OLIVEIRA, Tiala N. D. de.

Transcrição

OLIVEIRA, Tiala N. D. de.
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO
CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA E
PRESERVAÇÃO PATRIMONIAL
Tiala Negreiros Dias de Oliveira
URNAS FUNERÁRIAS DO PARQUE NACIONAL SERRA DA
CAPIVARA: morfologia e decoração
São Raimundo Nonato – PI
2010
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO
CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA E
PRESERVAÇÃO PATRIMONIAL
Tiala Negreiros Dias de Oliveira
URNAS FUNERÁRIAS DO PARQUE NACIONAL SERRA DA
CAPIVARA: morfologia e decoração
Trabalho apresentado a Universidade Federal
do Vale do São Francisco - UNIVASF, Campus
Serra da Capivara, como requisito da obtenção
do título de Bacharel em Arqueologia e
Preservação Patrimonial.
Orientador: Prof. Msc. Mauro Alexandre Farias
Fontes
São Raimundo Nonato – PI
2010
3
4
5
Agradecimentos
Primeiramente agradecer a Deus por ter me concedido mais um lugar ao
mundo.
Ao meu orientador Prof. Msc. Mauro Farias pelas constantes ajudas,
incentivos e puxões de orelha nos momentos (in)certos.
Aos professores que compõem a banca; Dr. Celito Kestering pelas
correções e sugestões ao trabalho e Nívia Paula que mesmo se tornando
professora do Colegiado não deixou de ser a amiga de todas as farras e dos
velhos passeios. O meu muito obrigada pela enorme colaboração e pelos
conselhos. Você sabe o quanto foi essencial.
Ao pessoal do ABHA. As meninas e ao nosso motora e companheiro
Sebastião. A Fátima Barbosa pelas orientações e dedicação ao projeto. O
crescimento a partir desse trabalho foi mais do que profissional. Obrigada pelos
muitos momentos e (in)decisões compartilhadas.
Aos professores Neto e Vívian e à melhor equipe de escavação – Equipe
Inhame (Filipe, Lívia, Alano, SebasTiago gostoso, Tânia, Pâm, Rafa, Jouran Xi...,
Nêga e Cínthia)
As meninas da biblioteca que me ajudaram todos esses anos - Rochele e
Eliene valeu pela paciência. À galera da FUMDHAM – Iva, Leandro e Galeguinho
pela ajuda nos momentos em que precisei.
À Joyce Holanda que me auxiliou na pesquisa laboratorial. Eu sei
reconhecer que boas e sinceras atitudes não são cabíveis a todos. Ao Japa pela
enorme ajuda e pela paciência.
A galera da turma A1 – os eternos veteranos e turma A2 que ingressou
juntamente comigo nessa universidade, onde alguns não quiseram me esperar
para concluir o curso, ainda assim eu perdoo vocês.
Aos melhores amigos – Sâm, Tia Carol, Telemar, Thalison e Cínthia. Os
meus dias ganharam mais força e os meus sentimentos aumentaram o tamanho.
Ao pessoal do barzinho – Gelinha, Danilo e Robinho.
Ao eterno e Velho Dimas. As discussões ainda que embriagadas me
fizeram perceber o quanto nossos dias foram importantes. Esse trabalho não seria
concluído sem nossos momentos de lazer. Valeu pela força amigo nos bons e
difíceis momentos.
A galera de casa – mamis, papis e Tatys. Os melhores e mais importantes
aprendizados eu tive com vocês. Todo o meu respeito e admiração pelos
exemplos de honestidade e humildade em todas as situações, vocês me orgulham
disso. Nunca foi possível existir construção alguma sem a segurança que sempre
me foi passada. Três figuras que se destinaram a ser o meu porto seguro e até
hoje cumprem com a promessa.
À Júlia pelas palavras sinceras, pelo sentimento verdadeiro e pela paciência
desses últimos momentos. Consegui pacientemente aprender que, quando
queremos, conseguimos mudar nossos sentimentos e tornar nosso coração menos
egoísta; que biscoito deve ser comido com catchup, que o leite não precisa ser
adoçado, que se pode comer pizza no almoço e que um bom filme acompanhado
de pipoca e refri são suficientes pra mudar o nosso dia.
E, por fim, mas nem um pouco menos importante agradeço ao meu
pequeno polegar com quem dividi dias sonolentos e noites na ativa. Que me
ensinou que o dia tem que ter obrigatoriamente mais de 24hs e que, é necessário
e essencial acordar com um longo sorriso mesmo que não se esteja vendo
ninguém. Realmente existem situações que não precisam ser explicadas aos
normais. Obrigada simplesmente por existir.
6
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo identificar padrões morfológicos e
decorativos – tratamento de superfície externa e interna – das urnas funerárias
do Parque Nacional Serra da Capivara e entorno. A pesquisa foi desenvolvida
a partir de um levantamento bibliográfico, imagético e cartográfico no acervo da
Fundação Museu do Homem Americano, bem como da classificação de tais
elementos componentes das urnas funerárias. Analisou-se um universo
vestigial de 25 urnas de cinco sítios arqueológicos; Toca do Gongo I ou Toca
do Jorge, Toca da Baixa dos Caboclos, Toca do Serrote do Tenente Luís,
Canabrava e São Brás. A constatação de recorrência no universo vestigial
analisado dá suporte ao levantamento de hipóteses acerca de como eram
tratados os receptáculos que iriam receber os corpos de indivíduos mortos.
Palavras-chave: Enterramento. Urnas funerárias. Parque Nacional Serra da
Capivara.
7
ABSTRACT
The present work aims to identify morphological and decorative patterns internal and external surface treatment - the funerary urns of the Serra da
Capivara National Park and surrounding. The research was developed from a
literature, imagery and mapping survey in the collection of the Fundação Museu
do Homem Americano, and the classification of such component elements of
funerary urns. It was analyzed a total of vestigial universe in 25 urns of five
archaeological sites, Toca do Gongo I or Toca do Jorge, Toca da Baixa dos
Caboclos, Toca do Serrote do Tenente Luís, Canabrava and São Brás. The
finding of recurrence in the vestigial universe analyzed supports the survey of
hypotheses about how were treated the elements that would receive the bodies
of individuals death.
Keywords: Burial. Funerary Urns. National Park Serra da Capivara.
8
SUMÁRIO
RESUMO...........................................................................................................06
ABSTRACT.......................................................................................................07
INTRODUÇÃO...................................................................................................10
1
ARCABOUÇO TEÓRICO E METODOLÓGICO.....................................15
2
IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS
PARA A ARQUEOLOGIA......................................................................25
2.1
UTILIZAÇÃO DOS ELEMENTOS CERÂMICOS PARA A
ACOMODAÇÃO DO CORPO................................................................32
3
CARACTERIZAÇÃO DOS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS DO PARQUE
NACIONAL SERRA DA CAPIVARA......................................................35
4
3.1
CANA BRAVA...............................................................................37
3.2
SÃO BRÁS...................................................................................38
3.3
TOCA DA BAIXA DOS CABOCLOS............................................39
3.4
TOCA DO GONGO I OU TOCA DO JORGE...............................41
3.5
TOCA DO SERROTE DO TENENTE LUÍS..................................42
ANÁLISE DOS ELEMENTOS QUE COMPÕEM AS
URNAS FUNERÁRIAS...........................................................................45
4.1
SÍTIO CANA BRAVA....................................................................45
4.2
SÍTIO SÃO BRÁS.........................................................................47
4.3
SÍTIO TOCA DA BAIXA DOS CABOCLOS..................................47
4.4
SÍTIO TOCA DO GONGO I OU TOCA DO JORGE.....................50
9
4.5
SÍTIO TOCA DO SERROTE DO TENENTE LUÍS.......................51
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................55
REFERÊNCIAS.................................................................................................58
10
INTRODUÇÃO
A Arqueologia utiliza-se da cultura material e toda uma gama de fatores
que se encontra envolvida no cenário pesquisado para entender as relações
que aconteceram em algum ambiente específico. Entende-se por cultura
material todos os restos materiais encontrados (artefatos, ecofatos e biofatos)
produzido por grupos humanos.
É através do estudo dessa cultura material inserida em um contexto
funerário que se tenta entender as relações que abarcavam o universo dos
indivíduos em vida. Essa cultura material carregada de elementos simbólicos
irrecuperáveis só poderá ser observável arqueologicamente.
Esses artefatos4 ou essa cultura material produzida por determinados
grupos e dentro de um contexto específico compõem o que se conhece como
enxoval ou acompanhamento funerário5. Todos os elementos que se
encontram enterrados juntamente com o corpo do morto, variando desde
materiais que são ofertados no momento da morte até os meios que servem de
acomodação ao corpo do indivíduo, compõem o enxoval fúnebre de
determinado enterramento. O enxoval diferencia-se das práticas, uma vez que,
essas últimas, além de conter os artefatos, abarcam também o universo
simbólico que os mesmos possuem.
Através da análise dos materiais encontrados nas escavações constróise um discurso plausível, não encontrando uma verdade absoluta, mas
tentando aproximar-se do que ocorreu no passado.
4
Segundo BICHO (2006) artefatos são objetos portáteis ou móveis que foram transformados e
manufaturados por mão humana, bem como os restos deixados resultantes dessa produção.
Para além disso, estão incluídos neste grupo também todos os vestígios faunísticos e de flora
resultantes das atividades humanas mas que não são utensílios e que Binford (1964) designou
ecofatos. Alguns destes vestígios orgânicos não evidenciam alterações antrópicas, mas como,
foram resultado das atividades humanas, devem ser considerados como elementos de
localização de uma mancha de ocupação humana e, logo, indicativos de um sítio
arqueológico”.
