Vulnerabilidade entre mulheres profissionais do sexo em uma área

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Vulnerabilidade entre mulheres profissionais do sexo em uma área
No 14
jul./dez. 2008
Anima
Fortaleza
ano 8
n. 14
p. 10 – 80
jul./dez. 2008
FACULDADE INTEGRADA DO CEARá
DIREÇÃO GERAL
Jessé de Holanda Cordeiro
DIRETORIA ACADÊMICA
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DIRETORIA DE PLANEJAMENTO E INFORMAÇÕES
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COMISSÃO DE PUBLICAÇÃO
Editora Científica:
Profª Ms. Letícia Adriana Pires Teixeira e
Profª Ms. Maria da Graça de Oliveira Carlos
Conselho Editorial:
Prof. Dr. Francisco José da Costa - FIC
Prof. Dr. Guilherme Lincoln A guiar Ellery - FIC
Prof. Dr. José de Sousa Neto - FIC
Prof. Dr. Ronaldo Ferreira de Sousa - FIC
Profª Dra. Claudiana Nogueira de Alencar - UECE
Prof. Ms. Carlos Alberto dos Santos Bezerra - FIC
Prof. Ms. Francisco Thauzer Coelho Fonteles - FIC / CRA
Prof. Ms. Osório Cavalcante de Araújo - UFC / CRC
Profª Antonia Cláudia Lopes - FIC
Prof. Dra.Lydia Maria Pinto Brito - UNP / RN
Profª Ms. Letícia Adriana Pires Teixeira - FIC
Profª Dra. Maria E lias Soares - UFC
Profª Dra. Maria Margarete Fernandes de Sousa
Profª Ms. Mirna Gurgel Carlos da SIlva - FIC
Profª Ms. Roberta Cristina Barbosa Terceiro - FIC
Revisão de Texto
Profª Ms. Letícia Adriana Pires Teixeira
Antônio Orion Paiva
Produção Editorial
Antonio Carlos da Silva
Henrique Dantas Studart
Humberto Alves de Araújo
Diagramação
Kamile Girão Façanha
Bibliotecárias Responsáveis
Luíza Helena de Jesus Barbosa - CRB 830
Adriana Patrícia Costa Batista - CRB 883
Anima/Faculdade Integrada do Ceará. - ano 8, n. 14, (jul/dez. 2008) -.Fortaleza: Faculdade Integrada do Ceará, 2008.
v.: il, 30cm.
Semestral
Início da coleção v. 1, n, 1, out./dez. 2001
1. Periódico científico 2. - Faculdade Integrada do Ceará
3. Artigos diversos
CDD 050
Printed in Brazil
ISSN 1676 - 0522
Editorial
É com grande satisfação que trazemos aos nossos leitores
mais um fascículo da Anima. A busca pela interdisciplinaridade vem se tornando uma meta constante deste periódico.
Neste número apresentamos o artigo intitulado Vulnerabilidade entre mulheres profissionais do sexo em uma área
do Nordeste do Brasil de Macena et al. O estudo aponta que
profissionais do sexo têm maior DST e os índices de HIV, e
porque eles servem como pontes para a população em geral,
estes esforços das ONGs deve ser redobrada.
O segundo trabalho, de Feitosa et al, apresenta as técnicas
utilizadas pela fisioterapia, respaldando os recursos sugeridos
na literatura e correlacionando-os ao Tratamento Fisioterápico
em Pacientes com Mielomeningocele
O artigo denominado Que Teia é esta? Representações Sociais
dos Adolescentes Socioeducandos e Egressos sobre Família de
Bessa et al evidencia-se a importância atribuída pelos adolescentes à família, os sentimentos valorativos e a aglutinação
entre família vivida e sonhada.
No trabalho cognominado A Loucura e a Abordagem da
Mídia Impressa Cearense, Cardoso et al demonstram a prática
jornalística, em seus múltiplos aspectos que incluem a produção, a circulação e o consumo de textos, pode proporcionar
o conhecimento das condições de emergência das questões
sociais, nesse caso abordando a saúde mental.
Rodrigues et al, no estudo A leitura: aprendizado, estímulo
e formação de leitores no Brasil, retrata que a superação dos
problemas sociais brasileiros somente será encarada mais seriamente quando da reavaliação do sistema educacional deste
país, posto esta ser medida capaz de proporcionar à população
meios de identificar as razões destes problemas, bem como
fornecer-lhe maturidade suficiente para seleção de caminhos
de desenvolvimento.
O artigo A TIC a Serviço da Inovação Pedagógica, de Terceiro
e Terceiro, reflete sobre a postura do professor e aluno nesse
novo cenário desenvolvido pela TIC na escola, nesse caso, a
pública. O último trabalho, de Gurgel Filho et al, chamado
A Mídia na Formação de Crianças: Análise Interdiscursiva do
Programa “Malhação” há uma reflexão sobre a instauração de
novos costumes e de novos discursos na busca de um desejo de
ser tão popular e carismática quanto os próprios personagens.
Desejamos a todos uma leitura proveitosa.
Os editores
Sumário
11
Vulnerabilidade entre mulheres profissionais do sexo em uma área do
Nordeste do Brasil
Raimunda Hermelinda Maia Macena; Ligia Regina Franco Sansigolo Kerr;
Florence Kerr-Corrêa; Telma Alves Martins; Rogério Costa Gondim;
Marli Terezinha Gimenez Galvão; Clarissa Bentes de Araujo Magalhães;
Carl Kendall
22
Análise do Tratamento Fisioterápico em Pacientes com
Mielomeningocele: Estudo de Caso
Alzira Demétrio Coelho Feitosa; Maria Arivelise Macena Maia;
Liana Rocha Praça; Thiago Brasileiro de Vasconcelos;
Cristiano Teles de Sousa; Vasco Pinheiro Diógenes Bastos
31
Que Teia é esta? Representações Sociais dos Adolescentes
Socioeducandos e Egressos sobre Família
Rita de Cássia Sidney Marques Bessa; Maria Lúcia Duarte Pereira;
Mônica Araújo Gomes; Sheva Maia da Nóbrega
41
A Loucura e a Abordagem da Mídia Impressa Cearense
49
Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos
A leitura: aprendizado, estímulo e formação de leitores no Brasil
Gerlândia Soares Araújo Rodrigues; Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos
57
70
Élida Pires Cardoso; Simone Gurgel Gondim;
A TIC a Serviço da Inovação Pedagógica
Roberta Cristiana Barbosa Terceiro ; Rosana Cátia Barbosa Terceiro
A Mídia na Formação de Crianças:
Análise Interdiscursiva do Programa “Malhação”
Alberto Gurgel Filho; Letícia Adriana Pires Teixeira; Carla Michele Quaresma
litterarumradicesamaraefructusdulces
s
Vulnerabilidade entre mulheres profissionais
do sexo em uma área do Nordeste do Brasil
Raimunda Hermelinda Maia Macena1
Ligia Regina Franco Sansigolo Kerr2
Florence Kerr-Corrêa3
Telma Alves Martins4
Rogério Costa Gondim5
Marli Terezinha Gimenez Galvão6
Clarissa Bentes de Araujo Magalhães7
Carl Kendall8
RESUMO: O Brasil tem epidemia concentrada
de AIDS e as profissionais do sexo são consideradas vulneráveis ao HIV e outras DSTs, especialmente em áreas pobres como o Nordeste,
O objetivo deste estudo é analisar os fatores
de risco para HIV entre profissionais do sexo na
região, Métodos: Estudo transversal foi realizado em quatro municípios do Estado do Ceará
com uma população amostra de 819 mulheres
profissionais do sexo em 2003, O recrutamento
das profissionais do sexo foi realizado através da
amostragem bola de neve, Um questionário coletou variáveis relativas as características sociodemográficas, comportamento sexual, conhecimento do HIV e uso de drogas, Associação entre
sexo desprotegido (SD) e vários indicadores foi
avaliada por um modelo de regressão logística
multivariada, Resultados: Observamos que mulheres com mais de 20 anos, baixa escolaridade,
com um parceiro estável e que relataram DST no
último ano foram mais propensas a realizar sexo
desprotegido, Aqueles que foram vacinados contra a Hepatite B e que vivia em uma área onde
uma ONG de prostitutas atua com a prevenção
do HIV foram consideradas de menor risco para
a infecção pelo HIV, Conclusões: As profissionais
do sexo estudadas mostraram-se bastante vulneráveis, Especialmente para estas profissionais
do sexo experientes, muitas vezes as mulheres
vivem sozinhas e cuidando das famílias, ONGs e
outros esforços para atender a necessidades pessoais parecem fornecer efeitos protetores, Como
profissionais do sexo têm maior DST e os índices
de HIV, e porque eles servem como pontes para
a população em geral, estes esforços das ONGs
deve ser redobrada.
Abstract: Background: Brazil has a concentrate AIDS epidemic and FSW are considered
one of most vulnerable to HIV and other STDs,
especially in poor areas such as Northeast region,
The objective of this study is to analyze the risk
factors for HIV among FSW in this region,Methods: A cross-sectional study was conducted in
four municipalities of Ceará state with a sample population of 819 FSWs in 2003, Recruitment of sex workers used snowball sampling,
A questionnaire collected variables concerning
1. Enfermeira, Doutoranda em Ciências Médicas pela Universidade Federal do Ceará.
2. Professora titular da Universidade Federal do Ceará, doutorado em Medicina (Medicina Preventiva) pela Universidade de
São Paulo e pós-doutorado em epidemiologia na Harvard School of Public Health e pós-doutorado em epidemiologia na
University of California San Francisco.
3. Professora Titular na Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP, pós-doutoramento no Cambridge Hospital (Harvard
University) e Livre Docência em Psiquiatria.
4. Enfermeira, mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal do Ceará, vinculado a Secretaria de Saúde do Estado do
Ceará.
5. Enfermeiro, doutor em Saúde Coletiva/Epidemiologia pelo Instituto de Medicina Social - IMS/ Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, integra a equipe técnica da Coordenação Estadual de DST/AIDS - Secretaria De Saúde Do Ceará.
6. Professora da Universidade Federal do Ceará, doutora em Doenças Tropicais pela Universidade Estadual Paulista-UNESP
7. Graduanda em Fisioterapia pela Universidade de Fortaleza.
8. Professor da Escola de Saúde Pública e Medicina Tropical da Universidade de Tulane.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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Palavras-chave:
Profissionais do sexo.
HIV. DST. Brasil
Keywords:
Female Sex Workers. HIV.
STD. Brazil
Raimunda Hermelinda Maia Macena et al
desde a condenação religiosa até a proibição legal
expressa em códigos civis (WECHSBERG, 2006;
ROSENTHAL; OANHA, 2006).
No Brasil, a epidemia de Aids é caracterizada
como concentrada com diferenças importantes
em magnitude entre as regiões, sexo e nível socioeconômico (FONSECA, 2003; FONSECA, 2002),
As mulheres profissionais do sexo, homens que
fazem sexo com homens e usuários de drogas
injetáveis são considerados os grupos mais vulneráveis ao HIV no país. (BARBOSA JUNIOR,
2006; LAU, 2007).
A prostituição é mais comum entre os setores
mais pobres em grandes centros urbanos, no Brasil,
Estudos recentes mostraram que a desigualdade
socioeconômica global ainda é um fator importante no acesso à informação e recursos de saúde
(SZWARCWALD, 2007; BRASIL, 1998), O Nordeste é uma das regiões mais pobres do país, mas
tem um nível relativamente baixo da epidemia
de Aids se comparado a região mais desenvolvida
onde a epidemia de AIDS é mais antiga, No en1 INTRODUÇÃO
tanto, a maior taxa de crescimento da epidemia
foi observado entre as mulheres que pertencem
Tão antiga quanto à própria humanidade, a ao baixo nível socioeconômico (FONSECA, 2003).
profissional do sexo (PS) é entendida por muitos
Grupos vulneráveis, como as profissionais do
como a representação da pessoa que trabalha com sexo, podem desempenhar uma função de pona realização de fantasias sexuais e eróticas, sem te, através de clientes, na divulgação de doenças
estabelecimento de vinculação afetiva, Em muitas sexualmente transmissíveis entre a população
civilizações da antiguidade, a prostituição sem geral (BLANCHARD; KHAN; BOKHARI, 2008;
fins comerciais era praticada como uma espécie de ROSENTHAL; OANHA, 2006), Neste tipo de
ritual de iniciação, quando se atingia a puberdade, epidemia, intervenções modestas poderia reduzir
Com o advento da Revolução Industrial, ocorre- significativamente a incidência de HIV. (BENram intensas migrações da zona rural, e como as ZAKEN et al, 2007; LUCHTERS et al, 2008).
Apesar da vulnerabilidade que faz dos trabalhacondições sócio-econômicas eram desumanas,
houve um crescimento na prática da prostituição dores do sexo uma população importante para a
como fonte de renda (WECHSBERG et al, 2006; saúde pública, existem poucos estudos no Brasil
FONSECA, 2000).
focando em mulheres profissionais do sexo, esInstaurada, historicamente, como uma práti- pecialmente em áreas pobres como o Nordeste,
ca de desordem da vivência sexual socialmente O objetivo deste estudo foi analisar os fatores de
aceitável (WECHSBERG et al, 2006; BARBOSA risco para o HIV em mulheres profissionais do
JUNIOR, 2006), foi estabelecido, no imaginá- sexo de 3 regiões do estado do Ceará localizado
rio popular, um vínculo entre a prostituição e a no nordeste do Brasil.
transmissão de doença sexualmente transmissível (DST), Estudos apontam que esta ocupação 2 MÉTODOS
expõe o indivíduo e a sua rede de contatos a uma
ampla gama de riscos para a saúde (TREVISOL;
Um estudo transversal foi realizado em dois muSILVA, 2005; BLANCHARD; KHAN; BOKHARI, nicípios (Fortaleza e Sobral) e em duas das mais
2008), Daí, inúmeras tentativas do domínio de importantes cidades do Sul do Estado do Ceará,
seu exercício têm sido desenvolvidas no mundo, na área do Cariri (Juazeiro e Crato) no Estado
sociodemographics, sexual behavior, HIV knowledge, behavior, and drug use, Association between unprotected sex (US) and various predictors was evaluated by a multivariate logistic
regression model,Results: We found that women
older than 20, poorly educated, with a stable
partner and who reported an STD in the last year
were more likely to be engaged in US, Those who
were vaccinated against Hepatitis B and who
lived in an area where a specific FSW NGO works
with HIV prevention were found to be less at
risk to HIV infection, Conclusions: FSWs studied
were shown to be quite vulnerable, Especially
for these seasoned sex workers, often women
living alone and raising families, NGOs and other
efforts to address personal needs seem to provide protective effects, Because sex workers
have higher STD and HIV rates, and because they
serve as bridges to the general population, these
NGO efforts should be redoubled.
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VULNERABILIDADE ENTRE MULHERES PROFISSIONAIS DO SEXO EM UMA ÁREA DO NORDESTE DO BRASIL
do Ceará, em 2003, Os critérios utilizados para
selecionar as quatro cidades foram o tamanho da
população e localização geográfica, Municípios ou
áreas estão localizadas em diferentes áreas do Estado, e representam a diversidade sócio-demográfico
e econômico do Estado, Apenas Sobral e Fortaleza
têm uma Organização não-governamental de
profissionais do sexo feminino que implementa
atividades de prevenção na área.
Foi incluído no estudo mulheres que relataram ter
feito sexo por dinheiro nos últimos 6 meses, O recrutamento das profissionais do sexo foi através da
técnica de amostragem bola de neve (LUCHTERS
et al 2008; KENDALL et al, 2008) em Sobral e no
Cariri, Em Fortaleza, listamos todas os potenciais
locais de identificação das profissionais do sexo
tais como os bordéis e ruas para recrutar as participantes, Um total de 830 PS foram abordados, 11
(1,3%) se recusaram a participar resultando em 819
(98,7%) participantes: 65,3% (n=535) em Fortaleza,
18,7% (n=153) no Cariri e 16% (n=131) em Sobral.
Os dados foram coletados usando um questionário face a face adaptado de pesquisas nacionais
e internacionais (PELTZER; SEOKA; RAPHALA,
2004), O questionário incluiu variáveis sócio-demográficas, comportamento sexual, conhecimento
sobre HIV e uso de drogas.
Com relação às características sócio-demográficas,
as PS foram questionadas sobre o local de residência,
idade, estado civil, escolaridade, religião e classe
econômica, A classe social foi mensurada usando o
Critério Brasil de 2008, baseado nas estimativas do
poder de compra dos indivíduos e famílias em área
urbana no Brasil. (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
DE EMPRESAS DE PESQUISA, 2008)
As entrevistadas também foram convidadas a
descrever seu comportamento sexual com clientes
(número de clientes na última noite, preço para
o sexo, uso de preservativo e frequência do uso
do preservativo) e não clientes (número de parceiros, uso e frequência de preservativo, número
de relações sexuais no último mês), e história
de DST’s, A presença de DST foi definida como
aquelas mulheres que relataram ter tido qualquer
corrimento/ulcera vaginal, hepatite B, gonorréia,
sífilis, herpes genital, anal ou verrugas, ou Clamídia nos últimos 12 meses.
A variável de desfecho chamada sexo desprotegido
(SD) foi uma medida dicotômica definida como
qualquer relação sexual sem o preservativo com
clientes nos últimos 7 dias e com não clientes no
último mês, de acordo com o questionário BSS
padronizado para profissionais feminino do sexo.
(WARD et al. 2000).
Os entrevistadores foram treinados para selecionar e abordar as entrevistadas e das técnicas de
recolha de dados padronizados, Grandes esforços
foram feitos para proporcionar privacidade durante
as entrevistas e para manter a confidencialidade,
As entrevistas foram realizadas no local de trabalho ou em um local de encontro indicado pelas
profissionais do sexo.
Teste rápido (Determine) para o HIV e sífilis
(VDRL) foram realizados, Aquelas que o teste
era positivo foram enviadas para o laboratório
de referência local para os testes confirmatórios
e tratamentos.
A maioria das entrevistas foi realizada em Julho
(62,3%), Agosto (19,2%) e Setembro (15,9%) quando
o turismo é intenso no Estado do Ceará, pois é a
época de alta no turismo brasileiro, As entrevistas
ocorreram durante a tarde (53,4%) e noite (31,3%) em
bares (54,2%), bordéis (17,5%) e ruas/praças (16,8%).
Os dados foram digitados com o programa Epi
Info, 6,04 a partir do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC / OMS) e analisados com
STATA™, 10,0, STATA Corporation, Texas, e EUA.
Teste Wilcoxon rank e teste exato de Fisher foram
usados para comparar SD com as variáveis independentes separadamente, As associações entre
o desfecho e vários preditores foram avaliados
através do teste exato de Fisher, Efeito de cluster
para a área de residência foi levado em conta, Essas variáveis preditoras que foram encontrados
sendo consideradas significativos em p <0,20, Na
análise bivariada foram selecionadas para serem
incluídas em uma análise multivariada de modelos
de regressão logística para avaliar os seus efeitos
independentes, Os possíveis efeitos de confundimento e interações potenciais entre a variável de
desfecho foram exploradas no modelo final.
O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê
de Ética da Faculdade Integrada do Ceará em
Fortaleza, Brasil, protocolo número 085/07.
3 RESULTADOS
A maioria das entrevistadas (65,3%) moravam em Fortaleza, capital do Estado do Ceará,
16,0% em Sobral e 18,7% no Cariri, A maioria
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Raimunda Hermelinda Maia Macena et al
das mulheres (53,2%) tinham entre 20-30 anos de
idade (média = 26,7, dp = 7,4), estão no momento
solteiras (85,7%), mas foram casadas anteriormente (44,1%), Mais de ¾ relataram apoiar alguém
financeiramente, tinham menos de 8 anos de estudo (72,5%), pertenciam a uma classe econômica
inferior (C, D ou E) (78,4%), e definiram-se como
católica (80,6%), Mais da metade (60,9%) iniciaram a atividade sexual quando eram menores de
15 anos de idade e 62,2% iniciaram a prostituir-se
com menos de 20 anos de idade (média = 19,7, dp
= 5,1), Sessenta e dois por cento das participantes
relataram não ter tido mais de dois clientes na
última noite (média = 2,0, dp = 1,8).
O sexo seguro é mais comum com os clientes
(88,8%) do que com os não-clientes (30,7%) e cerca
de 1/3 (35,1%) tiveram sexo desprotegido (USI), Mais
da metade (53,6%) relatou uma DST no último
ano, a maioria (85,0%) de todas as mulheres aceitaram realizar o teste rápido para o HIV e sífilis,
resultando em 2,1% (15/689) positivos para HIV
e 19,8% para sífilis, A maioria (83,1%) informou
uso de álcool no mês anterior, 44,2% uma vez por
semana e quase um quarto afirmou o consumo
de álcool todos os dias (27,4%), Mais da metade
(54,8%) relatou consumo de drogas ilícitas durante
a sua vida com o predominio da maconha (45,4%),
A cocaína (27,1%) e anfetamina (25,2%) (Tabela 1)
são relatados por uma proporção considerável
das mulheres.
Tabela 1 – Características sóciodemográficas e comportamento
sexual das profissionais do sexo no ano de 2003
Variáveis
N
%
Área estudada
Fortaleza
Sobral
Cariri
535
131
153
65,3
16,0
18,7
Idade
Menos de 20 anos
20 – 30 anos
Mais de 30 anos
147
436
236
18,0
53,2
28,8
Estado civil
Solteira
União estável
699
117
85,7
14,3
Já foi casada
331
44,1
Relata sustentar alguém
634
77,6
Escolaridade
Nenhuma
Menos de 8 anos
8 – 11 anos
Mais de 11 anos
32
589
179
13
3,9
72,5
22,0
1,6
Classe econômica
A/B (alta)
C (média)
D/E (baixa)
14
163
642
1,7
19,9
78,4
Religião
Nenhuma
Católica
Não-católica
103
642
52
12,9
80,6
6,5
Iniciação sexual
Menos de 15 anos
Mais de 15 anos
487
313
60,9
39,1
Idade de início da prostituição
Menos de 20 anos
20 – 40 anos
Mais de 40 anos
509
263
47
62,2
32,1
5,7
Número de clientes na última noite
Até 2 clientes
2 a 4 clientes
Mais de 4 clientes
506
130
180
62,2
15,9
22,0
Preço para o sexo
Menos de US$ 7,5
US$ 7,5 – 15,0
US$ 15,5 – 25,0
Mais de US$ 25,00
164
287
169
145
21,4
37,5
22,1
18,9
Uso de preservativo com clientes
721
88,8
Uso de preservativo com não clientes
104
30,7
Sexo de risco
285
64,9
Relatou DST no ultimo ano
401
53,6
Características sociodemográficas
Característica sexual
Teste positivo para HIV
15
2,1
Teste positivo para Sífilis
18
19,8
677
83,1
223
360
94
27,4
44,2
11,5
449
54,8
371
222
123
205
194
20
45,4
27,1
15,1
25,6
23,9
2,5
Uso de Drogas
Ingere álcool
Frequência
Todo o dia
Uma vez por semana
Eventualmente
Outras drogas exceto álcool
Tipos de drogas
Maconha
Cocaina
Crack
Anfetaminas
Inalantes
Intravenosa
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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VULNERABILIDADE ENTRE MULHERES PROFISSIONAIS DO SEXO EM UMA ÁREA DO NORDESTE DO BRASIL
As mulheres profissionais do sexo com mais de 30
anos tendem a relatar um parceiro estável (20,8% versus 11,7%, p = 0,001), são mais propensas a apoiar financeiramente alguém (82,6% versus 75,6%, p = 0,03),
menor escolaridade (9,0% versus 1,9 % de analfabetos e apenas 13,7% versus 27,6% com mais de
8 anos; p <0,001), pertencem a uma classe social mais baixa (85,6% versus 75,4%, p = 0,005);
relataram mais clientes na última semana
(28,8% versus 19,2%, p = 0,008); usam menos preservativos com cliente (20,6% versus 7,4%, p <0,001);
cobram menos para o sexo (média: EUA $ 16,8
vs EUA $ 24,1; sd EUA $ 20,3 vs EUA $ 30,9, mediana: EUA 10,0 dólares contra EUA $ 15,0; intervalo: EUA $ 1,5 a EUA $ 250,0 contra EUA $
2,5 para EUA $ 425,0, p <0,001) e eram mais propensas a se engajar em comportamentos de risco
(41,3% versus 32,6%, p = 0,02).
Essas mulheres também apresentaram testou positivo para a sífilis com mais frequência (37,1% versus 8,9%, p = 0,002), mas não
diferiu para o HIV (p = 0,38); e bebeu menos
(85,7% versus 76,5%, p = 0,002) do que as mulheres
mais jovens, Aquelas profissionais do sexo que são
menores de 30 anos relataram atividade sexual
numa idade mais jovem e cobraram dinheiro para
o sexo pela primeira vez em idade mais jovem (p
<0,001 para ambos); eram mais propensas ao uso
de álcool (85,7% versus 76,5%, p = 0,002) e cocaína
(29,7% versus 20,8%, p = 0,01), mas relataram pouco
uso de drogas injetáveis (1,7% versus 4,3%, p = 0,04)
(TABELA 2).
Tabela 2 - Características das profissionais do sexo de acordo com
a idade
Variaveis
< 30 anos
>30 anos
Característica sóciodemográfica
N(%)
N(%)
p-value
Estado civil
Solteira
União estável
512 (88,3)
68 (11,7)
187 (79,2)
49 (20,8)
0,001
Já foi casada
233 (42,8)
98 (47,6)
0,25
Relata sustentar alguém
439 (75,6)
195 (82,6)
0,03
Nível educacional
Nenhum
Menos de 8 anos
8 – 11 anos
Mais de 11 anos
11 (1,9)
409 (70,5)
149 (25,7)
11 (1,9)
21 (9,0)
180 (77,2)
30 (12,9)
2 (0,9)
<0,001
Classe econômica
A/B (alta)
C (média)
D/E (baixa)
12 (2,1)
131 (22,5)
440 (75,5)
2 (0,8)
32 (13,6)
202 (85,6)
0,005
Iniciação sexual
Menos de 15 anos
Mais de 15 anos
370 (63,5)
213 (36,5)
117 (49,6)
119 (50,4)
<0,001
Idade do início da prostituição
Menos de 20 anos
20 – 40 anos
Mais de 40 anos
398 (68,3)
162 (27,8)
23 (3,9)
113 (47,9)
101 (42,8)
22 (9,3)
<0,001
Números de clientes na última noite
Até 2 clientes
2 a 4 clientes
Mais de 4 clientes
371 (63,6)
100 (17,1)
112 (19,2)
138 (58,5)
30 (12,7)
68 (28,8)
0,008
Uso de preservativo com cliente
Sim
Não
536 (92,6)
43 (7,4)
185 (79,4)
48 (20,6)
<0,001
Uso de preservativo com cliente
Características sexuais
78 (32,5)
26 (26,3)
0,30
Preço para o sexo
Menos de US$ 7,5
US$ 7,5 – 15,0
US$ 15,5 – 25,0
Mais de US$ 25,00
101 (18,3)
199 (36,0)
130 (23,5)
122 (22,1)
63 (29,6)
88 (41,3)
39 (18,3)
23 (10,8)
<0,001
Envolvimento em risco sexual
188 (32,6)
97 (41,3)
0,02
Teste positivo para HIV
9 (1,8)
6 (3,0)
0,38
Teste positivo para Sífilis
5 (8,9)
13 (37,1)
0,002
498 (85,7)
179 (76,5)
0,002
164 (28,2)
265 (45,6)
69 (11,9)
59 (25,2)
95 (40,6)
25 (10,7)
0,02
332 (57,0)
117 (49,6)
272 (46,7)
173 (29,7)
90 (15,5)
149 (25,6)
143 (24,7)
10 (1,7)
99 (42,1)
49 (20,8)
33 (14,1)
56 (24,0)
51 (22,0)
10 (4,3)
Uso de drogas
Ingestáo de álcool
Frequência
Todo o dia
Uma vez na semana
Eventualmente
Outra droga exceto o álcool
Tipo de droga
Maconha
Cocaina
Crack
Anfetamina
Inalante
Intravenosa
Na análise multivariada (Tabela 3) verificou-se
que mulheres com mais de 20anos, baixa escolaridade, com um parceiro estável e que relataram
uma DST no último ano foram mais propensos a se
engajar em sexo desprotegido, Aquelas que foram
vacinadas contra a Hepatite B e que viviam em
uma área onde uma determinada ONG trabalha
com a prevenção do HIV foram considerados de
menor risco para a infecção pelo HIV.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
15
0,06
0,24
0,01
0,66
0,65
0,46
0,04
Raimunda Hermelinda Maia Macena et al
Tabela 3 – Fatores de risco associado com relação sexual
desprotegida
Variável
Bruto (CI)
OR
Ajustado †
20-29 anos *
30-39 anos *
>40 anos *
1,43 (0,94-2,17)
1,94 (1,20-3,14)
1,83 (1,00-3,33)
1,69 (1,30-2,20)
1,94 (1,08-3,49)
1,83 (0,86-3,91)
Estado civil
3,49 (1,77-6,88)
2,99 (1,30-6,88)
Teve DST (últimos 12 meses)
1,67 (1,29-2,15)
1,77 (1,39-2,25)
Vacina para Hepatite B
0,56 (0,43-0,74)
0,50 (0,44-0,58)
ONG de prostitutas na area
de residência
0,45 (0,40-0,50)
0,38 (0,32-0,44)
* <20 como referência
†
Adjustado para todas as variáveis apresentadas
4 DISCUSSÃO
Nosso estudo mostrou que as profissionais de sexo
investigadas no Estado do Ceará são claramente
vulneráveis ao HIV e outras DST’s, Embora o uso
do preservativo com os clientes é relativamente
alta, o uso com os não-clientes diminuiu significativamente TRAN THI; LE, 2008; TREVISOL;
SILVA, 2005). Nossa população é muito pobre, a
maioria pertencente à classe social D e E (os mais
baixos da hierarquia de classe social brasileira) e
pode ter muitas dificuldades em negociar o uso do
preservativo com alguns clientes e, especialmente,
com um parceiro estável, onde os papéis do gênero
podem desempenhar um papel importante na
poder de barganha.(LAU, 2007; LOPES, RIVM,
PIMENTA, 2007).
Na última década, no Brasil, mulheres chefes de
família aumentou para 35% , de 22,9% em 1995, a
30,6% em 2005 (IBGE..., 2009), Novos papéis de
gênero para as mulheres (que trabalha fora de
casa e aumenta a independência financeira), em
parte, explica esses fenômenos, O perfil da nossa
população é muito semelhante à encontrada em
mulheres pobres brasileiras como um todo e é
compreensível que baixa escolaridade, pobreza,
e a falta de uma relação estável com um parceiro
sustenta a necessidade de trocar sexo por dinheiro.
(SZWARCWALD, 2007; FONSECA, 2003).
Em nosso estudo e na maioria dos estudos no
Brasil, as profissionais do sexo começaram tanto
a sua vida sexual e prostituição em idade precoce
(TREVISOL; SILVA, 2005), A iniciação sexual está
ocorrendo mais cedo para as mulheres e o padrão
das profissionais do sexo não diferiram entre as
mulheres brasileiras em geral (SZWARCWALD,
2005), No entanto, descobrimos que a idade e pouca
educação pode aumentar o risco substancialmente,
afetando a quantidade de dinheiro cobrado, práticas sexuais e uso de preservativo (OUTWATER,
2000), As mulheres mais velhas, em geral, relatam
parceiros mais estáveis, trabalham mais na rua
(dados não exibidos), cobram menos pelo o sexo,
relatam mais frequentemente que têm que apoiar
financeiramente os outros, e relatam usar menos
o preservativo (PELTZER; SEOKA; RAPHALA,
2004; TREVISOL; SILVA, 2005), Na verdade, o
“parceiro estável” pode ser um cliente antigo que
está sendo tratado como um “namorado”. (PASSOS; FIGUEIREDO, 2004).
