PDF Final6MB - Marco Antônio Caldeira Neves
Transcrição
PDF Final6MB - Marco Antônio Caldeira Neves
Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Música A Música da Folia de Reis na Comunidade Quilombola Agreste do Norte de Minas Gerais Marco Antônio Caldeira Neves João Pessoa Abril / 2010 Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Música A Música da Folia de Reis na Comunidade Quilombola Agreste do Norte de Minas Gerais Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da Paraíba – UFPB como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Música, área de concentração em Etnomusicologia. Marco Antônio Caldeira Neves Orientador: Profa. Dra. Eurides de Souza Santos João Pessoa Abril / 2010 Dedico este trabalho ao meu filho, Marco Caldeira Sampaio Neves, minha fonte maior de inspiração, pelo apoio e amor, e a todos da comunidade quilombola Agreste, pelo respeito, carinho e atenção... AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente ao Seu Lero, mestre da folia de Reis da comunidade Agreste, e toda sua família, que me receberam com carinho e atenção, permitindo a minha convivência durante as pesquisas de campo. A todos os foliões participantes da Folia de Reis; Seu Tone, João Ferreira da Silva, Seu Ernesto, Bastião, José Pedroso e Carlim Pedroso, meus sinceros agradecimentos pelas valiosas contribuições que deram e que permitiram que este trabalho fosse realizado. Agradeço também a seu Dema e família, pela acolhida sempre prestativa; a Zé Nunes, um dos foliões mais antigos; e Dona Cleuza, que como interlocutores me forneceram dados essenciais para minha compreensão do rico universo cultural da comunidade. À diretora e professores da Escola Estadual Versol de Oliveira, única escola da comunidade, na qual pude realizar oficinas de música. Enfim a todos os habitantes de Agreste, que me receberam sempre com muito carinho. Agradeço ao grupo de estudos Negros do Norte de Minas: cultura, identidade e educação étnica em uma comunidade quilombola, do qual fui integrante e representante do curso de Artes/Música da Universidade Estadual de Montes Claros. A coordenadora do Projeto Prof. Maria Helena de Souza Ide, aos colegas Profa. Cláudia Luz de Oliveira, Profa. Mônica Maria Teixeira Amorim, Profa. Maria Railma Alves, Prof. Luciano Cândido e Sarmento e o Prof. Clovis Zimmerman. As estagiárias Andréia e Ana Paula, que trabalham com muito afinco no Projeto. Entre as instituições que me apoiaram direta e indiretamente, exercendo papel fundamental para viabilizar meus estudos, agradeço principalmente à Universidade Federal da Paraíba, UFPB, pela oportunidade de cursar o mestrado e aprimorar os meus conhecimentos e a minha formação musical; a FAPEMIG, Fundação de amparo à Pesquisa de Minas Gerais, que apóia o Projeto Negros do Norte de Minas; à Universidade Estadual de Montes Claros, UNIMONTES, onde leciono no curso de Artes/Música; ao Conservatório Estadual de Música Lorenzo Fernandez, que contribuiu imensamente para meu desenvolvimento como docente. Ao longo da realização do trabalho, diversas pessoas contribuíram significativamente, dando apoio e incentivo às minhas buscas, e me ajudando a concretizar o desenvolvimento adequado da pesquisa em seus diferentes níveis. Destaco o nome do Prof. João Batista de Almeida Costa, sub-coordenador do Projeto Negros do Norte de Minas, que muito contribuiu para o desenvolvimento dos estudos sobre a temática das comunidades quilombolas norte mineiras. Durante o mestrado muitos professores auxiliaram a minha imersão no campo da etnomusicologia. Portanto agradeço de maneira especial à Professora e Orientadora Eurides de Souza Santos, que esteve sempre presente, acompanhando a pesquisa e analisando o trabalho, demonstrando sua responsabilidade diante do compromisso com o processo de orientação. Agradeço também de forma especial ao Prof. Luis Ricardo Silva Queiroz, com quem pude discutir experiências e aprendizados, contribuindo para o aprimoramento dos meus conhecimentos em etnomusicologia e diretamente para o resultado do trabalho. É importante mencionar também a participação e o apoio dos demais professores do PPGMUS da UFPB; Vanildo Mousinho Marinho, Guiomar Carvalho, Adriana Fernadez, Alice Lumi, Maurílio José A. Rafael e Carlos Sandroni, estendendo meus sinceros agradecimentos a Didier Guigue e José Henrique Martins, respectivamente coordenador e vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Música da UFPB, assim como a Izilda de Fátima da R. Carvalho, secretária do Departamento do Mestrado, que sempre me tratou com atenção e respeito. Agradeço aos colegas de turma pelo companheirismo assim como os colegas de apartamento Geraldo de Alencar Durães Filho, Giann Ribeiro Mendes, Mario André W. Oliveira, Elder Pereira Alves e Fábio Henrique Ribeiro, que durante todo este período dividiram comigo as angústias, dúvidas e discussões acerca dos conhecimentos musicais. A Ana Luisa pela paciência, carinho, companheirismo e apoio. De forma muito especial agradeço também aos meus Pais José das Neves Correia e Luiza Caldeira Neves, por tudo que me proporcionaram e a toda minha família pelo apoio. Ao meu Filho Marco Caldeira Sampaio Neves, pelo amor e apoio, sendo minha fonte de inspiração para seguir em frente. Finalmente agradeço a Deus pela oportunidade de poder cumprir mais uma etapa importante neste processo de crescimento intelectual e emocional e por ter a Música como grande parceira na minha vida. RESUMO A cultura africana teve forte impacto nas definições culturais identitárias brasileiras, sendo que, entre as várias formas de manifestações do universo afro-descendente existentes no país, encontramos nas comunidades quilombolas uma das mais importantes expressões. No Brasil, existem comunidades quilombolas vivendo em pelo menos dezenove Estados, entre os quais Minas Gerais, que foi um dos que possuíram maior população negra escrava do país. Na região norte mineira, condições ambientais do vale do rio Verde Grande foram propícias à fixação de africanos e de seus descendentes, constituindo assim uma região com formação de várias comunidades quilombolas. Dentro desse universo cultural, discuto neste trabalho sobre a música da comunidade Agreste, localizada no Norte de Minas, objetivando apresentar os principais aspectos que constituem a música da Folia de Reis. Essa manifestação, que contém traços lusos e africanos e reverencia a presença dos três Reis Magos após o nascimento do Menino Jesus, está presente em grande parte das comunidades quilombolas dessa região. Constitui-se como uma tradição religiosa e cultural em que os foliões fazem suas louvações com músicas, rezas e entoando cânticos com muita demonstração de fé. Para realização da pesquisa, elaborei uma abordagem etnomusicológica da Folia de Reis da comunidade, tendo como suporte metodológico e instrumento de coleta de dados amplo estudo bibliográfico, pesquisa de campo, observação participante, realização de entrevistas, registros em áudio, fotos e vídeo. Para o processo de análise dos dados, foram utilizadas ferramentas condizentes com o campo estudado, como a constituição do referencial teórico, que foi fundamental para a interpretação e análise dos dados; edição das gravações de áudio e de vídeo; seleção das fotografias; realização de transcrições textuais dos relatos e depoimentos orais obtidos a partir das entrevistas; descrição analítica dos aspectos gerais da música dos foliões, enfocando os elementos definidores das estruturas no que se refere às suas características organológicas, rítmicas, melódicas e vocais; e finalmente a descrição e análise etnográfica como também histórica e estrutural da manifestação. A partir do trabalho, foi possível concluir que a manifestação tradicional da Folia de Reis representa uma forte expressão cultural da comunidade, na qual a religiosidade cristã, fundada no catolicismo popular e mesclada com práticas de matriz africana, dá forma a esse diversificado e complexo universo. Foi possível concluir também que este universo quilombola carece de pesquisas que possam demonstrar as particularidades históricas, sociais, identitárias e culturais, além de uma maior atenção do poder público e reconhecimento de seus direitos territoriais e culturais. ABSTRACT The African culture had a strong impact on the Brazilian cultural definitions of identity. Being that among the different forms of manifestation of the African descent universe existing in the country, we can find in the quilombola‟s communities one of the most important expressions. In Brazil there are quilombola‟s communities living in at least nineteen states, among them Minas Gerais, that was one of the states that had the highest black slavery population of the country. In the north region of Minas Gerais, environment conditions of the Verde Grande River‟s valley were tendentious to the African fixation and also to its descendants, forming a region with various quilombolas communities. Within this cultural universe, I discuss in this work about the Agreste community‟s music, located in the north of Minas, with the objective to comprehend the main structural and sociocultural aspects of the manifestation of Folia de Reis. This manifestation, that has Lusitanian and African traces and reverence the presence of the Three Kings after Jesus‟ birth, is still present in a big part of the quilombola‟s communities of the region. It‟s consisted as a religion and cultural tradition in which the Foliões do their praises with songs, prays, singing songs with a strong faith demonstration. For the research realization, I made an ethnomusicological approach of Folia de Reis of this community, having as a methodological support and collecting data a wide bibliographic study, fieldwork, participating observation, interviews, audio recording, pictures and video. For the process of data analysis, it were used tools related with the studied field, like the constitution of the theory referential, that was basic for the interpretation and analysis of the data, audio and video recording edition, selection of pictures, realization of textual transcriptions of the oral accounts and testimonials given in the interviews, analytic description of the general aspects of the Foliões‟ songs, focusing in the defining elements of the structures referring to the organologic, rhythmic, melodic and vocal characteristics, and finally the description and ethnographic analysis as well as historic and structural of the manifestation. With the work, it was possible to conclude that the traditional manifestation of the Folia de Reis, represent a strong cultural expression, in which the Christian religiosity, based on the popular Catholicism and mixed with African sources practices give form to this different and complex universe. It was also possible to conclude that this quilombola‟s universe needs researches that can demonstrate the historical, social, identitaries and cultural particularities, besides a better attention of the public government and acknowledgment of its territorial and cultural rights. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Capítulo 1 Figura 1 – Equipe do Projeto Negros do Norte de Minas. Pesquisa de campo em Agreste. ................................................................................................................. 22 Figura 2 – Oficina de Percussão realizada com os alunos e professores da Escola Municipal Versol de Oliveira. ............................................................................... 23 Figura 3 – Observação Participante. Eu tocando Caixa de Folia com Seu Lero, o Mestre da Folia de reis em Agreste. ...................................................................... 26 Figura 4 – As ruas da comunidade. . ....................................................................................... 28 Figura 5 – A ponte sobre o rio Verde Grande. Fonte de lazer para os moradores de agreste. .................................................................................................................. 31 Figura 6 – Moinho artesanal da farinha de mandioca. Casa de Seu João e Dona Ana.. ........ 32 Figura 7 – Um morador tocando violão na porta de sua casa e o Bar Esquema 3....... ........... 32 Capítulo 2 Figura 1 - Municípios com maior número de comunidades quilombolas ............................... 54 Figura 2 - Localização das comunidades quilombolas de Minas Gerais ................................. 54 Figura 3 - Localização das comunidades quilombolas segundo as regiões geográficas. Minas Gerais. 2007 ............................................................................................... 55 Figura 4 – Municípios com comunidades quilombolas: mesorregião do Norte de Minas ................................................................................................................... 60 Figura 5 – Mapa da localização estadual de Agreste ...............................................................65 Figura 6 – Escola Municipal Versol de Oliveira Lima ........................................................... 66 Figura 7 – O Cemitério de Agreste ......................................................................................... 66 Figura 8 – Croqui de Agreste e fazendas vizinhas ................................................................. 67 Figura 9 – Croqui de Agreste: casas e moradores.....................................................................67 Figura 10 – Lista de moradores e localidades...........................................................................68 Capítulo 3 Figura 1 - A casa de Seu Lero. Local onde é realizada a Folia de Reis. ................................. 78 Figura 1 – O Oratório .............................................................................................................. 80 Figura 3 - Sala da casa de seu Lero, onde é montado o Oratório para realização da Folia. ......................................................................................................................................... 80 Figura 4 – Ônibus que faz o trajeto de São João da Ponte a Agreste. ..................................... 83 Figura 5 – Estrutura espacial da Folia de Agreste. ................................................................... 84 Figura 6 – O lanche servido pela filha e esposa de Seu Lero durante a Folia. ......................... 85 Figura 7 – Afinação dos instrumentos durante o intervalo ....................................................... 86 Figura 8 – Os foliões se dirigindo a Igreja onde foi cantado o canto a Nossa Senhora Aparecida. ............................................................................................................... 86 Figura 9 – Esquema do trajeto dos foliões. Saem da casa, cantam na Igreja e retornam a casa para continuação da Folia. ............................................................ 87 Capítulo 4 Figura 1 – Os instrumentos musicais da Folia de reis d Agreste: três Violas, uma Rabeca, dois Pandeiros e uma Caixa de Folia ....................................................... 98 Figura 2 – A Rabeca usada pelos foliões em Agreste. ............................................................. 98 Figura 3 – Forma de tocar: apoiando a Rabeca abaixo do ombro ............................................ 99 Figura 4 – As Violas da Folia de Reis. ................................................................................... 100 Figura 5 – A Caixa de Folia e a forma como é tocada. .......................................................... 101 Figura 6 – Os Pandeiros artesanais da Folia de agreste .......................................................... 102 Figura 7 – José Pedroso tocando o Pandeiro. ......................................................................... 103 Figura 8 – O Canto de Saudação. ........................................................................................... 106 Figura 9 – Legendas para escrita da caixa e Pandeiro. Serve para todo o repertório. ........... 108 Figura 10 – Canto a Nossa Senhora Aparecida ...................................................................... 109 Figura 11 – Canto a São Sebastião..........................................................................................112 Figura 12 – Lundu. ................................................................................................................. 116 Figura 13 – O padrão rítmico do Pandeiro. ............................................................................ 118 Figura 14 – O Guaiano. .......................................................................................................... 119 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 15 CAPÍTULO 1 ................................................................................................................ 19 Aspectos conceituais e metodológicos da pesquisa na Comunidade Quilombola Agreste .................................................................................................. 19 Projeto Negros do Norte de Minas: o ponto de partida ................................... 20 A Pesquisa de Campo: característica básica da pesquisa etnomusicológica ............................................................................................................ 23 Revelando o campo de Agreste: os primeiros contatos ............................... 28 Etnografia da Performance Musical .................................................................. 34 Descrições Metodológicas da Pesquisa ................................................................... 35 O universo da pesquisa ........................................................................................ 35 Instrumentos de coleta de dados ....................................................................... 36 Pesquisa Bibliográfica ......................................................................................... 36 Pesquisa Documental ............................................................................................ 36 Observação Participante ....................................................................................... 37 Entrevistas .............................................................................................................. 37 Registros em Áudio ............................................................................................... 39 Registros em vídeo ................................................................................................ 39 Registros Fotográficos .......................................................................................... 40 Instrumentos de organização e análise dos dados ............................................ 40 Referencial teórico ................................................................................................ 40 Transcrições das entrevistas ................................................................................ 41 Edição de vídeos e seleção das fotografias .................................................... 41 As transcrições musicais ..................................................................................... 42 Realização da Pesquisa e apresentação dos resultados .................................... 42 CAPÍTULO 2 ................................................................................................................. 44 Comunidades Quilombolas: um cenário de identidades afro-descendentes no contexto nacional ........................................................ 44 Os Africanos no Brasil: contribuição e resistência............................................... 45 Quilombo: aspectos conceituais ............................................................................. 47 Minas Gerais e sua constituição quilombola .................................................... 51 Quilombos em Minas Gerais: situação atual .................................................... 53 Panorama da distribuição populacional quilombola em Minas Gerais ....................................................................................................................... 53 Aspectos do modo de vida ................................................................................. 55 Saneamento ............................................................................................................ 55 Abastecimento de energia elétrica e comunicação ....................................... 56 Educação ................................................................................................................. 56 Titulação ................................................................................................................. 57 Conflitos e tensões ............................................................................................... 58 Cultura e religiosidade ........................................................................................ 58 Comunidades quilombolas do Norte de Minas: constituição e características .............................................................................................................. 59 A comunidade quilombola Agreste: formação e características básicas ............................................................................................................................. 64 Processo de formação .......................................................................................... 69 Processo de reconhecimento da comunidade ................................................ 70 CAPÍTULO 3 ................................................................................................................ 72 A Folia de reis: a crença, a reza e a festa ....................................................... 72 O ritual em Agreste ......................................................................................................... 77 O contexto sociocultural da representação da Folia de Reis..........................................................................................................................................89 Agreste no “Tempo Antigo” e no “Tempo Atual”: condições de vida............................................................................................................................ 90 Educação .................................................................................................................. 93 Religiosidade .......................................................................................................... 94 CAPÍTULO 4 ................................................................................................................ 96 Dimensões estruturais da Música na Folia de Reis de agreste.........96 Os instrumentos musicais e suas funções na constituição sonora da Folia de Reis....................................................................................................... 97 Cordofones .............................................................................................................. 98 A Rabeca .................................................................................................................. 98 As Violas................................................................................................................ 100 Membranofones.................................................................................................... 101 Caixa de Folia ....................................................................................................... 101 O Pandeiro ............................................................................................................. 102 O Repertório: análise ................................................................................................. 103 Canto de Saudação: transcrição ...................................................................... 106 Canto de Saudação: letra .................................................................................. 108 Canto a Nossa Senhora Aparecida: transcrição ........................................... 109 Canto a Nossa Senhora Aparecida: letra ...................................................... 110 Canto a São Sebastião: transcrição ................................................................ 112 Canto a São Sebastião: letra ............................................................................ 114 Lundu: transcrição ............................................................................................... 116 Lundu: letra .......................................................................................................... 117 Guaiano: transcrição ........................................................................................... 119 Guaiano: letra ...................................................................................................... 126 A identidade da Folia de Reis: confluência dos elementos...........................127 CONCLUSÃO ............................................................................................................. 131 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 133 ANEXOS ........................................................................................................................ 142 Letras dos cantos transcritos pelo filho do Mestre da Folia de reis de agreste ........................................................................................................................... 142 Canto a São Sebastião .............................................................................................. 142 Canto a Nossa Senhora Aparecida ...................................................................... 144 Entrevistas realizadas durante a pesquisa de campo na Comunidade Quilombola Agreste .................................................................................................. 145 Relatório do PNNM. A escolha da Comunidade Agreste ............................ 155 Comunidades quilombolas catalogadas em Minas Gerais até 2007 ........ 160 Decreto n 4.887, de 20 de Novembro de 2003 .................................................. 168 Procedimento de certificação de Comunidades Quilombolas..................... 173 CD – Arquivo único contendo registros em Vídeo e Áudio da Fola de Reis de Agreste................................................................................................ 174 15 INTRODUÇÃO As comunidades remanescentes quilombolas, também conhecidas como “Quilombolas” ou “Terras de Pretos”, possuem uma significante influência da cultura afrodescendente, cultura essa moldada pela contribuição de várias etnias africanas que aqui aportaram no processo de diáspora durante o período de escravidão. No entanto, as discussões acerca da temática quilombola no Brasil ainda são incipientes, pois só a partir dos anos de 1990 passaram a ser tratadas com atenção e debatidas no contexto social, principalmente após a publicação do Texto da Constituição Federal de 1988, que ao instituir o Artigo 68 do seu Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), traz a essas comunidades o seu direito territorial e cultural. Nesse vasto contexto cultural quilombola brasileiro, o estado de Minas Gerais se destaca, tendo em vista que foi um estado que recebeu uma grande quantidade de escravos e consequentemente contém uma gama significativa de comunidades quilombolas que mantêm uma variedade de expressões musicais e religiosas. Entre as várias regiões do estado, a norte mineira é a que possui um maior número de comunidades quilombolas. Nessa região, condições ambientais do Vale do rio Verde Grande, situado em território mineiro e baiano, foram propícias à fixação de africanos e de seus descendentes, constituindo assim uma região com formação de várias comunidades quilombolas, entre elas a comunidade Agreste. A comunidade está localizada no interior do vale do rio Verde Grande, que corta a região norte mineira, no sentido sul/norte, desde Montes Claros até a divisa com a Bahia. É um povoado do município de São João da Ponte/MG e encontra-se situado na divisa entre o município a que pertence e o município de Capitão Enéas, à margem direita do rio Verde Grande, a uma distância de aproximadamente cento e trinta quilômetros de Montes Claros e quinhentos e setenta quilômetros da capital mineira, Belo Horizonte. Como outras comunidades quilombolas da região, Agreste abarca uma diversidade cultural que se mantém em suas manifestações musicais, rituais de dança e nos festejos religiosos. Ampliar o conhecimento sobre essa diversidade cultural, através de uma abordagem etnomusicológica, objetivando observar e registrar o que se faz musicalmente, assim como investigar os aspectos socioculturais vividos, o ethos, o comportamento, requer conhecer a extensão da realidade geográfica, histórica e estética dessas manifestações. 16 Para Merriam (1964), a música é um produto do comportamento humano e possui estrutura, contudo sua estrutura não pode ter existência própria se separada do comportamento de quem a produz. Partindo dessa perspectiva, aprender o significado dessas músicas, ou seja, compreender porque se faz o que se faz musicalmente, são pontos essenciais nesta pesquisa. Entre as manifestações culturais que acontecem em Agreste, estão a festa de Nossa Senhora Aparecida, as Festas Juninas e a Folia de Reis. Essa última foi selecionada para análise, tendo em vista sua função social e religiosa, contribuindo para a construção da identidade e para o sentimento de pertença, utilidade e reconhecimento nas pessoas da comunidade. De acordo com Brandão (1985), a Folia de Reis é uma festa popular, organizada por leigos, e que foi trazida ao Brasil pelos Jesuítas e introduzida pela igreja católica como parte da liturgia para catequização indígena e africana para o controle simbólico da ordem social. A tradição da Folia de Reis teria chegado ao Brasil por intermédio dos portugueses no período da colonização, uma vez que essa manifestação cultural era realizada na Península Ibérica, sendo comum a doação e recebimento de presentes a partir da entoação de cantos e danças nas residências. A Folia de Reis teria surgido no Brasil no século XVI, por meio dos Jesuítas, como crença divina para catequizar os índios e posteriormente os negros escravos, sendo, então, composta pelas manifestações culturais de diversas etnias e povos. Mesmo com variações regionais, seja quanto ao estilo, ao ritmo e ao som, a Folia de Reis mantém a mesma crença e devoção ao Menino Jesus e aos Três Reis Magos. Considerando essas ponderações, este trabalho tem como objetivo apresentar os aspectos diversos que constituem a música da Folia de Reis da comunidade quilombola Agreste, enfocando os diversos elementos que constituem este fenômeno musical. O universo da pesquisa foi constituído pelos habitantes da comunidade, considerando mais especificamente os músicos participantes da Folia de Reis: o mestre e os foliões. Para uma compreensão desses vários aspectos referentes à música da Folia de Reis de Agreste, a estruturação do trabalho foi sistematizada em quatro capítulos, sendo que cada um deles compreende um aspecto específico da pesquisa. Essa sistematização proporcionou a discussão em separado de cada parte, sendo fundamental para a caracterização do trabalho, possibilitando assim chegar a conclusões significativas acerca do tema proposto. O capítulo 1 apresenta as descrições e reflexões em torno dos procedimentos metodológicos desenvolvidos para a pesquisa, os instrumentos de coleta e uma detalhada descrição dos processos de análise e sistematização dos dados, justificando as escolhas que 17 subsidiaram cada uma das etapas do trabalho e apresentação dos resultados da Pesquisa. Apresento ainda uma discussão acerca da pesquisa de campo e suas implicações, como minha inserção no campo e os desdobramentos desta. Apresento também, uma reflexão sobre a etnografia da performance musical e sua importância na busca da compreensão do fenômeno musical. O capítulo 2 contempla uma discussão acerca da formação das comunidades quilombolas, um cenário de identidades afro-descendentes no contexto nacional, no qual faço um breve relato histórico da chegada dos africanos no Brasil e sua contribuição para a formação cultural brasileira. Foram abordados também os aspectos conceituais sobre quilombolas, assim como a constituição dessas comunidades em Minas Gerais, mais especificamente na região Norte. Finalizo este capítulo historicizando a comunidade Agreste, discutindo sobre sua formação e o processo de reconhecimento. O capítulo 3 apresenta uma discussão teórica sobre as questões conceituais referentes à Folia de Reis, assim como uma descrição do ritual na comunidade, demonstrando os vários aspectos que caracterizam essa manifestação. Traço também, um panorama das dimensões socioculturais dessa manifestação em Agreste, no qual foram abordados o contexto social da representação da Folia, o modo de vida das pessoas, trabalho, educação e religiosidade. Interrelacionar o acontecimento musical dessa manifestação com dimensões mais amplas do contexto, buscando compreender o significado e a importância da Folia para os participantes, foi um ponto essencial para uma compreensão mais aprofundada dos aspectos socioculturais do fenômeno musical. No capítulo 4, foram apresentadas as descrições analíticas dos aspectos gerais da música da Folia de Reis de Agreste, enfocando os elementos definidores das estruturas no que se referem às características organológicas, rítmicas, melódicas e vocais. Os aspectos estruturais foram examinados minuciosamente e analisados considerando os elementos definidores da identidade musical que caracteriza a performance do foliões. Aqui, foram apresentadas as transcrições musicais juntamente com as análises harmônicas, melódicas e rítmicas, utilizando uma abordagem que focou a inter-relação entre música e dança, música e elementos plástico-visuais, música como forma de entretenimento, música como fator de afirmação social e música como expressão da religiosidade. Discuto também sobre Identidade Cultural e Musical no contexto da comunidade. De acordo com a estruturação deste trabalho e com base nas discussões realizadas e elaboradas de maneira lógica e sistemática em cada um desses quatro capítulos, foi possível apresentar os principais resultados da pesquisa, possibilitando compreender os valores e 18 significados particulares que constituem a manifestação, proporcionando um aprofundamento nesse universo cultural. Assim, o trabalho contempla as principais características históricas, socioculturais e estruturais da manifestação musical da Folia de Reis na comunidade quilombola Agreste. 