a jornada assassina de anacleto vargem

Transcrição

a jornada assassina de anacleto vargem
FACULDADES INTEGRADAS DO BRASIL – UNIBRASIL
ANGELO ANTONIO STROPARO
LIVRO-REPORTAGEM SOBRE ANACLETO DE OLIVEIRA
MOURA.
OS CÃES CALAM E O DEMÔNIO PASSA: A JORNADA
ASSASSINA DE ANACLETO VARGEM
Curitiba
2013
ANGELO ANTONIO STROPARO
LIVRO-REPORTAGEM SOBRE ANACLETO DE OLIVEIRA.
OS CÃES CALAM E O DEMÔNIO PASSA: A JORNADA
ASSASSINA DE ANACLETO VARGEM
Projeto
apresentado
à
banca
examinadora
do
curso
de
Comunicação Social, como requisito
para obtenção do grau de Bacharel
em Jornalismo junto à escola de
Comunicação Social das Faculdades
Integradas do Brasil- UniBrasil.
Orientadora: Profª. Viviane Rodrigues
Curitiba
2013
Agradecimentos
Agradeço à VIDA, por permitir-me experimentar a maravilha de
reconstruir uma história, cuja autoria e propriedade, são DELA. O meu nonno,
Frederico Stroparo(in memoriam), porque legou-me a história de Anacleto,
além do amor pelo contar “causos”. Aos meus quatro filhos: Rebeca Stroparo,
João Lucas Stroparo, José Augusto Stroparo e Giordano Antonio Schimitz
Gomes Stroparo – amo vocês e, se ando feliz por ai, isso é muito por conta da
existência de vocês! A Ricardo, Cláudia, Jorge e Guilherme. Amo a todos. Meu
sincero agradecimento à Viviane Rodrigues, minha orientadora, jornalista,
professora e, principalmente, ser humano, que muito auxiliou-me e ensinou-me
nos últimos seis meses. Aos professores, Jefferson Franco, Hugo Abati, Victor
Folquening(in memoriam), Paulo Camargo, Maura Martins, Valter Fernandes,
Felipe Harmata Marinho, Sandro Teixeira, Luiz Alberto Kuchenbecker Pena,
Elaine Javorski e todos os demais que me ajudaram nessa jornada de quatro
anos, até aqui, meus agradecimentos. E, finalmente, agradeço à minha
companheira e amiga, Magáli Genero, com quem compartilho todo meu amor.
Te amo, moça! Sem você, tudo se perderia pelo caminho.
"Tenho me esforçado por não
rir das ações humanas, por
não deplorá-las nem odiá-las,
mas por entendê-las."
(Baruch Spinoza)
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo propor a possibilidade de reconstruir parte da
história do assassino Anacleto Vargem, morto há mais cinquenta anos, por
meio do jornalismo literário e subgêneros, dentre os quais, o New Journalism e
o Gonzo são os principais; tendo como suporte midiático o livro-reportagem.
Apesar da falta de registros documentais, o resgate dos muitos detalhes que
também constituem o fato pode ser concretizado por meio do aparato
jornalístico(entrevistas, checagem etc). E, consequentemente, demonstrar as
ampliações do tema abordado na pesquisa, oferecendo, assim, massa de
conteúdo expressiva aos leitores.
Palavras-chave: livro-reportagem, Gonzo e memória.
SUMÁRIO
1
1.1
2
2.1
2.2
2.3
2.3.1
2.3.2
2.3.3
2.3.4
2.3.5
2.4
2.5
3
3.1
4
4.1
4.2
4.3
5
5.1
5.2
5.3
5.4
5.5
6
6.1
6.2
7
7.1
7.2
7.3
7.4
7.5
8
9
10
11
11.1
11.2
11.3
11.4
11.5
11.6
11.7
INTRODUÇÃO.............................................................................................
7
MITO E REPRESENTAÇÃO SOCIAL NA PESQUISA E NO PRODUTO...
9
DELIMITAÇÃO DO TEMA E PROBLEMATIZAÇÃO.................................
12
O CASO.......................................................................................................
13
CONTEXTO HISTÓRICO............................................................................
14
A HISTÓRIA VAI SE PERDER....................................................................
17
O PAPEL DO JORNALISMO.......................................................................
17
O NEW JOURNALISM: ORIGEM, CARACTERÍSTICAS e DEFINIÇÃO....
19
O GONZO JOURNALISM............................................................................
23
O PAPEL DO JORNALISMO LITERÁRIO...................................................
25
O PAPEL DO LIVRO-REPORTAGEM........................................................
26
JORNALISMO LITERÁRIO E A MEMÓRIA................................................
28
O PROBLEMA.............................................................................................
29
OBJETIVOS.................................................................................................
30
OBJETIVOS ESPECÍFICOS........................................................................
30
JUSTIFICATIVA...........................................................................................
32
POR QUE A HISTÓRIA DE ANACLETO, O NEW JOURNALISM E O
GONZO?......................................................................................................
33
LIVRO-REPORTAGEM................................................................................
35
JORNALISMO LITERÁRIO..........................................................................
36
REFERENCIAL TEÓRICO..........................................................................
38
REPRESENTAÇÃO SOCIAL.......................................................................
38
ANACLETO, O OUTSIDER..........................................................................
41
CONCEITO DE REPORTAGEM..................................................................
42
TÉCNICAS DE ENTREVISTA......................................................................
44
A HISTÓRIA ORAL......................................................................................
46
METODOLOGIA DA PESQUISA................................................................
49
PESQUISA BIBLIOGRÁFICA......................................................................
49
PESQUISA DE CAMPO...............................................................................
50
DELINEAMENTO DO PRODUTO...............................................................
53
O PROJETO GRAFICO DE "O DEMONIO PASSA E OS CAES CALAM:
A JORNADA ASSASSINA DE ANACLETO VARGEM"...............................
53
PERSONAGENS..........................................................................................
57
FOCOS NARRATIVOS................................................................................
57
PÚBLICO ALVO E VEICULAÇÃO...............................................................
57
RECURSOS MATERIAIS E ORÇAMENTO.................................................
58
CRONOGRAMA DE ATIVIDADES..............................................................
59
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................
60
REFERÊNCIAS............................................................................................
62
APÊNDICE...................................................................................................
64
ENTREVISTA DE JOÃO MAGATÃO...........................................................
64
ENTREVISTA DE LICINEO DE LARA.........................................................
77
ENTREVISTA DE LIDIA CAPELIN DE LARA..............................................
89
ENTREVISTA DE JOSÉ STROPARO.........................................................
97
ENTREVISTA DE WALDOMIRO DE LARA................................................. 105
ENTREVISTA DE JOSÉ MARIA ORREDA.................................................. 111
FOTOS......................................................................................................... 120
1. INTRODUÇÃO
A história de Anacleto de Oliveira Moura, vulgo Anacleto “Vargem”,
chegou até o conhecimento do pesquisador por meio do avô, há vintes anos.
Com o passar do tempo veio o aumento do conhecimento a respeito do tema,
pois, os crimes de Anacleto, sempre lembrados nas reuniões familiares,
despertavam grande interesse e curiosidade em todos que ouviam os relatos.
De modo que a ideia de contar tal história pareceu inevitável. Assim: no início
da década de 1950, em um distrito de Irati, Região Centro-Sul do Paraná,
Anacleto Vargem se envolve em uma briga em um rancho situado na colônia
onde vivia. No incidente, Vargem mata a facadas o opositor que, à exceção
deste ocorrido, jamais teve rixas com o executor. O assassino foge e, a partir
de então, passa a matar com frequência tornando-se amplamente conhecido
como um tipo1 de matador destemido.
Em função dos distritos e cidades onde os fatos se desenrolaram
estarem localizados geograficamente em regiões de difícil acesso 2, a polícia e
os jornais, por exemplo, não deram cobertura satisfatória, quanto ao registro
desses acontecimentos. A própria localização temporal (meados do século
passado) também se constitui como fator dificultador à conservação da
memória histórica, posto que tanto técnicas de apuração quanto plataformas de
suporte, eram, ainda, bastante precárias à época dos assassinatos. Porém,
algumas pessoas jamais esqueceram completamente dos fatos: amigos,
conhecidos e colegas, tanto das vítimas, como de Anacleto, são exemplos de
portadores dos fragmentos de acontecimentos que, pela emoção demandada,
perpetraram a transmissão parcial das informações, em reminiscências, às
gerações futuras. São dessas observações que descende o tema desta
pesquisa e, consequentemente, o livro-reportagem: Os cães passam e o
demônio cala: a jornada assassina de Anacleto Vargem.
1
Aqui, o pesquisador acrescenta que busca explorar a noção sobre o estereótipo personificado por Anacleto, ou seja, a
representação social atribuída a ele, segundo o ponto de vista, conceito e descrição de Serge Moscovici, dentro da
obra “Representações Sociais”. Pois, segundo Moscovici(2011, p.216)”representar significa, a uma vez e ao mesmo
tempo, trazer presentes as coisas ausentes e apresentar coisas de tal modo que satisfaçam as condições de uma
coerência argumentativa, de uma racionalidade e da integridade normativa do grupo”.
2
O pesquisador vai discorrer sobre tal contexto e situação, mais adiante, na delimitação do tema(item 2).
A escolha pela plataforma midiática(um livro-reportagem), técnicas,
estilo jornalístico(jornalismo literário), será discutida na delimitação do tema,
porém, de antemão, o pesquisador relaciona essas questões à melhor
capacidade quanto à ampliação da notícia que tais escolhas possibilitarão,
posto
que
o
jornalismo
cotidiano,
segundo
Lima(1998),
“prende-se
demasiadamente aos fatos e à superficialidade nas apurações” (p.22). Assim,
Belo(2006), diz que “o livro-reportagem é um instrumento aperiódico de difusão
de informações[...]no qual se pode reunir a maior massa de informação
organizada e contextualizada sobre um assunto” (p.41). E são tais
características dessa plataforma – livro-reportagem – à qual se abarca o
máximo de elementos de uma história, que se justifica a escolha do autor.
Porque o caso pesquisado não se limita ao aprofundamento de um ou poucos
fatores a serem aprofundados - a história é um universo de possibilidades a se
observar e retratar. Regionalismos linguísticos, desdobramentos que tocam a
vida do próprio repórter etc.
O pesquisador não encontrou fontes documentais que satisfizessem a
demanda por informações, como necessita um livro-reportagem. Segundo
Orreda(2007), “ocorria uma produção amadora, das pautas à distribuição dos
jornais, tudo era precário. Inclusive, os impressos eram feitos de forma
artesanal, pois, a energia elétrica só foi abastecer o município de modo
satisfatório a partir de 1978” (p.31). A circulação não possuía frequência diária,
na maior parte dos casos. “Os jornais eram publicados apenas duas vezes na
semana e ficavam restritos quase que totalmente ao distrito Sede”, disse José
Maria Orreda, pessoalmente3, quando entrevistado pelo pesquisador. Como
editor de um pequeno jornal, Orreda deixava uma cópia por semana com o
respectivo inspetor de ensino de cada colônia, a fim de que o exemplar
circulasse pela comunidade.
Ou seja, existiam jornais, contudo, pouco lidos. O mundo das regiões
interioranas do Paraná, naquela época, ainda se baseava largamente na forma
mais seminal da comunicação de massa: a tradição oral. Ou seja, cada povo,
cada região, a seu modo, preservava as histórias diretamente e principalmente
na memória das pessoas. “As características narrativas de cada indivíduo se
3
Entrevista realizada em julho de 2013, na casa de José Maria Orreda, pelo pesquisador. O conteúdo está registrado
em gravação, no formato mp3 e sob a posse do pesquisador.
somava a de outros narradores e, com o passar do tempo, se estabelecia uma
espécie de memória coletiva daquilo que a comunidade considerava como a
notícia”, disse Orreda4.
Assim, a entrevista, dentro dessa pesquisa, visando a composição da
reportagem que abastecerá o livro, se constitui como fonte principal à captação
de informações, tendo, assim, uma seção (dentro do item 5, seção 5.5)
dedicada a breves discussões. Porque, segundo Pena(2007), “é por meio dela
que melhor se consegue explorar detalhes de fatos reservados na memória dos
entrevistados” (pág. 3). Ou, como diz Lage(2008), se ”está diante de pessoas
reais, com representações variadas e peculiares dos acontecimentos, percebe
como essas pessoas[...]reagem, o quanto estão envolvidas[...]e o que cada
episódio significa no contexto”(p.27). Ou seja, sentir as maneiras como os
entrevistados falam a respeito do que sabem, torna-se elemento indispensável
à construção da tensão nas narrativas.
O caso dos assassinatos cometidos por Anacleto Vargem pareceu ao
pesquisador como oportunidade à mescla do jornalismo literário com outros
gêneros – o Gonzo Journalism, por exemplo, como opção narrativa. Ou seja,
não se pretende fazer uso de um estilo a rigor, como num exercício de perícia
técnica. Antes, pelo contrário, o pesquisador faz uso esporádico, intercalando
estilos e gêneros, a fim de melhor acomodar a história no texto jornalístico.
1.1 MITO E REPRESENTAÇÃO SOCIAL NA PESQUISA E NO PRODUTO
Demonstrar as etapas da reconstrução de fatos e trajetórias a serem
narrados sob as descrições das cenas, dos personagens e do contexto
histórico, por meio de um livro-reportagem, baseado, amplamente, na história
oral/entrevistas, ao pesquisador pareceu um enorme desafio. As noções a
respeito da mitologia e das representações sócias se relacionam ao trabalho
por conta, principalmente, de dois aspectos.
O primeiro é percebido quando consideramos que a figura de Anacleto
se sustenta exclusivamente na memória, posto que a pessoa já morreu. Assim,
tudo que é possível descobrir a respeito do personagem é feito por informações
4
Idem a nota “3”.
afetadas pelas leituras que cada indivíduo faz da realidade, daquilo que é
representado em sua mentalidade.
E, o segundo é notado porque a forma pela qual o livro-reportagem será
narrado possui demonstra o uso da primeira pessoa, numa tentativa de
interpretar algumas informações para assim viabilizar a reportagem. Há algo de
caráter experimental nisto, posto que faz uso das características narrativas do
jornalismo literário, mas, também, do subgênero Gonzo Journalism. O autor, às
vezes, narra a história com o objetivo de revelar a própria versão para os fatos.
Nosso sentimento, frente a tal objetivo da pesquisa, assemelha-se,
possivelmente, ao de Roland Barthes, expresso já na introdução de sua obra
"Mitologias":
O ponto de partida desta reflexão era, as mais das vezes, um
sentimento de impaciência frente ao “natural” com que a imprensa, a
arte, o senso comum, mascaram continuamente uma realidade que,
pelo fato de ser aquela em que vivemos, não deixa de ser por isso
perfeitamente histórica: resumindo, sofria por ver a todo momento
confundidas, nos relatos da nossa atualidade, Natureza e História, e
queria recuperar na exposição decorativa do-que-é-óbvio, o abuso
ideológico que, na minha opinião, nele se dissimula. (BARTHES,
2001, p. 7)
Porque sempre que assumimos algumas faces de determinada realidade
em caráter absoluto, tal obviedade, exposta por meio da própria opção, com o
passar do tempo será ainda mais irradiada por excessos ideológicos. O modo
como se descreve um personagem dentro de uma reportagem pode ser um
exemplo.
Para Vilas Boas(2002), “na imprensa, prefácios, críticas, resenhas e
notas costumam ater-se ao personagem biografado e como ele viveu, às
informações reveladoras, às vezes sensacionalistas, sobre o sujeito, as obras,
os familiares e amigos. Existe a crença de que o biógrafo sobrevive pelo que
revela e não pelo modo como revela”(p. 12). O pesquisador percebeu tal fato
nas construções sociais que as fontes reservavam na memória a respeito de
Anacleto Vargem, assim como na rigidez de algumas normas técnicas na
prática jornalística. E considera a própria tendência em se exceder. Porém,
também notou que a obviedade aceita como plena realidade a respeito do
invólucro que reserva personalidade, ações, índole e todas as demais
características de um assassino, por exemplo, seja, possivelmente, uma das
forças que estabelece e consolida o preconceito, quanto ao mesmo
estereótipo, e afasta as pessoas da compreensão mais profunda do que é o ser
humano e as mais sombrias atitudes que adota.
2. DELIMITAÇÃO DO TEMA E PROBLEMATIZAÇÃO
O pesquisador entendeu que a plataforma do livro-reportagem aliada às
técnicas do jornalismo literário, entrevista e da história oral seria uma forma
satisfatória de reescrever parte da vida de Anacleto. Há certamente muito mais
a se revelar sobre e por via dessa história do que foi capaz a mídia até agora.
Mais adiante, trataremos da questão com mais afinco, porém, agora, o
pesquisador gostaria de estender um pouco mais a linha de raciocínio que
iniciou na seção 1.1(Mito e representação social na pesquisa e no produto).
Na sociedade, por conta da forma representativa(as representações
sociais) que a informação se propaga, tudo que está abarcado nos discursos,
sejam midiáticos, religiosos ou políticos, tende a se banalizar, a ser
extremamente simplificado. Seria, de certo ponto de vista, o excesso ideológico
descrito por Barthes(2001) dissimulado na obviedade. Segundo Moscovici:
5
Constatamos a banalidade do fenômeno quando ele é visto e
observado como um efeito descritível e constatamos sua
complexidade quando ele é uma questão de uma corrente
ascendente que flui em direção ao que constitui o “núcleo semântico”
de alguma concepção generalizada no corpo social e o estrutura em
algum momento ao ponto de motivar histórias, ações,
6
acontecimentos. Isto porque, uma vez mais, o conceito é apenas
evocativo. Devemos extrair da massa considerável de índices de uma
situação social e de sua temporalidade e esses índices tomam a
forma de trações linguísticos, arquivos e, “pacotes” de discurso;
examiná-los atentamente permitirá que alguma luz seja lançada sobre
o que repetem – de um lado, sobre o que eles repetem
permanentemente – o problema da redução semântica – e, por outro
lado, sobre o que os motiva e os fundamenta – o problema daquelas
“ideias” que de algum modo possuem o status de axiomas, ou
princípios organizativos, em determinado momento histórico para
certo tipo de objeto ou situação.(MOSCOVICI, 2011, p. 217)
Ou seja, nosso tema está relacionado a essa necessidade de examinar
mais a fundo um fato social, um acontecimento da vida cotidiana e então
reportá-lo, a fim de dispor à sociedade massa mais elaborada de informações.
Uma forma de, talvez, oferecer alguma resistência à redução semântica
promovida pelo jornalismo tradicional, por exemplo, conforme se descreve nas
citações usadas até aqui e que mais adiante daremos continuidade na
discussão, em outro item dessa pesquisa.
2.1 O CASO7
Depois de matar Alcebíades “Bidóca” Machado, Anacleto Vargem vagou
algum tempo por várias cidades8. Estima-se que, durante esse hiato de mais
5
Fenômeno relacionado à representação social. Nos parágrafos anteriores ao citado, Moscovici explica que as
representações promovem as interações que acabam por constituir as mentalidades e crenças que influenciam
comportamentos.
6
Mais uma vez, Moscovi se refere à representação social, só que aqui, num sentido prático, demonstrativo.
7
As informações presentes nesta seção foram retiradas das decupagens das entrevistas que o pesquisador fez nos
últimos meses, nas viagens à Região Centro-Sul do Paraná. Todas as entrevistas cujas informações foram usadas
neste trabalho estão anexadas ao item “Apêndice”.
ou menos sete anos, o número de assassinatos cometidos por Vargem tenha
ultrapassado a marca de uma centena. Porém, em certa ocasião, retorna à
casa de um velho companheiro9 de bocha e de truco, em segredo. A esse
conhecido, o assassino conta um plano medonho: pretende invadir, numa
mesma noite, algumas residências daquela localidade, roubar a máxima
quantia em dinheiro que puder - e armamento -, matar todos e fugir para outro
estado.
A primeira residência que Vargem chega, no início da decisiva noite, é a
do próprio cunhado – um homem tido por todos como extremamente pacato10 –
sob o pretexto de tomar emprestado um revolver. No meio da conversa ele
revela o motivo real de sua visita e, já numa arremetida com um facão, parte
para cima das vítimas. O agressor é ferido por um de seus sobrinhos, enquanto
trava luta com o cunhado e, depois disso, recebe mais de quarenta facadas do
mesmo, segundo informações concedidas por Licineo de Lara11.
Anacleto Vargem não cumpriu pena pelo assassinato de Alcebíades
“Bidóca” Machado. Um dos homicídios praticados por Vargem, e que foi
descrito em uma crônica12 para o jornal “Tribuna do Município”, em Irati, pelo
jornalista e historiador José Maria Orreda, vitimou uma jovem mãe e a filha
ainda criança.
Anacleto deixou como lembrança às pessoas daquela comunidade o
medo. Segundo Licineo de Lara, Vargem sempre representou ameaça, mesmo
antes de matar a primeira vítima, Alcebíades “Bidóca” Machado, um exdelegado do Guamirim13. Tendo na família histórico de violência e
criminalidade, Anacleto não se limitou às matanças.
Houve uma ocasião, durante o autoexílio, devido ao assassinato desse
mesmo Bidóca, na qual Vargem corrompeu uma menor de idade, Aracy
Strobel. No entanto, após ser descoberto pela família da jovem, persuadiu a
8
Pitanga, Reserva, Teixeira Soares, Foz do Iguaçu, no Paraná. Concórdia em Santa Catarina e Aratiba, no Rio Grande
do Sul.
9
O colono Jorge Magatão, descendente de uma linhagem de imigrantes italianos, cuja genealogia atesta parentesco
com o bisavô do autor desta pesquisa.
10
Relatos a respeito de Evandro Capelin de Lara, sobre caráter e comportamento, foram concedidos pela própria neta,
a Sra. Marcia Maria Capeline de Lara, pessoalmente, ao pesquisador.
11
Licineo de Lara, ex-agricultor, vizinho e amigo dos dois protagonistas da história. Atualmente, com 89 anos de idade,
de Lara, é aposentado e residente no município de Colombo, região metropolitana de Curitiba.
12
Tanto a crônica, como o registro das entrevistas de Licíneo de Lara, Waldomiro de Lara, Lídia Capelin de Lara e
João Magatão, filho de Jorge Magatão, estarão anexadas no item “Apêndice” deste trabalho.
13 O município de Irati, Região Centro-Sul do Paraná, é dividido em quatro distritos, a saber, Sede, Itapará, Gonçalves
Júnior e Guamirim. Este último, é onde se localiza a colônia do Pirapó.
mesma a declarar, junto às autoridades locais, que o autor dos abusos sexuais
teria sido não ele, Anacleto, mas, sim, o próprio pai da vítima, José Jacó
Strobel.
A denúncia foi feita de acordo com a vontade de Vargem e o pai da
adolescente, mesmo inocente, cumpriu pena de seis anos de reclusão. A maior
parte de seus assassinatos, no entanto, não foi praticado no Pirapó, colônia
localizada no município de Irati, Região Centro-Sul do Paraná. Pitanga e Foz
do Iguaçu, também no estado do Paraná, segundo relatos e depoimentos14,
teriam sido os lugares onde muitos dos assassinatos atribuídas a Vargem
ocorreram.
2.2 CONTEXTO HISTÓRICO
A pesquisa considera o contexto histórico, também: o assassino viveu
numa localidade cujo regime era muito próximo ao das sociedades rurais,
portanto, livre de policiamento, quase sem influência nenhuma de meios de
comunicação de massa, relativa facilidade à aquisição de moradia e alimentos,
além de desfrutar de laços afetivos extremamente comuns a todos.
Segundo o lavrador Elias Brandalize15, de 70 anos, que é morador na
colônia do Mato-Queimado em Irati, vizinha à do Pirapó, sempre foi possível se
viver na região com quase dinheiro nenhum. Brandalize afirma que mesmo os
moradores mais pobres não encontravam grande dificuldade à moradia,
vestimenta e alimentação, pois, ainda segundo o lavrador, as colônias até hoje
produzem muitos alimentos; e as paróquias auxiliam com eficiência os
carentes, quantos às suas necessidades diversas.
No entanto, escolas, naquela época, eram bastante precárias. Segundo
Aranha(1996), “a educação seria um meio de espiritualização do homem,
fazendo que esse, aja de forma objetiva na sociedade, tanto mais livre de sua
subjetividade”(p.141). Nestes termos, poderíamos mesmo dizer que tal indício,
quase ausência da educação, dentro do contexto histórico ao qual se
14
Informações oriundas das fontes, Licineo e Waldomiro de Lara, ambos ex-agricultores e ex-moradores da colônia do
Pirapó, oferecidas em declarações nas entrevistas concedidas ao pesquisador em abril de 2013.
15
Declarações feitas pessoalmente ao pesquisador, quando em recente visita à localidade citada no texto. A entrevista
está anexada no item “Apêndice”.
desenrolaram os fatos, é um apontamento ao aprofundamento da investigação
acerca dos personagens e do próprio Anacleto Vargem.
O termo apropriado que designava a escola era Grupo Escolar. Segundo
Clark(2003), “os grupos escolares surgiram como estratégia da elite
republicana paulista, sendo logo após implantados por outros estados do país.
Porém, ainda em 1920, vários grupos escolares continuaram sendo
inaugurados, tanto no interior paulista como na capital, e também escolas
isoladas, escolas preliminares, escolas provisórias, ambulantes”(p.4). A
exemplo de Irati, que teve seu Primeiro Grupo Escolar inaugurado em 1924.
Tal panorama, pode, sim, sugerir carência orientativa, dentro daquilo que
entendemos como parcela de contribuição da educação no processo
civilizatório. Não que isso, colocado dessa forma pelo autor, pretenda sugerir
algum tipo de justificativa às ações violentas promovidas por quem quer que
seja, antes, pelo contrário, é apenas um apontamento do contexto social ao
qual estavam inseridas aquelas pessoas e, dentre elas, a figura de Anacleto
Vargem.
Segundo Orreda(2007), “uma Associação de Pais e Mestres na Escola
do Pirapó, seria fundada apenas em 1965, sediada em sala de uma das duas
igrejas existentes na comunidade: São Benedito Grande e São Benedito
Pequeno” (p.1). Sendo que a primeira, serviu de sede até a década de 1980.
Conforme José Maria Orreda16, a polícia não possuía nenhum tipo de
meio de transporte naquela época (final da década de 1940). O historiador
relata que quando surgia necessidade do uso de força policial, o Comando da
PM solicitava, junto aos próprios membros da comunidade, o empréstimo de
tratores e, até mesmo, cavalos e carroças, para conduzir os policiais até a
localidade do conflito.
Em recente visita à localidade onde Anacleto foi morto por Evandro
Capelin de Lara, o próprio pesquisador verificou a precariedade das estradas
na região do Pirapó – na grande maioria, carreiros de barro, salpicados por
escassa quantidade de cascalho. O homem17 que ficou encarregado do
transporte do corpo de Vargem até o cemitério relatou ao pesquisador que a
16 Informações captadas pelo pesquisador junto ao historiador e jornalista José Maria Orreda, via telefone.
11 José Stroparo, lavrador de 74 anos que é residente no Pirapó, o qual também foi lugar de nascimento e vivência,
até o presente momento.
polícia não veio ver o ocorrido. Ao invés disso, um chefe de quarteirão18 colheu
algumas declarações e liberou o corpo para o sepultamente – que, aliás,
sequer foi depositado em um caixão, sendo enterrado diretamente na cova,
embrulhado pela capa que costumava trajar.
Outra particularidade daquele local era a cultura belicista. Todos os
homens, em geral, portavam armas e andavam ostentando as mesmas,
publicamente. Licinio de Lara, em dada ocasião, presenciou a cena na qual um
famoso bodegueiro do Pirapó, chamado Amandio Vaz de Lima, ensinava seus
dois filhos menores como se manusear um facão, num combate. De Lara,
temeroso quanto ao destino daquelas crianças, tentou aconselhar o
comerciante a não estimular tal prática - ao que fora severamente repreendido
por Lima, sob a afirmação que aquela era a conduta adequada para “homens
de verdade”. Anos mais tarde, quando aqueles garotos se tornaram adultos,
ambos foram assassinados em circunstâncias violentas – um numa briga de
bar por motivo torpe e outro numa emboscada, possivelmente por questões de
posse indevida de alguma propriedade – nos dois casos, sob o uso de
armamento de fogo.
2.3 A HISTÓRIA VAI SE PERDER
Desde que decidiu qual seria o tema de seu livro-reportagem, o
pesquisador já havia notado a falta de registros documentais, físicos ou
virtuais, acerca dos homicídios relacionados a Anacleto Vargem. Como foi
demonstrado neste trabalho, devido à baixa produção de conteúdos midiáticos
na região à qual Vargem viveu sua história, o registro documental ficou
severamente comprometido. Já durante o pré-projeto, o autor verificou19 a
inexistência de conteúdos, aqui, em Curitiba, na Biblioteca Pública do Paraná única fonte usada naquela fase do trabalho. Nos meios digitais midiáticos,
tampouco fora encontrado algum registro sobre Vargem.
18 É um tipo de autoridade policial que não possui, necessariamente, vínculos com instituições tais como a Polícia
Militar e/ou Civil. No entanto, desempenha funções coercitivas e de vigilância, junto à população de um determinado,
por assim dizer, “quarteirão”. Numa cadeia hierárquica, o chefe de quarteirão é superior ao inspetor de quarteirão e
subordinado ao ministro da justiça, ao juiz de paz e ao chefe de polícia. Normalmente, é um membro da própria
comunidade, tido como idôneo e capaz de excercer funções moderadoras, junto à comunidade. Anacleto Vargem,
antes de se tornar assassino, foi Inspetor de quarteirão, no mesmo Pirapó, onde se iniciaram os crimes(Segundo
informação concedida por Licineo de Lara, cuja entrevista está anexada ao item “Apêndice”).
19
Mais detalhes no item 6, metodologia da pesquisa.
Sendo assim, se delineou, já de início, a necessidade de um resgate
histórico amplamente apoiado na História Oral, pois, segundo Rouchou(2003),
“recorre-se à metodologia da História Oral para ouvir as narrativas de vida dos
entrevistados. Ouvir e conhecer as vivências, suas lutas e significados”(p.1).
Imediatamente a essa constatação, veio a identificação dessa inevitalibidade: a
história vai se perder. Em decorrência da morte das testemunhas, obviamente.
Afinal, à medida que o tempo passa, a memória vai se apagando e se
perdendo (a maioria das fontes trata-se de homens e mulheres cuja idade é já
bastante avançada).
2.3.1 O PAPEL DO JORNALISMO
Basicamente, o jornalismo, cumpre a função social de levar informação
acerca dos acontecimentos cotidianos, tanto regionais, quanto mundiais, às
pessoas. De acordo com Lima(1998), “seu papel principal é relatar os
acontecimentos, de maneira que as pessoas tenham conhecimento do que
ocorre nos diversos campos da realidade social e da existência humana,
orientando-se assim em relação ao fluxo dinâmico da nossa complexa era”
(p.9). O jornalismo tradicional apoia a produção dos conteúdos que veicula
essencialmente no factual, na realidade concreta - a fim de reproduzir esses
mesmos fatos reais e concretos; e transmitir, por meio de múltiplas plataformas
midiáticas, as mensagens no seio da sociedade. Informar as pessoas, por
assim dizer, com periodicidade regular, o que acontece no mundo, é, por
princípio, papel do jornalismo.
