Especial Barack Obama

Transcrição

Especial Barack Obama
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Fundação Luso-Americana
ConseLho DireCtivo:
Teodora Cardoso (Presidente)
Embaixador dos Estados Unidos da América
Jorge Figueiredo Dias
Jorge Torgal
Luís Braga da Cruz
Luís Valente de Oliveira
Maria Gabriela Canavilhas
Michael de Mello
Vasco Graça Moura
ConseLho exeCutivo:
“Belo céu azul [aqui em Nova Iorque]
que me leva a pensar que nós estamos
na mesma latitude de Lisboa,
o que tenho dificuldade em imaginar.”
Albert Camus, Cahier V (1946)
Rui Chancerelle de Machete (Presidente)
Charles Allen Buchanan, Jr
Mário Mesquita
seCretário-GerAL: Fernando Durão
DireCtores: Fátima Fonseca, Paulo Zagalo
e Melo, Miguel Vaz
subDireCtores: António Vicente, Rui Vallêra
responsáveL peLos serviços FinAnCeiros:
Maria Fernanda David
responsáveL peLos serviços ADministrAtivos:
Luiza Gomes
Assessores: João Silvério, Paula Vicente
Rua do Sacramento à Lapa, 1
149-090 Lisboa | Portugal
Tel.: (+351) 1 393 5800 • Fax: (+351) 1 396 3358
Email: [email protected] • www.flad.pt
paralelo
DireCtor: Rui Chancerelle de Machete
eDitorA: Sara Pina
CoorDenADorA: Paula Vicente
seCretAriADo DA reDACção: Cristina Cambezes
e Sofia Roquete
CoLAborAm neste número: Alexandre Soares,
Ana Brasil, Ana Catarina Santos, Ana Luísa
Rodrigues, António Vicente, Bruno Marchand,
Carla Martins, Carlos Moura, Catarina Gomes,
Catarina Neves, Claúdia Gameiro, Charles
Buchanan, Clara Pinto Caldeira, Cristina Lai
Men, Fabiana Coelho, Joana Fernandes, Joana
Godinho, João Carita, Filipe Santos Costa, Filipe
Vieira, Filipa Simas, Francisco Belard, James
R. Dickenson, James Roosevelt, Manuel Jacinto
Nunes, Marco Leitão Silva, Margarida Pimenta,
Maria Inácia Rezola, Maria João Guimarães,
Mário Bettencourt Resendes, Mário Mesquita,
Mário Soares, Marta Amorim, Martha Mendes,
Michael Werz, Nuno Costa Santos, Patrícia
Fonseca, Rui Catalão, Rui Chancerelle de
Machete, Rui Vallera, Sara Pina, Sónia Graça,
Susana Neves, Susana Salgado, Susana Paula
e Vanda Mendonça
DesiGn: José Brandão | Susana Brito [Atelier B]
revisão: António Martins
impressão: www.textype.pt
tirAGem: 3000 exemplares
niF: 501 56 307
nº De reGisto nA erC: 15
perioDiCiDADe: semestral
563
[email protected]
Depósito legal: 69 114/07
ISSN 1646-883X
© Copyright: Fundação Luso-Americana
para o Desenvolvimento
Todos os direitos reservados
Caro leitor
“
O
único limite para a nossa realização no futuro são as
dúvidas que temos hoje. Sigamos em frente com fé
diligente e forte.” Esta podia ser uma frase de Obama
levando muitos a ultrapassarem medos e preconceitos e “emergir de
uma relação abusiva com os líderes do nosso país no século XXI”, como
escrevia o New York Times. Mas a declaração é de Roosevelt, feita há mais de
sessenta anos.
Em comum, os dois presidentes conseguiram reavivar a crença na
mudança – mobilizaram os americanos. Os milhares de pessoas que
afluíram ao Mall e pacientemente esperaram nas estações de metro,
onde parecia não caber mais uma agulha, para assistir ao juramento de
Obama são disso um bom exemplo.
Roosevelt foi vivamente lembrado com a recente eleição, mas já antes
a FLAD concretizava o Fórum, a ele dedicado, que decorreu em São
Miguel, no Verão passado, para analisar e debater as relações transatlânticas, celebrando a visita de FDR aos Açores que nunca esqueceu.
Dado o interesse suscitado e a vontade de fazer uma revista melhor e
dirigida a mais pessoas, a Paralelo passa a ser vendida ao grande público.
Está, portanto, nas bancas este número especialmente dedicado aos dois
presidentes: Obama e Roosevelt. sArA pinA
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
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índice
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05 |
CAPA de
Editorial de
Rui Chancerelle de Machete
André Carrilho
Reconstruir a América
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22 | BLOCO DE NOTAS
08 | O que vai mudar?
por Filipe Vieira
11 | Testemunho
por Mário Soares
12 | O que esperar?
14 | Prioridades
energéticas e ambientais
O novo ciclo americano
ou a analogia Roosevelt
por Charles Buchanan
de Mário Mesquita
15 | A mudança
que o mundo precisa
por Manuel Jacinto Nunes
por Lídia Jorge
13 | Desafios à nova
Presidência
16 | A realidade
do sonho
“A única coisa de que devemos
ter medo é o próprio medo”
por Joana Godinho
por João de Vallera
[portuGAL/euA]
26 | Revista de Imprensa
29 | Mensagem
34 | Actualidade
do pensamento de Roosevelt
46 | Carlucci vs. Kissinger
de James Roosevelt
Entrevista com
Alan Henrikson
49 | Os Capelinhos
e a emigração açoriana
30 | De olhos
postos no mundo
40 | A América de volta
às Nações Unidas
52 | Perfil de Luís
dos Santos Ferro
por Sara Pina
Entrevista com
Stephen Schlesinger
[portuGAL/euA]
59 | Liderança
no século XXI
Curso da Kennedy School
nos Açores
62 | CARTA BRANCA
Um jantar no Havai
de Mário Bettencourt Resendes
69 | “Asas sobre a
América”: Só a literatura
vence o tempo
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
3
Estatuto Editorial
A Paralelo, revista da Fundação Luso-Americana (FLAD), visa contribuir para o desenvolvimento das relações entre Portugal e os
Estados Unidos, nomeadamente, nos domínios económico, científico e cultural.
A Paralelo adopta este título a fim de sublinhar que Portugal e os Estados
Unidos estão no mesmo paralelo geográfico, partilham valores, foram
e são, muitas vezes, aliados na defesa de interesses comuns.
A Paralelo define-se como publicação institucional o mais próxima
possível do jornalismo, no que se refere ao rigor, à exactidão e à criatividade editorial.
A Paralelo rege-se, no exercício da sua actividade informativa, pelas
referências fundamentais da deontologia do jornalismo.
A Paralelo, no âmbito da sua linha editorial, assume o compro-misso
de assegurar a defesa dos valores da liberdade de expressão e do
pluralismo.
A Paralelo dedica especial atenção às questões relacionadas com a
comunidade portuguesa residente nos Estados Unidos e à defesa
dos seus legítimos interesses.
A Paralelo assume nos editoriais a sua linha de orientação, considerando que as opiniões expressas nos artigos dos seus colaboradores
apenas vinculam os respectivos autores.
A Paralelo publicará, em simultâneo, duas edições, com conteúdo
idêntico, em português e inglês.
4
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
eDitoriAL
Reconstruir a América
rui ChAnCereLLe De mAChete
A eleição do Presidente Barack Obama é
uma grande oportunidade para a revisão
das políticas interna e externa dos EUA.
Muito significativamente, a conhecida
revista The American Interest titulou o seu último número como “Rebuilding America”.
As expectativas de mudança são enormes,
porventura mesmo excessivamente altas.
O novo Presidente caracteriza-se por ser um
homem de convicções fortes que pretende
traduzir na prática a política do Executivo.
Espera-se que
tenha a coragem
A actual situação oferece uma ocasião
necessária para
tomar as deciúnica para revigorar a comunidade
sões adequadas
cultural e económica entre
para a resolução
um e outro lado do Atlântico.
dos problemas;
que não fraqueje
e não ceda à popularidade fácil de seguir
padrões políticos maioritários pelo simples
facto de o serem.
Os compromissos que tenha de assumir
deverão assim ser sobre questões concretas
e não sobre princípios.
A primeira prioridade do novo Presidente,
vencer a profunda crise financeira e económica, reveste simultaneamente carácter
doméstico e dimensão mundial. Combater
o desemprego e retomar o crescimento
implicam relançar a procura e restituir aos
bancos a capacidade de veicularem os
necessários meios financeiros aos diversos
actores do mercado. Reganhar a confiança
dos agentes económicos exige o saneamento das instituições financeiras e este, provavelmente, só poderá conseguir-se se o
Estado se tornar, ainda que temporariamente, titular de grande parte do seu capital
social, por muito que pese à ideologia
dominante na América. O paralelismo com
certas medidas socializantes de New Deal
‘
’
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
reforça certa comunidade do destino entre
o programa do actual Presidente e o New
Deal de Roosevelt.
No sistema internacional, o novo Presidente
defenderá seguramente, acima de tudo, os
interesses do seu país. É o seu dever. Mas,
nas grandes questões, as soluções a adoptar
não serão tão conflituais com as posições da
América como os neoconservadores acreditavam. As políticas energéticas convenientes,
o controlo do aquecimento global, a promoção do desenvolvimento sustentável, um
comércio internacional com trocas mais justas, todos requerem solidariedades acima do
egoísmo míope de curto prazo da anterior
Administração.
Mas, mesmo no aspecto essencial da segurança, a luta contra o terrorismo fundamentalista islâmico e a questão conexa da criação
de um modus vivendi entre Israel e os palestinianos, a estabilização do Sudoeste Asiático,
com soluções funcionais para o Iraque,
o Afeganistão e o Paquistão, a saída para o
impasse nuclear iraniano, são problemas que
têm a ganhar com a predisposição para o
diálogo que os EUA agora demonstram.
O Ocidente, como aliado partilhando valores e interesses comuns, proporciona um
apoio estável, se se estabelecer um clima
de confiança entre parceiros que mutuamente se respeitem. Num mundo perigoso,
os EUA e a União Europeia muito beneficiarão se desenvolverem os meios de cooperarem nas tarefas e processos necessários
para levar de vencida os desafios comuns.
Ao contrário do cepticismo dos que apregoam o declínio da unidade do Ocidente,
a actual situação oferece uma ocasião única
para revigorar a comunidade cultural e económica entre um e outro lado do Atlântico.
Assim sejamos capazes de recriar os instrumentos capazes de a concretizar!
5
revistA De imprensA
por Filipe vieira*
temos estado à espera”, mas as pessoas estavam à sua espera, à
espera de alguém que terminasse aquilo que foi começado por
um Rei [“Rei”/”King”, alusão a Martin Luther King].”
[ Nancy Gibbs ]
A festa da libertação
O nosso país ainda continuava na mesma valeta em que se encontrava no dia anterior, mas a atmosfera era estonteante. Sentíamo-nos muito bem, não só porque tínhamos ultrapassado uma
barreira racial tão velha como a própria república, mas também
porque a alvorada nos trazia a percepção de que estávamos finalmente a emergir de uma relação abusiva com os líderes do nosso
país do século XXI. As cenas festivas de libertação que Dick
Cheney tinha, em tempos, imaginado para o Iraque, estavam
finalmente a acontecer – em cidades por toda a América.
[ Frank Rich ]
Obama e Carter
O candidato cujo percurso até à presidência mais se assemelhou
ao de Obama foi Jimmy Carter. Também ele usou um apelo muito
pessoal e inspirador para compensar um currículo pouco consistente. Após ter cortejado o público com uma retórica lisonjeira, prometendo “um governo tão bom como o próprio povo
americano”, Carter falhou redondamente como presidente, em
Esperança concretizada
Alguns príncipes nascem em palácios. Outros nascem
em manjedouras. Outros, ainda, nascem na imaginação, a partir de restos de história e de esperança.
Barack Obama nunca fala da forma como as pessoas
o vêem. Pelo contrário, sempre que pode, afirma:
“Não sou eu que estou a fazer História. São vocês.”
[...] Ele gosta de dizer: “Nós somos aqueles de quem
Nova era I
Estas eleições foram tão extraordinárias em tantos aspectos que
serão necessários muitos anos para que o seu verdadeiro significado seja completamente explorado e muitos mais para que seja
entendido. No entanto, já se sente no ar o início de uma nova era.
Tal como em 1932 e 1980, a crise económica abriu o caminho
para a rejeição do tipo de governação que tem predominado e
para o forjar de uma nova abordagem. O público virou-se contra
o conservadorismo nacional e o neoconservadorismo internacional de uma forma enérgica e massiva. A crença de que os mercados livres e os impostos mínimos sobre os mais ricos poderiam
resolver todos os problemas internos e que a arrogância unilateral e as armas americanas poderiam resolver todos os problemas
externos estará morta durante uma geração ou mais. A estratégia
eleitoral de ressentimento cultural e falso populismo sofreu um
duro golpe. [ Hendrik Hertzberg ]
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Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
revistA De imprensA
parte porque era uma espécie de projecto político solitário. [...]
Os americanos sensatos esperam que o Presidente eleito Obama
tenha um destino melhor. Deveriam também reflectir sobre as
implicações do processo de selecção que, em breve, recomeçará
novamente.” [ George F. Will ]
como fazendo parte de uma das minorias historicamente oprimidas dessa mesma nação.
O foco da política negra afasta-se agora de uma liderança baseada
na expressão de sentimentos de injustiça e de uma política de
identidade baseada na vitimização e rancor. No seu lugar, temos
agora uma era em que se parte do princípio que pessoas fortes e
talentosas de qualquer origem encontrarão o caminho para chegar
ao seu justo lugar de poder na cena política.
[ Juan Williams ]
Interesse mundial
Não há memória de outras eleições que tenham feito vir à tona
um interesse tão grande de todo o mundo. E o mundo estava
claramente a torcer pelo senador Barack Obama. Agora esperam-se acções eficazes e
não arranjos provinão há memória de outras sórios. […] A única
eleições que tenham feito forma de governar
nesta era desgovervir à tona um interesse
nada de democratão grande de todo
cias disfuncionais é
o mundo.
pensando o impossível e agindo de
forma imprevisível, deixando sempre para trás o adversário, ofegante, a tentar alcançar-nos. [ Arnaud de Borchgrave ]
‘
O voto dos yuppies
Tenho escrito acerca do que chamei Bushenfreude, um fenómeno de
yuppies enfurecidos que beneficiaram muito com os cortes nos impostos implementados pelo Presidente Bush e que financiaram campanhas democratas populistas e encolerizadas. Tenho teorizado que
as pessoas que trabalham no sector dos serviços financeiros e noutros a ele ligados, estão de tal maneira indignadas e alienadas pela
incompetência, pelo pesado conservadorismo social e pelos repetidos insultos à inteligência da nação por parte do Partido Republicano
da era Bush que estão a votar com o coração e a cabeça em vez de
votar com a carteira. [ Daniel Gross ]
Nova era II
E eis aqui Barack Obama, filho de um queniano negro que
veio para os EUA com uma bolsa de estudo e da sua mulher
branca americana. Não há mais nenhuma nação no mundo em
que um eleitorado, com uma maioria de 75 por cento, tenha
eleito, como seu líder máximo, um homem que se identifica
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
’
Inclinação à esquerda
O desejo que o público manifesta de mais acção governamental
para sarar a economia e garantir a cobertura dos seguros de saúde,
bem como o seu novo cepticismo relativamente à desregulamentação do mercado, sugerem que somos um país moderado que
agora se inclina ligeira e cautelosamente para a esquerda.
Mas essa cautela significa que os progressistas deveriam evitar dar
opiniões baseadas no pressuposto de que já foi consumada uma
revolução ideológica. Não deveriam imitar o triunfalismo de
Karl Rove e dos seus seguidores, que interpretaram a vitória de
50,8 por cento do Presidente Bush em 2004 como o prelúdio
de uma maioria republicana duradoura. [ E. J. Dionne Jr ]
* Jornalista em Washington dC
7
o que vai mudar?
A mudança da América para uma era puramente não racial
é uma das potencialidades inerentes à vitória eleitoral de Obama.
POR FiLipe vieirA*
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tensão racial começa a ser uma realidade
social desejável e que está patente no eleitorado que votou Obama. Os resultados
destas presidenciais deitam por terra muitos dos mitos raciais alimentados durante a campanha eleitoral, o primeiro dos
quais era o de que o eleitorado masculino de raça branca seria o mais reticente
a aceitar a entrada de um negro para a
Casa Branca. Afinal, Obama obteve daquele sector a mais elevada percentagem do
que qualquer outro candidato democrata,
desde a eleição do Presidente Jimmy
Carter, ainda que John McCain tenha tido
uma apreciável vantagem: 57 contra os
41 por cento de Obama. O eleitorado
latino-americano, que Hillary Clinton
reivindicava como feudo próprio, durante as primárias, votou em massa no candidato democrata. O analista de sondagens
de Hillary, Sergio Bendixen, disse para
quem o quis ouvir: “O votante hispânico – e eu quero dizer isto com muito
cuidado – não tem demonstrado muita
disposição ou afinidade em apoiar candidatos negros.” Na realidade, Obama
atingiu os 64 por cento do voto latinoamericano, ultrapassando os 55 por cento
obtidos por John Kerry em 2004. McCain,
dada a sua impopular política relativamente à emigração, não foi além dos 33
por cento, contra os 43 obtidos por
George W. Bush, há quatro anos, aquando da sua reeleição. Obama arrebatou
também o voto dos católicos com 54 por
cento (45 para McCain) e dos judeus
com 71 por cento (21 para McCain) e
45 por cento dos votos de todas as confissões protestantes, contra 54 para o
candidato republicano.
ANNE RyAN/POOL/LUSA
Barack Obama prometeu mudar a América
e essa mudança aí está. O próprio facto
de ter sido o primeiro afro-americano a
ser eleito para a presidência da mais poderosa potência mundial constitui, por si só,
uma revolução. Aí reside a maior e a mais
surpreendente das mudanças saídas desta
saga eleitoral, que se arrastou por mais de
vinte e dois meses.
A eleição de John F. Kennedy, em 1960,
ocorre como a mais provável das comparações com o feito eleitoral de Obama,
ainda que a marginalização dos negros na
sociedade americana apenas de forma mitigada se possa equiparar às dificuldades
inicialmente sentidas, em termos de aceitação, pelas comunidades irlandesa, italiana ou portuguesa à sua chegada ao Novo
Continente. Ainda assim, John Kennedy foi
o primeiro católico a habitar a Casa Branca
e, até hoje, foi o último. John Kerry, também católico, concorreu há quatro anos
atrás e, já então, o factor religião deixou
de existir como argumento catalisador.
O historiador David Kennedy, da
Universidade de Stanford, observa, a propósito, que Barack Obama poderá ser
também o primeiro e o último Presidente
afro-americano dos Estados Unidos, sugerindo: “Talvez possamos agora esperar
uma época em que a raça seja, como a
religião, um factor insignificante.” Clement
Price, da Universidade de Rutgers, recorda que Obama “apresentou ao país, de
forma magistral”, a sua mãe branca e os
seus avós do Kansas, “para o ajudar a conquistar os corações e as mentes dos americanos brancos”.
A mudança da América para uma era
puramente não racial é uma das potencialidades inerentes à vitória eleitoral de
Obama. Poucas décadas depois de ter sido
dado aos negros americanos o direito ao
voto, o fenómeno da descompressão da
“barack obama poderá ser o primeiro e o último presidente afro-americano dos euA” (David Kennedy).
Paralelo n.o 3
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JUDy DEHAAS/EPA/LUSA
segundo o estratega democrata Joe trippi, “obama transformou a arte de comunicação em política”.
o Fim De umA presiDênCiA
De penDor imperiAL
A vertente racial da vitória de Obama é
apenas uma das mudanças saídas destas
eleições. O país espera, certamente, mais.
Objectivamente, a chegada de Barack
Hussein Obama à Casa Branca põe termo
a oito anos de uma Presidência republicana marcadamente ideológica e de pendor imperial, com poderes únicos na
história da república americana.
que o candidato republicano John McCain
esboçou sem grande convicção e com
algumas apressadas mudanças de percurso, acabou por colocar nas mãos de
Obama o futuro do país.
O eleitorado espera, agora, do seu 44.º
Presidente, mais do que a mudança prometida. Parece querer, afinal, uma nova
América! E pode muito bem acontecer que
Barack Hussein Obama seja o homem certo,
no momento certo para responder a esse
desafio. Não será
fácil transpor para a
da Casa
não será fácil transpor para a dimensão dimensão
Branca o molde de
da Casa branca o molde de gestão
gestão aplicado à sua
campanha eleitoral.
aplicado à sua campanha eleitoral.
A sua campanha foi,
comprovadamente,
uma das mais criatiA herança de George W. Bush, são duas vas e, ainda assim, das mais metódicas
guerras por terminar – no Iraque e no
e sistemáticas de que há memória na
Afeganistão – e uma avassaladora crise história do país. Obama demonstrou ter
financeira global, cujo fim se não vislum- um perfeito controlo das situações, navebra para breve. A política de continuidade gando com extrema habilidade e ele-
‘
’
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
gância, muitas das dificuldades que lhe
foram sendo colocadas à frente. Desde
as alusões de carácter racista avançadas
pela campanha de Hillary Clinton,
durante as primárias, passando pela
erupção inusitada do reverendo Wright,
até às acusações insidiosas de ligações
ao terrorismo largadas pela governadora do Alasca em comícios pelas terras
do interior, a tudo os porta-vozes do
candidato democrata responderam com
uma grande contenção.
“vAGA De FunDo” eLeCtróniCA
A utilização dos meios electrónicos na campanha eleitoral pelas hostes de Barack
Obama irá ser aplicada no centro do poder,
em Washington. O estratega democrata Joe
Trippi, em declarações ao Washington Post,
comentava, a propósito: “Assim como John
F. Kennedy usou de forma magistral a televisão como medium para levar a sua mensagem ao público”, Obama transformou a
arte de comunicação em política ao ter,
9
‘
obama já bateu com
a porta na cara dos lóbis
que queriam financiá-lo.
que contém qualquer coisa como dez
milhões de endereços de correios electrónicos e de telemóveis prontos a receber e
a retransmitir sms à velocidade de um fogo
posto numa floresta de cedros.
pela primeira vez, integrado a internet
numa campanha política.
E, agora, na Casa Branca, o novo Presidente eleito tem em marcha um projecto
para expandir o sistema de comunicações.
Os conselheiros políticos querem manter
viva a “vaga de fundo” que foi a coluna
dorsal do apoio, durante o processo eleitoral. O que lhe irá permitir contactar,
directa e instantaneamente, através da internet, com uma rede de doadores e de militantes que serviram como “soldados”
durante a campanha eleitoral: que ajudaram
a organizar comícios; que foram entregar
folhetos de porta a porta; que registaram
milhões de votantes; que, no dia das eleições, telefonaram aos retardatários e que
os levaram até às assembleias de voto, se
necessário. Ao que se julga saber, Barack
Obama tem disponível uma base de dados
A poLítiCA morAL De obAmA
À semelhança de Jimmy Carter, este
Presidente promete uma política moral.
Mas, ao contrário de Carter, Obama é um
político pragmático. Já bateu com a porta
na cara aos lóbis que queriam financiar a
sua equipa de transição e promete mandar
fechar a prisão militar de Guantánamo.
O fim da guerra no Iraque é outra promessa do novo Presidente e tudo parece
indicar que o calendário da retirada das
forças americanas daquela frente parece
coincidir com a vontade política do
Governo iraquiano e com a opinião das
chefias do Pentágono. Já no que toca ao
teatro de guerra no Afeganistão o cenário
é diferente. E diferentes são também as
opções de Barack Obama que propõe um
reforço militar rápido, a par da retirada
do Iraque, para dar caça aos taliban e
* Jornalista em Washington dC
JANNINE B HARTMANN/EPA/LUSA
’
estabilizar o poder do Presidente Hamid
Karzai.
Para proteger a sua retaguarda política
em Washington e para evitar precalços e
outros erros de percurso, o 44.º Presidente
dos Estados Unidos nomeou Rahm
Emanuel para seu chefe de gabinete.
Emanuel é um homem do partido, brilhante, metódico e obstinado. Foi conselheiro político de Bill Clinton na Casa
Branca. Por isso conhece os cantos à casa.
Esteve em Wall Street, antes de ter concorrido e de ter sido eleito para o Congresso pelo estado do Illinois. Aliás, foi
ele o arquitecto da vitória eleitoral dos
democratas em 2006, na sua qualidade de
presidente de campanha. Paul Begala,
outro ex-conselheiro de Clinton, definiu
Emanuel como “qualquer coisa entre uma
dor de dentes e um ataque de hemorróidas” para sublinhar o estilo abrasivo e
implacável do homem a quem cabem
agora, na prática, na Casa Branca, as funções equivalentes às de um primeiro-ministro num governo europeu.
obama com soldados em basra, no iraque. o fim da guerra é uma das promessas do novo presidente.
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Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
RAQUEL WISE
Testemunho
POR mário soAres*
‘
[...] considero o homem
certo para o momento certo.
’
ERIC DRAPER/EPA/LUSA
Desde que o Presidente Barack Obama, ainda senador, acerca de dois anos, decidiu candidatar-se à
Presidência da República – e li os seus primeiros
discursos, declarações e a sua biografia –, que segui
o seu percurso, com enorme atenção e simpatia, nos
meses finais, com verdadeira paixão.
“em todos os domínios vamos assistir a uma transformação radical”, escreve mário soares.
Porquê? Porque percebi a importância da sua candidatura, não só para a América como para a Europa
e mesmo para o resto do mundo.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
Fui crítico, muito severo, durante os dois mandatos, das políticas do Presidente Bush, tanto a nível
externo como interno. Considerei a Guerra do Iraque
um crime, alicerçada em mentiras e falsidades. Achei
a invasão do Afeganistão um “precedente perigoso”
que comprometeu para sempre o prestígio da NATO.
Condenei a política hegemónica e unilateral dos
Estados Unidos e a marginalização das Nações
Unidas. A estratégia da luta contra o terrorismo,
baseada apenas na força bruta, sem ouvir os seus
aliados e sem verdadeira informação.
No plano interno censurei o descuido das políticas da Administração Bush de saúde, educação e
segurança social e a excessiva confiança na autoregularização do mercado, na chamada “mão invisível”, que favoreceu os muito ricos, arrasou as
classes médias e aumentou a pobreza e o desemprego. Foram essas políticas que conduziram ao
total descrédito da ideologia neoconservadora, que
a Administração Bush, em vão, tentou impor ao
mundo.
Barack Obama revelou-se uma personalidade política ímpar, teve a coragem de denunciar, desde o
início, a desastrosa política americana no Iraque, e
conseguiu mobilizar, em seu favor, a esmagadora
maioria da juventude americana para as boas causas
sociais e ambientais e, no plano externo, em favor
da paz, do multiculturalismo, em defesa das minorias e da igualdade entre homens e mulheres.
Por isso o considero o homem certo para o
momento certo. O que pode fazer quando chegar à
Casa Branca? Em primeiro lugar, o facto de um afro-americano se sentar na Sala Oval da Casa Branca,
representa, em si mesmo, uma verdadeira revolução
cultural e das mentalidades. Depois, porque prometeu a mudança e estou convencido que, apesar de todas
as dificuldades – e da complexa crise que nos afecta a todos – vai cumprir. Como renovar o pioneirismo americano – na linha de Lincoln, Roosevelt e
Kennedy – e defender a paz e o ambiente natural.
Em todos os domínios, vamos assistir a uma transformação radical, o que é excelente para a América,
para a Europa (apesar da sua actual paralisia) e para
* Antigo Presidente da República Portuguesa
o mundo.
11
ANTóNIO PEDRO SANTOS
O que esperar?
POR LíDiA JorGe*
Constou-me que na casa de infância do Presidente
Reagan existia um ladrilho solto debaixo do qual,
em criança, ele escondia as moedas. O Presidente
Barack Obama não terá tido um ladrilho como
esconderijo, mas seja lá onde for que tenha
acumulado as suas fortunas de rapaz, espero que
Creio que barack obama [...] teria sido eleito
pelo mundo inteiro, porque de súbito apareceu
no ecrã um rosto que transmitia humildade
e nobreza, simplicidade e juventude de espírito,
realismo e crença.
’
STEFAN ZAKLIN/EPA/LUSA
‘
Lídia Jorge:
1
entre elas se encontre
uma carta dos seus avós
sobre a palavra compromisso. Para nós, à distância de um oceano e um
continente, não precisamos de mais nada senão
que cumpra a mudança
que anunciou. E o que
anunciou não foi pouco.
Como candidato, prometeu gerir bem o seu
país, sem esquecer que
os outros países têm os
mesmos direitos de
sobreviver e de guardarem para si os bens
que lhes pertencem.
Prometeu negociar e
“por certo que o presidente obama
concertar, em vez de
não vai voltar atrás.”
impor e atacar. Prometeu
respeitar os direitos
humanos, no interior do seu país, e fora dele.
Prometeu respeitar a Terra, tomá-la na mão como
o nosso único bem precioso. Prometeu que sendo
os Estados Unidos o país mais poderoso, seria um
entre pares, com a consciência sempre presente
de que no mundo actual a falência de um pode
ser a falência de todos.
Pelo menos foi assim que entendi o seu pedido
para que fossem votar em nome da mudança.
O candidato Barack Obama disse que o voto de
cada americano à primeira vista apenas mudaria o
bairro, mas ao mudar o bairro mudaria a cidade.
Mudando a cidade, mudaria o país, e mudando o
país, mudaria o mundo. Nunca ouvi da boca de
um político uma declaração tão à altura do momento que atravessamos. Até estou em crer que ele deve
ter lido os versos de John Donne que o seu compatriota Ernest Hemingway tomou para epígrafe
em Por Quem os Sinos dobram. Também aí o poeta inglês
falava de que a parte que cada um representa é a
parte de um todo. Pois o candidato Obama fez dessa
ideia a sua promessa voluntariosa – “Change! Yes,
We can”. Por certo que o Presidente Obama não
vai voltar atrás. Ele tem entre os seus tesouros, de
certeza, a palavra compromisso. E é isso que nós,
à distância, podemos esperar da sua figura e personalidade.
Naturalmente que os cidadãos americanos estarão
à espera de outras urgências, como seja a saída
rápida da estagnação económica que só agora nos
é dado conhecer em toda a sua extensão. Mas eu
não sei se é possível separar uns planos dos outros.
O externo e o interno, o económico e o axiológico. Talvez não. Creio mesmo que Barack Obama foi
eleito da forma como aconteceu, e teria sido eleito pelo mundo inteiro, porque de súbito apareceu
no ecrã um rosto que transmitia humildade e
nobreza, simplicidade e juventude de espírito, realismo e crença. Ora para os europeus, a imagem
do norte-americano que por duas vezes trouxe a
paz à Europa, durante o século XX, foi substituída,
nos últimos tempos, pela imagem do soldado que
entra na cidade do outro, transformado em inimigo e a devasta, captura o inimigo e lhe devassa a
garganta com uma luz, diante do mundo inteiro.
São marcas muito violentas. Acredito que o
Presidente Obama não o deixará repetir.
