A CRÍTICA LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA E SEU ESTUDO: O

Transcrição

A CRÍTICA LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA E SEU ESTUDO: O
A CRÍTICA LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA E SEU ESTUDO: O CASO
VINCENT B. LEITCH
Luiz Fernando Martins de Lima1
RESUMO
No século XX, houve uma profusão de “teorias” e “métodos” até então nunca
vista, o que se acirrou com a grande Era da Teoria, consensualmente iniciada
na década de 60. Diante disso, um novo tipo de intelectual ganha destaque, o
“crítico da crítica”, um historiador das ideias orientado para os Estudos
Literários. Exercendo essa tarefa, o professor norte-americano Vincent B.
Leitch (1944), conhecido como o editor geral e organizador da maior antologia
de Crítica Literária já publicada, The Norton Anthology of Theory and Criticism
(2001, 2010), se apresenta como figura de maior impacto. Este artigo busca
explicitar a condição da Crítica Literária contemporânea, num exercício
ensaístico que rastreie suas origens, e apresentar brevemente o trabalho de
compilação e historiador da crítica realizado por Leitch.
PALAVRAS-CHAVE: Crítica Literária. Teoria da Literatura. Vincent B. Leitch.
ABSTRACT
In 20th Century, there was a profusion of “theories” and “approaches” never
seen before, intensified with the great Era of Theory, commonly known to have
begun in the 1960s. With that, a new kind of scholar features, “the critic of
criticism”, a historian of ideas oriented towards the Literary Studies. As a
performer of this task, North-American professor Vincent B. Leitch (1944),
known as the general editor of the greatest anthology of Literary Criticism ever
published, The Norton Anthology of Theory and Criticism (2001, 2010), is a
major presence. This paper seeks to explicit the Contemporary Literary
Criticism condition in an essayistic fashion in order to track its origins, and to
briefly present the work of Criticism compiler and historian carried out by Leitch.
KEY-WORDS: Literary Criticism. Literary Theory. Vincent B. Leitch.
1
Doutor em Letras pela UNESP de Assis. Docente da Faculdade de Presidente Prudente e do
Instituto Educacional de Assis.
1. Os grandes nomes da Teoria Literária e Cultural
A organização – inclusive tipográfica – do dicionário de teoria e crítica
literária e cultural publicado pela Oxford (BUCHANAN, 2010) é sintomática
quanto ao estado atual dos Estudos Literários. Além de conter entradas com
nomes de críticos literários, como Ivor Armstrong Richards, sociólogos, como
Pierre Bourdieu, filósofos como Edmund Husserl, entre outros pensadores das
Ciências Humanas, o volume apresenta figuras de destaque, que são assim
tipograficamente apresentadas, com um fundo mais escuro, o que revela uma
maior relevância dessas figuras de destaque para a área. São eles: Theodor
Adorno, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Michel Foucault, Sigmund Freud,
Jacques Lacan, Karl Marx, Friedrich Nietzsche e Jean-Paul Sartre. Além destes
intelectuais, figuram em destaque também os termos
Estruturalismo,
Feminismo e Pós-modernismo.
É notável que dentre todos os intelectuais em destaque no dicionário da
Oxford, nenhum deles seja um crítico ou teórico literário, embora todos tenham
dedicado parte de sua obra para tratar de literatura. Qual o estado de coisas,
portanto, revelado pela organização do dicionário em questão?
2. Da Teoria da Literatura à Teoria
No começo do século XX, deu-se a institucionalização do estudo da
literatura, o qual até então ocorria, predominantemente, em jornais, no século
XIX, e que, na Universidade estava subordinado à Filologia, disciplina que
tomava os textos literários clássicos como objeto de estudo da língua e cultura
de determinada nação. Com a institucionalização do estudo da literatura,
levado a cabo principalmente por formalistas, tanto no leste europeu, com os
formalistas russos, como no mundo anglo-americano, com o New Criticism,
dois foram os principais objetivos desse direcionamento: avaliar a produção
literária contemporânea, negligenciada pela Filologia, a qual, para os
formalistas, permanecia numa zona de conforto por estudar tão-somente obras
já consagradas; e estabelecer critérios restritos de análise textual, por meio dos
quais a Crítica Literária se tornaria uma disciplina autônoma, alheia a estudos
biográficos, históricos, ou psicológicos.
