almanaque histórico
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ALMANAQUE HISTÓRICO Cristina Massadar Morel e Marco Morel PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA Auxiliares de Pesquisa Presidente Antonio Venâncio Luiz Inácio Lula da Silva Cleide Rodrigues Fabio Maciel Ministério da Justiça Lucas Zelesco Ministro Patricia C. Grigório Tarso Genro Rodrigo Piquet S. Mello Rossana C. Leone FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL Consultoria em Ciências Presidente Eliane Dias de Franco Trigo Jorge Alfredo Streit Análise de Produto Diretores Executivos Simone Melo Eder Melo Revisão de Textos Dênis Corrêa Cely Curado Gerente de Educação e Cultura Veridiana Steck Marcos Fadanelli Ramos Pesquisa de Imagens Assessoria Técnica Denise Portugal Lasmar Juliana Mary M. Ganimi Fontes Seleção de Imagens FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI Presidente Márcio Augusto Freitas de Meira MUSEU DO ÍNDIO Diretor José Carlos Levinho Elizabete Braga Cristina Massadar Morel Marco Morel Design Gráfico Ruth Freihof | Passaredo Design Christiane Krämer Serviço de Administração Tratamento de Imagem Rosilene de Andrade Silva Trio Studio SOCIEDADE DE AMIGOS DO MUSEU DO ÍNDIO Supervisão Geral SAMI Ruy Godinho Presidenta Bruna Franchetto Imagem Capa Diretora Executiva Rondon entre os Nambiquara Valéria Luz da Silva | Acervo Museu do Índio/Funai Diretor Financeiro José Ribamar Bessa Freire PRODUTORA CULTURAL Abravideo Concepção e Texto M839a Coordenação Geral Elizabete Braga Coordenadores de Pesquisa Carlos Augusto da Rocha Freire Denise Portugal Lasmar Almanaque Histórico Rondon: a construção do Brasil e a causa indígena. / Cristina Massadar Morel e Marco Morel Cristina Massadar Morel Marco Morel Morel, Cristina Massadar Brasília : Abravideo, 2009. Suplemento: guia do professor ISBN 978-85-61467-07-4 1. Cândido Rondon. 2. Linhas telegráficas. 3. História do Brasil. 4. Indigenismo I. Morel, Marco. II. Título. CDD 918.1 N D O 1 RI A R O N D O N N PR JE O R O TO MEMÓ Apresentação 4 Caminhos do Brasil 6 Os saberes dos povos indígenas 18 Ameaças à saúde 21 A “língua de Mariano”: o telégrafo 24 Índios no Brasil 28 Palavras dos índios: línguas diferentes 34 Palavras dos índios, nossas palavras 37 Longa trajetória de contatos 40 Palavras e imagens 48 Lembranças da Comissão Rondon 53 Memórias e culturas dinâmicas 56 A força dos meios de comunicação 60 Homem público 64 Nação e cidadania 72 Cronologia 79 Bibliografia 80 2 3 4 APRESENTAÇÃO Ao apresentar a trajetória de Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) na 12.ª edição do Projeto Memória, a Fundação Banco do Brasil, em parceria com a Sociedade de Amigos do Museu do Índio (SAMI), tem a oportunidade de oferecer aos professores e a seus alunos importantes caminhos da história e da cultura do País. De certa maneira, os passos desse marechal do Exército (que pregava o pacifismo e a defesa das populações indígenas e que contribuiu de modo decisivo para a integração nacional) nos ajudam a conhecer como foi construída a nação em que vivemos. As atividades do Marechal Rondon oferecem elementos instigantes para o trabalho em sala de aula. Sua vida longa e atuação intensa envolvem questões ligadas ao meio ambiente, aos meios de comunicação, às inovações técnicas, à diversidade cultural e à formação do Brasil. Ao fazer um levantamento de suas realizações, ele contabilizou nada menos que 50 mil quilômetros (mais do que a circunferência da Terra) percorridos em nosso território, com a criação de linhas telegráficas em plena selva e nos sertões, além de incluir rios até então ausentes dos mapas e permitir o surgimento de estradas e cidades. Ao mesmo tempo, sua presença teve dimensão científica: por onde passava, colhia espécimes vegetais, minerais, animais e arqueológicos, muitos ainda desconhecidos pelos registros escritos. E, nessa “descoberta” do Brasil, Rondon afirmava ter encontrado nosso maior tesouro: as populações indígenas. O Almanaque Histórico Marechal Rondon, portanto, está organizado a partir de quatro eixos básicos relacionados ao personagem: Caminhos do Brasil: regiões percorridas por ele e pelos indivíduos e grupos que integraram suas equipes, o que nos leva a abordar os ecossistemas, a fauna e a flora, a dimensão social da saúde e as invenções tecnológicas. Índios no Brasil: populações com as quais entrou em contato nos levam a dimensionar a presença indígena na cultura e na sociedade brasileira, com as formas de relação pacíficas ou violentas, além da riqueza cultural desses povos. Palavras e imagens: as produções culturais surgidas em consequência de sua atuação (ciências naturais, etnografia, fotografia, museus) e sua relação com os modernos meios de comunicação. Homem público: a figura de Rondon em sua dimensão política, no sentido amplo, de alguém que exerceu com intensidade sua cidadania e defendeu suas ideias, marcando presença em episódios históricos importantes, inclusive em torno dos (ainda hoje) disputados direitos dos índios e das ações destes em defesa de suas vidas e culturas. Na aproximação entre passado e presente, entre o que conta a história e a nossa vida atual, surgem palavras e trajetórias de vida que, entrelaçadas, mais uma vez nos abrem a esperança de que o Brasil pode e deve continuar se transformando para melhor. Rondon com criança indígena | Acervo Museu do Índio/Funai 5 1 CAMINHOS DO BRASIL “Iniciei, bem pequeno, as caçadas, de que fui sempre apaixonado – até que lhes compreendi a desumanidade. Minha arma era um bodoque com que atirava pelotas de barro.” (Depoimento do Marechal Rondon para Esther de Viveiros) Foi justamente na região onde nasceu e passou a infância que o Marechal Rondon participou e dirigiu a Comissão Construtora de Linhas Telegráficas de Cuiabá ao Araguaia (1890-1891). Essa seria a primeira de uma série de expedições pelo Norte e Centro-Oeste do Brasil: Comissão Construtora de Linhas Telegráficas do Mato Grosso (1900-1906) e Comissão Construtora de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas (1907-1915) – esta última denominada Comissão Rondon. No final do século XIX, a construção do telégrafo de Goiás (Araguaia) a Mato Grosso (Cuiabá) visava ao fortalecimento militar do sul do Mato Grosso, ligando-o de maneira direta ao Rio de Janeiro. Essa também era uma forma de promover o povoamento da região. A vulnerabilidade da área de fronteira do Mato Grosso já tinha sido identificada na época da Guerra do Paraguai (v. Capítulo 4). Em outras palavras: estava em jogo garantir a integridade nacional e construir novos mecanismos para protegê-la. Rondon, desse modo, teria importante presença nessas amplas e demoradas tarefas de ajudar a consolidar a nação brasileira. A Comissão Rondon, além de instalar as linhas telegráficas, possibilitou a construção de estradas de ferro e de rodagem e a pesquisa em diversos campos da ciência. Participavam com entusiasmo da Comissão oficiais especializados em Topografia, Desenho e Astronomia, mas não era fácil arregimentar a maioria da mão-de-obra, composta por civis e praças, tendo em vista o temor que as condições de vida e trabalho da Comissão causavam. Muitas vezes, eram recrutados soldados considerados indisciplinados, além de presos políticos e presos comuns. Em algumas ocasiões, os índios também participaram da abertura de picadas e da instalação das linhas. 6 Picada aberta para instalação da linha telegráfica | Acervo Museu do Índio/Funai Rondon em Mimoso(MT), onde nasceu | Benjamin Rondon | Acervo Museu do Índio/Funai Esticamento do fio elétrico para o telégrafo | Luiz Leduc | Acervo Museu do Índio/Funai General Rondon distribuindo brindes entre os índios Bororo que residem nas imediações da cidade de Rondonópolis, 1948 | Heinz Forthmann | Acervo Museu do Índio/Funai “Dei ao cacique uma corneta, que foi entregue a um índio por ele designado para os toques, que, segundo combinamos, seriam dados do modo que ele julgasse mais perceptível ao ouvido da sua gente. Fato curioso. Aquele chefe indígena, querendo mostrar-se que havia conveniência em que fossem os seus toques dados à sua guisa, procurou convencer-me de que a minha corneta falando braire (brasileiro), a dele falaria bororo.” (Cândido Mariano da Silva Rondon. Relatórios dos trabalhos realizados de 1900-1906.publicação 69-70) NA PONTA DA LÍNGUA... “Parece uma coisa à tôa / Mas tem muito que sabê; / Que não é qualquer pessoa / Que dança o cateretê.” Cateretê. Dança rural, conhecida desde a época colonial em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Em Goiás, é chamada de catira. Alguns a consideram de origem indígena, outros, africana. Duas filas, uma de homens, outra de mulheres, uma diante da outra, desenvolvem a 8 dança por meio de palmas e bate-pés, acompanhadas por violeiros. Ocorreram revoltas e motins entre os trabalhadores da Comissão Rondon. A rebeldia, segundo a historiadora Laura Antunes Maciel, “(...) também aparecia no dia-a-dia do trabalho, quando as praças, ao receberem ordens de marchar, iam ‘sambando em forma como se estivessem dançando o cateretê!’ (...)”. “Vivia vida ao ar livre, vida sã e ativa, naquelas paragens pelos bororos denominados Aquiríio – nome de um pequenino pássaro que vive e faz seus ninhos no capim macio das campinas. Voa para o alto, verticalmente, como uma seta, a subir cada vez mais, embriagado de luz e de altura, até desaparecer no azul... para depois se deixar cair, com um longo assovio aquirí-i-i-i-i-i-o... Em mim se desenvolviam, assim, naturalmente, os germes de todos os elementos do sertanejo.” (Depoimento do Marechal Rondon para Esther de Viveiros) Rondon possuía, desde criança, familiaridade com a natureza. Nas várias expedições de que participou, manteve contato com a diversidade da flora e fauna brasileira. Durante essas explorações, realizou estudos com sua equipe, classificando plantas e animais e estabelecendo a localização de acidentes geográficos até então não identificados nos mapas. Segundo Amilcar Botelho de Magalhães, Rondon descobriu 15 rios no então Estado do Mato Grosso. Na verdade, muitos acidentes geográficos já eram conhecidos e até nomeados pelos índios (v. Capítulo 2). Rondon relata a Esther de Viveiros: “Tive inspiração de crismar o Caiamo-doguê-itugo-botuie (rio de ponta de flecha de caiapó, em bororo) com o nome do Fundador da República, aproximando a majestosa grandeza de ambos. Declarei solenemente perante os companheiros de construção, entre os quais alguns índios: ‘quando a construção chegar a este rio, passará ele a chamar-se Benjamin Constant’.” Paisagem de Mimoso, 2009 | Elizabete Braga Porto Bicentenário de Cuiabá | Luiz Leduc | Acervo Museu do Índio/Funai Rondon percorreu ao todo 50 mil quilômetros nas instalações das linhas telegráficas e na demarcação de fronteiras, segundo seus cálculos. Trata-se de extensão maior do que a circunferência da Terra (40.075 quilômetros), na altura da Linha do Equador. As áreas de atuação de Rondon incluíram grande parte dos atuais Estados do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul – que têm por paisagem característica o Cerrado e o Pantanal – e os Estados do Amazonas, de Rondônia, do Amapá e de Roraima, na região Amazônica. Rondon e expedicionários em acampamento do Porto de Cuiabá | Benjamin Rondon | Acervo Museu do Índio/Funai CAATINGA A M A Z Ô N I A MATA P A N T A N A L ATLÂNTICA C E R R A D O PAMPA TRAJETÓRIA DE RONDON Comissão Construtora de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas - 1907 a 1915 Comissão de Linhas Telegráficas do Estado de Mato Grosso - 1900 a 1906 Comissão Telegráfica de Cuiabá ao Araguaia - 1890 a 1891 11 O Cerrado possui um clima quente o ano inteiro. A vegetação é variada, com campos abertos, campos com gramíneas (tipos de capim), arbustos, pequenas árvores retorcidas e florestas mais fechadas. A flora é representada por mais de 10 mil espécies. Os animais característicos da região são: jiboia, urubu-rei, ema, tucano, gavião, tamanduábandeira, lobo-guará, tatu, veado-campeiro e, ainda, muitas espécies de insetos, como borboletas, abelhas e vespas. Essa região teve sua paisagem original modificada com a contaminação dos rios, o desmatamento e a expansão da agricultura e pecuária. SAIBA QUE... Vidas em perigo. O veado-campeiro e a onça-pintada são algumas das 473 espécies da fauna brasileira ameaçadas de extinção, sendo que 269 são encontradas na Floresta Atlântica. Tartarugas protegidas. As tartarugas marinhas estavam na lista das espécies ameaçadas de extinção. O Projeto Tamar evitou que isso acontecesse. Atuando em grande parte do litoral brasileiro, conta com centros de recuperação dos animais doentes, principalmente pela ingestão de lixo, sacos plásticos, pedaços de embalagens, lonas, linhas de pesca, entre outros objetos. Uma garrafa plástica leva aproximadamente 400 anos para se decompor no mar! O Projeto também faz criadouros de ovos, permitindo assim que mais filhotes cheguem ao mar, aumentando a população das tartarugas. Esse projeto é executado pela organização governamental Centro TAMAR–ICMBio e pela Fundação Centro Brasileiro de Proteção e Pesquisa das Tartarugas Marinhas (Fundação Pró-TAMAR), instituição não governamental de utilidade pública federal. 