- Diálogos Literários
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Literatura norte-americana do século XX: a Geração Beat, seus precursores e seguidores LITERATURA NORTE-AMERICANA DO SÉCULO XX: A GERAÇÃO BEAT, SEUS PRECURSORES E SEGUIDORES∗ Se as portas da percepção se desvelassem, cada coisa apareceria ao homem como é, infinita. Pois o homem se enclausurou a tal ponto que apenas consegue enxergar através das estreitas frestas de sua gruta (William Blake). A ORIGEM DA EXPRESSÃO “GERAÇÃO BEAT”. PRINCIPAIS REPRESENTANTES: Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William Burroughs, Lawrence Ferlinghetti, Neal Cassady, Gregory Corso, Carl Solomon. (Jack Kerouac e Allen Ginsberg) ∗ Material preparado pelo professor Willian André para fins de discussão em encontro do Grupo de Pesquisa em Diálogos Literários. Av. Comendador Norberto Marcondes, 733 Campo Mourão - Paraná - Brasil - CEP 87.303-100 - Fone (44)3518-1880 www.fecilcam.br - www.dialogosliterarios.wordpress.com [email protected] (No sentido horário: Imagem 1 – Gregory Corso, Allen Ginsberg e William Burroughs; Imagem 2 – Lawrence Ferlinghetti; Imagem 3 – Allen Ginsberg e William Burroughs; Imagem 4 – William Burroughs) UMA ANEDOTA QUE RESUME TUDO: O ENCONTRO DE ALLEN GINSBERG COM COM CARL SOLOMON CARACTERIZAÇÃO DA GERAÇÃO BEAT A “SEGUNDA VANGUARDA”: Representou o novo e foi inovadora naquele contexto, do mesmo modo como futurismo e dadaísmo representaram o novo, de diferentes modos, em outro momento. Se recuperou o ímpeto inovador do primeiro ciclo vanguardista, adicionou-lhe – assim como outros movimentos da época – novas tomadas de posição, não só estéticas, mas políticas. Representou a busca de alternativas que ultrapassassem a polaridade típica da Guerra Fria, entre stalinismo e macarthismo, ortodoxia soviética e reacionarismo burguês (WILLER, 2009, p. 16). AS INFLUÊNCIAS: surrealistas certamente leram muito; assimilaram e prosseguiram uma tradição romântica e uma herança simbolista – mas a expressão surrealista tem mesmo, como ponto de partida, as prosas poéticas de Rimbaud e Os cantos de Maldoror, de Leautréamont. Na beat, as influências 2 mais importantes cobrem um arco que vai de Dostoiévski a Ezra Pound, de Whitman e dos transcendentalistas norte-americanos a Louis-Ferdinand Céline, de García Lorca a Gertrude Stein, de William Blake a Thomas Wolfe (WILLER, 2009, p. 24). A AMIZADE: Foi um movimento literário: quanto a isso, Ginsberg foi claro. Mas referiu-se, na mesma frase, a um grupo de amigos. E disse que esses amigos trabalharam juntos. Amizade: aí está algo diferenciador ou definidor da beat (WILLER, 2009, p. 16-17). / Desafetos dificilmente integram o mesmo movimento. Adesão a um programa literário ou artístico nunca é impessoal. Mas na beat a amizade foi transcendental, no sentido romântico do termo. Ginsberg, em especial, a sacralizou. Ao mesmo tempo, a sexualizou. E a confundiu com cumplicidade, não só no sentido mais metafórico, mas em um sentido até jurídico (WILLER, 2009, p. 17). A LIBERAÇÃO SEXUAL: E fizeram sexo juntos. O limite entre amizade e outras intimidades era fluido. E não só nas relações entre eles, como aquelas envolvendo Ginsberg, Kerouac, Cassady e as mulheres de Cassady, mas em sessões coletivas. O relato, por Daiane di Prima, de um verdadeiro empilhamento de corpos, dela, de Kerouac, Ginsberg e Orlovsky, já em 1958, é confirmado por outras fontes. Ginsberg transando com Burroughs, no início daquela década, ou levando Corso imediatamente para a cama, ao conhecê-lo (WILLER, 2009, p. 19). O ENTRELAÇAMENTO BIOGRÁFICO: Personagens de si mesmos, foram pratos cheios para biógrafos – só o que existe de estudos biográficos sobre Kerouac preenche uma longa prateleira de estante. Liberdade de expressão foi indissociável do teste dos limites da liberdade individual e das tentativas de projetá-la como utopia política. Por isso, inauguraram uma nova relação entre arte e vida, literatura e sociedade (WILLER, 2009, p. 26). MISTICISMO; INTERESSE POR (relação com o uso de drogas). BUDISMO E GNOSTICISMO NOMADISMO. A CRIAÇÃO COLETIVA: escritas conjuntas, textos-colagens, tematizações, citações (intertextualidade promíscua), editorações, prefácios, dedicatórias, correspondências. A ESTREITA RELAÇÃO COM A MÚSICA: A beat se formou com o jazz bop e se expressou através do rock – e de música pop, balada country, blues, rap e criações de vanguarda, experimentais. Percorreu um trajeto de Lester Young, Dizzie Gillespie, Charlie Parker, Thelonius Monk e Linnie Tristano, passando por Bob Dylan (com quem Ginsberg se apresentou e fez parcerias), Ray Charles (que homenageou Kerouac em “Hit the Road, Jack”), Janis Joplin (“Mercedes Benz”, letra de Michael McClure), e The Grateful Dead (que homenageou Neal Cassady), até The Clash (que recebeu Ginsberg em shows), Laurie Anderson (com quem Burroughs contracenou), Philip Glass (que compôs uma ópera sobre temas de Ginsberg) e The Band (que se apresentou com Ferlinghetti em um concerto filmado por Scorsese). Poesia e música sempre caminharam juntas. 