Com isso, foi possível aferir à Crítica Literária o caráter de disciplina
universitária, regida por padrões objetivos de análise, sem os quais seria
impossível fugir do impressionismo reinante na crítica literária jornalística.
Sem nenhuma surpresa, com essa reviravolta, foram estabelecidos
novos critérios para determinação dos textos canônicos, normalmente
orientados pela ruptura linguística levada a cabo pela obra. Em outras palavras,
o
cânone
da
crítica
literária
no
princípio
do
século
XX
tornou-se
predominantemente modernista, com a presença de obras de outras épocas
que incorriam em rupturas semelhantes, como os poetas metafísicos de T. S.
Eliot, escritores, como John Donne, de estilo reconhecidamente barroco.
Um dos primeiros críticos literários a combater o status quo perpetrado
pelos formalistas, na década de 50, foi Northrop Frye (1912-1991), que
agregou a sua técnica crítica os estudos dos mitos, recuperando especialmente
a tradição romântica inglesa – estonteantemente mitológica – e os estudos
bíblicos, como em seu monumental O código dos códigos (1981).
A investida de Frye, aliada às de outros monumentos da crítica literária
norte-americana, como Edmund Wilson (1895-1972) e Kenneth Burke (18971993), criou um espaço de abertura nos Estudos Literários a partir da segunda
metade do século XX, que permitiu-lhe o retorno à interdisciplinaridade. É a
partir da década de 60, contudo, que essa interdisciplinaridade se acirra.
Ocorre, a partir de então, forte influência em todas as Ciências Humanas
de três figuras monumentais na história do pensamento ocidental: Karl Marx
(1818-1883), Friedrich Nietsche (1844-1900) e Sigmund Freud (1856-1939). Os
três, conjuntamente e inadvertidamente, impuseram à crítica uma atitude
epistemológica conhecida como hermenêutica da suspeita, uma desconfiança
pírrica acerca da capacidade humana em compreender a realidade. Para Marx,
o homem é incapaz de ter controle da percepção diante do determinismo
materialista, portanto ele é subjugado pela ideologia. Nietzsche, por sua vez,
considera impossível termos acesso à realidade, devido à linguagem
fossilizada que media a relação com nosso meio. Por fim, para Freud, o
inconsciente é um elemento da psique que impede o acesso dos sentidos à
realidade, ao mesmo tempo em que nos impede de um controle total sobre nós
mesmos. Todos estes três filósofos, direta ou indiretamente, influenciaram um
ou mais dentre os outros nomes que estão em destaque no dicionário da
Oxford.
Concomitantemente a essa penetração da filosofia continental nos
Estudos literários e culturais, ocorriam grandes movimentações político-sociais
que modificaram o estatuto daqueles que eram considerados “minorias”, entre
eles, negros, mulheres e homossexuais. Os mais conhecidos nos Estados
Unidos foram os Movimentos pelos Direitos Civis (Civil Rights Movements),
como o movimento pela integração racial (anti-racista) e o movimento pela
igualdade de gêneros (feminista).
Nas universidades norte-americanas (e, posteriormente, também nas
brasileiras), os estudos literários se tornam absolutamente interdisciplinares,
com a presença de estudos feministas, estudos da recepção literária (forte
influência da Estética da Recepção da Escola de Constanza), da formação do
cânone (e consequente questionamento do cânone), estudos da literatura
produzida pelas minorias, literatura produzida por povos colonizados (no Brasil,
cresce os estudos de literaturas africanas de língua portuguesa) e
questionamento de padrões ocidentais, entre outras dezenas de vertentes da
Crítica Literária que a tornou uma grande Babel. Este estado de coisas é
fortemente criticado por intelectuais dos Estudos Literários mais tradicionais,
como Abrams:
Cada teórico crítico, é possível afirmar, buscando seus interesses e
propósitos particulares, seleciona e especializa seus termos de
categorização e, em consequência, estabelece um jogo de linguagem
distintivo cujo campo de atuação sobrepõe-se a, mas não coincide
com, aquele de outros jogos de linguagem críticos e que é jogado de
acordo com regras lógico-gramaticais em alguma medida especial em
relação a si próprio. (ABRAMS, 1989, p. 48-9, tradução minha)2.