A prevalência do consumo de álcool diário e semanal em nosso estudo mostrou-se muito elevada,
Os locais das profissionais do sexo como bares
revelam um cenário difícil, onde beber é parte do
trabalho (SZWARCWALD et al, 1998; NEMOTO et
al, 2008), As profissionais do sexo encontram clientes em bares, onde o álcool supera a inibição dos
clientes, Embora o álcool foi encontrado associado
a sexo de risco em alguns estudos (GALDUROZ;
CAETANO, 2004; MADHIVANAN, 2003) e em
um estudo de base populacional entre as mulheres
no Brasil (SILVEIRA et al., 2005) em nosso estudo
não observamos isso, No Brasil, incluindo o Ceará,
o álcool é uma droga lícita de baixo custo que é
amplamente utilizado por todas as classes sociais
(GALDUROZ; CAETANO, 2004) e uma possível
explicação para a falta de associação pode ser que
a grande maioria (85,0%) da nossa população relatam o uso de álcool no último mês, Além disso,
o Governo e as ONGs fornecem preservativos e
materiais de prevenção para os bares e bordéis,
onde trabalham as profissionais do sexo, Nossa
descoberta de que as mulheres que trabalham na
rua estão em maior risco para o sexo desprotegido
pode reforçar essa hipótese.
O uso de cocaína e maconha foram relatados, O
padrão para as profissionais do sexo experiente
e jovem era diferente, IUD foi relatado em uma
porcentagem muito menor em comparação com
outras áreas do Brasil na última década, mas significativamente maior para as mulheres mais velhas
(SZWARCWALD, 1998), Um recente relatório
observa que o uso de crack está aumentando em
alguns países e no Brasil, incluindo o estado do
Ceará (SILVA; YONAMINE, 2004).
Apesar das anfetaminas serem consideradas legais
no Brasil elas são frequentemente utilizadas para
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
16
VULNERABILIDADE ENTRE MULHERES PROFISSIONAIS DO SEXO EM UMA ÁREA DO NORDESTE DO BRASIL
fins estéticos (NAPPO; OLIVEIRA; MOROSINI,1998), Segundo o Conselho Internacional de
Controle de Narcóticos, o Brasil é um dos países
que importa a maior quantidade dessas drogas.
A cultura da magreza é generalizada no Brasil
e tem sido considerado a principal causa para o
aparecimento desta “epidemia” de uso desnecessário de inibidores de apetite para fins estéticos
entre as mulheres (NAPPO, 1996; NAPPO; OLIVEIRA; MOROSINI,1998). Devido às suas belas
praias, clima quente e baixo custo de vida, o Ceará
atrai turistas de todo o mundo. Esta combinação
também incentiva o turismo sexual e estimula a
prostituição (LOPES, RIVM, PIMENTA; SILVA;
YONAMINE, 2004.). O corpo da mulher torna-se
um “instrumento” que precisa ser mantido fino
para atrair o cliente. Encontramos um excesso de
ingestão de álcool entre as mulheres, que geralmente é acompanhada por petiscos calóricos, O
uso de drogas como a anfetaminas foi encontrada
particularmente prevalente entre as mulheres e,
talvez, isso esteja relacionado ao controle do consumo de álcool e comida relacionado ao trabalho.
Ao contrário do que temos observado entre outras
populações vulneráveis no Ceará (KENDALL et
al, 2008), a maioria das profissionais do estudo
aceitou realizar testes para sífilis e HIV, Tteste
positivo para o HIV em uma porcentagem muito
menor do que os estudos no Brasil (TREVISOL;
SILVA, 2005; PIRES; MIRANDA,1998) e muitos
estudos em todo o mundo (TRAN; LE, 2008), mas
superior à prevalência de outros países (BELZA,
2004; RUAN et al., 2006), Por outro lado, este
resultado é 13 vezes maior do que a prevalência
estimada (0,16%) para a mulher entre 15 a 49 anos,
durante o mesmo período na região do Nordeste
(SZWARCWALD, 2000), A epidemia no Ceará
é muito mais recente do que em outras áreas do
Brasil onde a maioria dos estudos têm sido realizados e que poderia justificar a menor prevalência.
Além disso, alguns desses outros estudos foram
realizados em alguns portos, nos serviços de saúde onde as profissionais são atendidos, e alguns
entre usuários de drogas e outros países africanos
onde a prevalencia do HIV é alta (CWIKEL et al.,
2008), Relacionada à sorologia para sífilis, nossa
população apresentou uma maior prevalência em
geral do que em alguns países (LAU, 2007) e outras
áreas no Brasil, como Vitória (ANDRADE NETO,
1993) onde a prevalência foi de 8,3%, DST’s são
correlacionadas com a pobreza, baixa escolaridade,
uso de drogas, número elevado de parceiros, uso
de preservativos infrequêntes, e iniciação sexual
precoce (HAWKEN et al., 2002; SILVEIRA et al.,
2005), todos os presentes no Ceará, uma das região
mais pobre do Brasil,
As profissionais do sexo que vivia em uma cidade
e / ou área em que existe uma ONG de prostitutas
foram encontradas com menor risco de relações
sexuais desprotegidas, Muitas dessas ONGs são
compostas pelas profissionais de sexo e membros
de outras populações de risco, ONGs são financiadas pelo governo para desenvolver intervenções
mediadas para promover mudanças de comportamento, melhorar o conhecimento, a consciência
da sorologia do HIV, e diminuição do estigma.
Todas essas ações poderiam explicar a alta aceitação do teste de HIV, a alta taxa de vacinação
contra hepatite B, e do alto percentual de uso do
preservativo com os clientes nas áreas com as ONG,
Informação por si só não foi encontrado associado
com alto risco em nossa amostra, Evidentemente,
as ONGs não fornecem somente informações como
outras fontes, mas também oferecerem ferramentas para a prevenção do HIV que melhoram a sua
auto-estima, Estudos têm demonstrado que as
profissionais do sexo que não têm participação em
grupos de apoio apresentam baixa auto-estima, e
não praticam sexo seguro, especialmente quando
eles têm de enfrentar um alto nível de pressão econômica (TRAN THI; LE, 2008; SILVEIRA, 2005).
Reconhecemos que há uma limitação na interpretação dos nossos dados devido ao uso da técnica
de amostragem bola de neve, Pode ser possível
que as profissionais do sexo tenham um melhor
conhecimento e comportamento mais adequado
do que as profissionais investigadas neste estudo, se
o estudo foi realizado com técnica de amostragem
resposta dirigida.
Outra limitação é que as profissionais não foram
questionados separadamente sobre práticas de sexo
vaginal / anal / oral com os clientes e não clientes,
pois foi realizado em 2003, Estas questões podem
esclarecer o comportamentos sexuais e nos permite
compreender melhor a associação entre as práticas
sexuais e risco de HIV.
Em conclusão, as profissionais do sexo estudadas
mostraram ser muito vulneráveis, Durante as
últimas décadas, os casos de AIDS no Brasil têm
mostrado que as condições sócio-econômicas são
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
17
Raimunda Hermelinda Maia Macena et al
um fator importante de produção de vulnerabilidade, Além disso, como a idade das mulheres se
tornam menos atraentes para os clientes, e têm
menos controle de reembolsos e de comportamento.
Especialmente para estas profissionais do sexo experientes, muitas vezes as mulheres vivem sozinhas
e cuidando da família, ONGs e outros esforços para
atender a necessidades pessoais parecem fornecer
efeitos protetores. Como as profissionais do sexo
têm maior DST e os índices de HIV, e porque eles
servem como pontes para a população em geral,
estes esforços das ONGs deve ser redobrada.
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20
litterarumradicesamaraefructusdulces
Análise do Tratamento Fisioterápico
em Pacientes com Mielomeningocele:
Estudo de Caso
Alzira Demétrio Coelho Feitosa1
Maria Arivelise Macena Maia2
Liana Rocha Praça3
Thiago Brasileiro de Vasconcelos4
Cristiano Teles de Sousa5
Vasco Pinheiro Diógenes Bastos6
Palavras-chave:
Mielomeningocele.
Espinha bífida.
Fisioterapia.
Keywords:
Mielomeningocele. Bifid
spine. Physiotherapy.
RESUMO: Mielomeningocele é um tipo de espinha bífida cística onde o tubo neural não se
funde e existe herniação das meninges, formando uma saliência que contem líquido cefalorraquidiano e que normalmente diagnostica-se
após o nascimento, observando-se a presença de uma bolsa externa na região dorsal do
bebê. As manifestações clínicas mais frequentes
são: paralisia de membros inferiores, distúrbios
da sensibilidade cutânea, úlceras de pele por
pressão, ausência de controle urinário e fecal,
deformidades músculo-esqueléticas e hidrocefalia. A fisioterapia é um tratamento essencial,
pois em todas as crianças com mielomeningocele há alterações da força e tônus muscular.
A Importância desse trabalho está em poder
verificar as técnicas utilizadas pela fisioterapia,
respaldando os recursos sugeridos na literatura
e correlacionando-os. Este estudo é de caráter
descritivo, longitudinal, observacional, utilizando método de estudo de caso com estratégia de
análise comparativa apartir da observação direta
e qualitativa dos resultados apresentados. Aplicamos uma ficha de avaliação do tratamento em
cada atendimento observado e uma entrevista
norteadora aplicada a fisioterapeuta responsável antes do início das observações. Durante o
estudo, observou-se o tratamento instituído pela
terapeuta à criança sendo aplicadas técnicas de:
fortalecimento muscular; alongamentos, treino
de marcha, apoios externos, atividades com bolas e exercícios isométricos e isotônicos associados à gravidade, objetivando a independência
máxima da criança. Com este estudo inferimos
que o tratamento fisioterápico feito de forma
convencional mostra-se mais eficaz para uma
independência com superação de limites do que
apenas um ensinamento ao paciente de como
viver com suas limitações.
ABSTRACT: Mielomeningocele is type of cystic
bifid spine where the fusing of the an external
burse on the baby’s back. Most frequent clinical manifestations in are: paralysis of inferior
members, disturbances of cutaneous sensitivity,
skin ulcers under physical pressure, absence of
urinary and fecal control, muscle-skeletal deformities and hydrocephaly. The physiotherapy is
an essential treatment, because all mielomeningocele affected children have alterations of the
muscular strength and tone. The significance of
this work refers to its stress on the techniques
used in physiotherapy, endorsing and correlating
the resources suggested in literature. This study
1.
2.
3.
4.
5.
Fisioterapeuta graduada pela Faculdade Estácio do Ceará. Fortaleza/CE.
Enfermeira. Hospital Gênesis. Fortaleza/CE.
Fisioterapeuta. Docente da Professor da Faculdade Estácio do Ceará. Fortaleza/CE.
Fisioterapeuta. Mestrando em Farmacologia (UFC). Fortaleza/CE.
Fisioterapeuta da Prefeitura Municipal de Maracanaú; Professor da Faculdade Estácio do Ceará; Mestre em Farmacologia e
Doutorando em Farmacologia (UFC). Fortaleza/CE.
6. Fisioterapeuta do Instituto Dr. José Frota; Professor da Faculdade Estácio do Ceará; Doutor em Farmacologia (UFC). Fortaleza/CE.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
22
ANÁLISE DO TRATAMENTO FISIOTERÁPICO EM PACIENTES COM MIELOMENINGOCELE: ESTUDO DE CASO
is descriptive, longitudinal and of observational
nature, using case study methods mingled with
strategies of comparative analysis from the direct
and qualitative observation of the given results.
To record the treatment we applied an evaluation
form (Addendum B) in each observed service
and neural tube does not occur, thus developing herniation of the meninges and forming a
protrusion that contains cefalorrachidian liquid
normally diagnosised after the birth, by observing the appearance of a guiding interview was
applied (Addendum C) by the physiotherapist in
charge, since the beginning of the research. The
treatment applied by the therapist to the child,
during the study, was observed regarding techniques applied to achieve muscular strengthening: elongations, stride training, isometrics and
isotonics associated to the gravity, to external
supports and fitness balls aiming the utmost
independence of the child. With this study we
infer that the conventional physiotherapy treatment not only accomplish a most efficient way
for the patient’s sufficiency, overcoming its limits,
but also teaching them the best way to cope
with disability.
1 INTRODUÇÃO
Muitas malformações, bem como o encéfalo e/ou
as meninges, resultam do fechamento defeituoso
do neuroporo caudal e rostral, respectivamente,
próximo ao final da 4° semana. Essas malformações
são chamadas de anomalias do tubo neural, que
podem se limitar ao sistema nervoso ou incluir,
também, os tecidos sobrejacentes (ossos, músculos e tecido conjuntivo), onde as anomalias mais
severas são incompatíveis com a vida. (MOORE;
PERSAUD, 1994).
Os defeitos do tubo neural (DTN) englobam
defeitos cranianos como anencefalia, meningocele
(que não afeta o tecido neural) e encefalocele (que
pode ou não envolver o cérebro), e defeitos que
ocorrem na porção caudal do tubo neural como
espinha bífida com meninges protundentes, acompanhada de hidrocefalia, espinha bífida oculta que
não acarreta impedimento funcional. Crianças
com anencefalia morrem após nascer, embora a
maioria das crianças com espinha bífida cresça até
a fase adulta. (MOORE; PERSAUD, 1994).
A etiologia do DTN ainda é desconhecida, e um
número muito pequeno de DTN tem uma base
puramente genética (encefalocele na síndrome de
Meckel’s uma desordem autossômica recessiva).
(SCHORAH; SMITHELLS, 1991). Estudos epidemiológicos e intervencionais demonstraram uma
significativa redução na incidência e na recorrência
de DTN em filhos de mulheres suplementadas com
folato no período periconcepcional, em dosagens
que variaram de 0,4 mg a 4 mg por dia. (Medical Research Council VITAMIN STUDY
RESEARCH GROUP, 1991).
Alguns estudos demonstraram que como a suplementação com o folato foi administrada durante
1° a semana de gestação, houve mais de 50% de
prevenção na ocorrência de DTN (MILUNSKY,
1989), já o estudo do Medical Research Council
Vitamin Study Research Group (1991) demonstrou
uma redução de 72% na recorrência de DTN, evidenciando importância da suplementação periconcepcional com folato para mulheres que tiveram
uma gestação com criança afetada por DTN e
aquelas sem qualquer caso de DTN em gestações
anteriores ou história familiar.
Assim, em alguns países como o Reino Unido
e os EUA, já existem recomendações expressas
para suplementação diária com 0,4 mg de folato
para todas as mulheres que planejam engravidar e
com 4-5 mg de folato para aquelas que apresentam
risco de recorrência de DTN5. Sempre se enfatiza
o período periconcepcional (1-2 meses antes e
depois da concepção), uma vez que as 4 primeiras
semanas de gestação é que representam o período
crítico para fechamento do tubo neural.
A mielomeningocele é um tipo de espinha bífida,
a espinha bífida cística, na qual está comprometida
pele, a dura-máter, e a medula espinhal representando 80% das lesões de espinha bífida. (STOKES,
2000) Normalmente diagnosticada no nascimento,
observando-se a presença de uma bolsa externa
nas costas do bebê, na qual se encontram meninges e medula espinhal projetadas por um defeito
vertebral. Essa bolsa pode ser recoberta por uma
membrana transparente ou estar exposta. A presença de hidrocefalia pode estar associada ou não
a este DTN que é conhecido como espinha bífida.
(TECKLIN, 2002).
As manifestações clínicas mais frequentes na
mielomeningocele são: paralisia de membros inferiores, distúrbios da sensibilidade cutânea, úlceras
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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Alzira Demétrio Coelho Feitosa et al
de pele por pressão, ausência de controle urinário
e fecal e deformidades músculo-esqueléticas, e,
posterior ao fechamento da lesão, hidrocefalia. Nos
outros tipos de espinha bífida as manifestações
são variáveis dependendo do grau e do nível de
envolvimento das estruturas nervosas, podendo
esses defeitos apresentarem quadros incompatíveis com a vida como anencefalias entre outros.
(STOKES, 2000; REDE SARAH DE HOSPITAIS
DE REABILITAÇÃO, 2006).
A fisioterapia é considerada uma potente aliada à terapia convencional da mielomeningocele.
Diante disto, este estudo visa descrever os recursos
terapêuticos utilizados em pacientes com mielomeningocele e comparar os recursos encontrados
na literatura com os utilizados pelos pacientes
durante o tratamento.
o prognóstico esperado, e a terapêutica sugerida
pela literatura.
Os dados foram obtidos a partir de ficha de avaliação do tratamento preenchida pelo fisioterapeuta
do serviço a cada atendimento e um roteiro para
entrevista foi aplicado à fisioterapeuta responsável
antes do início das observações.
A seguir foi feito o estabelecimento de critérios de
inclusão/ exclusão de textos que seriam revisadas.
Foi realizada uma busca nas bases de dados da Biblioteca Virtual em Saúde - BVS - BIREME. Foram
utilizados os descritores de assunto ‘fisioterapia’
e/ou ‘meningomielocele’. A busca dos periódicos
e livros foram realizadas nas bibliotecas de instituições de ensino superior publicas e privadas na
cidade de Fortaleza/CE. Foram utilizados artigos
indexados nas bases de dados até o ano de 2006.
2 METODOLOGIA
3 RESULTADOS E DISCUSSÕES
Este estudo é de caráter descritivo, longitudinal,
observacional utilizando método de estudo de
caso com estratégia de análise comparativa a partir
da observação direta e qualitativa dos resultados
apresentados.
A coleta de dados foi realizada em uma clinica
privada de fisioterapia, situada na cidade de Fortaleza/CE, durante os meses de outubro a novembro
de 2006, conforme aprovação do projeto pelo
Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade Estácio
do Ceará (protocolo 041/2006).
O caso era um indivíduo de 8 anos, sexo feminino,
natural de Fortaleza/CE, nascida dia três de maio
de 1998, residente em Fortaleza, branca, portadora
de mielomeningocele lombar. Foi submetida a
cirurgia de remoção das estruturas expostas, nas
primeiras 72 horas de vida. Tratada com fisioterapia há mais de 4 anos e cujos pais aceitaram sua
participação na pesquisa mediante a assinatura de
um termo de consentimento informado.
Foram analisadas as variáveis relativas as alterações estruturais da lesão medular, o tempo e a
forma de aplicação do tratamento fisioterápico
(últimos seis meses de tratamento assim como a
frequência do tratamento), a evolução da paciente,
Segundo a fisioterapeuta responsável, quando a
paciente chegou aos seus cuidados possuía tronco
abaulado, abdominais hipotônicos, ausência de
força muscular nos membros inferiores e superiores e preensão débil. Não apresentou regressão no
período de tratamento e obteve aumento de força
muscular, alongamento da musculatura e está em
início de deambulação com muletas e tutor longo.
Dentre os DTN o mais comumente achado é
a Espinha Bífida. (STOKES, 2000). Esta se caracteriza pela formação incompleta da medula
espinhal e das estruturas que protegem a medula.
O defeito ocorre no primeiro mês de gravidez e
engloba uma série de malformações. Dessas, a
mais observada é a mielomeningocele, na qual
há uma protrusão cística contendo tecido nervoso
exposto não coberto por pele. (TECKLIN, 2002).
A espinha Bífida divide-se em vários tipos de
acordo com a forma da abertura, protrusão, localização, estruturas comprometidas e, a partir
dessa classificação pode-se ter um resumo tanto
das estruturas acometidas como das características
desses acometimentos (QUADRO 1). (SCHORAH; SMITHELLS, 1991; CZEIZEL; DUDÁS, 1992;
MCDONALD, 2003).
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ANÁLISE DO TRATAMENTO FISIOTERÁPICO EM PACIENTES COM MIELOMENINGOCELE: ESTUDO DE CASO
Quadro 1 - Tipos de Espinha Bífida.
Tipo
Desordem
Características
Aberta
Protrusão cística com ou sem
elementos neurais
Pode haver déficit neurológico
progressivo relacionado com
medula presa
Mielomeningocele
Lesão da linha média contendo líquor, meninges e elementos da medula.
Tecido nervoso exposto não coberto por pelew
Oculta com Envolvimento Neural
Alterações da pele na região sacrococcígea em 80% (tufos pilosos,
angiomas ou massas subcutâneas)
Possibilidade de déficit neurológico
progressivo com o crescimento.
Oculta sem Envolvimento Neural
Meningocele
Lesão cística composta por líquor, meninges e pele.
Lipomielomeningocele
Massa de gordura, geralmente coberta por pele, que se estende para a
medula.
Diastematomielia
A porção caudal da medula é partida. Os segmentos são, muitas vezes,
separados por um esporão ósseo ou cartilaginoso.
Medula presa
Cone medular e filum terminal espessados e fixos à estrutura óssea.
Sinus dérmico
Fístula epitelial que se estende da pele para tecidos mais profundos.
Possibilidade de comunicação com o espaço subdural e desenvolvimento
de meningite
Espinha bífida oculta
Fechamento incompleto de arcos vertebrais não acompanhados de
outras alterações
Fonte: Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação (2006).
A paciente deste estudo realiza tratamento fisioterápico desde os três meses de vida sendo este
diariamente até o início 2005. Atualmente vai
a fisioterapia 3 vezes por semana no horário das
12:00 às 13:00 nos dias de segunda, quarta e sexta.
Também recebe acompanhamento pelo Hospital
Sarah Kubitschek. Quando questionado à terapeuta
sobre o tempo que trata a paciente, esta respondeu
que a paciente chegou aos seus cuidados com 4
anos e 6 meses estando em tratamento a 4 anos.
A avaliação das condições atuais da paciente foi
categorizada em três tópicos: Sistema locomotor,
Força Muscular e Sistema Urinário.
1. Sistema locomotor: Faz uso de cadeira de rodas,
tala em pés e pernas, deambula com tutor longo
com apoio de tronco. Posiciona-se sobre joelhos
e mãos e consegue engatinhar.
A medula espinhal é organizada em segmentos
ao longo de sua extensão. Raízes nervosas de cada
segmento deixam a medula para inervarem regiões
específicas do corpo. Os segmentos da medula
cervical (C1 a C8) controlam os movimentos da
região cervical e dos membros superiores; os torácicos (T1 a T12) controlam a musculatura do
tórax, abdome e parte dos membros superiores;
os lombares (L1 a L5) controlam os movimentos
dos membros inferiores; e os segmentos sacrais
(S1 a S5) controlam parte dos membros inferiores
e o funcionamento da bexiga e intestino. Na espinha bífida, estando a medula e as raízes nervosas
impropriamente formadas, os nervos envolvidos
podem ser incapazes de controlar os músculos determinando paralisias. (STOKES, 2000; TECKLIN,
2002; MCDONALD, 2003).
Define-se como paralisia alta a paralisia resultante
de defeito medular começando ao nível dos segmentos torácicos ou lombares altos (L1-L2), paralisia média no segmento médio lombar (L3) e
paralisia baixa nos segmentos lombares baixos
(L4-L5) ou sacrais. A posição das raízes motoras
lesadas na medula é chamada de nível motor e sua
definição é importante para a classificação funcional e o acompanhamento. Modificações do nível
motor podem sugerir progressão neurológica. O
Quadro 4 apresenta os níveis da lesão, musculatura
e movimentos comprometidos e qual a forma de
testar. (STOKES, 2000).
Quadro 2 - Avaliação do Nível Motor.
Avaliação do Nível Motor
Nível
Músculo
Movimento
Teste
L1-L2
Psoas
Flexão do quadril
Levantar o joelho na
posição sentada
L3-L4
Quadríceps
Extensão da perna
Chutar uma bola na
posição sentada
L5-S1
Flexores do
joelho
Flexão do joelho
Fletir a perna na posição
prona
L4-L5
Tibial anterior
Flexão dorsal do pé
Andar no calcanhar
S1-S2
Panturrilha
Flexão plantar do pé Andar na ponta dos pés
Fonte: Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação (2006).
Segundo Telöken (1993), Cintas e Long (2001),
as órteses são aparelhos feitos sob medida para
o controle, correção, sustentação e estabilização
de um determinado segmento corporal para facilitar a função desse segmento. As órteses agem
diminuindo o número de articulações que devem
ser controladas para a marcha. Para uma marcha independente da criança, as órteses devem
fazer parte da vida desses pacientes, e devem ser
apresentadas à criança e seus familiares de modo
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Alzira Demétrio Coelho Feitosa et al
positivo. A criança deve ser incentivada, a usá-las,
aconselhando-se o aumento gradual do tempo de
uso. (STOKES, 2000).
O tipo de órtese depende do nível de função
motora da criança. As órteses destinadas a promover a posição em pé devem ser prescritas o mais
precocemente possível. Há quem proponha que
isso seja feito na época em que a criança começa
normalmente a ficar em pé e a caminhar e quando
ela demonstra interesse em ficar ereta. Em geral, a
criança já é colocada em pé com apoio entre os 10 e
12 meses de idade, época na qual a criança começa
normalmente a se sustentar sobre os membros
inferiores e já possui controle adequado da cabeça.
Isto pode ser realizado com o uso do parapódio
que proporciona total contato e suporte nos tornozelos, joelhos, quadris e tronco da criança. A
posição em pé é capaz de promover a postura em
extensão, favorecendo o desenvolvimento visual
e motor do paciente, estimula o uso dos membros
superiores, além de facilitar a fisiologia intestinal e
urinária. (SHEPHERD, 1995; MCDONALD, 2003;
CINTAS; LONG, 2001).
2. Força Muscular:
•• MMSS - Apresenta grau 4 e 5 em toda musculatura porém compensa os movimentos
utilizando a cintura escapular. Pouca destreza
e controle motor em mãos. Dificuldade de
apoiar carga ou segurar-se com as mãos.
•• Tronco: Dificuldade de sustentação do tronco
e pescoço em posição ortostática; presença de
cicatriz cirúrgica na coluna lombar.
•• MMII - Apresenta grau 3 nos músculos extensões da perna, grau 4 para flexores do quadril
extensores das pernas; grau 0 para músculos
de dorso flexão e flexão plantar; grau 2 para
musculatura glútea.
Para aumentar a força da criança, o terapeuta tem
duas opções: (1) progredir o movimento sem a ação
da gravidade para uma forma em que se trabalhe
contra a gravidade e (2) alternar a quantidade de
ajuda fornecida pelo terapeuta, de forma que a
criança tenha que usar mais força e controle. Aumentar o número de repetições de um movimento
ou aumentar o tempo do exercício ajuda a melhorar
a resistência. A coordenação deve melhorar com
um aumento na força e na resistência, dependendo
da lesão. (STOKES, 2000; TECKLIN, 2002; HALL;
THEIN, 2001).
O fisioterapeuta pode usar os efeitos da gravidade como uma força contra qual a criança deve
mover-se. Coloca a criança em uma posição de
modo que qualquer movimento da cabeça e do
tronco, ou dos membros, deva ser feito contra a
gravidade. (HALL; THEIN, 2001).
O movimento poderá ser realizado em uma posição sem a ação da gravidade se a força da criança for
inadequada ou se o movimento for coordenado precariamente. (STOKES, 2000; HALL; THEIN, 2001).
Sistema Urinário: Sem controle insficteriano. Faz
uso de fraldas descartáveis para defecar e CAT
(sonda por cateter urinário) para urinar.
Crianças com bexiga neurogênica costumam
apresentar perdas constantes de urina e muitas
vezes não conseguem esvaziar todo o conteúdo da
bexiga. O acúmulo de urina facilita o aparecimento
e a multiplicação de bactérias. Se as defesas naturais
da bexiga são quebradas, a criança pode desenvolver infecção urinária. As principais manifestações
de infecção urinária são: alterações no aspecto
da urina, febre, alteração do apetite e às vezes
dor lombar. (TECKLIN, 2002; SHEPHERD, 1995).
Algumas crianças com bexiga neurogênica apresentam refluxo de urina da bexiga para os rins, e, infecções repetidas associadas a refluxo podem, com
o tempo, ocasionar sérios problemas renais ou do
trato urinário. (STOKES, 2000; SHEPHERD, 1995)
Para que se possa realizar o tratamento adequado
da bexiga neurogênica é necessário um diagnóstico
correto do tipo de comportamento da bexiga e da
uretra. A bexiga pode ser espástica e pequena ou
flácida e grande dependendo do nível de envolvimento medular (QUADRO 3). Nos dois tipos há
perdas urinárias. Exames de imagem e o estudo
urodinâmico auxiliam o diagnóstico. O estudo
urodinâmico registra o comportamento da bexiga
durante as fases de enchimento e esvaziamento
indicando a pressão intra-vesical, a pressão de
perda, o fluxo, e se há sinais de dissinergismo. Estes
parâmetros auxiliam o estabelecimento de critérios de tratamento e acompanhamento. (STOKES,
2000; SHEPHERD, 1995)
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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ANÁLISE DO TRATAMENTO FISIOTERÁPICO EM PACIENTES COM MIELOMENINGOCELE: ESTUDO DE CASO
Quadro 3- Classificação da Bexiga Neurogênica.
Classificação da Bexiga Neurogênica
Tipo
Fisiopatologia
Características
Espástica
(Hiperreflexa)
Lesões acima de T12
ou do cone medular
preservando os
reflexos medulares
para a bexiga
Capacidade pequena
Contrações involuntárias
rítmicas (hiperrrefléxicas)
não efetivas.
Grande tendência ao
refluxo vésico-ureteral
com rins aumentados de
volume (hidronefrose)
Flácida
(Arreflexa)
Lesões ao nível
de L1 ou abaixo,
envolvendo o cone
medular e a cauda
eqüina
Os neurônios
motores para a
bexiga estão
destruídos.
Ausência de contração
Parede vesical distendida
Volume residual
aumentado
A pressão vesical não é
aumentada
Infecções freqüentes
causadas pela
dificuldade de
esvaziamento
Fonte: Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação (2006).
Exames de medicina nuclear (cintilografia renal
ou cistografia isotópica) são utilizados em situações
especiais quando se quer estudar melhor a função
renal ou quando a criança tem alergia ao contraste
utilizado para alguns exames radiológicos. Finalmente, alguns exames de laboratório são indicados
como o exame de urina e a depuração de creatinina
ou a dosagem de cistina C que permitem detectar
infecção e avaliar a função renal. Estes exames
são realizados periodicamente de acordo com a
necessidade. (STOKES, 2000; SHEPHERD, 1995).
O tratamento da mielomeningocele é feito de
forma multidisciplinar. Para uma melhor abordagem o dividimos em: tratamento cirúrgico e
tratamento fisioterápico.
Logo após o nascimento a criança deve ser mantida com o abdome para baixo e a lesão deve ser
coberta com compressas não adesivas, suavemente
colocadas, embebidas em soro fisiológico, objetivando evitar o ressecamento. Se a criança tiver que
ser transportada, deve ser preparada uma proteção
de maneira a não permitir o contato da placa neural com qualquer superfície a não ser a compressa
embebida no soro fisiológico. O fechamento da
mielomeningocele deve ser feito, de preferência,
nas primeiras 24 horas e as razões principais para
o tratamento cirúrgico são: diminuir o risco de
infecção e preservar a função nervosa. (STOKES,
2000; SHEPHERD, 1995).
Por causa da lesão congênita dos nervos e da
medula, em todas as crianças com mielomeningocele há alterações da força e tônus muscular em
membros inferiores, podendo ainda apresentar
algum comprometimento das musculaturas do
abdome e coluna. (STOKES, 2000; TECKLIN,
2002; REDE SARAH DE HOSPITAIS DE REABILITAÇÃO, 2006).
No tratamento, é importante que pais e profissionais saibam que a melhora da força dos músculos
não depende apenas da quantidade ou do tipo de
exercícios que a criança realiza, mas principalmente do grau e nível da lesão das raízes nervosas e
da medula. Quanto menor as alterações de movimento que está criança apresentar, maiores serão
os resultados de fortalecimento e tônus dos músculos. Porém não existe possibilidade de ganhar
força em músculos com ausência de movimentos.
(STOKES, 2000; REDE SARAH DE HOSPITAIS
DE REABILITAÇÃO, 2006).
