indagou Valdir, já bastante desconfiado e muito irritado. – Ora essa! Fui dormir na casa de meu pai – mentiu ela, sem lembrar-se que a mentira tem pernas curtas. – Pois vou confirmar com ele, se de fato dormiu lá– ameaçou Valdir, e sem demora foi até a casa do sogro. Januário, o pai de Alicia, já desconfiava da relação de amizade muito íntima e afetuosa demais da sua filha com o padre Genaro e para protegê-la, confirmou a mentira. Chamou a filha para uma conversa séria. – Filha! Que conduta espúria e vergonhosa, que está mantendo com esse clérigo irresponsável?– repreendeu-a severamente. Pare com isso, senão eu vou tomar providências drásticas. Denunciarei você a seu marido e seus filhos,se não terminar essa relação condenável, agora mesmo. – Pai! Por amor de Deus não faça isso – gemeu ela no seu desespero. Estou enlouquecida de arrependimento e de vergonha. Prometo-lhe, que tudo vai acabar, não vou encontrá-lo mais, vou esquecê-lo, nem que seja a última coisa que eu faça na vida. Alicia despertou, num sobressalto, para a realidade. Cumpriu a promessa feita ao pai. Mandou um recado ao padre Genaro para não procurá-la mais, pois tinham sido descobertos e não podiam expor-se ao escândalo. Que procurasse esquecer aqueles momentos maravilhosos que tinham vivido juntos, porque ela faria tudo para apagá-los da sua vida. 265 Separaram-se com grande pesar, por serem obrigados a renunciar a esse grande amor. Eles não eram livres para vivê-lo impunemente; ela era casada e ele era um sacerdote da Igreja Católica Apostólica Romana. Perante as convenções sociais, eles eram pecadores, transgressores das leis de Deus. O padre Genaro ficou alarmado e, para evitar um escândalo ou vislumbre de maledicência, que surgisse a respeito da sua conduta, por menor que fosse, apressou-se em pedir a seu superior hierárquico a sua urgente mudança para outra paróquia, próxima a um centro maior. Apresentou como desculpa, necessitar de exames e tratamento médico. Sofria de dores no peito, podia ser o começo de angina pectoris. O bispo da diocese percebeu de imediato um problema maior camuflado atrás de problemas de saúde, atendeu de imediato à sua reivindicação e transferiu-o para uma paroquia na periferia da capital. Alicia ficou sozinha, a prantear o seu amor perdido, vagando nas brumas da noite, com o coração cheio de dor. Seu mundo ruíra, e ela mergulhou dentro de si, tentando recobrar algum encanto daqueles dias perdidos em que era feliz. Sonhava ainda com o amor de Genaro. Sofrendo na pele o infausto revés da vida, lutava para não cair na rede da inconsciência. Precisava aprender a vencer as dificuldades e aceitar o inevitável. Mas infelizmente, o choque foi muito forte para sua alma sensível, não resistiu, e caiu em depressão profunda. Seu coração parecia um colibri ferido ao qual tinham quebrado as asas e não podia mais voar. Sua mente cobriuse de sombras. Delirava. Via Genaro em cada esquina e nos vultos de pessoas que passavam. Seu cérebro enfraquecido era tomado por alucinações. À noite acordava e ouvia vozes sussurrando-lhe ao ouvido notas musicais e estrofes desconexas e 266 inverossímeis. Talvez compreensíveis apenas à luz da simbologia. Então ela levantava da cama, pegava o lápis e o papel e anotava tudo com precisão. Não sentia a menor vontade de trabalhar, só queria ficar deitada, em silêncio, pensando, lembrando-se das coisas do passado, e concluindo que nada, nada mais valia a pena. Andava amargurada, cansada da vida, impaciente com os filhos e o marido, inclusive consigo mesma. Queria esquecer tudo, mas a incapacidade de tomar qualquer decisão prendia-a àqueles momentos do passado, como pela ação dum sortilégio. Guardava o perfil amado em sua alma, como a parte perdida de si mesma. Procurou um médico especialista, que lhe receitou fortes antidepressivos. Tratou-se por algum tempo, mas os sintomas da depressão não cediam. Somente via a escuridão de um túnel sem ver alguma luz no final. Achava que estava louca, e o seu marido, agora mais ranzinza e de mau humor, não a ajudava em nada, friamente confirmava a sua loucura e a tratava como tal. – O preço dessa louca paixão está me custando muito caro – queixou-se, relatando o seu drama ao analista. – Tudo na vida tem seu preço e é impossível regatear com o destino – retrucou o médico. Por sua própria determinação resolveu internar-se no Instituto Pinel de Psiquiatria, para tratamento intensivo, com intuito de curar-se logo, daquele sentimento de paixão e culpa que lhe perturbava o juízo; verdadeira loucura que se aninhara no seu coração. Alicia consultou psiquiatras, psicólogos e procurou outros meios de cura alternativos. Depois de um longo tratamento, ela voltou a ser uma pessoa equilibrada e tranqüila. Jamais transpareceu em público o seu drama particular. Guardou o segredo do seu deslize a sete chaves, no cofre da sua memória; ali ficaram registrados os 267 acontecimentos desse tempo, que graças a isso não se perderam eliminados pela neblina do esquecimento. Somente na velhice resolveu confidenciá-lo à prima e amiga Janice. Aparentemente, o terremoto que lhe abalou a vida naquela época, havia deixado pequenos, mas dolorosos vestígios. No entanto, algum benefício sobrou dessa aventura casual, pois ela descobriu que possuía um dom maravilhoso para música. Estudou piano com dedicação e aperfeiçoou-se na arte musical. Tornou-se compositora e concertista de renome. Compunha belíssimas músicas, com os acordes sussurrados à noite nos seus ouvidos, pelos espíritos do além. *** Mais um personagem vem ocupar o misterioso palco da vida, desempenhando com galhardia o papel à ele destinado: é o jovem Gilberto. Ele era filho primogênito de Jurema e Laurindo Mendonça de Sá, irmão mais velho de Álvaro Mendonça de Sá, falecido no acidente de carro na rodovia do Café perto de Mauá da Serra. Gilberto era um rapaz alto e esbelto, de cabelos castanho-escuros e barba cerrada, gentil, de conversa agradável e voz macia. Considerado um homem bonito, era sem trégua assediado pelas mulheres, também por ser um bom partido para as jovens casadoiras. Mas seu coração, ainda na adolescência, aprisionou-se nos olhos verdes da prima Adélia, irmã de Janice. Era uma paixão secreta, da qual a parenta adolescente não desconfiava. Desde pequena Adélia falava em ser freira, tinha uma forte vocação para a vida religiosa. Gilberto ciente da impossibilidade de qualquer envolvimento entre os dois, escolheu afastar-se dela, no entanto, não esqueceu o seu grande amor e sofria na sua desesperança e desilusão. 268 Formou-se em Ciências Econômicas aos vinte e cinco anos, mas, na sua inquietude, não se adaptava em nenhum emprego. Os anos passavam, e ele não encontrava um objetivo, algo em que se fixasse. Atendendo ao chamado da sua índole aventureira resolveu viajar, conhecer outras pessoas, procurar outras terras. Gilberto era primo de Janice, e de caráter idêntico ao dela, possuía um espírito livre e sonhador, tendo a seu favor acentuada vocação para o comércio. Certo dia chegou-lhe uma noticia alvissareira à respeito das terras férteis e baratas na nova Fronteira de Colonização no Estado de Rondônia e em circunstâncias favoráveis aos negócios. Ficou interessado no assunto, poderia usufruir da euforia econômica que havia no Estado, onde corria dinheiro vivo. A economia sendo estimulada, por incentivos fiscais e grandes investimentos federais na infra-estrutura, nas cidades e no campo. Portanto, ficou seduzido pela idéia de ver de perto essas maravilhas. A propaganda ampla promovida pelo governo federal, prometia a distribuição de terras gratuitamente. Nos anos de 1960, 1970 e 1980, Rondônia, foi considerada o Novo Eldorado, atraindo milhares de imigrantes do Sul, principalmente do Paraná. Desde o ano de 1956, os sertões do Território de Rondônia e do Acre estavam cheios de criminosos fugidos das cadeias de São Paulo, do Sul, do Norte e de outras regiões do país. Também vieram desordeiros, vagabundos e ladrões, refugiavam-se eles nos acampamentos das grandes fazendas em formação, que utilizavam os incentivos fiscais da Sudene. Esses foragidos da Justiça eram empregados como mão-de-obra nas derrubadas de mata para plantação de pastagens para criação de gado, plantio de café e cacau. Os fazendeiros contratavam um gato, homem que recrutava trabalhadores, servindo de intermediário entre o 269 empreiteiro e o peão. A maioria dos homens eram angariados ali mesmo, nas hospedarias e tabernas locais, mas grandes levas eram trazidas do Norte e Nordeste em caminhões paus-de-arara. Ninguém lhes perguntava sobre seus bons ou maus antecedentes. Todos serviam, desde que trabalhassem com afinco, não fizessem reclamações e nem arruaças. Eram levados aos acampamentos das derrubadas no meio do sertão, de avião monomotor e lá ficavam até o término da empreitada; não podiam nem pensar em ir embora ou fugir, o lugar geralmente era distante d`alguma povoação e a selva era inóspita, perigosa e cheia de animais selvagens. Os gatos (intermediários) também recrutavam trabalhadores para as empreiteiras das grandes jazidas, a céu aberto, do minério de cassiterita no garimpo do Bom Futuro no município de Ariquemes. Inclusive para os garimpos de ouro e diamantes, nos rios Madeira, Guaporé e Roosevelt. Afluiu gente de toda espécie e aos borbotões para as minas, para as derrubadas nas fazendas de criação de gado, lavouras e cultivo de café. Todos sonhavam em ficar ricos, o mais depressa possível, uns para voltar à sua terra outros para adquirir bens e grandes extensões de terras férteis e baratas. Em 22 de dezembro de 1981, foi sancionada a lei, pelo então presidente Figueiredo, que transformava o Território de Rondônia no 23° Estado da Federação, antes Território do Guaporé criado pelo presidente Getulio Vargas em 13 de setembro de 1943, tendo como capital a cidade de Porto Velho, situada à margem do rio Madeira. Nessa época, o Território de Rondônia viveu um grande crescimento populacional. A abertura da estrada BR 364, em comunicação com o Centro e o Sul do país, favoreceu a produção agropecuária e a indústria madeireira. 