Em outras palavras, para Meyer Abrams, o Crítica Literária, hoje, se
tornou um conjunto de nichos incomunicáveis entre si, de tal maneira que os
estudiosos da literatura dificilmente conseguem estabelecer um diálogo, exceto
dentro de sua própria abordagem crítica, desestruturando a comunidade
acadêmica das Letras e isolando os intelectuais dentro de seu próprio trabalho.
Além disso, a produção acadêmica contemporânea em cada qual
dessas novas abordagens ultrapassa a capacidade humana de acompanhá-la,
tornando o mundo acadêmico um mar inescrutável, como afirma Jay Clayton:
(...) novos romances (...) formam uma pilha no criado-mudo; revistas
acadêmicas (...) continuam chegando pelo correio; os volumes de não
ficção, crítica cultural, e teoria literária (...) ameaçam tornam o
trabalho de qualquer um ultrapassado antes mesmo de chegar à
gráfica (...) (CLAYTON, 1993, p. 147, tradução minha)3.
Vincent B. Leitch, o maior estudioso da crítica contemporânea, contudo,
exalta o estado atual dos Estudos Literários:
Há muitas razões pelas quais, como observa Jonathan Culler, a teoria
contemporânea rege o estudo da literatura e da cultura nas
instituições acadêmicas. A teoria faz e responde perguntas sobre
uma ampla gama de questões fundamentais, algumas antigas e
algumas novas, relacionadas às estratégias de leitura e de
interpretação, literatura e cultura, tradição e nacionalismo, gêneros
literários e ideologia de gênero, significado e paráfrase, originalidade
e intertextualidade, intenção autoral e o inconsciente, educação
literária e hegemonia social, linguagem padrão e dialogismo, poética
e retórica, representação e verdade, etc. (LEITCH, 2001, p. 28,
tradução minha)4.
2
Each critical theorist, it can be said, pursuing his particular interests and purposes, selects and
specializes his operative and categorical terms, and in consequence sets up a distinctive
language-game whose playing field overlaps but doesn´t coincide with that of other critical
language-games and which is played according to grammatico-logical rules in some degree
special to itself.
3 (...) new novels (…) pile upon on the bedside table; the scholarly journals (...) keep arriving in
the mail; the volumes of nonfiction, cultural criticism, and literary theory (…) threaten to make
one´s work out-of-date before it reaches the press (…).
4 There are very good reasons that, as Jonathan Culler observes, contemporary theory now
frames the study of literature and culture in the academic institutions. Theory raises and
answers questions about a broad array of fundamental issues, some old and some new,
pertaining to reading and interpretive strategies, literature and culture, tradition and nationalism,
genre and gender, meaning and paraphrase, originality and intertextuality, authorial intention
and the unconscious, literary education and social hegemony, standard language and
heteroglossia, poetics and rhetoric, representation and truth, and so on
Assim, a agregação aos Estudos Literários das mais diversas correntes
filosóficas continentais, as vertentes artísticas de um sem-número de
movimentos sociais, além dos trabalhos autônomos de críticos literários
absolutamente brilhantes, mas com pouco ou nenhum vínculo com a
Universidade, como Edmund Wilson – enfim, um universo de possibilidades –
tornou o que era para ser, no início, uma disciplina homogênea num todo
amorfo conhecido hoje simplesmente como “Teoria”.
Diante desse fator, o crítico da crítica ganha destaque como intelectual
fundamental para o desvelamento desse emaranhado de fios que formas o
tecido da crítica literária contemporânea, sem o qual, corre-se o risco dos
estudantes e professores abraçarem as mais diversas convicções teóricas sem
se atentarem para possíveis contradições e incompatibilidades5, para as
origens e ideias fundamentais que alicerçaram o pensamento de determinado
teórico6, ou mesmo para a completa falta de unidade e coerência que fundam a
obra de um dado pensador7. Sua função, portanto, é a de explicitar e
contextualizar conceitos, vislumbrar o projeto intelectual de determinado
teórico, entender a influência de tal e qual corrente crítica, entre outras tantas,
em suma, o crítico da crítica é o historiador das ideias da crítica
contemporânea.
