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Família, democracia e responsabilidade*
Firly Nascimento Filho**
1. Introdução
O fenômeno do constitucionalismo nasce no mesmo momento histórico do liberalismo, fazendo valer o lema liberdade mais do que igualdade
e fraternidade.
A Revolução Francesa e a Revolução Americana tiveram, historicamente, pontos de contato e de apoio que propiciaram, certamente, a influência
que ambos os países realizaram durante o século XX e continuam no século XXI.
Concomitantemente à revolução no padrão político, o liberalismo econômico puro irá se estabelecer após as bases obtidas pela sociedade burguesa. Os conflitos entre as classes irão redundar em embates entre países
sendo um dos marcos a denominada Primeira Guerra Mundial, em cujo
período são verificadas profundas transformações no contexto internacional podendo haver destaque para a Constituição Mexicana de 1917, fruto
de lutas intensas, cuja previsão sobre a reforma agrária tornou-se um marco indelével.
Além disso, avançou no reconhecimento de inúmeros direitos sociais,
incluindo jornada de trabalho e direito à greve.
Agradeço a minha amiga e mestra Maria Celina Bodin de Moraes o incentivo para publicação do presente
trabalho, que surgiu das dúvidas e angústias causadas pelo seu instigante texto sobre a família democrática.
Ofereço esse estudo à minha musa inspiradora Elys D. Gonçalves da Cunha, pois, sem ela, a vida não faz
mais sentido.
**
Mestre em Direito (PUC-Rio), Professor da PUC-Rio e Juiz Federal. Email: [email protected].
*
Direito, Estado e Sociedade
n.32 p. 88 a 103 jan/jun 2008
Família, democracia e responsabilidade
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Na Europa, após ser derrotada militarmente, a Alemanha viu ser proclamada a República de Weimar e a edição de Constituição também considerada extremamente avançada para a época por estruturar a ordem
econômica e social.
O mesmo período histórico também marca o início dos países socialistas com a instauração da Revolução Russa e da formação de novel estatuto
fundamental editado em 1923 que se tornou modelo para os demais países
que viriam, mais tarde, a integrar o rol daqueles com regime socialista, de
influência marxista-leninista.
No Brasil, os influxos modernos vieram a desaguar na Constituição Federal de 1934, considerada a mais bem estruturada de nossas constituições
que, no entanto, teve vida curta, pois foi seguida da Constituição de viés
autoritário, editada em 1937, esta última conhecida como “Polaca”.
Nossa atual Constituição, editada em 1988 e remendada inúmeras
vezes (cinqüenta e duas emendas, até hoje) proclama a existência de variegados princípios, sendo proficiente na proteção de direitos tidos como
fundamentais.
A moderna doutrina concentra os seus esforços hermenêuticos no sentido de viabilizar os inúmeros princípios que foram albergados no texto
constitucional em vigor. Embora, evidentemente, não esgotem esse tema
tão carente de estudos, o exame da questão sob o prisma constitucional é,
ao nosso ver, ponto de partida necessário para a sua análise profícua.
A nossa Constituição de conteúdo analítico, organizando os Poderes do
Estado e estipulando inúmeros direitos fundamentais, de índole individual, coletiva e social, regulamentam de maneira extensa, diversos institutos
cuja atuação é essencial para melhor compreensão do desenvolvimento da
estrutura do Estado.
A estrutura constitucional atual no que tange aos aspectos relacionados
à estrutura interna do Estado, em quase sua totalidade, está protegida das
reformas liberais empreendidas no solo pátrio vez que consideradas cláusulas pétreas.
A interligação entre a Constituição, a Família e a Responsabilidade
Civil é fruto de uma moderna concepção de Direito que procura retirar
das normas constitucionais todo o sentido para a sua aplicação. Não se
concebe mais a Família e a Responsabilidade fora do norte imposto pela
Lei Maior.
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Essa mudança de paradigma acompanha a mudança da Sociedade e
pela existência cada vez maior de um Estado intervencionista1.
