Nicola Abbagnano – Dicionário de Filosofia – parte V
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Nicola Abbagnano – Dicionário de Filosofia – parte V
PREDICÁVEIS 788 PRÉ-LÓGICO proposição, ou seja, em seu significado não existencial (v. SER). 2. Chama-se de P. uma definição que não é impredicativa, no sentido que Poincaré deu a este termo (v. IMPREDICATIVA, DEFINIÇÃO); portanto, chama-se de P. também a teoria que exclui por princípio as definições impredicativas ou o cálculo proposicional baseado nessa exclusão (cf. p. ex., CHURCH, Intr. to Mathemati-cal Logic, § 58) (v. ANTINOMIA). PREDICÁVEIS (gr. Kon:r|Yopoúu.eva; lat. Praedicabilia; in. Predicablesi; fr. Prédicables; ai. Prãdicabilien; it. Prèdicabili). Os universais, porquanto aptos por natureza a ser predicados de muitas coisas. Porfírio foi o primeiro a enumerar os cinco universais simples ou primitivos, que são gênero, espécie, diferença, próprio e acidente Usaq., 1). Aristóteles enumerou como elementos de cada proposição ou problema quatro elementos, que são definição, próprio, gênero e acidente (Top., I, 4, 101 b 24), mas esta enumeração, ao incluir a definição (que é composta de gênero e de espécie), não leva em consideração a simplicidade dos elementos. A enumeração de Porfírio tornou-se clássica e passou a fazer parte integrante da lógica tradicional. Não teve seguidores, porém, a proposta kantiana de chamar de P. os conceitos do intelecto derivados das categorias, que seriam os conceitos de força, ação, paixão (deriváveis da categoria da reciprocidade), surgir, perecer, mudar (deriváveis das categorias da modalidade), etc. iCrít. R. Pura, § 10). A noção desse termo desapareceu da lógica contemporânea (v. os verbetes particulares). PREENSÃO (in. Prehension). Termo com que Whitehead (Process andReality, 1929) designou a percepção, porquanto nela o sujeito apreende ou "apropria-se" de uma "entidade real", uma coisa ou um evento. Na realidade, o próprio nome de percepção já tem esta conotação (v. PERCEPÇÃO). PREESTABELECIDA, HARMONIA. V. PREFORMAÇÃO. PREEXISTÊNCIA. V. METEMPSICOSE. PREFORMAÇÃO (in. Preformation; fr. Pré-formation; ai. Prãformation-, it. Preformazio-né). Com o nome de teoria da P. (ou pre-formismo) foi designada no séc. XVIII a teoria sobre a formação dos organismos, segundo a qual seus órgãos já estão preformados no ovo. Malpighi, em 1637, propusera essa teoria, reconhecendo que os órgãos não se acham preformados no ovo assim como serão no embrião ou no adulto, mas em forma de filamentos ou estames, cada um dos quais é a potência de um órgão {La formazione dei pollo nelVuovo, 1637). Essa teoria foi aceita no séc. XVIII por muitos biólogos, como Haller, Spallanzani e Bonnet, que se chamavam "ovistas", para distingui-los dos "animaculistas", que no fim do séc. XVII afirmavam que o espermatozóide é um homúnculo que contém todas as partes do feto humano. A doutrina da P. era aceita por Leibniz, para quem "Deus formou previamente as coisas de tal maneira que os novos organismos não passam de conseqüência mecânica de um organismo precedente" (Théod., pref.). Segundo Kant, uma vez admitido o princípio teológico para a produção dos seres organizados, só há duas hipóteses para explicar a causa de sua forma final: a do ocasionalismo, segundo a qual Deus intervém diretamente em cada nova formação orgânica, ou a da harmonia preesta-belecida, segundo a qual um ser orgânico produz o seu semelhante. Por sua vez, esta última pode ser ou teoria da P, — se a geração for considerada como simples desenvolvimento de uma forma preexistente — ou teoria da epigenesia — se a geração for considerada como produção. Kant não escondia sua simpatia pela teoria da epigenesia, porquanto parecia reduzir muito mais que a outra a ação das causas sobrenaturais e prestar-se mais a provas empíricas (Crít. do Juízo, § 81). A moderna teoria da evolução eliminou o próprio fundamento da oposição entre teoria da P. e teoria da epigenesia (v. EPIGENESIA; EVOLUÇÃO). PREFORMACIONISMO ou PREFORMIS-MO. V. PREFORMAÇÃO. PREGUIÇA DA RAZÃO. V. RAZÃO PREGUIÇOSA. PRÉ-LÓGICO (fr. Prélogiqué). Adjetivo introduzido por L. Lévy-Bruhl para caracterizar a mentalidade dos povos primitivos, considerada indiferente ao princípio de contradição e fundada na participação (v.) (Lesfonctions mentales dans les sociétés inférieures, 1910, pp. 78 ss.). Depois, Lévy-Bruhl abandonou esse conceito: "Não há mentalidade primitiva que se distinga da outra por dois caracteres que lhes são próprios (místico e P.). Existe mentalidade mística mais acentuada e mais facilmente observável entre os primitivos do que em nossas sociedades, mas que está presente em todo o espírito humano" (Les carnets, 1949, VI; trad. it., p. 161). PREMISSA 789 PRESSUPOSTO PREMISSA (gr. 7tpÓTamç; lat. Praemissa; in. Premise, fr. Premisse, ai. Prãmísse, it. Pre-messd). Toda proposição da qual se infere outra proposição. PREMOÇÃO (lat. Praemotio, in. Premotion, fr. Premotion; it. Premozionè). Termo empregado pelos teólogos do séc. XVII para indicar a determinação física, por parte de Deus, da vontade humana: determinação física que não eliminaria a liberdade do homem. Malebranche discutiu essa noção em Refléctions sur Ia P. physique (1705). PRENOÇÃO (in. Prenotion; fr. Prenotion; ai. Vorbegriff, it. Premozionè). Termo introduzido por Durkheim para indicar os conceitos pré-científicos fundados na generalização imperfeita ou apressada, que F. Bacon chamava de antecipações ou ídolos {Régles de Ia méthode sociologique, p. 23) (v. ANTECIPAÇÃO). PREOCUPAÇÃO. V. CUIDADO; CURA. PRÉ-PERCEPÇÃO (in. Preperception-, fr. Preperception; ai. Práperzeption; it. Preperce-zionè). Assim foi às vezes chamada a função seletiva que a atenção intelectual exerce sobre a percepção sensível (cf., p. ex., James, Princ. ofPsychol, I, pp. 438-45). PRESCIÊNCIA. V. TEODICÉIA. PRESENÇA (in. Presence, fr. Présence, ai. Anwesenheit; it. Presenzd). Este termo é empregado em dois significados principais: 1Q existência de um objeto em certo lugar, pelo que se diz, p. ex., "estava presente à reunião de ontem à tarde"; 2e existência do objeto numa relação cognitiva imediata; assim, diz-se que um objeto está presente quando é visto ou é dado a qualquer forma de intuição ou de conhecimento imediato. No âmbito do primeiro significado, e com objetivos teológicos (para descrever a presença de Deus ou dos anjos nas coisas ou a presença do corpo de Cristo no pão do sacramento do altar), os escolásticos distinguiam duas formas de P.: a chamada circunscriptiva, em que uma coisa está inteira em todo o espaço que ocupa, com parte em cada parte do espaço, e a definitiva, em que uma coisa está inteira na totalidade do seu espaço e inteira também em cada uma das partes dessa totalidade. A primeira P. é um modo de ser quantitativo; a segunda exclui qualquer quantidade (cf., p. ex., S. TOMÁS DE AQUINO, S. Th., I. q. 52, a. 2; OCKHAM, Quodi, VII, q. 19). Heidegger chamou de P. ou simples P. ( Vor-handenheif) o modo de ser das coisas, que é diferente do modo de ser do homem, que é a existência iSein und Zeit, § 9). Sartre, por sua vez, falou de "P. do parasi no ser", ou seja, da consciência, no sentido de que tal presença implicaria que "o para-si é testemunha de si em P. do ser como não sendo o ser": o que significaria que a P. no ser é "P. do para-si em não sendo" (L'être et le néant, pp. 166-67). PRESENTAÇÃO (in. Presentation; fr. Presentation; ai. Prãsentation; it. Presentazioné). Conhecimento imediato ou direto: percepção ou intuição. Esse termo foi introduzido por Spencer, que fazia a distinção entre conhecimento presentativo (que se tem quando "o conteúdo de uma proposição é a relação entre dois termos, ambos diretamente presentes, como quando machuco o dedo e estou simultaneamente ciente da dor e da sua localização") e o conhecimento representativo, que é a lembrança ou a imaginação do outro conhecimento (Princ. of Psychology, § 423). Esse termo foi aceito por muitos psicólogos no séc. XIX, mas hoje está em desuso. PRESENTACIONISMO (in. Presentatio-nism; fr. Présentationisme, it. Presentazionis-mó). Foi assim que Hamilton chamou seu "realismo natural", doutrina segundo a qual a percepção é uma relação imediata com o objeto existente iDissertations on Reid, p. 825). PRESENTE. V. INSTANTE; AGORA; TEMPO. PRESSUPOSTO (in. Presupposition; fr. Presupposition; ai. Voraussetzung; it. Presuppos-tó). 1. Premissa não declarada de um raciocínio, utilizada no decorrer de um raciocínio, mas que não foi previamente enunciada, não havendo, pois, um compromisso definitivo em relação a ela. Diferentemente da premissa, do postulado, da hipótese, etc, o P. é introduzido sub-repticiamente no decorrer de um raciocínio, limitando ou dirigindo-o de maneira dissimulada ou oculta. Pode ser também definido como regra sub-reptícia de inferência. Portanto, o princípio da eliminação dos P. é fundamental para todos os campos da investigação no mundo moderno. A expressão "eliminação dos P." (ai. Voraussetzungslo-sigkeii) parece ter sido cunhada apenas por Fr. Strauss (Leben Jesu, 1836, p. IX), mas a exigência que ela encerra está na origem da ciência moderna (que com Galileu procurou livrar-se dos P. metafísicos) e da filosofia moderna (que com Bacon e Descartes afirmou a exigência de uma investigação radical, fundada apenas em premissas declara- PRESUNÇÃO 790 PREVISÃO das). A eliminação dos P. também tem o fim de evitar que, em certo campo de investigações, atuem crenças pertencentes a campos diferentes que limitem a investigação de modo não controlável. Husserl fez uso mais restrito e técnico do princípio da eliminação dos P., lançando mão dele para delimitar a esfera fenomenológica (Logiscbe Untersuchun-gen, II, Intr., § 7). 2. O mesmo que premissa, postulado ou hipótese. Este segundo significado pode levar a confusões. PRESUNÇÃO (lat. Praesumptio; in. Pre-sumption; fr. Présomption; ai. Prüsumption; it. Presunzioné) .1. Juízo antecipado e provisório, que se considera válido até prova em contrário. P. ex., "P. de culpa" é um juízo de culpabilidade que se mantém até que seja aduzida uma prova em contrário; têm significado análogo as expressões "P. de verdade" ou "P. favorável" ou "P. contrária" a uma proposição qualquer. 2. Confiança excessiva em suas próprias possibilidades; e neste sentido chama-se de presunçoso quem alimenta tal confiança. PRETERIÇÃO (in. Preterition; fr. Prêtéri-tion; it. Preterizioné). Conceito utilizado pela teologia calvinista para atenuar a doutrina da dupla predestinação: os réprobos são assim porque Deus "os preteriu" em sua escolha (cf. Calvin, Institutions de Ia religion chrétienne, III, cap. 24)_. PREVISÃO (gr. JtpÓTVOXJiç; in. Prediction; fr. Prévision; ai. Voraussage, it. Previsioné). Um dos objetivos fundamentais da explicação científica, ou a própria explicação. Na ciência antiga, a importância da P. foi acentuada apenas em medicina (HIPÓCRATES, Prognostikon, I). Galileu expunha esse conceito afirmando que "chegar ao conhecimento de um único efeito para suas causas abre-nos o intelecto ao entendimento e à certeza de outros efeitos, sem necessidade de recorrer à experiência" (Discor-si intorno a due nuove scienze, Opere, ed. Utet, II, p. 799). A P. foi utilizada por Hume em sua crítica da causalidade: "Por sermos levados pelo costume a transferir o passado para o futuro, em todas as nossas inferências, sempre que o passado se manifesta regular e uniforme, esperamos o acontecimento com a máxima certeza e não damos ocasião a suposições contrárias" ilnq. Cone. Underst., VI). Comte pôs esse conceito em primeiro plano com sua fórmula "Ciência, portanto P.; P., portanto ação" (Cours dephil. pos., 1830, I, p. 51). Heltz expressou-o nas palavras de abertura da Introdução a Prinzipien derMechanik(1894): "O problema mais imediato e, certamente, o mais importante que nosso conhecimento da natureza permite resolver é a previsão dos acontecimentos futuros, de tal modo que possamos organizar nossas atividades presentes de acordo com tais previsões". Para Peirce, a P. é a base da verdade prática da hipótese científica: "Na indução não é o fato previsto que, em alguma medida, determina a verdade da hipótese ou a torna provável, mas sim o fato de ele ter sido previsto com sucesso e de ser uma amostra aleatória de todas as P. que podem basear-se na hipótese e que constituem a verdade prática dela" (Coll. Pap., 6.527). No neoempirismo contemporâneo, alguns filósofos tendem a reduzir a P. à explicação; outros, a reduzir a explicação à previsão. No primeiro sentido, Carnap expressa-se dizendo que "a natureza de uma P., no que diz respeito à confirmação ou à comprovação, é a mesma de um enunciado sobre um evento presente não diretamente observado por nós, como p. ex. sobre um processo em curso no interior de uma máquina ou um acontecimento político na China ("Testability and Meaning", em Readings in the Phil. of Science, 1953, p. 87). No segundo sentido, Quine declara acreditar que o esquema conceituai da ciência é, em última análise, um instrumento para prever a experiência futura à luz da experiência passada (From a Logical Point of View, II, 6). A identidade entre lógica da P. e lógica da explicação foi asseverada por Feigl (em Readings, cit., p. 417-18), enquanto Hempel defendeu a tese da identidade estrutural (ou da simetria) entre explicação e P., no sentido de que "toda explicação adequada é potencialmente uma P., e, inversamente, toda P. adequada é potencialmente uma explicação" (Aspects of Scientific Explanation, 1965, p. 367). Popper, depois de afirmar que todas as ciências teóricas, inclusive as sociais, são ciências de P., ressaltou a distinção entre a P. científica e a profecia histórica, porque esta última carece do caráter condicional da primeira: "As P. comuns da ciência são condicionais. Asseveram que certas mudanças (p. ex., da temperatura da água numa chaleira) serão acompanhadas por certas transformações (p. ex., a ebulição da água)" {Conjectures and Refutations, 1965, p. 339). Reichenbach usou o termo pós-visibilidade (post-dictability) para indicar a possibilidade PRIMADO 791 PRIMITIVO de determinar "os dados passados em termos de observações dadas" {Philosophic Founda-tions of Quantum Mechanics, 1944, p. 13). O termo pós-visão ou retrovisão (postidiction or retrodictiori) foi empregado para indicar o inverso lógico de uma P., ou seja, a inferência que procede de um acontecimento presente para trás, em direção a uma condição inicial já conhecida (HANSON, The Concept of the Po-sition, 1963, p. 193). V. EXPLICAÇÃO. PRIMADO (in. Primacy, fr. Primauté, ai. Pritnat; it. Primató). Importância primária de uma coisa ou o que condiciona uma coisa em relação às outras. Kant diz: "Por P. entre duas ou mais coisas ligadas pela razão, entendo a superioridade de uma delas por ser o primeiro motivo que determina a ligação com todas as outras". Mais precisamente, "P. da razão prática" significa a prevalência do interesse prático sobre o teórico, no sentido de a razão admitir, por ser prática, proposições que não poderia admitir no uso teórico e que não constituem uma de suas extensões cognoscitivas: os postulados da razão prática (Crít. R. Prática, II, cap. 2, seç. 3). A palavra P. foi usada no campo político para indicar a função predominante que certo elemento (povo, nação, classe, grupo social, etc.) tem ou deve ter na totalidade à qual pertence. Gioberti falou neste sentido do P. moral e civil dos italianos(1843). Nesta extensão, o termo adquire significados ainda mais vagos e arbitrários que no primeiro significado. PRIMALIDADE (lat. Primalitas; ai. Prima-litãt; it. Primalitã). Princípio constitutivo do ser, segundo Campanella. Há três P.: poder (potentiá), saber isapientià) e amor {amor), que em Deus são infinitas e nas coisas são limitadas pelos seus contrários — impotência, insipiência e ódio —, que constituem o não ser (Metaphisica, 1638, VI, Proem). Esse termo tem o mesmo valor de princípio (v.). PRIMÁRIAS e SECUNDARIAS, QUALIDADES. V. QUALIDADE. PRIMÁRIO (lat. Primarius; in. Primary, fr. Primaire, ai. Primar, it. Primário). 1. O que é primeiro ou mais importante num campo qualquer, ou o que é primeiro no sentido de condicionar o que vem depois, sem ser condicionado por ele. Este era um dos sentidos — o fundamental — que Aristóteles atribuía à palavra "primeira" (Met., V, 11, 1019 a 2), sendo o mais freqüentemente relacionado com o uso do termo. "Qualidades P.", p. ex., são as qualidades que não podem faltar nos corpos e que condicionam as "qualidades secundárias". "Escola P." é aquela que todos devem freqüentar e que prepara aos outros tipos de escola. "Atenção P." foi o nome dado por alguns psicólogos à atenção primitiva, originária, etc. Diz-se "importância P." para dizer importância fundamental ou condicionante. 2. O mesmo que primitivo (v.). PRIMEIRO MOTOR. V. DEUS, PROVAS DE. PRIMEIRO MÓVEL. V. MÓVEL, PRIMEIRO. PRIMrnVISMO (in. Primitivism, fr. Primi-tivisme, it. Primitivismó). 1. Atitude ou mentalidade dos povos primitivos, especialmente no aspecto de conformação do indivíduo aos valores do ambiente. É neste sentido que esse termo é usado, p. ex., por Scheler {Sympathie, cap. III; trad. fr., p. 362, n. 2). 2. Crença de que a forma mais perfeita de vida humana é a que existiu no primeiro período da humanidade (mito da idade do ouro), ou a que se observa nos povos primitivos, considerados mais jovens (mito do "bom selvagem"). Quanto a este significado de P., v. Lovejoy e Boas, Primitivism and Related Ideas in Anti-quity, 1935; Boas, Essays on Primitivism and Related Ideas in the Middle Ages, 1948). PRIMITIVO (in. Primitive, fr. Primitif, ai. Primitiv, it. Primitivo). 1. O mesmo que originário (v.), nos dois sentidos deste termo: a) o que pertence à fase inicial de um desenvolvimento ou de uma história, e neste sentido dizemos "a nebulosa P.", "a humanidade P.", etc; b) o que funciona como condição, princípio ou premissa, e por isso determina outras coisas, não sendo, porém, determinado por elas; neste sentido, dizemos "proposições P.", "função P.". Chamam-se "símbolos P." os introduzidos diretamente, sem ajuda de outros símbolos. 2. O que é simples, no sentido de constituir a forma mais elementar que certo objeto pode assumir; neste sentido falase em "homens P." ou simplesmente "os P.". Durkheim utilizou esse significado para definir os P., juntamente com o significado estudado em {a) (Les formes élementaires de Ia vie religieuse, 1937, p. 1). Mas Lévy-Bruhl escreveu: "Com este termo impróprio, mas de uso quase indispensável, pretendemos designar simplesmente os membros das sociedades mais simples que conhecemos" (Les fonctions mentales dans le sociétes inférieures, 1910, p. 2). No mesmo sentido, emprega-se hoje a palavra primário (v.). No que diz respeito às interpretações do mundo P., podem ser agrupadas em duas cias- PRIMORDIAL 792 PRINCÍPIO ses: d) as que consideram o mundo P. como pré-lógico, pré-empírico e místico, portanto de constituição completamente diferente da sociedade civilizada; esta foi a interpretação defendida especialmente por Lévy-Bruhl (do qual além da obra citada, v.: La mentalitéprimitive, 1922; L'âmeprimitive, 1927; Uexpérience mys-tique et le symboles chez les primitifs; 1938), mas corrigida por ele mesmo, no sentido de matizar ou atenuar a diferença entre a mentalidade P. e a não P., que é mais de grau que de qualidade {Les carnets, 1949); b) as que admitem nas comunidades P. a posse de abundante patrimônio de conhecimentos fundados na experiência e na razão, considerando que o homem P. tende a recorrer à magia ou ao misticismo só quando os conhecimentos que possui não o ajudam mais. Esta é a interpretação defendida principalmente por Bronislaw Mali-nowski (Magic, Science and Religion, 1925) e hoje adotada por quase todos os sociólogos. PRIMORDIAL (in. Primordial; fr. Primordial; it. Primordialé). O mesmo que originário (v.). PRINCÍPIO (gr. àpjcí; lat. Principium; in. Principie, fr. Príncipe; ai. Prinzip, Grundsatz; it. Principio). Ponto de partida e fundamento de um processo qualquer. Os dois significados, "ponto de partida" e "fundamento" ou "causa", estão estreitamente ligados na noção desse termo, que foi introduzido em filosofia por Ana-ximandro (Simplício, Fís., 24,13); a ele recorria Platão com freqüência no sentido de causa do movimento (Fed., 245 c) ou de fundamento da demonstração (Teet., 155 d); Aristóteles foi o primeiro a enumerar completamente seus significados. Tais significados são os seguintes: le ponto de partida de um movimento, p. ex., de uma linha ou de um caminho; 2- o melhor ponto de partida, como p. ex. o que facilita aprender uma coisa; 3 e ponto de partida efetivo de uma produção, como p. ex. a quilha de um navio ou os alicerces de uma casa; 4 S causa externa de um processo ou de um movimento, como p. ex. um insulto que provoca uma briga; 5 e o que, com a sua decisão, determina movimentos ou mudanças, como p. ex. o governo ou as magistraturas de uma cidade; 6 a aquilo de que parte um processo de conhecimento, como p. ex. as premissas de uma demonstração. Aristóteles acrescenta a esta lista: "'Causa' também tem os mesmos significados, pois todas as causas são princípios. O que todos os significados têm em comum é que, em todos, P. é ponto de partida do ser, do devir ou do conhecer" {Mel, V, 1, 1012 b 32-1013 a 19). Esses reparos de Aristóteles contêm quase tudo o que a tradição filosófica posterior disse a respeito dos princípios. Talvez caiba distinguir outro significado: como ponto de partida e causa, o P. às vezes é assumido como o elemento constitutivo das coisas ou dos conhecimentos. Este, provavelmente, era um dos sentidos da palavra entre os présocráticos, às vezes utilizado pelo próprio Aristóteles (Met., I, 3, 983 b 11; III, 3, 998 b 30, etc). Neste sentido, Lucrécio chamava os átomos de P. (De rer. nat., II, 292, 573, etc), e os estóicos distinguiam elementos e P., pelo fato de que os P. não são gerados e são incorruptíveis (DIÓG. L., VII, 1, 134). No séc XVIII, ao definir o P. como "o que contém em si a razão de alguma outra coisa", Wolff (Ont., § 886) observava que esse significado estava de acordo com a noção de Aristóteles e que os escolásticos não se haviam afastado dela (Ont., § 879). Baumgarten, a quem a terminologia moderna tanto deve, repetia a definição de Wolff (Met., § 307). Kant, por um lado, restringia o uso do termo ao campo do conhecimento, entendendo por P. "toda proposição geral, mesmo extraída da experiência por indução, que possa servir de premissa maior num silogismo", mas por outro lado introduzia a noção de "P. absoluto" ou "P. em si", vale dizer, conhecimentos sintéticos originários e puramente racionais, que ele julgava insubsis-tentes, mas aos quais a razão recorreria no seu uso dialético (Crít. R. Pura, Dialética, II, A). Na filosofia moderna e contemporânea a noção de P. tende a perder importância. Com efeito, inclui a noção de um ponto de partida privilegiado, não de modo relativo (em relação a certos objetivos), mas absoluto, em si. Um ponto de partida desse gênero hoje dificilmente poderia ser admitido pelas ciências. Poincaré observava com razão que um P. não passa de lei empírica que se considere cômodo subtrair ao controle da experiência por meio de convenções oportunas: portanto, um P. não é verdadeiro nem falso, mas apenas cômodo (La valeur de Ia science, 1905, p. 239). Em matemática e lógica, nas quais há oportunidades dessa natureza, esse termo está em desuso para indicar as premissas de um discurso, e foi substituído por axioma ou postulado. Nestes campos, é freqüente dar-se o nome de P. a teo-remas particulares, cuja importância para o PRINCÍPIO ATIVO 793 PROBABILIDADE desenvolvimento ulterior de um sistema simbólico se queira ressaltar. Peirce chamara de P. guia (Leading Principie) o P. que "se deve supor verdadeiro para sustentar a validade lógica de um argumento qualquer" (Coll. Pap., 3,168; cf. DEWEY, Logic, I; trad. it., p. 46). PRINCÍPIO ATIVO (gr. xò rcoioüv). Foi esse o nome que os estóicos deram à Razão, à Causa ou Deus que dá forma à matéria (que é o P. passivo), produzindo nela os seres individuais (DIÓG. L., VII, 134); identificaram esse princípio com o Fogo, no sentido de calor ou de espírito animador (Lbid., VII, 156; CÍCERO, De nat. deor., II, 24). PRINCÍPIO DE AÇÃO MÍNIMA; DE CAUSALIDADE; DE CONTRADIÇÃO; DE IDENTIDADE; DOS INDISCERNÍVEIS; DE IN-DIVIDUAÇÃO; DE RAZÃO SUFICIENTE; DO TERCEIRO EXCLUÍDO; etc.V. termos relativos. PRIORIDADE (in. Priority, fr. Priorité, ai. Prioritàt; it. Prioritã). 1. Precedência no tempo. 2. Caráter do que é primário (v.). PRIVAÇÃO (gr. OTéptiaiÇ; lat. Privatio; in. Privation-, fr. Privation; ai. Privation-, it. Priva-zioné). Falta daquilo que, j>or qualquer razão, poderia ou deveria ser. E este o sentido da definição de Wolff: "Ausência de uma realidade que podia ser ou à qual não repugna ser" (Ont., § 273). Aristóteles incluíra entre os significados desse termo (todos redutíveis ao que acabamos de enunciar) também a falta de um atributo que não pertence naturalmente à coisa, como quando se diz que uma planta não tem olhos {Met., V, 22, 1022 b 22). Mas essa generalização excessiva torna o conceito quase que inútil. O próprio Wolff fazia a distinção entre entidades privativas, que consistem na falta (como cegueira, morte, trevas, etc.) e em seus nomes relativos, de entidades positivas e seus nomes (Ont., § 273-274); essa distinção foi reproduzida por John Stuart Mill, que observava a respeito: "Os nomes denominados privativos indicam duas coisas: ausência de certos atributos e presença de outros, a partir dos quais se poderia esperar naturalmente a presença dos primeiros" (Logic, I, 2, § 6). Estas distinções conservaram-se na lógica tradicional do séc. XIX (cf., p. ex., SIGWART, Logik., 1889, I, § 22). PROBABILIDADE (gr. xò EÍKÓÇ; lat. Pro-babilitas; in. Probability, fr. Probabilité; ai. Warhscheinlichkeü; it. Probabilita). Grau ou a medida da possibilidade de um evento ou de uma classe de eventos. Nesse sentido, P. sempre supõe uma alternativa, e é a escolha ou preferência por uma das alternativas possíveis. Se dissermos, p. ex., "amanhã provavelmente choverá", estaremos excluindo como menos provável a alternativa "amanhã não choverá"; se dissermos "a P. de uma moeda dar coroa é de metade", o significado dessa afirmação decorre do confronto com a outra alternativa possível, de ela dar cara. Podemos exprimir esse caráter da P. dizendo que ela é sempre função de dois argumentos. Outro caráter geral da P. (seja qual for a interpretação) é que do ponto de vista quantitativo ela é expressa com um número real cujos valores vão de 0 a 1. O problema a que a noção de P. dá origem é o do significado, ou seja, do próprio conceito de probabilidade. O cálculo de P., p. ex., não dá origem a problemas enquanto não é interpretado: os matemáticos estão de acordo sobre todas as coisas que podem ser expressas por símbolos matemáticos, porém seu desacordo começa quando se trata de interpretar tais símbolos. Carnap (The Two ConceptsofProbability, 1945, agora em Readings in the Pbilosophy of Science, 1953, pp. 441 ss.) e Russell (Human Knowledge, 1948, V, 2) falaram da existência de dois conceitos diferentes e irredutíveis de P.; o primeiro chamou, respectivamente, de P. indutiva (ou grau de confirmação) e P. estatística (ou freqüência relativa); o segundo falou em grau de credibilidade e P. matemática. Foram propostos outros nomes para esses dois tipos de P. Kneale deu o nome de aceitabilidade 3.0 primeiro tipo e de acaso (chance) ao segundo (Probability and Induction, 1949, p. 22); Braithwaite denominou o primeiro de razoabi-lidadee o segundo de P. (ScientificExplanation, 1953, p. 120). Os dois conceitos defrontaram-se nos últimos quarenta anos, procurando cada qual eliminar o outro, o que é tipicamente representado nas posições de Von Moisés e de Jeffreys. O primeiro rejeita, por ser subjetivo, o conceito de P. indutiva, considerando sem sentido utilizar o termo P. fora do conceito estatístico (Probability, Statistics and Truth, 1928, ed. 1939, lect. I, III). O segundo acha que a chamada definição objetiva de P. é inutilizável e que nem os estatísticos a empregam, porque "todos usam a noção de grau de crença razoável, em geral sem notarem que a estão usando" (Theory of Probability, 1939, p. 300). Visto que as observações de Carnap e de Russell tornam PROBABILIDADE 794 PROBABILIDADE essa polêmica sem significado, mas ao mesmo tempo confirmam a existência de dois conceitos diferentes de P., pode-se, com base em tais conceitos, fazer um apanhado das doutrinas relativas. Para se evitarem qualificações polêmicas (e inexatas), como "subjetivo", "objetivo", etc, pode-se simplesmente considerar como característica distintiva dos dois conceitos de P. a função desempenhada por cada um deles e falar, conseqüentemente, de l s P. singular, 2- P. coletiva. \° Para caracterizar o primeiro conceito de P. pode-se dizer que ele tem em vista o grau de possibilidade de um evento único e que, portanto, seus argumentos são eventos, fatos ou estados de coisas ou circunstâncias, sendo a probabilidade expressa por proposições do tipo "Amanhã provavelmente choverá". O antecedente histórico remoto dessa noção é o conceito neo-acadêmico de representação persuasiva (v.), cujos graus eram enumerados por Carnéades, que os determinava por provas ou por indícios negativos ou positivos (v. PERSUASIVO). Os criadores do cálculo de P. tinham em mente esse conceito de probabilidade. Ber-nouilli deu a seu tratado, primeira obra importante sobre o assunto, o nome de Ars con-jectandi (1713). A grande obra de Laplace, intitulada Théorie analytique des probabilités (1812), inspirava-se no mesmo conceito; em sua introdução, Laplace afirmava que "a P. dos eventos serve para determinar o temor ou a esperança das pessoas interessadas na existência deles" (Essai philosophique sur lesprobabilités, 1,4), e toda a sua obra não trata de estatística, mas dos métodos para estabelecer a aceitabilidade das hipóteses. Desse ponto de vista, a P. era definida como "a relação entre os números de casos favoráveis e o de todos os casos possíveis". O princípio fundamental para avaliar as P. era o chamado princípio de indiferença ou de eqüiprobabilidade, segundo o qual, na falta de qualquer outra informação, assume-se que os vários casos são igualmente possíveis; desse modo, p. ex., quando se lança um dado, admite-se que cada uma de suas faces tem idênticas P. de aparecer, uma vez que cada face tem a mesma P. de 1/6 (.Op. cit., I, 3). Embora esta teoria tenha sido acerbamente criticada, foi retomada em 1921 pelo economista inglês John Maynard Keynes, em seu Tratado sobre a P., e mais tarde exposta por F. P. Ramsey {The Foundations of Mathematics, 1931) e por H. Jeffreys {Jheory of Probability, 1939). Todos esses escritores definem a P. como um "grau de crença racional" e admitem a validade do princípio de indiferença, mas, como notou o próprio Carnap, o caráter subjetivo dessa definição é apenas aparente, pois o que eles procuraram determinar são os possíveis graus de confirmação de determinada hipótese. De fato, os graus de crença só poderiam ser estabelecidos por métodos psicológicos, ao passo que, na realidade, os métodos propostos por esses autores nada têm de psicológicos; são lógicos e referem-se à disponibilidade e à natureza das provas que podem confirmar uma hipótese. Com base nesse conceito objetivo de P. singular, Carnap criou um sistema de lógica quantitativa indutiva, com fundamento no conceito de confirmação èm suas três formas: positiva, comparativa e quantitativa (Logical Foundations of Probability, 1950). O conceito positivo de confirmação é a relação entre dois enunciados h (hipóteses) e p (prova), que pode ser expressa por enunciados da seguinte forma: "h é confirmado por p"; "h é apoiado porp"; "pé uma prova (positiva) para h"; "pé uma prova que consubstancia (ou corrobora) a assunção de h". O conceito comparativo (topológicó) de confirmação geralmente é expresso em enunciados que têm a forma "h é mais fortemente confirmado (apoiado, consubstanciado ou corroborado, etc.) por p do que ti porp". Finalmente o conceito quantitativo (ou métrico) de confirmação (conceito de grau de confirmação) pode ser determinado nos vários campos por métodos análogos aos utilizados para introduzir o conceito de temperatura, com o fim de explicar os de "mais quente" ou "menos quente" ou o de quociente intelectual, para determinar os graus comparativos de inteligência. Carnap também defendeu o princípio de indiferença (mesmo considerando-o como forma limitada), aplicando-o às distribuições estatísticas, e não às distribuições individuais. A teoria de Carnap foi amplamente discutida e aceita. Foram propostas outras determinações do conceito de grau de confirmação (cf. p. ex., HELMER e OPPENHEIM, "A Syntactical Definition of Probability and Degree of Confimnation" em Journal ofSymbolic Logic, 1945, p. 25-60). O conceito de P. singular, ou seja, de grau de confirmação, é o único a que se faz geralmente referência nos acontecimentos da vida e que é assumido, explícita ou implicitamente, como orientador dos comportamentos indivi- PROBABILIDADE 795 PROBABILIDADE duais. É preciso observar que, entre os indícios ou provas que podem ser assumidos como confirmação de uma hipótese qualquer, como fundamento de um juízo de P., nada impede que se inclua a consideração das freqüências estatísticas às quais se reduz o segundo conceito de P. Às vezes, porém, a P. estatística faz parte de determinação da P. singular com sinal invertido; p. ex., para quem aposta na loteria, a freqüência com que certo número foi sorteado nos últimos tempos é um indício de P. negativa: para ele, são bons os números menos sorteados durante um período mais ou menos longo. 2- O segundo conceito fundamental é de P. coletiva ou estatística, cujo objeto nunca são eventos ou fatos individuais, mas classes, espécies ou qualidades de eventos, podendo, portanto, ser expressos apenas por funçõespropo-sicionais (v.), e não por proposições. Seu antecedente histórico mais distante é o conceito aristotélico do verossímil (v.): "Provável é aquilo que sabidamente acontece ou não na maioria das vezes, que é ou não na maioria das vezes" (An.pr., II, 27, 70 a 3; Ret., I, II, 1357 a 34). Mas a formulação rigorosa desse conceito só foi feita recentemente por Fischer {Philo-sophical Transactions ofthe Royal Society, série A. 1922), por Von Moisés {Probability, Statistics and Truth, 1928), por Popper (Logik der Fors-chung, 1934) e por Reichenbach ( Wahrschein-lichkeitslebre, 1935; Tbeory of Probability, 1948). Como ilustração dessa noção de P., podemos escolher a elaboração de Von Moisés, com o conceito da freqüêncialimite. Se para n observações o evento examinado ocorre m vezes, o quociente m/né a freqüência relativa da classe de eventos em questão: relativa ao número n de observações. Mas se quisermos falar simplesmente em freqüência, sem limitar a extensão das observações, podemos supor que, à medida que o numerador e o denominador vão ficando maiores, a função m/n tende para um valor-limite, podendo-se considerar esse valor-limite como medida da freqüência, ou seja, como medida da P. no sentido proposto. Assim, p. ex., se lançando uma moeda 1.000 vezes tivermos freqüência 550 para cara, se em 2.000 vezes tivermos freqüência 490, em 3.000 freqüência 505, em 4.000, freqüência 497, em 10.000, freqüência 5.003, e assim por diante, visto que o valor-limite dessas séries é 0.5, assumiremos esse valor-limite como valor da P. do acontecimento em questão. Mas esse acontecimento nunca é singular, portanto a P. assim calculada não servirá para prever o resultado do próximo lance da moeda e permitir, p. ex., que um jogador escolha a sua aposta. A P. dessa espécie vale para classes de eventos, e não para eventos singulares. Não se pode falar, p. ex., da P. de um indivíduo qualquer morrer no ano em curso, mesmo quando conhecemos o limite de freqüência da mortalidade no grupo ao qual ele pertence (cf. também de VON MOISÉS, Kleines Lehrbuch des Positivismus, % 14). Reinchenbach afirmou a propósito: "A asserçâo que concerne à P. de um caso individual tem significado fictício, construído através da transferência de significado do caso geral para o particular. A adoção dos significados fictícios não é justificável por motivos cognitivos, mas porque é útil aos objetivos da ação considerar tais asserçòes dotadas de significado" (Theory of Probability, p. 377). A outra característica fundamental da teoria é a eliminação do princípio de indiferença, ou seja, da P. apriori. A teoria estatística da P. de fato nada pode dizer a respeito da P. de uma classe de eventos se antes não tiver determinado as freqüências desse evento; portanto, qualquer grau de P. só pode ser determinado a posteriori, ou seja, depois de efetuada a determinação das freqüências (REICHENBACH, Op. cit., § 70, pp. 359 ss.). A teoria coletiva ou estatística da P. foi amplamente aceita na filosofia contemporânea (vejam-se, além das obras citadas, J. O. Wis-DOM, Foundations of Inference in Natural Science, 1952, e BRAITHWAITE, Scientific Expla-nation, 1953). Outra determinação dessa doutrina foi feita por Popper, principalmente com vistas à sua utilização na teoria quântica. Como dissemos, a P. estatística não se refere a eventos singulares, mas a classes ou seqüências de eventos. Popper propõe considerar como decisivas as condições sob as quais a seqüência é produzida, vale dizer, considerar que as freqüências dependem das condições experimentais e portanto constituem uma qualidade dis-posicionalda ordenação experimental. Popper diz: "Qualquer ordenação experimental é capaz de produzir uma seqüência de freqüências que dependem dessa particular ordenação, se repetirmos a experiência mais vezes. Estas freqüências virtuais podem ser denominadas probabilidades. Mas, visto que as P. dependem da ordenação experimental, elas podem ser PROBABÜISMO 796 PROBLEMA consideradas propriedades dessa ordenação. Caracterizam a disposição ou propensão da ordenação experimental a dar origem a certas freqüências características, quando o experimento é repetido várias vezes" ("The Propensity Interpretation of the Calculus of Probability and the Quantum Theory", em Observation and Interpretation, A Symposium ofPhilosophers and Physicists, ed. por Kõrner, 1957, p. 67). A vantagem dessa interpretação seria considerar fundamental "a P. do resultado de um experimento único em relação com suas condições, e não a freqüência dos resultados numa série de experimentos" (Ibid., p. 68). Popper faz analogia entre esse conceito e o de campo (v.), observando que nesse caso uma P. pode ser considerada um "vetor no espaço das possibilidades" (Ibid). Essa interpretação tende, obviamente, a diminuir a distância entre os dois conceitos fundamentais de probabilidade. PROBABILISMO (in. Probabilism; fr. Pro-babilisme, ai. Probabilismus, it. Probabilismó). 1. Ceticismo da Nova Academia que, mesmo negando a existência de um critério de verdade, considerava critério suficiente para dirigir a conduta da vida aquilo que Arcesilau chamava de plausível {SEXTO E., Adv. math., VII, 158) e Carnéades, de provável (Ibid., VII, 166; Pirr. hyp., I, 33, 226). 2. Doutrina à qual freqüentemente recorria a casuística dos jesuítas do séc. XVII, segundo o qual, para não pecar, nos casos de regra da moral duvidosa, basta ater-se a uma opinião provável, considerando-se provável a opinião defendida por algum teólogo. Leibniz observava a respeito: "O defeito dos moralistas laxistas foi, em grande parte, terem uma noção demasiadamente limitada e insuficiente do provável, que eles identificaram com o opinável de Aristóteles", enquanto o provável é, segundo Leibniz, um conceito muito mais amplo (Nouv. ess., IV, 2, 14). O P. teve, especialmente no séc. XVII, inúmeras variantes, entre as quais podemos lembrar: o probabiliorismo, segundo o qual, nos casos de aplicação duvidosa de uma regra moral, não se deve adotar uma opinião provável qualquer, mas a mais provável, e o tutiorismo, segundo o qual é preciso seguir a opinião que se conforma com a lei. Trata-se de doutrinas ou disputas que não têm significado fora da casuística jesuíta do séc. XVII (cf. A. SCHMITT, Zur Geschichte des Probabilismus, 1904). 3. Corrente da ciência contemporânea, que atribui caráter de probabilidade a grande número de conhecimentos ou a todos eles (v. CAUSALIDADE; CONDIÇÃO; DETERMINISMO). PROBLEMA (gr. 7tpópA.T|LUX; lat. Problema; in. Problem; fr. Problème, ai. Problem; it. Problema). Em geral, qualquer situação que inclua a possibilidade de uma alternativa. O P. não tem necessariamente caráter subjetivo, não é redutível à dúvida, embora, em certo sentido, a dúvida também seja um problema. Trata-se mais do caráter de uma situação que não tem um significado único ou que inclui alternativas de qualquer espécie. P. é a declaração de uma situação desse gênero. A noção de P. foi elaborada pela matemática antiga, que a distinguiu da noção de teorema (v.). Por problema entendeu-se uma proposição que parte de certas condições conhecidas para buscar alguma coisa desconhecida. Alguns geômetras (provavelmente os da escola platônica) acreditavam que sua ciência era constituída essencialmente por problemas; outros, por teoremas (PROCLO, Com. ao I de Euclides, 11, 7-81, 22, Friedlein). Aristóteles definia o P. como um procedimento dialético que tende à escolha ou à recusa, ou também à verdade e ao conhecimento" (Top., I, II, 104 b), no qual as palavras "escolha" ou "recusa" significam as alternativas que se apresentam aos problemas de ordem prática, enquanto "verdade" e "conhecimento" designam as alternativas teóricas. Aristóteles exemplifica sua definição dizendo que pertence à primeira espécie o P. de saber se o prazer é um bem ou não; à segunda espécie, o P. de saber se o mundo é eterno (Ibid., 104 b 8). Visto que, onde existem P. também existem silogismos contrários, os P., segundo Aristóteles, só podem nascer quando não há discurso concludente: em outros termos, o P. pertence ao domínio da dialética, isto é, dos discursos prováveis, e não ao da ciência. Seja como for, para Aristóteles o P. conserva o caráter de indeterminação que lhe é dado pela alternativa. No uso matemático do termo, porém, esse caráter foi-se atenuando. A lógica medieval desprezara a análise e a definição dessa noção, e quando ela volta a atrair a atenção dos lógicos, no séc. XVII, o significado que eles lhe atribuem é extraído da matemática. Assim, Jungius diz que "o P. ou a proposição problemática é uma proposição principal enunciando que alguma coisa pode ser feita, mostrada ou achada" (Lógica hamburgensis, PROBLEMA 797 PROBLEMÁTICO 1638, IV, 11, 7). Leibniz notava que "por P. os matemáticos entendem as questões que deixam em branco uma parte da proposição" (Nouv. ess., IV, II, 7). E foi recorrendo ao uso matemático que Wolff definiu: o P. como "uma proposição prática demonstrativa", entendendo por "prática" a proposição "com a qual se afirma que alguma coisa pode ou deve ser feita" e excluindo explicitamente o significado aristoté-lico do termo (Log., §§ 266, 276). Não muito diferente é a definição de Kant: "P. são proposições demonstráveis que exigem provas ou expressam uma ação cujo modo de execução não é imediatamente certo" (Logik, § 38). Também no pensamento moderno a noção de P. foi e continua sendo das mais negligenciadas. Embora falem o tempo todo em P. e achem que é sua função solucionar certo número deles, especialmente dos definidos como "máximos", os filósofos não se preocuparam muito em analisar a noção correspondente. Na maioria das vezes o P. foi considerado como condição ou situação subjetiva e confundido com a dúvida. O próprio Mach o definia neste sentido, como "a discordância dos pensamentos entre si" (Erkenntniss undlrrtum, cap. XV; trad. fr., pp. 252-53). Só recentemente foi reconhecido o caráter de indeterminação objetiva, que define o P.: isto aconteceu na Lógica(1959) de Dewey, para quem o P. é a "propriedade lógica primária". O P. é a situação que constitui o ponto de partida de qualquer indagação, ou seja, a situação indeterminada. "A situação indeterminada torna-se problemática no próprio processo de sujeição à indagação. Decorre de causas reais, como acontece, p. ex., no desequilíbrio orgânico da fome. Nada há de intelectual ou cognitivo na existência de situações desse gênero, a não ser que elas são a condição necessária para operações ou indagações cognitivas. O primeiro resultado do fato de promover a indagação é que a situação é reconhecida como problemática (Logic, cap. VI, trad. it., p. l6l). A enunciação do P. permite a antecipação de uma solução possível, que é a idéia-, a idéia exige o desenvolvimento das relações inerentes ao seu significado, que é o raciocínio. Finalmente, a solução real é a determinação da situação inicial, em que se chega a uma situação unificada em suas relações e distinções constitutivas. Análise análoga a esta, em sua estrutura fundamental, foi feita por G. Boas, que define o P. como "a consciência de um desvio da norma" (The Inquiring Mind, 1959, p. 56). Contudo, à análise de Dewey cabe acrescentar uma determinação fundamental: o reconhecimento do fato de que um P. não é eliminado ou destruído pela sua solução. Um "P. resolvido" não é um P. que não se apresentará mais como tal, mas é um P. que continuará a se apresentar com probabilidade de solução. A descoberta de um medicamento que cure uma doença é a solução de um P., mas nem por isso o P. está eliminado, pois a doença continuará a ocorrer; portanto, o que a solução permite é, em certos limites, resolver o P. todas as vezes que ele se apresente. Com base neste caráter do P., fala-se da problematicidadedos campos em que se apresenta o P. Neste sentido, o P. é diferente não só da dúvida (que, uma vez resolvida, está eliminada e é substituída pela crença), mas também da pergunta, que, uma vez respondida, perde o significado. PROBLEMÁTICA (ai. Problematik). Reunião ordenada ou sistemática de problemas. PROBLEMATICIDADE. Caráter de um campo de indagação em que os problemas não são eliminados pela sua solução. P. ex., "P. da experiência" é o caráter em virtude do qual, na experiência, os chamados problemas resolvidos são apenas possibilidades de soluções previamente apresentadas para os problemas que vão surgindo, e que têm algumas garantias de sucesso. Esse termo é empregado freqüentemente na filosofia contemporânea, sem esclarecimentos explícitos. PROBLEMATICISMO. Termo difundido na Itália por Ugo Spirito, para designar a doutrina da "vida como busca": Vida condenada a procurar a verdade sem encontrá-la, oscilando então entre o dogmatismo e o cepticismo (La vita come ricerca, 1937). PROBLEMÁTICO (in. Problematic; fr. Pro-blématique, ai. Problematish; it. Problemático). 1. O que representa um problema ou diz respeito a um problema. 2. O que não implica contradições nem garantia de verdade, de tal modo que pode ser afirmado ou negado arbitrariamente. Este é o significado que Kant atribui ao termo: "A proposição P. é a que exprime só uma possibilidade lógica (não objetiva), ou seja, a livre escolha de assumir tal proposição como válida" (Crít. R. Pura, § 9). "Chamo de P. um conceito que não contém contradições e que, como limitação de conceitos dados, liga-se a outros conhecimentos, mas cuja verdade objetiva não pode PROCESSÃO 798 PROGRESSO ser conhecida de modo algum" (Ibid., Anal. dos Princ, cap. III). PROCESSÃO (gr. TtpóoSoç; lat. Processio, in. Procession; ai. Procession; it. Processioné). O que procede de Deus, segundo os Neopla-tônicos: essa procedência dá origem a realidades de classe inferior, que se assemelham àquelas das quais provêm. "Toda P. realiza-se por meio de semelhança das coisas segundas com relação às primeiras", diz Proclo Unst. Theoi, 29; cf. PLOTINO, Enn., IV, 2, 1, 44; V, 2, 2; SCOTUS ERIGENA, De áivis. nat., III, 17, 19, 25). A teologia cristã empregou a mesma noção para determinar a relação entre as pessoas divinas. S. Tomás de Aquino distinguia a processio ad extra, na qual a ação tende para algo de externo, e a processio ad intra, na qual a ação tende para algo de interno, como acontece na P. que vai do intelecto ao objeto do entendimento, que continua dentro do próprio intelecto. Neste segundo sentido, segundo S. Tomás de Aquino deve-se entender que a P. de pessoas divinas é de Deus pai (S. Th., I, q. 27, a. 1). PROCESSO (lat. Processas; in. Process; fr. Processus; ai. Process, it. Processo). 1. Procedimento, maneira de operar ou de agir. P. ex., "o P. de composição e de resolução", para indicar o método que consiste em ir das causas ao efeito, ou do efeito às causas (cf., p. ex., S. TOMÁS de Aquino, S. Th., III, q. 14, a. 5); "P. ao infinito", que é ir de uma causa a outra, infinitamente (Ibid., I, q. 46, a. 2). 2. Devir ou desenvolvimento, p. ex., "o P. histórico". É nesse sentido que Whitehead emprega o termo para designar a formação do mundo (Process and Reality, 1929). 3. Concatenaçâo qualquer de eventos, como p. ex. o "P. digestivo" ou "o P. químico". PRODUÇÃO (gr. 7toíecn.Ç; lat. Productio, in. Production; fr. Production; ai. Production; it. Produzioné). Pôr como ser alguma coisa que poderia não ser. Platão definia como arte produtiva "qualquer possibilidade que se torne causa de geração de coisas que antes não existiam" (Sof., 265 b), e Aristóteles via na P. a função da arte, distinguindo-a da ação e do saber: "Toda arte concerne à geração e procura os instrumentos técnicos e teóricos para produzir uma coisa que poderia ser e não ser e cujo princípio reside em quem a produz, e não no objeto produzido" (Et. nic, VI, 4, 1140 a 10). Deste ponto de vista, a P. distingue-se da ação, que é a operação cujo fim está em si mesma; diferença na qual S. Tomás de Aquino insistiu (v. AÇÃO). O platonismo, porém, diminuíra essa diferença. Plotino afirmou que, para a natureza, "ser o que é significa produzir; ela é contemplação e objeto de contemplação porque é razão; e como é contemplação e objeto de contemplação e de razão, produz. A P. é contemplação" (Enn., III, 8, 3). Estas considerações foram freqüentemente repetidas do ponto de vista idealista, o que não impede que a melhor definição do termo em questão continue sendo a aristotélica. PRODUTO LÓGICO. É a figura (a b) resultante de multiplicação lógica (v.). G. P. PROERESE. V. ESCOLHA. PROFUNDO (in. Profound, Deep, fr. Pro-fond; ai. Tiefi it. Profondó). O que possui significado oculto e inexprimível. Esse termo adquiriu significado técnico na filosofia e na psicologia contemporânea para indicar aquilo que fica fora ca formulação explícita dos problemas, constituindo uma esfera que pode ser "sentida" ou "intuída" de alguma maneira, portanto interpretada ou expressa metaforicamente; indica também aquilo que, em algum campo de indagação, foge ao alcance de seus procedimentos, mas manifesta sua presença de modo obscuro. Já Husserl opunhase à noção de P. em filosofia: "A ciência propriamente dita, em tudo o que abrange a sua doutrina autêntica, não conhece sentido profundo. Cada momento de uma ciência perfeita é um todo de elementos de pensamentos, cada um deles compreendido imediatamente, portanto sem sentido P." (Phil. ais strenge Wissenschaft, 1910, no fim, trad. it., p. 81). Hoje, a noção de P. prevalece principalmente em certas correntes psicológicas e antropológicas, como a psicanálise, o intuicionismo, o existen-cialismo, mas, apesar da riqueza de análises a que deu origem, já começa a suscitar reações críticas salutares. "As psicologias abissais" — escreveu Y. Belaval — "e as filosofias que nelas se inspiram não criaram novos fenômenos: supuseram processos e intenções ocultas, propuseram novas idéias sobre o homem, mas essas hipóteses ou idéias sempre deixam de ser formuladas na língua dos conhecimentos progressivos em que cada palavra designa univocamente um fenômeno determinado, e cada regra de sintaxe uma operação técnica precisa" (Les conduites d'échec, 1953, p. 274). PROGRESSO (in. Progress; fr. Progrès; ai. Fortschrift; it. Progresso). Esse termo designa duas coisas: Ia uma série qualquer de eventos PROGRESSO 799 PROGRESSO que se desenvolvam em sentido desejável; 2a a crença de que os acontecimentos históricos desenvolvem-se no sentido mais desejável, realizando um aperfeiçoamento crescente. No primeiro sentido, fala-se, p. ex., do "P. da química" ou do "P. da técnica"; no segundo sentido, dizemos simplesmente "o P.". Neste segundo sentido, a palavra designa não só um balanço da história passada, mas também uma profecia para o futuro. O primeiro sentido restrito do termo não dá origem a problemas e acha-se em toda parte. Os antigos também o possuíram, em particular os estóicos, que o empregaram para indicar o avanço do homem no caminho da sabedoria e da filosofia (J. STOBEO, Ecl., II, 6, 146: o termo é rcpoKomí). O segundo sentido do termo não foi conhecido na Antigüidade clássica e na Idade Média. A concepção geral que os antigos tiveram da história foi a de decadência, a partir de uma perfeição primitiva (idade do ouro), ou de ciclo de eventos, que se repete identicamente sem limites (v. HISTÓRIA). Costuma-se atribuir a primeira enunciação da noção de P. a Francis Bacon, que assim a expôs num famoso trecho do Novum Organum (1620): "Por antigüidade deveria entender-se a velhice do mundo, que deve ser atribuída aos nossos tempos e não à juventude do mundo, aos antigos. Do mesmo modo como de um homem idoso podemos esperar um conhecimento muito maior das coisas humanas e um juízo mais maduro que o de um jovem, graças à experiência e ao grande número de coisas que viu, ouviu e pensou, também da nossa era (se ela tivesse consciência de suas forças e quisesse experimentar e compreender) seria justo esperarmos muito mais coisas que dos tempos antigos, pois esta é a maiorida-de do mundo, em que ele está enriquecido por inúmeras experimentações e observações" (Nov. Org., I, 84). Bacon conclui com a expressão de Aulo Gélio (ou melhor, que Aulo Gélio atribuía a um antigo poeta): veritasfilia temporis(Noct. Att., XII, 11). Alguns anos antes, conceitos semelhantes a estes haviam sido expostos por Giordano Bruno em Cena delle Ceneri (1584). No séc. XVII a noção de progresso dá os primeiros passos, principalmente por meio da disputa sobre os antigos e os modernos (v. ANTIGOS), enquanto no séc. XVIII, com Voltaire, Turgot e Condorcet, prevaleceria na concepção da história. Mas foi só no séc. XIX que esse conceito se afirmou totalmente, tornando-se, já nas primeiras décadas, a bandeira do Romantismo e assumindo o caráter de necessidade. O conceito de necessidade do plano progressista da história era expresso por Fichte da maneira mais enérgica: "Qualquer coisa que realmente exista, existe por absoluta necessidade; e existe necessariamente na forma exata em que existe". Essa necessidade é racionalidade pura: "Nada é como é porque Deus o queira arbitrariamente, mas porque Deus não pode manifestar-se de outro modo. (...) Compreender com inteligência clara o universal, o absoluto, o eterno e o imutável, que é o guia da espécie humana, é tarefa dos filósofos. Fixar de fato a esfera cambiante e mutável dos fenômenos, através dos quais prossegue a marcha segura da espécie humana, é tarefa do historiador, cujas descobertas são só casualmente lembradas pelo filósofo" (Grundzüge des gegenwàr-tigen Zeitalters, 1806, 9). Idêntica concepção era defendida pelo positivismo, que, com Augusto Comte, exalta o P. como idéia diretiva da ciência e da sociologia, considerando-o como "o desenvolvimento da ordem" e esten-dendo-o também à vida inorgânica e animal {Politiquepositive, 1851, I, pp. 64 ss.). On the Origin of Species (1859), de Darwin, atribuía base positiva ou científica ao mito do P., aduzindo provas favoráveis ao transformismo biológico interpretado em sentido otimista ou progressista. A obra de Spencer (First Principies, 1862) utilizava a noção de P. para dar da realidade uma interpretação metafísica que pretendia ser positiva ou científica. Estas são apenas as etapas mais marcantes da afirmação de um conceito que dominou todas as manifestações da cultura ocidental do séc. XIX e ainda continua sendo pano de fundo de muitas concepções filosóficas e científicas. As principais implicações dessa noção são as seguintes: Ia o curso dos eventos (naturais e históricos) constitui uma série unilinear; 2a cada termo desta série é necessário no sentido de não poder ser diferente do que é; 3 a cada termo da série realiza um incremento de valor sobre o precedente; 4a qualquer regressão é aparente e constitui a condição de um P. maior. As vezes, como na filosofia de Hegel, limitam-se as condições de validade da 3a proposição por se admitir que a história constitui um círculo no qual as fases mais elevadas, já realizadas, constituem as condições para as mais baixas, de tal modo que estas possuem a mesma racionalidade ou perfeição do todo (cf. HEGEL, Wissens- PROJEÇÃO 800 PROPEDÊUTICA chaft der Logik, I, I, I, cap. II, nota I, "O progresso infinito"; CROCE, Lastoria comepensiero e come azione, 1938, p. 25). Mas nenhuma dessas quatro teses encontra apoio nas regras da metodologia historiográfica que permitem delimitar, hoje, o campo da "história"; nenhuma delas é compatível com tais regras; portanto, a idéia de P. não pertence ao domínio da historiografia científica. Por outro lado, na cultura contemporânea a crença no P. foi muito abalada pela experiência das duas guerras mundiais e pela mudança que elas produziram no campo da filosofia, pondo por terra a tendência romântica que a tinha como pedra angular. Portanto, no estágio atual dos estudos, essa idéia só pode ser considerada válida como esperança ou empenho moral para o futuro, e não como princípio diretivo da interpretação historiográfica. Sobre o período áureo da crença no P., cf. J. B. BURY, Theldea ofProgress, 1932 (v. HISTÓRIA). PROJEÇÃO (in. Projection; fr. Projection; ai. Projektion; it. Proiezioné). Com este termo era freqüente designar, na psicologia do séc. XK, a referência da sensação ao objeto, graças à qual o objeto é localizado no espaço circundante, embora a sensação só ocorra no órgão do sentido. Quem mais contribuiu para o êxito desse termo foi Helmholtz (Pbysiologische Optik, 1867, p. 602). Hoje está em desuso, visto que o problema já não subsiste nos mesmos termos, em vista do novo conceito de percepção (v.). Hoje, chamam-se projetivas as técnicas de averiguação psicológica que consistem em apresentar um material (especialmente figuras) de significação ambígua, que pode ser interpretado segundo tendências, necessidades ou repressões, e cuja interpretação pode revelar o estado de quem o interpreta. O mais conhecido destes artifícios projetivos foi criado em 1921 pelo suíço Rorschach (cf. H. H. ANDERSON, e G. L. ANDERSON, AnIntroduction toProjective Techniques, 1951). Na psicanálise, o conceito de P. é usado para descrever o processo mediante o qual um indivíduo atribui a outro as atitudes ou os sentimentos de que sente vergonha ou que ache difícil ou penoso reconhecer em si mesmo (cf. J. R. SMITHIES, "Analysis of Projection" em British Journal of Philosophy of Science, 1954, p. 120). PROJETO (in. Plan; fr. Projet; ai. Projekt, Entwurf it. Progettó). Em geral, a antecipação de possibilidades: qualquer previsão, pre-dição, predisposição, plano, ordenação, pre-determinação, etc, bem como o modo de ser ou de agir próprio de quem recorre a possibilidades. Neste sentido, na filosofia existencialista, o P. é a maneira de ser constitutiva do homem ou, como diz Heidegger (que introduziu a noção), sua "constituição ontológica existencial" (Sein und Zeit, § 31). Heidegger insistiu também na tese de que todo projetar-se, por antecipar possibilidades de fato, incide sempre no fato e não vai além: de tal modo que a máxima do homem que se projeta é "Sê o que és" (.Ihid.). Em outro trecho Heidegger disse que o P. do mundo, em que consiste a existência humana, é antecipadamente dominado pela facticidade, que ele procura transcender, mas acaba reduzindo-se e nivelando-se com a facticidade (Vom Wesen des Grandes, 1929, 3; trad. it., pp. 67 ss.). Sartre substancialmente repetiu esses conceitos de Heidegger, mas ressaltou a gratuidade perfeita dos "P. do mundo", em que consiste a existência. Chamou de "fundamental" ou "inicial" o P. constitutivo da existência humana no mundo e considerou-o contínua e arbitrariamente modificável: "A angústia que, ao ser revelada, manifesta-nos à consciência a nossa liberdade, é testemunho da perpétua possibilidade de modificar nosso P. inicial" iUêtre et le néant, 1943, p. 542). Apesar de característica da filosofia existencialista, a noção de P. passou a fazer parte da terminologia filosófica e científica contemporânea. Mostrou ser útil para expressar aspectos importantes das situações humanas tanto das mais gerais, analisadas pela filosofia, como das específicas, que constituem o objeto das ciências antropológicas: psicologia, sociologia, etc. V. ESTRUTURA e MODELO. PROLEGÔMENOS (in. Prolegomena; fr. Prolégomènes; ai. Prolegomena; it. Prolegome-ní). Estudo preliminar, introdutivo e simplificado. Esse termo aparece no título de algumas obras de filosofia, como a de Kant, P. a toda metafísica futura (1783). PROLEPSE. V. ANTECIPAÇÃO. PROPEDÊUTICA (gr. 7ipo7iouôeía; in. Propaedeutics; fr. Propédeutique, ai. Propá-deutik, it. Propedêutica). Ensino preparatório. Foi assim que Platão chamou o ensino das ciências especiais (aritmética, geometria, astronomia e música), relativamente à dialética ÇRep., VII, 536 d). Ainda hoje se dá esse nome à PROPENSÃO 801 PROPOSIÇÃO parte introdutiva de uma ciência ou de um curso que sirva de preparação a outro curso. PROPENSÃO (lat. Propensio; in. Propen-sity; fr. Propension; ai. Neigung, it. Propensio-né). Tendência, no significado mais geral. Hu-me usava esse termo para definir o costume: "Sempre que a repetição de um ato ou de uma ação particular produz P. para repetir esse ato ou ação sem a coação por raciocínio ou por processo intelectual, dizemos que essa P. é o efeito do costume" {Inq. Cone. Underst., V., 1). PROPORÇÃO. V. ANALOGIA PROPOSIÇÃO (gr. rcpóraotç; lat. Propositio, in. Proposition; fr. Proposition; ai. Satz; it. Proposizionè). Enunciado declarativo ou aquilo que é declarado, expresso ou designado por tal enunciado. Os dois usos do termo foram nitidamente distinguidos por Carnap {Intr. to Semantics, 1941, § 37), mas ainda são freqüentemente confundidos, conquanto a distinção tenha sido amplamente aceita na lógica contemporânea (cf. CHURCH, Intr. to Mathema-tical Logic, § 04; W. KNEALE e M. KNEALE, The Development of Logic, pp. 49 ss.). Os dois usos são determinados por dois conceitos diferentes de P., mais precisamente os seguintes: 1) P. como expressão verbal de uma operação mental, freqüentemente chamada de juízo. 2) P. como entidade objetiva ou valor de verdade de um enunciado. 1. A doutrina de que a P. é expressão verbal de uma operação mental foi formulada pela primeira vez por Aristóteles, para quem o conjunto (<Tuu,7tXoKf|) dos termos (nome e verbo) do discurso declarativo (A.Ó70Ç à7to<pavTtKóç) corresponde a um pensamento(vór|LL(x) inerente necessariamente ao ser verdadeiro ou falso; portanto, "o verdadeiro e o falso" versam sobre a composição e sobre a divisão (oúvGeoiç KOCÍ ôtaípeotç) {De interpr., 1, 16 a 9 ss.). O discurso declarativo é, assim, expressão de um pensamento que procede compondo e dividindo: a composição dá origem à afirmação; a divisão, à negação ijbid., 6,17 a 23). Nos Analíticos (na teoria do silogismo), Aristóteles chamou o discurso declarativo de "prótasis"(cujo equivalente latino é "propositio"), ou seja, "premissa de raciocínio", definindo-a como "o discurso que afirma ou que nega alguma coisa de alguma coisa" {An. pr. I, 1, 24 b 16), ou como "a asserção de um dos membros da contradição" {Ibid. II, 12, 77 a 37). Desse ponto de vista, a P. difere do problema (v.) apenas na forma, visto que, enquanto o problema consiste em perguntar (p. ex., o homem é um animal bípede terrestre ou não?), a P. consiste na asserção (p. ex., o homem é um animal bípede terrestre) ou na asserção contraditória {Top., I, 4101 b 28). Porém, em qualquer caso, a verdade ou a falsidade de uma P. depende do fato de a composição ou divisão dos termos nos quais consiste corresponder ou não àquela que o intelecto encontra nas coisas existentes. Aristóteles diz.- "Não és branco porque acreditemos que és branco, mas, por seres branco, dizemos a verdade ao afirmarmos isso. Se algumas coisas estão sempre unidas e não podem ser divididas, e outras estão sempre divididas e não podem estar unidas, se outras coisas ainda podem ser compostas ou divididas, o 'ser' consistirá em ser combinado ou ser dividido, e o 'não ser' consistirá em ser dividido ou em ser várias coisas" {Met., IX, 10, 1051 a 34). Ao combinar seus termos, a P. expressa a ação com-binante ou dissociante do intelecto que se segue à combinação e à dissociação das coisas existentes. Essa doutrina conservou-se substancialmente inalterada na tradição, antiga, exceção feita aos estóicos (e pela corrente aí iniciada), que introduziram a noção de enunciado (v.). A tradição medieval e boa parte da lógica moderna conservou-a. S. Tomás de Aquino dizia que a verdade e a falsidade estão no intelecto, porquanto este procede compondo e dividindo: "de fato, em toda P. uma forma significada pelo predicado aplica-se a alguma coisa significada pelo sujeito ou se distancia dessa coisa" {S. Th., I, q. 16, a. 2). Na linha da lógica terminista, Ockham admitia uma "P. mental", que identificava com ato do intelecto {liberperiermenias proemiurrí), ainda que para ele a verdade da P. dependesse da suppositio (v. abaixo, 2). A partir de Descartes o termo "P." é substituído pelo termo "juízo", porque a atenção da lógica filosófica estará cada vez mais concentrada na operação intelectual que encontra expressão na P. (v. Juízo, 4). Mas até mesmo Russell reduz a P. a atitude mental, embora a distinguindo do enunciado. Na verdade, considera-a como "crença" ou "atitude proposicional", e afirma que as P. devem ser definidas como eventos psicológicos (ou fisiológicos) de certa espécie: imagens complexas, expectativas, etc. Segundo Russell, isso é evidenciado pelo fato de que as P. podem ser falsas {An Lnquiry into Meaning and Truth, PROPOSIÇÃO 802 PROPOSIÇÃO cap. XIII, A; ed. Pelican Books, p. 172; Cf. Human Knowledge, pp. 449-50) (v. Juízo, 3). 2. A doutrina segundo a qual a P. constitui o designado do enunciado assume formas diferentes, segundo a natureza atribuída ao designado. Às vezes, este é entendido como "P. em si" ou "entidade" de algum tipo; outras vezes, como objeto, situação objetiva, estado de coisas ou caráter. Em todos os casos, essa interpretação de P. não faz referência a atos ou a operações mentais. Os estóicos, que introduziram a noção de enunciado (v.), consideram que este expressa uma condição ou um estado de coisas. Assim, afirmavam que "quem diz 'É dia' mostra que acha que é dia. Ora, se realmente for dia, o enunciado que está diante de nós será verdadeiro; se não for dia, será falso " (Dióg. L., VII, 65). Deste ponto de vista, o fato de ser dia é o significado ou o valor de verdade do enunciado "É dia". A lógica terminista medieval designou o significado denotativo dos termos da P. com o conceito da suposição (v.), segundo o qual uma P. é verdadeira se os termos dos quais resulta correspondem ao objeto existente (cf. OCKHAM, Summa log., II, 2). Nas Laws of Thought (1854) Boole distinguia as P. primárias, que expressam uma relação com a coisa, e as P. secundárias, que expressam uma relação entre proposições (Cap. IV, § 1). Mas Bolzano opusera à P. verbal a P. em si{Satz un Sich), que é válida independentemente do fato de ser ou não ser expressa ou pensada, e constitui o elemento da matemática pura ( Wissens-chaftslehre, 1837, § 19). Retomando a polêmica de Husserl contra o psicologismo, Meinong distinguia em todo "juízo" (termo para ele equivalente a P.) o objetivo{Objektiv), que é o conteúdo interno do juízo, e o objeto (Õbjeki), que é a entidade externa à qual o juízo se refere ( Über Annahmen, 1902, p. 52). Para todos os efeitos, essa distinção eqüivale àquela que Frege estabelecera entre sentido e significado {Über Sinn undBedeutung, 1892) (v. SIGNIFICADO). A propósito da P., Frege dissera que, enquanto o sentido {Sinn) da P. é um "pensamento" — não entendido subjetivamente, mas como "conteúdo objetivo que pode constituir a posse comum de muitos" —, o significado {Bedeutung) da P. é o seu "valor de verdade", isto é, "a circunstância de ser verdadeira ou falsa". Deste modo, a P. pode ser considerada como um nome próprio, e o verdadeiro ou falso é o objeto da P. Mas como todas as P. verdadeiras terão o mesmo significado (o verdadeiro), assim como todas as projeções falsas (o falso), segue-se que uma P. não pode reduzir-se apenas ao seu significado, nem apenas ao seu sentido (que seria um pensamento puro), mas deve resultar do conjunto de ambos {Über Sinn und Bedeutung, § 5, em Phil. Writings of G. F., ed. Geach and Black, pp. 63 ss.). Nas P. indiretas ou oblíquas, nas quais há verbos como "dizer", "ouvir", "pensar", "acreditar", "concluir" e semelhantes (como p. ex. em "Copérnico acreditava que as trajetórias dos planetas eram circulares"), a P. secundária introduzida por que vale apenas como o nome de um pensamento, podendo por isso ser variada sem comprometer o valor da verdade da P. inteira {Ibid, § 6; em Geach, pp. 66 ss.). Em torno desse conceito de Frege giram as discussões da lógica contemporânea a respeito da natureza da P. Das duas dimensões da P. admitidas por Frege, Wittgenstein procurou eliminar o sentido {Sinrí), como "pensamento" ou "conteúdo objetivo", e usar essa mesma palavra para designar aquilo que Frege entendia por significado {Bedeutung), empregando esta última apenas como denotaçâo dos nomes e dos signos. "A P." — disse ele — "é uma figuração {Bild, picturé) da realidade: de fato, tomo conhecimento da situação por ela representada tão logo compreendo a P. E compreendo a P., sem que o seu sentido me seja explicado" {Tractatus, 4.021). Desse ponto de vista, "a forma universal da P. é: as coisas estão assim e assim" {Ibid., 4. 5). Por essa razão, compreender uma P. significa simplesmente saber "como estão as coisas, no caso de ela ser verdadeira" {Ibid., 4.024), não sendo, pois, necessário recorrer a um pensamento ou a qualquer conteúdo objetivo. Portanto, para Wittgenstein, o "sentido" de que falava Frege é inútil, porque o sentido da P. é o seu próprio significado, e "a P. mostra seu sentido" {Ibid., 4.022). Por outro lado, Wittgenstein afirma que "a P. possui um sentido independente dos fatos" (4.061) e que "as P. 'p e 'nãop' têm sentido oposto, embora nelas se expresse uma única e mesma realidade" (4.0621), o que, na terminologia de Frege, implicaria um sentido que não depende do significado. Opondo-se a Wittgenstein, alguns lógicos contemporâneos tendem a reduzir o significado ao sentido, empregando o termo "significado" {Meaning) para indicar aquilo que Frege chamava de sentido. Assim, Ayer definiu a P. PROPOSIÇÃO ATRIBinWA 803 PRÓPRIO como a "classe dos enunciados que têm o mesmo significado (significance) intencional para qualquer um que o entenda" (.Language Truth and Logic, [1936], 1948, p. 88). Neste mesmo sentido, Quine considerou as P. como "os significados dos enunciados" (From a Logi-cal Point of View, VI, 2; p. 109; Word and Object, 1960, § 42). Mais próximos da posição de Frege estão Carnap e Church. Carnap distinguiu a extensão de um enunciado, que é seu valor de verdade, de sua intensão, que é a P. que ele expressa. No sentido de Carnap, todavia, a P. é uma entidade tão objetiva quanto a "propriedade", embora apenas de natureza lógica. Segundo Carnap, pode-se falar de P. também a propósito de enunciados falsos, porque as P. são entidades complexas, compostas por outras entidades; e ainda que se admita que os componentes últimos de uma P. devem ser "exemplificados" (isto é, devem ser verdadeiros), nem por isso a P., em seu conjunto, deverá sê-lo {Meaning andNecessity, § 6; pp. 26-30). Church, que aceitou a terminologia de Frege, usa o termo "P." como equivalente ao termo "sentido", de Frege, e afirma dever-se a uma decisão de algum modo arbitrária o fato de recusarmos o nome de P. aos sentidos dos enunciados (das linguagens naturais), porquanto expressam um sentido, mas não têm valor de verdade {Jntr. to Mathematical Logic, % 04, op. 27). Por outro lado, Bergmann utilizou o termo de Brentano e de Husserl, "intenção", para reinterpretar o "significado" de Frege. A intenção é o objeto dos atos intencionais, e a P. é o "caráter" correspondente à intenção. "No paradigma", disse ele, "a intenção é um fato expresso em 'isto é verde'. Chamo de caráter correspondente 'a P. isto é verde' e uso P. como um nome geral para essa espécie de caráter" {Logic and Reality, 1964, p. 32). As discussões havidas entre os lógicos a respeito da P., bem como a respeito de suas equi-valências ou sinonímias, além de outros problemas relativos, continuam centrados na distinção entre sentido e significado, ou suas distinções correspondentes. PROPOSIÇÃO ATRIBUTIVA; ATÔMICA; COMPARATIVA; DECLARATTVA; DESCRITIVA; SECUNDARIA. V. esses adjetivos. PROPOSIÇÃO FUNCIONAL (in. Functio-nal proposition; fr. Proposition fonctionelle, ai. Funktionellsatz; it. Proposizione funzionalé). Dá-se esse nome às P. moleculares (ou seja, P. complexas, compostas de P. simples através dos conectivos lógicos 'não', 'ou', 'e', 'implica'), cuja verdade (ou falsidade) seja unicamente função da verdade ou falsidade das P. componentes. A questão de existirem ou não P. moleculares não funcionais foi amplamente discutida na Lógica contemporânea, contra a tese extensional, defendida principalmente por Wittgenstein, segundo a qual todas as P. moleculares são funções-verdade das componentes; Russell e outros defenderam a possibilidade de P. compostas que não sejam funções, como p. ex., "A crê em p" (onde 'A' é um nome de pessoa e 'p é uma P.). PROPOSICIONAL CALCULO, FUNÇÃO. V. CÁLCULO; FUNÇÃO PROPOSICIONAL. PROPRIEDADE (in. Property, fr. Propriété, ai. Eigenschaft; it. Proprietã). 1. Determinação ou característica própria de um objeto em um dos sentidos do termo próprio (v.). 2. Qualquer qualidade, atributo, determinação que sirva para caracterizar um objeto ou para distingui-lo dos outros. PROPRIEDADE COMUTATIVA, DISTRIBUTIVA. V. COMUTATIVO, DlSTRIBUTIVO. PROPRINCIPIA. Termo usado por Cam-panella para indicar os dois princípios que entram na constituição das coisas finitas, isto é, o Ser e o Não-ser (Met., II, 2, 2) (v. PRIMALIDADE). PRÓPRIO (gr. 'íSiov; lat. Proprium; in. Proper, fr. Propre, ai. Eigen; it. Próprio). 1. Uma determinação que pertence a toda uma classe de objetos, pertencendo sempre e somente a essa classe, mesmo que não faça parte de sua definição. Este é o sentido fundamental do termo, da maneira como foi esclarecido por Aristóteles {Top., I, 5, 102 a 18) e passou a fazer parte da tradição lógica (cf. Arnauld, Log., I, 7; Jungius, Lógica hamburgensis, I, I, 33). Neste sentido, o P., apesar de não fazer parte da essência substancial de uma coisa, está estritamente conexo a essa essência ou deriva dela de algum modo. O exemplo aduzido por Aristóteles é o do aprendizado da gramática: esta determinação é P. do homem, no sentido de que quem é capaz de aprender gramática é homem, e é homem quem é capaz de aprender gramática: as duas determinações "homem" e "capaz de aprender gramática" são reciprocáveis. Neste sentido, o P. é uma determinação privilegiada que está entre a essência e as determinações acidentais. 2. No entanto, mesmo Aristóteles chama de próprias também as determinações acidentais PROSSILOGISMO 804 PROTÓTESE ao fazer a distinção entre P. por si, "que é estabelecido com relação a todos os objetos e separa o objeto em questão de qualquer outro (como no caso de ser P. do homem ser um animal mortal que pode receber o saber)" e o P. em relação a outra coisa, "que distingue o objeto apenas de algum objeto dado e não de qualquer outro objeto" (Top., V, 1, 128 b 34). O "P. por si" é o P. no sentido estrito, ou seja, a determinação sempre que pertence a todo o objeto dado, e somente a ele, enquanto o P. "em relação a outra coisa" foi distinguido por Porfírio (com base nas mesmas considerações de Aristóteles) em outras três determinações: Ia aquilo que pertence a uma única espécie, mas não a todos os indivíduos da espécie (neste sentido ser filósofo é P. do homem); 2- aquilo que pertence a todos os indivíduos de uma espécie, mas não a uma única espécie (ser bípede é P. do homem); 3 a aquilo que pertence a todos os indivíduos de uma única espécie, mas nem sempre (neste sentido, encanecer é P. do homem). Porfírio enumerava como quarto significado o mais restrito Gsag., 12, 12 ss.). Os quatro significados de Porfírio foram habitualmente reproduzidos pela lógica medieval (cf., p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 2, 13), mas a partir da Lógica de Arnauld (I, 7), mesmo mencionando-se as quatro distinções de Porfírio, preferiu-se limitar o conceito de P. ao mais restrito. Na realidade, em seu significado lato, o conceito de P. pode incluir qualquer determinação, atribuída a qualquer título a um objeto, perdendo, assim, característica ou utilidade específica. Seja como for, a noção está estritamente ligada à da lógica aristotélica e à sua estreita vinculação com a teoria da substância, sendo por isso abandonada pela lógica contemporânea. PROSSILOGISMO. V. POLISSILOGISMO. PRÓTASE. V. PROPOSIÇÃO. PROTENSIVIDADE (in. Protensity, ai. Pro-tention; it. Protensionè). Duração de consciência. Termo introduzido por Kant, que observava-. "A felicidade é a satisfação de todas as nossas propensões, tanto extensivas em sua multiplicidade quanto intensivas (em relação ao grau) e protensivas (em relação à duração)" {Cru. R. Pura, Doutr. do Método, cap. II, seç. II). Husserl chamou de P. "a pré-lembrança reprodutiva em sentido próprio", ou seja, o estado de expectativa que prepara a reprodução da lembrança (Jdeen, I, § 77). PROTOCOLO (in. Protocol; fr. Protocol; ai. Protokoll; it. Protocolo). Termo introduzido pelo Círculo de Viena para indicar o registro do dado imediato ou experiência direta (sensação, percepção, emoção, pensamento, etc). As "proposições protocolares" são as que contêm unicamente P. e por isso fazem referência direta aos dados imediatos; por serem instrumento da verificação empírica, não precisam de verificação porque sua verdade é garantida pelo P. que contêm, graças ao qual correspondem imediatamente ao dado empírico (cf. R. Carnap, em Erkenntnis, II, 1931, pp. 437 ss.). A noção de P. está ligada à fase do neopositivismo que, para declarar significativa uma proposição, exigia a verificação direta da proposição mediante protocolos. Mas mesmo Carnap, a partir da obra Testability and Meaning (1936), limitava essa exigência afirmando que, para serem significativos, os enunciados devem ser confirmáveis, ou seja, devem conter apenas "predicados-coisa observáveis". Estes predi-cados-coisa não são mais P., isto é, dados da experiência imediata, mas nomes de qualidades elementares (p. ex., "vermelho"). Para uma crítica do conceito de P., no âmbito do positivismo lógico, cf. K. Popper, Logik der Fors-chung, 1934, trad. in., 1958 (v. EXPERIÊNCIA). PROTOFILOSOFIA (in. Protophilosophy, fr. Protophilosophie, ai. Protophilosophie, it. Proto-filosofià).Termo empregado principalmente pelos sociólogos para indicar a filosofia dos povos primitivos, expressa na forma do mito (v.). PROTOLOGIA (in. Protology, fr. Protologie, ai. Protologie, it. Protologid). Termo empregado por alguns escritores italianos do início do séc. XIX, especialmente por Ermenegildo Pini (/>., 3 vols., 1803), para designar aquilo que Fichte denominava doutrina da ciência ou ciência das ciências. Esse termo foi adotado por Vincenzo Gioberti na sua última obra, publicada postumamente CP., 1857). Gioberti define a P. como "a ciência do ente inteligível, intuída através do pensamento imanente"; essa ciência é a base de qualquer outra, sendo também anterior à ontologia. O uso desse termo parou em Gioberti. PROTON PSEUDOS (gr. xtpwTOV V|/eüSoç). Falsidade da premissa maior, que determina a falsidade do silogismo (Aristóteles, An. pr., II, 18, 66 a 16). PROTÓTESE (in. Protothesis; fr. Protothèse, ai. Protothèse, it. Prototesi). Termo empregado por W. Ostwald para indicar as hipóteses sus- PROTÓTIPO 805 PROVA cetíveis de verificação experimental no estado atual da ciência, que por isso se distinguem das que não o são (Die Energie und ihre Wand-lungen, 1888, § 68). Na realidade, nenhuma hipótese é, como tal, diretamente verificável (v. HIPÓTESE; TEORIA). PROTÓTIPO (gr. 7ipraTÓTU7ioç;; lat. Prototy-pus-, in. Prototype, fr. Prototype, ai. Prototyp-, it. Protótipo). Modelo originário. O mesmo que arquétipo (v.). PROTRÉPTICO (gr. jtpoxpEJTUKÓç). Exortação à filosofia (cf. PLATÃO, Eutid., 278 c; CRISIPO, Stoicurom fragmenta, III, 189). Essa palavra foi empregada como título de livro por Aristóteles, Epicuro, Cleante e outros. PROVA (gr. tetcuiípiov; lat. Probatia, in. Proof,h. Preuve, ai. Beweis; it. Prova). Procedimento apto a estabelecer um saber, isto é, um conhecimento válido. Constitui P. todo procedimento desse gênero, qualquer que seja sua natureza: mostrar uma coisa ou um fato, exibir um documento, dar testemunho, efetuar uma indução são P. tanto quanto as demonstrações da matemática e da lógica. Portanto, esse termo é mais extenso que demonstração (v.): as demonstrações são P., mas nem todas as P. são demonstrações. O conceito foi estabelecido no sentido restrito por Aristóteles, que, ao dizer "Dizem que P. é o que produz saber", fez a distinção entre prova e indício, que proporciona apenas conhecimento provável (An. pr., II, 27, 70 b 2). Em Retórica acrescentou: "Quando se acha que o que foi dito não pode ser refutado, acredita-se ter apresentado uma P., porquanto a P. é sempre demonstrada e perfeita"; o próprio silogismo é uma P. necessária nesse sentido (Ret., I, 2, 1357 b 5). O mesmo conceito de procedimento que estabelece ou descobre um conhecimento foi expresso pelos estóicos na definição do sinal indicativo, como "enunciado que, procedendo com conexões corretas, descobre o que se segue" (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 104), ou de raciocínio demonstrativo, que, "por meio de premissas estabelecidas, descobre por dedução uma conclusão patente" (Jbid., II, 135) Os entendimentos aos quais se faz alusão nessas definições são P. por serem "aptos a descobrir", ou seja, por produzirem (e justificarem) conhecimentos. No séc. XVII, Locke reproduzia a seu modo (com o pressuposto cartesiano da superioridade da intuição) este conceito de P.: "As idéias intermediárias que servem para demonstrar a concordância entre duas outras idéias são chamadas de P.; quando por esse meio é clara e evidentemente percebida a concordância ou a discordância, dá-se-lhe o nome de demonstração, pois então a coisa é mostrada ao intelecto, e o espírito é levado a ver que ela é assim" (Ensaio, IV, 2, 3). Mas a doutrina de Locke marca uma guinada importante ha história do conceito de P. porque admite, pela primeira vez, a possibilidade de P. prováveis. "A probabilidade" — dizia Locke — "não passa de aparência da concordância ou discordância entre duas idéias mediante a intervenção de P., cuja ligação não é constante nem imutável, ou, pelo menos, não é percebido como tal, mas é ou parece ser na maioria das vezes, sendo suficiente para induzir o espírito a julgar que a proposição é verdadeira ou falsa, e não o contrário" (Jbid., IV, 15,1). Wolff, por sua vez, mesmo identificando a P. com o silogismo, distingue-a da demonstração, pois ela seria um silogismo "que utiliza apenas premissas que são definições, experiências indubitáveis e axiomas" (Log., § 498). Mas foram principalmente Hume e Kant que estabeleceram as distinções fundamentais nesse campo. Hume propôs distinguir todos os argumentos em demonstrações, P. e probabilidades, entendendo por P. "os argumentos extraídos da experiência, que não admitem dúvida e objeções" (Jnq. Cone. Underst., IV, nota); nessa distinção, as demonstrações se limitariam ao domínio das puras conexões de idéias. Kant, por sua vez, distinguiu quatro espécies de P.: Ia a P. lógica rigorosa, que vai do geral ao particular e é a demonstração propriamente dita; 2 a o raciocínio por analogia; 3a a opinião verossímil; 4a a hipótese, que é o recurso a um princípio explicativo simplesmente possível (Crít. do Juízo, § 90). Afirmou que as P. demonstrativas ou apodíticas acham-se apenas no domínio da matemática, visto que esta procede mediante a construção de conceitos, e que os princípios empíricos de P. não podem produzir nenhuma P. apodítica (Crtt. R. Pura, Doutrina do Método, cap. I, seç. II). Esta era substancialmente uma aceitação do ponto de vista de Hume. Dewey também aceitou esse ponto de vista, observando que há, "por um lado, a demonstração racional, que é questão de rigorosa conseqüencialidade no discurso, e, por outro, a demonstração puramente ostensiva "(Logic, cap. XII; trad. it., p. 327). É freqüente a distinção entre demonstração, "P. lógica" "P. dedutiva", "P. necessária" e a P. em geral (cf. p. ex., W. HAMILTON, Lectures on Logic, 1866, II, p. 38; G. PROVA 806 PRÓXIMO BERGMANN, Philosophy of Science, 1957, p. 4), mas, enquanto a análise dos procedimentos de P. usados pelas ciências individualmente (e portanto da noção de P. em geral) recebeu pouca atenção dos filósofos metodológicos e não fez progressos, a noção de P. lógica foi repetidamente elaborada por matemáticos e lógicos. Os princípios da "teoria da P." foram estabelecidos por D. Hilbert da maneira seguinte: "Uma P. é uma figura que deve ser apresentada como tal; consiste em conseqüências inferidas segundo o esquema: S S-+T T em que cada uma das premissas (fórmulas S e S—>7)é um axioma (posto diretamente como tal), ou coincide com a fórmula final Tde um raciocínio anteriormente agregado à P., ou seja, consiste na assunção dessa fórmula final. Dizse que uma fórmula é suscetível de P. se ela é axioma (isto é, assumida como axioma por posicionamento) ou é a fórmula final de outra P. ("Die Logischen Grundlagen der Mathe-matik", em Mathematisch Annalen, 1923, p. 152). Em outros termos, uma P. lógica é um procedimento que consiste na manipulação de fórmulas: manipulação que, por sua vez, é um conjunto de fórmulas. Church diz: "Uma seqüência finita de uma ou mais fórmulas bem formadas será uma P. se cada uma das fórmulas bem formadas da seqüência for um axioma ou for inferida imediatamente das fórmulas precedentes da seqüência, por meio de uma das regras de inferência" (Intr. to Mathematical Logic, 1956, § 07). Wittgenstein já dissera a respeito: "A P. em lógica é apenas um expediente mecânico para reconhecer mais facilmente a tautologia quando complicada" CTrac-tatus, 6, 1262). A teoria matemática da P. consiste substancialmente em reduzi-la à P. da não-contradição. Ora, um teorema estabelecido por K. Gõdel em 1931 afirma que, com a ajuda de uma parte da matemática, só se pode provar a nãocontradição de uma parte mais restrita da própria matemática, mas não se pode provar a não-contradição do conjunto da matemática ou de uma parte mais extensa dela. Pode-se, p. ex., demonstrar a não-contradição da teoria dos números inteiros partindo da teoria dos números reais, mas não reciprocamente (cf. CARNAP, Logical Syntax of Language, 1937, §§ 35-36; QUINE, Mathematical Logic, 1940, cap. 7). O teorema de Gõdel, como observa Quine, leva à maturidade um novo ramo da teoria matemática, conhecido como metamatemática ou "teoria da P.", cujo objeto é a própria teoria matemática (Methods of Logic, § 41). Esse teorema estabelece, porém, que uma P. de coerência é sempre relativa, pois seu resultado vale apenas na medida em que se admite a coerência do sistema com base no qual ela é efetuada (cf. QUINE, From a Logical Point ofView, pp. 99 ss.). Cf., também, E. Nagel e J. R. Newmann, GôdeVs Proof 1958 (v. MATEMÁTICA). PROVÁVEL (in. Probable, fr. Probable, ai. Wahrscheinlich; it. Probabilé). 1. Evento ou proposição com grau comparativo suficiente de confirmação ou de credibilidade (v. PROBABILIDADE, 1). 2. Classe ou seqüência de eventos dotada de certo grau de freqüência relativa (v. PROBABILIDADE, 2). 3. Aquilo que é considerado verdadeiro pela maioria ou pelos competentes. Este é o conceito de endoxon, em que Aristóteles baseou a dialética (v.); tem pouco ou nada a ver com as duas noções precedentes. PROVIDÊNCIA (gr. 7tpóvoia; lat. Providen-tia; in. Providence, fr. Providence, ai. Vorse-hung; it. Provvidenza). Governo divino do mundo, geralmente distinguido de destino, pois é considerado como existente em Deus, ao passo que o destino é esse governo visto através das coisas do mundo (v. DESTINO). A noção de providência faz parte integrante do conceito de Deus como criador da ordem do mundo ou como sendo Ele mesmo esta ordem (v. DEUS). Para os problemas conexos ao conceito de P., V. MAL; TEODICÉIA. PROVIDENCIALISMO (in. Providentialism, it. Provvidenzialismó). 1. Confiança na ação da providência. 2. Doutrina que vê na história uma ordem ou um plano providencial, (v. HISTÓRIA). PRÓXIMO (gr.tòv 7tA.T|críov; lat. Proximus; in. Neighbour, fr. Prochain; ai. Nãchste, it. Pros-simo). Na interpretação do Evangelho de Lucas (X, 29-37) da máxima bíblica "Ama ao P. como a ti mesmo" {Levítico, XIX, 18), P. é o outro homem em geral, independentemente de quaisquer laços de raça, de amizade ou parentesco, na medida em que ele é misericordioso para nós ou nós para com ele. Isso significa que a misericórdia deve ser praticada em relação PRUDÊNCIA 807 PSICANÁLISE a qualquer homem que esteja conosco, não se restringindo a um círculo determinado de pessoas. PRUDÊNCIA (lat. Prudentia; in. Prudence, fr. Prudence, ai. Klugheit; it. Prudenza). V. SABEDORIA. PSEUDOCONCEITO. P., "ficções conceituais" ou "conceitos finitos" foram os nomes dados por Croce às noções geralmente denominadas conceitos, em contraposição ao "conceito puro" ou "conceito autêntico" com que ele designou a Razão Universal em sua forma cognitiva. Os P. serviriam para conservar e classificar os conhecimentos adquiridos {Lógica, 1920, cap. II). PSEUDOPROPOSIÇÕES (in. Pseudostate-ment; ai. Pseudosãtzen; it. Pseudoproposi-zioni). Termo empregado por Carnap para indicar "expressões erroneamente consideradas proposições, mas que não possuem conteúdo cognitivo, embora possam ter componentes de significado não cognitivo, por exemplo emotivo" {Meaning and Necessíty, § 5). Segundo Carnap, muitas proposições da metafísica clássica são P. nesse sentido (cf. Erkenntnis, II, 193DPSICANÁLISE (in. Psychoanalysis; fr. Psy-chanalyse, ai. Psychioanalyse, it. Psicanalisi). A designação P. compreende: 1Q um método de tratamento de certas doenças mentais; 2-uma doutrina psicológica; 3S uma doutrina metafísica; e, mais freqüentemente, certa mescla desordenada dessas três coisas. Os fundamentos da P. foram resumidos por seu fundador, Sigmund Freud, na introdução de uma de suas principais obras, da seguinte maneira: Ia os processos psíquicos são em si mesmos inconscientes, e os processos conscientes são apenas atos isolados, frações da vida psíquica total; 2-os processos psíquicos inconscientes são em boa parte dominados por tendências que podem ser qualificadas de "sexuais" no sentido restrito ou lato do termo, Este último pressuposto na realidade é a característica fundamental da P., que consiste essencialmente na tentativa de explicar a vida do homem (não só a pessoal ou individual, mas também a pública ou social) recorrendo a uma única força, que é o instinto sexual ou libido (v.) no sentido técnico deste termo {Einführung in díe Psycho-analyse, 1917, intr.). Do conflito entre os impulsos sexuais do inconsciente e as superestru-turas morais e sociais constituídas por proibições e censuras acumuladas e consolidadas pela infância, nascem os fenômenos a seguir descritos: d) Sonhos: expressões deformadas e simbólicas dos desejos reprimidos (cf. Die Traumdeutung, 1900). b) Atos falhos, ou lapsos: distrações falsamente atribuídas ao acaso, chegando às brincadeiras e ao humorismo (cf. Zur Psychopathologie des Alltagslebens, 1901; Der Witz und seine Bedeutung Zum Unbewussten, 1905). c) Doenças mentais: que podem ser tratadas levando o paciente a identificar os conflitos dos quais elas emergem, através da conversação. A esse respeito, o sintoma de uma doença deve ser considerado como "sinal e substituição de uma satisfação instintiva que ficou latente, resultado de um processo de recalque" {Hemmung, Symptom und Angst, 1926, cap. 2; trad. it, p. 29). Um dos fenômenos característicos do tratamento psicanalítico é a transferenciados sentimentos do doente (positivos ou negativos, de amor ou de ódio) para a pessoa do médico {Einführung, cit., cap. 27; trad. fr., pp. 461 ss.). d) Sublimaçâa transferência do impulso sexual para outros objetos, o que ensejaria os fenômenos chamados espirituais: arte, religião, etc. é) Complexos, sistemas ou mecanismos associativos, relativamente constantes em todas as pessoas, aos quais devem ser atribuídas as principais perturbações mentais. A noção de complexo e o seu termo foram introduzidos por um discípulo de Freud, C. G. JUNG (Wandlungen und Symbole der Libido, 1912), mas já em Interpretação dos sonhos Freud esboçara todos os fatos fundamentais do chamado "complexo de Édipo", em virtude do qual o menino inclui no amor pela mãe certo ciúme ou aversão pelo pai. Em 1923, na obra EgoeldiDasIch und das Es), Freud expôs uma teoria psicológica que foi amplamente aceita pela psicologia de sua época. Dividia o espirito em três partes: Ego, que é organização e consciência, e por isso está em contato com a realidade e procura submetê-la a seus fins; Superego, aquilo a que geralmente se dá o nome de consciência moral e que é o conjunto das proibições insuladas ao homem em seus primeiros anos de vida, acompanhando-o depois, mesmo que de forma inconsciente; e Id, que é constituído pelos impulsos múltiplos da libido, sempre voltada para o prazer. Esta doutrina, que foi revisada pelo próprio Freud mais tarde (cf. Hemmung, Symptom und Angst, 1926), revelou-se bastante útil tanto para a des- PSICANÁLISE 808 PSICÓIDE crição e a interpretação das doenças mentais quanto para a teoria da personalidade. Freud e seus seguidores não apresentaram nem apresentam seus conceitos como hipóteses ou instrumentos de explicação, mas como realidades absolutas, de natureza metafísica. Pode-se chamar de própria metafísica — e até de mitologia — a teoria formulada por Freud numa de suas últimas obras, Das Unbehagen in der Kultur (1930, trad. in., com o título de Civilisation and its Discontents, 1943), em que considera a história da humanidade como a luta entre dois instintos, o da vida (Eros) e o da morte (Tanatos): "É nessa luta que consiste essencialmente a vida, e por isso o desenvolvimento da civilização pode ser descrito como a luta da espécie humana pela existência. Trata-se de uma batalha de titãs, que nossas babás tentam compor com suas ladainhas sobre céu" {Civilisation and its Discontents, 1943, p. 102). Essa doutrina outra coisa não é senão a expressão — não muito atualizada — do dualismo maniqueísta. A importância da P. consiste, em primeiro lugar, em dar destaque à função do fator sexual em todas as manifestações da vida humana. Pela primeira vez, esse fator deixou de ser uma zona de ignorância obrigatória para a ciência e para a filosofia e pôde ser estudado em seus reais modos de ação. Em segundo lugar, a P. forneceu um conjunto de conceitos que, conquanto não muito compatíveis entre si, prestam-se a ser utilizados por vários ramos da psicologia contemporânea, principalmente se isentos do dogmatismo com que alguns seguidores de Freud os trataram. Este segundo aspecto positivo tem, porém, uma contrapartida negativa: a P. dá a muitos diletantes a oportunidade de apresentar explicações aparentemente plausíveis e fáceis dos fenômenos humanos mais díspares, confundindo também, às vezes, essa explicação com uma justificação moral ou metafísica. Em terceiro lugar, a P. teve o mérito de propiciar um instrumento de tratamento que continua sendo eficaz, apesar de perdidas muitas das ilusões otimistas inicialmente suscitadas. Entre as muitas tendências interpretativas que modificaram em maior ou menor grau as doutrinas fundamentais da P., é possível lembrar duas, a de Jung e a de Adler. Jung concebeu o instinto fundamental do homem não como de natureza sexual, mas como uma energia originária e criativa que se identifica com o conceito genérico de divindade e constitui o inconsciente coletivo, que é a base comum da natureza humana (Psicologia do incosciente, 19425). Adler, ao contrário, identificou o instinto fundamental do homem com a vontade de potenciade que falava Nietzsche, ou seja, como um espírito de agressão e de luta em conflito com outro instinto, o sentimento de comunidade humana, que liga o indivíduo a todos os outros. A interação dessas duas forças determinaria o caráter de cada homem e suas manifestações patológicas (Conhecimento do homem, 1927). PSICANÁLISE EXISTENCIAL (fr. Psycha-nalyse existenciellé). Sartre deu este nome à análise filosóficoexistencial, porquanto ela procura determinar a "escolha originária" que está na base de todo "projeto humano de vida". O princípio dessa psicanálise é que "o homem é uma totalidade, e não uma coleção", e o seu objetivo é "decifrar os comportamentos empíricos do homem". Além disso, seu ponto de partida é a experiência e seu método é o comparativo (L'être et le néant, 1943, p. 656). A P. f existencial distingue-se da de Freud, que Sartre f chama de "empírica", porque procura determij nar a escolha originária, não os "complexos" j Qbid., p. 657). | PSICODÉLICO (in. Psychedelic). Adjetivo que deveria significar "o que manifesta a psique", cunhado para qualificar as experiências produzidas pelo uso do ácido lisér-gico (LSD) ou de outras drogas, consideradas revelações de uma realidade mais profunda que a manifestada na experiência comum e que seria de natureza divina ou representaria a própria divindade imanente no mundo (cf. W. BRADEN, The Private Sea, Londres, \ 1967). PSICOFÍSICA. V. PSICOLOGIA, ti). PSICOGÊNESE (in. Psychogenesis, fr. Psy-chogénèse, ai. Psychogenese, it. Psicogenesi). Desenvolvimento dos processos mentais, ou o estudo desse desenvolvimento. PSICOGNOSE (in. Psychognosy). Termo empregado por Peirce para indicar o conjunto | das ciências psíquicas (Coll. Pap., 1.242). PSICOGRAFIA (in. Psychograph; fr. Psy-chographie, ai. Psychographie-, it. Psicografid). Descrição dos processos ou das características psíquicas de um indivíduo. PSICÓIDE (in. Phychoid; fr. Psychoid; ai. Psychõide, it. Psicoidê). Nome dado pelo biólogo vitalista H. Driesch à força psíquica que PSICOLOGIA 809 PSICOLOGIA preside à formação e ao desenvolvimento dos organismos (v. VITALISMO). PSICOLOGIA (in. Psychology, fr. Psycho-logie, ai. Psychologie, it. Psicologia). Disciplina que tem por objeto a alma, a consciência ou os eventos característicos da vida animal e humana, nas várias formas de caracterização de tais eventos com o fim de determinar sua natureza específica. As vezes, tais eventos são considerados como puramente "mentais", ou seja, como "fatos de consciência"; outras vezes, como eventos objetivos ou objetivamente observáveis, ou seja, como movimentos, comportamentos, etc, mas em todo caso a exigência a que essas definições correspondem é a de delimitar o domínio da indagação psicológica ao campo restrito dos fenômenos característicos dos organismos animais, em especial do homem. Do ponto de vista da formulação conceituai (que interessa à filosofia) podemos distinguir as seis correntes fundamentais seguintes: d) P. racional; h) P. psicofísica; c) beha-viorismo; ã) gestaltismo; é) P. do profundo;/) P. funcional. a) A P. racional ou filosófica foi fundada por Aristóteles, o primeiro a coligir em seu livro De Anima as opiniões que seus predeces-sores haviam expresso a respeito desse assunto. Essa P. tem por objeto "a natureza, a substância, e as determinações acidentais de alma", entendendo-se pôr alma "o princípio dos seres vivos" (De an., I, 1, 402 a 6). O pressuposto fundamental dessa P. está explícito nas seguintes notas: nos eventos estudados, pressupõe um princípio único e simples, uma substância necessária, da qual seja possível de-duziras determinações que esses eventos possuem constantemente ou na maioria das vezes. Neste sentido, a P. é uma ciência dedutiva da alma, cujos fenômenos particulares só são considerados como confirmações ocasionais dos teoremas que a constituem. Com muita razão, no séc. XVIII, Wolff dava a essa P. o título de "racional", porquanto ela trata de "derivar a priori, do único conceito de alma humana, todas as coisas observadas a posteriori como de sua competência" (Log., Disc, prel., § 112). Mas foi mérito de Wolff acrescentar a tal P. uma outra, "empírica", definida como "a ciência que, através da experiência, estabelece os princípios capazes de esclarecer o que acontece na alma humana" (Ihid., § 111; Psychologia empírica, 1732, § 1). Neste sentido, a P. racional continua sendo uma corrente das filosofias que se inspiram na metafísica tradicional, mas deixou de ter eficácia sobre o desenvolvimento científico da psicologia. è)AP. psicofísica ou, mais simplesmente, a psicofísica constituiu a primeira corrente empírica, experimental ou científica da psicologia. Wolff já lhe prescrevera um método indutivo ou experimental, característico de todas as ciências empíricas; no início do séc. XK, Maine de Biran prescrevia seu campo de ação: a consciência (Essai sur les fondements de Ia psychologie, 1812). No entanto, ainda não existiam todas as condições para a fase científica da psicologia. Faltavam duas, estreitamente inter-relacionadas: em primeiro lugar, o reconhecimento da estreita relação entre os eventos psíquicos e os físicos, através da ação do sistema nervoso; em segundo lugar, a introdução de alguma técnica de medição. A concretização dessas duas condições levou a P. a constituir-se como psicofísica. Isto aconteceu graças a Helmholtz, Weber, e Fechner: o primeiro conseguiu medir, em 1850, a velocidade do impulso nervoso, enquanto o segundo enunciava a denominada "lei" da relação entre o estímulo e a sensação (segundo a qual o aumento do estímulo necessário para ser percebido como tal é proporcional à intensidade do estímulo originário), e o último estabelecia a "lei psicofísica fundamental", representada pela fórmula matemática que expressa a lei de Weber. Em 1860 Fechner publicava os Elementos de psicofísica, que a definiam como "a ciência exata das relações funcionais ou relações de dependência entre o espírito e o corpo". Esse foi o programa da P. científica nessa primeira fase de sua organização: programa no qual logo encontraram lugar os resultados das análises do empirismo inglês, desde Locke até Spencer. Este último, em Princípios de P. (1855), também definira como psicofísica a tarefa da P., afirmando que "a P. distingue-se das ciências em que se apoia [anatomia e fisiolo-gia] porque cada uma de suas proposições leva em conta tanto o fenômeno interno conexo quanto o fenômeno externo conexo, ao qual se refere." (Principies of Psychology, 3a ed., 1881, p. 132). Do empirismo inglês, a P. extraiu duas características fundamentais, que a acompanharam nessa primeira fase, de constituição: o atomismo(y.) e o associacio-nismo (v.). Desse modo, suas estruturas teóricas fundamentais podem ser resumidas da seguinte maneira; PSICOLOGIA 810 PSICOLOGIA PAP. tem por objeto os "fenômenos internos" ou "fatos da consciência", e seu principal instrumento de indagação é a introspecção ou reflexão. Graças a esse aspecto, a corrente em exame foi muitas vezes chamada de P. subjetiva ou reflexiva, ou — mais raramente — "crítica". 2Q Os fatos de consciência ou fenômenos internos são estudados pela P. em sua conexão funcional com os fenômenos externos (fisiológicos ou físicos). Graças a esse aspecto, que é o mais característico da fase em questão, tal P. foi chamada de psicofísica ou também/2's/o/ó-gica (por Wundt). Com este aspecto tem relação a hipótese que sustentou nesta fase o trabalho experimental da P.: o paralelismopsi-coftsico (v.). 3e Tendência a resolver o fato de consciência por elementos últimos (sensações, emoções elementares, reflexos ou instintos elementares) e explicar os fenômenos mais complexos com a combinação de tais elementos (atomismo, associacionismo). 4a O caráter científico da P. é constituído pelo recurso aos procedimentos de indução, de experimentação e de cálculo matemático, que estabelece o caráter descritivo reivindicado pela P., analogamente ao que fazem as outras disciplinas empíricas. c) A P. da forma ou gestaltismo concentra seus ataques no 3a princípio fundamental da P. psicofísica, o atomismo e o associacionismo. Consiste em assumir como ponto de partida o princípio simetricamente oposto ao da P. associativa: o fato fundamental da consciência não é o elemento, mas a forma total, visto que esta nunca é redutível à soma ou à combinação de elementos. Seus fundadores foram Weltheimer, Kõhler e Koffka; mesmo mantendo inalterado o 2princípio fundamental da psicofísica, deixou de falar em fatos e fenômenos de consciência para considerar formas, configurações ou campos, em sua estrutura total. O gestaltismo tratou principalmente da percepção, a respeito da qual acumulou um número enorme de traballlos experimentais (v. PERCEPÇÃO, 3, a). d) AP. objetiva ou behaviorismo concentra seus ataques noP princípio fundamental da P. psicofísica, negando que o instrumento fundamental da P. seja a introspecção ou a reflexão e que os fatos de consciência ou fenômenos internos sejam objeto dessa ciência; afirma que, ao contrário, os objetos da P. são as reações dos organismos aos estímulos, entenden-do-se por reações movimentos ou fenômenos objetivamente observáveis, relacionados com os eventos do ambiente, que funcionam como estímulos. Em 1907, o fisiologista russo Bech-terev publicava uma P. objetiva (depois traduzida para inglês e francês), que defendia justamente essa tese, mais tarde difundida e defendida pelos estudos de Pavlov sobre os reflexos condicionados (y. AÇÃO REFLEXA). Portanto, pode-se dizer que aí tem início o behaviorismo. Esse nome, porém, só lhe foi atribuído alguns anos mais tarde, pelo americano J. B. Watson, em um artigo de 1913 e depois num livro intitulado Comportamento, introdução à P. comparativa (Behavior, An In-troduction to Comparative Psychology, 1914). Nessa primeira fase, o behaviorismo assumia caráter de necessitarismo rigoroso; a reação do animal era considerada efeito causai necessário do estímulo, por isso infalivelmente previsível a partir dele. O abandono desse necessitarismo e o reconhecimento do caráter simplesmente estatístico ou probabilístico das constantes verificáveis nas reações de resposta dos organismos aos estímulos constitui a fase mais moderna do behaviorismo (v. BEHAVIORISMO). é) As denominadas P. abissais ou P. do profundo concentram seus ataques no 4S princípio fundamental da P. científica clássica, considerando a P. como ciência de interpretação, e não de descrição. Com efeito, para a psicanálise, que é a maior e a mais coerente expressão das P. abissais, o ponto de partida da interpretação não está nos fatos, como faz a descrição, mas nos sintomas, e a noção de sintoma é fundamental em psicanálise (v. INCONSCIENTE). Na interpretação dos sintomas a psicanálise segue uma única regra básica: reduzir o sintoma a símbolo ou expressão deformada de uma necessidade ou de um conflito de natureza vagamente sexual, atinente à libido (v. LIBI-DO; PSICANÁLISE; SEXUALIDADE). São variantes da psicanálise a denominada P. individual de Alfred Adler, que insiste particularmente no caráter finalista dos problemas psíquicos (Praxis und Theorie der Individualpsychologie, 1924), e a P. analítica de C. G. Jung, que na realidade é muito pouco analítica (no sentido próprio do termo), pois não faz senão atribuir caráter simbólico a muitos sintomas que para Freud tinham significado direto {Coll. Pap. onAnalyticalPsychology, 1916). (V. INCONSCIENTE; PROFUNDO.) PSICOLÓGICO 811 PSICOLOGISMO f) Para a P. funcional ou funcionalismo, o objeto da P. é constituído pelas funções ou operações do organismo vivo, consideradas como unidades mínimas indivisíveis. O funcionalismo inicia-se com uma obra de Dewey, Conceito do arco reflexo em P. (1896), na qual se afirmava categoricamente que o arco reflexo não pode ser dividido em estímulo e resposta, mas deve ser considerado como uma unidade da qual apenas o estímulo e a resposta auferem significado. Para indicar a unidade da função, o próprio Dewey empregou depois a palavra transação (v.), que servia para ressaltar a impossibilidade de considerar os elementos de uma função qualquer como entidades autônomas e independentes da relação de que participam (cf. Knowing and the Known, 1949, em colaboração com A. F. Bentley). A corrente fun-cionalista abandona os pressupostos Ia, 2Q e 3Q da P. tradicional. Abandona o ls porque o objeto que se propõe estudar não é um fato de consciência, e sim uma função, ou seja, uma operação em virtude da qual o organismo entra em relação com o ambiente. Abandona o 2 S princípio fundamental porque o método de que este se vale não é introspectivo, mas objetivo ou comportamentista: as funções devem ser estudadas mediante procedimentos de observação objetiva. Finalmente, o funcionalismo tem em comum com o gestaltismo o abandono do 3a princípio fundamental. Mas a principal novidade do funcionalismo é o probabilismo, que consiste em negar não só aos procedimentos da ciência, mas também a todas as funções cognitivas humanas (inclusive a percepção imediata), o caráter de certeza infalível, e em atribuir a todas essas funções a possibilidade de atingirem uma validade apenas provável. Por este probalilismo, o funcionalismo constitui a inserção da P. no campo das idéias fundamentais da ciência contemporânea (cf. BRUNSWIK, Psychology in Terms of Objects, 1936, CANTRIL, AMES, HASTORF, ITTELSON, "Psychology and Scientific Research, em Science, vol. 110, 1949; CANTRIL, The "Why" of Man's Experience, 1950; trad. it., As motivações da experiência, 1958; v. também as obras citadas na bibliografia deste último livro). PSICOLÓGICO (in. Psychological; fr. Psy-chologique; ai. Psychologisch; it. Psicológico). 1. O que concerne à psicologia; nesta acepção, esse termo tem tantos significados quantas são as correntes conceituais da psicologia. 2. O que se refere à consciência do indivíduo, ou seja, às atitudes ou às valorações individuais. Nesse sentido, dizemos, p. ex., que se trata de uma "questão puramente P." quando diante de uma questão cuja base não pode ser encontrada nos fatos ou no âmbito de determinado universo de discurso (p. ex., científico, lógico, etc). PSICOLOGISMO (in. Psychologism; fr. Psychologisme, ai. Psychologismus, it. Psicolo-gismó). 1. Este termo tem origem no séc. XIX; designa em primeiro lugar qualquer filosofia que assuma como fundamento os dados da consciência, como reflexão do homem sobre si mesmo. Foi assim que G. F. Fries (1773-1844) e F. E. Beneke (1798-1854) entenderam O P., em oposição ao idealismo hegeliano. Ambos assumiram explicitamente como método e tarefa da filosofia a auto-observação ou consciência. Desse ponto de vista, a psicologia, I como descrição da experiência interna, torna! se a única filosofia possível (cf. FRIES, Neue , oder anthropologische Kritik der Vernunft, 1828; Beneke, Die Philosophie in ihrem Ver-haltnis zur Erfahrung, zur Speculation und Zum Leben, 1833). Mais genérica e polemicamente, V. Gioberti entendia por P. o procedimento filosófico que vai do homem a Deus, contraposto àquele que vai de Deus ao homem. Este último é o ontologismo (v). O P. é j considerado por Gioberti como a caracterís: tica da filosofia moderna, de Descartes em diante {Jntr. alio studio delia filosofia, 1840. II, p. 175). I 2. No seu uso polêmico, o termo é constan{ temente empregado para designar a confusão j entre a gênese psicológica do conhecimento e j sua validade; ou a tendência a julgar justificada ;j a validade de um conhecimento, quando na j verdade só se explicou seu acontecimento na 1 consciência. Neste sentido, foi Kant o primeiro 1 a esclarecer o conceito de P. (apesar de não ter I usado esse nome); foi quem iniciou a polêmica I contra ele, fazendo a distinção a propósito dos I conceitos apriori, entre a quaestiofactide sua "derivação fisiológica", isto é, do seu acontecimento na mente ou na consciência do homem, e a quaestio júris, que consiste em perguntar o fundamento de sua validade, exigindo como resposta a dedução (v. DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL) (Crít. R. Pura, § 12). Essa distinção, sempre presente na obra de Kant, significa a descoberta da dimensão lógico-objetiva do conhecimento; irredutibilidade dessa dimensão à JZ£%è*r-. -* PSICOLOGISMO 812 PSICOTERAPIA consciência ou às condições subjetivas do conhecer foi defendida por muitas escolas kan-tianas: pela escola de Baden (Windelband, Rickert), pela de Marburgo (Cohen, Natorp) e pela fenomenologia (Husserl), que, na filosofia dos últimos decênios do séc. XIX e nos primeiros do séc. XX, combateram constantemente o psicologismo. Herman Lotze, em Lógica (1874), insistiu sistematicamente no ponto de vista antipsicológico, fazendo a distinção entre ato psíquico de pensar, que existe só como determinado evento temporal, e o conteúdo do pensamento, que tem outro modo de ser, o da validade. Na lógica matemática, Frege impusera o mesmo ponto de vista: "Que não se tome como definição matemática a simples descrição do modo como se forma em nós certa imagem, nem como demonstração de um teorema o rol de condições físicas ou psíquicas que em nós devem ser satisfeitas para que possamos compreender seu enunciado. Que não se confunda a verdade de uma proposição com o fato de ela ser pensada! É preciso lembrar bem: que uma proposição não deixa de ser verdadeira quando não a penso, assim como o sol não deixa de existir quando fecho os olhos" {Die Grundla-gen derArithmetik, 1884, Intr.; trad. it., em^4ní-mética e lógica, p. 23). Essas considerações eram repetidas quase literalmente por Husserl (Logische Untersuchungen, 1900, I, §§ 17 ss.), que mais tarde reforçava: "se dissermos que um número é uma formação psíquica, incidiremos num absurdo, chocar-nos-emos contra o sentido intrínseco do discurso aritmético, que está acima de todas as teorias e em todos os momentos e claramente contemplável em sua plena validade" Çldeen, 1,1913, § 22), prevenindo contra a tendência a "psicologizar o eidé-tico", a identificar as essências com a consciência que se tem delas em cada caso ilbid., § 61). A corrente antipsicológica, nesse sentido, hoje é a base de filosofias aparentemente díspares, como p. ex. do existencialismo, na forma observada na obra de Heidegger, que é a análise das situações humanas em sua essência, e não em sua ocorrência psíquica (cf. Sein und Zeit, § 7); o mesmo se pode dizer do empirismo lógico, cujo principal representante, R. Carnap, travou polêmicas constantes contra o P. (cf. Der Logische Aufbau der Welt, 1928, §§ 151 ss.; "Empiricism, Semantics, and Ontology", 1950, em Readings in Phil. of Science, 1953, p. 514). A polêmica contra o P. é, aliás, freqüente no empirismo lógico (cf. p. ex., A. Pap, Ele-ments of Analytic Philosophy, 1949, p. 406). PSICOMETRIA (in. Psychometry, fr. Psy-chométrie, ai. Psychometrie, it. Psicometrid). Medida da freqüência, da intensidade ou da duração dos eventos psíquicos. Esse termo (psycheometria), bem como a exigência de se aplicarem medidas a fatos psíquicos, foram propostas de Wolff (Psychol. empírica, § 522, 6l6). O termo foi muito empregado pela psicofí-sica, que às vezes se identificou com a psico-metria. Atualmente está em desuso. PSICOPATIA (in. Psychopaty, fr. Psychopathie, ai. Psychopathie, it. Psicopatid). Distúrbio ou doença mental, ou as formas menos graves dessas doenças. Neste último sentido, a P. seria diferente da psicose (v.). PSICOSE (in. Psychosis; fr. Psychose; ai. Psychose, it. Psicosi). No significado atualmente um uso, doença mental grave que implica perda ou distúrbio dos processos mentais. Psico-neurose ou simplesmente neurose, doença ou distúrbio mental menos grave. Em geral, entende-se por P. o enfraquecimento ou o desaparecimento da relação verificável com as coisas ou com cs outros; essa relação é constituída pela personalidade (v.), e sua alteração, portanto, comporta o desequilíbrio da personalidade. Por relação verificávelpode-se entender a relação passível de confirmação, ou a que não seja desmentida por critérios comumente considerados válidos, ou a que, de qualquer modo, não equivalha à negação de qualquer relação possível. PSICOSSOMÁTICO (in. Psychosomatic; fr. Psychosomatique, ai. Psychosomatik, it. Psico-somatico). Que concerne à influência das atitudes mentais (modo de pensar e de sentir de uma pessoa) sobre os processos orgânicos. Chama-se psicossomático o ramo da medicina que estuda tais influências (compare F. Ale-xander, Psychosomatic Medicine, 1949). PSICOTÉCNICA (in. Psychotechnic- fr. Psychotechnique, ai. Psychotechnik; it. Psicotécnica). Aplicação da psicologia aos problemas do trabalho e da produção: engenharia psicológica. PSICOTERAPIA (in. Psychotherapy, fr. Psy-chothérapie, ai. Psychotherapie, it. Psicotera-pid). Solução dos conflitos individuais ou de grupo, ou o tratamento de estados mentais patológicos por meio de aconselhamento, esclarecimentos ou sugestões verbais, sem recorrer a meios materiais. A psicanálise é a PSIQUE 813 PURO forma mais conhecida e difundida de psicote-rapia. Uma forma mais recente é a denominada "P. não diretiva", segundo a qual o método de tratamento consiste em procurar encontrar, através uma conversação amigável com o paciente, a imagem que ele faz de si mesmo e de seus objetivos na vida, ajudando-o a livrar-se dos conflitos (cf. C. R. ROGERS, Counseling and Psychotherapy, 1937) (v. PSICANÁLISE). PSIQUE (in. Psyche, fr. Psyché, ai. Psyche, it. Psichè). Alma ou Consciência. Ver esses dois termos. PSITACISMO (in. Psittacism; fr. Psittacisme, ai. Psittazismus; it. Psittacismó). Uso das palavras sem referência aos objetos, como fazem os papagaios. Leibniz dizia: "Raciocina-se muitas vezes com as palavras, quase sem ter o objeto no espírito" (...); neste caso, "nossos pensamentos e nossos raciocínios, contrários ao sentimento, são uma espécie de P." (Nouv. ess., II, 21, 35). Sobre a linguagem oratória considerada como uma espécie de P., cf. C. K. Ogden-I. A. Richards, The Meaning of Meaning, 10a ed., 1952, p. 218. PUBLICIDADE (in. Publicity, fr. Publicité, ai. Óffentlichkeít;it. Pubblicitã).SegundoKant, é o critério para reconhecer imediatamente a legitimidade de uma pretensão jurídica. Kant chama de fórmula transcendental do direito público o seguinte princípio: "São injustas todas as ações relativas ao direito de outros homens cuja máxima não seja suscetível de P." {Zum ewigen Freiden, apêndice II). PÚBLICO (in. Public; fr. Publique, ai. Of-fentlicb; it. Pubblicó). Esse adjetivo foi usado em sentido filosófico (especialmente por escritores anglo-saxões) para designar os conhecimentos ou os dados ou elementos de conhecimento disponíveis a qualquer pessoa em condições apropriadas e não pertencentes à esfera pessoal e não verificável da consciência. Neste sentido, é P. o que Kant denominava objetivo (v.): aquilo de que todos podem participar igualmente, podendo portanto também ser expresso ou comunicado pela linguagem (cf. B. RUSSELL, Human Knowledge, II, 1; trad. it., p. 81). PUNIÇÃO. V. PENA. PURIFICAÇÃO. V. CATARSE. PURISMO (in. Purism; fr. Purisme, ai. Pu-rismus; it. Purismo). 1. Em sentido moral: "espécie de pedantismo relativo à observação do dever considerado no sentido mais lato" (KANT, Met. der Sitten, Doutrina da virtude, I, § 7). 2. Em sentido lingüístico: espécie de pedantismo relativo à pretensão de conservar a forma clássica e original de uma língua. 3. Em sentido metafísico: espécie de pedantismo relativo à separação excessivamente rigorosa de uma faculdade humana da outra. A palavra foi usada nesse sentido por G. C. Ha-mann, como título de uma obra {Metacrítica doP. da razão, 1788, póstumo), na qual repreendia Kant por essa espécie de pedantismo com respeito à razão. PURO (in. Purê, fr. Pur, ai. Rein; it. Puro). O que não está misturado com coisas de outra natureza, ou, com mais exatidão, o que é constituído de modo rigorosamente conforme à própria definição. Esta segunda definição explica o enorme uso que os filósofos fazem desse adjetivo, porquanto, depois de definirem um objeto, muitas vezes se acham na obrigação de distinguir as condições em que o objeto se apresenta rigorosamente em conformidade com sua definição, das condições em que dela se afasta em alguma medida: nas primeiras condições, o objeto é chamado de P. Anaxágoras dizia que o intelecto é P. porque só ele, "entre todos os entes, é simples e sem mistura" (ARISTÓTELES, De an., 405 a 16). Platão falava em prazer "P.", sem mistura de dor CR/., 51 a, 52 c). Descartes falava da matemática "P." (Méd., VI); Leibniz, da "P." razão (Op., ed. Erdmann, pp. 229-230, etc), assim como Wolff {Psychol. empírica, % 495). O primeiro motor de Aristóteles foi chamado de "Ato P." por ser atividade perfeita, desprovida de potência, mas essa expressão não é aristotélica (cir. Met., XII, 6, 1071 b 22; 8, 1074 a 36). 2. Kant chamou de P., ou "absolutamente P.", o conhecimento "no qual, em geral, não se misture nenhuma experiência ou sensação, sendo por isso possível completamente a priori" (Crit. R. Pura, Intr., § VII). Neste sentido, razão P. "é a que contém os princípios para conhecer algo absolutamente a priori". Ciência da razão P. é uma crítica, e não uma doutrina, porquanto não pode proporcionar um sistema acabado da razão P., mas pode apenas ter função negativa, "servindo para purificar, e não para ampliar, a nossa razão, libertando-a dos erros" (Ibid.). Neste sentido, o oposto de P. é empírico. Esse adjetivo foi usado no mesmo sentido por Fichte, que disse ser P. o Eu absoluto (ou a sua atividade), por ser diferente do eu PURPÚREA, DLIACE, AMABIMUS 814 PURPÚREA, ILIACE, AMABIMUS empiricamente condicionado e porque sua atividade prescinde completamente da experiência (Wissenschaftslehre, 1794, III, § 5, II). Este uso foi constante no idealismo de inspiração romântica. Gentile chamou o pensamento pensante de ato P. por ser independente de condições ou de conteúdo empírico (.Teoria generale dello spirito come attopuro, 1920). 3. Na linguagem comum, chama-se P. uma ciência ou uma disciplina tratada teoricamente, sem consideração de suas possíveis aplicações; neste caso, P. é o contrário de aplicado. Hamilton já anotava a impropriedade desse uso (Lectures on Logic, I, 1866, p. 62). PURPÚREA, ILIACE, AMABIMUS, EDEN-TULI. Termos mnemônicos da lógica tradicional para exprimir a equivalência das quatro proposições modais, cada uma representada por uma sílaba na seguinte ordem: possível, contingente, impossível, necessário. A vogai que se acha em cada uma das sílabas (A ou E ou /ou Ü) indica se o modo deve ser afirmado ou negado e se a proposição deve ser afirmada ou negada. A significa a afirmação do modo e a afirmação da proposição; E, a afirmação do modo e a negação da proposição; /, a negação do modo e a afirmação da proposição; U, a negação do modo e a negação da proposição. Desta maneira, todas as quatro proposições indicadas pela mesma palavra são eqüipolentes, de tal forma que, se uma é verdadeira, as outras também são verdadeiras (ARNAULD, Log., II, 8). P ex., se p for uma proposição qualquer, para a palavra Purpúrea temos: Possível = U = Não é possível que não p Contingente = U = Não é contingente que nãop Impossível = E = É impossível que não p Necessário = A = É necessário que p. Analogamente para as outras palavras. Q QUACRISMO (in. Quakerism; fr. Quake-ristne, it. Quaccherismó). A mais radical e liberal das correntes religiosas da Reforma. O movimento foi iniciado em 1649 na Inglaterra por George Fox, e o verdadeiro nome dos quacres foi "Sociedade dos Amigos" (Friends Society). O nome quacre foi cunhado pelo juiz Bennet porque durante um longo interrogatório de George Fox este lhe disse que "tremia ante as palavras do Senhor". Entre as maiores personalidades religiosas que aderiram a esse movimento estava W. Penn, que, no período das perseguições, emigrou para a América e fundou a colônia de Pennsyl-vania, e Robert Barkley, teórico do movimento. O Q. caracteriza-se: le pela resoluta aversão a qualquer forma de culto externo, de rito, de pregação, etc; 2 Q pelo reconhecimento de que o único guia do homem é a luz interior, proveniente de Deus; 3 Q pelo caráter ativo e otimista que semelhante fé interior adquire nos quacres, que consideram o próprio pecado original como uma corrupção natural superável; 4 fi pela condenação da violência, portanto pela aversão à guerra. Em Cartas sobre os ingleses (1734), Voltaire exaltava a justeza e a validade da religiosidade dos quacres (Cartas, IV) (cf. ELFRIDA VIPONT, The Story of Quakerism, 1652-1952, Londres, 1954). QUADRADO DOS OPOSTOS. Indicado, segundo o uso escolástico, por A, E, I, e O, respectivamente, a proposição universal afirmativa ("todo homem corre"), a universal negativa ("nenhum homem corre"), a particular afirmativa ("algum homem corre") e a particular negativa ("algum homem não corre") e dispondo-as em Q. deste modo: obtemos suas relações A contrárias E I subcontrárias O lógicas fundamentais. A e E são contrárias. ambas podem ser falsas, mas não podem ser ambas verdadeiras; A e O, E e I são contraditórias: não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas; I e O sào subcontrárias: podem ser ambas verdadeiras, mas não ambas falsas; A e I, E e O são subalternas, no sentido de que A se subalterna (implica) a I, E se subalterna (implica) a O (mas não vice-versa). A origem deste célebre artifício didático, certamente medieval, é obscura. Foi atribuída erroneamente por Prantl ao platônico bizantino M. Pselo, e por isso o Q. é também chamado de "Q. de Pselo"; no entanto, está presente em documentação mais antiga, Introductiones in logicam, de Guilherme de Thyreswood (segunda metade do séc. XII), embora não faltem exemplos de paradigmas e esquemas deste gênero em textos anteriores. QUADRÍVIO. V. CULTURA, ARTE. QUAESTIO. Método escolástico de tratar um argumento a partir do séc. XII. O primeiro exemplo desse método está em Sic et Non de Abelardo, que é uma coletânea de opiniões QUALIDADE 816 QUALIDADE (sententiaé) de Padres da Igreja, dispostas por problemas, de tal maneira que as várias sentenças aparecem como respostas positivas ou negativas do problema proposto (daí o título sim e não). Na sua forma madura, o Q. é constituído pelas seguintes partes: Ia enunciado (ex.: Utrum deum esse sit perse notum); 2- relação das razões favoráveis à tese que será rejeitada pelo autor (Ad primum sic proceditur Videtur quod deumesse sit per se notum); 3a relação das razões favoráveis à tese oposta (Sed contra;...); 4a enunciação da solução escolhida pelo autor (Conclusio); 5- ilustração dessa solução; 6a refu-tação das teses aduzidas pela solução rejeitada, na ordem em que foram aduzidas {Adprimum ergo dicendum... Ad secundum...). A ordem em que as questões eram tratadas era fornecida por algum texto ao qual toda a coletânea servia de comentaria algum livro da Bíblia, alguma obra de Boécio ou de Aristóteles ou, mais freqüentemente, as Sentenças de Pedro Lom-bardo. Quaestiones quodlibetales ou mais simplesmente Quodlibeta eram as coletâneas de questões que os aspirantes ao título em teologia deviam discutir duas vezes por ano (antes do Natal e antes da Páscoa) sobre qualquer tema, de quolibet. As quaestiones disputatae, ao contrário, eram resultado das diputationes ordinariae que os professores de teologia sustentavam durante seus cursos sobre os mais importantes problemas filosóficos e teológicos (cf. sobre esses assuntos, MARTIN GRABMANN, DieGeschichtederscholastischenMethode, 1911, nova ed., 1956). QUALIDADE (gr. 7toiÓTr|ç; lat. Qualitas; in. Quality, fr. Qualité, ai. Qualitát, it. Qualitã). Qualquer determinação de um objeto. Como determinação qualquer, a Q. distingue-se da propriedade (v.), que, em seu significado específico, indica a Q. que caracteriza ou individualiza o próprio objeto, sendo portanto própria dele. A noção de Q. é extensíssima e dificilmente pode ser reduzida a um conceito unitário. Podemos dizer que ela compreende uma família de conceitos que têm em comum a função puramente formal de servir de resposta à pergunta qual? Aristóteles distinguiu quatro membros dessa família, sendo esta ainda a melhor exposição já feita sobre o conceito de qualidade. 1. Em primeiro lugar, entendem-se por Q. os hábitos e as disposições, que se distinguem porque o hábito é mais estável e duradouro que a disposição. São hábitos a temperança, a ciência e, em geral, as virtudes; são disposições a saúde, a doença, o calor, o frio, etc. (Cat., 8, 8 b 25; cf. Met., V, 14, 1020 a 8-12). A filosofia contemporânea às vezes também recorre a hábitos disposicionais (cf., p. ex., C. L. STEVENSON, EthicsandLanguage, III, § 4,1950, 5a ed., p. 46 ss.), mas o precedente aristotélico geralmente é ignorado. 2. Uma segunda espécie de Q. consiste na capacidade ou incapacidade natural; neste sentido fala-se em lutadores, corredores, sãos, doentes, etc. (Cat., 8, 9 a 14). Esta é a Q. que os escolásticos chamaram de ativa (cf., p. ex., S. TOMÁS, S. Th., III, q. 49, a. 2). 3. O terceiro gênero de Q. é constituído pelas afeições e suas conseqüências: estas são as Q. sensíveis propriamente ditas (cores, sons, sabores, etc). (Cat., 8, 9 a 27; cf. Met., V, 14, 1020 a 8). Os escolásticos chamaram essas espécies de Q. passivas (cf. S. TOMÁS, loc. cit.). 