Situação da Água na América Latina
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Situação da Água na América Latina
Situação da Água na América Latina Silvia Zimmermann del Castillo Só de pensar que apenas 0,5% da água do planeta é doce, a América Latina deve considerar-se bendita ao ser o continente com a disponibilidade de água mais alta do mundo: dispõe de 33% dos recursos hídricos renováveis do planeta. Os seus 3100 m3 per capita por ano duplicam a média per capita mundial. Há ainda que referir que, no que se refere à América Latina, o problema da água não tem a ver com a escassez. No entanto, actualmente 77 milhões de pessoas não têm acesso a água e mais de 100 milhões de habitantes não têm saneamento. No caso especial da Argentina, um dos países com melhor aprovisionamento de água potável da região, 15% da sociedade não tem acesso a ela. Na Cidade de Buenos Aires e nalgumas zonas da Grande Buenos Aires, mais de 250.000 pessoas não têm acesso a água segura e não contam com serviços de saneamento. De um modo geral, podemos dizer que os países da região (alguns com muita riqueza hídrica, como é o caso do Brasil e da Argentina, outros com menos) partilham, contudo, os mesmos problemas hídricos. A saber: 1. A desigualdade entre zonas rurais e urbanas. Dos 77 milhões de habitantes sem acesso a água, 51 milhões habitam nas zonas rurais. Aos 100 milhões sem acesso a saneamento, há que somar 256 milhões que fazem descargas em fossas sépticas. Na Argentina, por exemplo, a principal causa de contaminação em rios e cursos de água está relacionada com a descarga de esgotos nos afluentes sem qualquer tratamento. No Equador, a maioria dos rios estão contaminados, fundamentalmente, devido às descargas dos esgotos. Na região, 86% das águas residuais são descarregadas sem tratamento nos diferentes cursos de água. E maioritariamente, em zonas rurais 2. Contaminação. Contudo, não é esta a única causa de contaminação. Deve ter-se em conta que os países latino-americanos são essencialmente agrícolas. A contaminação por pesticidas, fungicidas e fertilizantes é muito vasta e difícil de erradicar. É o caso, na Argentina, do Alto Valle del Río Negro, produtor de frutas. As necessidades básicas da população não são o único, nem o mais importante factor de consumo do recurso. A agroindústria é o principal consumidor de água, representando 70%. Basta pensar na pegada hídrica que há num bife argentino de 500grs: 7.000 litros de água. A Argentina, por exemplo, é o 4º país exportador de água virtual do mundo: em cereais exporta anualmente 46.000 milhões de m3 de água. Este é um aspecto que praticamente ninguém tem conhecimento. A indústria consome 20% e, claro, consome e contamina. O caso da bacia do Rio de La Plata na Argentina (o terceiro rio mais poluído do mundo) é emblemático. Nele desaguam as águas da bacia Matanza - Riachuelo que nos seus 2.200 km2 atravessa 14 municípios da Grande Buenos Aires e da Cidade e conta com uma população de 7.266.000 de habitantes, dos quais 35% não tem acesso a água potável, 55% não tem saneamento e convive com 105 lixeiras a céu aberto. Para além das lixeiras e da água dos esgotos, outros agentes de contaminação são as 20.000 indústrias da bacia, entre frigoríficos e curtumes. No que se refere a Riachuelo, em 2008, o Supremo Tribunal de Justiça da Nação ditou uma sentença histórica: ordenou aos governos nacional, de Buenos Aires e portenho a realização do saneamento da bacia, através da criação da ACUMAR (Autoridade da Bacia Matanza-Riachuelo). Já estão a ver-se os progressos. 3. Aumento populacional e concentração urbana Segundo a ONU, actualmente mais de 50% da população mundial vive em cidades e calcula-se que em 2030 possa chegar aos 60% e em 2050 aos 70%. O crescimento da população e da concentração urbana acarretam dificuldades na logística do abastecimento de água às povoações e do saneamento e esgotos. Num documento de carácter trienal elaborado pelo World Water Assessmenet Programme, no ano passado, a ONU alertou para o problema da água na América Latina e assinalou que se trata da região em desenvolvimento mais urbanizada do mundo, com mais de 80% vivendo em povoações e cidades, exercendo desta forma uma enorme pressão sobre os aquíferos e os rios. O documento assinala também como preocupante a expansão da exploração mineira de cobre e ouro no Chile e no Peru (cresceu 56%), com as degradações que a actividade implica (muitas vezes realizada de forma ilegal) nos cursos de águas e nos rios. No Peru, a exploração mineira é a primeira causa de contaminação das águas. A América Latina é a região que reúne a maior quantidade de países em desenvolvimento com maior concentração urbana. É o caso paradigmático do México Distrito Federal que está conduzindo à sobre-exploração dos seus aquíferos. 