Recortes da atualidade, portanto, se constituem no objeto de busca do
jornalismo, como principal fomento à produção dos conteúdos noticiosos. De
acordo com Lima (1998), “é assim que posso, enquanto leitor, acompanhar as
dramáticas e aceleradas transformações políticas e econômicas do mundo
atual. Mais prosaicamente, é também pelos veículos [...] do jornalismo que sou
informado da estreia, nos cinemas da cidade, do filme ganhador do Oscar”
(p.9). Tais fragmentos da atualidade, às lentes do jornalismo, demandam, em
tese, caracteríscas imprescindivelmente relacionadas com o interesse público.
De outro lado, o público, se encontra impossibilitado em promover uma
seleção, rigorosa ou não, que seja, dos acontecimentos diários de seu
interesse. Para Belo(2006), “[...] esse trabalho de garimpagem de informações
(para o público) é completamente inviável. O papel do jornalismo é promover
essa seleção. Impedir que as pessoas percam tempo procurando por assuntos
interessantes” (p.38). Cabe, então, ao jornalismo, tal tarefa: garimpar
informações.
Dentro do panorama mostrado, o papel do jornalismo vai sendo
delineado pela função de informar, mas, também, pela de orientar o público.
Permitindo, assim, que esse público tome posição ou assuma uma atitude em
relação aos acontecimentos. Naturalmente, essa função social do jornalismo é
muito mais complexa do que a apresentada nessa seção de nossa pesquisa.
As matizes são tão múltiplas e cheias de nuances quanto o próprio tecido
social, o qual observa e representa, é. Vale ainda comentar que, se a natureza
da atividade jornalística, quanto às suas principais e mais básicas
características, informa e orienta, não obstante, inexoravelmente, exerce
influência.
O jornalismo não apenas reproduz os acontecimentos, registrandoos, disseminando-os para a população. Na verdade, essa ação
realiza-se carregada de uma intenção, de uma complexa rede de
fatores que condicionam a maneira como a notícia ou a reportagem
'enxerga' o mundo. O repórter que sai à rua para cobrir um
acontecimento está intrinsecamente condicionado a 'ver' aquela
realidade de acordo com seus valores culturais, com sua formação
escolar, com a mentalidade básica vigente em sua época ou em seu
grupo racial, até mesmo de acordo com sua herança genética.
(LIMA,1998, p. 11)
O pesquisador percebe, nesse ponto, uma referência importante; porque
estabelece um diálogo entre autores de áreas distintas.(ver item 5, seção
"representações
sociais").
Para
Moscovici,
as
representações
sociais
convencionalizam os objetos, pessoas ou acontecimentos que encontram.
Lima(autor da citação), por sua vez, diz que o repórter que sai à rua para ver
um acontecimento, o fará sob as "lentes" de sua própria cultura e recriará tais
fatos de acordo com representações sociais constituintes dessa mesma própria
cultura.
Destacamos aqui, ainda baseados na citação, essa característica
mediadora do jornalismo junto à sociedade nos debates públicos. Tal ação fica
evidente e perpetra em dada medida estereótipos e representações sociais na
memória das pessoas e na coletividade. Assim, o papel do jornalismo também
se relaciona à construção social da realidade.
2.3.2 O NEW JOURNALISM: ORIGEM, CARACTERÍSTICAS e DEFINIÇÃO
O New Journalism surgiu nos Estados Unidos, na década de 1960. Não
há uma obra que sirva como um marco, estabelecendo datas e decretando um
criador. No entanto, assim como Balzac, Victor Hugo e Stendhal, segundo
Pena(2007) “podem ser considerados como precursores do jornalismo literário,
se classificarmos como tal um gênero que se caracteriza pela publicação de
literatura nas páginas de jornais” (p.6), Tom Wolfe, Truman Capote e Norman
Mailer podem ser considerados “pais” do New Journalism, por fundirem
literatura ao jornalismo e publicarem o resultado, também, em páginas de
livros.
O contexto20 no qual surgiu o subgênero do jornalismo literário em
questão estava impregnado pela essência da revolução. Andy Warhol chocava
no mundo das artes subvertendo latas de sopa em pop art. Houve o festival de
Woodstock, no qual Jimi Hendrix, diante de uma plateia alucinada pelo
consumo de LSD, incendiou sua guitarra. Hippies21 contrários à guerra
tomavam as ruas vestindo camisas com os dizeres “Make Love, not war 22”. O
American Way of Life23, era questionado por revoluções sexuais, artísticas e
20 Fonte: http://hunterthompson.wordpress.com/2009/06/13/1-o-new-journalism/
21
O movimento hippie surgiu nos Estados Unidos, no ano de 1966. Tinha maior concentração de adeptos em São
Francisco, Califórnia. Na maioria estudantes de classe média, alguns de família abastada, entre 17 e 25 anos,
contestadores dos valores que os pais acreditavam. A origem do nome hippie não é exata, pode ser derivada de hip
(quadril), em referência às blusas que usavam amarradas à cintura. Outra origem seria a palavra happy, que significa
feliz. Os hippies tinham uma filosofia orientada por mestres espirituais, cultuavam a natureza, viviam em comunidade e
apreciavam a utilização de drogas como LSD, maconha e mescalina. Eram contra a propriedade privada, viajavam em
trailers ou viviam em conjunto, em comunidades. Pregavam a inexistência de nações ou fronteiras separando os
países. Para eles, o mundo seria de todos e cada um deveria buscar sua própria paz espiritual. Contrários à religião
cristã, acreditavam que o paraíso deveria ser encontrado durante a vida, daí, o lema adotado, “Paradise Now” (Paraíso
agora). Eram contra punições e a favor da busca pelo prazer, fosse pela espiritualidade ou pelas drogas. Outro de seus
lemas mais conhecidos era “Peace and Love” (Paz e Amor), um dos mais difundidos da cultura hippie em todo o
mundo. Entre os gurus da comunidade hippie naquela época, o de maior destaque foi Timothy Leary, conhecido como
o guru do LSD. Leary era professor da Universidade de Harvard, mas foi proibido de lecionar por incentivar os alunos a
fazerem experiências com a droga. Por outro lado, uma parte do próprio movimento hippie era contra a utilização de
alucinógenos na busca pela paz espiritual, que deveria ser alcançada de outras formas.(Fonte:
http://www.infoescola.com/cultura/hippies/)
22 Numa tradução livre, “faça amor, não faça guerra”.
23
Segundo definição do Cambridge Dictionary, Sonho Americano é a crença de que qualquer cidadão americano tem a
chance de ser bem-sucedido, rico e feliz, se trabalhar duro. A expressão se tornou popular quando, em 1867, Horatio
Alger lançou o livro “Ragged Dick”, que contava a história de um órfão trabalhador que poupou seu dinheiro e acabou
tornando-se rico. Desde então, acredita-se que através da honestidade, determinação e trabalho, o Sonho Americano
está disponível a qualquer um que o desejasse.(Fonte: http://hunterthompson.wordpress.com/2009/06/13/1-o-newjournalism/)
políticas. Em meio a tal espírito revolucionário e livre, Tom Wolfe, no ensaio
intitulado The New Journalism escreveu:
Duvido que muitos dos que irei citar neste trabalho tenham se
aproximado do jornalismo com a menor intenção de criar um novo
jornalismo, um jornalismo melhor, ou uma variedade ligeiramente
evoluída. Sei que jamais sonharam que nada do que escrevessem
para jornais e revistas fosse causar tal estrago no mundo literário...
provocar pânico, roubar da novela o trono de maior dos gêneros
literários, dotar a literatura norte-americana de sua primeira
orientação nova em meio século... no entanto, foi isso que aconteceu.
(Wolfe, 2005, p.9)
Ou seja, o New Journalism surge do questionamento da ordem e da
ausência de compromisso com normas vigentes, mas, também, segundo
Czarnobai(2003), “nasce para, de certa forma, satisfazer a necessidade que
muitos jornalistas possuem: o sonho de escrever um grande romance”(p.6).
Ou, conforme apostava Wolfe(2005)"não há muito tempo, a metade das
pessoas que iam trabalhar na imprensa o faziam na crença de que o seu
destino real era o de ser romancistas"(p.16). Por que Wolfe e outros jornalistas
da época viam no romance uma espécie de status de superioridade ao
jornalismo, considerado vulgar24 – enquanto literatura.
A citação de Tom Wolfe expressa o espírito que moveu aqueles
jornalistas, cujas características comuns, visíveis nas publicações jornalísticas,
provocavam o novo estilo de produzir reportagens. A nova maneira, ou, novo
jornalismo, penetrou diversas revistas americanas de prestígio, tais como
Esquire e Time. Além de jornais como o Herald Tribune25. Reportagens longas
cujos textos, leves, soavam como histórias simples. Continham diálogos e
reflexões, características que não se ajustavam aos jornais tradicionais da
época.
A parecença das narrativas dos fatos com uma espécie de conto ou
romance mesmo, fazia com que muitos tivessem dificuldade em acreditar na
veracidade dos fatos. Segundo Wolfe(2005), “a reportagem realmente estilosa
era algo com que ninguém sabia lidar, uma vez que ninguém costumava
pensar que a reportagem tinha uma dimensão estética”(p. 22). Tais
características do novo estilo, inicialmente, e, mesmo hoje, geram muita
24 O emprego em uma redação era, para muitos, uma cena passageira, que os levaria um dia a escrever um grande
sucesso literário. (Fonte: http://hunterthompson.wordpress.com/2009/06/13/1-o-new-journalism/)
25
Fonte: http://hunterthompson.wordpress.com/2009/06/13/1-o-new-journalism/
polêmica, dada a controvérsia. ”Esse novo jornalismo, como passou a ser
chamado por alguns críticos a partir de 1966, nunca teve aceitação unânime no
jornalismo, muito menos na literatura” (LIMA, 2009, p.196) Afinal, alguns
repórteres começavam a se relacionar com a produção da reportagem de
forma nunca antes pensada, talvez.
Em determinada ocasião, o Daily News mandou Mok e um fotógrafo
cobrirem uma história sobre um homem extremamente obeso que
pretendia perder peso isolando-se em um barco a vela ancorado no
meio de Long Island South mas a lancha que alugaram para chegar
até lá quebrou antes de chegar ao destino. Era inverno mas Mok
jogou-se na água e nadou cerca de um quilômetro e meio até o barco
a vela para conseguir sua reportagem, que foi publicada com fotos do
próprio Mok nadando.(CZARNOBAI, 2003, p.8)
O efeito de todo esse experimentalismo e ousadia, segundo (Wolfe,
2005) culminou em "um novo e curioso conceito, vivo o bastante para inflamar
os egos, havia decidido invadir os diminutos confins da esfera profissional da
reportagem. Esta descoberta [...] consistiria em tornar possível um jornalismo
que fosse igual a um romance" (p.18). Assim, provocador e desafiador, não
apenas ao jornalismo tradicional e estabelecido, mas, aos próprios jornalistas e
à sociedade, surgiu o New Journalism.
Mas o que caracteriza o New Journalism? O que o torna diferente das
produções jornalísticas baseadas na estilística do jornalismo literário, praticado
por Ernest Hemingway, Joseph Mitchell e Lilian Ross26? As escolas de
comunicação ensinam que o jornalismo literário foca pessoas, dando vida aos
acontecimentos. O narrador, através do ponto de vista pessoal, promove a
individualização da história no texto, contudo, sem deixar a veracidade do fato
de lado.
De acordo com Sato(2005), “o caráter ficcional é uma das marcas
distintivas mais importantes da literatura; a fidelidade factual, do jornalismo” (p.
79). E, ainda em Sato(2005), “das narrativas jornalísticas espera-se, afinal, que
sejam factuais, de sua linguagem, que seja contida” (p. 81). Lima(2009), na
contramão do que disse a educadora Nanimi Sato, explica que ”Tom Wolfe
trouxe para o jornalismo a técnica do fluxo de consciência, enquanto Norman
Mailler criou a técnica do ponto de vista autobiográfico em terceira pessoa.
26
Fonte: http://hunterthompson.wordpress.com/2009/06/13/1-o-new-journalism/
Assim, o New Journalism caracteriza-se como uma versão própria e
renovadora do jornalismo literário”(p.199). Contudo, existem outros elementos
que melhor caracterizam o New Journalism. Construção cena a cena,
detalhamento do status de vida e o diálogo; além do já comentado ponto de
vista da terceira pessoa, constituem as quatro principais e imprescindíveis
características do referido subgênero.
O básico era a construção cena a cena, contando a história cena a
cena e recorrendo tão pouco quanto possível à narração puramente
histórica. Daí as extraordinárias proezas de reportagem que os novos
jornalistas às vezes realizavam: podiam testemunhar efetivamente as
cenas nas vidas das outras pessoas à medida que aconteciam – e
registrar o diálogo por completo, que era o recurso número dois. Os
redatores de revista, assim como os primeiros romancistas,
aprenderam por tentativa e erro algo que os estudos acadêmicos
demonstram: que o diálogo realista envolve o leitor mais
completamente do que qualquer outro instrumento. Também situa e
define o personagem mais rápida e efetivamente do que qualquer
outro recurso(Dickens tem uma maneira de fixar o personagem na
sua mente de tal forma que você tem a sensação de que ele
descreveu cada polegada de sua aparência – mas ai você volta e
descobre que ele, de fato, cuidou da descrição física em duas ou três
frases; o resto ele conseguira com o diálogo). Os jornalistas estavam
trabalhando com o diálogo a todo vapor, revelando um estilo
completo no mesmo instante em que os romancistas retrocediam,
usavam o diálogo de formas mais e mais enigmáticas, excêntricas e
abstratas.(WOLFE apud LIMA, 2009, p197, 198)
O New Journalism, portanto, se define como uma espécie de
instrumento eficaz – surgido espontaneamente – à sofisticação da expressão
jornalística e elevação do potencial de captação da realidade. Ou, segundo
Lima(2009), “a chance que o jornalismo poderia ter para se igualar, em
qualidade narrativa, à literatura, seria aperfeiçoando meios sem porém jamais
perder sua especificidade”(p.191). E, de acordo com o que lemos em obras
como “Radical Chic e o Novo Jornalismo”, “À sangue frio” e “Fama e
Anonimato”, foi o New Journalism quem delineou esse caminho, rumo à
qualidade de excelência narrativa no jornalismo.
2.3.3 O GONZO JOURNALISM
A transposição da barreira que separa o jornalismo da ficção, ou seja, o
compromisso com a verdade. Essa foi a proposta do jornalista free-lancer
Hunter Stockton Thompson, em meados da década de 196027, nos Estados
Unidos. Em 1966, por meio do livro Hell’s Angels: The Strange and Terrible
Saga of the Outlaw Motorcycle Gangs28 – reeditado mais de 35 vezes –,
Thompson inaugurava o subgênero jornalístico que ficou conhecido por Gonzo
Journalism.
Segundo Czarnobai(2003), o Gonzo é ”também chamado de jornalismo
fora-da-lei, jornalismo alternativo e cubismo literário”(p.26). O gênero, ainda em
Czarnobai(2003), “baseia-se fortemente na desobediência e desrespeito aos
padrões e normas estabelecidas, além da insistência em quatro grandes
temas: sexo, drogas, esporte e política”(p.26). É bastante comum se fazer
ligações referentes às origens e postulados do gênero à vida do próprio
Thompson.
Nascido em Louisiville, Kentucky, Estados Unidos, aos 18 de julho de
1939, quando criança, segundo Czarnobai(2003), Thompson, ”além de ser
conhecido na vizinhança pelo hábito de atirar pedras e disparar armas de
pressão, [...] ele e seus amigos reproduziam batalhas da Guerra Civil norteamericana”(p.27) A presença de drogas, transgressões e violência seria
frequente na vida do jornalista. O primeiro registro de um ato de Thompson
contra a lei ocorreu na infância, aos 10 anos.
Ele e um grupo de garotos vandalizaram um banheiro masculino do
Parque Cherokee, atirando latas, espalhando lixo e pichando as
paredes. O grupo foi pego pela polícia e levado à delegacia, onde
uma ocorrência chegou a ser preenchida. (GIANNETTI apud
CZARNOBAI, 2003, p.27)
Por conta das características de Thompson, descritas até aqui, fica
evidente os problemas que o jornalista enfrentaria dentro de uma redação
tradicional na década de 1960. Segundo Czarnobai(2003), Thompson “queria
escrever ficção mas via-se obrigado a buscar refúgio na sobriedade do
jornalismo enquanto não alcançasse algum êxito literário”(p.29). Em 1965 a
fama da gangue de motoqueiros Hell Angel’s estava bastante alastrada.
27
28
Fonte: http://hunterthompson.wordpress.com/2009/06/13/2-hunter-s-thompson-e-o-jornalismo-gonzo/
No Brasil, o título foi simplificado para “Hell’s Angels: Medo e Delírio sobre duas rodas”.
Thompson foi convidado a escrever uma reportagem sobre os Angel’s para a
revista Nation.(CZARNOBAI, 2003).
O surgimento do New Journalism veio renovar as esperanças de
todos os aspirantes à romancistas - com Thompson não foi diferente.
Utilizando técnicas de imersão semelhantes às de Dickens descritas
anteriormente neste trabalho, ele decidiu viver durante dezoito meses
entre os membros da gangue de motociclistas Hell's Angels para
escrever um artigo publicado em 1965, na revista Nation.
(CZARNOBAI, 2003, p.29)
Na busca pelo contato próximo com o objeto a ser reportado, Thompson
se envolveu com drogas e, depois do tempo que passou junto aos Hell Angel’s,
se tornou usuário. Não buscou redimir a gangue junto à sociedade, antes,
revelando que, de fato, os Angel’s eram foras-da-lei, expôs a razão da
marginalidade. Contudo, o texto resultante da experiência vivida com os
motoqueiros não seria ainda considerada Gonzo.(CZARNOBAI, 2003) Apenas
em 1971, depois da publicação de Fear and Loathing in Las Vegas: A Savage
Journey to the Heart of the American Dream29, é que o Gonzo Journalism se
popularizou. Aliás, os dois30 célebres textos, citados nesta seção, aos quais
muito se atribui o termo “Gonzo” como subgênero, não foram, pelo próprio
Thompson, considerados como tais. Para o criador da modalidade jornalística a
escrita Gonzo está relacionado ao modo descontrolado e livre de se expressar.
(CZARNOBAI, 2003)
Gonzo Journalism é um formato extremamente peculiar de se fazer
uma reportagem, desde a captação dos dados até a sua redação.
Assim como o New Journalism, o Gonzo Journalism é um movimento
que carece de manifestos ou regras. Desta forma, existem várias
definições para o estilo de reportagem criado e desenvolvido por
Hunter S. Thompson a partir do seu artigo sobre o Kentucky Derby
para a Scanlan's Monthly. O próprio Thompson tem mais de uma
definição para Gonzo Journalism. (CZARNOBAI, 2003, p.34)
No entanto, segundo Czarnobai(apud, GIANNETTI, 2002), “Thompson
acredita que tanto a ficção quanto o jornalismo são categorias artificiais e que
as duas, quando feitas da melhor forma possível, são caminhos diferentes para
um mesmo fim: informar alguém sobre alguma coisa(p.34). Cabe ao
jornalista/escritor, então, que intente se aventurar pelo subgênero, a tarefa de
29
30
No Brasil foi lançado com o título “Medo e delírio em Las Vegas”
“Medo e delírio em Las Vegas” e “Hell’s Angels: Medo e Delírio sobre duas rodas”.
conferir verossimilhança às narrativas que construir, baseado nas experiências
que viver.
2.3.4 O PAPEL DO JORNALISMO LITERÁRIO
Segundo Lima(2009), “de todas as formas de comunicação jornalística, a
reportagem, especialmente em livro, é a que mais se apropria do fazer
literário”(p.40). Obviamente que a escrita, lugar comum para ambas as
práticas, quer jornalística, quer literária, já denota essa apropriação. Como
trataremos da questão da amplitude da notícia na próxima seção, agora,
focaremos na principal função do jornalismo literário: uma ferramenta para
reconstrução da realidade, cuja especialidade é atributo irrefutável da literatura.
Essa modalidade jornalística vai conferir aos textos contornos mais
criativos. Cria-se, portanto, possibilidades à surpresa do leitor. O fato continua
importante, embora possa ser abordado de forma menos objetiva e simplista, e
é dado ênfase aos detalhes – o que resulta numa construção de personagens,
cuja complexidade, fica exposta.
O jornalismo literário, de acordo com Pinto(2009), “como técnica
construtiva de uma realidade abordada, fixa-se sobre quatro pilares
fundamentais, a saber:
- Construção do texto cena a cena, dentro de uma perspectiva narrativa o
menos histórica possível, sempre fazendo o uso de diálogos, como nos
romances e contos;
- Construção de personagens tridimensionais, complexos e com uma história
própria, com passado e presente;
- Uso de mais de um ponto de vista narrativo, apresentando, por vezes, cada
cena da perspectiva de um personagem distinto. Isso se torna possível por
meio de entrevistas mais íntimas e pessoais, detalhadas;
- O quarto recurso, talvez o mais sutil e difícil de ser compreendido, é o registro
esmiuçado de gestos, hábitos, maneiras, costumes, estilos de mobília, roupas,
decoração, comportamentos e outros aspectos tanto dos personagens quanto
do espaço geográfico (físico, social, econômico) onde estão inseridos. Isso se
torna possível por meio de observação atenta e entrevistas extensivas”(p.132).
2.3.5 O PAPEL DO LIVRO-REPORTAGEM
Estender, ampliar o alcance da função informativa e orientadora do
jornalismo cotidiano. Esse seria, basicamente, o papel do livro-reportagem na
sociedade. Segundo Lima(1998), "a imprensa regular deixa muitos vazios
encobertos, que podem ser e são desvendados pela reportagem na forma de
livro". Mas é ainda mais que isso, "não fica limitado aos fatos isolados do
cotidiano que geram as notícias dos outros veículos jornalísticos"(p.12). O livroreportagem contribui para esse entendimento mais próprio e ampliado acerca
do nosso tempo porque, quase sempre, amplia a notícia, buscando os
desdobramentos e a complexidade dos conflitos.
Para produzir tal efeito, entretanto, será imprescindível ao livroreportagem o uso de toda gama de recursos jornalísticos - e, que esses
mesmos recursos, sejam aplicados ao máximo de suas propriedades e
possibilidades. Quando a limitação recursiva se mostrar, extravasar às novas
fontes será uma necessidade fundamental. Para Pena(2007), “tem a ver com
potencializar
os
recursos
do
jornalismo,
ultrapassar
os
limites
dos
acontecimentos cotidianos, proporcionar visões amplas da realidade, exercer
plenamente a cidadania, romper as correntes burocráticas do lide31, evitar os
definidores primários32 e, principalmente, garantir perenidade e profundidade
aos relatos”(p.7). O que, naturalmente, não demonstra a pretensão de esvaziar
o tema e assumir a postura de domínio sobre alguma prática, mas, sim,
problematizar um pouco mais sobre o tema e indicar um caminho.
Para começo de conversa, esse veículo jornalístico, por ser um
trabalho de autor, produzido individualmente ou em equipe, ganha
uma liberdade de gestação e confecção inexistente na grande
imprensa, aquela dos grandes meios de comunicação, voltada para
vastas audiências. O primeiro grande vôo é o rompimento com dois
carrascos conceituais nas redações convencionais: a atualidade e a
periodicidade. (LIMA, 1998, p. 18)
E, ainda:
A prisão do jornalismo comum em torno da atualidade o impede de
buscar raízes, um pouco mais distantes no tempo, que explicam
melhor as origens dos acontecimentos, bem como as motivações dos
atores envolvidos. Em lugar da atualidade, o jornalismo de
profundidade deve buscar ler a contemporaneidade, um conceito
31
Fórmula de sucesso e famosa que, objetiva, prega a necessidade de o texto jornalístico responder às principais
perguntas da reportagem ainda no primeiro parágrafo.
32
Aqueles entrevistados que sempre falam para os jornais, como autoridades e especialistas famosos.
muito mais elástico do tempo presente, que transcende o meramente
atual para focalizar com grande pertinência as implicações, hoje, de
eventos que não se deram apenas ontem, mas sim, há anos,
décadas, talvez. Isso porque a contemporaneidade abrange muito
mais do que meros fatos, tendências que se formam ao longo do
tempo nas mais diversas esferas da vida social, muitas vezes
combinando-se e se relacionando nesse desenrolar. É esse trabalho
de paciência detetivesca, encontrando ligações entre as coisas, que
permite constatar o quanto do passado persiste no presente."
(LIMA,1998, p.20)
O pesquisador considera, assim, que a produção de conteúdo
aprofundado,
como
essência
da
existência
do
livro-reportagem
está
intimamente relacionada ao tema do trabalho. Porque entende que um fato,
quando narrado de modo simplificado, contribui para o estabelecimento de um
debate público raso e de pouca capacidade reflexiva. Pena(2007) explica que,
“ultrapassar os limites dos acontecimentos cotidianos, em outras palavras,
significa ao jornalista romper com duas características básicas do jornalismo
contemporâneo: a periodicidade e a atualidade33”(p.7). Sem se preocupar com
a novidade do momento, o livro-reportagem assume esse papel: oferecer
semântica rica aos leitores a fim de que estes saibam, e, acima de tudo,
expressem
complexidades
em
decorrência
de
enfrentamentos
mais
desafiadores dentro do ambiente social.
2.4 O JORNALISMO LITERÁRIO E A MEMÓRIA
Jornalismo literário e memória estão, irremediavelmente, ligados à
história oral – e essa, à nossa pesquisa. Ou, como diz Lima(2009), “entendido
como resgate de riquezas psicológicas e sociais, esse método de captação
encontra melhor aplicabilidade no livro-reportagem (e, consideravelmente, sob
a técnica do jornalismo literário)”(p.56). Porque abre mais pontos a serem
desdobrados, revela mais acontecimentos periféricos e detalhes. Tais
informações, fomentam um texto muito extenso, que demanda de muito mais
espaço físico para ser acomodado em uma plataforma. Um livro, no caso.
A História Oral é uma ferramenta tanto para captação de informações
históricas, quanto para técnica de apuração – e é quando entrevista(técnica
imprescindível ao jornalismo literário) e a história oral se tocam. No entanto,
33
Essas duas características, aliadas à publicidade e à universalidade, formam a base de identificação do jornalismo
moderno.
julgamos necessário criar esta seção, a fim de delimitar um pouco mais, e,
assim, no contexto geral do trabalho, o máximo possível, essa conexão entre o
jornalismo literário e o registro histórico apoiado na oralidade que se apresenta
pelo acionamento da memória.
2.5 O PROBLEMA
Como reconstruir uma história ocorrida há mais de cinquenta anos, cujas
fontes, quando não mortas, muito idosas – algumas, senis; e vivendo reclusas,
muitas vezes, indispostas a conceder longas entrevistas? Pressupostos para
uma reconstrução histórica com base na história oral34, não são, justamente:
tomadas de depoimentos, relatos e entrevistas? A pesquisa leva em conta,
naturalmente, o uso, ao máximo, de fontes, segundo ensina a técnica
jornalística35. Não obstante, a pesquisa contará, basicamente, com fontes
conquistadas. O que, praticamente, encerra o trabalho, no tocante à coleta de
informações, numa espécie de dependência metodológica à história oral.
34
Há uma seção dedicada a esta metodologia de pesquisa, no referencial teórico (item 5)da pesquisa.
O jornalismo conta com diversas modalidades de fontes. As voluntárias, que se dividem em duas categorias, a
saber, oficiais (assessorias de imprensa de orgãos públicos, como: Secretarias, ministérios, universidades e entidades
de classe) e privadas(assessorias de imprensa de empresas. Essas assessorias podem ser terceirizadas ou
funcionarem dentro da própria empresa). Existem, ainda, fontes conquistadas, que, quanto às possibilidades
categóricas, se constituem num universo de possibilidades. São pessoas, de modo total, as mais diversas. Desde
porteiros de prédio a delegados, de empresários a juízes e promotores. E, finalmente, as fontes contratadas
(Correspondentes, free-lancers, colaboradores e agências noticiosas - nacionais e internacionais).(PINTO, 2009, pág.
57)
35
3. OBJETIVOS
Reconstruir a história de Anacleto Vargem a partir das técnicas do
jornalismo literário e do New Journalism, fazendo uso, às vezes, do subgênero
Gonzo Journalism, além de todo aparato jornalístico(dados gerais, pesquisa,
viagens e entrevistas). O livro-reportagem será o tipo de plataforma usada.
3.1 OBJETIVOS ESPECÍFICOS
-
Analisar características dos homicídios, considerando em grande parte os
pontos de vistas dos entrevistados, assim como um crime, em específico, cujas
informações estão contidas em inquérito policial36, e, a partir disso, construir
narrativas na primeira pessoa, divididas em capítulos, e intercalá-las à
reportagem, ligando-as. Algo como o efeito produzido pelo jornalista Caco
Barcelos em “Rota66”. Ferreira (2003, p. 208) mostra que Barcelos intercala a
narrativa com fatos da própria vida conseguindo, ao mesmo tempo, relatar a
trajetória dos personagens.
-
Construir
o
perfil
do
personagem
baseado
nas
descrições
dos
entrevistados, mostrando os conflitos de Anacleto, criando um contraste entre a
representação social à qual Anacleto, Evandro e demais personagens chave da
história se enquadram, e como o crime37 é entendido na sociedade;
-
Produzir um livro-reportagem sob o estilo e técnica do jornalismo literário,
porém, fazendo uso, às vezes(ou, em parte), do subgênero Gonzo Journalism.
36
Copias de inquéritos, assim como outros documentos e registros serão anexados ao item “Apêndice”, no entanto,
apenas em Julho, quando o pesquisador poderá comparecer ao Fórum de Irati, para obter cópias desses registros.
37
Sob o nome de crimes e delitos, são sempre julgados corretamente os objetivos jurídicos definidos pelo código.
Porém, julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de
meio ambiente ou de hereditariedade. Punem-se as agressões, mas, por meio delas, as agressividades, as violações
e, ao mesmo tempo, as perversões, os assassinatos que são, também, impulsos e desejos. Dir-se-ia que não são eles
que são julgados; se são invocados, são para explicarem os fatos a serem julgados e determinar até que ponto a
vontade do réu estava envolvida no crime. Resposta insuficiente, pois são as sombras que se escondem por trás dos
elementos da causa, que são, na realidade, julgadas e punidas. Julgadas mediante recurso às ‘circunstâncias
atenuantes’ do ato, mas coisa bem diversa, juridicamente não codificável: o conhecimento do criminoso, a apreciação
que dele se faz, o que se pode saber sobre suas relações entre ele, seu passado e o crime, e o que se pode esperar
dele no futuro.” (FOUCAULT, 2011, p. 22)
Isso significa dizer que entrevistas, levantamento e interpretação de dados,
bem como pesquisas documentais e de campo, estarão, sim, combinadas.
-
Ilustrar um fato singular que é composto por vários acontecimentos
extremamente significativos dentro de qualquer comunidade humana e em
qualquer período temporal ou época: assassinatos.
-
Incentivar a discussão sobre o tema, uma vez que, o estereótipo do
assassino, de modo geral, é, também, representado na mídia de forma
insatisfatória ao esclarecimento de uma característica universal a respeito do
ser humano: somos todos assassinos por natureza38.
