Robson Augusto Dainez Condé
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Robson Augusto Dainez Condé
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Faculdade de Administração e Finanças Robson Augusto Dainez Condé Fraudes corporativas: um estudo de casos múltiplos à luz da teoria dos escândalos corporativos Rio de Janeiro 2013 Robson Augusto Dainez Condé Fraudes corporativas: um estudo de casos múltiplos à luz da teoria dos escândalos corporativos Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de PósGraduação em Ciências Contábeis, da Faculdade de Administração e Finanças, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Controle de Gestão. Orientador: Prof. L.D. Julio Sergio de Souza Cardozo Rio de Janeiro 2013 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/B C745 Condé, Robson Augusto Dainez. Fraudes corporativas: um estudo de casos múltiplos à luz da teoria dos escândalos corporativos / Robson Augusto Dainez Conde. 101 f. Orientador: Julio Sergio de Souza Cardozo. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Administração e Finanças. Bibliografia: f. 92-96. 1. Fraude – Contabilidade – Teses 2. Governança corporativa – Teses. I. Cardozo, Julio Sergio de Souza. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Administração e Finanças. III. Título. CDU 657:658 Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. ___________________________ Assinatura ____________________ Data Robson Augusto Dainez Condé Fraudes corporativas: um estudo de casos múltiplos à luz da teoria dos escândalos corporativos Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Contábeis da Faculdade de Administração e Finanças da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Controle de Gestão. Aprovada em 11 de março de 2013 Banca Examinadora: __________________________________________ Prof. L.D. Julio Sergio de Souza Cardozo (Orientador) Universidade do Estado do Rio de Janeiro __________________________________________ Prof. Dr. Francisco José dos Santos Alves Universidade do Estado do Rio de Janeiro __________________________________________ Prof. Dr. Paulo Sergio Pagliusi Procela Inteligência em Segurança Rio de Janeiro 2013 DEDICATÓRIA Dedico esta dissertação a minha filha Yasmin: inspirou-me a busca pelo conhecimento. AGRADECIMENTOS Agradeço, inicialmente, a Deus por guiar meus passos nestes dois anos de dedicação intensa, especialmente por me conceder a saúde necessária para enfrentar os desafios. À Estefânia, minha companheira de todos os dias, pela compreensão e pelo amor dedicado a nossa família. Aos meus queridos pais e irmão, pelo incentivo e apoio concedidos ao longo do curso. Aos professores do mestrado, pelos ensinamentos transmitidos. Ao meu orientador, professor Julio Sergio de Souza Cardozo, pelas sábias e seguras intervenções no rumo desta pesquisa e pelos artigos sobre fraude disponibilizados durante as aulas da disciplina de Auditoria. À Secretaria de Estado da Fazenda do Espírito Santo e ao Subsecretário de Estado da Receita, Gustavo Assis Guerra, por autorizarem meu afastamento para cursar o mestrado. Aos amigos Carlos Otávio Ferreira de Almeida e Rogério Zanon da Silveira, por incentivarem-me a ingressar no curso. À professora Andréa Paula Osório Duque, pela prestimosa ajuda na formatação deste trabalho. Ao colega Renato Santiago Quintal, pela parceria na elaboração dos trabalhos acadêmicos. Aos funcionários da secretaria do mestrado, pelo apoio incondicional que me prestaram sempre que precisei. E, finalmente, a todos que de alguma forma contribuíram para a realização deste sonho. Muito obrigado! Há quem busque o saber para vendê-lo por dinheiro ou honrarias: é indigno tráfico. Há quem busque o saber para edificar, é amor. E há quem busque o saber para edificar-se, e isto é prudência. Bernardo Claraval RESUMO CONDÉ, Robson Augusto Dainez. Fraudes corporativas: um estudo de casos múltiplos à luz da teoria dos escândalos corporativos. 2013. 101 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Contábeis) – Faculdade de Administração e Finanças, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. O presente estudo é uma investigação empírica de natureza qualitativa e tem por objetivo comparar as características das fraudes praticadas por meio de manipulação nas demonstrações contábeis das empresas Daslu, Kmart e Avestruz Master. Buscou-se verificar diferenças entre fraudes no Brasil e nos Estados Unidos, no que se refere às motivações e finalidades da ação fraudulenta, aos métodos de manipulação contábil utilizados e à governança corporativa adotada pelas empresas. O trabalho foi desenvolvido seguindo a metodologia do estudo de casos múltiplos, utilizando-se um protocolo, que contemplou os procedimentos e as regras gerais obedecidas na pesquisa, com a função de incrementar a confiabilidade do estudo e orientar o trabalho do pesquisador. A seleção dos casos estudados foi feita com base em pesquisas anteriores, que mencionaram fraudes praticadas no Brasil e nos Estados Unidos, na última década. Os resultados indicam que as fraudes apresentaram diferenças na natureza e na autoria dos atos fraudulentos, com evidências da aplicação das teorias do triângulo da fraude (TTF) e dos escândalos corporativos (TEC). Considerando que as corporações brasileiras estudadas possuíam sistema de governança corporativa concentrado, similar ao de empresas europeias, as diferenças observadas nas fraudes investigadas podem ser explicadas pela teoria dos escândalos corporativos, defendida por Coffee Jr. (2005). Palavras-chave: Fraudes corporativas. Teoria dos escândalos corporativos. Teoria do triângulo da fraude. Governança corporativa. ABSTRACT The present study is an empirical research of qualitative nature and aims to compare the characteristics of fraud committed by means of manipulation in the financial statements of Daslu, Kmart and Avestruz Master companies. It has been trying to check differences between fraud in Brazil and in United States with regard to the motivations and purposes of the fraudulent action, accounting handling methods used and to corporate governance adopted by companies. The work was developed, following the methodology of study of multiple cases, using a case study protocol, which included general rules and procedures observed in the survey, with the function of increasing the reliability of the study and guide the researcher work. The selection of studied cases was based on previous research that mentioned fraud practiced in Brazil and in United States in last decade. The results indicate that frauds have showed differences in fraud operation and in its author, with evidence of the application of fraud triangle (TTF) and the corporate scandals (TEC) theories. Whereas the corporations studied had corporate governance system similar to that of European companies, the observed differences in investigated frauds can be explained by the theory of corporate scandals (TEC) defended by Coffee Jr. (2005). Keywords: Corporate fraud. Corporate scandals theory. Fraud triangle theory. Corporate governance. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 A Árvore da Fraude...................................................................................... 18 Figura 2 Limite entre Gerenciamento de Resultados e Fraude Contábil.................... 22 Figura 3 Triângulo da Fraude...................................................................................... 25 Figura 4 Ciclo da Fraude nas Demonstrações Contábeis............................................ 34 Figura 5 Uma síntese conceitual: os 8 Ps da governança corporativa........................ 36 Figura 6 O Desenvolvimento das Corporações e o Despertar da Governança Corporativa.................................................................................................. 37 Quadro 1 Características dos modelos de governança corporativa.............................. 39 Quadro 2 Tipos de projetos de estudo de caso............................................................. 45 Quadro 3 Casos de fraudes nacionais........................................................................... 47 Quadro 4 Casos de fraudes norte-americanas............................................................... 48 Quadro 5 Quantidade de arquivos e documentos consultados..................................... 51 Quadro 6 Operacionalização da fraude no caso Daslu................................................. 55 Quadro 7 Síntese do caso Daslu................................................................................... 62 Figura 7 Operacionalização da fraude no caso Kmart................................................ 65 Quadro 8 Síntese do caso Kmart.................................................................................. 73 Quadro 9 Operacionalização da fraude no caso Avestruz Master................................ 79 Figura 8 Linha histórica do caso Avestruz Master...................................................... 81 Quadro 10 Síntese do caso Avestruz Master.................................................................. 86 Quadro 11 Evidências levantadas nos casos investigados.............................................. 88 Quadro 12 Estrutura da coleta de dados......................................................................... 99 Quadro 13 Síntese dos casos........................................................................................... 101 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ACAB Associação dos Criadores de Avestruzes do Brasil ACFE Association of Certified Fraud Examiners ADR American Depositary Receipts CAQ Center for Audit Quality CEO Chief Executive Officer CFC Conselho Federal de Contabilidade CFO Chief Financial Officer CIC Contrato de Investimento Coletivo COO Chief Operating Officer COSO Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission CPB Código Penal Brasileiro CPR Cédula de Produto Rural CMV Custo das Mercadorias Vendidas DI Declaração de Importação GAAP Generally Accepted Accounting Principles IBGC Instituto Brasileiro de Governança Corporativa IBRACON Instituto dos Auditores Independentes do Brasil MBC Margem Bruta de Contribuição MPF Ministério Público Federal NBC Normas Brasileiras de Contabilidade OCDE Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico ONU Organização das Nações Unidas PwC PricewaterhouseCoopers SEC Securities and Exchange Commission SISCOMEX Sistema Integrado de Comércio Exterior SRF Secretaria da Receita Federal TAC Termo de Ajustamento de Conduta TEC Teoria dos Escândalos Corporativos TI Tecnologia da Informação TTF Teoria do Triângulo da Fraude SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................. 12 1 REFERENCIAL TEÓRICO............................................................................. 16 1.1 A fraude na contabilidade.................................................................................. 16 1.1.1 A conduta fraudulenta.......................................................................................... 16 1.1.2 Diferença entre fraude e gerenciamento de resultados......................................... 21 1.1.3 Fraude “contra” e “a favor” da empresa............................................................... 23 1.2 Características da fraude nas demonstrações contábeis................................ 24 1.2.1 A teoria do triângulo da fraude............................................................................ 25 1.2.2 Finalidade do agente fraudador............................................................................ 27 1.2.3 Métodos de manipulação contábil........................................................................ 28 1.2.3.1 Receitas fictícias.................................................................................................. 29 1.2.3.2 Fraude no atendimento ao regime contábil da competência................................ 30 1.2.3.3 Ocultação de despesas e passivos......................................................................... 31 1.2.3.4 Divulgações ou omissões impróprias................................................................... 32 1.2.3.5 Avaliações fraudulentas de ativos........................................................................ 33 1.3 A governança corporativa no combate à fraude............................................. 35 1.4 Teoria dos escândalos corporativos................................................................ 41 2 METODOLOGIA.............................................................................................. 44 2.1 Tipo de pesquisa................................................................................................. 44 2.2 Seleção dos casos................................................................................................. 46 2.3 Coleta de dados................................................................................................. 48 2.4 Análise e interpretação dos dados..................................................................... 50 3 ESTUDO DOS CASOS...................................................................................... 52 3.1 Caso Daslu........................................................................................................... 52 3.2 Caso Kmart......................................................................................................... 62 3.3 Caso Avestruz Master........................................................................................ 74 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 87 REFERÊNCIAS................................................................................................. 92 APÊNDICE A – Protocolo do estudo de casos múltiplos............................... 97 APÊNDICE B – Síntese dos casos..................................................................... 101 12 INTRODUÇÃO Este estudo pretende contribuir para uma melhor compreensão sobre as características da fraude corporativa praticada por meio de manipulações nas demonstrações contábeis das empresas. Um dos grandes problemas da atualidade, o assunto é complexo e tem recebido muita atenção dos governos, empresários e indivíduos, pois representa um problema significativo para a economia dos países. Em pesquisa recente sobre fraudes realizada com organizações de 78 países, a empresa de consultoria PricewaterhouseCoopers identificou fraudes em cerca de 34% das empresas, sendo que mais de 10% delas declararam perdas superiores a 5 milhões de dólares (PwC, 2011). Os Estados Unidos e o Brasil vivenciaram, nos últimos anos, escândalos envolvendo grandes empresas. A Enron e a WorldCom, por exemplo, protagonizaram algumas das maiores fraudes corporativas dos Estados Unidos, ao maquiarem seus resultados para atender às expectativas dos usuários externos das informações contábeis, escamoteando a real situação da empresa (SILVA et al., 2012). Há pouco tempo, no Brasil, a fim de evitar a possível quebra do Banco PanAmericano pelo escândalo em 2010, o Fundo Garantidor de Crédito, instituição liderada por bancos privados, deflagrou um pacote com o fim de resgatar o banco e preservar a estabilidade do sistema financeiro (BRONZATTO, 2011). Para ocultar as dificuldades que o banco enfrentava, a diretoria escamoteou transações importantes, como constataram inspetores do Banco Central do Brasil. Casos desta natureza têm surgido com frequência, aumentando, negativamente, a desconfiança sobre a lisura das informações contábeis divulgadas pelas empresas. Notícias sobre estes tipos de escândalos, em especial quando envolvem empresas de capital aberto e instituições financeiras, atraem a atenção da mídia e provocam indignação pública, pois a confiabilidade das demonstrações contábeis é fator que influencia de forma significativa o valor da empresa e sua manipulação pode prejudicar muitos investidores. É normal, nestas situações, surgirem discussões sobre os aspectos motivacionais que desencadearam a fraude, e críticas sobre as fragilidades dos sistemas de controle utilizados pelas organizações, auditores, firmas de consultoria ou órgãos reguladores. Nesse contexto, o estudo sobre o modus operandi da fraude, sua motivação, sua finalidade e os efeitos que provoca na contabilidade das empresas pode contribuir para 13 sugestões de medidas que auxiliem na sua detecção e dissuasão, na medida em que dissecam os atos fraudulentos, permitindo seu exame pormenorizado. Alguns esforços têm sido adotados para melhorar os controles das empresas, ajudando a detectar e combater ações fraudulentas. O Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission (COSO), o Center for Audit Quality (CAQ) e a Association of Certified Fraud Examiners (ACFE) são algumas das instituições que trabalham ativamente na formulação de medidas que auxiliam na detecção e prevenção de ações fraudulentas. Estas instituições fornecem manuais e relatórios contendo aspectos como governança corporativa e efetividade nos controles internos da empresa, que contribuem para o entendimento da fraude. O objeto deste estudo reside na investigação da fraude praticada por meio de manipulações nas demonstrações contábeis das empresas, entendida como um desvio intencional de conduta, no qual o agente fraudador faz uso de manobras contábeis para a prática de uma ação ilícita ou sua ocultação, com o fim de obter uma vantagem financeira. Apesar da significativa quantidade de fraudes nas demonstrações contábeis das empresas, pouco se sabe sobre a forma como o processo fraudulento ocorreu. Uma possível explicação para este fato pode estar relacionada a problemas éticos e metodológicos, estudados por Smith (2003), que comprometem o desenvolvimento de estudos sobre o tema, especialmente a dificuldade de obtenção de informações sobre os casos identificados. Nesse sentido, na coleta de dados desta pesquisa, foram utilizadas múltiplas fontes de evidência que possibilitaram a triangulação de dados e a convergência sobre os mesmos fatos ou descobertas. Assunto recorrente na atualidade, a fraude tem abarcado um maior número de vítimas, apesar dos esforços para minimizar sua incidência. A matéria é bastante explorada e discutida em pesquisas internacionais, demonstrando sua importância para a comunidade acadêmica e o mundo dos negócios. No Brasil, entretanto, ainda são poucos os casos de fraude investigados e analisados cientificamente, não porque não ocorram, mas devido a questões metodológicas que dificultam o acesso a informações sistematizadas sobre casos investigados. Estudos sobre este tema são complexos e interessam a vários ramos da ciência, produzindo uma literatura muito heterogênea, com diferentes perspectivas e análises. Para delimitar esta pesquisa, o estudo foi desenvolvido considerando dois aspectos: o interesse da pesquisa é dirigido às fraudes que impactam a contabilidade das empresas; e o seu objeto são as fraudes praticadas a favor da organização, ou seja, para demonstrar aos usuários das informações contábeis uma situação favorável ou que beneficia a empresa, mas são enganosas no contexto da realidade. 14 A despeito dos esforços para melhorar os controles internos das organizações e minimizar os efeitos nocivos da ação fraudulenta, algumas questões ainda precisam ser enfrentadas. Nos dias atuais, as organizações estão inseridas em um cenário de mercado globalizado e variadas causas precisam ser elucidadas para melhor compreender as características da fraude: por que diferentes tipos de escândalos ocorrem em economias de países distintos? Ou, por que um determinado escândalo ocorre em uma economia e não afeta outra, se ambas estão interligadas numa economia global? Ou, ainda, por que uma pessoa pratica uma ação específica para distorcer os resultados contábeis da empresa enquanto outra, numa situação semelhante, não pratica tal ação ou, pratica ação diversa, com a mesma finalidade? Estes aspectos foram estudados por Coffee Jr. (2005) ao propor a teoria dos escândalos corporativos (TEC), background que sustenta o estudo. O autor argumenta que as diferenças observadas entre os sistemas de governança corporativa das organizações, especialmente no nível de concentração do capital, permitem explicar as diferenças na natureza das fraudes. Dessa forma, o problema desta pesquisa pode ser assim formulado: Qual a relação entre as fraudes corporativas praticadas pelas empresas Daslu, Kmart e Avestruz Master à luz da teoria dos escândalos corporativos? A relevância do estudo decorre da necessidade de se encontrar mecanismos que possam evitar ou minimizar a ocorrência de atos fraudulentos, além de se constituir em uma análise empírica da teoria proposta por Coffee Jr. (2005). Os seus resultados podem contribuir para um melhor entendimento sobre as características das fraudes, ao demonstrar os fatores que motivaram a ação fraudulenta, os métodos de manipulação contábil utilizados, as finalidades do agente fraudador e as diferenças observadas entre as fraudes estudadas. Ademais, o estudo possui importância, prática e teórica, por trazer informações que podem auxiliar a pesquisa de outros interessados no tema. Para este estudo, foram formulados os seguintes objetivos: Objetivo geral Comparar as características das fraudes praticadas pelas empresas Daslu, Kmart e Avestruz Master, contribuindo para o melhor entendimento sobre o tema, especialmente no que se refere às diferenças observadas nas motivações e finalidades 15 da ação fraudulenta, nos métodos de manipulação contábil utilizados e na governança corporativa adotada pelas empresas envolvidas. Objetivos específicos Identificar, segundo a teoria do triângulo da fraude (TTF), o componente motivacional determinante para a prática do ato fraudulento; Investigar a finalidade e o método de manipulação contábil utilizado pelos agentes fraudadores na execução da ação fraudulenta; e Examinar o sistema de governança corporativa das empresas Daslu, Kmart e Avestruz Master. O estudo foi desenvolvido seguindo a metodologia do estudo de casos múltiplos, proposta por Yin (2010). A essência do estudo é analisar comparativamente as fraudes, e a opção por esta estratégia de pesquisa surgiu da necessidade de se aprofundar no estudo deste fenômeno social. Utilizou-se um protocolo de estudo de caso, contemplando os procedimentos e as regras gerais obedecidas na pesquisa, com a função de incrementar a confiabilidade do estudo e orientar o trabalho do pesquisador (YIN, 2010). A seleção dos casos estudados foi feita com base em pesquisas anteriores sobre fraudes praticadas no Brasil e nos Estados Unidos, na última década, especialmente os estudos de Moura (2007), Costa (2011) e Kraemer (2005). Esta dissertação está estruturada em seções. A introdução contextualiza o tema, descrevendo o problema e os objetivos da pesquisa. Na primeira seção, revisão da literatura, são discutidos os aspectos conceituais da fraude; as características das ações fraudulentas; os sistemas disperso e concentrado de governança corporativa; e a teoria dos escândalos corporativos, estrutura teórica do estudo. A segunda seção detalha os procedimentos metodológicos adotados no estudo de casos múltiplos, contemplando um protocolo para a seleção, coleta e análise dos dados. A terceira seção apresenta a discussão e análise dos casos pesquisados, descrevendo as características de cada fraude. E, por fim, na quarta seção são apresentadas as considerações finais do estudo, suas limitações e recomendações. 16 1 REFERENCIAL TEÓRICO Esta seção aborda o estudo da governança corporativa como ferramenta de controle da gestão da empresa. Apresenta, ainda, a definição de fraude, a forma como ela se desenvolve na contabilidade das entidades e suas características, compreendendo os aspectos motivacionais, os fins almejados pelo agente fraudador e os métodos utilizados para manipular as demonstrações contábeis das organizações. Ao final, é apresentada e discutida a teoria dos escândalos corporativos (TEC), estrutura teórica que sustenta o estudo, abordando o contexto das fraudes praticadas em países que adotam sistemas de governança corporativa distintos. 1.1 A fraude na contabilidade Esta subseção aborda a definição de fraude e apresenta, entre outros aspectos, a delimitação desta pesquisa: i) o estudo da fraude envolve grande complexidade e compreende vários ramos da ciência, mas, nesta investigação, o interesse é a fraude praticada por meio de manipulações nas demonstrações contábeis das empresas; e ii) o foco do estudo são as ações praticadas “a favor” da empresa (JENNY, 1951), ou seja, para apresentar aos usuários das informações contábeis uma situação que é favorável ou benéfica para a organização, mas não representa a realidade. 