19 CAPÍTULO 1 Aspectos conceituais e metodológicos da pesquisa na Comunidade Quilombola Agreste A fim de compreender as bases do fenômeno musical que caracterizam a Folia de Reis na comunidade Agreste, estruturei uma pesquisa que pudesse, com base nos preceitos da etnomusicologia, propiciar uma visão ampla da música nesse contexto. Haja vista a complexidade do fenômeno musical, as pesquisas em etnomusicologia na atualidade têm exigido dos pesquisadores na área, metodologias cada vez mais abrangentes, que permitam ao etnomusicólogo compreender, por múltiplas perspectivas, a natureza musical do fenômeno que estuda. Estudos recentes da etnomusicologia têm revelado aspectos diversos da complexidade dos procedimentos metodológicos com os quais os pesquisadores lidam nos trabalhos, evidenciando que, para uma compreensão da música enquanto fenômeno cultural, o etnomusicólogo busca construir soluções aplicáveis aos conflitos surgidos do confronto entre os conhecimentos teóricos e práticos característicos da área. Na pesquisa etnomusicológica, o pesquisador deve estar atento ao decidir sobre as questões que nortearão as definições relevantes para a pesquisa, buscando as ferramentas necessárias para alcançar os objetivos propostos e definindo as bases epistemológicas e metodológicas que darão suporte à mesma. Dessa forma, a escolha e definição de uma metodologia de pesquisa que contemple investigação sistemática, coerência entre os objetivos e o referencial teórico, assim como o comprometimento com a realidade pesquisada, são pontos fundamentais nas definições metodológicas do trabalho. Tomando por base que a etnomusicologia é o resultado dos encontros entre as ciências humanas, no caso a antropologia e a música, permitindo perspectivas disciplinares constituintes de ambas, como afirma Menezes Bastos (2004), e sendo a pesquisa de campo fundamental para os estudos investigativos nessas áreas, considero que o trabalho de campo com observação participante foram pontos nevrálgicos para realização desta pesquisa. Assim, esse momento da pesquisa possibilitou a busca da compreensão das expressões musicais da Folia de Reis na comunidade. A manifestação tradicional da Folia de Reis foi selecionada para análise tendo em vista sua função social e religiosa, contribuindo para a construção da identidade e para o sentimento de pertença, utilidade e reconhecimento nas pessoas. Este estudo teve como referências teóricas, autores que apresentaram caminhos e perspectivas consistentes na área da etnomusicologia e que fundamentaram meus estudos 20 durante o mestrado. Dessa forma autores como Merriam (1964), Hood (1971), Feld (1982), Nettl (1983), Anthony Seeger (1992), Lühning (1991, 2004), Blacking (1995), Myers (1992), Oliveira Pinto (2001), Reily (2002), entre outros, evidenciaram uma gama de caminhos existentes para a área e contribuíram para o desenvolvimento teórico-metodológico do trabalho. Partindo dessas considerações, apresento neste capítulo o caminho metodológico que percorro nesta dissertação, onde foram aplicados procedimentos adequados às necessidades estabelecidas pelo foco do trabalho, descrevendo a pesquisa de campo e sua importância no contexto deste, assim como os instrumentos de coleta, análise e sistematização dos dados, abarcando alternativas múltiplas e uma ampla estruturação metodológica para compreensão das manifestações musicais tradicionais de Agreste, focando as dimensões estruturais e socioculturais da Folia de Reis. Projeto Negros do Norte de Minas: o ponto de partida Março de 2006. Minha ligação com a realidade da comunidade quilombola Agreste inicia nesta época. Na Universidade Estadual de Montes Claros, UNIMONTES, onde leciono no curso de licenciatura em Música, recebi um convite para me integrar a um Projeto de Pesquisa e Extensão intitulado Negros do Norte de Minas: Cultura, Identidade e Educação Étnica em uma Comunidade Quilombola. Esse Projeto teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) e se constituiu como uma atividade didática, pedagógica, científica e extensionista que visava contribuir para o conhecimento da e para intervenção na realidade sócio-cultural e política das populações negras existentes no norte de Minas, categorizadas atualmente como quilombos (conceito que discutirei no próximo capítulo). Tinha como objetivo geral realizar pesquisa multidisciplinar em uma comunidade quilombola no Norte de Minas Gerais, objetivando compreender a realidade social, cultural, educacional e identitária vivida pelos seus membros em suas relações internas e as que os vinculam à sociedade englobante em suas dimensões local, regional e nacional. Após uma primeira reunião com os professores e alunos participantes do Projeto, percebi o quanto seria importante participar, pois o Projeto integrava áreas distintas buscando desenvolver atividades de pesquisa e de extensão no âmbito da Sociologia, Antropologia, Pedagogia e da área de Artes/Música da qual eu seria o representante. 21 Na primeira etapa do projeto, o objetivo era definir uma comunidade negra rural para os estudos. Nesse contexto, a comunidade negra Agreste, situada na divisa dos municípios de São João da Ponte e Capitão Enéas, foi a escolhida1. Em relação à escolha da comunidade, após relatório de pesquisa realizado, o grupo foi unânime em apontar a comunidade Agreste como aquela que reunia as características mais próximas do objetivo do projeto. De acordo com o Relatório: O distrito de Agreste possui uma população mais homogênea em termos de grupo étnico, diante da percepção de uma presença maior de pessoas com características afro-descendentes. Em termos fundiários, a região apresenta uma grande concentração de terras em mãos de fazendeiros. A localidade está rodeada de grandes fazendas, de forma que a população possui somente seus terreiros ligados a casa, onde cultivam temperos, ervas, verduras, frutas e criam pequenos animais. Não há sequer um pequeno pedaço de terra para se fazer uma horta comunitária, conforme depoimento do presidente da Associação de Moradores. A comunidade está ilhada. (IDE, 20062). A partir daí, buscamos um amplo material bibliográfico que seria necessário para um maior embasamento teórico acerca dos vários aspectos que envolvem os estudos da temática quilombola. Trabalhos de antropólogos como Arruti (1997), Costa (1999, 2001, 2005, 2008), Costa Filho (2005), Leite (2002), O‟Dwyer (2005), assim como os textos produzidos pelo CEDEFES (centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva) e da Fundação Cultural Palmares, entre outros, contribuíram para o as reflexões teóricas e desenvolvimento da pesquisa. Os meus conhecimentos sobre essas comunidades foram se aprofundando à medida que as discussões durante as reuniões e debates do PNNM3 eram realizadas. Após três meses de estudos teórico-metodológicos, realizamos a primeira pesquisa de campo na comunidade, que ocorreu entre os dias 02 e 04 de junho de 2006. Essa primeira visita, ainda na perspectiva do PNNM (FIG. 1), teve como objetivo estabelecer um primeiro contato com os habitantes, buscando uma imersão no modo de vida dos moradores para tentar compreender sua cultura, como também para conhecer a dimensão físico-geográfica da comunidade. Outras visitas ao Agreste foram realizadas durante esse mesmo ano de 2006, no mês de Setembro e também em 2007, no mês de outubro, através da quais busquei realizar um levantamento das manifestações musicais tradicionais, assim como tive a oportunidade de 1 Não tive participação direta na escolha da comunidade, pois quando entrei no Projeto a pesquisa que resultou na escolha de Agreste já havia sido realizada. 2 Maria Helena de Souza Ide, coordenadora do PNNM. Relatório em anexo 3 Projeto Negros do Norte de Minas 22 coordenar oficinas de Percussão (FIG. 2) juntamente com os alunos e Professores da Escola Municipal Versol de Oliveira Lima, única escola de Agreste. Nas viagens feitas com o PNNM, costumávamos permanecer de três dias a uma semana. Já para a pesquisa da Folia de Reis em 2009, viajei sozinho e permaneci na comunidade por dois dias, chegando no dia 19 e saindo na manhã do dia 21 de Janeiro. Sempre ficamos hospedados nas casas dos moradores, que eram avisados com antecedência. Relatos referentes à pesquisa de campo e os desdobramentos desta estarão dispostas adiante, nos quais conceitos e a metodologia utilizada durante o processo de investigação serão discutidos. Essas primeiras experiências no contexto da comunidade Agreste me proporcionaram vivenciar momentos únicos das práticas musicais, revelando a riqueza e a diversidade dos aspectos socioculturais e estéticos das manifestações traduzidos nos festejos religiosos populares como a Folia de Reis, a Festa de Nossa Senhora Aparecida e as Festas Juninas. Como resultado desse processo vivido durante a participação no PNNM, experiência essa enriquecedora, surgiu o interesse de uma pesquisa sistemática no universo cultural/musical de Agreste. Portanto, em 2008 ingressei no curso de Mestrado em Etnomusicologia, no Programa de Pós-Graduação em Música da UFPB, com um projeto de pesquisa que foca as dimensões socioculturais e estruturais da Folia de Reis de Agreste, buscando compreender os aspectos fundamentais que caracterizam essa manifestação. FIGURA 1 – Equipe do Projeto Negros do Norte de Minas. Pesquisa de Campo em Agreste.4 4 As fotos, cujas fontes não estão indicadas no texto, são de minha autoria. 23 FIGURA 2 – Oficina de Percussão realizada por mim com alunos e professores da Escola Municipal Versol de Oliveira. A Pesquisa de Campo: característica básica da pesquisa etnomusicológica A partir da segunda metade do século XX, a pesquisa de campo tornou-se condição essencial para a busca investigativa no trabalho etnomusicológico, criando um novo paradigma para seu campo de estudo e ganhando amplo reconhecimento, evidenciando que a etnomusicologia utilizou-se abundantemente da etnografia e do trabalho de campo como ferramentas de pesquisa. A partir das reflexões de Bruner, Clifford e Marcus, Myers (1992) afirma que “o texto etnográfico veio a ser examinado como uma parte da literatura em seus próprios termos, reconsiderado à luz de um novo humanismo5” (MYERS, 1992, p. 22, tradução minha). De acordo com Myers (1992), o termo pesquisa de campo com observação participante foi criado pelo anglo-polonês Bronislow Malinowski (1884 – 1942), considerado um dos pais da antropologia moderna, o qual expôs na introdução de sua primeira obra Argonauts of the Western Pacific6, as questões fundamentais do trabalho de campo, como: a relação entre teoria e método, estratégias de pesquisa indutiva versus dedutiva; observação participante; importância da abertura de espírito e autocrítica; a ligação de dados aparentemente não relacionados; as diferenças entre observação e insight; a distinção entre as observações dos 5 The ethnographic text came to be examined as a piece of literature in its own right […] reconsidered in the light of this new humanism. 6 MALINOWSKI, B. Argonauts of the Western Pacific. London: Routledge, 1922. 24 pesquisadores e as idéias expressas pelos informantes nativos (dados êmicos e éticos); o isolamento da aventura antropológica e a frustração, ansiedade e desespero do choque cultural 7(MYERS, 1992, p. 24-25, tradução minha). Para Lühning (1991), Malinowski não só criou o termo como realizou um estudo desse tipo, opondo-se à imagem do armchair anthropologist8 e trazendo nova perspectiva para os estudos antropológicos e etnomusicológicos. A introdução da pesquisa de campo com observação participante na etnomusicologia significa uma mudança qualitativa significante a partir do momento em que a pesquisa e a análise seriam feitos por uma mesma pessoa, possibilitando assim documentar a riqueza do fenômeno musical dentro do seu contexto cultural, enfim tornando possível um estudo contextual das músicas (LÜHNING, 1991, p. 114). Nessa ótica, Oliveira Pinto (2001) argumenta que depois de deixar de ser uma disciplina que enxerga os seus objetos a partir de uma perspectiva de gabinete (armchairperspective), a pesquisa de campo tornou-se condição sine qua non para a pesquisa etnomusicológica. Assim, a partir da segunda metade do século XX, a etnomusicologia deixou o aspecto meramente "musicológico", por vezes em segundo plano, para se utilizar da antropologia, principalmente no que se refere às suas abordagens metodológicas. “Dessa forma a etnomusicologia na busca da compreensão da música como fenômeno cultural penetra no terreno da pesquisa antropológica” (OLIVEIRA PINTO, 2001, p. 19). Quanto aos distintos conceitos de pesquisa de campo, podemos recorrer ao de Hugues, citado por Myers (1992), afirmando que: “[...] é a observação de pessoas in situ que implica em encontrá-las onde elas estão e permanecendo com elas um tempo, observando seu comportamento para transformar em caminhos úteis para as ciências sociais, mas não prejudiciais para os observados9” (HUGUES, citado por MYERS, 1992, p. 23, tradução minha). Na perspectiva de Silva (2000), o trabalho de campo é o processo pelo qual o antropólogo (etnomusicólogo) observa de perto a comunidade pesquisada para interpretá-la, 7 The relationship of theory and method; inductive versus deductive research strategies; participant observation; the importance of open-mindedness and self-criticism; the linking of apparently unrelated data; the diference between observation and insight; the distinction between the scholar‟s observations and ideas expressed by the native informant („emic‟ and „etic‟ data); the isolation of the anthropological adventure, and the frustration, anxicty and despair of culture shock. 8 Antropólogo de gabinete. 9 Observation of people in situ; finding them where they are, staying with them in some role which, while acceptable to them, Will allow both intimate observation of certain parts of their behaviour, and reporting it in ways useful to social science but not harmful to those observed. 25 desempenhando dessa forma um papel fundamental na definição da antropologia, e consequentemente da etnomusicologia. Um dos aspectos mais característicos durante o trabalho de campo é a observação participante (FIG. 3), na qual o pesquisador participa ativamente das atividades, tanto musicais quanto extramusicais vividas. Com relação à relevância da observação participante durante o trabalho, Myers (1992) declara que: [...] é a principal estratégia utilizada no trabalho de campo. O pesquisador vive na comunidade, participa da vida diária, especialmente das atividades musicais, registra as observações e pede aos membros da comunidade que as comentem. [...] A observação participante aumenta a legitimidade dos dados, reforça a interpretação, favorece a penetração na cultura e ajuda o investigador a formular perguntas significativas10 (MYERS, 1992, p. 29, tradução minha). O antropólogo George Stocking (1983) assinala que o observador deve adotar a observação participante para se aproximar de uma comunidade e tornar-se, durante um tempo e de certo modo, parte integrante de seu sistema, estabelecendo relações cara a cara, de modo a que os dados recolhidos reflitam, na medida do possível, o ponto de vista do nativo. “Isso implica considerar o trabalho de campo como uma experiência básica tanto para o investigador como para a produção de conhecimento e adotar um enfoque holístico das culturas ou sociedades que são os sujeitos dessa forma de conhecimento” (STOCKING, citado por LANDA, 2003, p. 365, tradução minha). A observação participante, através da participação musical junto ao grupo, tocando um instrumento, cantando e dançando é uma importante estratégia da pesquisa de campo, na medida em que as particularidades musicais, as suas regras, a percepção de padrões específicos ou os critérios que definem “toques”, podem ser mais bem estudados através da prática musical, como atesta Hood (1963). Contudo, alguns pesquisadores enxergam obstáculos para o observador participante, não tanto entre o que vê e o fato em si, mas na discrepância entre o praticamente intraduzível de sua experiência e uma linguagem de consenso geral no momento de comunicar o que se viveu em campo, exigindo do observador participante uma abordagem interpretativa muito criteriosa e ordenada. 10 The main strategy used in ethnomusicological fieldwork is participant observation; o researcher lives in the community, participates in daily life, especially musical activities, records observation and asks community members to comment on them […] Participant observation enhances validity of the data, strengthens interpretation, lends insight into the culture, and helps the researcher to formulate meaningful questions. 26 FIGURA 3 – O autor tocando Caixa de Folia com Seu Lero ( Mestre da Folia de Reis de Agreste). Esse tipo de pesquisa pode ser considerado como parte intrínseca na atividade de coleta de dados, na medida em que durante o trabalho investigativo, o etnomusicólogo estabelece contato direto com o universo pesquisado, imergindo diretamente no modo de vida e nas ações das pessoas, buscando conhecer, entender e interpretar suas atitudes e o que é vivido musicalmente. Dessa forma, esse tipo de pesquisa exige experiência e um talento para lidar com o ser humano, procurando adaptar-se a um modo de vida distinto, assim como documentar uma cultura musical não familiar. Essa característica é traduzida nas palavras de Helen Myers, enfatizando que “no trabalho de campo nós expomos o lado humano da etnomusicologia11” (MYERS, 1992, p. 21, tradução minha). Para Bruno Netll (1964), o trabalho de campo em etnomusicologia abarca o estabelecimento de relações pessoais entre o investigador e as pessoas que compõem a cultura musical investigada, relações essas que vão além de simples reuniões e instruções escritas, contribuindo para desvendar as bases do pensamento e do comportamento em relação à música, buscando, assim, lidar com os conceitos, significados e com toda subjetividade da cultura investigada “[...] pelo fato de que o trabalho de campo etnomusicológico, além de ser considerado um tipo de atividade científica, é também uma arte12” (NETTL, 1964, p. 64, tradução minha). Todavia, lidar com toda a subjetividade da cultura investigada é uma tarefa complexa e requer habilidades diversas do etnomusicólogo em campo. Essas habilidades vão além de 11 12 In fieldwork we unveil the human face of ethnomusicology. [...] because ethnomusicological field work, in addition to begin a scientific type of activity, is also an art. 27 gravar, ouvir, aprender, praticar, transcrever e perceber nuances que dão forma e sentido ao fenômeno musical, de maneira que: o pesquisador vai em busca de trazer e de explicar no seu código o que não pode ser totalmente explicado, de traduzir algo que, de certa forma, não é traduzível, de dizer o que não pode ser dito através da nossa linguagem verbal e escrita. O que dá sustentação ao trabalho etnomusicológico é justamente a capacidade do pesquisador de achar estratégias para objetivamente conseguir expressar, refletir e interpretar o subjetivo (QUEIROZ, 2005, p. 6). Outro ponto essencial durante a pesquisa musical em campo é a preparação do pesquisador para lidar com o equipamento que possibilite a gravação, a captação de sons e fixação de imagens para análise posterior, arquivos e estudos futuros. “Para os etnomusicólogos as habilidades mais essenciais são as de gravação e de fotografar. Esteja completamente familiarizado com seu equipamento antes de chegar a campo13” (MYERS, 1992, p.31, tradução minha). A manutenção de registros deve ser realizada de forma ordenada, auxiliada por equipamentos mecânicos como gravadores de áudio e vídeo e microfones, como afirma Myers (1992). “Uma das grandes responsabilidades na etnomusicologia é a preservação de registros, seu transporte no campo e do campo para o arquivo [...] Esta inescapável parte do trabalho requer presença de espírito e habilidade organizacional de mestre14” (MYERS, 1992, p.23-24, tradução minha). Essa organização implica, entre outras coisas, conhecer o equipamento e realizar testes anteriormente à pesquisa, o que facilita o trabalho e previne problemas de última hora. Na ótica de Oliveira Pinto (2001), há basicamente duas abordagens quando se fala em documentar a música no seu devido contexto performático, a abordagem musicológica e a antropológica. Na abordagem musicológica, o fenômeno musical, enquanto texto e estrutura está em primeiro plano, assim a gravação musical é de fundamental importância, pois a avaliação posterior deste aspecto depende exclusivamente do registro musical. Na abordagem antropológica, a investigação de campo caracteriza-se pela postura do pesquisador, que vê a música inserida no seu contexto cultural, dando-se importância ao todo, isto é, à "música na 13 For ethnomusicologist the most essencial skills are recording and photography. Be completely familiar with your equipment before you arrive in the field. 14 A major burden in etnomusicology is the preservation and documentation of recordings, their transportation in the Field, and then from field to home to archive [...] This inescapable part of the job requires presence of mind and masterful organizational skills. 28 cultura" e à "música enquanto cultura" (MERRIAM, 1964; 1977). O registro do áudio e de imagens ultrapassa os aspectos puramente musicais. Partindo dessas premissas acerca da pesquisa de campo e sua importância para os estudos etnomusicológicos e conseqüentemente para esta pesquisa, considero que esta se constituiu como ponto fundamental para realização do trabalho, na medida em que através do engajamento na comunidade, pude observar de perto o cotidiano dos moradores acompanhando atentamente as práticas musicais, colhendo informações essenciais e agregando as fontes de informações, como: o diário de campo, gravações de entrevistas, de músicas, registros fotográficos e em vídeo. Assim, apresento a seguir o momento dos meus primeiros contatos com o campo, a chegada à comunidade, minhas primeiras impressões do lugar, natureza, pessoas e sons. Revelando o campo de Agreste: os primeiros contatos FIGURA 4 – As ruas da comunidade Agreste. Minha primeira imersão no campo (FIG. 4), realizada entre os dias 02 e 04 de Junho de 2006, juntamente com participantes do PNNM, como já foi descrito no início deste trabalho, me trouxe a uma realidade que até então era desconhecida, um universo social e cultural com características peculiares e distintas que busquei registrar em diário de campo, fotos e vídeos. Portanto, através de uma narrativa etnográfica descrevo minhas primeiras impressões do lugar, cultura e paisagem sonora. 29 Marcada a viagem, la estávamos nós, toda equipe do PNNM no Campus da Unimontes, preparando para a partida. O meio de transporte foi o ônibus cedido pela Universidade, local de onde saímos às 07h30min aproximadamente e chegando a Agreste por volta das 09h20min. Percorremos 130 km de distância, sendo 100 de asfalto e 30 de terra. Ao chegar, dividimos a equipe em pequenos grupos e seguimos para as acomodações nas casas dos moradores, que já nos aguardavam, pois sempre eram avisados da visita da equipe. A expectativa quanto a esse primeiro contato foi carregada de ansiedade, pois de fato não sabia como seria a aceitação da minha presença, e consequentemente, se poderia participar dos acontecimentos musicais para uma coleta de dados necessária à pesquisa. Assim, concordo com as palavras de Silva (2000), onde ele afirma que: Costumamos pensar na observação participante basicamente como uma técnica ou um procedimento realizado pelo antropólogo para conhecer a comunidade que estuda. Entretanto, não é apenas o antropólogo que procura familiarizar-se com o universo cultural do grupo no qual se insere. O grupo também mobiliza seu sistema de classificação para tornar aquele que inicialmente era um “estrangeiro” em uma “pessoa de dentro”, isto é, um sujeito socialmente reconhecido (SILVA, 2000, p. 287). Assim sendo, para que este processo de mútuo reconhecimento acontecesse, procurei estar atento as atitudes locais como também manter um relacionamento amigável com as pessoas, o que facilitou o contato e possibilitou vivenciar ativamente o contexto cultural e musical. Como discutido por Brandão (1981), a atuação do pesquisador deve ser pautada pela tranqüilidade, porque os próprios membros da comunidade irão observar o comportamento do pesquisador, que também a vê como uma vivência. Essas proposições foram fundamentais para a minha prática etnográfica em campo. No caminho para a casa onde iria ficar, andando pelas ruas de terra, além de apreciar o espaço físico local, ouvia músicas de contexto midiático que vinham dos aparelhos de som das casas. Os aparelhos de som assim como os televisores são uma forma de entretenimento que faz parte do dia-a-dia dos moradores, pois em todas as casas que visitei observei a utilização desses. A primeira impressão que tive na chegada foi em relação aos aspectos naturais do lugar, que apresenta em suas características, uma paisagem cercada por “uma floresta de caatinga arbórea com milhares de pequenas lagoas formadas a partir do assoreamento de dolinas15 que surgem 15 Depressão afunilada, produzida pela dissolução em regiões calcárias ou pelo desmoronamento resultante de tais dissoluções. Fonte: Dicionário Eletrônico Aurélio. 30 da ruptura de tetos de cavernas existentes no sedimento calcário que recobre toda a região” (COSTA, 2008, p. 1). A comunidade é margeada por lagoas e pelo rio Verde Grande (FIG. 5), que além de fornecer a água utilizada para consumo humano e dos animais, fornece também o peixe, que é uma das mais importantes fontes de alimento, juntamente com a farinha de mandioca que ainda é extraída de forma artesanal (FIG. 6). Outra importante utilidade das lagoas e do rio é como fonte de lazer para os agrestinos, que passam os Domingos banhando-se em suas águas. Depois de acomodados, nos reunimos na parte central da comunidade para, a partir daí, fazer uma imersão no modo de vida da coletividade e tentar compreender sua cultura. Esse modo de vida a que me refiro é compreendido como ethos e visão de mundo numa perspectiva geertziana. Geertz (1989) concebe a cultura como uma teia de significados que o próprio homem tece para si, assim cultura: [...] denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. (GEERTZ, 1989, p. 103) Conforme esse autor, a cultura considera os aspectos morais e os elementos valorativos que podem ser resumidos sob a noção de ethos, e os aspectos cognitivos, existenciais designados pela noção de eidos ou “visão de mundo”. O ethos de um povo está sintetizado no seu caráter, no seu estilo moral e estético e nas atitudes e disposições subjacentes em relação a ele mesmo e ao seu mundo. O eidos, ou a visão de mundo desse povo, é expresso através dos conceitos que ele utiliza para interpretar a realidade – seu conceito da natureza, de si mesmo, da sociedade. Dessa forma, para Geertz a cultura consiste em uma interpretação realizada pelo nativo sobre a sua sociedade e a análise que o antropólogo faz dessa interpretação, de maneira que a prática antropológica deve ser orientada a partir da própria conceituação elaborada pelos nativos sobre seu modo de vida, compreendido por ele como estilo de vida e como visão de mundo. A partir desta ótica, conhecer o modo de vida da comunidade foi essencial para a compreensão do fenômeno musical, pois para o estudo da música como cultura (MERRIAM, 1977), o etnomusicólogo considera não só o produto música, mas toda a complexidade sociocultural que a envolve (MERRIAM, 1964), na medida em que não é possível realizar um estudo etnomusicológico que não contemple tanto o homem quanto a música. Assim, o sociólogo Michel Bozon (2000), citado por Prass (2006), enfatiza que para descrever a música 31 realizada por grupos distintos não é suficiente tratar seu repertório em suas especificidades técnicas, mas principalmente, “mostrar qual o estilo de vida e de sociabilidade colocado em ação com [determinada] prática musical” (Bozon, 2000, p. 153, citado por PRASS, 2007, p. 4). Portanto, para compreensão e interpretação desses significados, e daquele modo de vida, primeiramente andei por todo o lugar16, buscando um diálogo com as pessoas, conhecendo e registrando em fotos e vídeo, assim como realizando gravações e anotações de campo para análise. Durante a caminhada foi possível perceber um ou outro morador tocando violão sentado à porta de sua residência, ora tocando uma toada,17 ora uma música sertaneja de contexto midiático, enquanto um grupo bate papo em frente a um bar ou na varanda de suas casas (FIG. 7). Ao cair da noite, alguns se recolhem frente à televisão, outros se confraternizam nos bares. Nas Sextas Feiras e Sábados, alguns bares se transformam em Boates, com uma iluminação e som “adequados”, além de reprodução de DVDs para o entretenimento das pessoas. FIGURA 5 – A ponte sobre o Rio Verde Grande. Fonte de lazer para os moradores de Agreste. 16 17 Dados referentes aos aspectos físico-geográficos e históricos da comunidade estão dispostos no capítulo 2. Termo geral para cantiga; usa muitas vezes a quadra poética na letra. 32 FIGURA 6 – Moinho artesanal de farinha de mandioca. Casa de Seu João e Dona Ana. FIGURA 7 – Um morador tocando violão na porta de sua casa e o Bar Esquema 3. Após conversas preliminares, procurei entrevistar pessoas que, como interlocutores, me forneceram dados relevantes quanto à cultura local. Essas pessoas foram José Nunes dos Santos, conhecido como Zé Nunes, um dos foliões mais antigos da comunidade; e Dona Clêusa, que trouxe dados históricos relevantes sobre a vivência musical. Outra personagem social importante se chama Aureliano R. dos Santos, conhecido como Seu Lero, que é o mestre da Folia de Reis. Essas entrevistas18 foram muito importantes, pois me forneceram um panorama cultural/musical da comunidade. 18 Entrevistas com Seu Lero e Zé Nunes, também foram realizadas em 2009, na qual me refiro a Folia de Reis propriamente dita. Em anexo. 33 Neste trabalho de cunho etnográfico, tanto no momento da coleta de dados, quanto no processo de elaboração das análises desses, o diálogo foi fundamental para os resultados aqui apresentados. Refiro-me tanto aos diálogos realizados com os moradores quanto aos diálogos que os próprios moradores estabeleciam entre eles e que tive a oportunidade de observar. Conforme Vicenzio Cambria (2008), a idéia do diálogo sempre foi considerada uma metáfora do trabalho etnográfico, atuando entre “nós” (cultura ocidental, dominante, escrita, acadêmica, teórica, urbana, etc.) e os “outros” (culturas extra-ocidentais, dominadas, orais, populares, folclóricas, rurais, etc.) e se daria como um encontro, uma negociação de diferenças. Ainda segundo este autor, o diálogo, como forma de interação humana, também sempre foi uma condição imprescindível de qualquer pesquisa de campo. “Neste caso, o diálogo seria aquele entre um pesquisador (o representante do “nós”) e os informantes com que ele trabalha em campo (que, muitas vezes, são assumidos como representantes de um “outro”coletivo)” (CAMBRIA, 2008, p. 201). Deste modo, tanto as conversas realizadas nas casas dos moradores quanto os „bate-papos” nos “botecos”, constituíram fontes relevantes de coleta de informações. Através desses dados fornecidos oralmente e registrados, tanto em gravador quanto de forma escrita, ficou evidente que as práticas características das manifestações tradicionais da religiosidade popular, como as Festas Juninas (realizada para Santo Antônio em Agreste), a Festa de Nossa Senhora Aparecida e a Folia de Reis, são as mantenedoras das tradições e são tidas como representantes da identidade19 local. Os simbolismos contidos nas práticas dessas manifestações informam a realidade sociocultural desta comunidade afro descendente norte mineira. Todos os dados colhidos durante essas primeiras participações no contexto investigado, somados a observação participante, possibilitaram vivenciar momentos característicos das práticas musicais na comunidade, tanto nas diversões durante as noites dançantes nas boates, como nas práticas tradicionais e suas danças e coreografias, os toques dos instrumentos, o canto das músicas, etc. A experiência inicial neste contexto amplo e complexo, fez perceber que na paisagem sonora20 de Agreste, as práticas tradicionais 19 20 Discussão sobre Identidade musical em Agreste está no capítulo 4. Em meados da década de 1960 teve início no Canadá, mais precisamente na Simon Frayser University, um movimento que se propunha realizar uma análise do ambiente acústico como um todo. Tal projeto foi denominado World Soundscape Project e foi encabeçado pelo compositor canadense R. Murray Schafer. A palavra Soundscape foi um neologismo introduzido por Schafer que pretendia criar uma analogia com a palavra Landscape (paisagem). A paisagem sonora, segundo Schafer, seria então: o ambiente sonoro. “Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudos” (SCHAFER, 1997, p. 366). 34 dialogam e transitam com as sonoridades de contexto midiático, demonstrando diferentes formas de vivência musical, onde “tradição e modernidade formam um mosaico de relações aparentemente cacofônicas que precisa ser analisado a partir dos sentidos dados pelos próprios atores sociais” (PRASS, 2007, p.4). Etnografia da Performance Musical Partindo dos dados etnográficos colhidos durante a pesquisa de campo e expostos neste trabalho, proponho uma discussão sobre a etnografia da performance musical, que pode ser considerada como uma ferramenta essencial para a compreensão dos fenômenos musicais. A partir da década de 1980 a etnomusicologia vem buscando novas concepções sobre a performance musical, numa tentativa de unir as abordagens musical e antropológica. Estudos recentes demonstram que “para fornecer um registro adequado da música como cultura, tanto sua estrutura apresentada em eventos reais quanto seu contexto histórico e social, devem ser explorados em detalhes” (MURPHY, 2008, p. 15). Para este autor a etnografia da performance musical é compreendida como uma metodologia que tenta descrever as relações entre uma dada música e a sociedade em que ela existe, através de análise detalhada de eventos de performance específicos. Segundo Herndon e McLeod (1980), citados por Murphy (2008), a etnografia da performance musical surgiu da necessidade de firmar base comum entre abordagens musicológicas e antropológicas com a etnomusicologia, fixando a performance musical como foco. Dessa forma, a etnografia da performance musical requer, de início, a determinação de um campo social mais amplo “que inclua não apenas os sons físicos, mas também ações, pensamentos e sentimentos dos envolvidos na concepção, performance e recepção da música num contexto cultural particular” (HERDON; McLEOD, 1980, citados por MURPHY, 2008, p. 15). Outro autor que traz uma nova abordagem sobre as questões que envolvem a etnografia da performance musical é Anthony Seeger (1992), que considera a etnografia da música como o escrito sobre as maneiras que as pessoas fazem música. Ela deve estar ligada à transcrição analítica dos eventos, mais do que simplesmente à transcrição dos sons, e geralmente inclui tanto descrições detalhadas quanto declarações gerais sobre a música, baseada em uma experiência pessoal ou um trabalho de campo. Na ótica de Behague (1984), a performance tem sido atualmente o primeiro aspecto de estudo da etnomusicologia que têm tendido, por isso, a desenvolver uma abordagem 35 bastante inclusiva do estudo da performance, considerando-a, na atualidade, não só como evento, mas também como uma processo que reúne aspectos musicais e extra musicais. Dessa forma, a etnografia da performance musical deveria esclarecer as maneiras pelas quais os elementos não-musicais numa ocasião ou evento de performance influenciam o resultado musical de uma performance. “Práticas de performance resultam da relação do conteúdo e do contexto” (BEHAGUE, 1984, p. 7, tradução minha)21. Assim, finalizando essa breve reflexão, podemos afirmar que para compreender o fenômeno musical, devem ser levados em conta os vários aspectos representados na performance, tanto musicais como extramusicais, buscando seu significado de forma contextualizada com o universo na qual é praticada. Descrições metodológicas da pesquisa O universo da pesquisa As manifestações musicais tradicionais da comunidade Agreste são aspectos fundamentais que traduzem um universo cultural abundante e peculiar. Neste contexto, esta pesquisa foca a manifestação da Folia de Reis, que juntamente com outras manifestações, como a Festa de Nossa Senhora Aparecida e as Festas Juninas, são tidas como demonstrativos identitários dessa comunidade. Dessa forma, o universo da pesquisa foi constituído pelos habitantes da comunidade quilombola Agreste, considerando e abrangendo mais especificamente os músicos participantes da manifestação cultural da Folia de Reis: o mestre da Folia e os músicos participantes. A Folia de Reis neste contexto é uma prática que tem como principal função a religiosa, onde através das rezas dos Terços e dos cantos, os foliões demonstram toda devoção e fé aos Santos Católicos. Esta manifestação característica da religiosidade popular acontece a mais de cem anos na comunidade e apesar das mudanças e transformações que ocorreram com o passar do tempo, permanecem com respeito e fé aos Três Reis Magos e ao Menino Jesus. Como afirma Seu Lero: “Pra cada um Santo tem um canto, o canto pra São Sebastião, Santos Reis e Nossa Senhora Aparecida, pra cada Santo um canto, é devoção, tradição” (Seu Lero, 2009). 21 Practices of performances result from the relationship of content and context. 