Inegavelmente cabe ao Estado definir as regras quanto ao casamento,
à filiação, ao divórcio, aos alimentos etc. Tal tarefa, tradicionalmente, foi
conferida ao legislador ordinário. A mudança de paradigma transfere para
a Constituição as balizas para a instituição familiar. Embora as normas
continuem no âmbito da legislação ordinária elas devem sofrer o influxo
da interpretação constitucional, notadamente aquelas lastreadas nos princípios dentre os quais avulta o da dignidade da pessoa humana.
Além desse princípio maior aplicam-se a solidariedade, a igualdade e
a liberdade.
Também nesse tema, destacam-se as lições sempre precisas da professora Maria Celina Bodin de Moraes que, lastreada no pensamento de Kant
cunhou um moderno conceito de dano moral como lesão à igualdade,
liberdade, solidariedade ou integridade psicofísica da pessoa2.
2. Democracia
O estudo da democracia remonta, consoante entendimento consensual, à
Grécia antiga sendo o padrão das cidades-estado, como Atenas, Esparta,
Tebas, etc 3.
O seu desenrolar no tempo deságua no sistema moderno, com a utilização do
voto, como instrumento de participação popular, embora não único, mas que
serve de esteio para o que se denomina democracia representativa, sendo o
processo de escolha direcionado ao exercício de mandato popular.
Desde priscas eras, no entanto, as oligarquias costuram instrumentos de dominação das classes populares sob variegados pretextos, sendo notórios os
textos de Platão, sempre invocados por aqueles que pretendem manipular e
estabelecer limites para as classes populares impedindo o seu efetivo acesso
ao poder político.
Na tradição liberal capitaneada por Benjamin Constant o voto deveria
ser da classe de proprietários/ricos.
MORAES, RT n. 779.
MORAES, pp. 129-140.
3
WOOD, 2003, p. 177.
1
2
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Em obra clássica, Aléxis de Tocqueville4 também segue tal linha de
atuação. Na tradição liberal ele é contra o Estado interferindo em direitos
individuais e combatendo os direitos sociais.
O autor referido analisando a experiência norte-americana elogia o sistema eleitoral em níveis (a Câmara eleita diretamente e o Senado eleito
pelos membros da Câmara).
Tocqueville era contra a eleição direta, mas não admitia a solução censitária de Constant.
Alguns aspectos da democracia americana devem ser ressaltados: a) os
delegados foram designados pelos estados; b) os requisitos de participação
impostos pelos estados eram ser proprietários ou pagadores de tributos;
c) tal sistema caracterizava um critério censitário; d) em alguns estados o
critério era a religião protestante5.
Deve ser observado que nessa quadra histórica, o voto, além dos pressupostos já referidos, somente poderia ser exercido por membro do sexo
masculino e branco.
Nesse processo o papel da Suprema Corte americana é, claramente, o
de legitimar os padrões conservadores implantados.
O desenrolar do processo democrático, contudo, tem necessidade de
integrar novos atores, sendo conflituoso, mas causando a extensão do voto
aos negros, aos brancos pobres e aos imigrantes, no ultimo caso após admitir-se sua naturalização.
2.1. A Constituição americana
Diz Hans Peter Schneider, quanto à Constituição alemã, que a mesma
corresponde à estruturação de uma ordem democrática liberal, reconhecendo a dignidade humana como critério vinculante a todo poder estatal,
garantindo as liberdades individuais, limitando o controle institucional do
poder político e conferindo uma ampla proteção judicial6.
Podemos afirmar o mesmo quanto à Constituição americana. Robert
Dahl, consagrado cientista político, enuncia sua preocupação quanto à
leitura do texto constitucional americano em sua obra doutrinária “How
Democratic is American Constitution”.
TOCQUEVILLE, 1998.
LOSURDO, 2004, p. 45-49.
6
SCHNEIDER, 1991, p. 37.
4
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É certo, que o cenário constitucional, traçado nos Estados Unidos identifica diversas formas de interpretar a Constituição. Nesse sentido podemos
indicar a vertente originalista que pretende retirar do texto aprovado pelos
pais fundadores o único sentido do texto constitucional.
A perspectiva traçada por Dahl parte da Convenção realizada em 1787.