4. A quarta espécie de Q. é constituída pelas formas ou determinações geométricas, como p. ex. pela figura (quadrado, círculo, etc.) ou pela forma (retilínea, curvilínea) (Cat., 8, 10 a 10). Na história ulterior da filosofia pouco ou nada foi acrescentado a essas determinações e distinções feitas por Aristóteles sobre a qualidade. Querendo-se eliminar delas o que é devido à sua mais estreita conexão com a metafísica aristotélica, pode-se obter maior simplificação, e reduzir a três os quatro grupos acima, caracte-rizando-os da seguinte maneira: a) determinações disposicionais, que compreendem disposições, hábitos, costumes, capacidades, faculdades, virtudes, tendências, ou qualquer outro nome que se queira dar às determinações constituídas por possibilidades do objeto; b) determinações sensíveis, simples ou complexas, que são fornecidas por instrumentos orgânicos: cores, sons, sabores, etc; c) determinações mensuráveis, que se submetem a métodos objetivos de medida: número, extensão, figura, movimento, etc. Com esta modificação, a divisão aristotélica corresponde exatamente à de Locke; com efeito, as Q. (a) são as que Locke incluiu na terceira espécie de Q.: "aquelas que todos concordam em considerar apenas como meras capacidades que os corpos têm de produzir certos efeitos, embora se trate de Q. tão reais no objeto quanto as que, para adequar-me ao modo comum QUALIDADE 817 QUALQUER de falar, chamei de Q., mesmo distinguindo-as das outras pelo nome de Q. secundárias" {Ensaio, II, 8, 10). Por outro lado, as Q. (b) e (c) correspondem às que Locke chamava, respectivamente, de qualidades primárias e secundárias (v. mais adiante). Assim retificada, a distinção entre as várias espécies de Q. abrange todo o campo das discussões e dos problemas a que deu origem na tradição filosófica. d) À noção de determinação disposicional faz referência não só a noção de Q. oculta, mas também a de força, que a suplantou nos pri-mórdios da ciência moderna. Newton dizia: "Os aristotélicos não deram o nome de Q. oculta a qualidades manifestas, mas a Q. que eles supuseram além dos corpos, como causas desconhecidas de efeitos manifestos; estas seriam as causas da gravidade, da atração magnética e elétrica ou das fermentações, se supuséssemos tratar-se de forças ou ações derivadas de Q. que desconhecêssemos ou que fossem impossíveis de descobrir ou manifestar. Tais Q. ocultas impedem o progresso da filosofia natural, e por isso foram abandonadas nestes últimos anos" {Optics, 1740, III, 31). Com o mesmo espírito, Wolff definia como oculta a Q. "desprovida de razão suficiente", e acrescentava: "Q. oculta é, p. ex., a gravidade se for concebida como força primitiva ou como força que Deus infundiu à matéria, para a qual não se possa dar apriori nenhuma razão natural. Tal é também a força motriz, se for considerada uma força primitiva que Deus infundiu à matéria no momento da criação. Certamente Aristóteles e seus seguidores, que admitiram as Q. ocultas, usaram esse termo com o mesmo significado" {Cosm., § 189). O reparo de Wolff é mais claro que o de Newton: uma força será uma Q. oculta se dela não se der razão suficiente natural, mas não o será se for dada tal razão. Mas disso resulta também que tanto a noção de Q. oculta quanto a de força são integráveis na noção de Q. como disposição. O mesmo significado de Q. está presente no conceito de qualificação. "Qualificar-se para" ou "ser qualificado para" significa ter a capacidade ou a competência, ou seja, a qualidade disposicional para realizar dada tarefa ou alcançar determinado objetivo. Às vezes, porém, o termo "qualificado" significa somente "limitado" ou "caracterizado por dadas condições", como acontece na linguagem jurídica. b, c) As Q. nos sentidos B e C são as Q. tradicionalmente distinguidas como primárias e secundárias. Os termos "primário" e "secundário" remontam a Boyle, mas a distinção é bastante antiga e remonta a Demócrito {Fr. 5, Diels). Depois de muitos séculos foi retomada por Galileu (cf. Opere, ed. nac, VI, p. 347, ss.), por Hobbes {Decorp., 25, 3), por Descartes {Princ. phil., I, 57; Méd., VI) e por Locke {Ensaio, II, 3, 9), que a difundiu na filosofia européia. A base da distinção é a possibilidade de quantificação que as Q. no sentido c têm em relação às do sentido b. por esta possibilidade, fogem às valorações individuais, mostrando-se independentes do sujeito e plenamente "objetivas" ou "reais". Em seguida a distinção foi combatida (p. ex., por Berkeley), principalmente com o fim de mostrar que nem mesmo as Q. primárias são objetivas, e que todas são igualmente subjetivas, ou seja, consistem em "idéias" {Principies ofHuman Knowledge, I, § 87). Segundo Husserl, o significado da distinção seria o seguinte: "A coisa experimentada fornece o simples hoc, um x vazio que se torna portador das determinações matemáticas e das fórmulas inerentes, e que não existe no espaço perceptivo, mas num espaço objetivo do qual o primeiro é apenas indício, ou seja, numa variedade euclideana tridimensional de que só é possível fazer uma representação simbólica" {Ideen, 1, § 40). Neste sentido, as Q. objetivas delineariam a natureza de um objeto transcendente à percepção sensível, ao qual esta acenaria como a algo distante. QUALIDADE DAS PROPOSIÇÕES (lat. Qualitas propositionum-, in. Quality of pro-positions; fr. Qualité des propositions; ai. Qualitãt des Urteils; it. Qualità delle propo-sizioni). Foi provavelmente o neoplatônico Apuleio, contemporâneo de Galeno, o primeiro a usar as palavras Q. e quantidade para indicar, respectivamente, a distinção das proposições em afirmativas e negativas e em universal e particular {De int., p. 266; cf. PRANTL, Geschichte derLogik, I, p. 581). Kant acrescentou aos dois juízos tradicionais de Q. o juízo infinito. (V. INFINITO, JUÍZO) QUALIFICAÇÃO. V. QUALIDADE. QUALQUER (gr. nãç, lat. Omnis; in. Any; fr. Chaque; ai. feder, it. Ogni). Na lógica contemporânea, "Q" é um operador de campo, cujo símbolo mais usado é "{x)", p. ex. em fórmulas como "O)" . "f{x)", que se lê "para qualquer x, f{x) é verdadeiro". Isso corresponde a um produto lógico (ou conjunção lógica) operado no campo de validade de {x), ou seja, à conjunção "f{á) e f{b) e f{c) e...". Sempre que f{x) for QUÂNTICA, FÍSICA 818 QUANTIDADE predicado, ela eqüivale à fórmula habitual Q. xéf", ou então "todos os x são/" da lógica tradicional. Aristóteles utilizara "Q." na proposição universal afirmativa "Qualquer A é B", o que foi adotado pela lógica medieval. Neste uso, a função de "Q." não se distingue da de "todo/todos". No entanto, a lógica terminista medieval distinguiu dois significados de "todos": o significado coletivo, quando se diz, p. ex., "Todos os Apóstolos são 12", donde não se segue que "Estes Apóstolos são 12", e o significado distributivo, quando se diz, p. ex., "Todos os homens desejam naturalmente saber", donde se segue que "Qualquer homem deseja naturalmente saber". Neste último caso, "Q." indica uma disposição da. coisa que pode funcionar como sujeito ou predicado (PEDRO HISPANO, Summ. log., 12.0406). Na lógica moderna, a distinção entre Q. e todo foi feita por Frege (Grundgesetz der Arithmetik, 1893, I, § 17) e por Russell. Segundo este último, tal distinção consiste no fato de que uma asserção que contenha uma variável x(p. ex., "JC= x") pode ser válida para todos os exemplos ou para um exemplo qualquer, sem decidir a qual exemplo se faz referência. Neste segundo caso, utiliza-se o operador qualquer. Assim, nas demonstrações de Euclides, toma-se como base de raciocínio um triângulo qualquer ABC sem determinar que espécie de triângulo é. Neste caso, o triângulo ABC vale como variável real: ele é um triângulo qualquer, ainda que continue o mesmo durante toda a demonstração. O operador todos, ao contrário, tem como base variáveis aparentes, que, seja qual for a determinação dada, não mudam o valor da função. Russell considera que a distinção entre todos e Q. é necessária ao raciocínio dedutivo (Matbematical Logic as Based on the Theory of Types, 1908, em Logic and Knowledge, p. 64 ss.; cf. Principies of Mathematics, § 60-61; Principia mathematicd). QUÂNTICA, FÍSICA. V. COMPLEMENTARIDADE; CONDIÇÃO; DETERMINISMO; FÍSICA; INDETERMINADA. QUANTIDADE (gr. rcorjóv; lat. Quantitas; in. Quantity, fr. Quantité, ai. Quantitãt; it. Quantitã). Em geral, a possibilidade da medida. Foi esse o conceito emitido por Platão e Aristóteles. Platão afirmou que a Q. está entre o ilimitado e a unidade, e que só ela é o objeto do saber; p. ex., conhece realmente os sons quem não admite que eles sejam infinitos nem procura reduzi-los a um único som, mas conhece a Q. deles, ou seja, seu número (Fil., 17a, 18 b). Aristóteles, por sua vez, definiu a Q. como o que é divisível em partes determinadas ou determinaveis. Uma Q. numerável é uma pluralidade divisível em partes descontínuas. Uma Q. mensurável é uma grandeza divisível em partes contínuas, em uma, duas ou três dimensões. Uma pluralidade completa é um número; um comprimento completo é uma linha; uma extensão completa é um plano; uma profundidade completa é um corpo (Met., V, 13, 1027 a 7). Essas determinações de Aristóteles foram repetidas na escolástica e passaram a fazer parte das noções geralmente aceitas no início da Idade Moderna. Pareceu indubitável que a matemática pudesse ser definida como "a ciência da Q." até que a evolução dessa ciência mostrasse que essa definição era restrita e imprópria (v. MATEMÁTICA). Foi justamente pensando na matemática que no séc. XVIII Wolff definiu a Q. como "aquilo em virtude do que as coisas semelhantes, ressalvada a sua semelhança, podem diferir intrinsecamente" (Cosm., § 348), definição que poderia ser facilmente invertida dizendo-se que Q. é aquilo em virtude do que as coisas dessemelhantes, ressalvada a sua dessemelhança, podem ser semelhantes. Mas com esta forma, que corresponderia mais aos conceitos matemáticos modernos, não se estaria definindo a Q., e sim a grandezaCv.). De fato, em matemática o termo Q. tornou-se sinônimo de grandeza, que é específico de certo campo de indagação e que depende da escolha oportuna de unidades de medida. Portanto, a Q. como categoria ou conceito generalíssimo não pertence mais às ciências, e no máximo pode-se dizer que constitui o caráter generalíssimo comum aos objetos díspares das ciências positivas, que é a possibilidade de serem medidos. A tendência geral do pensamento científico a reduzir qualidade a Q. foi interpretada de maneira singular por Hegel, que falou em "linha nodal das relações de medida". A mudança gradual da Q. levaria, em certo ponto (ponto ou "linha nodal"), à mudança da qualidade, e a mudança gradual desta nova qualidade levaria a outro ponto nodal, e assim por diante. Hegel observava que, do lado qualitativo, a passagem para uma nova qualidade "é um salto: as duas qualidades são postas de modo completamente extrínseco uma à outra", e que por isso a gra-dualidade da mudança quantitativa não permi- QUANTIDADE DAS PROPOSIÇÕES 819 QUEDA te compreender o devir (Wissenschaft der Logik, I, seç. 3a, cap. 2; trad. it., I, pp. 446-47). Com isso ele negava que a passagem da Q. à qualidade ou vice-versa servisse para alguma coisa. Isso, porém, não impediu que Engels considerasse "a conversão Q. em qualidade" como lei fundamental da dialética e visse em Hegel o descobridor dessa lei (Dialektik der Natur, trad. it., pp. 57 ss.). (V. DIALÉTICA; NODAL; LINHA; SALTO). QUANTIDADE DAS PROPOSIÇÕES. Foi o neoplatônico Apuleio (v. QUALIDADE DAS PROPORÇÕES) o primeiro a chamar de Q. a divisão das proposições em universais e particulares, individuais e indefinidas (ARISTÓTELES, De int., 7; An. pr., I, 1). Kant reduziu a três as classes dos juízos segundo a Q., mais precisamente proposições universais, particulares e individuais (Crít. R. Pura, 9). Hamilton também falou da Q. dos conceitos, distinguindo a Q. intensiva, que é a intenção ou compreensão, e a Q. extensiva, que é a extensão ou denotação (Lectures on Logic, I, pp. 140 ss.). QUANTIFICAÇÃO (in. Quantification; fr. Quantification; ai. Quantifikation; it. Quan-tificazioné). Em Lógica, designa-se por "Q." a operação mediante a qual, com o uso de símbolos chamados quantificadores, se determina o âmbito ou a extensão de um termo da proposição. Na Lógica de Aristóteles e em toda a Lógica clássica derivada, conhecia-se apenas a Q. do sujeito da proposição: em Aristóteles, mediante os operadores "todo" e "em parte" ("[o predicado] B pertence a todo [o sujeito] A"; "B pertence em parte a A"); na Lógica medieval ou moderna, por meio dos operadores "omnis"e "aliquis" ("omnisA estB"; "aliquisA atf B"). A proposição quantificada com 'todo" era chamada de universal; a quantificada com "em parte" ("algum") era chamada de particular; a não quantificada era chamada de indefinida. No séc. XIX a exigência de submeter a silogística tradicional a alguma espécie de cálculo matemático induziu alguns lógicos ingleses (Ben-tham, 1827; Hamilton, 1833) a quantificar também o predicado, interpretando, p. ex., a proposição universal afirmativa "todos os A são B" como "todos os A são alguns B". Deste modo, porém, a proposição era interpretada unilateralmente como uma relação de inclusão ou exclusão, parcial ou total, entre classes. A Lógica contemporânea retomou essa concepção, mas integrou-a. Nela, porém, os quantificadores, que agora são o quantificador universal [na notação de Russell, "(x)" = "todos") e o quantificador existencial [cs., "(3x)" = "existe pelo menos um x que..."], de novo referem-se apenas aos argumentos ou variáveis de uma função proposicional, transformando estas em variáveis aparentes e as funções em proposições propriamente ditas (universais ou particulares): p. ex., "x é mortal" é uma função "(x). 'x é mortal'" (= "todos os x são mortais"), é uma proposição universal. G. P. QUANTIFICAÇÃO DO PREDICADO (in. Quantification ofpredicaté). Opondo-se à lógica tradicional, Hamilton defendeu o princípio da Q. do predicado, afirmando: ls o predicado é tão extensivo quanto o sujeito; 2a a linguagem comum quantifica sempre que ocorre o predicado: diretamente, por meio do uso de quantificadores (p. ex., "Pedro, João, Tiago, etc, são todos apóstolos"), ou indiretamente, através da limitação e da exceção, como quando se diz "A virtude é a única nobreza", ou então "Sobre a terra não há nada de grande a não ser o homem" (Lectures on Logic, II, pp. 257 ss.). QUANTIFICADOR. V. OPERADOR. QUANTCFRENIA (in. Quantophrenia; fr. Quantophrénie, it. Quantofreniã). Foi assim que P. Sorokin chamou a "mania de quantificar a qualquer custo" no campo das ciências psicológicas e sociais (Fads and Faibles in Modem Sociology andRelatedSciences, 1956, caps. VII-VIII). QUATERNIO TERMINORUM. Expressão usada para indicar o tipo mais comum de falácia lógica, constituída pela duplicidade de significado de um dos termos empregados no raciocínio, como no exemplo tirado de Sêneca: "Mus (o rato) é uma sílaba; o rato rói o queijo; portanto a sílaba rói o queijo" (Ep., 48) (v. EQUIVOCAÇÃO). QUEDA (gr. êiotTCXTiÇ; lat. Casus, in. Fali; fr. Chute, ai. Fali; it. Cadutã). O mito da Q., segundo o qual a alma humana teria decaído de um estado original de perfeição, no qual contemplava a verdade de frente, na bem-aventurança, é exposto em Fedro (248a ss.) de Platão e repetido por Plotino (Enn., VI, 9, 9), por outros neoplatônicos, petos gnósticos(y.) e pelos padres da Igreja Oriental. Orígenes explicou a formação do mundo sensível a partir da queda de substâncias intelectuais que habitavam o mundo inteligível: Q. devida à sua preguiça e à aversão ao esforço exigido pela prática do bem. Deus estabelecera que o bem QUIDIDADE 820 QUODLEBETA dependeria exclusivamente da vontade dessas substâncias intelectuais e deu-lhes liberdade. Sua Q. (e assim a formação do mundo sensível) depende exclusivamente do mau uso dessas liberdades (Deprinc, II, o, 2; Fr. 23 A). Os gnósticos, ao contrário, negaram essa liberdade. No mundo moderno, a teoria da Q. foi retomada por Renouvier {Nova tnonadologia, 1899). O homem, saído das mãos de Deus como criatura livre, ao usar a liberdade provocou sua queda e, ao mesmo tempo, a ruína do mundo harmonioso criado por Deus. Poderá erguer-se através da própria liberdade e da sucessão de provas dolorosas que o reeducarão, devolvendo-o à harmonia original do universo (v. APOCATÁSTASE). QUIDIDADE (lat. Quidditas; in. Quiddi-ty fr. Quiddité, ai. Quidditàt; it. Quidditã). Termo introduzido pelas traduções latinas feitas no séc. XII (do árabe) a partir das obras de Aristóteles; corresponde à expressão aristoté-lica xó xi nv eivou (quod quid erat esse). Esse termo significa essência necessária (substancial) ou substância (v. ESSÊNCIA; SUBSTÂNCIA). QUIETISMO (in. Quietism; fr. Quiétisme, ai. Quietismus, it. Quietismó). Crença de que o estado de graça ou de união com Deus pode ser obtido pondo-se a vontade pessoal nas mãos de Deus, sem qualquer rito ou prática religiosa. O Q. foi adotado por muitas correntes religiosas, mas esse termo foi cunhado com referência à forma por ele assumida no catolicismo por obra de Miguel Molinos (1627-1696), cujas teses foram condenadas pelo papa Inocêncio XI em 1687. QUIETIVO (in Quietive; fr. Quiétif, ai. Quietiv, it. Quietivó). Foi assim que Schopen-hauer chamou o conhecimento filosófico, por analogia e antítese com motivo, porquanto ele leva à negação da vontade de viver, ao as-cetismo: essa negação "ocorre depois que o conhecimento total do ser tornou-se Q. do querer" (Die Welt, I, § 68). Q., neste sentido, também é a arte como contemplação desinteressada das idéias platônicas (Ibid., 1, § 70). QUILIASMO (in. Chíliasm- fr. Chiliasme, ai. Chiliasmus, it. Chiliasmó). Q. ou milenarismo é o nome que se dá hoje à crença no advento de uma renovação radical do gênero humano e na instauração de úm estado definitivo de perfeição. O Apocalipse de S. João é o principal documento de crenças semelhantes, que foram muito freqüentes nos primeiros séculos do cristianismo, voltando a apresentar-se também na Idade Média. Gioacchino da Fiore (séc. XII) preconizou o iminente advento de uma terceira era da história humana, a do Espírito Santo (Concórdia Novi et Veteris Testamenti, IV, 35). Kant falou de um Q. filosófico "que aspira a um estado de paz perpétua, fundada na união das nações, como república mundial (Reli-gion, I, 3). QUINQUE VOCÊS. São os cinco conceitos generalíssimos, ou cinco tipos de predicado universal (por isso chamados também de "pre-dicáveis") da Lógica clássica: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente. O cerne da sua distinção e da problemática relativa está nos Tópicos de Aristóteles, mas o estudo formal e explícito delas como categorias fundamentais da lógica acha-se em Isagoge de Porfírio. Foi sobretudo graças à versão e aos comentários de Boécio sobre esta obra que elas passaram para a Lógica medieval. QUINTESSÊNCIA, (lat. Quinta essentia; in. Quintessence, fr. Quintessence, ai. Quintessenz; it. Quinta essenzà). 1. O éter, isto é, a substância que, segundo Aristóteles, compõe os céus, que é diferente dos quatro elementos que compõem os corpos sublunares (V. ÉTER). 2. Extrato corpóreo de uma coisa, obtido pela sua análise alquímica mediante a separação do elemento dominante dos outros elementos que estão misturados nela. Segundo Paracelso, na Q. estão os arcanos, que são as forças ativas de um mineral, de uma pedra preciosa, de uma planta; são utilizados pela medicina na feitura de medicamentos (De misteriis naturalibus, I, 4). Neste sentido, emprega-se também o termo para indicar o princípio ativo de uma coisa ou a sua parte mais pura. QUODLIBETA. V. QUAESTIO. I R RAÇA. V. RACISMO. RACIOCÍNIO (gr. Koyia\ióc,; lat. Ratiocina-. tio, in. Reasoning; fr. Raisonnement; ai. Ver-nunftschluss; it. Ragionamentó). Qualquer procedimento de inferência ou prova; portanto, qualquer argumento, conclusão, inferência, indução, dedução, analogia, etc. Stuart Mill dizia: "Inferir uma proposição de uma ou mais proposições precedentes, e crer ou pretender que se creia nela como conclusão de qualquer outra coisa significa raciocinar, no mais amplo sentido do termo" {Logic, II, I, 1). John Stuart Mill excluía do âmbito do R. somente "os casos nos quais a progressão de uma verdade para outra é apenas aparente, porque o conseqüente é mera repetição do antecedente" (Ibid., II, 1, 3); além disso, identificava raciocínio e inferência. Mas essa restrição desapareceu do uso corrente do termo, que hoje compreende também as inferências tautoló-gicas, consideradas próprias da matemática e da lógica (cf. P. F. STRAWSON, Intr. to Logical Tbeory, 1952, p. 12 ss.). Portanto, a ilustração dos significados do termo pode ser achada nos verbetes que constituem a extensão do termo em questão, e especialmente nos seguintes: DEDUÇÃO, INDUÇÃO, PROVA, DEMOSTRAÇÃO, INFERÊNCIA, SILOGISMO, ARGUMENTO, ANALOGIA. Contudo, a classificação fundamental dos R. divide-os em dedutivos e indutivos Essa distinção, já estabelecida por Aristóteles (An. pr., II, 23, 68 b 13), costuma ser utilizada ainda hoje, às vezes com nomes um pouco diferentes. Peirce, p. ex., falava em R. explicativos analíticos ou dedutivos, por um lado, e de R. explicativos, sintéticos, ou indutivos, por outro (Chance, Love and Logic, I, 4, 3; trad. it., p. 67), que são justamente os nomes mais empregados para designar as duas espécies fundamentais do raciocínio. RACIOCÍNIO APAGÓGICO. V. APAGÓGICO. RACIOCÍNIO POR ANALOGIA. V. ANALO GIA. RACIONAL (gr. ÀoytKóç; lat. Rationalis, Rationabilis; in. Rational; fr. Rationnel, Rai-sonnable, ai. Vernünftig; it. Razionale, Ragione-volé). 1. Aquilo que constitui a razão ou diz respeito à razão, em qualquer dos significados deste termo (v.). 2. Quem tem a possibilidade do uso da razão; nesse sentido diz-se que o homem é um animal racional. S. Agostinho afirma que os sábios "chamaram de racionável (rationabilis) quem faz ou pode fazer uso da razão, e de racional (rationalis) aquilo que é feito ou dito pela razão"; portanto, acha que é preciso chamar de racionais os discursos ou os banhos, e de racionáveis aqueles que os praticam (De ordine, XI, 31). Mas essa distinção não é facilmente defensável porque os antigos chamaram também o homem de racional(cf., p. ex., QUINTILIANO, Inst., V, 10, 56). Por outro lado. chamamos hoje de racionável também aquilo que se conforma à razão. 3. Que tem por objeto a razão, sua forma e seus procedimentos. Neste sentido, Sêneca (Ep., 89, 17) e Quintiliano (Inst., XII, 2, 10) chamaram a lógica de "filosofia R.", o que foi imitado por Wolff (Log., 1728) e por outros. RACIONALISMO (in. Rationalism; fr. Ra-tionalisme, ai. Rationalismus; it. Razionalis-mó). Em geral, a atitude de quem confia nos procedimentos da razão para a determinação de crenças ou de técnicas em determinado campo. Esse termo foi usado a partir do séc. XVII para designar tal atitude no campo religioso: "Há uma nova seita difundida entre eles [presbiterianos e independentes], que é a dos racionalistas: o que a razão lhes dita, eles consi- RACIONAUSMO 822 RACISMO deram bom no Estado e na Igreja, até que achem algo melhor" (CLARENDON, State Papers, II, p. XL, na data de 14-X1946). Nesse sentido Baumgarten dizia: "R. é o erro de quem elimina da religião todas as coisas que estão acima da própria razão" (Ethica philosophica, 1765, § 52). Kant foi o primeiro a adotar esse termo como símbolo de sua doutrina, estendendo-o do campo religioso para os outros campos de investigação. Deu o nome de R. à sua filosofia transcendental (no texto de 1804 sobre os "Avanços da Metafísica", Werke, V, 3, p. 101), ao passo que chamava de noologistas ou dogmáticos os filósofos que a historiografia alemã do séc. XIX chamou depois de racionalistas: de um lado Platão e de outro os seguidores de Wolff {Crít. R. Pura, Doutr. do Método, cap. IV). No terreno da moral, defendia "o R. do juízo, que da natureza sensível toma apenas o que a Razão Pura pode pensar por si, ou seja, a conformidade com a lei", opondo-se por isso ao misticismo e ao empirismo da razão prática {Crít. R. Prática, I, cap. II, Da tipologia do juízo puro prático). No campo estético, falava analogamente de um "R. do princípio do gosto" {Crít. dojuízo, § 58). Finalmente, caracterizava como R. seu ponto de vista em matéria religiosa: "O racionalista, em virtude desse mesmo título, deve manter-se nos limites da capacidade humana. Portanto, nunca usará o tom contundente do naturalista nem contestará a possibilidade nem a necessidade de uma revelação. (...) Porquanto sobre tais assuntos nenhum homem pode decidir o que quer que seja pela razão" (Religion, IV, seç. I; trad. it., Durante, p. 169). Por outro lado, Hegel foi o primeiro a caracterizar como R. a corrente que vai de Descartes a Spinoza e Leibniz, opondo-o ao empirismo de origem lockiana. Por R. ele entendeu a "metafísica do intelecto", que é a "tendência à substância, em virtude da qual se afirma, contra o dualismo, uma única unidade, um único pensamento, da mesma maneira como os antigos afirmavam o ser" {Geschichte der Philosophie, ed. Glockner, III, pp. 329 ss.; trad. it., III, 2, pp. 68 ss.). A contraposição entre racionalismo é empirismo fixou-se depois nos esquemas tradicionais da história da filosofia, por mais que o próprio Hegel notasse seu caráter aproximati-vo. Quanto ao "R. religioso", Hegel afirmava que ele é "o oposto da filosofia" porque coloca "o vazio no lugar do céu" e porque sua forma é um raciocinar sem liberdade, e não um entender conceitualmente" (Jbid., I, p. 113; trad. it., I, p. 95). Com base nessas observações históricas, pode-se dizer que o termo em foco compreende os seguintes significados: le O R. religioso designa algumas correntes protestantes, ou um ponto de vista semelhante ao de Kant. 2a O R. filosófico designa propriamente a doutrina de Kant (que adotou esse termo), ou então a corrente metafísica da filosofia moderna, de Descartes a Kant. 3a Em sua significação genérica, pode ser usado para indicar qualquer orientação filosófica que recorra à razão. Mas, nessa acepção tão vasta, esse termo pode indicar as filosofias mais díspares e carece de qualquer capacidade de individualização. RACIONALIZAÇÃO (in. Rationalization; fr. Rationalisation; ai. Rationalisíerung, it. Ra-zionalizzazioné). 1. Esse foi o nome às vezes dado ao processo de constituição das ciências da natureza em disciplinas teóricas, com adoção dos procedimentos da matemática; supunha-se que esse processo se realizaria perfeitamente na mecânica racional (cf. HUSSERL, Ideen, I, § 9). O ideal da R. foi atualmente substituído pelo da axiomatização (v. AXIOMÂTICA). 2. Termo freqüentemente empregado por psicólogos e sociólogos para indicar a tendência a procurar argumentos e justificações para crenças cuja força não está nesses processos racionais, mas em emoções, interesses, instintos, preconceitos, hábitos, etc. RACISMO (in. Racialism; fr. Racisme, ai. Rassismus-, it. Razzismó). Doutrina segundo a qual todas as manifestações histórico-sociais do homem e os seus valores (ou desvalores) dependem da raça; também segundo essa doutrina existe uma raça superior ("ariana" ou "nórdica") que se destina a dirigir o gênero humano. O fundador dessa doutrina foi o francês Gobineau, em seu Essai sur 1'inégalité des races humaines (1853-55), que visava a defender a aristocracia contra a democracia. No início do séc. XX, um inglês naturalizado alemão, Hous-ton Stewart Chamberlain, difundiu o mito do arianismo na Alemanha {Die Grundlagen des XIX Jahrhunderts, 1899), identificando a raça superior com a alemã. Como o anti-semitismo era antigo na Alemanha, a doutrina do determinismo racial e da raça superior encontrou fácil difusão, traduzindo-se no apoio dado ao preconceito contra os judeus e à crença de que existe uma conspiração judaica para do- RACISMO 823 RADICALISMO minar o mundo; assim, o capitalismo, o marxismo e, em geral, as manifestações culturais e políticas que enfraquecem a ordem nacional são fenômenos judaicos. Depois da Primeira Guerra Mundial, os alemães viram no R. um mito consolador, uma fuga da depressão da derrota; Hitler transformou-o no carro-chefe de sua política, e a doutrina foi elaborada por Alfred Rosenberg, em Mito do século XX (1930). Rosenberg afirma um rigoroso determinismo racial: qualquer manifestação cultural de um povo depende de sua raça. A ciência, a moral, a religião e os valores que a cultura descobre e defende dependem da raça e são expressões da força vital da raça. Portanto, a verdade é verdade apenas para determinada raça. A raça superior é a ariana que, provindo do Norte, difundiu-se na Antigüidade para o Egito, a índia, a Pérsia, a Grécia e Roma, dando origem às civilizações antigas, que decaíram porque os arianos se misturaram com raças inferiores. Todas as ciências, artes e instituições fundamentais da vida humana foram criadas por essa raça. Em oposição a ela, está a anti-raça parasitária judaica, que criou os venenos da raça, que são a democracia, o marxismo, o capitalismo, o inte-lectualismo artístico e até mesmo os ideais de amor, humildade e igualdade difundidos pelo cristianismo, que representa uma corrupção ro-mano-judaica dos ensinamentos do ariano Jesus. Em seu conjunto, essa doutrina foi apresentada explicitamente pelo nazismo como um mito, criado, difundido e mantido pela força vital da raça. Isso não significa que não se procurou racionalizá-la, atribuindo base científica ao conceito de raça, que era seu fundamento. Na realidade, porém, o próprio uso que o R. faz da noção de raça revela, do ponto de vista científico e filosófico, a inconsistência da doutrina. Hoje, o conceito de raça é considerado unanimemente pelos antropólogos como um recurso útil à classificação e capaz de fornecer o esquema zoológico no qual podem ser situados os vários grupos do gênero humano. Essa palavra, portanto, deve ser reservada exclusivamente aos grupos humanos dotados de características físicas diferentes, que podem ser transmitidas por hereditariedade. Tais características são principalmente: a cor da pele, a altura, a conformação da cabeça e do rosto, a cor e a qualidade dos cabelos, a cor e a forma dos olhos, o formato do nariz e a compleição física. Convencionou-se distinguir três grandes raças, que são a branca, a amarela e a negra, ou seja, a caucasiana, a mongólica e a negróide. Portanto, os grupos nacionais, religiosos, geográficos, lingüísticos e culturais não podem ser chamados de "raças" por nenhum motivo; não constituem raças os italianos, os alemães, os ingleses, assim como não constituíram os latinos ou os gregos, etc. Não existe nenhuma raça "ariana" ou "nórdica", assim como não há qualquer prova de que a raça ou as diferenças raciais exerçam algum tipo de influência nas manifestações culturais ou nas possibilidades de desenvolvimento da cultura em geral. Tampouco existem provas de que os grupos em que pode ser dividido o gênero humano diferem em sua capacidade inata de desenvolvimento intelectual ou emocional. Ao contrário, os estudos históricos e sociológicos tendem a fortalecer a idéia de que as diferenças genéticas são fatores insignificantes na determinação de diferenças sociais e culturais entre grupos humanos diferentes. Foram inúmeras as transformações sociais ocorridas sem relação com mudanças raciais. Tampouco está provado que as misturas raciais produzam resultados biológicos prejudiciais. É muito provável que não haja "raça pura" e que nunca tenha havido, até onde se possa averiguar no passado. Os resultados sociais das misturas raciais, sejam eles bons ou maus, podem ser atribuídos a fatores sociais. Em 1951, junto à UNESCO, em Paris, uma comissão composta por cinco geneticistas e seis antropólogos, de países diferentes, elaborou uma declaração sobre as raças, que consiste na exposição dos princípios acima mencionados (sobre eles, cf. RUTH BENEDICT, Race, Science and Politics, 1940; e RALPH LINTON, The Science ofMan in the World Crisis, 7âed., 1952). Na realidade, esteja onde estiver e seja qual for a sua justificativa, o R. é da alçada da psiquiatria, que Veblen chamava de aplicada, ou seja, à arte de explorar para fins pessoais um preconceito preexistente. Trata-se neste caso de um preconceito extremamente pernicioso porque contradiz e impede o encaminhamento moral da humanidade para a integração universalista e porque transforma os valores humanos (a começar pela verdade) em fatos arbitrários que, por expressarem a força vital da raça, não têm substância própria e podem ser livremente manipulados com fins violentos ou abjetos. RADICALISMO (in. Radicalism; fr. Radica-lisme, ai. Radikalismus; it. Radicalismo). 1. Positivismo social que se desenvolveu na Inglater- RAIZ 824 RAZÃO ra entre o fim do séc. XVIII e a primeira metade do séc. XIX; seus expoentes foram Jeremias Bentham (1748-1832), James Mill (1773-1836) e John Stuart Mill (1806-1873). Esta corrente valeu-se do positivismo filosófico, do utilitarismo moral e das doutrinas econômicas de Malthus e Ricardo para defender reformas "radicais" na organização do Estado e no sistema de distribuição das riquezas (v. LIBERALISMO). 2. Mais genericamente, esse termo é hoje usado para designar qualquer tendência filosófica ou política que proponha a renovação radical dos sistemas vigentes, representada pela transformação dos princípios nos quais se apoiem os sistemas de crenças ou as instituições tradicionais. RAIZ (gr. píÇcoLUX; in. Root; fr. Racine, al. Wurzel, it. Radicé). Termo com que, na linguagem filosófica, se designa freqüentemente um princípio primeiro ou um elemento último. Empédodes chamou de R. os quatro elementos (água, ar, terra e fogo) que compõem as coisas (Fr. 6, Diels); a partir daí, os filósofos utilizaram freqüentemente esse termo para indicar elementos ou princípios. Schopenhauer, p. ex., deu a uma de suas dissertações o título de Sobre a raiz quádrupla do princípio de razão suficiente (1813), razão por que o adjetivo radical passou a indicar o que diz respeito a um princípio ou constitui um princípio. Kant deu o nome de "mal radical" à tendência do homem para o mal, inerente à sua estrutura moral (cf. Religion, cap. I). Hoje, chama-se de radical a análise que remonte aos princípios ou às primeiras origens. Husserl, p. ex., insistia na radicalidade da filosofia como ciência dos verdadeiros princípios e das primeiras origens: "A ciência do que é radical deve ser radical também em seu método e sob todos os aspectos" (Phil. alsstrenge Wissenschaft, 1911; trad. it., p. 83). RAMIFICADA, TEORIA DOS TIPOS. V. ANTINOMIA. RAZÃO (gr. AÓ"yoç; lat. Ratio, in. Reason; fr. Raison; al. Vernunft; it. Ragioné). Esse termo tem os seguintes significados fundamentais: l9 Referencial de orientação do homem em todos os campos em que seja possível a indagação ou a investigação. Nesse sentido, dizemos que a R. é uma "faculdade" própria do homem, que o distingue dos animais. 2° Fundamento ou R. de ser. Visto que a R. de ser de uma coisa é sua essência necessária ou substância expressa na definição, assume-se às vezes por "R." a própria substância ou a sua definição. Este é um significado freqüente na filosofia aristotélica ou nas correntes nela inspiradas. Quanto a isso, v. ESSÊNCIA; FUNDAMENTO; FORMA; SUBSTÂNCIA. 3S Argumento ou prova. Nesse sentido dizemos: "Ele expôs suas R." ou "É preciso ouvir as R. do adversário". A esse significado refere-se também a expressão "Ter R.", que significa ter argumentos ou provas suficientes, portanto, estar com a verdade. Quanto a esse significado V. ARGUMENTO; PROVA. 4S Relação, no sentido matemático. Nesse sentido fala-se também em "R. direta" ou "R. inversa" (em inglês o termo empregado nesse caso é ratió). Quanto a esse significado, v. RELAÇÃO. No significado de referencial da conduta humana no mundo, a R. pode ser entendida em dois significados subordinados: A) como faculdade orientadora geral; E) como procedimento específico de conhecimento. A) Este é o sentido fundamental, do qual a palavra extraiu a potência de significado que a transformou, há séculos, no emblema da livre investigação. A R. é a força que liberta dos preconceitos, do mito, das opiniões enraizadas mas falsas e das aparências, permitindo estabelecer um critério universal ou comum para a conduta do homem em todos os campos. Por outro lado, como orientador tipicamente humano, a R. é a força que possibilita a libertação dos apetites que o homem tem em comum com os animais, submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida. Esta é a dupla função atribuída à R. desde os primórdios da filosofia ocidental. A polêmica de Heráclito e Parmênides contra as opiniões da maioria, ou seja, contra as crenças discordantes e ilusórias aceitas pela maioria, foi assestada em nome da R., que deve ser o único critério orientador de todos os homens. Heráclito diz: "É preciso seguir o que é universal, comum a todos; e só a R. é universal. No entanto, a maioria vive como se cada um tivesse uma mente particular" (Fr. 2, Diels). E Parmênides: "Afasta o pensamento dessa via de investigação e não permitas que te levem para ela o costume de guiar-se por um olho que não vê, por um ouvido que ressoa, pela palavra: em lugar disso, julga com a R." (Fr. 1, 33-37, Diels). Platão e Aristóteles, por outro lado, opõem a R. à sensibilidade, que é fonte das crenças comuns (PLATÃO, Fedro, 83a; ARISTÓTELES, Met., 1,1, 980 b 26), e aos apetites que o homem tem em comum com os animais RAZÃO 825 RAZÃO V3. "A (PLATÃO, Tim., 70a; ARISTÓTELES, Et. nic, I, 13, 1102 b, 15). Em ambos os casos, R. tem, ao mesmo tempo, função negativa e positiva: negativa em relação às crenças infundadas e aos apetites animais; positiva no sentido de dirigir as atividades humanas de maneira uniforrnej tante. Mas foi principalmente com o^£stóic( que prevaleceu a doutrina da R. como único guia dos homens. Para eles, havia uma espécie de divisão simétrica entre os animais e os homens: os animais são guiados pelo instinto, que os leva a conservar-se e a procurar o que (J ^^ ^ vantaJoso; aos homens foi dado o guia mais *< ^(ü perfeito, que é a R.; desse modo, para eles, vi- < «í ^ » * \ j ^ver segundo a natureza significa viver segundo \ >a R. (DióG. L., VII, 1, 15-86). Esses conceitos |! ^constituíram um dos eixos da cultura clássica. Cícero dizia: "A R., única diferença que nos distingue do bruto, por meio da qual podemos conjecturar, argumentar, rebater, discutir, levar a termo e concluir, certamente é comum a todos; diferente em termos de preparação, mas igual quanto a ser faculdade de aprender" (De leg., I, 10, 30). Sêneca exaltava a R. por sua imutabilidade e universalidade.-. "A R. é imutável e firme no seu juízo porque não é escrava, mas senhora, dos sentidos. A R. é igual à R. assim como o justo ao justo; portanto também a virtude é igual à virtude porque a virtude outra coisa não é senão a reta R." (Ep., 66). Deste ponto de vista também a metafísica estóica da R., para a qual ela é — como diz o próprio Sêneca (Ibid) — "uma parte do espírito divino infundida no corpo do homem", não nega sua autonomia, mas, ao contrário, exalta-a e confirma-a. Certamente foi nesses conceitos que S. Agostinho se inspirou ao fazer o elogio da R., que constitui os últimos capítulos de De ordine. "A R. é o movimento da mente que pode distinguir e correlacionar tudo o que se aprende" (De ord., II, 11, 30). É a força criadora do mundo humano: inventou a linguagem, a escrita, o cálculo, as artes, as ciências; é o que de imortal existe no homem (Ibid., II, 19, 50). O entusiasmo de S. Agostinho pela razão se explica facilmente: para ele, a vida é busca, e a R. é o princípio que institui e dirige a busca, tornando-a fecunda. No entanto, o neoplatonismo já subordinara a R. ao intelecto, considerando-o superior à razão porque dotado do caráter intuitivo ou imediato que o transforma na visão direta da verdade. Segundo Plotino, a R. emana do intelecto, "que está presente em todas as coisas que são" (Enn., III, 2, 2). Em outros termos, ela é a função formadora e plasmadora do intelecto; para dispor todas as coisas do mundo (boas e más) em sua ordem apropriada, ela deve adaptar-se à matéria (Ibid., III, 2, 11-12). Nesse sentido, a R. é a técnica da criação e do governo do mundo, pois graças a ela os seres criados não se destroem entre si, mas concordam e combinam-se da melhor maneira. Piojtiria,diz: "Graças à R., cada ser age ou sofre ações segundo necessidades, e não ao acaso e desordenadamente" (Ibid., II, 3, 16). Esse conceito de superioridade do intelecto foi herdado pela escolástica medieval. R. e intelecto são identificados no significado geral de princípio orientador (cf., p. ex., S. TOMÁS DE AQUINO, S. Th., I, q. 29, a. 3, ad. 4Q; q. 79, a. 8). Mas em seguida a razão é subordinada ao intelecto por seu caráter discursivo, que parece inferior ao caráter intuitivo daquele (v. adiante). Mais tarde, o próprio Bacon considerava a R. como uma atividade especial do intelecto (ao lado da memória e da fantasia), mais precisamente a função cuja tarefa é dividir e compor as noções abstratas "segundo a lei da natureza e a evidência das próprias coisas" (De augm. scient., II, 1). Assim, é só com Descartes que a R. volta a ser o guia fundamental do homem. Identificando razão e bom senso, Descartes restabelece o conceito clássico de R., e com base nele formula o problema novo do méto-dgJ"A capacidade de bem julgar e de distinguii o verdadeiro do falso, que recebe o nome de senso ou R., é por natureza igual em todos os homens; portanto, a disparidade de nossas opi niões não provém do fato de que umas são mais racionais que as outras, mas apenas de conduzirmos nossos pensamentos por cami nhos diferentes, sem levar as coisas em con sideração. Não basta ter o espírito são; o prinj ipal é aplicá-lo bem'T(I)iscours. 1). Estas palavras famosas rejntroduziram no_ mundo moderno o conceito antigo (e especialmente _estóicoJ_de R. como guia de todo o gênero humano. Assim, S_pjnoza surpreendia-se ao ver que às vezes queriam "submeter a R., máximo dom de Deus e luz realmente divina, às palavras", não se considerando crime "falar indig-namente desse verdadeiro testemunho do Verbo de Deus, que é a R., declarando-a corrupta, cega e impura" (Tract. theologico-politicus, cap. 15). Leibniz, por sua vez, insistia na velha tese de que a R! pertence ao homem e somente ao homem (Nouv. ess., IV, 17, 2), e Locke atri- V >'* r A \%> v í. V Si te Cx o S RAZÃO T RAZÃO buía à R. uma determinação fundamental, que^1* a filosofia só concede àqueles que advertiram constitui a única inovação autêntica do concei- <5-, ^ a exigência interior de compreender" CF//. Í/O to moderno em relação ao clássico: "a R. é <SL vtf <//r., Pref.; trad. it. Messineo, p. 17). Isso signiinstrumento do conhecimento provável, e nãov \|fica que a razão não guia, mas chega postfacíum apenas do conhecimento estabelecido". Locke,^$la compreender a realidade, a justificá-la £*—- _—- dizia: "Assim como a razão percebe a correia ção necessária e indubitável entre as idéias ou provas, em cada grau de qualquer demonstração que produza conhecimento, de maneira análoga também percebe a correlação provável entre as idéias ou provas em qualquer grau de uma demonstração à qual julgue ser devido o assentimento" {Ensaio, IV, 17, 2). Com essa determinação, a R. era qualificada segundo a função que lhe era atribuída pelo iluminismo sete-centista: princípio de crítica radical da tradição e de renovação igualmente radical do homem. Kant tentava realizar plenamente o ideal ilu-minista da R. Por um lado, identificava-a com a própria liberdade de crítica ("Sobre a liberdade de crítica repousa a existência da R., que não tem autoridade ditatorial, mas cuja sentença nunca deixa de ser o acordo dos cidadãos livres, cada um dos quais deve poder formular sem obstáculos as suas dúvidas e até seu veto") e por outro pretendia levar a R. diante de seu tribunal e instaura a "crítica da R. pura", que "não se imiscui nas controvérsias imediatamente referentes aos objetos, mas é instituída para determinar e julgar os direitos da R. em geral" {Crít. R. Pura, Teoria transcendental do método, cap. I, seç. II). Está de acordo com o conceito iluminista de R. a definição de Whitehead: "a função da razão é promover a arte da vida", no sentido de que a R. teria a tarefa de agir sobre o ambiente para promover formas de vida mais satisfatórias e perfeitas {TheFunction ofReason, 1929, cap. I; trad. it. Cafaro, pp. 6 ss.). Enquanto isso, aquilo que à primeira vista parece ser a maior garantia da eficácia da R. — crer que ela habita a realidade e a domina, de tal modo que não há realidade não racional, nem racionalidade não real — na verdade constitui o abandono da função diretiva da R. Hegel, que afirmou com mais rigor esse ponto de vista, também negou a função diretiva da R.: "O que está entre a R. como espírito autocons-ciente e a R. como realidade presente, o que diferencia aquela desta e não permite que se encontre satisfação nesta, é o estorvo de alguma abstração que se não libertou e não se transformou em conceito. Reconhecer a R. no presente e, assim, fruí-lo é o reconhecimento racional que reconcilia com a realidade, o que É) Oreconhecimento da R. como guia cõns" tante, uniforme e (às vezes) infalível de todos os homens, em todos os campos da atividade destes, é acompanhado na maioria das vezes pela determinação de um procedimento espet cífico no qual se reconhece a atuação própria da razão. As determinações já concebidas sobre a técnica específica da R. podem ser resumidas nos seguintes conceitos fundamentais: d) disoirso; b) autoconsciência; c) auto-revelação; d) tautologia. NíraRÍcà a) O procedimento ((liscursivo^é a técnica mais freqüentemente consicTerãcla própria da razão. A ele PJatão recorre para marcar a diferença entre a opinião verdadeira e a ciência: as opiniões podem dirigir a ação tão bem quanto a ciência, mas tendem a fugir para todos os lados, como as estátuas de Dédalo, enquanto não "são amarradas por um raciocínio causai" {Men., 98 a). Esse atamento ou essa conexão é a técnica discursiva. Técnica discursiva é todo o procedimento silogístico de Aristóteles, à parte a determinação dos princípios, que são intuídos pelo intelecto; discursivas são a silogística necessitante e a dialética {An. post., I, 33, 89 b 7; Et. nic, VI, 11, 1143 b 1). No mesmo sentido, os estóicos definiam a R. como "um sistema de premissas e conclusões" (DIÓG. L., VII, 1, 45). A função freqüentemente atribuída à razão 'Tdístin^r,ronjejaHonar .rnmparar e>tr [v. OS trechos de Cícero e"S. AgostirthtrcTtados em A]) não passa de expressão do mesmo procedimento. S. Tomás de Aquino dizia: "Os homens chegam a conhecer a verdade inteligível procedendo de uma coisa à outra; por isso são chamados de racionais. É evidente que raciocinar está para entender assim como mover-se está para ficar parado, ou adquirir para ter: destas coisas, a primeira é própria do imperfeito; a segunda, do perfeito" {S. Th., I, q. 79, a. 8). No começo da Idade Moderna Descartes moldava-se no mesmo procedimento para determinar suas regras do método: "Os longos encadea-mentos de razões, todas simples e fáceis, de que os geômetras costumam lançar mão para chegar às suas demonstrações mais difíceis, deram-me a oportunidade de imaginar que todas as coisas que podem chegar ao conhecimento dos homens correlacionam-se da si , > -5JÍÍ Ú u £« li VI fètt RAZÃO mesma maneira" (Discours, II). A Lógica de Port-Royal expressava de maneira diferente os mesmos conceitos (ARNAULD, Log., III, 1) em que também Locke baseava sua doutrina da razão: "Na R. podemos considerar estes quatro graus: o primeiro e mais elevado consiste em achar e descobrir as/verdades; o segundo, em dispô-las de maneira regular e metódica, siste-matizando-as numa ordem clara e justa, de tal modo que sejam percebidas com evidência e facilidade sua força e suas interconexões; o terceiro, em perceber tais conexões; o quarto, em tirar uma justa conclusão" (.Ensaio, IV, 17, 3). A distinção que Spinoza estabelecia entre o segundo gênero de conhecimento, que ele chamava de R., e o terceiro, que chamava de ciência intuitiva, é a distinção tradicional entre o procedimento discursivo e o intelecto intuitivo (Et., II, 40, schol. 2). E Leibniz só fazia encontrar a expressão mais simples para o mesmo conceito de R. ao afirmar que a R. é "a concate-nação das verdades" (Op., ed. Erdmann, p. 479, 393). Wolff dava o nome de "juízo discursivo" à operação da R., na medida em que consiste na correlação das proposições (Log., §§ 50-51). O conceito de R. como discurso entra em crise com Kant, que, ao mesmo tempo em que atribui caráter discursivo a toda a atividade cognoscitiva humana, considerando que apenas Deus possui o conhecimento intuitivo (v. DISCURSIVO), distingue nitidamente a R. do intelecto, apesar do caráter discursivo comum aos dois. A R. é a faculdade^'que produz os_concei-_ tos por si"; portanto, pode ser chamadadej^rculáade dos princípios. Mas os conceitos que a R. produz não têm base na experiência; por isso, são simplesmente fictícios. "Se o intelecto pode ser uma faculdade da unificação dos fenômenos por meio de regras, a R. é a faculdade de unificar as regras do intelecto por meio de princípios. Por isso, ela nunca visa imediatamente à experiência ou a um objeto qualquer, mas ao intelecto, para, por meio de conceitos, imprimir aos múltiplos conhecimentos deste uma unidade apriori; essa unidade, que pode ser chamada de racional, é de espécie totalmente diferente da outra que pode ser produzida pelo intelecto" (Crít. R. Pura, Dialética transcendental, Intr. II, a). Assim como o intelecto, a R. procede discursivamente, mas considera que os procedimentos discursivos do intelecto se realizem em idéias de totalidade e unidade (alma, mundo, Deus), que são perfeitas, umas não podem ser confrontadas com a i^ i - • experiência, portanto puramente fictícias e apenas fonte de raciocínios dialéticos, ou seja, sofísticos (v. IDÉIA; ANTINOMIAS). O resultado dessa distinção kantiana é que só é válido o procedimento do intelecto cujos conceitos derivam imediatamente da experiência, e que o procedimento discursivo racional, com suas pretensões totalitárias, só dá origem a noções fictícias. Portanto, depois de Kant fica difícil manter a definição da razão como técnica discursiva. ~> *<-- A* Ç_ %<-•-■ -7/.-V> K* O conceito da R. como discurso permite a, ■ consideração formal do procedimento racional: possibilita uma lógica, que é na realidade a lógica tradicional na forma elaborada pelos filósofos desde Aristóteles até o fim do séc. XIX. Entendida neste sentido, a lógica é ao mesmo tempo descritiva e normativa: descritiva em relação aos procedimentos próprios da R., normativa no sentido de que essa mesma descrição vale como regra para o uso correto da razão. Nesse sentido, a lógica tradicional era definida com exatidão como "arte de raciocinar". ____------------------—-— U) O conceito da R. como(^toconsciêncía) '£, remonta a Fichte. Caracteriza-se pela identifi- -f cação entre 1 R. e realiHade^ejrrf-sgnpõé o ron- ■; ceito d£R. como discursa Como discurso, a R. ^ eãecrüçap; como dedução, tem um único princí;; pio, que é o Eu. Do Eu deriva, com necessi"^ dade infalível, todo o sistema do saber, que é -í ao mesmo tempo o sistema da realidade. "Fonte de toda a realidade é o Eu. Somente com o Eu e pelo Eu é dado o conceito de realidade. Mas o Eu é porque se põe e põe-se porque é. Portanto, pôr-se e ser são uma só e mesma coisa" (Wissenschaftslehre, 1794, § 4, C; trad. it., p. 92). As equações em qjLie essa doutrinasse^ baseia são as seguintes£R. = saber dedutivo;; ( sábêr"Sêdutivo = realidade^ realidade + saber = autoconsciênçia. Schelling expressava essas Tnesmas equações ao afirmar: "A natureza alcança seu fim mais elevado, que é tornar-se inteiramente objeto de si mesma, com a última e mais elevada reflexão, que nada mais é que o homem ou, de modo mais geral, aquilo que chamamos de razão. Temos assim, pela primeira vez, o retorno completo da natureza a si mesma, estando evidente que a natureza é originariamente idêntica àquilo que em nós se revela como princípio inteligente e consciente (System des transzendentalen Idealis-mus, 1800, Intr., § 1; trad. it., p. 9). E Hegel expressava o mesmo conceito da seguinte RAZÃO 828 RAZÃO maneira: "A autoconsciência, ou seja, a certeza de que suas determinações são tão objetivas —determinação da essência das coisas—quanto seus próprios pensamentos, é a R.; esta, por ser tal identidade, é não só a substância absoluta, mas também a verdade como saber" (Ene, § 439). Em outras palavras, para Hegel a R. é a identidade da autoconsciência como pensamento com suas manifestações ou determinações, que são as coisas ou os acontecimentos; é a identidade de pensamento e realidade. De forma epigráfica, esse conceito era expresso por Hegel da seguinte maneira: "a R. é a certeza da consciência de ser realidade: assim o idealismo expressa o conceito de R." (Phãnomen. des Geistes, I, V, I; trad. it., p. 209). É óbvio que, desse ponto de vista, a R. não é discursiva no sentido de concatenar expressões lingüísticas e inferir uma da outra por meio de regras determinadas ou determináveis, mas é a inferência (pretendida) das determinações do pensamento e da realidade, umas das outras, num processo único cuja perfeita "necessidade" é afirmada. Este ponto de vista impossibilita a consideração formal das técnicas racionais, que está ligada à concepção d) de R. Como autoconsciência, a R. nunca é formal: é sempre idêntica à realidade. Hegel diz: "O intelecto determina e firma as determinações. A R. é negativa e dialética porque em nada resolve as determinações do intelecto. Ela é positiva porque gera o universal e nele compreende o particular" (Wissenschaft der Logik, Pref. da Ia ed.; trad. it., p. 5). Por "compreender o particular" entende-se que compreende as coisas ou as determinações reais, que, em última análise, nada mais são que suas manifestações particulares. A negação da lógica formal é parte integrante desse ponto de vista; por isso, retorna sempre que ele aparece. Basta lembrar que Croce rejeitava a lógica formal baseada no mesmo pressuposto hegeliano de identidade entre R. e realidade, expresso na forma de identidade entre filosofia e história: "A riqueza da realidade, dos fatos, da experiência, de que pareceria carecer o conceito puro, portanto a filosofia, em virtude da declarada distância em relação às ciências empíricas, é-l lhe devolvida e reconhecida; e não mais na forma diminuta e imprópria do empirismo, mas sim de modo total e integral. Isso se realiza pela conjunção, que é unidade, de filosofia e história" .ilógica, 1920o p. 392). c) O conceito de R. como auto-revêlãçãõ õíT evidência foi estabelecido por Husserl. Para ele, a R. é o manifestar-se fenomenológico dos objetos (que podem ser coisas ou essências), seja esse manifestar-se dotado de caráter necessário ou apodítico, seja de caráter assertório. Husserl diz: "A visão por assim dizer assertória de uma individualidade, como p. ex. o perceber uma coisa ou uma facilidade individual, distingue-se em seu caráter racional da visão apodítica da compreensão de uma essência ou de uma relação de essências" (Ideen, I, § 137). O termo mais abrangente, o conceito que com-preede tanto a visão assertória, que é dada de fato, mas pode ser diferente, quanto a visão apodítica, que é necessária, é a consciência racional, que Husserl chama também, em geral, de evidência (Ibid., 137). Desse ponto de vista, o caráter fundamental da racionalidade é a validade do posicionamento: se o objeto é verdadeiramente posto, o ato é válido, e a posição tem caráter racional (Ibid., § 139). Mas aquilo que do ponto de vista do ato noético é a posição do objeto, do ponto de vista objetivo é a evidenciaçâo do objeto, seu dar-se ou seu revelar-se (Ibid., § 139). E como, em qualquer esfera do ser, o modo de auto-revelar-se dos objetos é diferente, todo tipo de realidade traz consigo "uma nova doutrina concreta da R." (Ibid., § 152). Esse conceito de R. como autorevelação ou auto-evidência é aceito integralmente por Heidegger: "Apenas porque a função do logos é fazer ver algo, fazer perceber o ente, logos pode significar R." (Sein undZeit, § 7, B). Esse mesmo conceito é apresentado de forma mais mítica por Jaspers: "A R. não é de fato uma verdadeira nascente originária, mas, por ser conexão de tudo, é semelhante a uma nascente originária na qual vêm à luz todas as nascentes" (Vernunft undExistenz, 1935, II, 5; trad. it., p. 50). A direção para a qual a R. se move é a infinita clareza, e aquilo que nela tenta aclarar-se é a existência: "a existência alcança a clareza somente por meio da R.: a R. só tem conteúdo em virtude da existência" (Ibid., II, 6; p. 53). E óbvio que, mesmo deste ponto de vista, é impossível a consideração formal do procedimento racional. A R. nunca é formal porque é sempre preenchida pelo conteúdo que nela se manifesta evidente ou se esclarece. d) O conceito de R. como tautologia tem origem em Hume, que foi o primeiro a fazer a distinção nítida entre "relações de idéias" e "coisas de fato". "À primeira classe pertencem ciências como a geometria, a álgebra e a aritmética; em suma, toda proposição intuitiva ou RAZÃO 829 RAZÃO demonstrativamente certa [no sentido lockia-no]. (...) As proposições dessa classe podem ser descobertas com uma pura operação do pensamento, e não dependem de coisas que existem em algum lugar do universo" (Inq. Cone. Underst., IV, 1). Na verdade, Hume não afirmou explicitamente o caráter tautológico ou (para usar um termo kantiano) analítico das proposições que expressam simples relações das idéias entre si, mas de algum modo o pressupôs quando insistiu no fato de que as proposições que expressam coisas de fato não são logicamente deriváveis uma da outra. Todavia, para formar a concepção de R. em foco interveio também outro componente conceptual, exposto pela primeira vez por Hobbes: a redução da R. a cálculo das proposições verbais. Hobbes disse: "A R. nada mais é que o cálculo — a adição e a subtração — das conseqüências dos nomes gerais usados para caracterizar e significar nossos pensamentos: para caracterizá-los quando calculamos para nós mesmos, para significá-los quando demonstramos ou comprovamos nossos cálculos para os outros homens" (Leviath., I, 5). Esta idéia de Hobbes concretizou-se apenas a partir de meados do séc. XIX, com a fundação da lógica matemática por parte de G. Boole (Laws ofThought, 1854), que foi o primeiro a mostrar a impossibilidade de reduzir o raciocínio matemático às formas de raciocínio descritas por Aristóteles, dando início a uma lógica estreitamente ligada aos métodos de cálculo. O sucesso ulterior dessa lógica, principalmente graças a Frege e a Russell (v. LÓGICA), constitui um antecedente histórico indispensável do conceito de R. em exame. Que tal procedimento tivesse caráter tão lógico só ficou claro mais tarde, no Círculo de Viena, com a obra de Wittgenstein (1922). O fundamento dessa obra é a redução da R. à linguagem. Wittgenstein afirmava que "as proposições da lógica são tautologias" ( Tractatus, 6.1), que "nada dizem (são as proposições analíticas)" {Ibid., 6.11), e que "são sempre falsas as teorias que mostram uma proposição da lógica provida de conteúdo" (Ibid., 6.111). E acrescentava: "A característica especial das proposições lógicas é que, só pelo símbolo, pode-se reconhecer que são verdadeiras, e este fato encerra em si toda a filosofia da lógica. Analogamente, um dos fatos mais importantes é que a verdade ou falsidade das proposições não lógicas não pode ser reconhecida somente a partir da proposição" (Tractatus, 6.113). Assim, o procedimento racional julgado característico das disciplinas às quais Hume atribuía por objeto apenas as relações de idéias (lógica e matemática) foi reduzido à tautologia. Wittgenstein diz que as proposições da lógica, assim como as da matemática (Ibid., 6.21), nada dizem. No entanto, isso não quer dizer que são inúteis, pois revelam a identidade de significado existente sob formas proposicionais diferentes e podem, portanto, ser usadas para a transformação de uma proposição numa outra que tenha o mesmo significado, mas forma diferente. Contudo, nenhuma das proposições da lógica e da matemática fornece qualquer informação acerca do mundo. A redução da R. a procedimento tautológico tem, pois, os seguintes resultados: 1 Q são racionais, no sentido próprio do termo, somente os procedimentos formais da lógica e da matemática (como parte ou todo da lógica); portanto, racionalidade e logicidade coincidem; 2Q racionalidade e logicidade nada têm a ver com realidade. Portanto, esse conceito da R. constitui a inversão simétrica do conceito tí), que, ao contrário, identificou racionalidade e realidade, e opôs ambas as concepções à formalidade lógica pura, declarada sem valor (cf. sobre a concepção em exame, R. VON MISES, Kleines Lehrbuch des Positivismus, 1939, § 10; trad. it., pp. 164 ss.; J. R. WEINBERG, An Examination of Logical Positivism, 1950), cap. II; trad. it., pp. 86 ss.). As quatro alternativas típicas que a teoria da R. seguiu até hoje são claramente insuficientes em face da tarefa que se atribui à R. de guiar o homem em todos os campos. A primeira delas esgotou-se historicamente, e o abandono da lógica em que era expressa é um sinal desse esgotamento. As alternativas (b) e (c) impossibilitam a determinação de procedimentos rigorosos; a (b) põe em risco a própria função diretiva da razão. A alternativa (d) possibilita o desenvolvimento de uma disciplina autônoma, que é a moderna lógica matemática, mas é restrita demais para expressar as tarefas da R. em todos os campos. É certamente possível empregar em todos os campos as técnicas lógico-matemáti-cas construídas com base na noção de R. como tautologia, mas nem todos os procedimentos que podem ser definidos como racionais podem ser reduzidos a tais técnicas. Em geral, comportamento racional é o que permite dominar uma situação, enfrentar suas mudanças e corrigir os eventuais erros do próprio procedimento. Portanto, a racionalidade de um proce- RAZÃO DE ESTADO 830 REAIS CIÊNCIAS dimento só pode ser determinada em relação à situação específica que ele permite enfrentar. E a consideração da R. remete desde logo (como queria Husserl) à consideração das esferas ou dos campos específicos, unicamente em relação aos quais se pode decidir sobre a racionalidade de um procedimento. Deste último ponto de vista, a teoria da R. hoje não pode ser dada por uma metafísica da R., mas por investigações metodológicas e críticas que, do exame de procedimentos autônomos de que o homem dispõe em cada campo de pesquisa, remontem às condições gerais em que esses procedimentos podem ser projetados. RAZÃO DE ESTADO. João Botero, que introduziu essa expressão como título de um livro seu {Delia ragion di stato, 1589), usou-a para designar "a resenha dos meios aptos a fundar, conservar e ampliar um Estado", que é "o domínio firme sobre os povos". Mas na realidade essa expressão passou a indicar o princípio do maquiavelismo vulgar, e isso graças ao próprio Botero, que, mesmo se opondo a Maquiavel, admitia o princípio de que os fins justificam os meios em política (v. MAQUIAVELISMO). RAZÃO PREGUIÇOSA (gr. àpTÒç AÓ70Ç; lat. Ignava ratia, ai. Faule Vernunft, it. Ragionpigrd). Raciocínio ou argumento que leva à inércia. Já Platão chamava de preguiçoso o argumento sofista de que é inútil indagar por que não se pode indagar aquilo que se sabe (uma vez que se sabe) nem aquilo que não se sabe, uma vez que não se sabe o que indagar (Men., 86 b). Mas com o nome de R. preguiçosa chegou até nós especialmente um argumento de provável origem megárica, exposto pelo estóico Crisipo (PLUTARCO, Moralia, II, p. 574 e; cf. Stoicorum fragmenta, II, p. 277), que Cícero assim relatou: "Se for teu destino curar-te dessa doença, vais curar-te recorrendo ou não a um médico. Assim também, se for teu destino não te curares dessa doença, não vais curar-te recorrendo ou não ao médico. Ora, teu destino é uma dessas duas coisas; portanto, de nada te adianta recorrer ao médico" (De fato, 12, 28). Leibniz fez alusão a esse velho argumento megárico ou estóico (Teod., I, 55). Mais genericamente, Kant chama de R. preguiçosa "todo princípio que leve a considerar como absolutamente cumprida a investigação, de tal modo que a R. se tranqüiliza, ao dar por cumprida sua tarefa" (Crít. R. Pura, Dialética, Apêndice à Dialética transcendental: do objetivo final, etc). É neste sentido mais geral que essa expressão costuma ser usada até nossos dias. RAZÃO PURA, V. PURO. RAZÃO SUFICIENTE. V. FUNDAMENTO. RAZOÁVEL (lat. Rationabilis ou Rationalis; in. Reasonable, fr. Raisonable, ai. Vernunftig; it. Ragionevolé). Aquilo que está em conformidade com a razão ou com as regras que ela prescreve em determinado campo de pesquisa ou em geral. Neste sentido, Locke falava da "racionabilidade do cristianismo". Fala-se também de "certeza R." para designar a certeza que pode ser deduzida das regras do domínio a que se faz alusão, mas não é absoluta. Dewey diz: "A racionabilidade é questão de relação entre os meios e os fins. (...) É R. buscar e escolher os meios que, com toda a probabilidade, produzirão os efeitos desejados" (Logic, I; trad. it., pp. 41-42). Como correlativo de racionabilidade, o termo R. implica uma conotação limitativa que, em primeiro lugar, exclui a infalibilidade da razão e, em segundo, inclui a consideração dos limites e das circunstâncias em que a razão vem a agir. Portanto, "ser R." significa, na língua comum, dar-se conta das circunstâncias e das limitações que elas comportam, renunciando-se a atitudes absolutas, sejam elas teóricas ou práticas. RAZÕES SEMINAIS (gr. ÀÓYOtcnrepLLfxUKOÍ; lat. Rationes seminales). Partes da razão divina que dão origem às coisas. Segundo os estóicos, assim como todo ser vivo é produzido por uma semente, todas as coisas são produzidas por uma partícula da razão divina, que por isso é uma semente racional. Essa noção ressalta a predeterminação daquilo que é gerado (AÉCIO, Plac, 1.7, 33; cf. J. STOBEO, Ecl, I, 17, 3); foi retomada pelos neoplatônicos (cf. PLOTINO, Enn., II, 3, 16) e por S. Agostinho (De diversis quaes-tionibus, 83, q. 46). REAÇÃO (in. Reaction; fr. Reaction-, ai. Reaction-, it. Reazioné). 1. Ação igual e de sentido contrário a determinada ação. É neste sentido que a física newtoniana utiliza essa palavra. 2. Em psicologia: qualquer resposta a um estímulo. Tempo de reação: intervalo entre estímulo e resposta. 3. Em política: movimento que tende a anular ou a neutralizar os efeitos de uma revolução ou de uma mudança qualquer, ou mesmo impossibilitar a ocorrência de mudanças. REAIS CIÊNCIAS. V. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS. REAL 831 REALIDADE REAL (lat. Realis, in. Real; fr. Réel; ai. Real; it. Realé). 1. Que se refere à coisa. P. ex., "definição R." é a definição da coisa e não do seu nome. 2. Aquilo que existe de fato ou atualmente. Corresponde aos vários sentidos do termo realidade (v.). 3. Herbart chamou de Reais os seres efetivamente existentes, "cuja natureza simples e própria desconhecemos, mas sobre cujas condições interiores e exteriores é possível adquirir uma soma de conhecimentos que podem aumentar infinitamente". Tais entes são irrela-tivos entre si e por isso qualquer das suas relações deve ser considerada uma constatação acidental (züfallige Ansichi) que não qualifica e não modifica sua natureza (Einleitung in die Philosophie, 1813, §§ 152 ss.). REALIDADE (in. Reality, fr. Réalité, ai. Realitüt, Wirklichkeit; it. Realtã). 1. Em seu significado próprio e específico, esse termo indica o modo de ser das coisas existentes fora da mente humana ou independentemente dela. A palavra realitas foi cunhada no fim da es-colástica, mais precisamente por Duns Scot. Este a usou sobretudo para definir a individualidade, que consistiria na "última realidade do ente", que determina e contrai a natureza comum ad esse hanc retn, à coisa singular (Op. Ox, II, d. 3, q. 5, n. 1). Duns e seus discípulos preferiram chamar essa realitas de haecceitas. Mais tarde, esse termo passaria a designar o esse in re da escolástica, p. ex. no sentido com que S. Anselmo pretendia passar, através da prova ontológica, do esse in intellectu ("Ente superior a tudo") ao seu esse in reiProsl. 2), ou então no sentido com que os escolásticos falavam do universal in re, "incorporado nas coisas". Assim, o oposto de R. é idealidade, que indica o modo de ser daquilo que está na mente e não pode ser ou ainda não foi incorporado ou atualizado nas coisas. A referência a coisas também evidente está em expressões como "definição real", para indicar a definição da coisa, e não do nome, e "direitos reais", para indicar os direitos pertinentes às coisas, e não às pessoas. O problema suscitado diretamente pela noção de R. é o da existência das coisas ou do "mundo exterior". Esse problema nasceu com Descartes, ou seja, com o princípio cartesiano de que o objeto do conhecimento humano é somente a idéia. Desse ponto de vista, torna-se imediatamente duvidosa a existência da realidade a que a idéia parece aludir, mas sem provas, assim como uma pintura não prova a R. da coisa representada. Para justificar a R. das coisas, Descartes recorreu à veridicidade de Deus: em sua perfeição, Deus não pode enganar-nos, não pode permitir que haja em nós idéias que nada representem (Méd., IV). Mas Descartes chegou à existência de Deus não só reelabo-rando a prova ontológica como também admitindo o princípio de que "na causa eficiente e total deve haver pelo menos tanta R. quanto no efeito", princípio com base no qual a idéia de Deus, que é a idéia da máxima perfeição, deve ter como causa um ser que tenha tanta "R." quanto aquela que a idéia representa: Deus (Ibid., III). A evolução ulterior do problema levou à negação da realidade. O empirismo inglês, com Berkeley e Hume, reduzia a R. das coisas ao ser percebido, negando-a, pois, como modo de ser autônomo. Por outro lado, com Leibniz, o racionalismo resolvia as coisas em elementos ou átomos (mônadas) de natureza espiritual, negando, também desse modo, o caráter específico de sua R. (v. IMATERIAUSMO). Kant de algum modo reafirmou a R. das coisas, mantendo na palavra R. {Realitüt) a significação específica de R. das coisas ou, como ele mesmo diz, "coisalidade" (Sacbheii) (Crít. R. Pura, Analítica, II, cap. I), contrapondo-lhe a "idealidade" do espaço e do tempo, que são formas da intuição, e não das coisas (Ibid., § 3). Mas, para ele, o problema diz respeito à existência (Daseiri) mesma das coisas. É o que ele examina em "Refutação do Idealismo". A solução então proposta é que "a consciência de minha própria existência é ao mesmo tempo consciência da existência de outras coisas fora de mim". A prova dessa asserção é que a consciência do tempo, isto é, da mudança, não seria possível sem a consciência de algo permanente; e esse algo permanente, não podendo ser dado pela própria consciência do tempo, pode ser dado apenas pela coisa exterior à consciência. Seja válida ou não essa demonstração, está claro que, por um lado, Kant julgava válido o primado da consciência estabelecido por Descartes, para quem a R. das coisas é um problema que exige demonstração, e, por outro, tendia a destruir essa formulação, relacionando a consciência da existência com a existência das coisas (V. CONSCIÊNCIA). Ele nem sequer se propunha o problema do modo de ser específico das coisas, do tipo de existência que lhes é próprio. Contudo, esse problema está intima- REALIDADE 832 REALIDADE mente ligado ao da "existência" das coisas, e só uma resposta a ele (seja ela qual for) pode dar significado à sua solução positiva. Isto porque, se as coisas existem, surge imediatamente a pergunta: qual é o sentido de sua existência? Portanto, deve-se considerar que o problema da R. é composto por esses dois problemas inseparáveis: o da existência e o do modo de ser específico das coisas. O idealismo pós-kantiano deteve-se mais no segundo que no primeiro desses problemas. Segundo Fichte, a R. consiste em geral na atividade do Eu, que "põe o objeto limitandose" e transporta para o objeto uma parte de sua atividade. "A fonte da realidade (Realitái) é o Eu" — diz Fichte. "Apenas pelo Eu e com o Eu é dado o conceito da realidade. Mas o Eu é porque se põe, e se põe porque é. Portanto, pôr-se e ser são uma e mesma coisa. Mas o conceito de pôr-se e o de atividade em geral são, por sua vez, uma só e mesma coisa. Portanto, toda R. é ativa e toda coisa ativa é R." (Wissenschaftslehre, § 4, E). Essa idéia de R. como atividade passou a fazer parte da bagagem do Romantismo e influenciou o desenvolvimento posterior do problema. "Atividade é R. propriamente dita" — dizia Novalis (Fragmente, 190). Schopenhauer afirmava categoricamente "que a essência dos objetos intuíveis é a sua ação-, que é na ação que consiste a R. do objeto, e que a pretensão de uma existência do objeto fora da representação do sujeito e mesmo de uma essência da coisa real diferente da sua ação não tem sentido; ao contrário, é uma contradição" (Die Welt, I, § 5). Como se vê, na origem da redução de R. a atividade está um sentido idealista. Todavia, ela serviu para abrir uma nova alternativa de solução para o problema: a R. não seria simples objeto de conhecimento, mas um modo de ser que se revela melhor para outras formas de experiência. A noção de atividade, tão apreciada pelo Romantismo, representa o primeiro modelo dessa solução. Por outro lado, o sensacio-nismo de Condillac mostrara que a idéia de R. derivava do sentido do tato; mas o sentido era entendido por Condillac de maneira ativa e dinâmica, como guiado e sustentado pela necessidade e por desejos (Traité des sensations, 1754,1, 3, 1; I, 7, 3; II, 5, 5). Mais tarde, Destut de Tracy relacionara a idéia de R. com a experiência da resistência que as coisas opõem ao movimento (Idéologie, 1801, cap. 8). Na filosofia contemporânea, Dilthey defendeu idéia análoga (Contribuição à solução do problema da origem da nossa crença na realidade do mundo exterior, em Gesammelte Schriften, 1890, V, 1, pp. 90 ss.). A resistência definiria o modo de ser da R., isto é, das coisas; correspondentemente, a experiência dessa R. seria mais volitiva e prática que cognitiva. Scheler aceitou esta interpretação da R. (Die Wis-sensformen und die Gesellschaft, pp. 455 ss.). Tese substancialmente análoga foi apresentada por Santayana no livro Ceticismo e fé animal (1923), no qual ele mostrava que a crença na realidade é devida a experiências puramente animais (fome, luta, etc.) e só é justificável com base em tais experiências. O mesmo Santayana expusera essa noção de R. em Essays in Criticai Realism (1920), obra publicada por sete filósofos americanos (v. REALISMO). Na filosofia mais recente o problema da R. praticamente deixou de ser problema da "existência" das coisas para tornar-se cada vez mais problema do modo de ser específico das coisas. Suas formulações são feitas segundo a alternativa aberta pelas doutrinas que reconhecem o caráter não simplesmente cognitivo da experiência da realidade. Heidegger negou explicitamente o primado da consciência, do qual nascia o problema da existência das coisas. "Crer na realidade do 'mundo exterior' (com ou sem direito), demonstrar essa realidade (suficientemente ou não), pressupor essa realidade (explicitamente ou não), tudo isso são tentativas que pressupõem antes de mais nada o sujeito sem mundo, vale dizer, não consciente de seu mundo, que deve, portanto, começar por fundar a segurança de seu mundo" (Sein und Zeit, § 43, a). O problema da existência do mundo exterior ou das coisas desaparece por si mesmo uma vez que se elimine o pressuposto falaz do "sujeito sem mundo", ou seja, pressuposto de que o homem não é já e sempre sobretudo um ser no mundo. Restabelecido este caráter fundamental do modo de ser do homem, que por isso é um "ser-aí" (em que aí indica sua relação com o mundo), o problema da R. torna-se o problema do modo como as coisas do mundo se apresentam ao homem ou estão em relação com ele. Segundo Heidegger, esse modo de ser é a "simples presença", uma vez que a existência é o modo de ser reservado ao ser-aí, ao homem. "Se a expressão R. significa ser do ente (res) simplesmente presente no mundo (e de fato nada mais deve ser pensado dela) na análise desse modo de ser segue-se REALIDADE 833 REALIDADE que o ente intramundano só é concebível ontologicamente se for esclarecido o fenômeno da intramundanidade. Mas este se baseia no fenômeno do mundo, que, por sua vez, enquanto momento essencial da estrutura do ser-no-mundo, pertence à constituição fundamental do ser-aí. O ser-no-mundo, novamente, é ontologicamente articulado na totalidade do ser do ser-aí, que se caracteriza como Cuidado {Cura)" {Ibid., § 43, b). Precisamente porque o ser do ser-aí (a existência humana) é Cuidado, os entes de que essa existência se ocupa, que são diferentes dela — as coisas (cujo modo de ser é a R.) — caracterizam-se pela instrumenta-lidade. "O modo de ser desse ente é a instrumentalidade, que, no entanto, não deve ser vista como tendências de interpretação. (...) A instrumentalidade é determinação ontológico-categorial do ente como é em si" {Ibid., § 15). De tal modo, Heidegger destacou o caráter instrumental das coisas, em virtude do qual elas podem valer como meios para o homem. Mas Heidegger julga que esse caráter não pertence às coisas na medida de sua relação com o homem, mas constitui seu ser "em si", sua essência. À parte essa pretensão, a análise de Heidegger pode ser considerada uma caracterização do modo de ser das coisas ou da "R.", entendida em seu significado próprio e específico. Por outro lado, essa mesma análise mostrou o caráter arbitrário do "problema da R.", no modo como foi entendido a partir de Descartes, como problema de uma R. "exterior" à consciência. Mostrou que tal problema surge de um pressuposto filosófico infundado, representado pela tese do "sujeito sem mundo" ou, em outras palavras, de uma existência do homem que não consiste na relação com o mundo. É significativo observar que quase simultaneamente a essas análises de Heidegger o problema da R. exterior era considerado um "pseudoproblema" de um ponto de vista totalmente diferente, do Círculo de Viena. Carnap {Scheinsprobleme in derPhilosophie, dasFremd-psychische und der Idealismus-streit, 1928) e Schlick {Positivismus und Realismus, reed. em Gesammelte Aufsãtze, 1938) rejeitavam tanto a tese da irrealidade do mundo exterior quanto da sua R. tachando-as de pseudo-afirmações, porquanto nenhuma das duas se prestava a verificações experimentais. Mas o Círculo de Viena não apresentou qualquer solução do segundo aspecto — o mais legítimo — do problema da R.: o modo de ser das coisas. A esse respeito, limitou-se (como fazem seus seguidores até hoje) a repropor a velha tese de Mach {Analyse der Empfindungen, 1900), segundo a qual as coisas são compostas pelos mesmos elementos últimos que compõem o eu (as sensações), e estes elementos últimos são neutros em si, ou seja, nem subjetivos, nem objetivos. Esta tese obviamente não dá conta do caráter específico da R. das coisas, não explica por que um conjunto de tais elementos neutros assume, em cada caso diferente, as características de uma "coisa" ou de um "eu". Além do significado cujas interpretações estudamos até aqui, a palavra R. também costuma ser usada nos outros significados abaixo, que devem ser considerados secundários porque são designados com mais propriedade por outros termos do vocabulário filosófico. 2. Em oposição a aparência, ilusãoe outros semelhantes, R. significa às vezes o ser em qualquer dos seus significados existenciais. Assim p. ex., na obra de Bradiey, Appearance and Reality (1893), a oposição anunciada pelo título é entre o aparecer e o ser, uma vez que ele não é limitado à realidade no seu sentido específico, vale dizer, ao modo de ser das coisas. Dewey empregou a palavra no mesmo sentido, mas com uma conotação crítica- "Na sua fórmula mais breve, a R. torna-se existência, qual gostaríamos que fosse depois que analisamos seus defeitos e decidimos quais devem ser eliminados; a 'R.' é aquilo que seria a existência se nossas preferências racionalmente justificadas estivessem tão completamente estabelecidas na natureza que esgotassem e definissem seu ser por inteiro, tornando, pois, desnecessárias a luta e a busca. O que é eliminado (uma vez que a perturbação, a luta, o conflito e o erro ainda existem empiricamente, algo é eliminado), sendo excluído por definição da R. plena, é atribuído a um grau ou a uma ordem do ser que se afirma ser metafisica-mente inferior; essa ordem recebe varias designações: aparência, ilusão, espírito mortal ou puramente empírico, em contraposição ao que é, real e verdadeiramente" {Experience and Nature, cap. II, p. 54). 3. Em oposição a possibilidade, potencialidade e às vezes também a necessidade, essa palavra significa atualidade, efetividade ou aquilo que se atualizou ou efetivou e possui existência de fato. O termo alemão Wirklichkeit, diferente de Realitüt, tem esse sentido específico, em- REALIDADE PRESUNTTVA 834 REALISMO bora os filósofos nem "sempre se atenham estritamente a essa distinção. Nesse sentido, a palavra designa uma das categorias da lógica de Hegel. "A R. é a unidade imediata, que se produziu, da essência e da existência, ou do interno e do externo" {Ene, § 142): com isso, Hegel pretende dizer que a R. é a essência que se atualizou como existência, ou o interno que se manifestou efetivamente no externo. Quem insistiu na distinção entre Wirklichkeit e Realitàtíoi Lotze (Mikrokosmos, III, p. 535). N. Hartmann, por sua vez, utilizou a distinção, descobrindo na efetividade (Wirklichkeit) o sentido primário do ser (Móglichkeit und Wirklichkeit, 1938) (v. SER). REALIDADE PRESUNTIVA (ai. Prasump-tive Wirklichkeif). Foi assim que Husserl chamou a R. das coisas em relação à "R. absoluta", necessária, da consciência (Ideen, I, § 46). REALISMO (lat. Realismus, in. Realism; fr. Réalisme, ai. Realismus, it. Realismo).Estapalavra começou a ser usada em fins do séc. XV, designando a corrente mais antiga da Esco-lástica, em oposição à chamada corrente "moderna" dos nominalistas ou terministas. O primeiro a usá-la foi provavelmente Silvestro Mazolino de Prieria, em Compendium dialec-ticae, de 1496 (cf. PRANTL, Geschichte derLogik, IV, p. 292). O R. afirmava a realidade dos universais (gêneros e espécies), entendendo contudo de maneiras diferentes essa mesma realidade (v. UNIVERSAL). No sentido mais geral e moderno, esse termo foi retomado por Kant na primeira edição de Crítica da Razão Pura, para indicar, por um lado, a doutrina (oposta à que ele defendia) segundo a qual o espaço e o tempo são independentes de nossa sensibilidade, que é o R. transcendental, e por outro lado uma doutrina sua, que admite a realidade exterior das coisas e que é o R. empírico. Kant dizia: "O idealista transcendental é um realista empírico que atribui à matéria, como fenômeno, uma realidade que não precisa ser deduzida, mas é imediatamente percebida" (Crít. R. Pura, Ia ed., Dialética transcendental, Crítica do quarto paralogismo da psicologia transcendental). Com Kant, esse termo entrou em filosofia, designando doutrinas de interesse atual, e não simplesmente histórico. Fichte afirmava que "a doutrina da ciência é realista" porque "mostra que é absolutamente impossível explicar a consciência das naturezas finitas se não se admitir a existência de uma força independente delas, oposta a elas, da qual elas dependem em sua existência empírica" (Wissenschaftslehre, 1794, § V, II; trad. it., 231). Schelling falava de um idealismo realista (Real-idealismus) ou de um R. idealista (Idealrealismus) (Werke, I, X, p. 107) no mesmo sentido que Fichte. A partir de então, o R. foi qualificado e definido das maneiras mais diferentes, e quase sempre as doutrinas que o adotaram como insígnia qualificaram também como realistas as doutrinas do passado que coincidiam com seu ponto de vista. Assim, p. ex., Platão foi considerado realista porque admitia a realidade das idéias (seja qual for a significação disto), mas também foi definido como idealista porque tratava de idéias. Semelhantes análises (e as controvérsias que provocam) não passam de perda de tempo. Menos inútil talvez seja esclarecer o significado das formas mais conhecidas que o R. assumiu na filosofia moderna. Nesse caso, além das já citadas, podem ser lembradas as seguintes: d) O R. empírico de Kant assumiu vários nomes, permanecendo substancialmente o mesmo: independência da existência das coisas em relação ao ato de conhecer. W. Hamilton chamou esse ponto de vista de R. natural ou pre-sentacionismo, considerando-o típico da escola escocesa, da qual derivava sua filosofia (v. PRESENTACIONISMO). O famoso artigo de G. E. Moore, publicado em Mindde 1903, "Refuta-ção do idealismo", inspira-se num ponto de vista análogo: defende a independência do objeto conhecido em relação ao ato psíquico com que é conhecido. Essa independência era chamada de tese do R. ingênuo (ai. Naiven Realismus) por G. Schuppe (Grundriss der Erkenntnistheorie und Logik, 1910, pp. 1-2). O. Külpe dava a esse mesmo ponto de vista o nome de R. científico (Die Realisierung, II, 1920, p. 148), enquanto J. Maritain, que defendeu a mesma forma de realismo porque, segundo ele, correspondia mais à tradição to-mista, chamou-o de R. crítico (Distinguerpour unir, 1932, p. 149). Finalmente, o mesmo tipo de R. é chamado de materialismo pelos defensores do materialismo dialético: é o que faz, p. ex., Lenin (Materialismo e empiriocriticismo, 1909, trad. it., p. 75). Essa mesma forma de R., sem adjetivos ou com adjetivos vários, é freqüente na filosofia contemporânea; pode ser facilmente encontrada no existencialismo, no instrumentalismo, no empirismo lógico e em todas as correntes filosóficas que adotam o pensamento científico como ponto de partida. RECEPTIVIDADE 835 RECIPROCIDADE b) R. transfigurado (Transfigurared Rea-lisrri) de H. Spencer: "O R. com que estamos comprometidos sustenta simplesmente que a existência objetiva é separada e independente da existência subjetiva. Mas não afirma que cada um dos modos da existência objetiva seja na realidade aquilo que parece ser, nem que as conexões entre os modos sejam objetivamente aquilo que parecem ser. Por isso, esse R. distingue-se claramente do R. cru; para marcar a distinção podemos chamá-lo propriamente de R. transfigurado" (Principies ofPsychology,§472). c) O novo R. defendido em volume coletivo por um grupo de pensadores americanos (E. B. HOLT, W. T. MARWIN, W. P. MONTAGUE, R. B. PERRY, W. B. PITKIN, E. G. SPAULDING, The New Realism, 1912) baseia-se no princípio segundo o qual a relação cognoscitiva não modifica os seres entre os quais se estabelece; portanto, o fato de os seres conhecidos parecerem estar apenas em relação conosco não implica que seu ser se esgote nessa relação. Segundo o novo R., também são seres objetivos os conceitos abstratos utilizados pela ciência; o próprio erro é um fato objetivo devido a uma distorção fisiológica. Ponto de vista análogo, também baseado nas correntes da fenomenologia e do logicismo, foi defendido por Nicolai Hartmann numa série de obras que começaram com Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis (1921). Constituem o R. de Hartmann as duas teses seguintes: Ia a relação cognitiva é extrín-seca ao ser, que não é qualificado nem modificado por ela; 2- o ser é constituído não só por coisas, mas também por objetos ideais ou abstratos, ou por valores. d) O R. crítico foi defendido em um volume coletivo por um grupo de pensadores americanos (D. DRAKE, A. O. LOVEJOY, J. B. PRATT, A. K. ROGERS, G. SANTAYANA, R. W. SELLARE, C. A. STRONG, Essays in Criticai Realism, 1920), que defendia fundamentalmente o ponto de vista de Santayana, segundo o qual o objeto imediato ao conhecimento é uma essência (v.), ao passo que a existência nunca é apreendida imediatamente ou intuída, mas apenas afirmada, posta ou reconhecida por exigências emocionais e práticas que Santayana chamava de fé animal (Scepticism and Animal Faith, 1923). RECEPTIVIDADE (in. Receptivity, fr. Récep-tivité, ai. Receptivitát; it. Recettivitã). Capacidade de sofrer uma ação ou de registrar os efeitos da ação sofrida. Kant chamou de R. a capacidade de receber impressões, e a opôs ao caráter ativo do conhecimento, que se baseia na "espontaneidade dos conceitos" (Crít. R. Pura, Lógica Transcedental, Intr., I). RECEPTOR (in. Receptor). Termo da psicologia contemporânea que designa qualquer órgão ou estrutura com que o organismo recebe os estímulos. São R. tanto os órgãos dos sentidos (p. ex., olho, ouvido, etc.) quanto as estruturas nervosas que recebem estímulos da pele, dos músculos, das articulações, etc. Os primeiros são chamados de exterorreceptores, os outros, de propriorreceptores. Às vezes fala-se também de enterorreceptores para indicar os R. situados nas vísceras. RECIPROCAÇÃO (lat. Reciprocatio; in. Re-ciprocation-, it. Reciprocazionè). Na lógica de 1600, um modo de refutação que consiste em usar contra o adversário o mesmo argumento por ele utilizado; com isso, demonstra-se que o argumento é vicioso (cf. JUNGIUS, Lógica ham-burgensis, 1638, VI, 16, 20). RECIPROCIDADE (in. Reciprocity, fr. Re-ciprocítê, ai. Wechseltvirkung; it. Reciprocitã d'azioné). É o princípio da conexão universal das coisas no mundo, em virtude do qual elas constituem uma comunidade, um todo organizado. Portanto, a ação recíproca nada tem a ver com o princípio de ação e reação enunciado por Newton. Kant faz da ação recíproca um princípio puro do intelecto, e vê nele a terceira analogia da experiência (v.), expressa com as seguintes palavras: "Todas as substâncias, quando podem ser percebidas no espaço como simultâneas, estão entre si numa ação recíproca universal". Assim como a sucessão temporal tem fundamento na conexão causai, também a simultaneidade temporal tem fundamento na R. de ação entre as substâncias. Kant diz: "Sem comunidade, cada percepção (dos fenômenos no espaço) se separaria das outras, e a cadeia das representações empíricas, isto é, a experiência, deveria recomeçar do início a cada novo objeto, sem que a precedente pudesse ligar-se a ele ou estar em relação temporal com ele." CCrít. R. Pura, Anal. dos princ, III, 3). O sentido da conexão recíproca é esclarecido em seguida por Kant da seguinte maneira (loc. cii): "A palavra Gemeinscbaft [= comunidade] tem duplo significado: pode significar tanto communio quanto comercium. Aqui a empregamos no segundo sentido, como comunidade dinâmica, sem a qual nem a comunidade espacial (communio spatiz) poderia ser conhecida empiricamente." Não admira que o Romantis- RECIPROCO 836 REDUÇÃO mo tenha valorizado ao máximo essa noção, de caráter tão nitidamente metafísico e espiritua-. lista. Schelling afirma (System des transzenden-talen Idealismus, p. 228) que "a relação de causalidade não pode ser construída sem a ação recíproca", enquanto Hegel (Ene, §§ 154 ss.) vê na passagem da causalidade à ação recíproca a passagem da necessidade ao desven-damento da necessidade, ou seja, à liberdade. O que tudo isso significa é expresso com toda a clareza por Lotze, em Microcosmo (III2, p. 482): "A ação recíproca das substâncias finitas no mundo só poderá ser entendida se elas forem partes de uma Substância infinita que as abranja todas em si mesma." Essa noção é freqüente nas concepções espiritualistas do mundo, não passando de transcrição, em termos mais modernos, da simpatia universal (v. SIMPATIA) que as concepções mágicas (v. MAGIA) admitiam entre as coisas do mundo. Portanto, não é de surpreender que Schopenhauer afirmasse que "a ação recíproca não existe", porquanto "ela pressuporia que o efeito é a causa da sua causa, e que aquilo que segue é, ao mesmo tempo, o que precede" (Über die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde, 1813, § 20). RECÍPROCO (in. Reciprocai; Converse, fr. Reciproque, ai. Reziprok, it. Reciproco). Em lógica, chama-se de recíproca a proposição obtida pela conversão da proposição dada, isto é, pela troca entre sujeito e predicado. O termo latino tradicional para tal proposição é conversa, e foi empregado por Boécio (De syllogismo categórico, P. L., 64, col. 804; cf. HAMILTON, Lectures on Logic, II, p. 259). Por "inversa"entende-se comumente a negativa de uma proposição (v. CONVERSÃO). RECONCILIAÇÃO. V. SÍNTESE RECONHECIMENTO (in. Recognition; ack-nowledgment; fr. Reconnaissance, ai. Anerkn-nung; it. Riconoscimentó). 1. Em geral, conhecer algo por aquilo que é. Neste sentido diz-se, p. ex., "Reconheci-o como ladrão", ou "Reconheço a justiça dessa observação". 2. Um dos aspectos constitutivos da memória, porquanto os objetos lhe são dados como já conhecidos (v. MEMÓRIA). RECORDAÇÃO. V. MEMÓRIA. RECORRÊNCIA (in. Recurrence, fr. Récur-rence, ai. Recurrenz; it. Ricorrenzd). 1. Aquilo que volta a acontecer ou se repete a intervalos regulares ou irregulares. Neste sentido, chama-se de recorrente um acontecimento que se repete mais ou menos do mesmo modo, a intervalos. 2. Designa-se também com este termo o raciocínio reflexivo ou auto-reflexivo que dá origem às antinomias lógicas (v. ANTINOMIAS). 3. Em matemática a expressão "raciocínio por R." designa o princípio da indução matemática (v. INDUÇÃO MATEMÁTICA). RECUSA, GRANDE (in. Great refusal; fr. Grand refus, it. Gran rifiutó). É a recusa da realidade em favor da imaginação e das possibilidades que ela desvenda em arte. Essa expressão foi empregada com esse sentido por André Breton no primeiro manifesto dos surrealistas (1924) (Les manifestes du surréa-lisme, 1946). Foi adotada por H. Marcuse para indicar "o protesto contra a repressão supérflua, a luta pela forma definitiva de liberdade: viver sem angústia" (Eros and Civilization, 1954, cap. VII). V. UTOPIA. REDENÇÃO (in. Salvation; fr. Salut; ai. Heil; it. Salvezzd). Libertação de um mal mortal que ameace o corpo ou a alma do homem. A R. pode ser entendida: l9 como libertação de um mal específico que pese sobre o homem no mundo; este é o sentido com que o termo é entendido mesmo fora da religião; 2- como libertação do mundo, entendido como um mal em sua totalidade; portanto, é o rompimento definitivo da cadeia de nascimentos (budismo), ou libertação de sofrimentos, dores ou punições. Neste sentido, o termo tem significado especificamente religioso (v. RELIGIÃO). REDUÇÃO (in. Reduction-, fr. Reduction; ai. Reduktion-, it. Riduzioné). 1. Transformação de um enunciado em outro eqüipolente mais simples ou mais preciso, ou capaz de revelar a verdade ou a falsidade do enunciado originário. Fala-se também de "R. da ciência aos termos da experiência imediata" (QUINE, From a Logical Point ofView, II, 5) ou de R. das extensões às intenções, das classes às propriedades (CARNAP, Meaning and Necessity, §§ 23, 33). 2. Explicação que consiste em considerar que certas ordens de fenômenos estão sujeitas a leis mais bem estabelecidas ou mais precisas que uma outra ordem de fenômenos; p. ex., a que consiste em considerar que os fenômenos orgânicos estão submetidos às leis dos fenômenos físicos, enquanto estes últimos estão sujeitos às leis dos fenômenos mecânicos. (Sobre este tipo de explicação, cf. E. NAGEL, "The Meaning of the Reduction in the Natural Sciences", 1949, em Science and Civilization, ed. R. T. Staufer, 1949, pp. 99-138.) REDUPUCAÇÃO 837 REFLEXÃO 3- Por R. fenomenológica Husserl entendeu a epoché fenomenológica, que é a neutralização da atitude natural, ou pôr o mundo entre parênteses (Ideen, 1, §§ 56 ss.). Às vezes, mais particularmente, ele entendeu por R. o momento positivo da epoché, que é o da reflexão interna sobre o ato, em busca de captar o ato em sua intencionalidade (cf. especialmente Krisis, 1954, p. 247). 4. Quanto a R. aos princípios, v. RETORNO, 2. REDUPUCAÇÃO (gr èavaSín^comç; lat. Reduplicatio, fr. Réduplication; it. Reduplicazio-nè). Com este termo, que significa predicação repetida, eram indicadas em lógica algumas palavras usadas para relacionar o predicado com o sujeito: como, enquanto, na qualidade de, etc. P. ex.: "o homem, enquanto animal, é mortal". As proposições em que ocorre a R. chamam-se reduplicativas (ARISTÓTELES, An.pr., I 38 49 a 26; DUNS SCOT, In An.pr., I, 35 em Obras, I, p. 327 a; JUNGIUS, Lógica hamburgensis, II, 11, 22). REDUTIBILIDADE, AXIOMA DE. V. ANTINOMIAS. REFERÊNCIA (in. Reference, fr. Référence, ai. Bericht; it. Riferimentó). 1. Em geral, o ato de pôr um objeto qualquer em qualquer relação com outro objeto. Neste sentido, esse termo tem um significado bastante amplo: um mesmo objeto (p. ex., um comportamento) pode referir-se ao seu autor, aos seus efeitos, ao seus fins, às suas intenções, às suas condições, etc. O sentido específico da R., ou seja, a relação que ela estabelece, é esclarecido ou sugerido em cada caso pelo contexto. 2. Mais particularmente, chama-se de R. o ato que estabelece uma relação entre o símbolo e o seu objeto, ou seja, o ato de interpretação (v.). Foram sobretudo Ogden e Richards que difundiram o uso do termo nesse sentido. Identificaram a R. com o pensamento, e ambos com aquilo que chamaram de significado cognitivo (The Meaning ofMeaning, 10a ed., 1952, pp. 9 ss.). No âmbito deste significado, os mesmos autores chamaram de referendo (referend) o veículo ou o instrumento de um ato de R., e de referente (refereni) o objeto a que o ato de R. visa. REFERENTE. V. REFERÊNCIA. REFLEXA, AÇÃO. V. AÇÃO REFLEXA. REFLEXÃO (in. Reflection; fr. Réflexion; ai. Réflexion; it. Riflessioné). Em geral, o ato ou o processo por meio do qual o homem considera suas próprias ações. Este conceito foi determinado de três maneiras, a saber: Ia como conhecimento que o intelecto tem de si mesmo; 2-como consciência; 3a como abstração. Ia Mesmo não empregando o termo R., Aristóteles admite o fato óbvio de que o intelecto "pode pensar-se" (De an., III, 429, b 9). Os escolásticos expressaram esta possibilidade com o termo "R.". S. Tomás de Aquino diz: "Ao refletir sobre si mesmo, o intelecto entende, conforme essa R., tanto o seu entender quanto a espécie por meio da qual entende" (5. Th., I, q. 85, a. 2). Desse modo, atribui à R. uma função específica porque o intelecto, cujo objeto é o universal, só pode entender o particular refletindo sobre si mesmo e considerando aquilo de que abstrai o universal (Ibid., I, q. 86, a. 1). Os escolásticos, porém, não consideravam a R. como fonte autônoma de conhecimento. Isso só acontece com Locke. 2a Com Locke inicia-se o conceito da R. como consciência. Segundo Locke, a segunda das duas fontes principais (a primeira é a sensação) de onde o intelecto aufere suas idéias é a R., entendida como "percepção das ações exercidas por nossa alma sobre as idéias que recebeu dos sentidos: tornando-se o objeto das R. da alma, essas ações produzem na inteligência uma outra espécie de idéias, que os objetos exteriores não poderiam ter fornecido; tais são as idéias daquilo que se chama perceber, pensar, duvidar, crer, raciocinar, conhecer, querer, etc." (Ensaio, II, 1, 4). Além disso, Locke também chama a R. de sentido interno, nada mais sendo, então, que consciência, nome com que foi freqüentemente chamada pelos filósofos ingleses posteriores. A definição de Vauve-nargues, "R. é o poder de dobrarse sobre as idéias, de examiná-las, de modificá-las ou de combiná-las de maneiras diferentes: ela é o grande princípio do raciocínio, do juízo, etc." (Intr. ã Ia connaissance de Vesprit humain, 1746, I, 2), bem como a de Leibniz, "a R. nada mais é que a atenção àquilo que está em nós, enquanto os sentidos não nos dão inteiramente o que já temos em nós" (Nouv. ess., Avant-propos), têm o mesmo significado: a R. é consciência. Era exatamente com este termo que Kant a definia: "A R. (reflexio) não visa aos objetos em si para chegar aos conceitos deles; é o estado de espírito em que começamos a dispor-nos a descobrir as condições subjetivas que nos permitem chegar aos conceitos. Ela é a consciência da relação entre as representações dadas e as várias fontes de conhecimento" (Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, Anfibolia dos REFLEXÃO 838 REFLEXIVO/REFLEXIONANTE conceitos da reflexão). Além disso, Kant distin-guia a R. lógica, que é o simples confronto das representações entre si, da R. transcendental, dirigida para os objetos, que contém "a razão da possibilidade da comparação objetiva das representações entre si. O objeto da R. transcendental, portanto, são os conceitos de identi-dade-diversidade, de concordância-posição, de interior-exterior, de matéria-forma, que representam o fundamento de qualquer possível confronto entre as representações" (Ibid.). O caráter ativo e criativo da R., que traz à luz a verdadeira natureza daquilo que se investiga, e portanto produz tal natureza de algum modo, foi um dos pontos fundamentais da filosofia de Hegel: "Uma vez que, na R., se obtém a verdadeira natureza, e esse pensamento é minha atividade, essa verdadeira natureza é do mesmo modo produto do meu espírito, isto é, do meu espírito como Sujeito pensante, de mim na minha simples universalidade, como Eu que é por si mesmo, da minha liberdade" (Ene, § 23). Maine de Biran também atribuiu à R. uma função metafísica: "Chamo de R. a faculdade que o espírito tem de perceber, num grupo de sensações ou numa combinação de fenômenos, as relações comuns de todos os elementos com uma unidade fundamental: p. ex.: de vários modos ou qualidades com a unidade de resistência, de vários efeitos diferentes com uma mesma causa, de modificações variáveis com o mesmo eu ou sujeito, etc." (Fondements de Ia psychologie, ed. Naville, II, p. 225). Não é muito diferente o significado que Husserl lhe atribui quando afirma: "Toda cogitatiopode tornar-se objeto da chamada percepção interna e depois objeto de uma avaliação reflexa, de aprovação ou desaprovação, etc." (Ideen, I, § 68). Neste sentido, a R. é aquilo que Husserl chama de percepção imanente, que constitui unidade imediata com o percebido, sendo a própria consciência (Jbid., § 68). Husserl distinguiu também a R. natural, que se realiza na vida comum, da R. fenomenológica ou transcendental, feita através da epoché (v.) universal quanto à existência ou à não-existência do mundo (Cart. Med., § 15). 33 O terceiro conceito de R. considera-a como abstração, mais precisamente como abstração falseadora; esse conceito pertence ao idealismo romântico. Começou com Fichte, que viu na R. o ato com que o eu se considera limitado pelo objeto: "O Eu tem em si a lei de refletir sobre si mesmo como algo que preenche o infinito. Mas não pode refletir sobre si mesmo e, em geral, sobre nada, se aquilo sobre que reflete não é limitado. Portanto, o cumprimento desta lei é condicionado e depende do objeto" (Wissenschaftslehre, 1794, § 8). Como esclarecia Schelling, neste sentido a R. é uma abstração, porque leva a separar o objeto do Eu do próprio Eu, enquanto, na realidade, o objeto não passa de produto do Eu. "Essa separação entre ato e produto, no uso ordinário da linguagem, chama-se abstração. Portanto, como primeira condição da R. tem-se a abstração" (System des transzendentalen Idealismus, III, época III, I; trad. it., p. 179). Quanto a Hegel, ao mesmo tempo em que exaltava (como se viu) a R. como atividade que não só traz à tona, mas também produz a natureza racional das coisas que investiga, considerava falseador o intelecto reflexivo. "Por intelecto reflexionante ou reflexivo deve-se entender, em geral, o intelecto abstrator, portanto separativo, que persiste em suas separações. Fazendo face à razão, esse intelecto comporta-se como o intelecto humano comum, ou senso comum, e impõe sua visão de que a verdade repousa na realidade sensível; de que os pensamentos são apenas pensamentos (no sentido de que a percepção sensível lhes dá substância e realidade) e de que a razão, que permanece em si e por si, nada produz além de sonhos" (WissenschaftderLogik, Intr.; trad. it., I, p. 27). Em outros termos, a R. caracteriza-se pela separação entre conceito e realidade, o que é uma falsa abstração; ao mesmo tempo, a razão caracteriza-se pela identidade entre conceito e realidade. Assim, para Hegel, a filosofia da R. é a do senso comum, cujo ápice está na filosofia de Kant, que afirma a incognoscibi-lidade da coisa em si. Na filosofia contemporânea, esse termo é usado principalmente no 2a significado, sendo, portanto, sinônimo de consciência (nos sentidos 1 e 2 do verbete respectivo), introspecção, sentido interior, observação interior. REFLEXIBILIDADE (in. Reflectivity, fr. Re-flexivité, ai. Reflectivitat; it. Riflessivita). Caráter da relação não aliorrelativa, ou seja, tal que um termo possa ter consigo mesmo. P. ex., a relação não maiorqueé reflexiva (v. RELAÇÀO). REFLEXIVA, PSICOLOGIA. V. PSICOLOGIA, B). REFLEXIVO/REFLEXIONANTE E DETERMINANTE (in. Reflecting and determinant; fr. Réflechissant et determinant; ai. Reflectierend REFORMA 839 REFUTAÇÃO und Bestimmend; it. Riflettente e determinante). Juízo determinante e juízo R. são, segundo Kant, os dois modos de ação da faculdade do juízo (v. JUDICATIVA, FACULDADE). Em geral, ainda segundo Kant, o juízo é "a faculdade de pensar o particular como conteúdo do geral". Dado o geral (regra, princípio, lei), o juízo que realiza a subsunção do particular é chamado de determinante. Se, ao contrário, é dado o particular, o juízo que encontra nele o geral é chamado de R. {Crít. do Juízo, Intr., § IV). "Juízo determinante" significa juízo que determina ou constitui o objeto: é o que, segundo Kant, faz o juízo intelectual (considerado na Crít. R. Pura), que forma o objeto empírico unificando o material da experiência segundo as categorias. Juízo R. significa juízo que já encontra o objeto constituído, devendo, pois, limitar-se a refletir sobre ele para encontrar o modo de subordiná-lo a uma unidade ou lei simplesmente subjetiva; como fazem, por um lado, o juízo de gosto (que julga os objetos segundo o critério de belo) e, por outro, o juízo teleológico, que julga os objetos segundo o critério do fim. REFORMA (in. Reformation; fr. Reforma-tion; ai. Reformation; it. Riformd). Renovação religiosa ocorrida na Europa durante o séc. XVI, como retorno às origens do cristianismo. Preparada pelo humanista Erasmo de Roterdã (1466-1536), a R. foi iniciada pelo monge agos-tiniano Martinho Lutero (1483-1546), que, em 1517, afixou nas portas da catedral de Wittenberg noventa e cinco teses contra a venda das indulgências. Em sua orientação global, a R. protestante apresenta-se como uma das vias de realização do retorno aos princípios, lema do Renascimento (v.). No domínio religioso, o retorno aos princípios levava a negar o valor da tradição, portanto da Igreja, que se julgava sua depositária e intérprete. No texto Contra Henrique VIIIda Inglaterra (1522), Lutero contrapunha à tradição eclesiástica e a todos os rituais e interpretações por ela acumulados durante séculos o retorno direto à palavra de Jesus Cristo, concretizada no Evangelho. Segundo Lutero, o ensinamento fundamental do Evangelho é a justificação por meio da fé, que implica dois corolários fundamentais. 1Q Um deles é a negação do valor das obras como técnicas religiosas (ritos, sacrifícios, cerimônias), com a redução dos sacramentos aos mencionados na Bíblia (batismo, penitência e eucaristia), mas sem qualquer supervisão sacerdotal, sendo eles considerados expressão da relação direta do homem com Deus. Ao culto sacerdotal, Lutero opôs o exercício dos deveres civis, como único "serviço divino" com valor religioso. 2e O outro é a negação da liberdade humana e o reconhecimento da predestinação por parte de Deus. A fé é o sinal seguro dessa predestinação, portanto indício de salvação {De libertate christiana, 1520). Foi este aspecto que deu origem à polêmica entre Erasmo e Lutero: à Diatribe de libero arbítrio (1524) de Erasmo, Lutero respondeu com De servo arbítrio (1525), em que insistia no caráter imperscrutável da escolha divina (cf. PREDESTINAÇÃO). Das outras duas figuras principais da R. protestante, Ulrich Zwinglio (1484-153D e João Calvino (15091564), o primeiro foi bem além de Lutero na negação das formas religiosas tradicionais, atribuindo ao próprio sacramento da eucaristia valor meramente simbólico e negando a obediência passiva à autoridade política; o segundo considerou o retorno aos princípios especialmente como retorno à religiosidade do Antigo Testamento. Em Instituição da religião cristã (publicada em latim em 1536 e em francês em 1541 [essa tradução é o primeiro texto literário da prosa francesa]), Calvino propôs-se efetivamente a mostrar a unidade do Antigo e do Novo Testamentos, extraindo daquele o princípio de que o bom sucesso nas atividades da vida é prova evidente do favorecimento de Deus, sinal de sua predileção. Foi esse princípio que transformou o calvinismo em ética inspiradora da burguesia capitalista emergente, com seu espírito ativo e agressivo, marcado pelo desprezo por sentimentos e orientado para o bom êxito dos negócios. REFUTAÇÃO (gr. eteyicoç; lat. Confutato-, in. Confutation; fr. Refutation; ai. Wider-legung; it. Confutazioné). Método adotado por Sócrates, que consiste em evidenciar a contradição à qual leva a asserçâo do interlocutor, permitindo, pois, isentar o próprio interlocutor da presunção de saber. Platão sempre considerou esse procedimento como a propedêutica indispensável da investigação científica {Ap., 21 a ss.; Men., 84 a-c; Sof, 230 b ss.). Aristóteles definiu a R. como a "demonstração do contraditório" {El. sof, I, 165 a 2), isto é, como o silogismo que a tem como conclusão (que é assim "refutada"). Para Aristóteles, as R. {elencos) sofísticas não são verdadeiras R.; suas duas classes (as que utilizam o modo de exprimir-se REGIÃO 840 REGULA FIDEI e as que prescindem dele) são não demonstrações negativas, mas artifícios ou truques verbais cuja finalidade é reduzir o adversário ao silêncio e de levar a melhor. REGIÃO (ai. Regiori). 1. Termo empregado por Husserl para indicar "a unidade superior e completa de gênero, à qual pertence um concreto", ou seja, "a totalidade ideal de todos os indivíduos possíveis de uma essência concreta" (Ideen, I, § 16). P. ex., "todo objeto empírico concreto insere-se, com sua essência material, num gênero material superior, numa R. de objetos empíricos" (lbid., § 9)- A natureza é uma região desse tipo (lbid., § 10). Correspondentemente, Husserl fala de uma "ontologia regional", referente às estruturas de determinada região. 2. O gestaltismo empregou esse conceito com sentido diferente, ligado à noção topo-lógica correspondente (v. TOPOLOGIA). K. Lewin entende por R.: 1Q tudo aquilo em que um objeto do espaço de vida (p. ex., uma pessoa) tem lugar ou move-se; 2S tudo aquilo em que se possam distinguir várias posições ou partes ao mesmo tempo, ou que seja parte de um todo mais amplo. Com base nessa definição, a própria pessoa é uma R. no espaço de vida, e também o espaço de vida, como um todo, é uma R. (Principies of Topological Psychology, 1936, p. 93). REGIME (lat. Regimen). Em geral, orientação ou direção; em particular, orientação ou direção do Estado, o governo. REGRA (lat. Regula-, in. Rule-, fr. Règle, ai. Regei; it. Regola). Chama-se de R. qualquer proposição de natureza prescritiva. Esse termo é generalíssimo e compreende as noções mais limitadas de norma, máxima e lei. Neste sentido, Wolff definiu a regra como "uma proposição que enuncia uma determinação em conformidade com a razão" (Ont., § 475). Kant, analogamente, afirmava.- "Chama-se de regra a representação de uma condição geral à qual certa multiplicidade pode ser submetida; quando deve ser submetida, chama-se lei") (Crít. R. Pura, 1- ed., Dedução dos conceitos puros do intelecto, 4). Esse significado generalíssimo continua caracterizando a R. (v. LEI; MÁXIMA; NORMA). REGRESSÃO (in. Regression; fr. Regression; ai. Regression; it. Regressioné). Em geral, movimento inverso ou retorno. Freqüentemente com conotação pejorativa de regresso como movimento oposto ao progresso. Às vezes, foi chamado de regressivo o método analítico, e de progressivo o método sintético (cf. HAMILTON, Lectures on Logic, II, p. 7). (V. ANÁLISE.) REGRESSO (it. Ricorsó). Com esse termo, Viço designou o retorno da história sobre seus próprios passos, que se verifica quando os remédios que a Providência dispõe contra a corrupção dos estados se esgotam ou não agem eficazmente. O R. consiste em voltar ao estado de selvageria, em retornar aos rigores da vida primitiva, que dispersa e extermina os homens, até que o pequeno número de homens remanescentes e a abundância das coisas necessárias à vida possibilitem o renascimento da civilização, novamente com base na religião e na justiça (Ciência nova, 1744, Conclusão). REGULADOR (in. Regulative, fr. Régulatif; ai. Regulativ, it. Regolativo). Kant chamou de R. o uso das idéias da razão pura como regras simples do trabalho intelectual, em oposição ao seu uso constitutivo, em virtude do qual elas são consideradas constitutivas do objeto da atividade intelectual. "Afirmo que as idéias transcendentais nunca são de uso constitutivo, tal que por meio delas possam ser dados os conceitos de certos objetos, e que se forem assim entendidas serão simplesmente conceitos sofísticos (dialéticos). Ao contrário, têm um uso R. excelente e indispensável, que consiste em dirigir o intelecto para certo objetivo, em vista do qual as linhas diretivas de todas as suas regras convergem como para um ponto; este, embora nada mais seja que uma idéia (Jocus imaginarius), ou um ponto do qual, na realidade, não partem os conceitos do intelecto porque ele está fora dos limites da experiência possível, ainda assim serve para conferir a tais conceitos a maior unidade com a maior extensão possível" (Crít. R. Pura, Apêndice à dialética, Do uso regulador, etc). (V. IDÉIAS.) REGULA FIDEI. 1. Com esta expressão designa-se em teologia a regra que determina o objeto da fé, o conteúdo autêntico da revelação. Na filosofia patrística e escolástica, foi adotado como regra desse tipo o "Símbolo dos Apóstolos" (Symbolum Apostolorum), que compreendia, além do conteúdo da Bíblia, também o conjunto da tradição eclesiástica (decisões conciliares e papais, opiniões dos escritores aprovados pela Igreja, etc.) (cf. M. GRABMANN, Die Geschichte der scholastischen Methode, I, pp. 76 ss.). Essa regra continuou válida para o cristianismo católico, mas o cristianismo protestante limitou-a ao conteúdo da Bíblia. A dife- REGULARIDADE 841 RELAÇÃO rença entre catolicismo e protestantismo gira precisamente em torno da diferença da regula fidei (v. REFORMA). 2. Com a mesma expressão designa-se às vezes o princípio segundo o qual a fé é a regra da verdade. É assim em S. Tomás de Aquino: "Uma vez que a fé se baseia na verdade infalível, e como é impossível demonstrar o contrário do verdadeiro, é evidente que os argumentos aduzidos contra a fé não são demonstrações, mas argumentos refutáveis" (S. Th., I, q. 1, a. 8). REGULARIDADE (in. Regularity, fr. Régu-lanté, ai. Regelmássigkeit; it. Regolaritã). Em geral, conformidade com a regra. Kant viu na R. a condição ao mesmo tempo do pensamento e da realidade: "A R. que conduz ao conceito de um objeto é a condição indispensável (conditio sine qua nori) para perceber o objeto numa única representação e determinar a multiplicidade em sua forma" (Crít. do Juízo, § 22, nota). Kant considera a própria natureza em geral como "R. dos fenômenos no espaço e no tempo" (Crít. R. Pura, § 26) (v. NATUREZA). REIFIGAÇÃO (fr. Réification; ai. Verdingli-cbung; it. Reificazioné).Termo empregado por alguns escritores marxistas para designar o fenômeno, ressaltado porMarx, de que, na economia capitalista, o trabalho humano torna-se simples atributo de uma coisa: "A magia consiste simplesmente em que, na forma de mercadoria, devolvem-se aos homens, como espelho, as características sociais de seu próprio trabalho, transformadas em características objetivas dos produtos desse trabalho, na forma de propriedades sociais naturais das coisas produzidas; portanto a mercadoria espelha também a relação social entre produtores e trabalho global, como relação social de coisas existentes fora dos próprios produtos. Por meio desse quidpro quo os produtos do trabalho tornam-se mercadorias, coisas sensivelmente supra-sensíveis, isto é, sociais" (Das Kapital, I, I, § 4). O termo R. para indicar esse processo foi usado e difundido por G. Lukács (cf. Geschichte undKlassenbewusst-sein, 1922; trad. fr., 1960, pp. 110 ss.). REINO (lat. Regnum; in. Realm; fr. Royau-me, ai. Reich; it. Regnó). Termo introduzido na filosofia por Bacon para indicar o domínio do homem sobre a natureza (cf. o título da primeira parte do Novum Organum. "Aforismos sobre a interpretação da natureza e sobre o R. do homem"). Leibniz usou esse termo com sentido diferente, como domínio ou campo de validade de um princípio, e falou de um "R. físico da natureza" e de um "R. moral da graça" (Monad., § 87). No mesmo sentido, Kant falou de um R. dos fins (v. FINS), de um R. da liberdade (cf. Religíon, 11, seç. II), de um R. da graça e de um R. da natureza (Crít. R. Pura, Doutrina transe. do método, cap. 11, seç. II). Mais recentemente, Santayana empregou esse termo com significação semelhante (Realms ofBeing, 4 vols.: The Realm of Essence, The Realm of Matter, The Realm ofTruth, The Realm of Spirit, 1927-40). REINO DOS FINS. V. FINS. RELAÇÃO (gr. TO Ttpóç; lat. Ad aliquid, Re-latio-, in. Relation; fr. Relation; ai. Relation-, it. Relazioné). Modo de ser ou de comportar-se dos objetos entre si. Esta definição não passa de esclarecimento verbal do termo, que não pode ser definido em geral de outro modo, ou seja, fora das interpretações específicas que os filósofos lhe deram. Esta é, aliás, a definição retificada que Aristóteles deu da R.: como aquilo "cujo ser consiste em comportar-se de certo modo para com alguma coisa" (Cat., 7, 8 a 33), o que coincide substancialmente com a definição de Peirce: "R. é um fato em torno de certo número de coisas" (Coll. Pap., 3-416). Os dois problemas fundamentais oriundos do conceito de R., de cuja solução dependem as determinações do próprio conceito, são os seguintes: ls Devem ser consideradas incluídas, no conceito de relação, as determinações substanciais (essenciais ou qualitativas), ou tais determinações devem ser excluídas do conceito? 2- As R. constituem entidades reais ou são apenas realidades mentais? Esses problemas, obviamente, são interdependentes, e com base nas respostas interligadas que lhes foram dadas ao longo da história é possível distinguir três doutrinas fundamentais: A) a que admite a objetividade e a realidade das R.; S) a que nega a realidade e a objetividade das R.; Ô a que admite a objetividade das R., mas não sua realidade. A) Platão certamente admitiu a objetividade das R., mas é duvidoso que admitisse sua realidade: "Creio que admites que, de alguns dos entes, se deve dizer que são unicamente por si, enquanto, de outros, que estão sempre em relação com outros" (Sof., 255 c-d). No entanto, os entes em R., assim como o diferente e o idêntico, não são o ser (Ibid., 255 c-d): isso também poderia significar que eles não têm existência ou realidade como tais. A doutrina de Aristóteles é igualmente confusa neste pon- RELAÇÃO 842 RELAÇÃO to. Ele distinguiu três espécies de R.: Ia as quantitativas, como as expressas por dobro, metade, etc; 2a as potenciais, que consistem numa potência ativa ou passiva, como ser causa ou causado, cortar ou ser cortado, etc; 3 a as R. que têm termo num objeto real, como a medida com respeito ao mensurável, o conhecimento com respeito ao cognoscível, a sensação com respeito ao sensível {Met., V, 15, 1020 b 25). A Ia espécie já parece implicar a existência de R. reais (as da 2a e da 3a espécies); na realidade, o próprio Aristóteles diz que "algumas R. acham-se necessariamente dentro ou em torno das coisas às quais se referem", e que "tal é o caso da simetria, da propriedade e da disposição" {Top., IV, 4, 125 a 33). No entanto, boa parte do capítulo das Categorias dedicado às R. discute o problema de saber se entre as R. há substâncias; a conclusão, embora não categórica, é negativa: certamente não há substâncias primeiras entre as R., e também é difícil dizer que as substâncias segundas sejam R. {Cat., 7, 8 b 15). Além disso, um dos argumentos aduzidos por Aristóteles contra a doutrina das idéias é o fato de que ela levaria a admitir a realidade das R.: "A R. não é sobretudo natureza ou substância; vem depois da qualidade e da quantidade e é, antes, uma determinação da quantidade, como se disse, mas não matéria" {Met., XIV, 1, 1088 a 21). Neste caso, Aristóteles considera, evidentemente, apenas as R. da Ia espécie, mas a sua afirmação não é condicionada por qualquer limitação. Não admira, portanto, que depois tenham recorrido a Aristóteles tanto os que afirmavam quanto os que negavam a realidade das R. Plotino reproduz a doutrina de Aristóteles com as mesmas confusões {Enn., VI, 1, 6). A escolástica cristã estilizou-a na distinção entre R. de razão, R. potencial e R. real, o que corresponde exatamente às espécies distintas por Aristóteles. Mas, por motivos teológicos, a escolástica cristã tinha interesse em admitir a realidade das R., utilizando esse conceito para esclarecer o dogma da trindade; essa era a tese defendida por S. Tomás de Aquino contra "os que afirmaram não ser a R. coisa de natureza, mas somente de razão", o que ele declarou falso porque "as coisas têm uma ordem ou uma disposição natural umas com respeito às outras" (5. Th., I, q. 13, a. 7). Com base nisso, S. Tomás de Aquino reexpôs as distinções de Aristóteles, defendendo o caráter real das R. em que consistem a ciência e a sensibilidade, porquanto tais R. "são ordenadas para conhecer e perceber as coisas" (Ibid.). As R. de razão são somente aquelas em que ambos os termos são entes de razão; são as R. existentes "quando a ordem ou a disposição só pode existir segundo a apreensão da razão, como no caso de se afirmar que uma coisa é idêntica à outra" {Ibid.X Mas afirmar a realidade das R. significa privilegiar certo tipo de R., moldando todas elas de acordo com a segunda e a terceira espécie de Aristóteles; mais precisamente, significa considerar qualquer tipo de R. como uma potencialidade ou disposição, ou como uma condição ou um estado dos termos relativos. No fim do séc. XIII, Duns Scot insistiu nessa natureza da R., propondo a doutrina da R. como res-pectus, termo que pretende traduzir a palavra grega a%éaiç (usada, por exemplo, por SIM-PLÍCIO, Ad Cat., 61 B) e significa disposição. O principal argumento aduzido por Scot em favor de sua teoria era que, a não se admitir tal respectus, não é possível compreender a composição dos entes, visto que, se a união de a e b não passa de a e b absolutos, o composto de ae b em nada difere de a e b separados, logo não é um composto {Op. Ox., II, d. 1, q. 4, n. 5). Essa doutrina foi adotada por todos os escritores escotistas, mas combatida por Ockham e pelos nominalistas e terministas do séc. XIV (ver mais adiante). No séc. XVII, Jungius ainda recorria a tal doutrina, considerando a R. como habitudo ou respectus {Lógica hamburgensis, I, 8, 4). Em época recente, o problema das R. foi tratado de modo semelhante ao de Duns Scot por F. H. Bradley, que mostrou que as R. só podem ser entendidas como atributos do relativo, consistindo portanto numa qualidade ou modificação dos termos relativos. Seja como for, a relação é incompreensível porque só faz predicar o idêntico com o diferente e o diferente com o idêntico {Appearance and Reality, 1902, 2a ed., pp. 21 ss.). Essa doutrina, conhecida como "doutrina das R. internas", foi combatida especialmente pelos lógicos matemáticos. B) A segunda doutrina fundamental das R. nega sua objetividade e realidade, considerando-as acidentais ou subjetivas. Foi proposta pela primeira vez por Avicena, que reproduzia um ponto de vista defendido pela seita maometana motakallimum, valendo-se de teses aristotélicas análogas. Avicena dizia: "Ao afirmar-se que uma R. existe, imediatamente é preciso dizer que ela é um acidente, porque não há dúvida de que não pode ser entendida RELAÇÃO 843 RELAÇÃO por si, mas sempre de algo com respeito a algo" (Met., III, 10). Afirmar o caráter acidental das R. eqüivalia, para Avicena, a negar sua realidade, uma vez que, como acidentes, as R. não são substâncias. Quando essa doutrina foi retomada pelos filósofos nominalistas e terministas, no séc. XIV, assumiu a forma de redução da R. a pura "entidade de razão", destituída de realidade ou fundamento fora da alma humana. Tal é a doutrina sustentada por Henrique de Gand (Quodl, IX, q. 3; V. q. 6), por Herveus Natalis (Quodl., I, q. 9) e por Pedro Auréolo. Este último afirmava: "A R. não tem existência nas coisas, prescindindo de apreensão intelectivo-sensível, mas existe subjetivamente apenas na alma, porquanto nas coisas só há fundamentos e termos: o hábito e a conexão das coisas deriva da alma cognoscitiva" (In Sent., I, d. 30, q. 1). Este foi também o ponto de vista defendido por Ockham, que instituiu uma crítica minuciosa da doutrina do respectus. Segundo ele, esta doutrina multiplicaria as entidades ao infinito: "Com o movimento do meu dedo, eu encheria todo o universo, o céu e a terra de novos acidentes, pois que, mudando a posição do dedo com respeito às outras partes do céu haveria outros tantos novos respectus nessas partes, que são infinitas, portanto haveria infinitos novos acidentes" (Quodl, VII, q. 8; In Sent., II, q. 2, Y). Todo corpo conteria, por motivos análogos, infinitas realidades, uma vez que todo corpo pode ser considerado duplo com respeito à sua metade, e esta metade pode ser considerada o dobro de sua metade, e assim por diante (Quodl, VI, q. 10; Summa log., I, 50). No entanto, Ockham não afirma o caráter puramente mental das R., como fizera Avicena (v. abaixo). Essa doutrina reapareceu no âmbito do cartesianismo. Foi defendida por Locke, que considerou as R. como idéias complexas, que consistiriam em "considerar e confrontar uma idéia com a outra" (Ensaio, II, 12, 7), e reconheceu explicitamente o caráter subjetivo delas, embora não excluísse a alusão às coisas. "Uma vez que os modos mistos e as R. não têm outra realidade além da que possuem no espírito humano, para tornar real essa espécie de idéias só é preciso que elas sejam forjadas de tal maneira que haja possibilidade de existência em conformidade com elas" (Ibid., II, 30, 4). Por sua vez, Leibniz afirmava que as R. têm realidade mental ou fenomênica (Nouv. ess., II, 12.7) e que, por conseguinte, "têm uma realidade dependente do espírito, tais como as verdades, mas não do espírito dos homens, porque há uma inteligência suprema que as determina em todos os tempos" (Ibid., II, 30, 4). Em conformidade com este mesmo conceito, Wolff definia a R. como "aquilo que não convém à coisa de maneira absoluta, mas que só é entendida quando se refere a outra coisa" (Log., § 856); e completava: a R. "não acrescenta nenhuma realidade ao ente" (Ibid., § 857). A subjetividade das R., além disso, é o princípio fundamental do kantismo: "Se suprimíssemos nosso sujeito ou mesmo apenas a natureza subjetiva dos sentidos em geral, toda a natureza. todas as R. entre os objetos no espaço e no tempo, aliás, o espaço e o tempo mesmo desapareceriam" (Crít. R. Pura, § 8). Nesse mesmo princípio (aduzido na maioria das vezes de maneira implícita) baseia-se boa parte da filosofia contemporânea. O A terceira concepção fundamental considera que as R. não são reais, mas são objetivas. Ockham, que foi o mais resoluto crítico da realidade das R., afirmara também, a seu modo, seu caráter objetivo: "Não é o intelecto que torna Sócrates semelhante a um outro, assim como não é o intelecto que o torna branco" (In Sent., I, d. 30, q. 1, P); isso significa que a relação, como intenção ou conceito da alma, refere-se a várias coisas isoladas ou é várias coisas isoladas, "assim como o povo é vários homens e nenhum homem é povo" (Ibid.). No entanto, nestas afirmações, assim como nas de Locke e de outros que insistiam na referência objetiva da R. (como conceito ou idéia), tal referência é entendida como referência à realidade. A característica da doutrina moderna, nesse sentido, é que a objetividade da R. não implica sua realidade, ou seja, reconhecer que a R. é objetiva não implica que em todos os casos ela ocorra entre coisas ou entidades reais. Este sentido da R. está intimamente ligado ao sentido que o ser predicativo assumiu na lógica contemporânea (v. SER). Desse ponto de vista a matemática e a lógica foram definidas como "ciências das R." (v. LÓGICA; MATEMÁTICA). Em particular, no que diz respeito à lógica, pode-se dizer que tanto o cálculoproposicional quanto o de classes versam exclusivamente sobre R., porquanto são R. os conectivos (e, ou, não, se... então) de que trata o cálculo proposicional e as entidades de que trata a álgebra das classes. Contudo, o cálculo das R. também constitui um ramo específico da lógica contemporânea, ramo cujos avanços se devem espe- RELAÇÃO 844 RELATIVIDADE, TEORIA DA cialmente a E. Schrõder (Álgebra der Logik, 1895) e a Peirce (The Logic ofRelatives, 1897, Coll. Pap., 3.456-526). Neste sentido restrito, entendem-se por R. as funções proposicionais diádicas ou poliádicas (com duas ou mais variáveis), que são escritas na forma f(x, y) ou, mais freqüentemente, xRy. As características mais gerais da R. neste sentido são as seguintes: Ia Se 7? ocorre não só entre xe y, mas também entre y e x, diz-se que é simétrica. É simétrica, por exemplo, a relação entre dois irmãos. Caso contrário, é chamada de assimétrica. As R "antes", "depois", "à esquerda" são assimétricas. 2- Se R é tal que, quando x tem R. R com y e y tem R. R com z, também x tem a R. R com z, chama-se transitiva. São transitivas as R. "menor", "precede", "à esquerda"; é intransitiva a R. de paternidade. 3a Se R é tal que nenhum termo está em R. R consigo mesmo, a R. é chamada de aliorre-lativa. São aliorrelativas as R. "irmão", "marido", "pai", etc. 4-Se Ré tal que, dados dois termos diferentes do campo, x e y, pode ocorrer entre x e y ou entre ye xou entre xe ye entre y e x, a R. é chamada de coerente. É coerente a R. "maior ou menor"; não é coerente a R. "antepassado". 5a O termo x que tem R. i? com um ou mais termos (y, z...) chama-se dominante, enquanto são chamados de dominantes inversos os termos com que o termo x tem a R. R, quais sejam, os termos y, z, etc. Na R. de "paternidade", pai é dominante, "filhos" são dominantes inversos. 6a O campo de uma R. consiste no conjunto do dominante e dos dominantes inversos. No caso da R. de paternidade, o campo é o conjunto pai-filhos. 