Violência doméstica – uma nova proposta de atendimento dos

Transcrição

Violência doméstica – uma nova proposta de atendimento dos
Violência doméstica – uma nova proposta de atendimento dos casos de
violência contra mulheres no CTQ-A do HMSA
Patrícia Pinagel Barcellos1
Isis Ferraz de Moura
Tathiana M. da S. Gomes
Hospital Municipal Souza Aguiar –Centro de Tratamento de Queimados2
1. O CTQ-A E O TRABALHO DO SERVIÇO SOCIAL
O Centro de Tratamento de Queimados Adulto, o CTQ-A, existe no Hospital
Municipal Souza Aguiar desde junho de 1986. Este hospital é uma unidade de saúde
de emergência e tem aproximadamente 517 leitos, distribuídos da seguinte forma:
na emergência 100, CTI/UI 72 adulto e infantil, incluindo o centro de tratamento de
queimados, nas enfermarias 345, que se subdivide nas seguintes clínicas: clínica
médica, endoscopia, anestesiologia, cirurgia vascular, neurocirurgia, cirurgia geral,
centro de hemorragia digestiva, cirurgia plástica, ortopedia, otorrinolaringologia,
oftalmologia, buco-maxilo-facial, pediatria, unidade coronariana, cardiologia,
nefrologia, cirurgia do tórax, pacientes queimados (adulto e infantil) e cirurgia
pediátrica.
O CTQ-A foi criado a partir da demanda deste serviço, pois até então os
usuários que sofriam queimaduras ficavam expostos em enfermarias abertas e o nível
de infecção e óbito era muito alto. Os usuários vítimas de queimaduras perdem a
proteção natural do corpo, a pele, e ficam mais suscetíveis a contrair infecções,
necessitando de um espaço próprio para o seu atendimento e assistência.
Atualmente, o CTQ-A é um dos centros de referência para o tratamento de
queimados na América Latina. Atende a médios e grandes queimados (os pequenos
queimados são atendidos na emergência). O que determina a gravidade da
queimadura são os graus: 1o, 2o, 3o e a extensão da Superfície Corporal Queimada
- SCQ (%).
São consideradas queimaduras moderadas:


Lesões de 2o grau com 15 a 35% da SCQ
Lesões de 3o grau com 10% da SCQ
Queimaduras críticas:


Lesões de 2o grau com SCQ superior a 25%
Lesões de 3o grau com SCQ superior a 10%
Obs: Os usuários internados neste setor (de queimaduras críticas) são considerados
pacientes graves.
O Centro de Tratamento de Queimados Adulto possui:

1
2
Uma unidade de pacientes internos (UPI), com sete leitos distribuídos em duas
enfermarias, sendo uma para pacientes graves;
[email protected]
Trabalho apresentado no Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, outubro 2001




Uma unidade de pacientes externos (UPE), onde funciona um ambulatório e uma
sala de curativos;
Uma sala para balneoterapia (banho), onde também são realizados curativos;
Uma sala de cirurgia para cirurgias de grande e médio porte;
Uma unidade de cirurgia plástica com doze leitos.
A equipe multiprofissional é formada por médicos, 01 assistente social, 01
psicóloga, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, 01 terapeuta ocupacional e os
respectivos acadêmicos. A equipe atua na perspectiva de recuperação biopsicossocial
do usuário.
O tratamento do usuário queimado tem início no CTQ-A, mas continua após a
alta médica e social, já que se trata de uma recuperação contínua e demorada. São
agendadas consultas ambulatoriais de retorno, e as mesmas são realizadas pelo
médico e terapeuta ocupacional, pois o paciente queimado, dependendo da gravidade
das lesões, pode ter retrações e outras sequelas, pode perder a funcionalidade de
algum membro, provisoriamente ou definitivamente, necessitando de tratamento
intensivo.
Fundamentado nas intervenções segundo uma visão mais global de saúde e
não apenas como saúde/doença, o Serviço Social tem entre seus objetivos contribuir
para a implementação da concepção de saúde proposta pelo movimento de reforma
sanitária, que define saúde como o resultado das condições de vida das pessoas, não
conseguida apenas com assistência médica, mas principalmente pelo acesso a:
emprego, salário justo, educação, habitação, saneamento, transporte, alimentação,
cultura e lazer (MS/XI CNS, 2000/7).
O trabalho do Serviço Social no CTQ-A do HMSA baseia-se, principalmente,
na relação de ampliação e consolidação da cidadania, viabilizando o acesso dos
usuários aos serviços da instituição e aos direitos sociais.
O Serviço Social, preocupado com a qualidade de seus atendimentos,
procurou fazer um levantamento dos principais fatos geradores de queimaduras, tais
como acidentes de trabalho, agressão, violência, acidentes domésticos, pacientes
com problemas psiquiátricos, tentativas de suicídio e dependentes químicos.
Assim, entre as atividades do Serviço Social neste setor estão:
encaminhamentos
a
determinadas
demandas
postas
pelos
próprios
usuários/familiares, entrevistas sociais para conhecimento da realidade destes
contatos interinstitucionais, orientação aos recursos comunitários, visitas de apoio ao
usuário e, quando necessário, encaminhamentos para instituições.
Através de esclarecimentos e orientações, indicamos alternativas na busca e
defesa de seus direitos, através de encaminhamentos para órgãos como Ministério
Público, Ministério do Trabalho, Comissão de Direitos Humanos, Delegacias
Especializadas no atendimento à Mulher/DEAMs, Conselhos Tutelares (quando
envolvem crianças/adolescentes em situação de risco), estimulamos participações
nas reuniões dos Conselhos Distritais e de Defesa da Cidadania, na tentativa de
garantir a efetivação em espaços democráticos.
Entre nossas atividades, desenvolvemos estudos reflexivos sobre a atuação
do serviço social, levantamento de dados sócio-econômico-culturais para traçarmos
um perfil destes usuários, sistematizarmos e elaborarmos novas propostas de
trabalho a partir da demanda apresentada.
Consideramos a interdisciplinaridade no atendimento a determinados casos
que requerem procedimentos específicos um fator fundamental para melhor
resolutividade nas situações; ex: reuniões com os familiares, abordagens conjuntas
com o/a usuário (a), encaminhamentos para outras instituições e encontros para
discussão dos casos sociais.