Defende o citado autor que devemos identificar os pais fundadores com
aqueles que, apesar de não participar da elaboração direta do texto, foram
pessoas influentes, utilizando os termos father and framers7.
A tese por ele defendida aponta um projeto de república aristocrática
e não de democracia. A democracia surgiu como resultado do processo
histórico.
Observando os fatos sob uma perspectiva histórica é possível perceber
que, sendo proprietários de terras, os pais fundadores não poderiam pregar
uma universalização do voto e da participação popular, sob pena de contrariar os seus próprios interesses.
Nessa linha, o projeto de representação partidária partindo de critérios
censitários e criando um Senado eleito indiretamente demonstram que a
interpretação de Dahl tem fundamento, no mínimo razoável.
Outras indicações surgem e são relacionadas no texto em foco: a)
inexistência de proibição expressa quanto à escravidão; b) ausência de
garantia do sufrágio universal; c) sistema de escolha do Presidente da República; d) eleição indireta dos Senadores; e) representação proporcional
do Senado; f) ausência de limitação dos poderes do Judiciário para declarar
inconstitucionais as leis; g) os poderes do Congresso foram limitados em
assuntos econômicos fundamentais8.
A Constituição passou a sofrer modificações através de emendas constitucionais e de interpretações realizadas pela Suprema Corte.
A preocupação expressa por Madison quanto ao controle das facções
acaba desaguando na composição bipartidária do cenário americano. Originariamente, o partido federalista agrupava todos os segmentos e após
surgiu o partido democrata-republicano.
O partido Democrata nasceu de uma cisão do partido Federalista. A
fundação do atual partido Democrata americano remonta a 1792, nascido
como partido Democrata-Republicano e ganhador da eleição de 1800, com
7
8
DAHL, 2002, p. 4-5.
DAHL, p. 15-20.
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Thomas Jefferson, que governou, por dois mandatos, sendo sucedido por
James Madison e, após por James Monroe.
Posteriormente o antigo partido federalista transformou-se em Republicano.
O modelo de Constituição americana é entendido como o mais adequado aos outros paises, sendo um pensamento consensual no seio dos
Estados Unidos. Tal perspectiva é contestada por Dahl indicando que somente vinte e dois paises mantiveram um regime estável democrático e
constitucional durante os últimos cinqüenta anos9.
A democracia americana deve buscar padrões de comparação em relação ao seu sistema. Há pontos que devem ser analisados. Dahl identifica
cinco itens: a) estabilidade do sistema democrático; b) proteção de direitos
democráticos fundamentais; c)assegurar a participação democrática de todos os cidadãos; d) encorajar a formação de um consenso democrático; e)
providenciar um governo democrático como resolvedor de problemas.
Para os americanos a Constituição já integra um ideário. Mas, apesar
disso, Dahl questiona se a base igualitária é realística ou mesmo desejável.
Um desenrolar do sistema constitucional americano em prol de uma
melhor democracia, corrigindo os desvios já identificados anteriormente
não parecem surgir de um futuro próximo.
Com efeito, nenhuma melhora no sistema eleitoral, de representação
política ou de participação popular parecem surgir no panorama da política institucional americana que, assim, não pode constituir um paradigma
para os demais paises democráticos ou aqueles que pretendam seguir tal
caminho.
2.2. Modelos de democracia
As democracias da antiguidade caracterizavam-se pela participação direta dos cidadãos, normalmente em atividades públicas realizadas na praça
central de cada cidade.
A agora ateniense é o padrão desse modelo de democracia direta.
Posteriormente, o modelo que surgiu foi o de democracia representativa, de vieses burgueses, sendo as eleições periódicas os eventos que
circunscrevem a participação popular.
9
DAHL, p. 43.
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Com o advento das revoluções proletárias surgiu o conceito de democracia popular com a participação do povo através das estruturas partidárias, o que prevaleceu nos países do antigo bloco socialista e persiste
atualmente na China e em Cuba.
Os estudos empreendidos pela denominada Escola de Frankfurt, capitaneados pelo professor Jurgen Habermas utilizando a via comunicativa
estabeleceu os parâmetros para a democracia deliberativa.