36 Instrumentos de coleta de dados Os instrumentos de coletas de dados que utilizei foram fundamentais para realização da pesquisa e dentro das perspectivas da realidade da manifestação, o que permitiu uma abordagem do campo pesquisado, como também, a coleta de informações imprescindíveis acerca dos vários aspectos que constituem o fenômeno musical da Folia de Reis da comunidade. Como instrumentos de coleta de dados foram utilizados: pesquisa bibliográfica, pesquisa documental, observação participante, entrevistas semi-estruturadas e registros sonoros, fotográficos e em vídeo. A junção destes me forneceu o suporte devido para alcançar o objetivo da pesquisa. Pesquisa bibliográfica A pesquisa bibliográfica foi realizada durante todo o tempo da pesquisa. Foram consultadas obras que referem aos estudos relacionados à temática da formação das comunidades quilombolas em diferentes contextos do Brasil, focando o Estado de Minas Gerais e mais precisamente a região Norte. Foram pesquisadas produções bibliográficas enfocando estudos e abordagens sobre os aspectos que constituem as expressões musicais afro-brasileiras, a Folia de Reis, em suas dimensões estruturais, históricas e socioculturais, assim como trabalhos diversos relacionados à etnomusicologia, antropologia e outros campos relacionados com a abordagem da pesquisa. O trabalho foi realizado tendo por base a produção de conhecimento a partir de livros e artigos científicos como fontes principais, contudo, consultei fontes diversas, como: legislação, artigos da internet e dicionários com termos técnicos. Foram realizadas pesquisas na Biblioteca da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes, na biblioteca do Centro Cultural Hermes de Paula de Montes Claros como também na biblioteca do Centro Cultural São Paulo, na capital paulista em outubro de 2008. A pesquisa bibliográfica forneceu as bases conceituais e as linhas epistemológicas que embasaram os caminhos traçados na pesquisa. Pesquisa documental A pesquisa documental também se consolidou como ponto fundamental para o trabalho, tendo em vista a falta de material histórico referente a Agreste. Devido ao 37 “isolamento” da comunidade, não foram encontrados dados secundários (documentos) que nos fornecessem informações necessárias, assim procurei trabalhar com dados primários (colhidos por mim e pelos membros do PNNM) que foram, de acordo com nossos estudos, a primeira coleta de informações sobre a vida da comunidade. Dessa forma, a pesquisa documental abrangeu relatórios e outras fontes coletadas pelo grupo, assim como registros referentes a dados censitários realizados por professores a alunos participantes do PNNM. Esses dados foram relevantes para identificar as principais transformações territoriais e socioculturais ocorridas em Agreste ao longo de sua história. Observação participante A observação participante foi o mais importante instrumento de coleta de dados durante a pesquisa de campo. Através deste instrumento foi possível vivenciar de perto a música da Folia de Reis e compreender significados e valores estabelecidos e construídos pelos foliões e participantes. Experienciar e participar, buscando em equilíbrio entre participação e observação, me proporcionaram um contato direto com esse universo, revelando aspectos singulares tanto da performance quanto do modo de vida dos foliões. As observações foram feitas durante o ensaio e apresentação da Folia de Reis, assim como em outros festejos religiosos realizados na comunidade com o intuito de compreender aspectos particulares da música e de suas inter-relações socioculturais. A partir dessa compreensão, procurei como pesquisador, durante a observação participante, imergir num outro universo cultural, lidando tanto com características comportamentais dessa realidade, como também com os conceitos e significados estabelecidos durante as práticas musicais no contexto quilombola. Entrevistas As entrevistas foram essenciais para coleta de dados, possibilitando a averiguação dos fatos e os motivos conscientes para opiniões, sentimentos ou condutas dos entrevistados. Primeiramente realizei entrevistas semi-estruturadas com alguns interlocutores, selecionados através da indicação dos próprios moradores de Agreste, que através de relatos orais forneceram dados históricos e do modo de vida na comunidade. Em seguida realizei 38 entrevistas com os Foliões e moradores da comunidade que participam da Folia de Reis, objetivando coletar dados essenciais para compreensão do universo da manifestação. Busquei também trabalhar com a coleta de informações a partir da história oral, onde através da memória do grupo as informações eram dadas e confirmadas pelos membros da comunidade. De acordo com Meihy e Holanda (2007) o ponto de partida das entrevistas em história oral implica aceitar que os procedimentos são feitos no presente, com gravações, e envolvem expressões orais emitidas com intenção de articular idéias orientadas a registrar ou explicar aspectos de interesses planejados em projetos. Assim: Entrevistas em história oral são a manifestação do que se convencionou chamar de documentação oral, ou seja, suporte material derivado de linguagem verbal expressa para esse fim. A documentação oral quando apreendida por meio de gravações eletrônicas feitas com o propósito de registro torna-se fonte oral. A história oral é uma parte do conjunto de fontes orais e sua manifestação mais conhecida é a entrevista (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 14). Dessa forma, a história oral que é “um recurso moderno usado para a elaboração de registros, documentos, arquivamento e estudos referentes à experiência social de pessoas e de grupos” (MEIHY; HOLANDA, p. 17), contribuiu de forma relevante para coleta de dados referentes a vários aspectos da vida das pessoas de Agreste. Na perspectiva de Gaskell (2002, p. 64) a compreensão dos mundos da vida dos entrevistados e de grupos sociais especificados é a condição sine qua non da entrevista qualitativa e tal compreensão poderá contribuir para um número de diferentes empenhos na pesquisa. Neste contexto, as entrevistas semi-estruturadas foram as mais utilizadas, com roteiros pré-estabelecidos, que foram se desenvolvendo a partir das conversas. As entrevistas foram realizadas na casa do Mestre da Folia, como nas casas dos interlocutores, sendo que todo processo de gravação foi realizado com a utilização de um gravador modelo SONY WALKMAN - NET MD KMAN – MZ - N707 TYPER-R – MDLP, que com boa qualidade sonora, favoreceu o trabalho de transcrição e análise das informações obtidas. Destaco aqui, a opção pelas entrevistas no lugar de questionários, pois percebi que poderia colher mais informações acerca do modo de vida, assim como das manifestações culturais, com este recurso metodológico. Apesar da importância dos questionários, principalmente para coletar dados quantitativos que dão suporte a pesquisa, percebi que os informantes mais velhos sempre tinham algo mais a revelar e extrapolavam nas respostas, 39 chegando a falar por horas em seus depoimentos, portanto mesmo com questionários prontos para aplicação optei pelo recurso das entrevistas. Através dos conteúdos das entrevistas e de uma análise aprofundada dos relatos, pude coletar informações singulares das dimensões históricas, socioculturais e estruturais específicas da Folia de Reis de Agreste. Registros em Áudio Os registros em áudio se constituíram como um importante instrumento de gravação de campo. Esses registros, gravados durante o ensaio e do ritual, possibilitaram captar detalhes fundamentais dos aspectos das músicas. Além disso, as gravações em áudio foram de fundamental importância para a construção de um arquivo sonoro para futuras transcrições e análise musicais, captando os detalhes de cada elemento musical como ritmo, melodia, letra e canto. Para garantir a qualidade das gravações utilizei um aparelho portátil gravador SONY WALKMAN MD, de modo que as gravações fornecem um suporte necessário para a coleta das músicas que foram transcritas no trabalho, sendo utilizadas como exemplos complementares das transcrições, pelo fato de que o registro gráfico não dá conta de traduzir o fenômeno com todas as suas nuanças, o que pode ser proporcionado pela exemplificação em áudio. Registros em vídeo Os registros em vídeo foram realizados enfocando aspectos particulares da prática musical e outros elementos da performance (plástico-visuais e coreográficos) que se interregem com o fenômeno musical da Folia de Reis. Os registros em vídeo foram fundamentais para o processo de análise, tendo em vista que possibilitaram a observação da prática musical por uma perspectiva diferenciada. Dessa forma, somando som e imagem foi possível perceber nuanças que nem sempre podem ser captadas pela percepção exclusivamente sonora. 40 Registros fotográficos Os registros em fotos foram feitos primeiramente, para registrar o modo de vida dos moradores de Agreste, assim como os aspectos físicos da comunidade. Quanto às manifestações culturais, focando a Folia de Reis, as fotos foram úteis para captar aspectos gerais da performance musical dos foliões, como instrumentos, adereços, movimentos coreográficos, detalhes da execução musical, etc. As fotos além de ampliarem as possibilidades analíticas, serviram como importante ferramenta para ilustrar e complementar aspectos musicais transcritos e descritos nos textos gerados durante o trabalho. Os registros fotográficos também trouxeram imagens de personagens fundamentais para a compreensão da manifestação que inseridas junto aos textos e as análises do estudo, forneceram informações visuais que retratam as singularidades do universo musical estudado. Instrumentos de organização e análise dos dados Depois de coletados os dados para a pesquisa, esses dados foram organizados e analisados, através de instrumentos que possibilitaram uma leitura e compreensão criteriosa das informações detalhadas no contexto investigado. Assim sendo, uma organização sistemática contribuiu imensamente para o processo de análise, de forma que descrevo a seguir os principais instrumentos de análise: Referencial teórico A constituição do referencial teórico nesta pesquisa se deu a partir de uma pesquisa bibliográfica que fundamentou as interpretações e análises dos dados, possibilitando reflexões contextualizadas tanto com o universo pesquisado, quanto com o campo mais abrangente dos estudos do fenômeno musical numa perspectiva etnomusicológica. Abordagens teóricas da antropologia interpretativa forneceram as bases fundamentais para a discussão acerca da temática quilombola no Brasil. Outras vertentes literárias foram importantes para o campo teórico, como as abordagens de autores que escreveram sobre a Folia de Reis e outras manifestações e expressões da cultura popular. Dessa forma, o referencial teórico alicerçou e estabeleceu ao longo dos estudos, o direcionamento das abordagens realizadas durante o trabalho, constituindo um amplo material de estudo indispensável para a compreensão desse complexo e rico universo cultural. 41 Transcrições das entrevistas A realização das transcrições textuais dos relatos e depoimentos orais, obtidos a partir das entrevistas, foi essencial para análise dos elementos explicativos contidos nos relatos, fornecendo dados substanciais para a compreensão dos aspectos históricos e socioculturais da Folia de Reis. A transcrição da fala foi apresentada no trabalho de forma que pudesse representar as características lingüísticas e buscando valorizar as formas de expressão de cada entrevistado. Assim optei por uma transcrição literal, que buscou ao mesmo tempo, descrever os depoimentos sem descaracterizar o que era dito, mas possibilitando que o leitor captasse os detalhes da estruturação da fala do entrevistado. Para uma compreensão do discurso verbal, foram levados em consideração não só a fala dos entrevistados, mas uma gama de outros significados que a caracterizaram culturalmente, relacionando os depoimentos com as situações e momentos que cercam o universo focado nas entrevistas. De acordo com Lucena; Barbosa; Oliveira (2004, p. 37) com base em perspectivas de análise lingüística, as práticas discursivas, da mesma forma que as práticas sociais, podem ser compreendidas como fenômenos que envolvam o saber, o poder e os sujeitos, ora organizando relações mais amplas com o universo cultural, ora construindo formas de discurso específicos para situações localizadas. Nesta perspectiva, Queiroz (2005) também argumenta que os depoimentos orais, relatados durante as entrevistas, devem ser analisados segundo a perspectiva de que eles não são simplesmente modos de produção do discurso, mas sim, representações que refletem conceitos, comportamentos, processos, técnicas e formas diversificadas de expressões do sistema cultural que as cria, as impõem, as mantém e as pratica. Dessa forma a análise das falas foi imprescindível para compreensão do processo discursivo. Edição de vídeos e seleção das fotografias Foram editadas partes das gravações em vídeo focando principalmente o giro de folia, onde foram selecionados trechos relevantes para o processo de análise, desde a chegada dos foliões, as rezas dos Terços, os cantos e as danças durante a manifestação. 42 A seleção das fotografias foi realizada considerando os registros que foram utilizados tanto para análise quanto para ilustração do texto, contribuindo de forma expressiva para a visualização dos aspectos e características da manifestação. As transcrições musicais As transcrições musicais, ou registros gráficos das músicas, foram realizados com base nos registros sonoros e audiovisuais captados durante a Folia de Reis. Durante o processo de transcrição, busquei utilizar categorias estruturais aplicadas no meio musical acadêmico, de forma que, através da análise da métrica rítmica e dos intervalos melódicos instituídos pela notação “ocidental”, foi possível uma quantificação de elementos característicos das músicas dos Foliões, o que permitiu o entendimento e a tradução dos códigos distintos desse fenômeno musical para uma linguagem “padrão”. Assim como as transcrições verbais, a transcrição musical apresenta limitações comuns desta ferramenta, porém não deixa de ser importante para o processo de análise e descrição no estudo etnomusicológico. Na visão de Ellingson (1992), a transcrição musical tem sido considerada, ao longo do tempo, ferramenta fundamental para a metodologia dos estudos em etnomusicologia, apresentando objetivamente dados quantificáveis e analisáveis que fornecem uma sólida base para a etnomusicologia como disciplina científica. Neste trabalho, as transcrições musicais tiveram como finalidade a organização estrutural do repertório dos Foliões, como também apresentar aspectos essenciais das músicas, servindo para ilustrar detalhes da melodia, do ritmo, das letras e da composição do repertório possibilitando uma reflexão sistemática sobre esses mesmos aspectos. Realização da pesquisa e apresentação dos resultados A partir dos caminhos metodológicos utilizados durante o processo de realização da pesquisa, a apresentação dos resultados foi desenvolvida de forma contextualizada em relação ao universo investigado, buscando sempre a veracidade dos dados coletados e a coerência necessária durante o processo de análise desses. Com base nos elementos coletados e analisados, busquei estruturar de maneira lógica e sistemática as informações que se revelaram essenciais para a compreensão dos aspectos socioculturais e estruturais da Folia de Reis no contexto estudado. 43 A segmentação do trabalho, dividida em quatro capítulos, foi ordenada de forma coerente com os objetivos do trabalho, buscando proporcionar em cada parte a apresentação de um conjunto de elementos fundamentais acerca da manifestação estudada como também, mostrar com clareza as perspectivas etnomusicológicas contextualizadas ao universo musical. Para concluir, procurei apresentar neste trabalho, um panorama do fenômeno musical estudado, indicando aspectos fundamentais que retratam a multiplicidade das características que constituem a música da Folia de Reis na comunidade quilombola Agreste no Norte de Minas Gerais. 44 CAPÍTULO 2 Comunidades quilombolas: um cenário de identidades afrodescendentes no contexto nacional O Brasil, maior país da América do Sul, possui uma grande diversidade cultural, onde aprender sua história nos remete a conhecer a história e cultura de vários povos, que trouxeram em seus conhecimentos e memórias coletivas, elementos representativos, que serviram de base para a construção da identidade e reconhecimento enquanto país pluriétnico e multicultural. Na formação da cultura brasileira, heterogênea, complexa e plural, o negro africano foi um componente étnico que trouxe relevante contribuição para a formação cultural e histórica do povo. Dessa forma, o desenvolvimento da identidade brasileira está condicionado à participação dos africanos, cuja sabedoria está presente nas manifestações culturais, nos gestos e nas relações. No entanto, as realidades vividas pelos descendentes de escravos e comunidades quilombolas ainda se encontram desconhecidas no contexto social brasileiro e só recentemente passaram a ser debatidas no meio acadêmico, político e nos movimentos sociais. A situação dessas comunidades é uma das questões emergentes da sociedade brasileira, tendo em vista a falta de visibilidade social, cultural e territorial, agravada pelo esquecimento evidenciado na história oficial. Atualmente, tem havido um movimento crescente de entidades e instituições nacionais e internacionais, que vêm discutindo sobre essa realidade e formando redes de apoio aos quilombolas. O texto da Constituição Federal de 1988, fruto de uma ativa mobilização social, ao instituir o Artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), deu um passo importante para o reconhecimento dessa realidade ao estabelecer que aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o estado emitir-lhes os títulos respectivos. Com esse Artigo a Constituição Federal acena para o reconhecimento da diversidade étnica e cultural brasileira. Partindo dessas reflexões, para um aprofundamento na discussão sobre os vários aspectos que constituem a temática quilombola no Brasil, este capítulo traz um recopilado panorama histórico que remete à chegada dos primeiros escravos africanos, sua contribuição na formação sociocultural brasileira, assim como a resistência ao processo de escravidão. 45 Discorre também sobre a formação das comunidades quilombolas em Minas Gerais, focando a região norte mineira e finalmente a história da comunidade Agreste. Os Africanos no Brasil: contribuições e resistência A compreensão acerca da formação das comunidades quilombolas e a realidade sociocultural dessas na atualidade estão certamente associadas ao conhecimento do passado vivido pelos escravos e sua contribuição na formação de uma identidade afro-descendente, assim como as estratégias de sobrevivência e a resistência ao regime escravocrata. Para discorrer sobre essas dimensões neste capítulo, foi necessário revisitar esse passado através da documentação disponível na literatura, livros, artigos impressos e eletrônicos, entre outros. O processo de escravidão negra no Brasil durou cerca de trezentos anos e de acordo com a literatura pesquisada não se sabe a data exata da chegada dos primeiros africanos no Brasil. Alguns dados indicam que os africanos aportaram a partir da primeira metade do século XVI, outros autores indicam a segunda metade. Para o historiador Clóvis Moura (1983), a primeira leva de escravos vindos da África ocorreu em 1549, quando o primeiro contingente é desembarcado em São Vicente, porém, alguns historiadores acreditam que bem antes dessa data já haviam desembarcado negros por essas terras. Já Brandão (1978) cita duas datas como prováveis para chegada dos negros africanos. Um foi talvez por volta de 1531, quando a caravela de Martin Afonso de Souza encontrou navios de transporte de escravos, outra em 1538, quando Jorge Bixorda enviou carregamento regular de negros ao Brasil. O fato concreto é que começaram a chegar ao século XVI, para trabalhar com a produção de açúcar que se constituiu na primeira atividade rentável e a partir da qual teve início a construção da base econômica do país. De acordo com as diversas teses sobre a escravidão no Brasil, os negros foram trazidos com o objetivo de constituir a mão-de-obra do colonizador português, que não aceitava fazer o trabalho braçal em nome de uma nobreza muitas vezes auto-outorgada. Todavia para Munanga e Gomes (2006), os colonizadores, para conseguir mão-de-obra necessária, recorreram a um procedimento chamado escravidão, os quais buscaram destituir as populações indígenas de todos os seus direitos sobre a terra de seus ancestrais e de seus direitos humanos e transformando-os em força animal de trabalho. Porém, com a resistência da arredia população ameríndia a este processo, o que culminou com sua massiva exterminação, abriu-se um caminho ao tráfico negreiro, que trouxe 46 ao Brasil milhões de africanos, que escravizados, forneceram a força de trabalho necessária ao desenvolvimento econômico da colônia. Os africanos e seus descendentes, por mais de três séculos de escravidão, constituíram a força de trabalho necessária ao desenvolvimento da colônia. Entre as várias contribuições relevantes dos negros africanos na construção do Brasil, além da econômica mencionada anteriormente, podemos citar a demográfica, contribuindo para o processo de territorialização e ajudando no povoamento, o que indica um grande contingente de negros que desembarcara em solo brasileiro: [...] a evolução demográfica, segundo alguns autores, mostra que, até 1830, os negros constituíam 63% da população total, os brancos 16% e os mestiços 21%. A partir de 1850, data da abolição do tráfico negreiro, acompanhada pela extinção da escravidão em 1888, a população negra começou a decrescer sensivelmente por causa das más condições da vida em que se encontrava e da mestiçagem com brancos e índios (MUNANGA; GOMES, 2006, p. 20) No aspecto cultural, foram significativas as contribuições dos negros africanos, como na dança, nas artes plásticas, na arquitetura, na língua portuguesa, no campo da religiosidade e na música. Com relação à música e dança temos o coco, jongo, maculelê, maracatu, bumbameu-boi, os congados e também o samba, que de acordo com alguns autores é um referencial da identidade cultural brasileira. Aspectos que foram amplamente retratados na literatura nacional, em obras de autores como Mario de Andrade22. Quanto à religiosidade, o Candomblé, a Umbanda e a Macumba, que fazem parte da religiosidade popular afro-brasileira, são representativos da herança dos negros africanos ao Brasil. A influência e contribuição dos negros na língua portuguesa também foram representativas, com a introdução de um vocabulário de muitas palavras africanas que são utilizadas cotidianamente pelos brasileiros, como por exemplo: acarajé, bagunça, calunga, dendê, fubá, marimba, muvuca, quitanda, vatapá, entre outras. Enfim, a abundância da contribuição cultural africana na formação da cultura brasileira fica evidente nas manifestações populares. Contudo, esses traços culturais que foram inseminados na cultura brasileira representam também uma história de luta e resistência ao processo de escravidão. “Onde houve escravidão houve resistência”. (REIS; GOMES, 2008, p. 9). 22 ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. 47 Entre as formas de resistência utilizadas, houve um tipo que pode ser considerada como a mais característica e simbólica: a fuga de escravos. Essas fugas levavam à formação de grupos de escravos fugidos, onde se associavam também outros personagens sociais. No Brasil esses grupos eram chamados principalmente de quilombos, calhambos, calhambolas ou mocambeiros. Este processo de aquilombamento ocorreu onde houve escravidão dos africanos e seus descendentes, contudo não eram as únicas formas de resistência dos negros perante a escravidão. Rebeliões, insubmissão às regras do trabalho nas roças ou plantações onde trabalhavam, os movimentos espontâneos de ocupação das terras disponíveis, fugas, abandonos das fazendas pelos escravos, assassinatos de senhores e suas famílias, suicídios, organizações religiosas e revoltas organizadas também fizeram parte da história da escravidão no Brasil. Quilombo: aspectos conceituais No momento hodierno, a temática quilombola vem alcançando maior visibilidade no universo social nacional, exigindo para seu estudo enquanto temática específica, a cooperação de múltiplas disciplinas e formações acadêmicas, sendo discutida por várias áreas do conhecimento, como a antropologia, sociologia, história, filosofia e fundamentalmente neste trabalho, por um viés etnomusicológico. Para uma reflexão teórico-conceitual sobre o termo quilombo, buscou-se fazer primeiramente uma referência ao passado histórico do período colonial, quando se tem pela primeira vez no Brasil, de acordo com os autores pesquisados, o uso formal jurídico do termo. No significado que remete ao período escravista o termo quilombo é entendido como “reduto de negros escravos fugitivos”. De acordo com Moura, citado por Munanga e Gomes (2006), em 1740 o Conselho Ultramarino, órgão colonial responsável pelo controle central patrimonial, definiu formalmente quilombo como “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”. Este “conceito jurídico-formal que ficou, por assim dizer, frigorificado” (ALMEIDA, 2002, p. 47) ainda é utilizado por alguns autores, contudo insistir nessa definição consiste em invisibilizar o real significado e história desses grupos. Quanto à semântica do termo, de acordo com Munanga e Gomes (2006): a palavra Kilombo é originária da língua banto umbundo, falada pelo povo ovibundo, que se refere a uma instituição sociopolítica militar conhecida na África Central, mais especificamente na área formada pela atual República Democrática do Congo (antigo Zaire) e Angola, e apesar de ser um termo 48 umbundo, constitui-se em um grupamento militar composto pelos Jaga ou Imbangala (de Angola) e os Lunda (do Zaire) no século XVII (MUNANGA e GOMES, 2006, p. 71). Ainda na perspectiva desses autores, a palavra quilombo, na África, refere-se a uma associação de homens, aberta a todos, onde esses eram submetidos a rituais de iniciação que os integravam como co-guerreiros num regimento de super-homens invulneráveis às armas inimigas. No ponto de vista de Théo Brandão (1978) quilombo é uma palavra que nomeia o auto ou dança dramática e é corrente no Brasil para o reduto de negros, fugidos dos engenhos de açúcar e fazendas, onde se encontravam em cativeiro, sobretudo durante o período colonial. Os sítios de fuga e de defesa eram chamados geralmente de quilombos, palavra oriunda da língua dos negros que neles predominavam, os bantos, e que significava exatamente, de acordo com a opinião da maioria das autoridades, habitação (kilombo em língua bundo-angolense). A partir dessas definições, na busca de novas abordagens e interpretações, o conceito de quilombo vem sendo ressemantizado, de forma que “é necessário que nos libertemos da definição arqueológica” (ALMEIDA, 2002, p. 43). Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio (O‟DWYER, 2002, p. 18). Os termos “quilombos”, “quilombolas”, “terras de pretos”, “comunidades negras rurais” e “comunidades remanescentes de quilombos” vêm sendo objeto de debate não apenas nos meios acadêmicos, mas também no âmbito das políticas públicas, tendo adquirido visibilidade e uma significação atualizada principalmente após o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal brasileira de 1988, que visa garantir os direitos territoriais e culturais aos remanescentes de quilombos, como descrito no início deste capítulo. Conforme O‟Dwyer (2002), o emprego do termo remanescente de quilombo na Constituição Federal traz a seguinte questão: quem são os chamados remanescentes de quilombos cujos direitos são atribuídos pelo dispositivo legal? A resposta a essa questão no âmbito jurídico-legal é crucial para as comunidades, pois envolve a sua forma de organização 49 interna, o acesso fundamental ao seu território histórico e o alcance de benefícios sociais especificamente direcionados aos quilombolas. Para Santos e Camargo (2008) é a definição conceitual que pode determinar a inclusão de uma parcela da população brasileira nessa categoria histórica e antropológica. Do ponto de vista jurídico-legal, não há na Constituição da República uma conceituação própria. Essa definição se encontra estabelecida no Decreto 4887, de 2003, que define as comunidades quilombolas como “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (SANTOS; CAMARGO, 2008, p. 36). É importante sublinhar que nesta concepção a caracterização do grupo enquanto quilombola está subordinada ao critério de auto-atribuição a ser definida pela própria comunidade. Na atualidade o conceito de quilombola se dilatou, não está mais condicionado e preso no termo histórico. Para Arruti (2003), o quilombo hoje é reconhecido pelas suas características antropológicas e territoriais. A relação da comunidade com o território (uso e apropriação), com a cultura de matriz africana e com a política é que estabelecerá se uma comunidade é quilombola ou não. As formas de uso do território são outro diferencial considerado nos estudos na atualidade, que passaram a conceber as comunidades quilombolas como as chamadas populações tradicionais, que são grupos sociais que vivem, por períodos relativamente longos, em um espaço geográfico definido e constroem sua identidade a partir das relações que estabelecem com o território que ocupam. Essas relações caracterizam-se pela ocupação da terra predominando seu uso comum, sendo que a utilização dessas áreas obedece à sazonalização das atividades, sejam extrativistas ou outras, caracterizando diferentes formas de uso e ocupação dos elementos fundamentais ao ecossistema, que tomam por base laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade. O‟Dwyer (2002), considera que o texto constitucional não evoca apenas uma identidade histórica às comunidades quilombolas, segundo o texto é preciso, sobretudo, que esses sujeitos históricos presumíveis existam no presente e tenham como condição básica o fato de ocupar uma terra, que, por direito, deverá ser em seu nome titulada. Esse aspecto presencial, focalizado pela legislação, tem levado antropólogos a seguir um princípio básico: fazer o reconhecimento teórico e encontrar o lugar conceitual do passado no presente. Assim, qualquer invocação do passado deve corresponder a uma forma atual de existência capaz de 50 realizar-se a partir de outros sistemas de relação que marcam seu lugar num universo social determinado (O`DWYER, 2002, p. 14). Segundo Santos e Camargo (2008), o reconhecimento dessa condição social foi estabelecida pelo decreto 6.04023, de 7 de Fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, onde em seu artigo 3º define que essas populações: “são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição” (SANTOS; CAMARGO, 2008, p. 36). O reconhecimento dessas populações também ultrapassa a visão positivista de homogeneidade da população, a concepção de “povo brasileiro” como atesta Almeida (1999). Essa idéia carrega a noção de que a sociedade é homogênea e que nela há uma única identidade coletiva por todos igualmente compartilhada. Na nova concepção, surge a idéia da diferenciação social e da diversidade cultural no seio de uma mesma sociedade. Essas mudanças vêm sendo provocadas pelas lutas e articulações políticas dos movimentos sociais, que buscam seus espaços em uma sociedade mais ampla, dominante e homogenizadora. O fenômeno mais importante nesse sentido é que as novas identidades se organizam em movimentos sociais (ALMEIDA, 1999, citado por SANTOS; CAMARGO, 2008, p. 37). No modo de ver do antropólogo Alecsandro Ratts (2000), a discussão sobre quilombos no Brasil é longa e complexa, a utilização ampla do conceito de quilombo e de remanescente de quilombo merece ser discutida com cautela, levando em conta que pode causar certa mescla e confusão conceitual que pretende dar conta da diversidade de formas de acesso à terra e das formas de existir das comunidades negras rurais. “É preciso então tomar cuidado, pois um conceito amplo de quilombo, usado política e juridicamente, corre o risco de ser generalizado de uma realidade que é historicamente diversa e particular” (RATTS, 2000, citado por MUNANGA e GOMES, 2006, p. 75). Baseando-me nessas definições, tomo como referência para este trabalho o conceito evidenciado por Santos e Camargo (2008), onde uma comunidade quilombola é aquela que apresenta relações de parentesco entre seus membros; descendência africana e vínculos históricos e culturais com determinado território, independentemente da época em que foi 23 Em anexo. 51 formada. A permanência de elementos de cultura africana pode ser observada ou não na atualidade; porém, referências a um passado relativamente próximo são mantidas. Minas Gerais e sua constituição quilombola O Estado de Minas Gerais foi um dos estados brasileiros que possuiu maior população negra escrava do país. Esse fato se deu devido à descoberta de ouro e posteriormente de diamante, que provocou um intenso fluxo migratório para Minas Gerais em fins do século XVII. Bandeirantes paulistas, “na caça ao índio, ao ouro e às esmeraldas” (SILVA, 2005, p. 68), juntamente com baianos e pernambucanos migraram para Minas Gerais e trouxeram consigo um grande contingente de negros escravos. Para Ramos (2008) a escravidão foi a forma dominante de organização do trabalho no surgimento da sociedade mineira e é no contexto do sistema escravocrata por inteiro que os quilombos podem ser mais bem examinados. A atividade mineradora teve seu apogeu na primeira metade do século XVIII, onde a necessidade de mão-de-obra para a exploração mineral e a ávida corrida pelo ouro durante a primeira metade do século causaram uma maior valorização do negro escravo na região. A demanda por trabalhadores, assim como as dificuldades encontradas com o tráfico, valorizaram o preço da mão-de-obra. Com essa valorização, proprietários de escravos de São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco também migraram para as Minas, onde os negócios tornaram-se mais rendosos. O fluxo de migrantes e a grande riqueza mineral da região fizeram com que Minas Gerais se transformasse no centro do poder econômico do país durante o século XVIII. A classe escrava destacou-se por seu grande número e rebeldia desde princípios do século XVIII. Existem indicadores que a classe escrava nunca foi inferior a 30% da população total em Minas Gerais, e que em algumas regiões a população livre foi menor que a população escrava. Por sua vez, a classe forra, que na primeira metade do século XVIII equivalia a apenas 1,2% da população escrava, em 1786 era 35% da população total e em 1808 atingiu 41% (GUIMARÃES, 2008, p. 142). Concomitante ao processo de escravidão, a fuga dos escravos e a conquista de terras para viver em liberdade marcaram a história do estado, que se tornou um grande celeiro de comunidades quilombolas. Após a abolição da escravatura, muitos quilombolas, ou calhambolas, como eram chamados em Minas Gerais, permaneceram nos territórios 52 conquistados por seus antepassados ou ocuparam novos espaços a fim de iniciar uma vida de liberdade. Nessa trajetória de luta histórica, muitos territórios foram ocupados. Atualmente, os descendentes de escravos se articulam na luta para conseguir se manter em suas terras e ter seu direito de propriedade sobre elas. E neste contexto de sistema escravocrata, os quilombos marcaram esse período da história de Minas Gerais constituindo umas das mais complexas formas de reação à escravidão. Há vestígios de que a maioria das comunidades quilombolas em Minas Gerais surgiu a partir da abolição da escravidão em 1888, como afirmam Santos e Camargo (2008), onde grande parte dos negros não tinha local para fixar moradia, nem tão pouco, perspectiva de integração à sociedade. Dessa forma muitas famílias de escravos alforriados migraram para locais ermos, grotões e terras desabitadas. Diferentes tipos de quilombo se formaram em Minas Gerais, alguns com grupos menores que viviam de roubos a fazendeiros nas estradas, até grupos com estruturas complexas formando vilarejos. As atividades desenvolvidas para sobrevivência foram variadas, como a caça, agricultura, criação de animais, mineração, contrabandos, etc. Essas comunidades, apesar de formadas no movimento de luta e resistência, em muitas ocasiões eram toleradas pelo regime dominante, onde existiam formações de comércio e mão-de-obra escrava ou barata. Guimarães (2008) enfatiza essa questão expondo os diversos tipos de ligações entre os quilombos e a sociedade escravista: [...] relações comerciais clandestinas com contrabandistas, taverneiros, negras de tabuleiro e fazendeiros; ataques a viajantes, tropeiros, fazendas, periferias de vilas e aldeias; uma rede de informações que começava dentro das senzalas e terminava dentro dos quilombos; relações afetivas estabelecidas entre escravos, forros e quilombolas, visto que estes comumente freqüentavam as periferias dos centros urbanos ou fazendas do meio rural (GUIMARÃES, 2008, p. 143). Essas relações contribuíram para a multiplicação dos quilombos, que, embora causassem estragos, serviam também como válvula de escape às tensões da escravidão. Povos de diferentes regiões da África foram a base da formação das populações quilombolas em Minas Gerais, como os Banto24, os Mina-jêje25, os Iorubas e Haussás26. 24 Povo originário das regiões Sul e Sudeste da África. Oriundos do Oeste da África. 26 Originários da região nagô, situada na região Oeste da África. 