270 A nova fronteira de colonização que se abria, com acesso fácil à terra fértil e barata, incentiva multidões de migrantes que sonham conquistar o novo Estado. É gratuita a distribuição de lotes de terra entre 100 a 250 hectares para famílias vindas do Sul. O governo regularizou as posses de milhares de famílias de agricultores que ocupavam terras devolutas, dando-lhes títulos de posse definitiva. O INCRA é o grande responsável pela rápida ocupação de Rondônia por colonos do Sul e do Nordeste. Ao longo dos anos 1970 a 1980 o INCRA assentou 50 mil famílias. Com seus projetos de colonização às margens da BR364, o Instituto favorecia o surgimento de novos pólos agrícolas e, nesse ritmo acentuado de expansão, surgiram cidades como Vilhena, Espigão do Oeste, Rolim de Moura, Pimenta Bueno, Cacoal, Ji-Paraná, Ouro Preto, Jarú, Ariquemes e outras cidades pelo interior do Estado. O clima nessa região é o equatorial, com chuvas abundantes durante o verão e temperatura média anual de 25° a 30°. A vegetação é a característica da Floresta Amazônica, últimas reservas florestais, com o solo (latossolo vermelho e amarelo, arenito e argila), bastante permeável, de camada fértil pouco profunda, são ameaçados pela exploração predatória em larga escala. Até o ano de 1990, a euforia econômica atraiu muita gente, mas os sinais de declínio já eram evidentes, com uma economia ainda limitada à agropecuária e ao extrativismo vegetal e mineral. Gilberto entusiasmado pela oportunidade de conhecer e trabalhar em outros ambientes abalou-se para Rondônia; viajou de ônibus durante cinco dias e quatro noites até chegar a Porto Velho. Um trajeto de quatro mil quilômetros de sacrifício, calor, sede e desconforto, ocasionados pelos atrasos dos ônibus superlotados. Chegou exausto, mas feliz por estar realizando seu sonho. 271 Finalmente estava em Rondônia onde ia começar sua nova vida, que não seria fácil, pois devia iniciar da estaca zero. Estava resolvido a enfrentar tudo com coragem, procuraria superar com calma, as muitas dificuldades que se apresentassem. Foi descansar em um pequeno hotel próximo à estação rodoviária. Dormiu a tarde e a noite toda. Recuperado do cansaço, levantou cedo, tomou café e saiu para conhecer a praça. Entrou num bar onde diversos homens, sentados à mesa conversavam a respeito de negócios, saboreando aperitivo de lingüiça frita e bebericando cerveja. Entrou na conversa, apresentando-se como caixeiro-viajante. Estava chegando do sul, à procura de oportunidade de trabalho. Inicialmente pensava em negociar mercadorias nos projetos e assentamentos do governo. – O que acham da idéia? – perguntou aos presentes. – Ótima! Vá em frente – sugeriu um deles, mas para isso você deve investir, comprar e organizar uma tropa de mulas de carga e contratar tropeiros experientes. Eu conheço alguns e posso lhe indicar. Procure-me à tarde no meu escritório, aqui está o cartão com o nome e endereço. Gilberto foi ao endereço indicado. Trocando idéias com o agente comercial, este lhe conseguiu a tropa de mulas e os tropeiros. Precisava fazer o contrato de aluguel dos animais e tratar os ordenados dos peões. O corretor orientou-o sobre quais mercadorias devia levar e indicoulhe o melhor depósito atacadista onde podia adquiri-las. – Está mesmo resolvido a enfrentar as perigosas trilhas do sertão como mascate? Como novato você é audacioso demais – comentou o agente. – Estou firmemente decidido a tentar essa aventura – respondeu rindo Gilberto. 272 Acertados os contratos era necessário registrá-los devidamente. No Cartório foi atendido por uma funcionária morena, de quadris curvilíneos, sensual, de sorriso cativante. Logo à primeira vista, Gilberto encantou-se por ela. Precisava encontrar-se a só com a moça. Sussurrando as palavras perguntou a ela: – Morena bonita, qual é o horário que você sai do emprego? Poderia esperá-la na saída? Diga sim, por favor! – implorou o rapaz. – Saio às quatro horas, se quiser pode me esperar na calçada, em frente do escritório. Combinado, senhor galanteador? - confirmou Eunice - era ela a moça interpelada. Também ela tinha simpatizado com o desconhecido. Desde a morte de Adriano, seu pretenso marido e pai do seu filho, ela não se interessara por nenhum homem. Desiludiuse a respeito do amor. Nenhum homem merecia confiança. Gilberto, entretanto, despertara nela o desejo de ser feliz novamente. Resolveu tentar a sorte, e na saída foi encontrar-se com ele. – Sou Gilberto Mendonça de Sá, caixeiro-viajante, às suas ordens, senhora! – apresentou-se. – Encantada! Você é um homem audacioso, e muito interessante – meu nome é Eunice Bezerra da Silva, viúva, funcionária pública. Depois saíram caminhando pela calçada, trocando informações e confidências. Entraram numa confeitaria para saborear um doce e continuar a conversa, que já estava ficando envolvente. Combinaram encontrar-se novamente no dia seguinte, para jantarem juntos, depois irem ao cinema. Esses encontros repetiram-se indefinidamente, até que não podiam passar um dia sem se ver. Estavam apaixonados loucamente um pelo outro. 273 Já há três meses durava a felicidade sem sombras dos amantes. Ele viajava com a tropa a negócios, visitando os assentamentos dos colonos nas linhas dos projetos do governo, mas voltava logo, pois ficava saudoso das carícias de Eunice. O pai, Vitorio Bezerra, não desconfiava de nada, sequer passava-lhe pela cabeça que a filha tinha envolvimento amoroso com alguém, menos com um desconhecido. Uma tarde foi esperá-la na saída do emprego, quando viu aproximar-se dela um homem, que a beijou na boca, abraçou-a e foram embora juntos. O pai ficou paralisado, não sabia como proceder naquela circunstância. Eunice devia ter alguma explicação. Na volta para casa encontrou a filha sentada tranqüilamente no sofá, cantarolando feliz. – Filha, pode explicar-me o teu procedimento? – perguntou indignado. – Pai, não sei do que está falando! – respondeu ela. –Ora, ora! Não se faça de inocente. Vi você beijando e abraçando um homem desconhecido. Não pode negar porque eu vi tudo. Quem é ele? – É um homem que eu amo – disse ela tranqüila. – Pois eu proíbo que se encontre com ele, nunca mais deve acontecer, entendido?– ordenou o velho Vitorio. Depois desse impasse, ele a vigiava secretamente. Se ela abusasse e não o obedecesse, ia castigá-la sem complacência. Mas o casal apaixonado não ouviu as suas ordens e continuou a encontrar-se às escondidas. – Não vou permitir que um estranho me arrebate a filha e o neto, únicas pessoas que me restam no mundo para consolar a minha velhice – pensava aflito o velho. Muito desgostoso, resolveu afastá-los definitivamente, mudando-se da cidade para o interior, sem dizer para onde iam. 274 Depois do assassinato de Adriano, marido de Eunice, e da morte súbita de sua mulher Marinalva de ataque cardíaco, Vitorio Bezerra tornou-se taciturno, desesperançado e sem rumo na vida. Andava de canto em canto da casa procurando Marinalva, via a sua sombra, ouvia-lhe a voz chamando-o para junto de si. Sentia-se abandonado, sozinho, tornava-se cada vez mais ranzinza. Ia ao botequim da esquina para uma prosa com os amigos e voltava mais sorumbático, ilhava-se na solidão da casa, a remoer cogitações tristes, sobre quanto surpreendente é a vida, por vezes tão absurda. Nada o contentava. Não se sentia bem morando na capital. Resolveu mudar-se para longe dali, levando a filha e o neto. Talvez morando noutro lugar lhe voltasse o animo de viver. Seu filho Acássio possuía uma bela fazenda na região de Jaru, convidou-o diversas vezes a irem morar com ele, mas o pai era de índole independente, dono das próprias decisões e não queria viver às expensas do filho. Queria ter sua propriedade. Eunice, de mau grado aceitou a sugestão de morar no interior, sem conforto, gostava da cidade grande, do seu emprego, do qual teve que pedir demissão, e do amor de Gilberto, mas não podia ficar com o filho de quatro anos, sozinha, morando em Porto Velho. A casa deles se situava num bairro pobre, distante, à beira