Dabney

Transcrição

Dabney
Fundação Luso-Americana
Conselho Directivo:
Teodora Cardoso (Presidente)
Embaixador dos Estados Unidos da América
Jorge Figueiredo Dias
Jorge Torgal
Luís Braga da Cruz
Luís Valente de Oliveira
Maria Gabriela Canavilhas
Michael de Mello
Vasco Graça Moura
Conselho Executivo:
Rui Chancerelle de Machete (Presidente)
Charles Allen Buchanan, Jr
Mário Mesquita
Secretário-Geral: Fernando Durão
DIRECTORes: Fátima Fonseca, Paulo Zagalo
e Melo, Miguel Vaz
subdIRECTORes: António Vicente, Rui Vallêra
Responsável pelos Serviços Financeiros:
Maria Fernanda David
Responsável pelos Serviços Administrativos:
Luiza Gomes
Nesta edição resolvemos falar da crise
revelando o seu lado menos explorado
e menos catastrófico.
Assessores: João Silvério, Paula Vicente
Rua do Sacramento à Lapa, 21
1249-090 Lisboa | Portugal
Tel.: (+351) 21 393 5800 • Fax: (+351) 21 396 3358
Email: [email protected] • www.flad.pt
Paralelo
DIRECTOR: Rui Chancerelle de Machete
EDITORA: Sara Pina
coordenadora: Paula Vicente
secretariado da redacção: Cristina Cambezes
e Sofia Roquete
Colaboram neste número: Álvaro Monjardino,
Ana Catarina Santos, Ana Maria Silva, Augusto
Nascimento, Bernardo Nunes, Carlos Morganho,
Carla Baptista, Carla Martins, Carlos Riley,
Carmen Fonseca, Clara Pinto Caldeira, Fátima
Fonseca, Francisco Belard, Gaye Tuchman,
Jennifer Natali, Joana Fernandes, Joana Godinho,
Leonor Xavier, Marco Leitão Silva, Marina
Almeida, Maria Helena Nazaré, Mário Mesquita,
Matt Kondolf, Nélia Alves, Nuno Crespo,
Patrick J. Kennedy, Philip D. Murphy, Ricardo
J. Rodrigues, Ricardo Madruga da Costa, Ricky
Durães, Rita Siza, Roberto Saraiva, Rui Ochôa,
Rui Machete, Sandra Inês Cruz, Sara Pina,
Susana Neves, Werner Herzog e Victor Melo
Design: José Brandão | Susana Brito [Atelier B2]
Revisão: António Martins
Impressão: www.textype.pt
NIF: 501 526 307
Nº de Registo na ERC: 125
Periodicidade: semestral
563
[email protected]
Depósito legal: 269 114/07
ISSN 1646-883X
© Copyright: Fundação Luso-Americana
para o Desenvolvimento
Todos os direitos reservados
Caro leitor
O
s Dabney foram uma família de diplomatas americanos que
viveu nos Açores ao longo do século XIX e cujas experiên­
cias relatadas, na altura, por Roxana Dabney, estão agora
publicadas em livro, destinado ao grande público, que dá a conhecer a
vida no arquipélago, as relações transatlânticas e a sociedade de Nove­
centos. Enquanto importante marco histórico, o livro merece um largo
tratamento nas nossas páginas.
Ao contrário dos Dabney, da crise todos ouvem notícias a um ritmo
diário. Nesta edição resolvemos falar da crise revelando o seu lado menos
explorado e menos catastrófico: as novas ocupações que gerou, o contri­
buto para o aumento do emprego feminino, as oportunidades criadas.
A queda do Muro de Berlim e o surgimento de um novo mundo
também têm um destaque especial na última parte deste número.
A reforma da saúde nos Estados Unidos, o ensino superior norte­
‑americano e europeu e muitos outros assuntos de interesse para os
dois lados do Atlântico podem ser acompanhados nesta edição de
quase 100 páginas. Sara Pina
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índice
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05 |
capa
Editorial de
Rui Chancerelle de Machete
Especial “Os Dabney”
No Termo de Um Longo Mandato
06-23 | Especial “Os Dabney”
REVISTA DE IMPRENSA
Os Dabney: da correspondência
se faz história
por Marina Almeida
“É preciso não confundir os Dabney
com missionários”
Entrevista com Maria Filomena Mónica
por Susana Neves
[SAÚDE]
[ECONOMIA]
[PORTUGAL/EUA]
24-28 | Reforma da Saúde
nos EUA
29-40 | O outro lado da crise
41 | America where? ou as influências
americanas no mundo
por Patrick J. Kennedy
e Joana Godinho
por Sandra Inês Cruz
48 | Dos Açores e da Galiza.
Em busca do sonho americano
por Sara Pina
50 | Eleição para o Conselho de Segurança
da ONU: Portugal, Alemanha ou Canadá?
por Carla Baptista
60 |
Universidades
americanas
e europeias
84-95 |
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BREVES
FLAD como uma instituição não governamentalizada e com uma relação correcta
com a representação diplomática norteamericana em Lisboa. Sublinhou que a
FLAD tem hoje um património avaliado
entre os 165 e os 170 milhões de euros e
que evidencia no seu currículo um vasto
trabalho de apoio à promoção do desenvolvimento económico, cultural e social do
País. Para o futuro vê a FLAD “a desenvolver-se, a progredir”.
Conhecida a designação da nova presidente pelo primeiro-ministro, Rui Machete
disse que “Maria de Lurdes Rodrigues terá
todas as capacidades para o lugar”.
Afirmou desde logo reconhecer na antiga
ministra duas qualidades importantes:
“seriedade” e “persistência”.
A acompanhar Maria de Lurdes Rodrigues
continuarão Charles Buchanan (elemento
do CE desde 1988) e Mário Mesquita (que
integrou o CE em 2007).
Rui Machete permanecerá no cargo até
Maio próximo, com o objectivo de acompanhar as diversas iniciativas que marcarão
as comemorações dos vinte e cinco anos
da Fundação.
A nova presidente do Conselho Executivo,
Maria de Lurdes Rodrigues, assumirá funções
a partir de 1 de Maio.
RUI OCHÔA
Rui Machete, presidente do Conselho
Executivo da Fundação Luso-Americana,
considerou que, ao fim de mais de vinte
anos de exercício, chegou a altura de deixar
essas funções no termo do actual mandato.
O primeiro-ministro designou, entretanto,
Maria de Lurdes Rodrigues, ministra da
Educação do XVII Governo constitucional e
professora de Sociologia no ISCTE, presidente. Os dois outros elementos do CE,
Charles Buchanan e Mário Mesquita, foram
confirmados nos seus cargos.
A escolha de Maria de Lurdes Rodrigues,
feita pelo primeiro-ministro, foi conhecida
a 9 de Janeiro. A nova presidente assumirá
funções a partir de 1 de Maio próximo.
A designação ocorre na sequência do
anúncio de Rui Machete de se retirar das
funções que ocupa para permitir uma renovação. Em entrevista ao jornal Público, Rui
Machete considerou que “a decisão de sair
da FLAD não foi fácil”, pois “25 anos não
são três dias”. O actual presidente qualificou ainda, na sua entrevista, a actividade
desenvolvida pela Fundação ao longo destes vinte e cinco anos como “uma história
de sucesso”, tendo destacado o papel da
LUSA
Mudança no Conselho Executivo
da Fundação Luso-Americana
O Conselho Executivo da Fundação Luso-Americana cujo mandato termina no mês de Abril.
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editorial
No Termo
de Um Longo Mandato
Rui Chancerelle de Machete
A vida de todo o ser humano é uma aventura que se vai desvendando no tempo. Em
cada momento há oportunidades para o
exercício da liberdade e tomada de iniciativas e, também, constrangimentos derivados das coisas e, sobretudo, da acção dos
homens.
Passei os últimos vinte e
cinco anos dediChegou, contudo, a altura
cando parte
de pôr um ponto final nesta minha
importante da
ligação tão umbilical e afectuosa
minha actividacom a Fundação.
de à Fundação
Luso-Americana
para o Desenvolvimento. Poderei mesmo
dizer que vivi com paixão o projecto que
ela propõe.
Quando nela ingressei, esta era praticamente apenas um Decreto-Lei e um cifrão,
mais modesta do que o seu património
actual. Tinha, porém, uma missão, talvez
demasiado vaga e ambiciosa mas, por isso
mesmo, entusiasmante. Foi, ao longo dos
anos, crescendo em obras e multiplicando­
‑se em intervenções. Graças ao esforço dos
que nela têm trabalhado, tornou-se uma
instituição prestigiada, cuja participação
em iniciativas relevantes para o progresso
da sociedade portuguesa é frequentemente requerida. Outros, porém, melhor do
que eu, avaliarão com imparcialidade a sua
contribuição.
‘
’
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Chegou, contudo, a altura de pôr um ponto
final nesta minha ligação tão umbilical e
afectuosa com a Fundação.
Faço-o, após longa reflexão, consciente de
que o afastamento não será indolor para
mim, mas é útil para ambos.
Para a Fundação, porque experimentar
outras pessoas ao leme, numa pessoa colectiva de tão largo espectro vocacional, permitirá descobrir novas formas de realização
dos seus fins estatutários e afirmar novas
potencialidades; para mim, porque, para
além de um certo cansaço e entediamento
em porfiar nas mesmas batalhas contra
quem, americanos ou portugueses, não compreende a necessidade vital de uma Fundação
autónoma na sua gestão, embora sempre
cooperante e transparente, ainda tenho a
veleidade de julgar poder cumprir na vida
alguns sonhos que gostaria de realizar.
Aguardo confiadamente que a Fundação,
prosseguindo os objectivos que lhe foram
atribuídos, granjeie um reconhecimento
cada vez maior e mais alargado pelo seu
papel na sociedade portuguesa.
A todos, e foram muitos, desde os colaboradores mais próximos, aos que apenas
ocasionalmente trabalharam connosco,
quero, do coração, agradecer quanto fizeram em benefício da Fundação e dos fins
que prossegue e, de um modo particular,
a constância e lealdade do vosso empenhamento.
REVISTA DE IMPRENSA
por Ana Maria Silva*
Raridade Bibliográfica
“Esta obra é a primeira edição destinada ao grande público base­
ada nos ‘Anais da Família Dabney no Faial’, uma obra que Maria
Filomena Mónica considera ser ‘uma raridade bibliográfica’. Trata‑se de uma das obras mais relevantes sobre as relações entre
Portugal e os EUA e entre os Açores e o estado norte-americano
do Massachusetts, elaborada por Roxana Dabney. […]
Mário Mesquita, administrador da Fundação Luso-Americana,
salientou que o lançamento do livro em português pretende
‘alargar a um público mais vasto uma obra fundamental que
permanecia acessível apenas a eruditos e investigadores’ e ‘[…]
espera que as dimensões pouco superiores a um livro de bolso
desta edição, a cargo da Tinta da China, possa permitir uma
aproximação mais fácil dos leitores’.”
[ Lusa – 15 de Setembro, Francisco Ribeiro ]
ver o enriquecimento e preservação do legado que os Dabney
deixaram em Portugal e a sua influência enquanto família ame­
ricana repartida entre Boston e os Açores’.”
[ Correio dos Açores – 16 de Setembro, João Paz ]
Entreposto Comercial
“(Os Dabney) transformaram a pequena ilha do Faial num autên­
tico ‘entreposto comercial’ quando, no século XIX, foram inter­
rompidas as relações comerciais entre os EUA e a Inglaterra. Esta
família, que gerou quatro cônsules norte-americanos, esteve
também ligada à actividade da baleação nos Açores, introduzin­
do no arquipélago algumas das tradições dos baleeiros da Nova
Inglaterra.” [ A União – 17 de Setembro ]
Trabalho quase doloroso
Preservação do legado
“É, por isso, relevante a iniciativa e apoio financeiro da Fundação
Luso-Americana para o Desenvolvimento à edição pela ‘Tinta da
China’ do livro, quase de bolso, ‘Os Dabney – Uma família ame­
ricana nos Açores’, coordenado pela historiadora Maria Filomena
Mónica lançado em Ponta Delgada. A FLAD pretende, com esta
edição, ‘reforçar a importância deste tipo de trabalhos e promo­
“A obra original – ‘Anais da Família Dabney no Faial’ – resulta de
um trabalho de compilação de cartas, diários pessoais e artigos na
imprensa regional de uma das descendentes, Roxana Dabney.
O resultado forma três volumes e 1797 páginas. Mário Mesquita
queria chegar ao grande público e desafiou Filomena Mónica.
A historiadora trabalhou com Paulo Silveira e Sousa, investiga­
dor que teve ’um trabalho quase doloroso’ – cortar para dar
forma às 530 páginas. A FLAD quer agora avançar para uma
edição em inglês para divulgar a presença dos Dabney nos
Açores nos EUA.”
[ Diário de Notícias – 19 de Setembro, Marina Almeida ]
Centro do mundo
Sam Longfellow, amigo dos Dabney, fez muitos desenhos sobre os Açores. Aqui retrata a Horta.
“O Faial e a Horta, cenário quase permanente dos ‘Anais’,
aparecem-nos ali como centro de um mundo – o amplo mundo
dos Dabney que, sem telégrafo e com navegação à vela, ia dos
Estados Unidos da América a Valparaíso no Chile, ao norte da
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Europa e às Canárias. Nessa medida, perpassam ali as lutas
liberais portuguesas, a guerra da secessão norte-americana,
muito da história mundial dos três primeiros quartéis do sécu­
lo XIX […] a demonstrar que a centralidade destas ilhas, mais
do que a sua localização geográfica, decorre sobretudo da cul­
tura, do empreendedorismo e da capacidade de relacionamen­
to externo de quem nelas vive.”
[ Açoriano Oriental – 23 de Setembro, Álvaro Monjardino ]
Importância dos arquivos
familiares
“Os Dabney viveram na Horta entre 1804 e 1892. Os anais desta
interessante e cosmopolita família americana foram organizados
por Roxana Dabney (1827-1913). Uma antologia da tradu­
ção portuguesa destes anais acaba de ser publicada. ‘Os Dabney:
Uma Família Americana nos Açores’ tem a coordenação de Maria
Filomena Mónica e o apoio da Fundação Luso-Americana para
o Desenvolvimento. Um livro que nos chama a atenção para a
importância dos arquivos familiares.”
[ Expresso – 25 de Setembro, Miguel Monjardino ]
Cartas para unir oceanos
“A antologia Os Dabney, Uma Família Americana nos Açores acentua a
importância do seu singular espólio epistolar. […] Uma hipó­
tese de espreitar o universo privado de uma família sui generis
atenta e interveniente no seu tempo. E uma memória rara de
quando a realidade ainda se relatava por escrito, em estilo pró­
prio, em cartas que atravessavam os oceanos.”
[ Sol – 30 de Outubro, Filipa Melo ]
Os Senhores das ilhas
“Em 1806, John Bass Dabney, patriarca de uma abastada família
de Boston instala-se na Horta como cônsul-geral dos EUA e
empresário de excepção. Nos 86 anos seguintes, os Dabney são
verdadeiros senhores das ilhas, como prova o surpreendente
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O Professor Longfellow que dava aulas aos jovens Dabney desenhou a vida quotidiana nos Açores,
na segunda metade do século XIX.
legado epistolar em parte divulgado na antologia ‘Os Dabney
– uma Família Americana nos Açores’.
[ Ler – 1 de Dezembro, Filipa Melo ] Novos tempos
“O Faial ficou a dever aos Dabney a introdução de regras moder­
nas de comportamento, espécies botânicas, maquinaria e o hábi­
to do desporto e da vida ao ar livre. […] Paulo Silveira e Sousa,
responsável pela edição, explica a razão de ser da antologia:
‘Fazer chegar ao grande público uma obra que, devido à sua
extensão, ficaria relativamente ignorada’.”
[ Público, Ípsilon – 11 de Dezembro ]
Americanos no Faial
“Em 541 páginas, ‘Os Dabney – Uma Família americana nos
Açores’ […] é a história dos americanos que aterraram no Faial
e do mundo que lhes entrou pela vida dentro. […] John Bass
Dabney transforma-se no rico proprietário de uma frota comer­
cial e, uma década depois, parte para a cidade da Horta.
A iniciativa de publicar o livro é da Fundação Luso-Americana
e do seu administrador Mário Mesquita.”
[ Jornal i – 17 de Dezembro, Alexandre Soares ]
*LPM
Os Dabney:
da correspondência
se faz história
Gov. Reg. dos Açores, D.R. da Cultura, Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça
Por Marina Almeida
William Henry Dabney (1817-1888) no jardim de sua casa.
Um e-mail, um sms, um telefonema inter­
continental e chegam as notícias, as his­
tórias por contar. As imagens na hora, os
sentimentos a quente. Há dois séculos uma
família americana trocava intensa corres­
pondência, numa cadência quase impen­
sável para o ritmo actual. Viveram em
pleno Atlântico, na ilha do Faial, Açores,
entre 1806 e 1892. As cartas iam e vinham
de barco. Demoravam meses na viagem,
na notícia, na resposta. Eram manuscritas
na toada dos acontecimentos e das esta­
ções – e por vezes acabadas à pressa a
tempo de chegar ao correio flutuante pres­
tes a zarpar do porto. Os Dabney trocaram
centenas de cartas. Roxana, uma das últi­
mas descendentes a viver nos Açores,
empreendeu a tarefa de as reunir. Nasceram
os Anais da Família Dabney: três volumes e
1797 páginas. Contam muito mais do que
episódios da vida doméstica: são um
documento precioso para entender a vida
daquela época nos Açores.
Dezenas de e-mails trocados depois e do
outro lado da linha telefónica está Arthur
Lothrop. Tem sangue Dabney na família e
um enorme entusiasmo nas palavras. É o
conservador do arquivo dedicado à famí­
lia, existente no Luso Centro do Bristol
Community College (BCC), em Fall River,
Massachusetts (EUA). Lá estão dois origi­
nais dos cem existentes dos Anais – um
livro com circulação restrita na família –,
(outras) cartas, desenhos da época, ilumi­
nuras. Até um pequeno capote, traje típi­
co das mulheres açorianas, “muito rústico,
como se tivesse sido feito para uma bone­
ca”. Lothrop, 67 anos, guarda-os. Quer
que as gerações mais novas saibam ler
estas “magníficas” histórias e que, tal
como ele, se deixem transportar até ao
Faial de há cento e cinquenta anos.
“É divertido imaginar. Imaginar como
eles viviam naquela época, o que vestiam,
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Gov. Reg. dos Açores, D.R. da Cultura, Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça
o que faziam no Natal. Os escritos dos Saudades. Ele ficou muito espantado”, conta
Dabney eram muito detalhados. Foi assim Lothrop. Eles não sabiam, mas era a
que me interessei pela história da família”, semente do arquivo Dabney. Em 2004,
resume do outro lado da linha. “É muito quando se reformou, Lothrop já aprende­
invulgar um século de história baseada
ra a ler as histórias daquela família ame­
nas histórias de uma família”. Arthur deve
ricana (a sua) e queria passá-la às novas
estar a sorrir. Este homem é um Hickling gerações. “Nessa altura tinha muitos des­
– uma família de primos dos Dabney, que
ses livros no meu sótão e não estavam
também viveram nos Açores, em São lá a fazer nada”, conta. Arranjaram “uma
Miguel – foi trabalhar para o BCC, onde
sala, uma secretária e umas estantes”
há uma forte comunidade açoriana, “por e nasceu o arquivo, conta José Costa.
acaso”. Uma “funny
coincidence”, diz diver­
tido. Ainda não sabia
Neste, como noutros casos,
que a sua própria famí­
trata-se de preservar o património
lia tinha passado por
Portugal.
escrito e iconográfico e de o divulgar
Entretanto chegou-lhe
de maneira eficaz.
às mãos uma caixa de
um dos seus familiares.
Maria Filomena Mónica, Historiadora
Lá dentro estava o livro
Saudades da pr ima
Frances S. Dabney – que pertence à última “O que estamos a fazer é a divulgá-lo
geração a viver no Faial e deixou a ilha
junto dos estudantes. Há uma comunida­
com 18 anos (em 1874). Aos 40, já em de portuguesa muito forte e queremos
Boston a viver com duas irmãs, ela sabia
cativar os jovens para que eles possam ler,
bem o significado dessa palavra tão por­ interpretar e perceber como foi a vida
tuguesa: as saudades falaram mais alto e naquela época”, explica o conservador.
ela escreveu. Tal como os Anais, poucos
Ainda ao telefone, Lothrop recebe a notí­
volumes e de circulação na família.
cia: foi lançada nos Açores uma antologia
Tinha “uns 20 e tal anos” quando conhe­ dos Dabney, com uma selecção de cartas
ceu José Costa, o (português) director do dos Anais. “A sério? São excelentes notí­
Luso Centro. “Trouxe-lhe uma cópia de cias!”, diz. A Fundação Luso-Americana
Gov. Reg. dos Açores, D.R. da Cultura, Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça
A Fredónia foi comprada pelos Dabney à Cable and Wireless por 75 mil escudos.
Hoje é um infantário, mas no seu interior permanecem vestígios da construção original.
‘
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A Bagatelle foi a primeira casa da família.
Hoje está ao abandono.
– que apoiou a edição – vai agora avançar
para uma edição em inglês para chegar a
esse lado do oceano. “Óptimo! Assim já
posso ler”, exclama.
‘
’
Gov. Reg. dos Açores, D.R. da Cultura, Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça
Um livro, duas edições
Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores,
foi lançado em Setembro numa belíssima
e arriscada edição da Tinta da China. O
volume de 530 páginas é uma edição
seleccionada a partir do original pelos
historiadores Maria Filomena Mónica e
Paulo Silveira e Sousa. “Tenho recebido
algumas [reacções]: 100 por cento favo­
ráveis” diz Maria Filomena Mónica, coor­
denadora do livro e autora do prefácio.
Os Anais da Família Dabney no Faial são um
conjunto de cartas, diários pessoais e artigos
publicados na imprensa regional. Inicialmente
apenas disponíveis na língua original e com
circulação restrita na família, o livro de
Roxana Dabney recebeu uma tradução inte­
gral para português pela mão do Instituto
Açoriano de Cultura em 2005. Para Mário
Mesquita, administrador da FLAD, este novo
livro “está longe de ser um enfadonho calha­
maço de história e tem uma respiração pró­ e Sousa, a quem coube a “dolorosa” tarefa
pria conforme o autor”. A edição em inglês, de selecção na versão portuguesa, acredita
para divulgar nos Estados Unidos, deverá que, “desta vez, a selecção e as notas vão
estar concluída dentro de um ano. Paulo ser uma tarefa mais difícil, pois haverá que
Silveira e Sousa e Maria Filomena Mónica ter sempre em mente uma espécie de leitor
preparam-se para mergulhar novamente no americano imaginário”. Há, porém, trechos
mundo dos Dabney.
obrigatórios: “Penso que os episódios mais
“O mais difícil, mas também o mais ali­ interessantes nesta nova edição são aqueles
ciante, vai ser a obrigação de estudar a que se relacionam com a Guerra Civil
História dos Estados Unidos, a qual é rela­ norte-americana. Entre 1861 e 1865, o
tivamente pouco conhecida em Portugal, esforço militar de ambas as partes foi enor­
se comparada com a
de outro qualquer país
europeu. Como já
sucedeu na edição
Um Museu Dabney não poderá ser
portuguesa, será árduo
uma casa apenas destinada a albergar
cortar partes que,
numa primeira leitura,
as recordações desta família ou
nos parecem interes­
do período em que esteve nos Açores.
santes, mas que, se
quisermos, como que­
[…] Deveria ser capaz de albergar
remos, que a obra
os cruzamentos que o arquipélago
tenha uma difusão
alargada, terão de ser
sempre desenvolveu com as duas
postas de lado”, apon­
margens do Atlântico.
ta Maria Filomena
Mónica. Paulo Silveira
Paulo Silveira e Sousa, Historiador
A família de americanos tinha paixão pela natureza e dedicava-se a actividades ao ar livre.
10
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O “século Dabney”
Foram três os cônsules Dabney que vive­
ram na Horta ao longo de oitenta e seis
anos: John Bass Dabney, Charles William
Dabney e Samuel Willis Dabney. Apesar de
representantes dos Estados Unidos nos
Açores, não se limitavam à actividade
diplomática como hoje a conhecemos.
Dedicaram-se às actividades comerciais
pois a localização estratégica do porto da
Horta não passou despercebida e o clã – pri­
meiro orientado por um metódico John
Bass – colocou a ilha no centro de um
certo mundo. Exportavam laranjas, vinho
do Pico, óleo de baleia (usado para ilu­
minação, como o petróleo). Quando dei­
xaram a ilha, definitivamente, em 1892,
o seu legado não se apagou. Ficaram as
casas (texto anexo), o nome de uma rua,
um recanto no cemitério da Horta. E uma
grande curiosidade em torno daquela
época e daquela família que se instalou
numa ilha recôndita.
Filomena Mónica ajuda a situar-nos: esta
família estava “no topo do topo, eram a
elite [em Boston] e vieram instalar-se
numa ilha pobre” trazendo consigo novos
hábitos, novos negócios e uma inusitada
dinâmica. Uma espécie de “ilha dentro da
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Gov. Reg. dos Açores, D.R. da Cultura, Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça
me, tal como a destruição provocada. As
cartas e os diários dos Dabney mostram-nos
como o conflito era percepcionado e dis­
cutido entre uma família de protestantes
unionistas de Boston que sempre se mani­
festaram contra a escravatura. O conflito
entre o norte e os confederados, a sul,
não se ficou pelo território americano.
O Atlântico seria também o palco para
vários conflitos navais”, refere.
E se pudesse falar com um Dabney qual
escolheria? O investigador, que já leu de
fio a pavio os escritos insulares, admite
que “os Dabney eram todos um tanto
sisudos. Muito cultos e curiosos, mas se
calhar um tanto pedantes e livrescos ao
primeiro olhar”. Mas acede ao desafio:
“gostava de conversar com uns Dabney já
tardios, que quase não constam nos Anais
e nesta nossa edição, mas que foram exce­
lentes fotógrafos e deixaram álbuns fan­
tásticos. Hoje, uns estão na Biblioteca
Pública e Arquivo Regional da Horta e
outros no Whale Museum de New Bedford.
Acho que iríamos falar de fotografia e de
botânica e estou certo de que eles conhe­
ceriam todas as denominações das plantas
em latim.”
Vista do Pico do porto da Horta, cenário de intensa actividade comercial dos americanos no século XIX.
ilha” e três gerações que não passaram
despercebidas a Ricardo Madruga da Costa,
ainda estudante “no velho Liceu da Horta”.
O agora historiador e autor de vários tex­
tos sobre os Dabney não hesita em definir
o século XIX no Faial como “o século
Dabney”. E explica porquê: “A história do
Faial confunde-se de um modo inextricá­
vel com a própria história do seu porto
localizado na cidade da Horta. Assim, dada
a omnipresença dos Dabney em tudo o
que envolvia a actividade portuária – mesmo de uma forma quase exclusiva duran­
te algumas décadas do período em que
residiram na ilha – compreende-se que o
seu nome surja sempre associado ao que
de mais relevante ocorreu na sociedade e
na economia da ilha e do arquipélago
nesta época.”
Dos três, o que mais marcou os faialenses
foi precisamente Charles William, o segun­
do cônsul. Chegou à ilha com 13 anos,
cresceu no Faial e aprendeu português,
derrubando a barreira linguística da pri­
meira geração. Terá seguido os bons con­
selhos do pai e fez florescer os negócios
mas não esqueceu os faialenses. Contam os
escritos, Charles W. pagou do seu bolso
vários carregamentos de cereais para impe­
‘
Defendo que o
património edificado
pelos Dabney deveria
ser preservado, em
particular a sua primeira
residência, a Bagatelle.
Ricardo Madruga da Costa, Historiador
’
dir a população de morrer à fome. “They
called him the father of the poor” (“cha­
mavam-lhe o pai dos pobres”), ficou gra­
vado, até hoje, na sua pedra tumular.
Charles e outros 13 descendentes dos
Dabney estão sepultados no Cemitério do
Carmo, na Horta. O reconhecimento (visí­
vel) da sociedade açoriana ficou expresso
nas pedras dos mortos. Em 1863, a Câmara
da Horta doou um talhão do cemitério à
família. Lá está, na parede: “a Mr. Carlos
Guilherme Dabney e sua família pela sua
philantropia e actos de dedicação aos habi­
tantes do districto da Horta”. A placa em
português. Todas as nove lápides em inglês.
E a erva, que cresce.
11
Gov. Reg. dos Açores, D.R. da Cultura, Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça
As casas e as árvores
que (não) falam
A baía da Horta foi palco de conflitos navais em Oitocentos.
Não se vê na planta da Horta, mas a Rua
de São Paulo é estreita e docemente
inclinada – não fora esta uma ilha “pen­
durada” num vulcão. Procuramos a míti­
ca Bagatelle, a primeira casa dos Dabney
no Faial, aquela que faz brilhar os olhos
dos investigadores e encher as palavras
dos curiosos. Quer pela família e vida
algo vistosa que alojou, quer pela con­
trastante degradação – que ninguém
parece conseguir travar. Sabíamos que o
jardim da casa estava transformado numa
espécie de “selva amazónica” mas sem­
pre acreditámos que aquelas palavras
seriam algo exageradas. Assim, chama-
12
nos a atenção o verde descontrolado de
árvores e arbustos que surge por cima
de um muro alto e antigo. Procuramos
um rasgão naquela parede coberta de
líquenes e vegetação. Há um portão de
ferro, fechado, onde se acumulam folhas.
Do outro lado, uma enorme sombra. As
árvores, os arbustos, toda aquela vida
que os Dabney semearam cresce sem
dono. De tal maneira que é impossível
ver uma tira que seja do cor-de-rosa da
casa. Está um gato preto, vadio, do lado
de lá do portão. Tem caixas com restos de
comida que algumas vizinhas cúmplices
lhe deixaram. É o guardião daquela
impressionante explosão de natureza no
meio da cidade.
Há pouca informação sobre a Bagatelle
dos dias de hoje. A casa foi erguida entre
1812 e 1814 e terão vindo dos Estados
Unidos carpinteiros e madeira para con­
cretizar aquela construção que durante
anos terá mobilizado as atenções na
Horta. Charles William escreve ao irmão
e alvitra: “A nossa casa Bagatelle vai de
vento em popa e, quando pronta, será a
maior e mais agradável do Faial.” Na
mesma época escreve à mãe a pedir-lhe
que lhe envie sementes e plantas. O resul­
tado… está à vista.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
tilação próprio” – hoje ar condiciona­
do – e a enorme pedra da “boca” de um
forno que se adivinha imenso, à medida
de uma família grande, na cozinha. Mas
o que deslumbra são as magníficas janelas
de guilhotina, em três níveis. Maria
Antónia tenta abri-las para acedermos ao
apetecível terraço com vista sobre a cida­
de, o porto e o Pico. Ao piano de cauda
apetece-lhe ganhar vida e recordar as noi­
tes de música e festa.
Esta Cedars deixou uma espécie de “des­
cendência” na ilha. Isto porque as janelas
hexagonais – as chamadas bay window –,
que dominam as fachadas laterais, foram
depois reproduzidas
noutras casas. De resto,
explica a guia, “esta casa
é conhecida entre os
A Cedars, segunda casa da família
faialenses como a Cedars
House, mas ninguém a
americana no Faial, é, hoje,
conhece como a casa dos
a residência oficial do presidente
Dabney”. Uma espécie
de conjunto de palavras
da Assembleia açoriana.
sem significado.
Descendo a Rua Cônsul
núcleo museológico destinado a contri­ Dabney, ao número 60 corresponde uma
buir para o conhecimento científico das outra casa da família. Esta sim, cheia de
ilhas dos Açores”, disse o secretário regio­ vida e de cheiros. Ouvem-se risos e con­
nal do Ambiente, Frederico Cardigos, no
versas de crianças, cheira a sopa na
final da apresentação da antologia dos Fredónia – hoje Lar das Criancinhas da
Dabney.
Horta. Eduardo Pereira, director desta ins­
A Cedars, segunda casa da família ame­ tituição particular de solidariedade social
ricana no Faial, foi construída em 1851. fundada em 1951, conta que “a Fredónia
No topo da Rua Cônsul Dabney, esquina foi comprada, nos anos 70, por uma ins­
com a Marcelino Lima, está resplande­ tituição que albergava crianças órfãs, à
cente. Tem um jardim cuidado com dedo
Cable and Wireless [uma das companhias
de arquitecto onde se impõe, numa cota que instalou os cabos submarinos de
superior, uma magnífica e secular bela- comunicações na Horta] por 75 mil escu­
dos” e, apesar do fim da manhã atarefada
‑sombra, que apetece fazer falar. Hoje é a
residência oficial do presidente da como é hábito numa casa cheia, leva-nos
Assembleia Legislativa Regional dos Açores. numa visita. Conta que em 1996 o pala­
Tem bandeiras a esvoaçar, segurança vinte cete foi sujeito a obras que dividiram
e quatro horas por dia e acesso restrito, alguns dos grandes salões dos Dabney em
com visitas guiadas por marcação. Maria salas de aula ou refeitórios mais modestos
Antónia já fez algumas. Bem-disposta, toca – trabalhos que acompanhou de perto. Um
a ruidosa campainha antes de entrarmos. milhão de euros de obras que não apaga­
A incursão na casa é ao nível do primeiro ram todos os vestígios do passado. O chão
andar, na zona social. Os quartos, no piso em xadrez preto e branco recebe-nos à
superior, ficam na devida intimidade. Num entrada, outra vez as janelas de guilhotina,
primeiro olhar, na imediata impressão, é
o soalho de tábua corrida nos pisos supe­
como se visitássemos uma vulgar casa riores. E as duas imponentes lareiras de
remodelada. Mas um olhar mais atento ferro – quase anacrónicas nas salas com
mesas, cadeiras e meninos pequeninos.
deixa-nos perceber que a tinta, o verniz
e as mobílias renovadas não apagam a Eduardo Pereira vai dizendo que a casa
alma dos Dabney. Lá está o chão de tábua teve que se adaptar às novas funções e que
(debruado a basalto na sala de jantar), os também o sismo de 1998 obrigou a novos
batentes em ferro nas portas, os resquícios
ajustes. Explica-o enquanto percorremos
daquilo que terá sido um “sistema de ven­ corredores de tijoleira fresca que nos
‘
Gov. Reg. dos Açores, D.R. da Cultura, Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça
A Bagatelle foi vendida em 1892 à famí­
lia açoriana Goulart de Medeiros (hoje já
está noutras mãos). Conta-se que a casa,
onde foi rodado o filme Mau Tempo no Canal,
é agora abrigo de marginais. Está à venda
por um preço “exorbitante”. Consegue
ver-se o telhado e pouco mais a partir da
avenida Marginal e de outros pontos da
cidade. É enorme, mas se ninguém lhe
deitar a mão, um dia vem abaixo.
Melhor sorte tiveram a Fredónia e a
Cedars. Ou mesmo a ruína do Monte da
Guia, sobre a baía de Porto Pim. Da ruína
deverá nascer uma nova casa, “com o
aspecto da original”, que vai receber um
’
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
O jardim da casa Fredónia.
levam às cozinhas modernas, onde domi­
nam o aço inox e as afanosas funcionárias
de avental e touca. Não deixa de ir fazen­
do as pontes (possíveis) com o passado:
“Queremos recuperar a fachada e aproxi­
má-la ao que era dantes.” Talvez para o
ano. No exterior, o jardim onde reina uma
árvore que dá sombra a uma zona do par­
que infantil. Mas rezam os relatos que no
jardim dos Dabney existia uma alameda
de sobreiros e uma imponente araucária
excelsa (daquelas que gostam de tocar o
céu). As fotos da época mostram um desa­
linho de verde, que foi apagado. Sobram
aqui e ali dragoeiros, no meio do alcatrão
do pátio da entrada. “O jardim foi todo
alterado, tinha um lago e mais árvores”,
resume Eduardo Pereira – chamado de
quando em vez a regressar ao passado.
“Há três ou quatro anos” recebeu, tam­
bém, duas netas dos Dabney para uma
visita guiada. Despede-se e volta aos
comandos do lar, no computador. A vida
segue na Fredónia. MA
13
“É preciso não confundir os Dabney
com missionários”
Maria Filomena Mónica que, juntamente com Paulo Silveira e Sousa,
seleccionou os textos e prefaciou Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores,
fala-nos do seu trabalho.
Rui Ochôa
Por Susana Neves
[Paralelo] No prefácio da antologia Os Dabney
– Uma Família Americana nos Açores,
Maria Filomena Mónica cita vários relatos de viajantes que passaram pelo Faial no século XIX. De
que maneira se aproximam ou distanciam dos
Anais de Roxana Dabney, seleccionados e reunidos
neste livro?
[Maria Filomena Mónica] Antes de entrar no
relato de Roxana, quis dar ao leitor moder­
no a possibilidade de conhecer esta família
e como ela se relacionava com os habitantes
da ilha. Os Dabney viveram no Faial o tempo
suficiente (três gerações, um século) para
terem uma visão lúcida, mesmo se distante
ou por vezes sobranceira, dos faialenses. De
facto, gostavam de lá viver. O trágico con­
siste em não terem podido legar quase nada
à ilha, porque a distância entre o analfabe­
tismo local e a cultura de onde provinham
era profunda. Por outro lado, no Faial não
havia escolas para os Dabney educarem os
filhos, de maneira que os pais os enviavam
para as escolas, primárias e superiores, de
Boston (uma delas pertencente a Harriet
Beecher Stowe, a autora da famosa obra,
A Cabana do Pai Tomás, seguindo depois para a
Universidade de Harvard). Este tipo de edu­
cação e o facto de não se terem casado com
locais aumentou a distância relativamente à
comunidade. Do ponto de vista de uma
possível modernização da economia da ilha,
o que deixaram foi pouco, até porque eram
negociantes. O Faial era um entreposto
comercial, não a base de uma qualquer
indústria.
No prefácio do livro, Maria Filomena Mónica cita vários relatos de viajantes.
14
[P] Um dos temas que atravessa o livro é o preconceito. Como é que as diferentes culturas reagem umas
perante as outras?