7a Diz-se que uma R. implica outra se esta é válida sempre que a primeira é válida. Essas noções elementares definem a natureza objetiva, conquanto não real, das R., na forma constantemente empregada pela lógica e pela matemática contemporâneas. Trata-se de características que generalizam ao máximo a noção de R., permitindo incluir nela e esclarecer com ela os conceitos mais díspares (cf. WHITEHEAD e RUSSELL, Principia mathematica, vol. I, 1925). Para uma exposição sumária da noção das R. em função dos conceitos fundamentais da matemática, cf. RUSSELL, Introduc-tion to Mathematical Philosophy, 1918; trad. it., 1947. Quanto aos aspectos matemáticos, cf. W. v. O. QUINE, Methods of Logic, 1942, especialmente o § 40. RELAÇÃO DE COISAS. V. ESTADO DE COISAS. RELACIONAL(in. Relational; ai. Relationnel; it. Relazionale). O que é uma relação ou diz respeito a uma relação. O adjetivo exclui o significado relativista que pode ter o termo relativo (v.). Portanto, é preferido pelos filósofos que, mesmo insistindo na importância da relação, não pretendem chegar a conclusões re-lativistas. Nesse sentido, N. Hartmann distinguiu relacionalidade de relatividade: p. ex., os valores estão em relação com o homem e com seu mundo sem perder sua absolutidade irrelativa (Ethik, 1949, p. 140). O termo rela-cionismo(relazionismo) foi usado na Itália para indicar uma filosofia que considera a relação como fenômeno essencial do universo e do homem, mas sem implicações relativistas (cf. E. PACI, DalVesistenzialismo ai relazionismo, 1957, p. 45 e passim). RELATIVIDADE, TEORIA DA (in. Theory of relativity, fr. Théorie de Ia relativité; ai. Relativitátstbeorie, it. Teoria delia relativitã). Com este termo designam-se dois corpos de doutrinas formuladas por Einstein: o primeiro em 1905 como o nome de R. restrita e o segundo em 1913 com o nome de R. geral. A R. restrita baseia-se no reconhecimento de que a escolha de um sistema de referências, indispensável para fazer medições, pode influenciar os resultados dessas medições; e que, não existindo um sistema de referências privilegiado (ou "absoluto"), à diferença do que julgara a física clássica, por um lado é preciso explicitar o sistema segundo o qual é feita a medição e por outro lado é necessário encontrar fórmulas de conversão que tornem válidas tais medições também em outros sistemas. A R. geral é substancialmente a extensão do princípio de R. a todos os sistemas, e não apenas aos sistemas inerciais para os quais é válida a R. restrita; assim, é substancialmente uma teoria que recluz a gravitação a uma deformação do contínuo quadrimen-sional do espaço-tempo (cf. A. EINSTEIN, L. INFELD, The Evolution of Physics, 1938, trad. it., 1950; quanto à bibliografia, o volume dedicado a Einstein na coleção "Living Philoso-phers" de Schilpp, 1949). A teoria da R. teve numerosas interpretações filosóficas. Uma delas é a relativista, que a entendeu como confirmação do relativismo filosófico (cf., p. ex., A. ALUOTTA, Relativismo, idealismo e REIATTVISMO 845 REIATIVISMO teoria de Einstein, 1948). Outra é a idealista ou espiritualista, defendida especialmente por A. Eddington {The Nature of the Phisical World, 1928; The Philosophy ofPhysical Science, 1939), mas na realidade a teoria da R. presta-se muito menos a interpretações filosóficas do que as teorias clássicas. A relatividade de que ela fala nada tem a ver com o relativismo: uma medida por certo é relativa, não ao homem nem ao sujeito cognoscente, mas ao sistema de referência, podendo também ser expressa com base em outros sistemas. Tampouco se pode dizer que a teoria da R. seja mais subjetivista ou idealista que a física clássica. A lição mais importante que a filosofia pode aprender com ela diz respeito ao método, e pode ser inferida das seguintes palavras de Einstein: "Para o físico, um conceito só tem valor quando é possível estabelecer se ele convém ou não. Portanto, precisamos de uma definição da simultaneidade que forneça o método para reconhecer por meio de experiências se dois relâmpagos foram simultâneos ou não. Enquanto essa condição não se realizar, eu, como físico (e também como não físico), estarei me iludindo se achar que posso atribuir significado à expressão de simultaneidade" {Uberdiespazielle und die allgemeine Relativitütstheorie, 1917, § 8; trad. it., p. 18). Essas palavras expressam a exigência geral de que, para ser válida, qualquer proposição deve poder ser confirmada ou comprovada por métodos hábeis (v. SIGNIFICADO). RELATIVISMO (in. Relativism; fr. Relati-visme; ai. Relativismus; it. Relativismus). Doutrina que afirma a relatividade do conhecimento, no sentido dado a esta expressão no séc. XIX, a saber: le como ação condicionante do sujeito sobre seus objetos de conhecimento; 2e como ação condicionante recíproca dos objetos de conhecimento. Este condicionamento duplo dos objetos de conhecimento foi primeiramente tomado como fundamento do R. por W. Hamilton, que, por um lado, insistia no fato de que todos os objetos existentes podem ser conhecidos apenas em relação com as faculdades humanas e em condições ditadas por essas mesmas faculdades {Lectures on Metaphysics, 1, 1870, 5a ed, p. 148), e, por outro, na con-dicionalidade que os objetos de conhecimento exercem uns sobre os outros {Discussion on Philosophy, 1852, p. 13). Com base nesses dois pontos (que nada tinham de original, pois podem ser facilmente reconhecidos como as teses mais genéricas do empirismo e do criticismo), Hamilton afirmava, ao mesmo tempo, a incognoscibilidade e a existência do Absoluto, uma vez que se pode crer também naquilo que não se conhece {Lectures, cit., II, pp. 530-531). Essas teses foram utilizadas como apologética religiosa por E. L. Mansel {Philosophy of the Conditioned, 1866). Mas o principal responsável por sua difusão foi o positivismo, pois Spencer aceitava o ponto de vista de Hamilton, admitindo a relatividade do conhecimento humano, a incognoscibilidade do Absoluto e sua existência {First Principies, 1862, §§ 23 ss.). Fora do positivismo, o R. foi aceito por algumas correntes do neocriticismo e do pragmatismo. No neocriticismo, E. Renouvier {Essais de critique générale, 1854-64) insistiu na relatividade do fenômeno, que só subsiste em relação com outros fenômenos e em relação com o sujeito cognoscente {Essais, I, pp. 50 ss.); G. Simmel afirmava que "o R. pode ser afirmado da seguinte maneira, com referência aos princípios do conhecimento: os princípios constitutivos fundamentais, que expressam definitivamente a essência das coisas, tornam-se princípios reguladores, que são apenas pontos de vista para o progresso do conhecimento" {Philosophie des Geldes, 1900, p. 68). No âmbito do pragmatismo, o R. era defendido por F. E. S. Schiller; desse ponto de vista, era a negação das verdades "absolutas" ou "racionais" e o reconhecimento de que a verdade é sempre relativa ao homem, é válida porque útil a ele; por isso, Schiller via no ditado de Protágoras "o homem é a medida de todas as coisas" a maior descoberta da filosofia {Studies in Humanism, 1902, pp. X ss.). A sofistica antiga, o ceticismo e (em parte) o empirismo e o criticismo tornavam-se, desse ponto de vista, manifestações de um R. que buscava precedentes e tentava criar tradição. Na realidade, porém, o R. foi um fenômeno moderno, ligado à cultura do séc. XIX, e constituiu uma espécie de subversão da filosofia dogmática do séc. XX. Isso pode ser notado com certa facilidade na manifestação extrema (a única autêntica) do R., que é a doutrina exposta por O. Spengler em seu livro A decadência do Ocidente (1918-22), em que se afirma não só a relatividade do conhecimento, mas também de todos os valores fundamentais da vida humana nas épocas da história consideradas como entidades orgânicas, cada uma das quais cresce, desenvolve-se e morre sem relação com a outra. Segundo esse ponto de vista, a relatividade está não só na verdade reli- RELATIVO 846 RELIGIÃO giosa e filosófica, mas também na verdade moral e científica. "Cada cultura" — dizia Spengler — "tem seu próprio critério, cuja validade começa e termina com ela. Não há moral humana universal" (Der Untergang des Abendlandes, I, cap. I, p. 55). Nesta forma, que é a única rigorosamente coerente, o R. afirma a relatividade dos valores somente porque considera necessária a relação entre eles e a época histórica à qual pertencem, negando-lhes a possibilidade de serem relativos a outros homens, a outras épocas ou a outras circunstâncias, obtendo assim uma autonomia parcial que desmentiria o R. Esse mesmo ponto de vista é defendido com freqüência naquilo que hoje se chama de R. cultural, que parte do reconhecimento da diversidade dos costumes e das normas vigentes em culturas diversas. Esse R. tem raízes remotas (Heródoto, Protágoras e Discursos duplos, texto de inspiração sofista, talvez da primeira metade do séc. IV a.C), mas hoje se apoia no reconhecimento quase universal da pluralidade e da heteroge-neidade das culturas. Em sua forma extrema, foi defendido por Herskovits (CulturalAnthro-pology, 1955); a respeito, v. o volume coletivo Relativism and the Study of Man, org. por SCHOECK e WIGGINS, 1961). RELATIVO (lat. Relativus; in. Relative, fr. Relatif ai. Relativ, it. Relativo). 1. Aquilo que participa de uma relação ou desempenha a função de termo numa relação. Neste sentido, diz-se "o fenômeno x é relativo a y como causa". 2. Termo que não tem significado, ou que não tem significado exato, a não ser em referência a outro termo. Neste sentido "maior", "menor", "duplo", etc. são R. porque são sempre citados com referência a alguma outra coisa. 3. Aquilo que vale somente em determinadas circunstâncias ou condições e não vale fora delas. Neste sentido, diz-se que o conhecimento é R. ou que os valores são R., e que o oposto de R. é "absoluto" ou "incondicionado". 4. O que é relação ou concerne a uma relação. Neste sentido, diz-se, p. ex., que "o conhecimento é R.", "significando que ele consiste em estabelecer relações entre dados. Contudo, neste caso, o adjetivo relacionai (v.) é mais apropriado. 5. Como substantivo, o termo é usado por Schrõder (Álgebra derLogik, 1895) e por Peirce (Coll. Pap., 3.456.526: "The Logic of Relatives", 1897), sendo sinônimo de relação. RELEVANTE (in. Relevant; fr. Relevant; ai. Be-deutend; it. Rilevantè). Chama-se de R. a um enunciado significante, especialmente se for importante para o significado total do contexto em que se acha. Às vezes também são chamados de R. os elementos de fato, importantes para o juízo de determinada situação. RELIGIÃO (lat. Religia, in. Religion; fr. Religion; ai. Religion; it. Religioné). Crença na garantia sobrenatural de salvação, e técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia. A garantia religiosa é sobrenatural, no sentido de situar-se além dos limites abarcados pelos po-deres do homem, de agir ou poder agir onde tais poderes são impotentes e de ter um modo de ação misterioso e imperscrutável. A origem sobrenatural da garantia não implica necessariamente que ela seja oferecida por uma divindade e que, portanto, a relação com a divindade seja necessária à R.: na realidade, existem R. ateístas, como o budismo primitivo, retomado e defendido neste seu caráter por escolas posteriores (cf. G. Tucci, Storia delia filosofia indiana, pp. 71 ss.; 312 ss.). Além da determinação da relação do homem com a divindade, a função de demonstrar a existência desta e de esclarecer suas características e funções em relação ao homem e ao mundo sempre foi atribuída mais à filosofia que à R.; o cumprimento dessa tarefa pode até ter caráter anti-religioso, como aconteceu no epicurismo, que pretendeu estabelecer ao mesmo tempo a existência da divindade e sua indiferença para com o mundo e os homens, regulando com base nisso as relações da divindade e do homem. (EPICURO, Carta a Meneceu, 123-24; FILODEMO, De pietate, p. 122; fr. 38, Usener). Por outro lado, hoje, para alguns teólogos, a relação entre o homem e Deus é artigo de fé, e não de R., porque não depende das formas míticas que a R. assumiu e é constitutiva da existência humana no mundo (v. FÉ; DEUS; DEUS, MORTE DE). Em qualquer caso, a salvação de que a R. pretende ser garantia não se refere necessariamente a este ou aquele mal do mundo: pode inclusive significar livrar-se do mundo, já que este é considerado um mal em sua totalidade, como de fato acontece no próprio budismo. Além disso, na definição proposta, convém sublinhar a diferença entre a crença na garantia sobrenatural e as técnicas que permitem obter ou conservar tal garantia. Por técnicas entendem-se todos os atos ou práticas de culto: oração, sacrifício, ritual, cerimônia, serviço divino ou serviço social. A crença na garantia sobrenatural é a atitude religiosa fundamental, poden- RELIGIÃO 847 RELIGIÃO do ser simplesmente interior e pessoal (religiosidade individual); ao contrário, as técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia constituem o lado objetivo e público da R., seu aspecto institucional. Uma R. natural é constituída simplesmente por essa atitude; uma R. positiva é constituída essencialmente por essas técnicas. O conceito de R. compreende ambos os aspectos. Etimologicamente, essa palavra significa provavelmente "obrigação", mas, segundo Cícero, derivaria de relegere. "Aqueles que cumpriam cuidadosamente todos os atos do culto divino e, por assim dizer, os reliam atentamente foram chamados de religiosos — de relegere —, assim como elegantes vem de elegere, diligentes de diligere e inteligentes de intelligere, de fato, em todas essas palavras nota-se o mesmo valor de legere, que está presente em R." {De nat. deor., II, 28, 72). Para Lactâncio {Inst. Div., IV, 28) e S. Agostinho {Retract., I, 13), porém, essa palavra deriva de religare, e a propósito Lactâncio cita a expressão de Lucrécio "soltar a alma dos laços da R." {De rer. nat., I, 930). Deve-se notar também que o grego não possui o equivalente exato da palavra latina e moderna. Aaxpeía significa serviço divino; portanto, refere-se apenas ao segundo dos elementos da R. S. Agostinho {De civ. Dei, X, 1) estabelecia a correspondência entre religio e 9pT|07ceía, mas também esta palavra se refere exclusivamente às técnicas da R. As diferentes definições até hoje feitas de R. podem ser classificadas com base nos dois problemas fundamentais a que correspondem, a saber: I. Com base no problema da origem da R., que na realidade é o problema do tipo de validade da R.; II. Com base no problema da função atribuída à R., ou seja, o caráter específico da garantia que ela oferece à salvação do homem. I. Como acontece também em outros casos, o problema da origem consiste na realidade em saber que tipo de validade se pretende atribuir à R. É possível distinguir três soluções para este problema, a saber: Ia a doutrina da origem divina da R.; 2a a doutrina da origem política; 3a a doutrina da origem humana da religião. Ia A doutrina da origem divina expressa o reconhecimento do valor absoluto (ou infinito) da R. É óbvio que a pretensão de ter origem divina ou sobrenatural é intrínseca em qualquer R., já que todas elas afirmam ter como fundamento uma revelação originária que garante sua verdade ou consideram as crenças e as instituições com que se identificam continuamente confirmadas por testemunhos sobrenaturais, o que é o mesmo. Portanto, do ponto de vista da filosofia, o reconhecimento da origem divina ou do valor absoluto da R. concretizase na tese de que a R. é revelação. Pode-se dizer que essa tese nada mais é que a expressão filosófica do valor absoluto que a R. se atribui. Esse ponto de vista foi expresso com toda a clareza por Hegel: "No conceito da verdadeira R., que é aquela em que está contido o Espírito absoluto, está posto essencialmente que ela é revelada, e revelada por Deus" {Ene, § 564). E acrescenta que "se a Deus for negada a revelação, não restaria outro conteúdo a atribuir-lhe senão a inveja. Mas, se é que a palavra espírito tem sentido, significa a revelação de si" {Ibid., § 564). Não é diferente deste o conceito que Schleiermacher tinha de R: "O universo é uma atividade ininterrupta que se nos revela a todo momento. Todas as formas que ele produz, todos os seres aos quais dá, pela plenitude da sua vida, uma existência particular, todos os acontecimentos que ele gera em seu seio sempre rico e fecundo, correspondem a uma ação que ele exerce sobre nós; assim, em aceitar cada coisa particular como parte do Todo, cada coisa finita como expressão do Infinito, consiste a R." {Reden über dieReligion, 1799, II; trad. it., p. 39). Pode-se expressar essa mesma doutrina afirmando que a R. é a experiência do divino e que, como toda experiência, revela a realidade de seu objeto. Este era o conceito que Bergson tinha da R. autêntica, ou seja, o misticismo: "Se as semelhanças exteriores entre os místicos cristãos dependem de uma comunidade de tradições e de ensinamentos, seu acordo profundo é sinal de identidade de intuição, que pode ser explicada de maneira mais simples pela existência real do ser com o qual acreditam estar em comunicação" {Deux sources, III; trad. it., pp. 270-71). 2a A doutrina da origem política reduz a R. a um estratagema político: portanto, anula seu valor intrínseco. O primeiro a defender essa teoria foi Crítias, um dos trinta tiranos de Atenas. Segundo ele, "os antigos legisladores inventaram a divindade como uma espécie de inspetor das ações humanas, boas ou más, a fim de que ninguém ofendesse ou traísse seu próximo, por medo da vingança dos deuses". Esse estratagema foi necessário porque "as leis realmente dis- RELIGIÃO 848 RELIGIÃO suadiam os homens de praticar violências às claras, mas eles as cometiam às escondidas", de tal maneira que "algum homem talentoso e experiente inventou o temor dos deuses para que os malvados se sentissem amedrontados mesmo no que fizessem, dissessem ou pensassem às escondidas" (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., IX, 54). Concepções análogas recorrem de vez em quando na história da filosofia: podem ser reconhecidas no libertinismo e em algumas correntes do iluminismo e do marxismo. 3a A doutrina da origem humana considera a R. como formação humana, cujas raízes estão na situação do homem no mundo. Essa doutrina não está empenhada em atribuir à R. determinada validade, mas sim em compreendê-la como fenômeno humano e expressá-la num conceito suficientemente amplo para abranger todas as suas manifestações mais díspares. Essa concepção orientou-se para dois tipos de explicações. O primeiro considerou a religião como uma forma de satisfação da necessidade teorética, ou seja, de conhecimento. O segundo considerou que a R. é sugerida ao homem pela situação em que ele se encontra no mundo, substancialmente por suas necessidades práticas. Solução do primeiro tipo encontra-se em Epicuro, para quem a origem da R. está nas imagens oníricas e na necessidade humana de explicar a regularidade dos movimentos celestes (LUCRÉCIO, De rer. nat., V, 1167 ss.). A R. seria mais contemplativa que prática. Hobbes foi o primeiro a atribuir-lhe origem prática; citando as palavras de Estácio "Primus in orbe deosfecit timor" ( Theb., III, 66l), Hobbes afirmava que a principal causa do aparecimento da R. é o temor que nasce da incerteza do futuro: "Por ser inegável que existem causas para todas as coisas que existem ou existirão, é impossível, para o homem que tenta prevenir-se contra os males que teme e obter os bens que deseja, deixar de viver em contínua preocupação com o porvir, de tal maneira que todos os homens, sobretudo os mais previdentes, vivem num estado semelhante ao de Prometeu." É desse estado de temor, bem como da esperança de garantir os bens de que necessita e do desejo de atingir um conhecimento completo do mundo, que, segundo Hobbes, nasce a R. (Leviath., I, 12). Doutrina análoga, mas exposta de maneira mais pormenorizada, foi reapresentada por Humeera História natural da religião (1757). A R. não surge da contemplação, mas do interesse do homem pelos acontecimentos da vida e, portanto, das esperanças e dos temores incessantes que o agitam. Suspenso entre a vida e a morte, entre a saúde e a doença, entre a abundância e a privação, o homem atribui a causas secretas e desconhecidas os bens de que frui e os males pelos quais é continuamente ameaçado (Natural History of Religion, II, em Essays, II, p. 316). Voltaire expunha da seguinte maneira esse mesmo conceito: "É natural que um povo, assustado com o trovão, afligido pela perda de suas colheitas, maltratado pelo povo vizinho, sentindo todos os dias a sua fraqueza, sentindo por todos os lados um poder invisível, tenha finalmente dito: 'Há algum ser superior a nós que nos faz bem e mal'" {Dictionnairephilosophique, 1764, v. Religion, II). Essa doutrina eclipsou-se no início do séc. XX. Por um lado, mesmo o conceito romântico de R. como revelação ou sentimento do infinito foi compartilhado até por filósofos que negavam a validade da R. Feuerbach, p. ex., transformando a teologia em antropologia, afirmava: "A R. é a consciência do infinito: por isso, não é e não pode ser outra coisa senão a consciência que o homem tem da infinidade de seu ser, e não de sua limitação" (Wesen der Christenthum, 1841, § 1). Analogamente, Max Müller via a essência da R. na potencial capacidade humana de "apreender o infinito" ( Vorlesungen über den Ursprung und die Ent-wicklung der Religion, 1880, p. 28). Embora, com essas expressões, se pretendesse ressaltar a origem humana da R., lançava-se mão de conceitos que se prestavam mais a exprimir sua origem divina e seu valor absoluto. Por outro lado, também no campo da investigação sociológica, que começava a examinar as formas de R. dos povos primitivos, manifestava-se a tendência a considerar a R. como contemplação, interpretando-a como concepção do mundo (ou filosofia) certamente grosseira, mas não destituída de certa coerência. E. B. Tylor via a essência da R. primitiva no animismo (v.), que é a crença em seres espirituais considerados presentes em todas as coisas e causadores de todos os eventos (Primitive Culture, 1871). Nesses termos, a R. seria uma metafísica da natureza. Segundo Durkheim, porém, ela seria metafísica da sociedade; para ele, R. é "o mito que a sociedade faz de si mesma", no sentido de que "sociedade é a realidade que as mitologias representaram com tantas formas diferentes, mas que é a causa objetiva, universal e RELIGIÃO 849 RELIGIÃO eterna das sensações suigenerisde que é feita a experiência religiosa" (Formes élémentaires de Ia vie religieuse, 1937, p. 597). Isso quer dizer que a R. primitiva consiste em atribuir a uma suposta realidade as características da sociedade primitiva- as que essa sociedade considera essenciais para si mesma. Essas teses baseavam-se principalmente numa interpretação do totemismo: para Durkheim, o totem é símbolo da força que sustenta o indivíduo: a própria sociedade; nela, a mente primitiva haure todas as suas categorias para a interpretação do mundo. Assim, para Durkheim, a R. tem um caráter contemplativo, também atribuído a ela por outro grande sociólogo francês, Lucien Lévy-Bruhl, que expressa essa tese identificando com o misticismo não só a R., mas a vida dos povos primitivos em sua totalidade (L'ex-périence mystique et les symboles chez les primitifs, 1938). Para todas essas correntes filosóficas e sociológicas, a R. é, em sua origem, um fato cognitivo: é uma tentativa de explicar o mundo ou de formar uma idéia do mundo com base em certo número de experiências mais freqüentes na vida dos homens. O retorno à concepção setecentista de R., segundo a qual sua origem está na situação do homem no mundo, verificase apenas nas correntes mais modernas e críticas da sociologia. Foi W. Robertson Smith quem começou a insistir na importância assumida pelo segundo dos dois elementos (as técnicas) na R. primitiva. "A R. nos tempos primitivos não foi um sistema de crenças com aplicações práticas; foi um corpo de práticas tradicionalmente fixadas, às quais todos os membros de uma sociedade se conformavam naturalmente. Os homens criam regras gerais de conduta antes de começarem a expressar em palavras os princípios gerais; as instituições políticas são mais antigas que as teorias políticas e, de maneira semelhante, as instituições religiosas são mais antigas que as teorias religiosas" (Lectures on the Religion ofthe Semites, 1907, p. 16). Mais tarde, a obra de G. Frazer (The Colden Bough, 1911-14) mostrava a estreita conexão entre R. e magia, partindo da consideração de que o homem é dominado em primeiro lugar pela preocupação de controlar os acontecimentos naturais, com o objetivo de submetê-los às exigências da vida. A diferença entre magia e R., segundo Frazer, consiste no seguinte: a primeira tende ao controle direto dos acontecimentos naturais, ao passo que a segunda procura os meios de tornar propícios os poderes superiores que dominam a natureza. Esta foi a doutrina mais aceita por sociólogos e filósofos. A. Loisy sustentava um ponto de vista bem próximo ao de Frazer (Essai historique sur le sacrifice, 1920) e B. Malinowski apresentava novas provas para a mesma tese. Segundo Malinowski, a R. e a magia surgem e funcionam em situações de tensão emocional: crises da vida, tentativas malogradas, morte e iniciação nos mistérios da tribo, amores infelizes e ódios insatisfeitos. R. e magia também têm em comum o fato de oferecerem uma saída para tais situações por meio de crenças e práticas que se referem ao domínio do sobrenatural. Distinguem-se contudo pelo fato de a magia utilizar técnicas limitadas e simples, enquanto a R. compreende um conjunto de técnicas; a magia limita-se a uma classe de pessoas que faz dela profissão, ao passo que a R. é assunto de todos, e cada indivíduo participa dela ativamente. Por fim, ambas têm funções diferentes: a da magia é suprir a deficiência ou a imperfeição dos instrumentos naturais com instrumentos sobrenaturais, enquanto a função da religião é fortalecer certas atitudes especiais, como a coragem e a confiança na luta contra as dificuldades (Magic, Science and Religion, 1925). Não muito diferente desta, embora expressa em termos teológicos e místicos, foi a tese defendida por Rudolf Otto em seu livro intitulado O sagrado (1917). Segundo Otto, deriva do medo o sentimento de estar em presença de um poder superior, que se cristaliza naquilo que ele chama de tremendum ou maiestas; deriva do sentimento de desesperança, impotência, insignificância o sentimento criatural descrito no Antigo Testamento; e das fantasias compensadoras nasce o conceito daquilo que é completamente outro, que se mistura aos acontecimentos mais corriqueiros sem deixar de parecer novo e estranho. Assim, os ingredientes do sobrenatural eram atribuídos, também por Otto, à situação do homem no mundo. Esse foi o ponto de partida das mais modernas teorias da religião. Segundo Freud, a R. "dá aos homens informações acerca da fonte e da origem do universo, garante-lhes proteção e felicidade final apesar das cambiantes vicissitudes da vida e guia seus pensamentos e suas ações com preceitos apoiados na força da autoridade" (A New Series of Introductory Lectures on Psycho-Analysis, 1933, P- 220). Com esses fundamentos, Freud acredita que a R. consiste na crença de um pai sobrenatural RELIGIÃO 850 RELIGIÃO que protege os homens dos perigos, recom-pensando-os ou punindo-os conforme o caso. Assim, a relação entre o homem e a divindade estaria moldada na relação entre pai e filho (Ibid., pp. 222 ss.). Sem levar em conta o fundo psicanalítico desta concepção, pode-se dizer que ela não difere muito das outras mencionadas anteriormente: a R. é entendida como corretivo, defesa ou protesto diante da situação de incerteza que o homem encontra no mundo. Este é também o conceito que Bergson apresenta de R. estática, à qual ele opôs a R. dinâmica (o misticismo). R. estática seria, pois, "a reação defensiva da natureza contra o poder desagregador da inteligência", no sentido de que a inteligência mostra claramente ao homem a incerteza e os perigos da vida, bem como a inexorabilidade da morte, enquanto a R. seria o conjunto das reações defensivas contra as representações intelectuais da condição humana no mundo (Deux sources, 1932, cap. II, trad. it., pp. 131 ss.). Estritamente sobre a R. primitiva, tese análoga foi defendida com base em ampla documentação por P. Radin em seu livro sobre a R. dos primitivos (Primitive Religion, its Nature and Origin, 1937). II. O segundo dos problemas aos quais as definições de R. já propostas pretendem dar resposta é o da função específica da R. Esse problema pode ser entendido em dois sentidos. Em primeiro lugar, para o problema da garantia de salvação que a R. pretende oferecer ao homem, é possível distinguir três soluções principais: Ia a R. como meio de libertar-se do mundo; 2a a R. como verdade; 3a a R. como moralidade. Em segundo lugar, o próprio problema pode ser entendido do ponto de vista da função exercida pela R. na sociedade ou na economia geral da vida humana (4 a). Ia A garantia que a R. pretende oferecer ao homem pode ser antes de mais nada a de libertá-lo do mundo, que é considerado um mal. Essa é a doutrina do budismo: "Não se deve fruir aquilo que nasce e se transforma, aquilo que se forma e constitui, que é instável, dependente da velhice e da morte, fonte de doenças, frágil, surgido do trânsito dos alimentos. Fugir desse estado significa encontrar outro estado, tranqüilo, situado além do domínio do pensamento, estável, não nascido, não formado, sem dor, sem paixão, felicidade que põe fim às condições de miséria e destrói para sempre os elementos da existência" (Itivuttaka, 43, trad. Pavolini). Esse estado de destruição da existência chama-se nirvana. Mas, segundo o próprio budismo, o nirvana também é o estado de bem-aventurança de quem, já nesta vida, eliminou o desejo e, portanto, o germe da futura existência. Desse ponto de vista, a salvação é concebida pelo budismo não só como libertar-se do mundo, mas também como libertar-se dos males do mundo. Esses dois aspectos estão presentes em muitas R., com exceção da de Israel, que ignora o primeiro: a promessa de bemaventurança a ser alcançada além do mundo ou após a morte costuma ser acompanhada pela promessa de felicidade, de paz ou de bem-estar já na vida terrena. Quando a felicidade ou a paz pode ser alcançada nesta vida só com a superação da condição humana e da deificação, que é a união com Deus e com o princípio cósmico, tem-se o misticismo(v.). No misticismo, Bergson viu a R. dinâmica, a continuação supra-orgânica do elâ vital, o impulso para a criação de uma sociedade nova, baseada no amor universal (Deux sources, 1932, cap. III). Na realidade, o misticismo é apenas uma das soluções para o problema da salvação, sendo típico de uma religiosidade pessoal, contemplativa e solitária, para a qual as atividades e as relações humanas são alheias e insignificantes. 2a A garantia infalível da verdade é pretensão implícita em qualquer R. Do ponto de vista filosófico, essa tese apresenta-se como identidade entre R. e filosofia, com diferenças puramente formais entre elas. Essa foi, p. ex., a teoria defendida por Hegel: "A filosofia tem o mesmo objeto da R. porque ambas têm como objeto a verdade, no sentido superior da palavra, porquanto Deus, e somente Deus, é a verdade" (Ene, § 1). Todavia, a R. distingue-se da filosofia por não expressar a verdade em forma de conceito, mas em forma de representação e sentimento. Hegel diz: "R. é a relação com o Absoluto na forma de sentimento, de representação, de fé; no seu centro, que tudo abarca, tudo está apenas como algo acidental e eva-nescente" (Fil. do dir., § 270). Portanto, aquilo que a R. intui de modo acidental, aproximativo e confuso é demonstrado com caráter de necessidade pela filosofia (Ene, § 573). Está claro, porém, que a doutrina da identidade entre R. e filosofia também pode ser afirmada do ponto de vista da superioridade da R. como forma ou revelação da verdade: é o que faz a filosofia da fé de Haman, Herder e Jacobi, à qual o próprio Hegel se opõe (v. FÉ, FILOSOFIA DA). Contudo é RELIGIÃO 851 RELIGIÃO evidente que nesse caso não é à religião que se confia a garantia da verdade, mas a um órgão, a fé, da qual depende a validade da filosofia e da R., bem como de qualquer outro tipo de saber. Portanto, atribuir à R. como objetivo específico a verdade na maioria das vezes significa, do ponto de vista filosófico, atribuirlhe a função de manifestar a verdade numa forma sem dúvida infalível e certa, mas inferior à forma que a verdade pode assumir em filosofia. Assim, para Gentile, a R. é "a exaltação do objeto subtraído aos vínculos do espírito, no que consiste a idealidade, a cognoscibilidade e a racionalidade do objeto" {Teoria gen. dello spi-rito, 1913, XIV, 7). Portanto, a essência da R. é o misticismo, que é a anulação do sujeito no objeto, em virtude do que o ser de Deus é o não-ser do sujeito (Discorsi di religione, 1920, p. 78). A R. encontra sua verdade apenas na filosofia, que resolve Deus no ato do pensamento. "Como pode esse Deus ser uma vontade a reconhecer, suplicar e esconjurar, à qual é preciso subordinar-se, se Deus está dentro do homem, do seu eu, sendo propriamente o seu eu em seu atualizar-se?" (Sistema di lógica, II, 1922, IV, 8, 4). De maneira mais clara e insofismável, Croce disse que a R. é uma forma provisória e imperfeita de filosofia, e por isso o filósofo deveria ver o religioso como "o seu irmão menor, ele mesmo num momento anterior" (Fil. delia pratica, 1909, p. 314). 3a É crença bem antiga que a R. garante os valores morais do homem, entendendo-se por morais os valores que regulam a ordem da vida social. Era essa a função que Platão atribuía à R.: "A divindade que, segundo a tradição, rege o princípio, o fim e o curso de todos os seres, e procede conforme sua natureza no seu movimento circular; atrás dela vem sempre a justiça punitiva para quem despreza a lei divina" (Leis, 715 e, 716 a). No mundo moderno, esse ponto de vista foi adotado e defendido por Kant: "A R., considerada do ponto de vista subjetivo, é o conhecimento de todos os nossos deveres como mandamentos divinos. A R. em que preciso antes saber que alguma coisa é um mandamento divino para considerá-lo meu próprio dever é a R. revelada (ou que exige uma revelação); ao contrário, a R. em que devo saber que algo é um dever antes de considerá-lo um mandamento divino, é a R. natural" (Religion, IV, seç. I). Kant observa que essa definição de R. previ-ne várias interpretações falsas desse conceito. Em primeiro lugar, exclui que a R. exija ciência de Deus e inclui que basta possuir a simples idéia de Deus. Em segundo lugar, essa definição previne a "falsa idéia de que a R. é um conjunto de deveres especiais que se referem imediatamente a Deus", e impede, portanto, que, além dos deveres humanos ético-sociais, sejam admitidos "os serviços corteses com que poderíamos tentar compensar nossas faltas para com os deveres da primeira espécie" (Ibid., IV, seç. I, nota). Nesta interpretação, porém, o que a R. garantiria seria o absolutismo do mandamento moral: não garantiria (porque isso é da alçada da liberdade humana) a efetivação do mandamento moral, isto é, a realização propriamente dita dos valores morais no mundo. Contudo, na maior parte das vezes pede-se ou atribui-se à R. esta segunda espécie de garantia: de que os valores morais e, em geral, os que interessam ao homem e à sua vida espiritual não fiquem confiados unicamente à boa vontade humana, mas encontrem na providência divina a salvaguarda infalível, capaz de garantir seu triunfo final. Neste sentido, H. Hõffding afirmou que a R. é a "crença na conservação dos valores" (Religionsphilosophie, 1902, p. 13): a fé religiosa seria a convicção "da solidez, da certeza e da continuidade da relação fundamental dos valores com a realidade" (Ibid., 1902, p. 105). Esse é precisamente o otimismo providencialista que muitas correntes filosóficas idealistas e espiritualistas haurem ou pretendem haurir na R., em nome do qual instituem apologéticas religiosas mais ou menos engajadas. 4a Não mais considerando a R. em termos de garantia sobrenatural de salvação, mas com referência às relações inter-humanas, nas quais se insere como sistema de crenças e de instituições, é fácil evidenciar a sua utilidade biológica e social. Não que haja acordo unânime entre os filósofos sobre esse aspecto. Ao afirmarem a não-ingerência da divindade nas atividades humanas, os epicuristas tinham em vista eliminar o medo que os deuses inspiravam, pois consideravam a R. como um motivo suplementar de preocupação e medo, e não de ajuda (cf. EPI-CURO, Ep. aMenaceu, 123; Ep. a Heródoto, 77; Mass. Cap., 1). Alguns sociólogos contemporâneos tampouco deixaram de observar que muitas vezes os ritos religiosos e as crenças a eles associadas são motivo de angústia, de tal maneira que o efeito psicológico do ritual parece ser um sentimento de insegurança e perigo (cf. REMESISCÊNCIA 852 RENASCIMENTO A. R. RADCLIFFE-BROWN, StructureandFunction in Primitive Society, 1952, pp. 148-49). Mas mesmo nesses casos é possível reconhecer a função social da R., na forma de fortalecimento dos laços sociais, principalmente nas sociedades primitivas ilbid., pp. 157 ss.). A. Loisy dizia: "Entregue à ação dos elementos, do clima, daquilo que a terra dá ou recusa, da boa ou má sorte na caça e na pesca, das vicissitudes na luta contra semelhantes, o homem acredita encontrar um meio de regularizar com simulacros de ação as suas possibilidades mais ou menos incertas. O que faz não tem utilidade para o objetivo almejado, mas ele ganha confiança em seus feitos e em si mesmo; ousa e, ousando, realmente obtém mais ou menos o que quer. Confiança rudimentar por vias humildes, mas é o começo da coragem moral" (Essai historique sur le sacrifice, 1920, p. 533). Esse ponto de vista foi desenvolvido mais tarde por Mali-nowski {Magic, Science and Religion, ed. An-chor Books, 1925, p. 89). Como vimos, é mais ou menos isso que Bergson pensa. Trata-se de ponto de vista válido sobretudo para as sociedades primitivas, mas também se sabe (v. PRIMITIVOS) que a sociologia contemporânea tende a eliminar o abismo entre mentalidade primitiva e mentalidade civilizada. Ultrapassados os limites de controle dos acontecimentos por meio de técnicas racionais — limites, ademais, bastante estreitos — o homem reivindica liberdade de fé e entrega-se a crenças libertadoras ou consoladoras, a técnicas que lhe prometam salvação infalível. Obtendo ou não o cumprimento dessas promessas, a função dessas técnicas é bem clara: dar esperança e coragem, consolidar as relações com os outros homens e com o mundo. REMEMSCÊNCIA. V. ANAMNESE. RENASCIMENTO (in. Renaissance, fr. Renaissance, ai. Renaissance, it. Rinascimento). Designa-se com este termo o movimento literário, artístico e filosófico que começa no fim do séc. XTV e vai até o fim do séc. XVI, difundindose da Itália para os outros países da Europa. A palavra e o conceito de R. têm origem religiosa, como ficou demonstrado pelos estudos de Hildebrand, Walser e Burdach: renascimento é o segundo nascimento, o nascimento do homem novo ou espiritual de que falam o Evangelho de São João e as Epístolas de São Paulo. Durante toda a Idade Média, tanto o conceito quanto a palavra designavam o retorno do homem a Deus, sua restituição à vida perdida com a queda de Adão. A partir do séc. XV, porém, essa palavra passa a ser empregada para designar a renovação moral, intelectual e política decorrente do retorno aos valores da civilização em que, supostamente, o homem teria obtido suas melhores realizações: a greco-ro-mana. Assim, o R. foi forçado a ressaltar as diferenças que o distinguiam do período medieval, em sua tentativa de vincular-se ao período clássico e de haurir diretamente dele a inspiração para suas atividades. Contudo não faltam elementos de continuidade entre a Idade Média e o R., e muitos dos problemas preferidos por humanistas e filósofos do R. eram os mesmos já discutidos pela Idade Média, com as mesmas soluções. Isso explica por que a interpretação do R. sempre oscilou entre dois extremos: de um lado, a oposição radical entre ele e a Idade Média; de outro, a continuidade intrínseca entre os dois. A primeira posição foi defendida por Burckhardt (Die Kulturder Renaissance in Italien, 1860), sendo repetida e ampliada por Gentile e seus discípulos. A segunda concepção inspira-se sobretudo na obra de K. Burdach ( Vom Mittelalter zu Refor-mation, Renaissance, Humanismus, 19262) e ganhou forma extremada com G. Toffanin (História do humanismo, 1933). As características fundamentais do R. podem ser brevemente re-capituladas da seguinte maneira: 1- Humanismo, como reconhecimento do valor do homem e crença de que a humanidade se realizou em sua forma mais perfeita na Antigüidade clássica (v., a respeito, HUMANISMO). 2- Renovação religiosa, através da tentativa de reatar os laços com uma revelação originária, na qual se teriam inspirado os próprios filósofos clássicos, como é o caso do platonismo (Nicolau de Cusa, Pico delia Mirandola, M. Ficino), ou através da tentativa de restabelecer o contato com as fontes originárias do cristianismo, ignorando a tradição medieval, como é o caso da Reforma protestante, (v. REFORMA). 3a Renovação das concepções políticas; com o reconhecimento da origem humana ou natural das sociedades e dos Estados (Maquiavel) ou com a tentativa de voltar às formas históricas originárias ou à natureza das instituições sociais (Jusnatufalismo, [v.]). 4- Naturalismo, como novo interesse pela investigação direta da natureza, tanto na forma do aristotelismo, das manifestações de magia ou da metafísica da natureza (Campanella e REPETIÇÃO 853 REPRESENTAÇÃO Giordano Bruno) quanto na forma das primeiras conquistas da ciência moderna. Sobre o R. cf. a Bibliografia de H. BARON, "Renaissance in Italien", em ArchivfürKultur-geschichte, 1927,1931. (Em especial E. CASSIRER, Indivíduo e cosmo na filosofia do R., e os textos de E. Garin; em particular: Idade Média e R., 1954). REPETIÇÃO (in. Repetition; fr. Répétition, ai. Wiederbolung; it. Ripetizioné). 1. Termo introduzido na terminologia existencialista por Kierkegaard. Este, para esclarecer sua significação, aproximou-o da expressão aristotélica quod quid erat esse (v. ESSÊNCIA; SUBSTÂNCIA), que, significando literalmente aquilo que o ser era, expressa a necessidade e a imutabilidade do ser, a sua repetição. Kierkegaard valeu-se desse conceito sobretudo para descrever a natureza da vida ética: à diferença da vida estética, que procura evitar a R., buscando novidades a todo instante (sendo por isso simbolizada por Don Juan), a vida ética baseia-se na continuidade, na escolha repetida que o indivíduo faz de si mesmo e de sua tarefa, sendo, pois, simbolizada pelo matrimônio (Die Wiederbolung, 1843; cf. Diário, IV, A, 15 6). Heidegger, por sua vez, utilizou esse conceito para caracterizar a existência autêntica, como ela se realiza na angústia. A angústia, por libertar o homem "das possibilidades nulas e liberá-lo para as autênticas", consiste em retomar, para o porvir, as possibilidades que já foram no passado: isso é R. (Sein undZeit, § 68 b). Desse ponto de vista, R. é decisão autêntica: "A R. é a transmissão explícita, ou seja, o retorno às possibilidades do ser-aí que é já tendo sido. A autêntica R. de uma possibilidade de existência que já foi, o fato de o ser-aí escolher seus heróis, baseia-se existencialmente na decisão antecipa-dora, porque é nela que se escolhe a escolha que liberta para a sucedaneidade da luta e para a fidelidade àquilo que deve ser repetido" (Ibid. § 74). Isso quer dizer que a decisão autêntica, em que consiste a historicidade da existência humana, é uma R. ou, pelo menos (como Heidegger diz no mesmo trecho), uma réplica de possibilidades passadas. 2. Na filosofia da ciência, o conceito de R. é empregado para expressar o fundamento das proposições indutivas, que (segundo Hume) seriam a expressão da R. de casos (cf. HUME, Inq. Cone. Underst., V, 1). Desse ponto de vista, a R. muitas vezes foi considerada a justificação das proposições universais. K. Popper criticou essa doutrina, que ele chama "doutrina do primado da R." (The Logic cf Scientific Discovery, 1959, pp. 420 ss.) (V. INDUÇÃO; TEORIA). REPRESENTAÇÃO (lat. Repraesentatio, in. Re-presentation; fr. Représentation; ai. Vorstellung; it. Rappresentazioné). Vocábulo de origem medieval que indica imagem (v.) ou idéia ([v.] no 2a sentido), ou ambas as coisas. O uso desse termo foi sugerido aos escolásticos pelo conceito de conhecimento como "semelhança" do objeto. "Representar algo" — dizia S. Tomás de Aquino — "significa conter a semelhança da coisa" (De ver., q. 7, a. 5). Mas foi principalmente no fim da escolástica que esse termo passou a ser mais usado, às vezes para indicar o significado das palavras. (Cf., p. ex., GRA-ZIANO DI ASCOLI, Perihermenias, 2.) Ockham distinguia três significados fundamentais: "Representar tem vários sentidos. Em primeiro lugar, designa-se com este termo aquilo por meio do qual se conhece algo; nesse sentido, o conhecimento é representativo, e representar significa ser aquilo com que se conhece alguma coisa. Em segundo lugar, por representar entende-se conhecer alguma coisa, após cujo conhecimento conhece-se outra coisa; nesse sentido, a imagem representa aquilo de que é imagem, no ato de lembrar. Em terceiro lugar, por representar entende-se causar o conhecimento do mesmo modo como o objeto causa o conhecimento" (Quodl., IV, q. 3). No primeiro caso, a R. é a idéia no sentido mais geral; no segundo, é a imagem; no terceiro, é o próprio objeto. Esses são, na realidade, todos os possíveis significados do termo, que voltou a ter importância com a noção cartesiana de idéia como "quadro" ou "imagem" da coisa (Méd., III) e foi difundido sobretudo por Leibniz, para quem a mônada era uma R. do universo (Monad., § 60). Inspirado nessa doutrina, Wolff introduziu o termo Vorstellung, para indicar a idéia cartesiana, no uso filosófico da língua alemã (Vernünftige Ge-danken von Gott, der Welt und der Seele des Menschen, 1719, I, §§ 220, 232, etc). Deve-se a Wolff a difusão do uso desse termo nas outras línguas européias. Kant estabeleceu seu significado generalíssimo, considerando-o gênero de todos os atos ou manifestações cognitivas, independentemente de sua natureza de quadro ou semelhança (Crít. R. Pura, Dialética, livro I, seç. I), e foi desse modo que o termo passou a ser usado em filosofia. Hamilton defendia o uso dessa palavra também em inglês (Lectures on Logic, 2a ed., 1966, I, p. 126). REPRESENTATIVO 854 RESPEITO Mas neste sentido, os problemas inerentes à R. são os mesmos que inerem ao conhecimento em geral (v. CONHECIMENTO) e à realidade que constitui o termo objetivo do conhecimento (v. REALIDADE), OU, em outra direção, os concernentes à relação entre as palavras e os objetos significados (quanto a isso, v. SIGNO; SIGNIFICADO) . REPRESENTATIVO (in. Representative, fr. Re-présentatif, ai. Vorstellend; it. Rappresentativó). 1. O sentido deste adjetivo é mais limitado que o do substantivo correspondente, uma vez que contém referência ao caráter de "semelhança" ou "quadro", excluído por alguns dos significados do substantivo. Assim, "idéia R." é a idéia que se concebe como imagem ou reprodução de seu objeto. Diz-se que o conhecimento tem natureza R. quando se acha que ele constitui imagem ou cópia do objeto. 2. Emerson chamou de homens R. aqueles que Hegel chamava de "indivíduos da história universal" ou outros românticos chamavam de "heróis": homens que são símbolos e, ao mesmo tempo, instrumentos de realização das aspirações de todos os homens {Representative Men, 1850). 3. No sentido político, sistemaR. é o sistema que se baseia no princípio de delegação de certos poderes políticos a alguns cidadãos, feita por uma parte dos cidadãos. REPUGNÂNCIA. O mesmo que incompatibilidade (v. COMPATIBILIDADE). RES DE RE NON PRAEDICATUR. Máxima de Abelardo (citada por JOÃO DE SALISBURY, Me-talogicus, II, 17), segundo a qual o universal não pode ser uma coisa nem uma palavra, mas somente uma expressão {sermó), uma vez que só a expressão pode ser predicado de várias coisas (v. UNIVERSAL). RESÍDUO FENOMENOLÓGICO (ai. Pháno-menologische Residuum). Foi esse o nome que Husserl deu ao ser da consciência que "não é atingido em sua essência absoluta pela neutralização fenomenológica", isto é, pela epoché {Ideen, I,§ 33). RESÍDUOS, MÉTODO DOS (in. Method of residues-, fr. Méthodedes résidus-, ai. Rückstands-methode, it. Método dei residui). Um dos quatro métodos da pesquisa experimental enumerados por Stuart Mill, mais precisamente o expresso pela regra: "Uma vez subtraída de um fenômeno a parte que, através de deduções anteriores, é identificada como efeito de determinados antecedentes, o resíduo do fenômeno é o efeito dos antecedentes restantes" {Logic, III, 8, § 5) (V. CONCOMITÂNCIA; CONCORDÂNCIA; DIFERENÇA). RESÍDUOS E DERIVAÇÕES (in. Residues and derivations, fr. Résidus et dérivations-, it. Residui e derivaziont). Com estes termos, Vilfredo Pareto designou os dois fatores das teorias não científicas correspondentes às afirmações experimentais e às deduções lógicas das teorias científicas. Os resíduos são os instintos, os sentimentos, os interesses, etc, que constituem os materiais das teorias não científicas; as derivações são as sistematizações lógicas ou pseudológicas dadas a esse material {Trattato di sociologia generale, 1916, §§ 803, 750, 210, 1397). (Cf. a discussão desta doutrina em TALCOTT PARSONS, The Structure of Social Action, 2- ed., 1949, pp. 196 ss.) RESPEITO (gr. oriôúç; lat. Respectus-, in. Res-pect; fr. Respect; ai. Achtung; it. Rispettó). Reconhecimento da dignidade própria ou alheia e comportamento inspirado nesse reconhecimento. Demócrito foi o primeiro a transformar o R. em princípio da ética: "Não deves ter para com os outros homens mais R. que para contigo mesmo, nem agir mal quando ninguém o saiba mais do que quando todos o saibam; deves ter para contigo mesmo o máximo R. e impor à tua alma a seguinte lei: não fazer o que não deve ser feito" {Fr. 264, Diels). No discurso com que Protágoras, no diálogo homônimo de Platão, expõe a origem da sociedade humana, diz-se que "temendo que nossa estirpe se extinguisse, Zeus ordenou que Hermes trouxesse o R. recíproco e a justiça para o meio dos homens, a fim de que esses fossem princípios ordenadores das cidades, criando entre os cidadãos vínculos de benevolência" {Prot., 322 e). O R. recíproco e a justiça são, assim entendidos, os dois ingredientes fundamentais da "arte política", que é a técnica de vida em comunidade. Aristóteles, porém, incluiu o R. entre as emoções, excluindo-o das virtudes {Et. nic, II, 7, 1108 a 32), e o opôs ao temor {Ibid., 10, 9, 1179 b 11). Kant também o reduziu à esfera das emoções, considerando-o, porém, como um sentimento suigeneris, aliás como o único sentimento moral e não patológico. O sentimento de R. "é produzido apenas pela razão. Não serve ao juízo das ações nem como fundamento da lei moral objetiva, mas simplesmente como móbil paru transformar essa lei em máxima". O R. sempre se refere às pessoas, nunca às coisas; é próprio do ser racional finito porque supõe a ação negativa da razão sobre a sensibi- RESPONSABILIDADE 855 RESSENTIMENTO lidade, portanto a própria sensibilidade. Por isso, "não se pode atribuir R. à lei a um ser supremo ou a um ser isento de sensibilidade, para quem, portanto, esta não pode ser obstáculo à razão prática" (Crít. R. Pratica, 1,1, cap. III). Mesmo fora da filosofia, a noção de R. foi fortemente influenciada por essas observações de Kant. Por R. entende-se comumente o empenho em reconhecer nos outros homens, ou em si mesmo, uma dignidade que se tem o dever de salvaguardar. RESPONSABILIDADE (in. Responsibility, fr. Responsabilité; ai. Verantwortlichkeit; it. Responsabilitâ). Possibilidade de prever os efeitos do próprio comportamento e de corrigi-lo com base em tal previsão. R. é diferente de imputabilidade (gr. arríct; lat. Imputatio; in. Imputability, fr. Imputabilitá; ai. Zurechenbar-keit; it. Imputabilitá), que significa a atribuição de uma ação a um agente, considerado seu causador. Platão aludia à noção de imputabilidade quando, a propósito da escolha que as almas fazem de seu próprio destino, afirmava: "Cada qual é a causa de sua própria escolha, ela não pode ser imputada à divindade" (Rep., X, 617 e; cf. Tim., 42d). Wolff definia a imputa-çâo como "o juízo em virtude do qual o agente é declarado causa livre daquilo que se segue à sua ação, ou seja, do bem e do mal que dela decorrem para ele mesmo ou para os outros" (Philosophiapractica, I, § 527). Essa definição era simplesmente repetida por Kant: "A impu-tação (imputatio) no significado moral é o juízo em virtude do qual alguém é considerado como autor (causa livre) de uma ação que está submetida a leis e se chama fato" (Met. der Sitten, I, Intr., IV). A imputabilidade assim entendida é um conceito completamente diferente do de responsabilidade. O termo R. e seu conceito são recentes: aparecem pela primeira vez em inglês e em francês em 1787 (em inglês, aparecem em Federalist de Alexandre Hamilton, f. 64; cf. R. MCKEON, Revue Internationale de Philosophie, 1957, ne 1, pp. 8 ss.). O primeiro significado do termo foi político, em expressões como "governo responsável" ou "R. do governo", indicativas do caráter do governo constitucional que age sob controle dos cidadãos e em função desse controle. Em filosofia, o termo foi usado nas controvérsias sobre a liberdade e acabou sendo útil principalmente aos empiristas ingleses, que quiseram mostrar a incompatibilidade do juízo moral com a liberdade e a necessidade absolutas (cf. HUME, Inq. Cone. Underst., VIII; STUART MILL, nota a Analysis ofthePhenomena oftheHuman MinddeJ. MILL, 1869, II, p. 325). Na verdade, a noção de R. baseia-se na de escolha, e a noção de escolha é essencial ao conceito de liberdade limitada (v. LIBERDADE). Está claro que, no caso da necessidade, a previsão dos efeitos não poderia influir na ação, e que tal previsão não poderia influir na ação no caso da liberdade absoluta, que tornaria o sujeito indiferentes previsão. Portanto, o conceito de R. inscreve-se em determinado conceito de liberdade, e mesmo na linguagem comum chama-se alguém de "responsável" ou elogia-se seu "senso de R." quando se pretende dizer que a pessoa em questão inclui nos motivos de seu comportamento a previsão dos possíveis efeitos dele decorrentes (cf. o fascículo citado da Revue Internationale de Philosophie, especialmente os artigos de McKeon, Abbagnano e Weil. Para a distinção entre imputabilidade e R., cf. SCHELER, Der Formalismus in der Ethik, pp. 504 ss.) (v. INTENÇÃO). RESPOSTA. V. AÇÃO REFLEXA. RESSENTIMENTO (in. Resentment; fr. Ressen-timent; ai. Ressentiment; it. Risentimentó). Ódio impotente contra aquilo que não se pode ser ou não se pode ter. Essa noção foi introduzida por Nietzsche em Genealogia da moral(.1887): "A revolta dos escravos na moral contemporânea começa quando o R. se torna criador e gera valores: R. dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a da ação, e que portanto só encontram compensação numa vingança imaginária" (Genealogie der Moral, I, § 10). Segundo Nietzsche, a moral cristã é fruto do R., no sentido de ser manifestação do ódio contra os valores da casta superior aristocrática, inacessíveis aos indivíduos inferiores. Outra manifestação do R., ainda segundo Nietzsche, é a raiva secreta dos filósofos contra a vida, em vista do que a filosofia foi até agora "a escola da calúnia": calúnia contra o mundo real ou sensível, que os filósofos tentaram substituir pelo mundo ideal da metafísica e da moral (Wille zur Macht, ed. 1901, §§ 259, 287). Por sua vez, Scheler insistiu na ação do R. no campo moral, embora negando que ele possa ser aplicado à concepção cristã, à qual Nietzsche fazia alusão. Segundo Scheler, os produtos do R. são o hu-manitarismo e o altruísmo modernos, e não o amor cristão. O conceito de igualdade entre os homens, a afirmação do subjetivismo dos valores e a subordinação de todos os valores à utili- RESTRIÇÃO 856 RETÓRICA dade são outros três produtos do R. na vida moderna, segundo a concepção de Scheler. (Über Ressentiment, 1912; trad. fr., 1958). (Cf. R. K. MERTON, Social Theory and Social Structure, 2-ed., 1957, pp. 155 ss.). RESTRIÇÃO (lat. Restriction in. Restrition, fr. Restriction; ai. Restriktion; it. Restrizioné). A partir da lógica do séc. XIII, esse termo designa a limitação da extensão ou denotação de um termo comum, de tal modo que ele se refira a um número menor de objetos designados (cf. Lamberto de Auxerre em PRANTL, Geschichte derLogik, III, p. 31, nQ 130). Pedro Hispano distinguiu quatro espécies de R.: a que se faz com o nome, como quando se diz "homem branco", em que o termo homem não supõe inon supponit pro) os negros; a que se faz per participio, como quando se diz "o homem discute correndo"; e a que se faz por implicação, como no caso "o homem, que é branco, corre" ÇSumm. log., 11.02). O processo inverso é a ampliação ou extensão. Hamilton chamou de R. a relação de subalternação (v.). RESTRIÇÃO MENTAL (lat. Reservatio, in. Reservation; fr. Restriction-, ai. Reservation; it. Riservd). Um dos tópicos característicos da casuística católica do séc. XVII, bem como do probabilismo ou laxismo: a tese de que uma mentira deliberada não compromete quem a pronuncia e não é pecado. Na IX de suas Cartas provinciais (1656), Pascal fez uma crítica famosa a essa tese. RETIDÃO (gr. òpOÓTnç; KocTÓpScixnç; Reti-tudo; in. Rectitude, fr. Rectitude, ai. Recht-lichkeit; it. Rettitudiné). Critério ou medida racional das coisas, ou seja, o princípio para julgá-las. Platão diz, por exemplo, que "a R. do nome é mostrar o que a coisa é" (Crat., 428 e), entendendo que este é o critério para julgar acerca da justeza do nome. Com o mesmo sentido Aristóteles usa a expressão reta razão (óp0òç XÓ70Ç), identificando-a com a sabedoria Et. nic, VI, 13, 1144 b 23). Mas foram sobretudo os estóicos que deram significado técnico ao termo, ao designarem com ele "a conveniência ou bem, que consiste em estar de acordo com a natureza" (CÍCERO, De finibus, III, 14, 45). Como o acordo com a natureza é o critério de avaliação, a R. não é senão esse critério. Com sentido análogo, Duns Scot chamou as proposições teológicas de rectitudines, porquanto fornecem o conhecimento do reto comportamento do homem em face de Deus (Op. Ox., Prol., q. 4, n. 31). Na filosofia contemporânea, Heidegger contrapôs a R. à verdade, entendida como revelação do ser. Segundo Heidegger, foi Platão quem introduziu o conceito de verdade como R., ou seja, como critério do juízo humano, preparando assim o terreno para o nascimento do subjetivismo moderno ("Die Zeit des Welt-bildes", em Holzwege, 1950, p. 84). RETÓRICA (in. Rhetoric; fr. Rhétorique, ai. Rhetorik, it. Retórica). Arte de persuadir com o uso de instrumentos lingüísticos. A R. foi a grande invenção dos sofistas, e Górgias de Leontinos foi um de seus fundadores (séc. V a.C). O diálogo de Platão intitulado Górgias insiste no caráter fundamental da R. sofista: sua independência em relação à disponibilidade de provas ou de argumentos que produzam conhecimento real ou convicção racional. O objetivo da R. é "persuadir por meio de discursos os juizes nos tribunais, os conselheiros no conselho, os membros da assembléia na assembléia e em qualquer outra reunião pública" iGórg., 452 e); portanto, o retórico é hábil "em falar contra todos e sobre qualquer assunto, de tal modo que, para a maioria das pessoas, consegue ser mais persuasivo que qualquer outro com respeito ao que quiser" ilbid., 457 a). Assim entendida, a R. pareceu a Platão mais próxima da arte culinária que da medicina: mais apta a satisfazer o gosto do que a melhorar a pessoa {Ibid., 465 e). Platão opôs a ela a R. pedagógica ou educativa, que seria "a arte de guiar a alma por meio de raciocínios, não somente nos tribunais e nas assembléias populares, mas também nas conversações particulares" (Fedro, 26 1 a); no entanto, a R. assim entendida identifica-se com a filosofia. Portanto, Platão não atribuiu à R. uma função específica. Isso, na verdade, foi feito por Aristóteles, que a considerou em íntima relação com a dialética, como se fosse a contrapartida desta (Ret., I, 1, 1354 a. 1). Segundo Aristóteles, a R. é "a faculdade de considerar, em qualquer caso, os meios de persuasão disponíveis" Ubid., I, 2, 1355 b 26). Enquanto qualquer outra arte só pode instruir ou persuadir em torno de seus próprios objetos, a R. não se limita a uma esfera especial de competência, mas considera os meios de persuasão que se referem a todos os objetos possíveis ilbid., I, 2, 1355 b 26). Portanto, a R. haure da Tópica a consideração dos elementos prováveis (os que têm capacidade de persuadir) e fornece as regras para o uso estratégico de tais argumentos. RETÓRICA 857 RETORNO Esse conceito de R., estabelecido por Aristóteles, prevaleceu por muitos séculos. O humanismo ressaltou a importância da R., na qual identificou, segundo o exemplo de Platão e Cícero, um valor substancial (cf. Testi umanistici sulla R. de M. Nizolio, F. Patrizi, P. Ramus, org. por E. GARIN, P. ROSSI, E. VASOLI, 1953). Com P. Ramus, a tarefa da R. volta a ser substancialmente a que já lhe fora atribuída por Aristóteles: "A técnica de persuasão, que Ramus estuda nos textos de Cícero, essa capacidade de usar a linguagem para criar as expressões mais bem feitas e tecnicamente elaboradas, deve contudo estar sempre unida ao exercício da filosofia, à qual está confiada a construção essencial de todos os princípios cognitivos, com o uso da dialética. Por isso, à R., entendida no significado mais técnico e particular, Ramus só concederá as duas funções propedêuticas da elocutio e da pro-nunciatio(...), ao passo que, contra as opiniões de Quintiliano e de Cícero, atribuirá à dialética a tarefa de organizar a verdadeira substância do discurso lógico" (E. VASOLI, Op. cit., pp. 117-118). Depois do florescimento do Renascimento, a sorte da R. decaiu, chegando ao desaparecimento quase completo que a caracterizou no séc. XIX. O dogmatismo racionalista iniciado por Descartes e adotado maciçamente no séc. XLX foi a maior causa da decadência da retórica. Onde a razão é tudo e pode tudo, uma arte que busque seus instrumentos da persuasão obviamente está deslocada. Por isso, não admira que, com o abandono do dogmatismo racionalista, a R. volte hoje a ser homenageada como a arte clássica da persuasão, mas com a ressalva de que deve levar em conta uma multiplicidade de condições. O Traité de Vargumentation de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1958) começa com as seguintes palavras: "A publicação de um tratado dedicado à argumentação e sua vincula-ção com a velha tradição da R. e da dialética gregas constituem a ruptura com a concepção de razão e raciocínio que se iniciou com Descartes e deixou marcas na filosofia ocidental dos três últimos séculos." Não há dúvida de que essa observação é correta. Se a razão é infalível e a investigação humana pode ser confiada às suas regras infalíveis em qualquer campo, não há lugar para a R., que é a arte da persuasão. Mas, se, na esfera do saber humano, a parte do incerto, do provável, do aproximativo é mais ou menos ampla, a persuasão pode ter alguma função e sua arte pode ser cultivada. RETORNO (gr. è7UOTpo<pií; lat. Conversia, in. Return; fr. Retour, ai. Rúckgang). 1. No neo-platonismo antigo, o movimento graças ao qual a alma percorre de volta o processo de emanação, reintegrando-se na sua origem (bem, causa, Deus, unidade) através da contemplação. Plotino dizia: "A purificação é necessária à união: a alma une-se ao Bem, voltando para ele. Mas então à conversão segue-se a purificação? Exatamente: o R. acontece depois da purificação. O R., então, é a virtude da alma? Sim, é a virtude que do R. resulta e deriva para a alma. E o que é o R.? É a contemplação e a impressão que os objetos inteligíveis produzem na alma, do mesmo modo como a visão é produzida pelos objetos visíveis" {Enn., I, 2, 4). Proclos generalizava o conceito de R., atribuindo-o a todas as manifestações do ser, cada uma das quais efetuaria o R. a seu modo. "Cada ser realiza seu R. apenas em relação à substância ou também em relação à vida e ao conhecimento, visto que, ou recebeu da Causa apenas o ser, ou recebeu também a vida, ou recebeu também a faculdade cognitiva. Se é apenas, realiza um R. à Substância; se vive, retoma à vida; se conhece, retorna ao Conhecimento. Com efeito, do mesmo modo como procedeu da Causa primeira, assim retorna para ela; e as medidas do R. são determinadas pelas medidas da processão" (Jnst. theol., 39). 2. O Renascimento, ao retomar esta concepção generalizada de Proclos, considerou o R. aos princípios como a única via de renovação radical da vida pessoal e social do homem. Pico delia Mirandola unia o antigo conceito neoplatônico de R. aos princípios com o novo princípio de via de renovação {De ente et uno, VII, Proem.). Maquiavel considerava a "redução aos princípios" a única via de renovação das comunidades humanas, evitando-se a decadência e a derrocada, porquanto todos os princípios contêm em si algo de bom, de que as coisas podem retirar vitalidade e força primitiva {Discursos, III, 1). E Campanella via o caminho da renovação religiosa no princípio que ele julgava estar expresso no salmo XXII: Quod reminiscentur et convertentur ad Dominum universifines terrae, cujas primeiras duas palavras ele usava como título do texto em que anunciava a renovação religiosa {Quod reminiscentur, 1615). Outrossim, a própria Reforma protestante obedecia à exigência de voltar aos princípios, remontando diretamente à fonte RETRODUÇAO 858 REVOLUÇÃO primitiva da religiosidade cristã, a Bíblia; por outro lado, a Contra-Reforma pretendeu reconduzir a Igreja à força expansionista que ela possuía em suas origens. Outra forma do mesmo princípio é a do R. à natureza, considerada na maioria das vezes como princípio ou origem dos seres. Nesta forma, o R. aos princípios é uma exigência freqüente no pensamento dos séc. XVII e XVIII. 3. Eterno R. (v. CICLO DO MUNDO). RETRODUÇAO (in. Retroductiori). Termo introduzido por Peirce para indicar o primeiro estágio da investigação, que, assim como a indução, parte do conseqüente para o antecedente, mas é realizado de forma espontânea, ou seja, sem método rigoroso ("Reality of God", em Values in a Universe of Chance, pp. 368 ss.) (V. ABDUÇÃO). RETROSPECÇÃO (in. Retrospection; fr. Ré-trospection-, it. Retrospezionè). Bergson designou com esse termo a tendência a "relegar as realidades atuais para o passado, para um estado de possibilidade ou virtualidade" (.Lapensée et le mouvant, 3a ed., 1934, p. 26). REVELAÇÃO (in. Revelation; fr. Révélation; ai. Offenbarung; it. Rivelazioné). Manifestação da verdade ou da realidade suprema aos homens. A R. foi entendida de duas maneiras: Ia como R. histórica; 2- como R. natural. Ia É histórica a R. que toda religião positiva adota como fundamento. Consiste na iluminação com que foram agraciados alguns membros da comunidade, cuja tarefa teria sido encaminhar a comunidade para a salvação. Neste sentido, a R. é um fato histórico, ao qual se atribui a origem da tradição religiosa. 2a A R. natural é a manifestação de Deus na natureza e no homem. Às vezes essa forma de R. é admitida ao lado da outra, outras vezes é negada ou subordinada à outras. Só o conceito de R. natural tem valor filosófico, sendo o outro especificamente religioso. Contudo a filosofia hauriu o conceito de realidade natural e humana como manifestação de um princípio sobrenatural ou divino da própria religião, sendo esse conceito típico das filosofias que têm caráter ou finalidade religiosa. Na Antigüidade, esse conceito pertenceu aos neoplatônicos, para quem o mundo, como produto da emanação divina, revela, pelo menos parcial ou imperfeitamente, a natureza divina que o produz. Desse ponto de vista, Scotus Erigena chamava de teofania (v.) o processo de descida de Deus ao homem e de subida do homem a Deus; também chamava de teofania toda a obra da criação, porquanto ela manifesta a substância divina que se torna sensível nela e através dela (De divis. nat., I, 10; V, 23). Este conceito reapareceu com freqüência na história da filosofia, mas a maior recorrência se deu na filosofia do romantismo (v.). Fichte, p. ex., dizia: "O saber é a existência, a manifestação, a perfeita imagem da força divina" (Grundzüge der gegen-wártigen Zeitalters, 1806, LX). Este pensamento domina também as filosofias de Scheling e de Hegel. No entanto, cumpre observar que nelas a R. não é apenas manifestação: é também — como dizia Fichte — existência (isto é, realização) de Deus. É essa a característica específica assumida pelo conceito de R. no romantismo e conservada de maneira mais ou menos decisiva nas filosofias da R. que constituem a segunda fase do romantismo e têm como lema a defesa da tradição. As filosofias de Maine de Biran, Rosmini, Gioberti, Mazzini partem todas do princípio de que a consciência é a revelação de Deus. A propósito, Maine de Biran nada mais fazia que exprimir uma convicção bastante difundida ao afirmar que a R. não é apenas externa (tradição oral ou escrita), mas é também interna ou da consciência, visto que ambas procedem diretamente de Deus (CEuvres, ed. Naville, III, p. 96). O conceito de R. foi adotado como fundamento da filosofia de Heidegger, mas sem o tom religioso do séc. XIX. A R. do ser, segundo Heidegger, nunca é perfeita e exaustiva porque o ser se esconde ao mesmo tempo em que se revela: "O ser subtrai-se a si mesmo enquanto se revela no ente. Assim, o ser, iluminando o ente, ao mesmo tempo o desvia e o encaminha para o erro" (Holzwege, p. 310). Segundo Heidegger, a R. do ser ocorre através da linguagem, que não é instrumento humano, mas o próprio ser em sua R. (Brief über den Hu-manismus, p. 81). Por outro lado, a concepção da linguagem como R. hoje não pertence apenas a Heidegger (v. LINGUAGEM), O que é mais uma prova da persistência em filosofia do conceito teológico de revelação. REVERSÍVEL (in. Reversible, fr. Réversible, ai. Umkehrbar, it. Reversibilé). São qualificados com este termo os processos que não têm sentido definido (V. IRREVERSÍVEL). REVOLUÇÃO (in. Revolution; fr. Révolution, ai. Revolution; it. Rivoluzioné). Violenta e rápida destruição de um regime político, ou mudança RIGORISMO 859 MTSCHIIANISMO radical de qualquer situação cultural. Neste segundo sentido fala-se de "R. filosófica", "artística", "literária", "dos costumes", etc, ou também de "R. copernicana". Mas está claro que, neste sentido, o uso da palavra visa somente a ressaltar a importância da mudança ocorrida, e não tem significado preciso. O único significado preciso do termo é o político, que teve início no séc. XVIII. R. propriamente ditas foram a inglesa, a americana, a francesa e a russa, mas às vezes também são chamadas de R. transformações políticas que tiveram menor importância na história geral do mundo, apesar de serem marcos fundamentais na história de determinado país. RIGORISMO (in. Rigorism; fr. Rigorisme, ai. Rigorismus; it. Rigorismó).Na terminologia religiosa do séc. XVIII, R. opõe-se a laxismo e designou o ponto de vista de todos aqueles que (especialmente jansenistas e padres do oratório) hostilizavam o princípio de moral relaxada (cf. BAYLE, Dictionnaire historique et critique, v. "Rigoristes"). Segundo Kant, foram comu-mente chamados de rigoristas os que não admitiam "nenhuma neutralidade moral {adia-phora) nem nos atos nem nos caracteres humanos", enquanto os outros eram chamados de latitudinários{Religion, I, Observação). O próprio Kant, porém, na mesma passagem, demonstra aceitar pessoalmente o princípio rigo-rista, de tal modo que, não sem razão, falou-se e continua-se falando de "R. moral" com referência à doutrina moral kantiana. RISCO (gr. KÍVÔWOÇ; in. Risk, fr. Risque, ai. Wagniss, Gefahr, it. Rischió). Em geral, o aspecto negativo da possibilidade, o poder não ser. Essa noção é freqüente nas filosofias que reconhecem o possível, tais como nas de Platão e dos existencialistas contemporâneos. Aristóteles considerava o R. como "o aproximar-se daquilo que é terrível" {Ret., II, 5, 1382 a 33). Para Platão, o R. era belo e inerente à aceitação de certas hipóteses ou crenças {Fed., 114 d). No existencialismo, o R. é considerado inerente à escolha que o eu faz de si mesmo e a toda decisão existencial (cf. JASPERS, Phil., II, pp. 180, 403, etc). A aceitação do R. implícito nessa escolha é um dos pontos fundamentais do existencialismo contemporâneo: "A pretensão implícita na decisão baseia-se numa indeterminação efetiva, ou seja, na possibilidade de que as coisas se passem de maneira diferente daquilo que eu decido; mas também se baseia no fato de eu, que decido, assumir esse R., bem como na consideração de todas as possíveis garantias que eu possa obter (ABBAGNANO, Introduzione aWesistenzialismo, 4a ed., 1957, I, 3). RISO. V. CÔMICO. RITMO (in. Rhythm- fr. Rythme, ai. Rhythmus, it. Ritmo). Alternância de fenômenos opostos no mesmo processo. Este é o significado atribuído ao termo pelo positivismo, que o utilizou pela primeira vez de modo específico, estendendo seu significado primitivo de movimento regularmente recorrente. Spencer falou de uma lei do R., segundo a qual o máximo e o mínimo, a queda e a elevação, alternam-se no desenvolvimento de todos os fenômenos; essa lei seria um dos princípios fundamentais da evolução {FirstPrincipies, II, cap. 10). Dessa mesma lei falaram Ardigó {Op., II, p. 227; V. pp. 232, etc.) e, mais recentemente, Whitehead: "No modo do ritmo, uma série de experiências que formam determinada sucessão de contrastes obteníveis no âmbito de um método preciso é regulada de tal maneira que o fim de um ciclo é o estágio que antecede o início de um outro ciclo semelhante. O ciclo é tal que, ao completar-se, produz as condições para sua simples repetição" {The Function of Reason, 1929, cap. I, trad. it., p. 25; cf. The Aims of Education, cap. II, III). RITO (in. Rite, fr. Rite, ai. Ritus; it. Rito). Técnica mágica ou religiosa que visa a obter sobre as forças naturais um controle que as técnicas racionais não podem oferecer, ou a obter a manutenção ou conservação de alguma garantia de salvação em relação a essas forças. O conceito de R. como "prática relativa às coisas sagradas" foi esclarecido por Durkheim {Formes élémentaires de Ia vie religieuse, 1912, passim) (cf. T. PARSONS, The Structure of Social Action, 2a ed., 1949, pp. 420 ss., 673 ss., etc; cf. RELIGIÃO). RITSCHLIANISMO(in. Ritschlianism, fr. Rits-chlianisme, ai. Ritschlianismus, it. Ritschilianis-mo). Corrente do cristianismo protestante do séc. XIX, iniciada por Alberto Ritschl (1822-89), segundo a qual a religião baseia-se exclusivamente no sentimento e na revelação interior; essa revelação se concretiza especialmente nos juízos de valor, que são independentes dos fatos e elevam o homem para uma esfera superior à de sua limitação empírica. Ao fortalecer a revelação do sentimento interior, a comunidade dos fiéis realiza as exigências dessa revelação; o reino de Deus realiza-se nela (cf. K. ROMANTISMO 860 ROMANTISMO BARTH, Die protestantische Theologie in 19, Jahrhundert, 1947). ROMANTISMO (in. Romanticism, fr. Roman-tisme, ai. Romanticismus-, it. Romanticismó). Designa-se com este nome o movimento filosófico, literário e artístico que começou nos últimos anos do séc. XVIII, floresceu nos primeiros anos do séc. XIX e constituiu a marca característica desse século. O significado comum do termo "romântico", que significa "sentimental", deriva de um dos aspectos mais evidentes desse movimento, que é a valorização do sentimento, categoria espiritual que a Antigüidade clássica ignorara ou desprezara, cuja força o séc. XVIII iluminista reconhecera, e que no R. adquiriu valor preponderante. Essa grande valorização do sentimento é a principal herança recebida do movimento Sturm und Drangiv.), que constitui a tentativa de, através da experiência mística e da fé, superar os limites da razão humana, reconhecidos pelo ilumi-nismo. Segundo os filósofos do Sturm und Drang, Haman, Herder e Jacobi, pode-se obter com a fé o que a razão não é capaz de dar, sendo a fé entendida como fato de sentimento ou de experiência imediata. Mas, precisamente por isso, para os seguidores do Sturm und Drang (entre os quais estiveram Goethe e Schiller, na juventude) a razão continuava sendo o que fora para o Iluminismo: uma força humana limitada, capaz de transformar o mundo gradualmente, mas que não é absoluta nem onipotente, estando, pois, sempre mais ou menos em conflito com o mundo e em luta com a realidade que se destina a transformar. Do Sturm und Drang passa-se para o R. somente quando esse conceito de razão é abandonado e começase a entender como razão uma força infinita (onipotente) que habita o mundo e o domina, constituindo sua própria substância. O princípio da autoconsciência (v.), infinidade da consciência que é tudo e faz tudo no mundo, é fundamental no R., e dele derivam os aspectos relevantes do movimento. Fichte foi o primeiro a identificar a razão com o Eu infinito ou Autoconsciência Absoluta, fazendo dele a força pela qual o mundo é produzido. A infinidade, nesse sentido, era de consciência ou de potência, e não de extensão ou duração; seu modelo encontrava-se em conceitos da filosofia neoplatônica, especialmente em Plotino. Hegel, a propósito, opunha o falso infinito, ou mau infinito, que é diferente do finito, isto é, da realidade ou do mundo e se opõe a ele e tenta transformá-lo ou superá-lo, ao verdadeiro infinito, que se identifica com o finito, com o mundo, e se realiza nele e por ele. Este infinito é um Princípio espiritual criativo: aquele que Fichte chamou de Eu, Schelling de Absoluto e Hegel de Idéia. Mas o infinito, ou melhor, a infinidade da consciência pode ser entendida de duas maneiras. Em primeiro lugar, como atividade racional, que se move de uma determinação para outra com necessidade rigorosa, de tal forma que qualquer determinação pode ser deduzida da outra de modo absoluto e apriori. É este o conceito de infinidade de consciência encontrado em Fichte, Schelling e Hegel (quanto ao segundo, apenas numa primeira fase de sua filosofia). Em segundo lugar, a infinidade de consciência pode ser entendida como atividade livre, amorfa, privada de determinações rigorosas, e tal que se coloca continuamente além de qualquer de suas determinações: neste sentido a infinidade de consciência é o sentimento. O sentimento é o infinito na forma do indefinido, e foi desta forma que Schleiermacher e a chamada escola romântica (F. Schlegel, Novaiis, Tieck e outros) reconheceram a infinidade da consciência. De fato, o R. literário começou com a obra de Schlegel (1772-1829), que, entre 1798 e 1800, publicou em colaboração com o irmão o periódico Athenaeum, primeiro porta-voz da escola romântica. Schlegel apontava explicitamente Fichte como iniciador do movimento romântico, como descobridor do conceito romântico de infinito, mas interpretava o infinito como algo exterior e superior à racionalidade, como infinidade de sentimento. O mesmo conceito do infinito aparece no poeta e literato Ludwig Tieck e em Novaiis: este sustentava um idealismo mágico, segundo o qual o mundo não passa de uma grande obra de poesia. A essa mesma corrente pertence o teólogo Friedrich Schleiermacher (1768-1834), que definiu a religião como "sentimento do infinito". Nesta interpretação do princípio de infinito baseia-se a supremacia que por vezes o R. atribui à arte. Com efeito, se o infinito é sentimento, revela-se melhor na arte que na filosofia, porque a filosofia é racionalidade, ao passo que a arte apresenta-se aos românticos como "expressão do sentimento". Para Schelling, que tendia a essa interpretação, a melhor manifestação do absoluto estava na arte, o mundo era uma espécie de poema ou de obra artística cujo autor seria o absoluto, para o homem a expe- ROMANTISMO 861 ROMANTISMO riência artística era o único meio eficaz de aproximar-se do absoluto, ou seja, do modo como o absoluto deu origem ao mundo. Quando o movimento romântico se difundiu fora da Alemanha, foi exatamente essa a sua bandeira. O R. de Madame de Staêl e de Chateaubriand consiste sobretudo na exaltação dos valores do sentimento, e foi com essa mesma forma que o R. encontrou expressão na Itália. Essas duas interpretações da autoconsciên-cia muitas vezes se opuseram; Hegel, principalmente, abriu polêmica contra a primazia do sentimento. No conjunto, porém, é sobretudo nessa oposição e nessa polêmica que consiste a característica fundamental do R. No entanto, pertence apenas à escola do sentimento um dos aspectos mais evidentes do R.: a ironia, que representa a impossibilidade de a consciência infinita levar a sério e considerar sólidos os seus produtos (natureza, arte, o eu), nos quais vê apenas suas próprias manifestações provisórias. São, porém, caracteres comuns e fundamentais de todas as manifestações do R. o otimismo, o providencialismo, o tradicionalismo e o titanismo. Otimismo é a convicção de que a realidade é tudo aquilo que deve ser, e de que é em todos os momentos racionalidade e perfeição. É devido a esse otimismo que o R. tende a exaltar a dor, a infelicidade e o mal, pois a infinidade do espírito também se manifesta nesses aspectos da realidade, superando-os e conciliandoos em sua perfeição. Hegel apresenta-nos o mundo romântico na felicidade de sua perfeita pacificação racional. Schopenhauer apresenta-o na infelicidade de suas oposições irracionais, mas ainda assim satisfeito por reconhecer-se nesse contraste. A vontade irracional de Schopenhauer é um princípio tão otimista quanto a razão absoluta de Hegel. Com o otimismo metafísico do R. relaciona-se seu providencialismo histórico. A história é um processo necessário, no qual a razão infinita se manifesta ou se realiza; por isso, nela nada há de irracional ou inútil. Nesse aspecto, o R. opõe-se radicalmente ao iluminismo. Este último contrapõe tradição e história: à força da tradição, que tende a conservar e perpetuar preconceitos, ignorâncias, violências e fraudes, opõe a história como reconhecimento dessas coisas tais quais são, e como esforço racional para libertar-se delas. Para o R., porém, tudo o que a tradição lega é manifestação da Razão Infinita: é verdade e perfeição. Portanto, o espírito iluminista é crítico e revolucionário; o espírito romântico é exaltativo e conservador. O conceito de história como projeto providencial do mundo domina toda a filosofia do séc. XIX; mesmo no séc. XX, a filosofia só consegue libertar-se desse conceito através de amargas experiências históricas e culturais. É nessa concepção de história que mais se manifesta a afinidade entre idealismo e positivismo no sentido comum de romantismo. Comte tem o mesmo conceito de história de Fichte, Schelling — mais tarde —, Croce e dos epígonos do romantismo no séc. XX. A história como manifestação de um princípio infinito (Eu, Autoconsciência, Razão, Espírito, Humanidade, ou qualquer outro nome que se lhe dê) é racionalidade total e perfeita, não conhecendo imperfeição ou mal. A forma extremada desse conceito de história está em Hegel (repetido por Croce): a história não é progresso ao infinito, visto que, se assim fosse, cada um de seus momentos seria menos perfeito que o outro; ela é infinita perfeição de todos os seus momentos. A contraposição hegeliana entre o "verdadeiro infinito" e o "mau infinito" não significa outra coisa. E óbvio que, num conceito da história semelhante, não há lugar para o indivíduo e suas liberdades, pelos quais o iluminismo se batera. Há lugar apenas para os "heróis" ou "indivíduos da história cósmica", instrumentos de que a providência histórica se vale para realizar astutamente seus fins. Aspecto importante do providencialismo romântico é o tradicionalismo-. com efeito, a exaltação das tradições e das instituições que a encarnam é um dos aspectos típicos do movimento romântico. A essa atitude deveu-se a revalorização da Idade Média, que é característica do R. A Idade Média afigurara-se ao iluminismo (assim como, antes, ao humanismo) como uma época de decadência e de barbárie, em que haviam sido perdidos os valores humanos e racionais criados pela Antigüidade clássica. Para o R. não existem épocas de decadência ou de barbárie porque toda a história é racionalidade e perfeição. Na Idade Média, aliás, mais do que no mundo clássico, pode-se e deve-se ver — segundo o R. — a origem do mundo moderno: assim, o retorno à Idade Média constitui uma de suas palavras de ordem. Em virtude dessa mesma atitude, o R. alemão começou a exaltar as tradições originárias da nação alemã, surgindo a primeira ROMANTISMO 862 RUPTURA forma de nacionalismo, que se difundiria e acabaria por tornar-se uma das marcas da cultura européia do séc. XIX. De fato, o conceito de nação é composto por elementos tradicionais (raça, língua, costumes, religião), que não podem ser negados ou renegados sem traição, pois constituem aquilo que a nação foi desde sempre. Ao contrário, o conceito setecentista de povo era definido pela vontade e pelos interesses comuns dos indivíduos. Tradicionalismo e nacionalismo fincam raízes no terreno comum do providencialismo romântico. Finalmente, um dos aspectos fundamentais e mais evidentes do R. é o titanismo. De fato, o culto e a exaltação do infinito têm como contrapartida negativa a inaceitabilidade do finito ou a impossibilidade de satisfazer-se com ele. Nessa inaceitabilidade (ou insatisfação) estão as raízes da atitude de rebeldia contra tudo o que parece ser ou é limite ou regra e do desafio incessante a tudo o que, por sua finitude, parece inferior ou inadequado ao infinito. Prometeu é adotado como símbolo desse titanismo, numa interpretação muito distante do espírito do antigo mito grego. Para este, Prometeu era o homem que transgredira a lei do destino para possibilitar a sobrevivência do gênero humano, sofrendo as conseqüências dessa transgressão. Para o R., porém, é o símbolo do desafio e da rebeldia ao finito: atitudes cuja razão de ser não está naquilo a que se opõem, mas apenas no fato de que aquilo a que se opõem não é o infinito. A atitude titânica não conduz à crítica das situações de fato e ao esforço de transformá-las, pois não julga que uma situação de fato seja ou possa ser superior ou preferível a outra; exaure-se num protesto universal e genérico, e não pode empenhar-se em qualquer decisão concreta. O culto e a exaltação do infinito, o fato de não se contentar com menos que a infinidade, constituem características marcantes do espírito romântico. Como já foi dito, o próprio positivismo se enquadra nesse espírito. Ele estende o conceito de progresso a toda a história do mundo: na verdade, é esse o sentido de "evolução". Faz da história humana um progresso necessário e infalível. E faz da ciência, que é sua manifestação humana preferida, o infinito da verdade, elegendo-a como única diretriz dos homens em todos os campos. As características assumidas pelo R. em política, arte e costumes estão intimamente ligados aos aspectos ora esclarecidos. Em política, o R. é defesa e exaltação das instituições humanas fundamentais, nas quais se personifica o Princípio infinito: Estado, Igreja, com tudo o que implicam. Em arte, busca a realização do infinito através de formas grandiosas e dramáticas, em que os conflitos são levados ao extremo para depois reconciliarem-se e pacificarem-se de maneira igualmente extremada e definitiva. Nos costumes, o amor romântico busca a unidade absoluta entre os amantes, sua identificação no infinito; em favor dessa unidade ou identificação sacrifica o sentido autêntico da relação amorosa e sua possibilidade de constituir a base para uma vida em comum (v. AMOR). ROSMINIANISMO. São designadas com este termo as principais características da filosofia de Antônio Rosmini Serbati (1797-1855), em especial: Ia tradicionalismo, como preocupação em defender os valores tradicionais e em justificar a tradição como produto ou manifestação de Deus; 2 a ontologismo-. tese segundo a qual o espírito humano frui um conhecimento do ser imediato e indubitável, conquanto parcial, sendo tal conhecimento a base de todo saber (v. ONTOLOGIA); 3a escolasticismo: concepção da filosofia como instrumento para justificar as verdades da religião. RUPTURA (ai. Zerrissenheit). Termo introduzido pelas filosofias existencialistas. Para Jaspers, a R. do mundo se dá quando a busca da totalidade absoluta, que tudo abarca, desemboca numa multiplicidade de perspectivas, cada uma das quais é relativa a determinado ponto de vista e nenhuma, portanto, pode eqüivaler a um mundo {Phil., I, pp. 64 ss.). Segundo Hei-degger, a R. do mundo ocorre com a ciência e a técnica, que organizam a separação entre o homem e a natureza (Erláuterungen zu Hólder-lin, pp. 271 ss.). s SABEDORIA1 (gr. 9póvr|crtç; lat. Sapientia, Prudentia; in. Wisdom, fr. Sagesse, ai. Weis-heit; it. Saggezzà). Em geral, a disciplina racional das atividades humanas: comportamento racional em todos os domínios ou virtude de determinar o que é bom e o que é mau para o homem. O conceito de S. refere-se tradicionalmente à conduta racional nas atividades humanas, ou seja, à possibilidade de dirigi-las da melhor maneira. Não é o conhecimento de coisas elevadas e sublimes, afastadas da humanidade comum, o que é expresso por sapientia, mas o conhecimento das atividades humanas e da melhor maneira de conduzi-las. A superioridade atribuída à prudentia ou à sapientia demonstra a interpretação fundamental que se tem de filosofia: o predomínio da segunda é típico do conceito de filosofia como contemplação pura; o primado concedido à prudentia expressa o conceito de filosofia como guia do homem no mundo (v. FILOSOFIA, II). Em Aristóteles, encontra-se uma distinção nítida entre dois tipos de sabedoria, que não se encontra em Platão. Este chama de sofia (oo(pía) a ciência que preside à ação virtuosa (Rep., IV, 443 e; cf. 428 b), que corresponde à prudentia. Diz que ela é "a mais elevada e, sem a menor dúvida, a mais bela, pois trata da organização política e doméstica, à qual se dá o nome de prudência e justiça" (OBanq., 209 a). As formas de saber que constituem fins em si mesmas são alheias à concepção filosófica de Platão. Esse saber, no entanto, é exaltado por Aristóteles, que o considera a forma mais elevada e divina: o outro tipo de sabedoria restringe-se a coisas meramente humanas, portanto, de menor valor. Desse ponto de vista, ela é definida como "hábito prático e racional que diz respeito ao que é bom ou mau para o homem" (Et. nic, VI, 5, 1140 b 4). Mas "o homem não é o melhor ser do mundo" (Ibid., VI, 7, 1141 a 21); é um ser mutável, e a S. que lhe diz respeito é também mutável, ao passo que a verdadeira sabedoria é sempre a mesma {Ibid., 1141 a 20 ss.). Portanto, Aristóteles põe esse tipo de sabedoria acima de tudo, sendo seu objeto aquilo que não pode mudar nem ser diferente do que é: o necessário. A distinção e a oposição feitas por Aristóteles mantiveram-se através dos séculos, e o modo de entender os dois tipos de S. (que em algumas línguas são indicadas pela mesma palavra) revela a orientação geral de determinada filosofia: para a contemplação ou para a ação. Após Aristóteles, prevaleceu o ideal de sabedoria prática. Epicuro dizia que a S., "de que nascem todas as virtudes, é até mais preciosa que a filosofia" (CartasaMenec, 132). Os estóicos identificavam esse tipo de S. com virtude total, da qual todas as outras provêm (DIÓG. L., VII, 125-26). O neoplatonismo, por sua vez, exaltava o outro tipo de sabedoria (PLOTINO, Enn., V, 8, 4), ao passo que S. Tomás reproduzia essa distinção, chamando a S. prática de prudentia e considerando-a "conselheira em todas as coisas referentes à vida humana, bem como o fim precípuo da vida humana" (S. Th., II, 1, q. 57, a 4). O mundo moderno dá preferência ao ideal prático da S., que retorna em Descartes (Princ. phil, pref.) e em Leibniz. Este último une, em sua definição, o aspecto teórico e o prático: "a S. é o perfeito conhecimento de todos os princípios e de todas as ciências, bem como da arte de aplicá-los" (De Ia sagesse, Op., ed. Erdmann, p. 673), mas a inclusão do aspecto prático significa a refutação do ideal de sapientia. Ao mesmo âmbito pertence a definição de Kant: "A S. consiste na concordância da vontade de um ser com seu objetivo final" (Met. der Sitten, II, § 45). SABEDORIA2 864 SABEDORIA2 Hegel acentuava o caráter humano e terreno da S., ao falar de uma S. terrena(Weltweisheit), que o Renascimento teria oposto como razão humana, à razão divina, à religião (Geschichte der Philosophie, ed. Glockner, I, pp. 92 ss.). Schopenhauer acentua ainda mais o caráter terreno da S., entendendo por ela "a arte de levar a vida da maneira mais agradável e feliz possível" (Aphorismen zur Lebensweisheit, Pref.). Para os filósofos contemporâneos a palavra S., em suas duas acepções, parece solene demais para que eles se detenham na tarefa de esclarecer seu conceito. No entanto, para eles, assim como para os antigos, a S. continua ligada à esfera dos afazeres humanos, e pode-se dizer que é constituída pelas técnicas antigas ou novas de que o homem dispõe para a melhor conduta de vida. SABEDORIA2 (gr. oocpíoi; lat. Sapientia-, in. Wisdom; fr. Sagesse, ai. Weisheit; it. Sapienzd). É o conhecimento superior das coisas excelentes. Caracteriza-se: Ia por ser o grau mais elevado de conhecimento, ou seja, o mais sólido e completo; 2° por ter como objetivo as coisas mais elevadas e sublimes, que são as coisas divinas. Esse, pelo menos, foi o conceito inicial para distinguir os dois tipos de S., o que ocorreu em Aristóteles. Até ele, e mesmo em Platão, o conceito era um só e identificava-se com o de sabedoria como conduta racional da vida humana (cf. PLATÃO, Rep. 428 b; 4-33 e). Aristóteles distinguiu e contrapôs as duas coisas: "A sofia é o mais perfeito dos saberes. Quem o detém deve saber não só o que deriva dos princípios, mas também conhecer os princípios. Assim, a 5. pode ser chamada ao mesmo tempo de intelecto e ciência, e, encabeçando todas as ciências, será a ciência das coisas mais excelentes" (Et. nic, VI, 7, 11 4 Ia 16). Intelecto e ciência têm aí o sentido específico definido por Aristóteles: intelecto (voüç) como conhecimento direto dos princípios da demonstração (Ibid., VI, 6, 1141 a 7), ciência como "hábito da demonstração" ou faculdade de demonstrar (Ibid., VI. 3 1139b 31). Portanto, a S. (oocpía) é o conhecimento mais certo e perfeito, por ser, ao mesmo tempo, conhecimento dos princípios e das demonstrações que deles resultam. Além disso, como tal, também é a ciência das coisas mais elevadas e sublimes. "Por natureza, há outras coisas muito mais divinas que o homem, como os astros luminosos de que se compõe o mundo. (...) Por isso se diz que Anaxágoras, Tales e outros homens desse tipo são sábios, porque não conhecem as coisas que lhes são úteis, mas as coisas excepcionais, maravilhosas, difíceis e divinas, porém inúteis, visto que não indagam acerca dos bens humanos" (Ibid., VI, 7, 1041 b 1). Portanto, o objeto específico da S. é o necessário, aquilo que não pode ser de outro modo (Ibid., 1041 b 11), ao passo que a S. tem por objetivo as atividades humanas mutáveis e contingentes. Essa doutrina de Aristóteles constitui um dos aspectos que mais acentuam a divergência entre ele e Platão, porquanto a filosofia de Platão tem em mira a sabedoria humana, enquanto a de Aristóteles opõe a esta a sabedoria divina. A afirmação do primado desse tipo de S. caracteriza as filosofias de tipo contemplativo, tanto quanto a afirmação da superioridade da sabedoria prática caracteriza as filosofias orientadoras (v. FILOSOFIA, II). Em vista do caráter "divino" da S. (oocpía), não admira que nas filosofias de fundo religioso da época alexandrina e posteriores, ela tenha sido substancializada e entendida como uma espécie de intermediária entre Deus e o mundo: um equivalente do logos (v.). Segundo Plotino, há uma S. que é substância, e nenhuma outra S. é melhor que ela: "cria todos os seres, todos emanam dela; ela mesma é os seres que nascem com ela e com ela se identificam, de tal maneira que S. e substância são uma única coisa''(Enn., V, 8, 4). Esta concepção já se encontrava no livro bíblico da Sabedoria, onde se diz: "É um vapor da virtude divina e uma emanação sincera da luz de Deus onipotente. É esplendor da luz eterna, espelho imaculado da majestade de Deus e a imagem de Sua bondade. Embora sendo una, pode tudo, e, permanecendo em si, inova todas as coisas e transporta-se de nação a nação nas almas santas, que constituem os amigos de Deus e os profetas" (Prov., VII, 25-27). Por outro lado, os gnósticos haviam personificado a S., transformando-a na última emanação ou eon, que quer sair de seu estado de desejo e alcançar o conhecimento direto do Pai (IRINEU, Adv. Haer., II, 5). Os próprios estóicos chamaram Deus, como alma do mundo, de "perfeita S." (CÍCERO, Acad., I, 29). A filosofia medieval, com S. Tomás, retoma o conceito aristotélico de S. Segundo ele, a S. tem em comum com todas as ciências a capacidade de deduzir conclusões de princípios, mas também tem algo mais que as outras ciências, "porquanto julga todas as coisas, não só quanto às conclusões, mas também quanto SABEDORIA POÉTICA 865 SÁBIO aos primeiros princípios; assim, é uma virtude mais perfeita que a ciência" (S. Th., III, q. 57, a. 2, ad ls). Na filosofia moderna, esse termo conservou o significado de conhecimento perfeito, tanto por ser completo quanto pela natureza de seu objeto. SABEDORIA POÉTICA (it. Sapienza poética). No segundo livro de Ciência nova (1744), Viço deu esse nome à cultura primitiva do gênero humano, que se basearia na sensibilidade, mais que na inteligência: "A S. poética, que foi a primeira S. dos gentios, teve que começar de uma metafísica não racional e abstrata, como a dos doutos de hoje, mas sentida e imaginada, que devia ser a daqueles primeiros homens, assim como eram eles, de nenhum raciocínio mas de sentidos robustos e vigorosíssimas fantasias". Como partes da S. poética, Viço fala de lógica poética, moral poética, economia poética, história poética, física poética, cosmografia poética, astronomia poética, cronologia poética e geografia poética. SABELIANISMO (in. Sabellianism; fr. Sa-bellianisme, ai. Sabellianismus; it. Sabellianis-mo). Doutrina trinitária sustentada por Sabélio na primeira metade do séc. II d.C: insistindo na unidade da Substância Divina, reduzia as Pessoas Divinas a três modos ou manifestações da Substância Única. Por isso, essa doutrina foi chamada de modalismo (v.). SABER (in. Knowing, To knoiv, fr. Savoir, ai. Wissen-, it. Saperé). Este verbo substantivado é usado com dois significados principais: le Como conhecimento em geral, e neste caso designa: qualquer técnica considerada capaz de fornecer informações sobre um objeto; um conjunto de tais técnicas; ou o conjunto mais ou menos organizado de seus resultados. W. James aceitou a distinção estabelecida por J. Grote (Exploratiophilosophica, 1856, p. 60) entre conhecer uma coisa, uma pessoa ou um objeto qualquer (que significa ter certa familia-ridade com esse objeto), e S. algo a respeito do objeto (o que significa ter dele um conhecimento talvez limitado, mas exato, de natureza intelectual ou científica) {The Meaning of Truth, 1909, pp. 11-12). Mas essa distinção difundiu-se especialmente na forma dada por Russell em famoso artigo de 1905: "A distinção entre experiência direta iacquaintancè) e conhecimento sobre (knowledge about) é a distinção entre as coisas que nos estão imediatamente presentes e as que nós alcançamos apenas por meio de frases denotativas" ("On denoting", 1905, em Logic and Knowledge, 1956, p. 41). Tal distinção constituiu um dos pontos altos da doutrina do Círculo de Viena; embora Carnap tenha reconhecido desde logo suas dificuldades ("Testability and Meaning" in Readings in the Philosophy of Science, 1953, pp. 48 ss.) ela continuou sendo e ainda é o pressuposto de muitas doutrinas, inclusive a de Carnap (v. EXPERIÊNCIA). 2- Como ciência, ou seja, como conhecimento cuja verdade é de certo modo garantida (para este significado v. CIÊNCIA). SÁBIO (gr. acxpóç; lat. Sapiens; in. Sage, fr. Sage, ai. Weise, it. Saggio). A figura estereotipada do S. foi traçada pela filosofia grega do período alexandrino por epicuristas, estóicos e céticos (sobretudo pelos estóicos) e entrou para a tradição com certas características fundamentais. O caráter primordial e fundamental que as três escolas atribuem ao S. é o de serenidade ou indiferença em relação às vicissitudes ou aos movimentos humanos, ao que dão o nome de ataraxia, aponia ou apatia (v.). As outras características são as seguintes: Ia Isolamento, como claro afastamento dos outros mortais, com os quais o S. nada tem em comum. Os estóicos levaram esse afastamento ao limite extremo, admitindo duas espécies de homens, os que praticam a virtude e os que não a praticam, dizendo que os primeiros são sábios e todos os demais, loucos. 0- STOBEO, Ecl, II, 7, 11; 65, 12). 2- Impossibilidade de progresso, quem não é S. é tolo ou louco, e não pode haver S. que seja mais S. que outro. Cícero diz: "Quem está imerso na água, mesmo que esteja tão perto da superfície a ponto de quase emergir, não consegue respirar tanto quanto se estivesse ainda no fundo (...): da mesma maneira, quem avançou um pouco em direção ao hábito da virtude não está menos sujeito à infelicidade do que quem não avançou nem um pouco" (Definibus, III, 14, 48). 3a Autarquia. Este caráter já foi exaltado por Aristóteles: "O justo ainda necessita de pessoas que possa tratar com justiça, com as quais ser justo; o mesmo se diz do homem moderado, do corajoso e cada um dos outros homens virtuosos. OS., ao contrário, pode contemplar sozinho, tanto mais quanto mais for S.; talvez seja melhor quando tem colaboradores, contudo é totalmente auto-suficiente" {Et. nic, X, 7, 1177 a 30). No entanto, Aristóteles fazia alusão à ati- SÁBIOS, SETE 866 SAGRADO ou SACRO vidade contemplativa, à qual se limitava o S.; as escolas pós-aristotélicas estendem o caráter de autosuficiência do S. a todas as manifestações de sua vida, não limitada necessariamente à contemplação. 4a Renúncia. Foi nesse caráter que os estéticos latinos, Epicteto, Sêneca e Marco Aurélio mais insistiram. Em vista da distinção feita por Epicteto entre as coisas que o homem pode dominar (seus estados de espírito), e as que ele não pode (as coisas exteriores), o S. deve renunciar às coisas externas e colocar o bem e o mal unicamente nas que estão em seu poder (Manual, 31). Isso implica a renúncia a ocupar-se das coisas e a aceitação da máxima "suporta e abstém-te" (A. GÉLIO, Noct. Att., XVII, 19, 6). 5a Consciência. Esta característica foi acrescentada à figura do S. pelo neoplatonismo, que exaltou principalmente a faculdade de olhar para dentro de si, extraindo tudo de si mesmo. Plotino diz: "O S. extrai de si mesmo aquilo que manifesta aos outros: olha apenas para si: não só tende a unificar-se e a isolar-se das coisas exteriores, mas também está voltado para si e encontra em si todas as coisas" (Enn., III, 8, 6; cf. I, 4, 4). Este movimento de olhar para si mesmo e encontrar tudo em si é a consciência (v.); segundo este ponto de vista, é só no S. que a consciência se realiza e vive. SÁBIOS, SETE (gr. Eo<piOTaí; in. Seven Sa-ges; fr. Sept Sages; ai. Sieben Weisen; it. Sette Saví). Esse foi o nome dado a algumas personalidades da Antigüidade grega que expressaram sua sabedoria em sentenças ou expressões brevíssimas; por esta última característica também receberam o nome de gnômicos. Eles foram enumerados de várias maneiras pelos escritores antigos. Tales, Bias, Pítaco e Sólon estão incluídos em todas as listas. Platão, que foi o primeiro a enumerá-los, acrescentou Cleóbulo, Míson e Quílon (Prot., 343 a). A Tales atribui-se o ditado "Conhece-te a ti mesmo" (DIÓG. L., I, 40); a Bias foram atribuídas as frases "A maioria é malvada" (Ibid. I, 88) e "Pelo fardo se conhece o homem" (ARISTÓTELES, Et. nic, V, 1, 1029 b 1); a Pítaco, o ditado "Aproveita o dia de hoje" (DIÓG. L., I, 79); a Sólon, a máxima "Leva a sério as coisas importantes" e a expressão "Não mais além" (Ibid., I, 60, 63); a Cleóbulo, a máxima "O melhor é a medida" (Ibid., I, 93); a Míson, o ditado "Procura as palavras nas coisas, e não as coisas nas palavras" (Ibid., I, 108); a Quílon, os ditados "Cuida de ti mesmo" e "Não desejes o impossível" (Ibid, I, 70). SACERDOTALISMO (in. Sacerdotalisni). Termo usado principalmente por escritores anglo-saxões para designar a tendência a atribuir, em religião, a máxima importância ao aspecto eclesiástico e sacramentai, em detrimento do aspecto interior e espiritual. SACRIFÍCIO (in. Sacrifice, fr. Sacrifice, ai. Opfer, it. Sacrifício'). Destruição de um bem ou renúncia ao mesmo, em honra à divindade. O S. é uma das técnicas religiosas mais difundidas. Seu objetivo é a purificação de alguma culpa ou pecado: neste caso, é desinteressado, ou seja, não tem objetivo utilitário imediato. Seu objetivo também pode ser a consagração, que é uma finalidade mais ou menos utilitária, pois consiste em persuadir a divindade a dar garantias à coisa ou à pessoa que se consagra. Tanto a purificação quanto a consagração na maioria das vezes têm caráter simbólico, no sentido de que a dádiva sacrificada não tem apenas o valor econômico que a comunidade lhe atribui, mas também certa relação simbólica com o objetivo (purificação ou consagração) da cerimônia sacrificai. Essas características podem ser identificadas nas técnicas sacrificais de todas as religiões, seja qual for seu grau de desenvolvimento ou de refinamento intelectual (cf. S. REINACH, Cultes, mytheset religions, 1905; E. DURKHEIM, les formes élémentaires de Ia vie religieuse, 1912; A. LOISY, Essai historique sur le sacrifice, 1920; P. RADIN, Primitive Religion, 1937). SAGACIDADE (gr. eíxruveoía; lat. Sagacitas; in. Sagacity, fr. Sagacité, ai. Sagazitüt; it. Saga-cia). Perspicácia na investigação. Aristóteles identificou a S. com o ato de apreender (Et. nic, VI, 10, 1143 a 17), e Kant definiu-a como "o dom natural que consiste em julgar por antecipação (judicium praeviurrí) onde pode ser encontrada a verdade e de aproveitar as menores circunstâncias para descobri-la" (Antr, I, §56). SAGRADO ou SACRO (gr. iepóç; lat. Sacer, in. Sacred; fr. Sacré, ai. Heilig; it. Sacro). Objeto religioso em geral, ou seja, tudo o que é objeto de garantia sobrenatural ou que diz respeito a ela. Como essa garantia às vezes pode ser negativa ou proibitiva, o S. tem caráter duplo, de santo e sacrílego: S. porque prescrito e exaltado pela garantia divina, ou porque proibido ou condenado pela mesma garantia (cf. DURKHEIM, Les formes élémentaires de Ia vie SALTO 867 SANSIMONISMO religieuse, 1912). R. Otto chamou estes dois aspectos, respectivamente, de fascinante e tremendo {Das Heilige, 1917). Heidegger, interpretando uma poesia de Hõlderlin que identifica a natureza com o S., considerou o S. como raiz do destino dos homens e dos deuses: "O S. decide inicialmente, acerca dos homens e dos deuses, quem serão, como serão e quando serão" {Erlüuteerungen zu Hõlderlin, 1943, pp. 73-74). Heidegger afirma também que "O S. não é S. porque divino, mas o divino é divino porque S." {Ibid., p. 58). SALTO (lat. Saltus; in. Leap, fr. Saut; ai. Sprung; it. Salto). Termo empregado por Kier-kegaard para indicar a "passagem qualitativa", brusca e sem mediação de uma categoria para outra ou de uma forma de vida para outra (p. ex., da vida ética para a vida religiosa) ou, em geral, de um estado para outro (p. ex., da inocência para o pecado, do pecado para a fé, etc). Kierkegaard opôs essa noção de S. à noção hegeliana de mediação (v.) e ilustrou-a aproximando-a: 1Q do entimema(v); 2a da analogia e da indução; 3B da teoria hegeliana. ls Entimema é o silogismo contraído, no qual se omite uma premissa e se passa diretamente da premissa maior à conclusão ("Todos os animais são mortais, logo o homem é mortal") (Diário, VI A, 33). Nesse sentido, a palavra S. é encontrada em Kant com o mesmo uso: "S. {saltus) na dedução ou na prova é a conexão de uma premissa com a conclusão, de tal maneira que a outra premissa é negligenciada" {Logik, 1800, § 91). 2o A analogia estabelece uma relação entre coisas qualitativamente diferentes e a indução passa do particular ao universal {Diário, V A, 74). 3a A doutrina hegeliana sobre a mudança quantitativa que provoca uma mudança qualitativa é a fonte autêntica do conceito kierkegaardiano. Hegel dizia: "A água, com a mudança da temperatura, não só se torna mais ou menos quente, mas passa pelos estados sólido, gasoso e líquido. Esses estados diferentes não nascem aos poucos, mas o próprio processo gradativo de mudança na temperatura é por eles interrompido, e o aparecimento de um novo estado é um salto. Qualquer mudança e qualquer morte, em lugar de ser um contínuo pouco a pouco é um truncamento do pouco a pouco e um salto da mudança quantitativa para a mudança qualitativa {Wissenschaft der Logik, I, seção III, cap. II, B; trad. it., pp. 418419). Kierkegaard censura Hegel por haver limitado este conceito ao domínio da lógica {DerBegriff Angst, I, § 2; trad. it., p. 35 e nota). Jacobi, no entanto, usara a expressão salto mortale (em italiano) para caracterizar a passagem da fé ao conhecimento filosófico {Werke, IV, pp. XL ss.), ao passo que Kant utilizou a mesma expressão para indicar a passagem da razão para a fé cega {Religion, B 158). SALVAÇÃO. V. REDENÇÃO. SAMSARA. V. BUDISMO. SANÇÃO (lat. Sanctio; in. Sanction; fr. Sanction; ai. Sanktion; it. Sanzioné). Há dois conceitos para este termo, correspondentes às duas orientações fundamentais da ética (v). Ia No primeiro, que corresponde à ética dos fins, a S. é a conseqüência agradável ou dolorosa (recompensa ou castigo) que determinada ação produz em determinada ordenação (natural, moral ou jurídica). Neste caso, a natureza da S. depende da natureza da ordenação à qual se faz referência, existindo então S. naturais, morais e jurídicas, segundo a natureza da ordenação que a determine. 2Q No segundo significado, a S. é, em geral, um estímulo à conduta. Este é o conceito de S. estabelecido por Bentham: "Os estimuladores da conduta transferem a conduta e suas conseqüências para a esfera das esperanças e dos temores: das esperanças que nos oferecem um excedente de prazeres; dos temores que prevêem um excedente de dor. Esses estimuladores podem receber o nome de S." {Deontology, 1834,1, 7). Este mesmo conceito de S. foi aceito pelos utilitaristas ingleses (cf. STUART MILL, Utilitarianism, cap. III) (v. PENA). SANQUIA. Um dos grandes sistemas filosóficos hindus, segundo o qual existem duas substâncias opostas, mas ambas eternas e infinitas: as almas (purushã), que são múltiplas, simples e inativas, e a natureza {prakrti), que é única, complexa e dinâmica. Esse sistema não admite a existência de uma divindade reguladora do mundo. Tudo nasce da natureza e volta a ela por um movimento circular que se repete indefinidamente (cf. G. Tucci, História da filosofia indiana, 1957, cap. V, e a bibliografia respectiva). SANSIMONISMO (in. Saint-Simonism; fr. Saint-Simonisme, ai. Saint-Simonismus; it. Sansimonismo). Doutrina do conde Claude Henri de Saint-Simon (1760-1825), exposta em numerosos textos, sendo os principais: Intro-duction aux travaux scientifiques du XIX' siè-cle, 1807; Uindustrie, 1816-18; Nouveau chris-tianisme, 1825, etc. Saint-Simon é o verdadeiro SANTIDADE 868 SEITA fundador do positivismo social, cujo objetivo era utilizar a ciência e a filosofia nela baseada como fundamento de uma reorganização radical da sociedade humana. Na nova sociedade, o poder espiritual seria entregue aos cientistas, e o poder temporal, aos industriais. No Novo cristianismo, Saint-Simon definiu o surgimento da sociedade tecnocrática como retorno ao cristianismo primitivo. O S. contribuiu para a consciência da importância social e espiritual das conquistas da ciência e da técnica, incentivando poderosamente o desenvolvimento industrial: ferrovias, bancos, indústrias e até a idéia de construir os canais de Suez e do Panamá couberam a sansimonistas (v. POSITIVISMO). SANTIDADE (gr. ócruóTr|Ç; lat. Sanctitas; in. Holiness; fr. Sainteté, ai. Heiligkeit; it. Santitã). Este termo tem dois significados fundamentais: um objetivo, que designa a inviolabilidade e em geral um valor a ser reconhecido e salvaguardado; 2Q um subjetivo, que designa o grau excelente e superior da virtude ou da religião como virtude. No primeiro sentido chama-se de santo o que é sancionado ou garantido por uma lei humana ou divina: p. ex., a santidade das leis, do juramento, etc. No segundo sentido, é chamado de santo o ser que realiza em si a vida moral ou religiosa no seu grau mais elevado. No primeiro sentido, Platão diz "atribuir corretamente a todos o que é justo e santo" (Pol, 301 d); no segundo, ele nega que a S. consista em "fazer coisas agradáveis aos deuses" (Eut., 6 e) e identifica a S. com o grau supremo de virtude, que é a justiça (Rep., X, 6l5b; Leis, II, 663b, etc). Ainda neste segundo sentido, S. Tomás identificava a S. com a religião, isto é, com a mais alta virtude (S. Th., II, 2, q. 81, a. 8), e Kant definia a S. como "a conformidade completa da vontade à lei moral". Assim, segundo Kant, a S. é "uma perfeição de que não é capaz nenhum ser racional do mundo sensível em nenhum momento de sua existência". Portanto, ela só pode ser admitida como limite do progresso infinito para a perfeição moral (Crít. R. Prática, I, II, cap. II, § 4). Por outro lado, Kant admite também a S. no sentido objetivo, que ele define como inviolabilidade. Assim, diz que "a lei moral é santa (inviolável)" (Jbid., § 5) e que "a humanidade deve ser santa para nós em nossa pessoa" (Jbid., § 5): nesses casos, obviamente, a noção de S. é de valor supremo, que não pode ser ignorado. Essas observações de Kant foram amplamente repetidas na filosofia moderna. SAPERE AUDE. Estas palavras de Horácio (Epist. XII, 40) foram adotadas no séc. XVIII como lema do Iluminismo ("Ousa conhecer"); neste sentido, foi citado por Kant em sua obra sobre o Iluminismo (Was ist Aufklü-rung?, 1784, em Werke, ed. Cassirer, IV, p. 169), que, ao traduzi-lo, dizia: "Tem coragem de usar teu próprio intelecto". Já em 1736 essa frase fora adotada como lema por uma "Sociedade dos Aletófilos" de Berlim, que se inspirava em Wolff (cf. sobre os empregos dessa expressão: FRANCOVENTURI, Rivista Sto-rica Italiana, 1959, pp. 119 ss.). SARCASMO (gr. oapKaauóç; in. Sarcasm; fr. Sarcasme, ai. Sarkasmus; it. Sarcasmo). Ironia unida à zombaria. O conceito é de origem estóica (cf. J. STOBEO, Ecl, II, 6, 222). SCHEBLIMINI. Termo que aparece no título de uma obra de J. G. Hamann (Golgotha und S., 1784) dirigida contra Mendelssohn. O termo, provavelmente extraído de um texto de Lutero, significa inspiração divina e a exaltação que ela comunica, donde sua oposição simétrica a "Gólgota", que é o símbolo da humilhação. (Cf. os esclarecimentos de L. SCHREINEIR no vol. II de /. G. Hamanns Hauptschriften erklart, 1956; e V. VERRA, Dopo Kant. Ilcriticismo neWetã pre-romantica, 1957, pp. 147 ss.). SECUNDÁRIA, PROPOSIÇÃO (in. Secon-dary proposition; fr. Proposition secondaire, ai. Sekundàr Satz; it. Proposizione secondarià). Boole indicou com esta expressão as proposições que têm por objeto outras proposições, ao passo que chamou de primárias as proposições que têm por objeto as relações entre coisas (Laws of thought, 1854, cap. XI). SECUNDARIAS e PRIMÁRIAS, QUALIDADES. V. QUALIDADE. SECUNDUM QUID ET SIMPLICITER (FALÁCIA). Já identificada por Aristóteles (El. sof., 5, 167 a), é a falácia (v.) que consiste em passar de uma premissa, em que certo termo é tomado em sentido relativo, para uma conclusão em que o mesmo termo é tomado em sentido absoluto ("Se o não-ser é objeto de opinião, o não-ser é"). (Cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 7. 46 ss.) SEITA (lat. Secta; in. Sect; fr. Secte, ai. Sekte, it. Settd). 1. Escola ou corrente filosófica. É neste sentido que a palavra é empregada pelos escritores latinos (CÍCERO, Brut., 31,120; QUINT., Inst. or., V, 7, 35, etc). SELEÇÃO 869 SEMELHANTE 2. Grupo de pessoas que defendem com fanatismo ou intolerância uma crença qualquer. É este o sentido com que se usa hoje o adjetivo sectário. SELEÇÃO (in. Selection; fr. Selection; ai. Selektion; it. Selezioné). Escolha: entendida como procedimento consciente ou como resultado de um procedimento não deliberado. Neste segundo sentido, C. Darwin falou de S. natural como procedimento através do qual a luta pela vida assegura a sobrevivência do mais apto (Origin ofSpecies, IV, § 1). SEMÂNTICA (in. Semantics; fr. Séman-tique, ai. Semantik). Propriamente, a doutrina que considera as relações dos signos com os objetos a que eles se referem, que é a relação de designação. Este termo, proposto para tal doutrina por Bréal (Essais de sêmantique. Science dessignifications, 1897), encontra justificação etimológica no verbo grego OT|U,(XÍVEIV, introduzido por Aristóteles para indicar a função específica do signo lingüístico, em virtude da qual ele "significa", "designa" algo. A S. seria portanto a parte da Lingüística (e mais especialmente da Lógica) que estuda e analisa a função significativa dos signos, os nexos entre os signos lingüísticos (palavras, frases, etc.) e suas significações. Embora seja esta a acepção mais difundida, hoje em dia, em filosofia e lógica esse termo também tem outras acepções. Por ex., A. Korzybski (Science and Sanity) utiliza "S." para indicar uma teoria relativa ao uso da linguagem, sobretudo em relação às neuroses que, segundo esse autor, são efeitos ou causas de certos maus usos lingüísticos. Os lógicos poloneses em geral (e em particular Chwistek), que contribuíram sobremaneira para o surgimento desse último ramo da lógica formal, não costumam distinguir entre proposição e enunciado, entre significado lógico e forma lingüística de uma proposição, e usam esse termo para indicar a lógica formal em seu conjunto. Não obstante, foi graças ao impulso dado pelos estudos dos lógicos poloneses que, por volta de 1956, começou-se a delimitar o campo dessa nova disciplina. Foi graças a Ch. W. Morris e R. Carnap que no seio da semiótica (teoria dos signos em geral, dos signos lingüísticos em particular) começaram a ser distinguidos alguns aspectos fundamentais: pragmática, que estuda o comportamento gestual dos seres humanos que fazem sinais por determinados motivos, para atingirem certos objetivos, etc. (portanto, é um ramo da psicologia e/ou da sociologia); S., que, sem considerar as circunstâncias concretas (psicológicas e sociológicas) do comportamento lingüístico, restringe seu campo de investigação à relação entre signo e referente {significatum, designatum, denotatum); e sintática, que, abstraindo até mesmo dos significados, estuda as relações entre os signos de determinado sistema lingüístico. S. e sintática na verdade constituem dois grandes capítulos que dividem a lógica formal pura. Desta última, porém, faz parte mais a S. pura, que constitui a priori as regras de um sistema sintático geral, do que a S. descritiva, que é uma investigação empírica com vistas à descrição de determinado sistema semântico (ou grupo de sistemas afins), portanto mais pertinente à lingüística que à lógica. Assim, a S.pura, mais que doutrina dos significados, é uma teoria geral da verdade e da dedução nos sistemas sintáticos interpretados; por isso, distingui-la da sintática torna-se difícil e problemático (cf. MORRIS, Foundations ofthe Theory ofSigns, 1938, cap. IV; CARNAP, Foundations qfLogic and Mathe-matics, 1939, I, 2; Meaning and Necessity, 1957, p. 233; Introduction to Semantics, 1942; 2- ed., 1958; LINSKY, editor, Semantics and the Philosophy qfLanguage, 1952). Mais recentemente, Quine insistiu na diferença entre a referência semântica propriamente dita, que seria o significar, e a referência do nomear. Tal diferença resulta, p. ex., do fato de que se pode nomear o mesmo objeto, como quando se diz "Scott" e "o autor de Waverley", mesmo que os significados sejam diferentes. A S. conteria, assim, duas partes: uma teoria do significado, à qual pertenceria a análise dos conceitos de sinonímia, significação, analiticidade, implicação; e uma teoria da referência, à qual pertenceria a análise dos conceitos de nomeação, verdade, de-notação e extensão. Mas o próprio Quine observa que até agora a palavra S. foi empregada principalmente para a teoria da referência, embora esse nome fosse mais adequado à teoria do significado (From a Logical Point qf View, 1953, VII, 1; II, 1). V. SIGNIFICADO. SEMASIOLOGIA. O mesmo que semântica (v.). SEMELHANTE (gr. õ^otoç; lat. Similis, fr. Semblable, in. Alike, Similar, ai. Âhnlich; it. Similé). Aquilo que tem qualquer determinação em comum com uma ou mais coisas. Aristóteles distinguiu os seguintes significados do termo: 1Q são S. as coisas que têm a mesma SEMENTES 870 SENSAÇÃO forma, ainda que sejam substancialmente diferentes; neste sentido são S. um quadrado maior e um menor, bem como duas linhas retas desiguais; 2a são S. as coisas que têm a mesma forma, mas estão sujeitas a variações quantitativas, quando suas quantidades são iguais; 3a são S. as coisas que têm em comum a mesma afeição, como p. ex. o branco; 4 a são S., as coisas cujas afeições iguais são mais numerosas que as afeições diferentes (Met., X, 3, 1054 b 3). É graças ao primeiro significado que em geometria as figuras são chamadas de S. (cf. EUCLIDES, El., VI, def. 1, 3; def. 11, etc). Na tradição posterior, a semelhança foi entendida especialmente em relação à qualidade comum (PEDRO HISPANO, Sutnm. log., 3. 29), mas às vezes também com relação à forma (S. TOMÁS, Contra Gent, I, 29; cf. S. Th., I, q. 4a 3). Mais genericamente, Wolff dizia que "são S. as coisas que são idênticas naquilo em que deveriam distinguir-se uma da outra" (Ont., § 195). Determinações desse tipo definem pouco e dizem apenas que os critérios de semelhança podem ser variados indefinidamente; o importante é que sejam declarados explicitamente em cada caso. Foi só na matemática moderna que a noção de semelhança recebeu definição diferente, graças à teoria dos conjuntos. São considerados S. os conjuntos que apresentem relação de termo a termo. Russell, p. ex., diz: "Diz-se que uma classe é S. a outra quando existe uma relação de termo a termo, em que uma classe é dominante enquanto a outra é o dominante inverso" (Jntroduction to Mathematical Philosophy, cap. II, trad. it, p. 27). Esta noção tem grande importância para definição matemática do infinito (v.). SEMENTES (gr. orcépiiaxa; lat. Seminà). Assim foram chamados freqüentemente os elementos últimos das coisas. Anaxágoras foi o primeiro a usar esse termo para designar as partículas que Aristóteles chamou de homeo-merias (Fr. 4, Diels). Esse termo foi usado depois por Epicuro {Fr. 250, Uesener) e por Lucrécio (De rer. nat., VI, 201 ss.; VI, 444, etc). A mesma metáfora está presente na noção estóica de razões seminais (v.). SEMIOSE (in. Semiosis). O processo em que algo funciona como signo, que é o objeto da semiótica, no sentido de Morris (Founda-tions ofthe Theory ofSigns, 1938, II, 2). Essa palavra é equivalente à expressão comportamento gestual (por sinais), que o próprio Morris preferiu no volume Signs, Language and Behavior, 1946, I, 2 (v. SIGNO). SEMIÓTICA (gr. TO OT|m.ümKÓV; in. Semio-tic, fr. Sémiotique, ai. Semiotik, it. Semiótica). Este termo, usado inicialmente para indicar a ciência dos sintomas em medicina (cf. GALENO, Op., ed. Kün, XIV, 689), foi proposto por Locke para indicar a doutrina dos signos, correspondente à lógica tradicional (Ensaio, IV, 21, 4); depois foi empregado por Lambert como título da terceira parte do seu Novo Organon (1764). Na filosofia contemporânea, E. Morris utilizou o conceito de S. como teoria da semiose (v), mais do que do signo, dividindo a S. em três partes, que correspondem às três dimensões da semiose: semântica, que considera a relação dos signos com os objetos a que se referem; pragmática, que considera a relação dos signos com os intérpretes; e sintática, que considera a relação formal dos signos entre si (Foundations ofthe Theory of Signs, 1938, II, 3). Aceita por Carnap (Foundations of Logic and Mathematics, 1939, I, 2), essa distinção difundiu-se amplamente em filosofia e lógica contemporâneas (V. PRAGMÁTICA; SEMÂNTICA; SINTAXE). SEM-LEI (it. eslegè). Viço dá esse nome ao estado que "a providência divina impôs aos ferozes e violentos que se conduzissem para a humanidade e se organizassem em nações, despertando neles uma idéia confusa de divindade... E assim, por temor a tal divindade imaginada, começaram a organizar-se de algum modo" (Scienza nuova, dign. 31). Segundo Viço esse tempo de estado prova a função que a religião exerceu no surgimento da sociedade civilizada. SENSAÇÃO (gr. aio9r|C7iÇ; lat. Sensus, Sen-sia, in. Sensation; fr. Sensation; ai. Empfin-dung; it. Sensazionè). Este termo tem dois significados fundamentais: Ia um significado gene-ralíssimo, em virtude do qual designa a totalidade do conhecimento sensível, ou seja, todos e cada um de seus elementos; 2a um significado específico, em virtude do qual designa os elementos do conhecimento sensível, ou seja, as partes últimas, indivisíveis, de que supostamente é constituído. Este segundo significado aparece somente na filosofia moderna. Ia Para Aristóteles esse termo significa: a) as qualidades elementares, como branco, preto, doce, etc. (Dean., III, 2passim); b) a percepção do objeto real, chamada de S. em ato, que coincide com a realidade do objeto: pelo que SENSAÇÃO 871 SENSAÇÃO uma sensação auditiva em ato é idêntica ao som em ato {Md., III, 2, 425 b 26); c) a faculdade de sentir, em geral, ou senso comum (v.), ao qual atribui a função de perceber tudo o que é sensível e as próprias S. (ou seja, sentir o sentir) {De somno, 2, 445 a 17; De an., III, 2, 246 b 11; 415 b 12); d) o sentido específico, como a audição, a visão, etc. {De somno, 2, 445 a 14; De an., III, 2, passini); e) o órgão do sentido, chamado mais freqüentemente de sensório {De pari. an., II, 10, 657 a 3; IV, 10, 686 a 8; De sensu, 3, 440 a 19). Esta terminologia mantém-se por muito tempo na história do pensamento ocidental, até que, com Descartes, o conceito de S. começa a ser distinguido nitidamente do de percepção. 23 Descartes especificou mais o significado de S., entendendo por S. o simples advertir "movimentos provenientes das coisas"; distinguiu-a de percepção, que é a referência à coisa externa {Pass. de 1'âme, I, 23). A partir desta distinção, que se consolidou cada vez mais depois de Descartes, especialmente graças à escola escocesa, a S. foi reduzida a unidade elementar do conhecimento sensível, o que Locke chamou de "idéia simples"; era considerada material de conhecimento, ao passo que a função cognitiva propriamente dita, vale dizer, a referência ao objeto, cabia à. percepção {v.). Foi esse o conceito aceito e difundido por Kant, que diz: "A S. é o elemento puramente subjetivo da nossa representação das coisas que estão fora de nós, mas é propriamente o elemento material dessa representação, o real, aquilo com que é dado algo de existente" {Crít. do Juízo, Intr., § VII; cf. Crít. R. Pura, § I; Dialética transcendental, livro I, seç. I: "Uma percepção que se refira unicamente ao sujeito, como modificação de seu estado, é S."). O caráter primordial ou elementar da S. também era acentuado por Hegel, embora de maneira arbitrária e fantasiosa: "A S. é a forma da agitação obtusa do espírito em sua individualidade destituída de consciência e de intelecto." Em certo sentido, é verdadeira, segundo Hegel, a asserção de que "tudo está na S.", com o sentido de que ela é fonte e origem de tudo; mas fonte e origem significam apenas a primeira e mais imediata maneira como algo aparece, e a S. não se justifica por si {Ene, % 400). O conceito de S. como elemento simples e último do conhecimento foi primeiramente aceito e ilustrado por filósofos, sendo depois utilizado como fundamento da psicologia nascente pelos primeiros estudiosos que cultivaram esta ciência. Condillac foi o primeiro a dar-se conta do alcance desse conceito. Se a S. é o elemento último do conhecimento, deve ser possível reconstituir, a partir dela, todo o mundo do conhecimento ou da atividade espiritual humana. Foi essa a demonstração que ele tentou dar no Tratado das S. (1754), em que adotou como fundamento o princípio de que "o juízo, as reflexões, as paixões e, numa palavra, todas as operações da alma não passam da própria S. que se transforma de várias maneiras" {Traité des sensations, Compêndio da primeira parte). Mesmo polemizando contra o sensacionismo, Maine de Biran reconhece o caráter simples e elementar da S. {CEuvres, ed. Navine, II, p. 115); esse mesmo caráter da S. é reconhecido por Herbart {Allgemeine Metaphysik, 1828, II, p. 90). O conceito de caráter elementar da S. foi tomado como base da psicologia por H. Spencer, que afirmava: "as S. são estados de consciência primariamente indecomponíveis" {Principies of Psychology, 1855, § 211). Esse princípio era consagrado por G. Fechner em Elemente der Psychophysik (1860) e por Wundt, que definia as S. explicitamente como "os estados de consciência que não podem ser divididos em partes mais simples" {Grundzüge derphysiologischen Psychologie, 1893, 4a ed., p. 281). Tornou-se lugarcomum em psicologia, que em sua primeira fase foi atomista e associacionista (v. PSICOLOGIA). Por outro lado, o modo como os filósofos interpretaram a S. quase sempre pressupôs um caráter elementar ou atômico. Helmholtz eliminou dela o caráter representativo, considerando-a simples sinal das coisas, mas reconheceu seu caráter elementar {Vortrage und Reden, I, 1884, p. 393). Husserl considerava as S. como componentes elementares das experiências representativas {Logische Untersuchungen, II, p. 714), e Mach valeu-se de seu caráter elementar para considerá-las neutras (nem objetivas, nem subjetivas), portanto como componentes simples de qualquer objeto físico ou psíquico {Analyse der Empfindungen, 1903, 4a ed., pp. 14, 17, etc). As experiências elementares de que R. Carnap falava em Visão lógica do mun-dosão, mais uma vez, as S. {DieLogischeAujbau der Welt, 1928, § 67). Quando o gestaltismo (v. PSICOLOGIA) eliminou o atomismo e o associacionismo da antiga psicologia, o conceito de S. tornou-se pratica- SENSACIONISMO 872 SENSO COMUM mente inútil. A psicologia fala ainda de S. para indicar sons, cores, etc, mas como esse material é dado ao homem somente em relação com o objeto externo, ou seja, na percepção, é esta última que passa a interessar à psicologia, tornando-se inútil o conceito de S. como unidade psicológica elementar. SENSACIONISMO (in. Sensationalism; fr. Sensualisme, Sensationisme, ai. Sensualismus, it. Sensismó). Doutrina que reduz conhecimento a sensação e realidade a objeto da sensação. Kant chamava Epicuro de sensacionista (Crít. R. Pura, Doutrina do Método, cap. IV). Nas filosofias modernas, esse nome foi reservado às doutrinas segundo as quais todos os conhecimentos derivam dos sentidos: essa tese foi entrevista por Hobbes (Leviath., I, 1), mas foi só Condillac que procurou demonstrá-la, dizendo que das sensações desenvolvem-se gradati-vamente os conhecimentos e as próprias faculdades humanas iTraité des sensations, 1754). Esse termo costuma ser aplicado a doutrinas desse tipo. É raro (e impróprio) que ele seja aplicado ao empirismo de cunho lockiano (que admite, ao lado da sensação, uma outra fonte de conhecimento, que é a reflexão). SENSIBILIDADE (in. Sensibility, Feeling; fr. Sensibilité, ai. Sinnlichkeit; it. Sensibilitâ). 