CULTURA COLABORATIVA E A INTERNET COMO

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CULTURA COLABORATIVA E A INTERNET COMO
Práticas Interacionais em Rede
Salvador - 10 e 11 de outubro de 2012
CULTURA COLABORATIVA E A INTERNET COMO FERRAMENTA DE
RESISTÊNCIA E APRESENTAÇÃO DO EU
Nayara Matos Coelho Barreto1
Resumo: A partir da emergência do projeto da modernidade em meados do século XIX, a
sociedade tem passado por mudanças significativas nas formas de ser e estar no mundo em
comunhão com maneiras diversas de sociabilidade e representação social. Nesse contexto, a
internet e as práticas interacionais da web conformaram uma nova maneira de ser e estar
social. Nesse ínterim de transformações, a imagem do corpo da mulher ganhou um destaque
em sites que se organizam em uma lógica de comunidade e cultura colaborativa. Com isso,
surge um novo e curioso fenômeno: mulheres “comuns” e anônimas têm escolhido expor seus
corpos em redes infinitas de circulação de imagens na internet construindo assim identidades
pautadas na singularidade e novas formas de apresentação do eu. Para compreender esse
fenômeno e sua relação com a cultura colaborativa, o presente artigo investiga, através do site
Suicide girls, as novas configurações do público e do privado e a exposição de corpos de
mulheres “comuns” na web como forma de resistência aos padrões corporais atuais.
Palavras-chave: internet; apresentação do eu; cultura colaborativa; corpo; mulher.
Abstract: From the emergence of the project of modernity in the mid-nineteenth century, the
society has gone through significant changes in ways of being and being in the world in
communion with various ways of sociality and social representation. In this context, the
internet and the web interactive standards and forged a new way of being and social welfare.
In the meantime these transformations, the image of the woman's body won a featured in
websites that are organized in a logic of community and collaborative culture. With this, a
new and curious phenomenon: "common" and anonymous women has chosen to expose their
bodies in endless circulation networks internet, building identities based on uniqueness and
new forms of self presentation. To understand this phenomenon and its relationship with the
collaborative culture, this article investigates, through the website Suicide girls, new private
1
Atualmente é Mestranda em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Desenvolve
pesquisa na área de Mídia, Cultura e Produção de Sentido e Cibercultura, com ênfase em imagens do corpo feminino na
mídia e seus desdobramentos políticos e culturais. Integra o Grupo de pesquisa: Imagem, Corpo e subjetividade, coordenado
pela Profª Drª Maria Paula Sibilia e pela Profºdrº Maria Cristina Franco Ferraz
and public settings and exposure of “common” women's bodies on the web as form of
resistance to the current body patterns.
Keywords: internet; serf presentation; collaborative culture; body; woman.
O declínio do homem público e as tiranias da intimidade
Considerando que a comunicação e a mídia online representam uma importante área
para refletir acerca da sociedade contemporânea, o presente artigo pretende mapear, na
internet, representações sociais a cerca da imagem do corpo feminino e suas amarras estéticas.
Nos últimos tempos, diversos movimentos culturais e artísticos vêm usando a internet para
disseminar seu repúdio a essas novas e sutis forças opressoras que se configuram e
disseminam padrões de beleza para a mulher contemporânea. Diante dessa padronização
estética, algumas ações contestatórias procuram alçar vozes diante da “exclusão” ou da
estigmatização dos corpos que não se adequam a certas exigências estéticas atuais,
defendendo o direito a outras representações e apresentações de si. São denunciadas, assim
em alguns sites, as omissões e as ausências perpetuadas pela mídia como expressão dos
valores dominantes. Entre os produtos midiáticos que parecem praticar tal resistência aos
padrões de beleza, optei por analisar o trabalho desenvolvido pelo site Suicide girls,
procurando desvendar sua peculiar relação com os atuais vetores de “assujeitamento”, com as
novas formas de representação de si, com as recentes configurações entre o público e o
privado e com a emergente lógica de cultura colaborativa e interação em comunidade.
O atual trabalho busca reconhecer iniciativas como a desse site como cruciais para o
surgimento e galvanização dos processos de interação e convergência e da cultura da
convergência tendo como pilar o trabalho teórico e conceituar de Henry Jenkins que procurou
atualizar o conceito de convergência de acordo com as transformações possibilitadas pelo
desenvolvimento tecnológico e pela atividade desenvolvida pela sociedade através das novas
mídias, utilizando um conceito de convergência que entende que esta acontece no plano das
ideias que teria “um poder de transformação dentro das indústrias midiáticas” (JENKINS,
2006, p. 35) e assim relacioná-lo à resistência.
Antes de adentrarmos a discussão acerca da web 2.0 e o compartilhamento e
disseminação de imagens de corpos femininos e seus possíveis desdobramentos sociais,
analisaremos as construções da subjetividade que se apresentaram ao longo da modernidade,
para isso, voltaremos, de forma breve, o olhar para o passado. Esse recuo histórico é
importante, pois poderemos destrinchar os diversos mapas de subjetivação presentes em cada
contexto social para, por fim, tentar compreender o cenário atual das representações sociais na
web 2.0 e os novos arranjos entre público e privado.
Assim, em um primeiro momento, buscaremos compreender a dimensão subjetiva do
contexto histórico moderno, para examinar o papel da mulher nesse recorte temporal. O foco
na sociedade moderna é importante, pois o corpo feminino — especialmente, esse corpo nu
— foi amplamente representado e apresentado pelas artes deste período. Cabe lembrar que
essa era passou por importantes modificações culturais e morais, econômicas e políticas,
comunicacionais, organizacionais e subjetivas; por isso, esta tentativa de mapear a
subjetividade hegemônica da modernidade é fundamental.