[MFM] Como quase todos os relatos de
estrangeiros que visitaram os Açores provêm
de protestantes chegam-nos eivados de
alguns preconceitos (o mesmo se passaria
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Rui Ochôa
se o inverso fosse o caso). Seja como for,
estes tendiam a pensar que era a religião
católica que provocava o atraso. Nisto, há
uma parcela, mas só uma parcela, de ver­
dade, uma vez que muitos outros factores
explicam o subdesenvolvimento do Portugal
oitocentista. A parte em que tinham razão
está relacionada com a ênfase posta na lei­
tura da Bíblia pelas comunidades protestan­
tes, o que não sucedia com as católicas, onde
bastava saber o catecismo de cor.
[P] Relativamente a Roxana Dabney (1827‑1913) sabe-se muito pouco…
[MFM] Sobre Roxana Dabney só se sabe o
que ela diz ou o que deixa ver. Ela tem
orgulho na família, isso é certo. Mas é pre­
ciso recordar que foram as sobrinhas que a
incentivaram a recolher e guardar o material
memorialístico. Esta tradição – a de guardar
os papéis da família – quase não existe em
Portugal, o que é negativo. Os Anais surgem
devido ao brio familiar e não por razões
genealógicas, embora os Dabney estivessem
convencidos que descendiam da aristocracia
francesa, os d’Aubigné. Roxana Dabney reu­
niu os papéis para ilustração da família, não
para um público em geral.
[P] Roxana Dabney destaca a personalidade exemplar de Charles Dabney mas a sua filantropia não
é consensual entre os leitores dos Anais.
[MFM] Alguns açorianos têm dificuldade em
reconhecer o carácter filantrópico das acções
dos Dabney. Estes eram ricos, cultos e…
generosos. Em momentos de crises de abas­
tecimento, como sucedeu durante a década
de 1850, quando houve fome um pouco
por todo o lado, o Governo de Lisboa não
tinha meios para alimentar as populações
do Continente, quanto mais a das ilhas.
Depois de terem aberto um peditório em
Boston, os Dabney mandaram vir barcos
com trigo dos Estados Unidos, a expensas
suas. Outro factor que nem sempre está
presente, na avaliação do que fizeram ou
deixaram de fazer, é que eles estavam no
Faial para fazer negócios. Os Dabney eram
empresários, ou seja, gente que buscava o
lucro: não tinham ido para lá como missio­
nários. É preciso ainda recordar que a esco­
lha do Faial foi determinada porque
eclodira uma guerra [entre a França e a
Inglaterra]. Não podendo dar continuidade
aos seus negócios em França, John Bass
Dabney, o primeiro a instalar-se nos Açores
em 1804, optou por ir viver para aquela
ilha, situada a meio do oceano, ideal para o
comércio interatlântico.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Maria Filomena Mónica: a família Dabney era coesa, mas havia dissidentes...
[P] A religião dos Dabney era o unitarismo, depois [P] O norte-americano Joseph C. Abdo, autor de
aceitam o transcendentalismo de Emerson pelo qual
um livro sobre os Dabney (On the Edge of
se defendiam “as virtudes do individualismo”. Em History, Tenth Island Editions, 2006)
que medida, esta família que em grupo deixa os aponta o crescimento da família como um dos
Açores em 1892, era uma família de indivíduos?
factores de perda de qualidade de vida e o dese[MFM] A família era coesa, mas havia dissi­ jo de regressar aos Estados Unidos. Qual a razão
dentes. Por exemplo, Nancy casou com José
da partida dos Dabney?
Maria de Avelar Brotero, coisa de que ini­ [MFM] O regresso dos Dabney ficou a
cialmente a família não gostou. Este acabou dever-se à inovação tecnológica. A passa­
por se revelar um homem com enormes gem da vela para o vapor, a perda de dina­
capacidades, tendo até sido ele a fundar a mismo face a um rival poderoso, os
primeira Faculdade de Direito
no Brasil. É divertido verificar o
que o filho de Nancy, João,
Alguns açorianos têm dificuldade
escreveu a um amigo quando foi
em reconhecer o carácter filantrópico
à Horta, a fim de visitar os pri­
mos: a troça que faz da sua
das acções dos Dabney. Estes eram
mania da ginástica, as observa­
ricos, cultos e… generosos.
ções sobre o rigor como eram
educados, a atitude em relação
ao seu puritanismo, o que, na sua opinião, Bensaúde, uma família judia com interes­
tornava o quotidiano daquela família ame­ ses no carvão e finalmente o aparecimen­
ricana insuportavelmente aborrecido.
to da doca de Ponta Delgada, que começou
a ser construída entre 1862 e 1863. Os
[P] Apesar do negócio estar quase sempre acima Dabney aperceberam-se que não poderiam
de tudo, até da política, durante a Guerra Civil, vencer os Bensaúde nem fazer com que a
Charles William Dabney, segundo cônsul, rejeita Horta suplantasse Ponta Delgada. E deci­
vender carvão aos navios sulistas. Quem era afinal diram partir. Na regata oferecida pelos
Charles Dabney?
habitantes da Horta [24 de Junho de
[MFM] O facto de o Sul afirmar a necessi­ 1891] vê-se que a população estava grata
dade de trabalho escravo nas plantações à família. Infelizmente, a memória da sua
nunca convenceu Charles Dabney, que
presença é hoje ténue. Quando o livro foi
apoiou o filho, quando este optou por se lançado no Faial, a jornalista do Diário de
alistar no exército da União. Do ponto de
Notícias, Marina Almeida, foi ao cemitério
vista da religião, a família seguia o unita­ local [do Carmo] e já ninguém sabia, nem
rismo, uma fé progressista típica dos patrí­ o coveiro, onde estavam os túmulos dos
cios bostonianos.
Dabney.
‘
’
15
Uma blogosfera do século XIX
Por Mário Mesquita*
DR
É para mim uma honra e um prazer apresentar-vos
uma iniciativa cultural da FLAD que consiste na
publicação do livro Os Dabney – Uma Família Americana
nos Açores, bela edição de capa dura e formato quase
de bolso com que a Tinta da China nos brindou.
Trata-se de uma antologia da obra monumental
intitulada Annals of the Dabney Family in Fayal composta
por três volumes, com quase duas mil páginas. John
Da esquerda para a direita:
André Bradford, Gavin
Sundwall, cônsul americano
nos Açores, e a vice-cônsul
Janett Rebert, com Mário
Mesquita no lançamento do
livro em Ponta Delgada.
16
Bass Dabney foi nomeado cônsul nos Açores pelo
Presidente Jefferson, no ano de 1806. Durante três
gerações os membros da família Dabney assegura­
ram a representação diplomática dos Estados Unidos
da América nos Açores. Os Dabney não se limitaram,
porém, a exercer influência política. Foram grandes
homens de negócios. A sua prosperidade relaciona­
va-se sobretudo com o mar e o comércio marítimo:
foram armadores e proprietários de navios para
transporte de passageiros e mercadorias entre a Nova
Inglaterra e os Açores; dedicaram-se à venda de
produtos americanos a barcos europeus e vice-versa
e à exportação de laranjas e de vinho do Pico. Eram,
naquele tempo, a principal força económica das
ilhas. Poderia dizer-se que os Dabney desempenha­
ram nos Açores de Oitocentos um papel semelhan­
te ao que os Bensaúde representaram para o
Arquipélago no século XX. Os Anais foram compi­
lados no final do século XIX por Roxana Dabney
que reuniu nesta obra uma selecção dos principais
documentos da família, repartida entre a América
e Portugal, Massachusetts e os Açores, Boston e a
Horta. Não são um livro açoriano, nem português,
nem bostoniano, nem americano. São tudo isso ao
mesmo tempo. E é isso que faz o seu fascínio.
Roxana reuniu uma vasta colecção de cartas, diários,
artigos e outros textos escritos pela família dos dois
lados do Atlântico. Dela consta a descrição de revol­
tas populares e bailes burgueses, de batalhas marí­
timas e passeios campestres, de erupções vulcânicas
ou de problemas particulares da família, de refe­
rências à Guerra Civil Americana ou à presença nos
Açores dos exilados liberais.
Os Anais da Família Dabney no Faial são uma obra poli­
fónica em que se manifestam as vozes dos membros
da família, dos seus amigos e parceiros de negócios.
Com algum exagero, poderia dizer-se que estes Anais
constituem uma espécie de antevisão da blogosfera
no século XIX, uma blogosfera oitocentista mais
restrita, culta, ilustrada do que a do nosso tempo.
Ao convidar a professora Maria Filomena Mónica
e o Dr. Paulo Silveira e Sousa para prepararem esta
antologia – intitulada Os Dabney – Uma Família Americana
nos Açores – o nosso objectivo foi alargar a um públi­
co mais vasto o acesso a esta obra fascinante.
Esta edição portuguesa é apenas uma parte da nossa
iniciativa. A Fundação Luso-Americana já solicitou
aos mesmos investigadores a elaboração de nova
antologia, com dimensão semelhante, mas, desta
vez, em inglês e tendo em vista leitores luso-des­
cendentes ou americanos. Além do valor cultural,
enquanto narrativa e fonte histórica, esta “família
americana nos Açores” pode transformar-se igual­
mente, quero crer, num instrumento de diplomacia
cultural, num traço de união entre portugueses e
americanos, açorianos e bostonianos.
Este artigo é uma edição do texto de apresentação do livro.
*Conselho Executivo da FLAD
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Boston Brahmins
Por Álvaro Monjardino*
‘
Cenário quase permanente dos factos revividos
nos Anais, o Faial e a Horta ressaltam ali,
digamos que naturalmente, como centro de um
mundo – o mundo dos Dabney, que, acentue-se,
nunca se circunscreveu aos Açores.
’
sara pina
Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores é uma obra
que se propõe divulgar o que há de porventura mais
impressivo nos Anais da Família Dabney no Faial, sobre­
tudo com vista a quem poderia assustar-se face aos
três imponentes volumes da edição que o Instituto
Açoriano de Cultura lançou entre 2004 e 2006.
O livro é enriquecido com um excelente prefácio
de Maria Filomena Mónica, que nos traz ao Faial do
século XIX – um Faial, diga-se, quase exclusivamen­
te descrito por estrangeiros, a quem José do Canto
faz excepção. Também não havia grande alternativa,
pois só praticamente aqueles escreveram e publicaram
sobre o assunto. O prefácio resume ainda a história
destes Boston Brahmins, descendentes já americanizados
de huguenotes franceses e que, ao longo de três gera­
ções, foram proeminentes na sociedade da Horta, onde
exerceram funções consulares, mas vivendo e pros­
perando de comércio exportador e da actividade de
ship-chandler. Releva ainda os intuitos apologéticos de
Roxana, neta do primeiro patriarca dos Dabney do
Faial, filha do segundo e irmã do último deles, que
escreveu para as suas sobrinhas esta história familiar,
afinal inacabada, a julgar-se pela declarada intenção
da autora de a completar com uma segunda parte o
que, tanto quanto se saiba, não chegou a realizar.
O livro inclui também as notas de Paulo Silveira
e Sousa, seleccionador dos textos que pareceram
mais significativos dos Anais. A maior parte dessas
notas é biográfica, de pessoas ali referidas, muitas
das quais passaram pela casa e pela mesa dos
Dabney durante o período que vai do início aos
anos 70 do século XIX, mostrando-nos bastante do
relevo social, político e até científico de quem cru­
zava o Atlântico e se detinha naquele porto e naque­
las casas – que várias eram, e em crescendo, tanto
na Horta como fora dela.
Cenário quase permanente dos factos revividos nos
Anais, o Faial e a Horta ressaltam ali, digamos que natu­
ralmente, como centro de um mundo – o mundo dos
Dabney, que, acentue-se, nunca se circunscreveu aos
Açores, porque ia dos Estados Unidos da América a
Valparaíso, ao Brasil, ao Norte da Europa e às Canárias.
E é nessa medida que no livro perpassa muito da his­
tória mundial dos três primeiros quartéis do século
XIX, numa perspectiva que, feminina e/ou doméstica,
de modo nenhum é provinciana, evidenciando antes
como a centralidade destas ilhas, bem mais que a sua
localização geográfica, decorre sobretudo da cultura,
do empreendedorismo e da capacidade de relaciona­
mento externo de quem nelas vive.
Este artigo é uma edição do texto de apresentação do livro em Angra
do Heroísmo.
Álvaro Monjardino na apresentação em Angra do Heroísmo, Terceira.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
*Instituto Histórico da Ilha Terceira/Academia Portuguesa da História
17
O pulsar turbulento do Atlântico
Por Ricardo Madruga da Costa*
‘
Felicitemos os intervenientes e felicitemos
a nossa terra que por via dos Dabney ganhou
forte protagonismo, reflectido eloquentemente
nos Anais da Família Dabney no Faial que agora
surgem em conveniente antologia.
’
Gov. Reg. dos Açores, D.R. da Cultura, Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça
Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores, obra que
ocupa 533 páginas de um volume graficamente
muito bem conseguido e utilizando elementos a
denotar sensibilidade artística em consonância com
a época em causa, contempla um prefácio da auto­
ria de Maria Filomena Mónica sobre o qual não é
possível omitir um comentário.
Trata-se, na verdade, de um ensaio que esboça
um perfil da Horta recobrindo a época a que se
refere a antologia. Não é demais sublinhar que
Maria Filomena Mónica, entre os vários exempla­
Ricardo Madruga da Costa: “[o livro é] um ensaio que esboça
um perfil da Horta recobrindo a época”.
18
res de literatura de viagens a que poderia recorrer,
convocou aqueles que, porventura, mais objectiva
e detalhadamente se debruçaram sobre a Horta
da primeira metade de Oitocentos, pese embora
a sua visão preconceituosa, nomeadamente quan­
do se trata de manifestar opinião em matéria reli­
giosa. Referimo-nos ao capitão Boid, secretário
do almirante George Sartorius, que aqui perma­
neceu aquando da preparação da expedição de
D. Pedro, e aos irmãos Bullar, estes e aquele, auto­
res de dois livros de viagens que, em meu enten­
der, mais fielmente espelham o quotidiano e a
sociedade da ilha do Faial na época visada. Acresce,
naturalmente, tratar-se de duas obras escritas por
quem privou com os Dabney.
Para além do cuidado literário, condicionado pela
compreensível economia do texto, esta obra é uma
peça da maior utilidade – mesmo imprescindível – para que o leitor se sinta identificado com
a leitura que a antologia oferece.
O livro contempla peças essenciais do percurso
que Roxana Dabney imprimiu aos seus Anais. Mas
há um aspecto que esta antologia obriga a desta­
car e que acrescenta um valor assinalável a este
trabalho. Refiro-me às notas que Paulo Silveira e
Sousa, evidenciando notáveis recursos de erudição,
foi apondo ao longo das páginas com que foi
compondo a antologia. E isto, dito deste modo,
parece pouca coisa. Só que, na verdade, a profusão
das anotações e a riqueza da informação que estas
contemplam, fazem deste exercício crítico um
contributo merecedor do maior apreço.
Felicitemos os intervenientes e felicitemos a
nossa terra que por via dos Dabney ganhou forte
protagonismo, reflectido eloquentemente nos Anais
da Família Dabney no Faial que agora surgem em con­
veniente antologia, mas a revelar de igual modo,
como já escrevemos, “[…] o pulsar turbulento
do Atlântico […] fazendo do Faial uma terra de
vanguarda e um entreposto indispensável à eficaz
ligação das margens deste oceano, cobrindo todas
as direcções”.
Este artigo é uma edição do texto de apresentação do livro no Faial.
* Historiador
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Os Açores do outro lado do espelho
Victor Melo/O Retrato
Por Carlos Riley*
A família Dabney, que, ao longo de três gerações
no decurso do século XIX, formou uma verdadei­
ra dinastia consular americana no arquipélago
– não obstante representar uma jovem república – trouxe para as ilhas, designadamente para
o Faial, um sopro de cosmopolitismo que ainda
hoje perdura na memória da cidade da Horta.
Importa, contudo, aprofundar e caracterizar melhor
a natureza desse cosmopolitismo que, doutra forma,
não passa de simples cliché e, nesse sentido, ninguém
melhor do que Maria Filomena Mónica para nos
abrir as portas do mundo dos Boston Brahmins a que
os Dabney pertenciam. Trata­­‑se, aliás, de um feliz
reencontro, pois conforme a autora do prefácio
explica logo de início, foi Mário Mesquita que
lhe abriu as portas dos Dabney, com uma série de
artigos publicados em 1981 no Diário de Notícias, e
foram os Dabney que lhe abriram as portas dos
Açores, tendo cabido à Biblioteca Pública de Ponta
Delgada o privilégio de
servir de vestíbulo de
entrada, pois foi nas
antigas instalações da
Graça, em 1988, que
Maria Filomena Mónica
consultou pela primeira
vez, ainda em microfi­
cha, a velha edição dos
Annals of the Dabney Family
in Fayal compilados por
Roxana Dabney, e impres­
sos em 1899 para exclu­
siva circulação entre os
membros da família.
Os Dabney – Uma Família
Americana nos Açores, além
de se apresentar como
alternativa amigável, na
perspectiva do leitor não
investigador, às cerca de
1800 páginas em três
volumes dos Anais da
Família Dabney recente­
Carlos Riley: É tempo de os Açores deixarem de olhar
para si próprios só ao espelho da emigração.
mente publicados pelo
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Instituto Açoriano de Cultura, encontra-se prefacia­
do por alguém que, devido ao seu afecto e inte­
resse pela figura de José do Canto, conhece como
poucos o ambiente cosmopolita das elites açorianas
do século XIX.
Gostaria de deixar uma nota sobre os novos cami­
nhos abertos por este livro para uma reavaliação
mais exigente e rigorosa das relações entre os
Estados Unidos da América e os Açores, quantas
vezes obsessivamente reduzidas ao monismo dos
Acordos da Base das Lajes ou à saga da emigração
açoriana para o continente americano. Faço votos
para que este merecido investimento na divulgação
e valorização das memórias de uma família ianque
nos Açores do século XIX, possa servir de exemplo
e incentivo para que se empreendam iguais dili­
gências na recuperação de outro importante lega­
do documental familiar, o dos Hickling, cujo
espólio se encontra preservado – e em grande parte
inédito – nas colecções da Massachusetts Historical
Society em Boston.
É tempo de os Açores deixarem de olhar para si
próprios só ao espelho da emigração. Tal como
Alice, importa também considerar o outro lado do
espelho, onde se encontram os Boston Brahmins à
espera de serem lidos, estudados e compreendidos
para proveito de nós todos. Vistos do outro lado
do espelho, os Açores, podem não exibir o seu
melhor perfil, mas uma coisa é certa, surgem-nos
menos isolados e periféricos do que frequentemen­
te julgamos e, mais importante ainda, apresentam
um quadro de relações com os Estados Unidos da
América que, ao contrário das ideias hoje instaladas,
não se processaram num único sentido.
Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores vem­
‑nos lembrar que os westerlies, os ventos predo­
minantes que sopram de Oeste, empurraram
primeiro os americanos para os Açores e creio
ser chegada a altura, com a publicação deste livro,
de começar finalmente a contar essa história pelo
princípio.
Este artigo é uma edição do texto de apresentação do livro
em Ponta Delgada.
* Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada
19
PORTUGAL/EUA
PALCUS homenageia
luso-descendentes
O 13.º aniversário da PALCUS (Portuguese-American Leadership Council
of United States) comemorou-se num jantar realizado,
no Clube Português da cidade de Hartford, no estado de Connecticut.
Por Nélia Alves
A representar o congresso nacional esteve
o congressista John Larson, do estado de
Connecticut. O embaixador de Portugal em
Washington DC, João de Vallera, também se
deslocou propositadamente a Hartford.
Mário Mesquita, da FLAD, salientou a preocupação que deve existir na definição de
estratégias próprias num país como os
Estados Unidos onde a comunidade se
encontra dispersa em diferentes estados.
Nélia Alves
Devidamente decorada para o efeito em
tons de branco e preto, a sala do Clube
Português vestiu-se de gala para receber os
cerca de 200 convidados que quiseram
prestigiar a organização. Fernando Gonçalves
Rosa, vice-presidente da PALCUS, deu inicio à cerimónia dando as boas-vindas aos
directores da PALCUS ali presentes e que
vieram de diferentes estados, aos membros,
convidados e amigos.
João Luís Pacheco, presidente da Casa dos Açores da Nova Inglaterra, com Pilar Coelho,
vencedora do Prémio “Promessa Nova Geração”.
20
John Bento, presidente da organização,
reforçou o importante papel da PALCUS
junto da comunidade portuguesa emigrante. Bento referiu os problemas que organizações deste tipo têm e foi mais longe
dizendo que “muitas vezes os maiores inimigos estão dentro da comunidade”.
A cerimónia prosseguiu com a entrega
dos prémios. Foi homenageado Paul Tavares
com o prémio de serviço público.
Paul Tavares, filho de açorianos que emigraram em 1930, tem um longo currículo
enquanto político no estado de Rhode Island
onde reside um grande número de portugueses e luso-descendentes. O prémio para
“destaque nacional” foi entregue ao jovem
luso-descendente David Leite, autor de um
livro sobre gastronomia portuguesa, um
discurso emotivo sobre a sua avó portuguesa que teve uma importância fundamental
na sua vida e na decisão de escrever sobre
os sabores da cozinha portuguesa. O prémio para negociante do ano foi
entregue a Manuel Eduardo Garcia Vieira
oriundo da ilha do Pico. Vieira começou
por trabalhar com o seu tio numa exploração agrícola, tendo mais tarde adquirido o negócio. Hoje é o maior produtor
do mundo de batata-doce.
A jovem Pilar Coelho foi galardoada com
o prémio “Promessa Nova Geração”. Pilar
nasceu em Providence e é filha de emigrantes originários da ilha Terceira.
E, finalmente, o prémio “Filantropia” foi
entregue a José Covas, natural de Trás­‑os­
‑Montes, pelo trabalho desempenhado junto
da sua comunidade em Nova Iorque.
Antes de se encerrarem os microfones,
houve ainda tempo para se anunciar a
próxima gala: será no portuguesíssimo
estado de Massachusetts.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
“Os Dabney são pioneiros na relação
transatlântica”
Paulo Silveira e Sousa, que foi responsável, com Maria Filomena Mónica, pela organização
do livro Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores.
ção tem um carácter quase quotidiano,
rotineiro, quase banal, podia dizer. Não
é só a história política e administrativa
e de uma família de cônsules, mas acima
de tudo é a história do que essa família
fazia, sentia, como reagia, como vivia
diariamente.
PALCUS — Robert Thiesfield
[Paralelo] Que significado tem apresentar esse
livro na comunidade?
[Paulo Silveira e Sousa] Penso que é impor­
tante porque os Dabney são pioneiros na
relação transatlântica entre Portugal e os
Estados Unidos. Os Dabney e esses anais
são tanto mais curiosos quanto essa rela­
[P] Esteve no Faial aquando do lançamento do
livro. Ainda se sente a presença da família
Dabney?
[PSS] Sim, como se sente a presença dos
Estados Unidos por todos os Açores. Os
Dabney influenciaram a sociedade local
bem como a emigração.
Livro Dabney
no Connecticut
O embaixador de Portugal, João de Vallera, e Nélia Alves.
Ao fundo, o senador do Massachusetts, Marc Pacheco.
PALCUS fundamental
“Para nos conhecermos melhor
uns aos outros”
O embaixador de Portugal nos Estados Unidos, João de Vallera,
presente no aniversário da PALCUS, mostra-se satisfeito
pelas celebrações de 2011 serem em Washington DC.
[Paralelo] Em dia de aniversário da PALCUS,
qual a importância desta organização para a
comunidade?
[João de Vallera] A PALCUS é uma organiza­
ção muito relevante e é fundamental que
exista. Organizações desta natureza vão-se
fazendo e construindo gradualmente. Não
é um trabalho fácil, quando estamos a falar
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
num território tão vasto como o dos
Estados Unidos e com concentrações de
comunidades muito distantes entre si.
A PALCUS tem um papel importante no
processo em que estamos envolvidos de
nos conhecermos melhor uns aos outros,
de valorizarmos a comunidade luso-ame­
ricana e de melhorarmos a sua visibilida­
Depois de ter sido apresentado nos
Açores, o livro Os Dabney – Uma Família
Americana nos Açores viajou até aos
Estados Unidos da América onde foi apresentado junto da comunidade portuguesa
ali radicada. Aproveitando o jantar anual
(PALCUS) para comemorar o seu aniversário, Mário Mesquita apresentou a mais
recente obra editada a partir dos Anais
daquela família aos portugueses presentes naquele evento. “Este é sem dúvida
o melhor local, junto de portugueses e
luso-descendentes, para falar de uma
família americana que viveu no Faial”,
disse Mário Mesquita. NA
de neste país. Tal papel pode ser reforçado,
e a celebração do seu 15.º aniversário em
Washington, em 2011, oferece para tanto
um contexto favorável.
[P] Como tem sido a experiência de embaixador
nos Estados Unidos?
[JV] Nos momentos “bons” incluo, generi­
camente, tudo o que fizemos no sentido de
reforçar as relações bilaterais e de melhorar
a visibilidade de Portugal e a sua imagem
nos Estados Unidos. Do lado “menos bom”
prefiro falar de desafios. E entre estes, para
além da questão da imagem, situa-se o do
futuro de uma relação bilateral que, num
contexto de enorme concorrência, precisa
de ser atentamente acompanhada e culti­
vada, ultrapassando formas dispersas de
actuação e procurando identificar e fazer
valer todas as sinergias que comporta.
21
PORTUGAL/EUA
Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores
Quotidiano familiar,
relato histórico
“A experiência sempre me ensinou que nunca se deve falar no fim, é terrível
porque está tudo rigorosamente dito”, advertiu Jorge Sampaio no lançamento do livro
Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores (edição Tinta-da-China,
apoiada pela FLAD), mas pouco tempo depois já tinha captado a atenção da audiência
que enchia o histórico Grémio Literário, em Lisboa.
Por Susana Neves
pelo seu alcance histórico e político.
“Quem lê este livro vai buscar uma fun­
damentação real e efectiva para a neces­
sidade de preservar, aumentar, perspectivar,
esta profunda individualidade que os
Açores afinal de contas são. E que este
livro, colocado embora no século XIX,
ajuda tão profundamente a compreender.”
E o alto-representante da ONU para a
Rui Ochôa
Descendente dos Bensaúde, pelo lado
materno, uma família de origem judaica,
que viria a pôr em causa a supremacia
comercial dos Dabney, o antigo Presidente
da República (1996-2006), Jorge Sampaio,
não encontrou no livro senão uma breve
nota relativa aos seus antepassados, o que
não o impediu de lhe reservar três sema­
nas de leitura, “surpreendido e agradado”
Os Açores são “um arquipélago bem individualizado no contexto de Portugal”,
disse Jorge Sampaio na apresentação.
22
Aliança das Civilizações, concluiu: “É um
arquipélago bem individualizado no con­
texto de Portugal e, portanto, a autonomia
constitucional atribuída em 1976 foi uma
belíssima resposta à saga de alegrias, sofri­
mentos, cultura, diversão, pobreza, misé­
ria e isolamento – o constante bater das
ondas nestas ilhas.”
Não se deduza das suas palavras que Os
Dabney – Uma Família Americana nos Açores se
circunscreve ao arquipélago ou interesse
apenas a “açorianos ou açorianófilos”.
Recordando ter existido “uma sinagoga e
um cemitério judaico”, lembrou que “o
comércio da Horta unia pontos tão dis­
tantes como Boston, Nova Iorque, São
Salvador da Baía, Rio de Janeiro,
Manchester, Harvard, Hamburgo, Riga,
Canárias e Madeira”.
Ao explicar quais os critérios subjacen­
tes ao “emagrecimento” do original Annals
of the Dabney Family in Fayal, Paulo Silveira e
Sousa ressaltou a “introdução de factores
de modernização”, entre eles, os “com­
portamentos sociais”, protagonizados
pelos elementos da família Dabney, “pro­
testante, unitarista, culta, habituada à prá­
tica regular de exercício físico, cujas
mulheres, algo invulgar no século XIX,
ajudavam a casa comercial Dabney quan­
do os homens viajavam”.
Na opinião da historiadora Maria
Filomena Mónica, autora do prefácio,
o livro tem, no entanto, “uma dimensão
trágica”, resultante da impossibilidade
de os Dabney conseguirem de facto
modificar as condições de vida e o
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Rui Ochôa
PORTUGAL/EUA
A sala do Grémio Literário encheu para a apresentação do livro.
atraso cultural da maioria da população
faialense, muito embora tivessem aju­
dado durante os períodos de fome a que
o Governo Central no Continente não
conseguiu dar resposta [ver entrevista
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
“É preciso não confundir os Dabney com
missionários”pp.14-15].
Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores
surge assim como uma importante fonte
histórica, como referiu Rui Machete, pre­
sidente do Conselho Executivo da FLAD,
no início do lançamento: “Através do quo­
tidiano de uma família estrangeira a viver
nos Açores, durante todo um século,
acompanha-se igualmente a História de
Portugal e alguns dos principais aconte­
cimentos do século XIX. Naquele peque­
no mundo reflectem-se as vicissitudes de
uma época particularmente rica, visto que
assistimos desde a instalação do primeiro
Dabney nos Açores ao culminar da
Revolução Francesa, à instauração do
Tribunal Constitucional, no caso dos
Estados Unidos, à Guerra com a Inglaterra,
depois, ao longo de um século, à Guerra
da Secessão, etc.”
E sublinhando a sua autenticidade afir­
mou: “É uma obra preciosa, feita sem
grandes artifícios, diz as coisas aberta­
mente, de modo que podemos auscultar
o pensamento real dos seus autores invo­
luntários.” O que adivinha, segundo Paulo
Silveira e Sousa, da “rapidez” com que as
cartas, coligidas por Roxana Dabney, eram
escritas, na “urgência de serem enviadas
no navio seguinte”, e desta forma, “embo­
ra os Dabney não fossem Flaubert, Balzac,
Stendhal ou Eça de Queirós” – um dos
célebres frequentadores do Grémio
Literário, onde tão bem, na pessoa do seu
presidente, José Macedo e Cunha, foi aco­
lhido este lançamento – possuíam, no
entanto, uma “escrita elegante”, expressi­
va, capaz de transportar o destinatário
para a situação que estavam a viver, com
precisão e sentido crítico, como acontece
numa carta que Maria Filomena Mónica
leu por “vingança” contra os “óculos
ideo-lógicos” com que os Dabney viam a
realidade faialense. Datada de 1856, escri­
ta pelo jovem João Dabney de Avelar
Brotero, que vivia no Brasil e viera aos
Açores passar umas férias com os primos,
essa carta descreve um “serão de família”
como um “horror” e um dos maiores
“martírios”.
O contrário podemos afirmar sobre o
lançamento deste livro. “A surpresa e a
descoberta”, que Inês Hugon, uma das
editoras da Tinta-da-China, sentiu ao ler
Os Dabney – Uma Família Americana nos Açores,
pareciam ter contagiado as mais de cem
pessoas que ficaram no Grémio Literário
até a noite já não permitir reconhecer as
árvores do jardim.
23
SAÚDE
A promessa
de cuidados de saúde
Por Patrick J. Kennedy*
“E assim, devido à sua visão e determinação, comecei a acreditar que em breve,
muito em breve, todas as pessoas passarão a ter acesso a cuidados de saúde
a preços acessíveis, numa América em que o estado de saúde de uma família
nunca mais voltará a depender do seu grau de riqueza. E embora eu não vá
assistir à vitória, pude contemplar o futuro sabendo que iremos – sim,
iremos – cumprir a promessa dos cuidados de saúde na América como
um direito e não como um privilégio.” Edward M. Kennedy
Chegámos a um momento verdadeiramente histó­
rico para todos os americanos, e, na minha quali­
dade de representante eleito desta grande
democracia, sinto-me extremamente orgulhoso.
No dia 7 de Novembro de 2009, a Câmara dos
Representantes dos Estados Unidos aprovou a nova
lei relativa aos serviços de saúde, “The Affordable
Health Care for America Act”. A aprovação desta lei
é uma ocasião para enaltecer e agradecer a todos
aqueles que lutaram para proteger o processo
democrático do nosso país. É também uma ocasião
para reconhecer e lembrar todos os americanos que
sofreram enquanto esperavam que este dia chegas­
se. Trabalhámos juntos para alcançar este objectivo
de garantir cuidados de saúde de qualidade a pre­
ços acessíveis a todos os americanos. Expresso aqui
a minha sincera gratidão a todas essas pessoas e
regozijo-me convosco, hoje, por termos iniciado
um novo capítulo da nossa história.
A existência de cuidados de saúde a preços aces­
síveis é uma questão moral, uma questão de saúde
pública, uma questão de segurança interna e uma
questão económica e de competitividade interna­
cional. É incompreensível que mais de 45 milhões
de pessoas – mais de 15 por cento da população – do país mais rico do mundo sejam obrigadas
a viver sem um seguro de saúde. Sem uma refor­
ma, este número poderia aumentar 10 milhões
até 2019. Manter o status quo não é uma opção a
considerar.
24
A nova lei, “The Affordable Health Care for
America Act”, introduz protecções de base para
todos os americanos que pretendam aceder a cui­
dados de saúde. As seguradoras vão deixar de
poder anular a nossa apólice de seguro quando
adoecermos ou negar-nos cobertura devido a uma
condição de saúde preexistente. Foi introduzida
uma “opção pública” que oferecerá aos consumi­
dores uma possibilidade de escolha e competirá
com as seguradoras, contribuindo para que ajam
com honestidade. Deduções fiscais ajudarão os
cidadãos e as pequenas empresas a adquirirem
seguros de saúde. Além disso, o financiamento
das novas medidas já está assegurado e as reformas
irão efectivamente fazer baixar o défice ao longo
dos próximos dez anos.
Sinto orgulho pelo facto de a versão final desta
lei incluir numerosas disposições que defendo há
muito e que me esforcei por conseguir, trabalhan­
do nesse sentido com os meus colegas. Embora o
projecto de lei inicial previsse um período de quin­
ze anos para eliminar progressivamente o défice
de cobertura da Medicare relativamente a medica­
mentos de receita obrigatória, congratulo-me por
ter conseguido reduzir o prazo dentro do qual será
efectuada esta reforma fundamental, trabalhando
em conjunto com o presidente da Câmara dos
Representantes.
Congratulo-me igualmente pelo facto de a
“Affordable Health Care for America Act” eliminar
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
SAÚDE
‘
a “Paul Wellstone and Pete Domenici
Mental Health Parity and Addiction Equity
Act”. Não só as protecções decorrentes da
aplicação daquele princípio serão alargadas
a todos os planos abrangidos pela Health
Insurance Exchange (“Central de Seguros
de Saúde”), como também as prestações
de saúde mental e de consumo de subs­
tâncias foram incluídas no pacote básico
criado por esta lei. Não podemos subes­
timar a importância desta vitória para os
67 por cento de adultos e 80 por cento
de crianças que necessitam de cuidados
de saúde mental e não os recebem. Felicito
Trabalhámos juntos para alcançar aquilo
que o meu pai denominou “a causa” da sua vida:
cuidados de saúde de qualidade e a preços acessíveis
para todos os americanos. E continuarei a trabalhar
no sentido de enviar ao Presidente uma lei o mais
forte possível.
’
os meus colegas e os meus concidadãos
pelo exemplo que deram ao reconhecer
que não se pode efectivamente dissociar
a saúde da mente da saúde do corpo.
Esta lei representa um passo gigantesco
em direcção à transição de um sistema de
prestação de cuidados a doentes para um
sistema de prevenção e colaboração cen­
trado em pacientes. Encontramo-nos num
ponto de viragem, em que há um alinha­
mento de forças que só aconteceu em
algumas ocasiões na história da nossa
nação. Felicito os meus colegas e os meus
concidadãos pelo seu esforço constante,
a sua diligência e o seu enorme empe­
nhamento em realizar o sonho de cuida­
dos de saúde de qualidade e a preços
acessíveis para todos os americanos.
Trabalhámos juntos para alcançar aquilo
que o meu pai denominou “a causa” da
sua vida: cuidados de saúde de qualidade
e a preços acessíveis para todos os ame­
ricanos. E continuarei a trabalhar no sen­
tido de enviar ao Presidente uma lei o
mais forte possível.
* Congressista dos Estados Unidos da América
MATTHEW CAVANAUGH
os limites de capital que muitos planos de
seguros de saúde estabelecem ao fixarem
o montante total das prestações a pagar
pelas seguradoras ao segurado ao longo
da sua vida. Fui autor de uma carta, assi­
nada por 23 colegas meus, pedindo que
esta disposição, que tantas vidas pode sal­
var, entrasse em vigor imediatamente. Por último, um aspecto fundamental
desta lei que considero especialmente
importante é o alargamento do âmbito de
aplicação do princípio da equiparação da
saúde mental, que foi introduzido no ano
passado por uma lei proposta por mim,
Conferência de imprensa do senador Mitch MacConnell que falou acompanhado de uma cópia da proposta de lei democrata para a saúde, de 2074 páginas.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
25
SAÚDE
Saúde para todos nos EUA:
utopia ou realidade?
Por Joana Godinho*
‘
Entre as promessas eleitorais de Barack
Obama, estava a de estender o financiamento
de cuidados de saúde a toda a população
americana. Esta batalha, que data do tempo
dos dois presidentes Roosevelt, tornou-se
desenfreada.
BOB DAEMMRICH
’
A Câmara dos Representantes aprovou, por cinco
votos de diferença apenas, uma proposta de lei
com o título prometedor de “Cuidados de Saúde
Acessíveis para a América”. O Senado aprovou
uma proposta própria um pouco mais modesta.
Em causa estão a inclusão na proposta do
Congresso de uma opção de seguro público e os
custos da reforma que, em qualquer dos casos,
orçará em torno de um trilião de dólares na pró­
xima década. Espera-se, no entanto, que a pro­
posta de lei que deverá ser apresentada em breve
Joana Godinho: “Os Estados Unidos da América são o país do mundo que gasta mais em cuidados de saúde”.