1.1.1 A conduta fraudulenta O comportamento do agente que pratica a fraude é estudado por diversas ciências além da contabilidade, destacando-se a Psicologia, a Psiquiatria e o Direito. Para este último, a fraude está relacionada com a prática de uma ação ilícita, que pode ter repercussão penal, civil ou administrativa para o agente fraudador. Já a Psicologia e a Psiquiatria destacam-se pela análise dos aspectos motivacionais, enfatizando que a fraude tem, como elemento mais intrínseco e comum de motivação, o desejo de possuir ou conseguir alguma coisa que não 17 teria em circunstâncias normais (SOUZA, 2012). Estes aspectos motivacionais representam, quase sempre, problemas de controle gerencial que podem trazer grandes prejuízos para as empresas. Os funcionários, independentemente do cargo que ocupam, são propensos a tomarem decisões que atendam seus próprios interesses, em detrimento da organização. Os gerentes podem, por exemplo, manipular os relatórios de desempenho de seus setores para apresentar bons resultados, mesmo sabendo que as informações reportadas são inverídicas e, em muitos casos, prejudiciais para a empresa (MERCHANT, 1998). Para evitar abusos e irregularidades na contabilidade das empresas ou, ainda, para descobrir rapidamente os erros cometidos, deve-se, antes de tudo, estar familiarizado com as causas destes problemas (JENNY, 1951). Estes aspectos têm sido explorados em pesquisas científicas que abordam os fatores motivacionais das ações fraudulentas e são discutidas na subseção 1.2.1. Não existe um consenso sobre a definição de fraude, embora alguns conceitos sejam convergentes. O Conselho Federal de Contabilidade (CFC) entende que a fraude pode ser caracterizada como manipulação, falsificação, ou alteração de registros ou documentos; apropriação indevida de ativos; suspensão ou omissão de transações nos registros contábeis; registros de transações sem comprovação; e aplicação de práticas contábeis indevidas (CFC, 1999). Para o Instituto dos Auditores Independente do Brasil (IBRACON), instituição sem fins lucrativos criada com a missão de manter a confiança da sociedade na atividade de auditoria, a fraude decorre de ato intencional do indivíduo que por meio de um esquema de manipulação contábil, gera declarações falsas sobre as demonstrações contábeis da organização (IBRACON, 1998). Na visão de Martins (2010) o que caracteriza este tipo de fraude é a ação de má-fé, abuso de confiança, contrabando, clandestinidade ou falsificação, que na contabilidade se refere a um ato intencional de omissão ou manipulação, adulteração de documentos, registros e demonstrações. De forma bem similar, Debastiani e Ianesko (2008) e Assing et al. (2008) definem a ação fraudulenta como um meio de se obter uma vantagem ilícita por ação, omissão, conduta intencional ou má-fé do agente, com intuito de manipular o resultado real na contabilidade da empresa. O erro, por outro lado, embora altere os registros contábeis, é bem diferente da fraude, pois, enquanto esta decorre de um ato doloso, aquele é determinado por um ato involuntário, 18 caracterizado, no entendimento de Sá e Hoog (2010), como um ilícito culposo decorrente da negligência, imperícia, imprudência ou desídia do agente. Para definir fraude, a Association of Certified Fraud Examiners (ACFE) apresentou na figura 1 (árvore da fraude) uma ampla classificação de ações fraudulentas, divididas em corrupção, apropriação indevida de ativos e fraude nas demonstrações contábeis, entendidas como espécies do gênero fraude. Corruption Asset Misappropriation Illegal Gratuities Fraudulent Statements Conflicts of Interest Bribery Economic Extortion Purchases Schemes Invoice Kickbacks Asset/Revenue Overstatement Sales Schemes Bid Rigging Timing Differences Internal Documents Other Other Fictitious Revenues External Documents Financial Non-Financial Asset/Revenue Understatement Employment Credentials Concealed Liabilities & Expenses Improper Disclosures Improper Asset Valuations Inventory and All Other Assets Cash Larceny Skimming Of Cash on Hand Sales Receivables From the Deposit Unrecorded Write-off Schemes Understated Lapping Schemes Other Misuse Refunds & Other Purchasing & Receiving Unconcealed Larceny Fraudulent Disbursements Billing Schemes Payroll Schemes Expense Reimbursement Schemes Check Tampering Shell Company Ghost Employee Mischaracterized Expenses Forged Maker False Voids Commission Schemes Overstated Expenses Forged Endorsement False Refunds Workers Compensation Fictitious Expenses Altered Payee Falsified Wages Multiple Reimbursements Concealed Checks Personal Purchases Authorized Maker Figura 1: A Árvore da Fraude Fonte: ACFE (2012, p. 1202) Asset Req. & Transfers False Sales & Shipping Unconcealed Non-Accomplice Vendor Larceny Register Disbursements 19 Na figura 1, a ACFE (2012, p. 4.522, tradução nossa), de forma organizada e bem estruturada, explica que os esquemas de corrupção são aqueles em que “o empregado utiliza a sua influência em transações comerciais, de uma forma contrária à sua obrigação com a organização, com a finalidade de obter um benefício indevido para si ou para outrem” 1. Um bom exemplo de prática desta natureza é aceitar propina oferecida para celebração de um negócio. Na apropriação indevida de ativos (asset misappropriation), segunda espécie do gênero fraude, a prática delituosa consiste em o fraudador roubar ou fazer mau uso dos recursos da organização em que trabalha, se valendo da sua facilidade de acesso ao bem ou valor a ser expropriado. Um exemplo desta fraude é o furto de bens do estoque da empresa (ACFE, 2012). Por fim, os esquemas envolvendo demonstrações contábeis fraudulentas (fraudulent financial statement), objeto deste estudo, são aqueles praticados pelo fraudador com o propósito de distorcer ou omitir informações relevantes nos registros contábeis da organização. Os métodos mais comuns deste tipo de fraude são os registros de receitas fictícias e as ocultações de despesas e passivos. Entre as três espécies do gênero fraude, aquela de maior incidência nas empresas é a apropriação indevida de ativos, representando mais de 85% dos casos (ACFE, 2012), embora seja a que causa menor prejuízo. Por outro lado, a ACFE comenta que os casos de manipulação nas demonstrações contábeis ocorrem com freqüência bem menor (cerca de 5%), mas com perdas muito maiores. No ano de 2010, por exemplo, este tipo fraude registrou um prejuízo médio de mais de U$ 4 milhões. Os casos de corrupção, por sua vez, seja em quantidade, seja em valores dos prejuízos, estão posicionados entre os dois anteriores (ACFE, 2012). Pela natureza da ilicitude, a fraude é tipificada como crime, no capítulo VI do Código Penal Brasileiro - CPB (BRASIL, 1940), consistindo em uma ação deliberada de enganar terceiros para obter injustamente uma vantagem pessoal, caso em que o agente fraudador pratica a ação por meio de uma conduta dolosa, almejando ou assumindo o risco de prejudicar terceiros. Apesar da expressa pretensão em delimitar o tipo criminal praticado pelo agente fraudador, a referida norma penal não apresenta uma relação taxativa de ações fraudulentas 1 O texto em língua estrangeira é: “The employee’s use of his influence in business transactions in a way that violates his duty to the employer for the purpose of obtaining a benefit for himself or someone else”. 20 que impactam a contabilidade e, portanto, possam ser caracterizadas como fraude nas demonstrações contábeis. Entretanto, pode-se depreender que, entre os tipos relacionados no código, os enunciados nos artigos 172 e 177,§ 1º, incisos I, II, III e VI do CPB, possuem esta característica, uma vez que as ações descritas nestes dispositivos legais terão repercussão imediata ou mediata na contabilidade das empresas. Art. 172 - Emitir fatura, duplicata ou nota de venda que não corresponda à mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou ao serviço prestado. [...] Parágrafo único. Nas mesmas penas incorrerá aquele que falsificar ou adulterar a escrituração do Livro de Registro de Duplicatas.[...] Art. 177 - Promover a fundação de sociedade por ações, fazendo, em prospecto ou em comunicação ao público ou à assembléia, afirmação falsa sobre a constituição da sociedade, ou ocultando fraudulentamente fato a ela relativo:[...] § 1º - Incorrem na mesma pena [...]: I - o diretor, o gerente ou o fiscal de sociedade por ações, que, em prospecto, relatório, parecer, balanço ou comunicação ao público ou à assembléia, faz afirmação falsa sobre as condições econômicas da sociedade, ou oculta fraudulentamente, no todo ou em parte, fato a elas relativo; II - o diretor, o gerente ou o fiscal que promove, por qualquer artifício, falsa cotação das ações ou de outros títulos da sociedade; III - o diretor ou o gerente que toma empréstimo à sociedade ou usa, em proveito próprio ou de terceiro, dos bens ou haveres sociais, sem prévia autorização da assembléia geral;[...] VI - o diretor ou o gerente que, na falta de balanço, em desacordo com este, ou mediante balanço falso, distribui lucros ou dividendos fictícios; [...] (BRASIL, 1940, grifo nosso) As condutas supracitadas alteram os registros contábeis ou ocultam fatos que deveriam ser registrados, distorcendo o conteúdo das demonstrações contábeis. Entretanto, essas práticas previstas no CPB não são numerus clausus2, pois outras leis especiais estabelecem condutas que podem ter repercussão contábil. As situações previstas na lei 8.137/1990, por exemplo, são crimes contra a ordem tributária, cujas ações, embora não tipificadas no código penal, provocam alterações na contabilidade das empresas. Por uma questão metodológica, esta pesquisa adotará a definição e classificação proposta pela ACFE ressaltando-se que, apesar das demais definições não convergirem para um significado único de fraude, contribuem muito para a sua compreensão. Ainda com relação à definição de fraude, a rigidez das normas penais tem despertado um inevitável questionamento sobre os limites que distinguem a conduta antijurídica do fraudador, daqueles atos praticados em conformidade com a lei. Nesse sentido, a literatura tem discutido a diferença entre fraude e gerenciamento de resultado. 2 numerus clausus tem o significado de número fechado, número limitado. É uma expressão muito utilizada no meio jurídico (www.jusbrasil.com.br). 21 1.1.2 Diferença entre fraude e gerenciamento de resultado Ao descrever os diversos tipos de fraude, os estudiosos do tema observaram que aspectos legais, éticos e morais são fundamentais para classificar as condutas que manipulam as informações contábeis de uma organização. Nessa seara, a literatura tem adotado duas classificações, que consideram os aspectos legais dos registros contábeis: i) uma das classificações é o gerenciamento de resultado contábil que decorre da flexibilização das normas e regulamentos, permitindo que o mesmo fato contábil seja contabilizado de forma diferente, dependendo da escolha do gestor; e ii) por outro lado, a fraude nas demonstrações contábeis é caracterizada por uma manipulação contábil contrária às normas e princípios e, portanto, ilegal. Erickson, Hanlon e Maydew (2004) relatam que a fraude contábil e o gerenciamento de resultado contábil, embora tenham objetivos similares, diferem pelo fato de que a fraude contraria os princípios contábeis geralmente aceitos (Generally Accepted Accounting Principles - GAAP). Martinez (2001) comenta que o gerenciamento de resultado ocorre dentro dos limites prescritos na legislação, onde a norma permite que o gerente atue com discricionariedade, ao reportar ou não um resultado que muitas vezes oculta ou contraria a realidade dos fatos, embora não possa ser considerado ilegal. Da mesma forma, para Matsumotu e Parreira (2007, p. 11) o gerenciamento de resultado floresce nas “ [...] brechas legais, normativas e nos dispositivos regulamentares que facultam ao gerente escolhas diferentes para reportar resultados distintos”. Esta discricionariedade no gerenciamento dos resultados pode se concretizar, por exemplo, por meio de escolhas de práticas contábeis que repercutem formalmente nas demonstrações financeiras, mas que estão em conformidade com os princípios e normas contábeis (MURCIA; BORBA, 2005). Na mesma linha, para Zendersky (2005, p. 31), as atividades de gerenciamento de resultados “normalmente se referem a operações executadas dentro dos limites regulamentares, enquanto a fraude ultrapassa esses limites”. A figura 2 ilustra a diferença entre estes dois comportamentos. 22 Figura 2: Limite entre Gerenciamento de Resultados e Fraude Contábil Fonte: Zendersky (2005, p. 31) Pode-se perceber na figura 2 que as ações de gerenciamento de resultado contábil, embora tenham seus limites definidos em norma legal podem, em determinados momentos, serem confundidos com práticas fraudulentas, tendo em vista o tênue limite que as diferenciam. Este fato pode explicar os resultados encontrados por Perols e Loungee (2011) em pesquisa que investigou a relação existente entre essas práticas. Os autores constataram que as empresas fraudadoras, em sua maioria, praticaram gerenciamento de resultados em anos anteriores à fraude, revelando uma possível correlação entre esses comportamentos. Adicionalmente, o estudo apontou que a empresa fraudadora é mais propensa a omitir receitas e atender às previsões dos analistas financeiros do que a empresa não fraudadora. Por fim, os autores identificaram, ainda, que o gerenciamento de resultados e a fraude estão associados aos planos de remuneração variável dos executivos, apontando uma maior probabilidade de ocorrência de fraude quando a compensação dos executivos está baseada em fatores de desempenho operacionais. Notadamente, os achados de Perols e Loungee (2011) estão limitados às características das empresas americanas estudadas. Entretanto, embora as constatações não possam ser generalizadas para todos os tipos de organização, o conhecimento proporcionado permite uma boa reflexão sobre a dicotomia existente entre o gerenciamento de resultados e a fraude nas demonstrações contábeis. A literatura tem investigado estes dois comportamentos, comparando suas características, individualmente ou simultaneamente. Estabelecida esta distinção, Murcia e Borba (2005) identificaram, ainda, que a fraude pode ser praticada “contra” e “a favor” da empresa. 23 1.1.3 Fraude “contra” e “a favor” da empresa De acordo com Murcia e Borba (2005), as fraudes podem ser “contra” ou “a favor” da empresa, dependendo do agente praticante e do impacto da fraude. A fraude “contra” a empresa é aquela praticada pelo funcionário que, utilizando-se de sua posição privilegiada dentro da organização, manipula recursos institucionais para angariar benefícios próprios em prejuízo da instituição ou se apropria de um ativo da empresa. Por outro lado, a fraude “a favor” da empresa, objeto deste estudo, é representada pela conduta ilícita que procura demonstrar uma melhor situação econômica, financeira ou operacional da organização, induzindo terceiros a uma falsa percepção sobre a empresa. Nesse mesmo sentido, Jenny (1951), no livro Los Fraudes em Contabilidad, comenta que as fraudes na contabilidade podem ser divididas em dois grupos: i) as manipulações contábeis praticadas por empregados para prejudicar as empresas ou seus proprietários, ou seja, são “contra” a empresa; e ii) as ações dos gestores para apresentar uma falsa aparência sobre a situação da organização, geralmente, procurando demonstrar para os usuários das informações contábeis uma melhor situação da corporação, atendendo as expectativas dos analistas de mercado (gatekeepers). As ações fraudulentas do primeiro grupo representam, quase sempre, a consequência de irregularidades praticadas anteriormente pelos funcionários e constituem os casos mais frequentes de manipulações contábeis. No entendimento de Jenny (1951) a finalidade específica deste tipo de fraude é dissimular os roubos ou a malversação de recursos e dificultar seu descobrimento, em caso de averiguações posteriores. Por isso, as contas preferidas para este tipo de fraude são os gastos gerais e as contas de grande movimento. A outra forma de ocorrência de fraude na contabilidade das empresas constitui o segundo aspecto delimitador desta pesquisa, sobre o qual se debruça o estudo. Segundo Jenny (1951), neste grupo estão as manipulações realizadas no próprio interesse da empresa, seu proprietário ou controlador, e têm por finalidade a modificação dos balanços, consistindo em uma apresentação tendenciosa dos balanços, engendrada para apresentar uma situação da empresa, melhor ou pior, do que a real. Notadamente, seja para apresentar uma situação melhor ou pior, as manipulações contábeis são executadas em benefício da empresa ou seus proprietários. Jenny (1951) entende que as manipulações efetivadas com a finalidade de melhorar a real aparência da empresa podem ser operacionalizadas de diversas formas, dentre elas: i) a 24 supervalorização de ativo; ii) a omissão voluntária de certos compromissos; ou iii) a dissimulação de operações com perdas, por meio de falsa contabilização. Erickson, Hanlon e Maydew (2004), investigando a relação existente entre a remuneração de executivos e a fraude contábil, identificaram que, entre as várias ações fraudulentas com o propósito de demonstrar uma melhor situação da empresa, os tipos de fraudes mais utilizados foram a superavaliação de receitas (60,9%) e a subavaliação de despesas (37,0%). Seguindo esse entendimento, Wells (2001), com base em pesquisa realizada pelo COSO, comenta que o lançamento de receitas fictícias com o propósito de melhorar os resultados da empresa é o método mais comum de fraudar as demonstrações contábeis, representando, na pesquisa do COSO, mais de metade dos casos investigados. Geralmente, os fraudadores se utilizam de um ou alguns dos seguintes métodos ou ações para manipular as demonstrações contábeis com intuito de apresentar uma situação benéfica para a empresa: receitas fictícias, fraude no atendimento do regime contábil da competência, ocultação de despesas e passivos, divulgações ou omissões fraudulentas, e avaliações fraudulentas de ativos (WELLS, 2001; ACFE, 2012). Essas tipologias de fraude são discutidas na subseção 1.2.3, métodos de manipulação contábil. Entre as classificações apresentadas na literatura, esta pesquisa utilizará a sugerida por Wells (2001) e ACFE (2012) na identificação dos métodos escolhidos pelos agentes fraudadores para executar as fraudes investigadas. A subseção seguinte discutirá as características da fraude nas demonstrações contábeis, compreendendo estes métodos, os fatores motivacionais antecedentes à ação fraudulenta e a finalidade do agente fraudador. 1.2 Características da fraude nas demonstrações contábeis A ação fraudulenta é impulsionada por uma motivação prévia, antecedente ao seu ato de execução e, segundo Cressey (1953 apud ACFE, 2012), esta motivação é caracterizada pelos seguintes fatores: a pressão, a oportunidade e a racionalização. Em seguida, no ato de execução, os agentes fraudadores utilizam métodos específicos de manipulação contábil para alcançar um determinado fim. Estas práticas afetam a contabilidade das empresas de diversas formas, dependendo do fim almejado pelo agente fraudador e do método utilizado na ação fraudulenta. 25 Esta subseção apresenta cada um destes aspectos que despertam e estimulam a curiosidade de pesquisadores na busca por mecanismos que contribuam para a detecção e dissuasão de atos fraudulentos. 1.2.1 A teoria do triângulo da fraude (TTF) O estudo realizado por Donald Cressey apresenta um importante insight sobre motivação para o cometimento de uma fraude. O autor entrevistou, na prisão, 200 pessoas condenadas por diversos crimes e uma das principais conclusões da pesquisa foi identificar que as fraudes apresentaram as seguintes características: a pressão, a racionalização e a oportunidade, que se constituíram nos vértices do denominado triângulo da fraude (CRESSEY, 1953 apud ACFE, 2012). OPORTUNIDADE TRIÂNGULO DA FRAUDE PRESSÃO Figura 3: Triângulo da Fraude Fonte: ACFE (2012, p. 4.503) RACIONALIZAÇÃO Estes fatores geralmente estão presentes quando há uma fraude e a relevância ou a frequência de cada um destes aspectos na ação fraudulenta dependem das circunstâncias que levam o fraudador a praticar o crime, independente do nível hierárquico ocupado pelo funcionário dentro da organização. A pressão surge de algum fato da vida pessoal do fraudador ou da empresa e, geralmente, é derivada de um problema financeiro como dívidas ou prejuízos. A fraude nas demonstrações contábeis de uma companhia pode ser praticada, por exemplo, por aquele que 26 se sente pressionado a demonstrar uma melhor situação da empresa para os usuários das informações contábeis. No mesmo sentido, várias organizações remuneram seus executivos com opções de compra de ações e bônus. Assim, pressionados pelas metas de melhor desempenho, os executivos possuem uma maior propensão a manipular as informações contábeis para aumentarem os resultados da empresa, atendendo às expectativas dos analistas (ERICKSON; HANLON; MAYDEW, 2004). Por outro lado, em um mercado com alta carga tributária, o executivo pode ser pressionado a manipular os registros contábeis para reduzir os resultados da empresa e, segundo Trevisan (2002), neste ponto reside uma grande diferença entre as manipulações contábeis praticadas no Brasil e nos Estados Unidos: os resultados nos EUA são inflados enquanto no Brasil são enxugados. O autor argumenta que, no Brasil, os balanços são usados para o cálculo de tributos, o que leva as empresas a apresentarem resultados menores do que os realmente obtidos. Nos EUA, por outro lado, o balanço não é utilizado na tributação, o que justifica a maior propensão naquele país de fraude nos resultados. Esta observação de Trevisan (2002), embora reflita uma realidade sobre a alta carga tributária praticada no Brasil e sua influência sobre a tomada de decisão dos gestores, não pode ser generalizada, pois não foi o que aconteceu, por exemplo, nos casos de fraude dos bancos Nacional, Santos e PanAmericano. O fator pressão pode ser originário, ainda, de uma ameaça à estabilidade financeira da empresa como, por exemplo: nível elevado de competição do mercado, alteração da taxa de juros, alteração significativa nas estimativas de demanda e novas exigências legais e regulamentares. Um segundo elemento indicado na figura 3, a oportunidade percebida, constitui um fator que facilita a ocorrência da fraude. Segundo Cressey (1953 apud ACFE, 2012), existem dois componentes que, embora não sejam os únicos, compõem a percepção do fraudador sobre a oportunidade de praticar a fraude: a habilidade técnica e o conhecimento geral sobre as atividades da empresa. Estudos da ACFE indicam que as fraudes são praticadas, geralmente, por funcionários com muito tempo de empresa, justamente porque estes funcionários conhecem bem as fragilidades da organização e sabem como praticar a fraude, com boa possibilidade de êxito. Assim, a falta ou insuficiência dos controles internos alimenta o fraudador com as oportunidades para a prática da fraude, criando o ambiente propício para os atos fraudulentos. 27 O terceiro componente, a racionalização, é a forma como os fraudadores procuram justificar a ação praticada. Geralmente, consideram-se inocentes e justificam seu ato fraudulento como aceitável. De acordo com Cressey (1953 apud ACFE, 2012), a racionalização não é um meio de se justificar uma fraude praticada, mas um componente que está incorporado à ação fraudulenta antes de sua consumação, caracterizando, assim como a pressão e a oportunidade, um fator motivacional antecedente à fraude. Embora os três fatores juntos caracterizem o triângulo da fraude, geralmente um ou outro fator podem apresentar-se, em determinados casos, com maior preponderância sobre os demais, constituindo-se no fator motivacional fundamental ou mais significativo para a fraude. Esses aspectos, antecedentes à prática do ato fraudulento, se constituem na subjetividade da fraude, razão muito particular e íntima da pessoa para a prática do ato. Posteriormente, utilizando o conceito do triângulo da fraude, Albrecht et al. (2009 apud ACFE, 2012), elaboraram o conceito de escala da fraude, sugerindo a possibilidade de mensuração da sua ocorrência. Segundo os autores, em uma escala de baixo a alto, é possível mensurar a propensão de ocorrência de uma fraude, ao se considerar três indicadores similares aos apontados por Cressey. Quando a pressão e a oportunidade percebida pelo agente fraudador são altas e a integridade pessoal é baixa, existe uma probabilidade muito maior de ocorrer a fraude do que no caso inverso. Em seguida, na execução da ação fraudulenta, o agente adota um método específico de manipulação contábil para atingir determinada finalidade, aspectos que serão discutidos nos próximos tópicos, caracterizando a objetividade da fraude, conforme ilustrado na figura 4. 1.2.2 Finalidade do agente fraudador A fraude nas demonstrações contábeis constitui uma alteração na situação de uma empresa, promovida pela distorção ou omissão intencional de valores divulgados pela organização para iludir terceiros sobre sua real condição. Normalmente a ação fraudulenta é um meio para alcançar uma finalidade específica e não um fim em si mesmo. As pessoas podem fazê-lo para resolver problemas inerentes à atividade da empresa que não podem ser gerenciados, assim como, para atingir metas estabelecidas em contratos de empréstimo ou lucros esperados pelos analistas de mercado. A ação poderia, ainda, ser executada para obter 28 ou renovar um financiamento que não seria concedido se as demonstrações contábeis fossem apresentadas com valores fidedignos. Existem, ainda, as pessoas que praticam o crime com a intenção de obter lucros. Assim, podem praticar a fraude para obter empréstimos e, então, desviarem recursos para fins pessoais, ou para inflacionar o preço das ações da empresa, possibilitando que vendam suas participações com muito lucro. Sintetizando, as manipulações contábeis são perpetradas para atender um determinado fim do agente fraudador. Silva et al. (2012), em pesquisa comparativa sobre o perfil da fraude praticada no Brasil e nos Estados Unidos, adotaram uma tipologia própria de classificação das fraudes, segundo os quais a fraude nas demonstrações contábeis pode ser praticada com as seguintes finalidades: i) ocultar a real situação da empresa; ii) desviar recursos da organização; iii) melhorar a bonificação dos executivos; e iv) sonegar tributos. Geralmente, as ações fraudulentas são executadas objetivando mais de uma destas finalidades, mas é possível perceber uma precedência entre elas, ou seja, uma das finalidades se destaca com maior preponderância. 