Os exercícios terapêuticos exercem um importante papel na habilitação e reabilitação da criança
com mielomeningocele. O programa de exercícios
deve ser desenvolvido em relação à avaliação, à
identificação das metas a longo e curto prazo e às
habilidades funcionais da criança. Os exercícios
são semelhantes às outras formas de exercícios nas
quais o terapeuta deve graduar a dificuldade do
programa de acordo do com o progresso da criança
para alcançar uma maior força, resistência e coordenação. (TECKLIN, 2002; HALL; THEIN, 2001).
Deste modo, os exercícios terapêuticos devem
ser direcionados a dissociar uma extremidade da
oposta e a dissociar os membros do corpo para
alcançar uma maior coordenação muscular, enfatizando o alcance de uma maior diferenciação das
articulações em cada membro. (TECKLIN, 2002).
As principais mudanças na força muscular e no
aprendizado motor da criança ocorrem nos três
primeiros anos de vida o que torna o inicio do tratamento fisioterápico precoce um fato importante na
recuperação e educação dos movimentos e postura
das crianças. (TECKLIN, 2002; REDE SARAH DE
HOSPITAIS DE REABILITAÇÃO, 2006).
Tendo em vista que esse desenvolvimento ocorre de forma mais lenta nas crianças com mielomeningocele e que esta geralmente só inicia o
processo de engatinhar após os 2 anos de idade
ou até mesmo não desenvolve esse processo, o
tratamento dessas crianças seguem em um ritmo
especial e deve ser modificado acompanhando as
diferentes fases. Seus objetivos variam de acordo
com a idade. (REDE SARAH DE HOSPITAIS DE
REABILITAÇÃO, 2006).
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
27
Alzira Demétrio Coelho Feitosa et al
Neste caso em estudo, o objetivo do tratamento
aplicado, de acordo com a fisioterapeuta responsável foi o alongamento da musculatura encurtada, fortalecimento muscular, e treino da macha
com órtese propiciando maior independência
a paciente. Espera-se com o tratamento que a
mesma adquira macha independente com auxílio
de órtese e muletas. Relata obter cooperação dos
pais podendo estes ainda incentivarem mais a
participação da criança ao tratamento e o treino
domiciliar da marcha.
Durante a observação do tratamento aplicado
pela terapeuta à criança, observou-se que foram
aplicadas técnicas de: fortalecimento muscular,
que, de acordo com O´Sullivan (2004) é a força
exercida por um músculo para vencer uma resistência em um esforço máximo; alongamentos,
treino de macha, visando adquirir a independência
máxima desta criança.
Os exercícios isométricos e isotônicos associados
à gravidade e a apoios externos são a base do tratamento aplicado confirmando o encontrado na
literatura segundo Stokes (2000), Tecklin (2002),
Hall e Thein (2001). Todos os autores citados acima,
dizem que estes exercícios como os outros aplicados, promovem uma melhoria do tônus muscular
diminuindo a flacidez existente.
Os exercícios mais utilizados são classificados
de duas formas; exercícios isométricos que são
os que propiciam a contração dos músculos sem
encurtamento ou alongamento e os exercícios
isotônicos, quando os músculos se alongam ou se
encurtam durante a contração muscular. (HALL;
THEIN, 2001). Foi observado sequências de exercícios de flexão e extensão nos membros inferiores e
superiores contra a gravidade e com a resistência
das mãos da terapeuta, além de pesos presos ao
tornozelo da paciente O´Sullivan (2004) aprova
o uso de cargas como pesos livres, polias, tiras
elásticas, resistência manual com forma de fortalecimento muscular.
Segundo White (2004), a resistência muscular
é a habilidade do músculo de contrair-se repetidamente ao longo do tempo. A exploração da
resistência muscular existente e o propósito de
aumentá-la tem sido o ponto chave do tratamento.
As mãos do fisioterapeuta ou algum equipamento
podem ser usados para dar um apoio inicial a fim
de inibir a rigidez excessiva, manter o alinhamento,
iniciar uma transferência de peso, manter um
movimento ou auxiliar em uma transição mais
suave de movimentos. O suporte externo deve ser
alternado intermitentemente para dar à criança
uma oportunidade de praticar os movimentos livremente. (TECKLIN, 2002; HALL; THEIN, 2001).
O apoio do corpo de uma criança para diminuir
a rigidez e para facilitar os movimentos pode ser
mudado de um ponto proximal como o tronco, o
ombro ou a pelve, que oferecem um maior suporte,
para um ponto mais distal ao longo do membro.
Mudando o ponto de apoio mal distantemente, o
fisioterapeuta espera que a criança conquiste um
maior grau de controle sobre os movimentos nas
articulações sem apoio. (TECKLIN, 2002; HALL;
THEIN, 2001). De acordo com Edelstein (2004)
a órtese se destina a proporcionar o máximo de
função com o mínimo de desconforto e esforço. A
adaptação a órtese é gradativa e o trabalho bem individual não havendo um programa de treinamento
que sirva para todos os pacientes segundo o mesmo.
Para o treino de deambulação a terapeuta utilizou a órtese tutor longo com apoio de muletas
ou barras fixadas a parede e auxílio do espelho
para auto correção da postura. Isso também foi
respaldado por Edelstein (2004).
Exercícios de alongamento da coluna vertebral,
dissociação da cintura pélvica, exercícios posturais
foram observados com auxílio de bolas, sendo esses
exercícios reforçados por Tecklin (2002).
Até a idade de 6 anos as crianças que conseguiram
deambular já o conseguem, as que não alcançaram
este estágio provavelmente não conseguiram, independente do tratamento fisioterápico aplicado
ou uso de órteses. (STOKES, 2000; REDE SARAH
DE HOSPITAIS DE REABILITAÇÃO, 2006).
As atenções da fisioterapia se voltaram nessa
fase ao treino da independência funcional tanto
para as crianças que andam quanto para as que
não andam e o desenvolvimento de cada criança
é individual podendo sofrer alterações do meio. A
evolução da criança pode ser mais lenta devido à
incoordenação de membros superiores, déficit de
equilíbrio, deformidades da coluna, obesidade e
atraso cognitivo. O trabalho explorando o meio
ambiente e noções de espaço com a realidade diária como: o tamanho e o material da cadeira de
rodas e barreiras como degraus, portas estreitas ou
terrenos acidentados dificultam o uso da cadeira
de rodas. (STOKES, 2000; REDE SARAH DE
HOSPITAIS DE REABILITAÇÃO, 2006).
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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ANÁLISE DO TRATAMENTO FISIOTERÁPICO EM PACIENTES COM MIELOMENINGOCELE: ESTUDO DE CASO
O uso de bolas firmes fornecem superfícies móveis
que podem ajudar o fisioterapeuta na facilitação do
controle postural e nas preparações posturais da
criança. A direção na qual a bola é movida e as posições da criança na bola podem variar para facilitar
o movimento da cabeça e do tronco em flexão, extensão, flexão lateral e/ou rotação. (TECKLIN, 2002).
É essencial lembrar que a bola tem uma superfície curva de sustentação de peso, de modo que
seu deslocamento resulta em uma mudança de
peso nos ísquios, que estão em cima da bola (o
lado mais curto do tronco). Os variados usos da
bola e suas infinitas possibilidades de movimento
permitem que o terapeuta controle o grau em que o
movimento é auxiliado ou desempenhado contra a
gravidade. (TECKLIN, 2002; HALL; THEIN,2001).
4 CONCLUSÃO
A fisioterapia tem um papel fundamental no
tratamento das sequelas de lesões decorrentes
desta má formação da coluna vertebral ajudando
na reestruturação das fases do desenvolvimento
motor, no equilíbrio estático e dinâmico, aquisição
de força muscular, e capacidade de deambulação.
REFERÊNCIAS
CINTAS, H. L.; LONG, T.M. Manual de
fisioterapia pediátrica. Rio de Janeiro:
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Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
29
litterarumradicesamaraefructusdulces
Que Teia é esta? Representações Sociais dos
Adolescentes Socioeducandos e Egressos sobre
Família
Rita de Cássia Sidney Marques Bessa1
Maria Lúcia Duarte Pereira2
Mônica Araújo Gomes3
Sheva Maia da Nóbrega4
RESUMO: Ante o acentuado crescimento do
número de adolescentes autores de atos infracionais, a freqüência e a gravidade dos atos cometidos, demonstrados pela superlotação de todos
os Centros Educacionais, onde eles cumprem
medidas sócio-educativas, e diante da importância da família na formação do indivíduo, este
estudo objetiva identificar as representações
sociais que os adolescentes sócio-educandos
e egressos elaboram sobre família, bem como
analisar as influências das representações sociais dos dois grupos na comunicação como guia
de comportamento. Trata-se de um estudo de
campo, exploratório, fundamentado pela Teoria das Representações Sociais. A pesquisa foi
desenvolvida no Centro Educacional São Miguel e no Pólo Central, unidades vinculadas à
Secretaria da Ação Social do Estado, localizada
em Fortaleza-Ceará. Os instrumentos de coleta
de dados foram: entrevistas semi-estruturadas;
Teste de Associação Livre de Palavras; observação das expressões não verbais. Os dados foram
submetidos à análise de conteúdo temática, tendo como base os pressupostos de Bardin, e a
avaliação estatística, de acordo com o programa
Tri-Deux-Mots. Os resultados evidenciam a importância atribuída pelos adolescentes à família,
os sentimentos valorativos e a aglutinação entre
família vivida e sonhada. Essas representações
sobre família emanadas dos sujeitos sugerem o
desenvolvimento de ações que contemplem a família e comunidade, e não apenas o adolescente
1.
2.
3.
4.
desvinculado de suas raízes, considerando a rede
interconexa de suas relações.
Palavras-chave:
Família. Adolescente.
Representações Sociais.
ABSTRACT: Considering the accentuated increase in the number of adolescent transgressors,
the frequency and the gravity of the committed
crimes, demonstrated through the overpopulation of the Educational Centers where the adolescents follow social-educational measurements,
and having as the purpose the importance of
the family in the formation of the individual. This
study focuses on the identification of the social
representations that the social-educating adolescents and the egressed ones elaborate about the
family as well as the analyses the influence of the
social of two groups in the communication as a
guide of behavior. It is about a field study, exploratory, established by the theory of the Social Representations. The research was developed in the
São Miguel Educacional Center and at Polo Central
whose units are linked to the Social Action State
Secretary located in Fortaleza, Ceará. The tools for
collecting data were semi-structured interviews,
free-association word test and observation of the
non-verbal expressions. The data underwent the
analyses of a thematic content having as a base
the purposes of Bardin and the statistical evaluation based on the Tri-Deux-Mots program. The
results showed clearly the importance the adolescents attributed to the family, the valued feelings
and the agglutination between real family and
dreamed family. These representations about the
Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social – STDS
Doutora em enfermagem – Universidade Estadual do Ceará – UECE
Mestre em saúde da criança e do adolescente – Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social – STDS
Doutora em Psicologia Social – Universidade Federal de Pernambuco – UFPE
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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Key-words: Family.
Adolescent. Social
Representations.
Rita de Cássia Sidney Marques Bessa et al
family that immerge from the subjects suggest
the development of actions that contemplate the
family and the community, not only the adolescent, unattached to their roots, considering the
interconnected web of their relations.
1 OS FIOS DA TEIA
Em julho de 1990, o Brasil está diante de uma
nova lei federal, que regulamenta o artigo 227 da
Constituição Federal de 1988, com a criação do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É a
consagração de um direito que, além de explicitar
os direitos gerais e específicos de crianças e adolescentes, propõe uma nova gestão, por meio de
um Sistema de Garantia de Direitos, considerado,
portanto, a Doutrina da Proteção Integral, apoiado
em três eixos: Promoção, Defesa e Controle Social.
Conforme consta no artigo 3º do Estatuto da
Criança e do Adolescente:
uma declaração de Bezerra, juiz titular da 5ª Vara
da infância e Juventude, afirma: “Foram registrados 1.326 processos contra adolescentes infratores
durante o ano passado. Somente nos seis primeiros
meses deste ano, o número supera a soma do ano
de 2002, totalizando 1.352 processos”.
Na opinião do referido juiz, é alarmante o índice
de reincidência. De janeiro a julho de 2003 chegou
a 48,62%, segundo informação da Unidade de Recepção, onde os adolescentes dão entrada. O perfil
desse adolescente aponta algumas características,
como: 74% dos que cometeram infrações estão na
faixa etária de 14 a 17 anos, a concentração de adolescentes tem sido na capital (87%) e a grande maioria
são do sexo masculino, aproximadamente 92%.
Diante das constatações, urge a necessidade de
propostas tendo como paradigma a vinculação
do adolescente à sua comunidade e família.
Neste sentido, cabe uma releitura do sistema
familiar para compreensão do fenômeno.
2 A FAMÍLIA COMO TEIA
A criança e adolescente gozam de todos os direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo
integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por
lei outros meios, todas as oportunidades e facilidades,
a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental,
moral, espiritual e social, em condições de liberdade
e de dignidade.(BRASIL, 1990, p.02).
Com o advento do ECA, foi necessário o processo
de re-ordenamento institucional para garantia
de direitos creditados ao segmento em discussão,
devendo ser obedecidas as medidas circunscritas
em seus artigos, quais sejam:
••As Medidas de Proteção: aplicáveis às
crianças e adolescentes sempre que seus
direitos, reconhecidos na lei, forem ameaçados ou violados;
••As Medidas Sócio-educativas: de cunho educativo e punitivo, aplicáveis por ordem judicial
a adolescentes (12 a 18 anos) que praticarem
ato infracional;
A situação do adolescente que comete ato infracional no Estado do Ceará está piorando, pois o
número de adolescentes envolvidos nesta prática
vem aumentando e a gravidade do ato infracional
também está em progressão.
Como mostra matéria publicada no jornal O
Povo, redigida pela jornalista Dias (2003, p.03),
Estabelecer vínculos é inerente à pessoa humana.
Na história da humanidade, os homens ao buscarem vinculação formaram tribos, grupos e famílias.
O sentimento de pertença também é essencial à
condição humana e tem como lócus primário
de estabelecimento a própria família, a qual está
inserida em um contexto sócio-econômico e cultural, composta por pessoas que convivem com
objetivos comuns, uma ligação afetiva e cuidados
uns com os outros.
Para Szymanski (2000, p.15), “o mundo familiar
mostra-se numa vibrante variedade de formas de
organização, com crenças, valores e práticas desenvolvidas na busca de soluções para as vicissitudes
que a vida vai trazendo”.
A família contemporânea, pós-moderna, que
ora se apresenta advinda do século XX, traz em
seu âmago duas vertentes: a família pensada e a
família vivida. A família pensada vive apenas no
desejo e nos sonhos, com o sentimento de final
feliz, influenciada pelo discurso das instituições
e da mídia e até mesmo de profissionais que a
consideram um modelo certo de se viver.
A família vivida é de fato a que sobrevive, com
seus dilemas, dificuldades e formas diferentes de
relacionamento. Conforme o “discurso oficial” que
subscreve a família pensada, “desestruturadas” e
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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QUE TEIA É ESTA? REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS ADOLESCENTES SOCIOEDUCANDOS E EGRESSOS SOBRE FAMÍLIA
“incompletas” são aquelas que fogem a essa concepção, definidas com os adjetivos pejorativos de
inferioridade e incapacidade. Nessa família, real
e vivida, circundam os adolescentes que trilham
seus caminhos conforme as vicissitudes a eles
impostas.
Cada família se organiza de acordo com os sentimentos vivenciados, emoções, comunicação e
todo o universo de significados manifestos. Neste
universo onde os adolescentes sobrevivem e interagem, surge a inquietação de como eles próprios
se inscrevem nesse contexto, de que forma em seu
cotidiano eles conseguem visualizar as relações
impregnadas em suas histórias de vida.
Por mais difícil que seja sua formação, a família continua sendo na sociedade o primeiro
espaço de referência a expressar proteção e
socialização dos indivíduos. Constitui-se um
canal de iniciação e aprendizado do afeto e das
relações socializantes, laboratório do convívio
democrático entre os homens.
A família contemporânea do Brasil do final
do século XX e início do século XXI apresenta
uma diversificada forma de organização em
seu interior, no referente tanto à sociabilidade
quanto à sua composição. Dois aspectos são
relevantes e merecem um aprofundamento ao
se adentrar nessa teia das relações familiares:
os papéis e a autoridade.
Nos últimos anos observou-se por meio de pesquisas o crescente aumento de famílias matrifocais, formadas pela mãe e seus filhos, gestados
de uma relação com um ou mais companheiros
itinerantes. Conforme Bilac (1991), esta família
passou de 9,5% em 1970, para 14,04% em 1987.
Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2003) reforçam este
aspecto ao apresentar o número de famílias tendo como chefe as mulheres. Como conseqüência,
a unidade doméstica redefine papéis, e altera os
vínculos com os filhos, mães e companheiros.
Estudos já foram desenvolvidos sobre a importância da figura paterna na formação da personalidade do indivíduo, não necessariamente a
convivência do dia-a-dia, mas a presença dessa
figura na intimidade de cada um, participativa,
mesmo depois das separações, real, mesmo quando o contato físico diário não é mais possível.
Ademais, nas famílias de baixa renda outro
agravante contribui para a perda da autoridade
dos pais e inversão de papéis, isto é, crianças
desde a mais tenra idade lutam pela subsistência
do núcleo familiar, e, ao adquirirem o poder
econômico dentro do lar, passam à condição de
mando, pois são de fato os provedores e, como
tal, assumem a papel do “chefe”, que intimida
e cria suas próprias regras.
Os estudos contemporâneos apontam outras
relações determinantes para o comportamento
anti-social na adolescência, como: a ausência de
cuidados maternos, privações na primeira infância, representadas não apenas pelas carências
biológica, social e jurídica, mas também pelas
carências afetivas.
Pensar no adolescente envolvido em ato infracional apenas como uma conseqüência da situação
socioeconômica é demasiadamente simplista e
não explicaria como adolescentes bem nascidos,
de classe média e alta estão cada vez mais circulando por este mundo. E como tantos adolescentes
pobres e até miseráveis conseguem ultrapassar essa
barreira tênue da marginalidade e construir um
projeto de vida consistente e contrário a profecias
“do não dá para nada”.
Alguns questionamentos se tornaram iminentes:
Que caminhos percorrer para manter a vinculação
do adolescente sócio-educando e sua família, diante das relações tão fragmentadas, as inversões de
papéis e a ausência de limites?
No intuito de estudar a significação e importância da família para o adolescente sócio-educando
e o egresso, por meio das representações sociais,
levando em consideração o senso comum e todo
o estigma que envolve este adolescente, segundo o
qual é um “delinqüente”, incapaz de formar laços
e gestado em “famílias desestruturadas”, tem-se
como finalidade maior compreender a concepção
destes sobre família, conhecer seus pensamentos,
sentimentos, percepções e experiências de vida,
verificadas nas diferentes formas de comunicação,
em face do seu contexto histórico, socioeconômico,
cultural e espiritual.
Ao se estudar a representação social que o adolescente tem sobre a família, será possível sinalizar as
alternativas para a melhoria no seu atendimento,
e contribuir para a construção de seu projeto de
vida, fundado na relação saudável em suas famílias de origem e nas famílias constituídas, capaz
de interromper o processo cíclico de infração/
cumprimento de medida/reincidência.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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Rita de Cássia Sidney Marques Bessa et al
Pensar em estudar as representações sociais que
os adolescentes elaboram da família é despertar
um novo olhar sobre a questão, voltado para a
construção do conhecimento prático experenciado
por determinado grupo de pertença. Como afirma
Doise (1990, p.08):
Representações Sociais são princípios geradores de
tomadas de posição ligadas a inserção específica em
um conjunto de relações sociais e que organizam os
processos simbólicos que intervêm nessas relações.
O referencial adotado será capaz de dar conta
da problematização, considerando que objetiva
compreender a significação da família para o adolescente sócio-educando e o egresso, vinculando-a
à sua realidade, tentando conhecer seus pensamentos, percepções e experiências vivenciadas e
compartilhadas por crenças, atitudes, valores e
informações, por meio das formas de comunicação.
A partir desses princípios, pesquisar as RS dos
adolescentes sócio-educandos sobre família remete
a uma leitura da questão não apenas com bases
científicas e teóricas, mas norteadas pelo conhecimento do cotidiano (senso comum) elaborado
e compartilhado pelos grupos de pertença, na
tentativa de abstrair as representações suscitadas
e as relações que estabelecem entre si.
3 MATERIAL E MÉTÓDO
A pesquisa constitui um estudo de campo exploratório, tendo como referencial a Teoria das
Representações Sociais. Seu objetivo é a apreensão das representações sociais sobre família, por
adolescentes autores de ato infracional, tanto o
sócio-educando como o egresso.
Campo do estudo: este estudo foi realizado em
duas unidades vinculadas à Coordenadoria da
Proteção Social e Medidas Sócio-educativas da
Secretaria da Ação Social: o Centro Educacional
São Miguel, unidade de internação, e Pólo Central,
local onde os adolescentes egressos das medidas sócio-educativas são atendidos pelo Projeto
Mãos Dadas, que propicia a participação desses
adolescentes em cursos profissionalizantes, com
vistas a inseri-los no mercado formal e informal
de trabalho.
Amostra: Participaram da pesquisa 100 sujeitos divididos em dois grupos: adolescentes
sócio-educandos, denominados de grupo 1. e adolescentes egressos, denominados de grupo 2. Para
o Teste de Associação Livre de Palavras a amostra
contemplou 100 sujeitos e para as entrevistas semi-estruturadas a amostra foi composta por 28 sujeitos, definidos por saturação, sendo contemplado
em ambos os instrumentos 50% de cada grupo.
Instrumentos para a coleta de dados: foi aplicado
o teste de Associação Livre tendo como estímulo
a solicitação: diga quatro palavras que lhe lembre
a palavra “família” e em seguida procedeu-se a
entrevista tendo como pergunta de partida: “o que
é família para você?” A pesquisa foi realizada no
período de fevereiro a abril de 2004.
Análise e tratamento dos dados: para a analise dos dados obtidos no Teste de Associação
Livre de Palavras, utilizou-se a análise fatorial de
correspondência (AFC) com base no programa
Tri-Deux-Mots (versão 2.2), (CIBOIS, 1998). Para
compreensão e inferência de novos conhecimentos
a partir do relato dos sujeitos durante as entrevistas foi utilizada a técnica de análise de conteúdo
temática (BARDIN, 2004).
4 TECENDO A TEIA
Ao se mergulhar na leitura sobre família tendo
como referencial a Teoria das Representações Sociais, unem-se, conhecimento do senso comum e
o saber científico, propiciando a construção social
de um conhecimento compartilhado. As representações sociais constituem o mundo tal como
ele é, garantem ao sujeito um lugar nesse mundo.
Moscovici (2003) define essa concepção quando
fala de representações sociais, estabelecendo uma
ordem que permite aos sujeitos orientar-se no seu
mundo material e social, e comandá-lo, assim como
também Jodelet (2001, p.25) afirma: “As representações sociais enquanto sistemas de interpretações
que regem nossa relação com o mundo e com os
outros – orientam e organizam as condutas e as
comunicações sociais”
Neste sentido, a Teoria das Representações Sociais compõe um instrumento no diagnóstico
psicossocial nas diferentes áreas de conhecimento,
particularmente neste estudo, pois foi possível a
expressão do pensamento do adolescente sobre
família, por meio de uma rede de significados
expostos na fala, nas emoções, nos sentimentos
e representações.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
34
QUE TEIA É ESTA? REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS ADOLESCENTES SOCIOEDUCANDOS E EGRESSOS SOBRE FAMÍLIA
Os adolescentes de ambos os grupos exteriorizaram valores e concepções internalizados em suas
vivências cotidianas e na aprendizagem com seus
diferentes grupos sociais, família, amigos e no
Centro Educacional no qual passam ou passaram
parte de sua adolescência.
Válido se faz ressaltar a desmistificação de que
o adolescente autor de ato infracional não tem
família, são pessoas sem raízes e/ou provenientes
de famílias “desestruturadas”. Na verdade, o que
se considera como desestrutura é uma forma diferenciada de se organizar, em face do constante
processo de mudanças no padrão familiar.
Cada família interage com seus membros de
acordo com seus valores, nível de comunicação
e experiências compartilhadas. Assim, ao se reportar à família, é imprescindível observar na
fala e expressão dos sujeitos toda influência por
eles recebidas da família, e esta da sociedade, das
relações socioeconômicas e políticas, no contexto
do Estado.
O adolescente vive em um mundo estruturado
pelas representações sociais da comunidade, o que
lhe faculta a tomada de posição do conjunto sistêmico de relações e práticas sociais. Este adolescente
sujeito da investigação passa por um processo cada
vez mais complexo, pois com a situação do ato
infracional, sua conduta transgressora manifesta
surge também como um substrato para lidar com
os conflitos internos.
Neste estudo, os adolescentes participantes
permearam sua linguagem, de forma velada, por
expressões denotativas de sua condição de autor
de ato infracional. Por meio das representações
sociais foi possível codificar essas relações que
circundam entre os sujeitos, embora a temática
do estudo estivesse direcionada à família.
A análise das entrevistas apresentou cinco categorias: dimensões sobre família; contextualização da
família; percepção do adolescente autor de ato infracional; construção da sua família; sentimentos.
Na categoria 1 – Dimensões sobre Família – os
sujeitos puderam manifestar por meio das unidades
de análise temática a concepção sobre família, apresentando duas vertentes de pensamento, dimensionadas nas subcategorias: pensada e vivida. Na
subcategoria pensada, observou-se que os sujeitos
transpuseram a barreira do concreto, das vivências cotidianas e expressaram toda subjetividade
do modelo idealizado, internalizado mediante
¨discurso oficial¨ sobre família. Na subcategoria
vivida emergiu uma concepção construída em
suas histórias de vidas, transmitindo um caráter de caminho não desejado, mas imposto pelas
circunstâncias.
Nos aspectos apreendidos por meio das entrevistas relacionadas a esta categoria, sobressai o
contraponto entre o que o sujeito coloca sobre
sua realidade de vida e o sentimento expresso
sobre como ele gostaria que fosse sua família.
Ao mesmo tempo em que evidencia situações
conflitantes ocorridas no seu cotidiano, exprime
a concepção de família como o espaço de apoio,
amor e compreensão.
Segundo percebeu-se, os adolescentes de ambos
os grupos fazem referências à sua família vivida
com os problemas que lhe são inerentes, expondo
as situações mais sofridas em seu dia-a-dia, onde
as relações estão desgastadas, mas não deixam de
traduzir “família” de modo mais abrangente, com
significado valorativo.
Esta talvez seja a grande contradição, o vivenciado por ele difere do conceito que tem de família.
Mesmo a realidade sendo a negação de seus paradigmas, o adolescente continua a crer no modelo
sonhado.
Na categoria 2 – Contextualização da Família – os
sujeitos contextualizam a família, agrupando-a em
duas subcategorias: sócio-econômica e cultural-histórica. Na subcategoria sócio-econômica os
sujeitos evidenciaram a importância dos fatores
sócio-econômicos na formação e estrutura da
família. Na subcategoria cultural-histórica, eles
contextualizaram aspectos cultural-históricos que
contribuem para esta mesma formação e para o
desenvolvimento familiar.
Segundo Guareschi e Jovchelovitch (2002), ao
analisar fenômenos psicossocias – e representações sociais – é necessário analisar o social como
totalidade. Assim esta categoria emerge para dar
essa conotação social à subjetividade individual,
considerando que a família institui-se em um contexto sócio-cultural e econômico, estabelecendo
uma relação de trocas com esse meio.
Nessa categoria, as representações sociais são remetidas às condições sociais que as engendram, ou
seja, o contexto de produção. Tal contexto interessa
à devida compreensão das construções que dele
emanam e nesse processo o transformam. Desse
modo, ao se deter na contextualização da família
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
35
Rita de Cássia Sidney Marques Bessa et al
e suas influências, percebe-se a circularidade dos
conteúdos na sociedade e as forças emanadas da
interação social. A sociedade espera que as famílias possam promover a melhoria da qualidade de
vida de seus membros e a efetiva inclusão social
deles. Contudo o contexto no qual essas famílias
sobrevivem pode ser fortalecedor ou esfacelador
de suas potencialidades.
Mas as famílias empobrecidas, além de viverem todas as dificuldades presentes no sistema
de interações, ainda travam uma luta diária pela
sobrevivência, o que ocupa o primeiro plano nas
preocupações. As múltiplas carências de saúde,
educação, lazer, cultura fragmentam mais ainda
suas relações. São famílias desprovidas do mínimo
para uma sobrevivência digna e não contam sequer
com uma rede de apoio capaz de orientá-las no
enfrentamento das vicissitudes. Nesse mundo onde
a maioria dos adolescentes entrevistados sobrevive
constatou-se o registro das influências do contexto
socioeconômico e cultural em suas famílias.
Na categoria 3 – Percepção do Adolescente Autor de Ato Infracional – os sujeitos evidenciam a
percepção da família e deles próprios como adolescente infrator, o modo como são tratados e o que
mudou após o comprometimento decorrente do
ato infracional. Mencionada categoria engloba duas
subcategorias: a auto-percepção do adolescente
na família e a hetero-percepção, ou seja, como o
adolescente supõe que a família o vê.
Na subcategoria auto-percepção emerge um misto
de sentimentos, como a culpa por causarem transtornos à família, e a vergonha por essa situação.
Há, ainda uma contradição entre a concepção que
os sujeitos creditam à família e o que eles próprios
atribuem a si. Diante da família, sentem-se envergonhados, não se perdoam pelo fato de terem
causado desgosto, mas referem que a família os
perdoou, nada mudou, mesmo com o comprometimento com o ato infracional. Pelas expressões
mencionadas, há, mais uma vez, a demonstração
do envolvimento familiar. Aqui, os sujeitos fazem
uma reflexão sobre o ato cometido e acentuam a
dor que causaram a seus familiares.
Em relação a subcategoria hetero-percepção temos o adolescente autor de ato infracional envolto
em preconceitos e carregando o estigma imputado
pela sociedade de ser inferior, “menor”. As pessoas
não conseguem desvencilhar o ato infracional de
sua personalidade, e constroem no senso comum a
figura do delinqüente irrecuperável, alguém incapaz de conviver socialmente e desprovido de sentimentos. Na verdade, ser autor de ato infracional
é uma circunstância de vida e não uma categoria
valorativa, segundo afirma Volpi (2001). Mas esta
condição de infrator é superdimensionada, como
indica o próprio termo, carregado de estima. No
entanto, nesse estigma presente na sociedade não
se solidifica na família do adolescente investigado,
pois, conforme supõem, mesmo na simplicidade
de sua vida, sem formação profissional, suas famílias guiam-se pelos sentimentos e valorizam o
adolescente, que está vivendo uma circunstância
difícil, mas passageira, e são apenas adolescentes.
A categoria 4 – Construção da Família – refere-se a percepção do sujeito sobre a construção de
sua família. Agrupa as seguintes subcategorias:
modelo reproduzido e modelo sonhado. Os sujeitos
verbalizam atitudes demonstrativas em sua família,
constituídas da repetição do modelo vivenciado na
infância, ao mesmo tempo em que expressam o sonho de re-inventarem este modelo, de forma ideal.
A família, como primeiro espaço de socialização,
constitui-se como laboratório para a aprendizagem
dos indivíduos. Nela aprende-se os primeiros passos, as primeiras palavras e, ainda, a relacionar-se
com o outro. São as heranças de outros vividos
que vão se fazendo presentes e impregnam todo o
comportamento do ser. As mensagens repassadas
explícita ou implicitamente no discurso ou comportamento dos membros da família e a interação
que ocorre como resposta a essas mensagens ganham um significado.
Ademais, os mitos, valores e crenças originários
na família juntam-se aos partilhados na sociedade
e dão lugar ao modelo que será incorporado no
cotidiano da nova família a ser constituída. Muitas
vezes, o modelo reproduzido não é aquele idealizado, mas se impõe como uma marca indelével,
apreendida no convívio da família de origem. A
reprodução do modelo vivido se cristaliza, e apesar
de ter sido ele, por vezes, questionado e rejeitado,
considerado como “errado”, consegue embotar o
sonho de se diferenciar. E, mais grave ainda, ao
se reproduzir o modelo, não se tem consciência
de que o negado está agora sendo reproduzido.