Nessa visão deve-se ter em conta a possibilidade de ligação intersubjetiva através do discurso argumentativo devendo ser observada a autonomia
privada exercida no espaço público10.
Seguindo o padrão kantiano a liberdade individual deve conviver com
a liberdade de todos. Para Habermas a democracia depende da fixação de
direitos fundamentais que asseguram a permanência de um membro na
associação e a possibilidade de proteção judicial desses direitos11.
Dessa concepção deflui a existência de direitos fundamentais à participação, com igualdade de chances, em processos de formação da opinião e
na vontade onde os cidadãos exercem sua autonomia política12.
3. A família
A família tradicional é formada pelo casamento entre homem e mulher
com o intuito de gerar prole. As sociedades modernas admitem, pouco a
pouco, famílias surgidas de relações homoafetivas.
Também se revela um dos bastiões da família, nessa perspectiva clássica, a chefia da sociedade conjugal pelo homem, tradicional mantenedor
econômico do lar.
O ingresso cada vez maior da mulher no mercado de trabalho tem abalado as estruturas familiares tradicionais muitas vezes invertendo o papel
desempenhado pelo homem na sociedade. É comum, atualmente, que a
mulher seja mais bem remunerada do que o homem e, por força de sua
melhor situação econômica, seja provedora do lar.
Obviamente, em tais circunstâncias as postulações acabam se invertendo. Se, antes, era a mulher autora de pedidos de pensão alimentícia,
HABERMAS, 1997, pp. 154-157.
p. 159.
12
Idem, in fine.
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atualmente é o homem, economicamente fragilizado, o que irá receber
suporte do cônjuge mulher que é mais aquinhoado.
A independência da mulher caminha pari passu com novas responsabilidades.
Afirma-se, com muita veemência, que tais fatos fariam surgir um novo
homem, capaz de realizar tarefas domésticas, antes inimagináveis, em auxílio à mulher, esta extremamente atarefada com suas funções fora de casa.
A vida, no entanto, parece não caminhar nesse sentido ou, melhor,
caminha a passos de tartaruga. É certo, contudo, na esteira da educação
fornecida nos países mais desenvolvidos, que os homens passam a ser educado em tarefas antes relegadas ao plano feminino. Com efeito, o ato de ir
à cozinha, para o homem tradicional, sempre significou a provável degustação de quitutes, resultado da arte de sua mãe, esposa, filha, ou assessora
doméstica (esta remunerada no sistema capitalista. Antes, o serviço era
prestado por escravas). Hoje, a ida ao ambiente em que estão instalados
o fogão e a geladeira, ao lado do forno de microondas pode significar um
exercício de culinária, eleito como atividade diletante ou mesmo como
necessidade para o varão.
Por outro viés, o cuidado com os filhos sempre de responsabilidade da
mulher também tem sofrido alterações, estas, talvez, com maior velocidade. Com efeito, é cada vez mais comum a pretensão dos homens de manter
contatos diuturnos com seus filhos, organizando sua agenda de trabalho
para não interferir na educação e participação nas atividades dos filhos.
Até bem pouco tempo tal preocupação estaria circunscrita à mulher que
exercesse trabalho fora de casa.
Essa última perspectiva tem gerado pleitos de visitas ininterruptas quando o casal deixa o regime do casamento para ser inserido no da separação
ou divórcio. O padrão de decisões nas Varas de Família tem se modificado
para admitir o compartilhamento da guarda ao invés de deferi-la com poderes quase absolutos a um dos cônjuges, tradicionalmente a mulher.
A modernidade, pois, criou um panorama onde convivem casais casados, casais em união estável, casais em união fugaz, pessoas solteiras (sem
filhos), pessoas solteiras (com filhos), casais homossexuais, avós vivendo
com netos, estabelecendo um novo modo de relacionamento familiar13.
Segundo o censo de 2000, realizado pelo IBGE o número de divorciados alcançou 1,4 milhão de pessoas.
Os separados judicialmente correspondiam a 1,8 milhão de pessoas e os separados, sem homologação judicial, correspondiam a 2,4 milhões de pessoas. Fonte: http://www.ibge.gov.br, acesso em 15.12.2006.
