universidade federal da paraíba centro de ciências humanas, letras
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA MESTRADO EM LINGÜÍSTICA TATIANA MARANHÃO DE CASTEDO AS MARCAS DE HETEROGENEIDADE EM ANÚNCIOS DA BURGUER KING E MC DONALDS João Pessoa Fevereiro/2010 Tatiana Maranhão de Castedo AS MARCAS DE HETEROGENEIDADE EM ANÚNCIOS DA BURGUER KING E MC DONALDS Trabalho apresentado à Banca Examinadora da Universidade Federal da Paraíba como exigência para obtenção do título de Mestre em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística, sob a orientação da Profª Drª Ana Cristina de Sousa Aldrigue. JOÃO PESSOA, 2010 Tatiana Maranhão de Castedo AS MARCAS DE HETEROGENEIDADE: ANÚNCIOS DA BURGUER KING E MC DONALDS ORIENTADORA: _________________________________________ Profª Drª Ana Cristina de Sousa Aldrigue MEMBROS DA BANCA: _________________________________________ ProfªDrª. Maria das Dores Oliveira de Albuquerque _________________________________________ Profº Dr. Onireves Monteiro de Castro João Pessoa - PB, ___ de ______________ de 2010 AGRADECIMENTOS Primeiramente a Deus que tem se colocado como guia na minha vida e proporcionado todos os desejos do meu coração, entre eles, a concretização deste mestrado; A meus pais amados que me deram o dom da vida e me educaram com princípios que me direcionam até hoje e que servem de base para educar as minhas filhas. Obrigada pela dedicação, amor e renúncia que me brindaram e que hoje me fazem feliz e forte para buscar meios que retribuam um pouco este amor tão incondicional; A Bá, que dedicou e dedica tanto amor a mim e as minhas filhas, proporcionando-me a oportunidade de estudar, de trabalhar e de concretizar sonhos que, sem ela, seriam impossíveis; As minhas filhas que são o meu alimento, minha razão de viver, um muito obrigada por entender o tempo que muitas vezes lhes é roubado para por em prática alguns projetos que, de alguma maneira, são feitos para o conforto delas; A minha orientadora Ana Cristina de Sousa Aldrigue pela paciência e dedicação brindadas com o intuito de colaborar com a concretização deste sonho, revelando-se mais que uma orientadora, uma amiga; A todos que direta ou indiretamente torcem pelo meu crescimento e satisfação pessoal, amigos que passam e ficam marcados nas nossas vidas por estarem ao nosso lado de diferentes maneiras, um muito obrigada. RESUMO Neste estudo, a AD está associada aos conhecimentos que permeiam os conceitos da heterogeneidade do discurso. Ela busca interpretar os processos de produção dos discursos, levando em consideração os sujeitos sociais que os produzem além de analisar os fatores que o influenciam. Pretende-se, então, fazer uma análise e reflexão sobre anúncios publicitários da Mc Donald’s e da Burger King, duas grandes redes multinacionais de fast food, tendo por escopo apresentar as relações dialógicas detectadas nos discursos de ambas. Como referência teórica serão usadas as propostas do Círculo Bakhtiniano. Com conceitos centrados em pontos de vista do dialogismo, este trabalho buscará as vozes constitutivas que atravessam os discursos das cadeias alimentícias em questão, com o intuito de comprovar que uma voz não se constitui sem a presença de uma outra já existente. O caráter cronológico deste estudo revela-se com a observação da presença do discurso da Mc Donald’s que preanuncia os discursos encontrados nas publicidades da Burger King, revelando a importância de estudálos a fim de confirmar a hipótese de que não há nada novo, porém discursos reiterados que dependem do conhecimento prévio de outros para que se façam entender. Palavras-chave: Discurso, gênero, heterogeneidade, dialogismo. RESUMEN En este estudio, la AD está asociada a los conocimientos que abarcan los conceptos de la heterogeneidad del discurso. Ella busca interpretar los procesos de producción de los discursos, considerando los sujetos sociales que los producem además de analisar los factores que lo influencian. Lo que se pretende, entonces, es hacer un análisis y reflexión sobre anúncios publicitarios de la Mc Donald’s y de la Burger King, dos grandes redes multinacionais de fast food, siendo el mayor interés, presentar las relaciones dialógicas detectadas en los discursos de ambas. Como referencia teórica serán usadas las propuestas del Círculo Bakhtiniano. Con conceptos centrados en puntos de vista del dialogismo, este trabajo buscará las voces constitutivas que atraviesam los discursos de las cadenas alimenticias en cuestión con el intuito de comprobar que una voz no se constituye sin la presencia de una otra ya existente. El carácter cronológico de este estudio se muestra con la observación de la presencia del discurso de la Mc Donald’s que preanuncia los discursos encontrados en las publicidades da Burger King, revelando la importancia de estudiarlos a fin de confirmar la hipótesis de que no hay nada nuevo, sino discursos reiterados que dependen del conocimiento anterior de otros para que se hagan entender. Palabras llave: Discurso, género, heterogeneidad, dialogismo. SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................... 08 CAPÍTULO I. BAKHTIN E SUA IMPORTÂNCIA PARA A AD............................... 12 1.1 Dialogismo ................................................................................................................... 16 1.2 Polifonia ....................................................................................................................... 26 1.3 Interação verbal ............................................................................................................ 30 1.4 Enunciado/ Enunciação ................................................................................................ 36 CAPÍTULO II. O CORPUS ENQUANTO GÊNERO DISCURSIVO ......................... 45 2.1 Gênero: anúncios publicitários ..................................................................................... 47 2.2 Histórico da Mc Donalds ............................................................................................. 49 2.2.1 Publicidade e Socialidade Midiática do Mc Donald’s ............................................... 56 2.3 Histórico da Burguer King ........................................................................................... 59 2.4 Metodologia e o corpus ................................................................................................. 64 CAPÍTULO III. A HETEROGENEIDADE MOSTRADA E CONSTITUTIVA ...... 65 3.1. Heterogeneidade mostrada ........................................................................................... 68 3.2 Heterogeneidade constitutiva ....................................................................................... 73 CAPÍTULO IV. ANÁLISE............................................................................................... 78 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 93 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 96 ANEXOS .......................................................................................................................... 101 INTRODUÇÃO O estudo da linguagem não pode separar-se de suas condições de produção, tornandose o enfoque a ser abordado por uma nova tendência lingüística que estoura na década de 60: a análise do discurso. A seleção do tema do presente trabalho deve-se ao fato da necessidade de estudar as marcas de heterogeneidade constitutiva, a partir da heterogeneidade mostrada nos anúncios publicitários das multinacionais Mc Donalds e Burguer King, procurando enfatizar as marcas polifônicas encontradas nos textos de ambas cadeias de fast-food norte americanas. A nossa hipótese parte da possibilidade de que esses anúncios publicitários comprovem a existência de várias vozes encontradas nas propagandas das duas cadeias alimentícias, ou seja, verificar se as marcas de heterogeneidade determinam as relações dialógicas estabelecidas pelos sujeitos socais que, ao interagir com os textos, estabelecem os diálogos mantidos entre os anúncios publicitários das multinacionais em questão. Além disso, acreditamos na existência de uma adaptação vocabular de acordo com o país onde se encontra a franquia. Isso se deve a fatores históricos e sociais que interferem na linguagem utilizada, embora pertença às mesmas empresas. A finalidade desta dissertação é apresentar as atividades que foram desenvolvidas no decorrer da realização do programa de Pós-graduação, no nível de mestrado, nos anos de 2008 e 2009. Para isso, destacaremos como objetivos deste trabalho, analisar as marcas de heterogeneidade mostrada que vão identificar a heterogeneidade constitutiva nos anúncios publicitários da Mc Donald’s e da Burger King; caracterizar os textos do gênero anúncio publicitário que apresentam marcas de heterogeneidade; identificar nos textos o diálogo que se constitui entre esses anúncios publicitários, concretizado pela interpretação dada pelos sujeitos sociais que com eles interagem; analisar a produção do sentido nos textos que compõe o corpus a partir das marcas de heterogeneidade marcada e constitutiva dentro de diferentes contingentes. Ao fazer uso da linguagem nas várias atividades sociais o falante se insere em um gênero. Por ser um fenômeno social, os gêneros do discurso não se baseiam num motivo individual, mas sim, estão arraigados à coletividade, à época e ao meio social. Bakhtin (1997) denominou de gênero do discurso aos modelos socialmente determinados, no qual os fenômenos da linguagem podem ser apreendidos na interatividade dos textos através do tempo, que são marcados pela sua organização e estilo. 8 O gênero é um tipo específico de enunciado, presente em situações rotineiras, que está associado às esferas da sociedade, na linguagem cotidiana, seja ela formal ou informal. O gênero do discurso está presente em toda forma de linguagem. Visto que os textos veiculados pela Mc Donalds e pela Burger King no mundo estão relacionados à área publicitária com o intuito de obter melhores resultados com mais agilidade e que os discursos que os perpassam não são normalmente analisados, buscou-se aprofundar este estudo a partir dos anúncios publicitários das duas franquias. Quando se discute a publicidade, algumas idéias logo surgem, e entre elas a de sedução, e a de manipulação, ou seja, a publicidade como um eficiente recurso para, após a identificação de prováveis necessidades, ou melhor, desejos dos indivíduos, servir como uma ferramenta para influenciar seus receptores a adquirirem produtos, necessitando ou não deles. E, se considerarmos que estamos em um país capitalista, então chegamos à conclusão de que realmente as agências de publicidade têm papel preponderante para as indústrias, pois são elas que apresentam os produtos para a população, a fim de que se estabeleça o consumo massivo. Compreendendo que a noção de discurso não seja estável, preferimos tratar a publicidade, enquanto formação discursiva, uma vez que, independentemente do produto a ser anunciado, a mensagem publicitária está comprometida com seus atributos positivos. Ou seja, está convencionalmente instituído que esta estratégia faz parte do “como dizer”. Podemos afirmar que este “como dizer” está comprometido na prática do “enaltecimento” das características positivas do produto, mesmo que este não se traduza numa mercadoria com qualidade devidamente comprovada. Agindo assim poderíamos deduzir que os publicitários sejam difusores de inverdades e que, insistentemente, tentam ludibriar o público. Destacando o conceito de formação discursiva trazido por Maingueneau, a partir de Foucault, atestamos que “o que pode e deve ser dito” no campo enunciativo da publicidade é sempre comprometido com as (nem sempre) positivas características do produto. Todo texto encena uma interlocução: nele fala um locutor que pode fazer-se menos ou mais presente no texto. As diferentes formas de representação estão a serviço da expressão de pontos de vista da enunciação. Para uma leitura crítica é importante perceber quem está falando e com que intenção. Há várias vozes, aquelas que o locutor endossa e outras não. O importante é acompanhar essas vozes e descobrir qual é a voz que comanda o texto, como veremos a seguir na seqüência dos textos publicitários, veiculados numa campanha publicitária na Burger King tanto via digital como impressa. Esse sujeito social como cruzamento de vozes, defendido por Bakhtin, se constitui na interação com o outro que aqui, tratar-se-á da sua maior concorrente, a rede de fast-food Mc Donalds. 9 Como Brandão diz (2001), retomando as colocações de Bakhtin (1979) “...é um sujeito social, histórica e ideologicamente situado. É o outro que dá a medida do que sou. A identidade se constrói nessa relação com a alteridade.” O evento comunicativo do texto entrevê ações lingüísticas, cognitivas e sociais. O fato de todo enunciado ter um valor modal, de ser modalizado pelo enunciador, mostra que a palavra só pode representar o mundo se o enunciador, direta ou indiretamente, marcar sua presença através do que diz (Mainguenau: 2001). O texto publicitário é construído em função do ouvinte ou do leitor virtual. Para que a propaganda possa melhor persuadir o público ela é, geralmente, formada por um texto cuidadosamente selecionado em seus componentes lingüísticos e, na maioria das vezes, em seus componentes visuais. Palavra e imagem são fundamentais para a prática persuasiva desse tipo de texto em que, nele, até o verbal se faz imagem. Os atos discursivos procuram não só informar, como também modificar comportamentos. O reconhecimento da necessidade de propaganda surge a partir da existência de uma população com recursos considerados acima do nível de subsistência, pois será esta população que poderá adquirir produtos considerados desnecessários. A expansão da publicidade deu-se no século XX, principalmente com o advento da televisão, o que possibilitou aos consumidores maior contato com os produtos oferecidos pelas empresas. Além disso, outro importante fator para o crescimento da publicidade na Europa dos anos 50 do século passado foi o grande desenvolvimento econômico pós-guerra, gerando, assim, consumidores com potencial de compra. E, para este público desejoso de consumo, houve, por parte dos publicitários, a necessidade de aprimoramento, de dedicação e do desenvolvimento da publicidade, a fim de alcançar seu potencial máximo, considerando os elementos que a compõe, texto icônico, texto verbal. Na comunicação humana é preciso considerar unidades maiores que, apesar de serem formadas por palavras e sentenças, operam pelo estabelecimento de relações entre elas. A análise dessas unidades maiores (enunciados, discursos, textos) não pode ficar limitada à estrutura da língua porque muito da significação está além desses limites, determinada por fatores extralingüísticos, entre os quais até mesmo o silêncio pode ter significados contextuais. Por isso, nos últimos anos, os estudiosos já citados têm se dedicado ao estudo da linguagem sob enfoque discursivo-interacionista, inlusive os estudos de Bakhtin. Embora este estudioso não seja autor de uma teoria sistematizada do texto, é na sua concepção de linguagem como sistema dialógico de signos, valorizando o texto enquanto ato interativo, que 10 se encontram os elementos necessários para a compreensão da trama de relacionamentos da textualidade. Ao fazer uso da linguagem nas várias atividades sociais, o falante se insere em um gênero. Por ser um fenômeno social, os gêneros do discurso não se baseiam num motivo individual, mas sim, estão arraigados à coletividade, à época e ao meio social. Bakhtin (1997) denominou de gênero do discurso aos modelos socialmente determinados, no qual os fenômenos da linguagem podem ser apreendidos na interatividade dos textos através do tempo, que são marcados pela sua organização e estilo. O gênero anúncio publicitário é um tipo específico de enunciado, presente em situações rotineiras, que está associado às esferas da sociedade, na linguagem cotidiana, seja ela formal ou informal. O gênero do discurso está presente em toda forma de linguagem. Tendo em vista que este trabalho mesmo abordando vários aspectos da Lingüística geral, delimita-se à terceira fase da Análise do Discurso, frisa-se que o seu foco principal é a teoria da heterogeneidade mostrada e da constitutiva. Este trabalho está estruturado em quatro capítulos. O primeiro capítulo aborda o surgimento da lingüística, através da importância da Análise do Discurso (AD) e seus estudiosos, chamando atenção para os grandes estudos bakhtinianos, como o dialogismo, a polifonia, a interação verbal e a enunciação. O segundo capítulo traz o corpus selecionado, anúnios publicitários de duas cadeias alimentícias de fast-food: Burger King e Mac Donalds, mencionando a estrutura deste gênero discursivo, as marcas da enunciação, os textos, todos extraídos da mídia virtual e impressa buscando comprovar as adaptações feitas nos modalizadores verbais e não-verbais da heterogeneidade mostrada das duas multinacionais para atender às necessidades publicitárias dentro de cada contexto histórico e social que, com certeza, são diferentes e, consequentemente, precisam articular-se de formas diferentes, apesar de dialogarem entre si através da interação entre os sujeitos sociais que os interpretam. Dando continuidade, o terceiro capítulo trata dos estudos de Authier-Revuz e sua importância para a terceira fase da Análise do Discurso francesa, doravante AD. É esta autora que retoma a questão das heterogeneidades sob a denominação de não-coincidências do dizer, cuja referência é mantida no que diz respeito à alteridade na perspectiva de uma imposição do inconsciente, em que o sujeito é determinado por uma ordem simbólica, o significante. A heterogeneidade será discutida a partir dos conceitos de dialogismo, como ponto de apoio para análise das não-coincidências do discurso com ele mesmo e polifonia bakhtinianos. O quarto capítulo traz a análise do trabalho ancorada na teoria estudada. 11 As questões propostas neste trabalho estão ancoradas em uma reflexão que engloba os campos teóricos da Análise de Discurso Francesa (ADF), a teoria da enunciação bakhtiniana e a lingüística. Embora esta dissertação aborde todos esses aspectos, ela tem como foco a teoria de Jaqueline Authier-Revuz, que se volta para as questões da heterogeneidade presentes nos textos analisados. 1. BAKHTIN E SUA IMPORTÂNCIA PARA A AD Sendo assim, para melhor esclarecer os princípios bakhtinianos que permeiam este trabalho, faz-se mister retomar os estudos saussureanos para melhor entender o princípio dos estudos lingüísticos de vanguarda que serviram de base para todo e qualquer outro que lhe fosse subseqüente. Saussure, atualmente, torna-se o ponto de partida de qualquer que seja o estudo lingüístico em questão, quer seja aqueles que se voltam ao seu favor, concordando com suas postulações teóricas, quer rejeitando-as. Saussure postula uma dicotomia entre língua e fala que causa uma revolução linguística prontamente desmascarada ao serem descobertos os limites de tal dicotomia ao excluir a fala do campo dos estudos linguísticos. Dentre os que sentiram a limitação do objeto de estudo traçado pelos postulados saussureanos, a língua, considerando-a como algo abstrato e ideal a constituir um sistema sincrônico e homogêneo, está Bakhtin na vanguarda da linguística moderna. Bakhtin, diferentemente de Sausurre, parte do princípio de que a língua é um fato social que se funda na necessidade de comunicar-se. Através de cada ato de enunciação realiza-se a intersubjetividade humana, por isso processo de interação verbal passa a constituir uma realidade fundamental da língua. O interlocutor (o outro) absorve um papel fundamental na formação do significado. Da primícia de signo lingüístico como um “sinal” inerte proveniente da análise da língua como sistema sincrônico abstrato, surge a idéia de um signo dialético, vivo, dinâmico, que está em constante diálogo com “o outro”. Desde então, busca-se entender o fenômeno da linguagem não mais centrado na língua de forma isolada, mas em um nível que se distancia da dicotomia sausurreana: a instância do discurso. A linguagem como discurso é interação e, ao mesmo tempo, um modo de produção social, por isso é o lugar privilegiado de manifestação da ideologia, ou seja, é o lugar onde se manifestam as ideologias. Como a linguagem é mediadora entre os homens e seu meio social, torna-se um lugar de conflito, de confronto ideológico, não podendo estar desvinculada da sociedade, uma vez que os processos que a constituem são histórico-sociais. 12 Mikhail M. Bakhtin (1895-1975) foi um pesquisador russo oriundo de Oriol. Era diplomado em História e Filologia e fazia parte de um grupo de intelectuais de diversas formações, interesses e atuações profissionais, um grupo multidisciplinar que veio a denominar-se “Círculo de Bakhtin”. Apesar de constituído por diversos intelectuais, Bakhtin estreita os laços com Voloshinov e Medvedev com os quais desenvolve a maior parte dos seus estudos. Voloshinov tinha interesses voltados para a história da música e, em seguida, a estudos lingüísticos. Medvedev formou-se em direito, teve uma carreira de educador e gestor na área da cultura e ensinou literatura. Já Bakhtin, teve formação em estudos literários, atuou como professor . Bakhtin tomou como referência para seus estudos as obras de Dostoiévski e tinha como adeptos Voloshinov e Medvedev. Escreveu várias obras que não publicou. “Ele (Bakhtin) teria professado que um pensamento verdadeiramente inovador não tem necessidade, para assegurar sua duração, de ser assinado pelo seu autor.” (YAGUELLO apud BAKHTIN, 2004). Bakhtin publicou seu primeiro ensaio chamado Arte e responsabilidade, que estudava as relações entre as artes e a vida social. Porém, seus dois principais discípulos foram os responsáveis pelas divulgações das suas primeiras obras: O Freudismo em 1927 e Marxismo e Filosofia da Linguagem em 1929, livro bastante citado no decorrer deste trabalho, pois apresenta a busca de Bakhtin pelo objeto real da linguagem. No ano em que Voloshinov publicou esta última, Bakhtin decidiu assinar um livro com seu próprio nome: Problemas da Obra de Dostoiévski. De acordo com Fiorin (2006), em 1940 ele apresenta sua tese de doutorado, intitulada Rabelais e a cultura popular, que precisou um comitê para decidir a sua aprovação. Este julgamento durou, aproximadamente, seis anos, e em 1952, seu título de doutor foi negado. Em 1965, ele publicou a tese, o que lhe ofereceu o reconhecimento mundial. Bakhtin ao tentar defender sua tese se encontrava em um período logo após a Segunda Guerra Mundial em que Stalin voltava a apertar o cerco às atividades culturais. Logo, os controles policialescos das atividades intelectuais voltavam à tona, contrapondo-se com a tese de Bakhtin, motivo pelo qual só pôde defendê-la em 1946. Bakhtin não elaborou uma obra didática, pronta para ser ensinada na escola. Não há nela uma teoria facilmente aplicável nem uma metodologia acabada para a análise dos fatos lingüísticos e literários. Ao contrario, sua obra vai examinando progressivamente conceitos. Ela é marcada por um inacabamento, um vir a ser, uma heterogeneidade, que tornam muito mais complexa a apreensão de seu pensamento. (FIORIN, 2006, p. 12) 13 As obras de Bakhtin são caracterizadas pela concepção dialógica da linguagem, da vida e dos sujeitos, focando-se no conceito de dialogismo no seu contexto mais amplo, ou seja, como um processo de interação das vozes sociais e não apenas como a relação dialógica entre dois sujeitos numa relação face-a-face, ou seja a troca de turnos entre participantes de uma conversa como praticado pela Análise Conversacional. O princípio que permeia a obra bakhtiniana é o da intersubjetividade em que o sujeito se constitui diante do outro em uma situação de auto-reconhecimento por reconhecer o outro na alteridade. Segundo Brait, Bakhtin escreveu muitos livros sobre lingüística e os textos deste autor ainda são atuais depois de oito décadas dos primeiro escritos. Eles são qualificados pelos seus conterrâneos como notavelmente contemporâneos. No prelúdio, o trabalho dele foi interessante para os estudiosos da literatura, mas hoje Bakhtin é referência em textos de história, antropologia, psicologia, filosofia da linguagem e teologia. E os trabalhos elaborados nessas áreas não cessam os pensamentos bakhtinianos. É possível encontrar as idéias bakhtinianas desde trabalhos de semiótica dedicados ao estudo do cinema até em estudos sobre literatura cuja ênfase recai em questões estéticas dos textos literários. Se, por um lado, essa diversidade sinaliza para uma diferença radical de abordagens, por outro indica uma postura relativamente compartilhada diante da obra do autor: a de que o princípio do dialogismo subjaz a todas as utilizações que se faz teoria. (FLORES, 2005, p. 46) Nos seus estudos, Bakhtin abrange vários domínios das ciências humanas, como a psicologia, a etnologia, a pedagogia das línguas, a estilística, a comunicação, entre outras. Flores (2005), afirma que Bakhtin associa as diversas áreas de conhecimento às suas reflexões, ou seja, a teoria do conhecimento corresponde à intertextualidade, a do romance, à polifonia, a da filosofia do estudo e ao estudo da enunciação. Estas reflexões serão discutidas em seguida. Um dos principais conceitos bakhtinianos é o de língua como um sistema social. Entende-se então que, para Bakhtin, a língua não pode ser compreendida isoladamente, pois a mesma, quando utilizada, inclui fatores extralingüísticos, como o momento social e histórico, a fala e a relação entre o falante e o ouvinte. Ele, Bakhtin, a partir da sua relação com a lingüística, funde a teoria da linguagem sem anular a teoria saussuriana, ainda que esta seja considerada por ele, insuficiente para o estudo da comunicação verbal. Flores (Op. Cit.) afirma que “a proposta do filósofo é ver a língua imersa na realidade enunciativa concreta, servindo aos propósitos comunicacionais do locutor.” 