3 Mas em nenhum movimento literário da modernidade, ou desde o romantismo, a ligação foi tão íntima. A beat foi sonora. Tem discografia, e não só bibliografia (WILLER, 2009, p. 13). A HETERODOXIA EXTERNA (diversidade e respeito a ideologias diferentes): Burroughs, protestante branco; Kerouac, índio norte-americano e bretão; Corso, católico italiano; eu, radical judeu; Orlovsky, russo branco; Gary Snyder, escocês-alemão; Lawrence Ferlinghetti, italiano, continental, educado na Sorbonne; Philip Lamantia, autêntico surrealista italiano; Michael McClure, escocês do meio-oeste norte-americano; Bob Kaufman, afro-americano surrealista; LeRoi Jones, poderoso negro, entre outros (GINSBERG apud WILLER, 2009, p. 20-21). / Talvez essa diversidade se relacione com características da própria sociedade norte-americana. A beat contou com negros e descendentes de imigrantes porque lá havia muitos negros e descendentes de imigrantes. Mas reunir desde o filho de um morador de rua, Neal Cassady, até o descendente de uma elite econômica, William Burroughs, e do autodidata Gregory Corso, que conheceu literatura na cadeia, até Lawrence Ferlinghetti, doutorado na Sorbonne, a diferencia de movimentos europeus – e de outros lugares: nossos modernistas de 1922 têm perfis bem próximos uns dos outros. Pela primeira vez, as rebeliões artísticas antiburguesas não foram encabeçadas exclusivamente por burgueses ou aristocratas (WILLER, 2009, p. 21). A HETERODOXIA INTERNA: Folheando seus [de Ginsberg] Collected Poems, deparamo-nos, na seqüência, com o registro de uma visão sob efeito de metedrina em Hollywood, poemas bem engajados, panfletários, como “Pentagon Exorcism” (Exorcismo do Pentágono) e uma elegia a Che Guevara, um mantra a propósito dos flats de Cleveland – Om Om Om As Ra Wa Buda Dakini Yea,/ Benzo Wani Yea Benzo bero/ Tsani Yea Hüm Hüm Hüm/ Phat Phat Phat Svaha! – e, entre as comovidas elegias a Neal Cassady, um irônico poemeto sobre beijar a bunda, “Kiss Ass”, e outro, “Please Master” (Por favor, Senhor), com duas páginas sobre como é ser sodomizado. A oscilação entre pólos, do mantra ao sexo explícito, do sagrado ao profano, do espiritual ao material, é típica da beat e especialmente característica de Ginsberg. Faz parte de sua religiosidade transgressiva (WILLER, 2009, p. 25). O “FIM” DA CENSURA: Howl and other poems (Ginsberg, 1956); Naked lunch (Burroughs, 1966). QUADRO DE CARACTERÍSTICAS TRANSGRESSÃO SUBVERSÃO MARGINALIDADE HETERODOXIA NEGAÇÃO DO AMERICAN WAY OF LIFE 4 O TRAÇADO DE UMA CONSTELAÇÃO Knut Hansum: escritor norueguês que viveu entre a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX. Não possui qualquer relação direta com os escritores da Geração Beat, e sequer aparece entre suas leituras (Charles Bukowski o referencia como um de seus autores favoritos). Todavia, apresenta no romance Fome (Sult, 1890), o protótipo (próximo, em certa medida, do dandy baudelaireano) do “vagabundo”, “errante”, “outsider”. John Steinbeck: escritor norte-americano. Apesar de mais conhecido por As vinhas da ira (The grapes of wrath, 1939), romance de cunho notadamente social, possui pelo menos duas obras – Boêmios errantes (Tortilla Flat, 1935) e A rua das ilusões perdidas (Cannery Row, 1945) – cujos personagens enquadram-se no modelo de outsider que será explorado pela literatura beat. Henry Miller: escritor norte-americano. Seu romance Trópico de Câncer (Tropic of Cancer, 1934), que aqui destacamos, também contribui – apesar de apresentar uma narrativa que de desenrola na Europa (com personagens norteamericanos) – para o traçado da constelação de personagens e motivos outsiders aqui esboçado. Após o lançamento, o romance foi proibido nos Estados Unidos, voltando a ser publicado apenas em 1961. John Fante: escritor norte-americano de origem italiana. Apresenta, no romance Pergunte ao pó (Ask the dust, 1939), o clássico personagem Arturo Bandini, que também compõe o modelo do outsider. Raymond Carver: escritor norte-americano. Talvez o mais destoante dentre os autores aqui relacionados, Carver apresenta personagens que, aparentemente, não se enquadram no grupo dos marginais – remetendo muito mais ao estilo de vida padrão da classe burguesa. Em praticamente todos os seus contos – como naqueles encontrados no volume Iniciantes (Beginners, 2009), todavia, os personagens são submetidos a um doloroso processo de implosão (de valores e sentimentos) que merece destaque nas reflexões aqui propostas. Charles Bukowski: escritor norte-americano. Apesar de nunca ter se associado o grupo dos beats, a correlação por parte de seus leitores é quase sempre imediata. Os personagens apresentados nos muitos livros do autor (com destaque para Henry Chinaski, seu alter-ego) constituem, talvez, o melhor exemplo do modelo outsider aqui delineado. Poesia Marginal Brasileira: é reconhecido o débito dos autores (entre os quais destacamos, aqui, Paulo Leminski, Chacal e Cacaso) que configuram o quadro daquela que ficou conhecida como a “poesia marginal” brasileira para com o movimento da contra-cultura norte-americana, das décadas de 60 e 70, que, por sua vez, encontra suas raízes na revolução provocada pela Geração Beat. Roberto Piva: apesar de não ser diretamente relacionado ao grupo dos poetas marginais, Roberto Piva é aquele cuja poesia talvez mais se aproxime das 5 propostas beat. Em um livro como Paranóia (1963), por exemplo, são evidentes as aproximações com a poética de Allen Ginsberg. Pedro Juan Gutiérrez: escritor cubano contemporâneo. Os contos que compõem o volume Trilogia suja de Havana (Trilogía sucia de La Habana, 1998), por exemplo, possuem um teor muito próximo da literatura de Bukowski. Mário Bortolotto: escritor brasileiro contemporâneo, que se dedica principalmente à dramaturgia. São constantes, nas obras de Bortolotto, as referências explícitas aos autores que pertenceram à Geração Beat. Além disso, seus textos transpiram o mesmo teor de marginalidade e transgressão que orientam nossas reflexões. Algumas peças de destaque: “Diário das crianças do velho quarteirão” (1994), “E éramos todos Thunderbirds” (2001), “Homens, santos e desertores” (2002). Efraim Medina Reyes: escritor colombiano contemporâneo. Autor do romance Era uma vez o amor mas tive que matá-lo (Érase una vez el amor pero tuve que matarlo, 2003), que faz referências constantes a Bukowski e apresenta várias características que o tornam próximo da literatura beat. UMA LEITURA DO CONTO “TANTA ÁGUA TÃO PERTO DE CASA”, DE RAYMOND CARVER • • • a destruição do American way of life; as AÇÕES GROTESCAS dos bons sujeitos burgueses, trabalhadores, pais