Uma das modificações é apontada pelo sociólogo norte-americano Richard Sennett.
Esse autor argumenta que, na virada do século XVIII para o XIX, os homens mudaram sua
maneira de ser e estar no mundo. Para sustentar tal afirmação, Sennett descreve “o homem
público” do século XVIII como sendo aquele sujeito que se definia a partir de suas ações no
espaço público das cidades. Contudo, com a consolidação do projeto do capitalismo industrial
ao longo do século XIX, a esfera pública começou a ser estigmatizada e esvaziada, ao mesmo
tempo em que o espaço íntimo e privado passou a ser crescentemente valorizado. O interior
das moradias constituía um lugar privilegiado para o cultivo da subjetividade “interiorizada”
e, consequentemente, para a construção de si. Esse cenário definiu dois tipos de espaços na
sociedade moderna posterior ao século XIX, claramente definidos: o público e o privado.
Com a estigmatização dos espaços públicos e o inchaço do ambiente privado, o
indivíduo moderno começou a se auto-tematizar como sendo dotado de uma “interioridade”.
Segundo Sennett, naquela época, os assuntos de caráter público eram tratados sob a lente dos
sentimentos individuais e íntimos. Nas palavras do sociólogo, apesar da clara delimitação
entre ambos os espaços, o privilégio de um sobre o outro acabou originando “uma confusão
entre vida pública e vida íntima: as pessoas tratavam em termos de sentimentos pessoais os
assuntos públicos” (SENNETT, 1988, p. 18).
Contudo, de acordo com as teorias de diversos autores, como David Riesman, Jurandir
Freire Costa, a antropóloga Paula Sibilia entre outros, esse cenário sofre uma nova mudança
na virada do século XX para o século XXI. O corpo começou a sofrer novos tipos de pressões
nessa sociedade contemporânea ou “pós-moderna”, sendo interpelado e envolvido por
diferentes forças e modificando as formas de construção de si e as subjetividades.
Assim, no ínterim dessa nova mudança, generaliza-se um tipo de subjetividade
alterdirigida, conforme a definiu David Riesman. Nesse sentido, torna-se cada vez mais
importante trabalhar e expor a própria imagem corporal (em detrimento à interioridade
psicológica), para produzir e mostrar o que se é. São modos de ser e estar no mundo
tipicamente contemporâneos, que se manifestam através das práticas da “gestão de si”. Essa
mudança no eixo em torno do qual se constroem as subjetividades fez emergir, no final do
século XX e início do XXI, o que alguns autores denominam “cultura somática”.
Assim, a “personalidade somática” da atualidade responde a uma cultura baseada no
corpo e que valoriza a verdade revelada pelas imagens. A partir de uma análise da influência
que os meios de comunicação de massa exercem sobre a sociedade, Jurandir Freire Costa
afirma que o corpo tem uma participação primordial na conformação dos novos tipos de
subjetivação. O crescimento da mídia, bem como o maior acesso ao consumo, contribuiu para
alterar a lógica moderna da formação das identidades individuais (COSTA, 2005, p.165).
Os sujeitos contemporâneos foram deslocando seu cerne da “interioridade” e passaram
a se construir cada vez mais em função da visibilidade: para o olhar do outro, enfatizando a
crescente importância da imagem corporal na definição do que se é. Nesse sentido, o ato de se
mostrar, de ver e ser visto, constitui um ingrediente fundamental nos modos atuais de ser e
estar no mundo.
Isso tudo contribui para nortear nossa análise das novas formas de assujeitamento do
corpo feminino que se desdobram na atualidade e que seriam “pós-disciplinares” e de que
forma essa fronteira borrada entre o público e o privado de materializa nas formas de
sociabilidade presentes na internet? De que maneira podemos problematizar e discutir as
relações sociais e de representação travadas em um ambiente digital online, ao mesmo tempo
libertário e controlador, e onde o ato de mostrar e ser visto é premissa para os usuários e para
a construção de si? Trataremos a seguir essas questões.
Sociedade de controle e a internet como mecanismo de poder
A sociedade contemporânea articula certas forças de controle e dominação sobre os
corpos, às vezes muito sutis e complexos, inclusive travestidos de “liberação”. Para Gilles
Deleuze, foi na segunda metade do século XX que as “sociedades disciplinares”, analisadas
por Michel Foucault, começaram a ser substituídas pelas “sociedades de controle”
(DELEUZE, 1992, p. 57). Essas forças estavam relacionadas às mudanças que ocorriam no
mundo ocidental, e muitas dessas transformações estavam ligadas às inovações tecnológicas.
A popularização de um conjunto de novas tecnologias foi uma das expressões dessa
transformação nas redes de poder que começou a ocorrer na sociedade ocidental naquela
época. Assim, com a crise das “instituições de confinamento”, como a escola e a prisão, os
modos de vida característicos da sociedade industrial foram se tornando cada vez menos
“compatíveis” com os corpos e as subjetividades que estavam surgindo. Em meio a esse
cenário de múltiplas alterações, Deleuze explica que a sociedade ocidental vivenciou “a
implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação” (DELEUZE, 1992, p.
226).