25 53 Quilombos em Minas Gerais: situação atual Para um estudo amplo sobre a situação geográfica, educacional, social e cultural das comunidades quilombolas mineiras na atualidade, foi realizada uma pesquisa nos textos da Fundação Cultural Palmares e do CEDEFES – Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva, assim como trabalhos do antropólogo João Batista de Oliveira Costa, entre outros. De acordo com as análises e reflexões, pôde-se constatar que essas comunidades podem ser consideradas como um dos segmentos sociais mais pobres, esquecidos e desconhecidos da nossa sociedade, pois pouco se sabia sobre elas até o início dos anos 2000. Tanto os órgãos públicos, as organizações não governamentais (ONGs), como as entidades privadas ligadas às questões da população afro-descendente no Estado não dispunham, até início da década de 2000, um maior conhecimento do universo quilombola. Quem são, onde vivem e como vivem essas comunidades ainda são questões que requerem maior atenção de todos os segmentos da sociedade mineira. Panorama da distribuição populacional quilombola em Minas Gerais De acordo com o CEDEFES (2008), até Junho de 2007 foram localizadas 435 comunidades negras27 em cerca de 170 municípios (FIG. 1), em 20% do total de municípios do Estado. Berilo, Chapada do Norte, Minas Novas, Virgem da Lapa e Araçuaí, compõem no Vale do Jequitinhonha, a maior concentração de quilombos do Estado. No Médio São Francisco, há uma grande concentração nos municípios de Janaúba, Manga, Januária e Pai Pedro, que juntos representam o que o antropólogo João Batista Almeida Costa (1999) define como “campo negro”. Com estudos realizados pelo CEDEFES em 154 comunidades, foi possível verificar uma média de 54 moradias por comunidade. As comunidades que possuem maior número de moradias são Brejo dos Criolos, no Norte de Minas, com 438, e Pinhões, na região da grande Belo Horizonte, com 350. A média da população encontrada é de 264 pessoas por comunidade. Com base nos dados estima-se que a população quilombola em Minas Gerais seja de 100 a 115 mil pessoas. 27 Segue em anexo a lista das comunidades quilombolas catalogadas em Minas Gerais até 2007. 54 FIGURA 1 – Municípios com maior número de comunidades quilombolas Fonte: CEDEFES, 2007. Mais de 97% das comunidades pesquisadas estão localizadas em áreas rurais (FIG. 2). Durante o período de escravidão, os negros fugidos buscavam áreas desocupadas e distantes da população escravista e geralmente escolhiam locais de difícil acesso, como serras e matas fechadas, formando grupos que também continham índios, mestiços e até brancos. Com o fim da escravidão, essas populações não receberam qualquer compensação, assim, os grupos diversos se espalharam pela vastidão do Estado em busca de locais isolados em que pudessem sobreviver. Essa é ainda uma característica de boa parte das comunidades na atualidade. FIGURA 2 - Localização das comunidades quilombolas de Minas Gerais. Fonte: CEDEFES, 2007. A maior parte das comunidades quilombolas está concentrada nas regiões Norte de Minas, Jequitinhonha e Metropolitana de Belo Horizonte, onde se encontram mais de 70% do 55 seu total. No Vale do Rio Doce, 6,7%, na Zona da Mata, 4,8% e no Nordeste por volta de 3,4%. Outras regiões, como o Triangulo/Alto Paranaíba, a Central, Oeste, Sul e Campo das Vertentes, apresentam registros pouco significativos. FIGURA 3 – Localização das comunidades quilombolas segundo as Regiões geográficas. Minas Gerais. 2007. Fonte: CEDEFES, 2007. Aspectos do modo de vida Baseando nos dados levantados em 2006, em pesquisa realizada num universo de 180 comunidades quilombolas, o CEDEFES traz informações sobre infra-estrutura, saúde, educação, conflitos e outras situações enfrentadas por essas populações. Muitas comunidades em sua condição atual correm o risco de desaparecimento, tendo em vista que a falta de perspectiva de geração de renda ou de subsistência, tem criado grande migração dos moradores para os centros urbanos. Partindo desta observação, evidencio alguns dos resultados da pesquisa realizada pelo CEDEFES, contribuindo para a compreensão da realidade vivida por essas populações. Saneamento Tratamento de água, captação e tratamento de esgoto e coleta de lixo, são quase inexistentes nessas comunidades. O lixo acumulado e o esgoto são jogados nos cursos d‟água, o que desencadeia doenças de veiculação hídrica, como esquistossomose, amebíase, giardíase, cisticercose, infecções, cólera, verminoses, entre outras. Este quadro, juntamente com a falta de atendimento médico, tem aumentado o índice de mortalidade nas comunidades. 56 De acordo com o CEDEFES apenas 6,4% delas recebem a água tratada, as demais utilizam água in natura, retirada dos rios, córregos ou poços. Quanto ao saneamento a situação é ainda mais precária, pois existe apenas em quatro comunidades em 173 verificadas. Quanto ao atendimento médico e postos de saúde, em 345 comunidades pesquisadas pelo CEDEFES em 2006, apenas 16 (44%) possuem posto de saúde. Nenhuma comunidade, com exceção das urbanas, possui acesso rápido a hospitais. O PSF (Programa de Saúde da Família) tem atingido muitas comunidades e colaborado no atendimento médico e na prevenção de doenças. Abastecimento de energia elétrica e comunicações De 150 comunidades pesquisadas, somente 76 possuíam energia elétrica em 2006. Quanto à comunicação, poucas localidades possuem telefone público, apesar da grande demanda, e se configuram como reivindicações pertinentes para o desenvolvimento e para a geração de renda. Quanto ao sistema de correios a situação é precária, principalmente nas comunidades mais distantes, pois não existem agencias dos correios em muitas comunidades nem nas proximidades, exceto nas situadas em áreas urbanas. Educação No que se refere à educação, a situação é diferente da saúde. Parcela significativa das comunidades possui escola (até a quarta série) municipal ou estadual. Contudo a estrutura física da maioria dessas escolas se encontra em quadro de precariedade. Muitas funcionam ao ar livre, em prédios em péssimas condições e em alguns casos as aulas são ministradas em Igrejas. A formação do professor que leciona na comunidade e a resposta pedagógica ao ensino estão aquém da realidade e da necessidade dessas populações. O professor, na maioria das vezes não é da comunidade e, assim, dificilmente consegue adentrar no mundo etnicamente diferenciado dos alunos. A quantidade de escolas que lecionam até a oitava série tem diminuído. Os problemas são os mesmos das escolas até a quarta série, todavia, a obrigatoriedade da implementação da Lei 10.639, que inclui o ensino da história da África e dos afro-brasileiros, ainda não ocorre. 57 Titulação Desde o tempo de suas formações, as comunidades quilombolas viveram na invisibilidade, não sendo reconhecidas pelas políticas públicas e sequer sendo citadas pela legislação em vigor. Contudo, a situação vem tomando novos rumos com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que assegurou às comunidades quilombolas o direito à propriedade de suas terras. O primeiro item está definido no Art. 68, que já foi tratado neste trabalho. A outra referência constitucional está definida no Art. 216 quando enfatiza que “ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos” (SANTOS: CAMARGO, 2008, p. 51). Os procedimentos para a identificação e titulação das terras quilombolas são orientados por legislação federal e por legislações estaduais28. As legislações estaduais são seguidas quando a titulação é conduzida por um órgão do governo do estado. Em fevereiro de 2008 seis estados contavam com normas próprias para a regularização das terras de quilombo: Espírito Santo, Pará, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Sul e São Paulo. Na esfera federal, o INCRA é o órgão responsável por titular as terras de quilombo, seguindo os procedimentos estabelecidos no Decreto Federal nº 4.887 de 200329 e na Instrução Normativa 30 INCRA nº 49 de 2008. Com o Decreto nº 4.887 de 2003, o governo brasileiro aderiu a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, o que constituiu um novo avanço no reconhecimento dos direitos das comunidades. Segundo a Convenção 169, é pela autodefinição que uma comunidade tradicional se firma enquanto tal. Outro aspecto enfatizado na convenção é a proteção e o direito do uso dos recursos naturais das áreas onde os povos residem, permitindo que, nesse contexto, os mesmos participem dos ganhos. Quanto à Instrução Normativa INCRA nº 49 de 2008, publicada em outubro de 2008, mereceu o repúdio dos quilombolas e da sociedade. Essa é terceira instrução normativa editada pelo INCRA na gestão do governo Lula. A cada nova instrução, o governo adiciona novos empecilhos ao processo destinado a identificar e titular as terras quilombolas. A mais recente norma do INCRA torna o processo de titulação ainda mais burocratizado, menos eficiente e mais oneroso. Só para a etapa de contestação administrativa, a IN 49/2008 prevê um prazo de até nove meses. A concretização das titulações, portanto, está seriamente comprometida. 28 Ver em: http://www.cpisp.org.br/htm/leis/conheca_quilombos_estadual.htm Decreto em anexo. 30 Ver em: http://www.cpisp.org.br/htm/leis/fed44.htm 29 58 Até Agosto de 2003, havia registro de três pedidos para titulação das terras quilombolas no INCRA de Minas Gerais. Porém esses números vêm aumentando gradativamente, sendo que a cada semana novos processos estão chegando ao órgão. O cadastramento das comunidades para obtenção do título da terra e outros benefícios, deve ser feito na Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura. O procedimento é feito da seguinte forma: após o processo de auto-reconhecimento, a comunidade encaminha a Brasília o pedido de registro no cadastro. A Fundação Cultural Palmares já cadastrou, até Junho de 2007, 116 comunidades quilombolas em Minas Gerais. Conflitos e tensões Conflitos e tensões fazem parte da realidade vivida pelas comunidades quilombolas em Minas Gerais. A falta de políticas públicas ou o desconhecimento pelos quilombolas dos projetos de governos, que podem beneficiá-los, dificultam a sustentabilidade destes grupos em seus locais tradicionais. Problemas relacionados à grilagem de terras são um dos principais fatores de conflitos nas terras quilombolas. Muitas comunidades perderam seus terrenos para grileiros nas décadas de 60, 70 e 80 do século XX. Além da grilagem de terras, a ocupação das terras quilombolas para monocultura de eucalipto, a mineração, seja na forma de expropriação das terras, como da destruição e poluição do seu ambiente, tem sido motivo de preocupação comum para muitas comunidades. Nas comunidades do Norte de Minas especificamente, a dificuldade de acesso e a baixa qualidade da água são dificuldades visíveis, onde as regiões de melhor acesso a água ficaram sob o domínio de fazendeiros. Para concluir, é importante frisar os problemas causados pela poluição ambiental nas áreas quilombolas. As atividades de monocultura, mineração, hidrelétricas e de pecuária no entorno e dentro dos territórios tradicionais quilombolas comprometem as práticas comuns como a pesca, a caça, a cata de raízes e frutos, entre outras, que transitam nas esferas da cultura e da subsistência das comunidades (SANTOS; CAMARGO, 2008, p. 82). Cultura e religiosidade As comunidades quilombolas de Minas Gerais mantêm uma significativa variedade de expressões musicais e religiosas. Manifestações culturais tradicionais que são transmitidas 59 oralmente através da manutenção de lendas e mitos, como o caboclo d‟água 31, a mãe do ouro32, o bicho fortaleza33, entre outros. O artesanato, trabalhos em cerâmica, o buriti, a palha e a madeira constituem uma forte expressão no Norte e Vale do Jequitinhonha, assim como a feitura de bonecas de pano e retalho. A culinária das comunidades, baseada na cultura do milho e da mandioca, ervas e temperos, também é uma característica comum de matriz africana, que se expressa em inúmeras festas e celebrações. A couve, a galinha, o angu e o feijão são comumente usados na alimentação do dia-a-dia. Nas comunidades ribeirinhas a caça e o peixe são mais consumidos. Quanto às manifestações culturais, o Congado e suas variantes estão presentes em quase todas as regiões do Estado de Minas Gerais. A Folia de Reis é também uma manifestação tradicional presente em várias comunidades, principalmente no Norte de Minas. As comunidades quilombolas de Minas Gerais possuem forte religiosidade cristã, fundada no catolicismo popular mesclado com práticas expressões musical-religiosas, como o Batuque, o Congo, a Marujada, a Caretada, o Candonmbe, o Lundum-de-pau, a Chula, o Caxambu, a Tapuiada, a Dança de São Gonçalo, a Umbigada, o Sapateado, o Catopé, o Caboclo, o Moçambique e o Jongo34 (SANTOS; CAMARGO, 2008, p. 63). As festas Juninas também são expressões freqüentes nas comunidades. Comunidades Quilombolas do Norte de Minas: constituição e características A região do Norte de Minas Gerais (FIG. 13) constitui como uma das 12 mesorregiões35 do Estado e é formada pela união de 89 municípios agrupados em sete 31 As comunidades quilombolas ribeirinhas do São Francisco têm uma forte ligação com o caboclo d‟água, uma entidade que vive dentro do rio e pode se transfigurar em várias formas de homens, mulheres, canoas, peixes, entre outras formas físicas ou abstratas. 32 A mãe do ouro é recorrente nas comunidades que estão nas antigas áreas mineradoras. Segundo uma moradora da comunidade de Mato do Tição, no município de Jaboticatuba, a mãe do ouro aparece sempre de branco e à noite para atrair os homens com uma luminosidade hipnótica. Os homens vão atrás dela e nunca conseguem encontrá-la, sempre ficam perdidos. 33 A história do bicho fortaleza foi relatada por moradores do quilombo de Mumbuca, no município de Jequitinhonha. Ele é a alma de um antigo morador que batia na mãe com a mão de pilão. Todos os moradores temiam esse rapaz, e, quando ele faleceu, sua alma, na forma de uma criatura grande e peluda, assombrava os moradores. Sua família descobriu que, oferecendo ao bicho fortaleza alimento durante certo período do ano, ele sossega e não incomoda os moradores. 34 Sobre essas manifestações ver: SANTOS, Maria Elisabete Gontijo dos; CAMARGO, Pablo Matos. Comunidades quilombolas de Minas Gerais no século XXI: história e resistência. Belo Horizonte, MG. Autêntica, 2008, p. 63-74. 35 Mesorregião é uma subdivisão dos estados brasileiros que congrega diversos municípios de uma área geográfica com similaridades econômicas e sociais. Foi criada pelo IBGE e é utilizada para fins estatísticos e não constitui, portanto, uma entidade política ou administrativa. 60 microrregiões36. Possui características similares às da Região Nordeste do Brasil com um clima quente, beirando o semi- árido37, formada por Planalto Atlântico. Essa região, assim como o nordeste mineiro, pertenceu ao estado da Bahia até meados de 1757 e mantêm uma economia baseada na pecuária e extrativismo vegetal. Nessa região, a maior parte das comunidades quilombolas se encontra nos vales dos rios Verde Grande e Gurutuba. A história dessas comunidades na região norte mineira remete ao século XVII. “É importante frisar que nos idos de 1660 os africanos e seus descendentes já haviam instituído comunidades quilombolas no vale do rio Verde Grande” (COSTA, 2005, p. 3). FIGURA 4 – Municípios com comunidades quilombolas: mesorregião Norte de Minas. Fonte: Projeto Quilombos Gerais. CEDEFES – 2007. A formação de quilombos constituiu-se em estratégia utilizada pelos africanos que, escravizados, ansiavam por liberdade e, assim, instituíram alternativas ao sistema escravista hegemônico, então vigente. O princípio subjacente à formação de quilombo constitui-se na busca de lugares de difícil acesso que propiciassem o estabelecimento de barreiras estruturais, que tanto podiam ser naturais quanto sociais. Os agrupamentos 36 37 Microrregião é, de acordo com a Constituição braileira de 1988, um agrupamento de municípios limítrofes. Sua finalidade é integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum, definidas por lei complementar estadual O clima semiárido é um tipo de clima caracterizado pela baixa umidade e pouco volume pluviométrico. Na classificação mundial do clima, o clima semiárido é aquele que apresenta precipitação de chuvas média entre 300 mm e 800 mm. 61 humanos aquilombados pretendiam, dessa forma, impedir o contato do mundo branco e escravista com o mundo negro vivendo em liberdade. Neste sentido, as barreiras naturais apresentavam-se como: serras de difícil acesso – Palmares -; áreas acima de corredeiras e cachoeiras próximas às cabeceiras de rios – Erepecuru-Cuminá e Trombetas -; áreas alagadas e com proliferação de doenças endêmicas, principalmente a malária – Baixada Fluminense e região da Jahyba no Norte de Minas (COSTA, 2008, p. 25). Ainda segundo Costa (2008), antes da chegada dos bandeirantes paulistas e baianos no que é hoje o território mineiro, africanos fugidos da escravidão se fixaram em diversas áreas. A bandeira de Mathias Cardoso de Almeida, que ocupou a partir de 1660 a região do Médio São Francisco, tinha como funções aprear indígenas para vender como escravos na Vila de São Paulo e exterminar os quilombos existentes na área. Contudo, condições ambientais propiciaram a proliferação de endemias, o que impossibilitou a fixação de currais e afastou a população branca e indígena do vale do rio Verde Grande, região denominada por eles como Jahyba – “‟água podre”, “água ruim”. Para Costa (2005) a palavra tupi-guarani jahyba, dependendo da forma de se articular as sílabas que a constituem, tem como significação “água podre”, “água má”, “lugar de difícil acesso e esquisito” e, finalmente, “brenhas do mato”. “Com esta denominação os bandeirantes formadores do norte de Minas e do sertão sul da Bahia queriam informar a existência de malária no rio Verde Grande em toda a extensão do seu vale” (COSTA, 2005, p. 2). E como a população de origem africana apresentava maior resistência a essa doença endêmica, a malária serviu como escudo protetor da ocupação do local por escravos. O mesmo autor considera que o clima tropical com média anual em torno de 32o e media pluviométrica em torno dos 900 mm anuais, foram fatores climáticos que contribuíram para a proliferação da malária na região, assim: Essas condições ambientais propiciaram a existência de endemia de malária que afastou a população branca e indígena do interior do vale do rio Verde Grande38 e, como terra de ninguém ou como terra que ninguém queria, os negros fugitivos da escravidão no período colonial e imperial escolheram para situar-se com liberdade e autonomia de vida. No interior dessas condições ambientais centenas de pequenos núcleos negros, como quilombos ou calhambos como referenciados regionalmente, foram formados e deram origem a dezenas de pequenas comunidades negras rurais, muitas das quais, atualmente, reivindicam para si os direitos vinculados ao Art. 68 dos ADCT. (COSTA, 2008, p. 2). A estratégia usada pelos quilombolas para sobrevivência nessas áreas resultou num processo de invisibilização eficaz, o que proporcionou que a organização comunitária do 38 Nesse sentido vide Santos (1997) e Maurício (1995). 62 território permanecesse inalterada até meados do século XX. Esse quadro começa a mudar quando se dá a instalação da estrada de ferro nos anos de 1940, feita com objetivo de ligar o Rio de Janeiro a Salvador, o que favoreceu a penetração da população branca. Na construção desta rede foram utilizadas como mão-de-obra, moradores das comunidades negras rurais que viviam no interior da Mata da Jahyba. A utilização de mão-de-obra negra se deve à malária endêmica que ocorria na região e que requereu do governo federal implantar dois postos de tratamento a esta doença, um em Montes Claros e outro em Monte Azul, quase na divisa com a Bahia. Durante o governo Dutra, começa o combate à malária, com a presença de funcionários da SUCAM39 desinseticizando o interior da mata e as lagoas, além da distribuição de aralém. E foram os inseticidas e o aralém que propiciaram o processo de afazendamento dos pecuaristas nas terras do vale do rio Verde Grande, conforme João Vale Maurício, citado por Costa (2005). os inseticidas e o aralém permitiram aos nossos pecuaristas invadirem o Vale do Rio Verde Grande, com suas terras maravilhosas, antes totalmente proibidas pela altíssima incidência da malária. Foi assim que surgiram as primeiras grandes fazendas, enriquecidas de exuberante pastaria do colonião. Podemos dizer que os nossos fazendeiros desceram os cerrados e caminharam para a riqueza dos vales (MAURÏCIO, 1995, p. 163, citado por COSTA, 2005, p.4). A situação social do Norte de Minas na atualidade, se apresenta com um Índice de Desenvolvimento Humano de 0,540, inferior à do Nordeste (0,548), sendo considerada uma das regiões mais pobres do país. As fontes para a geração de renda das comunidades quilombolas são bastante limitadas. A maioria dos moradores são trabalhadores rurais pagos pelo sistema de diárias, por fazendeiros, contudo, a demanda de trabalho não é constante, assim algumas comunidades se articulam para comercializar seus produtos em feiras locais, tendo no artesanato uma fonte de renda. Essas dificuldades levam à migração sazonal entre os moradores, que se dirigem para São Paulo e Paraná, dedicando ao trabalho na colheita de café e o corte de cana. Essa migração na busca de trabalho costuma durar seis, sete meses, fazendo com que diversas comunidades ficam basicamente com a população de crianças, mulheres e idosos durante metade do ano. Outro fator ligado a essa situação de sazonalidade, é que a população feminina jovem das comunidades, usualmente migra para centros urbanos em busca de trabalho doméstico e muitas não retornam. Todos esses fatores provocam a perda dos vínculos 39 Superintendência de Campanha de Saúde Pública 63 familiares e culturais, acarretando em muitas ocasiões a falta de transmissão dos saberes tradicionais, o que pode causar a “extinção” dessas práticas. Muitas comunidades quilombolas norte mineiras, vivem quase que somente da subsistência e da prática do escambo de produtos produzidos nas comunidades, todavia a aposentadoria rural e a bolsa família são a segurança de renda para essas populações. Quanto ao reconhecimento regional desses grupos, as populações tradicionais no Norte de Minas são denominadas de formas distintas, dependendo do bioma da região, variando a denominação de acordo com o bioma em que estão inseridos no cerrado ou na caatinga. São conhecidos como geraizeiros, caatingueiros, vazanteiros, chapadeiros e ribeirinhos. Os que vivem nas chapadas da margem esquerda do São Francisco são conhecidos como chapadeiros. Os veredeiros e os campineiros localizam-se na margem direita. Já os que vivem nos vales do rio Verde Grande e do Gurutuba, são denominados geraizeiros e caatingueiros. Os que vivem nos sopés da serra do Espinhaço, na região da Serra Geral, são também chamados de caatingueiros. Os barranqueiros vivem nas margens do rio São Francisco. Já são 153 comunidades identificadas na região, passando assim a ser considerada a região com maior número de comunidades quilombolas, através de levantamento feito até 2007. Santos e Camargo (2008) reiteram que foram encontrados dois grandes campos negros: um na região do rio Gurutuba, com cerca de 30 comunidades, e outro na região da Jaíba. 40 A área foi denominada como Território Negro da Jahyba (Costa, 2001) e tem sido largamente utilizada pelo movimento social regional e estadual, como expressão histórica e simbólica da resistência negra em Minas Gerais. A ampla ocupação negra do vale do rio Verde Grande pode atestar os pedidos de reconhecimento como remanescentes de quilombos feitos por 62 comunidades rurais negras situadas no interior do referido vale. Até o momento, apenas a comunidade Brejo dos Crioulos recebeu o título de reconhecimento, o que trouxe uma série de benefícios a essa população. Este acontecimento se deu no ano de 1998 e começou a ser difundido entre as comunidades negras rurais do Território Negro da Jahyba. 40 Jaíba é um município do estado de Minas Gerais. Sua população estimada em 2008 era de 31.758 habitantes . Jaíba limita a norte com os municípios de Matias Cardoso e Gameleiras, a oeste com Itacarambi, a leste com Pai Pedro e a sul com Varzelândia, Verdelândia e Janaúba. 64 Segundo Costa (2005) somente no final dos anos 1990, as famílias de Brejo dos Crioulos encaminharam solicitação à Fundação Palmares e ao Ministério Público Federal em Belo Horizonte, tanto para o reconhecimento como comunidade remanescente de quilombos, quanto à regularização fundiária. A partir dessa ação, o Território Negro da Jahyba começou a ser visibilizado e a história regional a ser reescrita ao reconhecer o papel crucial dos negros na constituição da sociedade regional. Dessa forma, Brejo dos Crioulos apresenta-se no cenário do Território Negro da Jahyba como a “locomotiva” que deu partida ao processo de territorialização étnica ao posicionar-se para conquistar os direitos advindos do Art. 68 dos ADCT. A comunidade quilombola Agreste: formação e características básicas A comunidade quilombola Agreste (FIG. 5) está localizada no interior do vale do rio Verde Grande, que corta a região norte mineira no sentido sul/norte desde Montes Claros, até a divisa com a Bahia. É um povoado do município de São João da Ponte/MG e encontra-se situado na divisa entre o município a que pertence e o município de Capitão Enéas, à margem direita do rio Verde Grande, a uma distância de aproximadamente cento e trinta quilômetros de Montes Claros e quinhentos e setenta quilômetros da capital mineira, Belo Horizonte. Agreste é cercada por duas grandes fazendas, como indicado no Croqui (FIG. 8), dedicadas à pecuária extensiva. A comunidade possui uma única escola municipal de ensino fundamental41 (FIG. 6), que foi recentemente construída em novo local; um posto de saúde dotado de poucos recursos para apoio às ações do Programa de Saúde da Família; 5 casas comerciais, sendo uma mercearia e 4 vendas. A comunidade se fixou ao redor de uma igreja, como é característico nas formações das comunidades rurais. A formação arquitetônica do povoado é relativamente simples com casas antigas feitas de adobe e telha comum, contudo há casas mais modernas feitas de tijolos e telhas do tipo francesa, colonial ou amianto. Em Agreste, também são realizados cultos evangélicos, que acontecem em uma casa de um membro vinculado à Congregação Cristã do Brasil, contudo o evangelismo é recente na comunidade. Há um cemitério (FIG. 7), embora nas fazendas existam sepulturas que demarcam a territorialidade negra das mesmas. Conforme O‟Dwyer (2002), tão importante quanto o culto aos santos é o culto aos mortos, o culto aos antepassados que faz dos cemitérios um lugar sagrado, o lugar onde as cruzes marcam seus assentamentos. “(...) A crença fundamental é de que os mortos, depois de uma passagem, se transformam em 41 Escola Municipal Versol de Oliveira Lima. 65 espíritos, identidades sobrenaturais que devem ser cuidadas pelos vivos. Cabem a seus descendentes diretos esses cuidados” (O‟DWYER, 2002, p. 20). Em Agreste, existe energia elétrica e abastecimento de água a partir de poço artesiano, abertos em cada uma das habitações da localidade, assim como telefones públicos, localizados em pontos específicos. Existe também uma associação de moradores do povoado, que tem como objetivo coordenar o processo de desenvolvimento local, mas, objetivamente, serve apenas, para receber parcos benefícios disponibilizados pela administração municipal. “Uma característica fundamental na visão dos moradores é o esquecimento a que Agreste está relegada” (COSTA, 2008, p. 4). FIGURA 5 – Mapa da localização Estadual de Agreste. A geração de renda das famílias se dá por meio de assalariamento de alguns de seus membros nas diversas fazendas onde trabalham, e pela venda, esporádica, da mão-de-obra de homens para limpeza de pastos e conserto de cercas de arame, assim como o trabalho de mulheres para combate a formigueiros existentes nos pastos. Nos períodos em que há muito serviço nas fazendas, normalmente na colheita de milho e na matança de formigas, todos os dias, por volta das cinco horas, é possível ver um caminhão carregado de trabalhadores com destinos às fazendas da região e só retorna no fim do dia. 66 FIGURA 6 – Escola Municipal Versol de Oliveira Lima e a Igreja Católica. FIGURA 7 – Cemitério de Agreste. 67 FIGURA 8 – Croqui de Agreste cercada por fazendas. Fonte: PNNM, 2006 Croqui de Agreste FIGURA 9 – Croqui de Agreste. Fonte: PNNM, 2006 68 Lista de Moradores e Localidades de Agreste FIGURA 10 – Lista de moradores e localidades de Agreste, de acordo com o Croqui da FIG. 17. Fonte: PNNM, 2006. 69 A diminuta extensão de cada área familiar impede a produção de recursos essenciais à reprodução de suas vidas materiais, como lenha, peixes e trabalho. Assim, o trabalho assalariado e esporádico nas fazendas, se tornou a fonte de renda de grande parte dos moradores da comunidade. Processo de formação Agreste teve o início de sua formação em fins do século XIX, quando um grupo de irmãos vindos da região de Catuni42, antiga São Gonçalo do Gurutuba, no alto curso do rio de Gurutuba, se fixaram em diversas áreas, mas próximos um dos outros, como enfatiza Neri (2008). Aos poucos as relações com outros moradores das localidades vizinhas foram se fixando, notadamente, os de Vereda Viana e por meio de relações de casamento e compadrio foram instituindo a comunidade de Guandu, que foi o primeiro nome da localidade. Dessa forma, o processo de ocupação territorial de Agreste se deu seguindo um padrão no qual membros de uma família dispersados por uma ampla área, buscam através do casamento virilocal, requerer do noivo o estabelecimento do mundus familiar pela apropriação da terra e pela transformação da natureza em um sítio familiar43. Este processo favorece um tipo de interação social e organização de coletividades organizadas, apenas, pelos membros de uma família que se espalhavam por diversos pontos distanciados da área, as interações sociais propiciavam a coesão do grupo de parentes, que eram também amigos e, muitos, compadres. O território é composto por menos de dois alqueires, ocupados por 123 famílias e 407 pessoas44 de um total de vinte alqueires doados no passado por Josefina, esposa de Filisbino Martins de Castro, a Santo Antônio, o padroeiro da comunidade. Os moradores da comunidade estão relacionados entre si por laços de parentesco e relatam sua procedência a partir de cinco irmãos: Zizuíno Martins de Castro (Zuíno), Profile Martins de Castro, Maria Martins de Castro, Filisbino Martins de Castro e Joaquim Martins de Castro (Joaquim Rio Verde), que ocuparam aquelas terras antigamente, chamadas Gandú e onde hoje moram seus descendentes. Essa irmandade, que compunha o povo mais antigo45 dos Martins de Castro, corresponde a um grupo de irmãos que migrou para essa localidade no século XIX. 42 Catuni: é o nome da última elevação que a Serra do Espinhaço faz antes de chegar ao Rio São Francisco, na região norte mineira. 43 Nesse sentido, vide Woortmann (1995). 44 Dados do censo realizado por Renato Aquino Neri, durante trabalho de campo realizado pelo PNNM, entre os anos 2006 e 2008. 45 Povo mais antigo é uma categoria social local que se refere aos primeiros moradores. 70 Atualmente, Agreste é constituído por três troncos familiares bem definidos: Rodrigues Barbosa, Nunes dos Santos e Fernandes de Souza, todos originários do tronco ancestral Martins de Castro. Esses troncos se decompõem em oito grupos domésticos – Rodrigues Barbosa, Nunes dos Santos, Fernandes de Souza, Martins de Souza, Martins dos Anjos, Mendes Pereira, Gonçalves Martins e Santos. Com a fixação dos agrestinos na terra de santo 46, dada a exigüidade do território, começaram a surgir os primeiros grupos domésticos que iriam influenciar e moldar uma nova estrutura de parentesco com a ampliação das redes de solidariedade e das relações de troca para viabilizar a reprodução material e social do grupo. Maiores informações sobre esse processo em Neri (2008). Processo de reconhecimento da comunidade O processo de reconhecimento da comunidade está em andamento juntamente com o processo de Vereda Viana. Contudo, quanto aos esforços para conseguir o reconhecimento dos seus direitos, Agreste se posiciona distintamente de Brejo dos Crioulos, que lutou contra as adversidades locais para viver com dignidade, autonomia e liberdade em seu próprio território. Devido à relação de subordinação e dependência criada pelos fazendeiros, os membros dessa comunidade negra rural não conseguem se perceber livres do “trabalho” disponibilizado pelos fazendeiros. A dependência e subordinação, entretanto, não é apenas material, ela é simbólica e de consciência, como afirmado por um de seus moradores. “A maioria está com o pensamento muito do próprio fazendeiro, mas nunca que está sossegado. Porque sossegado é aquele que é dono do seu nariz” (MORADOR, citado por COSTA, 2008, p. 11). Como afirma Costa (2008), a aceitação da dominação, da submissão e da dependência vincula-se ao medo de perderem a possibilidade de reprodução material, viabilizada pelo assalariamento, desarticulando a possibilidade de posicionamento pela conquista do direito fundiário, disposto no Art. 68. Bernardo M. Oliveira (2007), um dos participantes do PNNM, ao realizar estudo sobre as representações étnicas em Agreste, evidencia que a representação do ser quilombola na comunidade não possui o mesmo conteúdo que em Brejo dos Crioulos. Para os agrestinos, as imagens sobre quilombolas vinculavam-nos a desordeiros, preguiçosos e negros rebeldes. Como se posicionam como um grupo sossegado e trabalhador, não era possível assumir tal 46 Terras doadas no passado a Santo Antônio o padroeiro da comunidade 71 representação. Entretanto, durante o seu trabalho de campo, Oliveira (2007) percebeu que a Associação de Brejo dos Crioulos enviou para Agreste um número significativo de cestas básicas, que recebeu além da demanda local. Enquanto as cestas foram distribuídas, o presidente da Associação de Brejo dos Crioulos informava aos moradores a vantagem de ser quilombola reconhecido pelo governo federal. A partir daí, o termo quilombola começou a ter outra conotação em Agreste, seria, então, vantajoso ser reconhecido como tal. Ainda de acordo com Oliveira (2007), os moradores de Agreste passaram a elaborar a identificação “ser quilombola” tendo em vista a conquista de benefícios e, devido ao utilitarismo presente, fragmentos culturais foram articulados como estratégia política na marcação da identificação da coletividade. Mas, o ser quilombola em Agreste encontra-se esvaziado de qualquer conteúdo conflituoso de regularização fundiária, uma vez que, apenas pretendem estender ao governo federal a dependência e a submissão já vivenciada frente aos fazendeiros que os circundam e os mantêm submetidos à sua dominação. Todavia, independentemente das circunstâncias e dos motivos que levaram à incorporação dessa identidade, hoje a comunidade de Agreste se auto-identifica como quilombola, sendo aqui reconhecida e tratada com tal. 72 CAPÍTULO 3 A Folia de Reis: a crença, a reza e a festa Crer, Rezar, Festar, Dançar (BRANDÃO, 1985) A Folia de Reis é uma forte expressão da cultura e religiosidade católico-popular brasileira que ocorre em várias regiões do país, principalmente nos estados do Nordeste, em Minas Gerais, Goiás, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, entre outros, sendo “a viagem ritual mais difundida no Brasil e a mais rica de ritos e crenças próprias” (BRANDÃO, 1985, p. 138). Para Brandão (1985), a Folia de Reis é um ritual do catolicismo popular que desde muitos anos tornou-se predominantemente rural e se fez em povoados, sítios e fazendas. “O catolicismo popular rural é entendido como um sistema religioso da comunidade camponesa e por isso uma religião de reprodução da prática religiosa e evitação da palavra profética” (BRANDÃO, 1986, p. 139), ou seja, o padre não interfere na dívida do devoto com o padroeiro. O mundo simbólico desse sistema religioso se divide, portanto, em “este mundo” - o mundo dos humanos, e o “outro mundo” – o mundo dos seres celestiais, sendo ambos regidos pelas mesmas regras e normas de troca. Não pretendo aqui aprofundar-me no mérito da questão sobre o conceito de catolicismo popular, pois abarca uma discussão ampla que é motivo de divergências entre vários autores, todavia proponho algumas reflexões para um maior esclarecimento acerca do tema. Assim sendo, cito Thales de Azevedo (1966), que em sua tipologia divide os católicos da seguinte maneira: os católicos formais, ou seja, aquelas que praticam o catolicismo; os católicos tradicionais: aqueles que se dizem católicos, mas não praticam nem conhecem o essencial do catolicismo oficial; os católicos culturais: aceitam elementos do catolicismo não pelo seu valor religioso, mas como parte da cultura em vigor e, finalmente, os católicos populares, vinculados às comunidades das zonas rurais tradicionais, despojado de conteúdo dogmático e moral. “essa religiosidade (católico-popular) relaciona-se mais com a estrutura da comunidade local do que com a sociedade nacional e é relativamente independente da Igreja formal. Também é certo que, muitas vezes, o culto do santo da devoção do indivíduo é mais importante do que o do padroeiro da comunidade” (AZEVEDO, 1966, p. 184). 