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Observe-se, ademais, que, além das mudanças motivadas por uma nova
realidade social ainda persistem, no nosso país, grandes defasagens econômicas, circunstâncias que criam, nas classes mais desfavorecidas, situações
de penúria que redundam, muitas vezes, em abandono, fuga, violência doméstica, prostituição infantil e exploração sexual por parte de familiares.
Essa balbúrdia social deve pautar a interpretação dos institutos jurídicos que queremos ver aplicados ao mundo real. De qual realidade falamos?
A família burguesa tradicional, estabilizada por relações movidas a interesses. A família burguesa moderna, estabilizada, dentre outros fatores, pela
independência da mulher. A família operária precária nas suas relações
econômicas, mas sujeita a uma teia de relações de solidariedade. A família
carente, sem meios econômicos, sem educação, sem habitação, sem lazer,
sem emprego e extremamente numerosa.
Qual é o público que deve ser atingido por nossa reflexão? A resposta
será dada na conclusão do presente trabalho.
Deve ser sempre lembrado que no modelo positivista a lei é feita para
todos os cidadãos. Mesmo no pensamento pós-positivista não se encontram meios de discernir todas as situações através do instrumento normativo. Um meio-termo consistiria em ter como parâmetro a lei e adaptá-la,
a partir da interpretação às situações concretas, ponderando os direitos em
jogo e procurando aplicar a justiça no caso concreto, nada mais do que a
vetusta equidade aristotélica14.
Um dos dados que deve ser observado é o da renda para efeito de incidência dos tributos. Segundo informações prestadas pela Secretaria da
Receita Federal os contribuintes do imposto de renda pessoa física correspondem a sete por cento da população economicamente ativa15.
Considerando que a população total do Brasil está beirando os duzentos milhões de habitantes e quarenta por cento estão incluídos dentre
aqueles que percebem até um salário mínimo por mês é fácil verificar que
a maior parte dos brasileiros não se integra na família tradicional burguesa,
mas, sim, pertence a famílias consideradas carentes.
Nesse universo, ainda vigora a perspectiva machista sendo o homem,
mesmo em condições precárias, o mantenedor do lar. Quando isso não
ocorre surge a figura da mulher solteira que, premente pela necessidade,
14
15
BARCELLOS, 2005.
Entrevista ao Jornal O Globo, de 16 de novembro de 2006.
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passa a assumir, sozinha, a chefia do lar, educando os filhos sem assistência
paterna.
Observadas tais circunstâncias fáticas é que a autoridade familiar prevista no novel estatuto civil deve ser avaliada.
Relembre-se que o nascimento do pátrio poder tem tradicional origem
romana. O pater familias se assemelhava ao chefe do clã tribal, provavelmente influxo das sucessivas conquistas romanas e do intercâmbio de tradições.
Esse tradicional poder conferia ao homem a condução dos negócios
da família, a indicação dos caminhos da educação dos filhos, bem como
a autorização para a prática de atos da vida civil, inclusive o exercício da
mercancia para o cônjuge mulher, norma esta que permaneceu entre nós,
até bem pouco tempo inserida no revogado Código Comercial16.
A aplicação de critérios de igualdade e liberdade em pequenos grupos,
como preconizado por alguns autores17, encontra sérias dificuldades no
ambiente familiar, notadamente no relacionamento com filhos menores
de dezesseis anos ou incapazes. Nesses relacionamentos não é possível
obter o consenso sem alguma imposição. O respeito às minorias, que é
próprio da democracia pode implicar, muitas vezes, na ditadura dos filhos
em relação aos pais.
Não se nega, contudo, que exista uma relação de igualdade e de solidariedade entre os cônjuges e seja exigido o respeito entre todos os integrantes da família: pai, mãe, filhos. Ocorre que, sem uma relação simétrica
entre pai, mãe e filhos não se pode falar em democracia.
A estrutura do sistema jurídico pátrio indica, sobretudo, uma responsabilidade compartilhada entre os pais ou aqueles que detêm a autoridade
parental, sem que haja predominância de qualquer um deles. A negociação,
pois, pode ou não atingir os filhos e isso somente ocorrerá se houver algum
grau de maturidade dos mesmos e o objeto não seja ilícito ou imoral.
