Vulnerabilidade entre mulheres profissionais do sexo em uma área
Transcrição
Vulnerabilidade entre mulheres profissionais do sexo em uma área
No 14 jul./dez. 2008 Anima Fortaleza ano 8 n. 14 p. 10 – 80 jul./dez. 2008 FACULDADE INTEGRADA DO CEARá DIREÇÃO GERAL Jessé de Holanda Cordeiro DIRETORIA ACADÊMICA Ana Flávia Alcântara Rocha Chaves DIRETORIA ADMINISTRATIVA - FINANCEIRA Cristina dos Reis Rocha DIRETORIA DE PLANEJAMENTO E INFORMAÇÕES Noeme Milfont Magalhães COMISSÃO DE PUBLICAÇÃO Editora Científica: Profª Ms. Letícia Adriana Pires Teixeira e Profª Ms. Maria da Graça de Oliveira Carlos Conselho Editorial: Prof. Dr. Francisco José da Costa - FIC Prof. Dr. Guilherme Lincoln A guiar Ellery - FIC Prof. Dr. José de Sousa Neto - FIC Prof. Dr. Ronaldo Ferreira de Sousa - FIC Profª Dra. Claudiana Nogueira de Alencar - UECE Prof. Ms. Carlos Alberto dos Santos Bezerra - FIC Prof. Ms. Francisco Thauzer Coelho Fonteles - FIC / CRA Prof. Ms. Osório Cavalcante de Araújo - UFC / CRC Profª Antonia Cláudia Lopes - FIC Prof. Dra.Lydia Maria Pinto Brito - UNP / RN Profª Ms. Letícia Adriana Pires Teixeira - FIC Profª Dra. Maria E lias Soares - UFC Profª Dra. Maria Margarete Fernandes de Sousa Profª Ms. Mirna Gurgel Carlos da SIlva - FIC Profª Ms. Roberta Cristina Barbosa Terceiro - FIC Revisão de Texto Profª Ms. Letícia Adriana Pires Teixeira Antônio Orion Paiva Produção Editorial Antonio Carlos da Silva Henrique Dantas Studart Humberto Alves de Araújo Diagramação Kamile Girão Façanha Bibliotecárias Responsáveis Luíza Helena de Jesus Barbosa - CRB 830 Adriana Patrícia Costa Batista - CRB 883 Anima/Faculdade Integrada do Ceará. - ano 8, n. 14, (jul/dez. 2008) -.Fortaleza: Faculdade Integrada do Ceará, 2008. v.: il, 30cm. Semestral Início da coleção v. 1, n, 1, out./dez. 2001 1. Periódico científico 2. - Faculdade Integrada do Ceará 3. Artigos diversos CDD 050 Printed in Brazil ISSN 1676 - 0522 Editorial É com grande satisfação que trazemos aos nossos leitores mais um fascículo da Anima. A busca pela interdisciplinaridade vem se tornando uma meta constante deste periódico. Neste número apresentamos o artigo intitulado Vulnerabilidade entre mulheres profissionais do sexo em uma área do Nordeste do Brasil de Macena et al. O estudo aponta que profissionais do sexo têm maior DST e os índices de HIV, e porque eles servem como pontes para a população em geral, estes esforços das ONGs deve ser redobrada. O segundo trabalho, de Feitosa et al, apresenta as técnicas utilizadas pela fisioterapia, respaldando os recursos sugeridos na literatura e correlacionando-os ao Tratamento Fisioterápico em Pacientes com Mielomeningocele O artigo denominado Que Teia é esta? Representações Sociais dos Adolescentes Socioeducandos e Egressos sobre Família de Bessa et al evidencia-se a importância atribuída pelos adolescentes à família, os sentimentos valorativos e a aglutinação entre família vivida e sonhada. No trabalho cognominado A Loucura e a Abordagem da Mídia Impressa Cearense, Cardoso et al demonstram a prática jornalística, em seus múltiplos aspectos que incluem a produção, a circulação e o consumo de textos, pode proporcionar o conhecimento das condições de emergência das questões sociais, nesse caso abordando a saúde mental. Rodrigues et al, no estudo A leitura: aprendizado, estímulo e formação de leitores no Brasil, retrata que a superação dos problemas sociais brasileiros somente será encarada mais seriamente quando da reavaliação do sistema educacional deste país, posto esta ser medida capaz de proporcionar à população meios de identificar as razões destes problemas, bem como fornecer-lhe maturidade suficiente para seleção de caminhos de desenvolvimento. O artigo A TIC a Serviço da Inovação Pedagógica, de Terceiro e Terceiro, reflete sobre a postura do professor e aluno nesse novo cenário desenvolvido pela TIC na escola, nesse caso, a pública. O último trabalho, de Gurgel Filho et al, chamado A Mídia na Formação de Crianças: Análise Interdiscursiva do Programa “Malhação” há uma reflexão sobre a instauração de novos costumes e de novos discursos na busca de um desejo de ser tão popular e carismática quanto os próprios personagens. Desejamos a todos uma leitura proveitosa. Os editores Sumário 11 Vulnerabilidade entre mulheres profissionais do sexo em uma área do Nordeste do Brasil Raimunda Hermelinda Maia Macena; Ligia Regina Franco Sansigolo Kerr; Florence Kerr-Corrêa; Telma Alves Martins; Rogério Costa Gondim; Marli Terezinha Gimenez Galvão; Clarissa Bentes de Araujo Magalhães; Carl Kendall 22 Análise do Tratamento Fisioterápico em Pacientes com Mielomeningocele: Estudo de Caso Alzira Demétrio Coelho Feitosa; Maria Arivelise Macena Maia; Liana Rocha Praça; Thiago Brasileiro de Vasconcelos; Cristiano Teles de Sousa; Vasco Pinheiro Diógenes Bastos 31 Que Teia é esta? Representações Sociais dos Adolescentes Socioeducandos e Egressos sobre Família Rita de Cássia Sidney Marques Bessa; Maria Lúcia Duarte Pereira; Mônica Araújo Gomes; Sheva Maia da Nóbrega 41 A Loucura e a Abordagem da Mídia Impressa Cearense 49 Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos A leitura: aprendizado, estímulo e formação de leitores no Brasil Gerlândia Soares Araújo Rodrigues; Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos 57 70 Élida Pires Cardoso; Simone Gurgel Gondim; A TIC a Serviço da Inovação Pedagógica Roberta Cristiana Barbosa Terceiro ; Rosana Cátia Barbosa Terceiro A Mídia na Formação de Crianças: Análise Interdiscursiva do Programa “Malhação” Alberto Gurgel Filho; Letícia Adriana Pires Teixeira; Carla Michele Quaresma litterarumradicesamaraefructusdulces s Vulnerabilidade entre mulheres profissionais do sexo em uma área do Nordeste do Brasil Raimunda Hermelinda Maia Macena1 Ligia Regina Franco Sansigolo Kerr2 Florence Kerr-Corrêa3 Telma Alves Martins4 Rogério Costa Gondim5 Marli Terezinha Gimenez Galvão6 Clarissa Bentes de Araujo Magalhães7 Carl Kendall8 RESUMO: O Brasil tem epidemia concentrada de AIDS e as profissionais do sexo são consideradas vulneráveis ao HIV e outras DSTs, especialmente em áreas pobres como o Nordeste, O objetivo deste estudo é analisar os fatores de risco para HIV entre profissionais do sexo na região, Métodos: Estudo transversal foi realizado em quatro municípios do Estado do Ceará com uma população amostra de 819 mulheres profissionais do sexo em 2003, O recrutamento das profissionais do sexo foi realizado através da amostragem bola de neve, Um questionário coletou variáveis relativas as características sociodemográficas, comportamento sexual, conhecimento do HIV e uso de drogas, Associação entre sexo desprotegido (SD) e vários indicadores foi avaliada por um modelo de regressão logística multivariada, Resultados: Observamos que mulheres com mais de 20 anos, baixa escolaridade, com um parceiro estável e que relataram DST no último ano foram mais propensas a realizar sexo desprotegido, Aqueles que foram vacinados contra a Hepatite B e que vivia em uma área onde uma ONG de prostitutas atua com a prevenção do HIV foram consideradas de menor risco para a infecção pelo HIV, Conclusões: As profissionais do sexo estudadas mostraram-se bastante vulneráveis, Especialmente para estas profissionais do sexo experientes, muitas vezes as mulheres vivem sozinhas e cuidando das famílias, ONGs e outros esforços para atender a necessidades pessoais parecem fornecer efeitos protetores, Como profissionais do sexo têm maior DST e os índices de HIV, e porque eles servem como pontes para a população em geral, estes esforços das ONGs deve ser redobrada. Abstract: Background: Brazil has a concentrate AIDS epidemic and FSW are considered one of most vulnerable to HIV and other STDs, especially in poor areas such as Northeast region, The objective of this study is to analyze the risk factors for HIV among FSW in this region,Methods: A cross-sectional study was conducted in four municipalities of Ceará state with a sample population of 819 FSWs in 2003, Recruitment of sex workers used snowball sampling, A questionnaire collected variables concerning 1. Enfermeira, Doutoranda em Ciências Médicas pela Universidade Federal do Ceará. 2. Professora titular da Universidade Federal do Ceará, doutorado em Medicina (Medicina Preventiva) pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em epidemiologia na Harvard School of Public Health e pós-doutorado em epidemiologia na University of California San Francisco. 3. Professora Titular na Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP, pós-doutoramento no Cambridge Hospital (Harvard University) e Livre Docência em Psiquiatria. 4. Enfermeira, mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal do Ceará, vinculado a Secretaria de Saúde do Estado do Ceará. 5. Enfermeiro, doutor em Saúde Coletiva/Epidemiologia pelo Instituto de Medicina Social - IMS/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro, integra a equipe técnica da Coordenação Estadual de DST/AIDS - Secretaria De Saúde Do Ceará. 6. Professora da Universidade Federal do Ceará, doutora em Doenças Tropicais pela Universidade Estadual Paulista-UNESP 7. Graduanda em Fisioterapia pela Universidade de Fortaleza. 8. Professor da Escola de Saúde Pública e Medicina Tropical da Universidade de Tulane. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 11 Palavras-chave: Profissionais do sexo. HIV. DST. Brasil Keywords: Female Sex Workers. HIV. STD. Brazil Raimunda Hermelinda Maia Macena et al desde a condenação religiosa até a proibição legal expressa em códigos civis (WECHSBERG, 2006; ROSENTHAL; OANHA, 2006). No Brasil, a epidemia de Aids é caracterizada como concentrada com diferenças importantes em magnitude entre as regiões, sexo e nível socioeconômico (FONSECA, 2003; FONSECA, 2002), As mulheres profissionais do sexo, homens que fazem sexo com homens e usuários de drogas injetáveis são considerados os grupos mais vulneráveis ao HIV no país. (BARBOSA JUNIOR, 2006; LAU, 2007). A prostituição é mais comum entre os setores mais pobres em grandes centros urbanos, no Brasil, Estudos recentes mostraram que a desigualdade socioeconômica global ainda é um fator importante no acesso à informação e recursos de saúde (SZWARCWALD, 2007; BRASIL, 1998), O Nordeste é uma das regiões mais pobres do país, mas tem um nível relativamente baixo da epidemia de Aids se comparado a região mais desenvolvida onde a epidemia de AIDS é mais antiga, No en1 INTRODUÇÃO tanto, a maior taxa de crescimento da epidemia foi observado entre as mulheres que pertencem Tão antiga quanto à própria humanidade, a ao baixo nível socioeconômico (FONSECA, 2003). profissional do sexo (PS) é entendida por muitos Grupos vulneráveis, como as profissionais do como a representação da pessoa que trabalha com sexo, podem desempenhar uma função de pona realização de fantasias sexuais e eróticas, sem te, através de clientes, na divulgação de doenças estabelecimento de vinculação afetiva, Em muitas sexualmente transmissíveis entre a população civilizações da antiguidade, a prostituição sem geral (BLANCHARD; KHAN; BOKHARI, 2008; fins comerciais era praticada como uma espécie de ROSENTHAL; OANHA, 2006), Neste tipo de ritual de iniciação, quando se atingia a puberdade, epidemia, intervenções modestas poderia reduzir Com o advento da Revolução Industrial, ocorre- significativamente a incidência de HIV. (BENram intensas migrações da zona rural, e como as ZAKEN et al, 2007; LUCHTERS et al, 2008). Apesar da vulnerabilidade que faz dos trabalhacondições sócio-econômicas eram desumanas, houve um crescimento na prática da prostituição dores do sexo uma população importante para a como fonte de renda (WECHSBERG et al, 2006; saúde pública, existem poucos estudos no Brasil FONSECA, 2000). focando em mulheres profissionais do sexo, esInstaurada, historicamente, como uma práti- pecialmente em áreas pobres como o Nordeste, ca de desordem da vivência sexual socialmente O objetivo deste estudo foi analisar os fatores de aceitável (WECHSBERG et al, 2006; BARBOSA risco para o HIV em mulheres profissionais do JUNIOR, 2006), foi estabelecido, no imaginá- sexo de 3 regiões do estado do Ceará localizado rio popular, um vínculo entre a prostituição e a no nordeste do Brasil. transmissão de doença sexualmente transmissível (DST), Estudos apontam que esta ocupação 2 MÉTODOS expõe o indivíduo e a sua rede de contatos a uma ampla gama de riscos para a saúde (TREVISOL; Um estudo transversal foi realizado em dois muSILVA, 2005; BLANCHARD; KHAN; BOKHARI, nicípios (Fortaleza e Sobral) e em duas das mais 2008), Daí, inúmeras tentativas do domínio de importantes cidades do Sul do Estado do Ceará, seu exercício têm sido desenvolvidas no mundo, na área do Cariri (Juazeiro e Crato) no Estado sociodemographics, sexual behavior, HIV knowledge, behavior, and drug use, Association between unprotected sex (US) and various predictors was evaluated by a multivariate logistic regression model,Results: We found that women older than 20, poorly educated, with a stable partner and who reported an STD in the last year were more likely to be engaged in US, Those who were vaccinated against Hepatitis B and who lived in an area where a specific FSW NGO works with HIV prevention were found to be less at risk to HIV infection, Conclusions: FSWs studied were shown to be quite vulnerable, Especially for these seasoned sex workers, often women living alone and raising families, NGOs and other efforts to address personal needs seem to provide protective effects, Because sex workers have higher STD and HIV rates, and because they serve as bridges to the general population, these NGO efforts should be redoubled. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 12 VULNERABILIDADE ENTRE MULHERES PROFISSIONAIS DO SEXO EM UMA ÁREA DO NORDESTE DO BRASIL do Ceará, em 2003, Os critérios utilizados para selecionar as quatro cidades foram o tamanho da população e localização geográfica, Municípios ou áreas estão localizadas em diferentes áreas do Estado, e representam a diversidade sócio-demográfico e econômico do Estado, Apenas Sobral e Fortaleza têm uma Organização não-governamental de profissionais do sexo feminino que implementa atividades de prevenção na área. Foi incluído no estudo mulheres que relataram ter feito sexo por dinheiro nos últimos 6 meses, O recrutamento das profissionais do sexo foi através da técnica de amostragem bola de neve (LUCHTERS et al 2008; KENDALL et al, 2008) em Sobral e no Cariri, Em Fortaleza, listamos todas os potenciais locais de identificação das profissionais do sexo tais como os bordéis e ruas para recrutar as participantes, Um total de 830 PS foram abordados, 11 (1,3%) se recusaram a participar resultando em 819 (98,7%) participantes: 65,3% (n=535) em Fortaleza, 18,7% (n=153) no Cariri e 16% (n=131) em Sobral. Os dados foram coletados usando um questionário face a face adaptado de pesquisas nacionais e internacionais (PELTZER; SEOKA; RAPHALA, 2004), O questionário incluiu variáveis sócio-demográficas, comportamento sexual, conhecimento sobre HIV e uso de drogas. Com relação às características sócio-demográficas, as PS foram questionadas sobre o local de residência, idade, estado civil, escolaridade, religião e classe econômica, A classe social foi mensurada usando o Critério Brasil de 2008, baseado nas estimativas do poder de compra dos indivíduos e famílias em área urbana no Brasil. (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE PESQUISA, 2008) As entrevistadas também foram convidadas a descrever seu comportamento sexual com clientes (número de clientes na última noite, preço para o sexo, uso de preservativo e frequência do uso do preservativo) e não clientes (número de parceiros, uso e frequência de preservativo, número de relações sexuais no último mês), e história de DST’s, A presença de DST foi definida como aquelas mulheres que relataram ter tido qualquer corrimento/ulcera vaginal, hepatite B, gonorréia, sífilis, herpes genital, anal ou verrugas, ou Clamídia nos últimos 12 meses. A variável de desfecho chamada sexo desprotegido (SD) foi uma medida dicotômica definida como qualquer relação sexual sem o preservativo com clientes nos últimos 7 dias e com não clientes no último mês, de acordo com o questionário BSS padronizado para profissionais feminino do sexo. (WARD et al. 2000). Os entrevistadores foram treinados para selecionar e abordar as entrevistadas e das técnicas de recolha de dados padronizados, Grandes esforços foram feitos para proporcionar privacidade durante as entrevistas e para manter a confidencialidade, As entrevistas foram realizadas no local de trabalho ou em um local de encontro indicado pelas profissionais do sexo. Teste rápido (Determine) para o HIV e sífilis (VDRL) foram realizados, Aquelas que o teste era positivo foram enviadas para o laboratório de referência local para os testes confirmatórios e tratamentos. A maioria das entrevistas foi realizada em Julho (62,3%), Agosto (19,2%) e Setembro (15,9%) quando o turismo é intenso no Estado do Ceará, pois é a época de alta no turismo brasileiro, As entrevistas ocorreram durante a tarde (53,4%) e noite (31,3%) em bares (54,2%), bordéis (17,5%) e ruas/praças (16,8%). Os dados foram digitados com o programa Epi Info, 6,04 a partir do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC / OMS) e analisados com STATA™, 10,0, STATA Corporation, Texas, e EUA. Teste Wilcoxon rank e teste exato de Fisher foram usados para comparar SD com as variáveis independentes separadamente, As associações entre o desfecho e vários preditores foram avaliados através do teste exato de Fisher, Efeito de cluster para a área de residência foi levado em conta, Essas variáveis preditoras que foram encontrados sendo consideradas significativos em p <0,20, Na análise bivariada foram selecionadas para serem incluídas em uma análise multivariada de modelos de regressão logística para avaliar os seus efeitos independentes, Os possíveis efeitos de confundimento e interações potenciais entre a variável de desfecho foram exploradas no modelo final. O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade Integrada do Ceará em Fortaleza, Brasil, protocolo número 085/07. 3 RESULTADOS A maioria das entrevistadas (65,3%) moravam em Fortaleza, capital do Estado do Ceará, 16,0% em Sobral e 18,7% no Cariri, A maioria Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 13 Raimunda Hermelinda Maia Macena et al das mulheres (53,2%) tinham entre 20-30 anos de idade (média = 26,7, dp = 7,4), estão no momento solteiras (85,7%), mas foram casadas anteriormente (44,1%), Mais de ¾ relataram apoiar alguém financeiramente, tinham menos de 8 anos de estudo (72,5%), pertenciam a uma classe econômica inferior (C, D ou E) (78,4%), e definiram-se como católica (80,6%), Mais da metade (60,9%) iniciaram a atividade sexual quando eram menores de 15 anos de idade e 62,2% iniciaram a prostituir-se com menos de 20 anos de idade (média = 19,7, dp = 5,1), Sessenta e dois por cento das participantes relataram não ter tido mais de dois clientes na última noite (média = 2,0, dp = 1,8). O sexo seguro é mais comum com os clientes (88,8%) do que com os não-clientes (30,7%) e cerca de 1/3 (35,1%) tiveram sexo desprotegido (USI), Mais da metade (53,6%) relatou uma DST no último ano, a maioria (85,0%) de todas as mulheres aceitaram realizar o teste rápido para o HIV e sífilis, resultando em 2,1% (15/689) positivos para HIV e 19,8% para sífilis, A maioria (83,1%) informou uso de álcool no mês anterior, 44,2% uma vez por semana e quase um quarto afirmou o consumo de álcool todos os dias (27,4%), Mais da metade (54,8%) relatou consumo de drogas ilícitas durante a sua vida com o predominio da maconha (45,4%), A cocaína (27,1%) e anfetamina (25,2%) (Tabela 1) são relatados por uma proporção considerável das mulheres. Tabela 1 – Características sóciodemográficas e comportamento sexual das profissionais do sexo no ano de 2003 Variáveis N % Área estudada Fortaleza Sobral Cariri 535 131 153 65,3 16,0 18,7 Idade Menos de 20 anos 20 – 30 anos Mais de 30 anos 147 436 236 18,0 53,2 28,8 Estado civil Solteira União estável 699 117 85,7 14,3 Já foi casada 331 44,1 Relata sustentar alguém 634 77,6 Escolaridade Nenhuma Menos de 8 anos 8 – 11 anos Mais de 11 anos 32 589 179 13 3,9 72,5 22,0 1,6 Classe econômica A/B (alta) C (média) D/E (baixa) 14 163 642 1,7 19,9 78,4 Religião Nenhuma Católica Não-católica 103 642 52 12,9 80,6 6,5 Iniciação sexual Menos de 15 anos Mais de 15 anos 487 313 60,9 39,1 Idade de início da prostituição Menos de 20 anos 20 – 40 anos Mais de 40 anos 509 263 47 62,2 32,1 5,7 Número de clientes na última noite Até 2 clientes 2 a 4 clientes Mais de 4 clientes 506 130 180 62,2 15,9 22,0 Preço para o sexo Menos de US$ 7,5 US$ 7,5 – 15,0 US$ 15,5 – 25,0 Mais de US$ 25,00 164 287 169 145 21,4 37,5 22,1 18,9 Uso de preservativo com clientes 721 88,8 Uso de preservativo com não clientes 104 30,7 Sexo de risco 285 64,9 Relatou DST no ultimo ano 401 53,6 Características sociodemográficas Característica sexual Teste positivo para HIV 15 2,1 Teste positivo para Sífilis 18 19,8 677 83,1 223 360 94 27,4 44,2 11,5 449 54,8 371 222 123 205 194 20 45,4 27,1 15,1 25,6 23,9 2,5 Uso de Drogas Ingere álcool Frequência Todo o dia Uma vez por semana Eventualmente Outras drogas exceto álcool Tipos de drogas Maconha Cocaina Crack Anfetaminas Inalantes Intravenosa Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 14 VULNERABILIDADE ENTRE MULHERES PROFISSIONAIS DO SEXO EM UMA ÁREA DO NORDESTE DO BRASIL As mulheres profissionais do sexo com mais de 30 anos tendem a relatar um parceiro estável (20,8% versus 11,7%, p = 0,001), são mais propensas a apoiar financeiramente alguém (82,6% versus 75,6%, p = 0,03), menor escolaridade (9,0% versus 1,9 % de analfabetos e apenas 13,7% versus 27,6% com mais de 8 anos; p <0,001), pertencem a uma classe social mais baixa (85,6% versus 75,4%, p = 0,005); relataram mais clientes na última semana (28,8% versus 19,2%, p = 0,008); usam menos preservativos com cliente (20,6% versus 7,4%, p <0,001); cobram menos para o sexo (média: EUA $ 16,8 vs EUA $ 24,1; sd EUA $ 20,3 vs EUA $ 30,9, mediana: EUA 10,0 dólares contra EUA $ 15,0; intervalo: EUA $ 1,5 a EUA $ 250,0 contra EUA $ 2,5 para EUA $ 425,0, p <0,001) e eram mais propensas a se engajar em comportamentos de risco (41,3% versus 32,6%, p = 0,02). Essas mulheres também apresentaram testou positivo para a sífilis com mais frequência (37,1% versus 8,9%, p = 0,002), mas não diferiu para o HIV (p = 0,38); e bebeu menos (85,7% versus 76,5%, p = 0,002) do que as mulheres mais jovens, Aquelas profissionais do sexo que são menores de 30 anos relataram atividade sexual numa idade mais jovem e cobraram dinheiro para o sexo pela primeira vez em idade mais jovem (p <0,001 para ambos); eram mais propensas ao uso de álcool (85,7% versus 76,5%, p = 0,002) e cocaína (29,7% versus 20,8%, p = 0,01), mas relataram pouco uso de drogas injetáveis (1,7% versus 4,3%, p = 0,04) (TABELA 2). Tabela 2 - Características das profissionais do sexo de acordo com a idade Variaveis < 30 anos >30 anos Característica sóciodemográfica N(%) N(%) p-value Estado civil Solteira União estável 512 (88,3) 68 (11,7) 187 (79,2) 49 (20,8) 0,001 Já foi casada 233 (42,8) 98 (47,6) 0,25 Relata sustentar alguém 439 (75,6) 195 (82,6) 0,03 Nível educacional Nenhum Menos de 8 anos 8 – 11 anos Mais de 11 anos 11 (1,9) 409 (70,5) 149 (25,7) 11 (1,9) 21 (9,0) 180 (77,2) 30 (12,9) 2 (0,9) <0,001 Classe econômica A/B (alta) C (média) D/E (baixa) 12 (2,1) 131 (22,5) 440 (75,5) 2 (0,8) 32 (13,6) 202 (85,6) 0,005 Iniciação sexual Menos de 15 anos Mais de 15 anos 370 (63,5) 213 (36,5) 117 (49,6) 119 (50,4) <0,001 Idade do início da prostituição Menos de 20 anos 20 – 40 anos Mais de 40 anos 398 (68,3) 162 (27,8) 23 (3,9) 113 (47,9) 101 (42,8) 22 (9,3) <0,001 Números de clientes na última noite Até 2 clientes 2 a 4 clientes Mais de 4 clientes 371 (63,6) 100 (17,1) 112 (19,2) 138 (58,5) 30 (12,7) 68 (28,8) 0,008 Uso de preservativo com cliente Sim Não 536 (92,6) 43 (7,4) 185 (79,4) 48 (20,6) <0,001 Uso de preservativo com cliente Características sexuais 78 (32,5) 26 (26,3) 0,30 Preço para o sexo Menos de US$ 7,5 US$ 7,5 – 15,0 US$ 15,5 – 25,0 Mais de US$ 25,00 101 (18,3) 199 (36,0) 130 (23,5) 122 (22,1) 63 (29,6) 88 (41,3) 39 (18,3) 23 (10,8) <0,001 Envolvimento em risco sexual 188 (32,6) 97 (41,3) 0,02 Teste positivo para HIV 9 (1,8) 6 (3,0) 0,38 Teste positivo para Sífilis 5 (8,9) 13 (37,1) 0,002 498 (85,7) 179 (76,5) 0,002 164 (28,2) 265 (45,6) 69 (11,9) 59 (25,2) 95 (40,6) 25 (10,7) 0,02 332 (57,0) 117 (49,6) 272 (46,7) 173 (29,7) 90 (15,5) 149 (25,6) 143 (24,7) 10 (1,7) 99 (42,1) 49 (20,8) 33 (14,1) 56 (24,0) 51 (22,0) 10 (4,3) Uso de drogas Ingestáo de álcool Frequência Todo o dia Uma vez na semana Eventualmente Outra droga exceto o álcool Tipo de droga Maconha Cocaina Crack Anfetamina Inalante Intravenosa Na análise multivariada (Tabela 3) verificou-se que mulheres com mais de 20anos, baixa escolaridade, com um parceiro estável e que relataram uma DST no último ano foram mais propensos a se engajar em sexo desprotegido, Aquelas que foram vacinadas contra a Hepatite B e que viviam em uma área onde uma determinada ONG trabalha com a prevenção do HIV foram considerados de menor risco para a infecção pelo HIV. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 15 0,06 0,24 0,01 0,66 0,65 0,46 0,04 Raimunda Hermelinda Maia Macena et al Tabela 3 – Fatores de risco associado com relação sexual desprotegida Variável Bruto (CI) OR Ajustado † 20-29 anos * 30-39 anos * >40 anos * 1,43 (0,94-2,17) 1,94 (1,20-3,14) 1,83 (1,00-3,33) 1,69 (1,30-2,20) 1,94 (1,08-3,49) 1,83 (0,86-3,91) Estado civil 3,49 (1,77-6,88) 2,99 (1,30-6,88) Teve DST (últimos 12 meses) 1,67 (1,29-2,15) 1,77 (1,39-2,25) Vacina para Hepatite B 0,56 (0,43-0,74) 0,50 (0,44-0,58) ONG de prostitutas na area de residência 0,45 (0,40-0,50) 0,38 (0,32-0,44) * <20 como referência † Adjustado para todas as variáveis apresentadas 4 DISCUSSÃO Nosso estudo mostrou que as profissionais de sexo investigadas no Estado do Ceará são claramente vulneráveis ao HIV e outras DST’s, Embora o uso do preservativo com os clientes é relativamente alta, o uso com os não-clientes diminuiu significativamente TRAN THI; LE, 2008; TREVISOL; SILVA, 2005). Nossa população é muito pobre, a maioria pertencente à classe social D e E (os mais baixos da hierarquia de classe social brasileira) e pode ter muitas dificuldades em negociar o uso do preservativo com alguns clientes e, especialmente, com um parceiro estável, onde os papéis do gênero podem desempenhar um papel importante na poder de barganha.(LAU, 2007; LOPES, RIVM, PIMENTA, 2007). Na última década, no Brasil, mulheres chefes de família aumentou para 35% , de 22,9% em 1995, a 30,6% em 2005 (IBGE..., 2009), Novos papéis de gênero para as mulheres (que trabalha fora de casa e aumenta a independência financeira), em parte, explica esses fenômenos, O perfil da nossa população é muito semelhante à encontrada em mulheres pobres brasileiras como um todo e é compreensível que baixa escolaridade, pobreza, e a falta de uma relação estável com um parceiro sustenta a necessidade de trocar sexo por dinheiro. (SZWARCWALD, 2007; FONSECA, 2003). Em nosso estudo e na maioria dos estudos no Brasil, as profissionais do sexo começaram tanto a sua vida sexual e prostituição em idade precoce (TREVISOL; SILVA, 2005), A iniciação sexual está ocorrendo mais cedo para as mulheres e o padrão das profissionais do sexo não diferiram entre as mulheres brasileiras em geral (SZWARCWALD, 2005), No entanto, descobrimos que a idade e pouca educação pode aumentar o risco substancialmente, afetando a quantidade de dinheiro cobrado, práticas sexuais e uso de preservativo (OUTWATER, 2000), As mulheres mais velhas, em geral, relatam parceiros mais estáveis, trabalham mais na rua (dados não exibidos), cobram menos pelo o sexo, relatam mais frequentemente que têm que apoiar financeiramente os outros, e relatam usar menos o preservativo (PELTZER; SEOKA; RAPHALA, 2004; TREVISOL; SILVA, 2005), Na verdade, o “parceiro estável” pode ser um cliente antigo que está sendo tratado como um “namorado”. (PASSOS; FIGUEIREDO, 2004). A prevalência do consumo de álcool diário e semanal em nosso estudo mostrou-se muito elevada, Os locais das profissionais do sexo como bares revelam um cenário difícil, onde beber é parte do trabalho (SZWARCWALD et al, 1998; NEMOTO et al, 2008), As profissionais do sexo encontram clientes em bares, onde o álcool supera a inibição dos clientes, Embora o álcool foi encontrado associado a sexo de risco em alguns estudos (GALDUROZ; CAETANO, 2004; MADHIVANAN, 2003) e em um estudo de base populacional entre as mulheres no Brasil (SILVEIRA et al., 2005) em nosso estudo não observamos isso, No Brasil, incluindo o Ceará, o álcool é uma droga lícita de baixo custo que é amplamente utilizado por todas as classes sociais (GALDUROZ; CAETANO, 2004) e uma possível explicação para a falta de associação pode ser que a grande maioria (85,0%) da nossa população relatam o uso de álcool no último mês, Além disso, o Governo e as ONGs fornecem preservativos e materiais de prevenção para os bares e bordéis, onde trabalham as profissionais do sexo, Nossa descoberta de que as mulheres que trabalham na rua estão em maior risco para o sexo desprotegido pode reforçar essa hipótese. O uso de cocaína e maconha foram relatados, O padrão para as profissionais do sexo experiente e jovem era diferente, IUD foi relatado em uma porcentagem muito menor em comparação com outras áreas do Brasil na última década, mas significativamente maior para as mulheres mais velhas (SZWARCWALD, 1998), Um recente relatório observa que o uso de crack está aumentando em alguns países e no Brasil, incluindo o estado do Ceará (SILVA; YONAMINE, 2004). Apesar das anfetaminas serem consideradas legais no Brasil elas são frequentemente utilizadas para Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 16 VULNERABILIDADE ENTRE MULHERES PROFISSIONAIS DO SEXO EM UMA ÁREA DO NORDESTE DO BRASIL fins estéticos (NAPPO; OLIVEIRA; MOROSINI,1998), Segundo o Conselho Internacional de Controle de Narcóticos, o Brasil é um dos países que importa a maior quantidade dessas drogas. A cultura da magreza é generalizada no Brasil e tem sido considerado a principal causa para o aparecimento desta “epidemia” de uso desnecessário de inibidores de apetite para fins estéticos entre as mulheres (NAPPO, 1996; NAPPO; OLIVEIRA; MOROSINI,1998). Devido às suas belas praias, clima quente e baixo custo de vida, o Ceará atrai turistas de todo o mundo. Esta combinação também incentiva o turismo sexual e estimula a prostituição (LOPES, RIVM, PIMENTA; SILVA; YONAMINE, 2004.). O corpo da mulher torna-se um “instrumento” que precisa ser mantido fino para atrair o cliente. Encontramos um excesso de ingestão de álcool entre as mulheres, que geralmente é acompanhada por petiscos calóricos, O uso de drogas como a anfetaminas foi encontrada particularmente prevalente entre as mulheres e, talvez, isso esteja relacionado ao controle do consumo de álcool e comida relacionado ao trabalho. Ao contrário do que temos observado entre outras populações vulneráveis no Ceará (KENDALL et al, 2008), a maioria das profissionais do estudo aceitou realizar testes para sífilis e HIV, Tteste positivo para o HIV em uma porcentagem muito menor do que os estudos no Brasil (TREVISOL; SILVA, 2005; PIRES; MIRANDA,1998) e muitos estudos em todo o mundo (TRAN; LE, 2008), mas superior à prevalência de outros países (BELZA, 2004; RUAN et al., 2006), Por outro lado, este resultado é 13 vezes maior do que a prevalência estimada (0,16%) para a mulher entre 15 a 49 anos, durante o mesmo período na região do Nordeste (SZWARCWALD, 2000), A epidemia no Ceará é muito mais recente do que em outras áreas do Brasil onde a maioria dos estudos têm sido realizados e que poderia justificar a menor prevalência. Além disso, alguns desses outros estudos foram realizados em alguns portos, nos serviços de saúde onde as profissionais são atendidos, e alguns entre usuários de drogas e outros países africanos onde a prevalencia do HIV é alta (CWIKEL et al., 2008), Relacionada à sorologia para sífilis, nossa população apresentou uma maior prevalência em geral do que em alguns países (LAU, 2007) e outras áreas no Brasil, como Vitória (ANDRADE NETO, 1993) onde a prevalência foi de 8,3%, DST’s são correlacionadas com a pobreza, baixa escolaridade, uso de drogas, número elevado de parceiros, uso de preservativos infrequêntes, e iniciação sexual precoce (HAWKEN et al., 2002; SILVEIRA et al., 2005), todos os presentes no Ceará, uma das região mais pobre do Brasil, As profissionais do sexo que vivia em uma cidade e / ou área em que existe uma ONG de prostitutas foram encontradas com menor risco de relações sexuais desprotegidas, Muitas dessas ONGs são compostas pelas profissionais de sexo e membros de outras populações de risco, ONGs são financiadas pelo governo para desenvolver intervenções mediadas para promover mudanças de comportamento, melhorar o conhecimento, a consciência da sorologia do HIV, e diminuição do estigma. Todas essas ações poderiam explicar a alta aceitação do teste de HIV, a alta taxa de vacinação contra hepatite B, e do alto percentual de uso do preservativo com os clientes nas áreas com as ONG, Informação por si só não foi encontrado associado com alto risco em nossa amostra, Evidentemente, as ONGs não fornecem somente informações como outras fontes, mas também oferecerem ferramentas para a prevenção do HIV que melhoram a sua auto-estima, Estudos têm demonstrado que as profissionais do sexo que não têm participação em grupos de apoio apresentam baixa auto-estima, e não praticam sexo seguro, especialmente quando eles têm de enfrentar um alto nível de pressão econômica (TRAN THI; LE, 2008; SILVEIRA, 2005). Reconhecemos que há uma limitação na interpretação dos nossos dados devido ao uso da técnica de amostragem bola de neve, Pode ser possível que as profissionais do sexo tenham um melhor conhecimento e comportamento mais adequado do que as profissionais investigadas neste estudo, se o estudo foi realizado com técnica de amostragem resposta dirigida. Outra limitação é que as profissionais não foram questionados separadamente sobre práticas de sexo vaginal / anal / oral com os clientes e não clientes, pois foi realizado em 2003, Estas questões podem esclarecer o comportamentos sexuais e nos permite compreender melhor a associação entre as práticas sexuais e risco de HIV. Em conclusão, as profissionais do sexo estudadas mostraram ser muito vulneráveis, Durante as últimas décadas, os casos de AIDS no Brasil têm mostrado que as condições sócio-econômicas são Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 17 Raimunda Hermelinda Maia Macena et al um fator importante de produção de vulnerabilidade, Além disso, como a idade das mulheres se tornam menos atraentes para os clientes, e têm menos controle de reembolsos e de comportamento. Especialmente para estas profissionais do sexo experientes, muitas vezes as mulheres vivem sozinhas e cuidando da família, ONGs e outros esforços para atender a necessidades pessoais parecem fornecer efeitos protetores. Como as profissionais do sexo têm maior DST e os índices de HIV, e porque eles servem como pontes para a população em geral, estes esforços das ONGs deve ser redobrada. REFERÊNCIAS ANDRADE NETO, J. L. Epidemiologia da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida em prostitutas Universidade Federal do Paraná. Curitiba (PR): Universidade Federal do Paraná; 1993. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE PESQUISA. Critério Brasil. Abep org, 25 Oct. 2008. Disponivel em: < http://www. abep.org/novo/Content.aspx?ContentID=139 >. Acesso em: 10 out. 2007 BARBOSA JUNIOR, A. et al. Indicadores propostos pela UNGASS e o monitoramento da epidemia de Aids no Brasil. Rev Saúde Pública, São Paulo, v.40, p.xx-15, Supl, Apr. 2006. BELZA. M. et al. Social and work conditions, risk behavior and prevalence of sexually transmitted diseases among female immigrant prostitutes in Madrid (Spain). Gac Sanit, Espanha, v.18, n.3, p.177-183, jun.2004. BENZAKEN, A.S et al. [Community-based intervention to control STD/AIDS in the Amazon region, Brazil]. Rev Saude Publica, São Paulo, v.41, p.118-126, Suppl 2, Dec. 2007. BRASIL. Ministério da Saúde. Programa Nacional de DST e AIDS. Prevenção às doenças sexualmente transmissíveis e AIDS dirigida à população em situação de pobreza. Brasília: Ministério da Saúde, 1998. BLANCHARD, J.; KHAN, A.; BOKHARI, A. Variations in the population size, distribution and client volume among female sex workers in seven cities of Pakistan. Sex Transm Infect, Local, v.84, Suppl 2:ii24ii27,Oct. 2008 CWIKEL, J. G. et al. Sexually transmissible infections among female sex workers: an international review with an emphasis on hard-to-access populations. Sex Health, Oceania, v.5, n.1, p. 9-16, mar. 2008 FONSECA M. et al. AIDS e grau de escolaridade no Brasil: evolução temporal de 1986 a 1996. Cadernos de Saúde Publica, Rio de Janeiro, v.16, p. S77-S87, supl. 1 2000. FONSECA, M. G. P. et al. Distribuição social da AIDS no Brasil, segundo participação no mercado de trabalho, ocupação e status sócio-econômico dos casos de 1987 a 1998. Cad Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.19, n.5, p.235-239, set-out 2003. HAWKEN, M.P. et al. Part time female sex workers in a suburban community in Kenya: a vulnerable hidden population. Sex Transm Infect, Inglaterra, v.78, n.4, p. 271-273, Aug. 2002. GALDUROZ, J.C.; CAETANO, R. [Epidemiology of alcohol use in Brazil]. Rev Bras Psiquiatr, São Paulo, 26 Suppl 1:S3-S6, May. 2004. IBGE detecta mudanças na família brasileira. Ref Type: Internet Communication, São Paulo, 14 jan. 2009. LAU, J. T. et al. Associations between stigmatization toward HIV-related vulnerable groups and similar attitudes toward people living with HIV/AIDS: Branches of the same tree?. AIDS Care, EUA, v.19, n.10, p.1230-1240, nov. 2007 . LOPES, C.S., RIVM., PIMENTA, R.P.B. A Bela Adormecida: estudo com profissionais do sexo que atendem à classe média alta e alta na cidade de Goiânia. Psicol Soc, [online], v.19, n.1, p.69-76, abril, 2007. KENDALL, C. et al, An empirical comparison of respondent-driven sampling, time location sampling, and snowball sampling for behavioral surveillance in men who have sex with men, Fortaleza, Brazil. AIDS Behav, [online], v.12, p. S97-104, Suppl 4, jul. 2008. LUCHTERS, S. et al, Impact of five years of peer-mediated interventions on sexual behavior and sexually transmitted infections among female sex workers in Mombasa, Kenya. BMC Public Health, [online], n.8, p.143-xxx, mês 2008. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 18 VULNERABILIDADE ENTRE MULHERES PROFISSIONAIS DO SEXO EM UMA ÁREA DO NORDESTE DO BRASIL MADHIVANAN, P. et al, Alcohol use by men is a risk factor for the acquisition of sexually transmitted infections and human immunodeficiency virus from female sex workers in Mumbai, India. Sex Transm Dis, [online], v.32, n.11, p.685-690, nov. 2005. MORISKY, D. E. et al. Impact of a social influence intervention on condom use and sexually transmitted infections among establishment-based female sex workers in the Philippines: a multilevel analysis. Health Psychol, [online], v.25, n.5, p.595-603, Sep. 2006. NAPPO, S. A. Consumption of anorexigenic amphetamine-like drugs (diethylpropion, fenproporex and mazindol) and of d,1fenfluramine in Brazil during the years of 1988 and 1989. Pharmacoepidemiol Drug Saf, [online], v.5, n.1, p. 19-25, jan.1996. NAPPO, S. A.; OLIVEIRA, E.M.; MOROSINI, S. Inappropriate prescribing of compounded antiobesity formulas in Brazil. Pharmacoepidemiol Drug Saf, [online], v.7, n.3, p. 207-12, May. 1998. NEMOTO, T. et al. HIV-related risk behaviors among female sex workers in ho chi minh city, Vietnam. AIDS Educ Prev, [online], v.20, n.5, p.435-453, Oct. 2008. OUTWATER A et al, Patterns of partnership and condom use in two communities of female sex workers in Tanzania. J Assoc Nurses AIDS Care, EUA, v.11, n.4, p.46-54, jul. 2000. PASSOS, A.D.; FIGUEIREDO, J.F. [Risk factors for sexually transmitted diseases in prostitutes and transvestites in Ribeirao Preto (SP), Brazil]. Rev Panam Salud Publica, [online], v.16, n.2, p.95-101, Aug. 2004. PELTZER, K.; SEOKA, P.; RAPHALA, S. Characteristics of female sex workers and their HIV/AIDS/STI knowledge, attitudes and behaviour in semi-urban areas in South Africa. Curationis, [online], v.27, n.1, p.4-11, mar. 2004. PIRES, I. C. P.; MIRANDA, A. E. B. Prevalência e fatores correlatos de infecção pelo hiv e sífilis em prostitutas atendidas em centro de referência DST/AIDS. Rev Bras Ginecol Obstet, [online], v.20, n.3, p. 151-154, Apr.1998. ROSENTHAL, D.; OANHA, T. T. Listening to female sex workers in Vietnam: influences on safe-sex practices with clients and partners. Sex Health, [online], v.3, n.1, p.21-32, mar. 2006. RUAN, Y. et al. Syphilis among female sex workers in southwestern China: potential for HIV transmission. Sex Transm Dis, v.33, n.12, p.719-723, Dec.2006. SILVA, O.A.; YONAMINE, M. Drug abuse among workers in Brazilian regions. Rev Saude Publica, [online], v.38, n.4, p. 552-556, Aug. 2004. SILVEIRA, M. F. et al. Factors associated with condom use in women from an urban area in southern Brazil. Cad Saude Publica, [online], v.21, n.5, p. 1557-1564, set. 2005. SZWARCWALD, C.; CASTILHO, E. Estimativa do número de pessoas de 15 a 49 anos infectadas pelo HIV, Brasil, 1998. Cadernos de Saúde Publica, Rio de Janeiro, v.16, p.S135-S141, supl.1, 2000. SZWARCWALD, C. et al. Desigualdades socioeconômicas em saúde no Brasil: resultados da Pesquisa Mundial de Saúde, 2003. Rev Bras Saude Mater Infant, [online], v.5, Supl.1, 2007. SZWARCWALD, C. L. et al. Knowledge, practices and behaviours related to HIV transmission among the Brazilian population in the 15-54 years age group, 2004. AIDS 2005, v.4, 19 Suppl 4, p. S51-S58, Oct. 2005 SZWARCWALD, C. L. et al. The relationship of illicit drug consume to HIV-infection among commercial sex workers (CSWs) in the city of Santos, São Paulo, Brazil. International Journal of Drug Policy, [online], v.9, p.427-436, abril, 1998. TRAN THI, T.M.; LE, C.L. Nguyen TL, Factors associated with inconsistent condom use among female sex workers in nha trang, Vietnam. Asia Pac J Public Health, [online], v.20, n.4, p.370-378, jul. 2008. TREVISOL, F. S.; SILVA, M.V. HIV frequency among female sex workers in Imbituba, Santa Catarina, Brazil. Braz J Infect Dis, [online], v.9, n.6, p.500-505, Dec. 2005. WARD, H. et al. Health issues associated with increasing use of “crack” cocaine among female sex workers in London. Sex Transm Infect, [online], v.76, n.4, p.292-293, Aug. 2000. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 19 Raimunda Hermelinda Maia Macena et al WECHSBERG, W.M. et al. Substance use, sexual risk, and violence: HIV prevention intervention with sex workers in Pretoria. AIDS Behav, [online], v.10, n.2, p. 131-137, mar. 2006. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 20 litterarumradicesamaraefructusdulces Análise do Tratamento Fisioterápico em Pacientes com Mielomeningocele: Estudo de Caso Alzira Demétrio Coelho Feitosa1 Maria Arivelise Macena Maia2 Liana Rocha Praça3 Thiago Brasileiro de Vasconcelos4 Cristiano Teles de Sousa5 Vasco Pinheiro Diógenes Bastos6 Palavras-chave: Mielomeningocele. Espinha bífida. Fisioterapia. Keywords: Mielomeningocele. Bifid spine. Physiotherapy. RESUMO: Mielomeningocele é um tipo de espinha bífida cística onde o tubo neural não se funde e existe herniação das meninges, formando uma saliência que contem líquido cefalorraquidiano e que normalmente diagnostica-se após o nascimento, observando-se a presença de uma bolsa externa na região dorsal do bebê. As manifestações clínicas mais frequentes são: paralisia de membros inferiores, distúrbios da sensibilidade cutânea, úlceras de pele por pressão, ausência de controle urinário e fecal, deformidades músculo-esqueléticas e hidrocefalia. A fisioterapia é um tratamento essencial, pois em todas as crianças com mielomeningocele há alterações da força e tônus muscular. A Importância desse trabalho está em poder verificar as técnicas utilizadas pela fisioterapia, respaldando os recursos sugeridos na literatura e correlacionando-os. Este estudo é de caráter descritivo, longitudinal, observacional, utilizando método de estudo de caso com estratégia de análise comparativa apartir da observação direta e qualitativa dos resultados apresentados. Aplicamos uma ficha de avaliação do tratamento em cada atendimento observado e uma entrevista norteadora aplicada a fisioterapeuta responsável antes do início das observações. Durante o estudo, observou-se o tratamento instituído pela terapeuta à criança sendo aplicadas técnicas de: fortalecimento muscular; alongamentos, treino de marcha, apoios externos, atividades com bolas e exercícios isométricos e isotônicos associados à gravidade, objetivando a independência máxima da criança. Com este estudo inferimos que o tratamento fisioterápico feito de forma convencional mostra-se mais eficaz para uma independência com superação de limites do que apenas um ensinamento ao paciente de como viver com suas limitações. ABSTRACT: Mielomeningocele is type of cystic bifid spine where the fusing of the an external burse on the baby’s back. Most frequent clinical manifestations in are: paralysis of inferior members, disturbances of cutaneous sensitivity, skin ulcers under physical pressure, absence of urinary and fecal control, muscle-skeletal deformities and hydrocephaly. The physiotherapy is an essential treatment, because all mielomeningocele affected children have alterations of the muscular strength and tone. The significance of this work refers to its stress on the techniques used in physiotherapy, endorsing and correlating the resources suggested in literature. This study 1. 2. 3. 4. 5. Fisioterapeuta graduada pela Faculdade Estácio do Ceará. Fortaleza/CE. Enfermeira. Hospital Gênesis. Fortaleza/CE. Fisioterapeuta. Docente da Professor da Faculdade Estácio do Ceará. Fortaleza/CE. Fisioterapeuta. Mestrando em Farmacologia (UFC). Fortaleza/CE. Fisioterapeuta da Prefeitura Municipal de Maracanaú; Professor da Faculdade Estácio do Ceará; Mestre em Farmacologia e Doutorando em Farmacologia (UFC). Fortaleza/CE. 6. Fisioterapeuta do Instituto Dr. José Frota; Professor da Faculdade Estácio do Ceará; Doutor em Farmacologia (UFC). Fortaleza/CE. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 22 ANÁLISE DO TRATAMENTO FISIOTERÁPICO EM PACIENTES COM MIELOMENINGOCELE: ESTUDO DE CASO is descriptive, longitudinal and of observational nature, using case study methods mingled with strategies of comparative analysis from the direct and qualitative observation of the given results. To record the treatment we applied an evaluation form (Addendum B) in each observed service and neural tube does not occur, thus developing herniation of the meninges and forming a protrusion that contains cefalorrachidian liquid normally diagnosised after the birth, by observing the appearance of a guiding interview was applied (Addendum C) by the physiotherapist in charge, since the beginning of the research. The treatment applied by the therapist to the child, during the study, was observed regarding techniques applied to achieve muscular strengthening: elongations, stride training, isometrics and isotonics associated to the gravity, to external supports and fitness balls aiming the utmost independence of the child. With this study we infer that the conventional physiotherapy treatment not only accomplish a most efficient way for the patient’s sufficiency, overcoming its limits, but also teaching them the best way to cope with disability. 1 INTRODUÇÃO Muitas malformações, bem como o encéfalo e/ou as meninges, resultam do fechamento defeituoso do neuroporo caudal e rostral, respectivamente, próximo ao final da 4° semana. Essas malformações são chamadas de anomalias do tubo neural, que podem se limitar ao sistema nervoso ou incluir, também, os tecidos sobrejacentes (ossos, músculos e tecido conjuntivo), onde as anomalias mais severas são incompatíveis com a vida. (MOORE; PERSAUD, 1994). Os defeitos do tubo neural (DTN) englobam defeitos cranianos como anencefalia, meningocele (que não afeta o tecido neural) e encefalocele (que pode ou não envolver o cérebro), e defeitos que ocorrem na porção caudal do tubo neural como espinha bífida com meninges protundentes, acompanhada de hidrocefalia, espinha bífida oculta que não acarreta impedimento funcional. Crianças com anencefalia morrem após nascer, embora a maioria das crianças com espinha bífida cresça até a fase adulta. (MOORE; PERSAUD, 1994). A etiologia do DTN ainda é desconhecida, e um número muito pequeno de DTN tem uma base puramente genética (encefalocele na síndrome de Meckel’s uma desordem autossômica recessiva). (SCHORAH; SMITHELLS, 1991). Estudos epidemiológicos e intervencionais demonstraram uma significativa redução na incidência e na recorrência de DTN em filhos de mulheres suplementadas com folato no período periconcepcional, em dosagens que variaram de 0,4 mg a 4 mg por dia. (Medical Research Council VITAMIN STUDY RESEARCH GROUP, 1991). Alguns estudos demonstraram que como a suplementação com o folato foi administrada durante 1° a semana de gestação, houve mais de 50% de prevenção na ocorrência de DTN (MILUNSKY, 1989), já o estudo do Medical Research Council Vitamin Study Research Group (1991) demonstrou uma redução de 72% na recorrência de DTN, evidenciando importância da suplementação periconcepcional com folato para mulheres que tiveram uma gestação com criança afetada por DTN e aquelas sem qualquer caso de DTN em gestações anteriores ou história familiar. Assim, em alguns países como o Reino Unido e os EUA, já existem recomendações expressas para suplementação diária com 0,4 mg de folato para todas as mulheres que planejam engravidar e com 4-5 mg de folato para aquelas que apresentam risco de recorrência de DTN5. Sempre se enfatiza o período periconcepcional (1-2 meses antes e depois da concepção), uma vez que as 4 primeiras semanas de gestação é que representam o período crítico para fechamento do tubo neural. A mielomeningocele é um tipo de espinha bífida, a espinha bífida cística, na qual está comprometida pele, a dura-máter, e a medula espinhal representando 80% das lesões de espinha bífida. (STOKES, 2000) Normalmente diagnosticada no nascimento, observando-se a presença de uma bolsa externa nas costas do bebê, na qual se encontram meninges e medula espinhal projetadas por um defeito vertebral. Essa bolsa pode ser recoberta por uma membrana transparente ou estar exposta. A presença de hidrocefalia pode estar associada ou não a este DTN que é conhecido como espinha bífida. (TECKLIN, 2002). As manifestações clínicas mais frequentes na mielomeningocele são: paralisia de membros inferiores, distúrbios da sensibilidade cutânea, úlceras Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 23 Alzira Demétrio Coelho Feitosa et al de pele por pressão, ausência de controle urinário e fecal e deformidades músculo-esqueléticas, e, posterior ao fechamento da lesão, hidrocefalia. Nos outros tipos de espinha bífida as manifestações são variáveis dependendo do grau e do nível de envolvimento das estruturas nervosas, podendo esses defeitos apresentarem quadros incompatíveis com a vida como anencefalias entre outros. (STOKES, 2000; REDE SARAH DE HOSPITAIS DE REABILITAÇÃO, 2006). A fisioterapia é considerada uma potente aliada à terapia convencional da mielomeningocele. Diante disto, este estudo visa descrever os recursos terapêuticos utilizados em pacientes com mielomeningocele e comparar os recursos encontrados na literatura com os utilizados pelos pacientes durante o tratamento. o prognóstico esperado, e a terapêutica sugerida pela literatura. Os dados foram obtidos a partir de ficha de avaliação do tratamento preenchida pelo fisioterapeuta do serviço a cada atendimento e um roteiro para entrevista foi aplicado à fisioterapeuta responsável antes do início das observações. A seguir foi feito o estabelecimento de critérios de inclusão/ exclusão de textos que seriam revisadas. Foi realizada uma busca nas bases de dados da Biblioteca Virtual em Saúde - BVS - BIREME. Foram utilizados os descritores de assunto ‘fisioterapia’ e/ou ‘meningomielocele’. A busca dos periódicos e livros foram realizadas nas bibliotecas de instituições de ensino superior publicas e privadas na cidade de Fortaleza/CE. Foram utilizados artigos indexados nas bases de dados até o ano de 2006. 2 METODOLOGIA 3 RESULTADOS E DISCUSSÕES Este estudo é de caráter descritivo, longitudinal, observacional utilizando método de estudo de caso com estratégia de análise comparativa a partir da observação direta e qualitativa dos resultados apresentados. A coleta de dados foi realizada em uma clinica privada de fisioterapia, situada na cidade de Fortaleza/CE, durante os meses de outubro a novembro de 2006, conforme aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade Estácio do Ceará (protocolo 041/2006). O caso era um indivíduo de 8 anos, sexo feminino, natural de Fortaleza/CE, nascida dia três de maio de 1998, residente em Fortaleza, branca, portadora de mielomeningocele lombar. Foi submetida a cirurgia de remoção das estruturas expostas, nas primeiras 72 horas de vida. Tratada com fisioterapia há mais de 4 anos e cujos pais aceitaram sua participação na pesquisa mediante a assinatura de um termo de consentimento informado. Foram analisadas as variáveis relativas as alterações estruturais da lesão medular, o tempo e a forma de aplicação do tratamento fisioterápico (últimos seis meses de tratamento assim como a frequência do tratamento), a evolução da paciente, Segundo a fisioterapeuta responsável, quando a paciente chegou aos seus cuidados possuía tronco abaulado, abdominais hipotônicos, ausência de força muscular nos membros inferiores e superiores e preensão débil. Não apresentou regressão no período de tratamento e obteve aumento de força muscular, alongamento da musculatura e está em início de deambulação com muletas e tutor longo. Dentre os DTN o mais comumente achado é a Espinha Bífida. (STOKES, 2000). Esta se caracteriza pela formação incompleta da medula espinhal e das estruturas que protegem a medula. O defeito ocorre no primeiro mês de gravidez e engloba uma série de malformações. Dessas, a mais observada é a mielomeningocele, na qual há uma protrusão cística contendo tecido nervoso exposto não coberto por pele. (TECKLIN, 2002). A espinha Bífida divide-se em vários tipos de acordo com a forma da abertura, protrusão, localização, estruturas comprometidas e, a partir dessa classificação pode-se ter um resumo tanto das estruturas acometidas como das características desses acometimentos (QUADRO 1). (SCHORAH; SMITHELLS, 1991; CZEIZEL; DUDÁS, 1992; MCDONALD, 2003). Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 24 ANÁLISE DO TRATAMENTO FISIOTERÁPICO EM PACIENTES COM MIELOMENINGOCELE: ESTUDO DE CASO Quadro 1 - Tipos de Espinha Bífida. Tipo Desordem Características Aberta Protrusão cística com ou sem elementos neurais Pode haver déficit neurológico progressivo relacionado com medula presa Mielomeningocele Lesão da linha média contendo líquor, meninges e elementos da medula. Tecido nervoso exposto não coberto por pelew Oculta com Envolvimento Neural Alterações da pele na região sacrococcígea em 80% (tufos pilosos, angiomas ou massas subcutâneas) Possibilidade de déficit neurológico progressivo com o crescimento. Oculta sem Envolvimento Neural Meningocele Lesão cística composta por líquor, meninges e pele. Lipomielomeningocele Massa de gordura, geralmente coberta por pele, que se estende para a medula. Diastematomielia A porção caudal da medula é partida. Os segmentos são, muitas vezes, separados por um esporão ósseo ou cartilaginoso. Medula presa Cone medular e filum terminal espessados e fixos à estrutura óssea. Sinus dérmico Fístula epitelial que se estende da pele para tecidos mais profundos. Possibilidade de comunicação com o espaço subdural e desenvolvimento de meningite Espinha bífida oculta Fechamento incompleto de arcos vertebrais não acompanhados de outras alterações Fonte: Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação (2006). A paciente deste estudo realiza tratamento fisioterápico desde os três meses de vida sendo este diariamente até o início 2005. Atualmente vai a fisioterapia 3 vezes por semana no horário das 12:00 às 13:00 nos dias de segunda, quarta e sexta. Também recebe acompanhamento pelo Hospital Sarah Kubitschek. Quando questionado à terapeuta sobre o tempo que trata a paciente, esta respondeu que a paciente chegou aos seus cuidados com 4 anos e 6 meses estando em tratamento a 4 anos. A avaliação das condições atuais da paciente foi categorizada em três tópicos: Sistema locomotor, Força Muscular e Sistema Urinário. 1. Sistema locomotor: Faz uso de cadeira de rodas, tala em pés e pernas, deambula com tutor longo com apoio de tronco. Posiciona-se sobre joelhos e mãos e consegue engatinhar. A medula espinhal é organizada em segmentos ao longo de sua extensão. Raízes nervosas de cada segmento deixam a medula para inervarem regiões específicas do corpo. Os segmentos da medula cervical (C1 a C8) controlam os movimentos da região cervical e dos membros superiores; os torácicos (T1 a T12) controlam a musculatura do tórax, abdome e parte dos membros superiores; os lombares (L1 a L5) controlam os movimentos dos membros inferiores; e os segmentos sacrais (S1 a S5) controlam parte dos membros inferiores e o funcionamento da bexiga e intestino. Na espinha bífida, estando a medula e as raízes nervosas impropriamente formadas, os nervos envolvidos podem ser incapazes de controlar os músculos determinando paralisias. (STOKES, 2000; TECKLIN, 2002; MCDONALD, 2003). Define-se como paralisia alta a paralisia resultante de defeito medular começando ao nível dos segmentos torácicos ou lombares altos (L1-L2), paralisia média no segmento médio lombar (L3) e paralisia baixa nos segmentos lombares baixos (L4-L5) ou sacrais. A posição das raízes motoras lesadas na medula é chamada de nível motor e sua definição é importante para a classificação funcional e o acompanhamento. Modificações do nível motor podem sugerir progressão neurológica. O Quadro 4 apresenta os níveis da lesão, musculatura e movimentos comprometidos e qual a forma de testar. (STOKES, 2000). Quadro 2 - Avaliação do Nível Motor. Avaliação do Nível Motor Nível Músculo Movimento Teste L1-L2 Psoas Flexão do quadril Levantar o joelho na posição sentada L3-L4 Quadríceps Extensão da perna Chutar uma bola na posição sentada L5-S1 Flexores do joelho Flexão do joelho Fletir a perna na posição prona L4-L5 Tibial anterior Flexão dorsal do pé Andar no calcanhar S1-S2 Panturrilha Flexão plantar do pé Andar na ponta dos pés Fonte: Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação (2006). Segundo Telöken (1993), Cintas e Long (2001), as órteses são aparelhos feitos sob medida para o controle, correção, sustentação e estabilização de um determinado segmento corporal para facilitar a função desse segmento. As órteses agem diminuindo o número de articulações que devem ser controladas para a marcha. Para uma marcha independente da criança, as órteses devem fazer parte da vida desses pacientes, e devem ser apresentadas à criança e seus familiares de modo Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 25 Alzira Demétrio Coelho Feitosa et al positivo. A criança deve ser incentivada, a usá-las, aconselhando-se o aumento gradual do tempo de uso. (STOKES, 2000). O tipo de órtese depende do nível de função motora da criança. As órteses destinadas a promover a posição em pé devem ser prescritas o mais precocemente possível. Há quem proponha que isso seja feito na época em que a criança começa normalmente a ficar em pé e a caminhar e quando ela demonstra interesse em ficar ereta. Em geral, a criança já é colocada em pé com apoio entre os 10 e 12 meses de idade, época na qual a criança começa normalmente a se sustentar sobre os membros inferiores e já possui controle adequado da cabeça. Isto pode ser realizado com o uso do parapódio que proporciona total contato e suporte nos tornozelos, joelhos, quadris e tronco da criança. A posição em pé é capaz de promover a postura em extensão, favorecendo o desenvolvimento visual e motor do paciente, estimula o uso dos membros superiores, além de facilitar a fisiologia intestinal e urinária. (SHEPHERD, 1995; MCDONALD, 2003; CINTAS; LONG, 2001). 2. Força Muscular: •• MMSS - Apresenta grau 4 e 5 em toda musculatura porém compensa os movimentos utilizando a cintura escapular. Pouca destreza e controle motor em mãos. Dificuldade de apoiar carga ou segurar-se com as mãos. •• Tronco: Dificuldade de sustentação do tronco e pescoço em posição ortostática; presença de cicatriz cirúrgica na coluna lombar. •• MMII - Apresenta grau 3 nos músculos extensões da perna, grau 4 para flexores do quadril extensores das pernas; grau 0 para músculos de dorso flexão e flexão plantar; grau 2 para musculatura glútea. Para aumentar a força da criança, o terapeuta tem duas opções: (1) progredir o movimento sem a ação da gravidade para uma forma em que se trabalhe contra a gravidade e (2) alternar a quantidade de ajuda fornecida pelo terapeuta, de forma que a criança tenha que usar mais força e controle. Aumentar o número de repetições de um movimento ou aumentar o tempo do exercício ajuda a melhorar a resistência. A coordenação deve melhorar com um aumento na força e na resistência, dependendo da lesão. (STOKES, 2000; TECKLIN, 2002; HALL; THEIN, 2001). O fisioterapeuta pode usar os efeitos da gravidade como uma força contra qual a criança deve mover-se. Coloca a criança em uma posição de modo que qualquer movimento da cabeça e do tronco, ou dos membros, deva ser feito contra a gravidade. (HALL; THEIN, 2001). O movimento poderá ser realizado em uma posição sem a ação da gravidade se a força da criança for inadequada ou se o movimento for coordenado precariamente. (STOKES, 2000; HALL; THEIN, 2001). Sistema Urinário: Sem controle insficteriano. Faz uso de fraldas descartáveis para defecar e CAT (sonda por cateter urinário) para urinar. Crianças com bexiga neurogênica costumam apresentar perdas constantes de urina e muitas vezes não conseguem esvaziar todo o conteúdo da bexiga. O acúmulo de urina facilita o aparecimento e a multiplicação de bactérias. Se as defesas naturais da bexiga são quebradas, a criança pode desenvolver infecção urinária. As principais manifestações de infecção urinária são: alterações no aspecto da urina, febre, alteração do apetite e às vezes dor lombar. (TECKLIN, 2002; SHEPHERD, 1995). Algumas crianças com bexiga neurogênica apresentam refluxo de urina da bexiga para os rins, e, infecções repetidas associadas a refluxo podem, com o tempo, ocasionar sérios problemas renais ou do trato urinário. (STOKES, 2000; SHEPHERD, 1995) Para que se possa realizar o tratamento adequado da bexiga neurogênica é necessário um diagnóstico correto do tipo de comportamento da bexiga e da uretra. A bexiga pode ser espástica e pequena ou flácida e grande dependendo do nível de envolvimento medular (QUADRO 3). Nos dois tipos há perdas urinárias. Exames de imagem e o estudo urodinâmico auxiliam o diagnóstico. O estudo urodinâmico registra o comportamento da bexiga durante as fases de enchimento e esvaziamento indicando a pressão intra-vesical, a pressão de perda, o fluxo, e se há sinais de dissinergismo. Estes parâmetros auxiliam o estabelecimento de critérios de tratamento e acompanhamento. (STOKES, 2000; SHEPHERD, 1995) Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 26 ANÁLISE DO TRATAMENTO FISIOTERÁPICO EM PACIENTES COM MIELOMENINGOCELE: ESTUDO DE CASO Quadro 3- Classificação da Bexiga Neurogênica. Classificação da Bexiga Neurogênica Tipo Fisiopatologia Características Espástica (Hiperreflexa) Lesões acima de T12 ou do cone medular preservando os reflexos medulares para a bexiga Capacidade pequena Contrações involuntárias rítmicas (hiperrrefléxicas) não efetivas. Grande tendência ao refluxo vésico-ureteral com rins aumentados de volume (hidronefrose) Flácida (Arreflexa) Lesões ao nível de L1 ou abaixo, envolvendo o cone medular e a cauda eqüina Os neurônios motores para a bexiga estão destruídos. Ausência de contração Parede vesical distendida Volume residual aumentado A pressão vesical não é aumentada Infecções freqüentes causadas pela dificuldade de esvaziamento Fonte: Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação (2006). Exames de medicina nuclear (cintilografia renal ou cistografia isotópica) são utilizados em situações especiais quando se quer estudar melhor a função renal ou quando a criança tem alergia ao contraste utilizado para alguns exames radiológicos. Finalmente, alguns exames de laboratório são indicados como o exame de urina e a depuração de creatinina ou a dosagem de cistina C que permitem detectar infecção e avaliar a função renal. Estes exames são realizados periodicamente de acordo com a necessidade. (STOKES, 2000; SHEPHERD, 1995). O tratamento da mielomeningocele é feito de forma multidisciplinar. Para uma melhor abordagem o dividimos em: tratamento cirúrgico e tratamento fisioterápico. Logo após o nascimento a criança deve ser mantida com o abdome para baixo e a lesão deve ser coberta com compressas não adesivas, suavemente colocadas, embebidas em soro fisiológico, objetivando evitar o ressecamento. Se a criança tiver que ser transportada, deve ser preparada uma proteção de maneira a não permitir o contato da placa neural com qualquer superfície a não ser a compressa embebida no soro fisiológico. O fechamento da mielomeningocele deve ser feito, de preferência, nas primeiras 24 horas e as razões principais para o tratamento cirúrgico são: diminuir o risco de infecção e preservar a função nervosa. (STOKES, 2000; SHEPHERD, 1995). Por causa da lesão congênita dos nervos e da medula, em todas as crianças com mielomeningocele há alterações da força e tônus muscular em membros inferiores, podendo ainda apresentar algum comprometimento das musculaturas do abdome e coluna. (STOKES, 2000; TECKLIN, 2002; REDE SARAH DE HOSPITAIS DE REABILITAÇÃO, 2006). No tratamento, é importante que pais e profissionais saibam que a melhora da força dos músculos não depende apenas da quantidade ou do tipo de exercícios que a criança realiza, mas principalmente do grau e nível da lesão das raízes nervosas e da medula. Quanto menor as alterações de movimento que está criança apresentar, maiores serão os resultados de fortalecimento e tônus dos músculos. Porém não existe possibilidade de ganhar força em músculos com ausência de movimentos. (STOKES, 2000; REDE SARAH DE HOSPITAIS DE REABILITAÇÃO, 2006). Os exercícios terapêuticos exercem um importante papel na habilitação e reabilitação da criança com mielomeningocele. O programa de exercícios deve ser desenvolvido em relação à avaliação, à identificação das metas a longo e curto prazo e às habilidades funcionais da criança. Os exercícios são semelhantes às outras formas de exercícios nas quais o terapeuta deve graduar a dificuldade do programa de acordo do com o progresso da criança para alcançar uma maior força, resistência e coordenação. (TECKLIN, 2002; HALL; THEIN, 2001). Deste modo, os exercícios terapêuticos devem ser direcionados a dissociar uma extremidade da oposta e a dissociar os membros do corpo para alcançar uma maior coordenação muscular, enfatizando o alcance de uma maior diferenciação das articulações em cada membro. (TECKLIN, 2002). As principais mudanças na força muscular e no aprendizado motor da criança ocorrem nos três primeiros anos de vida o que torna o inicio do tratamento fisioterápico precoce um fato importante na recuperação e educação dos movimentos e postura das crianças. (TECKLIN, 2002; REDE SARAH DE HOSPITAIS DE REABILITAÇÃO, 2006). Tendo em vista que esse desenvolvimento ocorre de forma mais lenta nas crianças com mielomeningocele e que esta geralmente só inicia o processo de engatinhar após os 2 anos de idade ou até mesmo não desenvolve esse processo, o tratamento dessas crianças seguem em um ritmo especial e deve ser modificado acompanhando as diferentes fases. Seus objetivos variam de acordo com a idade. (REDE SARAH DE HOSPITAIS DE REABILITAÇÃO, 2006). Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 27 Alzira Demétrio Coelho Feitosa et al Neste caso em estudo, o objetivo do tratamento aplicado, de acordo com a fisioterapeuta responsável foi o alongamento da musculatura encurtada, fortalecimento muscular, e treino da macha com órtese propiciando maior independência a paciente. Espera-se com o tratamento que a mesma adquira macha independente com auxílio de órtese e muletas. Relata obter cooperação dos pais podendo estes ainda incentivarem mais a participação da criança ao tratamento e o treino domiciliar da marcha. Durante a observação do tratamento aplicado pela terapeuta à criança, observou-se que foram aplicadas técnicas de: fortalecimento muscular, que, de acordo com O´Sullivan (2004) é a força exercida por um músculo para vencer uma resistência em um esforço máximo; alongamentos, treino de macha, visando adquirir a independência máxima desta criança. Os exercícios isométricos e isotônicos associados à gravidade e a apoios externos são a base do tratamento aplicado confirmando o encontrado na literatura segundo Stokes (2000), Tecklin (2002), Hall e Thein (2001). Todos os autores citados acima, dizem que estes exercícios como os outros aplicados, promovem uma melhoria do tônus muscular diminuindo a flacidez existente. Os exercícios mais utilizados são classificados de duas formas; exercícios isométricos que são os que propiciam a contração dos músculos sem encurtamento ou alongamento e os exercícios isotônicos, quando os músculos se alongam ou se encurtam durante a contração muscular. (HALL; THEIN, 2001). Foi observado sequências de exercícios de flexão e extensão nos membros inferiores e superiores contra a gravidade e com a resistência das mãos da terapeuta, além de pesos presos ao tornozelo da paciente O´Sullivan (2004) aprova o uso de cargas como pesos livres, polias, tiras elásticas, resistência manual com forma de fortalecimento muscular. Segundo White (2004), a resistência muscular é a habilidade do músculo de contrair-se repetidamente ao longo do tempo. A exploração da resistência muscular existente e o propósito de aumentá-la tem sido o ponto chave do tratamento. As mãos do fisioterapeuta ou algum equipamento podem ser usados para dar um apoio inicial a fim de inibir a rigidez excessiva, manter o alinhamento, iniciar uma transferência de peso, manter um movimento ou auxiliar em uma transição mais suave de movimentos. O suporte externo deve ser alternado intermitentemente para dar à criança uma oportunidade de praticar os movimentos livremente. (TECKLIN, 2002; HALL; THEIN, 2001). O apoio do corpo de uma criança para diminuir a rigidez e para facilitar os movimentos pode ser mudado de um ponto proximal como o tronco, o ombro ou a pelve, que oferecem um maior suporte, para um ponto mais distal ao longo do membro. Mudando o ponto de apoio mal distantemente, o fisioterapeuta espera que a criança conquiste um maior grau de controle sobre os movimentos nas articulações sem apoio. (TECKLIN, 2002; HALL; THEIN, 2001). De acordo com Edelstein (2004) a órtese se destina a proporcionar o máximo de função com o mínimo de desconforto e esforço. A adaptação a órtese é gradativa e o trabalho bem individual não havendo um programa de treinamento que sirva para todos os pacientes segundo o mesmo. Para o treino de deambulação a terapeuta utilizou a órtese tutor longo com apoio de muletas ou barras fixadas a parede e auxílio do espelho para auto correção da postura. Isso também foi respaldado por Edelstein (2004). Exercícios de alongamento da coluna vertebral, dissociação da cintura pélvica, exercícios posturais foram observados com auxílio de bolas, sendo esses exercícios reforçados por Tecklin (2002). Até a idade de 6 anos as crianças que conseguiram deambular já o conseguem, as que não alcançaram este estágio provavelmente não conseguiram, independente do tratamento fisioterápico aplicado ou uso de órteses. (STOKES, 2000; REDE SARAH DE HOSPITAIS DE REABILITAÇÃO, 2006). As atenções da fisioterapia se voltaram nessa fase ao treino da independência funcional tanto para as crianças que andam quanto para as que não andam e o desenvolvimento de cada criança é individual podendo sofrer alterações do meio. A evolução da criança pode ser mais lenta devido à incoordenação de membros superiores, déficit de equilíbrio, deformidades da coluna, obesidade e atraso cognitivo. O trabalho explorando o meio ambiente e noções de espaço com a realidade diária como: o tamanho e o material da cadeira de rodas e barreiras como degraus, portas estreitas ou terrenos acidentados dificultam o uso da cadeira de rodas. (STOKES, 2000; REDE SARAH DE HOSPITAIS DE REABILITAÇÃO, 2006). Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 28 ANÁLISE DO TRATAMENTO FISIOTERÁPICO EM PACIENTES COM MIELOMENINGOCELE: ESTUDO DE CASO O uso de bolas firmes fornecem superfícies móveis que podem ajudar o fisioterapeuta na facilitação do controle postural e nas preparações posturais da criança. A direção na qual a bola é movida e as posições da criança na bola podem variar para facilitar o movimento da cabeça e do tronco em flexão, extensão, flexão lateral e/ou rotação. (TECKLIN, 2002). É essencial lembrar que a bola tem uma superfície curva de sustentação de peso, de modo que seu deslocamento resulta em uma mudança de peso nos ísquios, que estão em cima da bola (o lado mais curto do tronco). Os variados usos da bola e suas infinitas possibilidades de movimento permitem que o terapeuta controle o grau em que o movimento é auxiliado ou desempenhado contra a gravidade. (TECKLIN, 2002; HALL; THEIN,2001). 4 CONCLUSÃO A fisioterapia tem um papel fundamental no tratamento das sequelas de lesões decorrentes desta má formação da coluna vertebral ajudando na reestruturação das fases do desenvolvimento motor, no equilíbrio estático e dinâmico, aquisição de força muscular, e capacidade de deambulação. REFERÊNCIAS CINTAS, H. L.; LONG, T.M. Manual de fisioterapia pediátrica. Rio de Janeiro: Revinter, 2001. CZEIZEL, A. E.; DUDÁS, I. Prevention of the first occurrence of neural-tube defects by periconceptional vitamin supplementation. N. Engl. J. Med, Boston, v.327, n.26, p.18321865, Dec. 1992. EDELSTEIN, J. J. Avaliação e controle de próteses. In: O’SULLIVAN, S.B.; SCHMITZ, T.J. Fisioterapia avaliação e tratamento. 4.ed. São Paulo: Manole, 2004. HALL, C. M.; THEIN, B. L. Exercício terapêutico na busca da função. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001. MCDONALD, S. D. et al. The prevention of congenital anomalies with periconceptional folic acid supplementation. J. Obstet. Gynaecol. Can, Toronto, v.25, n.2, p.115- 121, Feb. 2003. MILUNSKY, A et al. Multvitamin: folic acid supplementation in early pregnancy reduces the prevalence of neural tube defects. JAMA, Chicago, v.262, n.20, p.2847-2852, Nov. 1989. MOORE, K. L.; PERSAUD, T. V. N. Embriologia clínica. 5.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,1994. Medical Research Council VITAMIN STUDY RESEARCH GROUP. Prevention of neural tube defects: results of the Medical Research Council Vitamin Study MRC Vitamin Study Research Group. (1991). Lancet, London, v.338, n.8760, p.131-137, Jul. 1991. NATIONAL HEALTH AND MEDICAL RESEARCH COUNCIL. Revised statement on the relationship between dietary folic acid and neural tube defects such as spina bifida. 115th Session. Australia: The National Health and Medical Research Council, 1993. O’SULLIVAN, S. B. Avaliação da função motora. In: O’SULLIVAN, S. B.; SCHMITZ, T. J. Fisioterapia avaliação e tratamento. 4.ed., São Paulo: Manole, 2004. REDE SARAH DE HOSPITAIS DE REABILITAÇÃO. Espinha Bífida. Disponível em: <http://www.sarah.br/>. Acesso em: 3 Abr. 2006. SCHORAH, C. J. SMITHELLS, R. W. Maternal vitamin nutrition and malformation of the neural tube. Nutr. Res. Rev, Cambridge, v.4, n.1, p.33-49, Jan. 1991. SHEPHERD, R. B. Fisioterapia em pediatria. São Paulo: Santos, 1995. STOKES, M. Neurologia para fisioterapeutas. São Paulo: Premier, 2000. TECKLIN, J. S. Fisioterapia pediátrica. Porto Alegre: Artmed, 2002. TELÖKEN, M. A. Mielomeningocele. AMRIGS, Porto Alegre, v.37, n.3, p.168-174, Jul./Set. 1993. WHITE, J. D. Avaliação musculoesquelética. In: O’SULLIVAN, S.B.; SCHMITZ, T.J. Fisioterapia avaliação e tratamento. 4.ed. São Paulo: Manole, 2004. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 29 litterarumradicesamaraefructusdulces Que Teia é esta? Representações Sociais dos Adolescentes Socioeducandos e Egressos sobre Família Rita de Cássia Sidney Marques Bessa1 Maria Lúcia Duarte Pereira2 Mônica Araújo Gomes3 Sheva Maia da Nóbrega4 RESUMO: Ante o acentuado crescimento do número de adolescentes autores de atos infracionais, a freqüência e a gravidade dos atos cometidos, demonstrados pela superlotação de todos os Centros Educacionais, onde eles cumprem medidas sócio-educativas, e diante da importância da família na formação do indivíduo, este estudo objetiva identificar as representações sociais que os adolescentes sócio-educandos e egressos elaboram sobre família, bem como analisar as influências das representações sociais dos dois grupos na comunicação como guia de comportamento. Trata-se de um estudo de campo, exploratório, fundamentado pela Teoria das Representações Sociais. A pesquisa foi desenvolvida no Centro Educacional São Miguel e no Pólo Central, unidades vinculadas à Secretaria da Ação Social do Estado, localizada em Fortaleza-Ceará. Os instrumentos de coleta de dados foram: entrevistas semi-estruturadas; Teste de Associação Livre de Palavras; observação das expressões não verbais. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo temática, tendo como base os pressupostos de Bardin, e a avaliação estatística, de acordo com o programa Tri-Deux-Mots. Os resultados evidenciam a importância atribuída pelos adolescentes à família, os sentimentos valorativos e a aglutinação entre família vivida e sonhada. Essas representações sobre família emanadas dos sujeitos sugerem o desenvolvimento de ações que contemplem a família e comunidade, e não apenas o adolescente 1. 2. 3. 4. desvinculado de suas raízes, considerando a rede interconexa de suas relações. Palavras-chave: Família. Adolescente. Representações Sociais. ABSTRACT: Considering the accentuated increase in the number of adolescent transgressors, the frequency and the gravity of the committed crimes, demonstrated through the overpopulation of the Educational Centers where the adolescents follow social-educational measurements, and having as the purpose the importance of the family in the formation of the individual. This study focuses on the identification of the social representations that the social-educating adolescents and the egressed ones elaborate about the family as well as the analyses the influence of the social of two groups in the communication as a guide of behavior. It is about a field study, exploratory, established by the theory of the Social Representations. The research was developed in the São Miguel Educacional Center and at Polo Central whose units are linked to the Social Action State Secretary located in Fortaleza, Ceará. The tools for collecting data were semi-structured interviews, free-association word test and observation of the non-verbal expressions. The data underwent the analyses of a thematic content having as a base the purposes of Bardin and the statistical evaluation based on the Tri-Deux-Mots program. The results showed clearly the importance the adolescents attributed to the family, the valued feelings and the agglutination between real family and dreamed family. These representations about the Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social – STDS Doutora em enfermagem – Universidade Estadual do Ceará – UECE Mestre em saúde da criança e do adolescente – Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social – STDS Doutora em Psicologia Social – Universidade Federal de Pernambuco – UFPE Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 31 Key-words: Family. Adolescent. Social Representations. Rita de Cássia Sidney Marques Bessa et al family that immerge from the subjects suggest the development of actions that contemplate the family and the community, not only the adolescent, unattached to their roots, considering the interconnected web of their relations. 1 OS FIOS DA TEIA Em julho de 1990, o Brasil está diante de uma nova lei federal, que regulamenta o artigo 227 da Constituição Federal de 1988, com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É a consagração de um direito que, além de explicitar os direitos gerais e específicos de crianças e adolescentes, propõe uma nova gestão, por meio de um Sistema de Garantia de Direitos, considerado, portanto, a Doutrina da Proteção Integral, apoiado em três eixos: Promoção, Defesa e Controle Social. Conforme consta no artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente: uma declaração de Bezerra, juiz titular da 5ª Vara da infância e Juventude, afirma: “Foram registrados 1.326 processos contra adolescentes infratores durante o ano passado. Somente nos seis primeiros meses deste ano, o número supera a soma do ano de 2002, totalizando 1.352 processos”. Na opinião do referido juiz, é alarmante o índice de reincidência. De janeiro a julho de 2003 chegou a 48,62%, segundo informação da Unidade de Recepção, onde os adolescentes dão entrada. O perfil desse adolescente aponta algumas características, como: 74% dos que cometeram infrações estão na faixa etária de 14 a 17 anos, a concentração de adolescentes tem sido na capital (87%) e a grande maioria são do sexo masculino, aproximadamente 92%. Diante das constatações, urge a necessidade de propostas tendo como paradigma a vinculação do adolescente à sua comunidade e família. Neste sentido, cabe uma releitura do sistema familiar para compreensão do fenômeno. 2 A FAMÍLIA COMO TEIA A criança e adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.(BRASIL, 1990, p.02). Com o advento do ECA, foi necessário o processo de re-ordenamento institucional para garantia de direitos creditados ao segmento em discussão, devendo ser obedecidas as medidas circunscritas em seus artigos, quais sejam: ••As Medidas de Proteção: aplicáveis às crianças e adolescentes sempre que seus direitos, reconhecidos na lei, forem ameaçados ou violados; ••As Medidas Sócio-educativas: de cunho educativo e punitivo, aplicáveis por ordem judicial a adolescentes (12 a 18 anos) que praticarem ato infracional; A situação do adolescente que comete ato infracional no Estado do Ceará está piorando, pois o número de adolescentes envolvidos nesta prática vem aumentando e a gravidade do ato infracional também está em progressão. Como mostra matéria publicada no jornal O Povo, redigida pela jornalista Dias (2003, p.03), Estabelecer vínculos é inerente à pessoa humana. Na história da humanidade, os homens ao buscarem vinculação formaram tribos, grupos e famílias. O sentimento de pertença também é essencial à condição humana e tem como lócus primário de estabelecimento a própria família, a qual está inserida em um contexto sócio-econômico e cultural, composta por pessoas que convivem com objetivos comuns, uma ligação afetiva e cuidados uns com os outros. Para Szymanski (2000, p.15), “o mundo familiar mostra-se numa vibrante variedade de formas de organização, com crenças, valores e práticas desenvolvidas na busca de soluções para as vicissitudes que a vida vai trazendo”. A família contemporânea, pós-moderna, que ora se apresenta advinda do século XX, traz em seu âmago duas vertentes: a família pensada e a família vivida. A família pensada vive apenas no desejo e nos sonhos, com o sentimento de final feliz, influenciada pelo discurso das instituições e da mídia e até mesmo de profissionais que a consideram um modelo certo de se viver. A família vivida é de fato a que sobrevive, com seus dilemas, dificuldades e formas diferentes de relacionamento. Conforme o “discurso oficial” que subscreve a família pensada, “desestruturadas” e Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 32 QUE TEIA É ESTA? REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS ADOLESCENTES SOCIOEDUCANDOS E EGRESSOS SOBRE FAMÍLIA “incompletas” são aquelas que fogem a essa concepção, definidas com os adjetivos pejorativos de inferioridade e incapacidade. Nessa família, real e vivida, circundam os adolescentes que trilham seus caminhos conforme as vicissitudes a eles impostas. Cada família se organiza de acordo com os sentimentos vivenciados, emoções, comunicação e todo o universo de significados manifestos. Neste universo onde os adolescentes sobrevivem e interagem, surge a inquietação de como eles próprios se inscrevem nesse contexto, de que forma em seu cotidiano eles conseguem visualizar as relações impregnadas em suas histórias de vida. Por mais difícil que seja sua formação, a família continua sendo na sociedade o primeiro espaço de referência a expressar proteção e socialização dos indivíduos. Constitui-se um canal de iniciação e aprendizado do afeto e das relações socializantes, laboratório do convívio democrático entre os homens. A família contemporânea do Brasil do final do século XX e início do século XXI apresenta uma diversificada forma de organização em seu interior, no referente tanto à sociabilidade quanto à sua composição. Dois aspectos são relevantes e merecem um aprofundamento ao se adentrar nessa teia das relações familiares: os papéis e a autoridade. Nos últimos anos observou-se por meio de pesquisas o crescente aumento de famílias matrifocais, formadas pela mãe e seus filhos, gestados de uma relação com um ou mais companheiros itinerantes. Conforme Bilac (1991), esta família passou de 9,5% em 1970, para 14,04% em 1987. Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2003) reforçam este aspecto ao apresentar o número de famílias tendo como chefe as mulheres. Como conseqüência, a unidade doméstica redefine papéis, e altera os vínculos com os filhos, mães e companheiros. Estudos já foram desenvolvidos sobre a importância da figura paterna na formação da personalidade do indivíduo, não necessariamente a convivência do dia-a-dia, mas a presença dessa figura na intimidade de cada um, participativa, mesmo depois das separações, real, mesmo quando o contato físico diário não é mais possível. Ademais, nas famílias de baixa renda outro agravante contribui para a perda da autoridade dos pais e inversão de papéis, isto é, crianças desde a mais tenra idade lutam pela subsistência do núcleo familiar, e, ao adquirirem o poder econômico dentro do lar, passam à condição de mando, pois são de fato os provedores e, como tal, assumem a papel do “chefe”, que intimida e cria suas próprias regras. Os estudos contemporâneos apontam outras relações determinantes para o comportamento anti-social na adolescência, como: a ausência de cuidados maternos, privações na primeira infância, representadas não apenas pelas carências biológica, social e jurídica, mas também pelas carências afetivas. Pensar no adolescente envolvido em ato infracional apenas como uma conseqüência da situação socioeconômica é demasiadamente simplista e não explicaria como adolescentes bem nascidos, de classe média e alta estão cada vez mais circulando por este mundo. E como tantos adolescentes pobres e até miseráveis conseguem ultrapassar essa barreira tênue da marginalidade e construir um projeto de vida consistente e contrário a profecias “do não dá para nada”. Alguns questionamentos se tornaram iminentes: Que caminhos percorrer para manter a vinculação do adolescente sócio-educando e sua família, diante das relações tão fragmentadas, as inversões de papéis e a ausência de limites? No intuito de estudar a significação e importância da família para o adolescente sócio-educando e o egresso, por meio das representações sociais, levando em consideração o senso comum e todo o estigma que envolve este adolescente, segundo o qual é um “delinqüente”, incapaz de formar laços e gestado em “famílias desestruturadas”, tem-se como finalidade maior compreender a concepção destes sobre família, conhecer seus pensamentos, sentimentos, percepções e experiências de vida, verificadas nas diferentes formas de comunicação, em face do seu contexto histórico, socioeconômico, cultural e espiritual. Ao se estudar a representação social que o adolescente tem sobre a família, será possível sinalizar as alternativas para a melhoria no seu atendimento, e contribuir para a construção de seu projeto de vida, fundado na relação saudável em suas famílias de origem e nas famílias constituídas, capaz de interromper o processo cíclico de infração/ cumprimento de medida/reincidência. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 33 Rita de Cássia Sidney Marques Bessa et al Pensar em estudar as representações sociais que os adolescentes elaboram da família é despertar um novo olhar sobre a questão, voltado para a construção do conhecimento prático experenciado por determinado grupo de pertença. Como afirma Doise (1990, p.08): Representações Sociais são princípios geradores de tomadas de posição ligadas a inserção específica em um conjunto de relações sociais e que organizam os processos simbólicos que intervêm nessas relações. O referencial adotado será capaz de dar conta da problematização, considerando que objetiva compreender a significação da família para o adolescente sócio-educando e o egresso, vinculando-a à sua realidade, tentando conhecer seus pensamentos, percepções e experiências vivenciadas e compartilhadas por crenças, atitudes, valores e informações, por meio das formas de comunicação. A partir desses princípios, pesquisar as RS dos adolescentes sócio-educandos sobre família remete a uma leitura da questão não apenas com bases científicas e teóricas, mas norteadas pelo conhecimento do cotidiano (senso comum) elaborado e compartilhado pelos grupos de pertença, na tentativa de abstrair as representações suscitadas e as relações que estabelecem entre si. 3 MATERIAL E MÉTÓDO A pesquisa constitui um estudo de campo exploratório, tendo como referencial a Teoria das Representações Sociais. Seu objetivo é a apreensão das representações sociais sobre família, por adolescentes autores de ato infracional, tanto o sócio-educando como o egresso. Campo do estudo: este estudo foi realizado em duas unidades vinculadas à Coordenadoria da Proteção Social e Medidas Sócio-educativas da Secretaria da Ação Social: o Centro Educacional São Miguel, unidade de internação, e Pólo Central, local onde os adolescentes egressos das medidas sócio-educativas são atendidos pelo Projeto Mãos Dadas, que propicia a participação desses adolescentes em cursos profissionalizantes, com vistas a inseri-los no mercado formal e informal de trabalho. Amostra: Participaram da pesquisa 100 sujeitos divididos em dois grupos: adolescentes sócio-educandos, denominados de grupo 1. e adolescentes egressos, denominados de grupo 2. Para o Teste de Associação Livre de Palavras a amostra contemplou 100 sujeitos e para as entrevistas semi-estruturadas a amostra foi composta por 28 sujeitos, definidos por saturação, sendo contemplado em ambos os instrumentos 50% de cada grupo. Instrumentos para a coleta de dados: foi aplicado o teste de Associação Livre tendo como estímulo a solicitação: diga quatro palavras que lhe lembre a palavra “família” e em seguida procedeu-se a entrevista tendo como pergunta de partida: “o que é família para você?” A pesquisa foi realizada no período de fevereiro a abril de 2004. Análise e tratamento dos dados: para a analise dos dados obtidos no Teste de Associação Livre de Palavras, utilizou-se a análise fatorial de correspondência (AFC) com base no programa Tri-Deux-Mots (versão 2.2), (CIBOIS, 1998). Para compreensão e inferência de novos conhecimentos a partir do relato dos sujeitos durante as entrevistas foi utilizada a técnica de análise de conteúdo temática (BARDIN, 2004). 4 TECENDO A TEIA Ao se mergulhar na leitura sobre família tendo como referencial a Teoria das Representações Sociais, unem-se, conhecimento do senso comum e o saber científico, propiciando a construção social de um conhecimento compartilhado. As representações sociais constituem o mundo tal como ele é, garantem ao sujeito um lugar nesse mundo. Moscovici (2003) define essa concepção quando fala de representações sociais, estabelecendo uma ordem que permite aos sujeitos orientar-se no seu mundo material e social, e comandá-lo, assim como também Jodelet (2001, p.25) afirma: “As representações sociais enquanto sistemas de interpretações que regem nossa relação com o mundo e com os outros – orientam e organizam as condutas e as comunicações sociais” Neste sentido, a Teoria das Representações Sociais compõe um instrumento no diagnóstico psicossocial nas diferentes áreas de conhecimento, particularmente neste estudo, pois foi possível a expressão do pensamento do adolescente sobre família, por meio de uma rede de significados expostos na fala, nas emoções, nos sentimentos e representações. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 34 QUE TEIA É ESTA? REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS ADOLESCENTES SOCIOEDUCANDOS E EGRESSOS SOBRE FAMÍLIA Os adolescentes de ambos os grupos exteriorizaram valores e concepções internalizados em suas vivências cotidianas e na aprendizagem com seus diferentes grupos sociais, família, amigos e no Centro Educacional no qual passam ou passaram parte de sua adolescência. Válido se faz ressaltar a desmistificação de que o adolescente autor de ato infracional não tem família, são pessoas sem raízes e/ou provenientes de famílias “desestruturadas”. Na verdade, o que se considera como desestrutura é uma forma diferenciada de se organizar, em face do constante processo de mudanças no padrão familiar. Cada família interage com seus membros de acordo com seus valores, nível de comunicação e experiências compartilhadas. Assim, ao se reportar à família, é imprescindível observar na fala e expressão dos sujeitos toda influência por eles recebidas da família, e esta da sociedade, das relações socioeconômicas e políticas, no contexto do Estado. O adolescente vive em um mundo estruturado pelas representações sociais da comunidade, o que lhe faculta a tomada de posição do conjunto sistêmico de relações e práticas sociais. Este adolescente sujeito da investigação passa por um processo cada vez mais complexo, pois com a situação do ato infracional, sua conduta transgressora manifesta surge também como um substrato para lidar com os conflitos internos. Neste estudo, os adolescentes participantes permearam sua linguagem, de forma velada, por expressões denotativas de sua condição de autor de ato infracional. Por meio das representações sociais foi possível codificar essas relações que circundam entre os sujeitos, embora a temática do estudo estivesse direcionada à família. A análise das entrevistas apresentou cinco categorias: dimensões sobre família; contextualização da família; percepção do adolescente autor de ato infracional; construção da sua família; sentimentos. Na categoria 1 – Dimensões sobre Família – os sujeitos puderam manifestar por meio das unidades de análise temática a concepção sobre família, apresentando duas vertentes de pensamento, dimensionadas nas subcategorias: pensada e vivida. Na subcategoria pensada, observou-se que os sujeitos transpuseram a barreira do concreto, das vivências cotidianas e expressaram toda subjetividade do modelo idealizado, internalizado mediante ¨discurso oficial¨ sobre família. Na subcategoria vivida emergiu uma concepção construída em suas histórias de vidas, transmitindo um caráter de caminho não desejado, mas imposto pelas circunstâncias. Nos aspectos apreendidos por meio das entrevistas relacionadas a esta categoria, sobressai o contraponto entre o que o sujeito coloca sobre sua realidade de vida e o sentimento expresso sobre como ele gostaria que fosse sua família. Ao mesmo tempo em que evidencia situações conflitantes ocorridas no seu cotidiano, exprime a concepção de família como o espaço de apoio, amor e compreensão. Segundo percebeu-se, os adolescentes de ambos os grupos fazem referências à sua família vivida com os problemas que lhe são inerentes, expondo as situações mais sofridas em seu dia-a-dia, onde as relações estão desgastadas, mas não deixam de traduzir “família” de modo mais abrangente, com significado valorativo. Esta talvez seja a grande contradição, o vivenciado por ele difere do conceito que tem de família. Mesmo a realidade sendo a negação de seus paradigmas, o adolescente continua a crer no modelo sonhado. Na categoria 2 – Contextualização da Família – os sujeitos contextualizam a família, agrupando-a em duas subcategorias: sócio-econômica e cultural-histórica. Na subcategoria sócio-econômica os sujeitos evidenciaram a importância dos fatores sócio-econômicos na formação e estrutura da família. Na subcategoria cultural-histórica, eles contextualizaram aspectos cultural-históricos que contribuem para esta mesma formação e para o desenvolvimento familiar. Segundo Guareschi e Jovchelovitch (2002), ao analisar fenômenos psicossocias – e representações sociais – é necessário analisar o social como totalidade. Assim esta categoria emerge para dar essa conotação social à subjetividade individual, considerando que a família institui-se em um contexto sócio-cultural e econômico, estabelecendo uma relação de trocas com esse meio. Nessa categoria, as representações sociais são remetidas às condições sociais que as engendram, ou seja, o contexto de produção. Tal contexto interessa à devida compreensão das construções que dele emanam e nesse processo o transformam. Desse modo, ao se deter na contextualização da família Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 35 Rita de Cássia Sidney Marques Bessa et al e suas influências, percebe-se a circularidade dos conteúdos na sociedade e as forças emanadas da interação social. A sociedade espera que as famílias possam promover a melhoria da qualidade de vida de seus membros e a efetiva inclusão social deles. Contudo o contexto no qual essas famílias sobrevivem pode ser fortalecedor ou esfacelador de suas potencialidades. Mas as famílias empobrecidas, além de viverem todas as dificuldades presentes no sistema de interações, ainda travam uma luta diária pela sobrevivência, o que ocupa o primeiro plano nas preocupações. As múltiplas carências de saúde, educação, lazer, cultura fragmentam mais ainda suas relações. São famílias desprovidas do mínimo para uma sobrevivência digna e não contam sequer com uma rede de apoio capaz de orientá-las no enfrentamento das vicissitudes. Nesse mundo onde a maioria dos adolescentes entrevistados sobrevive constatou-se o registro das influências do contexto socioeconômico e cultural em suas famílias. Na categoria 3 – Percepção do Adolescente Autor de Ato Infracional – os sujeitos evidenciam a percepção da família e deles próprios como adolescente infrator, o modo como são tratados e o que mudou após o comprometimento decorrente do ato infracional. Mencionada categoria engloba duas subcategorias: a auto-percepção do adolescente na família e a hetero-percepção, ou seja, como o adolescente supõe que a família o vê. Na subcategoria auto-percepção emerge um misto de sentimentos, como a culpa por causarem transtornos à família, e a vergonha por essa situação. Há, ainda uma contradição entre a concepção que os sujeitos creditam à família e o que eles próprios atribuem a si. Diante da família, sentem-se envergonhados, não se perdoam pelo fato de terem causado desgosto, mas referem que a família os perdoou, nada mudou, mesmo com o comprometimento com o ato infracional. Pelas expressões mencionadas, há, mais uma vez, a demonstração do envolvimento familiar. Aqui, os sujeitos fazem uma reflexão sobre o ato cometido e acentuam a dor que causaram a seus familiares. Em relação a subcategoria hetero-percepção temos o adolescente autor de ato infracional envolto em preconceitos e carregando o estigma imputado pela sociedade de ser inferior, “menor”. As pessoas não conseguem desvencilhar o ato infracional de sua personalidade, e constroem no senso comum a figura do delinqüente irrecuperável, alguém incapaz de conviver socialmente e desprovido de sentimentos. Na verdade, ser autor de ato infracional é uma circunstância de vida e não uma categoria valorativa, segundo afirma Volpi (2001). Mas esta condição de infrator é superdimensionada, como indica o próprio termo, carregado de estima. No entanto, nesse estigma presente na sociedade não se solidifica na família do adolescente investigado, pois, conforme supõem, mesmo na simplicidade de sua vida, sem formação profissional, suas famílias guiam-se pelos sentimentos e valorizam o adolescente, que está vivendo uma circunstância difícil, mas passageira, e são apenas adolescentes. A categoria 4 – Construção da Família – refere-se a percepção do sujeito sobre a construção de sua família. Agrupa as seguintes subcategorias: modelo reproduzido e modelo sonhado. Os sujeitos verbalizam atitudes demonstrativas em sua família, constituídas da repetição do modelo vivenciado na infância, ao mesmo tempo em que expressam o sonho de re-inventarem este modelo, de forma ideal. A família, como primeiro espaço de socialização, constitui-se como laboratório para a aprendizagem dos indivíduos. Nela aprende-se os primeiros passos, as primeiras palavras e, ainda, a relacionar-se com o outro. São as heranças de outros vividos que vão se fazendo presentes e impregnam todo o comportamento do ser. As mensagens repassadas explícita ou implicitamente no discurso ou comportamento dos membros da família e a interação que ocorre como resposta a essas mensagens ganham um significado. Ademais, os mitos, valores e crenças originários na família juntam-se aos partilhados na sociedade e dão lugar ao modelo que será incorporado no cotidiano da nova família a ser constituída. Muitas vezes, o modelo reproduzido não é aquele idealizado, mas se impõe como uma marca indelével, apreendida no convívio da família de origem. A reprodução do modelo vivido se cristaliza, e apesar de ter sido ele, por vezes, questionado e rejeitado, considerado como “errado”, consegue embotar o sonho de se diferenciar. E, mais grave ainda, ao se reproduzir o modelo, não se tem consciência de que o negado está agora sendo reproduzido. Na investigação, segundo se observou, os sujeitos, embora evoquem um maior número de falas no modelo sonhado, quando passam para o concreto, o dia-a-dia de sua vivência na família constituída, Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 36 QUE TEIA É ESTA? REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS ADOLESCENTES SOCIOEDUCANDOS E EGRESSOS SOBRE FAMÍLIA reproduzem o modelo de família subscrita em sua família de origem. Os padrões se repetem: a filha criada pela avó deixa seu filho com a mãe; o adolescente que desconhece o pai abandona a companheira grávida. O tipo de vínculo estabelecido nas famílias de origem tem influência dominante na família constituída; esse convívio valida a aprendizagem, preparando cada pessoa para ser como é, viver como vive e vincular como vincula. Conforme Anton (2002, p.13): “Nós nos repetimos a nós mesmos, pois temos um modo de ser e de agir que nos são típicos, e a própria vida, de um modo geral, organiza-se ao redor e através de eventos que se repetem.” Esta afirmação corrobora Moscovici (2003), quando possibilita entender as ações humanas não somente como resultado de experiências acumuladas e de sistemas de disposições incorporados, mas também como produto da ação do indivíduo sobre si mesmo e sobre o mundo exterior. Tais comportamentos apreendidos são repetitivos também em virtude da própria vontade interior de cada um, que por vezes não encontra força para se diferenciar. São as motivações inconscientes, que não permitem o rompimento de círculos. O modelo sonhado pelos sujeitos na construção de sua família gravita na esfera do ideal. Expressa a negação de experiências de vida dolorosas às quais foram submetidos e que não gostariam que seus filhos passassem. Constitui-se como a desconstrução do modelo marcado por perdas. Por isto, eles travam uma luta interior entre o apreendido e a necessidade de se diferenciar. Um esforço para “não errar”, e assim oferecer o que consideram ser o melhor para sua família constituída. O modelo sonhado remonta à família pensada, trazendo as mesmas expectativas, fundadas na busca do amor eterno, na união definitva. Essa amostra pesquisada é, portanto, um extrato da sociedade que recebe influências externas e internas e tenta construir projetos de vida tão saudáveis quanto o de outros representantes da sociedade. No percurso de incidentes e envolvimento, esses projetos vão se desfazendo e outros caminhos vão sendo trilhados. A categoria 5 – Sentimentos – compreende as unidades de análise temática em que os sujeitos sinalizam os sentimentos vivenciados em relação à família, os quais foram agrupados nas seguintes subcategorias: saudade, amor e mágoa. Essa categoria remete à importância dos sentimentos do senso comum no processo de objetivação, pois os sentimentos internalizados pelos sujeitos ao longo de suas experiências sofrem influências do contexto social e se materializam como conceito, na medida em que sintetizam o pensamento do grupo, conforme Moscovici (2003): “Pessoas e grupos criam representações no decurso da comunicação e de cooperação. Representações, obviamente, não são criadas por um indivíduo isoladamente. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma vida própria.” Quanto ao Teste de Associação Livre de Palavras, tendo como estímulo a palavra “família”, as palavras mais evocadas foram: amor, união, paz, felicidade e apoio. As evocações dos dois grupos de sujeitos foram semelhantes. A única palavra evocada apenas pelo grupo de egressos, que se diferenciou, foi desunião, o que nos leva a conotação de que o adolescente egresso, por integrar o cotidiano familiar, tem uma concepção mais realista, pois está vivendo com as contradições inerentes ao convívio. Enquanto os adolescentes sócio-educandos, geograficamente distantes das famílias, são procurados por estas por ocasião das visitas, momento em que só recebem estímulos positivos. As famílias lhes dão conselhos, presentes e carinho, exercitam o cuidar, algo nem sempre praticado quando estão juntos, mas tão importante para esse segmento populacional que se encontra em uma condição peculiar de desenvolvimento. O processo das relações intrafamiliares tem como ponto de partida a troca da informação, identificada por meio da comunicação verbal e não verbal. A desunião expressa pelo grupo de egressos materializa-se no cotidiano como a falta de comunicação ou comunicações distorcidas entre os membros da família. Esta ambigüidade familiar, espaço de coexistência de opostos, termina por gerar conflitos, nem sempre fáceis de serem resolvidos. Conforme Minuchin (1999, p.25): As desavenças familiares são parte da vida, elas podem ser amargas e duras em qualquer família, mantidas pela questão não resolvida de quem está “certo”, por sentimentos feridos e pela frustração de esforços que parecem não dar em lugar algum. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 37 Rita de Cássia Sidney Marques Bessa et al Os padrões repetitivos das relações podem levar as pessoas a se magoarem mutuamente. Então a raiva, conseqüência das desavenças, pode ser internalizada, manifesta. Outras vezes, a raiva pode impulsionar os adolescentes para as drogas, a violência e ruptura dos laços afetivos. Famílias incapazes de tolerar as diferenças e desenvolver alternativas para dirimirem seus conflitos tendem a viver a eterna desunião. Contraditoriamente à desunião, o amor e união foram as evocações mais suscitadas pelos dois grupos, a sugerir na análise a consolidação do que foi explorado na primeira categoria referente à dimensão de família, onde a família vivida se alterna à família pensada. No universo simbólico dos sujeitos transita a sensação de conexão entre os membros da família, uma ligação, um vínculo, observados pelas evocações de palavras como: apoio, compreensão, convivência, conselho, companheirismo, paz e felicidade, que reafirmam o interesse em proteger, defender e apoiar uns aos outros. Subscrevem-se aqui os laços emocionais e histórias compartilhadas. Conforme sinalizam os resultados da pesquisa, a construção das representações sociais sobre família, elaboradas pelos adolescentes sócio-educandos e pelos egressos participantes da investigação, não apresentam diferenças significativas, embora em algumas evocações o grupo de adolescentes egressos tenha se expressado de forma mais realista, em virtude de, no momento da aplicação dos instrumentos de análise, já estarem convivendo com suas famílias, portanto, experenciando as dificuldades decorrentes do cotidiano familiar. 5 A TEIA A positivação de valores atribuídos à família desmistifica a lógica presente na sociedade, segundo a qual os adolescentes investigados são seres sem sentimentos. O senso comum tende a classificá-los como pessoas sem vinculações ou oriundas de famílias “desestruturadas”, e que são, em última análise, as responsáveis por seu comportamento. Objetivamente todas as famílias vivenciam experiências positivas e negativas, independente de classe social, raça ou cultura. Não é privilégio das famílias de adolescentes autores de atos infracionais conviver com os mais variados tipos de percalços, mas especificamente nesses casos os elementos socialmente apreendidos foram mobilizados para envolvimento no mundo das contravenções, até como resposta à sociedade. As elaborações dos sujeitos transitaram entre o vivido e o pensado na família, em uma dinâmica dialética, e ao mesmo tempo em que identificaram no vivido os conflitos e dificuldades, expressaram a família ideal, sem mácula, no pensado. Não deixaram, contudo, de mencionar o apoio e compreensão a eles devotados pelos familiares. Capra (1996) no seu livro intitulado A teia da vida transcende a visão holística e remete à visão ecológica ou sistêmica, que concebe o mundo todo integrado e afirma a interdependência fundamental de todos os fenômenos. Este referencial fundamenta a visão de família, entendida como um sistema vivo, dinâmico, cujas interações vão construindo uma intricada teia. Assim, não há este limite claro, que tentamos impor socialmente, entre os bons e os ruins, famílias certas e erradas, numa posição puramente cartesiana. Os conflitos são parte das interações, e a dança em busca do equilíbrio nos fios que vão se tecendo é que nos capacita na arte de tal convivência. A subjetividade presente em cada expressão elaborada pelo sujeito, o universo de signos emergidos no decorrer da pesquisa, da análise à inferência sobre os resultados, faculta o registro da esperança, a possibilidade de ressignificar histórias de vida marcadas pela violência, redefinindo sonhos e projetos interrompidos. Essa esperança se materializa na forma de investimentos em ações que envolvam o sistema familiar e a comunidade. Minuchin (1999) ressalta a importância de destacar as potencialidades da família, redefinindo os pontos negativos, para que as ações se concretizem nas soluções e na capacitação dos membros, respeitando suas opiniões e apoiando seus esforços. Neste sentido, é preciso repensar as intervenções até hoje realizadas nas instituições que trabalham com este segmento populacional, redefinindo estratégias. O trabalhar com as famílias não tem mais espaço para ações de cunho normativo ou “policialesco”, presentes em outros séculos. Necessário se faz a revisão em toda bibliografia atual para subsidiar um processo de atuação, onde a prática esteja amparada em pesquisas, em teorias e na própria constatação das lacunas ora existentes. Balizados na abordagem sistêmica e no senso comum que emergiu das elaborações dos sujeitos, Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 38 QUE TEIA É ESTA? REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DOS ADOLESCENTES SOCIOEDUCANDOS E EGRESSOS SOBRE FAMÍLIA fica, portanto, a recomendação de que a família deve ser trabalhada e não apenas o adolescente, isoladamente, sem suas conexões, validando programas que não sejam meramente paliativos e assistencialistas. A formulação de políticas públicas que invistam na família, por meio da educação social, uma educação além da educação formal e do paradigma do assistencialismo, numa política de inserção e combate à exclusão social, capacitando a pessoa humana para a construção de sua autonomia. Os programas deveriam investir no resgate das competências familiares, no apoio jurídico, em espaços de escuta, aconselhamento, cultura, lazer e serviços de apoio psicossocial. Assim sendo, certamente se conviveria com estatísticas bem menos assustadoras sobre violência e comprometimento do adolescente nas infrações. Mas o tema não se esgota nessa pesquisa. Sabe-se das limitações do estudo. Espera-se, portanto, que os resultados e sugestões possam contribuir para a melhoria no atendimento aos adolescentes autores de ato infracionais e às suas famílias, sendo um instrumento de consulta para os técnicos dessa área. Muitas contribuições sobre o tema deverão ser suscitadas a partir da investigação, considerando que a interseção da temática família e adolescente autor de ato infracional não tem sido alvo de investigações. A contribuição presente é apenas um fio. Outros há de se tecerem nesta teia infinitamente inesgotável do saber. DIAS, D. O retorno à delinqüência. O Povo, Fortaleza, 28 ago. 2003. Caderno 1. Fortaleza. p. 4. DOISE, W. Lês représentations sociales. In: GHIGLIONE, R; BONNET, C.; RICHARD, R. (Org.). Traité de psychologie cognitive. Dunod, Paris, v.2, p.111-174, 1990. GUARESCHI P. JOVCHELOVITCH S. (Org.). Textos em representações sociais 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD: síntese de indicadores 2002. Rio de Janeiro, 2003. JODELET D. As representações sociais. Rio de Janeiro: UERJ, 2001. MINUCHIN, P.; COLAPINTO, J.; MINUCHIN, S. Trabalhando com famílias pobres. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2008. MOSCOVICI, S. Representaçõs sociais: investigações em psicologia social. Tradução Pedrinho Guareschi. Petrópolis: Vozes, 2003. SZYMANSKI, H. Autoridade e papéis na família. In: CARVALHO, M. C. B. (Org.).A família contemporânea em debate. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2000. p. 23-27. VOLPI, M. Sem liberdade, sem direitos. São Paulo: Cortez, 2001. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTON, I.C. Homem e mulher: seus vínculos secretos. Porto Alegre: Artemed, 2002. BARDIN, L. Análise de conteúdo. 3. ed. Lisboa: Edições 70, 2004. BILAC, E. D. Convergências e divergências nas estruturas familiares no Brasil. In: BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente: Lei Federal n.º 8.069/90. Brasília, DF: Ministério da Justiça, 1990. CAPRA, F. A teia da vida: a nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução Newton Roberval Eichenberg. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 1996. CIBOIS, P. 1998. Programa Tri-Deux-Mots. (Versão 2.2). Paris: Ed. UFR/Sciences Sociales, 1998. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 39 litterarumradicesamaraefructusdulces A Loucura e a Abordagem da Mídia Impressa Cearense Élida Pires Cardoso1 Simone Gurgel Gondim2 Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos3 RESUMO: Na segunda metade dos anos 90, percebe-se na imprensa brasileira uma maior responsabilidade quanto à divulgação dos assuntos referentes à Reforma Psiquiátrica, ação que visava a uma melhoria na definição e no tratamento dado ao doente mental, além de propor uma atenção maior para com eles, iniciada nos primeiros anos dessa mesma década. Pela seriedade que esse fato representou a imprensa logo tratou de divulgá-lo. Pensando nisso, neste artigo apresentamos a abordagem jornalística como algo que deve ser considerado para entendermos melhor a influência, bem como a capacidade de propagar uma informação que a mídia possui. Para tanto, escolhemos utilizar como exemplo o Jornal Diário do Nordeste, por ser um veículo de grande circulação no estado do Ceará. O nosso objetivo foi demonstrar que o estudo da prática jornalística, em seus múltiplos aspectos que incluem a produção, a circulação e o consumo de textos, pode proporcionar o conhecimento das condições de emergência das questões sociais, nesse caso abordando a saúde mental. O referencial teórico é o da análise da postura jornalística diante de fatos inovadores e da Análise Crítica do Discurso. Fizemos consultas aos Jornais Diário do Nordeste, no período de 1990 a 1999. Bem como, análise de artigos e matérias referentes à Loucura, a Imprensa e a Reforma Psiquiátrica. Propomos, através da análise do discurso jornalístico, refletir se a influência da divulgação feita, promoveu ou não progressos na forma com que a sociedade pensa a “Loucura”, para assim termos consciência do poder da palavra de um profissional do jornalismo. ABSTRACT: In the second half of 90´s, the Brazilian press started to spread a bigger responsibility referring subjects of the Psychiatric Reformation, action that brought an improvement in the definition and the given treatment aimed at to the mental sick people, initiated in the first years of this same decade. For the seriousness that this fact represented to the press it was soon divulged largely. Thinking about this, in this article we present the journalistic boarding as something that must be considered to understand a better influence, as well as the capacity to propagate an information that the media brought. For in such a way, we choose to use as example the periodic Diário do Nordeste, for being a vehicle of great circulation in the state of Ceará. Our objective is to demonstrate that the practical study of journalism, in its multiple aspects that include the production, the circulation and the consumption of texts, can provide the knowledge of the conditions of emergency of the social matters, in this case approaching the mental health. The theoretical reference is the analysis of the journalistic position ahead of innovative facts. We made consultations to the periodic Diário do Nordeste, in the period of 1990 to 1999. As well as, referring analysis of articles and substances to Madness, the Press and the Psychiatric Reformation. We studied through the analysis of journalistic´s speech to reflect if the influence spreaded, promoted or brought progress in the form with the way that society thinks about “Madness”. 1. Élida Pires Cardoso, aluna de graduação em jornalismo da Faculdade Integrada do Ceará. 2. Simone Gurgel Gondim, aluna de graduação em jornalismo da Faculdade Integrada do Ceará. 3. Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos, graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará (1987), especialista em Língua Portuguesa pela Universidade Estadual do Ceará, mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará e professora assistente da Universidade Estadual do Ceará e da Faculdade Integrada do Ceará. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 41 Palavras-chave: Loucura. Mídia. Análise do Discurso. Key-words: Mídia. Madness. Élida Pires Cardoso et al 1 INTRODUÇÃO Percebemos que o índice de preconceito existente no Brasil ainda é amplo. Somente para citar alguns exemplos, temos: a opção sexual, religião, condição social e inclusive, como no caso do nosso artigo, o estado emocional e psicológico das pessoas. Passado esse momento, analisamos os discursos midiáticos nos Jornais do “Diário do Nordeste”, no período de 1996 a 1999. Escrever sobre a Loucura na mídia impressa cearense pode ser bastante complexo, principalmente quando constatamos a influência dos valores sócio-culturais que condenam qualquer atitude relativa aos indivíduos que possuam diferenças, podendo até repercutir na sua marginalização. O que acontecia e, certas vezes, ainda acontece é um desapego que ocasiona na exclusão social dos doentes mentais, tudo isso porque a sociedade os tinha como uma ameaça. Nos documentos oficiais relativos à Reforma Psiquiátrica é evidente o valor dado aos meios de comunicação de massa, pois para que esse movimento virasse realidade era necessário o apoio de órgãos que trabalhassem com serviço direto a população, divulgando e conscientizando sobre as questões sociais. Considerando que o intuito deste artigo é trabalhar com o conteúdo dos textos jornalísticos, vimos na mídia impressa cearense uma forma de analisar melhor a abordagem feita sobre o Movimento pela Saúde Mental. A mídia por divulgar conceitos sobre os mais variados temas, concebe que sejam questionadas as suas formas de fazer esse trabalho. Além disso, temos de considerar o fato de os jornalistas serem, para o senso comum, um sinônimo quase perfeito de “formadores de opinião”. Portanto, considerando o poder de influência dos meios de comunicação sobre a “massa” coletamos materiais referentes a alguns anos do período da Reforma Psiquiátrica e analisamos se essa Reforma provocou ou não mudanças no pensamento das pessoas em relação aos loucos. Afinal, as pessoas que tem acesso às opiniões manifestadas pelos meios de comunicação são levadas a refletir sobre os assuntos que tem em mãos. Depois disso, o consumidor da notícia pode incorporar ou abdicar do que está exposto no texto lido. De acordo com Machado (2004), o sujeito que discorda do que lê faz o mesmo trajeto cognitivo ao discutir e/ou negar o que está sendo divulgado, reforçando e reelaborando suas opiniões, que também irão determinar sua subjetividade e sua condição de ser social. Há, nos dois casos, um processo individual e coletivo em que são revistos seus códigos pessoais de valor, suas crenças e suas ideologias. Falando em subjetividade, quando estudamos Fairclough (1989) vemos a afirmação de que as pessoas são aprisionadas e constrangidas por convenções sociais em que formam suas “supostas subjetividades”, suas identidades. E de modo correspondente, essas pessoas manipulam a fala com propósitos estratégicos a contextos diferenciados. Os discursos são considerados como práticas sociais determinadas pelo contexto sócio-histórico, mas não deixam também de ser partes constitutivas desse mesmo contexto. Então, se todo discurso expressa fatos pessoais de quem escreve como no discurso jornalístico seria diferente? Muitos estudiosos e manualistas afirmam que a neutralidade na mídia não existe, pois o discurso deixa transparecer nossas opiniões, que quando se tratam de jornalistas acabam estabelecendo relações com poder de persuasão. Isso ocorre, porque a comunicação jamais se reduz à transmissão das mensagens de origem ou ao transporte de informações inalteradas. Ela diferencia, traduz, interpreta e combina, assim como os grupos inventam, diferenciam, ou interpretam os objetos sociais ou as representações de outros grupos (MOSCOVICI, 1978). Por fim, avaliamos se há uma modificação no ponto de vista da loucura e da reintegração do doente mental. E foi a partir dessa avaliação, que despertou em nós o interesse de pesquisar como foi conduzida a discursivização da mídia impressa cearense acerca da loucura e da Reforma Psiquiátrica. 2 A HISTÓRIA DA IMPRENSA NO BRASIL A Imprensa Régia, fundada no Rio de Janeiro em 1808, deu início à imprensa escrita no país. O primeiro periódico brasileiro, A Gazeta do Rio de Janeiro, tinha a função de divulgar toda a informação oficial emanada do Poder Real. Os periódicos produzidos pela iniciativa privada apareceram mais tarde. A Idade d’ouro do Brasil publicado em 1811 na Bahia, foi o primeiro periódico produzido pela iniciativa privada de circulação regular no país. Dom João VI, em 1821, decretou a abolição da censura prévia e regulou a liberdade de imprensa. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 42 A LOUCURA E A ABORDAGEM DA MÍDIA IMPRESSA CEARENSE Porém, a primeira Lei de Imprensa portuguesa, foi Há, desde o princípio, um empecilho em estaintroduzida no Brasil somente no fim desse mesmo belecer um termo universal para denominação ano. de pessoas consideradas como doentes mentais. A Constituição de 25 de março de 1824 passou a A dificuldade maior é averiguar as características vigorar incluindo a seção que tratava das garantias mais perceptíveis em uma pessoa com desequilídos direitos civis e políticos dos cidadãos, bem brio psico-orgânico que não sejam semelhantes como a liberdade de expressão de pensamento, ou não se apresentem nas pessoas ditas como reformulando alguns dos princípios que vinham normais. A partir do nosso estudo consideramos desde a Idade Medieval. Declarava que: “Todos o arquétipo de normalidade como sendo algo podem comunicar os seus pensamentos por pa- complexo e difícil de ser delimitado, haja vista lavras, escritos, e publicá-los pela imprensa sem que o limite entre a saúde e a doença mental, por dependência de censura, contanto que haja de vezes, pode ser bastante sutil. Então, que tipo de responder pelos abusos que cometerem no exer- pessoa poderia ser considerado normal? cício desse direito, nos casos e pela forma que a lei determinar”(Art.179,n°4).(BRASIL, 1824, p. 13) Como a medicina orgânica. A medicina mental tentou, Os meios de comunicação são os elementos mais inicialmente, decifrar a essência da doença no agrupautilizados pela população para que se mantenham mento coerente dos sinais que a indicam. Constituiu uma sistematologia na qual são realçadas as correlainformados. Portanto, o jornalismo tem o dever de insistir na maior transparência para informar ções constantes, ou somente freqüentes, entre tal tipo o público com a mais alta fidelidade, com imparde doença e tal manifestação mórbida: a alucinação auditiva, sintoma de uma estrutura delirante; a concialidade e equilíbrio. A partir disso, buscamos fusão mental, sinal de tal forma demente. Constituiu, saber qual o tipo de informação que recebemos e a qualidade com que ela vai ser passada adiante. analisadas as próprias formas da doença, descritas as Se o papel do jornalismo é, desde sua criação, fases de sua evolução, e restituídas as variantes que servir ao público sempre buscando mostrar a ela pode apresentar: haverá as doenças agudas e as verdade dos fatos, então entendemos que ele deve crônicas, as alternâncias de sintomas, e sua evolução cumprir esse papel independente do leitor para o no decorrer da doença. (FOUCAULT, 1994, p.9) qual ele passa as informações. Estamos nos referindo ao caso de doentes mentais que precisaram, O que ocorre no caso da loucura é que, diferennaquela época, e ainda hoje precisam de que a temente das outras doenças, não existem provas mídia os veja como cidadãos portadores de uma laboratoriais para diagnosticá-la. Para a psiquiatria doença que necessita de tratamento e não como a única forma de diferenciar a sanidade da loucura pessoas periculosas. Com essa postura, a mídia vai é por meio da fala, da conversação, do discurso despir a sociedade de certos preconceitos e ajudar do paciente e dos dados obtidos pelos familiares. até mesmo as famílias, informando-as. Por situ- Com isso, não há como negar que o transtorno ações como essas é que os meios de comunicação mental é diagnosticado a partir da subjetividade necessitam ter consciência do intenso poder que dos especialistas nessa área. exercem no momento de propagar um episódio e Desde o século passado, as doenças mentais fopromover uma ação social. ram divididas em cinco grupos: neuroses, psicoses, Todo cidadão tem direito a receber informa- psicopatias, retardo mental e demências. Na tentação, direito o qual é garantido em todo o mundo tiva de uma melhor sistematização e conceituação expresso pela Declaração Universal dos Direitos entre as comunidades a Classificação Internacional do Homem, de 1948, que estabelece, no artigo de Doenças (CID-10) distribuiu os transtornos 19, o direito a liberdade de expressão, que inclui mentais da seguinte forma: •• Transtornos mentais orgânicos, incluindo a liberdade de “procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e indeos sintomáticos; pendentemente de fronteiras”. •• Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de substâncias psicoativas; 3 A LOUCURA E O MOVIMENTO DA REFORMA •• Esquizofrenia, transtorno esquizofrênico e deliPSIQUIÁTRICA rantes mudanças de humor ligado à afetividade; Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 43 Élida Pires Cardoso et al •• Transtornos neuróticos, relacionados ao estresse e sematoformes; •• Síndromes comportamentais associados a perturbações fisiológicas e fatores físicos; •• Transtornos de personalidade e de comportamento em adultos; •• Transtornos emocionais e de comportamento iniciadas usualmente na infância e adolescência; •• Retardo mental; •• Transtornos do desenvolvimento psicológico; •• Transtornos mentais não especificados. Para entendermos como ocorreram os episódios que contribuíram para dar início às discussões sobre loucura e a Reforma Psiquiátrica é necessário fazer uma abordagem dos fatos. No Brasil, os loucos eram mantidos em suas casas e assim, conservava-se tímida a discussão da saúde mental. Além disso, por ficarem isolados não recebiam o atendimento necessário para tratar de suas doenças. O primeiro hospital psiquiátrico data de 1852 no Rio de Janeiro por D. Pedro II, herdando inclusive seu nome. Pouco tempo depois disso, outras Santas Casas, asilos e manicômios foram criados pelo Brasil. Nessa época, eram freqüentes as denúncias de maus-tratos aos indivíduos com transtornos mentais, além de serem precárias as alternativas de auxílio propriamente dito. Depois de tantas insinuações uma atitude foi tomada, nos anos 40 foi criado o Serviço Nacional de Doença Mental, pena que ainda sem tantas novidades na parte auxiliar. Os anos 50 e 60 foram de carências na assistência dada aos indivíduos acometidos pela loucura. As superlotações dos leitos privados oferecidos pelo Estado culminaram nas discussões entre o Brasil e a América Latina para reformular e organizar a saúde mental, pretendendo um atendimento mais humano aos pacientes. Afinal, até esse momento as instituições psiquiátricas eram como uma empresa que visava seus lucros, apenas com a diferença de ter o conhecimento psiquiátrico. Esse fato é bastante importante de ser falado, pois ele é semelhante ao que ocorre, hoje, com os asilos de idosos. Mais tarde, um grupo conhecido por Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, induziu as discussões contra a privatização da saúde, dadas as particularidades e deformações do sistema psiquiátrico brasileiro (LIMA; TEIXEIRA, 1995). Um outro conceito muito importante assumido pelo grupo é o da ressocialização, reforçando a idéia de desmontar os dispositivos institucionais de cronificação, quais sejam a falta de individualidade, o tratamento impessoal, o abuso de psicofármacos, o distanciamento da realidade social e familiar, entre outros (DELGADO, 1987). Apenas no ano de 1987, quando já existiam os asilos e manicômios e também posteriormente as mobilizações de alguns psiquiatras e técnicos em saúde mental a favor da Reforma Psiquiátrica, houve a I Conferência Nacional de Saúde Mental. Em 1992 ocorreu a II Conferência. O primeiro passo dessa reforma foi dado pelo Estado de São Paulo, ao instalar um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) na capital. Em seguida, no Estado do Ceará foi criado o CAPS de Iguatu, reformando a assistência dada aos doentes mentais nesse local. Em 1990, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgaram um documento intitulado: A reestruturação da atenção psiquiátrica na América Latina: uma nova política para os serviços de Saúde Mental, que ficou conhecido como a Declaração de Caracas (OPAS, 1990). As organizações, associações, autoridades, legisladores e juristas que, reunidos, estabelecem a Declaração de Caracas, instam aos Ministérios de Saúde e de Justiça, aos Parlamentos, aos Sistemas de Seguridade Social e a outros prestadores de serviços, organizações profissionais, associações de usuários, universidades e outros centros de treinamento e aos meios de comunicação de massa a que apóiem a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica assegurando, assim, seu desenvolvimento exitoso em benefício das populações da Região (OPAS, 1990). Através dos dados acima, é possível percebermos como o papel do jornalismo, nesse caso o impresso, tornou-se ainda mais importante, pois ele é utilizado como fonte para adquirir conhecimento e por isso são tratados com a devida importância nos documentos referentes à Reforma Psiquiátrica. 4 DISCURSSÃO METODOLÓGICO Esta é uma pesquisa bibliográfica e documental em que a metodologia utilizada foi dividida em três momentos relacionados: primeiro, pesquisamos e fizemos uma seleção teórica sobre a Loucura, assim como lemos a respeito do poder de persuasão do Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 44 A LOUCURA E A ABORDAGEM DA MÍDIA IMPRESSA CEARENSE discurso da mídia. Assim, buscamos avaliar como foram tratados os casos que abordavam a Reforma Psiquiátrica e a loucura. Utilizamos a denominação da Classificação Internacional de Doenças (CID), pois assim pudemos nos referir de forma mais adequada à loucura. Segundo, fizemos consultas nos arquivos do “Diário do Nordeste” do período de 1996 a 1999. Além disso, foi feito um levantamento considerando os artigos, livros e publicações disponíveis na internet, referentes à Loucura, Saúde Mental, Categorização, Reforma Psiquiátrica, Análise do Discurso e Representações Sociais. Por último, fizemos a classificação do material coletado, bem como analisamos as informações e discutimos os resultados para concluir o presente artigo científico. 5 ANÁLISE DE DADOS A análise foi feita a partir das matérias publicadas no Jornal Diário do Nordeste e da abordagem de uma crítica do discurso jornalístico. A seleção incluiu além das reportagens, os artigos e os textos divulgados na internet. Buscamos analisar a construção dessas publicações, enfocando as mudanças de posicionamento entre as instituições públicas e privadas, entidades médicas e o próprio profissional de jornalismo quanto à Reforma Psiquiátrica. Tentamos verificar os pontos que refletem a postura jornalística em presença das informações obtidas nos Jornais Diário do Nordeste. Evidenciamos, portanto, a relevância de avaliar o discurso de um dos jornais de maior circulação do Ceará sobre a loucura na segunda metade dos anos 90, com o objetivo de promover nos estudos do jornalismo a formação de uma consciência das relações sociais de poder constituídas através da linguagem. Embora o discurso sobre doença mental tenha tido mudanças significativas e a Reforma Psiquiátrica esteja em processo de desenvolvimento, procuramos investigar se alguns dos temas ligados às doenças mentais ainda permanecem inalterados. 