14 Conceituando a língua como um conjunto de palavras e expressões usadas por um povo, por uma nação, munido de regras próprias, Bakhtin assegura a necessidade de enfatizar não somente a língua, mas também o seu uso, a fala. Ele antecipa as orientações da lingüística moderna, e afirma que a língua é um fato social cuja existência parte das necessidades da comunicação. A linguagem é uma prática social que tem na língua a sua materialidade. A língua é tida não como um sistema abstrato de formas lingüísticas, mas como “um processo de evolução ininterrupto, constituído pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação, que é a sua verdadeira substância” (BAKHTIN, 1992, p.127). Diferente do objetivismo abstrato de Saussure, Bakhtin valoriza a fala, que não é individual, senão social e está estreitamente ligada à enunciação, já que o momento da enunciação, instaurando a intersubjetividade, instaura também a interação. Segundo Bakhtin (2003), a linguagem é veiculada pela língua e pela fala, ambas sociais e constituintes do discurso, o que possibilitará a ligação entre o nível propriamente lingüístico e o extralingüístico. O autor afirma que aprender a falar é aprender a construir enunciados. O discurso é o ponto de articulação dos processos ideológicos e dos fenômenos lingüísticos. A linguagem enquanto discurso é a interação e a condição de produção, não sendo neutra nem inocente, e sim, um lugar de conflito, de confronto ideológico, precisando ser estudada dentro da sociedade, pois os processos que a constituem são histórico-sociais. As idéias do Círculo sobre a linguagem trazem elementos que, de algum modo, contribuem para o estabelecimento de um pensamento sobre a enunciação, antecipando o estabelecimento de uma lingüística da enunciação que, além de contemplar a questão da intersubjetividade no âmbito dos estudos da linguagem, contem a indicação de um modelo de analise, na qual forma e uso articulam-se no processo de constituição de sentido no discurso. (FLORES, 2005, p. 45) Diante de tudo isso, conclui-se que Bakhtin não teve uma história comum, semelhante a de outros famosos estudiosos. Ele não ocupou cargos e posições importantes. Tampouco teve interesse pela fama, pelo sucesso e pelo prestígio. Para Fiorin (2006, p. 11) “sua obra é fascinante, inovadora, rica, mas ao mesmo tempo, complexa e difícil.” Este autor mostra a existência de vários Bakhtins: o pós-modernista, que criticou a psicanálise, o estruturalismo e o formalismo, não sendo existencialista, não aderindo ao marxismo e negando o coletivismo; o interacionista, que tratou das relações sociais entre o eu e o outro; o marxista, trabalhando as superestruturas e estabelecendo uma prima philosophia, que tratava dos princípios básicos do 15 conhecimento humano; e o linguista, teórico da linguagem, que não chegou a produzir uma teoria completa da linguagem e dos diferentes níveis da língua. Portanto, estudar a obra de Bakhtin não é tarefa fácil. É necessário compreender seus conceitos. Por isso, os estudos aqui realizados, não serão suficientes para abranger toda a teoria e obra bakhtiniana, mas pretende esclarecer alguns conceitos e aprofundar os estudos nas linhas que tangem a heterogeneidade. Vale ressaltar aqui que, para Bakhtin, o objeto de estudo da lingüística não é a língua nem a fala, porém a enunciação, os discursos que darão sentido à língua. Neste trabalho serão usadas propagandas de duas multinacionais com o intuito de averiguar o sentido por elas adquirido no momento em que os seus discursos se entrecruzam num dado momento histórico e social. 1.1 DIALOGISMO Logo, cabe iniciar este trabalho com algumas reflexões sobre as contribuições de Bakhtin sobre as orientações teóricas dos estudos sobre o texto e o discurso desenvolvidos sobretudo nos últimos 30 anos. Partindo da sua visão sobre o princípio dialógico, Bakhtin antecipa e influencia os estudos do discurso e do texto organizado-os em duas partes: a primeira no que toca à concepção de texto como objeto das ciências humanas e a segunda a respeito do princípio dialógico que, por sua vez, subdivide-se em duas outras partes: uma sobre o diálogo entre interlocutores e outra sobre o diálogo entre discursos (ou enunciados, como chamava Bakhtin). Enquanto os estudos linguísticos traçavam um caminho que colocava a língua como centro de seu objeto de estudo, Bakhtin eleva o texto (ou o discurso) como principal objeto de estudo das ciências humanas (1992, p. 31), ou seja, as ciências humanas voltam-se para o homem, mas o homem como produtor de textos. Esse fator que lhe é intrínseco, diferencia as ciências humanas das exatas e biológicas, já que estas últimas examinam o homem “fora do texto”. Ao tratar do texto como objeto das ciências humanas, Bakhtin, de imediato, aponta duas diferentes concepções do princípio dialógico, a do diálogo entre interlocutores e a do diálogo entre discursos. Deve-se observar a priori que, se o caráter dialógico da concepção de linguagem bakhtiniana e da ciência humana tem método e objeto dialógicos, também suas idéias sobre o 16 homem e a vida são caracterizadas pelo princípio dialógico. A alteridade, caráter ou qualidade do que é outro, define o ser humano, pois o outro torna-se imprescindível para sua concepção: é impossível pensar no homem fora das relações que o ligam ao outro. (BAKHTIN 1992, pp. 35-36). Bakhtin, tratando do diálogo entre interlocutores, encabeça no campo dos estudos sobre a interação verbal entre sujeitos e sobre a intersubjetividade. Sendo assim, torna-se necessário conhecer alguns aspectos de sua concepção de dialogismo entre interlocutores: a interação é o ato fundador da linguagem; o sentido do texto e a significação das palavras constroem-se na produção e interpretação dos textos; a intersubjetividade é anterior a subjetividade, pois a relação entre os interlocutores constrói os próprios sujeitos produtores do texto e a existência de dois tipos de sociabilidade, a relação entre os sujeitos e a dos sujeitos com a sociedade. É necessário observar que as relações do discurso com a enunciação, com o contexto sócio-histórico ou com o “outro” são, segundo Bakhtin, relações entre discursos enunciados; além disso, o dialogismo é concebido como um “tecido de várias vozes” ou de muitos textos ou discursos, que se entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre si no interior do texto; também se deve destacar o caráter ideológico dos discursos. Muitas vezes o reconhecimento do dialogismo do discurso e de seu caráter ideológico leva a crer, por oposição, no caráter monológico da língua, porém Bakhtin ressalta o confronto entre índices de valor contraditório encontrados no signo, motivo que faz com que a língua seja, para ele, sempre dialógica e complexa, pois nela se imprimem historicamente e através do uso as relações dialógicas dos discursos. Desse modo, podemos chegar à conclusão de que o princípio unificador do pensamento bakhtiniano é a concepção dialógica da linguagem. Para Bakhtin, a língua, em seu uso real, tem a propriedade de ser dialógica. Essas relações dialógicas não se resumem ao estreitamento dos diálogos face a face. Ao contrário, defende-se uma dialogização interna da palavra, que é perpassada pela palavra do outro, é inevitavelmente a palavra do outro. Isso se refere à presença do discurso do outro que encontra-se presente no discurso do enunciador. Além disso, não se pode pensar o dialogismo em termos de relações semânticas ou lógicas, pois o que é diálogo no discurso são posições de sujeitos sociais, são pontos de vista acerca da realidade (BAKHTIN, 1970, pp. 238-43, cf. também 1988, pp. 86-88, 96, 100; 1992, pp. 35358). Baseado nos princípios bakhtinianos, a análise do discurso de linha francesa propõe o princípio da heterogeneidade ao remeter-se ao fato de que o discurso é tecido a partir do 17 discurso do outro, que é o “exterior constitutivo”, “o já dito” sobre o qual qualquer discurso se constrói. Pode-se dizer então, que todos os discursos são “atravessados”, “ocupados”, “habitados” pelo discurso do outro (Authier-Revuz, 1990, pp. 25-27). Bakhtin fala no trato do singular, do único, do irrepetível com base na existência de um ser humano concreto. O argumento se centra no “eu” metafísico que intui sua unicidade, que se percebe único, que ocupa um lugar que jamais foi ocupado por alguém e que, consequentemente, não pode ser ocupado por nenhum “outro”. Porém, reconhecer a unicidade do “eu” e realizá-la no ato individual não significa ignorar o “outro”, pois o princípio constitutivo maior do mundo real do ato realizado é precisamente a contraposição concreta “eu/ outro”. O “eu” e o “outro” são, cada um, um universo de valores. O mesmo mundo, quando correlacionado comigo ou com o outro, recebe valorações diferentes porque as pessoas são diferentes, pertencem a classes sócio-econômicas diversas, ocupam posições sociais diferentes e por isso, têm formas desiguais de enxergar o meio que o circunda. A unicidade do ser e do evento; a relação eu/outro e a dimensão axiológica serão os eixos do pensamento de Bakhtin. Estabelece-se a estreita relação entre enunciado e situação concreta da sua enunciação, bem como entre o significado do enunciado e uma atitude avaliativa. Essa atitude avaliativa se materializa no tom, na entonação do enunciado, que, por sua vez emerge do universo de valores em que me situo, lembrando que, em seguida, Bakhtin afirmará que viver é assumir uma posição avaliativa a cada momento. Bakhtin afirma que todo enunciado emerge sempre num contexto cultural saturado de significados e valores e é sempre um ato responsivo, já que espera do outro uma resposta. A abordagem da linguística é, para Bakhtin, insuficiente por enfocar o enunciado exclusivamente como fenômeno da língua, como algo puramente verbal, desvinculado de sua materialização. Ele crê na verbalização das nossas experiências vividas a partir do seu interior, mas alerta para o fato de que nunca conseguiremos expressá-las em sua totalidade. Bakhtin não vinculava seu pensamento a uma arquitetônica que se pudesse classificar de marxista. Já Voloshinov e Medvedev, sim, assinavam textos buscando intervir num debate voltado para a temática marxista. Seus textos estão sempre atravessados por duas linhas argumentativas complementares: um compromisso com a cientificidade do discurso e uma cobrança de rigor metodológico de qualquer proposta de inspiração marxista. Há no Círculo bakhtiniano, por volta da segunda metade da década de 1920 uma confluência para a temática da linguagem, enfatizando as preocupações nucleares de Bakhtin (temática axiológica, a questão do evento único do ser e a relação eu/outro), além do interesse 18 acadêmico de Voloshinov que se dedicava, nessa época, a estudos linguísticos, e do de Medvedev que se ocupava com os fundamentos do que ele chamava de estudo das ideologias, no interior da qual estará uma poética dita sociológica. O elemento de convergência entre o grupo passou a ser a concepção de linguagem. Medvedev, em 1928, faz uma análise do pensamento formalista e das críticas do Círculo de Bakhtin àquela estética. Medvedev critica a tentativa de Sakulin, no início dos anos 20, de analisar as obras literárias por dois métodos distintos: o formal para o estudo imanente da obra e o método sociológico para o estudo histórico-causal (estudos extra literários). A questão do ser, pela sua amplitude, está fora do alcance da ciência e exige uma outra racionalidade: um pensamento que pensa o sentido do ser, que “se entrega ao inesgotável do que é digno de ser questionável” (Ensaios, p. 59). Bakhtin (2002) tem essa preocupação com o sentido do ser e jamais se ocupa em ver o mundo como objetividade calculável. Desde o início, sua preocupação com o singular e sua crítica ao teoreticismo são evidências da direção filosófica e não científica do seu pensamento. Num tempo dominado pela cientificidade, torna-se compreensível a sede de encontrar um método nos textos de Bakhtin (2002). O resultado mais visível desse equívoco é transformar categorias filosóficas em científicas, em categorias de métodos. (polifonia, diálogo, carnavalização). A inescapável calculabilidade científica exige o esquecimento do Ser e esta nunca foi a intenção de Bakhtin. De acordo com Dilthey(2002), enquanto, metodologicamente, o ideal das ciências da natureza é a explicação, ou seja, encontrar do exterior, relações necessárias entre os fenômenos; o das ciências do espírito é a compreensão, isto é, captar do interior, por uma experienciação psíquica, por um sentir em conjunto com os outros, os significados das ações humanas. Bakhtin critica o psicologismo inerente ao raciocínio de Dilthey ao mostrar como ele constituíra um sistema em que o psiquismo tem primazia sobre o universo da cultura. Bakhtin defende que a consciência individual se constrói na interação e por isso, o universo da cultura tem primazia sobre a consciência individual. Esta é compreendida como tendo uma realidade semiótica, construída dialogicamente. Em conseqüência disso, a compreensão não é mera experienciação psicológica da ação dos outros, mas uma atividade dialógica que, diante de um texto, gera outro(s) texto (s). Compreender não é um ato passivo, mas uma réplica ativa, uma resposta uma tomada de posição diante do texto. 19 Bakhtin entende assim, que as ciências naturais constituem uma forma de saber monológico em que o intelecto contempla uma coisa muda e se pronuncia sobre ela, enquanto as ciências humanas constituem uma forma de saber dialógico em que o intelecto está diante de textos que não são coisas mudas, mas a expressão de um sujeito. Medvedev, após apresentar o estudo da literatura como um ramo dos estudos da criação ideológica, traça o que poderia ser lido como diretrizes gerais para um estudo de base materialista e sociohistórica do universo da criação ideológica. Como a palavra ideologia pode adquirir incontáveis significações, faz-se necessário esclarecer o sentido a ela dado pelo Círculo de Bakhtin: “universo que engloba a arte, a ciência, a política, a religião, a ética, a filosofia, o direito ou todas as manifestações superestruturais”. Para o Círculo, qualquer enunciado manifesta um posicionamento social valorativo. Sendo assim, qualquer enunciado é sempre ideológico em dois sentidos: qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias e expressa sempre uma posição avaliativa. Voloshinov defende que tudo o que é ideológico possui significado e, portanto, é um signo, logo “sem signo não há ideologia”. Medvedev considera inadequadas todas as abordagens positivistas e idealistas por acreditar que elas perdem o foco do caráter social e histórico da criação ideológica que exige para ser estudada, um conceitual e um método de natureza sociológica. Nossa relação com o mundo é sempre atravessada por valores. Os signos refletem e refratam o mundo. Refratam porque não somente descrevemos o mundo, mas também construímos diversas interpretações deste mundo. Medvedev conclui que no horizonte ideológico de uma época, há várias verdades. Essas diversas verdades equivalem aos diferentes modos pelos quais o mundo entra no horizonte apreciativo dos grupos humanos que, por sua vez, atribuem valorações diferentes às ações e relações nela ocorrentes. Essa plurivalência social dos signos é o que, segundo Medvedev, os torna vivos e móveis, dando dinamicidade ao universo das significações, na medida em que várias verdades sociais se encontram e se confrontam no mesmo signo. As vontades sociais de poder tentarão impor uma das verdades sociais como a verdade. Contudo, Bakhtin defende seu conceito de plurilinguismo dialogizado que afirma não haver uma palavra que seja a primeira ou a última. Para Medvedev, o universo da criação ideológica tem um caráter matéria, visto que é parte concreta da realidade dos seres humanos; histórico, porque não pode ser reduzido a 20 processos fisiológicos e psicológicos de indivíduos isolados; e sociosemiótico, já que se corporifica em signos e absorve significado nos processos de intercâmbio social. Voloshinov, ao discutir a significação, ressaltará que a enunciação de um signo é sempre também a enunciação de índices sociais de valor: não coexistem pacificamente com outros elementos da existência a ela previamente integrados, mas entram em luta com eles, submetem-nos a reavaliação e deslocam sua posição no interior da unidade do horizonte avaliativo. Este processo gerativo dialético se reflete na geração de propriedades semânticas na língua. Uma nova significação emana de uma velha e por meio dela, mas isso acontece de tal modo que a nova significação pode entrar em contradição com a velha e reestruturá-la. (p. 106). (BAKHTIN, 2002) Para designar as múltiplas refrações do objeto, ou seja, os múltiplos discursos sociais, Bakhtin introduz a expressão vozes sociais, interpretando-as como complexos semióticosaxiológicos com os quais um determinado grupo humano diz o mundo. Aquilo que se chama de língua não corresponde somente a um conjunto difuso de variedades geográficas, temporais e sociais, mas também pelo atravessamento de outra estratificação, definida pelos índices sociais de valor, oriundos da diversificada experiência sociohistórica dos grupos sociais. Língua é então, um conjunto indefinido de vozes sociais e, essa multidão de vozes sociais caracteriza o que tem se designado de heteroglossia ou pluringuismo, termos que, muitas vezes serão tomados equivocadamente como equivalentes a polifonia (pensamento bakhtiniano). Em 1930 Bakhtin traz à tona em “O discurso no romance” um elemento forte ao pensamento do Círculo: heteroglossia dialogizada ou plurilinguismo dialogizado – (p. 272), porém ele ressalta mais a importância da dialogização das vozes sociais do que da própria heteroglossia como tal, ou seja, o encontro sociocultural dessas vozes e a dinâmica que entre elas se estabelece: vão se apoiar mutuamente, se contrapor parcial ou totalmente, se diluir em outras, se parodiar, se polemizar e assim sucessivamente. Conclui-se então, que o verdadeiro ambiente de um enunciado é o plurilinguismo dialogizado em que as vozes se entrecruzam e dão espaço para o surgimento de novas vozes sociais. O Cículo bakhtiniano vê as vozes sociais como partícipes de uma cadeia de responsividade, isto é, os enunciados, ao mesmo tempo em que respondem ao já dito, 21 provocam continuamente as mais diversas respostas: adesões, recusas, aceitações, críticas, ironias, concordâncias, dissonâncias etc. O universo da cultura é intrinsecamente responsivo, se move como se fosse um grande diálogo: a) todo dizer não pode deixar de se orientar para o “já dito”. Neste sentido, todo enunciado é uma réplica, ou seja, não se constitui fora daquilo que chamamos hoje de memória discursiva; b) todo dizer é orientado para a resposta. Nesse sentido, todo enunciado espera uma réplica e – mais- não pode esquivar-se à influência profunda da resposta antecipada. Neste sentido, possíveis réplicas de outrem no contexto da consciência socioaxiológica, têm papel constitutivo, condicionante, do dizer, do enunciado. Assim, é intrínseco ao enunciado o receptor presumido, qualquer que ele seja: o receptor empírico entendido em sua heterogeneidade verboaxiológica, “o auditório social” (ver, de Voloshinov, Marxismo e filosofia da linguagem (1929), p. 85-86; ou A construção do enunciado, p. 122-123), o “superdestinatário” (o “terceiro” – nos termos discutidos por Bakhtin em O problema do texto (1992), p. 126); c) todo dizer é internamente dialogizado: é heterogêneo, é uma articulação de múltiplas vozes sociais (no sentido em que hoje dizemos ser todo discurso heterogeneamente constituído), é o ponto de encontro e confronto dessas múltiplas vozes. Essa dialogização interna será ou não claramente mostrada; o dizer alheio será ou não destacado como tal no enunciado – ou, para usar uma figura recorrente em Bakhtin, será aspeado ou não, em escalas infinitas de graus de alteridade ou assimilação da palavra alheia (conforme diz ele no manuscrito O problema do texto (1992), p. 120-121). Assim, podemos reconhecer a íntima relação entre o pensamento do Círculo de Bakhtin com a idéia de diálogo, motivo que desencadeou o termo dialogismo para designar esse pensamento. No entanto, a palavra diálogo designa uma série de significados que se adequam ao sentido dado pelo Círculo. Desse modo, torna-se crucial esclarecer que não constitui objeto de suas preocupações observar como ocorre a troca de turnos entre participantes de uma conversa, como praticado pela análise da conversação, mas sim como “um documento 22 sociológico altamente interessante” (conforme se pode ler em Problemas da poética de Dostoievski – apêndice I, p. 280), ou seja, um espaço onde se pode observar o processo da interação das vozes sociais. O que interessa ao Círculo é o que Voloshinov, em (Marxismo e filosofia da linguagem, p. 95), se refere como “o colóquio ideológico em grande escala”, ou seja, condiciona e forma as significações do que é dito no diálogo, no sentido mais amplo. O objeto efetivo do dialogismo é constituído, portanto, pelas relações dialógicas no sentido mais complexo, em que já estão embutidas as bases da criação ideológica mais elaborada e as fontes da sua contínua renovação. Voloshinov, particularmente, é quem se preocupa ou se importa com o diálogo face-aface por acreditar que é nele onde se pode encontrar a chave para o entendimento daquilo que se pode abstrair dos enunciados de esferas mais elaboradas da criação ideológica, como por exemplo, nos enunciados literários. Ele defende ainda o fato da interação face-a-face estar sempre projetada numa esfera social, sendo necessário, portanto, dimensiona-lo como estrutura socioideológica, na qual os interactantes são seres socialmente organizados, que agem num complexo quadro de relações socioculturais onde se manifestam as relações dialógicas. Bakhtin critica a concepção de dialogismo como apenas uma forma composicional do discurso. Na verdade, ele caracteriza as relações dialógicas como relações de sentido estabelecidas entre enunciados. Dessa maneira, quaisquer enunciados, se postos lado a lado no plano do sentido, acabam estabelecendo uma relação dialógica. Embora os enunciados estejam separados pelo tempo e pelo espaço e que nada conheçam um do outro, poderão revelar relações dialógicas, ainda que se encontrem em diferentes pontos do universo da criação ideológica, diz Bakhtin no seu inacabado manuscrito “O problema do texto”. Em “Problemas da poética de Dostoiévski”, Bakhtin chama a atenção para a impossibilidade de estabelecer relações dialógicas entre elementos de um sistema linguístico, ou seja, entre palavras de um dicionário, entre morfemas, entre palavras de uma sentença etc. Ele acredita que para haver relações dialógicas, faz-se mister que qualquer material linguístico tenha entrado na esfera do discurso, isto é, tenha se transformado num enunciado e fixado a posição de um sujeito social. Em suma, somente assim é possível estabelecer relação de sentido com a palavra de outrem, gerando significação responsiva a partir do encontro de posições: 23 A compreensão estreita de dialogismo como debate, polêmica ou paródia. Essas são as formas externamente mais óbvias, embora rudimentares, de dialogismo. A confiança na palavra do outro, a recepção reverencial (a palavra de autoridade), o aprendizado, a busca pelo sentido profundo e sua natureza obrigatória, a concordância, suas infinitas gradações e nuanças (mas não suas limitações lógicas e restrições puramente referenciais), a estratificação de um significado que se sobrepõe a outro, de uma voz que se sobrepõe a outra voz, fortalecimento por meio da fusão (mas não identificação), a combinação de muitas vozes que amplia a compreensão, o afastamento para além dos limites do compreendido, e assim por diante. (FARACO, 2003) É válido ressaltar também que a significação que remete a solução de conflitos, a entendimento e a geração de consenso, dadas ao termo diálogo, distancia-se do conceito trabalhado pelo circuito bakhtiniano, pois este tenta dar conta da dinâmica das relações dialógicas num dado contexto social que nem sempre apontam para as consonâncias, mas também para as multissonâncias e dissonâncias. Delas pode resultar tanto a convergência, o acordo, a adesão, a fusão, quanto a divergência, o desacordo, o embate, o questionamento, a recusa. Daí se pode concluir que o Círculo bakhtiniano entende as relações dialógicas como espaços de tensão entre enunciados. Assim, o diálogo passa a ser entendido como um vasto espaço de lutas entre as vozes sociais no qual atuam forças centrípetas e centrífugas. As primeiras buscam impor uma certa centralização verboaxiológica sobre o plurilinguismo real. Já as segundas, corroem continuamente as tendências centralizadoras através de processos dialógicos como a paródia, o riso, a ironia, a polêmica, a hibridização, a sobreposição de vozes etc. O diálogo é também no pensamento bakhtiniano, a metáfora daquilo que poderíamos considerar como sua grande utopia: a crença da possibilidade de um outro mundo daquele vivido por ele então, exílio de seis anos no Casaquistão e num ostracismo de trinta anos em cidades provinciais como prisioneiro político. No seu manuscrito “Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski”, Bakhtin deixa emergir sua utopia: a idéia de que a vida humana é por sua própria natureza, dialógica. Assim, Viver significa tomar parte no diálogo: fazer perguntas, dar respostas, dar 24 atenção, responder, estar de acordo e assim por diante. Desse diálogo, uma pessoa participa integralmente e no decorrer de toda sua vida: com seus olhos, lábios, mãos, alma, espírito, com seu corpo todo e com todos os seus feitos. Ela investe seu ser inteiro no discurso e esse discurso penetra no tecido dialógico da vida humana, o simpósio universal. (FARACO, 2006, p. 72-3, grifo do autor) Nesse sentido, Bakhtin se posiciona contra qualquer tendência à monologização da existência humana, ou seja, a negação da existência de um outro “eu”, com iguais direitos e responsabilidades. Se pararmos para uma reflexão, podemos observar que é no âmbito da linguagem que se explica a celebração do diálogo e sua definição como alternância entre enunciados; isto é, entre sujeitos falantes, entre diferentes posicionamentos. O diálogo, por sua clareza e simplicidade, é a forma clássica da comunicação verbal. Cada réplica, por mais breve e fragmentária que seja, possui um acabamento específico que expressa a posição do locutor, sendo possível responder, sendo possível tomar, com relação a essa réplica, uma posição responsiva. (BAKHTIN, 2006, p. 42) Podemos concluir que diálogo e enunciado são dois conceitos interdependentes. O enunciado de um sujeito apresenta-se de maneira acabada, provocando no outro uma atitude responsiva; a réplica é então, relativamente acabada porque pertence a uma temporalidade mais extensa, de um diálogo social mais amplo e dinâmico. Entendemos que os diálogos sociais não se repetem na sua integridade, porém não são completamente novos, já que reiteram marcas históricas e sociais que caracterizaram uma dada cultura, uma dada sociedade. Dessa forma, o diálogo não pode ser visto tão somente como uma metáfora na reflexão, como resultado da transferência de um termo de um domínio semântico a outro que nele se destaca e atua. Há de considerar, conjuntamente, os diálogos no sentido mais estrito do termo e os diálogos no sentido amplo de condição dialógica da linguagem. Os diálogos que experimentamos no dia-a-dia são assimilados por gêneros mais complexos, os secundários. Nestes gêneros, os diálogos são mais fortemente estabilizados, institucionalizados, mas continuam a receber dos diálogos cotidianos, o alimento de mudança e transformação. 25 Daí se conclui que os gêneros primários constituem o cerne da linguagem. Tal proposição mostra a aproximação entre “Discurso na vida e discurso na arte”: sobre poética sociológica em que se examinam os “enunciados da fala da vida e das ações cotidianas porque em tais falas já estão embutidas as potencialidades da forma artística”. Há entre os participantes do diálogo, tanto na vida como na arte, uma parte presumida, que compreende valores comuns para os membros de uma dada sociedade. A tarefa do estudioso da arte seria compreender o diálogo realizado por ela e que tem como participantes, o herói, o autor e o contemplador. Bakhtin, em seu trabalho dedicado a Dostoiévski, critica os estudos que desconsideram a forma artística, tanto os conteudísticos, aplicados à discussão apaixonada dos conteúdos filosóficos, expostos pelos heróis, convertidos, então, em filósofos autônomos; quanto os de cunho psicológico, graças ao caráter monológico que assumem. As críticas iluminam a análise, que depreende das obras de Dostoievski uma forma artística inovadora caracterizada pela polifonia: multiplicidade de consciências eqüipolentes dos heróis, com quem o autor dialoga. A fala informal de um diálogo, transposta para gêneros formais, desencadeia um processo renovador. Da vida à teoria, o diálogo de maneira recursiva é identificado na ação entre interlocutores, entre autor e leitor, entre autor e herói, entre heróis, entre diferentes sujeitos sociais, que, em espaços e tempos diversos, tomam a palavra ou têm a palavra resignificada. 