1.1PERFIL DOS USUÁRIOS ATENDIDOS NO CTQ-A
Avaliamos o período de primeiro de maio de dois mil a trinta de junho de dois
mil e um (01/05/2000 a 30/06/2001). Neste período, aproximadamente 124
pacientes deram entrada no CTQ-A e foram classificados de acordo com os registros
no prontuário. Destes 124 usuários, 79 eram do gênero masculino e 45 do gênero
feminino.
Para efeito estatístico, contabilizamos o número de casos a partir do registro
no prontuário (ex: acidente de trabalho, acidente doméstico, tentativa de suicídio,
etc.) num universo de 100% sobre o número de pacientes queimados por gênero,
assim conseguimos entender cada causa num universo de 100%:
Tentativa de Suicídio
Tentativa de suicídio: 14, sendo:09-mulheres - 20% e 05-homens - 6, 32 %.
Segundo estudos de Cassorla (1984) as mulheres são mais predispostas ao
suicídio que os homens; tais fatos podem ser considerados pela construção histórica
e social do papel da mulher na sociedade.
As moças tentam mais o suicídio, três a cinco vezes mais frequentemente que
os rapazes. No sexo feminino, predominam as tentativas não-fatais e uso de
métodos menos agressivos (Cassorla, 1984, apud. Resmini, 1992:277).
Estudos apontam que os homens, quando tentam o suicídio, utilizam métodos
mais fatais, o que indica a intencionalidade. (Cassorla, 1992).
No CTQ-A, algumas mulheres vítimas de tentativa de suicídio são pacientes
psiquiátricas e muitas vezes não fazem tratamento ou, quando fazem, não tem a
resposta adequada. Estas pacientes, normalmente, residem em ambientes
conflituosos, onde percebemos questões familiares mais complexas, inclusive a
situação de opressão. Foram constatadas também situações de mulheres que sofrem
violência psicológica e física, e quando não suportam mais a dura realidade
vivenciada e não têm a quem recorrer, tomam atitudes contra a própria vida.
Das 09 mulheres que tentaram suicídio no período, 03 morreram devido a
queimaduras. Num determinado caso, a família alegou que a mulher teria sido vítima
do companheiro, noutro alegaram que a mulher tinha depressão; em um terceiro não
constava registro em prontuário, pois a vítima, logo após entrada, faleceu.
Dentre as sobreviventes, algumas apresentavam longo histórico psiquiátrico
com início e abandono do tratamento, sem justificar o porquê. E em outros casos, foi
relatado pela própria vítima de pressão devido a agressões do companheiro ou a
indiferença deste. Quanto aos homens, as tentativas foram devido à depressão, com
história pregressa de distúrbios psiquiátricos e /ou dependência química.
Agressão
Agressão: 9 – sendo: 4 mulheres - 8,88% e 5 homens - 6,32% Neste caso,
as mulheres relataram terem sido vítimas de agressão. Em um universo de
queimaduras sem causa identificada, e tentativas de suicídio citadas acima,
normalmente encontramos mulheres vítimas de violência doméstica, agressão física
ou psicológica. Ressaltamos aqui a violência explícita, denunciada logo no primeiro
momento da internação.
Surge o seguinte questionamento: o que favorece estas agressões do homem
contra a mulher?
Segundo Cabral (185:1999),
Dentre os aspectos biológicos, além da predisposição genética ao temperamento
violento muitos pesquisadores têm correlacionado a agressividade e a violência com
uma desregulação no sistema límbico (Lystad,1975; Cabral,1990; Beissman,1994;
Kaplan & Sadock, 1998) ... quanto aos aspectos psicológicos, tem sido ressaltada a
importância do ambiente familiar no equilíbrio do comportamento das crianças e
adolescentes e, portanto, dos futuros adultos. A família fornece a matriz dentro da
qual o indivíduo é moldado e se desenvolve; é o cerne para que ligações mais fortes
sejam formadas; é o primeiro grupo dinâmico ao qual a criança é exposta e nele ela
tem suas primeiras experiências e transações interpessoais. Quando ela é perturbada,
fornece identificações e experiências de aprendizado patológicas. Logo, as atitudes e
comportamentos dos pais, assim como a saúde física e mental destes, tem um impacto
decisivo no ajustamento psicossocial de um filho.
A autora aborda dentre os aspectos psicossociais (embora a violência exista
em todas as classes sociais), a violência associada ao excesso de pessoas residindo
num mesmo ambiente, à falta de privacidade das aglomerações humanas, à
migração do campo para as grandes cidades, à divisão de espaço e tarefas entre
homens e mulheres, ao desemprego e ao alcoolismo, como fatores precipitadores de
conflitos...Embora a agressão não se justifique em hipótese alguma, há, segundo a
autora, uma “relação psicodinâmica conflituosa” existente no lar do agressor e da
mulher vitimada, e nem sempre a mulher agredida é apenas vítima pacífica nas
relações com seus companheiros.
Devido às questões colocadas acima, cabe ressaltar a importância de um
trabalho preventivo que aborde estas relações em todos os seus aspectos
biopsicossociais, que precisam ser tratadas como um problema de saúde pública.
Acidente de trabalho
Acidente de trabalho: 29 - 29 homens - 22,91%.
Observamos um alto índice de acidentes de trabalho no universo masculino,
em função da ausência de proteção adequada. Estes, em sua maioria, não possuem
vínculo empregatício, o que nos remete à questão socioeconômica, de inserção no
mercado de trabalho formal e não formal, da exposição destes trabalhadores a
situações de alta periculosidade, em muitos casos a falta de preparo para
desempenho de tais tarefas, o que define a situação de espoliação vivenciada pelo
trabalhador.
Acidente em Via Pública
1 - 1 Mulher - 2,22% (explosivos na virada do ano em Copacabana).
5 - 5 Homens - 7,59% (acidente na linha do trem “surfe de trem”, população de rua
agredida com álcool, dentre outros).
Percebemos aqui, a violência por suicídio e homicídio, indicando a forte crise
social que atravessa o país, a falta de perspectiva para o jovem devido a altas taxas
de desemprego. Observamos também uma total inversão de valores quando, por
exemplo, alguém acredita que, ateando fogo a um jovem homem morador de rua,
estará resolvendo os problemas
trabalhistas e habitacionais.
sociais,
econômicos,
religiosos,
culturais,
Acidente doméstico
Acidente doméstico: 44 sendo: 26 mulheres – 57,77 % e 18 homens – 22,78
%.