* escritora
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
Desafios à nova
Presidência
POR João De vALLerA*
‘
obama quer governar para além
das tradicionais fronteiras partidárias.
’
Nos últimos vinte e um meses tive o privilégio de
observar de perto as eleições presidenciais norte-americanas, que culminaram com a vitória do
candidato Barack Obama. Assisti às duas convenções,
com os seus rituais de consagração e os seus apelos
à mobilização das bases, assim como observei a
introdução de novas técnicas e de novos métodos
de comunicação com os eleitores, em especial na
campanha democrata.
Três pensamentos me vieram espontaneamente
ao espírito, na noite de 4 de Novembro. O de que
de algum modo assistia ao encerrar de um ciclo,
iniciado quarenta anos antes com o movimento
dos direitos civis nos Estados Unidos. O de que
tal evolução era demonstrativa da vitalidade e da
capacidade de inclusão da sociedade americana,
que sabe dar uma expressão positiva à diversidade do tecido que a compõe, afirmando-se e renovando-se para além das dificuldades cíclicas e
divisões estruturais que a atravessam. O de que,
como porventura nenhum dos seus quarenta e
três antecessores, o candidato eleito tinha já assegurado um feito de dimensão histórica antes
mesmo de passar a residir na Casa Branca.
O novo Presidente tomou posse no dia 20 de
Janeiro. Assume com ela problemas de grandes
proporções e formidáveis desafios, tanto no
domínio interno como externo. Seja ao nível da
economia – cuja reanimação requer esforços
imediatos e concertados de dimensão inédita,
não descurando os condicionantes estruturais de
mais longo prazo – seja nos planos da segurança internacional e das novas ameaças transnacionais, a sua intervenção será requerida, assim
como não deixará de ser observada de perto e
posta à prova, logo no início de um novo ciclo
da vida política americana, a sua mensagem de
mudança e a ambição transformacional que lhe
está subjacente.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
A direcção do seu mandato reflectir-se-á desde logo
na escolha da futura Administração e no leque das
prioridades políticas a desenvolver, não obstante as
limitações orçamentais conhecidas, por causa –
e apesar – da crise. A determinação, a inteligência
política e o pragmatismo de que já deu amplas mostras revelar-se-ão qualidades preciosas na busca de
um inevitável equilíbrio entre a sua agenda e a estratégia legislativa necessária para conseguir alcançar
os objectivos declarados durante a campanha, assim
como na materialização da sua intenção de governar
de uma forma inclusiva e para além das tradicionais
fronteiras partidárias. A reforçada maioria democrata no Senado e na Câmara dos Representantes –
na qual registo, com grande satisfação, a reeleição
de três congressistas de ascendência portuguesa –
constitui uma vantagem à partida, mas não uma
garantia de sobreposição de agendas, e dificilmente
dispensará, no sistema americano, a construção de
coligações pontuais de geometria variável.
A assunção da Presidência, nos Estados Unidos,
traz consigo a extraordinária responsabilidade associada ao facto de os actos do seu titular se repercutirem não só sobre os cidadãos americanos mas
também, voluntária ou involuntariamente, numa
proporção sem paralelo, sobre o resto do mundo.
Tal realidade oferece potencialidades únicas numa
altura em que se desenham, na Europa, mais claras
ambições de afirmação na cena internacional, e num
momento em que, face aos grandes desafios globais,
o reforço da parceria transatlântica cada vez mais
surge como uma evidente e urgente necessidade.
Portugal tem um significativo papel a desempenhar neste contexto, seja no quadro das relações
União Europeia-Estados Unidos, seja no seio da
NATO, seja ainda no plano bilateral onde, ao rico
acervo do nosso relacionamento histórico, à mais-valia de uma relação de aliados consubstanciada
no Acordo de Defesa e Cooperação e ao trunfo da
comunidade portuguesa e luso-americana residente nos Estados Unidos, se adicionam novos e promissores desenvolvimentos em domínios como os
* embaixador de Portugal
da ciência e do investimento.
nos estados Unidos
13
JOSÉ SÉRGIO
Prioridades energéticas
e ambientais
POR ChArLes buChAnAn*
Barack Obama é agora o Presidente eleito e os americanos estão encantados com o facto de ele levar a
sério os urgentes desafios ambientais que os Estados
Unidos enfrentam, desde a biodiversidade à gestão
dos oceanos e à preservação das florestas. Mas hoje
em dia, na América, falar de “ambiente” significa
atacar as prioridades energéticas e depressa: reduzir a
dependência das importações de petróleo estrangeiro,
baixar os níveis das emissões de gases com efeito de
estufa, dar atenção às políticas em matéria de altera-
‘
obama lançará o seu plano “economia verde”,
que abrangerá um período de dez anos
e custará 150 mil milhões de dólares.
’
ções climáticas, incentivar as medidas nacionais de
conservação de energia, as novas tecnologias limpas,
o desenvolvimento das fontes renováveis de energia.
No entanto, Obama tem de decidir que acções deve
empreender em 2009 para inverter o processo de
recessão económica, reduzir o défice orçamental americano, criar postos de trabalho para combater o
desemprego e salvar famílias desesperadas (através da
isenção de impostos, da implementação do seguro
de saúde) e a indústria automóvel americana. Assim,
apenas serão empreendidas acções relacionadas com
as prioridades energéticas que contribuam para o
“programa de salvação” nacional.
Por exemplo, uma anterior proposta que preconizava um limite para as emissões de gases com efeito
de estufa, que se estendia a toda a economia, exigindo que a indústria e os serviços públicos comprassem
ao Governo créditos de emissões de dióxido de carbono, está a ser sujeita a novo escrutínio. Um programa deste tipo iria imediatamente fazer subir os
custos da energia. Em vez disso, Obama lançará o seu
plano “Economia Verde”, que abrangerá um período
de dez anos e custará 150 mil milhões de dólares,
e que se destina a: incentivar o investimento das
empresas no fabrico de equipamento destinado à
14
produção de energias limpas; financiar sistemas de
transportes baseados em energias limpas; acelerar a
produção de veículos “limpos” de baixo consumo;
e promover a próxima geração de biocombustíveis
não produzidos à base de culturas alimentares.
Este esforço no sentido de uma “economia verde”
também levará à reabilitação e isolamento dos edifícios e escritórios das grandes cidades a fim de
tornar a energia mais eficiente. Isto irá resultar na
reciclagem profissional e na criação de cerca de
cinco milhões de novos empregos e, em simultâneo,
na redução drástica do consumo de energia.
A conservação de energia é a maneira mais rápida
de reduzir a procura de energia e as importações de
petróleo. Barack Obama pretende uma redução de
15 por cento da procura de energia até 2020: os novos edifícios devem ser neutros em termos de emissões de dióxido de carbono e os edifícios existentes
devem melhorar a sua eficiência energética em 25 por
cento. Os edifícios governamentais deverão tornar-se
“eficientes” em três anos, e as zonas urbanas de baixo
rendimento deverão ser remodeladas de modo a tornarem-se energeticamente eficientes. Isto irá gerar
milhões de empregos.
As limitações orçamentais constituirão um problema grave, mas não devemos esquecer que o Governo
Federal americano não está só nesta cruzada nacional da energia. Os vários estados também fornecem
fundos e criam condições destinadas a ajudar as
empresas privadas a agir. A Califórnia demonstrou
que uma liderança forte ao longo de muitos anos
conduziu a níveis de eficiência energética sem precedentes, à redução da procura de energia, a transportes limpos e a um nível elevado de criação de
emprego. Estes resultados são comparáveis aos da
Europa, onde o sector das energias renováveis
da Alemanha movimenta 240 mil milhões de dólares e emprega 250 mil pessoas; em Inglaterra, estão
a ser construídas sete mil turbinas eólicas, com um
custo de 100 mil milhões de dólares, e Portugal
também se encontra numa posição de grande visibilidade, situando-se em segundo lugar na UE em
termos de sistemas de energias renováveis.
* Membro do Conselho executivo da FLAD
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
A mudança
que o mundo precisa
POR mAnueL JACinto nunes*
’
KAMIL KRZACZyNSKy/EPA/LUSA
‘
A vitória de Obama é uma vitória para os Estados
Unidos, para a Europa e para o mundo. O antiamericanismo cultivado por muitos atingiu o seu auge
com a Administração Bush dos últimos oito anos.
A Administração americana criou ao mundo ocidental problemas tão graves que não sabemos ainda quando e como sairemos deles. Embora McCain se situe
no seu partido na ala mais afastada dos neoconservadores, a sua política externa, iria, por certo ser em
grande parte uma política de continuidade. McCain
falava do Iraque proclamando que os
Estados Unidos iriam sair dele com uma
vitória. Como se pode falar de uma vitória após uma intervenção tão desastrosa
À ideia de força,
que incentivou o terrorismo, pôs em
de demonstração
maior perigo os já débeis equilíbrios no
Oriente e suscitou a questão da
de poderio dos estados Médio
divisão entre Ocidente e Oriente?
unidos, opôs obama
À ideia de força, de demonstração de
poderio dos Estados Unidos, opôs Obama
a ideia de diálogo.
a ideia de diálogo. Algo que tem faltado
Algo que tem faltado
totalmente à política americana nestes
anos. Não que Obama se tivesse apresentotalmente à política
tado como um pacifista, mas dando
americana.
sempre preponderância primacial à nego-
ciação. Nas relações com a Europa e a América Latina,
bem como no Médio Oriente, é fundamental este
tipo de abordagem para que seja possível atenuar as
tensões existentes e dar passos para um relacionamento mais estável que leve a paz a regiões onde subsistem focos de conflito.
De imediato é no plano interno que Obama vai ter
de actuar face à situação prevalecente e vai certamente trazer alterações significativas. Não se trata de spread the wealth, mas de inverter uma política que tem
acentuado as desigualdades económicas. McCain falou
de redução de impostos mas sem especificar como.
Obama, não obstante as dificuldades orçamentais, terá
de reduzir impostos mas não do mesmo modo. Foi
à situação da classe média – núcleo estrutural de uma
sociedade – a que ele sempre se referiu.
Outro ponto fulcral da política enunciada por Obama
é a saúde. Cerca de 40 milhões de americanos não
têm qualquer sistema de saúde. É óbvio que não é
um problema que possa ser resolvido a curto prazo,
mas algo vai por certo ser feito nesse sentido.
São múltiplos os problemas que Obama vai defrontar (herda uma pesada herança): o défice nas contas
públicas, uma crise financeira e económica grave,
o desemprego, as famílias endividadas, e um enorme
défice externo. Quanto a este último, espera-se que
não ceda às pressões do lóbi proteccionista que é bem
forte nos Estados Unidos.
A fasquia posta a Obama foi muito alta e afigura-se-nos que ele não a poderá cumprir em pleno, mas
não pode, por esse facto, gerar-se um sentimento de
desilusão. Obama vai trazer mudança e mudança significativa. Pertence a uma geração que não é a do
mundo que tem dirigido a América nos últimos anos.
Kennedy e Clinton souberam introduzir um ar fresco
em Washington, Obama talvez não possa ir tão longe
como aqueles (apesar da sua grande vitória, a cor da
pele ainda constitui uma limitação nos Estados
Unidos) mas vai, certamente, trazer alterações de
grande alcance para a política americana e para o
relacionamento dos Estados Unidos com o mundo.
A situação mundial estava bem necessitada desta
mudança. * economista e antigo ministro das Finanças
“obama vai certamente trazer alterações de grande alcance para a política americana.”
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
15
A realidade do sonho
POR JoAnA GoDinho*
As lágrimas escorriam pela cara de Jesse Jackson
enquanto ouvia o discurso de vitória de Obama
na noite das eleições. Quarenta e cinco anos depois
de Martin Luther King ter proclamado: “I have a
dream that one day this nation will rise up and
live out the true meaning of its creed: ‘We hold
these truths to be self-evident, that all men are
created equal.’”
O sonho tornou-se realidade, não só para os
negros americanos, mas também para os brancos,
que se viram finalmente libertados das amarras do
apartheid nos Estados Unidos, e para as outras minorias e exilados que se sentiam cidadãos de segunda
classe neste país de oportunidades – “chicanos”,
orientais e ocidentais como a diáspora portuguesa.
O sonho voou pelo mundo, de Guantánamo ao
Quénia, de Berlim a Okinawa, e tornou-se realidade a 4 de Novembro de 2008.
Nas entrevistas que deu quando do lançamento
do filme W., Oliver Stone disse que a influência de
George W. Bush nos Estados Unidos e no mundo
se fará sentir por muitos anos. Bush acredita piamente que a História lhe dará razão. O novo
Presidente dos Estados Unidos terá certamente de
se confrontar, desde o primeiro momento na Casa
Branca, com o espólio que a nova Administração e
o povo americano – e o mundo – herdam após
oito anos de Administração Bush.
O novo Presidente herda três guerras distintas:
a do Iraque, a do Afeganistão, e a guerra contra o
que a Administração clama ser “o Terror”. A Guerra
do Iraque é a segunda mais longa em que os
Estados Unidos se envolveram desde sempre, depois
da do Vietname, e a segunda mais cara depois da
II Guerra Mundial – e terá custado para cima de
um milhão de vidas.
O novo Presidente herda uma economia nacional
e global em recessão, com uma banca parcialmente nacionalizada à la regime socialista. Escasseia o
dinheiro ao supra-supercapitalismo da Idade Global
Pós-Moderna. A economia global sofre com a alta
do preço do petróleo e de alimentos básicos,
enquanto se debate com a crise financeira mais
grave da sua existência, em que até um país con-
16
siderado desenvolvido – a Islândia – se vê em risco
de se afundar nas águas geladas do Árctico.
O novo Presidente herda uma situação energética
em que os Estados Unidos, que têm cinco por cento
da população mundial, gastam um quarto da energia mundial, a um custo superior a 400 biliões de
dólares por ano para o petróleo importado.
Enquanto a Administração Bush se recusou a assinar o Protocolo de Quioto, o preço do barril de
petróleo aumentou de 25 para 100 dólares entre
o antes e o depois da Guerra do Iraque.
O novo Presidente herda uma infra-estrutura
transcontinental em perigosa decadência, como
demonstraram o colapso da ponte em Minnesota
em 2007 ou as inundações de Nova Orleães.
Parte do sucesso económico dos Estados Unidos
deveu-se a uma infra-estrutura estabelecida por
presidentes com visão. No entanto, a Sociedade Americana de Engenheiros Civis estima que
são necessários 1,6 triliões de dólares apenas
para mantê-la em boas condições nos próximos
cinco anos.
O novo Presidente herda um país dividido – entre
ricos e pobres, brancos e outras raças, republicanos
e democratas, Wall Street e Main Street – e por
questões chamadas culturais: o casamento dos
homossexuais, o aborto, a pena de morte e o uso
de armas. A concentração da riqueza não só tem
dividido os americanos entre os que têm e os que
não têm, mas tem contribuído para o declínio económico do país.
Obama prometeu baixar os impostos para as classes média e mais pobres, aumentar o acesso à saúde
e a qualidade da educação, investir em energias
alternativas e aumentar a ajuda externa. Para pagar
a conta, o novo Presidente planeia acabar com a
guerra, aumentar os impostos dos dois por cento
de americanos mais ricos, evitar as fugas aos impostos das grandes corporações e fazer pagar a poluição a quem poluir. Não há soluções óptimas, mas
o futuro do sonho global depende da velocidade
e eficácia com que o novo Presidente venha a lidar
com a pesada herança recebida no dia 20 de Janeiro
* Banco Mundial
de 2009.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
O momento histórico
da América
POR miChAeL Werz*
Minutos após se ter concluído a contagem de votos
na Califórnia no dia 4 de Novembro e a CNN ter
anunciado que Barack Obama tinha ganho as eleições, um suspiro de alívio colectivo atravessou a
América. Deu-se então início a uma festa de enormes proporções; centenas de milhares de pessoas
transformaram a noite em dia, festejando até ao
nascer do sol. Na manhã seguinte, as pessoas puseram-se novamente em fila, como o tinham feito
no dia anterior, quando muitos tiveram que esperar durante horas para poder votar. Só que, desta
vez, formavam filas em frente aos quiosques e às
sedes dos jornais. “É que um sítio da internet não
‘
este momento americano encerra um percurso
histórico que foi iniciado em 1619, quando o navio
holandês White Lion chegou à virgínia e trocou
por outros bens os vinte africanos escravizados
que tinham sido capturados durante uma batalha
com um galeão espanhol a caminho do méxico.
’
cabe num álbum de família”, afirmou uma senhora idosa que se encontrava em frente ao edifício
do Washington Post. E, de facto, para muitos dos que
participaram, este dia tinha de ser documentado.
Por todo o país, os jornais foram-se esgotando e
tiveram de ser reimpressos até ao fim da manhã.
A energia vulcânica que foi libertada durante a
noite das eleições não se pode explicar apenas pelo
impacto político de Barack Obama. Ele simboliza
muito mais do que aquilo que defende: uma “deslocação tectónica” na sociedade, que já se tinha
tornado visível durante o longo processo da sua
nomeação. O dia 4 de Novembro foi a última de
três datas memoráveis em 2008. A segunda foi o
dia 3 de Junho, quando Barack Obama declarou,
perante 17 mil apoiantes entusiásticos num estádio
de basebol no Minnesota, que tinha ganho a nomeaParalelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
ção para o Partido Democrata. A multidão ouviu o
seu anúncio de pé, como se estar sentado fosse
uma posição menos própria quando se está em
presença de alguém que passou a fazer parte da
História. Fazendo jus ao momento, o candidato
terminou o seu discurso acerca da vitória improvável contra Hillary Clinton com as seguintes palavras: “América, este é o nosso momento.” E,
indiscutivelmente, após o dia 3 de Junho, a história americana tem decorrido de forma acelerada.
Este momento americano encerra um percurso
histórico que foi iniciado em 1619, quando o navio
holandês White Lion chegou à Virgínia e trocou por
outros bens os vinte africanos escravizados que
tinham sido capturados durante uma batalha com
um galeão espanhol a caminho do México.
A escravatura era o pecado original do Novo Mundo,
minando os seus propósitos de emancipação e as
promessas de felicidade. Alexis de Tocqueville escreveu, no seu lendário relatório, em 1853, que nem
mesmo a abolição da escravatura poderia mudar os
preconceitos raciais porque estes eram “imutáveis”.
Desde o dia 3 de Junho, estas tradições – resumidas
nas famosas teorias de W. E. B. DuBois que descrevem
a barreira da cor como a mais perversa causa de
separação na América – têm sido postas à prova.
Num instante, todos se aperceberam que, no dia das
eleições de 2008, pela primeira vez desde a
Declaração da Independência, os americanos podiam
fazer História, rompendo com o seu passado.
O primeiro dia memorável foi a 18 de Março,
quando Barack Obama falou das relações interraciais em Filadélfia. Ele não só reconheceu o
ressentimento mútuo que ainda existe entre americanos negros e brancos, como também insistiu
que a sua própria história, com membros da
família “de todas as raças e todas as cores, espalhados por três continentes”, só era possível nos
Estados Unidos. E continuou, dizendo: “Nós
podemos ter histórias diferentes, mas partilhamos
das mesmas esperanças; […] podemos ter um
aspecto diferente e ser oriundos de lugares diferentes, mas todos queremos ir na mesma direcção.” O seu compromisso universalista não
17
‘
num instante, todos se aperceberam que,
no dia das eleições de 2008, pela primeira vez
desde a Declaração da independência,
os americanos podiam fazer história,
rompendo com o seu passado.
como também ressaltará como um feito
de consequências irreversíveis, independentemente de quaisquer desilusões políticas que possam vir a acontecer.
’
* Michael Werz é Transatlantic Fellow do German Marshall
Fund of the United States e Investigador no Institute for the
Study of International Migration da School of Foreign Service
a Universidade de Georgetown
GUIDO MONTANI/EPA/LUSA
passou despercebido porque ia ao encontro de experiências contemporâneas,
partilhadas por muitos. No espaço de dois
meses o seu discurso foi descarregado do
YouTube mais de 4,5 milhões de vezes e
uma sondagem da Gallup revelou o surpreendente resultado de que mais de
85 por cento dos americanos tinham ouvido falar do seu discurso.
Barack Obama tem uma ascendência
ambígua, só podendo ser descrito como
americano. O facto de um homem com a
sua história pessoal ter sido eleito não só
será registado nos livros de escola por
todo o mundo durante o próximo século,
“A energia vulcânica que foi libertada durante a noite das eleições não se pode explicar apenas pelo impacto político de barack obama.”
18
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
As eleições e os media
POR JAmes r. DiCKenson*
‘
nós, jornalistas, desempenhamos um papel
fundamental nos processos democráticos
do nosso país. [...] uma imprensa livre
que presta informação fidedigna
é o fluido vital de qualquer democracia.
ROLEX DELA PENA/EPA/LUSA
’
“obama levou a cabo uma das mais eficientes campanhas.”
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
No dia 4 de Novembro de 2008, os Estados Unidos
concluíram uma das suas eleições presidenciais mais
históricas de sempre. A nação escolheu o seu primeiro Presidente afro-americano, o senador Barack
Obama, do Illinois, um acontecimento extraordinário dada a nossa história trágica de escravatura
e racismo. E aquela data assinalou também o fim
de dois grandes fracassos políticos nacionais – a fé
numa economia de mercado cada vez mais desregulamentada e uma política externa militarista e
unilateral falhada – sobretudo no Iraque – que
estava a dividir progressivamente o país e que criou
um clima político extremamente favorável para os
democratas. Mais de 80 por cento do eleitorado
consideravam que o país estava a seguir um rumo
errado, uma opinião que ficou patente nos resultados eleitorais: Obama derrotou o seu adversário
republicano, o senador John McCain do Arizona,
por 52 por cento contra 46 por cento do voto
popular e por mais de dois contra um no Colégio
Eleitoral. Para muitos americanos, isso assinalou o
fim da era Reagan republicana.
Tratou-se também de uma eleição histórica porque a adversária do senador Obama na corrida à
nomeação democrata era a senadora Hillary Clinton
de Nova Iorque, que esteve muito perto de conseguir a nomeação e, como tal, de se tornar a primeira mulher a ser candidata presidencial de um
dos grandes partidos. Além disso, McCain escolheu
para concorrer ao seu lado como candidata à Vice-Presidência a governadora Sarah Palin do Alasca,
a primeira mulher a candidatar-se a uma eleição
nacional pelo Partido Republicano.
Obama ganhou em parte graças ao clima político
favorável, mas também porque realizou uma das mais
eficientes campanhas presidenciais jamais vistas no
país. No dia a seguir às eleições, deitou mãos ao
trabalho, começando a reunir a sua administração e
preparando-se para enfrentar os graves desafios que
o esperam. Entre eles incluem-se duas guerras em
curso, no Iraque e no Afeganistão, e problemas que
vão desde o Irão, a Coreia do Norte e a Rússia até
à iminência de uma recessão. Além disso, Obama
prometeu reformar o sistema de saúde, reduzir
19
TANNEN MAURy/EPA/LUSA
“o jornalismo dos países ocidentais está a sofrer profundas modificações devido à tecnologia.”
os impostos da classe média e definir uma
política energética nacional susceptível de
tornar o país independente em termos
energéticos e de contribuir para a redução
do aquecimento global.
Durante a campanha, os opositores de
Obama criticaram a sua falta de experiência – apenas quatro anos no Senado e
oito anos na legislatura estadual do
Illinois – para ser presidente e comandante-chefe das Forças Armadas. No
entanto, Obama conduziu uma campanha disciplinada baseada na esperança,
no futuro e na unidade nacional. Mostrou-se calmo e sereno perante acontecimentos inesperados tais como a crise
económica que eclodiu em Setembro, o
que reforçou a confiança dos eleitores.
Foi considerado o candidato cool.
McCain foi visto como o candidato hot.
Realçou a sua carreira como o piloto de
0
jactos da Marinha que foi um heróico
prisioneiro de guerra no Vietname. Um
veterano com vinte e seis anos de experiência no Congresso, McCain concorreu
como um “não-alinhado” que se opusera aos seus correligionários do Partido
Republicano em questões como a imigração e a reforma do financiamento das
campanhas eleitorais frisando a sua experiência, especialmente nos domínios da
segurança e dos negócios estrangeiros.
Mas descobriu, tal como Clinton descobrira nas eleições primárias do Partido
Democrata, que o país estava ansioso por
uma ruptura com o passado, em grande
parte devido à frustração perante as políticas fracassadas da Administração Bush.
McCain foi prejudicado pela crise económica, uma área historicamente favorável aos democratas, que desviou a
atenção da segurança nacional e dos
negócios estrangeiros. A resposta de
McCain à crise económica foi impulsiva
e confusa. Não propôs nenhum grande
tema para a campanha e saltou de uma
questão para outra, começando por atacar Obama pela sua falta de experiência
e, depois, pelo seu suposto extremo
liberalismo, que McCain rotulou incorrectamente de “socialismo”. Os democratas ripostaram dizendo que McCain
era um político imprevisível e impulsivo que poderia ser perigoso na Casa
Branca e que, com os seus 72 anos, seria
o homem com mais idade jamais eleito
como Presidente.
O nosso voto presidencial pode ser difícil de prever porque é o mais pessoal e
simbólico que expressamos. O cargo é
muito complexo, porque o Presidente não
só é o chefe do Executivo e o comandante-em-chefe das Forças Armadas, mas
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
blogues tem aumentado exponencialmente, mas os blogues contrabalançam-se uns aos outros: as histórias e boatos
de um dos lados são instantaneamente
contestados pelo outro lado. Foram os
eventos e os actos e talentos dos candidatos que determinaram o rumo da
cobertura noticiosa.
O apoio dos jornais é considerado valioso mas não tem tido grande influência
nas eleições presidenciais americanas. Os
jornais com 80 por cento da circulação
apoiaram os adversários de Franklin
‘
Roosevelt mas este, de qualquer maneira,
venceu as eleições quatro vezes.
Esta proliferação de fontes de informação
deu azo ao argumento de que os jornalistas estão ultrapassados, de que já não
somos necessários como “guardiões” da
informação noticiosa. O que se passa é
exactamente o contrário. A necessidade de
profissionais como nós para triar e avaliar
o volume crescente de informação em
bruto é maior do que nunca.
* Jornalista especializado nas campanhas presidenciais
norte-americanas
obama conduziu uma campanha disciplinada
baseada na esperança, no futuro e na unidade nacional.
mostrou-se calmo e sereno perante acontecimentos
inesperados tais como a crise económica que eclodiu
em setembro, o que reforçou a confiança dos eleitores.
Foi considerado o candidato cool.
’
MICHAL CZERWONKA/EPA/LUSA
também o chefe simbólico da nação, que
dá expressão aos ideais e aspirações do
povo. O resultado destas eleições era
duplamente difícil de prever devido à origem racial de Obama, mas a sua eleição
é um símbolo poderoso de quanto a
América evoluiu em termos de relações
raciais nos últimos cinquenta anos.
Nós, jornalistas, desempenhamos um
papel fundamental nos processos democráticos do nosso país. Em sociedades
baseadas na informação, somos uma instituição poderosa. Uma imprensa livre que
presta informação fidedigna é o fluido vital
de qualquer democracia; os estados totalitários não conseguem sobreviver quando
a informação é livre e fidedigna, e é por
essa razão que se esforçam tanto por a
suprimir. A China está lenta mas progressivamente a tornar-se mais livre, porque
os seus governantes não conseguem simplesmente fechar a internet, os satélites,
os telemóveis, os blogues, os sítios web e
outros canais de informação.
Sublinho “fidedigna” porque é necessário que as pessoas confiem na informação que lhes é prestada pelos
jornalistas. É imprescindível evitarmos
dar a menor ideia de que favorecemos
um partido ou facção em detrimento de
outro. A reputação de imparcialidade e
isenção é o nosso capital de trabalho,
e é preciosa; se a perdemos, nunca mais
a conseguimos recuperar. Nos Estados
Unidos, os meios de comunicação social
são um elemento muito importante do
processo de triagem de candidatos políticos, pelo que as nossas decisões sobre
as pessoas cujas actividades devemos
cobrir e a atenção que devemos dedicar
a cada candidato são rigorosamente controladas. Apesar das suspeitas de alguns
membros dos partidos, procuramos não
afectar o resultado das nossas eleições, e
não o desejamos fazer. A nossa cobertura é ditada pelas acções – os êxitos e os
fracassos – dos candidatos. Também nos
concentramos em candidatos novos e
relativamente desconhecidos que prometem mudança e que é necessário explicarmos aos eleitores.
O jornalismo nos países ocidentais está
a sofrer profundas modificações devido
à tecnologia. Na América, a importância
crescente da internet, com os seus blogues e os seus sítios web, dos canais de
notícias da televisão por cabo, dos talk-shows radiofónicos e dos telemóveis está
a pôr em causa o papel dos jornais e das
redes de televisão tradicionais. No entanto, não vi indícios de que isso tenha
influenciado as eleições. O número de
“o nosso voto presidencial pode ser difícil de prever porque é o mais pessoal e simbólico.”
1
bLoCo De notAs
O novo ciclo americano
ou a analogia Roosevelt
Os noventa anos da passagem de Franklin
D. Roosevelt nos Açores, no final da Guerra
de 1914-1918, coincidiram, por acaso da
história, com o reavivar do seu legado presidencial. Ao intervir no I Fórum Açoriano
Franklin D. Roosevelt (Julho de 2008),
Pierre Hassner refere-se “ao calor com que
foram ali comemorados os laços entre a
Europa e a América”, mas fez notar que “o
alvo deste entusiasmo foi a obra de Franklin
Roosevelt e não a de George W. Bush”.
Por que motivo? Hassner sugere que
talvez “uma nostalgia implícita em relação
a Roosevelt e uma exortação a uma nova
mensagem e actuação rooseveltianas para
reparar os danos provocados (por George
W. Bush) constituíssem o subtexto implícito”. A política de George W. Bush e os
seus efeitos na ordem internacional teriam
conferido especial significado à herança
de FDR: “O estado actual do mundo – sustenta Hassner, na sua intervenção dos
Açores – torna extraordinariamente relevante o legado de Roosevelt”. Em especial,
as suas “três grandes realizações”: o New
Deal, esboço de Estado-Providência nos
Estados Unidos, a intervenção na II Guerra
Mundial, contrariando o tropismo isolacionista, e os projectos para a reconstrução
da ordem internacional materializados na
Organização das Nações Unidas (ONU).
Tarda a emergir uma nova ordem internacional após a queda do Muro de Berlim,
o fim do regime soviético em 1991, o 11
de Setembro de 2001 e a invasão do
Iraque. Entre o que resta do equilíbrio
anterior ao final da Guerra Fria figura, em
lugar de relevo, um projecto “rooseveltiano”: as Nações Unidas. Apesar do seu
desajustamento à realidade presente, a
ONU constitui um dos raros pontos de
apoio para a reorganização do sistema
internacional.
Voltaram a invocar-se métodos usados
por FDR, após as presidenciais de 1932,
com vista a combater o caos e o desespero reinantes na sociedade americana após
o crash bolsista de 1929: a segurança social,
o subsídio de desemprego, os impostos
progressivos, em suma, a intervenção do
Estado na economia. Estas formas de atenuar a desigualdade nas economias de
mercado, designadas por “liberais” nos
Estados Unidos e por “social-democratas”
na Europa, permitiam um maior equilíbrio social e, em simultâneo, esboçavam
uma alternativa ao estatismo da URSS.