1. Esfera das operações sensíveis do homem, considerada em seu conjunto, o que inclui tanto o conhecimento sensível quanto os apetites, os instintos e as emoções. 2. Capacidade de receber sensações e de reagir aos estímulos. P. ex., "a S. dos vegetais". 3. Capacidade de julgamento ou avaliação em determinado campo. P. ex., "S. moral", "S. artística", etc. 4. Capacidade de compartilhar as emoções alheias ou de simpatizar. Nesta acepção, diz-se que é sensível quem se comove com os outros, e insensível quem se mantém indiferente às emoções alheias (V. SIMPATIA). SENSITIVO (in. Sensitive, fr. Sensitif ai. Sensitiv). Sensível no 2Q significado. Às vezes, quem é extremamente sensível. SENSÍVEL (gr. aio9T|TÓÇ; lat. Sensibilis; in. Sensible, fr. Sensible, ai. Sensibel; it. Sensi-bilé). 1. Aquilo que pode ser percebido pelos sentidos. Nesta acepção, "o S." é objeto do conhecimento S., assim como o "inteligível" é objeto do conhecimento intelectivo (ARISTÓTELES, Dean., II, 6, 418 a 7; KANT, Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. III, Nota). Aristóteles distinguiu os S. próprios e os S. comuns (v. SENSO COMUM), e o S. acidental do S. por si, na medida em que o primeiro é percebido acidentalmente, como acontece quando se percebe o branco ao se perceber que uma pessoa é branca {De An., II, 6, 418 a 16). 2. Aquilo que tem a capacidade de sentir. Nesta acepção, os animais são chamados de "seres S.", ou diz-se que "xé particularmente S. a algo". Em inglês, é chamado de S. (sensible) quem possui bom senso ou, em geral, é capaz de julgar corretamente. 3. Quem tem capacidade de compartilhar as emoções alheias ou de simpatizar (v. SIMPATIA). SENSO (in. Sense; fr. Sens; ai. Sinn; it. Senso). Capacidade de julgar em geral. Com esta significação, a palavra é empregada nas seguintes expressões: bom S., que Descartes considera sinônimo de razão e define como "faculdade de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso" (Discours, I); S. moral, que Shaftesbury (Characteristics of Men, 1111) e Hutchinson (System of Moral Philosophy, Y755) consideraram capacidade instintiva de avaliação moral, portanto como guia infalível do homem; S. racional ou S. lógico, que Romagnosi considerou como atividade que julga e organiza as sensações (Che cos'è Ia mente sana, 1827, § 10). Com esta mesma acepção do termo relaciona-se a expressão S. comum, à qual foi dedicado um verbete à parte, bem como expressões como S. prático, S. financeiro, S. artístico, etc, que designam a capacidade de julgar ou de orientar-se nos campos especiais, indicados pelo adjunto adnominal. SENSO COMUM (gr. KOIVIÍ aio0r|ecaç; lat. Sensus communis; in. Common sense, fr. Sens commun; ai. Gemeinsinn; it. Senso comune). 1. Aristóteles designou com esta expressão a capacidade geral de sentir, à qual atribuiu duas funções: Ia constituir a consciência da sensação, que é o "sentir o sentir", porquanto tal consciência não pode pertencer a um órgão especial do sentido, como, p. ex., à visão ou ao tato (De somno, 2, 455 a 13); 2Q perceber as determinações sensíveis comuns a vários sentidos, como o movimento, o repouso, o aspecto, o tamanho, o número e a unidade (De an., III, I, 425 a 14). Essa noção foi admitida também pelos estóicos, que atribuíam ao S. comum as mesmas funções (J. STOBEO, Ecl, I, 50). Retomada por Avicena (Dean., III, 30), passou para a escolástica medieval (cf. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 78, a 4) e mais tarde também foi comumente aceita por todos os aristotélicos e pelos escrito- SENSO COMUM 873 SENTIDO res que se inspiraram de algum modo na psicologia aristotélica. 2. Nos escritores clássicos latinos, essa expressão tem o significado de costume, gosto, modo comum de viver ou de falar. Neste sentido, Cícero adverte que no orador é falta grave "abominar o gênero vulgar do discurso e o costume do S. comum" {Deor., I, 3, 12; cf. 2, 16, 68), e Sêneca afirma que "a filosofia visa a desenvolver o S. comum" (Ep., 5, 4; cf. 105, 3)-Viço expressava numa fórmula lapidar o pensamento tradicional dos autores latinos ao afirmar: "O S. comum é um juízo sem reflexão, co-mumente sentido por toda uma ordem, todo um povo, toda uma nação, ou por todo o gênero humano" {Ciência nova, 1744, Dignidade 12), e ao atribuir ao S. comum a função de confirmar e determinar "o arbítrio humano, incer-tíssimo por sua própria natureza, (...) no que diz respeito às necessidades ou utilidades humanas" ilbid., Dignidade 11). Essa expressão teve o mesmo significado na Escola Escocesa. Em Investigação sobre o espírito humano segundo os princípios do senso comum (1764), T. Reid usa essa expressão para designar as crenças tradicionais do gênero humano, aquilo em que todos os homens acreditam ou devem acreditar. Para essa escola, o S. comum é o critério último de juízo e o princípio que dirime todas as dúvidas filosóficas. Hoje, essa expressão costuma ter significado análogo, embora sem a conotação elogiosa atribuída pelos filósofos escoceses. Dewey, p. ex., ressalta o caráter prático do S. comum: "Visto que os problemas e as indagações em torno do S. comum dizem respeito às interações entre os seres vivos e o ambiente, com o fim de realizar objetos de uso e de fruição, os símbolos empregados são determinados pela cultura corrente de um grupo social. Eles formam um sistema, mas trata-se de um sistema de caráter mais prático que intelectual. Esse sistema é constituído por tradições, profissões, técnicas, interesses e instituições estabelecidas no grupo. As significações que o compõem são efeito da linguagem cotidiana comum, com a qual os membros do grupo se intercomunicam" {Logic, VI, 6; trad. it., p. 170). 3- Na doutrina de Kant o S. comum é o princípio do gosto, da faculdade de formar juízos sobre os objetos do sentimento em geral. "Tal princípio só poderia ser considerado S. comum, que é essencialmente diferente da inteligência comum, que às vezes também é chamada de S. comum {sensus communis), pois esta não julga conforme o sentimento, mas conforme conceitos, embora se trate em geral de conceitos obscuramente representados" {Crít. do Juízo, § 20). A inteligência comum {Ge-meine Verstand) neste trecho é o S. comum dos escritores latinos e da escola escocesa, que Kant considera inútil em filosofia {Prol., A 197); essa também é a opinião de Hegel e de outros (cf. R. CANTONI, Trágico e senso comu-ne, pp. 35 ss.). SENSORIAL (in. Sensory, fr. Sensoriel; ai. Sensorisch; it. Sensorialè). Que concerne ao sensório, aos órgãos dos sentidos. SENSÓRIO (gr. aio8típiov; lat. Sensorium). Na terminologia aristotélica, o órgão de um sentido {Dean., II, 9, 421 b 32; Depart. an., II, 10, 657 a 3, etc): aquilo que hoje é chamado de receptor. SENSUALIDADE (lat. Sensualitas-, in. Sen-suality; fr. Sensualité, ai. Sinnlichkeit; it. Sensualitã) . Tendência a entregar-se aos prazeres sensíveis. SENSUALISMO (fr. Sensualismè). 1. A atitude que consiste em atribuir uma importância excessiva aos prazeres dos sentidos. Em tal sentido a palavra é usada por Berkeley {Alci-phron, II, 1 6). 2. O mesmo que sensacionismo (v.). Este emprego, que só aparece raramente em alguns escritores italianos e franceses do século passado, é devido à sugestão do termo alemão correspondente a sensacionismo: Sensualismus. SENTENÇA (lat. Sententia; in. Sentence, ai. Ausspruch; it. Sentenzd). Juízo, opinião ou máxima: p. ex., "as S. de Epicuro" (cf. CÍCERO, De nat. deor., I, 30, 85). Na terminologia medieval, além do significado genérico, esse termo assumiu outro mais específico, de definição autêntica do significado das Escrituras Sagradas e, em geral, de "concepção definida e certíssima". Uma coletânea de S. constitui uma Summa: a mais famosa foi a de PEDRO LOMBARDO, Libri quattuor sententiarum, composta entre 1150 e 1152 (cf. M. GRABMAN, Die Geschichte der scholastischen Methode, II, pp. 21 ss.). SENTIDO (gr. aío9T)cn.ç; lat. Sensus; in. Sen-se, fr. Sens; ai. Sinn; it. Senso). 1. Faculdade de sentir, de sofrer alterações por obra de objetos exteriores ou interiores. Essa foi a definição dada por Aristóteles {De an., II, 5, 4l6 b 33) que permaneceu na tradição filosófica. (S. TOMÁS, S. Th., I. q. 78, a. 3; DUNS SCOT, In Sent., I, d 3, q. 8; WOLFF, Psychol. emp., § 67; KANT, Antr., I, SENTIDO COMPOSTO e DIVIDIDO 874 SENTIMENTO § 7, etc). Nesta acepção, o S. compreende tanto a capacidade de receber sensações quanto a consciência que se tem das sensações e, em geral, das próprias ações: capacidade que na filosofia moderna é chamada mais freqüentemente de S. interno ou reflexão (cf. LOCKE, Ensaio, II, I, 4; KANT, Crít. R. Pura, Estética, § 1), e às vezes de S. íntimoQAMNE DE BIRAN, Journal Intime, I, pp. 13-14; CEuvres, ed. Tisserand, p. 15, etc.) ou consciência (v.). 2. Sensação ou conjunto de sensações, como quando se diz "os S. mostram que...", ou então apetites sensíveis, em especial os desejos sexuais. 3. Órgãos dos S., aquilo que se chama mais propriamente de sensório, ou, na terminologia moderna, receptor. 4. O mesmo que significado (v.). SENTIDO COMPOSTO e DIVIDIDO, FALÁCIA DO. V. COMPOSIÇÃO; DIVISÃO. SENTIMENTAL (in. Sentimental; fr. Sentimental; ai. Sentimentalisch; it. Sentimentalé). O significado deste adjetivo, no uso comum, não tem relação com o significado geral de sentimento, mas costuma referir-se a uma emoção particular, o amor. "Problemas S.", "crises S.", etc. são expressões que se referem a situações em que está em jogo o amor, mais precisamente o amor sexual. Freqüentemente esse adjetivo também inclui referência ao amor em sentido romântico (v.), como acontece no título de dois romances famosos: A viagem S. de Sterne e Educação S. de Flaubert. Em sentido específico, esse adjetivo foi empregado por F. Schiller para indicar uma espécie de poesia, em oposição à poesia ingênua (v. INGENUIDADE). SENTTMENTALIDADE ou SENTIMENTALISMO (in. Sentimentalism; fr. Sentimenta-lisme, ai. Sentimentallitãt; it. Sentimentalità ou Sentimentalismo). Consiste em entregar-se às emoções próprias ou alheias, em exaltar-se com elas desproporcionalmente à força, aos limites e à função dessas emoções. Kant viu no sentimentalismo a fraqueza de deixar-se dominar, até contra a vontade, pela participação no estado emocional de outrem. Por isso, opôs à S. o autodomínio, que possibilita a sutileza de sentimentos graças à qual as emoções alheias não são julgadas segundo a força de quem julga, mas segundo a fraqueza de quem sente. Diante do autodomínio, é ridículo e pueril deixar-se dominar pela emoção alheia, compartilhando-a indiscriminadamente (Antr., I, § 62). Na realidade, porém, existe sentimentalismo mesmo quando alguém se entrega às suas próprias emoções ou à sua manifestação externa, ilu-dindo-se quanto à sua força e consistência, e aumentando sua importância. SENTIMENTO (in. Sentiment; fr. Sentiment; ai. Gefühl; it. Sentimento). Esse termo pode significar: 1D o mesmo que emoção, no significado mais geral, ou algum tipo ou forma superior de emoção. Para este significado, v. EMOÇÃO; 2e pressentimento, no sentido em que se usam frases como "sinto que algo não vai bem" para dizer que se tem uma opinião que não é possível justificar naquele momento; quanto a esse sentido, v. OPINIÃO; 3Q fonte de emoções, como princípio, faculdade ou órgão que preside às emoções, e do qual elas dependem, ou como categoria na qual elas se enquadram. É com este último sentido que essa palavra é comumente empregada hoje, p. ex. quando se opõe o "S." à "razão" (considerada como órgão ou faculdade de conhecimentos objetivos), em frases como "não se faz política com sentimentos". Este emprego é justificado por uma tradição filosófica relativamente recente, só encontrada na Idade Moderna. Isto porque a filosofia antiga e a medieval não conheceram o S. como fonte ou princípio das afeições, afetos ou emoções e portanto não usam essa noção como categoria para organizar e classificar as afeições da alma. Nem a psicologia platônica, que distingue uma alma racional, uma concu-piscível e uma irascível iRep., TV, 12-15), nem a psicologia aristotélica, que distingue um princípio vegetativo, um sensitivo e um intelec-tivo (De an., II, 2), reconhecem uma fonte e um princípio autônomos das emoções: estas são repartidas entre as várias divisões ou princípios admitidos, sem exclusão do princípio racional ou intelectivo. O mesmo acontece com a filosofia medieval, que segue as pegadas da psicologia aristotélica. Na realidade, o reconhecimento de uma fonte ou princípio autônomo das emoções relaciona-se com o reconhecimento da subjetividade humana como algo irredutível a um conjunto de elementos objetivos ou objetiváveis ou a modificações passivas produzidas por tais elementos. Este reconhecimento caracteriza os primórdios da filosofia moderna e é, como todos sabem, uma contribuição do cartesianismo. Os pressupostos desse reconhecimento devem ser buscados na linha de pensamento que SENTIMENTO 875 SENTIMENTO vai de Pascal aos moralistas franceses e ingleses (La Rochefoucauld, Vauvenargues, Shaftes-bury e Hume) e chega até Rousseau e Kant, culminando neste último: essa é a linha que levou à elaboração do conceito moderno de paixão como emoção dominante e à noção de gosto (v.) que está intimamente relacionada com a de sentimento. "S.", "coração", "espírito de fineza" foram expressões usadas por Pascal para indicar o princípio ou o órgão das emoções, que é diferente do órgão ou do princípio dos raciocínios e irredutível a este. Pascal diz: "Os que estão acostumados a julgar com o S. nada entendem das coisas do raciocínio porque logo querem penetrar a questão com um lance de olhos, desacostumados que estão a buscar princípios. Os outros, ao contrário, que estão acostumados a raciocinar por princípios, nada entendem das coisas do S., porque buscam princípios, e não podem apreendê-los apenas com um lance de olhos" {Pensées, 3). Ao S. ou ao coração deve-se a mesma certeza que têm os primeiros princípios do raciocínio ("Os princípios são sentidos, as proposições são deduzidas, e em cada uma dessas duas formas há certeza, embora obtida por caminhos diferentes"); ao S. e ao coração é atribuída a verdadeira religiosidade, da qual o raciocínio pode somente aproximar-se e da qual só pode dar expectativas (Ibid., 282). Assim, os moralistas ingleses e franceses acima citados contribuíram para a elaboração e o reconhecimento da categoria do sentimento, por terem acentuado o papel dominante das emoções na vida do homem. Finalmente, é preciso lembrar que a "volta à natureza", proclamada por Rousseau como meio capaz de libertar o homem dos males produzidos pelos artificialismos sociais e de reconduzi-lo à bondade original, é entendida por ele como volta ao primitivo S. natural. O S. natural é um instinto, uma tendência originária que o conduz para o bem; quando não é alterada, afetada ou bloqueada, conserva o homem no bem e no bem permite-lhe progredir. Nestas famosas teses de Rousseau talvez se encontre a primeira aparição da categoria do S. como princípio autônomo da vida espiritual. Mas o primeiro a falar em termos filosóficos sobre essa categoria e a incluí-la numa nova subdivisão dos poderes ou das faculdades espirituais foi provavelmente Kant. Enquanto Wolff (e depois dele os wolffianos) admitia somente duas atividades fundamentais do espírito humano, conhecimento e volição, objetos dos dois ramos fundamentais da filosofia, o teórico e o prático, KANT reconheceu um terceiro poder ou faculdade, o sentimento. "Todos os poderes ou faculdades da alma — diz KANT iCrít. do Juízo, Intr., § III) — podem ser reduzidos a três, que não são redutíveis a um princípio comum: o poder cognitivo, o S. do prazer e da dor e o poder de desejar." O S. de prazer ou dor deve ser inserido entre o poder cognitivo e o poder de desejar; a ele cabe um princípio autônomo, que Kant chama às. faculdade de juízo (v.). Assim, o S. é o campo de crítica da faculdade de juízo, assim como a faculdade de desejar é o campo de crítica da razão prática. Kant caracteriza o S. como o aspecto irredutivelmente subjetivo da representação. Diz (Jbid., § VII): "Aquilo que há de subjetivo numa representação e que não pode de modo algum tornar-se artigo de conhecimento é o prazer ou a dor que estão ligados à representação; isso porque através deles nada conheço do objeto da representação, ainda que eles possam ser efeito de algum conhecimento." Em conformidade com esta reivindicação de autonomia do S. como categoria espiritual, em sua Antropologia pragmática, Kant divide a primeira parte, dedicada ao "modo de conhecer interior e exterior do homem", em três livros, dedicados respectivamente ao poder cognitivo, ao S. de prazer e dor e ao poder apetitivo. Por sua vez, o segundo livro é dividido em duas partes principais, a primeira das quais dedicada ao "S. de deleite e prazer sensível na sensação do objeto"; a segunda, dedicada ao "S. do belo, que é em parte sensível e em parte intelectual, sendo próprio da intuição reflexa ou do gosto". Esta segunda parte resume de forma mais acessível os resultados da Crítica do Juízo, a primeira contém uma série de observações sobre o S. de prazer e dor em relação com os dados dos sentidos (cf. também Met. der Sitten, Intr. 1, nota) (v. EMOÇÃO). Com isso, o S. ingressara oficialmente na filosofia como categoria independente. O próprio Hegel aceitao como determinação do espírito subjetivo e define-o como "uma afeição determinada", mas determinada de modo simples, isto é, de tal modo que, mesmo quando seu conteúdo é sólido e verdadeiro (o que nem sempre acontece), ele assume a forma de "particularidade acidental". Hegel acrescenta: "Quando, ao discutir sobre uma coisa, alguém não recorre à natureza e ao conceito da coisa, ou pelo menos à razão e à universalida- SENTIMENTO 876 SENTIMENTO de do intelecto, mas a seu S., nada se pode fazer; porque desse modo essa pessoa está se recusando a aceitar a comunhão da razão e fecha-se em sua subjetividade, em sua particularidade" (Ene, § 447). Nesse aspecto, Hegel opõe-se à tendência literária do Romantismo, cuja bandeira foi a descoberta e a exaltação do S., considerando-o a forma mais íntima e ao mesmo tempo mais livre de vida espiritual. Para os românticos só pode ser artista quem — como diz Friedrich Schlegel (Ideen, § 13), — "tem uma religião própria, uma intuição original do infinito". Essa intuição original do infinito é aquilo que os românticos chamam de sentimento. Em outras palavras, S. é a manifestação do Infinito, de Deus, à intimidade da consciência. Portanto, as características que definem o S. na concepção romântica são dois: l s seu caráter de extrema subjetividade, constituindo o que há de mais subjetivo no sujeito; 2 Q sua capacidade de revelar o Princípio infinito da realidade. Em virtude deste segundo aspecto, o S. é entendido pelos românticos, alternada ou concomitantemente, como órgão da arte, da filosofia e da religião. Schleiermacher considerou-o órgão da religião, afirmando que "só o S. revela o Infinito" (Reden, II; trad. it., p. 43), tese reexposta e defendida freqüentemente depois disso. Em tempos mais fecentes foi considerado órgão da arte por Gentile (Filosofia da arte, 1931), porquanto a arte é "a subjetividade pura, íntima e inexprimível do sujeito pensante", e o S. é precisamente isso. Na concepção de arte de Gentile, o S. conserva todas as conotações românticas: é o infinito espiritual na própria forma de sua infinidade, livre de determinações conceptuais necessitantes, constituindo "a subjetividade pura do sujeito" (Ibid., pp. 176 ss.); como tal, a infinidade do S. é a infinidade do homem em sua universalidade, estando portanto acima e além da diversidade empírica dos homens, considerados individualmente" (Ibid., p. 205). Mas a outra corrente do Romantismo oitocentista, o positivismo, também não ficou alheia à exaltação do sentimento. Ao delinear as características do futuro regime sociocrático (dominado e dirigido por uma corporação de filósofos positivistas), Comte afirmou que esse regime será dominado mais pelo sentimento que pela razão e que, portanto, atribuirá papel importante às mulheres, que representam o elemento afetivo do gênero humano (Politiquepositive, I, pp. 204 ss.). Isto porque a moral dessa sociedade futura será o altruísmo, mas um altruísmo tão desenvolvido que criará inclinações e instintos benévolos que, tanto quanto o sentimento, agem sem necessidade de reflexão. As preocupações religiosas e morais de Comte levaram-no a insistir no valor do S. e a exaltá-lo à maneira romântica. Mas fora do Romantismo, e contra ele, o S. foi aceito como categoria fundamental da vida espiritual, como uma das "faculdades" ou "poderes" do espírito. É curioso notar que, enquanto Kant admitia a tripartição conheci-mentos-vontade-S. com base apenas num modesto mas válido motivo metodológico (porque os três grupos de fenômenos não são redu-tíveis a um princípio único), logo depois dele essa tripartição começa a ser dogmatizada: para Fries ela já é resultado imediato da auto-obser-vação (Anthropologie, I, 1837, § 4). Herbart, conquanto negasse a doutrina das faculdades da alma, considerando-as "conceitos de classe" segundo os quais os fenômenos estudados se organizam, nem por isso deixou de incluir entre tais conceitos de classe o conceito de sentimento. Para Benecke, o S. era a base da moral e da religião; esta última originar-se-ia do S. de dependência em relação a Deus, justificado pelo caráter fragmentário da vida humana e pela exigência de completitude, que só pode vir de Deus (System der Metaphysik und Reli-gionsphilosophie, 1840). Para Rosmini o S. era a consciência que cada um tem de si, ponto de partida e base para o conhecimento da alma (Psicologia, % 69). A tripartição das faculdades do espírito em conhecimento, sentimento e vontade manteve-se como esquema praticamente constante na filosofia do séc. XIX. Para sua difusão muito contribuiu a obra de Cousin, que estabeleceu a correspondência entre essa tripartição e três valores absolutos: o Verdadeiro, o Belo e o Bem (Du vrai, du beau et du bien foi título da obra mais conhecida de Cousin, 1853). Se deixarmos de lado as críticas de caráter metodológico sobre a oportunidade de semelhantes esquemas rígidos de subdivisão no estudo dos fenômenos espirituais, podemos dizer que essa tripartição ainda hoje é a mais difundida, tendo-se incorporado ao modo de pensar comum. Exceção é Croce, que reconduziu as formas do espírito às duas formas admitidas por Wolff: a teórica e a prática, criticando o S. como categoria espúria e ambígua. Para Croce, S. era uma palavra "usada para denominar uma classe de fatos psíquicos constituída segundo o método SENTIMENTO 877 SENTIMENTO naturalista e psicológico": noção que várias vezes exerceu função negativa e crítica em estética, historiografia, lógica e ética, pois contrapunha às interpretações demasiado limitadas e estreitas tudo o que havia de "indeterminado" ou "semideterminado" fora dessas interpretações. O testemunho a que recorria para rejeitar essa categoria é o da observação interior: "Quem quiser, investigue seu espírito e tente indicar um ato sequer que, ao contrário dos indicados acima [atos teóricos e práticos], constitua algo novo e original, e mereça a denominação especial de S." (Fil. daprática, I, I, c. 2). Mas esse tipo de testemunho é extremamente variável e infenso a qualquer verificação; para Fries, p. ex., e para muitos outros, a distinção entre S. e outras atividades espirituais era tão claramente provada pelo testemunho interior quanto desmentida para Croce. Na realidade, o uso de tais categorias, como S., atividade teórica, atividade prática, só pode ser discutido, portanto submetido a limites e regras, com base na análise precisa de um grupo delimitável de fenômenos: análise que Croce nem sequer tentou. Contudo, na filosofia contemporânea não faltam análises desse tipo, que figuram entre suas contribuições menos discutíveis para o conhecimento do homem em seu mundo. Uma dessas contribuições — das mais importantes — é a de Max Scheler, que se referiu às palavras de Pascal, "o coração tem razões que a razão desconhece", mas sem interpretá-las no sentido freqüentemente encontrado na filosofia moderna e contemporânea (v. CORAÇÃO), de que a razão deveria ter certa condescendência para com o S. e tentar corresponder às suas exigências, porém no sentido de que o S. tem suas próprias leis, seus próprios objetos e constitui, portanto, um mundo diferente do racional. Scheler começa fazendo a distinção entre os estados emotivos simples, que não têm caráter intencional, ou seja, que não se referem imediatamente a um objeto próprio (v. EMOÇÃO), e o S. originário e intencional, que, ao contrário, é uma reação particular ao estado emotivo e consiste nas atitudes extremamente variáveis e mutáveis assumidas diante do estado emotivo: enfrentar, tolerar, fruir, suportar, etc. Estado emotivo, p. ex., é o prazer sensível correspondente ao caráter agradável de uma refeição, um perfume, um leve toque. O S. puro, ao contrário, consiste nas reações do eu a tal estado emotivo: p. ex., fruir em maior ou menor grau, tolerar, etc. Assim, enquanto um estado emotivo faz parte do conteúdo fenomenal, o S. puro está entre as funções destinadas a apreender tal conteúdo. Desse ponto de vista,. a tendência a suportar ou a fruir nada tem a ver com a sensibilidade em relação ao prazer e à dor. O grau de prazer ou de dor pode ser o mesmo, mas o sofrimento e o gozo por eles provocados em dois indivíduos ou no mesmo indivíduo em momentos diferentes podem ser completamente diferentes. Ora, enquanto os estados emotivos podem ser relacionados apenas de modo indireto com os objetos ou os fatos de que são efeito ou sinal, os sentimentos puros referem-se imediatamente a um objeto específico, que é o valor. Portanto, a relação entre S. e valor é a mesma observada entre a representação e seu objeto: a relação intencional (v. INTENCIONALIDADE). Enquanto é necessário um ato de reflexão para relacionar um estado emotivo com o objeto de que é sinal ou que julgamos ter provocado, o S. relaciona-se com seu objeto específico, o valor, de modo imediato, como acontece, p. ex., quando sentimos a beleza dos montes cobertos de neve ao pôr-do-sol. A conexão intencional entre S. e valor não tem, pois, nada a ver com um vínculo causai entre S. e objeto, e independe também da causalidade psíquica individual, ou seja, das leis que regem a vida psíquica do indivíduo. De fato, quando as exigências dos valores não são satisfeitas, sofremos, p. ex., por não nos sentirmos tão alegres quanto o valor de um acontecimento mereceria, ou por não nos sentirmos tão tristes pela morte de um ente querido quanto esse fato exigiria (Formalismus, pp. 260 ss.). Assim, segundo Scheler, o S. dá acesso a um mundo de objetos tão reais quanto as coisas ou os fatos que constituem o objeto da representação, mas que nada têm a ver com eles, porque não são coisas nem fatos, mas valores. Scheler, portanto, está de acordo com Kant ao julgar que o S. não é "artigo de conhecimento", mas discorda dele quanto a julgar que ele não tem nenhum objeto e é, por isso, destituído de caráter intencional. Apenas as emoções sensíveis são destituídas de objeto e por isso constituem estados emotivos puros, ao passo que os sentimentos vitais e os psíquicos sempre podem revelar caráter intencional (referir-se a um ob-jeto-valor); os S. espirituais revelam-no necessariamente (para a distinção entre os graus emocionais, V. EMOÇÃO). A análise de Scheler é muito importante porque lança novas luzes sobre a vida emocional do homem. Contudo, o próprio SENTIMENTO 878 SER Scheler usou sua análise como fundamento de uma verdadeira metafísica dos valores, em que estes não são considerados somente objetos, no sentido próprio e restrito do termo (v. OBJETO), mas verdadeiras realidades, no sentido em que são chamadas de reais as coisas, as entidades e os fatos, com a diferença de que, diante de qualquer outra coisa, entidade ou fato, os valores seriam realidades últimas ou "absolutas". Essa integração metafísica de uma análise meritória pelo modo como foi conduzida e pelas suas conclusões pode levantar dúvidas quanto à sua legitimidade. Com efeito, pode-se considerar que um dos resultados dessa análise é estender o significado de "objeto" como termo ou fim de um ato intencional, de tal modo que não sejam chamados de objetos apenas os que possam ser considerados reais no sentido de terem características de fatos ou entidades subsistentes. Por realidade entende-se, pois, de modo estrito e rigoroso, o termo de um processo cognitivo passível de verificação (v. REALIDADE), e não há razão para identificar a inten-cionalidade emotiva com a intencionalidade cognitiva; o próprio Scheler dá boas razões para fazer o contrário. Se as coisas são assim, ou seja, se a intencionalidade do S. é diferente da intencionalidade do conhecimento, sendo também diferentes seus respectivos objetos, deixa de ter fundamento a crítica de Scheler à tendência da psicologia contemporânea, de negar a "função cognitiva" dos S. Isto porque a psicologia contemporânea admite a função dos S. no comportamento vital do organismo, e considera-os anúncio de situações presentes ou futuras, o que permite enfrentar tais situações da mesma maneira como um dispositivo de alarme põe em movimento os meios de enfrentar um perigo. Assim como Scheler, Heidegger reconheceu a importância fundamental do S., que ele considera arraigado na substância humana, vale dizer, na estrutura ontológica de sua existência. Heidegger chama de situação afetiva {Befindlichkeit) o tom emocional da ocupação cotidiana do homem, e vê nesse tom uma manifestação essencial do ser do homem no mundo: "O estado da situação afetiva constitui, essencialmente, a abertura do ser-aí no mundo" {Sein undZeit, § 29). Segundo Heidegger, a situação fundamental de um ente que, como o homem, vive num ambiente que lhe fornece as coisas a serem utilizadas e que, por isso, pode ameaçá-lo com a nãoinstrumentalidade, com a resistência das coisas, é a possibilidade de ser ameaçado pelas coisas e pelos acontecimentos do mundo e de reagir a essa ameaça com medo ou com coragem. Também neste caso, se deixarmos de lado a linguagem específica da ontologia de Heidegger, podemos dizer que sua análise concorda fundamentalmente com a da psicologia contemporânea e que confirma a noção de S. como capacidade de apreender o valor que um fato ou uma situação apresenta para o ser (animal ou homem) que deve enfrentá-la. Finalmente, é preciso lembrar que para Hartmann o S. — que serviu de base para a sua ética — é a "principal sede em que os valores se dão" {Ethik, 1926). SENTIMENTO FUNDAMENTAL (it. Sentimento fondamentalé) Com este termo Rosmini designou a consciência que o homem tem de seu eu e da conexão (que o constitui) entre alma e corpo. "Existe no homem, tal qual ele é por natureza no primeiro instante de sua vida, 1Q) um sentimento único constante-fundamen-tal, animal-espiritual; 2Q) uma percepção racional, imanente, do sentimento animal" {Psicologia, 1850, § 256). SEPARAÇÃO (gr. StáKptmç; lat. Separatia, fr. Séparation; ai. Trennung; it. Separazione). Resolução de um composto em suas partes ou em seus elementos. Este termo foi usado por Anaxágoras {Fr. 10, Diels) e por Empédocles {Fr. 58, Diels) (cf. PLATÃO, Sof, 243 b; ARISTÓTELES, Mel, I, 4, 985 a 25). SEQÜÊNCIA (lat. Sequentia-, in. Séquence, fr. Séquence, ai. Folge, it. Sequenzà). Conjunto de termos entre os quais há uma relação de antes e depois (cf. PEIRCE, Coll. Pap., 3.562 B). SER (gr. xò õv; lat. Ens ou Esse, in. Being; fr. Être, ai. Sein-, it. Esseré). Preliminarmente, convém distinguir os dois usos fundamentais desse termo: 1 Q) o uso predicativo, em virtude do qual dizemos "Sócrates é homem", ou "a rosa é vermelha"; 2e) o uso existencial, em virtude do qual dizemos "Sócrates é" (= existe) ou "a rosa é" (= existe). Embora nem sempre explicitamente formulada, essa distinção é assumida ou pressuposta quase universalmente. Em Parmê-nides, Platão dá destaque à diferença entre a hipótese "o um é um" e a hipótese "o um é"; nesta última "é" significa "participação no S." {Parm., 137 e; 142 b). Aristóteles expressa de várias formas a mesma diferença: como diferença entre é como terceiro predicado e é como segundo predicado {De int., 10, 19b 19); como diferença entre é como predicado por acidente ("Homero é poeta") e é predicado por SER 879 SER si ("Homero é") (Deint., II, 21 a 25); como diferença entre "S. alguma coisa" e "S. absolutamente" (El. sof., 5, 167 a 1). Na diferença entre S. predicativo e S. existencial baseia-se ainda a distinção aristotélica entre tese e hipótese, como premissas do silogismo: a primeira não assume a existência do objeto a que se refere; a segunda, sim (An. post., 1, 2, 72 a 18). A diferença entre esses dois significados de S. permanece constante na tradição filosófica posterior a Aristóteles. S. Tomás afirma: "S. tem dois significados: num modo significa o ato de S.; no outro significa a composição da proposição que o homem encontra ao juntar o predicado ao sujeito" (S. Th., 1, q. 3, a. 4; cf. De ente, 1). Na lógica terminista medieval dis-tinguia-se o verbo S. como segundo constituinte (secundo adiacens) da proposição, do verbo S. que aparece como terceiro constituinte (tertio adiacens), em função predicativa ou de cópula (OCKHAM, Summa log., II, 1; ALBERTO DE SAXÔNIA, Lógica, I, 5). Kant estabeleceu a distinção entre a posição predicativa ou relativa, expressa pela cópula de um juízo, e a posição absoluta ou existencial, com que se põe a existência da coisa (Der einzig môgliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes, 1763, § 2). Na filosofia moderna e contemporânea, essa distinção é lugar-comum, embora nem sempre seja explicitamente formulada. Na evolução sofrida pelas interpretações desses dois significados de S. ao longo da história, pode-se perceber uma correspondência entre as interpretações do primeiro significado e as do segundo. Contudo, por uma questão de clareza, o estudo de cada uma delas deverá ser feito em separado. Ia Significado predicativo. Nas interpretações do significado predicativo é possível distinguir três doutrinas fundamentais: A) inerência; B) identidade (ou suposição); O relação. A) Segundo a doutrina da inerência, S., na relação predicativa, significa pertencer ou inerir (gr. vnápxexv; lat. Inessé). "Sócrates é homem" significa que a Sócrates inere a essência homem; "a rosa é vermelha" significa que à rosa pertence a qualidade vermelho, e assim por diante. O fundamento dessa doutrina é a teoria aristotélica da substância (v.). De fato, as relações de inerência que podem ser expressas pelo verbo S. são esclarecidas e distinguidas por Aristóteles com base nas relações entre a substância e sua essência necessária, ou entre a substância e suas outras determinações categoriais ou acidentais. Aristóteles diz: "Inerir, inerir necessariamente e inerir possivelmente são coisas diferentes" (An. pr., 1, 8, 29b 28). Inerência necessária é a da essência necessária (expressa pela definição) à coisa da qual é essência; inerir ou inerir possivelmente é referir-se à coisa com uma qualidade, quantidade ou qualquer outra das determinações catego-riais não incluídas na definição da coisa ou puramente acidentais. Este é o significado da distinção aristotélica entre S. necessário (ouporsi) e S. acidental. "Em sentido acidental, dizemos, p. ex., que o justo é músico, que o homem é músico e que o músico é homem, ou dizemos que o músico constrói quando acontece de o construtor ser músico ou de o músico ser construtor: em todos esses casos, dizer 'isto é aquilo' significa 'A isto acontece aquilo"'(Afeí., V, 7, 101 7 a 7). Ao contrário, a inerência necessária ou por si não tem caráter acidental, e, mesmo ao especificar-se segundo as categorias, seu principal fundamento é a substância. Aristóteles diz: "Assim como 'é'inere a todas as coisas de modos diferentes, pois a algumas inere de modo primário e a outras de modo secundário, também o 'o quê' [essência] inere absolutamente à substância e só de certo modo às outras coisas. A respeito de uma qualidade podemos até perguntar o que ela é, e por isso até uma qualidade é exemplo de essência, mas não de modo absoluto. Assim, alguns afirmam que, por lógica, o não-S. é, todavia não é de modo simples, mas apenas como não-S.: o mesmo se diga da qualidade" (Ibid., VII, 4, 1030 a 22). Portanto, segundo Aristóteles, o S. predicativo expressa a inerência ao sujeito de sua essência necessária, de determinações categoriais (que, embora não pertencendo à essência, dependem dela) ou de determinações acidentais. Esse significado de S. tem um sentido privilegiado, que é o inerir substancial, ou seja, o inerir da essência necessária (expressa pela definição) à substância definida. "Sócrates é animal bípede" é um caso de inerência predicativa privilegiada se "animal bípede" é definição do homem, porque é a inerência da essência necessária à substância. As outras determinações, como p. ex. "Sócrates é filósofo", constituem casos de inerência secundária ou acidental. As características fundamentais desse conceito do ser predicativo são: 1Q sua redução a um tipo único de relação, qualificada como pertença ou inerência; 2Q privilégio concedido à forma necessária dessa relação, ou seja, à for- SER 880 SER ma como ocorre essa relação entre substância e essência. Estas características são mantidas pela doutrina em exame ao longo de toda a sua história, que é longuíssima. A tradição lógica medieval até o séc. XIII (quando do ressurgimento das doutrinas dos estóicos através da via moderna) não conhece alternativa. As doutrinas modernas de caráter racionalista geralmente as compartilham. Leibniz diz: "Todo predicado verdadeiro tem algum fundamento na natureza das coisas, e quando uma proposição não é idêntica, vale dizer, quando o predicado não está compreendido expressamente no sujeito, é preciso que esteja compreendido virtualmente: é isso que os filósofos chamam de in-esse, ao afirmarem que o predicado está no sujeito" (Disc. de mét., 8). Do mesmo modo, para Hegel, o significado predicativo de S. é a identidade entre individual e universal, ou seja, aquela mesma relação entre substância e essência que para Aristóteles era o caso privilegiado de relação predicativa. Hegel diz.- "A cópula é vem da natureza do conceito, que é de ser idêntico a si mesmo ao se tornar extrín-seco: como momentos seus, o individual e o universal são determinações que não podem ser isoladas" {Ene, § 166). Segundo Hegel, o juízo tende a expressar de modo mediato ou reflexo a unidade entre predicado e sujeito, vale dizer, a unidade de um conceito único que, através do próprio juízo e, mais completamente, através do silogismo, articula-se em suas determinações necessárias (Wissenschaft der Logik, III, I, cap. 2; trad. it., pp. 77 ss.). A doutrina exposta por alguns hegelianos ingleses (BRADLEY, Principies of Logic, 1883; BOSAN-QUET, Logic, 1888), de que S. predicativo significa referência de um conceito ao sistema total da realidade (de sorte que, no juízo, o conceito é uma qualificação essencial da Realidade Universal), representa a forma assumida pela doutrina hegeliana da cópula na filosofia contemporânea. Também nessa forma, pode-se reconhecer a teoria da inerência: a substância ou realidade à qual o predicado inere é a totalidade do real, em vez de ser (como na doutrina de Aristóteles) uma única substância. B) A segunda interpretação fundamental de S. predicativo é de identidade (v.) ou suposição (v.): segundo ela, a cópula significa identidade do objeto ao qual o sujeito e o predicado da proposição se referem ou no lugar do qual estão {supponunt pró). Assim, p. ex., na expressão "Sócrates é branco", a cópula indicaria simplesmente que o sujeito "Sócrates" e o predicado "branco" referem-se ao mesmo objeto existente, que, portanto, pode ser qualificado com um ou com o outro dos dois termos. A origem desta doutrina está provavelmente na lógica estóica, na qual é fundamental a referência de qualquer enunciado a uma situação de fato imediatamente presente (v. ESSÊNCIA). Mas é expressa claramente só na lógica do séc. XIII, em polêmica com a teoria da inerência. Ockham diz: "Proposições como 'Sócrates é um homem' ou 'Sócrates é um animal' não significam que Sócrates tem humanidade ou animalidade. Tampouco significam que a humanidade ou a animalidade está em Sócrates, nem que o homem ou o animal é uma parte da substância ou da essência de Sócrates, ou uma parte do conceito ou da substância de Sócrates. Significam que Sócrates é na realidade um homem e é na realidade um animal: não no sentido de Sócrates ser esse predicado 'homem' ou esse predicado 'animal', mas no sentido de que existe alguma coisa em lugar da qual esses dois predicados estão; como quando acontece que esses predicados estão no lugar de Sócrates" (Sumiria log., II, 2; Quodl, III, 5). Essa doutrina é expressa quase nos mesmos termos por Hobbes: "A proposição é um discurso que consta de dois nomes conjuntos: quem fala pretende dizer que, para ele, o segundo nome é um nome da mesma coisa cujo nome é o primeiro, ou — o que dá no mesmo — o primeiro nome está contido no segundo. Por ex., o discurso 'O homem é animal', em que os dois nomes estão reunidos pelo verbo é, é uma proposição porque quem a enuncia pretende dizer que, para ele, o segundo nome 'animal' é nome da mesma coisa cujo nome é 'homem'" (De corp., I, 3, § 2). Essa doutrina foi substancialmente reproduzida por Stuart MUI, que dis-tinguia as afirmações "essenciais", ou seja, gerais, que só explicam a essência nominal de uma coisa (v. ESSÊNCIA), das proposições "reais", que sempre implicam a existência do sujeito a que se referem "porque, no caso de um sujeito inexistente, a proposição nada teria para asseverar" (Logic, I, VI, 2). A referência à realidade imediatamente dada ou intuída é a primeira característica fundamental da doutrina em exame. Os lógicos do séc. XIV chegavam a considerar falsa até mesmo proposições tautológicas como "A quimera é quimera", quando nelas o sujeito representa um objeto inexistente (OCKHAM, Summa log., SER 881 SER II, 14). A segunda característica dessa doutrina é a identidade da referência objetiva dos termos da proposição (identidade da coisa em lugar da qual estão). O Segundo a terceira interpretação fundamental, a cópula é uma relação. Esta interpretação pode ser dividida em duas alternativas: a primeira (d) considera que a relação predica-tiva é subjetiva; a segunda (b) considera-a objetiva. d) A interpretação do S. predicativo como relação que é ato ou operação do sujeito pensante tem como pressuposto óbvio o princípio cartesiano de que o objeto imediato do conhecimento humano é apenas a idéia. Desse ponto de vista, a proposição apresenta-se como juízo e começa a ter esse nome porque. juízo é exatamente o ato com que o espírito escolhe ou decide. Descartes diz: "Dos meus pensamentos, alguns são como imagens das coisas, e a eles só convém o nome de idéia: como quando represento um homem, uma quimera, o céu, um anjo, ou Deus. Outros pensamentos têm, além destas, outras formas; p. ex., quando quero, temo, afirmo ou nego, estou concebendo alguma coisa como objeto da ação de meu espírito, mas, com essa ação, acrescento alguma outra coisa à idéia desse objeto; desses pensamentos, alguns são chamados de vontades ou emoções; outros, de juízos" (Méd, III). Portanto, segundo Descartes, juízo é uma ação do espírito por meio da qual "se acrescenta alguma coisa" à idéia que se tem de um objeto; em outros termos, é um ato de unificação ou síntese. Esta noção é claramente expressa na Lógica, de Arnauld: "Quando digo 'Deus é justo', 'Deus' é o sujeito dessa proposição, 'justo' é o atributo, e a palavra 'é' marca a ação do meu espírito que afirma, ou seja, que liga as idéias 'Deus' e 'justo' como convenientes uma à outra" (Log., II, 3). A definição lockiana de conhecimento como "percepção de vínculo e concordância ou de discordância e oposição entre nossas idéias" (Ensaio, IV, I, § 2) expressa exatamente a mesma tese. Locke diz: "Tudo o que sabemos ou podemos afirmar sobre uma idéia qualquer reside em ser ou não essa idéia igual a uma outra; em coexistir ou não com alguma outra idéia no mesmo sujeito; em ter uma ou outra relação com alguma outra idéia; ou em ter existência real ou fora do espírito" (Ibid., IV, I § 7). Portanto, mesmo em seu uso existencial, o verbo S. só faz expressar relações percebidas pelo espírito, vale dizer, as relações cuja realidade está no sujeito cognoscen-te, embora não somente nele. Kant expressou esse mesmo conceito ao afirmar que o ato de juízo, atividade própria do intelecto, é a síntese: "Entendo por síntese, no sentido mais amplo dessa palavra, o ato de unir diversas representações e compreender a sua multiplicidade num só conhecimento" (Crít. R. Pura, § 10). Todas as interpretações idealistas da relação predicativa no mundo moderno partem dessa afirmação kantiana. Atividade sintética, poder sintético do espírito, síntese a priori, são expressões às quais a interpretação idealista do kantismo, a partir do Romantismo, emprestou um significado enfático e criativo, que de certo não tinham na doutrina de Kant: de qualquer modo, expressam o caráter subjetivo da atividade sintética, que como tal só pode operar entre "idéias" ou "representações", vale dizer, entre elementos ou estados do mesmo sujeito. A dificuldade fundamental que se opõe a essa doutrina é a óbvia consideração de que uma asserção qualquer não visa a estabelecer uma relação entre duas idéias, representações ou conceitos, mas entre os objetos aos quais se faz referência através deles. Quando se afirma "Sócrates é um homem", não se quer dizer que a representação Sócrates é homem, mas sim o indivíduo real ao qual o nome se refere. É em observações desse tipo que se baseia a alternativa objetivista. b) A doutrina da cópula como relação objetiva foi apresentada pela primeira vez por De Morgan (.FormalLogic, 1847, cap. 3) e adotada pelo criador da lógica matemática, Boole. Para este, a lógica tem duas espécies de relações: entre coisas e entre fatos; estas últimas também podem ser chamadas de relações entre proposições (Laws ofThought, 1854, I, § 6). De acordo com essa teoria, a relação expressa pela cópula é a mesma em todas as formas proposicionais, não porque sua natureza esteja expressa na proposição, mas porque é estabelecida por convenção. A cópula pode então expressar uma relação qualquer. Nesse sentido, ela foi chamada por De Morgan (Cam-bridge Philosophical Transactions, X, 339) de cópula abstrata. Peirce distinguiu os vários tipos de cópula da seguinte maneira: "Cópula transitiva é aquela para a qual é válido o modo Barbara. Schrõder demonstrou o importante teorema de que, se usamos É para representar a espécie de cópula cujo exemplo é 'maior que', então existe algum termo relativo r SER 882 SER tal que a proposição 'Sé P' seja precisamente equivalente a'5éraPeéra qualquer coisa à qual Pseja r'. Cópula de inclusão cotrelativa é aquela para a qual são válidos tanto o modo Barbara quanto a fórmula de identidade. Se representarmos essa cópula com é, existirá um termo relativo r tal que a proposição 'SéP' seja precisamente equivalente a 'Sé ra qualquer coisa à qual P é r'. Se a última proposição se seguir da penúltima, qualquer que seja o termo relativo r, a cópula será a de inclusão, usada por Peirce, Schróder e outros. De Morgan usa uma cópula que vale para qualquer relação que seja ao mesmo tempo transitiva e conversível, como p. ex. 'igual a' ou 'da mesma cor de'. Para cada cópula desse tipo existirá algum termo relativo rtal que a proposição 'SéP' será exatamente equivalente a '5 é r a cada coisa e só a cada coisa à qual Pé r'. Tal cópula pode ser chamada de identidade cotrelativa. Se a última proposição se seguir da penúltima, a cópula é a de identidade, usada por Thompson, Hamilton, Baynes, Jevons e muitos outros" (Coll. Pap., 3, 622). Com mais simplicidade, hoje se costuma distinguir uma cópula de pertença, simbolizada por e, que designa a relação entre um indivíduo e uma classe; uma cópula de inclusão, simbolizada por 3, que designa a relação entre uma classe e outra classe; estas duas espécies de cópulas são distinguidas de operador (ou quantificador) existencial (v. OPERADOR). De qualquer forma, a característica fundamental desta concepção de S. pre-dicativo é a máxima generalidade: as outras interpretações de cópula podem ser consideradas casos especiais de relação, e como tais analisados. Além desses, é possível considerar outros casos. É exatamente essa teoria da cópula que possibilita a doutrina da proposição como função, segundo a qual o predicado é a função, e o sujeito é a variável da função (v. FUNÇÃO). 2e Significado existencial. O segundo significado fundamental de S., o existencial, deve ser dividido em dois significados subordinados: I, como existência em geral; II, como existência privilegiada. I. Em primeiro lugar, S. pode significar existência no l2 significado, geral e indeterminado, mas especificável ou definível de acordo com um critério qualquer. É nesse sentido que Aristóteles afirma que "o S. se diz de muitos modos" (Met., VI, 2, 1026 a 32) e que se pode até dizer que o não-S. é Qbid., VII, 4, 1030 a 23). Mas, tomado nesse sentido, o significado de S. coincide com o de existência (no l 9 sentido), e seu estudo poderá ser encontrado no verbete EXISTÊNCIA. II. Em segundo lugar, S. pode significar existência privilegiada ou primária, na sua modalidade primeira e fundamental, da qual dependem todas as suas manifestações de-termináveis. Na maioria das vezes, este segundo significado é preparado e anunciado pelo acima exposto (2S, I). O S. se diz de muitos modos, mas apenas um é seu significado primário e fundamental. Esse é o ponto de vista de Aristóteles (Met., VII, 4,1030 a 21). É justamente da relação entre os múltiplos significados que, à primeira vista, parecem caber ao S. e o significado único e fundamental nos quais eles devem ser integrados, que nasce o chamado "problema do S.". Trata-se do problema do significado primário, único e simples que se presume no S., mas que permanece mais ou menos oculto na multiplicidade dos seus aspectos aparentes. A investigação metafísica, na sua forma clássica, funda-se nesse problema. Trata-se de ver se existe um significado primário de S.: em primeiro lugar, no sentido de expressar melhor que os outros a existencialidade do S.; em segundo lugar, no sentido de possibilitar a integração dos outros significados, servindolhes de fundamento ou princípio. A indagação do problema do S. tende à determinação de um significado que preencha esses dois requisitos. Mas a disputa a que dá origem só se compara à "batalha de gigantes" de que falava Platão (.Sof, 246), em que se defrontam os gigantes, ou "filhos da terra", para os quais toda a realidade é corpo, e os deuses, que afirmam a incorporeidade do S. e o reduzem às formas ideais. Na realidade, o significado de S. não é suficientemente estabelecido pelo caráter de corporeidade ou pela sua negação, porque um ser considerado corpóreo pode ter os mesmos caracteres formais de um S. considerado incorpóreo, como ocorria com o S. de que falavam os dois grupos protagonistas da "batalha de gigantes". É bem verdade que os caracteres formais do S. evidenciados como solução do problema, ou seja, como determinação do significado primário de S., são sempre extraídos de uma esfera particular do S., ou pelo menos de um grupo de entes, ou de um ente, de algum modo privilegiado e tomado como exemplo. Mas também é verdade que em todos os casos só se pode obter resposta ao SER 883 SER problema do S. quando, entre os caracteres da esfera, do grupo ou do ente considerado, se escolhe um que seja passível de generalização, vale dizer, que possa também referir-se às outras esferas, grupos ou entes. Nesse sentido, Platão desafiava os materialistas a dizerem o que há de comum entre as coisas corpóreas e as incorpóreas, desde que se diga que ambas são (Ibid., 247d). Mas, apesar de se procurar um significado primário formal (generalizável) do S., pode-se dizer que todas as soluções para o problema só fazem privilegiar, ou seja, considerar primária e "fundamental, uma modalidade determinada do ser. Ora, como as modalidades pelas quais o S. pode ser enunciado ou asseverado são três (necessidade, possibilidade e assertoriedade), teoricamente também são três as possíveis soluções para o problema do ser. Mas, uma vez que (como veremos) a assertoriedade se reduz à necessidade, ao longo da história da filosofia encontram-se duas soluções fundamentais, bem evidentes por trás das aparentes multiplicidades e disparidades das soluções propostas. Para a primeira dessas soluções (que indicaremos com a) o S. primário é a necessidade; para a segunda (que indicaremos com (3), o S. primário é a possibilidade. A solução a corresponde à interpretação A do significado predicativo; a solução p corresponde às interpretações Be C. Um caráter distintivo das duas soluções, mas que deve ser considerado secundário por nem sempre estar presente, é o que exporemos a seguir. Na investigação do significado do ser, a primeira delas não toma em consideração a própria investigação, enquanto a segunda pode tomar esse fato em consideração, atribuindo-lhe importância na determinação do significado do ser. E o que fazem Platão e os existencialistas. a) A interpretação do S. segundo a modalidade da necessidade prevalece na metafísica clássica. A famosa tese de Parmênides, "O S. é e não pode não ser" (Fr. 4, Diels), estabelece que o significado fundamental do S. é a necessidade, o não poder não ser: no que se refere ao tempo, é eternidade (simultaneidade, totum simul); no que se refere à multiplicidade, é unidade; no que se refere ao devir (nascer e morrer), é imutabilidade (Fr. 8, 2-4, Diels). Aristóteles também dá prioridade à necessidade. Para ele, o princípio de contradição, que fundamenta a sua "filosofia primeira" (ciência do S. enquanto S.), é o princípio que postula a necessidade do S., que se realiza na substância. Aristóteles diz: "Se a verdade tem significado, necessariamente quem diz homem diz animal bípede porque isso significa homem. Mas se isso é necessário, não é possível que o homem não seja animal bípede: necessidade significa exatamente isto: é impossível que o S. não seja" (Met., IV, 4, 1006 b 30). O aspecto pelo qual é necessário que um S. seja (o único graças ao qual o S. é objeto de ciência, visto que do S. acidental não há ciência, Ibid., VI, 2,1027 a) é a sua substância. Aristóteles diz: "É um só o significado do S.: a sua substância. Indicar a substância de uma coisa é indicar o seu S." (Ibid., IV, 4, 1007 a 26). Portanto, para ele, a substância é o sentido primário do S.; é também o sentido fundamental, no qual os outros significados podem ser integrados, visto que, para Aristóteles, todas as determinações dis-tinguidas ou distinguíveis do S. são aspectos ou manifestações da substância (Ibid., VII, 17) (v. SUBSTÂNCIA). Este ponto de vista aristotélico foi decisivo para o desenvolvimento posterior do problema do S. Graças a ele, o significado primário e fundamental do S. passou a ser (e continua sendo para grande parte da filosofia) a necessidade, com os atributos, que traz consigo, de imutabilidade, eternidade, unidade, etc. Mesmo quando esses atributos deixaram de referir-se à estrutura formal do S. (o que ocorreu no neo-platonismo antigo e árabe e no aristotelismo medieval), e passaram a referir-se a um ente privilegiado (ou seja, não a todas as substâncias, mas à substância superior, Deus), considerou-se que as outras substâncias derivariam ou participariam desta, e que derivariam ou participariam de sua necessidade e de seus atributos. Assim, segundo S. Tomás, a participação das coisas criadas no S. de Deus é participação da perfeição e da imutabilidade d'Ele (S. Th., I, q. 65, a. I). Mas o conceito que dominou a metafísica medieval e, através dela, a moderna e a contemporânea, foi exposto por Avicena no séc. XI: a necessidade do S. como tal. Todo S., enquanto tal, é necessário. Avicena dizia: "Se uma coisa não é necessária em relação a si mesma, é preciso que seja possível em relação a si mesma, mas necessária em relação a uma coisa diferente" (Met., II, I, 2). A propriedade essencial do possível é exatamente esta: precisar de outra coisa que o faça existir em ato. Mas, por isso mesmo, o que existe em ato existe sempre necessariamente, só que às vezes sua necessidade provém de outra coisa (Ibid., SER 884 SER II, 2, 3). Os mesmos conceitos, expressos por Algazel (Mel, I, I, 8), fundamentaram a esco-lástica judaica e cristã. No mundo moderno, o conceito de S. como necessidade foi reafirmado principalmente por Spinoza e Hegel. Spinoza viu o S. de Deus na necessidade, e o S. das coisas na necessidade com que derivam da substância divina (Et, I, 8, scol. II). Hegel expressou esse mesmo conceito com o famoso aforismo que serviu de base para toda a sua filosofia: "O que é racional é real; o que é real é racional." A racionalidade do real é a sua necessidade; em virtude dela, o real, em suas determinações fundamentais, só pode ser o que é. Por isso, Hegel diz que "a função da filosofia é entender o que é, pois o que é, é a razão" (Fil. do dir., Pref.). Também por isso não existe um dever S., um ideal, uma perfeição que seja diferente do S. e em cujo nome se esteja autorizado a criticar o S. ou a dar-lhe lições. "O que está entre a razão como espírito autoconsciente e a razão como realidade presente, o que diferencia aquela razão desta e não permite que se encontre satisfação nesta é o empecilho de alguma abstração que não se libertou e não se tornou conceito" (Ibid., Pref.). Noutras palavras, só com falsas abstrações distingue-se o que deveria ser do que é, racionalidade de S. real; isso significa que o S. real é tudo o que deve ser, e que sua modalidade, seu sentido primário, é essa necessidade. Por outro lado, toda a filosofia de Hegel está voltada para a demonstração da necessidade das determinações do S..- visa a mostrar que o S., em sua realidade, é tudo o que deve ser (Ene, § I). A necessidade continua sendo o caráter primário do S. em concepções filosóficas díspares. Quando Fichte afirma que S. e atividade do eu são a mesma coisa, está reconhecendo como caráter essencial dessa atividade a necessidade com que ela se põe e o não-eu (Wissenschaftslehre, 1798, § 1). Conceber o S. como "Consciência" ou "Matéria" não faz diferença: as determinações qualitativas não influenciam sua determinação formal primária. Tanto o Absoluto dos idealistas (Green, Brad-ley e outros) quanto a matéria dos materialistas são S. necessários. Necessária é a História, de que fala Croce, tanto quanto é necessário o Ato Puro, de que fala Gentile. Este afirmava: "A necessidade do S. coincide com a liberdade do espírito" (Teoria generale, XII, § 20). Mesmo Rosmini, para quem a idéia do S. como "S. possível" é fundamento do conhecimento humano, vê na necessidade e na universalidade os caracteres primários do S. (Nuovo saggio, §§ 428-29). Husserl afirma energicamente a necessidade do S. que ele considera primário, que é o S. da consciência: "À tese do mundo, que é acidental, opõe-se a tese do meu eu puro e do viver do eu, que é necessária e indubitável. Toda coisa dada, mesmo que presente em carne e osso, pode não ser; mas uma vivência, dada em carne e osso, não pode não ser. Esta é a lei essencial que define essa necessidade e essa acidentalidade" (Ideen, I, § 46). Característica típica dessa concepção do S., ou melhor, uma de suas teses fundamentais, é a identificação entre S. e racionalidade, que serviu de princípio para a filosofia de Hegel. Algumas vezes essa identificação foi entendida como imanentismo (v.), no sentido de ima-nência do S. na consciência. Embora esta também seja uma tese hegeliana, nada tem a ver com a outra. Foi expressa pela primeira vez por Parmênides, que, exatamente nesse sentido, identificou S. e pensar (Fr. 5; Fr. 8, 34-36, Diels). Certamente a tese de Parmênides nada tinha a ver com o imanentismo, porque a noção de consciência nem sequer tinha nascido (v. CONSCIÊNCIA): expressava apenas o caráter racional da necessidade ontológica. Esse mesmo caráter era expresso por Aristóteles, na doutrina de que a determinação fundamental da substância é a essência necessária, que é a razão de ser (logos) da coisa (Depart. an., I, 1, 639 b 15). Para Rosmini, o S. possível era a própria forma da razão (Nuovo saggio, § 396). A tese em questão, ao mesmo tempo em que expressa a necessidade do S., postula um conceito correspondente de razão em geral (v. RAZÃO). Ao que parece, a ontologia de Hartmann escapa a essa tradição, pois não assume a necessidade como significado primário do S., mas a efetividade (Wirklichkeit), à qual seriam redutíveis possibilidades e necessidades. A efetividade é a terceira alternativa da modalidade do S., a assertoriedade. O S. ao qual o dever-ser e o poder-ser se reduzem, segundo Hartmann, é o S. simplesmente existente, em sua pura efetividade ou atualidade, o S. que, no domínio da realidade de fato, apresenta-se "desse modo e não de outro", ou seja, como existência análoga à matéria. Mas os enunciados nos quais, segundo Hartmann, se expressa a redução do necessário e do possível ao atual demonstram que, na realidade, a efetividade ainda é e sempre foi necessidade. Esses enun- SER 885 SER ciados são os seguintes: Ia o que é realmente possível é também realmente efetivo; 2- o que é realmente efetivo é também realmente necessário; 3a o que é realmente possível é também realmente necessário. Negativamente: 4 e aquilo cujo S. é realmente impossível também é realmente inefetivo; 5 a o que é realmente inefetivo também é realmente impossível; 6° aquilo cujo não-S. é realmente possível também é realmente impossível (Mõglichkeit und Wirklichkeit, 1938, p. 126). Assim, o primado da asserto-riedade não tem significado diferente do primado da necessidade. A ontologia de Hart-mann pretendeu apresentar a terceira solução teoricamente possível para o problema do S., mas essa solução é idêntica, mesmo em sua enunciação, à interpretação do S. como necessidade, típica da antiga metafísica. P) O primeiro a formular a concepção de S. primário como possibilidade foi Platão, para quem essa concepção atende a duas exigências fundamentais: em primeiro lugar, explicar por que se diz que tanto as coisas corpóreas quanto as incorpóreas são(Sof, 247 d); em segundo lugar, levar em conta o fato de que o S. é ou pode ser conhecido (Ibid., 248 e). A primeira exigência exclui que a materialidade ou a imaterialidade possam fazer parte da definição do S. A segunda exclui que da definição do S. possam fazer parte determinações necessárias; p. ex.: que o S. seja necessariamente imóvel (ou seja, que "tudo seja imóvel), ou que o S. esteja necessariamente em movimento (ou seja, que "tudo esteja em movimento"), etc. (Ibid., 249 d). Em vista disso, Platão afirma que o ser é apenas possibilidade (ôúva|i,iç); portanto, pode-se dizer que qualquer coisa é, desde que tenha uma possibilidade qualquer de praticar uma ação, ou então de ser submetida a uma ação por parte de outra coisa qualquer, ainda que insignificante e mesmo que essa ação seja mínima e só ocorra uma vez {Ibid., 247 e). Nesse sentido, possibilidade nada tem a ver com a potência de Aristóteles. A potência, de fato, é tal apenas em relação a uma atualidade que, ela só, é o S. primário (v. ATO). Mas para Platão o S. primário é mesmo possibilidade. Possibilidades são também as relações reais entre os entes: estes não se mesclam nem deixam de mesclar-se em absoluto, mas apresentam determinadas possibilidades de relações. O mesmo que acontece com as letras do alfabeto e com os sons — alguns podem misturar-se e outros não — acontece com todas as coisas: desse modo, não é tarefa da filosofia enunciar a tese universal da necessidade ou da impossibilidade da comunicação, mas estudar em particular quais são as coisas que podem (èSéAiw) unir-se entre si e quais as que não podem (Ibid., 25253). Este conceito não dá ensejo a uma metafísica simetricamente oposta àquela que interpreta o S. como necessidade: não dá ensejo a nenhuma metafísica. É essa sua principal característica. De fato, se é possibilidade, o S. não tem determinações unívocas necessitantes: não é necessário que ele seja um, e não muitos; imutável, e não mutável; imóvel, e não em movimento; eterno, e não temporal, etc. De duas determinações opostas e contraditórias, não é necessário que uma lhe pertença e a outra não: ambas podem pertencer-lhe em determinadas mas diferentes condições. Portanto, não é possível enumerar definitivamente as determinações unívocas do ser. Platão chegara a essa conclusão em Parmênides; neste diálogo mostra-se que o S. não é um ou muitos, mas um e muitos ao mesmo tempo, no sentido de que tanto pode ser um quanto muitos (144 e), e que o mesmo vale para as outras suas determinações eventuais. A desconcertante conclusão deste diálogo é que "o uno, sendo ou não sendo, ele e as outras coisas, em relação a ele e entre si, todas, em tudo, são e não são, aparecem e não aparecem" (166 c): palavras que reconhecem a possibilidade de determinações opostas do S. e excluem que ele possa ser chamado de "um" ou "muitos", ou mesmo simplesmente "S." em sentido único e absoluto. Deste ponto de vista, uma metafísica que seja o inventário sistemático das determinações unívocas e absolutas do S. é manifestamente sem sentido. Portanto, não se deve esperar que essa concepção dê formulações sistemáticas, análogas ou correspondentes à filosofia primeira de Aristóteles, à metafísica clássica. Ao contrário, podemos dizer que essa concepção tende a evidenciar-se sempre que a determinação das características universais e necessárias do S. cede lugar à investigação empírica: esta última é busca de possibilidade, não de determinações necessárias. Deste ponto de vista, pode-se dizer que a tradição filosófica empirista é herdeira e principal representante da concepção de S. cuja primeira formulação se encontra no Sofista de Platão. Uma possibilidade pode ser determinada unicamente com base na experiência, na observação dos fatos, nunca por meio puramente racional ou a priori. Atribuir SER 886 SER ao S. o significado de possibilidade significa abrir caminho a indagações específicas, destinadas a determinar, em cada caso, de que possibilidade se trata. Com fundamento na concepção a, mesmo que as determinações do S. mudem, é necessário que mudem, pois a mudança é determinada por princípio e absolutamente previsível. Quanto à concepção (3, ao contrário, toda determinação, porquanto possível, só pode ser confirmada por investigação ad hoc. Sabemos que para os estóicos o significado do S. estava na possibilidade de praticar ou de sofrer uma ação; por isso,.chamavam de entes apenas os corpos (PLUTARCO, Comm. Not., 30, 2,1073; DIÓG. L., VII, 56); mas, apesar de têlos encaminhado para o materialismo, esse princípio não constituiu a base de um empirismo coerente. O empirismo, ao contrário, surge sempre que se nega a tese fundamental da concepção oposta, que é a redutibilidade do S. a predicado. Tal negação pode ser considerada uma tese típica dessa concepção, assim como é típica da outra a identificação entre S. e racionalidade. No fim da Escolástica, Ockham formulava a tese de que o S. ou o não-S. de uma coisa só pode ser alcançado pelo "conhecimento intuitivo", que é a própria experiência (In Sent, II, q. 15 H; Ibid., Prol, q. 1 Z); de tal modo, podia afirmar a irredutibilidade do S. a uma determinação conceituai e o seu significado de possibilidade. E diz: "À pergunta 'a coisa existe?' só se pode responder quando se sabe se a coisa existe: isso acontece quando se conhece uma proposição na qual o S. existencial é predicado do sujeito. Ora, uma proposição assim discutível (...) de nenhum modo pode ser conhecida com evidência, se a coisa significada pelo sujeito não for conhecida intuitivamente e em si: p. ex., se ela não for percebida por um sentido particular ou se não for um inteligível não sensível que seja visto pelo intelecto de modo análogo àquele pelo qual a faculdade visual externa vê o objeto visível. Assim, ninguém pode saber com evidência que o branco éou pode ser se não viu algum objeto branco; e embora eu possa acreditar nas pessoas que me falam da existência do leão, do leopardo e assim por diante, não conheço com evidência essas coisas" (Summa log., III 2). Aqui o sentido primário do S. é posto na possibilidade da experiência. Conseqüentemente, Ockham atribui necessidade apenas às proposições condicionais ("Se o homem é, o homem é um animal racional"), enquanto nega que uma proposição afirmativa qualquer possa ser necessária. Todas as proposições afirmativas são contingentes porque a proposição "O homem é animal racional" seria falsa por falsa implicação, se o homem não existisse (Quodl, V, q. 15). Esses reparos implicam duas tese fundamentais: 1Q o S. não é redutível a um predicado; 2- o S. é uma possibilidade que pode ser expressa só por uma proposição contingente. Esta última tese revela a modalidade primária que as observações de Ockham atribuem ao S.: essa modalidade é a possibilidade. O empirismo clássico do séc. XVII-XVIII atém-se a essa modalidade. Locke contrapõe a certeza das proposições universais, que não dizem respeito à realidade, à contingência das proposições particulares, que dizem respeito à existência. "As proposições universais, de cuja verdade ou falsidade podemos ter conhecimento seguro, não dizem respeito à existência; as afirmações ou negações particulares, que não seriam certas se transformadas em gerais, referem-se apenas à existência, pois declaram somente a união ou a separação acidentais das idéias em coisas existentes, idéias que, em sua natureza abstrata, podem não ter entre si nenhuma ligação ou rejeição conhecida" (Ensaio, IV, 9, I). Portanto, com exceção apenas da existência de Deus, conhecida por meio da demonstração, ou seja, por meio da relação que ela tem com outras existências, segundo Locke a existência é conhecida de modo contingente e imediato, através de uma relação direta com o objeto: relação que é intuição no caso da existência do eu e sensação no caso da existência das coisas. Isso exclui que a existência seja um predicado ou que de qualquer maneira possa ser reduzida a uma determinação conceptual. Locke diz: "Como, com exceção da existência de Deus, não existe nenhuma conexão necessária de qualquer existência com a existência de algum homem em particular, segue-se que ninguém em particular pode conhecer a existência de outro ser senão quando este, atuando sobre ele, passa a ser percebido. O fato de se ter a idéia de uma coisa em mente não demonstra a existência dessa coisa, tanto quanto o retrato de um homem não serve de testemunho de sua existência no mundo, ou tanto quanto as visões de sonho não constituem, por si, uma história verídica" (Ibid., W, II, I). Esse conceito da sensação como órgão de conhecimento do que existe nada mais é que o antigo SER 887 SER conceito estóico de representação cataléptica, que "deriva de um ente subsistente e é impressa e marcada por ele, de tal modo que se conforma a ele" (DIÓG. L., VII, 46; SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 248). Essa doutrina eqüivale a definir o S. das coisas como possibilidade de manifestação delas à percepção ou como percepção mesmo. A definição de S. como possibilidade é explicitamente retomada pela filosofia alemã do séc. XVIII, em especial por Wolff: "Ente é o que pode existir e, conseqüentemente, cuja existência não repugna" (Ont., § 134). Mas como o que pode existir é possível, o que é possível é ente (Ibid., § 1 35). Mas nesta definição tudo depende, obviamente, do significado de possível. E a propósito Wolff retoma um conceito talvez oriundo de Duns Scot (In Sent., I, d. 2, q. 7), que se encontra já formulado em Leibniz (Théod, II, § 224): "possível é o que não implica contradição, vale dizer, o que não é impossível" (Ont., § 85). Desse ponto de vista, a possibilidade era definida como simples ausência da impossibilidade, ou seja, como necessidade negativa. Portanto, nessa doutrina, a concepção de S. em termos de possibilidade era simples aparência. Kant, com muita firmeza, viu o que se escondia por trás dessa aparência: "O jogo de prestígio, em virtude do qual a possibilidade lógica do conceito (que não se contradiz) é confundida com a possibilidade transcendental das coisas (em virtude da qual ao conceito corresponde um objeto), pode enganar e contentar só os inexperientes". A "possibilidade real" é a dada por uma intuição sensível, isto é, pela experiência atual ou possível (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II). Conseqüentemente, "S. não é predicado real, ou seja, um conceito de alguma coisa que se pode acrescentar ao conceito de uma coisa. (...) Se eu disser Deus é ou que Deus existe, não estarei afirmando um predicado novo do conceito de Deus, mas apenas o conceito em si, com todos os seus predicados, e o objeto em relação ao meu conceito. Ambos devem ter exatamente o mesmo conteúdo, porém nada se pode acrescentar ao conceito que expressa simplesmente a possibilidade quando penso seu objeto como dado (com a expressão: 'Ele é')" (Ibid., O ideal da razão pura, seção IV). Deste ponto de vista, está claro o caráter limitado e condicional de qualquer possibilidade ou S., portanto o caráter fictício ou fantasioso de uma "possibilidade absoluta", que valha sob qualquer aspecto (Ibid., Anal. dos princ, Refu-tação do idealismo). Na filosofia contemporânea, as doutrinas abaixo remetem-se a essa interpretação do significado do S. d) Teorias que, em matemática, em física e nas ciências em geral, definem a existência como modo de S. particular; p. ex., como "ausência de contradição", "possibilidade de construção" ou "possibilidade de verificação". A modalidade não necessária do S. que assim se define é evidente (v. EXISTÊNCIA). b) Formas do empirismo, que só reconhecem S. aos objetos de experiência possível. É a possibilidade de experimentação e observação que define o significado do S. (v. EXPERIÊNCIA). c) Teorias filosóficas que afirmam o primado da possibilidade. Seu precedente está na filosofia de Kierkegaard, que foi o primeiro a propor uma interpretação da existência humana em termos de possibilidade (V. EXISTÊNCIA, 3). Por outro lado, o mesmo ponto de vista pode ser reconhecido em alguns aspectos da fenome-nologia de Husserl e nas doutrinas a ela ligadas. Embora Husserl privilegie o S. da consciência e o considere necessário, ao contrário das realidades das coisas, a análise fenome-nológica, sob esse aspecto, é uma análise de possibilidade; para ela, como disse Heidegger (Sein undZeit, § 7 C): "mais elevada que a realidade está a possibilidade". Husserl diz: "Para mim, o fato de uma natureza, um mundo cultural e humano, com as suas formas sociais, etc, existirem significa que as experiências correspondentes me são possíveis, ou seja, que, independentemente de minha experiência real desses objetos, posso, a qualquer instante, realizá-los e desenvolvê-los em certo estilo sintético. Isso significa que me são possíveis outros modos de consciência correspondentes a essas experiências como atos de pensamento indistinto, etc, e que é inerente a esses atos a possibilidade de eles serem confirmados ou invalidados por meio de experiências de um tipo previamente estabelecido" (Cart. Med., § 37). Deste trecho significativo, decorre que a análise fenomenológica é uma análise em termos de possibilidade; vale dizer: a possibilidade é o significado primário que ela atribui ao ser. O mesmo acontece no existencialismo. Heidegger disse: "O ser-aí, enquanto compreensão, projeta o seu S. em possibilidades" (Sein und Zeit, § 32); na realidade, todas as análises de Heidegger têm como tema as possibilidades do ser-aí, que constituem o SER, GRANDE 888 SER-AÍ tema da analítica existencial. Do mesmo modo, para Jaspers, as possibilidades objetivas constituem a própria existência (Phil., § 18), enquanto Sartre afirma que "o possível é uma estrutura do para-si, ou seja, da consciência" (Lêtre et le néant, p. 34). É verdade que, para Sartre, distinguir-se-ia dessa estrutura o S. em si, que é o S. do fenômeno que não seria nem possível nem necessário, mas simplesmente existente. Entretanto, Sartre atribui a esse mesmo S. o caráter de contingência e não acha possível analisar o S. em si senão a partir do S. para si, a consciência: portanto, nessa doutrina, o primado da possibilidade é evidente. Cumpre observar, porém, que uma das características da concepção em exame é a recusa explícita das soluções simples e globais para o problema do S., ou a desistência de encontrá-las; portanto, é o abandono do tratamento "metafísico" desse problema. De fato, reconhecer o significado do S. como possibilidade exige que se passe imediatamente à consideração e ao estudo das possibilidades, nos campos específicos em que são condicionadas, onde têm "realidade". Logo, não é possível desenvolver uma metafísica da possibilidade, tomando como modelo a metafísica clássica da necessi-cidade e visando a substituí-la. Uma tentativa desse gênero só teria como resultado o retorno puro e simples à metafísica da necessidade: isso se demonstra no próprio Heidegger, que, ao abandonar o terreno da análise existencial e passar à elaboração do "problema do S. em geral", voltou às teses clássicas da metafísica tradicional com o reconhecimento da necessidade do S. (Einführung in die Me-taphysik, Tübingen, 1953). SER, GRANDE (fr. Grand Être). Foi desse modo que Comte designou a humanidade como primeira pessoa da trindade positivista; a segunda pessoa seria o Grande Fetiche (a Terra) e a terceira, o Grande Meio (o Espaço) (Synthèse subjective ou système universal des conceptions propres ã 1'humanité, 1856). SER-AÍ (in. There-being ou Beingthereness, fr. Réalité-humaine, ai. Dasein; it. Esserct). O termo alemão, que é o originário, começa a ser usado no séc. XVIII. Em italiano, o termo esserci é usado por Spaventa (Princ. di fil, 1867, p. 134) para traduzir o correspondente termo hegeliano e, em inglês, There-being foi usado por Stirling em Segredo de Hegel (1865) para traduzir o mesmo termo. Beingthereness, em inglês, e Realité-humaine, em francês, são usados hoje para traduzir o significado existencialista do termo. Ele significa, na origem, existência real, tanto das coisas finitas quanto a de Deus. Nesse sentido, é empregado por Kant (Crít. R. Pura, Anal., II, cap. 2, seção 3, 4): "No simples conceito de uma coisa não se pode encontrar nenhum caráter de sua existência real (.Dasein). Porque, ainda que ele seja tão completo que nada lhe falte para pensar o objeto com todas as suas determinações internas, a existência real nada tem a ver com isso, mas só com a questão de que uma coisa nos é dada, de tal modo que a percepção dela possa sempre preceder o seu conceito". Nesse sentido, para Kant, é a segunda das categorias da modalidade e opõe-se ao não-ser (Ibid., § 10). Usando essa palavra no mesmo sentido, Jacobi dizia que a filosofia tem a tarefa de desvendar e revelar a existência (Werke, IV, p. 72). Hegel fazia a distinção entre o Dasein, como simples determinação do ser, e a existência, que é o ser em relação. Diz: "Etimologicanente, Dasein é estar em determinado lugar, mas a representação espacial não vem ao caso. O Dasein, ou ser determinado, é em geral, em conformidade com seu devir, um ser com um não-ser, de tal modo que esse nâo-ser está reunido em unidade simples com o ser" (Wissenschaft der Logik, 1,1, seção I, cap. 1, A; trad. it., p. 109). Em palavras mais simples, o Dasein é o ser com determinado caráter ou qualidade, aquilo que se chama em geral de "alguma coisa" (Ene, § 90). Mas, no uso filosófico contemporâneo, essa palavra ingressou com o significado atribuído pelo existencialismo, sobretudo por Heidegger, que a usou para designar a existência própria do homem. "Esse ente, que nós mesmos sempre somos e que, entre as outras possibilidades de ser, possui a de questionar, designamos com o termo Dasein." (Sein und Zeit, § 2). Assim entendido, o S. possui um "primado ôntico", no sentido de que deve ser interrogado primeiramente, e um "primado ontológico", porquanto a ele pertence originariamente certa compreensão do ser: por isso, ele é também o fundamento de qualquer ontologia (Ibid., § 4). Na filosofia contemporânea, esse termo é habitualmente usado no significado específico estabelecido por Heidegger, como ser do homem no mundo. Jaspers usa-o nesse sentido (Phil, I, 6 ss.). Com significação semelhante, foi usado por Husserl, que com ele designa a existência da consciência, considerada privilegiada por- SERIE 889 SEXO que necessária: "Na essência de um eu puro, em geral, e de uma vivência em geral funda-se a possibilidade ideal de reflexão que tem o caráter de evidente e inextinguível tese do S." (Ideen, I, § 46). SÉRIE (in. Series; fr. Série, ai. Reihe, it. Serie). 1. Conjunto de termos entre os quais haja qualquer relação definível. 2. Relação assimétrica, transitiva e coerente. Neste sentido, S. não é conjunto de termos, ou seja, campo de relação, mas a própria relação-, p. ex., as séries 1, 2, 3; 1, 3, 2; 2, 3, 1 são diferentes embora tenham o mesmo campo (cf. B. RUSSELL, Introduction to Mathematical Philo-sophy, IV; trad. it., p. 47). (V. RELAÇÃO.) SERIEDADE (in. Earnestness; fr. Sérieux, ai. Ernst; it. Serietã). Kierkegaard fez da S. uma espécie de categoria moral, definindo-a como "a originalidade conquistada pelo sentimento, conservada na responsabilidade da liberdade e afirmada no gozo da bem-aventurança". A S. consiste na repetição e é condição para que a repetição não diminua o valor dos atos repetidos (Der Begriff Angst, IV, § 2, c). SER LANÇADO. V. DECADÊNCIA; FACnCIDADE. SER PARA SI. V. PARA SI. SERVO e SENHOR. V. ESCRAVIDÃO. SEXO (in. Sex, fr. Sexe, ai. Sex, it. Sesso). 1. Raramente os filósofos trataram do sexo como componente do homem. Em O Banquete, de Platão, ao falar da origem do sexo, Aristófanes expõe o mito dos andróginos, dos quais, por meio de uma separação desejada por Zeus com fins punitivos, ter-se-iam originado os dois sexos complementares (O Banq., 189 e). Mas as especulações platônicas não versam propriamente sobre o sexo, mas sobre o amor. É o que também fazem muitos outros filósofos, inclusive Schopenhauer, que, em Metafísica do amor sexual, considera o amor sexual como um expediente de que se valeria o "gênio da espécie", ou Vontade de Vida, para favorecer a obra obscura e problemática da propagação da espécie. No mundo moderno, a ação da psicanálise (v.) chamou a atenção dos filósofos para o S.; foram especialmente os fenome-nologistas e os existencialistas que se interessaram pelos fenômenos a ele relativos. Max Scheler, no livro Wesen und Formen der Sym-pathie (1923; trad. fr., pp. 168 ss.), tentou atribuir ao ato sexual o valor de forma de expressão da personalidade humana. Por outro lado, enquanto Heidegger considerou o Dasein desprovido de sexualidade, Sartre considerou a sexualidade como estrutura fundamental da existência: "Embora o corpo tenha uma tarefa importante, precisa remeter-se ao ser no mundo e ao ser para os outros: desejo um ser humano, não um inseto ou um molusco, e desejo-o na medida em que ele está, e eu estou, em situação no mundo, e na medida em que ele é outro para mim e eu sou outro para ele" (Vêtre et le néant, 1943, pp. 452-53). O sexo seria a estrutura fundamental da existência humana enquanto existência no mundo (cf. também ABBAGNANO, StrutturadelVesistenza, 1939, §55) (v. AMOR, PSICANÁLISE). 2. Os filósofos, ao contrário, insistiram freqüentemente na diferença sexual. Para Aristóteles, a mulher constitui uma monstruosidade da natureza, inevitável porém para a conservação da espécie (Degen. an., 7, 775 a 15-17). A mulher difere do homem por participar em menor grau dos poderes da razão (Poi., 1260 a 11-14): portanto, seu lugar é de subordinação ao homem, a este cabendo comandar e a ela obedecer (Pol., 1254 b 13-15; 1259 b 2-10). Por um vínculo constante na tradição, essa desvalorização da dignidade da mulher é acompanhada pela exaltação da família (que, segundo Aristóteles, existiria mesmo que não houvesse sociedade) e das tarefas e virtudes familiares da mulher (Pol., 1260 a 29-31; Et. nic, 1162 a 19-27). Exatamente por isso Schopenhauer defendeu a poligamia, que estaria destinada a combater as pretensões da mulher à equiparação e a eliminar o fenômeno da prostituição (Parerga und Paralipomena, II, 27, § 362 ss.). Por outro lado, Platão, mesmo admitindo a inferioridade da mulher (Rep., 455), considerava que homens e mulheres deviam ser admitidos indiferentemente em todos os níveis da educação, para que às funções exercidas pelas classes superiores tivessem acesso apenas os indivíduos que demonstrassem capacidade de exercê-las, qualquer que fosse o sexo. Cínicos e estóicos afirmavam, como princípio, a igualdade entre homens e mulheres. A mulher de Crates andava pelas ruas de Atenas usando, como o marido, o saio tosco dos cínicos-, e um ponto da doutrina estóica era que homens e mulheres deveriam usar as mesmas roupas (DIOG. L., VII, 33). As mulheres eram aceitas na escola de Epicuro, na qual muitas exerceram cargos de direção. Na antropologia contemporânea, não se subestima a diferença entre os S., tanto quanto qualquer outra diferença biológica existente en- SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO 890 SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO tre os indivíduos humanos, mas faz-se a distinção entre essa diferença e a exigência de paridade de direitos, baseada no reconhecimento de que as funções subordinadas atribuídas à mulher, na maior parte das sociedades conhecidas, é um produto cultural, para o qual pouco ou nada contribui a diferença entre as funções biológicas. SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO (gr XEK-TÓV; lat. Significaticr, in. Meaning; fr. Signifi-cation; ai. Bedeutung; it. Significató). Entende-se por este termo a dimensão semântica do procedimento semiológico, ou seja, a possibilidade de um signo referir-se a seu objeto. Os aspectos (ou condições) fundamentais do S. são dois: 1 Q um nome, um conceito ou uma essência (p. ex., "Alessandra Manzoni", "homem", "autor de Os noivos"), usados com a finalidade de delimitar e orientar a referência; 2a o objeto (p. ex., respectivamente, Alessandra Manzoni, os homens, Alessandra Manzoni), ao qual o nome, o conceito ou a essência se referem. Os dois aspectos são inseparáveis; o segundo é função do primeiro porque é o nome ou conceito que determina a que objeto se faz ou não referência. Mas os dois aspectos não se identificam porque o objeto pode ser o mesmo, ao passo que o nome ou conceito usado para a referência é diferente, como no caso de "Alessandra Manzoni" e "autor de Os noivos", que se referem ao mesmo objeto, mas são nomes diferentes. Tampouco as determinações que têm o mesmo objeto podem ser consideradas equivalentes, porque não podem ser substituídas umas pelas outras; p. ex., perguntar se "Alessandra Manzoni é o autor de Os noivos" não é o mesmo que perguntar "se Alessandra Manzoni é Alessandra Manzoni". A diferença entre os dois aspectos do S. (ou a relação entre eles) constitui a base dos problemas aos quais esse termo deu origem e das diferentes definições que ele recebeu. Os estóicos, que fundaram a doutrina da S., reconheceram ambos os aspectos. "São três os elementos que se interrelacionam: o S., aquilo que significa e aquilo que é. O que significa é a palavra, como p. ex. 'Díon'. O S. é a coisa indicada pela palavra, que nós apreendemos ao pensarmos na coisa correspondente. Aquilo que é, é o sujeito exterior, como p. ex o próprio Díon" (SEXTO EMPÍRICO, Adv math., VIII, 12). Mais precisamente, para eles S. é uma "representação racional, graças à qual é possível expor por meio de um discurso aquilo que é representado" (Ibid., VIII, 70; DIÓG. L., VII, 63). Nestas observações, os dois aspectos do S. são chamados respectivamente de "palavra", ou "representação racional", e "aquilo que é", ou "sujeito". "Aquilo que é", ou "sujeito", é o S. como objeto; a "palavra", ou "representação racional", é o S. como nome, conceito ou essência. Os estóicos reservam especialmente a este último aspecto o nome de S.; nisso, são seguidos (como veremos) por alguns autores modernos. Na lógica medieval, a distinção entre os dois aspectos foi expressa como distinção entre "significação" e "suposição". Pedro Hispano diz: "A suposição e a significação diferem porque a significação é feita por meio da imposição de uma palavra para significar um objeto, mas a suposição é a acepção de um termo já significante para alguma outra coisa, como, p. ex., quando se diz o homem corre', e o termo 'o homem' está no lugar de Sócrates e no lugar de Platão. Portanto, a significação precede a suposição, e as duas coisas não são idênticas porque significar é próprio da palavra, e a suposição é própria do termo que já é composto de palavra e significado" (Summ. log., 6.03). Aqui, entende-se por significatio o mesmo que os estóicos entendiam por lékton-. o conceito ou a representação usada para a referência objetiva, ao passo que a própria referência objetiva é designada como suppositio. Mas, além das idéias dos estóicos, essa doutrina inclui a separação dos dois aspectos do S., atribuindo o primeiro aos termos tomados isoladamente, o segundo aos conjuntos, ou seja, às proposições. Doutrina idêntica era exposta na Idade Média por Ockham (Sutnma log., I, 63), por Buridan (Sophismata, 2) e por Alberto da Saxônia (Lógica, II, 1), ao passo que S. Tomás aludia a uma doutrina diferente apenas do ponto de vista terminológico, segundo a qual S. e suposição coincidem nos termos particulares mas não nos gerais, para os quais S. é essência (S. Th., I, q. 39, a. 4, no início). É na distinção entre os dois aspectos de S. que se baseia a distinção estabelecida pela lógica moderna de cunho tradicional entre os dois elementos do conceito, chamados ora de compreensão e extensão (v. COMPREENSÃO), ora de intenção e extensão (v. INTENSÃO), ora de conotação e denotaçâo (v. CONOTAÇÃO). O primeiro par de termos foi introduzido pela Lógica de Port-Royal (I, 6); o segundo, por Leibniz (Nouv. ess., IV, 17, § 9); o terceiro, por Stuart Mill (Logic, 1,1, § 5). Este último propunha restringir o sentido de S. à SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO 891 SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO conotação, chamando-se de denotação a referência objetiva. Dizia: "Sempre que os nomes dados aos objetos comportam alguma informação, ou seja, sempre que, propriamente, têm um S., o S. não reside naquilo que eles denotam, mas naquilo que eles conotam. Os únicos nomes de objetos que nada conotam são os nomes próprios; estes, a rigor, não têm significação" (Ibid., I, 2, § 5). O que ele entendia por conotação aparece claramente no trecho seguinte: "A palavra homem, p. ex., denota Pedro, Joana, João e um número indefinido de outros indivíduos, que ela designa como classe. Mas essa palavra é aplicada a eles na medida em que possuem certos atributos, e para significar que os possuem" {Ibid.). Os atributos que constituem o homem — p. ex., corpo-reidade, animalidade, racionalidade, etc. — formam, portanto, a conotação do nome "homem": aquilo que a tradição filosófica chamava de "essência" ou, mais tarde, "conceito". Portanto G. Frege nada mais fazia além de expressar uma antiga e nova tradição, ao distinguir sentido e significado. Dizia: "Ao pensar num signo (seja ele um nome, uma expressão com várias palavras, ou uma simples letra) devemos relacioná-lo com duas coisas distintas: não só com o objeto designado, que se chamará de significado (Bedeutung) desse signo, mas também com o sentido (Sinrí) do signo, que denota o modo como nos é dado esse objeto". Frege advertia que, por sentido ou nome, entendia "uma indicação qualquer que desempenhe a função de nome próprio, vale dizer, que seja um objeto determinado (tomando a palavra objeto no sentido mais amplo)" (Über Sinn und Bedeutung, 1892, § 1; trad. it., em Aritmética e lógica, pp. 218-19). A mesma distinção era feita por Peirce, mas com terminologia diferente: Peirce falava de objeto do signo e de interpretante do signo, que é o sentido de Frege. Peirce diz: "O signo cria alguma coisa no espírito do intérprete e esse alguma coisa, por ter sido criado pelo signo, foi criado também, de modo mediato e relativo, pelo objeto do signo, embora o objeto seja essencialmente diferente do signo. Essa criatura do signo é chamada de interpretante" (Coll. Pap., 8.179, o texto é de 1903). Essa terminologia foi substancialmente aceita por Morris, que deu ao objeto o nome de designatum, e ao conceito o de interpretante (Foundations of the Theory of Signs, 1938, § 2). É verdade que Morris considera inútil o termo "significado", que lhe parece capaz de provocar muita confusão, e tenta evitá-lo em seu estudo (Ibid., § 12). Na realidade, porém, consegue evitá-lo apenas porque introduziu em sua análise do signo, com outros nomes, os dois componentes do S. que a tradição distinguiu constantemente. Os lógicos contemporâneos manifestam a tendência, já presente em Stuart MiU, a restringir o uso da palavra significado à esfera da conotação. Lewis, reservando esse termo para ambos os aspectos, faz a distinção entre significação (signification) do termo (ou seja, a conotação) e sua referência objetiva, que ele distingue em denotação e compreensão: a primeira seria a classe de todas as coisas reais às quais o termo se aplica, a segunda seria a classe de todas as coisas possíveis às quais se aplica (Analysis of Knowledge and Valuation, 1946, cap. III, pp. 39 ss.). Em seguida, Lewis faz a distinção entre significação e "significado-sentido" (sense mea-ning), que dela se distinguiria por ser o modo como o espírito se refere à significação (Ibid., p. 113 e nota 3). Mas essas distinções não modificam substancialmente a dicotomia tradicional do significado de significado. Essa mesma dicotomia é expressa por Quine, como dicotomia entre S. (ou conotação, ou intensão) e nominação (naming), que seria a extensão ou denotação (From a Logical Point ofView, 1953, II, 1), e por Carnap, que nela baseia a dicotomia entre duas operações fundamentais possíveis em relação a uma expressão lingüística dada: a de "analisar a expressão com a finalidade de entendê-la, de apreender seu S., e a que consiste na investigação da situação de fato à qual a expressão se refere" (Meaning andNecessity, 1947, § 45). Além disso, insistiu no fato de que o conceito de significado intencional, como condição geral que um objeto deve preencher para que um falante X predique com esse significado o objeto, é desprovido de qualquer referência psicológica e pode ser aplicado até a um robô (Ibid., p. 246 e nota 5). Por sua vez, Church adotou a terminologia de Frege, chamando de sentido a conotação e de significado a denotação, e introduzindo a palavra conceito: "Diremos que um nome denota ou nomeia a sua denotação e expressa o seu sentido. Menos explicitamente, podemos dizer que um nome tem certa denotação e tem certo sentido. Dizemos que o sentido determina a denotação ou é um conceito da denotação" (Introduction to Mathematicallogic, 1956, § 01). Em confronto com essa sólida e — ressalvando-se a varieda- SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO 892 SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO de terminológica — uniforme tradição, estão as tentativas de modificá-la, quer unificando as duas dimensões 04), quer acrescentando novas espécies de significados (B). A) A tentativa de unificar as duas dimensões do significado foi feita em ambas as direções: reduzindo sentido a significado, ou significado a sentido. A primeira tentativa foi feita por Russell e por Wittgenstein. Toda a teoria exposta por Russell no artigo que escreveu em 1905 ("On Denoting", atualmente in Logic and Knowledge, 1956, pp. 41 ss.), no primeiro capítulo de Principia mathematica, que escreveu com Whitehead (1910), e no seu outro livro, An Inquiry into Meaning and Truth (1940), consiste, nas próprias palavras do autor, no fato de que "não há significado, mas apenas, às vezes, uma denotação" (Logic and Knowledge, p. 46, nota). Na realidade, para Russell, o S. de um símbolo se reduz unicamente aos componentes do fato a que o símbolo se refere. "Os componentes do fato que tornam verdadeira ou falsa uma proposição, conforme o caso, são os S. dos símbolos que devemos entender para entender a proposição" (Logic and Knowledge, p. 196). Desse ponto de vista, a linguagem ideal é a que tem apenas sintaxe e nenhum vocabulário, pois nela o vocabulário é inutilizado pela correspondência de cada termo com um objeto simples e de cada objeto simples com um termo (Ibid., p. 198; cf. LINGUAGEM). Essa doutrina foi expressa com rigor por Wittgenstein: "O nome significa o objeto. O objeto é seu S." (Tractatus, 1922, 3- 203). "À configuração dos signos simples na proposição corresponde configuração dos objetos na situação" (Ibid., 3.21). "O nome faz as vezes do objeto na proposição" (Ibid. 3.22). Desse ponto de vista, mesmo as proposições aparentemente sem sentido são legítimas porque "se uma proposição não tem sentido, isso pode ser devido apenas ao fato de não termos dado S. a uma de suas partes constitutivas" (Ibid., 5.4733), ou seja, de não termos estabelecido a correspondência entre essa parte e um objeto. Essa conseqüência é importante porque constitui a redução ao absurdo do fato de se eliminar o sentido (Sinri) do S.: a referência ao objeto, não sendo guiada ou limitada pelo conceito, é sempre legítima, e só não aparece quando não é efetuada. A redução inversa, de S. a sentido, vale dizer, a tentativa de reduzir S., em seu conjunto, à conotação ou conceito, foi realizada por Husserl. Este negou que o objeto constituísse o S. ou coincidisse com ele (Logische Untersu-chungen, II, p. 46). Sua tese é que "o S. lógico é uma expressão", no sentido de que ele eleva o sentido (Sinri) perceptivo da coisa "ao reino do logos, do conceituai, portanto do universal". Em outros termos, Husserl substitui a dicoto-mia objeto-conceito pela dicotomia sentido (percebido)-conceito, na qual o conceito é a essência da coisa, a sua conceituação ou expressão acabada (Ideen, I, § 124). Tentativa de redução análoga a esta foi feita por Royce, que, depois de fazer a distinção entre S. externo de uma idéia, que é a correspondência da idéia com o objeto, e seu S. interno, que é "o objetivo consciente incorporado na idéia", reduz a este último o próprio S. externo, com o fundamento de que é "a própria idéia que escolhe o objeto com o qual quer ser confrontada" (The World and the Individual, 1901, II, cap. I). B) As principais tentativas de apresentar novas espécies de S. em acréscimo ou em concorrência com as duas consagradas pela tradição são as seguintes: Ia Definição de S. como uso. Esta é a tese encontrada em Philosophical Investigations (1953), de Wittgenstein. "Para uma vasta classe de casos — embora não para todos —, nos quais empregamos a palavra 'S.', esta pode ser assim definida: S. de uma palavra é seu uso na linguagem. O S. de um nome às vezes é explicado indicando-se seu portador" (Op. cit., § 43). Mas, embora apresentada pelo próprio Wittgenstein e por outros em concorrência com a definição semântica de S., a noção de uso pertence a outra esfera de problemas e a outro nível de indagação. Com efeito, o problema a que diz respeito é o da formação dos significados nas línguas naturais. O uso não éo S., mas determina-o, no sentido de que a ele é devida a conexão entre um objeto e uma palavra (ou em geral um veículo "sígnico"). Sem dúvida, as definições de um dicionário são estabelecidas pelo uso, mas exprimem a conotação e a denotação dos termos. Portanto, a teoria do uso não é uma teoria do S., mas uma teoria sobre a origem e a formação das línguas naturais. 2a A proposta de um S. emotivo, paralelamente ao S. "simbólico" ou "descritivo", foi feita por Ogden e Richards (Meaning of Meaning, 1923, ed. 1952, p. 149 e passim) e expressa por E. L. Stevenson da seguinte maneira: "S. emotivo é um S. em que a resposta (do ponto de vista de quem ouve) e o estímulo (do ponto de SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO 893 SIGNIFICADO, ESPÉCIES DE vista de quem fala) é um conjunto de emoções" (Ethics andLanguage, 1944, p. 59). O S. emotivo assim entendido seria diferente do significado simbólico, que consistiria em sua referência ao objeto, e o próprio significado poderia ser definido em geral como a qualidade disposicional de um signo a produzir uma ou outra dessas reações, ou seja, um conjunto de emoções ou a referência ao objeto (Jbid., pp. 53 ss.). Deixando de lado o fato de que o uso do termo emotivo para indicar normas legais, prescrições técnicas ou comandos (coisas todas que caberiam na categoria dos significados emotivos) pode com motivo ser considerado aberrante (v. EMOÇÃO), a doutrina em questão parece sugerida pelo fato de que o significado denotativo é restringido à referência a coisas reais, de tal maneira que muitos signos simples ou compostos parecem não ter denotação porque não se referem a coisas. Na realidade, a referência denotativa vale para objetos em geral (v. OBJETOS), e objetos são tanto as coisas reais quanto as quiméricas, tanto os planos, os projetos, os desejos e as aspirações quanto as qualidades sensíveis ou as entidades percebidas. Portanto, um enunciado que expresse uma ordem, um desejo ou um projeto pode ter, na situação a que tais coisas se referem, a sua denotação, vale dizer, seu objeto ou seu referente. Aliás, nem mesmo do ponto de vista lógico, que é o da teoria do significado, tais objetos podem ser distinguidos dos outros. 3a Na definição de significado como intenção de quem fala, o S. seria aquilo que o falante pretende dizer, sem se levar em conta a referência objetiva da palavra ou do enunciado empregado. Neste sentido, emprega-se "quer dizer..." (em inglês: lmean..., do verbo to mean, que tem a mesma raiz de meaning = S.), para esclarecer ou corrigir uma declaração. Está bem claro que qualquer descrição ou esclarecimento da intenção do falante só pode ocorrer através da determinação do objeto ao qual se refere, ou de sua conotação, ou seja, por meio do uso das dimensões próprias do significado. Portanto, tais dimensões são simplesmente pressupostas pela definição em foco. Às vezes é proposta como um S. acrescentado ao tradicional (cf. M. BLACK, Problems of Analysis, 1954, pp. 55-56), porém está claro que a intenção do falante não é outra espécie de significado, mas o modo como o falante usa as dimensões lógicas do significado. Associa-se a essa confusão entre intenção e S. o uso deste termo em frases como: "Um universo mecânico não teria S.", "Se tudo acontecesse por acaso, a história não teria S.", nas quais a palavra S. obviamente eqüivale a intenção ou objetivo, portanto a valor. A- Proposta de um S. "pictórico" ou "ima-gético", paralelamente aos outros, porquanto "a linguagem pode ser empregada com a intenção primária de exprimir ou evocar pinturas (ou imagens) de um modo que difere do uso dos signos e formula possibilidades empiricamente significantes" (v. E. ALDRICH, Pictorial Meaning and Picture Thinking", em Readings in Philoso-phical Analysis, 1949, pp. 175 ss.). Está claro que também esta proposta é sugerida pelo pressuposto (estranho a qualquer teoria lógica do S.) de que o objeto da referência é uma coisa real ou uma situação de fato e de que não pode ser de outra natureza. Na realidade, os S. "pictóricos" têm conotação e denotação como todos os demais. 5a Definição do S. como vetor de campo, no sentido de que ele seria uma disposição atualizada pelo objeto que se destaca do fundo de um campo ou contexto apropriado. Mais precisamente, ele seria a ativação ou a atualização de uma resposta descritiva, provocada pelo objeto (A. P. USHENKO, The Field Theory of Meaning, 1958, p. 109). Mas esta é uma teoria da formação dos S. (que pode ser discutida no âmbito da teoria da linguagem) e não traz inovações no que se refere à composição do significado do S., que continua determinado por seus dois componentes: conotação e denotação (cf. Op. cit, pp. 75-76). SIGNIFICADO, ESPÉCIES DE (in. Kinds of meaning; fr. Espèces de signification; ai. Bedeutungsarten; it. Specie di significató). Podem-se distinguir várias espécies de S. quando se deixa de fazer referência aos signos tomados isoladamente e passa-se a fazer referência aos conjuntos de signos, aos enunciados. Estes podem ter: 1Q um S. lógico; 2a um S. factual; 3a um S. expressivo. le O enunciado tem S. lógico quando pode ser declarado verdadeiro ou falso com base no S. dos termos que o compõem. Têm S. desse gênero proposições do tipo "nenhum solteiro é casado", que também são chamadas de analíticas ou tautologias e são objeto da lógica. (V. ANALÍTICO; LÓGICA.) 2a Têm S. factual os enunciados que, além de incluírem termos com S., são verificados por SIGNIFICÂNCIA 894 SIGNO um fato ou por um conjunto de fatos. Nesse sentido, têm S. factual as proposições das ciências naturais (física, química, etc). Semelhantes enunciados também costumam ser chamados de sintéticos, para distinguir dos enunciados analíticos da lógica. Reichenbach dividiu o S. factual em físico, que é a possibilidade física, ou seja, não contradiz as leis empíricas, e técnico, que é a possibilidade técnica definida por métodos práticos conhecidos ("Verifiability Theory of Meaning", em Proceedings of the American Academy ofArts and Sciences, 1951, pp. 53 ss.). O S. lógico e o S. factual costumam ser chamados de S. cognitivos ou teóricos; os enunciados que possuem tais S. são reconhecíveis por possibilidade de serem declarados verdadeiros ou falsos. 3C Diz-se que têm S. expressivo as locuções que não têm S. teórico mas que apesar disso manifestam um estado de espírito do sujeito que os emprega ou servem para produzir estados de espírito análogos no sujeito que os ouve. As interjeições, as exclamações, as expressões metafóricas têm S. desse gênero. Às vezes, especialmente por parte dos seguidores do empirismo lógico (v.), as expressões da metafísica tradicional são consideradas enunciados desse gênero, negando-se-lhes qualquer valor cognitivo. Esse uso, porém, é polêmico e só pode ser registrado como tal (v. ARTE; METAFÍSICA; POESIA). SIGNIFICÂNCIA (in. Significance, ai. Be-deutsamkeit; it. Significanzã). 1. O mesmo que significado (v.). 2. Importância ou valor. Desse ponto de vista, diz-se, p. ex., que certos acontecimentos históricos são significantes. SIGNO (gr. OT||j.eíov; lat. Signum; in. Sign; fr. Signe, ai. Zeichen; it. Segnó). Qualquer objeto ou acontecimento, usado como menção de outro objeto ou acontecimento. Esta definição, geralmente empregada ou pressuposta na tradição filosófica antiga e recente, é genera-líssima e permite compreender na noção de S. qualquer possibilidade de referência: p. ex., do efeito à causa ou vice-versa; da condição ao condicionado ou vice-versa; do estímulo de uma lembrança à própria lembrança; da palavra a seu significado; do gesto indicativo (p. ex., um braço estendido) à coisa indicada; do indício ou do sintoma de uma situação à própria situação, etc. Todas essas relações podem ser compreendidas pela noção de signo. No entanto, em sentido próprio e restrito, essa noção deve ser entendida como a possibilidade de referência de um objeto ou acontecimento presente a um objeto ou acontecimento nâo-presente, ou cuja presença ou não-presen-ça seja é indiferente. Nesse sentido mais restrito, a possibilidade de uso dos S. ou semiose é a característica fundamental do comportamento humano, porque permite a utilização do passado (o que "não está mais presente") para a previsão e o planejamento do futuro (o que "ainda não está presente"). Nesse sentido, pode-se dizer que o homem é, por excelência, um animal simbólico, e que nesse seu caráter se radica a possibilidade de descoberta e de uso das técnicas em que consiste propriamente sua razão (v.). Ainda hoje é válida a doutrina do S. formulada pelos estóicos. Estes chamavam de S., de modo geral, "aquilo que parece revelar alguma coisa", mas em sentido específico chamavam de S. "aquilo que é indicativo de uma coisa obscura", não manifesta (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VIII, 143; Pirr. hyp., I, 99 ss.). Portanto, consideravam que os S. eram de duas espécies fundamentais: rememorativos, que se referem a coisas apenas ocasionalmente obscuras, como p. ex. a fumaça, que é S. do fogo, e indicativos, que nunca são observados juntamente com a coisa indicada, que é obscura por natureza; neste sentido, diz-se que os movimentos do corpo são S. da alma (Jbid., VIII, 148-155). Sabemos também que na capacidade de usar os S. os estóicos viam a diferença entre homens e animais (Jbid., VIII, 276), e que consideravam o S. um produto intelectual, identificando-o com "uma proposição constituída por uma conexão válida e reveladora do conseqüente" (Jbid., VIII, 245). Os epicuristas, ao contrário, consideravam que o S. tem natureza sensível, capaz de permitir e fundamentar a indução (Ibid., VIII, 215 ss.; cf. INDUÇÃO). Mais tarde, nos moldes da doutrina estóica, o S. continuou sendo definido como relação de referência entre dois termos conexos. S. Tomás não excluía que se pudesse chamar de S. a causa sensível de um efeito oculto (S. Th., 1,70, a. 2, ad. 2Q). A lógica terminis-ta distinguiu a referência do S. àquilo que denota, que é a relação de significação instituída arbitrariamente, da suposição (v.), que é a relação pela qual o termo compreendido numa proposição está em lugar de alguma coisa (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 6.03). Ockham definiu o S. como "tudo aquilo que, uma vez aprendido, SIGNO 895 SIGNO permite chegar a conhecer alguma outra coisa" (Summa log., I, 1), e fez a distinção entre S. natural, que é o conceito (ou intenção da alma) enquanto produzido pela própria coisa do mesmo modo como a fumaça é produzida pelo fogo, e S. convencional, instituído arbitrariamente, que é a palavra (Ibid., I, 14). A filosofia inglesa dos sécs. XVII e XVIII valeu-se amplamente da noção de S., mas não o definiu de maneira nova. Hobbes dizia: "S. é o antecedente evidente do conseqüente ou, ao contrário, o conseqüente do antecedente quando antes já tiverem sido observadas conseqüências semelhantes; quanto mais vezes tiverem sido observadas, tanto menos incerto será o S." (Leviath., I, 3). Berkeley utilizou a noção de S. para definir a função das idéias gerais, que seriam idéias particulares "adotadas para representar ou substituir outras idéias particulares do mesmo tipo" (Principies of Human Knowledge, Intr., § 12). No último capítulo de Ontologia, Wolff apresenta uma doutrina lúcida e incisiva do S., definindo-o como "um ente do qual se infere a presença ou a existência passada ou futura de outro ente" (Ont., § 952) e distinguindo, conseqüentemente, o S. demonstrativo, que indica um objeto presente designado, o S. prognóstico, cujo ser designado é futuro, e o S. rememorativo, cujo ente designado é passado Ubid., § 954). Com base nesses conceitos, é óbvio que qualquer procedimento cognos-citivo pode ser considerado semiológico. Em oposição a isso, Kant considerou, por um lado, as palavras e os S. visíveis (algébricos, numéricos, etc.) como simples expressões dos conceitos, ou seja, como "caracteres sensíveis que designam conceitos e servem apenas como meios subjetivos de reprodução, e, por outro lado, os símbolos como representações analógicas, in-fra-intelectuais, dos objetos intuídos (Crít. do Juízo, § 59; Antr., I, 38). Portanto, segundo Kant, "quem só sabe expressar-se de modo simbólico tem poucos conceitos intelectuais, e aquilo que freqüentemente se admira na vivida expressividade presente nos discursos dos selvagens (e às vezes também dos supostos sábios de um povo rude) não passa de pobreza de idéias, portanto também de palavras para expressá-las" Ubid., 38). No entanto, os kan-tianos não foram tão contrários quanto seu mestre a reduzir qualquer conhecimento ao uso de signos. H. Helmholtz considerava as sensações como sinais produzidos em nossos órgãos dos sentidos pela ação de forças externas, e atribuía a validade desses S. ao fato de terem entre si uma ordem que reproduz a ordem existente entre as coisas, e não o fato de serem semelhantes às coisas (Die Tatsachen in der Wahrnehmung, 1879). Na mesma linha de pensamento, E. Cassirer estudou as formas simbólicas da vida humana e seu significado conceituai (Die Philosophie der symbolischen Formen, 3 vol., 1923-29), e chamou o homem de animal symbolicum (Essay on Man, 1944, cap. II; trad. it., p. 49). Quando, por influência da lógica matemática, á teoria dos S. volta a ser estudada na filosofia contemporânea, seus traços fundamentais não variam, mas é-lhe acrescentada outra ordem de considerações, mais precisamente as que se incluem na chamada pragmática (v.), vale dizer, as que concernem à relação do S. com seus intérpretes. Pode-se dizer que, desse ponto de vista, o objeto da semiótica, que é a teoria dos signos, não é mais o próprio S., mas a semiose (v.), ou seja, o uso dos signos ou o comportamento semiótico. Essa orientação foi inaugurada por E. S. Peirce. Depois de dar a definição tradicional do S. (como "algo que, uma vez conhecido, conhecemos outra coisa"), Peirce acrescentou que "S. é um objeto que, por um lado, está em relação com seu objeto e, por outro, em relação com um interpretante, de tal modo que produz entre o interpretante e o objeto uma relação correspondente à sua própria relação com o objeto." O S. é, pois, uma relação triádica entre o próprio S., seu objeto e o interpretante (Coll. Pap., 2.243 ss.; 8.332). Conseqüentemente, Peirce classificava os S. segundo três pontos de vista diferentes: por si mesmos; em sua relação com o objeto; em sua relação com o interpretante. Considerados em si mesmos, os S. podem ser: aparências ou qualissignos-, objetos ou acontecimentos individuais, vale dizer, sinsignos (nessa palavra, sin é a primeira sílaba de semel, simul, similar, etc); tipos gerais ou legissignos (Ibid., 8.334). Considerado em relação ao objeto representado, o S. pode ser: um ícone, como p. ex. uma percepção visual ou auditiva; um índice, como um nome próprio ou o sintoma de uma doença; ou um símbolo, que é um S. convencional (Ibid., 8.335). Em relação ao objeto imediato, o S. pode ser de uma qualidade, de um ente ou de uma lei. Finalmente, em relação ao interpretante, o S. pode ser um rema, um enunciado ou um tema, isto é, um termo, uma proposição ou um raciocínio (Ibid., 8.337). Essa SIGNO 896 SILOGISMO classificação foi depois reexposta pelo próprio Peirce com outra terminologia, mais aceita. Chamou de tipo a forma definidamente signi-ficante, que não é uma coisa única ou um evento único, que não existe por si mas é determinada por coisas que existem; chamou de ocorrência (tokerí) o evento singular que ocorre uma única vez, assim como uma palavra que se encontra numa única linha de uma única página de uma única cópia de um livro; e chamou de tom (tone) o caráter significante indefinidamente significante, como o tom de voz (Coll. Pap., 4.537). Essas três espécies correspondem ao legissigno, sinsigno e qualissigno da classificação anterior (v. PALAVRA; TTPO). Teve muito sucesso (imerecido) a classificação proposta por Ogden e Richards em The Meaning of Meaning (1923). Distinguiram o uso simbólico do uso emotivo dos S.; o uso simbólico é a asserção, ou seja, a referência do S. a um objeto; o uso emotivo tende a expressar e a produzir sentimentos e atitudes. "Na função simbólica incluem-se tanto a simbolização da referência quanto a comunicação dela ao ouvinte, vale dizer, a produção de referência semelhante no ouvinte. Na função emotiva incluem-se tanto a expressão de emoções, atitudes, disposições, intenções, etc. do falante, quanto a comunicação dessas emoções, etc, que é a sua evocação no ouvinte" (The Meaning of Meaning, 10a ed., 1952, p. 149). Essa classificação foi utilizada (especialmente por E. L. STEVENSON, Ethics and Language, 1944) na análise da linguagem da moral e, em geral, da linguagem normativa, mas seus fundamentos não são consistentes, sobretudo pela impossibilidade de propor um critério simples e suficientemente seguro para se fazer a distinção proposta nos casos particulares. Classificação mais adequada e menos preconcebida é a de Morris, que distingue os identificadores, que significam a localização no espaço e no tempo; os designadores, que significam as características do meio; os apreciadores, que significam um status preferencial; os prescritores, que significam a solicitação de respostas específicas (Signs, Language and Behavior, 1946, III, 2; trad. it., p. 97). Desses S., chamados em conjunto de lexicais, Morris distingue os S. formadores, que significam que "a situação significada de outro modo é uma situação alternativa" ilbid., VI, 1). Estes últimos são divididos por sua vez em determinadores, como "todos", "alguns", "nenhum"; em conectores, como vírgulas, parênteses, cópula, conjunções e, ou, etc.; e em modalizadores, que são, p. ex., pontos de exclamação, etc. Morris revalidou na filosofia contemporânea a teoria do S. estabelecida por Peirce, introduzindo uma terminologia útil: chamou de veículo o objeto ou o acontecimento que serve como S.; de designado o objeto a que o S. se refere; de inter-pretante o efeito do S. sobre o intérprete, ou seja, o sentido do S.; e de intérprete o sujeito do processo semiológico (Foundations of the Theory of Signs, 1938, II, 2). Na esteira de Peirce, Morris também insistiu no caráter comportamental do processo semiológico; aliás, procurou definir o S. em termos exclusivamente comportamentais. A definição a que chegou é a seguinte: "Se A orienta o comportamento para um objetivo de maneira semelhante (mas não necessariamente idêntica) à maneira como B orientaria o comportamento para o mesmo objetivo no caso de se observar B, então A é um S." (Ibid., I, 2; trad. it., p. 21). É evidente a influência que a teoria dos reflexos condicionados exerceu sobre essa definição (v. AÇÃO REFLEXA). Camap — e com ele muitos outros — aceitou os fundamentos da teoria de Morris, bem como a divisão da semiótica geral nas três partes por ele propostas (cf. R. CARNAP, Foundations of Logic and Mathematics, 1939,1, 2; trad. it., pp. 6-7) (v. SEMIÓTICA). SILÊNCIO (lat. Silentium; in. Silence, fr. Si-lence, ai. Schweigen; it. Silenzió). Atitude mística diante da inefabilidade do ser supremo (cf., p. ex., BOAVENTURA, Ltinerarium mentis in Deum, VII, 5). Segundo Jaspers, a atitude diante do ser da Transcendência (Phil., III, p. 223). Segundo Wittgenstein, a atitude diante dos problemas da vida: "Sobre o que não se pode falar, deve-se calar" (Tractatus, 7). SILOGISMO (gr. GDÀloYiaLióç; lat. Syllo-gismus; in. Syllogism; fr. Syllogisme, ai. Syllogis-mus; it. Sillogismó). Essa palavra, que na origem significava cálculo e era empregada por Platão para o raciocínio em geral (cf. Teet., 186 d), foi adotada por Aristóteles para indicar o tipo perfeito do raciocínio dedutivo, definido como "um discurso em que, postas algumas coisas, outras se seguem necessariamente" (An. pr., I, 1, 24 b 18; I, 32, 47a 34). As características fundamentais do S. aristotélico são: ls caráter mediato; 29 necessidade. O caráter mediato do S. decorre do fato de ser a contrapartida ló-gico-lingüística do conceito metafísico de substância. Em virtude disto, a relação entre duas SILOGISMO 897 SILOGISMO determinações de uma coisa só pode ser estabelecida com base naquilo que a coisa é necessariamente: sua substância; p. ex., para decidir se o homem tem a determinação "mortal", só se pode levar em consideração a substância do homem (aquilo que o homem não pode não ser) e raciocinar da maneira seguinte: "Todos os animais são mortais; todos os homens são animais; logo todos os homens são mortais". Isso significa que o homem é mortal porque animal: a animalidade é a causa ou a razão de ser de sua mortalidade. Nesse sentido, diz-se que a noção "animal" desempenha a função de termo médio do S.: obviamente, o termo médio é indispensável no S. porque representa a substância, ou a alusão à substância, e somente esta possibilita a conclusão (An. post., II, 11, 94 a 20). Portanto, o S. tem três termos, a saber o sujeito e o predicado da conclusão e o termo médio, mas é a função do termo médio que determina as diferentes figuras do silogismo (v. SILOGÍSTICA). Além das figuras, Aristóteles distinguiu várias espécies de silogismo. O S. é por definição uma dedução necessária: portanto, sua forma primária e privilegiada é o S. necessário, que Aristóteles chama também de demonstrativo, ou científico, ou S. do universal (An. pr., I, 24, 25 b 29). Dele se distingue o S. dialético, que se baseia em premissas prováveis, sendo, pois, apenas provável (Ibid., II, 23, 68b 10; An.post., II, 8, 93 a 15). É também chamado de retórico-, uma espécie dele é o S. erístico, baseado em premissas que parecem prováveis mas não são (Top., I, 1, 100 b 23). Dos S. necessários, a primeira e melhor espécie é a dos ostensivos (v.), que Aristóteles contrapõe aos que partem de uma hipótese (An. pr., I, 23, 40 b 23). Estes últimos não são aqueles que serão chamados depois de S. hipotéticos, mas aqueles cuja premissa maior não é a conclusão de outro S., nem é evidente por si, mas é tomada como hipótese (Ibid., I, 44, 50 a 16). Uma das espécies desses S. é aquele que conclui mediante a redução ao absurdo (Ibid., 50 a 29). Entre os S. ostensivos, os mais perfeitos são os universais da primeira figura, nos quais é possível integrar todas as outras formas de S. (Ibid., I, 7, 29 b 1). Finalmente, do S. dedutivo distingue-se o S. indutivo ou indução (Ibid., I, 23, 68b 15). Por outro lado, não são espécies de S. aquilo que Aristóteles chama de S. geométrico, médico, político (Top., I, 9, 170 a 32) eprático(Et. nic, VI, 12,1044 a 31), que se distinguem entre si apenas pelo conteúdo dos princípios a que se referem, e não pela forma lógica. A rigor, tampouco são espécies de S. os S. compostos, como o epiquirema ou o sorites; ou truncados, como o entimema-. sobre cada um deles, v. os verbetes correspondentes. Também não é silogismo a divisão, que é um dos métodos da dialética de Platão, que Aristóteles chama de "S. fraco" (An. pr, I, 31, 46 a 33). Os estóicos, que não fundamentaram sua lógica com a teoria da substância, mas com a da percepção, não consideraram como tipo fundamental de raciocínio o S., mas o raciocínio anapodítico, que tem somente dois termos e cuja premissa maior é uma proposição condicional ("Se é dia há luz. Mas é dia. Logo há luz"; v. ANAPODÍTICO). OS aristotélicos, a partir de Teofrasto, traduziram os raciocínios anapo-díticos dos estóicos para os esquemas aristotélicos, acrescentando ao S. categórico de Aristóteles, como duas outras espécies de S., o hipotético e o disjuntivo (cf. PRANTL, Geschichte derlogik, I, p. 375 ss.; os textos fundamentais são apresentados por Alexandre, Ad an.pr., f. 134 a-b). Essa doutrina foi transmitida à filosofia ocidental pela obra de Boécio, que se inspirava em autores posteriores, principalmente em Galeno (De syllogismo hypothetico, em P. L., 64). A doutrina do S., assim completada, foi transmitida pela tradição sem mudanças substanciais; depois disso, os lógicos só deram livre curso à fantasia, atribuindo nomes para qualquer modificação insignificante nas estruturas tradicionais. Já dissemos que o fundamento do S. aristo-télico é a teoria da substância (cf. VIANO, La lógica di Aristotele, 1955, III, 6). Como estrutura necessária do ser, a substância garante a ligação entre as determinações, cuja conexão é demonstrada pelo S.: assim, essa conexão nada mais é que a própria necessidade com que se interligam as determinações da substância. A necessidade dessa ligação é expressa na universalidade da predicação: universalidade que em Aristóteles serve de base para o "S. perfeito". Segundo Aristóteles, "dizer que uma coisa está contida na totalidade de outra coisa é o mesmo que dizer que um termo é predicado por todas as coisas do outro termo. E dizemos que se predica de todas as coisas sempre que não haja coisa alguma daquelas pelas quais o sujeito pode ser tomado de que não seja possível predicar a coisa em questâo"G4«.pr., I, 1, 24 b 26). Ser um termo na totalidade de outro SILOGISMO 898 SILOGISMO termo é a relação de inerência que, segundo Aristóteles, expressa a necessidade do ser predicativo (v. SER). Nessa relação de inerência baseia-se a predicaçâo de omni, ou seja, a referência do predicado a qualquer coisa indicada pelo sujeito. Em seguida, na lógica medieval, foi justamente o princípio de omni que se reconheceu como fundamento do S. Eis como era expresso por Pedro Hispano: "Ser dito de omni é quando não se admite no sujeito nada de que o predicado não seja dito, como p. ex. 'todo homem corre'. Ser dito de nullo é quando não se admite no sujeito nada de que o predicado não seja removido, como p. ex. 'nenhum homem cone'"{Summ. log., 4.01). Esta lei fundamental do S. foi expressa nos mesmos termos por uma longa tradição (cf., p. ex., JUNGIUS, Lógica hamburgensis, III, 11,4; WOLFF, Log, § 346). Na lógica tradicional, o dictum de omni et nullo nunca teve significado extensivo: a possibilidade de que alguma coisa seja dita de omni não passa de inerência necessária do predicado ao sujeito. Kant quis dar ao S. um fundamento semântico, que ele expressou com as seguintes regras: "a nota [característica] de uma nota é uma nota da própria coisa" {nota notae est etiam nota rei ipsius); "o que repugna à nota repugna à própria coisa {repugnans notae repugnat rei ipsi)", mas reconheceu que essa fórmula é apenas outro modo de expressar o princípio de omni: modo cuja única vantagem é evitar a "falsa sutileza" da distinção das quatro figuras {Die falsche Spitzfindigkeit der vier syllogistischen Figuren, 1762, § 2). Em Lógica (1800), Kant recorreu ao fundamento tradicional do S., definindo-o como "o conhecimento da necessidade de uma proposição mediante a subsunção de sua condição a uma regra geral dada" {Logik, § 56); o princípio geral do S. é assim expresso: "O que está sob a condição de uma regra está também sob a própria regra". Kant observa que o S. pressupõe: a) uma regra geral; b) uma subsunção à condição que ela expressa; e acrescenta que "o princípio de que tudo está sob o universal e é determinável em regras universais também é o princípio da racionalidade ou da necessidade" {principium rationalitatis, seu necessitatis) {Ibid., § 57). Por outro lado, porém, Leibniz tentara expressar o fundamento do S. em termos de extensão, depois de distinguir claramente extensão e intensão: "Ao dizer 'todo homem é animal' quero dizer que todos os homens estão compreendidos em todos os animais, mas ao mesmo tempo estou entendendo que a idéia de animal está compreendida na idéia de homem. Animal compreende mais indivíduos que homem, mas homem compreende mais idéias e mais formas; um tem mais exemplos, o outro tem mais graus de realidade; um tem mais extensão, o outro tem mais intensão. Portanto, pode-se talvez dizer sem ferir a verdade que toda a doutrina silogística poderia ser demonstrada pela doutrina do continente e do conteúdo, do compreensivo e do compreendido, que é diferente da doutrina do todo e da parte, pois o todo sempre excede a parte, ao passo que o compreensivo e o compreendido às vezes são iguais, como acontece nas proposições recíprocas" {Nouv. ess., IV, 17, 8). Mas foi principalmente Hamilton quem impôs o ponto de vista extensivo como fundamento do S., com base naquilo que ele chamava de "lei de identidade ou não-identidade proporcional", segundo a qual o S. se baseia unicamente nas três possíveis relações entre os termos: Ia de co-inclusão toto-total, ou seja, de identidade ou de absoluta conversibilidade ou reciprocação; 2S de co-exclusão toto-total, ou seja, de não-identidade ou de absoluta não-conversibilidade ou não-reciprocação; 3a de co-inclusão incompleta, que implica uma relação de co-exclusão incompleta, ou seja, identidade ou não-identidade parciais, ou conversibilidade ou reciprocação relativas {Lectures on Logic, II, 1866, pp. 290 ss.). O próprio Hamilton teve a preocupação de ressaltar os precedentes de sua doutrina, mas não inclui entre eles o principal, que é Leibniz {Ibid., 346-48). A lógica posterior de inspiração aristotélica não seguiu, nesse aspecto, a doutrina de Hamilton, retornando à interpretação intensiva do fundamento do silogismo. Na realidade, o legado da proposta de Hamilton seria acolhido principalmente pela lógica matemática; esta, porém, a partir de sua primeira manifestação, as Leis do pensamento (1854) de G. Boole, alinhou-se com o empiris-mo (ver adiante) e negou ao S. seu primado de forma fundamental e típica do raciocínio. Boole dizia: "O S., a conversão, etc. não são os últimos processos da lógica. Baseiam em outros processos mais simples, que constituem os elementos reais do método em lógica, e neles se resolvem. De fato não é verdade que qualquer inferência seja redutível às formas particulares de S. e de conversão" {Laws of Thought, cap. 1, Dover Pubblications, p. 10). SILOGÍSTICA 899 SILOGÍSTICA Segundo Boole, "os processos elementares da lógica são idênticos aos processos elementares da aritmética" ilbid., p. 11): afirmação que serviu de base para toda a evolução posterior da lógica matemática. Mas com isso o S. era definitivamente derrubado de seu trono de tipo fundamental do raciocínio dedutivo, feito que a crítica empirista não lograra totalmente. Desde então, o S. deixou de ser um capítulo autônomo da lógica, e a preocupação dos lógicos em relação a ele consiste unicamente em mostrar que ele pode ser resolvido e expresso nas fórmulas de cálculo que preferirem: preocupação que não deixa de ser acompanhada por perplexidade (cf., p. ex., W. v. O. QUINE, Methods of Logic, 1952, § 14; A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, 1956, § 46.22). Como já dissemos, independentemente da discussão sobre seus fundamentos, a validade do S. foi questionada várias vezes do ponto de vista do empirismo. Para Sexto Empírico, o S. ou era a repetição inútil do que já se conhece, ou um círculo vicioso.