No ambiente doméstico é onde observamos o maior número de
acidentes/agressões/tentativas de suicídio e onde há prevalência do gênero feminino.
Já no ambiente não doméstico, há prevalência do gênero masculino e maior índice
de acidente de trabalho. Quando os homens se acidentam dentro de casa, o etilismo
ou uso de drogas em geral estão entre os maiores indicadores. Em relação às
mulheres, na grande maioria dos acidentes domésticos, há suspeita de agressão e,
inclusive, em alguns casos diagnosticados pela equipe, seria impossível tal acidente
não ter sido causado por terceiros.
Relatados pela própria vítima apenas seis (06) casos (13,33%) não
classificamos na categoria agressão citada acima, pois não foram revelados no
momento de entrada e os casos relatados como agressão foram registrados já na
entrada como tal. Entre os homens, houve apenas um caso de agressão pela mulher;
em outros, eles revelaram ter se acidentado acendendo churrasqueiras (alguns
estavam alcoolizados). Percebemos que os acidentes domésticos, quando acontecem
com homens, é por estarem realizando alguma atividade envolvendo rede elétrica
(curto circuito) ou, por serem dependentes químicos, acidentaram-se ao dormir com
cigarro aceso etc. Houve um que na tentativa de matar larvas jogou gasolina e
acendeu um fósforo em suas pernas (hanseníase não tratada); há também pacientes
psiquiátricos, em abandono de tratamento e outros sem causa definida.
Queimadura com folhas de figo: 2 – 2 mulheres - 4,44%.
Há pessoas que utilizam um preparado com folhas da figueira para obtenção
de bronzeamento mais rápido, desconhecendo os efeitos nocivos de queimaduras até
segundo grau profundo;
Essa questão demonstra a “cobrança” da sociedade em torno do corpo da
mulher e os padrões estéticos que são passados para nós através da mídia, como o
ideal e a mulher resgata este padrão para ter o corpo desejado.
Outros: 15 - 12 homens – 15,18 % e 3 mulheres – 6,66% sem causa
especificada.
1.2 A MULHER QUEIMADA: DURA REALIDADE
(...) pele e cérebro têm a mesma origem, ambos derivando do ectoderma, daí a
sensibilidade tátil ser a primeira a aparecer no recém-nascido. Ela é o único sentido
que recobre todo o corpo, contendo em si vários outros sentidos e por último uma
estrutura reflexiva. Explicando melhor, quando se toca com o dedo as partes de seu
corpo experimenta-se duas sensações complementares: de ser um pedaço de pele que
se toca ao mesmo tempo em que um pedaço de pele é tocado. É sobre esse modelo
de reflexibilidade que se construíram todos os outros: sentar, emitir sons, aspirar seu
próprio odor, olhar-se no espelho (Coutinho, 34:1999).
O que há de mais profundo no homem é a pele. Depois medula, cérebro, tudo o que é
necessário para sentir, sofrer, pensar... ser profundo (...), são as invenções da pele!
(...). Nós nos esforçamos em vão de nos aprofundar, doutor, nós somos... ectoderma.
(Coutinho,1999).
Ao indicar o perfil dos pacientes/usuários do CTQ-A, percebemos uma grande
ocorrência de casos de mulheres vítimas de violência que geralmente ocorreram em
âmbito privado, ou seja, no próprio lar e na maioria das vezes os agressores são seus
maridos, companheiros ou familiares.
(...) A violência de gênero é mais ampla do que a violência doméstica, embora a
suponha. Saffioti e Almeida utilizam a expressão violência de gênero para designar um
padrão especifico de violência, que “visa à preservação da organização social de
gênero, fundada na hierarquia e desigualdade de lugares sociais sexuados que
subalternizam o gênero feminino”; e “amplia-se e reatualiza-se na proporção direta
em que o poder masculino é ameaçado (1995:159).
A partir das falas das usuárias podemos destacar alguns fatores como
geradores destas situações: usuários de drogas lícitas ou ilícitas, pelas usuárias e/ou
colaterais. Elas alegam que os companheiros e elas próprias estavam sob efeito de
alguma roga, nervosos com situações como desemprego, falta de dinheiro, fome,
sentimentos de estarem sem posse sobre a própria vida e que foram totalmente
dominadas em suas relações.
“... Ele não teve culpa, estava nervoso e nós brigamos” (M.P.,51 anos).
O domínio do lar (que é o espaço que pertence a elas e a educação dos filhos,
embora em situação de subalternidade) não mais as satisfazem, elas sentem-se
sufocadas, perdem o referencial de mãe, dona de casa quando os filhos crescem ou
quando residem agregadas na casa de terceiros (tentativa de suicídio).
“... eu estava desesperada, não sabia mais o que fazer da minha vida! (A.M. 55
anos).
“... tudo perdeu o sentido para mim, eu só quero trabalhar, ser alguém na vida, meu
marido cansa de me dizer que eu não sou ninguém” (C.T.49 anos).
Por parte destas mulheres há uma grande dependência social, econômica e
psicológica, herdada historicamente. Esta dependência faz com que elas, na maioria
das vezes, continuem em seu meio, na tentativa de justificar a violência como sendo
um problema privado e que, portanto, deve ser resolvido dentro de casa. Em muitos
casos, elas não vislumbram outros caminhos, nem possuem a curto e/ou médio prazo
soluções para seus conflitos.
Consideremos o que Bourdieu (1989) exemplifica como relações de poder e a
dimensão simbólica da violência, num campo de forças e de lutas contraditórias.
Existe uma trama de relações constitutivas do sujeito e por ele constituídas, ou seja,
as vítimas não são objetos da ação de alguém somente. É necessário considerar
também toda a estruturação de mundo, o universo de relações, a incorporação de
modos de vida e da coerção do poder hegemônico que faz com que as próprias
mulheres se apropriem de categorias inscritas num universo masculino e reproduzam
este discurso.
Percebemos que a violência quando não aparece de forma objetiva nas
agressões físicas, aparece nas formas de relação de opressão que a mulher tem com
o companheiro e com a família. Por vezes, a família percebe o fato, mas se omite de
alguma forma, ou por não saber lidar com esta situação, ou por não ter condições de
solucioná-lo, ou por achar “normal” um problema privado ser resolvido por aquele
núcleo familiar, e passam a achar que os sujeitos inscritos naquele determinado
universo – no caso as mulheres - “são fracas, incapazes” por não terem o domínio
das situações, das quais teriam que dar conta, mas não conseguem. Nesse caso, elas
passam a culpar os indivíduos que vivenciam estes problemas, a família abandona a
questão por não conseguir resolvê-la e por não encontrarem aparatos institucionais
que os auxiliem neste contexto.