da estrada principal que levava para o interior do Estado, era uma casa simples, de madeira, de muitos cômodos, que agora estavam vazios com a saída dos dois irmãos, cada um seguindo seu destino, e com a morte da mãe ficaram mais sombrios e assustadores. À noite o vento assobiava nas frestas do telhado de tabuinhas, e as sombras dos fantasmas desfilavam pelos corredores. Altas horas da noite, Eunice já quase adormecendo, no escuro, deitada ao lado do filho, que ressonava baixinho, 275 ouvia o tropel dos muares que saiam de madrugada para compridas jornadas através de caminhos estreitos, embrenhando-se pelos sertões do Acre e Rondônia, carregados de farinha de trigo, sal, fumo de corda, facões, espingardas e munição. Levavam também encomendas e recados. Escutava o tilintar dos guizos finos e graves dos peitorais da tropa, batendo, vibrando à mudança dos passos, Ouvia as ordens de Gilberto passadas aos tropeiros, nomes de burros gritados de arranco e o silvo do chicote de couro no lombo dos animais. Eles partiam com a tropa, para marchas demoradas, vendendo ou trocando a mercadoria por borracha, castanhas-do-pará ou pepitas de ouro; iam muito além do rio Madeira embrenhando-se nas florestas de castanheiros, seringais, minas de cassiterita e garimpo de ouro nos leitos dos rios. Era uma verdadeira aventura e Gilberto adorava essa vida. Apenas o atormentava a saudade dos beijos e carinhos de Eunice, sonhava com ela... À noite, deitado na rede ficava a contemplar o pedaço do céu que a floresta emoldurava, se entregava a devaneios eróticos em voz alta. – “Este perfume de flores que o vento leva por toda a parte. Esta primavera está me bulindo com o sangue. Faz quase um mês que eu tive a moça pela última vez. Não agüento mais a saudade. A falta que sinto dela às vezes chega a doer, como se me tivessem cortado um pedaço do meu corpo. E da voz dela, do cheiro dela, do jeito dela beijar... Sinto falta de tudo“. - “Não sei, tem qualquer coisa nela que me deixa meio louco. Mas o que adianta a razão recomendar uma coisa quando o corpo está gritando violentamente por outra muito diferente? Estou cada vez mais convencido de que o amor é doença, e doença infecciosa. Uma espécie de febre. 276 E o pior é que o doente não quer nem ouvir falar de cura” – Raciocinava com a lógica dum apaixonado. Vitorio Bezerra cultivou por muito tempo o propósito de mudar-se da cidade grande para o interior. Não comunicou nada ao filho Acássio, guardou sigilo completo acerca do lugar para onde iriam. Não queria palpites nem interferência nos seus planos. Era um homem de caráter independente, tinha seu orgulho. Como não dispunha de grandes recursos financeiros para contratar um caminhão de mudanças, decidiu fazer a viagem, como há muitos anos atrás seu pai fez ao mudar-se de um acampamento de seringueiros, para Porto Velho. Queria reviver a grande aventura da sua adolescência. Contratou uma tropa de muares e um carroção de toldo, puxado por quatro cavalos, para levarem a mudança. Ele e a filha iriam cavalgando em animais escolhidos, de boa montaria. Levariam uns quatro dias para chegar ao destino planejado, mas isso o deixava contente. Andava de um lado para outro organizando tudo, feliz, assobiando. Vendeu a casa e tudo que não podia levar. Depois de um dia estafante, Eunice deitou-se um pouco no sofá da sala. Sentia a cabeça rodar, estava tonta pelo excesso de trabalho na arrumação da mudança. Lembrou-se então da viagem para a madrugada do dia seguinte. Ergueu-se depressa, continuando a pôr nas malas o resto do que era seu e do filho. As malas do pai estavam prontas, encostadas na parede do quarto, e o resto dos utensílios já estavam no carroção parado em frente da casa. A moça sentia as pálpebras pesadas de sono. Deitouse, ao lado da criança, no colchão estendido no chão, as camas já tinham sido desmontadas. Adormeceu logo mas teve um sono agitado. Sonhou com Gilberto chamando-a. Escreveu um bilhete de despedida, indicando a localidade para onde iriam se mudar. Que ele na primeira 277 oportunidade fosse visitá-la. Estava saudosa, e mal podia esperar. Às quatro horas da madrugada, o carroção e a tropa estavam carregados. A madrinha, uma mula pampa, foi levada para a ponta do grupo de animais cargueiros. Quando ela se moveu, abrindo o caminho por si própria, num trote pesado sob a carga, se pôs na testa da fila. Estava com cincerro pendente do pescoço que servia de guia às outras bestas. As montarias levavam guizos no peitoril e na cabeçada. O som do cincerro da ponteira estrondeou ruidoso rompendo a marcha. Começava a viagem. Na saída, deixou a carta endereçada ao Gilberto com uma amiga. Depois que todos apertaram as mãos em despedida, Eunice, montada, sacudiu alto um lenço branco, sem poder falar, as lágrimas escorriam pelo seu rosto. Dava adeus aos amigos. Olhou mais uma vez para trás e fez o sinal da cruz. Eram cinco horas da manhã e o dia começava a clarear. Ventos mornos balançavam as folhas das árvores e embalavam as águas do rio Madeira coberto pela neblina. A terra estava úmida de chuva e poças d‟água acumulavam-se na estrada. Eunice e o pai iam à frente da comitiva. Seria uma viagem longa e cansativa. Viajaram durante quatro dias; ao anoitecer descansavam a tropa nas pousadas de beira de estrada. Era quase noite quando a comitiva de Vitório Bezerra chegou a um povoado próximo da vila de Jarú. O pai apeou primeiro, depondo no chão o neto; a criança viajava em cesto forrado com almofadas no lombo da mula. Ajudou depois a descer Eunice, sua filha. O menino com as pernas entorpecidas por um dia de marcha, choramingava, estava com fome e com sono. Veio ao encontro dos viajantes, um moço caboclo, habitante do casebre existente na periferia do povoado, 278 ajudou-os a arriar as malas das mulas de carga, levando para um cômodo coberto. Forrando o chão com seu poncho deitou a criança, que continuava dormindo. A tropa enlameada e cansada resfolegava faminta, procurando touceiras de capim ao lado do rancho. Bezerra, ainda vigoroso, apesar dos seus aparentes setenta anos, alisava o cabelo branco, enquanto o peão desarreava os animais de sela. Depois, colocou o arreamento sob a coberta do rancho com os suadouros para cima. O dono da comitiva colocara os embornais com milho no focinho dos cavalos. Feito isso, falou: –– José, por favor, toma conta da tropa, porque eu vou procurar algo para comer. E subiu apressado a rampa, à procura d`algum botequim. Eunice sentou em silêncio ao lado do filho que dormia, e enxugou do rosto o suor poeirento e, com calma, começou a passar um pente pelos longos cabelos. O peão José, gritando alto, cercou a tropa que se afastava à procura do capim do campo. Depois juntou gravetos para o fogo do café. Arrumou o tripé de ferro, pondo a água a ferver numa chaleira. Acocorou-se perto do fogo e acendeu um cigarro de palha soltando baforadas de fumaça. No silêncio da tarde ouvia-se o cri-cri dos grilos. Quando Bezerra voltou, José serviu o café nas canecas encardidas pelo uso, emprestadas pela dona da choupana. O avô acordou o menino, que bebeu a infusão calado, mordiscando pedacinhos do pão comprado na venda, depois tomou a criança nos braços e com delicadeza encostou-o no ombro. – Vamos procurar uma hospedaria, antes que anoiteça completamente – disse Bezerra, e dirigiram-se para o centro do povoado. Ainda era época das chuvas, mas a noite apresentava-se muito clara, exibia um céu cheio de estrelas. 279 O grupo entrou na única pensão que havia nesse lugarejo. Era uma casa humilde, de taipa, coberta de tabuinhas lascadas de madeira. A dona da hospedaria serviu o jantar, composto de feijão, arroz, couve e carne seca. Comeram calados, mas com grande apetite, pois estavam com fome; só a moça amargava uma visível tristeza. Terminada a refeição, José foi buscar a bagagem, levando consigo um ajudante. Os demais se instalaram nos seus quartos. A dona da pensão não conseguia conter a curiosidade, veio ao quarto da moça indagar. – Como é o seu nome, donde vêem vocês e para onde vão?– perguntou, atropelando as perguntas. – Para começar a responder-lhe, informo que meu nome é Eunice, do menino é Adrianinho e do meu pai Vitorio Bezerra. Nós vamos para o Projeto Jaru, que ainda é muito distante daqui, só tem mato e estrada ruim. Satisfeita agora, minha senhora? A proprietária insistia, alisando o cabelo da criança. – Têm um nome bonito. Quantos anos têm? – Tenho quatro anos – respondeu tímido,o menino. – É muito acanhado diante de estranhos, em casa, conosco, é vivo e buliçoso. Quando o pai organizou a bagagem, entrou no quarto para beijar o neto e desejar boa noite à filha. Depois foi para a sala, onde conversavam dois hóspedes. O pretexto de uma xícara de café, que o homem tomava, fez a apresentação dos três. – De onde é o senhor? – perguntou um deles. – Meu nome é Vitorio Bezerra. Sou cearense, criado em Porto Velho. Vou ver umas terras no Projeto Jaru, se me agradar fico por lá – respondeu o velho. O interlocutor deu sua opinião: – Ah! O Projeto Jaru, conheço apenas por ouvir falar. Elogiam muito a boa qualidade das terras, dizem que 280 são férteis, de matas fechadas e muita madeira de lei. O governo quer colonizar rápido, o INCRA distribui lotes de terra de até 250 hectares gratuitamente, desde que o interessado construa casa e trabalhe na terra. O lote é titulado após 10 anos de ocupação. O negócio é muito interessante. Sob a claridade do lampião a querosene, conversavam cordialmente. – Trouxe também a família?