de família; a implosão do casamento. Na primeira noite no rio, antes mesmo de poderem montar acampamento, Mel Dorn achou a garota boiando no rio, de cara para baixo, nua, agarrada em uns galhos perto da margem. Chamou os outros e todos vieram olhar. Conversaram sobre o que deviam fazer. Um deles (...) achou que deviam voltar para o carro na mesma hora. Os outros ficaram remexendo a areia com os sapatos e disseram que preferiam ficar. Alegaram que estavam cansados, que já era muito tarde, e que a garota “não ia mesmo para lugar nenhum”. No final, todos resolveram ficar. Foram em frente, armaram acampamento, fizeram a fogueira e tomaram seu uísque. Beberam um bocado de uísque e, quando a lua subiu, falaram a respeito da garota. Alguém achou que aquilo podia acabar criando problema para eles, se ela boiasse rio abaixo no meio da noite. Pegaram lanternas e foram tropeçando rio abaixo. O vento estava forte, soprava um vento frio e as ondas do rio batiam com força na margem arenosa. Um deles (...) entrou na água, segurou a garota pelos dedos e puxou-a, ainda de bruços, para mais perto da margem, na água rasa, depois pegou um pedaço de cordão de náilon, amarrou-o em volta do seu pulso e depois prendeu o cordão nas raízes de umas árvores, enquanto o facho das lanternas dos outros homens passava por cima do corpo 6 da garota. Depois, voltaram para o acampamento e beberam mais uísque (CARVER, 2009, p. 168-169). Duas coisas estão certas: 1) as pessoas já não se importam mais com o que acontece com os outros, e 2) nada mais faz alguma diferença de verdade. Vejam só o que aconteceu. E mesmo assim, nada vai mudar entre mim e o Stuart. Mudar de verdade, quero dizer. Vamos ficar mais velhos, nós dois, já dá pra ver na cara d agente, no espelho do banheiro, por exemplo, nas manhãs em que usamos o banheiro ao mesmo tempo. E certas coisas à nossa volta vão mudar, ficar mais fáceis ou mais difíceis, uma coisa aqui, outra ali, mas nada jamais será diferente de verdade. (...) Tomamos nossas decisões, nossas vidas foram postas em movimento e vão seguir adiante, até a hora em que vão parar. Mas, se isso for mesmo verdade, e daí? Quer dizer, a gente acredita nisso, e mantém isso escondido, até que um dia acontece uma coisa que devia mudar tudo, só que aí a gente vê que, no final das contas, nada vai mudar. E daí? Enquanto isso, as pessoas em volta da gente continuam a falar e a agir como se a gente fosse a mesma pessoa do dia anterior, ou da noite anterior, ou de cinco minutos antes, mas na verdade a gente está passando por uma crise, o coração sente que sofreu um estrago... (CARVER, 2009, p. 176-177). E então sou levantada e depois jogada no chão. Fico sentada no chão, olhando para cima, na direção dele, meu pescoço dói e minha saia está acima do joelho. Ele se curva e diz, Vá para o inferno, então, está ouvindo, piranha? Tomara que a sua boceta apodreça antes que eu chegue a tocar nela de novo. Ele soluça novamente e me dou conta de que ele não pode ajudar, não pode nem ajudar a si mesmo (CARVER, 2009, p. 190). CHARLES BUKOWSKI: UM CAPÍTULO À PARTE “O ruim é que você lê os grandes autores mas só Bukowski lhe diz alguma coisa” (E. M. Reyes) • • • a personificação por excelência do outsider; uma literatura extremamente niilista; a poética do isolamento. 7 O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio Contexto: coletânea de anotações mantidas por Bukowski, em forma de diário, do final de 1991 ao início de 1993 (o autor falece em maio de 1994). Entrada de 13/09/91 – 17:28: uma reflexão niilista sobre o escrever e sobre a velhice. Tem noites em que esta sala é o único lugar onde quero estar. Ainda assim, me levanto e sou uma casca vazia (BUKOWSKI, 2010, p. 17). Ficar velho é muito estranho. A coisa principal é que você tem que ficar constantemente dizendo a si mesmo estou velho, estou velho. Você se vê no espelho quando desce no elevador, mas não olha diretamente para o espelho, dá uma olhada de lado, um sorriso amarelo. Você não está tão mal, você parece algo como uma vela empoeirada. Azar, fodam-se os deuses, foda-se o jogo. Você já deveria estar morto há 35 anos. Isto é uma cena a mais, mais uma olhada no show de horror. Quanto mais velho o escritor fica, melhor ele deve escrever, ele já viu mais coisas, já agüentou mais, já perdeu mais, está mais perto da morte. Esta última é a maior vantagem. E há sempre a nova página, a página em branco, 8 e ½ por 11 polegadas. O jogo continua. Daí você sempre lembra de uma ou duas coisas que os outros disseram. Jeffers: “Zangue-se com o sol”. Maravilhoso demais. Ou Sartre: “O inferno são os outros”. Direto no alvo. Nunca estou sozinho. A melhor coisa é ficar sozinho, mas nem tanto assim (BUKOWSKI, 2010, p. 18). Quanto a escrever, hoje escrevo basicamente da mesma forma que fazia há 50 anos, talvez um pouco melhor, mas não muito. Por que tenho que chegar aos 51 para poder pagar o aluguel com os meus livros? Quero dizer, se estou certo e escrevo igual, por que demorou tanto? Tive que esperar que o mundo me entendesse? E, se ele me entende, como estou agora? Mal, é isso. Mas não acho que não fiquei burro por acaso. Será que um cara burro se dá conta que é? Mas estou longe de estar satisfeito. Há alguma coisa em mim que não consigo controlar. Nunca dirijo meu carro por cima de uma ponte sem pensar em suicídio. Quero dizer, não fico pensando nisso. Mas passa pela minha cabeça: SUICÍDIO. Como uma luz que pisca. No escuro. Alguma coisa que faz você continuar. Saca? De outra forma, seria apenas loucura. E não é engraçado, colega. E cada vez que escrevo um bom poema, é mais uma muleta que me faz seguir em frente. Não sei quanto às outras pessoas, mas quando me abaixo para colocar os sapatos de manhã, penso, Deus Todo-Poderoso, o que mais agora? A vida me fode, não nos damos bem. Tenho que comê-la pelas beiradas, não tudo de uma vez só. É como engolir baldes de merda. Não me surpreende que os hospícios e as cadeias estejam cheios e que as ruas estejam cheias. Gosto de olhar os meus gatos. Eles me acalmam. Eles me fazem sentir bem. Mas não me coloque em uma sala cheia de humanos. Nunca faça isso comigo (BUKOWSKI, 2010, p. 20-21). 