‘
mário mesquitA
e ao New Deal. Caracteriza-se por um
elevado grau de desigualdade, sem qualquer espécie de protecção social aos
trabalhadores e aos sectores mais desfavorecidos da sociedade.
Os doze anos de presidência de FDR
inauguram uma espécie de interregno,
que se prolonga até à década de 80
(segundo período). Eisenhower, primeiro
Presidente republicano após os democratas FDR e Truman aceitaram, em parte, a
herança das políticas sociais de FDR. Entre
o fim da Guerra de 1939-1945 e os anos
80, instaura-se, com base num consenso
bipartidário, uma espécie de Estado-providência imperfeito, sobretudo porque
o optimismo de obama não foi mero resultado
da estratégia de campanha. o próprio legado de George
W. bush obrigava a colocar alto a fasquia da esperança.
o ex-presidente texano deixou atrás de si ruínas
sobre ruínas.
’
Com a emergência das teorias neoconservadoras, ao tempo de Ronald Reagan,
as políticas sociais transformaram-se em
alvos preferenciais das elites políticas e
económicas dominantes. Inaugurou-se um
novo período marcado pela procura de
“menos Estado” e pelo aumento do leque
das desigualdades sociais.
Paul Krugman propõe uma periodização
da história económica dos Estados Unidos
no século XX baseada no critério da desigualdade social. O primeiro período identificado por Krugman, inicia-se ainda no
século XIX (1870) e prolonga-se até 1930
houve uma reforma que nunca chegou a
ter lugar: a protecção contra a doença
alargada a todos os cidadãos, que permanece por realizar na América, apesar das
tentativas falhadas de Truman, Nixon e
Clinton, o que faz dos Estados Unidos o
único país avançado que não possui um
sistema nacional de saúde alargado a todos
os cidadãos (Krugman).
Um certo consenso bipartidário, entre
democratas e republicanos moderados,
permite manter intocada parte significativa da herança do New Deal, até à época
de Ronald Reagan (terceiro período), em
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
bLoCo De notAs
bLoCo De notAs
que se reforçou a tendência para o
aumento das desigualdades, em proporções semelhantes às dos anos 20. Até
1980, sublinha Krugman, os ricos não
eram mais ricos do que na época de
Eisenhower. A matriz ideológica dessa
viragem começa com os movimentos de
radicalização da direita americana nos
anos 70. A América de Reagan e de Bush
voltou a registar índices de desigualdade
semelhantes aos do período anterior à
Grande Depressão. Se identificarmos o
milionário, na esteira de De Long e
Krugman, como o indivíduo que ganha
anualmente o equivalente à produção
anual de 20 mil operários médios, na
América de 1957 existiam 16 milionários; na de 1968, 13; e na de 2007, um
total de 160.
Compreende-se que – em plena crise das
políticas neoconservadoras – alguns apoiantes de Barack Obama o projectem como
um novo Roosevelt, em vésperas de propor
um novo New Deal. “Franklin Delano
Obama?”. Com este título se interrogava
Krugman, na sua coluna bi-semanal do New
York Times. Controlar a recessão a curto
prazo, mas lançando as bases de um novo
acordo social: “O meu conselho à equipa
de Obama – escreve Krugman – consiste
em calcularem o auxílio de que a economia
precisa e, a seguir, acrescentarem 50 por
cento. É preferível, numa economia em
depressão, errar por excesso do que por
insuficiência de estímulo.”
A defesa do legado do New Deal por
Paul Krugman é também o elogio da audácia política. Nem o mercado, nem as
mudanças tecnológicas foram, em seu
entender, os factores determinantes na
transição dos anos 80 para um período
de maior desigualdade na distribuição dos
rendimentos. As transformações políticas
é que desempenharam o papel motor: “As
principais fontes do aumento da desigualdade nos Estados Unidos são as instituições e as normas, e não a tecnologia ou
a mundialização”, sustenta. Os exercícios
de comparação com o Canadá, a Grã-Bretanha, o Japão e a França mostram
que o crescimento das desigualdades nesses países se situou num plano bem inferior ao dos Estados Unidos.
Em comunicação proferida, em 2005,
no National Press Club, em Washington
DC, na presença dos netos de FDR, Ann e
James Roosevelt – o (então) senador
Barack Obama afirmou em defesa do legado rooseveltiano em matéria de seguranParalelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
Fotomontagem das imagens de roosevelt e obama na capa da Time.
ça social: “O génio de Roosevelt foi pôr
em prática a ideia de que a América não
tem de ser um lugar onde as nossas aspirações individuais estão em conflito com
o bem comum; é um sítio onde uma coisa
torna a outra possível […]. Salvaremos a
Segurança Social da privatização […] e,
ao fazê-lo, afirmaremos a nossa crença de
que estamos todos ligados como um único
povo – preparados para partilhar os riscos
e as recompensas para benefício da cada
um e para o bem de todos.”
O paradigma neoconservador foi dominante na política americana durante quase
três décadas, apesar do parêntesis Clinton.
Em 2008, a herança de Reagan esgotou as
suas virtualidades. O colapso bolsista, a
recessão económica e a crise política – conforme sustentou Francis Fukuyama –
devem-se a razões intrínsecas ao modelo
neoconservador, desde a definição minimalista do papel do Estado na economia à
oposição sistemática a quaisquer reformas
no domínio da segurança social e da
3
bLoCo De notAs
saúde pública, sem esquecer a visão hegemónica da política externa americana,
hostil à maior parte das instituições internacionais. No plano externo, escreve
Fukuyama, “a grande tragédia de George
W. Bush foi convencer-se que – após o 11
de Setembro – podia ser Churchill a opor-se a Hitler ou ser Reagan na altura da
queda do Muro de Berlim, através do
recurso ao poder militar americano no
Médio Oriente”.
Este contexto ajuda a compreender o sentido de retomar a inspiração de Roosevelt,
num mundo em que as funções do Estado
são muito diversas dos anos 30. A capa da
Time, depois de vencidas as eleições pelo
candidato democrata, trazia um Barack
Obama disfarçado de FDR, de chapéu alto
e boquilha, ao volante de um descapotável
dos anos 40. Ao longo da campanha, Obama
cultivou dois registos: o Presidente consensual e suprapartidário (alguns preferiram
escrever “pós-partidário”) e o Presidente
progressivo, herdeiro do legado “liberal”
4
‘
(no sentido de socialobama cultivou dois registos:
-democrata). Estas duas
atitudes nem sempre se
o presidente consensual
ajustarão da melhor
e pós-partidário e o presidente
forma. Pressupõem uma
actuação presidencial
progressivo, social-democrata.
pragmática de forma a
arbitrar as tensões e encaminhá-las num sentido positivo.
com a impaciência de outros. Esse crédito
Alguns acusam o novo Presidente de ter de confiança terá limites temporais. É razoelevado demasiado as expectativas dos ame- ável fazê-los coincidir com o final do ano I
ricanos e do mundo. Deste modo, a desilu- da era Obama.
são seria certa. Contudo, o optimismo de
Obama não foi mero resultado da estratégia Referências:
Francis Fukuyama, “A New Era”, American Interest, Janeirode campanha. O próprio legado de George
W. Bush obrigava a colocar alto a fasquia da -Fevereiro, 2009.
esperança. O ex-Presidente texano deixou Jacklin Easton (org.), Inspire a Nation: Barack Obama’s Most
electrifying Speeches from day One of His Campaign Through His
atrás de si ruínas sobre ruínas, desde o
Iraque e a Faixa de Gaza às empresas des- Inauguration, Publishing 180, Nova Iorque, 2009 (NationalPress-Club-Obama-Speech).
truídas na voragem da crise económica e
financeira. Sem a vaga de entusiasmo desen- Paul Krugman, The Conscience of a Liberal, Nova Iorque,
cadeada na América e no mundo, Obama W.W.Norton, 2007.
não disporia da confiança que lhe permiti- Paul Krugman, “Franklin Delano Obama?”, New York Times,
rá conciliar os excessos de prudência de uns 10 de Novembro de 2008.
’
Cartoon de obama com características de roosevelt proclamando a sua conhecida frase “A única coisa de que devemos ter medo é o próprio medo”
adaptada, com ironia, ao contexto actual.
Paralelo n.o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
Laços atlânticos
Políticos, diplomatas, investigadores e professores portugueses e americanos
partilharam com o público açoriano as problemáticas das relações
entre os estados Unidos e Portugal e o papel dos Açores.
três dias, no Teatro Micaelense, em Ponta
Delgada, discutiram-se as relações transatlânticas na opinião pública europeia e americana. O II Fórum está previsto para 2010
em Angra do Heroísmo.
Políticos, diplomatas, investigadores e
professores portugueses e americanos partilharam com o público açoriano as pro-
blemáticas das relações entre os Estados
Unidos e Portugal e o papel dos Açores;
as questões político-diplomáticas actuais;
as reformas em curso nas organizações
internacionais e a actual ordem mundial;
os desafios pós-globalização e muitos
outros temas de que lhe damos conta nos
artigos que se seguem.
VICTOR MELO/O RETRATO
Por ocasião dos noventa anos da escala do
Presidente norte-americano Roosevelt nas
ilhas açorianas do Faial e São Miguel, o
Governo Regional dos Açores e a Fundação
Luso-Americana organizaram o I Fórum
Açoriano Franklin D. Roosevelt com o apoio
da Presidential Library, sediada em Hyde
Park, nos arredores de Nova Iorque. Durante
A exposição documental “roosevelt”, adquirida pela FLAD, foi inaugurada por ocasião do Fórum.
mais tarde, seguiu para a horta e será apresentada em várias ilhas açorianas.
AFriCom
para as Lajes
A valorização declarada do potencial geoestratégico dos Açores
para o esforço de guerra no quadro do controlo do Atlântico foi
salientada por Carlos César que defendeu que “com o intensificar da opção africana por parte do Pentágono […] e o processo
de especialização e relocalização do AFRICOM” as Lajes serão o
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
local mais vantajoso a todos os níveis, de diplomáticos a logísticos. “O Estado português deve ter uma palavra rápida, clara e
favorável aos Açores neste assunto”.
O presidente do Governo Regional dos Açores fez estas declarações no âmbito do Fórum Roosevelt. Carlos César considerou
o encontro “um marco muito positivo no aprofundamento do
relacionamento da FLAD com a Região Autónoma dos Açores”,
reconhecendo toda a actualidade a Roosevelt que, “por direito
próprio, (tem) um lugar de destaque na galeria das grandes
figuras políticas do século XX”.
5
revistA De imprensA
Azores connection
Roosevelt permaneceu apenas três dias em São Miguel mas essa
visita marcou-o de tal forma que, quando já era Presidente (1933-1945), encomendou a Charles E. Ruttan um quadro do navio
USS dyer, tendo a bandeira portuguesa hasteada e o porto de
Ponta Delgada como fundo. A pintura esteve sempre junto da
sua secretária, na residência de Hyde Park, em Nova Iorque.
Já no final da Segunda Guerra, quando propôs que se erguesse
um edifício para a sede das Nações Unidas “do tipo do Empire
State Building”, defendeu que nos EUA ficassem apenas “os
arquivos e o respectivo pessoal”. As conferências, dizia, deveriam
realizar-se a meio do Atlântico, nos Açores: “Já lá estive uma vez.
Em frente da minha casa, cresciam, lado a lado, palmeiras e
abetos. Têm um clima maravilhoso.”
[ Patrícia Fonseca, 10 de Julho de 2008 ]
Concretizar
o sonho de Roosevelt
Curiosamente, esta iniciativa (Fórum Roosevelt) – que a organização quer realizar de dois em dois anos e de forma rotativa
em Ponta Delgada, Angra do Heroísmo ou Horta – é um pouco
o concretizar de um sonho de Franklin D. Roosevelt.
[ Lumena Raposo, 16 de Julho de 2008 ]
O primeiro
dos grandes debates
Confiemos que, depois de outras iniciativas de carácter cultural
e formativo ultimamente realizadas, o “I Fórum Açoriano Franklin
D. Roosevelt” seja o primeiro dos grandes debates que ajudem
a compreender e prospectivar melhor os Açores e o seu posi-
6
estudante universitária intervém no Fórum.
cionamento no mundo de hoje e do futuro, a partir de um
passado que muito nos ensina.
Passado, presente e futuro formam a trilogia geradora da identidade singular que constitui o Povo Açoriano. Uma realidade
indestrutível que nenhum amanho político poderá destruir.
[ Gustavo Moura, 16 de Julho de 2008 ]
Um corpo de conhecimento
O fórum valeu por si [...] mas só por isso não serve os interesses da Região de forma significativa, pelo menos tendo presentes aqueles que nos parecem ser os interesses dos Açores
enquanto região geo-estratégica por excelência. Este encontro,
que se irá repetir de dois em dois anos – sempre em locais
diferentes dos Açores, pelo que nos é dado entender –, deve,
quanto a nós, constituir-se como um grande momento de exposição e debate de pensamento novo sobre a realidade e os interesses específicos dos Açores nas matérias em causa.
[ Armando Mendes, 19 de Julho de 2008 ]
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
revistA De imprensA
Novas utilizações
para a Base das Lajes
Centralidade dos Açores
nas relações transatlânticas
Hoje, os aviões têm uma maior autonomia de voo e é cada vez
menos imperativo que tenham de reabastecer nas Lajes.
Claro que, logisticamente, a Base das Lajes continua a desempenhar um importante papel nas nossas operações militares no
Médio Oriente e no Iraque, em particular.
Contudo, temos visto reduções recentes no nosso contingente
nas Lajes e isso implicará também, eventualmente, a redução de
empregos que disponibilizamos aos portugueses nas Lajes.
[ 20 de Julho de 2008, entrevista com o embaixador Thomas
Stephenson (por Paulo Simões/Rui Jorge Cabral) ]
Existem no mundo inúmeras potências, mas nenhuma delas
consegue actualmente a hegemonia de outrora. Franklin
Delano Roosevelt era um visionário, um homem que esteve
para além do seu tempo, tendo delineado o conceito que
levou à formação das Nações Unidas, da qual pensou tornar-se Secretário-Geral. Nos seus planos incluía o sonho de transferir a sede de Genebra – onde tinha funcionado a Sociedade
das Nações – para Nova Iorque e para a cidade da Horta.
[ Alexandre Pascoal, 22 de Julho de 2008 ]
Factura Obama
Lisboa e Açores
Para os militares norte-americanos, as Lajes poderão ser uma base
extremamente importante para o apoio logístico e operacional às
operações do Africom, o novo comando militar que se tornará
operacional em Outubro. Se olharmos para o mapa, vemos que a
base nos Açores é ideal para o pré-posicionamento de equipamento, trânsito ou estacionamento de forças de operações especiais e
reabastecimento americano em direcção a África. As Lajes também
são vistas pela Força Aérea dos EUA como ideais para o treino dos
novos caças F-22 Raptor.
A figura do antigo Presidente americano não podia
ter sido mais inspiradora, lembrando-nos a grandeza da América e a eterna dívida dos europeus para
com ela. A iniciativa, que decorreu sob o tema geral
das relações transatlânticas na opinião pública europeia e americana, não podia ter vindo mais a propósito. Tal como muitos analistas europeus, muitos
dos intervenientes (incluindo eu própria) chamaram
a atenção para este excesso de entusiasmo, advertindo para a factura que Obama pode apresentar à
Europa a troco da sua vontade de imprimir à política externa norte-americana uma mudança que, em
muitos aspectos, vai ao encontro daquilo que a
Europa deseja.
[ Teresa de Sousa, 23 de Julho de 2008 ]
Num discurso (no Fórum Roosevelt) em Ponta Delgada, Carlos
César, presidente do Governo Regional dos Açores, exigiu que Lisboa
conclua rapidamente as negociações que tem vindo a manter desde
há bastante tempo com os EUA sobre estes dois assuntos. Exigiu
também que a resposta nacional seja sim. Os Açores têm todo o
interesse político e orçamental em desempenhar o seu papel no
“Sim, nós podemos!” euro-atlântico de Barack Obama. Lisboa tem
dúvidas. Porquê?
[ Miguel Monjardino, 21 de Julho de 2008 ]
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
“Utilizados”
é o que temos sido...
Em extenso e cuidado discurso, o presidente do
“Governo dos Açores” (como ultimamente se intitula,
muito embora a Constituição revista continue a chamar-lhe Governo Regional…) afirmou que “não gostamos
de estar isolados nem de nos sentirmos utilizados”.
Convirá, a propósito, precisar o que é isto de nos “sen-
7
revistA De imprensA
tirmos utilizados”. Porque “utilizados” é o que, historicamente,
sempre temos sido, como habitantes de um território estrategicamente importante.
[ Álvaro Monjardino, 26 de Julho de 2008 ]
Transformar acordo
em tratado internacional
É tempo de transformar este acordo num Tratado Internacional,
sujeito a aprovação pela Assembleia da República e pelo Congresso
dos Estados Unidos.
Admitimos que, no âmbito de novas e diferentes negociações
de um Tratado Internacional sobre facilidades de utilização da
Base das Lajes, pode encontrar-se a oportunidade para que a
questão laboral, muitas vezes envolta em conflito, tenha um
futuro entendimento claro e exequível, sem pôr em causa a
dignidade e soberania de nenhum dos Estados.
Para esta pretensão devemos contar com o prestígio da nossa
diáspora e dos congressistas de ascendência açoriana.
[ José Manuel Bolieiro, 31 de Julho de 2008 ]
Estudantes participam
no sonho açoriano de Roosevelt
No essencial, a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento
(FLAD) realizou o sonho do político americano: especialistas de
várias áreas e diferentes nacionalidades, e alguns finalistas de
universidades portuguesas, reuniram-se […] para discutir as
relações transatlânticas.
O local de encontro foi Ponta Delgada, em São Miguel, essa
terra onde o presidente americano só esteve uma vez. Foi amor
à primeira vista. O evento tem o nome do sonhador. É o I Fórum
Açoriano Franklin D. Roosevelt, onde a Universidade de
Coimbra marcou presença com docentes, investigadores e
estudantes. Mário Mesquita, coordenador da Comissão
Organizadora do Fórum e Membro do Conselho Executivo da
FLAD, conta que a ideia do Fórum nasceu “da vontade de criar,
nos Açores, um espaço de reflexão sobre política internacional
e estratégia”. Porquê nestas ilhas? “Fala-se muito dos Açores
como um lugar estratégico em casos de guerra, mas a ideia
que emana da visão de Roosevelt é que este lugar também
pode servir à construção da paz e é a paz, e não a guerra, que
queremos discutir”.
8
mário soares e bernardino Gomes na visita à Casa e ao Jardim José do Canto.
Nenhum dos alunos presentes hesita em afirmar que Roosevelt
é um homem que vale a pena homenagear. É o presidente do
Governo Regional dos Açores, Carlos César, que numa frase sintetiza o motivo: “Franklin Roosevelt empenhou-se em garantir
que o papel da América a nível da política internacional fosse
recordado pela disseminação da paz, pela força da razão e não
pela força das armas, e este é um exemplo que o mundo contemporâneo precisa urgentemente de relembrar”. Manuel Porto,
professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
mostra-se “a favor do Estado, mas de um bom Estado”.
[ Martha Mendes, revista RL, n.º 22 ]
O sonho da reorganização
de uma ordem mundial pacífica
O encontro multidisciplinar que a Fundação Luso-Americana
organizou em Ponta Delgada […] teve como efeméride de referência a passagem de Franklin Roosevelt pelos Açores durante a
Primeira Guerra Mundial.
Uma estada pelo arquipélago que lhe ficou como recordação encantatória e que, no entardecer da vida lhe terá feito sentir o desejo,
não realizado, de ali regressar para esperar o fim dos dias.
Mas, para além da recordação da histórica e acidental passagem pelo
arquipélago, a referência que enquadrou as intervenções foi o sonho
da reorganização de uma ordem mundial pacífica que animou a
sua visão de futuro, para além da vitória militar na guerra de 1939-1945, contra os demónios interiores europeus.
[ Adriano Moreira, 19 de Agosto de 2008 ]
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
Mensagem ao Fórum
POR JAmes rooseveLt
O neto de Roosevelt não pôde estar presente mas participou
com uma mensagem de abertura (por vídeo), agora transcrita,
que valoriza o Fórum, dedicado ao seu avô, e o impulso que
este dará ao fortalecimento dos laços dos dois lados do Atlântico.
Chamo-me James Roosevelt Junior e é um prazer
e um privilégio para mim saudar, em nome da
família Roosevelt, os participantes neste primeiro
Fórum Franklin D. Roosevelt sobre Relações
Transatlânticas. Como sabem, o meu avô, o
Presidente Franklin D. Roosevelt, visitou Ponta
Delgada, na ilha de São Miguel, de 16 a 18 de
Julho de 1918, quando era subsecretário da
Marinha dos Estados Unidos da América. Chegou
a bordo de um contratorpedeiro da marinha americana, o USS dyer, que efectuava a sua viagem
inaugural. No seu diário e nas suas cartas à minha
avó Eleanor Roosevelt e à sua mãe, Sarah Delano
Roosevelt, escreveu muitas observações maravilhosas sobre a beleza da ilha que estava a visitar e
sobre a utilidade das conversações que manteve
com autoridades governamentais durante a sua
visita. Espero que este Fórum assinale o relançamento da era de relações transatlânticas que foram
tão importantes no tempo do meu avô. Para ele,
as relações transatlânticas estavam no cerne da
política externa dos Estados Unidos. É certo que o
meu avô tinha uma visão mundial, mas considerava que os interesses comuns das nações banhadas
pelo oceano Atlântico eram tão importantes que
tinham de estar no cerne da política americana.
Nos últimos anos, afastámo-nos desse projecto e
espero que este Fórum dê um novo impulso a esse
importante objectivo, colocando-o de novo no
centro das relações externas dos Estados Unidos.
O tema desta conferência, “As Relações
Transatlânticas e a Opinião Pública Europeia e
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
Americana”, é muito importante no mundo de
hoje. Penso que o cepticismo bem como a falta de
confiança e respeito mútuo que têm caracterizado
as relações transatlânticas nos últimos anos prejudicam todas as pessoas do mundo, mas especialmente as populações de ambos os lados do
Atlântico. Julgo, portanto, que a concentração renovada de atenção que este Fórum irá trazer segue
inteiramente a tradição do serviço prestado pelo
meu avô à presidência de Woodrow Wilson, durante e após a I Guerra Mundial, e como Presidente
dos Estados Unidos durante quatro mandatos, nas
décadas de 1930 e 1940. Estamos a viver um tempo
diferente, um tempo difícil, e todos o sabemos.
Mas é um tempo em que se têm registado também
grandes progressos e que nos pode trazer um grande futuro de relações calorosas se nos concentrarmos novamente nos nossos interesses comuns. Por
conseguinte, em nome da família Roosevelt, desejo agradecer aos organizadores deste Fórum por
terem reunido importantes decisores políticos e
porta-vozes de ambos os lados do Atlântico com
o objectivo de nos levar a empenharmo-nos novamente nos nossos verdadeiros interesses como
nações e, também, como cidadãos do mundo.
Desejo-vos as maiores felicidades nas vossas sessões
de trabalho e nas vossas deliberações, e aguardo
com expectativa a oportunidade de tomar conhecimento dos efeitos duradouros que este Fórum
produzirá na política mundial, e, principalmente,
na política externa das nações de ambos os lados
do Atlântico. Muito obrigado.
9
De olhos postos no mundo
Na Sala Oval, Franklin delano Roosevelt fixa um ponto no enorme globo terrestre.
Talvez o Mediterrâneo. O mar que sempre foi a sua paixão
e as viagens que lhe proporcionou.
POR sArA pinA*
Cynthia Koch, directora da Biblioteca
Franklin D. Roosevelt, conta que os
Roosevelt passavam anualmente vários
meses na Europa. A 30 de Janeiro de 1882,
quando Franklin Delano Roosevelt nasceu,
em Nova Iorque, a família tinha regressado de uma longa viagem. Nove meses
antes do nascimento estavam na Europa,
como indica o diário da sua mãe Sara,
uma mulher muito viajada que deslum-
brava o seu filho único com contos de
aventuras de viagens por mar.
Depois de alguns anos a viver na
Alemanha, Franklin Delano Roosevelt
ingressou no colégio de Groton, perto de
Boston, cujo lema – apoiar os mais desfavorecidos – resultava da convicção de que
os americanos privilegiados devem ajudar
a resolver os “males nacionais e internacionais”. Em Harvard cursou Direito, mas
FDR PRESIDENTIAL LIBRARy
Não admira que uma das suas primeiras
recordações fosse a do poder do mar. Em
1885, na sua primeira travessia do
Atlântico, o pequeno Franklin, com apenas três anos, viajava de Inglaterra para
os Estados Unidos quando o seu barco
foi atingido por fortes ondas que invadiram a cabina onde a família Roosevelt
estava instalada e levaram o seu brinquedo predilecto.
30
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
FDR PRESIDENTIAL LIBRARy
em 1915, passando revista a cadetes enquanto subsecretário de estado da marinha.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
‘
quando chegámos ao porto ouvimos dizer que, no
momento exacto em que nos encontrávamos parados,
um submarino foi visto em perseguição de um barco
português, ao largo do quebra-mar.
’
FDR PRESIDENTIAL LIBRARy
o que realmente o fascinava era ser editor
do jornal estudantil Harvard Crimson.
Franklin Delano Roosevelt pertencia a
uma família rica e com muitas ligações
políticas. Theodore Roosevelt, o Presidente
norte-americano de 1901 a 1909, era seu
primo e tio da sua mulher – Eleanor.
Embora a carreira profissional tenha
começado pela advocacia, FDR cedo iniciou o serviço público. Em 1913, foi compensado pelo seu apoio à eleição para a
Presidência de Woodrow Wilson com o
cargo de subsecretário de Estado da
Marinha e durante a I Guerra Mundial era
o “número dois” na linha de comando.
Foi com a participação da América na I
Guerra Mundial que Roosevelt viajou até
aos Açores para depois seguir para França
e outras regiões da Europa. A visita a São
Miguel foi muito marcante para FDR que
“encomendou” ao pintor Charles Ruttan
um quadro a óleo do destroyer USS dyer – o
vaso de guerra que o transportou à Europa,
ancorado no porto de Ponta Delgada.
Talvez não fosse a sua pintura favorita,
mas esteve sempre colocada por cima da
sua secretária, no escritório da residência
de Hyde Park.
“Ponta Delgada está à vista e alguns dos
nossos barcos encontram-se no porto […]
Quando chegámos ao porto ouvimos dizer
que, no momento exacto em que nos
encontrávamos parados, um submarino
foi visto em perseguição de um barco
português, ao largo do quebra-mar. É claro
que teríamos sido um alvo fácil, mas, se
o submarino nos viu, decidiu evitar os
destroyers, como qualquer submarino prudente faz”, escrevia Roosevelt no seu diário a 16 de Julho de 1918.
Roosevelt foi recebido pelo comandante
da base de Ponta Delgada, almirante Dunn.
Numa carta para a mulher Eleanor, revelou-se muito satisfeito com a organização militar e a recepção dos portugueses. Mas o que
o deslumbrou foi a paisagem: “subitamente chegámos à orla do que foi, em tempos,
uma enorme cratera, tendo no fundo um
cenário maravilhoso – várias aldeias, vales
e jardins, lagos azul-escuro e nascentes de
onde se desprendem nuvens de vapor”.
Para Cynthia Koch, “FDR viu no solo açoriano um lugar neutro onde os líderes se
pudessem encontrar e debater políticas”.
De tal maneira que em 1945, numa conferência de imprensa, enquanto Presidente,
diria: “Tenciono conseguir um edifício
semelhante ao Empire State Building [para
as Nações Unidas] apenas para os
o barco onde viajava roosevelt no porto de ponta Delgada, num óleo de Charles ruttan,
exposto no gabinete de trabalho do presidente.
31
FDR PRESIDENTIAL LIBRARy
no avião a caminho de Chicago para a nomeação à candidatura a presidente pelo partido Democrata.
arquivos e respectivo pessoal, e, em seguida, fazer com que as conferências se realizem em parte do tempo, numa das ilhas
dos Açores. Já lá estive uma vez. Em frente da minha casa cresciam, lado a lado,
palmeiras e abetos. Têm um clima maravilhoso”.
Para FDR o arquipélago açoriano significava esse ponto, quase neutro, entre a Europa
e a América, onde os decisores políticos se
podiam encontrar e debater as ideias que
ditavam os acontecimentos mundiais.
“Em 1932, depois de uma dura luta,
Roosevelt tornou-se o candidato à presidência nomeado pelo Partido Democrata.
FDR fascinou o público ao voar até
Chicago para aceitar a nomeação, onde
prometeu um New Deal para o povo americano”, explica Cynthia Koch, e continua:
“FDR palmilhou a nação de lés a lés, percorrendo uma distância recorde de apro-
3
ximadamente 20 mil quilómetros, por
todo um país devastado por uma crise
económica e humana que durava há três
anos e se tornava cada vez mais grave”.
O resultado dessa campanha foi a vitória democrata no ano seguinte. A 4 de
Março de 1933, Roosevelt tomou posse
como o 32.º Presidente dos Estados
Unidos, numa altura em que a nação
estava à beira do colapso.
“Algumas vozes, levantadas pelo desespero e pelo medo, chegaram mesmo a
pedir que o novo presidente suspendesse
o governo constitucional e assumisse
poderes quase ditatoriais”, conta a directora Koch. Mas Roosevelt manteve-se dialogante. Aos compatriotas, respondeu:
“A única coisa que devemos recear é o
próprio medo.”
Na verdade, segundo as palavras de
Cynthia Koch, “em termos humanos, a
maior mudança foi talvez a nova sensação
de um objectivo comum que FDR promoveu, falando com clareza e sinceridade
à imprensa e ao povo americano”.
Poucos dias depois de ter tomado posse,
iniciou uma série de programas de rádio
chamados “Conversas à Lareira” e que
foram os primeiros discursos presidenciais
dirigidos exclusivamente a uma audiência
de rádio. “O estilo era informal e coloquial, dando a impressão de que o
Presidente estava realmente a falar com as
pessoas na sala”. Durante os doze anos de
Roosevelt na Presidência, viriam a realizar-se mais de 30 “Fireside chats”. A seguir
a cada programa, a Casa Branca era inundada por telegramas e cartas. Cynthia Koch
sustenta que “pela primeira vez, os americanos encetaram um diálogo nacional
com o seu Presidente sobre o futuro e o
destino da nação”.
Os primeiros meses como Presidente
foram marcados por uma actividade tão
intensa por parte de Roosevelt que ficaram conhecidos como os “Primeiros Cem
Dias”. Foi nesta altura que foi lançado o
New Deal – 15 diplomas legislativos que
visavam garantir comida, abrigo e trabalho para os necessitados, estruturar a
reforma da banca, ajudar os agricultores
empobrecidos e terminar com a proibição de cerveja e álcool, o que levantou
a moral nacional.