- indagou o outro. – Sim senhor, trouxe a filha e o neto. Sou viúvo, minha filha também é viúva – explicou o velho Bezerra. – Também sou viúvo e tenho oito filhos para criar. – Deve ser muito triste e difícil para o senhor, sozinho, cuidar de tantos filhos – opinou o velho. – Sua filha enviuvou cedo – especulava o outro. – É, foi muito cedo, está com vinte e dois anos. – E seu genro com que idade morreu? – Com trinta e cinco anos. Morreu moço, pegou malária no garimpo do rio Madeira. Um homem como Bezerra não mentia nunca, mas por decoro, era obrigado a torcer a verdade ali, entre estranhos. Não podia expor a filha á maledicência. A verdade era que Eunice nunca fora casada, fora apenas amigada com o advogado Adriano Silveira Dorsay, por apenas um breve tempo de dois anos, e aquela inverdade que dissera levava-lhe sangue ao rosto que ardia. Um tanto sem jeito, comentou: – Pois é o que lhes digo: viuvez é mais morte para quem fica, do que para quem morre. Todos estavam sonolentos, a conversa morria na moleza dos primeiros cochilos. Houve um silêncio em que se ouvia apenas o latido dos cães ao longe. – Está na hora de irmos dormir. Vou ver se descanso, amanhã terei uma longa viagem. Boa noite para 281 os senhores – comentou um dos hóspedes, que se levantou e dirigiu para o seu quarto. Todos responderam corteses. Vitorio Bezerra foi para seu dormitório, despiu-se e apagou a vela. A temperatura da noite esfriara e obrigou-o a cobrir-se com um lençol bastante encardido. Vitorio não dormiu logo. Às onze horas, ventos fortes começaram a uivar nos oitões da casa, ventos que trouxeram chuva repentina, e pareciam querer derrubar a choupana. As goteiras despejavam água no chão batido. O coração do Bezerra apertava, pensava na filha e no neto. Ouvia o farfalhar das folhas das árvores sacudidas pelo vento e o ranger triste dos galhos reagindo a rajadas da chuva forte. O ploc-ploc das goteiras foi lhe sossegando o espírito e finalmente adormeceu. Acordou ás cinco horas da manhã, levantou e foi ao rancho ver a tropa. Bebeu o café do peão, que estava parado em frente do galpão olhando o dia clarear. Aparecia no horizonte, à direita, a Serra dos Pacaás Novos, com elevações agudas. À esquerda, ao longe, corria o rio Jaru ainda pouco visível, coberto por uma camada espessa de neblina. Ia clareando aos poucos e uma luz amarelada espanava as derradeiras penumbras da noite. Os campos da chapada eram cobertos por árvores robustas e esgalhadas, sombreando o chão revestido pela grama luxuriante. Bezerra regressou devagar, os olhos embebidos na paisagem verde, além do horizonte. Na porta da hospedaria, animais de viagem comiam milho, nos embornais sujos de lama. É que os amigos de véspera iam partir. Um deles saudou expansivo: – Bom dia, amigo. É madrugador! – Sim, sou madrugador por hábito. Em minha terra às cinco horas já tomava café. – Que tal lhe parece o lugarejo? 282 – Pelo que vejo, parece bom, de campos férteis. Os viajantes partiram na rota de Porto Velho, iam trabalhar no garimpo de cassiterita de Bom Futuro. As minas eram o sonhado Eldorado, a esperança de enriquecimento rápido. Bezerra mandou atrelar os cavalos no carroção e arrear as alimárias de carga. Estavam prontos para prosseguir a viagem. Montaram as mulas que romperam num passo cadenciado. Meia hora depois apareceu uma encruzilhada, a estrada à direita levava ao Projeto Jaru, e à esquerda seguia rumo à Fazenda Jaru que pertencia a seu filho Acássio. O homem parou o seu cavalo e lançou o olhar para a estrada à esquerda, e depois de um silêncio doloroso apeou, aproximando-se de Eunice. Calado, estendeu a mão e carinhosamente passou-a na cabeça da filha e do neto; e com lágrimas nos olhos, gritou aos peões: – Sigam a estrada à direita, vamos para o Projeto, depois de velho estou com coragem de aventurar, quero ser dono de mim mesmo. Oportunamente visitaremos Acássio. Em vista da grande facilidade em conseguir terras gratuitamente, Bezerra resolveu requerer ao INCRA um lote de 250 hectares. Triste, mais decidido seguiu com o carroção de mudança e a tropa para o Projeto Jaru. Procurou o escritório do Instituto, expôs a sua pretensão e em poucos dias era proprietário das terras requeridas. Felizmente era uma desistência, o requerente anterior devolvia o lote ao Instituto, porque enviuvara e ia voltar com os filhos pequenos para o sul. No terreno havia uma casa construída de madeira bruta, móveis rústicos, fogão de pedra e panelas. Comprou a casa do desistente. Era uma casa pequena mas aconchegante, daria para ele, a filha e o neto se acomodarem bem. 283 Bezerra alugara pasto para os animais, e procurava ambientar-se. Em palestra com gente do lugar, indagava sobre a compra de algumas cabeças de gado, sendo uma vaca de leite; o seu neto precisava se alimentar bem. Nos fundos da casa fez uma horta, plantou legumes e verduras. Vitorio remoçou, vivia contente, madrugava na roça. Trabalhava no eito com Matias e Juvêncio, dois antigos agregados do sitio. Para vencer o mato eram necessárias três capinas nas plantações, pois a terra era tão fértil que as ervas bravas cresciam à vista, roubando seiva às plantas úteis. E que havia cálcio, ferro e outros minérios importantes nesse solo, provenientes da lava e cinza vulcânica que se derramou outrora, no cataclismo que deu formas aquele pedaço de chão. – Isto é um presente de Deus. Esta terra vale o ouro todo do mundo – falava Bezerra entusiasmado. As lavouras de Vitorio cresciam na riqueza deste chão, em que se pisava. Cresciam, floriam logo, frutificavam generosamente. O milharal plantado recentemente brotou rebentando o solo como um jorro d‟água. As primeiras folhas nasciam verde-escuras e os grossos troncos anunciavam que o solo era gordo e prosperavam com as chuvas abundantes. A luz do sol aquecia a terra e o calor brando germinava os grãos. Quando as plantas cresciam com folhas largas, escuras, floriam e engrossavam as espigas, era uma festa de cabelos louros úmidos, com tonalidade de ouro novo. Quando amadurecia, ao amarelar das palhas, os pés de milho, a lavoura toda pendia ao chão carregada de espigas enormes. Os paióis estouravam e mal comportavam a safra. Uma fartura pródiga se percebia no relinchar dos cavalos, no mugido do gado, no saltitar firme dos bezerros recémnascidos e no canto alegre dos pássaros. 284 Essa admirável região de clima temperado, nas encostas da Serra de Pacaás Novos, estimulava o bem-estar da gente da colônia. As crianças cresciam fortes e rosadas. Todos se uniam em torno da esperança de vida melhor como náufragos, numa jangada exígua, em mar aberto. Vitorio Bezerra absorvido com o trabalho na lavoura não percebia a tristeza da filha. Ela vivia em melancólico silêncio e expectativa, de quem vê de longe uma cidade iluminada, sua querida Porto Velho onde ficara seu grande amor, lugar onde, pensa, nunca mais poderá pisar. Sempre tristonha, considerando-se traída e prisioneira de seu pai. Veio morar aqui contra sua vontade Ninguém suspeitava quem fosse o pai de seu filho. Seria moço? Belo? Moreno? Louro? Será que tinha morrido mesmo de malária? Era viúva de verdade? Por mais que lhe perguntassem ninguém conseguiu arrancar-lhe esse segredo. Provavelmente era alguém que não pudera casar, porque Eunice era bonita, singela e elegante. Seus modos tristes realçavam-lhe a beleza morena. Esse homem era decerto casado ou passante desconhecido, pois Eunice nunca falava dele ou mencionava o seu nome. Com o passar do tempo ela fez amizade com os funcionários, inclusive, com o dirigente do escritório do INCRA. Certa tarde o chefe veio fazer-lhe uma visita. Enquanto Eunice preparava o café a ser servido ao hóspede, seu pai entabulava uma conversa interessante e informativa a respeito do Projeto e das terras distribuídas pelo governo. Eunice entrou trazendo a bandeja com as xícaras de café e biscoitos. - Aceita um café Dr. Linhares?- perguntou. – Aceito, sim! Mas não precisava se incomodar, agradeço pela gentileza – falou, e estendeu a mão para pegar a xícara. 