- isso porque a premissa maior ("Todos os homens são mortais") implicaria já a verdade da conclusão ("Sócrates é mortal") {Pirr. hyp., I, 163-64; II, 196). Stuart Mill observava a propósito que não existe círculo vicioso, porque, ao se chegar à proposição geral, a inferência terá terminado, e só nos restará "decifrar nossas observações" {Logic, II, 3, 2). Mas isso significa reduzir o S. à simples decifração de notas já possuídas. Bacon observara que "o S. força o assentimento, mas não a realidade" {Nov. Org., I, 13). Foi essa a idéia que, graças a Locke, prevaleceu no que se refere à natureza do S.: este não descobre nem idéias nem a correlação entre idéias, que só a mente pode perceber, mas "demonstra apenas que, se a idéia do meio concorda com as outras a que se refere imediatamente de ambos os lados, então essas duas idéias distantes (ou das extremidades) certamente concordam". Assim, "a conexão imediata de cada idéia com aquelas a que se aplica de ambos os lados — conexão de que depende a força do raciocínio — é bem percebida tanto antes do S. quanto depois dele, pois ao contrário quem faz o S. nunca poderia enxergá-la" {Ensaio, IV, 17, 4). Essa famosa crítica de Locke deu início à perda de supremacia do S., o que terminaria com o predomínio da lógica matemática na segunda metade do século XIX. SILOGÍSTICA (in. Syllogistic; fr.^ Syllogis-tique, ai. Syllogistik, it. Sillogisticá). É a teoria do silogismo (v.). Desenvolvida pela primeira vez por Aristóteles em Analytica priora, em poucos anos transformarse-ia no cerne da lógica, continuando como tal até o advento da lógica matemática contemporânea. A parte mais antiga é a teoria do silogismo dedutivo categórico, exposta pelo próprio Aristóteles. Este fixa os quatro modos válidos da primeira figura (as figuras são caracterizadas pela posição do termo médio: na primeira, funciona como sujeito na premissa maior e como predicado na menor; na segunda, é predicado em ambas as premissas; na terceira é sujeito em ambas, donde a necessidade de converter uma das premissas. Os modos dispõem-se assim: em primeiro lugar, os que concluem com uma proposição universal afirmativa, depois os que concluem com uma universal negativa, em seguida os que concluem com uma particular afirmativa e finalmente os que concluem com uma particular negativa). A seguir, passa à análise dos modos possíveis da segunda e da terceira figuras, demonstrando sua redutibilidade, principalmente por meio da técnica de conversão^?), a modos correspondentes da primeira. Depois disso, Teofrasto formulou os modos da quarta figura, mas parece que seu reconhecimento e sua exposição como figura independente couberam a Galeno. Todavia, mais tarde, vários lógicos como Averróis, Zabarella e, na idade moderna, Wolff e Kant, pronunciaram-se contrários a ela, pois a consideraram substancialmente inútil. De fato os modos dessa figura não passam de modos indiretos da primeira, com permuta das duas premissas; além disso, alguns deles (o primeiro e o quarto) não "concluem necessariamente" (condição essencial, segundo Aristóteles, para que haja silogismo). A essas quatro figuras, os lógicos modernos acrescentaram os cinco modos "fracos" obtidos da primeira e da segunda (e quarta) por subal-ternação (substituição da conclusão universal por uma particular). Essa teoria, já amplamente explorada pelos comentadores do fim da Antigüidade, peripa-téticos e neoplatônicos, e depois sintetizada por Boécio, foi reelaborada pelos lógicos medievais, tornando-se extremamente formalista. Com efeito, coube aos grandes terministas medievais transformar todos os modos em fórmulas, de acordo com uma técnica complicada: com quatro vogais {a, e, i, o) indicaram os quatro tipos de proposição (respectivamente: universal afirmativa [a], universal negativa [e], par- SILOGÍSTICA 900 SILOGÍSTICA ticular afirmativa [i]; particular negativa [o]); com B, E, D, F, indicaram os quatro modos da primeira figura, designando-os com as pala-vras-fórmulas Barbara, Celarent, Darii, Ferio, em que as únicas letras significativas são as iniciais e as três vogais (que indicam o tipo de proposição no que diz respeito à premissa maior, à premissa menor e à conclusão). Quanto aos modos das outras três figuras, as três primeiras vogais têm o significado de costume; as iniciais indicam a que modo da primeira figura se reduzem; além disso, são significativas algumas letras minúsculas pospostas à vogai, que indicam operações a serem realizadas nas proposições indicadas por aquela vogai: 5: conversão "simpliciter"; p. conversão "per accidens"; m: metátese das premissas; c. "reductio ad impossibile". Ora, teoricamente, os modos matematicamente possíveis em qualquer figura são 16, obtidos com a combinação dois a dois em todos os modos possíveis (com repetição); as quatro letras a, e, i, o (pois no silogismo o que decide são as premissas, e as premissas são duas): aa, ea, ia, oa; ae, ee, ie, oe, ai, ei, ii, oi; ao, eo, to, 00. Portanto, resultariam 64 modos, mas desses são válidos somente os seguintes 19: Ia figura: Barbara, Celarent, Darii, Ferio; 2- figura: Cesare, Camestres, Festino, Ba-roco; 3a figura: Darapti, Disamis, Datisi, Felapton, Bocardo, Feriso; 4a figura: Baralipton, Celantes (ou Calemes), Dabitis, Fapesmo, Frisesmorum. Mais os modos "fracos": Barbari, Celaront, Cesaro, Camestros, Calemos (obtidos de Barbara, Celarent, Cesare, Camestres, Calemes). Foram também os lógicos da Idade Média que introduziram o silogismo com proposições singulares (como "Todos os homens são mortais; Sócrates é homem; logo Sócrates é mortal"), que não se incluíam na S. propriamente aristotélica, totalmente baseada na acepção universal dos termos, portanto no uso dos operadores "tudo" e "em parte" [alguns]. De origem estóica, mas devido em grande parte à elaboração dos lógicos medievais (a partir de Boécio) é o importante capítulo da teoria do silogismo hipotético e disjuntivo. O silogismo hipotético consiste em uma premissa (dita maior) que estabelece implicação entre um enunciado e outro ("se A, B"), em uma premissa (dita menor) que afirma {modus ponens) ou nega {modus tollens), respectivamente, o antecedente ou o conseqüente da implicação contida na maior; a conclusão afirma ou respectivamente nega o conseqüente ou o antecedente: modusponens. se A, B modus tollens: se A, B A não-B logo B logonão-/! Analogamente, o silogismo disjuntivo consiste em uma premisssa (maior) em que são afirmadas {modus tollendo ponens) ou reciprocamente negadas {modusponendo tollens) duas proposições, em uma premissa (menor) em que é negada, ou, respectivamente, afirmada uma das disjuntas da premissa maior, e na conclusão, que consiste em afirmar ou, respectivamente, negar, a outra disjunta: modus tollendo ponens: A ou B A ou B não-B não-^4 logo A logo B modus ponendo tollens: ou A ou B ou A ou B A B logo nâo-B logo não-A Apesar de certas analogias forçadas, estes tipos de "silogismo" representam uma estrutura completamente diferente da do silogismo categórico, de tal maneira que, se não se levasse em consideração a etimologia, dificilmente poderiam ser chamados de silogismo; com efeito, para usarmos a linguagem da lógica contemporânea, eles pertencem ao cálculo proposicional simples e baseiam-se em implicações materiais, ao passo que os modos do silogismo categórico pertencem ao cálculo das funções pro-posicionais e baseiam-se em implicações formais. Não obstante, na lógica moderna, principalmente no séc. XIX, foi feita uma tentativa (mas em bases mais gnosiológicas e epistemológicas que propriamente lógicas) de reduzir o silogismo categórico a silogismo hipotético, interpretando o primeiro como infe-rência bipotético-dedutiva: "se todos os homens são mortais, e se Sócrates é homem, Sócrates é mortal". Mas a exposição lógica completa desta última forma de inferência mostra que na realidade ela não se reduz a nenhuma das duas formas clássicas, perdendo-se a concisão rigorosa e a estrutura ternária destas. Faltaria considerar o silogismo indutivo, mas seu estudo não pertence à S. propriamente dita (v. INDUÇÃO). G. P. SIMBOLISMO 901 SIMPATIA SIMBOLISMO (in. Symbolism; fr. Symbo-lisme, ai. Symbolismus; it. Simbolismó). 1. Uso dos signos, ou seja, comportamento semiológico ou semiose (v.). 2. Uso de um sistema de signos especial (p. ex., o "S. matemático"). 3. Uso de símbolos no 2° sentido do termo: de signos convencionais e secundários (signos de signos, como ocorre na arte, na religião, etc). Neste sentido, essa palavra é usada por Cassirer ao falar da expressão simbólica como forma mais madura de desenvolvimento lingüístico, marcada pela distância entre o signo e seu objeto" (ThePhilosophy of SymbolicForms, II, p. 237); de fato, essa distância é própria do comportamento semiológico. SÍMBOLO (in. Symbol; fr. Symbole, ai. Symbol; it. Símbolo). 1. O mesmo que signo. É com esta significação genérica que a palavra é mais usada na linguagem comum. 2. Uma espécie particular de signo. Segundo Peirce: "Um signo que pode ser interpretado em conseqüência de um hábito ou de uma disposição natural" (Coll. Pap., 4.531). Segundo Dewey, um signo arbitrário ou convencional (Logic, Intr., IV, trad. it., p. 93). Segundo Morris: um signo que substitui outro signo na orientação de um comportamento (Signs, Language andBehavior, I, 8). Segundo outros, um signo típico, em contraposição ao signo individual, que é a palavra como significado (v. PALAVRA) (M. BLACK, Language and Philosophy, VI, 2; trad. it., p. 181). SIMETRIA (in. Symmetry, fr. Symétrie, ai. Symmetrie, it. Simmetrid). Mensurabilidade, proporção ou harmonia. Diz-se que é simétrica a relação entre os dois termos nos dois sentidos: p. ex., a relação "irmão" (v. RELAÇÃO). SIMPATIA (gr. m)urax8eia; in. Sympathy, fr. Sympatie, ai. Sympatbie, it. Simpatia). Ação recíproca entre as coisas ou sua capacidade de influência mútua. Esse conceito é antigo e desde a antigüidade foi aplicado tanto à realidade humana quanto à física, mas foi usado pelos filósofos antigos principalmente em relação ao mundo físico. Para os estóicos, a S. é o nexo que interliga as coisas, mantém-nas ou as faz convergir para a ordem do mundo (ARNIM, Stoicorum fragmenta, II, p. 264). Para Plotino, a S. era o fundamento da magia: "De onde provêm os encantamentos? Da S., graças à qual há uma concordância natural entre coisas semelhantes e discordância natural entre as coisas diferentes, e graças à qual também há grande número de potências variadas que colaboram para a unidade desse grande animal que é o universo." (Enn., IV, 4, 40). Plotino também dizia que "a S. é como uma corda esticada, que ao ser tocada numa das pontas transmite o movimento para a outra ponta.(...) E se a vibração passa de um instrumento para o outro por S., também no universo há uma harmonia única, que às vezes é feita de contrários, mas outras vezes é feita também de partes semelhantes e congêneres" (Ibid., IV, 4, 41). A magia insere-se na S. universal e, recorrendo a meios oportunos, aproveita-a para suas próprias finalidades, realizando assim efeitos que parecem extraordinários e milagrosos. Esse conceito de S., que pressupõe a animação de todas as coisas, é o fundamento da magia, sendo admitido igualmente por todos os mágicos da Renascença (cf. CAMPANELLA, De sensu rerum, IV, 1; 14; AGRIPA, De occulta philosophia, I, 1; I, 37; CARDAN, De varietate rerum, 1,1-2; G. B. ELMONT, Opuscula philosophica, I, 6, etc). Com o declínio da magia no mundo moderno, o significado de S. limitou-se a indicar a comunhão de emoções entre os indivíduos humanos. Hume foi o primeiro a insistir na importância da S. no que se refere à formação de todas as emoções humanas: "Nenhuma qualidade da natureza humana é mais importante em si mesma ou em suas conseqüências do que a propensão que temos a simpatizarmos uns com os outros, a recebermos a comunicação das inclinações e dos sentimentos dos outros, por mais diferentes que sejam dos nossos, ou mesmo contrários. (...) A esse princípio podemos atribuir a grande uniformidade observável nos humores e nos modos de pensar dos membros de uma mesma nação: é muito mais provável que essa semelhança surja da S. que da influência do solo e do clima, que, apesar de serem sempre os mesmos, não conseguem manter inalterado por um século inteiro o caráter de uma nação" (Treatise, 1738, II, 1,11). É de se notar que Hume atribuiu à S. o caráter que mais tarde seria ressaltado por Scheler e rejeitado por autores mais modernos: o fato de ela não implicar nenhuma identidade de emoções ou fusão emocional nas pessoas entre as quais ocorre. Adam Smith só fez adotar a idéia diretiva de Hume, ao considerar a S. como base da vida moral e ao entendê-la como "a faculdade de participar das emoções de outrem, sejam elas quais forem" (TbeoryofMoralSentiments, 1759, I, 1, 3). Ocasionalmente, recorreu-se à S. no SIMPLES 902 SINCATEGOREMATICO campo estético e biológico, chamando-a às vezes de empatia (v.). Bergson devolveu à S. o caráter instintivo e viu nela a possibilidade de apreender diretamente a natureza da vida: "O instinto é simpatia. Se essa S. pudesse estender seu objeto e refletir sobre si mesma, dar-nos-ia a chave das operações vitais, da mesma maneira como a inteligência, desenvolvida e retificada, nos introduz na matéria" (Évol. créatr., 8a ed., 1911, P- 191)- Por outro lado, numa obra famosa sobre a S., Scheler distinguiu-a dos fenômenos afins mas não idênticos, especialmente daquilo que ele chama de contágio emotivo ou fusão emotiva. A fusão emotiva consiste em ter a mesma emoção de outrem; p. ex., os pais que perderam um filho sentem a mesma dor. AS., ao contrário, não supõe a identidade de emoções: participar da dor alheia por sentir piedade não significa sentir a mesma dor. Por isso, para Scheler a S. era o componente da compreensão, que é condicionada pelo reconhecimento da alteridade entre as pessoas: "AS., a participação afetiva autêntica, é uma função e não comporta um estado afetivo na pessoa que o sente. O estado afetivo de B, implícito na piedade que sinto por ele, para mim continua sendo o estado afetivo de B: não passa para mim, quando o lastimo, e não produz em mim um estado semelhante ou idêntico" (Sympa-thie, 1923, 1; trad. fr., p., 69). SIMPLES (gr. àiíkòoc,; lat. Simplex, in. Sim-ple, fr. Simple, ai. Einfach; it. Semplicé). Aquilo que carece de variedade ou de composição, vale dizer, o que existe de um único modo ou é destituído de partes. Aristóteles entendeu o S. no primeiro sentido, como falta de variedade: "No sentido primário e fundamental o que é S. é necessário porque não é possível que o S. seja ora de um modo, ora de outro" (Met., V, S, 1015 b 12). Leibniz usou essa palavra no segundo sentido, ao definir a mônada como substância S., porque sem partes (Monad., § 1). Foi graças a Wolff que esse conceito se consolidou com esse sentido (Ont., § 673). Na lógica terminista medieval usavase com o mesmo sentido o termo incomplexum (= não composto), como contrário de complexo>(v.): ou no sentido de um termo constituído por uma só palavra, ou no sentido do termo de uma proposição, constituído por uma ou mais palavras (cf. OCKHAM, Expositio áurea, p. 40 b). Por simplicidade, como característica das hipóteses ou das teorias científicas, entende-se exigência de economia (v.; v. também TEORIA). Analogamente, por simplificação entende-se todo procedimento apto a tornar econômica a conceitualização ou a teorização, ou seja, qualquer procedimento que reduza o número ou a complexidade dos conceitos empregados. SIMULACRO. V. ÍDOLOS. SINAL (in. Signal; fr. Signal; ai. Signal; it. Segnalè). 1. O mesmo que signo (v.). Morris entende essa palavra no sentido de signo natural (Signs, Language and Behavior, I, 8). 2. O mesmo que símbolo (v.). Neste segundo sentido, a palavra é empregada quando se fala, p. ex., de um "S. de perigo", em que S. é um signo convencional, um símbolo. SINCATEGOREMATICO (lat. Syncategore-maticum; in. Syncategorematic; fr. Syncaté-gorématique, ai. Synkategorematisch; it. Sin-categorematicó). Assim são chamadas, na gramática e na lógica medievais, as partes do discurso que não têm significação em si, mas só a adquirem em contato com as outras partes do discurso; exemplos são as conjunções, as preposições, os advérbios, etc. Prisciano (II, 15) diz: "Segundo os dialéticos, as partes do discurso são duas, o nome e o verbo, porque juntas, e só elas, constituem um discurso completo; chamam as outras de sincategoremata, ou seja, co-significantes". Essa distinção é retomada na lógica de Pedro Hispano (Summ. log., VII, 5, 11), em S. Tomás (In Perihermeneias), em Duns Scot (In Praedicamenta, 12) e em Ockham (Summa log., I, 4), que assim a expõe: "Alguns termos são categoremáticos, outros sincategoremãticos. (...) Estes últimos não têm significado completo e preciso, e não significam coisas diferentes das significadas pelos categoremata; assim como em aritmética o zero nada significa por si mesmo, mas acrescentado a outro algarismo adquire significado". Ockham aplicou essa distinção ao conceito de infinito e fez a distinção entre infinito catego-remático, que designa a quantidade do sujeito ao qual se aplica o predicado infinito, e o infinito S., que designa apenas de que maneira o sujeito se comporta com relação ao predicado. Nesse sentido, infinito é aquilo que podemos tornar tão grande quanto queiramos, mas que apesar disso continua finito (OCKHAM, In Sent., I. d. 17, q. 8): conceito que se tornaria fundamental na matemática moderna (v. INFINITO). Essa palavra também se encontra nos lógicos modernos. Stuart Mill (Logic, I., cap. II, § 2) emprega esse termo para indicar palavras que não podem ser usadas como nome mas como par- SBVCATETESE 903 SINGULAR2 tes de nome. Esse termo é usado em sentido análogo por Husserl {Logische Untersuchun-gen, II, § 4). Na lógica contemporânea, as partes S. da linguagem são chamadas mais freqüentemente de símbolos impróprios (porquanto não têm significação própria) e divididos em conectivos (v.) e operadores (v.). SINCATETESE. V. ASSENTIMENTO. SINCRETISMO (lat. Synkretismus; in. Syn-cretism; fr. Symcrétisme, ai. Synkretismus; it. Sincretismó). Termo introduzido na terminologia filosófica por Brucker para indicar uma "conciliação mal feita de doutrinas filosóficas completamente diferentes" {Historia critica philosophiae, MAA, IV, p. 750). Desde então, designa-se freqüentemente com essa palavra qualquer conciliação que se considere mal feita ou mesmo os pontos de vista que auspiciem uma conciliação indesejável. Esse termo também foi empregado na história das religiões, para indicar os fenômenos de sobreposição e fusão de crenças de origens diversas. Neste caso o termo também é usado com disposição polêmica, para designar sínteses mal feitas, não tendo, portanto, significado preciso. Mais arbitrário ainda é o significado com que é empregado por alguns escritores franceses, para indicar a visão geral e confusa de uma situação qualquer (cf. RENAN, Vavenir de Ia science, p. 301). SINCRÔNICO. V. DIACRÔNICO. SINDÓXICO (in. Syndoxic; fr. Syndoxique, it. Sindossicó). Termo empregado por J. M. Baldwin para indicar o conjunto de conhecimentos comuns que se formam nos indivíduos que têm as mesmas experiências, mas que nem por isso são necessariamente válidos ( Thought and Things, 1906, I, p. 146) (v. SINÔMICO). SEVECOLOGIA(al. Sinechologie). Teoria da continuidade no tempo e no espaço, que, segundo Herbart, é uma parte da metafísica, ao lado da metodologia, da ontologia e da idololo-gia {Kurze Enciclopãdie der Philosophie, 184, pp. 297 ss.). SINEQUISMO (in. Synechism, fr. Synéchis-me, it. Sinechismó). Termo empregado por Peirce para indicar o princípio de continuidade, que ele julga de primeira importância em todas as formas da realidade (cf. Chance, Love and Logic, II, 3; trad. it., pp. 44 ss.). SINERGIA (in. Synergy, fr. Synergie; ai. Synergie, it. Sinergia). Coordenação de diferentes faculdades ou forças, ou então ação combinada de diferentes fatores. Esse termo é freqüente na linguagem comum e científica, sendo empregado, p. ex., tanto para indicar a cooperação dos órgãos em um corpo vivo, quanto o fortalecimento recíproco da ação dos medicamentos. Às vezes, mas raramente, foi empregado como sinônimo de simpatia ou de cooperação inteligente (cf. RIBOT, Psychologie des sentiments, 1896, p. 229; FOUILLÉE, Morale des idées-forces, 1908, p. 352). SINERGISMO (in. Synergism; fr. Syner-gisme, ai. Synergismus, it. Sinergismó). Doutrina teológica segundo a qual a salvação do homem não depende apenas da ação de Deus, mas também da vontade humana, que colabora com ela para produzi-la. Essa doutrina foi sustentada por Melanchthon contra o monegismo de Lutero, que atribuía a salvação unicamente à ação de Deus (v. GRAÇA). SINGULAR1 (in. Singular, fr. Singulier, ai. Einzig, Singular, it. Singolaré). Termo ou uma proposição que denota um único objeto; em outras palavras, "forma (ou expressão) que contém uma única variável livre" (CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, 1956, § 02; cf. QUINE, Methods of Logic, § 34). SINGULAR2 (in. Single, fr. Singulier, ai. Ein-zeln; it. Singold). 1. Que é um indivíduo (v.). 2. O indivíduo considerado como valor metafísico, religioso, moral e político supremo. Neste sentido, é o tema preferido de algumas filosofias modernas e contemporâneas. Kierke-gaard, polemizando com Hegel, afirmava o valor existencial do S.: "A existência corresponde à realidade singular (o que já foi ensinado por Aristóteles): não é abarcada pelo conceito e, de qualquer modo, não coincide com ele". {Diário, X2 A, 328). O S. é superior ao universal, ao contrário do que julgava Hegel. "Nos gêneros animais sempre vale o princípio de que 'o indivíduo é inferior ao gênero'. O gênero humano, em que cada indivíduo é criado à imagem de Deus, tem essa característica, de o S. ser superior ao gênero" {Ibid., X2, A, 426). Em Kier-kegaard, essa exaltação do S. é acompanhada pela desvalorização da categoria "público", em que o S. desaparece; mas o público não é a comunidade na qual, ao contrário, o S. é reconhecido como tal {Ibid., X2, A, 390). O único (v.), de Stirner, e o super-homem (v.), de Nietzsche, são concepções análogas à que Kierkegaard indicou como singular. No mesmo sentido, Jaspers insiste no caráter excepcional do S. {Phil, II, p. 360). SÍNOLON 904 SINTAXE SÍNOLON (gr. tò avvokov, lat. Composi-turrí). Com este termo, que significa "uma coisa só", Aristóteles indicou o composto de matéria e forma, a substância concreta. "A substância é a forma imanente, da qual, juntamente com a matéria, deriva aquilo que se chama de S. ou substância: p. ex., a concavidade é a forma da qual, juntamente com o nariz, (matéria) deriva o nariz achatado" (Met., VII, 11, 1037 a 30). A tradução do termo é "composto" ou "concreto". SINÔMICO (in. Synnomio, fr. Synnomique, it. Sinnomicó). Termo empregado por G. M. Baldwin para indicar o conjunto de conhecimentos comuns que se formam nos indivíduos, quando esses conhecimentos são considerados "aptos ou apropriados a todos os processos lógicos como tais" (Thought and Things, 1906, II, p. 270). Sindóxico, ao contrário, é aquilo que é comum mas sem caráter de normatividade (v. SINDÓXICO). SINONÍMIA. (in. Synonimy, fr. Synonymie, ai. Synonimie, it. Sinonimid). A relação de S. é importante para os lógicos porquanto a utilizam para definir a noção de analiticidade(v.). Como o conceito de S. como "identidade de significado entre duas formas lingüísticas" não é suficiente, os lógicos costumam acrescentar alguma outra condição para definir a sinonímia. Lewis diz: "Duas expressões são sinônimas se e apenas se: 1 Q têm a mesma intensão e se essa intensão não é zero nem universal, ou 2e se sua intensão é zero ou universal, mas elas são analiticamente confrontáveis" {Analysis of Knowledge and Valuation, 1946, p. 86). Por "expressões que têm intensão zero ou universal", Lewis entende expressões como "ser", "entidade", "coisa", "qualquer coisa" ilbid., p. 87). Carnap, por sua vez, observou: "Se pedimos a tradução exata de dada asserção de uma língua para outra, p. ex. de uma hipótese científica ou de um testemunho em tribunal, costumamos esperar mais que a concordância das intensões dos enunciados. (...) Mesmo se restringirmos nossa atenção a significados designativos (cognitivos), a equivalência lógica dos enunciados não será suficiente; será preciso que pelo menos alguns dos desig-nadores constitutivos sejam logicamente equivalentes ou, em outras palavras, que as estruturas intensionais sejam semelhantes". A S. seria expressa, pois, por um "isomor-fismo intensional", cujas regras Carnap expõe {Meaning and Necessity, 1957, §§ 14, 15). Contudo, as exigências expressas por Lewis e Carnap para a definição de S. continuam no campo da intensionalidade das formas lingüísticas. É o que acontece também com a definição de Church (Introduction to Mathema-tical Logic, § 01). Quine demonstrou, nesse mesmo plano, como é difícil utilizar a S. para definir a analiticidade, pois "dizer que 'solteiro' e 'homem não casado' são sinônimos do ponto de vista cognitivo, significa dizer que é analítica a asserção 'todos os solteiros e só eles são homens não casados'". Portanto, segundo Quine, a S. pode ser definida como a possibilidade de substituição recíproca de dois termos, salva analyticitate, vale dizer, a possibilidade de, numa expressão, substituir dois termos um pelo outro sem que a expressão perca o caráter analítico (From a Logical Point of View, 1953, II, 3). SINÔNIMO (in. Synonym-, fr. Synonyme, ai. Synonym-, it. Sinônimo). Segundo a definição aristotélica (Cat., 1 a 6; 3b 7), diz-se que são S. as coisas que têm em comum o nome e a definição da essência, assim como o homem e o boi são chamados (e são) ambos animais. No uso moderno, porém, são chamados de S. os vocábulos (ou enunciados) diferentes na forma da expressão, mas de igual conteúdo semântico. Na lógica contemporânea são chamados de S. os enunciados que têm forma diferente mas o mesmo sentido (designando a mesma proposição): no entanto nem sempre é fácil distinguir sinonímia (semântica) de equivalência (sintática). SINOPSE (gr. aúvounç; in. Synopsis; fr. Synopsis; ai. Synopsis; it. Sinossi). Visão de conjunto. Platão emprega esse termo para indicar o primeiro momento do procedimento dialético, que consiste em reunir uma multiplicidade numa única idéia iRep., 537 e; Fed., 265 d). Esse termo também foi empregado por Kant na primeira edição da Crítica da Razão Pura, na expressão "a sinopse a priori da multiplicidade por meio do sentido" \Crít. R. Pura, § 14, ao final), que seria a apreensão da multiplicidade sensível nas formas da intuição (espaço e tempo), que ele distingue da síntese imaginativa e da síntese conceituai. SINTAXE (gr. ■cruvTctÇiç; lat. Syntaxis; in. Syntax, fr. Syntaxe, ai. Syntax, it. Sintassi). 1. Qualquer organização, combinação ou sis-tematizaçâo de partes. O estóico Crisipo define como "S. do todo" o destino que governa a ordem do mundo {Stoicorum fragmenta, II, p. 293). SEVTEUCO 905 SÍNTESE 2. Uma das dimensões do procedimento semiológico (v. SEMIOSE), que é a possibilidade de combinar signos com base em regras deter-mináveis. Neste sentido pode-se falar, p. ex., de "S. dos sons" ou "das cores", etc. 3. A ciência que estuda as formas gramaticais ou lógicas da linguagem, entendendo-se por formas as suas possibilidades de combinação. Mais particularmente, Carnap definiu a S. lógica das linguagens como "a teoria formal das formas lingüísticas, a declaração sistemática das regras formais que a regem, as linguagens e as conseqüências decorrentes dessas regras". Carnap acrescenta que "uma teoria, uma regra, uma definição, etc. deve ser chamada de formal quando não faz qualquer referência ao significado dos símbolos (p. ex., das palavras) ou ao sentido das expressões (p. ex., dos enunciados), mas unicamente às espécies e à ordem dos símbolos com que as expressões são construídas" (Logische Syntax der Sprache, 1934, § 1). Carnap identificou com a S. toda a lógica ou metodologia das ciências {Ibid., § 81), com base na consideração de que "para determinar se um enunciado é ou não conseqüência de outro, não é necessária qualquer referência ao significado dos enunciados"; portanto, "uma lógica especial do significado é supérflua; uma 'lógica não formal' é uma contradição nos termos. A lógica é S." {Ibid., § 71). Mais tarde, o próprio Carnap admitiu a divisão da análise da linguagem ou semiótica em pragmática, semântica e S., considerando o ponto de vista sintático como o procedimento que abstrai do fator semântico (Foundations of Logic and Mathematics, 1939, § 8). SINTEIICO (in. Syntelic; fr. Syntélique, it. Sintelicó). Termo empregado por G. M. Bald-win para designar os elementos práticos comuns a vários indivíduos, mas nem por isso necessariamente válidos: elementos que correspondem àquilo que é chamado de sin-dóxico no domínio do conhecimento ( Thought and Things, 1906, III 7980). SINTÉRESE (gr. <xuvnípr|cn.ç; lat. Synteresis; in. Synteresis; fr. Syntérèse, ai. Synteresis; it. Sinteresi). Diretriz da consciência moral do homem ou essa mesma consciência. Esse termo significa "conservação" e foi empregado pela primeira vez para indicar a conservação do critério do bem e do mal por parte de Adão, depois da expulsão do Paraíso. Nesse sentido, foi São Gerônimo o primeiro a usar a palavra, designando com ela "a centelha de consciência que não se extingue no peito de Adão depois de sua expulsão do Paraíso" {Comm. inEzech., em P. L., 25, col. 22). Reaparece em outros padres da igreja (Basílio, Gregório, o Grande) e nos Vittorini. Mas foi só em Bonaventura e em Alberto Magno que se transformou em faculdade natural de juízo moral, que guia o homem para o bem e cria nele o remorso pelo mal. São Boaventura considera a S. como a iluminação que Deus concede ao intelecto humano no domínio prático, correspondendo à iluminação que, no domínio teórico, o leva para a ciência. {In Sent., II, d. 39 a. 2, q. 1). Portanto a S. é "o ápice da mente", o último grau da ascensão a Deus, o que precede imediatamente o arrebatamento final {Itinerarium mentis in Deum, I, 6). Definição análoga aparece em Alberto Magno {S. Th., II, 16, q. 99). S. Tomás modificou seu conceito, transformando-o de noção mística em noção moral, vale dizer, deixando de considerá-lo como luz proveniente do alto, e considerando-o como hábito moral. Diz: "A S. não é um poder especial superior à razão ou à natureza, mas é o hábito natural dos princípios práticos, assim como o intelecto é o hábito dos princípios especulativos" {S. Th., I, q. 39, a. 12; De ver., q. 16, a. 1). Assim como o intelecto apreende os princípios últimos que servem de fundamento à ciência, a S. apreende os princípios que servem de fundamento à atividade prática. Esse conceito não foi alterado pelos escritores escolásticos posteriores (cf. p. ex., DUNS SCOT, Op. Ox., II, d. 39, q. 2, a. 4). Essa noção reaparece, mas raramente, em escritores posteriores: foi utilizada por Nicolau de Cusa, em seu significado místico {De visione Dei, ed. Bohnenstadt, pp. 150 ss.); foi empregada com o mesmo significado por B. Gracián: "É o trono da razão, a base da prudência, porque graças a ela custa pouco vencer. É presente do céu, o mais cobiçado. (...) Consiste na propensão inata a tudo o que mais se conforma à razão, sempre em conjunto com o que há de mais certo" {Oráculo manual, 1647, § 96). SÍNTESE (gr. aúvBeoiç; lat. Synthesis; in. Synthesis; fr. Synthèse, ai. Synthese, it. Sintesi). Este termo, além do significado comum de unificação, organização ou composição, tem os seguintes significados específicos: Ia método cognitivo oposto a análise; 2a atividade intelectual; 3Q unidade dialética dos opostos; 42 unificação dos resultados das ciências na filosofia. ls No primeiro significado, como um dos métodos fundamentais do conhecimento (em SÍNTESE 906 SBVTESE oposição a análise), a síntese pode ser considerada como o método que vai do simples ao composto, dos elementos às suas combinações, nos objetos cuja natureza se pretende explicar. A oposição dos dois métodos foi expressa pela primeira vez por Descartes (Rép. aux II objec-tíons; v. ANÁLISE); Leibniz assim a expressava: "Chega-se muitas vezes a belas verdades por meio da S., indo do simples ao composto, mas quando é preciso encontrar o meio de fazer aquilo que se propõe, a S. normalmente não basta (...) e cabe à análise dar-nos o fio condutor, quando isso é possível, porque há casos em que a natureza do problema exige que se proceda tateando, e nem sempre é possível cortar caminho" (Nouv. ess., IV. 2, 7). Segundo Kant, o método sintético é "progressivo", ao passo que o analítico é "regressivo", vai do objeto às condições que o possibilitam {Prol., § 5, nota). Segundo Kant, o procedimento da filosofia é analítico, enquanto o da matemática é sintético, mas neste caso os dois termos não têm nenhuma relação com a classificação dos juízos em analíticos e sintéticos. Em geral, assim como o procedimento analítico é caracterizado pela presença de dados (inerentes ao objeto ou à situação a ser resolvida) que o guiam e controlam, o procedimento sintético pode ser caracterizado pela ausência de tais dados e pela pretensão, inerente a ele, de produzir por si mesmo os elementos de suas construções (v. FILOSOFIA). 2- No segundo significado, o termo designa a união do sujeito e do predicado na proposição, portanto o ato ou a atividade intelectual que realiza tal união. Foi neste sentido que Aristóteles utilizou o termo, ao dizer que "onde está o verdadeiro e o falso está também certa S. de pensamento semelhante à S. que há nas coisas" (De an., III, 6, 430 a 27), e "o que cria essa unidade é o intelecto" (Ibid., 430b 5). Mas foi Kant quem mais utilizou o conceito de S., reduzindo a ela todas as espécies de atividade intelectual. Definiu a S. em geral como "o ato de unir diferentes representações e de compreender essa unidade num único conhecimento" (Crít. R. Pura, § 10), e distinguiu numerosas espécies de S. com base nos elementos que nela se encontram. Em primeiro lugar, fez a distinção entre S.pura, na qual a multiplicidade não é dada empiricamente, mas #príon(como a do espaço e do tempo), e a S. empírica, em que a multiplicidade é dada empiricamente. A S. pura é "o ato originário do conhecimento, o primeiro fato ao qual devemos dar atenção se quisermos descobrir a origem primeira de nosso conhecimento" (Ibid). Portanto, a S. pura precede qualquer análise, pois só se pode analisar o que já se deu unido num ato cog-noscitivo. A S. pura, que é possível a priori, pode ser distinguida da S. figurada (Synthesis speciosd) e da síntese intelectual (Synthesis in-tellectualis): ambas sào transcendentais porque constituem a possibilidade de qualquer conhecimento, mas enquanto a segunda unifica uma multiplicidade puramente pensada, a figurada é uma S. da multiplicidade da intuição sensível, ou melhor, é uma S. da imaginação entendida como "faculdade de determinar a priori a sensibilidade" (lbid., % 24). É nessa S. transcendental da imaginação que se baseia o cogito, ou apercepção originária (v.). Mas, como todo conhecimento é síntese e o conhecimento efetivo, segundo Kant, é a experiência, Kant chama a experiência de "síntese, segundo conceitos, do objeto dos fenômenos em geral" (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. 11, seç. II). Na primeira edição, Kant falara em três espécies de S.: Ia S. da apreensão na. intuição; 2a S. da reprodução na imaginação; 3a S. da recognição no conceito (Crít. R. Pura, Ia ed., An. transe, I Livro, cap. 2, seç. 2). Mas tanto na primeira quanto na segunda edição Kant reduziu qualquer espécie ou grau de atividade cognitiva a S. Esse foi um dos aspectos mais evidenciados e discutidos de sua obra. Enquanto a noção de S. mudava de natureza no idealismo (v. mais adiante), era retomada e adaptada por outros filósofos de maneiras diferentes. Galluppi inverteu o ponto de vista kantiano, pondo a análise antes da síntese. "AS. é a faculdade de reunir as percepções separadas pela análise. A análise é, pois, uma condição essencial para a síntese" (Saggio fil. sulla critica delia conos-cenza, 1831, II, § 146). Além disso, fez a distinção entre a S. ideal objetiva, que consiste em reconhecer as relações objetivas que existem entre as coisas, S. imaginativa civil, que consiste em reunir numa representação complexa, que não corresponde a nenhum objeto, diferentes representações, cada uma das quais tem um objeto, e S. imaginativa poética, que é uma espécie da precedente (Ibid., III, §§ 147-149). Por sua vez, Rosmini chamava S. primitiva a sua "percepção intelectiva" (Nuovo saggio, § 46; § 528, etc). Em geral, o conceito de S. continuou expressando em filosofia a atividade ordenadora, organizadora e sistematizadora do intelecto. Os neokantianos fizeram amplo SÍNTESE 907 SINTETICIDADE uso dessa noção. Para A. Riehl, em especial, a atividade sintética é a função fundamental da consciência e o a priori de todo o conhecimento (Der philosophische Kriticismus, II, 2, 188 7, p. 68). Outros neokantianos, como Cohen, preferiram o conceito de origem, e não de S. (Logik der reinem Erkenntnis, 1902, p. 36). Wundt introduziu esse conceito em psicologia e falou do "princípio da S. criativa", segundo o qual "não só as partes que compõem uma S. aperceptiva adquirem, ao lado do significado que tinham isoladamente, um novo significado, devido à sua conexão na representação total, como também essa representação é um novo conteúdo psíquico, que é possibilitado pelas partes componentes, mas não consiste nelas" (Grundriss der Psychologie, 1896, p. 394). Por outro lado, a filosofia fenomenológica evidenciou a função da S. na "constituição das objetividades de consciência". Husserl acredita que todo objeto de conhecimento em geral é uma "unidade sintética", uma S. de consciência (Ideen, I, § 86). Faz a distinção entre S. continuativas, do tipo, p. ex., que constitui a espacialidade, e as S. articuladas, que são os modos particulares, em que atos separados uns dos outros se conectam num único ato sintético de grau superior. São S. articuladas, p. ex., os atos de preferência ou as emoções simpáticas; além disso, há as S. coligantes, disjungentes (que visam a isto ou àquilo) e explicitantes, que determinam as formas da lógica e da ontologia formal (Ideen, I, § 118). 32 A noção de S. como unidade dos contrários nasceu com o conceito correlato de dialética (v.) e foi exposta pela primeira vez por Fichte, que diz: "O ato pelo qual se busca, nas comparações, a característica graças à qual as coisas comparadas são opostas entre si chama-se procedimento antitético (chamado ordinariamente analítico). (...) O procedimento sintético, ao contrário, consiste em buscar nos opostos a característica graças à qual eles são idênticos" (Wissenschaftslehre, 1794, § 3-D, 3). A lei dessa identidade é que "nenhuma antítese é possível sem uma S. porque a antítese consiste precisamente em buscar nos iguais a característica oposta, mas os iguais não seriam iguais se antes não tivessem sido postos como iguais por um ato sintético" (Ibid., § 3, D, 3). Schelling falava de um "processo que vai da tese à antítese e depois à síntese", em virtude do qual o eu afirma o objeto, opõe-se a ele e finalmente volta a compreendê-lo em si mesmo (System des transzendentalen Idealismus, 1800, III, cap. I; trad. it., pp. 58 ss.). Hegel, no entanto, preferiu os termos "identidade" ou "unidade", mesmo lamentando que a palavra unidade indicasse, bem mais que "identidade" uma "reflexão subjetiva". A unidade ou a identidade que fecha uma tríade dialética é uma conexão objetiva; segundo Hegel, seria melhor chamá-la de "inseparabilidade" se, desse nome, não fosse excluída a natureza positiva da S. (Wissenschaft der Logik, I, livro I, seç. I, cap. I, e, nota 2; trad. it., p. 85). Na linguagem filosófica francesa e italiana, a palavra S. foi preferida a "identidade" ou "unidade" para indicar o momento resolutivo do procedimento dialético, que é realmente o momento produtivo e criativo. O. Hamelin falou em método sintético, que consistiria em "mostrar a conexão necessária entre noções opostas"; sua mola seria a correlação, graças à qual os opostos remetem um ao outro e colaboram entre si (Essai sur les éléments principaux de Ia représentation, 1907, p. 20). Os idealistas italianos (Croce e Gentile) empregaram a expressão S. apriorino sentido de atividade produtiva ou criadora. Com ela Gentile entendeu auto-síntese, que seria "posicionar-se na sua própria identidade e diferença", que é a autocriação (Sistema di lógica, II, 3a ed., 1942, p. 83, cf. I, 2a ed., 1922, p. 27). Croce falou da S. a priori como atividade criadora do espírito: "A S. a priori pertence a todas as formas do Espírito porque o Espírito, considerado genericamente, nada mais é que S. a priori; e esta se explicita na atividade estética e na prática, bem como na atividade lógica" (Lógica, 4-ed., 1920, p. 141). Para ele, a S. a priori era a identidade entre filosofia e história, pois ela "contém em si a historidade que seu descobridor [Kant] omitia ou desconhecia" (Ibid., p. 369). 4a Finalmente, entendeu-se por S. a unificação dos resultados finais das ciências específicas no seio da filosofia primeira, segundo o conceito positivista de filosofia (v.). Tal S. foi chamada de subjetiva por Comte, que a considerava imprescindível em vista das necessidades naturais do homem (S. subjetiva ou sistema universal das concepções próprias do estado normal da humanidade, 1856, I). Pelo mesmo motivo, Spencer chamou o conjunto de sua obra de "Sistema de filosofia sintética"; o primeiro volume é constituído pelos Primeiros princípios (1862). SINTETICIDADE (in. Syntheticity). Validade das proposições que depende dos fatos. SINTETISMO 908 SISTEMA Pelo menos este é o significado que hoje se costuma atribuir ao adjetivo sintético quando se refere a proposições ou enunciados. Kant, a quem se deve a introdução dos termos analítico e sintético, empregou-os para distinguir os juízos explicativos e os juízos extensivos. Os primeiros nada acrescentam, por meio do predicado, ao conceito do sujeito, mas limitam-se a dividir por meio da análise o conceito em seus conceitos parciais, que nele já eram pensados, ainda que confusamente; os segundos, pelo contrário, acrescentam ao conceito do sujeito um predicado que não estava contido nele nem podia ser dele deduzido por análise" (Crít. R. Pura, Intr., § IV). Mas, segundo Kant, os juízos sintéticos são não apenas os que se referem a coisas de fato, mas também os da matemática e da física pura, porquanto baseados na intuição a priori do espaço e do tempo e nas categorias, sendo por isso chamados de "juízos sintéticos a priori". Na filosofia contemporânea, porém, a S. como caráter das expressões foi entendida no sentido das "proposições de fato" de Hume ou das "verdades de fato" de Leibniz (v. EXPERIÊNCIA; FATO), OU seja, como proposições que se referem a situações ou estados de coisas e que podem ser verdadeiras ou falsas em relação a elas. Carnap diz: "Um enunciado sintético é verdadeiro às vezes — quando existem certos fatos — e às vezes falso; portanto, ele diz algo sobre quais os fatos que existem. Os sintéticos são os enunciados autênticos acerca da realidade" (Logische Syntax der Sprache, § 14). Todavia, os lógicos muitas vezes preferem definir negativamente os enunciados sintéticos, como enunciados que não são analíticos nem contraditórios: é o que fazem, p. ex., Lewis (Analysis of Knowledge and Valua-tion, 1946, p. 35) e Reichenbach (Theory of Probability, 1949, p. 20). Assim como as proposições analíticas (v. ANALITICIDADE) são chamadas de "verdades necessárias" porque sua negação é impossível, também as proposições sintéticas são chamadas freqüentemente de contingentes, no sentido de não serem nem necessárias nem impossíveis (cf. CARNAP, Meaning and Necessity, § 39). SINTETISMO (ai. Synthetismus). Esse nome, que se baseia na unidade de ser e saber, foi dado à sua filosofia por um certo "Senhor Krug", que desafiou Hegel a deduzir nem que fosse a pena com que escrevia, ao que Hegel respondeu que isso não seria impossível, quando a ciência tivesse progredido suficientemente, e nada houvesse de melhor a fazer (cf. W. T. KRUG, Fundamentalphilosophie, 1818; HEGEL, Ene, § 250, nota). Rosmini chamou de S. a união do princípio senciente com o corpo, sentido no ser animado, e em geral a união de elementos diferentes, um dos quais espiritual e o outro material, em todos os aspectos da realidade. Neste sentido, ele disse que o S. "é lei e chave da natureza de todas as coisas do universo" (.Antropologia, § 325; Psicologia, I, §§ 34 ss.). SINTOMA. V. INCONSCIENTE; PSICANÁLISE. SISTEMA (gr. aúcrrnLia; in. System, fr. Sys-tème, ai. System; it. Sistema). 1. Uma totalidade dedutiva de discurso. Essa palavra, desconhecida neste sentido no período clássico, foi empregada por Sexto Empírico para indicar o conjunto formado por premissas e conclusão ou o conjunto de premissas (Pirr. hyp., II, 173), e passou a ser usada em filosofia para indicar principalmente um discurso organizado dedutivamente, ou seja, um discurso que constitui um todo cujas partes derivam umas das outras. Leibniz chamava de S. o repertório de conhecimentos que não se limitasse a ser um simples inventário, mas que contivesse suas razões ou provas e descrevesse o ideal sistemático da seguinte maneira: "A ordem científica perfeita é aquela em que as proposições são situadas segundo suas demonstrações mais simples e de maneira que nasçam umas das outras" (Me-thode de Ia certitude, Op., ed. Erdmann, pp. 174-75). Wolff, por sua vez, dizia: "Chama-se de S. um conjunto de verdades ligadas entre si e com seus princípios" (Log., § 889). A noção de S. moldava-se assim na de procedimento matemático. Kant subordinou-a a outra condição: a unidade do princípio, que fundamenta o sistema, pois ele entendeu por S. "a unidade de múltiplos conhecimentos, reunidos sob uma única idéia"; afirmou que o S. é um todo organizado finalisticamente, sendo portanto uma articulação (articulatió), e não um amontoado (coacervatió); pode crescer de dentro para fora (per intussusceptionem), mas não de fora para dentro (per appositionem), sendo, pois, semelhante a um corpo animal, cujo crescimento não acrescenta nenhum membro, mas, sem alterar a proporção do conjunto, torna cada um dos membros mais forte e mais apto a seu objetivo (Crít. R. Pura, Doutr. do método, cap. III). Com base nisso, Kant fala de "unidade sistemática do conhecimento, da qual as idéias da razão pura tentam aproximar-se" (Ibid., SISTEMA 909 SISTEMA Dialética, cap. II, seç. I). A unidade do S., ou seja, sua possibilidade de derivar de um único princípio, é a característica que determinou o sucesso dessa noção na literatura filosófica romântica. Constitui o ideal da teoria da ciência de Fichte: "Se não deve haver somente um ou vários fragmentos de S., nem mesmo vários S., mas um S. único e perfeito do espírito humano, então deverá haver um princípio fundamental absolutamente primeiro e supremo. E embora, a partir dele, nosso saber se expanda por si em tantas séries, das quais procedem outras séries e assim por diante, todas essas séries devem unir-se num só elo, que não está preso a nada, mas se mantém e a todo o sistema por sua própria força" (Über den Begriff der Wissenschaftslehre, 1794, § 2; trad. it., p. 19). Na filosofia romântica é lugar-comum considerar o S. como forma da ciência, que supõe um princípio único e absoluto. A origem disso é o ideal matemático, no qual Leibniz, Wolff e o próprio Kant se haviam inspirado; mas esse ideal acaba por voltar-se contra a própria matemática e sendo reivindicado exclusivamente para a filosofia. Shelling dizia: "Admitese em geral que à filosofia convém uma forma especificamente sua, que se chama de sistemática. Pressupor tal forma não deduzida cabe a outras ciências, que já pressupõem a ciência da ciência, mas não a esta, que se propõe como objeto a possibilidade de semelhante ciência" (System des transzendentalen Idealismus, 1800, I, cap. I; trad. it., p. 27). Hegel só fez sancionar o mesmo ponto de vista: "A ciência do Absoluto é essencialmente S., porque o verdadeiro, como concreto, é tal apenas na medida em que se desenvolve em si, se reúne e mantém em unidade, vale dizer, como totalidade, pois só pela diferenciação e pela determinação de suas diferenças são possíveis a necessidade destas e a liberdade do todo" (Ene, § 14). Hegel acrescenta que "um filosofar sem sistema não pode ser nada científico" porque expressa um modo de sentir subjetivo; e em oposição às doutrinas românticas irracionalistas ou fideístas ele impõe a exigência sistemática. Essa mesma exigência manteve-se e foi valorizada nas filosofias idealistas. Croce dizia: "Pensar determinado conceito puro significa pensá-lo em sua relação de unidade e distinção com os outros todos; assim, o que se pensa nunca é realmente um conceito único, mas um S. de conceitos, o Conceito" (Lógica, 4a ed., 1920, p. 172). O ideal de S. como organismo dedutivo baseado num único princípio continuou sendo patrimônio da filosofia, que o cultivou mesmo quando — a exemplo de Kant — declarou que esse ideal era inatingível pelo conhecimento humano. Contudo, esse termo foi e é empregado também sem relação com este significado, para indicar qualquer organismo dedutivo, mesmo que não tenha um princípio único como fundamento. É o caso dos S. de que hoje se fala em matemática e lógica. Os S. hipotéti-co-dedutivos, abstratos, axiomáticos, etc. não são S. por terem um princípio único; aliás, os seus princípios, que são os axiomas, devem ser independentes entre si, não devem poder ser deduzidos um do outro (v. AXIOMA, AMOMATIZAÇÃO). São chamados de S. unicamente por seu caráter dedutivo, e no mesmo sentido fala-se de S. numérico e, às vezes, de "S. de axiomas" para indicar um simples conjunto não contraditório de proposições primitivas (cf. M. R. COHEN E. NAGEL, "The Nature of a Logical or Mathematical System", em Readings in the Philosophy of Science, 1953, pp. 129 ss.). Isso significa que o uso dessa palavra perdeu o significado forte ou elogioso de discurso dedutivo. 2. Qualquer totalidade ou todo organizado. Neste sentido, fala-se em "S. solar", "S. nervoso", etc, e também de "classificação sistemática" ou, mais simplesmente, de S. em lugar de classificação, como fez Lineu, quando quis insistir no caráter ordenado e completo de sua classificação (Systema naturae, 1735). Desse ponto de vista, às vezes se faz a distinção entre o S. como conjunto contínuo de partes que têm inter-relações diversas e a estrutura (v.) ou a organização que os componentes dele podem assumir em determinado momento (W. BUCKLEY, Sociology and Modem System Theory, 1967, p. 5). 3. Qualquer teoria científica ou filosófica, especialmente quando se quer ressaltar seu caráter escassamente empírico. No séc. XVIII falava-se de "S. do mundo" para indicar as teorias cosmológicas (cf., p. ex., D'ALEMBERT, (Euvres, ed. Condorcet, pp. 165 ss.). Leibniz chamava de S. suas teorias sobre a relação entre a alma e o corpo ou entre as diferentes substâncias (Système nouveau de Ia nature et de Ia com-munication dessubstances, 1695). Baumgarten chamava de S. psicológicos as "opiniões que parecem aptas a explicar a relação entre alma e corpo" (Mel, § 76l); no mesmo sentido, mas de SISTEMA LOGÍSTICO 910 SITUAÇÃO maneira depreciativa, os iluministas falavam de S. e de espírito sistemático. Diderot dizia: "Chamo de espírito sistemático o costume de traçar planos e criar sistemas do universo, para depois pretender adaptar-lhes os fenômenos, pela razão ou pela força" (Giuvres, p. 291). D'Alembert falava igualmente de S. como "sonhos dos filósofos" (cf. p. ex., CEuvres, ed. Condorcet, p. 234). Hegel queixava-se desse uso dos filósofos franceses, para os quais, segundo ele, S. coincidia com unilateralidade ou o dogmatismo (Geschichte der Pbilosopbie, I, cap. III, seç. I, B, 4; trad. it., II, p. 293; I, cap. III, seç. III, E; trad. it., III, 1, p. 29). Esse uso manteve-se na França mesmo no séc. XIX (cf. E. BERNARD, Introduction à Ia medicine expéri-mentale, 1865, I, II, § 6). SISTEMA LOGÍSTICO (in. Logistic system, fr. Système logistique, ai. Logistiches System; it. Sistema logístico). Cálculo lógico ao qual não se dá nenhuma interpretação. Para constituir um S. logístico são suficientes: l2 um vocabulário de símbolos primitivos; 2° as regras de formação que determinam quais as combinações de símbolos primitivos são permitidas e quais não são; 3° regras de inferência, ou seja, de transformação das expressões compostas que dão origem a outras; 4S algumas proposições primitivas ou axio-mas. Distingue-se do S. logístico a linguagem formal, pois a esta última é dada certa interpretação. Para passar do S. logístico à linguagem formal são, pois, necessárias algumas regras semânticas que atribuam um significado às fórmulas do sistema. Pode-se dizer também que a diferença entre S. logístico e linguagem formal é que o primeiro tem somente regras sintáticas e a segunda tem também regras semânticas {d., sobre isso, A. CHURCH, "The Need for Abstract Entities in Semantic Analysis", em Proceedings ofthe American Academy ofArts and Sciences, 1951, pp. 100 ss.; Introduction to Mathematical Logic, 1956) (v. CÁLCULO, FORMALIZAÇÃO). SISTEMÁTICA (in. Systematics; fr. Systéma-tique, ai. Systematik, it. Sistemática). Técnica, caminho ou meio de realizar o sistema. Essa noção deriva do princípio kantiano de que o sistema é o ideal regulador da investigação filosófica, e não sua realidade. "No entanto — diz Kant — o método pode sempre ser sistemático. Pois nossa razão (subjetivamente) é por si mesma um sistema, mas em seu uso puro, por simples conceitos, é apenas um sistema de investigação, segundo princípios, da unidade à qual a experiência só pode fornecer a matéria" (Crít. R. Pura, Doutr. do mét, cap. I, seç. I). Essa noção firmou-se principalmente no criticismo alemão. Natorp falava de "S. filosófica" no sentido de investigação destinada a conferir ao saber filosófico a unidade própria do sistema {Philosophische Systematik, § 1). SISTEMÁTICO (in. Systematic; fr. Systéma-tique, ai. Systematisch; it. Sistemático). 1. Que constitui sistema ou pertence a um sistema, em qualquer dos sentidos dessa palavra. É neste sentido que se diz "saber S." ou "erro S." 2. Que tende para o sistema, mas não é um sistema: com referência a sistemática. Neste sentido, N. Hartmann distinguia na história da filosofia o pensamento-sistema, voltado para a construção do sistema, e o pen-samentoproblema, que se mantém na indagação aberta (Systematische Pbilosopbie, 1931, § D- Além disso, segundo ele, "já ficou para tráso tempo das visões S., e a filosofia S. acabou no terreno despretensioso mas sólido da indagação problemática" {Derphilosophische Gedanke und seine Geschichte, III, 4; cf. Zur Grundlegung der Ontologie-, 1935, p. 31). SITUAÇÃO (in. Situation; fr. Situation-, ai. Situation; it. Situazione). A relação do homem com o mundo, na medida em que limita, condiciona e, ao mesmo tempo, fundamenta e determina as possibilidades humanas como tais. Esse termo foi introduzido por Jaspers, que assim o explicava: "A situação externa, apesar de tão mutável e diferente, segundo o homem ao qual se aplica, tem a seguinte característica típica: para todos tem duas faces, incita e obsta, inevitavelmente limita e destrói, é ambígua e insegura" (Psychologie der Weltans-chauungen, 1925, cap. III, § 2; trad. it., p. 268). Jaspers falava também de situações-limite que possuem em grau elevado as características próprias de qualquer S. do homem no mundo. Tais são as situações imutáveis, definitivas, incompreensíveis, nas quais o homem se acha como se estivesse diante de um muro contra o qual se choca sem esperança. São elas: estar sempre em determinada situação; não poder viver sem luta e sem dor; a necessidade de assumir culpas; ter a morte como destino {Phil, II, p. 209). Nessas situações Jaspers via a cifra (v.) (revelação negativa) da existência. SITVERUM 911 SOBERBA Heidegger notou que esse termo também tem significado espacial, mas designa sobretudo a determinação pela qual a existência, como ser no mundo, decide acerca de seu próprio lugar (Sein und Zeit, § 60). A existência impessoal acha-se diante de "S. gerais" e perde-se nas oportunidades mais próximas. A conclamação da consciência leva o homem à presença de sua situação própria e à exigência de uma decisão autêntica (Ibid., § 60). Em sentido semelhante se disse.- "A necessidade da relação entre a finitude do ente e a determinação constitutiva do mundo e do outro ente é a S. existencial do ente. (...) O constituir-se do ente na S. que o individualiza na sua finitude é o acontecer do ente, sua historicidade fundamental (ABBAGNANO, Estrutura da existência, 1939, §70). E Sartredisse: "Se oparasi[a consciência do homem] nada mais é que sua situação, decorre que o ser em S. define a realidade humana, dando conta ao mesmo tempo de seu estar aí e de seu estar além. Com efeito, a realidade humana é o ser que está sempre além de seu ser-aí. E a S. é a totalidade organizada do ser-aí, interpretado e vivido por e para o ser, além deste mesmo ser" (Vêtre et le néant, 1943, p. 634). Em sentido psicológico, mais precisamente gestáltico (v. PSICOLOGIA), esse termo foi utilizado por Dewey, que identificou a S. com o campo {Logic, 1939, I, cap. IV; trad. it., pp. 111 ss.). Mas o próprio Dewey insistiu no caráter objetivo da S. (Ibid., cap. IV, § 1) trad. it., 159 ss.). SIT VERUM. Uma das obrigações (v.) da lógica terminista medieval. Consiste em responder a uma proposição como quem sabe que ela é falsa, ou como quem sabe que ela é verdadeira, ou como quem dela duvida (cf. OCKHAM, Summa log, III, III, 44). SOBERANIA (in. Sovereignty, fr. Souverai-neté, ai. Souverãnitát; it. Sovranitã). Poder preponderante ou supremo do Estado, considerado pela primeira vez como caráter fundamental do Estado por Jean Bodin, em Six livres de Ia republique(1516). Segundo Bodin, a S. consiste negativamente em estar liberado ou dispensado das leis e dos usos do Estado; positivamente, consiste no poder de abolir ou criar leis. O único limite da S. é a lei natural e divina (Six livres de Ia republique, 9a ed., 1576,1, pp. 131-32). O termo e o conceito foram aceitos por Hegel: "As duas determinações, de os negócios e os poderes particulares do Estado não serem autônomos e estáveis nem em si mesmos, nem na vontade pessoal dos indivíduos, mas de terem raízes profundas na unidade do Estado — que outra coisa não é senão a identidade deles — constituem a S. do Estado" (Fil. do dir., § 278). Hegel esclarece esta noção dizendo.- "O idealismo que constitui a S. é a mesma determinação segundo a qual, no organismo animal, as chamadas partes deste não são partes, mas membros, momentos orgânicos cujo isolamento ou existência por si é enfermidade" (Ibid., § 278). Essas determinações de Hegel são dirigidas contra o princípio afirmado pela Revolução Francesa, de que a S. está no povo. Rous-seau qualificara de soberano o corpo político que nasce com o contrato social (Contraí social, I, 7) e assim definira o seu poder: "O corpo político ou soberano, cujo ser deriva tão-somente da santidade do contrato, nunca pode obrigar-se, nem mesmo em relação a outros, a nada que derrogue aquele ato primitivo, que seria a alienação de alguma parte de si mesmo ou a sua submissão a outro soberano. Violar o ato graças ao qual existe significaria anular-se; e o que nada é nada produz " (Ibid., I, 7). Portanto, o princípio da S. é ser o poder mais alto em certo território: isso não significa poder absoluto ou arbitrário. Para a moderna teoria do direito, a S. pertence à ordenação jurídica (v. ESTADO), sendo entendida como a característica em virtude da qual "acima da ordenação jurídi-co-estatal não existe outra" (H. KELSEN, General Theory ofLaw and State, 1945; trad. it., p. 390). Segundo Kelsen, se admitirmos a hipótese da prioridade do direito internacional, o Estado pode ser considerado soberano apenas em sentido relativo-, se admitirmos a hipótese da prioridade do direito estatal, pode ser chamado de soberano no sentido absoluto e originário da palavra. A escolha entre as duas hipóteses é arbitrária (Ibid., p. 39DSOBERBA (gr. xawóxnç; lat. Superbia; in. Pride, fr. Orgueil; ai. Hochmuth; it. Superbia). Vício correspondente à virtude da magnanimidade (v.) e que tem como extremo oposto a pusilanimidade, na ética de Aristóteles. Segundo ele, "os soberbos são insensatos porque se enganam sobre si mesmos: empreendem tarefas honradas acreditando serem dignos delas, mas com isso só demonstram sua própria insuficiência" (Et. nic, IV, 3, 1125 a 27). Essa definição tornou-se tradicional e foi repetida muitas vezes. Spinoza dizia: "A S. é uma alegria cuja SOBRENATURAL 912 SOCIEDADE origem está em o homem sentir-se mais do que é" {Ibid., III, 26, scol.). SOBRENATURAL (in. Supernatural; fr. Sur-naturel; ai. Übernatürlich; it. Soprannaturalé). O que acontece na natureza, mas não decorre das forças ou dos procedimentos da natureza e não pode ser explicado com base neles. É um conceito próprio da teologia cristã, que atribui à fé a crença no S. assim entendido (cf. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 99, a. 1). SOBRENATURALISMO (in. Supranatura-lism; fr. Surnaturalisme, ai. Supranaturalis-mus; it. Soprannaturalismó).1. Em geral, a crença no sobrenatural. De modo mais específico, Kant chamou de S. "a doutrina que julga necessária para a religião em geral a fé na revelação sobrenatural" (Religion, IV, 1; trad. it., Durante, p. 169). 2. Corrente filosófica que defende a tradição católica; difundiu-se na Itália e na França entre o fim do séc. XVIII e o início do XIX e conta com os nomes de De Bonald, De Maistre, Ros-mini, Lamenais, Gioberti. Seus partidários foram também chamados de teocráticos ou ultra-mundanistas (v. TRADICIONALISMO). SOBREVIVÊNCIA. V. IMORTALIDADE. SOCIAL (in. Social; fr. Social; ai. Sozial; it. Socialé). Que pertence à sociedade ou tem em vista suas estruturas ou condições. Neste sentido, fala-se em "ação S.", "movimento S.", "questão S.", etc. 2. Que diz respeito à análise ou ao estudo da sociedade. Neste sentido, fala-se em "economia S.", "psicologia S.", etc. Em especial, a expressão ciências S. designa o conjunto das disciplinas sociológicas, jurídicas, econômicas e às vezes também a ética e a pedagogia. SOCIALIDADE (in. Sociality, fr. Socialité, ai. Geselligkeit; it. Socialitã). O mesmo que sociedade no primeiro sentido. G. H. Mead entendeu a S. em sentido mais vasto, atribuindo-a ao universo inteiro. "O caráter social do universo consiste na situação de o novo acontecimento estar ao mesmo tempo na velha ordem e na ordem nova, cujo prenuncio é sua realização. S. é a capacidade de ser várias coisas a um só tempo" (ThePhilosophyofthePresent, 1932, p. 49). SOCIALISMO (in. Socialism; fr. Socialistne, ai. Sozialismus, it. Socialismo). Este termo, que se difundiu na Inglaterra (em oposição a individualismo) nas primeiras décadas do séc. XIX, tem duas significações principais: ls Uma significação mais ampla, designando, em geral, qualquer doutrina que defenda ou preconize a reorganização da sociedade em bases coletivistas. Nesse sentido, são S. o de Platão e o de Marx, o de Owen e o de Proudhon, o de Lênin e o de Stálin. Refere-se a esse significado a distinção feita por Marx e Engels entre S. utópico, para o qual a sociedade socialista é um ideal que não leva em conta as vias ou os modos de realizála, e o S. científico, que, sem apresentar qualquer ideal, prevê o advento inevitável da sociedade socialista com base nas próprias leis que determinam o desenvolvimento da sociedade capitalista (cf. sobre esta distinção, especialmente: ENGELS, Antidühring, 1878, introdução e cap. I da III parte). Neste sentido, o termo é muito vago e indica qualquer aspiração, ideal, tendência ou doutrina que tenha em vista alguma transformação da sociedade atual em sentido coletivista. 2S Em sentido mais restrito, entendem-se por S. as correntes coletivistas que se distinguem do comunismo (v.) e se opõem a ele, enquanto: a) excluem a necessidade da ditadura do proletariado; b) excluem que tal ditadura possa ser exercida, em nome do proletariado, por qualquer partido político; c) excluem a diferença radical, que se observa nos países de regime comunista, entre a qualidade de vida da elite dirigente e a da maioria dos cidadãos; d) excluem a subordinação da vida cultural às exigências do partido, à vontade de seus dirigentes; é) exigem respeito às regras do método democrático. A distinção das formas históricas que o S. assumiu diz respeito à política mais que à filosofia, não pertencendo, portanto, à sua alçada. SOCIEDADE (lat. Societas; in. Society, fr. Société, ai. Gesellschaft; it. Società). No sentido geral e fundamental: l9 campo de relações intersubjetivas, ou seja, das relações humanas de comunicação, portanto também: 2° a totalidade dos indivíduos entre os quais ocorrem essas relações; 3Q um grupo de indivíduos entre os quais essas relações ocorrem em alguma forma condicionada ou determinada. Ia O primeiro significado, como se disse, é o fundamental; foi introduzido na cultura ocidental pelos escritores latinos — especialmente por Cícero — que o hauriram no estoicismo. Nos escritores clássicos da Grécia, os aspectos estatal e social encontram-se fundidos e não se distinguem do conceito de polis; graças ao cosmopolitismo dos estóicos, foram dissociados e, portanto, a S. passou a ser considerada SOCIEDADE 913 SOCIEDADE independente do estado, da organização política. Foi expondo a doutrina dos estóicos que Cícero disse: "Nascemos para a agregação dos homens e para a S. e a comunidade do gênero humano" {De finibus, IV, 2, 4). Esse conceito de S. é retomado pelo jusnaturalismo moderno, no qual é acompanhado pelo conceito de direito natural (o que já acontecia nos estóicos). O direito natural, aliás, é empregado pelos jusnaturalistas para delimitar o campo da sociedade. Huig van Groot (Grócio), p. ex., diz que "a conservação da S., em conformidade com a inteligência humana, é fonte do direito propriamente dito" {Dejurebellisacpacis, 1625, Proleg., § 8). Analogamente, para Hobbes, a S. era uma associação decorrente das necessidades humanas e do temor, vale dizer, constituída em última análise por relações humanas de utilidade recíproca {De eive, 1642,12). Pufendorf fundamentava a lei natural com o princípio seguinte: "Cada um, no que depender de si, deve promover e manter para com seus semelhantes um estado de sociabilidade pacífica, condizente em geral com a índole e as finalidades do gênero humano", e explicava que se devia entender por sociabilidade "a disposição do homem para com o homem, graças à qual um se considera vinculado ao outro pela benevolência, pela paz e pela caridade" {De jure naturae, 1672, II, 3). Também é possível encontrar uma definição indireta da S. nos textos que insistem na tendência natural do homem para a sociabilidade, como os que aparecem freqüentemente nas obras de Kant. "O homem tem inclinação a associar-se porque no estado de S. sente-se mais homem, vale dizer, sente que pode desenvolver melhor suas disposições naturais. Mas também tem forte tendência a dissociar-se (isolar-se) porque tem em si também a qualidade anti-social de querer voltar tudo para seu próprio interesse, em virtude do que deve esperar resistência de todos os lados e, por sua vez, sabe que terá de resistir aos outros" {Idee zu einer allgemeinen Ges-chichte in weltbürgerlicher Absicht, 1784, IV; trad. it., p. 127; Met. derSitten, II, § 47; Crít. do Juízo, § 41). Fichte expressava esse mesmo conceito ao dizer: "Chamo de S. a relação recíproca entre seres racionais" {Die Bestimmung des Gelehrten, 1794, II). Desse ponto de vista, a análise da S. pode ter como objetivo: a) Os fins que a totalidade do gênero humano deve ter em vista e dos meios que a razão indica para a consecução de tais fins. As teorias políticas dos autores gregos, p. ex., de Platão e de Aristóteles, e as teorias jusnaturalistas analisam a S. nesse sentido. b) As condições que, de fato, possibilitam as relações humanas. Essas condições foram definidas de várias maneiras, e sua definição pode ser considerada a primeira tarefa da sociologia (v.). Max Weber identificou-as na atividade social, que se realiza segundo uma ordem deliberada e relativamente constante {Über einige Kategorien der verstehenden Soziologie, 1913, V; trad. it., in // método delle scienze storico-sociali, pp. 262 ss.). Durkheim considerou característicos da S. humana os modos de agir que são impostos de fora e se consolidam nas instituições {Règles de Ia méthode sociologique, 1895, cap. I). E a própria ação, ou comportamento, às vezes é considerada elemento objetivo que define o campo das relações humanas (cf. TALCOTT PARSONS, The Structure of Social Action, 1949; 2a ed., 1957). Este segundo modo de entender a S. atribui-lhe explícita ou implicitamente o caráter de "campo" e a reduz portanto a uma construeto conceituai, isentando-a do caráter de totalidade real e do caráter de ideal normativo. 2° O conceito de S. como totalidade de indivíduos entre os quais há relações intersubje-tivas, ou seja, como "mundo social", em geral está ligado ao conceito de S. como organismo ou "superorganismo". Os antigos já haviam comparado a comunidade política, o Estado, a um organismo. Os estóicos compararam toda a S. — como comunidade de seres racionais — a um organismo (cf. MARCO AURÉLIO, Memórias, VII, 13); esse paralelo continua na Idade Moderna. Comte chama a sociedade de "organismo coletivo" {Cours de phil. positive, IV, pp. 442 ss.). Por sua vez, Spencer chama de superorgânica a evolução que conduz à S. e considera a própria S. como um organismo cujos elementos são, em primeiro lugar, as famílias e depois os indivíduos isolados. Segundo Spencer, o organismo social difere do organismo animal porque a consciência pertence apenas aos elementos que o compõem, pois a S. não tem órgãos de sentido como os animais, mas vive e sente apenas através dos indivíduos que a compõem {TheStudy ofSociology, 1873); Wundt expressou-se no mesmo sentido {System der Philosophie, 2a ed., 1897, pp. 616 ss.). A hipótese organicista continua por trás de muitas teorias políticas e sociológicas modernas. Pode ser considerada uma variante dessa mesma SOCIEDADE 914 SOCIOLOGIA concepção a doutrina de Hegel, para quem a "S. civil" é uma fase imperfeita ou preparatória do Estado, que é a Idéia Divina realizada na terra: "A substância que, enquanto espírito, se particulariza abstratamente em muitas pessoas (a família é uma só pessoa), em famílias ou em indivíduos, que por si estão em liberdade, são independentes e particulares, e perde seu caráter ético; isso porque essas pessoas, enquanto tais, não têm na consciência e como objetivo a unidade absoluta, mas sua própria particularidade e seu ser por si: daí nasce o sistema da atomística". Este sistema é precisamente a sociedade civil como "conexão universal e mediadora de extremos independentes e de seus interesses particulares" ou como "Estado exterior" {Ene, § 523; Fil. do dir., § 184). Neste sentido, segundo Hegel, a S. civil compreende, em primeiro lugar, o sistema das necessidades; em segundo lugar, a administração da justiça; em terceiro lugar, a polícia e a corporação, ou seja, os órgãos que detêm a tutela dos interesses particulares {Fil. do dir., § 188). O próprio Marx manteve inalterado este conceito da S. civil, mas inverteu sua relação com o Estado e adotou-o como princípio de explicação do próprio Estado e, em geral, de todo o mundo ideológico: "Por meus estudos, fui levado à conclusão de que nem as relações jurídicas nem as formas do Estado poderiam ser compreendidas por si mesmas ou pelo chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas de que estão enraizadas nas relações materiais da existência, cujo conjunto é enfeixado por Hegel com o nome de S. civil, a anatomia dessa S. civil deve ser buscada na economia política" {Zur Kritik der politischen Õkonomie, 1859, Pref.; trad. it., Cantimori, p. 10). Conceito análogo de S. pareceu a Bergson ser o próprio ideal de S. "aberta", ou S. mística. "Uma S. mística que abarque toda a humanidade e que, animada por uma vontade comum, marche para a criação incessantemente renovada de uma humanidade mais completa, certamente se realizará no porvir tanto quanto no passado existiram S. humanas funcionando de maneira orgânica à semelhança das S. animais. A aspiração pura é um limite ideal como a obrigação nua" {Deux sources, I, trad. it., p. 87). 3S Na linguagem comum e nas disciplinas sociológicas a palavra S. costuma ser usada no terceiro significado, de conjunto de indivíduos caracterizado por uma atitude comum ou institucionalizada. Neste sentido, designa tanto um grupo de indivíduos quanto a instituição que caracteriza esse grupo, como acontece nas expressões "S. comercial", "S. capitalista", etc. Esse emprego é tão óbvio que em geral não é sequer definido. Às vezes é definido em relação com cultura, como fazem Kluckhohn e Kelly: "S. refere-se a um grupo de pessoas que aprenderam a agir em conjunto; cultura refere-se aos modos de vida que distinguem esse grupo de pessoas" (R. LINTON, The Science ofMan in the World Crisis, 7a ed., 1952, p. 79). SOCEVIANISMO (in. Socinianism; fr. So-cinianisme, ai. Socinianismus; it. Sociniane-simó). Doutrina religiosa de Lelio Socini (1525-62) e Fausto Socini (1539-1604), que exerceu influência especialmente na Polônia; seus principais pontos são os seguintes.- Ia negação do dogma trinitário; 2Q negação do pecado original e da predestinação; 3e negação do valor das obras e da necessidade de mediação eclesiástica; 4 S recurso direto à Bíblia como meio único de salvação; 5Q recurso à razão como único instrumento para a interpretação autêntica da Bíblia. Além da Polônia, o S. difundiu-se na Holanda e na Inglaterra, mas sua influência foi enorme em toda a cultura liberal moderna (cf. D. CANTIMORI, Eretici italiani dei Cinquecento, Florença, 1939). SOCIOCRACIA, SOCIOLATRIA (in. So-ciocracy, sociolatry, fr. Sociocracie, sociolatrie, ai. Soziokratie, Soziolatrie, it. Sociocrazia, so-ziolatrid). Termos criados por A. Comte para designar, respectivamente, o regime político baseado na sociologia, que ele concebe como análogo ou correspondente à teocracia medieval, baseada na teologia {Politique positive, 1851,1, p. 403), e o culto da sociedade, que deveria tomar o lugar das religiões positivas {Catéchisme posüiviste, VI). SOCIOLOGIA (in. Sociology, fr. Sociologie, ai. Soziologie, it. Sociologia). E a ciência da sociedade, entendendo-se por sociedade o campo das relações intersubjetivas. Esse termo foi criado em 1838 por A. Comte, para indicar "a ciência de observação dos fenômenos sociais" {Cours de phil. positive, IV, 1838), e é usado atualmente para qualquer tipo ou espécie de análise empírica ou teoria que se refira aos fatos sociais, ou seja, às efetivas relações intersubjetivas, em oposição às "filosofias" ou "metafísicas" da sociedade, que pretendem explicar a natureza da sociedade como um todo, independentemente dos fatos e de modo definitivo. Sem dúvida, na história do pensamento SOCIOLOGIA 915 SOCIOLOGIA ocidental sempre foram feitas observações úteis e decisivas no campo social, que encontraram lugar especialmente na ética e na política. Contudo, tais observações não constituíam uma disciplina autônoma, dotada de metodologia própria: isso só começou com Comte. É possível distinguir dois conceitos fundamentais de S., sucessivos no tempo: 1Q S. sintética (ou sistemática), cujo objeto é a totalidade dos fenômenos sociais a serem estudados em seu conjunto, em suas leis; 2- S. analítica, cujo objeto são grupos ou aspectos particulares dos fenômenos sociais, a partir dos quais são feitas generalizações oportunas. Nesta segunda fase, a S. fragmenta-se numa multiplicidade de correntes de investigação e tem certa dificuldade para reencontrar sua unidade conceituai. I9 Foi com Comte que nasceu a S. como sistema, como determinação da natureza da sociedade em seu conjunto, através da determinação de suas leis. Nessa fase, tenta organizar-se à semelhança da física newtoniana: como ciência que, através de leis rigorosas, delineia uma ordem necessária e o desenvolvimento dessa ordem, não menos necessário. Portanto, Comte chamava a S. de física social, cuja primeira parte seria o estudo da ordem social (estática) e a segunda, o estudo do progresso social (dinâmica) (Cours de phil. positive, IV, p. 292). Além disso, Comte atribuía à S. a mesma função atribuída às outras ciências a partir de Bacon: dominar os fenômenos de que tratam em proveito do homem. Conseqüentemente, a S. teria a função de "perceber nitidamente o sistema geral das operações sucessivas — filosóficas e políticas — que devem libertar a sociedade de sua fatal tendência à dissolução iminente e conduzi-la diretamente a uma nova organização, mais progressista e sólida que a fundada na filosofia teológica" (Ibid., IV, p. 7). A sociocracia (v.) seria assim o efeito inevitável da fundação da S. como ciência. Mesmo isentando a S. da tarefa de fundar uma nova humanidade, Spencer conservou seu caráter sistemático. Segundo ele, trata-se de uma ciência descritiva que visa a determinar as leis da evolução superorgânica, que regem o progresso do organismo social. Neste sentido, a S. é o estudo da ordem progressiva da sociedade como um todo (Principies of Sociology, 1876, I). Este conceito inspirou a primeira organização da S. em todos os países do mundo. Aceito por W. G. Summer (Folkways, 1906) nos Estados Unidos, e por Wundt (Volkerpsychologie, 1900), com o nome de psicologia dos povos, na Alemanha, foi um conceito constantemente dominado pelo princípio de evolução, tomado em seu sentido otimista de progresso necessário: princípio que inspirou também alguns estudos sociológicos que se tornaram clássicos (como, p. ex., os de E. WESTERMARK sobre a Origem e desenvonvimento das idéias morais, 1906-1908). Mas a maior realização da S. sistemática talvez seja o Tratado de s. geral (1916-23) de Vilfredo Pareto, que, sob outro aspecto, é também o início da crise desse tipo de S. Com efeito, Pareto, ao mesmo tempo em que quer realizar a S. como uma ciência positiva que estuda "a realidade experimental pela aplicação dos métodos já comprovados em física, química, astronomia, biologia e nas demais ciências", por outro lado repudia qualquer construção sistemática demasiado complexa e não hesita em qualificar de metafísicas e dogmáticas as doutrinas sociológicas de Comte e Spencer (Tratado, § 5, 112). Segundo Pareto, o caráter essencial da ciência é "lógico-experi-mental" e implica dois elementos: o raciocínio lógico e a observação do fato. Contudo, o objetivo da ciência continua sendo o de formular leis necessárias que descrevam em seu conjunto aquilo que Pareto chama de equilíbrio social, por ele comparado às vezes a um sistema mecânico de pontos, outras vezes a um organismo vivo (Cours d'économiepolitique, 1896, § 619). Entretanto, ele também insiste no simples caráter de "uniformidade experimental" da lei e no fato de que todo fenômeno concreto é devido à intersecção de certo número de leis diferentes (Tratado, § 99); isso significa que toda explicação científica é aproxima-tiva e parcial (Ibid., § 106). Ainda mais distante do ideal sistemático de S. é o corpo de análises que Pareto apresenta em seu Tratado, cujo objeto é principalmente aquilo que ele chama de "ações não lógicas", cujos elementos estariam nos resíduos e nas derivações (v.). 2- Pode-se dizer que o marco da passagem da S. sintética para a analítica é a obra de E. Durkheim, que se afasta do pressuposto fundamental da S. sistemática, de que a sociedade constitui um todo ou um sistema orgânico. Durkheim diz: "O que existe, o que só é dado à observação, são as sociedades particulares que nascem, se desenvolvem e morrem, independentemente umas das outras" (Règles de Ia méthode sociologique, 1895, 11a ed., 1950, p. 20). Paralelamente, Durkheim insistiu no cará- SOCIOLOGIA 916 SOCIOLOGIA ter exterior do objeto da ciência social: "Os fatos sociais consistem em modos de agir, pensar e sentir, exteriores ao indivíduo e dotados de um poder de coerção graças ao qual se impõem a ele" {Ibid., p. 5). Considerar os fatos sociais deste modo significa considerá-los como coisas, independentemente de preconceitos subjetivos e das vontades individuais (Ibid., pp. 11 ss.). Os mesmos motivos foram sistematizados na obra metodológica de Max Weber. A este cabe o mérito de ter sido o primeiro a distinguir a S. das outras disciplinas antropológicas, especialmente das historiográ-ficas. Ele identificou o objeto da S. na uniformidade da atitude humana, que é dotada de sentido, ou seja, acessível à compreensão. Mais precisamente, atitude é a ação humana que: l s refere-se, segundo a intenção de quem age, à atitude dos outros; 2e seu curso é determinado também por essa referência; 3e pode ser explicada por essa referência (Über einige Kategorien der verstehenden Soziologie, 1913, trad. it., em // método delle scienze storicosociali, p. 243). A segunda conquista importante da S. de Max Weber é a nítida separação que pretendeu estabelecer entre a investigação empírica ou lógica, por um lado, e as avaliações práticas ou éticas, políticas ou metafísicas, por outro lado (Der Sinn der Wertfreiheit der soziologischen und õkonomischen Wíssens-chaften, 1917; na coletânea citada, pp. 311 ss.). Ainda que, obviamente, seja mais fácil propor essa separação como exigência do que realizá-la na pesquisa, ela vale até hoje como regra que empenha a honestidade do pesquisador. Em terceiro lugar, da obra de Weber dimana a exigência da investigação empírica particular, a única que pode determinar as unifor-midades de atitudes que constituem o objeto da sociologia. Esses três pontos permaneceram no desenvolvimento posterior da S. contemporânea. Esta aceitou com entusiasmo o convite de Weber no sentido da pesquisa empírica particular e da formulação de técnicas adequadas de observação. Hoje a S. dispõe de um imponente conjunto de técnicas que podem ser classificadas em quatro grupos fundamentais: 1° técnicas de observação (observação direta, livre ou controlada, observação clínica, observação participante, etc); 2e técnicas de entrevista, que vão desde a entrevista livre até os questionários; 3Q técnicas de experimentação e técnicas sociométricas. estas últimas tendem a descrever as relações sociais espontâneas (consideradas componentes elementares de todos os agrupamentos) através da participação ativa dos próprios sujeitos estudados (cf. MORENCY, Who Shall Survíve?, 1934); 49 técnicas estatísticas, que a S. compartilha com muitas disciplinas sociais (cf, para um quadro dessas técnicas, Traité de sociologie, dirigido por G. Gurvitch, 1958, pp. 135 ss.). Com o uso dessas técnicas, foi realizado grande número de "pesquisas de campo" nos sentidos mais díspares, tendo-se acumulado dessa maneira, sobretudo nos últimos trinta anos, um material de observação volumoso e complexo. Mas a pesquisa sociológica não se desenvolveu no mesmo sentido em todos os países. Na Inglaterra, dedicou-se sobretudo a descrever o mundo dos primitivos, suas instituições e seus comportamentos fundamentais (cf. especialmente a obra de G. FRAZER, The Golden Bough, 1911-14, 12 vols., e os textos de B. Malinowski e A. R. Radcliffbrown). Na França, além de descrever a mentalidade dos primitivos (cf. especialmente os textos de LévyBruhl a partir de Les fonctions mentales dans les sociétés infé-rieures, 1910), conservou o caráter teórico, dedicandose ao estudo de problemas fundamentais, em especial por obra de Gurvitch (La vocation actuelle de Ia sociologie, 1950; Dé-terminismes sociaux et liberte humaine, 1955). Na Itália, depois de haver dado uma contribuição importante à S. sistemática com a obra de Pareto e de outros autores menores, calou-se no período entre guerras devido à influência negativa da cultura idealista, e só hoje vai readquirindo força e capacidade, atualizando-se rapidamente nos métodos e interesses e dedicando-se ao estudo da sociedade italiana. Mas é sobretudo nos Estados Unidos que a pesquisa sociológica produziu uma quantidade considerável de trabalhos com as mais diferentes orientações. Aqui só será possível indicar os principais caminhos tomados pela pesquisa sociológica: a) S. urbana: desenvolveu-se nos Estados Unidos, principalmente graças ao incentivo de R. E. Park, dando origem a obras clássicas como as de R. S. e H. LIND, Middletown (1929) e Middletown in Transiction (1937) (cf. também o estudo clássico de PARK, The City, 1925, atualmente em Human Communities, 1952). b) Estudo da estratificação e da mobilidade social: iniciou-se nos Estados Unidos, na época da crise (1929), e alcançou desde então resultados importantes (cf., para um balanço, G. SOCIOLOGIA 917 SOFISMA GADDA CONTI, Mobilitã e stratificazione sociale, 1959). c) Estudo dos grupos étnicos: conta hoje com importante conjunto de obras, entre as quais a clássica obra de Thomas e Znaniecki, The Polish Peasant in Europe and America (1918-21). d) Estudo da família: deteve-se especialmente na análise da desorganização familiar e nos problemas conjugais (cf., p. ex., E. V. HAMILTON, Estudos sobre o casamento, 1929). é) Análise da opinião pública e dos instrumentos de propaganda, que conta hoje com uma riquíssima literatura (cf., p. ex., R. K. MERTON, Mass Persuasion, 1947). f) Estudo de pequenos grupos, cujos melhores resultados foram obtidos nos Estados Unidos (cf. E. SHILS, LO stato attuale delia S. americana, em Quademi di S., 1953, n. 7). g) S. industrial, termo com que se designa o estudo das relações em locais de trabalho e as influências recíprocas entre essas relações e a organização industrial (cf., para um balanço, FRANCO FERRAROTTI, La S. industriale in America e in Europa, 1959). h) S. da religião, fundada por Max Weber {Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus, 1904; Die protestantische Sekten und der Geist des Kapitalismus, 1906, etc), que consiste na análise das interações entre as relações sociais e os fatos religiosos; nos últimos anos não obteve grandes resultados. i) S. do conhecimento, cuja fundação costuma ser atribuída a Marx, que foi o primeiro a insistir nas interações entre o saber e as formas sociais; foi cultivada especialmente por Max Scheler (Die Wissensformen und die Gesells-chaft, 1926) e por Karl Mannheim (Das Pro-blem einer Soziologie des Wissens, 1926). Como já dissemos, a quantidade de trabalhos realizados em muitos desses ramos da pesquisa sociológica é enorme, mas a sua utilização conceituai não foi adequada. Shils disse: "O principal defeito da sociologia americana é o inverso de sua principal virtude: sua indiferença, até agora dominante, para com a formação de uma teoria geral está estreitamente ligada à sua avidez de precisão na observação imediata" (Lo stato attuale delia S. americana, em QuadernidiS., 19S3, n. 8). Essa situação não é exclusiva da S. americana, mas está presente em todos os países em que a pesquisa sociológica alcança certo grau de desenvolvimento. Por isso, mesmo os que mais insistiram na importância das técnicas objetivas às vezes sentem saudade da velha forma sistemática da S. (cf. PITIRIM SOROKIN, Fads and Faibles in Modem Sociology and Related Sciences, 1956). Contudo, não faltam à literatura sociológica moderna certas tentativas importantes e felizes de estabelecer uma teoria sistemática do objeto da S., que é a ação social (cf., p. ex., T. PAR-SONS, The Structure of Social Action, 1937,2a ed., 1949), outras de consolidar a relação entre a teoria social e a pesquisa social (cf., p. ex., R. K. MERTON, Social Theory and Social Structure), ou mesmo de realizar a S. como uma "tipologia quantitativa e descontinuísta", altamente teórica, como é a de G. Gurvitch (Traité de sociologie, 1959, pp. 155 ss.). Portanto, o que se pode prever, dado o estado atual dessa disciplina, é a multiplicação e o fortalecimento das tentativas de conceituação teórica do material a que se teve acesso através de pesquisas especiais, sem contudo voltar à forma sistemática que a S. assumira na sua primeira fase dogmática. SOCIOLOGISMO (in. Sociologism- fr. Socio-logisme, ai. Soziologismus-, it. Sociologismó). Termo polemístico para designar a tendência a reduzir fenômenos morais ou religiosos a fatos sociais (cf. BOUTROUX, Science et religion, p. 342). SOCIOMETRIA. V. SOCIOLOGIA. SOCRATISMO (in. Socratism- fr. Socratis-me, ai. Socratismus-, it. Socratismo). Doutrina de Sócrates, da forma como se consolidou na tradição antiga; seus fundamentos podem ser assim resumidos: l s valor da indagação filosófica, sem o que a vida não é digna de ser vivida; 2- a indagação restringe-se ao homem, não havendo interesse por qualquer estudo da natureza; 3S identificação entre ciência e virtude, no sentido de que é possível ensinar e aprender a virtude, e não é possível praticar o bem sem conhecê-lo; 4Q importância atribuída ao ensinamento: nada se ensina, pois apenas se favorece a criação intelectual dos ouvintes; 5S método de interrogação e a ironia (v.). SOFISMA (in. Sophism-, fr. Sophisme, ai. Sophisma; it. Sofismá). 1. O mesmo que falácia (v.). 2. Raciocínio caviloso ou que leva a conclusões paradoxais ou desagradáveis. Neste sentido, esse termo tem uso muito vasto, e até os paradoxos (v.) e os argumentos duplos podem ser chamados de S. SOFISTICA 918 SOLIPSISMO SOFÍSTICA (in. Sophistics; fr. Sopbistique, ai. Sophistik, it. Sofistica). 1. Aristóteles chamou de S. "a sabedoria (sapientia) aparente mas não real" (El. soph., 1, 165 a 21), e esse passou a indicar a habilidade de aduzir argumentos capciosos ou enganosos. 2. Em sentido histórico, a S. é a corrente filosófica preconizada pelos sofistas, mestres de retórica e cultura geral que exerceram forte influência sobre o clima intelectual grego entre os sécs. V e IV a.C. A S. não é uma escola filosófica, mas uma orientação genérica que os S. acataram devido às exigências de sua profissão. Seus fundamentos podem ser assim resumidos: 1Q O interesse filosófico concentra-se no homem e em seus problemas, o que os sofistas tiveram em comum com Sócrates. 2° O conhecimento reduz-se à opinião e o bem, à utilidade. Conseqüentemente, reconhece-se da relatividade da verdade e dos valores morais, que mudariam segundo o lugar e o tempo. 3Q Erística: habilidade em refutar e sustentar ao mesmo tempo teses contraditórias. 4Q Oposição entre natureza e lei; na natureza, prevalece o direito do mais forte. Nem todos os sofistas defendem essas teses: os grandes sofistas da época de Sócrates (Pro-tágoras e Górgias) sustentaram principalmente as duas primeiras. As outras foram apanágio da segunda geração de sofistas (cf. UNTERSTEINER, Isofisti, 1949). SOLECISMO (in. Solecism; fr. Solécisme, ai. Solecismus; it. Solecismd). Em Aristóteles (El. sof, passirri) e depois, na lógica de origem aris-totélica, designa um dos objetivos da dialética sofistica, qual seja, a tentativa de induzir o interlocutor a aceitar um enunciado que contém uma impossibilidade gramatical, como ho-mines currit. Esse termo passou a indicar uma aberração gramatical de natureza morfológica ou sintática. G. P. SOLIDÃO (in. Solitude, fr. Solitude, ai. Einsamkeit; it. Solitudinè). Isolamento ou busca de melhor comunicação. No primeiro sentido, a S. é a situação do sábio, que, tradicionalmente, é autárquico e por isso se isola em sua perfeição (v. SÁBIO). Afora esse ideal, o isolamento é um fato patológico: é a impossibilidade de comunicação associada a todas as formas da loucura. Em sentido próprio, contudo, a S. não é isolamento, mas busca de formas diferentes e superiores de comunicação: "Não dispensa os laços com o ambiente e a vida cotidiana, a não ser em vista de outros laços com homens do passado e do futuro, com os quais seja possível uma forma nova ou mais fecunda de comunicação. O fato de a solidão dispensar esses laços é, pois, uma tentativa de libertar-se deles e ficar disponível para outras relações sociais" (ABBAGNANO, Problemi di sociologia, 1959, XI, § 8). SOLIDARIEDADE (in. Solidarity, fr. Soli-darité, ai. Solidaritãt; it. Solidarietã). Termo de origem jurídica que, na linguagem comum e na filosófica, significa: le inter-relação ou interdependência; 2- assistência recíproca entre os membros de um mesmo grupo (p. ex.: S. familiar, S. humana, etc). Neste sentido, fala-se de solidarismo para indicar a doutrina moral e jurídica fundamentada na S. (Cf. L. BOURGEOIS, La solidarité, 1897). SOLILÓQUIO (lat. Soliloquium). Colóquio da alma consigo mesma. Soliloquia foi o título que S. Agostinho deu a uma de suas primeiras obras, em que declarava desejar conhecer apenas Deus e a alma, e nada mais (Sol, I, 2). S. Anselmo chamou de Monologion o seu colóquio interior em torno da essência de Deus. SOLIPSISMO (in. Solipsism; fr. Solipsisme, ai. Solipsismus; it. Solipsismo). Tese de que só eu existo e de que todos os outros entes (homens e coisas) são apenas idéias minhas. Os termos mais antigos para indicar essa tese são egoísmo (cf. WOLFF, Psychologia rationalis, § 38; BAUMGARTEN, Met., § 392; GANUPPI, Saggio filosófico sulla critica delia conoscenza, IV, 3, 24, etc), egoísmo metafísico (KANT, Antr., I, § 2) ou egoísmo teórico (SCHOPENHAUER, Die Welt, I, § 19). Kant empregou o termo S. para indicar a totalidade das inclinações que produzem felicidade quando satisfeitas (Crít. R. Prática, I, livro 1, cap. III; trad. it, p. 85); esse mesmo termo foi empregado para indicar o egoísmo metafísico por alguns escritores alemães da segunda metade do séc. XIX (cf. SCHUBERT-SOL-DERN, Grundlagen zu einer Erkenntnistheorie, 1884, pp. 83 ss.; W. SCHUPPE, Der Solipsismus, 1898; H. DRIESCH, Ordnungslehre, 1912, pp. 23 ss., etc). Como já notava Wolff, o S. é uma espécie de idealismo que reduz a idéias não só as coisas, mas também os espíritos (Psychol. rat, § 38). Freqüentemente, o S. foi declarado irrefutável, pelo menos com provas teóricas: tal era a opinião de Schopenhauer (loc. cit), muitas vezes repetida (cf. RENOUVIER, Les dilemmes dela métaphysique purê, 1901; A. LEVI, Sceptica, 1921; SARTRE, Vêtre et le néant, SOLIPSISMO 919 SONHO 1943, p. 284). Na realidade, o S. só é irrefutável do ponto de vista idealista (com o qual coincide), segundo o qual os atos ou as ações do sujeito são conhecidos de maneira imediata, privilegiada e absolutamente segura. Foi a aceitação (explícita ou implícita) dessa tese que por vezes levou a adotar o S. como ponto de partida obrigatório da teoria do conhecimento (cf., p. ex., DRIESCH, Op. cit., p. 23) ou como procedimento metodológico (SCHUBERT-SOLDERN, Op. CÜ., pp. 65 SS.). Este último ponto de vista foi adotado pelo positivismo lógico, especialmente por Wittgenstein e Carnap. O primeiro, tendo observado que "os limites de minha linguagem constituem os limites de meu mundo" (Tractatus, 5, 6), concluiu "ser absolutamente correto o significado do S., que, apesar de não poder ser dito, manifesta-se. O fato de os limites da linguagem (da linguagem que só eu entendo) constituírem os limites do meu mundo revela que o mundo é o meu mundo" (Ibid., 5.62) e que, portanto, "eu sou o meu mundo" (Ibid., 5.63). Mas, assim entendido, o S. transforma-se imediatamente em realismo: "O S. rigorosamente desenvolvido coincide com o realismo puro. O eu do positivismo reduz-se a um ponto inextenso, e a realidade a ele se coordena" (Ibid., 5.64). O pressuposto desse discurso é a teoria segundo a qual a correspondência entre os elementos da linguagem e os da realidade se dá termo a termo, e os elementos da realidade se reduzem a fatos de experiência imediata, sendo, pois, apenas meus. Quando faltam tais fatos, falta o significado (o objeto) da palavra, e eu não a entendo: portanto, Wittgenstein diz que os limites de minha linguagem são os limites do mundo. O mesmo pressuposto leva Carnap a falar de S. metódico. Com muita razão Carnap fala de S. a propósito da escolha dos elementos básicos (Grundelemente), porque, como através de tais elementos (que servem de base para a construção lógica do mundo) Carnap escolhe (assim como Wittgenstein) os fatos imediatos da experiência, ou, como diz ele, "a base psíquica própria", seu procedimento é solipsista (Der logische Aufbau der Welt, 1928, § 64). J. R. Weinberg já observava que no positivismo lógico o S. lingüístico é inevitável; por isso, uma vez que é necessário superá-lo para atingir a objetividade científica, "ou se alteram necessariamente alguns postulados do sistema para isentar o positivismo das idéias metafísicas, ou — se esse método falhar — será preciso abandonar todo o sistema do positivismo lógico" (An Examination of Logical Positivism, cap. VII; trad. it., pp. 235 ss.). Na realidade, o pressuposto do positivismo que dá origem ao S. é reflexo da tese idealista na teoria da linguagem: os elementos da linguagem são signos de experiências imediatas, porque as experiências imediatas são a única realidade (v. EXPERIÊNCIA; LINGUAGEM). SOMA LÓGICA (in. Logical sum; fr. Somme logique, ai. Logische Summe, it. Somma lógica). É a figura (a + b) resultante de uma adição lógi-ca(v.). __ G.P. SOMÁTICO (in. Somatic, fr. Somatique, ai. Somatisch; it. Somático). Corpóreo (v. CORPO). SOMATOLOGIA (in. Somatology, fr. Soma-tologie, ai. Somatologie, it. Somatologid). Parte da antropologia que considera os aspectos físicos do homem (V. ANTROPOLOGIA). SOMBREAMENTO (ai. Abschattung). Termo empregado por Husserl para indicar o modo parcial e aproximativo com que a coisa externa é dada à consciência perceptiva. P. ex.: "A mesma cor aparece em seqüências contínuas de sombreamentos de cores. O mesmo vale para qualquer qualidade sensível e para qualquer figura parcial. Uma única e mesma figura, dada em carne e osso como sempre a mesma, aparece continuamente 'de modo diferente', em sombreamentos sempre diferentes de figura. Essa é a situação necessária das coisas, que tem validade universal" (Ideen, I, § 4). SONHO (gr. ÊvúiiTiov; lat. Somnium- in. Dream; fr. Rêve, ai. Traum; it. Sogno). Ação da imaginação durante o sono. Esta é a definição já proposta por Platão (Tim., 45 e) e Aristóteles (Qesomniis, 1, 459 a 15), sendo também adotada pela psicologia moderna; nesta, dá origem a uma série de problemas que escapam completamente à alçada da filosofia (cf. a propósito desses problemas E. SERVADIO, II sogno, 1955). Freud e os psicanalistas interpretaram o S. de / modo funcionatista, ao tentarem determinar 1 sua função na vida do homem. Se^undoJFreud, o S. "é um meio de suprimir as excitações (psíquicas) quejDerturbem o sono, supressão essa realizada através de satisfações alucinatórias" (Intr. à Ia psychanalyse, 1932, p. 151). Ojjue encontra realização simbólica no S. na maioria das vezes são desejos proibidos, inibidos pela censura, que,~portanto, sofrem uma elaboração radical, cabendo ao psicólogo interpretá-la. (Ibid., pp. 189, 234). Essa teoria de Freud foi muito discutida, e não parece apta a explicar SONHO 920 SORTE todas as espécies de S. ou todos os seus aspectos; apesar disso, foi a única a propor o problema da funcionalidade do S., vale dizer, da função que ele exerce na economia da vida psíquica. Os filósofos algumas vezes se dedicaram à análise do S. para mostrar a incerteza da discriminação entre ele e a vigília, utilizando-o como elemento de dúvida teórica. Platão dizia: "Nada nos impede de crer que as conversas que agora mantemos sejam mantidas em sonho, e quando em S. cremos contar um S., a semelhança das sensações no S. e na vigília é realmente maravilhosa" {Teet, 158 c). Por outro lado, "o tempo /durante o qual dormimos é igual ao tempo em que estamos acordados, e em ambos nossa alma afirma que só as opiniões que tem naquele momento são verdadeiras; desse modo, por igual espaço de tempo dizemos que são verdadeiras ora estas, ora aquelas, e defendemos _umas e outras com a mesma energia" {Ibid., 158 d). Nos sécs. XVII e XVIII esse tema foi freqüentemente repetido por poetas e filósofos. Shakespeare dizia: "Somos feitos da mes-ma substância ~ãe que sao "feitos os S., enossa fcu£tãj^^ênciaesTa~rômigãjíõ^ê7íod o"rk*i i m Isono" (TempesÇãxõlYrcênã I). Calderón de Ia Barca utilizou o mesmo tema em A vida é S. (1635): "São as glórias tão semelhantes aos S. que as verdadeiras passam por falsas, e as falsas por verdadeiras? É tão pouca a distância entre umas e outras que é preciso saber se o que se vê ou frui é S. ou realidade?" (Ato III, cena X). Descartes empregava o mesmo tema como elemento de dúvida: "O que acontece em sonho não parece tão claro e distinto quanto o que acontece durante a vigília. Mas, pensando a respeito, lembro-me de ter sido muitas vezes enganado por simples ilusões, enquanto dormia. E, detendo-me nesse pensamento, vejo com clareza que não há indícios concludentes, nem sinais bastante seguros, que possibilitem distinguir com nitidez a vigília do S., a tal ponto que fico admirado, e minha admiração é tanta que quase me convence de que estou dormindo" (Méd., I; cf. Princ.phíi, I, 4). A teoria de Leibniz, segundo a qual a vida da mônada (substância espiritual) é "um S. bem regulado", constitui outra manifestação do mesmo tema. Leibniz diz: "Metafisicamente falando, não é impossível que haja um S. tão contínuo e duradouro quanto a idade de um homem. (...) Mas, desde que os fenômenos estejam interligados, não importa que sejam chamados de sonhos ou não, porque a experiência mostra que não nos enganamos ao aprendermos os fenômenos, quando eles são aprendidos segundo as verdades de razão" {Nouv. ess., IV, 2, 14). Voltaire dizia: "Se os órgãos, por si sós, produzem os S. da noite, por que não poderiam produzir, por si sós, as idéias do dia? Se a alma, por si só, tranqüila no descanso dos sentidos e agindo sozinha, é a causa única e o único sujeito de todas as idéias que temos dormindo, por que todas essas idéias são quase sempre irregulares, irracionais, incoerentes?" (Dictionnairephilosophique, 1764, art. Songes). Schopenhauer talvez seja o último a apresentar esse tema em sua forma clássica: "A vida e os S. são páginas de um mesmo livro. A leitura contínua chama-se vida real. Mas quando o tempo habitual de leitura (o dia) chega ao fim e vem a hora de descansar, então às vezes continuamos, fracamente, sem ordem e conexão, a folhear aqui e acolá algumas páginas: às vezes é uma página já lida, muitas outras vezes uma outra ainda desconhecida, mas sempre do mesmo livro" (Die Welt, I, § 5). SONO e VIGÍLIA. V. SONHO. SORITES (lat. Acervus; in. Sorites; fr. So-rite, ai. Sorites; it. Soritè). 1. Argumento de Eu-búlides contra a multiplicidade (V. MONTÃO, ARGUMENTO DO). 2. Silogismo composto ou polissilogismo (v.), no qual a conclusão do silogismo que precede é adotada como premissa do silogismo subseqüente, até se chegar a relacionar o antecedente do primeiro silogismo com a conseqüência do último (cf. ARNAULD, Log., III, I; JUN-Gius, Lógica hamburgensis, III, 28; WOLFF, Log., § 474; HAMILTON, Lectures onLogic, p. 366, etc). A expressão soriticus syllogismus deve ter sido usada pela primeira vez por Mário Victo-rino (séc. IV) (cf. PRANTL, Geschichte der Logik, I, p. 663), mas foi difundida por Lourenço Valia (Dialecticae disputationes, III, 12). SORTE (gr. m%i\; lat. Fortuna-, in. Fortune, fr. Fortune, ai. Glück, it. Fortuna). Segundo Aristóteles, distingue-se do acaso (v.) porque se verifica no domínio das ações humanas e por isso não podem ter S. ou falta de S. os seres que não podem agir livremente. "Os seres ina-nimados, os animais, as crianças, não fazem nada por S. porque não têm escolha; e a boa ou a má S. só lhes é atribuída por semelhança, da mesma maneira como Protarco disse que as pedras do altar têm sorte porque são homena- SOTERIOLOGIA 921 SUBCONTRÂRIA, PROPOSIÇÃO geadas, enquanto suas companheiras são pisadas" (Fís., II, 6, 197b 1). Essa significação manteve-se no uso moderno da palavra. Seu conceito filosófico é, portanto, o mesmo de acaso (v.). SOTERIOLOGIA (in. Soteríology, fr. Sote-ríologie, ai. Soteriologie, it. Soteriologid). Doutrina religiosa da salvação. Sobre o aparecimento de tendências soteriológicas no ocidente, v. a obra de F. CUMONT, Les religions orientales dans lepaganisme romain, 1906, 2- ed., 1909. SPINOZISMO (in. Spinozism; fr. Spinozis-me, ai. Spinozismus-, it. Spinozismó). Doutrina de Baruch Spinoza (163277), nos principais aspectos reconhecidos pela tradição filosófica, que podem ser assim resumidos: 1 Q unicidade da substância do mundo e sua identificação com Deus, graças à qual Spinoza se refere à substância com a expressão" Deus sive natura"; 2- ateísmo ou, como também se diz (com Hegel), acosmismo (v.), segundo o qual Deus é o princípio e a ordem do mundo; 3S o neces-sitarismo, segundo o qual todas as coisas derivam por absoluta necessidade da substância divina; 4a o geometrismo, afirmação do caráter geométrico da necessidade cósmica que é o modelo do método geométrico da filosofia; 5S redução da liberdade humana ao reconhecimento e à aceitação da necessidade da ordem cósmica; 6° defesa da liberdade filosófica e religiosa do homem, fundada na redução da fé religiosa à obediência (v. FÉ). STATUS. Condição ou modo de ser, especialmente em sentido sociológico, como pertencente a determinado estrato social. STURM UND DRANG. Com esta expressão, que significa "tempestade e ímpeto" e foi título de um drama de Klinger, escrito em 1776, designa-se um movimento filosófico e literário que surgiu na Alemanha na segunda metade do séc. XVIII e constitui o antecedente imediato do Romantismo. As atitudes peculiares desse movimento são simbolizadas pelas duas palavras acima. Trata-se de manifestações irracio-nalistas cuja expressão filosófica se encontra nas doutrinas de Haman, Herder e Jacobi: estas remetem aos limites impostos por Kant à razão apenas para irem além da razão e recorrer à experiência mística ou à fé (v. FÉ, FILOSOFIA DA). Do "S. und Drang" passa-se para o Romantismo ao se passar do conceito kantiano de razão finita — à qual se contrapõe a fé ou o sentimento, atribuindose-lhes poder cognoscitivo superior — para o conceito de razão infinita ou capaz de atingir o Infinito; isso tem início com Fichte, em quem realmente se encontra a primeira inspiração do romantismo (v.). SUAREZISMO (in. Suarezianism; fr. Sua-rézisme, it. Suarezismó). Doutrina do espanhol Francisco Suárez (15481617), que é a maior expressão filosófica da Contra-Reforma católica. Trata-se, substancialmente, de um retorno decidido e rigoroso ao tomismo: sua obra Disputationes metaphysicae é um manual sistemático de metafísica tomista. Suárez, porém, faz uma importante concessão à escolástica do séc. XIV, ao admitir a individualidade do real, •vale dizer, ao reconhecer que cada coisa é tal por si mesma, e não pela matéria, pela forma ou por outro princípio qualquer. Afastou-se também do tomismo na doutrina política exposta em De legibus (1612), ao afirmar que o poder temporal dos príncipes provém apenas do povo; isso tem a finalidade de privilegiar o poder eclesiástico, que proviria diretamente de Deus. SUBALTERNAÇÃO (lat. Subalternaticr, in. Subalternation; fr. Subalternation; ai. Subalternation; it. Subaltemazionè). Com este termo e com a expressão oposição subalterna, indica-se a relação entre a proposição universal e a particular correspondente e da mesma qualidade; p. ex., entre "todo homem é justo" e "alguns homens são justos", ou entre "nenhum homem é justo" e "alguns homens não são justos". A proposição universal chama-se subal-ternante e a particular, subalternada (PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.14); JUNGIUS, Log. hamburgensis, II, 9, 15; B. HERDMANN, Logik, § 70). Hamilton chamou a S. de restrição (Lec-tures on Logic, II2, p. 269). (V. QUADRADO DOS OPOSTOS.) SUBCONSCIENTE (in. Subconscious, fr. Sub-conscíent; ai. Unterbewusst; it. Subcosciente). O mesmo que inconsciente. Alguns psicólogos franceses do século passado procuraram distinguir o S. do inconsciente, considerando-o como consciência débil ou diminuída (Riboy, Janet e outros). Mas essa distinção pareceu fa-laz, e a palavra caiu em desuso (v. INCONSCIENTE). SUBCONTRÂRIA, PROPOSIÇÃO (lat. Fro-positio subcontraria; in. Subcontrary propo-sition; ai. Subcontràrsatz; it. Proposizione sub-contrariã). Na lógica tradicional são assim chamadas, em suas inter-relações, a proposição particular afirmativa e a particular negativa; p. ex..- "alguns homens correm" e SUBCONTRARIEDADE 922 SUBLIME "alguns homens não correm" (cf, p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.13) (v. QUADRADO DOS OPOSTOS). SUBCONTRARIEDADE (lat. Subcontrarie-tas, in. Subcontrary, fr. Subcontraire, ai. Sub-contràr, it. Subcontrarietã). Relação de oposição entre proposições particulares. P. ex.: "Sócrates corre", "Sócrates não corre" (PEDRO HISPANO, Summ. log., I. 27). Às vezes, a relação entre possível e não necessário (JUNGIUS, Lógica hamburgensis, II, 12, 29). SUBDIVISÃO. V. DIVISÃO. SUBJETIVIDADE (in. Subjectivity, fr. Sub-jectivité, ai. Subjektivitüt; it. Soggettivita). 1. Caráter de todos os fenômenos psíquicos, enquanto fenômenos de consciência (v.), que o sujeito relaciona consigo mesmo e chama de "meus". 2. Caráter do que é subjetivo no sentido de ser aparente, ilusório ou falível. Nesse sentido, Hegel situava na esfera da subjetividade o de-ver-ser em geral, bem como os interesses e as metas do indivíduo. Dizia: "Uma vez que o conteúdo dos interesses e das metas está presente apenas na esfera unilateral do subjetivo, e que a unilateralidade é um limite, essa falta manifesta-se aò mesmo tempo como inquietação, como dor, como algo negativo" {Vorlesun-gen über die Àsthetik, ed. Glockner, p. 141). Kierkegaard quis inverter o ponto de vista hegeliano, colocando a S. acima da objetividade: "O erro consiste principalmente no fato de o universal, em que — segundo o hegelia-nismo — consiste a verdade (e o individual torna-se verdade só se nele subsumido), é uma abstração: o Estado, etc. Ele não chega a dizer que é a S. em sentido absoluto, e não chega à verdade, ou seja, ao princípio de que realmente, em última instância, o individual está acima do universal" {Diário, X2 A 426). SUBJETTVISMO (in. Subjectivism, fr. Sub-jectivisme, ai. Subjectivismus; it. Soggettivismó). Termo moderno que designa a doutrina que reduz a realidade ou os valores a estados ou atos do sujeito (universal ou individual). Nesse sentido, o idealismo é S. porque reduz a realidade das coisas a estados do sujeito (percepções ou representações); analogamente, fala-se de S. moral e S. estético quando o bem, o mal, o belo ou o feio são reduzidos às preferências individuais. Esse termo é empregado na maioria das vezes com intenções polêmicas, e por isso seu significado não é muito preciso. SUBJETIVO (in. Subjective, fr. Subjectif, ai. Subjektiu, it. Soggettivó). Aquilo que pertence ao sujeito ou tem caráter de subjetividade. Esse adjetivo teve dois significados, correspondentes aos do termo sujeito, mas somente o segundo ainda é usado. 1. A partir da escolástica do séc. XIII, o adjetivo significa simplesmente substancial. Ockham dizia: "Pode-se dizer com probabilidade que o universal não é algo real que tenha existência substancial Cesse subjectivum) na alma ou fora da alma, mas que existe na alma num modo de ser representativo {in esse objectivó) que corresponde àquilo que a coisa externa é na sua existência substancial" {InSent., I. d. 2, q. 8, E; cf. DUNS SCOT, Dean., 17, 14). Este significado mantém-se em toda a Idade Média. 2. O significado de S. como pertencente ao eu ou ao sujeito do homem é encontrado pela primeira vez em alguns escritores alemães do séc. XVIII (sobre eles cf. CASSIRER, Erkenntnis-problem, 1908, livro VII). Já Baumgarten falava da "fé considerada subjetivamente", em oposição à "fé considerada objetivamente", que é o conjunto de crenças {Mel, 1739, § 993). Algumas décadas depois, discutia-se a beleza ou a verdade: seriam subjetivas ou objetivas? Entendia-se por objetiva "uma propriedade dos objetos", e por S. "uma representação da relação entre as coisas e nós, ou seja, uma relação com quem as pensa" (J. E. Lossius, Physische Ursa-chen des Wahren, 1775, p. 65). A mesma distinção encontra-se em Tetens {Philosophische Versuche, 1776,1, pp. 344, 560, etc). Foi desse uso do adjetivo que Kant extraiu o novo significado atribuído ao substantivo sujeito. SUBLIMAÇÃO (in. Sublimation; fr. Subli-mation; ai. Sublimierung; it. Sublimazione). Mecanismo psicológico de defesa, que consiste em transformar os impulsos sexuais em atividades psíquicas superiores, especialmente na produção artística. Esse mecanismo foi assim descrito por Freud: "As excitações excessivas que derivam de fontes diversas da sexualidade são desviadas e utilizadas em outros domínios, de tal modo que as disposições que no início eram perigosas produzirão um aumento apreciável nas aptidões e nas atividades psíquicas {Trois essais sur Ia théorie de Ia se-xualité, trad. fr., p. 177). SUBLIME (gr. üyoç; lat. Sublime; in. Sublime, ai. Erhaben; it. Sublime). 1. Forma lingüística, literária ou artística que expresse sentimentos ou atitudes elevadas ou nobres. Essa SUBLIME 923 SUBLIME palavra começou a ser usada com tal sentido no séc. I a.C, tendo sido analisada no pequeno tratado Sobre o S. do Pseudo Logino: "O S. é a ressonância da nobreza da alma, tanto que admiramos às vezes um pensamento singelo, sem voz, por si, pela superioridade do sentimento. O silêncio de Ajax em Nekyia é maior e mais nobre que qualquer discurso" (Desubi, IX). No mesmo significado, essa palavra foi usada pelos autores latinos, principalmente por Quintiliano (Inst. or, VIII, 3, 18; VIII, 3, 74; XI, I, 3; XI, 3, 153, etc). Este é também o significado com que essa palavra costuma ser usada; refere-se não só a expressões lingüísticas ou literárias, mas também a ações ou atitudes consideradas nobres ou elevadas. Foi nesse mesmo sentido que Croce entendeu o S., definindo-o como "afirmação subitânea de uma força moral poderosíssima", para expungi-lo da arte (Estética, 4a ed., 1912, p. 107). 2. Em sentido próprio e estrito, o S. é o prazer que provém da imitação (ou da contemplação) de uma situação dolorosa. Com esse sentido, essa noção vem diretamente do conceito aristotélico de tragédia.- que deve provocar "piedade e terror"; por isso, como diz Aristóteles, o poeta trágico "deve propiciar o prazer que nasce da piedade e do terror por meio da imitação" (Poet. 14,1453 b 10). No século XVIII, essa noção de tragédia deu origem a um problema que foi examinado por Hume num dos seus Ensaios morais epolíticos (1741): "Parece inexplicável o prazer que os espectador de uma tragédia bem escrita aufere da dor, do terror, da angústia e de outras paixões que, em si mesmas, são desagradáveis e penosas" (é assim que Hume inicia o ensaio intitulado Of Tra-gedy); sua análise serviu de fundamento para a obra de Burke, que em Inquiry on the Origin ofour Ideas of Sublime and Beautiful (1756) distinguiu claramente o S. do Belo: "O Belo e o S. são idéias de natureza diferente: um tem fundamento na dor e o outro no prazer; embora possam depois afastar-se da verdadeira natureza de suas causas, estas continuarão sendo diferentes uma da outra, e essa diferença nunca deverá ser esquecida por quem se propuser suscitar paixões" (Inquiry on the Origin ofour Ideas of Sublime and Beautiful, 1756, III, 27). O terror, a dor em geral, as situações de perigo são causas do S. (Ibid., IV, 5). O modo como essa causa pode produzir prazer (porque o S. é um prazer) é um problema que Burke resolve da mesma maneira que Hume; este, por sua vez, inspirara-se em Fontenelle (Réflexions sur Ia poétique, 36): o prazer provém do exercício, ou seja, do movimento que a dor e o terror provocam no espírito quando isentos do real perigo de destruição. Nesse caso — como diz Burke — o que nasce não é exatamente o prazer, mas "uma espécie de horror deleitável, de tranqüilidade matizada de terror; este, porém, quando provém do instinto de conservação, é uma das paixões mais fortes. Isso é o S." (Ibid., IV, 7). Nas Observações sobre o sentimento do belo e do S. (1764), Kant repetiu substancialmente os mesmos conceitos, robustecendo-os com vasta exemplificação, de valor bastante duvidoso, pois continha entre outras coisas a caracterização dos diferentes povos, com base em suas atitudes em relação ao S. e ao belo (Beobachtungen über das Gefühl des Schõnen und Erhabenen, IV). Mas em Crítica do juízo, as idéias de Hume e Burke foram expressas com maior rigor conceituai, ganhando forma clássica. Segundo Kant, o sentimento do S. tem dois componentes: 1 Q apreensão de uma dimensão desproporcional às faculdades sensíveis do homem (S. matemático), ou de um poder terrificante para essas mesmas faculdades (S. dinâmico); 2° o sentimento de conseguir reconhecer essa desproporção ou ameaça, e, por isso, de ser superior a ambas. Kant diz: "A qualidade do sentimento do sublime é ser ele, em relação a algum objeto, um sentimento de padecimento, representado ao mesmo tempo como final; isso é possível porque nossa impotência revela a consciência de um poder ilimitado do mesmo sujeito, e o sentimento só pode julgar esteticamente este último através da primeira" (Crít. dojuízo, § 27). Por isso, Kant define o S. como "o que agrada imediatamente pela sua oposição ao interesse dos sentidos" (Ibid., § 29, Obs. geral); com isso entende que, ao advertir a desproporção ou o perigo que o S. representa para a sua natureza sensível, o homem se dá conta de que, justamente por adverti-la, não é escravo dessa natureza, mas livre perante ela. Friedrich Schiller só fez expor e esclarecer as idéias de Kant ao afirmar que "se chama de S. o objeto para cuja representação nossa natureza física sente seus próprios limites, ao mesmo tempo em que nossa natureza racional percebe sua própria superioridade, seu caráter ilimitado: um objeto diante do qual somos fisicamente fracos mas moralmente superiores, graças às idéias" (VomErhabenen, 1793). Schiller distinguiu o S. teórico, SUBLIMINAR 924 SUBSISTIR que está em conflito com as condições do conhecimento sensível, do 5. prático, que está em conflito com o instinto de conservação; no S. prático distinguiu o S. prático contemplativo e o S. prático patético: v. PATÉTICO (cf. PAREYSON, A estética do idealismo alemão, I, pp. 175 ss.). Hegel, por sua vez, expressou na oposição infi-nito-finito o conflito típico do Sublime: O S. é a tentativa de exprimir o Infinito, sem encontrar, no reino das aparências, um objeto que se preste a essa representação" (Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner, I, p. 483). Por isso, "as formas por meio das quais aquilo que se manifesta é também abolido, de tal sorte que a manifestação dos conteúdos é também a superação das expressões, é a sublimidade: portanto, esta não consiste" — como diz Kant — "na subjetividade pura do sentimento e em seu poder de estar acima das idéias da razão, mas, ao contrário, baseia-se no significado representativo, em virtude do qual se refere a uma Substância Absoluta" (Ibid., p. 484). Portanto, Hegel viu no S. uma forma especial de arte, mais precisamente a arte simbólica. Nele, a dor e a situação de perigo que, para a estética do séc. XVIII, representam a causa do S., foram substituídas pela inefabilidade e pela majestade da Substância Infinita. Schopen-hauer, contudo, limitou-se a reafirmar a teoria tradicional e considerou que o S. existe quando "os objetos, cujas formas significativas nos convidam à contemplação pura, têm uma atitude hostil para com a vontade humana em geral (cuja objetividade se evidencia no corpo humano) e se opõem a ela ou a ameaçam com sua força superior" (Die Welt, § 39). O último pensador a expor o conceito de S. nesses termos foi Santayana: "A sugestão do terror faz que nos refugiemos em nós mesmos; aí, como numa ação de ricochete, intervém a consciência da segurança ou da indiferença, e nós sentimos a emoção de distanciamento e libertação, em que consiste, realmente, o S." ( The Sense of Beauty, 1896, p. 60). SUBLIMINAR (in. Subliminal; fr. Subliminal; ai. Subliminal; it. Subliminale). O mesmo que inconsciente. Esse termo foi divulgado por F. Myers (Human Personnlity and its Sur-vival ofBodily Death, 1903), que com ele designou o vasto domínio que está sob o limiar da consciência, onde se vai acumulando aos poucos o material que depois é utilizado na criação genial. SUBORDINAÇÃO (lat. Subordinatio; in. Subordination; fr. Subordination; ai. Subordination; it. Subordinazionê). Relação entre dois conceitos: um deles (o subordinado) faz parte da extensão do outro (o sobre-ordenadó) (HAMILTON, Lectures of Logic, I2, p. 188; SIG-WART, Logik, I, 2, pp. 343 ss.; v. HUSSERL, Ideen, I, § 13). SUBORDINACIONISMO (in. Subordina-tionism; fr. Subordinatianisme-, ai. Subordi-natianismus, it. Subordinazionismd). Doutrina trinitária dos Padres gregos do séc. II, em particular de Orígenes: afirma que o Filho tem natureza subordinada à do Pai. Assim, segundo Orígenes, a eternidade do Filho depende da vontade do Pai: Deus é a vida, e o Filho recebe a vida do Pai. O Pai é Deus-Pai, o Filho é Deus (Injohann., II, 1-2). SUB-REPTÍCIO (lat. Surreptitius; in. Sur-reptitious; fr. Subreptice; ai. Erschlichen; it. Surrettiziò). No sentido do termo latino, o que se possui, conquista ou faz clandestinamente ou sem direito. Em filosofia, esse termo é usado especialmente para indicar um pressuposto ou uma hipótese de que se faz uso num raciocínio, sem assumir ou declarar explicitamente. Foi nesse sentido que Kant denominou de sub-repções das sensações ("Subreptione der Empfindungen", Crít. R. Pura, § 6) as qualidades sensíveis atribuídas aos objetos empíricos com base nas sensações. . SUBSISTIR (lat. Subsistere, in. To Subsist; fr. Subsister, ai. Subsistiren; it. Sussisteré). Existir como substância, ou existir independentemente do espírito ou do sujeito pensante. No primeiro sentido, esse termo (que no uso latino comum significa persistir ou durar) foi introduzido por Boécio (Phil. cons., III, 11), passando a ser usado desse modo na tradição escolástica (GILBERTO DELA PORRE, In Boethi de trinitate, P. L. 64e, 1281; S. TOMÁS, S. Tb., I, q. 29, a. 2). É usado com o mesmo significado pelos escritores modernos, como p. ex. Descartes (IVRép., I), Arnauld {Log., 1, 2) e Kant, que chama de "categoria da inerência e da subsistência" a categoria da substância (Crít. R. Pura, § 10). No segundo sentido, de existência que não depende do espírito ou do sujeito pensante, esse termo foi usado por Berkeley (Dialogues between Hylas and Philonous, I, Works, ed. Jessop, II, p. 199, r.42) e por Kant (Crít. R. Pura, § 6, [B52, A361); foi retomado por Peirce, que com ele designou o ser das relações ("A relação por si é um ens rationis e uma mera pos- SUBSTÂNCIA 925 SUBSTÂNCIA sibilidade lógica; mas a sua subsistência tem natureza de fato" {Coll. Pap., 3-571, o texto é de 1903), e estendido por Russell {Problems of Philosophy, 1912, cap. 9) ao modo de ser dos universais e pelos neo-realistas americanos a todas as entidades neutras, constituintes do mundo, que, com sua agregação, podem formar a consciência ou as coisas {The New Realista, 1912). Este segundo significado é ainda bastante difundido na filosofia contemporânea. SUBSTÂNCIA (gr. oúaía; lat. Substantia-, in. Substance, fr. Substance, ai. Substanz; it. Sostanzá). Esse termo teve dois significados fundamentais: 1Q de estrutura necessária; 2B de conexão constante. O primeiro pertence à metafísica tradicional; o segundo, ao empi-rismo. 1B No primeiro significado, é S.: à) o que é necessariamente aquilo que é; b) o que existe necessariamente. Ambas estas determinações foram expostas na metafísica aristotélica, que gira inteiramente em torno do conceito de S. A primeira determinação é designada por Aristóteles com a expressão lò xí nv eivai {quodquid erat esse), que pode ser traduzida como essência necessária; com efeito, ao pé da letra, essa expressão significa aquilo que o ser era, onde o imperfeito "era" indica a continuidade ou estabilidade do ser, seu ser desde sempre e para sempre. A essência necessária é expressa pela definição (v.) e é objeto do conhecimento científico (v. CIÊNCIA). A segunda determinação relaciona-se com a primeira: é S. o que existe necessariamente. Aristóteles diz: "Temos ciência das coisas particulares só quando conhecemos a essência necessária das mesmas, e com todas as coisas ocorre o mesmo que ocorre com o bem: se o que é bem por essência não é bem, então nem o que existe por essência existe, e o que é uno por essência não é uno; e assim com todas as outras coisas" {Met., VII, 6, 1031 b 6). Aristóteles aduz esse argumento contra a separação que Platão faz entre a idéia e as coisas, mas, obviamente, esse argumento significa que tudo é o que é em virtude da essência necessária (que é a sua causa intrínseca ou extrínseca) e que, portanto, tudo o que há de real ou de cognoscível nas coisas faz parte da essência necessária e existe necessariamente. Assim, para Aristóteles, a S. constitui a estrutura necessária do ser em sua concatena-ção causai, porque todas as espécies de causas são determinações da S. (v. CAUSALIDADE). Precisamente neste sentido, Aristóteles afirma que a forma das coisas é eterna e não pode ser produzida nem destruída {Met., VII, 8; VIII, 3), pois a forma é a essência necessária das coisas compostas. Por outro lado, Aristóteles não se preocupou muito em enumerar todos os modos de ser da substância. Começa dizendo que, comumente, se fala de S. em quatro sentidos, senão em mais, a saber: como essência neces sária, como universal, como espécie e como sujeito {Met., VII, 3, 1028 a 32). Mas a S. como universal ou como espécie é excluída pela crítica ao platonismo, ou — o que dá no mesmo — é chamada por Aristóteles de substância segunda, em confronto com a S. primeira, que é a autêntica {Cal, 5, 2 a 13). Restam, portanto, apenas a S. como essência necessária e a S. como sujeito (v.). Neste último significado, a S. pode ser a forma, a matéria ou o composto de ambas {Ibid., 1029 a 2). Em seus dois significados legítimos, a S. exprime o significado fundamental do conceito do ser e, portanto, constitui o objeto da metafísica. "Aquilo que há muito tempo vimos procurando e ainda procuramos, aquilo que sempre será um problema para nós (o que é o ser?) significa isto: o que é a S." {Met., VII, 1, 1028 b 2). Por outro lado, a estrutura substancial do ser é o fundamento do saber científico. A essência necessária das coisas que não têm causa fora de si é intuída diretamente pelo intelecto e constitui os princípios primeiros que fundamentam a demonstração, ao passo que a essência necessária das coisas que têm causa fora de si pode ser revelada, senão demonstrada, pela própria demonstração. Em todos os casos, a necessidade da demonstração é a própria necessidade da S. {An.post, II, 9, 43 b 21; cf. toda a discussão precedente). A história posterior do conceito de S. repete o caráter que já havia servido a Aristóteles para defini-lo: a necessidade. Tal caráter é empregado explicitamente por Plotino para a definição do termo {Enn., I., VI, 3, 4), mas é a Escolástica árabe, em especial Avicena, que mais insiste nele: "Dizemos que tudo o que é tem uma S. {essentid) graças à qual é o que é, e graças à qual é a necessidade disso e seu ser" {Logic, I). S. Tomás, que, com as equivalências lingüísticas estabelecidas em De ente et essentia, pusera fim a um longo período de confusões termi-nológicas (v. ESSÊNCIA), reduz a S. (interpretando corretamente os textos de Aristóteles) à qüi-didade (essência necessária) e ao sujeito {S. Th., I. q. 29, a. 2). Descartes só fazia expressar o mesmo caráter de necessidade ao afirmar SUBSTÂNCIA 926 SUBSTÂNCIA que "quando concebemos a S., concebemos uma coisa que existe de tal modo que, para existir, não tem necessidade de outra coisa senão de si mesma" {Princ. phil, I, 51). Spinoza observava com razão que essa é a própria definição da S. infinita {R. cartesi principia phi-losophiae, 1663), e a adotava para definir esta última: "Entendo por S. aquilo que é em si e se concebe por si mesmo, ou seja, aquilo cujo conceito não precisa do conceito de outra coisa pela qual deva ser formado" {Et, I, prop. III). A definição proposta por Wolff ("S. é o sujeito perdurável e modificável") é por ele mesmo considerada idêntica à definição tradicional e à cartesiana {Ont, § 768, 772). A definição tradicional é simplesmente repetida por Baum-garten: "S. éo ente subsistente por si" {Met, § 191). Leibniz conseguiu expressar em termos modernos o conceito tradicional de S.: "A natureza de uma S. individual ou de um ser completo é ter uma noção tão perfeita que com ela seja possível abranger e deduzir todos os predicados do sujeito aos quais essa noção é atribuída" {Disc. de mét., 1686, § 8). O próprio Leibniz aproximava esta noção da noção esco-lástica tradicional de forma substancial {Ibid., § 11), mas, na realidade, era a própria noção de essência necessária, que já Aristóteles concebia como o princípio do qual podem ser deduzidas todas as determinações de um ente. Nada muda quando Kant começa a considerar a S. como categoria mental, pois a função de tal categoria, segundo ele, é constituir os próprios objetos da experiência. Mas, com esta transformação o conceito não muda. A S. é a "necessidade interna de permanência dos fenômenos", e "para que o que se costuma chamar de S. no fenômeno possa ser substrato de qualquer determinação temporal, é necessário que nele qualquer existência, no passado ou no futuro, possa ser determinada de uma só e única maneira" {Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, cap. 11, seç. III, 3). Em outras palavras, a permanência que constitui a S. é necessidade: é só poder ser de uma única maneira. Neste mesmo sentido, Fichte chamava o eu de substância: "Na medida em que se considera que o eu abrange todo o círculo absolutamente determinado de todas as realidades, ele é Substância.(...) S. é toda a reciprocidade pensada em geral; acidente é alguma coisa determinada que varia com alguma outra coisa variável" {Wis-senschaftslehre, 1794, II, § 4, D; trad. it., pp. 100-101). No mesmo sentido, Hegel afirmava ainda que o conceito é S.: "O conceito é a verdade da S., e como o modo determinado de relação da S. é a necessidade, a liberdade mostra-se como a verdade da necessidade e como o modo de relação do conceito" (Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, II, p. 7; trad. it., III, p. 10; cf. Ene, § 150, 152). A noção de necessidade continuou a caracterizar a idéia de S. em todos os filósofos que a empregam. Rosmini incluía na idéia de S. em universal: 1 B o pensamento da existência atual; 2Q o pensamento do indivíduo que existe; 3e o pensamento "das determinações que ele deve ter para existir, isto é, o pensamento da necessidade de que ele seja completo e tenha tudo o que lhe é necessário para existir" {Nuovo saggio, 589). Pode-se dizer que até Wittgenstein emprega esse termo neste sentido tradicional: "S. é aquilo que existe independentemente do que acontece" {Tractatus, 2.024). 