1.2.3 Métodos de manipulação contábil A literatura entende que existe uma grande variedade de métodos para maquiar as demonstrações contábeis e, normalmente, a fraude toma a forma de sobreavaliação de receitas e ativos; ou redução de despesas e passivos. Ambos os métodos resultam em aumento de capital e patrimônio líquido da companhia e demonstram uma melhor situação da empresa. Como mencionado anteriormente, neste estudo utilizaremos a classificação proposta por Wells (2001) e ACFE (2012), segundo os quais a fraude praticada para manipular as demonstrações contábeis da empresa pode ser efetuada por meio das seguintes operações: i) receitas fictícias; ii) fraude no atendimento do regime contábil da competência; iii) ocultação de despesas e passivos; iv) divulgações ou omissões fraudulentas; e v) avaliações fraudulentas de ativos. 29 1.2.3.1 Receitas fictícias Um estudo realizado pelo Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission (COSO) apontou que este é o método mais utilizado em manipulação de demonstrações contábeis, representando mais da metade dos casos investigados. Segundo Wells (2001), esta técnica favorece muito o agente fraudador, pois contribui para a ocultação da fraude. O autor cita uma entrevista com Barry Minkow, condenado no caso ZZZZ Best, segundo o qual as contas a receber são muito interessantes para o fraudador, pois aumentam os resultados imediatamente e explicam por que a empresa não tem dinheiro em caixa. De fato, uma das maneiras mais fáceis de registrar uma receita inexistente é criar lançamentos a débito de contas a receber e a crédito de vendas e, muitas vezes, documentos falsos são utilizados para corroborar estas operações. Entretanto, os auditores podem perceber facilmente a utilização desse método, se notarem que, mesmo com as vendas, o estoque não alterou ou, ainda, se identificarem a existência dos créditos falsos incobráveis. Uma forma mais sofisticada de produzir falsas receitas é simular vendas a clientes reais. Neste método são elaborados documentos que comprovem a operação, como, por exemplo, faturas de vendas e conhecimento de transporte. Os fraudadores geralmente selecionam uma empresa que, em conluio, possa confirmar as operações em caso de uma fiscalização ou auditoria. Com tal conspiração, fica muito difícil para os auditores descobrirem a fraude (WELLS, 2001). Outro método utilizado para simular uma receita é registrar vendas fictícias para uma empresa que existe no papel, mas não exerce qualquer atividade. Neste caso são utilizadas as empresas “laranja”, onde o endereço do cliente é, geralmente, a chave para a detecção da fraude. Muitas das vezes, um funcionário inocente da empresa é envolvido no crime sem que tenha qualquer conhecimento sobre fraude (WELLS, 2001). Segundo este autor, na maior parte das fraudes em demonstrações contábeis, os números contam a história, sendo possível, por exemplo, identificar manipulações em vendas e contas a receber pela comparação de demonstrações ao longo de um período de tempo. Wells (2001) sugere algumas perguntas que podem indicar a ocorrência de uma fraude desta natureza: a empresa negocia um financiamento baseado em sua conta de recebíveis? as contas a receber têm crescido significativamente? as contas a receber aumentaram mais rápido do que as vendas? 30 a proporção de vendas a crédito para vendas a vista aumentou? comparado com vendas e contas a receber, o disponível diminuiu? em comparação com as vendas, o custo destas vendas diminuiu? os custos de transporte caíram em relação às vendas? há um grande volume de vendas no final do período de apuração? Para Wells (2001), a resposta que confirme uma ou algumas destas proposições pode indicar a ocorrência de uma fraude, afinal as demonstrações contábeis devem contar uma história que faça sentido. 1.2.3.2 Fraude no atendimento ao regime contábil da competência Outra forma das empresas aumentarem seus resultados é violando o regime contábil da competência, seja para aumentar suas vendas, seja para reduzir despesas ou obrigações. Este método, geralmente, envolve a antecipação no reconhecimento de receitas e o atraso no registro de despesas ou passivos. Segundo resolução 750/93 do Conselho Federal de Contabilidade (CFC). Art. 9º O Princípio da Competência determina que os efeitos das transações e outros eventos sejam reconhecidos nos períodos a que se referem, independentemente do recebimento ou pagamento. Parágrafo único. O Princípio da Competência pressupõe a simultaneidade da confrontação de receitas e de despesas correlatas (CFC, 1993). Assim, a receita deve ser reconhecida quando o processo de venda está completo e os direitos de propriedade passaram do vendedor para o comprador. Normalmente, se entende que as fraudes que violam o princípio da competência podem ser efetuadas de três formas: mantendo os livros abertos após o final do período contábil; registrando receita quando as operações de venda ou prestação de serviços ainda não estão concluídas; ou registrando como receita o simples transporte de mercadorias, antes de efetivar sua venda (WELLS, 2001). Provavelmente, o método mais simples para reconhecer uma receita de forma ilegal é continuar a registrar operações de vendas após o final do período contábil, não fazendo o fechamento dos livros na data correta. Neste caso, normalmente, os registros são efetuados com o livro aberto até que determinada meta de vendas seja atendida. 31 Outra forma de violar o regime contábil da competência é registrar receita quando as operações ou serviços ainda não estiverem concluídos, inflacionando indevidamente os resultados (WELLS, 2001). Os princípios de contabilidade geralmente aceitos, GAAP, vedam o registro da receita pelo valor integral, a menos que os serviços tenham sido prestados completamente. Entretanto, é comum as empresas registrarem suas receitas pelo valor integral da operação, sem observar as porcentagens de conclusão dos contratos. A terceira e também freqüente forma de violar o princípio da competência é registrar a simples remessa de mercadoria como receita de vendas. Wells (2001) cita o exemplo de empresas que enviaram mercadorias para armazenagem em depósito particular e registraram essa transferência como vendas. Neste caso não há a tradição ou entrega da coisa, nem tampouco operação de compra e venda, sendo vedado o registro dessa operação como receita. 1.2.3.3 Ocultação de despesas e passivos Segundo a ACFE (2012), reduzir ou ocultar despesas e passivos são formas de manipular as demonstrações contábeis fazendo a empresa apresentar uma situação melhor do que sua realidade. Esta modalidade de fraude é de difícil detecção e pode ser perpetrada utilizando, basicamente três métodos: omissão do registro de despesas e passivos; capitalização indevida de despesas; e fraude na contabilização de devoluções, subsídios e garantias. Embora as omissões de despesas e passivos possam ser temporárias, com regularização em momento futuro, isso não descaracteriza a fraude, pois o fato se consumou e os seus efeitos, provavelmente, já repercutiram nas demonstrações contábeis. Segundo a ACFE “o método preferido e mais fácil de ocultar despesas e passivos é simplesmente não registrá-los” (ACFE, 2012, p. 1.227), pois a falta deste registro facilita a ocultação da manipulação e, consequentemente, faz deste método um dos mais difíceis de serem detectados. O segundo método citado pela ACFE é capitalização indevida de despesas. As despesas passíveis de serem capitalizadas são aquelas que geram benefícios para a empresa por vários anos, por exemplo, o investimento na aquisição de uma máquina industrial, cuja depreciação será registrada durante a vida útil do equipamento. A classificação indevida de 32 uma despesa de capital provoca um aumento forjado nos lucros e nos ativos da empresa, com efeitos nos resultados do ano corrente. Uma terceira forma de ocultar despesas e passivos é a falta do registro das devoluções de vendas ou subsídios recebidos. É comum que um determinado percentual das vendas, por um motivo ou outro, retorne para a empresa e, neste caso, deve-se registrar esta devolução como redução das vendas do período para que o resultado não fique superestimado. Na mesma linha, quando a empresa oferece uma garantia do produto ou serviço prestado, deve registrar a estimativa de despesa desta natureza que espera ter no exercício. A falta ou insuficiência deste registro também constitui fraude nas demonstrações contábeis (ACFE, 2012). 1.2.3.4 Divulgações ou omissões impróprias Os princípios de contabilidade estabelecem que as demonstrações contábeis sejam divulgadas com transparência e fidedignidade, contendo todas as informações relevantes sobre as operações da empresa, a fim de evitar que os usuários externos destas informações tenham uma percepção distorcida sobre a situação da corporação. Para a ACFE (2012), a fraude pela não observância deste procedimento compreende, entre outros, os seguintes aspectos: omissão de responsabilidades, ocultação de eventos subsequentes, transações entre partes relacionadas e omissão sobre as alterações de políticas contábeis. Uma típica omissão praticada por uma empresa é a falta de divulgação dos contratos de empréstimo e dos passivos contingentes. Os contratos de empréstimo são acordos celebrados para o financiamento de alguma atividade da empresa, enquanto os passivos contingentes são obrigações passíveis de serem exigidas da empresa, inclusive judicialmente. Se estas responsabilidades são materialmente significativas, elas devem ser divulgadas e, segundo a ACFE (2012), a sua omissão constitui fraude nas demonstrações contábeis. Da mesma forma, os fatos ocorridos após o encerramento do exercício podem ter um efeito relevante sobre as demonstrações contábeis e, portanto, devem ser divulgados. Os fraudadores, geralmente, evitam fazê-lo quando esta divulgação importar na redução de valores dos ativos, indicar a existência de um passivo não registrado ou, ainda, evidenciar uma falha ou uma fraude praticada por executivos da companhia (ACFE, 2012). 33 Por fim, outra situação que requer uma adequada divulgação é a mudança nas práticas contábeis da empresa. Em respeito ao princípio da consistência, as entidades devem empregar procedimentos uniformes durante determinado período. Qualquer variação ou mudança na política contábil, como, por exemplo, os critérios de avaliação de ativos, devem ser divulgados e justificados (ACFE, 2012). 1.2.3.5 Avaliações fraudulentas de ativos Existem muitos esquemas usados para manipular os valores dos ativos. O ativo circulante, por exemplo, pode ser inflacionado pela classificação, de forma indevida, de um bem ou direito do ativo realizável a longo prazo. Esta fraude resultará em uma maior liquidez dos ativos da empresa. Esses erros de classificação de ativos de longo prazo constituem um problema crítico, por exemplo, nos processos para obtenção de empréstimo, já que algumas instituições financeiras exigem a manutenção de certos índices financeiros, principalmente quando são contratados empréstimos sem garantia e a curto prazo (ACFE, 2012). Outro fator que pode impactar o valor dos ativos é o critério de avaliação dos estoques da empresa. O inventário deve ser registrado pelo custo de aquisição ou valor de mercado, o que for menor. Ou seja, o estoque deve ser avaliado pelo seu custo de aquisição, exceto quando este for superior ao valor de mercado, caso em que deve ser procedido o ajuste ao valor atual. Segundo a ACFE (2012), a não observância deste procedimento resulta em ativos superavaliados, com consequente reflexo na apuração do custo das mercadorias vendidas, uma forma eficiente de reduzir os resultados apurados e a base de cálculo de alguns tributos. No que se refere aos valores do ativo imobilizado, o agente fraudador, geralmente, se utiliza do artifício de registrar estes ativos pelo valor de mercado ao invés do custo de aquisição. Existem, ainda, outros métodos de fraudar o valor do inventário, como a manipulação da contagem física do estoque e a falsificação de notas fiscais, faturas e outros documentos de inventário (ACFE, 2012). Notadamente, cada uma destas ações tem suas especificidades e, dependendo do contexto em que são implementadas, podem ser de difícil detecção. As contas a receber também estão sujeitas a manipulações da mesma forma que os valores das vendas e do inventário e, em muitos casos, essas fraudes são realizadas conjuntamente (ACFE, 2012). 34 Por fim, a ACFE (2012) comenta que a criação de ativos fictícios é um dos métodos mais fácil de fraudar os ativos da empresa, utilizando-se de documentos falsos que suportem os registros contábeis. Como exposto até aqui, as fraudes podem afetar a contabilidade das empresas de diversas formas, dependendo da finalidade do agente fraudador e do método utilizado na ação fraudulenta; e estes aspectos estão diretamente relacionados à complexidade exigida dos órgãos regulamentadores e de fiscalização para identificarem e combaterem as fraudes. Na figura abaixo, procurou-se estruturar o ciclo de desenvolvimento da fraude nas demonstrações contábeis, considerando as características estudadas nos tópicos anteriores. CICLO DA FRAUDE NAS DEMONSTRAÇÕES CONTÁBEIS Oportunidade MOTIVAÇÃO Subjetividade da Fraude FRAUD TRIANGLE Pressão EXECUÇÃO DA AÇÃO Objetividade da Fraude FINALIDADES REFLEXOS DA AÇÃO NA CONTABILIDADE IDENTIFICAÇÃO DA FRAUDE Racionalização desviar recursos sonegação fiscal ocultar a real situação da empresa dos usuários das informações contábeis bonificação dos executivos (SILVA et al, 2012) MÉTODOS receitas fictícias ocultação de despesas e passivos divulgações ou omissões fraudulentas avaliação fraudulenta de ativos fraude no atendimento do regime contábil da competência (WELLS, 2001) Impacto nos Resultados Contas Afetadas Órgãos regulamentadores e de fiscalização (CVM, SEC, BACEN, MP, etc) REPERCUSSÕES Figura 4: Ciclo da Fraude nas Demonstrações Contábeis Fonte: O autor, adaptado de Wells (2001), Silva et al. (2012) e ACFE (2012). Para entender como a fraude ocorre, faz-se necessário entendê-la como um processo que se desenvolve ao longo do tempo, conforme exposto na figura 4. O agente fraudador, motivado por um ou alguns dos fatores antecedentes descritos no triângulo da fraude, executa 35 a ação fraudulenta, escolhendo o método de manipulação das demonstrações contábeis que lhe permite alcançar a finalidade desejada. Estas escolhas provocam diferentes impactos nos registros contábeis da empresa, tornando muito complexo o trabalho de identificação das fraudes. Como será discutido na subseção seguinte, a governança corporativa desenvolveu-se, neste contexto, como reação aos oportunismos proporcionados pelo afastamento dos proprietários da gestão das empresas. 1.3 A governança corporativa no combate à fraude Há algum tempo, governança corporativa deixou de ser um modismo e a observância de seus preceitos passou a ter muita importância e fortes razões para se disseminar no mundo corporativo. “Organizações multilaterais, como a ONU e a OCDE, vêem as boas práticas de governança corporativa como pilares da arquitetura econômica em suas três dimensões – a econômica, a social e a ambiental” (ANDRADE; ROSSETTI, 2009, p. 99). A governança pode ser representada por oito aspectos, que contemplam, entre outras características, os seus quatro princípios éticos. Andrade e Rossetti (2009) destacam que a estrutura de propriedade das companhias é, junto com o regime legal de sua constituição, o principal atributo que diferencia as diretrizes de governança corporativa entre as empresas e, para ilustrar esta importância, os autores apresentam, graficamente, uma síntese conceitual da governança corporativa. 36 Figura 5: Uma síntese conceitual: os 8 Ps da governança corporativa Fonte: Andrade e Rossetti (2009, p. 144) A figura 5 traz na base de sua estrutura as pessoas que constituem o “alicerce dos legados e das condutas que conduzem à perenidade” da organização, objetivo maior de qualquer instituição (ANDRADE; ROSSETTI, 2009, p. 144). Ocorre que o relacionamento entre estas pessoas e os diversos stakeholders da organização são regidos por princípios e valores que devem ser preservados e reforçados a cada dia, pois o insucesso neste relacionamento pode revelar uma fraqueza da empresa que, em um mercado competitivo, leva a sua extinção. O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC (2009, p. 19) conceitua governança corporativa como: [...] sistema pelo qual as organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre proprietários, conselho de administração, diretoria e órgãos de controle. As boas práticas de governança corporativa convertem princípios em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor da organização, facilitando seu acesso ao capital e contribuindo para a sua longevidade. Vários foram os fatores que motivaram o despertar e os avanços da governança no mundo corporativo, entre eles, as transformações pelas quais passou a economia mundial e, mais especificamente, as enfrentadas pelo sistema capitalista, com quem a governança corporativa tem forte vínculo (ANDRADE; ROSSETTI, 2009). Estes autores mencionam que, no contexto de estrutura das empresas, a sociedade anônima e seu sistema acionário se constituíram, ao longo do tempo, em uma das mais importantes formas de captação de 37 recursos, que viabilizou o financiamento e o crescimento das corporações tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. A esse sistema pode ser atribuído o crescimento experimentado pelo mundo corporativo, bem como a grande concentração do poder econômico mundial. Por outro lado, essa sistemática contribuiu também para o movimento de dispersão do número de acionistas e a consequente despersonificação da propriedade nas organizações (ANDRADE; ROSSETTI, 2009). Figura 6: O Desenvolvimento das Corporações e o Despertar da Governança Corporativa Fonte: Andrade e Rossetti (2009, p.29) A figura 6 ilustra que a formação, o desenvolvimento e a evolução do sistema capitalista e do mundo corporativo sempre estiveram alinhados. Entretanto, o crescimento destas corporações acabou promovendo a dispersão do capital das empresas e, como consequência, a lacuna entre propriedade e gestão provocou grandes mudanças nas empresas, entre elas, os vários conflitos de interesses entre partes relacionadas que passaram a ser observados. Andrade e Rossetti (2009) comentam que o trabalho de Berle e Means (1965) foi um dos estudos pioneiros que abordaram este tema, evidenciando os conflitos entre proprietários e gestores na, já consagrada, teoria de governança corporativa denominada conflitos de agência. Esses conflitos são originários da assimetria de informações entre gestores (agente) e proprietários (principal). Para Arnold e Lange (2004), os gestores, em vista da proximidade 38 com a atividade da empresa, detêm uma informação privilegiada que reduz a capacidade do proprietário em controlar as ações do agente. Diante dessa separação entre acionistas e gestores, é razoável inferir que os executivos nem sempre administrarão as empresas no melhor interesse dos investidores, optando, em certas situações, por agir em benefício próprio. É dentro desse ambiente de ruptura da confiança que surgem as ações fraudulentas, lesando muitas pessoas. Para Cardozo (2005), Cansados e atônitos, investidores em todo o mundo estão buscando formas de governança corporativa que possam minimizar os possíveis problemas de negligência e má gestão que levam ao esbanjamento e podem esconder casos de roubo, fraude e falcatruas. Empresas que hoje não estejam adotando uma boa gestão de riscos para restabelecer a confiança dos investidores terão dificuldade para atrair capital e expandir seus negócios (CARDOZO, 2005, p. 43). Assim, a governança corporativa desenvolveu-se como reação aos oportunismos proporcionados pelo afastamento dos proprietários da gestão das empresas e, segundo Bergamini Jr. (2005), ela pode ajudar a superar os problemas de agência, fornecendo mecanismos eficientes de monitoramento e incentivos que contribuem para atenuar a dicotomia existente entre as ações do administrador e as expectativas dos acionistas. Assim como as características de mercado, os sistemas de governança corporativa adotados pelas empresas são diferentes entre os diversos países. Martins et al. (2005) identificaram que as diferenças nos sistemas de governança corporativa podem ser consequências dos diferentes sistemas legais e regulatórios a que estão sujeitas as empresas. Nos Estados Unidos, por exemplo, as companhias devem respeitar os padrões de governança corporativa previstos na legislação federal, na regulamentação aplicada ao mercado de valores mobiliários e na legislação local de cada estado americano (ACFE, 2012). A mais significativa exigência de governança corporativa de companhias americanas é encontrada no Ato Sarbanes-Oxley, aprovado em meio a uma série de escândalos envolvendo as demonstrações contábeis de companhias nos Estados Unidos. Esta legislação tem como objetivo melhorar a governança e os controles nas empresas para mitigar o risco de expropriação dos acionistas (ACFE, 2012). Para facilitar o entendimento e a comparação entre as formas de governança corporativa, Andrade e Rossetti (2009) estruturaram, no quadro abaixo, as características dos principais modelos de governança corporativa existentes. 39 Quadro 1: Características dos modelos de governança corporativa Fonte: Andrade e Rossetti (2009, p. 336) O modelo de governança corporativa americano, com foco na maximização do retorno para os acionistas (shareholder oriented), é caracterizado por uma estrutura de propriedade diversificada com grande número de acionistas minoritários. A fonte principal de financiamento das atividades é o mercado de capitais sendo o equity (capital próprio por meio da emissão de ações) a base de seu processo de capitalização. A propriedade é dissociada da gestão e os conflitos de agência envolvem os acionistas e os gestores, mas com forte proteção legal dos minoritários. O Conselho de Administração é caracterizado pela crescente presença de outsider, sendo esta a principal forma de controle interno sobre as atividades gerenciais, com o objetivo de defender os interesses dos acionistas. E, por fim, o mercado de capitais é caracterizado por um grande número de empresas listadas em bolsa, cujas ações possuem alta liquidez (ANDRADE; ROSSETTI, 2009). Na visão de Martins et al. (2005), as restrições e limites fixados para os investidores americanos levam a uma grande dispersão na composição das ações nos EUA enquanto, por outro lado, a ausência destas restrições em países europeus tem possibilitado uma maior concentração das ações. No Brasil, a governança corporativa ainda está em fase embrionária e é muito influenciada pela estrutura de propriedade altamente concentrada, com controle 40 predominantemente familiar, cujos três maiores acionistas detêm mais de 80% do capital com direito a voto. Segundo Jiraporn e DaDalt (2009), empresas com este tipo de estrutura são menos propensas à manipulações de resultados, quando comparadas com empresas não familiares. Os proprietários, preocupados com o bom desempenho da organização, monitoram de perto seus administradores, reduzindo a possibilidade de se manipular os resultados ou, ainda, assumem pessoalmente a administração da empresa. A principal fonte de captação de recursos para o financiamento das atividades das companhias são os empréstimos bancários (debt). A proteção legal do acionista minoritário é muito fraca e poucas empresas consideram, expressamente e de forma sistemática, os interesses deste grupo de investidores. A propriedade é sobreposta a gestão e os conflitos de agência se dão, geralmente, entre os acionistas majoritários e minoritários (ANDRADE; ROSSETTI, 2009). Segundo Andrade e Rossetti (2009), a convergência, a adesão, a diferenciação e a abrangência são as principais tendências da governança corporativa que estão em curso no mundo todo; e a velocidade com que ocorrem essas mudanças dentro da organização é influenciada sobremaneira por valores culturais, sistemas institucionais e características das organizações. Para os autores, no Brasil, observam-se movimentos nestas direções, mas os mais perceptíveis são: i) tendência à adesão aos melhores modelos de governança, motivada por aspectos como fusões, aquisições, presença do capital externo, lançamentos de programas ADR (American Depositary Receipts) e movimentos de separação entre propriedade e gestão; e ii) tendência à abrangência, influenciada pela sensibilidade das companhias às condições ambientais e sociais do país. Andrade e Rossetti (2009, p. 549) mencionam que: Há fortes evidências de que o Brasil caminha para o aperfeiçoamento simultâneo do mercado de capitais e da governança corporativa. Um novo ciclo está se iniciando e o mercado de ações tem pago prêmios a empresas bem governadas que recentemente promoveram a abertura de seu capital e a oferta pública de suas ações. Diante desse quadro, empresas brasileiras têm procurado aproveitar essa oportunidade para se financiarem por meio da oferta pública de ações, criando um ambiente propício a uma grande mudança na composição da propriedade das companhias. Junto desta realidade, emerge um conjunto de desafios a serem enfrentados por um país cuja cultura empresarial floresce baseada nas perspectivas do acionista ou cotista controlador. Entre eles, vale destacar o papel que será exercido pelos nossos administradores neste novo cenário, onde serão responsáveis por comandar grandes e poderosas corporações – 41 realidade do “modelo anglo-saxão que agora encosta na realidade brasileira e já deixa no ar algumas perguntas instigantes. Será que vamos ter os mesmos problemas das corporações norte-americanas e inglesas? Estão nossos administradores preparados para a nova realidade? Temos um arcabouço legal apropriado para a mudança?” (HESSEL, 2006). Estes questionamentos fornecem um insight sobre uma possível modificação no perfil das fraudes praticadas no Brasil, à luz da teoria dos escândalos corporativos (TEC). 