No CTQ-A, as mulheres que tentaram o suicídio, estavam vivendo em
circunstâncias que não suportavam mais devido a uma grave depressão, à
desestruturação familiar, ao desemprego, as constantes agressões físicas e/ou
psicológicas e à dor subjetiva e/ou objetiva por perderem todo o sentido.
Em entrevista com o marido de uma vítima, percebemos como este apreende
o mundo à sua volta e não compreende a dor de sua parceira muito mais subjetiva...
Eu não compreendo porque ela fez isso, ela não tem motivo, tem casa, comida, os
filhos estão crescidos, e eu não dou trabalho: apenas saio nos finais de semana para
beber a minha cervejinha e nem demoro (...).
A mulher, assim como o homem, está sofrendo uma crise de paradigmas:
como se adaptar a esse novo mundo, a novos modelos de relacionamento, as
exigências do mercado de trabalho, e ao mesmo tempo ser mulher, dona de casa,
criar filhos, ter um companheiro... A mídia nos vende ideias inatingíveis, românticas,
violentas muitas vezes. Por outro lado, a tradição judaico-cristã nos passa uma idéia
de ética vinculada a padrões morais como o casamento que deve ser para sempre,
homem e mulher serão uma só carne, a mulher deve servir ao homem, ser meiga,
dócil, subalterna...
A violência física e psicológica apresenta-se através da baixa estima que
demonstram em seus relatos e nos mostra que as mulheres ainda se colocam e são
colocadas por determinações histórico-sociais em uma situação de subserviência e
subalternidade, e esta condição ultrapassa o meio social, ou seja, é transversal a
todas as classes sociais.
Nas classes populares, que a princípio são a nossa clientela, esta situação se
agrava devido ao fato destas pessoas terem baixa escolaridade, sub-empregos, um
histórico de vida tumultuado, sendo negras e/ou brancas. Constatamos que na
maioria dos casos há ausência de uma estrutura ou de um referencial familiar, o que
leva estas mulheres a criarem um vínculo com o agressor, que está diretamente
relacionado a sua subsistência.
Como demonstram as estatísticas, enfrentamos dificuldades na forma como
os casos são registrados em prontuários, como por exemplo um acidente doméstico
causado por álcool: fica a critério do médico de plantão a forma de registro.
Constatamos que em alguns casos são colocados apenas os agentes causais, como
agentes térmicos, químicos, sem classificar o motivo da queimadura, o que revela
uma não preocupação com a questão social deste paciente.
O objetivo deste trabalho é apontar a dimensão da violência doméstica
vivenciada através do CTQ-A e, então, aproveitamos para pesquisar uma linguagem
pouco utilizada para caracterizar tal fato, que se apresenta através das expressões:
(...) A expressão femicídio íntimo foi introduzida em 1976, no Tribunal Internacional
de Crimes contra Mulheres, sendo retomada nos anos 90, para evidenciar a não
acidentalidade da morte violenta de mulheres; femicídio designa o caráter sexista dos
crimes conjugais, desmascarando a aparente neutralidade dos termos homicídio e
assassinato, e ressaltando que este fenômeno integra uma política sexual de
apropriação das mulheres (ALMEIDA,1997).
Utiliza-se também a noção de sobrevivente (Hoff, 1990), por entender que esta confere
uma dimensão mais afirmativa á categorias subalternizadas, se comparada à de
vítima, indicando que não se trata de categorias passivas, mas inscritas em condições
de vida e em relações de força altamente desfavoráveis. Uma das acepções de
sobreviver é “continuar a viver após (uma coisa insuportável) (ALMEIDA,1997).
1.3 RETRATANDO ALGUMAS FALAS
Como o paciente queimado perde a pele, além de apresentar dor intensa,
apresenta muitas vezes perda dos sentidos e de sua identidade. A mulher que chega
ao CTQ-A já possui um histórico de vida de perdas, sendo a primeira e mais
importante a determinação histórico-cultural: a de ser mulher.
Entre outros, nos casos das usuárias A.L, A.P, J.S, M.P, C.T, A.M, M.T, S.M o
que nos chama a atenção é o fato destas mulheres, na maioria das vezes, retornarem
para o local onde são agredidas. Em um destes casos houve um óbito durante a
internação e em outro, uma mulher separou-se do companheiro agressor. Evidenciase o medo, muitas vezes, em deixar o lar devido a ameaças (relatadas por algumas
vítimas), a expectativa de preservação de suas famílias e a falta de perspectiva
socioeconômica anterior a sua união que determina um modo de vida.
A.L, 21 anos, negra, paciente psiquiátrica, deu entrada no CTQ-A com extensas
queimaduras no pescoço, tronco e braços. Ela tem três filhos, um de cada
companheiro, e é dependente economicamente do seu atual companheiro e agressor.
Quanto aos filhos, um reside com um pai e os outros dois residem com a mãe, sendo
o último não registrado, pois o pai acusa a criança de não ser seu filho. Ela reside
com o agressor há um ano, seu último filho tem meses e na ocasião da alta esta
disse que iria para a casa da avó. A usuária após atendimento (fez um enxerto)
estava na cirurgia plástica aguardando completa cicatrização quando evadiu do
hospital voltando para a casa do agressor. Soma-se aqui a ausência de uma estrutura
familiar, que nunca houve, a privação financeira e o medo de não conseguir suprir
suas necessidades e dos filhos.
A.P, 30 anos, branca deu entrada no CTQ-A vítima de queimaduras no rosto, tronco
e pernas por ácido. Sofreu agressão de uma das amantes do seu ex-companheiro
com quem ela tem um filho. Percebemos a dificuldade dela em compreender que seu
ex-companheiro tem outras mulheres, inclusive uma família constituída. Porém, uma
das amantes persegue A.P. há aproximadamente três anos, ocasião em que o casal
se conheceu e ela engravidou. A.P. trabalha como empregada doméstica sem vínculo
empregatício. Após visita do ex-companheiro, a usuária evadiu do hospital com o
agravante de ainda se encontrar em uma unidade de pacientes graves. Neste caso,
percebemos uma idealização da usuária, em relação à família enquanto estrutura
ideal, e o seu esforço em manter uma aparência de que existe essa estrutura familiar,
deixando claro a sua paixão e obsessão por seu ex-companheiro e a sua baixa estima.