5
O enxoval funerário abarca toda a cultura material associada ao morto; material lítico,
cerâmico e de origem vegetal (contas de colar, carvão, etc)
11
Os estudos referentes a essa temática no Parque Nacional Serra da
Capivara são escassos quando relacionados a outros temas abordados, tais
como; registros rupestres e materiais líticos. Existem relatórios das campanhas
de escavação, alguns artigos descritivos sobre o que fora encontrado nos sítios
escavados, pesquisa de conclusão de curso de alguns alunos da Universidade
Federal do Vale do São Francisco e poucos trabalhos de pesquisadores de
outras instituições.
Vale ressaltar que, dentre os trabalhos científicos apresentados da
UNIVASF dois deles voltam-se para a caracterização das práticas funerárias
relacionadas ao contexto geológico/geomorfológico da região. Outro trabalho
realizado tem o objetivo de encontrar padrões de enterramentos, visualizando
as formas que o corpo do morto recebeu bem como sua acomodação ao solo 6.
Dentre os pesquisadores de outras instituições encontram-se os trabalhos de
Daniela Cisneiros (2003) e Viviane Castro (2009) que estudam as práticas
funerárias no Nordeste, ressaltando alguns enterramentos encontrados em
nossa área de estudo.
A temática sobre o acompanhamento funerário não foi, até o presente
momento, objeto de estudo ou análise arqueológica, tornando-se assim uma
pesquisa inédita sobre o referido assunto. O presente trabalho tem como
objetivo estudar os artefatos cerâmicos que compõem o enxoval funerário.
Esse estudo reúne elementos importantes contribuindo assim para uma
abordagem maior configura como práticas funerárias. Essa pesquisa,
juntamente com trabalhos sobre outros elementos que se encontram em um
contexto funerário, poderá, num futuro, revelar como se davam as relações
entre os indivíduos considerando que a morte se configura como um dos
momentos mais carregados de simbolismos.
6
COSTA, Ilca Pacheco da. Caracterização das práticas funerárias nos sítios abrigos da área
arqueológica Serra da Capivara – PI. MORAIS, Claudeilson Santos de. Caracterização das
práticas funerárias dos sítios arqueológicos Toca do Serrote da Bastiana e Toca do Barrigudo,
na área arqueológica Serra da Capivara – PI. OLIVEIRA, Roberto Costa de. Análise dos sítios
arqueológicos com enterramentos pré-históricos do Parque Nacional Serra da Capivara – PI.
12
Assim, parte-se do seguinte problema: As urnas funerárias dos sítios
arqueológicos do Parque Nacional Serra da Capivara apresentam quais tipos
de tratamento de superfície externo e interno e quais morfologias?
Para responder ao seguinte questionamento fez-se um levantamento
bibliográfico, imagético e cartográfico no acervo da Fundação Museu do
Homem Americano. Esse levantamento resultou na criação de um banco de
dados em que se pode identificar recorrências dentro de um universo de
componentes cerâmicos utilizados no momento da confecção dos vasilhames
cerâmicos utilizados no mobiliário fúnebre como forma de enterrar o ente
querido.
Com os resultados obtidos na análise verificou-se a existência de
diferenças e semelhanças nas morfologias das urnas ou dos tratamentos de
superfície empregados nos objetos cerâmicos dos enterramentos do Parque
Nacional Serra da Capivara. Ampliou-se a compreensão de recorrências nas
formas ou nos tratamentos de superfície externo e interno das urnas funerárias.
Sabe-se que os grupos humanos que ocuparam essa região possuíram
uma gama de opções ambientais que possibilitaram desenvolver uma
variedade grande de técnicas para confeccionar as urnas cerâmicas. E dentro
desse contexto que nossa pesquisa possibilitou perceber quais foram esses
elementos técnicos utilizados nos diversos sítios arqueológicos em cronologias
diferentes.
Partindo do pressuposto de que o contexto funerário abarca uma
variedade de elementos, tais como; posição em que o indivíduo se encontra,
tipo de acomodação que foi dada ao corpo no momento da morte ou posterior a
ela, relação com outros artefatos que se encontram presentes nos sítios, mas
que não se encontram associados aos mesmos. O levantamento que foi feito
ficou restrito apenas aos elementos cerâmicos da cultura material que,
compondo o enxoval funerário servem como uma forma de acomodação para o
corpo.
Dentre os objetos da cultura material que compõem os enxovais
funerários, os objetos cerâmicos de longe são os que mais estão presentes nos
13
ritos de inumação dos corpos, uma vez que a argila pode ser empregada não
somente no uso cotidiano para acondicionar alimentos, mas também como
objetos decorativos e na confecção de vasilhames empregados para acomodar
enterramentos, as urnas funerárias.
O trabalho foi dividido em quatro capítulos para uma melhor
apresentação dos dados. No capítulo 1 intitulado de “Arcabouço Teórico e
Metodológico” apresenta-se o corpo teórico dos estudos em práticas funerárias
que ocorreram nos limites da ciência arqueológica. Apresenta-se a discussão
dos conceitos de Arqueologia da Morte e Arqueologia das Práticas Funerárias,
os tipos de enterramentos que podem ser encontrados em um sítio bem como,
todo o procedimento que foi necessário para que esse trabalho pudesse ser
concluído. Põe-se à vista desde a pesquisa bibliográfica, passando pelo
levantamento imagético e cartográfico, até a análise prática dos tratamentos
realizados nas urnas funerárias.
No segundo capítulo apresentam-se alguns debates relacionados às
práticas funerárias que ocorreram ao longo da história da Arqueologia, o início
dessas práticas e sua trajetória nos grupos pré-históricos, bem como, a
importância desse tipo de estudo para a ciência arqueológica e a utilização de
vasilhames cerâmicos dentro do universo funerário. Uma discussão acerca
desses acontecimentos faz-se necessária nesse contexto, para que possam
ser feitas inferências considerando que todo trabalho deve ter uma base
primeira para possuir sustentação lógica e coerente.
No capítulo 3 apresenta-se uma caracterização das urnas funerárias
encontradas nos sítios arqueológicos do Parque Nacional Serra da Capivara e
entorno; Cana Brava, São Brás, Toca da Baixa dos Caboclos, Toca do Gongo I
ou Toca do Jorge e Toca do Serrote do Tenente Luís. A intenção desse
capítulo é uma breve apresentação das características gerais dos sítios bem
como uma descrição minuciosa dos tratamentos da superfície interna e externa
e as morfologias desses vasilhames cerâmicos.
O quarto capítulo trata da discussão acerca dos dados obtidos
apresentando a análise realizada a partir de gráficos. Através da análise
14
realizada buscou-se identificar recorrências na utilização de elementos
componentes das urnas funerárias, bem como quantificar as mesmas.
Juntamente com os trabalhos já realizados nessa área, esse
levantamento contribui para as pesquisas do Parque, uma vez que essa
investigação é única dentre os trabalhos realizados. Esses dados servirão de
subsídios juntamente com pesquisas já realizadas e estudos que ainda
poderão ser feitos sobre a temática para entender sobre as práticas funerárias
que os grupos da região realizavam. O momento da morte pode ser
considerado como uma das ocasiões em que os indivíduos mais aplicam
materialidade aos seus sentimentos.
15
1
ARCABOUÇO TEÓRICO E METODOLÓGICO
Neste capítulo define-se o corpo teórico dos estudos em práticas
funerárias dentro da ciência arqueológica. Apresenta-se um breve histórico
dessas práticas, o estudo das mesmas em algumas correntes teóricas
arqueológicas e, a metodologia empregada para a realização deste trabalho.
As práticas funerárias podem ser definidas como rituais em que se
aglomera uma gama de significados e significantes produzidos pelos indivíduos
que reverenciam o corpo do morto. Essas práticas particulares, carregadas de
uma simbologia pré-estabelecida refletem na Arqueologia resultando em
artefatos encontrados em contexto funerário, oferecendo oportunidade para
interpretações.
Segundo Gomes (2004) apud Bonjardim e Vargas o significado é o
idealizado, o universo simbólico, a imagem mental produzida pelo significante
e, este, seria a representação material, a idéia solidificada.
O termo Arqueologia da Morte surgiu na Inglaterra e nos Estados Unidos
na década de 1970, mas seguiu para outros países com uma pequena variação
de nomenclatura. Esse termo surgiu para os estudos arqueológicos das
práticas, ritos e simbologias da morte.
De acordo com Py-Daniel (2009), a Arqueologia da Morte pode ser
considerada como uma sub-disciplina da Arqueologia que interage de maneira
íntima com a Antropologia Física, a Antropologia Forense (Arqueologia
Forense) e, principalmente a Tafonomia.
Esse conceito encaixa-se em uma vertente dentro dos estudos da
Arqueologia Processual e que, segundo Cisneiros (2003), constitui um campo
de investigação centrado no estudo e interpretação dos enterramentos,
dividindo-os em quatro grandes áreas: área funerária (forma, demarcação,
relação com o habitat e organização interna dos cemitérios), tumba (forma,
orientação, investigação de energia empregada em sua construção e número
de indivíduos sepultados), corpo (tratamento, disposição, antropologia física,
16
paleopatologia, ADN e paleodemografia), e acompanhamentos (classe,
quantidade, origem, valor, riqueza e disposição microespacial).
A Arqueologia da Morte visa à interdisciplinaridade para preencher
lacunas entre a Antropologia Física e a Arqueologia, propondo assim, uma
análise conjunta entre os sepultamentos em si e o contexto funerário. De
acordo com Py-Daniel (2009) essas etapas, de estudo específico do corpo e do
sepultamento, associadas a observações contextuais do sítio arqueológico em
geral, permitem mostrar a intencionalidade de um sepultamento e traduzem os
gestos funerários, diferenciando-os das ações naturais (Fig. 1).