1.2 POLIFONIA Esse dialogismo defendido por Bakhtin leva, de alguma maneira, ao que ele busca defender: um mundo polifônico, no qual a multiplicidade de vozes plenivalentes e de consciências independentes e não fundíveis, têm direito de cidadania. O termo polifonia é introduzido no vocabulário bakhtiniano para referir-se à nova forma de narrar que havia sido criada por Dostoievski: Aparece um herói cuja voz é construída exatamente como a voz do próprio autor num romance de tipo comum. Uma palavra do herói sobre si mesmo e sobre o seu mundo é tão plena quanto a palavra do autor costuma ser; não está subordinada à imagem objetificada do herói como apenas uma de suas características, nem serve ela de porta-voz da palavra do autor. Ela possui 26 extraordinária independência na estrutura da obra; é como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes dos outros heróis. (Bakhtin, 2002) Desse modo, polifonia não pode ser confundida com os termos heteroglossia ou plurivocidade, usados por Bakhtin para designar a realidade heterogênea da linguagem quando vista pelo ângulo da multiplicidade de línguas sociais. Polifonia, segundo Bakhtin, é um universo de muitas vozes eqüipolentes. Ao confundir esses termos, limitaríamos a percepção da diferença do peso que os discursos políticos adquirem dentro de uma sociedade; e de que no jogo dos poderes sociais há um contínuo esforço monologizante dos discursos que pretender se impor como verdade absoluta, buscando reduzir a heteroglossia a um caráter de submissão. De acordo com Tezza (2002), o termo polifonia é pouco produtivo para a análise literária porque, pelos critérios bakhtinianos, somente Dostoievski foi um romancista polifônico. O uso escasso do termo dentro do discurso bakhtiniano leva Tezza a argumentar que polifonia, para Bakhtin não passa de uma categoria filosófica ilustrada por Dostoievski como um mundo de vozes plenivalentes em relações dialógicas infindas. Ao presenciar um mundo pesadamente monológico, Bakhtin ultrapassa as fronteiras das relações dialógicas criadas por seu Círculo e se põe a sonhar com a possibilidade de um mundo polifônico, radicalmente democrático, pluralista, de vozes igualitárias, em que nenhum ser humano é reificado e nemhuma voz social se impõe como última e definitiva palavra. Trata-se de uma visão utópica que nos leva a renunciar hábitos monológicos. Faz-se necessário recordar o contexto histórico que se encontrava Bakhtin na época da sua tese de dotouramento. Tratava-se de um período logo após a Segunda Guerra Mundial em que Stalin voltava a apertar o cerco às atividades culturais. Logo, os controles policialescos das atividades intelectuais voltavam à tona, contrapondo-se com a tese de Bakhtin. Assim, a teoria que apresenta o romance como gênero literário fundado no riso e no pluringuismo são postergados e ele recebe o título de Candidato a doutor e não propriamente o de Doutor. Segundo Ponzio (2008), somente quando a língua foi reconhecida como pluridiscursiva, ou seja, que é possível falar do mesmo mundo através de registros conceituais e axiológicos diferentes é que emergiu uma consciência filosófica, uma consciência que vive precisamente do confronto desses diferentes dizeres significativos. Ponzio ressalta que 27 filosofar, segundo Bakhtin, é estabelecer relações dialógicas com os enunciados e as vozes alheias. No entanto, nossos enunciados, que são heterogêneos, emergem da multidão de vozes interiorizadas. Tomando essa afirmação como ponto de partida, podemos dizer que nossos enunciados são sempre discurso citado. Ao afirmar que todo enunciado é discurso citado, corremos o risco de sugerir que o sujeito apenas repete o discurso, sem espaço para a singularidade. Porém, se o Cículo bakhtiniano busca um entendimento da pessoa humana na perspectiva de suas relações sociais e como um ente heterogêneo, busca também manter um espaço para a singularidade, recusando qualquer determinismo absoluto. O sujeito é então, social e singular ao mesmo tempo. Para um melhor esclarecimento, ressaltamos que o romance se estriba no que ele concebeu como as duas modalidades do romance: o monológico e o polifônico. Segundo Paulo Bezerra (2008), à categoria de monológico se associam conceitos relacionados a monologismo, autoritarismo, acabamento. Já tratando-se da categoria de polifônico, estão associados os conceitos de realidade em formação, inconclusibilidade, não acabamento, dialogismo e polifonia. O autoritarismo consiste na intransigência de não aceitar as verdades veiculadas por um tipo de discurso; o acabamento, na anulação da individualidade de cada um das personagens que se sujeitam ao horizonte do autor. Em contrapartida, a inconclusibilidade e o não acabamento decorrem da condição do romance como um gênero em formação, sujeito a mudanças, cujas personagens são sempre representadas em um processo de evolução que nunca se conclui. Sob o viés da polifonia, as personagens que povoam o universo romanesco estão em permanente evolução. O dialogismo e a polifonia caminham juntos nessa esfera ampla e multifacetada do universo romanesco, vinculam-se ao seu povoamento por um grande número de personagens, à capacidade do romancista para recriar a riqueza dos seres humanos traduzida na multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica representada. De acordo com Bakhtin, no monologismo, o autor concentra em si mesmo todo o processo de criação por acreditar que ele é o único centro irradiador da consciência, das vozes, imagens e pensamentos de um romance. Logo, o sistema monológico não abre espaço a respostas, ou seja, não tem uma consciência responsiva e independente do outro. O outro é ignorado como entidade viva, falante e veiculadora das diversas faces da realidade social. Ao proceder dessa maneira, coisifica, parcialmente, toda a realidade e cria um modelo 28 monológico de um universo mudo, inerte. Dessa maneira, as personagens não são vistas pelo autor como sujeitos capazes de falar e responder por si próprio, porém como coisas, como matéria muda que se esgota e se imobiliza no acabamento definitivo que ele lhe confere. Contrariamente ao pensamento de alguns, Bakhtin não elabora suas concepções de monologismo, dialogismo e polifonia como abstrações desprovidas de conteúdo histórico social e ideológico. Ele aplica ao processo de construção do romance monológico o conceito de reificação, usado por Marx para analisar, no sistema de produção capitalista, a relação entre a produção da mercadoria e de seu produtor. Bezerra (2008) defende a condição de objeto a que se reduzem os indivíduos dentro do sistema capitalista, porém alerta também que tal condição de submissão gera vozes e consciências que resistem a tal redução, provocando o maior número de conflitos da história da sociedade humana. Estavam criadas as condições concretas para o surgimento do romance polifônico. Para a representação literária, a transitoriedade do monologismo ao dialogismo, que tem na polifonia sua forma suprema, representa o fim da condição de sujeito mudo, escravo da consciência do autor e marca o início de um sujeito livre, formador de sua própria consciência. No enfoque polifônico, a autoconsciência da personagem representa a principal característica para a construção de sua imagem, que requer uma nova posição do autor. O “homem no homem” não é uma coisa, um objeto silencioso, porém outro sujeito, outro “eu” possuidor de iguais direitos no diálogo interativo com os demais falantes. À reificação do homem, ou seja, a esse caráter de coisa que lhe é conferido, contrapõese o dialogismo, procedimento que constrói a imagem do homem num processo de comunicação interativa, no qual eu me vejo e me reconheço através do outro, através da imagem que este faz de mim. Sob essas condições, o autor visa a conhecer o homem em sua verdadeira essência como um outro “eu”, único, infinito e inacabável. Segundo Dostoievski, não há como conhecer-se a si mesmo sem o outro, sem o reconhecimento e afirmação do meu “eu” através do outro. Dessa maneira, podemos definir polifonia, segundo Paulo Bezerra (2008) pela convivência e pela interação, em um mesmo espaço do romance, de uma multiplicidade de vozes e consciências independentes, vozes plenivalentes e consciências eqüipolentes, todas representantes de um determinado universo e marcadas pelas peculiaridades desse universo. Essas vozes e consciências não são objetos do discurso do autor, porém sujeitos de seus próprios discursos. Essas vozes possuem independência excepcional dentro da obra, é como 29 se soassem ao lado da palavra do autor, combinando-se com ela e com as vozes de outras personagens. Dessa forma, poder-se instituir como traço peculiar ao romance polifônico, o fato do autor não falar pela personagem, não reduzi-la a seu objeto, muito pelo contrário, lhe confere livre arbítrio para falar, usar sua linguagem, seu estilo, sua ênfase, pois não é o autor quem fala, porém o sujeito que ele reconhece como dono de seu próprio discurso e de sua maneira individual de exprimir-se. Essa relação entre autor e personagens, na qual as personagens não só dialogam, discutem com o autor, colaboram com ele, mas até resistem e inclusive podem rebelar-se contra ele é aquela que Bakhtin situa no romance polifônico de Dostoievski. Para ele, o autor não é passivo, não renuncia ao seu ponto de vista e à sua verdade, não se limita a montar pontos de vista e verdades alheias; ele enfatiza a relação dialógica entre autor e personagem, “a relação de reciprocidade inteiramente nova e especial entre minha verdade e a verdade do outro”. O autor é profundamente ativo, mas seu ativismo tem um caráter dialógico especial, está diretamente vinculado à consciência ativa e isônoma do outro. 1.3 INTERAÇÃO VERBAL Para constituir essa relação dialógica, em 1925, Bakhtin empregou a expressão interação face a face ao desenvolver estudos críticos sobre Freud e sobre o uso da linguagem em sessões de psicanálise. Considerando os trabalhos de Freud como uma tentativa de levar os pacientes a uma manifestação do interior por meio da expressão verbal, Bakhtin (1980) estendeu críticas aos trabalhos desse psicanalista afirmando que o discurso interior encontrase em oposição ao exterior e a sessão de psicanálise é um gênero de discurso, é uma conversação por meio da interação face a face. Nessa perspectiva, esse estudioso afirma que o paciente e o analista encontram-se envoltos por um mini-universo social. Observou, ainda, que o “enunciado é o produto de uma interação entre locutores e, mais amplamente, o produto de toda conjuntura social complexa na qual ele nasceu” (BAKHTIN 1980, p. 174). Em Bakhtin (1980), encontramos as primeiras oposições entre discurso interior e discurso exterior, bem como os prenúncios de posteriores formulações teóricas sobre a constituição do sujeito pela interação verbal social e sobre interdiscursividade. Na verdade, esse estudo pode ser considerado como a origem das teorias acerca do sujeito discursivo em algumas acepções da Análise do Discurso. A título de exemplificação, podemos nos remeter a 30 Authier-Revuz (1982) que, baseando-se em Bakhtin e em releituras de Freud feitas por Lacan, ao discorrer sobre heterogeneidade discursiva, afirma que há uma ruptura do eu fundamentado na subjetividade como um interior face à exterioridade do mundo. Na verdade, para essa autora, a exterioridade é levada para o interior do sujeito de maneira que a constituição do sujeito discursivo pode ser definida pela junção do exterior com o interior. No estudo em destaque, encontramos o esboço da teoria da Interação Verbal posteriormente desenvolvida em Bakhtin (1992), momento em que o autor apresenta de maneira mais profunda e complexa, considerando aspectos originários especificamente do social, a teoria da interação verbal. Nessa segunda obra, Bakhtin inicia retomando afirmações apresentadas no estudo anteriormente citado: “qualquer que seja o aspecto da expressãoenunciação considerado, ele será determinado pelas condições da enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata” (p. 112) e, de forma mais incisiva, assegura que “a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados” (p. 112). Se não houver um interlocutor real, este pode ser substituído por um representante do grupo social ao qual pertence o locutor. Prossegue suas reflexões afirmando que a organização do mundo interior é estabelecida pelas relações exteriores, pelas motivações, pelas deduções e pela reflexão de cada indivíduo em um auditório social próprio e bem estabelecido. O interlocutor, assim como o locutor, situa-se em um espaço-temporal bem definido. E “a palavra é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém como pelo fato de que se dirige a alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte” (p. 113). Podemos relacionar o subjetivismo individualista, do pensamento filosóficolinguístico ao Romantismo. O Romantismo rebelou-se como uma reação à palavra estrangeira e o domínio que ela exerceu sobre as categorias do pensamento. Os primeiros filólogos da língua materna foram os românticos. Também foram os pioneiros na tentativa de reorganizar a reflexão linguística sobre a base da atividade mental em língua materna, tida como meio de desenvolvimento da consciência e do pensamento. O subjetivismo individualista também tem como suporte a enunciação monológica como ponto de partida da sua reflexão sobre a língua. Vale ressaltar que seus representantes não abordaram a enunciação monológica sob o viés do pensamento filológico de compreensão passiva, mas sim de dentro, do ponto de vista de pessoa que fala, que se exprime. Cabe aqui enfatizar o significado de expressão como sendo tudo aquilo que se forma no psiquismo do indivíduo e vem à tona para outrem com a ajuda de algum código de signos exteriores. Em 31 suma, a expressão comporta duas faces: o conteúdo interior e sua objetivação exterior para outrem. A teoria da expressão supõe um caráter dual entre o que é interior e o que é exterior. Porém torna-se evidente a primazia dada ao conteúdo interior por defender a hipótese de que todo ato de objetivação ou expressão, como queiram chamar, procede do interior para o exterior. O idealismo engendrou teorias avessas à teoria da expressão por considerá-la como deformação da pureza do pensamento interior, pois ao exteriorizar o conteúdo interior, este muda de aspecto porque é obrigado a apropriar-se do material exterior que dispõe de suas próprias regras, estranhas ao pensamento interior. Basicamente, acredita-se que a expressão se forma no interior e sua exteriorização não passa de uma tradução daquilo que antes fazia parte apenas do psiquismo. Essa idéia defendida pela teoria da expressão, de que tudo é proveniente do interior e se manifesta de dentro pra fora, é radicalmente falsa, pois qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, será determinado pelas condições externas, pela situação social mais imediata. A palavra sempre se dirige a alguém, a um interlocutor e variará dependendo da situação real da interação: se se trata de uma pessoa que pertence ao mesmo grupo social ou não, se se encontra numa posição hierárquica social superior ou inferior a sua, se mantém uma relação mais íntima ou mais distante com o interlocutor etc. Quando temos a pretensão de pensar e de exprimir-nos, na realidade temos que considerar o mundo através do prisma do meio social que nos engloba. O nosso mundo interior se exterioriza sempre direcionado para algum auditório social, em cuja atmosfera se constroem suas deduções interiores, suas motivações, apreciações etc. Através da palavra me defino em relação ao outro que pode ser uma única pessoa ou uma coletividade. A palavra constrói uma ponte entre mim e os outros. Portanto, concluimos que a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação. A enunciação, antes de mais nada, é determinada da maneira mais imediata pelos participantes do ato de fala, explícitos ou implícitos, em ligação com uma situação bem precisa: a situação dá forma à enunciação, impondo-lhe esta ressonância em vez daquela, por exemplo a ordem ou o pedido, a afirmação de direitos ou a prece, um estilo mais rebuscado ou mais simples, a seguranças ou a timidez e assim sucessivamente. 32 Na relação com um ouvinte potencial, podemos diferenciar dois pólos, dentro dos quais se realiza a tomada de consciência e a elaboração ideológica. A atividade mental oscila de uma a outro. Por convenção chamemos esses dois pólos atividade mental do eu e atividade mental do nós. Atividades mentais isoladas tendem ao pólo do eu, prejudicando, dessa maneira, sua clareza e sua modelagem ideológica e consequentemente, revelando que a consciência foi incapaz de enraizar-se socialmente. Em contrapartida, a atividade mental do nós é orientada à aceitação de uma diferenciação ideológica, a um crescimento do grau de consciência orientado para uma estabilidade da orientação social. Quanto mais bem organizada e diferenciada for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais complexo será seu mundo interior. Cada tipo de atividade mental gera modelos e formas de enunciações correspondentes, ou seja, a situação social determinará a forma de enunciação adequada para exprimir o que se pensa e sente. Julgamos necessário distinguir a atividade mental para si da atividade mental do eu, já definida anteriormente. Segundo Tolstoi, a atividade mental individualista caracteriza-se por uma atividade mental sólida e afirmada, ou seja, indica uma concepção social do ouvinte que lhe é peculiar. O pensamento não existe fora de sua expressão potencial e consequentemente fora da orientação social dessa expressão e o próprio pensamento. Em suma, todo o itinerário que leva da atividade mental (o conteúdo a exprimir) à sua objetivação externa (a enunciação) situa-se no território social. Se a consciência permanece no psiquismo do ser consciente, sob a forma de discurso interior, o seu estado não passa de um esboço. Mas, a partir do momento que ela é externada, pode-se dizer que a consciência torna-se uma força real, capaz de exercer em retorno uma ação sobre as bases econômicas da vida social. Isso leva a crer que a atividade mental tende a ser exteriorizada, apesar de conhecer a possibilidade de ser freada. Neste último caso, pode-se dizer que a atividade mental desemboca numa expressão inibida. Ao afirmar, inicialmente, ser a teoria da expressão falsa, indica que nos estávamos remetendo ao fato de não ser a expressão a que se adapta ao nosso mundo interior, ao contrário, o nosso mundo interior é que se adapta às possibilidades de nossa expressão. Segundo Voloshinov (1988), os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercendo sobre esta uma forte influência, dando-lhe tom. Simultaneamente, esses produtos ideológicos constituídos mantêm um elo vivo com a ideologia do cotidiano, pois alimentam-se de sua 33 seiva. Se diferente fosse, morreriam porque não estariam submetidas a uma avaliação crítica viva. É exatamente aí que reside a vida da obra ideológica: em cada época histórica a obra é levada a estabelecer contato com a ideologia cambiante do cotidiano, pois é somente através desse contato ininterrupto com a ideologia do cotidiano de uma determinada época que tornase capaz de manter-se viva. Quando uma atividade mental nasce de uma situação fortuita tende a desaparecer no plano social, pois esse tipo de atividade mental constitui o nível inferior, aquele que desliza e muda na ideologia do cotidiano. Assim, serão inseridos nesse nível todas as atividades mentais e pensamentos confusos, como as palavras fortuitas ou inúteis. Quanto aos níveis superiores da ideologia do cotidiano, que estão em contato direto com os sistemas ideológicos, podemos afirmar que eles são substanciais e apresentam um caráter de responsabilidade e de criatividade. São mais móveis e sensíveis que as ideologias constituídas. Aí é que se acumulam as energias criadoras com cujo auxílio se efetuam as revisões parciais ou totais dos sistemas ideológicos. No decorrer do tempo, no curso do processo de infiltração progressiva nas instituições ideológicas (a imprensa, a literatura, a ciência), essas novas correntes da ideologia do cotidiano, por mais revolucionárias que sejam, submetem-se à influência dos sistemas ideológicos estabelecidos e assimilam parcialmente as formas, práticas e abordagens ideológicas neles acumulados. Cabe aqui situar igualmente as palavras, as entoações e os movimentos interiores que passaram com sucesso pela prova da expressão externa numa escala mais ou menos ampla e adquiriram um grande polimento e lustro social, pelo efeito das reações e réplicas, pela rejeição ou apoio do auditório social. Concluímos então, que a teoria da expressão subjacente ao subjetivismo individualista deve ser completamente rejeitada, já que quem organiza as nossas enunciações não é o nosso interior, mas o exterior. O centro organizador de nossas expressões situa-se no meio social ao qual o indivíduo está submerso. A enunciação por si só é um produto da interação social, quer seja um ato de fala determinado pela situação imediata, quer pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada comunidade lingüística. Há, na verdade, um equívoco do subjetivismo individualista tomar como ponto de partida, a enunciação monológica. Daí surge a necessidade de alguns vosslerianos de abordar o problema do diálogo, levando-os a uma compreensão mais justa da interação verbal, apesar da enunciação monológica permanecer funcionando como base da realidade lingüística para os vosslerianos. 34 Otto Dietrich(1914), em Die probleme der Sprachpsychologie, ressalta o problema da interação verbal. Ele defende que a função central da linguagem não corresponde à expressão, senão à comunicação. Isso o leva a considerar o papel do ouvinte. O dualismo entre locutorouvinte rege a linguagem, contudo ele partilha as premissa psicológica do subjetivismo individualista. A verdadeira substância da língua é então o fenômeno social da interação verbal, concretizada através da enunciação ou das enunciações. O sistema abstrato de formas lingüísticas, a enunciação monológica isolada e o ato psicofisiológico da produção da língua ficam delegados ao segundo plano. O diálogo constitui uma das formas mais importantes da interação verbal. Mas, há de convir que diálogo, nesse sentido não se limita à comunicação em voz alta, entre pessoas colocadas face-a-face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja, num sentido mais amplo. Assim, o discurso escrito é, de certa maneira, parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio etc. Conclui-se que toda enunciação, por mais complexa que seja, constitui apenas uma parte de uma corrente de comunicação ininterrupta, a um momento na evolução contínua, em todas as direções, de um grupo social determinado. A comunicação verbal se entrelaça com outros tipos de comunicação, não sendo possível desassociá-la da comunicação global em constante evolução. Graças a esse vínculo concreto com a situação, a comunicação verbal está sempre atrelada a atos sociais de caráter não verbal, da qual, muitas vezes, ela torna-se apenas complementar. A língua tem um caráter vivo porque está em constante processo de evolução histórica. Por isso, podemos afirmar que ela vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes. Uma determinada enunciação realizada corresponde a uma ilha emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior. As dimensões e as formas dessa ilha são determinadas pela situação da enunciação e por seu auditório. A situação e o auditório determinam a maneira como o discurso interior se exteriorizará mediante uma expressão exterior definida, que se insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação. Partindo do que foi exposto, podemos concluir que uma análise fecunda das formas do 35 conjunto de enunciações como unidades reais na cadeia verbal só é possível a partir de uma perspectiva que encare a enunciação individual como um fenômeno puramente sociológico. A filosofia marxista da linguagem deve colocar como base de sua doutrina a enunciação como realidade da linguagem e como estrutura sócio-ideológica. 1.4. ENUNCIADO/ ENUNCIAÇÃO Iniciamos destacando o nome de Émile Benveniste como o lingüista da enunciação e, consequentemente, o principal representante do que se convencionou chamar de “teoria da enunciação”. Acreditamos ser pertinente iniciar tratando os conceitos de enunciado e enunciação a fim de tornar mais claro o entendimento a respeito da “Teoria da enunciação”. Enunciado é um termo também usual na língua corrente e é empregado de modo bastante polissêmico em ciências da linguagem e só tem sentido verdadeiro no interior das oposições em que o inserimos. Seus empregos se organizam segundo dois grandes eixos, seja em oposição à enunciação ou simplesmente como uma sequência verbal de extensão variável. De acordo com os postulados lingüísticos de Harris, enunciado equivale a “toda parte do discurso, proferida por uma única pessoa, antes e depois da qual há silêncio da parte dessa pessoa [...]”. “Muitos enunciados são compostos de partes linguisticamente equivalentes a enunciados inteiros que figuram alhures” (LYONS, 1970). Em AD o enunciado é tido como “a sucessão de frases emitidas entre dois brancos semânticos, duas pausas de comunicação; o discurso é o enunciado considerado do ponto de vista do mecanismo discursivo que o condiciona. Assim, olhar um texto sob a perspectiva de sua estruturação “em língua” permite tomá-lo como um enunciado; um estudo lingüístico das condições de produção desse texto possibilita considerá-lo um discurso” (GUESPIN, 1971). A partir de Bally (1932), o termo “enunciação, já antes utilizado pela filosofia, passou a ser empregado pela lingüística. A enunciação constitui a causa da relação entre a língua e o mundo: por um lado permite representar fatos de um enunciado, mas por outro, constitui por si só um fato único definido no tempo e no espaço. Benveniste (1974) torna-se referência quando define enunciação como “a colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização”. Tal definição submete-se a variações significativas, segundo as teorias lingüísticas que a mobilizam. Do ponto de vista da AD, a enunciação é fundamentalmente tomada no interdiscurso: “A enunciação equivale a colocar fronteiras entre 36 o que é selecionado e, pouco a pouco, tornado preciso (através do que se constitui o universo o discurso) e o que é rejeitado. Desse modo se acha, pois, desenhado num espaço vazio o campo de tudo a que se opõe ao que o sujeito disse (PÊCHEUX e FUCHS, 1975). A princípio, a enunciação era vista com maus olhos pelos estruturalistas, já que estes acreditavam que a enunciação exigia um forte componente contextual para explicar os componentes que lhe competiam. Os estruturalistas achavam que abordá-la correspondia a dar espaço a fenômenos extralingüísticos. Fica, portanto, esclarecido a adversidade com a qual se confronta Benveniste ao defender a inclusão de meios para tratar a enunciação: articulação entre sujeito e estrutura. A proposta de Benveniste se explica pelo fato dele ser um estruturalista e por pautar sua semântica pelos princípios estruturais sausurreanos. Isso não deve levar a crer que Benveniste era um continuador das idéias de Saussure. Ao contrário, a teoria da enunciação instaura um novo pensamento acerca da linguagem. O primeiro modo de significação corresponde ao nível “intralingüístico” em que cada signo é distintivo, significativo em relação aos demais, dotado de valores opositivos e genéricos e disposto em uma organização paradigmática. A esse nível, Benveniste denomina de semiótico. Sob essa perspectiva não interessa a relação do signo com o denotado nem da língua com o mundo. O segundo modo de significação resulta da atividade do locutor que coloca a língua em ação e é denominado de semântico. Aqui o critério utilizado é o da comunicação. A diferença que marca os dois modos de significação é que no semiótico, a referência está ausente; no semântico, ela define o sentido porque este se caracteriza pela relação entre as idéias expressas sintagmaticamente na frase e a situação de discurso. Para Benveniste (1989), “a enunciação é o colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização”. Tal afirmação separa o ato (objeto de estudo da linguística da enunciação) do produto (o discurso). Conclui-se então, que enunciar é transformar individualmente a língua em discurso. A semantização da língua se efetiva nessa passagem. Sob esse viés, a enunciação é produto de um ato de apropriação da língua pelo locutor que, a partir do aparelho formal da enunciação, tem como parâmetro um locutor e um alocutário. O outro é instaurado no emprego da língua a partir da alocução. Benveniste afirma que o processo de referenciação é parte da enunciação, isto é, ao mobilizar a língua e dela se apropriar, o locutor estabelece relação com o mundo através do discurso de um sujeito. Daí, conclui-se que a língua é empregada para exprimir sua relação com mundo. 