73 O sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira (1997) sugere uma definição de catolicismo popular mais ampla, como descreve: “Podemos então definir o catolicismo popular como um conjunto de representações e práticas religiosas autoproduzidas pelas classes subalternas, usando o código do catolicismo oficial” (OLIVEIRA, 1997, p.47). Segundo Simone G. de Oliveira (1976), citada por Silva (2006), o elemento central do catolicismo popular é o santo. Para a autora, o santo está presente na sua imagem, mas não se identifica com ela. É como se a imagem tivesse vida: o devoto conversa com ela, oferecelhe flores e velas, enfeita-a, visita-a no santuário, leva-a em procissão e romaria; mas pode também vir a ser punida pelo mesmo devoto, quando este se vê desfavorecido pelo santo. Dessa forma, é em torno da imagem que se organiza o culto popular, O culto aos santos organiza-se através de lideranças leigas, sendo esporádica a intervenção de sacerdotes, assim, segundo Oliveira (1977), pode-se descrever o catolicismo popular como uma religião de grande quantidade de reza, com pouca missa; e, ainda, muito santo e pequena presença do padre. Quanto à origem da Folia de Reis ser principalmente no meio rural, Brandão (1985) afirma que mesmo pela inexistência de um corpo de especialistas (padres, bispos, etc.) da Igreja Católica, os habitantes do meio rural não deixaram de praticar seus atos religiosos e homenagear seus santos. Longe das cidades, nas imensas e despovoadas áreas dos sertões do país, comunidades de camponeses e pequenas confrarias de grupos rituais cultuam os seus padroeiros e uma pequena multidão de santos de preceito. Sem a necessidade da presença de sacerdotes oficias, fazem os seus cultos e, entre os seus especialistas do sagrado, distribuem quase todo o trabalho religioso de que nutrem a vida, a fé e os sonhos (BRANDÃO, 1985, p. 134). A Folia de Reis constitui-se de grupos de devotos dos Três Reis Magos, que durante o período entre 24 de Dezembro a 6 de Janeiro, fazem visitações nas casas, onde realizam louvações cantando ao Menino Jesus e aos Reis Magos, chamados Baltazar, Belchior (ou Melchior) e Gaspar. Porto (1982) afirma que as folias talvez tenham suas origens nas “Jornadas de Pastorinhas”: [...] eram meninas-moças que, no período litúrgico do Natal, percorriam as casas das famílias citadinas, pedindo esmolas para as finalidades assistenciais. Usavam-se graciosamente da música instrumental e vocal para pedir os donativos e para agradecê-los. As “Companhias de Reis” inicialmente eram uma revivescência, no campo, daquilo que as pastorinhas faziam nas cidades. Com o passar do tempo, o povo foi criando os ritos, que 74 até hoje são observados com fidelidade. Enquanto que havia criatividade no tocante às letras, eram religiosamente conservadas as melodias, sem dúvida originárias do cancioneiro religioso do catolicismo ibérico (PORTO, 1982, p. 14). Para alguns pesquisadores, a tradição da Folia de Reis teria chegado ao Brasil por intermédio dos portugueses no período da colonização, uma vez que essa manifestação cultural era realizada por toda a Península Ibérica. Era comum a doação e recebimento de presentes a partir da entoação de cantos e danças nas residências. A Folia fixou-se em terras brasileiras no século XVI, por meio dos Jesuítas, como crença divina para catequizar os índios e posteriormente os negros escravos. Assim, a Folia de Reis brasileira passou a ser composta pelas manifestações culturais de diversas etnias e povos, com variações regionais, seja quanto ao estilo, ao ritmo e ao som, entretanto, mantendo a mesma crença e devoção ao Menino Jesus e aos Três Reis Magos. Nessa mesma linha teórica, Brandão (1985) confirma que há indícios de que esse culto popular à figura dos “Três Reis do Oriente” é quase tão antigo quanto o dos padroeiros dos primeiros conquistadores. Os missionários jesuítas costumavam catequizar os índios com o recurso de autos e dramas litúrgicos, que faziam traduzir inclusive para a “língua geral”, falada em quase toda colônia. De novo e com a liberdade que os interesses da empresa conversionista torna necessária, índios e brancos e mais os negros escravos tempos depois, cantam, representam e dançam durante as festas, dentro das igrejas e nas procissões (BRANDÃO, 1985, p.143). Brandão (1985) enfatiza também que: O cerimonial de recepção a pessoas ilustres, quando elas visitam as reduções indígenas dos missionários, possui procissões e cantos com dança. O teatro litúrgico e catequético de José de Anchieta inclui seqüencias muito semelhantes às dos momentos de chagada das Folias de Reis nas casas de camponeses do interior do Brasil, hoje. Com a passagem dos anos de conquista colonizadora para os do franco estabelecimento da empresa colonialista, os rituais de catequese de índios misturam-se com os que os habitantes brancos, mulatos e negros das cidades e dos sertões incorporam aos seus festejos a santos padroeiros. Danças costumeiras, de que as folias portuguesas seriam um possível exemplo, aparecem incorporadas às dramatizações litúrgicas feitas com a presença do clero, no interior das igrejas coloniais: nos ciclos do Natal e da Páscoa, em festas como as de Corpus Christi e Pentecostes, nos festejos populares aos padroeiros de cidades, corporações de profissionais e grupos étnicos e sociais [...] este é o caminho pelo qual, pelas mãos dos missionários jesuítas, a Folia penetrou na Colônia (BRANDÃO, 1985, p. 143 – 144). 75 O termo Folia designa uma celebração ou ritual da religiosidade popular, mais precisamente do denominado catolicismo popular. Contudo, o termo tem variações conforme a região, como explica Porto (1982). No Sul, são chamados Ternos de Reis, Pastorais do Senhor Menino ou Folias de Reisadas. No Rio de Janeiro e em Minas Gerais, as folias são mais diversificadas, tanto em número de pessoas quanto em variações, havendo lugares onde se leva a bandeira. No Nordeste, predominam os ranchos Bois de Reis, Reisadas, Pastoris e Bailes Pastoris, sem caráter necessariamente religioso, que dançam de praça em praça e nos salões. No Sul de Minas e em Santa Catarina, a festa se chama Terno de Reis. No Rio Grande do Sul, Companhia de Reis. Nas afirmações de Brandão (1985), houve um tempo em que por toda parte, no Brasil, se dançava e cantava alegremente dentro dos templos, diante dos altares cristãos, onde padres e freiras davam as mãos ao que, à época, se nomeava como “o populacho” e todos cantavam e dançavam dentro da igreja. Em parte, por isso, provavelmente ritos coletivos depois expulsos para as ruas e para a roça são chamados “Folia” e os seus devotos, “foliões” (BRANDÃO, 1985, p. 139). O termo dominante no sudeste brasileiro é Folia de Reis, como assinala Reyli (2002), mas alguns foliões preferem o termo Companhia de Reis. Ainda há certa tendência dos foliões de chamar Folia de Reis quando eles estão se referindo à tradição genericamente, enquanto o termo Companhia de Reis é usado quando eles se referem a um grupo particular. No norte de Minas Gerais, a folia, que pode ser dedicada a diferentes santos (tais como Santa Luzia, Santos Reis, São Sebastião, Bom Jesus, São José, entre outros) é performada por um conjunto de tocadores, no caso os foliões, reunidos em grupo ou terno, que durante determinado período circula por um território (giro)47, visitando as casas dos devotos, distribuindo bênçãos a seus moradores em troca de ofertas para a festa do santo. A Folia de Reis possui variações quanto a sua formação e características, contendo aspectos próprios em cada localidade, contudo alguns personagens são comuns e fundamentais para a compreensão da manifestação. Segundo Porto (1982), os componentes da Folia de Reis geralmente se dividem em três grupos: o bandeireiro, o palhaço e o coro. Cada um dos grupos possui seu significado e sua função no contexto da manifestação. A personagem do bandeireiro tem a função de carregar respeitosamente a Bandeira, apresentando-a ao chefe da casa onde a folia acaba de chegar, e receber os donativos oferecidos pela família. As Bandeiras se constituem como o elemento sagrado da Folia e 47 O giro consiste na Jornada, ou na Viagem, que significa a caminhada que os foliões fazem percorrendo e cantando de casa em casa. Na linguagem dos foliões, a folia não caminha, ela gira. 76 assim são tratadas, na medida em que os moradores das casas visitadas beijam-nas demonstrando respeito e devoção. Conforme Brandão (1977), durante todo o tempo em que a Folia está no pouso, a Bandeira dos Três Reis Santos é colocada na parede, sobre o altar, com as fitas coloridas pendendo sobre ela. É comum que as pessoas beijem as fitas da Bandeira quando a Folia chega a uma residência, quando a oração do terço termina ou quando a Folia vai se retirar do pouso. A Bandeira é feita de pano brilhante e nela é colada uma estampa dos Reis Magos. Além da Bandeira, a Toalha é um apresto presente e importante nos grupos de folia, sendo usada por todos os seus membros. São sempre brancas e, na maioria das vezes, trazem bordadas inscrições alusivas à devoção. Usam-na dobrada em quatro (no comprimento). Por ser também um símbolo sagrado, não pode ser utilizada de qualquer forma. As figuras dos Palhaços, que geralmente são dois, são os puxadores das duas alas da folia, trata-se de irmãos (simbolicamente) e têm obrigações e proibições específicas, como jamais dançar diante da Bandeira, entre outras. Segundo Porto (1982), os palhaços são denominados também marungos, alferes e, sobretudo, bastião, corruptela de bastão, objeto geralmente usado por eles para as suas evoluções e acrobacias. Nas Folias, os palhaços são os responsáveis pelos momentos lúdicos, quando assustam as crianças e divertem os adultos com seus versos irreverentes e críticos. Ao fim da recitação das profecias, os palhaços, acompanhados dos instrumentos musicais, iniciam sua performance com o recitativo das chulas48, e suas danças acrobáticas. Quanto ao Coro, Porto (1982) considera que esse é constituído quase sempre por seis pessoas, cada uma com o seu nome especificado. Os membros do coro podem, ou não, ser os tocadores dos instrumentos que acompanham o canto. O mais comum é serem, ao mesmo tempo, cantores e instrumentistas. Entre essas peças que formam o coro da Folia, temos a figura do Mestre, que é o personagem mais importante da folia, sendo o organizador. É o Mestre que estabelece o trajeto e horários, tipos de enfeites dos instrumentos, enfim prepara e coordena todos os movimentos da Folia. É conhecido também como Embaixador e uma das suas importantes tarefas é improvisar os versos a serem cantados. Os demais membros de uma Companhia, na ótica de Porto (1982), são: o Contramestre, que é chamado também de Respondedor, tendo a função de comandar o coro e corresponde à 2ª voz; o Contrato, que faz o dueto com a 2ª voz, é chamado de Ajudante de Respondedor; o Tipe, que faz a 3ª voz; o 48 Segundo Cascudo (1962), trata-se de “canto e dança quase desaparecidos no Brasil”, uma “espécie de lundu ou baião, sensual, sempre cheia de pimenta verbal e paixão comprimida, no ritmo de dois por quatro. Acompanhava-se a violão. (...) A dança ainda era popular em meados do séulo XIX no Rio de Janeiro” sendo “igualmente conhecida em Portugal” (1962: 210). 77 Contratipe, que equivale ao tenor; e a Requinta ou Turina, considerada a voz mais característica de uma folia, sendo cantada em resposta ao último verso de uma estrofe49. Os cânticos da Folia de Reis referem-se, de modo geral, ao nascimento do Menino Jesus e a visita dos Reis Magos. Existem basicamente três tipos de canto: o canto de chegada, (consulta ao dono, entrega da bandeira ao mesmo e entronização da bandeira); de louvação (pedindo licença para entrar, louvação aos moradores, pedido de esmolas e agradecimento) e o canto de saída, ou de agradecimento seguido da festa de encerramento – baile e entrega da Bandeira. Durante a cantoria os foliões se alternam em cantar versos enfatizando as promessas feitas e confirmando a eficácia do devoto no cumprimento de seu voto. A música é repetida por várias vezes durante os dias da jornada. Há casos em que ela é considerada como típica daquela companhia e varia somente diante da adoração do presépio. Quanto ao ciclo de visitações, denominadas também como giro ou jornada, consiste basicamente na saída de determinada casa “pouso de saída”, visitações e pedidos de esmolas em inúmeras casas e a chegada a casa onde se encerra o ciclo “pouso ou casa da entrega” (IKEDA, 1994, p. 169). Tomando como base essas referências conceituais acerca da Folia de Reis, este capítulo traz na seqüência uma descrição etnográfica do ritual no contexto da comunidade Agreste (sendo realizada uma análise de seus aspectos estruturais das músicas no próximo capítulo); em seguida apresento o contexto sociocultural da representação da Folia. O Ritual em Agreste A Folia de Reis em Agreste pode ser considerada como um fenômeno cultural amplo e complexo, possuindo características temporais e espaciais peculiares que a distinguem de outras folias regionais que tive a oportunidade de pesquisar. Os dados aqui apresentados são baseados na observação direta, o que possibilitou uma etnografia da manifestação, realizada no dia 20 de Janeiro de 2009. Nesse contexto, a Folia de Reis é chamada por alguns moradores como a Folia de Seu Lero, apelido de Aureliano R. Soares, que é o mestre da folia e também organizador, juntamente com seus familiares, fazendo o papel do festeiro. Seu Lero é o patriarca de uma família de dez filhos, cinco homens e cinco mulheres, sendo que apenas um filho, o Ângelo Márcio G., mora em Agreste. Contudo, na época da folia, outros filhos retornam para participar. Seu Lero é dono de uma venda que subdivide um dos cômodos de sua casa, sendo 49 A análise dessas vozes na Folia de Reis de Agreste está no próximo capítulo. 78 um dos poucos pontos de comércio na comunidade. Toda a família ajuda na organização da folia, montando a Lapinha, providenciando o lanche, o almoço e o churrasco que é feito no final da noite. De modo geral, a liderança da folia se dá a partir da figura do Embaixador, que geralmente é o membro organizador e que tem maior experiência e conhecimentos sobre a prática dessa manifestação. São chamados também de Mestre, Capitão ou Guia e em alguns casos esses Mestres são os mantenedores das tradições, como lembra Brandão (1977). Esse pode ser o caso de Agreste, em que Seu Lero tem papel fundamental. A manifestação é realizada sempre na casa do festeiro (FIG. 1), no dia vinte de Janeiro, dia de São Sebastião, padroeiro de Seu Lero. FIGURA 1 – A casa de Seu Lero. Local onde é realizada a Folia de Reis. Antes da folia, realizei entrevistas50 semi-estruturadas com Seu Lero e o folião chamado Toni. Ambos me forneceram informações relevantes sobre os vários aspectos relacionados às músicas que compõem o ritual na comunidade. Quando perguntado sobre o início da Folia na comunidade Seu Lero afirma: 50 Entrevistas em anexo. 79 Comecei quando eu morava na Vereda a partir de 1973 quando eu mudei pra cá. Essa reza que eu faço é finalizando a folia. Eu fiz uma promessa, eles até dançava lá (em Vereda Viana, comunidade vizinha), mas eu não gostei e cortei, veio os foliões do Agreste. Versol me colocou na folia dele e continuamos, quando ele faleceu entrou o Luisim, que era Folião dele, tomou conta do terno de Folia e eu acompanhei durante o tempo que ele teve aqui. Depois ele foi pra Jaiba, entrou pra outra Igreja e então pra não acabar eu tomei frente, pedi ele as cópia do canto e fui estudando e decorei os cantos e continuei muito tempo até os folião companheiro deu pra bagunçar, beber muito, sair fora do ritmo, eu ia aconselhava eles e eles brigavam comigo (SEU LERO, 2009).51 Essa folia organizada por Seu Lero, então, acontece desde 1973. Contudo, nos depoimentos orais obtidos através de entrevistas com outros foliões, como Zé Nunes, 78 anos, que é um dos mais antigos, a folia já existe há mais de 100 anos. Quando pergunto sobre ele ser um dos foliões mais antigos ele responde: De ajudante já sou bem velho né? Porque quando eu nasci, quando eu tava criando, tinha um Terno que era do meu avô Filisbino, depois o outro terno e o folião chamava Joaquim de Souza, que era tio de minha muié, depois entrou o Versol, que era residente daqui, e eu, depois de Versol pra cá eu fuliei toda vida, uns 20 anos (ZÉ NUNES, 2009).52 A data da folia na comunidade segue uma prática comum em muitas comunidades que rezam para São Sebastião. Segundo alguns autores, a partir do dia 6 de janeiro, a Folia de Reis se transforma em Folia de São Sebastião, cantando a vida e morte do santo mártir, na qual os foliões usam as mesmas roupagens da Folia. O grupo acrescenta, ainda, um figurante, que representa São Sebastião, em seus trajes de soldado romano, ou acrescentam a imagem do Santo nas toalhas e também na Bandeira. Assim, o ciclo natalino da Folia de Reis se prolonga até 20 de Janeiro. Em Agreste, a folia é tida como de Santos Reis e os foliões não usam a vestimenta característica desta Folia, como a toalha por exemplo. Segundo Seu Lero, eles usam a roupa que tiver no corpo. A Bandeira também não é utilizada no ritual: Num declaro isso não, eu rezo um Terço para cada Santo, mas nunca usei carregar Bandeira (SEU LERO, 2009). Na Folia de Reis da comunidade são cantados, além do canto de saudação ao Oratório, o canto a São Sebastião e o hino a Nossa Senhora Aparecida. Os preparativos para a folia começam logo pela manhã, bem cedo. Márcio, filho de Seu Lero, solta foguetes no quintal da casa indicando o dia Santo. Enquanto isso, a esposa de Seu Lero, assim como sua nora, preparam a Lapinha, ou Oratório (FIG. 2 e 3) como é chamado por eles. Ela é montada na sala, ornamentada com as imagens dos Santos Reis, São 51 52 Entrevista gravada em MD no dia 20/01/2009. Entrevista gravada em MD no dia 20/01/2009. 80 Sebastião e Nossa Senhora Aparecida. Flores e uma iluminação a base de pequenas lâmpadas coloridas também fazem parte do enfeite. Na parede ficam colocados os quadros com as imagens dos Santos referidos. FIGURA 2 – O Oratório com as imagens dos Três Reis Magos, São Sebastião e Nossa Senhora Aparecida. FIGURA 3 – Sala da casa de Seu Lero, onde é montado o Oratório para realização da Folia. 81 Apesar da participação dos filhos na organização da folia, Seu Lero afirma que não há vontade por parte deles de continuar a tradição: Ninguém quer não, não vou falar mal dos outros, nem meus filhos quis, então não adianta, o melhor das cartas é não jogar né? Então ninguém quer (SEU LERO, 2009).53 Quando lhe pergunto por que acredita que a tradição está acabando, ele responde: Uns faleceram, Versol e Francisco, os que tão aqui parou tudo...é falta de fé né? O folião hoje muda muito, esse negócio de Igreja, lei, muda muito, uns vão na Igreja, outros deixa de ir na Igreja, cada um faz o que quer. Mas o folião aqui ta acabando...tá, tá acabando, pode dizer que ta acabando...eu mesmo não vou correr aqui atrás de quem não quer mais não, tô ficando véi da batalha e não tem outro que serve, então ta terminando (SEU LERO, 2009).54 Apesar dessa opinião, Seu Lero acredita que a tradição da folia deve permanecer, afirmando que: “Eu achei no mundo, aqui eu deixo, não foi eu que plantei, foi os Três Reis Magos né? Os primeiros que foram visitar Jesus, então acho que não deveria acabar não, continuar, como eu já dei muita tradição pra muitos ai” (SEU LERO, 2009). Em relação à tradição, discuto o conceito elaborado por Shils (1981). De acordo com Shils (1981), a definição de tradição é muito ampla e responde bem ao problema da cultura rural tradicional, que é o caso de Agreste, versus cultura moderna urbana não tradicional, ambas construídas de complexas tradições. Contudo, essa complexidade difere em relação ao seu tipo. Conforme Shils (1981), tradição é uma traditum, qualquer coisa a qual é transmitida ou trazida do passado para o presente, tendo sido criada através das ações humanas, do pensamento ou imaginação e é passada de uma geração para a próxima. Essa definição inclui a substância a qual está sendo transmitida e o processo de transmissão. Essa substância a que ele se refere significa todos os padrões conquistados pela mente humana, todos os padrões de crença ou modos de pensar, todos os padrões de relações sociais conquistados, todas as práticas técnicas e todos os artefatos físicos ou objetos naturais que são suscetíveis de tornarem-se objetos de transmissão. Cada um é capaz de tornar-se uma tradição, formando o que ele chama de “catálogo completo da cultura humana”. A elaboração desse catálogo em detalhes, a enumeração e descrição das classes de entidades, as quais formam a substância da tradição e suas qualidades, fazem parte do trabalho do etnógrafo. Para Shils (1981): 53 Entrevista gravada em MD no dia 20/01/2009. 54 Entrevista gravada em MD no dia 20/01/2009. 82 Esses dois elementos – a substância e o processo de transmissão, os quais formam a definição mínima – devemos agregar o valor que a sociedade atribui à tradição. Tradição é sempre considerada autorizada, normativa ou prescritiva, ademais, tem de ser consenso na sociedade neste ponto. (SHILS, 1981, p. 115, tradução minha)55. Seguindo esta perspectiva, a compreensão dos processos de transmissão é condição essencial para a compreensão da própria cultura, da tradição e sua manutenção. Assim, fazendo um paralelo com a etnomusicologia, a transmissão musical é abordada como um dos aspectos fundamentais para a compreensão da dinâmica do fenômeno musical, em que significados e valores são representações socialmente construídas, criando as bases nas quais a prática musical é forjada, bem como suas mudanças e permanências. Retomando a descrição do ritual, enquanto a família fica responsável pela preparação do local e do lanche, Seu Lero se encarrega de preparar os instrumentos, afinando as violas, limpando e arrumando no sofá da sala. A folia não tem hora certa para começar. Quando perguntado sobre o horário Seu Lero é enfático: Não tem escolha, o ano passado nós rezamos de dia, três horas da tarde, nós terminamos a noite, no ano atrasado, nós amanhecemos o dia, veio meus parente de Sete Lagoas, meu filho de Montes Claros e nós amanhecemos o dia, quando tem folião nós amanhece o dia, quando não tem termina cedo, reza de dia e termina de dia mesmo (SEU LERO, 2009). Com essa afirmação, ele deixa claro que a folia varia de horário, como também de formação, pois não aparecendo os foliões a manifestação termina mais cedo. De fato, durante a pesquisa, percebi que a terno não possui formação pré-estabelecida, pois a maioria dos foliões participantes vem de comunidades vizinhas, chegando às vezes no mesmo dia. Dessa forma, o ensaio e a divisão dos instrumentos dependem dessa condição. Sobre o ensaio Seu Lero afirma que: De primeiro tinha [...] Nós saia pra folia e cantava três dias na vizinhança, dava o manifesto no dia 24 pra 25, parava, no dia primeiro de Janeiro nós entrava cantando, tirando esmola. Até na Vereda nós foi na folia. Até o dinheiro que tirava ganhava de esmola. Frango, tudo, não tinha dinheiro dava um frango, e dava uma festa no dia 6. Ia de casa em casa. Pra mim acabou-se. Não tem assunto de folia mais não, não tem folião, mas se pintar algum ai nós faz né? Tomara que dê certo (SEU LERO, 2009)56. 55 To these two elements,-the substance and the process of transmission, which form the minimal definition,-one must add the value that the tradition is assigned by society. Tradition is always considered authoritative, normative or prescriptive. Moreover, there has to be consensus in the society on that point. 56 Entrevista gravada em MD no dia 20/01/2009. 83 Ainda na parte da manhã, os foliões chegaram. Uns de carona, outros de ônibus (FIG. 4), e obviamente fiquei mais aliviado, pois tinha receio de que a manifestação musical não acontecesse. Esse ônibus foi o mesmo que peguei para chegar a Agreste e demorou quase sete horas para percorrer pouco mais de 180 km, pois passa por várias fazendas, transportando também mercadorias e mantimentos encomendados pelos moradores locais. FIGURA 4 – Ônibus que faz o trajeto de São João da Ponte a Agreste. Por volta das 13h, após um almoço cedido pela esposa do festeiro, os foliões iniciam a afinação dos instrumentos e em seguida o ensaio, em que Seu Lero reforçava as letras e a harmonia. A folia se iniciou às 14h, momento em que os foliões se organizaram em duas filas paralelas, de três músicos cada, em frente ao Oratório doméstico, como indicado na estrutura a seguir (FIG. 5). O conjunto musical dos foliões era formado por: Toni, o “rabequeiro”; Seu Lero (o mestre) na Viola; Carlim Pedroso na viola; João Ferreira, também na viola; Ernesto na caixa de folia e José Pedroso no pandeiro. Há um violão que também foi tocado pelo rabequeiro durante o Guaiano. Não há participação feminina nessa formação, mas, caso fosse necessário, Seu Lero colocaria a sua nora para cantar, na falta dos foliões. Essa formação com violas, rabeca, caixa de folia e pandeiro é característica de muitas Folias de Reis na região norte mineira. 84 Tanto os músicos como as rezadeiras e demais participantes se aglomeram em uma pequena sala que mede aproximadamente 9m2, sempre ajoelhando e fazendo o Sinal da Cruz em frente ao Oratório, ao entrar. A primeira música foi um canto de saudação ao Oratório (ver transcrição 1, cap. 4), não sendo cantado o canto de chegada, que é característico em outras folias. O canto de Saudação à Lapinha descreve a viagem dos Três Reis e os personagens encontrados por eles na trajetória, do início da busca até a adoração ao menino Jesus. Em Agreste, o canto faz louvação a Maria Mãe de Jesus e ao nascimento do Nosso Salvador Jesus Cristo. Após o canto, os foliões se acomodam no sofá para participarem das rezas. A primeira reza foi dedicada para São Sebastião. Na sequência, foi rezado o Terço dedicado a Nossa Senhora Aparecida. FIGURA 5 – Estrutura espacial da Folia e os foliões em formação. Quem comanda a reza, ficando responsável pelos terços, é a filha de Seu Lero, que juntamente com outras participantes fazem o papel das rezadeiras. Na maioria das vezes, a reza do terço é um pedido do dono da casa, sendo que, os foliões consideram-na como uma das obrigações da folia e nunca se negam a fazê-la. Conforme Brandão, a reza é um dos únicos momentos em que as mulheres têm uma atuação ritual semelhante à dos homens. Isto acontece por dois motivos. Primeiro porque a reza do terço é compreendida como uma forma de oração familiar onde é importante a presença de esposas e de filhas. Em segundo lugar, porque são as mulheres as que melhor recordam na íntegra todos os momentos da reza (BRANDÃO, 1977, p. 12). 85 Após cada reza, é realizado um canto dedicado a cada Santo. Conforme Seu Lero: “Pra cada um Santo tem um canto, o canto pra São Sebastião, Santos Reis e Nossa Senhora Aparecida, pra cada Santo um canto, é devoção, tradição” (SEU LERO, 2009)57. Após cada canto, são feitas as saudações: “Viva São Sebastião, Viva Nossa Senhora Aparecida, Viva os Três Reis Magos, Viva o dono da casa, o festeiro, as rezadeiras”. Entre o segundo e terceiro Terço, foi feito um intervalo, em que foi servido vinho para os adultos e sucos e biscoitos para as crianças (FIG. 6). FIGURA 6 – O lanche servido pela filha e esposa de Seu Lero durante a Folia. Enquanto o lanche é servido, os foliões se juntam em um quarto ao lado da sala para afinar os instrumentos (FIG. 7). Durante o processo de afinação58, percebi que os foliões afinavam as violas tendo como referência a afinação da rabeca, não sendo utilizado nenhum tipo de afinador, ou outro recurso para o processo. É uma afinação de ouvido como afirmou Toni, o rabequeiro. Outro fator que pude observar foi o revezamento dos instrumentos entre os músicos, principalmente entre o violeiro e o rabequeiro. Essa situação se dava pela necessidade. Quando o rabequeiro não conhecia a melodia da música, tocava a viola para acompanhar. Quando alguém apresentava alguma dificuldade técnica em uma determinada música, o outro que sabia acabava tocando. 57 58 Entrevista gravada em MD no dia 20/01/2009. Sobre a instrumentação musical, afinação dos instrumentos, vozes e transcrições musicais, no capítulo 4. 86 FIGURA. 7 – Afinação dos instrumentos durante o intervalo Às 18h23min, os foliões seguiram para a Igreja (FIG. 8), onde foi cantado o hino a Nossa Senhora Aparecida (ver transcrição 2, cap. 4). Em Agreste, não há mais o “giro”, indo de casa em casa, há apenas o deslocamento para a Igreja, onde são realizados os cantos frente ao altar e o retorno para a casa, como mostra o próximo esquema (FIG. 9). FIGURA 8 – Os foliões se dirigindo a Igreja onde foi cantado o canto a Nossa Senhora Aparecida. FIGURA 8 – Os foliões se dirigindo a Igreja onde foi cantado o canto a Nossa Senhora Aparecida 87 FIGURA 9 – Esquema do trajeto dos foliões. Saem da casa, cantam na Igreja e retornam a casa para continuação da Folia. Às 18h45min, os foliões retornam para casa de seu Lero, onde é rezado o último Terço para São Sebastião. Entre os trechos da reza, são cantadas músicas características do folclore mineiro como Calix Bento e também são feitos pedidos pelos entes queridos, de cura, constituindo um momento de muita emoção e choro. Após a reza, foi cantado o hino para São Sebastião (ver transcrição 3, cap. 4). Ao término das rezas e cantos, costuma acontecer o Leilão, o que não houve nessa data, tendo em vista que muitos participantes chegaram em cima da hora, o que inviabilizou a organização. Com relação ao Leilão Seu Lero afirma: É depois da reza, o ano passado ainda teve. Eu tenho um livrim com a foto que explica, por trás (do livro) é oferecido a São Sebastião, o livrim explica que na tradição antiga, antiga, (enfatiza a palavra antiga) o povo oferecia porco, galinha pra São Sebastião, ele era o Santo que combatia a peste, a guerra, a doença. É a fé que cura. Eu peguei essa promessa na Vereda Viana e peguei com Deus, ele é um Santo muito milagroso (SEU LERO, 2009)59. Seguindo a sequência do ritual, chega o momento de descontração da Folia, no qual teve início o Lundu (ver transcrição 4, cap. 4) e posteriormente o Guaiano (ver transcrição 5, cap. 4). “O Lundu (grafado também como landum, lundum, londu) designa na música brasileira coisas distintas, que são em geral consideradas como interligadas”, como afirma 59 Entrevista gravada em MD no dia 20/01/2009. 88 Sandroni (2001). “Ele foi primeiro o nome de uma dança popular, depois o de um gênero de canção de salão e, finalmente, o de um tipo de canção folclórica” (SANDRONI, 2001, p. 39). Para Mário de Andrade (1989), o Lundu é: Canto e dança populares no Brasil durante o séc. XVIII, introduzidos provavelmente no Brasil pelos escravos de Angola, em compasso 2/4 onde o primeiro tempo é frequentemente sincopado. No início era dança cuja coreografia foi descrita como tendo certa influencia espanhola pelo alteamento dos braços e estalar dos dedos semelhante ao uso das castanholas, tendo, no entanto, a umbigada característica. A coreografia foi aproximada por alguns autores às do samba e do batuque. O lundu canção foi conhecido durante o primeiro Império e, no séc. XIX, depois de ter freqüentado os salões familiares, caiu em desuso. [...] O acompanhamento do canto e da dança, que era feito por instrumentos de cordas dedilhadas, foi substituído, nos salões pelo piano (ANDRADE, 1989, p. 291). Andrade (1989) também se refere ao Lundu como uma forma característica do folclore negro e certamente a mais generalizada. Tinhorão (1988) salienta que a partir das composições poético-satíricas de Gregório de Matos, houve a substituição do termo kilundu por lundus. Tinhorão também revela que os negros se reuniam em territórios abertos, próximos da cidade, denominados quilombos, para fins religiosos ou à procura de diversão, onde o Lundu era dançado. O termo lundu é atualmente utilizado na tradição da Folia de Reis para designar um dos gêneros de dança sapateada que faz parte de seu ritual religioso. Em Agreste, o Lundu foi tocado com a mesma formação do restante da folia e acompanhado com palmas pelos participantes e sem sapateado. Dessa forma, o Lundu da Folia de Agreste não contém em suas características o aspecto “sensual” dos Lundus identificados no Brasil do século XVIII, como a umbigada, por exemplo. Após o Lundu, deram início ao Guaiano, que é uma dança composta pelo canto, sapateado e palmas. Na Folia de Reis de Agreste, o Guaiano foi executado por apenas quatro foliões, sendo três violas para o acompanhamento harmônico e caixa de folia. A letra do Guaiano estudado tem caráter de entretenimento, não tendo vínculo religioso com o restante do ritual. A dança é feita seguindo uma coreografia em forma de “S”, ou um “8”, na qual os participantes giram entre si, cruzando e entrelaçando as duas duplas necessárias para sua realização. Outra característica dessas canções são as emissões de dois sons extensos, executados com a voz, ao fim de cada estrofe por dois participantes, cada qual com seu registro. Esses sons, de registro agudo e registro grave, são chamados de requinta e baixô, respectivamente. A requinta foi sempre cantada por Seu Lero durante o ritual. 89 É importante ressaltar que a figura do Palhaço, que é responsável pelas brincadeiras na Folia, não existe em Agreste. De acordo com Seu Lero, nunca utilizaram esse personagem. Quanto à faixa etária dos participantes, percebi pessoas de todas as idades, de crianças a idosos. As crianças não participaram diretamente tocando instrumentos, contudo estiveram presentes durante todo o ritual, aproveitando os intervalos para pegar num instrumento e outro, demonstrando interesse em aprender. Ao término do Guaiano, foram feitas as saudações e os instrumentos foram guardados no quarto ao lado da sala, dando fim ao ritual. Entretanto, a festa continuou e foi servido um churrasco, preparado pela família do festeiro. Durante e após o churrasco, que se iniciou por volta das 23h30min, novos repertórios tomaram conta da noite, em que músicas sertanejas de contexto midiático foram tocadas por alguns dos foliões, já no lado de fora da sala, animando as pessoas até a madrugada. O contexto sociocultural da representação da Folia de Reis Para compreender essa expressão musical de forma contextualizada com os significados e valores que a constituem é essencial procurar entender os vários aspectos que caracterizam a manifestação em seu sistema social e cultural. “A música transcende os aspectos estruturais e estéticos se configurando como um código estabelecido a partir do que a própria sociedade que a realiza elege como essencial e significativo para o seu uso e a sua função no contexto que ocupa” (QUEIROZ, 2005, p. 85). Visando ampliar a compreensão dessa manifestação nesse contexto e entendendo a importância dos aspectos sociais para a caracterização das práticas musicais, descrevo o contexto social da representação da Folia de Reis em Agreste. Para esse fim, procurei me embasar nas entrevistas e observações registradas em campo, assim como artigos e trabalhos monográficos realizados por pesquisadores do PNNM. É importante frisar que para a compreensão dos aspectos sociais de Agreste, assim como seu desenvolvimento, não foi possível a utilização da ferramenta historiográfica, como já foi descrito no primeiro capítulo deste trabalho. Assim sendo, a memória coletiva se transforma no instrumento fundamental para o desenvolvimento da leitura dos acontecimentos passados e consequentemente atuais desse grupo social. A memória coletiva tem sido evidenciada em estudos e pesquisas da antropologia e outras áreas, podendo ser compreendida, segundo O´Dwyer (2002), como sendo o mecanismo da estruturação do processo histórico de certa comunidade ou grupo social através daquilo que está na lembrança 90 dos membros dessa comunidade ou grupo. Acionando a memória do vivido e ouvido por cada membro de uma coletividade, é possível construir o processo histórico formando, assim, a memória coletiva. Outro aspecto importante em relação à memória coletiva, segundo Oliveira (2007), é que não se pode basear nas narrativas de um único indivíduo e sim nas narrativas da maior parte dos membros de um grupo e se possível de todos os seus membros. A memória social pode ser compreendida como uma comunidade de memória, pois sendo coletiva ela se encontra no conjunto das memórias dos seus membros60. A partir deste recurso metodológico foi possível historicizar a formação da coletividade de Agreste e seu desenvolvimento social. Agreste no “Tempo Antigo” e no “Tempo Atual”: condições de vida De acordo com os estudos antropológicos realizados por Oliveira (2007), a historicidade de Agreste, para seus membros, se divide em dois momentos distintos: o Tempo Antigo e o Tempo Atual. O Tempo Antigo, segundo os moradores, se inicia através de uma história de deslocamento e expropriação territorial, em que diversas famílias negras partiram de vários lugares na proximidade do atual povoado para formar o que hoje se constitui a comunidade de Agreste. Antes deste período, algumas dessas famílias viviam nas proximidades, outras se encontravam espalhadas e distanciadas do território da comunidade atualmente (OLIVEIRA, 2007, p. 22 – 23). Uma característica marcante desse período é o fato de que a terra era comum, ou em comum, sendo o elemento central para os moradores, visto que era através dela que eles produziam e reproduziam a vida familiar e coletiva. Nesse período, as famílias antigas plantavam e cultivavam o que davam conta de cuidar. A roça não era muito grande e toda a produção era somente para o necessário. Eram plantados feijão, arroz, mandioca, milho, abóbora, cana e frutas. O hábito de caçar também era um elemento presente neste cotidiano no intuito de permitir o acesso à proteína animal por parte dos membros do grupo. O cultivo do algodão também era uma prática dos moradores, cujo produto era trabalhado na produção de fios e depois tecidos em teares simples, produzindo então vestimentas utilizadas no dia-adia. 60 Neste sentido vide a tese de Borjas (1995) citado por Oliveira (2007), que trabalha com a memória de diversos grupos que se confrontam na vida social de uma cidade goiana para narrar acontecimentos do passado dessa coletividade. 