4. JUSTIFICATIVA
38
À luz de teorias freudianas, por exemplo, acerca do comportamento agressivo, cito, como instrumento à reflexão da
questão proposta: “Sob circunstâncias propícias, quando estão ausentes as forças anímicas contrárias que a inibem, [a
agressão cruel] se exterioriza também espontaneamente, desmascara os seres humanos como bestas selvagens que
nem sequer respeitam os membros de sua própria espécie... Em consequência, o próximo não é somente um possível
auxiliar e objeto sexual, mas uma tentação para satisfazer nele a agressão, explorar sua força de trabalho sem
ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, despojá-lo de seu patrimônio, humilhá-lo, infligir-lhe dores,
martirizá-lo e assassiná-lo.” ( FREUD, 1929, p. 57) Desta feita, o pesquisador se deparou com a questão: que forças
anímicas estavam em jogo, naquele contexto, e, que, uma vez ausentes, permitiram que tamanha brutalidade se
manifestasse nas pessoas de Anacleto e Evandro? E, ainda: quais as partes de tais forças que, geralmente, não se
apresentam na sociedade, dia a dia, enquanto, distraídos, planejamos coisas e ações futuras?
Construir uma narrativa que ofereça ao leitor os elementos necessários
à experiência de apreciação de um fato, porém, com escassez de fontes e
informações materializadas em registros, como jornais, por exemplo. Aqui,
possivelmente, tenhamos um pressuposto relevante à reflexão sobre a
importância do registro histórico por meio do livro-reportagem.
No
entanto,
“seu
enquadramento
temporal(...)é
necessariamente
limitado ao presente e ao passado recente. Por isso, ele precisa ser
complementado pelo trabalho historiográfico.”(MOREIRA; MORENO, 2004, p.
99, apud QUADROS, 2005) O esquecimento de um fato pode ser entendido
como uma imprensa inepta, como comenta Andreas Huyssen(2004). “[...] a
memória pode ser considerada crucial para a coesão social e cultural de uma
sociedade. Qualquer tipo de identidade depende dela. Uma sociedade sem
memória é uma sociedade reprovável.” (HUYSSEN, 2004, apud QUADROS,
2005) Nestes termos, a atuação do jornalismo, e, neste caso específico, do
jornalismo literário, em razão do aprofundamento na apuração, se faz notável à
construção de memória.
O problema surge e se intensifica, à criação literária do jornalista, à
medida que o fato, em si, fica mais distante do presente. Ou seja, como
reportar, ou, mais ainda, reconstruir trajetórias e cenários, de um fato ocorrido
há cinquenta anos? Apoiado em bancos de dados digitais, o jornalista vê seu
campo de pesquisa ampliado e mais acessível 39, por assim dizer; esta é uma
característica
da
atualidade
jornalística:
acessibilidade
à
informação.
”Favorecido pelas tecnologias contemporâneas, de forma quase instantânea, o
jornalista encontra dados que podem ser relacionados aos fatos recentes,
proporcionando uma narrativa mais profunda ao leitor.” (QUADROS, 2005) E,
ainda, “nesse processo, (o jornalista) redefine o seu papel, buscando apoio na
sua própria história e na história que constrói.” (MENDEZ, 2002, p. 101, apud
QUADROS, 2005) Ou seja, toda informação digitalizada se transforma,
imediatamente, em banco de dados, em memória extensiva ao jornalismo. Não
obstante, fatos que, seja por ausência de tecnologia, ou, pela simples falta de
cobertura e respectiva produção de conteúdo, deixaram de ser registrados,
obviamente, serão memória, exclusivamente, nas mentes das testemunhas.
39 Vide seção 6.1 do item “Metodologia da Pesquisa”.
Com o passar do tempo, então, tais informações, possivelmente, sucumbirão
junto a seus portadores e serão perdidas, esquecidas, definitivamente.
Como a memória é parte imprescindível à coesão social e cultural da
sociedade (HUYSSEN, 2004, apud QUADROS, 2005), resgatar o passado, não
documentado, na memória das testemunhas, confere à entrevista, atributo
inquestionável do jornalismo, e, mais particularmente, do jornalismo literário,
um papel elucidativo junto à questão: como o jornalismo pode contar uma
história ocorrida há 50 anos? “O passado condiciona e determina o presente na
justa proporção em que pode ser recuperado e, de novo, presente à atenção”
(FIDALGO, 2003, pág. 5, apud QUADROS, 2005) E, recuperar o passado para
reapresentá-lo à sociedade, além de ser um desafio e uma necessidade, é um
papel muito bem desempenhado pelo jornalismo, quando nas suas
ramificações do livro-reportagem e do jornalismo literário.
4.1 POR QUE A HISTÓRIA DE ANACLETO, O NEW JOURNALISM E O
GONZO JOURNALISM?
A história de Anacleto Vargem tem muito a revelar. A violência e a
agressividade demonstram ser uma inerência humana, que, independente de
época e seu respectivo código moral, emergem, e, simplesmente, acontecem
no seio da sociedade. Tendo em vista o papel da comunicação social neste
processo, o pesquisador viu na história de um único assassino a chance de
expor pontos de relevância à discussão sobre a violência, tanto nos meios de
comunicação como, principalmente, no cotidiano das pessoas. Afinal, o livroreportagem é, também ou acima de tudo, um produto cultural. Mas existe outra
razão, e, talvez, a mais importante, para que o pesquisador veja no desafio de
reportar a história de Anacleto Vargem, uma justificativa.
Ao tratar de um fato, convém entender qual a conjuntura em que ele
se deu, quem são, como agem e vivem os protagonistas. Se for um
personagem, é necessário familiarizar-se com seus hábitos, seu
modo de vida, seus amigos, seus relacionamentos pessoais e
profissionais, sua cultura e maneira de pensar de falar, de vestir e até
sua idade e seu tipo físico. (BELO, 2006, p.91)
Isso pode parecer bastante contraditório, a princípio. Posto que Anacleto
foi assassinado em 22 de abril de 1956. Como seria possível de verificar
alguma relação entre o que diz a citação e as possibilidades investigativas do
repórter? Isso se justifica na razão de que o avô do pesquisador foi amigo
muito próximo de Anacleto. Descendente de italianos, Frederico Stroparo
nasceu e viveu até os 22 anos de idade na mesma colônia onde vivia Anacleto.
E o pesquisador passou mais de vinte anos na convivência diária com
Frederico. Já seria o tipo de relação próxima o suficiente à transmissão de boa
parte dos elementos culturais descritos por Belo na citação.
No entanto, o contato entre neto e avô foi diária e intensa, por muitos
anos. Afora o fato de que muitos conterrâneos, ao longo dos anos, passaram
em visitas, demonstrando regionalismos linguísticos quase à exaustão do
pesquisador. Naturalmente, visitas a Irati, dentro da pesquisa de campo, foram
feitas, conferindo ainda mais propriedade ao pesquisador acerca dos requisitos
já comentados. Isto, segundo Belo(2006) tem a ver com lançar olhares mais
humanos sobre o assunto.
No livro-reportagem “Rota 66”, o autor, Caco Barcelos aplica o conceito
proposto na citação de Belo. Coloca-se, dentro da narrativa, no lugar das
personagens. Certamente se trata de um recurso contrario aos encontrados
nos manuais de jornalismo. No entanto, Barcelos contraria as normas e os
preceitos jornalísticos dos manuais, narrando a história a própria versão dos
fatos. Segue um trecho de “Rota 66”:
Revolução Sandinista, Nicarágua. O franco-atirador dispara a
metralhadora em movimento circular. Nos jogamos no chão. Somos
salvos nos arrastando em direção ao abrigo frágil de um carro,
enquanto as balas tiram lascas do muro... Terremoto da Guatemala.
A cada novo tremor de terra, que se repete de hora em hora, nossas
vidas correm perigo. A cidade já está destruída, mas pedaços dos
prédios em ruína ainda desabam perto de nós... Acidente nuclear,
Three Mile Island, EUA. Faz dezoito horas que a tragédia começou.
Estamos a 300 metros da usina, que continua emitindo radiação de
forma incontrolável. É o maior acidente nuclear americano e ainda
ninguém sabe o que pode acontecer. A radioatividade é um perigo
invisível: um monstro que não se vê, não se ouve, não se sente...
Contrabandistas de Hernandaria, Paraguai. Fomos condenados à
morte num julgamento sumário, no meio da mata. São cinqüenta
contrabandistas que apontam as armas contra nós e nos obrigam a
ficar de joelhos ao lado do carro de reportagem...(BARCELOS, 2006,
p.22)
Foi pela possibilidade de encontrar o rumo de uma narrativa baseada
nesses moldes e pelo que já foi exposto nesta seção, quanto à proximidade
que o pesquisador possui das particularidades de Anacleto, que se justifica a
escolha pela história. Bem como pelo New Jornalism e o uso eventual do
Gonzo Journalism40.
4.2 LIVRO-REPORTAGEM
O livro-reportagem é um veículo de comunicação e produto cultural de
circulação não periódica, cuja característica principal, talvez, seja a de ampliar
o trabalho cotidiano da imprensa. Segundo Lima(1998), o livro-reportagem
"penetra em campos desprezados ou superficialmente tratados pelos veículos
jornalísticos periódicos, recuperando para o leitor a gratificante aventura da
viagem pelo conhecimento da contemporaneidade." Dentro de uma mesma
linha de raciocínio, confere mais durabilidade, junto à sociedade, aos assuntos
mostrados pelos demais veículos
de
comunicação
tradicionais.
Para
Belo(2006) ”O mundo mudou depressa na segunda metade do século XX. O
jornalismo teve de mudar também. Apesar da proposta de fruição do texto
pregada pelos autores do New Journalism e das várias publicações criadas
para dar conta de tantas novidades, nada foi capaz de desacelerar tal
processo”(p.37). E, mesmo agora, início do século XXI, percebemos que a
tendência à aceleração é ainda um fato.
Fica uma interrogação incômoda neste ponto: se desde a década de
1950/60 o jornalismo, por meio do jornalismo literário, oferece informações
mais aprofundadas, por que diminui o número de leitores? Segundo dados41 da
pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, na edição de 2012, encomendada pela
Fundação Pró-Livro e pelo Ibope Inteligência, os brasileiros cada vez mais,
trocam o hábito de ler jornais, revistas e livros por atividades como ver
televisão, assistir a filmes em DVD e navegar na rede de computadores por
diversão. Tal pesquisa revelou queda no número de leitores no Brasil: de 95,6
milhões, registrada em 2007, para 88,2 milhões, com dados de 2011. Uma
40 A delimitação do uso de ambos os sub-gêneros se encontra no item 2 deste trabalho.
41
Fonte: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2012/03/numero-de-leitores-caiu-91-no-pais-em-quatro-anos-segundopesquisa.html
queda de 9,1% no universo de leitores ao mesmo tempo em que a população
cresceu 2,9% neste período.
4.3 JORNALISMO LITERÁRIO
Se a proposta de nossa pesquisa se relaciona ao resgate histórico e se
dispõe, sim, como produto cultural que é o livro-reportagem, a reconstruir,
registrar e difundir uma história que o tempo já há muito deteriora e apaga,
escolher o jornalismo literário como gênero ao nosso produto nos pareceu
justificável. Essa escolha pela estética, estilo e técnica do jornalismo literário,
está ligada à principal característica: a excelência quanto à reconstrução da
realidade.
Uma vez que o livro-reportagem se constitui em um tipo de suporte que
abarca várias características de qualidade comprovada, quanto à apuração, por
exemplo - vide seção anterior -, o jornalismo literário, por sua vez, é a
ferramenta que vai possibilitar construções ricas, desde descrições de cenas
até condução da narrativa. Ou, como afirma Lima (2009), “[...]hoje é possível
perceber três categorias de obras quanto ao emprego de recursos literários: as
de ficção, que tratam dos produtos do imaginário elaborados pelo escritor; as
jornalísticas, que se apropriam dos recursos literários apenas para reportar
melhor a realidade”. (p. 52) O jornalismo literário, desde seu surgimento,
demonstrou essa proximidade à literatura. Obras consagradas como “Fama e
anonimato” de Gay Talese, por exemplo, dão conta da demonstração do
quanto o jornalismo literário é capaz de oferecer uma construção de realidade
aprofundada e significativa, com semântica ampliada.
Destacamos que a essência de nossa escolha, por tudo que
propusemos à discussão, sem dúvida, também está relacionada a essa
apropriação, descrita por Edvaldo Pereira Lima, acima, na citação, que intenta
reportar melhor a realidade, pois, acima de tudo, nosso produto tem sua matriz,
no jornalismo.
5. REFERENCIAL TEÓRICO
As representações sociais se constituem como um fenômeno de difícil
compreensão. Portanto, dentro do nosso trabalho, nos limitaremos à
apropriação de alguns conceitos que, contextualizados às nossas propostas,
tragam algum esclarecimento sobre o tema, os objetivos e a justificativa do
mesmo. Segundo Moscovici:
Representações sociais são sempre complexas e necessariamente
inscritas dentro de um “referencial de um pensamento preexistente”;
sempre dependentes, por conseguinte, de sistemas de crença
ancorados em valores, tradições e imagens do mundo e da
existência. Elas são sobretudo, o objeto de um permanente trabalho
social, no e através do discurso, de tal modo que cada novo
fenômeno pode sempre ser reincorporado dentro de modelos
explicativos e justificativos que são familiares e, consequentemente,
aceitáveis. Esse processo de troca e composição de ideias é
sobretudo necessário, pois ele responde às duplas exigências dos
indivíduos e da coletividade. Por um lado, para construir sistemas de
pensamento e compreensão e, por outro lado, para adotar visões
consensuais de ação que lhes permitem manter um vínculo social,
até mesmo a continuidade da comunicação da ideia. (MOSCOVICI,
2011, p. 216)
Porque, como tentamos demonstrar na delimitação do tema, se o
jornalismo cotidiano é superficial e ajuda a criar o senso comum, o Jornalismo,
por meio de ramificações como o livro-reportagem e o jornalismo literário, pode,
ao mesmo tempo, ajudar a desequilibrar tal processo, num sentido de
promover o equilíbrio de forças no processo da comunicação: contribuir para o
melhor esclarecimento das pessoas.
5.1 REPRESENTAÇÃO SOCIAL
A nossa escolha pelo referencial teórico se deu pela seguinte linha de
raciocínio: quanto ao produto: decidimos contar a história de Anacleto Vargem
por meio de um livro-reportagem, servindo-se largamente da entrevista e da
história oral. Ao assumir tal plataforma, nosso trabalho se delineou como um
produto cultural e, assim, nos pareceu bastante coerente propor discussões
acerca das representações sociais. Quanto à pesquisa: o pesquisador
precisaria construir os personagens baseados nos depoimentos e no contexto
ao qual os mesmos viveram os dramas e conflitos. Para obter noções
coerentes quanto à estrutura dessas construções sociais e estereótipos, o
pesquisador optou, também, pelo ponto de vista da psicologia social e da
representação social.
Para Moscovici(2011), “nossas reações aos acontecimentos, nossas
respostas aos estímulos, estão relacionadas a determinada definição, comum a
todos os membros de uma comunidade à qual nós pertencemos”(p.224) Isto
nos leva à reflexão de que tudo que entendemos dentro do contexto social
depende de um complexo de informações – fora, contudo, do alcance de
qualquer padronização intencional, num sentido de fixar um paradigma linear
às nossas reações às respectivas percepções individuais – que vai ser base
estrutural à formação de conceitos, ideias.
Ainda em Moscovici(2011), veremos que “se, ao dirigirmos pela estrada,
nós encontramos um carro tombado, uma pessoa ferida e um policial fazendo
um relatório, nós presumimos que foi um acidente. Nós lemos diariamente
sobre colisões e acidentes nos jornais a respeito disso”(p.225). Afinal, é
também o jornalismo, uma representação social.
Um assassinato, então, como se relaciona ideia à prática perpetrada por
Anacleto Vargem, não será percebido pelas pessoas de modo distinto à
exemplificação de Serge Moscovici. Todo o conhecimento que se relaciona ao
cotidiano – e, no caso das massas e do homem comum, principais
consumidores dos conteúdos jornalísticos tradicionais - parte de uma
construção social da realidade, ou, como aponta Berger e Luckman:
O ponto inicial deste processo é a interiorização, a saber, a
apreensão ou interpretação imediata de um acontecimento objetivo
como dotado de sentido, isto é, como manifestação de processos
subjetivos de outrem, que desta maneira torna-se subjetivamente
significativo para mim. Isto não quer dizer que compreenda o outro
adequadamente. (BERGER e LUCKMAN, 1985, p. 175)
Diante disso, ou, melhor, de tal fundamentação teórica, o assassino e
suas ações cotidianas sob representação do “homem de bem”, ou, do
“criminoso” é uma construção social de realidade que, como todas as demais
noções que “pairam” na atmosfera social, pode ser moldada, reformada.
Assim, proposto deste modo, o tema da pesquisa e a relação com os
assassinatos cometidos por Anacleto Vargas - e com a maneira pela qual fora
assassinado, pelo “calmo, benevolente e tranquilo” Evandro Capeline de Lara,
devidamente apoiado numa pesquisa social e transposto a um veículo
midiático, se constitui num instrumento de construção social da realidade
poderoso. Além disso, se relaciona à pesquisa, também, como fenômeno da
comunicação; pela representação social dos tipos de assassinos, por
exemplo(como eles eram retratados na quase inexistente mídia local).
Não obstante, a pesquisa busca, a fim de reconstruir trajetórias, as
reações da comunidade, da mídia e das autoridades locais às ações e,
principalmente, à figura do assassino. Assim, partimos do ponto de vista que
vislumbra o fato de as percepções apreenderem o mundo tal como é; e nossas
distinções se relacionam às diferenças, existente entre os indivíduos, quanto às
necessidades de avaliar seres e objetos corretamente. Ou, como demonstra
Serge Moscovici, no texto que segue:
Em outras palavras, nós percebemos o mundo tal como é e todas
nossas percepções, ideias e atribuições são respostas a estímulos do
ambiente físico ou quase físico, em que nós vivemos. O que nos
distingue é a necessidade de avaliar seres e objetos corretamente, de
compreender a realidade completamente [...] vieses cognitivos,
distorções subjetivas, tendências afetivas obviamente existem. Como
nós, todos estamos cientes disso, mas eles são concretamente
vieses, distorções e tendências em relação a um modelo, a regras,
tidas como norma. (MOSCOVICI, 2011, p. 30)
Gostaríamos, baseados nas exposições, naturalmente, que se fizesse
clara esse nosso conceito de que o livro-reportagem nada mais é que outra
representação da realidade. E que, ao usarmos ferramentas jornalísticas e
suas
respectivas
técnicas,
o
fazemos num
esforço
pela
busca
do
aprofundamento acerca dos fatos a serem reportados. A fim de que nossa
contribuição junto aos leitores e, consequentemente, à sociedade, signifique
uma provocação contundente a respeito das certezas e convicções que os
leitores normalmente dispõem à formação de suas próprias opiniões.
5.2 ANACLETO, O OUTSIDER
Outra abordagem às representações sociais que gostaríamos de apontar
dentro de nossa fundamentação teórica é a do estereótipo que Anacleto, além
do de assassino, ostentava junto àquelas pessoas do Pirapó. Havia nessa
comunidade, situação parecida com a estudada por Norbert Elias – e descrita
em seu livro “Os estabelecidos e os outsiders”, na cidade cujo nome, fora, pelo
sociólogo alemão, chamada “Winston Parva”.
Assim, encontrava-se ali, nessa pequena comunidade de Winston
Parva, como que em miniatura, um tema humano universal. Vez por
outra, podemos observar que os membros dos grupos mais
poderosos que outros grupos interdependentes se pensam a si
mesmos (se auto-representam) como humanamente superiores. O
sentido literal do termo “aristocrata” pode servir de exemplo. Tratava-
se de um nome que a classe mais alta ateniense, composta por
guerreiros que eram senhores de escravos, aplicava no tipo de
relação de poder, que permitia a seu grupo assumir a posição
dominante em Atenas. Mas significava, literalmente, “dominação dos
melhores”. (ELIAS, 2000, p. 19)
A comunidade do Pirapó foI fundada no século XIX, período no qual a
Região-Centro Sul do Paraná começava a ser colonizada com maior presença
do estado. A exploração da madeira era o fomento maior da economia do
lugar. E, os madeireiros, se tratavam de, na maior parte, membros da elite
proprietária de grandes áreas de terras.
No entanto, no início do século XX, imigrantes alemães, italianos e
poloneses se estabeleceram em grande número na comunidade. Como o lugar
não era desenvolvido, e as poucas famílias que ali viviam eram de origem,
comumente chamada, cabocla entre os próprios, esses imigrantes, logo, se
tornaram a classe dominante do lugar, ou seja, segundo Norbert Elias, os
estabelecidos.
Até hoje, o termo “nobre” preserva o duplo sentido de categoria social
elevada e de atitude humana altamente valorizada, como na
expressão “gesto nobre”; do mesmo modo, “vilão”, derivado de um
termo que era aplicado a um grupo social de condição inferior e,
portanto, de baixo valor humano, ainda conserva sua significação
neste último sentido – como expressão designativa de uma pessoa
de moral baixa. É fácil encontrar outros exemplos. (ELIAS, 2000, pág.
19)
Anacleto Vargem era caboclo. Vivia de trabalhos esporádicos e seu
perfil, numa análise rápida que seja, aponta para um modelo outsider. Porque
vivia às margens da prosperidade disponível aos moradores da colônia: não
possuía terreno próprio, tampouco casa. Vivia de trabalhos esporádicos e da
troca de animais de criação – quando não, do escambo42. Ao fazer essa
interferência no fluxo dialético da seção o pesquisador tencionou criar um
diálogo entre autores que abordam o tema das representações e achou
pertinente mostrar tal curiosidade acerca do contexto histórico e social do
Pirapó.
5.3 CONCEITO DE REPORTAGEM
42
As características descritas sobre a situação sócio-econômica do personagem podem ser verificadas em qualquer
das entrevistas anexadas no item “Apêndice”.
A reportagem é, talvez, a prática mais importante dentro do jornalismo e
é ela que promove a humanização do texto jornalístico. Segundo Lage(2008),
“se perguntarmos às pessoas em geral que figura humana é a mais
característica do jornalismo, a maioria responderá, sem dúvida: é o repórter. Se
interrogarmos um jornalista sobre quem é mais importante na redação ele dirá:
é o repórter.” No entanto, em toda história da imprensa, a reportagem existiu
apenas num tempo que representa não mais que a metade dessa mesma
história.
Quando o jornalismo surgiu, no início do século XVII, o paradigma de
texto informativo era o retórico, empregado desde tempos remotos
para a exaltação do Estado ou da fé. As línguas nacionais europeias
vinham surgindo, cada qual com seus grandes autores literários
(Camões em Portugal; Cervantes e Quevedo na Espanha;
Shakespeare e Milton na Inglaterra; Racine e Molière na França) e,
este, era o padrão que se buscava imitar. (LAGE, 2008, p. 9)
Nesse contexto, o jornalismo funcionava mais como difusor de ideias
burguesas e um promovedor de relatos a respeito de festas de casamento,
viagens de príncipes e festas de corte – assuntos caros, portanto, à aristocracia
e à burguesia. E os leitores, em geral, funcionários públicos, comerciantes e
seus auxiliares imediatos, eram em número pequeno. Segundo Lage(2008),
“fazer jornal era atividade barata: bastavam uma prensa, tipos móveis, papeis e
tinta. As tiragens possíveis – centenas, talvez poucos milhares de exemplares
– correspondiam a um público leitor restrito de funcionários públicos,
comerciantes e seus auxiliares imediatos.” Nesse contexto nasce a imagem
mais antiga e renitente do jornalismo, o publicismo43.
No século XIX, este cenário se modificou muito pois graças à revolução
industrial o jornal, ou melhor, as tiragens dos jornais, que no outro contexto não
ultrapassavam à de poucos milhares, agora, chegavam às centenas de
milhares, até de milhões. Pluralidade cultural – os jornais passaram a ter
leitores de diversas classes sociais – e a perda do interesse pela guerra de
opiniões – já não havia a aristocracia tão poderosa quanto antes, a opor-se aos
ideais burgueses -, aos poucos, ajudaram a mudar o estilo das matérias
publicadas. É o momento no qual os jornais entram em crise devido aos altos
43
Segundo Nilson Lage, por muitas décadas o jornalista foi essencialmente um publicista, de quem se esperavam
orientações e opiniões políticas.
custos de produção decorrentes da mecanização. Segundo Lage(2008), “já não
eram financiados pelos seus leitores como antes: o mercado publicitário nascia
e com ele a integração da imprensa com os interesses gerais da economia.” E,
ainda:
(os jornais) Precisavam de anúncios e estes dependiam do número
de leitores. A luta pelo mercado desataria, nas décadas seguintes,
forte concorrência entre gêneros distintos que os jornais passaram a
abrigar: as novelas ou folhetins – textos literários extensos, que se
publicavam em capítulos, nos rodapés de páginas; os desenhos
alegóricos ou satíricos, que dariam origem ao cartum, à charge e às
histórias em quadrinhos; as novidades com ênfase ora na vida real e
na realidade imediata, ora em países remotos, cujos estranhos
costumes e paisagens oferecia a dose necessária de fantasia.” .
(LAGE, 2008, p. 14)
Essa descrição de contexto histórico que apresentamos até aqui, nessa
seção, se deve pela razão de termos achado importante demonstrar alguns
pontos importantes à compreensão do conceito de reportagem e o porquê do
seu surgimento. Como vimos, com a necessidade cada vez maior por recursos
financeiros, os jornais passam a ceder o espaço à publicidade e outras formas
de texto que não o jornalístico. Com espaços cada vez menores – e a
tendência de aceleração da vida cotidiana e a inevitável falta de tempo dos
leitores – as redações tratavam de sintetizar cada vez mais o teor das notícias,
e, com isso, a superficialidade e a parcialidade, decorrente da influência do
patrocínio, encontraram terreno fecundo.
Foi nesse momento decante do conteúdo jornalístico que nasce a
reportagem. Foi então que títulos ganharam importância, que os textos foram
revolucionados pela necessidade de ajustar a linguagem textual às linguagens
orais, surgem os furos, ou, notícias em primeira mão – por conta, naturalmente,
da necessidade de ganhar o público e, assim, garantir os recursos financeiros
oriundos dos anúncios publicitários. Essas mudanças acabaram por gerar
conflitos de interesses, pois, à medida que os relatos dos fatos sociais,
produzidos pelos repórteres, contradiziam os valores dos mantenedores dos
jornais, a atmosfera da organização acabava por se intoxicar. A realidade,
então, graças à reportagem, passa a ser retratada como jamais fora.
Poucos documentos relatam, por exemplo, a liquidação sistemática
do povo inca, asteca e maia, na América espanhola, nos séculos XVI,
XVII e XVIII. O século XIX, pelo contrário, foi um tempo de
revelações. Todos ficaram sabendo das motivações reais de
aventuras bélicas como a guerra do ópio, que impôs comércio de
entorpecentes na China sob controle inglês, ou de estratégias
covardes, como o uso de metralhadoras contra o exército zulu, na
África do Sul, pela mesma Inglaterra[...]Em meio à propaganda de
sempre, surgiam por via da reportagem, os fatos reais. (LAGE, 2008,
p. 16)
Assim, como foi apresentado pelo pesquisador, o conceito de
reportagem, se valida dentro deste trabalho menos pela intenção de mostrar a
realidade do que pelo fato de que se esforça, acima de tudo, em fazê-lo. Como
essência, tem a busca pelo objeto a ser reportado e a relação do mesmo com o
máximo possível de variáveis que emergem dos conflitos e contradições do
ambiente social.
5.4 TÉCNICAS DE ENTREVISTA
A entrevista é parte muito importante dentro do processo da apuração
que o repórter fará a respeito de um tema, uma pauta, um assunto, enfim, a
reportar. A checagem das informações, naturalmente, será ação indispensável,
posto que, como vimos na seção anterior, uma reportagem é, essencialmente,
uma tentativa de retratar a realidade. Segundo Ana Estela de Souza
Pinto(2009), “uma boa entrevista depende também de pesquisa, observação e
documentação que se fazem antes dela, e da observação que se faz durante.”
E, ainda em Pinto(2009): ”Outro aspecto importante a ser lembrado é que a
entrevista é um relacionamento. Depende da sua capacidade de conversar. De
interessar-se pelo que o outro tem a dizer. Não se trata de uma máquina de
refrigerantes, em que você enfia uma moeda e ela devolve uma lata. Não basta
ter uma lista de perguntas e ficar esperando as respostas.” Estes pontos de
vista acerca da entrevista acabam estabelecendo uma conexão, um diálogo,
com o que apresentaremos na seção seguinte, ao tratarmos da História Oral.
Mas, desde já, o pesquisador destaca:
Entre as duas tendências extremas da entrevista, há um
antagonismo. De um lado, a entrevista aberta, sem questões
colocadas pelo entrevistador. Do outro, a entrevista fechada, feita por
questionário ao qual basta responder sim ou não. De um lado, as
respostas complexas e numerosas; do outro, as respostas claras e
simples. De um lado, uma entrevista de longa duração; do outro, um
questionário rápido. Sob um aspecto as pessoas implicadas –
entrevistado e entrevistador – têm uma importância capital, assim
como a natureza psicoafetiva do encontro. (MORIN, 2007, p. 63)
Se existe esse antagonismo, decorrente de uma situação que possibilita
a manifestação de duas extremidades, o pesquisador entende que há
necessidade de um esforço de atenção e sensibilização, tendo tais teorias em
mente, no sentido de captar da melhor forma possível aquilo que, na qualidade
de repórter, foi tratar de buscar. Porque tanto uma configuração extremista
quanto
a
outra
trazem
suas
respectivas
demandas
prescindíveis
e
indispensáveis. Como afirma Morin(2007), ”estes dois tipos extremos podem
competir:
o
pesquisador
superficialidade(questionário)
terá
e
que
o
escolher
risco
entre
o
risco
da
‘ininterpretabilidade’(entrevista
aprofundada); entre dois tipos de erro, entre dois tipos de verdade.” O que nos
leva a dizer que dentro de tudo que se discute sobre jornalismo literário, por
exemplo, sempre há o foco quase dominante sobre o aprofundamento. E, isso,
nos coloca diante de um terrível problema: segundo o que acabamos de
propor, via Edgar Morin44, existe uma incerteza inerente ao processo de
produção de uma reportagem por conta dessa dualidade que se impõe frente à
necessidade de simples escolha.
Entretanto, essa dificuldade que surge em decorrência das limitações
humanas frente ao desafio de retratar a realidade, não redunda em
impossibilidade, posto que a produção de livros-reportagens demonstra, ano
após ano, que tais técnicas de entrevista, apesar das dificuldades
demonstradas, fazem-se eficazes e úteis, tanto ao que se dispõem, quanto ao
que servem – no caso, primeiramente, ao jornalismo, mas, em maior amplitude,
à sociedade. Exemplos não faltam: desde clássicos, como “À sangue frio” de
Truman Capote e “O segredo de Joe Gold”, de Joseph Mitchell, a produções
mais recentes – e, igualmente significativas – como “Gostaríamos de informá-lo
de que amanhã seremos mortos com nossas famílias” de Philip Gourevitch e
“O rei do mundo”, de David Remnick. Em todos os livros citados, a entrevista
foi, indubitavelmente, usada como importante ferramenta à coleta das
informações e, portanto, como auxiliadora à reconstrução da realidade.