12 No Pantanal, o verão úmido e quente contrasta com o inverno seco e frio. Fauna e flora, ricas em diversidade, reúnem principalmente espécies de outros biomas (regiões com vegetação e clima semelhantes). Característico da região é o alagamento periódico dos rios, quando dois terços da área ficam cobertos pelas águas. Apesar da interferência humana, principalmente por meio da caça, essa região ainda está relativamente preservada. A Amazônia é a região de maior biodiversidade do planeta. Seu clima é, de um modo geral, caracterizado pelo calor intenso e pelas chuvas abundantes. A Floresta Amazônica é composta por árvores de médio e grande porte (algumas com 50 metros de altura), cipós, bromélias, orquídeas, vitórias-régias. A fauna amazônica inclui o bicho-preguiça, o tatu, a onça pintada, o tamanduá, a arara e vários tipos de macacos (por exemplo, o sagui e o bugio), além de uma grande diversidade de peixes. NOS DIAS DE HOJE... Um novo conhecido já ameaçado. Uma subes- pécie de macaco, até então desconhecida pelo mundo científico, foi identificada em 2007, justamente no traçado da rodovia BR-319 que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM), um dos trajetos do Marechal Rondon. Batizado de Saguinus fuscicollis mura, já era familiar aos moradores da região, que ignoravam tratar-se de um tipo não classificado. Esse sagui é pequeno: pesa 350 gramas, possui 23 centímetros de altura e um rabo de 31 centímetros. Alimenta-se de insetos e frutas e tem capacidade de adaptação a ambientes diferentes. Essa subespécie já está ameaçada de extinção, devido a projetos de construção de estradas, usinas e gasoduto. Uma nova espécie de gralha foi identificada nos arredores e está também ameaçada de desaparecimento. Cerca de 45% das áreas originais de florestas tropicais do planeta já foram destruídas, a maior parte no último século. Até o fim de 2002, o desflorestamento atingiu aproximadamente 12% da cobertura vegetal de origem da Amazônia. A destruição do ecossistema pelo desmatamento, pela mineração (que contamina os rios), pelo avanço da agricultura e da pecuária causa o desaparecimento de espécies, compromete a qualidade de vida, as atividades de produção de alimentos, remédios e energia. Prevêse que, se o desmatamento continuar na mesma proporção de hoje, 42% da Floresta Amazônica estará destruída em 2020. A visão das selvas: “A princípio, ainda os olhos fixavam o revestimento deste tronco e de outro, e outro, e outro, mas depois, abandonavam-se ao conjunto, porque não havia memória nem pupila que pudesse recolher tão grande variedade. Só de frutos que não se comiam e apodreciam na terra, porque nunca ninguém se arriscara a saber se eles davam volúpia ou também intoxicação, havia mais espécies do que todas as que se cultivavam nos pomares europeus. Somente a coletividade imperava ali: o indivíduo vegetal despersonalizava-se e era amesquinhado pelos vizinhos, tantos, tantos, que apesar de Firmino ter já nomeado centenas, restavam muitos milhares ainda no anonimato.” 14 (Ferreira de Castro, A Selva, Obra Completa, vol.1 Rio de Janeiro: Ed José Aguilar, 1958. p. 142) NOS DIAS DE HOJE... Os limites da floresta. O limite da Floresta Amazônica é alvo de disputa entre representantes do agronegócio e ambientalistas. Dentro desse território, a legislação cobra dos proprietários de terras a manutenção de 80% da vegetação de floresta, bem acima dos 35% de reserva legal exigida para as áreas de cerrado nos limites da Amazônia Legal. Na verdade, poucos cumprem a regra. Técnicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estão elaborando novos mapas das regiões brasileiras numa escala 20 vezes mais precisa. A Amazônia tem sentido relevante para a vida no planeta: possui a maior rede de rios e cursos d’água do mundo, representando um quinto do volume de água doce do planeta e 80% da água disponível no território brasileiro. Vista aérea do Parque Indígena do Xingu | Elizabete Braga NOS DIAS DE HOJE... Vigiar o meio ambiente. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) utiliza um novo sistema de monitoramento por satélite para vigiar as áreas florestais: o Detex (Detecção de Exploração Seletiva). Esse instrumento permite uma observação mais detalhada de extensões menores e pode identificar se os madeireiros estão respeitando as orientações do governo para preservar a floresta. Vista aérea do Parque Indígena do Xingu | Elizabete Braga A água é o elemento mais comum na superfície da Terra e a maior parte dela é salgada, ou seja, imprópria para o consumo do ser humano. A poluição, o crescimento populacional e as alterações no clima são os principais responsáveis pela crise da água, tornando esse recurso, cada vez mais escasso, em foco de interesses internacionais e de conflitos. 16 O “ar-refrigerado” do mundo. Ao contrário do que se costuma dizer, a floresta não é o “pulmão do mundo”. O oxigênio que produz é consumido por ela. Podemos dizer que a floresta é o “ar-refrigerado” do planeta, pois é responsável pela absorção de carbono, diminuindo assim o efeito estufa (que aumenta o aquecimento da Terra). A quantidade de oxigênio produzida pela mata é, em sua maioria (90%), gasta dentro dela mesma (com as próprias plantas, os animais e outros seres vivos, todos eles aeróbios, ou seja, que necessitam do oxigênio para viver). Na verdade, nós respiramos o oxigênio produzido pelos oceanos. As algas marinhas unicelulares consomem pouco oxigênio em relação ao que produzem. Daí que 90% do oxigênio da atmosfera provém dessas algas. “O rio transformara-se em pedreira, o leito era vazio, em degraus sucessivos, até atingir 20 metros sobre o nível que trazíamos. Parecia impossível levar a cabo nossa empresa. Mas não esmorecíamos e íamos alando as canoas a cabo, guindando-as, às vezes, sobre escadas que aí se construíam. É que nos empolgava um grande ideal!” (Depoimento do Marechal Rondon para Esther de Viveiros) “O rio serve para andar de barco, de canoa, pescar, tomar banho, lavar as louças, roupas e beber. Nós usamos as águas dos rios para fazermos arroz, café, cozinharmos peixe, abóbora, tatu, feijão e para fazermos mingau. Também serve para viverem peixes como pirara, piranha, pintado, matrichã, piau, bicuda, jaú, peixe-cachorra, tucunaré, jaraqui (...)” (Maiwá Ikpeng, professor indígena do Parque Indígena do Xingu, em Geografia Indígena: Parque Indígena do Xingu, p. 29). 17 Os saberes dos povos indígenas Os povos indígenas desenvolveram um precioso saber: aproveitar os recursos do meio ambiente, tirando dele a sua sobrevivência, mas sem colocar em risco o ecossistema. Essa atitude favorece a preservação das florestas e, portanto, das diferentes formas de vida no Brasil, inclusive da espécie humana. As diferentes etnias possuem elaboradas formas de classificação, manuseio e uso da floresta. Para os indígenas, a saúde depende da harmonia de indivíduos, famílias e comunidades com o universo que os rodeia. As práticas de cura levam em conta a crença no mundo espiritual e os seres do ambiente em que vivem. Os pajés, os velhos e as mulheres têm papel importante na preservação da saúde. O pajé ou xamã faz a ligação entre os homens e os espíritos e estabelece uma relação privilegiada com a natureza e os animais selvagens. Em sua atuação na cura de doenças, o tipo de tratamento varia em função da origem da moléstia, que pode ser identificada como de ordem orgânica ou espiritual. A prática dos pajés se faz principalmente pelos rituais: as pajelanças. As ervas, raízes, cascas, sementes e outros elementos da natureza são também usados pelas mulheres rezadeiras e parteiras. Os índios guarani do Estado do Rio de Janeiro, segundo consta no livro Ara Reko – memória e temporalidade guarani, utilizam as seguintes ervas: Iuriraogui.................................................. erva para simpatia para o namorado Iuiraro........................................................ erva para cólica Capiá............................................................ semente Lágrima de Nossa Senhora Mamangacá.................................................... erva para chá Pipi.............................................................. erva para gripe, febre, dor-de-cabeça Tapy pytã.................................................... erva para não ter mais filho Yvaro............................................................ erva para dor-de-cabeça, febre, coceira Muitos animais são considerados sagrados para os indígenas e adquirem um sentido transcendente. Segundo relato do Marechal Rondon, os índios Bororo acreditavam que aquele que matasse a onça preta ou o veado-mateiro morreria em breve tempo e não de morte natural. Povos de diferentes épocas e regiões mantêm uma relação mística com os animais. Também Dersu Uzala, da etnia Gold, habitante das florestas entre a China e a Rússia, acreditava que aquele que atingisse um tigre deveria temer por sua sorte, pois 18 quem matasse esse animal logo morreria. Aldeia Yawalapiti, Parque Indígena do Xingu | Lila Sardinha Filme Dersu Uzala, 1975, de Akira Kurosawa | Divulgação POR DENTRO DA HISTÓRIA... Dersu Uzala. O filme Dersu Uzala, de Akira Kurosawa, conta a história da amizade entre Dersu e o capitão russo Vladimir Arseniev, baseando-se em um livro do próprio Arseniev. O capitão era, como o Marechal Rondon, engenheiro militar e etnógrafo. Conheceu Dersu no início do século XIX, quando fazia trabalho de mapeamento topográfico dessa região asiática. O filme apresenta belas imagens da Sibéria. 19 Ameaças à saúde Durante as incursões de Rondon pelas selvas e sertões, muitas doenças acometeram os grupos que o acompanhavam. O sarampo, por exemplo, causou a morte de muitos índios. A malária, a polinevrite, a febre palustre, males cujos vetores habitam as florestas, foram causadores de muitas baixas entre os soldados. Pesquisa de Laura Antunes Maciel nos revela que, segundo os médicos da Comissão Rondon, “(...) além dos fatores climáticos como a umidade constante na selva, dos inúmeros brejos e lagoas de água parada, verdadeiros laboratórios produtores de mosquitos, da ingestão de águas ‘malsãs’ de alguns córregos por onde passavam, era preciso considerar os efeitos da alimentação inadequada e às vezes em quantidades insuficientes e até impróprias para o consumo, devido às dificuldades de transportes (...)”, o que fazia com que os trabalhadores da Comissão ficassem muito sujeitos a doenças. Embora os grupos indígenas tenham concepções e conhecimentos próprios sobre o processo de saúde e doença, em alguns casos, o enfrentamento das moléstias adquiridas no contato com os não índios foi (e ainda é) penoso e de consequências desastrosas. Relato sobre a expansão da economia cafeeira no sertão paulista, no início do século XX, em área ocupada pelos Kaingang, revela que “uma população que fora estimada em setecentos indivíduos em 1912, não passava de duzentos, em 1916. Grande parte das crianças, mulheres e homens foi morta por epidemias de gripe. O efeito da contaminação foi tão devastador que o grupo de Congrue-Hui foi totalmente aniquilado. Com os colonos espanhóis que se estabeleceram no vale do Aguapeí, veio o sarampo que atingiu o Icatu.” (José Mauro Gagliardi. O indígena e a República). Esse é apenas o exemplo de uma situação que se repetiu em 500 anos de contato. Antonio Luís Lisbôa Dutra, o Mano Velho, vacinando o menino Maekãyi, durante epidemia de gripe, Pará,1982 | Eduardo Viveiros de Castro/ISA Expedição do SPI ao Xingu, 1944 | Heinz Forthmann | Acervo Museu do Índio/Funai Contatos de pacificação em Ribeirão dos Patos, São Paulo, 1912 | Acervo Museu do Índio/Funai 21 Noel Nutels observa índios fazendo radiografia | Acervo Museu do Índio/Funai Ainda hoje, segundo dados da própria Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), órgão governamental responsável pela saúde indígena, as condições de saúde dos índios no Brasil são precárias. As doenças mais frequentes são: infecções respiratórias e gastrointestinais agudas, malária, tuberculose, doenças sexualmente transmissíveis, desnutrição e doenças preveníveis por vacina. A tuberculose é uma das doenças que mais atinge as comunidades indígenas. As ações governamentais ainda não conseguiram dar conta, de forma definitiva, do desafio de assistir aos índios, respeitando seus valores e práticas relativas ao adoecer e atendendo às necessidades de cuidado que foram sendo geradas a partir do contato com os não índios. As mudanças no modo de vida, especialmente na alimentação, trazem problemas como hipertensão arterial, diabetes, câncer, alcoolismo, depressão e suicídio. Ao mesmo tempo, o conhecimento indígena da utilização de plantas tem sido aproveitado pelas empresas farmacêuticas multinacionais e por grupos estrangeiros que 22 pesquisam as espécies vegetais usadas pelos índios. HISTÓRIAS DE VIDA... Noel Nutels. No grupo que atuava em torno de Rondon, estava o médico sanitarista Noel Nutels (1913-1973). Ele tornou-se figura lendária por seu desprendimento e empenho na defesa da saúde das populações indígenas brasileiras, tratando e prevenindo doenças e epidemias causadas pelo contato com os não índios. Nascido na Ucrânia, Noel veio com a família para o Brasil aos oito anos de idade, fugindo da I Guerra Mundial. Foi médico da expedição