2a O segundo conceito de S., como conexão constante entre determinações simultaneamente dadas pela experiência, é o produto da crítica empirista ao conceito tradicional. Essa crítica visa o caráter fundamental tradicionalmente atribuído à S., a sua necessidade, porquanto tal necessidade não é resultado da experiência. A incognoscibilidade da S. em si mesma, por não ser objeto da experiência e só se dar na experiência como coleção de qualidades, já fora sustentada por Ockham no séc. XIV {In Sent, I, d. 2, q. 2; Quodl, III, 6), mas coube a Locke difundir esse ponto de vista no mundo moderno. Neste sentido, a S. é também chamada por ele de essência real ou forma substancial, e sua crítica encontra-se no cap. 6 do Livro III, mais do que no famoso capítulo 23 do Livro II: "No conhecimento e na distinção das S., nossas faculdades não vão além de uma coleção de idéias sensíveis que observamos nelas; esta, mesmo que criada com a maior diligência e exatidão de que sejamos capazes, estará sempre distante da verdadeira constituição interna de que tais qualidades derivam. (...) Quando nos ocorre examinar as pedras sobre as quais caminhamos ou o ferro que manejamos todos os dias, logo descobrimos que não sabemos como são feitos nem sabemos explicar as diversas qualidades que descobrimos neles. É evidente que a constituição interna de que dependem suas propriedades nos é desconhecida" {Ensaio, III, 6, 9). Aqui Locke identifica com justeza a S. com a "constituição interna" da qual deveriam SUBSTÂNCIA 927 SUBSTRATO derivar as qualidades da coisa: derivar no sentido de que deveriam ser deduzíveis dessa constituição, de tal modo que pudessem ser explicadas e compreendidas em virtude dela. Esta era na realidade a S. aristotélica como essência necessária das coisas. Declarando-a incognoscível, Locke reduz a S. a uma simples "coleção de idéias", abandonando a noção de necessidade em favor da noção de simples coexistência de fato das determinações percebidas. Assim, em Locke, o conceito de S. sofre uma transformação análoga à que o conceito de causa sofrerá nas mãos de Hume: de necessidade racional passa a ser uniformidade factual. A S. deixa de ser necessidade racional, em virtude da qual as determinações de um ente estariam todas racionalmente interligadas e seriam deriváveis da determinação fundamental que constitui a essência do ente, e passa a ser um conjunto de determinações que de fato estão juntas, mas cuja necessidade não pode ser demonstrada. Hume expressava bem essa nova idéia de S. ao dizer que "as qualidades particulares que formam uma S. costumam referir-se a algo desconhecido a que elas supostamente inerem, ou, deixando de lado essa ficção, são consideradas estreita e inseparavelmente interligadas por relações de continuidade e de causação" (Treatise, I, 1, 6; ed. SelbyBigge, p. 16). A conexão de contigüidade e causação tomou o lugar da necessidade racional. Formulação ainda mais rigorosa do mesmo conceito foi proposta por Mach: "A S. não passa de persistência da interconexão: persistência que nunca é absoluta ou rigorosa (Analyse der Emp/indungen, XIV, § 14; trad. it., p. 382). No mesmo sentido, Dewey escreveu: "A condição, a única condição para que possa haver subs-tancialidade, é que a interdependência entre certas qualificações seja um sinal seguro de que, em se verificando certas interações, se-guir-se-ão certos resultados" (Logic, cap. VII; trad. it., p. 187). A idéia de S., no seu significado tradicional de necessidade, e a idéia correlata de causa constituem os eixos de qualquer metafísica (v.). Portanto, são aceitas integralmente por qualquer metafísica de cunho tradicional, ao passo que as correntes empiristas tendem a ver no conceito de S. a interconexão que Hume já entrevira, ou tendem até a desprezá-la, opon-do-lhe a idéia de função, vale dizer, de relação. Esta última passagem já foi realizada por Mach, porquanto a "persistência da interconexão" nada mais é que a uniformidade de certas relações. SUBSTANCIAL (in. Substantial; fr. Substan-tiel; ai. Substantiell; it. Sostanzialé). 1. O que constitui uma substância ou pertence a uma substância: que é essencial ou que existe necessariamente. 2. O que é, num sentido qualquer, importante ou decisivo: p. ex., "uma contribuição substancial". SUBSTANCIALIDADE(in. Substantiality,íx. Substantialité, ai. Substantialitãt; it. Sostanzia-litã). O modo de ser da substância (no sentido 1). Na primeira edição da Crítica da Razão Pura, Kant chamou de "paralogismo da S." o fato de se atribuir ao "eupenso" o modo de ser da substância CCrít. R. Pura, A, 349). Depois disso, Hegel preferiu empregar esse termo com o simples significado de substância em geral (cf. Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, 1, p. 697). SUBSTANCIALISMO (in. Substantialism- fr. Substantialisme, ai. Substantialismus-, it. Sostanzialismó). Termo com que a doutrina metafísica da substância foi às vezes designada pelos que a combatiam (Renouvier, Hamelin e outros). SUBSTITUIÇÃO (in. Substitution, fr. Subs-titution, ai. Unterschiebung; it. Sostituzioné). Uma das operações fundamentais do pensamento em todos os campos. Leibniz definiu a igualdade e a identidade (v.) como possibilidades de substituição. A matemática e a lógica podem ser consideradas sistemas de regras de substituições na medida em que a fórmula a = b pode ser considerada uma regra segundo a qual a, onde quer que apareça, pode ser substituído por b (F. WAISMANN, Einfürung in das ma-thematische Denken, 1936, cap. IX, C; trad. it., p. 165). Mais especificamente, fala-se em lógica de regra de S. como uma das regras primitivas fundamentais de inferência, segundo a qual é permitido inferir de uma fórmula A uma outra fórmula de A substituindo uma variável em A por uma fórmula B (cf. A. CHURCH, Intro-duction to Mathematical Logic, § 10; CARNAP, The Logical Syntax of Language, § 6; Meaning and Necessity, § 11; QUINE, Methods of Logic, § 6, etc). SUBSTRATO (lat. Substratum, in. Substra-tum; fr. Substrat; it. Sostrató). Esse termo foi introduzido pela escolástica do séc. XTV para in- SUBSUNÇÃO 928 SUICÍDIO dicar o indivíduo real (substratum singulare. PEDRO AURÉOLO, In Sent., 1. d. 3S, q. 4, a. 1), sendo depois retomado por Locke para designar aquilo que era tradicionalmente chamado de subjectum ou suppositum, ou seja, o sujeito ou a substância como sujeito {Ensaio, 11, 23, 1). Aceito por Berkeley (Principies ofHuman Knowledge, I, § 7) e por Leibniz (Nouv. ess., II, 23, 1), esse termo passou a ser muito usado e acabou prevalecendo, não sem riscos de confusão (v. SUJEITO). SUBSUNÇÃO (lat. Subsumptio; in. Subsumption; fr. Subsumption; ai. Subsumption; it. Sussunzione). Em sentido próprio, a assunção da premissa menor do silogismo, chamada de hipolema por Hamilton, para reservar o termo lema (v.) à premissa maior (Lectures on Logic, I2, p. 283; cf. WOLFF, Log., § 361). Kant falou de "S. de um objeto sob um conceito" (Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, cap. I), e em sentido idêntico Husserl observava que "a S. de um indivíduo, em geral de um este aqui, sob uma essência não deve ser confundida com a subordinação de uma essência a uma espécie ou a um gênero superiores" (Ideen, I, § 13). SUBTRAÇÃO (in. Subtraction; fr. Sous-traction-, ai. Subtraction; it. Sottrazioné). A noção de S. lógica foi introduzida por Boole da seguinte maneira: "Se x representa uma classe de objetos, então 1 - x representa a classe contrária ou suplementar de objetos, que contém todos os objetos que não estão na classe x" (Laws of Thought, 1854, cap. III, Prop. III, Dover publ., p. 48; v. também PEIRCE, Coll. Pap., 3, 5, 9, 18, etc). Na lógica posterior essa noção desapareceu. SUCESSÃO (in. Succession; fr. Succession; ai. Folge, it. Successioné). 1. O mesmo que série no significado 2. 2. Uma série temporal; p. ex., "uma S. de eventos". SUCESSO (in. Success; fr. Succès; ai. Erfolg; it. Successó). Algumas vezes o instrumentalismo americano foi chamado de "Filosofia do S.", no sentido de ser uma filosofia que considera o S. a medida dos valores. Na realidade, o instrumentalismo também acentuou o caráter sempre relativo e provisório do S. Dewey disse: "O S. nunca é final ou terminal. (...) O mundo não pára quando a pessoa que obteve S. conseguiu o que quis, nem ela mesma pára, e o tipo de S. que ela obteve, assim como sua atitude em relação a ele, é um fator daquilo que advirá" (Human Nature and Conduct, p. 254). SUFICIENTE, RAZÃO. V. FUNDAMENTO. SUFISMO (in. Sufism; fr. Sufisme; ai. Sufis-mus; it. Sufismó). Misticismo árabe e persa (assim chamado porque os mantos de seus adeptos eram feitos de pêlos de camelo) que se desenvolveu a partir do séc. VIII por influência do cristianismo e culminou no neoplato-nismo de Algazali (séc. XI) (cf. J. A. ARBERRY, Sufism, 1950). SUGESTÃO (in. Suggestion; fr. Suggestion; ai. Suggestion; it. Suggestioné). 1. Em geral, qualquer tipo ou forma de associação psíquica. Peirce, p. ex., diz: "O modo de S. com que a hipótese sugere os fatos na indução é por contigüidadé, conhecimento habitual de que as condições das hipóteses podem ser realizadas em certos modos experimentais" (Coll. Pap., 7.218) (v. ASSOCIAÇÃO). 2. Qualquer influência exercida por uma pessoa sobre o comportamento de outra pessoa. Nesse sentido, esse conceito pertence à psicologia. SUICÍDIO (gr. è^aycoYií; in. Suicide; fr. Suicide, ai. Selbstmord; it. Suicídio). Os filósofos condenaram o S. pelos seguintes motivos: ls Porque é contrário à vontade divina. Platão afirma que "não é irracional que alguém não possa matar-se antes que a divindade lhe comande essa necessidade" (Fed., 62 c). Este é o ponto de vista constantemente afirmado pelos escritores cristãos (v. para todos eles: S. AGOSTINHO, Deciv. Dei, I, 20; S. TOMÁS, S. Th., II, 2, q. 64, a. 5). A afirmação de que o S. é contrário à ordem do destino (PLOTINO, Enn., I, 9) ou à lei natural (S. TOMÁS, S. Th., II, 2, q. 64, a. 5) não é diferente, visto que o destino ou a lei natural são manifestações da vontade divina. A esse argumento Hume replicava que nada escapa à vontade divina, nem a morte, natural ou voluntária, e que por isso o S. não pode ser considerado contrário à vontade divina ou à ordem das coisas (Of Suicide, em Essays, ed. Green e Grose, II, p. 412). 2Q Porque o S. não chega a separar completamente a alma do corpo. Este é o argumento aduzido por Plotino contra o S.; segundo ele, "quando o corpo é coagido por violência a separar-se da alma, não é ele que permite a partida da alma, mas foi uma decisão da paixão, seja ela tédio, dor ou ira" (Enn., I, 9). Esta também é a razão aduzida por Schopenhauer, segundo quem "o S., longe de ser negação da vontade, é um ato de forte afirmação da vonta- SUICÍDIO 929 SUJEITO de" porque "o suicida quer a vida e só está descontente com as condições que lhe couberam" (Die Welt, 1, § 69). 3a Porque é transgressão de um dever para consigo mesmo, pois, como diz Kant, "o homem tem a obrigação de conservar a vida unicamente pelo fato de ser uma pessoa" iMet. der Sitten, II, parte I, § 6). 4a Porque é um ato de covardia. Fichte observava a propósito que também pode ser considerado um ato de coragem. Se, de fato, falta ao suicida coragem "para suportar uma vida que se tornou insuportável", o S. executado com fria premeditação é a expressão do domínio da razão sobre a natureza, que é o instinto de autoconservaçâo. E concluía: "Se confrontado com o homem virtuoso, o suicida é um covarde; se confrontado com o miserável que se submete à desonra e à escravidão para prolongar por alguns anos o sentimento mesquinho de existir, é um herói" (Sittenlehre, 1798, em Werke, IV, p. 268). 5a Porque é injusto para com a comunidade à qual o suicida pertence. Esta é a razão aduzida por Aristóteles (Et. nic, V, 11, 11 38a 9). A esse argumento Hume objetava que as obrigações do homem e da sociedade são mútuas; assim, a morte voluntária não anula só as obrigações do homem para com a sociedade, mas também as da sociedade para com ele (Of Suicide, em Essays, cit., p. 413). Por outro lado, os filósofos consideraram o S. lícito ou necessário pelos seguintes motivos: Ia Porque pode ser um dever renunciar à vida quando continuar vivendo impossibilita o cumprimento do dever. Era assim que pensavam os estóicos, cuja doutrina Cícero expõe da seguinte maneira: "Quem possui em maior número as coisas segundo a natureza tem o dever de continuar vivendo; quem, ao contrário, tem ou se acredita destinado a ter em maior número as coisas contrárias, tem o dever de sair da vida. Donde se segue que o sábio às vezes tem o dever de sair da vida mesmo sendo feliz, e o tolo, de continuar vivendo mesmo sendo infeliz" (De finibus, III, 18, 60; v. SÊNECA, Ep., 12). 2a Porque é uma afirmação da liberdade do homem contra a necessidade. Epicuro dizia: "É uma desventura viver na necessidade, mas viver na necessidade não é em absoluto necessário"; e Sêneca comentava: "Agradecemos a Deus que ninguém possa ser retido em vida contra sua própria vontade: é possível esmagar a própria necessidade" (Ep., 12). A exaltação da morte por Zaratustra tem o mesmo motivo: "Louvo minha morte, a morte livre, que vem porque eu quero. E quando vou querer? Quem tem uma meta e um herdeiro quer a morte na hora certa, pela sua meta e por seu herdeiro" (Also sprach Zarathustra, I, Da livre morte). 3a Porque pode ser a saída para uma situação insustentável e o único modo de salvar a dignidade e a liberdade. Desse ponto de vista Hume afirmava que "o S. está de acordo com o interesse e o dever pessoal: isso não pode ser questionado por quem reconhece que a idade, a doença e a infelicidade podem transformar a vida num peso insustentável e torná-la pior que o aniquilamento" (Of Suicide, em Essays, cit., p. 414). Na filosofia contemporânea, Jas-pers aduziu o mesmo argumento em favor do S. (Phil, 11, pp. 303 ss.), e Sartre escreveu: "Se estou mobilizado numa guerra, essa é a minha guerra: ela é à minha imagem e eu a mereço. Mereço antes de tudo porque podia ter-me subtraído dela com o S. ou com a deserção: essas possibilidades extremas devem sempre ser levadas em conta quando é preciso enfrentar alguma situação" (Vêtre et le néant, p. 639). SUI GENERIS. Expressão usada em frases escolásticas como: "Todas as coisas são medidas por alguma coisa do mesmo gênero", como p. ex. o comprimento pelo comprimento, o número pelo número, etc. Essa frase pode ser considerada uma premissa para se afirmar que, pelo fato de ser Deus a medida de todas as substâncias, ele pertence ao gênero das substâncias. Mas a doutrina escolástica a propósito afirma, ao contrário, que Deus não está em nenhum gênero, conquanto seja princípio do gênero das substâncias e de todos os outros gêneros (v. S. TOMÁS, 5. Th., I., q. 3, a. 5; Contra Gent., I, 25). SUJEITO (gr. tmoiceíuEvov; lat. Subjectum, Suppositum-, in. Subject; fr. Sujet; ai. Subjekt; it. Soggettó). Esse termo teve dois significados fundamentais: Ia aquilo de que se fala ou a que se atribuem qualidades ou determinações ou a que são inerentes qualidades ou determinações; 2a o eu, o espírito ou a consciência, como princípio determinante do mundo do conhecimento ou da ação, ou ao menos como capacidade de iniciativa em tal mundo. Ambos esses significados se mantêm no uso corrente do termo: o primeiro na terminologia gramatical e no conceito de S. como tema ou assunto do dis- SUJEITO 930 SUJEITO curso; o segundo no conceito de S. como capacidade autônoma de relações ou de iniciativas, capacidade que é contraposta ao simples ser "objeto" ou parte passiva de tais relações. Ia O primeiro significado pertence à tradição filosófica antiga. Aparece em Platão (Prot., 349 b) e é definido por Aristóteles como um dos modos da substância. Aristóteles diz: "S. é aquilo de que se pode dizer qualquer coisa, mas que por sua vez não pode ser dito de nada" (Met., VII, 3,1028 b 36). Neste sentido, o 5. pode ser entendido: d) como a matéria de que se compõe uma coisa, p. ex. o bronze; ti) como a forma da coisa, como p. ex. o desenho de uma estátua; c) como a união de matéria e forma, como p. ex. a estátua (Ibid., 1029 a 1). Essas determinações pertencem estritamente à metafísica aristotélica. Mas o que importa é o sentido geral do termo: S. é o objeto real ao qual são inerentes ou ao qual se referem as determinações predicáveis (qualidade, quantidade, etc). Este é também o conceito de sujeito dos estóicos, que o consideraram como objeto externo ao qual se refere o significado, ou seja, como a denotação do significado (SEXTO EMPÍRICO, Adv. tnath., VIII, 12; cf. SIGNIFICADO). Os epicuristas empregaram esse termo com o mesmo sentido (EPICURO, Epístola, I, pp. 12, 24, Uesener). É com essa tradição que se relaciona o uso gramatical do termo, que começou no séc. II d.C; Apuleio já chamava de subjectiva ou subdita a parte do discurso que os antigos chamavam de nome, e de declarativa a parte que os antigos chamavam de verbo (De dogmate Platonis, III, p. 30, 30; cf. MARCIANO CAPELA, De nuptiis, IV, 393). Esse significado de "S." permanece inalterado através de longa tradição. Os escritores medievais adotam as determinações de Aristóteles: chamam a substância de subjectum ou suppositum porquanto a ela inerem as qualidades ou as outras determinações (cf. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 29, a. 2; DUNS SCOT, Op. Ox, II, d. 3, q. 6, n. 8; OCKHAM, In Sent, I, d. 2, q. 8, E). O significado desse termo não muda quando por S. é entendida a alma como substância à qual inerem determinados caracteres ou da qual emanam determinadas atividades. Hobbes diz: "O S. da sensação é o próprio senciente, ou seja, o animal" (De corp., 25, 3). Locke chama o sujeito neste sentido de substratum ou suporte (Ensaio, II, 23, 1-2). É com esse mesmo sentido que Hume se vale desse termo: "Eis que aparece Spinoza a dizer-me que só há modificações e que o S. ao qual elas inerem é simples, não composto e indivisível" (Treatise, 1, IV, 5, ed. SelbyBigge, p. 242). Por outro lado, esse mesmo significado mantém-se até mesmo no racionalismo alemão. Leibniz pretende conservar o significado tradicional de S. (Nouv. ess., II, 23, 2) e, ao falar de disposições "que vêm asubjecto, ou da própria alma", está falando de disposições que vêm da própria substância da alma (Remarques sur le Livre de 1'origine du mal, em Op., ed. Erdmann, p. 645). Por sua vez, Wolff define o S. como "o ente, enquanto dotado de essência e capaz de outras coisas além dela" (Ont., § 7 11). No mesmo sentido, Baumgarten diz que o S. é o ente, determinado na matéria de que é constituído (Met., § 344). Aliás, o próprio Kant recorre a essa noção tradicional de sujeito. Diz: "Há tempos observou-se que, em todas as substâncias, o S. propriamente dito, aquilo que fica depois de retirados os acidentes (como predicados), portanto o verdadeiro elemento substancial, nos é desconhecido" (Prol, § 46). 2Q O segundo significado desse termo, como o eu, a consciência ou a capacidade de iniciativa em geral, teve início com Kant, que certamente teve em mente o significado que a oposição entre subjetivo e objetivo assumira em alguns escritores alemães, seus contemporâneos (v. SUBJETIVO). Para Kant, S. é o eu penso da consciência ou autoconsciência que determina e condiciona toda atividade cognos-citiva: "Em todos os juízos sou sempre o S. determinante da relação que constitui o juízo". "Para o eu, para o ele ou para aquilo (a coisa) que pensa, a representação é apenas de S. transcendental dos pensamentos, = x que só é conhecido através dos pensamentos que são seus predicados e dos quais, à parte estes, não podemos ter o menor conceito" (Crít. R. Pura, Dial. transcendental, II, cap. 1). Nessas palavras de Kant pode-se reconhecer a passagem do velho para o novo significado de sujeito. O eu é S. na medida em que seus pensamentos lhe são inerentes como predicados: este é ainda o significado tradicional do termo. Mas o eu é sujeito na medida em que determina a união entre S. e predicado nos juízos, na medida em que é atividade sintética ou judicante, espontaneidade cognitiva, portanto consciência, autoconsciência ou apercepção; e este é o novo significado de sujeito. A tradição pós-kantiana atém-se exclusivamente a este segundo significado. Para Fichte, SUJEITO 931 SUJEITO o S. é o Eu, que é "S. absoluto, não representado nem representável", que "não tem nada em comum com os seres da natureza" (Wissens-chaftslehre, 1794, § 3, d). Segundo Fichte, a diferença entre a Substância de Spinoza e o Eu Absoluto consiste no fato de que Spinoza não concebeu a substância como S. (Ibid., trad. it., pp. 78 ss.). Schelling fala no mesmo sentido de identidade ou unidade do S. e de objeto na Autoconsciência Absoluta (System des transzen-dentalenIdealismus, 1800,1, cap. II; trad. it., p. 34). Por sua vez, Hegel dizia: "Tudo depende de se entender e expressar o Verdadeiro não somente como Substância, mas de maneira igualmente decidida como S. (...) A substância viva é o ser, que na verdade é S. ou — o que dá na mesma — é o ser que na verdade é efetivo, mas somente na medida em que a substância é o movimento de pôr-se a si mesma ou é a mediação do vir a ser outra consigo mesma" (Phánomen. des Geistes, Pref., II, 1). No mesmo sentido, Hegel afirma que a Idéia Absoluta é unidade de S. e objeto (Ene, § 214). E acrescenta: "A unidade da idéia é subjetividade, pensamento, infinidade, e portanto deve ser distinguida essencialmente da idéia como substância do mesmo modo como se deve fazer a distinção entre essa subjetividade domi-nadora, esse pensamento, essa infinidade e a subjetividade unilateral, o pensamento unilateral, a infinidade unilateral, à qual ela se rebaixa ao julgar e definir" (Ene, § 215). Logo, a subjetividade como "subjetividade infinita", ou seja, não intelectual, prevalece sobre a objetividade na "unidade S.-objeto" que é a Idéia ou o Absoluto. Mas Hegel também viu no S. como tal a capacidade de iniciativa ou o princípio da atividade em geral. "O S. é a atividade da satisfação dos impulsos, da racionalidade formal, vale dizer, é a atividade que traduz a subjetividade do conteúdo (que sob esse aspecto é fim) na objetividade em que o S. se conjuga consigo mesmo" (Ene, § 475). Assim como Fichte, Schopenhauer insistia na impossibilidade de representar o S.: "Aquele que tudo conhece e não é conhecido por ninguém é o Sujeito. É ele, pois, que tem o mundo em si; é a condição universal e sempre pressuposta de qualquer fenômeno, de qualquer objeto: porque o que existe, existe para o sujeito" (Die Welt, I, § 2). É quase supérfluo observar como o idealismo contemporâneo abusou dessas noções, especialmente o idealismo italiano. Gentile dizia: "A realidade espiritual objeto do nosso conhecimento não é espírito e fato espiritual, mas pura e simplesmente espírito, como sujeito. Como tal, ela só é conhecida na medida em que sua objetividade se resolve na atividade real do S. que a conhece" (Teoriagenerale dello spirito, 1920, 11, § 3). Croce emprega a palavra S. para indicar o Espírito do Mundo, a Razão ou a Humanidade, que é o princípio criativo da história (Storiografia e idealitã morale, 1950, p. 21). Ficaram poucos sinais dessa pesada mitologia no restante da filosofia contemporânea. Por um lado, as correntes do neocriticismo(v), ao insistirem no aspecto lógico-objetivo do conhecimento, relegaram para segundo plano a função do sujeito; aliás, evitaram empregar seu conceito e o próprio termo em suas análises explicativas. Por outro lado, o S. como eu (ou o eu como S.) simplesmente desaparece em algumas filosofias contemporâneas porque desaparece a função diretiva e construtiva que ele deveria exercer. É o que acontece, p. ex., na filosofia de Mach, em que o eu se torna simplesmente um conjunto de sensações, de elementos cognoscitivos, e não tem mais função como S. (Analyse derEmpfindungen, 1900,1, 12). Em sentido análogo, Wittgenstein diz que o S. "não existe. Se eu escrevesse um livro 'O mundo como encontrei', deveria falar também de meu corpo, e dizer quais as partes dele que obedecem à minha vontade e quais não, etc, o que seria um método de isolar o sujeito ou de mostrar que, em sentido importante, não há sujeito. Com efeito, não se poderia falar dele sozinho nesse livro" (Tractatus, 1922, 5.631). O S. não existe porque "o S. não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo" (Ibid., 5.632), no sentido de que, assim como o olho, vê tudo mas não se vê a si mesmo, e portanto se resolve inteiramente nos objetos vistos. Não é muito diferente o significado da tese de Santayana, de que "o espírito não existe" (Scepticism and Animal Faith, 1923, cap. 26). Mas mesmo quando se reconhece a existência do S., sua função é reduzida ao mínimo pela corrente realista. Ao afirmar que "S. e objeto são sempre correlativos um ao outro e por isso inseparáveis", N. Hart-mann está reduzindo a função do S. a "imagem, representação ou conhecimento do objeto", excluindo inclusive a possibilidade de que ele modifique a natureza deste (Sistematische Philosophie, 1931, § 10). Finalmente, mesmo quando não excluída, a função do S. não é considerada incondicionada ou criadora, mas SUMA 932 SUPERAR submetida a limites e condições, negando-se em todos os casos que ele possa valer como substância ou força autônoma. Husserl diz: "O ego constitui-se por si mesmo na unidade de uma história. Ao se dizer que, na constituição do ego, estão contidas todas as constituições de todos os objetos que existem para ele, ima-nentes e transcendentes, reais e ideais, é preciso acrescentar que o sistema de constituições em virtude das quais tais objetos existem para o ego só é possível no quadro de leis genéticas" {Cart. Med, 1931, 37). Desse ponto de vista, o S. é uma função, não uma substância ou uma força criadora. Heidegger disse: "Se para o ente que nós somos e que definimos como ser-aí for escolhido o termo sujeito, poderemos dizer: a transcendência implica a essência do S., é a estrutura fundamental da subjetividade. Não que o S. exista antes como S. e depois, no momento em que alguns objetos se revelem presentes, ele possa até mesmo transcendê-los. Ser S. significa ser existente na transcendência e enquanto transcendência" {Vom Wesen des Grundes, 1929, II; trad. it., p. 30). É preciso lembrar que, para Heidegger, transcendência (v.) é relação com o mundo; portanto, o S. é por ele identificado com essa relação. De modo mais empírico, Dewey ressalta o caráter puramente funcional da subjetividade: "Uma pessoa, ou — mais genericamente — um organismo, torna-se sujeito cognoscente em virtude de seu empenho em operações de investigação controlada" {Logic, 1938, p. 526). Admitir que existe S. cognoscente independente da investi-gação e anterior a ela significa supor algo que é impossível verificar empiricamente e que, portanto, não passa de preconceito metafísico. Essa idéia fora exposta por Dewey já em Studies in Logical Theory, de 1903 (cf. também Experience and Nature, 1926, cap. VI). SUMA. No séc. XII começou-se a designar com este termo os breves tratados sistemáticos sobre algum conjunto de conhecimentos. Abelardo escrevia no prefácio à sua Introdução à Teologia: "Escrevi uma suma da sagrada erudição, como introdução à divina escritura" {P. L., 68°, col. 979). As S. costumavam ter como título a matéria tratada {S. de vitiis et virtutibus-, S. de articulis fidei; S. sermonum; S. grammaticalis, S. logicalis, etc). Depois do séc. XIII, começou-se a dar preferência a esse termo, em vez de Sententiae, para. título das exposições sistemáticas de teologia. Os manuscritos da obra de Pietro da Capua (escrita por volta de 1200) já recebem o título de Summa. Nas grandes obras sistemáticas do séc. XIII esse termo é usado quase com exclusividade, (v. M. GRABMANN, Geschichte der scholastischen Methode, II, pp. 23 ss.). SUNTTAS (in. Sunnites-, fr. Sunnite, ai. Sun-niten-, it. Sunnití). Corrente islamita ortodoxa que admite a validade de crenças práticas não prescritas no Alcorão, mas cuja origem seria o próprio Maomé. Os xiitas, ao contrário, negam o valor da tradição. SUPERADDITA, FORMA. Telésio extraiu essa expressão nos escolásticos de inspiração escotista para designar a alma supranatural, diretamente infundida no homem por Deus, que ele admite estar ao lado da natural e material, como sujeito da vida religiosa e da aspiração do homem pelo que está além da natureza. Ao contrário da alma natural, a forma S. não seria corruptível {De rer. nat., V, 3). SUPERAR (in. To sublate-, fr. Dépasser, ai. Aufheben-, it. Superaré). Termo usado por He-gel para indicar o processo dialético que, ao mesmo tempo, conserva e elimina cada um de seus momentos. Hegel dizia: "Na língua, a palavra S. tem sentido duplo porque, por um lado, significa conservar, reter, e, por outro, fazer cessar, pôr fim. 'Conservar' já encerra o negativo, implica que algo foi privado de sua imediação, portanto de uma existência aberta a influências externas, com o fim de ser retido. Assim, o que é superado é ao mesmo tempo algo conservado que perdeu apenas a imediação, mas nem por isso é anulado." {Wissens-chaft der Logik, I, Livro I, seç. I, cap. 1, nota; trad. it., pp. 105-06). Embora Hegel, no mesmo trecho, faça um paralelo entre o significado do termo alemão e o latim tollere, o uso em italiano estabeleceu a equivalência do termo com superar. Superação significa, conseqüentemente, progresso que conservou o que havia de verdadeiro nos momentos precedentes, levando-o a completar-se. Como exemplo desse conceito, pode-se citar o que Hegel diz sobre a superação no domínio da filosofia. "Toda as filosofias foram necessárias e ainda são; nenhuma desapareceu, mas todas foram conservadas afirmativamente na filosofia como momentos de um todo.- os princípios são conservados, e a filosofia mais recente é o resultado de todos os princípios precedentes: nesse sentido, nenhuma filosofia foi refutada. O que foi refutado não é o princípio de dada filosofia, mas apenas a sua pretensão de representar a conclusão últi- SUPEREROGATORIO 933 SUPERSTIÇÃO ma e absoluta" {Geschichte der Philosophie, I, Intr., A, 3, b). O idealismo italiano entre guerras usou e abusou desse termo. SUPEREROGATORIO (in. Supererogato-ry). O que é feito ou dado sem estrita obrigação jurídica ou moral; tratase de doação supérflua, portanto meritória. Essa é uma possibilidade que a moral kantiana excluiria, porque, segundo Kant, o homem está sempre em débito para com o dever (Religion, II, I, c; trad. it., Durante, p. 67). SUPERESTRUTURA (in. Superstructure, fr. Superstructure, ai. Überbau; it. Soprastrutturd). Termo empregado pelos marxistas para designar a ordenação política e jurídica, bem como as ideologias políticas, filosóficas, religiosas, etc, na medida em que dependem da estrutura econômica de dada fase da sociedade. Marx diz: "O conjunto de relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, ou seja, a base real sobre a qual se ergue a S. jurídica e política e à qual correspondem formas determinadas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona, em geral, o processo social, político e espiritual da vida" {Zur Kritik der politischen Ôkonomie, 1859, Pref.) (v. MATERIALISMO HISTÓRICO). Esse termo também foi empregado por N. Hartmann para indicar um estrato ou plano do ser no qual se conservem somente algumas das categorias do plano inferior; distinguir-se-ia da sobreformação (Überformung) porque nesta se conservariam todas as categorias do plano inferior. Por ex., o plano psíquico seria uma S. em relação ao plano orgânico, porque nele é abandonada a categoria espaço, que ainda domina o ser orgânico. Assim, a diferença entre S. e sobreformação bloquearia o caminho para a concepção mecanicista da vida psíquica {Aufbau der realen Welt, 1940). Algumas vezes o termo de Hartmann é traduzido como sobreconstrução (it., so-pracostruzioné) (cf. BARONE, Nicolai Hartmann, p. 342). SUPER-HOMEM (gr. Ú7iepáv6pü)7toç; in. Superman; fr. Surhomme, ai. Übermensch; it. Superuomó). O termo que se encontra em Luciano {Cataplus, 16) e que algumas vezes foi usado para designar o homem-Deus (= Cristo; v. T. TASSO, Lettere, V, 6), foi empregado antes por Ariosto (Orl. Fur, 38, 62) para indicar uma humanidade extraordinária. Foi introduzido na Alemanha por Heinrich Müller {Geistliche Erbauungstunden, 1664-66) e empregado por vários escritores do Romantismo alemão, inclusive por Goethe {Fausto, 1, Noite). Mas foi só com Nietzsche que esse termo assumiu significado filosófico e se tornou popular. O S. é a encarnação da vontade de potência: "O homem deve ser superado. O S. é o sentido da terra. (...) O homem é uma corda esticada entre o animal e o S., uma corda sobre o abismo" {Also sprach Zarathustra, I, 3). O S. é a encarnação dos valores vitais que Nietzsche contrapõe aos valores tradicionais; para Nietzsche, é o filósofo criador de valores, dominador e legislador, em oposição aos "operários da filosofia", que são os comumente considerados filósofos (Jenseits von Gut undBõse, § 211). Apesar de o conceito nietzschiano não ter nenhum significado político preciso, acabou servindo de pretexto ao racismo e às concepções antidemocráticas em política. SUPERIOR (lat. Superius; in. Superior, fr. Supérieur, ai. Hõher, it. Superioré) 1. Em sentido lógico: mais extenso, que tem maior extensão ou denotação. Nesse sentido, fala-se de "gênero S.", de "conceito S." ou, em geral, de "termo S.". Este uso remonta à lógica terminista do séc. XIV (PEDRO HISPANO, Summ. log., 2.08; 3.02; 12.13; cf. PRANTL, Geschichte der Logik, IV, p. 49). 2. O que pertence a uma fase mais avançada da evolução biológica: nesse sentido, fala-se de "espécies S." ou "animais superiores". 3. O que pertence à esfera das funções espirituais ou simbólicas do homem. Nesse sentido fala-se em "funções S." ou "interesses superiores". 4. Aquilo a que, em algum sentido, se atribui grau mais elevado de dignidade ou valor; p. ex. "homem S." ou "formas superiores de arte ". SUPERSTIÇÃO (gr. SeiaiSaiixovía; lat. Su-perstitio; in. Superstition; fr. Superstition; ai. Aberglaube, it. Superstizioné). Excesso ou aberrações da religião, ou então a forma de religião de que não se compartilha. Foi Cicero quem definiu a S. no primeiro sentido: "Não só os filósofos mas também os nossos antepassados distinguiram a S. da religião: aqueles que rezavam o dia inteiro e imolavam vítimas para que os filhos sobrevivessem [lat. superstes, superstitis = sobrevivente] foram chamados de supersticiosos, e depois essa palavra ganhou significado mais extenso" {De nat. deor., II, 28, 71-72). Essa definição foi repetida substancialmente por S. Tomás: "A S. é o vício que, por SUPERVERDADE 934 SUPRA-ENTE excesso, se opõe à religião, pois se presta culto divino a quem não se deve ou na forma indevida" {S. Th., II, 2, q. 93, a. 1). No segundo sentido, foi definida por Hobbes: "O temor diante dos poderes invisíveis, se estes forem imaginados pelo espírito ou sugeridos por narrativas publicamente admitidas, é religião; se sugeridos por narrativas não admitidas publicamente, é S." {Leviath., 1, 6). Na verdade, S. é um termo polêmico: para o estudo objetivo (antropológico ou sociológico) das crenças, não existem superstições, e sempre que se fala em S., está-se tomando como referência determinado sistema religioso, que é considerado o único verdadeiro. Assim, cada religião parece S. aos seguidores de uma religião diferente, e a única descrição exata do termo é a que se encontra em Hobbes. SUPERVERDADE (lat. Superveritas). Um atributo de Deus, segundo Scotus Erigena {De divis. nat., I, 14) (v. SUPRA-ENTE). SUPOSIÇÃO (gr. ráóeecnç; lat. Suppositio, in. Supposition; fr. Supposition; ai. Voraus-setzung, Supposition; it. Supposizioné). 1.0 mesmo que hipótese. 2. Na lógica terminista medieval, é o significado denotativo dos termos presentes na proposição, enquanto o significado em sentido estrito é o conotativo (v. SIGNIFICADO). Nesse sentido, a S. é definida como uma positio pro alio, um estarem lugar de alguma outra coisa: p. ex., quando dizemos "o homem corre", o termo "homem" está em lugar de Sócrates, Platão ou algum outro (PEDRO HISPANO, Summ. log., 6.03; OCKHAM, Summa log., I, 63; BURIDAN, Sophysmata, 3; ALBERTO DE SAXÔNIA, Lógica) Com exceção de alguns casos isolados, a teoria da suppositio é mais ou menos uniforme em todos os lógicos do séc. XIV. Eles distinguiam três espécies fundamentais de S.: pessoal, simples e material. Tem-se a S. pessoal quando o termo está no lugar do objeto significado, qualquer que ele seja: coisa externa, palavra, conceito, sinal escrito ou outra coisa. Assim, nas frases: "o homem é um animal", "o nome é parte da proposição", "a espécie é um universal", os termos homem, nome e espécie têm S. pessoal porque estão no lugar dos respectivos objetos. Tem-se S. simples quando o termo não está no lugar do objeto significado, mas de seu conceito. Assim, quando se diz "o homem é uma espécie", o termo homem não está no lugar de "o homem", mas do conceito "homem". Finalmente, tem-se S. material quando um termo está no lugar da palavra ou do sinal escrito, como nas frases "homem é substantivo" ou "está escrito homem", onde homem está no lugar de uma palavra ou de um sinal escrito. Cada um desses atributos da S. foi ainda subdividido pelos lógicos do séc. XIV e estudado em termos de dificuldades e problemas que apresentam. Para se ter uma idéia desses problemas, eis como Ockham enfrenta a dificuldade apresentada pela S. do termo "homem" na proposição "o homem é a mais elevada das criaturas". Aqui o termo "homem" não pode ter uma S. simples porque não é o conceito homem que é a mais elevada das criaturas; tampouco pode ter uma S. pessoal, porque, subs-tituindose 'homem' por algum homem individual, o juízo torna-se falso. A solução é que a proposição tem uma S. pessoal, mas que deve ser limitada, dizendo-se que o homem é a mais elevada de todas as criaturas que sejam diferentes dele. nesse caso, a proposição é verdadeira para cada indivíduo humano {Summa log., I, 66). A teoria da S. foi posta de lado quando a lógica terminista foi abandonada em favor da lógica mentalista, sob a influência do carte-sianismo. Os problemas por ela tratados foram herdados pela teoria do conceito (cf. E. ARNOLD, Zur Geschichte der Suppositionstheorie, em Symposion, III, 1954; E. A. MOODY, Truth and Consequence in Mediaeval Logic, 1953). SUPRA-ALMA (in. Oversoul). Foi assim que R. W. Emerson definiu Deus, concebendo-o princípio imanente no mundo e no homem {Nature, 1836). SUPRACONSCIÊNCIA (fr. Supraconscien-cé). Termo usado por Bergson para indicar uma "verdadeira atividade criadora" ou uma "consciência pura", que, para ele, não é a vida {Évol. créatr., 8a ed., 1911. pg. 267, 283, etc). SUPRACONSTRUÇAO. V. SUPERESTRUTURA. SUPRA-ENTE (gr. ÚTtepoúoioç; ai. Über-seiend; it. Superessenté). Encontramos esse adjetivo pela primeira vez em Proclo {Inst. theol, 115), mas Platão já dissera que o bem está além da substância {Rep., VI, 509 b), conceito que se tornou basilar na filosofia de Plo-tino, para quem o uno está "além do ser" {Enn., V, 5, 6) ou "antes do ser" {Lbid., III, 8, 10). Dionísio, o Areopagita usou o termo "su-pra-essencial" {De divinis nominibus, II, em P. L., 122s, col., 1122), e Scotus Erigena valeu-se do termo superessentia {Dedivis. nat, 1,14). O mesmo termo é encontrado ainda na tradição mística e teosófica. Mestre Eckhart fala de Deus SUPRALAPSARIANISMO 935 SYNKATATHESIS como de "uma essência supra-essencial e um nada S." (Deutsche Mystiker des XIVJahrhun-derts, ed. Pfeiffer, II, pp. 318-19). A mesma qualificação aparece em Schelling (Werke, I, X, p. 260) (v. TEOLOGIA; TRANSCENDÊNCIA). SUPRALAPSAMANISMO (in. Supralapsa-rianism, fr. Supralapsarianisme, ai. Supralapsa-rianismus; it. Sopralapsarismó). No séc. XVII, foi esse o nome dado à doutrina de que Deus predeterminou a queda (lapsus) de Adão ab aetemo, para pôr em ação seus instrumentos de salvação. Essa doutrina foi sustentada por alguns teólogos calvinistas, mas negada por outros que se chamaram de infralapsarianos. Leibniz discutiu longamente esses problemas no segundo livro da Teodicéia (1710) (v. GRAÇA; PREDESTINAÇÃO). SUPRA-ORGÂNICO (in. Superorganic, fr. Superorganique, ai. Überorganisch; it. Superor-ganicó). Termo usado pelo positivismo para indicar o que está além da vida orgânica, vale dizer, a vida psíquica ou a vida social, especialmente esta última. Esse termo é usado freqüentemente por Spencer. SUPRA-SENSÍVEL (in. Supersensible, fr. Suprasensible, ai. Übersinnlich; it. Soprasen-sibilé). Na terminologia kantiana (que pôs esse termo em uso), o mesmo que númeno: "Aquilo que diz respeito à faculdade especulativa da razão, mas de que nenhum conhecimento é possível (noumenorum non datur scientià)" (Fortschrifte derMetaphysik, 1804, [A 55]). Portanto, o S. é o domínio das idéias da Razão Pura, com tudo o que elas implicam para a vida moral do homem. Hegel empregou esse termo em sentido análogo, mas positivo, para indicar aquilo que a aparência sensível é em sua natureza racional: "O S. é o sensível e o percebido postos como são em verdade", portanto como "o universal simples, o universal em que a multiplicidade não subsiste, em que nada há para conhecer": em suma, o universal do modo como Schelling o entendeu (Pbãnomen. des Geistes, I, IV, B; trad. it., p. 127 e nota). SUPREMO BEM. V. BEM SUPREMO. SUSPENSÃO DO JUÍZO. V. EPOCHÉ. SYNKATATHESIS. V. ASSENTIMENTO. T TABU (in. Taboo; fr. Tabou; ai. Tabu; it. Tabu). Termo polinésio que significa simplesmente proibir ou proibido e que passou a indicar a característica sagrada da proibição em todos os povos primitivos e qualquer proibição não motivada em todos os povos. A generalização nesse sentido do conceito é de autoria de Salomon Reinach. A melhor explicação da função do T. encontra-se em A. R. Radcliffe-Brown, que nele discerniu um instrumento para ressaltar a importância social de acontecimentos, ações, interditos, normas, etc. Nesse sentido, o T. está ligado a qualquer prescrição ritual (Structure and Function in Primitive Society, 1952, cap. VII). Freud comparou o T. à neurose obsessiva e viu entre as duas coisas quatro pontos semelhantes: ls falta de motivação das proibições; 2S sua validação por meio de uma necessidade interior; 3a possibilidade de deslocamento e contágio dos objetos proibidos: 4a criação de práticas cerimoniais e mandamentos derivados das proibições (Totem e T, 1913, cap. II; trad. it., p. 37.) TÁBUA (lat. Tabula-, in. Table, fr. Table, ai. Tafel; it. Tavolá). Esse termo foi várias vezes usado para indicar a apresentação organizada ou sistemático de conceitos. Os antigos falavam das tabulae logicae, que era a apresentação hierárquica de conceitos dispostos segundo a maior generalidade: a árvore de Porfírio (v.) é a mais conhecida dessas tábuas. No mesmo sentido, denominavam T. os conjuntos de normas morais ou jurídicas (a lei das 12 tábuas, as T. de Moisés). Bacon deu o nome de T. às coordenações das instâncias, ou seja, dos aspectos particulares de um fenômeno (Nov. org., II, 10) e distinguiu as T. de presença, as T. de ausência, as T. dos graus ou comparativas e as T. exclusivas (Ibid. II, 11-13). A partir de Kant fala-se de "T. das categorias" (v. CATEGORIA). TÁBUA RASA (gr. rcívaE, àypoKpriç; lat. Tabula rasa). Expressão que indicou, às vezes, a condição da alma antes da aquisição dos conhecimentos. Essa expressão nasce da comparação do processo de aquisição de conhecimentos com o processo de impressão de sinais ou letras sobre tabuinhas cobertas de cera ou de escrita sobre página. Trata-se de comparação bastante antiga, que já se encontra em Esquilo (Prom., 789). Platão comparava a alma a um bloco de cera onde se gravam as sensações e os pensamentos de que depois nos lembramos (Teet., 191 d; Pii, 39 a). Aristóteles comparava o intelecto a uma tabuinha onde nada está escrito (De an., III, 4, 430 a I). Os es-tóicos comparavam a parte hegemônica da alma a um papiro onde serão escritos os sinais das coisas, ou seja, as representações (PLUTARco, Plac, IV, 11; v. GALENO, Hist. philos., 92; SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 228). A mesma comparação é depois repetida com freqüência (FÍLON, Ali. leg., I, 32; BOÉCIO, Phil. cons., V, 4; etc), mas a expressão "tabuinha sem escrita" encontra-se pela primeira vez no comen-tador de Aristóteles, Alexandre de Afrodisia (cerca de 200 a.C); na Idade Média foi usada por S. Tomás (De an., a. 8, resp.; S. Th., I, q. 89, a. 1, ad 3S). Locke utilizou essa imagem para expressar a tese da origem empírica dos conhecimentos (Ensaio, II, I, 2) e Leibniz a usou na sua crítica a essa tese de Locke (Nouv. ess., II, I, 2). Desde então essa expressão passou a indicar a tese empirista sobre a origem do conhecimento e a negação do inatismo. TÁBUAS DE VERDADE (in. Truth tables; fr. Tables de vérité, ai. Wahrheitsmóglichkeiten; TÁBUAS DE VERDADE 937 TÁBUAS DE VERDADE it. Tavole di veritã). No cálculo das proposições, T. construídas pelo método de matrizes (v.), que permite enumerar todas as possibilidades de verdade para certo número de proposições simples e assim identificar se uma proposição é verdadeira. Essas tábuas são construídas com os símbolos dos conectivos lógicos (v. CONECTIVO) e, com V e F, indicam respectivamente o valor de verdade e de falsidade de uma proposição. Assim, utilizando o símbolo ~p para indicar a negação de p (ou que p é falso), tem-se a seguinte T.: p ~P VF FV significando que, se pé verdadeiro, sua negação é falsa e, se p é falso, sua negação é verdadeira. Se considerarmos a conjunção entre duas proposições, indicada pelo símbolo'.', teremos a seguinte T. de verdade: 1 p p.q V V V V F F F V F F F F que indica todos os valores possíveis de verdade para cada tipo de conjunção entre as proposições; por isso, pode ser assumida como a própria definição do conceito lógico de conjunção (v.). Significa que a conjunção entre duas proposições conexas pela palavra "e" é válida só no caso de ambas as proposições serem verdadeiras, como quando se diz "Está chovendo e há umidade". Tem-se disjunção quando se insere entre duas proposições a palavra "ou", representada pelo símbolo v; na língua corrente, pode ter dois significados: um significado inclusi-vo (em que "ou" corresponde ao latim vel), como quando se diz "Pode-se ir a Roma por este caminho ou pelo outro", em que pelo menos uma das duas proposições é verdade; e um significado exclusivo ("ou" nesse caso corresponde ao latim aui), como quando se propõe uma alternativa: "Vamos a Roma ou a Paris", em que pelo menos uma das proposições é verdadeira e pelo menos uma é falsa. A T. de verdade da disjunção geralmente é a seguinte: p q pwq V V V V F V F V V F F F que fornece o critério mais geral para a validade de uma disjunção qualquer. Quanto à T. de verdade da relação condicional, expressa através do conectivo se... e pelo símbolo z>, ver os termos IMPLICAÇÃO E CONDICIONAL. Com base nessas tábuas, é possível construir outras mais complexas, como a seguinte, que dá os valores de verdade das combinações condicionais possíveis entre as proposições condicionais e as disjuntivas (cf. TARSKY, Intr. to Logic, § 3); para a função (p v q) (p.r), onde p, q, r representam proposições quaisquer: p 1 r p.q pz>q (p.q)^(pz)v) V V V V V V F V V V F F V F V V V V F F V F F V V V F V F F F V F V F F V F F V F F F F F F F V Para simplificar o significado dessa T., considere-se a quinta linha depois do cabeçalho: nela se supõe que pe q são proposições verdadeiras e que ré uma proposição falsa. Com base na segunda T. fundamental, obtém-se que "p.q" é uma proposição verdadeira e que "p o q" é uma proposição falsa; unindo-se "(p.q) z> (p=> r)", obtém-se uma implicação em que o antecedente é verdadeiro e o conseqüente é falso e que, com base na T. das implicações, é falsa. O uso das T. pode ser ampliado a todos os teoremas do cálculo das proposições. Assim como da T. de implicação material, das outras T. derivam conseqüências que se mostram paradoxais do ponto de vista da linguagem corrente. Vejamos as seguintes: se q é verdadeiro, então q se segue de qualquer p, ou, em outros termos, uma proposição TALENTO 938 TAREFA verdadeira se segue de qualquer outra proposição; se p é falso, então p implica um q qualquer; ou, em outros termos, uma proposição falsa implica qualquer outra proposição; quaisquer que sejam pe q, ou p implica qou q implica p em outros termos, pelo menos uma de duas proposições quaisquer implica a outra. Essas conclusões derivam das T. de verdade, sobretudo da T. de implicação, que constitui a simplificação e a generalização dos usos correntes na linguagem comum e nas disciplinas científicas (com exceção da matemática), em que as relações puramente lógicas entre as proposições são submetidas a outras condições mais restritivas. No entanto, continuam a dar ensejo a discussões que alguns lógicos (como Tarsky) consideram ociosas. Como dissemos no verbete IMPLICAÇÃO, a escola estóico-megárica, principalmente por meio de Fílon, foi a primeira a criar a T. da implicação material. Na lógica moderna, a idéia da T. foi retomada por Boole {Mathematical Analysis of Logic, 1847), por Frege {Begriffsschrift, 1879) e por Pierce (1885: cf. Coll. Pap., 3.370 ss.), sendo difundida por Wittgenstein {Tractatus, 1921, 4.31). TALENTO (lat. Talentum; in. Talent; fr. Talent; ai. Talent; it. Talento). O sentido metafórico desse termo, derivado da parábola evangélica dos T. {Mat., 25, 14-30), é de "superioridade do poder cognoscitivo, que não provém do ensino mas da aptidão natural do sujeito". Esta é a definição de T. encontrada em Kant {Antr, I, § 54), que também distingue os T. em engenho produtivo, sagacidade e originalidade: este último é o gênio. Essa doutrina kan-tiana foi repetida diversas vezes com poucas variações; está presente até na psicologia moderna, embora acentuando-se a importância dos chamados T. específicos. TALIÃO (gr. xò ávTUtE7tov9óç; in. Talion; fr. Talion; ai. Vergeltung; it. Taglione ou Contrap-passó). Forma de justiça segundo a qual o ofen-sor deve sofrer o mesmo mal que causou ao ofendido. Segundo relato de Aristóteles, foram os pitagóricos que definiram a justiça como retaliação {Et. nic, V, 5, 1132 b 21). Esse mesmo princípio inspira a lei mosaica do "olho por olho, dente por dente" {Levit., 24,17-21). Dante modelou a estrutura moral do Inferno e do Purgatório segundo a lei de talião. TALMUD. Este termo, que na língua hebraica significa "ensino", designa a coletânea enciclopédica da tradição judaica escrita em ara-maico, que foi compilada durante oitocentos anos (de 300 a.C. a 500 d.C.) na Palestina e na Babilônia. Essa obra não é um simples comentário do Antigo Testamento, mas uma síntese de filosofia, teologia, história, ética e folclore judaicos, acumulados durante oito séculos. O T. é composto por duas partes principais: o Misbnab, redigido na Palestina, e o Gemara, que é um comentário do primeiro. O Gemara, compilado na Palestina, é denominado juntamente com o Mishnah, T. de Jerusalém; por outro lado, o Gemara compilado na Babilônia é chamado, também com o Mishnah, de T. da Babilônia (v. H. L. STRACK-P. BILLER-BECK, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, Mônaco, 1922-28). TANATISMO (in. Thanatism, ai. Thanatis-mus; it. Tanatismo). Termo criado por E. Hae-ckel para indicar a sua doutrina da mortalidade da alma, em oposição a atanatismo (v.). TAOÍSMO (in. Taoism; fr. Taoisme, ai. Taois-mus; it. Taoismo). Doutrina de Lao-Tse (que viveu na China provavelmente no séc. VI a.C), a quem se atribui o Tao Te Ching, isto é, o Livro do caminho e da virtude. Em oposição ao caráter racionalista, terreno e prático do ensinamento de Confúcio, está o caráter místico, religioso e contemplativo do ensinamento de Lao-Tse; nele encontramos vestígios do pan-teísmo metafísico dos Upanishad. Os dois aspectos principais do T. são: monismo panteísta, segundo o qual o tao, que é o caminho para a salvação, é também o princípio único do universo (todas as outras coisas suas são manifestação); a ética do não fazer, ou seja, entrega à ação imanente do princípio cósmico e a renúncia a interferir nele ou a obstá-lo. (v. A. WALEY, The Way and Its Power, 1934). TAREFA (gr. êpTOV; lat. Officium; in. Task, fr. Tache, ai. Aufgabe, it. Compito). Limitação da atividade de uma pessoa ou de uma coisa, para garantir o melhor resultado dessa atividade. Nesse sentido, Platão entendia por T. de uma coisa "aquilo que só ela sabe fazer, ou pelo menos que faz melhor que qualquer outra coisa" {Rep., I, 353 a); utilizava essa noção para definir a virtude (v.). No mesmo sentido e com o mesmo fim, Aristóteles utilizou essa noção quando, para definir o que é felicidade, perguntava qual é "a T. do homem"; e respondia que a T. do homem é a atividade da alma conforme à razão, e não independentemente da razão {Et. nic, 1,6, 1098 a7). Esse conceito é freqüente, com o TATO 939 TÉCNICA mesmo significado, na filosofia contemporânea (v. FUNÇÃO; OPERAÇÃO). TATO(in. Tact; fr. Tact; ai. Tact; it. Tattó). 1. Um dos cinco sentidos, que Condillac chamava de "sentimento fundamental", porque este é o "sentimento que a estátua (v.) tem da ação recíproca das partes do corpo e especialmente dos movimentos da respiração" {Traité des sensations, II, I). Segundo Condillac, o T. é também o sentido do qual provém a noção do mundo exterior (Ibid., II, 8, 30 ss.). 2. Sabedoria do mundo ou espritdefinesse, como nas frases "ter T.", "proceder com T." ou "falar com T.", etc. TAT TWAM ASI. Uma das formas fundamentais da filosofia do Upanishad, que significa exatamente "este és tu" e prescreve que todo homem deve reconhecer-se idêntico, em seu princípio (ou átmari), a qualquer ser ou coisa que esteja diante dele, pois o princípio universal, ou Brahman, é idêntico em tudo. Essa locução indiana encontra-se especialmente no Chandogya-Upanishad (VI, 8, 7 ss.). TAUTOLOGIA (in. Tautology, fr. Tautolo-gie, ai. Tautologie, it. Tautologid). Na terminologia filosófica tradicional, T. significa genericamente um discurso (em especial, uma definição) vicioso porquanto inútil, visto repetir na conseqüência, no predicado ou no defi-niens o conceito já contido no primeiro membro: "M. de Ia Palisse, quinze minutos antes de morrer, ainda estava vivo". É só na álgebra da lógica que o termo "T" adquire significado técnico, porquanto se introduzem com o nome de lei de T. os teoremas (1) a u a = a, (2) a n a = a [(1): a afirmação disjuntiva de uma mesma proposição p consigo mesma eqüivale à simples afirmação de p, a soma de uma classe a a si mesma é igual à simples classe a; (2) a afirmação conjuntiva de uma mesma proposição p consigo mesma eqüivale à simples afirmação de p, a interferência de uma classe a em si mesma é igual à classe a pura e simples]. Ao lado dessa lei, em Principia mathematica, Whitehead e Russell introduzem um princípio de T: p v p. D p. [a afirmação disjuntiva de uma mesma proposição p consigo mesma implica materialmente a mesma p: "se p ou p, p"]. Em Wittgenstein {Tractatus, 1922, 4.46), o conceito de T. adquire notável importância, passando a designar uma proposição molecular (funcional), cujo valor-verdade é "verdadeiro", sejam quais forem os valores-verdades das proposições atômicas (variáveis proposicionais) que a compõem; p. ex., "/>v ~ p' ["chove ou não chove' ]. Wittgenstein — adotado a contragosto por Russell — chega a afirmar que a matemática pura (inclusive a Lógica) constam exclusivamente de T., aliás são a classe de todas as possíveis T. (Tractatus, cit., 6. I, 6.22). Na lógica atual (pós-Wittgenstein), o conceito de T. perdeu importância e foi substituído por uma multiplicidade de noções análogas, como proposição analítica, C-verdadeira, L-verda-deira, conforme os casos e conforme os pontos de vista filosóficos dos diferentes autores. G. P. TAXIONOMIA (in. Taxonomy, fr. Taxino-mie, ai. Taxinomie, it. Tassonomid). Teoria da classificação nas ciências naturais. Termo cunhado e usado no séc. XIX. São chamadas de taxionômicas a botânica e a história natural. TEÂNDRICO (in. Theandric; fr. Théan-drique, it. Teandricó). Termo da teologia cristã que se refere à união da natureza humana e da natureza divina na pessoa do Cristo. TEANTROPISMO (in. Theantrophism, fr. Théantropisme, ai. Theantropismum; it. Tean-tropismó). 1. Doutrina da união da natureza divina e da humana na pessoa do Cristo. 2. O mesmo que antropomorfismo (v.). TÉCNICA (in. Technic; fr. Technique. ai. Technik, it. Técnica). O sentido geral desse termo coincide com o sentido geral de arte (v.): compreende qualquer conjunto de regras aptas a dirigir eficazmente uma atividade qualquer. Nesse sentido, T. não se distingue de arte, de ciência, nem de qualquer processo ou operação capazes de produzir um efeito qualquer: seu campo estende-se tanto quanto o de todas as atividades humanas. É preciso, porém, chamar a atenção para o fato de que nesse significado do termo, que é bastante antigo e geral, não se inclui o significado atribuído por Kant, que falou de técnica da natureza para indicar a causalidade dela (Crít. do Juízo, § 72), mas negou que a filosofia — especialmente a filosofia prática — pudesse ter uma técnica, porque não pode contar com uma causalidade necessária (Met. der Sitten, Intr., § II). O pressuposto desse significado, porém, é a redução de T. a procedimento causai, ao passo que esse termo foi entendido (da melhor maneira) como procedimento qualquer, regido por normas e provido de certa eficácia. Nessa esfera de significado generalíssimo incluem-se, portanto, os procedimentos mais díspares; estes, porém, podem ser divididos, grosso modo, em dois campos diferentes: A) T. TÉCNICA 940 TÉCNICA racionais, que são relativamente independentes de sistemas particulares de crenças, podem levar à modificação desses sistemas e são auto-corrigíveis; B) T. mágicas e religiosas, que só podem ser postas em prática com base em determinados sistemas de crenças; não podem, portanto, modificar esses sistemas e apresentam-se também como nãocorrigíveis ou não-modificáveis. Essas T. constituem um dos dois elementos fundamentais de qualquer religião e podem ser indicadas com o nome genérico de ritos (v.). As T. racionais, por sua vez, podem ser distinguidas em: l s T. simbólicas (cognitivas ou estéticas), que são as da ciência e das belas artes; 2a T. de comportamento (morais, políticas, econômicas, etc); 3fi T. de produção. ls As T. cognitivas e artísticas podem ser chamadas de simbólicas porque consistem essencialmente no uso dos signos. Distinguem-se dos métodos (v.) que, a rigor, são indicações gerais sobre o caráter das T. a serem seguidas. As T. simbólicas podem ser: de explicação, de previsão ou de comunicação, mas essas distinções não são mutuamente excludentes. 2S As T. de comportamento do homem em relação a outro homem cobrem um campo extensíssimo que compreende zonas díspares: vão das T. eróticas às de propaganda, das T. econômicas às morais, das T. jurídicas às educacionais, etc. Nesse grupo também podem ser incluídas as T. organizativas, que visam a encontrar condições para obter o rendimento máximo com o mínimo esforço em todos os domínios da atividade humana. Essa técnica é tratada pela tectologia (v.) ou praxíologia (v.). 3Q O terceiro grupo de T. é o que diz respeito ao comportamento do homem em relação à natureza e visa à produção de bens. Nesse sentido, a T. sempre acompanhou a vida do homem sobre a terra, sendo o homem — como já notava Platão (.Prot., 321 c) — o animal mais indefeso e inerme de toda a criação. Portanto, para que qualquer grupo humano sobreviva, é indispensável certo grau de desenvolvimento da T., e a sobrevivência e o bem-estar de grupos humanos cada vez maiores são condicionados pelo desenvolvimento dos meios técnicos. O primeiro filósofo a reconhecer essa verdade foi Francis Bacon, no começo do séc. XVII. Para ele, a atuação da ciência tinha em vista o bem-estar do homem e visava a produzir, em última análise, descobertas que facilitassem a vida do homem na terra. Quando, em Nova Atlântida, quis dar a imagem de uma cidade ideal, não sonhou formas perfeitas de vida social ou política, mas imaginou um paraíso da T., onde fossem levadas a efeito as invenções e as descobertas de todo o mundo. O sansimonismo (v.) e o positivismo (v.) do séc. XIX compartilharam a exaltação baconia-na da técnica. Só depois do fim do século passado e nas primeiras décadas do séc. XX foi que começou a manifestar-se o que hoje se chama de problema da T. que nasceu das conseqüências produzidas pelo desenvolvimento da T. do mundo moderno sobre a vida individual e social do homem. Antes da Segunda Guerra Mundial, o conflito entre homem e T. foi o tema predileto da literatura profetizadora. Os profetas da decadência e da morte da civilização ocidental (p. ex., O. SPENGLER, Der Mensch unddie Technik, 1931), os defensores da espiritualidade pura (p. ex., D. ROPS, Le monde sans âme, 1932) haviam já identificado na máquina a causa direta ou indireta da decadência espiritual do homem. Segundo esses diagnósticos, o mundo em que a máquina domina não tem alma, é nivelador e mortificante: um mundo onde a quantidade tomou o lugar da qualidade e onde o culto dos valores do espírito foi substituído pelo culto dos valores instrumentais e utilitários. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, essas acusações foram reforçadas e desenvolvidas; estão presentes em toda a obra de Albert Camus (v., p. ex., Ni bourreaux ni victimes, 1946). Para outros, o mal do "maquinismo" estaria no desarraiga-mento que ele produz no homem (S. WEIL, L'enracinement, 1948). Ao condenarem a T., outros ainda implicam a "razão", que seria seu princípio, ou acalentam a utopia de um retorno à produção artesanal (M. DE CORTE, Essaisurla fin d'une civilisation, 1949; L. DUPLESSY, La machine ou 1'homme, 1949). Por outro lado, a partir da obra de HUSSERL, A crise das ciências européias (1954), a T. e a ciência em que ela se baseia passaram a ser freqüentemente consideradas uma degradação ou uma traição da Razão Autêntica, pois escravizam a razão a objetivos utilitários, ao passo que sua verdadeira função é o conhecimento desinteressado do ser, a contemplação. Esse conceito constitui a base4e todas as críticas dirigidas à sociedade contemporânea, que estaria fundada na técnica e dominada pela tecnocracia (v.). Mas hoje há uma vasta literatura que, apesar de não partir de preconceitos metafísicos, TÉCNICA 941 TECNOCRACIA ideológicos ou teológicos, evidencia os aspectos negativos da T., que podem ser resumidos da seguinte maneira: Ia exploração intensa dos recursos naturais, acima dos limites de seu restabelecimento natural, portanto o empobrecimento rápido e progressivo desses recursos; 2S poluição da água e do ar por dejetos industriais, com a multiplicação dos meios mecânicos de transporte e com a maior densidade demográfica; 3a destruição da paisagem natural e dos monumentos históricos e artísticos, em decorrência da multiplicação das indústrias e da expansão indiscriminada dos centros urbanos; 4a sujeição do trabalho humano às exigências da automação, que tende a transformar o homem em acessório da máquina; 5a incapacidade da T. de atender às necessidades estéticas, afetivas e morais do homem; portanto, sua tendência a favorecer ou determinar o isolamento e a incomunicabilidade dos indivíduos. No que diz respeito aos três primeiros fatores, pode-se recorrer a uma contratécnica, que seria uma T. (ou um conjunto de T.) capaz de contrabalançar ou de corrigir os efeitos devastadores da T.: seus meios seriam suficientemente potentes para diminuir (senão equilibrar) os efeitos da devastação. O quarto e o quinto aspectos são humanos, morais e políticos; costumam ser considerados como constituintes do fenômeno da alienação (v.). Tanto em suas formas primitivas quanto nas requintadas e complexas, presentes na sociedade contemporânea, a T. é um instrumento indispensável para a sobrevivência do homem. Seu processo de desenvolvimento parece irreversível porque só dele dependem as possibilidades de sobrevivência de um número cada vez maior de seres humanos e seu acesso a um padrão de vida mais elevado. Inclusive a diferença entre T. e ciência, em que às vezes ainda se insiste, parece diminuir ou atenuar-se quando se consideram as tarefas hoje atribuídas à ciência (v.). Hoje, o único remédio aos reais perigos da T. parecem ser o seu robuste-cimento e o seu desenvolvimento em todos os campos, e não a renúncia a seus benefícios. Isso se traduziria em, por um lado, buscar novos instrumentos que não só controlassem mas também protegessem a natureza e, por outro, buscar novas T. de relacionamento humano que pudessem controlar e corrigir os efeitos malignos das T. produtivas sobre o homem. A esperança de que isso possa acontecer baseia-se apenas no fato de que a própria T. produtiva está a exigir cada vez mais que o homem tenha exatamente as capacidades de iniciativa, imaginação criativa e solidariedade que o próprio sistema tecnológico parecia ameaçar. TECNICISMO (in. Technicism, ai. Techni-zismus; it. Tecnicismó). 1. O mesmo que técnica. Kant usa esse termo para indicar a técnica da natureza, ou seja, o mecanicismo (Crít. do Juízo, § 78). 2. Uso de palavras ou frases pertencentes à linguagem técnica. TECNOCRACIA (in. Technocracy, fr. Tech-nocratie, ai. Technokratie, it. Tecnocrazid). Uso da técnica como instrumento de poder por parte de dirigentes econômicos, militares e políticos, em defesa de seus interesses, considerados concordantes ou unificados, com vistas ao controle da sociedade. Esse é o conceito de T. que se encontra nos escritores mais qualificados (p. ex., C. W. MILLS, The Power Elite, 1956), que permite defini-la como "a filosofia autocrá-tica das técnicas" (G. SIMONDON, DU monde d'existence des objets techniques, 1958). Assim, as críticas mais radicais feitas à sociedade contemporânea trazem à baila a T. A ela é imputada não só a responsabilidade por todos os males da técnica (para os quais, ver TÉCNICA) e por não poder nem querer fazer nada para eliminá-los, como também a responsabilidade de suprimir ou bloquear a liberdade de escolha do homem em todos os campos de atividade (do trabalho ao divertimento), com uma determinação interna que o impede de exercer sua razão crítica e reprime seu instinto vital e a livre procura da felicidade. Marcuse escreveu: "O aparato produtivo tende a tornar-se totalitário na medida em que determina não só as ocupações, as habilidades e os comportamentos socialmente necessários, mas também as necessidades e as aspirações individuais. (...) A tecnologia serve para instituir novas formas de controle e coerção social mais eficazes e mais agradáveis" {One Dimensional Man, 164, p. XV). Desse ponto de vista, a T. (chamada também de "The Establishment" ou "O Sistema" por antono-másia) exercitaria um determinismo necessitan-te sobre todas as atividades humanas e impediria ou bloquearia qualquer forma de crítica social, qualquer possibilidade de transformação. Por outro lado, porém, admite-se (como faz o próprio Marcuse, Ibid., p. 238) que "a racio- TECNOLOGIA 942 TEÍSMO nalidade pós-tecnológica" possa transformar a técnica em meio de pacificação e em instrumento para a arte de viver, nesse caso, a função da razão — cujo uso instrumental deu origem à T. — convergiria para a função da arte. Outras vezes, põe-se em dúvida o caráter monolítico e necessitante da tecnocracia. Gal-braith fala de tecnoestrutura para designar a formação pluralista e heterogênea dos grupos que dirigem a sociedade industrial, admitindo a possibilidade de minimizar a subordinação das crenças às necessidades do sistema industrial e de considerar este último apenas "uma parte da vida (uma parte em processo de diminuição)", que pode ser subordinada aos fins estéticos que constituem a dimensão da vida e possibilitam a liberdade individual ( The New Industrial State, 1964, p. 399). Às vezes também se apresenta uma conotação "não pejorativa" de T. em correlação com o conceito mais compósito que se tem hoje de classe social (cf., p. ex., A. Tou-RAINE, La sociétépos-industrielle, 1969, cap. I). TECNOLOGIA (in. Technology, fr. Techno-logie, ai. Technologie, it. Tecnologia). 1. Estudo dos processos técnicos de determinado ramo da produção industrial ou de vários ramos. 2. O mesmo que técnica. 3. O mesmo que tecnocracia. TECTOLOGIA. Termo criado pelo filósofo russo A. Bogdanov para indicar uma "ciência organizativa universal", que ensina a construir o mundo a partir dos elementos neutros dados na experiência (Tektologija, 1923). Essa disciplina, que também cuida da organização de todas as atividades humanas com o fim de determinar as condições de seu máximo rendimento, foi depois chamada (nesse aspecto) de praxiologia (v.) por Kotarbinsky. Integra os estudos de organização e administração, de economia política e cibernética (cf. CAUDE, MOLES e outros, Méthodologie vers une science de Tac-tion, Paris, 1964). TÉDIO (in. Boredom; fr. Ennui; ai. Lan-gweile, it. Noia). Moralistas e filósofos algumas vezes insistiram no caráter cósmico e radical desse sentimento. "Sem o divertimento" — dizia Pascal — "haveria o T., e este nos levaria a buscar um meio mais sólido para sair dele. Mas o divertimento nos deleita e assim nos faz chegar distraídos à morte" iPensées, 171). Sho-penhauer observou que "tão logo a miséria e a dor concedem uma trégua ao homem, o T. chega tão perto que ele necessita de um passatempo"; por isso, segundo ele, a vida oscilava continuamente entre a dor e o T. (Die Welt, I, § 57). Com mais profundidade e antecipando o existencialismo, Leopardi via no T. a experiência da nulidade de tudo o que é: "O que é o T.?" — perguntava. "Nenhum mal ou dor em especial (aliás, a idéia e a natureza do T. excluem a presença de qualquer mal ou dor), mas apenas a vida plenamente sentida, experimentada, conhecida, plenamente presente no indivíduo, ocupando-o por inteiro" (Zibaldone, VI, p. 421). Heidegger repetiu essas idéias, percebendo no T. o sentimento que revela a totalidade das coisas existentes, em sua indiferença: "O verdadeiro T. não é aquele provocado por um livro, por um espetáculo ou por um divertimento que nos maçam, mas o que nos invade quando 'nos entediamos': o T. profundo que, como névoa silenciosa, recolhe-se nos abismos de nosso existir, comunga homens e coisas, nós com tudo o que há em torno de nós, numa singular indiferença. Esse é o T. que revela o existente em sua totalidade" (Was ist Me-taphysik?, 5a ed., 1949, p. 28). Nesse sentido, o T. está muito próximo da náusea (v.), de que fala Sartre, também ela experiência da indiferença das coisas em sua totalidade. Seu precedente talvez possa ser vislumbrado na melancolia (.Schwermui), que, segundo Kierkegaard, é a desembocadura inevitável da vida estética. "Se perguntarmos a um melancólico qual a razão para ser assim e o que o desgosta, responderá que não sabe, que não pode explicar. Nisso consiste a infinidade da melancolia" (En-tweder-Oder, em Werke, II, p. 171). Nesse sentido, melancolia é a acídia medieval (Ibid., II, 168), sendo considerada por Kierkegaard a "histeria do espírito", o pecado fundamental, porquanto "é pecado não querer com profundidade e sentimento" (Jbid., p. 171). TEÍSMO (in. Theisni; fr. Théisme, ai. Theis-mus, it. Teismo). Este termo, usado desde o séc. XVII para indicar genericamente a crença em Deus, em oposição a ateísmo (assim também em Voltaire, Dictionnaire philosophique, a. Théiste), foi definido por Kant, no seu significado específico, em oposição a deísmo (v.). Kant diz: "Quem só admite uma teologia transcendental é chamado de deísta; quem admite também uma teologia natural é chamado de teísta. O primeiro admite que com a razão apenas podemos conhecer um Ser originário do qual só temos um conceito transcendental, de Ser que tem realidade mas que não pode ter nenhuma determinação a mais. O segundo afir- TELEGNOSE 943 TELEPATIA ma que a razão tem condições de dar mais determinações do objeto segundo a analogia com a natureza, ou seja, pode determiná-lo como Ser que, por intelecto e liberdade, contenha em si o princípio originário de todas as outras coisas. Aquele representa esse Ser apenas como causa do mundo (sem decidir se é uma causa que age pela necessidade de sua natureza ou por liberdade), este representa-o como um criador do mundo" {Crít. R. Pura, Diál. transe, III, seç. 7). Em outros termos, o deísta pode ser também panteísta e acreditar na necessidade da relação entre Deus e o mundo, embora também possa não ser; o teísta contrapõe-se ao panteísta. Ademais, indo além daquilo em que a razão pura permite acreditar, o teísta afirma a respeito de Deus qualidades ou características não testemunhadas pela razão, mas pela revelação; nesse sentido, como Kant diz mais adiante, no mesmo trecho, ele crê num "Deus vivo" (v. também Crít. do Juízo, § 72). Essas observações de KANT definiram o significado do termo no uso contemporâneo, em virtude do que T. se contrapõe não só a ateísmo mas também a deísmo e a panteísmo, admitindo-se Deus como pessoa, embora em sentido mais elevado do que o comumente atribuído ao homem. Nesse sentido, o T. é um aspecto essencial do espiritualismo (ou personalismo) contemporâneo, especialmente na sua reação ao idealismo romântico, que é sempre tendencialmen-te panteísta. O T. foi explicitamente defendido tanto pelo espiritualismo que reagiu ao hege-lianismo clássico (Fichte Júnior, Lotze e outros) ou ao positivismo (Renouvier, Boutroux e outros), quanto pelo espiritualismo que reagiu ao neo-idealismo romântico surgido nas primeiras décadas do séc. XX na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Itália, do qual o próprio espiritualismo extrai muitos dos seus temas. (V. para o T. anglo-saxão W. E. HOCKING, Meaning of God in Human Experience, 1912; A. SETH PRINGLEPATTISON, Theldea ofGod in theLightof Recent Philosophy, 1917; CLEMENT C. J. WEBB, God andPersonality, 1920, etc. Para o T. italiano: as obras de Carlini, Guzzo, Sciacca e outros). TELEGNOSE (in. Telegnosis). O mesmo que vidência: faculdade de conhecer acontecimentos distantes sem auxílio dos meios de conhecimento normais (v. TELEPATIA). TELEGRAMA, ARGUMENTO DO (in. Te-legram argument; ai. Telegrammbeispiel; it. Argomento deltelegrammd). Argumento ou exemplo aduzido por F. A. Lange para ilustrar a tese materialista de que as reações psíquicas dependem dos estímulos físicos e de que é possível reduzir o que comumente se chama de alma ou consciência a mecanismos fisiológicos. O T. que anuncia a um comerciante a falência de um de seus correspondentes determina uma série de reações que podem ser fisiologicamente descritas do mesmo modo como se descreve fisicamente (em termos de ondulações luminosas) o estímulo que as provocou {Geschichte des Materialismus, II, III, 2 e anotação 39; trad. it., II, pp. 385 ss. e 661 ss.). Algumas vezes esse argumento foi invertido e usado para demonstrar a relativa independência das reações em relação aos estímulos. O T. "Seu filho morreu" difere só por uma letra do T. "Meu filho morreu", mas produz uma reação completamente diferente que não corresponde à diferença física entre os estímulos, nas pessoas que os recebem (v. C. D. BROAD, The Mind and its Place in Nature, 1925, pp. 118 ss.). TELEÓCLISE (ai. Teleoklisè). Tendência à atividade finalista, considerada própria dos organismos vivos. Termo raro. TELEOFOBIA (ai. Teleophobié). Aversão ao finalismo. TELEOLOGIA (in. Teleology, fr. Téléologie, ai. Teleologia; it. Teleologià). Este termo foi criado por Wolff para indicar "a parte da filosofia natural que explica os fins das coisas" (Log., 1728, Disc. prael, § 85). O mesmo que finalismo (v.). TELEONOMIA. (in. Teleonomy, fr. Téléo-nomie, it. Teleonomiã). Termo usado pelos biólogos modernos para indicar a adaptação funcional dos seres vivos e de seus artefatos à conservação e à multiplicação da espécie. Deu-se o nome de informação teleonômica à quantidade de informações que deve ser transmitida para que as estruturas vitais sejam realizadas e conservadas (cf., p. ex., J. MONOD, Le hasard et Ia necessite, 1970, pp. 26 ss.) TELEOSE (ai. Teleosis). Perfeição. É a transcrição fonética da palavra grega. TELEPATIA (in. Telepathy, fr. Télépathie, ai. Telepathie, it. Telepatia). Uma forma de teleg-nose, mais precisamente a que consiste em conhecer os estados do espírito de pessoas distantes ou de saber o que lhes está acontecendo, sem a ajuda dos meios de conhecimento normais. Esse termo foi proposto pela Society for Psychical Researches, de Londres, em 1882, TEMA 944 TEMPO e comumente aceito. Às vezes, como sinônimo, usa-se Telestesia (v. D. J. WEST, Psychical Research Today, 1954, cap. VI). TEMA (lat. Thema; in. Theme, fr. Thème, ai. Thema; it. Tema). Assunto ou objeto de indagação, discurso ou estudo. Na terminologia filosófica contemporânea são também usados os termos tematizar e tematizaçâo para indicar a escolha ou a formação dos T., que é uma fase importante e muitas vezes decisiva da investigação. Heidegger, em especial, entendeu por tematizaçâo a manifestação dos seres intra-mundanos, em virtude do que tornam-se objetos (Sein und Zeit, 69 b). TEMPERAMENTO (gr. Kpãoiç; lat. Tempera-mentum-, in. Temper, fr. Tempérament; ai. Tempérament; it. Temperamento). Disposição do homem a agir de um modo ou de outro segundo a mescla de humores que compõem seu corpo. A teoria do T. foi criada pelo pai da medicina, Hipócrates (séc. V a.C), e propagou-se como teoria médica. Hipócrates admitia quatro humores fundamentais: sangue, fleuma (linfa, soro, muco nasal e intestinal, saliva), bile amarela e atrabile ou bile negra (considerada como secreção do pâncreas), correspondentes aos quatro elementos do macrocosmo. Conforme o humor predominante, temos os quatro T. fundamentais: sangüíneo, fleumático, bilioso e melancólico ou atrabiliário. {De nat. hom., 4). Encontram-se alusões a essa teoria ou a teorias semelhantes em Platão (O Banq., 188a; Tim., 86B), em Aristóteles {Problem., 30, 1), em Sê-neca {De ira, II, 18 ss.), em Lucrécio {De rer. nat., III, 288 ss.), em Plutarco {Quaest. nat., 26) e em outros, sem ligação com os pressupostos filosóficos de que esses autores partem, como demonstra a sua unânime aceitação. Na Idade Média a teoria dos T. também foi propagada por meio da medicina, especialmente árabe (Avicena e Averróis), chegando aos médicos e magos do Renascimento. Paracelso substituiu os humores hipocráticos por seus três elementos (enxofre, sal e mercúrio), na classificação dos temperamentos. Contudo, a noção de T. não sofreu modificação até Kant, que, para resumi-la, distinguiu o aspecto fisiológico e o aspecto psicológico do T. "Fisiologicamente falando, o T. é formado pela constituição física (estrutura forte ou fraca) e pela compleição (fluido posto regularmente em movimento pela força vital, no que se inclui o calor ou o frio produzido na elaboração desses humores). Psicologicamente falando, como T. da alma (do poder afetivo e apetitivo), essa expressão, derivada da propriedade do sangue, refere-se à analogia entre os sentimentos e os desejos com as causas físicas e motoras (das quais a principal é o sangue)" (Antr, II, 2). Depois, Kant retomaria a antiga classificação hipocrática dos T., que muitas vezes também teve aceitação na psicologia moderna (p. ex., V. WUNDT, Phy-siologischePsychologie, II4, pp. 519 ss.). Mas na psicologia, essa palavra deixou de ser usada desde o fim do século XTX, sendo substituída por caráter (v.).; que numa das suas acepções significa a estrutura orgânica originária que condiciona as disposições naturais do indivíduo. O uso da palavra caráter marca também a passagem dessa noção do domínio da medicina para o da psicologia e da filosofia. TEMPERANÇA (gr. aaxppocrúvri; lat. Tempe-rantia; in. Temperance, fr. Tempérance, ai. Be-sonnenheit; it. Temperanza). Uma das virtudes éticas de Aristóteles, mais precisamente a que consiste no justo uso dos prazeres físicos. Aristóteles notava que a T. não se refere a todos os prazeres físicos (não compreende, p. ex., os que derivam da visão ou da audição), mas apenas os que derivam da alimentação, da bebida e do sexo {Et. nic, III, 9-12). Platão definiu a T. de modo diferente: para ele, era "a amizade e a concordância das partes da alma, existentes quando a parte que comanda e as que obedecem concordam na opinião de que cabe ao princípio racional governar, e assim não se lhe opõem"; segundo Platão, isso é T., tanto para o indivíduo quanto para o Estado {Rep., IV. 442 b). Os estóicos definiram a T. como "a ciência das coisas a serem desejadas e das coisas a serem evitadas" Q. STOBEO, Ecl, II, 6, 102). A ética de Demócrito também cuidou do assunto: "A sorte nos dá a mesa suntuosa; a T. nos dá a mesa em que nada falta" {Fr. 210, Diels). TEMPO (gr. xpóvoç; lat. Tempus; in. Time, fr. Temps; ai. Zeit; it. Tempo). Podemos distinguir três concepções fundamentais: Ia o T. como ordem mensurável do movimento; 2-o T. como movimento intuído; 3a o T. como estrutura de possibilidades. À primeira concepção vinculam-se, na Antigüidade, o conceito cíclico do munijo e da vida do homem (me-tempsicose) e, na época moderna, o conceito científico de tempo. À segunda concepção vinculase o conceito de consciência, com a qual o T. é identificado. A terceira concepção, derivada da filosofia existencialista, apresenta algumas inovações na análise do conceito de tempo. TEMPO 945 TEMPO Ia A concepção de T. mais antiga e difundida considera-o como ordem mensurável do movimento. Os pitagóricos, ao definirem o T. como "a esfera que abrange tudo" (a esfera celeste), relacionaram-no com o céu, que com o seu movimento ordenado permite medi-lo perfeitamente (ARISTÓTELES, Fts., IV, 10, 218 a 33). Ao definir o T. como "a imagem móvel da eternidade", Platão {Tim., 37 d) pretende dizer que, na forma dos períodos planetários, do ciclo constante das estações ou das gerações vivas e de qualquer espécie de mudança, ele reproduz no movimento a imutabilidade do ser eterno {Ibid., 38 b-39 d). A definição de Aristóteles, "o T. é o número do movimento segundo o antes e o depois" {Fís., IV, II; 219 b 1), é a expressão mais perfeita dessa concepção, que identifica o T. com a ordem mensurável do movimento. Não é diferente o significado da definição dos estóicos, segundo a qual o T. é "o intervalo do movimento cósmico" (DIÓG. L., VII, 141). Na verdade, intervalo não passa de ritmo, ordem, movimento cósmico. Talvez não seja diferente tampouco o significado da definição de Epi-curo: "O T. é uma propriedade, um acompanhamento do movimento" 0' STOBEO, Ecl., I, 8, 252). Na Idade Média, essa concepção do T. foi compartilhada por realistas (ALBERTO MAGNO, S. Th., I, q. 21, a. I; S. TOMÁS, S. Th., 1. q. 10, a. 1) e por nominalistas (OCKHAM, In Sent, II, q. 12), que repetiram unanimemente a definição de Aristóteles. Telésio, que criticava essa definição, reduziu o T. à duração e ao intervalo do movimento {De rer. nat., I, 29). Hobbes definiu o T. como "imagem (phantasmà) do movimento, na medida em que imaginamos no movimento o antes e o depois, ou seja, a sucessão"; "; considerava que essa definição estava de acordo com a de Aristóteles {De corp., 7, 3). Descartes simplesmente repetia essa última, definindo o T. como "número do movimento" {Princ. phil, I, 5 7). Locke criticava a vincu-lação do T. ao movimento, estabelecida pela definição de Aristóteles, só para afirmar que o T. está ligado a qualquer espécie de ordem constante e repetível: "Qualquer aparição periódica e constante, ou mudança de idéias, que acontecesse entre espaços de duração aparentemente eqüidistantes, e fosse constante e universalmente observável, poderia servir para distinguir intervalos do T. tão bem quanto as que foram usadas na realidade" {Ensaio, II, 14, 19). Para definir o T., Berkeley substituía a ordem do movimento pela ordem das idéias, ou melhor, a ordem do movimento externo pela ordem do movimento interno: "Se eu tentar construir uma simples idéia do T. abstraindo da sucessão de idéias de meu espírito, que flui uniformemente e é compartilhada por todos os seres, estarei perdido e embaraçado por dificuldades inexplicáveis" {Principies ofHuman Knowledge, I, 98). Essa concepção de T. fundamentou a mecânica de Newton, que distinguia o T. absoluto e o T. relativo, mas a ambos atribuía ordem e uniformidade. "O T. absoluto, verdadeiro e matemático, na realidade e por natureza, sem relação com nada de externo, flui uniformemente {aequabiliter) e também se chama duração. O T. relativo, aparente e comum é uma medida sensível e externa da duração por meio do movimento" {Naturalis philosophiae principia, I, def. VIII). Nessa definição de Newton, o uniforme fluir da duração absoluta é confrontado com a uniformidade do movimento que é tomado como medida do tempo. Leibniz esclarecia o mesmo conceito do seguinte modo: "Conhecendo-se as regras dos movimentos não uniformes, é possível relacioná-los com os movimentos uniformes inteligíveis e prever com este meio o que acontecerá a diferentes movimentos reunidos. Nesse sentido, o T. é a medida do movimento, ou seja, o movimento uniforme é a medida do movimento não uniforme" {Nouv. ess., II, 14,16). Portanto, definia o T. como "uma ordem de sucessões" {Troisième lettre ã Clarke, § 4): definição aceita por Wolff {Ont., § 572) e por Baumgarten {Mel, § 239)- Essa era a concepção a que Kant se referia implicitamente, ao afirmar, em Estética transcendental, a idealidade transcendental do T., ao lado de sua realidade empírica (v. mais adiante). Mas a principal contribuição de Kant na interpretação do conceito de T. não está na Estética transcendental, mas na Analítica dos princípios, mais precisamente no estudo da segunda analogia, ou "princípio da série temporal segundo a lei da causalidade". Aí Kant reduz ordejfl de sucessão a ordem causai. Afirma que uma coisa só "pode conquistar seu lugar no T. com a condição de que no estado precedente se pressuponha outra coisa à qual esta sempre deva seguir-se, ou seja, segundo uma regra". A série temporal não pode inverter-se porque, "uma vez posto o estado precedente, o acontecimento deve seguir-se infalível e necessariamente"; portanto, "é lei necessária de nossa sensibilidade e, conse- TEMPO 946 TEMPO qüentemente, condição formal de todas as percepções que o T. precedente determine necessariamente o seguinte". Isso realmente permite a distinção entre percepção real do T. e imaginação, que poderia e pode inverter a ordem dos eventos, transformando a sucessão temporal em "único critério empírico do efeito em relação à causalidade da causa" (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II, seç. III, 3). Essa redução do T. à ordem causai, defendida por Kant em relação ao conceito de T. dominante em sua época (derivada da física newtoniana), foi reapresentada em nossos dias com relação à física einsteiniana. Ao afirmar a relatividade da medida temporal, Einstein na realidade não inovou o conceito tradicional de T. como ordem de sucessão: só negou que a ordem de sucessão fosse única e absoluta (v. Über die spezielle und die allgemeine Relativitàtstheorie, 1921, §§ 8-9). Em confronto com a física de Einstein, H. Reichenbach voltou a propor a tese kantiana da identidade do T. com a causalidade: "O T. é a ordem das cadeias causais: este é o principal resultado das descobertas de Einstein" (Albert Einstein: Philosopher-Scientist, ed. por P. A. Schilpp, 1949, pp. 289 ss.). "A ordem do T., a ordem do antes e do depois, é redutível à ordem causai. (...) A inversão da ordem temporal para certos eventos, resultado que deriva da relatividade da simultaneidade, é apenas uma conseqüência desse fato fundamental. Uma vez que a velocidade de transmissão é limitada, existem eventos tais que nenhum deles pode ser causa ou efeito do outro. Para tais eventos, a ordem do T. não é definida, e cada um deles pode ser chamado de posterior ou anterior ao outro" (Ibid., 1949, pp. 289 ss.). Esses mesmos conceitos foram explicados por Reichenbach em seu livro póstumo The Direction ofTime (1956), no qual identifica a ordem do T. com a causalidade, e a direção do T. com a entropia crescente (v. especialmente §§ 6, 16). A redução do T. a causalidade pode ser considerada a mais importante (mas não por isso a mais consistente) proposição filosófica apresentada no campo da concepção do T. como ordem. Ao contrário, tem bem menos importância a discussão — a que muitas vezes os filósofos se inclinaram — sobre a subjetividade ou objetividade do T. Foi Aristóteles quem deu início a tais discussões, chegando à conclusão de que, se por um lado o T. como medida não pode existir sem a alma — pois só a alma pode medir —, por outro lado o movimento ao qual a medida se refere não depende da alma (Fís., IV, 14. 223 a 20-29). No séc. XIV, retomando essas considerações, Ockham afirmava que não existiria T. se a alma não pudesse medir nem numerar (In Sent., II. q. 12). Até Hobbes chamava o T. de imagem (v. definição citada anteriormente). Menos significativa é a redução do T., de autoria de Locke e de Berkeley, à ordem das idéias: porque as idéias, para esses filósofos, são os únicos objetos de que se pode falar. Quanto ao "subjetivismo" da concepção kantiana, segundo a qual o tempo é "intuição pura", condição de qualquer percepção sensível, não passa de mal-entendido, pois só o T. pode ser considerado subjetivo com relação às coisas em si, que estão além da consideração humana, mas é objetivo e real em relação às coisas naturais, em virtude do que o T. tem "realidade empírica" indubitável (Crít. R. Pura, §§ 6, 7). Além disso, o objetivismo da concepção kantiana é demonstrado pela redução do T. à ordem causai: tese a que os neo-em-piristas chegaram sem conhecer sua prove-niência kantiana. 2- A segunda concepção fundamental de T. considera-o como intuição do movimento ou "devir intuído". Esta última definição é de He-gel, que acrescenta ser "o T. o princípio mesmo do Eu = Eu, da autoconsciência pura, mas é esse princípio ou o simples conceito ainda em sua completa exterioridade e abstração" (Ene, § 258). Portanto, Hegel não identifica o T. com a consciência, mas com algum aspecto parcial ou abstrato da consciência. Sem essa limitação, Schelling dissera: "o T. outra coisa não é senão o sentido interno que se torna objeto para si" (System des transzendentalen Idealismus, seç. III, Segunda época, D; trad. it., p. 141). A rigor, a concepção de T. como intuição do devir traz em seu bojo a redução de T. a consciência. Isso já acontece em Plotino. Segundo este último, o T. não existe fora da alma: "é a vida da alma e consiste no movimento graças ao qual a alma passa de uma condição de sua vida para outra" (Enn., III, 7.11); assim, pode-se dizer que até o universo está no T. só na medida em que está na alma, ou seja, na alma do mundo (Ibid., III, 7, 3). A S. Agostinho deve-se a melhor expressão e a difusão dessa doutrina na filosofia ocidental. O T. é identificado por Agostinho com a própria vida da alma que se estende para o passado ou para o futuro (extensio ou distensío animi). S. Agostinho diz: "De que modo dimi- TEMPO 947 TEMPO nui e consuma-se o futuro que ainda não existe? E de que modo cresce o passado que já não é mais, senão porque na alma existem as três coisas, presente passado e futuro? A alma de fato espera, presta atenção e recorda, de tal modo que aquilo que ela espera passa, através daquilo a que ela presta atenção, para aquilo que ela recorda. Ninguém nega que o futuro ainda não exista, mas na alma já existe a espera do futuro; ninguém nega que o passado já não exista, mas na alma ainda existe a memória do passado. E ninguém nega que o presente careça de duração porque logo incide no passado, mas dura a atenção por meio da qual aquilo que será passa, afasta-se em direção ao passado" (Conf, XI, 28,1). A tese fundamental dessa concepção de T. foi enunciada pelo próprio S. Agostinho: "A rigor, não existem três T., passado, presente e futuro, mas somente três presentes: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro" (íbid., XI. 20, 1). Na filosofia moderna, Bergson reexpôs essa concepção, contrapondo-a ao conceito científico de tempo. Segundo ele, o T. da ciência é espacializado e, por isso, não tem nenhuma das características que a consciência lhe atribui. Ele é representado como uma linha, mas "a linha é imóvel, enquanto o T. é mobilidade. A linha já está feita, ao passo que o T. é aquilo que se faz; aliás, é aquilo graças a que todas as coisas se fazem" {La pensée et le mouvant, 3a ed., 1934, p. 9). Já em sua primeira obra, Essai sur les données immédiates de Ia conscience, Bergson insistira na exigência de considerar o T. vivido (a duração da consciência) como uma corrente fluida na qual é impossível até distinguir estados, porque cada instante dela transpõe-se no outro em continuidade ininterrupta, como acontece com as cores do arco-íris. Esse ficou sendo o conceito fundamental de sua filosofia. Segundo Bergson, o T. como duração possui duas características fundamentais: ls novidade absoluta a cada instante, em virtude do que é um processo contínuo de criação; 2- conservação infalível e integral de todo o passado, em virtude do que age como uma bola de neve e continua crescendo à medida que caminha para o futuro. Não muito diferente é o conceito de Husserl sobre o "T. feno-menológico". Ele afirma: "Toda vivência efetiva é necessariamente algo que dura; e com essa duração insere-se em um infinito contínuo de durações, em um contínuo pleno. Tem necessariamente um horizonte temporal atualmente infinito de todos os lados. Isso significa que pertence a uma corrente infinita de vivências. Cada vivência isolada, assim como pode começar, pode acabar e encerrar sua duração; é o que acontece, p. ex., com a experiência de uma alegria. Mas a corrente de vivências não pode começar nem acabar" ildeen, I, § 81). Isso significa que, assim como a duração bergso-niana, a corrente de vivências tudo conserva e é uma espécie de eterno presente. 3a O terceiro conceito de T. transforma-o em estrutura da possibilidade. Esse é o conceito encontrado em Heidegger na obra Ser e T. (1927), que já no título anuncia a identidade dos dois termos. A primeira característica dessa concepção é o primado do futuro na interpretação do tempo; as duais concepções anteriores fundam-se no primado do presente. O T. como ordem do movimento é uma totalidade presente porque toda ordem pressupõe a simultanei-dade de suas partes, de cuja recíproca adaptação ela nasce. A concepção de T. como devir intuído só faz interpretá-lo em função do presente, porque a intuição do devir é sempre um agora, um instante presente. Heidegger, ao contrário, interpretou o T. em termos de possibilidade ou de projeção: o T. é originariamente opor-vir {Zu-kunft); mais precisamente: quando o T. é autêntico (originário e próprio da existência), é "o porvir do ente para si mesmo na manutenção da possibilidade característica como tal". "Porvir não significa um agora, que, ainda não tendo se tornado atual, algum dia o será, mas o advento em que o ser-aí vem a si em seu poder-ser mais próprio. É a antecipação que torna o ser-aí propriamente porvindouro, de sorte que a própria antecipação só é possível porque o ser-aí, enquanto ente, sempre já vem a si" (Sein und Zeit, % 65). O passado, como um ter-sido, é condicionado pelo porvir porque, assim como são possibilidades autênticas aquelas que já foram, também já foram as possibilidades às quais o homem pode autenticamente retornar e de que ainda pode apropriar-se (Ibid., § 65). Tanto o T. autêntico, em que o ser-aí projeta sua própria possibilidade privilegiada (o que já foi, de tal modo que suas escolhas são escolhas do já escolhido, isto é, da impossibilidade de escolher), quanto o T. inautêntico, que é o da existência banal, como sucessão infinita de instantes, ambos são o so-brevir do que a possibilidade projetada apresenta ao ser-aí (isto é, ao homem); portanto são TEMPO 948 TENSÃO um apresentar-se, a partir do futuro, daquilo que já foi no passado {Jbid., § 80, 81). A análise heideggeriana do T. sem dúvida contém um grande compromisso metafísico, porquanto o T. é considerado uma espécie de círculo, em que a perspectiva para o futuro é aquilo que já passou; por sua vez, o que já passou é a perspectiva para o futuro. Nesse sentido, Heidegger fala de T. finito, ou autêntico, já que T. inau-têntico (que ele também chama de databilidade ou T. público) é o desconhecimento parcial da natureza do T. e a sua concepção como linha aberta e sucessão infinita de instantes {Sein undZeit, §§ 79-81). Todavia, a análise de Heidegger contém alguns elementos de interesse filosófico notável porque constitui uma importante inovação na análise do conceito de tempo. Esses elementos são os seguintes: ls Mudança do horizonte modal, passando-se da necessidade à possibilidade: o T. já não é integrado numa estrutura necessária, como a ordem causai, mas na estrutura da possibilidade. Esse aspecto pode ser utilizado para expressar adequadamente a transformação a que a noção de T. foi submetida pela relatividade de Einstein. Com efeito, se dois eventos são simultâneos segundo certo sistema de referência mas podem não ser simultâneos segundo um outro, conclui-se que o T. não é uma ordem necessária, mas a possibilidade de várias ordens. 2- O primado do futuro na interpretação do T. não constitui apenas uma alternativa diferente do primado do presente e a ele oposta, na qual se baseiam as outras duas interpretações principais, mas também oferece a possibilidade de não achatar sobre o presente as outras determinações do T. e de entendê-las em sua natureza específica: o futuro como futuro (e não como "presente do futuro") e o passado como passado. 3e A relação entre passado e futuro, que Heidegger enrijeceu num círculo, pode ser facilmente dissolvida com a introdução da noção de possível. O passado pode ser entendido como ponto de partida ou fundamento das possibilidades porvindouras, e o futuro como possibilidade de conservação ou de mudança do passado, em limites (e aproximações) de-termináveis. 4a A introdução de novos conceitos inter-pretativos, expressos por termos como projeto ou projeção, antecipação, expectativa, etc, mostraram-se úteis nas análises filosóficas e passaram a fazer parte do uso filosófico corrente. TEMPORAL (in. Temporal; fr. Temporel; ai. Zeitlich; it. Temporalé). 1. O que pertence ao tempo, diz respeito ao tempo ou acontece no tempo. P. ex., ordem T., esquema T., etc. 2. O que é mundano, pertence à ordem do tempo, em contraposição ao que é espiritual e pertence à ordem da eternidade. A contraposição entre T. e espiritual é um dos temas dominantes do cristianismo paulino (v., p. ex., Ad cor., II, IV, 18; Adhebr., XI, 25; etc). TEMPORÁRIO (in. Temporary, fr. Tempo-raire, ai. Einstweilig; it. Temporaneó). De pouca duração, provisório. TENDÊNCIA (in. Tendency, fr. Tendance, ai. Trieb, it. Tendenzd). Entende-se porT. todo impulso habitual e constante para a ação. Nisso a T. distingue-se do impulso (v.), que é a ação súbita e temporária. Kant restringiu o significado desse termo a apetite habitual, de natureza sensível (Antr., § 73). Schiller admitiu três T. fundamentais no homem; a primeira, de natureza sensível, instiga-o à mudança; a segunda, ou T. à forma, instiga-o à imutabilidade; finalmente, a terceira, ou T. ao jogo, instiga-o a combinar as duas primeiras (Briefe über die aesthetische Erziehung, 12, 13). A esta distinção Fichte contrapôs outra, entre a T. ao conhecimento, que torna o homem um "ser representante", a T. prática, que visa à modificação e à formação das coisas, e a T. estética, que visa a determinada representação só em vista dela mesma, e não da coisa ou do conhecimento da coisa (Werke, VIII, pp. 278-79). Mais recentemente, Jaspers distinguiu três ordens de T.: Ia as sensíveis, com correlato somático (fome, sede, sexo, etc); 2 a as vitais mas sem localização somática (T. à auto-exaltaçâo ou à submissão, à imigração, à sociabilidade, etc); 3 a as espirituais, voltadas para a realização de valores {Allgemeine Psychopathologie, 1913). TENSÃO (gr. tóvoç; in. Tension-, fr. Tension; ai. Spannung; it. Tensioné). 1. Conexão entre dois opostos que estão ligados apenas por sua oposição. Segundo os antigos (v. FÍLON, Rer. div. Her., 43), esse conceito constituía a grande descoberta de Heráclito; este dissera: "Os homens não sabem como aquilo que é discordante está em acordo consigo: harmonias de T. opostas, como as do arco e da lira" {Fr. 51, DIELS). Nesse sentido, os estóicos também falaram da T. que mantém o universo coeso (AR- TEOCRACIA 949 TEOLOGIA NIM, Stoic.fragm., II, 134). Enquanto a dialética (v.) é a unidade dos opostos como síntese ou conciliação, a T. é o elo entre os opostos como tais, sem conciliação ou síntese. Por isso, as situações de T. não permitem prever conciliação; essa palavra é usada com esse sentido mesmo na linguagem comum, como quando se fala da "T. internacional". No mesmo sentido, fala-se de "T. psicológica" para indicar um estado latente de conflito. 2. Os estóicos (mais precisamente Cleantes; v. ARNIM, Stoic. frag., I, 128) introduziram a noção de T. como força tendente a um resultado: nesse sentido, é sinônimo de tendência ou de esforço, especialmente de esforço prolongado ou penoso. TEOCRACIA (in. Theocracy, fr. Théocratie, ai. Theokratie, it. Teocrazia). 1. Regime político em que o governo é exercido pela casta sacer-dotal. Nesse sentido foram T. o estado hebraico, o estado maometano e o calvinismo de Genebra. 2. Doutrina da supremacia do poder eclesiástico, do qual o poder civil extrairia direito e investidura. T. nesse sentido encontrar-se-ia na Idade Média. 3. Mais em geral, qualquer doutrina segundo a qual toda autoridade provém de Deus (v. AUTORIDADE). TEOCRASIA(gr. 6eoKpocoía; in. Theocrasy, fr. Théocrasie, ai. Tbeocrasie, it. Teocrasiá). União ou mescla da alma com Deus, no misticismo (v. JÂMBLICO, De vita pythagorica, 33, 240). TEODICÉIA (in. Theodicea; fr. Théodicée, ai. Theodizee, it. Teodiced). Termo criado por Leibniz e que serviu de título a uma de suas obras {Ensaio de T. sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal, 1710), para demonstrar que há justiça divina por meio da solução de dois problemas fundamentais: o do mal e o da liberdade humana. Sobre o primeiro problema, a T. de Leibniz responde mais especificamente às considerações desenvolvidas por Bayle em seu Dicionário (1697), que na realidade só ampliavam o que epicuristas já haviam dito em polêmica com os estóicos: "Deus não quer, ou não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode eliminar o mal. Se quer e não pode, é impotente: o que Deus não pode ser. Se pode e não quer, é invejoso, o que igualmente é contrário a Deus. Se não quer nem pode, é invejoso e impotente, portanto não é Deus. Se quer e pode — única coisa que convém a Deus —, qual a origem da existência do mal e por que não os elimina?" {Fr. 374, Usener). A solução de Leibniz é a tradicional: o mal não é uma realidade; portanto, a responsabilidade por ele não remonta a Deus (v. MAL). Quanto ao problema da liberdade, Leibniz discute principalmente as várias formas assumidas pelo determinismo teológico na literatura protestante de seu tempo, para reivindicar a liberdade do homem no sentido tradicional de autodeterminação (v. LIBERDADE). Deus predispõe sem determinar, e a liberdade do homem não consiste na indeter-minação absoluta, ou seja, no arbítrio de indiferença, mas na ausência de necessidade e de coação (v. LIBERDADE). A partir de Leibniz, a T. passa a ser considerada parte fundamental da teologia racional (v. TEOLOGIA). TEOFANIA (lat. Theophania; in. Theopha-ny, fr. Théophanie, ai. Theophanie, it. Teofa-nid). Esse termo, que significa "visão de Deus", foi usado por Scotus Erigena (séc. IX) para indicar o mundo como manifestação de Deus. Segundo ele, T. é o processo de descida de Deus ao homem através da criação e de retorno do homem a Deus através do amor. T. também é qualquer obra da criação que manifeste a essência divina, que assim se torna visível nela e através dela {De divis. nat, I, 10; V, 23). TEOGNOSE (ai. Theognosis). Conhecimento científico de Deus (v. C. F. KRAUSE, Vorlesun-gen über das System der Phiolosophie, 1828, p. 27). Termo bastante raro. TEOGONIA (gr. 8eoTOVÍa; in. Theogony, fr. Théogonie, ai. Theogonie, it. Teogonid). Geração dos deuses e do mundo: cosmologia mítica (V. PLATÃO, Leis, X, 886 c) (v. COSMOLOGIA). TEOLOGAIS, VIRTUDES (lat Virtutes theologicae, in. Theological virtues; fr. Vertus theologiques; ai. Theologische Tugenden; it. Virtú teologiché). Foram assim chamadas na Idade Média a fé, a esperança e a caridade, virtudes que dependeriam de dons divinos e que visaram a obter a bem-aventurança a que o homem não pode chegar só com as forças da sua natureza. Por esse caráter sobrenatural, as virtudes T. distinguem-se das éticas (v.) e dianoéticas{v.) (v. S. TOMÁS, S. Th., II, 1, q. 62, a. 1). Para as virtudes em separado, vejam-se os respectivos verbetes. TEOLOGIA (gr. 0eo^oyía; lat. Theologia; in. Theology fr. Théologie, ai. Theologie, it. Teologia). Em geral, qualquer estudo, discurso ou pregação que trate de Deus ou das coisas divi- TEOLOGIA 950 TEOLOGIA nas. Foi nesse sentido generalíssimo que essa palavra foi entendida pelo grande erudito romano Marco Terêncio Varrão (séc. I a.C), cuja distinção de três T. foi transmitida por S. Agostinho: T. mítica ou fabulosa; T. natural ou física; T. civil. A T. mítica ou fabulosa é utilizada pelos poetas e admite muitas ficções contrárias à dignidade e à natureza da divindade. A T. natural é a dos filósofos e estuda "o que os deuses são, o lugar em que residem, o gênero deles, sua essência, o tempo em que nasceram ou sua perenidade, e se o princípio deles está no fogo, como crê Heráclito, nos números, como afirma Pitágoras, ou nos átomos, como acredita Epicuro". Finalmente, a T. civil "deve ser conhecida e praticada pelos cidadãos, principalmente pelos sacerdotes; ensina quais as divindades a serem veneradas publicamente e quais as cerimônias e sacrifícios a serem realizados" (AGOSTINHO, De civ. Dei, VI, 5). Nesse sentido varroniano, Viço considerava a sua "ciência nova" como "uma T. civil e racional da providência", porquanto sua origem está na "sabedoria comum dos legisladores que fundaram as nações e que contemplarem Deus com o atributo de providencial" (Sc. n., II, Corolário em torno dos aspectos principais dessa ciência). Em sentido mais especificamente histó-rico-filosófico, é possível distinguir: Ia T. metafísica; 2a T. natural; 3a T. revelada; 4B T. negativa. ls Aristóteles chamou sua "ciência primeira", a metafísica, de T.: entendeu-a ao mesmo tempo como ciência do ser enquanto ser (ou seja, da substância) e como ciência da substância eterna, imóvel e separada (ou seja, de Deus) (Met., VI, 1, 1026 a 10). Esse conceito de T. como metafísica persistiu por longos séculos. O estóico Cleantes incluía a T. entre as partes da filosofia (DIÓG. L., VII, 41). Para Plotino, a T. era a única ciência digna desse nome (Enn., V, 9, 7). Desse ponto de vista, os neoplatôni-cos muitas vezes chamaram os filósofos — inclusive os físicos e os materialistas — de teólogos, porquanto eles se ocupavam (como diz Proclo) dos "princípios primeiríssimos das coisas subsistentes por si mesmas" (Plat. theol, I, 3). Esse é também o significado que Varrão atribuía à expressão "T. natural". Esse uso perdurou na filosofia cristã: nem na patrística nem na primeira fase da escolástica seria possível encontrar uma delimintaçâo exata entre T. e filosofia. S. Tomás mesmo, na primeira fase de sua obra, aceitou a identidade entre T. e metafísica, como se vê no prólogo ao seu comentário à Metafísica de Aristóteles, onde ele diz que, como a metafísica considera em primeiro lugar as substâncias separadas ou divinas, em segundo lugar o ente como tal e em terceiro lugar as causas ou os princípios primeiros, "é chamada de ciência divina ou T. quando considera as substâncias separadas; de metafísica quando considera o ente; (...) e de filosofia primeira quando considera as causas primeiras das coisas" (In Met., Proemium). No séc. XVII começou-se a fazer a distinção entre "filosofia primeira", que também foi chamada de ontologia (v.), e T.; começou-se também a fazer a distinção entre T. como ciência natural e T. baseada na revelação. Essas distinções estão claramente estabelecidas em De augumentis scientiarum (1623) de F. Bacon, que chamou de T. natural o conhecimento que se pode obter de Deus "através da luz da natureza e da contemplação das coisas criadas" (De augm. scient., III, 2), e de T. inspirada ou sagrada a que se baseia em princípios diretamente inspirados por Deus (Ibid., III, 1). 2a O segundo conceito de T. é, portanto, o de T. natural, que se distingue do anterior só pelo fato de compreender uma parte da metafísica, e não a sua totalidade; mais precisamente a parte que tem por objeto as coisas divinas. A expressão de Bacon, "T. natural", foi retomada e difundida por Wolff: ele a definia como "a ciência do que é possível por obra de Deus", portanto como uma parte da filosofia, que é, em geral, a ciência das coisas possíveis (Log., Disc. prael., 57). Baumgarten insistia no caráter racional da T. assim entendida: "T. natural é a ciência de Deus, na medida em que pode ser conhecido sem fé" (Met., § 800), e a considerava fundamento da filosofia prática, da T. e da T. revelada (Ibid., § 601). Foi esse conceito de T. que, juntamente com seu conteúdo, Kant criticou em Crítica da Razão Pura. Ele, porém, preocupou-se também em distinguir as várias espécies de T., e, partindo da distinção básica entre T. racional e T. revelada, distinguiu na T. racional a T. transcendental— que "concebe seu objeto simplesmente como razão pura, por meio de meros conceitos transcendentais (ens originarium, realissimum, ens entiurri)" — e a T. natural, que utiliza "conceitos tomados da natureza". Por sua vez, a T. transcendental pode ser cosmoteologia, se deduzir a existência de Deus da experiência em geral, ou onto-teologia, se deduzir sua existência a partir de TEOLOGIA 951 TEOREMA conceitos, sem recorrer à experiência. Finalmente, a T. natural pode ser T. física, se remontar aos atributos de Deus partindo da ordem e da constituição do mundo, ou T. moral, se considerar Deus como o princípio da ordem e da perfeição moral (Crít. R. Pura, Dialética, cap. III, seç. VII). Algumas dessas distinções persistiram e ainda são usadas no campo da T. eclesiástica. 3Q A T. revelada ou sagrada extrai seus princípios da revelação. A primeira formulação explícita desse conceito é, provavelmente, tomis-ta: S. Tomás afirma que "a sagrada doutrina é ciência porque parte de princípios conhecidos através da luz de uma ciência superior, que é a ciência de Deus e dos bem-aventurados" (5. Th., I. q. 1, a. 2). A "ciência de Deus e dos bem-aventurados" coincide com os "artigos de fé" ou com a "revelação divina" (Ibid., a. 78). Era essa a T. que Duns Scot considerava ciência puramente prática, em confronto com a metafísica, que ele considerava a ciência teórica por excelência: o único objetivo da T. seria persuadir o homem a agir em vista da salvação (Op. Ox., Prol, q. 4, n. 42), e mesmo as verdades aparentemente teóricas teriam valor apenas prático como, p. ex., a proposição "Deus é trino", que incluiria simplesmente o conhecimento do justo amor que o homem deve a Deus (Jbid., Prol., q. 4, n. 31). A negação do valor cognitivo da T. persiste, no fim da es-colástica, mesmo quando não se atribui caráter prático à sua totalidade. Ockham não considerava a T. como ciência, mas como um simples conjunto de conhecimentos diversos, teóricos e práticos, baseados exclusivamente na autoridade e cujo único fim seria guiar o homem para a salvação (In Sent., Prol., q. 12, E-I). Esse conceito não difere muito daquilo que Spinoza exporia mais tarde em Tratado teológico-político (v. especialmente cap. 15). 4Q O conceito da T. negativa surgiu e propagou-se no misticismo. A distinção entre T. positiva ou afirmativa (que parte de Deus em direção ao finito por meio da determinação dos atributos ou nomes de Deus) e T. negativa (que parte do finito em direção a Deus e o considera acima de todos os predicados ou nomes com os quais possa ser designado) encontra-se nos tratados do Pseudo-Dionísio, o Areopagita {De myst. theol, 1; De div. nom., I, 4; 4, 2; 13, 1; De eccl. hyerar, 2, 3), mas sua fonte está nos textos neoplatônicos, para os quais Deus está acima de todas as determinações finitas e do próprio ser (v. TRANSCENDÊNCIA). Essa distinção é repetida por Scotus Erigena (De divis. nat, II, 30) e retomada pelo misticismo especulativo alemão do séc. XIV (v. ECKE-HART, em PFEIFFER, Deutsche Mystiker des 14 Jahrhunderts, II, pp. 318-19) e pelo Renascimento, com Nicolau de Cusa (Dedocta ignor., I, 24; 26) e Charles de Bouelles (De nihilo, 11, 1, 4). Pode-se considerar manifestação dessa T. — revivida através da experiência de Kierkegaard — a chamada "T. da crise" de K. Barth, salvo pelo fato de esta não consistir na negação dos atributos finitos de Deus, mas em considerar a relação entre o homem e Deus como a negação de todas as possibilidades humanas (crise), que se reduziriam a meras impossibi-lidades, de tal modo que só dessa negação nasceria uma possibilidade de salvação, cuja origem não é mais humana, porém divina (Rômerbrief, 1919). TEOLOGIZANTE, FILOSOFIA. Foi esse o nome dado por Croce à filosofia que cuida de problemas mal formulados e por isso irresolúveis, seja discutindo-os como problemas "máximos" ou "eternos", seja resolvendo-os com sistemas "imaginários", seja assumindo atitude agnóstica diante deles ("Sobre filosofia T. e as suas sobrevivências", em Saggifilosofici, 1920, V, p. 297). TEOMANCIA (in. Theomancy, ai. Theo-mantie, it. Teomanzià). Adivinhação inspirada pela divindade (v. ENTUSIASMO). TEOMONISMO (ai. Theomonismus). Doutrina segundo a qual Deus é a única realidade: o mesmo que acosmismo (v.) ou panteísmo (v.). TEONOMIA (in. Theonomy, fr. Théonomie, ai. Théonomie, it. Teonomid). Governo ou legislação de Deus. Esse termo às vezes é contraposto a autonomia. TEOPANTISMÓ (in. Theopantism; fr. Théo-pantisme, ai. Theopantismus-, it. Teopantismó). Doutrina segundo a qual Deus é a única realidade: o mesmo que panteísmo (v.). TEOPNEUSTIA (in. Theopneusty, fr. Théo-pneustíe, ai. Theopneustie, it. Teopneustià). Inspiração divina, através da qual é comunicada a verdade revelada. TEOREMA (gr. 0eúpr|Lia; lat. Theorema; fr. Théorème, ai. Theorem, it. Teorema). Qualquer proposição demonstrável. Esse termo ingressou na linguagem matemática já na Antigüidade (v. ARISTÓTELES, Met., XIV, 2, 1090 a 14), mas conservou, fora da linguagem matemática, o significado de proposição não primitiva mas derivada ou derivável de outras proposições. TEORIA 952 TEORIA TEORIA (gr. Becopía; lat. Theoria; in. Theory, fr. Théorie, ai. Theorie, it. Teoria)- Este termo possui os seguintes significados principais: 1Q Especulação ou vida contemplativa. Esse é o significado que o termo teve na Grécia. Nesse sentido, Aristóteles identificava T. com bem-aventurança (Et. nic, X, 8, 1178 b 25); T. opõe-se então a prática e, em geral, a qualquer atividade não desinteressada, ou seja, que não tenha a contemplação por objetivo. 2° Uma condição hipotética ideal, na qual tenham pleno cumprimento normas e regras, que na realidade são observadas imperfeita ou parcialmente. Este significado está presente quando se diz: "Teoricamente, deveria ser assim, mas na prática é outra coisa". Kant examinou o problema da relação entre T. e prática nesse sentido num escrito de 1793 (Über den Gemenspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nichtfür die Praxis), em que se encontram as seguintes definições de T. é prática: "Chama-se T. um conjunto de regras também práticas, quando são pensadas como princípios gerais, fazendo-se abstração de certa quantidade de condições que exerçam influência necessária sobre a sua aplicação. Inversamente, o que se chama de prática não é um ato qualquer, mas apenas o ato que concretiza um objetivo e é pensado em relação a princípios de conduta representados universalmente" (Op. cit., princ). 3a A chamada "ciência pura", que não considera Tslífflícãçolis^dircTencIíli técnica de produção, ou então as ciências, ou partes de ciências, que consistem na elaboração conceituai ou matemática dos resultados; p. ex., "física teórica". 4MJma_hip_ótese ou um conceito_científico. Este último significado deve ser considerado especialmente neste verbete, visto que o problema da T. científica constitui um dos capítulos mais importantes da metodologia das ciências. Os resultados principais das pesquisas nesse campo podem ser resumidos do modo seguinte: «)_A_T;_científica_é üma ^E2Íʧ.e ou> Pel° menos, contém uma ou mais hipóteses como suas partes integrantes. A ciência moderna abandonou a repugnância da ciência dos sécs. XVIII e XIX pelas hipóteses, tão bem expressa por Newton e outros (v. HIPÓTESE). Isso aconteceu porque a hipótese deixou de ser uma suposição sobre as causas últimas ou ocultas dos fenômenos. Kant já condenara as "hipóteses transcendentais" que recorrem a simples idéias racionais e declarara-se favorável às hipóteses empíricas, cuja característica é "a suficiência para determinar a priori as conseqüências que já estão dadas" (Crít. R. Pura, Teoria do método, cap. I, seç. 3). Em 1865, ao falar das T., Claude Bernard afirmava seu caráter indispensável e ao mesmo tempo hipotético, no sentido estrito do termo: "O experimentador formula sua idéia [ou hipótese experimental] como uma questão, uma interpretação antecipada da natureza, mais ou menos provável, da qual deduz logicamente conseqüências que a cada momento compara com a realidade, por meio da experiência" (Introduction à Vétude de Ia médecine expérimentale, I, 2). E reconhecia a fecundidade das hipóteses para a descoberta de fatos novos: "O objetivo cias hipóteses é não só levar-nos a fazer experiências novas, mas também descobrir fatos novos que não teríamos percebido sem elas" (Ibid., III, 1, 2). No início do séc. XX, Mach reconhecia expressamente a impossibilidade de a hipótese científica (e a hipótese em geral) ser diretamente provada pelos fatos: "Damos o nome de hipóteses às explicações provisórias cujo fim é facilitar a compreensão dos fatos, mas que ainda escapa à comprovação pelos fatos" (Er-kenntniss undIrrtum, 1905, cap. XIV; trad. fr., p. 240). E Duhem enumerava da seguinte maneira as condições às quais uma hipótese deveria corresponder para ser escolhida como fundamento de uma T. física: Ia a hipótese não deve ser uma proposição contraditória; 2 a não deve apresentar contradição com as outras hipóteses da mesma ciência; 3S as hipóteses devem ser tais que, de seu conjunto, seja possível deduzir matematicamente conseqüências que representem, com aproximação suficiente, o conjunto das leis experimentais (La théorie physíque, II, 7, 1, p. 363). Poincaré, por sua vez, insistiu na necessidade de hipóteses em qualquer procedimento experimental, mas também na necessidade de não multiplicar hipóteses. Esta última advertência nada mais é que o antigo princípio de economia (v.), ou navalha de Ockham, sempre eficaz no campo das formulações conceituais (La science et Vhypothèse, 1902, cap. IX). tí) Uma T. científica não é um acréscimo interpretativo ao corpo da ciência, mas é o esqueleto desse corpo. Em outros termos, a T. condiciona tanto a observação dos fenômenos quanto o uso mesmo dos instrumentos de ob- TEORIA 953 TEÓRICO/TEORÉTICO servação. Sobre esse ponto é clássico o livro de Duhem, A teoria física (1906; cf. especialmente o cap. IV da segunda parte). Esse é um aspecto às vezes aproveitado para demonstrar o caráter relativo e imperfeito do conhecimento científico. Foi o que fez, p. ex., E. Le Roy (Science et pbilosophie, 1899-1900). Contudo, na realidade ele não invalida a ciência, mas apenas a tese da separação nítida entre observação e T. e a tese da verdade absoluta da ciência. c) Além da parte hipotética, uma T. científica contém um aparato que permite a sua verificação ou confirmação. Duhem distinguia na T. física quatro operações fundamentais: Ia a definição e a medida das grandezas físicas; 2a a escolha das hipóteses; 3a o desenvolvimento matemático da T.; 4a o confronto entre T. e experiência (La théorie physique, I, 2, § 1). Obviamente, as três primeiras operações constituem a construção e o deseuvolvimento da hipótese, enquanto a quarta é diferente e constitui a fase de confirmação. Analogamente, Norman R. Campbell distinguiu em qualquer T. física dois grupos de proposições: "um, que consiste em asserções sobre algum conjunto de idéias características da T.; outro, que consiste nas relações entre essas idéias e outras idéias de natureza diferente". O primeiro grupo de idéias é a hipótese-, o segundo é o dicionário. A finalidade do dicionário é possibilitar a verificação indireta da hipótese. Campbell diz: "Deve ser possível determinar, independentemente do conhecimento da T., se determinadas proposições que contêm as idéias do dicionário são verdadeiras ou falsas. O dicionário relaciona algumas dessas proposições, cuja verdade ou falsidade é conhecida, com algumas proposições que compreendem as idéias hipotéticas, afirmando que, se o primeiro conjunto de proposições é verdadeiro, então também o segundo é verdadeiro e vice-versa; essa relação pode ser manifestada pela asserção de que o primeiro conjunto implica o segundo" (Physics: the Elements, 1920, p. 122). Analogamente ainda, G. Bergmann disse que uma T. científica consiste em: ls axiomas; 2Q teoremas; 3Q provas dos teoremas; 4S definições (Pbilosopby of Science, 1957, p. 35); nessa enumeração, as "provas dos teoremas" constituem o aparato de verificação da teoria. Duas observações são muito importantes a esse propósito. A primeira é que as modalidades e o grau da prova ou confirmação que uma T. deve possuir para ser declarada ou considerada "científica" não são definíveis segundo um critério unitário. Obviamente, a verdade de uma T. psicológica ou de uma T. econômica exige um tipo de comprovação completamente diferente do exigido por uma T. física, visto que as técnicas de verificação são completamente diferentes. Até mesmo os graus de confirmação exigidos sào diferentes; muitas vezes, fora do campo da física, são chamadas de "T." simples conjecturas que não incluem o menor aparato comprobatório. A segunda observação é que cada aparato comprobatório exige a limitação das hipóteses contidas na T.; isso porque, sempre que essas hipóteses puderem ser multiplicadas à vontade, a T. poderá manter-se até contra qualquer desmentido empírico, e sua confirmação passa a ser irrelevante (foi o que aconteceu, p. ex., com a T. dos epiciclos na cosmologia ptolemaica). Mas mesmo com essa limitação às vezes é difícil decidir até que ponto a aquisição de algum dado experimental se concilia com a T. ou questiona todo o seu conjunto d) Uma T. não é necessariamente uma explicação do domínio de fatos aos quais se refere, mas um instrumento de classificação e previsão. Duhem observava: "T. verdadeira não é aquela que dá uma explicação das aparências físicas conforme à realidade, mas sim a T. que represente de modo satisfatório um conjunto de leis experimentais" (La théorie physique, I, 2, 1). A verdade de uma T. está em sua validade, e sua validade depende de sua capacidade de cumprir as funções às quais se destina. As funções de uma T. científica podem ser especificadas da seguinte maneira: ls uma T. deve constituir um esquema de unificação sistemática de conteúdos diversos; o grau de abrangência de uma T. é um dos elementos fundamentais na avaliação de sua validade: 2 2 uma T. deve oferecer um conjunto de meios de representação conceituai e simbólica dos dados de observação. Sob esse aspecto, o critério ao qual deve satisfazer é o de economia dos meios conceituais, vale dizer, simplicidade lógica; 3S uma T. deve constituir um conjunto de regras de inferências que permitam a previsão dos dados de fato. Este é considerado hoje uma das tarefas fundamentais das T. científicas, e a capacidade de previsão de uma T. é critério fundamental para avaliá-la (v. S. TOULMIN, The Philosophy of Science, 1953, p. 42; M. K. Mu-NITZ, Space Time and Creation, 1957, IV, 1). TEORICO/TEORÉTICO (gr. 6ecopT|TiKÓç,; lat. Speculativus; in. Theoretical; fr. Théorétique, ai. Theoretisch; it. Teoretico). Esse adjetivo corres- TEOSE 954 TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCÍPIO DO ponde a especulação (v.); por isso, assim como este substantivo, possui dois significados fundamentais: ls o que é puramente cognitivo e opõe-se a prático; 2° o que não é redutível à experiência e opõe-se a empirico. No primeiro exemplo, fala-se de "ciências T."; no segundo, de "conceitos T.". TEOSE. V. DEIFICAÇÀO. TEOSOFIA (gr. 0£OGO(pía; in. Theosophy, fr. Théosophie, ai. Theosophie, it. Teosofid). Este termo já era usado pelos neoplatônicos para indicar o conhecimento das coisas divinas, proveniente da inspiração direta por Deus (PORFÍRIO, Deabst., IV, 1 7; JÂMBLICO, Demyst., VII, 1; PROCLO, Theol. plat., V, 35). Foi retomada com o mesmo sentido por Jacob Bôhme (Sex puncta theosophica, 1620; Quaestiones theo-sophicae, 1623) e pelos outros místicos da Reforma; Kant observava que a limitação da razão "impede que a teologia se eleve à T., a conceitos transcendentais em que a razão se perde" {Crít. do Juízo, § 89). E Schelling falava do teosofismo de Jacobi, entendendo por teósofos os filósofos que se consideram diretamente inspirados por Deus (Münchener Vorlesungen em Werke, X, p. 165). Em 1875, esse termo foi retomado pelos fundadores da Sociedade teosófica, entre os quais se encontrava Helena Petrowna Bla-vatsky, autora de ísis sem véu (1877) e Doutrina secreta (1888), obras que expunham a nova T.: uma mistura de ocultismo e de crenças orientais, que supostamente estariam fundadas na inspiração direta por Deus. A atuação e as doutrinas dessa sociedade extrapolam o campo da filosofia. Aqui nos limitaremos a aludir ao cisma provocado por Rudolff Steiner, que o levou à formulação da antroposofia (v.). TER (gr. £%evv; lat. Habere, in. To have, fr. Avoir, ai. Haben; it. Avere). Uma das dez categorias de Aristóteles, na qual ele mesmo distinguiu muitos significados, desde que pode referir-se a qualidade, quantidade, posse, disposição, uma parte do corpo, conteúdo de um recipiente, uma propriedade ("T. uma casa ou uma fazenda"). Aristóteles também observa que se diz "T. uma mulher", mas que esse significado é impróprio porque significa apenas que se mora com ela (_Cat., 15, 15 b 3 ss.). Essas distinções são repetidas na lógica medieval (cf., p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 3.37-38; JUNGIUS, Lógica hamburgensis, I, 14, 24). Num significado assim amplo esse termo indica uma relação qualquer. Hegel, porém, queria restringi-lo à relação entre a coisa e suas propriedades {Ene, § 125). Mareei contrapôs o T. ao ser. O T. seria a categoria dominante na exterioridade das coisas, entre as quais o homem vive em sua função social ou vital, enquanto o ser seria a categoria própria da subjetividade, que é mistério (Être et avoir, 1935). No T., no fazer e no ser, Sartre viu as três grandes categorias da existência humana. Mas o fazer se resolveria no T., visto que qualquer forma de ação ou de produção, inclusive o conhecer, é uma forma de apropriação; por outro lado, o T. se reduz ao ser porque o desejo de T. no fundo é redutível ao desejo de "estar em relação com certo objeto em certa relação de ser" (Vêtre et le néant [1943], 1955, pp. 663 ss.). Tanto na linguagem corrente quanto na lógica e na matemática, T. hoje indica apenas uma relação de qualquer gênero. TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCÍPIO DO (in. Principie of excluded middle, fr. Príncipe du milieu ou tiers exclu; ai. Grundsalz vom ausgeschlossenen Dritten; it. Principio dei terzo escluso). Foi Baumgarten o primeiro a dar nome a esse princípio, considerando-o independente do princípio de contradição (Met., 1739, § 10), embora Wolff falasse da "exclusão do médio entre os contraditórios", como de um corolário do princípio de contradição (Ont., § 53). A história desse princípio está estreitamente relacionada com a do princípio de contradição, do qual não se separou até Baumgarten. Contudo, Aristóteles formulou-o com toda a clareza ao dizer: "Entre os opostos contraditórios não há meio termo. Na verdade, contradição é o seguinte: oposição em que uma das partes está presente na outra, de tal modo que não há meio termo" (Met., X, 7, 1057 a 33). Essa formulação não está isolada, porque (como se vê também no trecho citado), segundo Aristóteles, a exclusão do T. não pode ser eliminada da contradição (V. G. A. VIANO, La lógica diAris-totele, 1955, pp. 35 ss.). A lógica medieval ignorou totalmente esse princípio, que só começou a ser diferenciado do princípio de contradição por Leibniz. Este observou que o princípio de contradição contém dois enunciados verdadeiros: "Um, segundo o qual o verdadeiro e o falso não são compatíveis na mesma proposição, ou uma proposição não pode ser verdadeira e TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCÍPIO DO 955 TERCEIRO HOMEM falsa ao mesmo tempo; o outro, segundo o qual o oposto ou a negação do verdadeiro e do falso não são compatíveis, ou não há um meio termo entre o verdadeiro e o falso, ou não é possível que uma proposição não seja nem verdadeira nem falsa" {Nouv. ess., IV, 2, 1). A partir de meados do séc. XVIII, por obra de Wolff e Baumgarten, o princípio do T. E.'era introduzido entre as "leis fundamentais do pensamento", juntamente com os de identidade e de contradição. Mas não teve a sorte dos outros: algumas vezes foi posto em dúvida. Segundo relato de Cícero, Epicuro consideravao duvidoso para desvalorizar a dialética {Acad, IV, 30, 97). Enquanto Hegel repetia contra ele as críticas que habitualmente dirigia a todos os princípios lógicos tradicionais {Ene, § 119), Kant procurava estabelecer uma exceção para ele na dissertação sobre as antinomias cosmológicas. Distinguiu a oposição analítica, que é a da contradição e exclui o meio termo, da oposição dialética, que, ao contrário, admite o meio termo. Se as duas proposições, "O mundo é infinito quanto à grandeza", "O mundo é finito quanto à grandeza", forem consideradas em oposição analítica, o mundo só pode ser finito ou infinito. Mas elas só podem ser consideradas em oposição analítica se admitirmos que o mundo é uma "coisa em si", ou seja, se admitirmos como válida a idéia de mundo. Kant declara negar essa validade: portanto, as duas proposições estão em oposição dialética, e pode-se afirmar que o mundo "não existe nem como um todo em si infinito, nem como um todo em si finito" {Crít. R. Pura, Dial. transe, cap. II, seç. VII). Isso eqüivale a declarar que o princípio do T. E. não é válido no caso da oposição dialética e a introduzir um novo valor lógico ao lado do verdadeiro e do falso, o indeterminado. A lógica contemporânea não deixou escapar a oportunidade de construir uma lógica que excluísse o princípio do T. E. Lukasiewicz em 1920 e depois Lukasiewicz e Tarski em 1930 elaboraram uma lógica de três valores, correspondentes ao verdadeiro, ao falso e ao possível, simbolizados pelos algarismos 1, 0, 1/2. Nessa lógica, o princípio do T. excluído não tem lugar, no sentido de que não é expressável por símbolos da lógica e não constitui um de seus teoremas {Untersuchungen über den Aussagenkalküs, em Comptes rendus des séances de Ia Société des Sciences et des Lettres de Varsovie, 1930, pp. 3050, 51-77). Os próprios autores ditaram as regras para a construção de um sistema com um número finito n de valores de verdade {Phi-losophische Bemerkungen zu tnehrwertigen Systemen des Aussagenkalküls, nos mesmos Comptes rendus, 1930, classe III, pp. 51-77). E. L. Post {Introduction to a General Theory of Elementary Propositions, em American Journal ofMathematics, 1921, 43, 163) também elaborara um tipo de lógica polivalente, e A. Heyting, por sua vez, construiu uma lógica formal intuicionista, com três valores, verdadeiro, falso e indeterminado, que se aplica à teoria intuicionista da matemática de Brower e implica a renúncia à demonstração por absurdo (Die formalen Regeln der intuitionistischen Logik, em Sitzungesber. Preuss.Akad. Wiss. [Phys.