44 O mesmo Edgar Morin, ainda sobre a entrevista, no mesmo texto, no entanto, vai dizer:”há toda uma gama de
entrevistas, entre esses dois tipos extremos, cada um com uma problemática e eficácia próprias.”(MORIN, 2007, p. 65)
5.5 A HISTÓRIA ORAL
A História Oral, diferente da entrevista – dentro do jornalismo cotidiano -,
não procura buscar a notícia, antes, pelo contrário, numa etapa seguinte à
coleta de informações, o historiador que usa tal metodologia, como ideal, vai se
preocupar com a busca pela fidelidade àquilo que o significado das palavras
reserva(ALBERTI, 2007, p. 42). Essa, talvez, seja a principal diferença entre o
método da reconstrução histórica, tendo como base a oralidade, e a produção
jornalística cotidiana.
No entanto, é justamente nessa distinção que surge a principal
semelhança entre história oral e jornalismo literário – principalmente, quando
suportado no veículo livro-reportagem. Pois, como já foi discutido na
delimitação do tema deste trabalho, o livro-reportagem sob a forma estilística
do jornalismo literário, confere amplitude aos fatos expostos nas suas
narrativas. E o jornalista, sim, muito se assemelha ao historiador, quando
incumbido da tarefa de reconstruir a realidade, dispondo de tais ferramentas e
metodologia. Segundo Rouchou(2003), “não sobram dúvidas que o jornalista
detém técnicas que a rotina lhe forneceu para fazer boas e completas
entrevistas, com todos os limites éticos que essa tarefa encerra”, justamente
por conta da prática que tal profissional adquire por meio das demandas diárias
do ofício, no veículo que seja.
Sobre a subjetividade, que tal técnica de coleta de informações possa,
para alguns, trazer intrínseca à sua natureza, consideramos que a realidade
não pode ser observada a uma, ou seja, nossas percepções, invariavelmente,
captam apenas parcelas dessa mesma realidade. Ou, como aponta
Portelli(1997apud ROUCHOU, 2003):
A história oral oferece menos uma grade de experiências padrão do
que um horizonte de possibilidades compartilhadas, reais ou
imaginadas. O fato de que essas possibilidades raramente estejam
organizadas em [...] padrões coerentes indica que cada pessoa
entretém, a cada momento, múltiplos destinos possíveis, percebe
diferentes possibilidades e faz escolhas diferentes de outras na
mesma situação. Esta miríade de diferenças individuais [...] serve
para lembrar que, além da necessária abstração da grade das
ciências sociais, o mundo real é mais semelhante a um mosaico ou
patchawork de diferentes pedaços, que se tocam, superpõe e
convergem,
mas
igualmente
acalentam
uma
irredutível
individualidade. (PORTELLI, 1997, apud ROUCHOU, 2003, p. 88)
Outra observação pertinente, posto que nossa escolha pela metodologia
da história oral a coloca como fundamental dentro do processo de produção do
livro-reportagem, é que, assim como no jornalismo, a entrevista se faz presente
e imprescindível. Dessa maneira, o jornalista se coloca numa função bastante
semelhante a do historiador, com requintes de apuração e acurado senso de
investigação. “O trabalho com a metodologia de história oral compreende todo
um conjunto de atividades anteriores e posteriores à gravação dos
depoimentos. Exige, antes, a pesquisa e o levantamento de dados para a
preparação dos roteiros das entrevistas.” (ACERVO FGV, História Oral, 2013)
Outrossim,
quanto
a
essa
importância
da
história
oral
em
nossa
fundamentação teórica, é a proximidade que ela estabelece com a entrevista
intensiva45, apesar de demonstrar traços cuja semelhança remete à extensiva.
É um método que visa conhecer a vida, ou melhor, a experiência que as
pessoas extraem das suas respectivas vivências. Segundo Rouchou(2003),
baseados nas entrevistas podemos estabelecer “correlações entre os campos
de forças sociais” e, mais:
Entrevistar testemunhas dos fatos, privar de sua intimidade,
frequentar sua casa, passear por seus álbuns de fotografias, tomar,
talvez, um cafezinho, ou ainda emprestar um lenço para secar
algumas lágrimas é absolutamente fascinante. Apesar da
necessidade de um olhar crítico sobre os depoimentos, é inegável
também o envolvimento com esses indivíduos. Agora não são mais
frios documentos que se analisa, mas os personagens da História, ao
vivo, com a contextualização necessária para o melhor entendimento
das pequenas Histórias que vão compor o projeto maior.
(ROUCHOU, 2003, p. 12)
Em nossa pesquisa, essa proximidade do entrevistador com os
entrevistados se demonstrou extremamente eficaz, posto que várias das
testemunhas conheceram Anacleto. Assim, segundo Lidia Capelline de Lara 46,
por exemplo, “é uma história ruim, que aconteceu há tanto tempo, não é bom
lembrar daquilo”. Ou seja, para Lídia, o fato de alguém querer escrever algo
sobre a história que se reserva, em parte, na sua memória, representa um
esforço de sua parte em passar por lembranças dolorosas. Desta feita, disparar
45
Segundo Edgar Morin, “a entrevista intensiva pretende aprofundar o conteúdo da comunicação – diferente da
extensiva, que aprofunda informações, a fim de extrair dados estatísticos com maior precisão – e a nova psicologia
social caminha neste sentido. É quando o tetê-à-tête torna-se o elemento central da entrevista.”(MORIN, 2007, p. 63)
46
Declaração feita em entrevista concedida ao entrevistador, dia 30 de maio de 2013.
uma série de perguntas elaboradas e predeterminadas em um roteiro, poderia,
sim, indispor a testemunha. O que seria péssimo à coleta de dados e à
tentativa de resgate histórico.
6. METODOLOGIA DA PESQUISA
O pesquisador se valeu dos métodos de pesquisas exploratórias e
bibliográficas, na busca pelas informações necessárias à construção do
trabalho. Exploratórias porque, segundo Gil(1985), ”têm como principal
finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, tendo em
vista, a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para
estudos posteriores.” Ou seja, a reconstrução da história de Anacleto Vargem,
por todas as particularidades que já foram expostas neste trabalho, demanda,
sim, tais características metodológicas ao seu desenvolvimento. E, ainda
segundo Gil(1985), “pesquisas exploratórias são desenvolvidas com o objetivo
de proporcionar visão geral, de tipo aproximativo, acerca de determinado fato.”
Na seção 6.2 deste item, será demonstrado que há uma grande carência de
informações documentais acerca do nosso objeto de investigação.
Por se tratar de um tema pouco explorado, vimos essa necessidade de
aproximação do fato pela metodologia da história oral, que é um exemplo de
pesquisa de nível exploratório. Entrevistas não padronizadas, levantamento
bibliográfico e documental, portanto, foram os métodos usados à exploração do
tema. Sendo que as entrevistas e a pesquisa bibliográfica de modo especial,
uma vez que quase não há documentos sobre os fatos observados.
6.1 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA
No início da pesquisa, a fim de suprir a carência de conteúdos referentes
ao tema, como diz Duarte(2011)”para estabelecer as bases em que se vai
avançar, alunos precisam conhecer o que já existe, revisando a literatura
existente sobre o assunto”(p.52). Até por conta do grande volume de
informações sobre temas que poderiam se relacionar à nossa pesquisa, se fez
necessário revisar o que se apresentou como referência.
Visando manter-se em contato com o máximo de publicações feitas
sobre o tema desse trabalho, o pesquisador, ainda segundo Duarte(2011),
adotou o sentido restrito de pesquisa a fim de “identificar, selecionar, localizar e
obter documentos de interesse”(p.54). Além do uso de transcrições de dados
que permitissem ter os dados à mão quando necessários. Essa metodologia foi
aplicada tanto no desenvolvimento da pesquisa quanto na produção do livro,
posto que até a finalização do trabalho, o pesquisador revisava as leituras e
buscava por mais informações.
6.2 PESQUISA DE CAMPO
Inicialmente, o pesquisador realizou buscas na Biblioteca Pública do
Paraná, em jornais e revistas da década de 1950, basicamente. Como as
investigações não revelaram nenhum dado relacionado a Anacleto Vargem,
usamos, também, a pesquisa em plataformas digitais (o pesquisador do site
Google). Ao iniciar a busca, tendo as palavras “Anacleto” e “Vargem”
encerradas juntamente entre aspas, não indicou nenhuma relação com a
pessoa de Anacleto Vargem.
A pesquisa, a título de registro, foi realizada no dia 4 de junho de 2013.
Esse mesmo método havia sido aplicado há um ano, quando o autor
desenvolvia a pesquisa em caráter de pré-projeto. Os resultados indicados
àquela época se mostravam idênticos aos observados nesta, mais recente.
A pesquisa sobre Anacleto Vargem foi dividida em duas etapas. A
primeira, o autor realizou nos cinco primeiros meses desse ano. Foi quando o
pesquisador usou a metodologia da história oral e fez, portanto, entrevistas
segundo o tipo descrito por Morin(2007) como abertas47, ou seja, sem questões
colocadas pelo entrevistador. Apenas se indagava a respeito do que a fonte
sabia sobre Anacleto Vargem, e o entrevistado falava livremente sobre suas
memórias. Esse conteúdo foi gravado e transcrito durante os últimos seis
meses. No item “Apêndice”, o pesquisador anexou algumas entrevistas. Deu
preferência, naturalmente, apenas àquelas que usou neste trabalho, não
incluindo, portanto, todas as entrevistas produzidas.
Contudo, na segunda fase da pesquisa, tendo o pesquisador entrado em
contato com o historiador José Maria Orreda, recebeu orientações detalhadas
referente aos veículos impressos que poderiam conter informações sobre
Anacleto. Até essa fase, baseada quase que exclusivamente em depoimentos,
a pesquisa não identificar a localização temporal de alguns acontecimentos em
decorrência de imprecisão nas informações coletadas.
Por exemplo, a data da morte de Anacleto: 22 de abril de 1956. Essa
informação precisa foi colhida junto ao inquérito policial que encontra-se no
Fórum de Irati. Até encontrar tal dado, houve apenas controvérsia a respeito da
data. Ou seja, em função de um cruzamento de informações – o dado contido
no inquérito e o conhecimento do historiador acerca das publicações
contemporâneas ao fato – é que foi possível se chegar à checagem.
O pesquisador identificou novas possibilidades quanto à coleta de
dados, porém, novas viagens se fariam necessárias. Porque ao viajar até Irati,
acabou encontrando novas informações que apontam para possibilidades de
registros documentais em outras cidades da Região Centro-Sul. Além de
nomes e endereços de outras pessoas que se descobriu por meio do próprio
processo de investigação. Abaixo, o nome dos entrevistados para a
reportagem.
Relação com nome das fontes:
1)Juvenal Stroparo, 79 anos, Curitiba/PR;
2)Waldomiro de Lara, 81 anos, Curitiba/PR;
3)Licineo de Lara, 88 anos, Colombo/PR;
47
Conforme pode ser lido na citação do autor, no Referencial Teórico.
4)Lidia Capelin de Lara, 76 anos, Irati/PR;
5)Maria de Lara, 86 anos, Curitiba/PR;
6)José Stroparo, 76 anos, Irati/PR;
7)José Maria Orreda, 82 anos, Irati/PR;
8)Elias Brandalize, 67 anos, Irati/PR;
9)Dilson Brandalize, 41 anos, Curitiba/PR;
10)Maria Marcia Capelin de Lara, 41 anos; Cordoba/Argentina;
11)Pedro Capelin de Lara, 73 anos; Pinhão/PR;
12)Lucia Stroparo, 64 anos, Curitiba/PR.
13)Francisco de Almeida Ferraz, 95 anos, Pitanga/PR.
14)Amirto Menon, 80 anos, Irati/PR.
15)Natalin Dyniewiez, 59 anos, Irati/PR.
16)João Dyniewiez, 63 anos, Irati/PR.
17)Adélia Parteka, 74 anos, Irati/PR.
18)Gisléia Ferrante, 35 anos, Irati/PR.
19)Amilto Jachuk, 45 anos, Irati/PR
20)Telma Stroparo, 36 anos, Irati/PR
21)Fernando Von Rym, 85 anos, Irati/PR
22)José Francisco Stroparo, 89 anos, Irati/PR
Na segunda fase, o autor mapeou tais fontes e encontrou outras
possíveis de serem ouvidas. Houve o momento em que a entrevista aberta
dividiu espaço com a fechada, naturalmente. Afinal, não se pode esperar o
surgimento de datas, nomes e endereços completos de um relato espontâneo e
livre. Nas entrevistas anexas no apêndice é possível observar vários exemplos.
Ou seja, questões fechadas forma incluídas para obter dados precisos a
respeito dos personagens.
7. DELINEAMENTO DO PRODUTO
O autor sentiu a necessidade de escolher algumas das opções que
seguem nos tópicos abaixo, a fim de elaborar o livro-reportagem “Os cães
calam e o demônio passa: a jornada assassina de Anacleto Vargem”. Ou seja,
há um esforço na tentativa de buscar mostrar a história de Anacleto Vargem,
assim como sua trajetória, desde o primeiro assassinato que cometeu, até a
reconstrução detalhada do último: o próprio.
De acordo com o projeto original, duas orelhas serão colocadas. A
primeira vai conter um breve resumo com informações sobre o há no livroreportagem, e, a segunda com descrições de quem é o autor.
7.1 O PROJETO GRAFICO DE "O DEMONIO PASSA E OS CAES CALAM: A
JORNADA ASSASSINA DE ANACLETO VARGEM"
A parte conceitual do projeto foi desenvolvida a partir da construção do
personagem principal do livro, Anacleto Vargem. A cada capítulo ocorrem
descobertas acerca do personagem, daí nas capas dos capítulos nos quais o
próprio personagem assume a narrativa, partes do rosto se construindo. Uma
sugestão ao leitor, que vai descobrindo um pouco a.
Os capítulos foram divididos em duas estilísticas(nas imagens da página
55 deste trabalho é possível ver os exemplos do falamos nesta seção) quando há a troca de personagens no livro: os capítulos numéricos são o
repórter e, nas tituladas e com páginas pretas e fontes brancas, o assassino. O
autor determinou que a troca tinha ser de fácil percepção ao leitor, por isso a
troca de cores e de fonte de cada capítulo(infelizmente na impressão
apresentada à banca não houve possibilidade de colocar as páginas pretas por
indisponibilidade de gráfica que aceitasse o projeto dentro tempo determinado.
Assim, exclusivamente por problemas técnicos da grpafica, a versão que os
avaliadores da banca tem em mãos é inteiramente impressa em páginas na cor
brancas e fontes na cor preta).
As fontes utilizadas foram: geórgia para a reportagem e helvética para o
assassino, franchise bold para as capas. A capa do livro seria o assassino sem
os olhos - não foram encontradas fotos que registrassem o rosto, então, foi a
partir das características gerais da população do local onde se passa a história
e de descrições feitas pelo autor ao designer gráfico.
O icone é parte importante do livro, pois é uma interpretação metafórica
do livro, não se encontra o diabo dentro do livro, mas sim o medo que Anacleto
provocava nas pessoas(na página 56 deste trabalho é possível observar o
trabalho do designer na capa – com a imagem fictícia de Anacleto –; na
abertura do livro – com a imagem real do autor – e o ícone, presente em todas
as páginas da obra).
7.2 PERSONAGENS
Há anos a história de Anacleto Vargem vem, fragmentada, sendo
contada ao autor da pesquisa. Como já foi falado, os parentes do pesquisador
por parte de pai são oriundos do Pirapó. Assim, quando era ainda criança, o
autor, ouviu muitas coisas a respeito das ações de Vargem, por meio de breves
relatos ditos por tios, tias, primos e, principalmente, por seu avô, Frederico
Stroparo. Portanto, as mesmas características dos primeiros contatos com a
história, se repetem agora, no entanto, sob técnicas jornalísticas do New
Journalism e do Gonzo Journalism.
7.3 FOCOS NARRATIVOS
Toda, ou, quase toda a narrativa se dá na primeira pessoa. No entanto,
o narrador assume duas personalidades: a do repórter e a do assassino,
Anacleto Vargem. Os demais personagens são descritos por estes dois
narradores que interagem nos diálogos e abrem espaço para o ponto de vista
da terceira pessoa.
7.4 PÚBLICO ALVO E VEICULAÇÃO
O público alvo são pessoas que desconhecem a realidade do Pirapó de
Anacleto Vargem. Seja pelo deslocamento geográfico ou pelo afastamento
temporal, pois, como já foi dito, a história se encerra no ano de 1956, com o
assassinato de Vargem. Um público interessado por leitura, e, principalmente
por jornalismo literário e história do Paraná – mais particularmente, da região
central. Estudantes da área da comunicação social dos municípios de Irati,
Rebouças, Ignácio Martins e Pitanga, além de professores, basicamente. O
ambiente acadêmico é o lugar mais favorável a esse tipo de discussão que o
livro tenciona provocar.
A veiculação, visando atingir esse público alvo, será feita por meio de
eventos acadêmicos que abram espaço para feiras e exposição de livros. O
autor pretende inscrever o livro na lei de incentivo à cultura, visando produzir
tiragens maiores e poder, inclusive, promover um evento de lançamento e
distribuir em diversas regiões do Paraná, a princípio.
7.5 RECURSOS MATERIAIS E ORÇAMENTO
O pesquisador possui os equipamentos necessários à captação de
entrevistas: câmera fotográfica, gravador e filmadora digitais. Por outro lado,
existe a necessidade logística que, neste tipo de produção, inclui hospedagem,
passagens de ônibus e despesas com taxi. Numa estimativa recente,
abarcando todas as demandas, o pesquisador chegou ao valor de R$ 3.600.
Nessa cifra, já estão incluídos os gastos com diagramação e as três cópias do
livro.
8. CRONOGRAMA DE ATIVIDADES
Descrição da Atividade
Mês (relativo ao último ano de curso)
1
2
3
Revisão da bibliografia
X
X
X
Pesquisa de campo
X
X
Elaboração do relatório
monográfico
Banca de qualificação
Mapeamento de fontes
Entrevistas
Edição e verificação dos
dados
Elaboração do livroreportagem
Diagramação
4
5
6
7
X
X
X
X
X
X
X
X
8
9
10
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
11
12
Revisão e impressão
Apresentação do
produto/banca final
X
X
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho visou fomentar uma pesquisa, cujo objetivo principal foi
embasar um livro-reportagem sobre a história do assassino Anacleto Vargem,
morto pelo próprio cunhado no ano de 1956, no Pirapó, distrito de Irati, RegiãoCentro do Paraná. Assim, depois do período de leituras o pesquisador
descobriu que a prática força o território da teoria, como a invadisse. As
viagens, as entrevistas e a composição do livro são experiências muito ricas,
as quais, caso fosse a pretensão de agora exprimi-las, outro livro se faria
necessário.
Quanto ao resultado do trabalho, o livro-reportagem: tendo em vista à
resolução do problema proposto, o pesquisador buscou o resgate da memória,
a fim de escrever, ou seja, reproduzir jornalisticamente, a história de Anacleto
Vargem. Buscando demonstrar como o estereótipo se propaga de forma
dissimulada de obviedade pelo senso comum enquanto produto, e como a
comunicação participa nesse complexo processo, pela pesquisa. Mas, acima
de tudo, escrever com sentimento a respeito de uma história, buscando revelar
a emoção, antes de qualquer coisa.
X
Sendo o jornalismo, por tudo que se pode apreender, um instrumento
que atua fortemente na construção social de realidade, o pesquisador percebeu
não uma possibilidade de algum tipo de acerto de contas com o passado, como
que se intentasse corrigir algum tipo de injustiça, quanto à maneira que a
história se estendeu pelo tempo, basicamente na memória das pessoas. Pelo
contrário, o aprofundamento da pesquisa, ouvindo pessoas próximas do
assassino, apontou para o desvendamento de um ser humano apenas, cujas
ações, cobertas pela mítica representação do assassino sanguinário e
hediondo, possivelmente, tenha influenciado em parte imensurável o desfecho
da trajetória, tanto de Anacleto, como na de todas as outras personagens as
quais se relacionaram à dele.
Então, a intenção desta pesquisa foi buscar o máximo de informações e
também estabelecer um nível de comunicação mais profundo com as fontes. O
pesquisador, enquanto escritor de uma obra de jornalismo literário, buscou ser
a voz do personagem central. Pretensioso demais? Talvez. Mas, como se lê no
primeiro capítulo de “Os cães calam e o demônio passa...”, “Há uma ponte[...] e
só um jeito de descobrir se é realmente um meio de acesso: se arriscar de
peito aberto”. Quem sabe, mesclar gêneros, subgêneros e técnicas e os aliar
ao desejo de inovar não seja um meio de abrir novos caminhos à
comunicação? Por fim, nos esforçamos em vislumbrar não o que é evidente ou, entendido como evidência – mas a complexidade dos personagens e o que
nos aproxima, como pessoas, apenas. O mais livre possível dos estereótipos
perpetrados por, entre outras coisas, o jornalismo.
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11. APÊNDICE
O pesquisador reservou este espaço para anexar entrevistas que
tenham servido como base a alguma sustentação argumentativa dentro deste
trabalho. Os textos, que são decupagens de entrevistas gravadas no decorrer
dos meses de abril, maio, junho e julho de 2013, possuem as iniciais de cada
entrevistado como identificação que antecede a respectiva resposta. A palavra
“EU” identifica as perguntas e colocações do pesquisador.
11.1 ENTREVISTA DE JOÃO MAGATÃO
JM: Você quer saber a história desde o começo? Interessa, assim?
EU: Sim, pode ser...
JM: Então vou te contar desde o começo... ‘cê veja uma coisa: o Anacleto não
era um bandido. Ele era uma pessoa normal, igual nós somos trabalhadores,
ele era assim, igual nós... mas, depois daquele dia, perto da sapataria do Doca
Martins, que ele matou o Bidóca, a coisa mudou demais... porque, no Pirapó
mesmo, assim...de sair por ali, andando...cumprimentando todo mundo nunca
mais. Ele veio, num espaço ai...duns cinco ou seis anos...umas vezes, que a
gente ficou sabendo, pra visitar a mulher e os filhos, mas, escondido. Voltou
por último pra matá o Evandro.
EU: E o senhor o viu alguma vez?
JM: Pois então...foi nesses tempos que ele andava fugido. A gente morava lá
no Rio do Coro...ele aparecia lá, de vez em quando, pra pedi dinhero
emprestado do papai. E, depois, vi ele morto...eu tinha uns nove anos, na
época. Então, tudo que eu sei, na maioria, foi contado pra mim pelo meu
pai(Jorge Magatão)... ele era muito amigo do meu pai. Ele aparecia lá e dizia:”Jorge, me dá a tua cartera, aqui...” e ai meu pai dava a cartera pra ele, que
dizia: “- tá fraco de dinheiro, hein, Jorge?” e, daí, dizia o papai que ele tirava as
notas mais graúdas e deixava as miúdas...depois dizia: “- Tá, isso ai fica pra
você dá de comer os teus pançudos...”
EU: Mas...
JM: Ele fazia assim com quase todo mundo que ele conhecia. Fazia assim no
papai, mas fazia assim na casa do Basílio Valus, do nôno Stroparo... de todo
aquele povo, lá. E não desse pra vê! Depois, nos mudamos pra colônia Boa
Vista e, mesmo assim, ele ainda veio mais uma vez, na casa do papai, que eu
me lembre. Nessa vez, ele chegô pro meu pai e disse: “- você me dá um cavalo
forte, ai, Jorge. E me dexa posá na tua casa hoje...” sabe Deus o que tinha
aprontado. E, ele tinha fama também de sempre dexá um cavalo seco, magro
de fome e leva, em troca, um gordo. O papai dizia: “- Mas, Anacleto...eu to
fazendo a lavora ai...e você vai me dexá c’um cavalo fraco, home...” e ele
respondia: “- me veja o nome de argum que te queira mar, por aqui, que ficamo
quite, ué...mato quem for, pra te pagá...” e lá ia ele co cavalo bom do papai...
EU: Sabe alguma história de crime que ele tenha contado pro seu pai, João?
JM: Agora tava lembrando da vez que ele diz que matou um amigo, a mulher e
o nenê... parece que ele tava corrido, fugindo da polícia e paro na casa desse
pessoal, pra se escondê. Daí não sei comé que foi lá, acho que o amigo não
queria que ele ficasse lá...deve de ser, mas, na hora da janta, ele comeu, e o
amigo disse que ia emprestá um revorve pra ele, e que depois ele devia ia
embora. Daí quando o amigo truxe a arma, o Anacleto carrego e deu um tiro no
cara, outro na mulher e diz que a criancinha começou de choradera... ele
penso: “- essa casa é uns quinze quilômetro da vila...se eu dexá essa criança
aqui, sozinha com os pais mortos, agora...ela vai morrer também...”, daí diz que
ele foi lá no berço e sangrou o nenê...imagine? Matou o nenê e depois se
arrancou de lá... ele sempre falava pro papai, nessas épocas, que já tinha
matado 25 pessoas...
EU: Isso foi quando?
JM: Ah...uns tempo antes dele vir pro Pirapó dizendo que ia matá o nôno Santo
e o Ervandro...acho que em 54, decerto...mais ou menos por ai... eu era
pequeno demais, nessas época. Ele conto duma veiz que ele vinha fugido nuns
matagal perto da Pitanga e deu com uma mulher que vinha com a filha
pequena trazendo a marmita pro marido que tava na roça... diz que ele pediu a
comida pra ela e ela disse que não, que era por marido aquela, mas que ele
esperasse ela voltar que ela levava ele até em casa e dava de comê pra ele lá,
daí... diz que ele saco do revorve e deu um tiro na cabeça da mulher e outro na
filha pequena. Ainda disse que jogou os corpos no rio e que quando passou
numa bodega, uns cinco quilômetro pra frente, avisou o pessoal que viu um
homem matar uma mulher e uma criança em tal lugar e jogar o corpo no
rio...pros cara irem procura que eles iam achá...pense? Ele disse pro papai que
no norte ele matou muita gente que tinha terreno lá...lavrador, decerto...gente
que usava as terra quenem o pessoal das colônia, ali, no Irati... então, pra criá
porco, galinha, plantá uns pezinho de milho... e, os grandão que queriam
plantar café, num podia compra os terreno, pois essa gente não vende, né? Daí
eles empreitava com bandido feito o Anacleto de ir lá e matar o chefe da
família, porque depois eles chegavam junto da família – das viúva, na
certa...tudo sem estudo e pobre, ainda -
e ofereciam uma quantia lá e
compravam as terra. Tinha caboclo daqueles lá que chegava a ter 100, até 500
alqueires de terra...e usando um pedacinho só, pois era plantação no mais pra
vivê, ali, com a família... então o Anacleto dizia que se arrependia desses que
ele matava no meio do caminho, sabe? Mas, nas empreitada, dizia que nem
ligava, matava com gosto, até...
EU: Mas quem mandava esses crimes? O senhor sabe? Ele contava?
JM: Ah...ele dizia que era fazendeiros ricos, né...que tinha muitas terras,
mas...como o café crescia demais, precisavam de mais terra ainda...devia de
ser político...gente poderosa...vai saber. Ele só dizia que eram fazendeiros
muito ricos... gente do dinheiro gordo, ele dizia.
EU: Alguma outra...
JM: Você veja como é que são as coisas...parece que foi uma sina do meu
pai...que acabou sendo a sorte de tudo aquele povo, lá..da Boa Vista e do
Pirapó... eu vou contar pra você, mas acho que vô lembrar de um décimo
só...dai você tira as partes melhor e vê o que consegue fazê...
EU: Deixa comigo, João, mas...você dizia...
JM: Então... o papai carneava sempre algum boizinho e elevava ali no Rio do
Coro, pra vende, né? Pois eram tudo conhecido dele, sabe... e, ele chegou na
bodega do Pedro Bernardo, lá, de tarde...tinha vendido tudo a carne do
boizinho e tava sentado, tomando os trago dele... dali a pouco, encostou um
cavaleiro lá fora, papai foi olhá: era o Anacleto Vargem. “- Ô, amigo Jorge!
Você tá ai, é?” e diz que abraçou bem forte meu pai... e falou: “- Nem acredito
que é você, depois de tanto tempo...”, e o papai respondeu: “ – Pois é...quem é
vivo se vê, né?” diz que o Anacleto fico olhando pra ele, depois que o papai
disse aquilo e falou pro meu pai assim: “- Pois é, Jorge... eu to indo fazê uma
viagem, agora...ma, a coisa ainda num tá boa, sabe? Proique, despois que um
home põe uma ideia na cabeça, é meio ele executá essa ideia... eu já te conto
o que é, ma, vamo lá pra fora, vamo...vamo tomá uns trago comigo, meu
amigo!” Nisso, diz que ele arrancou de um baralho e jogou em cima dos
pelegos e disse: ”- Óia, Jorge...só tá dando os contra nessa minha viagem,
sabe? Só to perdendo, moí tudo meu dinhero. Então, to indo lá no Evandro...vô
matá ele...” e o papai se assustou, claro, e disse: “- Que qué isso, rapaiz?! ‘Cê
tá loco? Quando ‘cê matô o Bidóca, no Pirapó, aquela veiz, por acaso num foi o
Ervandro que crio a tua famía, home?” e o Anacleto respondeu que era bem
por isso que ia matar o cunhado. “- Porque ele pensa que ele é o pai dos meus
fio...o pai sô eu, que fiz...ele pode tê dado de comê, ma, o pai sô eu...e o
Ervandro morre hoje, Jorge!” O papai me contou, que uns dois anos antes,
ele(o Anacleto) havia mandado uma carta pro Evandro dizendo... “- Óia,
Ervandro...eu logo, logo, chego ai, no Pirapó, de novo...e dessa veiz, vô pra te
matá!” e coisas assim. O Evandro, decerto, pensou que era brincadeira, né?...
EU: E depois?...
JM: Bom, daí, nessa noite, ele ainda disse pro papai que além de matar o
Evandro, ele ia passar na casa do Dimas, que era um cunhado dele, e no nôno
Santo. Esses Dimas, dizia o Anacleto que não ia matar, porque ele achava o
cara tão imprestável que ia só dar uma surra. Só que ele dizia que ia ser uma
surra daquelas, não uma qualquer. Ia surrar esse Dimas pelado, na rua, pra
humilhar bem e machucar bastante, mas não matar. E no nôno Santo, era pra
pegar uma Winchester e dinheiro. Depois no Basílio Walus, pra trocar o cavalo
magro por um mais forte e gordo e, por último, na casa do veio Pedro Izidoro,
de quem ele sempre arrancava dinheiro, também. O papai disse que o
Anacleto ia fazer isso tudo e, conseguindo, aquela ia ser a última vez que
alguém dalí teria visto ele...ele dizia “- Ói, Jorge, despois que’eu pegá tuda
essa dinherama e matá quem tenho que matá, vô me desligá dessa gente.
Nunca mais vorto pra cá e ninguém daqui vai me vê. Você vai sê o úrtimo,
Jorge!”
EU: Mas...e o que seu pai dizia sobre esse fato do Anacleto ter contado tudo
isso e não tê-lo matado, em seguida?