Ele não mais vive com ela, mas alimenta este comportamento da vítima, encobrindo
a atitude da outra mulher, como se quisesse mantê-las todas ligadas a ele.
Isto nos mostra como sob a ótica patriarcal são aceitáveis práticas
poligâmicas, com a concordância das próprias mulheres, segundo o argumento de
que ele é um homem bom, ajuda em casa e não deixa faltar nada para as crianças.
J.S, 22 anos, branca deu entrada no CTQ-A com queimaduras no rosto, pescoço e
braços, correndo o risco de perder uma das orelhas e com hematomas pelo corpo.
Segundo ela, foi um acidente ao esquentar a mamadeira para o filho e aos
hematomas eram devido a uma queda da escada. Constatamos que havia uma
incoerência entre o acidente e o local das queimaduras, e os hematomas pareciam
ser por socos e não por queda (a equipe médica fez o diagnóstico). Ela possui dois
filhos, de pais diferentes, seu atual companheiro é usuário de drogas, envolvido com
o tráfico local. Num primeiro momento de muita dor e consequente fragilidade, está
nos relatou ter sido agredida, depois negou em toda sua internação. Acreditamos que
o companheiro tenha feito alguma ameaça, uma vez que ela, após receber a sua
visita, mudou seu discurso.
J.S., órfã foi criada em casa de parentes e seu irmão por outros parentes, ambos
sozinhos e dependendo da boa vontade alheia. Seu irmão, após uma convocação
nossa, relatou as dificuldades pelas quais passaram e a sorte que ele teve por ter
ficado com uma família mais estruturada. (Será que esta é uma questão também de
gênero a ser tratada?). J.S. teve uma série de desavenças com sua madrinha e
demonstrou seu desapontamento para com esta nos momentos em que mais
precisou, inclusive em sua primeira gestação, pois não a aceitaram e ela teve que
pedir auxílio desesperado a outros, passando por dificuldades.
Fizemos um longo e exaustivo trabalho com seus parentes e com a família de
seu companheiro, que começou a participar das reuniões semanais. Eles acusaram
uns aos outros e, assim, chegamos a um impasse em relação ao destino das crianças
que estavam em situação de risco, pois J.S relatou que a família de seu companheiro,
não aceitava seu primeiro filho e ele estava com sua madrinha (o que deixava a
usuária muito dividida). Devido ao fato de que J.S estava muito insegura para
assumir uma posição em relação à situação, sem o domínio de sua vida e de seu
destino e com medo de perder seus filhos, sugerimos à usuária uma sessão de
trabalho com os dois núcleos familiares e a orientação da psicóloga, o que ela aceitou
sem, no entanto, querer participar (o trabalho interdisciplinar é fundamental nestes
encaminhamentos). Houve um embate inicial com diversas acusações de ambos os
lados, mas o agressor teve a presença maciça de familiares e, do outro lado, somente
a madrinha de J.S, revelando uma falta de estrutura. Por outro lado, a família dele
deu um forte suporte, tentando desmascarar o fato dele ser dependente químico e
de pertencer ao tráfico local. Na ocasião da alta, ela foi para a casa dele. O caso foi
encaminhado ao conselho tutelar.
M.P, 51 anos, negra deu entrada no CTQ-A com queimaduras na face. Casada há 19
anos, não tem filhos, dependendo economicamente de seu marido, que faz biscates.
Segundo os irmãos dela, ambos são alcoólatras, brigam muito há anos, incluindo
agressões físicas, mas eles não se separam. Ela perdeu um filho no parto. Seus
relatos são muito confusos, demonstrando muita ansiedade (talvez síndrome de
abstinência). Uma irmã ofereceu sua casa, mas acredita que ela não vai. Foi
descoberto que havia episódios de crises convulsivas há 18 anos nunca tratadas. Ela
relatou ter tido uma crise passando roupa e se queimou com o ferro (no rosto?). No
momento da alta retornou para casa com seu marido. Orientamos quanto à
necessidade de registrar na DEAM as agressões, mas esta negou. Ela foi
encaminhada para tratamento psiquiátrico e psicológico ambulatorial.
C.T, 49 anos, negra deu entrada no CTQ-A com queimaduras no corpo causada por
álcool. Casada e com dois filhos já maiores de idade, apresenta uma grande
depressão que a levou a tentar o suicídio. Segundo o marido, não teve motivos para
tal fato, mas constatamos que ela sofre violência psicológica pela estrutura do
casamento, por uma crise existencial, pela solidão de não ter com quem compartilhar
seus desafetos, seus problemas, sua vida que sempre foi dedicada aos filhos, à casa,
ao marido. Quando estes ficam mais ausentes por circunstâncias diversas, a mãe,
dona de casa, perde seu referencial. Internada, recebia visitas esporádicas das filhas.
A vítima vive inserida num contexto em que ela própria reproduz o discurso
dominante, pois se diz incapaz e acha que sua vida não tem sentido.
Esta fala pode ser vista segundo análise de Bourdieu (1989), a partir da
coerção imposta pela violência simbólica e pelo fato dos ‘dominados’ utilizarem
categorias de conhecimento e reconhecimento do mundo produzidos pelos
‘dominantes’ (dominados/dominantes- categoria utilizada pelo autor).
A.M, 55 anos, negra, casada, três filhos (sendo que um residia com ela) e um neto.
Alcoólatra, trabalhava em casa. O marido desempregado faz biscates. Ela ateou fogo
ao próprio corpo com álcool e faleceu. Segundo relatos de familiares, sofria de forte
depressão. Aqui é possível observar a questão da autoestima, da dependência
química e econômica. Cabe analisar a inserção do “...sujeito engendrado não só na
experiência de relações de sexo, mas também nas de raça e classe: um sujeito,
portanto, múltiplo em vez de único, e contraditório em vez de dividido” (LAURETIS,
1994:208). Ou, nas palavras de Saffioti, um “...sujeito social constituído enquanto
gênero, raça/etnia, classe” (1994:281).
M.J, 38 anos, parda possui um companheiro, pai dos seus dois últimos filhos.