Nessa linha se o filho desejar ser garoto de programa ou a filha prostituta não é de se admitir a anuência dos pais nessa atividade, mesmo considerando o fato de que as pessoas possam ter direito ao próprio corpo.
Note-se que aqui não se está falando em exploração sexual das crianças ou
adolescentes, mas sim de conflito entre o desejo dos filhos e daqueles que
sobre eles possuem autoridade.
16
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Lei no. 556, de 1890, art. 1º, inciso IV.
GIDDENS, 2000, p. 2.
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Nesse sentido, não há como concordar com o pensamento exposto pela professora Maria Celina Bodin de Moraes, em portentoso artigo
doutrinário18.
4. Responsabilidade
A análise do tema responsabilidade vinculada ao Direito de Família
pode ser desenvolvida sob vários prismas: a) danos derivados do divórcio,
da separação ou da anulação do casamento; b) danos causados pela ruptura da promessa de matrimonio ou de união estável; c) danos causados
pelos pais aos filhos menores; d) danos causados pelos filhos aos genitores
idosos; e) danos causados pelos cônjuges na constância do casamento19.
O tema, como é sabido, é extremamente vasto e aqui será perquirido
consoante as limitações normais que se impõem ao presente trabalho.
Os critérios de aferição da responsabilidade podem ser vistos sob dois
pontos básicos: a subjetiva e a objetiva. No primeiro caso persegue-se a
culpa do causador do dano; no segundo o nexo de causalidade entre o
evento e o dano causado20.
A sistemática pátria continua a mesclar as duas perspectivas nos vários
segmentos em que a responsabilidade civil se aplica. No caso do Direito de
Família percebe-se que a responsabilidade ainda segue os cânones subjetivos: deve-se provar a culpa do ofensor.
Por outro viés, o rumo da responsabilidade dirigiu-se nos tempos atuais a ser norteado pela perspectiva da dignidade humana agora vista sob
uma nova visão, sob a influência do pensamento Kantiano e desenvolvido
por autores de tomo como Pietro Perlingieri, na Itália e Maria Celina Bodin
de Moraes, no Brasil21.
Sob a nova ótica o homem é visto na sua integralidade possuindo esferas patrimonial e existencial, o que acarreta a possibilidade de existência
tanto de danos materiais como de danos dito morais, estes atingindo a
integridade psicofísica do indivíduo.
O dano dito moral tem sido identificado com o sofrimento causado à
vítima, sendo de natureza extrapatrimonial. Para os adeptos da doutrina
MORAES, A Família Democrática.
BELLUSCIO, 1983.
20
PEREIRA, 1999, pp. 266-278.
21
PERLINGIERI, RT, 2002, p. 413.
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do Direito Civil Constitucional, capitaneados pela professora Maria Celina
Bodin de Moraes, o dano moral traduz uma lesão à dignidade humana, em
um dos seus valores constitutivos: igualdade, liberdade, solidariedade ou
integridade psicofísica22.
Resta claro que a nova forma de avaliar os danos causados à pessoa projeta um campo maior de incidência da responsabilidade civil. Nessa linha
podemos indicar: a) dano à saúde física ou psíquica; b) dano decorrente do
pleno desfrutar da vida; c) dano à liberdade; d) dano à segurança pessoal;
e) dano à dignidade pessoal; e) dano decorrente da perda de uma chance;
f) dano decorrente do falecimento de ente familiar ou querido23.
Observadas tais linhas gerais torna-se necessário circunscrever o tema,
adstrito ao relacionamento entre pais e filhos, estabelecendo os parâmetros
que devem pautar as atividades dos mesmos e os atos que podem gerar a
responsabilidade civil.
Não se pode negar que a relação entre pais e filhos é assimétrica: aos
pais cabe prover a educação e o sustento material dos filhos; também lhes
cabe o dever de guarda, bem como atualmente está expresso o dever de
obediência, respeito e serviços próprios da idade. Tais regramentos são
definidos em lei (Código Civil, art. 1.634)24.