Na opinião da bibliotecária, “Franklin
Roosevelt tinha um instinto de poder e a
vontade necessária para o exercer. A II
Guerra Mundial – com as suas operações
militares à escala mundial, complexas coligações internacionais e problemas económicos e sociais – era um grande palco em
que o Presidente assumiu um papel fulcral.
Roosevelt foi, em todos os sentidos,
o comandante-chefe da nação. Tomou
decisões militares, políticas e reuniu um
grupo dos melhores estrategas que lhe
prestavam contas directamente”.
Roosevelt detinha a principal posição na
coligação de guerra das 26 nações aliadas,
que ele denominou “Nações Unidas”. “À
medida que a guerra avançava, FDR foi
assumindo cada vez mais as funções de
mediador e decisor principal do grupo”,
diz Koch, acrescentando: “Ao longo da
guerra, o Presidente Roosevelt frisou repetidas vezes a importância de reforçar a
coligação. A diplomacia foi o que caracterizou a sua acção de liderança durante
a II Guerra”.
Na manhã de 12 de Abril de 1945,
a II Guerra Mundial entrou no seu 2049.º
dia. Tinham morrido já quase 50 milhões
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
FDR PRESIDENTIAL LIBRARy
roosevelt um dia antes de morrer a trabalhar na intervenção para a formação das nações unidas.
quista dos nossos inimigos não é suficiente. Os americanos devem cultivar a ciência
das relações humanas – a capacidade de
todos os povos, de todos os tipos, viverem
juntos e trabalharem juntos no mesmo
mundo, em paz”.
* com susAnA pAuLA
VICTOR MELO/O RETRATO
de pessoas, e muitos mais milhões estavam feridos ou tinham perdido as suas
casas. Na Europa, Adolf Hitler vivia num
bunker subterrâneo enquanto os soldados
soviéticos se preparavam para invadir a
capital alemã e o primeiro campo de
concentração era libertado pelas tropas
russas. O Presidente norte-americano
acordou exausto na sua casa de férias, na
Geórgia. Poucas horas depois daquilo que
parecia apenas uma “dor de cabeça”,
Franklin D. Roosevelt morria, de uma
hemorragia cerebral.
Franklin D. Roosevelt viveu tempo suficiente para saber que a vitória estava
garantida. Menos de um mês depois da
sua morte, a Alemanha rendeu-se aos
Aliados. Os últimos dias da sua vida
foram dedicados ao mundo do pós-guerra, preparando as bases legislativas e
logísticas da Organização das Nações
Unidas (ONU).
FDR morreu dias antes da data marcada
para o discurso que iria proferir na sessão
de abertura da conferência de fundação
da ONU. Na véspera do dia em que morreu, trabalhou num discurso sobre o
mundo do pós-guerra: “A simples con-
Cynthia Koch, directora da biblioteca presidential Franklin D. roosevelt, foi a primeira oradora do Fórum roosevelt e iniciou a sua apresentação
afirmando que “roosevelt teria ficado muito feliz com estas conferências”. A biblioteca foi parceira da organização deste encontro.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
33
Actualidade do pensamento
de roosevelt
Alan Henrikson, director de estudos diplomáticos da The Fletcher School of Law
and diplomacy, da Tufts University, traçou o perfil de Roosevelt como “figura histórica”.
em entrevista explica a importância do arquipélago e a actualidade do pensamento de Roosevelt,
mesmo se comparado com o do novo Presidente dos estados Unidos, Barack Obama.
POR AnA brAsiL E António viCente
34
Actualmente, os aviões americanos já não têm
de fazer escala no meio do Atlântico para poderem chegar a outros lugares do mundo. A base
aérea da ilha Terceira ainda continua a ser importante para os objectivos militares dos EUA?
É um facto que, com os aviões de longo
alcance, se tornou muito fácil sobrevoar o
Atlântico e ultrapassá-lo, sem qualquer escala. Durante a Guerra do Kosovo, os bombardeiros americanos Stealth levantavam voo
da base da Força Aérea de Whiteman, no
Missouri, voando sobre Belgrado e voltando,
sem parar. No entanto, tinham de ser abastecidos sete vezes por aviões em diversos
pontos da viagem. Isto ilustra bem a necessidade de posições intermédias na cadeia
logística, associadas a aeronaves de diferentes níveis tecnológicos e para diferentes fins.
Além disso, estas posições intermédias têm
de ser abastecidas e apoiadas. É necessário
que tenham equipamentos de
comunicação que sejam absolutamente fiáveis e seguros.
Por conseguinte, na minha
opinião, provavelmente, seria
melhor pensar nos Açores
como um importante centro
intermédio, do que como um
principal ponto estratégico.
Por outro lado, também é um
facto que a geoestratégia é
muito importante no contexto mais lato do problema que
enfrentamos. Se houver um
problema humanitário que
necessite de operações de
assistência em qualquer parte
de África, por exemplo, pode
acontecer que a velocidade
não seja o mais relevante, mas
sim a capacidade de carga.
Numa situação do género,
poderiam usar-se aeronaves
mais lentas. Este seria o
segundo exemplo de uma
situação em que os Açores
directo
seriam importantes. O terceiro seria no caso de estarmos
VICTOR MELO/O RETRATO
Roosevelt era um homem do mundo, viajava
muito. Na sua opinião, por que motivo os Açores
lhe causaram tão boa impressão?
Os Açores representavam para Roosevelt
um ponto fulcral, uma espécie de eixo
mental e visual, à volta do qual começou
a desenvolver mais claramente a sua noção
do limite de hemisfério ocidental e de uma
Comunidade Atlântica. O final da guerra
constituía o palco de uma nova ordem
mundial, na qual imaginava
que os Açores poderiam,
eventualmente, vir a tornar-se
o principal quartel-general,
uma vez que a maioria dos
estados soberanos do mundo
se encontrava na Europa e no
hemisfério ocidental, incluindo todas as repúblicas americanas. Poderia haver
reuniões nos Açores e/ou no
Pacífico. Há ainda a referir
aquilo a que o seu Vice-Presidente, Henry Wallace,
chamava a sua espectacular e
especial memória. Segundo
ele, Roosevelt conseguia lembrar-se não só do aspecto das
coisas, como também se
recordava de informação
específica acerca de lugares,
como distâncias, e até das
marés e dos ventos de algumas zonas de costa. Reparava
em todos os detalhes de uma
cena ou paisagem. Os Açores
“obama
impressionaram-no profundamente.
terá, da mesma forma que roosevelt, um conhecimento
de outras partes do mundo”, diz Alan henrikson.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
FDR PRESIDENTIAL LIBRARy
perante um problema sensível do ponto de
vista político, que necessitasse de acção imediata; se fosse necessário chegar a algum
lugar rapidamente, sem atrair muita atenção.
Uma outra situação, muito semelhante a
esta, poderia ser a necessidade de haver reuniões rápidas entre dirigentes para consulta
aos níveis mais altos, como a que aconteceu
em 2003 com Bush, Blair, Aznar e
Barroso.
O senhor é um dos principais especialistas em
Franklin Delano Roosevelt. Ainda fica surpreendido perante algumas situações em que FDR é
citado ou referido?
As suas ideias, que muitas pessoas naquela altura julgavam não passarem de palavras – como as “Quatro Liberdades” –,
eram de tal maneira grandes que foi
possível adoptá-las em contextos completamente diferentes. Para mim, um desenvolvimento surpreendente foi a forma
como o ex-secretário-geral das Nações
Unidas, Kofi Annan, se referiu às “Quatro
Liberdades”, de Roosevelt, quando apresentou o seu Relatório do Milénio. Citou
especialmente a libertação das necessidades materiais e a libertação do medo –
dando-lhes talvez a melhor definição
existente de “segurança humana”, um
novo termo que, entretanto, se institucionalizou em todo o mundo.
É da opinião que, com a evolução da ordem mundial,
será dada maior atenção aos pequenos estados?
Sim. Em especial nas questões climáticas,
no problema geopolítico relativo às zonas
de conflito e na liderança moral no que
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
toca a reagir às situações humanitárias. Isso
acontecerá devido ao contexto diplomático.
Do sistema das Nações Unidas fazem parte
192 países. Eram apenas pouco mais de 50
quando a ONU foi criada. Consequentemente,
a ONU está a tornar-se uma instituição
composta por pequenos países. Graças a
este princípio de igualdade soberana e, uma
vez que na Assembleia Geral todos os votos
são iguais, o Conselho de Segurança é pressionado a alargar-se.
geográficos e sociais dar-lhe-á um determinado tipo de visão. Um exemplo disso
mesmo é a sua proposta para um fundo
global para a educação no valor de 15 mil
milhões de dólares. Obviamente, não
seriam apenas os EUA a assegurar o respectivo financiamento. Ainda não foi dada
grande atenção a esta proposta. Entre outras
coisas, Obama afirmou que “O facto de
haver crianças, por exemplo, no Médio
Oriente, que não sabem ler, pode, a longo
‘
As suas ideias, [...] como as “quatro Liberdades”,
eram de tal maneira grandes que foi possível
adoptá-las em contextos completamente diferentes.
Roosevelt era uma figura muito inspiradora. Pensa
que o mundo anseia por este tipo de líder político, que muitos parecem ver em Obama?
Sim. Muitas pessoas acreditam – e eu partilho dessa esperança – que Obama terá,
da mesma forma que Roosevelt, um conhecimento directo de outras partes do mundo.
Obama tem experiência; e não me refiro
a experiência em política externa, mas sim
a “experiência externa”. O seu pai era queniano, visitou a Índia e diversas regiões
africanas. Chegou mesmo a viver na
Indonésia. Na qualidade de membro do
Foreign Relations Committee (comissão de
fiscalização das relações externas do Senado
americano), também viajou muito.
Independentemente do que possam ser os
objectivos das suas políticas, a compreensão
alargada que tem de diversos contextos
’
prazo, constituir um perigo potencial para
os EUA, bem como para a própria região”.
Relativamente às suas propostas para a
educação nos EUA tem dado ênfase às idades preescolares. Talvez seja o resultado do
seu trabalho com as comunidades em
Chicago – onde se apercebeu de como são
decisivos esses anos para as famílias afro-americanas – e provavelmente também
da experiência acumulada nos quatro anos
vividos na Indonésia durante a sua juventude, ou mesmo de tudo o que viu no
Quénia. O facto de Obama defender – tal
como FDR provavelmente o teria feito –
não apenas a liberdade de expressão, a
liberdade religiosa e a libertação do medo,
como também a liberdade de aprender em
qualquer lugar do mundo, mostra que tem
um grande potencial.
35
os Açores: entre os
estados unidos e portugal
POR mArtA Amorim E susAnA pAuLA
36
lidade de ocupação dos Açores e de Cabo
Verde: “Nós e as Américas – quando e
onde quer que os nossos interesses forem
atacados e a nossa segurança ameaçada
– decidiremos onde deveremos colocar as
nossas Forças Armadas e onde estabeleceremos a nossa posição militar estratégica,
sem termos a mais ligeira hesitação para,
servindo-nos das Forças Armadas, repelir
qualquer ataque”.
Em resposta, Salazar enviou contingentes
militares para as ilhas. O Presidente Carmona
efectuou uma viagem de reafirmação de
soberania, sob o slogan “Aqui é Portugal”.
Os Aliados e as potências do Eixo interpretaram estas medidas como “símbolo da
vontade de Portugal em não deixar ocupar
as suas possessões atlânticas por qualquer
potência e sob qualquer pretexto”.
Após o fim da II Guerra Mundial e o
início da Guerra Fria, os Estados Unidos
vão permanecendo nos Açores com inúmeras concessões ao Estado português.
Como afirmou António José Telo, “Portugal
foi o único país não democrático convidado para membro fundador da NATO; o
único pequeno poder que, em 1961-63,
conseguiu mudar aspectos importantes da
política americana em África”.
O historiador e director do Instituto de
Defesa Nacional concluiu: “Em múltiplas
crises e conjunturas nos últimos dois
séculos, Portugal tem desempenhado
funções e cumprido missões que estão
aparentemente acima dos seus recursos
e força relativa. Essa capacidade tem sido
essencial para a criação do Portugal contemporâneo e deve-se a um conjunto
multifacetado de factores. Os Açores e a
sua posição estratégica são um dos principais e, em muitas das crises e situações
concretas, são o principal”.
VICTOR MELO/O RETRATO
A admiração dos micaelenses pelos Estados
Unidos foi gerada, nas palavras de Carlos
Enes, pelo sentimento de “abandono”
por parte do Governo central e pelos
apoios prestados pelas forças americanas.
Começavam a manifestar-se tendências separatistas em São Miguel e na colónia emigrada na Nova Inglaterra. Alguns açorianos
queriam distanciar-se do Governo do continente e, porventura, ligar-se aos Estados
Unidos. Foi nesse clima que Franklin
D. Roosevelt desembarcou no arquipélago.
Os discursos de Franklin D. Roosevelt
em Ponta Delgada não ultrapassaram os
limites das palavras de protocolo. Roosevelt
valorizou, no entanto, a posição estratégica dos Açores, a ponto de considerar o
apoio concedido pela base naval de Ponta
Delgada às forças aliadas mais importante
do que a própria participação portuguesa
no teatro de guerra europeu: “Portugal
entrou na aliança europeia, mas os Açores
fazem mais do que isso, pelas condições
especiais da sua posição estratégica”.
A atitude de não ingerência dos Estados
Unidos nos assuntos internos portugueses
e de repúdio de envolvimento em ensaios
separatistas reflectia a orientação geral da
política externa definida pelo Presidente
Wilson, que se caracterizava pela ideia de
uma arbitragem americana a nível internacional – uma espécie de leadership moral
a exercer pelos Estados Unidos, com vista
à defesa da paz e a espalhar pelo mundo
os benefícios da democracia.
Com a II Guerra Mundial, como explicou
o professor Luís Andrade, os estrategas dos
Estados Unidos multiplicavam os sinais de
preocupação com o arquipélago português, a fim de demover a diplomacia salazarista da sua posição de neutralidade e
obter a anuência do Governo português
com vista à instalação de uma base militar
nas ilhas atlânticas.
Em discurso proferido, Roosevelt ameaçava, de forma implícita, com a possibi-
“As bases e as relações bilaterais com os estados unidos: um século de entendimentos”
foi a conferência apresentada ao Fórum por António José telo.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
plataformas
comuns...
Na opinião do embaixador de Portugal
em Washington, João Vallera, a relação
transatlântica só “ganhará força” se fizer
coincidir a sua agenda com a agenda mundial. Por isso se têm desenvolvido esforços
na busca de “plataformas comuns”, no
âmbito de uma agenda que, segundo
Vallera, se foca em questões específicas,
como o comércio a vários níveis ou os
entraves à circulação de pessoas e bens, à
defesa europeia e as ligações à NATO. Mas
também em grandes questões globais,
como o Iraque, o terrorismo, a luta contra a pobreza ou a emergência de novas
potências mundiais, como a China.
O embaixador assumiu esperar da capital norte-americana “uma atitude mais
atenta e mais adepta a escutar as reacções
do exterior”. Afinal, segundo notou, assiste-se a “um movimento de considerável
recentragem da política americana”, favorável a uma “significativa reaproximação
com a Europa”.
No entanto, realçou o embaixador, “a
capacidade de alterar componentes básicos
da política externa americana é muito
limitada, visto que boa parte das opções
de fundo da actual Administração vão trazer consequências para a próxima”.
Ao apresentar João Vallera, o director
da SIC Notícias, António José Teixeira,
citou Robert Kagan quando este refere que
actualmente os Estados Unidos estão em
Marte e a Europa em Vénus. Ou seja,
enquanto o objectivo dos europeus se
centra no “equilíbrio de interesses” e na
“resolução pacífica dos conflitos”, os norteamericanos “não acreditam que estejamos
assim tão perto do sonho” da “paz perpétua” e da estabilidade mundial.
... tAmbém pArA o Ambiente
O embaixador dos Estados Unidos em
Portugal, Thomas Stephenson, focou na
sua intervenção o tema e optou por falar
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
VICTOR MELO/O RETRATO
POR CLAúDiA GAmeiro,
JoAnA FernAnDes E mArCo Leitão siLvA
o embaixador dos estados unidos em portugal falou da política energética.
da política energética que se tornou “o
assunto político mais importante que
põe em resto o bem-estar futuro”.
Segundo o embaixador: “Os Estados
Unidos e a Europa precisam de agir em
três áreas: reduzir a dependência dos
combustíveis fósseis; aumentar a eficácia
energética e conservação; e desenvolver
fontes de energia renováveis e alternativas”. Lembrando a estreita cooperação
entre Portugal e os Estados Unidos,
Thomas Stephenson exortou cidadãos e
instituições a prosseguirem na defesa do
ambiente. “Todos temos de criativamente trabalhar para garantir um mundo
seguro e functional para os nossos
filhos”. “Mesmo que não existisse ameaça climática, tínhamos toda a urgência
em pôr fim à dependência energética
relativamente aos combustíveis fósseis.
Mas esta ameaça existe, e a resposta tem
de ser imediata”, afirmou Viriato
Soromenho-Marques, que atribui à
União Europeia o papel de recolocar os
Estados Unidos no caminho do combate à crise ambiental e climática.
O assessor do presidente da Comissão
Europeia para a área do ambiente lembrou
que este não é um problema novo: “Esta
crise de alterações climáticas, esta crise
ambiental, já exige medidas há décadas.
A diferença é que agora são muito mais
urgentes”, disse.
Soromenho-Marques garantiu que a resposta europeia a este problema está já em
marcha: “Esta é uma época de mudança
e o ambiente é o nosso calcanhar de
Aquiles. A dívida climática terá de ser paga
cêntimo por cêntimo, e só unidos vamos
conseguir fazê-lo.”
37
relações transatlânticas
que futuro?
POR sArA pinA*
economia de mercado como sistemas político e económico naturais da humanidade,
que, “mesmo sendo soluções imperfeitas
é bom lembrar que todas as suas alternativas falharam”.
Para Adriano Moreira, presidente da
Academia das Ciências de Lisboa e professor emérito da Universidade Técnica de
Lisboa, a resposta aos desafios globais
passa pela aliança das civilizações que
“exige reorganização da governança mundial e não a multiplicação de centros de
poder em desafio armado”.
Na sua intervenção sobre a temática
“A Reforma da NATO e a Relação
Transatlântica”, sustentou que é “um projecto que fácil e repetidamente demonstra
um desajustamento entre o modelo observante de que se parte e o modelo observado que configura a realidade actual”.
O professor de Relações Internacionais
considera que o que se verifica é que
“o unilateralismo da Administração
republicana de Washington instalou uma
divisão de pareceres e atitudes entre os
membros do Conselho de Segurança,
que também o são da NATO, e que igualmente pertencem à União Europeia”.
SARA PINA
“A realidade contemporânea atravessa uma
crise global que tem consequências sociais
como o aumento da imigração e dos refugiados”, disse Pierre Hasner, director do
Centro de Estudos de Relações Internacionais
de Paris, e acrescentou: “Num mundo cada
vez menos centrado na Europa e nos EUA
é necessário acabar com posturas de domínio e permanente doutrinação em relação
aos outros países. Precisamos hoje de políticas flexíveis que possam dar resposta aos
problemas que atravessamos.”
Perante os desafios globais, Pierre Hasner
recordou a fórmula da democracia e da
mário soares (esq.) e Adriano moreira (dir.) com miguel monjardino durante a visita à Casa e ao Jardim José do Canto, propriedade de Augusto Athayde,
parte do programa social do Fórum. roosevelt percorreu o parque em 1918.
38
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
‘
’
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
Portugal-Estados Unidos. José Medeiros
Ferreira, antigo ministro dos Negócios
Estrangeiros, referiu que “apesar de Portugal
ter querido sempre manter relações bilaterais
com os Estados Unidos, estes sempre preferiram os contactos multilaterais através da
OCDE, da NATO […] Mas os Açores sempre
desempenharam um papel fundamental
como uma âncora nas relações entre os dois
países”.
Medeiros Ferreira perspectivou que, no
futuro, os Açores “tanto poderão ser um
teatro de articulação euro-atlântico como
um teatro de repartição de missões científicas, tecnológicas, de segurança e
defesa. Entre a repartição de missões e
repartição de ilhas por zonas de influência”. Sempre num quadro em que
“oceanos e espaços comunicam mais
entre si nesta fase de globalização”, o
arquipélago “deve continuar a ser um
factor de segurança e de articulação do
espaço atlântico, ajudando a garantir a
liberdade de circulação aeronaval entre
continentes e entidades políticas dos
dois lados do oceano”.
* com FAbiAnA CoeLho, João CAritA
E mArthA menDes
SARA PINA
Adriano Moreira vai mais longe e afirma “unilateralismo da política americana
que “talvez não seja difícil reconhecer que pretendia ser o polícia e o juiz do
uma mudança na avaliação das ideias mundo, marginalizando a ONU, classiparadigmáticas de Ocidente, Atlântico, ficando alguns países, de acordo com
identidade cultural ou aliança global das critérios morais e religiosos, como perdemocracias”.
tencendo ao ‘eixo do mal’ verificou-se
Quanto ao futuro da NATO, Adriano não ter qualquer consistência”.
Moreira, apoiando-se no balanço que Alain
“É indispensável por isso mudar de
Joxe fez do estado do mundo em 2008, paradigma, a globalização desregulada,
prevê que “a NATO arrisca deixar de fun- fruto de um capitalismo selvagem, dito
cionar consistentemente como aliança, de casino, só conduz à concentração da
para ser antes um lugar de confronto entre riqueza em cada vez menos mãos e a
a grande estratégia americana e a grande mais pobreza nos países desenvolvidos
diplomacia europeia”. Quanto ao futuro e no mundo em geral. A globalização
do Ocidente, o
professor também
num mundo cada vez menos centrado
não hesita: “Não
será possível que a
na europa e nos euA é necessário acabar
circunstância que
com posturas de domínio e permanente
rodeia os ocidentais se altere subsdoutrinação em relação aos outros
tancialmente sem
países. precisamos hoje de políticas
que o sistema de
governança, seguflexíveis que possam dar resposta
rança e defesa
aos problemas que atravessamos.
tenha de reorganizar a atitude, a
definição e a resposta a dar à situação actual do mundo.” tem de ser consensualmente regulariza“A versão europeia dominante aponta
da para se poder criar uma nova ordem
para uma definição e consolidação de internacional que assegure a paz e o
fronteiras amigas”, garante, ainda, Adriano desenvolvimento sustentável entre os
Moreira, que defende que “o globalismo povos e as nações.”
exige reinvenção da governança, fronteiras
Para Mário Soares, “um afro-ameriamigas, e consciência de que a casa
cano no gabinete oval da Casa Branca
comum, a Terra, é o alvo das reais amea- representa por si só uma revolução culças que a todos rodeiam e que exigem tural nos EUA e no mundo”. Soares
uma aliança das civilizações; as forças comparou a vitória de Obama com a
militares não são dispensáveis, mas devem vitória de Roosevelt nos anos de 1930.
ser forças tranquilas e não instrumentos Foi um ponto de viragem que, agora,
de unilateralismo”.
passados quase oitenta anos, se repete.
A concluir, Adriano Moreira põe a tóni- O fundador do Partido Socialista disse
ca no poder político. “É a decisão política também que “curiosamente a América
que vai determinar o acentuar da deriva parece estar a sair de um ciclo trágico
ou o regresso ao pensamento de Wilson com o final do último mandato do
e Roosevelt, aos grandes princípios pro- Presidente Bush. Com as eleições presiclamados quando o mundo celebrou aque- denciais, a consciência política, o senla alegria coberta de lágrimas que foi a tido de responsabilidade, o pioneirismo
paz de 1945 e a criação da ONU.”
e o idealismo americanos parecem ter
Na sua intervenção, Mário Soares refor- despertado como por milagre”.
çou a ideia de que os Estados Unidos se
“A situação na Europa muda se soprar
terão enganado no inimigo ao atacarem um novo vento político na América”,
o Afeganistão envolvendo a NATO, uma considera Soares. O que significa que
“ocupação sem saída” e atacando depois
os laços entre a Europa e a
o Iraque (sem o aval da ONU) e procu- América se tornarão
rando combater os terroristas sem mais estreitos
nenhum respeito pelos direitos humanos, e fecundos.
casos de Guantánamo e Abu Ghraib.
Mais inten“O prestígio da América no mundo foi sas serão
posto em causa de forma quase irreme- também as
diável”, considera Mário Soares, pois o
relações
39
A América de volta
às nações unidas
Stephen Schlesinger, investigador da Century Foundation e antigo director do World Policy
Institute na New School, comentador da Time e da CNN, interveio no Fórum
para falar dos desafios que a ONU enfrenta.
VICTOR MELO/O RETRATO
POR AnA brAsiL E rui vALLerA
“Hoje ninguém pensa que os americanos
podem tudo sozinhos”, disse Judite de
Sousa (RTP) ao apresentar Schlesinger que,
à margem deste encontro, deu uma entrevista exclusiva à Paralelo.
Qual terá sido, na sua opinião, a razão principal
para a criação das Nações Unidas (ONU) e como
terá Roosevelt conseguido mudar as atitudes isolacionistas dos EUA?
A questão central era a II Guerra Mundial.
Como, certamente, se recordará, na I Guerra
Mundial morreram 30 milhões de pessoas
e na II Guerra Mundial morreram 60
milhões. Assim, os delegados de São
Francisco tinham a consciência de que se
devia fazer tudo para evitar uma III Guerra
Mundial. Foi por este motivo que a ideia
das Nações Unidas de Roosevelt tocou no
nervo da população americana e mundial.
Tem-se falado muito acerca de uma possível
reforma da ONU. Pensa que o Conselho de
Segurança poderá vir a concordar que há uma
necessidade de mudança?
Em 2005 os Estados-membros das Nações
Unidas reuniram-se e concordaram que
eram necessárias algumas reformas. De
facto, talvez se contem mesmo entre as
reformas mais profundas de toda a história
da ONU: a criação de algumas agências
para ajudar a resolver o problema de
Estados falidos, de um Fundo para a
Democracia que financia países interessados
em estabelecer um sistema democrático, e
da Comissão de Consolidação da Paz que
também deverá fornecer ajuda económica.
Há ainda a famosa cláusula, o chamado
princípio da “responsabilidade de proteger”, que permite ao Conselho de Segurança
40
o comentador da Time e da Cnn afirmou à Paralelo que:
“o desastre do iraque acabou por fortalecer a onu.”
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
papel muito mais activo no
controlo das armas de destruição maciça, químicas,
biológicas e nucleares. Mas,
de momento, os recursos de
que dispõe neste âmbito são
limitados.
‘
o que a onu terá de fazer
futuramente é ter um papel muito
mais activo no controlo das armas
de destruição maciça, químicas,
biológicas e nucleares.
Certas correntes de opinião defendem que as Nações Unidas passem a ter um papel muito mais activo em situações
como a do Darfur. À luz destes novos poderes, acha
que é natural que tal venha a acontecer?
O problema é que, no Conselho de
Segurança, há cinco nações que têm direito de veto e que podem impedir qualquer
intervenção. Assim, no caso do Darfur,
a China continua a vetar qualquer acção
directa por parte do Conselho de Segurança,
’
uma vez que vai buscar o seu petróleo ao
Sudão e não está interessada em perder o
acesso aos combustíveis. E, se não for a
China, é a Rússia que não concorda com
a intromissão da ONU nos assuntos internos de outro país.
Quando se fala da necessidade de reforma, geralmente referem-se as alterações no Conselho
UN PHOTO By EVAN SCHNEIDER
intervir num país que esteja a cometer
genocídio contra o seu próprio povo. Isto
é particularmente importante porque,
segundo a Carta das Nações Unidas, não é
permitido à ONU interferir nos assuntos
internos de qualquer país, coisa que, no
entanto, esta cláusula passou a admitir.
Também houve reformas que possibilitaram
uma melhor definição dos princípios éticos, para que não possa voltar a acontecer
um escândalo semelhante ao do programa
“Petróleo por Alimentos”. Houve ainda
alguns esforços concertados para lidar com
o terrorismo. O problema que se põe é que
a ONU não consegue estabelecer uma definição de terrorismo que seja aceite por
todos os países. Por isso, a sua acção contra o terrorismo tem sido limitada. O que
a ONU terá de fazer futuramente é ter um
“uma das possibilidades de reforma do Conselho de segurança seria através do aumento
dos membros não-permanentes”, afirma schlesinger.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
41
de Segurança. Pensa que isto poderá vir a
acontecer?
Não penso que isso possa vir a acontecer;
pelo menos, não para já. Em 2005, houve
um grande esforço no sentido de reformar
o Conselho de Segurança. Mas, o problema é, antes de mais, o facto de os membros permanentes poderem vetar qualquer
reforma que não lhes agrade. Em segundo
lugar, os países que preenchem os requisitos necessários para virem a fazer parte
do Conselho de Segurança como membros
permanentes – como é o caso da Alemanha,
do Japão, da Índia, do Brasil e da África
do Sul – têm dificuldade em convencer as
suas próprias regiões de que deveriam
tornar-se membros do Conselho.
O problema do veto é suficiente para explicar a
incompatibilidade que se tem observado entre os
EUA e a ONU, particularmente nas últimas duas
ou três décadas?
Se olharmos para o passado, para o que
aconteceu em 1945, em São Francisco,
veremos que os Estados Unidos deixaram
bastante claro que, se não lhes fosse dado
direito de veto, abandonariam a conferência. Isto significa, de certa forma, que o
direito de veto mantém os EUA na ONU.
No entanto, é um facto que os EUA contornaram o direito de veto, desafiando
frontalmente o Conselho de Segurança e
agindo sozinhos aquando da invasão do
Iraque. Também é verdade que, durante a
crise do Kosovo em 1998, a Rússia vetou
qualquer acção por parte da ONU, e os
Estados Unidos provocaram uma intervenção por parte da NATO, contornando,
também aqui, a decisão das Nações Unidas.
Portanto, há várias formas de contornar a
questão do veto, mas são consideradas
controversas porque vão contra a Carta
das Nações Unidas.
A ONU tem capacidade para contrabalançar as
acções unilaterais dos EUA?
Creio que sim. Aliás, no fim foi o que
acabou por acontecer no caso do Iraque.
Após Bush ter dado ordens para a invasão,
todos se voltaram contra ele, excepto a
Grã-Bretanha. Consequentemente, a reacção de Bush foi voltar ao Conselho de
Segurança para pedir a autorização para a
ocupação do Iraque por parte dos EUA,
autorização essa que o Conselho de
Segurança acabou por lhe conceder.
Para o cidadão comum, a ONU perdeu relevância
após a invasão americana do Iraque?
Na altura em que tudo isto aconteceu,
havia bastante receio que a ONU pudesse
vir a ter o mesmo destino da Sociedade
das Nações, ou seja, que viesse a desaparecer. No entanto, ironicamente, penso
que o desastre do Iraque acabou por vir
a fortalecer a ONU, porque, desde então,
Bush foi forçado a retroceder e tem-se
mantido com as Nações Unidas.
Na sua opinião, haverá grandes divergências
entre a ONU e o novo Presidente dos Estados
Unidos?
Obama será um forte apoiante da ONU.
Um dos seus primeiros actos políticos será
o de explicar às Nações Unidas que a
América está de volta como membro
pleno.
UN PHOTO By EVAN SCHNEIDER
A realidade actual é muito diferente da de 1945.