Na investigação, segundo se observou, os sujeitos,
embora evoquem um maior número de falas no
modelo sonhado, quando passam para o concreto,
o dia-a-dia de sua vivência na família constituída,
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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QUE TEIA É ESTA? REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS ADOLESCENTES SOCIOEDUCANDOS E EGRESSOS SOBRE FAMÍLIA
reproduzem o modelo de família subscrita em sua
família de origem.
Os padrões se repetem: a filha criada pela avó
deixa seu filho com a mãe; o adolescente que desconhece o pai abandona a companheira grávida. O
tipo de vínculo estabelecido nas famílias de origem
tem influência dominante na família constituída;
esse convívio valida a aprendizagem, preparando
cada pessoa para ser como é, viver como vive e
vincular como vincula.
Conforme Anton (2002, p.13): “Nós nos repetimos a nós mesmos, pois temos um modo de ser
e de agir que nos são típicos, e a própria vida, de
um modo geral, organiza-se ao redor e através de
eventos que se repetem.”
Esta afirmação corrobora Moscovici (2003), quando possibilita entender as ações humanas não somente como resultado de experiências acumuladas
e de sistemas de disposições incorporados, mas
também como produto da ação do indivíduo sobre
si mesmo e sobre o mundo exterior. Tais comportamentos apreendidos são repetitivos também em
virtude da própria vontade interior de cada um, que
por vezes não encontra força para se diferenciar.
São as motivações inconscientes, que não permitem
o rompimento de círculos.
O modelo sonhado pelos sujeitos na construção
de sua família gravita na esfera do ideal. Expressa
a negação de experiências de vida dolorosas às
quais foram submetidos e que não gostariam que
seus filhos passassem.
Constitui-se como a desconstrução do modelo
marcado por perdas. Por isto, eles travam uma
luta interior entre o apreendido e a necessidade
de se diferenciar. Um esforço para “não errar”,
e assim oferecer o que consideram ser o melhor
para sua família constituída. O modelo sonhado
remonta à família pensada, trazendo as mesmas
expectativas, fundadas na busca do amor eterno,
na união definitva.
Essa amostra pesquisada é, portanto, um extrato da sociedade que recebe influências externas
e internas e tenta construir projetos de vida tão
saudáveis quanto o de outros representantes da
sociedade. No percurso de incidentes e envolvimento, esses projetos vão se desfazendo e outros
caminhos vão sendo trilhados.
A categoria 5 – Sentimentos – compreende as
unidades de análise temática em que os sujeitos
sinalizam os sentimentos vivenciados em relação
à família, os quais foram agrupados nas seguintes
subcategorias: saudade, amor e mágoa.
Essa categoria remete à importância dos sentimentos do senso comum no processo de objetivação, pois os sentimentos internalizados pelos
sujeitos ao longo de suas experiências sofrem influências do contexto social e se materializam
como conceito, na medida em que sintetizam o
pensamento do grupo, conforme Moscovici (2003):
“Pessoas e grupos criam representações no decurso
da comunicação e de cooperação. Representações,
obviamente, não são criadas por um indivíduo
isoladamente. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma vida própria.”
Quanto ao Teste de Associação Livre de Palavras, tendo como estímulo a palavra “família”, as
palavras mais evocadas foram: amor, união, paz,
felicidade e apoio.
As evocações dos dois grupos de sujeitos foram
semelhantes. A única palavra evocada apenas pelo
grupo de egressos, que se diferenciou, foi desunião,
o que nos leva a conotação de que o adolescente
egresso, por integrar o cotidiano familiar, tem uma
concepção mais realista, pois está vivendo com as
contradições inerentes ao convívio. Enquanto os
adolescentes sócio-educandos, geograficamente
distantes das famílias, são procurados por estas por
ocasião das visitas, momento em que só recebem
estímulos positivos. As famílias lhes dão conselhos, presentes e carinho, exercitam o cuidar, algo
nem sempre praticado quando estão juntos, mas
tão importante para esse segmento populacional
que se encontra em uma condição peculiar de
desenvolvimento.
O processo das relações intrafamiliares tem
como ponto de partida a troca da informação,
identificada por meio da comunicação verbal e
não verbal. A desunião expressa pelo grupo de
egressos materializa-se no cotidiano como a falta
de comunicação ou comunicações distorcidas
entre os membros da família. Esta ambigüidade
familiar, espaço de coexistência de opostos, termina por gerar conflitos, nem sempre fáceis de
serem resolvidos. Conforme Minuchin (1999, p.25):
As desavenças familiares são parte da vida, elas podem
ser amargas e duras em qualquer família, mantidas
pela questão não resolvida de quem está “certo”, por
sentimentos feridos e pela frustração de esforços que
parecem não dar em lugar algum.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
37
Rita de Cássia Sidney Marques Bessa et al
Os padrões repetitivos das relações podem levar
as pessoas a se magoarem mutuamente. Então
a raiva, conseqüência das desavenças, pode ser
internalizada, manifesta. Outras vezes, a raiva
pode impulsionar os adolescentes para as drogas,
a violência e ruptura dos laços afetivos. Famílias
incapazes de tolerar as diferenças e desenvolver
alternativas para dirimirem seus conflitos tendem
a viver a eterna desunião.
Contraditoriamente à desunião, o amor e união
foram as evocações mais suscitadas pelos dois
grupos, a sugerir na análise a consolidação do
que foi explorado na primeira categoria referente
à dimensão de família, onde a família vivida se
alterna à família pensada.
No universo simbólico dos sujeitos transita a sensação de conexão entre os membros da família, uma
ligação, um vínculo, observados pelas evocações de
palavras como: apoio, compreensão, convivência,
conselho, companheirismo, paz e felicidade, que
reafirmam o interesse em proteger, defender e
apoiar uns aos outros. Subscrevem-se aqui os laços
emocionais e histórias compartilhadas.
Conforme sinalizam os resultados da pesquisa, a
construção das representações sociais sobre família, elaboradas pelos adolescentes sócio-educandos
e pelos egressos participantes da investigação,
não apresentam diferenças significativas, embora
em algumas evocações o grupo de adolescentes
egressos tenha se expressado de forma mais realista, em virtude de, no momento da aplicação dos
instrumentos de análise, já estarem convivendo
com suas famílias, portanto, experenciando as
dificuldades decorrentes do cotidiano familiar.
5 A TEIA
A positivação de valores atribuídos à família desmistifica a lógica presente na sociedade, segundo
a qual os adolescentes investigados são seres sem
sentimentos. O senso comum tende a classificá-los
como pessoas sem vinculações ou oriundas de
famílias “desestruturadas”, e que são, em última
análise, as responsáveis por seu comportamento.
Objetivamente todas as famílias vivenciam experiências positivas e negativas, independente de
classe social, raça ou cultura. Não é privilégio das
famílias de adolescentes autores de atos infracionais
conviver com os mais variados tipos de percalços,
mas especificamente nesses casos os elementos
socialmente apreendidos foram mobilizados para
envolvimento no mundo das contravenções, até
como resposta à sociedade.
As elaborações dos sujeitos transitaram entre o
vivido e o pensado na família, em uma dinâmica
dialética, e ao mesmo tempo em que identificaram
no vivido os conflitos e dificuldades, expressaram a
família ideal, sem mácula, no pensado. Não deixaram, contudo, de mencionar o apoio e compreensão
a eles devotados pelos familiares.
Capra (1996) no seu livro intitulado A teia da
vida transcende a visão holística e remete à visão
ecológica ou sistêmica, que concebe o mundo todo
integrado e afirma a interdependência fundamental
de todos os fenômenos. Este referencial fundamenta a visão de família, entendida como um sistema
vivo, dinâmico, cujas interações vão construindo
uma intricada teia. Assim, não há este limite claro,
que tentamos impor socialmente, entre os bons e
os ruins, famílias certas e erradas, numa posição
puramente cartesiana. Os conflitos são parte das
interações, e a dança em busca do equilíbrio nos
fios que vão se tecendo é que nos capacita na arte
de tal convivência.
A subjetividade presente em cada expressão elaborada pelo sujeito, o universo de signos emergidos
no decorrer da pesquisa, da análise à inferência
sobre os resultados, faculta o registro da esperança,
a possibilidade de ressignificar histórias de vida
marcadas pela violência, redefinindo sonhos e projetos interrompidos. Essa esperança se materializa
na forma de investimentos em ações que envolvam
o sistema familiar e a comunidade. Minuchin (1999)
ressalta a importância de destacar as potencialidades da família, redefinindo os pontos negativos,
para que as ações se concretizem nas soluções e
na capacitação dos membros, respeitando suas
opiniões e apoiando seus esforços. Neste sentido, é
preciso repensar as intervenções até hoje realizadas
nas instituições que trabalham com este segmento
populacional, redefinindo estratégias.
O trabalhar com as famílias não tem mais espaço
para ações de cunho normativo ou “policialesco”,
presentes em outros séculos. Necessário se faz a
revisão em toda bibliografia atual para subsidiar
um processo de atuação, onde a prática esteja
amparada em pesquisas, em teorias e na própria
constatação das lacunas ora existentes.
Balizados na abordagem sistêmica e no senso
comum que emergiu das elaborações dos sujeitos,
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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QUE TEIA É ESTA? REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS ADOLESCENTES SOCIOEDUCANDOS E EGRESSOS SOBRE FAMÍLIA
fica, portanto, a recomendação de que a família
deve ser trabalhada e não apenas o adolescente, isoladamente, sem suas conexões, validando
programas que não sejam meramente paliativos e
assistencialistas. A formulação de políticas públicas
que invistam na família, por meio da educação
social, uma educação além da educação formal e
do paradigma do assistencialismo, numa política
de inserção e combate à exclusão social, capacitando a pessoa humana para a construção de sua
autonomia.
Os programas deveriam investir no resgate das
competências familiares, no apoio jurídico, em
espaços de escuta, aconselhamento, cultura, lazer
e serviços de apoio psicossocial. Assim sendo, certamente se conviveria com estatísticas bem menos
assustadoras sobre violência e comprometimento
do adolescente nas infrações.
Mas o tema não se esgota nessa pesquisa. Sabe-se das limitações do estudo. Espera-se, portanto,
que os resultados e sugestões possam contribuir
para a melhoria no atendimento aos adolescentes
autores de ato infracionais e às suas famílias, sendo um instrumento de consulta para os técnicos
dessa área. Muitas contribuições sobre o tema
deverão ser suscitadas a partir da investigação,
considerando que a interseção da temática família
e adolescente autor de ato infracional não tem sido
alvo de investigações.
A contribuição presente é apenas um fio. Outros
há de se tecerem nesta teia infinitamente inesgotável do saber.
DIAS, D. O retorno à delinqüência. O Povo,
Fortaleza, 28 ago. 2003. Caderno 1. Fortaleza.
p. 4.
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Petrópolis: Vozes, 2002.
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2002. Rio de Janeiro, 2003.
JODELET D. As representações sociais. Rio de
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Alegre: Artes Médicas Sul, 2008.
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científica dos sistemas vivos. Tradução
Newton Roberval Eichenberg. 8. ed. São
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(Versão 2.2). Paris: Ed. UFR/Sciences
Sociales, 1998.
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39
litterarumradicesamaraefructusdulces
A Loucura e a Abordagem da Mídia Impressa
Cearense
Élida Pires Cardoso1
Simone Gurgel Gondim2
Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos3
RESUMO: Na segunda metade dos anos 90,
percebe-se na imprensa brasileira uma maior
responsabilidade quanto à divulgação dos assuntos referentes à Reforma Psiquiátrica, ação
que visava a uma melhoria na definição e no
tratamento dado ao doente mental, além de propor uma atenção maior para com eles, iniciada
nos primeiros anos dessa mesma década. Pela
seriedade que esse fato representou a imprensa
logo tratou de divulgá-lo. Pensando nisso, neste
artigo apresentamos a abordagem jornalística
como algo que deve ser considerado para entendermos melhor a influência, bem como a
capacidade de propagar uma informação que
a mídia possui. Para tanto, escolhemos utilizar
como exemplo o Jornal Diário do Nordeste, por
ser um veículo de grande circulação no estado
do Ceará. O nosso objetivo foi demonstrar que o
estudo da prática jornalística, em seus múltiplos
aspectos que incluem a produção, a circulação
e o consumo de textos, pode proporcionar o
conhecimento das condições de emergência das
questões sociais, nesse caso abordando a saúde
mental. O referencial teórico é o da análise da
postura jornalística diante de fatos inovadores
e da Análise Crítica do Discurso. Fizemos consultas aos Jornais Diário do Nordeste, no período
de 1990 a 1999. Bem como, análise de artigos e
matérias referentes à Loucura, a Imprensa e a Reforma Psiquiátrica. Propomos, através da análise
do discurso jornalístico, refletir se a influência da
divulgação feita, promoveu ou não progressos
na forma com que a sociedade pensa a “Loucura”, para assim termos consciência do poder da
palavra de um profissional do jornalismo.
ABSTRACT: In the second half of 90´s, the
Brazilian press started to spread a bigger responsibility referring subjects of the Psychiatric
Reformation, action that brought an improvement in the definition and the given treatment
aimed at to the mental sick people, initiated in
the first years of this same decade. For the seriousness that this fact represented to the press
it was soon divulged largely. Thinking about
this, in this article we present the journalistic
boarding as something that must be considered
to understand a better influence, as well as the
capacity to propagate an information that the
media brought. For in such a way, we choose to
use as example the periodic Diário do Nordeste,
for being a vehicle of great circulation in the state
of Ceará. Our objective is to demonstrate that
the practical study of journalism, in its multiple
aspects that include the production, the circulation and the consumption of texts, can provide
the knowledge of the conditions of emergency
of the social matters, in this case approaching
the mental health. The theoretical reference is
the analysis of the journalistic position ahead of
innovative facts. We made consultations to the
periodic Diário do Nordeste, in the period of 1990
to 1999. As well as, referring analysis of articles
and substances to Madness, the Press and the
Psychiatric Reformation. We studied through
the analysis of journalistic´s speech to reflect if
the influence spreaded, promoted or brought
progress in the form with the way that society
thinks about “Madness”.
1. Élida Pires Cardoso, aluna de graduação em jornalismo da Faculdade Integrada do Ceará.
2. Simone Gurgel Gondim, aluna de graduação em jornalismo da Faculdade Integrada do Ceará.
3. Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos, graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará (1987), especialista em
Língua Portuguesa pela Universidade Estadual do Ceará, mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará e professora assistente da Universidade Estadual do Ceará e da Faculdade Integrada do Ceará.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
41
Palavras-chave:
Loucura. Mídia. Análise
do Discurso.
Key-words: Mídia.
Madness.
Élida Pires Cardoso et al
1 INTRODUÇÃO
Percebemos que o índice de preconceito existente
no Brasil ainda é amplo. Somente para citar alguns
exemplos, temos: a opção sexual, religião, condição
social e inclusive, como no caso do nosso artigo, o estado emocional e psicológico das pessoas.
Passado esse momento, analisamos os discursos
midiáticos nos Jornais do “Diário do Nordeste”,
no período de 1996 a 1999.
Escrever sobre a Loucura na mídia impressa
cearense pode ser bastante complexo, principalmente quando constatamos a influência dos valores
sócio-culturais que condenam qualquer atitude
relativa aos indivíduos que possuam diferenças,
podendo até repercutir na sua marginalização.
O que acontecia e, certas vezes, ainda acontece é
um desapego que ocasiona na exclusão social dos
doentes mentais, tudo isso porque a sociedade os
tinha como uma ameaça.
Nos documentos oficiais relativos à Reforma
Psiquiátrica é evidente o valor dado aos meios de
comunicação de massa, pois para que esse movimento virasse realidade era necessário o apoio
de órgãos que trabalhassem com serviço direto a
população, divulgando e conscientizando sobre
as questões sociais. Considerando que o intuito
deste artigo é trabalhar com o conteúdo dos textos
jornalísticos, vimos na mídia impressa cearense
uma forma de analisar melhor a abordagem feita
sobre o Movimento pela Saúde Mental.
A mídia por divulgar conceitos sobre os mais variados temas, concebe que sejam questionadas as suas
formas de fazer esse trabalho. Além disso, temos
de considerar o fato de os jornalistas serem, para
o senso comum, um sinônimo quase perfeito de
“formadores de opinião”. Portanto, considerando o
poder de influência dos meios de comunicação sobre
a “massa” coletamos materiais referentes a alguns
anos do período da Reforma Psiquiátrica e analisamos se essa Reforma provocou ou não mudanças
no pensamento das pessoas em relação aos loucos.
Afinal, as pessoas que tem acesso às opiniões manifestadas pelos meios de comunicação são levadas a
refletir sobre os assuntos que tem em mãos. Depois
disso, o consumidor da notícia pode incorporar ou
abdicar do que está exposto no texto lido.
De acordo com Machado (2004), o sujeito que
discorda do que lê faz o mesmo trajeto cognitivo
ao discutir e/ou negar o que está sendo divulgado,
reforçando e reelaborando suas opiniões, que também irão determinar sua subjetividade e sua condição de ser social. Há, nos dois casos, um processo
individual e coletivo em que são revistos seus códigos pessoais de valor, suas crenças e suas ideologias.
Falando em subjetividade, quando estudamos
Fairclough (1989) vemos a afirmação de que as
pessoas são aprisionadas e constrangidas por convenções sociais em que formam suas “supostas
subjetividades”, suas identidades. E de modo correspondente, essas pessoas manipulam a fala com
propósitos estratégicos a contextos diferenciados.
Os discursos são considerados como práticas sociais determinadas pelo contexto sócio-histórico,
mas não deixam também de ser partes constitutivas desse mesmo contexto.
Então, se todo discurso expressa fatos pessoais
de quem escreve como no discurso jornalístico
seria diferente? Muitos estudiosos e manualistas
afirmam que a neutralidade na mídia não existe,
pois o discurso deixa transparecer nossas opiniões, que quando se tratam de jornalistas acabam
estabelecendo relações com poder de persuasão.
Isso ocorre, porque a comunicação jamais se
reduz à transmissão das mensagens de origem ou
ao transporte de informações inalteradas. Ela diferencia, traduz, interpreta e combina, assim como
os grupos inventam, diferenciam, ou interpretam
os objetos sociais ou as representações de outros
grupos (MOSCOVICI, 1978).
Por fim, avaliamos se há uma modificação no
ponto de vista da loucura e da reintegração do
doente mental. E foi a partir dessa avaliação, que
despertou em nós o interesse de pesquisar como foi
conduzida a discursivização da mídia impressa cearense acerca da loucura e da Reforma Psiquiátrica.
2 A HISTÓRIA DA IMPRENSA NO BRASIL
A Imprensa Régia, fundada no Rio de Janeiro
em 1808, deu início à imprensa escrita no país. O
primeiro periódico brasileiro, A Gazeta do Rio de
Janeiro, tinha a função de divulgar toda a informação oficial emanada do Poder Real. Os periódicos
produzidos pela iniciativa privada apareceram
mais tarde. A Idade d’ouro do Brasil publicado em
1811 na Bahia, foi o primeiro periódico produzido
pela iniciativa privada de circulação regular no país.
Dom João VI, em 1821, decretou a abolição da
censura prévia e regulou a liberdade de imprensa.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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A LOUCURA E A ABORDAGEM DA MÍDIA IMPRESSA CEARENSE
Porém, a primeira Lei de Imprensa portuguesa, foi
Há, desde o princípio, um empecilho em estaintroduzida no Brasil somente no fim desse mesmo belecer um termo universal para denominação
ano.
de pessoas consideradas como doentes mentais.
A Constituição de 25 de março de 1824 passou a A dificuldade maior é averiguar as características
vigorar incluindo a seção que tratava das garantias mais perceptíveis em uma pessoa com desequilídos direitos civis e políticos dos cidadãos, bem brio psico-orgânico que não sejam semelhantes
como a liberdade de expressão de pensamento, ou não se apresentem nas pessoas ditas como
reformulando alguns dos princípios que vinham normais. A partir do nosso estudo consideramos
desde a Idade Medieval. Declarava que: “Todos o arquétipo de normalidade como sendo algo
podem comunicar os seus pensamentos por pa- complexo e difícil de ser delimitado, haja vista
lavras, escritos, e publicá-los pela imprensa sem que o limite entre a saúde e a doença mental, por
dependência de censura, contanto que haja de vezes, pode ser bastante sutil. Então, que tipo de
responder pelos abusos que cometerem no exer- pessoa poderia ser considerado normal?
cício desse direito, nos casos e pela forma que a
lei determinar”(Art.179,n°4).(BRASIL, 1824, p. 13)
Como a medicina orgânica. A medicina mental tentou,
Os meios de comunicação são os elementos mais
inicialmente, decifrar a essência da doença no agrupautilizados pela população para que se mantenham
mento coerente dos sinais que a indicam. Constituiu
uma sistematologia na qual são realçadas as correlainformados. Portanto, o jornalismo tem o dever
de insistir na maior transparência para informar
ções constantes, ou somente freqüentes, entre tal tipo
o público com a mais alta fidelidade, com imparde doença e tal manifestação mórbida: a alucinação
auditiva, sintoma de uma estrutura delirante; a concialidade e equilíbrio. A partir disso, buscamos
fusão mental, sinal de tal forma demente. Constituiu,
saber qual o tipo de informação que recebemos e
a qualidade com que ela vai ser passada adiante.
analisadas as próprias formas da doença, descritas as
Se o papel do jornalismo é, desde sua criação,
fases de sua evolução, e restituídas as variantes que
servir ao público sempre buscando mostrar a
ela pode apresentar: haverá as doenças agudas e as
verdade dos fatos, então entendemos que ele deve
crônicas, as alternâncias de sintomas, e sua evolução
cumprir esse papel independente do leitor para o
no decorrer da doença. (FOUCAULT, 1994, p.9)
qual ele passa as informações. Estamos nos referindo ao caso de doentes mentais que precisaram,
O que ocorre no caso da loucura é que, diferennaquela época, e ainda hoje precisam de que a temente das outras doenças, não existem provas
mídia os veja como cidadãos portadores de uma laboratoriais para diagnosticá-la. Para a psiquiatria
doença que necessita de tratamento e não como a única forma de diferenciar a sanidade da loucura
pessoas periculosas. Com essa postura, a mídia vai é por meio da fala, da conversação, do discurso
despir a sociedade de certos preconceitos e ajudar do paciente e dos dados obtidos pelos familiares.
até mesmo as famílias, informando-as. Por situ- Com isso, não há como negar que o transtorno
ações como essas é que os meios de comunicação mental é diagnosticado a partir da subjetividade
necessitam ter consciência do intenso poder que dos especialistas nessa área.
exercem no momento de propagar um episódio e
Desde o século passado, as doenças mentais fopromover uma ação social.
ram divididas em cinco grupos: neuroses, psicoses,
Todo cidadão tem direito a receber informa- psicopatias, retardo mental e demências. Na tentação, direito o qual é garantido em todo o mundo tiva de uma melhor sistematização e conceituação
expresso pela Declaração Universal dos Direitos entre as comunidades a Classificação Internacional
do Homem, de 1948, que estabelece, no artigo de Doenças (CID-10) distribuiu os transtornos
19, o direito a liberdade de expressão, que inclui mentais da seguinte forma:
•• Transtornos mentais orgânicos, incluindo
a liberdade de “procurar, receber e transmitir
informações e idéias por quaisquer meios e indeos sintomáticos;
pendentemente de fronteiras”.
•• Transtornos mentais e de comportamento
decorrentes do uso de substâncias psicoativas;
3 A LOUCURA E O MOVIMENTO DA REFORMA
•• Esquizofrenia, transtorno esquizofrênico e deliPSIQUIÁTRICA
rantes mudanças de humor ligado à afetividade;
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
43
Élida Pires Cardoso et al
•• Transtornos neuróticos, relacionados ao estresse e sematoformes;
•• Síndromes comportamentais associados a
perturbações fisiológicas e fatores físicos;
•• Transtornos de personalidade e de comportamento em adultos;
•• Transtornos emocionais e de comportamento iniciadas usualmente na infância e
adolescência;
•• Retardo mental;
•• Transtornos do desenvolvimento psicológico;
•• Transtornos mentais não especificados.
Para entendermos como ocorreram os episódios
que contribuíram para dar início às discussões
sobre loucura e a Reforma Psiquiátrica é necessário
fazer uma abordagem dos fatos.
No Brasil, os loucos eram mantidos em suas
casas e assim, conservava-se tímida a discussão
da saúde mental. Além disso, por ficarem isolados
não recebiam o atendimento necessário para tratar
de suas doenças.
O primeiro hospital psiquiátrico data de 1852 no
Rio de Janeiro por D. Pedro II, herdando inclusive
seu nome. Pouco tempo depois disso, outras Santas
Casas, asilos e manicômios foram criados pelo
Brasil. Nessa época, eram freqüentes as denúncias
de maus-tratos aos indivíduos com transtornos
mentais, além de serem precárias as alternativas
de auxílio propriamente dito.
Depois de tantas insinuações uma atitude foi
tomada, nos anos 40 foi criado o Serviço Nacional
de Doença Mental, pena que ainda sem tantas
novidades na parte auxiliar.
Os anos 50 e 60 foram de carências na assistência
dada aos indivíduos acometidos pela loucura. As
superlotações dos leitos privados oferecidos pelo
Estado culminaram nas discussões entre o Brasil
e a América Latina para reformular e organizar a
saúde mental, pretendendo um atendimento mais
humano aos pacientes. Afinal, até esse momento as
instituições psiquiátricas eram como uma empresa
que visava seus lucros, apenas com a diferença de
ter o conhecimento psiquiátrico. Esse fato é bastante importante de ser falado, pois ele é semelhante
ao que ocorre, hoje, com os asilos de idosos.
Mais tarde, um grupo conhecido por Movimento
dos Trabalhadores em Saúde Mental, induziu as
discussões contra a privatização da saúde, dadas
as particularidades e deformações do sistema psiquiátrico brasileiro (LIMA; TEIXEIRA, 1995). Um
outro conceito muito importante assumido pelo
grupo é o da ressocialização, reforçando a idéia de
desmontar os dispositivos institucionais de cronificação, quais sejam a falta de individualidade, o
tratamento impessoal, o abuso de psicofármacos,
o distanciamento da realidade social e familiar,
entre outros (DELGADO, 1987).
Apenas no ano de 1987, quando já existiam os
asilos e manicômios e também posteriormente
as mobilizações de alguns psiquiatras e técnicos
em saúde mental a favor da Reforma Psiquiátrica,
houve a I Conferência Nacional de Saúde Mental.
Em 1992 ocorreu a II Conferência. O primeiro
passo dessa reforma foi dado pelo Estado de São
Paulo, ao instalar um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) na capital. Em seguida, no Estado do
Ceará foi criado o CAPS de Iguatu, reformando a
assistência dada aos doentes mentais nesse local.
Em 1990, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde
(OMS) divulgaram um documento intitulado: A
reestruturação da atenção psiquiátrica na América
Latina: uma nova política para os serviços de Saúde
Mental, que ficou conhecido como a Declaração
de Caracas (OPAS, 1990). As organizações, associações, autoridades, legisladores e juristas que,
reunidos, estabelecem a Declaração de Caracas,
instam aos Ministérios de Saúde e de Justiça, aos
Parlamentos, aos Sistemas de Seguridade Social
e a outros prestadores de serviços, organizações
profissionais, associações de usuários, universidades e outros centros de treinamento e aos meios
de comunicação de massa a que apóiem a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica assegurando,
assim, seu desenvolvimento exitoso em benefício
das populações da Região (OPAS, 1990).
Através dos dados acima, é possível percebermos
como o papel do jornalismo, nesse caso o impresso,
tornou-se ainda mais importante, pois ele é utilizado como fonte para adquirir conhecimento e
por isso são tratados com a devida importância
nos documentos referentes à Reforma Psiquiátrica.
4 DISCURSSÃO METODOLÓGICO
Esta é uma pesquisa bibliográfica e documental
em que a metodologia utilizada foi dividida em três
momentos relacionados: primeiro, pesquisamos e
fizemos uma seleção teórica sobre a Loucura, assim
como lemos a respeito do poder de persuasão do
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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A LOUCURA E A ABORDAGEM DA MÍDIA IMPRESSA CEARENSE
discurso da mídia. Assim, buscamos avaliar como
foram tratados os casos que abordavam a Reforma
Psiquiátrica e a loucura. Utilizamos a denominação
da Classificação Internacional de Doenças (CID),
pois assim pudemos nos referir de forma mais
adequada à loucura.
Segundo, fizemos consultas nos arquivos do
“Diário do Nordeste” do período de 1996 a 1999.
Além disso, foi feito um levantamento considerando os artigos, livros e publicações disponíveis
na internet, referentes à Loucura, Saúde Mental,
Categorização, Reforma Psiquiátrica, Análise do
Discurso e Representações Sociais.
Por último, fizemos a classificação do material
coletado, bem como analisamos as informações e
discutimos os resultados para concluir o presente
artigo científico.
5 ANÁLISE DE DADOS
A análise foi feita a partir das matérias publicadas
no Jornal Diário do Nordeste e da abordagem de
uma crítica do discurso jornalístico. A seleção
incluiu além das reportagens, os artigos e os textos
divulgados na internet.
Buscamos analisar a construção dessas publicações, enfocando as mudanças de posicionamento
entre as instituições públicas e privadas, entidades
médicas e o próprio profissional de jornalismo
quanto à Reforma Psiquiátrica. Tentamos verificar
os pontos que refletem a postura jornalística em
presença das informações obtidas nos Jornais
Diário do Nordeste.
Evidenciamos, portanto, a relevância de avaliar
o discurso de um dos jornais de maior circulação
do Ceará sobre a loucura na segunda metade dos
anos 90, com o objetivo de promover nos estudos
do jornalismo a formação de uma consciência das
relações sociais de poder constituídas através da
linguagem.
Embora o discurso sobre doença mental tenha
tido mudanças significativas e a Reforma Psiquiátrica esteja em processo de desenvolvimento,
procuramos investigar se alguns dos temas ligados
às doenças mentais ainda permanecem inalterados.
5.1 Análise dos textos jornalísticos
Inicialmente, fizemos uma análise dos textos jornalísticos dos anos 1996, 97, 98 e 99. Constatamos
que houve nesse período, inovadoras e criativas
notícias sobre propostas de cuidar dos sujeitos com
transtornos mentais; discussões sistemáticas sobre
o tratamento através de medicamentos e através da
psicanálise; experiências em decorrências dos novos
conceitos de assistência psicossocial em saúde mental.
Em seguida ao processo de conclusão da análise
dos discursos midiáticos, onde utilizamos como
parâmetro o Jornal Diário do Nordeste, obtivemos
como resultados:
É importante relevar que a notícia do ano de
1996 “Reintegração social do doente mental”a qual
selecionamos, foi escolhida por diversos fatores,
entre eles: o fato de mostrar o interior do Ceará
desenvolvendo projetos envolvidos com as questões
sociais; informar sobre esse projeto que é tão significante para os doentes e suas famílias; a opção
de divulgar esse plano, porque pode representar
uma forma de incentivo para outros hospitais
adotarem o mesmo sistema. Podemos verificar na reportagem uma preocupação em falar sobre aqueles que sofriam por ser
excluídos da sociedade, através da explicação dos
médicos voltadas para os familiares dos doentes.
O texto apresenta um conteúdo primordialmente
informativo, porque não demonstra a opinião do
jornalista, ou seja, há uma busca pela neutralidade
do informante.
No que diz respeito à matéria de 1997 “Terapeutas
comunitários serão treinados pela UFC”, podemos
dizer que ela é semelhante a do ano anterior. Porém,
apresenta dois pontos fortes e diferentes. O primeiro deles é por divulgar um Programa desenvolvido
em uma favela de Fortaleza, ou seja, mostrando
que nas favelas não há somente miséria e tristeza.