5.1 Análise dos textos jornalísticos Inicialmente, fizemos uma análise dos textos jornalísticos dos anos 1996, 97, 98 e 99. Constatamos que houve nesse período, inovadoras e criativas notícias sobre propostas de cuidar dos sujeitos com transtornos mentais; discussões sistemáticas sobre o tratamento através de medicamentos e através da psicanálise; experiências em decorrências dos novos conceitos de assistência psicossocial em saúde mental. Em seguida ao processo de conclusão da análise dos discursos midiáticos, onde utilizamos como parâmetro o Jornal Diário do Nordeste, obtivemos como resultados: É importante relevar que a notícia do ano de 1996 “Reintegração social do doente mental”a qual selecionamos, foi escolhida por diversos fatores, entre eles: o fato de mostrar o interior do Ceará desenvolvendo projetos envolvidos com as questões sociais; informar sobre esse projeto que é tão significante para os doentes e suas famílias; a opção de divulgar esse plano, porque pode representar uma forma de incentivo para outros hospitais adotarem o mesmo sistema. Podemos verificar na reportagem uma preocupação em falar sobre aqueles que sofriam por ser excluídos da sociedade, através da explicação dos médicos voltadas para os familiares dos doentes. O texto apresenta um conteúdo primordialmente informativo, porque não demonstra a opinião do jornalista, ou seja, há uma busca pela neutralidade do informante. No que diz respeito à matéria de 1997 “Terapeutas comunitários serão treinados pela UFC”, podemos dizer que ela é semelhante a do ano anterior. Porém, apresenta dois pontos fortes e diferentes. O primeiro deles é por divulgar um Programa desenvolvido em uma favela de Fortaleza, ou seja, mostrando que nas favelas não há somente miséria e tristeza. O segundo ponto é a questão do Projeto trabalhar no sentido de amparar a comunidade para que ela não se sinta mais ameaçada, mas de que forma isso é feito? Como a reportagem demonstra é através do uso de terapias corporais nos pacientes no sentido de melhorar a violência e o stress deles. No ano de 1998 escolhemos uma matéria que relaciona a condição social com a doença mental. Inferimos que o Diário do Nordeste procurou alertar-nos que mesmo depois de tantos anos do início da Reforma Psiquiátrica, mesmo que tenham sido desenvolvidas tantas ações em prol dos doentes mentais, eles ainda são vítimas da exclusão social. O título “Doentes mentais vivem no canteiro da avenida”, já deve ter sido escolhido Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 45 Élida Pires Cardoso et al no sentido de causar impacto diante do leitor, para que dessa forma, ele seja induzido a refletir melhor sobre os casos como esses. Porém, como futuras jornalistas, não podemos deixar que passem despercebidas algumas falhas sérias cometidas nessa matéria. A primeira foi levar em consideração somente o testemunho dos pedintes, afinal onde fica o jornalismo que mostra diversas versões de uma mesma história? Até é citado no início da reportagem que os moradores estão se sentindo incomodados com certas atitudes dos mendicantes, afirmando até mesmo que eles não são normais, mas não entendemos porque não há uma opinião médica a respeito desse assunto. Além disso, Luís Rodrigues, o mais velho dos quatro mendigos, cita que o Instituto de Psiquiatria do Ceará não o aceita mais. Daí surge a seguinte indagação: onde está a resposta do Instituto para explicar o acontecido? Ou seja, nesse momento o jornalismo investigativo ficou esquecido. No último ano da década de 90 “Psiquiatras só internam em último caso”, período da Reforma Psiquiátrica, os textos a respeito de psiquiatria são bem elaborados, entre eles, escolhemos um que abordava os psiquiatras que só concordam com a internação quando diagnosticado que o paciente não pode, ou não tem condições de fazer o tratamento em casa, assim explica o psiquiatra da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (Sesa), Airton Monte, na entrevista cedida ao Diário do Nordeste, onde se discutiu a possibilidade de um doente mental praticar um crime. Avaliamos que com essas exposições de informações a mídia auxilia na diminuição dos preconceitos e medos da sociedade em relação aos loucos, também mostra com a explanação dos fatos o quanto é extremista dizer que todo louco é perigoso, assim como, somente para citarmos outro exemplo, avaliar que todo morador de favela é ou está envolvido com a malandragem. O importante ao analisarmos diversas matérias sobre um mesmo assunto é que podemos ampliar nosso panorama de avaliação. No nosso caso, a loucura e a mídia impressa cearense, entendemos que ocorreram discussões sistemáticas para a melhoria no tratamento dos doentes. Além disso, vimos que foram divulgadas informações no intuito de proporcionar aos leigos na área de medicina um melhor entendimento do assunto, exploraram ainda histórias sobre internos, o que avaliamos como sendo positivo, pois sensibilizando a população ela será muita mais consciente de seus atos, consequentemente, diminuirão as atrocidades cometidas com os doentes mentais. Houve ainda matérias de fiscalização da imprensa com relação aos avanços na Reforma. “Hoje já existe, porém uma mudança de postura na compreensão da loucura que contesta o isolamento do doente mental. Todavia a exclusão desse doente dos direitos à cidadania ainda situa-se na sociedade que institui a razão como conceito fundamental para o homem”. (TEIXEIRA; MEDINA, 2002, p. 04). 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A mídia é incumbida de divulgar diversos assuntos, sejam eles polêmicos ou não. Em relação ao nosso objeto de estudo, as matérias da segunda metade dos anos 90, no Jornal Diário do Nordeste, percebemos que os textos evidenciam a complexidade e polêmica das discussões em torno do tema loucura. Essa complexidade é iniciada, principalmente, pelo preconceito e desinformação da população daquela época. Do mesmo modo, os próprios especialistas declaram viver situações controvérsias em relação à Saúde Mental que dissimulam ou não as mudanças, criam referências e, de diferentes formas, deduzimos que também incita as inovações das políticas governamentais. Percebemos, por meio do material coletado, que o Brasil e mais especificamente o Ceará, acompanhou de perto o caminhar da Reforma Psiquiátrica, divulgando os conceitos e a nova linguagem adotada para descrever a doença mental e apoiando uma assistência digna. Concluímos que várias propostas, debates e encontros surgiram à medida que os preconceitos e os medos foram diminuindo, mesmo que isso tenha ocorrido lentamente. Por meio desse estudo, constatamos que o atendimento ao doente mental, aliado a divulgação praticada nos meios de comunicação, teve ampla melhoria. Entre as principais constatações do que acabamos de escrever está a aprovação da lei conhecida por “lei antimanicomial”. Essa lei abrange a delicada questão do aniquilamento dos cárceres privados e a sua substituição por outros recursos assistenciais, regulamentando a internação psiquiátrica compulsória. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 46 A LOUCURA E A ABORDAGEM DA MÍDIA IMPRESSA CEARENSE Vale ressaltar que este artigo pretendeu, entre outros fatos, a partir da leitura selecionada de textos jornalísticos, chegar a temas que têm sido transmitidos pela imprensa, temas estes que podem favorecer ou não a desmistificação da loucura, permitindo uma visão consciente e crítica da assistência ao sujeito doente mental e criando uma condição de tolerância ou não para o cidadão diferente. Gostaríamos de inserir a reflexão de que apesar da ênfase dada, diariamente, pelos Jornais para assuntos relacionados a questões sociais ou políticas, vemos, em nosso cotidiano, que ainda existe uma falha na investigação desses temas, inclui-se ainda a linguagem, o poder e a discriminação. Por essa razão, consideramos relevante realizar escrever sobre temas tão condenados socialmente, como a Loucura. Por fim, precisamos lembrar que os meios de comunicação, através da sua divulgação de conhecimento, foram um dos responsáveis por hoje a população aceitar com mais respeito àqueles que demonstram alguma diferença. PECHÊUX, M. Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1997. PINTO, M. J. Comunicação e discurso: introdução à análise do discurso. 2.ed. São Paulo: Hacker Editores, 2002. RAJAGOLAPAN, K.O. Lugar da lingüística no estudo da linguagem. São Paulo: Louise, 1997. TRAQUINA, N. O Estudo do Jornalismo no Século XX. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2003. THOMPSON, J. Teoria social critica na era da comunicação de massa: ideologia e cultura moderna. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. TEIXEIRA; M. A “loucura” nos jornais: um estudo da categorização, [S.l]: [s.n], 2002. REFERÊNCIAS CARVALHO, K. de. Imprensa e informação no Brasil, século XIX. Ciência da Informação, Brasília, Brasília, v.25, n. 3, junho, 1996. FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. 7.ed. São Paulo: Ática, 2003. FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. . A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1998. . Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1972. . História da loucura. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 1995. GOHN, M. G. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997. MACHADO, A. L. Reforma psiquiátrica e mídia: representações sociais na Folha de São Paulo, 2004. Mimeografado. MARIANI, B. Discurso e Instituição: a Imprensa. Rua Campinas, São Paulo, n.5, p.47-61, 1999. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 47 litterarumradicesamaraefructusdulces A leitura: aprendizado, estímulo e formação de leitores no Brasil Gerlândia Soares Araújo Rodrigues1 Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos2 RESUMO: A leitura é essencial para a vida social dos seres humanos. No Brasil, em razão das falhas no ensino de base, os professores encontram dificuldades na formação de leitores conscientes, aptos a dominarem o processo de leitura, compreendendo textos e fixando informações destes. Embora os fatos sejam relatados por meio da escrita, é através da leitura que são interpretados seus signos, permitindo a efetivação de mensagens. Neste quadro, releva-se o caráter de complementaridade da escrita com a leitura, sendo importante discutir-se o processo desta, seus mecanismos e vícios, a maneira de torná-la mais eficiente, buscando-se maior velocidade e absorção de informações. Questão não menos importante é a da necessidade de se incentivar a leitura entre os brasileiros, os quais, em sua maioria, possuem baixo poder de aquisição de livros, mesmo sendo esses isentos de impostos pela Constituição Federal de 1988. ABSTRACT: The reading is essentia1 for the social life of the human beings. In Brazil, in reason of the imperfections in the base education, the professors fmd difficulties in the formation of conscientious, apt readers to dOlllinate the reading process, understanding texts and fixing information of these. Although the facts are told by llleans of the writing, it is through the reading that are interpreted its signs, allowing the efetivação of messages. In this picture, the character of complementaridade of the writing with the reading is raised, being important to argue the process of this, its mechanisms and vices, the way to become it more efficient, searching bigger speed and absorption of infornlation. Less important question is not the necessity to stirnulate it reading between the Brazilians, which, in its majority, possess low power of acquisition of books, exactly being these exelllpt ones of taxes for the Federal Constitution of 1988. 1 INTRODUÇÃO capacitadas, como forma de mudar a realidade educacional brasileira. O trabalho ora em comento desenvolveu-se precipuamente na pesquisa bibliográfica, com seleção de textos e fichamentos dos mesmos, com abordagem do tratamento didático da leitura, do aprendizado inicial desta, de como os professores podem estimulá-la e a formação de leitores. Em nosso país, as escolas enfrentam um grande desafio quanto à prática da leitura e escrita. A maioria dos alunos lê diante de uma obrigação escolar e como se estivesse carregando um fardo muito pesado, haja vista não possuir o menor interesse despertado para o mundo dentro dos livros. Diante disso, aos educadores surge uma As dificuldades vividas em sala de aula, posto a interferência no aprendizado pela falta de leitura dos discentes, somando-se a isso problemas sociais brasileiros como deficiência alimentar e trabalho infantil, ensejam uma discussão destes aspectos no aprendizado, dedicando-se este trabalho específico estudo sobre o processo de leitura. A criança em idade escolar deve desenvolver o interesse e prazer na leitura, bem como na produção de textos, isto podendo concretizar-se mediante o estudo realizado pelos docentes de técnicas-pedagógicas para aproximar os alunos da leitura, com a prática desta orientada por pessoas 1. Graduanda em Letras Português – Literatura pela Universidade Estadual do Ceará; 2. Professora da Universidade Estadual do Ceará e da Faculdade Integrada do Ceará. Coordenadora do Centro de Estudos da Linguagem da UECE. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 49 Palavras-chave: Leitura. Incentivo da leitura. Capacitação de professores. Key-words: Reading. Incentive of the reading. Qualification of professors. Élida Pires Cardoso et al indagação: como a formação teórico-metodológica pode auxiliar o professor nas atividades da leitura e escrita aplicadas ao ensino fundamental? Ora, a consecução da pratica da leitura e escrita pelas crianças como forma prazerosa, somente pode ser vislumbrada com a realização mesmo de estudos, ultimando-se a descoberta de métodos e técnicas para este fim. Esta é a forma de garantir às crianças o conhecimento do mundo imaginário, bem como o desenvolvimento de um senso crítico sobre o real, adquirindo cultura e integrando-se à vida em sociedade como um cidadão. 2 A LEITURA E A ESCRITA: PROCESSOS QUE SE INFLUENCIAM A leitura e a escrita, embora sejam apresentadas como dois sub-blocos, complementam-se fortemente, modificando-se mutuamente no processo de letramento. pelo autor na elaboração do texto (se o texto é em primeira ou terceira pessoa, se é um texto irônico ou metafórico, etc.). Os trabalhos com a leitura têm como finalidade a formação de leitores consciente e, consequentemente, a formação de bons escritores, pois a possibilidade de produzir textos eficazes tem sua origem na prática da leitura, espaço de construção da intertextualidade e fonte de referências modalizadoras. A leitura, por um lado, nos fornece a matéria prima para a escrita: o que escrever. Por outro, contribui para a constituição de modelos: como escrever. Assim, a leitura nos permite entender os mecanismos da língua escrita, como também nos fornece ideais para a escrita. 3 O PROCESSO DE LEITURA E O ESTÍMULO A ESTA A leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção do significado do texto a partir dos seus objetivos, do seu conhecimento do assunto, sobre o autor, de tudo que se sabe sobre a língua: características do gênero, do portador, do sistema de escrita e etc. Não se trata simplesmente de extrair informações da escrita, decodificando-a letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica, necessariamente, compreensão na qual os sentidos começam a ser constituídos antes da leitura propriamente dita. A leitura consiste, pois em um processo perceptivo-linguístico bastante complexo, que a maioria das pessoas desenvolve rapidamente e que toma Os autores Terra e Nicola (1996, p. 10), entendem forma através da educação. No entanto, o processo que o pensamento, sendo expresso por palavras e de leitura em si varia de indivíduo para indivíduo, registrado por intermédio da escrita, é interpretado dependendo de fatores tais como idade e maturano momento da leitura aduzindo que: ção, sexo, hereditariedade, experiência cultural, instrução, prática e motivação. Como essas atividades estão intimamente relacionadas, O leitor experiente que conseguir analisar sua podemos concluir que: quem não pensa (ou pensa mal) própria leitura constatará que a decodificação é não escreve (ou escreve mal); quem não lê (ou lê mal) apenas um dos procedimentos que utiliza quando não escreve (ou escreve mal)”. “Ler, portanto, é fun- lê: a leitura fluente envolve uma série de outras. damental para escrever. Mas não basta ler - é preciso Estratégias com seleção, antecipação, inferência entender o que se lê. Entender o que se lê significa ir e verificação, sem as quais não é possível rapidez e proficiência. É o uso desses procedimentos que além do simples reconhecimento do significado das palavras que aparecem no texto. É preciso, também, permite controlar o que vai ser lido, tomar decisões compreender o sentido das frases, para que se alcance diante de dificuldades de compreensão, arriscara finalidade maior da leitura: a compreensão das ideias -se diante do desconhecimento, buscar no texto a comprovação das suposições feitas e etc. e, num segundo momento, os recursos utilizados A relação que se estabelece entre leitura e escrita, entre o papel de leitor de escritor, no entanto, não é mecânica: alguém que lê muito não é, automaticamente, alguém que escreve bem. Pode-se dizer que existe uma grande possibilidade de que assim seja. É nesse contexto, considerando que o ensino deve ter como meta formar leitores que sejam também capazes de produzir textos coerentes, coesos, adequados e ortograficamente escritos, que a relação entre essas duas atividades deve ser compreendida (TERRA; NICOLA, 1996, p. 50-53). Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 50 A LEITURA: APRENDIZADO, ESTÍMULO E FORMAÇÃO DE LEITORES NO BRASIL Um leitor consciente é alguém que, por iniciativa própria, é capaz de selecionar, dentre os trechos que circulam socialmente, aqueles que podem atender a uma necessidade sua, conseguindo utilizar estratégias de leitura adequadas para abordá-las de forma a atender a essa necessidade. Formar um leitor consciente pressupõe dar subsídios para compreender o que lê e que possa aprender a ler também o que não está escrito, identificando elementos implícitos, estabelecendo relações entre o texto em foco com outros, identificando os vários sentidos possíveis do texto, justificando e validando a leitura a partir da localização de elementos discursivos. A consciência literária ora aludida advém da constante leitura, baseada em textos diversos focados em ramos sociais diversos. Esse trabalho pode envolver todos os alunos, inclusive aqueles que ainda não sabem ler convencionalmente o sistema alfabético, por exemplo. A leitura na escola tem sido, fundamentalmente, um objetivo de ensino, sendo que, para constituir também objeto de aprendizagem, é necessário que faça sentido para o aluno, isto é, a atividade da leitura deve responder, do seu ponto de vista, aos objetivos da realização imediata. Como se trata de uma prática social complexa, se a escola pretende converter a leitura em objeto de aprendizagem deve preservar sua natureza e sua complexidade, sem descaracterizá-la. Significa, mesmo, trabalhar com a diversidade de textos, combinações entre estes, bem como de objetivos e moralidade que caracterizam a leitura, ou seja, diferentes “para quês” r esolver um problema prático, informar-se, divertir-se, estudar, escrever ou revisar o próprio texto - e com as diferentes formas de leitura em função de variados objetivos e gêneros: ler buscando as informações relevantes ou o significado implícito nas entrelinhas, ou dados para a solução de um problema. Torna-se necessário superar algumas concepções sobre o aprendizado inicial da leitura: a principal delas é a de que ler é simplesmente decodificar, converter letras em sons, sendo a compreensão consequência natural dessa ação. Por conta dessa concepção equivocada, a escola vem produzindo grande quantidade de “leitores” capazes de decodificar qualquer texto, mas com enormes dificuldades para compreender o que tentam ler. O conhecimento atualmente disponível a respeito do processo de leitura indica que não se deve ensinar a ler por meio de práticas centradas na decodificação. Ao contrario, é preciso oferecer aos alunos inúmeras oportunidades de aprenderem a ler usando os procedimentos que os bons leitores utilizam - antecipando, fazendo inferências a partir do contexto ou do conhecimento prévio que possuem, que verifiquem suas suposições tanto em relação à escrita, propriamente, quanto ao significado. É disso que se está falando quando se diz que é preciso “aprender a ler, lendo”. É preciso interagir com a diversidade de textos: os escritos, testemunhar a utilização que já os leitores fazem deles a participar de atos de leitura de fato. A leitura, como prática social, é sempre um meio, nunca um fim. Ler e responder a um objetivo, a uma necessidade. Fora da escola, não se ler de uma única forma, não se decodifica palavra por palavra, não se responde a pergunta de verificação do entendimento preenchendo fichas exaustivas, não se faz desenho sobre o que mais gostou e raramente se lê em voz alta. Isso não significa que na escola não se possa eventualmente responder a perguntas sobre leitura, de vez em quando desenhar o que o texto lido sugere, ou ler, ou ler em voz alta quando necessário. No entanto, uma prática constante de leitura não significa a repetição infindável dessas atividades escolares. A constante leitura na escola pressupõe o trabalho com a diversidade de objetivos, modalidades e textos que caracterizam as práticas de leitura de fato. Diferentes objetivos exigem diferentes textos e, cada qual, por sua vez, exige uma modalidade de leitura. Há textos que podem ser lidos apenas por partes, buscando-se a informação necessária; outros precisam ser lidos exaustivamente e várias vezes. Têm ainda aqueles que podem ser lidos rapidamente, outros devem ser lidos devagar, bem como existem leituras em que é necessário controlar atentamente a compreensão, voltando atrás para se certificar do entendimento; outros que se segue adiante sem dificuldades, entregue apenas ao prazer de ler. Por sua vez, existem leitores que requerem um enorme esforço intelectual e, a despeito disso, se deseja ler sem parar; outros que o esforço é mínimo e, mesmo assim, o desejo é deixá-las (as leituras) para depois. Uma prática constante de leitura na escola deve admitir várias leituras, pois outra concepção que deve ser superada é a do mito da interpretação única, fruto do pressuposto de que o significado está dado Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 51 Élida Pires Cardoso et al no texto. O significado, no entanto, constrói-se 4 AUMENTANDO O DESEMPENHO E ELIMINANDO OS VÍCIOS NA LEITURA pelo esforço de interpretação do leitor, a partir não só do que está escrito, mas do conhecimento que traz para o texto. É necessário que o professor A maioria dos leitores, por não trabalharem o tente compreender o que há por trás dos diferentes processo de leitura, entende que ou se pode ler em quantidade, sem grande captação e compreensão, sentidos atribuídos pelos alunos aos textos. Para tornar os alunos bons leitores - para de- ou em qualidade, aumentando-se o tempo gasto senvolver, muito mais do que a capacidade de ler, com o texto, tornando-o maçante, porém com o gosto e o compromisso com a leitura, a escola uma maior fixação e compreensão dos pontos terá de mobilizá-los internamente, pois aprender apresentados. E, sobre esses aspectos, vários aua ler (é também ler para aprender) requer esfor- tores, especialmente os que propõem uma maior ços. Precisará fazê-los achar que a leitura é algo compreensão do processo mental de leitura, defeninteressante e desafiador, algo que, conquistado dem que esta pode realizar-se quantitativamente, plenamente, dará autonomia e independência. ou seja, maiores resultados, por meio de técnicas Precisará torná-los confiantes, oferecer condições que aumentem a velocidade, sem descurar da para poderem se desafiarem a “aprender fazendo”. qualidade desta. O processo de leitura, inicialmente realizado com Uma prática de leitura que não desperte e cultive o desejo de ler não é uma prática pedagógica eficiente. os primeiros contatos com palavras, por meio do O despertar do interesse pela leitura advém do aprendizado do alfabeto, silabação e leitura palavra uso dessa numa perspectiva livre, orientada por por palavra, para em seguida formar frases, realizaprofessores e família, não somente diante de si- -se de forma mecânica, sem uma preocupação em tuações nas quais se deve ler, mas como forma de se trabalhar junto ao leitor os mecanismos deste lazer, aquisição de informações, cultura, etc. Nisso, processo, para que este, portando o conhecimento é fundamental a seleção de textos ricos em temática da maneira como se dá a leitura, possa melhor e vocabulário, posto os textos muito simplificados realizá-la. Segundo os autores Soares e Douglas (2000, possuírem o perigo de perda da qualidade, desestimulando o prosseguimento na leitura. p.18), “a leitura é uma ação consciente, podenNesse sentido, a professora Maria José Nóbrega do ser formada por inúmeros hábitos que comeafirma que “o problema é que, se o texto é simples çam a ser edificados por época da alfabetização”, demais, provavelmente também é pobre de temá- constituindo-se, alguns desses hábitos, em ações tica e de linguagem”, de forma que não desperta o involuntárias, que fogem à percepção do leitor, interesse, diferentemente de textos produzidos por podendo gerar vícios de leitura, prejudicando o autores clássicos da literatura na forma de contos, processo quanto ao rendimento de compreensão e velocidade. comédias, romances, dramas e outros. Os autores apontam como vícios corriqueiros Corroborando essas ideias, o renomado autor maranhense Gullar (2001) tece o comentário com e que prejudicam drasticamente os resultados os argumentos de Murray (2001): a leitura é o modo da leitura: a) desconcentração - desencadeada por mais prazeroso e eficaz de se adquirir conhecimenproblemas físicos (ambiente de leitura, to. Não há dúvida de que o rádio e a televisão – o que importante num país como o nosso, onde se postura corpórea) ou individuais ( falta de motivação, de interesse, aulê pouco - contribuem para difundir informações sência de foco, estresse e pequena e entretenimento. Porém, a leitura possibilita uma velocidade na leitura); intimidade maior com as ideais e com os temas b) apontar usando os dedos ou a caneta; diversos e uma liberdade também maior. Isso porc) regredir sistematicamente - provoque, a todo o momento, o livro está à disposição do leitor para ser lido, relido, escolhendo-se esta cado, geralmente, pela desconcentração, vocabulário pobre e musculatura ou aquela estória, este ou aquele poema, o que ocular pouco desenvolvida, ocasiopermite refletir e entendê-los melhor. Com isso nando saltos de linhas e perda do a leitura nos ensina a pensar e é pensando que se adquire cultura (MURRAY, 2001). raciocínio; Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 52 A LEITURA: APRENDIZADO, ESTÍMULO E FORMAÇÃO DE LEITORES NO BRASIL d) movimentar a cabeça durante a leitura - provocado pela inexistência de um trabalho de desenvolvimento da musculatura ocular, gerando o medo de saltar linhas; e) acompanhar oralmente a leitura (vocalização) - o que limita a velocidade de leitura ao tempo de pronunciamento de palavras; f) repetição mental da leitura (subvocalização) - a voz “na cabeça” que pronuncia mentalmente as palavras, também limitando a velocidade de leitura ao tempo de pronunciamento vocal de palavras, quando se sabe que, na verdade, o cérebro é capaz de reconhecer, compreender e analisar símbolos de forma bem mais rápida do que o homem pode pronunciar palavras, a exemplo do que ocorre em relação às placas de trânsito. O questionamento do processo de leitura, o qual tem se realizado cada vez mais aprofundadamente, a exemplo dos autores supracitados, demonstra uma preocupação da sociedade com o aprendizado, com a formação de professores aptos a interagirem neste processo, indicando aos discentes os métodos e técnicas, com eliminação de vícios de leitura, permitindo que o processo, considerado meio, não interfira num aprendizado rápido e com resultados progressivamente mais satisfatórios. Nesse sentido, Bamberger (1988, p. 10) diz que: A leitura foi outrora considerada simplesmente um meio de receber uma mensagem importante. Hoje em dia, porém, a pesquisa nesse campo definiu o ato de ler, em si mesmo, como um processo mental de vários níveis, que muito contribui para o desenvolvimento do intelecto. O processo de transformar símbolos gráficos em conceitos intelectuais exige grande atividade do cérebro; durante processo de armazenamento da leitura coloca-se em funcionamento um número infinito de células cerebrais. A combinação de unidades de pensamento em sentenças e estruturas mais amplas de linguagem constitui, ao mesmo tempo, um processo cognitivo e um processo de linguagem. A continua repetição desse processo resulta no treinamento cognitivo de qualidade especial. Este treinamento cognitivo consiste em trazer à mente alguma coisa anteriormente percebida, e em antecipar, tendo por base a compreensão de teste precedente; a repetição aumenta e assegura o esforço intelectual. Por todas essas razões, a leitura é uma forma exemplar de aprendizagem. Estudos psicológicos afirmam que o aprimoramento da capacidade de ler também redunda no da capacidade de aprender como um todo, indo muito além da mera recepção. A boa leitura é uma confrontação crítica do texto e as ideias do autor. Num nível mais elevado e com textos mais longos, tornam-se mais significativas a compreensão das relações, da construção ou da estrutura e a interpretação do contexto. Quando se estabelece a relação entre o novo texto e as concepções já existentes, a leitura crítica tende a evoluir para a criatividade, e a síntese conduzirá a resultados completamente novos. A leitura é um dos meios mais eficazes de desenvolvimento sistemático da linguagem e da personalidade. Trabalhar com a linguagem é trabalhar com o homem”. 5 OS LEITORES NO BRASIL E A IMUNIDADE DE IMPOSTOS SOBRE LIVROS, JORNAIS E PERIÓDICOS A Unesco e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) realizaram estudos comparativos mundiais focados na área da educação, campo em que o Brasil realizou um trabalho de massificação notável na última década. O levantamento comparou estudantes de 41 países em três habilidades básicas: leitura, matemática e ciências. Os organizadores selecionaram um grupo de alunos de escolas públicas e privadas de cada país, todos na faixa dos 15 anos. Os jovens, que no caso brasileiro haviam concluído o ensino fundamental, foram submetidos a uma série de provas. Para desolação dos condutores da educação nacional, o Brasil apresentou um desempenho lamentável. Na prova de leitura, os brasileiros ficaram em 37 lugar, à frente apenas da Macedônia, da Indonésia, da Albânia e do Peru. Em matemática e ciências, em quadragésimo. Nas indagações ínsitas encontra-se o fato de que se situar ao final desse ranking indica uma deficiência estrutural que precisa ser enfrentada. O desempenho dos brasileiros na prova de leitura mostra que nossos estudantes conseguem ler, mas não demonstram capacidade de reter nem de interpretar as palavras. No caso do teste de matemática, os alunos Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 53 Élida Pires Cardoso et al brasileiros apresentam domínio apenas das quaO tributarista Machado (2002, p.248) entende que: tro operações básicas, apresentando grandes dificuldades nas operações de maior complexidade, A imunidade, para ser efetiva, abrange todo o matenão conseguindo identificar formas geométricas rial necessário à confecção do livro, do jornal ou do e tendo dificuldade até para entender o enunciado periódico. Não apenas o exemplar deste ou daquedos problemas. As perguntas de ciências indicam le, materialmente considerado, mas o conjunto. Por que o aluno brasileiro possui baixo índice de aproisso nenhum imposto pode incidir sobre qualquer veitamento em conhecimentos gerais. insumo, ou mesmo sobre qualquer instrumento, ou equipamento que sejam destinados exclusivamente à Diante deste e de outros estudos que notoriamenprodução desses objetos. te revelam o déficit de leitura dos brasileiros, visando à correção dos problemas relacionados a este aspecto junto aos jovens brasileiros, o Ministério Assim, há de se indagar de como, sendo os livros, da Educação e Cultura tem desenvolvido projetos jornais e periódicos imunes a impostos, incluindoque estão caminhando, ao nosso entendimento, na -se a isso insumos, máquinas e equipamentos linha correta de enfrentamento da problemática. utilizados na confecção destes, como ainda podem Pode-se citar nesse sentido, o projeto Literatura ser tão caros, inacessíveis à grande massa de baixa em Minha Casa, desenvolvido pelo Programa renda brasileira? A resposta está na ineficiência dos órgãos goverNacional Biblioteca da Escola (PNBE), do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação namentais de proteção ao consumidor, na vora(FNDE/MEC), o qual o distribui, desde abril de cidade dos grandes empresários em lucrar cada 2002, uma coleção de livros para estudantes da 4a vez em maiores proporções sem se preocuparem série do ensino fundamental com a finalidade de com um fim social, bem como na população, que desenvolver o gosto pela leitura. não procura organizar-se fundando associações Ora, o estímulo da leitura não se faz sem o contato de defesa de seus direitos, como prevê o art. 82, direto com livros, tampouco com a inexistência inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor. de uma biblioteca de fácil acesso, especialmente na própria casa do leitor. Assim, torna-se louvável Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo a iniciativa do governo federal, que mesmo com individualmente, ou a titulo coletivo. poucos recursos, aliando-se à distribuição de liArt. 82. Para os fins do artigo 81, parágrafo único, são vros a capacitação de professores, tem traçado o legitimados concorrentemente: caminho para a mudança do panorama brasileiro I - o Ministério Público; de dificuldades na leitura. Entretanto, deve-se ressaltar que a medida II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito governamental ainda é em seu âmago paliativa, Federal; III - as entidades e órgãos da administração pública, porquanto a solução da questão necessariamente residir numa iniciativa estatal, entidades privadas direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídie sociedade civil organizada, e corroborando esta ca, especificamente destinados à defesa dos interesses ideia tem-se o fato de que os livros, periódicos e e direitos protegidos por este Código; jornais possuem imunidade tributária constitucioIV - as associações legalmente constituídas há pelo nal definida, como se observa no art. 150, inciso menos 1 (um) ano e que incluam entre seus fins instiVI, alínea “d”, da Carta Constitucional: tucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código, dispensada a autorização assemblear. Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas (BRASIL, 1990, online.) ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS [..] VI - instituir impostos sobre: [..] d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão. (BRASIL, 2007, 05) A superação dos problemas sociais brasileiros somente será encarada mais seriamente quando da reavaliação do sistema educacional deste país, posto esta ser medida capaz de proporcionar à população Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 54 A LEITURA: APRENDIZADO, ESTÍMULO E FORMAÇÃO DE LEITORES NO BRASIL meios de identificar as razões destes problemas, bem como fornecer-lhe maturidade suficiente para seleção de caminhos de desenvolvimento. O direcionamento a este escopo reside na atuação conjunta do estado, entidades privadas e sociedade civil organizada, proporcionando alternativas ao baixo poder aquisitivo da população brasileira, permitindo a aquisição de livros, periódicos e jornais a preços módicos, ou pelo menos justos, em face da imunidade tributária constitucional estabelecida em relação a estes, visto a impossibilidade do despertar literário realizar-se sem o contato direto com o livro, que preferencialmente deve estar na casa do leitor desde a sua formação na educação de base (ensino fundamental). Por sua vez, sem descurar da carência do contato com livros, remediada através da formação de uma biblioteca básica do leitor, precípuo é a atuação no incentivo à leitura, despertando o prazer nesta, mediante o trabalho aplicado na formação de leitores voltado ao conhecimento do processo de leitura, avaliando os vícios surgidos na efetivação deste, proporcionando formas de otimizá-lo, com a obtenção de melhores resultados (captação e compreensão) e tempo (velocidade). O leitor, tendo a seu fácil acesso material literário, conhecendo e dominando o processo de leitura, está apto a ler criticamente, inferindo ideais suas e intertextualizando áreas sociais diferentes, pode desempenhar com sucesso o seu incurso no mundo dos textos, realizando-se com utilização dos conhecimentos que obtém e com o prazer que lhe completa, inclusive nos momentos de laser. . Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. PCN’s - Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação, 1997. GARCIA, E. G. A leitura na escola de 1° grau. São Paulo: Loyola, 1998. KATO, M. O aprendizado da leitura. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987. MACHADO, H. de B. Curso de direito tributário. 20.ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Malheiros, 2002. MURRAY, Roseana. A bailarina e outros poemas. 18 ed. São Paulo: FID, 2001. SOARES, R. A. B.; SANTOS, W. D. R. Leitura dinâmica: como multiplicar a velocidade, a compreensão e a retenção da leitura. Rio de Janeiro: Impetus, 2000. TERRA, E.; NICOLA, J. de. Redação para o 2° grau: pensando, lendo e escrevendo. São Paulo: Scipione, 1996. REFERÊNCIAS BAMBERGER, R. Como incentivar o hábito da leitura. São Paulo: Ática, 1988. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/legislacao/ const/con1988/ CONw6 maio 2007. . Lei Federal n° 8.078/90, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov. br/ccivil_ 03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 26 maio 2007. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 55 litterarumradicesamaraefructusdulces A TIC a Serviço da Inovação Pedagógica Roberta Cristiana Barbosa Terceiro1 Rosana Cátia Barbosa Terceiro 2 RESUMO: Este artigo objetiva fundamentar a inovação pedagógica em experiências e definições de estudiosos do tema, assim como, verificá-la no contexto da Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC). Procura-se, também, analisar as TIC a serviço da inovação pedagógica. Dessa forma, além da compreensão sobre os termos inovação pedagógica e inovação tecnológica, procura-se problematizar as TIC como elementos criadores de contextos de aprendizagem inovadores na escola. Consequentemente, leva-se a refletir sobre a postura do professor e aluno nesse novo cenário desenvolvido pela TIC na escola, nesse caso, a pública. As observações deste artigo foram tecidas à luz de autores e estudiosos renomados como Toffler, Papert, Freire, Fino, Sousa, Apple, entre outros. ABSTRACT: This article intends to provide pedagogical innovation in experiences and definitions of scholars about this subject, as well as, verify it in the context of Information and Communication Technology (ICT). It also analyzes the ICT at the service of pedagogical innovation. Thus, in addition to the understanding of the terms pedagogical innovation and technological innovation, seeks to problematize the ICT elements as creators of contexts of innovative learning in school. Consequently, leads to reflect on the position of teacher and student in this new scenario developed by ICT in school, in this case, the public school. The comments of this article were woven in the light of authors and scholars renowned as Toffler, Papert, Freire, Thin, Sousa, Apple, among others. 1 INTRODUÇÃO presente, pois se constituem como os inventores e habitantes do amanhã. Nesse contexto, têm-se as crises em todas as esferas da sociedade e, por conseguinte, a quebra de paradigma. Em relação à educação, fala-se que a tecnologia torna-se, possivelmente, o novo paradigma da escola. Consequentemente, surge a necessidade de debates, reflexos sobre as práticas educacionais realizadas nesse espaço. Elas já utilizam as tecnologias? Porque elas são utilizadas? Ou seja, desenvolvem-se de acordo com as necessidades de cada comunidade escolar? Por último, as práticas educativas são inovadoras? Ou simplesmente os professores e todos os demais sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem, somente utilizam as tecnologias como consumidores? Todos esses questionamentos são necessários para realizar uma prática educativa inovadora por meio do uso da tecnologia em sala de aula da As mudanças estão ocorrendo com uma intensa aceleração de forma contínua. Essas mudanças demandam uma nova forma de pensar acerca de si, o que e como é feita determinada ação em relação às esferas da vida no âmbito social. Por conseguinte, essas mudanças atingem todos os setores da sociedade, assim, a educação precisa rever sua postura neste século XXI. Segundo Toffler (1970), o grande motor da mudança é a tecnologia. Desta forma, a escola precisa utilizá-la para desenvolver práticas educativas inovadoras. Nesse âmbito, torna-se essencial o papel do professor que deverá propiciar ao aluno sua autonomia, o desejo pela investigação, pesquisa, movida por sua curiosidade, criatividade, isto é, pelo simples desejo de saber onde se pode chegar. Precisa-se levar o jovem de hoje a refletir o futuro nos interesses do 1. Graduada em LETRAS pela Universidade Estadual do Ceará e Mestre em Gestão de Negócios Turísticos (UECE- 2005). Professora do Centro Universitário Estácio do Ceará. 2. Graduada em Letras - Português / Inglês pela Universidade Estadual do Ceará e Mestre em Gestão de Negó- cios Turísticos. Professora do Centro Universitário Estácio do Ceará. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 57 Palavras-chave: Inovação Pedagógica. Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC). Inovação Tecnológica. Contextos de Aprendizagem. Keywords: Pedagogical Innovation. Information and Communication Technology (ICT). Technological Innovation. Learning contexts. Roberta Cristiana Barbosa Terceiro et al escola pública. Portanto, além da introdução, serão observados ao longo do presente artigo, mediante os seguintes tópicos assim distribuídos: refletindo sobre inovação pedagógica e tecnológica; faz-se necessário o uso da tecnologia na escola; problematizando as TIC como elementos criadores de contextos de aprendizagem inovadores na escola; As TIC se constituem como novo paradigma educativo e, por último, têm-se as considerações finais. 2 REFLETINDO SOBRE INOVAÇÃO PEDAGÓGICA E TECNOLÓGICA Segundo Fino (2000, p.1), “A inovação pedagógica implica mudanças qualitativas nas práticas pedagógicas e essas mudanças envolvem sempre um posicionamento crítico, explícito ou implícito, face às práticas pedagógicas tradicionais”. Desta forma, a inovação pedagógica corresponde a uma mudança, traz algo novo, com intenção de melhorar a prática educativa. No entanto, requer ação, esforço contínuo, consciente dos sujeitos envolvidos na prática educativa, ou seja, os professores, os alunos, seus pais ou responsáveis por sua educação, a comunidade. Enfim, todos independente de hierarquia que participam da instituição escolar precisam assumir ações para transformar a prática pedagogia vigente, que, na maioria das vezes, não favorece a autonomia do aluno, não o torna um ser crítico perante o mundo. Ainda, segundo o mesmo autor, Inovar [...] não se trata de procurar soluções paliativas para uma instituição [ ou para o sistema educacional] à beira de um declínio. Trata-se de olhar para além dela, imaginando outra, deixando de se ter os pés tolhidos pelas forças que conduzem inexoravelmente em direcção ao passado. (FINO, 2006, p.14). Nesse âmbito, a Inovação Pedagógica visa, então, à melhoria do processo educativo, implicando numa ruptura com a situação do momento. Constitui-se, a partir do rompimento com paradigmas que norteiam as práticas pedagógicas. É o fazer diferente em uma sala de aula, que propicia a participação dos alunos, tornando-os sujeitos ativos do fazer pedagógico. Uma prática que favoreça o debate no contexto de uma prática social livre e crítica. Desta forma, argumenta o educador Paulo Freire, em seu livro a Pedagogia da Autonomia, com ênfase na cultura popular dentro de uma abordagem construtivista Freire (1983, p. 103), “Em lugar de aulas discursivas, o diálogo. Em lugar de aluno com tradições passivas, o participante de grupo. Em lugar de ‘pontos e de programas alienados, programação compacta, ‘reduzida’ e ‘codificada’ em unidades de aprendizado”. Nessa concepção de Freire, a pedagogia crítica encontra-se alicerçada no diálogo. Assim, professor e aluno são sujeitos que fazem e refazem a história. Ao respeitar as experiências dos alunos por meio de constante diálogo, o professor oferece-lhes trabalhos interativos por meio de experiências de vida em contextos populares. Enquanto valoriza seu potencial, trabalha-se uma prática pedagógica que valoriza o social, a qual precisa ser instigada e trabalhada sistematicamente, no processo ensino-aprendizagem. Ainda, segundo Fino (2000, p.1), a inovação pedagógica procura “centrar toda a actividade no estudante, ao invés da prática tradicional, que centrava todos os procedimentos na actividade magistral do professor.” Assim, tem-se que o autor principal do ensino-aprendizagem passa a ser o aluno ao invés do professor que se torna um guia, o agente facilitador do ensino, que fornece ao seu aluno autonomia no processo de aprendizagem. No entanto, ao falar em inovação, mudanças, faz-se necessário abordar Toffler (1970), que em seu livro ‘Future Shock’ já comentava sobre mudanças sucessivas as quais acontecem em todo o globo, em todos os setores da sociedade, culturas, modificando, assim, o cenário mundial. Ninguém permanece imune a estas brechas, de profundas e aceleradas mudanças e, consequentemente, tem-se o “choque do futuro”. Toffler (1970), no entanto, argumenta que a tecnologia não é a única fonte de mudanças na sociedade, pois alterações no clima, por exemplo, também podem desencadear transformações. Contudo, é enfático ao registrar que a tecnologia é uma das principais fatores por trás das mudanças crescentes. Behind such prodigious economic facts lies that great, growling engine of change— technology. This is not to say that technology is the only source of change in society. Social upheavals can be touched off by a change in the chemical composition of the atmosphere, by alterations in climate, by changes in fertility, and many other factors. Yet technology is indisputably a Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 58 A TIC A SERVIÇO DA INOVAÇÃO PEDAGÓGICA major force behind the accelerative thrust. (TOFFLER, que, enquanto secretário de educação da cidade de 1970, p. 25-26) São Paulo, fiz chegar à rede das escolas municipais o computador. Ninguém melhor do que meus netos Toffler (1970), ainda, argumenta que essa mudança não afeta somente as indústrias e as nações, mas invade intimamente a vida das pessoas, obrigando-as a rever seus papéis. Nesse mesmo aspecto, Sousa (2000, p.34) posiciona, Saberemos nós fazer da incerteza o fermento do conhecimento complexo? O que acontece é que a relativização do valor da ciência teve o mérito de nos fazer abandonar o pedestal em que nos encontrávamos e assumir uma postura mais humilde face ao saber, uma postura de busca, de crítica e autocrítica, de tentativas de aproximação às verdades. Nesta perspectiva, também se encontra o professor o qual precisa rever sua postura, seu papel na sala de aula. Deste modo, a escola busca agregar a tecnologia ao seu cotidiano, a fim de melhor se inserir neste novo cenário. 3 FAZ-SE NECESSÁRIO O USO DA TECNOLOGIA NA ESCOLA? Nessa aceleração sucessiva das tecnologias da informação e comunicação, em especial o computador, passaram a fazer parte do cotidiano da escola. No entanto, seu uso se faz necessário na escola? Paulo Freire (1996, p. 33) observa, “Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado”. Desta forma, o autor não nega a necessidade do uso da tecnologia na escola, no entanto, não se deve colocá-la como o centro, como se resolvesse todos os seus problemas atuais. Melhor ainda, como se o uso do computador implicasse, obrigatoriamente, em uma prática educativa inovadora. Freire (1996, p.87-88) reforça, ainda mais, seu posicionamento quando relata, Nunca fui ingênuo apreciador da tecnologia: não a divinizo, de um lado, nem a diabolizo, de outro. Por isso mesmo sempre estive em paz para lidar com ela. Não tenho dúvida nenhuma do enorme potencial de e minhas netas para me falar de sua curiosidade instigada pelos computadores com os quais convivem. No entanto, será que a inserção do computador na escola pública, contribuirá para nivelar as desigualdades existentes entre os denominados favorecidos e os desfavorecidos? A tecnologia está para todos sem distinção, independente de classe, raça e gênero. No entanto, não contribui por si só para nivelar as desigualdades, pois “a tecnologia não é a mera soma de hardware e software que através dos apelos ao fantástico da complexa dimensão humana permite reequilibrar o tecido social”. (PARASKEVA, 2002, p. 117). Postaman(1992,p. xii) também observa que nessa época muitos partilham da ideia que a tecnologia fornece equilíbrio às desigualdades. Assim, afirma “I do not say that the war was unjustified or that the technology was misused, only that the American success may serve as a confirmation of the catastrophic idea that in peace as well as war technology will be our savor”. Mais a diante, Postman(1992) observa, mas em termos mais dramáticos, que se pode acusar a tecnologia porque seu crescimento descontrolado destrói as fontes vitais da humanidade, Cria-se, então, uma cultura sem uma base moral, visto que enfraquece alguns processos mentais e relações sociais que fazem a vida valer a pena. Tecnologia, então, para esse autor é tanto amiga como inimiga. Stated in the most dramatic terms, the accusation can be made that the uncontrolled growth of technology destroys the vital sources of our humanity. It creates a culture without a moral foundation. It undermines certain mental process and social relations that make life worth living. Technology, in sum, is both friend and enemy. (POSTMAN, 1992,p. xii) Nesse aspecto, Apple (1991, p.75) contribui ao observar que a tecnologia é mais do que máquinas as quais provêm o conforto e a existência da humanidade. Não é uma ferramenta neutra, pois se encontra acumulada de valores culturais, estímulos e desafios à curiosidade que a tecnologia põe a serviço das crianças e dos adolescentes das classes The new technology is not just an assemblage of ma- sociais chamadas favorecidas. Não foi por outra razão chines and their accompanying software. It embodies Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 59 Roberta Cristiana Barbosa Terceiro et al a form of thinking that orients a person to approach the world in a particular way. Computers involve ways of thinking that under current educational conditions are primarily technical. The more the new technology ainda coloca a importância da promoção da curiosidade por parte do professor ao seu aluno por meio do diálogo, pois o exercício da curiosidade torna o aluno mais perseguidor de seu objetivo. transforms the classroom into its own image, the more a technical logic replaces critical, political and ethical A dialogicidade não nega a validade de momentos understanding. The discourse of the classroom will explicativos, narrativos em que o professor expõe centre on technique, and less on substance. Once again ou fala do objeto. O fundamental é que professor e ‘how to’ will replace ‘why’. alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora Apple(1991) demonstra que o debate sobre o ime não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve. pacto da tecnologia na educação é geralmente O que importa é que professor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos. centrado em como ela é usada em sala de aula, porém, não se tem o “porquê” de sua utilização. Assim, reforça-se a concepção que a tecnologia é apenas uma ferramenta à disposição do professor, 4 PROBLEMATIZANDO aS TIC como elementoS criaDoRES de quando as questões ideológicas e éticas sobre o que contextos de aprendizagem as escolas deveriam ser e os interesses de quem inovadores deveriam servir são ignorados. A tecnologia somente implicará novas formas Seguindo este pensamento acerca de estímulo à de aprender e ensinar para alunos e professores, quando utilizada como recurso didático-pedagó- curiosidade, Seymour Papert observou no comgico de forma crítica e responsável. Desta forma, putador condições necessárias para mudanças como objeto de reflexão, favorece a autonomia, significativas no desenvolvimento intelectual dos a criação por parte do aluno. Portanto, deve-se sujeitos, nesse caso, a criança. Segundo Papert ponderar como os professores apropriam-se da (1985), a criança é um aprendiz inato, o qual edifica tecnologia e como a utiliza a fim de melhorar o suas estruturas de pensamento a partir da exploprocesso ensino-aprendizagem. ração do ambiente em que vive, ou seja, consideraDa mesma forma, Paulo Freire argumenta que -se como construtora de sua própria estrutura transformar a prática educativa em um hábito intelectual. Então, desenvolveu uma linguagem meramente técnico, ignora-se a sua qualidade de de programação, Logo, de fácil compreensão e formadora moral do aluno. Assim, tem-se, manipulação por crianças ou por pessoas leigas em computação e sem domínio de matemática. Não é possível pensar os seres humanos longe, se- Permitiu-lhes estabelecer contato com o compuquer, da ética, quanto mais fora dela. [...] É por isso tador como instrumento versátil, fácil de operar, rico em possibilidades. que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de funAssim, tem-se um exemplo da TIC como elemento damentalmente humano no exercício educativo: o criador de contexto de aprendizagem inovador, seu caráter formador. [...] Educar é substantivamente pois de acordo com Papert (1985), a criança indica formar. (FREIRE, 1997, p. 33) o que o computador deve fazer, controlando-o, indicando-lhe a tarefa a qual deve ser realizada. Nesse aspecto, o professor e o aluno tornam-se Reflete, então, sobre o que faz, buscando possíveis atores principais de uma época determinada por soluções para resolver os problemas. Desta forma, mudanças que atingem os paradigmas e escalas de sua própria criatividade o conduzirá a soluções valores da prática pedagógica vigente. O professor fascinantes e compensadoras para os desafios deve ter uma postura mais consciente de seu papel, propostos. Enfim, ela aprende com seus próprios na tentativa de buscar práticas mais concernentes ensinamentos e descobertas. à realidade de seu aluno, à comunidade onde a Papert(2008) desenvolveu esta linguagem de escola se encontra inserida. programação segundo a concepção construcionista, Seguindo esta abordagem, Freire (1997, p. 86) que implica ensinar a fim de produzir o máximo de Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 60 A TIC A SERVIÇO DA INOVAÇÃO PEDAGÓGICA aprendizagem, com o mínimo de ensino. Procura-se, então, alcançar meios de aprendizagem os quais valorizem a construção mental do sujeito, apoiada em suas próprias construções no mundo. Portanto, o construcionismo procura caracterizar a interação aluno-objeto, mediada, nesse caso, por uma linguagem de programação, o Logo. A criança interage com o objeto que usa métodos para facilitar a aprendizagem e, principalmente a sua descoberta. Quanto à postura do professor torna-se um facilitador criativo, visto que proporciona um ambiente a conter a maior quantidade possível de aspectos cognitivos para seu aluno construir conhecimento, um ambiente capaz de fornecer conexões individuais e coletivas. Por exemplo, o professor que trabalha com o Logo torna-se, portanto, o mediador da interação aluno-objeto, pois o aluno atua e participa do seu processo de construção de conhecimentos de forma ativa, interagindo com o instrumento de aprendizagem, nesse caso, o computador. O professor procura desenvolver projetos vinculados à realidade do aluno, integrados às diferentes áreas do conhecimento, o qual apresenta uma relação de continuidade com o conhecimento que o aluno possui. Há, então, projetos significativos em seu contexto social. Acerca do significado de construcionismo, Papert (1990, p.3) a define, John Sculley, no prefácio da segunda edição de Mindstorms – Children, computers and powerful ideas, relata que Seymour Papert (1993, p. vii) foi um dos primeiros a reconhecer o papel fundamental da tecnologia nas mudanças significativas necessárias na educação. Contudo, Papert sabia que ela não exerce o papel de redentora, ou seja, não iria solucionar todos os problemas da educação. Seymour was among the first to see that massive change was needed in the education system, particularly math and science education, and to recognize the role that technology could play in learning. Perhaps more significant, though, was how he was one of the first to recognize that technology in the classroom was not a silver bullet that would solve all of education ills. Dessa mesma forma, esclarecem Fino e Sousa (2003, p. 7) que Papert não coloca as TIC, nesse caso o computador, com a função de redimir ou renovar a escola. S. Papert não perspectivava a incorporação das TIC como meio de salvar ou reformar a escola, mas antevia a sua utilização como meio de contornar, posta directamente ao serviço dos aprendizes situados nos seus ambientes naturais. [...] Este autor talvez estivese a querer dizer que o papel do computador, posto directamente ao serviço do aprendiz, não é o de substituir a escola proporcionando o que ela já proporciona, mas, We understand constructionism as including but going ao contrário, abrir portas que a escola nem imagina. beyond, what Piaget would call constructivism. Te word with the v expresses the theory that knowledge is built by the learner, not supplied by the teacher. The word with the n expresses the further idea that this happens especially felicitously when the learner is engaged in the construction of something external or at least shareable... a sand castle, a machine, a computer program, a book. This leads us to a model using a cycle of internalization of what is outside, then externalization of what is inside and so on. Desta forma, o construcionismo enfatiza as construções particulares do aprendiz, que são externas e partilháveis. Logo, proporciona meios de aprendizagem que valorizem a construção mental do aprendiz, valorizando suas próprias construções no mundo. Assim, como qualquer construtor, o aluno se apropria, para seu próprio uso, de materiais que ele encontra. Segundo esse ponto de vista, na pós-modernidade caracterizada pela incerteza, complexidade, o computador surge como uma possibilidade de expansão do ambiente externo à sala de aula, ou seja, à escola. Permite, assim, ao aluno expandir seu conhecimento nesse ambiente informal de aprendizagem, visto não ser mais a escola o único local onde o aluno pode realizar pesquisas. Desta forma, ele pode em casa, ou em qualquer outro ambiente dar continuidade ao conhecimento visto em sala de aula, aumentando, então, as suas possibilidades de aprender além do currículo estipulado pela escola. No entanto, nem sempre o uso do computador na escola implica na realização de uma prática educativa inovadora. Ou seja, a existência de inovação tecnológica na escola, não implica a existência de inovação pedagógica. Desta forma, nem sempre o seu uso está veiculado às práticas Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 61 Roberta Cristiana Barbosa Terceiro et al pedagógicas inovadoras. Nesse aspecto, Fino (2010, p. 4-5) assevera sobre o porquê das TIC ainda não propiciarem mudanças no estado atual da escola, E a própria incorporação das TIC, bem como a incorporação de tecnologias anteriores, como o cinema, a TV, etc., não tem servido para alterar grande coisa do status quo. Na generalidade dos casos, a incorporação da tecnologia na escola modelada segundo o paradigma fabril tem acentuado os pressupostos desse paradigma. Elas surgem quase sempre como auxiliares de ensino, ou seja, como elementos que ampliam a capacidade do professor, seja em termos comunicacionais, seja em termos de agente de um currículo centralizado, buro- Nesse âmbito, segue-se o uso das TIC que servem apenas para servir ao modelo de ensino vigente, limitando-as ao ensino do superficial, quando poderiam, no entanto, levar os alunos a uma atitude de investigação, de pesquisa, a participar da aula como construtor do conhecimento, tirando, assim, sua atitude passiva na relação professor-aluno adotada no paradigma fabril, visto que o aluno por si pode ir além do conhecimento ensinado em sala, realizar experiências que façam sentido a sua vida. Tudo isso por meio da investigação, a qual deve ser impulsionada, instigada pelo professor. Fino juntamente com Sousa (2003, p. 7) já havia se pronunciado a respeito desse assunto. Assim, veja, crático, taxativo e a priori. Ou, o que torna as coisas mais evidentes, para suportarem versões electrónicas Esse ponto de vista traz a tiracolo a ideia, porventura da escola tradicional, em que o currículo aparece em- óbvia, de que as TIC, sendo tecnologias típicas da pobrecido, reduzido ao mínimo dos mínimos, limitado pós-modernidade, pouco podem valer a instituições aos conteúdos programáticos das várias disciplinas, cujas raízes mergulham na modernidade (ou ainda que é o que essas tecnologias e as concepções quanto à antes), e que se organizaram em redor da utilização de sua utilização são capazes de suportar no estádio actual tecnologias da modernidade para executarem tarefas de desenvolvimento do software “educativo”. Estou (educativas) exigida pelas sociedades industriais. A não a falar, obviamente, das plataformas digitais, como ser que sejam utilizadas para alcançar os mesmíssimos as de e-learning, ou mesmo de certas representações objectivos, eventualmente com rentabilidade maior, mais sofisticadas tecnologicamente, como as que são que já vinham a ser alcançados através da utilização recreadas na Second Life, por exemplo. das tecnologias da modernidade e, nesse caso, com um sentido meramente aditivo. Assim, o autor observa que a utilização das TIC não pressupõe inovação pedagógica, especialmente, quando seu uso ainda se encontra veiculado ao tipo de ensino industrial, em massa, de produção, com normas rígidas de classe e de lugares, com a postura de um professor autoritário. O autor, ainda, assevera que as TIC são utilizadas como ferramentas de suporte ao professor a fim de aumentar sua habilidade de estabelecer e manter o diálogo com seus alunos, os quais já se encontram imbuídos das novas tecnologias, visto que nasceram na era digital, ou seja, são nativos digitais. Por conseguinte, as TIC ajudam o professor a manter o controle sobre a classe, ou melhor, seus alunos. Em outras palavras, elas o ajudam a manter uma postura fabril, isto é, sua autoridade, o detentor do conhecimento, o qual se baseia em um currículo de caráter instrumental, baseando-se na busca pela eficiência para atingir os objetivos tangíveis, por meios de custo mínimo a fim de conseguir a qualidade mínima requerida. Enfim, um currículo descentralizado das reais necessidades dos alunos, assim como, da comunidade na qual a escola se encontra inserida. Neste ponto, cabe a autora deste artigo demonstrar por meio de um caso real de uma escola pública do estado do Ceará, no ensino médio, como o uso das TIC, até o presente, 2010, reflete o que o autor Fino mencionou anteriormente. O governo disponibilizou computadores às escolas públicas do Estado, assim como, profissionais em informática que auxiliem aos professores quando forem aos laboratórios. Contudo, a aula apenas mudou de ambiente e ferramentas metodológicas. Por exemplo, são realizadas pesquisas nos sites em relação a temas diversos, como concordância verbal e nominal, verbos. Assim como, exercícios para preencher lacunas em relação aos verbos, substantivos. Isto tudo poderia ser feito em uma sala de aula mediante o uso do quadro, pincel, livro, caderno. O computador, neste caso, apenas substitui o caderno, o livro texto, enquanto a metodologia tradicional continua a mesma. Embora isto aconteça, muitos professores pensam que estão utilizando uma metodologia inovadora por meio do uso das TIC. Acrescente-se, ainda, ser difícil argumentar o contrário. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 62 A TIC A SERVIÇO DA INOVAÇÃO PEDAGÓGICA O exemplo demonstra o que Fino e Sousa (2003, p.8) afirmam sobre as escolas que utilizam as tecnologias somente para dar continuidade a sua prática tradicional, não concebendo seu espaço como propiciador da aprendizagem ativa: “[...] o que não significa que a incorporação das novas tecnologias redundasse em alterações substanciais no modo de funcionamento das escolas, que mantiveram inalterável o essencial dos seus pressupostos organizacionais”. Porém, não são todos os professores desta escola pública os quais não sabem manusear a tecnologia em prol de uma aula mais dinâmica, despertando o interesse dos alunos, que já nasceram na era da tecnologia, ou seja, são nativos digitais, enquanto seus professores são imigrantes digitais. Por exemplo, um professor de matemática do primeiro ano do ensino médio utiliza-se de site educativo de matemática ‘geogebra’ para que seus alunos, em pares ou trios (dependendo do número de alunos em sala) construam distintos tipos de ângulos, verificando, assim, suas especificidades e diferenças entre si. O professor utiliza os recursos que o computador permite: som, imagem e animação, músicas, jogos, histórias interativas. Tem-se, então, uma inovação pedagógica que desperta a atenção para a aprendizagem e, consequentemente, para o aprendiz. Há uma aula mais participativa, criativa, levando o aluno ao ato de aprender, pois será possível transformar a informação provida ou pesquisa em conhecimento, tornando-se, portanto, construtor do conhecimento. Nesse ponto, tem-se novamente a concepção de Papert (2008) que a criança faz melhor quando descobre por si mesma o conhecimento específico de que precisa. O professor proporciona ao aluno o crescimento baseado na autodescoberta, na pesquisa, na curiosidade de saber até onde pode chegar, concedendo-lhe o apoderamento necessário para seu desenvolvimento no vasto mundo globalizado. Logo, ocorre a pedagogia cujo aluno encontra-se no centro da aprendizagem, propiciando-lhe autonomia, por meio de vivências inovadoras. Nesse sentido, Sousa (2005, p. ii) argumenta, Só assim, se poderia passar ao nível seguinte: “gerir e promover a inovação”, através da intensificação da investigação: “É, pois, intensifiessencial lançar experimentações para tirar ensinamentos sobre o que poderia ser a escola, a universidade e a formação do futuro, associando estreitamente os professores, os formadores, os alunos, os pais e as respectivas organizações representantes, a indústria e os parceiros sociais. Esta recomendação visa, por conseguinte, desenvolver experiências inovadoras, que figurariam nas hipóteses futuristas relativas à escola, à universidade e à formação, bem como formas mais eficazes de ensinar e aprender” Nesse sentido, a autora propõe um trabalho em conjunto, uma parceria entre todos os sujeitos relacionados ao processo de ensino-aprendizagem, as entidades da sociedade em prol da construção de uma escola, cuja tecnologia atua como ferramenta na criação de ambientes de aprendizagem onde as informações são recolhidas, processadas e construídas. Desenvolvem-se, assim, experimentações inovadoras aos alunos concernentes a era pós-moderna na qual a humanidade se encontra. Contudo, é de extrema importância ressaltar, mais uma vez, que muitas práticas pedagógicas inovadoras não ocorrem na escola por conta do currículo, os programas curriculares estabelecidos pelo governo, por meio da Secretaria de Educação. Este órgão delimita o que deve ser ensinado em cada semestre do ano letivo, sem conceder ao professor a liberdade de fazer seu planejamento da forma mais condizente com sua turma. No entanto, muitos professores agem de forma diferente, pois desenvolvem práticas pedagógicas inseridas a sua realidade, apesar de registrar no diário o que a secretaria de educação deseja encontrar. Visto que as escolas passam periodicamente por fiscalizações, a fim de verificar o conteúdo que é ministrado. Este exemplo condiz com o que argumenta Fino (2007, p.2), Refira-se, ainda, que a inovação envolve obrigatoriamente as práticas. Portanto, a inovação pedagógica não deve ser procurada nas reformas do ensino, ou nas alterações curriculares ou programáticas, ainda que ambas, reformas e alterações, possam facilitar, ou mesmo sugerir, mudanças qualitativas nas práticas pedagógicas. Ainda, sobre esta real necessidade de mudanças qualitativas nas práticas pedagógicas a fim de que o uso das TIC na escola favoreça o desenvolvimento da inovação pedagógica, o referido autor, ainda, assegura, Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 63 Roberta Cristiana Barbosa Terceiro et al Ora, na minha opinião, a inovação pedagógica não Seymour Papert (1993), o máximo de aprendizagem é uma questão que possa ser colocada em termos es- com o mínimo de ensino. Por outras palavras, a ino- tritamente quantitativos ou de mera incorporação de vação pedagógica passa por uma mudança na atitude tecnologia, do gênero mias depressa, mais eficazmente, do professor, que presta muito maior atenção à criação mais do mesmo. Muito menos pode ser colocada em dos contextos de aprendizagem para os seus alunos do termos de mais tecnologias disponíveis na escola, que aquela que é tradicionalmente comum, centrando nomeadamente quando a proposta de sua utilização neles, e na actividade deles, o essencial dos professores. consiste em fazer com ela exactamente o que se faria É perguntando, evidentemente, o que é que a incor- na sua ausência, embora, talvez, de forma menos poração de nova tecnologia pode fazer para ampliar atractiva. (FINO, 2010, p.5) o poder dos alunos, enquanto aprendizes, ao invés de conjecturar a exploração da tecnologia para reforçar o Mais uma vez, relata-se que a mera inclusão da tecnologia na escola não pressupõe inovação pedagógica, visto que a escola necessita, primeiramente, de modificações essenciais na sua forma de atuação em sua prática vigente. Logo, não basta, por exemplo, ter laboratórios com inúmeros computadores, ou tecnologia de última geração, para que a inovação pedagógica seja presença efetiva na escola. Fino, também menciona que a inovação pedagógica não deve ser meramente avaliada na esfera quantitativa, embora não se possa negar que as políticas vigentes na instituição escolar valorizem consideravelmente os instrumentos de medição quantitativos, isto é, os indicadores de rendimento do sistema educativo, os testes para medir a aprendizagem dos alunos, assim como, a eficiência e a eficácia, o rendimento dos professores. Nesse ponto, é importante salientar que as escolas com os melhores resultados, no Ceará, segundo os indicadores de rendimento estabelecido pelo Estado, recebem maiores incentivos. No entanto, a busca excessiva pelo desempenho, pelos resultados quantitativos, atrapalha de alguma forma a investigação e ação as quais favorecem a existência da prática inovadora no uso das TIC. Assim, a inovação pedagógica deve ser construída, experimentada por todos os agentes envolvidos na educação, ou seja, escola, professor, aluno, comunidade, os responsáveis pelos alunos. Contudo, Fino (2010, p. 5) aponta caminhos para que as TIC possam ser utilizadas para promoverem a prática inovadora na escola. Desta forma, observe, A inovação pedagógica só se pode colocar em termos de mudança e de transformação. Transformação de escola e dos seus pressupostos fabris, pelo menos a nível micro, ou seja, no espaço onde se movimentam aprendizes concretos, assessorados por professores que estão empenhados em garantir, de acordo com seu controlo sobre a turma, em actividades estritamente curriculares, num processo em que é o principal agente. Primeiramente, Fino (2010) ratifica a necessidade de mudança na forma de agir da escola, a qual não deve mais prosseguir em práticas pedagógicas fabris, preocupando-se essencialmente com a eficácia e produtividade, ou seja, mais uma vez com o aspecto quantitativo. Depois, o autor demonstra a importância do professor nesse processo do uso das TIC como inovação pedagógica, o qual deve favorecer a criação de situações de aprendizagem por meio da integração das diversas áreas do conhecimento nas soluções de diferentes problemas, numa atitude cooperativa do grupo, propiciada por ele. Assim, o professor acompanha, passo a passo, o raciocínio lógico do aluno, favorecendo-lhe sua habilidade de analisar o que fez, ou seja, de ser agente construtor na aquisição do conhecimento. Tem-se, então, o professor que assiste, articula e orienta o aluno, realizando a mediação pedagógica deste com o conhecimento, que estimula avanços nos alunos. Enfatiza-se, desta forma, a aprendizagem ao invés de destacar o ensino, priorizando a construção do conhecimento em detrimento da instrução, segundo o construcionismo de Papert. Por último, Fino coloca que as TIC devem agir como ferramentas que propiciem ao aluno sua autonomia sobre suas ações e atitudes as quais envolvam suas necessidades, não tão somente no espaço institucionalizado, mas também fora do ambiente escolar. O professor, assim, procura refletir se o uso das TIC torna mais eficaz a aprendizagem do aluno em relação aos seus reais interesses. Além de observar se elas aumentam sua perspectiva de aprender além do currículo tradicional, levando-o a aprender a lidar com as mudanças sucessivas no mundo pós-moderno, dando-lhe, consequentemente, possibilidade de encontrar seu lugar na sociedade marcada pela instabilidade. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 64 A TIC A SERVIÇO DA INOVAÇÃO PEDAGÓGICA 5 AS TIC SE CONSTITUEM COMO NOVO PARADIGMA EDUCATIVO? Segundo Kuhn (1962) paradigma é uma constelação de conceitos, valores, percepções compartilhadas por uma comunidade. Acrescenta: teoria ou sistema conceitual aceitos por uma comunidade científica, que, durante algum tempo, orienta a sua atividade. A crise de um paradigma e a sua posterior substituição por outro, corresponde a uma revolução científica e a uma nova forma de apreciar o mundo. Logo, de acordo com Kuhn (1962, p.181), as crises conduzem a mudanças de paradigmas. Por conseguinte, concebe-se aos paradigmas científicos a qualidade de mutável, ou seja, que na ciência nada é para sempre. Assim, tem-se, um amparo ao ensino tradicional, mas sim como um novo paradigma, valorizando a aprendizagem e a descoberta, assim como a interação entre alunos e a comunidade. Seguindo esta linha de pensamento, Papert (1993, p. vii) colabora, Not very long ago, and in many parts of the world even today, young people would learn skills they could use in their work throughout life. Today, in industrial countries, most people are doing jobs that did not exist when they were born. The most important skill determining a person’s life pattern has already become the ability to learn new skills, to take in new concepts, to assess new situations, to deal with the unexpected. This will be increasingly true in the future: The competitive ability is the ability to learn. Desta forma, o autor reforça a ênfase no ato de aprender, isto é, a habilidade de aprender será deNothing important to my argument depends, however, on crises ‘being an absolute prerequisite to revolutions; terminante para o futuro do aluno. Ou seja, o aluno They need only to be the usual prelude, supplying, deverá estar preparado para lidar com situações that is, a self-correcting mechanism which ensures futuras incertas, conflitantes, competitivas, novas that the rigidity of normal science will not forever que surgirão inesperadamente e ao mesmo tempo go unchallenged. serão efêmeras. E, neste caos, terá que apresentar a habilidade de tomar decisões, ter autonomia na Em meio à crise vigente, indica-se que “a incor- seleção do melhor para si, para suas necessidades; poração de tecnologia já tornava possível imaginar aprender com o novo, com as mudanças. uma mudança no paradigma na escola” (SOUSA; Toffler (1970, p. 364) reforça esta ideia quando FINO, 2008, p. 12). Mas, afinal, como torná-la pre- comenta que a tecnologia demanda pessoas que sente na prática pedagógica da escola? Visto que aprendam a avaliar, presumir antecipadamente, a tecnologia constitui-se como uma possível via assim, tem-se mais uma vez a importância de para o desenvolvimento de um novo paradigma saber qual caminho seguir em meio às mudanças educativo, faz-se necessário, então, sua concreti- inesperadas, “The technology of tomorrow requires zação efetiva na escola o quanto antes. Além disso, . . . [men] who are quick to spot new relationships a tecnologia desenvolve laços entre os alunos e in the rapidly changing reality. […]the directions a comunidade, impulsionando a descoberta e a and the rate of change”. O referido autor, ainda, colabora ao afirmar, aprendizagem, anulando a diferença entre adquirir conhecimento dentro e fora da escola. Nesse sentiNothing could be better calculated to produce people do, Sousa e Fino (2008, p.12-13) ainda contribuem, uncertain of their goals, people incapable of effective Vivemos numa forma de sociedade que, por ser pós- decision-making under conditions of overchoice. Su- -industrial, requer formas de educação pós-industrial, per-industrial educators must not attempt to impose em que a tecnologia será, com pouca hipótese de a rigid set of values on the student; but they must dúvida, uma das chaves da concretização de um novo systematically organize formal and informal activ- paradigma educativo, capaz de fazer incrementar os ities that help the student define, explicate and test vínculos entre os alunos e a comunidade, enfatizar his values, whatever they are. Our schools will con- a descoberta e a aprendizagem, e de fazer caducar a tinue to turn out industrial men until we teach young distinção entre aprender dentro e fora da escola. people the skills necessary to identify and clarify, if not reconcile, conflicts in their own value systems. Assim, a tecnologia não deve ser empregada como (TOFFLER, 1970, p.412) Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 65 Roberta Cristiana Barbosa Terceiro et al Logo, os educadores não devem impor um conjunto rígido de valores no aluno. Entretanto, devem organizar sistematicamente as atividades formais e informais que o ajudam a definir, explicar e testar seus valores, sejam eles quais forem. Precisa-se, então, ensinar aos jovens as habilidades necessárias para identificar e esclarecer, até mesmo conciliar, os conflitos no seu próprio sistema de valores. Quanto à percepção das TIC como novo paradigma educativo, Segundo Fino (2010, p. 5-6), reforma no sistema educativo, também acredita na efetividade da tecnologia se utilizada em um nível macro, no entanto, acrescenta a necessidade de ajustá-la a professores bem preparados, desenvolvendo serviços, projetos significativos no contexto social. Consequentemente, o contexto social demanda postura não tão somente reflexiva, mas sim plena de investigação e, sobretudo, ação. “He realized, long before the rest of the education reform movement, that technology in education is effective only if placed in a larger context that combines well-prepared teacher with integrated É esta a utilização das TIC, que, a nível macro, poderá social services”.(PAPERT, 1993, p. vii) eventualmente levar à sugestão de um novo paradigma de instituição educativa, nomeadamente porque estas tecnologias da pós-modernidade têm potencial para garantirem acessos interactivos, dessincronizados e permanentes à informação e servem de ferramentas de aprendizagem, tools to think with, como diria Papert, desvinculadas de um currículo centralizado e burocrático, que é apanágio da escola da era industrial. Assim, as TIC poderão se constituir como novo paradigma educativo quando não estivem apenas integradas à sala de aula, ou seja, dentro da instituição escolar, mas também em todo o sistema educacional, englobando todos os envolvidos na educação, em toda sua hierarquia. Além do mais, elas oferecem condições propícias a novos ambientes os quais permitem a interação entre todos os agentes envolvidos na educação, propiciando, assim, o trabalho em conjunto com professores, alunos, comunidade, os pais e a própria escola, além de garantir acesso definitivo ao universo das informações, indo além dos limites físicos da escola, visto que colocam novas ferramentas, mídia e tecnologias ao serviço do aluno, mediante dados, imagens, artigos, resumos de forma rápida, motivadora e acessível. As TIC, portanto, levam o aluno a ter acesso às diversidades de informações, cabendo ao professor ajudá-lo a acessá-las, refletindo sobre o conteúdo que elas contêm, mediante a pesquisa e a ação, sendo, assim, o construtor do conhecimento. Tem-se, deste modo, a aprendizagem dissociada do currículo ainda enraizado no modelo fabril. Veja o argumento deste autor, Novamente, John Sculley, no prefácio da segunda edição de Mindstorms – Children, computers and powerful ideas, relata que Papert nesse âmbito de Porém, como o novo paradigma ainda não se consolidou mediante as TIC, o referido autor argumenta que se deve, então, buscar na investigação opção para realizar práticas inovadoras na escola que continua a desenvolver suas ações segundo a era industrial, embora que este modelo já não corresponda mais às reais necessidades da sociedade pós-industrial vigente. Assim, observe, Enquanto atravessamos esta terra de ninguém entre paradigmas, em que a escola fabril se deprecia cada vez mais rápida e acentuadamente, mas ainda não se consubstanciou o paradigma seguinte, a investigação em educação assume uma importância ainda mais decisiva, nomeadamente a que se debruça sobre a inovação pedagógica. (FINO, 2010, p.6) No entanto, para propiciar práticas inovadoras a investigação não pode apenas ser reflexiva. Assim, deve-se também buscar na ação subsídios para melhor desenvolvê-las. Fino abordou esta concepção quando há cinco anos, no ano letivo de 2004/2005, iniciou o mestrado em educação, na especialidade de inovação pedagógica. Nunca se tratou, nesse mestrado, de se procurar uma visão meramente descritiva, mas, antes, um propósito deliberado de se passar a acção, sem a qual a investigação em educação, numa questão absolutamente crucial, como é a inovação pedagógica, nunca ultrapassará a mera atitude contemplativa, eventualmente erudita, mas que não conduzirá muito para além dela. (FINO, 2005, p.6) Assim, surge a investigação-ação como norte para ajudar as pessoas envolvidas na educação em promover práticas inovadoras pedagógicas, levando, por conseguinte, o aluno a possuir autonomia, Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 66 A TIC A SERVIÇO DA INOVAÇÃO PEDAGÓGICA selecionando informações úteis a fim de ter um lugar na sociedade pós-moderna acumulada de situações efêmeras e incertas. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Mediante a possibilidade de se ter a tecnologia como novo paradigma educativo, faz-se necessário uma profunda reflexão sobre o uso das TIC empregadas na escola. Por exemplo, os computadores demandam várias ações para sua aplicação na escola. Primeiro, em relação ao espaço físico, visto que implica a criação de um laboratório de informática para alocá-los. Mas, neste local, é preciso muito mais do que máquinas, precisam-se, assim, de professores conscientes, críticos, movidos às idéias e ações que colaborem para o emprego de práticas inovadoras mediante o uso das TIC, melhorando, assim, a aprendizagem do seu aluno. É preciso que os professores viabilizem projetos úteis, viáveis a realidade desse aluno, assim como, da comunidade onde a escola se encontra inserida. Enfim, necessita-se de práticas inovadoras que coloquem o aluno como centro da aprendizagem, proporcionando-lhe, enfim, autonomia, o despertar pela pesquisa, investigação, criatividade. Salienta-se, ainda, que é preciso mudar a postura da escola que na pós-modernidade continua sendo concebida à luz da educação fabril. Mudanças que devem surgir em todos os níveis hierárquicos do sistema educacional. Pois, o aluno necessita aprender a investigar, ir além do que lhe é proporcionado dentro da sala de aula, visto que a realidade da sociedade pós-moderna demanda pessoas que saibam viver no caos, na incerteza, no ambiente de conflito, adaptando-se as constantes mudanças. Precisa-se, assim, de muito investimento em pesquisas, estudos, debates entre os sujeitos envolvidos na aprendizagem, assim como, a sociedade a fim de que a prática pedagógica possa se beneficiar do uso da tecnologia em seu ambiente tanto interno quanto externo, visto que a comunidade é sua extensão. A questão não é tê-la, mas o porquê de utilizá-la em prol de uma aprendizagem centrada no aluno, bem como, nas questões relativas à comunidade. Os computadores, nesta perspectiva de ensino, poderão ser utilizados como ferramentas educacionais os quais favorecem a aprendizagem ativa, ou seja, que propicie ao aluno a construção de conhecimentos a partir de suas próprias ações. REFERÊNCIAS APPLE, M. W. The new technology: is it part of the solution or part of the problem in education? Computers in the Schools, British Educational Communications and Technology Agency, Oxford, v.8, n.1-3, p. 59–81, Jan,1991 FINO, C. N.; SOUSA, J. M. As TIC redesenhando as fronteiras do currículo. Revista Galego-Portuguesa de Psicoloxía e Educación, Universidade da Madeira, Ano 7, v.10, n 8, 2003. . Inovação pedagógica: significado e campo (de investigação). In: Alice Mendonça & Antônio V. Bento (org). Funchal: Universidade da Madeira, 2007. . Inovação e invariante cultural. In Actas do VII Colóquio sobre Questões Curriculares. Braga: Universidade do Minho, 2006. . Investigação e inovação (em educação). In: FINO, C. N.; SOUZA, J. M. S. (Org.). Pesquisar para mudar (a educação). Funchal: Universidade da Madeira, 2010. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessário à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997. . Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 57 – 64. PARASKEVA, J. M. Michael Apple e os estudos curriculares críticos. Currículo sem fronteiras, Ermesinde, Portugal, v.2, n.1, p.106-120, jan./jun. 2002. PAPERT, Seymour. A máquina das crianças: repensando a escola na era da informática. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. . Mindstorms: children, computers, and powerful ideas. 2.ed. New York: Basic Books, 1993. .The children’s machine: rethinking school in the age of computer. New York: Basic Books, 1993 . “Introduction”. In: HAREL, I. (Ed.). Constructionist learning. Cambridge, MA: MIT Media Laboratory, 1990. . Logo, computadores e educação. São Paulo: Brasiliense, 1985. POSTMAN, N. Technopoly: the surrender of culture to technology. Nova York: Knopf, 1992. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 67 Roberta Cristiana Barbosa Terceiro et al SOUSA, J. M.; FINO, C. N. As TIC abrindo caminho a um novo paradigma educacional. Revista Educação & Cultura Contemporânea, Rio de Janeiro, v.5, n.10, 1º sem. 2008. SOUSA, J. M. Um mestrado em inovação pedagógica. Tribuna da Madeira, Portugal, 24 jun. 2005. Caderno educação. . O professor como pessoa. Porto: ASA Editores, 2000. TOFFLER, A. O choque do futuro. Tradução de Marco Aurélio de Moura Matos. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1971. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 68 litterarumradicesamaraefructusdulces A Mídia na Formação de Crianças: Análise Interdiscursiva do Programa “Malhação” Alberto Gurgel Filho1 Letícia Adriana Pires Teixeira2 Carla Michele Quaresma3 Palavras-chave: Mídia. Criança. Interdiscurso. Keywords: Media. Child. interdiscourse. RESUMO: As emissoras, a cada ano que passa, vêm disponibilizando mais espaço aos programas dos gêneros soap-opera, telenovela e seriados, como forma de atrair o público. No entanto, todos tendem a uma missão ficcional, de demonstrar a realidade e os problemas dos jovens, as tendências de moda e os novos padrões sociais da sua faixa etária, como os discursos e os estereótipos juvenis. A escolha por “Malhação” como objeto de estudo é por ser a única do gênero soap-opera no Brasil e resiste na grade da emissora Globo há mais de dez anos, o que sustenta a sua popularidade e a inserção que proporciona na vida do público. ABSTRACT: The stations, each year that passes, are offering more space for programs of genres soap-opera, soap opera and sitcoms, in order to attract the public. However, all tend to a fictional mission to demonstrate the reality and the problems of young, fashion trends and new social standards of their age group, such as speeches and stereotypes juveniles. The choice of “Malhação” as an object of study is to be the only kind of soap-opera in Brazil and resists the grid station’s Globe for more than ten years, which maintains its popularity and integration that provides Public Life. 1 Introdução da hipótese que esses jovens telespectadores, ao fazerem contato com esse tipo de programação, parecem viver uma “espécie de transe” em que assumem papéis e máscaras sociais referenciados pelos personagens da programação dos sistemas nacionais e internacionais da mídia televisiva. A nossa proposta visa a investigar se essa influência realmente se evidencia. A televisão é, ainda, o principal veículo de entretimento das famílias brasileiras, especialmente dos pré-adolescentes, como forma de interagir com a sociedade e seu grupo de 10 a 12 anos. Mas, A televisão ao mesmo tempo em que traz benefícios, traz malefícios para essas famílias. Entre os malefícios, podemos destacar: a pobreza da linguagem, exploração da violência, do sexo, do desrespeito à ética e aos valores humanos e sociais. Além de incentivar o A experiência de educar, a cada dia, toma rumos desafiadores, tanto para a família, quanto para a escola. A idéia de educação estritamente escolar perdeu a força e nasceu uma nova concepção de educação, baseada em todos os conteúdos recebidos pelas crianças no seu caminho educacional. Isso inclui os conteúdos televisivos que chegam a elas e, algumas vezes, transmitindo valores violentos e condutas estigmatizadas socialmente, que se impõem aos jovens como forma de ser e agir. A investigação ora proposta está centrada na busca de compreender o grau de influência dos programas de TV brasileira – no caso desse estudo, especificamente “Malhação” - na formação discursiva de crianças com faixa etária de 10 a 12 anos. Partimos 1 Graduando em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo pela Faculdade Integrada do Ceará - FIC. e-mail: alberto_ [email protected] 2 Professora dos Cursos de Marketing, Direito e Comunicação Social da Faculdade Integrada do Ceará - FIC - Jornalismo e Publicidade e do Curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará. e-mail: 3 Professora do Curo de Comunicação Social - Jornalismo e do Curso de Direito e da Faculdade Integrada do Ceará - FIC email: [email protected] Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 70 A MÍDIA NA FORMAÇÃO DE CRIANÇAS: ANÁLISE INTERDISCURSIVA DO PROGRAMA “MALHAÇÃO” consumismo. números do Ibope Mídia (Centro sociedade que se desenvolveu a análise do discurso. Brasileiro de Mídia para crianças e adolescentes), Ao observarem uma demanda crescente de signiinformam-nos que dos 10 programas mais assis- ficados começou a se estudar essas manifestações, tidos por meninos e meninas de 4 a 17 anos, oito tomando como ponto de partida às condições de deles são programas direcionados para adultos produção, pois incluem todo o processo de inte(filmes, novelas, programas de auditório) e só dois ração comunicacional – a produção, a circulação e o consumo de sentidos – dessa forma quando são programas apropriados para a faixa etária. Os programas televisivos têm criado muita di- damos relevância a esses aspectos estamos aborficuldade de relacionamento entre as famílias, dando as práticas sociais que estão embutidas principalmente os relacionados ao comportamento. nesses contextos. Como estudante de comunicação é, também, de Atualmente, as análises de discursos que mais nosso interesse que os Meios de Comunicação se exercitam são reforçadas por duas tradições, a efetivem seu compromisso com a educação e a análise do discurso francesa e a anglo-americana. cultura, em especial de crianças e de adolescentes. A análise de discurso francesa, que contou com o Este trabalho nasce dessa preocupação e pretende esforço de Michel Pêcheux e Michel Foucault, se arcontribuir com novas reflexões acerca da formação ticulava desde a década de 70 (linguística e história). de cidadão de direito, capaz de refletir, formar Segundo Pinto (2002), a função das ideologias como constitutivas da produção/reprodução dos opinião e dar condição a outros de exercê-lo. A opção pela análise da novela “Malhação” acon- sentidos sociais, por força dos aparelhos ideológiteceu pela percepção de que a programação chama cos, desenvolvidos por Louis Althusser, tem papel atenção do nosso público-alvo. Os adolescentes, na fundamental na AD. Dessa maneira, definemfaixa de 10 a 12 anos, experimentam como uma -se os discursos como sendo resultados de práti“febre”, o programa em questão, que lança moda, cas determinadas pelo contexto sócio-histórico, instaura costumes, gírias, novas tendências de constituindo-se também parte do contexto, vão diálogo e vende produtos de toda ordem, impul- se privilegiar os textos impressos ou transcrisionado pela audiência do público. Instiga-nos ções de textos orais, caracterizando-se por uma saber os motivos para esse sucesso através dos análise isolada, independente de outros sistemas posicionamentos desses adolescentes. semióticos, segundo ainda Pinto (2002, p.28), “[...] cujas implicações político-ideológicas procuravam desvelar, de um ponto de vista crítico.”. 2 Análise do Discurso A anglo-americana tem origem na Inglaterra, mas Desde meados dos anos 80, um dos setores de teve seu ápice nos Estados Unidos, onde obteve pesquisa em Comunicação que mais se desenvolveu elementos da sociologia, psicologia e da etnologia, foi o da prática analítica denominada de análise de prendendo-se mais ao empirismo e aos conceitos discursos, seu desígnio vai desde a obtenção de co- da psicologia do consciente. [...] Suas análises de nhecimento acadêmico à pesquisa mercadológica. discursos combinam a descrição da estrutura e do funcionamento interno dos textos, com uma tentativa de contextualização um pouco limitada A partir de corpora de produtos culturais empíricos criados por eventos comunicacionais (tais como anún- e utópica. [...] (PINTO, 2002, p.21) Para essa corrente, o processo de comunicação cios publicitários; capas de periódicos; programas televisivos e de rádio; entrevistas médicas; entrevistas é entendido como sendo uma interação coopede emprego; textos jornalísticos impressos; discursos rativa entre sujeitos que apreendem o controle políticos; cartilhas para prevenção de doenças; orga- total e consciente das regras a serem utilizadas nização dos espaços de uma cidade, de repartições e que tem como contribuir igualmente para o públicas, de empresas ou de nossas próprias casas, progresso. A definição proposta pela análise de entre outros). (PINTO, 2002, p. 13) discursos anglo-americana varia entre o sentido de discurso e frase, vislumbrando uma unidade Foi com o intuito de esclarecer, detalhar e analisar linguística fundada por uma sequência de frases, criticamente os processos de produção, circulação e um sentido de discurso que aparece como uso e consumo de sentidos atrelados aos produtos da da linguagem verbal em contextos determinados. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 71 Alberto Gurgel Filho et al Em linhas gerais, o analista de discursos é um “detetive sociocultural”, pois na prática seu objetivo é procurar e interpretar vestígios que se adéquem para poder contextualizar em três níveis que, segundo Pinto, seria o contexto situacional imediato, o contexto institucional e o contexto sociocultural mais amplo, mais adiante em sua obra o mesmo define que a análise de discurso: Trata-se de uma análise inicial e não simbólica ou icônica, no sentido que estas palavras têm na obra de Charles Sanders Peirce. A análise de discursos não se interessa tanto pelo que o texto diz ou mostra, pois não é uma interpretação semântica de conteúdos, mas sim em como e por que o diz e mostra. (PINTO, 2002, p.27) Quando se define os discursos como sendo uma pratica social, entende-se que a linguagem verbal e as outras semióticas com que se constituem os textos são partes integradas do contexto sócio-histórico e não alguma coisa de costume puramente instrumental, desvencilhado das pressões sociais. Como diz M. Pêcheux (Idem) o sentido de uma palavra, uma expressão, de uma proposição etc., não existe em si mesmo (isto é, em uma relação transparente com a literalidade) mas ao contrário é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no pro- para não enxergar no outro o interdiscurso, pois ao se estabelecer sentido temos um efeito de já dito, do interdiscurso do outro. A essa característica, Orlandi vai explanar como sendo a historicidade da análise do discurso. Em sua mais pura concepção de sentido e organização de pensamentos a A.D – Análise do Discurso -, está em nosso dia-a-dia para descrever, explicar e avaliar criticamente os processos de produção, circulação e consumo de sentidos vinculados àqueles produtos na sociedade, segundo o autor Pinto (2002). O homem ao longo dos tempos sentiu a necessidade de interpretar a fundo todo o conteúdo que lhe era “encaminhado”, foi a partir dessa penúria que o mesmo começou a se utilizar da análise do discurso para compreender as idéias implícitas nos discursos midiáticos. Na análise de discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história. (ORLANDI, 2007). Como podemos constatar, a análise de discurso é muito complexa, espesso de vivências e de valores culturais. Principalmente quando o seu foco é dar ênfase para a maior absorção do receptor da mensagem, a qual se estabelece uma relação de informação. cesso sócio-histórico no qual as palavras, expressões, proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). A Análise de Discurso não trabalha com a língua (ORLANDI, 2007, p.17) enquanto um sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens Ao analisarmos as formações discursivas, temos que levar em consideração toda a singularidade das ideologias do meio, pois como a passagem anterior, onde M. Pêcheux vislumbra o sentido como algo implícito ao conhecimento geral, estando ligado fortemente aos posicionamentos ideológicos. Quando agregamos uma série de formações discursivas, estamos estabelecendo um interdiscurso que está permeado também por formações ideológicas.Para Orlandi (2007), o interdiscurso é irrepresentável. Ele é constituído de todo dizer já dito. Ele é o saber, a memória discursiva. Aquilo que preside todo dizer. É ele que fornece a cada sujeito sua realidade enquanto sistema de evidências e de significações percebidas, experimentadas. É através do interdiscurso que as pessoas não reconhecem sua subordinação-assujeitamento ao outro, é dado uma pseudo-autonomia ao sujeito falando, considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade. (ORLANDI, 2007, p. 15-16) As matérias vinculadas nos jornais, noticiários de TV e rádio e revistas estão de uma forma representativa levando a visão de uma empresa e suas políticas de conduta e moral. Através dessa veiculação, podemos notar suas maneiras de significar e perpassar pela sociedade de uma maneira capciosa as suas significações e posicionamento sobre um dado tema de grande relevância ou matérias corriqueiras. Os jornalistas, em sua formação, têm uma gama de conhecimentos acumulados e assimilados naturalmente no seu percurso acadêmico. Está, nesse ponto, o que os principais autores Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 72 A MÍDIA NA FORMAÇÃO DE CRIANÇAS: ANÁLISE INTERDISCURSIVA DO PROGRAMA “MALHAÇÃO” da análise do discurso comentam como sendo uma espécie de manipulador dos significados. Vale ressaltar que isso tudo de maneira implícita. A A.D vem para poder demonstrar como e de que maneira na comunicação social e em outras áreas do conhecimento isso está presente e que força tem. Os estudos discursivos visam a pensar o sentido dimensionado no tempo e no espaço das práticas do homem, descentrando a noção de sujeito e relativizando a autonomia do objeto da Linguística. (ORLANDI, 2007) O autor M. Pêcheux comentava que não existia ser humano sem ideologia e nem discurso sem ser humano. Dessa maneira, demonstrando que o processo de criação de um discurso perpassa de forma simétrica e quase que como uma regra matemática, com os elementos anteriormente citados, o mesmo autor complementa dizendo que o discurso é um local onde se observa a relação entre língua e ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentido por e para os sujeitos. (ORLANDI, 2007, p.17) À medida que uma criança opta por determinada programação e faz dela uma constante em sua rotina diária torna-se alvo de possíveis mensagens, que em sua essência emanam uma carga simbólica. O programa “Malhação” quando é formulado visa a atingir uma pluralização de núcleos de convivências. Essa proposta hipoteticamente pode manifestar um sentido totalmente contrário no público para o qual aquela mensagem não foi direcionada. Por isso a Análise de Discurso visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos. Essa compreensão, por sua vez, implica em explicitar como o texto organiza os gestos de interpretação que rela- O interesse específico da análise do discurso é apreender o discurso enquanto articulação entre texto e lugares sociais. Consequentemente, seu objeto não é a organização textual nem a situação comunicativa, mas o que os articula através de um gênero de discurso. A noção de “lugar social” não deve se considerada de um ponto de vista literal: esse “lugar” pode ser uma posição em um campo simbólico ( político, religioso, etc.). (MAINGUENEAU, 2000, p.167) O emissor da mensagem, ao compor seu discurso, utiliza-se, às vezes, até sem saber, da sua ideologia para compor seu discurso, pois ele vai ser o primeiro “filtro” das informações. É, na realidade, quem vai decidir o que deve ou não ser exposto, também levando em favor seu posicionamento a frente da conjuntura sócio-histórica presente em seu universo simbólico. 