Roncador-Xingu (1943-1951), na Amazônia, do SPI e do Serviço Nacional de Tuberculose. Durante três décadas, atuou em áreas indígenas, criando um órgão de atendimento médico que incluía também populações interioranas: o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA), que permitiu a esses habitantes da Amazônia o acesso aos serviços de saúde pública. Participou, com Darcy Ribeiro e com os irmãos Villas Bôas, da criação do Parque Indígena do Xingu. Fez 34 filmes registrando cenas impressionantes de miséria e desnutrição dos índios. Carlos Drummond de Andrade, em versos, assinalou em Noel Nutels “esse signo de amor compreensivo e ardente / que foi a tua vida sertaneja, / a tua vida iluminada, / e tua generosa decepção”. SAIBA QUE... Grande povo brasileiro! Saúde em cordel. Durante sua Combate quem te persegue atuação no Serviço de Unidades Ouve o que eu vou te dizer... Sanitárias Aéreas (SUSA), Noel (...) Nutels utilizou-se de um re- ele é comprido e roliço curso criativo para informar as nunca se mexe, é parado, populações dos sertões sobre o só por lentes muito fortes problema da tuberculose. O cor- pode ser observado delista João José foi o autor e, então, de microscópio dos versos que constavam de um o aparelho é chamado folheto de campanha preventiva (...) para “domar a fera”, intitulado: é este meu caro povo “A Fera invisível ou o triste fim o meu conselho amigo de uma trapezista que sofria do tire a sua chapa logo pulmão”. pra se livrar do perigo 23 A “língua de Mariano”: o telégrafo “Desci hoje Cucuí, tendo ali despachado minha turma naturalista destino alto Cassiquiári. Estou boca rio Xiê que subirei amanhã, levantando até seus formadores Tuapori e Canhocandela. Este rio é habitado somente parte baixa, muito aquém citados afluentes.” (Depoimento do Marechal Rondon para Esther de Viveiros) Nos idos de 1889, embora as linhas telegráficas já estivessem implantadas em algumas regiões no Brasil, não alcançavam ainda Mato Grosso, Goiás e Amazonas. Por esse motivo, em Cuiabá, a notícia da Proclamação da República chegou com um mês de atraso! As grandes distâncias eram um problema a ser enfrentado, e as expedições de Rondon, ao instalarem as linhas telegráficas, cumpriram o papel de facilitar as comunicações, preservar o território e auxiliar na delimitação de fronteiras nacionais. Estação Telegráfica de Utiariti, em Mato Grosso | José Louro | Acervo Museu Histórico do Exército Antiga sala de transmissão da estação telegráfica de Pimenta Bueno, em Rondônia | José Louro | Acervo Museu do Índio/Funai NA PONTA DA LÍNGUA... O telégrafo. Denominado por Rondon de “sonda do progresso” e por alguns grupos indígenas que conviveram com ele de “língua de Mariano” (referência ao prenome de Rondon), telégrafo é palavra de origem grega e significa escre24 ver a distância. SAIBA QUE... Pombo-correio. Os pombos já foram usados para enviar mensagens. O pombocorreio tem minúsculas partículas de ferro no bico superior que funcionam como agulhas de uma bússola, sempre indicando a direção norte. Os aparelhos telegráficos no modelo Morse foram os mais difundidos no Brasil. No Código Morse, “cada letra do alfabeto é representada por uma combinação de sinais gráficos – traços e pontos, impressos sobre uma fita de papel, alternando impulsos elétricos longos e breves” (A Nação por um fio, Laura A. Maciel, p. 61). A criação do telégrafo foi possível, dentre outros fatores, devido à descoberta do princípio do eletromagnetismo, segundo o qual toda corrente elétrica gera um efeito magnético como se fosse um ímã. Código Morse A .- N -. 1 .---- . .-.-.- B -... O --- 2 ..--- , --..-- C -.-. P .--. 3 ...-- ? ..--.. D -.. Q --.- 4 ....- ( -.--. E . R .-. 5 ..... ) -.--.- F ..-. S ... 6 -.... - -....- G --. T - 7 --... “ .-..-. H .... U ..- 8 ---.. _ ..--.- I .. V ...- 9 ----. ‘ .----. J .--- W .-- 0 ----- : ---... K -.- X -..- / -..-. ; -.-.-. L .-.. Y -.-- + .-.-. $ ...-..- M -- Z --.. = -...- Uma das mensagens mais usadas era: ... — ..., que significava SOS, ou código internacional de pedido de socorro. O primeiro SOS em Morse emitido por um navio foi em 1909, pelo Arapaohe. Exatos 90 anos depois, o uso da telegrafia Morse foi oficialmente abandonado pelos serviços de comunicações marítimas. Os telegramas podiam ser claros, cifrados ou urgentes. A historiadora Laura Antunes Maciel nos conta que, com a senha “Segue vendaval!”, os telegrafistas da Central do Brasil teriam comunicado a partida no trem do então engenheiro diretor Francisco Pereira Passos. Ele teria respondido na mesma linguagem: “Desce tempestade!”, punindo, em seguida, os responsáveis por irregularidades encontradas na linha. “Era um dos nossos voltando à origem e trazias na mão o fio que fala e o foste estendendo até o maior segredo da mata.” (Carlos Drummond de Andrade, Pranto Geral dos Índios, poema em homenagem ao Marechal Rondon) Os caminhos de Cândido Mariano da Silva Rondon se confundiam com os caminhos do Brasil. Ao implantar telégrafos, estabelecer comunicações, identificar e batizar rios, suas expedições criavam teias e ligações que consolidavam a nação brasileira. Ao mesmo tempo, seus contatos com a natureza e com as populações que encontrava propiciavam conhecimentos e abriam possibilidades de preservação, mas também de destruição. Eram os dilemas da vida e da sociedade nacional que chegavam junto com 26 seus passos, guiados por sua visão pacifista e defensora do progresso. Marco de identificação e tomada de posse da fronteira do Brasil com a Guiana Holandesa | Benjamin Rondon | Acervo Museu Histórico do Exército Rondon e índio Pianokotó, em cena do filme Parima - Luiz Thomaz Reis | Luiz Thomaz Reis | Acervo Museu do Índio/Funai Rondon apresenta um relógio aos índios Kahyana, em cena do filme Parima - Luiz Thomaz Reis | Acervo Museu do Índio/Funai 2 ÍNDIOS NO BRASIL Rondon costumava lembrar que era descendente de portugueses, de espanhóis e de índios. Destes últimos, descendia tanto pelo lado paterno quanto pelo materno. Sua avó paterna, Maria Rosa, tinha os Guaná como antepassados recentes. As duas bisavós maternas também possuíam essa ascendência próxima: Maria de Freitas (Terena) e Joaquina Gomes (Bororo). Três grupos indígenas com os quais, inclusive, nosso personagem se relacionou em suas andanças. Ter tais antepassados seria um caso excepcional, próprio de figuras com a atuação do Marechal Rondon e apenas na região Centro-Oeste? Ou, ao contrário, é algo comum no Brasil? Estima-se hoje em dia que cerca de 45 milhões de brasileiros (24% da população total calculada pelo IBGE) são descendentes de índios. Ou seja, quase um entre quatro habitantes. Entre os que se consideram brancos, 33% (logo, um em cada três) têm essa ascendência. Os dados resultam de análise genética (DNA) por amostragem, realizada por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com o sangue colhido de pessoas das regiões Norte, Nordeste, Sul e Sudeste. SAIBA QUE... As bisavós indígenas. É comum escutarmos histórias de família de alguma bisavó ou antepassada índia “aperreada”. Do espanhol, perro (cão), a palavra significa, ao pé de letra, ser perseguida por cães, ou “pega no laço”. Nem sempre as uniões eram o que poderíamos chamar de “amorosas”. Mas, ao lado das violências, havia (e ainda há) famílias que se formavam entre índios e não índios. 28 MARECHAL RONDON avó paterna (guaná, espanhol, português) avó materna (português, bororo, terena) bisavó paterna (guaná, espanhol, português) bisavó materna (bororo, terena) origem portuguesa origem espanhola origem indígena Menina da etnia Yawalapíti | Kike Palma Menino da etnia Yawalapíti | Kike Palma Índio da etnia Rikbaktsa (MT), também conhecidos como canoeiros | Valter Campanato/ABr Crianças indígenas da etnia Caiapó | Valter Campanato/ ABr A população que se declara negra também possui antepassados indígenas. É o que mostra outra pesquisa genética encomendada pelo grupo de comunicação BBC-Brasil, segundo a qual 12% dos que tiveram seu DNA analisado têm ancestrais indígenas. É certo que alguns milhões de habitantes já se encontravam no território hoje brasileiro quando os primeiros europeus aqui desembarcaram há cinco séculos. Algo entre dois e quatro milhões de indivíduos, embora seja difícil afirmar tal número com exatidão. Ainda no começo do século passado, quando Rondon começou a atuar, existiam um milhão de indígenas, segundo levantamento feito por Darcy Ribeiro. Hoje existem cerca de 460 mil índios, de 225 povos (etnias) diferentes, que habitam 611 terras indígenas, segundo a FUNAI. Os índios estão concentrados, em sua maioria (70% do total), numa parcela da Amazônia Legal que incluiu seis Estados: Amazonas, Acre, Roraima, Rondônia, Mato Grosso e Pará. Somados a esses, calcula-se que haja cerca de 150 mil indígenas vivendo em grandes cidades, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA). No total, a população indígena no Brasil era de 700 mil indivíduos, pelo Censo do IBGE de 2000, o que corresponde aproximadamente a 0,4% dos habitantes do País. Portanto, levando-se em conta as populações existentes aqui até o ano de 1500 e os povos indígenas atuais, verifica-se que houve um extermínio brutal e de proporções 30 enormes, não apenas no período colonial, mas durante o Brasil independente: na Mo- narquia, na República e, ainda, atualmente. Ao mesmo tempo, apesar de terem diminuído em população, os índios não desapareceram. Era comum, desde o século XIX, afirmar que quase não havia mais indígenas no Brasil, que estavam já “civilizados” ou extintos. No entanto, recentemente, tal população tem aumentado. Nos últimos 28 anos, dados oficiais do IBGE, da FUNAI e de organizações não governamentais como o ISA apontam um crescimento anual de 3,5% da população indígena no Brasil. Desmentese, assim, a antiga ideia de que os índios estavam destinados a uma inevitável extinção diante do progresso dos novos tempos. Além disso, é importante destacar que a presença cultural e histórica dos povos indígenas aparece não apenas na população estritamente reconhecida como tal, nem necessariamente nos seus descendentes genéticos, mas também em expressivas parcelas da população brasileira situadas em diferentes ecossistemas, como os moradores de áreas rurais, das beiras dos rios, de áreas próximas ao litoral, das florestas e das cidades, além de caboclos, caipiras, caiçaras, camponeses, entre outros, que herdaram e recriam todo um patrimônio coletivo de memória, saberes e técnicas. 31 NA PONTA DA LÍNGUA... Descobrimento? É frequente nas escolas, em livros de história, em músicas ou na televisão, o uso da palavra descobrimento para nomear a chegada, no século XVI, dos europeus no território hoje brasileiro. “Cabral descobriu o Brasil” é lugarcomum que nos habituamos a escutar desde a infância. No entanto, a palavra traz uma conotação de dominação. Trata-se de um ponto de vista europeu e colonizador. Se alguém, por exemplo, chegar pela primeira vez numa residência habitada por várias pessoas, seria correto falar em “descobrimento” dessa casa? O que para uns pode ser novidade, para outros já é bem conhecido. Será correto falar em Descoberta do Brasil em 1500 ou em outra data semelhante? Não existia, naquela época, um Brasil, isto é, uma nação organizada em Estado Nacional. Havia, sim, sociedades variadas e complexas, com diferentes culturas, saberes, guerras e alianças. E usar, nesses casos, o verbo descobrir significa desvalorizar a vida e o conhecimento dos habitantes que aqui existiam, como se fossem objetos a serem encontrados ou como se as terras em que viviam estivessem vazias de moradores. Os povos chamados indígenas estavam, por sua vez, descobrindo os europeus – encontro que teria trágicas consequências em suas vidas e nas de seus descendentes. “Vi a chegada dos peró [portugueses] em Pernambuco e Potiú; e começaram eles como vós, franceses, fazeis agora. De início, os peró não faziam senão traficar sem pretenderem fixar residência. (...). Depois da chegada dos paí [padres], plantastes cruzes como os peró. Começais agora a instruir e batizar tal qual eles fizeram; dizeis que não podeis tomar nossas filhas senão por esposas e após terem sido batizadas. O mesmo diziam os peró. Como estes, vós não queríeis escravos, a princípio; agora os pedis e quereis como eles no fim”. (Depoimento do chefe Momboré-uaçu, da aldeia de Essauap (MA), publicado por Claude D’Abbeville, História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão, em 1614) Percebe-se, portanto, a presença indígena em culturas diversas, inclusive no Brasil atual: nas falas e no que comemos (vocabulário e culinária), nas maneiras de reagir, de conceber e de lidar com o meio ambiente e o mundo ao seu redor. Os índios não são um 32 “outro” distante, exótico, primitivo ou atrasado, mas integrantes de nós mesmos, ainda que nem sempre tenhamos consciência disso. São parte de nossas próprias vidas, história e cultura. Junto com diversas heranças e referências – portuguesas, inglesas, francesas, africanas, japonesas, árabes, entre outras, com graus e pesos diferentes –, a presença indígena é um dos componentes da dinâmica, múltipla e recriada nacionalidade brasileira. Está claro que não existe um índio em estado puro e sem mudanças. O mesmo vale para qualquer