Não constitui ato abusivo, nessa trilha: a) definir as companhias dos
filhos; b) proibir o uso de drogas; c) proibir o uso de bebidas alcoólicas;
d) proibir o uso de fumo; e) influenciar na orientação religiosa; f) orientar
na colocação de piercing ou tatuagens; g) impor a realização de pequenas
tarefas domésticas, como lavar o carro ou arrumar o quarto; h) incentivar
a prática desportiva; i) incentivar a cultura musical; j) incentivar o estudo
de outras línguas, que não a natal; k) impor horários para realização de
atividades; l) efetuar corretivos morais ou físicos sem causar lesões.
Por outro turno, podem-se caracterizar como abusivos atos que caracterizem: a) lesões corporais graves; b) abusos sexuais; c) homicídio; d)
MORAES, 2001, pp. 129-140.
MARTINS-COSTA, op. cit., pp. 432-433.
24
Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação;
II - tê-los em sua companhia e guarda; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV
- nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o
sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida
civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços
próprios de sua idade e condição.
22
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cárcere privado; e) abandono material; f) abandono moral; g) exploração
do trabalho infantil.
Deve-se ressaltar que os atos abusivos são punidos pelo sistema civil
com a perda do poder familiar, para usar a dicção legal (CC, art. 1.638)25.
Além disso, constituem tipos penais previstos no estatuto repressivo: a)
art. 129 (lesão corporal); b) art. 121 (homicídio); c) art. 133 (abandono
de incapaz); d) art. 134 (exposição ou abandono de recém-nascido); e)
art. 136 (maus-tratos); f) art. 148 (seqüestro e cárcere privado); h) art.
146 (constrangimento ilegal); i) art. 149 (redução à condição análoga a de
escravo)26.
O estatuto repressivo também prevê punições para o abandono material (art. 244), a entrega de filho menor a pessoa inidônea (art. 245) e o
abandono intelectual (art. 246 e 247) e para induzimento a fuga, entrega
arbitrária ou sonegação de incapazes (art. 248) ou subtração de incapazes
(art. 249).
O sistema pátrio também possui normas repressivas inseridas no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no. 8.069/90). A norma inserida no
art. 232 criminaliza a conduta de submissão de criança ou adolescente a
vexame ou constrangimento.
A estrutura que a lei impõe à família tradicional (pai, mãe e filhos)
impede que haja um equilíbrio entre as partes enquanto os mesmos sejam
menores e estejam sob o pálio do poder econômico dos pais.
Após a maioridade a continuação da convivência, em um mesmo espaço físico, cria um relacionamento entre iguais e, nesse momento, podem-se
criar mecanismos que possibilitem uma participação plena nos destinos
daqueles que compõem o núcleo familiar.
Não se pode, no entanto, admitir que pessoas em formação, embora
tenham adquirido personalidade com o nascimento, possa influenciar no
destino de todo o núcleo familiar.
A participação no destino da vida e nos caminhos que devem ser percorridos depende de um período prévio de adaptação, à luz da experiência
haurida nos embates da vida, que é própria dos mais velhos. Não se nega
Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I - castigar imoderadamente o
filho; II - deixar o filho em abandono; III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV - incidir,
reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
26
O Código Penal brasileiro também prevê crimes contra a família (artigos 235-239), que abrange a bigamia
e simulação de casamento e, ainda, crimes contra o estado de filiação (artigos 241-243).
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aqui que a experiência, por si só, pode dar cunho de veracidade absoluta,
mas é um marco inicial que deve ser considerado.
Por outro lado, não se nega a possibilidade de negociação entre pais e
filhos, situação que se torna mais confortável na medida em que avançam
os anos a maturidade é atingida, mesmo que em menor grau.
Nessa trilha, as condições para a independência dos filhos compõem
um processo que, um dia, terá como destino final a criação de mecanismos
de auto-suficiência, possibilitando o desligamento do núcleo familiar originário com a criação de outro.
O padrão de desenvolvimento da família é aquele burguês formado
por pai e mãe que exercem atividades fora do lar, econômicas ou não, e são
presentes na educação dos filhos.