Forma
Orientação
Energia investida
Número de
indivíduos
Antropologia Física
Paleopatolotogias
ADN
Paleodemografias
Posição
Disposição
Tratamento
Tumba
Corpo
Arqueologia da Morte
Cultura Material
Área Funerária
Características Gerais
Situação do lugar
Relação com o habitat
Demarcação formal
Visibilidade
Organização
Disposição espacial
Gasto de energia
Quantidade
Origem
Classe
Número de tumbas
Número de tipos
Localização relativa das tumbas
Agrupamentos
Fig. 1: Esquema de estudo da Arqueologia da Morte. (Fonte: Franch (1998) apud Cisneiros
(2003)
17
Mesmo que esse termo “Arqueologia da Morte” se encontrar bastante
disseminado acredita-se que não seja uma denominação coerente a esse tipo
de estudo. Com isso na presente pesquisa se utiliza esse termo, uma vez que
esse trabalho não estará voltado para a causa da morte ou às circunstâncias
em que ela está relacionada. Segundo Ribeiro (2007, p. 19) muito mais que a
morte a Arqueologia estuda os remanescentes das práticas que envolveram a
morte, o funeral, os restos materiais dos atos que foram praticados no destino
escolhido para o corpo, os vestígios das opções da sociedade e da família do
morto para sua memória e a simbologia que deu lógica às práticas mortuárias.
Essa nomenclatura não se faz abrangente. Não dá conta de todos os
aspectos com os quais está envolvida a ciência arqueológica. A Arqueologia,
através dos artefatos, busca as práticas que foram utilizadas, sendo que
através destas, busca-se uma compreensão dos momentos em que se
realizaram os atos. Com isso, endossa-se o que foi exposto por Ribeiro (2007,
p. 19) que ressaltar o termo “práticas” significa tornar mais claro para o
estudioso que estas são o objeto de estudo imediato, sendo inacessíveis os
pensamentos e vontades que não se manifestaram concretamente em atos,
não, pelo menos, do ponto de vista dos vestígios de cultura material.
Face ao exposto utiliza-se o termo “Arqueologia das Práticas Mortuárias”
7
por ter uma abrangência mais significante, pois o foco desse trabalho está
voltado para a identificação de alguns elementos em vasilhames cerâmicos que
se configura dentre o universo das práticas elaboradas para a confecção de um
dos elementos envolvidos no momento do enterramento.
A deposição final dada ao corpo do morto sob a terra possui uma grande
carga de intencionalidade. Ela é feita de diversas formas, pois o fato de um
corpo ter sido encontrado não pressupõe enterramento. Entende-se por esse
fato certa preocupação com o destino final que é dado ao corpo. Segundo
Duday (2005) apud Py-Daniel (2009) alguns dos gestos intencionais que
podem ser identificados são: práticas preparatórias ou tratamentos présepulcrais do cadáver (antes do enterramento) e práticas sepulcrais (estrutura
da cova, manipulação das ossadas, redução, re-inumação).
7
Termo designado por Marily Simões Ribeiro (2007).
18
Os enterramentos podem configurar-se em individuais, duplos ou
coletivos. Esse tratamento, por sua vez, também pode sofrer influências de
outros fatores externos, como quando determinado grupo é afetado por algum
transtorno. Durante o processo de colonização européia nas Américas, por
exemplo, junto com os colonizadores vieram uma série de doenças e viroses
que afetaram de maneira significativa os habitantes da região que não
possuíam defesa corporal – imunidade contra diversas doenças. Isso acarretou
na morte de grande parte de indivíduos de alguns grupos que, aterrorizados
com o evento acabaram abandonando os mortos.
Segundo Cisneiros (2003) os enterramentos podem dividir-se ainda em
primários e secundários. Os primários correspondem ao primeiro ritual dado ao
corpo, quando este é acondicionado ou depositado em covas. Os
enterramentos secundários correspondem a um novo tratamento do corpo,
desta vez constituído apenas pelos tecidos duros (ossos), quando é retirado do
ambiente onde foi previamente acomodado e transportado para outro espaço.
Esse enterramento pode ser individual ou múltiplo, inexistindo as conexões
anatômicas.
Dentro dessa divisão primeira, tanto os enterramentos primários quanto
os secundários podem ser classificados em direto ou indireto. O enterramento
direto dá-se quando o corpo é colocado diretamente em uma cova, com
ausência de invólucro. O enterramento indireto é caracterizado pela presença
de algum tipo de invólucro que pode variar desde uma cobertura de fibra
vegetal até uma urna cerâmica decorada confeccionada para este fim e para
aquele indivíduo.
No caso dos enterramentos secundários, como afirma a autora acima, o
corpo é retirado do ambiente e transportado para outro espaço. Essa idéia de
espaço subentende uma idéia de lugar e, não necessariamente o corpo para
receber um tratamento secundário deverá ser transportado, ele poderá
simplesmente receber um novo tratamento diferenciado do primeiro e ser
depositado no mesmo lugar (Fig. 2)
19
Tipos de Enterramentos
Primário
Direto
Indireto
Secundário
Direto
Indireto
Fig. 2: Esquema dos tipos de enterramentos adaptado. (Fonte: Cisneiros (2003).
Primeiramente realizou-se um levantamento sobre os trabalhos feitos no
PARNA Serra da Capivara relacionados às práticas funerárias e, sendo assim,
foi selecionado o referido tema para estudo, uma vez que esse é único entre as
abordagens já realizadas.
Escolhido o tema, foi feito um segundo levantamento, bibliográfico,
imagético e cartográfico nos acervos da FUMDHAM e da UNIVASF para um
maior entendimento sobre os diversos temas a que essa pesquisa está
agregada.
Antes de apresentar os elementos cerâmicos analisados faz-se
necessária uma caracterização dos sítios que contém as urnas funerárias.
Essa caracterização dos sítios arqueológicos reúne as principais informações
para georeferenciá-los no espaço e no contexto ambiental. Esse tipo de
informação propicia um maior entendimento sobre as urnas funerárias se
encontram.
Como as urnas funerárias são o principal foco de estudo pode-se
caracterizá-las como artefatos confeccionados em cerâmica com fim utilitário
de acondicionar o corpo de um indivíduo, ainda que não tenha sido fabricada
para esse fim.
20
Em um universo de elementos que podem ser analisados a partir das
urnas funerárias e seu contexto, selecionou-se três componentes técnicos uma
vez que, como já foi afirmado anteriormente não se está buscando a
caracterização de algum grupo cultural nem o estabelecimento de um perfil
técnico cerâmico do sítio, mas apenas informações relevantes quanto ao
tratamento realizado nas urnas cerâmicas. Os elementos analisados são;
morfologia, tratamento de superfície externa e tratamento de superfície interna
das urnas funerárias.
Como as 25 urnas funerárias estão em sua maioria inteiras ou muito
pouco fragmentadas, não há a necessidade de reconstituir hipoteticamente os
fragmentos cerâmicos. Utiliza-se a morfologia como primeiro critério de análise,
seguida do tratamento de superfície externa e tratamento de superfície interna
(Fig. 3)
Urnas Funerárias
Morfologia
Tratamento de
superfície
externa
Tratamento de
superfície
interna
Fig 3: Elementos analisados nas urnas funerárias.
A análise morfológica das urnas funerárias segue o princípio das formas
dos sólidos geométricos de acordo com Tejero (1968), Shepard (1976) e
Seronie-Vivien (1975) apud FONTES (2003), ou seja, a classificação baseia-se
21
em uma relação entre o diâmetro da boca e a altura que, num primeiro
momento ficam divididas em vasilhas abertas, nas quais o diâmetro da boca é
maior ou igual à altura da vasilha, e vasilhas fechadas, nas quais o diâmetro
máximo é maior que o diâmetro da boca. A altura da vasilha está geralmente
inserida entre uma ou duas vezes o diâmetro da boca. Em cada uma dessas
classes definiu-se o corpo dos vasilhames de acordo com sua forma,
considerando os seguintes tipos (todos são de contorno simples - Esférico,
Elipsóide horizontal, Elipsóide vertical, Ovóide e Ovóide invertido) ou composto
(Esférico).
Morfologia 1: Esférico – recipiente aberto, parede reta, introvertida ou
extrovertida, boca circular ou oval, altura total menor ou igual a ½ do diâmetro
da boca.
Morfologia 2: Esférico – recipiente fechado, contorno simples ou
composto com pescoço, parede reta ou introvertida, boca circular, altura total
maior que ¾ do diâmetro da boca.
Morfologia 3: Elipsóide horizontal – recipiente aberto, parede reta,
introvertida ou extrovertida, boca circular ou oval, altura total menor ou igual a
½ do diâmetro da boca.
Morfologia 4: Elipsóide vertical – recipiente aberto, parede reta ou
extrovertida, boca circular, altura total menor ou igual a ½ do diâmetro da boca.
Morfologia 5: Ovóide – recipiente fechado, parede reta, boca circular,
altura total maior que o diâmetro da boca.
Morfologia 6: Ovóide invertido – recipiente fechado, parede introvertida,
boca circular, altura total maior que ¾ do diâmetro da boca.
O tratamento superficial é o acabamento final dado às superfícies – tanto
internas quanto externas – das paredes dos vasilhames cerâmicos. É uma
parte do processo que não é aleatório. Possui uma finalidade assim como a
forma do vasilhame.
Pode-se caracterizar os tratamentos de superfície de duas maneiras: as
decorações plásticas e as pinturas. Segundo La Salvia e Brochado (1989) a
decoração plástica é aquela que resulta da modificação tridimensional da
superfície da parede de uma vasilha com a argila ainda moldável e anterior à
22
queima. A pintura é a utilização de uma pigmentação nas superfícies dos
vasilhames. Essa pigmentação pode ter tanto origem animal quanto vegetal e
não necessariamente tem que ser feita antes da queima do artefato.
La Salvia e Brochado (1989) estabeleceram dezoito tipos de decorações
plásticas. A análise dos tratamentos de superfície interna e externa das urnas
funerárias enquadra-se nessa tipologia, acrescentando mais duas categorias;
polimento e alisamento, uma vez que os referidos autores não consideram
esses dois processos como decoração plástica, mas como uma técnica de
manufatura, o que não deixa de ser um fato considerável. Não se pode excluir
a idéia de serem fatores decorativos. Uma única urna funerária pode
apresentar uma ou mais decorações.