Trata-se daquilo que o filósofo nomeou “sociedade de controle”, um regime de poder
no qual os mecanismos de vigilância se aprimoraram e abandonaram seu formato centralizado
para virarem “distribuídos”, dando lugar a uma vigilância generalizada e mais complexa que
aquela que vigorara no regime disciplinar. A proliferação de câmeras de vídeo em muitos
espaços públicos e privados, bem como o uso de aparelhos de telefonia celular, cartões de
crédito e redes de comunicação pela Internet, por exemplo, facilitaram esse exercício de
“controle” cada vez mais eficaz e invisível. Um exercício do poder que é mais “elegante” e,
em princípio, menos explicitamente violento por ser, muitas vezes, voluntário e prazeroso
(DELEUZE, 1992, p. 198).
Ainda de acordo com a teoria de Gilles Deleuze, o trabalho cotidiano de
“adestramento” que era exercido nas instituições disciplinares foi modificado nessa
transformação das redes de poder. E, além disso, começou a ser realizado fora desses âmbitos
fechados e específicos. Assim, deixou de haver um espaço restrito onde se podia sentir o
poder agindo sobre os corpos para torná-los “dóceis e úteis”. Em vez disso, essa ação se
espalhou por todos os lugares e passou a agir o tempo todo. Por conseguinte, sua tarefa se
tornou mais eficaz, mais integrada à vida de cada um — sobretudo ao se sustentar nas novas
tecnologias da informação — produzindo prazeres e bem-estar, além de outros tipos de corpos
e subjetividades.
Assim, na configuração da sociedade atual, o símbolo do controle não seria mais o
panóptico, conforme definira Foucault para as sociedades disciplinares, mas a internet: a rede
digital de comunicação mundial, que concentra inúmeras informações dos indivíduos em
bancos de dados e canaliza as comunicações. Em certo sentido, poderia se afirmar que o
princípio da “docilização dos corpos” continuou, mas foi reconfigurado com outros propósitos
ligados ao novo projeto de sociedade. Além disso, agora os próprios indivíduos
disponibilizam voluntariamente seus dados nos novos dispositivos de vigilância; e, nesse
processo, entregam também seus corpos, sua intimidade e suas imagens pessoais, que
permanecem na visibilidade para quem estiver interessado em assistir e consumir.
A internet, nessa nova perspectiva, exerce a função de um superpanóptico
(BAUMAN, 1999, p. 97), concentrando boa parte da informação e do conhecimento
existentes, além de constituir um pivô estratégico para a manutenção dos novos modos de
vida. A sociedade contemporânea é, então, articulada por novos mecanismos de vigilância ou
de “controle”, amparados nessas novas tecnologias da informação.
Pensando, então, nos aparatos tecnológicos contemporâneos como dispositivos que, de
certa maneira, controlam os corpos, podemos imaginar também uma busca da “libertação”
dos mesmos, que se exerça como “resistências” dentro da própria web. Pois se ao mesmo
tempo ela pode ter a força de controle, ela também possibilita novas maneiras de interação,
produção de conteúdo, disseminação e troca em comunidade conformando uma nova forma
de produção cultural.
Nesse sentido, a exibição da superfície corporal de mulheres “comuns” 2 na internet
poderia ser interpretada como uma tentativa de se afirmar como subjetividades encorpadas
singulares, mesmo se encontrando fora dos padrões da “boa forma”. Nesse sentido é que
identificamos, na sociedade atual, diversas formas de resistência, articuladas em torno de
ações criativas e culturas participativas de enfrentamento a essas novas amarras. Pois, citando
novamente Deleuze, “cabe aos jovens descobrir a que estão sendo levados a servir”
(DELEUZE, 1992, p. 226). Assim, podemos notar que, atualmente, não só os jovens, mas os
usuários em geral estão criando novas maneiras de ser e estar no mundo, e esses movimentos
se realizam tanto no sentido de se inserir nas relações de poder, por um lado, como na
tentativa de entender a força e a lógica de interação e cultura participativa online e usá-las
para resistir e conquistar um novo lugar de apresentação do eu.
2
Como bem identificou Ilana Feldman, “as revistas de comportamento, a publicidade e a pornografia soft já há
algum tempo descobriram o valor mercadológico da beleza 'natural' e 'autêntica' de mulheres comuns, anônimas e reais”.
Trata-se de “pessoas que poderiam fazer parte de nosso cotidiano e não beldades turbinadas do mundo pop” (FELDMAN,
2011).
Reconfigurações dos corpos e das subjetividades: sexualidade, gênero e os corpos
cultuados
Para linearizar a relação entre a lógica de organização online, os assujeitamentos
sofridos pelo corpo feminino e as formas de representação de si que emergem nesse novo
cenário conectado e colaborativo, analisaremos a seguir certos aspectos da configuração
corporal e da sexualidade na era moderna e contemporânea.
Para tentar compreender as amarras ligadas a tabus e proibições sexuais sofridas pelos
corpos modernos, cabe recorrer às reflexões contidas na obra de Michel Foucault. O filósofo
problematizou algumas questões importantes relacionadas ao tema: a sexualidade, para ele,
não seria uma qualidade biológica que as diversas sociedades louvam ou reprimem, tampouco
seria — numa linha freudiana — um impulso instintivo ou pulsional que a civilização
canalizaria numa direção ou outra. A partir desta perspectiva genealógica, a sexualidade é,
acima de tudo, uma construção cultural.
No decorrer do século XX, os estudos referentes à sexualidade introduziram a
problematização da questão de “gênero”, contestando a tendência que se tinha até então de
considerar como “naturais” as qualidades definidas como femininas ou masculinas. A noção
de gênero nomearia, assim, os valores culturais ostentados pelo corpo sexuado, evitando a
contestada afirmação de que as características de homens e mulheres seriam meramente
naturais (BUTLER, 2003, p. 24).