8 Você não consegue escrever uma história de amor • uma metanarrativa paradoxalmente amarga e bem-humorada. – Não consigo escrever – disse Carl. – Acabou-se. Então ele se levantou e foi até o banheiro, fechou a porta e deu uma cagada. Carl cagava quatro ou cinco vezes por dia. Não havia mais nada a fazer. Ele tomava cinco ou seis banhos por dia. Não havia mais nada a fazer. Ficava bêbado pela mesma razão (BUKOWSKI, 2011, p. 93). – É... – disse Margie – eu sei. Você precisa do seu isolamento. Você precisa ficar sozinho. Exceto quando quer trepar, ou exceto quando nos separamos, então você me liga. Diz que precisa de mim. Diz que está morrendo por causa de uma ressaca. Você enfraquece rápido. – Enfraqueço rápido. – E fica tão inerte quando estou por perto, nunca se excita. Vocês escritores são tão... preciosos... não suportam pessoas. A humanidade fede, certo? – Certo. (BUKOWSKI, 2011, p. 94). Animal crackers in my soup Uma releitura moderna do mito de Adão e Eva: a impossibilidade de se conquistar o paraíso. • o típico marginal errante: Tinha saído de uma longa bebedeira, durante a qual perdi um emprego mixa, o meu quarto e (talvez) a cabeça. Depois de passar a noite dormindo num beco, vomitei no sol, esperei cinco minutos e aí então acabei com o resto da garrafa de vinho que achei no bolso do paletó. Comecei a andar pela cidade, assim, ao léu. Enquanto caminhava, me veio a sensação de que estava percebendo, em parte, o sentido das coisas. Claro que não estava. Mas ficar lá parado, no beco, não resolvia nada (BUKOWSKI, 2007, p. 243). • “zoofilia”: a harmonia do princípio dos tempos narrada no Gênesis (um pedaço do mundo que não foi maculado pela sujeira do homem): O tigre rodeava a mesa em círculos lentos. De repente começou a andar cada vez mais depressa, sacudindo o rabo. Carol soltou um gemido abafado. A essa altura, o tigre já estava parado diante das pernas dela. Ergueu o corpo e pousou as duas patas de cada lado da cabeça de Carol. O membro cresceu, gigantesco. Cutucou a buceta, procurando a entrada. Carol pegou com as mãos, tentando orientá-lo. Os dois se contorceram à beira de uma agonia insuportável e ardente (BUKOWSKI, 2007, p. 249). • “cenas de sexo explícito”: sacralização e pureza – a celebração da vida: Fiquei parado e ela se debatendo. Apertei os dedos dos pés na ponta do sofá, calcando com força, completamente imóvel. E aí forcei o pau a latejar três vezes, sem mexer com o corpo. Ela reagiu com contrações. Repetimos aquilo e quando 9 vi que não dava mais pra agüentar, tirei quase todo pra fora e enfiei outra vez – com tesão e cuidado – tornando a vibrar ali dentro e de repente parando, enquanto Carol se revirava toda: parecia um peixe preso no anzol. Fizemos isso várias vezes. Depois, com desvairado abandono, comecei a meter e tirar, sentindo o pau aumentar de tamanho e volume, os dois atingindo culminâncias juntos, numa simbiose perfeita, ultrapassando tudo, a história, nós mesmos, o nosso egoísmo, além de toda compaixão e análise, de tudo, em suma, com a alegria secreta de estarmos celebrando a Vida (BUKOWSKI, 2007, p. 253). • a utopia da salvação: O mundo está cansado. O fim não deve tardar. As pessoas embruteceram, ficaram irresponsáveis – uma gente de pedra. Cansaram delas mesmas. Vivem rezando para que a morte venha, e são preces que serão atendidas. Eu... eu estou... bom... eu ando meio que preparando uma nova criatura pra povoar o que sobrar da Terra. Tenho a impressão de que noutros lugares também tem mais gente preparando essa nova criatura. Talvez até sejam muitos. Essas criaturas vão se encontrar, procriar e sobreviver, entendeu? Mas devem ser uma síntese do que todas as criaturas, homem inclusive, possuem de melhor, pra sobreviver dentro da pequena partícula de vida que vai permanecer... (BUKOWSKI, 2007, p. 251). • o embrutecimento do homem: Levei dois dias pra enterrar todos. Carol colocou marchas fúnebres no tocadiscos, cavei as sepulturas, coloquei os cadáveres nas covas e cobri com terra. A tristeza era insuportável. Carol marcou os túmulos e nós dois tomamos vinho, sem dizer nada (BUKOWSKI, 2007, p. 256). • a hecatombe – impossibilidade de salvação: Disse o meu nome à enfermeira. Ela entrou na sala envidraçada e localizou o nosso filho. Ao levantar a criança no ar, a enfermeira sorriu. Um sorriso incrível, de perdão. Nem podia ser de outro modo. Olhei para a criança – impossível, clinicamente impossível: era um tigre, um urso, uma cobra e um ser humano. Um alce, um coiote, um lince e um ser humano. Não chorava. Os olhos se fixaram em mim e me reconheceram. E eu também reconheci. Uma coisa insuportável, o Homem e o Super-homem, Super-homem e Superfera. Completamente impossível e olhava pra mim, o Pai, um dos pais, um dos muitos e muitos pais... e os raios de sol se cravaram no hospital, que começou a estremecer de cima a baixo, as crianças rugindo de medo, as luzes se acendendo e apagando; um clarão roxo relampejou na repartição de vidro na minha frente. As enfermeiras gritavam. Três luminárias fluorescentes se desprenderam dos suportes e desabaram sobre os berços. A enfermeira ficou ali parada, em pé, segurando meu filho e sorrindo, enquanto a primeira bomba de hidrogênio caía sobre a cidade de São Francisco (BUKOWSKI, 2007, p. 258). 10 REFERÊNCIAS BORTOLOTTO, Mário. Para os inocentes que ficaram em casa. In: ________. Para os inocentes que ficaram em casa. Independente, 1997, p. 25-26. ________. E éramos todos Thunderbirds. In: ________. Doze peças de Mário Bortolotto. Londrina: Atrito Art Editorial, 2003, p. 9-36. BUKOWSKI, Charles. Aviso. In: ________. Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo amém. Edição bilíngue. Tradução: Fernando Koproski. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 71. ________. Animal crackers in my soup. In: ________. Fabulário geral do delírio cotidiano: ereções, ejaculações e exibicionismos – parte II. Tradução: Milton Persson. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 243-258. ________. O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio. Tradução: Betina Gertum Becker. Ilustrações: Robert Crumb. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 17-21. ________. Você não consegue escrever uma história de amor. In: ________. Ao sul de lugar nenhum: histórias da vida subterrânea. Tradução: Pedro Gonzaga. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 93-97. CARVER, Raymond. Tanta água tão perto de casa. In: ________. Iniciantes. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 166191. FERLINGUETTI, Lawrence. Um parque de diversões da cabeça. Edição bilíngue. Tradução: Eduardo Bueno e Leonardo Fróes. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2007. GINSBERG, Allen. Uivo. In: ________. Uivo e outros poemas. Tradução: Claudio Willer. 11 ed. Porto Alegre: L&PM, 2010. GUTIÉRREZ, Pedro Juan. Na boca do lobo. Tradução: Marcos Losnak. In: Revista Coyote, n. 5. Londrina: Outono, 2003, p. 29. ________. Eu, revirador de merda. In: ________. Trilogia suja de Havana. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 96100. KEROUAC, Jack. On the road. Tradução, introdução e posfácio: Eduardo Bueno. Porto Alegre: L&PM, 2009. MILLER, Henry. Trópico de câncer. Tradução: Beatriz Horta. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. PIVA, Roberto. Paranóia em Astrakan. In: ________. Um estrangeiro na legião - obras reunidas, volume 1 (organização: Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 2005, p. 37. REYES, Efraim Medina. Era uma vez o amor mas tive que matá-lo. Tradução: Maria Alzira Brum Lemos. São Paulo: Planeta, 2006. WILLER, Claudio. Geração Beat. Porto Alegre: L&PM, 2009. 11 ANEXOS UIVO (ALLEN GINSBERG) – um fragmento... Para Carl Solomon I Eu vi os expoentes da minha geração destruídos por loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa, hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado na maquinaria da noite, que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das cidades contemplando jazz, que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas de cômodos, que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de Blake entre os estudiosos da guerra, que foram expulsos das universidades por serem loucos & publicarem odes obscenas nas janelas do crânio, que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descascada em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestos de papel, escutando o Terror através da parede, que foram detidos em suas barbas públicas voltando por Laredo com um cinturão de marijuana para Nova York, que comeram fogo em hotéis mal pintados ou beberam terebintina em Paradise Alley, morreram ou flagelaram seus torsos noite após noite com sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília, álcool e caralhos e intermináveis orgias, incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvem trêmula e clarão na mente pulando nos postes dos pólos de Canadá & Paterson, iluminando completamente o mundo imóvel do Tempo intermediário (GINSBERG, 2010, p. 25-26) ON THE ROAD (JACK KEROUAC) – um fragmento... Começou então o louco redemoinho de tudo o que ainda estava por vir; e ele misturaria todos meus amigos e o pouco que restava da minha família numa gigantesca nuvem de poeira pairando sobre a Noite Americana. Carlo falava a Dean sobre Old Bull Lee, Elmer Hassel e Jane: Lee no Texas plantando maconha, Hassel na ilha de Riker, Jane vagando pela Times Square em plena viagem de benzedrina, com sua bebezinha nos braços e acabando em Bellevue. E Dean falou para Carlo sobre desconhecidos do Oeste como Tommy Snark, o craque manco das mesas de bilhar, viciado no baralho e veado abençoado. Falou também sobre Roy Johnson, Big Ed Dunkel, seus amigos de infância, seus companheiros de rua, suas inumeráveis garotas e orgias e fotos pornográficas, seus heróis, heroínas, aventuras. Eles varavam as ruas juntos absorvendo tudo com aquele jeito que tinham no começo, e que mais tarde se tornaria muito mais melancólico, perceptivo e vazio. Mas nessa época eles dançavam pelas ruas como piões frenéticos e eu me arrastava na mesma direção como tenho feito toda minha vida, sempre rastejando atrás de pessoas que me interessam, porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo agora, aqueles que nunca bocejam e jamais falam chavões, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações em cujo centro fervilhante – pop! – pode-se ver um brilho azul e intenso até que todos “aaaaaaah!”