26
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
SAÚDE
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
seguro de saúde público ou privado, e
as dívidas de saúde são a principal causa
de bancarrota pessoal. Os ”sem-seguro”
podem ser atendidos em serviços de
urgência de graça como “indigentes”,
mas se precisam de cuidados preventivos
como vacinas, de um parto, de cuidados
continuados para doenças crónicas como
a diabetes, a hipertensão ou o cancro,
ou de mudar a anca, têm de pagar médi­
cos, exames diagnósticos, cirurgia, inter­
namento e medicamentos (cada vez mais
caros), do seu próprio bolso.
Não é possível dar todos os cuidados de
saúde a todas as pessoas todo o tempo,
a despeito de pretensões em contrário
ESTELA SILVA/LUSA
ao Presidente Barack Obama para assi­
natura, seja uma combinação das duas,
como é habitual no sistema legislativo
americano.
Entre as promessas eleitorais de Barack
Obama, estava a de estender o financia­
mento de cuidados de saúde a toda a
população americana. Esta batalha, que
data do tempo dos dois presidentes
Roosevelt, tornou-se desenfreada, envol­
vendo não só o Presidente, mas também
o Congresso, o Senado, as empresas segu­
radoras e farmacêuticas, os partidos polí­
ticos, os media e o público em geral. Mas
o que é que está em jogo para justificar
um problema que dura há aproximada­
mente um século?
De um lado, estão os americanos que
não têm financiamento de cuidados de
saúde. Do outro, estão os que beneficiam
de alguma forma de financiamento de
saúde, seja ela privada (seguros como os
prestados pela AETNA, Blue Cross, Blue
Shield, Kaiser Permanente e outras gran­
des empresas seguradoras) ou pública
(Cr ianças, Medicare, Medicaid e
Veteranos). Beneficiários mais arrebatados
foram vistos nas televisões mundo fora
defendendo o status quo, dominados pelo
medo dos “painéis de morte” com que
Sarah Palin os assustou, ou mais pragma­
ticamente com receio de perderem bene­
fícios se o sistema público cobrir mais
do que algumas crianças e adultos pobres,
os idosos e os veteranos.
De um lado, temos Obama e a maioria
dos democratas, que prometeram aos
“sem-seguro” arranjar uma solução para
a questão do financiamento da saúde,
como acontece em todos os outros paí­
ses desenvolvidos. Do outro lado, temos
a maioria dos republicanos, porta-vozes
das indústrias médica, seguradora e far­
macêutica, que dizem que um plano
público de saúde vai afundar a iniciati­
va privada e, a prazo, arruinar um Estado
já demasiado endividado por duas guer­
ras e a recente operação de ressuscitação
in-extremis das indústrias financeira e
automóvel. Não importa que seguros
públicos que já existem noutros sectores
nos Estados Unidos não tenham preju­
dicado o sector privado. O que está em
jogo, como escreveu Karl Rove no Wall
Street Journal, não é só um mero plano de
saúde, mas o controlo do Congresso nas
próximas eleições.
Os Estados Unidos da América são o
país do mundo que gasta mais em cui­
dados de saúde. No entanto, o país tem
alguns dos piores indicadores de saúde
entre os seus pares, 30 a 46 milhões de
americanos não têm qualquer tipo de
Joana Godinho: “É possível financiar um pacote de serviços de saúde
que assegure a prestação de cuidados efectivos para todos”.
27
SAÚDE
‘
De um lado, temos Obama e a maioria dos democratas,
que prometeram aos “sem-seguro” arranjar uma solução
para a questão do financiamento da saúde, como
acontece em todos os outros países desenvolvidos.
Do outro lado, temos a maioria dos republicanos,
porta-vozes das indústrias médica, seguradora e
farmacêutica, que dizem que um plano público de saúde
vai afundar a iniciativa privada e, a prazo, arruinar
um Estado já demasiado endividado por duas guerras
e a recente operação de ressuscitação in-extremis
das indústrias financeira e automóvel.
’
– e não há país que ilustre esta asserção
tão bem como os Estados Unidos. Mas
quero eu com isto dizer que é completa­
mente irrealista esperar cobertura univer­
sal por algum esquema de financiamento
de saúde neste país? De maneira nenhu­
ma – até nos Estados Unidos a utopia se
pode tornar realidade.
Todos os sistemas de saúde racionam
os cuidados de saúde de uma forma ou
outra, implícita ou explicitamente, devi­
do à dificuldade de fazer chegar serviços
a todos os que vivem em locais de difí­
cil acesso (os bairros de lata, os bairros
sociais americanos, as reservas indígenas
ou locais remotos) e aos custos cada vez
mais elevados dos recursos humanos e
da tecnologia de saúde. No entanto,
é possível financiar um pacote de servi­
ços de saúde, com mais ou menos ­serviços
consoante os recursos dos países, que
assegure a prestação de cuidados efecti­
vos para todos – desde cuidados básicos
como a vacinação e partos seguros, até
à cirurgia cardíaca e substituição da anca
no caso de países mais desenvolvidos.
Em Inglaterra e no Canadá, dois países
com serviços nacionais de saúde que,
como em Portugal, deveriam à partida
financiar e prestar todos os cuidados de
saúde a todas as pessoas, a qualquer
momento, uma das formas de raciona­
mento que se pratica é através das famo­
sas listas de espera – deixam-se as
pessoas sem acesso a serviços privados
esperar por consultas ou cirurgias elec­
28
tivas meses, senão anos a fio, no sistema
público. Em Portugal, o racionamento
faz-se através de um acesso e uma qua­
lidade desiguais aos serviços de saúde
públicos, de Trás-os-Montes aos Açores.
No Brasil, país em que o serviço nacio­
nal de saúde paga até por mudança de
sexo, as pessoas que vivem nas regiões
Sul e Sudeste tem acesso a muito mais
e melhores cuidados de saúde do que as
pessoas que vivem no Norte e Nordeste
do país, e as classes média e alta com­
plementam o serviço de saúde público
com seguros privados.
Em países desenvolvidos como a
Alemanha, em que as pessoas são maio­
ritariamente cobertas por seguros de
saúde ligados ao emprego, estes ofere­
cem pacotes de serviços standard parcial­
mente financiados pelo sector público,
e os restantes optam por seguros priva­
dos que oferecem mais benefícios. Em
França, as pessoas complementam os
cuidados financiados pelo sistema públi­
co com cuidados pagos por cooperativas
com fins não lucrativos (mutualités).
Nos Estados Unidos, a maioria das pes­
soas é coberta por seguros de saúde pri­
vados (caros), em geral ligados ao
emprego, que asseguram parte dos cus­
tos dos cuidados de saúde (caros).
O Estado financia alguns cuidados de
saúde para crianças e adultos pobres,
idosos e veteranos. Este sistema deixa 30
milhões de americanos incapazes de pagar
seguros privados a terem de pagar por
serviços de saúde do seu próprio bolso
ou a morrer sem cuidados.
Entretanto, os custos de saúde têm
subido em flecha em todos os países
desenvolvidos, devido à maior esperan­
ça de vida e à expectativa de maior qua­
lidade de vida (incluindo na doença e
na morte). Nos Estados Unidos, as for­
mas de pagamento dos serviços de saúde
e os processos por alegadas más práticas
médicas incentivam a prestação e o uso
excessivo de serviços e tecnologia
(incluindo medicamentos). Junte-se a
isto a perversidade do racionamento
explícito praticado pelas seguradoras
privadas americanas: pessoa com doen­
ça crónica estabelecida à data do seguro
não é segurada; pessoa que se torne
muito dispendiosa, devido aos cuidados
de saúde intensivos que requer, é exclu­
ída, deixando-as e às suas famílias a
braços com custos catastróficos que as
levam à bancarrota.
É possível resolver este problema sem
arruinar os cofres do Estado e “socializar”
a medicina e matar a iniciativa privada,
como a oposição americana clama que
vai acontecer se esta reforma de saúde
for para a frente? É – mas é preciso, entre
outras medidas, (i) aumentar a respon­
sabilidade individual e social pela saúde
e promover a saúde – por exemplo, ser­
vindo alimentação salutar nas escolas em
vez de comida rápida cozinhada com gor­
duras trans e refrigerantes cheios de açú­
car –, para diminuir a doença e morte
prematuras; (ii) racionar os cuidados que
são prestados no âmbito dos planos públi­
cos e privados, à semelhança do que já
fazem os planos privados, mas com base
em critérios de custo-efectividade e sus­
tentados por consensos sociais democrá­
ticos; (iii) pagar aos médicos e hospitais
de forma a promover a qualidade dos
cuidados prestados, em vez de incentivar
apenas os lucros dos prestadores e dos
financiadores; (iv) racionalizar o uso de
medicamentos através da contenção do
seu uso indevido e tornando rotina o uso
de doses individuais e de genéricos, e
negociar os preços de alguns medicamen­
tos de marca, como faz o Brasil no caso
dos anti-retrovirais para o VIH/sida; e (v)
organizar redes de cuidados de saúde para
assegurar a continuidade dos cuidados e
maior eficiência do sistema de saúde.
É possível passar da utopia à realidade
– mas isso não é nada fácil, mesmo num
país tão generoso como os Estados Unidos
da América, quando interesses muito
poderosos se sobrepõem ao bom senso e
ao bem comum.
* Especialista Sénior de Saúde do Banco Mundial
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
ECONOMIA
Crise força americanos
a pensar em novas carreiras
A crise económica dos Estados Unidos já levou milhares de trabalhadores americanos
a reinventar as suas carreiras profissionais – uns por paixão, outros por oportunidade
e alguns por desespero.
Os especialistas avisam que se está a
assistir a um movimento de transforma­
ção, “regeneração” e consolidação do
mercado de trabalho, em resposta a um
período de crise. A recessão iniciada em
2007 já custou mais de 6,7 milhões de
empregos, e muitos deles são irrecupe­
ráveis.
O desaparecimento dos chamados
empregos blue collar – sobretudo ligados à
actividade industrial e a sectores como os
transportes ou a construção – está a forçar
uma reconversão profissional e a desviar
milhões de trabalhadores para novas pro­
fissões, em muitos casos com uma nova
passagem pela escola.
“Os novos postos de trabalho que vão
ficando disponíveis já não dependem tanto
da capacidade física e manual, mas exigem
muito maior grau de literacia: conheci­
mentos de informática, domínio de
línguas estrangeiras, algum tipo de espe­
cialização”, comenta Nigel Gault, econo­
mista da empresa consultora IHS Global
Insight.
Mas outras profissões do universo white
collar, como, por exemplo, as que têm a
ver com os sectores bancário e de seguros
ou com o mercado imobiliário, e que
foram particularmente afectadas com a
recessão, também perderam o encanto
para muitos trabalhadores.
São duas realidades diferentes para aque­
les que perderam o emprego e aqueles
que aproveitaram a recessão para tomar
uma decisão que provavelmente antes não
arriscariam: é tempo de fazer outra coisa.
Motivados pelo excesso de trabalho (muita
gente viu as suas responsabilidades ou
carga horária reforçada por causa do
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PETER FOLEY
Por Rita Siza*
Muitos aproveitaram a recessão para mudar de carreira profissional que de outra forma não fariam.
29
ECONOMIA
30
ansiedade e depressão a afectar o mercado professora de Matemática numa escola de
de trabalho. E temos outro, menos eviden­ educação especial. No final do ano escolar,
te, que tem a ver com a discrepância entre foi informada que o seu contrato não seria
aquilo que as pessoas sonharam ou procu­ renovado – Lauren decidiu então inscre­
raram e aquilo que é possível nesta con­ ver-se numa pós-graduação para se espe­
juntura económica”, prossegue.
cializar em terapia ocupacional. “Vou
O ambiente de crise, considera, leva
continuar a trabalhar com crianças, só que
muitos a optar por carreiras que não são
em termos ligeiramente diferentes. E
as desejadas nem aquelas para as quais quem sabe, um dia, posso retomar a
se prepararam. Um caso paradigmático: minha carreira inicial, com muito mais
o ensino. Segundo a National Education experiência”, acredita.
Association, o maior sin­
dicato de professores
dos Estados Unidos, a
São duas realidades diferentes para
maioria dos mais de 100
mil professores que dei­
aqueles que perderam o emprego
xaram de ter lugar no
e aqueles que aproveitaram a
sistema educativo ame­
ricano no início deste
recessão para tomar uma decisão que
ano lectivo poderá vir a
provavelmente antes não arriscariam:
abandonar definitiva­
mente a profissão.
é tempo de fazer outra coisa.
“Vamos perder muitos
professores para outras
profissões e muitos deles não vão voltar. A
Judith Franco, uma professora de gestão,
longo prazo, isso acabará por prejudicar a aproveitou a sua experiência passada como
própria carreira, que é cada vez menos atrac­ costureira para fazer a transição de pro­
tiva”, lamenta o presidente da Federação fessora para empresária. Há mais de vinte
Americana dos Professores, Randi anos, quando ainda era estudante, aumen­
Weingarten.
tava a sua conta bancária com pequenos
Alguns destes profissionais conseguem
trabalhos de costura. Quando perdeu o
manter-se, de alguma maneira, ligados à emprego, Judith lembrou-se do seu hobby
carreira que inicialmente escolheram. de outrora. “Era uma coisa a que eu não
“Para mim, a ideia foi sempre ser profes­ dava grande importância mas que me fazia
sora”, conta Lauren Sikorski, de 25 anos, feliz e me dava dinheiro. Achei que devia
que nos últimos dois anos trabalhou como
pensar nisso mais seriamente.”
‘
’
MICHAEL REYNOLDS
despedimento de colegas), ou pela redu­
ção do salário ou dos benefícios, cada vez
mais trabalhadores estão a encarar a pos­
sibilidade de abandonar o mundo corporate e tornar-se o seu próprio patrão.
O Human Capital Institute, que faz estudos
sobre o mercado de trabalho, constatou que
o simples facto de manter o emprego não
é suficiente para 53 por cento da força de
trabalho das grandes empresas americanas:
as pessoas sentem-se frustradas e estão em
busca de novas oportunidades. Cerca de 20
por cento pretendem mudar de profissão
nos próximos doze meses, revela um estudo
recente do website SnagAJob.com.
A recessão económica tornou-se um
“impulso” para a mudança. Pelo menos para
Tamara Miranda, uma agente imobiliária de
48 anos, estabelecida há mais de uma déca­
da na Carolina do Norte. Quando rebentou
a bolha, e a crise hipotecária paralizou o
mercado, a necessidade de encontrar uma
nova carreira tornou-se evidente. Tamara
tinha uma pequena empresa, sem problemas
financeiros e com uma boa base de clientes.
Mas, explica, “ao fim de tantos anos, sim­
plesmente não tinha a energia para lutar e
tentar sobreviver a esta crise imobiliária”.
A solução era esquecer a vida passada e
aventurar-se numa nova carreira. “Não sabia
o que queria fazer, mas sabia que queria
mudar de vida”, conta. Foi quando encon­
trou um cão abandonado na rua, e decidiu
acolhê-lo, que teve uma ideia: porque não
abrir uma empresa de serviços personaliza­
dos para aqueles que têm cães e não podem
levá-los ao veterinário ou não querem deixálos no canil quando vão de férias?
“Fiz uma pesquisa de mercado, um estu­
do financeiro, achei que era possível e
arrisquei”, continua. O seu projecto não
exigia muito capital nem mão-de-obra – e
Tamara não esperava um grande retorno,
apenas o suficiente para que o negócio
fosse rentável. “Eu adoro cães e adoro fazer
grandes passeios. Porque não dedicar-me
a passear os cães que têm de ficar fechados
em casa todo o dia?”, pergunta.
Mas uma mudança tão radical nem sem­
pre é fácil, e não só por razões económi­
cas. “Esta recessão foi um rude golpe
financeiro mas sobretudo psicológico para
muitas famílias americanas, e isso inde­
pendentemente do estrato socioeconómi­
co a que pertencem”, refere o professor
Gerrald Shapiro da Universidade de Santa
Clara, na Califórnia.
“A perda do emprego, da casa ou da pen­
são despoleta inevitavelmente sentimentos
de vergonha e raiva”, diz, acrescentando
que por vezes as pessoas sentem-se blo­
queadas para agir pela sua ideia de estatu­
to ou poder. “Temos um problema de
Anúncios de empregos em Arlington, na Virgínia.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Assim, aos 45 anos, abriu um pequeno
ateliê onde, além de baínhas e pequenas
alterações, faz outros trabalhos mais sofis­
ticados de costura. “Surpreendentemente,
há procura para estes serviços mais espe­
cializados. Não só consegui reencontrar
alguns velhos clientes, como tenho muitas
novas encomendas. O ensino ficou defi­
nitivamente para trás”, garante.
No caso de LaMonte Monroe, de Xenia,
no Delaware, o colapso das grandes cons­
trutoras automóveis americanas revelou-se
quase como uma “providência divina”.
Depois de aceitar o acordo de rescisão
oferecido pela General Motors, para quem
trabalhava há dez anos como responsável
do controlo de qualidade, este pai de famí­
lia, de 50 anos, pode finalmente dedicar­‑se
à sua verdadeira vocação: o serviço reli­
gioso.
“Todos os dias ocupava-me de um tra­
balho repetitivo e rotineiro, só porque
pagava um salário”, recorda. Monroe foi
um dos 630 trabalhadores que perderam
o lugar no Mansfield/Ontario Metal
Center da GM. A fábrica encerrará as por­
tas, definitivamente, em Junho deste
ano.
LaMonte colaborava com a sua igreja
todas as quartas-feiras, participando nas
sessões de estudo da Bíblia. Agora, está a
estudar teologia e a trabalhar para ser
ordenado pastor, para poder dedicar-se a
tempo inteiro aos fiéis da Xenia Church
of God. “Falo com muita gente que acaba
de perder o emprego, e procuro sempre
encorajá-los, dizer-lhes para terem cora­
gem e fé. Ser despedido leva-nos a cami­
nhar por territórios desconhecidos”,
declara, já em jeito de sermão.
Para muitos desempregados urbanos,
estes são, literalmente, “territórios desco­
nhecidos”. Uma comparação de custos e
benefícios está a fazer muitas famílias tro­
car a cidade pelo espaço rural – na
imprensa são frequentes histórias de ban­
queiros, advogados e consultores que dei­
xaram os respectivos escritórios e agora
se dedicam a produzir vinho, fruta ou
queijos artesanais.
As estatísticas oficiais revelam que apenas
um por cento da população norte-ameri­
cana activa se dedica exclusivamente à
agricultura, mas esse é um número que
pode aumentar. A actividade do sector pri­
mário tem enorme impacto na economia,
respondendo por 13 por cento do PIB.
Para quem quer “recomeçar do zero”,
além do inevitável “apelo da terra”, há um
factor muito importante a ter em conta: ao
contrário de outros sectores, altamente
concorrenciais e competitivos, a produção
agrícola ainda é fortemente protegida pelo
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
ANDREW GOMBERT
ECONOMIA
“De repente todas as portas em Wall Street fecharam-se” – James arranjou trabalho a conduzir um táxi
e engendrou um plano de negócios para criar um serviço de estafetas.
Estado com subsídios e outro tipo de bene­
fícios – ainda agora, o Congresso aprovou
um reforço extraordinário de 250 milhões
de dólares no programa de apoio à produ­
ção de lacticínios.
Mas há mudanças de carreira que não são
ditadas pela vocação, antes por razões bem
mais prosaicas. “Qualquer coisa para pagar
as contas”, resume James Williamson, de 26
anos, que terminou o seu MBA em Filadélfia
quatro meses antes do colapso do banco de
investimento Lehman Brothers.
“De repente, todas as portas em Wall
Street fecharam-se”, recorda.
James arranjou trabalho a conduzir um
táxi, e nas muitas horas de trânsito nova­
‑iorquino engendrou um plano de negó­
cio para criar um serviço de estafetas. Um
passageiro a quem falou na ideia mostrou­
‑se interessado – os dois estão a negociar
o lançamento do projecto.
“Ainda é muito difícil mudar de carrei­
ra quando não se quer”, nota Martha
Mangelsdorf, autora do livro Strategies for
Successful Career Change, na lista dos mais
vendidos. “Mas já não é como na década
de 50, quando as pessoas estavam conde­
nadas a ter o mesmo emprego toda a
vida”, acrescenta.
Desde então, a sociedade americana evo­
luiu para um sistema muito aberto e de
grande mobilidade profissional. Mas nunca
como agora as pessoas encararam com tanta
naturalidade atirar para o lixo toda a sua
experiência anterior e começar de novo.
Alicia Azzopardi, do Michigan, chegou a
pensar que tinha enlouquecido quando se
despediu do departamento de vendas de
uma empresa de moldes para a indústria
automóvel. “A Chrysler e a General Motors
estavam à beira de declarar falência e eu
achei que era uma questão de tempo até a
minha empresa fechar”, explica.
Aos 52 anos, Alicia foi inscrever-se no pro­
grama de enfermagem da Michigan State
University. “Tinha a certeza que ia ser a mais
velha da classe”, brinca. “Tenho muito para
recuperar, porque deixei os estudos há mais
de trinta e cinco anos. Mas achei que isso
não era razão para desistir de uma carreira
que sempre quis ­– e onde o desemprego
não é um problema”, justifica.
No ano passado, o sector da saúde absor­
veu mais 350 mil profissionais, e continua
a ser deficitário em enfermeiros, terapeu­
tas e outros técnicos especializados. Alicia
não estava doida.
* Correspondente do jornal Público nos Estados Unidos.
31
ECONOMIA
Mancession:
homens em recessão
O desemprego nos Estados Unidos da América abateu-se de tal forma
sobre as profissões dominadas pela população masculina, que os especialistas
até inventaram um novo termo, mancession, uma mistura de homem e recessão,
para melhor descrever as consequências da crise económica.
eliminados 76 mil empregos na constru­
ção e 52 mil na indústria pesada. Em con­
traste, no sector da saúde, onde 81 por
cento dos trabalhadores são mulheres,
foram criados 20 mil novos empregos.
Três em cada quatro postos de trabalho
perdidos nesta recessão eram desempe­
nhados por homens, constatou um estu­
do do Center for American Progress.
A percentagem de homens adultos a tra­
JUSTIN LANE/LUSA
A subida do desemprego está a afectar
desproporcionalmente os homens, que
compunham a maior parte dos trabalha­
dores dos sectores mais fustigados pela
crise – só no passado mês de Julho, foram
Os homens são os mais afectados pelo desemprego nos Estados Unidos.
32
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
balhar nos Estados Unidos nunca foi tão
baixa: só sete em dez têm emprego, ou
seja, só 67 por cento da população acti­
va masculina. Nunca na história ameri­
cana esse valor tinha caído abaixo do
patamar dos 70 por cento.
Actualmente, a taxa de desemprego é
dois pontos superior para os homens do
que para as mulheres (9,8 por cento e 7,5
por cento, respectivamente), uma inversão
da tendência de maior desemprego femi­
nino, que se verifica desde que se come­
çaram a registar estatísticas, em 1948. Mas
esta não é a primeira vez que os homens
sofrem a recessão de forma particularmen­
te acentuada: na recessão de 2001 verifi­
cou-se o mesmo desequilíbrio. Na longínqua Grande Depressão, 90 por cento
do desemprego foi masculino.
44 anos: a proporção daquelas que estão
a trabalhar ou em busca de trabalho
cresceu para os 78,4 por cento no pri­
meiro semestre de 2009, comparado
com 76 por cento no mesmo período
de 2007. Os especialistas sublinham que
essa diferença é significativa, uma vez
que as pessoas que estão fora do mer­
cado geralmente não procuram empre­
go em épocas de recessão.
Mas o facto de as mulheres estarem a
resistir melhor à praga do desemprego e
tornarem-se a maioria no mercado de
trabalho não implica necessariamente
uma melhoria em termos do seu acesso
a empregos qualificados ou lugares de
chefia, nem representa um progresso nas
suas condições de trabalho ou na sua
remuneração.
Os dados demonstram
que a precariedade labo­
ral é muito superior
entre as mulheres do que
A percentagem de homens adultos
entre os homens. Estas
a trabalhar nos Estados Unidos nunca são muito mais vezes
contratadas a meio-termo
foi tão baixa: só sete em dez têm
e não têm direito a bene­
fícios como seguro de
emprego, ou seja, só 67 por cento
saúde ou subsídio de
da população activa masculina.
desemprego. E mesmo
quando cumprem o
Nunca na história americana esse
mesmo número de horas
valor tinha caído abaixo do patamar
de trabalho e por vezes
até as mesmas tarefas que
dos 70 por cento.
os homens, as mulheres
continuam a ganhar ape­
nas 80 cêntimos por cada
A actual mancession teve um impacto his­ dólar pago a um trabalhador masculino.
tórico no mercado laboral dos Estados “Numa família típica americana, o mari­
Unidos: pela primeira vez, as mulheres do contribui com cerca de dois terços do
tornaram-se a maioria da população acti­ total do orçamento familiar. Isso quer
va. De acordo com os dados do Bureau of dizer que quando o marido perde o
Labor Statistics, as mulheres já constituíam emprego, a família perde a sua principal
49,9 por cento do total da força de tra­ fonte de rendimento. E não é só dinhei­
balho norte-americana no final do mês ro: são também os benefícios, como
de Julho de 2009.
seguros de saúde, planos de pensão”,
Em maioria nas escolas, há muito que
nota Heather Boushey, a economista do
os economistas esperavam que as mulhe­ Center for American Progress que lidera
res se tornassem também dominantes no os estudos sobre o emprego.
mercado laboral. Mas a tendência dos
Neste momento, existem cerca de dois
últimos anos ia no sentido oposto; há milhões de mulheres casadas que assumi­
pelo menos uma década que o número ram o papel do “ganha-pão” das respec­
de mulheres se subalternizou em relação tivas famílias. A presidente do Institute for
aos homens, porque uma parcela da Womens’s Policy Research, Heidi
população feminina no activo decidiu
Hartmann, duvida, contudo, que a actual
abandonar o mercado de trabalho.
recessão venha a alterar significativamen­
Os últimos números coligidos por
te as dinâmicas familiares ou os papéis
aquele departamento de estatísticas reve­ desempenhados por homens e mulheres
lam, porém, que muitas dessas mulheres na gestão do lar ou na educação dos filhos.
que escolheram sair estão agora a regres­ “Historicamente, a forma como os casais
sar. Esse movimento verifica-se sobre­ dividem as suas tarefas domésticas tem
tudo entre o grupo das mulheres sofrido poucas mudanças”, observa.
licenciadas com idades entre os 25 e os
Segundo esta especialista, nos últimos
TANNEN MAURY/LUSA
ECONOMIA
‘
’
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
As mulheres tornam-se a maioria
no mercado de trabalho.
vinte anos o tempo gasto em tarefas
domésticas pelas mulheres casadas e com
emprego diminuiu. Mas a responsabili­
dade por essas tarefas não foi assumida
pelos seus maridos, antes foi outsourced a
terceiros – as baby-sitters, as empresas de
limpeza, as lavandarias e os serviços de
comida pronta. “Esses substitutos para o
trabalho doméstico são os primeiros
‘luxos’ que as famílias cortam quando
passam a dispor de um orçamento mais
reduzido. E a sua execução volta a recair
sobre as mulheres”, refere.
Mas, como nota Heather Boushey, é
provável que os homens passem a desem­
penhar alguns dos trabalhos das mulhe­
res: à medida que a sua situação de
desemprego se prolonga, muitos optam
por candidatar-se a empregos em secto­
res tradicionalmente mais femininos.
“Muitos homens desempregados estão a
reorientar as suas carreiras para sectores
como a educação, a saúde ou os serviços,
onde prevalecem as mulheres”, diz.
O que é uma boa notícia em termos da
igualdade dos géneros no mercado de
trabalho, considera. RS
33
ECONOMIA
Demetrios Papademetriou em discurso directo
“Abrir portas aos imigrantes
quando a crise terminar”
É consultado por governos de todo o mundo, que procuram saber como estruturar as suas
políticas de imigração. Demetrios Papademetriou, presidente do Migration Policy Institute,
esteve em Portugal para uma conferência da Fundação Luso-Americana e a Paralelo falou
com ele. Em tempos de crise, deixou um alerta aos governos dos dois lados do Atlântico:
devem estar preparados para abrir portas aos imigrantes, quando a recessão for superada.
[Paralelo] Pouco antes da recessão mundial se instalar, como estavam a evoluir os fluxos migratórios
nas economias mais industrializadas?
[Demetrios Papademetriou] A maioria dos países
estava a crescer e tinha compreendido que
a imigração era essencial para o seu desen­
volvimento. Por isso, durante os primeiros
anos do século XXI, foram aceitando largos
fluxos de imigrantes. Privilegiaram uma
imigração altamente qualificada, com objec­
tivos sobretudo ligados à competitividade
económica, mas também por questões
demográficas. E, por isso, assistimos a uma
abertura de portas. Esse alargamento do
número de imigrantes foi potenciado por
vias legais, mas o mais extraordinário cres­
cimento foi verificado ao nível da imigração
ilegal ou irregular.
[P] E quais foram as repercussões da crise mundial
nos padrões migratórios?
[DP] Não foram tão profundas quanto se
esperava. Até 2009, a maioria dos países
continuou a recrutar imigrantes qualificados.
E só nessa altura, cerca de metade dos países
que eram mais agressivos em matéria de
imigração começaram a repensar as suas
políticas e a reduzir as quotas entre 10 por
cento e 25 por cento. Não mais do que isso.
E estamos a falar de países cuja política
migratória é estrutura pelo Governo – não
de países, como os Estados Unidos, onde
são os empregadores quem recruta os imi­
grantes, cabendo apenas ao poder central
determinar parâmetros e regras – aí, os cor­
tes foram maiores.
[P] Houve diferenças significativas na resposta dada
à crise pelos Estados Unidos e pela Europa, no que
diz respeito às políticas de imigração?
[DP] Sim e as diferenças são muito signifi­
34
Rui Ochôa
Por Marco Leitão Silva
“A crise mundial não trouxe reduções substanciais nas quotas de imigração da maioria dos países”,
diz o presidente do Migration Policy Institute.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
ECONOMIA
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Reino Unido – que conseguiram até enviar
representantes para Bruxelas.
[P] Pensando no discurso inverso: será que os imigrantes podem fazer parte da solução para a crise?
[DP] Há quem diga que se quisermos sair
da recessão, precisamos de mais imigrantes.
Não é uma proposta razoável. Nem sequer
é razoável sugerir que a imigração que tive­
mos é responsável pela recessão. São dois
extremos muito pouco razoáveis. Uma polí­
tica inteligente vai controlar a imigração
durante os próximos tempos, estando pron­
ta para abrir portas à medida que a econo­
mia se for preparando para sair da recessão.
E essa abertura deve verificar-se sobretudo
nos negócios, nas empresas e nos sectores
que são mais cruciais para a recuperação
económica.
[P] Proponho-lhe um último exercício arriscado: que
previsão se pode fazer quanto ao futuro dos fluxos
migratórios nos Estados Unidos e na Europa?
[DP] Os próximos dois anos vão ser duros
para a imigração, sobretudo porque o
desemprego vai continuar a ser um proble­
ma sério para todos os países. Mesmo que
a recessão termine, vai levar algum tempo
até que comece a baixar. Como tal, os fluxos
imigratórios vão abrandar, para mais tarde
se intensificarem. Durante
estes tempos duros, os
governos vão sobretudo
Os próximos dois anos vão ser duros
ficar ainda mais convenci­
dos da necessidade de
para a imigração, sobretudo porque
regular a imigração, quan­
o desemprego vai continuar a ser um
do os imigrantes voltarem
a ser necessários.
problema sério para todos os países.
‘
’
Rui Ochôa
cativas. Nos Estados Unidos, a situação foi
muito mais dramática do que na Europa.
Nos Estados Unidos, onde o mercado é
decisivo para as políticas de imigração, os
empregadores simplesmente não estão a
pedir tantos trabalhadores como faziam no
passado. E, além disso, há uma grande dife­
rença: quase um terço dos imigrantes é
ilegal e a maioria vem de países vizinhos.
E quando as condições económicas são
más, então os fluxos migratórios pratica­
mente param. Nos Estados Unidos, os flu­
xos migratórios respondem às condições
económicas.
[P] E dentro da União Europeia? Parece-lhe que
houve uma resposta coordenada?
[DP] O continente é vasto e todos estão a
seguir caminhos diferentes. Os alemães, por
exemplo, nunca se abriram muito à imigra­
ção e, portanto, não têm de fechar portas.
Já os britânicos, que se abriram muito mais,
têm sido muito agressivos ao estreitar cri­
térios de entrada e diminuindo quotas. Um
exemplo extremo é o da Espanha, onde está
a ser aplicado um sistema de “pagar para
partir”, ou seja, é dado dinheiro aos imi­
grantes para que abandonem o país.
[P] O antigo comissário europeu, António Vitorino,
defendeu que fossem dados incentivos semelhantes,
mas apenas para um regresso temporário aos países
de origem. Partilha esse ponto de vista?
[DP] Tudo depende do tipo de incentivos e,
para além disso, teremos de saber se há
garantias de que os imigrantes podem
depois voltar. Caso a promessa seja genérica,
a maioria não vai aderir. Se quiséssemos criar
um ritmo de entrada e saída mais intenso,
não só deveríamos criar incentivos para as
pessoas regressaram aos países de origem,
mas também oportunidades para que, à
chegada, tenham perspectivas de trabalho
asseguradas. Quase temos de recriar condi­
ções de trabalho nos países de origem.
É um exercício de equilíbrio muito difícil.
[P] Na Europa, floresceram nos últimos meses discursos próximos da extrema-direita – agressivos em
matéria de imigração. A crise proporcionou terreno
fértil para esta ala política?
[DP] Durante os momentos de crise, os ins­
tintos das pessoas dizem-lhes que deve haver
uma explicação para tudo aquilo pelo qual
estão a passar. E a imigração torna-se com
frequência uma parte muito fácil dessa expli­
cação. São tempos em que as pessoas estão
preocupadas com o seu futuro. E estes dis­
cursos tornam-se então muito apelativos.
Durante os tempos de estabilidade, ninguém
dá grande atenção aos partidos e grupos de
extrema-direita. Mas de repente, graças a
esse discurso, tornaram-se poderosos: essas
mensagens avessas à imigração, por exemplo,
foram exploradas nas eleições europeias em
Junho, em países como a Holanda ou o
“Há quem diga que se quisermos sair da recessão precisamos de mais imigrantes”,
comenta Papademetriou, tendo a seu lado António Vitorino.
35
ECONOMIA
Menos dá mais
O elogio da crise nas artes
Os preços das obras estão mais baixos, há novos criadores a aparecer todos os dias,
as intervenções artísticas são acessíveis a cada vez mais gente. Bem vistas as coisas,
esta crise económica pode ser o melhor que aconteceu às artes.
Por Ricardo J. Rodrigues
fotos Carlos Morganho
Instantâneos lisboetas. Há fotografias em
tamanho gigante penduradas nas facha­
das dos edifícios do Martim Moniz.
Junto ao Largo de Camões, já a caminho
da Bica, esteve durante meses um mural
grafitado por um dos mais conceituados
street artists do mundo. Em Alcântara, uma
antiga fábrica de tecidos deu lugar a
uma ilha de ideias. Todas as sextas, ao
fim da tarde, no Largo do Chiado, um
tocador de xilofone e uma cantora afri­
cana dão um concerto de world music. No
Teatro Nacional, ao Rossio, sobem ao
palco miúdos dos bairros degradados e
em Alvalade, mesmo junto ao Cinema
King, ainda se vêem restos do cartaz de
um filme que não tem um único pro­
fissional no elenco.
Nos últimos anos, o investimento cultu­
ral encolheu brutalmente. Em 2009, por
exemplo, o orçamento da Cultura repre­
sentou 0,2 por cento do PIB, contra uma
percentagem de 0,7 em 2001. Actores,
músicos, cineastas, dançarinos, têm afina­
Fotografias em tamanho gigante expostas pela cidade de Lisboa.
36
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
ECONOMIA
‘
A crise dos anos 1930
pôs em causa a cultura
de trabalho em que as
pessoas viviam.
’
do um verdadeiro coro de protestos contra
a falta de apoios estatais ou contra a trans­
formação de equipamentos culturais em
espaços comerciais. Os números dão-lhes
razão. Há menos gente a visitar museus,
menos patronos a financiar fundações, a
quebra de receita nas bilheteiras é uma
evidência. E, no entanto, sente-se nas ruas
um fervilhar criativo. A explicação pode
resumir-se a uma ideia linear: em tempos
de necessidade, não há outro remédio
senão aguçar o engenho. E o facto é que,
aparentemente, faz-se mais com menos.
A revista norte-americana New Yorker publi­
cou um extenso artigo sobre a produção
cultural no tempo da Grande Depressão.
Nele, o jornalista Caleb Crain defendia que
a crise dos anos 1930 pôs em causa a cul­
tura de trabalho em que as pessoas viviam.
“De repente, a vida deixou de significar fazer
dinheiro, pagar as contas e ir a correr fazer
mais dinheiro, para pagar mais contas.”
À medida que a banca e os mercados finan­
ceiros levavam a maior tareia da sua história,
a arte e os artistas ganhavam uma sensação
de poder até então inédita. E. Y. Harburg, o
homem que escreveu o hino da década,
Brother, Can You Spare Me a Dime? [“Irmão,
Emprestas-me Uns Trocos?», em tradução
livre], resumiu os anos da crise assim:
“Quando perdi todas as minhas posses,
encontrei a minha criatividade.” E segura­
mente não foi o único. Escreve Crain:
“É claro que nem todos os desempregados
fizeram carreira na literatura, na música ou
no cinema mas mesmo os que não foram
por aí tiveram de começar a pensar de forma
mais original para conseguir fazer algum
dinheiro.”
Ainda que a recessão deste final de déca­
da esteja longe da depressão dos anos 1930,
há vários historiadores de arte – com
Jonathan Weinberg, da Universidade de
Harvard, à cabeça – que dizem que o boom
criativo está a repetir-se. Os novos cria­
dores são mais autodidactas e trabalham
por iniciativa própria. Algumas das foto­
grafias do Martim Moniz são assinadas por
Carlos Morganho, um tipo que perdeu o
emprego, começou a fazer imagens dos
habitantes da Mouraria e agora expõe
regularmente. O graffito do Largo de Camões
foi feito pelo norte-americano Above, que
viaja por todo o mundo, enche as
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Os novos criadores são mais autodidactas e trabalham por iniciativa própria.