285 – Quero esclarecer o motivo da minha visita, senhor Bezerra. Eu vim convidar a senhora Eunice para trabalhar no nosso escritório. Fui informado de que ela tem bastante prática nesse setor. Trabalhou num Cartório de Registro Civil, na capital. Seria um prazer tê-la trabalhando conosco. O que acha da proposta senhor Bezerra, ela está liberada para o emprego? – indagou o visitante – Vai depender de Eunice, por mim ela está autorizada a aceitar o trabalho – disse Vitorio. – Eu aceito de bom grado, assim posso ocupar o meu tempo, ganhar algum dinheiro e fazer amizades – respondeu Eunice feliz. No início do mês começou a trabalhar no escritório do INCRA, no Projeto Jaru. Já fazia quase um ano que eles se mudaram de Porto Velho para o Projeto. Não havia nenhuma notícia de Gilberto. Será que ele tinha se esquecido do seu grande amor? Ou não tinha recebido o seu bilhete com o endereço novo? Eunice estava triste e decepcionada. Uma tarde, quando saia do emprego ouviu uma buzina de carro atrás de si. Parou para olhar, e foi enorme a sua surpresa ao ver ao volante da caminhonete Ford, a sua grande paixão, o mascate Gilberto. – Suba no veículo, vou te levar para casa, senhora Eunice. Será que teu pai não vai me expulsar? – perguntou rindo - agora sou rico. Ganhei dinheiro como tropeiro, vendi a minha tropa e comprei essa caminhonete utilitária. Agora já posso me aventurar pelas estradas vicinais e linhas dos assentamentos do INCRA sem grandes problemas. – Levo fardos com tecido misto, cortado com metragem ideal, brim para calça com dez metros, xadrez para camisa com quinze metros, tecido estampado para vestido em cortes de quatro metros, peças de algodão cru, simples e enfestado, peças de morim branco, carretéis de 286 linha e botões, toalhas de mesa, colchas e cobertores de algodão leve. Descobri o filão de ouro do negócio, pois vendo tudo nas viagens que faço. Tornei-me um mascate bem-sucedido. – Por que demorou tanto para me procurar? – perguntou Eunice, com sorriso triste nos lábios. – Porque perdi contato com você, não sabia para onde seu pai a levou. Passei muitas vezes em frente da tua antiga casa e como de hábito, esperava encontrá-la esperando por mim na esquina da rua. Perguntei a diversas pessoas se sabiam para onde vocês se mudaram. Ninguém sabia. Só depois de muito tempo encontrei a sua amiga, que me entregou o bilhete datado de um ano atrás. Vim assim que tive oportunidade – esclareceu Gilberto. Pretendo pedila em casamento se é que ainda me ama. Pode me dar essa resposta agora? – pediu olhando-a fixamente nos olhos. – Vamos um pouco mais devagar, meu noivo! Claro que não o esqueci, amo-o muito. Mas antes de te dar a resposta afirmativa, preciso falar com meu pai – disse a moça, com enorme sorriso de felicidade. O homem parou o veículo no acostamento, abraçou Eunice e olhando diretamente nos seus olhos, depositou beijos ardentes na sua boca. Ela correspondeu ao carinho. – Esperei por você todo esse tempo que parecia não ter fim. É claro que aceito o seu pedido de casamento. Chegaram em casa ao anoitecer. Vitorio Bezerra contava histórias infantis a seu neto Adrianinho sentado no seu colo. Em volta deles estavam acocorados, crianças e adolescentes, atentos à sua narrativa. O fogo crepitava no fogão de lenha onde esquentava a água para o chimarrão, que aprendera tomar com os colonos que vieram do sul. Ele afirmava que sabia ver sinais de chuva no cheiro do vento ou no jeito das nuvens. Quando as nuvens pretejavam para as bandas do poente era chuva na certa. 287 “Céu pedrento chuva ou vento” – anunciava. Às vezes, de manhãzinha averiguando, olhava pela janela a montanha que se desenhava no horizonte e se o cume estava coberto com neblina, profetizava: – O cocuruto da serra está pitando, é chuva que vem aí. Bezerra era um homem de estatura média, atarracado, pele tostada pelo sol, olhos pretos e pícaros, metidos no fundo de órbitas ossudas, barba e cabelos grisalhos, cabeça-chata de nordestino coberta por carapinha de mestiço. Com as abas do chapéu de palha quebradas na frente, uma réstia de sol batia-lhe em cheio no rosto. Gesticulava com as mãos e falava com entusiasmo. Vitorio quando viu a filha chegar trazendo um estranho em sua companhia, ficou intrigado. – Quem é a pessoa que te acompanha? - perguntou ríspido, sem rodeios. – Pai, esse é Gilberto Mendonça de Sá, viajante que conheci há tempos, ainda em Porto Velho. Veio visitar nós. – Você sabe minha filha, que não gosto receber estranhos em minha casa, depois daquela experiência triste que tivemos – reclamou o velho. – Eu sei pai, me desculpe, mas esse homem estranho é meu amigo. Peço-te que o recebas com cordialidade. – Está bem senhor Gilberto, entre e sente, sinta-se à vontade – convidou – ainda um tanto contrariado. Ao entrar na sala mal iluminada por um lampião à querosene, de cuja manga de vidro subia para o teto uma fumaça esfiapada e negra, viu um banco feito de madeira bruta encostado na parede, dirigiu-se para sentar. Bezerra pôs o menino no chão, pegou da cintura uma faca de cabo incrustado de madrepérola, e começou a picar fumo de corda para o cigarro. As partículas caiamlhe no côncavo da mão. Tirou a palha de milho enfiada atrás da orelha, alisou-a com a lâmina da faca, colocou o 288 fumo na palha e começou a enrolar o cigarro com toda calma. Bateu a pedra do isqueiro, levou fogo ao pavio, aproximou a chama da ponta do cigarro de palha e tratou de acendê-lo. Aceso, aspirou longamente a fumaça depois soltou-a pelo nariz. Sentou no banco de madeira perto de Gilberto, com a perna direita dobrada em repouso, o peso do corpo sobre a esquerda. Seu cigarro tinha se apagado. Levantou para acendê-lo novamente, agora com um tição de lenha do fogão. Tirou gostosas baforadas e sentou-se novamente, olhando os volteios da fumaça no ar. – Então é amigo de Eunice! – puxou a conversa. – Sim senhor Bezerra, eu e Eunice nos conhecemos há muito tempo. Eu ainda era tropeiro e morava em Porto Velho. Agora sou proprietário de uma caminhonete utilitária nova que adquiri há pouco tempo. Assim como fazia de início, quando levava a mercadoria em lombo de mulas, continuo com o negócio vendendo mercadoria pelos assentamentos do INCRA. Consegui ganhar um bom dinheiro. Pretendo casar e me estabelecer com loja de tecidos, confecções, calçados e armarinho, na capital. – Pelo que me contou, o senhor deve ser um homem corajoso e um bom comerciante – comentou o pai. Conversavam amigavelmente, quando começaram a chegar colonos do assentamento, conhecidos de Vitorio, para um dedo de prosa e roda de chimarrão,que acontecia todos os dias na casa de Bezerra, sempre ao anoitecer. Viram a caminhonete estranha estacionada à porta do Bezerra e curiosos foram saber quem era. Espantado pelo movimento de pessoas que chegavam, um morcego saiu do beiral da casa, voejou por um instante procurando saída e depois sumiu na escuridão. Aquelas aves causam a todos um medroso mal-estar e arrepios pelo corpo. 289 O velho Bezerra bateu a pedra do isqueiro e quando o pavio estava aceso aproximou-o do cigarro de palha que segurava entre os dentes, o qual tinha se apagado outra vez. Tirou uma baforada de fumo e cuspiu no chão com força. – Cáspite! – xingou injuriado. Passou o olhar ligeiramente por todos que estavam sentados em volta dele. Os visitantes estavam curiosos para ouvir a história, que pelo jeito misterioso do velho devia ser interessante. – Vou explicar-lhes por que não gosto de receber estranhos em casa; tenho receio, precaução, desconfiança. Tudo por causa de uma tragédia acontecida há um ano. E o velho Bezerra desfiou durante horas o sinistro acontecimento: - Naquele anoitecer de começo de agosto, o vento forte que soprava sobre a mata e as casas do assentamento do INCRA no Projeto Jaru, punha inquietos os animais e as pessoas. Batia as portas e janelas; arrancava as folhas das árvores e chapéus de palha dos colonos, puxava e lançava para longe a roupa estendida nos varais. Levantava redemoinhos, juntando os ciscos e a poeira da estrada, dando às criaturas um agourento arrepio na pele. A ventania anunciava algum acontecimento sinistro por vir. - Dias depois aconteceu um fato inesperado... - Num sábado ao cair da noite um jovem casal apareceu no portão da minha casa. Eles vieram do Rio de Janeiro. A moça era parenta afastada da minha falecida mulher Marinalva. Não sei como conseguiram o meu endereço, nesse fim de mundo. Pediram hospedagem por alguns dias, para descansar. – Não tive como negar. Não comentaram a que vieram à Rondônia. Achei meio estranho o seu comportamento. Falavam aos sussurros e paravam quando alguém se aproximava. Fora isso, tudo correu normalmente 290 e eles se foram para a capital, depois de dois dias de repouso. – Quando chegaram a Porto Velho, estranhamente, pois apresentavam ter posses, o casal se aboletou num casebre nos arredores da capital. Os forasteiros desde que chegaram, e durante muito tempo, foram assunto predileto das conversas do bairro.Se interpelados não satisfaziam a curiosidade das pessoas especulas que afluíam à sua cabana. Não davam satisfação a ninguém. – Soubemos, tempos depois do fato ocorrido, alguma informação sobre os dois. Constava que Genivaldo ficou órfão aos sete anos de idade. Seus pais, ele negro e ela mulata, foram mortos atingidos por balas perdidas dos disparos das armas de policiais, que faziam varredura na favela, onde moravam. A polícia estava à procura de traficantes, armas e drogas. Criou-se no morro, ao Deus dará. Para sobreviver fazia pequenos roubos e furtos. Ainda criança ingressou no mundo do tráfico e do crime. - Não tinha ou não conhecia seus parentes. Todos os meninos de