. Como é mesmo que eles chamavam esses garotos na Alemanha de Goethe? Desejando ardorosamente aprender como escrever tão bem quanto Carlo, Dean, como é fácil imaginar, começou a envolvê-lo com aquela alma insinuante e amorosa que só mesmo um verdadeiro vagabundo poderia ter. (KEROUAC, 2009, p. 24-25) UM PARQUE DE DIVERSÕE DA DIVERS ES FERLINGHETTI) – um fragmento... CABEÇA CABE A (LAWRENCE 3 O olhar do poeta olhando obsceno vê a superfície do mundo redondo com seus tetos de porre e passarinhos de madeira em varais seus machos de argila e fêmeas de peitos em botão e pernas quentes em camas de desmontar e seu mistério carregado nas árvores seus parques dominicais de estátuas mudas sua América rica de localidades fantasmas e ilhas de formalidades vazias e a paisagem surrealista composta de campinas sonhadoras subúrbios – supermercados cemitérios de aquecimento a vapor cinerama feriados e catedrais protestantes um mundo à prova de beijo com assentos de privada de plástico tampax e táxis caubóis drogstorizados e virgens las vegas índios renegados madames cinemalucas senadores irromanos conformistas conscienciosos. e todos os outros fragmentos fatais podados do sonho do imigrante feito real demais e extraviado no meio dos banhistas ao sol (FERLINGHETTI, 2007, p. 23) AVISO (CHARLES BUKOWSKI) os cisnes se afogam em águas sujas, retirem os avisos, testem os venenos, isolem a vaca do touro, a peônia do sol, tirem os beijos de alfazema de minha noite, botem as sinfonias nas ruas como mendigos, afiem as garras, açoitem as costas dos santos, atordoem sapos e ratos para o gato, queimem os quadros encantados, mijem no amanhecer, meu amor está morto. (BUKOWSKI, 2005, p. 71) PARANÓIA PARAN IA EM ASTRAKAN (ROBERTO PIVA) Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com lágrimas invulneráveis onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes que saem escondidos das tocas onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados estéreis e incendeiam internatos onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam a descarga sobre o mundo onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha no seu hálito onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua última janela onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte branco onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe escurecendo a página onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das beatas onde as cartas reclamam drinks de emergência para lindos tornozelos arranhados onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas penas onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da imaginação (PIVA, 2005, p. 37) EU, REVIRADOR DE MERDA (PEDRO JUAN GUTIÉRREZ) GUTI RREZ) – um fragmento... O velho me fez perder o fio do conto do Regelio. Escrevi há vários anos. Rogelio tinha acabado de morrer e imaginei muitas coisas da vida dele. Não é um bom conto. A realidade é muito melhor. Nua e crua. Tal como está na rua. Você a pega com as duas mãos e, se tiver força, ergue do chão e a deixa cair na página em branco. Pronto. É fácil. Sem retoques. Às vezes a realidade é tão dura que as pessoas não acreditam. Lêem o conto e dizem: “Não, não, Pedro Juan, tem coisas aqui que não funcionam. Você forçou a mão inventando.” Mas não. Nada é inventado. Só tive força para pegar toda a maçaroca de realidade e deixá-la cair de supetão em cima da página em branco. Pois é. Depois fiquei sabendo que quando era bem criança Rogelio teve que identificar a mãe no necrotério. Um amante a cortara em seis pedaços. Rogelio tinha oito anos. A partir daí se fodeu todo. Mudava de personalidade vinte vezes por dia: passava de um pranto sentimentalóide à violência mais odiosa. De um cara inútil e molenga a um super-homem forte e solucionador de problemas. Era um sujeito cheio de contradições e sem nenhuma resistência. Tão carente de amor e tão covarde e dependente que suportou angustiado todos os amantes da sua mulher. Um atrás do outro. Sempre havia algum. Aos quarenta e seis anos não resistiu mais e morreu de um infarto fulminante. Agora, quatro anos depois, a mulher virou um esqueleto calamitoso com uma doença grave nos ossos. O filho caçula passa a metade do tempo preso e a outra metade, louco e desesperado. A filha é uma prostituta de pouco sucesso nos hotéis estrangeiros. Os três obcecados com a idéia de emigrar. Acham que a solução dos seus problemas está nos Estados Unidos. Passam uma fome horrível, vivem sem dinheiro e nunca se lembram de que Rogelio existiu. Então preciso reescrever o conto. Agora vai ser muito mais forte. Sem mentira nenhuma. Só mudo os nomes. Este é meu ofício: revirador de merda. Ninguém gosta disso. Não tampam o nariz quando passa o caminhão de lixo? Não escondem as latas de lixo nos fundos? Não ignoram os varredores nas ruas, os coveiros, os limpadores de fossas? Não ficam enojados quando escutam a palavra carniça? Por isso também não sorriem para mim e olham para o outro lado quando me vêem. Sou um revirador de merda. E não é que esteja procurando alguma coisa no meio da merda. Geralmente não encontro nada. Não posso dizer: “Ah, vejam, encontrei um brilhante na merda, ou encontrei uma boa idéia na merda, ou encontrei um negócio bonito.” Não é bem assim. Não procuro nada e não encontro nada. Portanto, não posso demonstrar que sou um sujeito pragmático e socialmente útil. Só faço como as crianças: cagam e depois brincam com a própria merda, cheiram, comem e se divertem, até que chega a mãe para tirá-las da merda, dar um bainho, passar perfume e explicar que não podem mais fazer aquilo. Mais nada. Não me interessa o que é decorativo, nem o que é belo, nem o que é doce, nem o que é delicioso. É por isso que sempre duvidei de uma escultora que foi minha mulher por algum tempo. Suas esculturas tinham paz demais para serem boas. A arte só serve para alguma coisa se for irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e desespero. Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira pode nos mostrar a outra face do mundo, aquela que nunca vemos ou nuca queremos ver para não causar incômodos à nossa consciência. É isso. Nada de paz e tranqüilidade. Quem atinge o repouso em equilíbrio está perto demais de Deus para ser artista. (GUTIÉRREZ, 2008, p. 98-100) NA BOCA DO LOBO (PEDRO JUAN GUTIÉRREZ) GUTI RREZ) Alguns de meus melhores amigos os mais honrados e honestos suicidaram-se Não seguraram a barra Algumas de minhas mulheres as mais doces e suaves tornaram-se azedas e corrosivas Estou na boca do lobo e não sei o que fazer tento apenas ganhar o tempo Pode ser instinto de preservação O fantasma de Kaváfis A influência da lua Escuto cantos gregorianos no crepúsculo com um charuto e uma garrafa de rum nas mãos olho para o mar O nojo e a merda se dissolvem na luz dourada E minha mulher que limpa a casa alheia a tudo me diz “não beba sozinho me traz uma dose com mel e limão” (GUTIÉRREZ, 2003, p. 29) E ÉRAMOS RAMOS TODOS THUNDERBIRDS (MÁRIO (M RIO BORTOLOTTO) um fragmento... E éramos todos invencíveis. Com nossas coleções de figurinhas. O tênis Kichute. As balas Apache e os desenhos do Zé Buscapé. Éramos orgulhosos de nossas cicatrizes. Da Nádia Lippi. Da Rose di Primo. Do pai bebum. De nossas bravatas adolescentes. Do Rivelino, do Clodoaldo e do Tostão. A gente queria era bandido na seleção. A gente queria o Troféu Abacaxi. A gente queria Rita Cadilac na televisão. A gente queria panqueca no café da manhã e vinho Sangue de Boi. Boquete da Lurdinha no Fusquinha. Nosso ideal de vida era um salão de sinuca. Ninguém queria ser publicitário. Ninguém queria lavar pratos em Nova York. Ninguém queria comer sashimi nem tomar santo daime. A gente queria era ver a Linda Blair dar um 180 na responsa. Cult pra gente era Jane Russel, malandro. Éramos punheteiros. Jamais onanistas. Éramos consumidores de penicilina. Amantes de estrias. Nossos troféus eram bandagens amarelas. A gente ia tirar a Penélope das garras do Tião Gavião. Éramos iconoclastas. A gente queria pôr no rabo dos Gurus, das socialites e dos corredores de fórmula 1. Era um tempo em que o mundo se dividia em fodões e cuzões. A gente não usava boca de sino. Não dançava em discotecas e nossos heróis não morriam de overdose. A gente morria da dor de existir. Éramos todos Mirisolas. Éramos todos Beavis & Butt Head. Éramos amargos, ressentidos e cheios de raiva. Éramos cínicos e orgulhosos. Éramos de um tempo em que todo mundo queria ser centroavante. Estamos velhos e nostálgicos. Estamos chapados e nocauteados. Detonados no sofá encarquilhado. O babaca de branco já contou até 10. Então foda-se. Isso a gente ainda pode falar. Baixinho, mas pode. Foda-se. Mas ainda vamos chutar alguns traseiros. Éramos o caralho! (BORTOLOTTO, 2003, p. 11) PARA OS INOCENTES BORTOLOTTO) QUE FICARAM EM CASA (MÁRIO (M RIO Anjos empapuçados de frutas proibidas invadem os bares quebrando garrafas de cerveja e proclamando sobre mesas amarelas VAMOS CORRER O RISCO NAS BANHEIRAS DOS QUARTOS DE HOTEL Linda repórter de cabelos curtos abastece sua lata de lixo com contos eróticos de desprezível autor marginal e as manchetes insistem que tudo está bem enquanto um inacreditável simpático garçom nos espreita com borbulhantes taças de champanhe o velho empresário precisa saber que os anjos freqüentam a seção de classificados dormem até mais tarde e estão insatisfeitos e querem a cabeça dos patrocinadores. Eles irão invadir os gabinetes vomitando vinho & jazz & lágrimas nos porta-retratos vai ser o dia do Armagedon o dia dos ponteiros petrificados e todos os caras achando que fazem parte do espetáculo sendo banhados pelos holofotes eles não sabem que não há nada nesse mundo que lhes garanta um lugar de destaque nos camarins a valsa vienense sendo tocada na hora do fim um samurai fazendo as vezes do carrasco borrifando groselha e cegando vagalumes UM GAROTO TRISTE SALTOU DO TERCEIRO ANDAR DE UM EDIFÍCIO EM CHAMAS Agora os anjos foram expulsos do bar e estão escrevendo os nomes de suas namoradas nos muros com sangue e o garoto triste é só um monte de cinzas numa latinha de coca-cola pagou pelas iluminações que não viu pelo papel branco na máquina de escrever pelo anjo com copo na mão às três da madrugada por ter insistido com os tais discos voadores por ter arrastado sua carcaça pessimista pelo mais negro dos infernos por ter sido sublime em um mundo ridículo por ter sido amoral morreu cético e os anjos contam fábulas a respeito do garoto triste e o velho empresário vai entregá-los ao carrasco por subversão e então resolvo confessar que sou eu que me armo com meus caninos sobressalentes e só saio depois das dez eu sou o precursor o cara que leva o pergaminho & uma flauta doce no bolso do sobretudo Sou eu que ando matando os morcegos. (BORTOLOTTO, 1997, p. 25-26) TRÓPICO DE TR PICO fragmento... CÂNCER C NCER (HENRY MILLER) – um Em outros tempos, eu achava que ser humano era o objetivo mais alto que um homem podia ter, mas vejo agora que isso se destinava a destruir-me. Hoje, orgulho-me em dizer que sou inumano, que não pertenço a homens e governos, que não tenho nada a ver com crenças e princípios. Nada tenho a ver com a maquinaria rangente da humanidade, eu pertenço à Terra! Digo isso deitado em meu travesseiro e sinto os chifres nascendo na minha testa. Posso ver ao meu redor todos aqueles meus antepassados doidos dançando em volta da cama, consolando-me, estimulando-me, chicoteando-me com suas línguas de serpente, arreganhando os dentes e olhando-me de lado com suas caveiras. Sou inumano! Digo isso com um riso possesso e alucinado e continuarei a dizer mesmo que chovam crocodilos. Por trás de minhas palavras estão todas aquelas caveiras arreganhandose há muito tempo; outras, como se tivessem uma contração; e por fim, as que exibem uma careta com um riso malicioso, cujo antegozo e cujas conseqüências continuam sempre. Vejo, mais claro do que tudo, minha própria caveira arreganhada, vejo o esqueleto dançando ao vento, serpentes saindo da língua apodrecida e as páginas inchadas de êxtase, enlameadas de excremento. Junto minha lama, meu excremento, minha loucura, meu êxtase ao grande circuito que flui pelas galerias subterrâneas da carne. Todo esse vômito de bêbado, não solicitado, indesejado, continuará saindo sem parar das mentes daqueles que virão no inesgotável vaso que contém a história da raça. Ao lado da espécie humana, há outra raça, a dos inumanos, a raça de artistas que, espicaçados por impulsos desconhecidos, tomam a massa sem vida da humanidade e, com a