Ainda no século XX, nas décadas de 1960 e 1970, novas e importantes transformações
ocorreram nas vivências corporais da sociedade ocidental, e os corpos femininos também
sofreram modificações. Entre outras novidades, desnudaram-se como nunca antes. Essa
exposição corporal estava envolta nos ares libertadores da revolução sexual e dos costumes,
encontrando assim diversas maneiras de se manifestar em diferentes lugares. Mas, de um
modo geral, as décadas de 1960 e 1970 tiveram grande efervescência política, social e
cultural, acentuando a rebeldia com relação aos valores e aos modos de vida até então
vigentes. Foi, portanto, no próprio corpo que essa libertação se consumou.
Assim, com um foco cada vez mais voltado para o corpo e para o que era considerado
belo, os modos de construção da subjetividade também se transformaram. De acordo com essa
lógica, os sujeitos contemporâneos precisariam ser vistos para existirem. Devem mostrar para
os outros o que desejam parecer, pois, como sentenciou Guy Debord já em 1967, na sociedade
do espetáculo “o que é bom aparece e o que aparece é bom” (DEBORD, 1997, p. 21). Como
consequência dessa intensa valorização de certa estética corporal nos últimos anos, a beleza
foi redefinida, a partir desse momento histórico simbolizado pela década de 1960, como um
“direito de todas as mulheres”, como algo que todos poderiam — e, portanto, que também
deveriam — moldar e conquistar.
Tal “democratização” da beleza e tamanha ênfase na importância da “boa forma” para
poder “ser alguém” na sociedade contemporânea, fez do corpo um importante “campo de
batalha”. A partir desses apontamentos, podemos então refletir que, poucas décadas depois do
manifesto de Virgínia Woolf em defesa do “quarto próprio”, o mundo ocidental protagonizou
várias modificações densas. Tais transmutações influenciaram tanto a produção da imagem do
corpo feminino como o estatuto do mesmo, os modos de vivenciá-lo e de pensá-lo. Portanto,
na contemporaneidade, as reivindicações mais usuais deixaram de lutar pelo “quarto próprio”
e se ampliaram para pleitear pelo “corpo próprio” e pela possibilidade de se auto-representar
ou de se expor na visibilidade exacerbada do presente.
Notamos, assim, que o corpo moderno passou por gradativas modificações até se
tornar o que é hoje em dia. Assistimos à transformação daqueles corpos “docilizados” pelo
saber/poder na modernidade analisada por Michel Foucault, para virar corpos moldados e
cultuados pelos sortilégios das técnicas corporais contemporâneas. Em meio a essa construção
histórica em torno da “boa forma”, e ao surgimento de uma imagem corporal ideal que deve
ser atingida por todos, estão essas mulheres “reais” e “comuns” que procuram resistir a esses
insistentes padrões. Ou, talvez, o que elas fazem seria retroalimentar tais mecanismos de
controle? Norteada por essas perguntas, a próxima seção abordará certos aspectos que dizem
respeito à cultura da imagem na qual estamos inseridos e ao surgimento de um “mito da
beleza”. Iremos traçar um panorama sobre esse cenário social e relacioná-lo com a forma de
apresentação do eu no site Suicide girls.
A cultura da imagem e o mito da beleza
A sociedade contemporânea vive imersa numa cultura pautada pela ampla circulação
de imagens. No entanto, é importante salientar que foi após o surgimento de certos
dispositivos, na era moderna, que as imagens começaram a ganhar uma importância cada vez
maior. Tais dispositivos, como a fotografia e os jornais, produziram e multiplicaram as
imagens corporais; e, desse modo, sedimentaram o domínio da visualidade sobre os demais
sentidos (JAGUARIBE, 2007, p. 188).
Embora tenha tido grande relevância ao longo de toda a modernidade, foi a partir da
década de 1960 que a imagem ganhou uma centralidade inédita na cultura ocidental. Guy
Debord (1997) foi um dos autores que identificou como a vida sofreu interferências e
modificações devido a essa imensa produção e circulação das imagens na segunda metade do
século XX. Para o cineasta e ativista francês, que lançou o livro e o filme intitulados A
sociedade do espetáculo em 1967, a sociedade da época estava “contaminada” pelas imagens,
como sombras do que efetivamente existiria. De algum modo, parecia ter se tornado mais
fácil ou habitual ter contato com a vida real no reino das representações, e não no plano da
própria realidade. Nesse sentido, Debord afirmou que "toda a vida das sociedades nas quais
reinavam as modernas condições de produção se apresentava como uma imensa acumulação
de espetáculos”. Por isso, “tudo o que era vivido diretamente havia se tornado uma mera
representação” (DEBORD, 1997, p. 13).
A partir dessas reflexões, cabe concluir que foi pela intensificação dessa mediação de
imagens e mensagens emitidas pelos meios de comunicação de massa, que os indivíduos
modernos teriam abdicado dos duros acontecimentos da vida e passaram a viver num mundo
movido pelas aparências e pelo consumo permanente de fatos, notícias, produtos e
mercadorias. No entanto, vale esclarecer que o “espetáculo” definido por Debord não seria
simplesmente essa sucessão ou acumulação de imagens midiáticas, e sim uma nova
organização social que estava se tornado hegemônica: um novo modo de vida, uma visão do
mundo característica desse momento histórico que então se originava. Como bem definiu o
autor ao afirmar que “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social
entre pessoas, mediada por imagens” (DEBORD, 1997, p. 11).