37 De acordo com Benveniste, ao falarmos, estabelecemos uma relação com o mundo, mas mediada pelo sujeito. Essa relação é dependente da enunciação, pois o referente é o objeto particular a que cada palavra corresponde no caso concreto da circunstância de uso. [...] na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo. A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a necessidade de referir discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmático que faz de cada locutor um co-locutor. A referência é parte integrante da enunciação. (BENVENISTE, 1989) Em semiologia da língua (1969), Benveniste afirma que o semântico toma necessariamente a seu encargo o conjunto dos referentes (valor semântico daquilo que chama de frase ou enunciado). Enquanto isso, o semiótico encontra-se separado e de forma independente de toda a referência. Benveniste afirma que a língua está totalmente atrelada à referência e ao “eu”. Assim, pode-se dizer que, em um sentido amplo, toda a língua é dêitica, já que precisa ser referida a quem a enuncia para ter sentido. Para ele, a dêixis não corresponde ao mecanismo de referência ao mundo, senão ao sujeito. Podemos afirmar que o conceito de enunciação não se reduz nem à língua nem à fala, mas é capaz de transformar a língua em fala. Porém, recorda que usar a língua não é o mesmo que concebê-la como um sistema. Como já é sabido, alguns princípios estruturalistas são alvos de críticas diversas, principalmente em textos escritos a partir de 1925/ 1926, momento conhecido por “virada lingüística” nos debates dos intelectuais que integram o Círculo de Bakhtin. Porém, apesar desta oposição aos pensamentos sausurreanos, o Círculo bakhtiniano aporta com grandes contribuições para o pensamento sobre a enunciação, no qual forma e uso se articulam no processo de constituição de sentidos no discurso. Bakhtin aponta a enunciação como centro de referência do sentido dos fenômenos lingüísticos e como ponte que liga o locutor à interação viva com vozes sociais. É possível, hoje, encontrar um grande número de publicações, de diferentes áreas, que recorrem a Bakhtin para tentar validar suas hipóteses. Essa diversidade aponta para uma postura que revela que o dialogismo subjaz a todas as recorrências que se faz à teoria. 38 De acordo com Martins (1990), a comunicação, vista como uma relação de alteridade em que o “eu” se constitui pelo reconhecimento do “tu”, fundamenta suas pesquisas em quase todas as áreas em que desenvolvem alguma reflexão: teoria do conhecimento (contemplada pela noção de intertextualidade); teoria e história do romance (contemplada pelo conceito de polifonia) e a filosofia da linguagem (contemplada pelo estudo da enunciação). Em relação ao posicionamento de Bakhtin a respeito da lingüística, surgem opiniões de dois grupos que se opõem entre si: um que o considera um anti-saussurreano e outro que acredita que ele não rejeitava o pensamento da abstração da língua, apesar dele não encerrar sua análise lingüística na imanência da forma. Bakhtin (Volshinov) (2002) refletem em Marxismo e Filosofia da Linguagem sobre o real objeto de estudo da filosofia da linguagem. Questiona-se sobre o verdadeiro núcleo da realidade lingüística: se se trata do ato individual da fala ou do sistema da língua. Também indaga a respeito do modo de existência da realidade lingüística, ou seja, se corresponde à evolução criadora ininterrupta ou à imutabilidade de normas idênticas a si mesmas. Como suporte para contemplar a tais questionamentos, Bakhtin parte da análise de duas orientações do pensamento lingüístico-filosófico, por ele conceituadas de subjetivismo idealista e objetivismo abstrato. O objetivismo abstrato refere-se às idéias de Saussurre, enquanto que a teoria da enunciação atribuída ao Círculo assume um caráter crítico em relação a essa orientação. Bakhtin (Voloshinov) ressalta o interesse do objetivismo abstrato no sistema de regularidades fonéticas, gramaticais e lexicais que se encarregam de proporcionar a unidade da língua. Trata-se, pois, de uma noção de língua que enaltece a convencionalidade e arbitrariedade do sistema linguístico, sem relacionar o signo à realidade ou ao indivíduo, criando um abismo que separa a abordagem diacrônica da língua (que defende o conceito de uma língua viva e em constante processo de evolução) da abordagem sincrônica (desligada da evolução da língua). O que interessa é a relação entre os signos, dentro do sistema, do qual se deve explicar a lógica interna. O que faz Bakhtin é uma crítica ao sistema lingüístico como um fato externo à consciência individual, regido por um sistema de regras imutáveis, defendido pelo objetivismo abstrato. Na realidade, ele critica a concepção sincrônica do estudo da língua por acreditar que esta abordagem só existe do ponto de vista da consciência subjetiva do locutor de uma dada comunidade lingüística, em um dado momento histórico. 39 A priori, Bakhtin propõe que a língua seja imersa na realidade enunciativa concreta, ou seja, não lhe importa a forma lingüística invariável, mas a função por ela adquirida dentro de um dado contexto. Na realidade o locutor serve-se da língua para suas necessidades enunciativas concretas (para o locutor, a construção da língua está orientada no sentido da enunciação da fala). Trata-se, para ele, de utilizar as formas normativas (admitamos, por enquanto, as legitimidades destas) num dado contexto concreto. Para ele, o centro de gravidade da língua não reside na conformidade à norma da forma utilizada, mas na nova significação que essa forma adquire no contexto. O que importa não é o aspecto da forma linguística que, em qualquer caso em que esta é utilizada, permanece sempre idêntico. Não: para o locutor o que importa é aquilo que permite que a forma linguística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação concreta dada. (BAKHTIN, in: FLORES, 2005) Essa concepção direciona os pensamentos bakhtinianos a uma posição oposta ao objetivismo abstrato, pois a palavra em estado de dicionário não é um meio do qual o falante se vale para alcançar seus propósitos comunicacionais. Segundo Bakhtin, toda enunciação está dotada de conteúdo ideológico. Para ele, a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e propõe a idéia de interação verbal concretizada através da enunciação. O diálogo, independentemente do tipo, passa a ser a unidade fundamental da língua. Faz-se necessário inserir a língua num complexo mais amplo e que a engloba, isto é, na esfera única da relação social organizada. Para lograr observar o fenômeno da linguagem, é preciso, então, situar os sujeitos, emissor e receptor do som, bem como o próprio som, no meio social. A orientação bakhtiniana que se opõe ao objetivismo abstrato, o subjetivismo idealista, interessa-se pelo ato de fala, de criação individual, como fundamento da língua. Logo, o psiquismo individual constitui a fonte da língua e, são essas leis da psicologia individual que devem ser estudadas pelo lingüista e pelo filósofo da linguagem Segundo Faraco (2003), Bakhtin, ao propor uma segunda ciência que abordasse aspectos não tratados pela linguística, busca a contradição entre o aspecto imutável do signo 40 lingüístico e seu aspecto mutável e dependente da situação de enunciação. Sobre a relação existente entre o aspecto formal da língua e seu uso, Bakhtin revela uma semântica que comporta duas dimensões em estreita correlação: o sentido adquirido pela estrutura (reiterável e imutável) e o sentido adquirido pela enunciação (sempre mutável e adaptável). Podemos destacar Wilhelm Humboldt como um destacado representante do subjetivismo idealista, devendo-se a ele o estabelecimento de seus fundamentos teóricos. Essa primeira tendência da filosofia da linguagem amplia a visão de seus problemas com o surgimento da escola de Vossler. O traço que marca primordialmente a escola vossleriana é o fato de negar categoricamente o positivismo linguístico, que não consegue ampliar sua visão além do que corresponde às formas lingüísticas (especialmente às fonéticas) e do ato psicofisiológico que as engendra. Só pode ter pretensões a um caráter científico, diz Vossler, uma história da língua que examine toda a hierarquia causal pragmática com a única finalidade de aí decsobrir uma ordem estética, a fim de que o pensamento linguístico, a verdade linguística, o gosto linguístico ou, como diz Humboldt, a forma interior da língua através de suas transformações condicionadas por fatores físicos, psíquicos, políticos, econômicos e culturais em geral, tornem-se claros e compreensíveis. (BAKHTIN, 1988) A corrente vossleriana defende que a individualização estilística da língua na enunciação concreta é histórica e produtiva. Vossler, ao afirmar que o estilístico tem primazia sobre o gramatical, ele se baseia no princípio de que todo fato gramatical tenha sido, a princípio, fato estilístico. A maior parte dos estudos desenvolvidos pela corrente vossleriana situa-se na fronteira entre a lingüística e a estilística, porém eles se empenham em buscar um sentido ideológico significante em toda e qualquer forma lingüística. Em suma, essa doutrina não corrobora com a idéia de estudar a língua de forma isolada de um contexto histórico. O que difere as duas orientações, o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato, é que, para a primeira, as formas normativas, responsáveis pelo imobilismo do sistema lingüístico, não passam de resíduos deteriorados da evolução lingüística, tornadas vivas pelo ato de criação individual e único. Em contrapartida, a segunda orientação trata o sistema de formas normativas como substância da língua. Em outras palavras, para estes, só lhes 41 interessa a lógica interna do sistema de signos, ficando as significações ideológicas que a eles se relacionam, relegados a segundo plano. É conveniente destacar que a mais eficaz expressão do objetivismo abstrato é a conhecida escola de Genebra, com os estudos de Ferdinand Saussurre. Saussurre parte do princípio de uma tríplice distinção entre linguagem (le langage), a língua (la langue) e o ato da enunciação individual (la parole), sendo a língua e a fala os elementos constitutivos da linguagem, pois delas dependem as manifestações físicas, fisiológicas e psíquicas que geram a comunicação. Para Saussurre, a linguagem não pode ser o objeto da linguística por acreditar que ela é heterogênea e que, dificilmente, não se perderá em sua composição contraditória. Assim, Saussurre destaca um caminho metodológico para explicitar, ao seu ver, o verdadeiro objeto específico da lingüística. Para ele, a palavra: “Não há, no nosso entender, senão uma solução para todas estas dificuldades [trata-se das contradições internas da “linguagem” como ponto de partida de sua análise]: é preciso, antes de tudo, instalar-se no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as demais manifestações da linguagem. Com efeito, em meio a tantas qualidades, só a língua parece suscetível de uma definição autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito” (BAKHTIN, 1988) Saussurre distingue linguagem, língua e fala com o intuito de revelar o motivo pelo qual ele não permite conceber a fala como objeto de estudo da lingüística: “Tomada como um todo, a linguagem é multiforme e heteróclita, participando de diversos domínios, tanto do físico, como do fisiológico e do psíquico, ela pertence ainda ao domínio individual e ao domínio social; ela não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos, porque não se sabe como isolar sua unidade.(SAUSURRE, 1857-1913) A língua, ao contrário, é um todo em si mesma e um princípio de classificação. A partir do momento em que lhe atribuímos o maior destaque entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural no conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação (Op. Cit., p. 25). 42 A fala é um ato individual de vontade e de inteligência do interior do qual convém distinguir: primeiramente, as combinações pelas quais o sujeito falante utiliza o código da língua para exprimir seu pensamento pessoal; em segundo lugar, o mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar estas combinações”. (SAUSURRE, 2004). Ao separar a língua da fala, separa-se o que é social do que é individual e o que é essencial do daquilo que é acessório e relativamente acidental. A fala, tal como a entende Saussurre, jamais poderia ser objeto de estudo da linguística porque implica em um ato individual de fala-enunciação, definitivamente rejeitado para os confins da linguística. Já na história da língua, a fala, justamente por possuir este caráter individual e acidental adquire um caráter de soberania, motivo pelo qual se rege por leis que se diferem daquelas que ditam as do sistema da língua. A isso se deve a grande distância entre o fenômeno sincrônico e o diacrônico. Sausurre assim define em Curso de Linguística Geral (1916): “A lingüística sincrônica irá se ocupar das relações lógicas e psicológicas que unem termos coexistentes e formadores de um sistema, tal como eles são percebidos pela mesma consciência coletiva. A lingüística diacrônica estudará, ao contrário, as relações que unem termos sucessivos não percebidos por uma mesma consciência, e que se substituem uns aos outros, sem formar sistema entre si”. (Op. Cit., p. 140; itálicos de Saussurre). Sob a visão objetiva, o sistema sincrônico não corresponde a nenhum momento efetivo do processo de evolução da língua. Para o historiador da língua, que adota uma perspectiva diacrônica da língua, o sistema sincrônico não é real, mas somente uma escala convencional para registrar os desvios que se produzem a cada momento do tempo. Qualquer sistema de normas sociais encontra-se numa posição similar, ou seja, somente existe se relacionado a uma consciência subjetiva dos indivíduos que participam da coletividade regida por estas normas. Na realidade, o locutor serve-se da língua para suas necessidades enunciativas concretas. Em suma, trata-se de utilizar as normas dentro de um determinado contexto concreto. 43 Cabe lembrar que o locutor deve convir que o ponto de vista do receptor tem que ser levado em consideração para que este possa compreender as formas lingüísticas numa enunciação particular. O estudo do discurso citado (discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre) contempla a intersubjetividade, trazendo a questão do “outro” de maneira concreta como dimensão constitutiva da linguagem: o “outro” como discurso e como receptor ativo do discurso de outrem. Para Bakhtin, o que lhe interessa são as relações dialógicas e, para que elas se concretizem, faz-se necessário considerar aspectos contextuais não contemplados pela teoria lingüística. Porém, as relações dialógicas não podem ser separadas da língua, pois tudo o que é dito possui regularidade interna, mas sem jamais reduzir-se a ela. Logo, para que as relações lógico-semânticas se tornem dialógicas faz-se mister que sejam materializadas em um discurso (enunciado). Daí, conclui-se que, apesar de não interessar a Bakhtin o estudo da estrutura linguística em si, ele não o descarta por considerá-lo essencial para o processo de significação do evento enunciativo, seu principal foco. Há, na verdade, três pontos cruciais da teoria bakhtiniana tanto para a crítica feita quanto para a proposta elaborada. O primeiro corresponde à oposição oração/enunciado; o segundo equivale a uma atitude responsiva ativa e o terceiro refere-se à idéia de compreensão ativa. A oposição oração/enunciado se diferenciam porque o primeiro se encarrega de firmar a unidade da língua e, consequentemente, não possui existência real, o que não impede que absorva uma valoração semântica ( a significação). Em contrapartida, o enunciado é uma unidade da comunicação verbal que somente se faz viva se inserida em um determinado momento histórico, apesar de não excluir a oração, já que o enunciado é a realização enunciativa da oração. Para o autor, a oração, ao ser analisada de forma isolada, abstrai-se a possibilidade de dirigir-se a alguém, além de anular também a influência da resposta pressuposta e a ressonância ideológica que remete aos enunciados anteriores do outro. Bakhtin reitera que a compreensão de uma fala viva é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa (que é o segundo ponto da sua teoria). A atitude responsiva ativa pressupõe o princípio dialógico e a noção de alteridade como constitutivos de sentido. O terceiro e último ponto faz menção à idéia de compreensão ativa que explica o fato 44 de todo enunciado originar-se de outro, ou seja, no dito co-existe o já dito, confirmando a tese de que as vozes constituem a consciência do sujeito e que este fala a partir do discurso do outro. Na voz do sujeito percebe-se a consciência (intersubjetividade) que o outro tem dele. O sujeito, em Bakhtin, não passa de uma autoconsciência que se constitui pelo reconhecimento do outro no discurso. O dialogismo acena para um atravessamento de outros discursos, bem como para um atravessamento do sujeito pela alteridade da interlocução. 2. O CORPUS ENQUANTO GÊNERO DISCURSIVO Tende-se a afirmar que Bakhtin tenha apresentado uma primeira formulação teórica que, na atualidade, é questão que se apresenta na pauta das grandes discussões sobre os textos – os gêneros discursivos. Muitas noções da sua teoria foram retomadas por Bronckart. Este, em sua abordagem recorda que desde a antiguidade grega até nossos dias, diante da diversidade das espécies de textos, há uma preocupação com sua delimitação e nomeação que se traduziu na elaboração de múltiplas proposições de classificação, centradas, na maioria dos casos, na noção de gênero do discurso. Para Aristóteles e seus sucessores, a noção de gênero só se aplicava aos textos sociais ou literários com reconhecimento. Porém, ao longo do século XX essa realidade estendeu-se às produções verbais organizadas, sendo elas escritas ou orais, normatizadas ou pertencentes à língua vulgar tomando como ponto de partida as obras de Bakhtin. Daí, conclui-se que qualquer texto observável insere-se em um determinado gênero, pois os homens interagem pela linguagem tanto em uma conversa de bar como ao redigir uma carta pessoal ou uma crônica, novela, poema... (ROJO, 2000). Logo, toda interação se dá em cada esfera de utilização da língua, a partir de tipos relativamente estáveis de enunciados. Bronckart adverte que cada pessoa, em função das circunstâncias do seu desenvolvimento pessoal, foi exposta a um número mais ou menos importante de gêneros, aprendeu a reconhecer algumas características estruturais e experimentou, através de uma aprendizagem social, sua adequação à determinada ação. Bakhtin (1979) compara nossa aquisição de gêneros discursivos à aquisição da língua materna no sentido de que usamos com segurança vários gêneros do rico repertório de gêneros do discurso que possuímos. As formas da língua e as formas típicas de enunciados – gêneros do discurso – introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência juntamente. Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero. 45 Esses gêneros são portadores de um ou vários valores de uso: em uma determinada formação social, um gênero é considerado como mais ou menos pertinente para uma determinada ação de linguagem. Cabe ao agente adequar o gênero à situação de ação. A língua não é um reflexo das hesitações subjetivo psicológicas, mas das relações sociais estáveis dos falantes. Conforme a língua, conforme o contexto apresente tal ou qual objetivo específico, vê-se dominar ora uma forma ora outra, ora uma, ora outra variante de texto. (BAKHTIN, 1929) Bronckart nos orienta a verificar que, a forma como um texto é organizado sofre a influência de dois conjuntos essenciais de fatores: do mundo físico que leva em conta o momento e o lugar de produção, o emissor e o receptor do texto; e do mundo sociosubjetivo, que considera o lugar social do emissor e receptor do texto e o objetivo da interação. De acordo com Bakhtin (1979), cada esfera da atividade humana conhece seus gêneros apropriados, aos quais correspondem determinado estilo, tema e composição. Como se pode observar, os gêneros, segundo Bakhtin (1992, 2000), caracterizam-se por seu conteúdo temático que equivale ao assunto do qual se trata; pelas unidades composicionais (uso lexical mais fixo que garante a estabilidade do gênero) e o estilo. Bakhtin define estilo como o conjunto de procedimentos de transformação e de acabamento do homem e de seu mundo. Tal conjunto determina a relação com o material, com a palavra, cuja natureza deve ser conhecida para poder entender essa própria relação. A partir do entendimento do que venha a ser estilo, é que se pode compreender a forma de ser da linguagem social, histórica e cultural. Para machado (2005), o estilo não se limita na autenticidade de um indivíduo, pois está na língua e nos seus usos historicamente situados. Dessa maneira conclui-se que a concepção de estilo, de acordo com Bakhtin, envolve sujeitos que institucionalizam discursos oriundos dos seus enunciados concretos, de suas formas de enunciação, que fazem história e a ela se submetem. Logo, o particular mantém estreita relação com o coletivo através de diálogos. Desta maneira, por força da dialogicidade, há sempre incidências em relação ao passado e ao futuro. Portanto, torna-se plausível afirmar que a publicidade de hoje resulta do diálogo mantido com a publicidade de ontem e, consequentemente, a de amanhã resultará do diálogo que manterá com a de hoje. A língua escrita corresponde ao conjunto dinâmico e complexo constituído pelos estilos da língua, cujo peso e correlação, dentro do sistema de língua escrita, se encontram num estado de contínua mudança. O estilo é dissoluvelmente vinculado a unidade temáticas 46 determinadas e, o que particularmente importante, a unidades composicionais: tipo de estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre locutor e outros parceiros da comunicação verbal. Os estilos da língua pertencem por natureza ao gênero e, portanto deve basear-se no estudo prévio dos gêneros e sua diversidade. As mudanças históricas dos estilos da língua são indissociáveis das mudanças que se efetuam nos gêneros do discurso. Bakhtin/ Voloshinov (1999, p. 124), antes mesmo de estabelecer o estudo dos gêneros do discurso na obra Estética da Criação Verbal (2000) já haviam dedicado tempo para estudar os gêneros. O ponto de partida da teoria dos gêneros criada por Bakhtin (2000) baseia-se no estudo da natureza do enunciado, nas esferas de comunicação, em situações concretas de produção, pois na concepção bakhtiniana não há como falar em gêneros sem pensar na esfera em que eles se constituem e atuam. Essa teoria nos leva a entender que os gêneros nos fazem enxergar a essência dos enunciados que, por serem criados com propósitos comunicativos específicos, podem ser agrupados e estudados. Bakhtin (2000) associa os enunciados a uma situação material concreta que exige o uso de um determinado gênero que servirá de veículo para a interação entre sujeitos. Assim, ele conclui que existem gêneros específicos para cada esfera de comunicação verbal. A eleição de um gênero ocorre em função da finalidade comunicacional, ou seja, da intenção de quem fala ou escreve em relação a quem se dirige o enunciado. Pode-se afirmar que os enunciados não são meras combinações livres por estarem em condição de submissão ao gênero de discurso estabelecido em função do ato comunicativo. A partir dessa constatação surge a pretensão de observr o diálogo presente entre anúncios publicitários das cadeias alimentícias da Mc Donalds e Burguer King. Para isso, far-se-á um breve percurso sobre o gênero anúncio, seu suporte e suas mudanças lingüístico-formais. 2.1 GÊNERO: ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS Percebe-se uma variação de estilo na publicidade dos séculos anteriores, mais especificamente os XIX e XX, em relação ao atual. Enquanto naqueles se enfatizava um estilo mais estável, prescritivo e normativo, neste se encontra um estilo mias elevado ao estilo familiar, mais detalhista e com a presença de jogos de palavras. Tal mudança é atribuída às mudanças de esferas de produção, de circulação e de recepção. Essas mudanças de estilo 47 implicam mudança no gênero e, consequentemente, geram o surgimento de outros veículos. Bakhtin (2000) reconhece a semelhança do Romance com o gênero propagandístico ao afirmar que ambos admitem introduzir outros gêneros na sua composição, sem comprometer a sua base estrutural, a sua autonomia e sua feição. Cada um desses gêneros que se intercalam no texto propagandístico tem características próprias que acabam alimentando este último. Esses gêneros que compõem o texto propagandístico possuem linguagens que estratificam sua unidade lingüística e o seu plurilinguismo, ou seja, “o discurso de outrem na linguagem de outrem, usadas para refratar as expressões das intenções do locutor/autor” (Bakhtin, 2002). No decorrer da evolução do gênero propagandístico, percebe-se que os gêneros estão em permanente contato com a sociedade de cada época, atuando sempre para atender às necessidades do meio e de sua linguagem, como visto comumente no anúncio. Reiterando a firmação de que não há gênero publicitário puro, (FRANÇOIS, 1988) diz que sua classificação depende de um suporte, além da sua forma de percepção e recepção. As cartas são o gênero precursor dos discursos e dos gêneros presentes no jornal, têm o propósito de agir na formação de opinião pública, já que circulam de mão em mão e em praças públicas. Daí conclui-se que todo gênero atual deriva de outro(s) do passado, numa dinâmica sem fim. Assim, verifica-se a importância de conhecer os suportes dos gêneros para entender o funcionamento destes e a natureza dos enunciados. Para isso, faz-se necessário diferenciar suporte de canal ou meio de condução. Segundo Marcuschi (2003), suporte pode ser definido como “um lócus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação com o intuito de fixar o texto e torná-lo acessível para fins comunicativos”. Simultaneamente, conceitua canal como sendo “um meio físico que veicula, transporta e proporciona a circulação do texto”. Sintetizando, o canal é o condutor do texto enquanto que o suporte é o meio de fixação deste. Torna-se difícil estabelecer relação entre suporte e canal, já que as fronteiras entre ambos estão atreladas à forma de observação. Se tomarmos o jornal como parâmetro, podemos observar que ele pode ser tido como um canal quando visto como um veículo de comunicação de massa, mas também pode ser considerado como um suporte por fixar vários gêneros: crônicas, notícias, charges, informes, anúncios etc. Então, o texto do gênero publicitário/propagandístico varia de acordo com o suporte do qual ele se serve. Nos jornais do século XIX encontramos gêneros publicitários como: A pedido, Edital, Advertência, Anúncios.Com o passar do tempo, a linguagem publicitária foi se moldando aos meios de comunicação usados para anunciar os produtos, substituindo o 48 registro formal antes enfatizado por um mais coloquial. A comunicação publicitária retém sua própria particularidade já que possui uma forma própria de comunicação. Entender essa maneira particular de comunicar, concretizada no material de anúncio publicitário requer um entendimento da lingüística da enunciação. Com essa finalidade colocamos como meta tentar entender o enunciado publicitário como uma forma de comunicação estética especial como fizeram Voloshinov e Bakhtin. Embora exista uma forte relação entre o estudo dos gêneros com a tradição dos estudos literários, o estudo dos gêneros em textos não literários têm se mostrado bastante promissor. 