JM: Pois é... o papai achava que ia morrer, também. Ele acredita que foi pra
não ter que matar mais um, que o Anacleto incentivou tanto um porre para os
dois, naquela noite. O papai dizia que o Anacleto praticamente obrigou ele a
beber umas duas garrafas de pinga – e ele tomou junto. O papai dizia que eles
saíram junto da bodega. Como dalí até a Boa Vista dava uns cinco quilômetro,
papai ficou com medo e achou que ia ser ali mesmo, no caminho, que o
Anacleto matava ele. Era até engraçado de ouvir o papai contar, sabe? Ele
dizia que ficava pensando assim ”- Desgramado...agora, sozinho co’esse diabo
aqui...ele vai me matá! Ele vai me matá!”(risos) Daí tinha um compadre do
papai que morava na saída do Rio do Coro e eles iam passar bem na
bifurcação dessa saída. Diz que o papai falou pro Anacleto: “- Óia,
Anacreto...eu vô ali no compadre José Manera, tomá um chimarrão co’ele, ‘cê
pode segui sozinho daí...”(risos) diz que o Anacleto falou pra ele: “- Escuita,
Jorge! “Cê tá com medo d’eu, é? Pode ir lá, num tem pobrema. Te espero lá no
portão da Boa Vista! Óia aqui, ó!”, e diz que mostrou dois litrão de pinga pro
papai, “- Nóis tem tudo isso aqui pra bebê ainda hoje, Jorge!”...Olha, foi a
alegria de todo aquele povo lá, essa do papai, sabe?
EU: Mas, e daí, João, o que aconteceu depois?
JM: Pois o papai foi nesse compadre dele e demorou o mais que pôde – eu
acho que ele não falou nada pro José Manera, pois, todo mundo se cagava de
medo do Anacleto. Sei lá que história que ele andou dizendo pro compadre
dele, lá..., ele dizia que tinha contado tudo; e o José falou pra ele não voltar lá
de jeito nenhum. Diz que o José dizia pra ele: “- Jorge, ele se arrependeu de tê
te contado do prano dele...ele vai te matá, num vorte lá...” Só sei que ele saiu
da casa desse homem era tipo uma meia noite, já. E, bem certinho, como o
Anacleto havia prometido, tava lá ele – o Anacleto – numas hora daquelas –
daí já devia ser uma hora da madrugada -, esperando meu pai, lá na entrada
da Boa Vista, com as garrafa de pinga. Diz que tava com o pelego largado no
chão, os arreios...tudo largado. E mandou o papai amarrar os burros da
carrocinha que ele tava porque eles iam beber toda aquela pinga antes de mais
nada. O papai disse que tentava convencer o Anacleto com umas conversa de
“- Ma, se nóis tomá tudo essa pinga nóis vai caí, home! Então vamo lá pra
casa. Bebemo essa pinga lá e você posa lá, tamém. Daí nem percisa ir lá matá
o teu cunhado...” e o Anacleto não queria nem saber dessa conversa...diz que
dizia que matar o Evandro ia ser uma satisfação que ele não abria mão. Daí ele
fazia meu pai tomar aquela pinga meio que na marra – porque o papai fazia
que tomava, mas cuspia.”- Ah! Você num tomo nada!” Pois, diz que o Anacleto
fazia ele tomá no gargalo da garrafa pra ver as borbulha e o nó da garganta
mexer. E ele tomava, também. E foram tomando até acabar com toda aquela
pinga. Meu pai ficou quase desacordado e, quando acabou a cachaça, papai
dizia que só lembrava do Anacleto colocando ele na carroça, porque nem
andar o papai conseguia mais, naquelas altura. Estava chovendo muito,
também, naquela noite. O Anacleto ia tocando, do cavalo que ele estava,
mesmo, os burrinho que puxavam a carroça do papai. Ele só deixou meu pai
quando chegaram no portão de casa. Daí, decerto, ele não quis descer, largou
a carroça com o papai dormindo dentro lá na frente. Mas os burros
empurravam a porteira com a cabeça e fez barulho. Eu era pequeno, mas
lembro: a mamãe acordou, também e veio me chamar: “- João, levante que a
carroça do teu pai tá lá na frente, ma, só tá a carroça, que o teu pai num tá lá...”
porque ela não via o papai, pois...tava deitado, dormindo. Sei que fomos lá, eu
e mamãe...os burro com a cabeça enfiada entre as trave do portão e o papai
caído, lá, dentro da carroça... daí recolhemos os burros e a carroça debaixo
duma cobertura, tipo duma garagem, e a mamãe nem tirou ele de lá: colocou
umas coberta por cima e deixou ele dormindo lá mesmo. No outro dia, era
umas seis horas da manhã, o papai entro em casa e chamou a mamãe.
Mamãe levantou, fez um chimarrão e eu escutei quando o papai falou pra ela:
”- Óia...o que vô tê contá pode tê acontecido, ma, pode que não...” e, ele pra
minha mãe, foi assim, assim e assim...e conto tudo...a história inteira que o
Anacleto tinha contado pra ele, e como que foi com a carroça e as garrafas de
pinga e tudo...
EU: E qual foi a reação da sua mãe? Afinal, era filha de um dos ameaçados, o
Santo Stroparo...
JM: Ah...mamãe ficou quase loca...imagine!? Agora, eu fico pensando se meu
pai não tivesse aparecido lá, na bodega, aquele dia...hein? Pense! Ou,
qualquer outra coisa que acontecesse...sei lá...o Anacleto já matar ele por ali,
mesmo... não beber até ficar totalmente embriagado... meu Deus! Ia ser uma
matança naquele Pirapó, disso você pode ter certeza! Tá na cara que ele ia
matar o Evandro, depois ia matar o nono, depois o Basílio Valus, o Dimas...o
Pedro Izidoro... fora as mulherada, as criançada, moça, moço...que tivessem
pela frente, nas casas. Ele ia fazer uma chacina ali naquele lugar. Eu acho que
isso é coisa de Deus, sabe? Ter colocado meu pai, ali, naquela hora, naquela
bodega... só pode ser Deus. E o papai era inspetor de quarterão... daí, quando
deu umas sete horas, um pouco mais, chegaram lá em casa pra avisar da
tragédia. Disseram pra ele que o Anacleto tinha sido morto pelo Evandro e que
o corpo tava lá...e tal...que era pro meu pai ir com eles pra lá.
EU: E você foi junto de seu pai, até lá? Você viu o Anacleto morto.
JM: Uhum...fui. Chegamos lá eu meio que de longe já vi o Anacleto estirado,
todo sujo de sangue, embolado numa capa...tava que parecia um porco
enlameado no chiqueiro. Colocaram o corpo na carroça do papai e o José
Stroparo foi junto, também. Pois sabe que depois o papai foi limpar aquela
sanguera das tábuas da carroça, teve que raspar com o machado, porque não
parava de verter sangue. Daí foi uns dias assim, no final, arrancou todas as
tabuas e pôs outras, novas. NÃO PARAVA MAIS DE VERTER SANGUE DAS
TÁBUAS, VOCÊ ACREDITA? Isso eu vi, ninguém me contou. Fora que depois
começou a acontecer umas coisas bem estranhas. Era um tal de carroça
amanhecer
tombada...bateção
de
balancinha
pelas
parede
daquela
garagem...o papai chegava a abrir a janela com a espingarda na mão, pra se
acontecesse de ser alguém já estar preparada, mas, daí, não era ninguém...
ele já deixava a carroça sem nada dentro, livre, vazia...pra ver se acabava o
barulho de noite. Não adiantou, os barulhos continuavam...
EU: Mas, e daí? O que aconteceu?
JM: O papai foi lá no Pirapó, atrás de um tal de compadre...não!, compadre
não...era o padre Vitório. Pois o papai andou até vendo o Anacleto, numas
noites, lá...perto da carroça...
EU: E o que você acha que era?
JM: Ah...tinha que ser uma “visage”, né,... papai não ia mentir. Ele tremia
inteiro, quando essas coisas aconteciam. E a gente mesmo, escutava os
barulhos, lá, na carroça...de noite...
EU: E o que disse o tal Padre?
JM: Ele não era do Pirapó, sabe? Ele vinha ali, uma vez ou outra...porque já
tinha fama de ser bom com esse tipo de aparição. Um mês depois, dois, no
máximo...ele apareceu por lá e o papai levou ele até em casa. Rezou umas
rezas lá...fez a gente rezar junto e queimou uma vela, debaixo da carroça...
EU: E?
JM: Parou com tudo. Nunca mais tivemos problemas. O padre disse que aquilo
era porque o Anacleto não tinha paz...tinha uma vida atormentada...essas
coisas. Sei lá.
EU: E quem você acha que matou o Anacleto? O Evandro ou o Nico?
JM: Pois é... eu acho que... eu cheguei bem cedo lá. Eu não vi o Evandro
porque ele já estava escondido no paiol, quando chegamos. Mas o pessoal já
estava dizendo que o próprio Evandro dizia ter sido o Nico, quem deu a
primeira facada. Só que ele, Evandro, ia assumir o crime, como autor. Bêbado
que tava o Anacleto, mas, era de briga. Tava em cima do Evandro, que só
conseguia se defender, segurar o punhal. Dizem que o Evandro contava que o
punhal que o Anacleto usou, tinha um cabo em “S”. E foi bem numa dessas
curvinhas do “S” que o Evandro encaixou a mão, sem querer, quando o
Anacleto desferiu o golpe – que teria sido fatal, na certa, caso não acontecesse
mais essa coincidência em favor de todo mundo. O pessoal dizia também –
dois colonos lá, no dia, falavam isso e eu escutava – que o Evandro, assim que
deu as facadas finais no Anacleto, saiu na porta e começou a gritar: ”- Venham
aqui! Venham ver o tatu cavalo beeem gordo que eu matei! Venham!” Os
colonos se chamavam Osvaldo Berger(“Vardão Berg”) e Nicolau Wioretchuka.
Daí, diziam também que mesmo depois do monte de facadas que o Evandro
deu o Anacleto ainda se batia e ameaçava se levantar de novo. Foi daí que
saíram com a história que o Evandro deu mais de cinquenta facadas nele,
porque, ao ver que o homem se levantava, o Evandro foi lá e, daí com as duas
mãos – em uma, a faca e na outra, o punhal – desferiu uma enormidade de
golpes.
Sabe, ele tinha o costume de dizer algo, mais ou menos, assim: “- Óia, eu
tenho muito medo de uma ponta de faca, proique de bala de revorve num tenho
medo nenhum!”, porque, segundo ele mesmo, cansou de ser alvejado e nunca
foi ferido. Mas, isso não é bem verdade, proque ele também contou de um tiro
no pé, que levou certa vez. Ele dizia ter feito um feitiço, num desses canto que
ele andou, por ai, e ficou com o corpo fechado.
EU: Teu pai contou de alguma situação na qual Anacleto teria se envolvido em
outro estado, como no Rio Grande do Sul, por exemplo?
JM: É...ele disse isso pro meu pai, sim. Disse que foi até lá, mas as coisas não
deram certo...foi dessa vez que ele veio pro Pirapó. Mas nunca contou pro
papai... pra dizer a verdade, ele só falou que foi a partir de Campo Mourão,
pertinho de Pitanga, que a matança começou. E, de lá, foi pro Norte. Pra fazer
os crimes encomendados, que, segundo ele mesmo, foram muitos. E pensar
que era um cara amigo de todo mundo, segundo dizem, até, boa gente... antes
de matar o Bidóca. E por causa de um jogo de baralho, ainda. Parece que ele
ficou doido, depois...não parece? Eu acho que tem...
EU: E qual é a lembrança mais clara e forte, talvez, que o senhor tem, do dia
que Anacleto morreu?
JM: Ah...é a da vista dele deitado, né...naquela sanguera. Da capa, do
chapéu...tudo aquilo junto, eu acho. A cara dele tava muito inchada... tava
beiçudo, narigudo...carudo... nem sei se aquela não era a cara dele, mesmo,
porque eu não tenho lembrança dele vivo. Lembro de escuta o papai conversa
com ele, mas...nem via a cara dele, direito...sempre de chapéu...olhando pra
baixo e de saída ligeira, sabe? Eu lembro muito bem do sepultamento. O papai
contou pro Dimas o que havia acontecido e o Dimas veio, pra ver... não sei
quem foi que cavou a cova, mas, era uma cova bem rasa, sabe? E, o pessoal
jogava terra, em cima do corpo...nisso esse Dimas veio e começou a pisotear
aquela terra meio fofa ainda, que tava sobre o cadáver...ele pisava e falava: “Você queria surra eu pelado, desgraçado? Agora sô eu que to aqui te
sovando!”, disso eu nunca esqueci, dessa cena do Dimas sapateando em cima
do Anacleto.
EU: E você sabe o por que do apelido “Vargem”?
JM: Ouvi dizer que é porque ele passava muito tempo com uma família que
tinha ali no Pirapó, os “Vargem”, mas,... já ouvi também dizerem que é a cidade
deles...quer dizer, de onde vieram. Não sei com certeza.
EU: E como era essa amizade dele com seu pai?
JM: Muito amigos. Ele posou algumas vezes lá em casa. Por isso que te digo:
esse homem, antes de matar o primeiro, era uma pessoa boa, ninguém
imaginava que ia se tornar num assassino, mais tarde. Era meio folgadão, é
verdade, porque lembro de uma vez que apareceu lá e o papai tinha matado
um porco. Papai convidou ele pra ficar e comer o assado, mas, ele tava era
atrás de grana. “- Que comê porco que nada, eu não vim aqui pra comê tua
comida, Jorge, ma, se tive uns trocado na cartera ai, eu quero!”, ele disse. A
polícia, sabe, quando ouvia contarem onde tava o tal do João Moraes, o
Anacleto e o Jorge Martins, desviava. Não sei se por medo ou o quê, mas,
acontecia, sim, desse jeito. O primo dele, esse Jorge Martins de Lima, era
bandido pior até e começou bem antes do Anacleto, a matar. Só que
desapareceu rápido. Eu soube de umas dele, também. Dizem que só numa
pegada, na Reserva, matou seis ciganos, a troco de nada. Na certa discussão
boba lá, por causa de qualquer coisa, mas...o filho desse Jorge casou com
minha irmã, inclusive, a Luiza. Mas, sei que ele foi lá na Barra do Gavião, pra
matar um sujeito e deu com a cara na porta. O homem não estava em casa. Só
que atendeu foi um irmão do encomendado. Pois, esse Jorge, olhou pro cara e
falou: “- Ah, ma, se teu irmão num tá, vô matá você mesmo, pra num perdê a
viagem!” e deu um tiro na cabeça do rapaz, já penso? Tinho Deda, era o nome
do homem que ele procurava. Eu acho que aquelas épocas eram tão violentas
porque o pessoal andava muito armado, sabe? Todo mundo andava com um
revolver na cinta, com um facão... e nos bailes, então? Até que morria pouco,
se for pensar bem. Era costume das pessoas, lá, andar armado. Veja meu pai,
por exemplo: nem cagar ele não ia sem o revolver na cinta. Andava direto com
o trabuco. Ainda ele era inspetor, mas...não tinha essa. Eu ia nas festas da
igreja e via aqueles velhos com aqueles revolvões na cinta, dançando no salão,
armados... pra que? Até quando a polícia chegava... você pensa que eles
falavam alguma coisa? Era normal exibir armamento, naquela época, lá
naquele lugar. Por isso que quando saía alguma briga era certeza que alguém
morria.
EU: Seu pai morreu do que e quando, João?
JM: Ele morreu de infarte. Faz uns trinta e poucos anos, ai...ele morreu em
1975. Morreu novo... devia ter uns 55, no máximo. Ele era agricultor, como a
maioria das pessoas lá. Eu ajudava. Depois fui embora. Porque naquele tempo
a lavoura não dava nada, era só pra viver. Hoje tá bom, o pessoal consegue
crescer no campo. Existem equipamentos e tem como comprar. Naquele tempo
era só na base do aradinho... imagine?!
EU: E você saiu de lá quando?
JM: Quando eu tinha uns 27 anos, mais ou menos...28, no máximo. Casei com
20, então...ainda vivi um bom tempo lá. Se eu soubesse que não ia valer de
nada, tinha saído antes, teria vindo bem antes pra Guarapuava. Vendemos
tudo o que tínhamos lá. Eram 12 alqueires, no total. Mas todo mundo naquela
época tinha mais ou menos isso, sabe? Daí os que foram ficando e compraram
as terras baratas de quem ia saindo, hoje, por exemplo – se plantou soja -, tá
montado na grana. Em 1975, quando saí de lá, vendi 300 sacos de feijão. Era
bastante, pro nosso tipo de produção e eu trabalhava muito, também. Eu era
um produtor médio, pra região. Eu tinha sempre dois camarada me ajudando,
só que o arado era na base do animal, né?! Então...era um tipo bem atrasado
de produção, não tinha jeito. Pra você ter uma ideia, eu juntava todo o dinheiro
de uma safra e colocava no banco. Daí você ia usar aquela verba pra viver e
comprar mais coisas pra semear uma nova safra. Antes, bem antes – nos
últimos tempos – de colher novamente aquele dinheirinho já tinha acabado.
Pense na dificuldade que não era. Ano atrás de ano, a mesma coisa. Mas, a
gente dava um jeito e ia vivendo. Eu até tinha um Jeep e já ia comprar uma
roçadeira. Os Camilo e os Grubowsky, hoje são “bicho-véio48”, lá, mas, no
meu tempo, eram menores que nós. O que mais me motivou a ir embora, foi
um atrito com meus cunhados. Eu não poderia continuar lá, porque, do
contrário, podia acabar em morte. Daí, falei com minha mulher e decidimos nos
mudar para Guarapuava. Escolhi viver a vida sem me preocupar tanto com a
posse, ou com as conquistas materiais. Eu acredito que escolhi bem, estou
satisfeito.
EU: Vocês eram em quantos, João?
48
Expressão equivalente à nossa “por cima da carne seca”, ou, “rei da cocada preta”. Significa que a pessoa está
muito bem, principalmente, na área financeira.
JM: Papai, mamãe...quatro filhos homens e duas mulheres. Apenas a Lúcia
Magatão, dos irmãos, já morreu. A Lúcia Brandalise, depois que se casou com
o Daniel Brandalise, no Rio Preto. Os nomes, são: Lúcia, Luiza, Adão, eu –
João, Silvio e o Antonio.
EU: Não teve um de vocês que explodiu um frasco com pólvora...?
JM: Sim! É o filho do Adão, o Augusto – dizem “pórvinha” pra ele. Na época ele
ficou muito mal, quase perdeu a visão de um olho – quase arrancou o olho, na
verdade. Mas fez tratamento e recuperou 30%. Sabe que esse rapaz está
riquíssimo, hoje? Tem fazenda, uma empresa com mais de sessenta
funcionários...tá cheio de dinheiro.
EU: E ele foi brincar com pólvora, quando garoto? E...
JM: É...como dizem: piá é piá, né? Eles moravam nas proximidades de uma
fábrica que fazia uso de explosivos. Essa empresa cedia casas pros
funcionários – para uns poucos, apenas. Mas era grande a rotatividade, sabe?
Então, num desses “entra e sai”, algum ex-funcionário “deixou” um vidrinho
cheio de pólvora no quintal. E ele foi com uns amiguinhos brincar lá e acharam
a pólvora. Diz que tentou explodir várias vezes com fósforo, mas a pólvora não
explode assim, na chama direta. Daí ele levou o frasco pra casa e colocou uma
brasa de carvão em cima. No que ele se aproximou pra assoprar a brasa a
pólvora explodiu e jogou ele contra a parede. E partiu a cara dele no meio,
claro. Mas o pai dele, que é o meu irmão mais velho, o Adão, também fazia
dessas. Decerto que o “Pórvinha” puxou o pai, na traquinagem... uma vez a
mãe tava no tanque, lavando roupa – acho que tava com a Lúcia bebê, se não
me engano – e o pai tinha espingarda tipo bacamarte, sabe?, daquelas que se
soca a pólvora direto no cano...então...sempre tinha pólvora em casa. E o Adão
nesse dia aproveitou a hora que a mãe foi lá pro tanque – que ficava bem longe
da casa, perto do mangueirão dos porcos – e pegou um punhado daquela
pólvora que o papai reservava pra usar na espingarda e fez um rastro, no
assoalho da cozinha. Impressionante, eu acabei de lembrar: ele fez a mesma
coisa que o filho depois ia fazer: pegou uma brasa, depois de muito tentar com
o fósforo, e jogou em cima daquele rastro... e foi só o POWWWWW na cara
dele. Partiu a testa...queimou bastante o rosto...olha, você tinha que ter visto.
Daí você pense no susto da minha mãe...ouviu um estrondo daqueles e daí a
fumaceira saindo da casa, com a filha bebê lá dentro...e daí dá de cara com
filho tudo arrebentadado, sangrando com a cara desfigurada...hoje a gente ri,
mas na época pelamordedeus, viu? Ela passou mal, mesmo. Quase morreu
com o susto...pois, quebrou vidro das janelas, nas prateleiras...aquelas
compotas que faziam antigamente...
EU: E você sabe o por que desse “ão” no seu sobrenome? Porque em italiano
não existe esse “~”, certo?
JM: Ah...isso ai, é... o pessoal dos cartório que já iam acabando com a vida
antiga dos imigrantes já na chegada, né(risos)? É até de admirar que existam
nomes de poloneses escritos de modo correto... os italianos ainda eram mais
fáceis. Só que nesse caso, pelo menos pro pessoal do cartório em Campo
Largo, não foi. Acho que o nome original era “Magatoni”, ou algo parecido. Mas
no Brasil virou “Magatão”...(risos)
EU: Então, acho que é isso seu João...
JM: Ah! Lembrei: escute essa: tinha o veio Pacífico, zelador do cemitério, lá no
Pirapó, que contava de um rastro de pegada que ele viu no carreiro, mas que ia
até a entrada só, depois voltava. Porque quando chovia lá naquele lugar virava
um barreiro desgraçado. Ele achou estranho aquilo, sabe? Do rastro que não
entrava no terreno do cemitério. Daí, tinha o canto onde enterraram o
Anacleto,... um pedaço que ninguém chegava perto, ninguém ia lá. Não sei se
você sabe, mas, o Anacleto havia colocado dentes de ouro em toda a boca. Sei
lá por que ele fez isso, mas, dizem que era assim mesmo. Dentição completa
de ouro. E um dia, depois de ter visto as pegadas, esse Pacífico chegou no
cemitério e viu que haviam retirado o corpo do Anacleto e cortado a cabeça!
Imagine?! Deve ter sido os policiais de Irati, que sabiam dos dentes... vieram
de madrugada, desenterraram o corpo, deceparam a cabeça e a levaram
embora, pra extrair os dentes, depois. Pode? E não foi já, ali...pelos dia da
morte...isso foi uns três meses mais tarde. Desenterrar um corpo já não é coisa
pra qualquer um. Só ai, no desenterrar alguém, já é loucura e ninguém faz uma
coisa dessas. Mas, daí, além de desenterrar, cortar a cabeça de um corpo já
apodrecido e levar essa cabeça embora, pra depois, arrancar os dentes! É
muita maluquice e coisa macabra junto, não?... e esse zelador, o Pacífico, era
foda, também.
EU: Por que?
JM: Lá em Irati dá um tipo de tatu, o tatu cavalo. E esse bicho cava onde tem
cemitério, nos túmulos. Não sei se come alguma imundice dos cadáveres,
mas...que entra lá, entra. E esse veio matava esses tatu, e comia!
Pelamordedeus, homem!!!! Tá loco, me dá um ruim só de pensar...
11.2 ENTREVISTA DE LICINEO DE LARA
EU: O senhor está em Curitiba há quantos anos seu Licinio?
L: Há 52 anos, já. Eu vim de lá com 34, 35 anos...
EU: O que o senhor a respeito da história de Anacleto?
L: ...LEMBRO DE MUITAS COISAS. Ele matou um homem no Pirapó,
chamado Alcebíades Machado. Conhecido por Bidóca. Esse homem foi
delegado em Gonçalves Júnior. Quer dizer, delegado “calça curta”, sabe?
EU: Hum...
L: é..., mas, essa história foi o seguinte: “eles” eram acostumados a jogar
“truque”, daí esse Bidóca veio ao Pirapó e se achou com o Anacleto e
começaram a jogar... como ficaram até altas horas e o Anacleto ganhou muito
dele... agora eu nem sei se ele não quis pagar ou não podia pagar...sei lá,
como foi bem certinho o rolo, mas, que foi no jogo, porque perdeu e não pagou,
foi... o Anacleto deu só uma facada no peito. O Homem morreu sentado no
canto da cerca. Daí, dizem que o matador fuçou nos bolsos do morto e o que
achou levou...então, “cobrou a dívida”.
EU: o senhor conheceu bem o Anacleto?
L: Conheci, sim...ele vivia por lá(no Pirapó)...
EU: mais ou menos...vcs teriam hj a mesma idade, seu Licineo?
L: não, não... ele era mais velho. Ele era picareta, entende? Vendia cavalos...
fazia negócios, pequenos negócios... tinha um italiano lá, o Pedro Florindo –
até é parente do teu Bisavô, o véio Santo Stroparo...acho que primo,
mas...bom! – o Anacleto foi inspetor de quarteirão(uma espécie de Xerife)...e
esse italiano – que lutou na segunda guerra mundial – estava lá no Guamirim.
Eu comecei a escutar aquela gritaria... um sai aqui, outro ali...e, no que eu
pude sair pra ver o que era... era esse Anacleto, arrastando o Pedro Florindo
pra cadeia. O delegado do distrito era o Angelo... Angelo... esqueci o resto do
nome desse delegado, pegou e... “Mas não há motivo pra prender esse
homem, Anacleto...”, e, eu, acredito que ele disse isso porque era italiano
também e meio de acordo com os cara lá, da segunda guerra...meio que amigo
do Pedro, eu acho. Inclusive um alemão com o qual trabalhei, tinha isso
também, sabe?... simpatizava com os nazistas. Quando matavam um oficial
inglês ou americano, por exemplo, ele oferecia um jantar pros parceiros. Por
outro lado, se os aliados matassem um general alemão, ele prestava uma
homenagem pública. Bom. Sei que daí, esse Angelo não queria dar
autorização pro Anacleto prender o Pedro. E o italiano gritava assim: “Me sorte,
Anacreto! Me sorte...eu não devo nada, eu não fiz nada! Eu não sou comunista,
eu não sou nada disso...” e o Anacleto gritava junto: “Você é um vagabundo,
não quero saber se é judeu, comunista, nazista...você vai é pra cadeia!”. E o
Pedro, daí, apelava: “Você se lembra, Anacreto? Que eu matei a fome da tua
famía!? Matei a fome dos teus fio, lá em casa!! Lembra quando vocês não tinha
comida e eu mandei um monte de coisa pra vocês?!” Isso tudo em praça
pública. Então, isso aí, mostra que ele era meio vadiozão, né? Não levava em
conta essas coisas de família...
EU: O Anacleto?
L: É, o Anacleto... ele vivia lá, com uns negócio estranho com um, coisa
enrolado com outro... ele nunca matou ninguém antes do Bidóca. Mas sempre
foi valentão. Todo mundo tinha medo dele.
EU: como ele era fisicamente, como era o tipo físico dele, seu Licineo?
L: um tipo moreno, tipo bugre. É, tipo um bugrinho... não era alto, mas era
muito forte, parrudo. Ele era casado com uma parente minha, sabe? A
chamava-mos de Nega. Ela era irmão de um homem chamado Evandro
Capelin de Lara, que foi quem o matou, e matou pra não morrer...
EU: depois que o Anacleto matou o Bidóca, ele fugiu?
L: Não, ele ficou lá mesmo, escondido...
EU: E por que ele não foi preso?
L: a polícia nem veio.
EU: Mas não tinha policias no lugar?
L: Tinha, com certeza, mas ninguém veio...
EU: Hum...
L: Então... ele foi lá pras água mineral...no terreno do Abib Mansur. Perto de
Irati...uns oito quilômetros. E ele ficou lá, escondido... Depois, ele veio de novo
pro Pirapó, uns três quilômetro retirado do centro; e o Evandro mandava
comida pra ele. O piá que levava. Esse piá era afilhado dele, inclusive.
EU: E como se chamava esse piá?
L: Nico. Tonico. Era o Antonio, apelidado de Nico, Tonico...
EU: esse mesmo ajudaria...
L: Foi esse mesmo que depois ajudaria o pai a matar o Anacleto, sim. Eles
estavam se atracando na luta, porque o Evandro também era forte. Só que o
Anacleto tava por cima. Daí esse guri, o Nico, veio com um pedaço de pau e
deu na cabeça do padrinho. Depois o Evandro picou ele de facada. O Anacleto
dizia, antes da briga começar: “eu não vou dormir nessa casa. Eu vou dormir
no paiol, porque se alguém vier atrás de mim, eu tenho tempo de escapar.” E o
Evandro dizia pra ele: “Mas, você, Anacleto, fugindo num cavalo branco
desses? A gente quando tá fugindo de alguma coisa usa cavalo escuro...” e
Anacleto disse pra ele: “É...MAS, COMIGO NÃO TEM! Se aparecer qualquer
coisa eu viro no guede!
EU: Viro no guede!? O que é isso?
L: Ah...é...”Eu viro num bicho!”, coisa assim, entende?
EU: Ah, tá...
L: Foi aí que o Evandro o convidou para entrar. A Moça(Isabel, esposa de
Evandro e irmã do Anacleto) tava fazendo café. Isso foi na páscoa, né?,
então... na cozinha tinha o leitão, pra assar no outro dia, porque isso foi à
noite, de madrugadinha, dizem... então, tava tudo meio que por ali, faca,
facão... tudo meio que por cima da mesa. E eles se sentaram pra esperar pelo
Café. Nisso, a Moça deu uma cuia com chimarrão por Anacleto e disse: “Toma
esse chimarrão enquanto eu faço o café. Tava viajando, deve de tá com fome.
Faço um pedaço de carne e você come com pão e toma o café que to fazendo.
Toma esse chimarrão, aí, enquanto espera.” E o Anacleto nessa hora, olahndo
pro Evandro, deu um tapa na cuia e gritou: “Eu não vim aqui pra toma café nem
chimarrão, eu vim aqui pra te matar!” E se atracaram numa luta. O Analeto
armado com revolver e com a faca na mão. O Evandro segurava, tentava ir
segurando as mãos do cunhado pra não levar um tiro, ou uma facada... a casa
era sem pintura, sabe? Então, era bem escura, e naquele tempo era só luz de
lampião, fraquinha...devia de ta muito escuro lá dentro, naquela hora. A Moça e
a criançada, sabendo com quem tavam lidando, quando viram aquilo, saíram
pro terreiro e começaram a gritaria: “Socorro, socoro, socorro!” e grito e mais
grito...pra ver se algum vizinho escutava, mas...naquela distância...uma casa
ficava bem longe uma da outra...e no meio do mato, ainda... não sei se o Nico
foi o único a ficar dentro da casa, nessa hora da briga. Mas, foi ele que veio por
trás e deu uma paulada na cabeça do Anacleto. O Evandro, depois, me disse
isso...disse que escutou quando o Nico gritou: “quero ver o que esse bandido tá
fazendo co meu pai!” No canto da cozinha havia um pilão, sabe como é?, esse
pilão?
EU: sei, sim, dos grandes...