91 Nas relações de trabalho, havia o que era chamado de troca de dia, quando em um dia uma pessoa trabalhava para alguém e no outro este alguém é que trabalhava para aquele, o que consistia num processo de solidariedade entre os trabalhadores. “Ainda no período do Tempo Antigo, surgiram agrimensores que começaram a dividir as terras por solicitação de fazendeiros da região e, posteriormente, a vender algumas glebas denominadas de ausentes para outros fazendeiros” (OLIVEIRA, 2007, p. 24). O período que se configura como a formação do Tempo Atual tem origem a partir de 1960. Nesse período, o governo federal decidiu fazer uma mudança geral na economia brasileira e no caso da realidade regional havia um pensamento de que o Norte de Minas era atrasado. Como parte da ação do governo federal, a região passou por uma transformação em seu sistema econômico e nas relações sociais vividas. A isso foi denominado modernização da economia brasileira (COSTA, 1999). Neste período, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) passa a financiar o processo de mudança econômica e social da região rumo à “modernização”. Isto ocorreu através de projetos que permitiram, por um lado, as fazendas serem transformadas em empresas rurais e, por outro lado, os fazendeiros da região expandir suas propriedades realizando uma intensa concentração fundiária (OLIVEIRA, 2007, p. 25). Esse processo é denominado como expansão da fronteira agrícola (COSTA, 1999), e consistiu basicamente na expropriação de todo o território dos negros que viviam no interior da mata da Jaíba durante o Tempo Antigo. Como resultado desse processo, os antigos moradores, assim como seus descendentes que ainda vivem em Agreste, não foram capazes de resistir às pressões de populações urbanas em busca da aquisição de terras para formarem fazendas e usufruírem dos benefícios da SUDENE. Utilizando de diversas estratégias, aos poucos as famílias vendem seus direitos de posse e se transferem para a Terra do Santo Antônio. A “aquisição” das terras foi empreendida através da compra de algumas terras por preços insignificantes. É narrado que muitas vezes essas terras eram trocadas por poucos animais como gado, ou por algumas outras necessidades imediatas que aquelas pessoas tinham e, também, pelo uso da violência, quando fazendeiros apossavam das terras sob a segurança de seus jagunços (OLIVEIRA, 2007, p.25). Esses fatos causaram uma mudança profunda no modo de vida daqueles moradores, que passaram de uma coletividade que usufruía livremente dos recursos naturais e sociais para trabalhadores rurais dependentes e sob o domínio dos fazendeiros, sendo obrigados a vender 92 sua mão-de-obra. Agreste se encontrava encurralada por cercas de arame farpado que separavam as fazendas entre si e consequentemente a comunidade, de maneira que o território que hoje a compreende não é suficiente para a produção de sua subsistência. A partir dessas mudanças, tem-se um novo quadro da economia local, que se sustenta com alguns poucos trabalhos permanentes nas fazendas da região como vaqueiro e caseiro, trabalhos temporários como a matança de formigas, colheita de milho, que normalmente são realizados pelas mulheres, e por trabalhos de manutenção de cercas e outras atividades temporárias. Migrações sazonais para outras regiões do país nos períodos de corte de cana e colheita do café também são comuns e constituem uma importante estratégia econômica. O restante das rendas das famílias vem dos Programas do governo como Bolsa Família e aposentadoria, assim como a caça e a pesca, que se constituem como meios de complementar as despesas e possibilita uma renda extra. Mesmo com essa situação complexa que hoje faz parte do cotidiano dos habitantes, são poucos os conflitos registrados no contexto da comunidade, que pode ser considerada pacata e com um índice de criminalidade baixo, indicando um bom relacionamento entre eles. Os participantes da Folia de Reis de Agreste (os foliões, as rezadeiras) com exceção de Seu Lero e sua filha que mora em Montes Claros, são trabalhadores rurais e se enquadram diretamente nas dimensões sociais apresentadas. Educação A imersão na comunidade, ainda dentro da perspectiva do PNNM, me proporcionou um contato com o contexto escolar e suas características. Além de conhecer o espaço físico da escola, pude trabalhar com alguns professores na realização de oficinas de Música, que ocorreram nos anos de 2006 e 2007. Através desse contato, foi possível compreender melhor os processos que envolvem a educação na comunidade. Além da obtenção de dados coletados através desses contatos, que contribuíram para uma discussão sobre o panorama educacional da comunidade, foi essencial a realização de pesquisas tendo como referencial teórico os artigos e monografias escritos pelos participantes do PNNM, ligados diretamente à área da Educação. Agreste possui uma única escola, a Escola Municipal Versol de Oliveira Lima (da qual já me referi no capítulo anterior). A instituição pertence à rede pública municipal de ensino e atende em três turnos de funcionamento, matutino/vespertino/noturno, atendendo a turmas de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio Cientifico e Educação de 93 Jovens e Adultos (SILVEIRA, 2009). A instituição atende por volta de 80 alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental e ao todo atende mais de 250 alunos. A escola conta com um corpo de 12 professores, sendo um docente da educação infantil, quatro das séries iniciais do Ensino Fundamental e sete das séries finais do Ensino Fundamental. Mas, algumas das professoras que atuam nas séries iniciais também atuam nas séries finais do Ensino Fundamental. A escola recebe estudantes de várias outras comunidades da região que vêm em um ônibus alugado pela prefeitura de São João da Ponte. Dados quantitativos obtidos por Silveira (2009) indicam que 80% dos 12 professores entrevistados são do sexo feminino, e apenas 20% são do sexo masculino. Em relação ao local de origem desses sujeitos, 25% dos entrevistados têm origem no distrito de Agreste e 75% nasceu em cidades próximas como Montes Claros, Capitão Enéas, São João da Ponte ou em outros distritos desse último município. Entretanto, 80% desses professores atualmente residem em Agreste, condição favorável para melhor conhecimento da realidade escolar, tendo em vista que a identificação do contexto sócio-político, econômico e cultural do seu entorno se constitui em elemento fundamental para a construção do projeto político pedagógico. Quanto ao grau de escolaridade, 17% têm curso superior (diretora e supervisora), sendo que um desses professores possui pós-graduação, 75% estão cursando o nível superior e apenas um (8%) afirma possuir exclusivamente o magistério. Nesse sentido, apesar de ter sido encontrado dentro do quadro de profissionais da escola um professor com apenas o magistério, percebe-se que a maioria quase absoluta dos entrevistados tem se preocupado em se adequar ao disposto nos artigos 61 e 62 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDBDEN Nº 9394/96 que estabelece a obrigatoriedade de formação em nível superior dos profissionais da educação que exercem a docência nos níveis fundamentais. Com relação às “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicas Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana61”, a escola demonstra conhecê-las e estando, inclusive, de acordo com os norteamentos das mesmas. Neste aspecto, percebe-se que escola de Agreste tem se preocupado em desenvolver um trabalho de valorização da cultura negra, ao buscar nas diretrizes um auxílio para sua prática. 61 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, foram homologada, em 18 de março de 2004, do Parecer 03/2004, de 10 de março. Essa lei instituiu obrigatoriedade do ensino de História da África e dos Africanos no currículo escolar do ensino fundamental e médio. 94 Outro ponto a ser frisado refere-se à concepção da escola em relação ao trabalho coletivo, incluindo a participação da família na escola. De acordo com Silveira (2009), a escola acredita que a participação dos pais é fundamental nesse espaço. Porém, é notado que essa participação é desejada para tratar sobre questões rotineiras como: aspectos físicos, materiais ou fazer o acompanhamento dos problemas de comportamento, notas e freqüências dos alunos. Durante a Folia de Reis, foi possível verificar a presença de alunos e professores, indicando uma participação ativa do efetivo escolar nas festividades religiosas locais. Religiosidade As participações sociais nos acontecimentos religiosos no contexto de Agreste demonstram uma vivência religiosa focada na fé e devoção aos Santos católicos. O catolicismo popular divide espaço com o eclesiástico. Grande parte das pessoas da comunidade se dá por católica, reunindo-se na Igreja aos Domingos para a reza da Missa. Não há padres na comunidade, dessa forma, vem sempre um de fora para realização do culto. Quanto ao catolicismo popular, é representado pelos festejos religiosos que ocorrem anualmente na comunidade. São três as Festas que acontecem na atualidade: a Festa de Nossa Senhora Aparecida, as Festas Juninas (ofertadas a Santo Antônio) e a Folia de Reis. Nesses festejos, o sagrado e o profano simbolizam a cultura popular religiosa característica na comunidade. Segundo Brandão (1986), “a melhor maneira de se compreender a cultura popular é através de estudos sobre a religião, pois é ali que ela aparece viva e multiforme, existindo em um estado constante de luta por sobrevivência e autonomia” (BRANDÃO, 1986, p 15). Os festejos religiosos populares em Agreste trazem em seu contexto a religiosidade e a festa como representantes do catolicismo popular, em que a festa representa o lúdico e a religião remete as regras e obrigações. Essa interseção entre a festa e os ritos religiosos é característica em culturas em que a religiosidade popular se encontra presente e o fenômeno festivo é aproximado do religioso. Segundo o antropólogo Camurça (2003), citado por Silva (2006), é através da exaltação coletiva, presente nos ritos religiosos e nas festas, que a sociedade gera imagens e situações em que ela se cria e se repõe, pois enquanto expressões da sociedade, tanto a festa (como ajuntamento puramente celebrativo) como o rito festivo religioso (ligado a motivações de crença no além), tem a mesma função de criar e expressar o social. 95 Para Roberto DaMatta (1979), as festas são fenômenos recriadores e resgatadores do tempo, espaço e relações sociais. As festas, diz DaMatta, mantêm a sociedade como tal e a reabastecem de energia com esse momento de fuga, assim como reforçam as formalidades sociais. Além dos cultos católicos e festejos religiosos populares em Agreste, também há a prática da religião Evangélica, sendo os cultos realizados em casas de moradores, pois como é recente na comunidade, ainda não possui um templo. A religiosidade é um elemento de grande importância para as análises realizadas neste trabalho, haja vista que tem influência direta nas estruturas musicais, sendo aspecto fundamental na definição das letras, na estruturação do canto, e no processo ritual como um todo. A música tocada pelos foliões e dedicada aos Santos engloba aos elementos principais de sua estrutura, princípios que refletem a crença, a devoção e a fé. 96 CAPÍTULO 4 Dimensões estruturais da Música na Folia de Reis de Agreste A música da Folia de Reis de Agreste possui, em cada componente de sua estrutura, características peculiares que associadas ao contexto sociocultural revelam um fenômeno musical vasto e complexo, no qual a prática musical está relacionada com conhecimentos, crenças, comportamentos, valores e significados da estrutura ritual. As dimensões estruturais das músicas “são concebidas através das formas de utilização dos instrumentos, dos padrões e variações dos ritmos, da organização do repertório, das características das letras, do canto e das melodias” (Queiroz, 2005, p. 137). Para a compreensão dos aspectos estruturais se faz necessária uma reflexão sobre o modelo Tripartite utilizado por Merriam (1964), que procura investigar a música partindo de três pontos: a conceituação da música, comportamentos relacionados à música e as estruturas musicais. Música pode ser compreendida como: [...] A intenção de fazer algo chamado música (ou sons estruturados similares ao que nós outros chamamos música), em oposição a outros tipos de sons. É a habilidade para formular uma cadeia de sons aceitos pelos membros de um grupo dado como música (ou qualquer coisa que eles chamam de música). Música é a construção e o uso de instrumentos que produzem sons. É o uso do corpo para produzir e acompanhar os sons. Música é a emoção que acompanha a produção, apreciação e a participação na performance. Música é som, porem é também a intenção e a realização; é tanto emoção e valor como estrutura e forma. A música é composta, estudada, executada e recebida por membros de sociedades. Por outro lado a música é um sistema de comunicação que abarca sons estruturados e produzidos por membros de uma comunidade quando se comunicam com outros membros. Esta é uma definição similar às de Jonh Blacking (1973) e Alan Merriam (1964). (LANDA, 2004, p. 128, tradução minha)62. Segundo Merriam (1964), a estrutura de um som musical deve pertencer a um sistema geral que não se explica independentemente da existência de determinados seres humanos, posto que ele seja produto de um comportamento específico, sendo este o 62 […] La intención de hacer algo llamado música (o sonidos estructurados similares a lo que nosotros llamamos música), en aposición a otros tipos de sonidos. Es la habilidad para formular cadenas de sonidos aceptados por los miembros de un grupo dade como música (o cualquier cosa que ellos llamen música). Música es la construcción y el uso de instrumentos que producen sonidos. Es el uso del cuerpo para producir y acompañar los sonidos. Música es la emoción que acompaña la producción, apreciación y aparticipación en la performance. Música es sonido, pero es también la intención y la realización; es tanto emoción y valor como estructura y forma. La música es compuesta, estudiada, ejecutada y recibida por miembros de sociedades. Por lo tanto, la música es un sistema de comunicación que abarca sonidos estructurados, y producidos por miembros de una comunidad cuando se comunican con otros miembros.Esta es una definición similar a las de Jonh Blacking (música como sonidos humanamente organizados; 1973) y Alan Merriam (música como cultura, 1964). 97 fundamento da concepção da música. Dessa forma, para operar em um sistema musical, o indivíduo deve ter consciência do tipo de comportamento que pode produzir o som desejado. Esses conceitos não se referem apenas ao comportamento físico, social e verbal, e sim ao que se pensa que a música é ou deveria ser. Assim, as distinções entre música e ruído, a valoração da habilidade musical individual, as normas sociais e o tipo de participação dos grupos no fazer musical, e muitos outros fenômenos de toda atividade musical, têm sua razão de ser nos conceitos básicos que a sociedade desenvolve a respeito. “Sem a concepção da música não pode haver comportamento, e sem comportamento, não é possível produzir som musical” (MERRIAM, 1964, p. 51). Portanto, para compreender a música da Folia de Reis no contexto da comunidade Agreste, é essencial o entendimento do significado que a música tem para os próprios foliões, assim como dos comportamentos desses no fazer musical. Para este estudo, optei por analisar separadamente cada um dos elementos que constituem o fenômeno musical, o que possibilitou melhor apresentação e discussão da estruturação musical da Folia de Reis. Os instrumentos musicais e suas funções na constituição sonora da Folia de Reis Peças fundamentais no contexto ritual, os instrumentos musicais (FIG. 1) utilizados na Folia de Reis em Agreste são constituídos por cordofones (o som é produzido por uma corda tensa) e membranofones (o som é produzido por uma membrana esticada). Entre os cordofones, são utilizadas três instrumentos harmônicos e um melódico, sendo três violas e uma rabeca respectivamente. Enquanto os membranofones são constituídos por uma caixa de folia e dois pandeiros. Primeiramente, trato dos cordofones e em seguida dos membranofones. 98 FIGURA 1 – Os instrumentos musicais da Folia de Reis de Agreste: três Violas, uma Rabeca, dois Pandeiros e uma Caixa de Folia. Cordofones A Rabeca FIGURA 2 – A Rabeca usada pelos foliões em Agreste. 99 A rabeca ou rebeca é um instrumento de corda e arco semelhante ao violino, “de origem portuguesa e ancestral árabe, o rebab” (MURPHY, 2008, p. 61). Apesar da evidente semelhança entre os dois, a rabeca se distingue do violino em muitos aspectos, principalmente na construção e no modo de tocar. A rabeca não possui um padrão universal, apresentando muitas variações no tamanho, formato, número de cordas, afinações utilizadas e materiais empregados em sua confecção. As características de cada instrumento obedecem às tradições regionais e também à criatividade e aos meios de que dispõe o fazedor de rabecas. O som é produzido através da fricção do arco nas cordas. O arco se constitui como uma vareta curvada em forma de meia-lua, a cujas pontas se fixam as cordas que podem ser de crina ou náilon. De acordo com os foliões, essa rabeca (FIG. 2) foi construída por Zé Côco do Riachão63, que era violeiro, rabequista, sanfoneiro, pandeirista, compositor e um dos grandes nomes da música caipira brasileira. Uma das características marcantes na rabeca de Zé Coco do Riachão são as bolas brancas pintadas no braço. A usada em Agreste possui quatro cordas de aço, tendo as seguintes dimensões: 58cm de comprimento, 20cm de largura e 5 cm de altura (lateral). O arco possui 58cm de comprimento. Quanto à maneira de tocar, o folião em Agreste apóia a rabeca pouco abaixo do ombro esquerdo, mais precisamente no braço (FIG. 3). O arco é seguro com a mão direita e tem as cordas feitas de crina. FIGURA 3 – Forma de tocar apoiando a Rabeca abaixo do ombro. 63 José dos Reis Barbosa dos Santos. Nascido no ano de 1912, em Brasília de Minas, na região do Norte de Minas. Foi Criado na localidade de Riachão, às margens do rio que leva o mesmo nome, na confluência dos municípios de Mirabela e Brasília de Minas, no Vale do São Francisco. O pai era fazedor e tocador de violas. No momento de seu nascimento, passava uma Folia de Reis e ele foi consagrado pela Mãe aos santos Reis; por isso "dos Reis" registrado em cartório. Zé Coco deixava claro sua devoção aos Santos Reis, e sempre se apresentava como José Reis Barbosa dos Santos. Foi descoberto aos 65 anos, gravou Brasil Puro em 1980, Zé Coco do Riachão em 1981 e Vôo das Garças em 1987. Faleceu em 1998, aos 86 anos. 100 A rabeca tem a função de executar as melodias, dando suporte ao canto e a afinação segue a do violino, mi4 -lá3 -ré3 -sol2 (do agudo para o grave). As Violas Na folia em Agreste são usadas três violas industrializadas (FIG. 4), feitas em madeira e todas com dez cordas de aço, unidas aos pares, montando cinco pares. Os dois pares mais agudos são afinados em uníssono, os outros três pares são afinados em oitavas (mesma nota, com diferença de alturas de uma oitava). As violas maiores têm as mesmas medidas: 35cm de largura do corpo; 98cm de comprimento e 9cm de altura (lateral). A menor (conhecida como Viola Caipira) possui 68cm de comprimento e 7cm de altura (lateral). Uma delas é enfeitada com fitas coloridas que podem carregar um simbolismo. Para alguns autores, o enfeite dos instrumentos tem relação com as festas populares de Folia de Reis, na qual se comemora a ascensão de Jesus ou, "do Divino". São sete fitas e cada cor representa um personagem do nascimento de Jesus. A Branca representa o próprio Jesus; a Azul clara representa Maria; a Rosa, São José; a Amarela, o ouro dado como presente; a Vermelha, o incenso; a Verde, a mirra; e, por fim, a Azul escura que representa São Gonçalo, Santo protetor dos violeiros. FIGURA 4 – As Violas da Folia de Reis. 101 Cascudo (1962) descreve a Viola como: “Instrumento de cordas dedilhadas, cinco ou seis, duplas, metálicas. [...] É verdadeiramente o grande instrumento da cantoria sertaneja. [...] O século do povoamento brasileiro, o séc. XVI foi a época do esplendor da viola em Portugal, expresso nos autos de Gil Vicente e nos cancioneiros. [...] É ainda o instrumento animador dos velhos bailes populares e devocionais no norte e no sul do país” (CASCUDO, 1962, p. 774,). As violas têm como função acompanhar e coordenar harmonicamente as canções, sendo inclusive responsáveis pela ampliação de corpo e volume sonoro instrumental dos cantos e danças. Membranofones Caixa de Folia A caixa de folia (FIG. 5) consiste em um tambor cilíndrico de tamanho médio ou pequeno, geralmente feito de madeira, com uma membrana (couro de boi) em cada uma das extremidades, esticadas por cordas. Além da corda para dependurar no ombro, a Caixa também possui afinadores, pequenos anéis de couro, que servem para manter as cordas esticadas. Um detalhe característico da caixa de folia é uma corda na parte inferior desse tambor que, esticada com um sistema de cravelha, faz com que o couro vibre quando rufado. FIGURA 5 – Caixa de Folia e a forma como é tocada. 102 A caixa usada em Agreste possui tanto o corpo como o aro de madeira, tendo o tamanho de 12” (polegadas) de circunferência e 30cm de altura, feita artesanalmente “por um homem lá de Tamboril”64, como afirma Seu Lero. A maneira como ela é tocada pelo folião consiste em pendurar o instrumento no ombro esquerdo e tocá-lo com duas baquetas sem feltro (que também foram confeccionadas artesanalmente). As baquetas são seguradas com os dedos polegar e indicador, com a mão esquerda apoiada na borda e a mão direita direcionando a ponta da baqueta de baixo para cima. Os toques são feitos tanto na membrana (pele), para uma sonoridade mais grave, como no aro da caixa, para uma sonoridade aguda, criando possibilidades timbrísticas que enriquecem a marcação rítmica da música da Folia. A principal função da caixa na folia é a marcação rítmica mantendo um padrão rítmico constante, apoiando a harmonia e a melodia dos cantos. Como afirma Seu Lero: “Para cada Santo é um ritmo, pra São Sebastião é um ritmo, pra Nossa Senhora Aparecida é outro e pra Santos Reis é outro”. O Pandeiro Assim como a caixa, o pandeiro (FIG. 6) é responsável pelo apoio rítmico na música da Folia. Cascudo (1962) descreve o Pandeiro como um “instrumento de percussão, ritmador, acompanhador do canto pela marcação do compasso. Foi trazido ao Brasil pelos portugueses, que o tiveram através de romanos e árabes” (CASCUDO, 1962, p. 559). FIGURA 6 – Os Pandeiros artesanais da Folia de Agreste. 64 Localidade próxima a Agreste. 103 Os pandeiros usados em Agreste também são construídos de forma artesanal, feitos “de pele de Cotia” 65 , como explicado por Seu Lero. Assim como a caixa, esses pandeiros foram feitos por uma pessoa que mora em Tamboril. Eles têm medidas diferentes, sendo um de 8” de circunferência, por 5cm de base, e o menor (a direita na foto) com 6”, por 4cm de base. O maior possui quatro duplas de platinelas (feitas com tampa de garrafa) e o menor apenas três. Apesar dos dois pandeiros encontrados na casa de Seu Lero, apenas um foi usado, o maior. Ele é tocado de forma muito particular pelo pandeirista (FIG. 7) que segura o pandeiro com a mão direita e choca a pele contra a ponta dos dedos da mão esquerda. Às vezes, para conseguir o efeito de um rufo breve, o panderista escorrega os dedos da mão esquerda sobre a pele explorando as várias sonoridades que este instrumento possibilita, explorando tanto uma sonoridade grave quanto aguda através das platinelas. FIGURA 7 – José Pedroso tocando o Pandeiro. O Repertório A composição do repertório é um elemento fundamental na constituição do ritual em Agreste, trazendo nas nuances das letras dos cantos, nas harmonias, melodias e ritmos, um 65 Cutia, ou Cotia: mamífero roedor de pequeno porte. 104 corpo de significados que relacionados ao contexto expõem uma manifestação com características da religiosidade popular, na qual elementos da cultura européia e africana estão presentes. O repertório da Folia em Agreste traz particularidades que o diferenciam de outras folias realizadas na região. Como já discutido no capítulo anterior, o repertório da Folia de Reis, de forma geral, se constitui nos cantos, sendo o canto de chegada e pedido de entrada na casa, o canto de saudação aos moradores e a Lapinha (Oratório), canto de entrega da bandeira ao (s) morador (es) e o canto de agradecimento e despedida, assim como os Lundus e Guaianos, que são característicos na Folia norte mineira. Contudo, o repertório da Folia em Agreste, contém, além do canto de saudação ao Oratório, o guaiano e lundu, os hinos a São Sebastião e a Nossa Senhora Aparecida. Partindo dessa explicação, analiso cada um desses cantos a partir da transcrição musical, lembrando que a escrita gráfica da música é um meio privilegiado para compreender o fenômeno musical, contudo a transcrição não é a música. Segundo Anthony Seeger (1987), as transcrições nunca devem ser um fim em si mesmas, mas sim uma ferramenta para levantar questões e facilitar a compreensão da estrutura musical. Para Landa (2003), os etnomusicólogos utilizam o método da representação gráfica da música com a intenção de aderir aos conhecimentos dos princípios geradores das estruturas sonoras dotadas de sentido. Já que se trata de regras aplicadas por todos os membros de determinado conjuntos musicais [...] os emissores de mensagens sonoras atuam em coordenação consensual, muitas vezes implícita, com os receptores dos mesmos [...] que permite a todos considerar a esses produtos como música. E que esses produtos podem tomar a forma de obras acabadas que é possível repetir (com ou sem variantes), os discurso criados no momento da execução (LANDA, 2003, p. 162, tradução minha)66. A partir das análises das transcrições, foi possível descrever algumas características comuns nas músicas da Folia. Entre essas características está a tonalidade, pois todas têm a harmonia predominante dentro do sistema tonal tradicional, ficando basicamente entre a Tônica e a Dominante, (1º e 5º Grau). Os andamentos dos cantos variam de semínima = 55bpm até 90bpm, cantados a quatro vozes (no caso de Agreste, podendo ser de até seis vozes), em forma responsorial (solo/coro). Assim, em cada estrofe cantada repete-se a forma 66 Ya se trate de reglas aplicadas por todos los miembros de determinados conjuntos de músicos [...] los emisores de mensajes sonoras actúan en coordinación consensual, a menudo implícita, con los receptores de los mismos [...] que permiten a todos considerar a esos productos culturales como música. Y esos productos puedem tomar la forma de obras acabadas que es posible repetir (con o sin variantes), o de discursos creados en el momento de la ejecución. 105 responsorial entre solista e resposta coral. A forma de cantar com um timbre anasalado, com a utilização de glissandos descendentes nos finais das frases, também é uma forte característica no canto dos foliões. No início de todas as músicas, o rabequeiro toca a nota tônica auxiliando os demais músicos na afinação vocal e harmônica. Partindo dessas observações, descrevo a seguir as transcrições musicais seguindo a ordem do ritual, sendo a primeira transcrição o Canto de Saudação; a segunda, o Canto a Nossa Senhora Aparecida; a terceira, o canto a São Sebastião; a quarta, o Lundu; e, por último, o Guaiano. 106 107 FIGURA 8 – Canto de Saudação. 108 Canto de Saudação: letra Ó Bendito louvado seja Louvado seja o Senhor Louvado seja o Senhor Ô da cepa nasceu a rama Da rama nasceu a flor Da rama nasceu a flor Ô da flor nasceu Maria Mãe do Nosso Salvador Mãe do Nosso Salvador O canto de saudação foi o primeiro canto realizado e a letra é curta se comparada às letras dos outros cantos. Como descrito no capítulo anterior, o canto traz o louvor a Maria, Mãe de Jesus e ao nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo. As duas vozes nesse canto seguem em intervalos de terças paralelas durante toda a música, sendo cantada por Seu Lero na primeira voz e Toni na segunda. Esse canto não segue o sistema de responsório, pois não há solo e resposta do coro. Tocada em compasso ternário, a música segue a harmonia tradicional na tonalidade de Ré Maior, sem grandes saltos melódicos. O padrão rítmico da caixa segue com variações de semínima, no andamento de semínima = 90bpm. O folião executa o ritmo usando tanto a pele da caixa quanto o aro (vide legenda abaixo). Nesse canto não houve a utilização do pandeiro, apenas da caixa de folia. FIGURA 9 – Legendas para escrita da Caixa e Pandeiro. Servem para todo o repertório. 109 FIGURA 10 – Canto a Nossa Senhora Aparecida 110 Canto a Nossa Senhora Aparecida: letra Entraremos meus companheiros Entraremos meus companheiros Nesta casa de alegria Nesta casa de alegria Pra fazer uma Saudação Pra fazer uma saudação A Nossa Senhora Aparecida A Nossa Senhora Aparecida Deus te salve ó Mãe santíssima Deus te salve ó Mãe santíssima Milagrosa Aparecida Milagrosa Aparecida Amparai os seus devotos Amparai os seus devotos Ó Virgem Mãe querida Ó Virgem Mãe querida Eu cheio de desejo Eu cheio de desejo De postar em vossos pés De postar em vossos pés Ó Virgem Mãe querida Ó Virgem Mãe querida Aumentai a nossa fé Aumentai a nossa fé Nossa Senhora Aparecida Nossa Senhora Aparecida Assuntai por caridade Assuntai por caridade Nossa Santa palavra Nossa Santa palavra Por ser Mãe de caridade Por ser Mãe de caridade Mãe de Deus e Mãe dos homens Mãe de Deus e Mãe dos homens Milagrosa de bondade Milagrosa de bondade Levai-nos no alto do Céu Levai-nos no alto do Céu Pela vossa Santa vontade 111 Pela vossa Santa vontade Hora viva hora reviva Hora viva hora reviva Viva a Nossa Mãe querida Viva a Nossa Mãe querida Viva no céu e na terra Viva no céu e na terra Ó Senhora Aparecida Ó Senhora Aparecida O canto a Nossa Senhora Aparecida foi feito no interior da Igreja Católica da comunidade, sendo tocado pelos seis foliões, contudo apenas quatro cantam, Seu Lero (o Mestre e violeiro), Toni (o rabequeiro), José Pedroso (o pandeirista) e Seu Ernesto (o caixeiro). A música mantém uma harmonia simples ficando na tônica, subdominante e dominante (1º , 4º e 5º Graus) e o desenho melódico também é simples, com intervalos curtos, sendo o maior de 4ª. A melodia da rabeca repete a segunda voz do canto, executando poucas variações de notas. O canto segue o formato de responsório, no qual a primeira dupla, denominada guia, divide-se entre primeira e segunda vozes da guia. A segunda dupla, denominada resposta, divide-se em primeira e segunda vozes da resposta, seguindo um intervalo de terças paralelas entre as vozes. O padrão rítmico das violas seguem o mesmo do pandeiro, que fazem o acompanhamento utilizando basicamente semínima pontuada, semínima e colcheia, característica rítmica típica de uma toada de folia do norte de minas. A marcação rítmica da caixa segue um desenho com as figuras mínima, seminima e colcheia. O andamento é aproximadamente seminima = 75bpm. A função do canto é de devoção à Nossa Senhora Aparecida, a Santa padroeira do Brasil. 112 FIGURA 11 – Canto a São Sebastião. 113 114 Canto a São Sebastião: letra Na chegada nesta casa Com sua bandeira na mão Na chegada nessa casa Com sua bandeira na mão Nos viemos visitar Martison67 Sebastião Nós viemos visitar Martison Sebastião Oi Martison Sebastião É um Santo milagroso Martison Sebastião É um Santo milagroso Oi ele veio pra nos livrar Desse mal contagioso Ele veio pra nos livrar Desse mal contagioso Oi Martison Sebastião Milagroso sem segundo Martison Sebastião Milagroso sem segundo Pois ele veio nos livrar Das injúrias desse mundo Ele veio pra nos livrar Das injúrias desse mundo Martison Sebastião Ele é filho do Pai eterno Martison Sebastião Ele é filho do Pai eterno Ele veio pra nos livrar Oi da peste, a fome e guerra Ele veio pra nos livrar Da peste, a fome e guerra Oi Martison Sebastião Milagroso como pode Martison Sebastião Milagroso como pode Martison Sebastião 67 Transcrição literal de manuscrito elaborado pelo filho do Mestre da Folia. “Martison” tem o sentido de “Mártir São Sebastião”. Conferir anexo. 115 Só ama seus filhos pobre Martison Sebastião Só ama seus filhos pobre Oi dezenove de Janeiro Este Santo assim falou Oi dezenove de Janeiro Este santo assim falou Com suas palavras santas E a guerra se aquebrantou Com suas palavras santas E a guerra se aquebrantou Oi dia vinte de Janeiro Este Santo alevantou Dia vinte de Janeiro Este Santo alevantou Minhas vista meus irmãos E a guerra se acabou Minhas vistas meus irmãos E a guerra se acabou. O terceiro canto da Folia foi o canto a São Sebastião, que tem a função de homenagear esse Santo, que é o padroeiro de Seu Lero. As vozes seguem em intervalos paralelos de terça e, da mesma forma que o canto a Nossa Senhora Aparecida, seguem em modo responsorial, cantado também a quatro vozes. A música é tocada em andamento lento, seminima = 55bpm, em compasso quaternário. Contudo, há uma modulação rítmica no sexto e décimo-primeiro compassos, nos quais, a divisão é binária. A tonalidade é Mi Maior, com a harmonia tradicional, girando entre a tônica, subdominante e dominante. A rabeca segue a melodia da primeira voz do canto guia, executando um desenho melódico simples com intervalos curtos, sendo de fácil memorização. A melodia da rabeca no início faz a introdução do canto e se repete duas vezes O desenho rítmico executado pelo pandeiro não segue um padrão único, executando variações entre as figuras semínimas, semínimas pontuadas, colcheias, colcheias pontuadas e semicolcheias. A caixa também não executa um padrão constante, seguindo o desenho das vozes, servindo mais como reforço a elas. 116 117 FIGURA 12 – Lundu Lundu: letra Abre a porta que a chuva evem Abre a porta que a chuva evem Essa porta trancada é que não tem ninguém Essa porta trancada é que não tem ninguém Abre a porta e também a janela Abre a porta e também a janela Ai, ai, ai quem me escuta, abre toda janela Ai, ai, ai quem me escuta, abre toda janela Abre a porta e a janela ao contrário Abre a porta e a janela ao contrário Ai, ai, ai quem tá fora, é o Senhor Capitão Ai, ai, ai quem tá fora, é o Senhor Capitão Abre a porta que eu quero entrar Abre a porta que eu quero entrar Ai que beijo gostoso que eu quero te dar Ai que beijo gostoso que eu quero te dar Se eu dissesse que vinha com a velha Se eu dissesse que vinha com a velha Você ia saber que eu já tinha mulher Você ia saber que eu já tinha mulher 118 O Lundu cantado em Agreste possui um caráter dançante, executado no andamento aproximado de semínima = 90bpm, indicando um momento festivo da folia. A letra não possui característica religiosa como nos cantos aos Santos. É cantado a quatro vozes, contudo não segue a forma de responsório. As duplas cantam em intervalos paralelos de terças, não havendo a utilização da requinta. Tocada em 4/4, a música segue a harmonia tradicional, na Tonica e Dominante (1º e 5º Grau), na tonalidade de Ré Maior. O desenho melódico é simples, com melodias curtas e sempre repetitivas. A Rabeca não segue a melodia das vozes, executando um desenho melódico simples e constante, com intervalos curtos, sendo de fácil memorização. Quanto aos instrumentos harmônicos, foram utilizadas as violas, que mantêm uma harmonia simples, seguindo um padrão rítmico constante Em relação a percussão, tanto a Caixa quanto o Pandeiro dão apoio rítmico à melodia. A Caixa segue com um padrão rítmico constante, executando um desenho com a utilização das figuras colcheia pontuada e semicolcheia, executando poucas variações. O pandeiro também segue um desenho rítmico constante com os seguintes padrões: semicolcheia, colcheia, semicolcheia, nos primeiros e terceiros tempos dos compassos; e duas colcheias preenchendo o segundo e quarto tempo, como transcrito abaixo: FIGURA 13 – Padrão rítmico do Pandeiro Ficou evidente durante a execução, que o pandeirista modifica o padrão rítmico no momento que ele participa do canto, retornando ao padrão rítmico, transcrito na partitura, quando ele não canta. O Lundu não é dançado em Agreste, é apenas acompanhado por palmas dos demais participantes. 