37
ECONOMIA
paredes de desenhos políticos e depois
vende as fotografias do seu trabalho na
internet. A LXFactory nasceu com o inves­
timento de pequenos criadores que ainda
estão em processo de afirmação. Os actores
que brilham no Teatro de Dona Maria ou
no filme Aquele Querido Mês de Agosto não têm
curso do Conservatório. E há uma banda
de world music a dar concertos gratuitos para
um público em movimento em frente à
estátua de Fernando Pessoa, tentando ven­
der CD com o seu trabalho a quem pára e
fica a ouvir.
Eu crio, eu consumo
O coreógrafo Tiago Guedes anda a preparar
um festival de artes performativas no con­
celho de Alcanena, o Materiais Diversos.
Terá espectáculos de música e teatro, mas
o prato forte é claramente a dança. Com a
excepção de um ou outro nome mais
sonante, a maior parte dos artistas é rela­
tivamente desconhecida. “Tenho cachets
baixos para pagar e por isso decidi apostar
em nomes mais jovens, com projectos inte­
‘
ressantes, que nor­
malmente não têm
Em tempos de necessidade, não há
oportunidade de
mostrar as suas
outro remédio senão aguçar o engenho.
ideias.” Todos eles
E o facto é que, aparentemente,
ficarão alojados em
casa de pessoas da
faz-se mais com menos.
terra, porque a orga­
nização não tem
dinheiro para pagar hotéis. Em troca, as
há mais gente a consumir. Em suma, os
famílias que acolhem os artistas recebem preços do mercado baixaram, mas o aces­
bilhetes para os espectáculos. “A própria so às artes – seja o de aquisição ou o de
sede do festival, que fica em Minde, foi criação – está a ampliar-se como nunca.
toda decorada com doações de mobiliário
Ana Matos atira mais lenha para a mesma
da população. Ao mesmo tempo que pou­ fogueira. “A vantagem desta crise econó­
pamos nos gastos, convocamos as pessoas mica é que a arte está a deixar de ser um
para dentro do festival, fazêmo-las sentir exclusivo das classes médias-altas”, diz a
parte das coisas.”
proprietária da Galeria das Salgadeiras, no
A técnica de Tiago Guedes é a perfeita Bairro Alto, um espaço que tem apostado
metáfora dos tempos. Por um lado, o aper­ em novos criadores, nomeadamente artis­
to económico obrigou-o a abrir espaço a tas plásticos e fotógrafos. “Há meia dúzia
novos criadores. Por outro, fê-lo garantir de anos eu vendia um quadro por 1500
mais e novos públicos. O contexto de crise euros, agora vendo cinco por 300. Isto é
parece estar não só a democratizar a pro­ uma alteração tremenda de hábitos. Pessoas
dução artística, como também o acesso que hoje têm trinta anos já conseguem
dos cidadãos à arte. Há mais gente a fazer, ter em casa uma obra original, em vez de
’
Concertos gratuitos para os traseuntes.
38
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Os bons efeitos da recessão vão sentir-se a longo prazo.
‘
Quando perdi todas as
minhas posses, encontrei
a minha criatividade.
’
E. Y. Harburg
comprarem serigrafias num museu ou
quadros decorativos do IKEA.” Ana entu­
siasma-se com o facto de o leque se ter
aberto. Acredita na arte como bem públi­
co e pensa que os bons efeitos da recessão
vão sentir-se a longo prazo. Se há mais
consumo, explica, há mais predisposição
para conhecer mais, perceber melhor, des­
cobrir o novo.
Reality is a bliss
O que têm em comum o realismo que
dominou as artes plásticas nos anos 1930
e a criação dos nossos dias? Acima de tudo,
o eco social. Tanto nos anos da Grande
Depressão como nos da recessão, os cria­
dores foram a voz da inquietação do seu
tempo. “Os direitos são, grosso modo, a temá­
tica dominante dos artistas em alturas de
crise”, diz Stacy I. Morgan, historiadora na
Um valor seguro
Antes era Veneza, Paris, Berlim e Nova Iorque. Agora podemos acrescentar à lista Sidney,
Macau, Madrid ou Kwangju, na Coreia do Sul. A multiplicação de grandes bienais de
arte (ou mais pequenas, como a de Vila Nova de Cerveira ou a experimentadesign) são
sinais de que a crise não afectou o mercado de uma maneira extrema, apenas modificou as regras do jogo.
A arte continua a ser um valor seguro. Rui Brito, da Galeria 111, explicava há meses à
agência Lusa que o investimento em arte, “quando bem escolhido, é o investimento
mais seguro e rentável que existe”. Ana Matos concorda e acrescenta um dado: “A crise
é o momento certo para comprar, porque os preços estão mais baixos e qualquer obra
tem um potencial de valorização tremendo.” Mas lança um alerta: é preciso saber
escolher. “As galerias, as bienais e os leiloeiros podem, aliás devem, ajudar o potencial
cliente a optar pelo que é melhor. Mas é fundamental ter sensibilidade artística e uma
compreensão do mercado.” Para fazer boas escolhas.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Universidade da Geórgia. “A luta pela jus­
tiça social é a grande marca da produção
artística dos anos 1930. E volta a ser, num
formato completamente diferente, nos nos­
sos dias.” Se antes tínhamos as fotografias
cruas de Dorothea Lange ou até uma
Guernica de Picasso, hoje temos uma repre­
sentação mais disruptiva e, na maior parte
dos casos, mais interdisciplinar.
Vamos por exemplo ao grafito que Above
desenhou numa parede junto ao Largo de
Camões. É um stencil a que chamou Giving
to the Poor – Dar aos Pobres. “Passava todos os
dias no mesmo sítio e via uma sem-abri­
go a pedir dinheiro. Achei tristemente
irónico que a menos de cinco metros exis­
tisse uma caixa multibanco, onde as pes­
soas formavam fila para levantar dinheiro.”
Pintou um assaltante a roubar aos ricos
de arma em riste para entregar o dinhei­
ro à pedinte. A instituição bancária, entre­
tanto, removeu o desenho. Mas as fotografias que Above tirou e afixou no seu
site asseguraram a longevidade da imagem.
É uma mistura de transgressão com cinis­
mo. Tem um impacto tremendo.
Outra das grandes tendências actuais é a
chamada arte social. Grupos minoritários
ou excluídos têm ganho um papel visível
nas actividades culturais. No festival que
Tiago Guedes está a organizar, há por
exemplo um encenador, John Romão, que
tinha por hábito ensaiar as suas peças num
palco a menos de cem metros do local
39
ECONOMIA
onde vários skaters de Almada costumavam
praticar. Um dia, chamou-os à cena e, sem
querer, tornou uma modalidade radical em
arte. Os hospitais psiquiátricos, as prisões,
as CERCI, as associações de minorias étni­
cas fazem o mesmo. Muitos têm grupos de
teatro, de dança ou de música. “A produção
artística está mais reflexiva, mais conscien­
te”, diz Ana Matos. “A recessão ajudou os
artistas a porem os pontos nos is. A questão
está a descentrar-se da forma – um sítio
bem desenhado pode ser arte, em última
instância – e a centrar-se muito mais no
conteúdo.”
Ninguém pode dizer, no que toca à pro­
dução artística, se os períodos de recessão
foram mais produtivos ou criativos do que
as épocas de desenvolvimento. Mas é justo,
segundo o filósofo britânico Robert C.
Solomon, definir os anos de crise como mais
emocionais. “Não só o realismo social dos
anos 1930, mas também o realismo literário
“É nestes períodos que se abrem caminhos, que a arte se redimensiona, que se reinventa a si mesma.”
40
O fenómeno Cattelan
O homem é um joker. Só pode ser. Numa
altura em que a Sotheby’s tem poucas ou
nenhumas expectativas de bater recordes de
vendas, o artista italiano Maurizio Cattelan
surpreende tudo e todos ao vender uma
peça por um valor que ninguém esperava,
oito milhões de euros. A escultura em causa
é uma imagem de Hitler ajoelhado em oração e lança uma pergunta imediata: será que
Deus lhe perdoaria?
Em Junho, Cattelan esculpiu um retrato de
si mesmo e vendeu-o por 250 mil euros.
Desde 2004, quando vendeu uma figura
do papa João Paulo II atingido por um
meteoro, por 2,6 milhões de euros, que a
sua cotação no mercado não pára de crescer. O bizarro e o absurdo são as suas
marcas e a “realidade invertida”, como ele
lhe chama, parece estar a marcar a tendência actual. Um facto é certo – em tempo
de crise, Maurizio Cattelan está a triunfar.
A sua fórmula é a mesma de todos os
artistas de sucesso em todos os períodos
de recessão: o realismo. Só que este é um
realismo esquisito, apenas isso.
do final do século XIX e o futurismo do
início do século XX, ou a muito crítica arte
povera dos anos 1970, são movimentos em
que percebemos que algo está para mudar,
que algo tem de mudar. É nestes períodos
que se abrem caminhos, que a arte se redi­
mensiona, que se reinventa a si mesma.”
O período de retoma económica está a
chegar, segundo as declarações dos bancos
centrais americano e europeu. Leiloeiros,
galerias, museus e agentes culturais res­
piram de alívio. Os subsídios vão voltar,
os cachets vão subir, as iniciativas vão sur­
gir. Mas significará isso que a ruptura
artística destes últimos anos tem os dias
contados? “O espaço que se abriu já não
pode ser fechado”, diz o britânico Bill
Childish, um dos fundadores do Stuckism,
um dos mais importantes movimentos
artísticos desta década, que advoga o aban­
dono do conceptualismo e um retorno à
criação figurativa, ou, como o pintor pre­
fere dizer, “àquilo que realmente interes­
sa às pessoas”. “Agora, a arte está mais
massificada do que nunca. Agora, já não
há elites. Agora todos podemos fazer,
todos podemos criar, todos podemos
experimentar e receber.” Seja. Yes, we can
também é o lema aqui.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
America where?
Durante dois dias, o País pediu emprestado o nome ao continente para que Coimbra
pensasse a superpotência no século XXI. As influências que o mundo colhe, acolhe
ou rejeita. O mito que sobrevive. O puzzle de culturas que se faz e desfaz.
As portas abertas e fechadas. Da “América” para o resto do mundo. E de cá para lá.
Por Sandra Inês Cruz
O colóquio de estudos americanos orga­
nizado pela Faculdade de Letras trouxe à
Universidade de Coimbra investigadores
dos dois lados do Atlântico. Depois de um
afro-americano ter chegado à Casa Branca,
nomes internacionalmente reconhecidos na
área da americanística ajudaram a ler os
Estados Unidos num momento que mar­
cará profundamente a História do país.
O encontro cruzou abordagens várias
da multiculturalidade da nação que, às
vezes permissiva, às vezes impiedosa,
não deixa de atrair o mundo, e de
influenciá-lo. O que estava em causa?
Identidades e diferenças. Cultura. Onde
está a “América” agora? O atlantismo,
o neoliberalismo, o transnacionalismo,
o racismo, a literatura, a fotografia, o
cinema, as prisões, a guerra e as fron­
teiras deram respostas.
benho e enteada de um branco), e o
trauma da experiência familiar interracial lançaram a questão da inevitável
(?) subordinação da família à raça, e do
alto preço que pode custar a transgres­
são da linha de cor na sociedade que,
vista de fora, parece apenas energica­
mente colorida. Lá dentro, o sangue
define o lugar, e outra ordem racial
como a do Brasil, por exemplo, suben­
tenderá um caos correspondente a um
não-lugar. A pergunta será: como podem
e como conseguem os Estados Unidos
influenciar outras sociedades a adoptar
as mesmas rígidas linhas divisórias na
atribuição de uma identidade?
A fronteira foi o tema trazido por Ana
Manzanas Calvo, da Universidade de
Salamanca, que alimentou a reflexão sobre
a obsessiva necessidade de delimitações
físicas como garantes
da estabilidade da
“América”. Especialmente focada na
O encontro cruzou abordagens várias
divisão entre o
da multiculturalidade da nação que, às México e os Estados
vezes permissiva, às vezes impiedosa, Unidos, e recorrendo
ao filme The Terminal, de
não deixa de atrair o mundo,
Steven Spielberg, Ana
Manzanas identificou a
e de influenciá-lo.
linha de fronteira como
“entre-lugar”, isto é,
George Hutchinson, da Universidade de
sítio de passagem, onde a permanência
Indiana, lembrou que o tempo de Barack não tem nexo e a ameaça é real. Espécie
Obama assenta numa ideologia racial de tranquilizador nacional, a fronteira
maniqueísta que desde sempre predeter­ separaria os “puros” dos outros, fixa sob
minou lugares na sociedade norte-ameri­ um prenúncio de poder violento que,
cana. A divisão entre preto e branco não sempre que necessário, se manifestará a
dispensa a árvore genealógica. Ao contrá­ bem da integridade da nação.
rio, sempre ignorou a aparência, optando
Dessa “nação-centro” que o mundo não
por uma classificação que é muito mais desiste de querer integrar, partiu Heinz
política do que racial.
Ickstadt, professor de Literatura Americana
A história de Nella Larsen e da sua na Universidade de Berlim, para questio­
personagem Helga Crane (a escandinava nar o que deverá ser o coração dos estudos
mulata, filha de mãe branca, de pai cari­ americanos actuais: o progresso?
‘
’
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
41
PORTUGAL/EUA
O processo demo­
crático? A libertação da
mulher? A (des)integração das
minorias? Forçosamente diferentes em
função do ângulo de visão, os objectivos
da americanística deverão sempre ter em
consideração que o alvo é suficientemen­
te forte para transformar o resto do
mundo. Nesse sentido, “América” será
everywhere, independentemente dos focos e
períodos de antiamericanismo referidos
por Teresa Alves, da Universidade de
Lisboa.
Afinal, de que falamos nós quando fala­
mos da América? Do eldorado que, desde
sempre, representou o novo mundo para
os portugueses emigrantes que cimentavam
42
as ligações entre os países
dos amigos Thomas Jefferson
e Abade Correia da Serra? Do exemplo
da democracia? Da globalização?
Amy Kaplan, professora na Universidade
da Pennsylvania e, como os outros ora­
dores, autora de várias publicações na
área dos estudos americanos, recuou ao
século XIX para repensar a “América”
através de Melville e do seu Moby Dick;
Melville raramente identifica as suas per­
sonagens pela nação, sendo antes o lugar
em que vivem o factor determinante da
sua identidade. Alheio ao peso das linhas
de fronteira, o escritor que morreu sem
grande reconhecimento do público cons­
truiu, na sua ficção, um circuito trans­
nacional que permitia a circulação de
pessoas e de saberes, adensados no e pelo
movimento fluido da viagem: uma escri­
ta entre espaços, sem as delimitações que
lhe sugeriam estrangulamento, e agora
são desejadas como inibidoras de ansie­
dades e tensões.
A tensão foi o elemento de união
entre os vários projec­
tos fotográficos apre­
sentados por Liam
Kennedy, director do
Clinton Institute, em
Dublin. Respondendo, num
assumido nível de simbo­
lismo, à pergunta que o
colóquio mantinha pen­
dente, L. Kennedy usou
a relativa autorida­
de documental da
fotografia para
lembrar os seus
poderes de educação
e consequente influ­
ência. Testemunha,
exposição, espelho crí­
tico, a imagem deixa pen­
sar realidades estranhas,
distantes e ocultas.
Cenas de hospitais,
interiores de casas,
soldados sem exér­
cito podem trans­
mitir e prolongar um
espírito de missão ou a vã
glória do patriotismo. Num ou
noutro caminho, a ilusão de ver­
dade reforça valores e objectivos.
Perante uma casa destruída e
inundada de destroços, onde
está a “América”? Na Guerra
do Iraque? Num filme de
acção? Em tempo de crise, é a
escandalosa tensão que alimenta
a imagem da homeland?
Ruth Gilmore, presidente da Associação
de Estudos Americanos nos Estados
Unidos, abriu a porta às prisões norteamericanas para deixar entrar em cena
os conceitos de “culpado” e “inocente”
associados aos de “imigrante” e “cida­
dão”, numa perspectiva que deixa a des­
coberto um racismo estr utural.
O que é que “criminoso” tem a ver com
“estrangeiro”?
Ruth Gilmore trabalhou durante anos o
tema da sobrelotação das prisões. Lembra
que, reforçando o carácter de “não-lugar”,
a maioria das cadeias situa-se em zonas de
fronteira. Como se organizam? O que trans­
mite a sua organização? É na defesa de uma
ordem social conseguida também pela
punição da raça que está a “América”?
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
de narrativa, é certo.
E então, a “América”
estará em todos os
Afinal, de que falamos nós quando
filmes em que a trafalamos da América? Do eldorado
gédia foi substituída
por uma espécie de
que, desde sempre, representou
jogo de computador
o novo mundo para os portugueses
com vários níveis que
as novas gerações
emigrantes que cimentavam as
querem passar. Ainda
ligações entre os países dos amigos
que não gostem da
“América”, mas aceiThomas Jefferson e Abade Correia
tem, num darwiniano
da Serra? Do exemplo da democracia? processo de adaptação, novas formas de
Da globalização?
cultura de que, desejada ou indesejadamente, se apropriam.
Reinventada, a “AméRob Kroes, professor na Universidade
rica” estará em todo o lado.
de Amesterdão, ex-presidente da AssoO encontro de Coimbra quis prestar
ciação Europeia de Estudos Americauma atenção particular às dimensões
nos, tem mais de trinta livros publi- social e cultural da nação que, na sua
cados na área da americanística que multiculturalidade, na conflitualidade das
também desenvolve em publicações peri- suas fronteiras, nas suas contradições e
ódicas. Em Coimbra, propôs-se reler o
fascínios não deixa de estar espalhada
atlantismo na sua dimensão cultural, pelo mundo.
pensando as relações actuais entre a
A organização do colóquio foi pensada
Europa e os Estados Unidos, num exercício que equaciona a história cultural
dos dois lados do Atlântico: como o fim
do século XIX trouxe a consciência, por
parte dos Estados Unidos, da sua diferença relativamente aos cânones europeus, ao som do jazz e não da música
clássica; como os standards culturais que
chegavam da Europa integravam os interesses, não da população em geral, mas
das elites; como o século XX e a emancipação cultural da “América” fizeram
nascer outras formas válidas de transmissão da ideologia dominante; a cultura de massas e a aparente liberdade
que representa a escolha livre cercada de
publicidade; o sucesso da nova receita
cultural e a eficácia dos ingredientes
“sonho” e “fantasia”. Rob Kroes falou,
a este propósito, de um softpower, por
causa da capacidade que esses ingredientes têm de servir diferentes repertórios,
funcionando como alicerces de variadíssimas expressões culturais. Imperialismo cultural? Talvez. Mas
comercialmente assumido, pela
valorização das técnicas de
massa que não se diminuem
perante as elites ciosas da promoção dos poderes político e
económico. Beber uma Coca­‑Cola ou fumar um Marlboro
serão formas possíveis de viver o
sonho americano, de forma mais ou
menos cinematográfica. Com dispensa
‘
’
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
de modo a que alunos de mestrado e doutoramento em Estudos Americanos tivessem mais do que o privilégio de assistir
às palestras de especialistas; à margem das
comunicações abertas ao público, os estudantes tiveram oportunidade de apresentar aos convidados os seus projectos de
investigação.
Maria Irene Ramalho Santos, Isabel
Caldeira e Maria José Canelo, organizadoras do colóquio, falam de um balanço
extremamente positivo: “Aprendemos
todos muito, beneficiámos e beneficiaremos dos contactos feitos (estudantes nossos já fizeram visitas aos centros e
universidades que os especialistas convidados representam, para prosseguirem
com a investigação no âmbito das suas
teses, e outros estão a prepará-las ou, pelo
menos, a beneficiar dos contactos feitos)
e demos visibilidade e crédito aos programas de Estudos Americanos da Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra. As
opiniões expressas durante e após o evento, especialmente da parte dos especialistas convidados e de colegas de outras
universidades, confirmaram plenamente
esta nossa convicção.”
43
PORTUGAL/EUA
Repensar Lincoln
e Welty numa América
multicultural
O Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa organizou um colóquio
para comemorar o bicentenário de Abraham Lincoln e o centenário de Eudora Welty.
Por Carla Baptista
Quando a escritora Eudora Welty (1909­‑2001) nasceu há cem anos, no Mississipi,
já não havia escravos nas plantações dos
estados sulistas, graças à Proclamação de
Emancipação assinada no dia 1 de Janeiro
de 1863 pelo Presidente Abraham Lincoln.
Mas ainda existia uma dura segregação
racial que empurrava os afro-americanos
para os bancos traseiros dos transportes
públicos, vedando-lhes o acesso às escolas,
hospitais, teatros, cafés e parques frequentados pelos brancos e impedindo-os de
votar ou serem eleitos. Os legados político
de Lincoln e literário de Welty foram discutidos durante um colóquio organizado
pela Linha de Acção de Estudos Americanos
do Centro de Estudos Anglísticos da
Universidade de Lisboa (CEAUL), designado “Post Racial América: Has the USA
Moved Beyond the Race Issue?”
Edgardo Medeiros Silva, um dos organizadores, afirmou à Paralelo que o simpósio foi concebido com uma finalidade
dupla: “Celebrar o bicentenário e o centenário de Abraham Lincoln e de Eudora
Welty, respectivamente; avaliar se a eleição
de Barack Obama, o primeiro presidente
afro-americano, representa o início de um
momento político nos Estados Unidos em
que para a maioria dos americanos as
questões raciais possam já ter passado para
um plano secundário das suas preocupações enquanto cidadãos.”
A questão da raça é transversal a Lincoln
e a Welty, justifica aquele professor: “O
primeiro, como responsável pelo fim da
escravatura nos Estados Unidos e por ter
concedido direitos políticos aos ex-escravos; Welty, pelo facto de ser uma escritora e fotógrafa do Sul, cuja produção
artística evidencia um particular interesse
pelas relações entre brancos e negros.”
44
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
Lincoln e a arte
de plantar flores e
arrancar cardos
Richard Carwardine, professor de História
Americana no St. Catherine College, em
Oxford, autor de uma das melhores biografias de Abraham Lincoln, intitulada
Lincoln: A Life of Purpose and Power (2003),
condensou a visão política do 16.º
Presidente dos Estados Unidos através da
confidência feita a um amigo íntimo, Joshua
Speed, em Fevereiro de 1865, numa altura
em que já era assaltado por visões da sua
própria morte: “Morra eu quando morrer,
quero que aqueles que me conheceram
melhor me recordem como alguém que
arrancou cardos e plantou flores, sempre
que pensei que uma flor podia crescer.”
Carwardine demonstra como o projecto
político e social de Lincoln buscou uma
sociedade inclusiva e “fluida”, onde a liberdade individual era condição para a felicidade colectiva. O trabalho escravo, em que
assentava a base da economia de estados
como Alabama e Mississipi, corrompia este
princípio original de igualdade entre os
homens e meritocracia económica e por
isso Lincoln escreveu: “Sou naturalmente
antiescravatura. Se a escravatura não é
errada, então nada é errado.”
Assassinado com um tiro na nuca, disparado pelo actor John Wilkes Booth, no
dia 14 de Abril de 1865, quando assistia
a uma peça cómica no Teatro Ford, em
Washington, Lincoln ainda viveu para ver
o fim iminente da guerra civil (1861-1865), a pacificação da União e o sarar
das feridas causadas por um conflito que
ceifou mais de 650 mil vidas, objectivos
principais do seu segundo mandato, iniciado em 1864.
Esta grande figura da história americana,
tão grande que Jeff Childs, também ligado
ao centro, recordou com ironia que, em
criança, considerava Lincoln “o segundo
Presidente americano, logo a seguir a George
Washington”, fazendo-o galgar uns bons
lugares em relação à sua real 16.ª posição,
continua a inspirar a análise política.
Hoje, acrescenta, Lincoln surge “como
uma figura de reconciliação. Basta considerar a forma como a sua imagem foi
invocada durante as últimas eleições preParalelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
sidenciais americanas. A actual clivagem
ideológica que se verifica nos Estados
Unidos (cuja representação simbólica será
a divisão do país em estados azuis e vermelhos) pode ser lida em termos que
fazem lembrar os tempos da Guerra Civil
Americana e o profundo conflito social e
político que se viveu na altura. Nessa perspectiva, Lincoln afigura-se como a esperança pela superação das diferenças
ideológicas actuais e pela definição de um
novo propósito nacional”.
O rosto granítico de Abraham Lincoln,
filho de pais humildes nascido numa zona
rural do estado de Kentucky, órfão de mãe
aos 10 anos e cuja infância decorreu entre
trabalhos agrícolas e os ursos que então
ainda habitavam as florestas de Indiana,
para onde o pai se mudou com a família
quando ele tinha oito anos, é um dos ícones mais fortes da contemporaneidade.
Forçado a usar barba para esconder a sua
notória fealdade (foi o primeiro Presidente
americano barbudo), a sua imagem popularizou-se graças às fotografias de Mathew
Brady, em Fevereiro de 1860, uma época
que nos Estados Unidos marca também a
rápida transformação do medium fotográfico numa forma de expressão popular.
A identificação empática suscitada pelo
sofrimento entranhado no rosto presidencial, um homem que mergulhou com
relutância o país numa sangrenta guerra
civil para preservar um ideal político, perdeu três filhos bebés e morreu numa cama
improvisada que era pequena demais para
o seu corpo repousar, penosas horas
depois de uma bala disparada à queima­‑roupa lhe ter decepado parte do cérebro,
é um dos factores que o liga à escrita
humanista de Eudora Welty, acusada várias
vezes, entre o elogio e a crítica, de gostar
“excessivamente” das suas personagens.
Considerada a “mais clemente” do triunvirato feminino do Sul dos Estados Unidos,
juntamente com Flannery O’Connor
45
PORTUGAL/EUA
e Carson McCullers, Eudora Welty escreveu
em 1965, no auge do movimento pelos
direitos civis dos negros: “Precisamos de
escrever com amor.”
Diana Almeida, investigadora do CEAUL
e organizadora do evento, refere que
“devido ao fundo realista da sua ficção,
Welty dá a conhecer o contexto histórico
dos Estados Unidos, potenciando a compreensão da clivagem Norte-Sul”.
Autora de uma das ainda poucas traduções portuguesas (Os Ventos e Outros Contos,
da Antígona) da obra prolixa de Welty,
aquela especialista em literatura não tem
uma resposta “taxativa” para explicar o
relativo alheamento nacional face a uma
das autoras norte-americanas mais proeminentes do século XX: “A escrita de
Welty pertence a uma tradição de mulheres sulistas que só há pouco começou a
ser desvendada pelos nossos editores,
sendo que a literatura do Sul ficou décadas na sombra de William Faulkner.
O facto de Welty ser uma contista (escreveu romances e novelas, mas ela própria
se definia como contista, e a crítica reconhece que a sua profunda inovação formal se centra sobretudo no conto) pode
46
ter contribuído para esta situação, visto
o conto ser normalmente um género
literário menorizado, com menos vendas
do que o romance, pelo menos no mercado português.”
John Kennedy se ter dirigido pela televisão ao país, exortando à aceitação da
igualdade racial.
Medgar Evers foi um dos apoiantes de
James Howard Meredth, candidato à
Universidade do Mississipi,
a mais prestigiada da região,
conhecida por “Ole Miss”.
Nos papéis de ingresso,
Que esta nação […] renasça
escreveu “Sou um cidadão
negro amer icano do
em liberdade e que o governo
Mississipi” e, para não haver
do povo, pelo povo, para o povo,
dúvidas, juntou uma foto.
Previsivelmente, a sua
não desapareça da Terra.
admissão foi rejeitada,
Abraham Lincoln
desencadeando uma luta de
dezoito meses, violentos
motins de rua, a invasão do
Um dos contos mais discutidos duran- campus por tropas federais e “uma grave
te este encontro, que incluiu passagens
crise moral”, nas palavras de John Kennedy,
de filmes na Cinemateca e leituras de
que obrigava a repensar os princípios funhistórias, foi Where is the Voice Coming From?, dadores da nação americana, recordados
o único que Welty escreveu “com raiva”, por Lincoln num comovente discurso prona própria noite do assassinato de Medgar ferido em honra das vítimas da guerra,
Evers, destacado líder da NAACP (National no cemitério de Gettysburg: “que esta
Association for the Advancement of nação […] renasça em liberdade e que o
Colored People), morto a 11 de Junho governo do povo, pelo povo, para o povo,
de 1963, horas depois de o Presidente
não desapareça da Terra.”.
‘
’
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
Fundações da CPLP
dialogam em São Tomé
A promoção anual de encontros de fundações de todo o espaço lusófono
é um fórum privilegiado de dinamização do sector das fundações no contexto
das organizações da sociedade civil.
Por Fátima Fonseca*
Desde 2003, ano da realização do primei­
ro encontro, que a FLAD, em parceria com
outras fundações, tem incentivado o esta­
belecimento de laços entre as fundações
da CPLP com propósitos de dar a conhe­
cer as áreas de actuação e programas em
desenvolvimento, reflectir em conjunto
sobre os principais problemas sentidos no
desenvolvimento das actividades, promo­
ver parcerias institucionais, e facilitar con­
tactos institucionais e pessoais.
A edição de 2009 (sexta) teve lugar na
cidade de São Tomé, São Tomé e Príncipe,
entre os dias 13 e 17 de Setembro de 2009
e constituiu o resultado de uma organi­
zação conjunta da Fundação Mãe
Santomense, na qualidade de anfitriã, e
do Centro Português de Fundações, apoia­
do por um secretariado composto pela
Fundação para o Desenvolvimento da
Comunidade (Moçambique), Fundação
Sagrada Esperança (Angola), Fundação
Infância Feliz (Cabo Verde), e pelas por­
tuguesas Fundação Bissaya Barreto,
Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação
Luso-Americana para o Desenvolvimento
e Fundação Oriente.
O 6.º Encontro de Fundações da CPLP
foi subordinado ao tema “A Valorização
do Factor Humano nos Processos de
Desenvolvimento” e da agenda de traba­
lhos constou a análise e reflexão sobre:
“As Novas Tendências na Ajuda ao
Desenvolvimento”; “O Factor Humano e
o Desenvolvimento”; “A Capacitação das
Organizações da Sociedade Civil nos
Processos de Desenvolvimento”; “Os
Objectivos de Desenvolvimento do Milénio
nos Países da CPLP”; “A Cultura e a
Criatividade no Desenvolvimento
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Humano”; “As Estratégias de Cooperação
entre as Fundações no Espaço da CPLP”.
Foi o encontro mais participado de sem­
pre, quer em número de fundações, quer
em número de representantes – cerca de
70 representantes de 40 fundações de
Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique,
Portugal e São Tomé e Príncipe, várias
ONG locais e uma delegação da CPLP
encabeçada pelo secretário executivo.
‘
“A Valorização
do Factor Humano
nos Processos
de Desenvolvimento”
foi o tema deste
encontro.
’
O salto qualitativo registado neste encon­
tro deveu-se, para além da excelência do
debate, à apresentação do estudo “Metas
de Desenvolvimento do Milénio – Relatório
Comparativo de Progresso (Angola, Brasil,
Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique,
Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor
Leste”). Este estudo, realizado em conse­
quência e por determinação do encontro
de 2008, terá forte impacto na orientação
das políticas de acção consideradas prio­
ritárias pelas fundações da CPLP. Marcou
um avanço pragmático na realização des­
tes encontros, para além de constituir um
documento de análise e recomendações
único no espaço da CPLP. Por outro lado,
este estudo permitiu determinar alguns
dos temas a incluir na agenda da próxima
reunião e, consequentemente, recomen­
dou a preparação de um outro dedicado,
desta vez, às boas práticas sobre inovação
social nos programas de cooperação para
o desenvolvimento.
Em declaração final, as fundações pre­
sentes adoptaram um conjunto de con­
clusões, das quais se destacam: a
importância de repensar o modelo da
ajuda ao desenvolvimento; a orientação
das actividades para projectos inovadores,
dinâmicos e sustentáveis, que promovam
o trabalho em rede e a capacitação das
organizações da sociedade civil, que invis­
tam na formação, na qualificação técnica
e na criação de lideranças fortes, e que
fomentem o empreendedorismo juvenil
e a inovação social; a promoção de pro­
jectos tendentes a melhorar o alcance dos
objectivos de desenvolvimento do milénio,
designadamente nos eixos da educação e
da saúde (infantil e materna); e a impor­
tância das fundações no estudo e divul­
gação da cultura e da expressão artística
nos países da CPLP.
A Fundação Luso-Americana esteve pre­
sente neste encontro com a participação de
Rui Machete (presidente), Charles Buchanan
(administrador) e Fátima Fonseca (direc­
tora para a área da Cooperação com Países
de Língua Portuguesa).
O 7.º Encontro terá lugar em Setembro
de 2010, no Brasil, a convite da Fundação
Roberto Marinho.
* Directora para a Cooperação com os Países de Expressão
Portuguesa
47
PORTUGAL/EUA
Dos Açores e da Galiza
Em busca do sonho americano
Deixou os Açores e o seminário para ir tentar a sorte nos Estados Unidos poucos meses
depois do 25 de Abril. Queria estudar mas não tinha dinheiro que chegasse, desistiu
e acabou por ingressar na actividade de outros familiares seus – a construção civil.
Os irmãos de António Goulart não queriam acreditar que ele conseguisse.
Euro-Atlânticas nos EUA – Experiências
da Emigração da Galiza e dos Açores”, que
juntou um conjunto alargado de perso­
nalidades, provenientes dos Açores, da
Galiza, dos Estados Unidos e de Portugal
continental para analisar e discutir as ques­
tões relativas às origens da emigração da
Galiza e dos Açores para os Estados Unidos,
apresentando também as suas implicações
ao nível económico e empresarial.
Nas palavras de Alberto Pena, professor
da Universidade de Vigo, presente no coló­
quio: “A Galiza e o arquipélago dos Açores
são dois territórios atlânticos excepcionais,
unidos por características de idiossincrasia
social comum.
DR
“Tu nunca trabalhaste, andaste sempre a
estudar, não sabes o que é trabalho,
sobretudo a construção civil”, diziam.
Mas se não sabia, Goulart depressa apren­
deu e formou uma empresa familiar na
Califórnia muito bem-sucedida. Tornou­‑se um exemplo de self made man e passou
a usar o nome Tony.
Como milhares de açorianos também
muitos galegos optaram pela emigração
para os Estados Unidos em busca do
Eldorado. Por essa razão, o colóquio que
decorreu na Horta, organizado pela FLAD
em conjunto com o Governo Regional dos
Açores, a Universidade dos Açores e o
Consello da Cultura Galega, “Comunidades
Os Emigrantes, tela a óleo de Domingos Rebelo, no Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada.
48
Partilharam os mesmos destinos ao
longo da História, ainda que percorren­
do caminhos diferentes. A Galiza foi e
continua a ser uma espécie de ilha na
Península Ibérica, cujos sinais culturais,
como os do povo açoriano, foram forja­
dos na sua relação com o oceano
Atlântico, e cuja economia assenta histo­
ricamente na pesca, na pecuária e na
agricultura. As dificuldades de sobrevi­
vência impulsionaram um espírito
empreendedor que levou os galegos a
espalharem-se pelo mundo na procura
de novas oportunidades, abrindo a sua
cultura ao intercâmbio atlântico desde o
Norte do Canadá até aos confins da Terra
do Fogo. O fenómeno da emigração gale­
ga e açoriana tem muitas convergências,
especialmente nos Estados Unidos, onde
os emigrantes encontraram um mundo
novo no qual lançaram novas raízes sem
esquecer as velhas origens. Neste sentido,
torna-se imprescindível resgatar a histó­
ria desta experiência única de duas cul­
turas atlânticas lusófonas imbuídas do
sonho americano.”
“A sua vida é a realização do sonho
americano?”, perguntámos a Goulart.
“Até certo ponto”, responde. “Temos
sempre dificuldade em avaliar as nossas
próprias experiências.” Com o mestrado
em Recursos Humanos, Goulart tem
uma empresa de grande sucesso de
revestimentos de interiores de imóveis.
Tornou-se um homem forte do associa­
tivismo da comunidade de emigrantes
portugueses na Califórnia, tendo criado
uma câmara de comércio. “Conseguimos
dar essa visibilidade à comunidade. A
Câmara de Comércio passou a ser a refe­
rência para a senhora Mayor, que inclu­
sivamente visitou Portugal. No período
áureo da Câmara de Comércio, estáva­
mos em pé de igualdade com os outros
grupos étnicos.”
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
Tony Goulart opta por publicar em inglês
para atrair os mais novos.
Da Galiza também se partia para os
Estados Unidos, mas “há dualidade na emi­
gração galega”, explica Xosé López, vice­
‑presidente do Conselho de Cultura Galega.
Isto porque “com os emigrantes sem recur­
sos, analfabetos que vão à procura de tra­
balho, parte da Galiza gente da elite,
exilados”.
bancária com 100 mil dólares depois da
primeira edição. Criámos a editora. Até
agora publicámos 18 títulos.”
Cultura de lá e cultura de cá
Ao mesmo tempo que se tentam integrar,
galegos e açorianos esforçam-se por con­
servar as suas raízes. Como encarar a cul­
tura que os recebe sem desprezar a de
origem? “A vinculação com tudo o que é
da Galiza e agrupamentos em colectivida­
des espanholas faz a ligação”, ­ afirma
López, acrescentando: “Há uma série de
publicações que surge com os fluxos
migratórios, algumas das publicações
incluem alguns textos em galego mas tam­
bém em castelhano, porque nem toda a
emigração era galega. Esse tipo de publi­
cações perdeu algum sentido hoje, em que
grande parte dessa geração já mantém uma
relação através da internet.”
Compreendendo a importância das
publicações ainda na actualidade, como
elo de ligação das pessoas com a sua
cultura, Tony Goulart também se dedi­
cou a editar livros. “Fizemos um levan­
tamento sobre a maior tradição social,
cultural e religiosa dos açorianos na
Califórnia – as Festas do Espírito Santo.