2.2 HISTÓRICO DA MC DONALD’S A McDonald's é uma empresa responsável por uma rede internacional de lanchonetes cuja atividade é conhecida como fast food, sendo a maior do mundo. A expressão também se refere à marca desta empresa, a qual a transcende e revela-se inserida na cultura de massas contemporânea. A rede foi fundada em Abril de 1955, em Illinois, nos Estados Unidos da América. Atualmente ela vende cerca de 190 hambúrgueres por segundo no mundo, além de inaugurar uma nova loja a cada dez horas. Juntamente de marcas como a Coca-Cola o McDonald's é considerado um dos mais disseminados símbolos do capitalismo internacional. Seu produto mais famoso é o lanche conhecido como Big Mac. No Brasil, o McDonald's instalou-se primeiramente em 1979, no Rio de Janeiro, e dois anos depois em São Paulo. Em 2005, as vendas de Big Mac ultrapassaram 53 milhões de unidades. A rede tem 1.146 pontos-de-venda no País e está presente em 21 Estados, além do Distrito Federal. São 544 restaurantes e 602 quiosques, por onde passam cerca de 1,5 milhão de clientes por dia. O McDonald's é um dos maiores empregadores do Brasil, com 34 mil funcionários. A maior parte dos restaurantes McDonald's oferecem os serviços de balcão e drivethru, com mesas em espaço coberto e algumas vezes ao ar livre. O Drive-Thru, Auto-Mac, ou McDrive como é conhecido em alguns países, frequentemente tem espaços separados para parar, pagar e pegar os produtos, mas os dois últimos estão frequentemente juntos. Alguns McDonald's em áreas suburbanas de certas cidades tem grandes playgrounds fechados ou ao ar livre, chamados "McDonald's PlayPlace'" ou "Playland". Estes foram criados principalmente na década de 70 e 80 nos Estados Unidos e mais tarde, internacionalmente. 49 O modelo de negócio da McDonald's Corporation é um pouco diferente da maioria das outras cadeias de fast-food. Além das taxas normais de franquia, recursos, e porcentagem das vendas, McDonald's também recebe aluguel, parcialmente ligado às vendas. Como uma condição do acordo de franquia, a corporação é dona da propriedade nas quais a maioria das franquias se instalam. De acordo com o Fast Food Nation de Eric Schlosser (2001), cerca de um em cada oito trabalhadores nos Estados Unidos foi, em algum momento empregado pelo McDonald's. O livro também afirma que o McDonald's é o maior operador privado de playgrounds nos Estados Unidos, assim como o maior comprador de carne de boi, carne de porco, batatas e maçãs. Tudo começa quando, no ano de 1937, os irmãos Dick e Mac McDonald abrem uma barraca de cachorro-quente chamada de Airdome em Arcadia, Califórnia. Em 1940 os irmãos mudam a barraca Airdome para San Bernardino também na Califórnia, onde eles abrem um restaurante McDonald´s na Rota 66, em 15 de Maio. O cardápio se baseava em 25 itens, a maioria deles churrasco. O primeiro hamburguer McDonald´s custou US$0,15. E como era comum na época, contrataram 20 carhops, garçons que em cima de patins, entregavam o pedido do cliente no carro. Isso se tornou popular e muito lucrativo. Em 1948, depois de notar que a maioria do dinheiro que eles ganhavam vinham dos hamburgers, os irmãos fecharam o restaurante por diversos meses para criar e implantar um inovador Sistema de Serviço Rápido, uma espécie de montagem em série para os hamburgers. Então os carhops perderam seus empregos. Quando o restaurante é re-aberto ele passa a vender somente hamburgers, milkshakes, e batatas fritas, se tornando um extremo sucesso, cuja fama é espalhada de boca a boca. Em 1953 os irmãos McDonald começaram a criar franquias de seus restaurantes, com Neil Fox abrindo sua primeira franquia. O segundo restaurante foi aberto em Phoenix, Arizona. Ainda neste mesmo ano o quarto restaurante foi aberto em Downey na Califórnia, hoje o mais velho restaurante em funcionamento. No ano de 1955, Ray Kroc funda o "McDonald's Systems, Inc." no dia 2 de Março, uma estrutura legalizada para suas planejadas franquias. E ainda abre, em 15 de Abril, no subúrbio de Chicago, em Des Plaines, Illinois, o nono restaurante da marca. Somente no primeiro dia o total de vendas é de $366.12. A literatura da companhia costuma se referir a essa data como o "início" da empresa, que já tinha quinze anos, tirando os irmãos McDonalds da história dando maior valor ao "fundador" Kroc. A empresa ainda chama a este restaurante 50 de McDonalds "número 1". No ano de 1960 Kroc muda o nome de sua empresa para McDonald's Corporation. No ano seguinte, os irmãos McDonald concordam em vender a Kroc os direitos de negócio da sua companhia por US$ 2,7 milhões, uma soma que Kroc conseguiu sob empréstimo de vários investidores (incluindo a Universidade de Princeton); Kroc acha a soma extremamente alta, e corta relações com os irmãos McDonald. O acordo permite aos irmãos manter seu restaurante original, mas, por um descuido, eles não retêm o direito de continuar uma franquia do McDonald's. Foi renomeado como "The Big M" ("O Grande M"), mas Kroc levou-o à falência, construindo um McDonald's a apenas uma quadra ao norte. Se os irmãos mantivessem o acordo original, que os dava direito a 0.5% da receita bruta anual da cadeia, eles e seus herdeiros estariam ganhando mais de US$ 100 milhões hoje em dia. O McDonald's tem sido alvo de muitas críticas ao longo dos anos. Entre várias delas, alega-se que a produção de seus produtos causa danos ecológicos, o excesso de embalagens descartáveis e as grandes áreas de pastagens podem incluir-se entre os fatores de dano ecológico; a comida não é saudável, tendo elevado nível de gordura e açúcar. Tem um apelo às crianças com o palhaço Ronald McDonald, mascote da empresa, e outros personagens (Birdie, Shaky, e Papaburger), atraindo-as e condicionando-as ao consumo dos lanches, criando hábitos não saudáveis que tendem a se manter com a idade. Por ser o maior representante do fast-food, este hábito de consumo está entre as causas do grave problema da obesidade, principalmente nos EUA. O filme Super size Me, um documentário onde um homem come durante um mês apenas produtos do McDonald's, sofrendo graves prejuízos a sua saúde, é bastante crítico em relação ao fast-food em geral, e ao McDonalds em especial. Mas apesar de todas estas negativas, o Mc Donald’s continua agradando e inovando. Em uma de suas últimas campanhas publicitárias a empresa ousou colocando-a novamente como alvo de críticas ferrenhas. Em todo o mundo o Mc Donald’s caracteriza-se por oferecer um cardápio padrão, apesar de serem desenvolvidos em cada cultura, produtos especiais que se ajustam ao gosto de cada comunidade. Como por exemplo, em alguns restaurantes da Alemanha costuma-se oferecer cerveja; vinho nos franceses; macarrão oriental no Extremo Oriente; queijo, verduras, salsichas e pizzas no Canadá; molho de abacate no México e assim sucessivamente. O palhaço Ronald McDonald - uma das imagens de marca da Corporação McDonald's - é tomado como paradigma para pensarmos as relações entre mercado, mídia e entretenimento, as quais tem uma ligação direta com o que estamos conceituando como "socialidade midiática". Enquanto uma metáfora ideal de uma propaganda que parece não 51 querer mais fazer sentido, a história do palhaço nos permite desvendar os sentidos contidos em duas das principais práticas do marketing moderno, a propaganda e a publicidade, revelando-nos como, entre o nonsense da propaganda contemporânea e uma publicidade que fundiu realidade e ilusão, há uma relação visceral entre mídia e publicidade, que estabelece uma nova forma de comunicação, na qual o sujeito torna-se apenas um meio para fins que ele sabe quais são, mas, paradoxalmente, age como se não soubesse. Tal paradoxo é revelador de uma forma de subjetividade profundamente marcada pela mídia enquanto agente socializador, na medida em que a atuação da mídia como mediador da socialidade contemporânea acabou por alterar o nosso universo perceptivo, saturando o nosso imaginário de uma forma radicalmente nova. Some-se a isso o fato de que a "socialidade midiática" implica uma nova forma de representação do sujeito no registro do "espetáculo", no sentido de que "estar na imagem é existir". Desnecessário dizer o quanto essas questões precisam ser contempladas pelos estudos contemporâneos sobre os processos de socialização e o quanto são desafiadoras para aqueles que atuam no universo da educação. O que se está querendo dizer é que, depois de décadas de artimanhas por parte dos relações públicas e de exageros promocionais da mídia, e depois de mais outras tantas décadas de constante martelação por parte das inúmeras forças sociais que nos alertaram, a cada um de nós, pessoalmente, para o poder da performance, a vida virou arte, de tal forma que as duas são agora indistintas uma da outra. (NEAL GABLER,1999 ) Entre tantas imagens de marca do McDonald's, a escolha do clown Ronald McDonald, para tratar de questões ligadas à sociedade do entretenimento e à mídia, não foi à toa. A história do palhaço remete-nos aos primórdios da televisão e a uma nova forma de anúncio comercial eletrônico, dois fenômenos que estão profundamente imbricados com a idéia de "entretenimento". 52 Ronald surge na década em que a sociedade americana já era definida como "sociedade do entretenimento" (Gabler, 1999), "do lazer" (Morin, 1990), "do espetáculo" (Debord, 1997), daí o palhaço poder ser tomado como uma figura emblemática de uma era marcada pela busca incessante de diversão. Cada um dos autores enumerados acima trata de tecer um panorama sobre esse novo modelo social, privilegiando um recorte histórico e analítico, seja enfocando a concepção material contida em termos como o "espetáculo"; seja abordando a noção de um novo "tempo livre" a ser preenchido pelo lazer; ou, finalmente, revelando a maneira como o entretenimento tornou-se uma forma de escape, pelo qual investe-se toda uma vida. Por trás de conceitos e enfoques como estes, há um único que os aglutina: o de "sociedade/cultura de consumo". Esse é o denominador comum - explícito ou não - em cada uma das análises que procura historicizar e caracterizar a sociedade contemporânea, que também ganhou a conotação mais atual de "sociedade das imagens". Torna-se fundamental a explicitação desse ponto porque a sociedade de consumo constitui-se na gênese a partir da qual esses conceitos emergem, a ponto de tornarem-se, aparentemente, sinônimos, embora o que eles ofereçam sejam diferentes perspectivas de leitura de uma realidade social que tornouse extremamente complexa. Na impossibilidade de esgotarmos todas essas análises em um único trabalho, detenhamo-nos nos aspectos para os quais a história de Ronald nos conduz, pois eles estão mais diretamente relacionados com as questões que envolvem mercado, mídia e entretenimento, das quais emerge o que foi chamado de "socialidade midiática". Como já dito, Ronald é cria da televisão, e uma análise interna à construção dessa imagem de marca, pelos idos dos anos 1960, nos revelou por que e como esse período ficou conhecido como aquele que forjou a "sociedade das imagens". Essa é a década em que o consumo de aparelhos de televisão se massifica. Com isso, não estou apelando para o aspecto "midiático" do espetáculo, no sentido de uma "referência exclusiva à tirania da televisão ou de meios análogos". Pelo contrário. Assume-se a visão de espetáculo contida em Guy Debord (Jappe, 1999, p.19) de acordo com a qual é o "funcionamento dos meios de comunicação... [que] expressa perfeitamente a estrutura de toda a sociedade de que fazem parte". Apesar de sutil, a diferença é profunda. E, para entender a dinâmica interna ao meio TV, nada melhor do que uma boa "espiada" naquilo que a sustenta, qual seja, o anúncio comercial eletrônico. E não é por acaso que nos anos da popularização da TV também se vê surgir uma nova forma de propaganda. Pela história da criação de Ronald McDonald, podemos entender como 53 começavam-se a se estreitar as relações entre sociedade, televisão e propaganda. A história de Ronald começa na década de 1960, quando um certo franqueado da rede McDonald's decidiu patrocinar um programa televisivo da época chamado O Circo do Bozo. Por esse tempo, Ronald nem sequer existia. Era o popular palhaço Bozo quem anunciava os produtos McDonald's junto às crianças - telespectadores do programa. Foi a partir do Bozo que surgiu a idéia do McDonald's criar o seu próprio palhaço e, já em 1965, Ronald torna-se o "personagem de marca" para as campanhas nacionais e, posteriormente, internacionais, do McDonald's (Love, 1996). Embora pela época do surgimento do palhaço a marca McDonald's já dispusesse de um símbolo forte como os seus "arcos dourados", os estrategistas de marketing alegaram que a televisão exigiria um novo formato de imagem - um símbolo que pudesse transmitir o discurso da marca de uma forma mais dinâmica e, consequentemente, mais divertida. Veicular um anúncio como um divertimento era um desafio de todas as grandes marcas da época, e isso só pode ser compreendido se entendermos que isso se deu em razão do lugar que a televisão passou a ocupar na sociedade americana. Por um lado, as mudanças na forma de se veicular o anúncio tiveram a ver com transformações internas ao próprio meio publicitário, quais sejam, a necessidade urgente de diferenciação em relação à concorrência, em função de uma superprodução de mercadorias cada vez mais parecidas entre si no que se refere a aspectos como qualidade e utilidade. Certamente, a televisão passou a oferecer muito mais opções para que se desse essa diferenciação por imagens, por causa das características próprias desse meio eletrônico, que permite contar histórias condensadas em segundos. Mas as transformações provocadas - ou intensificadas - pela TV eram mais profundas. A televisão é produto do que eu chamei de "tempo do fast-food", um tempo que originou uma sociedade mais dinâmica, mais móvel e, também, mais voltada para os prazeres imediatos. E se a televisão é produto dessa sociedade, ao mesmo tempo esse meio começa a interferir profundamente na maneira como essa mesma sociedade passa a perceber a realidade. Para entendermos melhor isto, basta nos determos um pouco nas análises que Walter Benjamin (1996) fez sobre o cinema, que têm muito a nos esclarecer sobre a relação do homem com as imagens televisivas. Benjamin preocupou-se em entender como se dava a recepção das imagens eletrônicas, imagens que estavam em constante mudança e que impediam o telespectador de se fixar em qualquer uma delas. A exposição constante a tal forma de imagens poderia, segundo o autor, gerar transformações radicais nas estruturas perceptivas, resultando em processos como o distanciamento diante dessas imagens que se dão a ver. 54 Como tão bem apontou Kaplan (2000, p. 140), "podemos dizer com segurança que, nos contextos capitalistas, as tecnologias acompanham de perto (ou têm uma relação circular com) as mudanças sociais". Pois foi diante das mudanças tecnológicas e sociais elencadas acima que os "criadores de imagens" se viram em face de novas oportunidades e desafios em termos do ritmo e forma a se imprimir ao anúncio comercial eletrônico. Esse é o momento no qual a propaganda que apela para as características e benefícios de um produto cede espaço para a sua imagem. Chegara a época em que as campanhas publicitárias teriam que vender, "não o bife mas o chiado... não as latas de sopa, mas a felicidade familiar" (Hobsbawm, 1995, p. 496). Daí porque, em vez de anunciar hambúrgueres fumegantes, o McDonald's decidiu investir na figura do palhaço, buscando associar sua imagem de marca a um ideal de entretenimento que deveria começar na própria propaganda e se confirmar no interior da lanchonete, onde a "experiência McDonald's" deveria ser, de fato, uma experiência de diversão. Fiquemos um pouco, ainda, no interior da propaganda que, em decorrência das mudanças provocadas na e pela TV, passa a apelar para uma forma "divertida" de anúncio. Interessaria, antes de mais nada, a história que ela iria contar, como se isso fosse um filme independente, como se, por trás, não houvesse um produto a ser vendido. Bastava, apenas, a retratação de situações nas quais a marca poderia ser associada positivamente a um certo modo de vida. Essa nova forma de anúncio comercial passou a predominar a partir dos anos 1960 e radicalizou-se de tal forma, a ponto de, a partir dos anos 1980, dar-se início ao que alguns autores consideraram ser a "perda de sentido" da propaganda. No campo dos autores externos ao território do marketing, temos no francês Gilles Lipovetsky (1989) uma das análises mais fecundas sobre o assunto. Baseando-se nas propagandas vigentes, esse autor constatou que, de fato, a propaganda não queria mais fazer sentido. Certamente, tudo começou quando a propaganda passou a desvincular o produto de sua imagem, até chegar ao ponto em que isso ganhou uma dimensão do absurdo, de propagandas que parecem falar mal de si mesmas, de gozar do produto ou, muitas vezes, de nem sequer anunciar o próprio produto que a marca veicula. O importante, apenas, é que a marca estivesse presente em meio a essas "cenas do absurdo". É como se a marca ganhasse vida própria, a ponto de ela poder aparecer em qualquer situação, por mais sem lógica que essa pudesse parecer e, mesmo assim, estivesse acima de qualquer uma dessas situações. Finalmente, é como se a marca nos dissesse que é ela que importa. E que ela sabe que nós sabemos disso. 55 Por si só, isso já seria suficiente para pôr por terra uma das leituras críticas aos meios de comunicação de massa - especialmente a TV -, qual seja, a de que eles têm o poder de iludir o seu telespectador. Ao abolir o registro da ilusão, a propaganda estaria nos expondo claramente as regras desse "jogo do faz-de-conta", do qual parece que participamos de bom grado e com bom conhecimento de causa. Mesmo assim, aquilo que Benjamin um dia chamou de "aura" parece persistir na marca. Embora exposta em suas entranhas, por algum motivo ela seduz, ela encanta. Resta entender por que e como se dá esse paradoxo. 2.2.1 PUBLICIDADE E SOCIALIDADE MIDIÁTICA DO MC DONALD’S Insistindo em entender esse paradoxo a partir da história da marca McDonald's, constatou-se que o encantamento da marca só pode ser compreendido se captarmos o verdadeiro papel que a publicidade exerce na atualidade. Antes de mais nada, convém esclarecermos a diferença crucial entre propaganda e publicidade que, muitas vezes, são tidas como palavras sinônimas. Baseada na literatura do marketing, "propaganda" é o anúncio comercial pago, enquanto a "publicidade" seria a veiculação do nome de uma marca em notícias "reais", aquelas que são transmitidas pela "mídia-realidade", qual seja, a mídia de notícias, de informação. Claro que isso exige um trabalho bem pago de relações-públicas, mas a idéia é fazer com que o acontecimento seja o mais "natural" possível. E a marca McDonald's é uma prova viva dessa prática. De caso pensado ou não, a força da publicidade já era evidente na época em que o McDonald's era apenas um drive-in. A história dos drive-ins nos mostra como eles floresceram especialmente na Califórnia e tiveram uma forte relação com o cinema, na cidade de Los Angeles. Dessa maneira, os drive-ins souberam colar-se nas imagens das grandes estrelas que paravam em seus estabelecimentos para comerem um hambúrguer. É bom lembrar, também, que o McDonald's surge pelas mãos de dois irmãos que buscaram a sorte no cinema e, diante da impossibilidade de êxito nessa área, passaram a investir no ramo de alimentação. Dessa maneira, essas formas peculiares de entretenimento e alimentação começaram de mãos dadas e caminham juntas até hoje, a ponto de tornarem-se dois dos três maiores e mais rentáveis negócios americanos da atualidade, especialmente para exportação (Jameson, 2001). A partir dos anos 1950 - já na gestão de Ray Kroc, o grande disseminador da marca McDonald's -, a relação entre marca e publicidade profissionaliza-se de fato. Kroc contratou uma agência de relações públicas para cuidar da "imagem" do McDonald's. Não por acaso, os 56 proprietários dessa agência também cuidavam da carreira de grandes estrelas hollywoodianas. Com o seu feeling para o marketing, Kroc percebera que estava na era das imagens, daí ele declarar que não estava no negócio de hambúrgueres, mas no show business! Com essa frase, Kroc nos revela os pilares que sustentam a concepção de espetáculo: vender matéria - no sentido preciso do termo - revestida de imagem: o importante não é vender hambúrgueres, mas atitudes ligadas ao hambúrguer. O importante é vender cultura: a cultura do fast food. O importante era - e é - vender, seja algo concreto ou pura imagem - e é nisso que consiste o que eu chamo, aqui, de cultura material. Embora não pretenda negar ou esconder essa lógica, a publicidade a torna muito sutil; melhor dito, glamouriza relações tão "chãs", especialmente porque essas imagens se colam a outras imagens que estão, essas sim, impregnadas de significados, gerando o quê, para parafrasear Arnaldo Jabor (1999), eu chamo de "fetichização do fetiche". Só para dar um exemplo: quando se candidatou à presidência dos Estados Unidos, Bill Clinton, em plena campanha eleitoral, parou para lanchar no McDonald's, obviamente, devidamente acompanhado pela mídia. Na época, os analistas de marketing definiram que "recado" Clinton pretendia passar com aquele gesto: mostrar-se um presidente popular, retratando "a diversidade racial e cultural da nova América" (Randazzo, 1996, p. 244). O fato de um candidato ao cargo de presidente da nação mais importante do mundo se colar a uma marca popular para passar tal mensagem é um exemplo singular do poder de transmutação de uma marca, que se dá a partir da relação entre publicidade e mídia. Explico: num momento, as marcas fazem uso de pessoas e eventos para poder constituírem suas imagens; num outro, são essas pessoas e eventos que se colam às marcas para falarem de si mesmas; melhor dito, de como gostariam de ser vistas. Por isso mesmo, a melhor maneira para uma marca se constituir e se manter é se colando a imagens de "celebridades", enquanto, inversamente, essas celebridades se alimentam das imagens de tais marcas. E se alimentam não só no sentido simbólico, como também material, já que não é mais segredo para ninguém o quanto "gente famosa" se veste, se alimenta, se exercita, vai ao médico, ao dentista, enfim, vive "concretamente" a partir de "doações" de marcas famosas, pelo simples fatos de essas marcas poderem ter seus nomes e imagens associados a tais "celebridades". E, como nos mostra muito bem Gabler (1999, p. 15), ainda que o estrelato, seja qual for sua forma, confira celebridade automática, é muito provável que hoje em dia ela seja concedida 57 igualmente a gurus de dietas milagrosas, a estilistas e a suas chamadas top models, a advogados, políticos, cabeleireiros, intelectuais, empresários, jornalistas, criminosos - qualquer um que calhe de ser captado, ainda que efemeramente, pelos radares da mídia tradicional e que, por isso, sobressai da massa anônima. O único pré-requisito é publicidade. Trata-se do "elemento de identificação" que deve envolver a platéia para que aquilo que ele veicula possa ser consumido. E é o fato de estarmos numa sociedade onde há essa possibilidade de qualquer um, por uma razão qualquer, tornar-se um "elemento de identificação" - mesmo que num tempo muito efêmero - que gerou aquilo que Gabler chamou de "pseudo-vida". O conceito de "pseudo-vida" de Neal Gabler é uma referência imediata ao de pseudoevento, de Daniel Boorstin. E é exatamente nos anos 1960 que Boorstin se dá conta desse fenômeno: trata-se de eventos forjados, não espontâneos, algo criado, planejado com uma função bem específica: atrair os olhares da mídia. Nesse sentido, sua ocorrência é arranjada em função do meio de divulgação ou de reprodução da notícia e seu sucesso é medido pela amplitude com que é noticiado. Para ilustrar como isso se daria no campo comercial, Boorstin nos dá o exemplo de um proprietário de hotel que consulta um profissional de relaçõespúblicas e pergunta-lhe como poderia melhorar o prestígio do seu estabelecimento e expandir seus negócios. Boorstin vai dizer que, "em tempos menos sofisticados", a resposta deveria ter sido uma proposta de se contratar um novo chefe, melhorar o encanamento, pintar os quartos ou instalar um candelabro de cristal no lobby. Mas a técnica de relações-públicas é mais sutil. O profissional de RP propôs que se celebrasse o aniversário de trinta anos do hotel, chamando a atenção para o serviço que aquele hotel havia prestado à comunidade. Essa celebração deveria ser fotografada e a ocasião amplamente noticiada nos jornais. Assim, Boorstin vai dizer que essa ocasião constitui-se num pseudo-evento, embora ela não tenha sido totalmente falsa (Boorstin, 1992, p. 9-10). À fusão de mídia e publicidade corresponde, por sua vez, um sujeito performático. Interessa, antes de tudo, a representação da vida. Daí a razão de Gabler ter ido mais além na concepção de pseudo-evento de Boorstin para conceituar a pseudo-vida. Ele considera que a grande maioria das pessoas já "percebeu que o objetivo de praticamente todo mundo que ocupa dessa ou daquela forma a vida pública é atrair a mídia e que todo mundo, de atores famosos a pais de sete gêmeos, precisa de um agente para sua promoção". Nesse sentido, quase "tudo na vida se apropriou das técnicas de relações-públicas para poder ter acesso à mídia, de modo que não eram mais os pseudo-eventos que estavam sendo discutidos, quando se falava na habilidade dos relações-públicas; era a pseudo-vida". Por fim, "à medida que a 58 vida estava sendo vivida cada vez mais para a mídia, esta estava cada vez mais cobrindo a si mesma e a seu impacto sobre a vida" (Gabler, 1999, p.96-97). 