O segundo ponto é a questão do Projeto trabalhar
no sentido de amparar a comunidade para que ela
não se sinta mais ameaçada, mas de que forma isso
é feito? Como a reportagem demonstra é através do
uso de terapias corporais nos pacientes no sentido
de melhorar a violência e o stress deles.
No ano de 1998 escolhemos uma matéria que
relaciona a condição social com a doença mental.
Inferimos que o Diário do Nordeste procurou
alertar-nos que mesmo depois de tantos anos
do início da Reforma Psiquiátrica, mesmo que
tenham sido desenvolvidas tantas ações em prol
dos doentes mentais, eles ainda são vítimas da
exclusão social. O título “Doentes mentais vivem
no canteiro da avenida”, já deve ter sido escolhido
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
45
Élida Pires Cardoso et al
no sentido de causar impacto diante do leitor, para
que dessa forma, ele seja induzido a refletir melhor
sobre os casos como esses.
Porém, como futuras jornalistas, não podemos
deixar que passem despercebidas algumas falhas
sérias cometidas nessa matéria. A primeira foi
levar em consideração somente o testemunho dos
pedintes, afinal onde fica o jornalismo que mostra
diversas versões de uma mesma história? Até é
citado no início da reportagem que os moradores
estão se sentindo incomodados com certas atitudes
dos mendicantes, afirmando até mesmo que eles
não são normais, mas não entendemos porque não
há uma opinião médica a respeito desse assunto.
Além disso, Luís Rodrigues, o mais velho dos quatro mendigos, cita que o Instituto de Psiquiatria
do Ceará não o aceita mais. Daí surge a seguinte
indagação: onde está a resposta do Instituto para
explicar o acontecido? Ou seja, nesse momento o
jornalismo investigativo ficou esquecido.
No último ano da década de 90 “Psiquiatras só
internam em último caso”, período da Reforma
Psiquiátrica, os textos a respeito de psiquiatria
são bem elaborados, entre eles, escolhemos um
que abordava os psiquiatras que só concordam
com a internação quando diagnosticado que o
paciente não pode, ou não tem condições de fazer
o tratamento em casa, assim explica o psiquiatra
da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (Sesa),
Airton Monte, na entrevista cedida ao Diário do
Nordeste, onde se discutiu a possibilidade de um
doente mental praticar um crime.
Avaliamos que com essas exposições de informações a mídia auxilia na diminuição dos preconceitos e medos da sociedade em relação aos
loucos, também mostra com a explanação dos
fatos o quanto é extremista dizer que todo louco
é perigoso, assim como, somente para citarmos
outro exemplo, avaliar que todo morador de favela
é ou está envolvido com a malandragem.
O importante ao analisarmos diversas matérias
sobre um mesmo assunto é que podemos ampliar
nosso panorama de avaliação. No nosso caso, a loucura e a mídia impressa cearense, entendemos que
ocorreram discussões sistemáticas para a melhoria
no tratamento dos doentes. Além disso, vimos
que foram divulgadas informações no intuito de
proporcionar aos leigos na área de medicina um
melhor entendimento do assunto, exploraram
ainda histórias sobre internos, o que avaliamos
como sendo positivo, pois sensibilizando a população ela será muita mais consciente de seus atos,
consequentemente, diminuirão as atrocidades
cometidas com os doentes mentais. Houve ainda
matérias de fiscalização da imprensa com relação
aos avanços na Reforma.
“Hoje já existe, porém uma mudança de postura na compreensão da loucura que contesta o
isolamento do doente mental. Todavia a exclusão
desse doente dos direitos à cidadania ainda situa-se
na sociedade que institui a razão como conceito
fundamental para o homem”. (TEIXEIRA; MEDINA, 2002, p. 04).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mídia é incumbida de divulgar diversos assuntos, sejam eles polêmicos ou não. Em relação
ao nosso objeto de estudo, as matérias da segunda
metade dos anos 90, no Jornal Diário do Nordeste,
percebemos que os textos evidenciam a complexidade e polêmica das discussões em torno do tema
loucura. Essa complexidade é iniciada, principalmente, pelo preconceito e desinformação da
população daquela época.
Do mesmo modo, os próprios especialistas declaram viver situações controvérsias em relação à
Saúde Mental que dissimulam ou não as mudanças,
criam referências e, de diferentes formas, deduzimos que também incita as inovações das políticas
governamentais.
Percebemos, por meio do material coletado, que
o Brasil e mais especificamente o Ceará, acompanhou de perto o caminhar da Reforma Psiquiátrica,
divulgando os conceitos e a nova linguagem adotada para descrever a doença mental e apoiando
uma assistência digna.
Concluímos que várias propostas, debates e encontros surgiram à medida que os preconceitos
e os medos foram diminuindo, mesmo que isso
tenha ocorrido lentamente. Por meio desse estudo,
constatamos que o atendimento ao doente mental,
aliado a divulgação praticada nos meios de comunicação, teve ampla melhoria. Entre as principais
constatações do que acabamos de escrever está
a aprovação da lei conhecida por “lei antimanicomial”. Essa lei abrange a delicada questão
do aniquilamento dos cárceres privados e a sua
substituição por outros recursos assistenciais, regulamentando a internação psiquiátrica compulsória.
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A LOUCURA E A ABORDAGEM DA MÍDIA IMPRESSA CEARENSE
Vale ressaltar que este artigo pretendeu, entre
outros fatos, a partir da leitura selecionada de
textos jornalísticos, chegar a temas que têm sido
transmitidos pela imprensa, temas estes que podem favorecer ou não a desmistificação da loucura, permitindo uma visão consciente e crítica
da assistência ao sujeito doente mental e criando
uma condição de tolerância ou não para o cidadão
diferente.
Gostaríamos de inserir a reflexão de que apesar
da ênfase dada, diariamente, pelos Jornais para
assuntos relacionados a questões sociais ou políticas, vemos, em nosso cotidiano, que ainda existe
uma falha na investigação desses temas, inclui-se
ainda a linguagem, o poder e a discriminação.
Por essa razão, consideramos relevante realizar
escrever sobre temas tão condenados socialmente,
como a Loucura.
Por fim, precisamos lembrar que os meios de
comunicação, através da sua divulgação de conhecimento, foram um dos responsáveis por hoje
a população aceitar com mais respeito àqueles que
demonstram alguma diferença.
PECHÊUX, M. Discurso: estrutura ou
acontecimento. Campinas: Pontes, 1997.
PINTO, M. J. Comunicação e discurso:
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Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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litterarumradicesamaraefructusdulces
A leitura: aprendizado, estímulo e formação de
leitores no Brasil
Gerlândia Soares Araújo Rodrigues1
Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos2
RESUMO: A leitura é essencial para a vida social dos seres humanos. No Brasil, em razão das
falhas no ensino de base, os professores encontram dificuldades na formação de leitores conscientes, aptos a dominarem o processo de leitura,
compreendendo textos e fixando informações
destes. Embora os fatos sejam relatados por
meio da escrita, é através da leitura que são interpretados seus signos, permitindo a efetivação
de mensagens. Neste quadro, releva-se o caráter
de complementaridade da escrita com a leitura,
sendo importante discutir-se o processo desta,
seus mecanismos e vícios, a maneira de torná-la
mais eficiente, buscando-se maior velocidade e
absorção de informações. Questão não menos
importante é a da necessidade de se incentivar
a leitura entre os brasileiros, os quais, em sua
maioria, possuem baixo poder de aquisição de
livros, mesmo sendo esses isentos de impostos
pela Constituição Federal de 1988.
ABSTRACT: The reading is essentia1 for the
social life of the human beings. In Brazil, in reason of the imperfections in the base education,
the professors fmd difficulties in the formation
of conscientious, apt readers to dOlllinate the
reading process, understanding texts and fixing
information of these. Although the facts are told
by llleans of the writing, it is through the reading
that are interpreted its signs, allowing the efetivação of messages. In this picture, the character
of complementaridade of the writing with the
reading is raised, being important to argue the
process of this, its mechanisms and vices, the way
to become it more efficient, searching bigger
speed and absorption of infornlation. Less important question is not the necessity to stirnulate
it reading between the Brazilians, which, in its
majority, possess low power of acquisition of
books, exactly being these exelllpt ones of taxes
for the Federal Constitution of 1988.
1 INTRODUÇÃO
capacitadas, como forma de mudar a realidade
educacional brasileira.
O trabalho ora em comento desenvolveu-se
precipuamente na pesquisa bibliográfica, com
seleção de textos e fichamentos dos mesmos, com
abordagem do tratamento didático da leitura, do
aprendizado inicial desta, de como os professores
podem estimulá-la e a formação de leitores.
Em nosso país, as escolas enfrentam um grande
desafio quanto à prática da leitura e escrita. A
maioria dos alunos lê diante de uma obrigação
escolar e como se estivesse carregando um fardo
muito pesado, haja vista não possuir o menor
interesse despertado para o mundo dentro dos
livros. Diante disso, aos educadores surge uma
As dificuldades vividas em sala de aula, posto a
interferência no aprendizado pela falta de leitura
dos discentes, somando-se a isso problemas sociais
brasileiros como deficiência alimentar e trabalho
infantil, ensejam uma discussão destes aspectos no
aprendizado, dedicando-se este trabalho específico
estudo sobre o processo de leitura.
A criança em idade escolar deve desenvolver o
interesse e prazer na leitura, bem como na produção de textos, isto podendo concretizar-se
mediante o estudo realizado pelos docentes de
técnicas-pedagógicas para aproximar os alunos da
leitura, com a prática desta orientada por pessoas
1. Graduanda em Letras Português – Literatura pela Universidade Estadual do Ceará;
2. Professora da Universidade Estadual do Ceará e da Faculdade Integrada do Ceará. Coordenadora do Centro de Estudos da
Linguagem da UECE.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
49
Palavras-chave:
Leitura. Incentivo da
leitura. Capacitação de
professores.
Key-words: Reading.
Incentive of the
reading. Qualification of
professors.
Élida Pires Cardoso et al
indagação: como a formação teórico-metodológica
pode auxiliar o professor nas atividades da leitura
e escrita aplicadas ao ensino fundamental?
Ora, a consecução da pratica da leitura e escrita
pelas crianças como forma prazerosa, somente
pode ser vislumbrada com a realização mesmo de
estudos, ultimando-se a descoberta de métodos e
técnicas para este fim. Esta é a forma de garantir
às crianças o conhecimento do mundo imaginário,
bem como o desenvolvimento de um senso crítico
sobre o real, adquirindo cultura e integrando-se à
vida em sociedade como um cidadão.
2 A LEITURA E A ESCRITA: PROCESSOS
QUE SE INFLUENCIAM
A leitura e a escrita, embora sejam apresentadas
como dois sub-blocos, complementam-se fortemente, modificando-se mutuamente no processo
de letramento.
pelo autor na elaboração do texto (se o texto é em
primeira ou terceira pessoa, se é um texto irônico ou
metafórico, etc.).
Os trabalhos com a leitura têm como finalidade
a formação de leitores consciente e, consequentemente, a formação de bons escritores, pois a
possibilidade de produzir textos eficazes tem sua
origem na prática da leitura, espaço de construção
da intertextualidade e fonte de referências modalizadoras. A leitura, por um lado, nos fornece a
matéria prima para a escrita: o que escrever. Por
outro, contribui para a constituição de modelos:
como escrever. Assim, a leitura nos permite entender os mecanismos da língua escrita, como
também nos fornece ideais para a escrita.
3 O PROCESSO DE LEITURA E O
ESTÍMULO A ESTA
A leitura é um processo no qual o leitor realiza
um trabalho ativo de construção do significado do
texto a partir dos seus objetivos, do seu conhecimento do assunto, sobre o autor, de tudo que se
sabe sobre a língua: características do gênero, do
portador, do sistema de escrita e etc. Não se trata
simplesmente de extrair informações da escrita,
decodificando-a letra por letra, palavra por palavra.
Trata-se de uma atividade que implica, necessariamente, compreensão na qual os sentidos começam a
ser constituídos antes da leitura propriamente dita.
A leitura consiste, pois em um processo perceptivo-linguístico bastante complexo, que a maioria
das pessoas desenvolve rapidamente e que toma
Os autores Terra e Nicola (1996, p. 10), entendem forma através da educação. No entanto, o processo
que o pensamento, sendo expresso por palavras e de leitura em si varia de indivíduo para indivíduo,
registrado por intermédio da escrita, é interpretado dependendo de fatores tais como idade e maturano momento da leitura aduzindo que:
ção, sexo, hereditariedade, experiência cultural,
instrução, prática e motivação.
Como essas atividades estão intimamente relacionadas,
O leitor experiente que conseguir analisar sua
podemos concluir que: quem não pensa (ou pensa mal)
própria leitura constatará que a decodificação é
não escreve (ou escreve mal); quem não lê (ou lê mal)
apenas um dos procedimentos que utiliza quando
não escreve (ou escreve mal)”. “Ler, portanto, é fun- lê: a leitura fluente envolve uma série de outras.
damental para escrever. Mas não basta ler - é preciso
Estratégias com seleção, antecipação, inferência
entender o que se lê. Entender o que se lê significa ir
e verificação, sem as quais não é possível rapidez
e proficiência. É o uso desses procedimentos que
além do simples reconhecimento do significado das
palavras que aparecem no texto. É preciso, também,
permite controlar o que vai ser lido, tomar decisões
compreender o sentido das frases, para que se alcance
diante de dificuldades de compreensão, arriscara finalidade maior da leitura: a compreensão das ideias -se diante do desconhecimento, buscar no texto a
comprovação das suposições feitas e etc.
e, num segundo momento, os recursos utilizados
A relação que se estabelece entre leitura e escrita, entre o papel de leitor de escritor, no
entanto, não é mecânica: alguém que lê muito
não é, automaticamente, alguém que escreve
bem. Pode-se dizer que existe uma grande possibilidade de que assim seja. É nesse contexto,
considerando que o ensino deve ter como meta
formar leitores que sejam também capazes de
produzir textos coerentes, coesos, adequados e
ortograficamente escritos, que a relação entre
essas duas atividades deve ser compreendida
(TERRA; NICOLA, 1996, p. 50-53).
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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A LEITURA: APRENDIZADO, ESTÍMULO E FORMAÇÃO DE LEITORES NO BRASIL
Um leitor consciente é alguém que, por iniciativa
própria, é capaz de selecionar, dentre os trechos
que circulam socialmente, aqueles que podem atender a uma necessidade sua, conseguindo utilizar
estratégias de leitura adequadas para abordá-las
de forma a atender a essa necessidade. Formar um leitor consciente pressupõe dar subsídios para compreender o que lê e que possa aprender a ler também o que não está escrito, identificando elementos implícitos, estabelecendo relações
entre o texto em foco com outros, identificando
os vários sentidos possíveis do texto, justificando
e validando a leitura a partir da localização de
elementos discursivos.
A consciência literária ora aludida advém da
constante leitura, baseada em textos diversos focados em ramos sociais diversos. Esse trabalho
pode envolver todos os alunos, inclusive aqueles
que ainda não sabem ler convencionalmente o
sistema alfabético, por exemplo.
A leitura na escola tem sido, fundamentalmente,
um objetivo de ensino, sendo que, para constituir
também objeto de aprendizagem, é necessário que
faça sentido para o aluno, isto é, a atividade da
leitura deve responder, do seu ponto de vista, aos
objetivos da realização imediata. Como se trata de
uma prática social complexa, se a escola pretende
converter a leitura em objeto de aprendizagem
deve preservar sua natureza e sua complexidade,
sem descaracterizá-la.
Significa, mesmo, trabalhar com a diversidade
de textos, combinações entre estes, bem como
de objetivos e moralidade que caracterizam a
leitura, ou seja, diferentes “para quês” r­ esolver
um problema prático, informar-se, divertir-se,
estudar, escrever ou revisar o próprio texto - e
com as diferentes formas de leitura em função
de variados objetivos e gêneros: ler buscando
as informações relevantes ou o significado implícito nas entrelinhas, ou dados para a solução
de um problema.
Torna-se necessário superar algumas concepções
sobre o aprendizado inicial da leitura: a principal
delas é a de que ler é simplesmente decodificar,
converter letras em sons, sendo a compreensão
consequência natural dessa ação. Por conta dessa
concepção equivocada, a escola vem produzindo
grande quantidade de “leitores” capazes de decodificar qualquer texto, mas com enormes dificuldades
para compreender o que tentam ler.
O conhecimento atualmente disponível a respeito do processo de leitura indica que não se deve
ensinar a ler por meio de práticas centradas na
decodificação. Ao contrario, é preciso oferecer aos
alunos inúmeras oportunidades de aprenderem a
ler usando os procedimentos que os bons leitores
utilizam - antecipando, fazendo inferências a partir do contexto ou do conhecimento prévio que
possuem, que verifiquem suas suposições tanto
em relação à escrita, propriamente, quanto ao
significado. É disso que se está falando quando se
diz que é preciso “aprender a ler, lendo”. É preciso
interagir com a diversidade de textos: os escritos,
testemunhar a utilização que já os leitores fazem
deles a participar de atos de leitura de fato.
A leitura, como prática social, é sempre um meio,
nunca um fim. Ler e responder a um objetivo, a uma
necessidade. Fora da escola, não se ler de uma única
forma, não se decodifica palavra por palavra, não se
responde a pergunta de verificação do entendimento
preenchendo fichas exaustivas, não se faz desenho
sobre o que mais gostou e raramente se lê em voz
alta. Isso não significa que na escola não se possa
eventualmente responder a perguntas sobre leitura,
de vez em quando desenhar o que o texto lido sugere,
ou ler, ou ler em voz alta quando necessário. No entanto, uma prática constante de leitura não significa
a repetição infindável dessas atividades escolares.
A constante leitura na escola pressupõe o trabalho com a diversidade de objetivos, modalidades
e textos que caracterizam as práticas de leitura de
fato. Diferentes objetivos exigem diferentes textos
e, cada qual, por sua vez, exige uma modalidade de
leitura. Há textos que podem ser lidos apenas por
partes, buscando-se a informação necessária; outros
precisam ser lidos exaustivamente e várias vezes.
Têm ainda aqueles que podem ser lidos rapidamente,
outros devem ser lidos devagar, bem como existem
leituras em que é necessário controlar atentamente
a compreensão, voltando atrás para se certificar
do entendimento; outros que se segue adiante sem
dificuldades, entregue apenas ao prazer de ler.
Por sua vez, existem leitores que requerem um enorme esforço intelectual e, a despeito disso, se deseja ler
sem parar; outros que o esforço é mínimo e, mesmo
assim, o desejo é deixá-las (as leituras) para depois.
Uma prática constante de leitura na escola deve
admitir várias leituras, pois outra concepção que
deve ser superada é a do mito da interpretação única,
fruto do pressuposto de que o significado está dado
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
51
Élida Pires Cardoso et al
no texto. O significado, no entanto, constrói-se 4 AUMENTANDO O DESEMPENHO E
ELIMINANDO OS VÍCIOS NA LEITURA
pelo esforço de interpretação do leitor, a partir
não só do que está escrito, mas do conhecimento
que traz para o texto. É necessário que o professor
A maioria dos leitores, por não trabalharem o
tente compreender o que há por trás dos diferentes processo de leitura, entende que ou se pode ler em
quantidade, sem grande captação e compreensão,
sentidos atribuídos pelos alunos aos textos.
Para tornar os alunos bons leitores - para de- ou em qualidade, aumentando-se o tempo gasto
senvolver, muito mais do que a capacidade de ler, com o texto, tornando-o maçante, porém com
o gosto e o compromisso com a leitura, a escola uma maior fixação e compreensão dos pontos
terá de mobilizá-los internamente, pois aprender apresentados. E, sobre esses aspectos, vários aua ler (é também ler para aprender) requer esfor- tores, especialmente os que propõem uma maior
ços. Precisará fazê-­los achar que a leitura é algo compreensão do processo mental de leitura, defeninteressante e desafiador, algo que, conquistado dem que esta pode realizar-se quantitativamente,
plenamente, dará autonomia e independência. ou seja, maiores resultados, por meio de técnicas
Precisará torná-los confiantes, oferecer condições que aumentem a velocidade, sem descurar da
para poderem se desafiarem a “aprender fazendo”. qualidade desta.
O processo de leitura, inicialmente realizado com
Uma prática de leitura que não desperte e cultive o
desejo de ler não é uma prática pedagógica eficiente. os primeiros contatos com palavras, por meio do
O despertar do interesse pela leitura advém do aprendizado do alfabeto, silabação e leitura palavra
uso dessa numa perspectiva livre, orientada por por palavra, para em seguida formar frases, realizaprofessores e família, não somente diante de si- -se de forma mecânica, sem uma preocupação em
tuações nas quais se deve ler, mas como forma de se trabalhar junto ao leitor os mecanismos deste
lazer, aquisição de informações, cultura, etc. Nisso, processo, para que este, portando o conhecimento
é fundamental a seleção de textos ricos em temática da maneira como se dá a leitura, possa melhor
e vocabulário, posto os textos muito simplificados realizá-la.
Segundo os autores Soares e Douglas (2000,
possuírem o perigo de perda da qualidade, desestimulando o prosseguimento na leitura.
p.18), “a leitura é uma ação consciente, podenNesse sentido, a professora Maria José Nóbrega do ser formada por inúmeros hábitos que comeafirma que “o problema é que, se o texto é simples çam a ser edificados por época da alfabetização”,
demais, provavelmente também é pobre de temá- constituindo-se, alguns desses hábitos, em ações
tica e de linguagem”, de forma que não desperta o involuntárias, que fogem à percepção do leitor,
interesse, diferentemente de textos produzidos por podendo gerar vícios de leitura, prejudicando o
autores clássicos da literatura na forma de contos, processo quanto ao rendimento de compreensão
e velocidade.
comédias, romances, dramas e outros.
Os autores apontam como vícios corriqueiros
Corroborando essas ideias, o renomado autor
maranhense Gullar (2001) tece o comentário com e que prejudicam drasticamente os resultados
os argumentos de Murray (2001): a leitura é o modo da leitura:
a) desconcentração - desencadeada por
mais prazeroso e eficaz de se adquirir conhecimenproblemas físicos (ambiente de leitura,
to. Não há dúvida de que o rádio e a televisão – o
que importante num país como o nosso, onde se
postura corpórea) ou individuais (
falta de motivação, de interesse, aulê pouco - contribuem para difundir informações
sência de foco, estresse e pequena
e entretenimento. Porém, a leitura possibilita uma
velocidade na leitura);
intimidade maior com as ideais e com os temas
b) apontar usando os dedos ou a caneta;
diversos e uma liberdade também maior. Isso porc) regredir sistematicamente - provoque, a todo o momento, o livro está à disposição
do leitor para ser lido, relido, escolhendo-se esta
cado, geralmente, pela desconcentração, vocabulário pobre e musculatura
ou aquela estória, este ou aquele poema, o que
ocular pouco desenvolvida, ocasiopermite refletir e entendê-los melhor. Com isso
nando saltos de linhas e perda do
a leitura nos ensina a pensar e é pensando que se
adquire cultura (MURRAY, 2001).
raciocínio;
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
52
A LEITURA: APRENDIZADO, ESTÍMULO E FORMAÇÃO DE LEITORES NO BRASIL
d) movimentar a cabeça durante a leitura - provocado pela inexistência de
um trabalho de desenvolvimento da
musculatura ocular, gerando o medo
de saltar linhas;
e) acompanhar oralmente a leitura (vocalização) - o que limita a velocidade
de leitura ao tempo de pronunciamento de palavras;
f) repetição mental da leitura (subvocalização) - a voz “na cabeça” que
pronuncia mentalmente as palavras,
também limitando a velocidade de
leitura ao tempo de pronunciamento
vocal de palavras, quando se sabe
que, na verdade, o cérebro é capaz de
reconhecer, compreender e analisar
símbolos de forma bem mais rápida
do que o homem pode pronunciar
palavras, a exemplo do que ocorre
em relação às placas de trânsito.
O questionamento do processo de leitura, o qual
tem se realizado cada vez mais aprofundadamente,
a exemplo dos autores supracitados, demonstra
uma preocupação da sociedade com o aprendizado,
com a formação de professores aptos a interagirem neste processo, indicando aos discentes os
métodos e técnicas, com eliminação de vícios de
leitura, permitindo que o processo, considerado
meio, não interfira num aprendizado rápido e com
resultados progressivamente mais satisfatórios.
Nesse sentido, Bamberger (1988, p. 10) diz que:
A leitura foi outrora considerada simplesmente um
meio de receber uma mensagem importante. Hoje
em dia, porém, a pesquisa nesse campo definiu o
ato de ler, em si mesmo, como um processo mental
de vários níveis, que muito contribui para o desenvolvimento do intelecto. O processo de transformar
símbolos gráficos em conceitos intelectuais exige
grande atividade do cérebro; durante processo de
armazenamento da leitura coloca-se em funcionamento um número infinito de células cerebrais. A
combinação de unidades de pensamento em sentenças
e estruturas mais amplas de linguagem constitui, ao
mesmo tempo, um processo cognitivo e um processo
de linguagem. A continua repetição desse processo
resulta no treinamento cognitivo de qualidade especial.
Este treinamento cognitivo consiste em trazer à mente
alguma coisa anteriormente percebida, e em antecipar,
tendo por base a compreensão de teste precedente; a
repetição aumenta e assegura o esforço intelectual. Por
todas essas razões, a leitura é uma forma exemplar de
aprendizagem. Estudos psicológicos afirmam que o
aprimoramento da capacidade de ler também redunda
no da capacidade de aprender como um todo, indo
muito além da mera recepção. A boa leitura é uma
confrontação crítica do texto e as ideias do autor. Num
nível mais elevado e com textos mais longos, tornam-se mais significativas a compreensão das relações, da
construção ou da estrutura e a interpretação do contexto. Quando se estabelece a relação entre o novo texto
e as concepções já existentes, a leitura crítica tende
a evoluir para a criatividade, e a síntese conduzirá a
resultados completamente novos. A leitura é um dos
meios mais eficazes de desenvolvimento sistemático
da linguagem e da personalidade. Trabalhar com a
linguagem é trabalhar com o homem”.
5 OS LEITORES NO BRASIL E A
IMUNIDADE DE IMPOSTOS SOBRE
LIVROS, JORNAIS E PERIÓDICOS
A Unesco e a Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) realizaram
estudos comparativos mundiais focados na área da
educação, campo em que o Brasil realizou um trabalho de massificação notável na última década. O
levantamento comparou estudantes de 41 países em
três habilidades básicas: leitura, matemática e ciências. Os organizadores selecionaram um grupo de
alunos de escolas públicas e privadas de cada país,
todos na faixa dos 15 anos. Os jovens, que no caso
brasileiro haviam concluído o ensino fundamental,
foram submetidos a uma série de provas. Para
desolação dos condutores da educação nacional,
o Brasil apresentou um desempenho lamentável.
Na prova de leitura, os brasileiros ficaram em 37
lugar, à frente apenas da Macedônia, da Indonésia,
da Albânia e do Peru. Em matemática e ciências,
em quadragésimo.
Nas indagações ínsitas encontra-se o fato de
que se situar ao final desse ranking indica uma
deficiência estrutural que precisa ser enfrentada.
O desempenho dos brasileiros na prova de leitura
mostra que nossos estudantes conseguem ler, mas
não demonstram capacidade de reter nem de interpretar as palavras.
No caso do teste de matemática, os alunos
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
53
Élida Pires Cardoso et al
brasileiros apresentam domínio apenas das quaO tributarista Machado (2002, p.248) entende que:
tro operações básicas, apresentando grandes dificuldades nas operações de maior complexidade,
A imunidade, para ser efetiva, abrange todo o matenão conseguindo identificar formas geométricas
rial necessário à confecção do livro, do jornal ou do
e tendo dificuldade até para entender o enunciado
periódico. Não apenas o exemplar deste ou daquedos problemas. As perguntas de ciências indicam
le, materialmente considerado, mas o conjunto. Por
que o aluno brasileiro possui baixo índice de aproisso nenhum imposto pode incidir sobre qualquer
veitamento em conhecimentos gerais.
insumo, ou mesmo sobre qualquer instrumento, ou
equipamento que sejam destinados exclusivamente à
Diante deste e de outros estudos que notoriamenprodução desses objetos.
te revelam o déficit de leitura dos brasileiros, visando à correção dos problemas relacionados a este
aspecto junto aos jovens brasileiros, o Ministério
Assim, há de se indagar de como, sendo os livros,
da Educação e Cultura tem desenvolvido projetos jornais e periódicos imunes a impostos, incluindoque estão caminhando, ao nosso entendimento, na -se a isso insumos, máquinas e equipamentos
linha correta de enfrentamento da problemática. utilizados na confecção destes, como ainda podem
Pode-se citar nesse sentido, o projeto Literatura ser tão caros, inacessíveis à grande massa de baixa
em Minha Casa, desenvolvido pelo Programa renda brasileira?
A resposta está na ineficiência dos órgãos goverNacional Biblioteca da Escola (PNBE), do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação namentais de proteção ao consumidor, na vora(FNDE/MEC), o qual o distribui, desde abril de cidade dos grandes empresários em lucrar cada
2002, uma coleção de livros para estudantes da 4a vez em maiores proporções sem se preocuparem
série do ensino fundamental com a finalidade de com um fim social, bem como na população, que
desenvolver o gosto pela leitura.
não procura organizar-se fundando associações
Ora, o estímulo da leitura não se faz sem o contato de defesa de seus direitos, como prevê o art. 82,
direto com livros, tampouco com a inexistência inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor.
de uma biblioteca de fácil acesso, especialmente
na própria casa do leitor. Assim, torna-se louvável
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo
a iniciativa do governo federal, que mesmo com
individualmente, ou a titulo coletivo.
poucos recursos, aliando-se à distribuição de liArt. 82. Para os fins do artigo 81, parágrafo único, são
vros a capacitação de professores, tem traçado o
legitimados concorrentemente:
caminho para a mudança do panorama brasileiro
I - o Ministério Público;
de dificuldades na leitura.
Entretanto, deve-se ressaltar que a medida
II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito
governamental ainda é em seu âmago paliativa,
Federal;
III - as entidades e órgãos da administração pública,
porquanto a solução da questão necessariamente
residir numa iniciativa estatal, entidades privadas
direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídie sociedade civil organizada, e corroborando esta
ca, especificamente destinados à defesa dos interesses
ideia tem-se o fato de que os livros, periódicos e
e direitos protegidos por este Código;
jornais possuem imunidade tributária constitucioIV - as associações legalmente constituídas há pelo
nal definida, como se observa no art. 150, inciso
menos 1 (um) ano e que incluam entre seus fins instiVI, alínea “d”, da Carta Constitucional:
tucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos
por este Código, dispensada a autorização assemblear.
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas
(BRASIL, 1990, online.)
ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios:
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
[..]
VI - instituir impostos sobre:
[..]
d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua
impressão. (BRASIL, 2007, 05)
A superação dos problemas sociais brasileiros somente será encarada mais seriamente quando da reavaliação do sistema educacional deste país, posto
esta ser medida capaz de proporcionar à população
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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A LEITURA: APRENDIZADO, ESTÍMULO E FORMAÇÃO DE LEITORES NO BRASIL
meios de identificar as razões destes problemas,
bem como fornecer-lhe maturidade suficiente para
seleção de caminhos de desenvolvimento.
O direcionamento a este escopo reside na atuação
conjunta do estado, entidades privadas e sociedade
civil organizada, proporcionando alternativas ao
baixo poder aquisitivo da população brasileira,
permitindo a aquisição de livros, periódicos e
jornais a preços módicos, ou pelo menos justos,
em face da imunidade tributária constitucional
estabelecida em relação a estes, visto a impossibilidade do despertar literário realizar-se sem o
contato direto com o livro, que preferencialmente
deve estar na casa do leitor desde a sua formação
na educação de base (ensino fundamental).