3 Mídia: formadora de opiniões Atualmente, existe uma plataforma em ascensão que é característica da sociedade moderna, a cultura da mídia. A veiculação das imagens, sons e espetáculos ajudam as pessoas a construírem a rede social da sua vida cotidiana, dominando por boa parte o tempo de lazer, modelando a opinião pública e os comportamentos sociais. Essa modelagem da nova sociedade gera uma organização em que as empresas de comunicação subsidiam os novos parâmetros para as pessoas construírem seu ethos contemporâneo. A constituição do ethos contemporâneo é desenvolvida por um conjunto de valores, normas, referências, modos de atuar e hábitos, que vai pautar a ação do sujeito. O ambiente é instável o que traz as relações sociais um caráter de intensa modificação e atualização a partir do estreitamento e distanciamento, reconhecimentos e estranhamentos no amplo espaço dos valores. cionam sujeito e sentido. Produzem-se assim novas práticas de leitura. (ORLANDI, 2007, p.26) [...] não há ethos sem um ambiente cognitivo que o dinamize, sem uma unidade dinâmica de identifi- Os analistas do discurso, no decorrer dos tempos, procuraram aprofundar em seus estudos um campo específico para esse conhecimento, porém constataram que era quase impossível estabelecer isso. Foi a partir dessas pesquisas que concluíram que a A.D pode ser utilizada em todos os estudos, independente da sua área de conhecimento como podemos ver na passagem a seguir cações de grupo, que é seu modo de relação com a singularidade própria, isto é, a cultura: aí atuam as formas simbólicas que historicamente orientam o conhecimento, a sensibilidade e as ações dos indivíduos (SODRÉ, 2001, p. 154). Dentro das estruturas sociais a produção, a troca de informações e o conteúdo simbólico, sempre Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 73 Alberto Gurgel Filho et al tiveram seu espaço. Podemos nos remeter desde os primórdios da sociedade quando os gestos ainda eram o principal meio de comunicação até as mais recentes descobertas da comunicação instantânea via internet, a sua produção, circulação, armazenamento e seu sentido simbólico ainda perpassam pela vida das pessoas como um aspecto central. A modificação dessas etapas de comunicação ocasionou o desenvolvimento institucional, que por sua vez as formas simbólicas foram produzidas e reproduzidas em escala sempre em expansão; tornaram-se mercadorias que podem ser compradas e vendidas no mercado; ficaram acessíveis aos indivíduos largamente dispersos no tempo e no espaço. De uma forma profunda e irreversível, o desenvolvimento da mídia transformou a natureza da produção e do intercâmbio no mundo moderno. (THOMPSON, 2004, p. 19) A cultura da mídia é formada por sistemas de rádio e reprodução de som (discos, fitas, CDs e seus instrumentos de disseminação), de filmes e seus modos de distribuição (cinema , DVDs, apresentação pela TV), pela imprensa que vai de jornais a revistas e pelo sistema de televisão ( exploração da cultura da imagem e do som). Segundo Thompson (2004), para se explorar os tipos de interação estabelecida pelos meios de comunicação, é preciso dispor de três formas de intercâmbio que ele denomina de “interação face a face”, “interação mediada” e “quase-interação mediada”. A interação face a face acontece em um contexto de co-presença; os participantes estão imediatamente presentes e partilham um mesmo sistema referencial de espaço e de tempo. [...] têm também um caráter de diálogo, no sentido de que geralmente implicam ida e volta no fluxo de informação e comunicação; os receptores podem responder (pelo menos em princípio) aos produtores, [...] os participantes normalmente empregam uma multiplicidade de deixas simbólicas para transmitir mensagens e interpretar as que cada um recebe do outro. As palavras podem vir acompanhadas de piscadela e gestos, franzimento de sobrancelhas e sorrisos, mudanças na entonação e assim por diante. [...] (THOMPSON, 2004, p. 78) A interação mediada é a que mais se adéqua a análise da soap opera “Malhação”, pois implica certa aproximação na possibilidade de deixas simbólicas acessíveis ao público. Para Thompson, as interações mediadas têm um caráter mais aberto do que a interação face a face. Pois o estreitamento das possibilidades de deixas simbólicas dá ao indivíduo os recursos necessários para sua própria interpretação das mensagens transmitidas. Stuart Hall sugere que se trave uma articulação entre a codificação da mensagem, no campo da produção e sua decodificação, no plano da recepção. Para nortear seu estudo, o autor trabalha com três posições de interpretação da mensagem televisiva: dominante, o observador “decodifica a mensagem nos termos do código referencial no qual ela foi codificada” (HALL, 2003, p. 377); negociada, mistura de elementos adaptativos e opositivos; e opositiva, o receptor entende a proposta dominante da mensagem, mas a interpreta segundo uma estrutura de referência alternativa. 4 Os endereçamentos televisivos O foco principal para indagar a dimensão simbólica e a prática dos produtos audiovisuais, sua inserção social, recepção e influência são os “modos de endereçamento”, que determina se o programa atrai ou passa despercebido pelo espectador. Os modos de endereçamentos podem ser classificados como um evento, uma posição física estabelecida às margens de seu produtor e receptor, confeccionado entre o texto do filme/programa e a rede de experiências e a posição geográfica da platéia. Essa teoria adentra a uma magnitude, que vai além do público-alvo em questão, Ellsworth (2001) parte do pressuposto que para que um espectador verdadeiramente se envolva, se deixe levar por um filme/programa é necessário que estabeleça uma relação com que vê. Essa relação então passa pelo campo emocional. Os modos de endereçamento acionam uma parte do indivíduo “irracional”, onde ele se deixa guiar por esse “sujeito”, que faz parte da pessoa no mundo, que é onde ele ocupa ou pensa que ocupa, ou ainda, que ele gostaria de ocupar. Esse “feitiço”, causado pelo endereçamento, remete a uma entrega total e a fiel designação do sujeito como os desejos internos para se chegar a esse lugar, que é de sua total contemplação. Quando os modos de endereçamento atingem seu significado literal de “conter em si, constar, abranger, perceber ou alcançar as intenções ou o Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 74 A MÍDIA NA FORMAÇÃO DE CRIANÇAS: ANÁLISE INTERDISCURSIVA DO PROGRAMA “MALHAÇÃO” sentido” (AURÉLIO, 1995, p.165), que lhe é sugerido. Os modos de endereçamento têm a ver com o desejo de controlar, tanto quanto possível, como e a partir de onde o espectador ou a espectadora lê o filme. Tem a ver com atrair o espectador ou a espectadora a uma posição particular de conhecimento para com o texto, uma posição de coerência, a partir da qual o filme funciona, adquire sentido, dá prazer, agrada dramática e esteticamente, vende a si próprio e vende os produtos relacionados com o filme (ELLSWORTH, 2001, p.24) Para que exista uma contemplação dos indivíduos para com os programas de televisão, é necessário que todas as unidades de sua formação como imagens, cenas, sons, músicas, cores, luzes e ritmo estejam em perfeita harmonia para que assim o conjunto estabeleça seu lugar específico de apreciação. A disposição do indivíduo no espaço determinado é planejada intencionalmente através de textos imagéticos e sonoros. Quando nos deparamos com uma pobre camponesa voltando do campo e há alguns metros de sua residência sofre abusos de seu padrasto que se passa como bom moço, somos levados a status de cúmplices ou testemunhas. A intenção dos modos de endereçamento é de nos levar para dentro da história e nos tornar parte integrante e decisiva do desencadeamento da mesma. Em uma produção como “Malhação” os endereçamentos vão partir de cada personagem de status, que vai desde a menina feia que após certos cuidados de beleza se torna linda e atraente, revelando assim a paixão no garoto que sempre ela desejou; o rapaz que sempre quis dançar balé, mas como é uma profissão dita como feminina, projeta no personagem seu reflexo e leva a tentar realizar seu sonho. Por muitas vezes, o endereçamento pode errar, por não ser completa, mas sempre ele contempla a uma parcela bem significativa. 5 “A Malhação”: um gênero “soap opera” Malhação é o programa mais expressivo da mídia teen desde a primeira temporada, em comparação com os programas oferecidos aos jovens pelas TVs a cabo “Malhação” ainda continua como favorita para a grande parte. Exibida há quatorze pela Rede Globo, o programa, que hipoteticamente pauta a classe média jovem brasileira, abordando temas do dia-a-dia do público juvenil e atraindo com sucesso todos os públicos. O programa já obteve média de 41 pontos de audiência, considerada um dos melhores produtos da emissora. Os jovens protagonistas desde a primeira temporada de “Malhação” são os recordistas de cartas e e-mail da emissora, sendo assim um feed back positivo para a direção e para a Rede Globo. A novela, ou melhor, a soap opera “Malhação” é a produção destinada aos jovens brasileiros há mais tempo no ar. A proposta da emissora Globo era de cobrir um horário que estava vago entre a sessão da Tarde e a Novela das Seis. A primeira tentativa de emplacar no horário foi Radical Chic que era uma competição de perguntas e respostas entre adolescentes do Ensino Médio ou Universitários, com equipes separadas por sexo. A equipe que mais acumulasse pontos ganhava prêmios em dinheiro. A produção foi cancelada da grade da emissora por não alcançar o público-alvo. Logo depois foi a vez de “Malhação”, que inicialmente estava previsto para durar três anos, mas as expectativas foram bem maiores que qualquer pesquisa poderia ter registrado. O ano de 1995 foi marcado para sempre na história da programação voltada para os jovens, com uma dinâmica bem estruturada no roteiro da história e uma seleção de músicas bem teen, essa foi a formula para a mais nova aquisição da grade da emissora Globo que teria daqui para frente a mais nova plataforma de alcance ao mundo jovem. O tempo modificou muito de 1995 ate 2008, a novela passou por algumas transformações no seu cenário, de uma academia de ginástica, passou a aumentar o universo dos personagens, a criação de restaurantes, produtoras de vídeo, lojas e as casas dos protagonistas, mas a modificação maior foi quando seu cenário principal mudou radicalmente de uma academia para uma escola. Da estréia em 1995 até a temporada 2008, a única característica incomum entre elas é o nome, a abertura e a música tema do programa a cada temporada são modificadas, buscando cada vez mais ser uma cópia fiel da realidade do jovem da época e dessa maneira conseguindo se manter na rotina dos jovens. Seguindo o perfil de uma legitima soap opera que é, “Malhação” sempre abordou temas que Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 75 Alberto Gurgel Filho et al estivem em destaque no cenário nacional, como 6 Os Estudos Culturais gravidez na adolescência, delinquência, protagonismo juvenil, relacionamentos entre pais e filhos, No final dos anos 50, pensadores ingleses oriundos namoro e amizades. da esquerda desenvolveram estudos e problemáticas O termo “soap opera – novela sabão” foi cunhado que tiveram como foco a cultura operária, após as pela imprensa americana na década de 1930, para transformações da Segunda Guerra Mundial. Os designar o gênero extremamente popular dos processos de industrialização e urbanização se dramas serializados, que, em 1940, representaram desenvolveram junto com o processo de desenvolvicerca de 90% de todos os comerciais, patrocinando mento dos meios de comunicação em grande escala: as transmissões diurnas. O “sabão” faz alusão a seu rádio, revistas e livros baratos, jornais, anúncios, patrocínio, por parte dos fabricantes de produtos todo tipo de filmes – sobretudo, americanos- e de limpeza doméstica, enquanto “opera”, sugeri televisão alterando e reorganizando a cultura, o uma ironia entre as preocupações domésticas modo de vida e a identidade política das classes narradas na série. Nos Estados Unidos, o termo trabalhadoras. A proposta de aprofundamento e continua a ser aplicada principalmente a cerca das discussão no âmbito social nasce desta preocupacinquenta horas por semana de transmissão das ção com a repercussão das produções midiáticas. séries dramáticas de televisão, no horário diurno, Com a crescente expansão dos meios de ‘comunipela emissora ABC (American Broadcasting Com- cação de massa’ e da alfabetização das pessoas, és pany), NBC (The National Broadcasting Company) que surge um novo panorama do público leitor. O e CBS (Columbia Broadcasting System). que antes era apenas restrito a uma minoria estava A principal marca das soap opera é seu roteiro, em crescente ascensão. Aumentando o número de que enaltece uma exaltação de sentimentos, mul- ouvintes, telespectadores e por conseqüência de tiplicidade de temas e personagens estereotipados, consumidores da nova ordem de produtos culturais. que define bem as soap operas. A sua origem vem As relações interpessoais e sócias adotaram novos de um público feminino, com a evolução das nar- posicionamentos, desenvolvendo uma indagação rativas e da interação das soap operas no cotidiano sobre as tradições, que por sua vez se manifestava das pessoas, começou a adentrar na vida das fa- em todos os campos sociais como a democracia, mílias e mais adiante em uma nova roupagem, o as classes sociais, gostos populares e as artes. Para público adolescente é um dos receptores de maior uma discussão ampla era necessária a retirada do potencial dos temas abordados a cada temporada. conceito cultura do seu habitual e inserir em um Quando fazemos a leitura do programa “Ma- contexto dos processos históricos e das práticas lhação”, caracterizamos como sendo uma novela sociais. Segundo Gomes (2000, p.105) tradicional, que tem início, meio e fim e um roteiro segmentado em um núcleo principal. Mas quando O programa inicial dos Estudos Culturais foi proceder analisamos sua estrutura, notamos características a uma transformação radical do conceito de cultura que se afasta daquele defendido pelos principais intede soap opera, gênero de ficção dramática ou cômica difundido pela televisão, inexistência de um lectuais da época – que entendiam a cultura apenas no calendário final, segmentada por temporadas, a sentido que hoje damos à expressão cultura erudita e que se refere à busca e ao cultivo da perfeição moral, cada uma, escolhe-se abordagens diferenciadas e intelectual, espiritual. Desde essa fase inicial, desde muitas vezes os temas de grande repercussão social são inevitáveis, por exemplo, AIDS, gravidez na esses primeiros esforços por reformular o conceito de adolescência, homossexualismo e outros. cultura que os Cultural Studies se distinguirão como Na falta de uma base sólida de referenciais para uma correntes de investigação que põe o foco da sua a constituição da identidade do jovem, a mídia atenção no processo ativo e consciente de construção assume um papel de perpetuadora de modelos de sentido na cultura. para construção da personalidade e do vocabulário de cada jovem. Programas como “Malhação” são A instituição Centre for Contemporary Cultural as novas propostas da atual sociedade, que na era Studies – CCCS, foi o local onde os principais da globalização dita modelos de grupos sociais e pensadores e os mais referenciados se reuniam, interfere nas relações interpessoais. tem como cede a Universidade de Birmingham, Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 76 A MÍDIA NA FORMAÇÃO DE CRIANÇAS: ANÁLISE INTERDISCURSIVA DO PROGRAMA “MALHAÇÃO” fundado em 1964 sob a direção de Richard Ho- é realizada em meio das rotinas e atividades da ggart. Os trabalhos de Hoggart, E.P Thompson produção televisiva e circulam em forma de signos, e Raymond Williams, assim como os de Stuart de discursos que devem ser apreendidos, articuHall constituem as referências iniciais e principais. lados em práticas significantes, interpretados no Quando Hall passou a dirigir a CCCS, introduz- momento do consumo. Segundo Hall (2003) quando o receptor adentra -se fortemente o pensamento de Roland Barthes, no campo da decodificação ele teria três opções Focoult e Althusser, Eco e Bakthin. Segundo Hall (2003), parafraseando o pensa- hipotéticas para emitir um posicionamento e inmento de Gramsci, cultura significa “o terreno terpretar a mensagem: uma leitura ou uma leitura real, sólido, das práticas, representações, línguas negociada e uma leitura de oposição, ou até mesmo e costumes de qualquer sociedade específica, bem interpretação hegemônica - dominante. A leitura como as formas contraditórias do senso comum hegemônica-dominante é caracterizada quando que se enraizaram na vida popular e ajudaram a o receptor se apropria integralmente do sentido, moldá-la” (HALL, 2003, p.439). “decodifica a mensagem nos termos do código Os estudos Culturais argumentam que a cultura referencial na qual ela foi codificada.” (HALL, no âmbito de um processo social ininterrupto e, 2003, p.13) e se apropria das definições dominantes, paralelamente, contraditório, incluindo processos hegemônicas e legítimas para a ordem social. de produção, circulação e consumo culturais. Os A segunda opção de leitura, a da decodificação neCultural Studies gociada, é identificada quando o receptor questiona, interroga, ainda que uma parte das mensagens não pretendem contribuir à acumulação da ciência televisivas. Hall ainda esclarece que, pela ciência em si, à elaboração de uma reserva de “conhecimentos já dados” solidamente estabelecidos Decodificar, dentro da versão negociada, contém uma e empiricamente validos. Pretendem, pelo contrário, mistura de elementos de adaptação e oposição: reco- participar de um debate atual, aberto e politicamente nhece a legitimidade das definições hegemônicas para orientado, que vise a avaliação e a crítica da condição produzir as grandes significações (abstratas), ao passo cultural contemporânea. Nesse contexto, a relevância que, em um nível mais restrito, situacional (localizado), estratégica das análises, o sentido crítico e a sensi- faz suas próprias regras [...]. Confere posição privile- bilidade pelo concreto são mais importantes que o giada às definições dominantes dos acontecimentos, profissionalismo teórico e a pureza metodológica. enquanto se reserva o direito de fazer uma aplicação (ANG, 1997 apud NATANSOHN, 2003, p.92). mais negociada às ‘condições locais’ e às suas posições mais corporativas (HALL, 2003, p.14). Em 1973 Stuart Hall publica Enconding/Deconding, obra que daria uma amplitude a problemáticas A terceira hipótese proposta por Hall é a leitura discutidas por Levi-Strauss, Roland Barthes, Louis opositora dos discursos, é realizada de forma conAlthusser, Jacques Lacan e Michel Foucault, duran- trária à sugerida. Entende-se o sentido da mensate os anos 70 e 80. Essas leituras influenciaram na gem, porém esta é transformada em uma leitura de introdução das questões lingüísticas e semióticas. indagações. Para Hall seria o local onde “se trava a Hall em Enconding/Deconding, detalha que o ‘política da significação’ – a luta no discurso”. As processo de comunicação midiática pelo viés de pesquisas em recepção e as propostas teóricas afirum encadeamento de instâncias – recepção, cir- mam, com freqüência, que os receptores constroem culação, emissão – que são autônomos e diferentes. suas próprias leituras e interpretações a partir Quando o receptor está a decodificar, o momento do espaço ilusório de sentido que proporciona o é privilegiado, analiticamente, pois é nessa hora encontro com o discurso e público. em que se concretiza a produção e reprodução da ideologia. Para Hall a pesquisa em recepção não 7 Análise dos enunciados e dos posicionamentos discursivos poder compreendida apenas como uma interação entre as intenções do emissor e os efeitos no receptor. Devemos estudar como os eventos se Neste trabalho de análise da interferência do proconvertem em mensagens, já que a codificação grama “Malhação”, formulamos um questionário Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 77 Alberto Gurgel Filho et al com vinte questões, dirigidas aos jovens, que abordam desde como é a seleção dos programas assistidos, com quem assiste, por quanto tempo e se costuma utilizar as expressões que o programa adota. Tomamos por base publicações voltadas ao público jovem e a partir de então circundamos um público alvo que a cada dia torna-se um telespectador mais ativo para esse tipo de programação. O perfil foi de crianças de 10 a 12 anos de idade, pertencentes à classe média e alunos de escola particular. A pesquisa foi realizada em duas escolas de Fortaleza, Colégio Irmã Maria Montenegro e Colégio 7 de Setembro. Ao total, foram respondidos o número de cento e trinta e um questionários. O resultado serviu como base para a análise do perfil dos jovens contemporâneos e como eles estão reagindo ao complexo campo midiático que lhes é apresentado diariamente. Optamos por analisar a relação interdiscursiva dos pesquisados, fazendo um cruzamento dos dados do questionário e o programa “Malhação”. Para a análise, o programa “Malhação” foi gravado toda a temporada de 2008 e após seleção foi escolhido o período de 14/07/08 a 18/07/08. Partimos do pressuposto que os jovens são passivos de grande manipulação dos meios midiáticos e fazem parte do público-alvo mais vulnerável aos significados e as identidades que os programas podem submeter. Por entender que é de vital importância que se faça uma veiculação com respeito à realidade. Dessa forma, é de total interesse que esses jovens tenham acesso ao maior número de informações – instigadoras – para a sua formação como pessoa capaz de realizar uma análise crítica e diferenciada dos produtos e dos posicionamentos das empresas de comunicação. O primeiro questionamento feito aos entrevistados foi “Como você decide quais programas de TV vai assistir?”, a maioria respondeu que utiliza o critério de identificação com o programa (58,78%), uma margem bem significativa quando comparamos com as outras opções como, por exemplo, pela popularidade no seu grupo de amigos (19,85%), matérias publicadas em revistas destinadas a esse público (6,87%) ou pelo carisma de algum ator ou atriz envolvida na trama (8,4%). Inicialmente, já notamos que uma parcela significativa adota como meio de seleção a intimidade com seus gostos e opções tornando assim uma interação mais saudável e uma possível relação contestatória, pois quando se tem mais intimidade com determinado tema se tem mais argumentos para uma possível discussão. Como você decide quais programas de TV vai assistir? Por se identificar com o programa 80 40 Pela grande popularidade do programa no seu grupo de amigos Por causa dos atores envolvidos no programa 20 Pelas matéria veiculadas nas revistas destinadas a jovens 60 Outros 0 A atual formação familiar dispõe de os pais trabalhando o dia inteiro, transformando assim a televisão como melhor companhia e passa-tempo. Porém, o excesso de negligência ou de descaso com os limites aos meios midiáticos pode ofuscar outros meios de interação que pode ser mais construtivo. Quando perguntamos aos entrevistados sobre a existência de limite ao número de horas assistindo à televisão, quarenta e cinco (34,35%) responderam que sim; eles cumprem uma carga horária estipulada pelos pais e os outros oitenta e seis (65,65%) não têm essa mesma vigilância e acabam por assistir a programas destinados à faixa etária bem acima do que a sua. Grande parte das crianças hoje tem acesso ao acervo midiático bem mais desenvolvido e assim tomam nota desses veículos para seus horários de lazer. Números do Ibope Mídia (Centro Brasileiro de Mídia para crianças e adolescentes) informam-nos que dos 10 programas mais assistidos por meninos e meninas de 4 a 17 anos, oito deles são programas direcionados para adultos (filmes, novelas, programas de auditório) e só dois são programas apropriados para a faixa etária. Há um limite quanto ao número de horas que é permitido assistir TV? 100 80 60 S im 40 Não 20 0 Atualmente, a televisão tem vários tipos de programas para poder chegar ao máximo de telespectadores possíveis. Pensando nessa imensa possibilidade de escolha perguntamos aos jovens entrevistados “Qual o programa de TV mais assistido na sua casa?”. A grande maioria respondeu Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 78 A MÍDIA NA FORMAÇÃO DE CRIANÇAS: ANÁLISE INTERDISCURSIVA DO PROGRAMA “MALHAÇÃO” que são os seriados (39,69%), seguidos das novelas (31,3%), quinze (11,45%) respondeu não ter um programa mais assistido, os jornais foram uma surpresa, pois só ocupam uma minoria de onze entrevistados (8,4%) e os outros programas ocuparam a margem de (8,4%). pauta no seu cotidiano. As problemáticas dessa fase são um dos principais focos de produções como “Malhação”. A décima quinta temporada que nos destinamos a analisar foi caracterizada com o tema “diversidade entre indivíduos”. Abordando temas nas mais diversas áreas foi uma temporada de grandes discussões como: Qual o programa de TV mais assistido na sua casa? TEMAS ABORDADOS 60 50 40 30 20 10 Se riados Nove las Todos Jornais O utros Programas de auditório ATIVIDADES Você assiste a novela "Malhação"? 80 60 40 S im Não 20 0 A fórmula utilizada por esse tipo de programa é o de buscar ao máximo ser uma cópia do dia-a-dia do jovem, abordando os assuntos que estão em Música - Gustavo, Angelina, Pedro, Débora, Yasmin e Luana; Jornalismo - Domingas Gentil. e Crença em duendes - Chiara. AMOR E RELACIONAMENTO Romance entre pessoas de diferentes classes sociais - Gustavo e Angelina, Débora e Pedro, Joaquim e Rita.; Romance entre pessoas com grande diferença de idade Bodão e Sara.; Romance entre pessoas de diferentes raças - Joaquim e Rita.; Triângulo Amoroso - Daisy, Joaquim e Rita; Beatríce, Adriano e Teresa; Andreas, Felipa e Tony; Gustavo, Bruno e Angelina.; Quadrado Amoroso - Gustavo, Angelina, Bruno e Débora; Chiara, Andreas, Raiden e Felipa.; Ciúme doentio - Débora por Angelina.; Separação de Casais - Joaquim e Daisy, Gustavo e Angelina.; Gravidez Precoce Angelina (engravidou de Bruno) ; Traição - Bruno e outras meninas contra Angelina; Débora e Pedro contra Gustavo; Andreas e Felipa contra Chiara e Tony SENTIMENTOS E AÇÕES NEGATIVAS Obsessão compulsiva - Débora por Angelina., Obsessão por dinheiro - Félix e Débora., Vingança - Débora contra Angelina e Félix contra Joaquim., Ódio - Débora contra Angelina e Félix contra Joaquim (e vice-versa).;Mentira Obsessiva - Débora, Andréas, Bruno e Félix.; Arrependimento Débora e Bruno.; Falsa gravidez - Débora (fingiu esperar um filho de Gustavo); Magia - Chiara.; Gula - Domingas.; Machismo Andréas Campadelli e Tony.; Desunião Familiar - Joaquim, Gustavo, Daisy e Antonieta. 0 Partindo de pontos como os abordados anteriormente que decidimos tomar como material de estudo, o universo dos programas destinados para os jovens e sua interseção na construção de seus discursos e da sua identidade cultural. Tomando como base um programa que é destinado a esse público e há quatorze anos permanece na grande de uma das emissoras que mais instaura costumes e jargões na população brasileira – Rede Globo – que decidimos abordar o posicionamento desses jovens quanto a proposta da novela ou melhor soap opera “Malhação”. O nosso público entrevistado de idades de 10 a 12 anos, quando perguntado sobre a sua preferência por assistir “Malhação”, setenta e nove (60,31%) respondeu que assistem e cinquenta e dois (39,69%) que não. A perspectiva inicial foi comprovada que os jovens têm uma ligação com os programas destinados a seu público, porém como os estudos de endereçamento afirmam os programas não conseguem alcançar a totalidade desse alvo que, muitas vezes, não aprova determinada programação por causa de seus interesses particulares ou do seu grupo de amigos não se adequar ao programa. UNIVERSO DO TEMA ABORDADO O tema não foi o principal atrativo para os jovens entrevistados, mas é considerado por vinte e sete (20,61%) como sendo o seu maior apelo para assistir ao programa. Os outros variavam entre o conjunto de temas, personagens e popularidade do programa – trinta e dois (24,43%). Malhação sempre utilizou personagens estereotipados o que confere vinte e um dos pesquisados admitir atraído pelos seus personagens e seu carisma, característico do gênero soap opera. A dinâmica com o programa em questão causa nos jovens uma personalização do seu discurso, seja por hora direta – o jovem reproduz fielmente os jargões utilizados – ou indireta – quando ele se apropria de forma parcial e faz as suas adequações. Na temporada analisada, as inserções dessas formações discursivas foram maiores nas meninas, pois a décima quinta temporada trouxe para o enredo uma das personagens mais carismáticas Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 79 Alberto Gurgel Filho et al da história da “Malhação”. A personagem Yasmin vivendo um dos momentos mais ecléticos e o mais Fontes vivido por Mariana Rios foi um berço de espesso de produtos midiáticos; a transformação é tantos jargões que faz parte do dia-a-dia destas quase constante na expectativa de atrair cada vez jovens, os mais citados são “Jesus, apaga a luz!”, “E mais novos telespectadores e agradar os já exisai fubazada!”, “Gente eu to bege, to bege, to rosa!”, as tentes. Pensar em maneiras inovadoras, atrativas expressões caíram no gosto das meninas, durante a e formadoras de opiniões para o nosso público nossa pesquisa a personagem foi a mais citada pelas não é uma tarefa fácil, já que para se ter sucesso entrevistadas como a personagem com a qual elas nessa empreitada é preciso ter um conhecimento mais se identificam. A abrangência de utilização completo do universo do ser humano. Foi partindo desse pressuposto que realizamos das gírias pelos jovens se faz presente em cinquenta e cinco (41,98%) dos entrevistados, contra setenta um trabalho de análise do nível de interferência da mídia na formação de crianças. Esse público a e seis (58,02%) que não costumam utilizar. O autor Hall (2003) discorre na sua teoria dos cada dia toma como sua rotina programas destiEstudos Culturais com a hipótese de três tipos nados ao público adolescente e adulto, podendo de leitura: hegemônica-dominante, negociada ser uma escolha pelos atrativos do programa ou e opositora. Na leitura hegemônica-dominante pela falta de fiscalização dos responsáveis em pelo a interpretação do texto se dá de maneira fiel menos minimizar esse tipo de atitude. Saber como ao sentido privilegiado no texto, o receptor se e com que intensidade acontecia essa interferência apropria de forma integral do significado. Na lei- era uma das experiências mais interessante para tura negociada, o receptor vai questionar alguns a nossa pesquisa. A cada nova descoberta sobre o fragmentos do texto, interrogando a mensagem. A programa e a cada episódio assistido vislumbráleitura opositora vai acontecer quando o receptor vamos um universo de temas e abordagens que compreende toda mensagem, porém ele irá utilizar foram nossos questionamentos sobre a decisão para contestar e como Hall dizia “se trava a ‘política desta pesquisa. Ao começarmos a analisar os episódios da temda significação’- a luta no discurso”. Ao decorrer da nossa pesquisa, notamos que as porada de “Malhação” optamos pela análise da meninas estão em sua grande maioria absorven- semana de quatorze a dezoito de julho de dois do essas mensagens sem nem questionar muito, mil e oito. Essa semana foi para nós a que mais mostrando uma leitura hegemônica-dominante, consegui reunir todos os ápices de uma soap opeapesar de certas ocasiões manterem uma leitura ra. A semana começa com a descoberta de uma negociada, mas nunca uma leitura opositora. Os falsa gravidez, passa por uma reunião em família meninos, em sua grande maioria, têm uma leitura conturbada para solucionar a gravidez fingida, negociada para com o programa em questão, po- uma micareta e nuances do relacionamento dos demos associar tal posicionamento aos primórdios adolescentes. das novelas, os folhetins onde seu público eram Os jovens entrevistados apesar de não discutirem as mulheres a partir desta “convenção popular” em seu circulo de amigos os temas abordados na se restringiu o público alvo deste material sendo novela com frequência, afirmaram em utilizar os apenas o feminino. A partir dessa “convenção “ensinamentos” da novela como fonte para a solução popular” os homens até hoje mantém certa dis- de seus problemas. A grande maioria respondia tancia deste tipo de programação. Quando entra que acha que a novela passa o que eles vivenciam em contato com as telenovelas têm uma postura e dessa forma alertam para possíveis erros de questionadora e ao mesmo tempo aberta a men- conduta. O tema mais citado pelos entrevistados sagem, apesar deste último momento de recepção foi sobre a gravidez precoce, onde muitos acham ser raro, tornando lhe uma figura questionadora que a novela conseguiu mostrar que isso não seria na maioria do tempo. conveniente acontecer, pois acabaria por prejudicar o percurso de amadurecimento social. Apesar da estreita afinidade do programa com 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS o público infantil a relação de identidade e de Compreender a comunicação, nos dias atuais, formulação de novos padrões para essa fase de está cada vez mais complicado. A sociedade está crescimento é bastante visível no público feminino. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 80 A MÍDIA NA FORMAÇÃO DE CRIANÇAS: ANÁLISE INTERDISCURSIVA DO PROGRAMA “MALHAÇÃO” A instauração de novos costumes e de novos discursos são próprios dessa parcela que a cada momento busca transparecer uma idade que lhes é superior, tomando como caso a personagem da atriz Mariana Rios – Yasmin Fontes – podemos remeter uma intensa reprodução dos jargões que durante os episódios são inúmeras vezes repetidos. Observamos que essa forma de interação com a personagem é fruto de um desejo de ser tão popular e carismática como a mesma. Para o público masculino a presença de uma identificação com algum personagem é quase nula. A maioria dos entrevistados mantém uma rotina de pouco contato com a novela e quando assiste não têm um personagem alvo de identificação. Os jargões para esse público são escassos de inovação e mantendo relação com outros já convencionados para esse público por outros programas. Devemos ter um conhecimento vasto, para um senso crítico aguçado e assim saber filtrar os produtos midiáticos que chegam a nosso conhecimento diariamente. Dar a forma e a seleção necessária para a abordagem destes significados é a melhor maneira de tornar cada vez mais satisfatório os programas veiculados pela mídia. REFERÊNCIAS AURÉLIO, B.H.F. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. São Paulo: Folha de São Paulo, 1995. DUARTE, J. et al. Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2006. ELLSWORTH, E. Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Nunca fomos humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. GOMES, I. M. Mota. Efeito e recepção: a interpretação do processo receptivo em duas tradições de investigação sobre os media. 2003. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas)- Universidade Federal da Bahia, Facom, Salvador, 2003. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: UFMG, 2003. LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. de A. Metodologia do trabalho científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científico. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2007. MAINGUENEU, D. “Analisando discursos constituintes”. Revista do GELNE, Fortaleza, n.2, v.2, p. 167-178, maio, 2000. MEDEIROS, J.B. Redação científica: a prática de fichamentos, resumos, resenhas. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2003. NATANSHON, Leonor G. Consultando médicos na televisão: meios de comunicação, melheres e medicina. 2003. Tese (Doutorado em comunicação e cultura contemporâneas), Universidade Federal da Bahia, Facom, Salvador, 2003. ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7.ed. Campinas: Pontes, 2007. PINTO, M. J. Comunicação e discurso: introdução à analise de discursos. 2. ed. São Paulo : Hacker Editores, 2002. SODRÉ, M. Eticidad y campo comunicacional sobre la construcción del objeto. In: LOPES, Maria Immacolata Vassalo; NAVARRO, Raúl Fuentes (Org.). Comunicación: campo y objeto de estudio. México: Universidad de Guadalajara, 2001. p. 149- 150. THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 6. ed. Tradução de Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Contexto, 2004. Anima, Fortaleza, ano 8, n. 14, p. 10 – 80, jul./dez. 2008 81 Rua Eliseu Uchoa Becco, 600 – Água Fria CEP: 60810-270 / Fortaleza-Ce Fone: (85) 40092600 www.fic.br