1. Corrugado – ação lateral do dedo sobre a superfície cerâmica,
pressionando uma parte da argila, por arraste, e formando uma crista de forma
semi-lunar como resultado do acúmulo de argila arrastada.
2. Digitado – tem como expressão decorativa a DEPRESSÃO – impressão da
polpa do dedo calcada verticalmente sobre a superfície cerâmica.
3 Dígito-ungulado – tem como expressão decorativa a DEPRESSÃO
ESTOCADA – impressão da polpa do dedo calcado perpendicularmente sobre
a superfície da cerâmica, armado com a unha, deixando a impressão desta no
fundo da depressão.
4. Imbricado – tem como expressão decorativa a CARQUILHA – enrugamento
da pasta pela pressão do dedo no momento em que junta os roletes.
5. Acanalado – tem como expressão decorativa a CANELURA – pequeno
sulco contínuo do fundo côncavo produzido pela polpa do dedo arrastado sobre
a superfície da cerâmica.
6. Ungulado – tem como expressão decorativa a UNGULAÇÃO – ação frontal
da unha, na forma de um arco, com sentido e formato de quem aplica.
23
7. Beliscado – tem como expressão decorativa o BELISCO – ação de dois
dedos em forma de pinça que pressionam a superfície cerâmica, produzindo a
elevação de uma porção de pasta ladeada pelas marcas da unha em sua base.
8. Serrungulado – tem como expressão decorativa o CORDOAME – resultado
da ação de dois dedos em forma de pinça, em sentido contínuo e sucessivo
sobre a superfície cerâmica, determinando a elevação de uma porção da pasta
semelhante a um cordel retorcido, ficando com a base mascada pela ação das
unhas.
9. Ponteado – tem como expressão decorativa o PONTO – ação de um
instrumento de seção variada, aplicada pelo artesão, de forma impressa sobre
a superfície cerâmica.
10. Estampado – tem como expressão decorativa a ESTAMPA – preparação
de um painel, em partes ou em um todo, cestaria, têxtil ou outro, aplicado sobre
a superfície cerâmica por pressão.
11. Estocado – tem como expressão decorativa a ESTOCADA – corte
produzido pela ação da ponta de uma lâmina reta, pressionada sobre uma
superfície cerâmica, em uma única ação.
12. Inciso – tem como expressão decorativa o CORTE – ação de um
instrumento de ponta aguda, ou não, que risca mais ou menos profundamente
a superfície cerâmica, por pressão ou arraste.
13. Escovado – tem como expressão decorativa o SULCO – ação produzida
por um instrumento de múltiplas pontas arrastadas na superfície cerâmica ou
sobre ela friccionada.
14. Espatulado – expressão decorativa a CAVIDADE – resultante da ação de
uma espátula, agindo por pressão ou araste, sobre a superfície cerâmica com a
deposição de argila no seu entorno e apresentando lados angulares e fundo
plano.
24
15. Estriado – expressão decorativa a ESTRIA – ação de um instrumento de
uma única ponta aguçada ou rômbica ou, de várias pontas, simetricamente
dispostas e arrastadas em uma superfície.
16. Roletado – expressão decorativa o ROLETE – cordel de argila utilizado na
produção das vasilhas e não apresentando outra atividade produtiva sobre o
mesmo.
17. Nodulado – expressão decorativa o NÓDULO – porção de argila repuxada
ou aplicada na superfície cerâmica, de forma cônica ou tronco-cônica.
18. Exciso – expressão decorativa a EXCISÃO – retirada de uma parte da
argila, através de um instrumento, buscando criar um motivo ou uma superfície
áspera para aderir um aplique.
19. Alisado – o tratamento alisado consiste em eliminar a rugosidade da peça,
buscando nivelar a superfície total.
20. Polido – é uma técnica que complementa o alisado para tornar
impermeável e lustrosa a superfície do vasilhame.
La Salvia e Brochado separam as decorações plásticas da pintura.
Pode-se até incluí-la dentre as decorações plásticas uma vez que a pintura
pode ser realizada antes da queima como as demais. Pondera-se porém dentre
os tratamentos que foram apresentados é a única decoração que pode ser feita
após a queima. Os motivos na pintura são variados. Não existem repetições
totalmente iguais. O que pode ocorrer são apenas semelhanças. Durante a
análise não se faz distinção entre traços e origem da tinta, apenas uma
classificação simples, em que se verifica se o vasilhame analisado possui
pintura ou não.
A partir do levantamento dos elementos assinalados acima e da criação
de um banco de dados é que se pode cruzar os resultados obtidos, analisá-los
e perceber as possíveis recorrências existentes nos tratamentos de superfície
tanto externo, quanto interno, e na morfologia desses receptáculos.
25
2
IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS PARA A
ARQUEOLOGIA
É dentro do estudo das práticas funerárias que a Arqueologia possui um
terreno palpável para entender aspectos de organização social, mais
especificamente, uma possível estratificação social que poderia ocorrer dentro
do grupo, além de inúmeros elementos no campo ideológico. Acredita-se que
os sepultamentos sejam os locais mais marcantes para se verificar o que foi
posto acima, quando nos remetemos a um tempo bastante recuado, no caso, a
pré-história.
Os humanos sempre trataram os mortos de uma forma diferenciada,
uma vez que o corpo do morto geralmente recebe um tratamento específico,
pré-determinado pela sociedade que o consagra, em rituais que refletem o
comportamento do grupo. Esses rituais podem estar ligados a religiosidade
presente nos indivíduos ou somente à conservação de práticas que os mesmos
realizavam por tradição.
A Arqueologia nos mostra que essa preocupação em tratar os mortos de
forma diferenciada tem um índice cronológico bastante recuado, com
testemunhos com datas a cerca de 300 mil anos atrás. Existem estudos que
comprovam que as práticas funerárias não são exclusivos do Homo sapiens. O
Homo neanderthalensis possuía dois aspectos comportamentais que se
aproximavam da nossa espécie; o uso do fogo e a prática de enterrar seus
mortos. É nesse contexto que o enterramento pode ser considerado uma
prática cultural.
Los neandertales enterraban a los muertos há parecido siempre
evidente y muchos de los esqueletos neandertales excavados em
yaciamientos em cuevas há sido históricamente considerados El
resultado de esta práctica funerária (...) em la tierra que cubría el
esqueleto de uno de los neandertales de Shanidar (Irak) se
identificaron granos de polen procedentes de flores que
supostamente habrían sido depositados sobre el cuerpo;
rodeando el esqueleto del niño de nueve años de la cueva de
Teshik Tash (Uzbekistán) se habrían dispuesto varios pares de
cuernos de cabra montés clavados en el suelo (...). (MARTÍNEZ;
ARSUAGA, 1998)
26
Esses indicadores são alguns casos de como a espécie Homo
neanderthalensis tratava e preocupava-se com seus mortos. Essa espécie é
responsável por iniciar alguns comportamentos que se assemelham com os
atuais e de indicar que o exercício de enterrar os mortos não é herança
genética, já que outros hominídeos não o fizeram.
Após a extinção do Homo neanderthalensis, o Homo sapiens prosseguiu
com as práticas funerárias, incorporando uma gama maior de elementos nos
rituais. A literatura mostra que vários grupos realizavam práticas funerárias
utilizando os mais variados elementos e rituais, como, canibalismo, cremação,
mumificação, entre outros.
A ciência arqueológica passou por inúmeras mudanças teóricas e
metodológicas, indo desde a simples classificação dos artefatos ao estudo dos
indivíduos dentro dos grupos culturais. Essas variações podem ser
identificadas no estudo das práticas funerárias.
Desde a Antiguidade a sociedade se interessa pelo passado, no Egito,
por exemplo, existem registros de que faraós se apoderavam de elementos
antigos na construção de suas tumbas. Segundo TRIGGER (2004), na XVIII
dinastia, (1552 – 1305 a.c.), escribas deixaram grafitos para registrar sua visita
a monumentos antigos abandonados. Encontrou-se uma paleta pré-dinástica
fragmentária com a inscrição do nome da rainha Tiye (1405-1367 a.C.). Dentro
dessa ligação com o passado está subentendido uma idéia de religiosidade, de
uma busca pelos ancestrais. Nesse período não havia uma busca sistemática
pelos artefatos. Não se tinha noção de que tais objetos poderiam revelar a
história de um povo que não existia mais.
Tucídides,
investigador
grego,
inicia
o
relato
histórico.
Essa
“Arqueologia” nada mais é do que uma extensão cronológica da história para
os períodos mais antigos, um período em que não há relato escrito. Segundo
TRIGGER (2004, p. 69) a explicação de um monumento consistia na tentativa
de identificar que povo ou indivíduo mencionado em textos antigos o tinha
construído, e com que propósito.
27
Por conta de sua dependência com relação aos registros escritos,
[...] os antiquários, em geral, perderam a esperança de vir a
saber, algum dia, coisa de monta sobre períodos anteriores à
existência desses registros. (TRIGGER, 2004, p. 69)
Na Idade Média o fator religioso era a chave para orientar estudos do
passado, contrariamente à Antiguidade que tinha uma relação íntima com o
passado. Para os homens medievais o tempo é linear e o passado não pode
estar presente nos artefatos. As escavações desse período possuíam sempre
cunho religioso e aos objetos arqueológicos eram atribuídas forças criativas da
natureza e quando possuem ligação com humanos (túmulos) eram atribuídos
aos hunos, aos druidas, a Merlin.
Posteriormente, com a chegada do Renascimento, teve-se a volta da
razão, intermediando a relação homem/meio. Houve uma percepção do
distanciamento entre o presente e o passado, possibilitando uma investigação
sobre o mesmo na coleta e valorização de objetos de sociedades passadas.
Essa coleta de objetos servia para alimentar as coleções de europeus.