Por sua vez, sem descurar da carência do contato
com livros, remediada através da formação de uma
biblioteca básica do leitor, precípuo é a atuação no
incentivo à leitura, despertando o prazer nesta,
mediante o trabalho aplicado na formação de
leitores voltado ao conhecimento do processo de
leitura, avaliando os vícios surgidos na efetivação
deste, proporcionando formas de otimizá-lo, com
a obtenção de melhores resultados (captação e
compreensão) e tempo (velocidade).
O leitor, tendo a seu fácil acesso material literário,
conhecendo e dominando o processo de leitura,
está apto a ler criticamente, inferindo ideais suas
e intertextualizando áreas sociais diferentes, pode
desempenhar com sucesso o seu incurso no mundo dos textos, realizando-se com utilização dos
conhecimentos que obtém e com o prazer que lhe
completa, inclusive nos momentos de laser.
. Ministério da Educação. Secretaria de
Educação Fundamental. PCN’s - Parâmetros
Curriculares Nacionais: ensino fundamental.
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setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção
do consumidor e dá outras providências.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.
br/ccivil_ 03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 26
maio 2007.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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litterarumradicesamaraefructusdulces
A TIC a Serviço da Inovação Pedagógica
Roberta Cristiana Barbosa Terceiro1
Rosana Cátia Barbosa Terceiro 2
RESUMO: Este artigo objetiva fundamentar a
inovação pedagógica em experiências e definições de estudiosos do tema, assim como, verificá-la no contexto da Tecnologia da Informação e
Comunicação (TIC). Procura-se, também, analisar
as TIC a serviço da inovação pedagógica. Dessa
forma, além da compreensão sobre os termos
inovação pedagógica e inovação tecnológica,
procura-se problematizar as TIC como elementos
criadores de contextos de aprendizagem inovadores na escola. Consequentemente, leva-se
a refletir sobre a postura do professor e aluno
nesse novo cenário desenvolvido pela TIC na
escola, nesse caso, a pública. As observações
deste artigo foram tecidas à luz de autores e estudiosos renomados como Toffler, Papert, Freire,
Fino, Sousa, Apple, entre outros.
ABSTRACT: This article intends to provide pedagogical innovation in experiences and definitions of scholars about this subject, as well as,
verify it in the context of Information and Communication Technology (ICT). It also analyzes
the ICT at the service of pedagogical innovation.
Thus, in addition to the understanding of the
terms pedagogical innovation and technological innovation, seeks to problematize the ICT
elements as creators of contexts of innovative
learning in school. Consequently, leads to reflect
on the position of teacher and student in this
new scenario developed by ICT in school, in this
case, the public school. The comments of this
article were woven in the light of authors and
scholars renowned as Toffler, Papert, Freire, Thin,
Sousa, Apple, among others.
1 INTRODUÇÃO
presente, pois se constituem como os inventores
e habitantes do amanhã.
Nesse contexto, têm-se as crises em todas as
esferas da sociedade e, por conseguinte, a quebra
de paradigma. Em relação à educação, fala-se que
a tecnologia torna-se, possivelmente, o novo paradigma da escola. Consequentemente, surge a necessidade de debates, reflexos sobre as práticas educacionais realizadas nesse espaço. Elas já utilizam
as tecnologias? Porque elas são utilizadas? Ou seja,
desenvolvem-se de acordo com as necessidades de
cada comunidade escolar? Por último, as práticas
educativas são inovadoras? Ou simplesmente os
professores e todos os demais sujeitos envolvidos
no processo ensino-aprendizagem, somente utilizam as tecnologias como consumidores?
Todos esses questionamentos são necessários
para realizar uma prática educativa inovadora
por meio do uso da tecnologia em sala de aula da
As mudanças estão ocorrendo com uma intensa
aceleração de forma contínua. Essas mudanças
demandam uma nova forma de pensar acerca
de si, o que e como é feita determinada ação em
relação às esferas da vida no âmbito social. Por
conseguinte, essas mudanças atingem todos os
setores da sociedade, assim, a educação precisa
rever sua postura neste século XXI. Segundo Toffler
(1970), o grande motor da mudança é a tecnologia. Desta forma, a escola precisa utilizá-la para
desenvolver práticas educativas inovadoras. Nesse
âmbito, torna-se essencial o papel do professor
que deverá propiciar ao aluno sua autonomia, o
desejo pela investigação, pesquisa, movida por sua
curiosidade, criatividade, isto é, pelo simples desejo
de saber onde se pode chegar. Precisa-se levar o
jovem de hoje a refletir o futuro nos interesses do
1. Graduada em LETRAS pela Universidade Estadual do Ceará e Mestre em Gestão de Negócios Turísticos (UECE-
2005). Professora do Centro Universitário Estácio do Ceará.
2. Graduada em Letras - Português / Inglês pela Universidade Estadual do Ceará e Mestre em Gestão de Negó-
cios Turísticos. Professora do Centro Universitário Estácio do Ceará.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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Palavras-chave:
Inovação Pedagógica.
Tecnologia da
Informação e
Comunicação (TIC).
Inovação Tecnológica.
Contextos de
Aprendizagem.
Keywords: Pedagogical
Innovation. Information
and Communication
Technology (ICT).
Technological
Innovation. Learning
contexts.
Roberta Cristiana Barbosa Terceiro et al
escola pública. Portanto, além da introdução, serão
observados ao longo do presente artigo, mediante
os seguintes tópicos assim distribuídos: refletindo
sobre inovação pedagógica e tecnológica; faz-se
necessário o uso da tecnologia na escola; problematizando as TIC como elementos criadores de
contextos de aprendizagem inovadores na escola;
As TIC se constituem como novo paradigma educativo e, por último, têm-se as considerações finais.
2 REFLETINDO SOBRE INOVAÇÃO
PEDAGÓGICA E TECNOLÓGICA
Segundo Fino (2000, p.1), “A inovação pedagógica implica mudanças qualitativas nas práticas
pedagógicas e essas mudanças envolvem sempre
um posicionamento crítico, explícito ou implícito,
face às práticas pedagógicas tradicionais”. Desta
forma, a inovação pedagógica corresponde a uma
mudança, traz algo novo, com intenção de melhorar a prática educativa. No entanto, requer ação,
esforço contínuo, consciente dos sujeitos envolvidos na prática educativa, ou seja, os professores, os
alunos, seus pais ou responsáveis por sua educação,
a comunidade. Enfim, todos independente de
hierarquia que participam da instituição escolar
precisam assumir ações para transformar a prática
pedagogia vigente, que, na maioria das vezes, não
favorece a autonomia do aluno, não o torna um
ser crítico perante o mundo. Ainda, segundo o
mesmo autor,
Inovar [...] não se trata de procurar soluções paliativas
para uma instituição [ ou para o sistema educacional]
à beira de um declínio. Trata-se de olhar para além
dela, imaginando outra, deixando de se ter os pés
tolhidos pelas forças que conduzem inexoravelmente
em direcção ao passado. (FINO, 2006, p.14).
Nesse âmbito, a Inovação Pedagógica visa, então, à
melhoria do processo educativo, implicando numa
ruptura com a situação do momento. Constitui-se,
a partir do rompimento com paradigmas que norteiam as práticas pedagógicas. É o fazer diferente
em uma sala de aula, que propicia a participação
dos alunos, tornando-os sujeitos ativos do fazer
pedagógico. Uma prática que favoreça o debate
no contexto de uma prática social livre e crítica.
Desta forma, argumenta o educador Paulo Freire, em seu livro a Pedagogia da Autonomia, com
ênfase na cultura popular dentro de uma abordagem construtivista Freire (1983, p. 103), “Em lugar
de aulas discursivas, o diálogo. Em lugar de aluno
com tradições passivas, o participante de grupo.
Em lugar de ‘pontos e de programas alienados,
programação compacta, ‘reduzida’ e ‘codificada’
em unidades de aprendizado”.
Nessa concepção de Freire, a pedagogia crítica
encontra-se alicerçada no diálogo. Assim, professor
e aluno são sujeitos que fazem e refazem a história.
Ao respeitar as experiências dos alunos por meio
de constante diálogo, o professor oferece-lhes
trabalhos interativos por meio de experiências de
vida em contextos populares. Enquanto valoriza
seu potencial, trabalha-se uma prática pedagógica
que valoriza o social, a qual precisa ser instigada e trabalhada sistematicamente, no processo
ensino-aprendizagem.
Ainda, segundo Fino (2000, p.1), a inovação pedagógica procura “centrar toda a actividade no
estudante, ao invés da prática tradicional, que
centrava todos os procedimentos na actividade
magistral do professor.” Assim, tem-se que o autor
principal do ensino-aprendizagem passa a ser o
aluno ao invés do professor que se torna um guia,
o agente facilitador do ensino, que fornece ao seu
aluno autonomia no processo de aprendizagem.
No entanto, ao falar em inovação, mudanças,
faz-se necessário abordar Toffler (1970), que em
seu livro ‘Future Shock’ já comentava sobre mudanças sucessivas as quais acontecem em todo o
globo, em todos os setores da sociedade, culturas,
modificando, assim, o cenário mundial. Ninguém
permanece imune a estas brechas, de profundas e
aceleradas mudanças e, consequentemente, tem-se
o “choque do futuro”.
Toffler (1970), no entanto, argumenta que a tecnologia não é a única fonte de mudanças na sociedade,
pois alterações no clima, por exemplo, também
podem desencadear transformações. Contudo, é
enfático ao registrar que a tecnologia é uma das
principais fatores por trás das mudanças crescentes.
Behind such prodigious economic facts lies that great,
growling engine of change— technology. This is not
to say that technology is the only source of change
in society. Social upheavals can be touched off by a
change in the chemical composition of the atmosphere,
by alterations in climate, by changes in fertility, and
many other factors. Yet technology is indisputably a
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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A TIC A SERVIÇO DA INOVAÇÃO PEDAGÓGICA
major force behind the accelerative thrust. (TOFFLER,
que, enquanto secretário de educação da cidade de
1970, p. 25-26)
São Paulo, fiz chegar à rede das escolas municipais
o computador. Ninguém melhor do que meus netos
Toffler (1970), ainda, argumenta que essa mudança não afeta somente as indústrias e as nações, mas
invade intimamente a vida das pessoas, obrigando-as a rever seus papéis.
Nesse mesmo aspecto, Sousa (2000, p.34)
posiciona,
Saberemos nós fazer da incerteza o fermento do conhecimento complexo? O que acontece é que a relativização do valor da ciência teve o mérito de nos fazer
abandonar o pedestal em que nos encontrávamos e
assumir uma postura mais humilde face ao saber, uma
postura de busca, de crítica e autocrítica, de tentativas
de aproximação às verdades.
Nesta perspectiva, também se encontra o professor o qual precisa rever sua postura, seu papel na
sala de aula. Deste modo, a escola busca agregar
a tecnologia ao seu cotidiano, a fim de melhor se
inserir neste novo cenário.
3 FAZ-SE NECESSÁRIO O USO DA
TECNOLOGIA NA ESCOLA?
Nessa aceleração sucessiva das tecnologias da
informação e comunicação, em especial o computador, passaram a fazer parte do cotidiano da escola.
No entanto, seu uso se faz necessário na escola?
Paulo Freire (1996, p. 33) observa, “Divinizar ou
diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma
altamente negativa e perigosa de pensar errado”.
Desta forma, o autor não nega a necessidade do uso
da tecnologia na escola, no entanto, não se deve
colocá-la como o centro, como se resolvesse todos
os seus problemas atuais. Melhor ainda, como se
o uso do computador implicasse, obrigatoriamente,
em uma prática educativa inovadora.
Freire (1996, p.87-88) reforça, ainda mais, seu
posicionamento quando relata,
Nunca fui ingênuo apreciador da tecnologia: não a
divinizo, de um lado, nem a diabolizo, de outro. Por
isso mesmo sempre estive em paz para lidar com ela.
Não tenho dúvida nenhuma do enorme potencial de
e minhas netas para me falar de sua curiosidade instigada pelos computadores com os quais convivem.
No entanto, será que a inserção do computador na escola pública, contribuirá para nivelar as
desigualdades existentes entre os denominados
favorecidos e os desfavorecidos? A tecnologia está
para todos sem distinção, independente de classe,
raça e gênero. No entanto, não contribui por si
só para nivelar as desigualdades, pois “a tecnologia não é a mera soma de hardware e software
que através dos apelos ao fantástico da complexa
dimensão humana permite reequilibrar o tecido
social”. (PARASKEVA, 2002, p. 117).
Postaman(1992,p. xii) também observa que nessa
época muitos partilham da ideia que a tecnologia
fornece equilíbrio às desigualdades. Assim, afirma “I do not say that the war was unjustified or
that the technology was misused, only that the
American success may serve as a confirmation of
the catastrophic idea that in peace as well as war
technology will be our savor”.
Mais a diante, Postman(1992) observa, mas em
termos mais dramáticos, que se pode acusar a
tecnologia porque seu crescimento descontrolado
destrói as fontes vitais da humanidade, Cria-se,
então, uma cultura sem uma base moral, visto que
enfraquece alguns processos mentais e relações
sociais que fazem a vida valer a pena. Tecnologia,
então, para esse autor é tanto amiga como inimiga.
Stated in the most dramatic terms, the accusation can
be made that the uncontrolled growth of technology
destroys the vital sources of our humanity. It creates
a culture without a moral foundation. It undermines
certain mental process and social relations that make
life worth living. Technology, in sum, is both friend
and enemy. (POSTMAN, 1992,p. xii)
Nesse aspecto, Apple (1991, p.75) contribui ao
observar que a tecnologia é mais do que máquinas as quais provêm o conforto e a existência da
humanidade. Não é uma ferramenta neutra, pois
se encontra acumulada de valores culturais,
estímulos e desafios à curiosidade que a tecnologia põe
a serviço das crianças e dos adolescentes das classes
The new technology is not just an assemblage of ma-
sociais chamadas favorecidas. Não foi por outra razão
chines and their accompanying software. It embodies
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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Roberta Cristiana Barbosa Terceiro et al
a form of thinking that orients a person to approach the
world in a particular way. Computers involve ways of
thinking that under current educational conditions
are primarily technical. The more the new technology
ainda coloca a importância da promoção da curiosidade por parte do professor ao seu aluno por
meio do diálogo, pois o exercício da curiosidade
torna o aluno mais perseguidor de seu objetivo.
transforms the classroom into its own image, the more
a technical logic replaces critical, political and ethical
A dialogicidade não nega a validade de momentos
understanding. The discourse of the classroom will
explicativos, narrativos em que o professor expõe
centre on technique, and less on substance. Once again
ou fala do objeto. O fundamental é que professor e
‘how to’ will replace ‘why’.
alunos saibam que a postura deles, do professor e
dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora
Apple(1991) demonstra que o debate sobre o ime não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve.
pacto da tecnologia na educação é geralmente
O que importa é que professor e alunos se assumam
epistemologicamente curiosos.
centrado em como ela é usada em sala de aula,
porém, não se tem o “porquê” de sua utilização.
Assim, reforça-se a concepção que a tecnologia é
apenas uma ferramenta à disposição do professor, 4 PROBLEMATIZANDO aS TIC como
elementoS criaDoRES de
quando as questões ideológicas e éticas sobre o que
contextos de aprendizagem
as escolas deveriam ser e os interesses de quem
inovadores
deveriam servir são ignorados.
A tecnologia somente implicará novas formas
Seguindo este pensamento acerca de estímulo à
de aprender e ensinar para alunos e professores,
quando utilizada como recurso didático-pedagó- curiosidade, Seymour Papert observou no comgico de forma crítica e responsável. Desta forma, putador condições necessárias para mudanças
como objeto de reflexão, favorece a autonomia, significativas no desenvolvimento intelectual dos
a criação por parte do aluno. Portanto, deve-se sujeitos, nesse caso, a criança. Segundo Papert
ponderar como os professores apropriam-se da (1985), a criança é um aprendiz inato, o qual edifica
tecnologia e como a utiliza a fim de melhorar o suas estruturas de pensamento a partir da exploprocesso ensino-aprendizagem.
ração do ambiente em que vive, ou seja, consideraDa mesma forma, Paulo Freire argumenta que -se como construtora de sua própria estrutura
transformar a prática educativa em um hábito intelectual. Então, desenvolveu uma linguagem
meramente técnico, ignora-se a sua qualidade de de programação, Logo, de fácil compreensão e
formadora moral do aluno. Assim, tem-se,
manipulação por crianças ou por pessoas leigas
em computação e sem domínio de matemática.
Não é possível pensar os seres humanos longe, se- Permitiu-lhes estabelecer contato com o compuquer, da ética, quanto mais fora dela. [...] É por isso
tador como instrumento versátil, fácil de operar,
rico em possibilidades.
que transformar a experiência educativa em puro
treinamento técnico é amesquinhar o que há de funAssim, tem-se um exemplo da TIC como elemento
damentalmente humano no exercício educativo: o
criador de contexto de aprendizagem inovador,
seu caráter formador. [...] Educar é substantivamente
pois de acordo com Papert (1985), a criança indica
formar. (FREIRE, 1997, p. 33)
o que o computador deve fazer, controlando-o,
indicando-lhe a tarefa a qual deve ser realizada.
Nesse aspecto, o professor e o aluno tornam-se Reflete, então, sobre o que faz, buscando possíveis
atores principais de uma época determinada por soluções para resolver os problemas. Desta forma,
mudanças que atingem os paradigmas e escalas de sua própria criatividade o conduzirá a soluções
valores da prática pedagógica vigente. O professor fascinantes e compensadoras para os desafios
deve ter uma postura mais consciente de seu papel, propostos. Enfim, ela aprende com seus próprios
na tentativa de buscar práticas mais concernentes ensinamentos e descobertas.
à realidade de seu aluno, à comunidade onde a
Papert(2008) desenvolveu esta linguagem de
escola se encontra inserida.
programação segundo a concepção construcionista,
Seguindo esta abordagem, Freire (1997, p. 86) que implica ensinar a fim de produzir o máximo de
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
60
A TIC A SERVIÇO DA INOVAÇÃO PEDAGÓGICA
aprendizagem, com o mínimo de ensino. Procura-se, então, alcançar meios de aprendizagem os
quais valorizem a construção mental do sujeito,
apoiada em suas próprias construções no mundo.
Portanto, o construcionismo procura caracterizar
a interação aluno-objeto, mediada, nesse caso,
por uma linguagem de programação, o Logo. A
criança interage com o objeto que usa métodos
para facilitar a aprendizagem e, principalmente
a sua descoberta.
Quanto à postura do professor torna-se um
facilitador criativo, visto que proporciona um
ambiente a conter a maior quantidade possível
de aspectos cognitivos para seu aluno construir
conhecimento, um ambiente capaz de fornecer
conexões individuais e coletivas. Por exemplo,
o professor que trabalha com o Logo torna-se,
portanto, o mediador da interação aluno-objeto,
pois o aluno atua e participa do seu processo
de construção de conhecimentos de forma ativa,
interagindo com o instrumento de aprendizagem,
nesse caso, o computador. O professor procura desenvolver projetos vinculados à realidade do aluno,
integrados às diferentes áreas do conhecimento, o
qual apresenta uma relação de continuidade com
o conhecimento que o aluno possui. Há, então,
projetos significativos em seu contexto social.
Acerca do significado de construcionismo, Papert
(1990, p.3) a define,
John Sculley, no prefácio da segunda edição de
Mindstorms – Children, computers and powerful
ideas, relata que Seymour Papert (1993, p. vii) foi
um dos primeiros a reconhecer o papel fundamental da tecnologia nas mudanças significativas
necessárias na educação. Contudo, Papert sabia que
ela não exerce o papel de redentora, ou seja, não
iria solucionar todos os problemas da educação.
Seymour was among the first to see that massive
change was needed in the education system, particularly math and science education, and to recognize the
role that technology could play in learning. Perhaps
more significant, though, was how he was one of the
first to recognize that technology in the classroom was
not a silver bullet that would solve all of education ills.
Dessa mesma forma, esclarecem Fino e Sousa
(2003, p. 7) que Papert não coloca as TIC, nesse
caso o computador, com a função de redimir ou
renovar a escola.
S. Papert não perspectivava a incorporação das TIC
como meio de salvar ou reformar a escola, mas antevia a sua utilização como meio de contornar, posta
directamente ao serviço dos aprendizes situados nos
seus ambientes naturais. [...] Este autor talvez estivese
a querer dizer que o papel do computador, posto directamente ao serviço do aprendiz, não é o de substituir a
escola proporcionando o que ela já proporciona, mas,
We understand constructionism as including but going
ao contrário, abrir portas que a escola nem imagina.
beyond, what Piaget would call constructivism. Te
word with the v expresses the theory that knowledge
is built by the learner, not supplied by the teacher.
The word with the n expresses the further idea that
this happens especially felicitously when the learner
is engaged in the construction of something external
or at least shareable... a sand castle, a machine, a
computer program, a book. This leads us to a model
using a cycle of internalization of what is outside, then
externalization of what is inside and so on.
Desta forma, o construcionismo enfatiza as
construções particulares do aprendiz, que são
externas e partilháveis. Logo, proporciona meios
de aprendizagem que valorizem a construção
mental do aprendiz, valorizando suas próprias
construções no mundo. Assim, como qualquer
construtor, o aluno se apropria, para seu próprio
uso, de materiais que ele encontra.
Segundo esse ponto de vista, na pós-modernidade
caracterizada pela incerteza, complexidade, o
computador surge como uma possibilidade de
expansão do ambiente externo à sala de aula, ou
seja, à escola. Permite, assim, ao aluno expandir seu
conhecimento nesse ambiente informal de aprendizagem, visto não ser mais a escola o único local
onde o aluno pode realizar pesquisas. Desta forma,
ele pode em casa, ou em qualquer outro ambiente
dar continuidade ao conhecimento visto em sala de
aula, aumentando, então, as suas possibilidades de
aprender além do currículo estipulado pela escola.
No entanto, nem sempre o uso do computador
na escola implica na realização de uma prática educativa inovadora. Ou seja, a existência de
inovação tecnológica na escola, não implica a
existência de inovação pedagógica. Desta forma,
nem sempre o seu uso está veiculado às práticas
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
61
Roberta Cristiana Barbosa Terceiro et al
pedagógicas inovadoras. Nesse aspecto, Fino (2010,
p. 4-5) assevera sobre o porquê das TIC ainda não
propiciarem mudanças no estado atual da escola,
E a própria incorporação das TIC, bem como a incorporação de tecnologias anteriores, como o cinema, a
TV, etc., não tem servido para alterar grande coisa do
status quo. Na generalidade dos casos, a incorporação
da tecnologia na escola modelada segundo o paradigma
fabril tem acentuado os pressupostos desse paradigma.
Elas surgem quase sempre como auxiliares de ensino,
ou seja, como elementos que ampliam a capacidade do
professor, seja em termos comunicacionais, seja em
termos de agente de um currículo centralizado, buro-
Nesse âmbito, segue-se o uso das TIC que servem
apenas para servir ao modelo de ensino vigente,
limitando-as ao ensino do superficial, quando poderiam, no entanto, levar os alunos a uma atitude
de investigação, de pesquisa, a participar da aula
como construtor do conhecimento, tirando, assim,
sua atitude passiva na relação professor-aluno
adotada no paradigma fabril, visto que o aluno
por si pode ir além do conhecimento ensinado em
sala, realizar experiências que façam sentido a sua
vida. Tudo isso por meio da investigação, a qual
deve ser impulsionada, instigada pelo professor.
Fino juntamente com Sousa (2003, p. 7) já havia se
pronunciado a respeito desse assunto. Assim, veja,
crático, taxativo e a priori. Ou, o que torna as coisas
mais evidentes, para suportarem versões electrónicas
Esse ponto de vista traz a tiracolo a ideia, porventura
da escola tradicional, em que o currículo aparece em-
óbvia, de que as TIC, sendo tecnologias típicas da
pobrecido, reduzido ao mínimo dos mínimos, limitado
pós-modernidade, pouco podem valer a instituições
aos conteúdos programáticos das várias disciplinas,
cujas raízes mergulham na modernidade (ou ainda
que é o que essas tecnologias e as concepções quanto à
antes), e que se organizaram em redor da utilização de
sua utilização são capazes de suportar no estádio actual
tecnologias da modernidade para executarem tarefas
de desenvolvimento do software “educativo”. Estou
(educativas) exigida pelas sociedades industriais. A não
a falar, obviamente, das plataformas digitais, como
ser que sejam utilizadas para alcançar os mesmíssimos
as de e-learning, ou mesmo de certas representações
objectivos, eventualmente com rentabilidade maior,
mais sofisticadas tecnologicamente, como as que são
que já vinham a ser alcançados através da utilização
recreadas na Second Life, por exemplo.
das tecnologias da modernidade e, nesse caso, com
um sentido meramente aditivo.
Assim, o autor observa que a utilização das TIC
não pressupõe inovação pedagógica, especialmente,
quando seu uso ainda se encontra veiculado ao
tipo de ensino industrial, em massa, de produção,
com normas rígidas de classe e de lugares, com a
postura de um professor autoritário. O autor, ainda,
assevera que as TIC são utilizadas como ferramentas de suporte ao professor a fim de aumentar sua
habilidade de estabelecer e manter o diálogo com
seus alunos, os quais já se encontram imbuídos das
novas tecnologias, visto que nasceram na era digital,
ou seja, são nativos digitais. Por conseguinte, as
TIC ajudam o professor a manter o controle sobre a
classe, ou melhor, seus alunos. Em outras palavras,
elas o ajudam a manter uma postura fabril, isto
é, sua autoridade, o detentor do conhecimento, o
qual se baseia em um currículo de caráter instrumental, baseando-se na busca pela eficiência para
atingir os objetivos tangíveis, por meios de custo
mínimo a fim de conseguir a qualidade mínima
requerida. Enfim, um currículo descentralizado
das reais necessidades dos alunos, assim como, da
comunidade na qual a escola se encontra inserida.
Neste ponto, cabe a autora deste artigo demonstrar por meio de um caso real de uma escola pública
do estado do Ceará, no ensino médio, como o uso
das TIC, até o presente, 2010, reflete o que o autor
Fino mencionou anteriormente.
O governo disponibilizou computadores às escolas
públicas do Estado, assim como, profissionais em
informática que auxiliem aos professores quando
forem aos laboratórios. Contudo, a aula apenas
mudou de ambiente e ferramentas metodológicas.
Por exemplo, são realizadas pesquisas nos sites em
relação a temas diversos, como concordância verbal e
nominal, verbos. Assim como, exercícios para preencher lacunas em relação aos verbos, substantivos. Isto
tudo poderia ser feito em uma sala de aula mediante
o uso do quadro, pincel, livro, caderno. O computador, neste caso, apenas substitui o caderno, o livro
texto, enquanto a metodologia tradicional continua
a mesma. Embora isto aconteça, muitos professores
pensam que estão utilizando uma metodologia
inovadora por meio do uso das TIC. Acrescente-se,
ainda, ser difícil argumentar o contrário.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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A TIC A SERVIÇO DA INOVAÇÃO PEDAGÓGICA
O exemplo demonstra o que Fino e Sousa (2003,
p.8) afirmam sobre as escolas que utilizam as
tecnologias somente para dar continuidade a sua
prática tradicional, não concebendo seu espaço
como propiciador da aprendizagem ativa: “[...] o
que não significa que a incorporação das novas
tecnologias redundasse em alterações substanciais
no modo de funcionamento das escolas, que mantiveram inalterável o essencial dos seus pressupostos
organizacionais”.
Porém, não são todos os professores desta escola
pública os quais não sabem manusear a tecnologia
em prol de uma aula mais dinâmica, despertando
o interesse dos alunos, que já nasceram na era
da tecnologia, ou seja, são nativos digitais, enquanto seus professores são imigrantes digitais.
Por exemplo, um professor de matemática do
primeiro ano do ensino médio utiliza-se de site
educativo de matemática ‘geogebra’ para que seus
alunos, em pares ou trios (dependendo do número
de alunos em sala) construam distintos tipos de
ângulos, verificando, assim, suas especificidades e
diferenças entre si. O professor utiliza os recursos
que o computador permite: som, imagem e animação, músicas, jogos, histórias interativas. Tem-se,
então, uma inovação pedagógica que desperta a
atenção para a aprendizagem e, consequentemente,
para o aprendiz. Há uma aula mais participativa,
criativa, levando o aluno ao ato de aprender, pois
será possível transformar a informação provida ou
pesquisa em conhecimento, tornando-se, portanto,
construtor do conhecimento.
Nesse ponto, tem-se novamente a concepção de
Papert (2008) que a criança faz melhor quando
descobre por si mesma o conhecimento específico
de que precisa. O professor proporciona ao aluno
o crescimento baseado na autodescoberta, na pesquisa, na curiosidade de saber até onde pode chegar,
concedendo-lhe o apoderamento necessário para
seu desenvolvimento no vasto mundo globalizado.
Logo, ocorre a pedagogia cujo aluno encontra-se
no centro da aprendizagem, propiciando-lhe autonomia, por meio de vivências inovadoras. Nesse
sentido, Sousa (2005, p. ii) argumenta,
Só assim, se poderia passar ao nível seguinte: “gerir
e promover a inovação”, através da intensificação
da investigação: “É, pois, intensifiessencial lançar
experimentações para tirar ensinamentos sobre o
que poderia ser a escola, a universidade e a formação
do futuro, associando estreitamente os professores,
os formadores, os alunos, os pais e as respectivas organizações representantes, a indústria e os parceiros
sociais. Esta recomendação visa, por conseguinte,
desenvolver experiências inovadoras, que figurariam
nas hipóteses futuristas relativas à escola, à universidade e à formação, bem como formas mais eficazes
de ensinar e aprender”
Nesse sentido, a autora propõe um trabalho em
conjunto, uma parceria entre todos os sujeitos
relacionados ao processo de ensino-aprendizagem,
as entidades da sociedade em prol da construção
de uma escola, cuja tecnologia atua como ferramenta na criação de ambientes de aprendizagem
onde as informações são recolhidas, processadas e
construídas. Desenvolvem-se, assim, experimentações inovadoras aos alunos concernentes a era
pós-moderna na qual a humanidade se encontra.
Contudo, é de extrema importância ressaltar,
mais uma vez, que muitas práticas pedagógicas
inovadoras não ocorrem na escola por conta do
currículo, os programas curriculares estabelecidos
pelo governo, por meio da Secretaria de Educação.
Este órgão delimita o que deve ser ensinado em
cada semestre do ano letivo, sem conceder ao
professor a liberdade de fazer seu planejamento da
forma mais condizente com sua turma. No entanto,
muitos professores agem de forma diferente, pois
desenvolvem práticas pedagógicas inseridas a sua
realidade, apesar de registrar no diário o que a
secretaria de educação deseja encontrar. Visto que
as escolas passam periodicamente por fiscalizações,
a fim de verificar o conteúdo que é ministrado.
Este exemplo condiz com o que argumenta Fino
(2007, p.2),
Refira-se, ainda, que a inovação envolve obrigatoriamente as práticas. Portanto, a inovação pedagógica
não deve ser procurada nas reformas do ensino, ou
nas alterações curriculares ou programáticas, ainda
que ambas, reformas e alterações, possam facilitar, ou
mesmo sugerir, mudanças qualitativas nas práticas
pedagógicas.