119 120 121 122 123 124 125 126 FIGURA 13 – Guaiano. 127 Guaiano: letra La vem a velha A velha evem Mas que moça bonita Que a Velha tem La vem a Velha A Velha evem Mas que moça bonita Que a Velha tem Eu passo por dentro Você passa por fora Que espaço pequeno Ai meu Deus a Viola O Guaiano cantado em Agreste tem como características seu aspecto dançante, tocado no andamento aproximado de semínima = 90bpm, acompanhado por palmas e sapateado, indicando um momento festivo da folia. A forma da dança no Guaiano é uma das suas características marcantes. Apenas quatro foliões participam da dança, como se entrelaçando em formato de “S”, ou um “8”. As palmas são feitas pelos ouvintes e não pelos foliões, que apenas executam o sapateado no final dos versos. O sapateado segue um desenho rítmico com variações de semínimas, colcheias, colcheias pontuadas e semicolcheias. A letra foge do caráter religioso, cantada sobre uma melodia de canção sertaneja com caráter de entretenimento. As vozes cantam em intervalos paralelos de terças, neste caso a primeira voz é cantada pelo rabequeiro, a segunda pelo Caixeiro e Seu Lero faz a requinta (cantos agudos), isto é, dobrando a fundamental uma oitava acima no final das frases. A música segue a harmonia tradicional, na Tônica e Dominante (1º e 5º Graus), na tonalidade de Lá Maior. O desenho melódico é simples, com melodias curtas e sempre repetitivas. Com relação a percussão, apenas a caixa foi usada, tocando um padrão rítmico que se repete de quatro em quatro compassos, com variações de semínimas, colcheias e semicolcheias. Quanto aos instrumentos harmônicos, foi utilizado um violão no lugar de uma das violas, que juntamente com a caixa resultou numa sonoridade mais grave. Outra característica do Guaiano é a não utilização da Rabeca, devido a dificuldade de executar os movimentos da dança juntamente com o instrumento. 128 A identidade da Folia de Reis: confluência dos elementos A confluência de todos os elementos apresentados e discutidos neste capítulo dá forma e caracteriza a performance musical da Folia de Reis de Agreste. A junção de cada detalhe presente no instrumental, nos gestos e nos cantos dos foliões traduz a identidade geral dessa manifestação. Dessa forma, a caracterização da música dos foliões é forjada a partir dos elementos que compõem as suas estruturas musicais, inter-relacionados a valores e significados mais amplos do universo cultural dessa manifestação, como aspectos sociais e religiosos. Entendendo que a cultura é essencial na vida da coletividade de Agreste e que a música tanto determina quanto é determinante desta cultura, a música da Folia de Reis é um fator fundamental como sistema de comunicação e expressão humana, traduzindo em sua performance os significados que dão forma e sentido à identidade cultural local. A identidade cultural no contexto deste trabalho pode ser compreendida como um sistema de representação das relações sociais entre indivíduos e grupos, e está relacionada com os “aspectos de nossas identidades que surgem de nosso „pertencimento‟ a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais” (HALL, 2006, p. 8). Essas representações sociais podem servir como “um conjunto de saberes que expressam a identidade de um grupo social” (OLIVEIRA e WERBA, 1998, p. 107). E esse “conjunto de saberes” está em constante desenvolvimento, tendo em vista que identidade é um processo dinâmico, que se alimenta de várias fontes no tempo e no espaço e “por isso ela deve ser entendida como mutável, porque o grupo pode alterar o significado da identidade conforme a situação que ele vive” (ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, citado por OLIVEIRA, 2007, p. 16). Seguindo essa mesma ótica, Cunha (1986) afirma que os grupos elegem como significativo para reconhecer as suas identidades um conteúdo cultural específico que, para eles, irá marcar o que se pode entender como sendo as diferenças entre dois grupos, ou seja, a cultura do contraste. Para essa autora, a identidade é situacional porque em cada contexto vivido pelo grupo pode existir uma identidade diferente que este retira do seu material cultural, e cada uma dessas identidades pode se alterar conforme o processo dessas vivências grupais. Assim, o conceito de identidade é construído a partir do contraste percebido entre dois ou mais grupos que estabelecem interações sociais. À medida que reconhece que os “outros” são diferentes, o grupo entende o que seria ele mesmo, ele compreende o que 129 constitui o “nós” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976, p. 5). Decorre desse mecanismo de diferenciação o reconhecimento da identidade coletiva, assim como a certificação do que é o “outro”, que é percebida na afirmação da diferença. Dessa forma, foi essencial para a discussão sobre identidade neste trabalho, partir do pressuposto de que a comunidade Agreste pode construir diversas identidades coletivas e, além disso, que a identidade é fruto de cada processo situacional vivido pelos membros da coletividade. Da mesma forma que discuto identidade cultural, a compreensão sobre identidade musical é um aspecto importante para o desenvolvimento do trabalho. Recentes pesquisas em etnomusicologia têm tratado da relação entre identidade musical e performance, no sentido de que o desenvolvimento da identidade musical de um grupo ou coletividade pode ser definida socialmente em torno de determinadas ações culturais, no caso a performance musical. Entendendo que a música é um meio de comunicação que permite às pessoas compartilhar emoções, intenções e significados, possibilitando a interação entre elas, sendo “um meio valioso para entender pessoas e comportamentos” (MERRIAM, 1964, p. 13, tradução minha) 68, é através da performance musical que um grupo se apresenta aos demais, negociando e reconstruindo permanentemente sua identidade. A música, nesse processo, não só reflete como também interfere e modifica a estrutura cultural pré-existente. Dessa forma, a performance musical pode ser compreendida como uma atividade social pela qual a cultura é criada, negociada e realizada, Seeger (1987). A discussão em torno da identidade musical de um grupo está relacionada à compreensão da sua performance musical e sua relação com o contexto social. Assim, de acordo com Mendes (2004), a identidade musical constitui “o conjunto de acontecimentos „musicais‟ que, caracterizado pela performance do grupo e pelo resultado sonoro, representa a síntese dos elementos musicais essenciais componentes da música” (MENDES, 2004, p. 83). Para Thomas Solomon (1997), a performance musical é uma prática para a construção da identidade e isso tem sido lugar comum na etnomusicologia. Segundo esse autor, a “performance musical é uma prática para incorporar identidade na comunidade, registrando-a tanto na paisagem terrestre quanto na paisagem da mente [...] as pessoas de uma comunidade, como um corpo social, são inseparáveis da paisagem onde vivem” (SOLOMON, 1997, p. 312, tradução minha)69. 68 […] music is a means of understanding peoples and behavior and as such is a valuable tool in the analysis of culture and society. 69 Musical performance is a practice for embodying community identity, inscribing it on earthly landscapes as well as in the landscapes of the mind. 130 Stokes (1994) sugere que “o evento musical [...] evoca e constitui memórias coletivas e experiências presentes do lugar com uma intensidade, força e simplicidade não alcançada por outra atividade social” (STOKES, 1994, p. 3, tradução minha),70 assim a representação de muitos aspectos da performance musical é particularmente proveitosa para a construção e reconhecimento da identidade. Dessa forma, sons produzidos coletivamente incorporam identidades coletivas fazendo perceptíveis os fatos das relações sociais entre pessoas que têm tipos de experiências sociais em comum. No caso de Agreste, a performance da Folia de Reis costuma ocorrer com a presença de pessoas de outras comunidades; assim, essas ocasiões são a oportunidade para chamar as comunidades vizinhas com seus representantes, criando espaço para a representação das diferenças – diferenças entre as próprias comunidades. Dessa forma, o modo como a performance musical ocorre, usando a respiração, lábios e cordas vocais para cantar ou mãos para tocar instrumentos musicais, assim como o corpo para dançar, fazem essa incorporação sensível de uma forma esteticamente diferenciada, tornando uma performance única e demarcando as diferenças, construindo uma identidade que está sempre em processo. 70 The musical event [...] evokes and organizes collective memories and present experiences of place with a intensity, power and simplicity unmatched by other social activity. 131 CONCLUSÃO Realizar um estudo sobre a música da Folia de Reis na comunidade quilombola Agreste me permitiu conhecer um universo cultural amplo e complexo, carregado de significados e valores próprios, que traduzem uma vivência musical caracterizada pela fé e devoção aos Santos Reis. A partir do estudo realizado, através da utilização de abordagens distintas, ficou evidente que a música da Folia de Reis na comunidade é caracterizada por um conjunto de elementos que, de forma inter-relacionada, dão particularidades à estrutura rítmica do grupo, à forma de cantar, a sonoridade dos instrumentos, entre outros aspectos. Tendo em vista que a música é uma prática que agrega valores sociais, religiosos e culturais, o estudo apresentou as principais características da prática musical da Folia de Reis da comunidade, analisando-as a partir dos seus aspectos estruturais e das relações que o fenômeno estabelece com o contexto sociocultural. De forma geral, a música da Folia de Agreste congrega aspectos que podem ser considerados fundamentais para dar forma e identidade à manifestação. Como discutido no trabalho, a manifestação possui características temporais e espaciais próprias (não tendo horário definido, como também não realizando o “giro”), o que reflete diretamente na formação do conjunto musical e consequentemente no repertório. Devido a esses fatores, a música da Folia permite algumas variações no canto, nos ritmos, na execução instrumental, no repertório, entre outros aspectos, contudo sem descaracterizar o resultado sonoro que a constitui. No que se referem às suas estruturas, as músicas da Folia contêm aspectos comuns, entre esses a tonalidade, pois todas têm a harmonia predominante dentro do sistema tonal tradicional. Nas construções melódicas, fica evidenciada a utilização de frases curtas com motivos melódicos simples, que criam melodias de fácil assimilação, padronizadas dentro de centros tonais maiores. Os andamentos dos cantos variam de semínima = 55bpm até 90bpm, cantados a quatro vozes, em forma responsorial (solo/coro). A forma de cantar com um timbre anasalado com a utilização de glissandos descendentes nos finais das frases, também é uma forte característica no canto dos foliões. No início de todas as músicas, o rabequeiro toca a nota tônica, auxiliando os demais músicos na afinação vocal e harmônica. A rabeca, as violas, a caixa de folia e o pandeiro, que constituem o instrumental da Folia, criam a característica sonora da manifestação, em que os instrumentos são adaptados à função sonora desejada pelos foliões. A utilização dos instrumentos descritos no trabalho 132 representa uma característica comum na Folias de Reis praticadas na região norte mineira, contudo a forma de tocar é particular de cada folião. Quanto à constituição histórica da manifestação no contexto estudado, trata-se de uma prática centenária, tendo Seu Lero como Mestre desde o início da década de 1970. Diante das mudanças que ocorreram com o passar do tempo, tanto na estrutura como no repertório, os foliões mantêm a fé e devoção ao menino Jesus e aos Três Reis Magos, assim como nos outros Santos católicos, representados nesta Folia por Nossa Senhora Aparecida e São Sebastião. A religiosidade é um elemento de grande importância na constituição da música dos foliões, haja vista que tem influência direta nas estruturas musicais, sendo aspecto fundamental na definição das letras, na estruturação do canto, e no processo ritual como um todo. Assim, a religiosidade representa um aspecto essencial na definição identitária da Folia. A música da Folia de Reis de Agreste, também chamada Folia de Seu Lero, é caracterizada pela confluência dos elementos estruturais da música com valores e significados sociais e religiosos que, refletidos nas letras e na performance dos foliões, dão a esse fenômeno musical características identitárias próprias. Assim, o cantar, rezar e festar são expressos através da prática musical, que traduz em sua estruturação os aspectos estéticos e os valores simbólicos que dão vida e forma à música dos foliões. Durante minhas pesquisas de campo, fiquei hospedado nas casas das pessoas da comunidade, que sempre me trataram com muita atenção e respeito, demonstrando a característica acolhedora e pacífica dos habitantes. Finalmente, através deste trabalho, foi possível concluir também que o universo quilombola da região norte mineira, carece de pesquisas que possam demonstrar as particularidades históricas, sociais, identitárias e culturais, além de uma maior atenção do poder público e reconhecimento de seus direitos territoriais e culturais. 133 REFERÊNCIAS ABRAHAMS, Roger D. The theoretical boundaries of performance. In: HERDON, Marcia; BRUNYATE, Roger (Ed.). Form in performance, hard-core ethnography. Nova York: McGraw-Hill, 1975, p. 18-27. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In: Quilombos: Identidade étnica e territorialidade. Eliane Catarino O‟Dwyer ( Org.). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. ______. Dicionário musical brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: Ministério da Cultura; São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, 1989. (Coleção Reconquista do Brasil, 162). ______. Pequena história da música. 9. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. ARRUTI, José Maurício Andion. A Emergência dos Remanescentes. In: Mana 3(2), 1997, p. 7-38. ______. Mocambo: antropologia e história no processo de formação quilombola. São Paulo: EDUSC, 2006. ______. O quilombo conceitual: para uma sociologia do artigo 68. Tempo e Presença. Rio de janeiro, 2003. AZEVEDO, Teófilo de. A folia de Reis no norte de Minas. Belo Horizonte: Ed. Sesc. 1985, p. 15. AZEVEDO, Teófilo de. Literatura popular do norte de minas: a arte de jogar versos. São Paulo: Global, 1978. AZEVEDO, Téo. Folia de Alto Belo. Associação de Folclore de Alto Belo. Belo horizonte, MG. 2007, p. 150. AZEVEDO, Thales de. Problemas metodológicos da sociologia do catolicismo. Cultura e situação racial no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p.165-194. BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário histórico geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1971. BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: LASK, Tomke (org.). O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. – Fredrik BARTH. Tradução de John CUNHA Comerford. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000, p. 25-67 BASTOS, Rafael José de Menezes. Etnomusicologia no Brasil: algumas tendências hoje. In: Antropologia em Primeira Mão. Florianópolis, Santa Catarina: UFSC, 2004. 134 BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Tradução de Pedrinho A. Guareschi. 5. Petrópolis: Vozes, 2002. BÉHAGUE, Gerard. Performance practice: ethnomusicological perspectives. Westport: Greenwood Press, 1984. BLACKING, John. How music is man? 5. ed. London: University of Washington Press, 1995a. _____. Music, culture, and experience. In: BYRON, Reginald (Ed). Music, culture, and experience: selected papers of John Blacking. London: The University of Chicago Press, 1995b. p. 223-242. BOHLMAN, Philip V. Ethnomusicology: post-1945 developments. In: MACY, L. (Ed.). The New Grove Dictionary of Music Online. Disponível em: http://www.grovemusic.com. Acesso em: 20 de Jan. 2003. BOZON, Michel. Práticas musicais e classes sociais: estrutura de um campo local. Em Pauta, V. 11, N. 16-17, abr./Nov. Porto Alegre: PPG-Mus/UFRGS, 2000, p. 147 – 174. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Folia de Reis de Mossâmedes. Cadernos de Folclore nº 20. Rio de Janeiro: Arte-FUNARTE, Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1977. _____. A cultura da rua. Campinas: Papirus, 2. ed. 2001. _____. Memória do Sagrado: estudos de religião e ritual. São Paulo: Paulinas, 1985. _____. Os deuses do povo: um estudo sobre a religião popular. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. _____. O Divino, o santo e a senhora. Rio de Janeiro: Funarte, 1975. _____. O que é folclore. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Coleção Primeiros Passos). _____. Sacerdotes de Viola: rituais religiosos do catolicismo popular em São Paulo e Minas Gerais. Petrópolis: Vozes, 1981. BRANDÃO, Théo. Quilombo. Caderno de Folclore. n. 28. Rio de Janeiro, 1978. CAMBRIA, Vincezo. A fala que faz: música e identidade negra no bloco afro Dilazenze. Revista Antropológica. Vol. 17 (1), 2006. _____. Novas estratégias na pesquisa musical: pesquisa participativa e etnomusicologia. In: Música em Debate: perspectivas interdisciplinares. Rio de Janeiro: Mauad Editora Ltda, 2008. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Antropologia e moralidade. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, n° 24, ano 9, fevereiro de 1994, p. 110-121. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade Étnica, Identificação e Manipulação. In: CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1976, p. 1-31. 135 CARVALHO, Vaílton L de. História do rio São Francisco. Salvador: Seplantec/CPE, 1981. CASCUDO, Luis da Câmara. Antologia do folclore Brasileiro. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1956, p. 628. _____. Dicionário do folclore brasileiro. 10. Ed. São Paulo: Global, 2001. CEDEFES. CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO ELÓY FERREIRA DA SILVA (org.). Comunidades quilombolas de Minas Gerais no séc. XXI: História e Resistência. Belo Horizonte: Autêntica; CEDEFES, 2008. COSTA, João Batista de Almeida. Agreste e Brejo dos Crioulos: situações desiguais no território negro da jahyba. Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2008. ________. A Reescrita da História: A valorização do negro e a atualização de relações ancestrais no norte de Minas. In: Revista Verde Grande 1(2): Montes Claros, 2005. ________. Brejo dos Crioulos e a Sociedade Negra da Jaíba: novas categorias sociais e a visibilização do invisível na Sociedade Brasileira. In Pós – Revista Brasiliense de PósGraduação em Ciências Sociais, Ano V, 2001, p 99-122. ________. Do tempo da fartura dos crioulos ao tempo de penúria dos morenos: a identidade através de um rito em Brejo dos Crioulos (MG). Dissertação de Mestrado. Brasília: Unb, 1999. ________. Saber-se quilombola, ser quilombola: o enredamento de Brejo dos Crioulos (MG) nas tramas do aparelhamento estatal. Florianópolis: IV Reunião de Antropologia do Mercosul, GT1 Laudos Antropológicos, 2003, (mimeo). COSTA FILHO, Aderval. Laudo de Identificação e Delimitação Territorial do Quilombo do Gorutuba (Norte de Minas Gerais). Ministério da Cultura: Fundação Palmares. Brasília, 2005. CUNHA, Manuela Carneiro da. Etnicidade: da cultura residual mas irredutível. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 97-108 DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. São Paulo: Rocco, 1979. ________. O que faz o Brasil, Brasil. 8. Ed. São Paulo: Rocco, 1986. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ELLINGSON, Ter. Transcription. In: MYERS, Helen (Edit). Ethnomusicology: historical and regional studies. London: The Macmillan Press, 1992. p.110-152. FELD, Steven. Sound and Sentiment: Birds, Weeping, Poetics, and Song in kaluli Expression. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1982. 136 FINNEGAN, R. The hidden musicians: making-music in an English town. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. FONSECA, Graziano Leal. Moral e códigos de conduta na comunidade negra rural de Agreste. 2008. 63 f. Monografia (Ciências Sociais). Universidade estadual de montes Claros, Montes Claros, 2008. FRANÇA, Junia Lessa; VASCONCELLOS, Ana Cristina de. Manual para Normalização de Publicações Técnico Científicas. 8. Ed. Belo Horizonte: UFMG, 2007. FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Sistematização Nacional das Comunidades Remanescentes de Quilombo. In: Revista Palmares 5, Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2000, p. 10-44. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. ________. O saber local – novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998. GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005, p.38-45. GUIMARÃES, Carlos Magno. Mineração, Quilombos e Palmares. In: Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. ________. Da diáspora. Identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. HERNDON, Márcia; McLeod, Norma (Org.). The Ethnographybof Musical Performance. Noorwood: Norwood Editions, 1980. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manuel de Mello (Ed.). Emanação. In: Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. (1 CD Rom). ______. Símbolo. In: Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. (1 CD Rom). HOOD, Mantle. Music, the Unknown. En: F. Harrison, M. Hood & C. Paliska (eds), Musicology. Westport: Greenwood Press, 1963. ______. The ethnomusicologist. Nova York: McGraw-Hill, 1971. IKEDA, Alberto T. Folias de Reis, Sambas do Povo; Ciclo de Reis em Goiânia: tradição e modernidade. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Senri Ethnological Reports 1, 1994. 137 KIMO, Igor Jorge. Música, Ritual e Devoção no Terno de Folia de Reis do Mestre Joaquim Pólo. 2006. Dissertação. 216 f. (Mestrado em Música). Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG. Belo Horizonte, 2006. LANDA, Enrique Cámara. Etnomusicologia. ICCMU. Colección Música Hispana. Madri, Espanha, 2003. LUCAS, Maria Elizabeth; ARROYO, Margarete; STEIN, Marília; PRASS, Luciana. Entre congadeiros e sambistas: etnopedagogias musicais em contextos populares de tradição afrobrasiliera. Revista da FUNDARTE, Montenegro, n. 3, 2003, p. 4-20. LUCENA, I. T. OLIVEIRA. M. A. & BARBOSA, R. E. (orgs). Análise do discurso: das movências de sentido às nuanças do (re) dizer. João Pessoa: Idéia, 2004. LÜHNING, Ângela. Etnomusicologia brasileira como etnomusicologia participativa: Inquietudes em relação as músicas brasileiras. In: Musicas africanas e indígenas no Brasil. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2006, p. 37-55. ______. Métodos de Trabalho na Etnomusicologia: reflexões em volta de experiências pessoais. Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, 1991, p. 105 – 126. ______. Música: palavra chave da memória. In: Ao encontro da Palavra Cantada: poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 letras, 2001. MATOS, Cláudia Neiva de; MEDEIROS, Fernanda Teixeira de; TRAVASSOS, Elizabeth (organizadoras). Ao encontro da palavra cantada: poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7 letras, 2001. MAURÍCIO, João Valle. Caminhos do Boi III. In: Janelas do Sobrado. Memórias. Montes Claros: Arapuim, 1995. MEIHY, José Carlos Sebe; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer como pensar. São Paulo: Editora Contexto, 2007. MENDES, Jean Joubert F. Música e religiosidade na caracterização identitária doTerno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário do Mestre João Farias em Montes Claros – MG. 2004. 202 f. Dissertação. (Mestrado em Música na área de concentração em Etnomusicologia). Universidade Federal da Bahia, UFBA, Salvador, 2004. MERRIAM, Alan P. 1977. “Definitions of „Comparative Musicology‟ and „Ethnomusicology‟: An Historical - Theoretical Perspective”. Ethnomusicology 21: 189–204. ______. The anthropology of music. Evanston: Northwester University Press, 1964. MOURA, Clóvis. Brasil: as raízes do protesto negro. São Paulo: Global, 1983. MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O Negro no Brasil de Hoje. São Paulo: Global Editora, 2006. MURPHY, John Patrick. Cavalo Marinho Pernambucano. Belo Horizonte: UFMG, 2008. 138 MYERS, Helen. Ethnomusicology: an introduction. New York: W.W. Norton e Company, 1992. NERI, Renato Aquino. Três faces de uma organização social: Parentesco, Casamento e Compadrio. Montes Claros. 2008. 115f. Monografia (graduação em Ciências Sociais) Unimontes: Montes Claros, 2008. NETTL, Bruno et al. Excursions in world music. 2. ed. New Jersey: Prentice Hall, 1997. ______. Theory and method in ethnomusicology. New York: The Free Press, 1964. ______. The study of ethnomusicology: twenty-nine issues and concepts. Urbana, Illinois: University of Illinois Press, 1983. O‟DWYER, Eliane Cantarino (Org). Quilombos: Identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora UFV, 2002. OLIVEIRA, Bernardo Macedo. Representações étnicas em Agreste: marcadores da identidade coletiva. 2007. 94 f. Monografia (Ciências Sociais). Universidade Estadual de Montes Claros, UNIMONTES, Montes Claros, 2007. OLIVEIRA, Fátima O. de; WERBA, Graziela C. Representações Sociais. In: Strey, Marlene. (et al.). Psicologia social contemporânea: livro texto. Petrópolis: Vozes: 1998. OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. O catolicismo popular: tradicional, privado e da libertação. In: CEB’s; Vida e esperança nas massas. São Paulo: Editora Salesiana Dom Bosco, Texto Base, 9º Encontro Intereclesial-São Luiz, MA, 1997. ______. Religião e Dominação de Classe: Gênese, Estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985. ______. O catolicismo do povo. In A religião do povo, Cadernos Studium Theologicum, Curitiba: Editora Ave Maria, 1976. OLIVEIRA. Simone G. de. Folia de Reis: fé e festar entre a tradição e a modernidade. In: PEREIRA, Mabel Salgado; CAMURÇA, Marcelo Ayres. 89 (Drgs). Festa e Religião: imaginário e sociedade em Minas Gerais. Juiz de Fora: Templo, 2003, p. 23-38. OLIVEIRA, Fátima O. de; WERBA, Graziela C. Representações Sociais. In: Strey, Marlene. (et al.). Psicologia social contemporânea: livro texto. Petrópolis: Vozes: 1998. PRASS, Luciana. Saberes musicais em uma escola de samba: uma etnografia entre os Bambas da Orgia. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. ______. Tambores do Sul: um projeto etnomusicológico e videográfico sobre as práticas musicais em comunidades remanescentes de quilombos no RS. In: VII Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM), 2007. Porto Alegre. Anais da VII RAM. Porto Alegre: UFRGS, 2007. 139 PEREIRA, Mabel Salgado; CAMURÇA, Marcelo Ayres (orgs). Festa e Religião: imaginário e sociedade em Minas Gerais. Juiz de Fora: Templo Editora, 2003. PORTO, Guilherme. As Folias de Reis no Sul de Minas. Rio MEC/SEC/FUNARTE - Instituto Nacional de Folclore, 1982. de Janeiro: PINTO, Tiago de Oliveira. Som e Música: questões de uma antropologia sonora. In: Revista de Antropologia, 44(1). São Paulo: USP, 2001. QUEIROZ, Luís Ricardo Silva. Performance musical nos ternos de Catopês de Montes Claros. 2005. 236 f. Tese (Doutorado em Música na área de concentração em Etnomusicologia). Universidade Federal da Bahia, UFBA, Salvador, 2005. RAMOS, Donald. O quilombo e o sistema escravista do século XVIII. In: Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. REILY, Suzel Ana. Voices of the Magi: enchanted journeys in southeast Brasil. The University of Chicago Press: Chicago & London, 2002. REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Org.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. SANTOS, Maria A. G. dos; CAMARGO, Pablo M. CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO ELÓY FERREIRA DA SILVA - CEDEFES (org.). Comunidades quilombolas de Minas Gerais no séc. XXI: História e Resistência. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. SEEGER, Antthony. Ethnography of Music. In: MYERS, Helen. Ethnomusicoly: an introduction. Londres, The MacMillan Press, 1992. ______. Music and dance. In INGOLD, Tim (ed.). Companion Encyclopedia of Anthropology. London and New York: Routledge, 1994, p. 687-705. ______. Why Suyá Sing: A Musical Anthropology of an Amazonian People. Cambridge University Press, 1987, 147 p. SHILS, Edward. Tradition. London and Boston: Faber & Faber, 1981. SILVA, Maria Luiza dos Santos. A Folia de Reis da Família Corrêa de Goianira: uma manifestação da religiosidade popular. 2006. 100 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Gestão do Patrimônio Cultural). Universidade Católica de Goiás, 2006. SILVA, Nayara Alvim. Quilombo do Agreste: religiosidade negra no Norte de Minas. 2008. 99 f. Monografia. (Ciências Sociais). Universidade Estadual de Montes Claros, UNIMONTES, Montes Claros, 2008. SILVA, Vagner Gonçalves da. Observação participante e escrita etnográfica. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 285-306. 140 SILVEIRA, Andréia C. Estudo e análise da construção do Projeto Político Pedagógico da escola localizada na comunidade quilombola de Agreste. 2009. 74 f. Monografia (Pedagogia). Universidade Estadual de Montes Claros, UNIMONTES, Montes Claros, 2009. SOLOMON, Thomas. Mountains of Song: Musical Constructions of Ecology. Place and identity in Highland Bolivia. Ph.D. dissertation (Anthropology), University of Texas, Austin. University Microfilms International, N. 9813131, 1997. STOCKING JR., George W. Observers Observed: Essays on Ethnographic Field Work. Madison. The University of Wisconsin Press, 1983. STOCKING JR., George W. Theory and method in ethnomusicology. New York: The Free Press, 1964. STOKES, Martin. Introduction: Ethnicity, Identity and Music. In: Ethnicity, Identity and Music: The Musical Construction of place. Edited by Martin Stokes, 1 – 27. Oxford: Berg, 1994a. TINHORÃO, José Ramos. Música popular de índios, negros e mestiços. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 204. ______. TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil: cantos, danças, folguedos, origens. São Paulo: Art Editora, 1988, p. 138. TURNER, Victor. From ritual to theatre: the human seriousness of play. New York: PAJ Publications, 1982. _____. O processo ritual. Petrópolis: Vozes, 2005. _____. The anthropology of performance. New York: PAJ Publications, 1988. XAVIER, Silézia Soares F. A Valorização da identidade Negra pela Escola. 2008. 43 f. Monografia (Pedagogia). Universidade Estadual de montes Claros, UNIMONTES, Montes Claros, 2008. ZALUAR, Alba. Os santos e as suas festas. In: Religião e Sociedade. São Paulo: Cortez Editora, vol. 8, p. 53-60, 1982. 141 ANEXOS Letras dos Cantos – Transcritas pelo filho do Mestre da Folia de Reis de agreste Canto a São Sebastião 142 143 Canto a Nossa Senhora Aparecida 144 Entrevistas Entrevistas realizadas durante a pesquisa de campo na Comunidade Quilombola Agreste. 1ª Entrevista Data: 20 de Janeiro de 2009 Nome: Aureliano Rodrigues Gonçalves. Seu Lero. (O Mestre da Folia de Reis de agreste). Idade: 71 anos. 1) Seu Lero, bom dia e obrigado pela entrevista. A quanto tempo acontece a Reza e a Folia de Reis no dia 20 de Janeiro, aqui no Agreste? R: Comecei quando eu morava na Vereda a partir de 1973 quando eu mudei pra cá. 2) Essa Reza é finalizando a Folia de Reis, é o arremate? R: É finalizando. Eu fiz uma promessa, eles até dançava lá, mas eu não gostei e cortei, veio os foliões do Agreste, Versol me colocou na Folia dele e continuamos, quando ele faleceu entrou o Luisim, que era Folião dele, tomou conta do terno de Folia e eu acompanhei durante o tempo que ele teve aqui. Depois ele foi pra Jaiba, entrou pra outra Igreja e então pra não acabar eu tomei frente, pedi ele as cópia do canto e fui estudando e decorei os cantos e continuei muito tempo até os folião companheiro deu pra bagunçar, beber muito, sair fora do ritmo, eu ia aconselhava eles e eles brigavam comigo. Zé Nunes mesmo brigou, disse que não ganhava dinheiro pra ficar com a boca arreganhada, e eu falei, não quer arreganhar a boca você fecha, costura, mas se você não quer, não vai, sai fora. 3) E essa Reza, você faz para quais os Santos? R: São Sebastião, meu padroeiro, Santos Reis e Nossa Senhora Aparecida, tudo no dia de hoje. 4) E geralmente são quantos músicos, os tocadores que participam da Folia? 145 R: Antigamente nós era oito folião. 5) E quais os instrumentos? R: Viola, violão, rebeca, a caixa, pandeiro...hoje não tá tendo mais nem folião, só tá tendo eu e os três Reis Magos né? 6) E o Senhor reza três Terços né? R: Um para Mosto São Sebastião, o segundo para Santos Reis e o Terceiro para Nossa Senhora Aparecida. 7) Como é que é feita a Reza dos Terços, é a noite, de dia? Começa de dia, vai para noite? R: Não tem escolha, o ano passado nós rezamos de dia, três horas da tarde, nós terminamos a noite, no ano atrasado, nós amanhecemos o dia, veio meus parente de Sete Lagoas, meu filho de Montes Claros e nós amanhecemos o dia, quando tem folião nós amanhece o dia, quando não tem termina cedo, reza de dia e termina de dia mesmo. 8) E os cantos Seu Lero? R: Pra cada um Santo tem um canto, o canto pra São Sebastião, Santos Reis e Nossa Senhora Aparecida, pra cada santo um canto, é devoção, tradição. 9) E esses cantos você pegou com Versol? R: Eu só peguei de Santos Reis, pra falar a verdade ele não sabia os cantos de Nossa Senhora Aparecida e nem de São Sebastião, ele cantava assim, falava no Santo, pra oferecer pra imagem e tal, mais ele não sabia os cantos, depois com os anos que eu pedi a cópia dos cantos e trazia os folião do Jacaré pra cá. 10) E essa reza costuma durar quanto tempo? 146 R: Não tem tempo, é até eu agüentar, a hora que eu não agüentar acabou, enquanto o povo me segue ia até amanhecer o dia. 11) E o leilão, me parece que tem um leilão, ele é após a reza? R: É depois da reza, o ano passado ainda teve. Eu tenho um livrim com a foto que explica, por trás é oferecido a São Sebastião, o livrim explica que na tradição antiga, antiga, (enfatiza a palavra antiga) o povo oferecia porco, galinha pra São Sebastião, ele era o Santo que combatia a peste, a guerra, a doença. É a fé que cura. Eu peguei essa promessa na Vereda Viana e peguei com Deus, ele é um Santo muito milagroso. 12) E essa reza acontece sempre dentro da casa do Senhor? R: Sempre, é aqui na minha casa. 13) E vem gente de fora? R: Vem...ano passado veio muita gente de fora, esse ano eu tô muito sem graça, muita gente que ia vim e não pode, tô muito sem graça. 14) Agora aqui no Agreste, Seu Lero, tem algumas manifestações tradicionais que acontecem aqui, a reza do Senhor e qual mais? R: Só Elpidão, ali, costuma rezando dia 12 de Outubro, Festa de Nossa Senhora Aparecida, mas no mais acabou. O Versol rezava dia 13, pra Santa Luzia, morreu, acabou, teve um véi, o Francisco que também rezava pra Santa Luzia, morreu, acabou, tudo no dia 13. Tinha o Oliço ali que rezava dia 11 de Outubro. Acabou, parou...os festeiro só eu e Elpidão. 15) No meio do ano tem as Festas Juninas né? R: Mas é festa de Igreja né? Vem padre, Junho e Setembro, na primeira semana de Junho. Primeiro era 8 de Junho e 8 de Setembro, agora passou para primeiro de Junho e primeiro de Setembro, é conforme o primeiro sábado do mês. 147 16) Então o Senhor acredita que essa tradição no Agreste acabou porquê? R: Uns faleceram, Versol e Francisco, os que tão aqui parou tudo...é falta de fé né? O folião hoje muda muito, esse negócio de Igreja, lei, muda muito, uns vão na Igreja, outros deixa de ir na Igreja, cada um faz o que quer. Mas o folião aqui ta acabando...ta, ta acabando, pode dizer que ta acabando...eu mesmo não vou correr aqui atrás de quem não quer mais não, to ficando véi da batalha e não tem outro que serve, então ta terminando. 