Não obstante, os membros permanentes da ONU
continuam a ser os mesmos. Pensa que as decisões
do Conselho de Segurança ainda têm legitimidade no mundo?
Em relação a essa questão, vou argumentar
de uma forma que pode soar um pouco a
provocação. Há um velho ditado americano
que diz: “Se não está estragado, não é preciso arranjá-lo.” Com isto quero dizer que
também se pode argumentar que o Conselho
de Segurança está a funcionar bastante bem
desta forma, mesmo não sendo representativo. Uma das formas de mudar as coisas
seria através do aumento dos membros não-permanentes. Actualmente há 15 países no
Conselho de Segurança. Se, por exemplo, se
aumentassem para 21, teríamos mais seis
países com mandatos de dois anos, o que
pelo menos alargaria um pouco a representação de outras regiões do mundo. Na minha
opinião, essa é uma solução possível e é
bastante provável que venha a acontecer nos
próximos dez anos.
segundo schlesinger, “obama será um forte apoiante da onu”. Fotografia tirada em 2007, do então candidato a candidato
com ban Ki-moon, secretário-geral das nações unidas.
4
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
participação luso-americana
“Investir na educação é uma forma de unir laços”,
donzelina Barroso, consultora da JB Fernandes Memorial Trust na Fundação Rockefeller,
defende o investimento na educação para unir os portugueses dos dois lados do Atlântico.
POR ALexAnDre soAres E JoAnA FernAnDes
imAGens mútuAs
John Glenn, director de Política Externa
do German Marshal Fund apresentou o
“Transatlantic Trends” – um projecto promovido pelo German Marshall Fund of the United
States e pela Compagnia di San Paolo, com o
apoio FLAD, da Fundación BBVA e da Tipping
Point Foundation, que procura avaliar as atitudes americanas e europeias sobre a relação transatlântica e os desafios globais.
Para John Glenn, este inquérito anual
permite concluir que “uma atitude anti-Bush, na Europa, não se traduziu em antiaParalelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
mericanismo”. Em relação a Portugal,
apesar da presença americana na Base das
Lajes, há moderação no desejo de cooperação com os EUA. As ambições portuguesas passam, por exemplo, pelo desejo do
país assumir um papel mais interventivo
na cena internacional (80 por cento); bem
como nas organizações internacionais em
que participa, como a NATO (81 por cento
defendem uma acção mais visível).
Antiga directora-geral da Comissão
Europeia e Visiting Scholar de Harvard,
Renée Haferkamp discordou das conclusões do inquérito: “A Europa é, neste
momento, claramente ‘antiamericana’”,
defendeu.
Segundo Teresa de Sousa, do jornal
Público, a crescente distanciação entre a
Europa e os EUA justifica-se porque “os
momentos edificantes da relação transatlântica, como a II Grande Guerra, o New
Deal, ou a queda do muro de Berlim são
momentos de cooperação histórica que
se tornam cada vez mais distantes no
tempo”. A jornalista acredita que “os europeus vivem há cinquenta anos num clima
de prosperidade e paz que os faz desvalorizar a ideia de que os americanos foram
os seus grandes protectores”.
Duarte Freitas, deputado ao Parlamento
Europeu, argumentou na mesma linha de
Teresa de Sousa, mas disse que “Bush foi
uma boa desculpa para razões muito mais
profundas que justificam o antiamericanismo actual”. As gerações mais novas,
sublinhou, não têm na memória os
momentos centrais da relação entre as
duas potências.
VICTOR MELO/O RETRATO
Donzelina Barroso sugere que se faça uso
das remessas dos emigrantes portugueses
nos EUA e que se atraiam investidores para
a filantropia: “É preciso mostrar que há
onde investir. E que vale a pena fazê-lo na
educação.”
Para Elmano Costa, professor da
California State University, a união e integração passa por aproximar os portugueses emigrados nos Estados Unidos da
política norte-americana. “A comunidade
portuguesa nos Estados Unidos vive numa
situação económica desfavorável, tem
baixa escolaridade e há muitos que ainda
não têm nacionalidade americana. Têm
pouco poder político...”, mas esta tendência está a alterar-se.
João Luís Medeiros referiu-se à comunidade portuguesa emigrante nos Estados
Unidos como “caixeiros-viajantes da saudade”. Na perspectiva do antigo deputado
à Assembleia Regional dos Açores e
Assembleia da República, o percurso de
vida das gerações que, durante todo o
século XX, trocaram a Europa pela América,
deve ser recordado. E a língua portuguesa,
diz o orador, é um forte traço dessa
memória. “É muito importante que se
continue a falar e a ensinar português na
América do Norte», disse.
Donzelina barroso defendeu a captação de investimentos na educação.
43
new Deal: a política social sem medo
MARGARIDA PIMENTA
A expressão “New deal” tornou-se um rótulo
dos tipos de mudanças que FdR traria à economia
americana mergulhada na depressão.
POR susAnA pAuLA
O debate sobre a função e o lugar do Governo na vida americana e na
economia, que teve início na década de 1930, prossegue nos nossos dias
e também na mesa-redonda que juntou Teodora Cardoso, presidente do
Conselho Directivo da FLAD e administradora do Banco de Portugal;
Álvaro Dâmaso, presidente da Agência de Promoção do Investimento nos
Açores; Eduardo Paz Ferreira, professor da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa; e Manuel Porto, professor da Faculdade de Direito
de Universidade de Coimbra.
Álvaro Dâmaso caracterizou o New Deal como um fármaco, serviu
para melhorar a vida dos americanos e recuperar a confiança, “um
novo Estado, regulador, onde existe a mão visível da regulação”.
Roosevelt conseguiu ultrapassar a enorme crise em que se encontravam
os Estados Unidos, desafios que agora também Obama encontra, comentou Paz Ferreira.
Teodora Cardoso comparou os diferentes modelos socioeconómicos.
Apontou o dedo ao modelo mediterrânico, aplicado em Portugal, porque “devido ao aumento das despesas de protecção social, os serviços
públicos gerais são descuidados para diminuir essas despesas […]
Portugal precisa de repensar o seu modelo […] para gerar produtividade e emprego”.
Cartoon do New York Herald (4 de março de 1933).
mais meios
para a defesa europeia
POR mArGAriDA pimentA
“Defesa e Segurança nas Relações
Transatlânticas” foi o tema da mesa-redonda presidida por Manuela Franco, diplomata e antiga secretária de Estado dos
Negócios Estrangeiros e da Cooperação,
com a participação de José Cutileiro,
embaixador e antigo secretário-geral da
UEO, Ricardo Rodrigues, deputado à
Assembleia da República, Paulo Casaca,
deputado ao Parlamento Europeu, Rui
Paulo Figueiredo, adjunto do gabinete do
primeiro-ministro e presidente do Instituto
Transatlântico Democrático, e Miguel
44
Monjardino, professor da Universidade
Católica Portuguesa.
José Cutileiro centrou a sua intervenção
nas relações entre a Europa e os EUA, frisando que a maioria dos países da União
Europeia está na NATO e que as relações
económicas entre a Europa e os EUA são
as mais fortes entre quaisquer dois grupos
do mundo. Criticou ainda os baixos orçamentos de defesa dos Estados europeus.
Ricardo Rodrigues destacou nesta sua primeira intervenção a importância estratégica do arquipélago e da sua Zona
Económica Exclusiva: “Os açorianos são
filhos da geografia.” Salientou, ainda,
a importância do acordo entre Portugal
e os EUA que fixa a Base das Lajes.
O alerta para más interpretações do federalismo europeu foi dado por Paulo Casaca
– o federalismo de Schuman surge por
influência americana e não pretende a
criação de um Estado unido com o objectivo de concorrer com os EUA.
Rui Paulo Figueiredo salientou alguns
aspectos que têm prejudicado a imagem
americana aos olhos dos europeus, como
o unilateralismo e o descuidar dos valores
ocidentais, cujo exemplo mais gritante é
Guantánamo.
Miguel Monjardino abalou a discussão
dizendo que a Europa precisa de mais
meios para a defesa. A Europa tem estado dependente dos EUA e “Yes, we can”
é um discurso que engloba também os
europeus.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
pontes sobre o oceano
O papel desempenhado por Portugal no diálogo transatlântico
foi o objectivo traçado por uma das mesas-redondas
do I Fórum Açoriano Franklin Roosevelt.
POR mArCo Leitão siLvA
posicionamento dos 27 Estados-membros:
“Estamos hoje a assistir a um renascimento do diálogo em questões como a energia
ou a segurança”, disse.
O deputado do PSD à Assembleia
Legislativa dos Açores, José Manuel Bolieiro,
destacou a importância dos Açores, encarados por Washington como um parceiro
estratégico do ponto de vista militar – razão
que explica as novas parcerias militares.
Deixou um desafio ao Governo português:
“Porque não redigir um novo Tratado de
Cooperação Militar, que seja aprovado tanto
pelo Congresso dos Estados Unidos, como
pela Assembleia da República?”.
André Bradford destacou a importância
actual dos Açores enquanto vantagem negocial do ponto de vista diplomático: “Hoje,
o arquipélago assume-se até como mediador entre os dois lados do Atlântico.”
VICTOR MELO
Como moderadora da mesa, a cônsul-geral
de Portugal em Boston, Manuela Bairos, reconheceu que Portugal é hoje “um trunfo para
a Europa, no que diz respeito às relações
transatlânticas”, sobretudo por causa dos
“laços hoje existentes entre Portugal e os
Estados Unidos”. Laços, referiu a cônsul, que
nos últimos tempos têm permitido o desenvolvimento de projectos de parceria estratégica em diversas áreas (como a ciência e a
tecnologia) entre os dois países. Como exemplo, Manuela Bairos apontou o projecto de
construção de um centro de observação das
alterações climáticas na ilha Graciosa, resultante de um protocolo assinado com a
Universidade de Massachusetts.
Ian Lesser, do German Marshall Fund,
preferiu referir-se sobretudo à União
Europeia e à forma como, do outro lado
do Atlântico, os Estados Unidos encaram o
André bradford defendeu a posição do arquipélago como mediador entre os dois lados do Atlântico.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
roosevelt
e os Açores em livro
Com a primeira
edição do Fórum
Açoriano Franklin
D. Roosevelt
sobre Relações
Transatlânticas foi
lançado o livro
Franklin Roosevelt e os
Açores nas duas
Guerras Mundiais,
uma iniciativa
conjunta do
Governo Regional
dos Açores e da
FLAD. Rui de Vallera, da Fundação, apresentou o livro que homenageia o importante
papel do Presidente Roosevelt na política
internacional do século passado, bem como
a atenção que prestou as questões geopolíticas suscitadas pela posição geográfica do
arquipélago dos Açores.
Coordenado pelo professor Luís Nuno
Rodrigues, este trabalho editado pela
FLAD, com o apoio do IPRI, reflecte a história da relação pessoal que se estabeleceu
entre Franklin Roosevelt e o arquipélago
dos Açores.
Novas interpretações sobre a evolução
das relações luso-americanas durante o
século XX, assim como novas perspectivas
sobre a história açoriana são apresentadas
nesta edição bilingue (em português e
inglês), composta por 10 capítulos escritos por 10 autores, quatro americanos e
seis portugueses.
À biografia de Franklin Roosevelt, por
Cynthia Koch, directora da Biblioteca
Presidencial e do Museu Franklin D.
Roosevelt, em Nova Iorque, seguem-se três
capítulos por Carlos Enes, José Medeiros
Ferreira, e Álvaro Monjardino, que abordam o tema da I Guerra Mundial, aprofundando realidades distintas da história
açoriana durante esse período e obviamente da passagem do Presidente norte-americano pela Horta e Ponta Delgada.
Os cinco capítulos seguintes, da autoria
de Adam Seipp, Luís Andrade, Luís Nuno
Rodrigues, Warren Kimball e Philip Mundy,
tratam o período da II Guerra Mundial.
Para finalizar, António José Telo dá-nos um
panorama geral sobre a existência e a razão
de ser de bases estrangeiras em Portugal
durante as duas guerras mundiais do
século XX e o período da Guerra Fria.
45
portuGAL/euA
Apresentação do livro Carlucci vs. Kissinger: Os EUA e a Revolução Portuguesa
um olhar sobre a revolução de Abril
a partir de Washington
Com o desafio em mente, e sem a pretensão de sistematizar uma vez mais
o processo de transição iniciado pelo 25 de Abril de 1974,
Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá partiram para o terreno e investigaram.
POR mArCo Leitão siLvA
abre por isso mesmo caminho a uma nova
perspectiva, vinda de fora, acerca da alvorada democrática em Portugal. Com o desafio em mente, e sem a pretensão de
sistematizar uma vez mais o processo de
transição iniciado pelo 25 de Abril de
1974, Bernardino Gomes e Tiago Moreira
de Sá partiram para o terreno e investigaram. Com base em material de arquivo
nacional e norte-americano, os dois autores reconstituíram os traços essenciais do
diferendo entre o embaixador Frank
Carlucci e o secretário de Estado Henry
Kissinger: Carlucci, mais optimista em relação ao futuro da democracia portuguesa,
e Kissinger, céptico face a um processo
conduzido pela esquerda revolucionária,
RUI OCHôA
À distância de mais de trinta anos, é hoje
conhecido o profundo interesse que a alvorada democrática portuguesa teve em
Washington. Entre dúvidas e receios, os
Estados Unidos acompanharam de perto
os primeiros passos da “ebulição democrática” portuguesa. Para a História, ficou o
famoso conflito entre o antigo embaixador
dos Estados Unidos em Portugal, Frank
Carlucci, e o secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, com olhares
díspares sobre o futuro (ainda) incerto do
sistema político português.
Conhecer as preocupações e diferendos
suscitados na Casa Branca pela afirmação
das forças revolucionárias de esquerda
(durante o célebre Verão Quente de 1975),
Carlos Gaspar (ipri), rui machete (FLAD) e o ministro dos negócios estrangeiros Luís Amado.
46
que poderia colocar Portugal sob influência soviética, num mundo então bipolar,
marcado pela Guerra Fria.
Assim nasce a obra Carlucci vs. Kissinger: Os
eUA e a Revolução Portuguesa, editada pela Dom
Quixote. Reconhecendo o valor da obra,
a FLAD propôs-se promovê-la numa sessão
de apresentação pública.
Rui Machete, presidente da FLAD, marcou
presença na sessão e deixou elogios àquilo
que considerou ser um “excelente trabalho
de investigação”, dada a luz que lança sobre
aspectos até agora desconhecidos, tomando
como exemplo os juízos de valor tecidos
pela Administração norte-americana acerca
da condução do processo revolucionário.
Sobre o diferendo entre Carlucci e Kissinger,
Rui Machete não tem dúvidas: é o embaixador quem “acaba por ganhar a aposta”
sobre o futuro da democracia portuguesa.
Afinal, “Mário Soares não foi o Kerenski
da revolução, como Kissinger profetizava”.
Um comentário que fez sorrir o antigo
Presidente, também presente na sessão de
apresentação da obra.
Mas onde uns viram conflito, outros
inferiram meras divergências. Jaime
Gama, presidente da Assembleia da
República, acredita que não terá havido
propriamente um conflito entre Carlucci
e Kissinger, mas apenas uma divergência
de posições. Convidado especial para a
apresentação da obra, Jaime Gama confessou-se espantado com o tipo de materiais a que os dois investigadores tiveram
acesso. Com a ajuda do arquivo norteamericano, Tiago Moreira de Sá e
Bernardino Gomes consultaram registos
de conversas telefónicas, transcrições de
conversas de gabinete e outros documentos que fazem parte do segredo de Estado
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
RUI OCHôA
portuGAL/euA
Entrevista a Tiago
Moreira de Sá
os autores do livro, bernardino Gomes (à esq.) e tiago moreira de sá entre o casal soares.
– elementos documentais que traduzem
o íntimo funcionamento do sistema político norte-americano. “Os únicos segredos acabam por estar na cabeça daqueles
que dirigem”, ironizou Jaime Gama.
Ao expor os meandros do acompanhamento norte-americano do processo revolucionário, com base em documentos até
hoje desconhecidos, Tiago Moreira de Sá
diz ter compreendido agora a “complexidade da tarefa dos protagonistas” da transição democrática. E já de olhos postos
em 2009, o investigador do Instituto
‘
tem sido uma
experiência inspiradora
ver um país a emergir
de 50 anos de ditadura,
estar ao pé de uma nova
fase de totalitarismo e
recuperar por vontade do
povo […] é um caso único
na história do mundo.
’
Português de Relações Internacionais
(IPRI) deixou um apelo: “Os 35 anos da
revolução [de 25 de Abril de 1974] vão
ser uma boa oportunidade para tornar a
História da democracia portuguesa um
pouco mais conhecida.” Ao colega investigador, Bernardino Gomes deixou também elogios sentidos.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
Sobre as divergências entre Carlucci e
Kissinger que serviram de mote ao livro,
Bernardino Gomes deixou uma citação do
embaixador, proferida no Congresso
durante o período de transição democrática – um exemplo do optimismo que
Carlucci quis transmitir à Administração
norte-americana, face ao futuro político
português: “Tem sido uma experiência
inspiradora ver um país a emergir de 50
anos de ditadura, estar ao pé de uma nova
fase de totalitarismo [período do PREC]
e recuperar por vontade do povo […]
É um caso único na História do mundo.”
Acompanhando de perto a definição do
sistema político, Washington acabaria por
influenciar também o rumo de Portugal.
Afinal, diz Carlos Gaspar, director do IPRI,
“se a política norte-americana [em relação
a Portugal] tivesse sido diferente, o desfecho democrático da revolução poderia
não ter existido”.
Para a apresentação do livro foi convidado o ex-embaixador dos Estados Unidos
em Portugal, Frank Carlucci, que não pôde
contudo estar presente, tendo ainda assim
enviado aos autores uma mensagem, cujo
conteúdo Rui Machete revelou: “O livro
é um relato apaixonante e factual. Foi
muito interessante para mim ler telegramas que fiz… E ainda mais interessante
ler as observações depreciativas que o
Henry [Kissinger] fez sobre mim.” Um
conflito que ficou para a História de
Portugal e dos Estados Unidos. Um olhar
sobre a alvorada da democracia portuguesa, a partir do outro lado do Atlântico,
agora registado em livro por Bernardino
Gomes e Tiago Moreira de Sá.
paralelo [p] o que foi que mais o surpreendeu na investigação que fez para esta
obra?
tiago moreira de sá [tms] A ligação intensa e constante dos Estados Unidos aos
militares moderados, e em particular a
Melo Antunes e ao seu grupo, foi uma
dessas revelações: os Estados Unidos chegaram até a prometer apoio militar aos
militares moderados, caso tal fosse necessário, por altura do 5 de Novembro! Para
além disso, surpreendeu-me o facto de a
perspectiva de Kissinger ter sido muito
mais do que uma simples teoria: foi de
facto uma política que, em determinado
momento, idealizou para Portugal. Um
outro aspecto tem que ver com o papel-chave desempenhado por Donald Rumsfeld
(na altura chief of staff do Presidente
Ford), que permitiu o acesso e o apoio
directos da Casa Branca a Carlucci.
[p] Do “mano a mano” entre Carlucci e
Kissinger, quem saiu vencedor?
[tms] Tendo em conta o resultado final
para a democracia em Portugal, diria que
Carlucci foi vencedor, no sentido em que
a estratégia por ele defendida para o
nosso país acabou por se concretizar, ou
seja, a vitória da via democrática em
Portugal.
47
portuGAL/euA
A “caixa de ferramentas”
do diplomata
A Comunidade das democracias lançou nos estados Unidos um manual destinado
a diplomatas com o objectivo de os ajudar na promoção da democracia,
enquanto no desempenho das suas funções junto de nações cujas forças vivas
aspirem a viver num regime pluripartidário.
POR FiLipe vieirA*
A Comunidade das Democracias, uma
organização internacional que congrega
125 países de vários continentes, lançou
nos Estados Unidos um manual destinado
a diplomatas com o objectivo de os ajudar
na promoção da democracia, enquanto no
desempenho das suas funções junto de
nações cujas forças vivas aspirem a viver
num regime pluripartidário. O evento teve
lugar na Embaixada de Portugal, país
que preside actualmente à Comunidade
48
e que será igualmente o Estado anfitrião
de uma cimeira ministerial marcada para
o Verão de 2009, em Lisboa.
Com um prefácio de Vaclav Havel, o
arquitecto da “Revolução de Veludo” na
República Checa, o manual é considerado
a “caixa de ferramentas” dos diplomatas
e baseia-se em múltiplas experiências vividas em experiências bem-sucedidas de
transições para a democracia na Ucrânia,
no Chile, na África do Sul, na Serra Leoa
e na Tanzânia.
Como sublinhou João de
Vallera, o embaixador de
Portugal, durante a sessão
de lançamento, “o manual
reconhece que a democracia
não pode ser exportada ou
importada, mas que tem
que ser desenvolvida pelos
cidadãos dos países em
causa”. Vallera sublinhou, a
propósito, que “tanto a
sociedade civil como os
governos podem beneficiar
da utilização do manual,
obtendo um melhor conhecimento do que podem
esperar dos diplomatas, que
na diplomacia pública dos
dias de hoje representam
também eles as suas próprias sociedades civis”. Este
conceito foi reafirmado
durante a intervenção de
Paula Dobriansky, a subsecretária de Estado americana para a Democracia e
Questões Globais, uma das
mais influentes personalida-
‘
os diplomatas
“são emissários não
apenas dos chefes
de estado, mas também
dos povos das suas
democracias”.
’
des do gabinete de Condollezza Rice.
A premissa perfilhada pela Comunidade
das Democracias e expressa por Bronislaw
Mistzal, director do Secretariado
Permanente da organização, é a de que
“nos nossos dias, a diplomacia em democracia deve reflectir os valores fundamentais” e a de que os diplomatas “são
emissários não apenas dos chefes de
Estado, mas também dos povos das suas
democracias”.
O objectivo último deste Manual do
diplomata para o Apoio ao desenvolvimento da
democracia é o de treinar o corpo diplomático dos países membros. A ideia inicial
foi lançada pelo embaixador americano
Mark Palmer, com base na sua experiência
na Hungria durante a transição daquele
país do comunismo para a democracia.
O projecto acabou por ser concretizado
por uma equipa liderada pelo diplomata
canadiano Jeremy Kinsman em parceria
com a Escola Woodrow Wilson de Serviços
Públicos e Internacionais, da Universidade
de Princeton. Kinsman pretende a colaboração futura do Colégio da Europa, em
Bruges, tendo em vista a realização de dois
workshops regionais.
* Jornalista em Washington dC
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
portuGAL/euA
os Capelinhos
e a emigração açoriana
No dia 27 de Setembro de 1957, a ilha açoriana do Faial acordava em sobressalto.
era a erupção de um vulcão, no mar, perto dos Capelinhos. durante um ano, erupções
vulcânicas e tremores de terra ameaçaram a região. As cinzas cobriram plantações e os
terramotos destruíram aldeias, deixando mais de um milhar de pessoas sem tecto.
Ninguém morreu, o que muitos consideraram um milagre.
e uma nova vida nasceria...
POR CLArA pinto CALDeirA
A tragédia dos Capelinhos, relembrada em
várias cerimónias e comemorações o ano
passado, foi um marco na história dos Açores.
É este acontecimento que abre as portas para
uma nova vaga de emigração para os Estados
Unidos, numa escala sem precedentes.
Há cinquenta anos, o impacto de um
acontecimento geológico que arrasou
casas e destruiu os meios de subsistência
agrícolas, foi devastador. Uma pequena
ilha portuguesa, rural e pobre, tornou-se
alvo de muitas atenções. Mota Amaral,
presidente do Governo Regional dos
Açores entre 1976 e 1995, embora muito
novo na época, lembra que “durante
semanas e meses, os Açores foram notícia,
com direito a reportagens na imprensa
internacional. Muitos cientistas do ramo
visitaram o vulcão, que se tornou uma
espécie de laboratório natural”. Gerou-se
também uma enorme onda de solidariedade em todos os açorianos e nas comunidades emigrantes. São precisamente as
comunidades residentes nos Estados
Unidos que levam a cabo um movimento de sensibilização que chegará ao
Senado, envolvendo o futuro Presidente
John F. Kennedy, num tempo em que um
acordo formal sobre a permanência americana nas Lajes estava a ser negociado.
Aprovado o Azorean refugee Act, muitos tentaram embarcar no primeiro avião para os estados unidos
(foto de Alfredina silva, no livro Capelinhos: A Volcano of Synergies).
Paralelo n.o 3
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49
portuGAL/euA
históriA De umA Lei
As condições de vida difíceis tornaram as
gentes açorianas emigrantes desde o século
XIX. Os Estados Unidos eram um dos
destinos preferenciais, tal como o Canadá
e o Brasil. Mas se a seguir à ratificação da
Constituição americana a abertura à emigração era considerável, num país ainda
em construção, o século XX inaugura as
restrições mais severas à chegada de estrangeiros, sobretudo depois da I Guerra
Mundial. Nativos estabelecidos receavam
a chegada de ideais diferentes, como o
comunismo e o socialismo, e os sindicatos
da indústria viam na mão-de-obra barata
uma ameaça às suas reivindicações laborais.
Deste contexto resulta, nos anos de 1920,
a aprovação do sistema de cotas, que limita a imigração a 150 mil europeus por
ano. A cota era estabelecida por nacionalidade: cada país tinha direito à entrada de
dois por cento do número total de cidadãos seus já residentes nos Estados Unidos.
Quando o vulcão dos Capelinhos assola o
Faial, apenas 400 portugueses tinham acesso garantido ao sonho americano.
Mais próxima do pesadelo, a época é
particularmente dura nos Açores. Mota
Amaral afirma: “As décadas de 50 e 60
foram de grandes dificuldades económi-
cas nos Açores, com falta de emprego e Perry Jr., leva ao Senado uma proposta que
salários muito baixos.” Em pleno Estado autorizava vistos à população afectada pela
Novo, as ilhas continuam a carecer de tragédia dos Capelinhos.
desenvolvimento e o isolamento é muito sentido.
Entre os anos de 1920 e
1950, a população do
nativos estabelecidos receavam
arquipélago aumentou em
cerca de 100 mil, fixandoa chegada de ideais diferentes,
-se nas 328 mil pessoas, o
como o comunismo e o socialismo,
que agravava as condições
de sobrevivência.
e os sindicatos da indústria viam
Os acontecimentos nos
na mão-de-obra barata uma ameaça
Capelinhos extremam uma
situação já muito complicaàs suas reivindicações laborais.
da. A resposta da comunidade açoriana nos Estados
Unidos é imediata. Atentos à evolução do
Neste processo, emerge um apoiante
ano negro, através da imprensa luso-ame- determinante: John F. Kennedy, senador de
ricana e por correspondência com familia- Massachusetts, futuro Presidente dos
res, iniciam um processo de sensibilização Estados Unidos. Conhecido pelas suas posipolítica, reunidos em torno de Joseph Perry ções anticotas, viria mesmo a publicar nesse
Jr., representante do Estado eleito por
ano um pequeno ensaio sob o título
Rhode Island, do Partido Democrata, A Nation of Immigrants, em que defendia a
americano descendente de faialenses. abolição daquele sistema, argumentando
Congressistas e senadores de estados com que “não respondia às necessidades naciopopulação portuguesa foram inundados por nais nem garantia os objectivos internacartas e telegramas, e nem o Presidente cionais numa era de interdependência
Eisenhower pôde ficar indiferente. É então entre nações”. No Senado, defende a traque John Pastore, amigo pessoal de Joseph
dição hospitaleira do país, e acrescenta:
‘
’
o vulcão em actividade há cinquenta anos (foto de manuel Cristiano da silva, no livro Capelinhos: A Volcano of Synergies).
50
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portuGAL/euA
Kennedy recebendo uma placa de agradecimento como símbolo de gratidão dos faialenses
(foto de António rosa Furtado, no livro Capelinhos: A Volcano of Synergies).
“Este é um caso trágico que merece atenção em todos os sentidos, particularmente porque as pessoas dos Açores provaram
já ser excelentes cidadãos.” O senador
Hagen, também apoiante da medida, fala
assim dos açorianos: “Quase sem excepção, são pessoas de grande carácter e
capacidade de realização. Subscrevem os
princípios do nosso governo e instituições económicas. São diligentes. Gostam
de aprender.” Vários senadores, entre os
quais Kennedy, sublinham ainda a existência de boas relações entre Portugal e
os Estados Unidos.
As relações entre os dois países são marcadas, desde sempre, pelas questões atlânticas. Durante a I Guerra Mundial, os
americanos estabeleceram uma base naval
em Ponta Delgada, apenas para fins militares. A partir da II Guerra Mundial instalam-se nas Lajes de forma informal. O
primeiro acordo começa a desenhar-se
ainda bilateralmente, antes do tratado da
Aliança do Norte, em 1949. Depois, em
1951, e já nas duas plataformas negociais,
os americanos estabelecem um acordo
provisório com Portugal, que se vai estendendo ao longo de seis anos. Em 1957,
quando a Natureza mostra a sua fúria, os
políticos ainda tentavam entender-se, em
condições difíceis de harmonizar. Medeiros
Ferreira, açoriano, professor universitário
na área da História das Relações Internacionais e ex-ministro dos Negócios
Estrangeiros, situa o processo legislativo
americano sobre a imigração neste âmbito: “A erupção dos Capelinhos vai dar a
oportunidade, que considero sincera, mas
que se pode englobar nesse contexto, de
os EUA mostrarem que estão atentos e
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solidários com a dimensão civil e humana das relações luso-americanas.”
The Azorean Refugee Act, aprovado a 2
de Setembro de 1958, concedeu vistos a
1500 famílias. Dois anos depois, uma actua
-lização da medida concedeu mais 500
vistos. “Se tivéssemos ficado, a pobreza
perseguia-nos para o resto da vida. Foi uma
coisa má que se tornou boa.” As palavras
são de Leonilda Andrade, da Praia do Norte,
uma das seis mil pessoas que se estima
terem saído do Faial entre 1958 e 1960.
E não só faialenses emigraram. Todas as
ilhas beneficiaram da abertura à imigração,
com o apoio do governador da Horta
Freitas Pimentel, mas com alguma resistência de Salazar, que tentou, com pouco
sucesso, cooptar pessoas para as colónias.
A lei de 1958 é considerada o primeiro
passo rumo à grande reforma de 1965,
que aboliu as cotas de emigração, já sob
a égide do Presidente John F. Kennedy,
com reflexos profundos nos Açores.
A emiGrAção AçoriAnA:
um retrAto em evoLução
Desde os Capelinhos, até à década de 1980,
a emigração açoriana para os Estados
Unidos não parou de crescer. Nesta época,
a população no arquipélago diminuiu um
terço. Só no final da década de 1970 se
verifica um abrandamento da chegada de
açorianos aos Estados Unidos.
Mota Amaral aponta alguns factores
explicativos: “A arrancada do desenvolvimento nos Açores, com a implantação do
regime autonómico democrático, modificou as expectativas.” A importância dos
fundos europeus para o desenvolvimento
da região e a evolução da própria sociedade americana também contribuíram
para o país deixar de ser visto como a
terra da abundância.