Segundo Ribeiro (2007, p.31) as investigações em contextos funerários não se
distinguem daquelas idealizadas em outros contextos, ou seja, são marcadas
pela busca de objetos valiosos e artísticos depositados junto aos mortos. Os
saques aos túmulos mantêm-se como tônica desde os períodos mais antigos.
Os séculos XVII e XVIII foram marcados por algumas contribuições para
os estudos do passado. Foi no século XVII que se realizaram as primeiras
tentativas de organizar as escavações arqueológicas, com Treuer, em 1688,
com instruções específicas de como escavar urnas funerárias. Os antiquários
buscaram uma seleção de monumentos no campo da investigação. Dentro do
contexto arqueológico a busca tornou-se incansavel por objetos valiosos e de
arte.
A Arqueologia Antiquarista visava a recuperação de objetos valiosos, de
modo que as primeiras escavações não estavam relacionadas à interpretação
do contexto arqueológico e os túmulos eram considerados locais privilegiados.
As estruturas funerárias eram saqueadas, na busca por objetos preciosos que
poderiam acompanhar o morto, indo alimentar coleções de antiquários e
historiadores da arte. Diante disso, novas perspectivas foram abertas e surgiu
28
um novo modo de pensar o passado humano. Surgiram as bases para o
cientificismo do século XIX.
O século XIX, por sua vez, foi marcado por grandes transformações em
todas as áreas da pesquisa. Nesse período a Arqueologia aprimorou as
técnicas iniciadas pelos antiquaristas. Deu início a novas abordagens e
sistematização das técnicas de escavação, datação, estratigrafia e seriação.
Como a Arqueologia ainda não era entendida como uma disciplina autônoma e
nesse período estava nascendo uma nova área de conhecimento humano, a
Antropologia, acabou servindo de fornecedora de dados para o estudo
antropológico.
É nesse contexto que identifica o período dedutivo-classificatório quando
é lançado o Sistema de Três Datações de Thomsen8, elaborado em 1836 e
Worsaae lança as técnicas de estratigrafia e conceitos para análise. Worsaae9
recomendava a utilização de desenho, descrição dos artefatos localizados
espacial e estratigraficamente e é justamente por conta da junção dessas
idéias que os túmulos poderiam contribuir com uma cronologia regional, uma
vez que seus objetos serviam de acesso para o estudo de um dado momento
histórico. Durante a primeira metade do século XIX, algumas dessas técnicas
de escavação começaram a ser utilizadas, mas quando era encontrado algum
objeto valioso nos túmulos, o mesmo era saqueado e enviado ao país ou à
coleção do financiador da pesquisa.
Esse período também foi marcado pelo surgimento do Evolucionismo, a
partir do lançamento do livro de Charles Darwin A Origem das Espécies, de
1859, que impactou as áreas de ciências humanas, biologia e religião. Como já
foi afirmado anteriormente, a Antropologia que nascera nessa época, utilizouse dos dados arqueológicos para estudar a evolução humana e seus modos de
vida. A partir disso, a Antropologia apresentou estágios de evolução das
sociedades, partindo das sociedades mais primitivas às mais complexas. No
estudo das práticas mortuárias não foi diferente. Esse período foi marcado pela
8
Christian Jürgensen Thomsen (1788-1865), pesquisador dinamarquês, criou o Sistema das
Três Idades sucessivamente – idade da pedra, do bronze e do ferro.
9
As técnicas de escavação indicadas por Worsaae somente foram empregadas na sua
totalidade durante a segunda metade do século XIX.
29
interpretação antropológica da cultura material, ou seja, os artefatos recebiam
uma análise também evolutiva partindo dos mais simples aos mais elaborados,
situação que hoje se entende como preconceituosa. A Antropologia
apresentava os modelos das sociedades. Aquelas que eram entendidas como
primitivas serviam de suporte para a Arqueologia entender os povos préhistóricos.
Posteriormente surge o conceito de cultura arqueológica apresentado
primariamente por Tylor (1871), aprimorado por Kossina (1911), mas somente
aplicado sistematicamente por Gordon Childe (1925) marcando o início do
período histórico-classificatório. Segundo Willems (1978, p. 81) apud Ribeiro
(2007) o conceito de cultura arqueológica também foi utilizado na Arqueologia
das Práticas Mortuárias, definindo-se uma cultura típica da região (em termos
de padrões e mobiliários funerários). A partir, de seus elementos constitutivos,
observava-se o que poderia ser considerado como parte da cultura e o que lhe
seria estranho, buscando-se as explicações de tais elementos como frutos de
contato e hibridez.
Até o início do século XX, o Evolucionismo continuou dominante, com
suas duas correntes: o Difusionismo e o Migracionismo. De acordo com
RIBEIRO (2007, p.49) o Difusionismo e o Migracionismo são tendências
explicativas, geradas no contexto do Evolucionismo, que tomam o contato
cultural entre grupos diferentes como o fator de alteração em uma ou outra
cultura, especialmente na difusão ou migração de caracteres culturais de um
grupo para outro.
Essa visão acabou privilegiando alguns grupos em detrimento de outros,
já que, de acordo com esse pensamento, algum artefato poderia ser criado
somente uma vez e a partir de então ser disseminado para outras culturas,
através da migração ou difusão.
O contexto funerário servia como uma cápsula do tempo. Era um local
privilegiado para o estudo dos artefatos, permitindo o acesso a uma gama de
fatores que podiam ser identificados desde os mais simples aos mais
complexos. Podia-se mapear os locais em que foram produzidos ou os locais
30
de contato entre os grupos. Assim as práticas funerárias começaram a ser
entendidas como elementos identificadores de cultura. De acordo com
Cisneiros (2003, p.30) os locais com uma única prática eram considerados o
centro. Sociedades que apresentavam práticas diversas eram periferias. As
práticas funerárias eram tomadas aqui como campo fértil para detectar tais
contatos.
Dentre os traços culturais, temos a presença de mounds, a
posição do corpo, pintura de ossos e as decorações dos potes
cerâmicos do mobiliário funerário, cuja presença em local
afastado do „grupo de origem‟ é lida como contato de grupos e/ou
movimentação no território. (RIBEIRO, 2007, p. 53)
Partindo do pressuposto de que o contato entre grupos modifica não
apenas o grupo que obteve o contato, mas existindo uma reciprocidade entre a
troca de caracteres culturais, isso inviabiliza o rastreamento de traços culturais
nos grupos estudados. Gordon Childe apud Ribeiro (2007, p. 51) acredita que
as características culturais possuem traços resistentes às mudanças. Sendo
assim, identificados traços culturais de um determinado grupo, seria possível
perseguí-lo nas diversas regiões e obter um mapa de sua área de domínio ou
influência.
Na segunda metade do século XX, mais precisamente a partir da década
de 1960, é a vez dos arqueólogos se apropriarem das teorias antropológicas na
explicação dos vestígios. Essa Nova Arqueologia está atribuída a Taylor,
Clarke e Binford. Esse último pesquisador lança os novos objetivos da
Arqueologia que seria compreender a cultura dos povos que deixaram vestígios
e tentar reconstruir o comportamento humano através dessa cultura material.
Segundo Trigger (2004, p. 286) o objetivo básico dos arqueólogos deve ser
explicar as mudanças das culturas arqueológicas em termos de processo
cultural.
A Nova Arqueologia passa, então, a abordar questões até então
não formuladas por arqueólogos, como a reconstrução do meioambiente, a compreensão dos vestígios no contexto cultural, o
comportamento humano, os padrões de assentamento, a
reconstituição dos subsistemas de organização social, econômica
e política dos povos antigos estudados arqueologicamente, e o
estudo das variáveis que interferem nos padrões culturais.
(RIBEIRO, 2007, p. 68)
31
No estudo das práticas mortuárias o objetivo segue o mesmo; alcançar a
sociedade
que
produziu
os
artefatos.
Nesse
trabalho
aborda-se
preliminarmente esse enfoque uma vez que o tratamento dado às urnas
funerárias permite lançar hipótese de como seria o grupo que realizou o fabrico
das mesmas nos sítios arqueológicos do Parque Nacional Serra da Capivara.
Parafraseando Cisneiros (2003, p. 30 e 31) com o surgimento da New
Archaeology veio a primeira transformação significativa no estudo das práticas
funerárias. A tipologia10 e a Antropologia Física ficaram menos evidenciadas no
estudo. Passou-se ao entendimento das práticas funerárias dentro do
funcionamento social.
Segundo Ribeiro (2007, p. 73) Binford assinala o conceito de persona
social do morto11. Em quem os diferentes vestígios mortuários, que por sua vez
são conseqüências de diferenças sociais baseadas em sexo, idade, status
social e filiações nas unidades sociais. Seguindo esse raciocínio, se em um
grupo existir uma estratificação social ou indivíduos que sejam respeitados
dentro do grupo isso estará materializado no contexto funerário, ou seja, um ou
mais indivíduos que receberam tratamentos diferenciados quando vivos
receberão no momento da morte.
Nos anos 1980 surgiu a Arqueologia Pós-Processual, tendo como
caracterizador principal Ian Hodder. A Arqueologia Pós-Processual surgiu a
partir de duras críticas à Arqueologia Processual. Para esses críticos, a cultura
material não deveria ser vista como algo passivo refletindo somente as
relações sociais, mas um resultado entre um jogo articulado entre o individual e
o social.
Segundo Hodder (1986) apud SENE (2003) a cultura material não
apenas existe. Ela é feita por alguém. É produzida para fazer alguma coisa.
Então, ela não reflete passivamente a sociedade. Ela cria a sociedade através
das ações dos indivíduos. Cada objeto arqueológico é produzido por um
indivíduo (ou por um grupo deles) não por um sistema social.
10
Esse período tipológico permitiu a classificação dos objetos funerários em tipos e categorias,
permitindo assim, a identificação de culturas.
11
Esse conceito já foi utilizado por Hertz (1907) e Van Gennep (1908).