rua eram seus irmãos. Numa visita de um grupo de assistentes sociais à favela, ele foi convencido a matricular-se numa escola, onde receberia três refeições diárias, além de aprender a ler e escrever e jogar futebol. Freqüentou a escola e terminou a primeira série. Depois disso voltou ao mundo do crime. Não tinha nada a perder; arrojado e inconseqüente, gostava de viver perigosamente. - Num baile funk conheceu Natália, jovem alegre e expansiva. Era encantadora e ele enamorou-se dela. Empenhou todo o seu charme para conquistá-la e em pouco tempo conseguiu seduzi-la. Ficavam juntos com freqüência; iludida, ela deixou a família e foi morar com ele na favela. - Forçada pelas circunstâncias Natália começou a traficar drogas. Também a drogar-se e beber nas reuniões e bailes funk aos quais freqüentava na companhia de 291 Genivaldo. A vida dela mudou completamente, ela andava parecendo sonâmbula, como que enfeitiçada. De personalidade forte, teimosa, tornou-se submissa. Obedecia cegamente às ordens do amante que a seduzia proporcionando-lhe prazer e carinho e quando não, obrigando-a com ameaças de violência. Apanhava se não obedecesse. - Genivaldo era um mulato de porte atlético, alto e esbelto, de pele quase negra. Olhos dum castanho escuro perspicazes, desconfiados, externavam uma constante expressão de alerta. O cabelo pixaim trazia-o preso na nuca por uma fita preta. Usava calça de jeans e camiseta branca cavada. Calçava tênis Nike, importado. Trazia presa na cintura uma pochete com documentos, e uma guaiaca escondendo um punhal na bainha. Se portava revólver, não deixava que ninguém percebesse. - Natália era de origem estrangeira, talvez ucraniana ou alemã. Loira, de pele clara salpicada de sardas, e grandes olhos buliçosos. De baixa estatura, cintura delgada e quadris roliços. Era bela, tinha um sorriso cativante e sedutor. Falava com uma voz maviosa, quente e afável. Parecia uma boneca de porcelana. O casal chamava atenção pela disparidade da aparência. Faziam um par exótico. Não combinavam, mas o amor tem dessas coisas. - Os homens da vila não tiravam os olhos dela, sentiam-se atraídos pela beleza da moça, conquanto concluíssem que ela representava um risco muito perigoso e qualquer um deles poderia sair perdendo. A mulher causava-lhes um vago medo que não sabiam explicar com clareza, mas que em geral resumiam para si mesmos numa frase: “Ela é um perigo fascinante, um brinquedo para ser admirado de longe.” - Havia naquela bela mulher de vinte anos qualquer coisa de perturbador, uma aura de drama, uma atmosfera 292 abafada de perigo. Ao conhecê-la, Murilo Fonseca, morador da vila, ficara todo alvoroçado, como um colecionador que descobre um espécime raro no lugar mais inesperado. Que tinha ela de tão especial? Talvez os olhos... Eram grandes e azuis, transmitiam uma energia misteriosa. - Todos achavam um absurdo que duas pessoas tão desiguais fossem casados, dormirem na mesma cama e se amarem. Havia um mistério indecifrável nisso tudo. - No entanto, desde o momento em que ela chegara, Murilo ficou perdidamente apaixonado pela moça, vivia rondando o casebre onde ela morava, cercava-a e não perdia pretexto para falar-lhe. Ficava excitado só de ouvirlhe a voz. Aquela voz tinha feitiço, punha-lhe arrepios no corpo todo. Sentia por Natália uma atração estranha, um desejo insano de possuí-la à força, fazer sexo com violência. Ele estava enfeitiçado, aquele sortilégio parecia dominar-lhe os pensamentos e a vida. Perdera o sossego. - Natália sofria com o Genivaldo, pois quando não estava viajando, metia-se em bares, bebia e jogava. Freqüentava os bailes funks e prostíbulos. Nesses ambientes promíscuos e suspeitos vendia maconha e cocaína, e pior de tudo, também era viciado em drogas, além de ser traficante. Quando discutiam, ele batia nela com brutalidade. Eram um escândalo as surras que ele dava em Natália, quando ficava bêbado e drogado. Mas ela não reclamava. – Mas como ela consentia? – perguntavam. – Porque o amava. – Isso não é desculpa. – Natália, por que não larga dele?! – perguntava-lhe seu admirador Murilo. – É por causa do amor que sinto por ele, sou feliz assim, isso me basta – respondia com um sorriso enigmático. 293 – Como ela conseguia agüentar que, além de traí-la, ainda a agredisse? – Porque o amava muito. – Isso não justifica a violência dele. - Era um fato curioso. Genivaldo tinha um não sei quê naquele olhar magnético, e no sorriso da boca de dentes muito brancos, destacando-se no rosto de pele escura, que seduziam às pessoas a quem se dirigia. Isso, porém, era apenas um tênue verniz de superfície, no fundo daquela alma atocaiava-se a hiena. Era sanguinário e cruel, duma crueldade fria e calculista. - O que mais irritava naquele indivíduo era que seus gestos, palavras e atitudes não estavam absolutamente de acordo com o que ele era e fazia. Tinha sempre nos lábios avolumados de mulato um sorriso hipócrita. Seu jeito era obsequioso e sua voz grave, tocada duma afabilidade paternal. Parecia uma cobra cascavel hipnotizando a sua presa, esperando para dar-lhe o bote. - Murilo não escondia seus sentimentos. Estava apaixonado, fascinado pela Natália. Abordou-a um dia, quando Genivaldo viajou para o Rio de Janeiro levando uma grande quantidade de cocaína que adquirira em Guajará-Mirim, na divisa com a Bolívia. Foi traficar a droga nos morros cariocas. Possivelmente ia demorar dias para voltar. – Desejo você, estou apaixonado, sei que você também me quer – investiu Murilo. – Sim, desejo-o muito, desde o dia em que te conheci naquela balada fank. Escolha o local e a hora, que irei ao teu encontro – disse, olhando para ele amorosamente. - Encontraram-se muitas vezes na ausência do pseudo-marido. Freqüentavam os motéis de beira de estrada, passavam a noite juntos. Eles sabiam que corriam 294 perigo de vida, se ele os encontrasse em flagrante, mas o desejo era mais forte. - Certa tarde Genivaldo voltou; felizmente encontrou a mulher em casa. Depois do jantar, ele foi dormir, pois estava exausto da longa viagem. – Se você vai descansar eu vou caminhar, espairecer um pouco, posso? – pediu ela. – Pode ir se quiser – consentiu prontamente. – Vai se encontrar com alguém – pensou, e sorrateiro seguiu a mulher sem que ela percebesse. - Nunca se soube como ele descobriu que Natália o enganava com Murilo Fonseca. - Ela entrou num beco onde o amante a esperava. Genivaldo sentiu o ciúme penetrar-lhe o coração como uma facada,e o ódio apoderar-se dele. Entendeu nesse momento, que teria que vingar-se dos dois; seu coração batia violentamente. Começou a premeditar seu plano de vingança. - Ela não demorou para voltar. Quando entrou no casebre o rancor desfigurava o rosto do marido, ele a agarrou pelo braço e sacudia-a violentamente; ela procurou desvencilhar-se com um repelão. Começou a gritar. - Grita a vontade! Cadela! Puta é o que você é – xingava e continuava a socá-la contra a parede. - Natália se esforçava por livrar-se dele. Levantou os braços e fincou as unhas no rosto dele que começou a sangrar. Enlouquecido pelo ódio, ele jogou-a contra a parede. Ela caiu e ficou sentada chorando de dor e humilhação. - Então ele teve uma idéia demoníaca. Ia obrigá-la a marcar um encontro com o amante em seu próprio quarto de dormir. Simularia uma viagem, mas ficaria escondido no galpão vazio anexo ao casebre. 295 - Convide o teu amante para vir encontrar você no nosso quarto de dormir esta noite, diga-lhe que eu viajei para Guajará-Mirim. Não aceito negativa, senão você vai pagar caro – ordenou ele - Está bem! Eu convido, obedeço tua ordem, mas me prometa não fará nada contra mim - implorou Natália. - Fique tranqüila, nada te acontecerá – prometeu ele. - Sem desconfiar de nada Murilo apareceu na hora combinada. Achou um tanto estranho o comportamento de Natália. Mas como estava cego pela paixão, entrou no quarto cuja porta estava aberta, envolveu o corpo da amante num abraço, beijando-a na boca levou-a para a cama. - Genivaldo ao ouvir os gemidos de prazer dos amantes, saltou do esconderijo, no exato momento da exaltação dos sentidos. Com os olhos injetados de ódio arrancou a faca peixeira da cintura e estripou o Murilo. - Natália gritou de pavor, nesse momento ele virouse para ela e enlouquecido pelo ciúme cravou-lhe o punhal no coração. Uma, duas, três, muitas vezes até vê-la expirar o último suspiro. A expressão de medo que havia no rosto da mulher, deu lugar a uma serenidade de morte. Duas lágrimas rolaram-lhe pelas faces. - Genivaldo olhava estupidamente para o cadáver da companheira morta. Arquejante, a baba a escorrer-lhe da boca entreaberta, por alguns segundos, ficou assim, como que acuado, pensando no que fazer, por fim fez meia volta e saiu em direção da cozinha. De lá trouxe dois sacos de lona e colocou ao lado dos cadáveres. - Olhando o belo corpo despido, de Natália, naquele momento, surgiu nele o instinto primitivo da besta que dorme dentro de cada indivíduo, que o impeliu no desejo violento e carnal de possui-la ainda mais uma vez, ali no meio da carnificina, em frente do amante estripado. 