-Math. Klasse], 1930, pp. 42-56). A lógica de três valores constitui, portanto. uma alternativa aos sistemas lógicos tradicionais. C. I. Lewis escrevia: "O princípio do T. E. não está escrito nos céus: reflete, sim, a nossa obstinação em aderir ao mais simples de todos os modos de divisão e o nosso interesse predominante pelos objetos concretos, em oposição aos conceitos abstratos. As razões pelas quais escolhemos um sistema lógico não derivam da própria lógica, assim como não derivam de princípios matemáticos as razões para escolher as coordenadas cartesianas em vez das polares ou das coordenadas de Gauss" (Alternative Systems of Logic, em TheMonist, 1932, p. 505). H. Reichenbach demonstrou a utilidade da lógica de três valores para a mecânica quântica, dada sua natureza probabilista {Philosophic Foundationsof Quantum Mechanics, § 30) (sobre essa questão, cf. também L. ROUGIER, Traité de Ia connaíssance, 1955, II, cap. VII). TERCEIRO HOMEM (gr. xpíxoç av0pco-noç). Aristóteles alude várias vezes a um argumento assim denominado, contrário à doutrina platônica das idéias, dando-o por conhecido. portanto deixando de expô-lo {Met., I, 9, 990 b 17; VII, 13, 1039 a 2; El. sof, 178 b 36). Segundo Alexandre de Afrodisia {In met, I, 9), esse argumento consistiria em dizer que, uma vez que um homem individual é semelhante ao homem ideal, deve existir um terceiro homem do qual os dois participem. Mas esse é o argumento aduzido contra a doutrina das idéias de Platão, que no entanto não menciona o exemplo do homem {Parm., 132a). Alexandre, porém, menciona também outras formas desse argumento do T. Homem. Ia Uma delas é a usada TERMINISMO 956 TERMO pelos sofistas: quando dizemos "o homem está passeando", não estamos falando nem da idéia de homem (que é imóvel), nem de um homem em particular; devemos então estar falando de um homem de uma terceira espécie. 2 S Fânias, discípulo de Aristóteles, em seu livro contra Diodoro Cronos, atribuía ao sofista Polixeno o seguinte argumento: se o homem existe por participar da idéia de homem, deve haver algum homem que possua o seu ser em relação com a idéia; mas não será nem a própria idéia, nem o homem em particular. Finalmente, o próprio Alexandre nota que o argumento do T. homem, exposto na primeira forma, pode ser repetido ao infinito, porque a relação entre T. homem, por um lado, e idéia do homem particular por outro pode dar lugar ao quarto e quinto homem, e assim por diante. Como Platão expõe o argumento por meio de Parmênides, contra a interpretação da doutrina das idéias que estabelece uma separação nítida entre idéias e coisas, é provável que esse argumento fosse corrente na própria escola platônica; sua origem, porém, parece ser megárica ou sofistica (cf. a nota de W. D. Ross a Met., I, 9, na edição de Metafísica por ele organizada, bem como a nota de DIES a Parmênides, em Coll. des Univ. de France, VIII, p. 21). TERMINISMO (in. Terminism; fr. Termi-nisme: ai. Terminismus; it. Terminismo). Desde o começo do séc. XV, são designados pelos nomes de terministas (terministae) ou nomi-nalistas (nominales) os defensores da tese no-minalista na disputa sobre os universais (v. NOMINAUSMO; UNIVERSAL), que eram, ao mesmo tempo, cultores da nova lógica, considerada como o estudo das propriedades dos termos. Jean Gerson (que morreu em 1429) já fala da disputa entre formalistas e terministas {De conceptibus, em Opera, 1706, IV, p. 806). Num manuscrito do mesmo século, da Biblioteca Colbert (publicado em parte por S. BALUZI, Miscellanea, IV, p. 531 f), encontra-se: "São denominados nominalistas os doutores que não multiplicam as coisas significadas pelos termos segundo a multiplicação dos termos; realistas, ao contrário, são os que afirmam que as coisas se multiplicam segundo a multiplicidade dos termos. (...) Também são chamados de nominalistas os que usam estudo e diligência para conhecer todas as propriedades dos termos, das quais depende a verdade ou a falsidade das proposições; tais propriedades são a suposição, a denominação, a extensão, a restrição, a distribuição e os exponíveis, e que conhecem também as antinomias (obligationes) e os verdadeiros fundamentos dos argumentos dialéticos" (transcrito em PRANTL, Geschichte der Logik, IV, p. 187). O estudo das propriedades dos termos, de que se fala aí, partia da tendência geral desses filósofos e lógicos, segundo os quais o conhecimento e a ciência só têm por objeto os termos. Ockham diz a respeito: "Qualquer ciência, seja racional, seja real, é ciência só de proposições, e de proposições conhecidas, porquanto só as proposições são conhecidas. Todos os termos dessas proposições são apenas conceitos, e não substâncias externas" (In Sent., I, d. 2, q. 4, M, N) (v. LÓGICA; NOMINALISMO; UNIVERSAL). TERMINOLOGIA (in. Terminology, fr. Ter-minologie, ai. Terminologie, it. Terminologia). Qualquer linguagem artificial: p. ex., "T. matemática", "T. hegeliana", etc. TERMINUS A QUO, AD QUEM. Expressões usadas a propósito do movimento: T. a quo denomina-se o lugar do qual um móvel procura afastar-se. T. ad quem denomina-se o lugar para qual o móvel procura dirigir-se (HOBBES, De corp., 8, § 10; WOLFF, Cosm., § 161). TERMO (gr. õpoç; lat. Terminus; in. Term-fr. Terme; ai. Terminus; it. Termine). Os significados principais são os seguintes: Ia Signo lingüístico ou conjunto de signos. Este é o significado que mais diz respeito à filosofia (v. adiante). 2a Qualquer objeto ou coisa a que um discurso se refira. Nesse sentido, é sinônimo de objeto (v.) ou de coisa (v.). 3Q Limite de uma extensão. A- Ponto de chegada de uma atividade ou resultado de uma operação. Nesse sentido, p. ex., o T. da vontade é a ação, o T. do intelecto é o conhecimento; 5- Ponto de partida ou ponto de chegada de um movimento. Nesse sentido, fala-se de terminus a quo e de terminus ad quem (v.). No primeiro significado, que interessa à lógica, é possível distinguir os seguintes significados subordinados: a) os elementos que compõem as premissas do silogismo categórico: sujeito e predicado; b) todos os componentes simples presentes nas proposições; nesse sentido, são T. não só o sujeito e o predicado, mas também os verbos, as preposições e as conjunções, ou seja, os componentes sincategoremãticos (v.), ao passo TERRORISMO 957 TESTABIIIDADE que as proposições não são T. porque não são simples; c) todos os componentes das proposições, tanto simples quanto complexos. Nesse sentido muito geral, são T. não só o sujeito, o predicado, o verbo e os componentes sincategore-máticos, mas também as proposições, já que podem fazer parte de outras proposições, como quando se diz ' "Sócrates é homem' é uma proposição". O significado (d) é o definido por Aristóteles (An. pr., I, 1, 24 b 16); persistiu até a lógica medieval (v. PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.01). Os outros significados foram admitidos pela lógica terminista do séc. XIV e podem ser encontrados em Ockham (Summa log., I, 2). Em vista da diversidade de significados dessa palavra, foram numerosas e diversas as divisões do conceito. A divisão que os lógicos terministas consideram fundamental é entre T. escrito, T. falado e T. pensado, correspondentes às três espécies de proposições distinguidas por Boécio. Eles distinguiram também os T. categoremáticose sincategoremãticos(v.); concretos e abstratos (v.); conotativos e absolutos (v. CONOTAÇÃO); unívocos e equívocos (v.) (sobre essas divisões, cf. OCKHAM, Summa log., I, 3 ss.). Na lógica moderna, essa palavra é assumida no significado mais extenso, no sentido (c) (v. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, n. 4). Em matemática, é assumida com significado análogo, entendendo-se por T. qualquer componente, simples ou complexo, de uma expressão. TERRORISMO (in. Terrorism-, fr. Terroris-me, ai. Terrorismus; it. Terrorismo). Este termo pertence à filosofia só no significado de T. moral, atribuído por Kant: seria a interpretação da história como decadência ou regressão (Der Streit der Fakultãten, 1798, II, 3). TESE (gr. 9éotÇ; in. Thesis; fr. Thêse, ai. The-se, it. Tesi). Este termo deriva dos textos lógicos de Aristóteles, nos quais se encontra com dois significados principais: ls para designar o que o interlocutor põe no início de uma dissertação como assunção sua (Top., II, 1, 109 a 9); 2Q para designar uma proposição assumida como princípio (An.post., I, 2, 72 a 14). Esses dois significados conservaram-se na tradição filosófica. O primeiro encontra-se já em P LATÃO (Rep., I, 335 a), e, segundo tradição relatada por Diógenes Laércio, Protágoras teria sido o primeiro a mostrar como apoiar uma T. em argumentos (DIÓG. L., IX, 53). Na terminologia dos lógicos medievais e dos matemáticos prevaleceu esse significado: a T. designa uma proposição que se pretende demonstrar. Com Kant, esse termo adquiriu novo valor filosófico: nas antinomias da razão pura T. é o enunciado afirmativo da antinomia (v.). Na dialética pós-kantiana, o momento da T. é o elemento positivo ou de posição, portanto inicial, do processo ou do desenvolvimento dialético (v. DIALÉTICA, 4e). G. P. TESTABUJDADEün. Testability, fr. Testabi-lité, ai. Testabilitàt;it. Testabilità ou Attestabilita). A possibilidade de pôr à prova um enunciado, portanto de confirmá-lo ou de desmenti-lo. Esse termo é freqüentemente usado na lógica e na metodologia contemporâneas. A testabili-dade compreende qualquer possibilidade de confirmação, verificação, averiguação e aferição, na medida em que cada uma dessas possibilidades pode redundar na prova (v.) ou na falta de prova do enunciado em questão. Carnap, porém, restringiu o significado desse termo ao de verificação empírica incompleta, entendendo-o como "um procedimento que conduz à confirmação, pelo menos em certo grau, do enunciado ou de sua negação". Tem-se T. quando efetivamente se possui um procedimento desse gênero. Ao contrário, tem-se apenas confirmabilidade quando, mesmo não se possuindo esse procedimento, conhecem-se as condições nas quais o enunciado seria confirmado. Assim, um enunciado pode ser con-firmável sem ser testável: é o que acontece quando se sabe que certa observação o confirmaria, mas não se têm condições de efetuar a observação (Testability andMeaning, 1936, em Readings in the Philosophy of Science, 1953, p 47). Carnap também distinguiu o que é diretamente e o que é indiretamente testável. Algo é diretamente testável quando "são concebíveis circunstâncias nas quais consideremos o enunciado tão fortemente confirmado ou não-confir-mado por uma observação ou por algumas observações, que o aceitamos ou o rejeitamos sem outras considerações; como, p. ex.. 'há uma chave na minha mesa'". Tem-se a T. indireta de um enunciado quando se "provam diretamente outros enunciados que estejam em relação lógica específica com o enunciado em questão". Esses outros enunciados podem ser TESTEMUNHO 958 TEURGIA chamados de enunciados-prova (testsentences) (Truth and Confirmation, 1936, em Readings in Philosophical Analysis, 1949, p. 124). TESTEMUNHO (ín. Witnessing, Testimony, fr. Témoignage, ai. Zeugniss-, it. Testimonian-za). Recurso à experiência alheia ou às as-serções alheias como método de prova para as proposições que expressem fatos. Aristóteles já observara que é possível referir-se "a questões de fato ou a questões de caráter pessoal", que também são questões de fato (Ret, I, 15, 1376 a 23). O valor do testemunho nesse sentido é reconhecido pela Lógica de PortRoyal (1662): "Para julgar da verdade de um acontecimento e decidir-se a crer ou a não crer nele, não é preciso considerá-lo em si, como se faria com uma proposição de geometria, mas é preciso considerar todas as circunstâncias que o acompanham, internas ou externas. Denomino internas as circunstâncias que pertencem ao fato em si, e externas as que dizem respeito às pessoas por meio de cujo T. somos levados a crer nele" (ARNAULD, Log., IV, 13). Locke, por sua vez, introduzia o T. como um dos dois fundamentos do juízo de probabilidade (o outro é "a conformidade de uma coisa com o nosso conhecimento, observação ou experiência"). Segundo Locke, no T. dos outros é preciso considerar: 1B o número de testemunhas; 2S sua integridade; 3Q sua capacidade; 4e a intenção do autor, se o T. for extraído de um livro; 5Q a coerência entre as partes e as circunstâncias da relação; 62 os T. contrários" (Ensaio, IV, 15, 4). Leibniz admitia o valor do T. subordinada-mente ao caráter de verossimilhança do acontecimento testemunhado, como argumento "não artificial", que se diferencia dos "artificiais", deduzidos das coisas através do raciocínio. Todavia, observava que o T. pode fornecer um fato que leva à formação de um argumento artificial (Nouv. ess., IV, 15, 4). Hamilton assim resumia a teoria do T.: "O objeto do T. é chamado de fato (facturri); sua validade constitui o que se chama de credibilidade histórica (cre-dibilitas histórica). Para avaliar essa credibilidade, é preciso considerar: ls a fidedignidade do T. (Jides testium); 2Q a probabilidade objetiva do fato. A primeira baseia-se em parte na sinceridade da testemunha e em parte na sua competência. A segunda depende da possibilidade absoluta e relativa do próprio fato. O T. é imediato ou mediato. É imediato quando o fato relatado é objeto de experiência pessoal; é mediato se o fato é objeto de experiência alheia" (Lectures on Logic, 2- ed., II, pp. 175-76). TEST-SENTENCE. V. TESTABILIDADE. TÉTICA (ai. Thetik). Segundo Kant, "qualquer conjunto de doutrinas dogmáticas", em oposição a Antitética(v.) (Crít. R. Pura, Dialética, livro II, cap. 2, seç. 2). TÉTICO (in. Thetic; fr. Thétique, ai. The-tisch; it. Teticó). Que afirma ou põe. Fichte chamou de T. "o juízo no qual alguma coisa não é posta como igual ou contrária a outra, mas apenas como igual a si mesma". Esse juízo se distinguiria do juízo antitético e do juízo sintético"; mais precisamente se oporia ao juízo antitético. O supremo juízo T. seria "Eu sou", no qual, segundo Fichte, "nada se afirma do eu, mas deixa-se vazio p lugar do predicado para a possível determinação do eu ao infinito". Este juízo seria "a absoluta posição do eu" (Wissens-chaftslehre, 1794, I, § 3, D7). Esse adjetivo foi usado na maioria das vezes em sentido análogo ao estabelecido por Fichte. Husserl chamou de T. "os atos que põem o ser", ou seja, que têm caráter de crença (Ideen, I, § 103). TETRÁCTIS (gr. texpociecúç). Segundo os pitagóricos, a soma dos primeiros quatro números, ou seja, o número 10, representável por um triângulo cujo lado é o 4. (Carm. aur., 48). A figura constitui uma disposição geométrica que expressa um número, ou constitui um número expresso por uma disposição geométrica. Tinha caráter sagrado, e os pitagóricos costumavam jurar por ela. TETRAFARMACON (gr. TetpacpáputtKov). Com este termo (que significa propriamente um medicamento composto por quatro elementos), Filodemo (Herc. Vol., 1005, 4) indicou o conjunto das quatro máximas fundamentais da ética epicurista: lâ não temer a divindade, que não se preocupa com homem; 2- não temer a morte; 3a ter em mente a facilidade do prazer; 4- ter em mente a brevidade da dor (cf. EPICURO, Ep. aMenec, 123, 124. 133) TEURGIA (gr. Geotipyía; lat. Theurgia-, in. Theurgy, fr. Théurgie, ai. Théurgie, it. Teurgid). Poder mágico ou purificador das técnicas religiosas, dos ritos. Já admitida por Porfírio (v. AGOSTINHO, De civ. Dei, X, 9), segundo Jâmblico ela estaria acima da união espiritual com Deus, ou seja, do êxtase. Ainda segundo Jâmblico, a característica da T. é o valor autônomo que os ritos possuem, independentemente de quem os utiliza, vale dizer, sua capacidade de comover ou TIMOCRACIA 959 TIRANIA convencer as potências divinas {De myst. aegyp., II, 11). S. Agostinho dedicou grande parte de sua obra à crítica da T., que, na sua opinião, se endereçaria indiferentemente aos demônios ou aos anjos {De civ. Dei, X, 10 ss.). Kant considerou a T. como "a ilusão da fantasia que consiste em acreditar possuir a inteligência de outros seres suprasensíveis e de poder influir sobre eles"; para ele, assim como a teosofia, a T. é impossibilitada pelo reconhecimento da limitação da razão (Crít. do Juízo, § 89). TIMOCRACIA (gr. 'U|iOKpaTía; in. Timocra-cy, fr. Timocratie, ai. Timokratie, it. Timocraziá). 1. Forma de governo baseada no desejo de honradas, que, segundo Platão, é uma corrupção da aristocracia {Rep., VIII, 545 b). 2. Forma de governo baseada na riqueza, segundo Aristóteles {Et. nic, VIII, 10, 1160 a 36). TTMOLOGIA. V. AXIOLOGIA. TÍPICA (in. Typics; fr. Typique, ai. Typik, it. Tipica). Kant chamou de "T. do juízo prático" o que na Crítica da Razão Prática corresponde ao esquematismo (v.) transcendental da Crítica da Razão Pura. O tipo da lei moral é a própria lei moral que "pode ser manifestada de forma concreta no objeto dos sentidos", ou seja, livremente realizada no mundo sensível {Crít. R. Prática, livro I, cap. II). TÍPICO (in. Typical; fr. Typique, ai. Typisch; it. Tipico). Em geral, o que corresponde a um tipo, a um modelo ou a uma representação geral ou esquemática, ou então o que exprime ou realiza os caracteres do tipo. Assim, p. ex., a "beleza T.", exaltada por Ruskin, é a beleza idealizada segundo certo modelo. "Representação T." é uma representação generalizada e comum a uma classe de coisas. "Características T." são as que distinguem o tipo, ao passo que uma "experiência T." é a que pode servir de modelo a muitas outras experiências ou resume suas características comuns. Como se vê, esse termo não tem um significado rigoroso, mas sempre implica a referência ao que é comum e geral e que, justamente por isso, é considerado fundamental. TIPO (gr. xÚ7toç; in. Type, fr. Type, ai. Typus; it. Tipo). No sentido de modelo, forma, esquema ou conjunto interligado de características que pode ser repetido por um número indefinido de exemplares, essa palavra já é usada por Platão {Rep, 379 a, 380 c, 396 e, etc.) e por Aristóteles {Et. nic, II, 2, 1104 a 1; Ibid., II, 7, 1107 b 14, etc). Galeno usou-a para indicar as formas da doença {Op., ed. Kühn, VII, 463), e essa palavra continuou com o mesmo significado em muitos usos correntes da linguagem comum, científica e filosófica. A biologia e a psicologia utilizam muito esse termo e o consideram fundamental. Kretschmer, p. ex., diz: "Aquilo que chamamos, matematicamente, de pontos focais de correlações estatísticas, chamamos também, em prosa mais descritiva, de T. constitucionais. (...) Pode-se reconhecer o T. verdadeiro pelo fato de ele sempre conduzir a maiores conexões de importância biológica. Sempre que há muitas e renovadas correlações com fatores biológicos fundamentais (...) estamos diante de pontos focais da máxima importância" {Kõrperbau und Charakter, 1948). Em psicologia, o T. é analogamente definido como "um grupo de padrões correla-tivos", do mesmo modo como padrão é definido como um grupo de atos comportamentais ou de tendências a ações correlativas (H. J. EYSENCK, The Structure ofHuman Personality, 1953, pp. 13 ss.). O significado dessa palavra não muda na chamada "teoria dos T. lógicos" de Russell e Whitehead, na qual designa as formas ou os modelos dos conceitos (v. ANTINOMIA). Para Peirce, T. é a palavra ou o signo que não sejam uma coisa única ou um evento único, mas uma "forma definidamente significante" que, para ser usada, deve ganhar corpo numa ocorrência {tokerí); esta deve ser o signo de um T., portanto do objeto que o T. significa. P. ex., é T. o artigo "o" na língua portuguesa, que não pode ser visto ou ouvido porque não é um evento único, mas determina os eventos únicos, vale dizer, as ocorrências ou os exemplos dele no discurso escrito ou falado {Coil. Pap., 4.537) (v. OCORRÊNCIA; PALAVRA; SlGNO). TIPOLOGIA (in. Typology, fr. Typologie, ai. Typologie, it. Tipologia). Estudo dos tipos numa disciplina ou ciência qualquer; p. ex., T. biológica, T. racial, T. psicológica, etc. TIQUISMO. V. CAUSALIDADE. TIRANIA (gr. túpavvtç; lat. Tyrannis; in. Tyranny fr. Tyrannie, ai. Tyrannei; it. Tiran-nide). Forma de governo em que o arbítrio de uma ou várias pessoas representa a lei. O conceito de T. foi elaborado pelos gregos, juntamente com o de constituição livre. A definição de tirano já se encontra nos versos de Eu-rípides.- "Não há pior inimigo que um tirano numa cidade, sob o qual desaparecem todas as leis comuns, e só uma pessoa comanda, tendo TIRANIA 960 TODO1 a lei em suas mãos" (Suppl, II, 429-32). Segundo Platão, a T. é conseqüência da excessiva liberdade em que às vezes incidem as democracias. "Ao fugir da fumaça — como se diz — da servidão sob um governo de homens livres, o povo acaba caindo, com a T., no fogo da servidão sob o despotismo de servos e, em troca daquela liberdade excessiva e inoportuna, é obrigado a vestir a túnica do escravo e a sujeitar-se à mais triste e amarga das servidões, a de ser servo dos servos" (Rep., VIII, 569 b-c). Aristóteles diz que a T. acumula os males da democracia e os da oligarquia. Da oligarquia extrai a finalidade, que é a riqueza (única condição para se manter o poder e o luxo), bem como a falta de confiança no povo, que é privado de armas, e a agressão à população, que é afastada das cidades e espalhada pelo campo. Da democracia toma a luta contra os notáveis, sua destruição pública ou oculta, o seu exílio (Pol, V 1, 1311 a 8 ss.). Na Idade Média, ao mesmo tempo em que S. Tomás acha que "quando a monarquia se transforma em T. o mal é menor do que quando um governo de maioria se corrompe" (De regimine principum, I, 5) e condena o tiranicídio, recomendando paciência aos súditos para suportar a T. ou confiando num poder superior para eliminá-la (Ibid., I, 6), João de Salisbury defende explicitamente o tiranicídio por considerar que o tirano é um rebelde contra a lei à qual os reis, tanto quanto todos os cidadãos, estão vinculados (Policraticus, IV, 7). Essas idéias depois foram freqüentemente repetidas pelos adversários irredutíveis da monarquia e pelos jusnaturalistas do séc. XVI e XVII. Bodin dizia: "A maior diferença entre o rei e o tirano é que o rei se conforma às leis da natureza e o tirano as esmaga; um cultiva a piedade, a justiça e a fé; o outro não tem Deus, fé ou lei" (De Ia republique, 1576, II, 4, 246). Locke afirmava: "Onde acaba a lei começa a T., quando a lei é transgredida em prejuízo de outros; e todo aquele que, no exercício da autoridade, exceder o poder que lhe foi conferido pela lei e usar a força para realizar em relação aos súditos o que a lei não lhe permite, está deixando de ser magistrado e, por estar deliberando sem autoridade, pode sofrer oposição tanto quanto sofre oposição qualquer outro que viole pela força os direitos alheios" (Two Treatises of Govemement, II, § 202). Hobbes, ao contrário, afirmara que "quem se opõe a uma monarquia dá-lhe o nome de tirania" (Le-viath., II, 19, 2). O conceito de T. acompanhou a formação do liberalismo político porque serviu de pedra de toque ou de símbolo para tudo o que o liberalismo condenava. Como tal, também constitui um dos temas da retórica revolucionária e liberal a partir do séc. XVI. Hoje esse termo é bem menos usado, não porque os regimes tirânicos tenham desaparecido ou porque não haja mais o perigo de que estes se instaurem mesmo onde vigore certo grau de liberdade, mas apenas porque ele parece pertencer a uma espécie de retórica fora de moda. Absolutismoou totalitarismo são os termos que substituíram tirania, mas o conceito não mudou, e estas mesmas palavras significam ainda: regime no qual o arbítrio individual ocupa o lugar da lei; escravidão imposta por escravos; governo que não pode ser mudado nem corrigir a não ser pela violência. TITANISMO. V. ROMANTISMO. TODO1 (gr. TÒ 7CÕV; lat. Totum; in. Whole, fr. Tout; ai. Ali; it. Tutto). Um conjunto qualquer de partes, independentemente da ordem ou da disposição das partes. Nisso o T. pode ser distinguido da totalidade, em que a ordem das partes não pode ser modificada sem modificar a própria totalidade (v. MUNDO; TOTALIDADE; UNIVERSO). Com base nas determinações de Aristóteles (Met., V, 26, 1023 b 25), a lógica medieval dis-tinguia: ls o T. universal ou essencial, cujas partes constituem sua substância: p. ex., "corpo vivo"; 2- o T. integral, cujas partes são quantidades: quantidades semelhantes como em "água", ou quantidades dessemelhantes como em "árvore"; 3S o T. na quantidade, que é o universal tomado universalmente como "todo homem" ou "nenhum homem"; 4 e o T. no modo, que é o universal tomado sem determinação, como "o homem"; 5 Q o T. no lugar, que é uma determinação que compreende adver-bialmente o lugar, como "em todos os lugares" ou "em nenhum lugar"; 6 S o T. no tempo, que é uma expressão que compreende adverbial-mente a totalidade do tempo, como "sempre" e "nunca" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 5, 14-23). Nizolio reduzia a duas estas espécies, argumentando que só duas se encontram na natureza, o T. contínuo (que é uma coisa só) e o T. descontínuo, que é um conjunto de coisas singulares (De veris principiis, I, 10). A isso Leibniz acrescentava o T. disjuntivo, como p. ex. "o animal é homem ou bruto" (nota ao trecho citado de Nizolio). Outras distinções estão TODO2 961 TOLERÂNCIA registradas em Hamilton: o T. por si, em que as partes estão interligadas necessariamente, como o corpo e a alma estão ligados no homem, e o T. per accidens, em que as partes estão ligadas contingentemente. O T.porsi pode ser: lógico, como um universal; metafísico ou real; físico ou substancial; matemático, quantitativo ou integral; e coletivo ou de agregação (Lectures on Logic, 2- ed., I, pp. 202 ss.). Na lógica moderna T. é um operador, mais precisamente o quantificador universal simbolizado pela notação "(x)" (v. OPERADOR). Quanto à diferença entre todo e qualquer, ver este último termo. TODO2. V. QUALQUER. TODOS. V. QUALQUER. TOKEN. V. OCORRÊNCIA. TOLERÂNCIA (in. Toleration, fr. Tolérance; ai. Toleranz, it. Tolleranzà). Norma ou princípio de liberdade religiosa. Algumas vezes se considerou pouco apta a designar esse princípio uma palavra que significa "paciência", mas na realidade ela foi o emblema dessa liberdade, desde as primeiras lutas empreendidas, por meio das quais se afirmou em formas ainda hoje frágeis ou incompletas. Por isso, não poderia ser substituída por nenhum outro termo. Desde que essas lutas se iniciaram, a T. foi entendida como coexistência pacífica entre várias confissões religiosas, sendo hoje entendida, em sentido ainda mais geral, como coexistência pacífica de todas as possíveis atitudes religiosas. O critério para verificar se essa exigência está sendo realizada nas situações históricas ou políticas é um só: a sua realização significa que o cidadão não sofre violência, inquirição jurídica ou policial, diminuição ou perda de direitos ou qualquer tipo de discriminação em virtude de suas convicções, positivas ou negativas, em matéria religiosa. O princípio de T., ou pelo menos um corolário imediato, que é a possibilidade de redenção mesmo fora da fé cristã, encontra-se em alguns filósofos do séc. XIV, especialmente em Ockham. Este diz: "Não é impossível que Deus designe como digno da vida eterna todo aquele que viva segundo os ditames da justa razão e que só creia naquilo que sua razão natural indicar como digno de crença. E se Deus assim dispõe, poderia salvar-se mesmo aquele que na vida só teve como guia a justa razão" (In Sent., III, q. 8, C). Por outro lado, a T. religiosa já está implícita no conceito que Ockham tinha de Igreja infalível como comunidade dos fiéis que viveram desde os tempos dos profetas até hoje (Dialogus inter magistrum et discipu-lum, I, IV, em GOLDAST, Monarquia, II, p. 402), e do papado como de um principado mi-nistrativus que não pode negar a ninguém os direitos e as liberdades que Deus concedeu a todos os homens e que o cristianismo veio reivindicar (De imperatorum etpontificum po-testate, IV, ed. Scholz, p. 458). O famoso conto de Boccaccio dos três anéis (Decameron, 28) ilustra a possibilidade de salvação concedida igualmente a maometanos, judeus e cristãos. Todavia, o princípio de T. começou a aparecer como elemento indispensável da vida civilizada do Ocidente só depois da Reforma, nas lutas que opuseram as várias facções da cristandade. E provável que tenha sido explicitamente afirmado pela primeira vez pelo grupo de reformadores italianos que recusaram o dogma da Trindade, ou seja, os socinianos, obrigados por Calvino a fugir para a Transilvânia e para a Polônia, onde propagaram a sua doutrina. Em 1565, Giacomo Aconcio, em seu Stratagemata Satanae, via a intolerância religiosa como uma armadilha de Satanás e afirmava que é essencial à fé apenas o que encoraja a esperança e a caridade. Em 1580, por motivos de natureza política, Michel de Montaigne defendia a liberdade de consciência em um ensaio (Ess., II, 19). Por volta de 1593, Jean Bodin defendia, em Colloquium heptaplomeres, a necessidade da paz religiosa, a ser obtida com um retorno à religião natural que eliminasse as controvérsias dogmáticas. Por sua vez, Huig van Groot considerava fundamentais as crenças da religião natural, e não coercitivas as crenças da religião positiva, freqüentemente ambíguas. Para ele, acreditar no cristianismo só é possível com a ajuda misteriosa de Deus; por conseguinte, querer impô-lo pelas armas é contrário à razão (De jure belli acpacis, 1625, II. 20, 48-49). Em 1644, Milton escrevia seu discurso pela liberdade de imprensa, intitulado Areopagitica. Todas essas defesas do princípio de T. aduzem em seu favor argumentos políticos e religiosos, mais que filosóficos ou conceituais; aliás, na maioria das vezes os argumentos são especificamente religiosos, tendo então valor apenas para quem compartilha as crenças religiosas a que fazem apelo. O primeiro a basear a defesa da T. em argumentos objetivos foi Spinoza, que apresentou em seu favor o argumento por excelência, ou seja, a violência e a imposição não podem pro- TOLERÂNCIA 962 TOMISMO mover a fé; portanto, as leis que se propõem esse fim são inúteis (Tractatus theologico-po-liticus, 1670, cap. 20). Desse ponto de vista, é clássica a Epístola sobre a T. (l689). Nesse texto, Locke demonstra que, ao examinar independentemente o conceito de Estado e o de Igreja, o princípio de T. acaba sendo o ponto de encontro de suas respectivas tarefas e interesses. O Estado é "uma sociedade de homens, estabelecida unicamente para conservar e promover os bens civis", entendendo-se por bens civis a vida, a liberdade, a integridade e o bem-estar físico, a posse dos bens externos, etc. Portanto, entre suas funções não está o cuidado com as almas e a sua salvação eterna, porque em relação a essa tarefa o magistrado civil é incompetente como qualquer outro cidadão e não possui nenhum instrumento eficaz, visto que seu único instrumento é a coação, e ninguém pode ser obrigado a salvar-se. Por outro lado, a Igreja é "uma sociedade livre de homens, unidos espontaneamente para servir a Deus, em público, do modo que julgarem mais aceito por Ele, com o fim de obter a redenção de suas almas". Como sociedade livre e voluntária, não pode vincular ninguém por meio da força, e as sanções de sua competência são as exortações, as advertências e os conselhos, únicos capazes de promover a persuasão e a fé. O princípio de T. garante igualmente o interesse religioso da Igreja e o interesse político do Estado, os direitos dos cidadãos e as exigências do desenvolvimento cultural e científico. Contudo, nem mesmo na Epístola de Locke o princípio de T. tem expressão completa, pois para Locke "quem nega a existência de Deus não deve ser tolerado de nenhum modo". Foi só com o triunfo do Iluminismo no séc. XVIII e do pensamento político liberal do séc. XIX que se chegou a reconhecer o princípio de T. em sua forma completa, que é a exposta acima. No entanto, a literatura posterior pouco ou nada acrescentou às justificações desse princípio apresentadas por Locke; nesse sentido, tampouco se distingue o Tratado sobre a T. (1763) de Voltaire, cuja justa fama se deve à influência histórica que exerceu. O princípio de T. passou a fazer parte da consciência civil dos povos do mundo inteiro. Todavia, a sua realização nas instituições que regem a vida de muitos povos é incompleta e está sempre sujeita a novos perigos. As discussões a seu respeito muitas vezes são inspiradas pelo desejo de manter ou restabelecer privilégios em favor de alguma confissão religiosa específica, procurando-se, na melhor das hipóteses, fazer concessões formais ao princípio de T. (cf. em especial F. RUFFINI, La liberta religiosa, 1901; J. B. BURY, A History of Freedom of Tbought, 1913; nova ed., 1952; W. K. JORDAN, The Development of Religious Toleration in England, 1932 ss.). 2. Na linguagem comum e às vezes na filosófica, a T. também é entendida em sentido mais amplo, abrangendo qualquer forma de liberdade, seja ela moral, política ou social. Assim entendida, identifica-se com pluralismo de valores, de grupos e de interesses na sociedade contemporânea; às vezes se discerne nesse pluralismo um meio para manter o controle dos grupos sociais existentes em toda a sociedade, portanto um obstáculo à realização de uma nova forma de sociedade. Por "T. pura" entende-se às vezes a T. que se estende às políticas, às condições e aos comportamentos que não deveriam ser tolerados por impedirem, ou mesmo destruírem, as probabilidades de uma existência sem medo ou sofrimento. Marcuse afirmou que, embora a T. indiscriminada se justifique nos debates inócuos e nas discussões acadêmicas, sendo indispensável na religião e na ciência, nào pode ser admitida quando estão em jogo a paz, a liberdade e a felicidade da existência, porque nesse caso eqüivaleria à repressão de todos os fatores de inovação da realidade social {A Critique ofPure Tolerance, de WOLFF, MOORE JR. e MARCUSE, 1965). Contudo, nesse significado mais genérico, a palavra T. não se distingue de liberdade, e seus problemas são os mesmos dos limites e das condições da liberdade política. TOLERÂNCIA, PRINCÍPIO DE. V CON TRADIÇÃO, PRINCÍPIO DE; CONVENCIONALISMO. TOMISMO (in. Thomism; fr. Thomisme, ai. Thomismus; it. Tomismó). Fundamentos da filosofia de S. Tomás, conservados e defendidos pelas correntes medievais e modernas que nele se inspiram. Podem ser assim resumidos: \° A relação entre razão e fé consiste em confiar à razão a tarefa de demonstrar os preâmbulos da fé (v. PREAMBULA FIDEI), de esclarecer e defender os dogmas indemonstrá-veis e de proceder de modo relativamente autônomo (excetuando-se o respeito das verdades de fé que não podem ser contraditas) no domínio da física e da metafísica. TÓPICA 963 TOTEMISMO 2B Analogicidade do ser (v. ANALOGIA), segundo a qual o termo ser, usado com referência à criatura, não tem significado idêntico, mas apenas semelhante ou correspondente, ao ser de Deus. Este princípio, que S. Tomás extraía de Avicena, serve para estabelecer a distinção entre teologia e metafísica e a dependência da metafísica em relação à teologia. 3B Caráter abstrativo do conhecimento, que consiste em abstrair do objeto, em qualquer caso, a espécie sensível ou a espécie inteligível (que corresponde à essência da coisa). 4e A individuação depende da matéria assinalada (v. INDIVIDUAÇÃO). 5a A clássica explicação dos dois dogmas cristãos da Trindade e da Encarnação (v. ENCARNAÇÃO; RELAÇÃO; TRINDADE). Esses aspectos básicos distinguem claramente o T. do escotismo (v.), que foram duas doutrinas proeminentes nos sécs. XIV e seguintes, e também constituem os tópicos de maior interesse da retomada do T. pela neo-escolástica contemporânea. Para a formação histórica do T. contribuíram a obra de Alberto Magno, mestre de S. Tomás, a obra de Avicena e a de Moisés Maimônides. TÓPICA (gr. TOTUKÍI xéxvri; lat. Tópica-, in. Topics; fr. Topique, ai. Topik, it. Tópica). Teoria dos lugares lógicos e a arte de inventá-los (v. LUGARES). Kant chamou de T. transcendental a teoria dos lugares transcendentais, ou seja, as posições atribuídas aos conceitos na sensibilidade ou no intelecto puro. Essa T. deveria evitar a anfibolia (uso duvidoso) dos conceitos de reflexão (Crít. R. Pura, Analítica transe, nota a anfibolia). Droysen falou também em T. historiogrãfi-ca, que seria a coletânea das exposições do que foi historicamente investigado {Grundzüge derHistorik, 1882, § 18). TOPOLOGIA (in. Topology, fr. Topologie, ai. Topologie, it. Topologia). Com este nome, ou com o de analysis situs, designa-se, há um século, o estudo das propriedades das figuras geométricas que não variam mesmo quando as figuras são submetidas a transformações tão radicais que perdem suas propriedades métricas e projetivas. O precursor da T. foi L. Euler (1707-83), mas sua primeira formulação encontra-se na obra de A. F. Moebius (1790-1868) (cf. especialmente O. VEBLEN, Analysis situs, 2- ed., 1931, e as palavras GRUPO-, TRANSFORMAÇÃO). Alguns dos conceitos da T. são aplicáveis a outras disciplinas, sobretudo no gestaltismo, que utilizou o conceito topológico de região (com as suas várias determinações), que se presta a expressar o espaço vital de um organismo (KURT LEWIN, Principies of Topological Psychology, 1936, esp. cap. XI e s.). (V. CAMPO-, PSICOLOGIA.) TOTALIDADE (gr. tò õA,ov; lat. Universitas, in. Totality, fr. Totalité; ai. Allheit, Totalitàt; it. Totalitq). Um todo completo em suas partes e perfeito em sua ordem. Este é o conceito de T. que se encontra em Aristóteles, que se distingue de todo, cujas partes podem mudar de disposição sem modificar o conjunto (Mel, V, 26, 1024 a 1). Nesse sentido, o mundo (cosmos) é uma T., mas o universo não (v. MUNDO). Mesmo nas línguas modernas, a noção de T. conservou a característica da completitude e de disposição perfeita das partes. Segundo Kant, a "T. das condições" corresponde, na síntese da intuição, à universalidade do predicado na premissa maior do silogismo. A noção de T. das condições é a idéia da Razão Pura. Portanto, segundo Kant, a idéia é a noção de uma perfeição, ainda que não de uma perfeição real (Crít. R. Pura, Dialética, livro I, seç. I-II) (v. TODO). TOTALITARISMO (in. Totalitarianism; fr. Totalitarisme, ai. Etatismus; it. Totalitarismo). Teoria ou prática do Estado totalitário, vale dizer, do Estado que pretende identificar-se com a vida dos seus cidadãos. Esse termo foi cunhado para designar o fascismo italiano e o nazismo alemão. Às vezes também é usado para designar qualquer doutrina absolutista, em qualquer campo a que se refira (é usado nesse sentido por G. H. SABINE, A History o/Political Theory, 1951, cap. 35; trad. it., pp. 708 ss.). Muitas vezes, por extensão, entende-se por T. qualquer forma do absolutismo doutrinário ou político. TOTEMISMO (in. Totemism-, fr. Totémisme, ai. Totemismus; it. Totemismó). Crença no totem, ou organização social fundada nessa crença. O termo totem foi extraído do idioma dos índios norte-americanos e depois passou a indicar o fenômeno (presente em todos os povos primitivos) de transformar uma coisa (natural ou artificial) em emblema do grupo social e em garantia da sua solidariedade. Foi Durkheim quem mais enfatizou esse caráter do' totem, vendo nele a expressão da unidade do grupo social em sua inteireza e, portanto, nas inter-re- TOTO-PARCIAL, TODO-TOTAL 964 TRABALHO laçòes dos clans em que o grupo se divide (Les formes élémentaires de Ia vie religieuse, 1912). Ao lado desse caráter do T., A. R. Radcliffe-Brown evidenciou o seu caráter ainda mais universal, segundo o qual o T. constituiria "uma representação do universo como ordem moral e social"; portanto, a regulamentação da relação entre o homem e a natureza, além da regulamentação da relação entre os homens, seria um elemento universal da cultura humana {Structure and Function in Primitive Society, 1952, cap. VI). Lévi-Strauss, porém, parece reduzir o T. a fenômeno lingüístico formal: "Aquilo que se chama de T. é apenas uma expressão particular, através de uma nomenclatura especial formada por nomes de animais e de plantas (ou, como diríamos, um código), que é seu único caráter distintivo, das correlações e opo-sições que podem ser formalizadas de outros modos: p. ex., como acontece em certas tribos das Américas, por oposições do tipo céu-terra, guerra-paz, em cima-embaixo, vermelho-bran-co, etc." (Le totémisme aujourd'hui, 1962, p. 172). Por outro lado, Freud apresentou uma interpretação psicanalítica do T.: "Se o animal totem é o pai, então os dois principais preceitos do T., de não matar o totem e de não usufruir sexualmente de nenhuma mulher do totem, coincidem substancialmente com os dois crimes de Édipo (que matou o pai e casou-se com a mãe) e com os desejos primitivos da criança, desejos cuja remoção insuficiente ou cujo despertar talvez constituam a raiz de todas as psiconeuroses" {Totem e tabu, 1913, IV, 3; trad. it., p. 146). Para uma interpretação semelhante a esta de Freud, v. J. G. FRAZER, Totemism and Exogamy, 1910. TOTÒ-PARCIAL, TOTO-TOTAL (in. Toto-partial, Toto-total). Expressões usadas por W. Hamilton para indicar, respectivamente, a proposição na qual o sujeito é considerado universalmente e o predicado, particularmente (ex., os homens são animais), e a proposição na qual tanto o sujeito quanto o predicado são considerados universalmente (ex. os animais são mortais) (Lectures on Logic, II, p. 287). TRABALHO (gr. TTÓVOÇ; lat. Labor, in. Labor, fr. Travail; ai. Arbeit; it. Lavoró). Atividade cujo fim é utilizar as coisas naturais ou modificar o ambiente e satisfazer às necessidades humanas. Por isso, o conceito de T. implica: 1) dependência do homem em relação à natureza, no que se refere à sua vida e aos seus interesses: isso constitui a necessidade, num de seus sentidos (v.); 2) reação ativa a essa dependência, constituída por operações mais ou menos complexas, com vistas à elaboração ou à utilização dos elementos naturais; 3) grau mais ou menos elevado de esforço, sofrimento ou fadiga, que constitui o custo humano do trabalho. Era principalmente nesse aspecto que se baseava a condenação da filosofia antiga e medieval ao T. manual (v. BANAUSIA). Com esse mesmo aspecto, na Bíblia o T. é considerado parte da maldição divina, decorrente do pecado original {Gênese, III, 19). Num texto famoso de S. Paulo, o preceito "Quem não quer trabalhar não coma" deriva da obrigação de não onerar os outros com o cansaço e o sofrimento do T. (77 Tessal., III, 8-10). Era nesse mesmo sentido que S. Agostinho {De operibus monachorum, 17-18) e S. Tomás {S. Th., II, II, q. 187 a. 3) prescreviam o T. como preceito religioso. Na exigência de distribuir imparcialmente o sofrimento e a degradação do T. manual inspiraram-se Utopia (1516), de Thomas More, e A cidade do Sol (1602), de Campanella, que prescrevem para todos os membros de sua cidade ideal a obrigação do trabalho. Com base nisso, fixava-se a contraposição entre trabalho manual e atividade intelectual, entre artes mecânicas e artes liberais. Mesmo no Renascimento, a defesa quase unânime feita por literatos e filósofos da vida ativa em oposição à contemplativa e a condenação unânime ao ócio (que perde o caráter de disponibilidade para atividades superiores atribuído pela Antigüidade clássica) nem sempre levam à revalorização do T. manual. Um trecho de Giordano Bruno afirma que a providência dispôs que o homem "se ocupe na ação das mãos e na contemplação do intelecto, de tal maneira que não contemple sem ação e não obre sem contemplação" {Spaccio delia bestia trionfante, 1584, em Op. itali, II, p. 152). Mas é sobretudo nos textos científicos e técnicos que se afirma, a partir do séc. XV, a dignidade do T. manual. Galileu reconhecia explicitamente o valor das observações feitas pelos artesãos mecânicos para a pesquisa científica (Discorsi intorno a due nuovescienze, em Op., VIII, p. 49). Bacon fundamentava seu experimentalismo nas "artes mecânicas", que agem sobre a natureza e se enriquecem com a luz da experiência {Nov. Org., I, 74), e considerava, pois, indispensáveis as operações materiais ou manuais para a obtenção de um saber que fosse ao mesmo tem- TRABALHO 965 TRABALHO po poder sobre a natureza, com vistas à satisfação das necessidades e dos interesses humanos {Ibid., I, 83). Se Descartes dava pouca importância à parte técnica ou instrumental da ciência (que para ele continua sendo um sistema rigidamente dedutivo) e ao T. manual, Leibniz, ao contrário, insistia na importância do T. dos artesãos, dos agricultores, dos marinheiros, dos comerciantes, dos músicos, não só em proveito da ciência, mas também da vida e da civilização (Phil. Schriften, VII, pp. 180 ss.). Essas idéias tornaram-se dominantes no Ilu-minismo, sobretudo graças a Bacon e a Locke; este último reconhecia na investigação experimental, voltada para a determinação das propriedades dos corpos físicos, único instrumento de que o intelecto humano dispõe para ampliar esse tipo de conhecimento, visto que a substância dos corpos continua desconhecida {Ensaio, IV, II, 25). Na esteira de Bacon, o verbete "Art", de Diderot na Encyclopédie, criticava a distinção das artes em liberais e mecânicas, considerando-a preconceito, tendente a "encher as cidades de raciocinadores orgulhosos e de contemplativos supérfluos, e os campos de tiranetes ociosos, preguiçosos e arrogantes". O Iluminismo, em geral, marca a reivindicação da dignidade do T. manual, a partir do qual Rousseau desejava que Emílio adquirisse as primeiras idéias sobre solidariedade social e sobre as obrigações que ela impõe {Émile, [1762], IV). Kant, mesmo fazendo a distinção entre T. e arte, não considerava possível uma separação nítida porque até nas artes liberais "é necessário algo de obrigatório e — como se diz — um mecanismo sem o qual o espírito não adquiriria corpo e evaporaria" (Crít. do Juízo, § 43). Foi só no Romantismo que se começou a estabelecer a relação entre o T. e a natureza do homem. Fichte afirmava que até mesmo a ocupação mais reles e insignificante, se estiver ligada à conservação e à livre atividade dos seres morais, é santificada tanto quanto a ação mais elevada {Sittenlehre, III, § 28). Foi Hegel quem formulou a primeira teoria filosófica do T., utilizando os resultados a que chegara Adam Smith na economia política (v.). Já em Lições de Iena (1803-04), Hegel considerava o T. como "mediação entre o homem e seu mundo"; isso porque, diferentemente dos animais, o homem não consome de imediato o produto natural, mas elabora de maneiras diferentes e para os fins mais diversos a matéria fornecida pela natureza, conferindo-lhe assim valor e conformidade com o fim a que se destina {Fil. do dir., § 196). Só na satisfação de suas necessidades através do T. é que o homem é realmente homem, porque assim se educa tanto teoricamente. por meio dos conhecimentos que o T. exige, quanto na prática, ao habituar-se à ocupação, ao adequar suas atividades à natureza da matéria e ao adquirir aptidões universalmente válidas. Por isso, ao contrário do bárbaro, que é preguiçoso, o homem civilizado é educado no costume e na necessidade da ocupação {Ibid., § 197 e Zusatz). Através do T., "o egoísmo subjetivo converte-se na satisfação das necessidades de todos os outros", de tal modo que, enquanto "alguém adquire, produz e usufrui, justamente por isso está produzindo e adquirindo para o usufruto de outros" {Ibid., § 199). Hegel também evidenciou o crescimento indefinido das necessidades, a importância da divisão do T. e a relevância assumida pela distinção de classes, com base nessa divisão {Ibid., §§ 195, 241, 245). Viu também que a divisão do T. leva à substituição do homem pela máquina. Isso porque, com essa divisão, aumenta realmente a facilidade do T. — portanto da produção —, mas ao mesmo tempo ocorre a limitação a uma única habilidade, portanto a dependência incondicional do indivíduo ao contexto social. A própria habilidade torna-se mecânica e ocasiona a substituição do T. humano pela máquina {Ene, § 526). Esses princípios hegelianos foram aceitos por Marx, que, no entanto, insiste no caráter natural ou material da relação criada pelo T. entre o homem e o mundo, contra o caráter espiritual atribuído por Hegel, que permitia considerá-lo um momento ou uma manifestação da consciência. Segundo Marx, os homens começaram a distinguir-se dos animais quando "começaram a produzir seus próprios meios de subsistência, progresso este condicionado pela organização física humana. Produzindo seus meios de subsistência, os homens produzem indiretamente sua própria vida material" {Ideologia alemã, I, A; trad. it., p. 17). Portanto, o T. não é apenas o meio com que os homens asseguram sua subsistência: é a própria extrinsecação e produção de sua vida, é um modo de vida determinado. A produção e o T. não são, pois, uma condenação para o homem: constituem o próprio homem, seu modo específico de ser e de fazer-se homem. Pelo T., a natureza torna-se "o corpo inorgânico do homem", e o homem pode ascender à cons- TRABALHO 966 TRADIÇÃO ciência de si mesmo, não tanto como indivíduo, mas como "espécie de natureza universal" (Manuscritos econômicopolíticos de 1844, I, trad. it., pp. 230 ss.). O T. também transforma o homem num ente social porque o põe em contato com os outros indivíduos, mais do que com a natureza: desse modo, as relações de T. e de produção constituem a trama ou a estrutura autência da história, cujos reflexos são as várias formas de consciência. Isso acontece, porém, no T. não alienado, que não se tornou mercadoria; no trabalho alienado, que ocorre na sociedade capitalista, manifestase o contraste entre a personalidade individual do proletário e o T. como condição de vida que lhe é imposta pelas relações das quais faz parte como objeto, e não como sujeito (Ideologia alemã, I, C; trad. it., p. 75). Do ponto de vista da ética religiosa, Kierke-gaard afirmava a estreita conexão do T. com a dignidade humana: "Quanto mais baixo é o escalão em que está a vida humana, menos necessidade há de trabalhar; quanto mais alto, tanto mais essa necessidade se manifesta. O dever de trabalhar para viver exprime o universal humano, inclusive no sentido de ser uma manifestação da liberdade. É exatamente por meio do T. que o homem se torna livre; o T. domina a natureza: com o T. ele mostra que está acima da natureza (Entweder-Oder, II, em Werke, III, p. 301). Essa estreita conexão do trabalho com a existência humana, que enobrece o T. e graças à qual ele é fim, além de meio, passa a ser lugar-comum em filosofia e, em geral, na cultura contemporânea. Mesmo fora do âmbito marxista, o caráter penoso do T. não é atribuído ao T. em si, mas às condições sociais em que ele é realizado nas sociedades industriais. Dewey diz: "É natural que a atividade seja agradável. Ela tende a encontrar saídas, e encontrá-las é, em si, gratificante porque marca um êxito parcial. O fato de a atividade produtiva ter-se tornado tão inerentemente insatisfatória que os homens precisam ser induzidos a empenhar-se nela por vias artificiais é prova de que as condições em que o T. se realiza impedem o conjunto de atividades, em vez de promovê-las, irritam e frustram as tendências naturais, em vez de orientá-las para a fruição" (Human Nature and Conduct, II, 3, pp. 123-24). Nietz-sche, porém, via no T. uma traição à espiritualidade alegre e contemplativa que deveria ser própria do homem. Escreveu a propósito dos americanos: "O seu furibundo T. sem fôlego — vício peculiar do Novo Mundo — já começa, por contágio, a asselvajar a velha Europa e a estender sobre ela uma prodigiosa falta de espiritualidade". Notara que só o T. proporciona "a boa consciência" e que, ao contrário, a inclinação à alegria, chamada de "necessidade de criação", começa a ter vergonha de si mesma (Die Froehlich Wissenschaft, 1882, § 329). Vira no T. assim concebido a melhor polícia, que mantém todos subjugados e consegue impedir vigorosamente o desenvolvimento da razão, do desejo violento, do gosto pela independência (Morgenrõthe, 1881, § 173). A essas idéias de Nietzsche remete-se, implícita ou explicitamente, quem contrapõe entretenimento e T. ou quer transformar o T. em entretenimento. "O entretenimento é improdutivo e inútil" — escreveu Marcuse — "exatamente porque apaga as características repressivas e exploradoras do T. e da riqueza; mas ele 'simplesmente se en-tretém' com a realidade". Por outro lado, o próprio Marcuse afirma que uma ordem "não repressiva" do T. é uma ordem de abundância, que ocorre "quando todas as necessidades fundamentais podem ser satisfeitas com um gasto mínimo de energia física e psíquica, em tempo mínimo" (Eros ecivilização, cap. 9, trad. it., pp. 212-13). Por trás da condenação do valor do T., mais que censura às formas alienadas que o T. assumiu na civilização contemporânea, está a nostalgia da vida puramente contemplativa, a fé numa vida instintiva que, não fora reprimida pelo T., levaria o homem infalivelmente ao paraíso perdido. TRADIÇÃO (gr. 7rapáSocnç; in. Tradition-, fr. Tradition; ai. Überlieferung; it. Tradizioné). Herança cultural, transmissão de crenças ou técnicas de uma geração para outra. No domínio da filosofia, o recurso à T. implica o reconhecimento da verdade da T., que, desse ponto de vista, se torna garantia de verdade e, às vezes, a única garantia possível. Foi entendida nesse sentido pelo próprio Aristóteles, que, em suas investigações, recorre freqüentemente à T., considerando-a garantia de verdade: "Nossos antepassados, das mais remotas idades, transmitiram à posteridade tradições em forma mítica, segundo as quais os corpos celestes são divindades e o divino abrange a natureza inteira. Outras T. foram acrescentadas em forma de mito, para persuadir a maioria e como objetivo de reforçar as leis e promover a utilidade pública; elas dizem que os deuses têm forma de ho- TRADIÇÃO 967 TRADICIONAIISMO mens ou de outros animais, dando sobre eles outros pormenores semelhantes. Mas, se considerarmos apenas o essencial em separado do resto, ou seja, que as primeiras substâncias são tradicionalmente consideradas divindades, poderemos reconhecer que isso foi divinamente dito e que estes e outros mitos, ainda que explorados, aperfeiçoados e novamente perdidos pelas artes e pela filosofia, foram conservados até hoje como antigas relíquias. É só desse modo que podemos tornar claras as opiniões dos nossos antepassados e predecessores" (Met., XII, 8, 1074 b). Para Aristóteles, sua própria filosofia consiste em libertar a T. de seus elementos míticos, portanto em descobrir a T. autêntica ao mesmo tempo em que se funda na garantia oferecida por essa mesma T. Esse foi o ponto de vista que predominou no último período da filosofia grega, especialmente na corrente neoplatônica. Plotino dizia: "É preciso crer sem dúvida que a verdade foi descoberta por antigos e santos filósofos; a nós convém examinar quem as encontrou e como poderemos chegar a compreendê-la" (Enn., III, 7, 1). Foi graças a essa idéia que, com base numa suposta T., se tornou possível fabricar documentos fictícios quando os autênticos faltavam; e as obras de falsas atribuições — as mais famosas foram as de Hermes Trismegisto — obedecem à exigência de remeter ao passado a doutrina em que se acredita e de atribuir-lhe, embora fraudulentamente, o prestígio e a garantia da tradição. Desde então, o conceito de T. não mudou, conservando a aparência ou a promessa dessa garantia. O grande retorno da idéia de T. está no Romantismo. Em Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit (1783-1791), J. G. Herder exaltara a T. como "cadeia sagrada que liga os homens ao passado, conserva e transmite tudo que foi feito pelos que os precederam". Hegel exaltou explicitamente ale insistiu no seu caráter providencial: "A T. não é uma estátua imóvel, mas vive e mana como um rio impetuoso que mais cresce quanto mais se afasta da origem. (...) O que cada geração produziu no campo da ciência e do espírito é uma herança para a qual todo o mundo anterior contribuiu com sua economia, é um santuário em cujas paredes os homens de todas as estirpes, gratos e felizes, afixaram tudo o que os auxiliou na vida, o que eles hauriram das profundezas da natureza e do espírito. E esse herdar é, ao mesmo tempo, receber a herança e fazê-la fortificar" (Geschichte der Philosophie, ed. Glock-ner, I, p. 29). Nesse sentido, obviamente, a T. é apenas outro nome para designar o plano providencial da história (v. HISTÓRIA). Foi esse o ponto de vista dominante em todo o Romantismo, sendo o chamado tradi-cionalismo (v.) apenas uma de suas manifestações. A antítese dessa valorização da T. é a concepção segundo a qual: Ia nem todos os resultados, nem os melhores produtos da atividade humana foram infalivelmente conservados e incrementados ao longo do desenvolvimento histórico-, 29 o que esse desenvolvimento conservou nem por isso tem garantia de verdade ou de valor. Concepção desse tipo foi assumida pelo Iluminismo (por isso mesmo freqüentemente definido como anti-historicista por quem vê a história como ordem providencial ou T.). O Iluminismo erigiu-se contra a T., afirmando que sua herança, na maioria das vezes, é erro, preconceito ou superstição, e recorrendo ao juízo da razão crítica para contestá-la (v. ILUMINISMO). Como se vê, as discussões filosóficas sobre o significado e a importância da T. na realidade são discussões sobre história (v.). No campo da sociologia, porém, analisar a T. é o mesmo que analisar determinada atitude, ou melhor, um tipo e espécie de atitude, mais precisamente a que consiste na aquisição inconsciente (não deliberada) de crenças e técnicas. Na atitude tradicionalista, o indivíduo considera como seus os modos de ser e de comportar-se que recebeu ou continua recebendo do ambiente social, sem perceber que são modos de ser do grupo social. Na T., não há distinção entre presente e passado, entre "mim" e os outros, sendo por isso uma forma de comunicação primitiva e imprópria (ABBAGNANO, Pro-blemi di sociologia, 1959, XI, 3). Segundo esse ponto de vista, a atitude tradicionalista opõe-se à atitude crítica, graças à qual o indivíduo tem certa liberdade de juízo (que no entanto nunca é absoluta ou infalível) em relação às crenças e técnicas que hauriu da tradição. A atitude crítica tem condições antitéticas em relação às da T.: alteridade entre presente e passado e entre os indivíduos. TRADICIONAIISMO (in. Traditionalism-, fr. Traditionalisme; ai. Traditionalismus-, it. Tradi-zionalismó). 1. Defesa explícita da tradição, cujos principais protagonistas pertencem ao Romantismo francês: Madame de Staél (1766- TRADUCIANISMO 968 TRÁGICO 1817), que, em De 1'Allemagne (1813), vê a história humana como progressiva revelação religiosa; René de Chateaubriand (1769-1848), que, em Génie du christianisme (1802), vê o catolicismo como depositário da tradição das humanidades; e em Louis de Bonald (1754-1840), Joseph de Maistre (1753-1821) e Robert Lamennais (17821854), que se transformaram em paladinos das duas principais instituições personificadoras da T., verberadas pelo Ilu-minismo e hostilizadas pela Revolução: a Igreja e o Estado. Por isso, esses escritores também foram chamados de teocrãticos ou ultramon-tanistas (v. TEOCRACIA). 2. Em sentido mais geral e filosófico, pode-se entender por T. o retorno à tradição que marcou o Romantismo da primeira metade do séc. XIX, entre cujos defensores estariam seus principais protagonistas (Fichte, Schelling, He-gel, Maine de Biran [1766-1824], Antônio Rosmini Serbati [1797-1855], Vincenzo Gioberti [1801-52] e o próprio Giuseppe Mazzini [1805-72]) e outros escritores menores em vários países (p. ex., o inglês J. Martineau [18051900]). A idéia comum de todos esses pensadores é que tanto o pensamento individual quanto a tradição da humanidade baseiam-se numa revelação direta de Deus, que o homem tem o dever de desenvolver com a reflexão individual e com a ação coletiva. A idéia do ser, de Rosmini, é a melhor expressão conceituai dessa noção de revelação progressiva. Aplicado à história, este conceito é o mesmo que providencialismo (v.). TRADUCIANISMO (in. Traducianism; ai. Traducianismus; it. Traducianismo). Doutrina segundo a qual a alma dos filhos provém da alma dos pais assim como um ramo (tradux) provém da árvore. Essa doutrina já se encontrava nos estóicos (TEMÍSTIO, Dean., II, 5; GALENO, Op., IV, 699), foi aceita por Tertuliano (De an., 22) e por outros escritores da patrística e defendida mais tarde pelos teólogos protestantes que viam nela a possibilidade de explicar a transmissão do pecado original. Era aceita por Leibniz (Théod., I, § 86). A mesma doutrina foi, às vezes, indicada com o nome de generacionismo. A doutrina oposta, de que toda as almas são criadas ex-novo chama-se criacionismo (v.). TRÁGICO (in. Tragic; fr. Tragique, ai. Tra-gisch; it. Trágico). O conceito de T. foi, às vezes, discutido pelos filósofos não só em relação à forma de arte que é a tragédia, mas também em relação à vida humana em geral, ou ao palco do mundo. O ponto de partida implícito ou explícito dessas discussões quase sempre é a definição aristotélica de tragédia, segundo a qual ela é "imitação de acontecimentos que provocam piedade e terror e que ocasionam a purificação dessas emoções" (Poet, 6, 1449 b 23). As situações que provocam "piedade e terror" são aquelas em que a vida ou a felicidade de pessoas inocentes é posta em perigo, em que os conflitos não são resolvidos ou são resolvidos de tal modo que determinam "piedade e terror" nos espectadores. W. Haeger escreveu: "na tragédia grega a felicidade, como toda posse, não pode ficar muito tempo com quem a detém; a perpétua instabilidade é inerente à sua natureza. A convicção de Sólon, de que há uma ordem divina no mundo, encontrou nessa noção (embora tão dolorosa para o homem) o apoio mais sólido. Esquilo também é inconcebível sem tal convicção, que pode ser chamada mais de noção que de crença" (Paidéia, II, cap. I; trad. it., p. 449). As interpretações da natureza do T. no pensamento moderno são três. Ia T. é o conflito continuamente resolvido e superado na ordem perfeita do todo; 2a T. é o conflito não solucionado e insolúvel; 3a T. é o conflito que pode ser solucionado, mas cuja solução não é definitiva nem perfeitamente justa ou satisfatória. Ia O primeiro conceito de T. é de Hegel, para quem o conflito em que consiste o T., embora constituindo a substância e a verdadeira realidade, não se conserva como tal, mas encontra justificação só na medida em que é superado como contradição. "No entanto o objetivo e o caráter T. são legítimos" — diz Hegel — "porque é necessária a solução do conflito em que ele consiste. Por meio dessa solução a eterna justiça se afirma sobre os fins e os indivíduos, de tal modo que a substância moral e a sua unidade se restabelecem com o ocaso das individualidades que perturbam o seu repouso" ÇVorlesungen über die Àsthetik, ed. Glo-ckner, III, p. 530). Portanto, a solução T. restabelece a harmonia, e o que ela destrói é apenas a "particularidade unilateral" que não pôde concertar-se com a harmonia (Ibid., ed. Glockner, III, p. 530). Obviamente, desse ponto de vista, que caracteriza o otimismo ou providencialismo de caráter romântico, a tragédia é simplesmente a aparência de uma comédia substancial: tudo acaba bem, e o que se perde TRÁGICO 969 TRANSAÇÃO é a "particularidade unilateral" que não tem o mínimo valor. 2- A segunda interpretação do T. é de Schopenhauer, segundo a qual o T. é conflito insolúvel. Para ele, "a tragédia é a representação da vida em seu aspecto terrificante. É ela que nos apresenta a dor inominável, a aflição da humanidade, o triunfo da perfídia, o es-carnecedor domínio do acaso e a fatal ruína dos justos e dos inocentes; por isso, ela constitui um sinal significativo da natureza do mundo e do ser" {Die Welt, I, § 51). Mas a inevita-bilidade e, portanto, a certeza de um destino maléfico ou de uma injustiça imanente, assim como a inevitabilidade e a certeza da justiça e da harmonia, suprimem a tragicidade. Diante deles, de fato, a única atitude possível é a resignação ou o desespero: atitudes que, assim como as que lhe são opostas, excluem o conflito constitutivo do trágico. 3a A terceira concepção foi apresentada por Schiller na obra Über naive und sentimenta-lische Dichtung (1795-96). Nela, oT. é apresentado como manifestação da poesia sentimental (v. INGENUIDADE), mais precisamente da poesia que representa o conflito entre o real e o ideal. A poesia sentimental divide-se em sátira e elegia: na sátira o poeta tem por objeto o geral, considerando-o insuficiente em relação ao ideal. Ainda segundo Schiller, quando a insuficiência do real é representada pelo conflito entre o real e nossas exigências morais, tem-se a sátira séria, que é o T. {Werke, ed. Karpeles, XII, p. 150). Em conceitos semelhantes inspirava-se a chamada "pantragicidade" de Hebbel (v. Werke, X, p. 43). Bem mais paradoxalmente, Nietzsche via no T., por um lado, o caráter terrificante da existência, por outro a possibilidade de aceitar e transfigurar esse caráter ou por meio da arte ou da vontade de potência. A primeira solução é a que Nietzsche atribui aos gregos em Die Geburt der Tragòdie (1872). O homem grego, que tinha condições de distinguir com clareza o horrível e o absurdo da existência, conseguiu transfigurá-la por meio do espírito dionisíaco, domando e sujeitando o horrível, que assim se transforma em sublime (o objeto da tragédia), e libertando da aversão ao absurdo, que assim se transforma em cômico (o objeto da comédia) {Die Geburt der Tmgõdie, § 7). Mais tarde, Nietzsche achou que a saída do terrificante da vida estaria na aceitação da vida graças à vontade de potência, considerando o T. como aceitação dionisíaca do que é terrificante e incerto. Escreveu então^ "A profundidade do artista T. reside no fato de que seu instinto estético considera as conseqüências remotas e não se detém com visão estreita nas coisas próximas; de que ele afirma a economia ã larga, que justifica o que é terrível, maligno e problemático, mas não se contenta apenas em justificá-lo" {Wille zur Macht, ed. 1901, § 374). Essa concepção do T. — que costuma ser expressa com imperfeição ou mesclada com as outras duas — pode ser reconhecida pelo fato de abrir espaço, em sua caracterização, à problematicidade da situação T., vale dizer, à possibilidade de ela ser decidida de um modo ou de outro, sem que a decisão seja definitiva ou perfeita. Foi com esse espírito que Miguel de Unamuno entendeu a tragicidade em Do sentimento T. da vida (1913), expressando-a com o quién sabe? de Don Quixote. No mesmo sentido expressaram-se Scheller {Vom Umsturz der Werte, 1953), Jaspers {Über das Tragische, 1952) e Cantoni {Trágico e senso comune, 1964). P. Romanell diz que, ao contrário da épica, em que o conflito se dá entre o bem e o mal, no T. o conflito se dá entre bens diferentes, valores heterogêneos entre os quais a escolha é dolorosa e sempre implica sacrifício {MakingoftheMexicanMind, 1952, p. 22). Esse caráter do T. é bem realizado na tragédia grega. A tragédia de Sófocles baseia-se na convicção de que existe uma ordem divina no mundo, em virtude da qual às vezes o inocente precisa pagar por um erro cometido por outros. O fato de a solução do conflito não poder ser límpida, de algo se perder nessa solução e de esse algo não ser — como dizia Hegel — uma "particularidade unilateral" é o que constitui o fascínio e a verdade da tragédia. TRANQÜILIDADE. V. ATARAXIA. TRANSAÇÃO (in. Transaction; fr. Transaction; ai. Transaction; it. Transazioné). Termo introduzido em filosofia por Dewey e Bentley para indicar uma relação que não pressupõe os termos relativos como entidades em si. Dewey diz: "Esse termo indica negativamente que nem o senso comum nem a ciência devem ser considerados entidades, como à parte, completo e circunscrito.(...) Positivamente, indica que devem ser marcados pelas características e pelas propriedades encontradas em tudo o que se reconhece como T.: p. ex., um negócio ou uma T. comercial. Essa T. transforma um dos participantes em comprador e o outro em vendedor: não existem compradores e vendedores a não TRANSCENDÊNCIA 970 TRANSCENDÊNCIA ser em T. e por causa da T. em que são empenhados" (Knowing and the Known, 1949, p. 270). Na Itália, esse termo foi empregado por Romagnosi: segundo ele, "do comércio entre o interior e o exterior" do homem nasce "sobre o pano de fundo do eu pensante uma T. que harmoniza as leis do mundo interior com o exterior, para formar um único mundo e uma única vida" (Che cos'è Ia mente sana? [1827], ed. 1936, p. 100, 138). TRANSCENDÊNCIA (in. Trancendence, fr. Transcendance, ai. Transzendez, it. Trascen-denzd). Esse termo foi usado com dois significados diferentes: \° estado ou condição do princípio divino, do ser além de tudo, de toda experiência humana (enquanto experiência de coisas) ou do próprio ser; 2- ato de estabelecer uma relação que exclua a unificação ou a identificação dos termos. 1Q No primeiro sentido, esse termo vincula-se à concepção neoplatônica de divindade. Platão já dissera que o Bem, como princípio supremo de tudo o que é, comparável como tal ao sol que dá vida às coisas e as torna visíveis, está além da substância (èjiÉKetva Tfjç oüoíaç, Rep., VI, 509 b). A exemplo de Platão, Plotino repete que o Uno está "além da substância" (Enn., VI, 8, 1 9), mas acrescenta que ele também está "além do ser" (èratceivoc ÕVTOÇ, Ibid., V, 5, 6) e "além da mente" (è7rÍK£iva voO, Ibid., III, 8, 9), de tal modo que é transcendente (Ú7t£pftepT|Ka)Ç) em relação a todas as coisas, mesmo produzindo-as e conservando-as no ser {Ibid., V, 5, 12). Proclo diz: "Além de todos os corpos está a substância da alma; além de todas as almas, a natureza inteligível; além de todas as substâncias inteligíveis, está o Uno" (Inst. theol., 20). Escoto Erigena e outros usaram o termo supra-ente (v.) para designar a T. absoluta, graças à qual Deus está além de todas as determinações concebíveis, até mesmo do ser ou da substância. Nem sempre, porém, a T. é levada ao ponto de situar Deus além do ser, transformando-o de algum modo em "nada". A escolástica clássica, reconhecendo a analogi-cidade do ser, não põe Deus além do próprio ser: esta forma de T. é, ao contrário, própria da teologia negativa ou mística (v. TEOLOGIA, 4). Fora da teologia, essa espécie de T. foi reconhecida por Jaspers, que a contrapôs à existência: T. é o que está além da possibilidade de existência, é o ser que nunca se resolve no possível e com o qual a única relação que o homem pode ter consiste na impossibilidade de alcançá-lo. Nesse sentido, a T. se manifesta sob forma de cifra (v.) nas situações-limite (v.) e não pode ser caracterizada nem como "divindade", sem incidir na superstição. A única certeza que se pode ter em relação à T. é que "o ser é, e é assim" (Phil., III, p. 134). Entrementes, as correntes realistas da filosofia contemporânea atribuíam T. às coisas, aos objetos do conhecimento em geral ou ao ser de tais objetos. Nesse sentido, Husserl negava que uma coisa pudesse ser dada como imanente em qualquer percepção ou consciência, e definia o ser da coisa como ser transcendente, que é mais ou menos sombreado pelas aparições da coisa à consciência (ldeen, I, § 41). N. Hartmann insistia na T. do ser em relação ao conhecimento, porquanto o ser fica sempre além do objeto cognitivo imanente (Metaphysik der Erkenntniss, 2a ed., 1925, p. 50). No mesmo sentido, a T. era combatida pelas várias formas do imanentismo (v.). 2- No segundo significado, T. é o ato de se estabelecer uma relação, sem que esta signifique unidade ou identidade de seus termos, mas sim garantindo, com a própria relação, a sua alteridade. Esse conceito também tem origem religiosa e neoplatônica. Plotino dizia que a contemplação é "para quem foi além de tudo" (xto vmepfiávTi rcávTa, Enn., VI, 9, 11). Num trecho famoso, S. Agostinho dizia: "Se achares mutável a tua natureza, transcende-te a ti mesmo", e acrescentava: "Lembra-te de que, ao te transcenderes a ti mesmo, estás transcendendo uma alma racional e que, portanto, deves visar ao ponto do qual provém a luz da razão" (De vera relig., 39). Esse sentido ativo de T. ficou praticamente obliterado na filosofia tradicional e só foi retomado pela filosofia contemporânea. Com referência à T. do ser ou da coisa em relação à consciência que a apreende ou ao ato de conhecimento que é seu objeto, a própria consciência ou o ato de conhecimento foram chamados de transcendentes. Assim, Husserl fala de percepção transcendente, que tem a coisa por objeto e em relação à qual a coisa é transcendente, o que difere da percepção imanente, que tem por objeto as experiências conscientes que são imanentes à própria percepção (Ideen, I, § 42, 46). N. Hartmann baseou o seu realismo no conceito de T.: "O conhecimento não é um simples ato de consciência, como o representar e o pensar, mas um ato transcendente. Um ato desses se liga ao sujeito só por um lado, mas TRANSCENDÊNCIA 971 TRANSCENDENTAL por outro fica fora; por este último, liga-se ao existente, que, graças a ele, se torna objeto. O conhecimento é uma relação entre um sujeito e um objeto existente. Nessa relação, o ato transcende a consciência" (Systematische Philosophie, § 11). No mesmo sentido ele chama de transcendente a relação cognoscitiva (Ibid., § 10). No entanto, a mais importante utilização do conceito nesse sentido foi a de Heidegger, que definiu como transcendente a relação entre o homem (Dasein, ser-aí) e o mundo. "O ser-aí que transcende (eis uma expressão já por si tautológica) não ultrapassa nem um obstáculo anteposto ao sujeito de tal modo que o obrigue a permanecer em si mesmo (imanência), nem um fosso que o separaria do objeto. Por sua vez, os objetos (entes que lhe estão presentes) não são aquilo em cuja direção ocorre a ultra-passagem. O que é ultrapassado é unicamente o ente, ou seja, qualquer ente que possa ser revelado ou revelar-se ao ser-aí, portanto o ente que o ser-aí é, enquanto, existindo, é ele mesmo" (Vom Wesen des Grundes, 1929, II). Em outros termos, é pelo ato de T. que o homem, como ente no mundo, se distingue dos outros entes ou objetos e se reconhece como "ele mesmo". Heidegger, portanto, considera a T. como o significado do ser no mundo. "Quem ultrapassa e, portanto, vai além, deve como tal sentir-se situado no ente. O ser-aí, na medida em que se sente como tal, está incluído no ente de tal modo que, reabarcado nele, é por ele conciliado consigo mesmo. A T. é um tal projeto do mundo que quem projeta é dominado pelo ente que transcende e está já de acordo com ele. Com esse ser incluído do ser-aí, ligado com a T., o ser-aí ganhou base no ente, obteve o seu fundamento" (Ibid., III). São características de Heidegger essa reincidência e esse acha-tamento da T. nos objetos transcendidos, do projeto nas suas condições de partida, do possível no efetivo, do futuro no passado. Heidegger chama de decadência ou facticidade (v.) essa reincidência ou achatamento. Foi o que fez Sartre, que expressa o mesmo conceito de T. afirmando que a consciência (opa-ra-si), ao transcender para o ser (o em-si), está apenas se anulando para revelar e afirmar, através de si, o próprio ser (L'être et le néant, II, cap. III, espec. pp. 268-69). Para uma interpretação da T. que fuja ao achatamento ou à nadificação, cf. ABBAGNANO, Struttura delTesis-tenza, 1939, § 18; ID., IntroduzioneaWe-sistenzia-lismo, I, 6; etc. TRANSCENDENTAL (lat. Transcendentalis; in. Transcendental; fr. Transcendental; ai. Transzendental; it. Trascendentalé). Com este termo ou com transcendente, começaram a ser denominadas, no fim do séc. XIII, as propriedades que todas as coisas têm em comum, que por isso excedem ou transcendem as diversi-dades de gêneros em que as coisas se distribuem. Esse nome já se encontra em F. Mayron (morto em 1325, Formalitates, ed. 1479, f. 22, r. A), e com certeza Lorenzo Valia (Dialecticae disputationes, I, 1) contribuiu para a sua difusão, mas os transcendentais ou transcendentes já haviam sido definidos por S. Tomás como as propriedades "que se acrescentam ao ente e que expressam um de seus modos que não é expresso pelo nome do ente"; e enumerava seis delas: ens, res, unum, aliquid, bonum, verum (De ver., q. 1, a. 1), lista esta que se tornou a mais difundida e acreditada entre todas. Esse conceito de T., com alguma mudança ocasional na lista dos termos, foi repetido inúmeras vezes depois disso (CAMPANELLA, Dialec-tica, I, 4; G. BRUNO, De Ia causa, IV; F. BACON, De augm. scient., III, I; JUNGIUS, Lógica ham-burgensis, I, 1, 45: SPINOZA, Et., II, 40, escólio I; BERKELEY, Principie of Human Knowledge, § 118; WOLFF, Ont., § 495, 503; BAUMGARTEN, Met., § 72, 89; HAMILTON, Lectures on Logic, I, p. 198). A essa tradição junta-se o uso kantiano do termo. Kant diz: "Esses supostos predicados T. das coisas nada mais são que exigências lógicas e critérios para qualquer conhecimento das coisas em geral e repousam nas categorias de quantidade (unidade, pluralidade e totalidade). Mas essas categorias, que deveriam ser assumidas no significado material como pertencentes à possibilidade das coisas, na verdade eram usadas pelos antigos só com valor formal, como constituintes da exigência lógica para qualquer conhecimento; todavia, transformavam inadvertidamente esses critérios do pensamento em propriedade das coisas em si mesmas" (Crít. R. Pura, Analítica, § 12). Em outros termos, Kant considera que o antigo conceito de T. peca por dois motivos: 1° porque considera o T. simples conceito lógicofor-mal; 2a porque considera esse conceito formal como propriedade das coisas em si. Ao contrário, o conceito kantiano de T. consiste em: ls considerar o T. como condição da possibilidade da coisa, ou seja, como conceito apriori ou categoria; 2a considerar a coisa, cuja condição é o T., como fenômeno, e não como "coisa em TRANSCENDENTAL 972 TRANSCENDENTALISMO si". Contudo, para Kant, o T. não se identifica com as condições a priori do conhecimento humano e dos seus objetos (que são os fenômenos), mas é considerado o conhecimento (ou a ciência, se existe uma ciência) dessas condições a priori. Kant diz: "Não chamo de T. o conhecimento que cuida dos objetos, mas o que cuida do nosso modo de conhecer os objetos, e que seja possível a priori" (Ibid., Intr., VII). E esclarece: "Não se deve chamar de T. qualquer conhecimento apriori, mas apenas o conhecimento que possibilite saber que representações (intuições ou conceito) são aplicadas ou são possíveis exclusivamente a priori e como isso se dá. Vale dizer: é T. o conhecimento da possibilidade do conhecimento ou do uso dele a priori" (Ibid., Lógica, Intr., II; v. Prol, § 13, obs. III). Desse ponto de vista, T. não é "o que está além da experiência", mas sim "o que antecede a experiência (apriori) mesmo não se destinando a outra coisa senão a possibilitar o simples conhecimento empírico" {Prol, Apêndice, nota [A 204]). No entanto, é preciso observar que KANT não se atem rigorosamente a esse significado do termo e que, muitas vezes, chamou de T. o que é independente da experiência ou de princípios empíricos (cf., p. ex., Crít. R. Pura, O ideal da mão pura, seç. 5, Descoberta e ilustração da aparência dialética). De qualquer forma, com base no significado explicitamente aceito por Kant, podem ser chamados de T. apenas os conhecimentos que têm por objetos elementos a priori, e não estes mesmos elementos. Portanto, são T. a estética, a lógica e as suas partes, mas não o são as intuições puras, as categorias ou as idéias. Mas mesmo este uso não é rigoroso, pois Kant chama de T. as idéias e de unidade T. o eu penso (lbid., § 16). Esse termo foi retomado por Fichte para designar a teoria da ciência, pois mostra que todos os elementos do conhecimento estão no Eu, ou seja, na consciência: "Essa ciência não é trancendente, mas continua T. em sua profundidade. É verdade que ela explica a consciência com alguma coisa que existe independentemente da consciência, mas mesmo nessa explicação não se esquece de conformar-se às suas próprias leis; e assim que reflete sobre ela, o termo independente torna-se novamente produto da faculdade de pensar, portanto algo dependente do Eu, porque deve existir para o Eu, no conceito do Eu". (Wissenschaftslehre, 1794, § 5, II; trad. it., p. 231). Shelling entendia esse termo no mesmo sentido; para ele, no saber T., "o ato do saber chega a absorver o objeto como tal", de tal modo que é "um saber do saber, porquanto puramente subjetivo" (System des transzendentalen Idealismus, 1800, Intr., § 2). Schopenhauer atribui o mesmo sentido idealista: T. é "o conhecimento que determina e estabelece, antes de qualquer experiência, tudo o que é possível na experiência" (Über die vierfache WurzeldesSatzes vom zureichen-den Grunde, § 20). Como resultado destas determinações, o conceito do T. foi-se fixando na filosofia contemporânea como aquilo que pertence ao sujeito ou à consciência como condição do objeto e da própria realidade. Portanto, qualificou-se de T. qualquer atividade ou elemento da consciência de que dependa a afirmação ou a posição da realidade objetiva. Assim, expressões como "ponto de vista T." ou "conhecimento T." eqüivalem à expressão de Schelling "idealismo T.", ou seja, doutrina que mostra que na consciência subjetiva estão as condições da realidade. Este conceito de T. persistiu tanto nas escolas de inspiração kantiana mais estrita quanto nas escolas idealistas. Gentile chamava de "Eu T." o eu absoluto ou universal, que cria a realidade pensando (Teoria generale dello spirito, 1920,1 § 5). Mantém-se o sentido idealista também em Husserl, que qualifica de T. a experiência fenomenológica ou a reflexão que a ocasiona. "Na reflexão fenomenológica T., saímos do terreno empírico praticando a epoché universal quanto à existência ou à nãoexistên-cia do mundo. Pode-se dizer que a experiência do mundo assim modificada, a experiência T. consiste no seguinte: examinamos o cogito trans-cendentalmente reduzido e o descrevemos sem efetuar além disso a posição de existência natural implícita na percepção espontânea" (Cart. Med., § 15). Para Heidegger, porém, T. tem sentido objetivo porque indica "qualquer manifestação do ser no seu ser transcendente" (Sein und Zeit, § 7 C). TRANSCENDENTALISMO (in. Transcenden-talism; fr. Transcendentalisme, ai. Transzenden-talismus; it. Trascendentalismó). Teoria do idealismo transcendental, vale dizer, do idealismo romântico. O nome foi introduzido nos países anglo-saxões, especialmente nos Estados Unidos, por Emerson (v. O. B. FRONTHINGHAM, Transcendentalism in New England, 1876; nova ed., 1959). TRANSCENDENTE 973 TRANSFORMAÇÃO TRANSCENDENTE (lat. Transcendem; in. Transcendent; fr. Transcendam-, ai. Transzen-dent; it. Trascendente). Este termo tem dois significados fundamentais, correspondentes aos dois significados de transcendência (v.): Ia o que está além de determinado limite, tomado como medida ou como ponto de referência; 2e operação de transposição. 1B No primeiro significado, essa palavra assume valores muito diferentes, segundo o que se considere limite ou medida. As propriedades transcendentais (v.) eram chamadas assim por serem T. em relação aos gêneros, dos quais eram consideradas independentes. Fala-se de "perfeição T." como perfeição que supera todos os graus alcançáveis. Mais freqüentemente, esse termo é usado em filosofia para indicar o que ultrapassa os limites de alguma faculdade humana ou de todas as faculdades e do próprio homem. Assim, Boécio afirmava que "A razão transcende a imaginação porque apreende a espécie universal que está ligada às coisas singulares" (Phil. cons., V, 4). S. Tomás afirmava que a teologia "transcende todas as outras ciências tanto especulativas quanto práticas" porque é mais certa que elas e por tratar de coisas "que, pela elevação, transcendem a razão" (S. Th., I, q. 1, a. 5). Ao tratar da identidade do mínimo absoluto e do máximo absoluto em Deus, Nicolau de Cusa diz que "isso transcende o nosso intelecto, que não pode combinar racionalmente as coisas que são contraditórias em seu princípio" (De docta ignor., 1,4). Foi mais precisamente a partir de Kant que T. passou a designar a noção que excede os limites da experiência possível. Portanto, segundo Kant, são T. as idéias da razão pura: "Chamaremos de imanentes os princípios cuja aplicação se mantém em tudo e por tudo nos limites da experiência possível, e de T. os que devem ultrapassar esses limites" (Crít. R. Pura, Dialética, Intr., I; cf. Prol, § 40). É diferente dos princípios T. o uso transcendental dos princípios imanentes, que se vale de princípios cognitivos legítimos, mas sem levar muito em conta os limites da experiência (Ibid., Dialética, Intr., I; cf. Prol., § 40). 2Q Nos significados anteriores, a palavra T. designa o que está além de certo limite. Na filosofia contemporânea, é muitas vezes usada para designar uma atividade ou uma operação correspondente ao 2° significado de transcendência. Nesse sentido, segundo Husserl, é T. a percepção das coisas em oposição à percepção que a consciência tem de si mesma (que é percepção imanente) (Ideen, I, § 46). No mesmo sentido, Hartmann chama de ato T. o conhecimento (Systematische Philosophie, § II). Heideg-ger define como T. "o que atualiza a ultrapas-sagem, o que se mantém na ultrapassagem" ( Vom Wesen des Grundes, II; trad. it., p. 29) (v. TRANSCENDÊNCIA) . TRANSCENDENTISMO. Termo que só se encontra no italiano, às vezes usado para designar as doutrinas que admitem a transcendência do ser divino. TRANSCRIAÇÃO (in. Transcreation; fr. Transcréation; it. Transcreazionè). Termo usado por Leibniz para indicar a ação com que Deus dá razão à alma sensível ou animal. Leibniz prefere esta à hipótese segundo a qual a alma animal se eleva à razão por meios puramente naturais (Théod., I, § 91). TRANSEUNTE (in. Transeunt; fr. Transeunt; ai. Transeunt; it. Transeunte). 1. O mesmo que transitivo (v.). 2. Mutável, passageiro. TRANSFERENCIA. V. PSICANÁLISE. TRANSFTN1TO (in. Transfinite, fr. Transfl-ni; ai. Transfinit; it. Transfinitó). Expressão usada por G. Cantor para indicar os números que estão além dos números finitos. P. ex., se for T., o número ordinal da classe que compreende todos os números ordinais finitos, em sua ordem natural (0, 1, 2, ...), será denotado por um ômega minúsculo (G. CANTOR, Contribu-tion to the Founding of the Theory of Transfinite Numbers, trad. in., 1915) (v. INFINITO). Conseqüentemente, por "indução transfinita" entende-se a extensão da indução matemática (v.) a uma classe de números ordinais arbitrários de maneira semelhante ao modo como a indução é aplicada a uma classe bem ordenada de números ômega. TRANSFORMAÇÃO (in. Transformation; fr. Transformation; ai. Umformung, Transformation; it. Trasformazione). Dewey viu na T. a categoria fundamental do raciocínio matemático. "A T. dos conteúdos conceituais, segundo regras metódicas que satisfaçam determinadas condições lógicas, está implícita tanto na conduta do raciocínio quanto na formação dos conceitos que fazem parte dele". Pode-se enunciar o princípio lógico da T. da seguinte maneira: 1Q o conteúdo do raciocínio consiste em possibilidades; 2Q enquanto possibilidade, ele exige a formulação em símbolos (Logic, XX, TRANSFORMISMO 974 TRIÂDICO 1; trad. it., p. 516). Costuma-se chamar de regras de T. as regras da inferência dos sistemas logísticos ou das linguagens formais (v. SISTEMA LOGÍSTICO). TRANSFORMISMO (in. Transformism-, fr. Transformisme, ai. Transformismus; it. Trasfor-mismo). Com esse termo indica-se o evolu-cionismo biológico, que admite a transformação de uma espécie viva em outra (v. EVOLUÇÃO). TRANSnTVIDADE (in. Transitivity, fr. Tran-sitivité, ai. Transitivitãt; it. Transitivitã). Caráter de uma relação que, se ocorrer entre x e y e entre y e z, também ocorre entre x e z. Esse caráter é próprio das relações de identidade ou de igualdade como também das relações menor, precede, ã esquerda de, etc. (v. B. RUSSELL, Introduction to MathematicalPhilosophy, cap. IV; trad. it., p. 44). No cálculo proposicional, as leis de T. da implicação material e da equivalência material são as seguintes: "Se p implica q e q implica r, então p implica r (isto é: [p z> q] [qDrblpD r]). Se p é equivalente a q e q é equivalente a r, então p é equivalente a r (isto é: [p = q] [q = r] ([p = r]) (v. A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, I, § 48 etc). TRANSMIGRAÇÃO. V. METEMPSICOSE. TRANSMUTAÇÃO DE VALORES (f r. Trans-mutation des valeurs; ai. Umwertung aller Wer-te-, it. Trasmutazione dei valorí). Frase famosa com que Nietzsche resumiu a finalidade de sua filosofia: "Inversão de todos os valores, eis minha fórmula para um ato de supremo reconhecimento de si mesma por parte da humanidade, ato que em mim tornou-se carne e gênio. Meu destino exige que eu seja o primeiro homem honesto, que me sinta em oposição às mentiras de vários milênios" (Ecce homo, § 4). A inversão de valores consiste em substituir a tábua tradicional de valores, que se baseia na renúncia à vida, pelos novos valores oriundos da aceitação entusiástica (dionisíaca) da vida, mesmo em seus aspectos mais cruéis (Ge-nealogie der Moral, I, § 10; Die froeliche Wissenschafte, § 344 etc.) (v. VALOR). TRANSNATURAL(fr. Transnaturel; it. Trans-naturalé). Termo proposto por M. Blondel para indicar a situação do homem, que está posto entre a natureza e a supranatureza e durante a vida mortal está destinado a preparar-se para a vida eterna (Histoire et dogme, 1904, p. 68). TRANSOBJETIVO (ai. Transobjektiv- it. Transobbiettivo). Termo usado por N. Hartmann para indicar a parte da realidade que fica além dos limites do conhecido, portanto além do objeto de conhecimento (Metaphysik der Erkennt-nis, 2a ed., 1925, p. 50). TRANSPARÊNCIA (ai. Durchsichtigkeii). Assim Heidegger chamou a intuição que o ser-aí tem de si mesmo: "Existindo, o ser-aí tem a visão de si só à medida que se faz, de modo originário, transparente em seu ser no mundo e em seu ser com os outros momentos constitutivos da sua existência" (Sein undZeit, % 31). TRANSPATIA (in. Transpathy). Termo usado por escritores ingleses para indicar o contágio emotivo ou a fusão emotiva, que difere da simpatia (v.). TRANSPOSIÇÃO (in. Transposition; fr. Transposition-, ai. Transposition; it. Trasposizio-né). É assim chamado o teorema do cálculo proposicional, segundo o qual de "se p, então q" pode-se inferir "não q, então não p". TRANSRACIONALISMO (in. Transratio-nalism-, fr. Transrationalisme, ai. Transrationa-lismus, it. Transrazionalismo). Termo usado por A. Cournot para indicar a disposição natural do homem a crer no sobrenatural, no misterioso ou, em geral, no que está além da razão (Ma-térialisme, vitalisme, rationalisme, 1875, p. 385). TRANSUBJETIVO (in. Transubjective, ai. Transsubjektiv; it. Transoggettivó). O mesmo que Transcendente (v). TRANSUBSTANCIAÇÃO (lat. Transustan-tiaticr, in. Transubstantiation-, fr. Transubstan-tiation-, it. Transustanziazioné). Interpretação do sacramento do altar, segundo a qual a substância do pão e do vinho se transforma na substância do corpo ou do sangue de Cristo e, portanto, seus acidentes ficam sem substância. Essa é a interpretação de S. Tomás (S. Th., III, q. 77, a. 1), que foi aceita pelo Concilio de Trento. A interpretação alternativa, aceita pela Reforma, é a da consubstanciação (v.). TRIÂDICO (in. Triadic; fr. Triadique, ai. Triadisch; it. Triadicò). A divisão T. gozou freqüentemente de certo privilégio em filosofia. Sem falar da perfeição que os antigos pitagó-ricos atribuíam ao número três, Plotino reconheceu três fases da emanação, portanto três hipóstases da divindade, o Uno, o Logos e a Alma (Enn., II, 9, D. Mas foi principalmente Proclo quem privilegiou o procedimento T., discernindo três fases em todo e qualquer processo (ou emanação): Ia aquilo que procede permanece semelhante a si mesmo; 2a diferencia-se de si mesmo; 3a retorna para si mesmo TRIADISMO 975 TRINDADE (Inst. tbeol., 31). Sobre essas três fases da emanação Hegel moldou suas três fases da sua dialética, que consistem respectivamente: 1* na identidade de um conceito consigo mesmo; 2 a na contradição ou na alienação do conceito em relação a si mesmo; 3a na conciliação e na unidade das duas primeiras fases (v. Ene, §§ 79-82). Segundo essa divisão T., Hegel interpretou tanto a lógica quanto a natureza e o espírito (Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, II, pp. 340 ss.). Embora Hegel atribua a Kant q mérito dessa triadicidade dos processos racionais e — portanto — de toda a realidade (Ibid., p. 344), a justificação de Kant para o fato de suas "divisões em filosofia pura serem quase sempre T." é completamente diferente e provém da lógica. Kant disse: "Se for necessário fazer uma divisão apriori, esta poderá ser: analítica, segundo o princípio de contradição, e então será feita sempre em duas partes (quodlibet ens est aut A aut non A); ou sintética, e nesse caso deverá derivar de conceitos apriori (...) e conterá (1Q) a condição, (2a) um condicionado e (3B) o conceito que nasce da união da condição com o condicionado, acabando assim por ser necessariamente uma tricotomia" (Crít. do Juízo, Intr., Nota final). TRIADISMO (in. Triadism; fr. Triadisme, ai. Trialismus, it. Triadismo ou Trialismó). Doutrina de origem estóica que considera o homem formado por três princípios: alma, corpo e pneuma ou espírito; é repetida nas epístolas de S. Paulo (v. PNEUMA). TRIBUNAL (in. Tribunal; fr. Tribunal; ai. Gerichtshof; it. Tribunalé). Esse termo foi usado por Kant para definir a finalidade da filosofia crítica: "A crítica da razão pura pode ser considerada o verdadeiro T. para todas as suas controvérsias, porque esta não se imiscui nas controvérsias que se referem imediatamente aos objetos, mas é instituída para determinar e para julgar os direitos da razão em geral, segundo os princípios da sua primeira instituição" (Crít. R. Pura, Doutr. do mét., cap. I, seç. 2). TRICOTOMIA (in. Trichotomy, fr. Tricho-tomie, ai. Trichotomie, it. Tricotomia). Divisão em três partes, elementos ou classes. Esse termo é usado quase exclusivamente para a doutrina da tríplice composição da alma, que se chama também triadismo. A teoria lógica da T. foi elaborada no séc. XVII, com a advertência de que é preciso reduzir a T. à dicotomia sempre que dois membros da dicotomia tenham uma noção em comum. Pode-se dizer que o triângulo pode ser retân-gulo ou obliquângulo, podendo-se ainda dividir o triângulo obliquângulo em obtusângulo e acutângulo (v. JUNGIUS, Lógica hamburgensis, 1638, IV, 7, 13). TRILEMA (in. Trilemma; fr. Trilemme; ai. Trilemma; it. Trilemma). Os lógicos do séc. XIX deram esse nome ao esquema de inferên-cia que tenha como premissa maior uma tricotomia, em vez da dicotomia do dilema (v.): "Cada coisa é ou P ou Q ou M; S não é nem Aí nem Q; logo, Sé P". No mesmo sentido, fala-se de tetralema ou de polilema, mas trata-se de esquemas de inferência pouquíssimo aplicados. TRINDADE (in. Trinity; fr. Trinité; ai. Dreifaltigkeit; it. Trinitã). Um dos dogmas fundamentais do cristianismo, que afirma a unidade da substância divina na T. das pessoas. A fórmula desse dogma foi fixada pelo Concilio de Nicéia em 325, e em sua formulação desempenharam papéis importantes a obra do bispo Ata-násio e a polêmica contra a doutrina de Ário, que tendia a acentuar a subordinação do Filho em relação ao Pai e praticamente ignorava a terceira pessoa da Trindade. A explicação clássica desse dogma [assim como do dogma da en-camação(v.)] foi dada por S. Tomás, por meio do conceito da relação. A relação, por um lado, constitui as pessoas divinas na sua distinção e, por outro, identifica-se com a mesma e única essência divina. As pessoas divinas são constituídas por suas relações de origem: o Pai, pela paternidade (ou seja, pela relação com o Filho); o Filho, pela filiação ou geração (ou seja, pela relação com o Pai); o Espírito, pelo amor (ou seja, pela relação recíproca de Pai e Filho). Essas relações em Deus não são acidentais (nada existe de acidental em Deus) mas reais; subsistem realmente na substância divina. Portanto, a substância divina em sua unidade, ao implicar as relações, implica as diferenças das pessoas (S. Th., I, q. 27-32 e esp. q. 29, a. 4). Esta interpretação basta, segundo S. Tomás, para mostrar que "o que a fé revela não é impossível". Do ponto de vista lógico, implica uma doutrina historicamente importante sobre a natureza das relações (v. RELAÇÃO). No último período da escolástica, porém, o dogma da T. recebeu duas interpretações: foi considerado "verdade prática", por Duns Scot (Op. Ox., Prol. q. 4, nQ 31), ou algo que está além de qualquer possibilidade de entendimento, como fez Ockham (In Sent., I. d. 30, q. 1 B). TRINITARISMO 976 TUTIOMSMO O dogma da T. também foi aceito pelas igrejas protestantes, com exceção da tendência representada pelo socinianismo (v.), que retomou as doutrinas de tipo ariano, comuns nos primeiros séculos do cristianismo. Essas doutrinas foram retomadas pelos chamados unitários, que constituíram um movimento religioso difundido principalmente na Inglaterra e na América do Norte a partir da segunda metade do séc. XVIII (v. UNITARISMO). TRINITARISMO (in. Trinitarianism; fr. Trinité, it. Trinitarismó). Doutrina oficial da Igreja cristã sobre a natureza de Deus como uma única substância em três pessoas iguais e distintas (v. TRINDADE). TRITEÍSMO (in. Tritheism; fr. Trithéisme, ai. Tritheismus; it. Triteismó). Com este termo designa-se comumente a heresia trinitária que consiste em admitir três substâncias divinas relativamente independentes. Essa heresia foi sustentada no sec. V por João Filopono e no séc. XI por Roscelin, que, segundo relato de S. Anselmo, afirmava que "as três pessoas da trindade são três realidades, como três anjos e três almas, embora sejam absolutamente idênticas em vontade e potência" (Dejide trinitatis, 3). Gilbert de Ia Porrée também se inclinava ao T., chamando de deidadea única essência divina, da qual participariam as três pessoas diferentes; é provável que Gioacchino Da Fiore (séc. XII) adotasse esse ponto de vista. Trata-se de uma doutrina constantemente condenada pela Igreja. TRÍVIO. V. CULTURA, 1. TROPOS (gr. Tpórcoi; lat. Tropes; fr. Tropes; ai. Tropen; it. Tropí). Assim eram chamados os modos ou os caminhos indicados pelos cép-ticos para chegar à suspensão do assentimen-to. Estes T. consistem na enunciação das situações das quais resultem oposição de opiniões ou mesmo contradições. Enesidemo de Cnossos enumerava dez deles, que são os seguintes: ls a diferença entre os animais, que estabelece uma diferença entre suas representações; 2 S a diferença entre os homens, pelo mesmo motivo; 32 a diferença entre as sensações; 4a a diferença entre as circunstâncias, que também influem na diversidade das opiniões; 5a a diferença das posições e dos intervalos; 6a a diferença das misturas; 7~ a diferença entre os objetos simples e os objetos compostos; 8e a diferença entre as relações, visto que as opiniões mudam segundo as relações das coisas com o sujeito judicante; 9a a diferença entre a freqüência ou a raridade dos encontros entre o sujeito judicante e as coisas; 10a a diferença da educação, dos costumes, das leis, etc. {Pirr. hyp., I, 36-163). Por sua vez, Agripa acrescentava outros cinco tropos, como objeções contra a possibilidade de atingir a verdade: Ia a discordância das opiniões; 2e o processo ao infinito em que se incide quando sé quer aduzir uma prova, já que esta prova precisa de outra, e esta outra de uma mais uma, e assim por diante; 3 Q a relação entre o sujeito e o objeto, que leva à variação da aparência do objeto; 4a a hipótese, que é o recurso a uma assunção sem demonstração, portanto insustentável; 59 o dialeto, ou círculo vicioso, quando se assume como princípio de prova exatamente o que se deve provar (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 164-69). Finalmente, Sexto Empírico enuncia outros dois tropos, que são argumentos segundo os quais não se pode compreender uma coisa nem com base em si mesma nem com base em outra coisa {Pirr. hyp., I, 178-79). TRUÍSMO (in. Truism; fr. Truisme, it. Truis-mo). Uma verdade evidente mas óbvia, portanto pouco importante ou pouco útil. Tanto o termo quanto a noção são próprios da língua inglesa. TUTIORISMO. V. PROBABILISMO. u U. Na lógica tradicional, símbolo da proposição modal que consiste na negação do modo e na negação da proposição: p. ex., "não é possível que não p' (v. ARNAULD, Log., II, 8) (v. PURPÚREA). UBI. Com esse advérbio latino (onde) Duns Scot indicou a determinação qualitativa que o corpo em movimento adquire a cada instante do seu movimento. O U. não é o lugar (v.) porque o lugar de um corpo não é um atributo dele, mas está nos corpos que o cercam; é semelhante ao calor, que é adquirido pelo corpo que se aquece (Quodl, q. II a. 1). Essa noção foi criticada por Pedro Auréolo (In Sent. I, d. 17, a. 4), por Ockham (In Sent., II, q. 9 c) e por Gre-gório de Rimini (In Sent., II, d. 6, q. I, a. 2), que reduziram o movimento do corpo que se move. Também é lembrada, com desprezo, por Locke (Ensaio, II, 23, 21). UBICAÇÃO. V. LUGAR. UBIQÜIDADE (lat. Ubiquitas; in. Ubiquity, fr. Ubiquité, ai. Allgegenwart; it. Ubiquitã). O modo de ser no espaço que os escolásticos do séc. XIV chamavam de definitivo (definítivus); consiste em estar tudo em todo o espaço, e tudo em qualquer parte do espaço. Esse modo de ser era distinguido do chamado circunscritivo(circums-criptivus), que consiste em estar tudo em todo o espaço (ocupado) e parte em cada parte dele (v., para esta distinção, OCKHAM, In Sent., IV, q. 4; Quodl., VII, q. 19; Decorp. Christi, 6). O conceito de existência espacial definitiva servia para entender a presença do corpo de Cristo no pão e a onipresença de Deus no mundo. Quanto a esta última, Leibniz (lembrando os dois primeiros modos, que chama de ubietés), fala de uma ubieté repletiva (Nouv. ess., II, 23, 21). UCRONIA (fr. Uchroniê). É o titulo de um romance de Charles Renouvier (Uchroniê, 1'utopiedans Vhistoire, 1876), em que o autor se propõe reconstruir "a história apócrifa do desenvolvimento da civilização européia, como poderia ter sido, mas não foi". A finalidade do romance é mostrar a ausência da necessidade em história (v. HISTÓRIA). ÚLTIMO (gr. tò êaxa-cov; in Ultimate, fr. Ultime, ai. Letzt; it. Ultimo). Um dos dois extremos de uma série, mais precisamente aquele em que a série acaba. Como é possível considerar que uma mesma série termine em um dos extremos no que se refere a determinados objetivos (ou pontos de vista) ou no outro extremo no que se refere a outros objetivos (ou pontos de vista), a palavra U. muitas vezes é ambivalente, e as mesmas coisas são declaradas U. e primeiras. É o que acontece com freqüência na terminologia aristotélica: nela. o motor imóvel é qualificado de U. por ser o primeiro da série dos movimentos (Fís., VIII, 2, 244 b 4); no entanto, é chamada de U., também, a espécie mais próxima do indivíduo (Met., III, 3, 998 b 15). Aristóteles também chama de U. um sujeito como a água ou o ar (Ibid., V, 6, 1016 a 23), mas qualifica a substância de U. substrato (Ibid., V, 8, 1017 b 24) e considera o princípio de contradição "uma opinião U." (Ibid., IV, 3, 1005 b 33). Também chama de U. o fim (Ibid., V, 16, 1021 b 25). Todos estes usos, ou outros bastante semelhantes a estes, permaneceram na tradição filosófica. Na Idade Média a bem-aventurança foi chamada de "fim U.", porquanto é o fim além do qual não se pode prosseguir (cf. S. TOMÁS, S. Th., II, I, q. I, a. 4). Hoje se fala de "problemas U." ou de "razões U." no mesmo sentido em que se poderia falar de problemas primeiros ou máximos e de razões primeiras: isso demonstra ainda uma vez que o termo pertence UM, UNO 978 UNIÃO principalmente à retórica do discurso filosófico e tem pouco valor conceituai (v. EXTREMO). UM, UNO (gr. eíç; lat. Unus, in. One, fr. Un; ai. Ein; it. Uno). 1. O elemento de um conjunto ou de uma classe qualquer, como quando se diz "O homem é um animal". Nesse aspecto, diz-se que uma relação é de muitos para U, se para cada x do seu campo houver um só y que tenha relação com x. Fala-se que a relação é de U.para muitos se para cada y dominante inverso do seu campo houver um único x que tenha relação com y. Afirma-se finalmente que a relação é de U. para U. se ela e o seu inverso forem de um para muitos e de muitos para um. Nesse caso fala-se também de uma correspondência de U. para U. (A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, pp. 556, 564). 2. O que é único, como quando se diz "Deus é U." (v. ÚNICO). 3. A unidade no sentido próprio do termo (v. UNIDADE). 4. O número U., ou seja, o primeiro termo da série natural dos números ou, em geral, o primeiro termo de uma série qualquer. 5. O U. hipostático ou teológico: Deus ou o Bem como primeiro termo do processo de emanação e último termo do processo do retorno. Nesse sentido Heráclito dizia "de todas as coisas o U., e do U. todas as coisas" (Fr. 10 DIELS; cf. EMPÉDOCLES, Fr. 17, I). Mas foram principalmente os neoplatônicos que usaram esse termo para designar a divindade ou o bem, que é transcendente em relação ao ser e à inteligência, portanto, está além de qualquer multiplicidade. Plotino dizia: "É preciso que antes de todas as coisas haja alguma coisa simples e diferente de todas as coisas que vêm depois dela; ela é em si mesma, não se mistura com as que a seguem, mas pode estar de algum modo presente nas outras: esse é o {/., não alguma coisa que seja una, mas simplesmente o U" (Enn., V, 4, I). Assim, a unidade do primeiro princípio deve ser entendida tão rigorosamente que o próprio nome "U." parece impróprio a Plotino. "Este nome U talvez só contenha a exclusão da multiplicidade. Os pitagóricos os designavam simbolicamente como Apoio, para indicar a negação de muitos. (...) Pode-se usar essa palavra para começar a indagação com uma palavra que designe a máxima simplicidade, mas afinal é preciso negar esse mesmo atributo, que não merece mais que os outros designar a natureza que não pode ser atingida pelo ouvido nem compreendida por quem a denomina, mas apenas por quem a contempla" (Ibid., V, 5, 6). Essas especulações sobre o U. foram freqüentemente retomadas pela teologia negativa e pelo pan-teísmo. Em Plotino e nos outros, são acompanhadas pela exaltação da função da unidade em todo o domínio do conhecer e do ser (v. UNIDADE). Foi o que aconteceu nas especulações platônicas do Renascimento e também no Romantismo, que assumiu o Uno-Todo como princípio do mundo coincidente com o próprio mundo, o que se vê de modo mais explícito na filosofia da natureza de Schelling (Werke. I, III, p. 276). Hegel, por sua vez, que via concreção na unidade (v.), via na U. abstração ou imediação e insistia na relação do U. com muitos, ilustrando-a de modo fantasioso, com o uso das noções, arbitrariamente, manipuladas, de atarraco e repulsão (Wissenschaft der Logik, I, I, seç. I, cap. III, B; trad. it., pp. 181 ss.). O conceito de U. nesse sentido é usado com freqüência tanto pelas doutrinas teístas quanto pelas panteístas. Entre os que o utilizaram de modo mais amplo e rigoroso, deve-se lembrar Piero Martinetti (La liberta, 1928, p. 490; Ragione e fede, 1942, 402), embora na especulação de Martinetti se sinta o efeito da separação radical entre Deus, como U. absoluto, e realidade empírica e multíplice, em que insistira Africano Spir (Denken und Wirklichkeit, 1873). UNHEIMLICH (Heidegger). Desambienta-do, estranho. Segundo Heidegger, esse sentimento é um dos aspectos da angústia (v.). Sentir-se estranho, desambientado, significa "não se sentir em casa" no mundo; do ponto de vista ontológico-existencial, esse é o "fenômeno mais originário" (Sein und Ziet, § 40). UNIÃO (in. Union; ir. Union; ai. Verhíndung; it. Unione). Qualquer forma de relação que permita considerar (a qualquer título) o conjunto dos termos como um todo. Esta é a definição dada por Leibniz (De arte combinatoria, 1666; Op., ed. Erdmann, p. 8). Um todo não é necessariamente uma unidade ou uma totalidade (v. TODO), e os graus de coesão entre suas partes podem ser muito diferentes. Assim também os graus da U. podem ser muito diferentes. Kant dividiu a U. em composição (compositio) e nexo (nexus). A primeira é uma síntese não necessária; não liga necessariamente os seus termos; para Kant, pertencia à matemática e se dividia em agregações, que dizem respeito às quantidades extensivas, e em coalizão, que diz respeito às quantidades in- ÚNICO 979 UNIDADE tensivas. O nexo, ao contrário, é uma síntese necessária; p. ex. a síntese do acidente com a substância e do efeito com a causa. Pode subsistir mesmo entre termos heterogêneos; pode ser* física (nexo entre os fenômenos) ou metafísica (U. dos fenômenos na faculdade cognitiva a priori) (Crít. R. Pura, Analítica, livro II, cap. 2, seç. 3, n. [B 202]). Essa diferença de significado encontra-se tanto no uso corrente do termo quanto no filosófico e no teológico. A teologia fala de uma "U. hipostática" (substancial ou necessária) entre a natureza humana e a natureza divina na pessoa do Cristo (v. ENCARNAÇÃO), mas fala também de U. mística da alma com Deus, que não é nem substancial nem necessária. A filosofia fala de U. entre matéria e forma, e entre substância e acidente, que são necessárias, e fala ainda de U. entre alma e corpo, que não é necessária (cf. LEIBNIZ, Op., Erdmann, p. 127). Na linguagem comum estão ultrapassados alguns desses usos; além disso se fala, p. ex., de "U. carnal"; ou de U. no sentido de concórdia, de solidariedade ou de associação para a defesa de interesses comuns (U. operária, etc). ÚNICO (lat. Unicus; in. Unique, fr. Unique, ai. Einzig; it. Único). 1. O que não é a espécie de um gênero, entendendo-se por gênero uma determinação de que possam participar várias espécies. Nesse sentido só Deus é U. (v. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 3, a. 5). 2. O que está só na sua espécie, isto é, o único indivíduo pertencente a determinada espécie. Nesse sentido, na metafísica tradicional podem-se dizer que os anjos são U., pois é impossível existirem dois da mesma espécie, porquanto são desprovidos de matéria, que distingue os pertencentes a uma mesma espécie (cf. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 50, a. 4). Stirner entendia do seguinte modo a unicidade: "Eu, o U., sou o homem. A pergunta 'o que é o homem?' Em 'oquê?' procurava-se o conceito; em 'quem?', a questão resolvida, porque a resposta é dada por quem pergunta" (Der Einzige und sein Eigentum, 1845; trad. it., p. 270). O "oqué' é o uquem", a espécie é o indivíduo (v. ANAR-QUISMO). 3. O que não é substituível em seu valor ou em sua função. Nesse sentido, qualifica-se de U. uma pessoa ou uma obra de arte; em matemática, o valor de uma função. 4. O que não se repete ou não se repete de modo idêntico. Nesse sentido qualifica-se de U. o acontecimento histórico como tal (v. HISTÓRIA). 5. O que pode ser efetuado de um só modo; nesse sentido dizemos que uma operação é U.: p. ex., a decomposição de um número em fatores primos. UNIDADE (gr. u.ot>òcç; lat. Unitas; in. Unity, fr. Unité, ai. Einheit; it. Unita). 1. Em sentido próprio, o que é necessariamente uno, indivisível: ou no sentido de ser desprovido de partes ou de suas partes serem inseparáveis da totalidade e inseparáveis entre si. Este foi o conceito elaborado por Aristóteles, que distinguiu o que é uno por si, ou essencialmente, do que é uno por acidente (Met., V, 6, 1015 b 16); definiu a U. (uotxxç) como alguma coisa indivisível, absoluta ou quantitativamente (Ibid., 1016 b 24), e distingiu quatro espécies fundamentais de U.: a) a das totalidades contínuas, como p. ex. os organismos; b) a das formas ou substâncias; c) a numérica; d) a definitória, ou seja, a U. de coisas que têm a mesma definição (Ibid, X, 1052 a 15-1052 b 15; v. V, 6, 1016 a I-1016 a 35). Essas determinações aristotélicas não são perfeitamente coerentes porque, ao mesmo tempo que definem a U. como indivisibilidade, incluem entre suas formas a continuidade que o próprio Aristóteles define como a divisibilidade em partes por sua vez divisíveis (v. CONTÍNUO). Seu significado, porém, está bem claro. A U., ou seja, o uno por si, é, por um lado, a identidade da forma ou da substância consigo mesma; por outro, a identidade dos objetos que têm a mesma definição (identidade dos indiscerníveis) e por outro ainda é o elemento ou o princípio do número. No que diz respeito ao número, esse conceito de U. durou muito tempo (v. NÚMERO), mas das outras duas formas distinguidas por Aristóteles, a U. formal ou substancial foi a mais freqüentemente assumida como conceito ou ideal de U. na tradição filosófica. Os neoplatô-nicos ilustraram e exaltaram a U. como condição necessária do ser, negligenciando a distinção aristotélica entre a U., que é necessária, e o uno, que não é. Para Plotino, a U. é sempre necessária: "Separados do um, os seres não existem mais. O exército, o coro, o rebanho não existiriam se não fossem um exército, um coro. um rebanho. A casa e a nave não são se não têm unidade, porque a casa é uma casa e a nave é uma nave, e, se perdessem a unidade, não seriam nem casa nem nave. Nem as grande- UNIDADE 980 UNIFORME zas contínuas existiriam se não tivessem unidade. Divida-se uma grandeza: perdendo a U., seu ser se transforma. O mesmo acontece para os corpos das plantas e dos animais, que, se perdem a U. e se dividem em muitas partes, perdem o ser que possuíam e não são mais o que eram; transformam-se em outros seres que, em sendo, são um ser cada um {Enn., VI, 9,1). Essas considerações foram decisivas para a história ulterior do conceito de unidade. Repetidas por Proclo {Inst. theoi, 21, etc.) e por Dionísio, o Areopagita {De div. nom., XIII, C-D), passaram para a filosofia medieval (v. S. TOMÁS, S. Th., I, q. II, a. I) e foram retomadas por Nicolau de Cusa {Dedocta ignor, I, 5), que identificou a U. absoluta com o máximo absoluto e ambas as coisas com Deus, inspirando as especulações correspondentes de G. Bruno sobre o assunto. A substância das coisas consiste na U. {De Ia causa, princípio et uno, V, em Op., ed. Guzzo e Ameno, p. 409). Locke foi o primeiro a polemizar o conceito de U. substancial. Afirma que "a U. de substância" não permite entender as várias espécies de identidades, como p. ex. a identidade da substância do homem, da pessoa, etc, e que tais identidades devem ser esclarecidas ou explicadas independentemente umas das outras {Ensaio, II, 27, 8). Mas já Leibniz voltava à defesa da identidade substancial, "única U. verdadeira e real" {Nouv. ess., II, 27, 4). Wolff redefiniu a U. no sentido tradicional, entendendo-a como "a inseparabilidade das coisas por meio das quais o ente é determinado" {Ont., § 328); segundo Wolff, determinação do ente nada mais é que a razão ou a forma do ente {Ibid., § 116). O papel determinante que Kant atribui à síntese (v.), em todos os graus e formas do conhecimento e, em geral, da atividade humana, orienta-se pelo mesmo privilégio concedido à noção de unidade. Para Kant, U. é sinônimo de síntese ou de nexo necessário. Seu caráter específico é, em outros termos, a inseparabilidade do que é unificado ou sintetizado. Como fundamento de todos os graus ou formas de U., que constituem as formas e os graus do conhecimento, Kant põe "a U. objetiva da percepção", que se manifesta com o uso da cópula é, em sentido objetivo. Segundo Kant, essa cópula designa "a U. necessária" do sujeito com o predicado e a relação dessa U. necessária com a apercepção originária. Isso não quer dizer que as representações ligadas pela cópula sejam "necessariamente subordinadas uma à outra", mas sim que elas são "subordinadas uma à outra por meio da U. necessária da apercepção" {Crít. R. Pura, § 19). Como se vê, o uso kantiano do conceito de U. é, rigorosamente, tradicional: Kant transfere para o eu penso, ou "U. necessária da apercepção", o fundamento da U. necessária dos objetos, mas a noção mesma de U. necessária" é aristotélica. Nem mesmo Hegel se afasta dessa noção, lamentando que ela pudesse ser entendida como "reflexão subjetiva" e afirmando que deveria, ao contrário, ser entendida no sentido de "não-separação e inseparabilidade". Mas este é justamente o conceito aristotélico de U. {Wissenschaft der Logik, I, livro I, seç. I, cap. I, n. 2). O uso desse termo, presente em toda a obra de Hegel para indicar o terceiro momento da dialética, o da U. ou identidade dos opostos, conforma-se perfeitamente a esse conceito. No uso filosófico corrente, esse termo nem sempre conserva o significado próprio de indi-visibilidade ou inseparabilidade, ou seja, de nexo necessário. Contudo, esse significado está presente quando se fala da U. de Deus, do mundo, da natureza, ou da história, e mesmo quando se fala de U. idéias ou normativas, como "U. da humanidade" ou "U. da família", etc. 2. Em correlação com o significado acima, os filósofos chamam de U. os elementos constitutivos ou os princípios gerais do ser. Sabemos que, nesse sentido, para os pitagóricos "a U. é o princípio de todas as coisas" (DIÓG. L., VIII, 25; J. STOBEO, Eci, I, 2, 58). No mesmo sentido, o neoplatonismo falou em Manadas ou de Énades (PROCLO, Inst. theol, 64) e Leibniz chamou de Manadas (v.) as substâncias espirituais que, segundo ele, seriam os elementos do mundo. Nesses usos, o termo conserva o significado de substância indivisível. 3. Em sentido genérico e impróprio o mesmo que um/uno (v.). UNIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS. V. ENCICLOPÉDIA. UNIFORME (gr. ÓLiO£i8f|Ç,; lat. Uniformis; in. Uniform; fr. Uniforme, ai. Einfórmig; it. Uniforme). 1. O que pertence à mesma espécie ou à mesma essência ou substância; esse era o sentido atribuído por Aristóteles {Met., V, 2, 1013 b 31; I, 9, 991 b 23; VII, 7, 1032a 24, etc.) e aceito por S. Tomás {In Sent, II, d. 48, q. I, a. 1). Assim, qualificam-se de U. os objetos que têm o mesmo gênero, a mesma espécie ou, em geral, a mesma natureza. UNITARISMO 981 UNIVERSAIS, DISPUTA DOS 2. O que permanece constante, imutável ou pelo menos relativamente constante e imutável. Nesse sentido fala-se da uniformidade das leis da natureza (v. INDUÇÃO). 3. O que apresenta analogias ou semelhanças parciais, evidenciadas pela abstração preci-siva, e é suscetível de previsão. Nesse sentido, fala-se de uniformidade da natureza ou da uniformidade da história ou do mundo humano e social. Peirce ilustrou a uniformidade da seguinte maneira: "Se escolhermos muitos objetos, seguindo o princípio de que eles devem pertencer a determinada classe, e julgarmos que todos têm um caráter comum, perceberemos que, com grande freqüência, a classe inteira tem o mesmo caráter. Ou, se escolhermos muitos caracteres de uma coisa ao acaso e depois acharmos uma coisa que tem todos esses caracteres, geralmente percebemos que a segunda coisa é bastante semelhante à primeira" (Coll. Pap., 7.131). Como observa o próprio Peirce, uniformidade nesse sentido poderia ser encontrada mesmo num mundo em que tudo ocorresse ao acaso (Ibid., 7.136). São essas as uniformidades de que se valem as disciplinas científicas, tanto as naturais quanto as sociais, assim como o senso comum. O léxico de uma linguagem qualquer nada mais é que a expressão de uniformidades desse tipo. A repetibili-dade é o caráter fundamental da uniformidade nesse sentido. 4. O que está em conformidade com uma ordem, ou seja, com uma regra ou uma lei qualquer. Nesse sentido, são qualificados de U. os fenômenos naturais que obedecem a leis, mas na realidade essa espécie de uniformidade e a precedente são a mesma coisa, visto que uma lei científica nada mais é que uma uniformidade no sentido 3. Isso foi evidenciado por J. Stuart Mill (System of Logic, III, IV, I) (v. REGULARIDADE). UNITARISMO (in. Unitarianism; fr. Unita-risme, ai. Unitarismus, Unitismus, it. Unitarismó). 1. Corrente religiosa que defende a unidade de Deus, em oposição à fórmula trinitária do cristianismo. Embora se ligue a antigas heresias religiosas, o socinianismo (v.) foi a primeira forma moderna de U., constituindo depois a corrente religiosa mais tolerante e liberal do mundo moderno. Desenvolveu-se quase exclusivamente na Inglaterra e na América do Norte. Na Inglaterra, a Associação Unitarista foi criada em 1825, e dela deriva o nome assumido por essa corrente mesmo fora da associação ou em numerosas outras associações da Inglaterra e da América do Norte. V. W. E. CHANMNG, Works, 1886; Unitarian Christianity and Other Essays, ed. I. H. Barlett, 1957; A. A. BOWMAN, TheAbsur-dity of Christianity and Other Essays, ed. C. W. Hendel, 1958. 2. Em alemão, especialmente, esse termo eqüivale a panteísmo (v.). Fichte diz: "Se perguntássemos qual o caráter da teoria da ciência no que se refere a unitarismó (ev Kod Ttõv) e dualismo, a resposta seria: ela é unitarismó em seu aspecto ideal por saber que, como fundamento de todo o saber, encontra-se o eterno Uno, que está além do saber; e é dualismo no aspecto real, ao pôr o saber como real" (Wissenschaftslehre. 1801, § 32, em Werke, II, p. 89). UNIVERSAIS, DISPUTA DOS (in. Contro-versy about universais; fr. Querelle des univer-saux, ai. Universalienstreit; it. Disputa degli universali). Essa expressão designa a disputa sobre o status ontológico dos U. (gêneros e espécies), que começou na Escolástica do séc. XI e caracterizou toda a filosofia medieval, continuando depois, com formas pouco diferentes, na filosofia moderna. Essa disputa foi motivada por um trecho da Isagoge (Introdução) de Porfírio às Categorias de Aristóteles e pelos comentários de Boécio a ela relativos. O trecho de Porfírio é o seguinte: "Dos gêneros e das espécies não direi aqui se subsistem ou se são apenas postos no intelecto, nem — caso subsistam — se são corpóreos ou incorpóreos, se separados das coisas sensíveis ou situados nas coisas, expressando seus caracteres comuns" (Isag., I). Das alternativas indicadas por Porfírio nesse trecho, apenas uma não se encontra na história da disputa: aquela segundo a qual os U. seriam realidades corpóreas. Em compensação, uma alternativa que Porfírio não previra verificou-se historicamente, pelo menos segundo dizem: o U. não existe nem no intelecto e é apenas um nome, um flatus voeis. Essa é a solução atribuída a Roscelin por S. Anselmo (Defide Trinitatis, 2) e por João de Salisbury (Metal, II 13; Policrat., VII, 12). As soluções dadas a esses problemas na Escolástica e depois dela foram muito numerosas, e muitas vezes diferem por ninharias. Realismo (v.) e nominalismo (v.) são as soluções fundamentais, mas Ockham, na refutação sistemática que quis fazer ao realismo, enumerava seis formas fundamentais deste (In Sent., I, d. 2. q. 4-8; UNTVBERSAIS, DISPUTA DOS 982 UNIVERSAL Quodl, V, q. 10-14; Summa log., I, 15-17; v. ABBAGNANO, G. de Ockbam, II, § 8-II). Mas o fundamental para entender tanto a origem histórica da disputa quanto o alcance permanente que ela pode ter é que suas duas soluções fundamentais, realismo e nominalis-mo, correspondem às duas tendências fundamentais da lógica antiga e medieval, a platônico-aristotélica e a estóica. Essas duas tendências correspondem à lógica antiga e à lógica moderna, nomes medievais daquilo que mais tarde foi chamado de formalismo e de terminismo (v. TERMINISMO). A primeira dessas correntes defendia as doutrinas lógicas tradicionais; a segunda, a doutrina da suposição (v.) e os raciocínios antinômicos. Os tratados lógicos da Idade Média justapõem os dois troncos doutrinários, mas a inconciliabilidade e o antagonismo deles se manifesta na disputa dos U., que denuncia a presença ativa, na Escolástica, de uma tradição lógica antiaristotélica, que é a estóica, haurida nas obras de Boécio e de Cícero. Realismo e nominalismo constituem, portanto, as duas soluções típicas e iniciais do problema. Para o realismo, isto é, para a tradição lógica platônico-aristotélica, o U. é, além de conceptus mentis, a essência necessária ou substância das coisas. Para o nominalismo, ou seja, para a tradição estoicizante, o U. é um signo das coisas. O realismo e o nominalismo medievais constituem, assim, as duas alternativas sempre presentes na teoria do conceito (v. CONCEITO). Mais especificamente, no que diz respeito ao realismo, é possível distinguir três formas fundamentais, que podem ser chamadas de platonizante, aristotélica e semi-aristotélica. A forma platonizante do realismo é atribuída por Abelardo ao seu mestre Guilherme de Cham-peaux (séc. XI): o U. seria a substância, e os indivíduos constituiriam acidentes dessa substância (ABELARDO, CEuvres, ed. Cousin, p. 513). A solução aristotélica é a mais comumente defendida na escolástica, sendo expressa por S. Tomás, para quem o U. está in re como forma ou substância das coisas, post rem como conceito no intelecto e ante rem na mente divina como Idéia ou modelo das coisas criadas {In Sent., II, d. 3, q. 2, a. 2). Esses três U. perfazem apenas um, vale dizer, identificam-se com a essência, a substância ou a forma da coisa, que existe ab aeterno no intelecto divino e que o intelecto humano abstrai da coisa (S. Th., I, q. 85, a. I). Finalmente, pode ser chamada de semi-aristotélica a solução encontrada por Duns Scot, segundo o qual o verdadeiro U. existe somente no intelecto, enquanto nas coisas existe uma natureza comum que se distingue formalmente da individualidade das coisas, e não numericamente (Op. Ox., II, d. 3, q. 6, n. 15). O caráter peculiar dessa solução está no princípio de distinção formal (v. DISTINÇÃO), que é uma das características da filosofia de Duns Scot. Por outro lado, o nominalismo é mais uniforme. Excetuando a mencionada tese de Roscelin (sobre a qual, de resto, não existem documentos convincentes), o nominalismo, de Abelardo a Ockham, sempre sustentou as mesmas teses fundamentais, a redução do U. à função lógica da predicabilidade, dividindo-se apenas no que diz respeito à atribuição ou não de realidade psíquica ao U. Ockham mostra-se indiferente a este último problema: nega, obviamente, que o U. seja uma species (v.), mas considera indiferente identificá-lo com o ato do intelecto ou negar que tenha uma realidade qualquer na alma {In Sent., I, d. 2, q. 8, E). Seu caráter fundamental é a função de signo, isto é, a suposição (v.). Esses foram os princípios fundamentais da lógica terminista depois de Ockham; noção análoga de U. encontra-se na teoria do conceito defendida pelo empirismo inglês a partir do séc. XVII: Locke, Berkeley e Hume (v. CONCEITO, 2). UNIVERSAL (gr. KOCGÓAOU; lat. Universalis; in. Universal; fr. Universel; ai. Allgemein; it. Universale). Esse termo teve dois significados principais: le significado objetivo, em virtude do qual indica uma determinação qualquer, que pode pertencer ou ser atribuída a várias coisas; 2° significado subjetivo, em virtude do qual indica a possibilidade de um juízo (que diga respeito ao verdadeiro e ao falso, ao belo e ao feio, ao bem e ao mal, etc.) ser válido para todos os seres racionais. 1Q O primeiro significado é o clássico; Aristóteles diz que Sócrates foi o descobridor do universal {Met., XIII, 4, 1078 b 28). Nesse sentido, o U. pode ser considerado no duplo aspecto ontológico e lógico. Ontologicamente, o U. é a forma, a idéia ou a essência que pode ser partilhada por várias coisas e que confere às coisas a natureza ou o caráter que têm em comum. O U. ontológico é a forma ou a espécie de Platão (v., p. ex., Parm., 132 a) ou a forma ou substância de Aristóteles: por isso, este afirma- UNIVERSAL 983 UNIVERSAL va que só existe ciência do U. {Dean., II, 5, 417 b 23). Logicamente, o U. é, segundo Aristóteles, "o que, por sua natureza, pode ser predicado de muitas coisas" (De int., 7, 17 a 39): definição que foi quase universalmente aceita na história da filosofia. Foi o U. nesse sentido que os lógicos medievais atribuíram o caráter de signo (v.) e a função de suposição (v.). Era este o U. que M. Nizolio interpretava como um todo coletivo ou multitudo rerum singularium, de modo que a preposição "o homem é animal" ou significaria "todos os homens são animais" (De verisprincipiis, I, 6); a isso Leibniz contestava que, ao contrário, se trata de um todo distri-butivo, e assim a proposição significa que este ou aquele homem, seja ele qual for, é animal (Op., ed. Erdmann, p. 70). Desse modo, nesse aspecto Leibniz reproduzia substancialmente a doutrina nominalista da suposição do U. (OCKHAM, Summa log, I, 70). Está claro que U., nesse sentido, não é senão outro nome para conceito, signo ou significado: por isso, os problemas a ele relacionados devem ser considerados sob esses verbetes. Por outro lado, o status ontológico do U. dava ensejo à chamada disputa sobre os U., que ocupou boa parte da filosofia medieval e de algum modo continuou e continua na filosofia moderna (v. UNIVERSAIS, DISPUTA DOS). Como dissemos, o U. no significado ontológico é a forma ou a substância das coisas: conceito que não é somente aristotélico e medieval. Locke também observada que o fundamento da universalidade das proposições só pode ser a substância, com o nexo necessário que ela implica entre suas determinações, e que onde falta o conhecimento da substância a universalidade não é rigorosa (Ensaio, IV, 6, 7). Analogamente, Kant observava que a universalidade empírica nunca é rigorosa ou verdadeira, e que a universalidade autêntica precisa estar fundada nas formas a priori do conhecimento, ou seja, nas formas que constituem as coisas como fenômenos (Crít. R. Pura, Intr., II ). Hegel, por sua vez, insistia na unidade do U. e do particular, que éoíí concreto, Idéia ou Conceito Real. Portanto, ao U. abstrato, que é contraposto ao particular e ao indivíduo, ele contrapunha o U. concreto, que é a essência ou a natureza positiva do particular (WissenschaftderLogik, II, livro III, seç. I, cap. I, A; trad. it., III, pp. 42 ss.), e considerava ser tarefa da filosofia conhecer o U. concreto: "E tarefa da filosofia demonstrar, contra o intelecto, que o verdadeiro, a Idéia, não consiste em generalidades vazias, mas em um U. que, em si mesmo, é o particular, o determinado" (Geschichte der Philosophie, ed. Glockner, I, p. 58). No mesmo sentido, Croce escrevia: "Se o conceito é U. transcendente em relação à representação singular, tomada na sua singularidade abstrata, por outro lado é imanen-te em todas as representações, portanto também na singular", identificando assim conceito com razão ou idéia (Lógica, 1920, p. 28). A "con-creção do U." de que falam os escritores idealistas nada mais é que o status ontológico atribuído ao U. pela metafísica tradicional. Ao U. ontológico ligam-se também alguns outros usos do termo universal. Assim, "história U." é a história que tem por objeto a forma ou a ordem global do mundo humano (v. HISTÓRIA). A "gravitação U." é uma força ou um princípio que rege a totalidade do mundo, e assim por diante. Nestes usos do termo o seu significado objetivo está unido ao seu alcance ontológico. 