povo ou identidade: os portugueses de 500 anos atrás não se vestiam nem falavam como os atuais. E se um brasileiro aprende a falar inglês, navega pela Internet, usa calça jeans (inventada nos EUA), paletó e gravata (surgidos na Europa), ou algum perfume ou sabonete de nome francês, ele deixa de ser brasileiro por isso? As culturas (inclusive as indígenas) são dinâmicas, incorporam e influenciam, embora nem sempre em pé de igualdade. Meninas da etnia Tapirapé, participando da nona edição dos Jogos dos Povos Indígenas | Valter Campanato/ABr 33 Aliás, no fundo, quando se fala do índio, pode-se estar cometendo equívocos. Não existe um “índio geral”: as culturas chamadas indígenas são muito diferentes entre si. Entre um Guarani Mbyá e um Kayapó, a distância linguística e cultural é tão grande quanto a que existe entre um russo e um brasileiro, por exemplo. O que não impede, é claro, que haja trocas entre grupos distintos. Mas a ideia de um índio padronizado é uma herança deixada pela visão dos colonizadores, que pretendiam assim descaracterizar as identidades daquelas populações. O sol, que cobre a todos os povos, é nomeado de maneiras diferentes. ETNIA NOME DO SOL Kayapó myt Xavante bââdâ Galibí weiu Wayâna xixi Warekena kamoi Apurinã atukatxi Tupi kuaracy Krenak tepó Palavras dos índios: línguas diferentes Muita gente não se dá conta de que, no Brasil de hoje, são faladas cerca de 180 línguas, além do português, o idioma oficial. Trata-se, portanto, de uma nação multilíngue e oficialmente reconhecida pela Constituição de 1988 como multiétnica. Mesmo diante dessa diversidade, apenas 11 línguas têm mais de 5 mil falantes, com destaque para o Guarani (30 mil pessoas), Ticuna (23 mil), Kaingang (20 mil), Guajajara (10 mil) e Yanomami (9,9 mil), enquanto cerca de 110 línguas possuem até 400 falantes cada. Quando da chegada dos Europeus, esse quadro era muito mais complexo. Havia em torno de mil idiomas no território hoje brasileiro, sendo 700 só na Amazônia. Diante disso, os colonizadores se viram forçados a aprender as línguas que encontraram para 34 se adaptarem. Frutas tropicais | Debret | Acervo Biblioteca Brasiliana USP POR DENTRO DA HISTÓRIA... A descoberta de uma fruta. Imagine um europeu, que pela primeira vez, chega em terras brasílicas, lá pelos idos de 1500. Uma fruta particularmente o encanta, embora desconhecida por ele. O recém-chegado tenta descrevê-la segundo sua própria experiência, mas é difícil. O fruto lhe parece uma dessas flores que brotam de palmas verdes longas e espinhosas, verticais a partir do solo, só que de caule mais curvado. Tem o tamanho de um melão médio, mas por fora lembra uma pinha, tão comum nos pinheiros europeus. Porém, a casca vem disposta em camadas, à maneira da alcachofra, prato típico nas mesas da França. Quando madura, a fruta tem uma cor amarelo-azulada e exala atraente odor de framboesa (que povoa os bosques da Europa), sentido de longe quando se anda pela floresta tropical. Na boca, ela desmancha, numa doçura que lhe parece superior aos sabores das mais refinadas confeitarias. Espremendo-se a polpa, brota um suco generoso, do qual os tupinambá se aproveitam e com o qual criam outras bebidas. Tal cena se passou com Jean de Léry, um dos primeiros franceses a conhecer e a escrever sobre as terras brasileiras. Ele anotou em seu livro, publicado em 1578, que os tupinambá chamavam tal fruto de ananás ou abacaxi. Na verdade, cada língua é um verdadeiro baú de saberes. As palavras de um idioma expressam técnicas, conhecimentos e sensibilidades elaborados ao longo de gerações. Elas dão nomes a alimentos, animais, plantas, astros, acidentes geográficos e localidades, além de exprimirem modos de denominar e organizar as famílias. Significam e guardam informações de Topografia, Medicina, Astronomia, Zoologia, Botânica, além de relações afetivas e sociais, e retratam visões do mundo e do cosmos. 35 “(...) A escola dos ‘juruá’ (dos brancos) não ensina pros seus alunos quem somos nós e nem mostra a importância dos índios para o Brasil. Aí, o aluno que sai dessa escola trata o índio com desprezo, com preconceito e aí acaba ensinando a gente a ter vergonha de ser índio, estragando todo o trabalho da escola guarani (...)” (Professor guarani Algemiro Poty em Bessa Freire, A representação da escola em um mito indígena) Indígenas na Constituinte de 1988 | Acervo Câmara dos Deputados Escola Guarani na área indigena de Ocoy, São Miguel do Iguaçu (PR) | Paulo Porto A Constituição de 1988 (cuja Assembleia Constituinte foi acompanhada de intensa participação e pressão dos movimentos indígenas) passa a reconhecer o direito dos índios à diferença, estabelecendo a inclusão da língua materna e de processos próprios de aprendizagem no espaço educacional e contribuindo para o estabelecimento de uma nova visão de escola: a escola indígena diferenciada, intercultural e bilíngue. O Ministério da Educação (MEC) é o órgão governamental responsável pelos programas e ações destinados à educação escolar indígena. A escola indígena, localizada em terras habitadas por comunidades indígenas, oferece atendimento exclusivo à população indígena, ensina em língua materna e em português ou em outra língua da comunidade e tem organização curricular própria. Deve ter professores indígenas, preferencialmente da mesma etnia dos alunos. Há, no Brasil, 2.480 escolas indígenas, localizadas em todos os Estados da Federação, com exceção do Piauí e do Rio Grande do Norte (embora nem todas as escolas sejam bilíngues ou possuam material didático específico), atendendo a 176.714 estudantes indígenas, segundo dados do MEC de 36 2007. Palavras dos índios, nossas palavras Nos idos de 1500, o idioma mais acessível geograficamente era o tupi, com suas ramificações, cujos falantes encontravam-se em aldeias ao longo de quase todo nosso litoral. Daí que, ainda hoje, há grande presença de palavras tupis no português brasileiro. Até mesmo a língua francesa (por meio das fracassadas tentativas de colonização da França no Brasil entre os séculos XVI e XVIII) incorporou palavras tupi, como jaguar e ananás, ou de etnias do alto Amazonas, como cautchouc (borracha). Veja, como exemplo, a lista de palavras a seguir: Aipim abacaxi traíra tapera babaçu capim ananás cajá Curitiba cuia coroca imbuzeiro ipê cupuaçu maracujá sabiá Oiapoque pitanga urucum samambaia Maracanã Guanabara pipoca caju sapucaia arara Carioca Ceará canoa cumbuca cuia maraca carantonha beiju urucum puçá piaçaba Paraíba Sergipe tatu sagui tucano samburá acará jacaré murici pequi perereca cutia Paraty taquara piaçaba Tocantins curumim pirão cutucar mingau. PLANTAS FRUTAS ANIMAIS TOPONÍMIA INSTRUMENTOS DIVERSOS aipim abacaxi arara Carioca canoa beiju babaçu açaí acará Ceará cumbuca carantonha capim ananás cocoroca Curitiba cuia coroca imbuzeiro cajá cutia Guanabara cuíca curuca ipê caju jacaré Grajaú maraca curumim mandioca cupuaçu perereca Maracanã piaçaba cutucar samambaia maracujá sabiá Oiapoque puçá mingau sapucaia murici sagui Paraíba samburá peteca taioba pequi tamanduá Paraty sapê pipoca taquara pitanga tatu Sergipe tacape pirão urupê urucum tucano Tocantins tapera traíra Mulheres Kamaiurá trabalhando a mandioca, Xingu, 1944 | Heinz Forthmann | Acervo Museu do Índio/Funai 37 Pelo menos algumas delas certamente são conhecidas por nós. Outras fazem parte de nosso dia-a-dia. Quantas delas nos são familiares? Veja suas classificações na tabela. Esta é, aliás, uma oportunidade para fazermos uma pesquisa a partir de nossos próprios conhecimentos e verificarmos, na prática, as heranças indígenas em nossas vidas. Não apenas quando falamos, mas também quando ingerimos, a marca indígena se faz presente. Uma boa farofa vem da mandioca. O modo de preparar e usar a sua farinha e sua raiz, tão comum entre os indígenas, é uma forte característica que herdamos deles. Da mesma forma, o hábito de tomar mate ou guaraná, consumidos pelos povos anteriores à chegada de Pedro Álvares Cabral, é uma marca indígena ainda bastante presente. Algumas dessas iguarias, inicialmente aproveitadas em escala regional, como o açaí, acabaram incorporando-se ao consumo nacional e até sendo industrializadas. O milho, que gera tantas receitas e aproveitamentos, é outra herança indígena bastante utilizada. Os falares característicos de algumas localidades, como o interior do Estado de São Paulo ou a cidade de Manaus (AM), têm sotaques modulados pelas maneiras de falar dos índios que habitavam a região e estiveram presentes, ainda nos séculos XVIII e XIX, como o mais expressivo contingente linguístico. Em São Paulo, somente no século XVIII o português passou a ser falado pela maioria da população. No Amazonas e no Pará, foi a partir de meados do século seguinte. Deitar numa rede, hábito ainda hoje indispensável para milhões de brasileiros, é fazer com que nossos corpos se embalem no mesmo ritmo das populações indígenas. Índias Paresi | Luiz Thomaz Reis | Acervo Museu do Índio/Funai 38 Escola Parintintin, Área Indígena Nove de Janeiro (AM),1993 | Paulo Porto SAIBA QUE... Línguas indígenas adotadas oficialmente no Brasil. Você sabia que um município brasileiro adotou oficialmente o uso de três línguas (Nheengatu, Tukano e Baniwa), ao lado do português? Trata-se de São Gabriel da Cachoeira (AM), distante 1.601 quilômetros de Manaus pelo curso do rio Negro e cuja administração municipal está nas mãos de índios. Sendo 85% de seus habitantes indígenas, falantes de 22 línguas de quatro troncos linguísticos (Tupi-Guarani, Tukano Oriental, Maku e Aruak), o município revelou uma experiência pioneira para o futuro das populações indígenas. A lei municipal 145/2002, de iniciativa do vereador Canico Baniwa, autoriza que os atos municipais possam ser expressos em qualquer dos idiomas co-oficiais e garante o direito ao ensino nas demais línguas não oficiais. Longa trajetória de contatos Ao registrar a existência de milhares de índios, pessoalmente ou por intermédio de suas equipes, Rondon foi um dos brasileiros que mais conheceu tais populações e promoveu o encontro delas com a sociedade nacional. Segundo seus cálculos, Rondon trouxe para esse convívio permanente, por meio dos métodos de pacificação, algo em torno de 30 mil índios “que viviam livres do contato dos civilizados, tantas vezes prejudicial à sua paz e independência”, como ele próprio reconheceu. No raiar do século XX, havia três grandes linhas propondo definir a relação entre a nação brasileira e os índios: • Uma representava a tradicional catequese praticada por missionários cristãos e que buscava, por meio da pregação religiosa e da coerção escolar ou dos aldeamentos, controlar e despojar os índios de suas culturas. • Outra, baseada numa curiosa mistura de racismo de argumentos científicos com os interesses dos colonos situados nas frentes de expansão, julgava que os índios eram incapazes e incompatíveis com a civilização moderna e o progresso, e que, portanto, deveriam ser descartados ou exterminados. O diretor do Museu Paulista, Von Ihering, defendeu abertamente essa posição. “(...) parece que não há outro meio, de que se possa lançar mão, senão seu extermínio”. (Von Ihering, sobre os índios do Brasil em 1910, Revista do Museu Paulista, VII, p. 215) • E a terceira proposta, apoiada pela sensibilidade urbana que em parte idealizava os índios de forma romântica, mas fundamentada no ideário positivista de que o amor (fraternidade) deveria preceder a ordem e o progresso, defendia o que se considerava como meios brandos de se incorporar os índios à nação, abandonando gradualmente suas culturas. Foi esta última a postura predominante, graças a Rondon e à expressiva mobilização de setores da sociedade, no âmbito do Estado Nacional, o que não eliminou as demais posturas, que continuaram (e ainda continuam) marcando a sociedade brasileira. Dessa forma surgiu o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 1910. Logo transformado apenas em Serviço de Proteção aos Índios (SPI), foi comandado por Cândido Rondon, que marcou a política indigenista brasileira, nem sempre seguida pelos diferentes governos, ao longo do século XX. 40 Reunião na sala do Conselho Nacional de Proteção aos Índios, 1946 | Heinz Forthmann | Acervo Museu do Índio/Funai Cacique Vegnon, Kaingang do Paraná, Intérprete na pacificação dos Kaingang de São Paulo | Acervo Museu do Índio/Funai Área Indígena no Sul do Brasil, 1944 | Acervo Museu do Índio/Funai Tendo Rondon deixado na mata presentes para os índios, em recompensa, estes os substituíram por presentes indígenas | Benjamin Rondon | Acervo Museu do Índio/Funai Rondon toma nota enquanto os índios ouvem música | Emanuel Silvestre do Amarante | Acervo Museu do Índio/Funai 42 Como era, afinal, a atitude que Rondon praticava e que ficou conhecida como pacificação? É interessante compreender passo a passo como ocorria tal procedimento. Ele era implantado onde aparecia um conflito aberto entre índios e a sociedade regional. De início, eram recrutados para compor a equipe trabalhadores locais ou mesmo índios falantes da mesma língua que a tribo em foco e já habituados ao convívio com os não índios. Em seguida, erguia-se o Posto de Atração numa área além da última moradia regional existente e mais próxima da aldeia, mas sem