Ainda, sobre esta real necessidade de mudanças
qualitativas nas práticas pedagógicas a fim de que o
uso das TIC na escola favoreça o desenvolvimento
da inovação pedagógica, o referido autor, ainda,
assegura,
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Roberta Cristiana Barbosa Terceiro et al
Ora, na minha opinião, a inovação pedagógica não
Seymour Papert (1993), o máximo de aprendizagem
é uma questão que possa ser colocada em termos es-
com o mínimo de ensino. Por outras palavras, a ino-
tritamente quantitativos ou de mera incorporação de
vação pedagógica passa por uma mudança na atitude
tecnologia, do gênero mias depressa, mais eficazmente,
do professor, que presta muito maior atenção à criação
mais do mesmo. Muito menos pode ser colocada em
dos contextos de aprendizagem para os seus alunos do
termos de mais tecnologias disponíveis na escola,
que aquela que é tradicionalmente comum, centrando
nomeadamente quando a proposta de sua utilização
neles, e na actividade deles, o essencial dos professores.
consiste em fazer com ela exactamente o que se faria
É perguntando, evidentemente, o que é que a incor-
na sua ausência, embora, talvez, de forma menos
poração de nova tecnologia pode fazer para ampliar
atractiva. (FINO, 2010, p.5)
o poder dos alunos, enquanto aprendizes, ao invés de
conjecturar a exploração da tecnologia para reforçar o
Mais uma vez, relata-se que a mera inclusão
da tecnologia na escola não pressupõe inovação
pedagógica, visto que a escola necessita, primeiramente, de modificações essenciais na sua forma
de atuação em sua prática vigente. Logo, não basta,
por exemplo, ter laboratórios com inúmeros computadores, ou tecnologia de última geração, para
que a inovação pedagógica seja presença efetiva na
escola. Fino, também menciona que a inovação
pedagógica não deve ser meramente avaliada na
esfera quantitativa, embora não se possa negar
que as políticas vigentes na instituição escolar
valorizem consideravelmente os instrumentos de
medição quantitativos, isto é, os indicadores de
rendimento do sistema educativo, os testes para
medir a aprendizagem dos alunos, assim como, a
eficiência e a eficácia, o rendimento dos professores.
Nesse ponto, é importante salientar que as escolas
com os melhores resultados, no Ceará, segundo
os indicadores de rendimento estabelecido pelo
Estado, recebem maiores incentivos. No entanto,
a busca excessiva pelo desempenho, pelos resultados quantitativos, atrapalha de alguma forma a
investigação e ação as quais favorecem a existência
da prática inovadora no uso das TIC. Assim, a inovação pedagógica deve ser construída, experimentada por todos os agentes envolvidos na educação,
ou seja, escola, professor, aluno, comunidade, os
responsáveis pelos alunos.
Contudo, Fino (2010, p. 5) aponta caminhos para
que as TIC possam ser utilizadas para promoverem
a prática inovadora na escola. Desta forma, observe,
A inovação pedagógica só se pode colocar em termos
de mudança e de transformação. Transformação de
escola e dos seus pressupostos fabris, pelo menos a
nível micro, ou seja, no espaço onde se movimentam
aprendizes concretos, assessorados por professores
que estão empenhados em garantir, de acordo com
seu controlo sobre a turma, em actividades estritamente
curriculares, num processo em que é o principal agente.
Primeiramente, Fino (2010) ratifica a necessidade
de mudança na forma de agir da escola, a qual não
deve mais prosseguir em práticas pedagógicas fabris,
preocupando-se essencialmente com a eficácia e
produtividade, ou seja, mais uma vez com o aspecto
quantitativo. Depois, o autor demonstra a importância do professor nesse processo do uso das TIC
como inovação pedagógica, o qual deve favorecer
a criação de situações de aprendizagem por meio
da integração das diversas áreas do conhecimento
nas soluções de diferentes problemas, numa atitude
cooperativa do grupo, propiciada por ele. Assim, o
professor acompanha, passo a passo, o raciocínio
lógico do aluno, favorecendo-lhe sua habilidade de
analisar o que fez, ou seja, de ser agente construtor
na aquisição do conhecimento. Tem-se, então, o
professor que assiste, articula e orienta o aluno,
realizando a mediação pedagógica deste com o
conhecimento, que estimula avanços nos alunos.
Enfatiza-se, desta forma, a aprendizagem ao invés
de destacar o ensino, priorizando a construção do
conhecimento em detrimento da instrução, segundo o construcionismo de Papert. Por último, Fino
coloca que as TIC devem agir como ferramentas
que propiciem ao aluno sua autonomia sobre suas
ações e atitudes as quais envolvam suas necessidades,
não tão somente no espaço institucionalizado, mas
também fora do ambiente escolar. O professor, assim,
procura refletir se o uso das TIC torna mais eficaz
a aprendizagem do aluno em relação aos seus reais
interesses. Além de observar se elas aumentam sua
perspectiva de aprender além do currículo tradicional, levando-o a aprender a lidar com as mudanças
sucessivas no mundo pós-moderno, dando-lhe,
consequentemente, possibilidade de encontrar seu
lugar na sociedade marcada pela instabilidade.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
64
A TIC A SERVIÇO DA INOVAÇÃO PEDAGÓGICA
5 AS TIC SE CONSTITUEM COMO NOVO
PARADIGMA EDUCATIVO?
Segundo Kuhn (1962) paradigma é uma constelação de conceitos, valores, percepções compartilhadas por uma comunidade. Acrescenta: teoria ou
sistema conceitual aceitos por uma comunidade
científica, que, durante algum tempo, orienta a
sua atividade. A crise de um paradigma e a sua
posterior substituição por outro, corresponde a
uma revolução científica e a uma nova forma de
apreciar o mundo.
Logo, de acordo com Kuhn (1962, p.181), as crises
conduzem a mudanças de paradigmas. Por conseguinte, concebe-se aos paradigmas científicos a
qualidade de mutável, ou seja, que na ciência nada
é para sempre. Assim, tem-se,
um amparo ao ensino tradicional, mas sim como
um novo paradigma, valorizando a aprendizagem e
a descoberta, assim como a interação entre alunos e
a comunidade. Seguindo esta linha de pensamento,
Papert (1993, p. vii) colabora,
Not very long ago, and in many parts of the world
even today, young people would learn skills they could
use in their work throughout life. Today, in industrial
countries, most people are doing jobs that did not
exist when they were born. The most important skill
determining a person’s life pattern has already become
the ability to learn new skills, to take in new concepts,
to assess new situations, to deal with the unexpected.
This will be increasingly true in the future: The competitive ability is the ability to learn.
Desta forma, o autor reforça a ênfase no ato de
aprender, isto é, a habilidade de aprender será deNothing important to my argument depends, however,
on crises ‘being an absolute prerequisite to revolutions;
terminante para o futuro do aluno. Ou seja, o aluno
They need only to be the usual prelude, supplying,
deverá estar preparado para lidar com situações
that is, a self-correcting mechanism which ensures
futuras incertas, conflitantes, competitivas, novas
that the rigidity of normal science will not forever
que surgirão inesperadamente e ao mesmo tempo
go unchallenged.
serão efêmeras. E, neste caos, terá que apresentar
a habilidade de tomar decisões, ter autonomia na
Em meio à crise vigente, indica-se que “a incor- seleção do melhor para si, para suas necessidades;
poração de tecnologia já tornava possível imaginar aprender com o novo, com as mudanças.
uma mudança no paradigma na escola” (SOUSA;
Toffler (1970, p. 364) reforça esta ideia quando
FINO, 2008, p. 12). Mas, afinal, como torná-la pre- comenta que a tecnologia demanda pessoas que
sente na prática pedagógica da escola? Visto que aprendam a avaliar, presumir antecipadamente,
a tecnologia constitui-se como uma possível via assim, tem-se mais uma vez a importância de
para o desenvolvimento de um novo paradigma saber qual caminho seguir em meio às mudanças
educativo, faz-se necessário, então, sua concreti- inesperadas, “The technology of tomorrow requires
zação efetiva na escola o quanto antes. Além disso, . . . [men] who are quick to spot new relationships
a tecnologia desenvolve laços entre os alunos e in the rapidly changing reality. […]the directions
a comunidade, impulsionando a descoberta e a and the rate of change”.
O referido autor, ainda, colabora ao afirmar,
aprendizagem, anulando a diferença entre adquirir
conhecimento dentro e fora da escola. Nesse sentiNothing could be better calculated to produce people
do, Sousa e Fino (2008, p.12-13) ainda contribuem,
uncertain of their goals, people incapable of effective
Vivemos numa forma de sociedade que, por ser pós-
decision-making under conditions of overchoice. Su-
-industrial, requer formas de educação pós-industrial,
per-industrial educators must not attempt to impose
em que a tecnologia será, com pouca hipótese de
a rigid set of values on the student; but they must
dúvida, uma das chaves da concretização de um novo
systematically organize formal and informal activ-
paradigma educativo, capaz de fazer incrementar os
ities that help the student define, explicate and test
vínculos entre os alunos e a comunidade, enfatizar
his values, whatever they are. Our schools will con-
a descoberta e a aprendizagem, e de fazer caducar a
tinue to turn out industrial men until we teach young
distinção entre aprender dentro e fora da escola.
people the skills necessary to identify and clarify, if
not reconcile, conflicts in their own value systems.
Assim, a tecnologia não deve ser empregada como
(TOFFLER, 1970, p.412)
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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Roberta Cristiana Barbosa Terceiro et al
Logo, os educadores não devem impor um conjunto rígido de valores no aluno. Entretanto, devem
organizar sistematicamente as atividades formais e
informais que o ajudam a definir, explicar e testar
seus valores, sejam eles quais forem. Precisa-se, então, ensinar aos jovens as habilidades necessárias
para identificar e esclarecer, até mesmo conciliar, os
conflitos no seu próprio sistema de valores.
Quanto à percepção das TIC como novo paradigma educativo, Segundo Fino (2010, p. 5-6),
reforma no sistema educativo, também acredita na
efetividade da tecnologia se utilizada em um nível macro, no entanto, acrescenta a necessidade de ajustá-la a
professores bem preparados, desenvolvendo serviços,
projetos significativos no contexto social. Consequentemente, o contexto social demanda postura não tão
somente reflexiva, mas sim plena de investigação e,
sobretudo, ação. “He realized, long before the rest of
the education reform movement, that technology in
education is effective only if placed in a larger context
that combines well-prepared teacher with integrated
É esta a utilização das TIC, que, a nível macro, poderá
social services”.(PAPERT, 1993, p. vii)
eventualmente levar à sugestão de um novo paradigma
de instituição educativa, nomeadamente porque estas
tecnologias da pós-modernidade têm potencial para
garantirem acessos interactivos, dessincronizados e
permanentes à informação e servem de ferramentas
de aprendizagem, tools to think with, como diria Papert, desvinculadas de um currículo centralizado e
burocrático, que é apanágio da escola da era industrial.
Assim, as TIC poderão se constituir como novo
paradigma educativo quando não estivem apenas
integradas à sala de aula, ou seja, dentro da instituição escolar, mas também em todo o sistema
educacional, englobando todos os envolvidos na
educação, em toda sua hierarquia. Além do mais,
elas oferecem condições propícias a novos ambientes os quais permitem a interação entre todos
os agentes envolvidos na educação, propiciando,
assim, o trabalho em conjunto com professores,
alunos, comunidade, os pais e a própria escola,
além de garantir acesso definitivo ao universo
das informações, indo além dos limites físicos
da escola, visto que colocam novas ferramentas,
mídia e tecnologias ao serviço do aluno, mediante dados, imagens, artigos, resumos de forma
rápida, motivadora e acessível. As TIC, portanto,
levam o aluno a ter acesso às diversidades de
informações, cabendo ao professor ajudá-lo a
acessá-las, refletindo sobre o conteúdo que elas
contêm, mediante a pesquisa e a ação, sendo,
assim, o construtor do conhecimento. Tem-se,
deste modo, a aprendizagem dissociada do currículo ainda enraizado no modelo fabril. Veja
o argumento deste autor,
Novamente, John Sculley, no prefácio da segunda
edição de Mindstorms – Children, computers and
powerful ideas, relata que Papert nesse âmbito de
Porém, como o novo paradigma ainda não se
consolidou mediante as TIC, o referido autor argumenta que se deve, então, buscar na investigação
opção para realizar práticas inovadoras na escola
que continua a desenvolver suas ações segundo a
era industrial, embora que este modelo já não corresponda mais às reais necessidades da sociedade
pós-industrial vigente. Assim, observe,
Enquanto atravessamos esta terra de ninguém entre
paradigmas, em que a escola fabril se deprecia cada
vez mais rápida e acentuadamente, mas ainda não se
consubstanciou o paradigma seguinte, a investigação
em educação assume uma importância ainda mais
decisiva, nomeadamente a que se debruça sobre a
inovação pedagógica. (FINO, 2010, p.6)
No entanto, para propiciar práticas inovadoras a
investigação não pode apenas ser reflexiva. Assim,
deve-se também buscar na ação subsídios para melhor desenvolvê-las. Fino abordou esta concepção
quando há cinco anos, no ano letivo de 2004/2005,
iniciou o mestrado em educação, na especialidade
de inovação pedagógica.
Nunca se tratou, nesse mestrado, de se procurar uma
visão meramente descritiva, mas, antes, um propósito
deliberado de se passar a acção, sem a qual a investigação
em educação, numa questão absolutamente crucial, como
é a inovação pedagógica, nunca ultrapassará a mera
atitude contemplativa, eventualmente erudita, mas que
não conduzirá muito para além dela. (FINO, 2005, p.6)
Assim, surge a investigação-ação como norte
para ajudar as pessoas envolvidas na educação em
promover práticas inovadoras pedagógicas, levando, por conseguinte, o aluno a possuir autonomia,
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66
A TIC A SERVIÇO DA INOVAÇÃO PEDAGÓGICA
selecionando informações úteis a fim de ter um
lugar na sociedade pós-moderna acumulada de
situações efêmeras e incertas.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mediante a possibilidade de se ter a tecnologia
como novo paradigma educativo, faz-se necessário uma profunda reflexão sobre o uso das TIC
empregadas na escola. Por exemplo, os computadores demandam várias ações para sua aplicação
na escola. Primeiro, em relação ao espaço físico,
visto que implica a criação de um laboratório de
informática para alocá-los. Mas, neste local, é
preciso muito mais do que máquinas, precisam-se,
assim, de professores conscientes, críticos, movidos
às idéias e ações que colaborem para o emprego
de práticas inovadoras mediante o uso das TIC,
melhorando, assim, a aprendizagem do seu aluno.
É preciso que os professores viabilizem projetos
úteis, viáveis a realidade desse aluno, assim como,
da comunidade onde a escola se encontra inserida.
Enfim, necessita-se de práticas inovadoras que
coloquem o aluno como centro da aprendizagem,
proporcionando-lhe, enfim, autonomia, o despertar pela pesquisa, investigação, criatividade.
Salienta-se, ainda, que é preciso mudar a postura
da escola que na pós-modernidade continua sendo
concebida à luz da educação fabril. Mudanças que
devem surgir em todos os níveis hierárquicos do
sistema educacional. Pois, o aluno necessita aprender a investigar, ir além do que lhe é proporcionado
dentro da sala de aula, visto que a realidade da
sociedade pós-moderna demanda pessoas que
saibam viver no caos, na incerteza, no ambiente
de conflito, adaptando-se as constantes mudanças.
Precisa-se, assim, de muito investimento em pesquisas, estudos, debates entre os sujeitos envolvidos
na aprendizagem, assim como, a sociedade a fim
de que a prática pedagógica possa se beneficiar do
uso da tecnologia em seu ambiente tanto interno
quanto externo, visto que a comunidade é sua
extensão. A questão não é tê-la, mas o porquê de
utilizá-la em prol de uma aprendizagem centrada
no aluno, bem como, nas questões relativas à comunidade. Os computadores, nesta perspectiva de
ensino, poderão ser utilizados como ferramentas
educacionais os quais favorecem a aprendizagem
ativa, ou seja, que propicie ao aluno a construção
de conhecimentos a partir de suas próprias ações.
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litterarumradicesamaraefructusdulces
A Mídia na Formação de Crianças:
Análise Interdiscursiva do Programa “Malhação”
Alberto Gurgel Filho1
Letícia Adriana Pires Teixeira2
Carla Michele Quaresma3
Palavras-chave: Mídia.
Criança. Interdiscurso.
Keywords: Media.
Child. interdiscourse.
RESUMO: As emissoras, a cada ano que passa, vêm disponibilizando mais espaço aos programas dos gêneros soap-opera, telenovela e
seriados, como forma de atrair o público. No
entanto, todos tendem a uma missão ficcional,
de demonstrar a realidade e os problemas dos jovens, as tendências de moda e os novos padrões
sociais da sua faixa etária, como os discursos e
os estereótipos juvenis. A escolha por “Malhação”
como objeto de estudo é por ser a única do
gênero soap-opera no Brasil e resiste na grade
da emissora Globo há mais de dez anos, o que
sustenta a sua popularidade e a inserção que
proporciona na vida do público.
ABSTRACT: The stations, each year that passes,
are offering more space for programs of genres
soap-opera, soap opera and sitcoms, in order to
attract the public. However, all tend to a fictional
mission to demonstrate the reality and the problems of young, fashion trends and new social
standards of their age group, such as speeches
and stereotypes juveniles. The choice of “Malhação” as an object of study is to be the only
kind of soap-opera in Brazil and resists the grid
station’s Globe for more than ten years, which
maintains its popularity and integration that
provides Public Life.
1 Introdução
da hipótese que esses jovens telespectadores, ao
fazerem contato com esse tipo de programação,
parecem viver uma “espécie de transe” em que
assumem papéis e máscaras sociais referenciados
pelos personagens da programação dos sistemas
nacionais e internacionais da mídia televisiva.
A nossa proposta visa a investigar se essa influência realmente se evidencia. A televisão é, ainda,
o principal veículo de entretimento das famílias
brasileiras, especialmente dos pré-adolescentes,
como forma de interagir com a sociedade e seu
grupo de 10 a 12 anos. Mas, A televisão ao mesmo tempo em que traz benefícios, traz malefícios
para essas famílias. Entre os malefícios, podemos
destacar: a pobreza da linguagem, exploração da
violência, do sexo, do desrespeito à ética e aos
valores humanos e sociais. Além de incentivar o
A experiência de educar, a cada dia, toma rumos
desafiadores, tanto para a família, quanto para a
escola. A idéia de educação estritamente escolar
perdeu a força e nasceu uma nova concepção de
educação, baseada em todos os conteúdos recebidos
pelas crianças no seu caminho educacional. Isso
inclui os conteúdos televisivos que chegam a elas
e, algumas vezes, transmitindo valores violentos
e condutas estigmatizadas socialmente, que se
impõem aos jovens como forma de ser e agir.
A investigação ora proposta está centrada na busca
de compreender o grau de influência dos programas
de TV brasileira – no caso desse estudo, especificamente “Malhação” - na formação discursiva de
crianças com faixa etária de 10 a 12 anos. Partimos
1 Graduando em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo pela Faculdade Integrada do Ceará - FIC. e-mail: alberto_
[email protected]
2 Professora dos Cursos de Marketing, Direito e Comunicação Social da Faculdade Integrada do Ceará - FIC - Jornalismo e
Publicidade e do Curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará. e-mail:
3 Professora do Curo de Comunicação Social - Jornalismo e do Curso de Direito e da Faculdade Integrada do Ceará - FIC email: [email protected]
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
70
A MÍDIA NA FORMAÇÃO DE CRIANÇAS: ANÁLISE INTERDISCURSIVA DO PROGRAMA “MALHAÇÃO”
consumismo. números do Ibope Mídia (Centro sociedade que se desenvolveu a análise do discurso.
Brasileiro de Mídia para crianças e adolescentes), Ao observarem uma demanda crescente de signiinformam-nos que dos 10 programas mais assis- ficados começou a se estudar essas manifestações,
tidos por meninos e meninas de 4 a 17 anos, oito tomando como ponto de partida às condições de
deles são programas direcionados para adultos produção, pois incluem todo o processo de inte(filmes, novelas, programas de auditório) e só dois ração comunicacional – a produção, a circulação
e o consumo de sentidos – dessa forma quando
são programas apropriados para a faixa etária.
Os programas televisivos têm criado muita di- damos relevância a esses aspectos estamos aborficuldade de relacionamento entre as famílias, dando as práticas sociais que estão embutidas
principalmente os relacionados ao comportamento. nesses contextos.
Como estudante de comunicação é, também, de
Atualmente, as análises de discursos que mais
nosso interesse que os Meios de Comunicação se exercitam são reforçadas por duas tradições, a
efetivem seu compromisso com a educação e a análise do discurso francesa e a anglo-americana.
cultura, em especial de crianças e de adolescentes.
A análise de discurso francesa, que contou com o
Este trabalho nasce dessa preocupação e pretende esforço de Michel Pêcheux e Michel Foucault, se arcontribuir com novas reflexões acerca da formação ticulava desde a década de 70 (linguística e história).
de cidadão de direito, capaz de refletir, formar
Segundo Pinto (2002), a função das ideologias
como constitutivas da produção/reprodução dos
opinião e dar condição a outros de exercê-lo.
A opção pela análise da novela “Malhação” acon- sentidos sociais, por força dos aparelhos ideológiteceu pela percepção de que a programação chama cos, desenvolvidos por Louis Althusser, tem papel
atenção do nosso público-alvo. Os adolescentes, na fundamental na AD. Dessa maneira, definemfaixa de 10 a 12 anos, experimentam como uma -se os discursos como sendo resultados de práti“febre”, o programa em questão, que lança moda, cas determinadas pelo contexto sócio-histórico,
instaura costumes, gírias, novas tendências de constituindo-se também parte do contexto, vão
diálogo e vende produtos de toda ordem, impul- se privilegiar os textos impressos ou transcrisionado pela audiência do público. Instiga-nos ções de textos orais, caracterizando-se por uma
saber os motivos para esse sucesso através dos análise isolada, independente de outros sistemas
posicionamentos desses adolescentes.
semióticos, segundo ainda Pinto (2002, p.28), “[...]
cujas implicações político-ideológicas procuravam
desvelar, de um ponto de vista crítico.”.
2 Análise do Discurso
A anglo-americana tem origem na Inglaterra, mas
Desde meados dos anos 80, um dos setores de teve seu ápice nos Estados Unidos, onde obteve
pesquisa em Comunicação que mais se desenvolveu elementos da sociologia, psicologia e da etnologia,
foi o da prática analítica denominada de análise de prendendo-se mais ao empirismo e aos conceitos
discursos, seu desígnio vai desde a obtenção de co- da psicologia do consciente. [...] Suas análises de
nhecimento acadêmico à pesquisa mercadológica. discursos combinam a descrição da estrutura e
do funcionamento interno dos textos, com uma
tentativa de contextualização um pouco limitada
A partir de corpora de produtos culturais empíricos
criados por eventos comunicacionais (tais como anún- e utópica. [...] (PINTO, 2002, p.21)
Para essa corrente, o processo de comunicação
cios publicitários; capas de periódicos; programas
televisivos e de rádio; entrevistas médicas; entrevistas
é entendido como sendo uma interação coopede emprego; textos jornalísticos impressos; discursos
rativa entre sujeitos que apreendem o controle
políticos; cartilhas para prevenção de doenças; orga- total e consciente das regras a serem utilizadas
nização dos espaços de uma cidade, de repartições
e que tem como contribuir igualmente para o
públicas, de empresas ou de nossas próprias casas,
progresso. A definição proposta pela análise de
entre outros). (PINTO, 2002, p. 13)
discursos anglo-americana varia entre o sentido
de discurso e frase, vislumbrando uma unidade
Foi com o intuito de esclarecer, detalhar e analisar linguística fundada por uma sequência de frases,
criticamente os processos de produção, circulação e um sentido de discurso que aparece como uso
e consumo de sentidos atrelados aos produtos da da linguagem verbal em contextos determinados.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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Alberto Gurgel Filho et al
Em linhas gerais, o analista de discursos é um
“detetive sociocultural”, pois na prática seu objetivo
é procurar e interpretar vestígios que se adéquem
para poder contextualizar em três níveis que, segundo Pinto, seria o contexto situacional imediato,
o contexto institucional e o contexto sociocultural
mais amplo, mais adiante em sua obra o mesmo
define que a análise de discurso:
Trata-se de uma análise inicial e não simbólica ou
icônica, no sentido que estas palavras têm na obra de
Charles Sanders Peirce. A análise de discursos não se
interessa tanto pelo que o texto diz ou mostra, pois não
é uma interpretação semântica de conteúdos, mas sim
em como e por que o diz e mostra. (PINTO, 2002, p.27)
Quando se define os discursos como sendo uma
pratica social, entende-se que a linguagem verbal
e as outras semióticas com que se constituem os
textos são partes integradas do contexto sócio-histórico e não alguma coisa de costume puramente
instrumental, desvencilhado das pressões sociais.
Como diz M. Pêcheux (Idem) o sentido de uma palavra,
uma expressão, de uma proposição etc., não existe
em si mesmo (isto é, em uma relação transparente
com a literalidade) mas ao contrário é determinado
pelas posições ideológicas que estão em jogo no pro-
para não enxergar no outro o interdiscurso, pois
ao se estabelecer sentido temos um efeito de já dito,
do interdiscurso do outro. A essa característica,
Orlandi vai explanar como sendo a historicidade
da análise do discurso.
Em sua mais pura concepção de sentido e organização de pensamentos a A.D – Análise do
Discurso -, está em nosso dia-a-dia para descrever,
explicar e avaliar criticamente os processos de
produção, circulação e consumo de sentidos vinculados àqueles produtos na sociedade, segundo
o autor Pinto (2002).
O homem ao longo dos tempos sentiu a necessidade de interpretar a fundo todo o conteúdo que
lhe era “encaminhado”, foi a partir dessa penúria
que o mesmo começou a se utilizar da análise do
discurso para compreender as idéias implícitas
nos discursos midiáticos.
Na análise de discurso, procura-se compreender
a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo
do homem e da sua história. (ORLANDI, 2007).
Como podemos constatar, a análise de discurso é
muito complexa, espesso de vivências e de valores
culturais. Principalmente quando o seu foco é
dar ênfase para a maior absorção do receptor da
mensagem, a qual se estabelece uma relação de
informação.
cesso sócio-histórico no qual as palavras, expressões,
proposições são produzidas (isto é, reproduzidas).
A Análise de Discurso não trabalha com a língua
(ORLANDI, 2007, p.17)
enquanto um sistema abstrato, mas com a língua no
mundo, com maneiras de significar, com homens
Ao analisarmos as formações discursivas, temos
que levar em consideração toda a singularidade
das ideologias do meio, pois como a passagem anterior, onde M. Pêcheux vislumbra o sentido como
algo implícito ao conhecimento geral, estando
ligado fortemente aos posicionamentos ideológicos. Quando agregamos uma série de formações
discursivas, estamos estabelecendo um interdiscurso que está permeado também por formações
ideológicas.Para Orlandi (2007), o interdiscurso é
irrepresentável. Ele é constituído de todo dizer já
dito. Ele é o saber, a memória discursiva. Aquilo
que preside todo dizer. É ele que fornece a cada
sujeito sua realidade enquanto sistema de evidências e de significações percebidas, experimentadas.
É através do interdiscurso que as pessoas não
reconhecem sua subordinação-assujeitamento ao
outro, é dado uma pseudo-autonomia ao sujeito
falando, considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos
seja enquanto membros de uma determinada forma
de sociedade. (ORLANDI, 2007, p. 15-16)
As matérias vinculadas nos jornais, noticiários
de TV e rádio e revistas estão de uma forma representativa levando a visão de uma empresa e
suas políticas de conduta e moral. Através dessa
veiculação, podemos notar suas maneiras de significar e perpassar pela sociedade de uma maneira
capciosa as suas significações e posicionamento
sobre um dado tema de grande relevância ou matérias corriqueiras.
Os jornalistas, em sua formação, têm uma
gama de conhecimentos acumulados e assimilados naturalmente no seu percurso acadêmico.
Está, nesse ponto, o que os principais autores
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A MÍDIA NA FORMAÇÃO DE CRIANÇAS: ANÁLISE INTERDISCURSIVA DO PROGRAMA “MALHAÇÃO”
da análise do discurso comentam como sendo
uma espécie de manipulador dos significados. Vale ressaltar que isso tudo de maneira
implícita.
A A.D vem para poder demonstrar como e de
que maneira na comunicação social e em outras
áreas do conhecimento isso está presente e que
força tem. Os estudos discursivos visam a pensar
o sentido dimensionado no tempo e no espaço
das práticas do homem, descentrando a noção de
sujeito e relativizando a autonomia do objeto da
Linguística. (ORLANDI, 2007)
O autor M. Pêcheux comentava que não existia
ser humano sem ideologia e nem discurso sem
ser humano. Dessa maneira, demonstrando que
o processo de criação de um discurso perpassa
de forma simétrica e quase que como uma regra
matemática, com os elementos anteriormente citados, o mesmo autor complementa dizendo que
o discurso é um local onde se observa a relação
entre língua e ideologia, compreendendo-se como
a língua produz sentido por e para os sujeitos.
(ORLANDI, 2007, p.17)
À medida que uma criança opta por determinada
programação e faz dela uma constante em sua
rotina diária torna-se alvo de possíveis mensagens,
que em sua essência emanam uma carga simbólica.
O programa “Malhação” quando é formulado
visa a atingir uma pluralização de núcleos de
convivências. Essa proposta hipoteticamente
pode manifestar um sentido totalmente contrário
no público para o qual aquela mensagem não foi
direcionada. Por isso
a Análise de Discurso visa a compreensão de como
um objeto simbólico produz sentidos, como ele está
investido de significância para e por sujeitos. Essa
compreensão, por sua vez, implica em explicitar como
o texto organiza os gestos de interpretação que rela-
O interesse específico da análise do discurso é apreender o discurso enquanto articulação entre texto e
lugares sociais. Consequentemente, seu objeto não é
a organização textual nem a situação comunicativa,
mas o que os articula através de um gênero de discurso.
A noção de “lugar social” não deve se considerada de
um ponto de vista literal: esse “lugar” pode ser uma
posição em um campo simbólico ( político, religioso,
etc.). (MAINGUENEAU, 2000, p.167)
O emissor da mensagem, ao compor seu discurso,
utiliza-se, às vezes, até sem saber, da sua ideologia
para compor seu discurso, pois ele vai ser o primeiro “filtro” das informações. É, na realidade,
quem vai decidir o que deve ou não ser exposto,
também levando em favor seu posicionamento a
frente da conjuntura sócio-histórica presente em
seu universo simbólico.
3 Mídia: formadora de opiniões
Atualmente, existe uma plataforma em ascensão que é característica da sociedade moderna, a
cultura da mídia. A veiculação das imagens, sons
e espetáculos ajudam as pessoas a construírem a
rede social da sua vida cotidiana, dominando por
boa parte o tempo de lazer, modelando a opinião
pública e os comportamentos sociais. Essa modelagem da nova sociedade gera uma organização
em que as empresas de comunicação subsidiam
os novos parâmetros para as pessoas construírem
seu ethos contemporâneo. A constituição do ethos
contemporâneo é desenvolvida por um conjunto de
valores, normas, referências, modos de atuar e hábitos, que vai pautar a ação do sujeito. O ambiente
é instável o que traz as relações sociais um caráter
de intensa modificação e atualização a partir do
estreitamento e distanciamento, reconhecimentos
e estranhamentos no amplo espaço dos valores.
cionam sujeito e sentido. Produzem-se assim novas
práticas de leitura. (ORLANDI, 2007, p.26)
[...] não há ethos sem um ambiente cognitivo que o
dinamize, sem uma unidade dinâmica de identifi-
Os analistas do discurso, no decorrer dos tempos, procuraram aprofundar em seus estudos um
campo específico para esse conhecimento, porém
constataram que era quase impossível estabelecer
isso. Foi a partir dessas pesquisas que concluíram
que a A.D pode ser utilizada em todos os estudos,
independente da sua área de conhecimento como
podemos ver na passagem a seguir
cações de grupo, que é seu modo de relação com a
singularidade própria, isto é, a cultura: aí atuam as
formas simbólicas que historicamente orientam o conhecimento, a sensibilidade e as ações dos indivíduos
(SODRÉ, 2001, p. 154).