1.4 Teoria dos escândalos corporativos Alguns esforços têm sido adotados para melhorar a sistemática de controle das empresas e, assim, ajudar a detectar e combater ações fraudulentas. Em 1985, em meio uma série de fracassos de instituições financeiras no início daquela década, foi criada, nos EUA, a National Commission on Fraudulent Financial Reporting (Comissão Nacional sobre Fraudes em Relatórios Contábeis), que atuava no controle interno das organizações com o propósito de identificar e evitar fraudes. Esta comissão deu origem, algum tempo depois, ao Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission (COSO), Comitê das Organizações Patrocinadoras, instituição sem fins lucrativos, responsável por formular um método para relatórios contábeis, contendo aspectos como efetividade nos controles internos e a governança corporativa. Complementando estas medidas, o Center for Audit Quality (CAQ) patrocinou uma série de debates e entrevistas para identificar medidas de prevenção e detecção de fraudes. Participaram deste levantamento, executivos, membros de conselhos de administração e de comitês de auditoria, auditores internos e externos, investidores, entidades reguladoras e acadêmicos. O relatório contém sugestões para reduzir o risco de fraudes, indicando que o compartilhamento de ideias e recursos são esforços que contribuem para atenuar a ocorrência de fraude nas demonstrações contábeis (CAQ, 2010). Na mesma linha, a Association of Certified Fraud Examiners (ACFE) elaborou um manual para auxílio na detecção e prevenção de fraudes. O documento, com nova edição publicada em 2012, contém informações sobre os conceitos básicos de contabilidade, descrevendo centenas de esquemas de fraude e explicando, ainda, o que leva as pessoas a cometerem esses ilícitos (ACFE, 2012). 42 Entretanto, apesar dos esforços para melhorar os controles internos das organizações e minimizar os efeitos nocivos da fraude, algumas questões ainda precisam ser enfrentadas. Por que diferentes tipos de escândalos corporativos ocorrem em economias de países distintos? Ou, por que um determinado escândalo ocorre em uma economia e não afeta outra, se ambas estão interligadas numa economia global? Estes aspectos foram estudados por Coffee Jr. (2005) ao propor a TEC. Coffee Jr. (2005) comparou as experiências dos EUA e da Europa com a crise no mercado de ações em 2000 - naquela ocasião, a queda no mercado de ações na Europa não se deu da mesma forma como nos EUA, nem esteve associado com o mesmo tipo de irregularidade financeira e contábil que impactou a economia norte-americana. Ao comparar e analisar os sistemas de governança corporativa adotados nos Estados Unidos e na Europa, o autor percebeu que as companhias norte-americanas são caracterizadas como empresas com sistema de controle disperso, com um forte mercado de capitais e uma grande exigência de transparência. Na Europa, elas são caracterizadas como empresas com sistemas de governança concentrado, com baixo grau de transparência das informações, onde alguns poucos acionistas detém o controle acionário das empresas. O autor explica, ainda, que na Europa, o acionista ou o grupo de acionistas controlador não precisa de mecanismos indiretos de controle, como remuneração variável, bônus, ou opções de ações, para incentivar uma melhor gestão por parte dos administradores. Os acionistas destas corporações, diferentemente do que ocorre nos EUA, podem atuar diretamente na gestão da empresa e monitorar de perto a ação dos executivos. Assim, os administradores têm menos liberdade de ação e menos motivação para manipular os resultados, já que não serão beneficiados com opções de ações pelo bom desempenho na gestão. Neste contexto, não há necessidade de utilização de sistemas de remuneração baseados no resultado contábil e em opções de ações, tal como observado nos locais onde o controle é mais pulverizado. Coffee Jr. (2005) argumenta que as diferenças observadas entre os sistemas de governança corporativa das organizações, especialmente no nível de concentração do capital, permitem explicar as diferenças na natureza das fraudes, na sua autoria e no número de escândalos corporativos observados. Nos sistemas de governança onde a propriedade é dispersa, como nos EUA, os gestores das empresas tendem a ser os protagonistas da história, havendo uma maior propensão às formas de manipulação dos resultados, pois existem incentivos administrativos para o gerenciamento de resultado. Por outro lado, nos sistemas onde a propriedade é concentrada, como na Europa, são os proprietários que desempenham o papel correspondente e os escândalos são caracterizados por benefícios privados de controle. 43 Segundo Ehrhardt e Nowak (2003), para a maior parte da literatura, os benefícios privados de controle se caracterizam pela transferência de recursos da empresa em favor daquele que a controla. Na mesma linha, o IBGC considera que estes benefícios são caracterizados por um ganho extra, que beneficia os controladores em detrimento de terceiros. Dadas as diferenças entre os sistemas de governança corporativa das organizações, o papel dos auditores e analistas de mercado (gatekeepers) nestes dois sistemas pode variar significativamente pois, embora tenham falhado em casos como os da Enron e da Parmalat, suas falhas tiveram características diferentes e, ainda assim, suas opiniões continuam tendo um papel central e crucial, especialmente onde predomina os sistemas de controle mais dispersos. Embora indique uma tendência, a teoria não pode ser aplicada de forma generalizada, pois empresas com sistemas dispersos e concentrados de governança corporativa coexistem em todos os principais mercados e jurisdições. Assim, mesmo em países com sistema de propriedade concentrada, eventualmente, uma empresa com capital pulverizado pode envolver-se em fraude com características típicas de outro mercado. 44 2 METODOLOGIA Esta seção descreve a metodologia utilizada na investigação, compreendendo o tipo de pesquisa, os critérios utilizados para a seleção dos casos investigados, os meios utilizados na coleta dos dados e a forma de análise e interpretação destes dados. 2.1 Tipo de pesquisa O presente estudo é uma investigação empírica que analisa a fraude corporativa praticada por meio de manipulações nas demonstrações contábeis das empresas, descrevendo suas características em casos observados no Brasil e nos Estados Unidos. A natureza da pesquisa é qualitativa, tipo de procedimento analítico utilizado principalmente em pesquisas definidas como estudo de campo, estudo de caso ou pesquisa – ação (GIL, 2009). Quanto aos objetivos, o trabalho pode ser classificado como uma pesquisa descritiva que, segundo Gil (2009, p. 28), tem “como objetivo primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno, ou o estabelecimento de relações entre variáveis”. Neste estudo, as referidas características são os fatores motivacionais antecedentes a ação fraudulenta, os métodos de manipulação contábil utilizados nas fraudes e as finalidades dos agentes fraudadores. Adicionalmente, a investigação compreendeu o estudo sobre o sistema de governança corporativa adotado pelas empresas envolvidas nas fraudes. No delineamento da pesquisa, o trabalho está enquadrado como um estudo de caso, caracterizado por uma investigação profunda de um objeto para permitir o seu conhecimento amplo e detalhado (GIL, 2009) – estudo empírico que investiga o fenômeno social da fraude praticada por meio de manipulações nas demonstrações contábeis das empresas. A estratégia utilizada na pesquisa é o estudo de casos múltiplos (YIN, 2010) e sua essência é a análise comparativa das características de fraudes praticadas no Brasil e nos Estados Unidos à luz da teoria dos escândalos corporativos defendida por Coffee Jr. (2005). Segundo Yin (2010), a utilização de vários casos, por meio da técnica da replicação, pode proporcionar evidências empíricas dentro de diferentes contextos, concorrendo para uma análise que melhora a qualidade da pesquisa. Para este autor, a lógica subjacente deste tipo de estudo é que cada caso possa predizer resultados similares ou produzir resultados 45 previsivelmente contrastantes, segundo a teoria que sustenta o estudo. O autor comenta que o relatório final deve indicar, para cada caso, “como e por que uma determinada proposição foi demonstrada, ou não demonstrada” (YIN, 2010, p. 80). Ao se planejar um estudo de caso, é necessário, antes de tudo, decidir sobre a utilização do projeto de caso único ou de casos múltiplos. O estudo de caso único é similar ao experimento único e pode ser usado, por exemplo, para confirmar ou não proposições de determinada teoria. Entretanto, é um projeto que apresenta alguma vulnerabilidade quando o objeto da pesquisa envolve um estudo comparativo, sendo mais indicado, neste caso, o estudo de casos múltiplos por utilizar a técnica da replicação. Quadro 2: Tipos de projetos de estudo de caso Fonte: Cosmos Corporation (1983, apud Yin, 2010, p. 70) Yin (2010) sugere, ainda, que os estudos de caso podem ser holísticos ou integrados (quadro 2), quando compreendem, respectivamente, uma e mais de uma unidade de análise. Sendo assim, este trabalho é considerado um estudo de casos múltiplos integrado, por apresentar as seguintes unidades de análise: os aspectos motivacionais da fraude; os métodos 46 de manipulação contábil utilizados; as finalidades dos agentes fraudadores; e a estrutura de governança corporativa das empresas. 2.2 Seleção dos casos Na visão de Yin (2010, p. 118) “[...] antes de coletar os dados, você deve ter definido um conjunto de critérios operacionais de acordo com os quais os casos candidatos serão considerados qualificados”. Para Gil (2009), estes critérios devem variar de acordo com os propósitos da pesquisa que, neste estudo, se constitui na análise empírica da teoria defendida por Coffee Jr. (2005). Na mesma linha, Yin (2010) comenta que, ao optar por esta estratégia de casos múltiplos, o pesquisador deve selecionar casos que melhor se adaptam ao projeto de replicação para a teoria estudada. Considerando que o objetivo do estudo é comparar características de fraudes praticadas no Brasil e nos Estados Unidos à luz da TEC, os casos investigados foram selecionados a partir de pesquisas científicas que citaram fraudes praticadas nestes países, na última década, especialmente os estudos de Moura (2007), Costa (2011) e Kraemer (2005). Notadamente, as fraudes mencionadas em estudos anteriores têm suas especificidades e muitas delas não se enquadram nos pressupostos teóricos que sustentam este estudo, sendo necessária uma triagem para excluir estes casos. Não teria sentido, por exemplo, selecionar uma empresa norte-americana com estrutura de propriedade familiar, já que aquele mercado é caracterizado por uma estrutura de capital com grande dispersão das ações. Da mesma forma, não seria razoável selecionar uma empresa brasileira com capital pulverizado, se o nosso mercado é altamente concentrado, constituído por um grande número de empresas familiares. Assim, as fraudes citadas em pesquisas anteriores foram relacionadas nos quadros 3 e 4, apresentando os possíveis casos candidatos. Em seguida, considerando como critérios principais a disponibilidade e confiabilidade das informações sobre os casos, procedeu-se à seleção das fraudes. Por questões metodológicas, foram escolhidas organizações que atendessem, cumulativamente, aos seguintes subcritérios: i. fraude com informações divulgadas por agentes reguladores ou de fiscalização; ii. fraude analisada judicialmente com sentença de mérito proferida, ainda que em primeira instância; e 47 iii. fraude com muita divulgação nas mídias impressa ou eletrônica. Considerando a importância da confiabilidade das informações em pesquisas desta natureza, foram priorizados casos com sentença judicial e com divulgação de órgãos reguladores ou de fiscalização já que, nestas situações, documentos primários, de difícil acesso, são apreciados e analisados, revelando informações difíceis de serem obtidas por outra fonte de evidência. Assim, para avaliar o atendimento aos subcritérios definidos, procedeu-se consulta à Internet, especialmente no site de busca Google. Em seguida, a subseção 2.3 detalhará o procedimento de coleta dos dados nos casos selecionados. O quadro abaixo demonstra o atendimento aos subcritérios estabelecidos para seleção dos casos nacionais. MUITA DIVULGAÇÃO NA MÍDIA 2010 FINANCEIRO 2010 VAREJO 2009 INDÚSTRIA/ HARDWARE 2006 INDUSTRIA FONOGRÁFICA 2005 INDUSTRIA / BEBIDAS 2005 VAREJO 2005 AGROPECUÁRIO 2004 INDUSTRIA/ ALIMENTOS 2004 FINANCEIRO 2001 AGROPECUÁRIO NATUREZA DO CAPITAL SOCIAL INFORMAÇÕES DE AGENTES REGULADORES / FISCALIZAÇÃO BANCO PANAMERICANO CARREFOUR EPSON EMI SCHINCARIOL DASLU AVESTRUZ MASTER PARMALAT BANCO SANTOS FAZENDA BOI GORDO SETOR SENTENÇA EM PROCESSO JUDICIAL EMPRESA ANO* SUBCRITÉRIO DE SELEÇÃO ABERTO ABERTO ABERTO FECHADO FECHADO FECHADO FECHADO ABERTO FECHADO ABERTO N N N N N S S N S S S S N N S S S S S S S S S N S S S S S S Quadro 3: Casos de fraudes nacionais Fonte: O autor, 2012. S – sim; N – não Da tabulação acima, verifica-se que os casos de fraude da Daslu, da Avestruz Master, da Fazenda Boi Gordo e do Banco Santos atenderam a todos os subcritérios, sendo, a princípio, os mais indicados neste estudo. A Fazenda Boi Gordo foi excluída dos casos candidatos por ser empresa de capital aberto, não atendendo aos pressupostos da teoria que sustenta o estudo – como o mercado nacional é caracterizado por uma estrutura de capital fechado, é recomendável a escolha de uma empresa com esta característica. Dentre os três casos que remanesceram, optou-se por escolher os mais recentes, restando selecionados os casos Daslu e Avestruz Master. 48 A seleção do caso norte-americano seguiu os mesmos subcritérios, indicando o caso a ser investigado. SETOR NATUREZA DO CAPITAL SOCIAL SENTENÇA EM PROCESSO JUDICIAL INFORMAÇÕES DE AGENTES REGULADORES / FISCALIZAÇÃO MUITA DIVULGAÇÃO NA MÍDIA EMPRESA ANO* SUBCRITÉRIO DE SELEÇÃO FINANCEIRO FINANCEIRO COMUNICAÇÕES ABERTO ABERTO ABERTO S N S S S S S S S BERNARD MADOFF LEMAN BROTHERS WORLDCOM 2008 2008 2002 KMART BRISTOL-MEYERS SQUIBB MERCK ADELPHIA COMMUNICATIONS 2002 COMERCIAL/VAREJO 2002 FARMACÊUTICO 2002 FARMACÊUTICO 2002 COMUNICAÇÕES ABERTO ABERTO ABERTO ABERTO S N S S S S S S S S S S AOL EL PASO MIRANT HOMESTORE DYNEGY 2002 TELECOMUNICAÇÃO 2002 ENERGIA 2002 ENERGIA 2002 IMOBILIÁRIO 2002 ENERGIA ABERTO ABERTO ABERTO ABERTO ABERTO N N N S N S S S S S S N N S S CMS ENERGY GLOBAL CROSSING DUKE ENERGY HALLIBURTON CO. QWEST TYCO ENRON XEROX 2002 ENERGIA 2002 TELECOMUNICAÇÃO 2002 ENERGIA 2002 ENERGIA/SERVIÇOS 2002 TELECOMUNICAÇÃO 2002 SEGURANÇA 2001 ENERGIA 2000 SERVIÇOS ABERTO ABERTO ABERTO ABERTO ABERTO ABERTO ABERTO ABERTO N N N S N S S N S S S S S S S S S S S S S S S S Quadro 4: Casos de fraudes norte-americanas Fonte: O autor, 2012. S – sim; N – não Na triagem efetuada nos casos norte-americanos, várias empresas atenderam a todos os subcritérios de seleção. Por questões metodológicas, optou-se pelo estudo de uma empresa comercial varejista, mesmo setor de uma das empresas escolhidas nos casos nacionais. Sendo assim, restou selecionada a empresa Kmart. 2.3 Coleta de dados A verdadeira linha de investigação do estudo de caso está no núcleo do protocolo, formado por questões substantivas formuladas ao investigador. Estas funcionam como 49 lembretes para manter o investigador no rumo certo sobre as informações que necessitam ser coletadas (YIN, 2010). Como descrito nos passos iniciais desta investigação, o objetivo geral do estudo é comparar características de fraudes praticadas por meio de manipulações contábeis, especialmente no que se refere às diferenças observadas nas motivações e finalidades do agente fraudador, nos métodos de manipulação contábil utilizados e no sistema de governança corporativa adotado pelas empresas envolvidas nas fraudes. Assim, para orientar a coleta de dados e auxiliar na resposta ao problema de pesquisa, foram formuladas as seguintes questões específicas: Q1- qual dos componentes motivacionais da teoria do triângulo da fraude (TTF) foi determinante para a prática do ato fraudulento? Q2- qual a finalidade do agente fraudador ao perpetrar a ação fraudulenta? Q3- qual o método de manipulação contábil utilizado pelo agente fraudador na execução do ato ilícito? Q4- qual a estrutura de governança corporativa da empresa envolvida na fraude? Durante a coleta de dados, o investigador procurou desvendar as respostas para os questionamentos acima. Segundo Yin (2010), neste momento, deve-se considerar a possibilidade de utilizar múltiplas fontes de evidência, pois este aspecto representa um ponto forte na condução de estudos de caso. O autor comenta que a evidência de duas ou mais fontes possibilita a triangulação de dados e a convergência sobre os mesmos fatos ou descobertas, proporcionando uma análise mais robusta. Neste estudo, foram utilizadas duas fontes de dados: o registro de arquivos e a documentação (YIN, 2010). Na primeira fonte de dados, utilizou-se de informações disponíveis nos bancos de dados de órgãos reguladores e de fiscalização ou em processos judiciais sobre os casos de fraude investigados. Segundo Yin (2010, p. 132), “a utilidade dos registros de arquivos variará de estudo de caso para estudo de caso. Para alguns estudos, os registros podem ser tão importantes que se tornam objeto de recuperação extensa” e, nestes casos, o pesquisador deve deixar bem claro as condições nas quais foram produzidos. A documentação, por sua vez, se constitui de recortes de notícias e outros artigos divulgados em mídia impressa ou eletrônica sobre os casos. Embora essa fonte de evidência nem sempre seja precisa e possa apresentar alguma parcialidade, é muito utilizada nos estudos de caso para “corroborar ou aumentar a evidência de outras fontes” (YIN, 2010, p. 128). Assim, a coleta de dados foi conduzida da seguinte forma: primeiramente, investigouse os registros de arquivos com o objetivo de ter acesso aos casos e obter informações sobre o 50 componente motivacional que desencadeou a fraude, as finalidades do agente fraudador, os métodos de manipulação contábil utilizados e a estrutura de governança das empresas. Posteriormente, por meio de matérias publicadas na Internet, verificou-se a convergência ou não dos dados coletados. No momento em que se acessava os registros de arquivos, os achados foram sendo tabulados em quadro proposto no protocolo do estudo. Após todas as informações da primeira fonte serem reportadas, iniciava-se a pesquisa na segunda fonte de evidência. Yin (2010) sugere, ainda, que o pesquisador pode maximizar os benefícios de utilizar estas duas fontes de evidência ao documentar e organizar as informações em uma base de dados, procurando manter o encadeamento das evidências, de forma que um observador externo possa acompanhar os passos seguidos pelo pesquisador. Para facilitar esse processo de organização e documentação do trabalho e aumentar sua confiabilidade, o estudo contou com protocolo que orientou o trabalho do investigador (APÊNDICE A). Seguindo a estrutura proposta por Yin (2010), o protocolo ficou subdividido em: visão geral do projeto; coleta de dados; análise dos dados; e relatório do estudo de casos múltiplos. A seção inicial do protocolo descreve os objetivos do projeto, as questões de pesquisa e sua estrutura teórica. A coleta de dados discute a opção por múltiplas fontes de evidência e indica como estes dados contribuem para o processo de triangulação. A seção seguinte do protocolo descreve a estratégia geral e a técnica específica adotada na análise dos dados e, por fim, no último tópico do protocolo, a descrição do relatório final indica como devem ser reportados os dados analisados. 2.4 Análise e interpretação dos dados A presente dissertação dedicou-se ao estudo dos casos Daslu, Kmart e Avestruz Master. A intenção é provocar pesquisas futuras que pretendam replicar o modelo aqui construído, por acreditar-se que o conhecimento e aprendizado proporcionados neste estudo possam ser válidos ou utilizados para análise de outros casos de fraude nas demonstrações contábeis, contribuindo para um melhor entendimento sobre o tema. Para Yin (2010) os estudos de natureza empírica têm uma “história” para contar, e a estratégia analítica da pesquisa é a forma de reconstruir essa história. O autor sugere quatro estratégias gerais e cinco técnicas específicas para analisar estudos de caso. Entre as opções 51 do autor, este estudo adotou como estratégia geral seguir uma proposição teórica, a TEC, e como técnica específica de análise, a síntese cruzada de dados. Contar com proposições teóricas é a estratégia preferida para se analisar as evidências de estudos de caso, pois, geralmente, os objetivos da pesquisa estão baseados nestas proposições que ajudam a “focar a atenção em determinados dados e ignorar outros” (YIN, 2010, p. 159). Na mesma linha, para Gil (2009), o que se procura na interpretação é a obtenção de um sentido mais amplo para os dados analisados, o que se faz mediante sua ligação com conhecimentos disponíveis, derivados principalmente de teorias. Para interpretar os resultados, o pesquisador precisa ir além da leitura dos dados, com vistas a integrá-los num universo mais amplo em que poderão ter algum sentido. Esse universo é o dos fundamentos teóricos da pesquisa e o dos conhecimentos já acumulados em torno das questões abordadas (GIL, 2009, p. 178). Assim, a proposição da teoria dos escândalos corporativos (TEC) como estratégia geral modelou o plano de coleta de dados, fornecendo uma orientação ao pesquisador na análise do estudo. A pesquisa teve por objetivo comparar características de fraudes utilizando como background a teoria acima. Para alcançá-lo, adotou-se como técnica analítica a síntese cruzada de dados, por ser a mais recomendada em estudos de casos múltiplos, onde “a análise é provavelmente mais fácil e as constatações são mais robustas” (YIN, 2010, p. 184). O quadro abaixo apresenta a quantidade de arquivos e documentos consultados para análise dos dados. FONTES REGISTRO DE ARQUIVO DOCUMENTAÇÃO CASOS KMART AVESTRUZ MASTER 1 3 15 2 Justiça Órgãos regulador e de fiscalização DASLU 2 2 Revistas e Jornais 24 39 14 16 3 1 Vídeos Quadro 5: Quantidade de arquivos e documentos consultados Fonte: O autor, 2012. Contando com a proposição da TEC e utilizando a síntese cruzada de dados, o investigador procurou responder às questões de pesquisa, fazendo uma reflexão sobre a aplicabilidade da teoria aos casos investigados. 52 3 ESTUDO DOS CASOS Esta seção compreende o estudo dos casos investigados (Daslu, Kmart e Avestruz Master), seguido de uma estrutura de relatório que contempla as respostas para as questões formuladas no protocolo do estudo de casos múltiplos (APÊNDICE A). Este procedimento facilitou a comparação das características das fraudes na perspectiva da teoria dos escândalos corporativos. 