L: Isso. Então o Nico passou pelo pilão e pegou o soquete, que é um pedaço
de pau, e veio, devagarzinho, do meio escuro, sondando, pra ver o que tava
acontecendo. Daí quando viu o Anacleto montado no pai, com a faca naquele
jeito, não teve dúvida... “sentou” uma cacetada na nuca do padrinho... então ele
fraquejou, deixou a faca cair e, nisso, o Evandro saiu debaixo dele, se levantou
e passou a mão numa daquelas facas que estavam em cima da mesa...o resto
você já sabe, né? Deu um monte de facadas no Anacleto... disse que enquanto
o Anacleto se mexia, ele esfaqueava... sem parar... sabe, o Anacleto tinha
mandado uma carta pra muier...uns dias antes, nem sei onde é que ele tava...
nessa carta, ele dizia: “Nêga, eu to voltando pra casa pra te matar. Vou lá no
Pedro Isidoro, pra pegar dinheiro. Se ele der, deu, se não der, eu mato ele e
pego o dinheiro do mesmo jeito. Vou lá no Basílio Vargas... e pego dinheiro
também, ou mato...vou passar no veio Santo Stroparo, também. Eu vou pegar
o Dimas, o teu irmão, e vou dar uma surra tão grande nele que as costa vai fica
mais mole que a barriga. Esse eu não quero matar, ele não vale nem isso. Eu
vou é moer no cacete. E vou te matar, Nega...você vai morrer...” isso me
contaram, né?, eu nem li essa carta. Isso é o que me contavam, na época. A
mulher dele, essa mesma Nêga, aí...me contou isso, um dia... ela me disse que
recebeu essa carta em Irati, e saiu pra avisar o Evandro. Mas naquele tempo,
pra ir de um lado pro outro aqui nessa região não era bem assim. Tudo era na
base do cavalo, da carroça...às vezes a estrada tinha virado atoleiro, quando
chovia. Isso quando tinha um cavalo...muitas vezes era a pé mesmo...
inclusive, a Nêga me disse que andou um pedaço de oito quilômetros a pé, pra
poder contar essas coisas pro Evandro...mas, nas condições em que viajou,
acabou chegando tarde demais. Porque além da demora em ir, ela recebeu
essa carta muito tempo depois que o Anacleto havia escrevido a dita...e, o
Anacleto, veio a cavalo, pelo meio do mato, quando não tinha estrada e, vc
sabe, um sujeito do tipo dele, se vira... então...ela chegou tarde demais... você
veja: eu recebi, nessa mesma época, uma carta de um amigo que foi viver em
Israel. Levou quatro dias. Se pensar bem, foi rápido. Quatro dias de Israel até o
Pirapó... mas, de um lugar “sabedeus” onde – que, segundo diziam, o Anacleto
estava pros lado do Rio Grande, quando mandou a carta pra Nêga.
O Dimas, era meio irmão da Nêga. Era do segundo casamento. Foi lá que ela
acabou ficando, por uns tempos, depois do que aconteceu...
O Evandro começou com uma conversa de “vou me entregar” e eu dizia “não
vai fazer isso...”, “se esconda em algum canto e fique quietinho por um
tempo...” eu ainda dizia, me lembro bem que todo mundo estava a favor dele, é
claro... e que não se preocupasse que havia feito o que devia de ter sido feito,
e pronto. Mas, ele...já viu, né? “Não, porque eu quero me entregar, quero falar
com o delegado...”. Eu cheguei a griatr com ele “LARGA MÃO, Evandro!!!” e
cheguei até a segurar a porta do paiol aonde ele se escondia... e os “home”,
sabe como é, né?!, tava por ali com um “tem que pegar esse bandido que
matou o homem, nhe-nhe-nhe”...mas eles sabiam que o Evandro tava ali
escondido. Mas não dava pra deixar pra lá, assim...na frente de todo
mundo...eles são a lei, né?
(risos) quando o médico liberou o corpo, ninguém queria levar o home pra ser
enterrado... mas, não sei como é que foi lá...pegaram os cavalos e uma
carroça, carregaram e meio que jogaram numa cova de qualquer jeito, lá no
Pirapó, mesmo.
EU: eu vi o lugar...
L: Viu?
EU: uhum...eu estive lá durante o corpus Christi, fui aonde foi sepultado...não
há sepultura. Apenas uma cruz, que, me pareceu, está lá desde 1956...
L: É...eu... nunca fui lá. Nunca vi o lugar aonde o enterraram...
EU: O Senhor sabe algo sobre o episódio do encontro entre o Anacleto e o
Jorge Magatão?
L: Uhum...é verdade. Eles se encontraram na noite em que o Anacleto foi
morto. Agora...não sei o que eles conversaram, só sei que o Jorge quase se
cagou nas calças...
Olha... depois que o Anacleto matou o Bidóca...eu tava lembrando... depois
daquilo, ele ficou longe do Pirapó por muito tempo. Uns dizem que viam ele,
aqui e ali. Não sei. Mas, o certo mesmo é que ele ficou, assim...oficial, né...que
todo mundo pensava, pelo menos... foragido. Ele foi pra Pitanga. Eu lembrei de
uma história... lá em Pitanga, ele havia ido a um baile. E, lá, começou a cortejar
uma mulher casada. O marido, é claro, já veio em cima dele... “e como que é
isso...essa ai é minha esposa...isso tá errado...o senhor respeite ela”,e coisas
assim... bem, daí, o que me contaram é que o Anacleto sacou do revolver e
deu um tiro no pescoço do coitado. Matou o homem, na frente da mulher e de
todo mundo que tava no baile. Eu ainda soube que depois disso, desse crime
ai que te falei, ele fugiu pra SC. Lá, fiquei sabendo, ele matou um tenente da
polícia. Não sei como foi...só correu o boato lá, no Pirapó... se duvidar, ele
mesmo que contou isso...
Teve uma vez, sabe... ele passou lá pelas bandas donde eu morava. Eu tinha
um rancho de madeira..., eu estava nesse rancho naquele dia. Quando eu vi
ele vindo, pela estrada, montado naquele burrinho, eu disse a mim mesmo,
baixinho: “...esse cara não pode me ver aqui de jeito nenhum...” e, passou. Lá
na frente, adiante da gleba oito e da gleba nove... vindo dos Martins...são
grandes os terrenos lá, sabe? Você anda quatro mil alqueires, é a gleba oito,
mais nove mil alqueires, é a gleba nove... é grande o lugar, lá... daí é picado
tudo em lotes, né?...loteado, tudo... e esse cara que falei tava saindo do
esticadão, viu que o Anacleto passava e deu com a mão e saudou: “Oi,
Anacleto!” e o Anacleto: “TÁ ENGANADO, HOMEM! TÁ ENGANADO!”, e
passou de cabeça abaixada. Eu ouvi que ele ficou ali na gleba oito. Haviam
poucos moradores. Uma ou duas famílias. E ele ficava fazendo uns
servicinhos...ajudava com alguma coisa aqui, outra ali...e ia ficando. Contam
que nesse tempo apareceu uma viúva, lá... de um sapateiro. Ele – MUITO
CONQUISTADOR – se afrouxou pra cima da viúva(risos) “ He He He...sabe
como é, me arruma um par de botas” e coisa e tal... e, a veia, claro, deu bola
pra ele. Foi, foi e conquistou a veia. Ficou com ela. Daí nem mosquito pousava
na veia, né? Imagine... tava lembrando... o marido dessa mulher, o falecido
sapateiro, tinha o sobrenome Marins Springer. E não é que me aparece lá,
depois de uns tempinhos, uma sobrinha da veia!?, só que dessa família, Marins
Springer, da parte do finado marido então.... essa moça morava lá na gleba
nove e de vez em quando passou a vir, né, passear na casa da tia... não
preciso dizer no que deu, né? Menina boba...parece que tinha dezesseis anos,
na época. Aconteceu que de repente todo sábado a menina tava lá. E foi até
que todo mundo começou a desconfiar. Quando foram ver, era mesmo o que já
se pensava: o Anacleto tava de coisa com a menina.
EU: Mas, e daí? Como é que ficou o negócio...isso naquela época, lá naquele
lugar devia ser complicado, não?
L: Sim, sim. Bom...daí... foi que ele disse pra ela que gostava muito dela e que
amava ela...e disse pra ela que os dois iam se casar. Então, ela deveria dizer
que quem fez “aquilo” com ela tinha sido o próprio pai, e não o Anacleto, como
todos diziam.
EU: Uau...
L: É... Olha, rapaz, eu conheci muito bem o pai daquela moça. Era um homem
de primeira linha. Trabalhador e honesto. Tratava a família na palma da mão.
Zeloso, sabe? José Jacó Strobel, era o nome dele. O delegado chegou pra ela
e perguntou: “Quem foi que te fez isso, menina!?” e, ela:“foi meu pai”, na cara
dele! Na frente do pai, pode? Ah... o homem quase morreu... dizem que ele
dizia pra ela: “do jeito que eu te criei, do jeito que eu zelei por você, e você vai
me fazer uma coisa dessas?! Me entregar assim? Quando que ia me passa um
negócio desses pela cabeça?!, de você dizer que fui eu quem te bolinou...”
EU: E depois?
L: Bom...depois... depois ele foi preso. Ficou na cadeia lá...nem sei quanto
tempo. Porque depois nunca mais soube que fim levou aquela gente. Acho que
foram embora, de certo. Não sei.
EU: Mas, seu Licineo... quando foi isso?
L: Isso foi durante o tempo em que o Anacleto já tava nas andança dele.
EU: Mas, ninguém entregava ele pra polícia? Por que?
L: Ah... porque todo mundo lá se cagava de medo dele, ué. Voavam pelo
buraco da fechadura pra fugir dele. Acho que por isso... veja, ele não era só um
assassino, ele era trapaceiro, vil...um homem perigosíssimo. Eu conheci quatro
irmãos dele. Eu conheci o Honorato, o Sérgio e o Juca.
EU: Mas não eram quatro?
L: Não. Quatro contando com ele.
EU: havia uma irmã, não?
L:
uhum...se
não
me
falha
a
memória,
essa
irmã,
se
chamava...Anacleta(risos)...parece que era isso, sim. Ou algum nome meio
estranho, assim...
EU: E o Evandro? O que o senhor sabe sobre o Evandro.
L: Conheci muito bem o Evandro. Bom demais. Não seria capaz de fazer mal a
ninguém. Manso, manso. Mas, esse Anacleto...deixa eu pensar...ele,
antigamente, lutava com o filho de um negociante...o Euclides, na frente da
bodega. Era um rapazote, esse filho do Euclides. E os dois lutavam... meio que
de brincadeira, assim, mas...viviam se atracando e, o piá – que agora não me
lembro mais o nome – derrubava ele...o Anacleto. Um guri daqueles ganhava
do Anacleto na luta(risos)... pense! Um matador daqueles apanhava dum piá...
mas, de vez em quando, ele dizia: “cuidado, pessoal...qualquer hora dessa eu
viro num picanço e vocês vão vê só uma coisa!”
EU: Ah, ele prometia, assim, é?
L: Prometia, prometia... pouco. De vez em quando, mas dizia. Quando alguém
fala assim: “cuidado que eu viro num picanço”, quer dizer “saia fora, que a
coisa tá ficando perigosa pro teu lado”... eu e o Evandro fomos obrigados a
correr dele, uma vez...
EU: Quando?
L: Ah...quando ele ainda era só valente, não havia matado ninguém...só
prometia.
EU: E, como foi isso?
L: Nós(ele e o Evandro, o qual assassinaria Anacleto, anos mais tarde) fomos
até a bodega do véio Stroparo, do teu bisavô, Angelo...pra tomar cachaça.
Tava uma garoazinha... era noitinha, já. Tinha três cavaleiros parados na frente
da bodega... eu e o Evandro entramos. Mas, foi bater os copo de cachaça no
balcão, e aquele pessoal entro...e não é que um deles era o Anacleto. Quando
nós vimos aquela capa toda molhada, o chapéu enterrado na cabeça e os
cabelo escorrendo na frente dos olho...o Evandro olhou pra mim e falou por
entre os dente: “vamo dá o fora daqui que esse home tá co diabo no coro,
hoje...”...saímos de fininho e, no caminho, nós se cagava de medo que ele
viesse de atrás da gente. Teu bisavô de certo, no que saímo já fechou as
porta... porque foi pensar que ele podia vir atrás... que começamo a escutar
barulho das ferradura. Eu e o Evandro se escondemo no mato, na frente de
uma entrada de um sítio, naquela escuridão. E não é que o home para com o
burrinho dele bem na nossa frente. Ele desceu do burro, passou a mão num
lamoião e começou a bater aquele lampião pra tudo que é lado, como se
tivesse nos procurando. Eu e o Evandro chegamo a deita no chão, de medo
que o cara visse a gente. O Evandro meio que chorando me dizia que ele ia
nos matá. Depois que procuro bastante, ele largou aquele lampião no chão,
catou as duas orelhas do burro e tacou uma mordida. O bicho tentava escapa e
ele se agarrava mais ainda e puxava a cabeça do burro pra baixo. Xingava
umas coisarada lá que eu nem conseguia entender direito...daí, largou do
bicho, junto o lampião, montou de novo e se mandou... eu e o Evandro
levantamos dalí e corremos pra casa...mas, um pouco pra frente, vimos que ele
vinha voltando! Se enfiamo no mato de novo, o Evandro parece que se mijou,
até... olha, o homem era feroz. Ele já dava essa impressão, assim...naquela
época, que era capaz de chegar assim...te falar qualquer coisa e você
respondendo ou não, levar uma facada, um tiro...
EU: O que sempre me deixou instigou nessa história, seu Licineo, é esse
enredo irônico: um homem tão frio e agressivo, foi acabar morto pelas mãos de
um pacato, feito o Evandro...
L: Sim! Morto por um homem que nunca sequer levantou a voz pra alguém.
Nunca brigou com a mulher, com um filho... e, provavelmente, se o Tonico não
desse aquela paulada, a história era outra... o estrago ia ser grande. Do jeito
que ele havia planejado, no mínimo. Como ele havia prometido na carta...
como, depois fiquei sabendo, ele contou tudo pro Jorge Magatão. E, por falar
nesse Magatão...os dois ficaram bêbados naquela noite...é isso! O Anacleto já
chegou bêbado no Evandro... por sorte daquela gente toda lá, ele tava bêbado.
Esse Jorge Magatão também não era muito fácil, não... sempre que escutava
de um entrevero, lá tava esse Jorge no meio duma briguinha. Mas nunca foi do
tipo do Anacleto... bom, afinal, esse era meio que o tipo dos homem daquele
lugar... tudo meio valentão, meio bravo, violento... os irmãos desse Anacleto,
também...tudo valente...
EU: Sabe que fim levou cada um deles?
L: Bem...o Honorato morreu por causa da cachaça. O Juca Marcelino, tinha
fortuna grande e morreu... e deixou herança... tem uma história disso aqui.
Esse Honorato, que morreu de tanto beber, recebeu parte dessa herança,
sabe? Então, foi assim... ele tinha só uma filha,... esse Honorato. Daí, ele
adotou um guri... o Onofre. Onofre...Martchuk,... era de origem russa. A mulher
do Honorato, não lembro bem se chamava Judith, mas, morreu e ele ficou com
as duas crianças, viúvo. Sozinho e meio velho já...esse homem começou com
a bebedeira e a jogatina. Foi um tal de botar fora...coisa de loco. As crianças
cresceram vendo ele nessa gastança desenfreada. Quando já eram
grandinhos, o Onofre, que era o adotivo, diz que chegou pra irmã e...”escute,
desse jeito que o pai vem queimando tudo que tem, daqui um poquinho a gente
vai ficar sem é nada! Vamo matá ele?” e a irmã, por mais que fosse de sangue,
sabia que a coisa tava perdida já, sei lá... o fato é que os dois se combinaram e
decidiram por matar o próprio pai pra garantir alguma coisa que ainda tinha
sobrado daquela herança...
EU: E o que foi que eles fizeram?
L: Bom... eles compraram uma garrafa de cachaça, tiraram a pinga e no lugar
encheram com veneno, de uso na lavora, sabe? O Honorato, nesse dia, já
chegou em casa chumbadão, olhou pra garrafa e disse: “O que é isso!?”, e o
filho: “é cachaça...”, ele, dizem, abriu, cheirou e ainda disse: “É mesmo! É
cachaça...” Foi tomar e tombar. Caiu morto. Daí, chamaram o inspetor de
quarteirão...levaram o corpo... fizeram um velório. O Honorato já quase não
tinha família, além do filhos. Os irmãos, ou estavam fugidos, que era o caso do
Anacleto, ou estavam mortos...por morte morrida ou matada, estavam mortos.
Resultado: não tinha quase ninguém no velório do pobre... mas, agora, veja
que coisa: veio uma parteira, ali, do Pirapó, também, e... e essa parteira, notou
que do cantinho da boca do defunto escorria um líquido esverdeado. Ela se
enfezou com aquilo...”mas, não pode...que negócio é esse!?” Chegou pro
compadre Herculano: “Escuita, mecê chame um médico, hein? Esse homem
morreu envenenado...” e o Herculano: “Não fale uma coisa dessas!!” e a tal
gritou lá, pro inspetor de quarteirão: “Para com tudo e chama um médico que
esse homem aqui não morreu morrido, não. Esse homem morreu matado!”
Levaram pro médico,... ma, batata! Prenderam os guris, o rapaz e a moça –
que já eram de maior, e... foi a herança, porque filho que mata pai perde a
herança e ainda foram preso. Não sei o que foi deles depois. Mas sei que
acabaram na cadeia, mesmo.
EU: O senhor conheceu mais alguém da família do Anacleto?
L: só a mãe...ela gralhava com eles, por serem virado tudo num saci...”por que
que vocês vão num baile e acabam co baile? Por que?” “Brigam, discutem,
batem nos outro...mexem com as muié do pessoar...meu Deus, meu Deus,...”
“E pra essas arma!? Andam tudo armado...que é facão é revorve...pra que?” e
a rapaziada gritava com ela, sabe? “É! NÓIS SOMO HOME E HOME ANDA
ASSIM, ARMADO!” Eles não eram de lá...não de onde vieram aquela gente. Eu
nasci no Rio Preto e cresci no Pirapó e nunca ouvi dizer de onde vieram...
Sabe, é... Angelo, né?
EU: Isso...
L: tinha um homem lá...ele se chamava Amandio Vaz de Lima, comerciante...
trabalhei com ele uns tempos. Ele tinha dois molecotes, 11, 12 anos...os dois
quase da mesma idade. E, então...tava lá os dois, um dia, brincando de bate
facão, tipo como fosse espada, sabe? E o Amandio dizendo: “Isso, isso aí...se
defenda” pra um e pro outro “vai nele, vai nele, vai!” Eu vi aquilo e pensei...”isso
ai vai dar errado...não tá direito esse negócio...” cheguei pro patrão e disse:
“Olha, Amandio, não deixe esses guri nisso ai, home! Amanhã ou depois não
acaba bem...” Ele olho pra mim de cima pra baixo “isso ali é home! Quenem eu
sou! Home é assim!” calei minha boca na hora e saí de fininho, pois...pensei
que o home ia me dá uma surra ali mesmo... passo uns tempo, uns
aninho...aqueles piá ficaram mais grandinho...um deles, o Jovino, tava no
boteco de tarde – porque não trabalhava, não fazia nada -, chega um homem
que vinha de São Paulo atrás da mãe: “escuta”, pro Amandio, que tava no
balcão, “você me venda um pão aí, que to andando faz tempo e to com muita
fome” e o Amandio “pois não tem pão, aqui não tem pra quem vender, todo
mundo tem forno em casa e faz” o homem, “tá bom”. Ele já tava de saída
quando o Jovino disse: “toma uma pinga!” o homem olhou, olhou...”não...eu
não tomo pinga” e o Jovino:”e se eu te jogar na cara!?” o homem: “não faça
isso...to cansado e não quero confusão”, pois, não é que ele jogou?
EU: E o homem?
L:Ah...foi embora enxugando a cara... mas passou mais uns dias, veio outro, só
que esse tava tocando um porco desde o Pinhão, imagine?!, naquele sol...o
porco e ele tavam quase morto de cansaço, sede e fome... esse homem
chegou no boteco, a mesma coisa, do mesmo jeitinho: Amandio no balcão, o
Jovino sentado tomando uma pinga... o homem: “me dá um pão ou umas
bolachinhas...to morto de fome...” mais uma vez, o Amandio:”não tem, por isso,
tá-tá-tá, e porque aquilo” o homem: “tá bom” e, “aonde é que tem outro
boteco?” o Amandio: “ah! É uns três quilômetros, verando essa mesma
estrada”, nisso o Jovino se meteu: “Toma uma pinga que a fome passa!” o
homem: “não...não tomo pinga...” e aquela coisa, sabe!? Pra desconversar e
sair fora... pois o rapaz – esse era um dos pequenos que tavam de folia cós
facão, te falei?
EU: Sim...
L: POIS FALO DE NOVO “E se eu te jogar na cara!?” o homem disse que era
trabaiador e que não se faz isso pra ninguém...pois ele ainda tava falando
quando o rapaz jogou aquela pinga... ah! Pois o home só teve o trabalho de
sacar o 38. Pááá!!! Um tiro no meio da testa... passou mais uns dias, o outro,
voltando de um baile, na encosta de um barranco, levou uma saraivada de
bala: os cara, tudo pinhãoeiro(nativo do hoje município de Pinhão, que, na
época do acontecimento, era distrito de Guarapuava. Uma terra famosa pela
violência e criminalidade) tavam de tocaia. Porque ele tinha participado de um
acerto de terreno grilado... ninguém foi preso e os dois foram pro cemitério...
11.3 ENTREVISTA DE LIDIA CAPELIN DE LARA
L:Você é neto do Frederico e da Rosa?
EU: Sim.
L: Então... meu pai era filho da falecida Porcina... de Lara. Uma bugre. Daí o
vovô Lúcio pegou outra mulher – dos Castanha – e largou o pai(Evandro)...e,
então ele se achegou aos Stroparo. Meio que se criou junto deles... de Nhá
Carlota e Camilo, trabaiando... e a Lúcia? O que vc é dela?
EU: sou sobrinho dela... ela é irmã do meu pai.
L: Quem é seu pai? O Santo ou o Antonho?
EU: Sou filho do Antonio. É o que chamavam “Nêne”?
L: Ah, sim... lembro do Nêne, do Santo... e da Lúcia. O papai era padrinho da
Lúcia... ela me deu muito presente quando eu fui leva uma neta lá no... no
Pequeno Príncipe. Ela me deu um “Milão” dos verde...era um dinheirão na
época. Uma irmã da Rosa, a Maria, esposa do Pacheco...que é professor, veio
aqui em casa, quando estavam fazendo o senso. Eu disse que sabia onde
ficavam os lugar que eles queriam ir e ela disse que se o que eu dizia era
verdade, ela me enviaria um corte de vestido, como presente. E mandou... será
que ainda é viva?
EU: sim. Vive em Doutor Camargo. Da família, restam, vivos ainda, essa tia
Maria; o tio Jorge, advogado em Londrina; minha avó e a tia Margarida, que
vive em Paranavaí.
L: Minha sogra morreu com 101 anos e meu pai, com 75... morreu novo. Ele
faz 100 anos, esse ano... ele nasce em 1907...
EU: 1907? Mas... então...
L: Não, pera lá...1914! Ele é de 1914... e, se vê!, nem interou 50 anos de
casado. Minha sogra tbm não... teu avô vai, né?
EU: o quê?
L: interar muitos anos de casamento... 70 né?
EU: Ah, sim! Exatamente. Caso estivesse vivo.
L: Ele morreu?
EU: Sim...
L: Credo! Eu nem sabia!!
EU: Há pouco tempo...uns dois anos, não mais...
L: (silêncio)
EU: Conheci uma de suas netas, a Maria Márcia...
L: Moça muito boa, filhona e eu mãezona...ela é minha afilhada, tbm... o irmão
dela, o Sandro, se juntou com uma concubina, sabe... depois, quando foi servir
o exército, caiu uma viga de concreto na cabeça dele. Morreu. Deus limpou a
sujeira da raça...imagina, pegou a mulher do primo e deixou oito filhos com a
esposa abandonada... mas, espera um pouco. Esse Sandro é tio da Márcia.
Não é irmão dela e não é meu filho! Casou com minha filha, essa que ficou
sozinha com um monte de filho... o pai da Márcia se chama Pedro. Vive no
Pinhão com a outra mulher. Ele é separado da mãe da Márcia, que é uma
mulher muito boa. Essa que ele vive agora também é. Muito boas, as mulheres
dele...
EU: Pedro, então, é seu filho?
L: o Pedro é meu irmão!(Risos)...meus filhos são: José Tadeu, Vera Lúcia –
que vive um pouco aqui, outro pouco na Espanha, e tem uma que vive na
França. Foi estudar lá e não vem muito aqui...
EU: Como essa se chama?
L: (silêncio), eu sou a filha mais velha do Evandro, em junho fiz 76 anos.
Depois, vem o Tonico – que já morreu... eu tive um derrame e agora, sei lá... a
memória me falta, sabe? Deu o derrame...e... a memória anda em falta.... foi há
quatro anos e meio...
EU: meu avô, dona Lídia, me contou que seu pai havia matado um homem...
L: O Anacleto?
EU: Isso!
L: Eles era cunhados...papai matou Anacleto para ele não matar nóis
tudo...pois, o Anacleto, matou mais de centi e poucas pessoas... foi no tempo
que o padrinho Santo era vivo(esse Santo, Viviane, é meu bisavô, Santo
Stroparo), então ele... bom, o Anacleto queria o revolver do papai. Meu pai
disse: “Oi, mas, que tipo? Não dou e não dou!”...isso foi na madrugada do dia
21 de abril de 1956.
EU: Nesse dia a Sra. Estava em casa? Estava dentro da casa?
L: Não... eu já tava esperando a Vera Lúcia... essa minha filha que te falei. Dalí
dois meses eu ganhei ela...
EU: Ah, sei...
L: ...isso já faz 57 anos... você sabe que nesse mesmo dia, 21 de abril, morreu
meu irmão...
EU: no mesmo dia que teu pai matou Anacleto.
L: Não, no mesmo dia, só que anos mais tarde, sabe?... o Santo. Eu tive um
irmão que também se chamava Santo, como o veio Santo Stroparo. Ele morreu
e a concubina dele é que recebe a pensão do governo, agora... mas, então,... o
Pedro e a Vanda, filhos do Anacleto, foram lá em casa pra me contar o que
papai tinha feito...acho que minha filha nasceu com uma pintinha cor de
sangue, na testa, até por causa disso...do susto que eu levei... meu Deus do
céu... ele(o Anacleto) era muito ruim, “marotiava” as moças por ai. Mas primeiro
de tudo, ele matou o Bidóca por jogo, aqui, no Pirapó... o segundo homem que
ele matou, era o irmão de uma moça que ele tirou pra dançar. Ele contava pra
todo mundo que atirou no “zóio” do rapaz pra não estragar o couro. Depois
disso ele matava tudo...mulher, criança... escapava da cadeia, matava os
policia... ele mesmo contou que um dia encontrou com uma polaca que levava
comida pro marido... que vinha no carreiro, enquanto ele roçava uma
capoeira... e ele “me dá essa comida que eu to com fome!” E ela disse “não, eu
to levando essa comida pro meu marido, na roça, mas o senhor volte comigo, e
eu te dou comida lá em casa... tem sopa de galinha...” O Anacleto não quis
nem saber: atirou na mulher e na criança, por causa daquela comida...
Ele contou pro pessoal, mais tarde, que tinha levado um tiro na perna, tava dias
sem comer...fugindo...tava bravo. Mas, precisava matar a mulher e a criança?
Meu Deus do céu...
A polícia não podia com a vida dele...ele andou por Pitanga, pela Reserva...por
tudo esses lado...matando gente, fugindo... o Jorge Magatão disse que
encontrou com ele no dia da morte...o Anacleto dizia que ia roubar o revolver
do veio Santo, dinheiro... que ia lá no papai, roubar facão, espingarda,
pólvora... escuta: o Santinho é vivo? O Gusto é vivo?...E, ESSE QUE TÁ ALI
FORA, QUEM É? É DOS MAROCHI?
EU: Ele é meu primo. Ele é dos Brandalise, dona Lídia. É primo da minha
“nona” Rosa, na verdade...(ela se referia ao Dilson, parente de minha avó, que
me ofereceu pouso nos dias que estive em Irati)
L: Os Brandalise casavam bastante com os Van Ryn(o marido de Dona Lídia
se chama Fernando Van Ryn, mas, não sei o porquê da observação, assim
como não questionei muitas observações semelhantes, durante toda a
entrevista)... são “holandeis”, esse povo... e vc? Quer almoçar?
EU: Não, obrigado, dona Lídia, acabamos de almoçar ali no José...
L: O José é da minha idade! Minha mãe casou num sábado e a Estefica (mãe
do José que nos ofereceu almoço), no outro. Dia 6 de junho. Ela ganhou o José
nove meses depois, em março e eu, nasci em junho. Vivi minha vida toda no
Pirapó, mas eu tenho casa no Irati. Aluguei pra um guarda. Ele me paga R$
320 reais. É meio baratinho, né? Eu tenho um terreninho ali no cemitério do
Pirapó, também. Não sei se você viu um tumulo amarelinho...(risos)...é o meu
que deixei pronto pra não incomodar os filhos...
EU: Sei, sei...mas, dona Lídia, me diga uma coisa – sobre aquela história do
Anacleto... a esposa dele, era tia da senhora, não?
L: Sim...
EU: Como ela se chamava?
L: Carolina... mas, diziam o nome “Tia Nêga”, pra ela... Carolina de Lara, era o
nome verdadeiro. Mas depois que se casou com o Anacleto passou a se
chamar Carolina de Souza Moura
EU: Tem certeza de que não era Souza de Oliveira?
L: Não é Oliveira, é Moura. Ele se chamava Anacleto de Souza Moura. Eu
queria bem ele, sabe? Você sabe que meu irmão, o Tonico, ajudou papai?
EU: Como assim?
L: O Tonico ajudou meu pai a matar o Anacleto...ele devia ter uns 15 anos...
daí os “polícia” enterraram ele sem caixão e ele devia ter uns 28 dentes de
ouro e desenterraram pra... e enterraram com a capa. A capa ficou como que
cobrindo a sepultura. A capa e o chapéu. Naquele tempo tinha um “polícia” que
era... morreu agora, faz pouco tempo... ele vendia coisa que tirava do corpo
dos defunto... daí... era madruga que o Pedro, meu irmão mais moço...
EU: ...e o policial desenterrou o corpo...
L:... sabe Deus como foi... tanta gente que quer o ouro...
EU: e, depois que o Anacleto morreu, dona Lídia, sua tia ficou morando, aqui,
no Pirapó com as crianças?
L: Ela foi morar no Irati, trabalhando com os Sabóia e com os Baggio. Essa
casa existe até hoje, fica no centro...é branca e verde, tem uma varanda na
frente. Ela não quis ficar porque começou a ter muita “visage”, as crianças
choravam de noite, com medo...ela não quis ficar... vivia com medo do
fantasma do Anacleto continuasse aparecendo pra ela...e pras crianças...
nesse tempo o Jaime Marcelino* estuprou uma moça e deu dez alqueires de
terra pra não ser preso...coitada da moça. Essa moça ganhou do pai uma
medalhinha de Nossa Senhora Aparecida, quando foi visitar ele na cadeia, que
dizia: “Dai a César o que é de César”, e ela deu essa medalhinha para mim...
ela já morreu, era meio “tonguinha”... meu pai era um homem muito sério,
sabe? Quando meu irmão Santo morreu a amante dele quis pegar os terrenos
e vender tudo. Meu pai que não deixou... esse meu irmão fez uma judiação
muito grande, não respeitou a própria prima... mas, deixa eu servir um almoço
“proceis”?