Além de toda essa problemática que envolve a circulação de imagens e sua inserção na
organização social contemporânea, existem outros aspectos igualmente importantes. Um deles
é o fato de que o tipo de sujeito que protagonizou o período histórico em que Debord se
debruça estava vivenciando uma modificação em torno da qual desenvolvia sua própria
subjetividade, passando a construir a si mesmo como uma imagem a ser vista e “consumida”
pelos outros. Colaborando com essa crescente incitação à edificação imagética corporal de
cada um, a mídia dissemina uma série de padrões e critérios do que é belo e do que não é, e
ensina como se deve fazer para se adequar a tais parâmetros fugindo da estigmatização por
falta de fitness. O corpo feminino em particular, nesse sentido, começou a sofrer inúmeras
pressões que são tipicamente contemporâneas.
Buscando compreender o surgimento desses padrões corporais que pressionam as
mulheres atuais, Naomi Wolf refletiu sobre a construção social do que é considerado belo ou
não. Ao estudar a super-valorização da beleza feminina ocorrida depois da revolução
industrial, a autora analisa esse fenômeno como constituindo um “mito da beleza”. Wolf
afirma que sempre houve tal mito, pelo menos desde os primórdios do patriarcado, mas que
tem peculiaridades importantes em sua forma contemporânea. Seu vigor atual está ligado à
mídia, precisamente: ao aparecimento da “indústria cultural” com seus dispositivos
tecnológicos e seus aparelhos de difusão em massa. Assim, certo ideal de beleza física
começou a ser infinitamente reproduzido em fotos, figurinos e películas. Isso permitiu que a
“beleza” se estampasse cotidianamente em revistas e jornais, que se projetasse nas telas de
cinema ou se imprimisse em histórias desenhadas diariamente para milhares de crianças,
jovens e adultos.
Ainda de acordo com Wolf, essa definição e divulgação do “corpo belo” foi apenas
uma das várias ficções sociais emergentes na época, que se mascararam como componentes
naturais da mulher, na tentativa desenclausurá-la em certa ordem social cujos mandatos
persistiam. Desse modo, outros mitos relacionados com o feminino também surgiram, como
por exemplo: uma ideia de infância que ordenava uma supervisão maternal constante; uma
noção da biologia feminina que exigia que as mulheres da classe média desempenhassem os
papéis de histéricas e hipocondríacas; a convicção de que as damas respeitáveis eram
sexualmente insensíveis; e uma definição do trabalho feminino que as ocupava com tarefas
repetitivas, morosas e entediantes ou consideradas “menores”, tais como os bordados e as
rendas (WOLF, 1992).
Se as mulheres precisam, realmente, se adequar aos postulados da beleza e da “boa
forma”, existiria então um medo em relação à feiura, que é diariamente cultivado pela cultura
de massa. Os códigos do que é considerado belo é reiterado sem pausa por todos os meios
possíveis de divulgação, com tanta veemência que adquiriu uma aura de veracidade e se
tornou parte de nossa mitologia mais viva. Assim, a beleza tornou-se uma virtude imposta à
mulher, inclusive às “liberadas” mulheres ocidentais contemporâneas. Talvez já cansadas de
inúmeras imposições, porém, várias delas têm buscado expor seus corpos na internet, com a
nudez de suas características mais fora do padrão, deflagrando assim a reivindicação de outras
formas de definir o “corpo belo”. Ou, então, de desconstruí-lo como um mítico mecanismo de
poder e de reivindicar novas maneiras de representação.
A nudez da mulher comum: almas e personalidades nuas
De acordo com alguns autores, vivemos em plena vigência do ideal da pele lisa, do
discurso da magreza e de certos padrões estéticos muito rígidos. Um desses pensadores é
Gilles Lipovetsky. Segundo o filósofo, a febre da trilogia composta por beleza, magreza e
juventude, exerce uma “tirania” implacável sobre a condição das mulheres contemporâneas.
Para esse autor, a obsessão pelo corpo magro, a multiplicação dos regimes, das diversas
atividades de modelagem corporal e o crescimento da realização de cirurgias plásticas, por
exemplo, testemunham o poder normatizador dos modelos impregnados na nossa cultura.
Nesse cenário, predomina um forte desejo de conformidade estética que, por sua vez, se choca
frontalmente com uma exigência de personalização e singularização dos sujeitos
contemporâneos (LIPOVETSKY, 2000, p. 143).
Assim, embora inserida nessa realidade que a aprisionaria esteticamente, para Gilles
Lipovetsky, a mulher contemporânea teria tomado as rédeas de seu próprio corpo e feito dele
seu veículo de libertação e expressão. Essa imagem da mulher “livre” de algumas amarras
sociais veio se configurando ao longo da história recente da nossa cultura, até chegarmos a
essa versão tão atual que Lipovetsky denomina “terceira mulher”. Trata-se de um tipo
feminino que deixa de depender do homem, numa época em que se torna possível o acesso
das mulheres às várias esferas da vida. Portanto, poder-se-ia resumir que a liberdade sexual, o
controle da maternidade, o direito de voto, a legitimidade dos estudos e da vontade própria, o
empedramento do próprio corpo e a possibilidade de se auto-representar, tudo isto conjugado,
deu origem à mulher atual, “terceira” por ser indeterminada, conforme o autor a define:
Desvitalização do ideal da mulher no lar, legitimidade dos estudos e do trabalho,
femininos, direito de voto, “descasamento”, liberdade sexual, controle da
procriação: manifestação do acesso das mulheres à inteira disposição dessas em
todas as esferas da existência, dispositivos que constroem o modelo da “terceira
mulher” (LIPOVETSKY, 2010, p. 237).