3.1 Caso Daslu Para descrever esta fraude, foram utilizadas informações coletadas na mídia eletrônica e em processo judicial. O caso envolve a prática de atos fraudulentos, perpetrados por sócios da empresa Daslu, em conluio com outros agentes, com o objetivo de esquivar-se do pagamento de tributos por meio do subfaturamento das mercadorias importadas pela empresa. Cumpre ressaltar que o processo judicial sobre o caso ainda tramita na justiça, valendo-se esta pesquisa das informações disponíveis até então, inclusive da sentença proferida em primeira instância. A investigação da fraude teve início quando a Receita Federal, em procedimento comum de fiscalização aduaneira, encontrou, dentro de volumes de carga importada, artigos de grifes estrangeiras, acompanhados de seus respectivos documentos fiscais originais, expedido pelo remetente no exterior em nome da Daslu. Ao compará-los com os documentos apresentados por ocasião do desembaraço aduaneiro, identificaram-se divergências no remetente da carga, no destinatário (importador) e nos valores dos produtos, fato que levantou suspeita sobre a regularidade das importações. As faturas originais encontradas dentro dos volumes referiam-se a peças de vestuário que a empresa “MULTIMPORT” deveria desembaraçar por conta e ordem da Daslu. Dentre estas, algumas faturas da grife Marc Jacobs indicavam que as mercadorias haviam sido vendidas e faturadas para a boutique Daslu “por preço similar a U$ 44.493,00 - quarenta e quatro mil, quatrocentos e noventa e três dólares”. Todavia, as faturas apresentadas para o 53 desembaraço da referida carga (DI3 no 79-7) possuíam valor total de U$ 8.387,00 - oito mil, trezentos e oitenta e sete dólares. Uma calça da Marc Jacobs, por exemplo, de valor U$ 150 dólares, foi declarada a U$ 20 dólares (BRASIL, 2009, p. 105). Adicionalmente, estas falsas faturas omitiam o nome da Daslu como adquirente da carga e declaravam, como remetente das mercadorias, uma suposta empresa estrangeira denominada “INTERNACIONAL FASHION”, sediada nos Estados Unidos, no mesmo endereço de outra empresa (HORACE), também utilizada no esquema, ambas do mesmo proprietário da importadora fictícia dos produtos (MULTIMPORT). Ou seja, o proprietário da empresa estrangeira que supostamente enviava as mercadorias para o Brasil era o mesmo da importadora. Em julho de 2005 foi deflagrada a Operação Narciso, conduzida pela Polícia Federal, Receita Federal e Ministério Público Federal, com o fim de apurar possíveis irregularidades nos procedimentos de importação da empresa Daslu. Durante a operação, foram cumpridos vários mandados de prisão e busca e apreensão contra os sócios da Daslu e de outras empresas envolvidas. O Ministério Público Federal (MPF) acusou a boutique de importação irregular e seus sócios passaram a responder pelo crime de descaminho, entre outros. Na primeira instância do processo, constatou-se que a empresa construiu um esquema para subfaturar suas importações com o fim de esquivar-se do pagamento de tributos incidentes nessas operações. Informações extraídas da mídia e do processo judicial, com sentença proferida em 2009, indicam um prejuízo bilionário com a fraude (BRASIL, 2009; DINIZ et al., 2009). Segundo o MPF, os agentes fraudadores “associaram-se de forma constante, perene e articulada para a prática de um esquema criminoso com divisão clara de atribuições e hierarquia dentro da organização criminosa, cujo objetivo era viabilizar um sistema fraudulento de importações” (BRASIL, 2009, p. 5). Informações do processo judicial indicam que a Daslu era responsável pela negociação, aquisição e pagamento dos produtos adquiridos no exterior. Em seguida, agentes de empresas importadoras (tradings), que funcionavam em prol do esquema, providenciavam falsas documentações para registrar a DI com valores subfaturados e em nome das próprias tradings, viabilizando a importação com subfaturamento de mercadorias. Havia, naquela ocasião, um estreito relacionamento entre estas empresas e a Daslu. Segundo informações da 3 DI é a declaração de importação formulada pelo importador no SISCOMEX (Receita Federal), consistindo na prestação de informações constantes da Instrução Normativa SRF nº 680/06, de acordo com o tipo de declaração e a modalidade de despacho aduaneiro. 54 Receita Federal, a empresa “MULTIMPORT”, por exemplo, que registrava de forma recorrente prejuízos mensais na sua contabilidade, revertia à Daslu cerca de 96% de tudo o que importava, funcionando como uma típica empresa “laranja”. Adicionalmente, depoimentos prestados no processo judicial indicam que sócios de empresas tradings acusadas de participar do esquema já haviam sido funcionários da Daslu, de forma que conheciam os proprietários da grande boutique (DINIZ et al., 2009). Os sócios da Daslu alegaram desconhecer os fatos, relatando que a boutique só adquiria os produtos das empresas importadoras após a nacionalização da carga importada, de responsabilidade exclusiva das tradings. Todavia, o Ministério Público Federal (MPF), por meio de um pedido de cooperação internacional, solicitou às autoridades americanas a confirmação sobre operações realizadas entre empresas americanas e a Daslu. Após apuração, comprovou-se que a alegação da defesa dos sócios era inverídica; que a boutique figurava como o real comprador das mercadorias que chegavam ao Brasil; e que o preço era, de fato, subfaturado (BRASIL, 2009). A denúncia oferecida pelo MPF indica que um dos sócios da Daslu negociava preços e efetuava a compra no exterior, ficando as tradings responsáveis pela internalização das mercadorias por meio de documentos fiscais falsos onde se alteravam os valores, o destinatário e o remetente dos produtos. Para facilitar o entendimento da fraude, cumpre descrever a forma como se procede o desembaraço aduaneiro junto a Receita Federal: a empresa estrangeira estabelece uma relação de compra e venda com a empresa nacional (importadora); posteriormente, aquela empresa remete a mercadoria para o Brasil e envia para o importador as faturas de venda, com descrição das mercadorias, valores e indicação do destinatário; quando a mercadoria chega em solo nacional, inicia-se o procedimento do desembaraço aduaneiro com base nas faturas das mercadorias enviadas pelo remetente; em seguida, são praticados os atos de verificação da legalidade da importação e do pagamento dos tributos, finalizando-se com a fiscalização visual da carga e sua liberação. As empresas que comercializam produtos importados têm duas formas de viabilizar esta importação: uma das formas é a importação pessoal, em que o destinatário das mercadorias assume diretamente a responsabilidade pelos atos de desembaraço dos produtos, figurando, neste caso, como proprietário e importador perante a Receita Federal. A outra forma é terceirizar o processo de importação por meio de um contrato de prestação de serviços com uma trading, que praticará os atos necessários para o desembaraço por conta e ordem do proprietário da carga. A Instrução Normativa nº 225 da Secretaria da Receita 55 Federal, exige que, nestas importações, seja comunicado à Receita Federal quem é o adquirente dos produtos, sujeito passivo da obrigação tributária. O processo judicial apurou que as importações da Daslu se davam nesta modalidade, onde uma importadora deveria figurar como prestadora de serviços para desembaraçar as mercadorias importadas pela boutique. Ocorre que os agentes responsáveis pela importação registraram as DI utilizando faturas falsas, com valores irrisórios, alterando os agentes envolvidos na relação mercantil de compra e venda. A omissão sobre o verdadeiro adquirente da carga e sobre o valor real da operação impediu o fisco de verificar a legitimidade da importação, o proprietário das mercadorias, o sujeito passivo da obrigação tributária na importação e a mensuração dos tributos devidos. Conforme já comentado, o MPF apurou que em algumas operações as empresas estrangeiras originais foram substituídas por empresas estrangeiras “fantasmas” (BRASIL, 2009, p.18). Após a nacionalização das mercadorias, estas tradings simulavam uma operação de venda para a Daslu, para que as mercadorias chegassem ao seu destino final acompanhadas de documentação fiscal, completando-se assim a operação fraudulenta. OPERACIONALIZAÇÃO DA FRAUDE CENÁRIO REAL EMPRESA IMPORTADOR ESTRANGEIRA Operação de DASLU compra e venda CENÁRIO FICTÍCIO EMPRESA IMPORTADOR ESTRANGEIRAAOperação de FICTÍCIO FICTÍCIA compra e venda simulada DOCUMENTO FISCAL ORIGINAL VALOR REAL DA OPERAÇÃO BASE DE CÁLCULO REAL DOCUMENTO FISCAL FALSO VALOR SUBFATURADO DA OPERAÇÃO DESPESA TRIBUTÁRIA BASE DE CÁLCULO REDUZIDA DESPESA TRIBUTÁRIA REDUZIDA Quadro 6: Operacionalização da fraude no caso Daslu Fonte: O autor, 2012. O quadro 6 descreve, de forma sucinta, o cenário fictício criado pelos agentes fraudadores para a prática da fraude e sua ocultação. 56 Segundo o Ministério Público Federal (MPF): a Daslu, maior Boutique de Luxo do Brasil, especializada em venda de importados, nunca importou formalmente nada. Ao revés, apenas comprava mercadorias nacionalizadas por importadoras de fundo de quintal, muitas delas desconhecidas, [...]. (BRASIL, 2009, p. 22, grifo nosso). O processo judicial descreve várias destas importações realizadas de forma fraudulenta. Um dos casos foi processado pela DI n° 04/0116095-0, pelo qual uma das tradings (TODOS OS SANTOS) pretendia desembaraçar uma carga supostamente adquirida de uma empresa estrangeira de nome “EUROTRADE” - pela DI, a importação estava sendo realizada pela “TODOS OS SANTOS”, em nome próprio. Todavia, durante o procedimento de desembaraço, a Receita Federal encontrou documentação fiscal emitida pela “CHANEL”, grande grife internacional, em nome da Daslu. Após apuração dos fatos constatou-se que, na realidade, os produtos foram remetidos da grife “CHANEL” para a Daslu e a suposta operação entre “EUROTRADE” e “TODOS OS SANTOS” era uma simulação. Este procedimento de importação era sistemático e o processo judicial está alimentado de vários casos que seguiram o mesmo modus operandi. Foram apreendidos ainda, pela Receita Federal, notas de saída emitidas pelas importadoras para documentar a entrega dos produtos à Daslu, além de livros contábeis e notas fiscais emitidas pela boutique nas vendas a consumidor final. A “MULTIMPORT”, por exemplo, importadora nacional, declarou venda de camisetas Dolce & Gabbana à boutique pelo valor de R$ 8,00 (oito reais). A Daslu fez o registro de entrada destas mercadorias em seu livro diário, por este preço. Entretanto as notas de saída da boutique registram que as camisetas desta grife eram vendidas por R$ 1.198,00 (BRASIL, 2009). Em operação de mesma natureza, a trading emitiu nota fiscal de venda de sapatos GUCCI para a boutique pelo valor de R$ 80,00 (oitenta reais) e este foi o valor utilizado pela Daslu para lançar, em seu livro diário, a entrada do produto. Entretanto, na operação de venda a consumidor final, a boutique registrou a saída de sapatos desta grife pelo valor de R$ 2.320,00 (dois mil trezentos e vinte reais). Estes exemplos comprovam que o objetivo da fraude era a redução da despesa com os tributos devidos na importação, já que a entrada das mercadorias era, de fato, registrada na contabilidade da Daslu, mas com valores subfaturados, enquanto a saída para consumidor final era contabilizada normalmente pelo preço real de venda. Por fim, pode-se inferir que o modus operandi da fraude seguia a estrutura abaixo: a Daslu contratava com fornecedores/grifes estrangeiros a aquisição de mercadorias; 57 os fornecedores/grifes estrangeiros faturavam as mercadorias diretamente para a Daslu, indicando no documento a importadora que efetuaria o desembaraço por conta e ordem da boutique; os fornecedores/grifes encaminhavam as mercadorias para o Brasil, acompanhadas das cópias das faturas; as empresas importadoras refaturavam as mercadorias com valores reduzidos, alterando, em algumas ocasiões, inclusive as partes envolvidas na operação de compra e venda; as faturas com valores reduzidos eram utilizadas pelas importadoras no desembaraço aduaneiro, com a consequente redução de tributos devidos na importação; as importadoras emitiam nota fiscal, também com valores reduzidos, para documentar a entrega da mercadoria para a boutique Daslu; e por fim, completando o ciclo da fraude a boutique registrava a entrada das mercadorias com base nestas notas fiscais subfaturadas, emitidas pelas importadoras. Por meio de um fax, apreendido no processo judicial, a boutique confirmou uma operação de compra e venda diretamente com empresa estrangeira, asseverando que providenciaria dentro de alguns dias o pagamento em dólar das mercadorias negociadas (BRASIL, 2009, p. 125). Este fato comprova que as negociações e os pagamentos das mercadorias importadas eram realizados pela Daslu. Em vista da divergência entre o preço do fornecedor estrangeiro e o declarado às autoridades brasileiras, é possível “concluir que o pagamento ao fornecedor estrangeiro foi realizado através de contabilidade paralela - caixa 2” (BRASIL, 2009, p. 176), caracterizando, para os mentores do esquema, um benefício privado de controle. Adicionalmente, cumpre mencionar que nos autos do processo judicial foram apreendidos documentos que caracterizam remessa de dólares para o exterior, para pagamento de fornecedores sem o fechamento de câmbio pelo Banco Central, sendo estes encaminhados para o MPF para apuração de suposto crime contra o sistema financeiro nacional (BRASIL, 2009). a) A empresa: Loja de artigos de luxo de São Paulo, a Daslu sempre foi caracterizada como um sofisticado magazine, que representava dezenas de marcas de luxo. O nome da empresa se refere ao apelido “LU” de suas sócias fundadoras: Lúcia Piva de Albuquerque e Lourdes Aranha dos Santos, que em 1958 constituíram a empresa. 58 Inicialmente, funcionava como uma boutique que atendia, exclusivamente, amigas pessoais das proprietárias, que procuravam por produtos luxuosos. Na década de noventa, com a liberação das importações, a empresa passou a trazer o nome de grandes marcas internacionais e tornou-se a maior referência em artigos de luxo no Brasil, representando grifes como Chanel, Hermés e Jimmy Choo. A pequena loja, que funcionava em um imóvel de bairro residencial, se expandiu e, com o passar dos anos, chegou a ocupar mais de 20 imóveis no mesmo bairro. Em 2005, por questões de espaço, a empresa mudou de endereço, indo para o coração da Vila Olímpia na capital paulista. Em uma área de aproximadamente 20 mil metros quadrados, ficou por cerca de 6 anos, quando em 2011 mudou-se para o Shopping Cidade Jardins, constituindo-se na maior loja do local, com andares exclusivos. Segundo reportagem do jornal Folha de São Paulo, pouco antes da investigação deflagrada em 2005, a Daslu faturava, ao ano, mais de R$ 400 milhões em vendas, demonstrando o poder financeiro desta organização. Informações da mesma fonte indicam que cerca de 75% das pessoas que visitavam a empresa compravam alguma coisa, situação bem diferente do que ocorre em Shoppings, onde esta taxa está entre 15% e 30% (DONA, 2009). Em fevereiro de 2011, com o processo tramitando em fase de recurso, a empresa foi vendida para LAEP INVESTIMENTS LTDA, por R$ 65 milhões de reais. b) A estrutura de governança corporativa: Como comentado por Andrade e Rossetti (2009) a governança corporativa no Brasil, ainda em fase embrionária, é caracterizada por uma estrutura de propriedade altamente concentrada, com controle predominantemente familiar. A Daslu, até ser vendida em 2011 para um fundo de investimentos, foi uma empresa comandada diretamente por seus proprietários, sempre presentes na administração da organização, podendo-se dizer que, no caso da boutique, a propriedade esteve sobreposta a sua gestão e, os possíveis conflitos de agência que surgiam, se davam entre os próprios cotistas. Conforme dados extraídos da junta comercial de São Paulo, a empresa foi constituída como sociedade por cotas de responsabilidade limitada, sendo considerada uma empresa de capital fechado que, geralmente, se utiliza do empréstimo bancário como forma de financiar suas atividades. A governança corporativa da Daslu compreende o sistema por meio do qual foi dirigida e o histórico dos arquivos da empresa na junta comercial aponta para existência de uma relação entre proprietários e administradores, onde os cotistas majoritários eram também 59 os diretores. Quanto à atuação destes diretores na corporação, o processo judicial indica que dois irmãos administravam a empresa tendo funções bem delimitadas, apurando-se que eles participaram dos atos fraudulentos com divisão clara de atribuições. c) A motivação da fraude: A revisão da literatura discute os componentes da teoria do triângulo da fraude (TTF), que impulsionam ou motivam a execução da ação fraudulenta e se constituem na subjetividade da fraude, razão muito particular e íntima da pessoa para a prática do ato. As informações coletadas no caso Daslu indicam que a fraude foi perpetrada tendo a oportunidade como aspecto motivacional preponderante. Trecho de uma carta apreendida durante o cumprimento de mandado judicial aponta para a presença deste componente no cometimento da fraude. O referido documento foi redigido por um dos acusados no caso e estava direcionado a um dos sócios da Daslu. O conteúdo da correspondência revela a existência de uma planilha de proposta de subfaturamento em diversos percentuais, inclusive com a menção expressa à economia anual que seria obtida em razão da adoção de um ou outro índice de subfaturamento. [...] Esclarece que a proposta inicial seria a de declarar à Receita Federal apenas um quinto do valor real das mercadorias importadas [...]. (BRASIL, 2009, p. 219). A carta aponta que os agentes fraudadores conheciam a prática da fiscalização tributária e se utilizavam desse conhecimento para aumentar as chances de sucesso na execução da ação fraudulenta. Segue abaixo um extrato da referida carta que indica esse comportamento. [...] Prezados Senhores, Atendendo a vossa solicitação, apresentamos as três alternativas para a importação de mercadorias: 01. Importação através do Estado de São Paulo, Vantagens [...] Desvantagens [...] 02. Importação através do Estado do Espírito Santo Vantagens [...] Desvantagens [...] No caso de mercadorias de alta moda, sendo importadas pelo sistema full , atrairá muito a atenção, e com grandes probabilidades de forte vigilância. 03. Importação através do Estado de Santa Catarina Vantagens [...] Desvantagens [...] O Estado como não tem tradição na importação de Alta Moda, vamos estar chamando a atenção entrando com um volume muito grande de importação. [...] (BRASIL, 2009, p. 221, grifo nosso) Convergindo com as informações da referida carta, foi colhido, no transcurso do processo, depoimento de testemunha que havia trabalhado na empresa e confirmou a 60 existência do subfaturamento. Segundo a depoente, havia um “acordo” interno para subfaturar as mercadorias em 1/5 do valor real de compra e, aos poucos, o índice de subfaturamento foi aumentando “a ponto de virar ‘chacota’ com a fiscalização aduaneira” (BRASIL, 2009, p. 224) A magistrada que proferiu sentença em primeira instância, ao efetuar a análise da tipicidade, observou que a sensação de impunidade dos acusados era tão forte que chegaram ao ponto de transcrever, na supramencionada carta, a prática delitiva que estava sendo engendrada. Considerando que havia estes indicativos anteriores à pratica da ação fraudulenta e que, de fato, a fraude foi praticada nos moldes sugeridos na carta e no depoimento, parece razoável concluir que a percepção da oportunidade para a prática da ação fraudulenta foi o aspecto que motivou a referida fraude. Cumpre ressalvar que esta conclusão é originária dos fatos relatados conforme divulgados nas fontes consultadas. As informações colhidas foram confrontadas com a literatura, mas por tratarem-se de aspectos subjetivos de cada agente, podem não representar o sentimento íntimo do fraudador. d) O método de manipulação contábil: A literatura descreve uma grande variedade de métodos de manipulação das demonstrações contábeis. Este estudo considerou a classificação proposta por Wells (2001) e ACFE (2012), segundo os quais a fraude pode ser perpetrada por meio das seguintes operações: receitas fictícias; fraude no atendimento do regime contábil da competência; ocultação de despesas e passivos; divulgações ou omissões fraudulentas; e avaliações fraudulentas de ativos. Segundo a ACFE (2012), reduzir ou ocultar despesas e passivos é uma das formas de manipular as demonstrações contábeis fazendo a empresa apresentar uma situação melhor do que sua realidade. Esta modalidade de fraude é de difícil detecção e pode ser perpetrada utilizando, basicamente, três artifícios: omissão do registro de despesas e passivos; capitalização indevida de despesas; e fraude na contabilização de devoluções, subsídios e garantias. No caso da Daslu, a manipulação nas demonstrações contábeis foi viabilizada pela emissão de documento fiscal inidôneo para documentar a operação de importação, em substituição ao documento original. Esta ação foi praticada com o propósito de reduzir a base 61 de cálculo de incidência dos tributos devidos na importação, ocultando, assim, grande parte da despesa com tributos na operação. Com a identificação da fraude, o fisco por meio de auto de infração reconstituiu o crédito tributário que, embora existente desde o nascimento da obrigação tributária, estava oculto pelas manobras ilícitas praticadas pelos agentes fraudadores – a emissão de notas fiscais falsas com alteração dos valores e das partes envolvidas na operação de compra e venda. Assim, pode-se depreender que a fraude foi praticada por meio da omissão do registro de despesas tributárias decorrentes da importação de mercadorias. Como descrito pela ACFE (2012) é uma modalidade de difícil detecção e, no caso da Daslu, a sua identificação se deu porque a Receita Federal encontrou as faturas originais emitidas pelo fornecedor estrangeiro dentro das caixas das mercadorias, contendo o nome da boutique como destinatária dos produtos. Como descrito anteriormente, a documentação fiscal apresentada para o desembaraço aduaneiro era diferente e este fato despertou as autoridades fazendárias sobre um possível procedimento sistemático de fraudes nas importações da empresa. e) A finalidade do agente fraudador: Como comentado no referencial teórico, a ação fraudulenta é um meio de se alcançar uma finalidade específica e não um fim em si mesmo. As pessoas podem fazê-lo para resolver problemas que não podem ser gerenciados ou para alcançar metas previamente estabelecidas. Existem, ainda, pessoas que praticam a ação com a intenção de desviar recursos para fins pessoais. A tipologia proposta por Silva et al. (2012) sugere que o agente fraudador pode praticar a ação fraudulenta com a finalidade de: ocultar a real situação da empresa; desviar recursos; melhorar a bonificação dos executivos; ou sonegar tributos. No caso Daslu, é fácil identificar que a finalidade dos agentes que perpetraram a fraude foi esquivar-se do pagamento de tributos devidos na importação, ou seja, sonegar tributos por meio da redução artificial da sua base de cálculo. Em um mercado com alta carga tributária como o Brasil, o executivo de uma empresa pode estar predisposto a manipular os registros contábeis para reduzir o valor de sua despesa com tributos. Procurou-se, assim, no estudo deste caso, descrever os aspectos mais relevantes na preparação e execução da ação fraudulenta, preocupando-se, durante a coleta dos dados, com a organização, documentação e análise das informações divulgadas. SITUAÇÃO ATUAL DA EMPRESA NATUREZA DO CAPITAL SOCIAL FONTES DE EVIDÊNCIA ATIVA REGISTRO DE ARQUIVOS MÉTODO DE FINALIDADE MOTIVAÇÃO DA MANIPULAÇÃO DO AGENTE FRAUDE CONTÁBIL FRAUDADOR SONEGAR TRIBUTO OCULTAÇÃO DE DESPESA Órgão SONEGAR regulador / OPORTUNIDADE TRIBUTO fiscalização OCULTAÇÃO DE DESPESA Justiça FECHADO SETOR VAREJISTA / MODA ANO * 2005 DASLU EMPRESA 62 OPORTUNIDADE Revistas e Jornais NI SONEGAR TRIBUTO OCULTAÇÃO DE DESPESA Vídeos OPORTUNIDADE SONEGAR TRIBUTO OCULTAÇÃO DE DESPESA DOCUMENTAÇÃO Quadro 7: Síntese do caso Daslu * Ano de publicidade da fraude de acordo com o material consultado. NI – Não identificado O quadro 7, proposto no protocolo do estudo, sintetiza as observações assinaladas na fraude da Daslu, contribuindo para comparação dos casos pesquisados. 