se acercar demais. Plantava-se uma roça para servir à equipe, permitindo também aos índios que colhessem. Eram depositados brindes em pontos estratégicos, à espera de que fossem recolhidos pelos indígenas. Os ataques dos índios eram frequentes, mas nunca respondidos à bala. Era um processo que durava meses, e até anos, batizado de “namoro”: longas esperas, altos e baixos, momentos delicados e tensos, até que se dava o encontro e o convívio. Um dos casos mais dramáticos ocorreu nas tentativas de atração dos Xavante, em 1941. Marcados por constantes atos de violência e traição por parte dos não índios, os Xavante apresentavam disposição hostil e guerreira. Em meio ao processo de pacificação, ocorreu um ataque dos índios ao Posto de Atração no qual toda a equipe do SPI foi exterminada. Temendo que houvesse reação violenta de seus comandados, o inspetor Genésio Pimentel Barbosa trancara as armas num armário. Seu corpo foi encontrado com a pistola guardada no coldre, levando ao extremo o lema de Rondon, de que era preferível morrer a matar índios. Esse era o inverso da afirmação do General George Custer, que, na expansão nacional norte-americana rumo ao Oeste, garantia que índio bom era índio morto. Rondon, por sua vez, nunca matou um índio, porém contaria mais de 650 mortes entre os integrantes de suas expedições ao longo das décadas e dos milhares de quilômetros percorridos, causadas por motivos variados: doenças, acidentes e ataques de índios. A missão de contatar os Xavante prosseguiu com outro inspetor do SPI, o então jovem Francisco Meirelles, que cinco anos depois conseguiria estabelecer o contato permanente, com o apoio do cacique Apowen, que se tornou seu amigo e interlocutor. O momento do contato foi registrado em fotos e filme documentário. Meirelles daria a seu filho, que nasceu no Posto de Atração, o prenome do cacique. Apoena seguiu a mesma trilha do pai, tornando-se sertanista e, por um breve período, presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Após ter feito a pacificação de tribos consideradas perigosas, como os Kren Akarore e Wamiri Atroari, Apoena Meirelles faleceu vítima de um assalto a banco em Rondônia, em 2004. Pacificação de índios Xavante, 1946 | Francisco Meireles | Acervo Museu do Índio/Funai 44 Índios Xavante no primeiro contato com a equipe do sertanista Francisco Meirelles, 1946 | Heinz Forthmann | Acervo Museu do Índio/Funai RETRATOS DA VIDA... Francisco Meirelles. Diretamente ligado a Rondon após 1946, o sertanista Francisco Meirelles (1908-1973) tinha um perfil marcante: militante do Partido Comunista nos anos 1930, manteve ideário socialista e humanista. Suas atividades de sertanista e seu desprendimento pessoal prejudicaram-lhe a saúde e a situação financeira. Inspetor do SPI desde 1942, comandou frentes de atração que ficaram famosas (ou manteve contato com elas) com os Kayapó, Pakáas Novos, Makurap, Jupari, Manaka e, no fim da vida, ao lado de seu filho Apoena Meirelles, com os Cinta Larga e Kren Akarore. Sua realização marcante foi estabelecer contato pacífico com os Xavante, em 1946. Surgiu, a partir daí, a amizade entre o cacique Apowen e Chico Meirelles (como era chamado pelos amigos). Recebeu dos Xavante o título de “imunã”, que lhe dava direito a participar de todos os rituais dessa tribo. O cacique Apowen e outros chefes Xavante compareceram a seu enterro no Rio de Janeiro. Como homenagem póstuma, foi batizada a Escola Indígena Francisco Meirelles, em Dourados (MS), que atende a índios Bororo e Jaguapiru. 45 General Rondon conversando com índia Bororo, 1948 | Heinz Forthmann | Acervo Museu do Índio/Funai Aldeia dos Urumi, do alto rio Ji-Paraná (RO) | Tiúba | Acervo Museu do Índio/Funai Ainda hoje, porém, a aproximação entre índios e a sociedade nacional não está concluída. Permanecem no Brasil pequenos grupos isolados que recusam ou evitam o contato. Há 46 referências a casos desse tipo. A Coordenação Geral de Índios Isolados (CGII), da FUNAI, já confirmou a existência de 20 grupos. É pouco provável que sejam índios que nunca tenham visto um homem “branco”. Ao contrário, supõe-se que sabem do que ou de quem estão fugindo. As informações sobre tais situações são precárias. Alguns grupos estão razoavelmente identificados e vivem em terras indígenas demarcadas para eles, como os Hi-Merimã, no Amazonas. Há os que vivem em terras indígenas associadas a outros grupos, como os Kampa, no Acre. Em Rondônia (Estado assim batizado em homenagem ao Marechal Rondon), existem grupos identificados apenas pelo nome dos rios ou de localidades, sem que saibamos sua etnia, como na região do rio Karipuninha. Vemos, assim, que o resultado dessa longa história dos contatos entre índios e não índios gerou (e ainda gera) encontros e desencontros, misturas e separações, amizades e ódios, vidas e mortes. Nossos olhares sobre os povos indígenas recebem antigas influências, como um verdadeiro caleidoscópio. Para uns, o índio representa o homem em estado natural, um bom selvagem ainda não corrompido pela civilização. Para outros, ao contrário, é modelo de preguiça e atraso, primitivo, inferior, incapaz. Triste e naturalmente melancólico para alguns, que nem sempre questionam os motivos de eventual tristeza. Brutal, bárbaro, violento e desonesto, de acordo com determinados estereótipos. Nobre, guerreiro e corajoso. Naturalmente místico. Ou, quem sabe, sinônimo de licenciosidade, liberação de comportamentos e sexualidade exacerbada, por andar nu? Quanto melhor se conhece, menos se idealiza. As visões pré-concebidas se multiplicam, mas vão também sendo substituídas por percepções mais humanizadas, à medida que somos capazes de re-conhecer a presença histórica das populações indígenas. Rondon, que conviveu de perto com os índios, empolgado com sua missão patriótica de levar o progresso a todos os recantos do Brasil, não vacilou em afirmar: “O índio é a maior preciosidade que encontramos na Marcha para o Oeste”. “Canoa, canoa desce \ No meio do rio Araguaia desce \ No meio da noite alta da floresta \ Levando a solidão e a coragem \ Dos homens que são \ Ava avacanoê \ Ava avacanoê \ Avacanoeiro prefere as águas \ Avacanoeiro prefere o rio \ Avacanoeiro prefere os peixes \ Avacanoeiro prefere remar \ Ava prefere pescar.” (Canoa, canoa, música de Nélson Ângelo e Fernando Brant) POR DENTRO DA HISTÓRIA... Avá-Canoeiro. Uma das experiências mais dramáticas de índios que preferem o isolamento é a dos chamados Avá-Canoeiro. Pelo menos desde o século XVIII, há notícias de contato com eles, que padeceram sucessivas invasões, violências e expulsões de suas terras. Falantes de uma língua Tupi, sofreram, em 1966, um massacre por parte de grileiros e fazendeiros que ambicionavam suas terras, no qual morreram 15 índios surpreendidos na aldeia. Desde o período colonial, esse tipo de ataque se chamava “matar uma aldeia”. Na década de 1980, alguns Avá-Canoeiro passaram a ter contato permanente, estabelecido pela FUNAI. Mas há notícia de quatro índios que estão em movimento permanente e já foram vistos ao norte de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Há também grupos arredios em torno dos rios Preto e Maranhão, em Tocantins, e outros no interior da ilha do Bananal. 47 3 PALAVRAS E IMAGENS Rondon, ao centro da foto, com Roquette-Pinto e Heloísa Alberto Torres à sua direita | Acervo Museu Nacional “A construção da linha telegráfica foi o pretexto. A exploração científica foi tudo.” (Edgard Roquette-Pinto, citado em Nísia Trindade Lima e Dominichi Miranda de Sá. Os cientistas da Comissão Rondon) As expedições lideradas por Rondon foram também uma oportunidade para realizar explorações científicas nas áreas de Botânica, Zoologia, Geologia, Cartografia, Antropologia e Etnografia. Os cientistas, vários deles do Museu Nacional, coletaram e classificaram o material encontrado, elaboraram relatórios científicos e textos de divulgação e participaram de conferências, apresentando inclusive espécies de animais e de plantas até então desconhecidas. A partir das explorações, foram publicados 70 volumes de trabalhos técnicos e científicos. Rondon e sua equipe mapearam 247 grupos indígenas, coletaram diversos vocabulários e elaboraram uma classificação linguística dos grupos indígenas. No período de 1907 a 1915, foram entregues pelas equipes de Rondon, ao Museu Nacional, 48 23.107 exemplares de Botânica, Zoologia, Mineralogia, Geologia e Antropologia. Rondon, de pé, realiza observações técnicas | Alberto Brand | Acervo Museu do Índio/Funai NA PONTA DA LÍNGUA... Etnografia. Do grego etno (toda classe de seres de origem ou condição comum) e grafia (escrita), é uma área da Antropologia que realiza, por meio de pesquisa de campo, o estudo descritivo e analítico dos costumes de uma determinada população. Inicialmente destinada aos grupos considerados “primitivos”, atualmente é aplicada também aos grupos próximos àquele a que pertence o pesquisador. 49 Major Julio Caetano Horta Barbosa | Acervo Museu do Índio/Funai Professor Frederico Carlos Hohenne. Explorações científicas de Botânica | Acervo Museu do Índio/Funai Professor Alipio de Miranda Ribeiro. Explorações geográficas e científicas de Zoologia | Acervo Museu do Índio/Funai Cientistas da Comissão Rondon. Participaram dos trabalhos de campo, recolhendo materiais para o Museu Nacional, os seguintes especialistas: Karl Carnier, Roquette-Pinto e Moritz (Etnografia e Geologia); Frederico Carlos Hoehne (Botânica); Cícero de Campos (Geologia e Mineralogia); Miranda Ribeiro, Hoehne, Arnaldo Black, H. Reinish, Pyrineus, tenentes Rondon, Stolle e Júlio C. Horta Barbosa, J. G. Kuhlmann, Vasconcellos e Serapião dos Santos (Zoologia). O Museu Nacional, criado por D. João VI, no Rio de Janeiro, é o maior museu de história natural e antropológica da América Latina e a mais antiga instituição científica do Brasil. Recebeu várias denominações: Museu Real (1818); Museu Imperial e Nacional (1824); Museu Nacional (1890). Atualmente integra a estrutura acadêmica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vinculada ao Ministério da Educação. Seus laboratórios de pesquisa e cursos de pós-graduação tornaram-se centros de referência. As peças (cerca de 3 mil atualmente) das exposições abertas ao público são parte dos 20 milhões de itens das coleções científicas conservadas e estudadas pelos Departamentos de Antropologia, Botânica, Entomologia, Invertebrados, Vertebrados, Geologia e Paleontologia. Como são classificados cientificamente os seres vivos? O processo de classificação de um organismo inclui nomeá-lo de modo que possa ser reconhecido pela comunidade científica de qualquer parte do mundo. Para isso, foram criadas algumas regras, como, por exemplo, a de que o nome científico deve ser escrito em latim, estar composto por duas palavras e ser apresentado em itálico, negrito ou sublinhado. A primeira palavra se refere ao gênero e tem sempre a inicial maiúscula; a segunda, é o nome específico 50 e está em letra minúscula. Museu Nacional | Elizabete Braga SAIBA QUE... Conta a lenda. Uma lenda indígena, da região amazôni- ca, conta sobre a criação da mandioca. Em tempos remotos, uma índia, filha do cacique, foi expulsa da aldeia pelo pai e passou a viver no fundo da floresta, amparada por parentes distantes. Um dia, ela teve um lindo filho, a quem deu o nome de Mani. O cacique, rendido aos encantos da criança, ia visitá-la e esqueceu os rancores. Mas, aos três anos de idade, Mani morreu misteriosamente, sem nenhuma doença. Foi enterrado no meio da oca (cabana). Ao amanhecer, sua mãe, que chorou a noite inteira no local, viu brotar da terra molhada pelas lágrimas uma plantinha, que foi crescendo, crescendo, furou o teto da oca, floriu e deu fruto. Os passarinhos comeram os frutos e saíram semeando os grãos. Os parentes cavaram a terra e viram que a planta saía do ouvido de Mani e gritavam, encantados: Mani iua (árvore). A planta, cuja raiz parecia um chifre (aca), passou a se chamar maniuaca (mandioca). Nome científico: Manihot eculenta Nome popular e regional: mandioca, maniva, aipim, macaxeira 51 SAIBA QUE... Uirapuru. Muitas len- das foram criadas em torno desse pássaro. Dizem que todos os pássaros da vizinhança silenciam para escutar o canto do Uirapuru. Também se acredita que o Uirapuru traga sorte para quem o possuir. O canto do Uirapuru inspirou uma das primeiras obrasprimas do compositor Heitor VillaLobos (1887-1959). Nesse poema sinfônico, baseado em história criada pelo autor, o pássaro, ao se transformar em um belo índio disputado pelas índias, é morto com uma flecha por um índio ciumento. Transformase novamente em pássaro e torna-se invisível, podendo-se somente ouvir Uirapuru-Verdadeiro | João Quental seu canto. Nome científico: Cyphorhinus aradus Nome popular: Uirapuru-verdadeiro Descrição - Tem uma plumagem simples, pardo-avermelhada, com desenhos brancos pintados de preto em cada lado da cabeça, a garganta e o peito vermelho-vivos. Possui um bico forte e pés grandes. Habitat - floresta úmida. É nativo da América do Sul, podendo ser encontrado em quase toda a Amazônia brasileira. História Natural era como se denominava a área de estudo que abrangia os conhecimentos hoje contidos em ciências como Biologia e Geologia, bem como em