Trabalha como diarista e ele como cozinheiro em pousada nos finais de semana e
feriados. Ela é proprietária da casa onde residem. Alegou agressão no início de sua
internação e estava decidida a fazer uma queixa à DEAM na ocasião da alta. Durante
sua internação, não teve receptividade de seus familiares, que inicialmente se
prontificaram a ajudá-la. Na ocasião da alta, não quis levar o relato social e da saúde
mental para dar queixa e foi embora com o agressor.
S.M, 29 anos, parda, dois filhos, deu entrada no CTQ-A com queimaduras por álcool.
Alegou agressão pelo companheiro. Segundo ela, ele se sentia dono dela, não a
deixando sair de casa para nada, apenas para trabalhar. Trabalhava fazendo biscates
lavando roupas, próximo à sua casa. Reside próximo aos familiares. Separou-se do
marido e, apesar de receber inúmeras orientações, não quis denunciá-lo, e ainda
sofre ameaças de agressão.
Consideramos que estas situações vivenciadas no cotidiano do CTQ-A, com
seu atendimento e assistência, não deve ser desvinculado do processo histórico de
luta e opressão das mulheres. Por este motivo, desenvolvemos pesquisas visando a
aprofundar nosso conhecimento sobre essa questão.
2. GÊNERO / OPRESSÃO E SAÚDE
Historicamente a mulher sempre foi culpada pelo fracasso da família, seja com
o marido ou com os filhos. “Se o homem preferir o exterior, as luzes do cabaré e se
as crianças preferirem as ruas, seu espetáculo, sua promiscuidade, será culpa da
esposa e da mãe” (Donzelot, 1980), ou seja, da incapacidade da mulher de gerir e
organizar o espaço o qual “naturalmente” a ela pertence: o lar.
Desde o momento do nascimento, homens e mulheres sofrem elaborações
sociais que acabam por delimitar o que lhe é pertinente, os lócus de cada um e suas
próprias características (homem não chora, homem é forte, mulher é frágil e meiga).
É neste contexto que, social e historicamente, é delegado ao homem a posição de
tutor da mulher (representado simbolicamente pela entrega da noiva pelo pai, ao
futuro marido na cerimônia do casamento). E à mulher cabe o papel de ser “boa mãe
e boa esposa”.
Estes conceitos sociais reproduzem costumes que são introduzidos nos
indivíduos. Estes hábitos são definidos como a identidade de gênero. Logo se a
“dominação masculina” é instituída e perpetuada pelo social e as próprias mulheres
são coniventes com este padrão, elas reforçam o mesmo, ao reconstituir e reproduzir
esta situação que é secular; “as mesmas discriminações que atribuem às mulheres
as ocupações contínuas e invisíveis são instituídas sob nossos próprios olhos”
(Bourdieu, 1989).
Desigualdades oriundas da cultura que historicamente atribui papéis
diferenciados a homens e mulheres na sociedade, é um assunto que deve ser tratado
como questão de gênero. Neste sentido:
Gênero é um processo através do qual indivíduos que nasceram em categorias
biológicas de machos ou fêmeas tornam-se categorias sociais de mulheres e homens
pela aquisição de atributos de masculinidade e feminilidade, definidos localmente...
Adotar uma perspectiva de gênero é distinguir o que é natural e biológico, o que é
social e culturalmente construído e, no processo, renegociar as fronteiras entre o
natural-e, por isso mesmo, relativamente inflexível-e o social – relativamente
transformável (Kabeer,1990).
“Gênero é uma ‘construção’ formada pelas relações entre mulheres e homens, que
não são determinadas pelo sexo com o qual nascemos, mas pelo contexto político e
econômico em que vamos crescer, ser educados, trabalhar, amar” (Instituto Teotônio
Vilela,1998).
Gênero é um conceito que se refere às relações entre mulheres e homens, mulheres e
mulheres e homens e homens, as quais são determinadas pelo contexto econômico,
político e social...Para compreender gênero é necessário esclarecer as relações de
poder que permeiam todas as relações sociais: de classe, raça/etnia (Instituto Teotônio
Vilela,1998).
A igualdade de gênero significa que as mulheres e homens desfrutam do mesmo
estatuto. Significa que mulheres e homens têm condições iguais para realizar
plenamente seus direitos humanos e potencial para contribuir para o desenvolvimento
nacional, político, econômico, social e cultural, bem como para se beneficiar dos
resultados desse desenvolvimento (Jornal da Rede Saúde,1999).
Dentro desta perspectiva, a violência contra a mulher está tão naturalizada,
que se faz presente no nosso cotidiano em pequenas situações, sem que ao menos
percebamos. Por exemplo, quando um pai/mãe permite que o filho faça algo e a filha
não, justifica–se, dizendo: ele é um homem e, por isso, pode agir de tal maneira.
Há cerca de dois séculos, os homens agrediam suas mulheres como forma de
castigá-las por seus “erros”. Até hoje presenciamos formas de agressão. A violência
inicia-se pelo simples fato dela pertencer ao gênero feminino.
Entendemos que a democracia só se efetiva a partir do momento que haja
relações igualitárias e para isso, devemos garantir um espaço de luta contra a
violência doméstica e sexual.
A violência de que são vítimas as mulheres determinam, muitas vezes, o modo
como ela adoece. Ao levar em consideração a saúde como um processo, como uma
construção social e de gênero, torna-se mais claro compreender a partir da posição
de subordinação como é construída a sua subjetividade. E sofrer alguma forma de
violência tem consequências sobre sua saúde.
Desta forma, constatamos no CTQ-A, através dos casos descritos, que as
mulheres enfrentam conflitos em suas relações familiares, no casamento, na criação
dos filhos, na separação, na maturidade e no trabalho.
Assim, a inclusão do conceito de gênero como instrumento para compreensão
e reformulação dos transtornos psicológicos seria uma importante ferramenta para
garantir uma abordagem apropriada à questão da saúde da mulher.
Atendimentos à Saúde da Mulher
O PAISM (Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher), trouxe como
uma de suas inovações, particularidades das relações de gênero na atuação à saúde
da mulher colocando em pauta a igualdade de acesso aos direitos reprodutivos como
o programa de planejamento familiar.
O programa voltado para as questões da reprodução e a saúde da mulher foi
um avanço e uma conquista da luta dos movimentos feministas. Mas, considerando
a precariedade e o desmonte das políticas públicas, este programa passa a ter cada
vez mais novas demandas e novas frentes como a questão decorrente da violência
que é vista como questão de saúde pública. Muitas mulheres que sofrem violência
doméstica procuram os hospitais de emergência e os pronto socorros com queixas
diversas, mas a equipe de saúde não está preparada para atender tal demanda.