febre da agitação que a impregnam, transformam essa massa úmida em pão e o pão em vinho e o vinho em canção. Do composto morto e da escória inerte criam uma que contagia. Vejo essa outra raça de canção indivíduos esquadrinhando o universo, virando tudo de cabeça para baixo, os pés sempre pisando em sangue e lágrimas, as mãos sempre vazias, sempre se estendendo na tentativa de agarrar o além, o deus fora do alcance: matando tudo o que podem para acalmar o monstro que lhe rói as entranhas. Vejo que, quando eles arrancam os cabelos no esforço de compreender e capturar aquele eterno inatingível, quando berram como bestas enlouquecidas, rasgam e ferem, vejo que isso está certo, que não há outro caminho. Um homem que pertence a essa raça precisa ficar em pé no lugar alto, com palavras desconexas na boca, e arrancar as próprias entranhas. É certo e justo, porque ele precisa! E tudo quanto estiver aquém desse espetáculo assustador, tudo que causar menos sobressalto, menos terror, o que for menos louco, menos inebriante, menos contagiante, não é arte. O resto é falsificação. O resto é humano. O resto pertence à vida e à ausência de vida. (MILLER, 2006, p. 234-235) ERA UMA VEZ O AMOR MAS TIVE TIV E QUE MEDINA REYES) – um fragmento... MATÁMAT -LO (EFRAIM A gente se mete a escrever porque não foi capaz de bater num motorista que nos afrontou na rua, porque não quebrou pratos num restaurante, porque não enfrentou um policial louco que xingou sua namorada, porque não disse à mãe o muito que a amava e detestava, porque não cuspiu num professor que dizia que a Terra é redonda, porque deixou que pegassem seu lugar na fila do cinema, porque não tem ofício nem benefício, porque pensa que é uma forma fácil de fazer fama e dinheiro, porque paspalhos como García Márquez e Mutis fazem isso, a gente também pode fazer, porque não é bom em matemática, porque não quer ser médico nem advogado, porque está irado, porque odeia as pessoas e quer insultá-las. A gente se mete a escrever porque uma garota linda lhe disse que gostava de escritores, porque precisa de um álibi para não trabalhar, porque isso o faz sentir-se superior, porque leu uns romances de caubóis e quer entrar na concorrência, porque é um caubói sem Oeste, porque escriturários como Vargas Llosa o fazem, porque não tem voz, porque não tem ritmo, porque está farto de bater punheta, porque quer trepar com uma mulher mas não sabe como, porque pensa que tem alguma coisa a dizer, porque descobre que as garotas bonitas dizem que os escritores são ternos mas saem com mafiosos, porque não o deixam dar um amasso na ganhadora do concurso nacional de beleza, porque é magro e não tem remédio, porque tem medo de morrer sem ter metido numa garota linda, porque se um puxa-saco hipócrita como Vargas Llosa escreve qualquer um pode fazê-lo, porque sabe que o cinema é tempo perdido, porque tem inveja dos micos que aparecem na tela e ganham milhões, porque na falta de melhores oportunidades quer ser como Bukowski. A gente se mete a escrever porque não sabe lutar boxe nem tem colhões para isso, porque tem os dentes tortos e não pode sorrir como gostaria, porque para os impotentes de todo tipo não há outro caminho, porque todos os feios escrevem ou assassinam e a gente não é capaz de matar nem uma mosca, porque escrever dá importância, porque para chamarem alguém de escritor não é preciso escrever bem mas para chamarem de filho-da-puta não importa se sua mãe é uma santa, porque tem medo de ficar à deriva sem fazer nada, porque não pode beber toda noite, porque ama a Deus mas odeia as sociedades sem fins lucrativos, porque não tem namorada, porque não há emoções mas insultos, porque na sua casa não tem televisão e o rádio quebrou, porque a mulher do vizinho é gostosa, porque tem medo de ficar careca e por isso evita os espelhos. A gente se mete a escrever porque não se atreve a assaltar um supermercado, porque ama uma mulher e ela é a namorada do garoto esperto da rua, porque não há revistas pornográficas suficientes, porque quer fazer alguma coisa além de cagar e se masturbar, porque não é o garoto esperto da rua nem o garoto forte nem o engraçado, porque é o garoto nada, porque não vale um tostão furado, porque apanha lá fora, porque sua mãe grita o tempo todo, porque não há ilusões nem luz no fim do túnel, porque sua mente voa baixo e nunca será outro Cioran, porque não tem coragem para saltar, porque não quer a esposa feia que merece, porque tem medo de morrer sem ter comido um belo cuzinho, porque não tem pai, amigos nem fortuna, porque não tem o jeito de cuspir do Clint Eastwood, porque se paralisa entre uma e outra intenção, porque era uma vez o amor mas tive que matá-lo. O bom é que escrever não serve para nada daquilo que a gente quer. Escrever é um limite, uma dor, um defeito a mais. O bom é que depois de escrever a gente se sente péssimo. Nada mudou, tudo continua no seu lugar (menos você, maldito cabelo), Pelé não voltou para o campo. O ruim é que você escreve e o Pambelé cai na lona espancado por um gringo, um maldito gringo que esteve preso por bater na mãe. O ruim é que Pambelé não é a mãe do gringo e – por mais que você escreva – continua caído. O bom é que você escreve e continua sonhando com a mulher do vizinho, sonha que a agarra pelas orelhas e crava-lhe a rola. O ruim é que escrever não cura seus desejos assassinos, que assaltar um supermercado continua sendo o seu objetivo impossível. O ruim é que ainda deseja um amor inesquecível. O bom é que escrever é outra forma de cagar e se masturbar. O ruim é que você lê os grandes autores mas só Bukowski lhe diz alguma coisa. O ruim é que um dia a garota bonita toma conhecimento que você escreve e não lhe deixa que lhe meta fundo, até o outro lado da morte. O ruim é que escrever serve para tudo aquilo que você não quer. (REYES, 2006, p. 71-73)