suas subdivisões. Esse corpo de conhecimentos estuda a diversidade do mundo vivo e mineral e suas interações com o homem. Compreende como essa diversidade se construiu e qual a sua dinâmica. Envolve ações de observar, nomear, classificar, descrever, comparar, interpretar e reconstituir a história geológica e a origem e evolução da vida. Processo semelhante ocorre quando aprendemos. É a partir da observação e da distinção entre os elementos que nos rodeiam que podemos começar a estabelecer 52 relações e interpretar os fenômenos, construindo conhecimentos sobre eles. Lançamento do livro Índios do Brasil | Acervo Museu Histórico do Exército Lembranças da Comissão Rondon Além dos pesquisadores, compunham a Comissão Rondon fotógrafos e, em uma etapa posterior, cinegrafistas, que documentavam os diferentes momentos das expedições, divulgando também o caráter científico das mesmas. Por exemplo, segundo Amilcar Botelho de Magalhães, somente da tribo Umutina, foram produzidos mais de 1.150 fotos (em preto e branco ou coloridas), 1.200 metros de filme de 35 mm em preto e branco e 200 metros de filme de 16 mm em cores. Expressando o interesse de Rondon pela Etnografia, com o título Índios do Brasil, foram publicadas, em três volumes, fotografias de grupos indígenas localizados no Norte e no Centro-Oeste do Brasil, documentando aspectos de sua alimentação, linguagem e de seus rituais. A invenção da fotografia foi anunciada oficialmente em 1839 no Institut de France, com a divulgação dos achados de Jacques Daguerre, que criou uma solução técnica para se tirar e reproduzir fotos, à época denominadas daguerreótipos. Na verdade, a fotografia surge a partir de uma síntese de diferentes invenções que envolveram conhecimentos de ótica (captação de uma imagem) e química (sensibilização à luz de certas substâncias à base de sais de prata). Quando surgiu, era considerada como uma imitação do real, e muitos acreditavam erroneamente que essa invenção teria por consequência o fim da pintura. Capitão Luis Thomaz Reis e Benjamin Rondon fizeram muitos registros fotográficos | Acervo Museu do Índio/ Funai 53 Acampamento para construção da linha às margens do rio Jamari (MT) | Joaquim de Moura Quineau| Acervo Museu do Índio/ Funai A fotografia teria por função registrar os fatos para conservar sua memória e auxiliar a ciência na compreensão da realidade. Na Comissão Rondon, era exatamente essa a função que exercia, documentando e valorizando as expedições realizadas. Mas seria a fotografia uma simples cópia da realidade? Com o tempo, foi-se compreendendo que ela é uma forma de abordar a realidade. A análise de seus vários elementos, como o tema enfocado, o enquadramento escolhido e o tipo de luz, nos permite compreender o olhar de quem fotografou. As equipes de Rondon enfrentaram muitas dificuldades para levar as ‘lembranças’ da Comissão das selvas e dos sertões para as cidades: “Pesados pacotes, então, de chapas de vidro que escapavam de se desfazerem em cacos, nos rudes transportes por terra ou na travessia de cachoeiras e corredeiras, onde tantas canoas, materiais e vidas preciosas ficaram para sempre sepultados, era quase por milagre que chegavam aos nossos gabinetes fotográficos nas cidades!” (Cândido Mariano da Silva Rondon. Índios do Brasil do Norte do rio Amazonas. Conselho Nacional de Proteção aos Índios, Rio de Janeiro, 1953, p. 4) Assim como as “chapas de vidro” a que Rondon se refere são, para nós, algo do passado, levar as imagens gravadas no filme fotográfico (os negativos) para revelar também está se tornando obsoleto. Nas câmeras digitais, as imagens são transferidas para o computador, podendo ser enviadas para qualquer lugar, embora possamos também preferir revelá-las em papel. As câmeras digitais não usam filme. As imagens são 54 registradas em pixels, que são minúsculos quadrados eletrônicos. COMUNICAÇÕES NO BRASIL 1990 Popularização da Internet 1950 1.ª Emissora de televisão 1923 1.ª Emissora de rádio 1896 1.ª Sessão de cinema 1852 1.ª Linha de telégrafo 1840 1.ª Fotografia 1808 1.º Jornal O PA I Z O BRASIL RENSA 55 Atual prédio do Museu do Índio, em Botafogo (RJ) | Roberto Beckert | Acervo Museu do Índio/Funai Memórias e culturas dinâmicas A criação do Dia do Índio (19 de abril) foi uma iniciativa levada adiante por Cândido Rondon e apoiada pelo Presidente da República Getúlio Vargas, que, em 1943, assinou o Decreto-lei 5.540, instituindo a comemoração da data no Brasil. A ideia foi lançada no Congresso Indigenista Interamericano, reunido em 19 de abril de 1940, no México. Na ocasião, foi consagrado o Dia do Índio Americano. A justificativa era valorizar e difundir a imagem histórica dos povos indígenas e integrá-la às celebrações nacionais. O Museu do Índio, no Rio de Janeiro, também foi iniciativa de Rondon, que, quando presidente do Conselho Nacional de Proteção ao Índio (CNPI), o inaugurou em 19 de abril de 1953, ou seja, dez anos após a criação do Dia do Índio. Quem esteve à frente da criação do museu foi o antropólogo Darcy Ribeiro, que dirigia a Seção de Estudos (SE) do órgão indigenista. Após pressão e reivindicações às autoridades, conseguiu-se a sua instalação no palacete da Rua Mata Machado (em frente ao estádio Maracanã), originalmente construído para ser sede do Derby Club, agremiação hípica de luxo do final do século XIX, abandonada desde os anos 1940. Com a construção do metrô carioca, o museu foi transferido para outro casarão do século XIX, na Rua das Palmeiras, em Botafogo. O antigo palacete da Rua Mata Machado, abandonado e quase em ruínas, encontra-se hoje ocupado por índios que reivindicam a criação de um centro cultural. O Museu do Índio, órgão científico-cultural da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), ainda hoje é a única instituição oficial no País exclusivamente dedicada às culturas indígenas. 56 Datas comemorativas do mês de abril 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 ABRIL 1 Dia da mentira 2 Dia Internacional do Livro Infantil, em homenagem ao escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, autor de O patinho feio e O soldadinho de chumbo, dentre outras obras 7 Dia Mundial da Saúde, 18 Dia Nacional do Livro Infantil, em homenagem ao escritor Monteiro Lobato (homenageado no Projeto Memória de 1998, da Fundação Banco do Brasil) 19 Dia do Exército Brasileiro, Dia do Índio 21 Tiradentes 22 Chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil 57 Dança dos índios Kayapó, em comemoração ao Dia do Índio. Aldeia Metuktire (MT), 2008 | Ednilson Aguiar/Secom-MT “Cada um de nós é quem é porque tem suas memórias.” (A arte de esquecer, Ivan Izquierdo, Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2007) SAIBA QUE... Dia da mentira. Antigamente, o fim do ano era cele- brado em março, marcando o início da primavera no Hemisfério Norte e do outono no Hemisfério Sul. O primeiro dia útil era então o primeiro de abril. A partir de 1582, na França, o calendário gregoriano passou a ser utilizado e o ano novo mudou para o início de janeiro. Mas algumas pessoas continuaram a realizar a celebração no primeiro de abril. Eram consideradas tolas, já que o primeiro de abril tornou-se uma grande mentira. Por isso, a data ficou conhecida como o dia da mentira. Pelo menos nos últimos dois séculos, os índios e suas culturas foram vistos como objetos de museu. Mas tal visão tem mudado. Atualmente, grupos indígenas concebem criar seu próprio museu. Exemplo dessa iniciativa veio dos Ticuna, ao mostrarem que os índios podem ser donos de suas próprias imagens, história e memória, como revela o pesquisador José Ribamar Bessa Freire. Não fazem apenas objetos curiosos, nem são eles mesmos objetos de curiosidade. A experiência de museus etnográficos organizados pelas próprias tribos já existe em outras localidades, como no Canadá. 58 No Brasil, foi inaugurado, em 1991, o Museu Magüta, justamente no município de Benjamin Constant (AM), com 15 mil habitantes, próximo à fronteira com Peru e Colômbia, na confluência dos rios Javari e Solimões. São vários encontros. O nome do município foi sugerido por Rondon, quando por lá passou na década de 1930, em homenagem a seu mestre e um dos fundadores da República no Brasil. Os Ticuna, que Rondon também conheceu, são o povo indígena mais numeroso do Amazonas, com cerca de 30 mil habitantes, espalhados em uma centena de aldeias. Os trabalhos de organização do Museu Magüta começaram em 1988, com a participação ativa de índios e de suas lideranças, apoiados por assessores não índios especialistas em Museologia. Naquele ano, houve, contra essa etnia, um massacre executado por pistoleiros a mando de fazendeiros da região: 14 foram mortos, 10 desapareceram e 23 ficaram feridos, entre homens, mulheres e crianças. Havia crescente hostilidade da população urbana contra esses índios, inclusive por parte de autoridades locais. Afirmar sua cultura e sua história significava, portanto, marcar posição e tentar garantir a sobrevivência do grupo, quando suas terras e vidas estavam ameaçadas. O Museu Magüta conta com cerca de 500 peças enviadas das aldeias ticuna para o acervo, todas catalogadas pelos índios envolvidos na organização, além de mapas, imagens antigas das tribos e outras informações sobre a vida e a história desse povo. O Museu, mesmo passando por crises e dificuldades, serviu para aplacar a hostilidade da população urbana e tornou-se polo de atração, visitado por turistas e moradores da região, índios e não índios. “O Museu Magüta serve para guardar nosso futuro”. (Liverino Otávio, professor ticuna) Atesanato Ticuna | Marcella Azevedo 59 A força dos meios de comunicação Rondon valorizou e soube utilizar os espaços dos meios de comunicação de massa. Tratava-se de uma novidade nas primeiras décadas do século XX: os veículos impressos já existentes (jornais e revistas) ampliavam-se em escala industrial e empresarial, assim como o cinema. E surgiram outros meios, como o rádio, e, mais tarde, a televisão. Consciente da importância de tais veículos para o fortalecimento de suas atividades, Rondon e suas equipes foram, ao mesmo tempo, criadores de filmes, fotografias, livros e artigos, bem como atuaram nos meios de comunicação para divulgar suas ações e ganhar apoio e reconhecimento da sociedade e das autoridades. POR DENTRO DA HISTÓRIA... A primeira emissão radiofônica no Brasil transmitiu o discurso do presidente da República Epitácio Pessoa, na exposição comemorativa do Centenário da Independência (1922), no Rio de Janeiro. HISTÓRIAS DE VIDA... Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) foi um dos companheiros de Rondon que mais contribuiu para a difusão e o surgimento dos modernos meios de comunicação no Brasil, especialmente o rádio. Destacando-se como antropólogo e educador, formado em Medicina, suas atividades foram múltiplas: geógrafo, linguista, folclorista, arqueólogo, botânico, zoólogo, etnógrafo, sociólogo, farmacêutico, legista e fotógrafo. Distinguiu-se por ter criado a primeira estação de rádio no Brasil, em 1923: a Sociedade Rádio do Rio de Janeiro. Roquette-Pinto acompanhou Rondon em expedição à Serra do Norte, em 1912, travando contato com os Nhambiquara. Filmava, fotografava e fazia anotações em seus cadernos de campo. Publicou o livro Rondônia – Antropologia etnográfica, considerado então um clássico da antropologia brasileira. A ideia de, em 1956, batizar de Rondônia (em homenagem a Rondon) o Território Federal do Guaporé foi inspirada por Roquette-Pinto. Diretor do Museu Nacional em 1926, organizou na instituição uma pioneira coleção de filmes etnográficos. Participou ativamente de insti60 tuições científicas e culturais brasileiras e internacionais. A relação com a mídia ocorreu em várias ocasiões. Uma delas ficou famosa. “O caso Fawcett, verdadeiramente, começou comigo”, afirmou Rondon. Num exemplo da importância que atribuía aos meios de comunicação de massa, o velho sertanista referiase ao episódio de repercussão internacional que foi o desaparecimento do explorador inglês Percy Harrison Fawcett, nas selvas do Xingu, em 1925. Coronel da Guarda Real Britânica e membro da Sociedade Real de Geografia, em Londres, Fawcett veio ao Brasil por motivos controversos. Ele próprio afirmava pretender realizar uma expedição científica em busca de uma suposta civilização perdida. Mas algumas de suas atitudes e alguns testemunhos da época, bem como pesquisas posteriores, indicam que ele poderia estar buscando jazidas de riquezas minerais e, até, uma mítica cidade de ouro oculta no meio da floresta. O último registro de Fawcett, de seu filho Jack e do acompanhante Raleigh Rimmel ocorreu na tribo dos Kalapalo, na área onde hoje é o Parque do Xingu. Outras expedições, nacionais e internacionais, seguiram o rastro do britânico, tentando localizar seu paradeiro. Entre elas, duas foram organizadas pelos Diários Associados: a primeira, em 1943, sob a coordenação do jornalista Edmar Morel, integrada por profissionais de filmagem, fotografia e fonografia do SPI, quando pela primeira vez uma equipe jornalística brasileira penetrou na região do Xingu; a outra, com o jornalista Antonio Callado e os irmãos Villas Bôas, em 1952. Roquette-Pinto e crianças Nambiquara | Arquivo da Academia Brasileira de Letras 61 