O sucesso foi retumbante, tanto no
apoio comunitário como no apoio ins­
titucional. A nossa intenção seria que,
ao fim desta publicação, tivéssemos
lucros muito reduzidos que seriam dis­
tribuídos por bolsas de estudo. O suces­
so económico da iniciativa acabou por
ser tão grande que tínhamos uma conta
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
DR
Xosé López: “A nova geração da comunidade
emigrante mantém a relação com a Galiza
pela internet”.
Os jovens descendentes de emigrantes,
seja dos Açores ou da Galiza, estão já
muito integrados. Goulart lembra que as
pessoas ainda se juntam com frequência
por serem portugueses ou descendentes
de portugueses. Embora as mais novas já
praticamente não o façam.
Para cativar os jovens para as origens
dos seus antepassados, Xosé López apos­
ta nas potencialidades da internet: “Ter
recursos para que ouçam música galega,
para que vejam como eram as casas, para
que localizem a Galiza geograficamente...
Isso atrai para a cultura Galega!” Tony
Goulart opta por publicar em inglês para
atrair os mais novos, embora até agora
os autores tenham sido sempre portu­
gueses ou luso-descendentes: “Publicamos
em inglês porque, contrariamente ao
que muita gente defende, achamos
que a língua de transmissão de cultura
muito brevemente será exclusivamente
o inglês.” SP
Casa da Galiza em Nova Iorque, em 1959.
49
PORTUGAL/EUA
Portugal, Alemanha e Canadá
candidatos ao Conselho
de Segurança
A candidatura a um dos dez lugares de membro não permanente
do Conselho de Segurança das Nações Unidas para o biénio 2011-2012 é actualmente
um dos principais objectivos diplomáticos de Portugal, que não é candidato a mais
nenhuma organização internacional até Outubro de 2010.
A estratégia passa por negociar com os res­
tantes países uma troca de apoios suficien­
temente alargada para garantir o acesso a
esse “clube muito restrito, quase secreto”,
nas palavras de Paula Escarameia, docente
no Instituto Superior de Ciências Sociais e
Políticas, na Faculdade de Direito da
Universidade Nova e membro da Comissão
de Direito Internacional da ONU desde
2002 (foi a primeira mulher a ser eleita para
este órgão, cuja missão é preparar projectos
de convenções internacionais).
O Conselho de Segurança (CS) é o órgão
mais importante das Nações Unidas (NU),
cuja estrutura principal compreende ainda
o Secretariado, o Conselho Económico e
Social e o Tribunal Internacional de Justiça,
além da Assembleia Geral. O Conselho de
Tutela suspendeu as suas actividades em
1994, depois de Palau, o último pequeno
território no Pacífico que ainda se encon­
trava sob administração das NU, se ter
tornado um país independente.
Apesar de a Carta das Nações Unidas já
ter sofrido várias emendas desde que foi
assinada, em São Francisco, a 26 de Junho
de 1945, a necessidade de reformar uma
máquina burocrática vista como pesada e,
em muitas situações, ineficiente, é um
debate sempre presente na história mais
recente da instituição.
Os três países que disputam os dois
lugares disponíveis para o grupo regional
que abrange a Europa e a América do
Norte incluem a palavra “reforma” no
seu argumentário de candidatura. Para
Portugal, a reforma constitui uma discre­
ta décima (e última) prioridade, resu­
mindo-se a “apoiar a mudança em curso
50
visando uma organização mais represen­
tativa, coerente, transparente e eficaz”.
Mas, para a Alemanha, é uma prioridade
máxima da sua política externa que impli­
ca conseguir para aquele país, o terceiro
maior contribuinte da ONU (o primeiro
é os Estados Unidos, com 22 por cento
do total do orçamento, sendo, também,
o maior devedor, e o segundo o Japão,
que sustenta idêntica reivindicação), um
lugar de membro permanente.
‘
Para Portugal esta eleição
joga-se em torno
do softpower.
’
O Canadá, embora sendo um apoiante do
alargamento do Conselho de Segurança, em
princípio favorável à entrada de potências
emergentes do Sul na qualidade de mem­
bros permanentes, a mais provável das
quais seria o Brasil (a Índia, outro candi­
dato óbvio, não assinou o Tratado de Não
Proliferação de Armas Nucleares, em 1970,
mantém um programa nuclear activo e
sustenta um conflito com o Paquistão que
desperta várias resistências à sua candida­
tura), concentra as suas prioridades numa
gestão mais eficiente da rede de organismos
especializados que trabalham em áreas tão
diversas como a saúde, a agricultura, a avia­
ção civil, a meteorologia e o trabalho.
Além dos fundos mais conhecidos, como
a UNICEF (Fundo das NU para a Infância),
e dos programas e órgãos com maior pro­
jecção internacional, como o ACNUR
(Alto-Comissariado das NU para os
Refugiados, actualmente presidido por
António Guterres), o PMA (Programa
Mundial de Alimentação) ou o PNUD
(Programa das NU para o Desenvolvimento),
existem dezenas de outros organismos
especializados, como a FAO (Organização
das Nações Unidas para a Agricultura e
Alimentação), o FMI (Fundo Monetário
Internacional), o BIRD (Banco Internacional
para a Reconstrução e Desenvolvimento),
além de institutos de estudo e pesquisa,
comissões orgânicas, comissões regionais
e órgãos conexos.
Cada um dos candidatos está empenhado
em fazer valer os seus trunfos. E se, para
Portugal, esta eleição se joga muito em
torno do conceito de softpower, ou seja, a
sua capacidade de atrair países de pequena
e média dimensão susceptíveis de se iden­
tificarem com os princípios universalistas
e multiculturais da agenda portuguesa,
tanto a Alemanha como o Canadá possuem
um arsenal de hardpower infinitamente supe­
rior, estimado em elementos como a popu­
lação, o território, os recursos naturais,
o poder económico e militar.
A Alemanha já esteve quatro vezes
representada no CSNU, embora só seja
membro das NU desde 1973, e apresen­
tou a candidatura no final de 2006,
depois de ter terminado o seu último
mandato em 2003-2004. O facto de con­
tribuir com quase 10 por cento do orça­
mento das NU, e de estar activamente
envolvida na reforma do CS, tendo em
vista o seu alargamento a países como o
Brasil, o Japão (cuja contribuição se apro­
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
ONUPhoto/Paulo Figueiras
Para Portugal ser um dos membros não permanentes do Conselho de Segurança precisará do apoio de, pelo menos,
dois terços mais um dos estados-membros das Nações Unidas.
xima dos 20 por cento) e a Índia, tanto
pode jogar a seu favor como contra si.
O voto dos pequenos países vale tanto
como o dos grandes (a regra é um país,
dois votos, um para cada um dos assentos
disponíveis no grupo WEOG (Europa
Ocidental e Outros) e a China, um dos
cinco ocupantes permanentes do CS, jun­
tamente com os Estados Unidos, a França,
o Reino Unido e a Rússia, que gozam do
direito de veto em relação a todas as deci­
sões daquela cúpula, opõe-se à entrada do
Japão, posição partilhada com a Coreia do
Sul. Por seu turno, o Paquistão opõe-se à
entrada da Índia, e a Argentina e o México
não apoiam a entrada do Brasil, visto como
o vizinho sul-americano hegemónico.
O Canadá, que apresentou a ­candidatura
após ter concluído o seu sexto mandato
no CS, em 1999-2000, fará certamente
valer os seus apoios no âmbito da
Commonwealth e da comunidade francó­
fona (pertence às duas).
No plano financeiro e nos apoios regionais
declarados, Portugal tem poucas hipóteses
de ganhar a contenda. Os PALOP, que cer­
tamente o apoiarão, constituem apenas um
núcleo de cinco países, e alguns podem já
ter perdido o seu direito de voto devido à
falta de pagamento das quotas para as NU.
Este é, aliás, um problema generalizado
que afecta o funcionamento da instituição
e coloca em causa o seu modelo de finan­
ciamento. Em Outubro de 2009, a subse­
cretária-geral de administração, Ângela
Kane, anunciou que apenas 22 países não
tinham dívidas com as NU. As missões de
paz, que têm crescido nos últimos anos, e
são financiadas com um orçamento à parte,
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
constituem a maior fatia de contas malpa­
radas, com a factura em falta a ascender a
cerca de 2,1 biliões de dólares.
Mas, no contexto geral, Portugal possui
boas perspectivas de sucesso. O ministro
dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado,
já declarou ter reunido “cerca de uma
centena de apoios, uns mais explícitos do
que outros”, sendo que o país vencedor
necessita de angariar pelo menos dois
terços mais um (129) do total dos 192
Estados­‑Membros.
Por outro lado, a sua condição de país
pequeno e periférico pode jogar a seu favor.
Esteve apenas duas vezes representado no
CS: em 1979-1980, como “prémio” pela
sua então jovem democracia, e em 19971998, durante o Governo presidido por
António Guterres, a pasta dos Negócios
Estrangeiros ocupada pelo ministro Jaime
Gama e a representação portuguesa junto
das Nações Unidas chefiada pelo embaixa­
dor António Monteiro.
Há muitos outros países que apoiam uma
maior rotatividade e representatividade
entre os membros do CS, e Portugal goza
de um bom estatuto internacional, devido
à sua elevada contribuição para as opera­
ções de paz (participou em 20, com cerca
de 20 mil efectivos, sendo o maior contri­
buinte ocidental de agentes policiais, apro­
ximadamente dois mil, números totais da
contribuição de Portugal até hoje), a sua
integração numa vasta rede de organizações
internacionais (UE, OSCE, CPLP, OCDE,
União para o Mediterrâneo, OEA), muitas
desde a sua fundação (como a NATO).
Além disso, tem estado envolvido numa
intensa actividade diplomática, com resul­
tados consensualmente vistos como posi­
tivos: presidiu ao Conselho da UE entre
1 de Julho e 31 de Dezembro de 2007 e
conseguiu fazer passar o difícil Tratado de
Lisboa; acolheu a Cimeira Ibero-Americana
em Novembro de 2009 e no final de 2010
vai ser o anfitrião da próxima cimeira da
NATO, um encontro visto como decisivo
para a definição de um novo conceito
estratégico daquela aliança.
Todos estes fóruns constituem oportuni­
dades cruciais para a angariação de apoios
para a candidatura portuguesa, e mobili­
zam todas as instituições políticas, desde
o Governo, a Presidência da República,
a Assembleia da República, ministérios e
até empresas, fundações e personalidades
individuais.
Na linha da frente está a Missão Permanente
junto das Nações Unidas, actualmente
chefiada pelo embaixador José Filipe
Moraes Cabral. O voto é secreto e quem
vota são os representantes permanentes,
daí que sejam também eles os alvos pre­
ferenciais de todas as acções de persuasão
feitas pelos representantes e enviados espe­
ciais dos países candidatos.
A história já provou que o poder eco­
nómico de um país ajuda, mas não chega
para garantir a sua eleição. Em 1996,
Portugal disputou o mandato com a Suécia
e a Austrália. Segundo Paula Escarameia,
os australianos estavam tão convencidos
da sua eleição que já tinham endereçado
os convites para a festa de comemoração.
Mas perderam, há quem diga que graças
aos múltiplos almoços e jantares de boa
comida portuguesa oferecidos pelos diplo­
matas em Nova Iorque. CB
51
PORTUGAL/EUA
Primeiro encontro de eleitos
luso-descendentes
nos Estados Unidos
A Embaixada de Portugal em Washington recebeu os mayors, representantes estaduais,
congressistas e outros eleitos luso-americanos ou de ascendência portuguesa para reuniram
em Washington e discutirem as suas respectivas experiências, visões e expectativas.
Não muito depois do início dos trabalhos já todos se perguntavam
“por que razão não fizemos isto há mais tempo?”.
A ideia de reunir todos os detentores de
cargos públicos na América que têm ligações
a Portugal era antiga e demorou a concre­
tizar-se, reconheceu o anfitrião. “Era bom
que este entusiasmo não se perdesse, antes
fosse como um verdadeiro impulso para a
continuidade desta iniciativa, talvez num
outro tipo de estrutura que perdure”, reflec­
tiu o embaixador João de Vallera.
Vindos de Portugal, o presidente do
Grupo de Amizade Portugal-EUA, João
Bosco Mota Amaral, e o presidente da
FLAD, Rui Machete, destacaram o interes­
se do encontro para o desenvolvimento
da relação bilateral dos dois países e para
o reconhecimento de Portugal na América.
“Fico satisfeito por ver que este primeiro
encontro de políticos americanos decorre
nesta embaixada, ou seja, em território
português”, observou Mota Amaral.
Ricky Durães
“Esta é realmente uma ocasião momen­
tosa”, frisou o mayor da cidade de Fall
River, Bob Correia. “Como nunca foi feito
antes, não deixa de ser uma vergonha para
todos nós”, lamentou. “Mas o poder é
criativo, e se todos nos unirmos num
movimento, acredito que conseguiremos
cumprir o sonho de ver os descendentes
portugueses ter mais influência neste
país”, acrescentou.
O embaixador João de Vallera com Jim Costa (à esquerda) e Devin Nunes (à direita) congressistas no Estado da Califórnia.
52
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Para não circunscrever o encontro a uma
conversa de políticos, o âmbito da iniciativa
foi alargado, de forma a incluir também
membros da sociedade civil que representam
ou estão envolvidos nas questões relativas
às comunidades luso-americanas, e ainda
representantes da actividade empresarial
portuguesa nos Estados Unidos.
Mas foi sobretudo de política que se
falou no arranque dos trabalhos. Os con­
gressistas da Califórnia, Dennis Cardoza e
Jim Costa, ambos democratas, lembraram
as suas experiências pessoais, numa ten­
tativa de “provocar” a audiência para um
debate sobre a necessidade de a comuni­
dade assumir maior protagonismo em
termos políticos.
“A primeira vez que entrei no
Congresso, tinha duas palavras na cabeça:
duas gerações. Foi o que foi preciso para
a minha família passar dos campos dos
Açores para o Capitólio dos Estados
Unidos”, lembrou Cardoza.
Pelo seu lado, o republicano Devin
Nunes, o mais novo dos três congressistas
federais, falou sobre o papel que os elei­
tos luso-descendentes podem assumir na
promoção de objectivos comuns, tanto em
termos de política externa como nas ques­
tões domésticas, “independentemente das
tendências ideológicas”.
E enumerou situações concretas. Em ter­
mos de política externa, Nunes considerou
que os congressistas estaduais podiam
desempenhar um papel importante fazen­
do pressão e defendendo a proposta de
transferência da sede do comando militar
africano do Exército dos Estados Unidos
(Africom, na sigla oficial), da sua actual
localização em Estugarda, na Alemanha,
para a base das Lajes, nos Açores. “Portugal,
pela geografia e pelo papel proeminente
que desempenha em África, é o único
ponto na Europa onde faz sentido ter a
sede do Africom”, sublinhou.
O outro dossiê em que todos podem tra­
balhar em conjunto, prosseguiu, tem a ver
com a promoção do emprego. Devin Nunes
lembrou que na década de 1980, a indústria
da pesca de atum sediada em San Diego, e
controlada por portugueses, desapareceu na
sequência de uma decisão legislativa que
não foi questionada ou contrariada a nível
nacional. “Precisamos de estar atentos e cer­
tificar-nos que casos semelhantes não se
repetem no futuro. Não podemos deixar de
levantar a nossa voz”, considerou.
Na sequência das intervenções dos três
legisladores da Califórnia, o empresário
Tony Frias deixou no ar uma dúvida:
“Porque não conseguimos também eleger
um congressista no Massachusetts? Porque
é que, mesmo nas áreas onde as votações
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Ricky Durães
PORTUGAL/EUA
O empresário Tony Frias (à esquerda) com João Bosco Mota Amaral (à direita)
no encontro de Washington.
são decididas pelos portugueses, ainda pre­
ferimos eleger um irlandês ou um italia­
no?”, questionou-se.
A plateia animou-se em conjecturas, que
foram desde a relativa apatia ou desinte­
resse dos actores locais até à dificuldade
em recolher contribuições para campanhas
políticas de âmbito nacional. O que ime­
diatamente levou a uma sugestão: a cria­
ção de uma estrutura de fundraising para
promover candidaturas de luso-america­
nos, que pudesse contribuir para as dife­
rentes campanhas independentemente dos
estados a que pertencem os candidatos.
Inquiridos pelo único participante vindo
do estado do Arizona, o representante da
assembleia estadual Phil Lopes, os inter­
venientes discutiram ainda a importância
que a igreja mantém como elemento agre­
gador da comunidade luso-americana.
mesma paróquia e eram membros da
Sociedade do Espírito Santo. “Eles funcio­
nam como uma espécie de comité de
selecção”, comparou.
A segunda metade do encontro foi pas­
sada a discutir os temas da economia e
competitividade – com intervenções que
acentuaram as actuais dinâmicas de inter­
câmbio científico e tecnológico entre os
dois países, e com apresentações de algu­
mas das empresas portuguesas que se
inseriram com sucesso no tecido industrial
e financeiro americano, como o BES, a
Efacec, a EDP ou a Brisa.
No espaço destinado ao debate, alguns
representantes não resistiram a fazer algum
esforço de lóbi no sentido de atrair negócio
para as suas respectivas comunidades.
“Gostava de saber se alguma das empresas
aqui presentes considerou a hipótese de se
instalar no meu estado?”, lan­
çou um dos participantes que
viajou desde a Califórnia.
“Como estamos aqui em
Socializar era uma componente
nome das comunidades por­
tuguesas, julgo que também
importante desta iniciativa, ainda
seria interessante e importan­
que não a mais substantiva.
te para as empresas portugue­
sas [com intenção de investir
nos Estados Unidos] instala­
“Há uma forte associação”, admitiu Bob rem-se nos lugares onde o ambiente e a
Correia, que disse não ter a mínima dúvida representação política são mais favoráveis”,
que o seu sucesso político se deve à quan­ notou um representante do Massachusetts.
tidade de procissões em que participou. “E
Além dos diferentes painéis de trabalho,
presumo que acontece o mesmo com todos: o encontro também incluiu momentos
a vida na igreja é muito importante para a de carácter “social”, como um jantar na
comunidade portuguesa”, explicou.
chancelaria portuguesa, uma visita ao
O senador estadual de Rhode Island, Congresso e outra à Casa Branca.
Daniel da Ponte, recordou como todos “Socializar era uma componente impor­
aqueles que venceram no seu distrito elei­ tante desta iniciativa, ainda que não a
toral (há cinquenta anos representado por mais substantiva”, confessou o embaixa­
um luso-descendente) faziam parte da dor português. RS
‘
’
53
PORTUGAL/EUA
Portuguese American Citizenship Project
Dez anos a tornar
os portugueses mais visíveis
Desde 1999 que faz por desfazer o mito de que a comunidade luso-americana
é politicamente invisível.Trabalhou para avaliar e promover a sua participação cívica e eleitoral,
para fazê-la entrar no sistema e ensiná-la a fazer valer os seus direitos. O Portuguese American
Citizenship Project (PACP) tem uma mão-cheia de sucessos e outra de desafios.
Por Joana Fernandes
“Desfizemos um mito, mudámos a ima­
gem da comunidade portuguesa nos
Estados Unidos e contribuímos muito
para o aumento da sua participação
democrática”, defende.
O projecto funciona em 25 comuni­
dades luso-americanas, dispersas por
cinco estados. Em cada comunidade o
ciclo de trabalho é o mesmo: analisar e
definir os traços fortes e os traços fracos
da organização, articulando-os com uma
lista dos votantes registados naquela
Rui Ochôa
“O nosso maior êxito foi comprovar que
os portugueses votam, e que votam, em
algumas circunstâncias, em percentagens
superiores às dos norte-americanos em
geral”, considera Elmano Costa, presi­
dente do pacp.
Elmano Costa (à esquerda), Rui Machete e James McGlinchey, coordenador do projecto (à direita). Segundo este,
“Para votar nos Estados Unidos é preciso ser cidadão norte-americano, registar-se para votar e votar”.
54
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
zona; e planear a estratégia para promover a cidadania, o registo para o voto e
a ida às urnas.
James McGlinchey, coordenador do projecto, recorda ainda “as noites de candidatos”: “Em tempo de campanha juntamos
em cada comunidade os candidatos a
determinadas eleições para que possam
dar-se conta dos problemas e interesses
dos luso-americanos, bem como do
seu poder de voto. Isto permite também às pessoas exigirem, depois das
eleições, que o candidato eleito
cumpra o que prometeu.”
A ideia de aproximar os luso­‑americanos da política, garante,
“não é original”: “Não inventámos
isto. Alguns líderes da comunidade
associativa portuguesa nos Estados
Unidos já faziam esta promoção da
cidadania e da participação eleitoral. O nosso contributo foi colocar
as diferentes comunidades a falar e
a trocar ideias. Fizemos que as
melhores ideias passassem para a
linha da frente e nesse sentido o
nosso trabalho foi muito produtivo.
Contribuímos para o crescimento
do respeito dos líderes locais, estatais e federais pela comunidade
luso-americana.”
“Para votar nos Estados Unidos é
preciso ser cidadão norte-americano, registar-se para votar e votar.
Cinquenta por cento dos portugueses nos EUA não são cidadãos norte­‑americanos; 50 por cento desses
não estão registados para votar; e 50
por cento dos últimos não votam. E
é aí que trabalhamos. Não nos interessa em quem votam. Interessa-nos
que votem”, concluiu.
Metade do orçamento
Também Rui Machete, presidente da FLAD,
considera que “os bons resultados são
inegáveis”. Apesar disso, defende, o projecto, que há dez anos vê o seu orçamento anual, de 200 mil dólares, quase
inteiramente assegurado pela Fundação,
“precisa de se autonomizar, recorrendo às
comunidades”.
Avaliar o impacto
James McGlinchey explica que “não há
forma de saber quantas pessoas o pacp
registou para votar desde o seu início”:
“Sabemos que o número de luso-americanos recenseados para votar aumentou
largamente nos últimos dez anos, mas
não só não temos um estudo completo
sobre isso, com um número certo, como
também não podemos garantir que o
registo para votar foi feito devido à nossa
acção”, diz.
“Podemos, sim, dizer que elevámos a
consciência da força do voto da comunidade portuguesa nos Estados Unidos e
podemos demonstrar que os nossos esforços para motivar as pessoas a irem votar
foram bem-sucedidos, sobretudo nas eleições locais e estatais”, defendeu.
A flad vai, neste sentido, e para conseguir diversificar os seus apoios e abranger novos projectos, reduzir a sua
comparticipação no pacp.
“Tivemos sempre o problema da an
gariação de fundos, foi sempre difícil.
E agora, mais do que nunca, é um desafio”, afirma o coordenador do projecto.
“Precisamos de ser capazes de envolver a
comunidade norte-americana neste projecto, de fazê-la apoiá-lo.”
James McGlinchey sublinha que “apesar
de o projecto ter, durante dez anos, feito
muito trabalho com pouco dinheiro (gastámos um dólar por votante contra 30
ou 40 que são gastos pelos partidos nas
eleições presidenciais), este trabalho não
pode ser feito apenas em regime de
voluntariado.” “É uma campanha nacio-
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Cartaz de incentivo à participação política
da comunidade luso-americana.
nal e o trabalho é muito intenso e cansativo. É preciso pagar ordenados, viagens
e falar com as pessoas, mantê-las envolvidas... Tudo custa dinheiro”, nota.
“Mas a questão é simples. As pessoas
faziam isto antes de chegarmos e vão continuar a fazê-lo. A sobrevivência do projecto vai depender da forma como a
comunidade o entende; se entender que
ele vale a pena, ele terá continuidade.”
Por agora, as contas que McGlinchey
faz são estas: “O Governo dos Açores
já se comprometeu a apoiar o pacp
até 2012 com 35 mil euros por ano
e a flad vai também contribuir.
Teremos um orçamento de cerca de
100 mil dólares anuais. Embora seja
metade do que tínhamos, perfaz um
montante significativo e permite
desenvolver muito trabalho, não obstante vá exigir um maior esforço da
nossa parte”, considera.
Elmano Costa reconhece que,
“funcionando com metade do orçamento, o projecto não pode ser o
mesmo”, mas considera que “o
facto deve ser encarado como desafio e também como oportunidade
para repensar o funcionamento do
projecto e a sua organização”.
Chegar aos mais novos
“Só paro de trabalhar neste projecto quando todos os luso-descendentes nos Estados Unidos
forem votar”, brinca Elmano Costa,
para explicar de seguida que “um
outro desafio do projecto prende­‑se com a necessidade de chegar
aos mais novos, os imigrantes de
segunda e terceira geração”.
James McGlinchey lembra os
números: “Nos Estados Unidos, apenas
sete por cento das pessoas abaixo dos 30
anos votam. Aos mais velhos nós chegámos. Mas este é um desafio global, não
apenas nosso”, argumentou.
Um novo coordenador
Para António Vicente, subdirector da
Fundação, “O desafio de substituir James
McGlinchey no final do ano foi ultrapassado”. “Quero fazer outras coisas […] –
diz McGlinchey – mas nunca na minha
vida gostei tanto de fazer uma coisa como
esta”, sorriu.
Elmano Costa e António Borba foram
nomeados, respectivamente, presidente e
coordenador, o que dá garantias da continuidade do projecto.
55
PORTUGAL/EUA
Meiklejohn House:
uma casa do mundo português
O Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade de Brown
foi criado na década de 1970. Aqui há paixão pela língua portuguesa.
Por Carla Martins
Lamonte Aimoo chega à aula com um saco
carregado de livros, o alívio estampado no
rosto quando deposita o pesado fardo sobre
a mesa. “Lamonte, os livros não são para
trazer, são para ler”, brinca Onésimo
Teotónio Almeida, provocando o riso dos
alunos. O good mood está instalado para abor­
dar, nesta aula do curso “On the Dawn of
Modernity”, o labiríntico jogo do imaginá­
rio português de Eduardo Lourenço.
O ensaísta foi uma das muitas persona­
lidades que, nos últimos trinta anos,
visitou o Departamento de Estudos
Portugueses e Brasileiros da Universidade
de Brown. Nasceu como centro na déca­
da de 1970 e adquiriu o actual estatuto
em 1991, num reconhecimento institu­
cional dos estudos lusófonos como campo
autónomo. “Foi o primeiro Departamento
de Estudos Portugueses e Brasileiros dos
EUA”, salienta Onésimo, professor desde
1975 na universidade da Ivy League
‘
’
O main green da Universidade de Brown que acolhe o Departamento de Estudos
Portugueses e Brasileiros.
56
D.R.
A língua e culturas portuguesas estão vivas na casa
de tijolo de três andares que alberga o departamento,
a Meiklejohn House, situada na George Street.
sediada em Providence, Rhode Island,
e acting chair no semestre de Outono.“Os
núcleos de Estudos Portugueses e
Brasileiros eram pequenos enclaves nos
departamentos de Espanhol, ou de
Românicas, ou simplesmente de Línguas
e Literaturas Modernas”, explica.
A língua e culturas portuguesas estão
vivas na casa de tijolo de três andares que
alberga o departamento, a Meiklejohn
House, situada na George Street, assim cha­
mada em homenagem a um antigo direc­
tor da Universidade de Brown e
presidente do Amherst College. Uma casa
de família, onde todos se conhecem e, com
mil sotaques, comunicam na mesma língua.
Aqui promovem-se conferências e publi­
cações, organizam-se sessões de cinema e
eventos especiais de convívio convocados
sob as curiosas designações de “bate-papo”
e “piza & papo”, destinados a “todos os
estudantes e falantes de português”.
O que é que esta casa tem? Uma das
“singularidades”, confidencia Leonor
Simas-Almeida, professora na Brown desde
1989, é a “atmosfera familiar que geral­
mente (e naturalmente) se cria entre pro­
fessores, alunos e funcionários”.
O departamento abraça várias direcções
científicas. “É muito importante ter liga­
ções com outros departamentos, somos
um departamento interdisciplinar”, afirma
o chair Luiz Valente, professor na Brown
desde 1983, notando que “grande núme­
ro dos nossos professores está também
noutros departamentos”.
É o caso de Jorge Flores, simultaneamen­
te professor de Estudos Portugueses e de
História. No primeiro semestre a ministrar
o curso “A Europa e o Oceano Índico”, é
professor na Brown desde 2007, depois
de uma experiência anterior nesta univer­
sidade. Ocupa a Cátedra Vasco da Gama
de História dos Descobrimentos, estabe­
lecida nos anos 1990 através de um
Endowment para o qual contribuíram várias
instituições, entre as quais a FLAD. “Esta
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
é uma boa criação, trata-se de uma área
que não estava coberta pelo departamen­
to”, comenta o historiador.
Brasil na cultura popular portuguesa e norte­
‑americana. “Para mim o português é uma
língua muito natural, it feels right”, diz, ao
procurar descrever a paixão que sentiu pela
língua na Lincoln University. Ana Catarina
Teixeira está na fase final do doutoramento.
Portuguesa, fez os seus estudos nos Estados
Unidos, em Relações Internacionais e
Estudos Portugueses e Brasileiros, e a sua
dissertação será consagrada à literatura ango­
lana dos anos 1980.
“It feels right”
A Brown é uma das universidades norte­‑americanas mais liberais, os alunos são
convidados a ir além do seu campo de
estudos. No início do ano lectivo fazem
festas, claro, mas também shopping para
escolher os cursos que vão seguir. As com­
binações possíveis são acompanhadas
pelos concentration advisers.
Triângulo luso-afro-brasileiro
Brianna Medeiros, aluna da licenciatura em A procura de cursos de português como
Relações Internacionais e Português, salien­ língua estrangeira tem crescido e cada
ta precisamente o free curriculum da Brown. aluno vive com ela uma história de amor
O facto de a família do pai ser dos Açores diferente. “A Brown tem expandido o
pesou na decisão de aprender português. ensino da língua portuguesa além das
E deixou-se fascinar. “Não esperava focalizar­ fronteiras das famílias de origem lusófo­
‑me tanto nos estudos portugueses”, con­ na”, salienta Luiz Valente.
fessa. Brianna visitou o
arquipélago pela primeira
vez em Setembro e passará
o segundo semestre numa
Uma das “singularidades” é a
universidade portuguesa.
“atmosfera familiar que geralmente
A maior parte dos alunos
de licenciatura é america­
se cria entre professores, alunos
na, nos estudos pós-gradu­
e funcionários”.
ados as percentagens são
mais equilibradas, contex­
tualiza Onésimo T. Almeida. Três programas
Aqui ensina-se a “norma europeia” e a
de mestrado e um de doutoramento em
“norma brasileira” e ambas “são legíti­
língua, literatura e culturas do mundo que mas”, enquadra Leonor Simas-Almeida.
fala português, com duração de cinco anos, “Procuro que os alunos tenham conheci­
compõem a oferta de estudos pós-graduados mento das duas”, no uso é-lhes “apenas
do departamento. O horizonte de temas de exigida consistência”. Na sua aula de
investigação é tão variado como os territó­ Estilística e Gramática Avançada resolvemrios da língua.
­‑se subtilezas gramaticais de uma língua
Daniel Silva é aluno do primeiro ano de
de muitas regras e excepções à regra,
doutoramento. Filho de pais portugueses, escreve-se e discutem-se textos criativos.
Vários alunos de doutoramento com bolsa
apegou-se à língua na Rutgers University.
Neste momento está interessado em inves­ leccionam português como teaching assistants.
tigar a figura do retornado no processo de Sandra Sousa, nos Estados Unidos há oito
pós-colonização africana. Lamonte, no anos, está no terceiro ano do doutoramen­
segundo ano do doutoramento, planeia to e há dois que ensina português na Brown.
estudar literatura moçambicana e cabo- “Sou muito feliz a dar aulas”, afirma Sandra,
que também deu aulas na Universidade de
­‑verdiana e a construção da imagem do
‘
Além das aulas, há muitas iniciativas em português.
’
Daniel Silva, Brianna Medeiros e Sandra Sousa, alunos do Departamento de Estudos
Portugueses e Brasileiros.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Capa do manual de ensino do português.
Massachusetts. Dartmouth, onde fez o mes­
trado sobre a importância do espaço na
constituição do género no Primo Basílio.
No Departamento de Estudos Portugueses
e Brasileiros cruzam-se as diferentes latitudes
do mundo lusófono. Têm sido felizes os
encontros? “Não é simples”, admite
Onésimo. “Insistimos sempre no triângulo
luso-afro-brasileiro.” Uma paleta de culturas
do mundo lusófono projecta-se na
Meiklejohn House. A língua portuguesa ani­
nhou-se nesta casa, cresce, enriquece-se,
multiplica-se, transforma-se. Igual a si pró­
pria, diferente de si própria.
57
PORTUGAL/EUA
Memória com futuro
Foram inaugurados, na Universidade de Massachusetts Dartmouth (UMD),
os Arquivos Luso-Americanos Ferreira-Mendes, cinco anos depois de propostos
pelo Centro de Estudos e Cultura Portuguesa daquela instituição.
Ferreira-Mendes era outro nome pelo
qual era conhecido Affonso Gil Mendes
Ferreira, fundador da rádio portuguesa nos
Estados Unidos nos anos 1930. O popular
programa “A Voz de Portugal” tinha ouvin­
tes em Massachusetts e Rhode Island. Hoje,
os seus programas podem ouvir-se nos 48
discos de 78 rotações da “Affonso Ferreira­
‑Mendes Collection of Portuguese Musical
Recordings, 1930s-1950s”. Programas gra­
vados secretamente sob orientação do
Governo americano, durante o período
do mcarthismo. Anos mais tarde, os discos
foram surpreendentemente enviados a
Otília pelo correio.
A entrada dos Ferreira-Mendes PortugueseAmerican Archives descobre-se circundan­
do à esquerda a Biblioteca Claire T. Carney.
Entra-se para a Prince Henry Society of
Massachusetts, Inc. Reading Room, mesas
Carla Martins
Um chapéu de palha sorria na cabeça de
Ferreira-Mendes quando este viajou para
os Estados Unidos nos anos 1920,
ganhando a alcunha de O Palhinhas.
Décadas depois a filha, Otília Ferreira,
quis homenageá-lo dando o seu nome
aos Arquivos Luso-Americanos da
Universidade de Massachusetts Dartmouth
(UMD), o que lhe foi concedido por ter
feito o leading gift.
A entrada dos Ferreira-Mendes Portuguese-American Archives inaugurados na Universidade de Massachusetts Dartmouth.
58
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
Uma ideia com geografia
A criação dos Arquivos foi formalmente
proposta à chancellor da UMD, Jean F.
MacCormack, em 2004 pelo Centro de
Estudos e Cultura Portuguesa desta uni­
versidade, dirigido por Frank F. Sousa.
Cinco anos depois, a 18 de Setembro, na
respectiva apresentação pública, Frank F.
Sousa recuperou a expressão “minoria
invisível” que a antropóloga luso-ameri­
cana Estellie Smith usou há trinta anos
para se referir aos portugueses do Sudeste
do Massachusetts. Uma invisibilidade que
se estende do século XVIII ao presente e
se manifesta na falta de registos que docu­
mentem a já historicamente significativa
aventura luso-americana.
Os “Ferreira-Mendes” resistem ao esque­
cimento e corporizam a interacção da
universidade com a comunidade envol­
vente. A UMD, situada entre as cidades de
Fall River e New Bedford, está no coração
de uma das regiões da Nova Inglaterra
com a mais densa comunidade de emi­
grantes portugueses e seus descendentes.
MacCormack garantiu o apoio da uni­
versidade ao projecto, traduzido na con­
cessão de um espaço e de recursos, depois
de, em 2005, o Centro de Estudos e
Cultura Portuguesa constituir um Endowment
de 1,5 milhões de dólares, através de
donativos pessoais e institucionais, em que
se inclui um subsídio da FLAD.
A ideia ganhou geografia. Os arquivos,
dirigidos pela socióloga Glória de Sá e
tendo como arquivista a luso-americana
Sonia Pacheco, tornam-se lugar de orga­
nização e compreensão da memória colec­
tiva dos portugueses como grupo social
nos Estados Unidos. São o primeiro do
género e têm âmbito nacional, sublinha
à Paralelo Glória de Sá.
Aqui estão actualmente reunidas 19
colecções de manuscritos que documen­
tam famílias e organizações luso-ameri­
canas locais e o trabalho de figuras de
vulto dentro da comunidade portuguesa
em vários domínios. Acolhem ainda regis­
tos genealógicos, livros, gravações, foto­
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Carla Martins
e cadeiras alinhadas, rodeadas por discretas
estantes de onde irrompe uma ténue luz.
À direita uma sala mais pequena, a The
William Q. and Mary Jane MacLean Gallery,
onde um esfíngico banco é contornado por
mais estantes difundindo a mesma quase
imperceptível luz. As estantes, com livros,
documentos, fotografias e outros objectos,
lembram narrativas, pessoas, memórias e
significados. Mas a leveza da luz que delas
irradia pode bem servir de metáfora para
a realidade aqui retratada.
Glória de Sá, responsável pelos arquivos que reúnem 19 colecções de manuscritos
que documentam famílias e organizações luso-americanas.
grafias, correspondência, testemunhos de
história oral, colecções de jornais, colec­
ções privadas de políticos, educadores,
autores e homens de negócios locais. Itens
que devem ser imaginados no quotidiano
das pessoas a quem se referem.
Arquivo em movimento
Affonso Ferreira tem papel principal
entre os acervos de outras figuras tão
fascinantes quanto decisivas na docu­
mentação da experiência luso-america­
na. Os arquivos incluem os Mary L.
Fonseca Papers (pioneira na vida polí­
tica de Massachusetts e que se singula­
rizava pelos seus signature hats), os Carlton
Viveiros Papers (mayor de Fall River
durante treze anos), os Rita Duarte
Marinho Papers (destacou-se na educa­
ção e escreveu Os Luso-Americanos no Processo
Político Americano), os Alfred E. Lewis
Literary Papers (self-made-man, autor dos
romances Home is an Island e Sixty Acres and
a Barn), entre outros.
É também disponibilizada a Edmund
Dinis Portuguese American, Political,
Legal and Public Service Collection, dedi­
cada a este político que seguiu as pisadas
do pai, Jacinto F. Dinis, o primeiro emi­
grante português a ocupar um cargo
político estadual em Massachusetts.