No entanto, e apesar dessa evidente “evolução” das atitudes, dos pensamentos e dos
comportamentos que se verifica na atualidade, ainda persiste todo um conjunto de “funções”
consideradas tradicionalmente femininas. Tais atribuições continuam a contribuir para que
perdure a visão “patriarcal” da sociedade ocidental, conforme a qual se mantém o dualismo
homem/mulher. Mesmo seguindo uma lógica masculina e atendendo a certos desejos
característicos de uma sociedade machista, a mulher contemporânea vivencia, entre outras
várias conquistas, a libertação de seu corpo também no que tange à possibilidade de exibir sua
nudez. Podemos concluir que, também nesse sentido, ela tomou as rédeas de seus desejos e
passou a se expor reivindicando um lugar de representação dos corpos negligenciados e
construindo assim novas formas de apresentação do eu e resistência aos padrões de beleza.
Assim, na tentativa de mapear algumas manifestações dessa lógica de “resistência” ao
assujeitamento dos corpos e aos padrões de beleza que estão em vigor na atualidade e são
possibilitadas pela lógica interacional da web 2.0, verificou-se que, nos últimos tempos,
diversos movimentos culturais e artísticos vêm usando a internet para disseminar seu repúdio
a essas novas e mais sutis forças opressoras. Tais ações contestatórias procuram alçar suas
vozes diante da “exclusão” ou da estigmatização dos corpos que não se adequam a certas
exigências estéticas, defendendo o direito a outras representações e apresentações de si.
Expõem-se e são denunciadas, assim, as omissões e as ausências perpetuadas pela mídia como
expressão dos valores dominantes. Entre os produtos midiáticos que parecem praticar tal
resistência, optei por analisar o trabalho desenvolvido pelo site Suicide girls, procurando
desvendar sua peculiar relação com os atuais vetores de “assujeitamento”.
Para ampliar um pouco mais essa questão, examinaremos esse produto midiático que
também discute os padrões de beleza vigentes e, além disso, nos dá pistas para compreender a
lógica de uma cultura participativa e uma nova forma de interação em comunidade existente
na internet. O site Suicide girls, uma web page, foi criada em setembro de 2001 por dois
autores identificados como Missy e Sean. O site se constitui como uma convergência
underground cujo privilégio é o louvor ao punk-sexy. A proposta é simples: expor corpos
femininos que não se enquadram nos padrões fashion, tais como a beleza da geek, da nerd e
da punk-rocker crivada de piercings e tatuagens. Dos trinta e quatro fotógrafos espalhados
pelo mundo para alimentar o portal, vinte e quatro são mulheres, que conseguiram fazer dessa
idéia seu conceito editorial e sua bandeira política, além de uma forma de representar ou
apresentar o corpo feminino.
Essa página na internet vende diversos produtos: de bottons a DVDs, passando por
roupas de yoga da marca. No final de 2003, o empreendimento ainda se consolidou como uma
agência de modelos e uma revista eletrônica, abandonando a atmosfera de “submundo” para
criar uma empresa cujo formato sustenta uma força previsivelmente longeva. Mas para além
dessa estratégia tão atual, o que mais interessa neste debate são as imagens de seus ensaios
fotográficos, que serão analisados a seguir.
As fotografias de nudez que o site explora não são de um erotismo explícito, e
possuem um teor altamente sensual. O que chama a atenção é a inserção dessas imagens na
prática do consumo e do espetáculo, sugerindo assim que a arte — por mais política e
idealista que seja — possui seu mercado rentável. O discurso dos fundadores do site defende a
liberdade feminina de expor e gozar de todos os prazeres sem culpa: seja a “culpa” de não
possuir um corpo esculpido à maneira das beldades midiáticas, ou seja aquela causada pelo
simples fato de ser mulher e sofrer, ainda hoje, os julgamentos morais da sociedade quando o
assunto é sexo. Os responsáveis definem o projeto do seguinte modo: “Suicide girls está na
vanguarda de uma geração de jovens mulheres que não concorda com a ideia sobre
sexualidade disseminada pela grande mídia”.3 Além disso, os participantes podem produzir
conteúdos, interagir com as modelos através de comentários e criação de tags, bem como
abrir blogs pessoais dentro do site e postar artigos que sejam relacionados com cultura, arte,
comportamento e uma variedade de outros assuntos.
Existe um ponto primordial a ser discutido sobre a lógica interacional desenvolvida
nesses sites, tal loja reconfigura as formas de apresentação de si e de representação social de
cada usuário pertencente à comunidade formada pelo site. É exatamente a partir da noção de
comunidade que devemos olhar com outro prisma as interações sociais internas do Suicide
girls. A noção de cultura participativa é crucial para o entendimento da emergência de uma
maneira de produzir cultura. Pensadores como Henry Jenkins tem discutido sobre a maneira
como pessoas utilizam-se de tecnologias digitais para construir comunidades de uma maneira
que não era possível no passado, segundo Jenkins “ ao invés de discutimos produção e
consumo como dois elementos que ocupam lugares diferentes, devemos vê-los como
participantes que interagem uns com os outros” (JENKINS, 2006, p. 3). Com isso, podemos
afirmar que convergência, redes de relacionamento e uma cultura participativa estão
reconfigurando a produção midiática e essas mudanças também são evidentes no
desenvolvimento e nas formas de representação de si na rede.