2.3 HISTÓRICO DA BURGUER KING A mediados do século XVII, um anônimo e exitoso açougueiro de Madri decidiu emigrar aos Estados Unidos da América de um momento a outro por estar sendo investigado pela Santa Inquisição devido a suas repetidas denúncias a esta mesma instituição, sobre judeus e mouros que não aparentavam pertencer a tais denominações. Isso foi acrescido do fato de que o enterrador oficial desta organização religiosa era o cunhado do açougueiro. Está documentado que o anônimo açougueiro, chamado Bernardo Kantalapiedra, funda seu primeiro restaurante de comida rápida 10 anos depois da sua chegada aos Estados |Unidos de América, nas imediações do rancho e da cárcere estatal de Texas de George W. Bush. Os princípios do restaurante foram difíceis, a abolição nesta época da pena de morte, unido ao fato de que o único que a praticava era Walt Disney em afamadas snuff-movies, tais como "Bamby", "O Rei Leão", impediu Bernardo de tirar proveito do seu negócio. Assim se passaram várias gerações de Bernardos e, sem lugar a dúvida o êxito original das receitas de carnes do precursor da saga recolhiam as claves do êxito culinário que estava por vir. Logo, a princípios do século XX, quando a sociedade norteameriacana, gratamente influenciada pelos vistosos filmes da Disney, empurra seus governantes a recuperar a pena de morte, toda a saga Kantalapiedra, se removeu em seus túmulos (gerando um pequeno seismo que em São Francisco empurrou o carro de Steve McQueen), ansiosa de obter a revanche de tantos anos sem matéria para impulso a sua arte. Fiel à tradição, Bernard Stonesinger, o último da saga, estava casado com a irmã do prefeito de Bush Park, a cárcere-rancho já citada. Porém, apesar da matéria prima ser de primeira qualidade, o êxito dos hambúrgueres e pedacinhos de frango a milanesa do restaurante não paravam de chegar. Mas desta vez não tiveram que esperar muito. Em 1899, Tomas Alba Edison inventa o canudo elétrico. E, seu ajudante, ao ir trocálo, o canudo se fundiu por causa de um aumento de tensão de União Fenosa levando-o a morte entre gritos e forte cheiro a carne queimada sob a descarga de 35 volts. Edison, homem de mente aberta, entendeu que a eletricidade poderia ter mais funções além da de iluminar o mundo e que a Feira de Abril de Sevilla poderia ser vista desde a Lua e, rapidamente patenta seu uso como sistema indolor de fazer justiça no estado do Texas. 59 Desde a instalação da cadeira elétrica, os churrascos servidos nos restaurantes Burger King têm suficiente êxito, motivo de preocupação para a concorrência. Bernard logo que consegue suficientes benefícios, decide expandir-se e abrir filiais de seu restaurante por todo o mundo, mas sempre nas imediações de centros penitenciários. Ele muda o nome do restaurante e, consequentemente o da cadeia, utilizando as iniciais do fundador da saga BK, inventa o Burger King e o Burri Kins, este último para os restaurantes de comida ainda mais rápida, mas de uma categoria inferior. Atualmente a cadeia é dirigida por Bernard Stonesinger XVIII, que filantropicamente patrocina um programa de intercâmbio P2P: el "e-Burri", assim como as campanhas políticas de George W. Bush, com quem possui negócios de distribuição de matéria prima alimentícia via aérea, desde o Oriente Médio até alguns dos países consumidores de suas especialidades. Paralelamente ao nascimento de Burri Kins, decide construir também um restaurante de comida rápida baseado no pus de milhares de jovens com acne e ratos texanos os quais seriam sua fórmula secreta. O local se chamaria "Maradonal" em homenagem a um conhecido menino, mas por pressão de George Bush de enviar jovens a Irak para conquistar o mundo com porcaria e estupidez, decide trocar o nome para "macdonal", em honra ao tio rico Mac Pato da Disney. Nisto, Bernardo, angustiado pela sua competência, decide contratar milhões de taiwaneses e chineses para criar a inovação do momento, brinquedos com diferentes formas dentro de caixas para chamar a atenção das crianças e adultos, os quais pela sua má manipulação deveriam mandar até um boi ao banheiro. Com isso, Mc donald’s também decide fazer o seu. O Burger King foi fundado por James W. McLamore e David Edgerton, dois homens que tinham experiência no ramo de restaurantes e acreditavam no conceito simples de oferecer refeições rápidas a preços razoáveis, em 1954 no subúrbio da cidade de Miami. O primeiro restaurante originalmente chamado Insta Burger King, estava localizado no endereço 3090 N.W. 36th Street, e vendia hambúrguer e milkshake por 18 cents, oferecendo ainda dois tamanhos de refrigerantes. Três anos mais tarde, em 1957, foi lançado o famoso sanduíche WHOPPER custando apenas 37 cents, e que se tornaria o carro-chefe da rede Burger King. Em 1961 os direitos de franchising nacional e internacional começaram a operar. Dois anos depois, a rede inaugurou seus primeiros restaurantes internacionais em Porto Rico, e em 1975 sua primeira loja na Europa, localizada na cidade de Madrid. Em 1983 resolve investir nas faculdades, abrindo sua primeira loja no campus da Northeastern University em Boston. A década de 90 começa com o lançamento do programa Burger King Kids Club, que recebeu 60 mais de um milhão de inscrições em seus primeiros dois meses. Em 1993 a rede inaugura seu primeiro franchising na Arábia Saudita. No ano seguinte foram inauguradas suas primeiras lojas em Israel, Oman, Rep. Dominicana, El Salvador, Peru e Nova Zelândia, contribuindo para a rede atingir 7.600 restaurantes em 56 países. A rede anuncia, em 1999, uma grande reformulação em suas lojas e no logotipo da marca, começando na cidade de Reno, estado de Nevada. Somente em 2004 a rede chegou ao Brasil. O Whopper, sanduíche composto por um grande hambúrguer acompanhado de maionese, alface, tomate, cebola, picles e ketchup representa para o Burger King o que o Big Mac representa para o McDonald’s. Segundo a rede existem cerca de 1.024 maneiras de se pedir o sanduíche. O Whooper vende mais de 2 bilhões de unidades por ano. Em 1975 foi implantado o sistema de Drive-thru. Este serviço representa hoje cerca de 60% do faturamento da empresa e funciona até o período da noite. Em 1983 é lançado o Burger Bus, primeiro restaurante móvel do Burger King no estado de Ohio. O Salada Bar é lançado nacionalmente e em 1985 o café da manhã é lançado em todas as lojas da rede com o CROISSAN’WICH (sanduíche composto por uma espécie de embutido, ovo e queijo em um croissant) como produto chave, além da estréia do serviço de self-service de bebidas. O lançamento do CHICKEN TENDERS (deliciosos empanados de peito de frango acompanhados de molho), além das French Toast Sticks que se tornarem disponíveis nacionalmente acontece em 1986 e no ano seguinte o Bagel Sandwich, um sanduíche no pão de baguete é introduzido. As batatas fritas Hotter, Crispies e Tastier são introduzidas amparadas por uma campanha publicitária que custou US$ 70 milhões e em 1998 ocorre a introdução do cardápio Great Taste, que possui itens que custavam 99 cents. Entre os 7 itens originais oferecidos estavam o WHOPPER Jr., Chicken Tenders com 5 pedaços, bacon cheeseburger, batata frita média, refrigerante médio, onion rings (rodelas de cebola fritas) médio e milkshake pequeno. Hoje em dia este cardápio é chamado de BK Value Menu e contém itens que custam de 99 cents a US$ 1.50. Também é acrescido ao cardápio o BIG KING, sanduíche composto de 2 hambúrgueres, molho, salada, cebola, picles e dois pedaços de queijo. O produto foi descontinuado nos Estados Unidos, mas é vendido em outros países como Brasil, Turquia, Espanha, Alemanha, Canadá e Dinamarca. Em 2002 surgem o Chicken WHOPPER (versão do tradicional sanduíche feito de frango) e o Chicken WHOPPER Jr (versão menor e direcionada para o público infantil), 61 primeira extensão da linha dos sanduíches WHOPPER são lançados nos Estados Unidos. Esta linha de sanduíche foi substituída pela BK Baguette, introduzida em 2004. O ANGUS BURGER, um hambúrguer enorme feito com carne do gado Angus é introduzido nacionalmente nos Estados Unidos. O sanduíche era servido com alface, tomate, maionese, cebola e um molho especial. Atualmente pode ser encontrado na Inglaterra, Canadá, Espanha e Itália, onde se chama Big Boss Burger. Também neste ano foi introduzido o TenderCrisp, um sanduíche a base de frango. Em 2005 são introduzidos novos produtos como Enormous Omelet Sandwich (um sanduíche do cardápio do café da manhã feito com bacon, pedaços de frios, ovo e queijo americano), uma nova linha de saladas e uma marca própria de café chamada BK Joe. Em 2009 o Burger Bing estrea um novo conceito com o cruzamento entre restaurante e bar: o Whopper Bar. O formato compacto, ocupando um terço da área normal de uma lanchonete da rede, foi desenvolvido para locais em que o espaço é limitado, como aeroportos, cassinos, praias, barcos de cruzeiro e eventos esportivos. O cardápio dessas lojas será menor que o usual e estará focado em diversas variações do sanduíche carro-chefe, o Whopper; e em itens “grab-and-go”, para oferecer mais conveniência a consumidores sem tempo. E o primeiro lugar onde será instalado o Whopper Bar, é dentro do complexo CityWalk, no Universal Studios em Orlando (Flórida) no mês de fevereiro. O Burger King pretende abrir 20 desses ‘cruzamentos’ nos Estados Unidos e pensa em exportar essa idéia em breve para a Europa, Ásia e América Latina. O primeiro logotipo da marca Burger King não estava associado ao principal produto da empresa: Hambúrguer. O logotipo era um meio sol, possivelmente em homenagem a ensolarada Miami, cidade onde a empresa nasceu, com o nome Burger King em laranja. Em 1969 surgia o famoso “Bun Halves”, um logotipo que continha o nome da marca entre um pão de hambúrguer. Ele foi criado para significar uma estreita relação com o hambúrguer, principal produto da marca. Este logotipo foi modernizado em 1994. Foi substituído em 1999, quando foi lançado o logotipo atual, chamado “Blue Swirl”. Em 2001, o novo logotipo já era dotado por todos os restaurantes e produtos da marca. Desde o primeiro slogan Burger King, HOME OF THE WHOPPER, passando pelo primeiro comercial de televisão em 1958, até a primeira grande promoção, criada pela agência de publicidade BBDO em 1968, com o famoso slogan The Bigger The Burger The Better The Burger, a marca sempre primou por campanhas criativas e de grande sucesso. A mascote da rede Burger King, um simpático Rei, foi introduzida em 1955 como 62 parte do letreiro da primeira loja inaugurada pela rede na cidade de Miami. Pouco depois o Rei começou a aparecer sentado em um trono de hambúrguer. Nas décadas de 60 e 70 o personagem ganhou animação e começou a aparecer em comerciais voltados para o público infantil. O personagem só voltaria a entrar em cena no ano de 2003 em uma campanha publicitária desenvolvida pela agência Crispin Porter + Bogusky de Miami. E o “THE KING”, como é chamado atualmente a mascote, voltou com força total fazendo um enorme sucesso, principalmente junto ao público infantil. O lançamento de uma máscara, com a caricatura do personagem, virou uma verdadeira febre nos Estados Unidos. A rede conta com 11.565 restaurantes (75% deles localizados nos Estados Unidos) ao redor do mundo, estando presente em 71 países, empregando 340 mil funcionários (incluindo as lojas franqueadas) e faturando quase US$ 2.5 bilhões. A cada ano são consumidos 2 bilhões de hambúrgueres, apenas em seus restaurantes nos Estados Unidos. O Burger King é atualmente a segunda maior rede de alimentação rápida dos Estados Unidos, ficando atrás somente do McDonald's. No entanto, a rede tem perdido mercado nos últimos anos e estimase que vá perder o segundo lugar para a Wendy's, outra tradicional rede de fast-food. A loja de Budapeste, Hungria, é a maior da rede em termos de tamanho. Já o restaurante localizado na maior altitude está em La Paz na Bolívia (3.000 metros acima do nível do mar). Outra curiosidade é que a rede mantém um restaurante dentro do aeroporto de Bagdá no Iraque, além de três unidades móveis para atender as tropas americanas na região. - Adotando a mesma postura agressiva na mídia, como é utilizada nos Estados Unidos, a campanha de inauguração da Burguer King em solo brasileiro estreou fazendo comparações diretas ao McDonald’s nas propagandas. Os comerciais incluíam frases provocativas como 63 “abaixo a ditadura” e a “concorrência está frita”, além de dizer que as três primeiras lojas na capital paulista ficavam ao lado ou na frente do McDonald’s. Baseando-se nesta perspectiva é que centraremos toda a análise deste trabalho, a fim de mostrar o dialogismo instaurado entre estes anúncios publicitários da Burguer King e a Mc Donald’s. Nosso ponto alvo será a campanha agressiva que a empresa já fez para mostrar a relação de dialogicidade existente entre estes discursos, provando que o sentido de um não existiria sem a presença do outro. 2.4 METODOLOGIA E O CORPUS O processo de constituição do corpus desta pesquisa surgiu do interesse detectado através da observação de anúncios eletrônicos e impressos da cadeia de fast food Burguer King ao utilizar uma postura agressiva na mídia como forma de apelo para chamar a atenção dos consumidores. Isso talvez tenha se dado pelo fato de ter chegado ao Brasil numa data bem posterior à da Mc Donald’s, seu principal concorrente que ocupa o primeiro lugar no mercado mundial de comida rápida, fazendo com que a Burguer King se regesse de quaisquer meios para atrair olhares. O gênero escolhido para esta pesquisa, como visto, foi o anúncio publicitário. Tais anúncios circularam nas traseiras dos ônibus, anúncios eletrônicos, out-doors, panfletos, banners entre outros suportes e canais que constituíam a campanha publicitária do Burguer King, chamando a atenção do concorrente para poder conseguir aparecer. Algumas propagandas da Mc Donald’s também fazem parte do corpus desta investigação com o intuito de comparar a linguagem por elas utilizadas a fim de verificar se esta cadeia alimentícia também faz uso de uma mídia agressiva como a Burguer King, além de podermos observar se elas mantém relação dialógica com outros discursos. Os textos foram selecionados no site www.google.com.br , salvos posteriormente em CD-room e no disco rígido. A seleção se deu por meio de uma triagem em que o critério adotado foi selecionar os anúncios publicitários da campanha publicitária da Burger King ao chegar ao Brasil, mais especificamente aqueles que faziam uso da mídia agressiva, contra o seu concorrente, a Mc Donald’s. Em seguida classificamos alguns anúncios veiculados pela Mc Donald’s, na mesma época, com o intuito de verificar se havia respostas dadas Burger King, utilizando-se dos mesmos recursos. Foram coletados cinqüenta anúncios , sendo trinta da Burger King e vinte da Mc Donald’s. Dos cinqüenta, selecionamos os doze que melhor 64 demonstravam as marcas de heterogeneidade propostas por este trabalho e, no caso da Burger King, tratamos de eleger aquelas que faziam uso da propaganda agressiva contra seu concorrente. Desses doze, oito correspondem a anúncios da campanha da Burger King e quatro a propagandas da Mc Donald’s, revelando que esta não utiliza os mesmos recursos que aquela. Esses anúncios foram selecionados porque demonstram as marcas de heterogeneidade propostas por esta pesquisa, revelando o diálogo instaurado entre ambas as redes de comida rápida, além de diálogos mantidos com outros discursos, estabelecendo uma intertextualidade e comprovando que um discurso remete-se a outros já antes instaurados. 3. A HETEROGENEIDADE MOSTRADA E CONSTITUTIVA Sendo assim, temos que iniciar este capítulo ressaltando a teoria defendida por Authier-Revuz chama a atenção para o fato de que, passar da consideração da língua – concebida como fechada sobre si mesma- à consideração do discurso significa deixar de lado um domínio homogêneo, em que a descrição é da ordem do “um”, por um campo duplamente marcado pelo “não-um”, em razão da heterogeneidade teórica que o atravessa. Segundo Authier-Revuz (1982) há a necessidade de recorrer a campos extralinguísticos para explicar fatos da língua e por isso refere duas maneiras pelas quais a alteridade se manifesta no discurso: a “heterogeneidade mostrada” e a “heterogeneidade constitutiva”. Com o intuito de explicar o que chama de “heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso, a autora apóia-se no dialogismo bakhtiniano e na psicanálise freudolacaniana.O dialogismo bakhtinianao afirma que a interação com o discurso do outro constitui a base de qualquer discurso. Esse dialogismo pode ser visto como “diálogo entre interlocutores “ e como “diálogo entre discursos”; lembrando que o primeiro não se reduz ao diálogo face a face, pois para o autor, a comunicação vai além da mera transmissão de mensagens. Ela se constitui em uma relação de alteridade.. O segundo retrata a idéia de um discurso constituído pelo atravessamento de vários discursos, ou seja, são as palavras carregadas de vozes que se entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre si no interior do texto. Authier-Revuz recorre à psicanálise freudo-lacaniana pela dupla concepção que apresenta de uma fala fundamentalmente heterogênea (polifonia encontrada através da 65 emissão de uma única voz) e de um sujeito dividido. Em suma, a autora concebe o outro como condição constitutiva do discurso. Em 1995, Authier-revuz retoma aquestão das heterogeneidades sob a denominação de não-coincidências. Ela mantém a referência a Lacan e ao dialogismo bakhtiniano, acrescentando a este a noção de interdiscurso de Pêcheux. O domínio do interdiscurso diz respeito à presença de um não-dito, sem fronteira localizável que sempre já constitui o discurso. Embora a referência feita a Bakhtin e a Pêcheux aparentem recobrir o mesmo campo do já-lá que preexiste ao sujeito e ao discurso; Pêcheuz não recorre ao dialogismo bakhtiniano quando busca seguir a direção das heterogeneidades apontadas por Authier-Revuz. Esta apela a Pêcheuz em razão dos limites que ela encontra na teoria bakhtiniana para o estudo dos fatos enunciativos que propõe. Por mais que a autora reconheça a riqueza da abordagem dialógica, esbarra na indiferença que Bakhtin sugere à língua como ordem própria e ao inconsciente, já que não ressalta a psicanálise no seu horizonte. A pesquisa de Authier-Revuz inscreve-se no conjunto de estudos sobre a capacidade que a linguagem tem de autoexplicar-se, ou seja, de ser sua própria metalinguagem. Seu ponto de apoio, neste empreendimento, é a descrição semiótico-linguística fornecida por ReyDebove (1978) a respeito das formas da metalinguagem natural, mais especificamente, aquelas da estrutura complexa da conotação autonímica, através da qual a menção duplica o uso que é feito das palavras. No seu texto de 1982, a autora diz que “o locutor faz uso das palavras inscritas no fio do seu discurso e, ao mesmo tempo ele as mostra”, ou seja, ele passa a ser um utilizador e um observador das suas próprias palavras e, o fragmento, desta maneira designado, marcado por aspas, itálico, uma entonação ou qualquer forma de comentário, recebe, em relação ao resto do discurso, um outro estatuto. Cabe aqui explicar o significado de autonímia/conotação autonímica. Segundo ReyDebove, basta tomar um signo e falar sobre ele que teremos uma autonímia. Por exemplo, em “a palavra “sábio” tem duas sílabas”, o locutor faz “menção” e não “uso” da palavra “sábio”, configurando-se um caso que caracteriza a autonímia por autodesignação do signo. Authier-Revuz, em sua tese especifica, dentro do grande conjunto das formas de reflexibilidade metalinguística, o subconjunto da reflexibilidade do dizer sobre ele mesmo que singulariza as formas da modalidade autonímica, destacando três propriedades pelas quais elas podem ser descritas: 1) formas enunciativas, isoláveis como tais na cadeia, 66 caracterizando-se por referir um segmento que aí está dado; 2) formas estritamente reflexivas que correspondem ao desdobramento, no quadro de um ato único de enunciação, do dizer de um elemento por um comentário simultâneo desse dizer, que se dá nos limites da linearidade e 3) formas opacificantes da representação do dizer, em qual o elemento da enunciação ao qual elas aludem é um fragmento da cadeia que associa significado e significante – bloqueando a sinonímia- e não somente um conteúdo que poderia ter um sinônimo. A autonímia, em sua estrutura semiótica implica a irredutibilidade – a nãotransparência- do significante, ou seja, a opacificação. Ao utilizar o termo opacificação, as duas autoras, Authier-Revuz e Rey-Debove referem-se à oposição transparência/opacidade. Récanati, por sua vez, diferencia a concepção saussureana de “signo” da concepção clássica com o intuito de enfatizar que Saussure ressalta o semiótico em sua teoria do signo enquanto que fica delegado à teoria clássica elevar o semântico. Ele se foca no signo semântico, no duplo sentido, no “duplo destino dos signos”: a transparência e a opacidade. O signo é como um vidro que permite ver algo além dele mesmo e essa transparência ocorre pela sua capacidade de representar a coisa significada sem ele mesmo se refletir nessa representação. Porém, o signo também pode tornar-se opaco quando não remete a nada além dele mesmo, ou seja, podemos tratá-lo como coisa, mencioná-lo, olocá-lo entre aspas, opacificando-o. Podemos admitir que a idéia de negociação está presente na teoria de Authier-Revuz dedse o texto de 1982. Não se pode afirmar que a heterogeneidade mostrada é um espelho, dentro do discurso, da heterogeneidade constitutiva, todavía não se pode isolá-las comoi se pertencessem a realidades independentes, pois são obrigatoriamente solidárias e articuladas. O sujeito, ao acreditar que é o centro de sua enunciação, mas que não é capaz de livrar-se da heterogeneidade que o constituiu, abre em seu discurso um espaço para o não-um, através de um processo que busca revelar o caráter homogêneo do que, na realidade, é heterogêneo em sua essência. Em suma, as formas da modalidade autonímica de Authier-Revuz dividem a enunciação em dois territórios: o da coincidência que trata do uso standard das palavras e o da não-coincidência, isto é, aquele que “sente” um problema e em função disso não pode deixar a palavra funcionar sozinha. Essas formas remete à negociação obrigatória dos enunciadores com as não-coincidências ou as heterogeneidades que, constitutivamente atravessam o dizer, representando então um ponto de não-um na produção de sentido. Authier-Revuz é uma linguista que, por convocar pensamentos de Pêcheux, Bakhtin, 67 Freud e Lacan, acaba atuando na fronteira da linguística com outros saberes. Apoiada sobre esses pilares, Authier-Révuz introduz a concepção de heterogeneidade enunciativa e a classifica em dois tipos a fim de dar conta dos diversos fenômenos discursivos: a heterogeneidade mostrada e a constitutiva. A primeira – mostrada - analisa as marcas explícitas, formais do dialogismo, ou seja, as formas do discurso relatado, os enunciados metadiscursivos, que podem ser comentários da sua própria enunciação. Por sua vez, a heterogeneidade mostrada se divide em marcada e não marcada. As primeiras estabelecem o lugar do outro, por meio de uma marca como ocorre no discurso direto, indireto, na citação, no inciso etc. As segundas são reconhecidas por seus efeitos polifônicos: discurso indireto livre, ironias, referência intertextuais, paráfrases, parodia etc. Essas marcas articulam-se com o outro tipo de heterogeneidade, a constitutiva, não marcada na superfície, mas possível de ser definida pela interdiscursividade, pela relação que todo discurso mantém com outros discursos o que corresponde ao dialogismo fundamental da linguagem. A heterogeneidade mostrada, segundo Bakhtin e alguns dos seus seguidores postula uma análise dinâmica da interação entre o discurso de outrem e o contexto, no qual ele aparece, para compreender as posições dos sujeitos que podem ser aliados ideologicamente, adversários, portadores de verdade, de erro etc. o que se revela na heterogeneidade constitutiva da língua. A autora propõe, então, dois tipos de enunciados: aqueles que mostram a heterogeneidade, com marcas explícitas, e aqueles cujas marcas não são mostradas. Como exemplo de heterogeneidades mostradas e marcadas, temos as glosas enunciativas. Como exemplo de heterogeneidade mostrada, mas não marcada, temos a ironia, a imitação etc, que conta com o “outro dizer” sem explicitá-lo, para produzir o seu sentido. Enquanto isso, a heterogeneidade constitutiva defende que todo enunciado se insere na interseção de duas redes de formulações: a) uma horizontal que se ocupa de outras formulações no intradiscurso de uma seqüência discursiva e b) e outra vertical onde algumas formulações são dominadas pela mesma formação discursiva (homogêneas) e outras às quais o enunciado pode se opor (heterogêneas). Esta última corresponde aos “já-construídos” ou “já-ditos”, ou seja, pertencentes ao plano de memória de outros discursos pré-existentes. Resta-nos aqui, revelar e estudar como essa interação favorece compreender melhor o texto publicitário. 