No trabalho de desvendar a crítica contemporânea, ninguém contribuiu
mais do que Vincent B. Leitch. Professor da Universidade de Oklahoma, Leitch
leciona diversos cursos na área de Teoria e Crítica Literária e escreveu sete
livros sobre o assunto, quais sejam: Deconstructive Criticism (1983), um estudo
completo da misteriosa Desconstrução; American Literary Criticism from the
1930s to the 1980s (1988), uma história da crítica literária norte-americana que,
a despeito de ignorar algumas carreiras importantes, é extremamente didática;
Cultural Criticism, Literary Theory, Poststructuralism (1992), o qual expõe como
temas consagrados da crítica, como autoria, interpretação e gênero, são
Por exemplo, a relação entre o “Feminismo” e o “Multiculturalismo”, ou mesmo a
subordinação do primeiro em relação ao segundo. Enquanto feministas alegam desejar a
igualdade entre os gêneros, abraçam também toda e qualquer cultura, inclusive aquelas que
desprezam completamente tal igualdade.
6 Um exemplo é o marxismo patente no conceito de episteme, de Michel Foucault, uma
reelaboração da boa e velha ideologia.
7 O exemplo do onipresente Nietzsche é o mais conhecido.
5
observados pelo prisma das jovens disciplinas e movimentos que batizam o
livro; Post-modernism – Local effects, Global Flows (1996), livro em que Leitch
examina todo o alcance do conceito de “pós-modernismo” em diversas áreas
do saber, como Educação, Filosofia e Política; Theory Matters (2003), um
breve diário intelectual somado ao exame das novas disciplinas geradas no
centro de ebulição acadêmica provocada pela Era da Teoria, como Estudos da
Globalização e Estudos Pós-modernos; Living with Theory (2008), um efetivo
mapeamento de termos e abordagens da teoria contemporânea e a exaltação
de sua diversidade; e Literary Criticism in the Twenty-First Century (2014), uma
tese segundo a qual a teoria contemporânea não pode ser completamente
dominada em vista do fato de que o seu elemento fundamental é a própria
desagregação8.
A obra de Leitch, em seu conjunto, é uma tentativa – talvez frustrada,
haja vista que seu mais recente livro implica que qualquer tentativa dessa
natureza seja falha em maior ou menor grau – de apreender por completo o
fenômeno dos Estudos Literários contemporâneos como ele é empreendido
dentro das universidades. Temos assim, uma ampla gama de enfoques em sua
obra, sem a qual seria impossível sequer conceber alguma unidade inteligível
do fenômeno.
Abrams
está
certo
quando
afirma
que
a
crítica
contemporânea impede o diálogo entre os intelectuais de Letras, bastaria para
perceber isso que as sessões temáticas de um dado congresso – entre os
tantos que ocorrem no Brasil e no mundo – tivessem seus comunicadores
adentrado em salas erradas. O trabalho de crítica da crítica, como o realizado
por Leitch, é o fundamento da comunicação entre homens e mulheres de
Letras isolados em suas ilhas temáticas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
8
É importante lembrar também que Leitch é o organizador da antologia de crítica literária
Norton Anthology of Theory and Criticism (2001, 2010), a qual merece também grande
destaque.
ABRAMS, M. H. What´s the Use of Theorizing About the Arts? In: FISCHER,
Michael (ed.). Doing Things with Texts: Essays in Criticism and Critical
Theory. New York: W.W. Norton and Company, 1989.
BUCHANAN, Ian. A Dictionary of Critical Theory. New York: Oxford
University Press, 2010.
CLAYTON, Jay. The Pleasures of Babel. New York: Oxford University Press,
1993.
LEITCH, Vincent B (ed.). The Norton Anthology of Theory and Criticism.
New York: W. W. Norton and Company, 2001.