17) E o Senhor acha importante manter essa tradição? R: A...deveria, eu acho. Eu achei no mundo, aqui eu deixo, não foi eu que plantei, foi os Três Reis Magos né? Os primeiros que foram visitar Jesus, então acho que não deveria acabar não, continuar, como eu já dei muita tradição pra muitos ai. Na Vereda mesmo eu plantei uma folia lá, que tava bonita demais, eles começou aqui comigo, eu trazendo eles aqui pra folia mais eu. E pra falar a verdade, eles tava melhor do que eu, mas acabou eles brigando lá, foi na Nossa Senhora Aparecida mesmo, um quebrou a rebeca na cabeça do outro e virou uma cachorrada e acabou a tradição. Já tem maconheiro no meio. Eu só ando na coisa certa, se num seguir a coisa certa num tem jeito. O Zé Nunes mesmo, folião mais véio, podia me aconselhar e ajudar, mas num foi. 18) Então o Senhor é o Mestre da Folia daqui há mais de trinta anos? R: Infelizmente só tem eu, só tem eu, mais ninguém. 19) Mas o Senhor não pensou em ensinar isso aos mais novos? R: Ninguém quer não, não vou falar mal dos outros, nem meus filhos quis, então não adianta, o melhor das cartas é não jogar né? Então ninguém quer. 20) E hoje, vai começar que horas? R: Não tem precisão não, tem uma filha minha que ficou de chegar, deve tá por aí. É de meio dia em diante, antes eu sei que não vai começar. 148 21) O Senhor monta a Lapinha aqui na sua casa? R: É o oratório. 22) E a reza é em frente ao oratório? R: É em frente ao oratório. 23) E todo mundo ajuda a montar? R: É minhas filhas, minha nora, as rezadeira. 24) Seu Lero, e os músicos que acompanham o Senhor? R: Já falei acabou, não existe mais ninguém, acabou. No ano passado eu coloquei até muié pra me ajudar. 25) E chega a ensaiar antes? R: De primeiro tinha, mas depois eles ia fazer errado, eu ia reclamar e eles brigavam comigo, tinha de seguir o que eles queria, para fazer errado, do modo que eles queria eu não queria, saí fora. Queria acompanhar as tradição com que eu aprendi e me explicava, como que era o sistema da folia, mas eles não queria me seguir. Tinha um corião nosso aqui, era o Luisim, e o Imperador era outro Luis. Nós saía pra folia e cantava três dias na vizinhança, dava o manifesto no dia 24 pra 25, parava, no dia primeiro de Janeiro nós entrava cantando, tirando esmola. Até na Vereda nós foi na folia. Até o dinheiro que tirava ganhava de esmola. Frango, tudo, não tinha dinheiro dava um frango, e dava uma festa no dia 6. Ia de casa em casa. Pra mim acabou-se. Não tem assunto de folia mais não, não tem folião, mas se pintar algum ai nós faz né? Tomara que dê certo. 26) Com relação aos instrumentos, algum era feito aqui ou era comprado? 149 R: Comprado. O que eles fazia aqui é os pandeiro, de couro de veado e cotia. A caixa também, eles fazia aqui na Vereda. Zé Nunes deve ter uma aí. 2ª Entrevista Entrevista com Zé Nunes. Um dos Foliões mais antigos de Agreste. Nome: José Nunes dos Santos. (Um dos foliões mais antigos da comunidade). Idade: 78 anos. 1) O Senhor é um dos primeiros foliões aqui de Agreste? R: De ajudante já sou bem velho né? Porque quando eu nasci, quando eu tava criando, tinha um Terno que era do meu avô Filisbino, depois o outro terno e o folião chamava Joaquim de Souza, que era tio de minha muié, depois entrou o Versol, que era residente daqui, e eu depois de Versol pra cá eu fuliei toda vida, uns 20 anos. 2) E o Senhor tocava qual instrumento? R: Caixa, e até hoje...teve um tempo que eu afastei da folia, o povo foi morrendo, aí eu encostei a caixa. Tava muito véia e enfraqueceu né? Lero tem viola, violão, agora eu acompanho com a de Lero. Agora depois de Versol foi meu cunhado, ele não mora aqui não, mora em Itacambira. Chama Luís. Agora depois dele Lero entrou, pra Lero não falar mal, a folia aqui tá parada, porque Lero é assim, ele falta, mas qualquer falta dos outro e descobre e a dele ele escapa e o povo não gosta disso e afasta. Folia agora só no dia 20 de Janeiro. O povo canta guaiano, sapateia, Lero é bom festero, é boa pessoa só é nojento né? Mas ele é boa pessoa. Todo ano nós brinca muito lá. Quando aparece os companheiro certo, não tem os companheiro certo mais né? Às vezes é um que arrisca fazer e não sabe e descontrola né? Agora mesmo, hoje pelo menos tem um que está internado em Montes Claros, o Preto, só tem eu e Lero mesmo, se aparecer faz se não, ninguém sabe nem se tem. 3) Essa reza é muito antiga não é? 150 R: É, toda vida, já tem uns vinte anos, desde que ele mudou pra qui, e continuou a mesma coisa, todo ano, todo ano. 4) E quantos foliões costumam participar da folia? R: Bom...os folião tem que ser a base certa né? Tem que ser quatro pessoa, a folia mesmo tem que ser quatro, agora pra fazer a assistência tem que ser oito pessoa, até oito pessoa, agora se não tiver pode ser até quatro pessoa. 5) E quais são os instrumentos? R: Viola, caixa, violão, pandeiro, rebeca, e o instrumento é esse. Aqui já foi muito bom, pra folia era uma festa arrumada, agora acabou, nós era em oito folião, agora morreu quase todos né? Já morreu quase todos..meu irmão era bom demais pra cantar, não sabia tocar, não tocava não, mas era...ele batia pandeiro bom demais, morreu, tinha o Versol, era o chefe da folia, morreu, tinha do nome Ciciano, morreu, seu Luis, morreu, os folião véio morreu tudo né? 6) E os mais jovens, você não costuma ensinar as mais jovens? R: O povo não quer moço, até quer, mas ocê sabe, é o que eu to falando com ocê, é o modo de Lero, ele podia ensinar, até motivar o que tem vontade né? Mas ele não tem paciência, aquilo qualquer é reclamado da pessoa, a pessoa vai, abusa e nem beira e vai acabando né? 7) E aqui, por exemplo, nas tradições aqui, nas festas, foram acabando, tinha outras tradições que foram acabando com o tempo, quais destas que o Senhor lembra e que acabaram com o tempo? R: Bom, óia, quando eu me conhecia por gente, as folias aqui era mês de Junho, festa da Igreja né? Começava dia primeiro, ia até dia treze, era treze dia de festa, todo dia eles rezava, e cantava e dançava, o povo morava mesmo ai.. 8) Tinha o Batuque aqui? 151 R: Demais, demais...tinha Batuque a noite inteira, tinha tal cana verde.. 9) Cana Verde? É uma Dança? R: É uma dança, é uma dança das moça, as muié mais véia, ia batucar, aqueles homem e aquelas moça ia. Essa cana verde eles chamava de cantiga de roda, dança de roda, pegava o vulto e enchia aquela roda assim ó..(apontando para o terreiro). 10) E hoje não tem mais? R: Agora, hoje acabou tudo isso, batuque também acabou, o povo começa ali, mas não é como era não, se formar o batuque entra muita gente, mas não faz que nem fazia. Naquele tempo o povo dançava mesmo o batuque, aqui no Arapuim tem, o povo ainda tem. La tem um lugar que chama Caxambu, o povo é doido, dança, mas dança mesmo, e Arapuim, Jaiba, era a gema do batuque, era lá...Agora, aqui tinha as dança de sala que eles chamava era bailo, e o bailo era brincar mesmo, beber cachaça, jogar baralho, jogar tudo, caipira...naquele tempo não tinha outro jogo não, era caipira, aquelas das pedrinha, e baralho...naquele tempo o jogo era esse, não tinha sinuca, as luz das festa era candeia de cera de abelha, não tinha vela não, toda vida tem vela mas é pouca, era pegar a cera de abelha no mato, e ajeitava, fazia aqueles rolo, cortava assim, um dia tinha duas mil pessoa, todo mundo com uma candeia na mão, então foi mudando tudo.. 11) E o que acontece hoje? O que o Senhor vê, percebe? Qual o divertimento hoje? R: Divertimento hoje tem, é a força, naquele tempo era sanfonero, pé de bode, quatro baixo, oito baixo, hoje é no sol, cerveja..naquele tempo era cachaça, era só brincadeira mesmo, não tinha cerveja, era cachaça, era a bebida do povo, quem bebia, a cachaça, bebeu, quem não bebia, não bebia nada, não tinha refrigerante...Agora as dança, as dança inclusive conforme era, é cada vez mais o povo aprendendo mais, quando é pra fazer um forró ai, enche de gente né? Agora deferençô também os tipo de dança né? Antigamente o povo dançava num sistema e hoje é de outro, o forró hoje tá mesma coisa de lambada né? Antigamente o povo era mais grosseiro, num sabia disso não, chamava era forró, tal...música assim, assim, falava ...eles não sabia disso não, até o nome das música deles 152 era diferente, de primeiro era um tal de sorteio, mazurca, era um tal de calango, o nome era assim...hoje não tem mais. 12) Hoje eles ligam o som né? R: Hoje tem o bar Esquema, o ponto de seu Lero, Cassiano. Sábado e Domingo eles liga o som, na semana não tem não..Hoje eles não abrem não, hoje é dia de Santo, dia de São Sebastião, ai eles não abre não, e então vai levando aí...A folia, os canto, tudo tem que...os cara certo que canta junto, se entra outro não sai bem, responde direito...quando tá acostumado não, sabe tudo, o que um fala lá, outro responde.. 13) E o Senhor canta também? R: Eu só acompanho, Lero é que guia, eu só acompanho...cada canto tem um sistema, até o batido da viola, tudo tem interferência, tem uns mais avexado, outros mais compassado, mas o canto de Reis, praticamente só faz pra aquele Santo, o som é um som, agora você tem que agradecer pra aquele Santo que é o dia dele né? 14) Seu Zé Nunes, tem também as festas Juninas não é? R: É no mês de Junho, no primeiro final de semana, abre a Igreja, o Padre é de São João da Ponte, todo sábado e domingo tem leilão, vem o Padre, celebra missa, casa gente, levanta a bandeira, pra Santo Antônio. 15) E tem folia nesta época? R: Não tem não, nessa festa tem muita é dança, essas coisa, farra. 16) E em outubro tem a Festa de Nossa Senhora Aparecida? R: Alguns festeja. 17) E tem folia também? 153 R: Não, na Vereda tem folia, lá tem um bocado de gente que reza lá e canta Reis, agora por aqui quando aparece, não tem folia, só dança mesmo, é 12 de Outubro, de 11 pra 12, uns faz 11, outros faz 12, não tem folia não, só dança, esses negócio..tem Santa Luzia também que proteja as vista da pessoa né? Muita gente reza.. 154 Relatório do PNNM – Escolha da Comunidade Agreste Universidade Estadual de Montes Claros Pró-Reitoria de Extensão Mestrado em Desenvolvimento Social Projeto de Extensão “Negros do Norte de Minas: identidade, cultura e educação étnica em uma comunidade quilombola” Relatório de Viagem 1 Montes Claros, maio de 2006 155 RELATÓRIO DE VIAGEM Data: 06 e 07 de maio de 2006 Professores participantes: -Cláudia de Luz -João Batista Almeida -Luciano Sarmento -Maria Helena Ide (Bárbara) -Maria Railma Alves -Mônica Amorim Localidades visitadas71: a) Município de Janaúba: Distrito de Quem-Quem b) Município de São João da Ponte: Distrito Agreste e Comunidade Vereda Viana c) Município de Capitão Enéas: Bairro Sapé Objetivo Localizar e selecionar comunidade quilombola para desenvolver atividade de pesquisa e extensão. Relatório O presente relatório se estrutura em duas partes. Na primeira são descritas impressões gerais das localidades visitadas e os contatos que foram estabelecidos; na segunda são apresentados relatos específicos das percepções de cada grupo de professores, que compõe a equipe interdisciplinar do projeto, sobre a comunidade selecionada. 71 A escolha das localidades a serem visitadas foi resultado de consulta anterior feita pelo prof. João Batista a lideranças rurais que apontaram lugares habitados por população composta, em sua maioria, por pessoas negras. 156 Descrição da viagem e dos contatos estabelecidos 06/05/06 Distrito Quem-Quem, município de Janaúba Chegamos à comunidade pela manhã. A primeira providência foi identificar pessoas de referência que pudesse nos passar algumas informações básicas sobre a comunidade e sobre pessoas mais velhas que fossem portadoras da memória da localidade. Iniciamos o contato com uma pessoa que abordamos na rua, a qual nos indicou a casa da professora Fatinha. Ela nos recebeu de forma muito aberta e se dispôs a relatar, de modo geral, a história do distrito, apontando em sua fala pessoas mais velhas de referência na comunidade. Visitamos também duas senhoras anciãs, apontadas pela professora. Elas não acrescentaram informações novas ao que já havíamos coletado. Uma terceira senhora, também mais velha não quis nos receber. Ficou do terreiro nos observando, mas não sentiu confiança em estabelecer contato. Fomos à casa de uma benzedeira, dona Tina. Ela é muito procurada pela população para rezar as pessoas que estão com espinhela caída. Foi possível perceber que parte da população de Quem-Quem é composta de pessoas que possuem características de população de descendência africana. Porém, foi possível também perceber, andando pelas ruas, que a população negra e branca é muito misturada, não havendo, a primeira vista, uma concentração significativa de população afro-descendente. Distrito de Agreste, município de São João da Ponte Usando a mesma estratégia de Quem-Quem, procuramos contato inicial com pessoas mais velhas e com o presidente da Associação de Moradores, seu Tito. O grupo se dividiu. As professoras Bárbara (Maria Helena), Railma e Mônica foram conversar inicialmente com a professora Maria Luisa, a qual apontou o senhor João Souza como uma referência importante por ter sido criado pelo falecido Versol, que foi uma pessoa chave na comunidade. 157 Os professores João Batista, Claúdia e Luciano fizeram contato com o senhor José Nunes, uma pessoas mais velha, conhecedora da história da comunidade e com o Presidente da Associação de Moradores, senhor Tito. Os contatos permitiram levantar algumas informações iniciais importantes sobre a história da comunidade. O distrito de Agreste possui uma população mais homogênea em termos de grupo étnico. É perceptível uma presença maior de pessoas com características afro-descendente. Em termos fundiários, a região apresenta uma grande concentração de terras em mãos de fazendeiros. A localidade está rodeada de grande fazendas, de forma que a população possue somente seus terreiros ligados à casa, onde cultivam temperos, ervas, verduras, frutas e criam pequenos animais. Não há sequer um pequeno pedaço de terra para se fazer uma horta comunitária, conforme depoimento do presidente da Associação de Moradores. A comunidade está ilhada. Comunidade de Vereda Viana Acompanhados do senhor Tito, visitamos a comunidade Vereda Viana, distante cerca de 15 km(???) de Agreste. A comunidade apresenta uma ocupação territorial mais dispersa. As casas se localizam distantes uma das outras. Como não encontramos o presidente da Associação em casa, conversamos somente com senhor Tião e sua esposa. O senhor Tião, é considerada uma pessoa portadora de um grande conhecimento sobre a origem da comunidade. Diferentemente de Agreste, as famílias de Vereda possuem pequenas propriedades, onde praticam agricultura de subsistência. 07/05/06 Bairro Sapé, cidade de Capitão Enéias O bairro Sapé parece possuir uma concentração maior de população negra dentro da cidade de Capitão Enéias. Segundo relato de pessoas da comunidade, sua origem remonta a um quilombo que se estabeleceu às margens da lagoa e que, devido a expansão da cidade, acabou sendo incorporado ao perímetro urbano. 158 Assim como Quem-Quem, a presença da população negra dentro do bairro está muito diluída, o que torna difícil inferir, em um primeiro contato, se ele realmente concentra uma população afro-descendente de forma significativa para esta primeira fase do projeto. Reunião de trabalho 1) Seleção da comunidade Após a visita ao bairro Sapé, a equipe de professores se reuniu com o objetivo de discutir a seleção da comunidade. Foi solicitado também que houvesse uma rodada de colocações sobre as impressões iniciais a respeito da comunidade escolhida a partir da ótica de cada campo disciplinar ligado ao projeto, quais sejam: antropologia, arte, educação e sociologia. Em relação à escolha da comunidade, o grupo foi unânime em apontar a comunidade de Agreste como aquela que reúne as características mais próximas do objetivo do projeto de trabalhar com uma comunidade quilombola. Agreste, entre todas as outras localidades visitadas, foi a que mais concentra de forma menos diluída uma população de afrodescendentes. Foi possível perceber uma concentração maior e mais homogênea de pessoas com descendência africana. Outra característica possível de ser inferida, a partir das conversas, foi o processo de perda das terras pela população negra, com uma conseqüente concentração no perímetro urbano, ficando a comunidade espremida pelas grandes fazendas ao redor. Na visão da equipe, o projeto a se iniciar com a comunidade de Agreste possui um grande potencial para irradiar para outras localidades próximas de forma a abranger toda uma região quilombola que se estabeleceu historicamente na bacia do rio Verde Grande. 159 Comunidades quilombolas catalogadas em Minas Gerais até 2007 Município Nome da comunidade Abadia dos Dourados Dourados Alagoa Bairro Quilombo Além Paraíba Caxambu Almenara Marobá Alvorada de Minas Escadinha de Cima Amparo da Serra Estiva Antônio Dias Baú Indaiá Mangorreira Araçuaí Arraial da Ponte do Gravatá Arraial dos Crioulos Ambus Baú Córrego do Narciso do Meio (do Narciso ou Narciso do Meio) Sapé Pé de Serra Tesoura Arinos Morrinhos Ataléia Ferreirão Paulos Salineiro Mercês Contenda Belo Horizonte Luízes Mangueiras Belo Oriente Córrego Grande e Corguinho Fazenda Esperança Belo Vale Chacrinha dos Pretos Comunidade da Boa Morte Berilo Brejo Caititu do Meio Alto Caititu Caititu de Baixo Morro do Buteco Quilombola (Calhambola) Vila Santo Isidoro Vai Lavando Barro Capivari Relâmpago Itacambira Povo Jatobá Jacu Bom Jardim Mocó Muniz Água Limpa de Cima Água Limpa de Baixo Bias Fortes Colônia do Paiol Bocaiúva Borá Peixoto Senhorinha dos Santos Palmito Mocambo Bom Despacho Tabatinga 160 Quenta Sol Bom Sucesso Carrapato Bonito de Minas Campo Redondo Ilha do Retiro Ilha Valerinho Lapinha Ressaca Tamboril Tapera Buriti das Mulatas Brasilândia de Minas Porto Brasília de Minas Cercado Paracatu Brumadinho Córrego do Feijão Sapé Cachoeira da Prata Nicolau Teixeira / Ariranha Caeté Felipe Candeias Furtados Capelinha Cisqueiro Galego Santo Antônio do Fanado Santo Antônio dos Moreiras Vendinha Capinópolis Família Teodoro Capitão Enéas Barreiro Grande Carlos Chagas Marques I Marques II Cantagalo São Felix Catuti Gado Velhaco / Gurutubanos Maravilha / Gurutubanos Chapada do Norte Cruzinha Cuba Misericórdia Moça Santa (Bom Jesus) Gamela Gravatá (Quebra-Bateia) Córrego Santa Rita Córrego do Rocha Paiol Poções Porto dos Alves Ribeirão da Folha Ribeirão da Cachoeira Ferreira Água Suja Chapada Gaúcha Barra Vermelha Buracos Cajueiro São Félix Rio dos Bois Retiro dos Bois Vereda D'anta Prata Coluna Furtuoso Suaçuí Conceição do Mato Dentro Candeias Congonhas do Norte Três Barras 161 Contagem Arturos Coração de Jesus São Geraldo Coromandel Chapadão do Pau Terra Padre Lázaro Couto de Magalhães Canjicas Crisólita Deládio Crucilândia Correias Curral de Dentro Laranja Curvelo Passar de Pedra Baú Diamantina Quartel de Indaiá Dionísio Baú Divino São Pedro São Pedro de Cima Dores de Guanhães Fazenda do Berto Fazenda Bocaina São Pedro Macuco Felisburgo Paraguai Tanque Ferros Mendonça Fervedouro Paraíso Formoso Costa Barbosa São Francisco (Mato Grande) Francisco Badaró Alta Passagem Mocó Tocoiós Francisco Sá Poções Frei Lagonegro Córrego das Areias Fronteira dos Vales Nunes Prejuízo Ventania Gameleiras Lagoa dos Mártires Glaucilândia Laranjão Gouveia Espinho Guidoval Ribeirão Preto Itacarambi Remanso Vila Florentina Pau Jau Ilha do Capão Brejo do Santana Ilha do Retiro Indaiabira Brejo Grande Fazenda Brejo Grande Itabira Morro Santo Antônio Capoeirão Engenho Felipes Gatos Família Pascoal Quilombo Itaobim Arraial dos Farranchos Itaúna Catumba Jaboticatubas Açude Cipó 162 Berto Mato do Tição Jaíba Vila João Garcia (ou Lagoa de Barro) / Gurutubanos Canudo / Gurutubanos Janaúba Açude / Gurutubanos Barroca / Gurutubanos Gorgulho / Gurutubanos Guerra / Gurutubanos Jacaré Grande / Gurutubanos Lagoa de Barro / Gurutubanos Loreana / Gurutubanos Pacuí II / Gurutubanos Salinas Maravilhas / Gurutubanos Tabua / Gurutubanos Taperinha II / Gurutubanos Vila Sudário / Gurutubanos Lagoa dos Mártires / Gurutubanos Bodoque / Gurutubanos Mocambinho / Gurutubanos Januária Água Viva Balaieiro Ilha da Capivara (Quebra Guiada) Brejo do Amparo Fazenda Picos Gameleira Pasto do Cavalo Jeceaba Bananal e Mato Félix Jenipapo de Minas Cachoeira do Bolas Martins São José dos Bolas Lagoa Grande Jequeri Capuxá Jequitibá Doutor Campolina Jequitaí Buriti dos Neves Quilombo Lagoa Trindade Jequitinhonha Mumbuca Farranchos Joaíma Barreirinhos João Pinheiro Santana da Caatinga Lagoa Formosa Campo Bonito Leme do Prado Ferreira Porto Coris (Boa Sorte) Luislândia Júlia Mulata Manga Brejo de São Caetano Ilha da Ingazeira Justa I Justa II Pedra Preta Puris Riacho da Cruz Bebedouro Espinho Malhadinha Vila Primavera Martinho Campos Açude Ruim Mato do Barreiro (Saco do Barreiro) Fazenda do Olho D'água Materlândia Boa Esperança 163 Bufão Córrego do Botelho Costas e Roseiras São Domingos Turvo de Cima e Fidélis Matias Cardoso Lapinha Praia Medina Arredor Minas Novas Gravatá Mata Dois Bem Posta Macuco Nagô Quilombo São Cristóvão São Benedito do Capivari Trovoada Cabeceira do Ribeirão da Folha São Pedro do Alagadiço Cabeceiras Santiago Capão da Taquara Mirabela Borá Moeda Coqueiros Monjolos Rodeador Monte Carmelo Atalhos Montes Claros Buraco Redondo Monte Alto Montezuma Vargem das Salinas (Fazenda São Bartolomeu) Muzambinho Barra Funda Brejo Alegre Nanuque Gumercindo dos Pretos Nazareno Jaguara Palmital Nova Era Comunidade da Luz Oliveira São Domingos Onça de Pitangui Rio do Peixe Ouro Branco Guidoval Ouro Preto Lavras Novas Ouro Verde de Minas Água Preta Córrego Santa Cruz Pai Pedro Barra do Pacuí / Gurutubanos Picada / Gurutubanos Salinas I / Gurutubanos Salinas II / Gurutubanos Salinas IV / Gurutubanos Salinas V / Gurutubanos Salinas VI / Gurutubanos São Domingos Taperinha / Gurutubanos Paracatu Cercado Comunidade dos Amaros Machadinho Pontal São Domingos Paraopeba Pontinha Passa Tempo Cachoeira dos Forros 164 Patrocínio Calunga Pimenta Cachoeira do Quilombo Pescador Ferreiras Piracema Quilombo Tatu Piranga Santo Antônio de Pinheiros Altos Guiné Bacalhau Pitangui Velozo Ponte Nova Abre Campo Baú Fátima São Pedro Porteirinha Mumbuca / Gurutubanos Brutiá Presidente Juscelino Capão Caiambola Raul Soares Bernardos Ressaquinha Santo Antônio do Morro Alto Resende Costa Curralinho dos Paula Riacho dos Machados Peixe Bravo Rio Espera Buraco do Paiol Moreiras Rio Pardo de Minas Catulé Fazenda Cachoeira Rio Pomba Coelhos Sabinópolis Córrego Mestre Córrego São Domingos Maritaca Quilombo Santa Bárbara e Barra São José do Quilombo Sesmaria Salinas Comunidade dos Bagres Comunidade dos Firminos Matrona Santa Bárbara Cachoeira de Florália Santa Fé de Minas Fazenda Genipapo Santa Luzia Pinhões Santa Rita Santa Maria de Itabira Barro Preto São Pedro Quilombo Macuco Florença Santana do Riacho Xiru Santo Antônio do Itambé Botafogo Mata dos Crioulos Martins Santo Antônio do Retiro Passos Cavalos Tamboril São Domingos do Prata Serra São Francisco Bom Jardim da Prata Buriti do Meio Lagoa da Prata 165 Lajedo Ribanceiras Pinhãozeiro Porto Velho São João Batista (Barra dos Caldeirões) São Gonçalo do Rio Abaixo Quilombo São Gonçalo do Rio Preto Rio das Pedras São João da Ponte Agreste Terra Dura e Sete Ladeiras Vereda Viana São João da Ponte e Varzelândia Brejo dos Crioulos Boa Vistinha e Limeira São João do Paraíso Fazenda Cariri Fazenda Salinas São José da Lapa Dom Pedro Fazenda Conceição Maravilha / Fazenda Cabeleira São Romão Ribanceira Senhora do Porto Moinho Velho Serra do Cabral Buriti do Chega Nega Serranópolis de Minas Brejão Brutiás Campos-Pintados Rio da Cruz Touro / Gurutubanos Serro Ausente Baú Comunidade do Ó (Milho Verde) Ribeirão dos Porcos Rua Vila Nova (São Gonçalo do Rio das Pedras) Teófilo Otoni Bairro Palmeiras / Margem da Linha São Julião Imburama Cama Alta Três Pontas Cascalho Martinho Campos Quebra-Pé Uberlândia Tenda dos Morenos Urucuia Baixa Funda Varzelândia Boa Vistinha Limeira Vazante Bagres Cabeludo Bainha Verdelândia Cachoeirinha Amargoso Fazenda Polpa do Mundo / Mirassol / F. Santa Cruz / F. Corgão Fazenda Limeira / Vista Alegre Lagoa da Pedra / Lagoinha Fazenda Boa Sorte / Fazenda Caitité / Comunidade União Viçosa Buieié Quilombo da Rua Nova Virgem da Lapa Almas Bugres Curral Novo Mutuca Onça Rosário 166 Pega Capim Puba Cardozo Gravatá Massacara Visconde do Rio Branco Bom Jardim Baixo Paraopeba Retiro dos Negros Beira Córrego Comunidades quilombolas catalogadas em Minas Gerais Fonte: http://www.cpisp.org.br/comunidades/html/brasil/mg/mg_lista_comunidades.html 167 Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos DECRETO Nº 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, incisos IV e VI, alínea "a", da Constituição e de acordo com o disposto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, DECRETA: o Art. 1 Os procedimentos administrativos para a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, serão procedidos de acordo com o estabelecido neste Decreto. o Art. 2 Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. o § 1 Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. o § 2 São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. o § 3 Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental. o Art. 3 Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. o § 1 O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto. o § 2 Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabelecer convênios, contratos, acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não-governamentais e entidades privadas, observada a legislação pertinente. o § 3 O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou por requerimento de qualquer interessado. 168 o o o § 4 A autodefinição de que trata o § 1 do art. 2 deste Decreto será inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma do regulamento. o Art. 4 Compete à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária, para garantir os direitos étnicos e territoriais dos remanescentes das comunidades dos quilombos, nos termos de sua competência legalmente fixada. o Art. 5 Compete ao Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o INCRA nas ações de regularização fundiária, para garantir a preservação da identidade cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver contestação ao procedimento de identificação e reconhecimento previsto neste Decreto. o Art. 6 Fica assegurada aos remanescentes das comunidades dos quilombos a participação em todas as fases do procedimento administrativo, diretamente ou por meio de representantes por eles indicados. o Art. 7 O INCRA, após concluir os trabalhos de campo de identificação, delimitação e levantamento ocupacional e cartorial, publicará edital por duas vezes consecutivas no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localiza a área sob estudo, contendo as seguintes informações: I - denominação do imóvel ocupado pelos remanescentes das comunidades dos quilombos; II - circunscrição judiciária ou administrativa em que está situado o imóvel; III - limites, confrontações e dimensão constantes do memorial descritivo das terras a serem tituladas; e IV - títulos, registros e matrículas eventualmente incidentes sobre as terras consideradas suscetíveis de reconhecimento e demarcação. o § 1 A publicação do edital será afixada na sede da prefeitura municipal onde está situado o imóvel. o § 2 O INCRA notificará os ocupantes e os confinantes da área delimitada. o Art. 8 Após os trabalhos de identificação e delimitação, o INCRA remeterá o relatório técnico aos órgãos e entidades abaixo relacionados, para, no prazo comum de trinta dias, opinar sobre as matérias de suas respectivas competências: I - Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional - IPHAN; II - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA; III - Secretaria do Patrimônio da União, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; IV - Fundação Nacional do Índio - FUNAI; V - Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional; VI - Fundação Cultural Palmares. Parágrafo único. Expirado o prazo e não havendo manifestação dos órgãos e entidades, dar-seá como tácita a concordância com o conteúdo do relatório técnico. 169 o Art. 9 Todos os interessados terão o prazo de noventa dias, após a publicação e notificações a o que se refere o art. 7 , para oferecer contestações ao relatório, juntando as provas pertinentes. Parágrafo único. Não havendo impugnações ou sendo elas rejeitadas, o INCRA concluirá o trabalho de titulação da terra ocupada pelos remanescentes das comunidades dos quilombos. Art. 10. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos incidirem em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, o INCRA e a Secretaria do Patrimônio da União tomarão as medidas cabíveis para a expedição do título. Art. 11. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos estiverem sobrepostas às unidades de conservação constituídas, às áreas de segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras indígenas, o INCRA, o IBAMA, a Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a FUNAI e a Fundação Cultural Palmares tomarão as medidas cabíveis visando garantir a sustentabilidade destas comunidades, conciliando o interesse do Estado. Art. 12. Em sendo constatado que as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos incidem sobre terras de propriedade dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, o INCRA encaminhará os autos para os entes responsáveis pela titulação. Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber. o § 1 Para os fins deste Decreto, o INCRA estará autorizado a ingressar no imóvel de o propriedade particular, operando as publicações editalícias do art. 7 efeitos de comunicação prévia. o § 2 O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação, com obrigatória disposição de prévio estudo sobre a autenticidade e legitimidade do título de propriedade, mediante levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua origem. Art. 14. Verificada a presença de ocupantes nas terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, o INCRA acionará os dispositivos administrativos e legais para o reassentamento das famílias de agricultores pertencentes à clientela da reforma agrária ou a indenização das benfeitorias de boa-fé, quando couber. Art. 15. Durante o processo de titulação, o INCRA garantirá a defesa dos interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos nas questões surgidas em decorrência da titulação das suas terras. Art. 16. Após a expedição do título de reconhecimento de domínio, a Fundação Cultural Palmares garantirá assistência jurídica, em todos os graus, aos remanescentes das comunidades dos quilombos para defesa da posse contra esbulhos e turbações, para a proteção da integridade territorial da área delimitada e sua utilização por terceiros, podendo firmar convênios com outras entidades ou órgãos que prestem esta assistência. Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares prestará assessoramento aos órgãos da Defensoria Pública quando estes órgãos representarem em juízo os interesses dos remanescentes das comunidades dos quilombos, nos termos do art. 134 da Constituição. Art. 17. A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada mediante outorga de o título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o art. 2 , caput, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade. Parágrafo único. As comunidades serão representadas por suas associações legalmente constituídas. 170 Art. 18. Os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, encontrados por ocasião do procedimento de identificação, devem ser comunicados ao IPHAN. Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares deverá instruir o processo para fins de registro ou tombamento e zelar pelo acautelamento e preservação do patrimônio cultural brasileiro. Art. 19. Fica instituído o Comitê Gestor para elaborar, no prazo de noventa dias, plano de etnodesenvolvimento, destinado aos remanescentes das comunidades dos quilombos, integrado por um representante de cada órgão a seguir indicado: I - Casa Civil da Presidência da República; II - Ministérios: a) da Justiça; b) da Educação; c) do Trabalho e Emprego; d) da Saúde; e) do Planejamento, Orçamento e Gestão; f) das Comunicações; g) da Defesa; h) da Integração Nacional; i) da Cultura; j) do Meio Ambiente; k) do Desenvolvimento Agrário; l) da Assistência Social; m) do Esporte; n) da Previdência Social; o) do Turismo; p) das Cidades; III - do Gabinete do Ministro de Estado Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome; IV - Secretarias Especiais da Presidência da República: a) de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; b) de Aqüicultura e Pesca; e 171 c) dos Direitos Humanos. o § 1 O Comitê Gestor será coordenado pelo representante da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. o § 2 Os representantes do Comitê Gestor serão indicados pelos titulares dos órgãos referidos nos incisos I a IV e designados pelo Secretário Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. o § 3 A participação no Comitê Gestor será considerada prestação de serviço público relevante, não remunerada. Art. 20. Para os fins de política agrícola e agrária, os remanescentes das comunidades dos quilombos receberão dos órgãos competentes tratamento preferencial, assistência técnica e linhas especiais de financiamento, destinados à realização de suas atividades produtivas e de infraestrutura. Art. 21. As disposições contidas neste Decreto incidem sobre os procedimentos administrativos de reconhecimento em andamento, em qualquer fase em que se encontrem. Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares e o INCRA estabelecerão regras de transição para a transferência dos processos administrativos e judiciais anteriores à publicação deste Decreto. Art. 22. A expedição do título e o registro cadastral a ser procedido pelo INCRA far-se-ão sem ônus de qualquer espécie, independentemente do tamanho da área. Parágrafo único. O INCRA realizará o registro cadastral dos imóveis titulados em favor dos remanescentes das comunidades dos quilombos em formulários específicos que respeitem suas características econômicas e culturais. Art. 23. As despesas decorrentes da aplicação das disposições contidas neste Decreto correrão à conta das dotações orçamentárias consignadas na lei orçamentária anual para tal finalidade, observados os limites de movimentação e empenho e de pagamento. Art. 24. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação. o Art. 25. Revoga-se o Decreto n 3.912, de 10 de setembro de 2001. o o Brasília, 20 de novembro de 2003; 182 da Independência e 115 da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Gilberto Gil Miguel Soldatelli Rossetto José Dirceu de Oliveira e Silva Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 21.11.2003 172 Procedimento de Certificação de Comunidades Quilombolas Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnicos raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com formas de resistência à opressão histórica sofrida. Para a emissão da certidão de autodefinição como remanescente dos quilombos deverão ser adotados os seguintes procedimentos: I - A comunidade que não possui associação legalmente constituída deverá apresentar ata de reunião convocada para específica finalidade de deliberação a respeito da autodefinição, aprovada pela maioria de seus moradores, acompanhada de lista de presença devidamente assinada; - A comunidade que possui associação legalmente constituída deverá apresentar ata da assembléia convocada para específica finalidade de deliberação a respeito da autodefinição, aprovada pela maioria absoluta de seus membros, acompanhada de lista de presença devidamente assinada; III- Remessa à FCP, caso a comunidade os possua, de dados, documentos ou informações, tais como fotos, reportagens, estudos realizados, entre outros, que atestem a história comum do grupo ou suas manifestações culturais; IV - Em qualquer caso, apresentação de relato sintético da trajetória comum do grupo (história da comunidade); V - Solicitação ao Presidente da FCP de emissão da certidão de autodefinição. A Fundação Cultural Palmares poderá, dependendo do caso concreto, realizar visita técnica à comunidade no intuito de obter informações e esclarecer possíveis dúvidas. As comunidades quilombolas poderão auxiliar a Fundação Cultural Palmares na obtenção de documentos e informações para instruir o procedimento administrativo de emissão de certidão de autodefinição. Quanto às questões de medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes. Contudo, compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas. 173 CD – Arquivo único contendo registros em Vídeo e Áudio da Folia De Reis de Agreste. 1 – A reza dos terços 2 – Canto de Saudação 3 – Canto a Nossa Senhora Aparecida 4 – Canto a São Sebastião 3 – Lundu 4 – Guaiano