Embora a emigração tenha abrandado, a
população portuguesa nos Estados Unidos
não parou de crescer, engrossada pelas
segunda e terceira gerações. Neste momento, cerca de um milhão de pessoas de origem portuguesa vive nos Estados Unidos,
e cerca de metade provém dos Açores.
Os níveis de educação dos portugueses
emigrados têm vindo a melhorar, embora seja no ensino universitário que o caminho ainda está por percorrer. Medeiros
Ferreira salienta o seguinte: “Há duas ou
três universidades na Costa Leste que têm
departamentos de estudos portugueses e
que têm bastante visibilidade desse ponto
de vista. Começa a haver uma maior integração universitária.”
A nível económico, as pessoas de origem portuguesa têm rendimentos familiares 10 por cento superiores aos da
população em geral e a percentagem de
pobreza é menor.
TESTEMUNHOS
Carmen monteiro
A erupção dos Capelinhos acabou com a
vida tal como a conhecíamos no Capelo.
Fomos enviados para a Horta, para viver
em asilos, depois para uma aldeia vizinha
[…] A minha mãe, Olívia, escreveu para a
prima na América, que tinha visto uma vez
há vinte anos atrás, para lhe pedir patrocínio à nossa emigração. Nunca tínhamos
saído da pequena ilha do Faial, e muito
menos viajado num avião, mas aí estávamos nós a partir de avião para uma nova
vida nos Estados Unidos.
miguel Canto e Castro
Eu vivia em Los Banos há quatro anos
quando a primeira vaga de imigrantes dos
Açores chegou a Merced County. Estávamos
em 1959. A cidade de Los Banos recebeu
cerca de 1 famílias de sinistrados, da ilha
do Faial. Começaram a trabalhar em leitarias e como ajudantes das vacarias logo
que chegaram.
Para a elaboração deste artigo foi consultado o livro Capelinhos: A Volcano of Synergies,
Azorean emigration to America (2008), Tony
Goulart (coord.), São José, Califórnia:
Portuguese Heritage Publications of
Califórnia.
51
portuGAL/euA
Luís dos santos Ferro
ou a engenharia das artes
“Tenho prazer de viver, e vivo bem de muitas maneiras.”
POR sóniA GrAçA*
decisivo pendor artístico consagrou, metade da carreira, à cultura. O ex-director da
FLAD aceitou falar de si à Paralelo. Que
falem dele. “Uma extravagância! Caí das
nuvens…”
Nascido a 12 de Julho de 1939 em
Lisboa, Luís Ferro é bafejado pelo amor
exclusivo dos pais, com quem divide
morada largos anos na Rua do Andaluz.
O primeiro ciclo de sete anos no Liceu
Camões revela um aluno próspero, com
jeito para as línguas, em especial o francês,
que apura na Alliance Française. Em casa,
o pai, professor de Letras, corrige a aritmética e sugere leituras; a mãe, devotada
ao lar, aplana a disciplina com uns lances
sobre o piano. Curioso por natureza, Luís
Ferro correspondia e, aos 16 anos, vence
EDUARDO GAGEIRO
O encontro foi no Grémio Literário, inevitavelmente. Ali, está em casa, o halo de
Eça permeando as salas que sabe de cor.
“Era aqui que eles, Os Vencidos da Vida,
vinham muito.” Na biblioteca, prontamente reservada após o jantar, o serão não teve
pressa. Amável, urbano, sem pedantismos
– assim se nos apresenta Luís dos Santos
Ferro, engenheiro de formação que um
em 1972, no aeroporto de Lisboa, com o pianista Arthur rubinstein, a marquesa de Cadaval e nella rubinstein.
5
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portuGAL/euA
um concurso da Alliance com um ensaio
precoce sobre L’existentialisme est un Humanisme,
de Sartre, que o leva a Paris.
Mas o verdadeiro apelo era o da ciência,
o da experimentação. “Nunca quis ser
filósofo ou professor de literatura”, sintetiza. Dispensado do exame de admissão,
escolhe em 1956 o Instituto Superior
Técnico para cursar Engenharia Químico-Industrial, num tempo em que os caloiros eram recebidos com um concerto da
Orquestra Sinfónica Nacional. Entre a teoria e o laboratório, Luís Ferro volteia toda
a matemática que sabia. Em Química
Analítica, arrebata 18 valores, convencendo Fraústo da Silva, à data professor assistente, que lhe captou outros interesses:
“Era inteligente e trabalhador, mas estava
apaixonado pela arte e pela música. Em
parte talvez por minha culpa, que também
sou devoto de ópera.”
Embalado pela Emissora Nacional, vai
ao São Carlos noites sucessivas, já então
seduzido por Mozart e Wagner: primeiro
com bilhetes de claque, mais tarde convidado assíduo para o camarote de crítica do musicólogo João de Freitas Branco.
João Furtado Coelho, colega de curso e
professor jubilado de Matemática, era
cúmplice na afinidade: “Gostávamos de
música clássica, de ir a exposições e
temos em comum um certo sentido de
humor.” A camaradagem flui na Juventude
Musical Portuguesa, espécie de conservatório laico que trazia ao Tivoli notáveis
artistas internacionais a baixos cachets.
Eleito secretário-geral entre 1963 e 1975,
Luís Ferro alarga repertórios e cresce
como auditor, sob a pedagogia amiga de
Freitas Branco, que também colaborava
na revista Arte Musical.
Em 1960 e no ano seguinte, estagia em
dois laboratórios nos arredores de Paris,
e trava conhecimento com Louis de
Broglie, Nobel de Física; pretexto suficiente também para investigar Eça de Queirós,
eterno ideal literário, e recuperar locais
biográficos. Philippe Mayer, proprietário
da primeira casa do escritor em Neuilly-sur-Seine, deixa-se cativar pelo jovenzinho e, décadas mais tarde, dá-lhe
permissão para ali colocar uma placa
comemorativa do 150.º aniversário do nascimento de
Eça – descerrada por Jorge
Sampaio e patrocinada pelo
Grémio. Em 1996, era
Sarkozy maire de Neuilly.
“Fez os contactos e preparou tudo com minúcia”,
atesta José Manuel dos
Santos, à data assessor de
Sampaio para os assuntos
Paralelo n.o 3
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culturais. “Tem uma memória histórica,
um sentido da tradição e gosta dos pequenos e grandes rituais.”
Isso era evidente já em 1961, quando
se soube que a última morada, onde Eça
faleceu, estava ameaçada. De volta a
Portugal, todo espírito de missão, escreve um artigo alarmado no diário de Lisboa
e remete-o à filha do escritor,
D. Maria Eça de Queiroz, que vivia em
Tormes. Rápida sintonia entre duas gerações, desfiam memórias à lareira e trocam
correspondência até 1970, ano em que
faleceu a guardiã do espólio. “Nunca estive tão perto do Eça como nessa altura.
Conheci manuscritos que ninguém mais
conheceu pela simples razão de que ela
confiou em mim.” Mais tarde escreveria
um longo artigo evocativo para o dicionário
compilado por Alfredo Campos Matos,
outro queirosiano de quem, nos idos de
1960, se fez amigo e interlocutor privilegiado: “O coleccionismo e a bibliofilia
são duas facetas dessa paixão. Uso muitas
vezes o arquivo dele para trabalhos que
vou publicando.” Sintra era o cenário de
muitos serões de tertúlia e música, ambos
vizinhos em casas alugadas (todas as
férias e fins-de-semana) pela marquesa
de Cadaval – na sua residência, entre jantares e concertos, perambulavam artistas
de todo o mundo e inclusive o último
rei de Itália, Humberto II. Graças a ela,
Luís Ferro depura o humanismo e a
melomania: “Era o testemunho vivo de
uma história, tinha antepassados grandiosos. Através dela conheci figuras como
Rubinstein, Rostropovitch, Barenboim
ou Jacqueline du Pré.”
o treino DA enGenhAriA
Em 1963, deixa o Instituto Superior
Técnico com uma média de 15 valores.
A disciplina serviu-lhe de base para a boa
performance, primeiro no Laboratório de
Física e Energia Nuclear; depois na
Sociedade Nacional de Sabões, onde se
mantém até 1980 à frente dos Estudos e
Projectos, lado a lado com o proletariado.
O director técnico, Luís Núncio, tinha nele
um colaborador de ouro: “Era muito perfeccionista. Até as saídas preparava com
grande precisão, os hotéis sempre bem
escolhidos.” O fascínio das viagens e um
pensamento ecuménico cedo se revelaram.
“Tem uma paixão particular por Veneza
e orientou-me na primeira visita, há muitos anos. Também foi através dele que
conheci René Huyghe, no Grémio, e
53
D.R.
portuGAL/euA
D.R.
santos Ferro (o primeiro à esquerda) com um grupo de músicos de várias nacionalidades no Congresso
da Juventude musical, em Florença, 1971. o segundo a contar da direita é o maestro álvaro Cassuto.
quando expus pintura nos Estados Unidos,
em 1983, não deixou de me dar contactos interessantes”, testemunha o pintor e
amigo de infância Eduardo Nery.
Instalado o PREC (Processo Revolucionário
em Curso), com os patrões desorientados,
os salários estagnam. Ferro não se acostuma e sai, com brio: “Cheguei a participar numa greve, coisa impensável para os
engenheiros! No fim, tive direito a um
louvor da comissão de trabalhadores.”
Os cinco anos seguintes, passados na
empresa Lorilleux Lefranc, seriam os derradeiros como engenheiro.
A mudança nunca lhe foi penosa,
sobretudo porque a intuía e preparava.
Em 1985, torna-se evidente que a sua é
uma rara história feliz em que uma
escolha não elimina definitivamente
outra. Tinha acabado de ouvir falar da
FLAD quando, nesse Outono, Teresa
Gouveia, recém-eleita secretária de
Estado da Cultura de Cavaco Silva, o
convida para seu chefe de gabinete:
“Escolhi-o pelas qualidades de carácter
Com saul bellow, nobel da Literatura, e bernardino Gomes no auditório da FLAD.
54
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
e pela inteligência. É uma pessoa culta,
bem relacionada no meio e é meu
amigo.” Durante um ano, garante todos
os despachos e lança speeches precursores
sobre mecenato, que seria lei em Agosto
de 1986. “Ajudou-me a preparar e a
lançar todo esse sistema”, destaca Teresa
Gouveia. A indiferença política é nele,
mais do que nunca, sinónimo de eficácia e subtileza. “Numa relação que tanto
podia dar ensejo à concórdia como à
discórdia, os nossos tempos na Secretaria
de Estado serviram para cimentar um
reencontro permanente e fraternal que
se prolongou até hoje”, certifica Manuel
Villaverde Cabral, então director da
Biblioteca Nacional, salientando:
“Profissional rigoroso e penetrante, o
Engenheiro continua a ser, para mim,
de conselho sempre útil e fiável.” “Está
lá, chefe Luís?” – dirige-se-lhe o amigo
e historiador José-Augusto França, à data
comissário da Exposição de Arte
Portuguesa do Século XIX (Paris), que
aproveita a ocasião para exercitar a cumplicidade: “Tem um humor queirosiano
muito interessante, uma ironia latente
e um pessimismo activo.” Demais amigos ouvidos pela Paralelo são unânimes
neste capítulo.
o FLoresCer nA FLAD
Chamado a concurso na FLAD, Bernardino
Gomes, administrador até 2003, cede ao
currículo e às referências: “Uma pessoa
inteligente e articulada. Muitos me diziam
que era formidável, organizado e interessado em questões culturais.” Luís Ferro
esteve com ele na definição de políticas
para a cultura, um dos sectores menos
financiados. No seu gabinete, com vista
para o Tejo, incontáveis foram os projectos
que estudou e as bolsas de estudo que
ajudou a confiar ora a americanos que
vinham, ora a portugueses que iam.
A Gulbenkian partilhou, por exemplo, o
apoio a estudos portugueses em universidades americanas: “Telefonava-me quando chegava um pedido que dissesse
respeito a ambas as fundações. Falávamos
de forma franca e chegámos sempre a
acordo”, diz João Pedro Garcia, director
do Serviço Internacional da Gulbenkian,
fixando um pormenor curioso: “Após
vinte e cinco anos de contactos, sugeriu
que nos tratássemos por tu. Fiquei muito
orgulhoso.” Teresa Alves, académica da
Faculdade de Letras, viu apoiadas pela
FLAD três sabáticas num programa de intercâmbio de docentes com a Georgetown
University: “Somos hoje a única faculdade que oferece uma licenciatura em
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
D.R.
portuGAL/euA
Com José-Augusto França no museu Angers, em França (outubro de 2000).
estudos norte-americanos. Não fosse o
Engenheiro e isto não existia.”
Além da Colecção de Arte, eminentes
foram os projectos das fundações de
Serralves e Vieira da Silva – artista de
quem Luís Ferro é amigo desde os estágios em Paris. “Era o elo de ligação, foi
a Paris sondar-lhe a adesão e falou com
historiadores para o catalogue raisonné”, destaca Marina Ruivo, directora da Fundação
Arpad Szenes – Vieira da Silva. Numa das
viagens, Bernardino Gomes recorda-se de
um desvelo invulgar: “A Vieira pediu que
levássemos urze de Sintra. Não sei como
é que o engenheiro conseguiu, mas
fomos com urze no avião.” Em duas décadas, muitas personalidades foram recebidas na Fundação, entre elas, George
Steiner, em 2002, encontro convertido
em amizade.
Bernardino Gomes não hesita na retrospectiva: “É muito interessante nele a transformação de uma visão clássica em algo
mais avant-garde. Não se pode pensar hoje
na FLAD sem pensar no trabalho dele e
na capacidade intelectual indiscutível. Era
paciente, sabia dizer não com elegância.”
Teresa Gouveia corrobora: “Tem a coragem
moral e a generosidade de dizer sempre
a verdade, por mais difícil que seja, e isso
é uma qualidade raríssima.”
O hoje consultor da FLAD retemperase na música (tem um camarote no São
Carlos que partilha com Teresa Gouveia
e outros amigos) e na bibliofilia – quer
“reler”. Aqui e ali, bustos omnipresen-
tes de Eça, fotografias dedicadas de
Soares e de Sampaio (cujas comissões
de honra apoiou, embora sempre apartidário), medalhas sucessivas. E, inesperada, uma parede coberta de nus
femininos desvendando um refinado
hedonismo. “Tenho prazer de viver, e
vivo bem de muitas maneiras.”
* Jornalista do semanário Sol
Internacionalização
do Grémio Literário
Sócio desde 1971, Luís Ferro integra o
Conselho Literário há treze anos e
frequentemente substitui José-Augusto
França na presidência, quando este se
ausenta a Paris. Além de conferências,
encontros com escritores e apresentações
de filmes, o núcleo trata de organizar a
cerimónia anual de aniversário do Eça.
Expressivo tem sido também o papel do
engenheiro na internacionalização do
Clube. “Graças a ele, temos hoje cerca
de 135 clubes estrangeiros com quem
nos correspondemos. É um sócio cheio
de iniciativa”, diz o actual presidente
Macedo e Cunha.
55
portuGAL/euA
obama ou mcCain
quem elegeram os media
para a presidência?
Há muito que se questiona a influência dos media em períodos eleitorais.
Até que ponto são os jornalistas e os comentadores responsáveis
pela eleição dos governantes.
POR susAnA sALGADo*
Será que as diferenças no tratamento jornalístico das várias candidaturas influenciam as vitórias e as derrotas dos
candidatos? Estudos sobre a cobertura jornalística das campanhas como o do Pew
Research Center dão pistas que ajudam a
compreender o tema.
Após a derrota nas eleições presidenciais
contra Ronald Reagan, em 1984, Walter
Mondale convocou uma conferência de
imprensa para anunciar o seu afastamento da política e aconselhar o seu partido
a não voltar a nomear um candidato sem
perfil mediático. Mondale interpretou os
resultados eleitorais através das opiniões
dos comentadores e dos jornalistas que
apontavam a sua “imagem pouco apelativa” como a principal causa da derrota.
Para tentar explicar situações como esta
e compreender a influência dos media na
escolha dos candidatos, vários estudiosos
têm-se dedicado ao estudo do papel que
os media desempenham nas eleições.
Actualmente, os media são a principal fonte
de informação política para a grande
maioria dos cidadãos e não só divulgam
a informação sobre a campanha e os candidatos, como também a seleccionam,
tratam, reorganizam e comentam.
Apesar de ainda persistir alguma falta de
consenso em relação ao grau de influência
dos media, uma vez que – entre outras razões
– é bastante difícil estabelecer uma relação
directa entre a exposição aos media e a alteração do comportamento eleitoral, pois este
pode ser influenciado por inúmeros outros
factores, é relativamente consensual entre
vários autores que os media influenciam, pelo
menos, a percepção dos contextos em que
as decisões são tomadas.
56
durante seis semanas, o período entre as
convenções e o último debate presidencial
(de 8 de Setembro a 16 de Outubro), num
total de 2412 peças jornalísticas provenientes de 48 órgãos de informação.
Os dados analisados apontam para a existência de dois fenómenos na cobertura
mediática. O primeiro relaciona-se com
táctica e estratégia e explica que o candidato que foi visto como o
vencedor teve uma cobertura noticiosa mais favorável.
os media têm tendência para
O segundo aponta para o
de reforço e de eco
enquadrar a cobertura das eleições efeito
dos media, e está intimamencomo narrativas de competição
te relacionado com o peso
que as sondagens têm nas
e baseiam-se nos resultados
campanhas. A divulgação de
das sondagens para apresentar
estudos de opinião quase
diariamente conduz a que
os candidatos e tratar as suas
o impacto de praticamente
imagens e mensagens.
todos os acontecimentos
seja medido e depois analisado pelos media. Cada acontecimento ou declaração da
propostas, dão informação sobre as posi- campanha eleitoral tem, neste sentido, três
ções existentes, através da divulgação de ecos: primeiro, realiza-se a cobertura notisondagens e da interpretação que os jor- ciosa que dá a conhecer o que aconteceu;
nalistas e os comentadores fazem dos depois, o efeito é medido através dos estuvários eventos da campanha e do desem- dos de opinião; e, por fim, as reacções às
penho dos candidatos.
sondagens são conhecidas, examinadas e
comentadas. Todo este processo acaba por
ampliar a relevância de alguns factos e
os CAnDiDAtos
declarações e essa selecção é, em grande
Com o objectivo de caracterizar a forma medida, realizada pelos jornalistas. Este
como os media trataram as candidaturas tipo de efeito está geralmente presente no
presidenciais de 2008, o estudo realizado trabalho dos media, mas ganha uma espepelo Pew Research Center através do cial importância em contextos eleitorais,
Project for Excellence in Journalism ana- devido à divulgação quase permanente de
lisou a cobertura jornalística da campanha sondagens.
Noelle-Neumann, por exemplo, no seu
livro A espiral do Silêncio (1980) chamou a
atenção para a influência do clima da
opinião sobre as decisões das pessoas e
defendeu a importância desta pressão da
opinião dominante, dada a natureza social
das pessoas e o seu receio de isolamento.
Ora, são os media que, para além de informarem sobre os candidatos e as suas
‘
’
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
RAINER JENSEN/EPA/LUSA
portuGAL/euA
os assuntos enfatizados nos media são os mesmos que as pessoas usam para avaliar os candidatos.
Não é por acaso que quando são analisados os temas das peças jornalísticas verifica-se que a maioria foca o carácter, o passado
e o desempenho dos candidatos nos eventos
da campanha e nas sondagens.
No entanto, nesta campanha, a crise
financeira e o estado da economia
impediram que a cobertura jornalística
se centrasse quase exclusivamente nos
aspectos estratégicos da campanha e na
competição entre os candidatos. Estes
últimos assuntos estiveram presentes na
maioria das peças jornalísticas, mas
contrariamente a eleições anteriores
essa presença foi menor e isso deveu-se
à atenção atribuída ao tema “economia”. De qualquer forma, os valores do
estudo apontam para cerca de 53 por
cento da cobertura jornalística centrada
em Politics, isto é, as estratégias, as tácticas e o desempenho dos candidatos
nas sondagens de opinião, e apenas 20
por cento sobre Policy, o que significa
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
o noticiar dos temas mais importantes
para o país no momento da eleição e
as propostas dos candidatos para os
ultrapassar. É interessante referir neste
contexto que autores como Iyengar e
Kinder (News that Matters: Television and
American Opinion) defendem que os
assuntos enfatizados nos media durante
a campanha eleitoral, são os mesmos
que as pessoas usam para avaliar os
diferentes candidatos e as suas propostas eleitorais.
houve FAvoreCimento?
Em Setembro, devido à situação preocupante de dois dos maiores bancos de investimento, o Lehman Brothers e o Merrill
Lynch, e da seguradora AIG, a cobertura
jornalística sobre a crise financeira e a economia subiu de quatro para 40 por cento e
o estudo do Pew Research Center demonstrou ainda que simultaneamente a cobertu-
ra positiva da candidatura de Barack Obama
também aumentou, o que significa que a
crise acabou por favorecer a candidatura
democrata. Por um lado, Obama representa
a oposição às políticas seguidas pelo actual
Presidente, mas, por outro, os esforços de
John McCain para se associar à resolução
da crise, chegando a anunciar a suspensão
da campanha e a tentar cancelar o primeiro
debate presidencial, acabaram por ser prejudiciais à sua imagem.
McCain teve nesta altura mais cobertura
mediática que Obama, mas essa maior
visibilidade foi essencialmente negativa.
De facto, mais notícias não significaram
boas notícias para o candidato republicano. E quando o tema das notícias foi a
economia, McCain teve uma cobertura
mais negativa (55 por cento) que positiva (15 por cento), enquanto a tendência
foi oposta para o seu adversário – Obama
teve uma cobertura mais positiva (36 por
cento) que negativa (23 por cento).
57
portuGAL/euA
eleitoral, a crise económica foi um tema
com forte presença nos media e isso pode
ter influenciado os eleitores, acabando por
beneficiar o candidato com mais preparação nessa área específica e o que mais
mencionou o tema na sua campanha. Não
obstante o Presidente da República não
ter, em Portugal, poderes executivos ou
legislativos, os media transmitiram frequentemente a ideia de que um político com
formação em Economia poderia vigiar
melhor as acções do Governo e cumprir
melhor a sua função de fiscalização.
Não só a economia, mas também a avaliação jornalística da estratégia das duas
candidaturas foi mais favorável a Obama.
Entre outros factores, contribuíram para
isso, por exemplo, os seus bons resultados
nas sondagens e o facto de os seus apoiantes revelarem mais entusiasmo. Igualmente
a cobertura mediática dos três debates
presidenciais não se revelou favorável a
McCain, pois mesmo quando o seu desempenho foi considerado bom, ele nunca foi
visto como o vencedor dos debates. Por
exemplo, na semana do último debate
(de 12 a 16 de Outubro), as peças jornalísticas divulgadas sobre Obama foram 50
por cento positivas, 31 por cento neutras
e 19 por cento negativas, enquanto no
caso de McCain os valores foram de apenas sete por cento positivas, 24 por cento
neutras e 69 por cento negativas.
Os dados divulgados são tanto mais interessantes quando se verifica que a cobertura favorável tem reflexos nas sondagens
de opinião, pois quanto mais positiva a
cobertura jornalística, mais intenções de
voto o candidato recolhe, uma tendência
registada nas duas candidaturas em
períodos diferentes. Estes dados, que relacionam cobertura favorável com bons
resultados nas sondagens e que esclarecem
sobre o tipo de tratamento jornalístico da
mensagem dos políticos, são certamente
importantes para quem se interessa pela
questão da influência dos media nas eleições e, num plano mais geral, se questiona sobre se os media apenas reflectem ou
antecipam a opinião pública.
*Investigadora de media e política e docente na Universidade
Nova de Lisboa
RON SACHS/LUSA
Estes valores chamam também a atenção
para a importância dos enquadramentos
que os jornalistas escolhem quando dão
notícias acerca dos candidatos. Os enquadramentos jornalísticos encorajam determinadas percepções e interpretações e são
uma forma, entre outras, de olhar para a
realidade e de arrumar a cobertura noticiosa, organizando, assim, o mundo tanto
para os jornalistas que escrevem as notícias, como para os leitores dessas notícias.
Desta forma, num contexto de crise económica e financeira, de instabilidade e de
desconfiança dos cidadãos, enquadrar o
discurso político e as propostas de um
candidato presidencial de forma positiva
e fazer o contrário com o outro candidato, pode induzir nos eleitores a ideia de
que o primeiro está mais preparado para
lidar com os problemas do país e é a
melhor opção eleitoral.
Não obstante as várias diferenças nos
sistemas político e mediático dos dois
países, é interessante apontar aqui uma
semelhança com as eleições presidenciais
de 2006 em Portugal. Durante a campanha
enquadrar o discurso político de um candidato de uma forma positiva pode induzir nos eleitores a ideia de que é a melhor opção eleitoral.
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Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
portuGAL/euA
Liderança no século xxi
A FLAd e o Governo Regional dos Açores, em colaboração com a Harvard Kennedy
School, trouxeram a Portugal um curso de liderança considerado um dos melhores
do mundo. Professores da instituição norte-americana e executivos portugueses discutiram
na ilha Terceira os desafios que se colocam a quem exerce a liderança no século XXI.
A repetir este ano.
POR ArmAnDo sALvADo
portanto, esta é a razão para a FLAD ter
investido neste curso”, explicou.
De acordo com os formadores, Portugal
tem uma cultura onde a subserviência ainda
ocupa um lugar importante. A este respeito,
Martin Linsk anotou mesmo que “existe
uma profunda diferença para com a autoridade na cultura portuguesa, e nós acreditamos que se pode exercer a liderança em
qualquer posição que se ocupe numa organização; não é um exclusivo do topo”.
Os três professores da Harvard Kennedy
School procuraram mostrar que ninguém
nasce líder. Aprendem-se, sim, comportamentos de liderança. “Nós tentamos dar-lhes ferramentas e ideias sobre como fazer
progressos face aos desafios de liderança.
Também usamos o grupo como um estudo de caso, porque acreditamos que a
oportunidade de exercer liderança surge
todos os dias, em família, à mesa do jantar,
na nossa vida profissional”, salientou
Martin Linsk.
A professora Maxime Fern diz mesmo que
há que separar a ideia de autoridade da de
liderança, porque uma não pressupõe a
outra: “O principal objectivo deste curso
é ajudar as pessoas a separarem a confusão
existente entre o que é a liderança e a autoridade, e como essa distinção entre as duas
ideias leva as pessoas a fazerem aquilo a
que chamamos ‘trabalho adaptativo’.”
Hugh O’Doherty, também ele professor em
Harvard, assegura: “Para exercer a liderança
não é preciso ter uma personalidade característica, com carisma. A liderança é uma
actividade que as pessoas podem escolher
exercer com ou sem autoritarismo. Ser líder
é ter capacidade para mobilizar um grupo.”
Reflexão, empenho e atenção pelo
grupo que se lidera, três conceitos fundamentais que saíram deste curso. Os professores da Harvard Kennedy School
deixaram uma mensagem clara: todos
podem ser líderes, mesmo que não se
esteja no topo da hierarquia.
D.R.
Ao longo de uma semana, cerca de cinquenta executivos, quadros de empresas privadas,
da administração pública e de organizações
não governamentais, vindos de vários pontos do País, foram confrontados com desafios que avaliaram a sua capacidade de
liderança. Uma iniciativa da FLAD, que convidou três professores da Harvard Kennedy
School, uma das mais prestigiadas instituições mundiais na área da formação avançada de executivos – Maxime Fern, Hugh
O’Doherty e Martin Linsk –, para tomar as
rédeas nesta acção inovadora.
Segundo Paulo Zagalo e Melo, director
para a área da Educação, Ciência e
Tecnologia da FLAD, este curso de
“Liderança no Século XXI” é uma acção
pioneira em Portugal. “Muitas vezes criticamos as nossas organizações, não pela
falta de recursos, mas pela falta de liderança. Obviamente, é possível melhorar,
há técnicas para tal e especialistas que
estudam precisamente essas técnicas, e,
Alunos, professores e organizadores do Curso de Liderança na terceira, Açores.
Paralelo n.o 3
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59
portuGAL/euA
“obama é um homem
extraordinário”
daniel Okrent, o primeiro provedor do leitor do The New York Times,
esteve em Portugal para apresentar o seu mais recente livro – O Provedor.
Falou, também, sobre a campanha e as eleições presidenciais norte-americanas.
POR rui CAtALão
bém ganhou com a presença dos jornalistas porque tinha uma história melhor do
que McCain: ia ser o primeiro presidente
negro, enquanto o candidato republicano
não tinha nada de diferente, de novo”.
Estas eleições presidenciais permitiram
também confirmar uma tendência já
conhecida, como explicou o autor de
O Provedor. “Os leitores/telespectadores procuram acima de tudo órgãos de informação
que reforcem as suas convicções. Se vemos
algo que está de acordo com aquilo em
que acreditamos, o jornalista é imparcial.
Se vemos alguma coisa que choque com
as nossas crenças, dizemos que é parcial.”
Da mesma forma, o ex-provedor do Times
reconheceu uma aproximação e um maior
interesse em notícias sobre política, “apesar
de as pessoas estarem mais interessadas em
artigos sobre sondagens e a horse race do que
propriamente nos artigos sobre os candidatos e as suas ideias e propostas”.
Na conferência promovida pela FLAD,
Joaquim Vieira e Patrícia Fonseca marca-
RUI OCHôA
Daniel Okrent fez a sua declaração de interesses depois de apresentado por José Carlos
Abrantes e confessou-se apoiante do novo
Presidente norte-americano. Estas foram as
primeiras eleições, desde que começou a
carreira de jornalista, em que pôde tomar
partido por algum dos candidatos. Por isso,
o agora escritor e consultor não teve problemas em assumir que chegou a contribuir financeiramente para a campanha do
senador democrata.
Para o ex-editor da Time, houve três tópicos que se destacaram na eleição de Barack
Obama: “O primeiro, a vitória de um
homem negro numa nação com a história
dos Estados Unidos da América; em segundo lugar, o entusiasmo por um homem
eloquente, com um discurso diferente
daquilo a que estamos habituados; e por
último, o nível de esperança das populações, pois vimos muita gente habitualmente distante da política a envolver-se
directamente na campanha.” Por outro lado,
Daniel Okrent acredita que “Obama tam-
paula vicente da FLAD entre os dois antigos provedores,
José Carlos Abrantes (Dn), à esquerda, e Daniel okrent (nYt).
60
ram presença quase como se fossem entrevistadores. Os dois jornalistas interpelaram
Daniel Okrent por diversas vezes, registando igualmente alguns comentários. Para
o actual provedor do Público, “as eleições
norte-americanas foram sinónimo de alegria genuína, num ambiente de festa idêntico ao 25 de Abril em Portugal”. Já a
jornalista da Visão destacou a singularidade do discurso de Barack Obama, “numa
forma de fazer política que não jogava
com as regras normais”.
Apesar de acreditarem nas capacidades
do novo Presidente norte-americano,
Daniel Okrent e os seus interlocutores
mostraram-se de acordo quanto à posição
dos media face a Obama: “A partir da
tomada de posse, a imprensa vai ser
muito mais crítica, vai haver uma mudança como da noite para o dia”, garantiu
Daniel Okrent.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
portuGAL/euA
michael schudson
era uma vez uma democracia
desafiar o senso comum sobre as origens e o percurso da democracia americana
e lembrar as funções democráticas do jornalismo foram ideias centrais da conferência
de Schudson sobre “A Cidadania e os Media”.