As queixas são diversas: desde cefaleia, sangramentos, depressões, etc., mas
não existe ainda preparo por parte dos profissionais da saúde para escutarem tais
queixas, traduzi-las numa demanda e trabalhar com estas questões. É um desafio. E
está posto.
2.1 GÊNERO/VIOLÊNCIA E OS ATENDIMENTOS NO CTQ-A
“A rotina de atendimento frequente a sobreviventes de violência / utiliza-se a noção
sobrevivente, por se entender que esta confere uma dimensão mais afirmativa
categoria subalternizadas” (Hoff, 1990).
Este espaço que a mulher ainda ocupa na sociedade e que é reforçado através
de mecanismos muito subjetivos, expressos em signos, em representações que
permeiam, atravessam, transpassam as relações sociais, e também através de
mecanismos muito objetivos, o da máquina estatal, que legitima este poder,
compactuando com o sistema, na medida em que não toma iniciativas constatadas
pela ineficácia e/ou ausência de políticas públicas efetivas e pelo grau de
tolerância/conivência sustentados pelo aparato policial-judiciário.
Com o intuito de trabalhar esta questão em toda sua complexidade, é
necessário ampliar as esferas da assistência e da efetivação de estratégias
preventivas. O objetivo não é desvendar em sua totalidade toda a problemática vivida
pela mulher, mas compreender e apreender os processos determinantes, tais como:
pertencer a um gênero que ainda é minoria e, por este motivo, vivenciar
cotidianamente situações de violência, e ao mesmo tempo esclarecer a naturalização
e banalização de determinadas situações e valores. O espaço que a mulher ainda
ocupa é uma situação grave e que merece ser tratada como questão de saúde
pública.
Muitos atendimentos estão relacionados a questões focais do interesse e
resolução de cada caso, outros vão além do caso único encontrado no CTQ-A do
HMSA. Por esta razão, o debate é ampliado e requer uma abordagem contextualizada
que exprima a violência de gênero como fenômeno de dimensões públicas, e não
como fenômenos individualizados, de caráter doméstico-privado.
O caráter excludente do modelo capitalista traz consigo a reprodução e o
aumento das desigualdades sociais e das representações de poder, legitimadas pelo
aparato estatal. Assim, percebe-se a necessidade de uma intervenção teóricometodológica com a elaboração de estratégias de ação relacionadas às diretrizes da
profissão, através de uma ótica ético-política, que possa contemplar as classes
populares e redimensionar a questão da violência de gênero.
Observa-se que há todo um contexto social explicitado através da ausência
de políticas públicas efetivas, como o avanço do neoliberalismo e a consequente
retirada de insumos para as demandas relativas à saúde, trazendo consequências
graves para a população. Também se inserem práticas curativas longe do ideário da
reforma sanitária, o acesso da população à saúde é muito precário e os programas
preventivos insuficientes.
A população adoece, chegando muitas vezes a apresentar patologias graves,
que poderiam ser diagnosticadas previamente nos postos de saúde. Vivemos em uma
cultura do desrespeito aos direitos humanos, que são transgredidos pelas instituições
educacionais, de saúde, habitação, policiais-judiciárias, pelo próprio Estado, e estão
cristalizadas nas representações dos agentes que reproduzem o discurso dominante.
Foucault (1982) relaciona as formas de poder como transversais ao nosso
cotidiano; elas estão presentes, permeando todas as relações dos indivíduos e não
são verticais. Portanto, se todos sofrem as ações de poder, podem também criar
condições de disputá-lo, de resistir, o que nos coloca a possibilidade de luta e de
construção de um contra poder. As relações de poder não são, para este autor,
instituídas pelo Estado de uma forma verticalizada, são instituídas também pelos
indivíduos e grupos sociais através de formas de resistência, de negação e de luta.
Esta referência é útil para analisarmos as relações de poder na família,
considerando que a perspectiva vitimista que coloca o gênero feminino em lugares
subalternizados, onde se inscrevem relações de força, também se exercem de baixo
para cima. Ou seja, essas relações são reproduzidas por aqueles que constituem a
família, inclusive pela mulher, ou podem, em outra instância, ser redimensionadas
por aqueles que ocupam lugares subalternizados, se transformando em esferas de
contra poder.
Constatamos que a violência contra a mulher tem reflexos importantes na
saúde física, psicológica e/ou sexual. A mulher sofre preconceito e discriminação e é
colocada em situação subalterna. A partir deste ponto inicia a violência psicológica.
Muitas vezes a mulher não chega a sofrer violência física e/ou sexual, mas a pressão
à qual ela é submetida por todo um contexto social e histórico faz com que adoeça
física ou psicologicamente, chegando a ter sérias crises de depressão, que por sua
vez são diagnosticadas nos postos de saúde ou nos prontos socorros como um
problema para o clínico geral ou outra especialidade.
Consideramos de extrema importância o parecer médico para o diagnóstico e
o encaminhamento das questões, mas os profissionais que atuam na área (a equipe
de saúde) não estão prontos para atender e diagnosticar casos de violência doméstica
e/ou sexual sofridos pela mulher.
Há um processo de medicalização por um lado ou de criminalização por outro,
como se esta questão tivesse que ser resolvida na esfera da segurança pública ou da
justiça. Entretanto, este assunto merece uma abordagem conjunta, pois envolve
relações interpessoais e uma desigualdade de gênero determinada historicamente.
Há muitas interfaces nesta questão e, tratá-las como um assunto interdisciplinar e
interinstitucional, é um desafio pertinente.
2.2 Fatores de inibição ao enfrentamento da violência
As principais questões que dificultam o atendimento integral às pacientes
vítimas de violência e que fazem estas mulheres silenciar são, segundo pesquisa
efetuada pela Rede Mulher, a total dependência das vítimas aos agressores.
Geralmente são mulheres que não trabalham ou nunca trabalharam, possuem baixo
nível de escolaridade, não possuem apoio da família e, quando trabalham, não
conseguem prover as necessidades de sua família com seus salários.
Percebemos nas entrevistas realizadas no CTQ-A que, além da questão
socioeconômica, permanecem com seus companheiros por questões socioculturais,
crenças que justificam um certo grau de violência doméstica, associadas a fatores
comportamentais dentro do casamento e em sociedade, como o controle da mulher
fazendo parte do casamento. A hierarquia onde o casal se situa, normalmente, coloca
o homem em situação de maior poder, o que lhe permite definir as regras que mais
lhe convém, e há uma naturalização destas questões.