EU: (risos)...não precisa, não, dona Lídia, eu agradeço.
L: Mas, que coisa linda você, foi Deus que te mandou aqui...
EU: na verdade eu estou escrevendo um livro sobre essa história do Anacleto,
sabe?
L: Com todas essas besteiras que eu disse?(muitos risos)
EU: ah, dona Lídia, a senhora não disse besteira nenhuma, não, garanto... e,
como seu pai foi quem matou o homem, resolvi vir aqui fazer uma visita e
verificar o que a famosa Lidia Capelin sabia sobre isso tudo...
L: é... e eu sou a filha mais velha e tenho uma ideia muito boa, ainda...
EU: aham...
L: eu gostava de “prosiar” com minha sogra...ela era “veia” mas não esquecia
de nada. Ela ficou sentida e morreu, por causa que morreu um neto dela...que
vinha pra festa de... criança...de Nossa Senhora Aparecida, e, meu pai... não
tinha encrenca com ele, não queria mal pra ele(eu imagino que ela se referia
ao Anacleto, aqui)... quando ele matou o primeiro homem, o Honório
Vargem(irmão do Anacleto) – porque o apelido deles era “Vargem”, ... eu nem
sei porque chamavam eles assim...acho que era porque eles vieram de um
lugar chamado Vargem, em SC ou nem sei “daonde”... ele era um homem
moreno, tão bonito... tipo bugre. A mãe dele se chamava Nhá Coleta. Mulher
muito boa. Eu conheci o pai dele, também...eles moravam ali, perto da casa
laranja onde o Anacleto morreu... é uma casa de Imbuia que existe até hoje.
Era a casa do papai e da mamãe. Depois de matar, meu pai se escondeu no
Doca Martins. Primeiro ele foi à casa da sogra do delegado, a tal da Perpétua.
Mas com a camisa “pinchada” de sangue... o meu irmão viu o sangue no “zóio”
do Anacleto, porque ele foi lá pra matar meu pai, fuçou uma brecha na capa e
enfiou a faca de pão na barriga dele... depois que ele ficou quieto, no chão,
dava pra ver o “torresmo” da barriga dele. Se não fosse o Tonico, meu pai não
podia com ele(Anacleto)...porque ele já tinha cortado a vista do pai...
EU: Ele furou o olho do Evandro?
L: Não...só cortou na “verada do zóio”, mas sangrou bastante. Na hora que ele
pulou em cima do papai ele já riscou a faca lá e quase deixa meu pai cego...
pera que eu vou te mostrar uma foto do papai(alguns instantes depois, sem
foto, ela volta à cozinha e torna a falar no dia do crime). O Anacleto sacou do
“revorve” e foi com o cano na cara do papai. Papai andava com uma faca...tipo
dum “punhar”. Esse “punhar” tinha uma fisga no cabo. Antes que o Anacleto
atirasse, o papai tentou se defender com a faca e enroscou a fisga no “revorve”
e os dois ficaram lutando, daquele jeito...nisso o Nico(Tonico) veio e furou a
barriga dele...dai meu pai pulou em cima e deu uma porção de facada no peito
dele... isso foi de madrugadinha...minha saiu pro terreiro gritando “acuda,
acuda, acuda...que eles vão se mata”...
EU: Como ela se chamava, mesmo?
L: Maria Izabel. O apelido era Moça... de primeiro, eu tinha muita fé em Nossa
Senhora de Fátima, daí pus o nome de Vera Lúcia, em minha “fia”...mas Vera
Lúcia era “arteeeeera”(risos)... sabe que eu sou partera!? Pelo poder de Deus,
eu tive meus nove filhos sozinha... e ajudei muitos outros a nascer...quantos,
nossa! Quantos e quantos... eu fui buscar madrinha Lúcia(minha bisavó,
esposa de Santo Stroparo) com duas mulas uma vez, “pra mó de imos” na
casa duma que tava pra ganhar nenê... madrinha Lúcia cobrou cinco cruzeiros
e as bandida negaram os cinco cruzeiros porque o nenê nasceu ligeiro...(risos)
‘cê pense!...deixei um piá doente em casa e fui correndo lá, buscar madrinha
na roça...
EU: a senhora faz orações, benzimentos...?
L: sim.
EU: porquê?
L: porque Jesus disse “de graça recebeu, de graça dê”... eu curo “miningite”,
doença de bronquite, mas em segredo...
EU: Por quê segredo?
L: é o segredo pra que a pessoa que sara, não “sabê” o que curou ela... quem
curou ela...fica em segredo. Porque foi Deus que curou...
EU: Entendo, entendo...
L: Veja...pra bronquite... eu ponho língua de raposa. A madrinha Lúcia que me
ensinou... por um pedacinho da língua da raposa no chá e dar pra pessoa
“tomá”, mas em segredo... a “doença do ataque” que falam, você corta um
punhado de cabelo do próprio doente e faz uma defumação. Se tiver “bichas”,
solitária...o que tiver, vomita tudo aquele ar na hora da sororoca e nunca mais
dá. (parei nos 3’22” da entrevista 2 da dona Lidia) Uma das minhas cunhadas
tinha dois filhos. Deu um ataque em um deles tão forte que nem ela podia ver o
piá... fiz essa mistura, coloquei numa bacia e ia dando pro guri. Eu curei ele...
daí, vieram pegar ele...eu avisei: olha, não pisem nessa bacia que passa
“procêis” o “mar” que tava na criança... eu também curei o filho do Almir Licks
bodegueiro... tem uma neta minha que é filha da dona Emília...conhece o
Miloca? Conte pra ele que a Diva...
EU: Miloca? A senhora se refere ao Emílio de Lara?
L: Sim, esse...
EU: O Emílio já morreu, dona Lidia...há alguns anos...
L: Nossa... bom, conte pra eles, lá, que a Diva é sogra de uma neta minha. É...
andaram procurando, por um tempo...porque diz que deram ela quando era
pequena...ela(a Diva) e a irmã(Alice) foi que deram, quando pequenas, pra
uma mulher lá de São Paulo... meu neto, o Carlinho, que tem uma oficina em
Guarapuava, disse... ele não sabe direito, mas, não é Diva mais...agora é
Judete...
EU: Judete? Como assim, “não é mais”!?
L: Doação, troca de nome... meu pai e o pai do Miloca saiam pra jogatina e iam
perdendo tudo. Meu pai perdeu 7 alqueires de terra no jogo... não é que
perdeu, foi dando baratinho, no jogo... no jogo e na cachaça...e o pai do
Emílio(Miloca) perdeu mais ou menos o mesmo tanto...daí acontecia essas
coisas de doação de “fios”, quando acabava o dinheiro... hoje minha terra mede
42 litros49, só... EU: mas, a senhora lida com a roça ainda, dona Lídia?
L: Sim... arrendo um pedacinho, pra fazer mais um dinheirinho e planto um
bucadinho de milho, feijão e verdura num outro pedacinho...crio minhas
galinhas...e vou vivendo.
11.4 ENTREVISTA DE JOSÉ STROPARO
EU: O senhor sabe quem foi Anacleto, de onde ele veio?
J: Sim...a gente sabe que o nome era Anacleto Vargem, mas...o sobrenome
bem certo, não sei... eles viveram aqui no Pirapó, mas não sei de onde eram.
EU: O senhor conheceu os irmãos de Anacleto?
J: Conhecia de vista...conheci o cunhado dele, o Evandro, que no final matou
ele...a mulher do Anacleto era irmã do Evandro. A gente chamava ela de Nêga.
EU: O que ele fazia para ganhar a vida, José?
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Isso dá uns 21.000 m2, mais ou menos. O que não vai equivaler muito mais que 2 hectares, que medem 10.000 m2.
O alqueire é uma unidade bem variável. Em Minas é uma medida, na Bahia, outra. Em São Paulo, mede pouco mais
de 24.000 m2, 2,42 há, portanto. As medidas consideradas na região de Irati, batem com a dos paulistas.
J: Ele não era homem de trabalhar. Vivia de bicos por ai... até tinha muitos
amigos. Antes de matar o Bidóca era muito amigo do pai dela(indicando a
esposa, dona Dora). Depois, daí... por causa de um jogo de “truque”, fez
aquilo...porque ele(o Anacleto) andava sempre com duas armas, né?...e, esse
Bidóca, não era um homem ruim, mas era desses de coragem, sabe? Ele era
delegado em Gonçalves Júnior. Dizem que o Anacleto tava perdendo o jogo. E,
vc sabe, quem tá perdendo quer embrabecer, né? E quando sacou do revolver,
o Bidóca segurou, mas...com a outra mão, levou a faca e cravou no homem...
do lado esquerdo do peito. Foi ali, pertinho daqui...dá pra ir caminhando... na
época, eu era meio piazão ainda... meu pai foi comigo lá pra ver o defunto. Ele
tava sentado, com a faca enfiada no peito. Na verdade, depois da facada, ele
caminhou até o arroi, verando a cerca...daí, sentou, encostou e morreu.
EU: e o que o Anacleto fez depois disso?
J: Fugiu. Ele se escondia na casa do Evandro. Debaixo do assoalho do paiol.
Mas isso foi uns dias... dali um tempinho se sumiu daqui, porque a polícia se
agarrou dá em cima, né?
EU: Hum...então, veio polícia, nesse caso?
J: Veio. E por isso ele fugiu... depois de um tempo ele voltou, se tornou inspetor
de quarterão. Ele havia ido até o Rio Grande, matou gente por lá...só que
fizeram uma emboscada pra ele, em cima de uma ponte. Só que daí ele se
jogou na água e escapo. Mas acertaram um tiro no pé dele. Então, por causa
disso, ele voltou pra cá...e viro chefe de quarterão...
EU: E como o senhor ficou sabendo disso?
J: Ele mesmo, quando voltou, contava essas histórias, pros amigo e
parente...daí a coisa se espaiava...todo mundo ficava sabendo.
EU: E o que aconteceu depois?
J: Bom...daí ele ficou um tempo na polícia e depois saiu... dizem que ele foi
para a Reserva... e lá ele tomava conta das pessoas, no lugar dos
empossado... e só vorto anos depois, pra morrer nas mão do cunhado...ele
queria tirá umas par de vida ai, sabe?
EU: e porque ele faria isso?
J: Ele queria armamento...dinheiro e animar, né? Naquela época todo mundo
tinha animar encilhado, bom.... ele sabia quem tinha armamento, dinheiro...que
era o nono Santo, o Evandro... apesar que dinheiro mesmo...assim...no paper,
ninguém naquela época tinha muito, né? Não precisava...e não tinha mesmo.
Era muito poço...
EU: E como as pessoas ficaram sabendo desse plano?
J: Ah... pro tio Jorge Magatão...ele conto, nos dia que ele tinha chegado aqui,
de novo...parece que tavam lá no rio do coro, num boteco, tomando pinga e ele
contou pro Magatão, assim... o que ele queria fazê... mas é que ele encheu o
titio de pinga e daí troxe ele na carroça até a porteira e dexô ele, lá... a portera
era longe e ele bastante bêbado que tava, dormiu lá na carroça mesmo...só
contou pras pessoa depois, que já tinha acontecido a morte do Anacleto. Eu
acho que ele já deu um porrete no Jorge de propósito...pra ele não contar
nada, né...
EU: O senhor me contou que ninguém queria levar o corpo pro cemitério. Por
quê?
J: É que as pessoa ficava assustada, né...diziam que o Anacleto tava
conversando com alguém e ao mesmo tempo oiando pro corpo da pessoa, pra
vê onde enfiá a faca...diziam muito dessas coisa dele, daí, todo mundo morrê
de medo, mesmo depois de morto... nem bem escurecia, o povo já se trancava
tudo em casa. O delegado não queria nem que enterrasse ele no cemitério
daqui...porque... de certo por ser uma pessoa muito ruim, né? Mas como tinha
um canto que era benzido, se resolveu qu ia ser posto lá mesmo, naquele
canto que te levei, naquele dia...
EU: E por que havia um espaço não abençoado no cemitério?
J: Era pra quando uma muié perdia um fio sem batizá...sabe?...nascia morto,
ou morria muito pequeno, sem batizá...morria pagão...dai tinha que ter esse
canto lá, pra essa gente. Mas hoje não é mais assim. Naquele tempo, só...que
era assim...desse jeito.
EU: O senhor sabe quanto filhos Anacleto teve com a Nêga?
J: Três. Dois home e uma muié,... dizem que moram tudo no Irati, não sei...
EU: E a mulher, depois que Anacleto foi morto? O que fez?
J: Ficou uns tempo ai...cos irmão ajudando...depois foi embora...pro Irati.
EU: e os filhos do Evandro?
J: com o tempo foram tudo embora. O Santo morreu acidentado numa
construção, em Curitiba. O Pedro foi pra Reserva. O Nico morreu. Mas tinha
ido tudo embora, já. Aqui ficô só a Lídia... esse Nico, sabe?...foi esse que deu a
paulada que bendizê apago o Anacleto, pra daí o Evandro trucidá com sei lá
quantas facada... Antonio era o nome, mas, daí...virô Tonico e por fim...Nico.
Ele era da minha idade...esse Nico. Nós se conhecia bem. Se tivesse vivo,
agora, era 76 anos, né...tinha minha idade...nessa época(quando Anacleto foi
morto), tinha um comerciante aqui...um tal Bruno, que mudou-se pra Reserva e
de certo que o Anacleto contou pra esse também o que vinha fazê aqui... diz
que esse home também tentou avisá o pessoar, mas, não sei o que deu que
parece que só chegô a notícia depois do home... não, perá lá...ele veio aqui, no
Pirapó, e aviso o Evandro, sim...foi daí que esse Nico mais o irmão, o Dinho –
que diziam Dinho, mas se chamava João – combinaram de dormi num
ranchinho assim, fora da casa...pro causo do home aparece lá pra fazê
mardade, né? Quando veio o Anacleto e começaram a luta, esses dois
entraram dentro da casa, daí...
EU: E qual era a relação entre o senhor e o Nico?
J: Nós trabaiava junto...tudo dia se via e falava. Mas, por um bom tempo ele
ficou assim meio engraçado... se balançava...andava meio que se torcendo.
Ele contava que foi ele mesmo que deu a paulada no tio(Anacleto). Ah! Ele
dizia que tinha dado é uma facada no Anacleto...dizia que a faca não entrava
por causa da faca e porque eles tavam se rodiando no chão...pois fico tudo as
roda das esporada do falecido no assoaio, marcado... e foi que o Nico acerto a
primeira facada no pescoço, dizia ele... ele dizia que depois que acerto essa no
pescoço, o Anacleto rolou de barriga pra cima e jogou a capa pro lado, porque
tava passando mar, né?!... de certo por causa da facada...e, nisso, com a
barriga livre da capa – que ele usava um capotão grosso...tipo de lona...ruim de
furá aquilo...já de certo pra se protegê – o Nico deu uma em cheio... quando eu
cheguei lá depois, pra vê, podia enxergá tudo as entranha do morto...o Evandro
deu um monte de facada depois, co mesmo punhal dele(do próprio Anacleto)
mas... depois que já tava meio morto... o Nico caso depois de um tempo, meio
que na mesma época que eu, também...ficô por ai, trabaiando...teve os fio
dele...viveu com a muié...
EU: era comum, isso, seu José? Gente violente, assim, por aqui?
J: Não. Do tipo do Anacleto não. Tinha aí o tar do João Moraes...que foi um
baita bandidão, também...matou gente por causa de terra grilada e tudo,
mas...assim de matá por matá...teve o Jorge Martins de Lima...esses Lima ai
eram perigoso, também... o filho do Anacleto foi morá em Ponta Grossa,
e...tinha uns cunhado meu que conversava com ele direto, porque moravam lá
também, em Ponta Grossa. Era puro Anacleto, assim de feição...mas, não era
bravo, valente, como o pai. Ele se chamava Pedro. O Anacleto era um home
meio baixote, encorpado...meio moreno, tipo de bugre. Cê veja só...ele era um
home, que, antes, fazia baile ai co pai dela(indicando novamente a esposa,
dona Dora), e depois...viro naquele negócio de matança que não teve mais
fim...teve né...(risos) (A dona Dora, nesse ponto da entrevista, fez uma
pequena intervenção: até meu pai que era muito amigo dele, ficou com medo e
evitava falá, vê...passá perto... pois eles era amigo de sorteria[eles dizem isso
quando se referem à época em que as pessoas são jovens e ainda solteiras],
sabe?)...é...e era um tar de “quarqué hora eu vô lá...passeá na tua
casa...e...quarqué hora vô mesmo”...pois, cê sabe, que...depois que morreu,
ando dando umas ventania lá por dentro da casa desse meu sogro?(nova
intervenção de dona Dora: entendeu? É que antes de morrer ele prometia que
ia passeá na casa do meu pai, e já nessa época meu pai tava assombrado, né?
Por que sabe Deus que tipo o home chega ai, né, pois, tinha virado
matador...e, naquela noite[se referindo à noite em que Anacleto foi morto] meu
pai dormiu e teve um sonho co Anacleto...e diz que ele aparecia nesse sonho
pro meu pai e dizia “hoje eu vô te visitá”. Meu pai disse que acordou assustado
e sentou na cama...daí se ajoelho e pediu pra Deus...pra que se fosse pra ele
tirá a vida de um inocente, então que essa pessoa é que tirasse a vida dele...e
essa foi a mesma noite em que o Evandro mato o Anacleto)...sabe...isso é hora
da pessoa que chega, porque o Evandro já ponhava o revorve debaixo do
trabicero...e a muié, o rosário...daí ele queria o revorve e o cavalo do Evandro –
de montaria, que se dizia – e...o Evandro disse pra ele: “O revorve tá lá debaixo
do trabicero, é só pegar” e diz que ele foi. Foi...chegô lá...ergueu o trabicero
errado, só viu um rosário... de certo que fico tão bravo que nem oiô no outro
trabicero...já vorto pra cozinha...e foi nisso que a Moça levo a cuia do
chimarrão pra ele e ele já de um safanão atirou aquela cuia longe e pulo no
Evandro... se ele levanta o outro trabicero...ia achá o revorve e já vinha co a
arma em punha...matava todo mundo, mas isso é certeza! É... como
dizem...coisa do destino da pessoa, de certo, isso aí...
[o pai da dona Dora se chamava Augusto Parteka, descente de ucranianos]
O Evandro chegô a sê preso...porque deu muita punhalada nas costa e não
pode né... daí o povo se reuniu aqui e foi lá, pedi pra sorta o Evandro...
EU: Então ele foi preso...
J: Foi preso só não: ele ia tirá cadeia. Você já penso?
EU:Hum...então vai ver é por isso que o inquérito desse assassinato Evandro x
Anacleto só está registrado no livro e nas caixas só existe umas poucas folhas
dentro da capa. Pode ser que ele tenha sido apagado...porque se as pessoas
foram lá e exigiram a soltura dele...
J:...pode ser, pode ser...
EU: E, José, como você explica o fato de nunca o Anacleto ter tentado nada
contra o Santo(meu bisavô e avô do José), afinal, ficava vulnerável atrás do
balcão daquela bodega, certo?
J: POIS É... não sei bem o por que, sabe? Mas é fato mesmo...nunca
aconteceu nada, ali... veja que ali o pessoar de tudo lado vinha, jogava truque,
bocha...bebiam cachaça... mas só durante o dia. De noite, nada. O nono
fechava as porta. Não tinha perigo que ele dexasse a bodega cheia de bêbado
noite a dentro. No dia que morreu o Bidóca...eles tinham ficado o dia intero
jogando truque e caxola...despois, quando o nono fecho a bodega, tinha um
ferrero que tava montando a ferraria dele, nesse terreno onde o acharam o
Bidóca esfaqueado na cerca...eles foram tudo pra lá, de noite, continuá co a
jogatina, no rancho do ferrero...
Você,... não sei se você sabe, mas...o Evandro ficou meio variadão, também.
Uma vez tava eu e o Santinho varando a entrada do terreno dele, pois...ele fez
nóis entrá, porque diz que queria mostra como é que foi que ele matou o
Anacleto. Se vimo loco... um medo desgracido...
EU: Mas, por que todo esse medo?
J: Ah...uma pessoa que mata a outra, do jeito que foi, sei lá... já não fica muito
bom da cabeça, eu pensava...só sei que fomo meio que saindo e “vamo!,
vamo!” eu e o Santinho e se mandemo. O Evandro...bem certo ele também não
era, viu? Era bom...mas, meio variadão...atrapalhadão, já desde moço. Sempre
foi meio engraçado o jeito dele. Se metia em tudo que é negócio, negócio que
nem era dele, às veis...
EU: Como assim?
J: Ah, fazia negócio errado... era assim...
EU: Mas ele tocava a vida dele com roça, não?
J: É...roça também, mas, o dele era a braganha...
EU: O que é isso?
J: Compra e vendê criação, animar... até eu depois de casado comprei animar
dele...
EU: E o senhor sabe qual era o grau de parentesco entre o Evandro e os Lara,
do Licinio e do Waldomiro?
J: Que eu saiba eles não eram parente. Pode até sê o mesmo nome,
mas...acho que não são nada...o pai do Licinio chamava Belmiro de Lara...o
sogro desse home tinha muita terra no Rio Preto. Gente riquíssima...ali era
quase tudo dele. Mataram o casar de veio, os sogro e sogra dele. Dizem que
esse sogro do Belmiro tinha uma soma muito alta de dinheiro guardada no forro
da casa, só que os ladrão não sabia que tava no forro. Mataram pra robá, mas
num puderam achá o que eles foram de atrais. Daí esse Belmiro queria ir trocar
aquele dinheiro em Ponta Grossa...que diziam, era moeda estrangera, ouro,
prata...como fosse um tisoro, sabe? Mas daí ele começou a beber e beber...foi
vendendo barato até que perdeu, dizem que tudo, não sei... eu fui lá uma vez
co papai...ele tava bem veio...olhava pro forro e falava: “Calma, diabo velho!” ...
depois de um tempo, morreu...
Mas eu queria te dizê...o Nico, sabe?...sempre que vinha, parecia que vinha se
mordendo...estranho. Daí ele ficava um poço co a gente, contava um causo eu
contava outro e ele ia se acarmando. A roça deles era do lado da nossa,
então...cada passo que nóis tava roçando, parava pra dá uma descansada, ele
vinha conversá. Mas nunca mais fico bão...tava estranho sempre...ele já devia
tá preocupado porque tavam dormindo no ranchinho que faz fogo pra se
esquentá...
EU: O que é isso? Ranchinho que faz fogo pra se esquentar?
J: é costume brasileiro(ele diz isso porque na colônia do Pirapó haviam muitos
imigrantes europeus e, entre eles, havia, naquela época, tal distinção entre
práticas e costumes de cada povo), né? Fica no ranchinho que é menor, faz um
foguinho lá dentro e se esquenta mais face...então como eu dizia, ele já tava
dormindo lá porque tavam esperando o home chegá quarqué hora... e o
Evandro contava que quando abriu a porta pro Anacleto entrá, levo uma
corredoisada na cara...
EU: Corre, o quê?!
J: Corredô, açoitera...que nóis usa pra dá nos cavalo, pra fazê eles andá,
corrê...
EU: Eu lembro que em algum momento da entrevista, José, o senhor
mencionou sobre uma escapada do Anacleto, no Rio Grande do Sul...
J: Uhum...ele levou um tiro no pé nessa história...veio se tratar aqui no Irati...eu
nem sei como é que foram dá um cargo de polícia pra ele...
EU: Será que haveria alguma influência política?
J: Daí eu já não sei...só sei que foi estranho ele ficá sorto por ai e ainda como
inspetor de quarterão... ele tinha um primo, o Jorge Martins de Lima...esse guri
fez umas mardade por aqui, tbm...o primero que ele mato – acho que esse
Jorge não tinha mais do que uns 15, 16 ano – eu quase assisti a morte. Veio
uns home, dois home, pra matinê que tinha ali, pertinho...e esse Jorge disse
pra eles: “Se vcs pagarem a dança, vcs dançam, se não, não” e os dois foram
pra bodega. O Jorge foi de atrás. O home já tava co pé no estribo quando esse
rapaz enfiou o facão por trás...ainda lavou o facão no tanque, antes de ir
embora...
EU: Eu vi esse inquérito lá no fórum...
J: É, mas o Edgar, aquele grandão lá de Irati(Edgar Gomes, prefeito de Irati,
por mais de um mandato. Nesse ano. Ao qual José se refere, Edgar exercia
mandato), pegou e abafou tudo...mandou o Jorge pra Pitanga...
EU: E depois esse Jorge voltou para cá?
J: Não, nunca mais... mas agente ficava sabendo, também, que ele matou uma
porção de gente cigana...dizem que matou um casal de veios, na Pitanga.
Também. Daí, parece que andaram machucando ele, por lá... diz que ele vinha
se trata num médico em Guarapuava. Sei que lá na tal da Palmerinha, a turma
esperaram ele e atacaram fogo no carro. Numa pick-up – que aquele tempo era
só o que tinha, pick-up e Jeep... só que ele não tava na cabine, ele tava atrás.
Diz que se machucou bastante mas não morreu. Daí, depois disso, ele foi pro
Mato-Grosso. Daí, lá, mataram ele... a muié dele era conhecida nossa, aqui.
Queriam matá a famia intera dele...daí a muié, e não sei, mas parece que tinha
uns fio, fugiram. Esse pessoar...os Lima, os da famía do Anacreto e os
Moraes...Deus o livre se alguém encrencasse com eles...eles vinham de noite e
“pintavam o caneco”... esse Jorge, matou o tio dela, aqui(indicando a esposa)
no dia do Natar. Pois o home tava sentado e ele veio na porta, pelas costa e
chamou... no que o tio dela se viro ele(Jorge) carcô um tiro na testa...o coitado
morreu co’a boca cheia de comida... ninguém sabe por que. O home não devia
nada. Não tinha nada com nada... teve um tal de Eloir Rossa, aqui...isso já faz
uns 34, 35 anos que aconteceu. Ele tinha um amigo, eles eram compadre,
parece...mas, muito amigos. E começaram por ai com umas conversa que a
muié desse Eloir tava traindo ele com esse compadre, amigo dele. Então ele
chegou pra mim, um dia, e pergunto, ali, onde nóis tudo jogava bocha e tomava
pinga: “ Escuita, cê não tá sentindo um chero de vela, aqui?” e, eu: “Pois...eu
não...” É porque as pessoa tem esse costume de dizê que quando vai morre
alguém sente chero de vela, sabe? É porque...Daí diz que ele tinha ido numa
vidente, numa cartomante e ela disse que era isso mesmo que tava
acontecendo...entre o amigo e a muié dele. Pois sei que esse compadre tava
co fio roçando um dia, e esse Eloir veio...Diz que o fio que tava junto roçando
falo: “Óia, pai...mas o Eloir tá vindo co revorve na mão...” o pai nem deu bola,
pois eram amigo, os dois. E esse Eloir veio e c’uma mão abriu o quexo do
home e deu tiro dentro da boca do coitado...despois vorto pra casa e mato a
muié. E ele tinha dado ordem pro próprio fio cuida que a mãe ficasse trancada
dentro do quarto, enquanto ele ia matá o compadre...dicerto já tinham
discutido, daí ele resorveu fazê isso... quando ele atirou na muié, diz que ela
pôs a mão na frente e a bala ainda arranco um dedo da mãe dessa muié...
depois disso, não sube de mais nada, assim, tão bruto, aqui, no Pirapó... teve
otras morte. Sempre tem...mas, coisa de bêbado... assim, pranejada com
mardade, nunca mais sube de nada...
11.5 ENTREVISTA DE WALDOMIRO DE LARA
EU: Fale um pouco sobre sua vida, Sr. Waldomiro, quem é, de onde veio, no
que trabalhou, quem foram seus pais...
W: Nasci no Rio Preto e vivi lá por uns 22 anos, até vir pra Curitiba. Minha
mulher conheci lá e lá me casei. Sua afiliado de crisma de seu avô, o Frederico
Stroparo. Eu tenho dois filhos com mais de 50 anos, e uma outra, que fará 49...
e, sabe? Por falar no seu avô: eu nunca esqueço daquela família, pelo que eles
me deram, pelo que recebi deles... tenho uma gratidão muito grande,
porque...sabê comé? Além das amizades,... tem coisas tipo, a história do
padrinho: eu devia ter uns 12 anos, quando fui crismado pelo Frederico. Isso é
uma tradição da Igreja, a crisma, um homem terá um padrinho e, a mulher,
uma madrinha. Meu pai se chamava Belmiro Pereira de Lara e, minha mãe,
Emília Horn de Lara. O sítio dos meus pais, fazia divisa com o dos Stroparo.
Era os Lara, os Capelin de Lara, e os Stroparo. Nessa ordem, como quem vai
do Rio Preto para o Pirapó.
EU: qual é o parentesco dos Lara com os Capelin de Lara?
W: O Evandro, dos Capelin, era um primo do meu pai. O pai do Evandro, Lucio
Capelin de Lara,, na verdade, era o primo do meu pai. O Evandro era de
segundo grau. Eu me criei junto com os Capelin de Lara e com os Stroparo. Só
que no Rio Preto, os Stroparo era os da linhagem Duda Stroparo. E, quando
nos mudamos para o Pirapó, conhecemos a família do Santo Stroparo, pai do
teu Nôno, e teu bisapó. Esses Duda Stroparo, eram da cidade de Irati. O José
Duda Stroparo foi quem comprou a propriedade do meu pai, lá no Rio Preto.
Ele era dono de uma funerária, única da região que fabricava urnas e caixões,
sabe? Meu pai era brasileiro. Minha mãe era austríaca. Veio no tempo da
primeira guerra. Como, para os austríacos, naquela época, não era possível
imigrar para nenhuma região fora do país, eles fugiram para a Ucrânia. Porque
a ideia, sempre foi, imigrar para a Itália. Não puderam entrar na Ucrânia, daí,
se obrigaram a ir para a Lituânia. Mamãe dizia que era uma região cheia de
morros, aonde o sol aparecia só umas três horas por dia. Acho que por causa
da proximidade com o polo norte. Lá, segundo mamãe, fazia um inverno de dez
meses. Muito gelo... aquela coisa, bom! Daí... com muito esforço, finalmente
eles conseguiram autorização do governo Italiano, para migração. Só que eles
tiveram que ir até a Noruega, pra só então poder viajar pra Itália. Mas parece
que houve uma denúncia contra o navio que eles estavam...disseram que havia
muita gente doente etal...e que não era pro governo italiano aceitar aquele
povo. O governo italiana, daí, por causa dessa denuncia, suspendeu a
autorização que havia concedido à minha família.
EU: E daí?
W: Daí que eles abasteceram o navio e encaminharam o povaréu todo pra
América do Sul. Então o navio ia despejando as pessoas a partir de Recife...e
vieram...até que a família da mamãe desceu em Morretes, na colônia Pereira –
que é italiana – pra depois subir a serra, vir parar em Piraquara. Minha mãe e
parte, apenas, da sua família. Porque teve duas irmãs dela, por exemplo, que
foram a diante. Uma parece que foi pra Argentina, e outra parou no Uruguai.