296 - Depois de saciado o seu instinto bestial, ele teve o impulso de esquartejar os corpos em mil pedaços. Essa seria a sua vingança pela traição dos dois. - Nesse momento uma coruja piou agourenta no telhado do casebre. Um frio gélido perpassou o corpo de Genivaldo,como mau presságio. Transtornado, começou a decepar as cabeças, braços e pernas, retalhar os cadáveres em pedaços. Colocou os despojos, sangrando, dentro dos sacos de lona impermeável, e arrumou tudo em cestos no lombo de uma mula cargueira. Pegou do armário, uma camiseta e um short, limpos. - Já passava da meia noite e as casas estavam todas fechadas. Tranqüilamente encilhou o seu cavalo de montaria e tocou a mula pela estrada. De súbito ocorreu-lhe uma idéia macabra. Deixaria um pedaço dos corpos decepados em cada encruzilhada do caminho. Assim ninguém conseguiria identificar as vitimas. Um pedaço aqui, outro ali, e o problema ficaria solucionado, ninguém jamais poderia incriminá-lo. Os corvos e os bichos do mato dariam conta dos despojos. - Já era madrugada, o dia estava clareando. - Percebeu em tempo, que a sua camiseta branca e o jeans estavam respingados de sangue, devia trocá-los por roupa limpa. Quando passava em cima da ponte construída sobre o despenhadeiro de nome “Boca do Inferno” viu ali a oportunidade de desfazer-se dos restos das vitimas, incluindo as duas cabeças decepadas e a roupa ensangüentada. - Um só espectador, involuntário, desse sangrento drama, assistia a tudo escondido atrás de uma touceira. - O caboclo tinha saído de madrugada apanhar gravetos para acender o fogo e ferver a água do chimarrão. Morava num rancho próximo do local. Grande foi seu susto 297 quando viu chegar um cavaleiro à cavalo, puxando atrás uma mula com dois cestos atravessados no lombo. - O homem parou na ponte, amarrou a montaria no tronco de uma árvore e aproximou a mula cargueira do despenhadeiro, em cima do pontilhão. Tirou dos cestos dois sacos e retirou de um deles alguma coisa que transferiu para o outro. Trocou a roupa suja que vestia por outra limpa. Colocou tudo num só saco, amarrou, fazendo um nó cego, deixando duas pontas compridas da corda. - Depois se seguiu o fato inacreditável. O indivíduo abeirou-se perigosamente do precipício, levantou o invólucro macabro com a mão direita, segurando pela ponta das cordas. Confiando na sua força e destreza, com riso triunfante, sentindo-se vingado, rodopiou o saco com os despojos, no ar, para depois lançá-lo no abismo. - Nesse gesto descontrolado, desequilibrou-se e caiu junto no despenhadeiro. Seu grito de desespero foi abafado pelo rugido da água da cachoeira que despencava de oitenta metros de altura no despenhadeiro. O caboclo foi ver de perto se poderia socorrer o infeliz, mas só viu o espesso matagal lá em baixo e ouviu o bramido da água, que, rodopiando, espumando, corria rio abaixo. - O destino juntou os três personagens dessa tragédia numa só sepultura. - O caboclo coçou a cabeça, pensou...pensou mais um pouco... Foi e desamarrou os dois animais presos à arvore e levou os com ele. Desgraça de um, sorte do outro. Inesperadamente tinha ganho o dia. - Havia pouco mais de um ano que, aquele hediondo crime ocupara todas as atenções nos bairros e na imprensa das cidades do Estado. Os habitantes mais antigos do bairro, afirmavam que foi o mais horrível de quantos tinham na lembrança. 298 - No povoado onde o casal morou, corria a conversa sobre essa tragédia de vingança, que diziam, praticada por Genivaldo, que sumira do lugar. O casebre que foi habitado por ele e Natália, foi considerado mal-assombrado. As pessoas afirmavam que ouviam gritos e gemidos á noite. Ninguém quis comprar nem habitar nele. - Certa noite, viram uma grande fogueira tomando conta do casebre. Só sobraram cinzas e no meio delas foi encontrado o punhal de Genivaldo. Essa era a história macabra que corria nas redondezas. Quando o velho Vitorio Bezerra terminou de relatar o sinistro acontecimento, já era hora avançada da noite. Alguns ouvintes estavam cochilando. Um arrepio de frio perpassou os seus corpos semi-adormecidos, quando o Bezerra deu um grito agudo, indicando com o dedo em riste uma sombra humana deformada, deslocando-se pelo chão do aposento. Uma porta bateu com a rajada de vento e ouviu-se o estalo da madeira. Um rato assustado correu pelo canto da casa, para esconder-se atrás do fogão de lenha. A coruja empoleirada no telhado piou tristemente tornando o clima, dentro do ambiente, a apresentar-se mais fantasmagórico. - É a assombração do Genivaldo - o velho falou, apavorado. Vamos parar por ai, porque estamos chamando almas penadas doutro mundo. Já é passado da meia-noite. É hora de dormir. Boa noite meus amigos. - Está certo, vamos nos despedir e ir embora - falou um deles. - Boa noite para todos – responderam os outros. Os colonos e os peões se dispersaram, cada um indo para sua casa. Caminhavam amedrontados olhando para os lados, estremeciam ao ouvir a batida da placa de zinco, presa no poste apenas por um prego, que o vento fustigava. 299 Um enorme cachorro preto com os pêlos arrepiados, atravessou-lhes o caminho rosnando, com os dentes afiados à mostra e os olhos amarelos brilhando igual farol. O animal sumiu no matagal próximo, deixando atrás um cheiro nauseabundo disperso no ar. Os cães das redondezas começaram a uivar, revezando-se no coro lastimoso, amedrontador. - È o lobisomem, os cães o perceberam, por isso uivam - disse um deles, aterrorizado. Começou a correr em direção à sua casa. Enquanto Bezerra contava a tétrica história à grande assistência em volta do fogo, Gilberto e Eunice, conversavam sentados no cômodo ao lado. O Bezerra viu a filha na sala e foi juntar-se à eles. Quis desculpar-se pelo ríspido acolhimento ao rapaz, amigo de sua filha. - Você Gilberto, ouviu todo o relato da tragédia ocorrida há pouco tempo. Portanto, deve ter entendido o meu jeito ressabiado com as pessoas estranhas. Perdoe o meu tratamento rústico com você. Agora está tudo bem. É amigo de Eunice minha filha, portanto é nosso amigo também. Sinta-se em casa. - Agradeço pela gentileza – respondeu Gilberto e deixou passar algum tempo conversando animadamente com o pai da sua pretendida, para dissipar a atmosfera triste ocasionada pela narrativa recente. Depois querendo aproveitar o momento e a boa disposição de animo do pai, arriscou fazer o pedido. - Senhor Bezerra, me desculpe, sei que a hora não é oportuna, mas nós temos pressa, portanto, peço que me conceda a mão de Eunice em casamento. Eu e sua filha já conversamos a respeito e estamos de acordo, agora depende da sua licença. Esperamos que aprove. Eu a amo muito e prometo fazê-la feliz. 300 - Quanto a mim, não só aprovo como abençôo essa união. Eunice merece ser feliz. Duas semanas depois se casaram na igrejinha local. Ela vestida de noiva levando um bouquet de flores miosótis brancos nas mãos. Entrou na igreja de braço dado com o pai e desfilou ao som da marcha nupcial. O filho Adrianinho levava as alianças no estojo de veludo. Gilberto, acompanhado pelos pais e parentes que vieram do Sul para a ocasião, esperava-a no altar, feliz mas muito ansioso. Terminada a festa seguiram em viagem de núpcias para a capital Porto Velho, onde iam residir. Não podiam se dar ao luxo de viagem de núpcias dispendiosa, pois estavam começando uma vida que dependia de muito investimento e trabalho constante. Era o ano de 1986. Esse paranaense que começou sua carreira percorrendo as linhas dos assentamentos do INCRA em Rondônia, como mascate, prosperou, e mais tarde estabeleceu um pequeno negócio em Porto Velho. Depois de casado, junto com a esposa, empenhou todas as energias ao trabalho no comércio, e a pequena loja foi progredindo. Agora, ali está na rua principal da cidade, a primeira loja, agora Matriz da firma de Gilberto, que com o passar do tempo cresceu de tal maneira, que o homem acabou expandindo seu comércio e suas lojas pela cidade e municípios vizinhos. O filho de Eunice, Adriano Júnior, adolescente, estudava no Internato em São Paulo. Era um aluno medíocre, um tanto revoltado pela ausência da mãe à qual era muito apegado. Com o passar do tempo superou a saudade e dedicou-se ao estudo. Formou-se em Administração de Empresa, fator que o auxiliou muito, quando, pela morte do padrasto, teve que auxiliar a mãe na direção dos negócios. 