32
Com um discurso anti-evolucionista e com a necessidade de
compreender os propósitos das ações humanas, o contexto histórico e a
individualização dos grupos é que esse novo postulado se ergue. Nesse novo
olhar que surge os arqueólogos afirmam buscar fenômenos dentro de cada
grupo. Utilizando-se desses argumentos os pós-processualistas realizam
críticas à Arqueologia Processual como se o conceito de cultura utilizado pelos
processualistas ficasse restrito apenas às condições físico-ambientais e não
considerasse a percepção de individualidade envolvida.
2.1
UTILIZAÇÃO DE ELEMENTOS CERÂMICOS PARA ACOMODAÇÃO
DO CORPO
Para o presente trabalho o interesse volta-se para o estudo e análise
dos elementos cerâmicos utilizados como urnas funerárias. Por isso, faz-se
necessário o estudo dos enterramentos, tanto primários quanto secundários
e/ou indiretos, tendo o corpo sido acondicionado em vasilhames cerâmicos.
Pode-se afirmar que os grupos que fabricavam vasilhames cerâmicos
eram
detentores
de
uma
técnica
de
manufatura
própria.
Possuíam
conhecimento acerca dos materiais que poderiam ser misturados à argila,
tempo de queima e ornamentação que cada vasilha poderia receber.
Esse trabalho permite identificar diferenças e/ou semelhanças quanto
aos tipos de tratamentos de superfícies interna e externa, bem como a
morfologia das urnas funerárias. Não se tenta identificar ou distinguir grupos
culturais, uma vez que, para uma caracterização completa das culturas préhistóricas faz-se necessária uma abordagem analítica mais ampla do conjunto
arqueológico. Essa identificação só poderá ser realizada a partir da análise do
contexto arqueológico como um todo.
O estudo dos objetos cerâmicos inseridos em um contexto funerário é
apenas um elemento dentro do contexto cultural dos grupos humanos do
passado. Para os arqueólogos, que estudam sobre as práticas funerárias, as
várias
formas
de
acondicionamento
do
corpo
e
os
seus
diversos
acompanhamentos funerários são interpretados como diferenças entre grupos
culturais. Parte-se do princípio de que os enterramentos encontrados nos sítios
33
arqueológicos do Parque Nacional Serra da Capivara apresentam diferenças
nos tipos de tratamento de superfície e na morfologia das urnas funerárias.
Segundo Nacimento e Luna (1994) a etapa de acabamento dos objetos
pode se configurar a partir de vários procedimentos de uniformização de
superfícies. São procedimentos de fácil identificação, a não ser por algumas
marcas que, às vezes, podem escapar ao artesão. Com isso, considera-se a
última ação humana que determina as superfícies, como sendo o acabamento
das superfícies propriamente dito. Portanto, além do alisamento e polimento, as
decorações plásticas e pintadas são consideradas como tratamento de
superfície.
O tratamento dado à superfície do artefato reúne um conjunto de outras
técnicas que dão um acabamento final ao produto fabricado, que nem sempre
terá a finalidade decorativa dentro do universo dos materiais cerâmicos como
um todo. Essa variedade de técnica pode ser facilmente identificada pela
simples observação da superfície dos objetos que, nesse caso, é tanto no
exterior quanto no interior do vasilhame cerâmico.
Existe uma quantidade significante de instrumentos que podem ser
utilizados durante o processo de fabrico dos objetos cerâmicos e, que, em
alguns casos podem ser identificados. De acordo com Alves (1991), esse
reconhecimento depende da análise do efeito deixado pelo instrumento,
relacionado à causa que o produziu. Assim, por exemplo, na técnica de
tratamento de superfície plástica, no tipo escovado, é possível ter uma
aproximação com respeito às características do tipo de instrumento que
produziria tal efeito.
Para o fabrico de vasilhames cerâmicos, existem etapas básicas a
serem consideradas, tais como; aquisição de matéria-prima, tratamento inicial
dado ao material, produção do objeto, fabricação do artefato, tratamento de
superfície e queima. Para cada uma dessas etapas existem caracteres únicos
que podem ser identificáveis a partir de um estudo detalhado.
A morfologia está relacionada diretamente com a última instância do
processo de elaboração do artefato, ou seja, seu fim utilitário. A confecção das
34
urnas não obedece aos mesmos parâmetros que o fabrico dos vasilhames para
utilização no dia-a-dia. Não se exclui, porém, a possibilidade da confecção de
um vasilhame cerâmico para utilização no cotidiano e posteriormente ser
utilizado em um ritual funerário. Acreditamos que a confecção de um vasilhame
para ser utilizada em ritual possuirá uma carga simbólica diferente dos outros
vasilhames já que é utilizada em um momento único, que não pode ser
retomado. O modo de utilização é importante por que irá revelar a forma que a
vasilha deve possuir, bem como o tratamento da superfície.
35
3
CARACTERIZAÇÃO DOS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS COM URNAS
FUNERÁRIAS DO PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA
Localizado no Nordeste do Brasil, mais precisamente no sudeste do
Piauí, o Parque Nacional Serra da Capivara está inserido em um amplo
contexto arqueológico. Abrange uma área de aproximadamente 130.000 ha e
possui mais de 1000 sítios registrados com caráter histórico e pré-histórico. Os
sítios possuem, em sua grande parte, registros rupestres.
Abarcando uma área entre os municípios de São Raimundo Nonato,
João Costa, Brejo do Piauí e São João o Parque se localiza dentre as
coordenadas 8º26‟50” e 8º54'23” de latitude sul e 42º19'47" e 42º45'51" de
longitude oeste.
Pesquisadores da missão franco-brasileira trabalham na região desde a
década de 1970, quando realizaram o pedido de criação do Parque com o
objetivo de proteger os sítios arqueológicos e a grande reserva de caatinga
existente.
O Parque Nacional Serra da Capivara está situado entre duas formações
geológicas, a Faixa de Dobramentos Riacho do Pontal e a Bacia Sedimentar do
Parnaíba. Está inserido no domínio da caatinga, com a presença de cerrado e
floresta semi-decídua em menor escala e marcado por uma grande variedade
de espécies animais.
Considerando que essa grande variedade ambiental proporciona um
número de recursos naturais mais amplo, as populações pré-históricas
possuíam uma gama de recursos disponíveis para confeccionarem seus
artefatos contribuindo assim para uma maior diversidade no resultado final das
peças e possibilitando um leque de hipóteses que podem ser sugeridas para as
técnicas de produção elaboradas pelos grupos.
Nesse capítulo apresenta-se somente os sítios arqueológicos que
contêm urnas funerárias, uma vez o objetivo da pesquisa é a análise individual
desses artefatos, fazendo-se necessária apenas a descrição geral dos sítios
36
uma vez que o presente estudo está direcionado para as urnas funerárias em
si. (Fig. 4)
Fig. 4: Distribuição espacial dos sítios arqueológicos que possuem urnas funerárias do Parque
Nacional Serra da Capivara e entorno.
37
3.1
SÍTIO CANA BRAVA12
O sítio Cana Brava localiza-se ao sul do Parque Nacional Serra da
Capivara, no povoado de Cana Brava entre as coordenadas 9°06‟18‟‟S e
43°09‟35‟‟W. Está posicionado num vale que apresenta serras ao redor. A área
de baixada apresenta um suave declive em direção a um riacho e a uma fonte
d‟água. O riacho é intermitente e só reaparece na estação chuvosa, porém a
fonte d‟água é permanente e está próxima ao povoado, a 280m (Fig. 5)
Figura 5 - Vista geral do sítio Cana Brava (Fonte: Acervo FUMDHAM)
Configura-se em um sítio a céu aberto e encontra-se hoje, precisamente,
na fazenda Cana Brava. Os locais de maior concentração dos vestígios são as
áreas de cultivo da fazenda, a área de pastagem e por detrás das casas da
vila.
O sítio constitui uma unidade caracterizada como uma aldeia préhistórica, situada cronologicamente entre 790 ±50BP (BETA - 106389) e 490
±50 anos BP (BETA - 106388). Apresenta grande extensão territorial, com
áreas de concentração de vestígios líticos e/ou cerâmicos, com estruturas
arqueológicas como fogueiras e sepultamentos. Os vestígios, principalmente
12
(CASTRO, 2000 e CISNEIROS, 2003)
38
cerâmica e lítico, distribuem-se por uma vasta área e apresentam-se em
grande número com uma diversidade de formas e tamanhos. Estes vestígios
estão presentes tanto na superfície, como em profundidade.
Durante a escavação foi evidenciado um total de cinco urnas funerárias
que foram escavadas em laboratório e revelaram enterramentos primários de
crianças.
Todos
os
enterramentos
encontrados
nesse
sítio
estavam
acondicionados em vasilhames cerâmicos.
As urnas foram encontradas em locais de grande concentração de
vestígios arqueológicos variados, indicando que os enterramentos podem ter
sido realizados dentro da própria aldeia. Não foram encontrados vestígios de
enterramentos de adultos. Pode-se inferir que os enterramentos adultos que
eram depositados fora da aldeia como freqüentemente encontra-se na
etnografia, ou mesmo realizado dentro da aldeia, mas com outro tipo de
inumação.
3.2
SÍTIO SÃO BRÁS
O sítio arqueológico São Brás está localizado no município de São Brás
do Piauí dentre as coordenadas S09°03‟96” e W042°59‟87”. É um sítio a céu
aberto, situado dentro da propriedade do Sr. Hilário de Souza que informou à
Fundação Museu do Homem Americano – FUMDHAM - a presença de uma
urna funerária no momento da abertura de uma fossa (Fig. 6)
39
Fig 6 – retirada de urna no sítio São Brás (Fonte: Acervo FUMDHAM)
A FUMDHAM enviou uma equipe para realizar a escavação. O
vasilhame cerâmico estava intacto e foi feito todo o procedimento de
engessamento para retirada do mesmo.
Nesse mesmo período foram identificados em outro local fora dessa
propriedade concentrações líticas, possíveis locais de enterramentos préhistóricos e vestígios cerâmicos.