3
Tradução da autora: “SuicideGirls is at the forefront of a generation of young women and whose
ideals about sexuality do not conform with what mainstream media is reporting”.
Relacionar o tipo de relação existe no site Suicide girls com uma forma de interação
me comunidade é essencial para postular essas imagens como legitimadas para a
reivindicação de um lugar visível para esses corpos alternativos e fora do padrão midiático
tradicional e hegemônico. O site se constrói como um ambiente de consumo e de interação em
vários níveis, as garotas são pagas para a aparecer dão materialidade à comunidade e aos
mesmo tempo a comunidade pertence aos usuários que pagam para ver, comentar e postar
conteúdo. O que os une é uma nova forma de cultura online, que permite que as fronteiras
sejam borradas entre produtores e consumidores e é exatamente essa relação que os fazem
participar econômica e culturalmente da mesma lógica.
Por isso, essa foi a plataforma escolhida para que tais meninas pudessem questionar as
opressões ou “tiranias” sofridas pelas mulheres na contemporaneidade e encontrar uma nova
forma de se representar, se apresentar e construir uma forma comunitária e interativa de
resistir aos padrões estéticos. Mas, neste caso, isso ocorre de uma maneira diferente se
comparada à situação e à reação das mulheres da década de 1960, por exemplo.
No auge do movimento feminista, as artistas lutavam por uma auto-representação
identitária através da arte, mas elas tinham como intuito contribuir para uma discussão
política sobre os limites da libertação feminina e a inserção da mulher na sociedade como
produtora e criadora de bens valiosos. Porém, hoje, no início do século XXI, esse tipo de ação
se torna mais distante, à medida que as exigências em torno do consumo — e pela exposição
de si como alguém singular e visível — se tornam cada vez mais avassaladoras, sobretudo
através de mídias “alternativas” como a Internet. Teria se esgotado, então, aquele ideário
político e contestatório do movimento artístico feminista da década de 1960? E qual seria sua
relação com iniciativas como aqui estudadas?
Para responder a essas questões é preciso considerar que o mapa de subjetivação se
reconfigurou nas últimas décadas e, junto com ele, as pressões sobre os corpos femininos
também sofreram mutações. Surgem hoje novas maneiras de se inserir nos embates e nas lutas
e, nesse sentido, a internet exerce um papel extremamente importante. Por isso, as mulheres
contemporâneas tentam buscar diferentes formas de expressão e questionamento; modalidades
que se adequam ao atual projeto e aos modos de vida hoje hegemônicos ou, então, que sejam
eficazes na resistência contra o padrão vigente.
Além disso, a liberdade de poder expressar os próprios desejo e vontades através do
corpo de cada um, e a possibilidade de utilizar-se do mesmo como capital simbólico, é algo
que também alimenta, em certa medida, as engrenagens da sociedade contemporânea.
Portanto, acreditamos que seja possível identificar certos efeitos de poder e certa produção de
verdades nesses atos de ousada nudez feminina. Pois, além de se tornar sinônimo de
libertação sexual, é também através desse discurso feminista de defesa da exposição do
próprio corpo, que os atuais dispositivos de poder se disseminam, na medida em que tal
discurso:
...utiliza, como sempre, o que dizem as pessoas, o que elas sentem e o que elas
esperam. Ele explora a tentação de acreditar que é suficiente, para ser feliz,
ultrapassar o umbral do discurso e eliminar algumas proibições e de fato acaba
depreciando e esquadrinhando os movimentos de revolta e libertação (FOUCAULT,
2010, p. 233).
No trecho acima citado, Michel Foucault se refere a um conjunto de focos discursivos
que floresceram no século XIX, tais como a medicina, a psiquiatria, a legislação moderna, e
também a pornografia. Esses vetores se tornaram instituições centrais nos dois últimos
séculos, disseminando verdades sobre os indivíduos e, ao mesmo tempo, produziram e
colocaram em conhecimento público aquilo que era de cunho sexual. À luz dessas bases, cabe
então refletir de que maneira operam atualmente os mecanismos de poder que agem sobre os
corpos femininos. No caso desta pesquisa, por exemplo, é preciso pensar a liberdade corporal
e a busca por expor a própria nudez, como fenômenos inseridos numa sociedade que cada vez
mais exibe e captura o corpo da mulher (e não apenas dela). Nesse sentido, é necessário tentar
reconhecer nesses mecanismos algumas das relações de poder que estão em jogo na
contemporaneidade.
Hoje, os mecanismos de poder tipicamente modernos têm sido reconfigurados, mas de
algum modo continuam agindo nos corpos dos sujeitos. A mídia é uma das grandes
instituições que contribuem para a criação de discursos considerados verdadeiros. Os textos
midiáticos, em sua maioria, postulam verdades e geram necessidades. Esses desejos e
demandas têm alimentado as buscas pelos ideais corpóreos hoje vigentes, estimulando os
anseios para se fazer visível, e imprimindo através dessa visibilidade sua carta de alforria em
relação a algumas opressões sociais.
Por isso, o caso das modelos tatuadas do site Suicide girls funciona de uma forma
dúbia. Ao se declararem livres das amarras e das tiranias da beleza às quais a mulher
contemporânea está sujeitada, as jovens fotografadas se submetem a outra tirania bem
contemporânea: a da visibilidade. Precisam aparecer, de algum modo, para confirmar sua
existência e para legitimar sua relevância.