E. Dinis, amigo da família Kennedy, foi
também procurador de justiça num famo­
so escândalo judicial que nos anos 1960
envolveu Edward Kennedy e a morte de
uma jovem.
84 mil páginas online
Podem ser consultadas online as cerca de
16 mil edições e 84 mil páginas do Diário
de Notícias de New Bedford, publicado
entre 1919 e 1973 (news.arcasearch.com/
us/um/?paper=), colecção doada pela filha
do seu director João Rocha. O projecto de
digitalização contou com donativos no
valor de 180 mil dólares da parte do
Governo Regional dos Açores e de Luís
Pedroso e de Mark e Elísia Saab.
O todo arquivístico Ferreira-Mendes está
em movimento. Uma das preciosidades é
a colecção digitalizada do Diário de Notícias
de New Bedford. Está a ser organizado o
acervo Luís de Figueiredo Lemos Corte­
‑Real, reunido pelo seu filho, Miguel
Corte-Real. Estão em curso contactos com
a Freitas Library, da União Portuguesa do
Estado da Califórnia, para a digitalização
da colecção de jornais portugueses daque­
la biblioteca privada.
Espera-se o entusiasmo das pessoas para
doações de espólio e resgate de memó­
rias. Para estas é a oportunidade do ajus­
te de contas com a invisibilidade de que
fala Estellie Smith, de contribuir para
trazer mais luz não apenas sobre a iden­
tidade lusa overseas como sobre o lugar da
comunidade portuguesa na narrativa
americana. CM
59
PORTUGAL/EUA
Para onde vão as
universidades americanas?
Gaye Tuchman na FLAD
No seu último livro, Wannabe U – Inside the Corporate University
(University of Chicago Press, 2009), a socióloga Gaye Tuchman, professora no
Departamento de Sociologia da Universidade de Connecticut, traça um retrato divertido
mas impiedoso das mudanças em curso nas universidades americanas.
A investigação, de carácter etnográfico,
demorou-lhe seis anos a concluir e
decorreu numa escola pública de ensino
superior, cujo nome a autora oculta, bem
como a identidade dos seus múltiplos
entrevistados, incluindo professores, fun­
cionários e estudantes. Tuchman diz que
“provavelmente não lhes aconteceria
nada”, mas ainda assim sente uma obri­
gação especial de proteger as pessoas que,
de uma forma aberta e franca, lhe per­
mitiram reconstituir e analisar a vida
dentro de uma universidade determina­
da em subir uns pontos nos rankings inter­
nacionais que classificam estas
instituições.
O olhar de Gaye Tuchman tem sido
sempre severo com as instituições sociais
que escrutina, cruzando as metodologias
da etnografia com a teoria sociológica.
Foi assim com um dos seus livros mais
famosos, Making News: A Study in the
Construction of Reality (Free Press, 1978),
em que atribuiu a muitas das convenções
narrativas do jornalismo o carácter de
“rituais estratégicos de objectividade”
destinados a construir com alguma dose
de artificialidade aquilo que, aparente­
mente, decorria de uma (falsa) apropria­
ção objectiva do mundo.
Na conferência que proferiu a convite
da FLAD, muito participada por estu­
dantes universitários e que contou com
os comentários da professora Maria
Helena Nazaré, reitora da Universidade
de Aveiro (ver textos a seguir), mostrou­‑se preocupada com o actual rumo
“mercantilista”. As instituições ameri­
canas, sempre ciosas de manter a inde­
pendência financeira e habitualmente
60
Rui Ochôa
Por Carla Baptista
Gaye Tuchman mostrou-se preocupada com o rumo “mercantilista” das universidades.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
hábeis em captar fundos privados, estão
a ressentir-se de brutais cortes nos seus
financiamentos estaduais, que nalguns
casos já só cobrem 10 por cento dos
gastos (Tuchman deu os exemplos de
Virginia e Michigan).
A resposta tem sido a adopção de uma
forma de gestão cada vez mais corpora­
tiva, burocrática e centralizada, “obceca­
da” com os procedimentos de auditoria
e o controlo quase “panóptico” dos seus
membros, o alojamento de projectos téc­
nico-científicos lucrativos e os níveis de
produtividade traduzíveis no número de
patentes registadas. A socióloga receia que
esta lógica de “linha de montagem” apli­
cada a uma instituição cuja missão prin­
cipal ainda é, na sua opinião, educare, no
sentido original da palavra latina (indicar
o caminho), subordine “o conhecimen­
to mais às necessidades de prestígio e
reconhecimento da universidade do que
ao bem público”. E acabe roubando-lhes
a alma.
A etnografia como forma
de espantar as pessoas
[Paralelo] É muito crítica em relação à forma
como as universidades americanas estão a mudar.
Porquê?
[Gaye Tuchman] Há duas coisas que me pre­
ocupam: o desejo que o maior número
possível de pessoas tenha uma boa educa­
ção e definir o que é uma boa educação.
Muita gente pensa que o ensino superior
é bom quando as pessoas saem da facul­
dade e encontram emprego. Para mim, é
mais do que isso. Envolve a capacidade de
ter um pensamento crítico e analisar
situações; ser um bom cidadão à escala da
família, do estado, do país e do mundo;
agir eticamente, com respeito pelos outros.
Receio que a tendência actual para gerir as
universidades como se fossem empresas,
colocando o foco no treino para um tra­
balho e aumentando a burocracia e a cen­
tralização inerentes a constantes auditorias
e avaliações, vá afectar tanto a universida­
de como os estudantes, prejudicando o
estímulo ao pensamento crítico.
[P] Quais são as ferramentas intelectuais da
sociologia e da etnografia para compreender
melhor o mundo?
[GT] Existem dois aspectos difíceis na
etnografia: saber ver e saber pensar sobre
aquilo que se observa. Quando escrevo
etnografia, tento dar ao leitor uma visão
do mundo que ele/ela talvez porque tenha
estado demasiado ocupado/a não conse­
guiu construir e analisar por si próprio.
Por exemplo, com Wannabe U, tentei escre­
ver um ensaio sobre a transformação nas
universidades americanas que fizesse as
pessoas exclamar: “Meu Deus, o que é
que se está a passar e como é que isto
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
afecta a minha vida e a vida das próximas
gerações?” Se as pessoas não se sentirem
interpeladas, não existe esperança de aju­
dar a transformar as universidades num
lugar melhor para todos.
‘
[P] Se perdermos o jornalismo, que atravessa uma
crise séria, e também perdermos as universidades,
pelo menos nas suas configurações tradicionais….
[GT] Será um mundo diferente.
Existem dois aspectos difíceis
na etnografia: saber ver
e saber pensar sobre aquilo
que se observa. Quando escrevo
etnografia, tento dar ao leitor uma
visão do mundo que ele/ela talvez
porque tenha estado demasiado
ocupado/a não conseguiu construir
e analisar por si próprio.
’
[P] Essa visão do trabalho sociológico – como
uma actividade que nos ajuda a revelar o que
está escondido e fazer as pessoas pensar sobre
isso – tem alguma semelhança com a missão do
jornalismo. Concorda?
[GT] Um dos pioneiros da sociologia e da
etnografia americanas, Robert Park, fez a
sua carreira inicial como jornalista e con­
siderava que o sociólogo era uma espécie
de “super-repórter”, investigando sobre a
longa duração em vez de sobre os acon­
tecimentos da superfície. Uma das minhas
professoras trabalhou com ele e até por
essa razão pessoal concordo inteiramente
com o facto de haver uma similaridade
entre as duas actividades.
[P] Um mundo menos democrático?
[GT] Ah, não sei! Eu sou ape­
nas uma boa observadora da
realidade, não consigo prever
o futuro.
[P] Mas como é que se imagina
daqui a dez anos?
[GT] Reformada. E viva, espe­
ro!
[P] A ler um jornal em papel?
[GT] Sabe, já faço isso online
agora. Vivo numa comunida­
de rural tão pequena que é
impossível assinar o New York Times e leva­
rem-mo a casa. Para ler o NYT de manhã,
à mesa do pequeno-almoço, teria de o ir
buscar ao fundo do caminho que rodeia
a casa, o que é uma perspectiva deveras
desencorajadora. Depois teria de reciclar
todo aquele monte de papel, o que tam­
bém excede a minha capacidade organi­
zativa. Por isso leio a versão digital do
NYT, que continua a ser um bom jornal.
O meu jornal local, pelo contrário, não
se está a sair tão bem. Tenho dois vizinhos
que trabalham nesse jornal local e con­
tam-me que a empresa é obrigada a redu­
zir continuamente o corpo redactorial. Já
não existe a possibilidade de investigar
uma boa história em profundidade
61
PORTUGAL/EUA
Rui Ochôa
‘
Quero que a minha
etnografia reflicta
a situação das mulheres
de uma forma contínua
e integrada, exactamente
como se passa na vida.
’
jornalismo, na forma como os jornalistas recolhem e trabalham a informação?
[GT] A cultura muda muito lentamente.
Imaginemos que as mulheres que hoje são
editoras nas principais empresas jornalís­
ticas começaram a trabalhar há vinte anos.
Foram treinadas por homens que lhes
transmitiram as convenções jornalísticas e
a decidir sobre o que é notícia. Elas apren­
deram tão bem que, eventualmente, decor­
ridos estes anos, tornaram-se editoras.
Apenas os pensadores extraordinariamente
independentes são capazes de deitar fora
tudo o que aprenderam e os que fazem
isso normalmente são despedidos e não
progridem nas instituições. A única coisa
que está ao alcance da maioria de nós é
ganhar consciência de que existem estereótipos de género e classe potencialmen­
te discriminadores e injustos e, se não
podemos mudá-los a todos, pelo menos
podemos tentar mudar aquela pequena
parte que depende do nosso controlo.
[P] O que significa ser uma feminista hoje?
[GT] Não penso muito nisso.
[P] Mas considera-se feminista?
[GT] Sim, sou feminista. Mas não me preo­
cupo com a definição de feminismo.
Tento fazer aquilo que está certo para
que, em última instância, me possa olhar
nos olhos. Isso já é um objectivo sufi­
cientemente duro.
“Muita gente pensa que o ensino superior é bom quando as pessoas saem da faculdade
e encontram emprego. Para mim, é mais do que isso.”
durante algum tempo. Quando leio esse
jornal, encontro cada vez mais notícias
na primeira página sobre crimes e aci­
dentes. São assuntos cuja informação é
fácil de apanhar através dos comunica­
dos da polícia. As histórias sobre trans­
formações sociais e políticas que afectam
qualquer comunidade exigem porven­
tura mais esforço e acompanhamento.
A crise no jornalismo escrito tem rami­
ficações nos outros media, pois a rádio,
a televisão e os blogues dependem, em
62
grande parte, dos conteúdos dos jornais.
Quando existem menos repórteres para
acompanhar os acontecimentos colecti­
vamente pertinentes, todos os media
sofrem e, em última análise, todos nós
sofremos.
[P] Considera que os media continuam a perpetuar a “aniquilação simbólica” das mulheres e
de outros grupos sociais e étnicos menos representados. Este potencial para a discriminação está
implícito na própria estrutura organizativa do
[P] Incorpora a teoria feminista nos seus trabalhos sociológicos?
[GT] No meu último livro, Wannabe U, não
dediquei muitas palavras à situação parti­
cular das mulheres na universidade.
A primeira razão é ética, sinto a respon­
sabilidade de proteger as pessoas que
falam comigo e por isso escondo as suas
identidades sexuais, os nomes e os cargos
que ocupam. A segunda é política, não
desejo escrever mais livros (fiz isso em
Making News) em que há um capítulo dedi­
cado às mulheres. Quero que a minha
etnografia reflicta a situação das mulheres
de uma forma contínua e integrada, exac­
tamente como se passa na vida.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
Nas universidades americanas,
“o conhecimento passou
a estar subordinado
às necessidades de lucro”
Por Gaye Tuchman*
Wannabe U – Inside the Corporate
University situa algumas generalizações muito conhecidas num
contexto etnográfico examinando a forma como uma universidade de investigação pública
tentou transformar-se ao longo
de um período de dez anos.
Observei a Wannabe U durante
aproximadamente seis anos.
As universidades Wannabe são
instituições de investigação que
gostariam de se ver incluídas
entre a elite.
Estão a tentar à viva força ser
incluídas entre as 20 principais
universidades nacionais, segundo a classificação da revista US
News & World Report. “Todos nós
‘gostaríamos de ser’”, disse
recentemente um professor universitário. Há aqui também uma
outra ironia. Há muitos anos
que as universidades de investigação privadas ricas e dotadas
de bons fundos, que atraem
Wannabe U – Inside the Corporate University,
o novo livro de Tuchman.
estudantes das classes alta e
média-alta – escolas como
Harvard, Princeton, Yale, Duke,
Stanford e Brown –, ocupam os 19 primeiros lugares. (A Universidade da Califórnia, em Berkeley,
ocupa o vigésimo ou o vigésimo primeiro lugar
há vários anos.)
Quando as pessoas pensam em instituições do
ensino superior americanas, imaginam universidades residenciais, com estudantes dos 17 aos 22
anos, das classse alta e média-alta. A Wannabe U é
uma das universidades que ainda se enquadra nessa
descrição, mas trata-se de uma imagem geral que,
há décadas, já não corresponde à realidade. O que
parece ser verdade hoje, tal como no passado,
é que a governação das universidades americanas
é pesada, combinando diferentes tipos de burocracias e direitos e responsabilidades antagónicos.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
O que mudou é que as administrações centrais
estão lentamente a reivindicar para si os direitos e
as responsabilidades anteriormente atribuídos aos
docentes, o que significa que os professores se estão
a tornar profissionais geridos e que estão cada vez
mais sob a alçada de gestores profissionais. Estes
gestores profissionais estão a ceder à vontade dos
estados à medida que as universidades começam a
introduzir mais auditorias e mais responsabilização
e, em vez de educarem (no sentido do latim e-ducere,
conduzir para fora), estão a dar formação para ocupações e profissões que se julgam necessárias ao
mercado de trabalho. Muitas universidades americanas abandonaram a noção de que a educação
alimenta a alma. Na verdade, as universidades sofreram uma inversão. Em vez de estarem subordinadas
à produção e transmissão de conhecimentos, o
conhecimento passou a estar subordinado às necessidades de lucro e reconhecimento das universidades. Em busca do lucro, as administrações
universitárias dedicam-se a um “novo managerialismo” que procura maximizar a eficiência, economia e eficácia e, como subproduto, suplantar a
autoridade do corpo docente introduzindo mudanças de cima para baixo.
Tenho criticado de forma veemente a maneira como
as universidades americanas estão a mudar. O que me
impressiona são não só as mudanças, mas também a
lógica de conformidade. Recentemente, ouvi alguém
proferir uma frase que me pareceu a personificação
daquilo que David Riesman em tempos denominou
other-directedness (obediência às preferências dos outros):
“Não quero dar uma opinião porque não sei o que
as outras pessoas pensam.” O que acontece quando
os professores universitários, incluindo aqueles que
têm ambições em relação à sua carreira, não põem
em causa o regime emergente e cada vez mais forte
de responsabilização? Fazer perguntas e dar respostas
a perguntas impopulares ou mesmo disparatadas é
fundamental para o saber. O que acontece ao conhecimento quando os professores não perguntam nem
dizem o que pensam?
* Socióloga e professora no Departamento de Sociologia da Universidade de
Connecticut.
63
Rui Ochôa
PORTUGAL/EUA
A Oeste nada de novo
Por Maria Helena Nazaré*
Não é verdade; as coisas estão a mudar em Portugal,
a um ritmo que não é inferior ao de outros países
europeus.
Os últimos dez anos trouxeram mudanças pro­
fundas às universidades europeias e também às
portuguesas.
Essas mudanças foram impulsionadas por três
factores principais.
1. Massificação que levou ao Processo de Bolonha
A reforma de Bolonha teve um impacto profundo
no ensino superior europeu de várias maneiras. A
realização de reformas também realçou a necessida­
de de mudanças na governação e autonomia das
instituições, e, em muitos países europeus, essas
mudanças foram introduzidas por um conjunto de
novas leis aplicáveis ao sector.
2. A Agenda de Lisboa
As necessidades sociais crescentes de uma população
envelhecida, conjugadas com a competitividade cada
vez maior de economias em rápido crescimento
como a China e a Índia, levaram o mundo ocidental
e, nomeadamente, a Europa a procurarem um mode­
lo de desenvolvimento económico susceptível de
gerar um maior dinamismo e assegurar um melhor
desempenho. Procurou-se uma solução através da
promoção de uma economia baseada no conheci­
mento e na inovação que, até 2010, deveria produ­
zir a sociedade do conhecimento mais dinâmica.
A chamada Agenda de Lisboa é isto.
Os governos reconhecem que o ensino superior é
um importante impulsionador da economia mundial
baseada no conhecimento e que a competitividade
económica depende, em última análise, da qualida­
de dos recursos humanos. Daí a importância atribuída ao ensino superior e à investigação, que estão
a crescer desde o princípio do milénio e são actu­
almente considerados instrumentos fundamentais.
3. Internacionalização do ensino superior
A qualidade sempre desempenhou o seu papel no
ensino superior, mas a sua importância aumentou
muito durante a última década, principalmente devi­
do aos novos desafios com que as instituições de ensi­
64
no superior, e especialmente as universidades, se viram
confrontadas. Entre esses desafios destacam-se as neces­
sidades da promoção do processo de Lisboa, da par­
ticipação no Espaço Europeu de Ensino Superior e da
criação de uma sociedade europeia do conhecimento.
A qualidade é sempre tida como um factor fundamen­
tal para alcançar estes objectivos. Com efeito, a quali­
dade e a auditoria da mesma são essenciais para
garantir a necessária confiança entre as instituições,
indispensável para assegurar que elas aceitem estudan­
tes que tenham obtido um determinado número de
créditos numa outra instituição, especialmente de outro
país, e para o reconhecimento de diplomas.
Governação do sistema e das instituições
Hoje em dia, a sociedade espera que as universida­
des assegurem: investigação, transferência de conhe­
cimentos, aprendizagem ao longo da vida e ainda
ensino, desenvolvimento económico e formação para
a cidadania. Simultaneamente, o apoio financeiro
das autoridades públicas está a diminuir.
Por conseguinte, o desenvolvimento de estratégias
de financiamento e receitas sustentáveis para as uni­
versidades é crucial para o futuro do ensino superior.
Isto exige não só a diversificação de fontes de finan­
ciamento, mas também uma melhor liderança e
governação institucional.
As universidades têm de ser proactivas e empre­
endedoras, sensíveis às necessidades a curto prazo
da economia, do Estado e das principais partes inte­
ressadas e, ao mesmo tempo, continuar a ser a cons­
ciência crítica da sociedade, orientando a reflexão e
a formulação de políticas.
As universidades devem ser autónomas, responder
perante o Estado e o público em geral, ser bem gover­
nadas, geridas e conduzidas. Necessitam não só de se
adaptar a um ambiente em rápida evolução, mas tam­
bém de conduzir a mudança. Na verdade, de tudo
aquilo que foi dito, podemos concluir que o desem­
penho das universidades depende fundamentalmente
de duas coisas distintas: governação e financiamento,
sendo a governação o elemento fundamental.
Esta é uma síntese feita a partir da intervenção de Maria Helena
Nazaré sobre o Ensino Superior.
*Reitora da Universidade de Aveiro
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
D.R.
Casas dos Açores atribuem medalha de mérito à FLAD
O administrador da Fundação Luso­‑Americana, Charles Buchanan, recebeu
das mãos do presidente da Direcção da
Casa dos Açores de Lisboa, Miguel
Loureiro, a Medalha de Mérito conce­
dida à Fundação Luso-Americana, na
presença de Jaime Gama, presidente da
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Assembleia da República. Esta distinção
foi atribuída pelo Conselho Mundial das
Casas dos Açores, sob proposta da Casa
dos Açores de Lisboa, “pelo apoio e
dinamização que esta instituição (FLAD),
nos últimos anos, tem vindo a dar a
projectos que privilegiam os mais diver­
sos aspectos das relações entre os Estados
Unidos da América e os Açores”. O
administrador da Fundação Luso­‑Americana, Mário Mesquita, responsá­
vel pelos projectos da FLAD relativos à
Região Autónoma dos Açores, não este­
ve presente na sessão.
65
PORTUGAL/EUA
Os dias da rádio
– de Roosevelt à internet
Naquele dia estava um nevoeiro cerrado. Chovia e cheirava a terra molhada. No clube Asas
do Atlântico preparavam-se os últimos retoques e havia uma azáfama de pessoas para cá e
para lá. O chão escorregava, de tão encerado. As mobílias de madeira reluziam o óleo de cedro
passado pela manhã. Ao fundo da sala testava-se o som.
Por Ana Catarina Santos*
As luzes amarelas do tecto davam um ar
romântico à sala. Uma pilha de livros dos
Dabney sobre o veludo vermelho. Uma
prateleira cheia de discos antigos de capas
coloridas. As cadeiras estavam simetrica­
mente alinhadas. Tudo preparado. Olhei
para o relógio e senti um nervoso miu­
dinho. Da janela da sala espreitei um
autêntico dia de inverno lá fora. Naquele
dia em nenhum local da ilha amarela se
conseguia ver o mar.
Naquele dia falava-se de rádio. A pro­
pósito da exposição “Roosevelt nos
Açores”, a Fundação Luso-Americana
organizou o colóquio “Os Dias da Rádio – de Franklin D. Roosevelt à Internet”.
O nome de Roosevelt ficará sempre asso­
ciado à rádio, pois soube como nenhum
outro presidente norte-americano explo­
rar este meio de massas para difundir a
mensagem política e aproximar-se dos
cidadãos.
“My friends” ou “my fellow americans” – assim começava Roosevelt as suas
Adelino Gomes (sentado) no Clube Asas do Atlântico, em Santa Maria, onde decorreu o colóquio “Os Dias da Rádio – de Franklin D. Roosevelt à Internet”.
66
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
comunicações via rádio. E assim, ouvindo
as palavras de uma gravação original de
um fireside chat, começou a conferência nos
Açores. Estava estendida a passadeira ver­
melha para os homens da rádio, grandes
contadores de histórias.
Adelino Gomes, provedor do ouvinte
da RDP, começou por destacar a inteli­
gência de um político que, nos anos
1930, compreendeu a modernidade do
uso da rádio. O primeiro fireside chat
Roosevelt foi em 1933, vivia a América
as dores da Grande Depressão. Roosevelt
percebeu, afirmou Adelino Gomes, que
tinha de prestar contas ao “fellow ame­
rican” – e este “é um grande ganho de
cidadania”. A rádio, naquelas conversas
com o povo americano, “humanizava o
Presidente”, fazia que entrasse nas casas
de quem o escutava, partilhasse sensações
e emoções – se estava cansado ou com
frio. Promoveu a “interactividade avant la
lettre, a rádio um-para-um”. Adelino
Gomes gesticulava, sorria e as mãos
muito abertas coloriam-lhe o discurso.
Os olhos brilhavam.
Já João Braga, director do jornal Baluarte,
abordou a história do Asas do Atlântico
e da forte ligação que tem à comunidade.
Recordou o inicial Clube do Ganso, falou
dos anos de ouro do Asas, que chegou a
ter 30 funcionários, estimulou a memó­
ria da plateia que acenava a cada frag­
mento da história que identificava.
Naquele dia falava-se do futuro da rádio
e, feliz coincidência, naquele dia o Asas
testava o novo equipamento digital, vai
ter uma nova antena e já emite online para
todo o mundo.
Havia algumas cadeiras vazias mas a sala
estava muito composta. À minha frente
encontra-se uma das plateias mais atentas
de que me recordo.
O terceiro orador da tarde começou por
falar baixinho. Muitos conheciam apenas
a voz do homem que agora viam. O aço­
riano João Coelho começou muito novo
a fazer rádio no Emissor Regional dos
Açores. Locutor, redactor, homem da
rádio, contador de histórias. Contou
como entrevistou em directo Marcello
Caetano quebrando as regras e o proto­
colo à conta da irreverência da juventu­
de, contou como passou pela primeira
vez um disco de Elton John, como o
movimento de aviões e navios nos Açores
alterava as rotinas da rádio. João Coelho
continuaria a contar histórias noite den­
tro, levado pelos contos que lhe fervilham
na memória.
Evocar Roosevelt permitia-nos recordar
o passado mas também reflectir sobre o
futuro da rádio. Rogério Santos, professor
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Carlos Riley, o comissário da exposição, fazendo a apresentação desta aos muitos visitantes.
‘
Twitter reduzem a escuta
de rádio, que tinha acaba­
do a era da audição passiva
e que os tempos dourados
da rádio tinham terminado.
Mas o tom foi aliviando.
Recordou que ciclicamen­
te a rádio tem sobrevivido
a sentenças de morte: “A
rádio está sempre em
mudança e sempre soube
reinventar-se.”
Todos o escutavam em
silêncio.
Rogério Santos rematou:
“Nenhum meio é mais mágico do que a
rádio.” Havia magia naquela sala. Eram
quase nove da noite e ninguém parecia
querer ir-se embora. Teríamos continua­
do ali noite dentro. E havia tanto para
dizer.
“My friends” ou “my fellow
americans” – assim começava
Roosevelt as suas comunicações via
rádio. E assim, ouvindo as palavras
de uma gravação original de um
fireside chat, começou a conferência
nos Açores.
’
na Universidade Católica, tinha avisado
que iria fazer o papel de “mau da fita”,
antevendo um futuro negro para a rádio.
Começou por dizer que a rádio tem per­
dido ouvintes, que estamos no período
do pós-rádio que é o período internet,
que as redes sociais, o Facebook e o
* Jornalista da rádio TSF
67
PORTUGAL/EUA
Alunos da Universidade
de Berkeley investigam
rios portugueses
A Califórnia e a Península Ibérica beneficiam ambas de um clima mediterrânico,
com verões quentes e secos e invernos suaves. O seu clima favorável e as suas zonas
costeiras estão na origem de algumas das taxas de imigração e urbanização
mais rápidas do mundo desenvolvido.
Por Jennifer Natali e Matt Kondolf*
Embora constituam apenas dois por cento
da superfície terrestre da Terra, as regiões
de clima mediterrânico possuem uma
percentagem extraordinária da diversida­
de biológica e dos povoamentos humanos
do planeta. A fauna e a flora selvagens e
os seres humanos adaptaram-se aos ciclos
hidrológicos únicos e variáveis do clima.
Os verões do clima mediterrânico garan­
tem céu azul, sem praticamente nenhuma
precipitação. Os invernos podem ser
imprevisivelmente húmidos, trazendo
anos sequenciais de cheias ou secas. Com
as alterações climáticas, é de esperar
menos previsibilidade e mais condições
extremas.
A urbanização trouxe grandes mudanças
às vias navegáveis e exacerbou as pressões
sobre o abastecimento de água. Atendendo
a que as sociedades de zonas de clima
mediterrânico tendem a depender muito
do armazenamento e transporte de água
para garantir o abastecimento durante o
tempo seco, e dada a existência de nume­
rosos diques, canais e açudes para contro­
lar as cheias, os rios das regiões de clima
mediterrânico sofreram mais alterações
em relação ao seu estado natural do que
os dos climas atlânticos húmidos. Os
nutrientes, sedimentos e contaminantes
provenientes da erosão das terras altas
concentram-se progressivamente nos cau­
dais de base reduzidos do Verão, caracte­
rísticos destas ribeiras. Estamos a assistir,
68
em todas as regiões de clima mediterrâ­
nico, à ruptura das populações de espécies
de peixes autóctones, à invasão de espécies
exóticas e ao declínio da biodiversidade.
Os desafios da gestão dos recursos hídri­
cos nas regiões de clima mediterrânico
evidenciam a necessidade imediata e
urgente de investigação, inovação e inves­
timento.
As pressões ambientais comuns às zonas
costeiras da Califórnia e de Portugal reve­
lam a grande oportunidade dos estudos
comparativos sobre a interacção complexa
dos processos físicos, biológicos e sociais
que influenciam as questões relacionadas
com a gestão de recursos hídricos.
A comparação permitir-nos-á alcançar
uma melhor compreensão, testar hipóte­
ses, encontrar oportunidades, reconhecer
limites, partilhar conhecimentos e difun­
dir ideias inovadoras. Neste espírito, a
Universidade da Califórnia, em Berkeley,
ministra uma cadeira, MediterraneanClimate Landscapes, que oferece aos seus
alunos a oportunidade de realizar inves­
tigação na região da Baía de São Francisco
e em Portugal, trabalhando em equipa
com estudantes portugueses (Anderson et
al. 2007, Natali et al. 2009). Com o apoio
da FLAD, o Programa de Estudos
Portugueses da Universidade da Califórnia,
em Berkeley, apoia as deslocações de estu­
dantes a Portugal para realizar estudos
comparativos de ameaças, oportunidades
e impactos que sejam relevantes para as
ciências do ambiente, formulação de polí­
ticas ambientais, planeamento ambiental
e concepção ecológica. A investigação rea­
lizada por alunos abrange uma série de
escalas e ambientes geográficos: lagoas
costeiras, estuários, corredores ribeirinhos,
zonas ribeirinhas e bacias hidrográficas
urbanizadas.
Um dos benefícios da investigação com­
parativa internacional é a possibilidade de
utilizar amostras de maior dimensão.
Durante o Verão de 2008, Katie Jagt, uma
estudante de pós-graduação em Engenharia,
recolheu dados na foz de mais de trinta
rios portugueses para investigar os pro­
cessos físicos subjacentes à formação de
lagoas sazonais na foz dos rios. Nos rios
de clima mediterrânico que correm para
o mar, é frequente a foz ser fechada por
bancos de areia, à medida que o caudal
de água doce vai diminuindo ao longo do
Verão. Daí resulta a formação de uma lagoa
de água doce, morna, que é um habitat
fundamental para o desenvolvimento de
peixes jovens. Assim que a chuva do
Inverno regressa e os caudais aumentam,
o canal fluvial volta a ligar-se ao mar e
peixes oceânicos, bem alimentados, nadam
para o mar. Na Califórnia, a construção
da famosa auto-estrada costeira, denomi­
nada “Route 1”, interrompeu a formação
de muitas lagoas costeiras, o que teve
repercussões negativas para os habitats onde
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PORTUGAL/EUA
‘
autoridades portuguesas
como californianas reco­
As pressões ambientais comuns
nheçam o turismo como
uma ferramenta estratégica
às zonas costeiras da Califórnia
do desenvolvimento econó­
mico, o facto de designarem
e de Portugal revelam a grande
estes estuários zonas de
oportunidade dos estudos
conservação com utilizações
comparativos sobre a interacção
recreativas e ambientais traz
múltiplos benefícios, como,
dos processos físicos, biológicos
por exemplo, travar a
e sociais que influenciam
expansão das zonas cons­
truídas e preservar habitats
a gestão de recursos hídricos.
aquáticos vitais.
A proposta de Alex pre­
coniza a elaboração de um
plano integrado de turismo
com o tema da sua tese de mestrado, uma
para a região, que articule o ecoturismo
proposta de criação de um “Corredor do em zonas naturais com o agroturismo e
Património Nacional” no delta de o turismo ligado ao património cultural,
Sacramento-San Joaquin, próximo de São de modo a apoiar as paisagens produtivas
Francisco. Trata-se de dois locais que estão e aldeias despovoadas da zona do estuário.
sujeitos às pressões da urbanização, devido
Alex visitou as Salinas do Samouco, a Comà sua proximidade de zonas metropolitanas
panhia das Lezírias, o Seixal, Alcochete e
em expansão. Contudo essa proximidade é Palhoto a fim de tomar conhecimento das
um factor subjacente ao seu valor potencial
oportunidades e condicionamentos da
como destino turístico. Embora tanto as
elaboração de um plano regional.
’
DR
se desenvolvem os peixes. A foz dos rios
portugueses constitui uma amostra nume­
rosa de estuários intactos e sem obstru­
ções, que permitem desenvolver o
trabalho de investigação de Jagt ao pro­
porcionarem um bom termo de compa­
ração com as conclusões extraídas da foz
de ribeiras costeiras da Califórnia.
Katie Jagt constatou que as principais
razões determinantes do fecho da barra
eram a dimensão dos grãos de areia, o
grau de inclinação da praia, a velocidade
da corrente do rio e o ângulo da praia em
relação às correntes oceânicas. Para além
de ter conseguido obter uma compreensão
básica dos processos físicos que determi­
nam a formação de lagoas costeiras, o
estudo levanta questões mais sofisticadas
sobre os processos por trás destes aspectos
biológicos importantes dos rios de climas
mediterrânicos.
Num estudo de um estuário de maiores
dimensões, Alex Westhoff, um aluno de
pós-graduação da área do planeamento
ambiental, explorou a Reserva Natural do
estuário do Tejo próximo de Lisboa. O estu­
ário do Tejo apresenta muitos paralelismos
Estudantes de Berkeley analisaram a eficácia do Parque Verde do Mondego.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
69
PORTUGAL/EUA
destinos situados dentro dos limites polí­
ticos da região oficial de turismo.
Na Califórnia, as margens ribeirinhas
urbanas também são vítimas do flagelo das
oportunidades perdidas. Os danos causados
pelas cheias levaram a projectos de contro­
lo das mesmas baseados em soluções extre­
mamente tecnológicas, que separam as
DR
Nas suas entrevistas com representantes
das juntas de turismo, Alex constatou que,
tal como acontece no delta da região da
Califórnia, estão a descurar-se muitas
oportunidades de atrair visitantes aos sítios
naturais e culturais únicos destes belos e
diversos estuários, por se estarem a con­
centrar os esforços de marketing noutros
‘
Os portugueses mantêm
há muito uma relação
com as suas paisagens
e cursos de água,
com tradições e formas
urbanas que tendem
a respeitar as variações
climáticas da precipitação
e a tendência para
a ocorrência de cheias.
’
O passeio do Cais da Ribeira, de vários níveis, e flexibilidade incentiva várias actividades
ao longo do ano junto ao Douro, no Porto.
70
comunidades dos rios que estiveram pre­
cisamente na origem da sua formação.
Grandes extensões de canais de betão des­
tinados a escoar rapidamente as águas das
cheias tornam-se zonas mortas e isoladas,
desprovidas de vida e de cuidados. Noutros
casos, são construídos diques, que criam
uma barreira entre a cidade e o rio, sendo
posteriormente descurados e tornando-se
um convite a comportamentos aberrantes,
o que dá origem a uma sensação geral de
que o rio é uma desvantagem e não um
recurso. Em busca de inspiração, três estu­
dantes de Planeamento Ambiental e
Arquitectura Paisagísta procuraram exem­
plos da revitalização de zonas ribeirinhas
urbanas em Portugal, entre 2007 e 2008.
Estudaram três projectos de intervenção em
zonas ribeirinhas realizados no âmbito do
Programa Polis, um programa nacional
recente que prevê intervenções urbanísticas
em 17 cidades de Portugal. Observaram as
relações entre a implantação no território,
a programação e a actividade social, a fim
de formularem orientações sobre concep­
ção ecológica, com vista a melhorar a qua­
lidade do espaço público urbano,
aumentar a interacção humana com a água
em ambientes urbanos e promover um
sentido de apreciação da conservação de
recursos.
O Parque Verde do Mondego, em Coimbra,
foi um tópico abordado pelos três investi­
gadores. Revelando grande eficácia concep­
cional, o parque concentra as atenções no
núcleo de actividade mais próximo do cen­
tro da cidade mediante um passeio pedonal
formal, que liga destinos sociais tais como
restaurantes, cafés, bares, esplanadas e pavi­
lhões para exposições.
Tal como se pretendia, o parque foi con­
cebido e programado de modo a promo­
ver a leitura ou a pesca nas zonas informais.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
DR
PORTUGAL/EUA
Estes estudos comparativos ajudaram os estudantes a aperfeiçoar as suas hipóteses e abordagens.
O trabalho de investigação realizado ilustra as possibilidades de colaboração nas regiões mediterrânicas.
Entrevistas realizadas com partes interes­
sadas locais revelaram que, embora o pro­
jecto tenha pouco impacto no centro
histórico da cidade, veio acrescentar gran­
de valor à qualidade de vida dos residen­
tes urbanos.
A análise de outros projectos do Programa
Polis revelaram a importância da ligação
entre os centros urbanos, a implantação
de pontes e as actividades nas zonas ribei­
rinhas. A facilidade de acesso contribui
para uma maior diversidade de utilizações
por diferentes utentes. As zonas ribeirinhas
urbanas de Leiria e de Bragança apresen­
tavam deficiências óbvias ao nível da qua­
lidade da água, o que constituía um
desincentivo à interacção física com a
mesma. A fim de estabelecer uma compa­
ração com os sítios do Programa Polis, os
métodos de investigação do levantamento
de comportamentos e da análise espacial
foram também aplicados ao Cais da
Ribeira, a zona ribeirinha histórica do
Porto. Para além dos atractivos de lazer e
restauração do ambiente espectacular da
zona ribeirinha, a concepção do paredão
ao longo do Cais da Ribeira contribui para
um elevado grau de interacção social entre
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
os seus diversos utentes e para uma uti­
lização activa da ponte como prancha de
mergulho para os jovens. Existe toda uma
série de espaços públicos acessíveis, com
elevações e inclinações diferentes, que
criam múltiplas camadas de miradouros
e pontos de acesso entre o paredão, o pas­
seio pedonal elevado, a base da torre e as
escadarias que descem até ao rio. Os pró­
prios materiais escolhidos para pavimen­
tação incentivam uma utilização activa.
Os portugueses mantêm há muito uma
relação com as suas paisagens e cursos de
água, com tradições e formas urbanas que
tendem a respeitar as variações climáticas
da precipitação e a tendência para a ocor­
rência de cheias. Contudo, a rápida urba­
nização da região metropolitana de Lisboa
contribuiu para um aumento significativo
das superfícies pavimentadas e das ligações
indevidas às redes de esgotos, o que se
traduz num aumento do escoamento de
águas pluviais, em maior risco de cheias
e numa menor qualidade da água. A urba­
nização da zona superior da bacia hidro­
gráfica da Ribeira da Lage, a oeste de
Lisboa, é um exemplo típico desta ten­
dência. Depois de estudarem estes riscos
no workshop subordinado ao tema “Paisagens
de climas mediterrânicos”, que teve lugar
em 2007, Rosey Jencks e Rebecca
Leonardson regressaram à Ribeira da Lage
a fim de construírem um modelo de uma
técnica de gestão de águas pluviais cujas
origens remontam à história antiga de
Portugal. Dado que a utilização de cister­
nas permite reduzir os níveis do caudal
de base na bacia, o que tem um impacto
na ecologia aquática e ribeirinha, os estu­
dantes recomendaram que se conjugasse
a utilização de cisternas com um aumen­
to da infiltração de águas pluviais em
zonas apropriadas da bacia.