De acordo com os cadernos de campo da FUMDHAM, nesse sítio foram
encontradas duas outras urnas funerárias, uma urna denominada de urna 1997
e outra urna nomeada de urna Humberto.
3.3
SÍTIO TOCA DA BAIXA DOS CABOCLOS13
O sítio arqueológico Toca da Baixa dos Caboclos localiza-se na
Chapada do São Francisco, no município de Gervásio de Oliveira (PI), nas
coordenadas 8°26‟‟667‟ sul e 42°05‟‟034‟ oeste.
13
(CASTRO, 2009)
40
Esse sítio configura-se como um abrigo envolvido pelo escalpamento
que marca o limite da chapada, chegando a medir 51m de comprimento e 15m
de profundidade. Seu terreno foi tomado pela agricultura de subsistência. Os
constantes trabalhos no solo revelaram fragmentos de cerâmica e urnas,
impulsionando uma intervenção arqueológica em 1996, retomada em 1998.
(Fig. 7)
Figura 7 - vista geral do sítio Toca da Baixa dos Caboclos (Fonte: Acervo FUMDHAM)
Todos os enterramentos evidenciados na Toca da Baixa dos Caboclos
foram identificados como primários e individuais. De nove enterramentos
encontrados nesse sítio, oito foram realizados em urnas cerâmicas. Foram
estabelecidas duas datações para esse sítio 450 anos para o enterramento de
número 1 e 230 anos para o enterramento de número 8 ambos ocorridos em
vasilhames cerâmicos.
Os enterramentos realizados em urnas apresentaram esqueletos tanto
de crianças quanto de adultos, inserindo nesse sítio uma condição bastante
singular no Nordeste do Brasil; o ato primário de enterrar adultos em urnas
funerárias.
41
Esses
enterramentos
sofreram
um
processo
de
decomposição
incompleta e permaneceram parcialmente mumificados no interior das vasilhas.
Durante a realização do enterramento não foi colocado sedimento dentro das
vasilhas; estas foram tampadas, criando um ambiente de pouco oxigênio
favorecendo a preservação.
3.4
SÍTIO TOCA DO GONGO I OU TOCA DO JORGE14
Esse sítio fica situado no município de São João do Piauí. Possui um
comprimento de 32,5m, altura de 1,6m e largura máxima de 4,5m. O solo do
abrigo é composto de calcário, areia fina e sedimento bastante seco,
responsáveis pela boa conservação do material (Fig. 8)
Fig. 8 - Vista geral do sítio Toca do Gongo I ou Toca do Jorge (Fonte: Acervo FUMDHAM)
A Toca do Gongo I ou do Jorge foi o primeiro abrigo escavado no
sudeste do Piauí a apresentar enterramentos com uma datação de 420 ± 50
anos BP e 310 ± 40 anos BP. Dentre os seis enterramentos escavados no sítio,
quatro deles foram realizados em fossas. Eram do tipo primário. Sobre os
14
(CISNEIROS, 2003)
42
esqueletos havia restos de fogueiras. Os outros dois esqueletos estavam
sepultados em urnas bastante fragmentadas.
O fardo funerário estava composto de um tecido. Análises posteriores
revelaram tratar-se de uma fibra vegetal, provavelmente caroá (Neoglazovia
variegata Mez). O esqueleto do enterramento quatro, também em posição fetal
como os outros, apresentava o diferencial de ter um vaso cerâmico emborcado
sobre o crânio. Nos enterramentos em urnas, envolvendo o esqueleto, também
foi evidenciado o mesmo tipo de material que compunha os enterramentos em
fossa.
3.5
SÍTIO TOCA DO SERROTE DO TENENTE LUIZ15
O Sítio Toca do Serrote do Tenente Luiz é um abrigo sob rocha. Está
localizado nas coordenadas UTML 23 783909E/9024947N, no entorno do
Parque. Situa na depressão do São Francisco, 9km a leste da cidade de
Coronel José Dias que fica próximo à BR-020.
Nos trabalhos de escavação arqueológica realizados na Toca do Serrote
do Tenente Luiz foram coletados 24 esqueletos humanos, 2775 fragmentos
cerâmicos e 8 urnas funerárias. Alguns dos enterramentos foram realizados
em fossas e outros em urnas (Fig. 9).
15
(CASTRO, 2009)
43
Fig. 9 - Escavação na Toca do Tenente Luiz. Fonte: Acervo FUMDHAM
Os enterramentos realizados em urnas eram caracterizados pelo uso de
duas vasilhas: uma urna como envoltório para o corpo e a outra como tampa;
apresentavam bom estado de conservação. A maioria dos indivíduos
enterrados era criança.
Foram realizadas datações. Para o enterramento 9 obteve-se dois
resultados para datação de dentes 920 ±35BP (Ua - 23386) e 935 ±40 BP (Ua
22776). Uma terceira datação de 365 ±40BP (Ua 22074) poderia indicar uma
continuidade no sítio ou enterramentos de grupos distintos.
Os dados levantados possuem um universo de quatro sítios com um
total de 25 urnas funerárias analisadas de acordo com a metodologia descrita
no capítulo 3. (Tab. 1)
44
Tabela 1 – quantidade de urnas a serem analisadas
SÍTIO
Cana Brava
São Brás
Toca da Baixa dos Caboclos
Nº DE URNAS
5
2
8
Toca do Gongo I ou Toca do Jorge
2
Toca do Serrote do Tenente Luiz
8
TOTAL
25
45
4
ANÁLISE DOS ELEMENTOS QUE COMPÕEM AS URNAS
FUNERÁRIAS
Apresenta-se a análise dos elementos de cada sítio arqueológico
estudado e, posteriormente, organizam-se os dados em gráficos para obtermos
um percentual geral.
Os elementos analisados nas urnas funerárias dos sítios arqueológicos
Toca do Gongo I, Cana Brava, Toca da Baixa dos Caboclos, Toca do Serrote
do Tenente Luís e São Brás puderam ser organizados a partir das
classificações propostas por Tejero (1968), Shepard (1976) e Séronie-Vivien
(1975) apud Fontes 2003 na variável morfologia. Na classificação dos
tratamentos de superfície externa e interna os dados foram organizados a partir
da classificação estabelecida por La Salvia e Brochado (1989) o que ainda
possibilitou um panorama gráfico e percentual da distribuição de cada uma das
características apresentadas.
4.1
SÍTIO CANA BRAVA
Nesse sítio foi encontrado um total de cinco urnas funerárias. Duas
urnas encaixam-se na morfologia ovóide. Duas urnas possuem morfologia
ovóide invertida e uma urna, morfologia esférica.
Todas
as
urnas
apresentam o mesmo tratamento de superfície interna e externa – alisado.
(Tab. 2)
Tabela 2 - Análise das urnas funerárias encontradas no sítio
MORFOLOGIA
TRATAMENTO DE
TRATAMENTO DE
SUPERFÍCIE EXTERNA
SUPERFÍCIE INTERNA
Imagem1 Ovóide
Alisado
Alisado
Imagem2 Ovóide
Alisado
Alisado
Imagem3 Esférica
Alisado
Alisado
Imagem4 Ovóide
Alisado
Alisado
Imagem5 Ovóide
invertida
Alisado
Alisado
invertida
46
Imagem 1: Foto Acervo FUMDHAM
Imagem 2: Urna exposta no museu do
Homem
Americano
Imagem 3: Foto Acervo FUMDHAM
Imagem 4: Foto Acervo FUMDHAM
Imagem 5: Foto Acervo FUMDHAM
47
4.2
SÍTIO SÃO BRÁS
As duas urnas descritas nos cadernos de campo e relatórios da
FUMDHAM apresentam características morfológicas indeterminadas. Possuem
tratamento de superfície externa alisado e corrugado e decoração plástica
alisada como tratamento de superfície interna nas duas urnas. Essa morfologia
indeterminada se deve ao fato de as urnas estarem fragmentadas nas bordas
impossibilitando estabelecer um diâmetro para as bocas (Tab. 3).
Tabela 3 - Análise das urnas funerárias encontradas no sítio.
MORFOLOGIA
TRATAMENTO DE
TRATAMENTO DE
SUPERFÍCIE EXTERNA
SUPERFÍCIE INTERNA
Imagem6 Indeterminada
Corrugado
Alisado
Imagem7 Indeterminada
Alisado
Alisado
Imagem 6: Foto Acervo FUMDHAM
Imagem 7: Urna acondicionada no Museu do
Homem Americano
4.3
SÍTIO TOCA DA BAIXA DOS CABOCLOS
Dentre nove enterramentos encontrados nesse sítio, oito foram
realizados em urnas funerárias.
48
Os elementos morfológicos das oito urnas encontradas são: ovóide – 1
urna; ovóide invertida – 1 urna; indeterminadas – 6 urnas.
No que diz respeito ao tratamento de superfície externa, duas urnas
apresentam a decoração plástica corrugada, duas urnas são polidas e uma
urna apresenta o alisamento como tratamento de superfície externa.
No tratamento de superfície interna as urnas configuram-se da seguinte
maneira; quatro urnas alisadas e uma urna pintada (Tab. 4).
Tabela 4 - Análise das urnas funerárias encontradas no sítio.
MORFOLOGIA
TRATAMENTO DE
TRATAMENTO DE
SUPERFÍCIE EXTERNA
SUPERFÍCIE INTERNA
Imagem8 Indeterminada
Alisado
Alisado
Imagem9 Indeterminada
Polido
Pintado
Imagem10 Ovóide
Corrugado
Alisado
Imagem11 Ovóide
Corrugado
Alisado
Imagem12 Indeterminada
Polido
Alisado
Indeterminada
Indeterminado
Indeterminado
Indeterminada
Indeterminado
Indeterminado
Indeterminada
Indeterminado
Indeterminado
Invertida
Imagem 8: Urna acondicionada no Museu do Imagem 9: Urna acondicionada no Museu do
Homem Americano
Homem Americano
49
Imagem 10: Urna acondicionada no
Laboratório de Vestígios Orgânicos
Imagem 11: Urna acondicionada no Museu do
Homem Americano
Imagem 12: Foto Acervo FUMDHAM
Os dados referentes a esse sítio encontram-se confusos, uma vez que
algumas urnas não se encontram com numeração ou algum outro tipo de
referência. Três urnas não foram localizadas por causa da ausência de tais
dados.