Rondon conversou várias vezes com Fawcett logo que este chegou ao Brasil e, a princípio, opôs-se abertamente a que o expedicionário inglês viajasse pelas selvas, alegando precariedade de condições e defesa da soberania nacional. Diante das pressões da diplomacia britânica, Rondon então reivindicou que uma comitiva de militares brasileiros acompanhasse o inglês, proposta rejeitada pelo Governo Federal. Depois dessa oposição, Rondon ainda encontrou por acaso Fawcett nas selvas do Mato Grosso, quando este enfrentava dificuldades para prosseguir no trajeto. As palavras e imagens geradas por Rondon e suas equipes mostram o poder dos símbolos. Elas não apenas registram, refletem e informam, mas também atuam, criando e preservando memórias e transformando a realidade. Signos marcantes daqueles tempos pertencem também ao tempo atual, na medida em que nos estimulam a expressar e visualizar criticamente nossa própria sociedade. Percy Harrison Fawcett | Grupo Keystone POR DENTRO DA HISTÓRIA... Diários Associados. Os Diários As- sociados formaram a primeira grande rede de comunicação do Brasil no século XX, com destaque, sobretudo, nas décadas de 1930 a 1950. No seu apogeu, reuniam 36 jornais, 18 revistas, 36 rádios, 18 emissoras de televisão e uma editora, além de alcançar recordes de tiragem com a revista O Cruzeiro. Criados e dirigidos pelo jornalista e empresário Assis Chateaubriand (1892-1968), os Associados lançaram a primeira estação televisiva (TV Tupi) no Brasil, em 1950. Atualmente, esse grupo é formado por oito emissoras de televisão, nove portais e cinco sites, além da Fundação Assis Chateaubriand e de outras cinco 62 empresas. HISTÓRIAS DE VIDA... Irmãos Villas Bôas. Após Rondon, e seguindo- lhe os caminhos, os irmãos Villas Bôas foram os sertanistas que mais tiveram destaque nos meios de comunicação frente à sociedade nacional e ao cenário internacional. Orlando (1914-2002), Cláudio (1916-1998) e Leonardo (1918-1961) abriram 1.500 quilômetros de picadas na floresta, percorreram mil quilômetros de navegação fluvial, identificaram seis rios desconhecidos e mantiveram contato com 18 tribos indígenas. Nesses caminhos abertos na selva, surgiram cerca de 40 cidades e vilas, além de quatro campos de pouso que passaram a ser usados pela Força Aérea Brasileira (FAB). Seus nomes, sobretudo os de Orlando e Cláudio, estiveram associados ao Parque Indígena do Xingu, em cuja criação contribuíram de modo decisivo, sempre atuando à frente do órgão, do qual foram diretores. Defendiam a preservação das culturas indígenas como modo de fortalecê-las e protegê-las diante da sociedade nacional e mantiveram estreita ligação com os governos militares após o golpe de 1964. Desde os anos 70 até as datas de seus falecimentos, os dois irmãos Villas Bôas apareciam com frequência em filmes, canais de televisão, revistas e jornais do Brasil e de vários países, defendendo direitos das populações indígenas e contribuindo de maneira decisiva para difundir imagens sobre os índios para o grande público. Orlando chegou a ser indicado para o Prêmio Nobel da Paz. Sertanista Orlando Villas Bôas | Helmut Sick | Acervo Museu do Índio/Funai 4 O HOMEM PÚBLICO Tudo que está ao nosso redor sempre foi assim e não mudará nunca? Os hospitais, as escolas, os museus, os locais de trabalho, os sindicatos, os governos, os meios de comunicação, enfim, as instituições que usamos e que envolvem boa parte de nossa vida seriam eternas e imutáveis? Às vezes, é difícil compreender que tais instituições são, em último caso, resultado de nossas vontades e ações. É o que mostra a trajetória de Cândido Mariano da Silva Rondon. Como homem público, teve intensa capacidade de atuar na realidade, no intuito de transformá-la. Rondon com índios Bororo | Heinz Forthmann | Acervo Museu do Índio/Funai Índios Terena trajando uniforme militar da Guerra do Paraguai | Acervo Museu do Índio/Funai 64 Cenário no interior de Curuzu, 1866 | Cándido Lopez | Museu Nacional de Bellas Artes de B. Aires Boa parte das atividades de Rondon teve origem na Guerra do Paraguai (18641870), que marcou bastante a região em que ele nasceu e atuou. Conhecida também por Guerra da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) e Guerra Grande (no Paraguai, que lutou contra os três países vizinhos), é considerada o maior conflito armado já ocorrido na América do Sul. Foram atingidos largos territórios em áreas de fronteira, desde o Mato Grosso até o Rio Grande do Sul. E foi justamente a preocupação brasileira em criar meios de comunicação que integrassem tais regiões ao restante do País que impulsionou a própria Comissão Rondon a implantar linhas telegráficas, bem como a necessidade de um melhor conhecimento dos rios, das montanhas e das populações que ali existiam. Mortes na Guerra do Paraguai Paraguai 300.000 Brasil 50.000 Argentina 18.000 Uruguai Total 3.120 371.120 Fonte: Francisco Doratioto. Maldita Guerra. Nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Cia. das Letras, 2002, p. 456-462.. Iniciando suas ações apenas 20 anos depois do fim da Guerra do Paraguai, Rondon teve trajetória militar e política marcada pelas trágicas lembranças do episódio e por desafios para o futuro das nações envolvidas. Desse modo, sua atuação militar não era voltada para fazer a guerra, mas, sim, organizar a sociedade em tempos de paz. Apelidos como “Marechal da Paz” e “Marechal Humanista”, aplicados a Rondon, explicamse pela opção que ele fez, dentro daquela situação histórica, de definir a presença das Forças Armadas numa sociedade nacional, não pelo poder da violência das armas, mas por ações integradoras das populações e do território. Ligado aos estudos e ao trabalho desde jovem, Rondon sentia em sua própria vida que as obrigações tomavam mais tempo do que o lazer, como ele próprio recorda: “Aliás, não tinha eu muito tempo para brincar. Quando não estava agarrado aos livros, ia ajudar o tio na venda – venda de roça, onde de tudo se vendia, inclusive peixe frito que, com farinha, constituía a alimentação dos trabalhadores.” (Esther de Viveiros. Rondon conta sua vida) A presença de Rondon envolve episódios marcantes na História do Brasil, dos quais participou diretamente. A começar pela Proclamação da República, na qual o jovem cadete da Escola Militar, aos 24 anos, teve um papel estratégico, envolvido na conspiração que derrubou a Monarquia. Na madrugada de 15 de novembro de 1889, ele recebeu de seu professor Benjamin Constant de Magalhães a tarefa de levar uma carta ao ministro da Marinha, almirante Wandenkolk. Rondon partiu a cavalo, em disparada, para cumprir a missão. Ao inteirar-se das movimentações do Exército, o almirante tomou iniciativas para mobilizar a Marinha e, horas depois, era anunciado o fim da Monarquia no Brasil. Rondon integrou a guarda pessoal de Constant naquele dia e participou da prisão dos ministros do governo deposto de D. Pedro II. O nascimento da República marcou, as66 sim, a entrada de Rondon na vida pública. Mas, se nesse episódio inaugural o jovem Rondon aceitou, ainda que sob o comando de seus professores e oficiais superiores, quebrar a hierarquia e a legalidade existentes para instaurar uma nova ordem política, que também se basearia em outras leis e na hierarquia, o mesmo não se daria em ocasiões seguintes. Durante oito meses (de outubro de 1924 a junho do ano seguinte), Rondon foi designado para combater os rebeldes da Coluna Prestes, que acabara de deflagrar um movimento armado de oposição. Mesmo dizendo-se constrangido por aceitar uma missão de guerra, e não de paz, Rondon enfrentou e cercou os revolucionários no Paraná, levando-os a se deslocarem para Mato Grosso – onde também articulou o mesmo cerco político e militar aos combatentes liderados por Luiz Carlos Prestes. Com a saída dos revoltosos de sua área de atuação, Rondon encerrou sua participação no episódio. A Coluna Prestes foi um movimento contra as oligarquias dominantes na política da Primeira República e contra a corrupção política: seus integrantes percorreram, entre idas e vindas, cerca de 33 mil quilômetros pelo interior do Brasil, sendo considerada a maior marcha política da história mundial. A marca fundamental que definiu todas as bases da atuação de Rondon foi sua adesão ao Positivismo, sob influência de seu mestre Benjamin Constant de Magalhães, considerado o principal propagador dessas ideias no País. O lema “Ordem e Progresso”, incorporado à Bandeira do Brasil veio do Positivismo, embora tal doutrina não se tenha tornado a ideologia oficial com a Proclamação da República. Foi por meio da ação indigenista de Rondon que o Positivismo deixou sua principal marca no Estado Nacional brasileiro. Rondon tomando chimarrão em fazenda | Alberto Brand | Acervo Museu do Índio/Funai Integrantes da Coluna Prestes em Goiás, 1925 | Fundação Getúlio Vargas/CPDOC 67 A Pátria, de Pedro Bruno, 1919 | Acervo Museu da República HISTÓRIAS DE VIDA... O Pai da República. Benjamin Constant Bote- lho de Magalhães (1836-1891) é considerado o Pai da República no Brasil, embora, falecido dois anos após sua proclamação, não tenha participado da sua efetiva implantação. Foi ele, no entanto, quem formulou a ideia com mais clareza, tendo sido um dos mais aguerridos lutadores para que ela se tornasse realidade. O então jovem Cândido Mariano da Silva Rondon, seu aluno na Escola Militar, teve nele sua principal fonte de inspiração política e filosófica, por intermédio do Positivismo e da campanha republicana, em pleno regime monárquico. Engenheiro civil e militar, Constant esteve na Guerra do Paraguai, mas se colocava como pacifista ao propor a extinção gradual das Forças Armadas nas sociedades. Baseado nas ideias de Auguste Comte, Constant defendia a proposta do Soldado-Cidadão, pela qual a condição de cidadão da República era mais importante que a de militar. Ainda durante a Monarquia, dirigiu o Imperial Instituto de Meninos Cegos, para a educação de crianças com deficiência visual, que, com a instauração da República, foi batizado de Instituto Benjamin Constant. Seu nome tornou-se um dos símbolos da campanha republicana. Participou ainda do Governo Provisório (1889-1891), como ministro das pastas da Guerra e da Instrução Pública. Sobrinho de Benjamin Constant, o coronel Amílcar Botelho Magalhães, também positivista, foi um dos colaboradores mais próximos de Rondon: participou de expedições e, sobretudo, escreveu livros, artigos e relatórios referentes ao SPI e à atuação de Rondon. 68 “Verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa.” (Frei Vicente Salvador, História do Brasil, publicada em 1627) AO PÉ DA LETRA... O que é República? A palavra república tem vários significados. Originalmente do latim res publica, quer dizer coisa pública. É aplicada também à forma de governo, quando o dirigente máximo de uma nação é eleito para o cargo. Significa, ainda, associação, ajuntamento: uma república de estudantes, por exemplo. A presença de Rondon se fez, ainda, na diplomacia, quando chefiou pessoalmente a Inspeção de Fronteiras, que percorreu vasta área entre a Guiana Francesa e o extremo Noroeste dos limites com o Peru para eliminar dúvidas e estabelecer melhor os marcos de separação entre o Brasil e os países limítrofes. Sem esquecer, claro, o foco principal de sua atuação, definindo a política indigenista, desde a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910 à presidência do Conselho Nacional de Proteção ao Índio nos anos 1940. A atuação de Rondon, nesses casos, não se limitava ao âmbito governamental e administrativo. Ele sempre tinha como perspectiva envolver e dialogar com amplos setores da sociedade, como lideranças políticas, imprensa e instituições acadêmicas e científicas. Ao longo da vida pública de Rondon, o Brasil teve os seus 20 primeiros presidentes da República. Desde o começo, participando da conspiração que levaria o Marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891) ao poder, até o último presidente desse período, Juscelino Kubistcheck (1956-1961), de quem recebeu homenagens em público, Rondon teve sua trajetória confundida com a própria história do País. Com alguns desses mandatários, Rondon teve encontros de trabalho e colaborou mais intensamente, como com Afonso Pena (1906-1909), Nilo Peçanha (1909-1910), Epitácio Pessoa (1919-1922), Washington Luis (1926-1930) e Getúlio Vargas (1930-1945 e 1950-1954). Rondon exerceu, pois, atividade política, se a compreendermos num sentido mais amplo, de ação pela coisa pública ou gestão das relações de poder, mas nunca participou de cargo eletivo ou de administração (apesar de vários convites) fora da política indigenista. 