3.1 HETEROGENEIDADE MOSTRADA 68 Quando nos remetemos à heterogeneidade do discurso, queremos tornar claro o funcionamento que representa uma relação radical entre seu “interior” com o seu “exterior”. Na verdade, em se tratando de práticas discursivas, devemos atinar para a sua característica mais fundamental que é a heterogeneidade. En se tratando da heterogeneidade mostrada, ela incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de enunciação. O levantamento e a classificação das marcas de heterogeneidade representam uma tarefa talvez impossível , logo trataremos de mostrar uma série de mecanismos que parecem destacar-se nos estudos da AD. Authier-Revuz (1984) distingue no conjunto das formas de heterogeneidade mostrada as formas maracadas, explícitas no discurso como a polifonia, a ironia, a pressuposição, a negação, o discurso relatado (discurso direto, indireto), as aspas, as glosas e a parafrasagem, por exemplo) e as formas não-marcadas, em que o outro é dado a conhecer sem uma marca unívoca como o discurso indireto livre, a citação de autoridade, o provérbio, a imitação e o pastiche, por exemplo. O discurso relatado (discurso direto e indireto) são manifestações muito clássicas da heterogeneidade enunciativa. O discurso direto se caracteriza pela aparição de um segundo locutor no enunciado, associado a um anterior. Diferencia-se do discurso indireto por pretender, ingenuamente, reproduzir literalmente as alocuções citadas. Porém, ele não pode ser considerado mais fidedigno que o discurso indireto. Trata-se apenas de formas distintas de relatar uma enunciação. Se um locutor se contenta em transcrever de forma idêntica as alocuções de um terceiro, ao invés de garantir pessoalmente a verdade do posto, concluimos que ele não é capaz de subscrever o posto por não confiar muito na sua própria verdade. Ocultar-se atrás de um terceiro é uma maneira hábil de sugerir o que se pensa sem se responsabilizar por isto. Segundo Maingeneau (1990), nada garante que no estilo direto a objetividade seja maior . O discurso citado somente tem existência por meio do discurso que o cita. Esse constrói como quer (em estilo direto ou indireto) um simulacro da enunciação citada (MAINGENEAU, 1990). Pode-se, por uma contextualização particular, por uma segmentação ou outro recurso, desvirtuar completamente o sentido das palavras do outro. O discurso direto apenas supostamente repete as palavras do outro. Os enunciados relatados em discurso direto são postos entre aspas para marcar sua alteridade. As palavras aspeadas são atribuídas a um outro espaço enunciativo cuja responsabilidade o locutor não quer assumir. Este espaço corresponde a um espaço enunciativo exterior, isto é, de uma outra formação discursiva. Segundo Authier-Revuz, as 69 aspas são capazes de manter os termos por elas destacados à distância e constituem sempre um sinal a ser decifrado pelo interlocutor, já que o locutor se exime da responsabilidade de atribuir-lhe um sentido ao que foi dito. Na verdade, o locutor usa as aspas para proteger-se antecipadamente de uma crítica do leitor, que, supostamente, esperará uma distanciamento frente uma determinada palavra, mas poderá, igualmente, não colocá-las para frustrar as expectativas e provocar um choque semântico. Maingeneau afirma que uma formação discursiva se estabelece entre dois limites: um discurso totalmente entre aspas, do qual o locutor não assume responsabilidade alguma, e um discurso sem aspas que não estabelece relação com o seu exterior. Ressaltamos que a heterogeneidade enunciativa não está ligada somente à presença de vários sujeitos dentro de um mesmo enunciado; ela pode resultar também da construção de diferentes níveis no interior do seu próprio enunciado, criado pelo locutor. Este é momento de reconhecer os múltiplos fenômenos que resultam das glosas que acompanha o que o locutor diz. O sujeito cuja imagem é criada pelas golsas corresponde a um sujeito que domina um discurso e que oferece este domínio em espetáculo. Como chama a atenção Authier-Revuz, assiste-se assim, à dupla afirmação da unidade da formação discursiva; ela faz acreditar que é possível circunscrever a indeterminação do discurso, o erro, o deslizamento, ao mesmo tempo que determina, por diferença, um interior, o do discurso que, ao significar seus pontos de divergência com seu exterior, marca seu próprio território em campo. Em relação a esse tipo de heterogeneidade, cada discurso apresenta uma caracterização que lhe é peculiar. Alguns destes discursos estão carregados destas marcas, enuanto outros não as exibem. É o caso dos discursos que Bakhtin chama de “monológicos”, que se apresentam como homogêneos como por exemplo, o discurso científico e o poético. A linguagem do poeta é a sua linguagem sem aspas, por assim dizer. Desde seus primórdios a AD teve uma relação essencial com a paráfrase. Pechêux revela que as palavras, expressões e proposições literalmente diferentes podem “ter o mesmo sentido” no interior de uma formação discursiva dada. Parafrasear consiste em colocar-se em uma posição de exterioridade relativa face sequência de seu próprio discurso; nessa concepção “ a presença de um marcador de reformulação parafrástico conduz à conclusão de que existem problemas ou obstáculos à comuniação”. Mas, há de convir que a reformulação parafrástica também é um meio de superar tais obstáculos em tudo que depende da compreensão, das hipóteses dos interlocutores quanto aos conhecimentos ou às capacidades intelectuais dos outros, as suposições que fazem sobre o conhecimento partilhado etc. 70 A parafrasagem é, na verdade, um meio de dizer de outra forma “ a mesma coisa” para substituir uma equivalência preexistente, ela define uma rede de desvios cuja figura cria a identidade de uma formação discursiva. Porém, nenhuma parafrasagem é discursivamente neutra, nem produz um sentido de dicionário. Até então nos preocupamos em considerar fenômenos cuja heterogeneidade enunciativa estava relacionada a marcas explícitas, sejam elas linguísticas ou tipográficas, Todavía, cabe chamar a tenção para o fato de que nem sempre ocorre desta maneira, pois a heterogeneidade deve ser, por vezes, reconstruída a partir de índices variados; é o caso, particularmente, do discurso indireto livre ou da ironia que examinaremos a seguir. Torna-se bastante difícil conferir com segurança o estatuto de discurso indireto livre. Isso está atrelado ao fato de possuir a propriedade de relatar fazendo ouvir duas vozes diferentes inextricavelmente misturadas, se queremos fazer menção a Bakhtin ou, dois “enunciadores” se segundo Ducrot. O discurso indireto livre se localiza precisamente nos deslocamentos, nas discordância entre a voz do enunciador que relata as alocuções e a do indivíduo cujas alocuções são relatadas. O enunciado não pode ser atribuído nem a um nem ao outro e não é possível separar do enunciado as partes que dependem univocamente de um ou de outro. Somente o contexto pode esclarecer se o enunciado trata-se de discurso indireto livre, pois esse tipo de discurso mistura elementos do discurso direto com os do indireto. È muito comum não se ter segurança do lugar exato onde ele começa e termina porque é muito provável que a voz do narrador se misture à da personagem, sem que se possa distinguir com clareza se se trata de um ponto de vista que equivale que equivale a um ou a outro. Em um enunciado irônico, por exemplo, ecoa uma voz que diverge da do locutor, pois destaca-se a voz de um enunciador que expressa um ponto de vista insustentável. Cabe ao locutor apenas assumir as palavras do enunciador, embora não queira admitir tal responsabilidade. Segundo Maingueneau (1984), a ironia é um gesto dirigido a um destinatário. Alguns autores a vêem como um gesto agressivo, outros como um gesto neutro e até mesmo como uma atitude defensiva, que se destina a mostrar certas sanções ligadas às normas da instituição da linguagem. O interesse estratégico da ironia consiste nos valores contraditórios do enunciado irônico, numa armadilha que permite o “desassujeitamento do locutor”. Diferentemente da negação pura, a ironia é um recurso por meio do qual se pode rejeitar um enunciado sem utilizar um operador desta natureza. Torna-se difícil identificá-la. Isso requer a utilização de outras ferramentas como o uso exacerbado de hipérboles, 71 explicitação de uma entonação (“falou com tom irônico”), uso de aspas, de ponto de exclamação ou reticências que auxiliem na identificação de uma ironia. Nem sempre os fenômenos enunciativos em que o locutor exime-se da responsabilidade das falas que profere dizem respeito à rejeição. Muitas vezes o distanciamento estabelecido corresponde, na realidade, a uma adesão. A citação de autoridade é um exemplo que esclarece essa realidade, pois o locutor apenas se apaga perante o posicionamento de um “Locutor superlativo” que garante a validade da enunciação. Geralmente correspondem a enunciados já instaurados em uma coletividade e por isso gozam do privilégio da intangibilidade. A citação de autoridade pode chegar ao estatuto de slogan. Muito recorrido pelas campanhas políticas, nas propagandas de governo, o slogan está ligado a práticas e a ações, a um só tempo, como diz Maingueneau, “impulsiona e engana”. O slogan presume a ausência de um enunciador e consegue alcançae seu objetivo quando o enunciatário tem a impressão de ser ele mesmo enunciador. Da mesma maneira, a citação de autoridade também pode chegar ao status de provérbio que, para Mangueneau, não pertence a discursos particulares, porém à própria língua, ao dicionário dessa, por isso, quando um locutor cita as “verdades imemoriais” de um provérbio, ele não o faz por um lugar reconhecido apenas por uma determinada coletividade, mas pelo conjunto de falantes da língua do qual o locutor que cita faz parte. Mangueneau classifica em captação de um gênero; captação de um texto singular e de seu gênero; subversão de um gênero e subversão de um texto particular e seu gênero como sendo os quatro tipos de imitação. Na captação o locutor se beneficia da autoridade ligada à enunciação imitada; enquanto que na subversão, ele procura arruiná-la, desqualificando-a, por meio do próprio movimento de imitação. A imitação não se confunde com a paródia já que esta é usada de forma depreciativa. Entre os autores clássicos ocorreu uma prática de imitação muito frequente. Para estes, imitar não significa plagiar, mas acomodar a experiência deles à realidade contemporânea. Gêneros, temas, textos eram transpostos e acomodados a uma outra época porque se acreditava na idéia de que tais temas eram eternos e sensibilizariam os homens de qualquer tempo. Quando o falante se apaga perante a presença do locutor de um gênero determinado do discurso e mostra o que faz, poderá pretender beneficiar-se da autoridade ligada a esse tipo de enunciação ou arruiná-la. No primeiro caso, diz-se que há captação e a imitação incide sobre a estrutura explorada. No segundo, quando há subversão, se assemelha à ironia, mas seus 72 objetivos são claramente diferentes: enquanto a ironia anula o que anuncia no próprio ato de enunciar, a subversão mantém uma distãncia entre duas fontes de enunciação que ela hierarquiza. A imitação não pode ser tida como um fenômeno periférico. Os sujeitos reconhecem e produzem enunciados que pertencem a esta ou aquela formação discursiva. Não é suficiente afirmar que um conjunto de textos baseados em certas hipóteses podem ser dispostos em uma mesma formação discursiva. Faz-se necessário também, compreender de que maneira, em um determinado lugar, um conjunto de autores produzam enunciados similares e partilhem um conhecimento tácito das fronteiras de uma formação discursiva, sabendo as limitações do que pode ou não falar. Torna-se útil saber se tal imitaçao é resultante de uma impregnação passiva lenta que desencadeia a repetição de diversas dimensões da discursividade ou se isto ocorreu pelo acesso a um sistema de princípios dotado de uma grande generalidade que permitirá produzir e interpretar enunciados inéditos em situações inéditas como dependentes do “mesmo” discurso. Em relação a esse assunto, o modelo que nos oferece a prática do pastiche pode colaborar a refletir. O pastiche deveria poder figurar entre as obras do corpo que imita, mas que le seja reconhecido como tal, seu autor e, levado, frequentemente, a introduzir índices de distanciamento. Ora, a própria possibilidade do pastiche, o fato de poder produzir novas obras do mesmo tipo a partir do conhecimento de outras, supõe uma certa competência a interiorização das regras que governam este gênero. 3.2 HETEROGENEIDADE CONSTITUTIVA Buscamos até aqui examinar algumas formas que podem ser mobilizadas por um discurso para marcar sua relação com o seu exterior, mas não é suficiente identificar diversas formas de rompimento no tecido de uma formação discursiva, pois é também em um nível constitutivo que esta se relaciona com o interdiscurso. Não se trata, contudo, de absorver os discursos em algum interdiscurso indiferenciado, mas de avançar na reflexão sobre a identidade discursiva. No domínio da semiótica literária, Gérard Genette (1979) coloca em primeiro plano as relações intertextuais e se interessa pelos fenômenos de hipertextualidade, isto é, por toda relação que une um texto B (hipertexto) a um texto anterior A (hipotexto). Para melhor entender, Maingueneau (1987) esclarece o conceito de intertexto de uma formação discursiva, como o conjunto de fragmentos que ela efetivamente cita. Gèrard Genette atesta também a 73 descoberta dos trabalhos do círculo bakhtiniano que fazem do dialogismo e da relação com o Outro, o fundamento de toda discursividade. Courtine presume uma reflexão sobre a identidade das formações discursivas e, em um artigo escrito com Marandin, ele critica a posição da AD quando esta demonstra a vontade de aprender o idêntico. De fato, uma formação discursiva não deve ser concebida como um bloco compacto que se oporia a outros, como por exemplo, o discurso socialista contra o discurso capitalista, mas como uma realidade heterogênea por si mesma. O que está em questão é a relação mantida com o interdiscurso; é preciso definir uma formação discursiva a partir do seu interdiscurso, e não o contrário: O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma Formação Discursiva é conduzida [...] a incorporar elementos préconstruídos no exterior dela própria; a produzir sua redefinição e seu retorno; a suscitar igualmente a lembrança de seus próprios elementos; organizar sua repetição, mas também a provocar eventualmente seu apagamento, o esquecimento ou denegação. Maingeneau, 1987) Podemos afirmar que a formação discursiva pertence a um domínio inconsistente, aberto, instável, e não a projeção, a expressão imutável da visão de mundo de um grupo social. Nesta perspectiva, revelam-se errôneas as duas concepções mais correntes da relação entre discurso e interdiscurso: a que considera o discurso como um objeto isolado face a um exterior não especificado e a que afirma implicitamente a existência prévia de contrários individuados na relação contraditória , deve-se preferir aquela que coloca o primado da contradição, que une e divide ao mesmo tempo os discursos, que faz da própria individuação, um processo contraditório. Dito de outra forma, toda formação discursiva está associada a uma memória discursiva, constituída a partir de formulações que se repetem em uma constante, em um eterno processo de transformação. Às diferentes formulações possíveis de enunciado no interdiscurso, Courtine chama de redes de formulações. O conjunto de redes associadas a uma formação discursiva representa o processo discursivo inerente a esta formação discursiva. O interdiscurso domina cada formulação particular, fixa o que ela fala e o sujeito que a garante. Logo, toda formulação estaria colocada na intersecção de dois eixos: o “vertical” que corresponde ao pré-construído, ao domínio de memória e o “horizontal”, da linearidade do discurso que oculta o primeiro eixo porque o sujeito que enuncia é produzido como se 74 interiorizasse de forma ilusória o pré-construído que sua formação discursiva impõe. O domínio de memória representa o interdiscurso. A esse domínio de memória Courtine associa duas outras instâncias: o domínio de atualidade que corresponde às sequências que se apóiam ou se refutam diante de um acontecimento de uma dada conjuntura e o domínio de antecipação que equivale às enunciações posteriores que são antecipadas pelo discurso. Este último domínio tornou-se fundamental porque se o discurso já existe, pode-se afirmar que ele continuará existindo sempre, numa roda viva sem fim. Recorreremos a três definições que completarão a noção de interdiscurso: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. O universo discursivo pode ser entendido como um conjunto de formações discursivas diversas que coexistem e interagem em uma dada conjuntura. Quando uma tal noção é utilizada é para recortar os campos discursivos. O campo discursivo, por sua vez, se define como um conjunto de formações discursivas que se encontram em relação de concorrência, em sentido amplo, e se delimitam por uma posição enunciativa em uma dada região. O espaço discursivo delimita um subconjunto do campo discursivo, ligando pelo menos duas formações discursivas que, supõe-se, matem relações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos discursos considerados. Este discurso é definido pelo analista de acordo com os objetivos de sua pesquisa. Não é por simples comodidade que determinados subconjuntos são recortados (porque seria difícil apreender um campo discursivo em sua totalidade), mas também e sobretudo porque uma formação discursiva dada não se opõe de forma semelhante a todas as outras que partilham seu campo: certas oposições são fundamentais, outras não desempenham diretamente um papel essencial na constituição e preservação da formação discursiva. Geralmente não é do interesse dos analistas dos discursos estudar as relações entre campos e se detêm mais no limite de um campo determinado. A partir do momento que afirmamos que a AD preocupa-se com o funcionamento dos discursos, não queremos dizer que ela procura reduzir à unidade todas as formações discursivas de uma conjuntura, nem muito menos em transformá-la em uma verdade absoluta, nem visa multiplicar a relações entre os campos sem hierarquizá-los. Em cada situação uma formação discursiva dada é associada a determinados trajetos interdiscursivos e não a outros, caracterizando assim a sua especificidade. Trataremos então de abordar a problemática da interdiscursividade constitutiva. O 75 estabelecimento de redes de formulações baseia-se em Pechêux quando toma a órbita da análise automática do discurso e constrói se corpus no interior do discurso político. Em contrapartida, apresentaremos aqui um modelo focado em um discurso religioso e proporemos um sistema de operações semânticas que pretende dar conta das diferentes dimensões da interdiscursividade. Apesar de testar nitidamente que os objetos e propósitos destas duas abordagens se diferem entre si, também não podemos deixar de assumir a relação que existe entre ambas. A AD é capaz de fazer coexistir de forma conflitante teorias com pressupostos metodológicos e teóricos diversos, voltados para este ou aquele tipo de corpus. De acordo com a teoria selecionada, a primazia do interdiscurso recorrerá a procedimentos diversificados. Na teoria aqui escolhida, sustentar que o espaço pertinente para as regras é da ordem interdiscursiva consiste em propor ao analista o interdiscurso como objeto e fazê-lo apreender a interação entre formações discursivas. Isto implica que a identidade discursiva está construída na relação com o Outro. Não se separará em partes o espaço discursivo e deixar as formações discursivas por um lado e suas relações por outro, porém trataremos de mostrar que todos os elementos são retirados da interdiscursividade. Mesmo na ausência de qualquer marca de heterogeneidade mostrada, a unidade de sentido estará fundamentada na relação essencial com a outra, aquela do ou dos discursos em relação aos quais o discurso de que ela deriva define sua identidade. Logo, podemos concluir que uma formação discursiva pode ser lida em seu “direito” e em seu “avesso”. Numa face significa que pertence ao seu próprio discurso, na outra, marca a distância constitutiva que o separa de um ou vários discursos. Dizer que a interdiscursividade é constitutiva é também dizer que um discurso nasce de um trabalho sobre outros discursos. Tal interação entre dois discursos, baseada em uma relação de reciprocidade pode ser entendida como um processo de “tradução” generalizada, ligada a uma “interimcompreensão”. Porém, essa tradução não equivale àquela que é feita entre línguas naturais, mas de uma formação discursiva a outra, entre zonas de uma mesma língua que, apesar de escritas em um mesmo idioma, “não falam a mesma língua”. Desta maneira, quando uma formação discursiva faz penetrar seu Outro em seu próprio interior sob forma de citação, ela está apenas “traduzindo” o enunciado deste Outro, interpretando-o através de suas próprias categorias. Em um espaço discursivo considerado, o sentido não é imutável, como uma verdade absoluta, “incompreensão”, mas construído resultante do no mal intervalo entendido entre posições ocasional enunciativas. A se transforma em 76 “interincompreensão”. Este processo de duplas traduções abre espaço para entender o mecanismo polêmico. Cada uma das formações discursivas do espaço discursivo só pode traduzir como “negativas”, inaceitáveis, as unidades de sentido construídas pelo seu Outro, pois é por essa rejeição que cada um define sua identidade. Uma formação discursiva opõe dois conjuntos de categorias semânticas: as reivindicações “positivas” e as “negativas”, recusadas. Denominaremos como discurso agente àquele que assume a função de tradutor e de discurso paciente àquele que é traduzido. Temos que destacar a alternância que esses discursos assumem, ora como agentes, ora como pacientes. Esta representação da polêmica não pressupõe que a própria noção de oposição entre duas formações discursivas seja unívoca. O discurso constrói, em um mesmo movimento, sua identidade e sua relação entre os discursos, os quais lhe permitem estabelecê-la. Ao mesmo tempo em que algumas formações discursivas se estabelecem, mantendo certa indiferença em relação àquelas que compartilham um mesmo campo, outras parecem estar constantemente envolvidas em controvérsias. Tomar um discurso à parte, considerá-lo como adversário, responder a um ataque são gestos que têm conseqüências consideráveis e não podemos negligenciar sua eficácia. Também é preferível distinguir dois níveis de apreensão: o dialogismo constitutivo e o dialogismo mostrado, sendo o primeiro capaz de definir as condições de possibilidade de uma formação discursiva no interior de um espaço discursivo, enquanto o segundo diz respeito à interdiscursividade manifestada. Alertamos para que não se reproduza o erro que cometem as análises lexicais fora de contexto. Como em um discurso a palavra por si só não tem primazia, porém a maneira como ela é explorada, da mesma forma, um ponto em debate não poderia estar dissociado do modo como este debate é tecido. Tampouco devemos reduzir o discurso a uma doutrina, já que em uma polêmica, todas as dimensões de uma discursividade podem estar implicadas. A polêmica não se instaura de imediato; ela só se legitima ao aparecer como a repetição de uma série de outras que definem a própria “memória polêmica” de uma formação discursiva. As diversas memórias polêmicas recorrem a um tesouro cuja linha de partilha são incessantemente deslocadas. Quando um discurso novo emerge, ele faz emergir com ele uma redistribuição destas memórias. Porém, um discurso supões mais que uma memória de controvérsias que lhe são exteriores. Com o passar do tempo, essa memória de controvérsias vai se solidificando através das sucessões de gerações de enunciadores que perpetuam as enunciações correspondentes 77 àquela memória, criando uma memória polêmica interna. Assim, podemos dizer que o discurso é mobilizado por duas tradições: a que o funda e a que ele mesmo instaura. No decorrer dos anos, torna-se inevitável que parte da tradição interna alcance o mesmo estatuto da primeira, ganhando “autoridade” suficiente para as produções de seus enunciadores. Isso ocorre como uma cadeia cíclica que vai dando surgimento a novas memórias num processo sem fim. O exercício da polêmica presume a partilha do mesmo campo discursivo e das leis que lhe estão associadas. É preciso desqualificar o adversário porque ele se constitui exatamente da mesma memória discursiva daqueles que assumem uma postura de concordância, mas de maneira deformada, invertida, consequentemente, inaceitável. Concluímos que, independentemente de tratar-se de bom senso, de partido, de justiça, do interesse do país, etc, deve existir um referencial comum que legitime a figura de algum tribunal supremo. Infelizmente, cada formação discursiva está destinada a apropriar-se deste tribunal, do qual constrói uma representação correspondente a seu próprio universo de sentido. 4.2. A ANÁLISE Se levarmos em consideração apenas a imagem da propaganda acima, não nos remeteria a marca alguma, posto que as características apresentadas nos sanduíches de diferentes cadeias alimentícias de comida rápida são por demais similares para diferenciá-las 78 através do produto em si. Esta campanha publicitária da Mc Donald’s torna-se identificável apenas pela logomarca dos dois arcos de ouro que constituem a letra M que identifica a marca que se institucionalizou diacronicamente. O fato do enunciador eximir-se da responsabilidade dos fenômenos enunciativos, como é o caso deste anúncio, não significa dizer que ele os rejeita, este distanciamento pode significar uma adesão. Tal adesão pode ser revelada pela citação de autoridade que imprime o slogan desta marca que apaga a presença de um locutor perante um “Locutor superlativo” que garante a validade da enunciação. Neste caso, essa relação de superioridade é estabelecida pela presença de um slogan que já encontra-se instaurado em uma coletividade e por isso gozam do privilégio da intangibilidade. A propaganda centra-se em uma necessidade básica do homem, a mais vital, que é o ato de alimentar-se. De forma muito bem pensada, traz a imagem de um bebê mamando em um sanduíche da Mc Donald’s que adquire forma de seio para forjar o ato da amamentação, fazendo um parâmetro entre a vida e a morte, ou seja, ou se amamenta ou se morre de fome, ou se come Mc Donald’s ou não sobrevive. Esse parâmetro entre a vida e a morte nos remete à necessidade de sobrevivência e confronta-se com outras vozes sociais reveladas pelos dados que comprovam a realidade do nosso país em que, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 1999 havia 14,5% da população brasileira vivendo em famílias com renda inferior à linha de indigência e 34,1%, com renda inferior à linha de pobreza. Isso corresponde, respectivamente, a 22 e 53 milhões de pessoas. Temos milhões de famílias com renda domiciliar per capita inferior a meio salário mínimo por mês. Isso nos remete à ironia da propaganda ao querer comparar o sanduiche Mc Donald’s com o aleitamento materno, pois se o sanduiche em questão fosse uma necessidade básica como trata a propaganda, os índices de pobreza apontados anteriormente aumentariam consideravelmente visto que muitas famílias não teriam condições financeiras de adquirir o produto. Podemos relacionar as vozes encontradas neste anúncio com as vozes de outras propagandas de aleitamento materno como as das campanhas promovidas pelas Secretarias de Saúde que tanto incentivam a amamentação como fonte de vida. A Mc Donald’s toma emprestadas essas vozes como forma de perpetuar essa memória discursiva com o intuito de fixar na cabeça das pessoas sobre a “importância” do seu produto, reforçando a intertextualidade encontrada em uma propaganda que, apesar de não verbal, remete a vários textos anteriores que nos permitem fazer as interpretações aqui destacadas. 79 Além disso, também podemos chamar a atenção para o fato de que nem sempre uma citação de autoridade, aqui ligada à logomarca da multinacional, está relacionada à verdade. Apesar de encontrar-se solidificada no mercado mundial, pode não apresentar tantas qualidades como às que instaura. Essa campanha demonstra traços de egocentrismo ao enfatizar a necessidade de comer os produtos da marca sem agredir a imagem de outras concorrências, opondo-se a campanha publicitária de chegada do Burger King ao Brasil que fazia menção ao forte concorrente Mc Donald’s para poder chamar atenção. O simples fato de não recorrer “à presença” do outro demostra o caráter de supremacia. A propaganda acima traz a foto de um astronauta pisando a Lua carregando uma embalagem de lanche da Mc Donald’s na mão e, no visor de sua máscara reflete a imagem de uma loja da marca que é mais uma vez identificada pela aparição do M em cor amarela, em forma de dois arcos. Percebemos aqui uma forte relação interdiscursiva entre a Mc Donald’s e a NASA (sigla em inglês de National Aeronautics and Space Administration; Administração Nacional do Espaço e da Aeronáutica) também conhecida como Agência Espacial Americana, uma agência do Governo dos Estados Unidos da América, criada em 29 de julho de 1958, responsável pela pesquisa e desenvolvimento de tecnologias e programas de exploração espacial. 80 Ao reportar-se à NASA, a Mc Donald’s firma-se em uma relação de poder, já que os Estados Unidos da América representam um grande Império mundial, responsável pela criação da NASA e, consequentemente, pelo envio do homem à Lua; além de diversos outros programas de pesquisa no espaço. Dessa maneira, verificamos que há nesta propaganda um discurso indireto não verbal que enaltece a imagem da marca em questão ao revelar o consumo de seus produtos até mesmo na Lua, fazendo uma relação com o tipo ideal de alimento para quem queira conquistar o espaço, transmitindo a idéia de comercializar um alimento que até na Lua, onde na verdade sabemos que requer o uso de uma alimentação diferenciada, a Mc Donald’s pode ser consumida. Também encontramos uma relação entre o tipo de cadeia de fast-food que oferece comida rápida com a rapidez do foguete que permite a chegada do homem à Lua. Nesta campanha buscou-se mostrar a extensa área de dominação da marca através da representação do astronauta que encontra a loja inclusive na Lua, ou seja, até lá não se vive sem Mc Donald’s. A caixinha de sanduíches da rede de fast-food trazida na mão do astronauta e a imagem da loja refletida no seu capacete proporcionam a interpretação da supremacia da marca que destaca-se até mesmo entre os integrantes da NASA, representantes de uma cúpula do governo norte-americano que ocupa o espaço da grande potência mundial. Isso dá ao Mc Donald’s o status de primeiro lugar no ranking mundial. Consideramos importante destacar a intertextualidade revelada na propaganda acima com o discurso encontrado na representação da vida na Corte. Podemos observar as contradições da Corte Imperial, que impunha os melhores hábitos de civilização com seus costumes europeus, mas que convivia com uma densidade de escravos. Assim, encontramos uma disparidade entre a pomposa vida de bailes, concertos, banquetes e roupas elegantes com ávida do escravo, estabelecendo a grande contradição de um Império. 