Aplicando métodos de investigação num
contexto novo e alargado, estes estudos
comparativos ajudaram os estudantes a
aperfeiçoar as suas hipóteses e abordagens.
No seu conjunto, o trabalho de investiga­
ção realizado ilustra as possibilidades de
colaboração nas regiões mediterrânicas.
No sítio web do Programa de Estudos
Portugueses, em http://ies.berkeley.edu/
psp/portuguesestudies/research.html,
estão disponíveis para download relatórios
pormenorizados.
*Universidade da Califórnia, Berkeley
71
PERFIL
As ciências económicas
e a intervenção social não
são universos opostos
Por Clara Pinto Caldeira
Os anos dedicados
ao planeamento
Pouco disposta a integrar uma empresa,
destino mais natural para quem se forma­
va em Economia, Idalina Salgueiro é con­
vidada a fazer investigação no ISCEF. Pouco
depois surge a oportunidade de participar
nas equipas-piloto que se encarregariam
de desenvolver projectos em duas locali­
dades de Leiria, o Barrio e a Benedita.
A ideia era fazer um levantamento das
necessidades e contribuir para a sua supe­
ração, “um trabalho com as populações”,
sublinha Idalina Salgueiro. Miguel Caetano,
envolvido no projecto onde se conhece­
ram, conta: “Foi uma iniciativa na qual
nos empenhámos muito para além do
72
profissionalmente exigido. A Maria Idalina
e eu ficámos encarregues da dinamização
do sector do calçado, ajudando os peque­
nos e muito pequenos empresários a orga­
nizarem-se numa cooperativa.”
Marcas em território nacional de um
trabalho com rumo certo. Em 1964,
Idalina Salgueiro parte para Paris, para o
Institut d’Études et Developpement
Ecónomique, em busca de um aprofun­
damento das suas preocupações socioló­
gicas. Encontrou o que precisava e muito
mais, na Cidade da Luz: “Uma liberdade
enorme e quase um esmagamento pela
informação e conhecimento que havia. Os
livros que podia ter à mão, os filmes, as
exposições, os teatros, os concertos…”
Regressa a Portugal em 1965 e come­
DR
Formada em Economia pelo Instituto
Superior de Ciências Económicas e
Financeiras (ISCEF), a ideia de intervir e
mudar a sociedade sempre orientou o seu
percurso. Depois de considerar as ciências
naturais, é na economia que encontra as
ferramentas apropriadas para “conhecer
melhor os mecanismos sociais”, num
tempo em que os cursos de Sociologia
não faziam parte da realidade nacional.
Portugal estava na década de 1960, quan­
do Idalina Salgueiro termina a licenciatu­
ra. Dos tempos da formação inicial, Idalina
Salgueiro recorda os professores que a
marcaram, Sedas Nunes, Pereira de Moura,
Teixeira Pinto, e também o grupo que
ajudou a formar de docentes e alunos para
discutir os problemas da faculdade, “um
tempo sensacional”. Integrou as direcções
da Juventude Universitária Católica, no
seio da qual nasceu um cineclube, e a
Associação Académica da sua universidade.
Nem o associativismo nem a vontade de
intervir socialmente alguma vez deixaram
de estar presentes na sua vida.
Com Rui Rio e Manuel Sobrinho Simões na comemoração dos 15 anos do IPATIMUP.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PERFIL
‘
Os anos 60 tiveram
grandes taxas de
crescimento, mas com
muitos desequilíbrios
sociais. Era muito
aliciante, havia muito
entusiasmo e era grande
a vontade de contribuir
para uma sociedade
portuguesa mais
moderna, mais justa.
’
ça a trabalhar no Gabinete de Estudos e
Planeamento da Acção Educativa, no
âmbito da segunda fase do Plano
Regional do Mediterrâneo. A equipa de
Idalina Salgueiro tinha a seu cargo, na
altura, a chamada educação primária.
“Era uma tarefa nova, era fazer o planeamento conhecendo as necessidades, para
levar a educação com qualidade a toda
a gente.” Projectos inovadores são aqueles que sempre motivaram Idalina
Salgueiro, que em 1967 integra a Divisão
do Secretariado Técnico da Presidência
do Conselho de Ministros. Sem perder
de vista o foco no desenvolvimento
social, Idalina Salgueiro dedica-se a projectos no âmbito do Plano do Fomento
que resultam num conhecimento inédito do País, dos seus indicadores económicos, sociais e urbanos. Algumas das
recomendações e projectos em que esteve envolvida foram de tal forma fundadores que continuam actuais; é o caso
das Comissões Regionais de Planeamento,
ainda em vigor. “Os anos 60 tiveram
grandes taxas de crescimento, mas com
muitos desequilíbrios sociais. Era muito
aliciante, havia muito entusiasmo e era
grande a vontade de contribuir para uma
sociedade portuguesa mais moderna,
mais justa”, explica.
Algumas das futuras personalidades
políticas que encontrou no Planeamento
(onde ingressou em 1969), partilhariam
com Idalina Salgueiro a aventura da
Associação para o Desenvolvimento
Económico e Social (Sedes). A organização, fundada em 1970, foi considerada por muitos um pólo de democracia,
quando ela ainda não passava de um
anúncio. “Já havia uma percepção de que
alguma coisa tinha que mudar. E na altura, o impacto da Sedes foi muito grande”, conta Idalina Salgueiro, que veio a
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Conferência de imprensa após a entrada de Portugal como membro permanente da AISEC (1960).
Idalina Salgueiro, segunda à esquerda.
estar à frente do Conselho Coordenador
de 1995 a 2000 e foi responsável pela
publicação de um volume da história da
associação, sobre o período 1973-1975.
Emílio Rui Vilar, uma das muitas personalidades com quem partilhou a fundação da Sedes e uma das principais
figuras desta associação, conta à Paralelo:
“Creio que o tempo que precedeu a
aprovação dos estatutos e os debates que
se seguiram ao 25 de Abril foram períodos intensamente vividos, com enorme
entusiasmo e esperança, em que a Maria
Idalina esteve sempre presente e interveniente.” Da amizade de longa data, o
presidente da Fundação Calouste
Gulbenkian sublinha como constante na
personalidade de Idalina Salgueiro “a
persistência, o rigor, a lealdade… e um
bom gosto discreto”. 73
D.R.
PERFIL
Com o Papa João Paulo II e José Macedo e Cunha, presidente da RTP à época.
Mudar, porque não?
Em 1980, Vítor Cunha Rego dirige-lhe
um convite quase irrecusável: a adminis­
tração da Radiotelevisão Portuguesa (RTP).
Idalina Salgueiro fala com emoção desse
amigo: “Faz-nos imensa falta, aos amigos
e ao País.” Foram três os anos que Idalina
Salgueiro dedicou à televisão pública, num
período especialmente delicado, em que
se impunha a difícil tarefa de regularizar
a estação financeiramente, e quando esta
ainda procurava uma identidade. A palavra
de ordem era, portanto, assegurar um
projecto sustentável financeira e profis­
sionalmente, de competência técnica e de
vontade de progresso. Havia também a
necessidade de contribuir para uma pro­
gramação com padrões mais abertos.
Idalina Salgueiro ficou responsável pelo
pelouro da produção e das relações inter­
nacionais. Fala da experiência televisiva de
maneira carinhosa: “Era lidar com pesso­
as muito diferentes… com artistas!” O seu
espírito de conciliação, trabalho de equi­
pa e melhoria comum também aqui
encontrou expressão. Foi Idalina Salgueiro
quem, numa iniciativa inédita até então,
74
organizou reuniões periódicas com toda
a equipa de produção, para balanço e pla­
neamento das actividades. Um mundo
diferente, mas, como outros à época,
muito masculino. No entanto, Idalina
Salgueiro representou a RTP na Union
Européene de Radiotelévision (UER) e fez
parte da comitiva que se desloca a Roma
para entregar ao Papa João Paulo II as gra­
vações da sua primeira visita a Portugal,
em 1982.
Pouco depois da passagem pela televisão,
e ocupando ainda novo lugar na área do
planeamento, desta vez em projectos rela­
cionados com o artesanato (legislação,
apoios institucionais e exportação), Idalina
Salgueiro começa um novo capítulo na
sua vida, que duraria vinte e dois anos: a
Fundação Luso-Americana para o
Desenvolvimento.
A “viagem” FLAD
Idalina Salgueiro viajou muito ao longo
da sua vida. Além das suas viagens pesso­
ais, participou em conferências e realizou
inúmeros estágios no âmbito da OCDE,
na área do planeamento regional e urba­
no e do desenvolvimento económico e
social, em Espanha, França, Polónia, Reino
Unido e Holanda. Mas sentia a necessida­
de de ter maior conhecimento e contacto
com os Estados Unidos da América. Uma
“viagem” que duraria vinte e dois anos
na FLAD, onde também encontrou outra
agilidade financeira para a viabilização dos
projectos em que acreditava.
Ocupou-se de projectos muito variados,
e em áreas inovadoras para Portugal. Foi
com alegria que herdou alguns e desen­
volveu os seus, na área da medicina e da
biotecnologia, em parcerias felizes com o
Instituto de Patologia e Imunologia
Molecular da Universidade do Porto
(IPATIMUP), o Hospital de São João, o
Instituto Gulbenkian de Ciência, entre
outros, sobretudo no incentivo à investi­
gação e na promoção do contacto entre
investigadores portugueses e americanos.
Manuel Sobrinho Simões, director do
IPATIMUP, destaca de todos os projectos
realizados a construção de um modelo de
avaliação e acompanhamento externo para
instituições de investigação científica e
pós-graduação na área das ciências da
saúde. “A Dr.ª Idalina, e através dela a
FLAD, foram incansáveis no desenvolvi­
mento da ideia, na sua execução e depois
na sua manutenção, há já quase vinte
anos.” Uma inovação na área da saúde em
Portugal, a que Idalina Salgueiro gosta de
estar associada, sobretudo pelas relações
que estabeleceu e preservou com “pesso­
as cientificamente muito válidas, equipas
de um entusiasmo espantoso”. Sobrinho
Simões sublinha ainda a forma como
Idalina Salgueiro abordava domínios para
si antes desconhecidos: “Com um misto
de humildade, curiosidade e vontade de
aprender, num registo de grande franque­
za. Nunca a vi fazer bluff…”. Admiração
expressa na homenagem que o IPATIMUP
prestou à sua personalidade, no dia 20
de Fevereiro de 2009, por ocasião dos
20 anos do instituto.
Dos projectos em áreas científicas total­
mente novas, a ex-directora da FLAD
refere-se também com entusiasmo ao
trabalho realizado com Alexandre
Quintanilha, que liderou o Instituto de
Biologia Molecular e Celular no Porto
(IBMC) até este ano, que a despertou para
as questões da biotecnologia e da bio­
economia, áreas que estarão no centro do
desenvolvimento humano futuro. O ciclo
de conferências publicado em livro sob o
título A Condição Humana (Dom Quixote,
2009), uma reflexão de especialistas por­
tugueses e internacionais sobre questões
da bioética, como o aborto, a eutanásia,
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
PERFIL
gestão e o planeamento do problema em
Portugal, também fixado em livro, numa
edição da Fundação Luso-Americana.
O ambiente é, aliás, preocupação transver­
sal à sua vida, como nos conta Isabel Alçada,
amiga de longa data, com quem veio a
extensão e variedade seriam impossíveis
enumerar aqui. Hoje continua associada
à Sedes, é fundadora da Associação de
Moradores da sua zona de residência e
gere a empresa da sua família, com o entu­
siasmo, a dedicação e o interesse pela
novidade transversal ao
seu percurso.
Miguel Caetano, que a
conheceu num projecto“Ela é muito forte de carácter,
­‑piloto com comunidades
uma pessoa muito consistente
locais e com quem traba­
lhou em instituições
entre aquilo que pensa
públicas de planeamento,
e a maneira como vive.
afirma: “Foi sempre uma
pessoa empenhada e soli­
dária, entregando-se às
causas em que acredita­
trabalhar no Plano Nacional de Leitura, va.” Bernardino Gomes comenta que
a seu convite. “Ela é muito forte de carác­ “desde muito jovem se bateu pelos ideais
ter, uma pessoa muito consistente entre de igualdade, justiça e liberdade”. Sobrinho
aquilo que pensa e a maneira como vive. Simões considera que reúne duas quali­
O convívio pessoal leva-me a verificar isso dades raras: “Por um lado é generosa, por
todos os dias, ela não infringe princípios, outro não deixa de ser muito séria e exi­
e isso é muito bonito. No ambiente, por gente e tem uma notável capacidade de
exemplo… ela cumpre mesmo o fechar a pôr as suas características pessoais ao ser­
torneira ou poupar electricidade, natural­ viço das actividades de planeamento, ges­
mente e sempre!”
tão e acompanhamento.” Isabel Alçada não
Idalina Salgueiro saiu da FLAD ao fim tem dúvidas em afirmar: “A tendência dela
de vinte e dois anos de projectos, cuja é para actuar, não para esperar.”
‘
’
DR
o suicídio, o código genético, o trans­
plante de órgãos, é um dos resultados
desta parceria. Bernardino Gomes, que
partilhou consigo este e outros projectos,
como as conferências promovidas sobre
as ciências do mar, que trouxeram a
Portugal, durante uma década, especia­
listas internacionais na área, afirma sobre
tantos anos de companheirismo: “Os
projectos eram submetidos a uma análi­
se em profundidade e com grande rigor.
Uma das grandes qualidades da Dr.ª
Idalina é a seriedade que põe em tudo o
que faz. Ajudou a Fundação a ter visibi­
lidade e qualidade naquilo que fazia.”
Outros projectos, mais relacionados
com a sua experiência na área do planea­
mento, marcaram a sua passagem pela
FLAD, como os Business Information
Centers, uma plataforma de apoio à cons­
tituição de empresas, com resultados
evidentes: uma das empresas formadas
na sequência deste projecto foi vendida
à Deutsche Telekom.
A problemática dos incêndios e da devas­
tação florestal, particularmente sentida no
nosso país depois dos fogos de grande
dimensão de 2003, originou outro pro­
jecto caro a Idalina Salgueiro, particular­
mente orientado para a prevenção, a
Idalina Salgueiro entre David Halpern (Marine Sciences) e Rui Machete.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
75
CARTA BRANCA
A América não tinha fim
Leonor Xavier
‘
Redescobri a imagem que me ficou sobre o Empire State
Building, que seria o primeiro e o mais alto arranha-céus
do pequeno mundo da minha infância.
’
Andei por reminiscências e impressões, por cadernos de notas
e diários, à procura dos meus Estados Unidos, a América, como
me lembro de ouvir dizer, quando era pequena. Em vários tem­
pos e diferentes cenários, tentei voltar à viagem interior das
muitas outras viagens reais que depois fiz. Redescobri a imagem
que me ficou sobre o Empire State Building, que seria o primei­
ro e o mais alto arranha-céus do pequeno mundo da minha
infância. Retomei a fantasia sobre o american way of life dos anos
1950, os estilos de vida que via no cinema, tão diferentes dos
nossos. Recordei as minhas emoções adolescentes sobre aquele
espaço pasmoso, o infinito da distância, o tudo que lá parecia
possível acontecer. Relembrei cenas de guerra em reportagens
no Paris-Match de todas as semanas em casa dos meus pais, e, já
nos anos 1970, as conversas de quando vivia no Brasil, com os
amigos que tinham visto os canhões americanos à beira de Saigão.
Vieram-me lembranças de idas à Broadway, mais tarde, e de
saídas pela noite no Fifty Four Studio, com os excessos do des­
lumbramento, os brilhos e as luzes de nunca mais acabar.
Em tumultuosas misturas, a lucidez da memória trouxe-me a
voz do meu pai, que nos anos 1930 tinha feito a sua especialida­
de médica na John Hopkins University, em Filadélfia, e de lá
trazia originais preceitos de saúde e educação, que aplicava ao
ordenamento da casa. A excelência dos corn flakes, pelo milho, e da
água da torneira, pelo cálcio. O cuidado com legumes crus e
saladas, o modo americano de cortar as laranjas, ou de lavar as
mãos correctamente. Não me esforço por evocar a literatura ou a
música, as convulsões políticas, as grandes questões sociais, as
76
diferenciações entre os estados norte-americanos, a explosão do
Lehman Brothers, o mandato de Barack Obama, as aflições pelo
Afeganistão. Experimento a liberdade de fugir de nobres temas,
e penso em TMI (too much information), uma sigla muito usada pelos
meus três sobrinhos que vivem e trabalham em Nova Iorque.
Sempre que um enunciado de saberes esteja perto de ultrapassar
o bom senso das desimportâncias, lá vem a várias vozes a sigla,
aviso de cautela numa conversa que se queira leve e casual. E não
é verdade que uma crónica escrita se quer assim?
Revisitando anotações de viagem, descubro-me no Metropolitan
Museum, na exposição de Paul Strand, que em 1915 escrevia
sobre formas e superfícies conjugadas para uma espécie de uni­
dade, na fotografia acabada. Movimentos na cidade, detalhes de
coisas e gente, retratos de rua eram os motivos das fotografias
expostas, primeiras abstracções com significado feitas intencio­
nalmente com uma câmera. “The hot flux of immediate life”,
foi a frase de Paul Strand que nesse Maio de 1989 passei para o
meu caderno e sempre me vem, quando penso em Nova Iorque.
Ao lado, na mesma página, a palavra Blind traz-me a fotografia
da mulher cega, com um olho aberto e o outro fechado, que
usa ao pescoço a tabuleta com esta palavra e o número da licen­
ça de vendedora de jornais. “Em outros recados, o pasmo da
desgraça, do alcoolismo, da miséria,” comentei então.
Por esses dias, a morte de Frank Sinatra era luto universal, devi­
damente celebrado na CNN. Atravessando a Nova Inglaterra,
o cheiro da floresta invadia o tudo onde se estivesse. A América não
tinha fim, em desfile de sensações, movimento perpétuo.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
LIVROS
Reportagem nos Açores
‘
“Não existem palavras,
a não ser de Melville ou
do Ruspoli, para descrever
a caça ao cachalote”,
escreve a 27 de Agosto
de 1983. Mas ele não
faz aqui literatura, nem
jornalismo escrito; são notas
à margem de um roteiro
fotográfico. Aponta-as
num caderno, ao sabor
do que acontece (ou não),
como um diário de bordo
sem obrigação diária.
É um observador,
e as anotações tanto são
escritas como fotográficas.
Alexandre Delgado O’Neill
Assírio & Alvim, Lisboa, 2007
Quase diário
de bordo
Por FRANCISCO BELARD
Este breve livro passou despercebido na
altura em que saiu. Fala de andanças (ou
melhor, naveganças) do autor, fotógrafo
embarcadiço no mar dos Açores e até
Sagres. Sem epopeia, naufrágios ou pirata­
ria (mas pode haver um veleiro destroçado
e o esqueleto do tripulante), os perigos
vêm da vida no mar alto, as emoções pro­
cedem da descoberta não de continentes
mas de ilhas habitadas e sobretudo do dia­‑a-dia de um aprendiz de marinheiro que
acompanha pescadores de ofício ou vele­
jadores de índole solitária. Alexandre
Delgado O’Neill é nessa altura (Agosto­‑Setembro de 1983) um jovem de 25 anos,
que trabalhou em publicidade, cinema, etc.;
em 1987-1990 havia de tirar um curso de
fotografia no Art Institute of Boston.
“Não existem palavras, a não ser de
Melville ou do Ruspoli, para descrever a
caça ao cachalote”, escreve a 27 de Agosto
de 1983. Mas ele não faz aqui literatura,
nem jornalismo escrito; são notas à mar­
gem de um roteiro fotográfico. Aponta-as
num caderno, ao sabor do que acontece
(ou não), como um diário de bordo sem
obrigação diária. É um observador, e as
anotações tanto são escritas como fotográ­
ficas. O trivial torna-se despretensiosamen­
te saboroso, como no escrito a 25 de
Agosto: «Hoje finalmente consegui […] a
autorização de embarque para a pesca ao
cachalote. Falei com o Sr. Chaves da capi­
tania para ele assinar o requerimento. Ao
falar com ele veio à conversa, por causa do
requerimento do qual copiei o meu, o
Antonio Tabucchi, e ele logo me disse que
‘se você é amigo desse italiano, é meu
amigo também. Sabe, ele ficou com a
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
’
minha morada para me mandar o livro ou
lá o que é. Mas ouça, eu trabalho aqui há
20 anos, têm chegado aqui tipos impor­
tantes! […] Fotógrafos, escritores, antro­
pófagos ou lá o que é isso. Bem, mas isto
para lhe dizer que, em 20 anos que traba­
lho aqui, nunca me mandaram nada’.” O
Sr. Chaves não foi vítima da antropofagia
dos antropólogos. Mas também não terá
recebido este livro de Alexandre Delgado
O’Neill, pois é edição póstuma que associa
as notas diarísticas a um conjunto de fotos
(o editor não pôde utilizar originais, que
terão ficado algures na América). O autor,
filho da cineasta Noémia Delgado e do
poeta Alexandre O’Neill, faleceu a 4 de
Janeiro de 1993, de doença que não foi
prolongada nem parecia grave.
Na parte final, chega ao Algarve no barco
do californiano Ed Sanford (piloto na II
Guerra Mundial, esteve em Guadalcanal e
voltou). Do que Ed gosta é de partir e vele­
jar. Alexandre prefere “chegar aos sítios,
chegar”; no mar, pode ficar cismando
durante dias, saudoso de uma rapariga que
encontrou no Faial. Ou temeroso, quando
o põem ao leme numa noite sem lua, já não
longe do Corvo, “tapado pelas nuvens”.
As imagens não puxam pelo dramatis­
mo nem por grandes efeitos; relatam
rotinas, a faina, as vagas, o pescado. Tal
como os textos, retratam bem experi­
ências que a maior parte de nós não
teve. O autor assiste com aparente indi­
ferença à sorte dos animais, embora
comente: “Faz muita impressão todo o
sangue que o peixe solta que mancha
os pescadores, e o barulho do peixe no
porão do barco é muito grande, tem um
olho aflito, este peixe, e demora muito
tempo a morrer” (isto sobre um atum
voador de 30 quilos). Noutra viagem
tenta salvar no barco um pássaro perdi­
do no mar alto e no mau tempo, peran­
te a indiferença de Ed, que diz: “Morria
de qualquer forma!”
No texto de apresentação, Alfredo
Saramago evoca Alexandre e o que soube
do itinerário deste na fotografia, “onde o
acaso aparece por vezes com uma furiosa
necessidade”. Acrescenta que nele “não
existe cálculo sofisticado nem ingenuida­
de mas uma maneira de ficar o mais perto
possível ao lado da vida”. Termina: “O
Alexandre morreu cedo.” E mais tarde o
Alfredo, menos jovem, também.
77
LIVROS
Açores: Nove Ilhas,
Uma História
Susana Goulart Costa
Universidade da Califórnia,
Berkeley, 2008
Cinco séculos
do arquipélago
Por Augusto Nascimento
Estamos em presença de um cometimento ambicioso, o de proporcionar uma
visão sintética da história de mais de cinco
séculos do arquipélago dos Açores numa
obra (bilingue) de divulgação. Como é
referido no título, o arquipélago, embora
constituindo uma unidade, não deixa de
ser composto por nove ilhas. Na impossibilidade de traçar uma história de cada
uma delas, a autora pretendeu deixar
registadas algumas particularidades ilhenses, remetendo os leitores mais interessados para a bibliografia já existente.
A Introdução contém uma brevíssima
mas sugestiva apresentação de trabalhos
sobre os Açores, qual repositório da
“memória das ilhas”. Significativamente,
a autora filia o seu trabalho na tradição
inaugurada pela obra de Gaspar Frutuoso,
cuja particularidade assinalável, porque
actual, foi a sua abrangência: uma história
dos arquipélagos do Atlântico.
No início da história das ilhas encontram­‑se, entre os temas habituais, a descrição
física, em cuja configuração cumpre realçar
o papel das erupções e dos sismos, e a saga
do povoamento, de que se formou o património humano açoriano. Este é tributário
de diversas nações europeias, assim como
do Médio Oriente e de África.
Seguem-se as dinâmicas políticas, cuja
relevância se prende com o nexo que se
tende a estabelecer entre tais dinâmicas,
por um lado, e o actual modelo autonómico e a expressão identitária dos açorianos, por outro. À luz da evolução
78
terem sido procurados por muitos. Ao longo de séculos, sucederam-se acções de corso e de
pirataria, o interesse diplomático dos vários países e os tratados de aliança militar.
Revisitadas as facetas económicas, a autora explana as
estruturas sociais, destacando os
modelos familiares, a emigração
e, ainda, a educação, que só se
terá tornado um mecanismo de
mobilidade e de transformação
social num passado muito
recente. Perante os temas escolhidos, alvitraria que, sem
embargo da importância de que
a religiosidade se reveste nas
ilhas, talvez outros aspectos da
ordem do simbólico merecessem algum tratamento, sumário
que fosse…
Sintético, bem escrito, este
livro não deixa de ser uma obra
de “fragmentos” como, afinal,
sucede em muitos intentos
monográficos. Tal não impede
a autora de salientar a constante das lutas pela humanização
do território e de expor a persistência de uma simbiose entre
o tradicional e o moderno ou
entre a pobreza e a ruralidade,
Ao longo de séculos, sucederam-se
por um lado, e a intelectualidade e o modernismo, por outro.
acções de corso e de pirataria,
Por mim, não saberia dizer se
o interesse diplomático dos vários países
simbiose, se justaposição…
e os tratados de aliança militar.
As abordagens dos espaços
insulares suscitam sempre interrogações: por exemplo, serão as
política, a autora divide a história admi- ilhas mais atreitas a oscilar da “mobilidade
nistrativa e política dos Açores em três à permanência e da estabilidade à inconspartes: da descoberta a 1766, desta data tância” ou esse processo, comum às várias
a 1831 e do liberalismo ao presente. Diga- formações humanas, é mais visível nas
­‑se, a autonomia tece-se a partir das lutas ilhas? A história das ilhas produz uma idenliberais, encontra expressão em reivindi- tidade específica e assaz diferente da das
cações de finais de Oitocentos, aflora na terras de origem dos colonizadores ou,
República e vem, depois da percepção dos como se preferirá, dos humanizadores do
Açores como um todo nos anos 1960, a território e criadores das sociedades insulamaterializar-se após o 25 de Abril.
res? Encontramos neste livro alguns eleOutro capítulo trata da plurissecular con- mentos para melhor fundamentar estas
dição de “trampolim do Atlântico”. “Do” problemáticas e, de caminho, aumentar o
e não “no” Atlântico, decerto por os Açores conhecimento necessário dos Açores.
‘
’
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
LIVROS
História dos Açores.
Do Descobrimento
ao Século XX
Artur Teodoro de Matos,
Avelino de Freitas de Menezes
e José Guilherme Reis Leite
2 volumes, Angra do Heroísmo,
Instituto Açoriano de Cultura, 2008
Dois volumes
de referência
Por Augusto Nascimento
Obra de um fôlego que se vai tornando
desusado, esta História dos Açores beneficia
do esforço de investigação sistemática
sobre a história do arquipélago, para o
que muito contribuíram as mudanças
políticas após o 25 de Abril de 1974 e a
existência de condições institucionais –
entre elas, a criação da Universidade dos
Açores – propícias à elaboração de um
saber sobre a região. Trata-se de uma obra
que mobiliza dados actualizados e aprofundados por estudiosos que se especializaram em história dos Açores e não só.
O primeiro volume vai até 1836, o
segundo abarca a subsequente história até
à actualidade. Independentemente das discussões que possam existir em torno da
periodização, parece que o liberalismo
introduziu uma diferença que é de assinalar na vida das ilhas.
Mais ou menos na moda, consoante as
conjunturas, as ilhas têm algo de mitológico, a que se faz referência na apresentação do descobrimento, cujas
circunstâncias andam rodeadas de controvérsia, no caso dos Açores ainda mais
acentuada devido à dispersão das ilhas
por uma vasta área oceânica.
Aborda-se com pormenor o povoamento das ilhas por indivíduos de variadas
proveniências e de diferentes condições
sociais. A microinsularidade suscita a
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
‘
O primeiro volume vai até 1836, o segundo abarca a subsequente
história até à actualidade. Independentemente das discussões que
possam existir em torno da periodização, parece que o liberalismo
introduziu uma diferença que é de assinalar na vida das ilhas.
’
necessidade de organização do
espaço dependente de arranjos
p o l í t i c o - a d m i n i s t r at i vo s.
Descrevem-se com minúcia a
estrutura da propriedade fundiária e as actividades económicas.
Numa obra tão aprofundada,
a Igreja ganha centralidade.
Apresenta-se a sua estrutura
multiforme, descreve-se a religiosidade popular e recenseia­‑se a cultura erudita que ela
promoveu, por exemplo, através da Companhia de Jesus.
Arrolam-se as várias dimensões da produção literária e da
criação artística nas ilhas até à
institucionalização da aprendizagem laica por via da reforma
de estudos do marquês de
Pombal.
Não só a Igreja, também a
vinculação da propriedade fundiária e o estorvo que ela representa à mobilidade social
merecem uma abordagem detalhada, assim como as várias
actividades referentes à
79
Rui Ochôa
LIVROS
Eugénio dos Santos (apresentador da obra na FLAD) enfatizou a relevância da primeira História dos Açores com chancela universitária.
subsistência dos povos e às demandas dos
que por ali passavam.
Narram-se com pormenor as pelejas por
ocasião da submissão do reino de Portugal
a Castela, que terminaram com a integra­
ção das ilhas na monarquia hispânica. Não
deixa de ser interessante a descrição das
clivagens político-administrativas referidas
à descontinuidade territorial. A autorida­
de numa ilha, mesmo do delegado régio,
podia não ser repercutida noutra, para
além, evidentemente, das obstruções
levantadas pelos desempenhos municipais.
Se há a reter algum eco de séculos passa­
dos no tocante à flutuação do poder polí­
tico, ele remete para o peso de diferentes
pólos de poder derivados da multiplici­
dade de ilhas. No passado, como hoje.
Referem-se os ensaios de reorganização
da administração e da (tentada) centrali­
zação de poder gizada pelo conde de Oeiras
– aliás, para todo o império –, que esbar­
raram nas resistências de elites locais às
reformas. As invasões francesas mudaram
o panorama geopolítico e tornaram o esta­
tuto dos Açores algo indefinido. Anos
depois, o destino político de Portugal teria
80
episodicamente o seu epicentro nos Açores. desde finais de Quinhentos. Para ali foram
Como noutros arquipélagos, as clivagens
levas de casais em meados de Setecentos,
entre elites das ilhas nutriram-se de disso­ designadamente para Santa Catarina, no
nâncias ideológicas de circunstância e das
sul daquele território. Nas décadas seguin­
dificuldades de imposição de hegemonia tes, diversificar-se-iam os destinos no
a autoridades ou
potentados de outras
ilhas. Por exemplo, em
1821, estava em ques­
Aborda-se com pormenor o povoamento das ilhas
tão, mais do que a
por indivíduos de variadas proveniências e de
adesão ao liberalismo,
diferentes condições sociais. A microinsularidade
a vontade micaelense
suscita a necessidade de organização do espaço
de não depender de
Angra. As sucessivas
dependente de arranjos político-administrativos.
lutas, cujo pendor
Descrevem-se com minúcia a estrutura
dependia em parte dos
da propriedade fundiária e as actividades
sucessos em Lisboa,
económicas.
nunca apagaram o
regateio da primazia e
da não submissão
entre São Miguel e Terceira, ilha que acabou
Brasil, mas aquela região ficou especial­
como o rochedo liberal. Com o triunfo do mente marcada pela migração açoriana.
Também como noutros arquipélagos,
liberalismo, adoptar-se-ia uma divisão pelas
duas ilhas das instâncias administrativa, nas urbes açorianas conviviam arreigadas
jurídica e religiosa.
clivagens sociais. A um sentido cosmo­
A atracção pelo Novo Mundo começou polita de vida contrapunha-se o trabalho
pelo Brasil, para onde os açorianos iam como modo de vida dos pobres, cujas
‘
’
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
LIVROS
‘
Narram-se com pormenor as pelejas por ocasião da submissão
do reino de Portugal a Castela, que terminaram com a integração
das ilhas na monarquia hispânica. Não deixa de ser interessante
a descrição das clivagens político-administrativas referidas
à descontinuidade territorial. A autoridade numa ilha, mesmo
do delegado régio, podia não ser repercutida noutra, para além,
evidentemente, das obstruções levantadas pelos desempenhos
municipais.
’
nómico de 1895, prendiam-se com a
identificação do comum dos indivíduos
com a sua ilha, mas não necessariamen­
te com o conjunto das ilhas, um entrave
igualmente observável noutros arquipé­
lagos.
Quer na República, quer após o 25 de
Abril, a autonomia tornou-se instrumental,
dando corpo a manifestações de contornos
conservadores. Na realidade, a proposta
autonómica, procurando apoio em senti­
mentos populares, correspondeu a um
projecto de sectores conservadores.
Numa sociedade cuja economia mudava,
assinale-se a persistência da pobreza.
O desenvolvimento industrial, em parte
limitado devido à exiguidade do mercado
insular, também era estreitado por deter­
minações políticas. Estas decisões favore­
ceram a construção de algumas fortunas,
enquanto os padrões de vida estagnavam,
Rui Ochôa
balizas eram o calendário litúrgico e o
ano agrícola.
O volume II traz-nos desde o liberalis­
mo aos nossos dias. Pela ênfase concedi­
da à história que já vivemos, percebe-se,
de imediato, a motivação de fincar a
identidade regional na história. Daí, a
importância de temas como o estatuto
político-administrativo, a representação,
a autonomia e a identidade.
A implementação do liberalismo legou
a divisão das ilhas em três distritos inte­
grados no reino e não mais considerados
possessões ultramarinas. Contra a percep­
ção induzida por esta condição político­‑administrativa, e significativamente
estimuladas pelo olhar dos estrangeiros
ou dos de fora, as elites insulares ensaia­
vam construir uma identidade arquipe­
lágica. Não deixa de ser curioso que se
tenha procurado o veio de uma origem
não portuguesa, antes o resultante da
mistura de povos europeus… Esta pers­
pectiva instrumental confluía com a ideia
de alguns açorianos de que seria melhor
ter por pátria-mãe outra nação mais
poderosa do que o decadente Portugal
(talvez fosse curioso estabelecer uma
comparação com mais ou menos subli­
minares cálculos políticos das elites cabo­‑verdianas, que, por essas épocas,
oscilaram entre a pulsão independentis­
ta e a acomodação à albarda de um poder
colonial que não tinha meios de asfixiar).
As dificuldades do pensamento e da acção
autonomista, geradoras do decreto auto­
História dos Açores em apresentação no auditório da FLAD.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
impelindo à emigração, que, mais cedo
do que a do continente, trocou o Brasil
pelos Estados Unidos, onde, provavelmen­
te, muitos se terão descoberto açorianos.
Um dos mais interessantes capítulos, “Os
Açores e as estratégias para o Atlântico”,
versa sobre a evolução da valia da posição
estratégica dos Açores, desde finais de
Oitocentos ao tempo do marcelismo. Todas
as potências tinham ou pretenderam ter
relações com os Açores, tentando simul­
taneamente apartar das ilhas os poderes
concorrentes. A importância estratégica do
arquipélago superou de longe a aparente
relevância económica. Não subscreveria a
asserção de que os “Açores têm estado no
centro da relação de Portugal com o
mundo”, mas, sem dúvida, o arquipé­lago foi assaz importante durante e após
a II Guerra Mundial.
Talvez não por acaso, o capítulo onde
se procede à inventariação dos vectores
que, em Novecentos, sustentam a afir­
mação de “cultura própria” precede o da
“revolução autonómica”, de alguma
forma decidida em função da evolução
política do País e do contexto interna­
cional. A autonomia ocupa a derradeira
parte do livro que encerra com um capí­
tulo sobre a universidade e a criação da
cultura universitária – já não simples­
mente erudita – nos Açores.
Salvo no plano retórico, os tempos pre­
sentes não cuidam das identidades. De
alguma forma, a recorrência do tópico
identidade e ilhas poderá ter sugerido aos
estudiosos o contributo para escorar os
lemas da filiação identitária açoriana no
saber social e, mais especificamente, na
produção historiográfica. Neste caso, de
uma forma muito sólida e interessante.
Uma nota final para dizer que fica bem
apelar à “escrita de outras Histórias dos
Açores”, mas, compreensivelmente, esta
História passa a ser uma obra de referência
para quem quiser familiarizar-se com a
evolução do arquipélago.
81
COLECÇÃO FLAD
Julião Sarmento
conquistar o corpo
Emma é o nome de uma figura decalcada sobre papel, poder-se- jogo dinâmico e intenso de aproximação e afastamento, reve­
­‑ia falar de desenho, mas o decalque enquanto forma de capturar lação e ocultação.