69 1956-1961 O governo de Juscelino Kubitschek distinguiu-se pelo Plano de Metas, destinado a desenvolver seis setores estratégicos (energia, transportes, alimentação, indústria básica, educação e a construção da nova capital federal). | Arquivo Histórico do Museu da República 1930-1934 1934-1937 1937-1945 Entre 1930 e 1945, Getúlio Vargas foi chefe do segundo Governo Provisório da República (1930-1934), Presidente constitucional, eleito indiretamente (1934-1937), e ditador sob o Estado Novo (1937-1945). | Arquivo Histórico do Museu da República 1926-1930 O governo de Washington Luiz foi recebido com grande otimismo, embora tivesse recusado anistia aos revoltosos de 1922 e de 1924. A Revolução de 1930 pôs fim ao seu governo e à denominada Primeira República. | Arquivo Histórico do Museu da República 1919-1922 O governo de Epitácio Pessoa caracterizou-se pela instabilidade política. A nomeação de civis para as Pastas militares provocou a reação de setores do Exército, exemplificada pelo movimento tenentista. | Arquivo Histórico do Museu da República 1909-1910 Durante o governo Nilo Peçanha, foi concedido grande impulso ao ensino técnico-profissional, reorganizado o Ministério da Agricultura e criado o Serviço de Proteção ao Índio. | Arquivo Histórico do Museu da República 1906-1909 O governo de Afonso Pena caracterizou-se pelos esforços de colonização e saneamento do interior do País, tendo à frente o Marechal Rondon, pela expansão da malha ferroviária e pela pesquisa e exploração de recursos minerais. 70 | Arquivo Histórico do Museu da República NA PONTA DA LÍNGUA... Positivismo. Doutrina criada pelo filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), afirma a fé numa Religião da Humanidade baseada em princípios científicos e racionais. De tendência pacifista e evolucionista, criticava o uso de armas, guerras, rebeliões e revoluções, afirmando a existência de leis universais e naturais que levariam as sociedades humanas ao progresso. Fachada da Igreja Positivista, Rio de Janeiro | Elizabete Braga “O Amor vem por princípio, a Ordem por base e o Progresso por fim.” (Lema Positivista) Outra característica de Rondon foi o nacionalismo. Ele participou, por exemplo, da Sociedade dos Amigos da América (1943-1945), cujo presidente, o general Manuel Rabelo (também engenheiro militar e positivista), atuara na Comissão Rondon. Tal entidade reunia líderes civis e militares a favor da participação do Brasil na II Guerra Mundial junto aos Aliados (EUA, Inglaterra e outros países) e contra o fascismo e os demais países do Eixo (Alemanha, Itália, Japão, entre outros) – e chegou a ter sua sede fechada pela polícia no Rio de Janeiro em 1944. Um dos oficiais mais próximos de Rondon, o general Júlio Caetano Horta Barbosa, além de ter participado das expedições das Linhas Telegráficas e ter sido vice-presidente do Conselho Nacional de Proteção ao Índio (CNPI), presidiu o Conselho Nacional do Petróleo (CNP), participou ativamente das campanhas a favor do monopólio estatal do petróleo e tornou-se a principal liderança militar nacionalista do período. Tudo parecia indicar que o Brasil teria seu primeiro Prêmio Nobel. Em 1953, iniciou-se uma campanha nacional e internacional para que Cândido Rondon fosse o escolhido. Em 1957, a iniciativa foi formalmente lançada pelo Explorer’s Club, de Nova Iorque, com adesão de entidades científicas, universidades, intelectuais e políticos de vários países, para que Rondon ganhasse o Prêmio Nobel da Paz. A repercussão foi grande. Havia sinais concretos de que ele seria o ganhador. Mas Rondon faleceu em 1958 sem receber a honraria. Entre as homenagens feitas após o falecimento de Rondon, destacam-se o título de Patrono da Arma de Comunicações do Exército e, em 1968, a criação do Projeto Rondon pelo Ministério da Educação e Cultura, para promover estágios de serviço de estudantes universitários em localidades do interior do País. 71 Nação e cidadania Desde o período de atuação de Rondon e suas equipes até os dias atuais, os direitos dos índios têm se ampliado. A presença nas eleições é uma das características da cidadania exercida pelas populações indígenas. Calcula-se que existam cerca de 200 mil índios com título de eleitor no Brasil. Do pleito municipal de 2004, saíram quatro prefeitos indígenas: Orlando Justino, Macuxi, em Normandia (RR); Mecias Batista, SateréMawé, em Barreirinha (AM); Paulo Sérgio da Silva, do povo Potiguara, no município de Marcação (PB) e José Nunes de Oliveira, Xakriabá, em São João das Missões (MG). Fato marcante foi a eleição do prefeito Pedro Garcia (Tariana) e do vice André Baniwa (Baniwa) em São Gabriel da Cachoeira (AM), em 2008, com 51% (12 mil) dos votos locais. Esse município tornou-se o primeiro no Brasil a adotar oficialmente três línguas além do português: Nheengatu, Tukano e Baniwa (v. 2. Os índios no Brasil). Além disso, São Gabriel da Cachoeira, situado na fronteira com Venezuela e Colômbia, é considerado Área de Segurança Nacional pela Lei Federal 5.449. Na localidade, estão instaladas duas unidades do Exército brasileiro: a 2.ª Brigada de Infantaria da Selva e o 5.º Batalhão de Infantaria da Selva, o que demonstra que a presença indígena, com suas identidades peculiares, é uma garantia para a integridade territorial brasileira, na medida em que tais terras pertencem à União. Rondon, aliás, considerava os índios como “vigilantes das fronteiras” nacionais. POR DENTRO DA HISTÓRIA... Índios eleitos. O primeiro indígena a obter um cargo eletivo no Brasil foi o cacique Ângelo Kretã, kaingang, como vereador em Mangueirinha (PR), no final da década de 1970, segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Kretã morreu num acidente de carro considerado suspeito em 1980, durante disputa de terras com fazendeiros. Ficou famoso o primeiro indígena deputado federal no País: o cacique xavante Mário Juruna, eleito em 1982, no Rio de Janeiro, pela legenda do PDT, na mesma chapa em que Darcy Ribeiro se elegeu vice-governador. Juruna, afirmando não confiar nos “brancos” e nos políticos, usava um gravador para registrar as conversas e promessas que escutava, a fim de não ser enganado. 72 O índio exercendo o poder de voto | Lila Sardinha Pág. 74-75, General Rondon e expedicionários chegam ao topo do Monte Roraima, 1927 | Benjamin Rondon | Acervo Museu Histórico do Exército O trabalho das equipes coordenadas por Cândido Mariano da Silva Rondon gerou uma nova etapa na relação entre o Estado Nacional brasileiro e as populações indígenas. Rondon realizou pessoalmente parte importante desse trabalho e simbolizou, graças à sua figura marcante, essa atitude que caracterizou uma época, limitada por determinadas condições históricas. Por um lado, evitava-se o uso da violência armada contra os índios, ao mesmo tempo em que se denunciavam e combatiam aqueles que pretendiam exterminá-los e ocupar suas terras, buscando garantir a posse de uma parcela dessas áreas aos mesmos indígenas. Por outro lado, pregava-se a incorporação dessas populações aos costumes ocidentais e ao trabalho produtivo, facilitando, assim, que considerável porção dos territórios tradicionais fosse incorporada como propriedade privada e que algumas de suas referências culturais fossem desarticuladas – e não impedindo totalmente que eles sofressem diversas formas de violência, inclusive roubos e assassinatos. Com um pé em cada mundo, isto é, nas selvas e nos sertões com os índios e, ao mesmo tempo, nas instituições públicas e científicas e no contato com as autoridades, Rondon buscava, sob a perspectiva de proteção, intermediar essa relação tradicionalmente violenta e desvantajosa para os povos indígenas. 73 Darcy Ribeiro, 1995 | Carlos Eduardo/CB/D.A Press HISTÓRIAS DE VIDA... Darcy Ribeiro. Entre os seguidores de Ron- don, Darcy Ribeiro (1922-1997) foi o que mais atuou na cena pública, além de ter pesquisado durante muitos anos sobre os índios e empreendido veemente defesa dos direitos dessas populações. Antropólogo, etnólogo, educador e liderança política, Darcy deixou vasta produção literária (ficção e não ficção), ao lado da criação de instituições. Foi militante do Partido Comunista Brasileiro durante a ditadura Vargas (1937-1945). Iniciando suas atividades sob a órbita de Rondon, entrou para o SPI em 1947 e, até meados da década seguinte, viveu longos períodos entre os índios Kadiwéu e Urubu Kaapor, realizando estudos antropológicos. Esteve à frente da criação do Museu do Índio e participou da elaboração do projeto do Parque do Xingu. Fundou a Universidade de Brasília (1961), da qual foi o primeiro Reitor, trabalhando com o educador Anísio Teixeira. Exerceu os cargos de Ministro da Educação e Chefe da Casa Civil no governo João Goulart. Após o golpe civil-militar de 1964, teve os direitos políticos cassados e exilou-se, passando a lecionar em universidades na América Latina e recebendo prêmios e títulos em universidades europeias. Identificado ao trabalhismo desde os anos 1950, foi candidato a vice-governador de Leonel Brizola (PDT) no Rio de Janeiro. Empossado em 1983, Darcy projetou os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) e o Sambódromo. Eleito Senador em 1990, entrou para a Academia Brasileira de Letras e faleceu de câncer no Rio de Janeiro. “Marechal da Paz Marechal do Humanismo Protetor dos Índios.” (Darcy Ribeiro, em discurso no enterro do Marechal Rondon, 20 de janeiro de 1958) 76 “Morrer se for preciso, matar nunca.” (Marechal Cândido Rondon) Uma das preocupações de Cândido Rondon se reflete nesta afirmação: “Nós que os fomos procurar no fundo das florestas para pedir-lhes que depusessem o arco vingador, nós, sim, estamos em dívida para com eles, porque ainda neste momento não lhes demos o apoio da lei que visávamos, com a nossa intervenção, substituísse ao das armas, para assegurar-lhes a propriedade da terra em que assentam suas malocas e as suas lavouras, e onde procedem as suas caçadas”. Desde então, os índios têm adquirido novos direitos, graças às suas próprias mobilizações sociais e políticas e, também, ao apoio de aliados na sociedade brasileira, o que tem gerado transformações no Estado Nacional. Dois artigos da atual Constituição Federal brasileira expressam essa tendência: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” (Art. 231); “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.” (Art. 210). A lei afirma que a sociedade brasileira é formada por culturas e línguas diferentes, isto é, constitui-se uma nação multiétnica e multilíngue. Os povos indígenas não são mais vistos oficialmente como atrasados, que obrigatoriamente teriam que ignorar suas especificidades e estariam destinados à extinção. Os índios, nessas bases, fazem parte da nação brasileira, dando a ela suas próprias feições e, ao mesmo tempo, transformando de forma dinâmica suas tradições, sem se isolarem dos tempos atuais. Suas terras demarcadas são terras da União e, portanto, protegidas pelo Estado Nacional. Atualmente, 14% do território brasileiro é reservado às populações indígenas, mas nem sempre em condições seguras, pois há situações jurídicas diversas: terra identificada, declarada, reservada ou homologada (88% nestas duas últimas condições). E 98% dessas terras encontram-se na Amazônia Legal, ligadas, ao mesmo tempo, à preservação ambiental de outras formas de vida da fauna e da flora. Ainda há um longo caminho até que cessem as violências e os preconceitos contra os povos indígenas e para que a nação brasileira estabeleça relações sociais solidárias entre os variados setores de sua população. O poema de Carlos Drummond de Andrade, Pranto Geral dos Índios, feito sob o impacto da morte de Rondon há meio século, continua atual: “ron don ron don | repouso de felinos toque lento |de sinos na cidade murmurando | Rondon | Amigo e pai sorrindo na amplidão.” 77 Hasteamento da Bandeira Nacional em Manaus | Acervo Museu Histórico do Exército CRONOLOGIA 5 de maio de 1865 Nasce em Mimoso, na Província de Mato Grosso. 1884 Matricula-se na Escola Militar. 1890 Recebe os títulos de Engenheiro Militar e Bacharel em Matemática e Ciências Físicas e Naturais. 1892 Casa-se com Francisca Xavier, no Rio de Janeiro. É nomeado chefe da reconstrução da linha telegráfica de Cuiabá ao Araguaia. 1898 Ingressa na Igreja Positivista no Rio de Janeiro. 1900 a 1906 É nomeado chefe da Comissão Construtora de Linhas Telegráficas no Estado de Mato Grosso. 1907 É nomeado engenheiro-chefe da Comissão Construtora de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas. 1910 É nomeado 1.º diretor do recém-criado Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais. 1913 - 1914 Organiza e chefia a Expedição Científica Roosevelt-Rondon. 1915 Inaugura a linha tronco de Cuiabá a Santo Antônio do Madeira, com 2270 quilômetros de linhas telegráficas e 32 estações do telégrafo. 1917 O antropólogo Edgard Roquette-Pinto denomina Rondônia a região do Noroeste de Mato Grosso. 1924-1925 É nomeado para reprimir os militares rebeldes que combatiam o Governo Federal nos Estados do Paraná e de Santa Catarina. 1927 a 1930 É designado para realizar a inspeção das fronteiras do País. 1934 - 1938 Chefia a Comissão Mista Peru, Colômbia e Brasil, destinada a solucionar os conflitos na região de Letícia. 1939 É nomeado presidente do Conselho Nacional de Proteção aos Índios. 1952 Encaminha ao presidente da República o projeto de criação do Parque do Xingu. 1953 Junto com Darcy Ribeiro, inaugura o Museu do Índio. 1955 Recebe a patente de Marechal do Exército Brasileiro. 1956 O território de Guaporé é renomeado Rondônia. 1957 É apresentada sua candidatura ao Prêmio Nobel da Paz de 1957. 1958 Com 92 anos, falece a 19 de janeiro no Rio de Janeiro. 79 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Livros e artigos: ABREU, Alzira e outros (coord.). 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