A preocupação com a beleza e o estímulo para moldar o corpo de cada um, conforme
esses modelos midiáticos, tornaram-se cada vez mais insistentes na sociedade contemporânea.
Porém, as práticas culturais como as desenvolvidas no site Suicide girls, parecem se
configurar no sentido contrário ao imperativo da beleza hegemônica Apesar de manter e
mesmo estimular seu aspecto mercadológico e a busca de uma auto-espetacularização, o site
abrem espaço para entendermos esse ambiente virtual como uma poderosa ferramenta de
apresentação do eu e construção identitária legitimada através dos próprios usuários e pela
produção de conteúdo colaborativo.
Considerações Finais
Diante da ampla possibilidade de circulação de imagem, interação e representação de
si que a internet vem trazer com a sua lógica de organização e sociabilidade, pudemos
identificar alguns aspectos do uso da rede para novas e alternativas maneiras de representar o
corpo feminino fora do padrão. Além disso, a exibição do corpo nu nesses sites reformula
uma expressão de autenticidade e possibilita a construção identitária, além disso combinadas
com um Ethos de comunidade (onde os consumidores também podem postar comentários e
escrever em blogs) esse site acaba se tornando um ponto de partida para pensarmos a ética da
representação sexual e novas formas de resistência aos padrões através da rede. Suicide girls
(bem como outros site semelhantes, como Nerve) pode ser entendido num contexto onde as
fronteiras entre representação sexual e social e representação de si são borradas e constituem
uma nova maneira onde identidade e comunidade se constroem. O site possibilita o acesso a
novas formas de representação do corpo mais diversificado e que contemple uma maior
diversidade.
Como quer que seja, no intuito de atingir certa libertação da moral atual e uma
afirmação da beleza singular, é cada vez maior o número de mulheres que tiram suas roupas
buscando expor “o que elas são” na visibilidade de sua pele e nesse contexto a lógica
interacional na web contribui em várias instancias para a efetivação dessa exposição e para a
circulação dessas imagens. Isso dá conta do mapa subjetivo vigente, já que na sociedade do
espetáculo para “ser” é preciso “aparecer”. Desse modo, se considerarmos a internet como um
mecanismo de poder, cabe concluir que as redes de poder se reconfiguraram e passaram a se
apoiar na lógica do estímulo, em vez de cultivar a repressão disciplinar. Como explica Paula
Sibilia, “os dispositivos de poder que vigoram na cultura contemporânea tendem a estimular a
experimentação epidérmica, convidando a colecionar sensações e a intensificar a experiência
imediata para usufruí-la ao máximo” (SIBILIA, 2008b, p. 110).
De algum modo, portanto, tal site – que representam e apresentam esses corpos “fora
do padrão na internet” -- pode ser considerado projetos identitários e formes ferramentas para
a construção e apresentação do eu, se seguirmos o conceito já apresentado por Erving
Goffman que defende a idéia de que o homem em sociedade, consciente ou
inconscientemente, sempre utiliza formas de representação para se mostrar a seus
semelhantes, empregando certas técnicas para a sustentação de seu desempenho, tal qual
um ator que representa um personagem diante do público. A perspectiva que emprega é
a da representação teatral, com base nos princípios dramatúrgicos. Para ele, a vida
apresenta coisas reais e, às vezes, bem ensaiadas. A diferença está no fato de que:
(...) no palco um ator se apresenta sob a máscara de um personagem para
personagens projetados por outros atores. A platéia constitui um terceiro
elemento da correlação. Elemento que é essencial, e que entretanto, se a
representação fosse real, não estaria lá. Na vida real, os três elementos ficam
reduzidos a dois: o papel que um indivíduo desempenha é talhado de acordo com
os papéis desempenhados pelos outros presentes e, ainda, esses outros também
constituem a platéia (GOFFMAN, 1999, p. 9).
Como vemos, os princípios da psicologia social traçados por E. Goffman diz
respeito a uma situação “real”, isto é, face to face. Estas noções, entretanto, são
empregadas na análise de um produto cultural
. Por isso, ao analisarmos e reconhecermos este produto cultural como um lugar de produção
de sentido e de atualização do eu de cada sujeito, esses produtos culturais podem também se
distinguir como focos de resistência que permitem abrir, ao menos, um precedente para a
discussão de certas questões relevantes sobre o estatuto da mulher na atualidade. Afinal,
podemos afirmar que — longe de ser algo antiquado e sem mais sentido no presente — o
feminismo ainda tem muito a dizer. Um bom exemplo foi a repercussão causada pela foto
retocada de Simone de Beauvoir que estampou a capa da revista francesa Le Nouvel
Observateur, em 2008, como uma homenagem ao centenário de seu nascimento. A imagem,
que mostrava a filósofa nua, foi retocada a fim de retirar do corpo de uma das maiores vozes
do feminismo as marcas feitas pelo tempo ou aquelas que, sob a moral atual, estariam “fora
do padrão” do que pode ser mostrado nas vitrines midiáticas (SIBILIA, 2008).
Nesse sentido, tais projetos poderiam ser pensados como um importante e válido
alerta para o que tem acontecido na sociedade atual em relação à mulher e seu corpo e o uso
da internet e de culturas colaborativas como ferramentas de resistência e apresentação do eu.
Mas é sempre importante olharmos esse fenômeno e os objetos aqui destacados com certo
distanciamento, procurando ver além do que se apresenta na superficialidade; somente assim,
será possível entender outras abordagens da complexa teia em que ele emerge, enxergando
nessas imagens outras questões válidas para serem discutidas e ampliadas num futuro bem
próximo.
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