Voltando ao caso da mamãe e dos que ficaram em Morretes...de Piraquara,
uns foram pra São José dos Pinhais, outros pra Prudentópolis...gente muito
trabalhadora e precisava, também, né, trabalhar... e, pra esses nossos lados,
naquela época, ainda era muito índio, né... e os europeus tinham mão de
pobra, tinham técnicas agrícolas...o caboclo daqui...era fazer o buraco no chão,
jogar meia dúzia de sementes de milho e só. Por isso que eles deram tão
bem(os imigrantes), veja o caso de Irati, por exemplo. Eu gosto muto de leitura
sabe, então, lá na casa da praia, eu tenho um livro que cota essa história da
colonização de Irati, pelos imigrantes. É uma história muito complicada, cheia
de idas e vindas, mas, é interessante. Eu também acho engraçado – e, um
pouco trágico, é verdade - uma coisa que sempre observava, lá, naquela
região. Veja, eu nasci em Rio Preto, fui registrado no Guamirim, Waldomiro
Pereira de Lara, filho de Belmiro e Emília de Lara, no ano tal e tal...e, tudo isso,
via uma declaração dos próprios pais. Naquele tempo, lá no Irati, pelo menos,
isso era assim. Daí, recentemente, precisei fazer um novo R.G. Qual não foi a
minha surpresa ao ler: local de nascimento: Rebouças. Isso não foi erro de
digitação. Desculpe. Isso é algum defeito, assim como era, há anos, um defeito
registrar crianças baseados numa declaração simples dos pais. Esses cartórios
bagunçaram documentos. Agora eu te pergunto: e se a informação da
localidade do meu nascimento fosse algo importante para uma pesquisa, como
essa que você está fazendo? Do mesmo modo que meu registro foi parar em
Rebouças, não poderia ir parar em Guarapuava, São Mateus do Sul? Ia dar
bastante trabalho extra. No mínimo.(Risos)
EU: É, tenho sentido essa dificuldade em minha pesquisa...
W: Mas, sabe... você pode procurar pela família Mansur, como fonte. No Pirapó
não tem mais ninguém, porque eles venderam tudo e foram embora.
EU: Esses Mansur são da parte do Abib Mansur?
W: Isso! O filho dele, o João Mansur, depois foi governador...nos criamos
juntos, brincávamos de tiro ao alvo, nas andorinhas...ele e o Emílio Gomes,
vieram aqui e tomaram café com polenta frita, nessa mesa, aqui.
EU: E, como era a relação entre o ciclo de amizades ao qual o Sr. fazia parte, e
o Anacleto?
W: Bom...todo mundo era amigo dele. Era bandido, mas era amigo. Ele e toda
a irmandade, bandidos. Todos violentos, valentões e ameaçadores. Mas eu
não sei o que aconteceu com os irmãos...sei o fim que levou o Anacleto, só...
sabe que havia um grupo que jogava baralho direto, direto... na noite que o
Bidoca foi morto, pelo Anacleto, estavam na ferraria, o meu pai, o Ervandro, o
Anacleto, e o Bruno Kubinski – esse, aliás, era o pato da turma. Todo mundo
pelava ele. O camarada trabalhava muito! Era vendedor... ele tinha uma
carroça com quatro cavalos e ia por tudo, vendendo umas coisarada lá que
nem lembro... já o Evandro, você veja, era o mais controlado. Vivia
emprestando dinheiro pros devedores.
Mais tarde, depois que ele fugiu pra Pitanga(o Anacleto) – tinha um irmão dele
lá...agora não lembro se era o Honorato ou o Sérgio – soube que ele começou
a aceitar empreitadas. Assassinatos por encomenda. Olha, todo mundo sabia
da violência e da periculosidade desse homem. Mas, ele vivia por lá, perto da
gente. Ele era briquero, vivia de rolos...trocas... com animais e essas coisas.
Essa gente, além do mais, bebia. Todos. Anacleto e seus irmãos. Bêbado e
violentos. Mas, a família do meu cunhado, também não era muito diferente
disso, não. O interessante é que quase todos eram compadres, viu... e, uns,
desse meio, eram mais violentos, outros menos, naturalmente. Teve, como
você bem sabe, ainda, aqueles que foram para um extremo de agressividade.
Minha irmã mais velha mora em Pitanga, e é por isso que ela também conhece
muito bem essa história. Ela se chama Amélia de Lara. O marido dela tinha um
irmão, o tal Jorge Martins de Lima. Esse também se criou com a gente lá no
Pirapó. Se você fizer um levantamento da ficha criminal desse homem, vai ficar
impressionado. Ele matou um homem no dia de Natal, num lugar chamado
“Empossados”, enquanto o coitado almoçava com a família, sem nenhum
motivo que as pessoas, pelo menos, soubessem. Veja só, certa vez fui à
Pitanga, visitar minha irmã. E, esse Jorge, tava preso, lá, na delegacia. Quando
ele soube da nossa visita e que estávamos na casa do irmão, ele pediu licença
pro delegado e foi lá, passar o dia conosco, tomar um café...(risos) o homem
era um assassino!!! Como que pode, assim...”pedir licença” e o delegado
conceder?!... com o Anacleto aconteceu o mesmo: eu estava passeando em
Irati, e, quando olhei, vi ele, a mulher e as crianças, andando pela praça... o
que se comentava era que ele estava “morando” na delegacia. Então quer
dizer...é a mesma situação, né? O sujeito mata, brutalmente – e, mesmo que
matasse sem querer: matou? A lei infringe uma pena. Se está na cadeia
aguardando julgamento, ainda não foi sentenciado?, fica preso até sair o
parecer do juiz... sei lá. Mas, isso era comum, como até hoje é, pois, a gente
sempre vê na TV coisas assim...presos na delegacia fazendo churrasco...e
aquilo tudo.
EU: O senhor ficou sabendo de algum outro crime cometido pelo Anacleto, em
detalhes?
W: Olha...depois que ele matou o Bidóca, nunca mais matou lá no Pirapó.
Então, a gente nunca ficava sabendo porque não tinha, assim, como hoje, né?,
TV...Jornal a vontade...rádio...quer dizer, ter, tinha, mas, lá?...não... muito era
na base do “ouvi falar, alguém me contou...”, entende? Que eu soube, ao longo
do tempo, o Anacleto, só na Região de Pitanga, matou mais de dez pessoas.
Mas...é como disse: fiquei sabendo...
EU: O senhor, como morador do Pirapó, à época do homicídio que vitimou
Anacleto, sabia da ameaça que ele havia feito, tanto por carta – remetida à
esposa, Nêga – quanto por recado – comunicado pessoalmente ao Jorge
Magatão?
W: Eu sabia dessa ameaça. Eu achava que era apenas contra o Evandro. Não
sabia que ele pretendia matar, entre outros, o seu bisavô, Santo, por exemplo.
Isso, todo mundo, pode-se dizer, foi saber apenas depois do fato consumado.
Ou seja, depois que ele foi morto. Sei que o Anacleto apareceu mesmo, como
prometido, na casa do Evandro. Chegou tarde da noite e foi muito bem
recebido, pelo que me contaram. A esposa do Evandro, a Isabel, se levantou –
como era tarde, já estavam todos dormindo – e foi fazer um café ou um
chimarrão, pra oferecer pra “visita”. Dizem que o Evandro falou pro Anacleto: “Ô, compadre!”, porque eles eram compadres, “ Vamo tomá um café, ai, fazê
um lanche...” e foi daí que o Anacleto levantou e pulou no Evandro já dizendo:
“- Eu não vim aqui pra tomá café! Eu vim aqui pra te matá!” O que me contaram
é que ele foi pra cima do Evandro com o punhal. O Evandro segurou a mão do
Anacleto – porque o Evandro era forte, também(ele teve aqui em casa, uns
anos atrás e me contou essas coisas, sentado aqui, nessa mesa, aí onde você
está sentado agora, Angelo). Com os gritos de socorro, alguém da família veio
ajudar na luta... uns dizem que foi a mulher, mas...eu acho que não poderia ter
sido a Moça, porque ela saiu da casa, pro terreiro, pra gritar por socorro,
também. Mas, gritar e não gritar, naquele lugar dava quase que na mesma
coisa... as casas muito longe umas das outras e todo aquele mato entre
elas...enfim!, sei que... alguém pegou um porrete e deu uma porretada nas
costas do bandido. E...daí foi aquilo: o Evandro passou a mão no punhal e
picou o Anacleto, massacrou. Depois disso, o Evandro pegou o Anacleto pelas
pernas e arrastou o corpo lá pra fora... dizem que ele saiu arrastando o corpo e
gritando: “- Venham aqui! Venham vê o animar que eu matei!!”...assim, desse
jeito. Daí, depois de tanto grito, por tanto tempo, os primeiros vizinhos
começaram a chegar...já de madrugadinha. Depois veio a polícia...mas, o
Evandro não foi preso. Ele foi “convidado” a prestar depoimento na delegacia –
porque todo mundo conhecia a história do Anacleto. Quando foram enterrar o
corpo, fizeram um buraco, lá, de qualquer jeito, no cemitério do Pirapó e
jogaram ele com capa, bota e tudo. Até o chapéu, parece, foi junto.
EU: E o que aconteceu com o Evandro depois disso tudo?
W: Ele precisou fazer tratamento...ficou muito abalado... afinal, eram amigos e
compadres. Cunhados, quase que antes de tudo.
11.6 ENTREVISTA DE JOSÉ MARIA ORREDA
JMO: Então, tem um autor... de um livro chamado “Profecia Celestina”, no qual
ele sustenta que, à medida em que identifica as coincidências, o indivíduo tem
a possibilidade de experimentar uma nova espiritualidade. E será ainda melhor,
se mais pessoas ao seu redor fizerem o mesmo, formando assim, uma espécie
de massa crítica. Veja...certa vez, eu voltava de Gonçalves Júnior – não sei se
você passou por essa região -, e... ali, na Barra Mansa, vivia um amigo, que
recentemente havia morrido. Ele benzia as pessoas dos povoados,...das
colônias, enfim. Ele possui um grande conhecimento acerca daquela sabedoria
ancestral dos povos antigos referentes aos benzimentos...simpatias... porque
as pessoas no interior, com pobreza, sem médicos ou remédios e tal... elas
precisam se agarrar em alguma coisa, acreditar nos benzimentos para curar
suas enfermidades e males, entende? Então eu vinha passando naquela
região, sozinho em meu carro, e...de repente, eu falei em voz alta: “- Ô, Turibio,
‘cê foi embora e deixou o povo na mão, rapaz! O que é isso? Você não tinha
autorização pra ir embora, assim, de repente! Como é que vai ficar, agora,
aquele povo todo...as crianças, os velhos?” e, passei. Segui meu caminho. No
dia seguinte, ou, nos dias seguintes, não me recordo com tamanha exatidão,
fui fazer uma palestra – aqui, no Colégio Nossa Senhora das Graças – e,
depois que terminei de falar, uma menina pediu pra ler um poema. Acabada a
leitura, essa menina – que eu nunca havia conhecido – chegou pra mim e
disse: “ – Professor, o senhor sabe quem eu sou? De quem eu sou filha?” eu
disse que não e ela me contou ser uma neta daquele meu amigo Toribio... “- O
senhor sabe o que aconteceu?”, me perguntou... e eu falei que não, então ela
me contou que ”- antes de morrer, meu avô ensinou minha mãe a fazer o que
ele fazia àquelas pessoas, em Gonçalves Júnior...e, agora, é ela quem faz todo
o trabalho que antes era dele.” Eu não sabia se eu chorava...ou...eu...o que eu
fazia. Fiquei parado, ali, imaginando como seria possível, uma coisa
daquelas... meu amigo me responder, já em seguida, assim. Aquela menina ler,
espontaneamente aquele poema pra depois vir me dar o recado, de livre e
espontânea vontade, sobre um assunto tão desconectado ao abordado na
palestra. É algo impressionante, não acha?
EU: Sim, acho. Acho que foi algo muito impressionante, mesmo, professor...
JMO: Então eu conto essas coisas, sabe... em meu livro – aquele sobre o qual
comentávamos, dias atrás – falo algumas... não particularizando com Irati,
sabe? Eu não quero produzir um trabalho que fique ligado, preso à Irati, me
entende?
EU: Uhum...
JMO: Mas, eu...de repente descubro lá, num texto...que alguns escritores
portugueses...o Alexandre Herculano, o... Antero de Quental...e um outro de
sobrenome Braga, chegaram a conclusão de que Portugal nunca saiu da Idade
Média. E, ai...você deduz que se Portugal não saiu da Idade Média – e acho
até que o Pombal expulsou os jesuítas em função daquela educação defasada
que eles ofereciam, em relação a todo o resto da Europa -, e..., bom, até me
perguntava como isso teria sido possível, afinal, naquela ocasião, a Igreja
ainda era tão forte... mas, de repente, achei um texto em um jornal antigo, aqui,
do estado do Paraná, no qual se dizia que muitas instituições estavam
denunciando os portugueses em razão da prática de ensinar índios a ler e a
escrever sem conferir muita atenção à catequese. E nesse texto ainda dizia
que não iria demorar muito para que esse índios expulsassem os portugueses
daqui. Vi nisso alguma relação com a tal ação do Pombal, mas... eu falava
sobre a conclusão que alguns autores chegaram sobra a não saída de Portugal
da Idade Média, não? Pois é... então como à época ainda era extremamente
forte a influência de Portugal sobre o Brasil, chego a pensar que o modo como
fazemos política e como se governa no Brasil, ainda é muito segundo os
preceitos medievais, só que “aqui e agora”. É isso que digo em meu livro. Veja,
a nossa história é sempre sonegada aos nossos jovens, não? Por exemplo: por
que nunca se conta para os jovens do ensino fundamental o que foi a expulsão
dos holandeses, ou, o que foi a Batalha de Guararapes? E a segunda Batalha
de Guararapes? O heroísmo daqueles português...daquelas mulheres...a Clara
Camarão, que liderou um grupo de mulheres, com armas em mãos, atuantes,
de modo expressivo na batalha. Tem a Maria Quitéria... e tantas outras
mulheres que fizeram um trabalho fantástico... dentro da história desse país.
Sabe...isso é sonegado das nossas crianças e jovens, todos os dias... privam
nossa juventude do vislumbre d’um cenário que expõe o quanto nosso país
sempre foi governado por gente “bunda mole” e incompetente, na contramão
do espírito das pessoas que citei anteriormente, no tocante e relacionável à
capacidade de governar. Escondem os verdadeiros heróis que criaram essa
nação, entende? São coisas assim que tento dizer no meu trabalho, sabe?
Tento dizer de forma indireta...uso metáforas... no trabalho. Justamente para
aproximar o livro da literatura e afastá-lo do relatório...do documento, registro...
EU: Tudo muito interessante, José. Enquanto você falava eu pensava que... só
fui saber de uma outra história do Brasil, na faculdade, pelo Sérgio Buarque de
Holanda – que no ensino fundamental – pelo menos na minha época – nunca,
sequer, ouvi falar...
JMO: Sim, sim...e, deixa eu te dizer uma coisa: esse meu trabalho – até tenho
que fazer umas duas ou três revisões, pra deixá-lo mais enxuto – se baseia um
pouco no “Profecia Celestina” pra mostrar uma ideia de que, uma pessoa, por
mais inteligente que seja, jamais dará o máximo, o melhor de si, para si próprio
e para a coletividade, se não estiver baseado num pensamento ancestral, num
pensamento dos antigos... os americanos, a meu entender, tem isso que
acabei de dizer como um princípio fundamental. Do contrário, não seria
possível ver, mesmo no pior dos filminhos produzidos em Hollywood, um quase
onipresença da bandeira americana. Aqui no Brasil, só veremos algo
semelhante no caso dos gaúchos. O Rio grande do Sul, para mim, é o mais
brasileiro de todos os estados do Brasil. Apesar de eu não ter lido muita coisa a
respeito do povo nordestino, à exceção desses períodos que já mencionei, da
nossa história. Claro que não levo isso tão a sério, em demasia. Considero os
conflitos dos gaúchos, durante a consolidação daquele povo e como evolui até
a atualidade. As coisas não são tão simples...não é isso que tento dizer, que
devemos ser assim, ou assado, esgotando um tema tão complexo. Eu tento
mostrar que a visão de direita que possuímos – e que acaba sendo aplicada -,
na verdade, é a visão de uma direita burra... sem esquecer que tanto direita
quanto esquerda possuem problemas... vícios e virtudes. Mas eu não entendo
muitas vezes – como certas coisas que vejo em redes sociais – quando dizem
que o PT é um partido de vagabundos...e que precisa o quanto antes ser
extirpado...banido do governo...essas coisas, sabe? Claro que as relações
políticas e a “governabilidade” continuam mantendo toda esta palhaçada que
vemos...e, o PT mesmo, sabe que não fez muito do que prometeu, mas...te
pergunto: houve algum outro período na história do Brasil que tenha sido, nem
digo igual, mas, próximo a este, no qual o PT governou? Nessas horas, de
tanta contradição nos discursos públicos e políticos...penso na revolução
francesa e na Joana D’arc...o povo, depois que conquistou o poder e a
possibilidade de uma vida melhor, cortou a cabeça da mulher que teve um
papel tão importante na própria conquista desse poder popular...que a mataria.
Lembro de Jesus, no sermão da montanha, que dizia que os justos serão
condenados pela sua justiça. Eu...falo de tantas coisas...não sei se as pessoas
vão entender esse meu livro, mas...
EU: Me pareceu bem interessante e depois que o senhor o lançar, certamente
tentarei ler...mas, em nossas últimas conversas, professor, o senhor havia
mencionado algo sobre a estagnação do crescimento de Irati...
JMO: Eu penso que, na verdade, o que aconteceu, foi o seguinte:
historicamente,... e... escrevi uma espécie de paródia da frase “Pobre México,
tão longe de Deus e tão perto dos EUA”, certa vez, e a digo agora, pra tentar
ilustrar melhor o que quero te dizer, Angelo... eu dizia “Pobre Irati, tão longe de
Deus e tão perto de Ponta Grossa”... então, como eu iria dizer inicialmente,
sempre que Irati conquistava algo realmente grande, Ponta Grossa vinha e
tomava isso de nós. Lá sempre existiu mais votos, sempre foram,
politicamente, mais fortes... existiam pessoas mais atuantes lá, portanto, uma
massa crítica mais concisa...então, era meio que uma disputa da “cidade
grande” contra a “aldeia”. Perdemos a estrada, ou melhor, o trajeto da BR-277,
para eles – e isso custou 50 anos de esforços do município, pra tentar voltar o
trajeto para cá -, veja, o desvio provocado por Ponta Grossa foi de 40
quilômetros. E mesmo depois de ter conseguido recuperar o trajeto da 277, o
trecho Irati/Relógio, não é o caminho mais correto, ele é oito quilômetros mais
extenso. O caminho melhor seria Irati/Itapará, mas... ficou essa ai mesmo, que
está nos servindo hoje. O motivo disso acontecer, até hoje não entendo muito
bem. Talvez, pelo fato dos “grandões” possuírem terras naquela região...não
sei. Aliás...o trecho Irati/Relógio se justifica pelo fato que dali, se vai à Pitanga.
E, quando a Sambra veio se instalar em Irati, o prefeito deu um “chá de banco”
neles. Esse prefeito era um madeireiro, e, ele só vinha trabalhar às 11hs15 –
tinha que tomar o chimarrão dele, antes, entende? -, porém, o pessoal havia
chegado perto das 9hs... e, durante a reunião, ele perguntou a razão do
interesse da empresa em instalar-se em Irati. O pessoal explicou que era em
função da estrada Irati/Relógio dar acesso à Pitanga. Provavelmente, depois da
recepção “exemplar” do nosso prefeito e da demonstração de desinteresse e
ignorância acerca do próprio quintal, a Sambra não pode resistir à recepção
com banda de música, jantar com mais de 200 empresários da Região e outros
acertos promovidos pelo Ciro Martins(prefeito de Ponta Grossa, na época). Foi
pra Ponta Grossa – que, inclusive, ofereceu o terreno e a terraplanagem, de
graça. Resultado: todo o complexo da soja, Cargil, Irmãos Pereira e “numquem-mais” está todo ali, em Ponta Grossa. Ou seja, nós, os iratienses,
representados por aquele madeireiro, fomos incompetentes. E, com o fim do
ciclo da madeira e a abertura da região norte e o início dos cafezais, essa
nossa região, ficou como... abandonada, sabe? Inclusive, meio que foi atribuído
um apelido nada animador pra nós: Ramal da fome. O que também se constitui
num exagero, porque se você observar um pouco, notará sem dificuldade que
não existem favelas em Irati. Ainda que nós atravessamos todo o ciclo da
madeira sendo vergonhosamente roubados pelo Percival Farquar , ou seja, a
riqueza que movimentou o desenvolvimento dessa cidade, foi de menor
intensidade. Pra ter uma ideia, a estrada de ferro, que ligava São Paulo ao Rio
Grande do Sul era desse homem. Então, muito dessa nossa riqueza, foi
escoada para fora, para os EUA, no caso. Havia um grupo econômico
desinteressado no público E INTERESSADÍSSIMO no privado, que comandava
Irati, nessa época. No início dos anos 1980, esse grupo se desmantelou. E, a
partir de então, servidos, sempre muito mais pelas coincidências, os iratienses
viram o plano do Ney Braga, para eleger o Saul Raiz, desmoronar e, com a
ascensão do José Richa, contratos de financiamentos, engavetados durante
décadas, foram postos em vigor. A muito custo, vale observar. O Richa não
estava muito interessado em investir no desenvolvimento dessa nossa região,
não. Na verdade, ele resistiu o máximo possível - cerca de um ano, depois de
assumir, é que foi assinar os contratos. Esses empréstimos já haviam sido
acordados de antemão pelo Ney Braga, dada a certeza de vitória, veja que
ironia. De qualquer maneira, o dinheiro foi aplicado em melhorias na
infraestrutura de Irati e dos seus distritos; a vida da população melhorou um
pouco. Hoje a situação é completamente diferente. Há dois anos, haviam 600
construções em andamento nessa cidade. Atualmente, estou um pouco
desinformado, quanto a esses números. Para termos um marco: início dos
anos 2000, eu diria. Foi a partir daí que as grandes transformações tiveram
início. Antes dessa década, era comum as pessoas daqui irem fazer compras
em Curitiba, Ponta Grossa e Guarapuava. Houve, não posso deixar de
mencionar, nos anos 1990, a criação de uma extensão da Centro Oeste – da
Universidade Centro Oeste – no governo do Álvaro Dias. Isso ajudou, com
certeza. Por causa da vinda de muitos estudantes de todas as partes do Brasil.
EU: Então, podemos dizer que dois foram os fatores principais à construção da
realidade sócio-política-econômica atual de Irati: o surgimento da Região Norte
e a administração pública, digamos, patriarcal observada, até o início dos anos
1980?
JMO: É... acho que sim. Quanto à colonização do norte...veja: surgiam cidades
“da noite pro dia”, por lá, podemos dizer. Então, houve um pequeno êxodo,
sabe? Muitas famílias daqui, se mudaram pra lá. As atenções foram todas pra
lá. Me refiro, principalmente, à atenção dos governantes, claro. Onde não há
muito voto, haverá certamente pouco, senão, nenhum interesse da parte dos
políticos para com a população.
EU: Quanto ao grupo que possuía o controle político de Irati: de que forma se
deu a influência desse grupo nos fatores já apontados pela questão anterior? excetuando a incompetência administrativa. Porque o senhor deu destaque, a
meu ver, um tanto demasiado àquele aparente desinteresse da classe política
iratiense.
JMO: Veja, Angelo...acontecia o seguinte: o ciclo da madeira se definiu, mais
ou menos, assim: logo que acabava a matéria-prima, os madeireiros
transferiam as serrarias de localidade. Isso parece natural, no entanto, não foi o
que aconteceu no caso exclusivo de Irati. Em Teixeira Soares, assim que
acabou a madeira, o povo das serrarias vieram embora – ou, foram embora com as empresas, rumo às novas frentes de corte. Aqui foi o contrário: acabou
o corte, os madeireiros foram atrás de matéria-prima, porém, suas famílias
permaneceram, dessa vez. Algo parecido ocorreu com os construtores da
estrada de ferro. Inclusive, voltando ao exemplo dos madeireiros, o faturamento
era feito aqui. Isso foi fantástico. Entenda: se cortava a madeira em Pinhão, por
exemplo, mas, o faturamento era feito por aqui, ou seja, a arrecadação
tributária revertia-se em fundos para o município de Irati. Claro que não
demorou muito pra essa lei mudar, no entanto, durante as décadas de 1950 e
1960, foi assim. Então, por toda a região norte e oeste do Paraná, naquele
tempo, tinha madeireiro de Irati serrando. E, esse grupo econômico, ao qual me
referi, se formou nessa época. Era liderado pelo Agostinho Zarpellon Júnior –
que era muito amigo do Ermírio de Moraes. Aliás, essa relação próxima entre
os madeireiros de Irati e empresários paulistas é um fato peculiar. Numa época
mais antiga, por exemplo, o Caetano Zarpellon, se tornou muitíssimo amigo do
Conde Matarazzo – que o financiava, evidentemente, com o intuito de que
Zarpellon abastecesse as demandas das empresas Matarazzo. Mas...eu dizia
que o Agostinho Zarpellon era a cabeça desse grupo político que mandou em
Irati por três décadas, não? Então...o Zarpellon se mantinha muito informado
acerca dos acontecimento concernentes ao estado de São Paulo. Tudo que o
Ermírio fazia lá, ele fazia, também, aqui, no Parana, em Irati. Quando o Ermírio
começou a produzir fósforo, por lá, ele, o Zarpellon, fez o mesmo aqui. Houve
até um conflito de interesses entre os amigos: a fábrica de fósforo que veio pra
cá, inicialmente, ficaria dentro do grupo do Ermírio. Com a definição da vinda
para cá, os ânimos se alteraram. Mais tarde, quando o Ermírio iniciou a
produção de cimento, o Zarpellon criou a Itambé. Mas, daí...os velhos
começaram a morrer, sabe... Edgar Gomes, Virgílio Moreira e o próprio
Agostinho Zarpellon...todos morreram, naturalmente, com o passar dos anos e
o grupo ficou sem cabeça. E se desmantelou. Pode ser, então, que essas
pessoas, motivadas muito mais pelos negócios, em uma ocasião ou outra,
tenham tomado decisões de moda a favorecer mais um lado privado do que o
público. Seria uma longa análise sobre uma não menor pesquisa, então... não
me arriscaria a nada além de uma sugestão, em caráter especulativo, apenas.
Oficialmente?
Eu
diria
que
houve
incompetência
e
desinteresse
na
administração pública de Irati nos anos de domínio desse povo. Os conflitos
humanos são muito complexos, sabe? O interesse particular uma hora ou outra
extravasa os limites e, aparentemente, esses excessos, deságuam sobre o
público. Tinha um alemão, o Carlos Tows, empresário ascendente aqui na
região...e, numa ocasião, ele resolveu criar uma fábrica de MDF. Após
concluída a pesquisa de mercado, os técnicos o aconselharam a não instalar a
fábrica aqui, disseram que seria melhor em Guarapuava. Pois esse alemão não
quis nem saber. Disse que se não fosse pra ser em Irati ele não faria. E acabou
que não fez, mesmo. Veja, que conflito era esse? Se por um lado ele
demonstra algo de consideração para com Irati, ao mesmo tempo, não criou
uma empresa, em Guarapuava, que fosse, capaz de oferecer trabalho a muitas
pessoas. É complicado, sabe...
EU: E por falar em complicado: ontem, durante uma entrevista que fiz com um
senhor que por muitos anos foi proprietário de um açougue, aqui, em Irati,
também, acabamos entrando no assunto do reflorestamento – porque nos anos
’70 ele deixou do açougue pra se dedicar a produção de madeira reflorestada –
e ele me falou que o real devastador das florestas nativas foi o colono. O
senhor concorda?
JMO: Sim, foram os colonos. A minha esposa vem a ser neta de um grande
madeireiro. O maior, na verdade, aqui da região de Irati. Foi o João Baptista
Anciutti, ele teve sete serrarias. E hoje...uma parte de uma das áreas na qual
se extraia madeira, veio, como herança, para posse de minha mulher. Se eu te
levar lá, Angelo, você ficará espantado: verá pinheiros cujo tronco, para ser
abraçado, seria necessário dois ou três homens. E, ele cortava muitos iguais a
esta, lá, nas décadas de ’50 e ’60. Não é uma área muito grande, mas,
estimasse existirem 8.000 araucárias, lá. É uma floresta tão densamente
fechada por essas árvores que eu não sei se algumas mudas que plantei, lá,
há uns sete anos, conseguirão se desenvolver. Há trinta anos eu já cultivava a
prática de semear novas plantas. Então, acabei “povoando”, talvez, em
demasia aquele lugar. Mas, o fato, é que já existiam muitos pinheiros lá, porque
o madeireiro cortava os grandes e deixava os menores. E como a demanda
não dava conta de estreitar o prazo no qual novas árvores chegavam à fase de
corte, a floresta ia se reciclando. Por outro lado, os colonos chegavam pra esse
meu sogro e diziam: “- Batista, dê um jeito na vida da gente...corte esses
pinheiros, pra gente podê fazê lavora...” e ele, deixava a reserva dele e ia lá
comprar pinheiro desse povo – que precisava, mesmo, pra poder abrir áreas de
cultivo. Fora que o colono não ia apenas cortar: ele ia destoquiar . Ou seja,
limpar pra valer o solo, pra não haver nada além dá planta semeada, da
determinada cultura desejada. E foi assim que destruímos 90% das florestas
nativas paranaenses.
EU: Uma parte da Idade Média presente nas técnicas agrícolas, professor?
JMO: Sim, sem dúvida. Se você for na região de Cascavel, por exemplo, notará
que não há árvores como aqui. Porque apesar de tudo, essa região ainda está
mais preservada. Lá, eles plantaram soja até perto dos umbrais das casas. É
uma loucura.
EU: E porque o senhor acha que isso aconteceu? Me refiro ao fato de ser esta
a região mais preservada do estado, justamente onde estavam as serrarias e,
por assim dizer, a indústria madeireira do Paraná.
JMO: Porque aqui não houve o que aconteceu no norte com o café, e no oeste,
com a soja, entende? Aqui, as lavouras não pretendiam o mercado exterior. O
cafeeiro queria vender café para o mundo inteiro, assim como o produtor de
soja. Altíssima produção, portanto. Muita demanda por solo, por áreas. Falo
dessas duas, porque, talvez, tenham sido as principais, mesmo. Mas, pode
haver outros e melhores exemplos, quem sabe? Agora não me ocorre outro
mais apropriado. Você sabia que foi uma mulher que trouxe as primeiras
sementes de soja para o Brasil. Era uma jornalista. Ela foi à China e voltou com
amostras...pro Brasil...
11.7 FOTOS
A seguir, o autor anexou algumas fotos que mostram vistas que se tem
do exato ponto onde está enterrado Anacleto Vargem, no cemitério da
comunidade do Pirapó.
Figura 1
Vista a partir do túmulo de Anacleto na direção do portal do cemitério.
Figura 2
Vista a partir do túmulo de Anacleto Vargem na direção do poente
Figura 3
Túmulos: o de Anacleto Vargem é o indicado pela cruz maior, à esquerda.
Figura 4
José Stroparo frente ao túmulo: o homem que transportou o corpo e o
depositou na sepultura rústica – que permanece do mesmo modo como foi
selada em 1956.