81 O Império usou das representações da modernização européia para moldar certos costumes e hábitos e viabilizar determinados modelos de civilização para a sociedade que foi concebida pelos poderes dominantes. Pretendia-se então, imitar as mesmas sociabilidades da Corte, incorporando novos hábitos de consumo, mudando o estilo de vida da sociedade. Desta forma, a propaganda acima revela as contradições dessa Corte, aqui representada pela Burger King que caba identificando-se com essa linguagem de autoritarismo e supremacia em relação à Mc Donald’s. Se não conhecêssemos as mascotes das duas marcas, bem como o nome de alguns dos seus sanduíches, não seríamos capazes de discernir as mensagens transmitidas por esta campanha da Burger King. É principalmente a imagem do palhaço da Mc Donald’s que faz com que entendamos a forma agressiva do diálogo que os enunciados daquela marca tenta estabelecer com a sua concorrente, buscando estabelecer uma relação de submissão da última em relação à primeira. Podemos entender que o Rei, fazendo uso de roupas e adereços luxuosos, assuma a posição do maioral da Corte, sendo a referência para a massa, aqui representada pela Mc Donald’s através da presença do palhaço Ronald Mc Donald. Este freqüenta a Burger King pela condição de supremacia que esta assume, por servir banquetes que a rede por ele representada não pode dispor. A Mc Donald’s não assume posto de Corte, porém de povo que procura imitar seus hábitos. Também poderia assumir o papel de escravos que, em uma posição de inferioridade e de submissão, acabam consumindo o que lhes é imposto pela Corte. Nesta propaganda, a firmação “O gostosão da corte é o rei”. Apesar de o palhaço adorar aparecer, percebe-se a ambiguidade ocasionada pelo termo “gostosão” que pode, ao mesmo tempo, referir-se à qualidade do sanduíche bem como à figura do “machão”, representada pela sua mascote, o rei, através de sua coroa. Podemos também interpretar o enunciado como um apelo sexual em relação à comida, ou seja, o Rei seria esse machão, gostosão que “traça” todas as mulheres e que atrai o público feminino pela sua presença. Se considerarmos esse sentido, podemos analisar a presença do palhaço em um sentido alegórico, de um intrometido que deseja ocupar o lugar do “gostosão”. Isso revela a pretensão da Burger King de ocupar o posto de supremacia hoje ocupado pela Mc Donald’s. No anúncio, a loja Burger King ocupa o espaço da corte, ascendendo-a a um patamar de elevação máxima. Ao enfatizar que o palhaço adora aparecer, utiliza-se de parte da imagem do palhaço, mascote da Mc Donald’s, de cabeça pra baixo, tocando no sanduíche da Burger King. Isso nos remete à idéia de que até o representante da marca concorrente adora comer seus produtos, induzindo-nos a crer que são superiores. Além disso, quando afirma que 82 ele adora aparecer, está comparecendo na “corte”, ou seja, representação máxima de poder ocupado pela Burger King. O Outro aqui é o palhaço que ocupa, neste sentido, um papel social bastante inferior em relação a um Rei., como já citado anteriormente ao afirmar que o palhaço aqui é o bobo da corte, a representação do povão, da massa. Este anúncio traz como plano de fundo a imagen do palhaço Ronald Ms Donald, mascote da marca Mc Donald’s, comendo um sanduíche da Burger King, fazendo a mesma menção à propaganda anterior, ou seja, revelando que até a concorrência prefere os sanduíches da marca concorrente. Se não soubéssemos que este palhaço é a mascote da Mc Donald’s, poderíamos atribuir interpretações das mais diversas possíveis, como por exemplo, que a imagem do palhaço representasse a alegria e regozijo de provar um sanduíche da marca ou associá-la à diversão, talvez com o intuito de chamar a atenção do público infantil. Vemos que a presença do palhaço remete a outras vozes instauradas por memórias discursivas relacionadas à presença de um personagem alegórico que está presente nos circos para animar, fazer rir, descontrair o público que com ele interage. Há então uma ambigüidade no que concerne ao que se pretende anunciar. Ele pode estar saciando o desejo de estar comendo um sanduíche Burger King, se for reconhecido como o Ronald Mc Donalds, reconhecendo sua superioridade, porém pode também estar assumindo um papel irônico se 83 nos remetemos à propaganda anterior em que o palhaço assume um posto “inferior” ao do Rei e “submisso” a ele. Ou seja, se ele é inferior, não deveria servir de referência para consolidar a qualidade do produto Burger King. O slogan “Ninguém vai resistir” pode ser também interpretado como o resultado de uma análise polifônica, pois o enunciado polifônico apresenta sempre um enunciador e um locutor. Sendo o enunciador o autor do enunciado, não poderia aqui ser o palhaço Ronald este enunciador. Logo, ele poderia assumir o papel de locutor e eximir-se da responsabilidade do que está sendo enunciado, ou seja, colocaria em xeque a afirmação de que o sanduíche da Burger King é o melhor. A propaganda acima revela o Ronald Mc Donald na fila de uma loja Burger King, insinuando a prioridade que a concorrência lhe brinda. Se a cadeia que encontra-se em primeiro lugar no ranking mundial de fast-food visita a mais nova concorrente é sinal de que esta está superando as expectativas. Nela destaca-se apenas os pés do Ronald Mc Donald na fila de uma loja Burger King, identificada pela sua logomarca, localizada na margem esquerda da propaganda. À direita aparece o slogan “It just tastes better” que quer dizer que o sabor da Burger King é simplesmente o melhor e por isso, até mesmo o representante da marca concorrente o prefere. Mas, como visto anteriormente, os slogans têm o poder de ludibriar o leitor porque nem sempre falam de uma verdade absoluta. Além disso, o enunciador, autor do enunciado, mais uma vez não é o Ronald Mc Donald, logo este não assume a veracidade do mesmo. Consequentemente, ele pode posicionar-se como um locutor que exime-se da responsabilidade da afirmação. 84 Por fazer parte de uma mesma campanha publicitária, podemos inferir o mesmo valor alegórico que foi dado às duas propagandas anteriores em que o palhaço, visto pela Burger King como uma figura inferior em relação a eles, não representaria tanta diferença a sua presença em uma loja Burger King. Simultaneamente, podemos pensar em um paradoxo revelado pela preocupação de associar a imagem da mascote do Mc Donald’s em lojas da Burger King, , revelando a primazia dada por aquele a seu concorrente. Dessa vez o Ronald Mc Donald aparece em um balcão de uma loja Burger King disfarçado com uma capa por cima da roupa e um chapéu na cabeça, levando a crer que está escondendo-se para não desconfiarem que ele é um consumidor da marca concorrente por tratar-se de um produto superior ao que ele representa, se lido no seu “direito”. Porém, se lido no seu “avesso”, podemos verificar a relação dialógica que este anúncio mantém com James Bond, o detetive que especula tanto como ele agora o faz com os sanduíches da marca concorrente, a Burger King. James Bond, também conhecido pelo código 007, é um agente secreto britânico fictício, criado pelo escritor britânico Ian Fleming em 1953. Bond trabalha no serviço de espionagem MI-6. James Bond foi primeiramente apresentado ao público em livros de bolso na década de 1950 e logo se tornou um sucesso de venda entre os britânicos. Em seguida, converteu-se em uma grande franquia do cinema, com 85 vinte e dois filmes desde 1962. Ele também apareceu em quadrinhos, videojogos e transformou-se em alvo de muitas paródias, como nesta publicidade da Burger King. Nessa publicidade, a paródia é criada a partir do personagem de James Bond no filme 007, dando um novo sentido ao novo texto representado por uma publicidade da Burger King. Como parte da intertextualidade, a paródia do personagem do filme é o intertexto que resultou em um texto não verbal, mas de muita significação. O sentido de especulação adquirido pela paródia do personagem James Bond pode proporcionar um sentido de investigação dos produtos da concorrência com o objetivo de copiá-los ou simplesmente a camuflagem para consumi-los. A propaganda acima mostra um cartaz veiculado nas traseiras de ônibus locais com a imagem do sanduíche Whopper, o carro chefe da Burger King, acompanhado da afirmação “Mc Adeus”. Tal afirmação só faz sentido ao saber que os nomes dos sanduíches oferecido no cardápio da Mc Donald’s são compostos, geralmente, pelo termo “Mc”, como é o caso do Big Mac. A propaganda induz ao desaparecimento da concorrência após a sua chegada, isto é, a venda dos sanduíches da Mc Donald’s diminuiriam consideravelmente ou até mesmo acabariam após a presença da Burger King. 86 O fato de ter sido veiculado em traseiras de ônibus remete à idéia de uma despedida, de um transporte que está indo embora e que leva com ele a marca Mc Donald’s. Observamos aí um atravessamento de vozes que somente seria detectado pelos leitores se conhecessem as características peculiares a cada marca. O diálogo se instaura a partir da interação dos sujeitos/leitores que interpretam os enunciados. Também é possível fazer uma leitura desta propaganda que a relaciona com o divino, o sagrado. Se observarmos a afirmação Mc ADEUS, podemos ver o termo DEUS inserido, levando-nos a crer que a Burger King admite a primazia da Mc Donald’s em relação a eles, sendo esta o “Deus” do mercado de fast-food, mas que, com a chegada da Burger King, se despede desta condição de superioridade. A propaganda anterior, coletada de uma campanha publicitária da Burger King diz que “Quem nasceu para ser big nunca vai ser king”. Ao dizer que quem nasceu para ser big, remete-se a uma linguagem particular ao Mc Donald’s através de parte do nome do sanduíche que representa o seu carro chefe, o Big Mac e, ao completar a frase: “nunca vai ser king”, refere-se aos seus próprios sanduíches. A comparação faz uma diferenciação entre os produtos das duas marcas, deixando, claro que os da Burger King têm supremacia em relação aos da Mc donald’s. Ser big não alcança a grandeza de ser king, ou seja, estabelece-se uma relação de grandeza com qualidade e, se o sanduíche da Burger King é maior que o da Mc Donald’s, consequentemente, também tem mais qualidade. 87 Podemos analisar também sob uma ótica qualitativa em que ser King (Rei), associa-se a ser o maioral, o gostosão, o melhor, o maior, o insubstituível, o KING. Enquanto isso, ser Big (grande), não alcança tamanha grandeza. Observamos neste anúncio a presença de uma negação marcada pelo morfema “só”. Esse recurso recusa a presença de um “enunciador” identificado com ON (Pronome indefinido), o qual garante as idéias recebidas. Esse morfema acarreta problemas diferentes daqueles que decorrem do uso da negação “não”, pois enquanto esta explicita o enunciado rejeitado, sem oferecer a contrapartida positiva, aquele deixa implícito o que rejeita ao propor, em seu lugar, a proposição reivindicada pelo locutor. Podemos identificar aqui uma refutação pressuposicional, ou seja, o enunciado visa refutar a pressuposição associada ao enunciado rejeitado e vem necessariamente acompanhada de uma justificação. A segunda enunciação justifica a primeira. As duas propagandas acima, veiculadas em países diferentes, apesar de comercializar o mesmo sanduíche, o Whopper da Burger King, demonstram a importância dada ao sanduíche de maior representação da marca em questão graças ao seu tamanho. Na primeira, há a tentativa de mostrar a grandiosidade do sanduíche através das conseqüências que ele poderia causar se deixado cair ao chão. Atribui-se um terremoto ocorrido na cidade de São Paulo por causa da queda de um Whopper. Apesar de São Paulo não ter histórico de terremotos, a rede de fast-food utiliza-se exatamente dessa ausência para ressaltar o poder do seu produto,chamando a tenção para a grandiosidade do seu carro-chefe. 88 Na segunda, a intenção não é diferente, mas apesar de ser uma propaganda veiculada em Buenaventura, região montanhosa da Colômbia e de registros de terremotos, não se faz menção alguma em relação ao acidente natural em questão. Revela-se de outra forma, ou seja, a dimensão do produto causa a ruptura de uma placa de grande porte, tentando associar, como dito anteriormente, tamanho à qualidade. Talvez a intenção maior seja mostrar que o seu carro chefe, ao cair no chão, é capaz de provocar estragos (terremotos) até mesmo em regiões onde não se observa o fenômeno. Até então, não se tinha detectado propagandas de ataque e agressivas da Mc Donald’s, nem tão pouco se sabe se as propagandas a seguir confirmam tal intenção, mas como diz Bakhtin, todo enunciado emerge sempre num contexto cultural saturado de significados e valores e é sempre um ato responsivo, já que espera do outro uma resposta. Daí, intui-se que as propagandas que seguem, relativas ao Mc Donald’s podem ter sido respostas às anteriores veiculadas pela Burger King para esclarecer que quem tem o maior sanduíche são eles e não estes últimos. Isso pode ser deduzido até mesmo em decorrências das datas de lançamentos dos respectivos sanduíches, já que o Whopper surgiu em 1957, enquanto que o Big Mac só aparece depois de 17 anos, isto é, no ano de 1974. A propaganda acima remete a uma tradição conhecida por cidadãos brasileiros, o mito de que na cidade de Itu, município do estado de São Paulo, tudo é grande. Então, se um estrangeiro chega ao Brasil e vê essa propaganda, provavelmente não a entenderia, posto que para compreendê-la teria que conhecer a história relativa à cidade, a memória discursiva que dela se construiu. 89 Itu conquistou essa fama de “Cidade dos Exageros” graças a Francisco Flaviano de Almeida, o famoso Simplício, um comediante ituano nascido no ano de 1916, que faleceu em 2003. Tudo começou quando um dia, no banco da praça do programa humorístico “Praça da Alegria”, na extinta Rede Tupi, Simplício burlou o script. Seu personagem era um caipira do interior, Manoel de Nóbrega, que apresentava o programa, costumava pedir que a esposa explicasse ao público o tamanho dos objetos que existiam em sua terra. Havia sempre o exagero. Um dia, Simplício arriscou: "Ofélia, diga o tamanho da mandioca que tem lá na nossa cidade, em Itu". Nesse momento, Nóbrega, ao vivo, brincou com o comediante: “promovendo, hein?” Desde então Itu tornou-se a cidade onde tudo é grande. Pessoas do Brasil todo mandavam a Itu seus legumes fora do comum, a fim de que fossem parar na TV. Daí conclui-se que a propaganda da Mc Donald’s, ao afirmar que é bom ser como Itu, refere-se ao fato do seu sanduíche ser grande como tudo o que há nesta cidade conhecida como a “Cidade dos Exageros”, fazendo menção ao exagero do tamanho do seu produto. A Mc Donald’s, ao afirmar “É bom ser como Itu”, afirma “ser” ituana porque uma grande marca tem que estar presente em uma grande cidade na comemoração de seu aniversário. Há então a constituição de um diálogo instaurado a partir de uma memória discursiva que leva a uma intertextualidade que, ora faz menção ao tamanho da cidade, ora ao do sanduíche. Também podemos chamar a atenção para a paródia encontrada na propaganda anterior. A mesma surge da tradição instaurada na cidade de Itu e da música “Tudo grande” de Marinês. Parte da intertextualidade, a paródia é um intertexto, ou seja, é um texto resultante de outro que pode ser escrito ou oral. Essa intertextualidade também pode ocorrer em pinturas, no jornalismo, na música e nas publicidades. A paródia é a recriação de um texto, geralmente célebre, conhecido, uma reescritura de caráter contestador, irônico, zombeteiro, crítico, satírico, humorístico, jocoso. A música de Marinês aqui parodiada pode ser vista nos anexos desta dissertação. 90 O maior sanduíche da marca só é lançado no ano de 2005, trata-se do Big Tasty. O McDonald's lançou a campanha de mídia "Big Tasty - O grande matador da fome" para comemorar o sucesso de venda do sanduíche. Produzidos pela Taterka Comunicação, filmes de 15 e 30 segundos foram veiculados pela internet, TV aberta e por assinatura. Os restaurantes também contaram com banners e móbiles como material de divulgação. O sanduíche foi criado em setembro de 2005 e só no ano passado vendeu mais de 11 milhões de unidades. O Big Tasty é um hambúrguer de 150 gramas e representa o maior sanduíche do McDonald’s em 26 anos de Brasil. O Big Tasty, com um hambúrguer de 150 gramas (66% mais carne do que o Big Mac, que leva dois hambúrgueres de 45 gramas), cerca de 760 calorias e preço unitário de R$ 8,70, chega inicialmente a Brasília em maio de 2005 e depois se espalha por todas as 548 lojas brasileiras até meados de agosto. "É uma super opção para o jovem que quer uma refeição consistente em forma de lanche e que às vezes consumia dois hambúrgueres em nossas lojas", resume o vice-presidente de marketing e comunicação, Mauro Multedo. A rede de lanchonetes no País já havia lançado o McNífico, uma espécie de "cheese salada", formato de sanduíche que a marca ainda não possuía, aparentemente para se precaver ante a chegada no Brasil de produtos de seu maior concorrente internacional, o Burger King, outra razão que nos leva a crer que as propagandas em questão possam ser respostas àquelas lançadas pela Burger King que fazem referência ao tamanho de seus sanduíches. A atual ofensiva com lanches calóricos do McDonald’s difere bastante das últimas campanhas da marca, que desde o ano passado vinha apresentando novas versões de saladas e lanches de baixa caloria, à base de frango, por exemplo. Tais lançamentos de perfil menos calórico coincidiram com a onda de contestações aos menus de comida rápida em geral. No centro dos questionamentos, o McDonald’s havia sofrido a crítica feroz de um documentário para cinema lançado nos Estados Unidos e exibido aqui, o "Super size me", em que o próprio cineasta mostrava conseqüências danosas à própria saúde ao alimentar-se durante várias semanas apenas com a comida da rede. "Não se trata de fazer marketing para se defender do patrulhamento que às vezes é hipócrita. Ninguém come e deve comer todos os dias num só lugar e comer sempre a mesma coisa. Nossa estratégia é oferecer cada vez mais opções, para que ninguém deixe de estar atendido dentro de suas preferências num de nossos restaurantes. Atendemos até o vegetariano mais exigente com nossas saladas, embora o peso maior de nossas vendas continua sendo dado pelo hambúrguer", explica Terra. 91 O novo Big Tasty vai ter molho sabor churrasco, três fatias de queijo e salada com tomate. Pretende concorrer com lanches de grande porte vendidos por restaurantes de cidades como São Paulo, cujos preços superam normalmente os R$ 15,00. Até agora, o maior sanduíche da rede era o McMax, com 530 calorias e 130 gramas de carne. O desenvolvimento do Big Tasty foi feito pelo McDonald’s internacional e apresentado à rede há um ano. Nos Estados Unidos, tomou proporções menores e não foi sucesso, diferentemente da Europa, em que as dimensões são as mesmas alcançadas no Brasil e já aparece como um dos principais produtos. Como visto na propaganda anterior, na sua margem esquerda aparece a logomarca das Olimpíadas de Pequim 2008 como meio de associá-las à marca como uma das patrocinadoras dos jogos olímpicos. Observamos no discurso já instaurado pela campanha de mídia “Big Tasty - O grande matador da fome” da Mc Donald’s uma intertextualidade com o discurso tão preservado no futebol: “o matador” para designar um bom jogador. Considerando o significado da logomarca utilizada nessas olimpíadas, podemos entender perfeitamente a escolha por esta campanha e não por outra qualquer já lançada pela Mc Donald’s. Percebe-se um atravessamento de vozes entre o seu significado, o discurso futebolístico e a campanha do Big Tasty. Na logomarca das Olimpíadas de Pequim 2008, podemos observar uma pessoa sendo executada como forma de protesto contra a opressão que a China impõe ao povo tibetano e ao seu próprio povo (ver anexo para entender melhor). O fundo é vermelho para representar o sangue espirrado no momento da execução. Logo, concluimos que a escolha pela campanha do “Big Tasty – O grande matador da fome”, faz jogo com a palavra “matador” que refere-se ao mesmo tempo à capacidade que ele tem de matar a fome, à habilidade dos jogadores do futebol e ao matador chinês que inspira a criação da logomarca das olimpíadas que tem a Mc Donald’s como uma de suas patrocinadoras. 92 CONSIDERAÇÕES FINAIS Iniciaremos aqui destacando alguns passos que forma traçados para a realização desta pesquisa bibliográfica. A começar das leituras teóricas para que a devida seleção de textos melhor atendessem aos objetivos deste trabalho; o objeto de pesquisa; a escolha do corpus; seu recorte e a finalização no momento de associar teoria à prática na análise desenvolvida nesta dissertação. Mostraremos alguns resultados que foram frutos da observação e reflexão analítica do corpus. Tomaremos como ponto d epartida a verificação dos objetivos com o intuito de estabelecer os meios de análise e suas formas de concretização. Tomamos como unidade de análise o enunciado, considerando o sentido do que é dito a partir de situações concretas de produção. Logo, fizemos uso de alguns conceitos interpretativos como dialogismo, polifonia, interação verbal, enunciação, gêneros discursivos, heterogeneidade mostrada e constitutiva. Se tomarmos como ponto de partida os nossos objetivos, concluimos que eles foram alcançados ao verificarmos que entre as propagandas da campanha publicitária da Burger King ao entrar no Brasil e algumas propagandas da Mc Donald’s, estabelece-se uma relação dialógica, já que o entendimento da primeira só se efetiva se o leitor for conhecedor de algumas características da sua concorrente, a Mc Donald’s. Sem esse prévio entendimento, tornar-se-ía impossível fazer uma leitura dialógica entre as duas cadeias alimentícias. Na terceira propaganda, “O gostosão da corte é o rei, apesar de o palhaço adorar aparecer”, vista na análise deste trabalho, é perceptível a presença do Outro (Mc Donald’s) no discurso trazido pela Burger King, confirmando a teoria bakhtiniana (1981) que afirma ser o outro o responsável pela medida do que sou; a identidade se constrói numa relação de alteridade: todo dizer é internamente dialogizado: é heterogêneo, é uma articulação de múltiplas vozes sociais (no sentido em que hoje dizemos ser todo discurso heterogeneamente constituído), é o ponto de encontro e confronto dessas múltiplas vozes. Essa dialogização interna será ou não claramente mostrada; o dizer alheio será ou não destacado como tal no enunciado – ou, para usar uma figura recorrente em Bakhtin, será aspeado ou não, em escalas infinitas de graus ou assimilação da palavra alheia (conforme diz ele no manuscrito O problema do texto(1992), p. 120-121 93 As propagandas “dialogam entre si, muito embora nem sempre quem faz a leitura não interage plenamente com os sentidos do texto por tratar-se de uma condição dependente do sujeito. Com efeito, tomamos o aspecto formal do nosso estudo como algo incapaz de ser compreendido se tomado fora de um contexto social que o enquadre. Dessa forma, sob uma perspectiva histórico-linguístico-discursiva, procuramos ver o anúncio publicitário como um registro daquilo que pode ser escrito de/em uma dada situação enunciativa do cotidiano; como meio de registrar as necessidades sociais que propagam costumes e atitudes capitalistas por meio dessa tradição discursiva. Sabendo que o gênero é um tipo específico de enunciado, presente em situações rotineiras, que está associado às esferas da sociedade, na linguagem cotidiana, seja ela formal ou informal. Entendemos que a noção de discurso não é estável, assim como os gêneros discursivos também não o são, pois se adaptam à situação social dos falantes De acordo com o objetivo específico do contexto, vê-se dominar uma ou outra forma de variante textual. Todo texto encena uma interlocução: nele fala um interlocutor que pode fazer-se menos ou mais presente no texto, por isso se afirma que há várias vozes presentes, aquelas que o locutor endossa e outras não, podendo ele eximir-se da responsabilidade do que está sendo enunciado para não responsabilizar-se pela veracidade do discurso, já que ele não é o autor do enunciado. Isso pode ser confirmado na propaganda em que o Ronald Mc Donald encontra-se na fila de uma loja Burger King onde aparece o slogan: “It Just tastes better”, ou seja, simplesmente o sabor é melhor. Considerando que o slogan é um recurso muito usado nos textos publicitários e que ele tem o poder de ludibriar o leitor com afirmações nem sempre verdadeiras, concluimos que o Ronald não aparece como enunciador (autor) do discurso, porém como um locutor que não endossa tal afirmação. Jaqueline Authier_Revuz (1982) eleva o caráter dialógico dos discursos, coadunandose à teoria defendida por Bakhtin de que tais discursos só se constituem através da presença do outro. Ela sugere a necessidade de recorrer a campos extralinguísticos para explicar fatos da língua, apontando para duas maneiras pelas quais a alteridade se manifesta no discurso: a heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade constitutiva. Resumindo, Authier-Revuz divide a enunciação em dois territórios: o da coincidência e o da não-coincidência. O primeiro trata do uso das palavras que estão explícitas no discurso, das marcas formais do dialogismo, enquanto que o segundo destaca-se por apresentar aspectos 94 não marcados na superfície, mas capazes de ser definidos pela interdiscursividade, pela relação que todo discurso mantém com outros discursos, o que corresponde ao dialogismo fundamental da linguagem. Na última propaganda da análise deste trabalho podemos observar claramente tal divisão feita por Authier-Revuz. O território da coincidência é marcado pela palavra matador no seu sentido literal que remete-se à condição de saciar a fome. O território da não coincidência está atrelado pela relação que o discurso da Mc Donald’s, mais especificamente através da palavra matador, mantém com o discurso do futebol, assim interpretado pelo contexto no qual encontra-se inserida a propaganda, Olimpíadas de Pequim 2008 e com a logomarca destas olimpíadas, estabelecendo assim um diálogo fundamenteal à linguagem. Além dessa propaganda, verificamos que o nosso objetivo geral foi alcançado e as nossa hipóteses confirmadas ao observar que em todas as propagandas da Mc Donald’s utilizadas neste trabalho, encontramos a presença de várias vozes, podendo confirmar que marcas de heterogeneidade determinam as relações dialógicas estabelecidas pelos sujeitos sociais que, ao interagir com os textos, estabelecem os diálogos mantidos com outros textos anteriores. Das oito propagandas da Burger King utilizadas na análise desta dissertação, seis também mantém relações dialógicas com outros discursos pré-instaurados, desta vez com os da concorrente em questão. Logo, concluimos então que entre as propagandas da Mc Donald’s vemos que todas estabelecem relações dialógicas com outros discursos anteriores, com outras vozes préinstauradas. A primeira relaciona-se com discursos ligados ao aleitamento materno, a segunda com propagandas da NASA; a terceira com o mito de que na cidade de Itu tudo é grande, igual ao tamanho do seu sanduíche e a última com os discursos referentes ao futebol e à logomarca das Olimpíadas de Pequim 2008. 95 REFERENCIAS AUTHIER-REVUZ, J. Palavras Incertas: as Não-Coincidências do Dizer. Campinas, Editora da UNICAMP, 1998. __________. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). In: Cadernos de estudos lingüísticos, 19. Campinas: EDUCAMP, p. 25-42, jul./dez. 1990. __________. Falta do dizer o dizer da falta: as palavras do silencio. 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REFRÃO x2 Na minha casa comida só faço muita Com a sala e cozinha Mandei fazer tudo grande Fiz uma festa e muita gente se espantou Com o peru no meio da mesa Gordo, gostoso e grande REFRÃO REFRÃO x2 http://letras.terra.com.br/marines/922286/ 101 102