Existe um medo por sentirem-se culpadas pela agressão (reproduzindo
representações socioculturais), medo do agressor e ausência de respaldo das
instituições e da sociedade, pois sem uma ampla política de efetivação de combate à
violência doméstica não terão respaldo para suas atitudes. As mulheres se sentem
humilhadas ao expor o problema por não encontrarem legitimidade social nas
instituições e órgãos responsáveis. Há uma falta de recursos por parte do Estado,
tais como: abrigos ou instituições para que essas mulheres possam recomeçar suas
vidas. E quando estão em abrigo, necessitam de um encaminhamento para retomar
o curso de suas vidas, tendo o abrigo como um meio e não como um fim.
O acesso destas mulheres às delegacias comuns é difícil. Muitas quando
decidem prestar queixa relatam que são humilhadas pelos profissionais destas
instituições, ou que a pena que seus companheiros tiveram que pagar como uma
multa, cesta básica, ou um trabalho comunitário em nada resolveram seus
problemas, pois o agressor continua ameaçando a vítima. Com a criação das DEAMs
este quadro melhorou, mas isoladamente não resolverá o problema da efetivação de
estratégias
preventivas,
que
requerem
uma
complexidade
de
ações
interinstitucionais e políticas públicas mais eficientes que combatam e violência de
gênero.
Conclusão
Este trabalho foi baseado nas vivências e experiências como assistente social
do CTQ-A. Ao trabalhar com pessoas queimadas, faz-se uma leitura do processo de
vida em que estas pessoas estão inscritas e que as levam a sofrer tais acidentes dos
quais muitas vezes são fatais.
Chamou atenção o fato da maioria das mulheres no CTQ-A, serem vítimas de
acidente doméstico ou de tentativas de suicídio. O debate acadêmico e as pesquisas
sobre o universo feminino foram aprofundadas, incluindo a questão de gênero. Há
uma tentativa de apontar o fato de que a maior parte dos casos de acidente
doméstico é causada por relações violentas no espaço privado, no lar.
Inclusive nas tentativas de suicídio, é possível observar a questão da violência
física ou psicológica redimensionando este fenômeno. Sistematizar a pesquisa e
tornar estes dados visíveis foi um momento significativo no processo de trabalho. No
entanto, ele não se esgota aqui, muito pelo contrário, a partir dele foram levantadas
propostas para encaminhamento dos casos de violência contra a mulher e o mesmo
sensibilizou a equipe para tal fato.
O desafio do Serviço Social consiste em fazer uma leitura permanente das
demandas apresentadas e trabalhá-las, seja através das entrevistas, da escuta ou
dos encaminhamentos. Além de trabalhar a cidadania aliada à Ética e aos Direitos
Humanos, transformando este espaço – CTQ-A – tão doloroso em uma possibilidade
de apontar novos rumos, novas dimensões políticas, novos caminhos para revermos
a questão da violência doméstica como uma questão de saúde pública.
Referência Bibliográfica
1. ALMEIDA, Suely S. Femicídio: algemas (in) visíveis do público- Privado. Rio de
Janeiro: Revinter,1997.
2. BARROS, Nívia Valença e Sochaczewski (org.) Violência: Múltiplas abordagens.
UFF, Niterói, Rio de Janeiro, 1999.
3. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A, 1989.
4. CABRAL, Mara Aparecida Alves. Prevenção da violência conjugal contra a mulher.
In: Ciência & Saúde Coletiva, 4(1): 183-191, 1999.
5. CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Editora Cultrix, 1982. Tradução
de: Álvaro Cabral.
6. CASSORLA, Roosevelt M.S., O que é o Suicídio. Coleção Primeiros Passos. Editora
Brasiliense, 4a. Edição, 1992.
7. COSTA, Jurandir F. Ordem Médica e Norma Familiar, Rio de Janeiro: Editora Graal,
2a. Edição,1983
8. COSTA, Suely G. Signos em Transformação: A dialética de uma Cultura
Profissional, São Paulo: Cortez, 1995.
9. COUTINHO, Maria Lucia Rocha. Tecendo por trás dos Panos, Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 1996.
10. 10.COUTINHO, Guaraciara Barros. In: O Paciente Grande Queimado – Uma
Abordagem Biopsicossocial, Rio de Janeiro, 1999.
11. DONZELOT, Jacques. A Polícia das Famílias, Rio de Janeiro: Graal. 1980.
12. EM PAUTA – Revista da Faculdade de Serviço Social da UERJ no.1 (nov. 1993).
Rio de Janeiro: UERJ,1993.
13. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 3a.ed. 1982.
14. GROISMAN, Moisés – Histórias Dramáticas: terapia breve para famílias e
terapeutas/Moisés Groisman, Mônica de Vicq Lobo, Regina Maria Annibal Cavour
– Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1996.
15. GUATARRI, Félix, ROLNIK, Suely – Cartografias do Desejo – 1986. Editora Vozes.
16. HOFF, 1990. In: Almeida, Suely S. Femicídio: algemas (in) visíveis do públicoprivado. Rio de Janeiro: Revinter, 1997.
17. JORNAL DA REDE SAÚDE No.22 – novembro 2000.Informativo de Rede Nacional
Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos.
18. KABEER,1990. In: INSTITUTO TEOTÔNIO VILELA. Mulher; da luta e dos direitos/
Angélica Monteiro e Guaraciara Barros Leal – Brasília, 1999, (Coleção Brasil, 3).
19. MARCONSIN, Cleier. Violência de Gênero e Direitos Humanos da Mulher. In: Em
Pauta, Revista da Faculdade de Serviço Social da UERJ, no.15, Rio de Janeiro,
1999.
20. MS/XI CNS. In: Legislação básica do SUS, A construção do SUS no Brasil, Brasília,
CNS/MS/XI CNS:7.
21. NOLASCO, Sócrates. Mito da Masculinidade, Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1993.
22. SAFFIOTI, Heleieth I.B. A mulher na Sociedade de Classes: mito e Realidade,
Petrópolis: Editora Vozes, 1976.
23. Almeida, Suely. Violência de gênero: poder e impotência, Rio de Janeiro:
Revinter, 1995.

Documentos relacionados