POR CArLA mArtins*
Os fundadores da nação ameripoLítiCA sem FALsos
morALismos
cana teriam estranhado estes
Ao traçar esta, em última anátempos de voto universal e
lise, “antropologia da democrasecreto em que os eleitores têm
cia”, Schudson não ilude com
ao seu dispor complexos e
pureza um campo animado, ao
volumosos guias informativos e
em que são seriamente encarainvés, por interesses. “Votar é
dos como “cidadãos informauma prática tão cultural quandos”. Há dois séculos e meio,
to moral”, mas não se confunenfatiza o professor da
da “votar, estar informado ou
Universidade de San Diego
aderir a organizações cívicas
(Califórnia) e de Columbia
com virtude pessoal ou espíri(Nova Iorque), não se esperava
to público”. Homens e mulheque avaliassem por si próres também se mobilizam
prios questões públicas. Os
porque preferem o gossip políFounding Fathers não simpatitico ao das celebridades ou do
zavam com a publicidade de
desporto. E procuram romance
procedimentos governamentais,
nas actividades políticas.
negligenciavam a educação
Neste devir democrático,
pública e desencorajavam a parquais os papéis que cumprem
ticipação pública informal nos
os media noticiosos? São sete,
shudson: “As pessoas procuram romance nas actividades políticas”.
assuntos legislativos.
segundo a sistematização de
Cem anos depois da fundação
Schudson. A começar por infordos EUA, o voto continuava a
mar o público e investigar os
ser uma questão de “bebidas,
poderes. Mas também a de criar
dólares e drama”, raramente
empatia social. Hoje a demona América do século xix, o voto não
algo de mais elevado. Um exemcracia sofre com a apatia.
expressava uma forte convicção
plo: em Nova Jérsia, por volta
O investigador recordou a
de 1880, pelo menos um terço
conversa de um editor com
nas
melhores
políticas
públicas
mas
do eleitorado contava receber
uma afro-americana, em 1980,
uma lealdade similar à dos adeptos
um punhado de dólares no dia
quando Carter e Reagen disdas eleições. O voto não expresputavam a Presidência. A
das equipas de futebol. Cem anos
sava uma forte convicção nas
senhora não iria votar. “Estou
depois da fundação dos euA,
melhores políticas públicas mas
muito ocupada e muito canuma lealdade similar à dos adepsada, dá demasiado trabalho”.
o
voto
continuava
a
ser
uma
questão
tos das equipas de futebol.
O editor não considerava que
de “bebidas, dólares e drama”,
Na actualidade tais evocações
os jornalistas pudessem fazer
desafiam ideias feitas sobre as
alguma coisa para que ela
raramente algo de mais elevado.
origens e o percurso da demomudasse de ideias. Excepto
cracia americana. Foram os
contar a sua história e levar a
reformadores do final do sécusociedade, pelo menos aqueles
lo XX, não os pais fundadores, que deram dos esforçam-se por oferecer um progra- que votam e aqueles que têm o poder de
um passo decisivo para conformar os ame- ma que promete boas políticas mais do tomar decisões, a vê-la e a compreendê-la
ricanos ao “ideal do cidadão informado”. que bons empregos. O sistema abriu-se a com compaixão.
* Professora da ULHT
E as “novidades” sucederam-se. Os parti- uma “revolução de direitos”.
‘
’
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RUI COUTINHO
CArtA brAnCA
Um jantar no Havai
mário bettenCourt
resenDes*
‘
A surpresa veio na altura dos brindes. Ao jornalista
foi pedido um discurso, breve que fosse, em português.
não entenderiam, é certo, o significado das palavras,
mas a sonoridade da língua traria de volta a nostalgia
de anos passados.
’
Não foi fácil convencer o adido de Imprensa da Embaixada dos
Estados Unidos em Lisboa – vivíamos a segunda metade dos
anos de 1980 – a incluir as ilhas do Havai no roteiro de uma
viagem profissional.
O jornalista convidado, signatário desta crónica, argumentou
com a presença de descendentes de emigrantes açorianos de
outras décadas – mas, valha a verdade, o apelo do mito turístico
daquelas ilhas do Pacífico era uma outra motivação inconfessável. Para um ilhéu, seria, entre outras coisas, uma oportunidade
única para um mergulho na famosa praia de Waikiki, nos arredores de Honolulu...
Depois de uma negociação pormenorizada entre diplomata e
jornalista, lá seguiu para Washington uma proposta de itinerário
que acabou por incluir duas das ilhas descobertas pelo capitão
Cook. Com alguma surpresa para ambos, a proposta de percurso veio devolvida com aprovação integral.
As cinco semanas então passadas nos Estados Unidos foram uma
experiência de vida fascinante para um jovem jornalista que tinha,
na altura, um conhecimento limitado de outras paragens.
O contacto com o melting pot, em inúmeras cambiantes, deixou
marcas que perduraram. E, curiosamente, acabou por ser no
Havai que aconteceu o episódio que inspira esta crónica e que
ficou na memória com um registo singular de emoção.
6
À chegada a Maui, o guia destacado para acompanhar o jornalista avisou que o programa incluía um jantar com algumas
dezenas de descendentes de emigrantes. Ao tomar conhecimento da visita de um português, para mais açoriano, a comunidade local luso-descendente tinha feito questão em celebrar
uma presença que era, nesses tempos, conforme se percebeu,
uma raridade.
No dia marcado, num restaurante de montanha, em cenário
paradisíaco – a ilha é, toda ela, um prodígio de beleza natural – meia centena de convivas receberam, com particular
afabilidade, o jornalista e o seu guia. Eram, na sua esmagadora maioria, pessoas já na terceira idade, nascidos localmente, filhos ou netos de emigrantes. E que falavam, apenas,
a língua inglesa.
A surpresa veio na altura dos brindes. Ao jornalista foi pedido
um discurso, breve que fosse, em português. Não entenderiam,
é certo, o significado das palavras, mas a sonoridade da língua
traria de volta a nostalgia de anos passados.
O jornalista levantou-se e, perante uma plateia atenta, cumpriu
a missão. No final, recebeu uma das mais entusiásticas – e certamente a mais comovente – salva de palmas da sua vida.
* Jornalista, provedor dos leitores do Diário de Notícias
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
soCieDADe
o jornalismo americano visto
do lado de dentro
dez jornalistas portugueses estiveram nos eUA com bolsas de curta duração, ao abrigo
dos programas “Alfredo Mesquita” e “José Rodrigues Miguéis”, criados pela FLAd,
para favorecer o intercâmbio entre os dois países na área jornalística.
D.R.
No Committee of Concerned Journalists,
no National Press Building, em Washington
DC, dez jornalistas portugueses frequentaram duas intensas semanas do curso de
aperfeiçoamento para profissionais midcareer. O curso incluiu conferências e visitas de trabalho, por exemplo, às redacções
(online e edição impressa) do Washington Post.
Os mais actuais problemas com que se
depara o jornalismo foram discutidos
pelos professores do Committee e outros
convidados para conversar com a turma
lusa de jornalistas.
Este curso nos EUA resulta de bolsas de
curta duração da FLAD, ao abrigo dos programas “Alfredo Mesquita” (jornalistas
dos Açores) e “José Rodrigues Miguéis”
(jornalistas do continente) para favorecer
o intercâmbio entre os dois países na área
jornalística. Os bolseiros começaram por
viajar até aos Açores, onde contactaram
com representantes das instituições locais
e visitaram órgãos de comunicação social
e pontos turísticos.
Já nos EUA, os jornalistas fizeram o
International Visitor Leadership Program,
de formação sobre as especificidades do
sistema norte-americano, organizado pelo
Departamento de Estado e pela embaixada norte-americana em Lisboa.
As duas bolseiras açorianas do programa
“Alfredo Mesquita” beneficiaram, ainda,
de uma semana na região de Boston onde
contactaram com várias instituições ligadas à comunidade emigrada na região.
Patrícia Fonseca (Visão), Ana Catarina
Santos e Cristina Lai Men (TSF), Filipe
Santos Costa (expresso), Maria João Guimarães
e Catarina Gomes (Público), Catarina Neves
(SIC) e Ana Luísa Rodrigues (RTP) foram
os jornalistas do continente seleccionados,
e Vanda Mendonça (diário Insular) e Filipa
Simas (RTP Açores) as jornalistas açorianas
que participaram no programa.
Cada bolseiro elaborou um pequeno
depoimento que reproduzimos nas páginas seguintes, depoimentos que testemunham alguns dos acontecimentos por eles
vividos.
Este ano, em Junho, outros 10 jornalistas
portugueses serão formados pelo Committee
of Concern Journalists em Washington.
Grupo de jornalistas à chegada ao Washington
post para reunião de trabalho.
Paralelo n.o 3
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63
soCieDADe
POR AnA LuísA roDriGues*
Mesmo habituados a conhecer personalidades ou lugares míticos, o entusiasmo era
indisfarçável na visita ao Washington Post.
Ao caminhar pelos dois pisos da redacção, o sentimento misturou a contenção
– afinal, “do lado de lá” estavam colegas
de profissão – e a curiosidade de espreitar
cada cantinho.
Numa ala, open spaces a perder de vista com
centenas de secretárias, noutra, gabinetes
para os seniores. Em cada estaminé, os
metros quadrados conquistados por muralhas de dossiês e papéis ao monte – doença endémica de qualquer redacção.
Tínhamos encontro marcado com Debora
Howell, ombusdman do Washington Post. Mas
mais do que a entrevista, “entrar no cenário” foi o que me fez verdadeiramente
vibrar.
Surpreendentemente, a redacção do
Washingtonpost.com, edição online do jornal,
fica do outro lado do rio Potomac, no
estado da Virgínia.
Noventa pessoas alimentam uma plataforma que origina 250 milhões de page
viewers por mês, segundo Jonathan Krim,
editor da página web. As mudanças no jornalismo, da cultura free que impera na web,
do melhor perfil para o jornalista do futuro foram temas de conversa.
Antes da saída, a surpresa. As vidraças
da redacção permitiam uma vista cinematográfica sobre o temporal que em
minutos varreu a zona. Chuva grossa
batida a vento, trovões e clarões a encarregarem-se dos jogos de som e luz. E luz
também se fez sobre um dos mais intrigantes mitos norte-americanos: a obsessão com o boletim meteorológico, os
tão famosos weather reports que têm até
direito a canais de TV. Percebi que não
é uma paranóia!
O temporal fez cancelar o jantar dessa
noite. Opção mais radical do que a intempérie… Duas horas depois, o sol voltava
a brilhar e as pessoas enchiam as ruas,
memória lavada do temporal.
Um dia pode ter várias caras. É como se
a variedade da meteorologia se afinasse
pelo diapasão do próprio país. E uma das
impressões mais fortes que se pode trazer
dos Estados Unidos é justamente a diversidade do caldo norte-americano, qual
* RTP
manta de retalhos.
64
Da democracia
na América
A festa de Obama, a retirada de Hillary e o entusiasmo
da sociedade civil nestas eleições presidenciais.
POR FiLipe sAntos CostA*
FILIPE SANTOS COSTA
Washington Post
e weather reports
Para um jornalista de política, estar nos EUA
em ano de eleições presidenciais é uma
sorte. Estar em Washington na semana em
que terminaram as primárias do Partido
Democrata mais disputadas de sempre, é a
sorte grande. Poder assistir ao comício em
que Hillary Clinton abandonou a corrida e
deu o seu apoio a Barack Obama é um
jackpot. Foi a esse jackpot que os bolseiros da
FLAD puderam assistir in loco: o comício de
7 de Junho foi o momento em que a primeira mulher que esteve à beira de ser
candidata à Presidência dos EUA deu o seu
apoio ao primeiro afro-americano candidato à Presidência por um dos principais
partidos. Quatro dias antes, alguns de nós
já tinham “participado” numa das muitas
centenas de festas organizadas por todo o
país pelos apoiantes de Obama para assistir,
saída de hillary – jackpot para os bolseiros
da FLAD.
em directo, aos resultados das derradeiras
primárias dos democratas. Em ambos os
casos – no ambiente familiar do café
Busboys & Poets e no cenário imponente
do National Building Museum; na festa do
vencedor e na retirada do vencido –, testemunhámos o melhor da democracia nos
EUA: mais do que discursos inspirados e
inspiradores (que os houve!), o entusiasmo
de uma sociedade civil que, contrariando
a tendência dos últimos anos e a previsão
dos académicos, se mobiliza e arregaça as
mangas para defender aquilo em que acre* expresso
dita.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
soCieDADe
o sonho
da emigração
POR FiLipA simAs*
Uma viagem ao passado e ao futuro, ao
mesmo tempo, parece algo pouco real assim
contado, mas a busca de contactos e ligações
com a emigração açoriana na zona da Nova
Inglaterra, nos Estados Unidos da América,
foi sinceramente uma descoberta.
Traduz-se num sentimento misto de
orgulho por quem vingou e de admiração
por aqueles que se arriscaram, em tempos
difíceis, por terras imensas sem qualquer
apoio ou até comunicação.
Viajo, confortável, num jipe conduzido
por motorista, mas ao que parece está
mais perdido do que eu. Vive há mais de
vinte anos nesta região e pouco ou nada
conhece.
Ao longo da viagem apercebo-me que
esta é a realidade de uma boa parte dos
emigrantes do arquipélago.
Vivem a cerca de três horas de Boston e
nunca visitaram a cidade.
Penso em como o isolamento das ilhas
se prolonga do outro lado do Atlântico.
Num programa organizado minuciosamente pelo professor Onésimo de Almeida
conhecemos o outro lado. São luso-descendentes que hoje se destacam na comunidade onde vivem e até a nível nacional
e internacional.
Para contar o caminho para os sucessos
lusos nem é preciso ir muito longe.
Micaelense de origem, Onésimo Teotónio
de Almeida é hoje professor catedrático
no Departamento de Estudos Portugueses
e Brasileiros da Brown University, em
Providence. Tem tido um papel relevante
na divulgação do português em terras
americanas.
No seu dia-a-dia multiplica-se entre
aulas, conferências, reuniões e esquiços
para a sua próxima publicação. Uma azáfama própria de quem gosta do que faz.
Confesso que através da caneta de
Onésimo dou por mim a viajar neste
sonho açoriano.
E porque o espaço é curto para uma imensidão de sentimentos, deixo escrever quem
tão bem soube expressá-los em palavras:
“How far that little candle throws his beams!
So shines a good deed in a weary world.”
* RTP (Açores)
(William Shakespeare).
baltimore:
prioridade às notícias locais
POR CristinA LAi men*
A preto e branco, os retratos estão alinhados numa das paredes da enorme recepção.
São pelo menos 15 os repórteres do The Baltimore Sun, vencedores do Prémio Pulitzer,
que formam esta galeria de notáveis. Somos recebidos pela editora do The Sun online,
Mary Hartney, e pelo editor adjunto Harry Merritt, que não escondem as dificuldades
do histórico jornal do estado de Maryland. A pouco mais de 50 quilómetrosde
Washington DC, a redacção do The Baltimore Sun não escapou aos cortes orçamentais nos
últimos anos, mas tenta adaptar-se ao novo desafio que representa a internet. Com uma
média de idade que ronda os 50 anos, os jornalistas passaram a andar com câmaras
de vídeo – 25 por cento dos profissionais já têm o equipamento no saco de
reportagem. São em menor número, trabalham mais e, no final do mês, ganham o
mesmo. Assim obrigam os tempos de crise que se vivem no The Baltimore Sun, que afectam também a cobertura dos acontecimentos internacionais.
Cada vez mais, a prioridade vai para as notícias locais. É esse o mote do vizinho The
Baltimore Times, um jornal destinado à comunidade negra que representa quase 40 por
cento da população do estado de Maryland. Quando a América pode vir a ter, pela
primeira vez, um Presidente negro, a fotografia a preto e branco de Barack Obama
ocupa toda a primeira página de uma das últimas edições. A redacção jovem e reduzida do The Baltimore Times destaca as boas notícias que envolvem a comunidade negra –
“daisies and roses”, nas palavras do editor Ron Williams, que adianta: “Quando a
* TSF
América se constipa, nós apanhamos uma pneumonia.”
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
A excelência
no jornalismo
POR CAtArinA neves*
Imagine que está a conduzir um carro e
ao mesmo tempo tem de lhe mudar o
óleo. É impossível, mas é também o exemplo perfeito para ajudar a compreender o
momento que a comunicação social norteamericana atravessa.
De acordo com Mark Jurkowitz, director
do Project for Excellence in Journalism, há
dois conceitos que marcam o antes e o
agora: economia e novas tecnologias. Como
se fosse obrigatório definir um a. I. (antes
da Internet) e um d. I. (depois da Internet).
A. I., os chamados velhos media norte-americanos tinham grandes redacções, um
público fiel e um dia inteiro para preparar
a notícia. D. I., as televisões norte-americanas perderam um milhão de espectadores
por ano, a publicidade desceu 10 por cento,
só em 2007, e há jornais, como o Boston
Globe, que rescindem contratos com todos
os correspondentes.
É num período, para muitos assustador,
de mudança como o actual que nasce o
Pew Research Center’s Project for Excellence
in Journalism. Trata-se de uma organização
independente que se dedica à investigação
do comportamento dos meios de comunicação social nos Estados Unidos. Tem como
objectivo fornecer, a quem produz as notícias e a quem as consome, uma análise
estatística que permita uma melhor compreensão do que é veiculado pelos media.
O Project for Excellence defende que a
quantificação da realidade é um instrumento mais útil do que a crítica da mesma.
A página www.journalism.org, que funciona como um arquivo, permite-nos saber
que, nas 70 mil notícias recolhidas ao longo
do último ano, dois temas marcaram a agenda dos media: o Iraque e a campanha presidencial. Descobrimos também que, ao
contrário do que o público parece pensar,
a cobertura da campanha de Hillary Clinton
e de Barack Obama foi equilibrada. E que
Obama foi alvo de um tratamento mais negativo do que aquele que foi dado a Clinton.
Nestes dias agitados e incertos, é gratificante saber que jornalistas e investigadores reúnem, analisam e guardam as estórias
de todos os dias. A bem da memória futura. Na esperança de que os motores dos
jornais, das rádios e das televisões continuem a ressoar e que o carro, já com o
* SIC
óleo mudado, não pare.
65
soCieDADe
As notícias
que ficaram no museu
POR mAriA João GuimArães*
um carro baleado, pedaços de histórias
que acabaram bem ou muito mal (está
lá o passaporte de Daniel Pearl, morto
PATRíCIA FONSECA
É difícil escolher o que impressiona mais
no Newseum. Há destroços de repórteres
de guerra, um computador, um caderno,
manchetes de jornais de todo o mundo, expostos no newseum, que noticiaram o 11 de setembro.
uma pausa preocupada
POR CAtArinA Gomes*
Estarão os jornais condenados a desaparecer? Se sobreviverem,
como serão daqui a dez anos? Serão os jornalistas de imprensa
treinados para fazerem vídeos, tirar fotos e recolher sons?
Estivemos quinze dias à volta de uma mesa, numa sala fechada,
em Washington, a reflectir sobre estas e outras questões e a pôr
em causa o jornalismo que praticamos, numa redacção do outro
lado do Atlântico. Os mediadores deste debate foram formadores
do Committee of Concerned Journalists, instituição que reuniu
66
pelos taliban). Há fotos que se tornaram
imagens icónicas com uma explicação.
Destas, a mais impressionante será a
fotografia do abutre que, ao longe,
espreita uma criança africana, num estado de subnutrição extremo, enrolada,
sozinha no chão de poeira, prestes a
morrer. Foi tirada no Sudão, na fome de
1993. A foto, descobre-se no museu das
notícias, tem uma outra história trágica para além da que vemos na imagem.
O fotógrafo, Kevin Carter, não tocou na
criança – as autoridades do Sudão tinham
dito expressamente que não deveria
haver qualquer contacto por causa do
perigo de contágio. O fotógrafo ganhou
um prémio Pullitzer com esta foto –
tendo recebido de imediato milhares de
cartas indignadas questionando-o porque
não tinha ajudado a criança. Carter acabou por se suicidar em 1994, pouco
depois de receber o prémio. Esta foto,
esta história, é apenas um pequeno fragmento de todo o espólio existente no
Newseum, e este não se esgota no grande espaço da Pennsylvania Avenue, em
Washington: pode visitar-se o site na net
e ver, por exemplo, primeiras páginas
de jornais de todo o mundo – e, entre
estes, o Público, o Jornal de Notícias, o diário
de Coimbra e o diário As Beiras.
* Público
um conjunto de jornalistas, editores, proprietários e académicos
para pensarem o presente e o futuro da profissão. Nestas manhãs
e tardes de reflexão foi reconfortante verificar que muitos dos
problemas sentidos nos Estados Unidos e em Portugal são idênticos: fuga de leitores para o jornal online sem que as receitas
publicitárias tenham acompanhado essa transferência, cortes de
pessoal, desinvestimento em histórias de investigação que consomem mais tempo. Porém, as soluções, embora ainda não
tenham sido encontradas, estão a ser procuradas naquele país há
mais tempo. Uma coisa é certa, o sistema mediático (sobretudo
no caso da imprensa) está em convulsão e vive um momento de
busca desenfreada de um novo paradigma que o salve da ameaça
de um fim iminente. O problema, dizia um dos formadores,
“é que temos de mudar o óleo do carro ao mesmo tempo que
* Público
o continuamos a conduzir”.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
soCieDADe
Açorianos na política
POR vAnDA menDonçA*
Em Rhode Island, o mais pequeno estado norte-americano, com
apenas um milhão e 50 mil habitantes, os portugueses e luso-descendentes representam 10 por cento da população. No
Congresso Estadual esse número sobe para 12 por cento – dos
75 membros da Câmara dos Representantes nove têm origem
portuguesa, enquanto no Senado quatro dos 38 eleitos são de
shiuhhh!!!
You’re visiting
the united
states senate!
* diário Insular
vazias. Nem sinal de Obama, Hillary ou
McCain…
No Senado norte-americano, os senadores
assistem às sessões nos seus gabinetes através
de circuito interno de vídeo. Na belíssima
sala do Senado estão apenas os membros da
mesa e a peculiar figura, por já tão inusual,
da dactilógrafa. Circula elegantemente pela
sala com os óculos na ponta do nariz, uma
franja de cabelo negro e, sempre de pé, dedilha velozmente na máquina de escrever que
carrega ao peito.
Habituada, como estou, ao clamor do
Parlamento português, o contraste foi abismal. Entreabri a boca, quase soltei uma
‘
entrei na sala do senado
entusiasmada. [...]
nada. nem sinal
de obama, hillary
ou mcCain…
’
exclamação. Não tive sequer tempo para
tal. Atrás de mim sussurraram: “Shiuhhh,
* TSF
M’am. This is the US Senate!”
D.R
POR AnA CAtArinA sAntos*
ascendência lusa. Eleito pela primeira vez em 1998, com apenas
20 anos, Daniel da Ponte foi o segundo mais jovem senador a
assumir o cargo. Filho de pais açorianos, oriundos da ilha de
São Miguel, fez do aumento do ordenado mínimo estadual uma
das suas bandeiras. Em relação à comunidade portuguesa de
Rhode Island, considera que “está muito mais integrada na sociedade americana do que em Massachusetts”. A educação e a participação política são, no entanto, os principais desafios. Em sua
opinião, “as ligações entre os Açores e Portugal e os Estados
Unidos são cada vez mais estreitas”. “Entre as novas gerações,
é cada vez mais ‘fashionable’ conhecer as raízes”, diz.
Peguei no mapa a preto e branco com as
duas mãos e o papel colou-se aos dedos,
húmidos. Tremia ligeiramente. Os olhos
ávidos varreram o esboço do hemiciclo,
enquanto percorria com os dedos os desenhos das secretárias que tinham os sobrenomes inscritos. De frente para a mesa
do Vice-Presidente dos EUA, contei, da
esquerda para a direita, “Uma, duas…
Aqui está: Obama na primeira fila, segunda mesa da esquerda”. Duas filas atrás,
outro nome que busquei desde o início:
Clinton, na última fila. “Hillary, na última
fila?!” Sorri.
Já só faltava um. Respirei fundo e foquei-me de novo no mapa. “Ala republicana
no lado direito, McConnel não, Dole também não, finalmente detectei-o. “Cá está
– McCain na terceira fila, sexta cadeira.
Fantástico!” Tinha identificado os lugares
onde estariam sentados os senadores que
queria ver ao vivo.
Entrei na sala do Senado entusiasmada.
Sem telemóvel, sem máquina fotográfica
ou bloco de notas. Nada. E em silêncio
absoluto. A sessão decorria com apenas
dois solitários senadores. Um, de pé, falava enquanto apontava para um cartaz; o
outro, sentado no lado oposto, tomava
notas. Todas as outras secretárias estavam
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
Ana Catarina santos (tsF) nos corredores de Capitol hill.
67
soCieDADe
Azores connection
Já sabíamos os nomes uns dos outros, já tínhamos trocado algumas palavras
de circunstância, mas foi ali, na ilha de São Miguel, sob um céu imenso
e o mar a perder de vista, esforçando-nos por alcançar o cume de uma serra,
que criámos os primeiros laços.
D.R
POR pAtríCiA FonseCA
os jornalistas que participaram no programa (com excepção de Filipa simas) e os dois membros da FLAD em são miguel.
Foi cruzando as crateras adormecidas
dos vulcões açorianos que o grupo verdadeiramente se conheceu. Já sabíamos
os nomes uns dos outros, já tínhamos
trocado algumas palavras de circunstância, mas foi ali, na ilha de São Miguel,
sob um céu imenso e o mar a perder de
vista, esforçando-nos por alcançar o
cume de uma serra, que criámos os primeiros laços. Respeitou-se o ritmo de
68
quem tinha os músculos mais adormecidos, estendeu-se a mão a quem temia
as alturas, dividiram-se bolachas e água
com os desprevenidos... Dez quilómetros
à conversa, com pausas para fotografias
e gargalhadas inesperadas, que terminaram nesta foto de grupo, no cume com
vista para o nordeste da ilha, com as
lagoas rasa e comprida a nossos pés. Ali,
a meio caminho entre o continente
europeu e o americano, descobrimos as
coordenadas da vida de cada um e desenhámos o primeiro esboço do mapa da
nossa amizade. Seremos sempre “o
grupo de Washington”, onde aprendemos e crescemos tanto. Mas teremos
sempre de agradecer aos Açores estes
instantes de claridade, que nos abriram
o coração para o que estava para vir.
* Visão
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
portuGAL/euA
só a literatura vence o tempo
“Asas sobre a América”, ciclo de conferências sobre o encontro de escritores portugueses
com autores norte-americanos pretendeu “captar um público jovem”, “apelar à leitura
e ao diálogo”, afirmou Mário Mesquita*, administrador responsável pela área da Cultura.
Breve síntese sobre a misteriosa arte de escrever.
Apresentado por Filipa Melo, o ciclo reuniu no auditório da FLAD estudantes e
professores universitários, escritores, editores, tradutores e visitantes de diversas
áreas do conhecimento.
Segundo William Faulkner (1897-1962),
o escritor fará tudo para escrever mesmo
“roubar a própria mãe”. Para concluir um
livro estará disposto a perder a “honra,
o orgulho, a decência, a segurança e a
felicidade”. Afectada, ao longo de toda a
vida, por várias doenças graves, Carson
McCullers (1917-1967) chegará “a atar
uma caneta ao pulso para poder escrever”,
sem parar. Afinal, o que poderá destruir
um artista? “Nada”, dizia Faulkner. Nada,
a não ser “a morte”.
Os oito escritores norte-americanos até
agora apresentados no ciclo “Asas sobre a
América”, para lá das particularidades
biográficas e das diferenças de estilo literário, partilham o princípio de que escrever não é viver menos, pelo contrário, sem
a experiência da literatura, o mundo é
insuficiente, e mesmo incompreensível.
Indispensável ao acto criador, a solidão,
levada a um ponto extremo, não é para
eles um empobrecimento mas uma forma
de estar perto da Natureza e da sua humanidade interior, incluindo nela o pavor,
o caos e a desumanidade implícitas.
Como lembrou Gonçalo M. Tavares, o
escritor é aquele que “repara”, e no caso de
Philip Roth (n. 1933), “mestre da lentidão”
– autor, entre outras obras, de Pastoral
Americana, 1997 –, o que se detém a observar um personagem, considerando o mínimo pormenor como um indício revelador.
“Escritor omnívoro”, “enraizando a literatura no quotidiano de cada personagem”,
também Saul Bellow (1915-2005) parte de
um “detalhe” para reflectir sobre “a condição humana”. “A essa atenção ao detalhe eu
chamaria força erótica”, explicou Rui Zink,
tradutor de Ravelstein 2000, último romance
do Nobel da Literatura 1976.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
RUI OCHôA
POR susAnA neves
sem a experiência da literatura o mundo é insuficiente e mesmo incompreensível.
Viver de forma “pacata” como Flannery
O’Connor (1925-1964) não a impediu
de “desenvolver uma vida interior sulfúrica”, resumiu Pedro Mexia. Enquanto a
progressiva reclusão de Emily Dickinson
(1830-1886) no seu quarto em Amherst
foi, segundo Ana Luísa Amaral, uma
maneira “simbólica”, “dramatizada” e
“ambígua” de comunicar com o mundo
e afirmar a sua personalidade literária.
Pela leitura de excertos de várias obras
– entre elas, O Coração É Um Caçador Solitário,
1940, de Carson McCullers, feita por Inês
Pedrosa, ou através da expressiva interpretação de Saudação a Walt Whitman, de
Álvaro de Campos, apresentada pelo actor
João Grosso – foi possível verificar que,
na sua essência, a escrita é um organismo
musical, um detonador de imagens,
transversal ao espaço, vencedor desse
69
portuGAL/euA
perder-se nele e percebê-lo para lá de
qualquer apriorismo.
“O facto de viver no Sul não o torna
mais compreensível”, justificava Flannery
O’Connor, feroz opositora da “literatura
documental”. Yoknapatawpha, território imaginado por Faulkner, poderá nunca ser
encontrado apesar de ser situado no
Mississipi.
Alguns dos debates mais participados
de “Asas sobre a América” centraram-se
no clássico binómio livre arbítrio vs predestinação. Na opinião de Lídia Jorge, o
autor de O Som e a Fúria, 1931, William
Faulkner, considerando “a fragilidade do
Homem” tendeu a colocá-lo “face a uma
Totalidade com a qual é preciso nego-
ciar”. Para definir a noção de liberdade
em O’Connor, a americanista Teresa Alves
leu na introdução de Sangue Sábio, 1962:
“O livre arbítrio não significa uma única
vontade mas muitas vontades a agirem
conflituosamente numa pessoa.” Por isso,
a “integridade de alguém reside no que
esse alguém não é capaz de fazer”. Em
suma: “A liberdade é um mistério.”