Todas as linhas são vibrantes e atravessa-as a energia que o sujeito
e tornar seu um corpo está mais próximo da força anímica deste
artista. Não se poderá dizer ser simplesmente um corpo ou uma emana quando exige do desenho a sua revelação, a sua entrega:
figura, mas uma sugestão tornada imagem sobre o papel. A sua exige ver uma forma, um objecto, uma matéria, mas só conse­
presença não se inscreve num registo simples imagético ou oníri­ gue sentir a energia gerada pela expectativa da visão. É o modo
co, mas trata-se de um espectro ou fantasia, um gesto insinuante como aquele que vê completa (ou não) as insinuações inscritas
que se torna cada vez mais presente e material. Esta sua qualida­ na folha o que melhor revela e caracteriza esta obra. Pode dizer-se
de, quase diáfana, não reside no facto de ser um vestígio ou ruína estar em causa não a visão do corpo, mas a apresentação de um
de um corpo passado, mas no modo como torna seu o espaço desafio: conquista-se aquele corpo ao completar o desenho e ao
em volta. Uma ocupação caracterizada pela sensualidade e pela deixar-se levar pelas insinuações por ele estabelecidas. Seguir a
promessa de visibilidade: parece que a qualquer momento se vai linha, ouvir a voz, sentir o arrepio são os princípios que podem
conseguir espreitar e ver todo o corpo, mas essa visão permanece guiar a conquista do desenho, a sedução do corpo, o prazer do
uma expectativa.
contacto. Nuno Crespo
Este trabalho de Julião Sarmento apresenta
aspectos muito característicos de todo o
seu trabalho: em primeiro lugar o corpo
Julião Sarmento nasceu em Lis- importantes exposições internafeminino, depois a sedução, a insinuação
boa em 1948. Estudou Pintura e cionais Documenta 7, em 1982,
e a clareza do traço que marca um territó­
Arquitectura na Escola Superior de e depois na Documenta 8, em
rio a partir do qual se constrói um corpo.
Belas-Artes de Lisboa e foi profes- 1987, e nas importantes bienais
É interessante perceber-se que a presença
sor na Academia de Belas-Artes de de Veneza de 1980, 1997 (ano em
neste desenho (semelhante a muitos outros
Munique, Alemanha, na Faculda- que foi o representante português)
lugares do trabalho do artista) decorre não
de de Belas-Artes da Universida- e 2001. Em Portugal, a sua obra
da criação de uma simples figura, mas da
de Complutense de Madrid, entre já foi objecto de inúmeras expofixação dos seus limites: é do interior do
outras. Vive e trabalha no Estoril.
sições nas principais instituições
espaço marcado pelo grafite que acontece
Expõe regularmente desde 1976 e (Museu de Serralves, Fundação
este desenho. Mas depois a figura que se vê
do seu vasto currículo expositivo Calouste Gulbenkian, Museu do
surgir caracteriza aquele espaço de um modo
pode destacar-se a presença nas Chiado, etc.).
particular e estabelece com o espectador um
82
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
COLECÇÃO FLAD
Emma (23), 1991, Grafite sobre papel, 100 × 70 cm
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
83
REVISTA DE IMPRENSA
por Werner Herzog*
foi ocupado pelas forças da globalização, da multipolaridade, do
fanatismo e do nacionalismo.
[ Sueddeutsche Zeitung, Stefan Cornelius ]
A coragem dos homens
Vinte anos sem muro. Esta frase soa tão simples como se o muro
tivesse caído por si mesmo faz 20 anos. Mas isto é um erro. O
que celebramos agora deveria ter outro nome: 20 anos de revo­
lução pacífica para a liberdade.
A queda do muro foi uma revolução com muitos riscos para a
vida dos seus autores. Hoje sabemos que aquela noite foi um
acontecimento feliz e que as manifestações anteriores nas cida­
des da Alemanha Oriental poderiam ter sido reprimidas violen­
tamente. Nas ruas de Leipzig, Berlim e de outros lugares as velas
e os cânticos conseguiram silenciar as armas. A vontade do povo
foi mais forte do que o poder dos funcionários. Celebramos a
coragem das pessoas que colocavam a liberdade acima de tudo,
homens e mulheres que arriscaram tudo e ganharam tudo.
O muro não caiu, foi derrubado.
Caiu o muro nas cabeças
Hoje em dia, a maioria dos alemães mostra a sua gratidão pela
unidade alemã. Neste momento, 63 por cento das pessoas inter­
peladas respondem que a reunificação é para elas causa de alegria.
Nos novos bundesländer (na antiga Alemanha Oriental) a percen­
tagem sobe até 71 por cento. Dezassete por cento das pessoas
mostram alguma preocupação. A pergunta relativa ao resultado
positivo do reencontro das duas Alemanhas é respondida com
optimismo. Sessenta e oito por cento dos cidadãos da antiga
Alemanha Ocidental e 51 por cento da antiga Alemanha Oriental
indicam que a reunificação vai ser um êxito.
Mas há também que sublinhar que 34 por cento dos alemães
de Leste não acreditam nisso.
Uma nova ordem mundial
Bernardo Nunes
[ Die Welt, Mathias Döpfner ]
Nas suas celebrações da queda do muro os alemães esquecem
facilmente que 1989 não foi só um acontecimento nacional.
Esse ano marcou uma época e mudou o mundo, possivelmen­
te mais do que o fizeram as duas guerras mundiais com a sua
força destrutiva no início do século. O 9 de Novembro é o dia
simbólico para uma ruptura geopolítica que deu início a uma
nova ordem mundial. Com a queda do muro começou a desa­
parecer o eurocentrismo. A Europa perdeu a sua importância
como eixo da política mundial, como campo de batalha das
ideologias e aspirações de poder. As forças políticas e econó­
micas liberadas naquele ano contribuíram para a ascensão de
continentes inteiros e aceleraram uma certa destruição cultural
e mudança social.
O ano de 1989 significa o fim da ordem criada depois da
II Guerra Mundial. […] Acabou com a ideia de simetria e esta­
bilidade característica do período da Guerra Fria. O seu lugar
84
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
Bernardo Nunes
acordo com o nosso passado problemático (Vergangenheitsbewältigu
ng), que já está a preocupar muitos alemães, na realidade ainda
nem sequer começou.
[ Frankfurter Allgemeine Zeitung, Thomas Petersen ]
Helmut Köhl: foi um milagre
Nunca duvidei que o muro iria cair a qualquer momento e que
a Alemanha seria reunificada. Mas ignorava como e quando iria
acontecer.
O muro tinha separado famílias, uma cidade e, na realidade,
todo o país em duas partes. Significava a separação de Berlim,
do nosso país, da Europa, e mesmo do mundo numa parte livre
e numa parte que não era livre. O muro caiu da maneira pací­
fica, sem um tiro, sem sangue. Foi um milagre. O regime da
RDA, que negava reformas essenciais até ao último momento,
fracassou ante a vontade de liberdade da população.
Depois da queda do muro conseguimos em menos de um ano
a reunificação em paz e em liberdade. A 3 de Outubro podíamos
celebrar o dia da unidade alemã. Foi o triunfo da liberdade.
Apesar de tudo, as maiorias são claras. Parece que na vida diária
o “muro nas cabeças” tem menos importância do que nos anos
1990. Relativamente à ideia de que os alemães de Leste se sen­
tem como cidadãos de segunda categoria, as respostas são mais
[ Focus Magazin ]
positivas do que há alguns anos. Hoje, 35 por
cento dos alemães de Leste pensam que efec­
tivamente sentem isso. Em 2002, 57 por cento
dos interpelados afirmavam que se sentiam
cidadãos de segunda categoria.
Angela Merkel: a sauna antes
Há alguns anos que é possível constatar uma
de atravessar o muro
distensão nas relações entre alemães do Oeste
e do Leste. Mas continuam a existir grandes
diferenças na avaliação da Alemanha de Leste Naquele 9 de Novembro, cheguei do trabalho e vi a conferência de impren­
do tempo do socialismo. Surgiu mesmo, entre
alemães do Leste, um pensamento que se pode sa que estava a dar Günter Schabowski. Telefonei à minha mãe imediata­
qualificar como “nostalgia”. Setenta e oito por mente e disse-lhe que era possível que o muro caísse e que depois íamos
cento dos alemães do Leste pensam que na comer ostras ao restaurante de luxo Kempinski em Berlim Ocidental. Era
antiga Alemanha Democrática havia mais coe­
são entre as pessoas e que a relação entre cida­ o que tínhamos planeado para a eventualidade de que algum dia o muro
dãos era mais humana do que é hoje. Este caísse. Depois do telefonema fui fazer sauna como era costume todas as
sentimento de nostalgia manifesta-se no facto quintas-feiras. Depois juntei-me às pessoas que corriam na direcção de
de que para 47 por cento dos entrevistados
não havia um regime ditatorial na Alemanha Bornholmer-Strasse – e passei a fronteira. Foi uma sensação indescritível!
Democrática. Deveríamos fazer tábua rasa do Para nós, alemães, e para mim, pessoalmente, a queda do muro e a reuni­
passado e realizar uma nova contagem?
ficação foram uma grande felicidade. [ Focus Magazin ]
Cinquenta por cento dos entrevistados na anti­
ga Alemanha Democrática acham que sim. Face
a estas respostas, permanece a ideia de que o *Jornalista correspondente em Madrid
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
85
20 anos depois de 1989 –
olhar o passado e o futuro
Por Philip D. Murphy*
Nos últimos sessenta anos, as relações entre governos americanos
e europeus, a todos os níveis da administração, têm-se caracterizado
por uma compreensão mútua, assente nos mesmos valores fundamentais.
Mas, durante dois terços desse período, um muro impediu muitos
alemães de usufruírem de liberdades fundamentais e da democracia.
‘
Pouco depois de o Muro ter sido construído, um
Presidente americano deslocou-se a Berlim e, com
uma simples frase em alemão, sintetizou o empenho dos Estados Unidos nos valores democráticos:
“Ich bin ein Berliner.”
Pouco antes de o Muro ser derrubado, um outro
Presidente americano foi a Berlim e, com outra
Bernardo Nunes
As relações germano-americanas
e transatlânticas são as mais
importantes para os Estados
Unidos.
Embaixador Murphy: “Pouco antes de o Muro ser derrubado, um outro Presidente americano
foi a Berlim e disse ‘Derrubem o Muro’”.
86
’
frase simples, voltou a reafirmar o empenhamento permanente dos Estados Unidos nos mesmos
valores para todo o povo alemão: “Derrubem o
Muro.”
E há pouco mais de um ano, Barack Obama, que
ainda não era presidente, discursou em Berlim.
“Povos do mundo”, disse, “vejam Berlim, onde
um muro foi derrubado, uniu-se um continente
e a História provou que não há desafio nenhum
demasiado grande para um mundo que se apresente unido”.
Até o Muro ser desmantelado, a Alemanha manteve­
‑se sempre bem presente na mente da maioria dos
americanos, enquanto a divisão do país era um
assunto que preocupava todos os alemães, orientais
e ocidentais. Desde 1989, os muros ideológicos
têm vindo a ruir por toda a parte, levando esperança a pessoas do mundo inteiro. Mas esta nova
promessa também trouxe um novo perigo. Hoje,
enfrentamos desafios cuja complexidade nunca
teríamos imaginado ser possível há vinte anos. As
questões germano-americanas poderão ter deixado
de merecer grande ­destaque na imprensa, mas as
relações germano-americanas e transatlânticas são
as mais importantes para os Estados Unidos.
Numa altura em que numerosos actores competem
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
transatlântica que o Presidente Obama
tornou possíveis. Um dos objectivos do
Presidente Obama é, e passo a citá-lo,
“renovar a nossa relação para uma nova
geração, num novo século”. A fim de chegarmos a essa nova geração, vamos realizar uma série de sessões públicas em
escolas e universidades alemãs.
Resolver os grandes desafios políticos
do mundo requer paciência, um planeamento hábil e uma compreensão profunda dos factos e tendências específicos das
Bernardo Nunes
entre si para conquistar influência – desde
potências em ascensão a empresas e cartéis
criminosos, desde as ONG à Al-Qaeda, e
desde os meios de comunicação social controlados pelo Estado ao Twitter – a nossa
parceria é crucial.
Como havemos de enfrentar as dificuldades mundiais do nosso tempo? A resposta é breve: juntos.
Como embaixador, o meu objectivo é
reforçar esta mensagem, transmitir o novo
optimismo e o empenhamento na relação
‘
Podemos criar a mesma
sensação de magia
que as pessoas sentiram
há sessenta anos quando
europeus e americanos
aprenderam a caminhar
juntos e a confiar uns
nos outros, apenas
escassos anos após se
terem defrontado no campo
de batalha; a mesma
magia que aconteceu há
vinte anos quando o Muro
foi derrubado.
’
várias regiões. Estes desafios exigem que
façamos escolhas difíceis, susceptíveis de
conjugar os interesses do presente com
a busca da paz e estabilidade a longo
prazo. Mas a superação dos desafios do
presente também exige que tenhamos
uma visão para a nossa cooperação transatlântica tão importante. Podemos criar
a mesma sensação de magia que as pessoas sentiram há sessenta anos quando
europeus e americanos aprenderam a
caminhar juntos e a confiar uns nos
outros, apenas escassos anos após se
terem defrontado no campo de batalha;
a mesma magia que aconteceu há vinte
anos quando o Muro foi derrubado.
O Presidente Obama está convencido de
que a nossa parceria será essencial se quisermos fazer progressos no que respeita
a algumas das questões mundiais críticas
que enfrentamos. O Comité Nobel reforçou a determinação do Presidente ao decidir recentemente conceder-lhe o Prémio
Nobel da Paz. O Presidente Obama ficou
surpreendido e profundamente tocado
com aquela decisão, mas aceita o prémio
como um apelo à acção dirigido a todas
as nações para que enfrentem os desafios
comuns do século XXI.
O presente artigo é uma versão editada do discurso proferido por ocasião da abertura do Marshall Memorial
Fellowship Forum do German Marshall Fund.
* Embaixador dos Estados Unidos da América na Alemanha
“Como havemos de enfrentar as dificuldades mundiais do nosso tempo?
A resposta é breve: juntos”, diz o embaixador.
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
87
A revolução europeia
O efeito dominó provocado pela queda do Muro de Berlim, em 1989,
foi simbolizado nas comemorações realizadas na capital alemã.
Por Carmen Fonseca*
‘
Com o objectivo de assinalar esta efemé­ ticas do Presidente americano
A condição prévia para
ride, o n.º 23 da revista Relações Internacionais, Ronald Reagan; do colapso inter­
a unificação foi o reforço
editada pelo Instituto Português de no do sistema comunista junta­
Relações Internacionais da Universidade mente com as tentativas do líder
da continuidade institucional
Nova de Lisboa, dedica um dossiê à soviético Mikhail Gorbachev para
euro-atlântica, que permitiu
o travar; assim como da
“Revolução europeia: 1989-2009”.
O artigo que inaugura a revista, da auto­ Conferência de Segurança e
à Alemanha a permanência
ria de Vesselini Dimitrov, avalia as dimen­ Cooperação Europeia. Ao mesmo
nas estruturas da NATO
sões interna e externa das transições tempo, a ascensão do movimen­
políticas de quatro estados: a Hungria, to Solidariedade representou um
e da União Europeia ao mesmo
a Polónia, a República Checa e a Bulgária. prenúncio e um sintoma da crise
tempo.
O autor refere que os desafios com que mundial do comunismo.
aqueles países foram confronta­
dos após a queda do comunismo
Por outro lado, e porque o
estão relacionados com a criação
efeito dominó atingiu também
A revolução europeia de 1989
Vesselin Dimitrov
e a consolidação das instituições
a URSS, este dossiê conta ainda
Roman Kuźniar
da democracia representativa e,
com um artigo de Maria Raquel
Patrícia Daehnhardt
simultaneamente, com a neces­
Freire que analisa a política
Andrey S. Makarychev
sidade de criar governos efecti­
externa em transição de um
Maria Raquel Freire
vos. A questão da unificação
regime comunista para o que
Tiananmen 20 anos depois
alemã, em particular, é tratada
viriam a ser tentativas falhadas
Raquel Vaz-Pinto
Dora Martins
por Patrícia Daehnhardt que
de democratização no caso da
tenta compreender como é que
Federação Russa. A análise cen­
12,50
a liderança da República Federal
tra-se essencialmente na formu­
23
SET : 2009 : TRIMESTRAL
da Alemanha conduziu o pro­
lação e implementação da
cesso negocial e geriu a recupe­
política externa, no quadro
ração do estatuto de poder da
soviético e pós-soviético. No
Alemanha. A autora conclui que
mesmo contexto, Andrey S.
a condição prévia para a unifi­
Makarychev analisa alguns casos
cação foi o reforço da continui­
notórios das relações confli
tuosas da Rússia com os estados
dade institucional euro-atlântica,
que permitiu à Alemanha a per­
adjacentes pós-soviéticos, assim
manência nas estruturas da
como as relações controversas
NATO e da União Europeia ao
com a Grã-Bretanha, demons­
mesmo tempo que fortalecia os
trando que todos aqueles casos
seus relacionamentos especiais
representam a dificuldade da
com os Estados Unidos e a
política externa russa em ultra­
França.
passar a herança soviética.
Com outra perspectiva, e cen­
Para além deste, a revista
Relações Internacionais contém
trando-se no caso polaco,
ainda um outro dossiê que se
Roman Kuzniar dá-nos a
conhecer a “Primavera dos
dedica aos “20 anos de
Povos” de 1989. Kuzniar con­
Tiananmen” e um conjunto de
sidera que as transformações
artigos sobre a Liga das
ocorridas na Polónia derivaram
Democracias, a crise financeira
()
não só da queda do Muro de
e os assuntos coloniais.
Berlim, mas também das polí­
* Instituto Português de Relações Internacionais
’
88
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
West meets East
“Tornar possível o impossível”, é como Tadeusz Mazowiecki chama à destruição
do Muro de Berlim que separou o mundo em dois blocos até 9 de Novembro de 1989,
durante quase cinquenta anos.
Por SARA PINA
Mazowiecki, opositor ao regime polaco e
membro do, então ilegal, sindicato
Solidariedade, tinha sido eleito em
Setembro primeiro-ministro, do primeiro
governo não comunista na Polónia, desde
a II Guerra Mundial, e considera a queda
do Muro “o tipo de fenómeno que os
profissionais da Realpolitik – incluindo os
da Europa de Leste da altura – não con­
seguem antever”1.
Poucos esperavam que o Muro fosse der­
rubado naquela noite e as duas Alemanhas
voltassem a ser uma. Nem Gunter
Schabowski, o ex-jornalista da RDA que
recentemente se tornara secretário para a
propaganda do Comité Central, ao sentar­‑se naquele fim de tarde de Novembro,
para mais uma conferência de imprensa
das 18 horas, no palanque que o punha
em destaque e em directo na TV, imagi­
nava ser ele próprio a proferir as palavras
que originariam a reunificação das duas
Alemanhas nas horas seguintes.
Uma hora a falar para dezenas de jorna­
listas, enfiado no seu fato cinzento, visi­
velmente agastado, a cara já do tom dos
cortinados, velhos e pálidos de tanto uso,
microfones e gravadores apontados à sua
cara; por fim, anunciou a nova lei que
regulamentava as viagens dos alemães de
Paralelo n.o 4
| INVERNO | PRIMAVERA 2010
‘
Por volta das oito da noite
nada se passava mas à
meia-noite tudo estava em
alvoroço. Nós estávamos
no cimo do Muro e muitos
choravam.
’
Leste. Schabowski ainda coçou a cabeça e
pôs os óculos passando de novo os olhos
nas duas páginas do decreto mas acabou
por dizê-lo: a partir de agora podia-se
atravessar para Oeste, de qualquer posto,
sem necessidade de visto – “Sofort,
Unverzuglich”. As palavras mágicas.
ali íamos a manifestações sempre com
medo. Eu era estudante de Teologia e tinha
tido uma educação própria do filho de
um padre protestante, uma educação cris­
tã que significava lealdade à RDA. Se o
muro não tivesse caído eu seria padre.”
Gill é advogado.
“Vivia numa gaiola. Sem hipótese de ser
livre, espiritual ou fisicamente”, relembra
Jens Reich, membro do Conselho Alemão
de Ética, activista dos Direitos Civis e fun­
dador do Neues Forum. “Vi o Muro des­
truir a minha vida de adulto com os olhos
no Oeste tão virtuoso mas inatingível.
Nunca nos tínhamos sentido tão partici­
pativos como com a reunificação.”
Curtis Robinhold é um americano que
viveu em Berlim, filho de um alemão,
conta: “O meu pai mandava mantimentos
para Berlim Leste para familiares que
nunca pôde visitar e que ele não conhe­
cia.” Curtis achava que sucederia ao pai
nesta missão de passar clandestinamente
encomendas para parentes desconhecidos.
“Nunca acreditei que o Muro fosse der­
rubado.” Estava no liceu em San Diego,
na Califórnia, e soube das notícias. Passou
a tarde a ver a CNN. “Imediatamente, sem demora”
Na Alemanha...
As palavras proferidas por Gunter
Schabowski levaram milhares de alemães
para junto do Muro que rapidamente
começou a ser derrubado. “Ninguém que­
ria acreditar”, diz David Gill, vice-repre­
sentante da igreja protestante alemã. “Até
89
‘
A partir de agora podia-se
atravessar para Oeste,
de qualquer posto, sem
necessidade de visto.
’
George Bush pai, então na Presidência,
também. Naquele momento, a CNN tinha
mais informações para dar do que a CIA.
“Não se pode dizer que tenhamos previs­
to este desenvolvimento”, disse na altura
o Presidente americano.
Com familiares no Leste, Dirk Rumberg
vivia em Munique; quando se mudou para
Berlim, visitava com frequência a RDA.
“Sempre acreditei que aquela situação não
se manteria eternamente. Tinha de acabar.
Naquela noite, fui com amigos para a
beira do Muro. Por volta das oito da noite
nada se passava mas à meia-noite tudo
90
estava em alvoroço. Nós estávamos no
cimo do Muro e muitos choravam.”
Professora na Universidade George
Washington, Hope Harrison estava a fazer
o doutoramento em 1989 e preparava uma
tese sobre o Muro. Viajava de avião de Nova
Iorque para Berlim com escala em Frankfurt.
Começou a ouvir a notícia – o fim do Muro
de Berlim. “Pensei que o dia 10 de
Novembro era o equivalente ao 1 de Abril
em Portugal. O dia das mentiras. Mas o
comandante do voo informou-nos do que
se estava a passar e só então acreditei.”
...E na Europa de Leste
“A queda do Muro de Berlim foi o último
momento em que a Europa interessou ao
mundo”, Steven Erlanger, chefe da dele­
gação do New York Times em Paris, inicia a
descrição do seu Verão de 1989. “Viajava
pela Europa de Leste tentando perceber se
os movimentos libertadores na Polónia
tinham influenciado os países vizinhos.
Era um miúdo de esquerda e confrontei­‑me com uma Europa degradante, depres­
siva e que punha as pessoas umas contra
as outras. Berlim Leste era muito triste.”
Erlanger, na altura do The Boston Globe,
tinha como guia um jovem muito des­
confiado mas que acabou por lhe pedir
ajuda – queria arranjar uma mulher
estrangeira para se casar e fugir dali...
Na Polónia, no Outono de 1989, Lukasz
Lipinski tinha 17 anos e recorda uma
maior liberdade graças ao movimento do
Solidariedade: “Tinha havido eleições
livres e o primeiro-ministro eleito não era
comunista. Esse foi o momento em que
achámos que juntos podíamos fazer muito.
Mudar o mundo.”
A 9 de Novembro, o checo Jiri Sitler sabia
que alguma coisa importante se estava a
passar em Berlim mas não na Checoslováquia,
onde depois de várias perseguições policiais
por participar em manifestações não acre­
ditava que a liberdade chegasse a Praga. Mas
entre Novembro e Dezembro o poder e o
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| INVERNO | PRIMAVERA 2010
O tríptico Abertura do Muro de Berlim, por Mathias Koeppel, está exposto na
Câmara dos Representantes, a Abgeordnetenhaus, de Berlim. O autor optou
por ilustrar os acontecimentos em três painéis por considerar a queda do Muro
um processo com três partes. O painel da esquerda retrata a noite de 9 de
Novembro, a abertura do posto de fronteira em Invalidenstrasse. À direita,
vê-se Walter Momper, na altura presidente da Câmara de Berlim, a dirigir o
trânsito com um megafone.
O painel do centro descreve os acontecimentos dos dias que se seguiram. Os
cidadãos de Berlim reuniam-se na Porta de Bradenburgo e subiam para cima
do Muro. Esta imagem junta muitas pessoas que tiveram um papel fundamental
regime de partido único caíam às mãos dos
cidadãos que se manifestavam nas ruas.
“Gritávamos nas manifestações – ‘Venham
todos os checos e juntem-se a nós’. Um
grupo de ciganos perguntou: ‘Nós também
nos podemos juntar?’, ‘Claro!’ dissemos.
Éramos cada vez mais e mais.”
No final do ano, Vaclav Havel é eleito presidente pelo Parlamento. Em 1992, Vaclav
Klaus ganha as eleições legislativas livres e
vem a constituir um Estado independente.
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| INVERNO | PRIMAVERA 2010
no desenrolar dos acontecimentos mas que não estiveram juntas, ao mesmo
tempo, no local. À esquerda, Willy Brandt entrando em cena, depois Helmut
Köhl, o chanceler alemão na altura; Jürgen Wohlrabe do CDU; Herwig Haase e
Hanna-Renate Laurien, também do CDU; e o então ministro dos Negócios
Estrangeiros, Hans-Dietrich Genscher.
No painel da direita a abertura do Muro em Potsdamer Platz, a 12 de Novembro.
Eberhard Diepgen, antigo presidente da Câmara de Berlim, mais tarde reeleito,
está à esquerda. À frente, o então Presidente da Alemanha Federal, Richard
von Weizsäcker, fala com o guarda fronteiriço da Alemanha de Leste – o tenente­
‑coronel de serviço no dia em que aquele controlo desapareceu.
Na Hungria, ainda sob o regime comunista, o primeiro-ministro Nemeth procurava distanciar o seu Governo do Partido
Comunista. “A primeira vez que me ocorreu
que alguma coisa podia mudar foi quando
milhares de alemães orientais atravessaram
a fronteira húngara para a Áustria, em
Agosto de 89. Eu estava em casa a ver televisão e mal podia acreditar”, lembra Pavos
Demes. A transição para a democracia na
Hungria foi inspirada pela Polónia.
Em 1989, em toda a Europa Central e
de Leste se exigiam mudanças. Vinte anos
passados, o polaco Lukasz Lipinski, agora
jornalista da Gazeta Wyborcza, diz que esta
força do povo se perdeu: “É do que eu
sinto mais falta – a crença de que as pessoas podem fazer mudar mundo.”
Estes depoimentos foram recolhidos ao longo do Marshall
Memorial Fellowship do German Marshall Fund em
Berlim
1. In RI, n.º 23, p. 21.
91
Thomas Kleine-Brockhoff
Retrato de uma fuga
Detlev era um jovem estudante alemão oci­
dental e lembra a Alemanha de Leste de
algumas visitas: “Era um sítio exótico. Muito
diferente da Alemanha que eu conhecia.”
Mas na Primavera de 1989, Detlev faria
uma viagem à então Alemanha Democrática
que lhe mudaria a vida. Conheceu Bärbel
e foi paixão à primeira vista. E, claro, foi
o desejo de ajudá-la a fugir para viverem
juntos a liberdade da sua Alemanha. Bärbel
terminara o liceu determinada a continuar a estudar e ser livre e conseguiu um
visto para viajar para a Hungria.
Em Agosto, decidiram tentar a fuga. Os
dois combinaram o reencontro: meio-dia,
na estação de comboios de Budapeste.
Thomas, um amigo de Detlev, ajudá-los-ia,
ao longo desta aventura, a que se juntaram
as duas irmãs de Bärbel, uma de 17 e outra
de 21 anos, que queriam, também, tentar
a sua sorte.
(Foto 1: O reencontro em Budapeste. Foto 2:
Bärbel e Detlev com o amigo Thomas
(à direita) na estação de comboios)
92
Havia notícias que era possível transpor
a fronteira para oeste, pela Hungria. A
cidade recebera milhares de alemães de
Leste que, passando por turistas, preten­
diam uma ida sem retorno. “A confusão
era grande em Budapeste. Junto da
Embaixada da Alemanha Ocidental havia
centenas de pessoas a pedir asilo. Tantas
que o embaixador ficou sem espaço na
sua embaixada para acolher mais gente”,
lembra Thomas. (Foto 3)
A 19 de Agosto, o grupo seguiu para o
“piquenique” em Sopron. A separar a
Hungria da Áustria, o muro, o arame
farpado e os guardas com ordens para
matar. Mas as pessoas começaram em
grande número a desafiar a autoridade.
“Cortavam o arame farpado, subiam às
torres”, diz Bärbel. (Foto 5)
Começou a circular a notícia de que a
fronteira poderia abrir por algumas
horas. Panfletos para um “piquenique”
junto à fronteira com a Áustria, passa­
vam de mão em mão, indicando o pos­
sível ponto de passagem para escapar:
“Elsernen Vorhangs”. “Nós resolvemos
tentar”, conta Detlev. (Foto 4)
“A certa altura, todas as pessoas ali con­
centradas começaram a encaminhar-se
para a fronteira”, descreve Thomas, mos­
trando as fotos e continuando. “Nós
também. Muita gente ia a pé, algumas
de carro. Ninguém falava. Caminhavam
para ocidente.” (Foto 6)
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| INVERNO | PRIMAVERA 2010
‘
“Chegados ao posto fronteiriço ninguém sabia o que fazer.
Os guardas podiam disparar. Ficámos parados ao pé
da cerca de madeira”, explica Thomas.
“Alguém começou a gritar: ‘Abram a vedação’,
e as muitas pessoas que ali se tinham juntado começaram
a empurrar-se para a saída. Os guardas não reagiam
e começámos a passar.”
“Chegados ao posto fronteiriço ninguém
sabia o que fazer. Os guardas podiam
disparar. Ficámos parados ao pé da cerca
de madeira”, explica Thomas.
“Alguém começou a gritar: ‘Abram a
vedação’, e as muitas pessoas que ali se
tinham juntado começaram a empurrar­‑se para a saída. Os guardas não reagiam
e começámos a passar.” (Foto 7)
As pessoas corriam atravessando a pé a
fronteira, algumas só com a roupa que
tinham no corpo. Do lado de cá havia aus­
tríacos que ali se tinham juntado com
garrafas de champanhe, à espera para
comemorar. (Foto 8)
’
As três irmãs choravam de felicidade.
Bärbel estava muito feliz mas, ao mesmo
tempo, “era tudo muito estranho, era livre
mas não sabia se voltaria a ver os meus
pais”. (Foto 9: Bärbel com as duas irmãs
quando atravessaram para a Áustria.)
Muito mais cedo do que pensavam todos
se reencontrariam. O retrato desta fuga
teve um final feliz. Pouco tempo depois,
o Muro viria a ser derrubado e a Alemanha
unificada. Juntos, também Detlev e Bärbel,
agora com três filhas. (Foto 10) SP
Estes depoimentos foram recolhidos ao longo do Marshall
Memorial Fellowship do German Marshall Fund em Berlim.
As fotos foram cedidas por Thomas Kleine-Brocknoff.
Paralelo n.o 4
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93
BLOCO DE NOTAS
Os muros que restam
94
‘
pacifistas, evangéli­
cos, ecologistas e
A aparente força dos muros resulta,
outros. Em 1989,
afinal, da fraqueza das situações
constitui-se o Novo
Fór um, pr imeira
que lhes dão origem. Quando menos
organização oposicio­
se prevê, o betão desfaz-se em areia
nista com representa­
ção em todo o
fina.
território. O equilí­
brio altera-se quando,
a 2 de Maio, o Governo húngaro, em vias
muralha da Hungria abriu caminho ao
de transição liberalizante, desmantela a desfazer do Muro de Berlim.
cerca de arame farpado na fronteira com
Mais de 300 mil pessoas passaram de
a Áustria. Milhares de alemães de Leste Leste para Oeste ao longo do ano de 1989.
mudaram-se para a República Federal, pelo O êxodo para o Ocidente e o tropismo
corredor austro-húngaro. A queda da favorável à reunificação produziram efeitos
’
LUSA
A 9 de Novembro de 1989, dois alemães
residentes em Berlim Leste conversavam
e bebiam, numa sala, com a televisão
quase emudecida. Quando olharam, dis­
traídos, para o ecrã, depararam com estra­
nhas imagens. Parecia “um filme cuja
acção mostrava gente jovem a trepar o
muro, a encavalitar-se no cimo do respec­
tivo rebordo e a polícia da fronteira a
observar toda aquela animação sem mexer
um dedo”. Seria uma ficção ocidental “do
tempo da Guerra Fria”? Demorou algum
tempo até decidirem aumentar o som do
televisor, o que os forçou a sair da supos­
ta narrativa e a descerem à rua e às filas
de carros que “se engarrafavam, porque
todos convergiam para o posto fronteiri­
ço que se encontrava miraculosamente
aberto”. Por todo o lado se ouvia as pes­
soas a “exclamarem ou murmurarem É
uma loucura!”... Este relato de Günter Grass
(em O Meu Século) é ficcional, mas o sen­
timento de incredulidade que traduz era
comum a todas as pessoas que, pela tele­
visão, na Alemanha ou fora dela, observa­
vam a travessia, sem oposição policial, da
linha que dividia Berlim em duas partes
antagónicas.
Com os seus quarenta e três quilóme­
tros de comprimento, o muro parecia
indestrutível, à força de betão e arame
farpado. Quem se atreveria a predizer
que, subitamente, numa noite invernosa
de Novembro, a barreira ruiria como um
lego? Não foi obviamente um golpe de
magia. A partir de 1987, as reformas
introduzidas por Gorbatchev, na União
Soviética, repercutem-se, de forma indi­
recta, na situação interna da RDA, com
manifestações de grupos críticos do regi­
me – activistas dos direitos humanos,
Mário mesquita
A queda do Bloco de Leste não teve repercussões favoráveis à paz no Médio Oriente.
Depois do Muro de Berlim, novos muros se constituiram. Muro da Palestina, na fronteira de Gaza,
separando a população israelita da palestiniana.
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BLOCO DE NOTAS
BLOCO DE NOTAS
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litarizada entre as duas Coreias, construída
em 1953. A área-tampão, estabelecida entre
1964 e 1974, a separar os cipriotas gregos
dos cipriotas turcos. As peaceline da Irlanda
do Norte, em Belfast. Os bancos de areia
do Sara Ocidental, separando marroquinos
e sarauís. A barreira entre os Estados Unidos
e o México, com vista a impedir a emigra­
ção clandestina, erguida a partir de 1994.
O arame farpado que cerca os territórios
espanhóis de Melilla e Ceuta. A barreira
eléctrica em Caxemira, a dividir paquista­
neses e indianos. O muro da Palestina a
consolidar a divisão entre palestinos e colo­
nos israelitas desde 2007.
Vinte anos após a queda do símbolo de
todos os muros, barreiras semelhantes
permaneceram ou foram erguidas de
novo. Certamente chegará um dia o seu
9 de Novembro. A aparente força dos
muros resulta, afinal, da fraqueza das
situações que lhes dão origem. Quando
menos se prevê, o betão desfaz-se em
areia fina. A queda do Muro de Berlim
significou o início de uma era de liber­
dades públicas na antiga RDA e em toda
a Europa de Leste, mas, ao contrário das
previsões optimistas, não assinalou o iní­
cio de um novo mundo de paz, seguran­
ça e bem-estar. Talvez por isso, no início
do século XXI, a principal data simbóli­
ca no plano internacional transferiu-se
de 9 de Novembro de 1989 para 11 de
Setembro de 2001.
LUSA
rápidos. A ideia de uma “terceira via”, favo­
rável a uma república autónoma e demo­
cratizada no Leste alemão, acabou reduzida
à insignificância. As propostas do Fórum
Democrático, ou de intelectuais e escritores,
como Christa Wolf, quase isolados, ao
tempo de Honecker, a lutar pela democra­
tização da RDA, foram vencidas pela von­
tade da antiga “maioria silenciosa”, que se
acomodava ao regime comunista, mas rapi­
damente aderiu ao apelo de integração na
República Federal.
Como escreveu o escritor holandês Cees
Nooteboom, testemunha dos acontecimen­
tos de 1989-1990, “teria sido mais belo,
como desejavam Grass e Habermas, deixar
os alemães pronunciarem-se acerca da alter­
nativa entre um Estado único ou uma fede­
ração das duas repúblicas existentes”, mas
“o povo canta mais depressa do que os seus
pensadores”... O Reino Unido e a França
hesitaram, mas o apelo da reunificação era
muito radical. Deixou de ser possível repe­
tir a frase cínica de Mauriac, no pós-Guerra:
“Gosto tanto da Alemanha que fico feliz
por existirem duas.” Apesar das hesitações
iniciais de Gorbatchev e das reservas de
Thatcher e Mitterrand, a corrente favorável
à unidade alemã, liderada por Helmut Köhl,
triunfou sem reticências.
No plano internacional, o desaparecimen­
to da bipolaridade Leste-Oeste não signi­
ficou o “fim da história”, mas uma nova
era de conflitos, acompanhada por múlti­
plos confrontos armados nas zonas de tra­
dicional influência da Rússia e pelo
ressurgimento de velhos demónios nos
Balcãs, enquanto prosseguia a saga do
Médio Oriente e se fortaleciam fundamen­
talismos islâmicos.
A queda do Muro de Berlim não signifi­
cou, ao contrário do que se poderia espe­
rar, a progressiva queda de outros
separadores entre os homens, as cidades,
os países. É possível distinguir, no mundo
contemporâneo, diferentes tipos de muros,
consoante as respectivas funções estratégi­
cas. O diplomata e escritor Jean-Claude
Ruffin, distingue o modelo tradicional em
que funcionam como “fronteiras armadas”
entre potências inimigas, casos da Alemanha
e da Coreia, de um outro tipo de barreiras
que separam “um lugar de poder, de um
lado, de nada ou quase nada do outro”,
conforme sucede ao longo do Rio Grande
entre o México e os Estados Unidos: “de
um lado, o cidadão, o semelhante, nós; do
outro, o vazio, o selvagem, os bárbaros.”
Oito significativos muros permanecem no
mundo, após a reunificação da Alemanha
e da cidade de Berlim, de acordo com um
estudo recente (Novosseloff e Neisse, Des
murs entre les hommes, 2007). A zona desmi­
Após a queda do Muro de Berlim, outros muros permanecem em diversas regiões.
Na foto a peaceline de Belfast na Irlanda do Norte, que separa protestantes e católicos.
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