102 dos 653 aquíferos que o México possuí já estão sobre explorados. Na América do Sul, entre 40 e 60% da água que se consome provém dos aquíferos. A América Central e o México consomem 65% da água dos aquíferos. 4. Distribuição e stress hídrico Por outro lado, ainda que a região possua a mais alta disponibilidade de água, não implica que não haja populações que padeçam de escassez. Peru, El Salvador e México já experimentam o chamado “stress hídrico”. É o caso do Chile, e muito notoriamente do Peru, cuja crescente concentração urbana assenta nas costas desérticas, com a consequente necessidade de exportar água de zonas abastecidas. O abastecimento dos núcleos urbanos costeiros é difícil e caro. El Salvador é um dos países mais desflorestados e mais densamente povoados da América Latina (333 habitantes/km2). Depende de uma bacia que abarca 50% do seu território (bacia do rio Lempa que partilha com as Honduras e a Guatemala). A desflorestação para a reconversão do uso dos solos provocou a erosão das margens do rio de onde se deve importar água, uma vez que a sobre exploração foi dizimando o aquífero. El Salvador é um caso limite de stress hídrico. O México, por seu lado, padece de uma marcada deficiência na distribuição natural do recurso. Soma-se a isto o facto do México DF, um dos maiores conglomerados urbanos do mundo, importar do interior do país 45% da água que consome. A mesma Argentina, famosa pela sua pampa húmida, tem 75% da sua superfície formada por zonas áridas, semi-áridas e sub húmidas. A desigualdade da distribuição natural da água vê-se agravada pela falta de políticas de distribuição e de manuseamento do recurso. Gostava de fazer uma breve menção da desigualdade da distribuição da água no meu país e do trabalho que, a partir do Capítulo Argentino do Clube de Roma estamos a desenvolver em conjunto com o Movimento Água e Juventude. Efectivamente, o noroeste argentino é a região mais desértica da Argentina. Desde este ano, o Capítulo Argentino apoia o trabalho de campo executado pelos jovens da Água e Juventude, facilitando o acesso à água aos hospitais, às escolas e às famílias da zona desértica da Província de Santiago del Estero. Ao mesmo tempo que se leva águas a esses destinos, educa-se a população para a administração e cuidado da mesma e a sua utilização nas hortas orgânicas familiares. 5. Alteração Climática A América Latina sofre inundações, secas e outras variações climáticas relacionadas com o fenómeno El Niño, o que aumentará em frequência, duração e intensidade, segundo as previsões. Um dos efeitos da corrente do El Niño e da alteração climatérica é o retrocesso dos glaciares na região, o que afecta o abastecimento de água a cerca de 30 milhões de pessoas. 6. O Desperdício A tudo o que foi referido, soma-se um factor de índole sócio cultural que não deve ser menosprezado: o desperdício de água. O Brasil tem a maior fonte de água doce do mundo. Não sofre de escassez de água mas desperdiça-a. O nível de desperdício de água para consumo humano é de 40%: fundamentalmente na irrigação. O mesmo ocorre na Argentina, sobretudo na cidade de Buenos Aires. Consomem-se 500 litros de água por dia por pessoa. 50 litros constituem a quantidade necessária e suficiente. Neste sentido, em Julho de 2012, a Legislatura de Buenos Aires aprovou uma lei para que os novos edifícios recuperem a água da chuva para reutilizá-la na limpeza das calçadas e para a irrigação. Um passo à frente na consciencialização do valor da água. 7. Água e Saúde A Organização Mundial de Saúde assinalou que 85% das causas de doenças e mortes no mundo estão associadas à água contaminada e à falta de acesso a água. Perdem-se três milhões de vidas por ano por disenteria e diarreia, entre outros males. Na América Latina reportam-se anualmente 150 000 mortes por causa do estado contaminado das águas. 85% são crianças menores de cinco anos. 8. Conclusão Para concluir, podemos dizer que, basicamente, o problema da água na América Latina não responde a causas físicas, mas sim a socioeconómicas. A maioria dos países da região carece de políticas hídricas. O recurso é amplamente relegado das prioridades, o que talvez responda, de forma inconsciente, à tranquilidade de saber da sua abundância no continente. Na Argentina, por exemplo, não há cenários hídricos para os próximos 20 ou 30 anos. Os países latino-americanos partilham a falta de planificação a longo prazo e de uma administração e manuseamento responsável do recurso: 40% da água perde-se em fugas e sistemas deficientes de redes de esgotos. É urgente, para além disso, uma maior eficiência no uso da água para a produção agrícola e industrial. Não há dúvida de que a América Latina possui 33% da água doce do planeta, mas definitivamente, a riqueza da água radica na sua administração e no seu cuidado. Para isso a América latina deve empenhar-se em mais educação a nível cívico e maior ética e eficiência a nível governamental.