Quando se rompe o padrão e defronta-se a questão com famílias carentes ou formadas por mães ou pais responsáveis pela manutenção do lar
ou, ainda, homoafetivas, as negociações tornam-se mais difíceis até mesmo
pela impossibilidade de se fornecer os meios materiais para a realização
de atividades por parte dos filhos, no caso das famílias de menor poder
econômico e dirigidas por pais ou mães solteiros. No caso das famílias homoafetivas o maior problema é o preconceito social, que ainda persiste.
A participação e a negociação podem ser consideradas atos da época
moderna, que caracterizam a superação do vetusto modelo patriarcal, pródigo na dominação do homem em relação à mulher e aos filhos, mas não
significa a transposição do modelo democrático para o seio da família.
Democracia tem como pressuposto a igualdade entre os pares, que
exercem um feixe de direitos, vinculado a deveres e obrigações de natureza
cívica e que permitem o controle do poder do Estado sempre com a possibilidade de mudança e acesso.
O poder da família, ao revés, não pode ser conferido aos filhos menores, à luz da lei em vigor ou contra ela, vez que está cometido àqueles que
detêm o poder familiar ou exercem a autoridade parental.
5. Conclusão
Inicialmente deve-se concluir que a família na modernidade modificouse estruturalmente para admitir, como sua composição, diversos membros,
de ambos os sexos ou do mesmo sexo, além de filhos, netos e bisnetos
originados de diversos relacionamentos.
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Firly Nascimento Filho
Por outro turno, os pólos de poder também se transmudaram, deixando
o homem de ser o ente dominante para assumir uma maior participação,
em regime de igualdade com a mulher. Aliás, na esteira da Constituição de
1988 (art. 226, § 5º.).
A onda de separações e de divórcios27 suscitou o surgimento de famílias
mescladas com filhos de origens anteriores.
A liberalidade das relações permitiu o surgimento das uniões homoafetivas, amparadas pelo estatuto normativo, antes relegadas ao plano da
ilicitude e da imoralidade.
A observância dos princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da liberdade e da igualdade apesar de modificar as relações
conjugais não permitiu a criação de relações igualitárias entre pais e filhos
ou detentores da autoridade parental (poder familiar), o que inviabiliza a
inserção de padrões democráticos no seu interior.
Como conseqüência, sob os limites da lei, que reprime atos abusivos,
tem os pais, conjuntamente, o poder de direção da vida dos seus filhos menores com a indicação dos caminhos que devem ser seguidos, bem como
do necessário poder de polícia dos seus atos.
No que concerne à responsabilidade entre pais e filhos os danos causados podem ser ressarcidos sob a perspectiva moral e material quando
se tratar dos denominados ilícitos absolutos, a saber: a) lesões corporais
graves; b) abusos sexuais; c) homicídios; d) cárcere privado; e)abandono
material; f) abandono moral; g) exploração do trabalho infantil.
Tais ilícitos podem ser punidos no âmbito criminal e civil. Aqui, como
em qualquer outra situação, a condenação criminal faz certa a responsabilidade civil fixando o an debeatur, sujeitando-se a posterior liquidação de
sentença.
A resposta do sistema jurídico está pautada na existência de uma família tipicamente burguesa devendo as demais manifestações de o instituto
sofrer a aplicação da lei por força de interpretação integrativa e extensiva.
Assim, na medida em que a Constituição agasalha a família a norma
deve ser aplicada a qualquer família que surja na sociedade e não somente
aquela que surgiu em obediência aos cânones tradicionais.
Segundo pesquisa do IBGE, em 2005 o aumento de separações judiciais correspondeu a 7,4% maior do
que em 2004. O número de divórcios sofreu um acréscimo de 15,5%. Fonte:http://www.ibge.gov.br, acesso
em 15.12.2006.
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Família, democracia e responsabilidade
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Em resumo: a) não é possível instalar relações igualitárias no seio da
família nos vínculos criados entre pais e filhos menores ou incapazes; b)
a responsabilidade civil entre pais e filhos é recíproca e pode gerar danos
morais e materiais nos ilícitos absolutos; c) qualquer espécie de família deve
ser agasalhada pela lei à luz de adequada interpretação constitucional.
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Recebido em setembro/2007
Aprovado em janeiro/2008

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