301 Naquela época a mãe de Gilberto, Jurema, andava inquieta, preocupada com a saúde do filho. Sonhava com ele, tinha pesadelos. Sabia que alguma coisa ruim, inesperada estava por acontecer. E o que ela temia que ocorresse, o que pressentia, aconteceu. Gilberto resolvera visitar a Fazenda Macuco que adquirira meses antes. Situava-se a 120 quilômetros de distância da capital. Queria estudar a possibilidade de implantar ali uma criação de gado da raça Nelore. Sentado em cima de um toco, em frente da casa da fazenda, estava profundamente absorvido em pensamentos. Entardecia... O disco esbraseado do sol descia por trás das nuvens rosadas. A barra carmesim que começa no ponto onde o céu e terra se encontram, degrada-se em rosa, ouro e malva, para se transformar num gelo esverdeado, que acaba por fundir-se na abóbada de água marinha que é o resto do céu. Uma doce luz de âmbar tocava nas árvores. O sol descia por trás da montanha, em cujo topo as nuvens brancas se enroscavam. Era a hora em que a paz do céu descia sobre os campos, as águas da lagoa pareciam mais paradas, sons e cores se amorteciam numa surdina, as sombras começavam a tomar tonalidades de violeta. Um galo carijó passeava como um rei por entre as galinhas que ciscavam no chão de terra vermelhoqueimado, que despedia uma tepidez languida, como dum corpo humano cansado. O cão de pelo manchado de preto e amarelo dormia junto da porta da cozinha, de onde vinha um cheiro de carne frita. Gilberto estava inquieto. O que o perturbava? Talvez fosse a melancolia natural da hora e do lugar. Mas não! Havia mais alguma coisa. Sim, uma espécie de premonição, de saudade, uma sensação de aperto no peito que parecia ser expectativa do futuro. Sentia uma solidão 302 profunda, angustiante. Olhava em redor, para os pastos e para a mata. Teria muito trabalho pela frente, até organizar tudo da sua maneira. O pasto estava invadido pelo mato. As cercas precisavam ser concertadas e a casa da fazenda estava em péssimas condições, chovia dentro. O rebanho de gado, de cento e vinte cabeças, precisava de trato. Tudo estava por fazer. Mas ele era um homem de coragem e iniciativa. Estava apostando no sucesso da sua empreitada. Não podia se dar ao luxo de vacilar. Mas, ele não esperava e nem suspeitava, que o destino já tinha demarcado o fim da sua jornada aqui na terra. O estresse ocasionado pela preocupação e o trabalho exaustivo corroeram a saúde de Gilberto. Foi diagnosticada uma lesão no coração. Apesar do tratamento médico, não resistiu. Uma tarde aconteceu o desenlace repentino. Não teve tempo de ser socorrido. O choque abalou toda a comunidade onde ele morava e era benquisto. Ele morreu ainda moço, tinha apenas cinqüenta anos. Sem demora, a família que morava no Sul foi avisada. Foi no começo do ano de 1995. Certa madrugada, o telefone tocou insistente. A primeira impressão era de que só podia ser um engano, devido o adiantado da hora, portanto, ninguém levantou para atender o chamado. Mas o telefone voltou a tocar novamente. A mãe Jurema levanta-se da cama e foi atender, suas mãos tremiam quando pegou o aparelho. - Alô! Quem é? – perguntou ansiosa. - É de Porto Velho, sinto muito, mas a noticia da qual fui incumbido de lhes passar não é boa – falou alguém. - Fale! Por favor - suplicou a mãe. 303 - Seu filho Gilberto faleceu repentinamente essa noite – informou a pessoa no telefone. - Ele está morto! Oh, meu Deus! – gemeu a mãe, e caiu desmaiada de dor. As pessoas acordaram com o grito de desespero de Jurema. O marido Laurindo foi socorrê-la. Todos ficaram abalados com a infausta notícia. Os familiares apressaram-se para a viagem até Porto Velho, pois pelo que constava, a esposa Eunice, não ia permitir que o corpo do marido fosse trasladado para Palmeira do Sul, sua terra natal. Laurindo, sem perda de tempo foi informar-se sobre o mais rápido meio de transporte que poderia utilizar nessa emergência. Foi necessário fretar um avião particular que levaria dez pessoas da família, com urgência e tempo de assistir aos funerais de Gilberto. A viagem realizou-se num vôo direto, com escalas apenas, para abastecimento do tanque do avião. Na chegada ao aeroporto de Porto Velho pessoas da família os esperavam. Aflitos, desesperados, não conseguiam conter as lágrimas no curto trajeto do aeroporto até a residência, onde o falecido estava sendo velado. Vieram ao encontro dos familiares que chegavam, a viuva Eunice com o filho Adriano, o pastor evangélico e amigos da família. O pai e a mãe ao adentrarem no grande vestíbulo da casa, depararam-se com o corpo inerte do filho deitado no esquife. Estava com tampões de algodão no nariz para vedar o sangue que aflorava do peito. O caixão mortuário foi colocado em cima de uma mesa grande adornada de flores e círios de cera acesos, dispostos nos quatro cantos da mesa. Pessoas sentadas em volta oravam por ele. A mãe Jurema não resistiu ao choque e caiu em pranto desesperado. Cambaleou, sentiu tontura e uma súbita 304 ânsia de vômito. Precipitou-se para a suíte do casal procurando o banheiro, inclinou-se sobre o vaso sanitário e ali lançou toda sua angústia. As contrações do estômago expeliam somente a bílis amarga. Não houve alívio, os espasmos continuaram acompanhados de dor e choro convulsivo, até que ela exausta, deitou-se na cama do filho. - Não se aflija tanto, filha, a vida é assim mesmo. Todos morrem, mais cedo ou mais tarde. A morte não pede licença para entrar na casa da gente e levar quem ela escolher – consolava o pastor evangélico. - Como pode ter acontecido uma desgraça dessas? – gemeu a mãe, passando a mão no rosto gelado do filho. - Não desespere senhora, Deus decide a hora da nossa partida - falou o pastor, calmo, suprimindo as próprias emoções - em que posso ajudar a senhora? Havia uma tristeza infinita nos olhos da mãe. Estavam cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelas faces pálidas. Ela ergueu-os e os cravou firmes no rosto do interlocutor. - O pastor realmente quer me ajudar?- indagou ela – então ajude-me a liberar o corpo do meu filho para que eu o leve de volta. Peço apenas, que coloquem o seu esquife no avião que está esperando e o mandem para casa. Lá está toda a sua família – falou em prantos, e olhou-o com expressão tensa. - Farei tudo para ajudá-la, fique tranqüila. - Quero meu filho de volta, quero levá-lo para casa, a fim que possa dormir em seu lugar, na sua terra. Nada de ofícios religiosos evangélicos para ele, somos católicos. - Não se preocupe mãe, você terá seu filho de volta, se bem que as coisas talvez não sejam tão fáceis assim disse o pastor, com olhar interrogativo para Eunice, que reagiu instantaneamente. 305 - Sou sua mulher, com quem ele casou e viveu por vinte anos, portanto, tenho o direito, e reclamo-o para mim. Quero que seja sepultado aqui, para que eu possa orar no seu túmulo. Também serão realizados os ofícios religiosos ecumênicos, para isso mandei chamar o padre católico – comunicou com veemência a viuva. - Precisamos conversar melhor! Vou consultar o pai e outras pessoas da família. Todos estavam em silêncio. O morto deitado no ataúde, já não precisando de mais nada neste mundo. Que os vivos resolvessem as questões terrenas. A mãe Jurema convocou o pai e familiares para darem a sua opinião. Depois de muito argumentar chegaram a uma solução definitiva. Resolveram que, para respeitar o direito e não magoar a viuva Eunice deixariam que o corpo de Gilberto fosse sepultado em Porto Velho. E ainda naquela tarde, atravessando a cidade, passando pelas ruas lamacentas e esburacadas, seguiu o grande cortejo fúnebre rumo ao Cemitério Municipal. A mãe, inconsolável, gemendo de dor e saudade, caminhava amparada pelo braço da filha. Por muito tempo ainda, todo final de semana, a mãe de Gilberto esperava o telefonema do filho, conforme ele sempre costumava fazer, mesmo que fosse para jogar conversa fora, ligava apenas para matar a saudade, feliz pelo fato de conversar com a mãe que ele adorava. Gilberto era um homem autêntico, maduro e verdadeiro. O indivíduo autêntico é o ser que pode ter consciência de sua existência e, portanto tornar-se responsável por ela. Assim o ser autêntico é a pessoa que aceita essa responsabilidade. Amadurecer é aceitar sem alarme nem desespero as contradições. Essas condições de discórdia que nascem do mero fato de estarmos vivos. Alguém nos colocou aqui e 306 acreditamos que nos deu livre arbítrio. Mas, para nossa frustração não podemos escolher a nossa natureza, o corpo que temos, nem a hora e o lugar ou a sociedade em que nascemos, nem os nossos pais, nem nossos irmãos. Essas coisas todas nos são impostas como fato consumado, de maneira irreversível. O homem verdadeiramente maduro procura vê-las com lucidez e aceitar a responsabilidade de sua própria existência dentro dessas condições temporais, espaciais, sociológicas, psicológicas e biológicas. Essa idéia de que somos livres e os únicos responsáveis por nossa vida e destino é uma fonte permanente de angústia e questionamento. É um tipo de ansiedade do qual jamais nos livraremos, porque ela é inerente à nossa existência. É o preço que pagamos por nos darmos o luxo de ter uma consciência, por sabermos que, desde que nascemos e estamos vivos, com certeza vamos morrer algum dia. No decorrer da vida e do tempo, acontecem fatos que nos parecem isolados, no entanto, sem serem premeditados relacionam-se uns com os outros. São destinos entrelaçados e envolvidos na mesma teia de emoções; pessoas marcadas com os signos da paixão e do amor ilimitado, que fatalmente cruzaram seus caminhos no mesmo e exato momento; seres que aninham no coração sentimentos extremos que as deixam muitas vezes à beira do precipício da loucura. Colocar a poesia “Felicidade”, na página seguinte. 307 308