Segundo Asón (caderno de campo 1998), a urna de número 9 é uma
vasilha de pequenas dimensões, com paredes finas e alisadas, sem
decoração. No laboratório de Cerâmica16, a urna catalogada como sendo a de
16
Laboratório de Vestígios Cerâmicos da Fundação Museu do Homem Americano.
50
número 9 está totalmente fragmentada e possui tratamento de superfície
externa polida (Imagem 12).
4.4
SÍTIO TOCA DO GONGO I OU TOCA DO JORGE
A Toca do Gongo I ou Toca do Jorge possui duas urnas funerárias com
enterramentos. A Urna I possui morfologia Ovóide, tratamento de superfície
externa corrugada e tratamento de superfície interna alisada. A Urna II possui
morfologia esférica, tratamento de superfície externa e interna alisada. (Tab. 5)
Segundo Castro (2000) apud MARANCA (1976) o enterramento da Urna
I estava em mau estado de conservação. A urna possuía forma globular, boca
aberta e superfície externa e interna alisadas. A urna II estava fragmentada,
mas possuía superfície externa corrugada e interna alisada.
Tabela 5 - Análise das urnas funerárias encontradas no sítio
MORFOLOGIA
TRATAMENTO DE
TRATAMENTO DE
SUPERFÍCIE EXTERNA
SUPERFÍCIE INTERNA
Imagem12 Ovóide
Corrugado
Alisado
Imagem13 Esférica
Alisado
Alisado
Imagem 12: Foto Acervo FUMDHAM
Imagem 13: Foto Acervo FUMDHAM
51
4.5
SÍTIO TOCA DO SERROTE DO TENENTE LUÍS
Na Toca do Serrote do Tenente Luís foram encontradas oito urnas
funerárias apresentando a seguinte morfologia: quatro urnas com característica
morfológica
ovóide,
duas
esféricas
e
duas
urnas
com
morfologia
indeterminada.
A decoração plástica corrugada aparece como tratamento de superfície
externa de seis urnas e o alisado nas duas urnas restantes. Como tratamento
de superfície interna o alisamento encontra-se presente em todas as urnas do
sítio (Tab. 6).
Tabela 6 - Análise das urnas funerárias encontradas no sítio.
MORFOLOGIA
TRATAMENTO DE
TRATAMENTO DE
SUPERFÍCIE EXTERNA
SUPERFÍCIE INTERNA
Imagem14 Indeterminada
Corrugado
Alisado
Imagem15 Ovóide
Corrugado
Alisado
Imagem16 Indeterminada
Corrugado
Alisado
Imagem17 Ovóide
Corrugado
Alisado
Imagem18 Ovóide
Corrugado
Alisado
Imagem19 Ovóide
Corrugado
Alisado
Imagem20 Esférica
Alisado
Alisado
Imagem21 Esférica
Alisado
Alisado
Imagem 14: Foto Acervo FUMDHAM
Imagem 15: Foto Acervo FUMDHAM
52
Imagem 16: Foto Acervo FUMDHAM
Imagem 17: Foto Acervo FUMDHAM
Imagem 18: Foto Acervo FUMDHAM
Imagem 19: Foto Acervo FUMDHAM
Imagem 20: Foto Acervo FUMDHAM
Imagem 21: Foto Acervo FUMDHAM
53
Gráfico 1 - Características morfológicas das urnas funerárias.
Gráfico 2 - Decoração plástica externa das urnas analisadas
54
Gráfico 3 - Decoração plástica interna das urnas analisadas.
55
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo-se do pressuposto de que os humanos são dotados de uma
consciência individual, a idéia de morte torna-se uma perda dessa
individualidade, culminando em algo dramático e doloroso. Segundo Morin
(1997), a perda dessa individualidade é causada pela dor e pelo terror. O
complexo dessa perda é algo traumático uma vez que a morte destrói a
consciência do ser. Na tentativa de manter uma integridade que vai além da
decomposição física, o homem, muitas vezes, se mantém apegado a uma
imortalidade idealizada, baseada em deuses ou seres que possuem alguma
“força maior” e rituais repletos de artefatos.
Os dados trabalhados nos cinco sítios arqueológicos estudados estão
centrados em três variáveis; morfologia, decoração plástica da superfície
externa e interna. As categorias indeterminadas acabam não permitindo um
melhor aproveitamento das informações para a análise completa dos vestígios
estudado
Inicia-se o trabalho partindo do seguinte problema; as urnas funerárias
dos sítios arqueológicos do Parque Nacional Serra da Capivara apresentam
quais tipos de tratamento de superfície externo e interno e quais morfologias?
Os dados analisados permitem responder ao questionamento proposto
da seguinte maneira; foram identificadas morfologicamente 8 urnas ovóides, 3
urnas ovóides invertidas, 4 urnas esféricas e 10 urnas indeterminadas. Nas
decorações plásticas, tem-se como tratamento de superfície externa 10 urnas
alisadas, 10 urnas corrugadas 2 urnas polidas e 3 indeterminadas. Finalmente,
como tratamento de superfície interna tem-se 21 urnas alisadas, 1 urna pintada
e 3 urnas indeterminadas.
Dentre a classificação morfológica e os tratamentos de superfície dos
vasilhames cerâmicos apresentados na literatura, os indivíduos que habitaram
o Parque Nacional Serra da Capivara confeccionaram urnas funerárias com
morfologias ovóide, ovóide invertido e esférica.
56
Nas decorações plásticas o alisamento é o tratamento mais utilizado na
superfície externa. Na superfície do interior das urnas tanto o alisamento
quanto a técnica do corrugado são utilizadas em sua grande maioria.
A análise vestigial, por sua vez, apresenta recorrência de dois tipos de
decoração plástica em detrimento dos outros. O alisado e o corrugado
aparecem em maior quantidade, sendo que alguns tipos de decorações
plásticas apresentados dentro da classificação proposta não aparecem ou se
apresentam com escassez.
A técnica de acabamento externo conhecida como corrugada, por
exemplo, que é utilizada como decoração plástica no tratamento de superfícies
e assim considerada um fator decorativo, denota também certa funcionalidade.
A mesma estaria relacionada ao fato de que um objeto com superfície áspera é
consideravelmente mais fácil de ser transportado de um local para outro.
Entretanto, esse “caráter funcional” não estaria aplicado diretamente aos
vasilhames cerâmicos com fabricação exclusiva de urnas funerárias, uma vez
que, tais tipos de vasilhames não precisam ficar sendo transferidos de um local
para outro.
O alisamento assim como a corrugação são considerados decorações
plásticas, mas que também podem ser considerados como técnicas de
manufatura. No primeiro caso – alisado – o processo ocorre para a junção dos
espaços vazios que são formados ao ir sobrepondo os roletes feitos de argila.
Percebe-se que na medida em que vasilhames fazem parte de
momentos tanto da vida cotidiana quanto da vida cerimonial. A utilização
desses objetos não fica restrita apenas para armazenar, conservar e
transportar alimentos e líquidos. Ela estende-se até sua re(utilização) como
objeto fúnebre.
Esses artefatos podem ter sido confeccionados com finalidade de uso
cotidiano, doméstico e posteriormente retirados de sua função primeira para
ganhar uma conotação simbólica diferente da existente no primeiro momento.
O objeto retirado de seu uso cotidiano não volta mais a ser utilizado como era
anteriormente.
57
Nos limites desta pesquisa, é possível somente que se levantem
questionamentos para trabalhos futuros, no que diz respeito à confecção de
objetos cerâmicos de cunho utilitário. Tendo em vista que não foi identificado
um padrão técnico, morfológico e decorativo específico para as urnas
funerárias que as distinguisse das cerâmicas cotidianas, deixa-se aqui a
constatação de um fenômeno a ser posteriormente observado: Havia distinção
no fabrico de vasilhames cerâmicos na região do Parque Nacional Serra da
Capivara? Os mesmos eram “(re) significados” a partir das necessidades de
cada grupo? Um mesmo vasilhame podia ser empregado para acondicionar
alimentos e depois (re) utilizado em rituais funerários?
Por outro lado, a ausência ou a presença em pequena quantidade de
outros tipos de decoração nas urnas funerárias, como a pintura, não significa
que inexista uma confecção exclusiva desses artefatos para o destino final do
corpo, uma vez que o ato da utilização de vasilhames cerâmicos indica uma
preocupação maior em salvaguardar um “ente querido”.
Essa diferenciação funerária identificada não pode ser analisada por
completo uma vez esse estudo é apenas um dos elementos que compõem um
ritual funerário. É necessário que outros dados sejam analisados para se
identificar grupos culturais.
Para serem feitas outras inferências com relação às práticas mortuárias
do Parque Nacional Serra da Capivara é necessário um estudo minucioso dos
elementos componentes do que venha a se caracterizar como práticas
mortuárias.
Por fim, partiu-se do pressuposto de que as urnas cerâmicas utilizadas
nos sítios arqueológicos estudados apresentam diferenças nos tipos de
tratamento de superfície e na sua morfologia. Percebe-se então que, dentre a
variabilidade que poderia ter sido confeccionada a seleção feita pelos grupos
que habitaram essa região se caracteriza como mínima diante do que foi
apresentado. Encontra-se assim, um padrão quanto às técnicas empregadas
pelos homens pré-históricos do Parque Nacional Serra da Capivara e entorno.
58
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59
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http://www.betocelli.com/coppermine/displayimage.php?album=24&pos=61

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