3.2 Caso Kmart As características da fraude praticada nas demonstrações contábeis da Kmart Corporation foram reportadas neste estudo por meio de informações coletadas na homepage da Securities and Exchange Commission (SEC), em registros de arquivos do processo judicial sobre o caso, além de notícias divulgadas em mídia eletrônica, todos acessados por meio da Internet. O caso envolve a prática de atos fraudulentos, perpetrados por executivos daquela organização, com o objetivo de omitirem informações sobre a real situação financeira da empresa e manterem suas bonificações pelos resultados alcançados. A fraude que levou ao pedido de concordata da empresa é precedida de uma série de problemas envolvendo questões de pessoal, de marketing, de ética profissional e problemas operacionais, tornando-se objeto de estudo de diversas áreas. Entretanto, neste estudo, serão discutidas as omissões e divulgações fraudulentas promovidas pela gestão da empresa, que provocaram alterações nas demonstrações contábeis da organização e a consequente 63 deturpação na interpretação dos analistas de mercado e investidores sobre a real situação financeira da corporação. O principal problema da empresa era sua dificuldade de competir com os preços oferecidos pelos concorrentes. Em decorrência de uma ineficiente infraestrutura em sua cadeia de suprimentos, a empresa não conseguia alcançar os resultados de seu maior concorrente, o Wal-Mart, conhecido pelo seu sistema de inventário “just-in-time” (HAKIM; KAUFMAN, 2002). A SEC, por ocasião da apuração de fraudes na corporação, denunciou, em processos apartados, o Chief Executive Officer (CEO), o Chief Financial Officer (CFO) e diretores/gerentes de divisões da empresa por manipularem as demonstrações contábeis divulgadas pela organização. Em uma das denúncias, apresentada no dia 30 de agosto de 2005 sob o número 19353, a SEC acusou dois executivos da Kmart que, em conluio com representantes de vendas de um fornecedor, manipularam as demonstrações contábeis da organização reconhecendo, antecipadamente, “subsídios” recebidos em contrato celebrado com a empresa fornecedora, com base em informações falsas prestadas ao departamento de contabilidade da Kmart. Estes valores eram pagos pelos fornecedores para, entre outras coisas, garantia de direitos exclusivos de venda de seus produtos, atividades promocionais e marketing, e a Kmart adotava a política interna de classificá-los como redução do custo das mercadorias vendidas (CMV). Segundo os princípios de contabilidade geralmente aceitos, esses valores devem ser reconhecidos ao longo da vigência do contrato e as demonstrações financeiras que não atendem a tais princípios são consideradas pela SEC como, presumivelmente, enganosas ou imprecisas. Essa era a orientação da Kmart para todas as suas divisões - em 26 de junho de 2000, a empresa emitiu memorando, recomendando que estes “subsídios” só deveriam ser apropriados nos períodos a que se referiam e exemplificou: “se um contrato com concessão de subsídio é assinado hoje, mas é relacionado ao exercício de 2001, nenhum subsídio pode ser apropriado no ano de 2000” (SEC, 2005). Os executivos e funcionários da Kmart trabalhavam sob constante pressão para melhorar a margem bruta de contribuição (MBC) dos produtos vendidos em seus departamentos. Todos os anos, o desempenho destes setores e dos respectivos executivos era avaliado, considerando a MBC como uma das principais medidas de desempenho. Aqueles 64 “subsídios” recebidos dos fornecedores ajudavam muito a melhorar este índice, pois eram considerados redução do custo das mercadorias vendidas (SEC, 2003). Durante o ano de 1997, um executivo de divisão da Kmart negociou um contrato com a EZ Paintr, subdivisão da Newell Robbermaid, onde a Kmart se comprometia a adquirir produtos daquele fornecedor em condições pré-estabelecidas, pelo qual receberia vários abonos ou subsídios. O contrato iniciava sua vigência em 22 de janeiro de 1998 e expirava quando a empresa adquirisse U$ 45 milhões de mercadorias do fornecedor ou em 31 de dezembro de 2001, o que ocorresse antes. No final do ano 2000, o executivo da Kmart iniciou uma negociação com o fornecedor para um aditivo no referido contrato (SEC, 2005). Ao aproximar-se o final do exercício social encerrado em 31 de janeiro de 2001, a referida divisão projetou uma redução nos lucros obtidos no período, resultado que não era esperado e precisava ser revertido. Em 22 de janeiro de 2001, o executivo e a EZ Paintr celebraram um adendo ao contrato original, pelo qual o fornecedor emitiu uma nota de crédito de U$ 2 milhões, intitulada fundo promocional, e a Kmart se comprometeu a efetuar a aquisição de mais U$ 15 milhões de mercadorias dentro da vigência do contrato. Acordaram ainda que, caso a Kmart não cumprisse a cláusula aditiva, o subsídio ou abono fornecido seria reembolsado. Para contabilizar a operação, o executivo apresentou o adendo do contrato e preencheu um formulário para registro na contabilidade da Kmart. Entretanto, indicou que o valor recebido se referia ao período de 01/02/2000 a 30/01/2001, deturpando o período de competência em que deveria ser apropriado. Este fato acarretou o reconhecimento indevido dos subsídios recebidos, provocando uma subavaliação no CMV e o consequente aumento dos resultados daquele período. A figura 7 ilustra o modus operandi da fraude. 65 FIM DO EXERCÍCIO SOCIAL LANÇAMENTO CONTÁBIL DO BENEFÍCIO A SS I CO N A N TU TR R A AD TO O ASSINATURA DO ADENDO VIGÊNCIA CONTRATUAL .0 1 31 .D ez n. 01 31 .Ja n. 01 22 .Ja Informações falsas ao setor de Contabilidade 29 .Ja n. 01 0 01 .F ev .0 22 .Ja n. 98 ............. PERÍODO DE COMPETÊNCIA DO BENEFÍCIO PERÍODO UTILIZADO PARA RECONHECIMENTO DO BENEFÍCIO OPERACIONALIZAÇÃO DA FRAUDE Figura 7: Operacionalização da fraude no caso Kmart Fonte: O autor, 2012. Uma situação semelhante ocorreu em outra divisão da Kmart, cujo caso foi apurado neste mesmo processo. Um funcionário daquela divisão também prestou informações deturpadas ao setor de contabilidade da empresa sobre benefícios recebidos de fornecedores, resultando na redução de cerca de U$ 2,8 milhões nos custos das mercadorias vendidas e no consequente aumento dos resultados daquele período. Os valores do contrato celebrado com o fornecedor deveriam ser apropriados, portanto, durante a vigência do contrato em respeito aos princípios contábeis e às políticas internas da organização. Na carta de responsabilidade da administração, assinada pelo CEO e o CFO, a empresa confirma que as demonstrações contábeis apresentadas ao final daquele trimestre foram elaboradas de acordo com os princípios contábeis e as normas exigidas pela SEC e, na opinião da administração, compreendem todos os lançamentos necessários para a correta apresentação dos resultados. Ocorre que, neste processo, constatou-se que as declarações prestadas no relatório de responsabilidade da Kmart eram falsas e enganosas em pelo menos dois aspectos: (i) o relatório afirma que as demonstrações contábeis da empresa foram preparadas em conformidade com os princípios de contabilidade geralmente aceitos, mas constatou-se que “subsídios” recebidos dos fornecedores foram indevidamente antecipados, com inobservância do princípio da competência; e (ii) a empresa declarou que seus sistemas de controle interno fornecem razoável garantia de que as transações foram executadas de acordo com 66 procedimentos internos estabelecidos. Entretanto, observou-se que os valores recebidos foram apropriados de forma contrária ao estabelecido na política interna da empresa, inclusive no memorando encaminhado às divisões da Kmart (SEC, 2005). Os executivos foram denunciados pela SEC, junto com funcionários de empresas fornecedoras, e acordaram em pagar uma multa de milhares de dólares para suspender o andamento do processo. Em outra denúncia, apresentada pela SEC em 23 de agosto de 2005 e registrada com número 19344, a SEC acusou o CEO e o CFO da Kmart pela omissão de questões importantes sobre a condição financeira da empresa. Eles esconderam que a Kmart havia feito uma compra excessiva de material para o estoque da empresa que comprometera a situação de liquidez da organização. A aquisição exagerada foi um erro administrativo, passível de acontecer em qualquer organização; entretanto, a omissão sobre os reflexos provocados na situação financeira da organização caracterizou uma fraude contra os investidores, que foram privados de informações críticas para a tomada de decisão. Todo ano, entre o início de setembro e o final de outubro, a Kmart fazia a sua reposição de estoque para a temporada de férias. Para tanto contava com uma grande linha de crédito de aproximadamente U$ 1,5 bilhões. As aquisições eram programadas para que a Kmart pudesse pagar seus fornecedores e os bancos, de acordo com as receitas de suas vendas no período de férias (SEC, 2005). Entretanto, no verão de 2001, o Chief Operating Officer (COO) da Kmart, pouco tempo depois de ser promovido ao cargo, fez uma compra exagerada de mercadorias no valor aproximado de U$ 850 milhões, sem a aprovação ou o conhecimento de outros gerentes da empresa. Além do exagero na quantidade, a compra foi feita com muita antecedência quando comparado com anos anteriores (SEC, 2005). Em agosto de 2001, o CEO, o CFO e outros membros da Diretoria tomaram conhecimento sobre o fato e ficaram preocupados com um possível problema de liquidez da empresa, pois os valores poderiam exceder o saldo disponível na linha de crédito da Kmart (SEC, 2005). Mais tarde, a empresa justificou que o excedente de seu inventário se devia a flutuações sazonais e a medidas tomadas para melhorar a posição do estoque geral da organização. A SEC alegou que essa informação foi enganosa pois, na verdade, o acúmulo do estoque foi causado por uma “aquisição irresponsável e unilateral” de um funcionário da empresa (EX-KMART, 2005). 67 Os diretores e gerentes traçaram algumas linhas de ação para solucionar o problema de liquidez, que aparentemente era de U$ 400 milhões. Entre as soluções propostas, havia um plano para redução dos gastos de capitais em U$ 168 milhões e a antecipação de bonificações recebidas de fornecedores no valor de U$ 300 milhões (SEC, 2005). Em setembro de 2001, a administração ficou sabendo que o excedente das compras foi de U$ 850 milhões, mais do dobro do que haviam estimado e, ainda, a antecipação dos valores recebidos dos fornecedores alcançaria apenas U$ 50 milhões, constatando-se que as ações planejadas não iriam resolver o problema de liquidez (SEC, 2005). Na tentativa de solucionar o problema, o CEO e o CFO aprovaram e autorizaram a implementação de um plano para postergar o pagamento a fornecedores da Kmart. Este plano era conhecido entre os gerentes como projeto SID, “slow-it-down”. O tesoureiro da Kmart, responsável pela sua aplicação, selecionava as faturas a serem pagas, sem que as condições fossem discutidas ou aprovadas pelos fornecedores, o que causou sérios problemas de relacionamento entre eles e a Kmart (SEC, 2005). Em setembro e outubro de 2001, o CEO da empresa promoveu uma série de reuniões com o CFO e outros membros da Kmart com objetivo de controlar os valores das contas a pagar e o disponível, e solucionar problemas específicos causados pelo projeto SID. A insatisfação dos fornecedores era grande e, no final de outubro e início de novembro de 2001, um número significativo de empresas parou de fornecer mercadorias a Kmart, dentre elas a Black e Decker, 3M, Newell Rubbemaid, Gillette, Lego e Samsung. Em novembro, algumas lojas da rede já enfrentavam problemas de estoque de produtos comuns na loja, como cigarros, lâmpadas, livros e revistas (SEC, 2005). No último dia do terceiro trimestre de 2001, a Kmart tinha U$ 267 milhões disponível em sua linha de crédito e U$ 570 milhões em faturas vencidas com os seus fornecedores, ou seja, a situação de caixa da empresa era negativa em U$ 300 milhões. No dia 08 de novembro de 2001, o CFO da Kmart se reuniu com o CEO, pessoalmente, informando-o sobre os problemas financeiros enfrentados pela organização, recomendando que a empresa considerasse a possibilidade de um pedido de concordata e que a diretoria discutisse a crise de liquidez e o projeto SID na próxima reunião do conselho de administração. No dia seguinte, o CEO substituiu esse dirigente, nomeando outra pessoa para o cargo (SEC, 2005). Ao mesmo tempo em que o projeto SID era implementado, a Kmart modificava seu sistema de contas a pagar e controle de inventário para gerenciar melhor seus produtos - essa conversão era conhecida internamente como projeto eLMO. Uma informação crítica, extraída da denúncia apresentada pela SEC, é que o CEO e o novo CFO instruíram os funcionários 68 da Kmart a dizer aos fornecedores que a razão para os atrasos no pagamento das faturas era a implementação desse novo sistema. Em resposta a uma pergunta feita por um analista de mercado durante uma conferência, ambos reafirmaram que os atrasos nos pagamentos se deviam a implantação do eLMO, mas, na realidade, sabiam que a verdadeira razão para os atrasos estava no projeto SID (SEC, 2005). Notadamente, as demonstrações contábeis da empresa, da forma como foram apresentadas, impactaram o valor de suas ações e enviesaram a interpretação dos analistas financeiros e investidores, que tinham o direito de obter informações precisas sobre a situação financeira da Kmart, bem como uma descrição fiel da história que estava por trás dos números apresentados. Os problemas financeiros da empresa foram se avolumando e, em 22 de janeiro de 2002, a Kmart pediu concordata. No ano seguinte a empresa se reestruturou e adquiriu a rival Sears Roebuck & Co, passando a denominar-se Sears Holdings Corporation. O CEO e o CFO da Kmart foram denunciados pela SEC por omitirem as reais razões da compra superestimada efetuada pelo Chief Operating Officer (COO) da empresa e o respectivo impacto provocado na situação de liquidez da empresa. O CFO da empresa sofreu punição de suspensão do exercício da profissão e concordou em pagar uma multa de U$ 120 mil para encerrar o processo. O CEO foi condenado, em junho de 2009, a pagar cerca de U$ 10 milhões, em devolução de empréstimo recebido, multa e juros. Em novembro de 2010, celebrou um acordo concordando em pagar U$ 5,5 milhões, compreendendo U$ 2,5 milhões de multa e U$ 3 milhões de devolução de empréstimo que havia recebido da Kmart (STEMPEL, 2010). Os problemas descritos acima já eram suficientes para que a empresa mergulhasse em uma crise financeira. Todavia, essa condição foi potencializada com os ataques terroristas que atingiram os Estados Unidos em setembro de 2001. Uma crise econômica se instalou no país e houve grande retração no consumo, fragilizando ainda mais a situação financeira da empresa, que contribuiu para o seu pedido de concordata. a) A empresa: Sebastian S. Kresge, em 1897, trabalhando como representante de vendas de uma cadeia de lojas de 10 centavos americanos, teve a ideia de abrir seu próprio negócio e, em 1899, fundou sua empresa com U$ 8 mil que havia juntado durante 10 anos de trabalho. Em 1912, a empresa, que iniciou suas atividades com apenas 2 lojas, estava consolidada no mercado com 85 lojas em vários Estados. Com o crescimento da organização, em 1918, a SS 69 Kresge Corporation foi listada na New York Stock Exchange, apresentando grandes resultados nos anos que se sucederam (REFERENCEFORBUSINESS, 2012). Em 1924, a SS Kresge valia aproximadamente U$ 375 milhões, chegando a 597 lojas em funcionamento em 1929. Kresge permaneceu como presidente da empresa até 1925, quando passou a exercer cargo no conselho de administração, onde ficou até seu falecimento, em 1966. Em 1962, a Kresge Corporation fundou sua primeira loja Kmart em Garden City, Michigan, coincidentemente, poucos meses antes do Wal-Mart abrir suas portas, aquele que seria o seu maior concorrente. A década que se seguiu foi promissora para as lojas Kmart que ganharam muito espaço entre os seus concorrentes e, em 1977, a SS Kresge Corporation resolveu mudar sua denominação para Kmart Corporation. As lojas com nome Kresge continuaram em funcionamento sob a administração da Kmart até 1987, quando foram vendidas para McCrory Corporation (BARMASH, 1987). Os anos que se seguem registraram uma mudança na situação financeira e econômica da empresa, inclusive com fechamento de lojas da rede. Ao contrário de seu concorrente WalMart, a empresa fracassou na utilização dos recursos de tecnologia da informação (TI) para gerir sua cadeia de suprimentos, mantendo um alto custo de armazenagem de seus produtos. As dificuldades se sucederam, envolvendo questões de pessoal, de marketing, de ética profissional, além de problemas operacionais (WILLIAMS; SUMNER, 2010). Em 22 de janeiro de 2002, a empresa entrou com pedido de concordata e, em um escândalo parecido com o da Enron, diretores da Kmart passaram a ser acusados de enganar os investidores e analistas de mercado sobre a real condição financeira da corporação. Antes de entrar com pedido de concordata, a Kmart chegou a operar com cerca de 2.100 lojas nos Estados Unidos, empregou cerca de 250.000 trabalhadores, e suas vendas anuais chegaram a ser de aproximadamente US $ 37 bilhões, tornando-se o segundo maior varejista do país (SEC, 2005). Para reestruturar a organização, mais de 300 lojas foram fechadas e cerca de 34 mil funcionários foram demitidos. Em meio aos problemas com a concordata, a ESL Investments, fundo de hedge, adquiriu o controle da empresa que, em maio de 2003, emergiu do processo de recuperação com o nome de Kmart Holdings Corporation, voltando a ter suas ações negociadas na Bolsa Nasdaq a partir de 10 de junho de 2003. Em novembro de 2004, por questões estratégicas, a empresa consolidou sua fusão com a Sears, passando a denominar-se Sears Holdings Corporation. 70 b) A estrutura de governança corporativa: Vários foram os fatores que motivaram o despertar e os avanços da governança no mundo corporativo; entre eles, as transformações pelas quais passou a economia mundial e as enfrentadas pelo sistema capitalista. Esse sistema e o mercado de ações contribuíram muito para o crescimento das corporações, mas desencadearam o movimento de dispersão das ações, gerando uma lacuna entre a propriedade e a gestão nas empresas (ANDRADE; ROSSETTI, 2009). O modelo de governança corporativa americano é orientado para a maximização do retorno do acionista e as informações coletadas neste caso indicam que Kmart era uma empresa de capital disperso, com grande número de acionistas, sendo comandada por uma estrutura de gestão dissociada da propriedade da companhia. A empresa teve suas ações listadas em bolsa de 1918 a 2002, quando, em função do processo de concordata, sua negociação foi suspensa. Em junho de 2003, após emergir do processo de recuperação, suas ações voltaram a ser negociadas na Nasdaq. Os conflitos de agência eram originários da assimetria de informações entre gestores (agente) e proprietários (principal). Em vista da proximidade com a atividade da empresa, os executivos da Kmart detinham informação privilegiada sobre as operações e a situação financeira da corporação, enquanto a capacidade dos acionistas em controlar os atos de gestão da empresa era limitada. Diante dessa separação entre acionistas e gestores, conflitos de interesses passaram a ser observados (conflitos de agência), sendo razoável inferir que os executivos nem sempre administraram a empresa no melhor interesse dos investidores. Tal fato pode ser comprovado pelos atos fraudulentos perpetrados pelos executivos da Kmart, ao omitirem dos acionistas que a empresa havia feito uma compra excessiva de material para o estoque, comprometendo a situação de liquidez da organização; e por manipularem as demonstrações contábeis da empresa reconhecendo indevidamente “subsídios” recebidos de fornecedores. Informações, extraídas de um dos principais provedores de informações sobre o mercado financeiro, apontam que a empresa enfrentou problemas de governança. O CEO da corporação reconheceu erros em sua gestão, não dando a devida atenção para as questões de governança corporativa, inclusive quanto à forma de relacionamento entre ele e o conselho de administração (RAPHAEL; FISK, 2009). Este conselho, principal forma de controle interno sobre as atividades gerenciais, fracassou em sua atribuição de defender os interesses dos acionistas. Como relatado no 71 processo analisado pela SEC, o CEO e o CFO da empresa assinaram carta de responsabilidade pela gestão, confirmando que os sistemas de controle interno da Kmart forneciam razoável garantia de que as transações eram executadas em conformidade com procedimentos estabelecidos. Entretanto, observou-se que os valores recebidos de fornecedores foram apropriados de forma contrária ao estabelecido na política interna da empresa, inclusive no memorando encaminhado aos diversos setores da organização. c) A motivação da fraude: Segundo Cressey (1953 apud ACFE, 2012), um dos fatores que influenciam a prática da ação fraudulenta é a pressão - aspecto motivacional antecedente à execução da ação que constitui a subjetividade da fraude, razão íntima e particular do agente fraudador para a prática do ato. As evidências levantadas no caso da Kmart apontam que esta questão impulsionou os agentes fraudadores a praticarem os atos caracterizadores da fraude. Essa pressão pode surgir de algum fato da vida pessoal do fraudador ou da empresa, geralmente derivada de um problema financeiro. Pode ser originário, por exemplo, de uma ameaça à estabilidade financeira da empresa como: nível elevado de competição do mercado, alteração da taxa de juros, alteração significativa nas estimativas de demanda e novas exigências legais e regulamentares. Trechos da denúncia promovida pela SEC sinalizam que os gestores da Kmart trabalhavam sob pressão “para atender as expectativas de resultados da administração para suas divisões” (SEC, 2005, p.2). Convergindo com estas informações, colheu-se, ainda, evidências na mídia impressa e em trabalhos acadêmicos, indicando que a empresa enfrentava muita dificuldade de competir no mercado, especialmente com o Wal-Mart, em virtude de problemas envolvendo questões de pessoal, de marketing, de ética profissional e problemas operacionais (WILLIAMS; SUMNER, 2010). É normal que, nestas condições, os funcionários da empresa tenham se sentido mais pressionados a alcançarem melhores resultados para a corporação. Considerando as evidências acima sobre as circunstâncias anteriores à pratica da ação fraudulenta, pode-se entender que o fator pressão foi o aspecto motivacional preponderante da fraude. Entretanto, vale ressalvar que esta observação decorre dos fatos relatados, conforme divulgados nas fontes consultadas e, por tratarem de aspectos subjetivos de cada agente, podem não representar o sentimento íntimo do fraudador. 72 d) O método de manipulação contábil: Como já comentado anteriormente, na classificação do método de manipulação contábil utilizado no caso da Kmart, este estudo utilizará a proposta de Wells (2001) e ACFE (2012), segundo os quais a fraude pode ser praticada por meio das seguintes operações: receitas fictícias; fraude no atendimento do regime contábil da competência; ocultação de despesas e passivos; divulgações ou omissões fraudulentas; e avaliações fraudulentas de ativos. Violar o regime da competência é uma das formas das empresas aumentarem seus resultados, seja aumentando suas vendas, seja reduzindo suas despesas (WELLS, 2001). Conforme descrito em processo analisado pela SEC, identificou-se que executivo da empresa utilizou este método para aumentar os resultados apurados no fechamento do exercício, em 31 de janeiro de 2001. Mais especificamente, o executivo preencheu um formulário erradamente, fazendo com que os valores recebidos em contrato celebrado com um fornecedor fossem apropriados, indevidamente, de forma antecipada, acarretando a redução do custo das mercadorias vendidas e o consequente aumento nos resultados daquele período. Outra forma de manipulação nas demonstrações contábeis identificada neste caso foi a omissão de informações relevantes sobre a situação financeira da corporação. Os princípios de contabilidade estabelecem que as demonstrações contábeis devem ser divulgadas com transparência e fidedignidade, contendo todas as informações relevantes sobre as operações da empresa, a fim de evitar que os usuários externos destas informações tenham uma percepção distorcida sobre a condição financeira da organização. Se as informações são materialmente significativas, elas devem ser divulgadas e, segundo a ACFE (2012), a sua omissão constitui fraude nas demonstrações contábeis. A descrição do caso da Kmart revelou que o CEO e o CFO da empresa ocultaram as reais razões de uma aquisição superestimada de mercadorias, efetuada pelo Chief Operating Officer (COO), e o respectivo impacto provocado na situação de liquidez da empresa. Notadamente, estas informações eram importantes para investidores e analistas de mercado e sua omissão deturpou a interpretação que fizeram sobre as demonstrações contábeis divulgadas. Assim, pode-se depreender que a fraude da Kmart foi executada utilizando-se de dois métodos sugeridos por Wells (2001) e ACFE (2012): fraude no atendimento do regime contábil da competência; e omissões fraudulentas sobre fatos relevantes. 73 e) A finalidade do agente fraudador: Segundo Silva et al. (2012), o agente fraudador pode praticar a fraude com a finalidade de: ocultar a real situação da empresa; desviar recursos; melhorar a bonificação dos executivos; ou sonegar tributos. No caso Kmart pode-se identificar que os agentes fraudadores praticaram os atos fraudulentos com os fins de ocultar a real situação da empresa. Em uma das acusações da SEC, constatou-se que a fraude foi praticada por meio do reconhecimento antecipado de “subsídios” para atender às expectativas de resultado da empresa. Na outra denúncia, os agentes fraudadores omitiram as razões de uma compra excessiva de material que comprometeu a condição financeira da organização. Em ambas as situações o fim almejado pelo fraudador foi ocultar a real situação da empresa, seja a sua situação crítica de liquidez, FINALIDADE DO AGENTE FRAUDADOR OCULTAR A REAL SITUAÇÃO DA EMPRESA PRESSÃO OCULTAR A REAL SITUAÇÃO DA EMPRESA 1- OCULTAÇÃO SOBRE FATOS RELEVANTES 2- VIOLAÇÃO AO REGIME DE COMPETÊNCIA Revistas e Jornais OCULTAR A REAL SITUAÇÃO DA EMPRESA 1- OCULTAÇÃO SOBRE FATOS RELEVANTES 2- VIOLAÇÃO AO REGIME DE COMPETÊNCIA Vídeos NI NI NI PRESSÃO ATIVA / PROCESSO DE FUSÃO MOTIVAÇÃO DA FRAUDE 1- OCULTAÇÃO SOBRE FATOS RELEVANTES 2- VIOLAÇÃO AO REGIME DE COMPETÊNCIA PRESSÃO SITUAÇÃO ATUAL DA EMPRESA NATUREZA DO CAPITAL SOCIAL MÉTODO DE MANIPULAÇÃO CONTÁBIL FONTES DE EVIDÊNCIA Justiça ABERTO SETOR VEREJISTA / PRODUTOS DIVERSOS ANO * 2002 KMART EMPRESA seja a previsão de déficit nos resultados reais da corporação. REGISTRO DE ARQUIVOS Órgão regulador / fiscalização DOCUMENTAÇÃO Quadro 8: Síntese do caso Kmart * Ano de publicidade da fraude de acordo com o material consultado. NI – Não identificado O quadro 8 procura sintetizar os aspectos mais relevantes observados na preparação e execução dos atos fraudulentos praticados no caso Kmart, conforme descrito nos tópicos anteriores. 74 3.3 Caso Avestruz Master A fraude praticada nas demonstrações contábeis da empresa Avestruz Master foi reportada neste estudo por meio de informações coletadas na homepage do Ministério Público Federal, em registros de arquivos do processo judicial sobre o caso, em notícias divulgadas na mídia eletrônica, além de trabalhos acadêmicos que investigaram as características deste caso. A fraude compreende atos praticados por executivos da corporação, com o objetivo de omitirem informações sobre a real situação financeira da empresa, bem como desviar recursos da organização. No mês de março de 2004, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) deu início a um procedimento de fiscalização em um grupo comercial constituído de diversas empresas, dentre elas: a Avestruz Master Agro Comercial Importação e Exportação Ltda; o Abatedouro Struthio Gold Importação, Exportação e Comércio Ltda; a Master Promoções; e a Sena Promoções. O propósito da investigação era verificar se o grupo realizava operações de acesso a poupança pública sem autorização da CVM. A Avestruz Master operava com contratos denominados compromisso de compra e venda de avestruzes, onde constava o preço de aquisição das aves, com a garantia de revenda para a própria empresa, algum tempo depois. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), em um dos planos oferecidos em outubro de 2003 constava: “Compra do filhote com 90 dias a R$ 1.680,00 e venda após 90 dias - o filhote estará com 6 meses - a R$ 2.146,70; o lucro é de R$ 466,70. Base em percentuais de 27,78% em noventa dias = a 9,26% ao mês” (BRASIL, 2006, p. 2). Adicionalmente, a empresa prometia repor os animais em caso de perdas, induzindo no investidor uma expectativa de risco próximo de zero (SALGADO, 2010). Naturalmente, a promessa de alta rentabilidade com baixo risco gerou uma corrida de investidores para o negócio. A CVM alertou que o referido contrato era ilícito e da forma como estava sendo oferecido carecia de autorização e registro naquela autarquia, pois tinha característica típica de contrato de investimento coletivo (CIC) com apelo à poupança popular. A empresa passou então a operar com outro tipo de instrumento contratual, denominado Contrato de Parceria na Criação de Avestruzes e, depois, com Cédulas de Produto Rural (CPR) na modalidade financeira. Entretanto, ambos os instrumentos eram inadequados para a operação da empresa, pois a autarquia federal identificou que a captação 75 de recursos continuava apresentando apelo à poupança popular, para aplicação em uma suposta atividade de criação de avestruz, com garantia de rentabilidade prefixada. A oferta de CPRs pela empresa foi caracterizada como atividade de oferta pública de valores mobiliários, e tal procedimento deveria ser submetido a prévio registro na CVM, de acordo com a Lei nº 6.385/76. Adicionalmente, é uma prática que somente pode ser realizada pelas empresas registradas como companhias abertas, o que não era o caso da Avestruz Master (CVM, 2005). Como se sabe, o registro tem por fim exigir a divulgação de informações gerais sobre a empresa, conteúdo fundamental que auxilia a tomada de decisão do investidor sobre a opção de investimento. Tal procedimento possibilita a correta avaliação dos riscos envolvidos na operação, especialmente a capacidade da empresa emitente de cumprir os compromissos assumidos com o investidor (CVM, 2005). Sendo assim, a Comissão de Valores Mobiliários, por meio da deliberação 473/2004, determinou que a empresa suspendesse a oferta destes títulos ao público, com garantia de recompra. Segundo denúncia do MPF, os fatos comprovam que a empresa ultrapassou os limites que distinguem as atividades comerciais de compra e venda, daquelas que caracterizam a negociação de valores mobiliários, especificamente os títulos com características de contrato de investimento coletivo (CIC), de registro obrigatório na CVM (BRASIL, 2006). Restou constatado, ainda, que não havia investimento na atividade de estrutiocultura 4 propagandeada pela empresa. Segundo noticiado pela revista Fato Típico (O DESENROLAR, 2010), a atividade da Avestruz Master não era venda de aves, mas a captação de poupança popular, pela oferta de instrumentos contratuais com promessas de rentabilidade alta. Durante todo o seu tempo de funcionamento, a organização jamais abateu um avestruz. A empresa tentou várias vezes dissimular as operações praticadas para não sujeitá-las a intervenção ou fiscalização da CVM, mas constatou-se, ao final das investigações, que os títulos emitidos pela corporação, independentemente da denominação utilizada, eram contratos de investimento coletivo (CIC). [...] verifica-se que a empresa não tinha interesse em regularizar suas operações, ou seja, interromper a promessa ou a expectativa de rentabilidade dos investidores. Pelo contrário. A Avestruz Master agiu, por intermédio dos denunciados, reiteradamente, de forma contrária ao declarado e assumido perante a CVM, demonstrando má-fé e evidente dolo no comportamento da sua administração e buscando, por diversas ocasiões, dissimular o caráter irregular da forma de captação de recursos de terceiros (BRASIL, 2006, p. 11). 4 A estrutiocultura é a parte da zootecnia (http://www.ceplac.gov.br/radar/semfaz/avestruz.htm). que cuida da criação e reprodução de avestruzes 76 Em síntese, a fraude se iniciava com a oferta de valores mobiliários sem o prévio registro e autorização da CVM. Os recursos, obtidos de forma ilícita pela empresa, não foram utilizados na atividade a que se propunha a empresa, lesando de forma significativa a economia popular e provocando grande indignação na sociedade. A contabilidade como veículo de informação tem o desafio de disponibilizar para seus usuários informações claras e precisas sobre as atividades de gestão da empresa, contribuindo para a melhor tomada de decisão do investidor. Entretanto, no caso em questão, observou-se que as informações sobre a situação financeira da organização não chegavam de forma transparente aos investidores, assim como, não havia nenhum controle sobre a atividade da corporação e sobre sua capacidade econômica, financeira e gerencial. Pela falta de registro na CVM, suas demonstrações contábeis e a forma de administração dos recursos investidos não eram divulgadas para o público em geral, notadamente os investidores (BRASIL, 2006). Para esconder a ilicitude das operações, a Avestruz Master investia massivamente em propaganda e marketing e maquiava suas demonstrações contábeis para omitir informações do público investidor e possibilitar o desvio de recursos da empresa. Com o final das investigações, revelou-se que as manipulações contábeis eram grosseiras e podiam ser reveladas por qualquer auditoria externa. Perícia realizada na contabilidade da organização apurou que, desde o ano de 2004, os bens e direitos da empresa não superavam suas obrigações, revelando uma situação de insolvência iminente da empresa (BRASIL, 2006). Adicionalmente, a empresa não reteve na fonte os rendimentos obtidos pelos investidores no ano de 2004 (PIRES, 2006). O laudo pericial relatou, ainda, que nos últimos meses de 2004, não houve custo de produção de animais e nem registro de venda de aves, não havendo, pois, receita operacional pela comercialização dos avestruzes. Assim, os recursos financeiros recebidos eram decorrentes única e exclusivamente da captação de investimentos de terceiros (BRASIL, 2006), confirmando que a empresa não tinha a estrutiocultura como atividade regular. Para sustentar a viabilidade do negócio e a boa condição financeira da organização, os responsáveis por sua administração fraudaram os resultados da empresa, fazendo transferências formais das contas do passivo para contas de receita, deixando transparecer que a Avestruz Master apresentava bons resultados, quando na realidade apresentava um passivo cada vez maior (BRASIL, 2006). 77 O laudo pericial de exame contábil nº 023/06-SR apontou o seguinte sobre o assunto: Em novembro/04 e dezembro/04, a empresa registrou valores no passivo, na conta Adiantamento de Clientes – CPR e, no mês seguinte, transferiu os valores acumulados até novembro/04 para receita, conta Revenda de Mercadorias – AV. No entanto, não foram identificados registros de baixa em estoque das mercadorias vendidas, como ocorreria, se efetivamente tivesse havido as vendas (BRASIL, 2008, p. 101). A página 426 do livro razão da empresa apresenta, em novembro de 2004, o valor acumulado de R$ 42 milhões em obrigações com terceiros. Em dezembro de 2004, na página 930 do livro razão, o mesmo valor (R$ 42 milhões) foi baixado da conta adiantamento de clientes, sendo registrado, na página 932, como receita de revenda de avestruzes. Ao final do ano, o valor total acumulado em receita de vendas (cerca de R$ 302 milhões) foi transferido para a conta de resultado (BRASIL, 2008). Esses valores transferidos para receita eram, na verdade, obrigações com clientes que deveriam ser quitadas em data futura, no momento do resgate. Houve, assim, uma superavaliação dos resultados no exercício de 2004 e um subdimensionamento do passivo. Adicionalmente, com base nestes lucros fictícios, a empresa distribuiu dividendos aos seus sócios, em dezembro de 2004, no valor de R$ 6,9 milhões. Além disso, constatou-se que, no mesmo ano, retirou-se do caixa da empresa cerca de R$ 103 milhões para a compra de aves, mas tal operação não foi comprovada, conforme extrato do laudo pericial: [...] Alertamos, porém, da ocorrência de uma transferência de recursos financeiros da conta contábil Caixa para Estoque de Mercadorias para Revenda, no valor de R$ 103.950.880,00 indicando uma suposta aquisição de aves. De acordo com o item III.3 – Movimento do Estoque – Avestruzes e seus respectivos subitens, tal aquisição apresentou ser irreal, conseqüentemente, mascarando um possível desfalque de caixa (BRASIL, 2008, p. 102). A contabilidade da Avestruz Master evidenciou que sua atividade era a captação de recursos, de onde se originou quase todos os ativos da corporação e de onde retirou-se recursos para pagamento de despesas de publicidade e para outros fins não especificados (BRASIL, 2010). A nota técnica da perícia aponta erros na escrituração da empresa, pequenos na quantidade, mas significativos em seus efeitos. Segundo denúncia do MPF, os recursos que ingressavam na empresa tinham as seguintes destinações: a- pagamento das aplicações de investidores que venciam (recompra de aves – simples liquidação financeira de contratos ou CPR (s), pois não havia movimento contábil no estoque de aves, notas fiscais emitidas ou pagamento de tributos incidentes); b- despesas operacionais, dentre as quais se sobressai a de publicidade (só com publicidade gastou-se cerca de R$ 4.000.000,00 em 2004); c- pequeníssima parcela dos recursos destinados ao financiamento da atividade de produção de aves; d- fins não esclarecidos, sendo que, em 2004, os recursos desviados sem contabilização adequada situaram-se na faixa de R$ 103.950.888,00 [...] (BRASIL, 2006, p. 14). 78 Adicionalmente, pelos lançamentos contábeis, os peritos identificaram discrepâncias entre o montante apurado de compras de aves e os custos de manutenção da respectiva atividade no ano de 2004, demonstrando uma incompatibilidade nos valores contabilizados com a criação dos avestruzes (BRASIL, 2006). Mais especificamente, na análise do livro diário e dos balanços da empresa, identificou-se um lançamento em novembro daquele ano, registrando uma suposta aquisição de avestruzes pelo valor de R$ 103 milhões, um aumento de mais de 4000% na quantidade de aves registradas contabilmente. Entretanto, ao contrário do que se esperava, os gastos com ração, remédios e empregados aumentaram apenas 250% (BRASIL, 2010). Segundo os peritos, este valor teve destinação diversa da alegada aquisição de avestruz, entendendo-se que os responsáveis pela fraude usaram os recursos para pagar aos investidores que saíam do negócio e para desviar recursos em benefício próprio. Da diferença entre as entradas, oriundas da captação de recursos, e das saídas para pagamentos aos investidores que resgatavam seus títulos, a empresa forjava seus lucros e os denunciados pelo MPF faziam suas retiradas (BRASIL, 2006). Apenas no ano de 2004, a empresa distribuiu para os sócios R$ 6,9 milhões com base nesses lucros fictícios (SANTOS, 2010). O processo judicial apurou que o valor total captado pela empresa superou R$ 1,1 bilhão, enquanto o valor a ser desembolsado para quitar os títulos com os respectivos rendimentos correspondia a mais de R$ 1,6 bilhão. A quantidade de aves comercializadas foi contabilizada em cerca de 613 mil, enquanto as fazendas do grupo dispunham, fisicamente, de apenas 38 mil aves e 17 mil ovos. Segundo a Associação dos Criadores de Avestruzes do Brasil (ACAB), o número de aves existentes no país totalizava aproximadamente 330 mil avestruzes, pouco mais da metade do plantel necessário para entregar aos investidores (O DESENROLAR, 2010). Ou seja, nem considerando todo o plantel nacional de avestruzes, chegaríamos ao número de aves comercializadas pela Avestruz Master. A nova oportunidade de ganhos financeiros foi aproveitada até o exagero, de forma tão próxima à irracionalidade que se transformou naquilo que a imprensa chamou de avestruzmania. Por pelo menos três anos, os investidores – figurões, servidores públicos, agentes políticos e simples poupadores de diversas classes sociais – viveram o devaneio de buscar acumular os fantasiosos rendimentos provenientes de uma aplicação apresentada como sólida e lucrativa (SALGADO, 2010, p. 14) . O artifício utilizado consistia em remunerar investidores antigos com recursos provenientes daqueles que ingressavam no negócio. Assim, os lucros pagos aos investidores 79 que resgatavam seus títulos não eram originários da atividade de estrutiocultura, mas dos aportes de capital de novos investidores. Por se caracterizar como um negócio sustentado por um número crescente de investidores, com esperança de ganhos irreais nas condições normais de mercado, inevitavelmente, chegaria o dia em que a maior parte dos investidores veria suas economias se perderem em um esquema inviável economicamente. Enquanto a entrada de capital foi maior que a saída, a remuneração dos que saiam estava garantida. Contudo, quando a retirada superou o ingresso de recursos o problema foi revelado. Segundo matéria publicada na revista Fato Típico (O DESENROLAR, 2010), estima-se que mais de 40 mil pessoas foram lesadas - 30 mil só no Estado de Goiás, com investimentos individuais que variavam de R$ 10 mil a R$ 200 mil. OPERACIONALIZAÇÃO DA FRAUDE INVESTIMENTO CENÁRIO REAL CENÁRIO FICTÍCIO SEM RENTABILIDADE PROMESSA DE ALTA RENTABILIDADE ATIVIDADE ESTRUTIOCULTURA SEM LUCRO INVESTIMENTO SIMULAÇÃO DE ATIVIDADE ESTRUTIOCULTURA REMUNERAÇÃO DE INVESTIDORES LUCRO REMUNERAÇÃO DE INVESTIDORES hiper-realidade Quadro 9: Operacionalização da fraude no caso Avestruz Master Fonte: O autor, 2012. O quadro 9 ilustra o desenvolvimento da fraude sustentada pela esperança dos investidores em obterem elevados retornos em seus investimentos. Com as propagandas sobre o lucro garantido, bem acima dos padrões normais de mercado, criou-se um cenário fictício ideal para o surgimento de uma hiper-realidade, onde as informações são trabalhadas para “estimular pessoas a investirem num negócio que, na realidade, era um simulacro” (CANECA; RIBEIRO FILHO; ALBUQUERQUE, 2007, p.11). Na verdade, não havia lucro 80 na atividade e o investimento inicial daqueles que ingressavam no negócio remunerava os investidores que saíam e os sócios. Outra inconsistência contábil identificada foi o valor das aves do estoque da empresa. A perícia apurou que o preço médio do avestruz em estoque girava em torno de R$ 10 mil, quando o preço de mercado era de cerca de R$ 1 mil. Notadamente, este fato gerou uma superavaliação do ativo e não foi divulgado para o investidor (BRASIL, 2010, p. 57). Essa sistemática fraudulenta é conhecida no mercado como ciranda, corrente ou pirâmide, por tratar-se de negócio baseado em um número crescente de investidores com expectativas de ganhos irreais (O DESENROLAR, 2010). Os responsáveis foram denunciados pelo MPF por induzirem e manterem os investidores em erro quanto à situação financeira da Avestruz Master, sonegando-lhes informações ou prestando-as falsamente. Para atrair mais investidores, a empresa investia em propaganda e marketing: apenas no ano de 2004, os gastos com publicidade chegaram a R$ 4 milhões (O DESENROLAR, 2010). Algumas declarações do sócio majoritário da empresa sugerem que havia um grande esforço para demonstrar a viabilidade econômica do empreendimento, embora procurasse ocultar informações sobre os passivos da empresa e seus problemas de liquidez (CANECA; RIBEIRO FILHO; ALBUQUERQUE, 2007). A atuação do MPF no caso se deu bem antes da crise se instalar na empresa, com a assinatura de um termo de ajustamento de conduta (TAC) em 04 de novembro de 2005, para que a empresa se adequasse às exigências da CVM, protegendo os consumidores (O DESENROLAR, 2010). Entretanto, mesmo após o acordo, a empresa continuou atuando ilicitamente. O episódio teve característica bem similar ao caso Boi Gordo, empresa que faliu em 2004, lesando milhares de pessoas. Apesar de pequenas diferenças, na essência o negócio era mesmo: captação de poupança popular. Outro caso semelhante ocorreu nos EUA, em 2008, conhecido como a pirâmide Madoff; a grande diferença é que o responsável, pouco tempo depois de constatada a fraude, foi condenado a 150 anos de reclusão (SALGADO, 2010). Nesse sentido, fato que merece ser destacado, no caso Avestruz Master, é o lapso temporal entre a denúncia do MPF e a sentença - a denúncia foi apresentada em 06 de março de 2006 e a sentença em primeira instância sobreveio em janeiro de 2010, quase quatro anos depois, revelando uma lacuna temporal que expõe a ineficiência do processo penal no país pois, a dilatação desse tempo beneficia o infrator, gerando na sociedade um grande sentimento de impunidade. 81 Figura 8: Linha histórica do caso Avestruz Master Fonte: O Desenrolar (2010, p. 8-9) A linha histórica do caso, ilustrada na figura 8, descreve as principais ações do MPF. 82 A sentença, em primeira instância, proferida pela justiça federal no Estado de Goiás, condenou os agentes fraudadores por crimes contra a economia popular, o sistema financeiro nacional e as relações de consumo. a) A empresa: A Avestruz Master foi um grupo composto de cinco empresas de natureza familiar, constituídas como sociedades por cotas de responsabilidade limitada, todas elas em nomes de membros da mesma família. A atividade do grupo consistia na negociação de avestruzes por meio de títulos ou contratos que tinham características de contrato de investimento coletivo (CIC), sujeitos à fiscalização da CVM. O investidor comprava a ave, que ficava sob os cuidados da empresa e, em data previamente estabelecida, recebia uma remuneração prefixada pela venda da avestruz. O grupo captou mais de R$ 1 bilhão de milhares de investidores que acreditaram nas promessas de alta rentabilidade, em um negócio aparentemente sólido. b) A estrutura de governança corporativa: A Avestruz Master era empresa constituída como sociedade por cotas de responsabilidade limitada distribuídas entre membros da mesma família, caracterizando-se como uma sociedade de capital fechado. Segundo Andrade e Rossetti (2009), o modelo de governança corporativa no Brasil é caracterizado por uma estrutura de propriedade altamente concentrada, com controle predominantemente familiar. No caso investigado, os proprietários da Avestruz Master sempre estiveram presentes na gestão da organização, podendo-se dizer que a propriedade esteve sobreposta a sua gestão e que os conflitos de agência se davam entre os próprios cotistas. Nesse sentido, a denúncia do MPF indica que a crise que se instalou sobre a organização foi precedida de intrigas familiares em decorrência da disputa pelo poder e controle da corporação, combinada com a má administração da empresa (BRASIL, 2006). A governança corporativa da Avestruz Master compreende o sistema por meio do qual foi dirigida, incluindo a relação existente entre proprietários e administradores. Na empresa, o cotista majoritário era também o diretor presidente. Quanto à atuação dos outros cotistas na corporação, pode-se perceber que eram membros da mesma família e também exerciam funções de alto escalão na organização, com 83 funções bem delimitadas na estrutura organizacional, apurando-se que tinham pleno conhecimento dos atos fraudulentos praticados. O sócio majoritário da empresa detinha 80% das cotas sociais, pelo que comandava e controlava a empresa - era a pessoa que aparecia nas propagandas, representando e falando pelo grupo. Caneca, Ribeiro Filho e Albuquerque (2007) apontam que o fato da empresa nunca ter divulgado seus demonstrativos contábeis, sugere que as normas de governança corporativa de transparência, accountability e equidade não eram observadas pela organização. c) A motivação da fraude: Segundo Cressey (1953 apud ACFE, 2012), um dos fatores que influenciam a prática da ação fraudulenta é a racionalização – assim como a pressão e a oportunidade, é um aspecto motivacional antecedente à execução da ação e constitui a razão íntima e particular do agente fraudador para a prática do ato. Como já comentado, embora os três fatores juntos caracterizem o triângulo da fraude, geralmente um ou outro fator apresenta-se com maior preponderância sobre os demais, constituindo-se no fator motivacional fundamental ou mais significativo para a fraude. As informações coletadas no caso da Avestruz Master evidenciam que a racionalização foi a questão fundamental que impulsionou os agentes fraudadores a praticarem os atos caracterizadores da fraude. Este fator do triângulo da fraude representa a forma como os fraudadores procuram justificar a ação praticada. Geralmente, consideram-se inocentes e justificam seu ato fraudulento como aceitável ou não reprovável. Trechos da denúncia promovida pelo MPF sinalizam que os gestores da Avestruz Master, mesmo depois da deliberação 473/2004 da CVM e do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) celebrado com o MPF, continuaram praticando os atos ilícitos já descritos. O sócio majoritário da empresa, em entrevista prestada ao Diário da Manhã em 19/12/2005, apesar de saber das dificuldades operacionais do negócio, continuava pregando sua viabilidade. “Ademais, sabendo que os investidores não compraram aves, mas sim investiram em aves, asseverou, com uma gritante tranqüilidade e cinismo, seu intuito de entregar as avestruzes” (BRASIL, 2006, p. 32). Nem em todo o país havia um plantel para atender a todos os investidores. 84 Os atos perpetrados demonstram uma postura clara de enfrentamento ou indiferença com as exigências legais. Mesmo após a deliberação da CVM determinando a cessação da oferta dos contratos ao público, a empresa persistiu na ilegalidade. A prática dos atos descritos torna claro o sentimento, por Jerson Maciel, não de desprezo à lei, mas de superioridade à lei, pouco se dando o mínimo recato de que se espera de uma pessoa responsável pela lesão de centenas de cidadãos. Não demonstrou qualquer preocupação com a lei ou com futura punição. Ao contrário. As suas atitudes deixam luzente a intenção de não se curvar à lei e pouco se inquietar com ela (BRASIL, 2006, p. 36). Considerando as evidências acima sobre as circunstâncias anteriores à pratica da ação fraudulenta, pode-se entender que o fator racionalização foi o aspecto motivacional preponderante da fraude. Entretanto, como relatado nos casos investigados anteriormente, esta observação decorre dos fatos descritos, de acordo com as fontes consultadas e, por tratarem de aspectos subjetivos de cada agente, podem não representar o sentimento íntimo do fraudador. d) O método de manipulação contábil: Na classificação do método de manipulação contábil utilizado no caso da Avestruz Master, este estudo utilizou a proposta de Wells (2001) e ACFE (2012), segundo os quais a fraude pode ser praticada por meio de receitas fictícias; fraude no atendimento do regime contábil da competência; ocultação de despesas e passivos; divulgações ou omissões fraudulentas; e avaliações fraudulentas de ativos. O caso descreve que foram utilizados múltiplos métodos para maquiar as demonstrações contábeis da empresa. Primeiramente, ao transferir valores do passivo da empresa para receitas de vendas, os responsáveis pela fraude maquiaram as demonstrações contábeis da empresa por meio de duas operações: receitas fictícias e ocultação de passivos. Posteriormente, por meio da avaliação fraudulenta do estoque de avestruzes, deram causa a uma superavaliação dos ativos da empresa. E, por fim, os agentes fraudadores omitiram dos investidores informações relevantes sobre a condição financeira da empresa, especialmente as obrigações com investidores que saíam do negócio, passivo que aumentava a cada dia. Assim, pode-se depreender que a fraude da Avestruz Master foi executada por meio de quatro métodos sugeridos por Wells (2001) e ACFE (2012): receitas fictícias; ocultação de passivos; omissões fraudulentas; e avaliações fraudulentas de ativos. 