Dentro das estruturas sociais a produção, a troca
de informações e o conteúdo simbólico, sempre
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Alberto Gurgel Filho et al
tiveram seu espaço. Podemos nos remeter desde os
primórdios da sociedade quando os gestos ainda
eram o principal meio de comunicação até as mais
recentes descobertas da comunicação instantânea
via internet, a sua produção, circulação, armazenamento e seu sentido simbólico ainda perpassam pela
vida das pessoas como um aspecto central. A modificação dessas etapas de comunicação ocasionou
o desenvolvimento institucional, que por sua vez
as formas simbólicas foram produzidas e reproduzidas
em escala sempre em expansão; tornaram-se mercadorias que podem ser compradas e vendidas no mercado;
ficaram acessíveis aos indivíduos largamente dispersos
no tempo e no espaço. De uma forma profunda e irreversível, o desenvolvimento da mídia transformou
a natureza da produção e do intercâmbio no mundo
moderno. (THOMPSON, 2004, p. 19)
A cultura da mídia é formada por sistemas de
rádio e reprodução de som (discos, fitas, CDs e seus
instrumentos de disseminação), de filmes e seus
modos de distribuição (cinema , DVDs, apresentação pela TV), pela imprensa que vai de jornais
a revistas e pelo sistema de televisão ( exploração
da cultura da imagem e do som).
Segundo Thompson (2004), para se explorar os
tipos de interação estabelecida pelos meios de comunicação, é preciso dispor de três formas de
intercâmbio que ele denomina de “interação face
a face”, “interação mediada” e “quase-interação
mediada”.
A interação face a face acontece em um contexto de
co-presença; os participantes estão imediatamente
presentes e partilham um mesmo sistema referencial
de espaço e de tempo. [...] têm também um caráter de
diálogo, no sentido de que geralmente implicam ida
e volta no fluxo de informação e comunicação; os receptores podem responder (pelo menos em princípio)
aos produtores, [...] os participantes normalmente empregam uma multiplicidade de deixas simbólicas para
transmitir mensagens e interpretar as que cada um
recebe do outro. As palavras podem vir acompanhadas
de piscadela e gestos, franzimento de sobrancelhas e
sorrisos, mudanças na entonação e assim por diante.
[...] (THOMPSON, 2004, p. 78)
A interação mediada é a que mais se adéqua a
análise da soap opera “Malhação”, pois implica
certa aproximação na possibilidade de deixas simbólicas acessíveis ao público. Para Thompson, as
interações mediadas têm um caráter mais aberto
do que a interação face a face. Pois o estreitamento
das possibilidades de deixas simbólicas dá ao indivíduo os recursos necessários para sua própria
interpretação das mensagens transmitidas.
Stuart Hall sugere que se trave uma articulação
entre a codificação da mensagem, no campo da
produção e sua decodificação, no plano da recepção. Para nortear seu estudo, o autor trabalha
com três posições de interpretação da mensagem
televisiva: dominante, o observador “decodifica
a mensagem nos termos do código referencial
no qual ela foi codificada” (HALL, 2003, p. 377);
negociada, mistura de elementos adaptativos e
opositivos; e opositiva, o receptor entende a proposta dominante da mensagem, mas a interpreta
segundo uma estrutura de referência alternativa.
4 Os endereçamentos televisivos
O foco principal para indagar a dimensão simbólica e a prática dos produtos audiovisuais, sua
inserção social, recepção e influência são os “modos
de endereçamento”, que determina se o programa
atrai ou passa despercebido pelo espectador. Os
modos de endereçamentos podem ser classificados
como um evento, uma posição física estabelecida
às margens de seu produtor e receptor, confeccionado entre o texto do filme/programa e a rede
de experiências e a posição geográfica da platéia.
Essa teoria adentra a uma magnitude, que vai
além do público-alvo em questão, Ellsworth (2001)
parte do pressuposto que para que um espectador
verdadeiramente se envolva, se deixe levar por um
filme/programa é necessário que estabeleça uma
relação com que vê. Essa relação então passa pelo
campo emocional. Os modos de endereçamento
acionam uma parte do indivíduo “irracional”,
onde ele se deixa guiar por esse “sujeito”, que faz
parte da pessoa no mundo, que é onde ele ocupa
ou pensa que ocupa, ou ainda, que ele gostaria de
ocupar. Esse “feitiço”, causado pelo endereçamento,
remete a uma entrega total e a fiel designação do
sujeito como os desejos internos para se chegar a
esse lugar, que é de sua total contemplação.
Quando os modos de endereçamento atingem
seu significado literal de “conter em si, constar,
abranger, perceber ou alcançar as intenções ou o
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A MÍDIA NA FORMAÇÃO DE CRIANÇAS: ANÁLISE INTERDISCURSIVA DO PROGRAMA “MALHAÇÃO”
sentido” (AURÉLIO, 1995, p.165), que lhe é sugerido.
Os modos de endereçamento têm
a ver com o desejo de controlar, tanto quanto possível,
como e a partir de onde o espectador ou a espectadora
lê o filme. Tem a ver com atrair o espectador ou a espectadora a uma posição particular de conhecimento
para com o texto, uma posição de coerência, a partir
da qual o filme funciona, adquire sentido, dá prazer,
agrada dramática e esteticamente, vende a si próprio
e vende os produtos relacionados com o filme (ELLSWORTH, 2001, p.24)
Para que exista uma contemplação dos indivíduos para com os programas de televisão, é
necessário que todas as unidades de sua formação
como imagens, cenas, sons, músicas, cores, luzes
e ritmo estejam em perfeita harmonia para que
assim o conjunto estabeleça seu lugar específico de
apreciação. A disposição do indivíduo no espaço
determinado é planejada intencionalmente através de textos imagéticos e sonoros. Quando nos
deparamos com uma pobre camponesa voltando
do campo e há alguns metros de sua residência
sofre abusos de seu padrasto que se passa como
bom moço, somos levados a status de cúmplices
ou testemunhas. A intenção dos modos de endereçamento é de nos levar para dentro da história
e nos tornar parte integrante e decisiva do desencadeamento da mesma.
Em uma produção como “Malhação” os endereçamentos vão partir de cada personagem de status,
que vai desde a menina feia que após certos cuidados de beleza se torna linda e atraente, revelando
assim a paixão no garoto que sempre ela desejou;
o rapaz que sempre quis dançar balé, mas como
é uma profissão dita como feminina, projeta no
personagem seu reflexo e leva a tentar realizar
seu sonho. Por muitas vezes, o endereçamento
pode errar, por não ser completa, mas sempre ele
contempla a uma parcela bem significativa.
5 “A Malhação”: um gênero “soap
opera”
Malhação é o programa mais expressivo da mídia
teen desde a primeira temporada, em comparação
com os programas oferecidos aos jovens pelas TVs
a cabo “Malhação” ainda continua como favorita
para a grande parte. Exibida há quatorze pela
Rede Globo, o programa, que hipoteticamente
pauta a classe média jovem brasileira, abordando
temas do dia-a-dia do público juvenil e atraindo
com sucesso todos os públicos. O programa já
obteve média de 41 pontos de audiência, considerada um dos melhores produtos da emissora. Os
jovens protagonistas desde a primeira temporada
de “Malhação” são os recordistas de cartas e e-mail
da emissora, sendo assim um feed back positivo
para a direção e para a Rede Globo.
A novela, ou melhor, a soap opera “Malhação” é a
produção destinada aos jovens brasileiros há mais
tempo no ar. A proposta da emissora Globo era de
cobrir um horário que estava vago entre a sessão
da Tarde e a Novela das Seis. A primeira tentativa
de emplacar no horário foi Radical Chic que era
uma competição de perguntas e respostas entre
adolescentes do Ensino Médio ou Universitários,
com equipes separadas por sexo. A equipe que mais
acumulasse pontos ganhava prêmios em dinheiro.
A produção foi cancelada da grade da emissora
por não alcançar o público-alvo.
Logo depois foi a vez de “Malhação”, que inicialmente estava previsto para durar três anos, mas
as expectativas foram bem maiores que qualquer
pesquisa poderia ter registrado. O ano de 1995 foi
marcado para sempre na história da programação
voltada para os jovens, com uma dinâmica bem
estruturada no roteiro da história e uma seleção de
músicas bem teen, essa foi a formula para a mais
nova aquisição da grade da emissora Globo que
teria daqui para frente a mais nova plataforma de
alcance ao mundo jovem. O tempo modificou muito de 1995 ate 2008, a novela passou por algumas
transformações no seu cenário, de uma academia
de ginástica, passou a aumentar o universo dos
personagens, a criação de restaurantes, produtoras de vídeo, lojas e as casas dos protagonistas,
mas a modificação maior foi quando seu cenário
principal mudou radicalmente de uma academia
para uma escola.
Da estréia em 1995 até a temporada 2008, a única
característica incomum entre elas é o nome, a
abertura e a música tema do programa a cada
temporada são modificadas, buscando cada vez
mais ser uma cópia fiel da realidade do jovem da
época e dessa maneira conseguindo se manter na
rotina dos jovens.
Seguindo o perfil de uma legitima soap opera
que é, “Malhação” sempre abordou temas que
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Alberto Gurgel Filho et al
estivem em destaque no cenário nacional, como 6 Os Estudos Culturais
gravidez na adolescência, delinquência, protagonismo juvenil, relacionamentos entre pais e filhos,
No final dos anos 50, pensadores ingleses oriundos
namoro e amizades.
da esquerda desenvolveram estudos e problemáticas
O termo “soap opera – novela sabão” foi cunhado que tiveram como foco a cultura operária, após as
pela imprensa americana na década de 1930, para transformações da Segunda Guerra Mundial. Os
designar o gênero extremamente popular dos processos de industrialização e urbanização se
dramas serializados, que, em 1940, representaram desenvolveram junto com o processo de desenvolvicerca de 90% de todos os comerciais, patrocinando mento dos meios de comunicação em grande escala:
as transmissões diurnas. O “sabão” faz alusão a seu rádio, revistas e livros baratos, jornais, anúncios,
patrocínio, por parte dos fabricantes de produtos todo tipo de filmes – sobretudo, americanos- e
de limpeza doméstica, enquanto “opera”, sugeri televisão alterando e reorganizando a cultura, o
uma ironia entre as preocupações domésticas modo de vida e a identidade política das classes
narradas na série. Nos Estados Unidos, o termo trabalhadoras. A proposta de aprofundamento e
continua a ser aplicada principalmente a cerca das discussão no âmbito social nasce desta preocupacinquenta horas por semana de transmissão das ção com a repercussão das produções midiáticas.
séries dramáticas de televisão, no horário diurno,
Com a crescente expansão dos meios de ‘comunipela emissora ABC (American Broadcasting Com- cação de massa’ e da alfabetização das pessoas, és
pany), NBC (The National Broadcasting Company) que surge um novo panorama do público leitor. O
e CBS (Columbia Broadcasting System).
que antes era apenas restrito a uma minoria estava
A principal marca das soap opera é seu roteiro, em crescente ascensão. Aumentando o número de
que enaltece uma exaltação de sentimentos, mul- ouvintes, telespectadores e por conseqüência de
tiplicidade de temas e personagens estereotipados, consumidores da nova ordem de produtos culturais.
que define bem as soap operas. A sua origem vem As relações interpessoais e sócias adotaram novos
de um público feminino, com a evolução das nar- posicionamentos, desenvolvendo uma indagação
rativas e da interação das soap operas no cotidiano sobre as tradições, que por sua vez se manifestava
das pessoas, começou a adentrar na vida das fa- em todos os campos sociais como a democracia,
mílias e mais adiante em uma nova roupagem, o as classes sociais, gostos populares e as artes. Para
público adolescente é um dos receptores de maior uma discussão ampla era necessária a retirada do
potencial dos temas abordados a cada temporada. conceito cultura do seu habitual e inserir em um
Quando fazemos a leitura do programa “Ma- contexto dos processos históricos e das práticas
lhação”, caracterizamos como sendo uma novela sociais. Segundo Gomes (2000, p.105)
tradicional, que tem início, meio e fim e um roteiro
segmentado em um núcleo principal. Mas quando
O programa inicial dos Estudos Culturais foi proceder
analisamos sua estrutura, notamos características
a uma transformação radical do conceito de cultura
que se afasta daquele defendido pelos principais intede soap opera, gênero de ficção dramática ou cômica difundido pela televisão, inexistência de um
lectuais da época – que entendiam a cultura apenas no
calendário final, segmentada por temporadas, a
sentido que hoje damos à expressão cultura erudita e
que se refere à busca e ao cultivo da perfeição moral,
cada uma, escolhe-se abordagens diferenciadas e
intelectual, espiritual. Desde essa fase inicial, desde
muitas vezes os temas de grande repercussão social
são inevitáveis, por exemplo, AIDS, gravidez na
esses primeiros esforços por reformular o conceito de
adolescência, homossexualismo e outros.
cultura que os Cultural Studies se distinguirão como
Na falta de uma base sólida de referenciais para
uma correntes de investigação que põe o foco da sua
a constituição da identidade do jovem, a mídia
atenção no processo ativo e consciente de construção
assume um papel de perpetuadora de modelos
de sentido na cultura.
para construção da personalidade e do vocabulário
de cada jovem. Programas como “Malhação” são
A instituição Centre for Contemporary Cultural
as novas propostas da atual sociedade, que na era Studies – CCCS, foi o local onde os principais
da globalização dita modelos de grupos sociais e pensadores e os mais referenciados se reuniam,
interfere nas relações interpessoais.
tem como cede a Universidade de Birmingham,
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A MÍDIA NA FORMAÇÃO DE CRIANÇAS: ANÁLISE INTERDISCURSIVA DO PROGRAMA “MALHAÇÃO”
fundado em 1964 sob a direção de Richard Ho- é realizada em meio das rotinas e atividades da
ggart. Os trabalhos de Hoggart, E.P Thompson produção televisiva e circulam em forma de signos,
e Raymond Williams, assim como os de Stuart de discursos que devem ser apreendidos, articuHall constituem as referências iniciais e principais. lados em práticas significantes, interpretados no
Quando Hall passou a dirigir a CCCS, introduz- momento do consumo.
Segundo Hall (2003) quando o receptor adentra
-se fortemente o pensamento de Roland Barthes,
no campo da decodificação ele teria três opções
Focoult e Althusser, Eco e Bakthin.
Segundo Hall (2003), parafraseando o pensa- hipotéticas para emitir um posicionamento e inmento de Gramsci, cultura significa “o terreno terpretar a mensagem: uma leitura ou uma leitura
real, sólido, das práticas, representações, línguas negociada e uma leitura de oposição, ou até mesmo
e costumes de qualquer sociedade específica, bem interpretação hegemônica - dominante. A leitura
como as formas contraditórias do senso comum hegemônica-dominante é caracterizada quando
que se enraizaram na vida popular e ajudaram a o receptor se apropria integralmente do sentido,
moldá-la” (HALL, 2003, p.439).
“decodifica a mensagem nos termos do código
Os estudos Culturais argumentam que a cultura referencial na qual ela foi codificada.” (HALL,
no âmbito de um processo social ininterrupto e, 2003, p.13) e se apropria das definições dominantes,
paralelamente, contraditório, incluindo processos hegemônicas e legítimas para a ordem social.
de produção, circulação e consumo culturais. Os
A segunda opção de leitura, a da decodificação neCultural Studies
gociada, é identificada quando o receptor questiona,
interroga, ainda que uma parte das mensagens
não pretendem contribuir à acumulação da ciência
televisivas. Hall ainda esclarece que,
pela ciência em si, à elaboração de uma reserva de
“conhecimentos já dados” solidamente estabelecidos
Decodificar, dentro da versão negociada, contém uma
e empiricamente validos. Pretendem, pelo contrário,
mistura de elementos de adaptação e oposição: reco-
participar de um debate atual, aberto e politicamente
nhece a legitimidade das definições hegemônicas para
orientado, que vise a avaliação e a crítica da condição
produzir as grandes significações (abstratas), ao passo
cultural contemporânea. Nesse contexto, a relevância
que, em um nível mais restrito, situacional (localizado),
estratégica das análises, o sentido crítico e a sensi-
faz suas próprias regras [...]. Confere posição privile-
bilidade pelo concreto são mais importantes que o
giada às definições dominantes dos acontecimentos,
profissionalismo teórico e a pureza metodológica.
enquanto se reserva o direito de fazer uma aplicação
(ANG, 1997 apud NATANSOHN, 2003, p.92).
mais negociada às ‘condições locais’ e às suas posições
mais corporativas (HALL, 2003, p.14).
Em 1973 Stuart Hall publica Enconding/Deconding,
obra que daria uma amplitude a problemáticas
A terceira hipótese proposta por Hall é a leitura
discutidas por Levi-Strauss, Roland Barthes, Louis opositora dos discursos, é realizada de forma conAlthusser, Jacques Lacan e Michel Foucault, duran- trária à sugerida. Entende-se o sentido da mensate os anos 70 e 80. Essas leituras influenciaram na gem, porém esta é transformada em uma leitura de
introdução das questões lingüísticas e semióticas. indagações. Para Hall seria o local onde “se trava a
Hall em Enconding/Deconding, detalha que o ‘política da significação’ – a luta no discurso”. As
processo de comunicação midiática pelo viés de pesquisas em recepção e as propostas teóricas afirum encadeamento de instâncias – recepção, cir- mam, com freqüência, que os receptores constroem
culação, emissão – que são autônomos e diferentes. suas próprias leituras e interpretações a partir
Quando o receptor está a decodificar, o momento do espaço ilusório de sentido que proporciona o
é privilegiado, analiticamente, pois é nessa hora encontro com o discurso e público.
em que se concretiza a produção e reprodução da
ideologia. Para Hall a pesquisa em recepção não 7 Análise dos enunciados e dos
posicionamentos discursivos
poder compreendida apenas como uma interação entre as intenções do emissor e os efeitos no
receptor. Devemos estudar como os eventos se
Neste trabalho de análise da interferência do proconvertem em mensagens, já que a codificação grama “Malhação”, formulamos um questionário
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Alberto Gurgel Filho et al
com vinte questões, dirigidas aos jovens, que abordam desde como é a seleção dos programas assistidos, com quem assiste, por quanto tempo e se costuma utilizar as expressões que o programa adota.
Tomamos por base publicações voltadas ao público
jovem e a partir de então circundamos um público
alvo que a cada dia torna-se um telespectador mais
ativo para esse tipo de programação. O perfil foi
de crianças de 10 a 12 anos de idade, pertencentes
à classe média e alunos de escola particular.
A pesquisa foi realizada em duas escolas de Fortaleza, Colégio Irmã Maria Montenegro e Colégio
7 de Setembro. Ao total, foram respondidos o
número de cento e trinta e um questionários.
O resultado serviu como base para a análise do
perfil dos jovens contemporâneos e como eles estão
reagindo ao complexo campo midiático que lhes é
apresentado diariamente. Optamos por analisar a
relação interdiscursiva dos pesquisados, fazendo
um cruzamento dos dados do questionário e o
programa “Malhação”. Para a análise, o programa
“Malhação” foi gravado toda a temporada de 2008
e após seleção foi escolhido o período de 14/07/08
a 18/07/08.
Partimos do pressuposto que os jovens são passivos de grande manipulação dos meios midiáticos
e fazem parte do público-alvo mais vulnerável aos
significados e as identidades que os programas
podem submeter. Por entender que é de vital importância que se faça uma veiculação com respeito
à realidade. Dessa forma, é de total interesse que
esses jovens tenham acesso ao maior número de
informações – instigadoras – para a sua formação
como pessoa capaz de realizar uma análise crítica
e diferenciada dos produtos e dos posicionamentos
das empresas de comunicação.
O primeiro questionamento feito aos entrevistados foi “Como você decide quais programas de
TV vai assistir?”, a maioria respondeu que utiliza o
critério de identificação com o programa (58,78%),
uma margem bem significativa quando comparamos com as outras opções como, por exemplo,
pela popularidade no seu grupo de amigos (19,85%),
matérias publicadas em revistas destinadas a esse
público (6,87%) ou pelo carisma de algum ator ou
atriz envolvida na trama (8,4%). Inicialmente, já
notamos que uma parcela significativa adota como
meio de seleção a intimidade com seus gostos e opções tornando assim uma interação mais saudável
e uma possível relação contestatória, pois quando
se tem mais intimidade com determinado tema se
tem mais argumentos para uma possível discussão.
Como você decide quais programas de TV vai assistir?
Por se identificar com o
programa
80
40
Pela grande popularidade do
programa no seu grupo de
amigos
Por causa dos atores envolvidos
no programa
20
Pelas matéria veiculadas nas
revistas destinadas a jovens
60
Outros
0
A atual formação familiar dispõe de os pais trabalhando o dia inteiro, transformando assim a
televisão como melhor companhia e passa-tempo.
Porém, o excesso de negligência ou de descaso
com os limites aos meios midiáticos pode ofuscar
outros meios de interação que pode ser mais construtivo. Quando perguntamos aos entrevistados
sobre a existência de limite ao número de horas
assistindo à televisão, quarenta e cinco (34,35%)
responderam que sim; eles cumprem uma carga
horária estipulada pelos pais e os outros oitenta
e seis (65,65%) não têm essa mesma vigilância e
acabam por assistir a programas destinados à faixa
etária bem acima do que a sua. Grande parte das
crianças hoje tem acesso ao acervo midiático bem
mais desenvolvido e assim tomam nota desses
veículos para seus horários de lazer. Números
do Ibope Mídia (Centro Brasileiro de Mídia para
crianças e adolescentes) informam-nos que dos 10
programas mais assistidos por meninos e meninas
de 4 a 17 anos, oito deles são programas direcionados para adultos (filmes, novelas, programas de
auditório) e só dois são programas apropriados
para a faixa etária.
Há um limite quanto ao número de horas que é
permitido assistir TV?
100
80
60
S im
40
Não
20
0
Atualmente, a televisão tem vários tipos de
programas para poder chegar ao máximo de telespectadores possíveis. Pensando nessa imensa
possibilidade de escolha perguntamos aos jovens
entrevistados “Qual o programa de TV mais assistido na sua casa?”. A grande maioria respondeu
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
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A MÍDIA NA FORMAÇÃO DE CRIANÇAS: ANÁLISE INTERDISCURSIVA DO PROGRAMA “MALHAÇÃO”
que são os seriados (39,69%), seguidos das novelas
(31,3%), quinze (11,45%) respondeu não ter um
programa mais assistido, os jornais foram uma
surpresa, pois só ocupam uma minoria de onze
entrevistados (8,4%) e os outros programas ocuparam a margem de (8,4%).
pauta no seu cotidiano. As problemáticas dessa
fase são um dos principais focos de produções
como “Malhação”. A décima quinta temporada que
nos destinamos a analisar foi caracterizada com o
tema “diversidade entre indivíduos”. Abordando
temas nas mais diversas áreas foi uma temporada
de grandes discussões como:
Qual o programa de TV mais assistido na sua casa?
TEMAS
ABORDADOS
60
50
40
30
20
10
Se riados
Nove las
Todos
Jornais
O utros
Programas de auditório
ATIVIDADES
Você assiste a novela "Malhação"?
80
60
40
S im
Não
20
0
A fórmula utilizada por esse tipo de programa é
o de buscar ao máximo ser uma cópia do dia-a-dia
do jovem, abordando os assuntos que estão em
Música - Gustavo, Angelina, Pedro, Débora,
Yasmin e Luana; Jornalismo - Domingas
Gentil. e Crença em duendes - Chiara.
AMOR E
RELACIONAMENTO
Romance entre pessoas de diferentes
classes sociais - Gustavo e Angelina, Débora
e Pedro, Joaquim e Rita.; Romance entre
pessoas com grande diferença de idade Bodão e Sara.; Romance entre pessoas
de diferentes raças - Joaquim e Rita.;
Triângulo Amoroso - Daisy, Joaquim e Rita;
Beatríce, Adriano e Teresa; Andreas, Felipa e
Tony; Gustavo, Bruno e Angelina.; Quadrado
Amoroso - Gustavo, Angelina, Bruno e
Débora; Chiara, Andreas, Raiden e Felipa.;
Ciúme doentio - Débora por Angelina.;
Separação de Casais - Joaquim e Daisy,
Gustavo e Angelina.; Gravidez Precoce Angelina (engravidou de Bruno) ; Traição
- Bruno e outras meninas contra Angelina;
Débora e Pedro contra Gustavo; Andreas e
Felipa contra Chiara e Tony
SENTIMENTOS E
AÇÕES NEGATIVAS
Obsessão compulsiva - Débora por
Angelina., Obsessão por dinheiro - Félix e
Débora., Vingança - Débora contra Angelina
e Félix contra Joaquim., Ódio - Débora
contra Angelina e Félix contra Joaquim (e
vice-versa).;Mentira Obsessiva - Débora,
Andréas, Bruno e Félix.; Arrependimento Débora e Bruno.; Falsa gravidez - Débora
(fingiu esperar um filho de Gustavo); Magia
- Chiara.; Gula - Domingas.; Machismo Andréas Campadelli e Tony.; Desunião
Familiar - Joaquim, Gustavo, Daisy e
Antonieta.
0
Partindo de pontos como os abordados anteriormente que decidimos tomar como material
de estudo, o universo dos programas destinados
para os jovens e sua interseção na construção de
seus discursos e da sua identidade cultural.
Tomando como base um programa que é destinado a esse público e há quatorze anos permanece
na grande de uma das emissoras que mais instaura
costumes e jargões na população brasileira – Rede
Globo – que decidimos abordar o posicionamento desses jovens quanto a proposta da novela ou
melhor soap opera “Malhação”.
O nosso público entrevistado de idades de 10 a 12
anos, quando perguntado sobre a sua preferência
por assistir “Malhação”, setenta e nove (60,31%)
respondeu que assistem e cinquenta e dois (39,69%)
que não. A perspectiva inicial foi comprovada
que os jovens têm uma ligação com os programas
destinados a seu público, porém como os estudos
de endereçamento afirmam os programas não
conseguem alcançar a totalidade desse alvo que,
muitas vezes, não aprova determinada programação por causa de seus interesses particulares ou do
seu grupo de amigos não se adequar ao programa.
UNIVERSO DO TEMA ABORDADO
O tema não foi o principal atrativo para os jovens entrevistados, mas é considerado por vinte e
sete (20,61%) como sendo o seu maior apelo para
assistir ao programa. Os outros variavam entre o
conjunto de temas, personagens e popularidade
do programa – trinta e dois (24,43%). Malhação
sempre utilizou personagens estereotipados o que
confere vinte e um dos pesquisados admitir atraído
pelos seus personagens e seu carisma, característico
do gênero soap opera.
A dinâmica com o programa em questão causa
nos jovens uma personalização do seu discurso,
seja por hora direta – o jovem reproduz fielmente
os jargões utilizados – ou indireta – quando ele se
apropria de forma parcial e faz as suas adequações.
Na temporada analisada, as inserções dessas formações discursivas foram maiores nas meninas,
pois a décima quinta temporada trouxe para o
enredo uma das personagens mais carismáticas
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Alberto Gurgel Filho et al
da história da “Malhação”. A personagem Yasmin vivendo um dos momentos mais ecléticos e o mais
Fontes vivido por Mariana Rios foi um berço de espesso de produtos midiáticos; a transformação é
tantos jargões que faz parte do dia-a-dia destas quase constante na expectativa de atrair cada vez
jovens, os mais citados são “Jesus, apaga a luz!”, “E mais novos telespectadores e agradar os já exisai fubazada!”, “Gente eu to bege, to bege, to rosa!”, as tentes. Pensar em maneiras inovadoras, atrativas
expressões caíram no gosto das meninas, durante a e formadoras de opiniões para o nosso público
nossa pesquisa a personagem foi a mais citada pelas não é uma tarefa fácil, já que para se ter sucesso
entrevistadas como a personagem com a qual elas nessa empreitada é preciso ter um conhecimento
mais se identificam. A abrangência de utilização completo do universo do ser humano.
Foi partindo desse pressuposto que realizamos
das gírias pelos jovens se faz presente em cinquenta
e cinco (41,98%) dos entrevistados, contra setenta um trabalho de análise do nível de interferência
da mídia na formação de crianças. Esse público a
e seis (58,02%) que não costumam utilizar.
O autor Hall (2003) discorre na sua teoria dos cada dia toma como sua rotina programas destiEstudos Culturais com a hipótese de três tipos nados ao público adolescente e adulto, podendo
de leitura: hegemônica-dominante, negociada ser uma escolha pelos atrativos do programa ou
e opositora. Na leitura hegemônica-dominante pela falta de fiscalização dos responsáveis em pelo
a interpretação do texto se dá de maneira fiel menos minimizar esse tipo de atitude. Saber como
ao sentido privilegiado no texto, o receptor se e com que intensidade acontecia essa interferência
apropria de forma integral do significado. Na lei- era uma das experiências mais interessante para
tura negociada, o receptor vai questionar alguns a nossa pesquisa. A cada nova descoberta sobre o
fragmentos do texto, interrogando a mensagem. A programa e a cada episódio assistido vislumbráleitura opositora vai acontecer quando o receptor vamos um universo de temas e abordagens que
compreende toda mensagem, porém ele irá utilizar foram nossos questionamentos sobre a decisão
para contestar e como Hall dizia “se trava a ‘política desta pesquisa.
Ao começarmos a analisar os episódios da temda significação’- a luta no discurso”.
Ao decorrer da nossa pesquisa, notamos que as porada de “Malhação” optamos pela análise da
meninas estão em sua grande maioria absorven- semana de quatorze a dezoito de julho de dois
do essas mensagens sem nem questionar muito, mil e oito. Essa semana foi para nós a que mais
mostrando uma leitura hegemônica-dominante, consegui reunir todos os ápices de uma soap opeapesar de certas ocasiões manterem uma leitura ra. A semana começa com a descoberta de uma
negociada, mas nunca uma leitura opositora. Os falsa gravidez, passa por uma reunião em família
meninos, em sua grande maioria, têm uma leitura conturbada para solucionar a gravidez fingida,
negociada para com o programa em questão, po- uma micareta e nuances do relacionamento dos
demos associar tal posicionamento aos primórdios adolescentes.
das novelas, os folhetins onde seu público eram
Os jovens entrevistados apesar de não discutirem
as mulheres a partir desta “convenção popular” em seu circulo de amigos os temas abordados na
se restringiu o público alvo deste material sendo novela com frequência, afirmaram em utilizar os
apenas o feminino. A partir dessa “convenção “ensinamentos” da novela como fonte para a solução
popular” os homens até hoje mantém certa dis- de seus problemas. A grande maioria respondia
tancia deste tipo de programação. Quando entra que acha que a novela passa o que eles vivenciam
em contato com as telenovelas têm uma postura e dessa forma alertam para possíveis erros de
questionadora e ao mesmo tempo aberta a men- conduta. O tema mais citado pelos entrevistados
sagem, apesar deste último momento de recepção foi sobre a gravidez precoce, onde muitos acham
ser raro, tornando lhe uma figura questionadora que a novela conseguiu mostrar que isso não seria
na maioria do tempo.
conveniente acontecer, pois acabaria por prejudicar
o percurso de amadurecimento social.
Apesar da estreita afinidade do programa com
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
o público infantil a relação de identidade e de
Compreender a comunicação, nos dias atuais, formulação de novos padrões para essa fase de
está cada vez mais complicado. A sociedade está crescimento é bastante visível no público feminino.
Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008
80
A MÍDIA NA FORMAÇÃO DE CRIANÇAS: ANÁLISE INTERDISCURSIVA DO PROGRAMA “MALHAÇÃO”
A instauração de novos costumes e de novos discursos são próprios dessa parcela que a cada momento busca transparecer uma idade que lhes é
superior, tomando como caso a personagem da
atriz Mariana Rios – Yasmin Fontes – podemos
remeter uma intensa reprodução dos jargões que
durante os episódios são inúmeras vezes repetidos.
Observamos que essa forma de interação com a
personagem é fruto de um desejo de ser tão popular
e carismática como a mesma.
Para o público masculino a presença de uma
identificação com algum personagem é quase nula.
A maioria dos entrevistados mantém uma rotina
de pouco contato com a novela e quando assiste
não têm um personagem alvo de identificação. Os
jargões para esse público são escassos de inovação
e mantendo relação com outros já convencionados
para esse público por outros programas.
Devemos ter um conhecimento vasto, para um
senso crítico aguçado e assim saber filtrar os produtos midiáticos que chegam a nosso conhecimento
diariamente. Dar a forma e a seleção necessária
para a abordagem destes significados é a melhor
maneira de tornar cada vez mais satisfatório os
programas veiculados pela mídia.
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81
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