2S No segundo significa, U. é o que é ou deve ser válido para todos. O conceito de U. nesse sentido nasceu no domínio da análise dos sentimentos, especialmente dos sentimentos estéticos (v. GOSTO). Já Hume se propunha procurar uma regra do gosto, "por meio da qual possam ser harmonizados os vários sentimentos dos homens" (Essays, I, pp. 268 ss.), mas foi Kant que, além de usar esse tipo de universalidade no domínio da estética, estendeu-o para o domínio moral e elucidou suas características específicas, definindo-o como validade comum ou universalidade subjetiva. No que diz respeito à esfera estética, Kant via no juízo de gosto simplesmente "a necessidade objetiva de concordância do sentimento de cada um com o nosso próprio sentimento", e nesse sentido definia o belo como "um prazer necessário", no sentido de ser um prazer que todos devem sentir do mesmo modo (Crít. do Juízo, § 22). No domínio da ética, Kant afirmava que uma lei só é prática se for "válida para a vontade de todos os seres racionais" (Crít. R. Prática, § I), e considerava a universalidade subjetiva (possibilidade de uma máxima valer como lei para todos os seres racionais) o critério para julgar se uma máxima é ou não uma lei moral (Grundlegung der Metaphysik der Sitten, II). Mas ele também evidenciava a diferença entre essa universalidade subjetiva e a universalida- UNIVERSALISMO 984 UNÍVOCO e EQUÍVOCO de objetiva. Dizia: "Cada juízo objetivamente U. é sempre subjetivo; isso significa que, quando o juízo é válido para tudo que está compreendido em dado conceito, também é válido para qualquer um que represente um objeto segundo esse conceito". Todavia, o inverso nem sempre é verdadeiro, isto é, nem todo juízo que tem universalidade subjetiva ou validade comum também é objetivamente U.; esse é o caso da universalidade estética, que possui universalidade subjetiva, mas não objetiva (Crít. do Juízo, § 8). A partir de Kant, a universalidade subjetiva tornou-se lugar-comum em filosofia, tanto quanto a noção de validade (v.). Talvez com mais exatidão, essa espécie de U. é hoje indicada pelo termo intersubjetivo (v.). A referência à intersubjetividade constitui o significado desse termo em muitas expressões correntes, como "linguagem U.", "educação U.", "consenso U.", "amor U.", etc. Em outras expressões, esse termo pode ter tanto o significado subjetivo quanto o objetivo e lógico: p. ex., "gênio U.", que pode ser entendido como o gênio que todos devem reconhecer ou reconhecem, ou como o gênio que é gênio em relação a qualquer ramo do conhecimento. UNIVERSALISMO (in. Universalism; fr. Uni-versalisme, ai. Universalismus, it. Universalismo). 1. Em sentido teológico, doutrina de que Deus quer salvar todos os homens, não existindo, pois, predestinação à danação. É a doutrina sustentada, entre outros, por Leibniz, que nesse sentido fala da oposição entre "universalistas" e "particularistas" (Tbéod., I, § 80). 2. Em sentido ético, qualquer doutrina contrária ao individualismo que afirme a subordinação do indivíduo a uma comunidade qualquer (Estado, povo, nação, humanidade, etc). UNIVERSALIZAÇÃO. V. GENERALIZAÇÃO. UNIVERSO (gr. TO rtãv; lat. Universuni; in. Universe, fr. Univers; ai. Universum; it. Universo). 1. Um todo qualquer: p. ex., "U. do discurso", "U. das estrelas fixas" ou "U. visível". 2. O todo da natureza física, sem mencionar sua ordem. Este é o significado atribuído a esse termo por Aristóteles (Met., V, 26, 1024 a I) e pelos estóicos 0- STOBEO, ECL, I, 21, pp. 442 ss.). 3. O mesmo que mundo. Este uso prevalece entre os modernos (v. MUNDO; TOTALIDADE; TODO). UNIVERSO DO DISCURSO (in. Universe of discourse, fr. Univers du discours; it. Universo dei discorsó). Esta expressão foi introduzida por De Morgan (Formal Logic, 1847, p. 37) e divulgada por Boole (Laws of Thought, 1854, III, § 4) para indicar, em geral, "a extensão do campo em cujo interior estão todos os objetos do nosso discurso". Mais tarde e com maior precisão, esse termo passou a indicar, na álgebra da lógica, uma classe não vazia, da qual, e somente da qual, sejam extraídos todos os elementos com que são constituídas todas as classes sobre as quais o cálculo é feito. Daí se conclui facilmente que o U. do discurso é a soma lógica de todas as classes que podem ser formadas com tais elementos. É indicado com o símbolo "v" ou "1". Na interpretação proposicional, será constituído pela disjunção (soma lógica) de todas as proposições sobre as quais é feito o cálculo, ou da conjunção (produto lógico) de todas as proposições verdadeiras. Na lógica das relações, o U. do discurso é, ainda, formado por todos os elementos que podem entrar nas relações consideradas; nesse caso deve conter pelo menos dois elementos, se forem consideradas apenas relações diádicas; pelo menos três elementos, se forem consideradas também as relações triádicas... pelo menos n elementos se forem consideradas as relações w-ádicas. A relação-U. é a relação "a v b" que existe entre todos os pares possíveis de elementos do universo. Na lógica contemporânea, esse conceito perdeu importância: quando usado, é-o no sentido acima definido. Na prática, porém, usa-se com freqüência a expressão "U. do discurso", para indicar o conjunto de elementos (termos e proposições) que constituem o campo de determinada disciplina. G. P. UNÍVOCO e EQUÍVOCO (gr. OWCÒvuLloç., óncóvuLioç; lat. Univocus, aequivocus; in. Uni-vocal, equivocai; fr. Univoque, equivoque, ai. Eindeutig, Aequivok, it. Univoco, equivoco). Estes dois termos receberam definições diferentes, segundo tenham sido atribuídos ao objeto ou ao conceito (ou nome). 1. Aristóteles atribuiu-os ao objeto e entendeu por unívocos (ou sinônimos) os objetos que têm em comum tanto o nome quanto a definição do nome: assim, p. ex., tanto o homem quanto o boi são chamados de animais. Chamou de equívocos (ou homônimos) os objetos que têm o nome em comum, enquanto as definições evocadas pelo nome são diferentes: nesse sentido, chama-se de animal tanto o ho- URDOXA ou URGLAUBE 985 ÚTIL mem quanto um desenho (Cat., I, Ia I-II). Essas definições são repetidas com freqüência na escolástica (p. ex., PEDRO HISPANO, Sumtn. Log., 3.01) e encontram-se em lógicos mais recentes (p. ex., JUNGIUS, Lógica hamburgensis, I, 2, 49). 2. A lógica terminista julgou "imprópria" a referência dos dois termos aos objetos e julgou que eles deveriam referirse propriamente apenas aos signos, ou seja, aos conceitos ou nomes. Desse ponto de vista, as definições de Ockham são as seguintes. "U. é ou a palavra ou o signo convencional que corresponde a um único conceito ou, mais estritamente, é aquilo que, por si só, pode ser predicado de várias coisas, ou é o pronome demonstrativo de uma coisa. Equívoco, por outro lado, é o nome que, significando várias coisas, não está subordinado a um único conceito, mas é único signo de vários conceitos ou intenções da alma. O U. pode derivar do acaso, como acontece quando o nome de Sócrates é imposto a vários homens, ou de deliberação, quando se impõe certo nome a certas coisas e se o subordina a um único conceito, mas depois, graças à semelhança desse conceito com outros, estende-se a outros o mesmo nome" (Summa log., I, 13). Ainda hoje esses termos recebem as definições terministas. As discussões sobre a natureza da univocidade tinham imediata ressonância teológica na Idade Média-, quanto à disputa entre os defensores da univocidade e os da analogicidade do ser, v. ANALOGIA. URDOXA ou URGLAUBE. Husserl usou esse termo (que significa crença originária) para indicar a certeza que caracteriza a crença, ou seja, a referência segura da crença a um objeto existente (Ldeen, I, § 104) (v. CRENÇA). URPHAENOMENON. Termo usado por Goethe, que explicava da seguinte forma o seu conceito: "Na experiência, o mais das vezes captamos apenas casos que, com certa atenção, podem ser enquadrados em rubricas empíricas gerais. Estas, por sua vez, subordinam-se a rubricas científicas que remetem mais além, de forma que acabamos conhecendo melhor algumas condições indispensáveis do que aparece. Daí para a frente, tudo se sistematiza gradualmente sob regras e leis superiores, que não se manifestam ao intelecto por meio de palavras e hipóteses, mas à intuição por meio de fenômenos. São estes os fenômenos que chamamos de originários, porque na aparência nada está acima deles, e, assim como antes subimos, eles nos permitem descer gradualmente até o caso mais comum da experiência cotidiana". (Farben-lehre, 1808, § 175). USIOLOGIA (in. Usiology, fr. Asiologie, ai. Usiologie, it. Usiologia). Doutrina das essências. Termo raro. USO (in. Use, fr. Usage, ai. Gehrauch; it. Uso). O ato ou o modo de empregar meios, instrumentos ou utensílios. Esse termo é usado em filosofia sobretudo com referência a instrumentos ou meios intelectuais ou com referência à própria razão. Kant falou de U. lógico da razão, por meio do qual são feitas inferências imediatas, isto é, silogísticas, e de U. puro, por meio do qual a razão se faz "uma fonte especial de conceitos e de juízos". Este último é o U. dialético da razão iCrít. R. Pura, Dialética, Intr., II, B-C). Kant distinguiu também o U. teórico e o U. pratico da razão (Crít. R. Pura, Pref. à segunda ed.) e finalmente fez a distinção entre U. empírico dos conceitos, que significa a sua referência a objetos da experiência possível, e U. transcendental, que significa a sua referência a objetos que estão além de tal experiência (v. TRANSCENDENTAL). Wittgenstein lançou mão da noção de U. para definir o significado dos termos lingüísticos: "Para uma ampla classe de casos — embora não para todos — nos quais empregamos a palavra 'significado', ela pode ser assim definida: o significado de uma palavra é o seu U. na linguagem" {Philosophical Investigations, §43) (v. LINGUAGEM; SIGNIFICADO). Os lógicos contemporâneos fazem a distinção entre U. de uma palavra e sua menção. Na frase "o homem é um animal racional", a palavra "homem" é usada mas não mencionada. Ao contrário, a frase "em português, a tradução de man tem cinco letras", a palavra homem é mencionada mas não usada. Finalmente, na frase "a palavra homem tem cinco letras" a palavra homem é ao mesmo tempo usada e mencionada. Este último U. foi chamado pelos escolásticos de suposição material (v. SUPOSIÇÃO) e por Carnap de U. autônimo (CARNAP, Logical Syntax ofLanguage, § 64; QUINE, Me-thods of Logic, § 7; CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, § 80). ÚTIL (in. Useful; fr. Utile, ai. Nützlich; it. Utilé). 1. O que é meio ou instrumento para um fim qualquer. Nesse sentido, a utilidade foi definida por Alberto Magno (5. Th., I, q. 8, UTILIDADE MARGINAL 986 UTILITARISMO a. 3), Geulinex {Ethica, III, 6) e Haumgarten {Met., § 336); é um caráter das coisas. 2. Mais especificamente, a partir de Hobbes, chamou-se de Ú. o que serve à conservação do homem ou, em geral, satisfaz às suas necessidades ou atende aos seus interesses. Hobbes afirmava, a propósito, que cada homem é por direito natural árbitro do que lhe é Ú., e que "a medida do direito é a utilidade"(£)e eive, 1642, 1, 9-10). Seguindo Hobbes, Spinoza identificava o comportamento racional do homem com a procura do Ú.: "A razão, não exigindo nada de contrário à natureza, requer por si só, antes de mais nada, que cada um se ame e procure o que lhe é Ú. e que realmente assim seja." Entre as muitas coisas Ú. e desejáveis, as mais importantes são as que convém à natureza humana; por isso, a mais importante de todas é a conservação do homem, na sua própria pessoa e na do outro. "Os homens que são governados pela razão, ou seja, os que procuram o que lhe é Ú. segundo a direção da razão, não desejam para si nada que também não desejem para os outros homens justos, fiéis e honestos" {Et, IV, 18, schol.). Nesse sentido, por um lado a utilidade tornou-se fundamento da doutrina moral chamada utilitarismo (v.) e, por outro lado, conceito fundamental da economia política (v.). Na primeira direção, Hume já perguntava "por que a utilidade agrada", e encontrava a resposta a esta pergunta na natural simpatia do homem para com o outro homem {Inq. Cone. Morais, V). A coincidência da utilidade individual com a social estava assim já postulada e passou a ser um dos temas do utilitarismo. Bentham definia utilidade como "a propriedade de um objeto em virtude da qual ele tende a produzir benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade {Intro-duetion to the Principies of Morais, 1789, I, D-No campo da economia política, por Ú. entendeu-se habitualmente "tudo o que satisfaz uma necessidade"; a percepção de que nem sempre o que satisfaz uma necessidade econômica (é desejado como tal) satisfaz a necessidade biológica induziu Pareto a introduzir a noção de ofelimidade (v.), que é o Ú. no contexto econômico {Traitéd'économiepolitique, n. 2028). UTILIDADE MARGINAL. V. ECONOMIA POLÍTICA. UTTLITARISMO (in. Utilitarianism, fr. Uti-litarisme, ai. Utilitarismus; it. Utilitarismo). Embora se possa dizer que a identificação do bom com o útil remonta a Epicuro (v. ÉTICA), do ponto de vista histórico, o U. é uma corrente do pensamento ético, político e econômico inglês dos sécs. XVIII e XLX. Stuart Mill afirmou ter sido o primeiro a usar a palavra utilitarista (utili-tariarí), extraindo-a de uma expressão usada por Galt em Annals of Paris (1812); de fato, a ele se deve o sucesso desse nome. Contudo, essa palavra foi usada ocasionalmente por Bentham, a primeira vez em 1781. Os aspectos essenciais do U. podem ser resumidos do modo seguinte: 1Q Em primeiro lugar, o U. é a tentativa de transformar a ética em ciência positiva da conduta humana, ciência que Bentham queria tornar "exata como a matemática" {Introduction to the Principies of Morais, em Works, I, p. V). Essa característica faz do U. um aspecto fundamental do movimento positivista, ao mesmo tempo em que lhe garante um lugar importante na história da ética (v.). 2a Por conseguinte, o U. substitui a consideração do fim, derivado da natureza metafísica do homem, pela consideração dos móveis que levam o homem a agir. Nisto, liga-se à tradição hedonista, que vê no prazer o único móvel a que o homem ou, em geral, o ser vivo, obedece (v. HEDONISMO). Nesse aspecto, assim como no precedente, o U. foi tratado sobretudo por J. Bentham (1748-1832). 3S Reconhecimento do caráter supra-indivi-dual ou intersubjetivo do prazer como móvel, de tal modo que o fim de qualquer atividade humana é "a maior felicidade possível, compartilhada pelo maior número possível de pessoas": fórmula enunciada primeiramente por Cesare Beccaria {Dei diritti e delle pene, \1(A, § 3) e aceita por Bentham e por todos os utilitaristas ingleses. A aceitação dessa fórmula supõe a coincidência entre utilidade individual e utilidade pública, que foi admitida por todo o liberalismo moderno (v. LIBERALISMO). A obra de James Mill e de Stuart Mill dedicaram-se principalmente a justificar essa coincidência. Para James Mill, ela decorria da lei da associação psicológica: cada um deseja a felicidade alheia porque ela está intimamente associada com a sua própria felicidade {Analysis ofthe Phenomena of the Human Mind, ed. 1869, II, pp. 351 ss.). Para Stuart Mill essa mesma vinculação estava ligada ao sentimento de unidade humana, que Comte evidenciara com sua religião da humanidade {Utilitarianism, 2- ed., 1871, p. 61). UTOPIA 987 UTOPIA 4Q Associação estreita do U. com as doutrinas da nascente ciência econômica. Dois dos fundadores dessa ciência, Malthus (1766-1834) e David Ricardo (1772-1823), foram utilitaristas e compartilharam o espírito positivo e reformador do U. 5Q Espírito reformador dos utilitaristas no campo político e social: preocuparam-se em pôr sua doutrina moral a serviço de reformas que deveriam aumentar o bem-estar e felicidade dos homens em vários campos. Nesse aspecto, o U. também foi denominado radicalismo. Cf. S. LESLIE, The English Utilitarians, três vols., 1900; E. ALBEE, A History of English Uti-litarianism, 1901, 2a ed., 1957. UTOPIA (lat. Utopia; in. Utopia-, fr. Utopie, ai. Utopie, it. Utopia). Thomas More deu esse nome a uma espécie de romance filosófico {De optimo reipublicae statu deque nova insula Utopia, 1516), no qual relatava as condições de vida numa ilha desconhecida denominada U.: nela teriam sido abolidas a propriedade privada e a intolerância religiosa. Depois disso, esse termo passou a designar não só qualquer tentativa análoga, tanto anterior quanto posterior (como a República de Platão ou a Cidade do Sol de Campanella), mas também qualquer ideal político, social ou religioso de realização difícil ou impossível. Como gênero literário, U. extrapola a consideração filosófica: aqui só observaremos que ela foi e ainda é muito divulgada, sendo adaptada até para romances de ficção científica. Cabe à filosofia avaliar a U., tanto a expressa em forma de romance quanto a expressa em forma de mito ou ideologia, etc; quanto a essa avaliação, os filósofos não estão de acordo. Para Comte, cabia à U. a tarefa de melhorar as instituições políticas e de desenvolver as idéias científicas {Politique positive, I, p. 285). Marx e Engels, ao contrário, condenaram como "utópicas" as formas assumidas pelo socialismo em Saint Simon, Fourier e Proudhon, contrapondo a elas o socialismo "científico", que prevê a transformação infalível do sistema capitalista em sistema comunista, mas exclui qualquer previsão sobre a forma que será assumida pela sociedade futura e qualquer programa para ela (v. SOCIALISMO). No mesmo sentido, à U. — "obra de teóricos que, depois de observarem e discutirem os fatos, procuram estabelecer um modelo ao qual possam ser comparadas as sociedades existentes para medir o bem e o mal que encerram" — Sorel contrapunha o mito, expressão de um grupo social que se prepara para a revolução {Reflexions sur Ia violence, 4* ed., p. 46). Mannheim, ao contrário, considerou a U. como algo destinado a realizar-se, ao contrário da ideologia (v.), que nunca conseguiria realizar-se. Nesse sentido, a U. seria o fundamento da renovação social Udeologie und Utopie, 1929, II, I; v. R. K. MERTON, Social Theoty and Social Structure, 1957, 3a ed., cap. XIII). Em geral, pode-se dizer que a U. representa a correção ou a integração ideal de uma situação política, social ou religiosa existente. Como muitas vezes aconteceu, essa correção pode ficar no estágio de simples aspiração ou sonho genérico, resolvendo-se numa espécie de evasão da realidade vivida. Mas também pode tornar-se força de transformação da realidade, assumindo corpo e consistência suficientes para transformar-se em autêntica vontade inovadora e encontrar os meios da inovação. Em geral, essa palavra é considerada mais com referência à primeira possibilidade que à segunda. Ao primeiro significado está ligada a chamada "teoria crítica da sociedade", desenvolvida por Horkheimer, Adorno e Marcuse (especialmente por este último), que se concentra sobretudo na crítica arrasadora da sociedade contemporânea. Marcuse escreveu: "A teoria crítica da sociedade não possui conceitos que possam lançar uma ponte entre o presente e o futuro, não faz promessas e não mostra sucessos, mas permanece negativa" {One Dimensional Man, 1964, p. 257). E ainda: "Se hoje pudéssemos formular uma idéia concreta da alternativa, não seria a de uma alternativa: as possibilidades da nova sociedade são tão abstratas, tão distantes e incôngruas em relação ao universo de hoje, que levariam ao malogro qualquer tentativa de identificá-la em termos deste universo" {An Essay on Liberation, 1969; trad. it., p. 101). V VACUÍSTAS (in. Vacuists; fr. Vacuistes; ai. Vacuisten). Com este termo ou com o termo antiplenistas, são designados os defensores da teoria do espaço vazio, enquanto seus adversários foram chamados de plenistas (v. LASSWITZ, Geschichte der Atomistik, II, p. 291). VÁCUO ou VAZIO (gr. KEVÓV; lat. Vaccum; in. Vacuum-, fr. Vide, ai. Leere, it. Vuoto). A existência do V. é um dos aspectos fundamentais da concepção do espaço como continente dos objetos (v. ESPAÇO). Leibniz falou de um "V. de formas" (vacuum formarurrí), que existiria se não existissem substâncias capazes de todos os graus de percepção, tanto inferiores quanto superiores aos homens (Op., ed. Erdmann, p. 431). VAGO (in. Vague, fr. Vague, ai. Unbestimmt; it. Vago). Diz-se que uma palavra (ou um conceito ou uma proposição) é V. se o seu significado não for suficientemente determinado, de tal modo que haverá casos em que parecerá impossível decidir se ela é aplicável ou não. Assim a palavra distante é V. porque existem casos nos quais é impossível decidir se é possível falar de distância ou não; entretanto, não é V. a expressão "distante trinta quilômetros''. Peirce definiu esse termo da seguinte maneira: "Uma proposição é V. sempre que sejam possíveis estados de coisas tais que quem fala, mesmo os contemplando, ficaria intrinsecamente indeciso quanto a serem afirmados ou negados na proposição. Por intrinsecamente indeciso pretendemos falar do que é duvidoso, não pela ignorância de quem interpreta, mas pela indeterminação da linguagem de quem fala" (em BALDWIN, Dictionary of Philosophy, II. p. 748). A indeterminação não deve ser identificada com ambigüidade nem com generalidade. B. Russell, porém, insistiu na dificuldade de distinguir o V. do geral inclinando-se à interpretação subjetiva da incerteza inerente ao que é V. (Analysis ofMind, 1921, p. 184). Max Black fez uma análise exaustiva da noção de V., provocando uma discussão muito fértil a esse propósito ( Vagueness em Language and Philosophy, 1952, cap. II; na tradução italiana, Vangueness é traduzido por Indetermi-natezza). VAIDADE (in. Vanity fr. Vanité, ai. Eitelkeit; it. Vanità. 1. Nulidade, coisa vã. É nesse sentido que essa palavra é empregada freqüentemente na Bíblia (v. Eclesiastes, 1, 2: "V. das V., disse o Eclesiastes; V. das V., é tudo V."). 2. Ambição mesquinha, vangloria, egocentrismo (v.). VAISESICA. Um dos principais sistemas filosóficos da índia antiga, cuja fundação é atribuída a um brâmane chamado kanada, que afirmou uma espécie de atomismo, considerando que a matéria é formada por elementos indivisíveis e se caracteriza por seis determinações fundamentais: substância, qualidade, movimento, generalidade, particularidade e inerên-cia. Esse sistema também admite a existência das almas, demonstrada, por inferência, a partir da impossibilidade de atribuir ao corpo eventos como o conhecimento, o prazer, o amor, etc.; também admitia a existência de Deus, considerado como causa e regulador do Karman (v. G. Tucci, Storia delia filosofia indiana, 1957, pp. 112 ss.). VALÊNCIAGn. Valency fr. Valence, ai. Wer-theit; it. Valenza). Correspondente objetivo ou noemático do valor, segundo Husserl: "Por um lado falamos da simples coisa que é 'valente', tem caráter de valor, tem V.; por outro, falamos VALIDADE 989 VALOR dos próprios valores concretos ou da objetividade de valor" ildeen, I, § 95). Peirce estabelecera uma analogia entre as propriedades das proposições e a V. química (Coll. Pap., 3, 470-71). VALIDADE (in. Validity, fr. Validité, ai. Gül-tigkeit; it. Validitã). 1. Universalidade subjetiva (v. UNIVERSALIDADE, 2): nesse sentido, é válido o que é (ou deve ser) reconhecido como verdadeiro, bom, belo, etc. por todos. 2. Conformidade com regras de procedimento estabelecidas ou reconhecidas. Nesse sentido, diz-se que há validade na inferência que se conforme às regras da lógica, na lei que se conforme às regras constitucionais, na sentença que se conforme às leis, na ordem que seja dada pela pessoa a quem cabe dá-la e nas formas estabelecidas pelas regras. Com esse sentido, V. deve ser distinguida de valores de verdade, de justiça, e te. De fato, uma inferência válida, isto é, realizada em conformidade com regras lógicas, não é uma inferência verdadeira, mas só será verdadeira se as suas premissas forem verdadeiras. Assim, uma lei ou uma sentença válidas nem por isso são justas, etc. (v., sobre a V. lógica nesse sentido, Peirce, Coll. Pap., 3168; 7.461). 3. Utilidade ou eficiência de um meio ou de um instrumento qualquer. Nesse sentido, Dewey afirmou que as proposições, como meios pro-cessivos para conduzir uma pesquisa, não são verdadeiras nem falsas, mas apenas válidas (sólidas, eficientes) ou inválidas (débeis, inadequadas) {Logic, XV; trad. it., pp. 382-83). É a esse significado de V. que se apela sempre que se usa a expressão válido para. O que se segue ao para é o fim ou a função em relação à qual se considera eficiente o instrumento, o meio ou a condição de que se trata. P. ex., um bilhete de viagem é válido para determinado percurso; determinada organização é válida para determinadas funções, etc. 4. Mais particularmente e no domínio da lógica, Carnap propôs que se chamasse de válido o enunciado (ou a classe de enunciados) que seja conseqüência de uma classe nula de enunciados, e de contraválido o enunciado do qual qualquer enunciado possa ser conseqüência. Os dois termos, nesse sentido, correspondem, respectivamente, a analítico e contraditório (The Logical Syntax of Language, § 48). Analogi-camente, Quine propôs chamar de válido o esquema lógico que continua verdadeiro seja qual for a interpretação dada a seus símbolos. P. ex., o esquema pípé um esquema válido, enquanto o esquema/», 'qé coerente, mas não é válido, porque é só verdadeiro quando p é interpretado como verdadeiro e q como falso (Methods of Logic, § 6). Nesse sentido, V. significa apenas analiticidade ou verdade lógica. VALOR (gr. áÇía; lat. Aestimabile, in. Value, fr. Valeur, ai. Wert; it. Valore). Em geral, o que deve ser objeto de preferência ou de escolha. Desde a Antigüidade essa palavra foi usada para indicar a utilidade ou o preço dos bens materiais e a dignidade ou o mérito das pessoas. Contudo, esse uso não tem significado filosófico porque não deu origem a problemas filosóficos. O uso filosófico do termo só começa quando seu significado é generalizado para indicar qualquer objeto de preferência ou de escolha, o que acontece pela primeira vez com os estói-cos, que introduziram o termo no domínio da ética e chamaram de V. os objetos de escolha moral. Isso porque eles entendiam o bem em sentido subjetivo (v. BEM, 2), podendo assim considerar os bens e suas relações hierárquicas como objetos de preferência ou de escolha. Por V., em geral, entenderam "qualquer contribuição para uma vida segundo a razão" (DIÓG. L., VII, 105), ou, como diz Cícero, "o que está em conformidade com a natureza ou é digno de escolha (selectione dignurri): (Definibus, III, 6, 20). Por "estar em conformidade com a natureza", entendiam o que deve ser escolhido em todos os casos, ou seja, a virtude; como "digno de escolha", entendiam os bens a que se deve dar preferência, como talento, arte, progresso, entre as coisas do espírito; saúde, força, beleza entre as do corpo; riqueza, fama, nobreza, entre as coisas externas (DIÓG. L, VII, 105-06). A divisão entre V. obrigatórios e V. preferenciais será mais tarde expressa como divisão entre V. intrínsecos ou finais e valores extrínsecos ou instrumentais. A retomada dessa noção no mundo moderno só ocorre com a retomada da noção subjetiva de bem: isso acontece com Hobbes: "O V. de um homem, como o de todas as outras coisas, é seu preço, o que poderia ser pago pelo uso de suas faculdades: portanto, não é absoluto, mas depende da necessidade e do juízo de outro. O preço de um hábil comandante militar é alto em tempo de guerra, presente ou iminente, mas não em tempos de paz" (Leviath., I, § 10). Todavia, a noção de V. só suplantou a de bem nas discussões morais do séc. XIX, e mesmo nessa época isso aconteceu porque foi VALOR 990 VALOR estendido o significado do termo que fundamentava então as ciências econômicas (v. ECONOMIA POLÍTICA). Kant identificara o bem com o V. em geral: "Cada um chama de bem aquilo que aprecia e aprova, isto é, aquilo em que há um V. objetivo"; e acrescentava que nesse sentido o bem é bem para todos os seres racionais (Crít. do Juízo, § 5). No entanto, limitava-se a designar com a palavra V. o bem objetivo, excluindo o agradável e o belo. A extensão do termo para indicar não só o bem, mas também o verdadeiro e o belo, se deve aos Kantianos, principalmente à corrente psicologista do Kantismo. Polemizando contra o próprio Kant, Beneke afirmava que a moralidade não pode determinar uma lei universal da conduta, mas pode e deve determinar a ordem dos V. que devem ser preferidos nas escolhas individuais; os próprios V. são determinados pelo sentimento (Grundlinien der Sittenlehre, 1837, I, pp. 231 ss; Grundlinien des Naturrechtes, 1838, I, pp. 41 ss.). Essa orientação da ética para os V., em filósofos que se inspiravam em Kant, sem dúvida é devida à tendência psicologizante, que tem como corolário a noção subjetivista do bem. Mas foi principalmente Windelband quem falou, nos ensaios depois reunidos em Prelú-Í#05(1884), de um "V. de verdade" e de um "V. de beleza", além de um "V. de bem". Para a difusão desse conceito e do termo V., Nietzsche contribuiu muito com suas obras fundamentais Jenseits von Gut undBôse(1886) e Zur Genealo-gie der Moral (1887). Foi mais ou menos a partir dessa época que o conceito de V. passa a ser fundamental em filosofia, e as discussões em torno dele esgotam quase totalmente o campo dos problemas morais. É também a partir da mesma época que tende a reproduzir-se, no campo da teoria dos V., uma divisão análoga à que caracterizara a teoria do bem: entre um conceito metafísico ou absolutista e um conceito empirista ou subjetivista do V. O primeiro atribui ao V. um status metafísico, que independe completamente das suas relações com o homem. O segundo considera o modo de ser do V. em estreita relação com o homem ou com as atividades humanas. A primeira concepção é motivada pela intenção de subtrair o V., ou melhor, determinados valores e modos de vida neles fundados, à dúvida, à crítica e à negação: essa intenção parece pueril, se pensarmos que o v. mais solidamente ancorado na consciência dos homens e que mais paixões provoca também é o v. mais mutável e relativo, a tal ponto que às vezes os filósofos se recusam pudicamente a considerá-lo autêntico: o V.-dinheiro. 1Q A primeira concepção deve, por um lado, insistir na ligação do V. com o homem e por outro na independência do V. A primeira determinação é, de fato, constitutiva do V. e marca a característica que o distingue do bem, como é tradicionalmente entendido. A segunda determinação visa a conferir caráter absoluto ao V. O conceito Kantiano do apriori parecia conter ambas as determinações; por isso, com Windelband e Rickent o conceito de V. foi elaborado em relação com o de apriori. Para Windelband, o V. é o dever-ser de uma norma que também pode não se realizar de fato, mas que é a única capaz de conferir verdade, bondade e beleza às coisas julgáveis (Praludien, 4.a ed., 1911, II, pp. 69 ss.). Nesse sentido, os V. não são coisas ou supra-coisas, não têm realidade ou ser, mas seu modo de ser é o dever-ser(solleri). Rickert repete esse ponto de vista e reitera que o ser dos V. não consiste na sua realidade, mas em seu dever-ser. Contudo, em Rickert os V. se transformam em realidades transcendentes. Rickert distingue seis domínios do V.: lógica, estética, mística (que é o domínio da santidade impessoal), ética, erótica (que é o domínio da felicidade) e filosofia religiosa. A cada um desses domínios corresponde um bem (ciência, arte, uno-todo, comunidade livre, comunidade de amor, mundo divino); uma relação com o sujeito (juízo, intuição, adoração, ação autônoma, unificação, devoção); e determinada intuição do mundo (intelectualismo, esteticismo, misticismo, moralismo, eudemonismo, teísmo ou politeísmo) (System der Philosophie, 1921). A mediação entre a realidade e os V. é esclarecida por Rickert com o conceito de sentido (Sinrí): sentido é a referência da realidade, ou de parte dela, ao mundo dos V., por meio da qual os V. ingressam na história e são realizados pelo homem (System der Philosophie, I, pp. 319 ss.). Teorias dos V. muito semelhantes a esta foram elaboradas pelo teuto-americano Ugo Münsterberg em Philosophie der Werte, de 1908, pelo americano W. M. Urban (Valuations; its Nature and Laws, 1919; The Intellegible World, 1920), pelo italiano Guido delia Valle (Teoria generale e formale dei V., 1916) e por numerosos outros escritores. Todas essas teorias omitem o problema que está por trás de sua formulação ou lhe dão soluções ilusórias. Por um lado, reconhecem que o V. VALOR 991 VALOR está de algum modo presente no homem, nas atividades humanas ou no mundo humano cuja norma ou dever-ser constitui; por outro, exigem que ele seja independente do reconhecimento ou dos feitos humanos e que possua um status indiferente em relação ao mundo humano. Nessas teorias, tende-se a atribuir aos V. as características do ser perfeito: unidade, universalidade e eternidade, em contraposição à multiplicidade, à particularidade e à mutabi-lidade das manifestações empíricas cuja regra eles deveriam constituir. Por outro lado, como regras dessas manifestações, os V. devem ter com elas uma relação essencial, sem a qual não poderiam servir nem para julgá-las nem para dirigi-las. O conceito Kantiano do a priori transcendental não se revelara eficaz como modelo para uma solução desse problema. Procurou-se outro tipo de solução, atribuindo-se a intuição do V. a uma experiência suigeneris, de natureza sentimental. Segundo Scheler, o sentimento é "uma forma de experiência cujos objetos são completamente inacessíveis ao intelecto, que é cego para eles assim como a orelha e o ouvido são insensíveis às cores"; essa forma de experiência nos apresenta autênticos objetos dispostos numa ordem hierárquica eterna, que são os V. {Der Formalismus in der Ethik, 3a ed., 1927, p. 262). Em outros termos, o V. é o objeto intencional do sentimento, assim como a realidade é o objeto intencional do conhecimento; e esse objeto é apreendido em sua relação hierárquica com os outros objetos da mesma espécie. A intuição sentimental do V. é também um ato de escolha preferencial que segue a hierarquia objetiva dos valores, constituída por quatro grupos fundamentais: V. do agradável e do desagradável, correspondentes à função do gozo e do sofrimento; V. vitais, correspondentes aos modos do sentimento vital (saúde, doença, etc); V. espirituais, ou seja, estéticos e cognitivos; e V. religiosos (Op. cit., pp. 103 ss.). Esta solução de Scheler, porém, trazia de novo à tona, no domínio da intuição fundamental, a mesma antinomia que caracteriza a interpretação neocriticista ou transcendental do valor, E essa antinomia era justamente tomada como rqn.cteriy.acao do V. por Hartmann; este por um lado afirma que os V. são V. só em relação ao ser do sujeito, reconhecendo portanto a relacionabilidade (e não relatividade) deles {Ethik, 3a ed., 1949, p. 141). Por outro lado, afirma que os V. têm um "ser em si" independente das opiniões do sujeito e que constituem autênticos objetos; estes, embora não sejam reais como os objetos das ciências naturais, têm um modo de ser igualmente imutável e absoluto ilbid., p. 153). Com terminologia diferente porque de natureza teológica, mas análoga, os mesmos dois aspectos antônimos do V. foram expressos por R. Le Senne, para quem o V. é um Deus-conosca, Deus, que é único e transcendente; como conosco está em relação com o homem e é capaz de guiá-lo {Obstacleet valeur, 1934, pp. 220 ss.). 2Q O sucesso do termo V. no mundo moderno se deve em grande parte à obra de Nietz-sche e ao escândalo que provocou com a pretensão de inverter os valores tradicionais. Nietzsche declarava depositar suas esperanças "em espíritos fortes e suficientemente independentes para dar impulso a juízos de V. opostos, para reformar e inverter os valores eternos, em precursores ou homens do futuro, que no presente constituam a semente que obrigará a vontade dos milênios a abrir novos caminhos, etc. (Jenseits von Gut und Bóse, § 203). Nietzsche considerou que a missão de sua filosofia era a inversão dos V. tradicionais, ironizados como "V. eternos" {Ecce homo, § 4). Essa inversão consistia substancialmente em substituir os V. da moral cristã, fundada no ressentimento (v.), portanto na renúncia e o ascetismo, pelos V. vitais, que nascem da afirmação da vida, de sua aceitação dionisíaca (Genealogie der Moral, I, §10). Essa concepção de Nietzsche foi considerada uma espécie de relativismo dos V., e como tal serviu de alvo para a polêmica de todas as doutrinas absolutistas. Na realidade, em Nietzsche, são poucos os indícios de uma relatividade dos V.: sua intenção é, antes, restabelecer uma tábua autêntica de V., que é a dos V. vitais, em lugar dos V. fictícios, adotados pela moral do ressentimento. A tese autêntica de Nietzsche é de intrínseca relação entre o ser do V. e o homem, de tal maneira que não há V. que não seja uma possibilidade ou um modo de ser do homem. É esta a tese característica da interpretação do V. que chamamos de empirista ou subjetivista. Meinong foi o primeiro a reapresentar explicitamente essa tese, ao reduzir o V. de um objeto à sua "força de motivação" ("Über Werthaltung und Wert" em Archiv für syste-matische Philosophie, 1895, p. 341). Ehrenfels, VALOR 992 VALOR observando que, com base nessa definição, só teriam V. os objetos existentes, definiu o V. como simples "desejabilidade" {System der Wertheorie, I, 1897, p. 53). Essa definição de Ehrenfels é importante porque introduz pela primeira vez e de modo explícito a conotação da possibilidade na noção de V. V. não é a coisa desejada, mas o objeto desejável: não é coisa no sentido de não ser necessariamente um objeto real: não é desejado porque simplesmente pode sê-lo. Não tem significado diferente a definição de V. apresentada alguns anos mais tarde por R. B. Perry, para quem "todo objeto, qualquer que seja, adquire V. quando é investido por um interesse qualquer" {General Theory ofValue, 1926, 2a ed., 1950, p. 116): de fato, o interesse, diferentemente do desejo, é apenas uma possibilidade. Foi exatamente no âmbito dessa concepção de V. que nasceu o relativismo dos valores; isso aconteceu no coração do historicismo, da consideração da relação entre os V. e a história. O primeiro a defender o relativismo dos V. foi Dilthey: "A própria história é a força que produz as determinações de V., idéias e metas, com base nos quais se determina o significado de homens e acontecimentos" {Gesammelte Schriften, VII, p. 290). Portanto, os V. e as normas nascem e morrem na história e não subsistem fora dela nem acima de seu curso (Jbid., p. 290). O relativismo dos V. em relação à história foi afirmado ainda mais explicitamente por Simmel. Partindo do reconhecimento da relatividade do V. econômico, Simmel chegou ao reconhecimento da relatividade de todos os V.: o V. nunca é uma entidade objetiva, mas sua objetividade deriva apenas da correlação entre sujeito e objeto. Portanto, não existem V. absolutos, e são V. só aqueles que, em determinadas condições, os homens reconhecem como tais. A esfera dos V. distingue-se da esfera da realidade, não com base num status ontológico próprio, mas por uma qualificação categorial, que pode ser aplicada a qualquer objeto (Philo-sophie des Geldes, 1900, I, § I). O historicismo alemão, todavia, não foi unânime em reconhecer essa relatividade; considerou-a sempre como um perigo, mas às vezes quis evitá-la. Foi Troeltsch o primeiro a formular claramente a antítese entre relatividade histórica e absolutis-mo dos V., ao mesmo tempo em que procurava recuperar esse absolutismo no próprio âmbito do historicismo. A solução que ele deu à antítese é a coincidência entre os dois termos antinômicos: cada ponto da história está em relação direta com a esfera dos V. absolutos e contém em si tais V. sem relativizá-los à sua mu-tabilidade {Der Historismus und seine Pro-bleme, 1922, Gesammelte Schriften, III, p. 211). Do mesmo modo, Meinecke afirmava que a relação com o Absoluto é constitutiva da história, mas que essa relação vai do infinito para o finito, e não o inverso: de sorte que, enquanto a história encontra fundamento nos V. que realiza, o modo de ser destes V. é irredutível à relatividade histórica e conserva validade incondicional {Die Entstehung des Historismus, 1936, II, p. 645). Como se vê, no interior desta segunda interpretação fundamental do V., reproduz-se uma situação análoga à que se verificou na primeira: a atribuição de duas características opostas ao V., absolutidade e relatividade: a primeira constituiria o modo de ser do valor em si, o segundo o seu modo de ser na história. O pressuposto dessa oposição é o caráter de relatividade atribuído à história e em geral a tudo o que encontra lugar na história, entendida segundo o esquema de Bergson como uma criação contínua, em que tudo se cria e se destrói a cada instante. Portanto, não há vestígio de relativismo dos V. onde não há vestígio de relativismo histórico e onde há um conceito menos superficial e diletante de história. Mesmo insistindo na pluralidade dos V. e das esferas de V., Max Weber não via na história uma incessante criação de V., cada um deles relativo a um momento da história, nem uma relação fugaz com V. Absolutos, mas uma luta entre diferentes V. à escolha do homem {Gesammelte Politische Schriften, p. 63; v. PIETRO ROSSI, Lo storicismo tedesco contemporâneo, pp. 367 ss.). O mesmo reconhecimento da multiplicidade dos V. e da importância da escolha que essa multiplicidade está sempre a exigir do homem encontra-se em Dewey, que, exatamente por isso, definiu a filosofia como "crítica dos V.".- "A confusão em que todas as teorias do V. incidiram, entre determinada posição na relação causai ou sucessiva e o V. propriamente dito, é uma prova indireta de que toda valoração inteligente é também crítica, isto é, juízo da coisa que tem V. imediato. Toda teoria do V. é necessariamente um ingresso no campo da crítica" {Experience and Nature, 1926, p. 397). Mas a crítica dos V. nesse sentido nada mais é que a disciplina inteligente das escolhas humanas. Tal disciplina implica em primeiro lugar a con- VARIAÇÕES CONCOMITANTES 993 VELEIDADE sideração da relação existente entre meios e fins, de tal modo que não se pode julgar dos fins a não ser julgando ao mesmo tempo dos meios que servem para alcançá-los (Theory of Valuation, 1939, p- 53)- Por outro lado, a crítica dos V. não poderia ser eficazmente instituída sem levar em conta outro aspecto dos V. em que R. Frondizi insistiu muito: a conexão entre V. e situação: "A organização econômica e jurídica, os hábitos, a tradição, as crenças religiosas e muitas outras formas de vida que transcendem a ética contribuem para configurar determinados valores que, ao contrário, são considerados existentes num mundo estranho à vida do homem. Embora o V. não possa derivar exclusivamente de elementos de fato, tampouco pode prescindir de conexão com a realidade. Uma separação dessas condena quem a executa a manter-se no plano desencarnado das essências" (Qué son los valores?, 1958, p. 127). Os estudos contemporâneos, elaborados com base nesse pressuposto negativo, evidenciaram os seguintes aspectos: Ia O V. não é somente a preferência ou o objeto da preferência, mas é o preferível, o desejável, o objeto de uma antecipação ou de uma expectativa normativa (v. DEWEY, The Field of Value: a Cooperative Inquiry, ed. Ray Lepley, 1949, p. 68; CLYDE KLUCKOHN e outros, em 7b-ward a General Theory ofAction, ed. Parsons e Schils, 1951, p. 422). 2B Por outro lado, não é um mero ideal que possa ser total ou parcialmente posto de lado pelas preferências ou escolhas efetivas, mas é guia ou norma (nem sempre seguida) das escolhas e, em todo caso, seu critério de juízo (v. C. MORRIS, Varieties ofHuman Value, 1956, cap. I). 3e Conseqüentemente, a melhor definição de V. é a que o considera como possibilidade de escolha, isto é, como uma disciplina inteligente das escolhas, que pode conduzir a eliminar algumas delas ou a declará-las irracionais ou nocivas, e pode conduzir (e conduz) a privilegiar outras, ditando a sua repetição sempre que determinadas condições se verifiquem. Em outros termos, uma teoria do V., como crítica dos V., tende a determinar as autênticas possibilidades de escolha, ou seja, as escolhas que, podendo aparecer como possíveis sempre nas mesmas circunstâncias, constituem pretensão do V. à universalidade e à permanência. VARIAÇÕES CONCOMITANTES, MÉTODO DAS (in. Method ofconcomitant variations; fr. Méthode des variations concomitantes; ai. Methode der einander begleilenden Verãn-derungen; it. Método delle variazioni conco-mitantí). Foi esse o nome dado por J. Stuart Mill a um dos métodos indutivos já ilustrados por Herschel (A Discourse on the Study of Natural Philosophy, § 145), que se expressa com a seguinte regra: "Qualquer fenômeno que varie de qualquer maneira sempre que outro fenômeno variar de alguma maneira particular é causa ou efeito desse fenômeno ou está ligado a ele por meio de algum fato de causação" (.Logic, III, VIII, § 6). As outras regras da indução são o método da concordância, o método da diferença e o método dos resíduos, sobre os quais v. os respectivos verbetes. VARIÁVEL. V. CONSTANTE. VEDANTA (in. Vedanta; fr. Vedanta, ai. Vedanta; it. Vedanta). Um dos grandes sistemas filosóficos da índia antiga, codificado no Brahma-sutra ou Vedântasutra, atribuído a Badarayana (talvez séc. III d.C). O princípio do sistema é o Brahman ou Átman, considerado como única realidade: o mundo é aparência enganadora, maya. Segundo esse sistema, Sankara supunha que o eu individual é idêntico a Brahman ou Átman, enquanto Ramanuja elaborava um sistema teísta, distinguindo de Brahman tanto o mundo criado quanto as almas individuais (DAS GUPTA, A History of Indian Philosophy, 1932-55, III; C. Tucci, Storia delia filosofia indiana, 1957, pp. 136 ss.). VEÍCULO SIGNITIVO (in. Sign Vehiclé). Um dos quatro componentes do processo semioló-gico (ao lado do designado, do interpretante e do intérprete), segundo Morris; mais precisamente, o objeto ou coisa que funciona como signo (Foundations ofthe Theory ofSigns, 1938, § 2) (v. SIGNO). VELEIDADE (in. Velleity, fr. Velléitê, ai. Vellei-tát; it. Velleitã). Esforço impotente ou malsu-cedido. Esse termo encontra-se em Locke, que com ele designa "a gradação mais baixa do desejo, que está mais próxima da inexistência" (Ensaio, II, 20, 6). Esse termo aparece com sentido análogo em Leibniz, para quem é "uma espécie bastante imperfeita de vontade condicional", ou seja, de uma vontade que, se pudesse, se empenharia, mas não pode (Théod., III, 404). Esta consideração está muito mais próxima do significado moderno do termo, sendo também, por outro lado, o significado mais antigo. S. Tomás entendia por V. uma vontade antecedente, que pode ser ou permanecer sus- VERACIDADE 994 VERDADE pensa, assim como a vontade do juiz que, como homem, gostaria que o réu vivesse, mas que, no entanto, deseja que ele seja enforcado (S. Th., I, q. 19, a. 6, ad. Ia). VERACIDADE (in. Truthfulness- fr. Véra-cité, ai. Wahrhaftigkeit; it. Veracita). 1. Caráter do discurso que exprime a convicção de quem o pronuncia e, portanto, não pode ser fonte de engano em quem ouve. Nesse sentido, Locke chamava a V. de "verdade moral", e a distin-guia de verdade "metafísica", que é a conformidade das idéias às coisas {Ensaio, IV, 5, II). Mas para isso Leibniz usava a palavra V. (Nouv. ess., IV, 5, 11). 2. Às vezes, V. significa sinceridade, que não é uma qualidade do discurso, mas da pessoa que faz habitualmente discursos verazes. Nesse sentido, Descartes falara em "V. divina", afirmando que Deus não pode enganar-nos, no sentido de não poder ser causa de erros (Méd., IV). VERBAUSMO (in. Verbalism, fr. Verbalisme, it. Verbalismó). 1. Expressão verbal de pouco significado ou de significação indefinido; tendência a valer-se dessas expressões. 2. Uma expressão verbal. VERBO1. V. LOGOS. VERBO2 (gr. pf\\ia-, lat. Verbum; in. Verb, fr. Verbe, ai. Zeittvort; it. Verbo). Como parte do discurso, o V. foi definido por Aristóteles como "o nome em cujo significado há uma determinação temporal, cujas partes nada significam separadamente e que é o signo das coisas que se dizem de outra coisa" {De int, 3, 16 b 6). Essa definição foi conservada pela lógica medieval (v. PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.05). Na lingüística moderna, a distinção entre nome e verbo tornou-se muito menos importante, visto que, embora comum a muitas línguas, não existe em outras (BLOOMFIELD, Language, 1933, p. 20). VERDADE (gr. àXÍ]Q£ia; lat. Ventas; in. Truth; fr. Vérité, ai. Wahrheit; it. Vertia). Validade ou eficácia dos procedimentos cognoscitivos. Em geral, entende-se por V. a qualidade em virtude da qual um procedimento cognoscitivo qualquer torna-se eficaz ou obtém êxito. Essa caracterização pode ser aplicada tanto às concepções segundo as quais o conhecimento é um processo mental quanto às que o consideram um processo lingüístico ou semiótico. Ademais, tem a vantagem de prescindir da distinção entre definição de V. e critério de V. Essa distinção nem sempre é feita, nem é freqüente; quando feita, representa apenas a admissão de duas definições de V. P. ex., quando se faz a distinção entre teoria da correspondência e critério de V., este é definido como evidência recorren-do-se ao conceito de V. como revelação, e a teoria da V. como conformidade a uma regra, apresentada por Kant como critério formal ao lado do conceito de V. como correspondência, torna-se então uma definição da própria V. É possível distinguir cinco conceitos fundamentais de V.: Ia a V. como correspondência; 2° a V. como revelação; 3° a V^como conformi-chde_aumaregra; 4a a V_cqmo coerência; j"a V^ comõ~utilidade. Essas concepções tem importâncias diferentes na história da filosofia: as duas primeiras, em especial a primeira, sem dúvida são as mais difundidas. Não são nem mesmo alternativas entre si: é possível encontrar mais de uma no mesmo filósofo, embora usadas com propósito diferente. No entanto, por serem díspares e mutuamente irredutíveis, devem ser consideradas distintas. ls O conceito de V. como correspondência é o mais antigo e divulgado. Pressuposto por muitas das escolas présocráticas, o primeiro a formulá-lo explicitamente foi Platão, na definição do discurso verdadeiro feita em Crãtilo. "Verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; ?also é aquele que as diz como não são" {Crat., 385 b; v. Sof., 262 e; Fil, 37 c). Por sua vez, Aristóteles dizia: "Negaraquilo queée_afirmar aquilo que não é^é falsõTenquanto afirmãroque è__e_pegar o que^não é, é a verdade" {Met., IV, 7, 1011 b 26 ss.; v. V, 29, 1024 b 25). Aristóteles enunciava também as duas teses fundamentais dessa concepção de verdade. A primeira é que a V. está no pensamento ou na linguagem, não no ser ou na coisa {Mel, VI, 4, 1027 b 25). O segundo é que a medida da V. é o ser ou a coisa, não o pensamento ou o discurso: de modo que uma coisa não é branca porque se afirme com V. que ela assim é, mas afirma-se com V. que ela é branca porque é {Met., IX, 10, 1051 b 5). Nas doutrinas anteriores a definição de V. e o critério de V. coincidem. Em outras doutrinas, mesmo mantendo-se fixa a definição de V., o critério de V. é considerado diferente; é o que acontece no estoicismo e no epicurismo. Estóicos e epicuristas continuam admitindo que a V. é a correspondência entre o conhecimento e a coisa (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VIII, 38; II, 9), VERDADE 995 VERDADE mas julgam que o critério da V. é diferente, porque para os estóicos ele está na representação cataléptica (v.), que é a manifestação do objeto para o homem, enquanto para os epicuristas ele está na sensação, que é o próprio manifestarse da coisa (DiÓG. L., X, 31). Nesses casos, a distinção entre V. e critério eqüivale a reconhecer dois conceitos de V., considerados compatíveis (ou não incompatíveis). Ademais, a coexistência de dois conceitos de V. não é rara. Muitas vezes a teoria da correspondência é acompanhada pela teoria da V. como manifestação ou revelação. S. Agostinho, por um lado, define a verdade como "aquilo que é como aparece" (Solil, II, 5) e por outro considera como V. "aquilo que revela o que é, ou que se manifesta a si mesmo"; nesse sentido, identifica a V. com o Verbum ou Logos, que é a primeira manifestação imediata e perfeita do ser, ou seja, de Deus (De vera rei, 36). Por sua vez, S. Tomás, retomando uma definição de Isaac Ben Salomon, do século IX, define a V. como "adequação entre o intelecto e a coisa" (S. Th., I, q. 16, a. 2; Contra Gent., I, 59; Dever., q. I, a. I), mas, ao mesmo tempo em que mantém, com relação ao homem, a tese aristotélica de que as coisas — e não o intelecto — são a medida da V. inverte essa tese no que diz respeito a Deus.- "O intelecto divino é mensurante, e não mensurado; a coisa natural é mensurante e mensurada, mas o nosso intelecto é mensurado, e não mensurante, em relação às coisas naturais; é mensurante só em relação às coisas artificias" (De ver., q. I, a. 2). Portanto, existe também uma V. das coisas, que é aquilo em virtude do que as coisas se assemelham ao seu princípio, que é Deus; nesse sentido Deus é a primeira e suprema V. (S. Th., I, q. 16, a. 5). Esses conceitos são freqüentes na filosofia medieval. O conceito de V. como correspondência é amplamente empregado. Pedro Hispano (Summ. log., 3-34), Herveus Natalis (Quodl., III, I), Antônio Andréa (Super artem veterem, ed. 1508, f. 45rA) mantêm a teoria da V. como conformidade entre intelecto e coisa, embora polemizando sobre o modo de ser da coisa, ou mais exatamente dos objetos aos quais o intelecto deve conformar-se. Em geral, na Escolástica da segunda metade do séc. XIII e na do XIV, especifica-se que a "coisa" à qual o intelecto deve conformar-se é a "res intellecta", isto é, a coisa como é apreendida pelo intelecto, não exterior ao próprio intelecto (v. Também DURAND DE SAINT-POURÇAIN, In Sent, I, d. 19, q. 5). O conceito de adequação ou conformidade, porém, perde alcance metafísico e teológico para assumir significado estritamente lógico ou, como hoje se diria, semântico. A identificação polêmica, defendida por Ockham, entre "V." e "proposição verdadeira" eqüivale propriamente à negação do valor metafísico da palavra V. (Sumtna log., I, 43; Quodl., V. q. 24). Os platônicos de Cambridge mantêm, por motivos óbvios, o caráter metafísico e teológico da noção de correspondência, falando de conformidade da coisa consigo mesma ou com a sua essência contida no intelecto divino (v. HERBERT DE CHERBURY, De veritate, 1656, pp. 4 ss.), mas Hobbes insiste no ponto de vista nominalista da V. como simples atributo das proposições (De corp., 3, § 7); isso também foi feito por Locke (Ensaio, II, 32, 3-19) e até por Leibniz, que rejeita a noção metafísica de V. como "atributo do ser" e limita-se a ver na V. "a correspondência das proposições, que estão no espírito, com as coisas das quais se trata" (Nouv. ess., IV, 5. 11). Wolff unia o conceito de V. como "concordância do nosso juízo com o objeto, ou seja, com a coisa representada" (Log., § 505) — que ele chamava de definição nominalàn V. — com a noção lógica da V. como "determinabilidade do predicado por meio da noção do sujeito" — que ele chamava de definição real (Ibid., § 513). Baumgarten retornava à noção de V. metafísica como "ordem da multiplicidade na unidade" (Met., § 89), enquanto Kant declarava pressupor simplesmente a "definição nominal da V." como "acordo do conhecimento com o seu objeto", e propunha o problema de encontrar um critério para a V. Excluindo a possibilidade de um critério geral, válido para qualquer conhecimento, ele se detinha no critério formal da V., que é a conformidade do conhecimento com as suas regras (Crít. R. Pura, Lógica, Intr., III; v. adiante). Esse conceito de V. como correspondência nunca esteve ausente, nem na filosofia mais recente, pela qual às vezes é assumido como simples pressuposto, às vezes explicitamente defendido. Isso aconteceu especialmente nas correntes realistas (v., p. ex., BOLZANO, Wissenschaftslehre, I, § 25; A. MEINONG, Über Annahmen, pp. 125 ss.). Exatamente no espírito do realismo, N. Hartmann defendeu a concepção da V. como "coincidência com um objeto que deve ser entendido como tal" (Systematische Philo-sophie, § 9). Hartman estende o conhecimento VERDADE 996 VERDADE como "reflexão do ser sobre si mesmo" {Meta-physik der Erkenntnis, 1921, cap. 27, b). Os lógicos contemporâneos também recorrem à doutrina da correspondência, procurando formulá-la de tal modo que ela seja independente de qualquer hipótese metafísica. Deste ponto de vista, quem melhor formulou essa teoria foi Alfred Tarski, que retomou explicitamente, além da definição aristotélica acima, também algumas definições análogas ou dependentes delas, como aquela segundo a qual "um enunciado é verdadeiro quando designa um estado de coisa existente" (B. RUSSEIX, An Inquiry into Meaning and Truth, 1940, pp. 362 ss.). Tarski partiu de uma equivalência do seguinte gênero: "O enunciado 'a neve é branca' é verdadeiro se, e somente se, a neve for branca", para generalizá-la na fórmula: "X é verdadeiro se, e somente se, p". Utilizando a noção semântica de satisfação entendida como a relação entre objetos arbitrários e determinadas expressões chamadas de "funções enunciativas" do tipo "xé branco", "xé maior que y", etc, Tarski chegou à seguinte definição de V.: " Um enunciado será verdadeiro se for satisfeito por todos os objetos; caso contrário, será falso". Tarski salientou o fato de que a noção semântica de V. (como ele a chamou e como habitualmente se chama) nada implica quanto às condições nas quais um enunciado como "a neve é branca" pode ser asseverado. Indica só que, sempre que afirmamos ou rejeitamos esse enunciado, deveremos estar prontos a afirmar ou rejeitar o enunciado correlativo "O enunciado 'a neve é branca' é verdadeiro". Desse modo, ele considera que o conceito semântico de V. pode conciliar-se com qualquer atitude epis-temológica, sendo neutro em relação a qualquer concepção realista ou idealista, empirista ou metafísica do conhecimento (The Semantic Conception of Truth", 1944, em Readings in Philosophical Analysis, 1949, pp. 52-84; a concepção de Tarski foi exposta pela primeira vez num texto polonês de 1933, traduzido para o alemão em Studia phüosophica, de 1935, pp. 261-405). Carnap aceitava essa concepção da verdade, mas ressaltava que ela diferia fundamentalmente dos conceitos de crença, verificação, confirmação, etc. {Introduction to Semantics, § 7). M Black enfatizou a insignificância filosófica dela (Language and Philosophy, IV, § 8). 2Q A segunda concepção fundamental de V. considera-a como revelação ou manifestação. Tem duas formas fundamentais: uma empirista e outra metafísica ou teológica. A forma empirista consiste em admitir que a V. é o que se revela imediatamente ao homem, sendo, portanto, sensação, intuição ou fenômeno. A forma metafísica ou teológica afirma que a V. se revela em modos de conhecimento excepcionais ou privilegiados, por meio dos quais se torna evidente a essência das coisas, seu ser ou o seu princípio (Deus). A característica fundamental dessa concepção é a ênfase dada à evidência, assumida ao mesmo tempo como definição e critério da verdade. Mas a evidência, obviamente, nada mais é que revelação ou manifestação. No sentido empirista, a V. era considerada como revelação pelos cirenaicos, que viam nas sensações a própria evidência das coisas (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 199-200), pelos epicuristas, que consideravam a sensação como o critério da V. (DIÓG. L., X, 31-32), e pelos estóicos, para os quais esse critério estaria na representação cataléptica (v.) (DIÓG. L., VII, 54). Em Ockham, a noção de conhecimento intuitivo é a noção de manifestação imediata das coisas para o homem (das coisas em seus caracteres e nas suas relações) {In Sent., Prol., q. I, Z). No mesmo espírito, Telésio dizia que as coisas "retamente observadas manifestam por si mesmas a grandeza que cada uma tem, bem como sua capacidade, suas forças, sua natureza"; para ele, a sensação era essa revelação imediata das coisas {De rer. nat., I, Proem.). Em geral todas as doutrinas que confiam à sensibilidade o conhecimento das coisas tendem a discernir na sensibilidade a revelação da natureza das coisas e identificam com tal revelação a própria verdade ou o critério de verdade. Por outro lado, da própria interpretação metafísica ou teológica da V. como correspondência nasce o conceito de V. como manifestação do ser ou do princípio supremo. Plotino dizia: "A verdade verdadeira não está de acordo com outra coisa, mas de acordo consigo mesma: ela não enuncia nada fora de si, mas enuncia o que ela mesma é" {Enn., V, 5, 2). Nesse sentido, a V. é hipostasiada: não é o caráter formal de certos procedimentos cognoscitivos, mas princípio metafísico ou teológico que tem a mesma substancialidade e a mesma dignidade do princípio que nela se manifesta, ou seja, Deus. Esse conceito é tema de numerosas especulações na filosofia patrística e escolástica. S. Agostinho afirma dever existir uma natureza que esteja tão VERDADE 997 VERDADE próxima da unidade que a reproduz em tudo e é una com ela; essa natureza é a V. ou Verbo de Deus (De vera rei., 36). É comum na Escolás-tica a doutrina de que a verdade é o próprio intelecto ou Verbo de Deus (ANSELMO, De Veritate, 14; S. TOMÁS, De ver., q. I, a. 4). Mais tarde, o mesmo conceito de V. como revelação levou a reconhecer, com base no critério de evidência, a existência de V. eternas. Descartes viu no cogito (v.) a evidência originária, pela qual a existência do sujeito pensante se revela ao próprio sujeito pensante, e considerou que deveria ser considerado como verdadeiro tudo o que se manifesta de modo evidente. No âmbito do que se manifesta desse modo, Descartes pôs as V. eternas, estabelecidas e garantidas pela imutabilidade de um decreto de Deus (Méd., IV; Princ.phil., I, 49). Segundo Descartes, as V. eternas são garantidas e reveladas diretamente por Deus, e por isso são eternas (Repouses, IV, 4). Assim também pensava Malebranche, embora para ele, ao contrário de Descartes, elas não seriam postas, mas simplesmente reconhecidas e validadas por Deus (Recherche de Ia vérité, X éclairissement). Mas o conceito da V. como revelação foi muito prezada pelo Romantismo, que, em seu aspecto essencial, poderia ser classificado como filosofia da revelação (v. ROMANTISMO). Hegel dizia.-"A idéia é a V.: porque a V. é a correspondência entre a objetividade e o conceito. Não no sentido de que se as coisas externas correspondem às minhas representações: estas são, nesse caso, apenas representações exatas que eu tenho como indivíduo. Mas no sentido de que todo o real, enquanto verdadeiro, é a idéia e só tem V. por meio da idéia e nas formas da idéia" (Ene, § 213). Em outros termos, a Idéia é "a objetividade do conceito", a racionalidade do real, mas à medida que se manifesta à consciência na sua necessidade, ou seja, como saber ou ciência (System der Philosophie, ed. Glockner, I, p. 423; Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, II, p. 275): e o saber e a ciência são a automanifes-tação da Idéia, vale dizer, sua autêntica e completa revelação. Como meio-termo entre a forma empírica e a forma teológica dessa concepção de V., está a concepção fenomenológica e existencialista. A fenomenologia é, segundo conceito próprio, um método que possibilita às essências manifestar-se ou revelar-se como tais. A epoché (v.) fenomenológica, ao pôr entre parênteses a atitude naturalista que consiste em afirmar a realidade das coisas no mundo, tende a possibilitar que as próprias coisas manifetem sua essência. Desse ponto de vista, a V. é a evidência com que os objetos fenomenológicos se apresentam quando a epoché é efetuada (Ideen, I, § 136). Portanto, segundo Husserl, V. e evidência pertencem não só aos objetos teóricos, mas a todos os objetos da consideração fenomenológica, sejam eles valores, sentimentos, etc. (Ibid, § 139). Por sua vez, Heidegger insistiu no caráter de revelação ou de descobrimentodàV'., recorrendo inclusive à etimologia da palavra grega. Assim, por um lado insistiu no nexo estreito entre o modo de ser da V. e o modo de ser do homem, ou ser-aí, porquanto só ao homem a V. pode revelar-se e revela-se (Sein und Zeit, § 44). Por outro lado, insistiu na tese de que o lugar da. V. não é o juízo, e que a V. não é uma revelação de caráter predicativo, mas consiste no ser descoberto do ser das coisas, ou das próprias coisas, e no ser descobridor do homem (Ibid., § 44 b; v. Vom Wesen des Grandes, I, trad. it, p. 20). Heidegger, porém, também ressaltou o fato de que cada descobrimento do ser, por ser parcial, também é um cobrimento dele; esse tema é recorrente sobretudo nos seus textos do segundo período. "O ser subtrai-se, ao mesmo tempo em que se revela, ao ente. Desse modo o ser, ao iluminar o ente, desencaminha-o ao mesmo tempo para o erro" (Holzwege, p. 310). J1 A terceira concepção considera a V. como conformidade com uma regra ou um conceito. O primeiro a enunciar essa noção foi Platão. "Ao tomar como fundamento o conceito que considero mais sólido, tudo o que me pareça estar de acordo com ele será por mim posto como verdadeiro, quer se trate de causas, quer se trate de outras coisas existentes; o que não me pareça de acordo com ele será por mim posto como não verdadeiro" (Fed., 100 a). Essa concepção reaparece esporadicamente na história da filosofia. S. Agostinho afirmava que "acima da nossa mente há uma lei chamada V." e que nós podemos julgar todas as coisas em conformidade com essa lei, que no entanto escapa a qualquer juízo (De vera rei, 30-31)- Na literatura de inspiração agostiniana, esse tema retorna com freqüência, porém a mais importante expressão deste conceito de V. encontra-se em Kant. Este, de fato, não se vale dessa noção para a definição da V. (pois como dissemos, ele declara pressupor a definição nominalàa. V., que VERDADE 998 VERDADE é a da correpondência), mas como critério de V. Segundo Kant, o critério pode referir-se só à forma da V., ou seja, do pensamento em geral, e consiste na conformidade com "as leis gerais necessárias do intelecto". "O que contradiz essas leis" — afirma Kant — "é falso, porque o intelecto nesse caso contradiz suas próprias leis, portanto a si mesmo." Todavia, esse critério formal não basta para estabelecer a verdade material, ou objetiva, do conhecimento; aliás, a tentativa de transformar esse cânone de avaliação formal em órgão de conhecimento efetivo não passa de uso dialético, ou seja, ilusório da razão {Crít. R. Pura, Lógica, Intr., III; Logik, Intr., VII). Esse critério foi acolhido e acentuado pelos neokantianos, sobretudo pelos da Escola de Baden. Windelband considerava que o objeto do conhecimento, aquele que mede e determina a V. do conhecimento, não é uma realidade externa (que como tal seria inalcançável e incognoscível), mas a regra intrínseca do próprio conhecimento {Pràludien, 1884,4a ed., 1911, passim). Rickert identificava o objeto do conhecimento com a norma à qual o conhecimento deve adequar-se para ser verdadeiro {Der Gegenstad der Erkenntnis, 1892). Nesses neokantianos, a conformidade com a regra — que Kant propusera simplesmente como critério formal de V. — torna-se a única definição de V. 4B A noção de V. como coerência aparece no movimento idealista inglês da segunda metade do séc. XIX e é compartilhada por todos os que participaram desse movimento na Inglaterra e nos Estados Unidos. Aparece pela primeira vez em Lógica ou morfologia do conhecimen-to(1888) de B. Bosanquet, mas sua difusão se deve à obra de F. H. Bradley, Appearance and Reality (1893). A crítica de Bradley ao mundo da experiência humana partia do princípio de que aquilo que é contraditório não pode ser real; isso o levava a admitir que V. ou realidade é coerência perfeita. A coerência, porém, atribuída à realidade última, ou seja, à Consciência Infinita ou Absoluta, não é simples ausência de contradição; é abolição de qualquer multiplicidade relativa e forma de harmonia que não se deixe entender nos termos do pensamento humano {Appearance and Reality, 2- ed., 1902, pp. 143 ss.). Segundo Bradley, os graus de verdade que o pensamento humano alcança podem ser julgados e classificados segundo o grau de coerência que possuam, embora essa coerência seja sempre aproximativa e imperfeita {Lbid., p. 362). Esses conceitos aparecem em grande número de pensadores da mesma tendência (v. IDEALISMO), sem que a noção de coerência seja por isso modificada ou esclarecida (v. COERÊNCIA). OS precedentes dessa doutrina não estão tanto em Hegel (a quem, todavia, os idealistas ingleses se referiam com mais freqüência), mas em Spinoza. Na realidade, não passa de transcrição daquilo que Spinoza chamava de "terceiro gênero de conhecimento" ou "amor intelectual por Deus": conhecimento da ordem total e necessária das coisas, que Spinoza identificava com o Deus {Et., V, 25). 5° A definição da V. como utilidade pertence a algumas formas da filosofia da ação, especialmente o pragmatismo. Mas o primeiro a formulá-la foi Nietzsche: " Verdadeiro err^geral significa apenas_o que é apropriado à conservação 3a humanidade. O quejne jaz perecer quandojhe JÍQII fé não é verdade para mim: é uma relação arbitrária e ilegítimajjp meu ser com as coisas externas" {Wille zurMacht, ed. Krõner, 78, 507). Foi o pragmatismo que difundiu essa noção, defendida primeiramente por W. James. Este, porém, identificou utilidade e V. só nos limites das crenças empiricamente não verificáveis ou não demonstráveis, tais como as morais e as religiosas {The Will to Be-lieve, 1897). A equação entre utilidade e V. foi estendida a toda a esfera do conhecimento por F. C. S. Schiller {Humanism, 1903 e textos seguintes). Desse ponto de vista, uma proposição, qualquer que seja o campo a que pertença, só é verdadeira pela sua efetiva utilidade, ou seja, por ser útil para estender o conhecimento ou para, por meio deste, estender o domínio do homem sobre a natureza, ou então por ser útil à solidariedade e à ordem do mundo humano. Critério semelhante foi apresentado por H. Vaihinger em Filosofia do como se {Phi-losophie des Ais, 1911) e divulgado por M. De Unamuno em Vida de Don Quijote y Sancho (1905) (v. PRAGMATISMO). Talvez se possa entrever uma forma diferente dessa mesma concepção na tese de Dewey, da Insírumentalidade dos procedimentos cognoscitivos e do conhecF mento em seu ranjunto^com vistas ao aperfei-çoamento da vida humana no mundo. Contudo, em Dewey não se encontra a definição de V. como utilidade, mas apenas a afirmação do caráter instrumental — portanto válido, mas não verdadeiro — das proposições {Logic, XV, trad. it, p. 382-83) (v. VALIDADE). VERDADE DUPLA 999 VERIFICAÇÃO VERDADE DUPLA. V. DUPLA VERDADE. VERDADEIRO (gr. à\r\Béç, lat. Verum, in. True, fr. Vrai; ai. Wahr, it. Vero). Os estóicos distinguiam V. de verdade, porque o V. é um enunciado, logo é incorpóreo, enquanto a verdade, como ciência que contém todos os V., é um modo de ser da parte hegemônica do homem, portanto corpórea. Ademais, o V. é simples, enquanto a verdade consta de muitos V., e a verdade pertence à ciência, portanto ao sábio, enquanto o V. pode ser também do néscio (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 81-83; Adv. dogm., I, 38-42). Na Escolástica o V. foi considerado um dos transcedentais (v.), isto é, dos caracteres que pertencem às coisas como tais, independentemente dos seus gêneros, e por V. foi entendida a inteligibilidade da coisa (S. TOMÁS, S. Th., q. 16, a. \ ad. 3e). VERÍDICO (in. Veridical; fr. Vêridique, ai. Wahrhaftig; it. Verídico). 1. O mesmo que ve-raz ou verdadeiro (v. VERACIDADE). 2. O que contém uma parte ou um indício de verdade. P. ex., "sonho V", "alucinação V.", etc. VERIFICABILIDADE. V. VERIFICAÇÃO. VERIFICAÇÃO (in. Verification-, fr. Verification; ai. Verifikation; it. Verificazioné). 1. Em geral, qualquer procedimento que permita estabelecer a verdade ou a falsidade de um enunciado qualquer. Uma vez que os graus e os instrumentos da V. podem ser inumeráveis, esse termo tem alcance generalíssimo e indica a aplicação de qualquer procedimento de atestação ou prova (v.). Esse termo também pode ser usado para indicar a aferição de uma situação qualquer com base em regras ou instrumentos idôneos; nesse sentido, fala-se em verificar as contas, os graus de um ângulo ou a autenticidade de certos documentos, etc. Neste sentido geral, esse termo também é empregado sem referência à experiência ou aos fatos, poden-do-se falar em V. de uma expressão matemática, de um enunciado analítico da lógica, assim como em V. de um enunciado factual ou hipótese científica. Por outro lado, a noção de V. às vezes é ampliada para nela incluir não só o procedimento que permite estabelecer a verdade ou a falsidade de um enunciado, mas também o que permite estabelecer a verdade, a falsidade ou a indeterminaçâo do enunciado: isso com referência a uma lógica de três valores, e não de dois (cf. REICHENBACH, "The Principie of Anomaly in Quantum Mechanics", 1948, em Reading in the Phil. of Science, 1953, pp. 519-20). 2. Em sentido restrito e específico, a V. diz respeito aos enunciados factuais e é um procedimento que recorre à experiência ou aos fatos. Foi exatamente nesse sentido que o empb-rismo lógico (v.) entendeu a V. como critério do significado das proposições: critério que o Círculo de Viena (v.) interpretava da forma mais rigorosa, declarando desprovidos de sentido todos os enunciados que não se prestassem a uma absoluta verificação empírica. Esse ponto de vista foi expresso com todo o rigor por Carnap em sua obra Der logische Aufbau der Welt (1928). A possibilidade de uma verificação absoluta foi, porém, negada, no âmbito do próprio Círculo de Viena, por K. Popper (lo-gik der Forschung, 1935) e depois por Lewis ("Experience and Meaning", em Philosophical Review, 1934) e por Nagel (em Journal of Phi-losophy, 1934). Assim, o próprio Carnap modificava seu ponto de vista, e num ensaio de 1936 ("Testability and Meaning", agora em Readings in the Phil. of Science, 1953, p. 47-92) falava de confirmação (confirmation) dos enunciados, em vez de V. Sempre que a V. completa não seja possível (e quase nunca é possível no campo da ciência), o princípio da verificabilidade expressa a exigência de uma confirmação gradualmente crescente ilbid., p. 49). Deste ponto de vista, a aceitação ou a recusa de um enunciado factual contém sempre um componente convencional, que consiste na decisão prática que se deve tomar para considerar o grau de confirmação de um enunciado como suficiente para a sua aceitação. Este ponto de vista é hoje amplamente aceito. 3. No que diz respeito ao procedimento de V. factual, pouco foi dito até agora pelos filósofos. Reichenbach dividiu esse procedimento em duas fases, que são: ls introdução de uma classe fundamental O de enunciados observa-cionais, ou seja, de significados primitivos ou diretos que não estão sob indagação durante o curso da análise; 2Q um conjunto de relações derivativas (ou regras de transformação) D, que permitem ligar alguns termos com as bases O. Depois de definidas por indagação específica tanto a base O quanto as relações derivativas D, o termo "verificado" pode ser definido como "o ser derivado da base O nos termos das relações D'. A esta descrição Reichenbach acrescenta uma determinação importante: a condição do sig- VEROSSÍMIL 1000 VIDA nificado não é a atual, mas a V. possível (sem a qual os enunciados históricos, p. ex., não teriam significado); portanto, a noção de V. pressupõe a de possibilidade, e a esse respeito Rei-chenbach distingue a possibilidade lógica, a possibilidade física e a possibilidade técnica, distinguindo correspondentemente três espécies de significados ("Verifiability Theory of Meaning", em Proceedings of the American Academy of Arts and Sciences, 1951, pp. 46 ss.). Assim, a teoria de V. está ligada à noção da possibilidade (v.). VEROSSÍMIL (gr. EÍKÓÇ ; lat. Verisimiles; in. Líkely, fr. Vraisemblable, ai. Wahrscheinlicb, it. Verisimile). 1. O que é semelhante à verdade, sem ter a pretensão de ser verdadeiro (no sentido, p. ex., de representar um fato ou um conjunto de fatos). Portanto, uma narrativa, seja um romance ou uma tragédia, pode ser V. sem ser minimamente provável, sem que exista qualquer probabilidade de que os fatos mencionados se tenham verificado ou venham a verificar-se. Nesse sentido, foi constante o emprego do conceito de V. na estética, a partir de Aristóteles. "Narrar coisas efetivamente acontecidas" — dizia Aristóteles — "não é tarefa do poeta; dele seria a tarefa de representar o que poderia acontecer, as coisas possíveis segundo verossimilhança ou necessidade" (Poet., 9, 1451 a 36). Nesse sentido, V. é o caráter de enunciados, teorias e expressões que não contradigam as regras da possibilidade lógica ou as das possibilidades teóricas ou humanas. Um acontecimento humano imaginado é V. se for considerado compatível com o comportamento comum dos homens ou encontrar explicações ou respaldo nesse comportamento. 2. O mesmo que persuasivoCy.) ou provável (v.). Popper, contudo, fez a distinção entre verossimilhança (verisimilitudê) e probabilidade, porque, enquanto esta última representa a idéia de aproximação da certeza lógica ou da verdade tautológica por meio da gradual diminuição do conteúdo informativo, a verossimilhança representa a idéia da aproximação da verdade abrangente e, assim, combina verdade e conteúdo, enquanto a probabilidade combina verdade e falta de conteúdo (Conjectures andRe-futations, 1965, p. 237). VERUMIPSUM FACTUM. Fórmula utilizada por G. B. Viço para expressar o princípio de que o homem pode conhecer só o que ele mesmo fez, porque o conhecimento de uma coisa é o conhecimento da sua gênese (De antiquissima italorum sapientia, 1710, § 1). Mas esse conceito foi extraído de Hobbes, que o expusera em De homine (1658). Hobbes reduzira o domínio do conhecimento humano, por um lado, à matemática, cujos objetos são inteiramente produzidos pelo homem, e por outro lado à política e à ética, que também tratam de objetos (leis, convenções, princípios) criados pelo homem (De bom., 10). Analogamente, Viço inicialmente limitou o domínio do conhecimento humano à matemática (De antiquissima), e depois o estendeu para a história. Scienza nuova (1725). VETOR (in Vector, fr. Vecteur, ai. Vector, it. Vettoré). Em matemática, uma grandeza determinada em quantidade, direção e sentido. É habitualmente representado por uma flecha. Whitehead utilizou esse termo para indicar o referirse da experiência sensível ao exterior (Process and Reality, 1929, p. 249). VÍCIO (gr. KOCKÍOC ; lat. Vitium; in. Vice, fr. Vice, ai. Laster, it. Vizio). 1. O contrário da virtude nos vários significados deste termo. Com referência ao conceito aristotélico-estóico de virtude como hábito racional da conduta, o V. é um hábito (ou uma disposição) irracional. Neste caso, são V. os extremos opostos cujo meio-termo é a virtude: p. ex., a abstinência e a intem-perança diante da moderação, a covardia e a temeridade diante da coragem, etc. Neste sentido, a palavra V. só se aplica às virtudes éticas. Com referência às virtudes dianoéticas ou in-telectivas, V. significa simplesmente a falta delas: falta que, segundo Aristóteles, é vergonhosa somente como participação malograda nas coisas excelentes de que participam todos os outros, ou quase todos, ou pelo menos os que são semelhantes a nós, ou seja, os que têm nossa idade ou que são de nossa cidade, família ou classe social (Ret., II, 6,1383b 19; 1384a 22). 2. Portanto, o sentido mais geral de V. é a falta ou deficiência de alguma característica que um objeto qualquer (no sentido mais amplo) deveria ter segundo a regra ou a norma que lhe diga respeito. Nesse sentido geral, pode-se falar e fala-se de V. lógico ou de V. jurídico, etc. VIDA (gr. Çarf|, pUoç; lat. Vita-, in. Life, fr. Vie; ai. Leben; it. Vita). Característica que têm certos fenômenos de se produzirem ou se regerem por si mesmos, ou a totalidade de tais fenômenos. Essa caracterização é aqui dada apenas por ser aquela em torno da qual é mais amplo o açor- VIDA 1001 VIDA do entre filósofos e cientistas, e a título puramente descritivo, sem que o reconhecimento de uma característica própria dos fenômenos da V. implique o reconhecimento de um princípio ou de uma causa em si desses fenômenos. Veremos, aliás, que em certos níveis de V. a própria distinção entre o que é V. e o que não o é torna-se muito difícil ou perde sentido. A disputa entre vitalismo e antivitalismo não concerne ao problema da caracterização da V., mas ao da origem e do desenvolvimento da V.; quanto a esse problema, v. VITALISMO. Desde a Antigüidade os fenômenos da V. têm sido caracterizados com base em sua capacidade de autoprodução, vale dizer, com base na espontaneidade com que os seres vivos se movem, se nutrem, crescem, se reproduzem e morrem, de um modo que, pelo menos aparente e relativamente, não depende das coisas externas. Platão identificava alma e V. (Fed., 105 c), porque considerava própria da alma a capacidade de "mover-se por si" (Fed., 245 c). Aristóteles entendia por V. "a nutrição, o crescimento e a destruição que se originam por si mesmos" (Dean., II, I, 412 a 13), e conseqüentemente considerava que a V. é própria dos seres animais, pois estes "possuem em si mesmos uma potência ou um princípio tal que sofrem aumento ou diminuição nas direções opostas" (Ibid., II 413 a 27). Com base no mesmo conceito de V., Plotino afirmava que "toda V. é pensamento" e que o pensamento "vive por si mesmo" (Enn., III, 8, 8). S. Tomás afirmava que V. significa "a substância à qual convém por natureza mover-se ou conduzir-se espontaneamente e de qualquer modo à ação" (S. Tb., I, q. 18, a. 2); portanto, a alma é seu princípio (Ibid., I, q. 75, a. 1). Quando, com Descartes e Hobbes, surgiu o conceito mecanicista da V. e começou-se a comparar o homem e, em geral, o organismo vivo a uma máquina bem montada, o conceito de V. não mudou, visto que a hipótese mecanicista era inspirada aos filósofos exatamente pela crença de que "os autômatos podem mover-se por si" (DESCARTES, Traité de Vhomme, p. I; HOBBES, Leviath, I, Intr.). O que se negava neste caso era a identidade entre alma e V.: assim, considerava-se possível que a mesma matéria cor-pórea, em certas formas de organização, teria condições de moverse ou de desenvolver-se por si. A disputa entre vitalismo e mecanicismo (v. VITALISMO) versa sobre o seguinte: o mecanicismo afirma que a V. é devida a certa organização físico-química da matéria corpórea, enquanto o vitalismo considera que essa organização não é suficiente, e que a V. depende de um princípio de natureza espiritual, que é, p. ex., a archeus (v.) de Helmont, a natureza plástica (v.) de Cudworth, o dominante(v.) de Reinke, a enteléquia (v.) de Driesch, o elã vital(v.) de Bergson. Leibniz objetava ao mecanicismo e ao vitalismo que ambos contradizem o "grande princípio da física", segundo o qual "um corpo só se move se impelido por um corpo vizinho e em movimento"; considerava que a única teoria da V. compatível com esse princípio é a da harmonia preestabelecida, segundo a qual a V. consiste na concordância da ação das substâncias, preestabelecida por Deus (Sur le príncipe de vie, 1705, em Op., ed. Erdmann, pp. 429 ss.). O conceito da V. como auto-regulação parece ser simplesmente pressuposto tanto por aquela disputa quanto pela observação de Leibniz. E também por Kant, quando este afirma que "a V. é a capacidade de atuar segundo a faculdade de desejar", entendendo por faculdade de desejar "a faculdade de, por meio das representações, ser causa dos objetos dessas representações" (Crít. R. Prática, Pref, anotação; Anfangsgründe der Naturwissenschaft, III, teor. 3, anotação). O conceito de vida como auto-regulação também era pressuposto por Schel-ling, para quem a diferença entre o orgânico e o inorgânico consiste no fato de que o orgânico tem em si sua própria organização ou sua própria forma de V., enquanto o inorgânico é privado dela e faz parte de uma organização mais ampla, que é a V. da natureza em seu conjunto (Werke, I, III, pp. 89 ss.). Em sentido análogo, Hegel identificava a V. com "o princípio que dá início e movimento a si mesmo" (Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, II, p. 250), ou, em outros termos, com "o todo que se desenvolve, resolve seu desenvolvimento e mantém-se simples nesse movimento" (Phãnomen. des Geistes, I, IV, 1). Por outro lado, Claude Bernard escrevia: "As máquinas vivas são criadas e construídas de tal modo que, ao se aperfeiçoarem, vão-se tornando mais livres no ambiente cósmico geral. (...) A máquina viva mantém-se em movimento porque o mecanismo interno do organismo repara, por meio de ações e forças sempre renascentes, as perdas constituídas pelo exercício das funções. As máquinas cria- VIDA 1002 VIOLÊNCIA das pela inteligência do homem, embora infinitamente mais rudimentares, não são construídas de outra forma" (Intr. à 1'étude de Ia medicine expérimentale, II, 1,8). Finalmente, é preciso notar que o elã vital, em que Bergson reconheceu a fonte da V., outra coisa não é senão consciência, e consciência criadora, que extrai de si mesma tudo o que produz. Bergson diz: "O elã de V. de que falamos consiste numa exigência de criação. Não pode criar de modo absoluto porque encontra diante de si a matéria, ou seja, o movimento que é o inverso do seu ponto. Mas ele se apodera dessa matéria, que é a própria necessidade e tende a nela introduzir a maior soma possível de ^determinação e liberdade" (Évol. créatr., 8a ed., 1911, p. 273). Parece ter o mesmo significado a expressão de Whitehead, de que a vida é "autofruição individual e absoluta" (Nature and Life, 1934, II). Por outro lado, parece que a própria ciência recorre a uma caracterização nâd muito diferente dos fenômenos vitais, embora, como é óbvio, evite hipostasiar em entidades ou princípios essa caracterização. Os fenômenos que a ciência considera próprios da V. (metabolismo, plasticidade, reatividade, reprodução) são justamente aqueles em que é evidente o caráter de uma auto-regulação. Quando J. B. S. Haldane afirma que se pode considerar vivo "qualquer modelo de reação química capaz de autoperpetuar-se" ("The origin of Life", em Rationalist Annual, 1928, pp. 14853), está apenas expressando, com outras palavras, o velho conceito da auto-regulação, ao qual recorrem também, embora de modo indireto ou com expressões ambíguas ou disfarçadas (como "totalidade", "ciclicidade", "autonomia", "seletividade", etc), inclusive os cientistas de nítida inspiração materialista. Mas, apesar de serem quase unânimes as opiniões em torno do conceito de auto-regulação, este dificilmente poderia ser considerado uma caracterização suficiente dos fenômenos vitais em todos casos. Por um lado, realmente, em certos extremos da escala biológica (p. ex., para os vírus), não é possível afirmar que se trate de corpos vivos ou não. Em vista disso, já houve quem considerasse sem sentido o uso da palavra V. para referir-se aos sistemas situados na zona limítrofe, entre a V. e a matéria inorgânica (N. W. PIRIE, The Meaninglessness ofthe Terms "Life"and "Living", emj. NEEDHAM e D. R. GREEN, Perspectives in Biochemistry, 1937, pp. 21 ss.). Por outro lado, a teleonomia (v.), atribuída aos organismos vivos e interpretada como atividade orientada, coerente e construitiva, não impede que a biologia moderna (baseada sobretudo na genética e na bioquímica) considere os seres vivos como máquinas químicas, dotadas de unidade funcional e capaz de autoconstruir-se. Essas máquinas exigem a intervenção de um sistema cibernético que governe e controle a atividade química nos pontos estratégicos. Embora hoje estejamos distantes do dia em que a estrutura dos sistemas que constituem os organismos superiores será totalmente esclarecida, a tendência da ciência moderna nas pesquisas biológicas continua sendo marcada pela cibernética e pela bioquímica (cf., p. ex., MONOD, Lehasard et Ia necessite, 1970, cap. II). VIDA, FILOSOFIAS DA (in. Philosophies of life, fr. Philosohies de Ia vie, ai. Lebensphiloso-phien; it. Filosofe delia vita). Com esta expressão, utilizada especialmente na Alemanha, são denominadas as filosofias que têm em comum a característica de considerar a filosofia como V., mais que reflexão sobre a vida. Trata-se de uma expressão polêmica que permite aproximar filosofias diferentes como as de Nietzsche, Dilthey, Simmel, Spengler, James, Bergson e outros; foi empregada com fins polêmicos no título de um livro de Rickert (Die Philosophie des Lebens, 1920). VIDA, TERCEIRA (fr. Troisième vie). Foi esse o nome que Maine de Biran deu à vida religiosa ou mística do homem, que se distingue da vida simplesmente humana por ser a libertação dos afetos e das paixões, e da vida animal, que se caracteriza pelas sensações e pelos instintos (Nouveaux essais d'anthropolo-gie, 1823-24, em (Euvres, ed. Naville, III, p. 519). A terceira V. é a mesma que no Evangelho de João se chama de "V. segundo o espírito". VINGANÇA. V. TALIÃO. VIOLÊNCIA (gr. píct; lat. Violentia; in. Vio-lence, fr. Violence, ai. Gewaltsamkeit; it. Violen-zd). 1. Ação contrária à ordem ou à disposição da natureza. Nesse sentido, Aristóteles distin-guia o movimento segundo a natureza e o movimento por V.-. o primeiro leva os elementos ao seu lugar natural; o segundo afasta-os (De caei, I, 8, 276, a 22) (v. FÍSICA). 2. Ação contrária à ordem moral, jurídica ou política. Nesse sentido, fala-se em "cometer" ou "sofrer V.". Algumas vezes esse tipo de V. foi exaltado por motivos políticos. Assim, Sorel fez VIRTUAL 1003 VIRTUDE a distinção entre a V. que se destina a criar uma sociedade nova e a força, que é própria da sociedade e do estado burguês. "O socialismo deve à V. os altos valores morais com que oferece salvação ao mundo moderno" (Réflexions surla violence, 1966, trad. it., p. 133). VIRTUAL (in. Virtual; fr. Virtuel; ai. Virtuell; it. Virtualè). O mesmo que potencial (v.). VIRTUDE (gr. àpevf]; lat. Virtus; in. Virtue, fr. Vertu-, ai. Tugend; it. Virtü). Este termo designa uma capacidade qualquer ou excelência, seja qual for a coisa ou o ser a que pertença. Seus significados específicos podem ser reduzidos a três: ls capacidade ou potência em geral; 2a capacidade ou potência do homem; 3S capacidade ou potência moral do homem. ls No primeiro sentido, que é o da definição geral, a V. indica uma capacidade ou potência qualquer, como p. ex. de uma planta, de um animal ou de uma pedra. Maquiavel fala da "V." da arte da guerra {Opríncipe, 14), e Berkeley fala das "V. da água de alcatrão" (Subtítulo de Siris, 1744). 2a No segundo sentido, a V. é uma capacidade ou potência própria do homem. Assim, p. ex., chama-se de virtuoso/virtuose quem possui uma habilidade qualquer, como p. ex., para cantar, tocar um instrumento ou usar a gazua. Nietzsche quis retomar esse sentido de V..- "Reconheço a V. no seguinte: 1Q ela não se impõe; 2a ela não supõe a V. em todo lugar, mas precisamente uma outra coisa; 3 S ela não sofre pela ausência da V., mas considera essa ausência como uma relação de distância graças à qual há algo de venerável na V.; 4a ela não faz propaganda; 5a não permite que ninguém se erija em juiz, porque é sempre uma V. por si mesma; 6a ela faz exatamente tudo o que é proibido (a V., como a entendo, é verdadeiro vetitum em toda a legislação do rebanho); 7a ela é V. no sentido renascentista, V. livre de moralidade" {Wille zurMacht, ed. 1901, § 431). 3o No terceiro sentido, o termo designa uma capacidade do homem no domínio moral. Deve tratar-se de uma capacidade uniforme ou continuativa, como já declarava Hegel (Fil. do dir., § 150, anexo), porque um ato moral não constitui virtude. Essa condição, porém, nem sempre é respeitada, e Locke, p. ex., fala de V. e de vício no sentido de atos morais isolados (.Ensaio, II, 28, 11). As definições de V. nesse sentido estão compreendidas nas seguintes rubricas: a) capacidade de realizar uma tarefa ou uma função; b) hábito ou disposição racional; c) capacidade de cálculo utilitário; d) sentimento ou tendência espontânea; e) esforço. d) A V. como capacidade de realizar uma tarefa determinada é conceito platônico. Assim como os órgãos (p. ex., a função dos olhos é ver, e a possibilidade de ver é a V. dos olhos), a alma tem suas próprias funções, e sua capacidade de cumpri-las é a V. da alma (Rep., I, 353). Por isso, segundo Platão, a diversidade das V. é determinada pela diversidade das funções que devem ser cumpridas pela alma ou pelo homem no Estado. As quatro V. fundamentais ou cardeais (v.) são determinadas pelas funções fundamentais da alma e da comunidade. b) A concepção da V. como hábito (v.) ou disposição racional constante encontra-se em Aristóteles e nos estóicos, sendo a mais difundida na ética clássica. Segundo Aristóteles, a V. é o hábito que torna o homem bom e lhe permite cumprir bem a sua tarefa (Et. nic, II, 6, 1106 a 22); é um hábito racional (Ibid., II, 2,1103 b 32) e, como todos os hábitos, uniforme ou constante. Os estóicos, por sua vez, definiam a V. como "uma disposição da alma coerente e concorde, que torna dignos de louvor aqueles em quem se encontra e é louvável por si mesma, independentemente de sua utilidade" (CÍCERO, Tusc, IV, 15, 34; STOBEO, Ecl, II, 7, 60). Essas definições foram repetidas inúmeras vezes na filosofia antiga e medieval e também no pensamento moderno. Encontram-se, p. ex., em Abelardo (Theol. christ., II), Alberto Magno (5. Th., II, q. 102, a. 3), S. Tomás (S. Th., II, I, q. 55), Leibniz (que faz a distinção entre V. como hábitos, e as ações correspondentes, Nouv. ess., II, 28, 7) e Wolff (Phil. practica, I, § 321). c) O terceiro conceito considera a V. como capacidade de cálculo utilitário. Foi Epicuro o primeiro a expor essa noção, considerando como V. suprema (da qual todas as outras derivam) a sabedoria, que é capaz de julgar dos prazeres que devem ser escolhidos e dos prazeres de que é preciso fugir, e destrói as opiniões causadoras das perturbações da alma (DIÓG. L., X, 132). No Renascimento esse conceito foi defendido por Telésio, para quem a V. era a faculdade de estabelecer a medida certa das paixões e das ações, para que delas não proviessem prejuízo ao homem (De rer. nat. IX, 5). Mais tarde, concepção análoga foi defendida por Hu-me (Ink. Cone. Morais, I) e, em geral, pelo uti-litarismo inglês, em especial por Bentham, que VIRTUDE 1004 VISÃO definia a V. como "disposição para produzir felicidade" (Deontology, X). Apesar de ser peculiar ao empirismo, esse conceito de V. foi compartilhado por Spinoza: "Para nós, agir absolutamente segundo a V., nada mais é que agir, viver e conservar o próprio ser (três coisas que significam o mesmo) segundo a orientação da razão sobre o fundamento da busca do útil" (Et., IV, 24). d) O conceito de V. como sentimento ou disposição, vale dizer, como espontaneidade, encontra-se nos analistas ingleses do séc. XVIII, a começar por Shaftesbury: "Numa criatura sensível, que não é feito por meio de uma afeição não produz nem bem nem mal em sua natureza, pois essa criatura só pode ser chamada de bondosa quando o bem ou o mal do sistema com o qual ela está em relação for objeto imediato de alguma emoção ou afeição que a mova" (Characteristics ofMen, Treatise IV, livro I, part. 2, seç. I). Com base nisto, Hutchinson postulou um sentido moral como fundamento da V. (System of Moral Sentiments, 1754, III, I) e Adam Smith definiu esse sentido moral como simpatia (Theory ofMoral Sentiments, 1759, III, 1). Mas foi principalmente o Iluminismo francês que divulgou esse conceito: Rousseau falava da piedade como "V. natural", que é "uma disposição conveniente a seres tão débeis e sujeitos a tantos males quanto os homens", que antecede a reflexão (De 1'inégalité parmi les hommes, I); no mesmo sentido, Voltaire considerava que V. outra coisa não é senão "fazer o bem ao próximo" (Dictionnairephilosophique, art. Vertu). A ética do positivismo ateve-se a essa concepção, considerando a V. como manifestação do instinto altruísta (COMTE, Catéchisme positiviste, p. 48; SPENCER, Data ofEthics, § 46). Na filosofia contemporânea, pode-se distinguir concepção análoga na chamada "moral aberta" de Bergson, que é a manifestação do elã vital (Deux soucers, 1932, cap. I). é) Finalmente, a concepção de V. como esforço foi enunciada por Rousseau e adotada por Kant. Rousseau dizia: "Não existe felicidade sem coragem, nem V. sem luta: a palavra V. deriva da palavra força; a força é a base de toda virtude. A V. pertence apenas aos seres de natureza débil, mas de vontade forte: exatamente por isso homenageamos o homem justo; também por isso, mesmo atribuindo bondade a Deus, não dizemos que Ele é virtuoso, porque suas boas obras são por ele cumpridas sem esforço algum" (Émile, V.). Nesse espírito, Kant definiu a V. como "intenção moral em luta", que não teria sentido caso o homem tivesse acesso à santidade, ou seja, à coincidência perfeita da vontade como lei (Crít. R. Prática, I, livro I, cap. III). Assim como Cícero (v. CORAGEM) e Rousseau, ele uniu estreitamente a noção de V. com a de coragem: "A qualidade especial e o propósito elevado com que se resiste a um adversário forte mas injusto chama-se coragem (fortitudo); quando se trata do adversário encontrado pela intenção em nós mesmos, chama-se V. (virtus, fortitudo moralis). Portanto, a parte da doutrina geral dos deveres que submete a liberdade interna (e não a externa) a leis é uma doutrina da V." (Met. der Sitten, II, Intr., I). Em polêmica com Kant, Schiller procurou integrar a doutrina Kantiana na concepção de V. como espontaneidade ou sentimento, dizendo: "Não tenho bom conceito do homem que pode confiar tão pouco na voz do instinto que precise silenciá-lo o tempo todo diante da lei moral; respeito e estimo mais aquele que se entrega ao instinto com certa segurança, sem o risco de ser por ele desencaminhado" (Über Anmut und Würde, 1793, em Werke, ed. Karpeles, XI, p. 202). O conceito de alma bela (v.) nascia exatamente dessa noção da V. como espontaneidade, à qual Kant respondia que, se "o temperamento da V. for corajoso e portanto alegre", a V., entre os seus outros benefícios, também pode ser acompanhada pela graça (Religion, I, Observ., nota). Já Hegel observava que no seu tempo não se falava mais tanto de V. (Fil. do dir., § 150, Zusatz), pois "falar de V. confina facilmente com declamação vazia, pois assim se fala apenas de algo abstrato e indeterminado"; e que o discurso sobre a V. destina-se ao indivíduo enquanto arbítrio subjetivo (Ibid., § 150). A observação de Hegel também se aplica aos nossos tempos, em que a discussão do problema moral deixou de ter forma de discurso sobre a V., para assumir a forma de discurso sobre valores e normas, de um lado, e sobre atitudes e modos de vida de outro (v. ÉTICA). VIRTUDES CARDEAIS, DIANOÉTICAS, ÉTICAS, TEOLOGAIS. V. CARDEAIS, VIRTUDES; DlANOÉTICO; ÉTICAS, VIRTUDES; TEOLOGAIS, VIRTUDES. VISÃO (in. Vision; fr. vision; ai. Anschauung, Trãumerei; it. Visioné). 1. No sentido propriamente filosófico, o mesmo que intuição (v.). 2. O sentido da vista. VISIONÁRIO 1005 VTTALISMO 3. Alucinações, sonhos, imagens de fantasmas ou de espíritos desencarnados, consideradas reais. VISIONÁRIO (in. Visionary, fr. Visionnaire, ai. Geisterseher, it. Visionário). Quem tem visões no terceiro sentido do termo. Este é o sentido da palavra do título da obra de Kant, Sonhos de um visionário esclarecidos por sonhos da metafísica (1766), em que ele fazia uma analogia entre "os sonhadores da sensação", que são os que acreditam ver espíritos desencarnados, e os "sonhadores da razão", ou metafísicos, que também vivem num mundo de sonhos ou de visões particulares. VITALIDADE (in. Vtíality, fr. Vitalité, ai. Vita-litã; it. Vitalita). No sentido corrente do termo, potência ou plenitude de vida. Esse termo começou a ser usado quando Nietzsche evidenciou e exaltou os "valores vitais", opondo-os aos valores renunciatórios da moral tradicional (v. TRANSMUTAÇÃO). VITALISMO (in. Vítalism- fr. Vitalisme, ai. Vitalismus, it. Vitalismó). Termo oitocentista para indicar qualquer doutrina que considere os fenômenos vitais como irredutíveis aos fenômenos físico-químicos. Essa irredutibilidade pode significar várias coisas, pois vários são os problemas cujas soluções dividem os partidários e os adversários do V. ls Em primeiro lugar, significa que os fenômenos vitais não podem ser inteiramente explicados com causas mecânicas. 2S Em segundo lugar, significa que um organismo vivo nunca poderá ser produzido artificialmente pelo homem num laboratório de bioquímica. 3S Em terceiro lugar, significa que a vida sobre a terra, ou, em geral, no universo, não teve origem natural ou histórica decorrente da organização e do desenvolvimento da substância do universo, mas é fruto de um plano providencial ou de uma criação divina. l s Segundo o primeiro ponto de vista, podem ser chamados de vitalistas todos os conceitos clássicos que, identificando a vida com a alma, excluem-na de qualquer influência das forças materiais. Em sentido mais preciso, V. é a doutrina defendida por filósofos e cientistas entre meados do séc. XVIII e meados do séc. XIX, segundo a qual o fundamento dos fenômenos vitais é uma força vital que não depende de mecanismos físico-químicos. É característica do V. declarar inútil a investigação científica dos fenômenos vitais, portanto ela nunca conseguirá apreender a força que constitui a essência da vida. O V. nesta forma foi invalidado pelas descobertas da bioquímica, que, a partir de 1828 (data em que foi efetuada a fabricação sintética da uréia), demonstrou a possibilidade de produzir substâncias orgânicas em laboratório. O neovitalismo, levando em conta essa possibilidade, reconhece a utilidade da investigação físicoquímica dos fenômenos vitais, mas continua admitindo a irredutibilidade desses fenômenos às forças físico-químicas, afirmando que eles são dirigidos por um elemento específico que recebe vários nomes {dominante [v.] em Reinke, enteléquia [v.] em Driesch, elã vital [v.] em Bergson. A dificuldade principal desse aspecto do V. é a inoportunidade de admitir uma causa desconhecida e inacessível, pouco mais que um nome e, além disso» capaz de tornar insignificante ou descabida a observação científica dos fenômenos vitais. Uma causa assim, exatamente por fugir à observação, nada explica ao pretender tudo explicar; é um asilo da ignorância ou da razão indolente. 2° Quase todas as formas de V. contemporâneo compartilham, além da tese da irredutibilidade no sentido acima, a profecia de que é impossível a ciência produzir vida em laboratório. Obviamente, essa profecia está além de tudo o que a ciência pode afirmar legitimamente. É fato que a investigação bioquímica até hoje não conseguiu produzir sínteses orgânicas que tenham características evidentes de matéria viva, mas que ela não possa chegar a isso não é fato, e sim uma asserção que só pode estar apoiada num conceito ultracientífico ou metafísico da vida. Desse ponto de vista, o interesse da ciência é um materialismo metodológico que admite: Ia que os fenômenos vitais tem características próprias, diferentes das características do fenômenos físico-químicos, mas não tão diferentes que criem um abismo entre ambas as ordens de fenômenos e impossibilitem qualquer passagem de um para outro; 2S que se pode e deve levar adiante a análise científica dos fenômenos vitais, como a única capaz de explicar os fenômenos. Esse é o ponto de vista de um grupo numeroso de biólogos contemporâneos (cf. a respeito G. G. SIMPSON, TheMeaning ofEvolution, cap. X). 3a Quanto ao problema da origem da vida na Terra ou, em geral, no universo a antiga crença na geração espontânea admitia como fato normal, não miraculoso, que a vida se ori- VITORIOSO, ARGUMENTO 1006 VOCAÇÃO gina da matéria inorgânica. Essa crença já refutada pelas experiências de Francesco Redi (1668) e de Lazzaro Spallanzani (1765), foi definitivamente alijada da ciência por Pasteur (1862). Por outro lado, a hipótese da panspermia (v.), que admite a migração de sementes vitais no universo, ao mesmo tempo que não constitui uma resposta ao problema da origem da vida, parece ser contraditada pelas condições supostamente existentes nos espaços interestelares, sobretudo pela ação bactericida dos raios ultravioleta. Nessa situação, só existem duas soluções alternativas. Pela primeira, a vida é obra direta ou indireta de Deus, de tal forma que sua origem nada tem de natural, mas é fruto de uma criação que ocorreu em dado ponto da história cósmica ou ocorre incessaate e continuamente. Esta última é a versão aceita por Bergson iÉvo-lution créatrice, 1907) e retomada por Teilhard de Chardin (Lephénomèríe humain, 1955). A segunda alternativa admite a possibilidade de que a vida na Terra tenha uma origem natural ou histórica que se deu a partir de determinada fase da organização da matéria inorgânica. Essa possibilidade pode ser exemplificada com boas razões científicas; isso foi feito, p. ex., por A. I. Oparin (L'origine delia vita sula terra, trad. it., 1956). Os últimos avanços da biologia devidos à genética (v.) e à bioquímica, dão destaque a essa possibilidade, que no entanto só se realizaria se a ciência conseguisse reproduzir vida em laboratório e, assim, determinar as condições que possibilitam efetivamente o seu desenvolvimento a partir da matéria inorgânica. Mas está claro que, se isso acontecesse, toda a discussão da origem da vida perderia sentido, pois estaria determinada inclusive a data provável de sua origem em relação a história da Terra. VITORIOSO, ARGUMENTO (gr. ó Kupi eúrav Xóyoç). Argumento famoso, com o qual Diodoro Cronos, um dos seguidores da escola socrática de Mégara (séc. IV-V a.C), mostrava a identidade entre o possível e o necessário. Esse argumento era assim formulado: "Do que é possível não pode seguir-se algo impossível. Ora, é impossível que aquilo que passou seja diferente do que foi. Mas se, num momento anterior, tivesse sido possível algo diferente do que foi, do possível teria surgido o impossível: logo, o que é diferente do que foi não era possível em nenhum momento. Por conseguinte, é impossível que possa acontecer algo que não aconteça realmente" (EPICTETO, Diss., II, 19, I; v. CÍCERO, De fato, 6 ss.). Limitando a possibilidade ao que realmente aconteceu, Diodoro afirmava a necessidade de tudo o que acontece, ou seja, é impossível que o que acontece possa acontecer de modo diferente de como acontece (v. NECESSÁRIO; POSSÍVEL). Na filosofia contemporânea, esse argumento é adotado por N. Hartmann, com explícita referência a Diodoro Cronos (Mòglicbkeit und Wirklichkeit, 1938, pp. 186 ss.). VTVACIDADE (in. Vivacity). Característica fundamental que estabelece a distinção entre impressões e idéias, segundo Hume: impressões e idéias assemelham-se, mas as primeiras têm mais "força e V.", e assim inclinam à crença (Treatise, I, I, 1; I, III, 7). VIVÊNCIA (ai. Erlebnis). Experiência viva ou vivida, a V. designa toda atitude ou expressão da consciência. Dilthey utilizou bastante essa noção assumindo-a como instrumento fundamental da compreensão histórica e, em geral, da compreensão inter-humana. Caracterizou-a do seguinte modo: "A V. é, antes de mais nada, a unidade estrutural entre formas de atitude e conteúdos. Minha atitude de observação, juntamente com sua relação com o objeto, é uma V., assim como meu sentimento de alguma coisa ou meu querer alguma coisa. A V. é sempre consciente de si mesma" (Grundlegung der Geisteswissenschaften, II, 1, 2). Do mesmo modo, Husserl considerou a V. como um fato de consciência, logo, como um entre os demais conteúdos do cogito. "Consideramos as V. de consciência em toda a plenitude concreta com que se apresentam em sua conexão concreta — o fluxo da consciência — e na qual se unificam graças à sua própria existência. Portanto, é evidente que toda V. do fluxo que o olhar reflexivo consegue apreender tem uma essência própria, a ser captada intuitivamente, em conteúdo que pode ser considerado em sua característica intrínseca" ildeen, 1, § 34). Carnap falou de V. elementares (Elementarerlebnisseri) como elementos originários de que se vale a construção lógica do mundo, juntamente com as relações (Der logische Aufbau der Welt, 1928, § 65). VOCAÇÃO (gr. KÀf|cn.ç; lat. Vocatio, in. Vo-cation; fr. Vocation; ai. Beruf; it. Vocazioné). Na origem, um dos conceitos fundamentais do cristianismo paulino: "Quem for chamado numa VOLUNTÁRIO 1007 VONTADS V., nela permaneça" (Adcor, I, VII, 20). A V. é hoje um conceito pedagógico e significa propensão para qualquer ocupação, profissão ou atividade. É diferente da aptidão, por ser a atração que o indivíduo sente por determinada forma de atividade, para a qual pode ser ou não apto. A aptidão pode ser controlada objetivamente; a V. é subjetiva. Uma V. pode portanto ser também um beco sem saída (blind-alley vocatiorí). VOLUNTÁRIO (in. Voluntary, fr. Volontaire, ai. Freiwillig; it. Volontarió). 1. Que pertence à vontade ou diz respeito à vontade. 2. O mesmo que livre (v. LIBERDADE). VOLUNTARISMOCin. Voluntarism, fr. Volon-tarisme, ai. Voluntarismus, it. Volontarismô). Este termo, usado pela primeira vez por Tõnnies em 1883 e divulgado por Wundt (v. EUCKEN, Geistige Strõmungen der Gegenwart, p. 33), foi empregado para indicar duas tendências doutrinais diferentes: Ia a que afirma o primado da vontade sobre o intelecto; 2a a que vê na vontade à substância do mundo. Ia A primeira tendência é a gnosiológica e ética. Esse tempo foi aplicado para caracterizar algumas correntes da filosofia medieval. Henrique de Gand (morto em 1293) afirmou a superioridade da vontade sobre o intelecto porque o hábito, a atividade e o objeto da vontade são superiores aos do intelecto. De fato, o hábito da vontade é o amor; o do intelecto é a sabedoria; o amor é superior à sabedoria. A atividade do querer identifica-se com o objeto dele, que é o fim, enquanto a atividade do intelecto é sempre distinta e separada do seu objeto. Finalmente o objeto do querer é o bem, que é o fim absoluto, enquanto o objeto do intelecto é o verdadeiro, que é um dos bens, portanto subordinado ao fim último (Quodi, I, q. 14). Duns Scot afirmou o primado da vontade, mas com outro fundamento: não é a bondade do objeto que causa necessariamente o assenti-mento da vontade, mas é a vontade que escolhe livremente o bem e livremente luta pelo bem maior (Op. Ox., I, d. I, q. 4, n. 16). A esta doutrina está ligada outra, segundo a qual o bem e mal consistem no mandamento divino. "Deus não pode querer algo que não seja justo porque a vontade de Deus é a primeira regra" (Ibid, IV, d. 46, q. I, n. 6). No último período da Escolástica o V. ocorre numa ou noutra dessas formas. Análogo a essas concepções medievais é o V. psicológico, encontrado em Tõnnies (Gemeinschaft und Gesellschaft, 1887, pp. 99 ss.) e principalmente nas obras de Wundt, que divulgou conceito e termo. Nesse sentido, V. não significa reduzir todos os processos psíquicos a V., mas explicar esses processos segundo o modelo apresentado pelos processos da vonta^ de (WUNDT, Grundzüge der physiologischen Psychologie, 1902, 5a ed., pp.17 ss.). Esse V. foi defendido na França por Fouillée (Psychologie des Idées-forces, 1893) e adotado por numerosos psicólogos nas primeiras décadas do séc. XX. 2â O V. metafísico foi iniciado por Scnopen-hauer, para quem a vontade é substância ou número do mundo, enquanto o mundo natural é manifestação ou revelação da vontade. Como aparência ou fenômeno, o mundo é representação; como substância ou número, é vontade. A vontade é a essência do corpo humano, no qual é conhecida diretamente e está em si mesma, e essência de qualquer outro corpo, identificando-se com qualquer força do mundo (Die Welt, I, § 19). Como tal, a vontade determina o mundo da representação, definido por Schopen-hauer como "objetividade da vontade", e sub-julga esse mundo, mostrando-o nas formas de espaço, tempo e causalidade, que são as formas do fenômeno (Ibid., § 23). Essas idéias muitas vezes foram parcialmente acolhidas pelos filósofos do fim do século passado: basta aqui lembrar Novos ensaios de antropologia (1813-24), de Maine de Biran, e Filosofia do inconsciente, de Eduard von Hartmann (1869). VOLUPTUOSIDADE. V PRAZER VONTADE (gr. (3oúA.riOT.ç; lat. Voluntas; in. Will; fr. Volunté, ai. Wille, it. Volonta). Esse termo foi usado com dois significados fundamentais: 1Q como princípio racional da ação; 2a como princípio da ação em geral. Ambos os significados, porém, pertencem à filosofia tradicional e à psicologia oitocentista, porque ligados à noção de faculdade, ou poderes originários da alma que se combinaram para produzir as manifestações do homem (v. FACULDADE). Mas hoje nem a filosofia nem a psicologia interpretam desse modo a conduta do homem. As noções de comportamento (v.) e de forma (v.), bem como a tendência funcionalista da psicologia (v.), não permitem falar de "princípios" da atividade humana e, portanto, a classificação intelecto-V. ou intelecto-sentimento-V. perderam o significado literal. Às vezes, o termo V. é conservado, mas unicamente para indicar determinados tipos de conduta ou certos aspectos da VONTADE 1008 VONTADE conduta. É nesse sentido que devem ser entendidas as referenciais à psicologia contemporânea contidas neste verbete. Ia O primeiro significado é o da filosofia clássica: para ela, a V. é apetite racional ou compatível com a razão, distinto do apetite sensível, que é o desejo (v.). A distinção entre estas duas coisas está em Platão, para quem retores e tiranos não fazem o que querem, embora façam o que lhes agrada ou parece, visto que fazer o que se quer significa fazer o que se mostra bom ou útil. e isso é agir racionalmente {Górg., 466 ss.). Aristóteles definiu a V. como "apetição que se move de acordo com o que é racional" {Dean., III, 10, 433 a 23); o termo voluntário é usado por Aristóteles para definir a escolha (v.), que seria "a apetição voluntária das coisas que dependem de nós" {Et. nic, III, 3, 1113 a 10). Os estóicos concordaram com esse conceito de V., por eles definida como "apetição racional" (DiÓG. L., VII, 116). Cícero referia-se a essas doutrinas afirmando que "a V. é um desejo compatível com a razão, enquanto o desejo oposto à razão, ou demasiado violento para ela, é a libidinagem ou a cupidez desenfreada que se encontra em todos os insensatos" {Tusc, IV, 6, 12). Esta concepção prevalece durante toda a Idade Média e é repetida por Alberto Magno (5. Th., I, q. 7, a. 2), S. Tomás {S. Th., I, q. 80, a. 2), Duns Scot {Rep. Par., III, d. 17, q. 2, n. 3; Op. Ox., III, d. 33, q. 1, n. 9) e Ockham {In Sent., IV, 9, 14 G). Todas são repetições liberais do conceito tradicional de V. como apetite racional. Menos liberal é a repetição desse conceito em Spinoza, que entende por V. "a faculdade de afirmar ou de negar, e não o desejo.- faculdade graças à qual a mente afirma ou nega o que é verdadeiro ou o que é falso, e não desejo com que a mente deseja ou repele as coisas" {Et., II, 48, scol.). Entretanto, ainda literal é a repetição desse conceito por Wolff (chama-se "V. o apetite racional que nasce da representação distinta do bem", Psicol. empírica, § 880) e pelo próprio Kant, que entende por V. a razão prática, isto é, a "faculdade de agir segundo a representação de regras" {Grundlegung der Metaphysik der Sitten, II). Fichte não pensava em nada muito diferente ao afirmar que a V. é a faculdade "de efetuar com consciência a passagem da indeterminação para a determinação": faculdade que a razão teórica obriga a pensar que existe {Sittenlehre, § 14). Em sentido análogo, Hegel afirma que a V. é universal, "no sentido de universal como 'racionalidade'" {Fil. do dir., § 24). A distinção de Croce entre a forma econômica, utilitária, e a forma ética ou moral da atividade prática corresponde à distinção tradicional entre desejo e vontade. Segundo Croce, a forma econômica seria voliçâo do particular, ou seja, do útil; a forma moral seria voliçâo do universal, ou seja, apetição racional {Filosofia delia pratica, 1909, pp. 217 ss.). Na noção de V. como apetite racional também pode ser integrada a tendência da psicologia moderna a fazer distinção entre V. e impulso e a considerar a V. condicionada por uma manipulação de símbolos. G. Murphy, p. ex., diz: "V. é o nome com o qual se designa um complexo processo interior que influencia nosso comportamento de tal modo que nos toma presa menos fácil da pura força bruta dos impulsos. Falamos com nós mesmos, introduzimos modos diferentes de expressar nossa situação, imaginamos as conseqüências dos vários tipos de resposta e procuramos avaliar quanto cada um deles nos agradará" Untroduction to Psychology, 1950, cap. IX, trad. it., p. 163). O que a psicologia moderna chama de "elaboração de símbolos" é o mesmo que na terminologia tradicional se chamava "processo racional". Finalmente, a mesma noção de V. está implícita nas expressões V.pura, boa V., V. geral, V. de crer. Segundo Kant, V. pura é a V. determinada apenas por princípios a priori, por leis racionais, e não por motivos empíricos particulares {Grundlegung der Met, der Sitten, pref.). Boa V., também segundo Kant, é a V. de comportar-se exclusivamente de acordo com o dever; desse modo, é exaltada por Kant como o que existe de melhor no mundo ou também fora do mundo {Ibid., I). V. geral é concebida pelos iluministas como a própria razão. Diderot diz: "A V. geral é em cada indivíduo um ato puro do intelecto que raciocina no silêncio das paixões sobre o que o homem pode exigir de seu semelhante e sobre o que o seu semelhante tem direito de exigir dele" {Ari droit naturel, na Encyclopé-die, V, p. 116). Rousseau fazia a distinção entre "V. de todos", que pode errar, e V. geral, que nunca erra porque só tem em mira o interesse comum {Contraí social, II, 3). Finalmente, a V. de crer, de que fala James, nada mais é que a racionalidade da fé, o direito de crer no que não é absurdo, no que torna a VONTADE 1009 VONTADE vida mais aceitável e, às vezes, é posto em ser pela própria fé {The Will to Believe, 1897). 2Q Por outro lado, a V. às vezes foi identificada com o princípio da ação em geral, ou seja, com a apetição. O primeiro a expor esse conceito generalizado da V. foi S. Agostinho, segundo quem "a vontade está em todos os atos dos homens; aliás, todos os atos nada mais são que vontade" {De civ. Dei, XIV, 6). S. Anselmo repetia essa noção {Libero arbítrio, 14, 19), que na idade moderna foi aceita por Descartes. Este, assim como S. Agostinho, chamou de V. todas as ações da alma, em oposição às paixões: "O que chamo de ações são todas as nossas V., porque sentimos que elas vêm diretamente do nosso espírito, e parece que dependem só dele, enquanto as afeições são todas as percepções ou conhecimentos que se encontram em nós mas não foram produzidos por nossa alma, que, portanto, os recebeu das coisas representadas" {Pass. de Vâme, I, 17). Hobbes faz uma crítica explícita à noção tradicional: "Não é boa a definição de V. como apetite racional, comumente proferida pelas escolas. Pois se fosse, não poderiam existir atos voluntários contrários à razão. (...) Mas se, em lugar de apetite racional, dissermos apetite resultante de deliberação anterior, então a V. será o último apetite a deliberar" {Leviath., I, 6). O último apetite é o mais próximo da ação, ao qual a ação se segue. Desse ponto de vista, a V. humana não é diferente da apetição animal {De corp., 25, § 13). De modo análogo, Locke definia a V. como "o poder de começar ou não começar, continuar ou interromper certas ações do nosso espírito, ou certos movimentos do nosso corpo, simplesmente com um pensamento ou com a preferência do próprio espírito" {Ensaio, II, 21, 5). E Hume declarava: "Por V.mão entendo outra coisa senão a impressão interior que sentimos ou de que somos côns-cios, quando conscientemente damos origem a um novo movimento do nosso corpo ou a uma nova percepção do nosso espírito" {Treatise, II, III, I). Hume negava também qualquer influência da razão sobre a V. assim entendida, reduzindo as chamadas volições racionais às emoções tranqüilas, ligadas a instintos originários da natureza humana (como benevolência e ressentimento, amor pela vida, gentileza para a criança) ou ao apetite geral pelo bem e a aversão ao mal {Ibici., II, III, 3). Muito semelhante a esta é a definição de Condillac: "Por V. se entende um desejo absoluto, em virtude do qual pensamos que a coisa desejada está em nosso poder" {Traité des sensations, I, 3, 9). Concepções muito semelhantes encontram-se freqüentemente nos iluministas e nos ideólogos do séc. XVIII e do início do séc. XIX. Mach retomava essa concepção {Populãrwissenschaftlische Vorlesungen, 1896, p. 72), e Dewey repetia quase literalmente a definição de Hobbes ao dizer: "A V. não é algo oposto às conseqüências ou separado delas. É a causa das conseqüências; é a causação em seu aspecto pessoal; o aspecto que precede imediatamente a ação" {Human Nature and Conduct, p. 44). À mesma tendência geral pertence a interpretação da V. como modo de ser do cuidado (v.), segundo Heidegger, sendo o cuidado a manifestação fundamental da existência do homem no mundo, que consiste propriamente em preocupar-se com as coisas e cuidar dos outros {Sein und Zeit, § 41). Por outro lado, certas interpretações da psicologia contemporânea podem ser enquadradas na mesma tendência geral: é o que acontece com a famosa interpretação de McDougall, segundo a qual a volição seria "o apoio ou o reforço que um desejo ou uma conação recebe da cooperação de um impulso excitado no sistema dos sentimentos de autoconsideraçào" (Introduction to Social Psycology, 1908). Segundo essas interpretações, de fato, seriam atos voluntários aqueles nos quais o impulso determinante é constituído por uma atitude de respeito ou de exaltação do Eu diante de si mesmo. Finalmente, nas expressões V. de viver e V. de potência, a V. é entendida no sentido mais geral. A V. de viver que, segundo Schopenhauer, é o número do mundo, nada tem de racional: "é um ímpeto cego, irresistível, que já vemos aparecer na natureza inorgânica e vegetal, assim como também na parte vegetativa de nossa própria vida". Portanto, "o que a v. sempre quer é a vida, justamente porque esta é apenas o manifestar-se da V. na representação, e é simples pleonasmo dizer V. de viver era vez de V." {Die Welt, I, § 54). Analogamente, V. de potência é, segundo Nietzsche, um impulso fundamental que nada tem de causação racional: "A vida, como caso particular, aspira ao máximo sentimento de potência possível. Aspirar a outra coisa não é senão VÓRTICE 1010 VULGAR aspirar à potência. Essa V. é sempre o que há de mais íntimo e profundo: a mecânica é uma simples semiótica das conseqüências iWille zurMacht, ed., 1901, § 296). VÓRTICE (gr. 8tvoç; lat. Vortex, in. Vortex, fr. Vortex, ai. Wirbel; it. Vórtice). Conceito fundamental da física antiga. Anaxágoras considerava o V. como o meio de que se vale o intelecto divino para ordenar o mundo (CLEMENTE, Strom., II, 14). Demócrito considerava-o como "a causa da geração de todas as coisas" e identificava-o com a necessidade (DióG. L., IX, 45). Epicuro retomava o mesmo conceito ilbid., X, 90), que na Idade Moderna ainda foi utilizado por Descartes (Phil. princ, II, 33). VULGAR (lat. Vulgares-, in. Vulgar, fr. Vulgaire, ai. Gemein; it. Volgaré). Essa palavra foi usada em sentido não pejorativo por Tertuliano, que deu valor ao testemunho contido nas expressões usadas pelo povo; elas são "V. porque comuns, comuns porque naturais, naturais porque divinas" {De testimonio animae, 6). Viço dizia: "as tradições V. devem ter possuído razões notórias de verdade, em vista do que nasceram e foram propagadas por povos inteiros por longos intervalos de tempo" (Sc. nuova, diga, 16; v. dign., 17) 1 w WELTANSCHAUUNG. V. INTUIÇÃO DO MUNDO. X X. 1. Às vezes a letra xé usada em filosofia como símbolo da incógnita. Foi usada por Kant na primeira edição da Crítica da Razão Pura e em Opus postumum: "O objeto transcendental significa alguma coisa = x, da qual nada sabemos e da qual (segundo a atual constituição do nosso intelecto) nada podemos saber, mas que pode servir apenas como um correlato da unidade da aper-cepçào" (Crít. R. Pura, A, 250; v. Opus postumum, IX, 2, pp. 280, 308, 418, etc). Outras vezes, nos neokantianos, o x constitui o indeterminado que o processo tende a determinar, o incógnito ser do qual cada passo do conhecimento serve para evidenciar um aspecto (NATORP, Philosophie, 1921, 3g ed., pp. 41 ss.). 2. Na lógica contemporânea, "x" é o argumento qualquer de uma função (v.). O símbolo "(x)" é o quantificador universal, um dos operadores lógicos fundamentais (v. OPERADOR). 2 ZELOTIPIA (lat. Zelotypid). Segundo Baum-garten, é o amor que deseja que o amor do ser amado lhe seja proporcional (Mel, § 905). ZEN. Corrente budista fundada por Bodhi-dharma na China, no ano 527 d.C., e introduzida no Japão por Ei-Sai em 1191, onde se desenvolveu com características próprias. Seu ensinamento fundamental é a eliminação da oposição — típica do budismo — entre o mundo das aparências (samsard) e o nirvana-, sua tarefa é ensinar a ver (e realizar) o nirvana nas mais simples e modestas manifestações da vida diária. Um mestre do Z. enumera da seguinte maneira os dez passos sucessivos que constituem o trabalho de toda a vida de um partidário do Z.: 1- o partidário do Z. deve crer que existe um ensinamento (o Z.), transmitido fora da doutrina budista geral; 2- deve ter conhecimento definido desse ensino; 3a deve entender por que tanto o ser senciente quanto o não senciente podem pregar o dharma (a lei do mundo); 4- deve ser capaz de ver a substância como se contemplasse algo vivido e claro bem na palma de sua mão; o seu passo deve ser sempre resoluto e firme; 5e deve ter "o olho do dharma"; 6Q deve trilhar "a senda dos pássaros" e "a estrada do além" (ou "estrada do milagre"); 7Q deve saber desempenhar tanto um papel positivo quanto um papel negativo no drama do Z. ; 8e deve destruir todos os ensinamentos heréticos e enganadores e apontar para os justos; 9a deve conquistar grande força e flexibilidade; 10Q deve participar da ação e praticar diferentes modos de vida. Nos últimos anos o Z. suscitou grande interesse nos países ocidentais, especialmente nos Estados Unidos, onde às vezes é estudado em relação com vários aspectos da cultura ocidental (cf. a bibliografia contida na tradução italiana de A. W. WATTS, The Spirit of Z., 1935. Para os dez graus da iniciação do Z., v. CHANG-CHENG-CHI, The Practice of Z, 1959, p. 33). ZERO (in. Zero-, fr. Zero; ai. Null; it. Zero). O Z. foi introduzido como número só na matemática moderna. Peano incluiu-o entre as noções primitivas do seu sistema lógico (v. ARITMÉTICA). Russell definiu o Z. como "a classe cujo único membro é a classe nula" (Introduction to MathematicalPhilosophy, III; trad. it., p. 35). Em sentido metafórico, às vezes se diz ponto Z. para indicar o ponto de encontro ou de equilíbrio de possibilidades diferentes. Kierkegaard diz: "O que eu sou é um nada; isso me dá, e ao meu gênio, a satisfação de conservar minha existência no ponto Z, entre o frio e o calor, entre a sabedoria e a estupidez, entre alguma coisa e o nada, como um simples talvez" (Werke, IV, p. 246). ZETÉTICO (gr. ÇnTnTiKóÇ; lat. Zetetic, fr. Zététique; ai. Zetetisch; it. Zetetico). Investigativo ou inquisitivo. Este termo foi primeiramente aplicado por Trasilo para indicar um grupo de diálogos de Platão (DIÓG. L., III, 49; V. ARISTÓTELES, Pol, 1256 a 12). Em seguida, foi assumido como denominação da atitude céptica: "A corrente céptica é chamada de Z. por procurar e investigar; suspensiva pela disposição da alma que, depois da indagação, mantém em relação ao objeto indagado; e dubitativa por duvidar e indagar de todas as coisas (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 7). ZOOLATRIA 1014 ZWINGLIANISMO Algumas vezes se chamou de zetética a forma de análise matemática que se refere à determinação das grandezas desconhecidas. ZOOLATRIA (in. Zoolatry- fr. Zoolatrie; ai. Zoolatrie, it. Zoolatrià). Culto aos animais, considerados manifestações ou encarnações da divindade. A Z. esteve presente em muitas religiões antigas: egípcia, frígia e siríaca (V. F. CUMONT, Les religions orientales dans le pa-ganisme romain, 1906 passim) (v. TOTEM). ZOROASTRISMO (in. Zoroastrianism; fr. Zoroastrisme, ai. Zoroastrismus; it. Zoroastris-mo). Religião persa, conhecida também como masdeísmo ou parsismo, estabelecida por Zoroastro ou Zaratustra (século VI a.C), cujo principal documento no Zendavesta. O ensinamento principal dessa religião é o dualismo entre dois princípios opostos, chamados respectivamente Ormuz (Ahura Mazdatí) e Ari-man (Angra Manyu), graças ao qual ela se apresenta como solução para o problema do mal (v. MAL, I, b). ZWINGLIANISMO (in. Zwinglianísm; fr. Zwinglianisme, ai. Zwinglianismus; it. Zuin-glismo). Doutrina do reformador suíço Ulrich Zwinglio (1484-1531), que compartilhou com o humanismo a idéia de que há uma sabedoria religiosa originária, da qual proviriam tanto os textos das Sagradas Escrituras quanto os dos filósofos pagãos. Portanto, para Zwinglio a revelação é universal, e Deus é a força que rege o mundo e revela-se em todas as coisas. São também características da doutrina de Zwinglio a predestinação (v.) e a interpretação dos sacramentos, inclusive da Eucaristia, como cerimônias simbólicas. É sobre esse aspecto que Lutero e Zwinglio discordam, pois, ao contrário de Lutero, Zwinglio negava também o valor absoluto da autoridade política.
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