As abusivas “regularizações” da obra de
Emily Dickinson, desde a publicação dos
primeiros poemas no jornal Springfield daily
Republican, ainda durante a vida da escritora, até às sucessivas edições póstumas,
reveladas por Ana Luísa Amaral, são um
exemplo de como a integridade de uma
obra pode ser ameaçada por preconceitos
‘
Ler um escritor é ser contaminado e iniciado
pela sua rede de influências ou “afluências”
artísticas e literárias, perder-se nele e percebê-lo
para lá de qualquer apriorismo.
’
RUI OCHôA
“Infinito Idiota”, que a cáustica McCullers,
entendia ser o “Tempo”.
As palavras têm o poder de “fazer parar
a linguagem”, lembrou Manuel António
Pina a propósito do “imagismo” em Ezra
Pound (1885-1972), ou seja, projectam
uma “aparição” mental em quem as lê.
Ao mesmo tempo “memória” e “matéria
viva”, as palavras não pertencem ao autor,
imbuídas que estão de vida própria, desafiam-no, evocando um tecido complexo
de “afluências”.
Walt Whitman (1819-1892) não foi a
única influência na invenção de Álvaro de
Campos, defendeu o investigador e tradutor norte-americano Richard Zenith. Para
Fernando Pessoa, o autor de Folhas de erva,
1855, não foi um “pai” mas um “profeta
irmão” que o ajudou a libertar-se do despotismo da unicidade para passar a um
nível superior de conhecimento em que
se redescobre numa nova unidade: a de
ser múltiplo.
Ler um escritor é, portanto, ser contaminado e iniciado pela sua rede de influências ou “afluências” artísticas e literárias,
Apresentação de Lídia Jorge na mesa com Filipa melo, coordenadora do ciclo “Asas sobre a América”. Ao fundo, a imagem de William Faulkner.
70
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
portuGAL/euA
um hino À poesiA
Apesar de a leitura das obras de Whitman
anteceder a criação heteronímica de
Fernando Pessoa, e de o “acariciador de
vida” ter provocado uma perturbação
“absoluta” ao autor de Mensagem, 1934,
influenciando-o a nível literário e estético
mas também numa ordem mais “secreta”,
ou seja, libertando-o “sensorial e sexualmente”, Richard Zenith defendeu que os
heterónimos pessoanos resultam de uma
amálgama de influências, das quais se
destaca a influência literária arcana de
Shakespeare.
Saudação a Walt Whitman, assinado por Álvaro
de Campos, em 1915, resposta ao poema
canto Salut au Monde!, 1856, de Whitman,
seria uma espécie de “poema de solidariedade” de Pessoa a um escritor “profeta
irmão”, um “hino à poesia”, “uma paródia”, “um pastiche”, “um estupro”, feito
pelo “hiper consciente” Fernando Pessoa.
Interessado no estilo de escrita do autor
norte-americano, apreciando, sobretudo,
a sua atitude “inclusiva” face a todas as
manifestações do real, Pessoa não reconhecia na consciência uma fonte exponencial
de felicidade. E em vez de “acariciador de
vida” como Whitman, cultivava a “arte do
fingimento”. Existia “gloriosamente pela
imaginação”.
DA impossibiLiDADe
em DeFinir A AmériCA
No debate subordinado ao tema “Ensino
da Literatura Norte-Americana em
Portugal”, os americanistas Carlos
Azevedo (Universidade do Porto), Teresa
Alves (Universidade de Lisboa) e Mário
Avelar (Universidade Aberta) defenderam
que a América não é tanto uma “fabricadora de mitos”, opinião expressa pelo
ensaísta Eduardo Lourenço, na primeira
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
RUI OCHôA
de ordem machista, linguística e epistemológica. Ser “o único canguru entre a
beleza” custou a Dickinson a reclusão e
a censura, mas graças à persistência, em
escrever e fazer-se publicar também através de cartas, a força do seu talento acabaria por reemergir intacta na edição
fac-similada da sua obra, em 1991.
“Escrever, tal como o entendo, é uma
forma de ser”, afirma Manuel António Pina,
para quem a poesia, à semelhança do autor
de Os Cantos, 1925-1969, e Jorge Luis
Borges, tem a ver com “a música”, “a entoação”, “uma certa respiração da frase”.
O mistério da literatura é como o mistério do mundo, escapa às fórmulas, antecipa e projecta novos leitores.
“escrever, tal como o entendo, é uma forma de ser”, manuel António pina e Filipa melo.
sessão deste ciclo de conferências [ver
Paralelo n.º 2] mas, sobretudo, um espelho
onde se têm projectado algumas das expectativas europeias. No ano em que se celebra o cinquentenário do ensino da
literatura norte-americana em Portugal,
os aspirantes a americanistas poderão
contar com múltiplas “leituras das narrativas fundadoras da identidade americana”, “o questionamento dos clássicos”
e o estudo de alguns dos “temas preferenciais”: a “questão da identidade”, “o
herói rebelde”, a “discrepância entre a
promessa e a realidade”, “o desejo de
evasão”, “a fuga” e a “viagem”. O “multiculturalismo” e a “interinfluência das
artes” nos Estados Unidos são ainda contemplados nos programas universitários
portugueses porque sem esta abordagem
transversal não é possível compreender
“a ideia da América”, na opinião de
Teresa Alves, um “mundo que não acaba”
e por isso é indefinível.
*Público, 21 de Fevereiro de 2008
71
Livros
estante FLAD
‘
Twentieth Century Portugal:
A Historical Overview
José miguel sardica
Universidade Católica Editora, 008
’
Portugal
contemporâneo
POR mAriA ináCiA rezoLA
Em 2003, António Costa Pinto leva a cabo
uma iniciativa relativamente inédita no
panorama nacional: reúne contributos de
académicos de diferentes áreas de especialização (história, economia, política,
cultura, artes, etc.) e publica, em Nova
Iorque, Contemporary Portugal. Politics, Society
and Culture1. Esta ambiciosa e bem conseguida obra propunha-se fornecer a especialistas, estudantes e ao público em geral
uma visão do Portugal contemporâneo,
abordando, para o efeito, aspectos tão
diversos como a política, questões coloniais, relações internacionais, economia,
movimentos migratórios, mudança social,
literatura, arte, etc. Nesse mesmo ano,
Manuel Baiôa, Paulo Jorge Fernandes e
Ribeiro de Meneses publicam um excelente balanço, também em língua inglesa,
sobre a história política do século XX português2. Ainda que com âmbitos diferentes, estes dois trabalhos acabaram por se
tornar indispensáveis a todos os investigadores estrangeiros que desejam iniciar
um estudo sobre o Portugal contemporâneo ou acompanhar os mais recentes
desenvolvimentos académicos operados
neste domínio.
Apesar destes progressos, o público não
especialista continuava a não dispor de uma
obra de síntese que lhe permitisse ter uma
visão rápida mas rigorosa da história recente de Portugal. É essa, em nosso entender,
a grande lacuna que Twentieth Century Portugal,
A Historical Overview vem colmatar. Mas não
é esse apenas o seu mérito.
7
posições polémicas, reveladoras
do domínio do tema e capacidade
reflexiva do autor, que apenas
contribuem para tornar mais
aliciante a leitura da obra.
O seu autor, José Miguel Sardica, há
muito que nos habituou a trabalhos de
inegável e reconhecida qualidade3. Não é
por acaso que no início do estudo tem
preocupação de esclarecer o seu âmbito,
objectivos e limitações. O seu propósito
– familiarizar um público “generalista”
estrangeiro com a história contemporânea
portuguesa – e as naturais “contingências”
de espaço de uma obra deste tipo, levaram-no a optar por se situar no plano da
história institucional e política, recolhendo e sintetizando as investigações que
neste âmbito se têm produzido.
Tendo como ponto de partida os três grandes ciclos do século XX português –
República (1910-1926), Ditadura (1926-1974) Democracia (1974-década de
1980) – Sardica estrutura o seu trabalho
em 20 capítulos de maneira a clarificar
com maior precisão as suas evoluções
e momentos de viragem. A opção pela
síntese – não se espere encontrar novos
factos ou pesquisa original, alerta o
autor – não o impede de assumir uma
posição quanto a alguns dos aspectos mais
polémicos da história recente de Portugal.
Veja-se, a este respeito, o seu posicionamento sobre a democraticidade do regime
republicano português, a família política
em que situa a ditadura salazarista ou o
papel que atribui a alguns dos protagonistas da Revolução portuguesa. Posições
polémicas, reveladoras do domínio do
tema e capacidade reflexiva do autor, que
apenas contribuem para tornar mais aliciante a leitura da obra.
A sinopse é complementada com quatro
importantes anexos – acrónimos, cronologia, biografias e bibliografia – em que,
mais uma vez, o autor deixa patente a sua
mestria. Apesar de a sua área de especialidade ser o século XIX em boa hora aceitou este difícil desafio.
Uma observação apenas, relativamente
secundária, sobre as opções gráficas e a
conhecida resistência dos editores às notas
de rodapé. Mais uma vez, como acontece
em muitas outras obras, a estratégia de
“encaixar” as notas entre o final do corpo
do texto e os anexos não foi, em nosso
entender, a melhor.
Balanço final: um livro há muito esperado que cumpre bem os seus propósitos
de divulgação da história contemporânea
a um público estrangeiro generalista.
1
Pinto, António Costa (ed.), Contemporary Portugal. Politics, Society
and Culture. Nova Iorque: Columbia University Press, 2003.
2
Baiôa, Fernandes, e Meneses, Ribeiro de, “The political
history of twentieth-century Portugal”, in e-JPH, vol. 1,
n.º 2, Inverno de 2003, pp. 2-18.
3
Doutor em História, docente da Faculdade de Ciências
Humanas da Universidade Católica Portuguesa e membro
do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura dessa
mesma universidade, é autor de diversos artigos em
revistas especializadas de história e diversos livros sobre
história política, institucional e cultural de Portugal. Os
seus estudos sobre o franquismo, a regeneração, ou as
biografias de José Maria Eugénio de Almeida e o duque
de Ávila e Bolama são obras incontornáveis da historiografia contemporânea portuguesa.
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
Livros
Vulcão dos Capelinhos
– Memórias 1957-007
victor hugo Forjaz (editor-coordenador)
OVGA – Observatório Vulcanológico
e Geotérmico dos Açores,
Ponta Delgada, 007
Sobre o vulcão
POR FrAnCisCo beLArD
Jornalista freelance
Esta obra colectiva de 826 páginas pesa
cerca de três quilos, mas o seu peso científico e historiográfico é muito superior às
quantidades enunciadas. A sua apresentação
pública a 27 de Setembro de 2007 na
Sociedade Amor da Pátria, na cidade da
Horta, comemorou a erupção dos
Capelinhos cinquenta anos antes, acontecimento natural e histórico que como tal
foi sentido na altura, emocionando os
Açores e o País, e tendo consequências
próprias de um abalo que não era apenas
sísmico. O alarme causado pelo despertar
do vulcão (só adormeceria por volta de 24
de Outubro de 1958) ultrapassou as
dimensões do mero susto, embora grande;
muitas pessoas emigrariam, nomeadamente para os Estados Unidos (ver o recente
volume coordenado por Tony Goulart,
Capelinhos: A Volcano of Synergies – Azorean emigration
to America, 2008, San José: Portuguese
Heritage Publications of California,
452 pp.). Casas ficaram sob lava e cinzas
(massa que no litoral viria a conformar
uma península, aumentando a área da ilha),
jornais, rádios, fotografias, filmes, artigos
e livros repercutiram as alterações geomorfológicas no local e o que daí resultou para
a paisagem e para o tecido social. Depois
houve obras de construção e reconstrução,
e estudos científicos da tectónica e do vulcanismo das ilhas, dando utilidade ao fenómeno; sem isso ficaria confinado a pesados
custos, ainda que sem perda de vidas. Victor
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
Hugo Forjaz, então adolescente, mudou de Não ignoro que esta recensão, breve para
projecto profissional e veio a ser o nome
a dimensão do objecto e sobretudo para
porventura mais conhecido dos geólogos
o seu alcance histórico e científico, padee vulcanólogos que aprofundaram e divul- ce de aridez. Que esta não vos iluda; o
garam a lição dos Capelinhos, coisa que livro contém informação rica e diversificontinua a fazer, como comprova o volume cada, apta a seduzir os leigos que quase
identificado, ao qual pude aceder num dos todos somos, ficando a ser obra de refemomentos comemorativos (ver expresso/ rência e consulta sobre contextos geofísi”Actual”, 13 de Outubro de 2007). cos, geográficos e sociológicos que a
Prefaciado pelo presidente do Governo natureza e a história apontam como proRegional dos Açores, Carlos M. Martins do blemas permanentes dos Açores, ou seja,
Vale César, o livro recolhe contributos também nossos como povo, e um legado
importantes, como (sigo o índice e perdo- para a comunidade científica internacioem-me omissões) os de Júlio Quintino nal. “Capelinhos foi um mundo de apren(que assinou o relatório do Serviço dizagens”, escreve V. H. Forjaz na página
Meteorológico Nacional sobre a erupção 821 do livro que com boas razões ele acha
submarina ao largo da ponta oeste do Faial curto, em epílogo que une retrospectiva
e a cerca de um quilómetro da costa, junto
e prospectiva, no ponto da situação de um
aos ilhéus dos Capelinhos, e mais tarde o
caso não encerrado.
levantamento geomagnético da
ilha para o aludido SMN),
[...] o livro contém informação
Frederico Machado (engenheiro
e director de Obras Públicas a
rica e diversificada, apta a seduzir
quem se devem, em 1958-1959,
os leigos que quase todos somos.
notícias científicas preliminares),
Orlando Ribeiro e Raquel Soeiro
de Brito, John Scofield, Haroun
Tazieff, A. de Castello Branco, F.
Moitinho de Almeida, Georges
Zbyszewski, Octávio da Veiga
Ferreira, C. F. Torre de Assunção,
José Custódio de Morais, José
Correia da Cunha, J. A. Sacadura
Garcia, Viriato Campos, Adrian F.
Richards et alia, A. de Mendonça
Dias, W. H. Parsons, J. W. Mulford,
Victor Hugo Forjaz, Aaron C.
Waters et alia, Guy Camus, Alwyn
Scarth e Jean-Claude Tanguy,
Ricardo Madruga da Costa, Zilda
de Melo França, e ainda Filipe M.
Porteiro, Frederico Cardigos,
Helder Fraga e equipa do projecto OGAMP, etc. O volume inclui
fotografias a preto e branco (coevas) e a cores (mais recentes),
mapas, esboços geológicos e
outros registos documentais, a
que acrescem testemunhos de ou
sobre uma dúzia de observadores
e investigadores do fenómeno,
relatórios, recortes de imprensa...
‘
’
73
Livros
Drawings in Spain
and Portugal
Revista Master Drawings, vol. 45,
nº 3, Outono de 007
Master Drawings Association,
Nova Iorque
desenhos
portugueses
POR CArLos mourA
docente de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
Observava Bernard Berenson, na introdução desse autêntico monumento de connoisseurship que é o seu livro sobre os
desenhos dos pintores florentinos, que o
conhecimento sobre a autoria de um qualquer desenho nunca pode ser estritamente científico. Porque não mensurável, nem
reversível ou demonstrável, tal conhecimento é, no máximo, apenas plausível.
Donde a extrema latitude do debate crítico neste domínio, necessariamente atribuicionista dado o carácter fragmentário
e aleatório das peças em estudo. Visando
a elaboração do corpus dos diferentes artistas do passado, o esclarecimento dos nexos
entre a sua obra gráfica e a pintura, a
escultura ou outras realizações estéticas,
a reconstituição de colecções e o seu significado cultural, ele supõe um elevado
grau de especialização em constante descoberta e revisão. Os núcleos dos museus,
bibliotecas, fundações e colecções (públicas e privadas), além das obras avulsas
constantemente lançadas no mercado,
integram assim todo um campo de investigação pertencente à história da arte.
Ocupando nele um lugar cimeiro, a
revista Master drawings é seguramente a
mais importante publicação internacional
sobre a matéria. Herdeira da Old Master
drawings anterior à II Guerra Mundial,
congrega no seu corpo redactorial e de
74
colaboradores os mais reputados especialistas mundiais. Os
artigos e as recensões críticas
nela publicados são, por isso,
trabalho de ponta e uma referência não apenas para o académico, mas também para o
público culto amante da arte.
Dedicado a Espanha e Portugal,
o número de Outono de 2007
conferiu, pela primeira vez,
algum destaque ao estudo dos
desenhos de artistas portugueses
ou de estrangeiros conservados
em colecções nacionais. Com
particular realce para o contributo de Nicholas Turner, e as
novas revelações sobre Vieira
Lusitano trazidas em excelente
e bem documentado artigo.
Autor de variados livros,
nomeadamente sobre o desenho italiano, conservador no
Departamento de Desenhos e
Gravuras do British Museum e
curador dos desenhos do Paul
Getty Museum de Los Angeles, Turner
ocupara-se já, em 2000, do catálogo da
exposição dos desenhos dos Mestres europeus
em Colecções Portuguesas (Cambridge e Lisboa)
e colaborara no da exposição de Vieira
Lusitano (Museu de Arte Antiga). Daí o
interesse pela obra gráfica do pintor português, cuja prática italiana, próxima da
técnica do desenho à pena e aguada de
Francesco Trevisani e das composições a
giz de Benedetto Luti, originou uma vasta
produção, longe de estar completamente
identificada. Dois estudos para um Martírio
de São Lourenço, em Acireale (Catânia) e
Liverpool, são assim propostos para o
primeiro período romano de Vieira,
enquanto uma Coroação de d. João V (antes
atribuída a Joseph Werner, o Jovem) e uma
alegoria (considerada de um anónimo
florentino), ambas parisienses, ingressam
igualmente no catálogo do artista, a par
de outras folhas mais tardias. Contam-se,
entre estas, uma notável Minerva (colecção
particular) e um Orfeu, de Würzburg, dado
até agora ao círculo de Carlo Maratta, com
o qual alguns dos seus desenhos devem
andar confundidos. Como as sete folhas
da Albertina de Viena, em que se inclui
uma versão da Alegoria da Pintura, independentemente de outras relacionadas sobretudo com gravuras.
Num artigo mais breve, Eduardo Batarda
Fernandes divulga ainda a existência da
colecção da Faculdade de Belas-Artes do
Porto, e das novas aquisições de desenhos
italianos, espanhóis e holandeses que o
apoio mecenático para ela permitiu encaminhar. Havendo a registar, por último,
uma notícia crítica sobre os desenhos de
Fernando Calhau, presentes na retrospectiva intitulada “Convocação I e II”, realizada em 2006-2007 no Centro de Arte
Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian,
em Lisboa. Da autoria de Philippe-Alain
Michaud, discorre sobre o universo poético deste artista contemporâneo, falecido
recentemente, e as suas composições sobre
papel de registos cromáticos totalizantes
(também na colecção da FLAD).
E por aqui se fica a parte relativa à arte
portuguesa, um tanto desequilibrada em
relação à espanhola, sempre mais visível
pelo respectivo acervo e produção
bibliográfica.
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Livros
Voices from the Islands:
An Anthology of Azorean
Poetry
John M. Kinsella
(Selection and translation)
007, Gávea-Brown Publications
Vozes do mar
POR nuno CostA sAntos
O cliché que associa os Açores à poesia
não é, sabemo-lo, descabido. A verdade
é que, desde há muito, tem nascido no
arquipélago vasta produção poética,
de diferentes tonalidades e vocações, muita dela marcada pela sempre invocada melancolia brumosa
das ilhas. Outra ideia recorrente (de
quem conhece os dois lugares,
claro) que não é de todo delirante
é aquela que faz uma ponte entre
os Açores e a Irlanda – em termos
paisagísticos e de universo. Voices
from the Islands, uma antologia de
poesia açoriana organizada por um
irlandês, faz pois confluir dois
lugares-comuns que fazem sentido.
A edição é da Gávea-Brown, editora que tem publicado várias antologias poéticas, de Eugénio de
Andrade a Jorge de Sena, passando
pelos açorianos Emanuel Félix e
José Martins Garcia.
Na introdução, John Kinsella faz
um retrato equilibrado e interessante das características essenciais
da poesia – e da literatura – açoriana. Kinsella encontra alguma
unidade nos temas – o mar, a emigração e (sobretudo) o isolamento
insular, criador de um território
literário autónomo e de uma linguagem própria. Nomes como os
de Pedro da Silveira, Onésimo
Teotónio de Almeida, Eduardo
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
‘
Bettencourt Pinto e Diniz
são trazidas ao texto as ideias de “açorianidade”
Borges são referidos justamente como responsáe a polémica (estafadíssima, diga-se)
veis pelo aprofundamento
em volta da questão da “literatura açoriana”,
da ideia de “poesia açobem resolvida num parágrafo aqui transcrito
riana”, quer através da
da autoria de onésimo Almeida.
recolha de textos quer
através do pensamento e
da reflexão.
Há uma referência importante ao poeta
dade” e a polémica (estafadíssima, digaRoberto de Mesquita, florentino que, -se) em volta da questão da “literatura
tendo vivido no século XIX na ilha das açoriana”, bem resolvida num parágrafo
Flores, escreveu uma poesia influenciada aqui transcrito da autoria de Onésimo.
pela densidade e pela pose de Baudelaire Mas também se fala de “portugalidade”.
e Verlaine. Mas também se recordam
Um sentimento que se resume numa boa
Côrtes-Rodrigues, o homem do Orpheu frase de um dos poetas aqui presentes, o
nos Açores, a geração do seminário de
emigrante Heitor Aghá-Silva: “Só sei choAngra do Heroísmo, publicações como
rar em português” (curiosamente a palaGávea e Atlântida e o desenho que os emi- vra “saudade” não é sempre traduzida da
grantes deram ao lirismo das ilhas. São mesma maneira – umas vezes aparece
trazidas ao texto as ideias de “açoriani- como “yearning”, outras como “nostalgia”). Fica a faltar na introdução
uma breve nota sobre os “novos”
– alguns deles aqui representados,
como Mário Cabral e Rui Machado,
e apesar de tudo reveladores de uma
especificidade literária própria, a necessitar de enquadramento.
O melhor do livro está claramente no prazer com que se lê a versão
em inglês de alguns poemas maiores da poesia açoriana – por exemplo, “As raparigas lá de casa”, de
Emanuel Félix, resulta muitíssimo
bem na versão “The girls at home”.
Outro exemplo: “Eu não sou quem
fiquei; o meu delito”, de José
Martins Garcia, continua a ser perfeito como “I am not the one who
stayed; my crime”. Fica claro neste
livro que os poetas açorianos são,
nos seus melhores representantes,
excelentes e maiores. O pior está
nalgumas escolhas de autores e poemas menos consistentes e mais
questionáveis – que têm o natural
efeito de desequilibrar o retrato.
Voices from the Islands, por ter os poemas no original e em inglês, pode
também funcionar como uma boa
antologia para quem, no continente, nada conhece da poesia açoriana
além dos nomes clássicos.
’
75
Livros
The Americans
robert Frank
Steidl, 008. Fotografias de Robert
Frank e prefácio de Jack Kerouac
(1ª edição, 1958)
Retratos
da América
POR CLArA pinto CALDeirA
Em 1958, a Guerra Fria dominava o mundo,
Eisenhower era o Presidente dos Estados
Unidos, a corrida espacial estava lançada,
ainda existia segregação racial naquele país,
e os grandes movimentos sociais estavam
por vir.
76
Nesse ano, Robert Frank publicava a obra, bolsa do Guggenheim que lhe permitiu
agora reeditada, The Americans – um retrato realizar este livro, Robert Frank declarou à
da América profunda, que resultou de uma
revista Life o que queria transmitir ao públiviagem de vários meses por todos os cantos
co com as suas imagens. Desejava que, ao
do país que o fotógrafo suíço escolheu para olhar uma fotografia sua, as pessoas se senviver, no início da década. Como afirma Jack tissem como quando querem ler um bom
Kerouac, que prefaciou a obra, ao abrir estas verso duas vezes. Kerouac dá-lhe razão,
páginas feitas a preto e branco, e outros contrastes, “não
se sabe se uma jukebox é mais
embora algumas imagens nos confrontem
triste do que um caixão”.
com símbolos onde a alma existe
Robert Frank retrata um país
sem a presença humana, a maioria das
de cowboys, de bandeiras patrifotografias seleccionadas por robert Frank
óticas, de carros modernos,
do advento da televisão, mas
têm gente dentro. ou melhor, americanos.
também de fissuras entre
raças, assimetrias sociais e
feridas de pobreza. Embora algumas imagens
ao classificar este livro como um poema,
nos confrontem com símbolos onde a alma
acrescentando que muitos livros de poesia
existe sem a presença humana, a maioria podem ser escritos sobre ele. Trata-se de um
das fotografias seleccionadas por Robert
olhar humano e delicado sobre a diversidaFrank têm gente dentro. Ou melhor, ame- de americana do final dos anos de 1950,
ricanos. Alguns anos antes de conseguir a uma viagem por dentro da alma de um país
em mutação.
Robert Frank dedicou-se também ao cinema, abandonando temporariamente a fotografia. Acompanhou a geração beatnik,
documentando a sua realidade e protagonistas. As suas afinidades com Kerouac,
nome fundamental deste movimento, estenderam-se à tela, num filme narrado pelo
escritor (Pull Miss daisy). Entre várias obras
consideradas marcos do cinema avant-gard,
destaca-se o polémico documentário sobre
uma digressão dos Rolling Stones, que teve
algumas restrições de exibição, suscitadas
pela própria banda. A ligação à sétima arte
parece natural ao folhear The Americans,
em que a linguagem cinematográfica e
documental está já presente. Sempre atento
aos aspectos mais controversos da realidade,
e sem observar restrições, a vida de Robert
Frank divide-se, desde então, entre estas duas
formas artísticas. Em 1996 foi distinguido
com o prémio do Hasselblad Center, na
Suíça, seu país natal.
Reeditada pela Steidl, em 2008, com prefácio original de Jack Kerouac, The Americans
mantém-se uma obra intemporal. Porque,
para compreender o presente, é importante
contemplar o passado, décadas depois do
final dos anos de 1950, o legado fotográfico do american trotter continua a ser poético.
‘
’
Paralelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
CoLeCção FLAD
FOTOGRAFIA
António sena
Sem título, 1979, grafite, aguarela e aguada sobre papel, 50 × 70 cm, Inv. 511
Ainda hoje não é difícil que os desenhos de António Sena
levantem dúvidas em muitos de nós relativamente ao seu estatuto. À primeira vista poderiam passar por meras folhas de
rascunho, lugares onde alguém se demorou a organizar notas
avulsas, como se num aturado processo de negociação do pensamento. Estão lá os números e as cifras, os seus indiscerníveis
segredos, a medir esforços na rápida caligrafia. Estão lá as hesiParalelo n.o 3
| INVERNO | PRIMAVERA 2009
tações e os recuos, na sua energia insurgente, concretizada
naquele paradoxo tão comum de querer apagar riscando por
cima. Estão lá manchas, nódoas, borrões e toda a espécie de
sinais e indícios que normalmente não nos ocorreria mencionar no inventário das coisas prováveis numa obra de arte.
Também por isso, é absolutamente legítimo que tenhamos
dúvidas quanto ao estatuto destes desenhos – que os encaremos
77
CoLeCção FLAD
como provocações e que lhes respondamos na exacta proporção do confronto que estimulam. É legítimo, e é sobretudo
desejável, ou não fossem estas provocações parte integrante das
obras que aqui se apresentam, e cuja singularidade deve tanto
ao universo dos interesses particulares de António Sena, quanto ao contexto artístico que as viu nascer.
Iniciada em meados da década de 1960, a obra de António
Sena cedo se sintonizou com as propostas da arte internacional
da época. As influências que a pop art, o informalismo, a arte
conceptual ou mesmo a arte minimal tiveram nos primeiros
anos de produção deste artista, materializaram-se em pinturas
e desenhos que, lenta mas objectivamente, testaram uma síntese possível para esta diversidade de propostas e enquadramentos formais. A incorporação de iconografias e processos do
quotidiano, conjugada com a procura sistemática da requalificação do gesto, da instrumentalização do signo, e da poética
da repetição, reuniram-se no estabelecimento de um programa
estético que extraiu desta súmula a sua identidade própria.
Os desenhos que aqui encontramos são um testemunho directo desta identidade e deste esforço de síntese. Na sua impressio-
bruno mArChAnD
António Sena nasceu em Lisboa em 1941. Tendo iniciado o
seu percurso académico no Instituto Superior Técnico e na
Faculdade de Ciências de Lisboa, Sena abandona a formação
na área científica para se inscrever na Sociedade Cooperativa
de Gravadores Portugueses. Em 1965 parte para Londres
como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, cidade
onde frequenta a St. Martin’s School of Arts, e onde reside
até 1975.
Regressado a Lisboa, Sena conjuga a prática artística com a
actividade docente, tendo sido professor de Pintura no Ar.Co.
entre 1978 e 199.
De entre as exposições que realizou desde 1964, destacam-se
a sua participação na LIS’79 – que lhe valeu o 1º prémio deste
certame – bem como as individuais “Obras sobre Papel” e
“Pintura”, ambas no Centro de Arte Moderna da Fundação
Calouste Gulbenkian (Lisboa, 1990 e 00, respectivamente), e
a antológica “Pintura/Desenho 1964-003” no Museu de Arte
Contemporânea de Serralves (Porto, 003).
78
nante contenção de meios, não só podemos identificar os
resíduos de toda esta conjuntura, mas também o carácter idiossincrático da obra de Sena, e uma vitalidade pouco frequente
em obras do chamado modernismo tardio. Realizadas em 1979,
estas peças poderiam certamente servir para ilustrar as oscilações
ocorridas no advento do pós-modernismo. Contudo, a sua energia é claramente moderna, feita de extremadas contradições que
procuram coabitar no espaço da obra. Porque, se olharmos bem,
estes desenhos inscrevem-se em folhas que parecem meras páginas, compõem-se de linhas que por vezes são traços, usam uma
cor que nunca domina, promovem um rigor que nunca ordena,
prometem uma mensagem que não comunica, e estão terminados na forma de um projecto. No fundo, estes desenhos são arte
sem o parecer. E se é por isso que são provocações, é também
por isso que são relevantes: pelo quanto resistem ao paradigma,
pelo quanto desafiam as nossas expectativas e põem a nu as bases
do nosso juízo estético e o índice de liberdade que lhe concedemos.
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FOTOGRAFIA
CoLeCção FLAD
Sem título, 1979, grafite, aguarela e aguada sobre papel, 50 × 70 cm, Inv. 511
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RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
Revista tRimestRal de
Política externa e
Assuntos Internacionais
60 anos da NATO
Manuel Fernandes Pereira
António José Telo
Pedro Manuel Santos
Pedro Aires Oliveira
Sandra Dias Fernandes
Bernardo Pires de Lima
O princípio de Obama
21
12,50
MAR : 2009 : TRIMESTRAL
José Gomes André
António Costa Silva
Manuela Franco
editada pelo
INSTITUTO PORTUGUÊS DE
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
da Universidade Nova de Lisboa
Rua de D. Estefânia, 195 - 5º, D.to
1000-155 Lisboa | PORTUGAL
Tel.: +351 21 3 1176
Fax: +351 21 314 1228
Email: [email protected]
www.ipri.pt
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| INVERNO | PRIMAVERA 2009

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