85 e) A finalidade do agente fraudador: Silva et al. (2012), adotando uma tipologia própria, comentam que o agente fraudador pode praticar a fraude com a finalidade de ocultar a real situação da empresa, desviar recursos, melhorar a bonificação dos executivos ou sonegar tributos. No caso Avestruz Master pode-se identificar que os agentes fraudadores manipularam as demonstrações contábeis com os fins de ocultar a real situação da empresa e desviar recursos da corporação em detrimento dos investidores. Em um primeiro momento, pode-se identificar que o negócio era economicamente inviável e teria seu fim, mais cedo ou mais tarde. Para sustentar o negócio, os agentes fraudadores precisavam ocultar a condição financeira da empresa, que apresentava passivos crescentes. Assim, transferiram os valores de suas obrigações para receitas e superavaliaram ativos da empresa, procurando demonstrar solidez no negócio. Contabilmente essa manobra é possível, mas constitui uma prática de fácil detecção com o passar do tempo, pois os credores buscarão seus direitos, despertando a atenção de órgãos reguladores, de fiscalização e de proteção ao crédito. As manobras contábeis da empresa, além de mascarar a situação de empresa contribuíram para uma outra finalidade dos agentes fraudadores: o desvio de recursos do caixa da empresa. Para exemplificar, apenas no ano de 2004, com base em lucros fictícios da empresa, foram distribuídos dividendos aos seus sócios no valor de R$ 6,9 milhões. Procurou-se, assim, na investigação deste caso, descrever os aspectos mais relevantes na preparação e execução da ação fraudulenta, preocupando-se, durante a coleta dos dados, com a organização, documentação e análise das informações divulgadas. O quadro abaixo sintetiza essas observações. MOTIVAÇÃO DA FRAUDE FINALIDADE DO AGENTE FRAUDADOR RACIONALIZAÇÃO 1 - OCULTAR A REAL SITUAÇÃO DA EMPRESA 2- DESVIAR RECURSOS Órgão regulador/ fiscalização RACIONALIZAÇÃO 1 - OCULTAR A REAL SITUAÇÃO DA EMPRESA 2- DESVIAR RECURSOS 1- RECEITAS FICTÍCIAS 2- OCULTAÇÃO DE PASSIVOS 3- OCULTAÇÃO SOBRE FATOS RELEVANTES 4- AVALIAÇÃO FRAUDULENTA DE ATIVOS Revistas e Jornais RACIONALIZAÇÃO DESVIAR RECURSOS SITUAÇÃO ATUAL DA EMPRESA NATUREZA DO CAPITAL SOCIAL SETOR ANO * Justiça 1- RECEITAS FICTÍCIAS 2- OCULTAÇÃO DE PASSIVOS 3- OCULTAÇÃO SOBRE FATOS RELEVANTES 4- AVALIAÇÃO FRAUDULENTA DE ATIVOS 1- OCULTAÇÃO DE PASSIVOS 2- OCULTAÇÃO SOBRE FATOS RELEVANTES Vídeos NI NI NI FONTES DE EVIDÊNCIA INATIVA FECHADO AGROPECUÁRIO REGISTRO DE ARQUIVOS 2005 AVESTRUZ MASTER EMPRESA 86 DOCUMENTAÇÃO MÉTODO DE MANIPULAÇÃO CONTÁBIL Quadro 10: Síntese do caso Avestruz Master * Ano de publicidade da fraude de acordo com o material consultado. NI – Não identificado Por fim, seguindo a estrutura do protocolo do estudo de caso, o quadro 13, constante do apêndice B, consolida as evidências mais importantes levantadas nos três casos investigados. 87 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa teve como objetivo comparar as características das fraudes praticadas pelas empresas Daslu, Kmart e Avestruz Master, especialmente, no que se refere às motivações e finalidades da ação fraudulenta, aos métodos de manipulação contábil utilizados e à estrutura de governança das empresas. A pesquisa é de natureza qualitativa e analisa o fenômeno social da fraude na perspectiva da teoria dos escândalos corporativos (COFFEE JR., 2005), segundo a qual, as diferenças observadas entre os sistemas de governança corporativa das organizações permitem explicar as diferenças na natureza das fraudes e na sua autoria. A estratégia de investigação adotada foi o estudo de casos múltiplos proposto por Yin (2010), e a seleção dos casos foi feita com base em pesquisas anteriores sobre o tema. No referencial teórico foi discutido, entre outros aspectos, que: i) a fraude nas demonstrações contábeis tangencia o gerenciamento de resultados em seu aspecto legal, sendo muito tênue o limite que distingue os atos ilegais, das ações discricionárias praticadas por conveniência e oportunidade do gestor; ii) a fraude pode ser “contra” ou “a favor” da empresa e esta última, objeto deste estudo, embora seja de menor incidência, provoca prejuízos muito maiores; iii) a manipulação de receitas pelo agente fraudador é uma forma de atrair novos investidores, atender às expectativas dos analistas de mercado e aumentar as bonificações dos executivos; e iv) estas bonificações podem ser extremamente tentadoras para a prática da fraude, pois incentivam o cumprimento de metas a todo o custo. Quanto aos aspectos motivacionais da ação, previstos na teoria do triângulo da fraude (CRESSEY, 1953 apud ACFE, 2012), pode-se inferir que o agente fraudador, por pressão, racionalização ou oportunidade, executa a ação fraudulenta, escolhendo o método de manipulação contábil que lhe permita alcançar a finalidade desejada. Esta maquiagem nas demonstrações contábeis pode ser praticada com o objetivo de ocultar a real situação da empresa, desviar recursos da organização, melhorar a bonificação dos executivos ou sonegar tributos, e pode ser operacionalizada por meio dos seguintes métodos: i) receitas fictícias; ii) fraude no atendimento do regime contábil da competência; iii) ocultação de despesas e passivos; iv) divulgações ou omissões fraudulentas; e v) avaliações fraudulentas de ativos. O processo de seleção dos casos revelou, preliminarmente, uma grande diferença no grau de punibilidade dos responsáveis pelas fraudes. Nos Estados Unidos, de uma forma geral, o agente fraudador foi condenado pela justiça ou concordou em pagar uma 88 compensação financeira de milhares de dólares para suspender o processo. No Brasil, por outro lado, embora os processos busquem identificar e penalizar os fraudadores, poucos foram os casos onde a pena foi aplicada. Esta observação é corroborada pelos achados de Sancovshi e Matos (2003), segundo os quais a manipulação contábil nos EUA, por comprometer a confiança do mercado de ações, é pouco tolerada e os responsáveis são processados pelos investidores, recebendo severas sanções da justiça e dos agentes reguladores daquele país. Pelos resultados da pesquisa, há indícios de que no Brasil - comparado com os Estados Unidos - existe pouca disponibilidade de informações sistematizadas sobre fraudes, em sites de órgãos reguladores ou de fiscalização, fato que denota a maior preocupação do mercado norte-americano com a proteção do acionista minoritário. O quadro abaixo, atendendo ao objetivo geral da pesquisa, compara as principais evidências levantadas nos três casos. País / Casos Evidências Autoria Agentes envolvidos Empresas envolvidas Governança corporativa (concentração do capital) Motivação Caso Daslu Proprietários Mais de um Mais de uma BRASIL Caso Avestruz Master Proprietários Mais de um Mais de uma Sistema concentrado Oportunidade Sistema concentrado Sistema disperso Racionalização Ocultar a real situação da empresa 2 Desviar recursos 1 Receitas fictícias 2 Ocultação de passivos 3 Ocultação de fatos relevantes 4 Avaliação fraudulenta de ativo Pressão Ocultar a real situação da empresa Racionalização Pressão 1 Finalidade (objetivo) Método de manipulação contábil Teoria do triângulo da fraude Teoria dos escândalos corporativos Sonegação de tributos Ocultação de despesa EUA Caso Kmart Gestores e Executivos Mais de um Mais de uma Oportunidade Apropriação de benefícios Apropriação de benefícios privados de controle privados de controle 1 Violação ao regime de competência contábil 2 Ocultação de fatos relevantes Manipulação dos resultados (resultados inflacionados) Quadro 11: Evidências levantadas nos casos investigados Da mesma forma, os objetivos específicos de identificar a motivação da fraude, bem como investigar a finalidade e o método de manipulação contábil utilizado, foram alcançados. O primeiro caso analisado envolveu a prática de atos fraudulentos, perpetrados por sócios da Daslu e a ação foi motivada, fundamentalmente, pela oportunidade percebida para a sua execução, tendo como objetivo sonegar tributos, por meio da simulação de operações que ocultavam despesas da empresa com impostos. No caso Avestruz Master, pode-se perceber que a racionalização foi o principal componente motivacional da fraude e que a manipulação contábil objetivou ocultar a situação financeira do empreendimento e desviar recursos da corporação, ações operacionalizadas por meio de receitas fictícias, avaliações fraudulentas de ativos, ocultação de passivos e omissões sobre fatos relevantes. Nestes dois casos nacionais, pode-se perceber que os interesses pessoais estiveram sobrepostos aos interesses 89 organizacionais, diferentemente do que se observou no caso norte-americano. O caso Kmart revelou que as ações foram motivadas pela pressão que sofriam os executivos para apresentarem bons resultados. Assim, com o propósito de ocultarem a situação crítica de liquidez e a previsão de déficit nos resultados da empresa, os agentes fraudaram as demonstrações contábeis da corporação por meio da violação ao regime de competência contábil e da ocultação de informações relevantes sobre a empresa. O terceiro objetivo específico da pesquisa consistiu em examinar o sistema de governança das organizações, cujas estruturas se apresentaram de formas distintas. A Daslu e a Avestruz Master eram empresas nacionais de controle eminentemente familiar, onde a propriedade e a gestão se confundiam, enquanto a governança corporativa da Kmart era caracterizada pelo sistema disperso de propriedade, aspecto distintivo do mercado norteamericano, sendo administrada por um modelo de gestão dissociado de sua propriedade. Este contexto permite justificar as diferenças observadas na autoria das fraudes - no caso Kmart, os gestores e executivos da empresa, atuando em nome dos acionistas, foram os protagonistas da história, enquanto nos casos Daslu e Avestruz Master, onde a propriedade era concentrada, os proprietários desempenharam o papel correspondente. Assim, os resultados indicam que a estrutura de governança influiu na determinação da autoria e da natureza das fraudes. Há evidências, portanto, da aplicação das teorias do triângulo da fraude (TTF) e dos escândalos corporativos (TEC) nos casos investigados. As evidências da TTF estão na identificação dos componentes motivacionais da fraude, enquanto as evidências da TEC estão na diferença na natureza e autoria das fraudes praticadas no Brasil e nos Estados Unidos. Embora os casos Avestruz Master e Kmart tenham sido executados com finalidades semelhantes, há grande diferença no que concerne à motivação para a fraude. No caso Kmart, havia grande pressão para apresentação de resultados positivos que justificassem e suportassem as previsões otimistas de analistas financeiros e investidores. Assim, a ocultação sobre a situação econômico-financeira da Kmart foi uma solução encontrada pelos fraudadores para atenderem às expectativas do mercado. No caso da Avestruz Master, por outro lado, a ocultação visava perpetuar o esquema fraudulento da pirâmide e garantir o desvio de recursos, caracterizando-se pela apropriação de benefícios privados de controle. O estudo também apontou que a ineficiência dos sistemas de controle contribuiu muito para a consumação das fraudes. No caso Kmart, por exemplo, o conselho de administração, principal instrumento de controle interno, fracassou em sua atribuição de defender os interesses dos acionistas. Embora o CEO e o CFO tenham confirmado que os sistemas de controle forneciam razoável garantia de que as transações estavam em conformidade com 90 procedimentos exigidos, observou-se que subsídios recebidos de fornecedores foram apropriados de forma contrária à política interna da empresa, além de violarem o regime de competência contábil. No caso Avestruz Master, a fragilidade do controle exercido pelos órgãos reguladores e de fiscalização permitiu que o esquema fraudulento se desenvolvesse, utilizando vários métodos de manipulação contábil por um longo período de tempo, até que fosse identificado. O caso Daslu, por sua vez, revelou uma precariedade da fiscalização aduaneira, que possibilitou a sonegação dos tributos devidos na importação, durante vários anos. A fraude, nesse caso, só foi identificada porque faturas originais da operação comercial foram encontradas junto das mercadorias. Observou-se, ainda, que os três casos investigados contaram com a participação de mais de uma pessoa, exercendo cargo executivo nas respectivas corporações e, em todos eles, foram utilizadas outras empresas para viabilizar os esquemas fraudulentos, fornecendo uma falsa aparência de legalidade nas manobras contábeis. Adicionalmente, identificou-se que no caso norte-americano a fraude estava inserida, expressamente, em suas demonstrações contábeis, já que o objetivo da empresa de capital pulverizado era demonstrar melhores resultados. No Brasil, por outro lado, a preferência pela omissão de informações sobre bons resultados prevaleceu e, uma possível explicação para esta constatação, é que sobre estes valores incidiriam tributos adicionais, sendo razoável depreender que, em um mercado com alta carga tributária, o gestor pode estar predisposto a manipular os registros contábeis para reduzir o valor de sua despesa com impostos. Pode-se concluir que as fraudes estavam diretamente relacionadas à ineficiência dos sistemas de controle das empresas e dos órgãos reguladores ou de fiscalização. Ademais, considerando que as corporações brasileiras possuíam sistema de governança corporativa concentrado, bem similar ao de empresas europeias, as diferenças observadas nas fraudes podem ser explicadas pela teoria dos escândalos corporativos (TEC), defendida por Coffee Jr. (2005) – a fraude norte-americana teve por natureza a prática de atos dos executivos da empresa que importassem no aumento dos resultados, enquanto as fraudes nacionais, perpetradas pelos proprietários, foram caracterizadas por benefícios privados de controle. O estudo expõe um conflito a ser enfrentado para reduzir a tentação ou incentivo para o cometimento da fraude: se por um lado os gestores e executivos, ao gerir os recursos da empresa, devem buscar a maximização dos resultados, respeitando princípios éticos e morais; por outro, os acionistas ou proprietários esperam maiores ganhos e rentabilidade no negócio. Nesse sentido, as demonstrações contábeis desempenham um papel fundamental para dissuadir ações fraudulentas, pois descrevem qualitativa e quantitativamente a condição 91 econômico-financeira da empresa, constituindo-se no instrumento de comunicação com seus interessados, em que manifesta seu desempenho financeiro e operacional. Limitações Como qualquer outro estudo, esta pesquisa apresenta limitações que devem ser consideradas. O número reduzido de casos e a forma não aleatória de seleção faz com que os resultados e os ensinamentos obtidos não possam ser generalizados, uma vez que estão afetos a realidades de cada caso. Além disso, o estudo abordou apenas informações disponíveis sobre as fraudes, restringindo-se, portanto, aos aspectos revelados nas fontes consultadas. A relevância do estudo decorre da análise empírica da TEC e da TTF, e sua contribuição pode ser destacada pela discussão dos aspectos caracterizadores das fraudes investigadas, que podem auxiliar no combate e prevenção de ações de mesma espécie. A pesquisa promove, ainda, uma reflexão sobre a existência de um procedimento sistemático nestes casos, possibilitando a confirmação de pressupostos teóricos já discutidos na literatura, ou o desenvolvimento de modelos conceituais que expliquem as ações fraudulentas. Recomendações Especificamente quanto ao caso Daslu, como recomendação para previnir fatos similares, sugere-se a adoção de normas complementares que obriguem o remetente estrangeiro a encaminhar, antes do desembaraço, cópia da fatura das mercadorias à autoridade fazendária deste país, dando conhecimento, à fiscalização aduaneira, dos valores e destinatários das importações. Notadamente, este procedimento poderia inibir, pela técnica da dissuasão, ações de mesma natureza, já que aumentaria o risco de detecção. Por fim, sugere-se, em pesquisas futuras, a utilização de outros critérios de classificação e análise de fraudes nas demonstrações contábeis, que possam confirmar os resultados obtidos neste estudo ou, ainda, a adoção dos critérios aqui estabelecidos para investigação de outros casos, por meio da técnica da replicação. É possível, também, que as diferenças observadas nas fraudes tenham alguma relação com aspectos culturais das respectivas regiões nos casos investigados, sendo relevante uma investigação desta natureza. 92 REFERÊNCIAS ACFE. Fraud Examiners Manual. Texas: Association of Certified Fraud Examiners, 2012. ALBRECHT, W. S. et al. Fraud Examination. 3. ed. South-Western: Mason, 2009. ANDRADE, A.; ROSSETTI, J. P. Governança Corporativa: fundamentos, desenvolvimento e tendências. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2009. 584 p. ARNOLD, B., LANGE, P. Enron: an examination of agency problems. Critical Perspectives on Accounting, Frankston, v. 15, n. 6-7, p. 751–765, 2004. ASSING, I., ALBERTON, L., TESCH, J. M. O Comportamento das Fraudes nas Empresas Brasileiras. Revista FAE, Curitiba, v. 11, n. 2, p. 143-152, 2008. BARMASH, I. A Kresge – McCrory Reunion. NYTIMES, New York, 04 abr. 1987. Disponível em:<http://www.nytimes.com/1987/04/04/business/a-kresge-mccroryreunion.html>. Acesso em: 21 nov. 2012. 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Dissertação (Mestrado em Ciências Contábeis), Programa Multiinstitucional e Inter-Regional de Pós-Graduação em Ciências Contábeis da UnB, UFPB, UFPE e UFRN, 2005. 97 APÊNDICE A – Protocolo do estudo de casos múltiplos I – Visão geral do projeto Um dos grandes problemas da atualidade, a fraude corporativa tem recebido muita atenção dos governos, empresários e indivíduos, pois representa um problema significativo para a economia dos países. Os Estados Unidos e o Brasil vivenciaram, nos últimos anos, escândalos envolvendo grandes empresas como Enron, WorldCom e o Banco PanAmericano, que se utilizaram de artifícios para maquiar suas demonstrações contábeis. Notícias desta natureza, em especial quando envolvem empresas de capital aberto e instituições financeiras, atraem a atenção da mídia e provocam indignação pública, pois as demonstrações contábeis das empresas influenciam as decisões de investidores, empresários e agentes públicos e sua manipulação pode trazer prejuízos para toda sociedade. Nesse contexto, o estudo sobre o modus operandi da fraude, sua motivação, sua finalidade e os efeitos que provoca na contabilidade das empresas pode contribuir para sugestões de medidas que auxiliem na sua detecção e dissuasão, na medida em que dissecam os atos fraudulentos, permitindo seu exame pormenorizado. O referencial teórico que sustenta o estudo é a teoria dos escândalos corporativos (TEC) proposta por Coffee Jr. (2005). O autor comparou as experiências dos EUA e da Europa com a crise no mercado de ações em 2000 - naquela ocasião, a queda no mercado de ações na Europa não se deu da mesma forma como nos EUA, nem esteve associado com o mesmo tipo de irregularidade financeira e contábil que impactou a economia dos EUA. Coffee Jr. (2005) argumenta que as diferenças observadas entre os sistemas de governança corporativa das organizações permitem explicar as diferenças nas características das fraudes. O objetivo desta pesquisa é comparar as características das fraudes praticadas por meio de manipulações nas demonstrações contábeis das empresas Daslu, Kmart e Avestruz Master. Basicamente, o investigador espera identificar, organizar e documentar a resposta para o seguinte problema de pesquisa: qual a relação entre as fraudes praticadas por estas empresas à luz da teoria dos escândalos corporativos? 98 II – Coleta de dados Para coleta de dados, foram utilizadas duas fontes de evidência: o registro de arquivos e a documentação (YIN, 2010). A primeira fonte de dados, registros de arquivos, são informações disponíveis nos bancos de dados de órgãos públicos, órgãos reguladores e de fiscalização ou em processos judiciais sobre os casos de fraude investigados. A documentação, por sua vez, se constitui de recortes de notícias e outros artigos divulgados em mídia impressa ou eletrônica sobre os casos. Assim foi conduzida a coleta de dados: primeiramente, procurou-se, em registros de arquivos da justiça e dos órgãos reguladores ou de fiscalização, informações sobre as fraudes praticadas. Num segundo momento, buscou-se, nas mídias impressa e eletrônica, notícias sobre os casos investigados a fim de averiguar, por meio da triangulação, a convergência ou não dos dados coletados. A medida que se efetuava a investigação em uma fonte de evidência, os achados foram tabulados no quadro 12, sintetizando as observações da fraude investigada. Após todas as informações da primeira fonte serem pesquisadas e reportadas, passou-se a investigar o caso na segunda fonte de evidência. Para orientar o investigador nesse processo, foram formuladas as seguintes questões específicas, que o auxiliaram a manter o foco sobre os pontos mais importantes do estudo: Q1- qual dos componentes motivacionais da teoria do triângulo da fraude (TTF) foi determinante para a prática do ato fraudulento? Q2- qual a finalidade do agente fraudador ao perpetrar a ação fraudulenta? Q3- qual o método de manipulação contábil utilizado pelo agente fraudador na execução do ato ilícito? Q4- qual a estrutura de governança corporativa da empresa envolvida na fraude? Por outro lado, além de se manter focado nos aspectos mais relevantes da pesquisa, o investigador deve se preocupar com a organização, documentação e análise dos dados coletados. Para facilitar esse processo, a coleta das informações seguiu a estrutura esquemática do quadro abaixo. FINALIDADE DO AGENTE FRAUDADOR FONTES DE EVIDÊNCIA MOTIVAÇÃO DA FRAUDE SITUAÇÃO ATUAL DA EMPRESA NATUREZA DO CAPITAL SOCIAL SETOR ANO * EMPRESA 99 MÉTODO DE MANIPULAÇÃO CONTÁBIL EMPRESA A Justiça REGISTRO DE ARQUIVOS - - - - Órgão regulador / fiscalização Revistas e Jornais DOCUMENTAÇÃO Vídeos EMPRESA B Justiça REGISTRO DE ARQUIVOS - - - - Órgão regulador / fiscalização Revistas e Jornais DOCUMENTAÇÃO Vídeos Justiça ..... REGISTRO DE ARQUIVOS - - - - Órgão regulador / fiscalização DOCUMENTAÇÃO Revistas e Jornais Vídeos Quadro 12: Estrutura da coleta de dados * Ano de publicidade da fraude de acordo com o material consultado. III – Análise dos dados Yin (2010) sugere quatro estratégias gerais e cinco técnicas específicas para analisar estudos de caso. Entre as opções do autor, este estudo adotou como estratégia geral seguir uma proposição teórica, a teoria dos escândalos corporativos (TEC), e como técnica específica de análise, a síntese cruzada de dados. Contar com proposições teóricas é a estratégia preferida para se analisar as evidências de estudos de caso, pois, geralmente, os objetivos da pesquisa estão baseados nestas proposições que ajudam a “focar a atenção em determinados dados e ignorar outros” (YIN, 2010, p. 159). Como técnica analítica adotou-se a síntese cruzada de dados, por ser a mais recomendada em estudos de casos múltiplos, onde “a análise é provavelmente mais fácil e as 100 constatações são mais robustas” (YIN, 2010, p. 184). Os achados foram reportados ao longo dos estudos individuais e suas descobertas integraram o relatório final, comparando as constatações de cada caso investigado. IV – Relatório do estudo de caso O relatório do estudo de casos múltiplos seguiu a seguinte estrutura: i) a empresa: contempla informações sobre a natureza jurídica da instituição, seu setor de atividade, a natureza de seu capital social e os produtos ou serviços comercializados; ii) a estrutura de governança da empresa; descreve o sistema por meio do qual a empresa era dirigida e monitorada no momento da fraude, envolvendo o relacionamento entre proprietários; iii) a motivação da fraude: descreve o fator motivacional do triângulo da fraude mais predominante no caso investigado. Ou seja, indica qual aspecto antecedente da fraude foi mais decisivo ou mais contribuiu para que o agente fraudador manipulasse as demonstrações contábeis da empresa; iv) a finalidade do agente fraudador: descreve o fim desejado pelo agente fraudador, segundo a classificação proposta por Silva et al. (2012); e v) o método utilizado na manipulação contábil; descreve qual(is), dentre os métodos sugeridos por Wells (2001) e ACFE (2012), foram utilizados pelo agente fraudador para a execução da ação fraudulenta. 101 FINALIDADE DO AGENTE FRAUDADOR MOTIVAÇÃO DA FRAUDE SITUAÇÃO ATUAL DA EMPRESA REGISTRO DE ARQUIVOS ATIVA NATUREZA DO CAPITAL SOCIAL FECHADO FONTES DE EVIDÊNCIA MÉTODO DE MANIPULAÇÃO CONTÁBIL Justiça Oport. Soneg. Trib. Ocultação de despesa Órgão regulador / fiscalização Oport. Soneg. Trib. Ocultação de despesa Revistas e Jornais NI Soneg. Trib. Ocultação de despesa Vídeos Oport. Soneg. Trib. Ocultação de despesa Justiça Press. Ocult. Press. Ocult. Press. Ocult. NI NI DOCUMENTAÇÃO ATIVA / PROCESSO DE FUSÃO 1 ABERTO SETOR VAREJISTA / MODA VEREJISTA / PRODUTOS DIVERSOS ANO * 2005 2002 KMART DASLU EMPRESA APÊNDICE B – Síntese dos casos REGISTRO DE ARQUIVOS Órgão regulador / fiscalização Revistas e Jornais 2 1 2 1 2 Ocult. fatos relev. Violar reg. comp. Ocult. fatos relev. Violar reg. comp. Ocult. fatos relev. Violar reg. comp. DOCUMENTAÇÃO Vídeos NI 1 Rec, fictícias Ocult. 2 Ocult. passivos Racion 2 Desv. rec 3 Ocult. fatos relev. 4 Fraude aval. ativo 1 Rec, fictícias 1 Ocult. 2 Ocult. passivos Racion 2 Desv. rec 3 Ocult. fatos relev. 4 Fraude aval. ativo 1 Rec, fictícias 2 Ocult. passivos Racion Desv. rec 3 Ocult. fatos relev. 4 Fraude aval. ativo 1 INATIVA REGISTRO DE ARQUIVOS FECHADO AGROPECUÁRIO 2005 AVESTRUZ MASTER Justiça DOCUMENTAÇÃO Órgão regulador / fiscalização Revistas e Jornais Vídeos NI NI NI Quadro 13: Síntese dos casos * Ano de publicidade da fraude de acordo com afonte consultada. NI = Não identificado; Oport. = Oportunidade; Press. = Pressão; Racion. = Racionalização; Soneg. Trib. = Sonegar Tributos; Ocult. = Ocultar a real situação da empresa; Desv. rec. = Desviar recursos; Ocult. fatos relev. = Ocultação sobre fatos relevantes; Violar reg. comp. = Violação ao regime de competência; Rec. fictícias = Receitas fictícias; Ocult. passivos = Ocultação de passivos; e Fraude aval. ativo = Avaliação fraudulenta de ativo.